Download PDF
ads:
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ÍNDIOS NO BRASIL
ads:
ÍNDIOS
NO BRASIL
Marilena de Souza Chaui
Luís Donisete Benzi Grupioni (Org.)
Laymert Garcia dos Santos
Lúcia Bettencourt
Ana Maria de M. Belluzzo
Maria Sylvia Porto Alegre
Aracy Lopes da Silva
Lúcia Hussak van Velthem
Ruth Maria Fonini Monserrat
John Monteiro
Dominique Tilkin Gallois
Berta G. Ribeiro
Isabelle Vidal Giannini
Carlos Frederico Marés de Souza Filho
Washington Novaes
Lux Boelitz Vidal
Ornar Ribeiro Thomaz
Gerôncio Albuquerque Rocha
Priscila Siqueira
"índios no Brasil" é uma publicação do Ministério da Educação e do
Desporto, resultado do programa de promoção e divulgação de mate-
riais didático-pedagógicos sobre as sociedades indígenas brasileiras, apoia-
do pelo Comité de Educação Escolar Indígena do MEC.
ÍNDIOS NO BRASIL
Com a chegada das caravelas às terras que foram posteriormente denomi-
nadas pela cor das madeiras aqui encontradas, iniciava-se capítulo decisivo na
formação histórica do Brasil. O País emergia da confluência de dois mundos
o Europeu e o Ameríndio que viviam até então separados pelas águas
profundas do Atlântico. A terceira confluência veio, já nos primeiros tempos da
colonização, do continente africano.
O encantamento inicial dos europeus com os índios foi acompanhado pela
perplexidade das diferenças que existiam entre as duas culturas. As populações
indígenas foram representadas, assim, de diversas formas: como parte da natu-
reza tropical, como forças braçais necessárias ao aproveitamento das riquezas
naturais que a Terra de Pindorama oferecia ou como possíveis receptores da
obra colonizadora de civilização.
Do mundo colonial ao presente, o Brasil tem discutido, nas mais diversas
interpretações, o passado e o destino de tais populações. A História registra
o desaparecimento e o revigoramento de muitas sociedades indígenas.
Entretanto, o tema das sociedades indígenas no Brasilo é só um tema
do passado. E questão viva, do presente, e que permite perceber a importância
das cerca de duzentas comunidades, com perspectivas e formações históricas
próprias, que existem hoje no País.
O texto constitucional de 1988 é marco relevante na valorização do presen-
te e do futuro dos indígenas brasileiros. Assegurada sua alteridade cultural, tem
o índio o direito da proteção pelo Estado. O Ministério da Educação e do Des-
porto tem envidado esforços, nesse contexto institucional, para estimular uma
educação de qualidade, específica mas também geral, às sociedades indígenas.
, portanto, uma política educacional para o índio brasileiro. Talvez pela
primeira vez, o Brasil tenha política educacional dentro dos princípios do res-
peito à diversidade étnica e cultural e pautada pelo reconhecimento dos valores
e saberes transmitidos pelos indígenas ao longo de muitas gerações.
Esse contexto privilegiado da educação abre caminho para a tolerância e
o reconhecimento das diferenças culturais que só enriquecem a formação so-
cial brasileira. O Plano Decenal de Educação para Todos (1993 2003) ofere-
ce linhas de atuação satisfatória para enfrentar os desafios que se descortinam
na garantia da educação de qualidade para o indígena brasileiro.
E assim, com grande^satisfação, que o Ministério da Educação e do Despor-
to volta a editar a obra índios do Brasil, essa excelente coletânea de artigos
e ilustrações que procura apresentar os índios no curso da História e na pers-
pectiva do próximo milénio.
MURÍLIO DE AVELLAR HINGEL
Ministro de Estado da Educação e do Desporto
Brasília, novembro de 1994
Catálogo índios no Brasil
1. edição: 1992, Secretaria Municipal de Cultura deo
Paulo.
2. edição: 1994, Ministério da Educação e do Desporto.
Copyright cedido pela SMC-SP.
Organização
Luís Donisete Benzi Grupioni
Preparação dos originais:
Maria Valéria Ribeiro Sostena (Coordenação),
Dalva Elias Thomas Silva,
Irany Santos,
Maria Cristina Martins,
Maria das Graças de Souza,
Maria de Fátima Rozales Rodero,
Rejane de Cássia Barbosa da Nóbrega.
Revisão
Ana Lúcia Coelho,
Maria Silvia Mattos Silveira Manzano,
Maria Silvia Pires Oberg.
Pesquisa iconográfica:
Luís Donisete Benzi Grupioni
Projeto gráfico:
Inspirado no trabalho de Moema Cavalcanti para o livro
História dos índios no Brasil, organizado por Manuela Car-
neiro da Cunha e publicado em 1992 pela Companhia das
Letras/FAPESP/SMC-SP
Capa:
Máscara Mehináku coletada por Heloisa Fenelon Costa,
1970, UFRJ/UNB.
Distribuição
Assessoria de Educação Escolar Indígena
Ministério da Educação e do Desporto
Esplanada dos Ministérios
Bloco L - Sala 610
70.047-900 - Brasília - D.F.
Mari Grupo de Educação Indígena/USP
Cidade Universitária
Caixa Postal 8.105
05508-900 -o Paulo - SP.
Brasília, 1994
305.8981 índios no Brasil / organizado por Luís Do-
nisete Benzi Grupioni. Brasília: Ministério da
Educação e do Desporto, 1994.
1. índios da América do Sul Brasil
Aspectos sociológicos.
ÍNDICE
OS ÍNDIOS E A SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA
500 Anos - Caminhos da Memória, Trilhas do Futuro.
Mahlena de Souza Chaui 21
As Sociedades Indígenas no Brasil Através de uma Exposição Integrada.
Luís Donisete Benzi Grupioni 13
Amigos dos índios: os Trabalhos da Comissão índios no Brasil.
Laymert Garcia dos Santos 29
A DESCOBERTA DA AMÉRICA E O ENCONTRO COM O OUTRO
Cartas Brasileiras: Visão e Revisão dos índios.
Lúcia Bettencourt 39
A Lógica das Imagens e os Habitantes do Novo Mundo.
Ana Maria de M. Belluzzo 47
Imagem e Representação do índio no Século XIX.
Maria Syluia Porto Alegre 59
DIVERSIDADE CULTURAL DAS SOCIEDADES INDÍGENAS
Mitos e Cosmologias Indígenas no Brasil: Breve Introdução.
Aracv Lopes da Silva 75
Arte Indígena: Referentes Sociais e Cosmológicos.
Lúcia Hussak uan Velthem 83
Línguas Indígenas no Brasil Contemporâneo.
Ruth Maria Fonini Monserrat 93
O Escravo índio, esse Desconhecido.
John Monteiro 105
De Arredio a Isolado: Perspectivas de Autonomia para os Povos Indígenas
Recém-Contactados.
Dominique Tilkin Gallois 121
As Artes da Vida do Indígena Brasileiro.
Berta G. Ribeiro 135
Os índios e suas Relações com a Natureza.
Isabelle Vidal Giannini 145
O Direito Envergonhado: O Direito e os índios no Brasil.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho 153
ÍNDIOS DO PRESENTE E DO FUTURO
O índio e a Modernidade.
Washington Novaes 181
As Terras Indígenas no Brasil.
Lux Boelitz Vidal 193
"Xeto, Maromba, Xeto!" A Representação do índio nas Religiões Afro-
-Brasileiras.
Omar Ribeiro Thomaz 205
Amazónia, Amazónia:o os Abandoneis.
Gerôncio Albuquerque Rocha 21 7
Imprensa e Questão Indígena: Relações Conflituosas.
Priscila Siqueira 227
CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO "ÍNDIOS NO BRASIL"
Inventário dos Artefatos e Obras da Exposição "índios no Brasil:
Alteridade, Diversidade e Diálogo Cultural".
Luís Donisete Benzi Grupioni 233
SOBRE OS AUTORES 275
A Severo Gomes,
amigo dos índios
OS ÍNDIOS E A SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA
Quem lê os primeiros relatos sobre o
Novo Mundo - diários e cartas de Colom-
bo, Vespúcio, Caminha, Las Casas - ob-
serva que a descrição dos nativos da terra
obedece a um padrão sempre igual:o
seres belos, fortes, livres, "sem, sem rei
e sem lei". As descrições de Vespúcio, mais
do que as dos outros,o de deslumbra-
mento, particularmente quando se referem
aos homens jovens e às mulheres. A ima-
gem dos "índios"o é casual: os primei-
ros navegantes estão convencidos de que
aportaram no Paraíso Terrestre e descre-
vem as criaturas belas e inocentes que vi-
veriam nas cercanias paradisíacas. A esta
construção imaginária veio acrescentar-se,
mais tarde, a que identificava òs nativos
com as 10 tribos perdidas de Israel e que,
encontradas, ofereciam o primeiro e seguro
sinal de que se aproximava o Tempo do
Fim, a restauração do Reino de Deus na
Terra. Quando, no século XVIII, fazendo
500 Anos - Caminhos da Memória,
Trilhas do Futuro
Mariíena de Souza Chaui
a crítica iluminista da civilização e anun-
ciando o romantismo, Rousseau construiu
a figura do bom-selvagem, apenas concluiu
um caminho aberto no final do século XV.
Contraposta à imagem boa e bela dos
nativos, a ação da conquista ergueu uma
outra, avesso e negação da primeira. Ago-
ra, os "índios"o traiçoeiros, bárbaros, in-
dolentes, pagãos, imprestáveis e perigosos.
Postos sob o signo da barbárie, deveriam
ser escravizados, evangelizados e, quando
necessário, exterminados.
Durante os últimos 500 anos, a Amé-
ricao cessou de oscilar entre as duas
imagens brancas dos índios e, nos dois ca-
sos, as gentes e as culturas só puderam
aparecer filtradas pelas lentes da bondade
ou da barbárie originária. Cegos e surdos
para a diferença cultural (no sentido am-
plo deste termo), os pós-colombinos e pós-
cabralinos realizaram a obra da dominação,
mesmo quando julgaram que faziam o
contrário, desejosos de aumentar o reba-
nho do povo de Deus ou os cidadãos da
sociedade moderna.
Entre os efeitos dessa obra - coloniza-
ção, evangelização, escravidão, aculturação,
extermínio - destaca-se um: a certeza de
que os povos indígenas pertencem ao pas-
sado das Américas e ao passado do Bra-
sil. Passado, aqui, assume três sentidos.
Passado cronológico: os povos indígenas
o resíduo ou remanescente em fase de
extinção como outras espécieis naturais.
Passado ideológico: os povos indígenas
desapareceram ou estão desaparecendo,
vencidos pelo progresso da civilização que
o puderam acompanhar. Passado sim-
bólico: os povos indígenaso apenas a
memória da boa sociedade perdida, da
harmonia desfeita entre homem e nature-
za, anterior à cisão que marca o advento
da cultura moderna (isto é, do capitalismo).
No presente, os índios seriam apenas uma
realidade empírica com a qual é difícil li-
dar em termos económicos, políticos e so-
ciais. Donde a ideia de "Reserva Indíge-
na", espaço onde se conservam
espécimens e resíduos.
A Exposição "índios no Brasil: Alteri-
dade, Diversidade e Diálogo Cultural" pro-
curou uma perspectiva crítica face à dupla
tradição do bom e mau selvagem e à ideo-
logia do passado como único tempo que
resta aos povos indígenas. Procurou o plu-
ral - índios - em lugar do singular "o índio"
(inexistente). Procurou o presente - as na-
ções indígenas fazem parte do presente
brasileiro e as lutas em torno da demarca-
ção e exploração das terras indígenas é a
prova contundente dessa presença atual.
Procurou a diferença de culturas: o olhar
do branco sobre a alteridade, reduzindo-
-a, na maioria das vezes, à identidade (os
índios como antepassados arcaicos dos bra-
sileiros ocidentais); o olhar dos índios so-
bre os brancos, olhar de desconcerto, es-
panto, temor e cólera; os olhares dos índios
entre si, isto é, a pluralidade de línguas, his-
tórias, culturas. E deixou abertas as trilhas
do futuro: diálogo ? destruição ? aprendi-
zado recíproco ?
Talvez a resposta inicial a estas pergun-
tas se encontre no abaixo-assinado de mi-
lhares de crianças, jovens e adultos, diri-
gidos à Presidência da República, exigindo
a demarcação das terras indígenas, o res-
peito à autonomia político-cultural das na-
ções indígenas e o convite para que as dis-
cussões e decisões sobre os problemas
ecológicos passem pelo crivo da moderni-
dade indígena que nos tem muito a
ensinar.
tes no tratamento da diversidade étnica e
cultural existente no Brasil de 1500 aos dias
atuais. Os meios de comunicação conti-
nuam produzindo imagens distorcidas da
realidade indígena. As organizações não-
-governamentais, que realizam campanhas
de apoio aos índios e produzem material
informativo de qualidade sobre eles,m
atingido uma parcela muito reduzida da so-
ciedade. O Estado brasileiro, por sua vez,
tem implementado políticas e programas
de assistência aos índios sem levar em con-
sideração o conhecimento disponível so-
bre estas populações e mesmo a opinião
destes grupos. Preconceito, desinformação
e intolerância têm, assim, cercado as po-
pulações indígenas no Brasil.
Procurou-se, então, com a realização
deste evento, reverter tal quadro através da
seleção e da apresentação de aspectos re-
levantes que definem e conformam as so-
ciedades indígenas, bem como de temas
quem estruturado nossa reflexão sobre
estas sociedades. Pretendeu-se apresentar
a diversidade de soluções que os grupos
indígenas lograram construir no que diz res-
peito a sua organização, sobrevivência e re-
lações com o seu meio ambiente, enfati-
zando que as sociedades indígenas das
baixas terras sul-americanas configuram um
tipo de instituição social e de desdobramen-
to da capacidade criativa e adaptativa da
espécie humana.
Propunha-se, inicialmente, a exposição
trabalhar, em perspectiva histórica, as ima-
gens produzidas, de um lado e de outro,
no contato das populações indígenas do
Novo Mundo com os europeus, as mani-
festações sócio-culturais das sociedades in-
dígenas hoje e sua inserção no mundo mo-
derno e contemporâneo. Para tanto, foram
definidos três eixos conceituais propostos
como estruturadores dos diferentes módu-
los que comporiam a exposição. Estes ei-
xos foram, então, traçados a partir de três
conceitos distintos: a alteridade, a diversi-
índios no Brasil: Alteridade, Diver-
sidade e Diálogo Cultural é o título da ex-
posição que ocupou, de 14 de junho a 27
de julho de 1992, todo o andar térreo do
Pavilhão da Bienal, uma área de quase
5.000 m
2
, no Parque do Ibirapuera em
o Paulo. Uma das atividades centrais do
projeto cultural "500 Anos: Caminhos da
Memória - Trilhas do Futuro" desenvolvi-
do pela Secretaria de Cultura paulistana
para celebrar os 500 anos de descoberta
da América, os 200 anos do esquarteja-
mento de Tiradentes e os 70 anos da Se-
mana de Arte Moderna, a exposição teve
como objetivo principal oferecer à popu-
lação da cidade deo Paulo um conjun-
to de informações corretas, contextuali-
zadas e acessíveis sobre a realidade indí-
gena brasileira, procurando-se combater as
noções de selvageria, atraso cultural e hu-
manidade incompleta que caracterizam a
compreensão das sociedades indígenas pe-
lo senso comum. Pretendeu-se com a rea-
lização desse evento contribuir para uma
mudança qualitativa no tratamento da rea-
lidade indígena brasileira, entendendo que
a apresentação desse conjunto confiável de
informações é uma das condições básicas
para que, de fato, ocorra mudanças nas for-
mas de pensar e nas atitudes com relação
as mais de 200 sociedades indígenas que
habitam o território nacional.
O ponto de partida para a elaboração
do projeto conceituai e museográfico des-
sa exposição
1
foi a avaliação de que o co-
nhecimento produzido e acumulado sobre
as sociedades indígenas brasileiras ainda
o logrou ultrapassar os muros da aca-
demia e o círculo restrito dos especilistas.
Nas escolas a questão das sociedades in-
dígenas, frequentemente ignorada nos pro-
gramas curriculares, tem sido sistematica-
mente mal trabalhada. Dentro da sala de
aula, os professores revelam-se mal infor-
mados sobre o assunto e os livros didáti-
cos, com poucas exceções,o deficien-
As sociedades indígenas no Brasil através
de uma exposição integrada
Luís Donisete Benzi Grupioni
Estandartes da
entrada da
exposição índios no
Brasil, Pavilhão da
Bienal. Parque do
Ibirapuera. Foto:
Luís Grupioni.
dade e o diálogo cultural. O registro da al-
teridade nos serviria de guia para resga-
tar o imaginário investido na situação de
contato e que nela se transforma. De suas
várias perspectivas: brancos descobrindo
índios e índios descobrindo brancos e ou-
tros índios. A noção da diversidade nos
permitiria explorar a sua não-homogenei-
dade: os índioso diversos de nós, mas
também diversos entre si. E, enfim, esta di-
versidade posta em causa apontaria para
o diálogo com estas culturas que fazem
parte de nosso presente e que estão tam-
m incluídas no horizonte e na definição
de nosso futuro comum. Abdicando do
viés histórico, mas mantendo sequências
temporais significativas, a exposição foi di-
vidida em mais de 30 módulos organiza-
dos a partir desses três eixos conceituais
estruturadores.
Passo, agora, a demonstração de co-
mo articulamos cada um destes conceitos.
Eixos conceituais:
1. Alteridade: figurações do outro entre
brancos e índios
A descoberta de um novo mundo ha-
bitado por povos até então desconhecidos
foi, sem dúvida, o acontecimento mais ex-
traordinário e decisivo da moderna histó-
ria do Ocidente e desencadeou uma vas-
ta elaboração de discursos e imagens sobre
estes povos e lugares. O contato mantido
com os povos do Orienteo se cercara
do sentimento de perplexidade que, então,
tomou conta dos europeus. Os padrões co-
nhecidos das diferenças culturais dificilmen-
te se aplicam a eles, multiplicando os con-
flitos de interpretação sobre sua identidade
e as polémicas sobre os procedimentos
adequados para a colonização e o conta-
to. De iníco, sabemos, deo inverossímel
-sem, sem lei e sem rei- esse Mundo vi-
zinha o fantasmagórico e, depois, passa a
oscilar na mente dos europeus entre a ima-
gem de um inferno bestial e de um paraí-
so terrestre ao sabor dos interesses, elabo-
rações e fantasias que presidem o tempo
da conquista.
Dos descobridores aos nossos contem-
porâneos, as sociedades indígenas foram,
quase sempre, projetadas do lado da na-
tureza por uma cultura incapaz de acolher
a alteridade. Figuras como a de bárbaros,
bons selvagens, primitivos e arcaicos foram
elaboradas nesse processo de contato, pa-
cificação e convívio experimentado pelas
populações nativas no Novo Mundo após
a chegada e instalação dos europeus.
E se a alteridade se colocou como um
problema para os europeus, ela também
o foi para os povos indígenas, que tiveram
de reelaborar seus esquemas conceituais
para dar conta da irrupção destes novos
personagens. De um lado e de outro do
Atlântico o encontro destes povos se cons-
tituía num momento capital de suas histó-
rias. O contato representou o fim da auto-
nomia sócio-cultural de muitos povos
indígenas do continente eo foram pou-
cos os que sucumbiram perante a deter-
minação dos colonizadores. A presença
dos europeus foi se constituindo como al-
go permanente, que exigia respostas e es-
tratégias de enfrentamento. A atitude de
estranhamento e as múltiplas respostas da-
das por estes povos à presença dos euro-
peus revela que a alteridade foi enfrenta-
da apesar da descontinuidade que
impunha as diversas ordens sociais estabe-
lecidas.
Prova disto é que muitos povos indí-
genas, no processo contínuo de reelabo-
ração de suas tradições míticas, incluíram
os brancos nos seus mitos de criação. Na
mitologia dos índios Waiãpi do Amapá, por
exemplo, a irrupção dos brancos aconte-
ce nos tempos remotos da criação do uni-
verso, quando o herói cultural Ianejar cria
os Waiãpi, que integram a categoria dos
humanos, juntamente com os brasileiros,
os negros e os franceses, estando todos fa-
dados a uma vida breve, que os distingue
do criador da humanidade. Neste tempo
mítico viviam todos juntos, mas o herói cul-
tural foi obrigado a separá-los impingindo-
-lhes línguaso inteligíveis, locais de ha-
bitação diversos e instrumentos
diferentes.
2
Para os índios Krahó, por sua
vez, o herói cultural teria oferecido aos ín-
dios a possibilidade de escolha entre o ar-
co e flecha e a espingarda e outros bens
industrializados. Os índios, numa escolha
considerada mais tarde como equivocada,
ficaram com o arco e por isso os brancos
tornaram-se civilizados e tecnologicamente
superiores. Em outros sistemas culturais,
os brancos foram incorporados de forma
diversa. Os Bororó na sua classificação e
apropriação dos elementos e seres que
compõem o universo designaram o clã dos
Bokodori Ecerae (um dos 8 clãs em que
dividem sua sociedade e seus membros)
como possuidores dos bens do branco e
do próprio homem branco. Assim como o
tatu-canastra, o colar com garras de onça,
e certas constelações de estrelas, o homem
branco foi descoberto, apropriado e inte-
grado no universo metafísico bororó.
oo passivas e nem uniformes, as-
sim, as respostas dadas pelos grupos indí-
genas para a alteridade representada pe-
los brancos dado, de um lado, a diversidade
socio-cultural existente e, de outro, os va-
riados processos de contato nos quais es-
Mapa da exposição
Solenidade de
abertura da
exposição índios no
Brasil com a
presença da Prefeita
deo Paulo, Lufza
Erundina, da
Secretária de
Cultura, Marilena
Chaui e de
lideranças indígenas
Guarani da aldeia
do Morro da
Saudade. Foto: K.
Alcovér.
tas sociedades indígenas estiveram en-
volvidas.
A partir dessa conceituação da alteri-
dade, passamos para a avaliação das pos-
sibilidades de apresentação museográfica.
E aqui tivemos uma grande dificuldade: a
de contrapor as representações sobre os ín-
dios realizadas pelos brancos, com aque-
las representações sobre os brancos feita
pelos índios, pois buscávamos um equilí-
brio, tanto no aspecto da comparação for-
mal, quanto na apresentação museográ-
fica. A mitologia é, sem dúvida, o grande
terreno para as elaborações sobre o ho-
mem branco e sobre o contato. Mas os mi-
tos constituem uma elaboração filosófica
de difícil entendimento e decifração, e mui-
to mais ainda de apresentação museográ-
fica. Há entretanto alguns artefatos produ-
zidos pelos índios que ao incorporarem
pedaços de bens industrializados, ou repre-
sentarem de forma pictórica o homem
branco, poderiam ser utilizados para a con-
traposição que estávamos nos propondo
a apresentar. Há ainda algumas represen-
tações cerimoniais onde os índios represen-
tam os brancos, como por exemplo a fes-
ta realizada pelos Bororó, quando satirizam
a figura do branco. Entretanto, os elemen-
tos de que dispúnhamos para apresentar
o olhar indígena se mostrava muito redu-
zido e até mesmo empobrecido diante do
que traríamos para apresentar as figurações
elaboradas pelos brancos. Na avaliação fi-
nal, decidimos desistir da contraposição e
elegemos as representações sobre os índios
e suas apropriações pela nossa sociedade
como o foco de desenvolvimento do con-
ceito da alteridade e como gancho para a
apresentação na forma de uma
introdução- para a segunda e terceira par-
te da exposição. A visão dos índios sobre
os brancos -e o registro efetivo de sua
presença- foi apresentada na segunda parte
da exposição em diferentes módulos.
O registro da alteridade serviu de guia,
então, para resgatar o imaginário investi-
do na situação de contato e permitiu a or-
ganização de um conjunto extremamente
rico de obras raras e originais. Aberta com
uma reprodução da célebre carta de Pêro
Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel, esta
primeira parte da exposição abrigou um
conjunto de obras nunca antes reunido.
Das cópias das pinturas de Albert Eckhout,
feitas por Neils Aagard Lutzen a pedido do
imperador D. Pedro II, passando por ori-
ginais de Debret, Rugendas, Florence e
Wied-Neuwied; registrou-se a corrente in-
dianista na pintura histórica através dos pin-
índio Xavante fala -
durante a
inauguração da
exposição - sobre o
centro das aldeias
Jês, lugar público
por excelência, onde
se desenvolvem os
principais rituais e
ondeo tomadas
as decisões políticas.
Foto: Vilma
Gonçalves/CIMI.
céis de Oscar Pereira da Silva, Benedito
Calixto, Vitor Meirelles e Diogo da Silva
Parreiras, na literatura através dos textos de
Gonçalves Dias e José de Alencar e na-
sica através de orginais da ópera de Car-
los Gomes. Primeiras edições de cronistas,
viajantes e naturalistas foram expostas em
vitrines. A representação do índio na pin-
tura e na escultura contemporânea (Vol-
pi, Poty, Glauco Rodrigues, Portinari, Luis
Rochet, Waldomiro de Deus,) foi precedi-
da pelo registro da volta às origens em-
preendida pelo modernismo (Di Cavalcan-
ti, Rego Monteiro e Brecheret). Deu-se um
destaque especial para 23 desenhos iné-
ditos de Cândido Portinari feitos nos anos
40 para ilustrar uma edição de "A Verda-
deira História" de Hans Staden. A incor-
poração do índio pela sociedade envolven-
te foi apresentada pelo uso de nomes e
referências indígenas em produtos comer-
ciais, no carnaval, no cinema, na filatelia
e na numismática, na literatura de cordel
e no culto aos caboclos realizado pelas re-
ligiões afro-brasileiras. Esta primeira parte
encerrou-se com uma vitrine vazia onde
poderia ter figurado um dos seis últimos
mantos de plumas dos índios Tupinambá,
todos depositados em museus europeus,
e que a curadoria da mostra tentou -sem
sucesso- trazer para o Brasil. Entendia-se
o manto como um objeto catalizador, que
se impõe pela densidade de significados
que, dentro do seu contexto de origem ou
fora dele, podia sugerir, capaz de sinteti-
zar o processo de expropriação e museifi-
cação ocorrido com o Novo Mundo após
a chegada dos europeus no séc. XVI.
2. Diversidade: implosão do conceito ge-
nérico de índio
No segundo momento da exposição,
nossa proposição foi desenvolver o concei-
to da diversidade. A apresentação da di-
versidade das manifestações sócio-culturais
das sociedades indígenas no Brasil esbar-
rava na aparentemente homogeneizada e
folclorizada categoria genérica de índio.
Era, assim, preciso desconstruir tal noção,
subtraindo-lhe sua força de unidade homo-
geneizadora para que se constatasse a ri-
ca diversidade existente entre as socieda-
des indígenas no Brasil contemporâneo.
Fruto de um erro histórico do século
XVI e invenção da sociedade nacional, a
categoria índio, perpetuada através dos
anos, acaba adquirindo uma conotação
política. Ela passa a ser incorporada pelos
grupos indígenas no processo de constru-
ção de uma identidade coletiva,
nomeando-os frente ao restante da socie-
dade. Estabelece um contínuo de seme-
lhanças estruturais entre as diferentes so-
ciedades indígenas e um marco em relação
aos civilizados. A manutenção desta iden-
tidade social coletiva, por parte dos índios,
passa pela manipulação de suas especifi-
cidades culturais e dos estereótipos da so-
ciedade envolvente eo implica na anu-
lação de suas marcas étnicas.
Se é recente, entretanto, a apropriação
pelos grupos indígenas da categoria índios,
é fato que ela tem nos servido há muito
tempo. Tem possibilitado a criação de uma
unidade genérica que permite, num primei-
ro momento, diferenciar nossa sociedade
do conjunto das diferentes sociedades in-
dígenas existentes no território brasileiro.
As sociedades indígenas compartilham
de um conjunto de traços e elementos-
sicos, queo comuns a todas elas e as di-
ferenciam de sociedades de outro tipo. A
lógica e o modelo societal compartilhado
pelos grupos indígenaso diferentes do
nosso. Duas ordens de problemas estão co-
locados: o que faz com que uma socieda-
de seja indígena? e o que as diferencia uma
das outras? E o modo de viver, de organi-
zar as relações entre as pessoas e destas
com o meio em que vivem e com o so-
brenatural que faz com que uma socieda-
de seja indígena. Sociedades indígenaso
sociedades igualitárias,o estratificadas
em classes sociais e sem distinções entre
possuidores dos meios de produção e pos-
suidores de força de trabalho.o socie-
dades que se reproduzem a partir da pos-
se coletiva da terra e dos recursos nela
existentes e da socialização do conheci-
mento básico indispensável à sobrevivên-
cia física e ao equilíbrio sócio-cultural dos
seus membros.
3
Mais que a especialização, embora
sempre haja exímios caçadores, cantado-
res e artesãos, é a divisão do trabalho por
sexo e por idade que regula a produção
nestas sociedades. As tarefas do dia-a-dia
o repartidas entre homens e mulheres de
acordo com suas idades e nenhuma clas-
se ou grupo detém o monopólio sobre uma
parte do processo produtivo ou sobre uma
atividade específica. Despontam, todavia,
o xamã, regulando e intermediando as re-
lações com o mundo dos espíritos, e o che-
fe apaziguando as disputas políticas e bus-
cando consenso e coesão. Regras,
compromissos e obrigações estabelecidos
pelas relações de parentesco, de amizade
ou criadas em rituais e em contextos polí-
ticos definem a distribuição de bens e ser-
viços. Generosidade, redistribuição e reci-
procidade criam, recriam e intensificam
relações nessas sociedades.
4
Embora possamos tentar apreender es-
tas sociedades isolando aspectos como o
político, o religioso, o económico, estes se
entrelaçam num todo compacto e coeren-
te. A coesão íntima de todos os elemen-
tos conforma a especificidade sócio-cultural
de cada um destes grupos. Isto coloca o
segundo problema que é identificar os me-
canismos que permitem vislumbrar a diver-
sidade destes grupos.o só habitam áreas
geográficas distintas e vivenciam processos
históricos específicos estes gruposo em
si diferenciados. Estudos monográficosm
revelado o nexo cultural de muitas socie-
dades indígenas. Trata-se de uma riqueza
sócio-cultural adaptativa significativa em so-
lucionar de forma original problemas co-
locados a todos os grupos humanos: co-
mo estabelecer relações entre seus pares,
com os seus opositores e com o meio na-
tural e sobre-natural que os circundam.
A língua é sem dúvida o primeiro cri-
tério lembrado em termos de diversificação
cultural.o cerca 170 línguas indígenas
conhecidas, classificadas e distribuídas. O
contato histórico e o uso de mesmas áreas
ecológicas resultando no compartilhar de
traços culturais comuns deu ensejo a um
outro critério de classificação cultural: as
áreas culturais. Povos em contato acabam
se influenciando mutuamente, difundindo
e fazendo empréstimos de elementos cul-
turais diversos. E possível, pois, conformar
áreas onde grupos experimentam traços
culturais uniformes.
Estes dois critérios falam da diversida-
de de dentro para fora, isto é, alicerçam-
-se em elementos constitutivos destas so-
ciedades. Mas é possível ainda agrupá-las
a partir das frentes de expansão capitalis-
ta da sociedade envolvente que chegaram
até estas sociedades e então verificar a si-
tuação delas em termos do seus graus de
contato.
5
De todos esses critérios o que sobra é
que cada sociedade indígena se pensa e
se vê como um todo homogéneo e coe-
rente e procura manter suas especificida-
des apesar dos efeitos destrutivos do con-
tato. Um Guarani ou um Yanomami,
apesar de índios,o continuar se pensan-
do como um Guarani e como um Ya-
nomami.
Nessa segunda parte da exposição, es-
truturada em torno do conceito da diver-
sidade sócio-cultural das sociedades indí-
genas, optamos por uma apresentação
museográfica desdobrada em dois momen-
tos: a diversidade, propriamente dita, e a
exemplaridade. Trabalhou-se primeiro com
a implosão do conceito genérico de índio,
subtraindo-lhe sua força homogeneizado-
ra. Os índiosoo apenas diversos de
nós,o também diversos entre si: 200 po-
vos, 170 línguas e dialetos sendo falados,
morando em dezenas de aldeias, habitan-
do diferentes áreas ecológicas em todo o
território nacional e submetidos a diferen-
tes processos de contato com segmentos
da sociedade envolvente.
Um conjunto de 20 totens (ampliações
fotográficas em tamanho natural de índios)
introduziam o visitante nesse novo momen-
to da exposição. Aí o visitante podia seguir
por duas rotas distintas. De um lado ele en-
contraria dois mapas com a localização dos
povos indígenas no Brasil e uma seleção
de artefatos (plumária, trançado, cerâmi-
ca, tecelagem e máscaras rituais) de dife-
rentes grupos indígenas, que se comple-
tavam com um longo painel com
fotografias de casas e aldeias, que rodea-
vam algumas maquetes de estruturas de
casas indígenas. Quatro calendários de ati-
vidades económicas de grupos indígenas
diferentes davam conta de encerrar essa
apresentação da diversidade de ocupação
e adaptação ao território. Se o visitante se-
guisse a outra rota se defrontaria com um
longo painel com a classificação de todas
as línguas indígenas conhecidas no Brasil.
Ali dois "brinquedos" apresentavam 24 pa-
lavras em línguas indígenas diferentes: o
visitante rodava um círculo e descobria co-
mo se falava a palavra mão, por exemplo,
em Xavante, Minky, Yanomami, Kaxara-
ri, Kulina, Aweti, Tupi antigo ... Uma ban-
cada com diversos brinquedos infantis in-
troduzia o tema da socialização nas
sociedades indígenas. Esta era seguida por
vitrines e painéis onde foram apresentados
armas, instrumentos de guerra e diferen-
tes instrumentos musicais.
Compartilhando uma série de traços
Durante uma visita
monitorada, crianças
recebem explicações
sobre o
processamento da
mandioca feito pelos
índios Tukano na
reprodução de uma
casa de Farinha
ambientada com
artefatos
etnográficos. Foto:
Luís Grupionl.
Filmes e vídeos etnográficos exibidos na exposição índios no Brasil
Xingu/Terra
1981. 106min. Filme de Maureen Bisilliat.
Pemp
1988. 27min. Direção e fotografia: Vicent
Carelli.
Primeiros Contatos com os Txukarramãe
1990. 14min. Direção: Maureen Bisilliat.
O Enigma Verde de Altamira (The Green
Puzzle of Altamira)
1989. 52min. Filme de Lode Cafmeyer.
Fruto da Aliança dos Povos da Floresta
1990. 20min. Direção e fotografia: Siã Ka-
xináwa.
Yanomami: a Luta pela Demarcação
1989. 30 min. TV Cultura. Repórter Especial.
Entrevista com Verá Recove
1989. 19min. Programa A Voz da Floresta.
Macsuara Kadiwel.
Funeral Bororó
1990. 47min. Baseado em documentário ci-
nematográfico de Darcy Ribeiro e Heiz Forth-
man (1953. 34 min. Alemanha. Brasil).
Os Kaiapó Saindo da Floresta
1989. 58min. Direção: Terence Turner.
Povo da Lua, Povo do Sangue
1984. 27min. Marcello G. Tassara e Cláudia
Andujar.
Mineração e Desenvolvimento em Área In-
dígena
1987. 15min. Celso Maldos e Ailton Krenak.
Vídeos nas Aldeias
1989. 9min. Direção: Vicente Carelli.
Kararaô: um Grito de Guerra
1989. 78min. Programa Repórter Especial TV
Cultura deo Paulo/Roseli Galleti.
Funeral Mentuktire/Nascimento
s.d. - 27min. Yoshikuni Takahashi.
O Espírito da TV
1990. 18min. Fotografia e direção: Vicente
Carelli.
Wai'A, O Segredo dos Homens
1988. 15min. Direção e pesquisa: Virgínia
Valadão.
Yanomami: Saúde
1990. 57min. Direção: Caco Mesquita. TV 2
Cultura -Repórter Especial.
Mato Eles?
1983. 33min. Direção : Sérgio Bianchi.
Festa da Moça
1987. 20 min. Direção: Vicente Carelli.
Na Trilha dos Uru-Eu-Wau-Wau
1984. 55min. Direção: Adrian Cowell.
Yanomami: Morte e Vida
1990. 30min. Direção: Mónica Teixeira. TV
Manchete. Manchete Urgente.
O Caminho do Fogo
1984. 55min. Direção: Adrian Cowell.
Os Arara
1984. 134min. Direção: Andrea Tonacci.
Contato com uma Tribo Hostil: Txikão
1967. 26min. Direção: Jesco Von Puttmaker.
Reinado na Floresta
1973. 31 min. Direção: Adrian Cowell.
A Tribo que Fugiu do Homem
1973. 78min. Direção: Adrian Cowell.
Expedições Famosas
1953. 24min. Direção: James Marshall.
Ameríndia
1990 Direção: Conrado Berning.
Krahô: os Filhos da Terra
1990 - JBRACE Direção: Luiz Eduardo Jorge.
Contato com uma Tribo Hostil
30 min. Direção: Harry Hastings.
Aos Ventos do Futuro
45min. Direção: Hermano Penna.
CPI do índio
9min. Direção: Hermano Penna.
Tribo que se Escondeu do Homem
90min. Direção: Adrian Cowell.
Esses e Outros Bichos
22min. Direção: Renato Neiva Moreira.
Guarani
lOmin. Direção: Regina Jeha.
índios: Direitos Históricos
23min. Direção: Hermano Penna.
Xingu/Luta
9min. Direção: Maureen Bisilliat. Marcelo
Tassara.
Tamarikuna
30min. Direção: Harry Hastings.
Missa da Terra sem Males
35min. Direção: Conrado.
República Guarani
lOOmin. Direção: Sílvio Back.
Kaigang
19min. Direção: Inimá Simões.
A nominação,
iniciação e morte de
um indivíduo,
importantes rituais
dos fndios Bororó,
foram apresentados
na exposição através
de três cenários com
bonecos
ornamentados. Foto:
Luís Grupioni.
comuns, as sociedades indígenas se dife-
renciam muito uma das outras. Trabalhou-
-se, então, com aspectos significativos do
universo indígena a partir da eleição de al-
gumas especificidades: a casa de farinha
Tukano, os rituais de nominação, iniciação
e morte dos Bororó, o etno-conhecimento
dos Xikrin, a concepção do cosmo dos ín-
dios Waiãpi e a pintura dos Kayapó mere--
ceram destaque.
3. Diálogo cultural: índios do presente
e do futuro
O terceiro e último momento da expo-
sição foi estruturado para combater uma
série de equívocos que cercam a realida-
de indígena e para demonstrar uma reali-
dade pouco conhecida.
o obstante a crença generalizada de
decréscimo das populações indígenas, bem
como sobre sua degeneração e empobre-
cimento cultural, fato é que a partir dos
anos 70, e mais ainda nos últimos anos,
o contigente populacional indígena tem
crescido de forma constante, como se mos-
tram também revigoradas suas culturas,
com o aumento de seu reconhecimento e
auto-estima. Ao lado disto, consolidam-se
instrumentos jurídicos que garantem a pro-
teção e direitos específicos a estes grupos,
e embora muitos ainda considerem que os
índios se constituem como obstáculos pa-
ra a expansão de atividades económicas
capitalistas em diversas regiões,o é mais
concebível a admissão pública do extermí-
nio destas populações, como tantas vezes
ocorreu no passado. Por força constitucio-
nal hoje o próprio Ministério Público está
preocupado com os índios e seus direitos,
e o Estado, apesar de sua ineficiência, con-
ta com condições materiais objetivas para
atender as demandas formuladas pelas so-
ciedades indígenas, a quem deve assistir.
É certo que o Estado continua man-
tendo uma posição ambígua nesta ques-
tão. Ele oscila entre um protecionismo ge-
nérico, marcado pela importância dos
índios para a ideologia da nacionalidade
e consusbstanciado numa legislação pro-
tetora que reconhece direitos formais, e
uma prática sistemática de descaso e des-
respeito para com estas populações, enten-
dendo os índios como impecílho para o de-
senvolvimento e transíormando-os em
ícones da negação do progresso.
6
Essa ambiguidade do Estado se repro-
duz na sociedade civil e permite, por exem-
plo, que a nação assista estarrecida ao mas-
sacre de 14 índios Tikuna no Igarapé do
Capacete em março de 1988, ou que per-
maneça passiva -ainda que comiserada-
diante da tragédia Yanomami no auge da
atividade de predação dos garimpeiros.
Distantes, maso o suficiente para que
os ignoremos, os índios e seus problemas
Por onde começar
uma pesquisa sobre índios?
ROTEIRO
BIBLIOGRÁFICO
índios no Brasil
Alteridade - Diversidade - Diálogo Cultural
Do conjunto de
publicações didáricas
produzido para a
exposição índios no
Brasil, destaca se o
Roteiro Bibliográfico
com 25 indicações
de livros.
insistem em nos incomodar. Eles nos co-
locam em contato com a face autoritária
de um Estado prepotente e centralizador
e com uma sociedade civil frequentemen-
te apática que titubeia cada vez mais en-
tre fechar os olhos ou apavorar-se diante
dos menores nos semáforos, dos pais de
família sem emprego, de grupos de exter-
mínio ou de suicídios em massa como dos
índios Kaiowá. Se para setores da socie-
dade civil os índios,o obstante sua pre-
sença efetiva, representam somente uma
herança cultural a ser resgatada, para uma
parcela cada vez mais significativa desta
mesma sociedade os índiosm direitos e
devem ser respeitos. Pesquisa recente rea-
lizada emo Paulo indica que mais de
80 % da população é a favor da demar-
cação das terras indígenas, mesmo com
prejuízo de projetos de exploração eco-
nómica.
Os índios e seus problemas nos inco-
modam ainda porque, ao afirmarem sua
diversidade e especificidade cultural, recla-
mam a dívida secular de dominação etno-
cida que se seguiu ao descobrimento e, de-
pois, ao esfacelamento do ideal libertário
representado pelo índio "bom selvagem",
sempre presente no imaginário coletivo do
Ocidente.
Hoje, ao chamarem atenção para a
viabilidade e a necessidade de respeito, aos
seus tipos diferenciados de existência e or-
ganização, os índios estão nos questionan-
do a fundo sobre o nosso modelo de so-
ciedade. Eo é propondo o seu modelo
como plausível para nós, mas antes de tu-
do como referencial: "os índioso bons
para pensar", poderia dizer um leitor en-
gajado de Lévi-Strauss.
A violência cometida contra popula-
ções nativas e a preocupação com sua pre-
servaçãom levado, por sua vez, a mobi-
lização na área científica. Alguns
pesquisadores chamam a atenção para o
potencial genético diferenciado represen-
tado por cada uma destas sociedades e pa-
ra a importância de sua manutenção. Ou-
tros trataram de lembrar e registrar o
conhecimento milenar desenvolvido por
estes povos no conhecimento e no trato do
meio que habitam. É, assim, que novas es-
pécies animais, vegetais e minerais foram
conhecidas e estão sendo investigadas. A
medicina indígena, a utilização equilibra-
da do potencial energético da floresta ama-
zônica - que sustenta populações nativas
há séculos - reclamam o reconhecer dos
saberes indígenas e seu legado para o res-
tante da humanidade. Foram eles que do-
mesticaram plantas que integram dietas e
cardápios de grupos que hojeo se con-
ceberiam sem elas: mandioca, milho, ba-
tata, tomate, feijão, borracha, castanha-do-
-pará, erva-mate, amendoim, guaraná,
quinina, algodão e cacau, para ficar ape-
nas em alguns.
7
No bojo da vaga ecológica que varre
o mundo, muitos passaram a nutrir simpa-
tia pelos índios a partir da visão de que es-
teso só defendem a natureza, mas fa-
zem parte dela, assim como a mata
atlântica ou o mico-leão dourado. Viven-
do integrados à natureza,o ecológicos
em essência e, assim, devem ser protegi-
dos e preservados. Evidentemente que os
índiosm uma estreita relação com a na-
tureza e sua sobrevivência depende do
equilíbrio desta relação. Mas quando se tor-
nam recorrentes notícias de que índios ven-
dem madeira ou propiciam atividades de
garimpo em suas terras, então essa ima-
gem idílica do selvagem imerso na na-
tureza precisa ser revisada. Simétrica a es-
ta posição, é a do Estado que sempre
tratou os índios como seres desprovidos de
vontade política, naturalizados e vistos co-
mo variáveis passivas nos seus planos es-
tratégicos de desenvolvimento e ocupação
do território nacional. Para os planejado-
res governamentais, frequentemente os ín-
dioso apenas "um problema ambiental
para as grandes obras de engenharia". As-
sim. a força adquirida no final dos anos 80
pelo par índio/natureza precisa ser recon-
siderada,o só porque encobre muitos
problemas, mas porque está assentada so-
bre um equívoco: o de que o reconheci-
mento dos direitos indígenas se faz em de-
corrência de seu valor ecológico. Ora, é
preciso ficar claro que os direitos indíge-
nas independem de vivência ecológica des-
tes grupos, pois provêm do fato de se cons-
tituírem como grupos humanos, social e
culturalmente diferenciados.
8
Visitantes assistem
um vídeo sobre a
invasão de
garimpeiros na área
indígena
Nambiquara no
módulo sobre
mineração, garimpo
e terras indígenas.
Foto: Luís Grupioni.
Folder com a
programação dos
eventos paralelos da
exposição índios no
Brasil.
Oficina
de trançado
indígena
A partir das folhas da palmeira
babaçu, buriti e inajá, os povos
indígenas trançam cestos, pe-
neiras, abanos, bolsas e outros
utensílios domésticos. Os ín-
dios Krahó, em Goiás, conhe-
cem 12 formas de começar o
trançado de um mesmo tipo de
cesto. Venha aprender mais so-
bre a arte do trançado com a an-
tropóloga Ester de Castro.
05,08,09, 15,22,23
de julho- 15:00h.
Oficina de
pintura facial
Pintando suas faces, seus cor-
pos e seus objetos, os índios
expressam momentos e senti-
mentos importantes em suas
vidas. Jenipapo, urucum, car-
o e barroo utilizados na
arte de pintar-se. A antropólo-
ga c artista Elsje Maria Lagrou
ensina a fazer alguns motivos
de pintura facial e explica seus
significados.
27 de Junho- 1 1:00 h.
28 de Junho-11:00 h.
05 de Julho- ll:00h.
Oficina
de argila
o muitas as formas, os use >s
e as decorações dos potes de
cerâmica feitos pelos índios. O
ceramista Oey Eng Goan vai
confeccionar algumas bone-
cas de barro, imitando a arte
dos índios Karajá, que moram
na ilha do Bananal. Venha mo-
delar uma boneca de argila.
04 de julho
1
1:00 h. r 14:00 h.
12 de julho
U:00h.
Oficina
de línguas
indígenas
"Tupi or not Tupi?". Falam-se
hoje no Brasil mais de 170 lín-
guas indígenas diferentes. Es-
sa pluralidade linguística, ex
pressão e constituição da di-
versidade sócio-cultural indí-
gena. será trabalhada pela lin-
guista Ruth Monserrat.
12 de julho- 15:00 h.
18 de julho- 1 1:00 h.
Apresentação
de repentista
No desafio característico da ar-
te do repente, o artista popular
Jota Barros e seu amigoo se
enfrentar para falar sobre os
índios do Brasil. Venha assistir
a essa manifestação da arte p< >-
pular brasileira.
20 e 27 de junho-
15:00 h.
11 de julho -
15:00h.
18 de julho -
15:00h.
Apresentação
de sons
indígenas
Marlui Miranda é uma das pou-
cas cantoras brasileiras que se
dedica ao estudo e à interpre-
tação dos sons indígenas. Para
ela a música indígena constitui
um exercício de liberdade e
criação, que envolve toda a c< i
munidade. Venha conferir seu
trabalho sobre a sonorização
indígena.
14 de junho - 18:00 h.
25 de julho- I5:00h.
Apresentação
de dança e
música Guarani
Os índios Guarani que habi-
tam, milenarmente a Mata
Atlântica brasileira, apresen-
tam aspectos de seu universo
mítico e cultural na encenação
"Mito da criação do mundo e
outras lendas". Resgatar a tra-
dição indígena é um dos obje-
tivos do Núcleo de Arte Mile-
nar Ambá Arandú, que coor-
denará estas apresentações.
19 e 26 de julho -
I
1:00 h. 14:00 li.
e 15:30 h.
Conversas com
um chefe
Waiãpi
O líder Kassiripiná Waiãpi, que
mora na aldeia do Mariry, no
Amapá, conta estórias e fala
sobre a cultura do seu povo.
Pala também sobre os problc-
mas que os Waiãpim
enfrentando para garantir
a integridade de seu território.
21, 24 e 28 de junho -
15:00 h.
Debate sobre
a realidade
indígena
A Comissão índios no Brasil,
criada pela Secretaria Munici-
pal de Cultura deo Paulo,
realiza duas reuniões de traba-
lho e discussão sobre temas
atuais referentes à temática in-
dígena.
26de junho- 14:00 h
17 de julho- 14:00 h
Lançamento do
livro "Grafismo
Indígena"
A editora Nobel e a Universi-
dade deo Paulo lançam o li-
vro "Grafismo Indígena - Estu-
dos de Antropologia Estética".
organizado por Lux Vidal, e
que reúne artigos de antropó-
logos e pesquisadores sobre a
arte gráfica indígena brasileira.
26de junho- 18:00 h.
Lançamento do
livro "História
dos índios
no Brasil"
A Secretaria Municipal de Cul-
tura, a Companhia das Letras e
a FAPESP lançam o livro "His-
tória dos índios no Brasil", or-
ganizado por Manuela Carnei-
ro da Cunha, reunindo diver-
sos artigos de estudiosos so-
bre o tema.
24 de julho - 19:00 h.
Contadores
de história
As tradições indígenasm
inspirado a literatura infamo-
juvenil para criar belas histó-
rias. Contadores de história li-
gados às bibliotecas munici-
pais contam histórias sobre os
índios para o público infantil.
(Veja a programação das ses-
sões de conto no hall de entra-
da da exposição.)
Ciclo de
vídeos
etnográficos
Diariamenteo exibidos-
deos etnográficos produzidos
por entidades de apoio aos ín-
dios e filmes relacionados à te-
mática indígena. (Veja a pro-
gramação diária no hall de en-
trada da exposição.)
Outros eventos:
Durante os meses de junho e
julho, esses e outros eventos
acontecem no espaço de
multi-uso da exposição
índios no Brasil, no andar tér-
reo do Pavilhão da Bienal, no
Parque do Ibirapucra. (Acom-
panhe a programação pela im-
prensa.)
Crianças participam
da conversa com o
líder indígena
Kassiripiná Waiãpi
no espaço multi-uso
da exposição. Foto:
Fernando Conti.
o muitos os equívocos e as distor-
ções que cercam a questão indígena, es-
pecialmente no Brasil. Assim, a proposi-
ção de que "os índios estão, e para ficar"
implica em aceitar que um projeto de re-
cuperação da cidadania brasileira ou um
projeto de modernidade deve reservar um
espaço para os índios e para suas deman-
das. A convivência com a diversidade po-
de representar uma rica experiência cultural
para todos. E o diálogo só será possível se
conhecermos mais e compreendermos me-
lhor essas sociedades.
Neste sentido elegemos como soluções
museográficas para trabalhar o tema do
diálogo cultural, conceito organizador dos
últimos módulos da exposição, o trabalho
das entidades de apoio aos índios, a emer-
gência plural das organizações e associa-
ções indígenas, os direitos indígenas no
atual texto constitucional, a questão da de-
marcação e o problema do garimpo e da
mineração em terras indígenas e a apro-
priação de instituições típicas do mundo
ocidental, como o museu e o centro de cul-
tura, por parte dos índios (como os Tiku-
na e o Guarani deo Paulo). Esses te-
mas foram eleitos como sinais da vitalidade
indígena no presente.
Exposição integrada: eventos
paralelos
A exposição assim constituída com-
preendeu também uma mostra de vídeos
e filmes selecionados, visitas monitoradas,
conferências com índios e especialistas,
apresentações musicais, oficinas de tran-
çado, cerâmica, pintura facial e línguas in-
dígenas, distribuição de materiais didáticos
de referências sobre índios e uma lojinha
para venda de publicações e artesanato. O
serviço de monitoria da exposição possi-
bilitou que mais de 11.000 estudantes da
rede de ensino pública e particular deo
Paulo tomassem parte em visitas guia-
das.
9
Um abaixo-assinado solicitando a
demarcação das terras indígenas, em cum-
primento ao artigo 67 do Ato das Disposi-
ções Constitucionais transitórias da atual
Constituição, esteve a disposição do públi-
co visitante: 8.458 adultos e 2.871 crian-
ças assinaram o abaixo-assinado que foi
encaminhado ao presidente da República
Itamar Franco. Este conjunto de eventos
e serviços buscou aumentar a possibilida-
de de reflexão, participação e aproveita-
mento da exposição por parte do público
visitante.
Painéis com textos, fotografias amplia-
das, obras de arte, livros raros, artefatos in-
dígenas, ambientes culturais recriados e so-
norizados, vídeos, maquetes e mapas
preencheram o vasto espaço do andar tér-
reo da Fundação Bienal convidando o-
blico visitante a refletir sobre suas ideias e
atitudes perante as sociedades indígenas.
Uma exposição deste porte, talvez a maior
já realizada no Brasil quer pela sua exten-
o ou pelo conjunto de questões aborda-
das, esteve sujeita a diferentes leituras e
apropriações.
Pensando nisto, e no público hetero-
géneo que teríamos visitando a exposição,
procuramos desde o início evitar que a ex-
posição se realizasse como a ilustração de
um sistema -ainda que lacunar- de conhe-
cimentos estabelecidos pelas especialida-
des da etnologia, bem como cuidamos de
contornar a falsa segurança que uma apre-
sentação demasiadamente dirigida e estru-
turada poderia induzir no público, obsta-
culizando sua própria atividade de
interrogação e compreensão. Deste modo,
ao visitante foram oferecidos eixos orga-
nizadores, sugestões de conexão de blo-
cos informativos e de segmentos de senti-
do, deixando espaço para sua própria
intervenção na construção dos itinerários.
Procurou-se, ainda, no projeto arquitetô-
nico da exposição, interromper as sequên-
cias esboçadas por "intervalos", momen-
tos mais reflexivos, constituídos por obras
singulares -objetos catalizadores- que se im-
põem pela densidade de seu valor cultu-
ral, para além das conexões de significa-
ção sugeridas (itens de exceção ou raros
por seu valor artístico, teórico ou históri-
co, seja das culturas indígenas ou de sua
interpretação pela nossa, sempre restituí-
dos, uns e outros, ao contexto da sua pro-
dução ou cercadas das informações neces-
sárias para a compreensão de sua relevân-
cia e sentido). Assim fizemos com os de-
senhos de Portinari e com a sala do man-
to Tupinambá.
Procuramos, enfim, com o desenvol-
vimento dos conceitos da exposição, fazer
uma crítica da forma como a questão in-
dígena tem se apresentado no nosso coti-
diano e um convite à reflexão sobre nos-
sas ideias e posturas sobre o tema.o se
pretendeu com isto que o público saísse da
exposição com a sensação de compreen-
ção e domínio do objeto exposto. Pelo con-
trário. buscou-se uma aproximação do uni-
verso indígena, através da suscitação de
dúvidas, de incompreensões e de limites
de apreensão. Esperamos que ao sair, o
público estivesse inquieto e incomodado
diante do que viu, ouviu e experimentou
enquanto percorria o espaço da exposição.
Um início de diálogo com as culturas indí-
genas -um dos objetivos centrais desta
exposição- exige des a rarefação de nos-
sas certezas, o questionamento de uma-
rie de ideias pré-concebidas, incompletas
e muitas vezes equivocadas. Entendemos
que a busca da compreensão do outro pas-
sa necessariamente pela interrogação so-
bres mesmos, ou, ao menos, sobre al-
gumas de nossas ideias e opiniões.
Esta exposição, acreditamos, deu um
passo neste sentido.
Notas
nas no Brasil,o priorizando nenhuma linha polí-
tica ou ideológica específica.
2. Cf. Gallois, Dominique 1985 "índios e bran-
cos na mitologia Waiãpi: da separação dos povos
à recuperação das ferramentas" in Revista do Mu-
seu Paulista. N.S.. vol. XXX, USP.o Paulo.
3. Silva, Aracy Lopes da 1987 "Nem Taba,
nem Oca: uma coletânea de textos à disposição dos
professores" in Aracy Lopes da Silva A questão
indígena na Sala de Aula: subsídios para profes-
sores de 1? e 2? graus.o Paulo, Ed. Brasiliense.
4. Grupioni, Luís Donisete Benzi 1988 A
1 A curadoria da exposição índios no Brasil enten-
deu.. desde o início dos seus trabalhos, que a reali-
zação de um evento de tal envergadura devia se
constituir num espaço de interação entre os diferen-
tes personagens que formam o campo antropoló-
gico e indigenista brasileiro. Neste sentido foram con-
vidados a tomar parte, em momentos distintos do
processo de viabilização desta exposição e dos even-
tos paralelos, especialistas ligados a diferentes uni-
versidades, museus e organizações não-
-governamentais. Procurou-se, assim, fazer um
reconhecimento legítimo e coletivo do conjunto dos
trabalhos acumulados junto às sociedades indíge-
questão indígena no Brasil, mimeo.,o Paulo,
Comissão Justiça e Paz.
5. Silva, Aracy Lopes da 1988 índios,o
Paulo, Ed. Ática.
6. Durham, Eunice 1983 "O lugar do índio"
in Lux Vidal (org.) O índio e a Cidadania,o
Paulo, Ed. Brasiliense.
7. Ribeiro, Berta G. 1990 Amazónia Urgen-
te: cinco séculos de história e ecologia, Belo Ho-
rizonte, Ed. Itatiaia.
8. Andrade, Lúcia e Viveiros de Castro, Eduardo
1988 "Hidrelétricas do Xingu: o Estado con-
tra as sociedades indígenas" in Santos, Leinad e An-
drade, Lúcia As Hidrelétricas do Xingu e os Po-
vos Indígenas,o Paulo, Comissão Pró-índio de
o Paulo.
9. Os monitores da exposição índios no Brasil par-
ticiparam do curso de reciclagem "500 anos depois:
os índios no Brasil Contemporâneo", que foi minis-
trado para os funcionários das bibliotecas munici-
pais que, ano a ano, atendem uma avalanche de
estudantes à procura de dados sobre os índios para
suas pesquisas escolares.
Amigos dos índios:
os trabalhos da Comissão índios no Brasil
Laymert Garcia dos Santos
A Comissão índios no Brasil nasceu na
Secretaria Municipal de Cultura deo
Paulo, como uma das facetas de um gran-
de projeto comemorativo da descoberta da
América intitulado "500 Anos: Caminhos
da Memória, Trilhas do Futuro". Faceta que,
entretanto, desde o início, trouxe a marca
de um questionamento sobre o próprio
sentido da comemoração.
Com efeito, o que poderia esta signifi-
car? A celebração de um encontro, de um
desencontro ou de um mau-encontro en-
tre europeus e índios, civilizados e primiti-
vos? E celebração para quem? Indagado
a respeito, quando se começou a pensar
no assunto, ainda em 1990, o líder da
União das Nações Indígenas, Ailton Kre-
nak respondera que, em seu entender, os
índioso tinham o que comemorar, nem
o que contra-comemorar, porque essa era
uma questão dos brancos e para os bran-
cos, cabendo a estes, e só a eles, avaliar
o que tinham sido suas relações com os po-
vos da terra ao longo de cinco séculos. E
completara: se os brancos concluírem que
erraram, que comemorem os quinhentos
anos de guerra contra as populações indí-
genas com um gesto de boa-vontade, de
reconciliação.
Devolvida aos brancos por um índio,
a questão da comemoração sofrera no en-
tanto uma inflexão importante. Agora já
o se tratava mais de perguntar o que os
índios pensam sobre o descobrimento: se
querem aproveitar a oportunidade para ex-
pressarem seu ponto de vista; o outroo
queria falar, mas antes convidar o branco
a rever sua mentalidade e conduta, a efe-
tuar uma conversão e a traduzi-la em atos.
A Secretária Municipal de Cultura, Ma-
rilena Chauí, decidiu aceitar o convite, fa-
zer o gesto de reconciliação. Surgiu então
a ideia de se formar uma comissão de ami-
gos dos índios que se reunisse mensalmen-
te de outubro de 91 a outubro de 92 e, so-
mando forças, sinalizasse a necessidade de
se estabelecer uma relação positiva entre
os brasileiros e os brasileiros natos por ex-
celência. O ano parecia propício: além do
aniversário da descoberta, havia a Eco-92
no Rio.
A disseminação e o aprofundamento
da consciência ambiental, em decorrência
das graves ameaças que pesam sobre o
planeta,m despertado em toda parte a
atenção para o fato de que os povos pri-
mitivos cultivam um valor que o progres-
so descartou e que, no entanto, pode vol-
tar a ser crucial para a sobrevivência de
todos: o vínculo com a terra. Ao contrário
do homem moderno, para quem a terra é
dos homens, para o primitivo, os homens
é queo da terra. No primeiro caso o ho-
mem se encontra fora do meio e o conce-
be apenas como fonte de recursos à sua
disposição; no último, há uma implicação
homem-meio, um comprometimento que
leva o primitivo a "tomar conta do mun-
do". Ora, tudo indica que a crise ambien-
tal está repondo, em novas bases, o vín-
culo antigo. Pois se até há pouco o
compromisso com a terra nos aparecia co-
mo um traço de arcaísmo, logo um com-
promisso com a Terra nos parecerá a úni-
ca possibilidade de futuro.
Em toda parte há vozes, cada vez mais
numerosas, alertando para a importância
que os povos primitivos estão assumindo,
o tanto como resquícios de um passa-
do que o progresso fatalmente eliminará,
mas como portadores de um valor maior
do qual depende nosso futuro. E o Brasil.
que tem o privilégio de abrigar em seu ter-
ritório quase duzentos povos indígenas,
com suas línguas, seus mitos, seus refina-
dos conhecimentos da terra, se dá ao lu-
xo, por ignorância, racismo e preconceito,
de desprezar e dilapidar um património cul-
tural rigorosamente inestimável.
Os brasileiros aindao atinaram com
o que está ocorrendo e, como seus ante-
passados, continuam tratando os índios co-
mo populações que devem desaparecer.
Foi se impondo, portanto, a convicção de
5? Centenário da Descoberta da Améri-
ca, a Secretaria Municipal de Cultura da
cidade deo Paulo teve em vista, desde
o primeiro momento, que a signifição
maior do evento deve ser buscada no seu
registro propriamente antropológico, no im-
pacto do encontro de humanidades diver-
sas, a do ocidente europeu e das popula-
ções indígenas do Novo Mundo: o "Novo
Mundo" é novo no sentido absoluto,o
da geografia, da cartografia, da paisagem
e do nunca antes visto, mas no sentido de
descentrar os europeus, de colocar a eles
a pergunta sobre sua alteridade radical.
Quemo esses homens, quase inve-
rossímeis na sua originalidade? Se há ho-
mens tais - "sem, sem lei e sem rei" -.
como definir os limites do humano? Quem
é humano e o que é o humano?
Nestes cinco séculos o ocidente res-
pondeu de vários modos a estas questões.
Sucederam-se na imaginação europeia
bárbaros, bons selvagens, primitivos e ar-
caicos, redesenhando a cada passo a figura
de seu etnocentrismo - constantemente et-
nocidário. Ora, comos mesmos nos co-
locamos hoje face a estas interrogações nas
nossas relações efetivas com as populações
indígenas das terras do Brasil?
... A mudança ...
Até há bem pouco tempo os duzen-
tos povos indígenas no Brasil continuavam
sendo considerados primitivos, atrasados,
folclóricos, um arcaísmo que o progresso
da civilização acabaria superando, através
da violência e da aculturação. Até há pou-
co, seu futuro era a ausência de futuro: a
previsão de extinção que se prolonga des-
de o descobrimento.
Nos últimos anos, entretanto, a crise
ambiental do planeta começou a exigir a
reversão dessa tendência e a demonstrar
a necessidade da questão indígena ser tra-
tada em outra dimensão. A influência das
florestas tropicais nas condições climáticas
e, consequentemente, na qualidade de vi-
da de todos os continentes; a importância
da manutenção da diversidade biológica;
a percepção de que a natureza também é
tecnologia, tecnologia de produção, num
momento em que a própria tecnologia se
revela nossa segunda natureza; a riqueza
que precisávamos favorecer uma mudan-
ça de mentalidade e mostrar que, por in-
teresse deles e nosso, urgia preservar a sua
integridade. As sondagens preliminares
com eminentes amigos dos índios
mostraram-nos que havia receptividade pa-
ra nossa proposta. Ao que tudo indicava,
estávamos no caminho certo; mas, ao mes-
mo tempo, a própria pertinência da inicia-
tiva, e as respostas que ela suscitava em
nossos interlecutores, intensificavam o sen-
timento de que a cultura brasileira rejeita
o diálogo com as culturas nativas,
segregando-as e sufocando-as, e levavam-
-nos a uma descoberta - a questão indíge-
na é uma questão brasileira, nacional, que
nos concerne intimamente e entretanto ja-
mais emerge em sua amplitude e comple-
xidade.
As conversas preliminares resultaram
numa carta de intenções que procurava ex-
plicitar , para possíveis membros, a razão
de nossa empresa. Escrita por Sérgio Car-
doso, Dalmo Dallari e o autor destas linhas,
ela também incorporava valiosas sugestões
e comentários de Marilena Chauí, Severo
Gomes, Manuela Carneiro da Cunha, Car-
los Frederico Marés e António Cândido.
Com o documento nas mãos, contactamos
os amigos dos índios que queríamos reu-
nir. Intitulado "1992 e a Questão Indíge-
na", o texto dizia:
"A história...
Ao iniciar seus preparativos para a
grande efeméride de 1992, a passagem do
Primeira reunião de
trabalho da
Comissão Índios no
Brasil, em 11.10.91.
Foto Fernando
Conti.
de um saber tradicional que preserva o
meio-ambiente porque tem como princí-
pio cuidar do mundo e porque se percebe
como parte integrante da natureza - tudo
isso vem suscitando a reavaliação da exis-
tência do índio, a descoberta do alto valor
de sua cultura para o mundo contempo-
râneo e uma articulação inédita desta com
a cultura tecno-científica. Considerando-se
ainda que cada vez mais nos tornamos ca-
pazes de apreciar a originalidade e a pro-
fundidade do saber que perpassa sua cons-
tituição sócio-política - sociedade sem
Estado e contra o Estado -, a cultura dos
povos indígenas do Brasil deixa, então, de
ser uma herança negativa para tornar-se
uma contribuição fértil e promissora para
a sociedade brasileira e para toda a huma-
nidade.
O índio, senhor da terra por ocasião da
chegada dos europeus, sempre manteve,
e mantém ainda hoje, uma convivência
harmónica e íntima com a natureza. Re-
conhecendo e respeitando a terra, as ma-
tas, os rios e também a fauna como fon-
tes de vida, o índio soube estabelecer com
estas entidades um relacionamento respei-
toso e inteligente, utilizando-as na medi-
da estrita de suas necessidades, sem agre-
dir ou destruir.
O europeu e, depois, também o norte-
-americano entraram nas terras dos índios
e continuam a procurá-los como fontes de
riqueza e de matérias primas. Derrubaram
florestas, envenenaram rios, dizimaram ou
afugentaram animais, revolveram as entra-
nhas da terra à procura de riquezas. E mui-
tos índios foram mortos, outros tiveram que
abandonar o abrigo natural que lhes ga-
rantia a sobrevivência física e cultural.
Desde 1973 existe lei obrigando o go-
verno federal a demarcar as terras indíge-
nas e quase nada foi feito, embora todos
saibam que a demarcação facilitaria a pro-
teção da posse, que é direito assegurado
aos índios pela Constituição.
Por que as terrasoo demarcadas?
Quem tem interesse na omissão do gover-
no federal e que forças protegem os omis-
sos? Por que nem o Exército, que contro-
la a Amazónia, nem a Polícia Federal
conseguem impedir que mineradores in-
vadam as terras indígenas e nelas perma-
neçam? Como poderia ser feita a explo-
ração das riquezas existentes nessas terras
sem destruição da natureza e sem prejuí-
zo para os índios?
Evidentemente, a nova dimensão da
questão indígena começa a provocar, den-
tro e fora do país, manifestações de toda
ordem. O estado de espírito com relação
aos índios está mudando. As diversas en-
tidades e organizações que se ocupavam
do problema vêem agora a entrada em ce-
na de novos atores, novas abordagens, no-
vos interesses, e sentem-se compelidas a
se reformularem. O momento é, portan-
to, propício para tentarmos compreender
o que ocorre e favorecer, em novas bases,
o encontro dos brasileiros com os povos idí-
genas. Um reencontro com o outro que,
afinal, é reconciliação consigo mesmo, uma
vez que as culturas indígenaso antes de
tudo, culturas da terra... e que reconhece-
Aprescntação
pública das
atividades
integrantes do
Projeto 500 Anos e
apresentação da
proposta de trabalho
da Comissão índios
no Brasil. Teatro
Municipal. 11.10.91.
Fotos Fernando
Conti.
O presidente da
FUNAI, Sidney
Possuelo, e a
advogada Eunice
Paiva participam de
uma das reuniões
da Comissão. Ao
lado, os membros
Márcio Santilli e a
antropóloga Lux
Vidal. Foto
Fernando Conti.
mos que integram de maneira definitiva
nosso futuro comum.
... O projeto
A Secretaria Municipal de Cultura pre-
tende trazer estas novas ressonâncias da
questão indígena à consideração e debate
da população deo Paulo, de várias ma-
neiras:
Em primeiro lugar mapeando e forne-
cendo ao público mais amplo, através de
uma grande exposição intitulada "índios no
Brasil", as informações fundamentais con-
cernentes às populações indígenas do país:
Quem são? Quantos são? Como se agru-
pam? Que línguas falam? Que instituições
produziram? Que costumes mantêm? O
que pensam? Que arte criam? Enfim, bus-
car dar contornos concretos à imagem
pouco definida e frequentemente distorcida
da sociedade sobre as populações in-
dígenas.
Em segundo lugar, tomando a inicia-
tiva de sugerir e oferecer seu apoio aos uni-
versitários, cientistas e homens de cultura
do país, através da Sociedade Brasileira pa-
ra o Progresso da Ciência, para a realiza-
ção de uma grande revisão do saber uni-
versitário nos seus aspectos concernentes
às questões indígenas e ecológicas (antro-
pologia, história, geografia, literatura, filo-
sofia, ciências médicas e farmacêuticas,
química e todas as demais disciplinas) e pa-
ra propiciar, daí em diante, a colaboração
dos homens de ciência num esforço per-
manente e sustentado de consideração in-
terdisciplinar destas questões. Tal sugestão
e colaboração - já apresentadas ao Con-
selho da SBPC - prevêem a realização em
o Paulo da reunião anual da entidade,
em julho de 1992, dando ensejo aos tra-
balhos indicados.
Em terceiro lugar, a Secretaria Muni-
cipal de Cultura propõe-se a criar, em co-
laboração com a Secretaria de Negócios
Jurídicos do Município, uma comissão
composta de personalidades comprome-
tidas com os povos indígenas para repen-
sar as questões fundamentais e os conten-
ciosos envolvidos entre estes, o Estado e
a sociedade brasileira, e para colaborar ati-
vamente na busca da superação da incom-
preensão, dos clichés e preconceitos, que
permitirá alçar a novas bases tais relações.
A cultura brasileira permanece pratica-
mente impermeável aos saberes indígenas,
sua sociabilidade, mitos, arte e técnicas. O
país se representou muitas vezes, em-
rios planos, na figura do índio - e no en-
tanto, sua presença se mantém obscura,
apagada, silenciosa, e sua cultura, ignora-
da e desprezada. Assim, a comissão pro-
posta buscará tomar como eixo e ponto de
partida de seu trabalho a consideração des-
ta ausência no âmago da cultura brasilei-
ra, a necessária sensibilização para ela e a
abertura para a presença do índio no pla-
no da cultura e naquele das questões so-
ciais, económicas e jurídicas. Buscar na le-
gislação o enunciado dos direitos
efetivamente reconhecidos aos povos in-
dígenas, discutir-lhes o alcance e a legiti-
midade, talvez seja o caminho mais direto
para iniciarmos o mapeamento das balizas
" culturais e obstáculos que se interpõem às
mudanças de atitude necessárias.
Tal comissão, a ser instalada em outu-
bro de 1991, ouvirá especialistas, persona-
lidades, movimentos e instituições dedica-
das à causa indígena, promoverá e
manterá a reflexão e o debate público, e
encetará o estudo e a elaboração de pro-
postas de mudanças na legislação, que se-
o entregues à consideração da opinião
pública e ao Congresso Nacional em ou-
tubro de 1992. O relatório final será ainda
encaminhado a organizações internacionais
concernidas pelos seus temas visando ob-
ter seu apoio e colaboração nas tarefas pro-
postas.
Este projeto tem razões, contornos e
objetivos nítidos. Cria-se a comissãoo
para que ela se constitua como pólo de po-
der ou grupo de pressão;o para se subs-
tituir às organizações governamentais e
não-governamentais;o para acionar in-
tervenções pontuais em questões urgen-
tes, como o faz em seu belo trabalho a
"Ação pela Cidadania";o para estabe-
lecer um fórum de debates, um grupo de
estudos ou qualquer espécie de parlamen-
to que viesse a refletir e propiciar o enten-
dimento sobre divergências dos movimen-
tos e organizações. Nem académica, nem
político-partidária, a comissão deve ser
aquela instância cultural que visa conside-
rar a mudança dos nossos referenciais ra-
lativos à questão indígena, elaborar seu
sentido e favorecer a transformação me-
diante o incentivo e a instrução do debate
e a proposta de mudanças concretas no
que diz respeito aos aspectos jurídicos en-
volvidos pela questão.
O momento parece-nos maduro para
esta iniciativa. Sensíveis a ele a Secretaria
Municipal de Cultura e a Secretaria de Ne-
gócios Jurídicos da Cidade deo Paulo
o querem se esquivar a trazer sua cola-
boração nesta empresa que as celebrações
de 1992 parecem tender a ignorar. E tais
iniciativas tornam-se oportunas quando sa-
bemos que neste momento a FUNAI pre-
para um novo Estatudo do índio, que a
ONU prepara a formulação de uma decla-
ração universal dos Direitos dos Povos In-
dígenas, trabalhos que exigem nossa inter-
venção e colaboração".
No início de outubro de 91 já havía-
mos reunido juristas, parlamentares, antro-
pólogos, jornalistas e personalidades diver-
sas que de um ou outro modo haviam se
tornado amigos dos índios. Com efeito,
aceitaram nosso convite Alain Moreau,
Bruce Albert, Carlos Frederico Marés,
Darcy Ribeiro, Dalmo de Abreu Dallari,
Eduardo M. Suplicy, Fábio Feldman, Ge-
rôncio Albuquerque Rocha, José Genoí-
no, José Carlos Sabóia, José Roberto San-
toro, Lux Vidal, Manuela Carneiro da
Cunha, Márcio Santilli, Milton Nascimen-
to, Marlui Miranda, D. Pedro Casaldáliga,
Priscila Siqueira, Severo Gomes, Sérgio
Adorno, Sílvio Coelho dos Santos e Was-
hington Novaes. Marilena Chauí, também
membro da comissão, a acolhia na Secre-
taria Municipal de Cultura deo Paulo.
O prof. Dalmo Dallari, Secretário dos Ne-
gócios Jurídicos, foi escolhido seu Presi-
dente, e Laymert Garcia dos Santos, além
de membro, Secretário-Geral.
Através de sua Prefeitura,o Paulo
tornava-se, assim, uma cidade que fazia um
movimento de abertura em direção aos ín-
dios, movimento que aliás já se esboçara
logo no início da gestão de Luiza Erundi-
na, quando a Casa do Sertanista, que se
encontrava abandonada e maltratada, pas-
sou a ser a Embaixada dos Povos da Flo-
resta e, uma vez recuperada, sediou as ati-
vidades do Núcleo de Cultura Indígena,
liderado por Ailton Krenak. Mas tal movi-
mento, entretanto,o era um capricho
dos governantes da cidade. Pouco antes da
Comissão índios no Brasil começar a fun-
cionar, uma pesquisa encomendada ao
DataFolha pela Professora Margareth E.
Keck, para uma tese de doutoramento da
Universidade de Yale, revelava que 85%
da população da Grandeo Paulo con-
cordavam que as terras indígenas deviam
ser preservadas "mesmo que sejam áreas
importantes para o desenvolvimento eco-
nómico brasileiro".
Aos nossos olhos, a pesquisa fornecia
duas indicações preciosas. Em primeiro lu-
gar, mostrava que havia sintonia entre a
Prefeitura e a população metropolitana
quanto à abertura para a questão indíge-
na. Por outro lado, os dados apontavam
algo paras surpreendente: a preserva-
ção das terras indígenas parecia expressar
O procurador da
República Wagner
Gonçalves fala sobre
as propostas de
revisão do Estatuto
do índio do CIMI.
ND1 e FUNAI numa
das audiências
públicas promovidas
pela Comissão. Foto
Fernando Conti.
los que, "naturalmente", a trama faz
proliferar soma-se agora a ação delibera-
da e sistemática das forças contrárias aos
povos indígenas, que passaram a atuar de
modo muito mais organizado e articulado,
desde que a Constituição de 1988 garan-
tiu os seus direitos sobre as terras e. com
eles, a possibilidade de um futuro.
Que obstáculos a comissão procuraria
remover do caminho dos índios? Logo em
sua primeira reunião, foram lembradas as
principais ameaças que pesam sobre as po-
pulações indígenas e apresentadas propos-
tas de ação. Nas reuniões seguintes foram
decididos os temas que seriam priorizados
e a forma de organização dos trabalhos. A
comissão considerou que a atenção deve-
ria concentrar-se em quatro temas: Terra
e Demarcação; Exploração de Recursos
Naturais; índios e Modernidade; Revisão
do Estatuto do índio.
As discussões haviam sugerido que os
temas Terra e Demarcação e Exploração
de Recursos Naturais continham implica-
ções de natureza política, económica, so-
cial, jurídica, militar e cultural que precisa-
vam ser expostas e divulgadas. De certo
modo, tais temas constituíam a face negra,
negativa da questão indígena, uma vez que
os abusos e violências graves cometidos
contra os povos indígenas no Brasil sem-
pre estão ligados a interesses que cobiçam
seus territórios ou as riquezas que neles se
encontram. O tema índios e Modernida-
de, por sua vez, procuraria ressaltar os pon-
tos de contacto entre as culturas primitiva
e contemporânea, vale dizer a contribui-
ção que os índios podem dar para um
questionamento de nossas relações preda-
tórias com o meio-ambiente; neste caso,
o tema mostraria que a questão indígena
tem uma face altamente positiva e atual,
embora constantemente desconhecida. Fi-
nalmente, o tema da Revisão do Estatuto
do índio se impunha porque o Congresso
Nacional deve votar ainda em 1992 uma
nova legislação sobre o assunto, reacen-
dendo portanto, em novas bases, a luta que
durante a Constituinte se travou entre as
forças indígenas e indigenistas de um la-
do, e anti-indigenistas, de outro. Na ver-
dade, a discussão do novo Estatuto do ín-
dio e a necessidade de se promover uma
aliança que buscasse a integração, numa
um valor mais alto do que o puro interes-
se económico. Tudo isso nos fez crer que
havia, portanto, um terreno fértil para o tra-
balho da comissão e um potencial impor-
tante para alavancar a mudança de men-
talidade e de atitude com relação aos
índios. Queríamos fazer deo Paulo a cai-
xa de ressonância da questão indígena,
queríamos favorecer a reconciliação da so-
ciedade com esses povos, favorecer o re-
conhecimento de seus direitos, fazer res-
peitar a sua cultura, incentivar a reavaliação
de sua contribuição.
Talvez tenhamos sido ambiciosos de-
mais. Apesar da evidência crescente que
os povos indígenas passaram a ter em es-
cala internacional, os tempos no Brasil es-
tavam e estão muito difíceis para os índios,
o que se reflete na atividade de quem se
dispõe a colaborar com eles. A meu ver,
pelo menos duas razões impedem que a
abertura e o potencial de simpatia com que
poderiam contar se transformem em inte-
resse efetivo, solidariedade e reconheci-
mento. Em primeiro lugar, cinco séculos de
ignorância e má-fé teceram uma trama de
incompreensão e desentendimento que
aprisiona tudo o que concerne a vida e a
presença dos índios no Brasil. A cantora
Marlui Miranda, que há anos se dedica ao
delicado e importantíssimo trabalho de re-
colher e divulgar seus cantos, definiu cer-
ta vez com precisão os efeitos dessa tra-
ma, ao observar: "Trabalhar para os índios
é, principalmente, procurar remover obs-
táculos". Uma outra razão porém, conjun-
tural, acrescentava-se a esta. Aos obstácu-
Marcos Terena.
Orlando Baré e
Karai-Mirim da
nação Guarani
participam da
apresentação pública
do relatório de um
ano de atividades
da Comissão índios
no Brasil. Foto
Fernando Conti.
proposta comum, dos projetos de lei apre-
sentados à Câmara pelo Núcleo de Direi-
tos Indígenas, o Conselho Indigenista Mis-
sionário e a Fundação Nacional do índio
acabaram absorvendo todos os esforços da
comissão desde a reunião de maio de 92.
O modo pelo qual a comissão decidiu
atuar privilegiou a atividade em três frentes.
A primeira concentrou a realização das
reuniões temáticas e de audiências públi-
cas com lideranças indígenas que abordas-
sem diversos enfoques e pontos de vista
sobre o assunto em pauta; à exposição feita
pelos convidados, seguia-se um debate
com os membros da comissão e o público.
Acoplada a esta primeira frente de tra-
balho concebeu-se uma segunda, que con-
gregava os esforços para amplificar a ques-
o indígena na mídia e levantar vozes que
se contrapusessem ao discurso anti-
-indígena das elites regionais, agora já ar-
ticulado em nível nacional. Nesse sentido,
os participantes escreveram artigos e de-
ram entrevistas para jornais e revistas, com-
pareceram a programas de rádio (Cultu-
ra, Eldorado, Bandeirantes, Rádio USP) e
televisão (Gazeta, Cultura, Bandeirantes),
foram à S.B.P.C.; atendendo sugestão nos-
sa, Alexandre Machado dedicou um dos
seus "Vamos sair da crise" à Comissão,
transformando o programa numa autênti-
ca reedição, no ar, da reunião sobre Ex-
ploração de Recursos Naturais. Cabe, en-
tretanto, aqui, uma observação. O contacto
frequente com a mídia durante todo o pe-
ríodo nos fez ver que a questão indígena
é considerada pela imprensa brasileira co-
mo uma questão marginal, muitas vezes
folclórica, e sem grandes repercussões para
a vida do país - mesmo o extermínio é tra-
tado com indiferença e até com compla-
cência, como se um filtro retirasse do ge-
nocídio toda a sua dimensão insuportável
e monstruosa. As coberturaso frequen-
temente movidas por preconceitos que es-
tigmatizam os índios, construindo a ima-
gem contraditória de seres ora atrasados
e primários, a provocar no civilizado ver-
gonha e comiseração, ora selvagens e apro-
veitadores, dispostos a se renegarem para
alcançar os benefícios do progresso, a pro-
vocar no civilizado a maior das indigna-
ções. Culpados por serem índios e culpa-
dos poro sê-lo mais. esses povos ficam
literalmente sem lugar na sociedade brasi-
leira. Talvez por isso mesmo índios e indi-
genistas sejam vistos pela mídia do país,
na melhor das hipóteses, como represen-
tantes de uma causa perdida, e, na pior.
como pobres coitados que nem merecem
consideração.
Em sua terceira frente de trabalho, a co-
missão empenhou-se em tentar viabilizar
um entendimento entre os diferentes par-
ceiros do campo indigenista envolvidos
com a revisão do Estatuto do índios -
N.D.I., CIMI e Funai. Os membros da Co-
missão sabiam há muito que, no âmbito
jurídico-político, há dois momentos-chaves
para a manutenção ouo dos direitos in-
dígenas: a revisão do Estatuto e a reforma
constitucional de 93. Sabiam ainda que as
forças anti-indígenas, apanhadas de surpre-
sa na Constituinte e sentindo-se derrota-
das, partiriam agora para uma contra-
-ofensiva, tentando um retrocesso na
legislação. Por esse motivo, parecia-nos
fundamental intensificar o diálogo sobre os
projetos para se superar as divergências e
se elaborar uma proposta comum, a ser
apresentada aos parlamentares da Comis-
o especial do Congresso responsável pe-
la feitura do novo estatuto - tarefa que tam-
m passou a contar com a participação
do Dr. Wagner Gonçalves, da Procurado-
ria Geral da República.
Resumindo. De outubro de 91 a outu-
bro de 92 a Comissão índios no Brasil rea-
lizou dez reuniões. Por elas passaram e ne-
las se pronunciaram importantes lideranças
indígenas e indigenistas do Brasil, as prin-
Senador Severo
Gomes - integrante
da comitiva da Ação
pela Cidadania em
viagem ao norte do
país - ao lado da
pedra na qual
Rondon reconheceu
as terras Macuxi em
1927. Foto Carlos
Ricardo/CEDI.
cipais entidades e especialistas, os parla-
mentares que defendem os interesses dos
índios no Congresso, os simpatizantes que
queriam simplesmente assistir aos traba-
lhos, se informar.
Vieram os índios Davi Yanomami; Ail-
ton Krenak, da União das Nações Indíge-
nas; Álvaro Tukano, da Federação das Or-
ganizações Indígenas do Rio Negro; Isaías
Tupari, da área indígena do Rio Branco;
Clóvis Ambrósio, do Conselho Indígena de
Roraima; o tuxaua Melquíades Peres Ne-
to, da área Macuxi deo Marcos; Olívio
Guarani; Marcos Terena, do Comité Inter-
tribal; o cacique José Luis Xavante; o ca-
cique Tabata Kuikuro; o pajé Sapaim Ka-
maiurá; Orlando Baré, da Coordenação
das Organizações Indígenas da Amazónia
Brasileira; o cacique Megaron Txukarra-
mãe, diretor do Parque Indígena do Xingu.
Vieram os indigenistas Sidney Possue-
lo, presidente da Funai; Cláudia Andujar,
presidente da Comissão pela Criação do
Parque Yanomami; Wanderlino Teixeira de
Carvalho, presidente da Coordenação Na-
cional dos Geólogos; Virgínia Valadão,
coordenadora do Centro de Trabalho In-
digenista; Betty Mindlin, diretora do Insti-
tuto de Antropologia e Meio-Ambiente; Isa-
belle Giannini, coordenadora do MARI -
Grupo de Educação Indígena; Arthur No-
bre Mendes, diretor do Departamento de
Demarcação da Funai; Francisco Loebens,
secretário-geral do CIMI; João Pacheco,
chefe do Departamento de Antropologia
da Universidade Federal do Rio de Janei-
ro e pesquisador do Museu Nacional; An-
dré Villasboas, assessor do Centro Ecumé-
nico de Documentação e Informação;
Maria Elisa Ladeira, coordenadora do Cen-
tro de Trabalho Indigenista; Memélia Mo-
reira, assessora da Procuradoria Geral da
República; Berta Ribeiro, antropóloga do
Museu Nacional/U.F.R.J.; Paulo Guima-
rães e Felisberto Damasceno, advogados
do CIMI; Wagner Gonçalves, procurador
da Procuradoria Geral da República.
Vieram os deputados Lourival de Frei-
tas e Tuga Angerami.
A cada reunião, com suas informações
novas, seus problemas urgentes, seus en-
foqueso diversificados e muitas vezes po-
lémicos, crescia a certeza de que a ques-
o indígena precisa aflorar como questão
nacional de interesse de todos os brasilei-
ros. Mas crescia também a impressão de
que é preciso fazer mais do que foi feito
para se conseguir romper a indiferença e
o silêncio, e permitir que o trabalho admi-
rável das entidades ganhe a esfera públi-
ca e floresça na sociedade civil.
É preciso fazer mais. No entanto, foi
feito o possível - e isso, em nosso enten-
der, é muito. Ailton Krenak sugerira que
os brancos comemorassem os 500 anos
com um gesto de pacificação, de reconci-
liação. Dia 14 de junho de 1992, na tarde
fria deo Paulo, ao abrir as portas da ex-
posição "índios no Brasil" no parque do
Ibirapuera, a autoridade máxima da capi-
tal dos bandeirantes, da terra de Anchie-
ta, a Prefeita Luiza Erundina fez o gesto
da conversão necessária - pediu perdão aos
índios pelos crimes praticados contra eles.
COMISSÃO ÍNDIOS NO BRASIL
Apresentação pública do Relatório de um ano de atividades
13 de outubro de 1992 das 14 às 19h
Local: Salão Nobre do Teatro Municipal
Praça Ramos de Azevedo, s/rWSP
Informações: 288.9560
A DESCOBERTA DA AMÉRICA E O ENCONTRO COM O OUTRO
Cartas brasileiras:
visão c revisão dos índios
Lúcia Bettencourt
O Brasil foi descoberto no dia 22 de
abril de 1500, pela frota comandada pelo
navegador português Pedro Alvares Cabral.
Na nau capitânea viajava um passageiro
para Calicute, Pêro Vaz de Caminha. In-
dicado para o posto de escrivão geral desta
feitoria na índia, ele aproveitou a oportu-
nidade para escrever a "carta de achamen-
to do Brasil".
Caminha era um letrado. Um homem
de formação humanística, mais interessa-
do em descrever o que via do que em cal-
cular os lucros que o achado traria. Sua
carta, portanto, é uma pequena obra pri-
ma dentro do género,o rica de informa-
ções quanto singela em suas exposições.
E, ademais, é o único documento coetâ-
neo registrando a chegada dos portugue-
ses ao Brasil. (Do ano de 1500 só chega-
ram atés sete documentos: os oficiais,
em número de quatro,o incompletos e
frustrantemente omissos com relação à pri-
meira parte da viagem; a carta de Mestre
João, que foi escrita em praias brasileiras,
mas contenta-se em esclarecer a medição
das estrelas, sem se deter em nada sobre
a nova terra e seus habitantes; o relatório
do piloto anónimo, tal como dele temos
notícia, se inicia com a partida do Brasil em
direção às índias, e, finalmente, a carta de
Caminha).
Podemos ressaltar, de um modo geral,
a qualidade literária deste documento.
Com um estilo em que ecoam traços da
Bíblia, da Ilíada e da Eneida, a carta nos
cativa por sua originalidade. Dividindo a
narrativa em nove dias, a simplicidade do
estilo nos recorda a descrição da criação
do mundo. Afinal, esse era um mundo no-
vo que se criava a partir da escritura da car-
ta. Caminha, ao descrever a "fundação"
desta nova terra, se coloca em pé de igual-
dade com o cronista do Génesis, ou mes-
mo o supera, já que ele tem a posição pri-
vilegiada de testemunha ocular. Sua
posição é a do Verbo criador, a palavra que
evoca e cria. No entanto, sua carta é sim-
ples, sua abordagem é despretenciosa.
Caminhao era um navegador. Co-
mo tal, evita relatar detalhes de "marinha-
gem e singraduras do caminho" (s/n) por
constatar queo o sabe fazer. Em breves
linhas, porém, nos revela o que se passou
desde a partida até o "achamento" do Bra-
sil. O termo "achar", preferido por Cami-
nha, sugere que já se suspeitava da exis-
tência da terra
1
, e que o desvio da rota
ensinada por Vasco da Gama nas instru-
ções de navegação dadas a Cabral por es-
crito, se deveu ao propósito de encontrar
aquilo mesmo que já se esperava encon-
trar - terra. Contudo, a experiência de ver,
pela primeira vez, uma região estranha, ha-
bitada por uma genteo diferente dos po-
vos conhecidos pelos europeus, fascina
Caminha que descreve a terra e seus ha-
bitantes com detalhes de paisagista e re-
tratista.o várias as descrições dessa gen-
te. A novidade que os habitantes da terra
representam para os olhos renascentistas
do escrivão é tanta que eleo se cansa
em descrevê-los. Um deles aparece "asse-
tado comoo Sebastião", cheio de pe-
nas pelo corpo. Outros desaparecem de-
baixo de suas "carapuças de penas"
amarelas, vermelhas e verdes. A pintura
corporal dos índios também é descrita com
minúcias, e confirmada, anos mais tarde,
por outros cronistas e artistas que ao Bra-
sil vieram
O interesse no grupo humano éo
grande que a terra quase fica indistinta num
cenário de praias e arvoredos e rios de mui-
tas águas. Com o correr dos dias, porém,
e o vagar para aproveitar da terra, as des-
crições começam a surgir. Primeiro um rio,
depois a feição de um porto seguro onde
todos se abrigaram. Logo depois se des-
creve o ilhéu, lugar de "folguedo" e de pes-
carias, onde será rezada a primeira missa
no Brasil. Suas descriçõeso se transfor-
mar, mais tarde, em paradigma para tex-
Reprodução de um
trecho da carta de
Pêro Vaz de
Caminha ao rei
Dom Manuel dando
notícia das terras
então descobertas.
"A Certidão de
Nascimento do
Brasil"/MP-USP,
1975.
tos sobre a terra brasileira. Alguns comen-
taristas até mesmo pretendem explicar o
sentimento de "ufania" - que se depreen-
de em tantos autores brasileiros do perío-
do romântico - como uma consequência
das descrições de Pêro Vaz de Caminha.
Se bem que seja possível que a publica-
ção da carta, levada a efeito por primeira
vez no início do século XIX (1817, como
parte do livro Corografia Brasílica do Pe.
Manuel Aires Casal), tenha representado
papel importante no imaginário românti-
co, em verdade o ufanismo se encontra en-
raizado em toda a literatura colonial brasi-
leira, como uma espécie de estratégia para
a atração de colonos. A terra aparece sem-
pre descrita como fértil, formosa, copiosa,
de climas brandos, de águas fartas. Só o
que muda é a opinião dos escritores quan-
to aos habitantes da região. Se Caminha
os descreve sempre em termos altamente
positivos, comparando-os, velada ou aber-
tamente, aos habitantes do Jardim do
Éden, outros autores, vivenciando um ou-
tro momento histórico, nos brindarão com
descrições negativas ressaltando a cruelda-
de e selvageria dos naturais da terra.
Quarenta e nove anos mais tarde, por
exemplo, já no reinado de D.João III, veio
ao Brasil a primeira missão catequista, che-
fiada pelo padre Manuel da Nóbrega. Por
essa época já se conhecia mais acerca dos
costumes e crenças dos indígenas. A visão
idílica jáo era mais possível aos olhos
escolásticos europeus que viam costumes
inaceitáveis entre os pagãos - poligamia,
canibalismo, idolatria. O homem renascen-
tista, com seu desejo de conhecer e enten-
der, dava lugar ao jesuíta desejoso de mo-
dificar e corrigir.
No dia 10 de agosto de 1549, escreve
Manuel da Nóbrega a Martin de Azpilcue-
ta Navarro, grande canonista que havia si-
do seu professor em Coimbra, dando-lhe
um sumário de suas primeiras impressões
da região e de seu povo. Elogiando a qua-
lidade da terra e dos ares, descrevendo a
abundância e qualidade dos mantimentos,
padre Nóbrega se admira da gente que ne-
la habita, formando um contraste negati-
vo com as excelências da terra.
Com os costumes já melhor conheci-
dos, os cristãos se vêem convivendo com
pessoas cuja "civilização" mais se aproxi-
ma do paradigma de "selvageria". Com um
estilo de vida comunitário onde toda a pro-
priedade é dividida igualmente, com casas
onde habitam várias famílias compartilhan-
do tudo, com costumes sem paralelo com
a experiência europeia, os indígenaso
merecer descrições que demonstram uma
atitude atónita de quemo compreende
bem o que descreve:
"Eom guerra por cobiça que te-
nham, porque todosom nada além
do que pescam e caçam e o fruto que to-
da terra, mas somente por ódio e vin-
gança; em tanta maneira que seo uma
topada atiram-se com os dentes ao pau ou
pedra onde a deram, e comem piolhos e
pulgas e toda imundícia, apenas por se vin-
gar do mal que lhes fizeram, como gente
que aindao aprendeu non reddendum
malum pro maior
Sem dúvida, o quadro que se coloca
frente aos olhos de Nóbrega,o é dos
mais animadores. Procura ele, então, des-
cobrir pontos positivos ou qualquer coisa
que aproxime estes "gentios" dos portu-
gueses, e fala do desejo dos indígenas de
Capa do Livro
"Informações e
fragmentos
históricos" de José
de Anchieta, 1886.
Biblioteca Mário de
Andrade. Foto: Sosô
Parma
Capa do Livro
"Cartas do Brasil"
do Padre Manoel da
Nóbrega
(1549-1560).
Biblioteca Mário de
Andrade. Foto: Sosô
Parma.
llustTação do livro
"Vida do apóstolo
Padre António
Vieira da
Companhia de
Jesus, chamado
por..." de André de
Barros, Lisboa,
Officina Sylmara,
1746. Foto: António
Rodrigues
índio de aldeia inimiga, capturado pelos
tamoios.
"Mas já sobre a tarde, estando já to-
dos bem cheios de vinho, vieram à casa
aonde pousávamos e quiseram tirar logo
o escravo a matar.s outroso tínha-
mos mais que dois índios que nos ajudas-
sem, e querendo eu defendê-lo de pala-
vra, dizendo queo o matassem,
disse-me um dos dois: "Calaí-voss ou-
tros,o vos matem os índios, que andam
mui irados, ques outros falaremos por
ele e o defenderemos". E assim o fizeram
deitando a todos fora de casa; mas torna-
ram logo outros muitos com eles feito um
magote, e grande multidão de mulheres,
que faziam tal trisca e barafunda queo
havia quem se ouvisse (...) Finalmente o
levaram fora e lhe quebraram a cabeça e
junto com ele mataram outro seu contrá-
rio, os quais logo despedaçaram com gran-
díssimo regozijo, maxime das mulheres, as
quais andavam cantando e bailando: umas
lhes espetavam com paus agudos os mem-
bros cortados, outras untavam as mãos
com a gordura deles e andavam untando
as caras e bocas às outras, e tal havia que
colhia o sangue com as mãos e o lambia,
espetáculo abominável, de maneira que ti-
veram uma boa carniçaria com que se far-
tar" (N&A,99).
O tom é macabro, numa descrição de
requintes naturalistas que recuperam para
a narração o horror do ato. As mulheres,
sobretudo, aparecem como elementos es-
pecialmente odiosos, verdadeiras harpias.
Os espetáculos de matança continuam.
O padre nos refere um que aconteceu em
outra aldeia: ao saber que pretendiam ma-
tar e comer um inimigo, Anchieta apressa-
-se em ir vê-lo, a fim de tentar convertê-lo
para a fé cristã. O guerreiro se recusa afir-
mando que os que eram batizadoso
morriam como valentes. A morte do ho-
mem, então, é descrita - sem os detalhes
macabros da descrição anterior - mas mos-
trando a atitude da vítima que desafia seus
captores ao fazer a lista de todos aqueles
a quem ele mesmo já comera: "Matai-me,
que bem tendes que vos vingar em mim,
que eu comi a fulano vosso pai, a tal vos-
so irmão, e a tal vosso filho" (N&A, 108).
E o padre só pode lastimar que o homem
tenha preferido aquela valentia à salvação
de sua alma.
Nestes três autores podemos notar o
constante interesse europeu pelos habitan-
tes das terras brasileiras. Caminha, ao es-
crever para seu rei está, mais do que nar-
rando um descobrimento de terras,
confirmando a existência dos "antípodas".
A existência, milagrosa quase, de vida em
regiões tidas como inabitáveis fascina es-
se nosso primeiro narrador que vai com-
partilhar, como a mais preciosa das dádi-
vas, sua visão com o rei de Portugal. A
imagem de um povo amigável, ingénuo,
inocente como os habitantes do paraíso ter-
restre se desfaz nas próximas cartas, onde
tomamos conhecimento da antropofagia,
das lutas, do modo de vida agitado e es-
tranho de um povo cujos padrões se afas-
tavam tanto dos conhecidos pelos portu-
gueses. Mas, ao invés de ser repudiada
Selos
comemorativos ao
IV Centenário da
presença de
Anchieta no Brasil e
de sua beatificação
pelo Papa João
Paulo II. Coleção
Nelson Di
Francesco.
Beatificação do Padre José de Anchieta
1 ° dia de circulação
Empresa Brasileira de Correios o Telégrafos
totalmente, esta gente vai estabelecer sua
diferença e chegar até nós, principalmen-
te através da Literatura, como padrão de
nacionalidade e independência cultural.
O romantismo brasileiro elege o índio
como herói. Modificados e "civilizados", Ira-
cema e Peri, personagens criadas por Jo-
sé de Alencar, se impuseram como para-
digmas da identidade nacional ao lado de
Jatir e dos Tamoios retirados das páginas
de Gonçalves Dias. A visão seletiva român-
tica elegeu o "índio nobre", idealizado pe-
lo conceito do homem natural rousseau-
niano e lhe infundiu tanto vigor que essas
personagens ainda vivem no imaginário
brasileiro com a mesma intensidade que
Cunhambebe, Poti e Araribóia se destacam
das páginas da História do Brasil.
A literatura brasileira, entretanto, com
seu apetite onívoro, assimilou também o
índio irreverente e solto que zombava de
prisioneiros europeus dizendo "Lá vem a
nossa comida pulando" (Hans Staden). O
antropófago, anti-hierárquico, de costumes
estranhamente comunitários, sem as res-
trições da propriedade privada, foi perpe-
tuado pelo Modernismo, sobretudo através
do movimento Antropofágico.o é pos-
sível, portanto, deixar de admirar a reto-
mada dos cronistas da História do Brasil
tal como foi feita por Oswald de Andrade:
comendo-os - tomando as palavras do ou-
tro e usando-as como suas. Em seu livro
de poesias Pau Brasil (1925), Oswalde
em relação dialógica seus títulos com os bo-
cados saborosos escolhidos entre os pra-
tos do banquete colonial. Desde o instan-
te de "a descoberta" (Seguimos nosso
caminho por este mar de longo/Até a oi-
tava da Páscoa/Topamos aves/E houve-
mos vista de terra), passando pelo "primei-
ro chá" (Depois de dançarem/Diogo
Dias/Fez o salto real) até o cáustico comen-
tário "as meninas da gare" (Eram três ou
quatro moças bem moças e bem gentis/
Com cabelos mui pretos pelas espáduas/
E suas vergonhaso altas eo saradi-
nhas/ Que des as muito bem olhar-
mos/o tínhamos nenhuma vergonha)
e prosseguindo depois com textos retira-
dos de Gandavo, Claude d'Abbeville, Frei
Vicente do Salvador e outros mais, Oswald
vai pacientemente montando um mosai-
O modernismo
empreendeu uma
volta às origens.
Reprodução da
Revista de
Antropofagia e do
Manifesto
Antropófago.
Biblioteca Mário de
Andrade. Foto: Sosô
Parma.
"#li vem a nossa comida pulando"
co revelador de um outro ancestral - um
índio totêmico, inverso de "o índio de to-
cheiro. O índio filho de Maria, afilhado de
Catarina de Médicis e genro de D. Antó-
nio de Mariz" (Manifesto Antropófago).
Esse modelo romântico é repudiado
porqueo se pode ignorar que segundo
o manifesto antropófago. " (s)ó a antropo-
fagia nos une. Socialmente. Economica-
mente. Filosoficamente". É preciso reco-
nhecer o fato de que, ainda segundo o
manifesto, "(n)unca fomos catequizados.
Fizemos foi Carnaval". Deste carnaval mo-
derno participam todos: tupis, guaranis, az-
tecas, incas, sioux, cheyennes, subverten-
do a música dos colonizadores com seus
instrumentos exóticos.
Se a História nos conta a derrota de
um povo, de vários povos, vencidos pela
tecnologia, pelas doenças, pela exploração;
a Literatura nos devolve a todos eles co-
mo antepassados cheios de vitalidade e de
potencial, e explora suas contradiçõs com
as liberdades da releitura. Transforma-os,
ou melhor, devora-os - alimento mágico
das "crónicas" modernas.
Nota
1. Essa suspeita, no entanto,o era compartilha-
da por todos. Alguns estudiosos e navegadores acre-
ditavam na existência de terras, ou ilhas, a oeste da
Europa, enquanto que outros, entre estes Colom-
bo, calculavam que a circunferência da Terra era me-
nor do que se julgava e que as terras a oeste da Eu-
ropa vinham a ser aso cobiçadas índias.
Bibliografia
Anchieta, Pe. José de - 1984 - "Cartas-
-Correspondência ativa e passiva" in Obras
Completas - 6o volume. (Pesq., introd. e no-
tas de Pe. Hélio Abranches Viotti , S. J.),o
Paulo, Edições Loyola.
Andrade, Oswald de - 1928 - Manifesto Antropo-
fágico - in Revista de Antropofagia, Ano I, no
1,o Paulo.
Caminha, Pêro Va2 de - 1975 - A certidão de nas-
cimento do Brasil: a carta de Pêro Vaz de Ca-
minha - (Org. José Augusto Vaz Valente),o
Paulo, Universidade deo Paulo.
- 1963 - Carta a El-Rei D. Manuel. (Introd.. Org..
gloss., bibl. e índices de Leonardo Arroyo),o
Paulo, Dominus.
Castello Branco, Carlos Heitor - 1974 - Gloriosa
e trágica viagem de Cabral ao Brasil e à ín-
dia,o Paulo, Ed. do escritor.
Costa, Jaime Raposo - 1985 - A viagem de Pedro
Alvares Cabral ao Brasil. Casualidade/In-
tencionalidade, Brasília, Thesaurus.
Coutinho, Afrânio - 1986 - A literatura no Brasil
- Rio de Janeiro/Niterói, José Olympio/Uni-
versidade Federal Fluminense, 6v. v. 1.
Fonseca, Branquinho da - s/d - Grandes viagens
portuguesas, Sintra, Manus.
Hooykaas, R. - 1970 - The Impact of the Voyages
of Discovery on Portuguese Humanist Lite-
rature, Coimbra, Junta de investigação do Ul-
tramar.
Hower, A. et Preto-Rodas, R. (edit.) - 1985 - Em-
pire in transition: The Portuguese World in
the Time of Camões, Gianesville, University
Presses.
1990 Portugal-BrazU: The age of Atlantic Dis-
coveries. Catálogo da exposição de mesmo no-
me realizada na New York Public Library, Ju-
ne 2 to September 1.
Nóbrega, Manuel da e Anchieta, José de - 1978 -
Nóbrega e Anchieta: Antologia, (Coord. e se-
leção. Pe. Hélio Abranches Viotti, S. J.),o
Paulo, Melhoramentos.
Nóbrega, Manuel da - 1954 - Diálogo sobre a con-
versão do gentio, (Preliminares e anotações
históricas e críticas de Serafim Leite S.I.), Lis-
boa, Comissão do IV Centenário da Fundação
deo Paulo.
Valente, José Augusto Vaz - 1975 - A carta de-
ro Vaz de Caminha: estudo crítico,
paleográfico-diplomático.o Paulo, Univer-
sidade deo Paulo.
A lógica das imagens e os habitantes
do Novo Mundo
Ana Maria de M. Belluzzo
A presença de figuras de índios do Bra-
sil em mostra organizada este ano emo
Paulo constitui oportunidade para algum
esclarecimento acerca da lógica que pre-
side a elaboração das imagens dos habi-
tantes do Novo Mundo. Em especial, da-
quelas que surgem a partir dos relatos dos
primeiros viajantes europeus ao Brasil.
As transformações pelas quais se pre-
para a visualização das figuras indígenas -
sejam as transcrições de texto em imagem,
sejam as manipulações da imagem que re-
criam um repertório transformado -o
aqui examinadas com base em três rela-
tos do século XVI.
As Viagens ao Brasil, de Hans Sta-
den, aparecem na Alemanha, em 1557 e
inscrevem observações de interesse etno-
gráfico em narrativa popular.
A História de uma Viagem feita à ter-
ra do Brasil, de Jean de Léry, publicada
na França em 1578, situa exemplarmente
o relato erudito do renascimento francês,
que se utiliza de modelos da antiguidade
clássica para estabelecer uma valorização
positiva dos homens do Mundo Novo.
A edição gravada das Grandes Via-
gens de Theodore De Bry, que compõe
ambicioso projeto gráfico publicado na An-
tuérpia, na terceira parte do qualo ree-
ditadas com alterações as viagens de Sta-
den e Léry, quando o argumento visual
toma proeminência e conquista autonomia
com relação ao texto do qual se desgarra.
A coleção de Viagens, dirigida inicial-
mente por Theodore De Bry, a seguir por
seus filhos Jean-Theodore e Jean-Israel De
Bry e depois por Mathieu Merian - todos
editores eo viajantes - compreende duas
séries publicadas entre 1590 e 1634. As
Grandes Viagens aparecem sob o nome de
índias Ocidentais, comportam quatorze
partes em queo registradas expedições
à América e à Oceania. As Pequenas Via-
gens - onde pequeno é o formato da pu-
blicação - dizem respeito às índias Orien-
tais (índia, Japão e China). Neste ensaio
temos em vista especialmente as viagens
de Staden e de Léry.
Admitimos, portanto, gravuras de ilus-
tração feitas a partir do texto de Staden
para seu livro e gravuras de interpretação
baseadas em outros desenhos. Estas, já
praticadas no livro de Léry, apoiado em
motivos visuais da obra de Thevet, carac-
terizam a obra gráfica de De Bry, que se
vale, como apontamos anteriormente, de
ilustrações de Staden e Léry e de imagens
de outras expedições a outros lugares da
América.
Esse processo de sucessivas retomadas
nos autoriza a falar em imagens eo em
representações do novo mundo. Convém
evitar a suposição de que as gravuras fei-
tas a partir das informações dos viajantes
tenham algum compromisso d'apres
nature.
O conceito de imagem pode ainda ga-
nhar uma necessária dimensão crítica se
contraposto à noção de forma. A forma é
qualidade universal, constante e única; as
imagenso inumeráveis, intercambiáveis,
incorpóreas, como sugere Argan. Em opo-
sição à imagem, a forma admitiria uma es-
trutura e um conteúdo constante: a na-
tureza.
O relato maravilhoso de Staden
Como ocorre com o texto mítico, o
herói-viajante rompe os liames com o
mundo conhecido e dominado e passa a
oscilar ao sabor das incontroláveis forças
do universo. Hans Staden é o aventureiro
alemão, herói-viajante que ocupa lugar
central na estrutura da narrativa mítica. Lo-
go, a personagem haveria de ter o papel
invertido. Tomado por português e inimi-
go, Staden seria preso pelos tupinambás,
ameaçado de morte e devoração canibal.
O conquistador torna-se prisioneiro. Do es-
paço aberto do mar, passa ao interior do
cativeiro na aldeia indígena. O desfecho da
história irá pressupor nova inversão de pa-
O naufrágio no
litoral de ltanhaém.
quando Hans
Staden chega à
costa brasileira.
Região de Bertioga,
Santo Amaro,o
Vicente e ltanhaém.
"Viagens ao Brasil".
Hans Staden, 1557.
pel. A astúcia de Staden consistirá em con-
trolar, ou melhor, simular controle sobre os
fenómenos da natureza. Como a sobrevi-
vência dos índios, baseada na pesca e na
plantação, se mostrasse subordinada à in-
fluência do sol, da lua, dos ventos e das
tempestades, a esperteza do herói estaria
em simular controle sobre a natureza, pe-
lo poder de sua mente ou pela força de seu
Deus. O texto mítico vale-se ainda das in-
versões e reconversões de conteúdo, jogan-
do com o que é com o que parece ser.
No curso circular da narrativa, o dese-
nho da caravela figura a partida e o regres-
so do herói ao mundo real: o mundo eu-
ropeu. Em sinal de graça por estar de volta
e salvo, Staden faz publicar o livro, no qual
inclui cinquenta e três xilogravuras feitas
sob sua orientação para tornar o relato ve-
rossímel.
o há correspondência precisa entre
as ilustrações do livro de Staden e as divi-
sões do texto em capítulos. No primeiro li-
vro, cinquenta e três grupos de peripécias
se sucedem no curso da viagem, merecen-
do trinta e uma ilustrações. No segundo li-
vro, nos vinte e oito capítulos do "Peque-
no relatório verídico sobre a vida e os
costumes dos índios tupinambás" compa-
recem vinte e uma ilustrações.
Staden narra a viagem na primeira pes-
soa. Confessa medos, premonições, deno-
ta coragem, conta mentiras. Na configu-
ração visual é apresentado na terceira
pessoa, entre protagonistas e antagonistas,
vendo seu destino observado por um olho
que tudo, subordinado, portanto, a uma
cosmovisão.o se impõem de um mes-
mo ângulo, o discurso e a figura. O dese-
nho gravado é também escritura e desdo-
bra a narração. Vejamos a cartografia do
conto, na qual se move o viajante perdido.
Os mapas são, a rigor, roteiros, cartas
de percurso, registros do tempo vivido. O
território, sem medida objetiva, vem assi-
nalado por fatos imediatos e naturais, co-
mo a ilha dos pássaros de penas coloridas,
que era procurada pelos índios que apre-
ciavam ovos de guará; por ocorrências en-
tre indígenas e europeus, experimentadas
por Staden. A linha do litoral brasileiro, es-
tabelecida pelo mapa de Staden, é no fun-
do, desenho de Deus, que, segundo a con-
cepção religiosa da criação do mundo,
separou as águas e as terras. Na mentali-
dade do século XVI, o mundo natural é
escritura divina, passível de interpretação
por princípios de semelhança e de acordo
com um código de correspondências es-
tabelecidas por proximidades, compara-
ções etc.
A identidade de um lugar é o ponto
de encontro entre a experiência do viajante
e as coisas reveladas. Guarda a tensão das
lutas travadas pelo europeu parao se
perder em terra estranha. Lá estão ainda
marcos da ocupação portuguesa registra-
dos esquematicamente nas fortificações de
Bertioga e Santo Amaro. Respondem tam-
m ao desejo de construir a realidade da
paisagem, os nomes de origem indígena
que aderem ao território como escritura
dos homens. Indicam que as palavras tam-
m participam da construção da realida-
de do lugar.
Na narrativa e nas configurações vi-
suais do livro de Staden, quase tudo se
apresenta como índice ou sinal, propondo-
se à adivinhação. Quase tudo é rastro, si-
nalização do Criador pressentida pelo he-
rói. 0 sentido oscila entre significações de
ordem terrena e providência divina.
Coabitam no mesmo quadro diversas
ordens de questão. A configuração hete-
ronômica assimila aspectos visuais e refe-
rências verbais; práticas mágicas e crenças
cristãs. As palavras, ao se inscreverem no
campo visual, seguem a mais variada
orientação espacial. Da mesma maneira,
as figuras atravessam direções da superfí-
cie planar do quadro. Sem dimensão físi-
ca,oo mensuráveis, nem palpáveis.
A linearidade essencial e esquemática es-
boça a imagem mental. No ritmo de figu-
ras animadas, homens e plantas
confundem-se com o gesto orgânico da
gravação em madeira. A imagem é um
amálgama. Uma ilustração dura a soma de
seus momentos e rara é a oportunidade em
que se estabelece uma sincronia entre o
tempo e a ação representados no livro de
Staden. Cada configuração contém ocor-
rências em justaposição, constituindo um
microcosmo, só abrangível por uma cos-
movisão. O olho que tudo vê certamente
conhece o curso dos acontecimentos, que
nessa ótica se apresentam predestinados,
naturalizados.
As configurações que ilustram o texto
de Staden absorvem, ademais, conteúdos
da cosmologia e astronomia pagã,
revestindo-o de uma visão religiosa cristã.
Os poderes do sol e da lua, os efeitos do
vento e os danos causados pela chuvao
exemplos das influências dou sobre a
vida dos homens. Aparecem nos argumen-
tos de Staden combinados com a ideia de
um mundo superior, misturando-se sinais
e emanações de Deus com adivinhação
pagã. No quadro de percepção do euro-
peu , o seu universo articula-se ao do ín-
dio americano. Perante índios que admi-
tiam o poder do universo sobre os homens,
Staden iria afirmar a existência de um Deus
capaz de intervir nas forças naturais. A sal-
vação do herói seria comemorada como
vitória da sabedoria cristã sobre as práti-
cas mágicas, maso passa despercebido
ao leitor que o herói opera por adivinha-
ção e que, no centro da argumentação, a
punição divina aparece como ameaça aos
que comem carne humana.
No âmbito mitológico do conto ilustra-
do, inversões de conteúdo se realizam pe-
las transformações de posição no univer-
so, mudando-se o comando dou e da
terra. Operam-se também por transforma-
ções biológicas, nos limites da vida e da
morte, razão pela qual o corpo humano co-
mo motivo irá se mostrar uma unidade ca-
paz de amplas ressonâncias. Talvez isso ex-
plique porque as imagens de canibalismo
constituem o tema central da série de de-
senhos estudados.
Uma breve menção à contribuição de
Jean de Léry poderá ampliar as referên-
cias, possibilitando finalmente observar esse
motivo nas transposições de Staden e Léry
por De Bry.
O nobre selvagem de
Jean de Léry
A obra de Jean de Léry exemplifica o
projeto enciclopédico do século XVI. Está
referida à obra de Thevet em sua origem.
A história de uma viagem à terra do
Brasil, também chamada América é edi-
tada cerca de vinte anos depois da volta
do missionário calvinista do Brasil, para on-
de teria se dirigido em 1556, por empresa
de Coligny. Desejava revelar o desvio de
Villegaignon do evangelho e refutar o que
afirmara André Thevet, cosmógrafo do rei
e representante da Igreja católica francis-
índios Tupinambá
guerreiros. "A
história de uma
viagem", Jean de
Léry, 1580.
"Grandes Viagens",
Theodore de Bry.
1592.
cana, em sua obra Singularidade da Fran-
ça Antártica. de 1557 e posteriormente
em sua Cosmografia Universal, de 1575.
Também os desenhos que contam com ob-
servações feitas por Léryoo realiza-
dos d'après nature; absorvem motivos das
ilustrações de Thevet, reelaboran-
do-os em nova sintaxe, baseada em mo-
delos visuais dos antigos. A intertextuali-
dade que une Léry a Thevet e ambos aos
clássicos vem afirmar o valor da interpre-
tação ou erudição, como modo de orga-
nizar o conhecimento, na época.
Léry entende que para figurar um ín-
dio pode-se imaginar o nu proporcionado,
o corpo inteiramente depilado. Atento aos
conteúdos de verdade etnológica, deseja-
va revelar o corte dos cabelos, a ornamen-
tação facial com pedras, as marcas das vi-
tórias ostentadas pelos selvagens nos riscos
de suco de genipapo nas pernas. Nada é
gratuito. Afirmar que os índios se depilam
é distanciá-los dos seres peludos que ha-
bitam a floresta. Expor marcas de guerra
é mencionar a coragem e a bravura, alu-
didas pelos troféus de cabeças inimigas aos
seus pés.
Destaco da obra de Léry algumas ima-
gens do conjunto de cinco gravuras em
madeira queo se subordinam ao texto,
tendendo à auto-suficiência visual. Em gru-
po, parecem apontar o ciclo da vida e da
morte, da guerra e da dança, dos rituais
tupinambás com amigos viajantes estran-
geiros.
Desse conjunto estará ausente o tema
de teor mais conflitivo: a relação dos co-
nhecidos índios canibais com os inimigos.
As cenas de luta e devoração aparecem no
mesmo livro sob autoria e tratamento di-
verso, calcadas em modelos visuais de The-
vet. Essas imagens de teor mais trágicoo
correspondem à atitude contemplativa e à
dimensão construtiva dos desenhos des-
tacados.
Os sentidos das ilustrações de Léry de-
correm das inter-relações estabelecidas en-
tre as partes da figura e entre figuras indí-
genas. Isto é, Léry busca uma razão formal
abstrata. Para tipificar as suas figuras, con-
forme preceitos clássicos, irá recortá-las de
sua realidade e transportá-las para o mun-
do ideal das relações proporcionais. Des-
se modo, o índio passa a ser mostrado co-
mo universalidade humana. Evitando a
combinação aditiva das figuras, Léry as su-
perpõe parao justapor. O corpo frontal
e o corpo de perfil sob o eixo de rotação
é um recurso que equivale à variação de
pontos de vista. Está, por outro lado, de
acordo com o relativismo cultural de Léry,
que seria capaz de reconsiderar Plínio e
Ovídio diante dos fatos da América. Para
ele, o mundo natural é um conjunto orde-
nado e o homem ocupa o seu centro. Des-
taca e isola as figuras humanas em sua gra-
vura, rodeando-as por animais domésticos,
que lheo próximos ou lhe estão sujei-
tos. É curioso notar o nu atlético e apolí-
neo de constituição escultural, formado por
volumes, quando se sabe que a escultura
e o baixo-relevo dos antigos forneciam os
modelos para a transgressão do espaço to-
pográfico e segmentado das representa-
ções medievais. O movimento dos índios
em dança estabelece a disposição regular
das partes do corpo para diferentes dire-
ções, sendo fiel ao desejo de uma forma
racional e à unidade geométrica espacial.
Pode-se adivinhar que o discóbulo - um
dos modelos da escultura grega antiga -
empresta sugestões à rotação da figura in-
dígena, vindo a movimentação apontar pa-
ra o espaço ao redor. Afinal,o se teria
isso em mente ao se relacionar as duas fi-
guras, sugerindo uma sequência de posi-
ções da primeira para a segunda, do fron-
tal para o perfil, do dobrado para o ereto?
É possível que a noção de naturalida-
de da vida primitiva tenha ido ao encon-
tro do ideal dos reformadores protestan-
tes, contrários ao domínio do papado e
capazes de uma visão crítica da artificiali-
dade dos costumes na Europa. O bom sel-
vagem ganhava contornos no âmbito da
renovação do século XVI francês. A rup-
tura da mentalidade teria em Montaigne,
autor dos Canibais, seu maior prota-
gonista.
A ordem combinatória de Theo-
dore De Bry
Nas Grandes Viagens de Theodore
De Bry serão retomadas as contribuições
de Staden e Léry, aproximando-se as ilus-
trações dos dois autores, sob uma ótica uni-
tária. Sendo editadas na terceira parte da
coleção, em 1592,o antecedidas de re-
lato sobre a expedição inglesa na Vírginia
dirigida por Grenville, que ocorreria em
1585. publicado em 1590, ilustrado por De
Bry a partir dos desenhos originais de John
White.o também precedidas de relato
sobre a expedição huguenote na Flórida
coordenada pelo Capitão Laudonnière, em
1565, publicada em 1591, ilustrada por De
Bry a partir de desenhos originais de Jac-
ques la Moyne de Morgues. Ambas men-
çõeso obrigatórias poiso conta de
modelos de sintaxe visual e de observações
etnográficas que iriam marcar o projeto de
De Bry e incidir sobre as ilustrações da
America-Terceira Parte, que agora es-
tudamos.
Na obra de De Bry, a fantasia dos re-
latos de memória pós-viagem, a livre ma-
nipulação das informações visuais de-
rios autores, o recorte e a montagem de
A aldeia de
Ubatuba. onde Hans
Staden está no meio
da dança das
mulheres. "Viagens
ao Brasil". Hans
Staden, 1557.
"Grandes Viagens",
Theodore de Bry,
1592.
índios Tupinambá
choram seus
mortos. "A história
de uma viagem",
Jean de Léry, 1580.
material de várias proveniências irão se or-
ganizar dentro de um quadro geral. Assiste-
se à passagem das imagens à forma coesa
instaurada pela unidade espacial.
As transposições realizadas por De Bry
a partir dos registros de Staden mostram
primeiramente o abandono da linearida-
de esquemática do desenho gravado em
madeira e da orientação posicionai das fi-
guras humanas em movimento.o só a
xilogravura é substituída pelas possibilida-
des do talho doce, da gravura em metal.
A nova concepção espacial de De Bry te-
ce a geometria que inter-relaciona os cor-
pos desenhados em traçado ordenado e
regular. Na gravura de cobre, elabora-se o
valor de claro-escuro, os valores interme-
diários. Por meio dos volumes modelados,
as coisas se tornam tangíveis, as zonas de
penumbra projetadas em espaço vazio par-
ticipam como eco da presença dos corpos.
Podem-se observar versões das cenas
no interior da aldeia em Ubatuba. Staden
é conduzido pelas mulheres ao poracé
(dança e divertimento), arrastado por uma
corda, quando desejam lhe tirar a barba e
as sobrancelhas. A dança e o tratamento
dado ao prisioneiro reforçam a interpreta-
ção da existência de canibalismo ritual entre
os tupinambás, afastando a suposição de
antropofagia alimentar. Tanto em Staden
como em De Bry aparecem relações ma-
temáticas expressas pela divisão do todo
ou pela multiplicação das partes, como ve-
remos. Na visão mais detalhada de De Bry,
a aldeia de cinco cabanas define um pen-
tágono, no qual se inscreve um círculo de
mulheres em dança. No centro da roda es-
tá Staden. A regularidade da disposição
das quatorze mulhereso deixará dúvi-
das quanto aos preceitos adotados para a
organização do conjunto. A versão grava-
da no livro de Stadeno excluem com-
pletamente componentes clássicos, certa
métrica aritmética.
Há entretanto grande diferença no tra-
tamento dado à nudez em cada caso. No
livro de Staden, o prisioneiro e algumas fi-
A preparação do
prisioneiro.
"Grandes Viagens".
Theodore de Bry,
1592.
As mulheres
pintando o
ibirapema e o rosto
do prisioneiro.
"Viagens ao Brasil",
Hans Staden, 1557.
guras aparecem cobertos pelo pudor. Tu-
do indica a condenação do estado natu-
ral. O nu é censurado conforme a teolo-
gia moral. O código de expressão das
figuras também sugere diferenciações: as
figuras indígenas animadas pelo movimen-
to e a postura do prisioneiro europeu re-
catado, em repouso.
As interpretações do nu por Theodo-
re De Bry apresentam algumas semelhan-
ças com as ilustrações propostas por Jean
de Léry, para quem o estado natural é ti-
do como verdade essencial, diferente do
artificialismo da sociedade europeia, apre-
ciando a simplicidade do nu como virtu-
de. Nos dois autores, o corpo atlético, he-
róico, guerreiro, apresenta traços
anatómicos. O corpo orgânico em movi-
mento é definido por sua estrutura inter-
na. A proporcionalidade das partes e pos-
tura das figuras permite associá-las aos
motivos artísticos antigos. Predomina a fi-
gura humana em movimento de expres-
o da vontade e da emoção, ou seja, a
figuração de sentimentos universais atra-
s da representação humana.
Longe de atenderem demandas ana-
crónicas da antropologia física, que recla-
ma a representação de traços indígenas, as
figuras impõem uma melhor compreensão
da tipificação clássica. De acordo com-
digos estéticos da época, as figuras huma-
naso se distinguem por traços faciais e
raciais, mas pela ornamentação e pelas
práticas. Também se impõe a noção de be-
leza, que se deseja nas proporções harmo-
niosas entre as partes e na relação propor-
cional de todas as partes entre si. A
Empalação do
prisioneiro "Grandes
Viagens". Theodore
de Bry. 1592.
movimentação dos índios é enfim manifes-
tação de subjetividade, manifesta na ex-
pressão do corpo eo da face, na postu-
ra e no movimento.
Nas cenas do interior da aldeia de Uba-
tuba, transpostas por De Bry, as figuras fe-
mininas em roda estabelecem relações pro-
porcionais simétricas, por meio das quais
o aspecto visível de uma figura completa
outra figura feminina vista em posição es-
pacial invertida, integrando o todo. O prin-
cípio da divisão do todo ou da multiplica-
ção das partes é constante. A visão de um
objeto sob diferentes ângulos leva à com-
preensão de sua totalidade. As quatro ou
cinco cabanas ordenadas em correspon-
dência, ao se espelharem, espelham o to-
do e contam a aldeia.
De Bryo descuida da proporciona-
lidade e da posição das figuras, que se
mostram estudadas a partir de cânones e
motivos clássicos e estão dominadas pelo
movimento de expressão, ao qual se sub-
mete a medida e a postura. Entretanto.
nota-se que a posição de cada uma das fi-
guras é coordenada pelo nexo do conjun-
to. Colocada em relação de correspondên-
cia no conjunto geométrico e subordinada
a um eixo de rotação, como parte do to-
do. Se a tipificação das figuras tupinambás
leva a compará-las a Vénus, estas
mostram-se também aspectos inseparáveis
de uma configuração global.
É preciso ainda considerar a capacida-
de de De Bry de submeter a representa-
ção a um ajuste ótico, vindo assim definir
a posição do observador. Ele se vale de
correções espaciais no cenário, no caso a
A divisão do corpo
do prisioneiro.
"Grandes Viagens",
Theodore de Bry.
1592.
aldeia, mas busca também aplicar a pers-
pectiva diretamente à figura humana.
Na opinião de Panofsky, as três quali-
dades preparadas pela arte do século XVI
- a expressão das figuras representadas; a
visão subjetiva do artista, manifesta nos as-
pectos da figura; a visão do espectador,
que se expressa nos "aspectos" propria-
mente perspectivos -o concernentes à
vitória do princípio subjetivo.
É provável que o modelo, pelo qual se
tenta solucionar ao mesmo tempo a pos-
tura e o movimento, o contorno e a pro-
porção, teria sido proposto na época por
Durer.
Diante da consideração dessa unida-
de ideal das partes e do todo e frente ao
sistema de correspondências, que assimi-
la o corpo individual no corpo coletivo é
conveniente lembrar que, tanto nos rela-
tos de Léry, quanto nas ilustrações e nos
relatos de Staden,o descritas relações
entre partes do corpo e segmentos da so-
ciedade tupinambá. Apresentam-se corres-
pondências entre as práticas que efetivam
o canibalismo e o próprio corpo canibali-
zado. Dizem respeito ao abate do prisio-
neiro de um só golpe, na cabeça, por bra-
vo guerreiro; aos homens responsáveis por
cortar as partes do corpo, à sua divisão em
partes, às mulheres responsáveis por cozê-
las (ou assá-las), por distribuí-las. A desti-
Mulheres e crianças
tomando mingau.
"Viagens ao Brasil",
Hans Staden, 1557.
Assando e comendo
pedaços do corpo
do prisioneiro.
"Grandes Viagens",
Theodore de Bry.
1592.
nação da parte do corpo-alimento e sua
ingestão em diferentes estados (cru, assa-
do e cozido) sugere ainda outra teia de cor-
respondências, como indica Bernadette
Boucher em seu livro Le sauvage au seins
pendants. Os autores viajantes contam que
aos homens cabiam as pernas e os braços,
que eram assados, o interior do corpo se
destinava às mulheres e crianças, que se
alimentavam de um mingau de tripas;
mãos e cabeças também eram manipula-
das pelas crianças.
Há enfim um certo interesse em reco-
nhecer possíveis significados que, no-
culo XVI, aderem ao desmembramento do
corpo, ao seu parcelamento e sacrifício, a
sua ingestão e digestão. O forte impacto
das imagens de canibalismo no inconscien-
te europeu e mesmo na nossa contempo-
raneidade deve-se em grande medida à
transgressão do tabu deo comer carne
humana. As imagens de sacrifício, nos li-
vros dos viajantes, deixam-se contaminar
por sugestões do martírio, da via crucis de
Cristo. O sofrimento do corpo associa-se
às imagens do purgatório e à ação demo-
níaca, no âmbito do imaginário religioso.
O procedimento simbólico de comer o cor-
po para adquirir poderes encontra também
paralelo na comunhão do corpo de Cris-
to, na cerimónia católica.
Afinal, o imaginário da épocao po-
de ser excluído dos sentidos que aderem
às imagens de Staden, Léry ou De Bry.
Léry e Staden enfatizam a bravura da
prática guerreira, estando de acordo em
termos gerais e possibilitando a De Bry a
combinatória de suas ilustrações. Particu-
larmente, no Relatório Verídico de Sta-
den estão os desenhos arranjados em uni-
dade de ação (unidade de espaço e
tempo), apresentados em série sequencial,
que irão marcar a maior parte das ilustra-
ções que serão feitas sobre o tema, inclu-
sive por Léry e De Bry.
Do outro lado da forma controlada de
De Bry, irá se revelar o teor dramático da
narrativa visual sobre o canibalismo, sen-
do acentuado o caráter demoníaco da mu-
tilação, carregados os aspectos aterrorizan-
tes. No desenrolar das práticas canibais, as
figuras ideais dos índios tupinambás sofrem
transformações biológicas, assinalando-se
uma degeneração de seus corpos. A con-
denação e a punição manifestadas por De
Bry também se apresentam como expres-
o do corpo.
Bibliografia
Staden, Hans - 1557 - Warhftige Historia und Bes-
chreibung Eyner Landtschafft der Wilden
Nackten, Marburg, Andres Koeben. (Sobre a
obra de Hans Staden, existem duas edições que
aparecem em Marburg datadas de 1557 e ou-
tras duas que aparecem em Frankfurt, sem da-
ta, sendo atribuídas ao mesmo ano por espe-
cialistas. A edição de Frankfurt é editada por
Weygandt Hand.)
Alexander, Michael - 1976- Discovering the New
World based on the works of Theodore De
Bry, New York/London, Harper & Row.
Argan, Giulio Cario - 1957 - Botticelli, Geneve, Ski-
ra, pág.26.
Belluzzo, Ana Maria de M. - 1992 -"A imaginação
do desconhecido" in Guia das Artes.o Pau-
lo, 30.
Boucher, Bernadette - 1977 - Le sauvage au seins
pendants. Paris, Herman.
De Bry, Theodore - 1592 - America Tertia Pars Me-
morabile Províncias brasiliae hisitoriam con-
tines, Frankfurt.
Greimas. A.J. - 1966 - "Élements pour une theorie
de 1'interpretation du recit mythic" in Commu-
nications. Paris (8), págs. 28-59.
Léry, Jean de - 1580 - Histoire d'une voyage fait
a la terre du Brèsil autrement dit Amerique,
La Rochelle, Antoine Chuppin.
Panofsky, E. - 1976 -"A história da teoria das pro-
porções humanas como reflexo da história dos
estilos", in Panofsky, E. Significado nas Artes
Visuais.o Paulo, Perspectiva, págs. 89-148.
Saxl. Fritz - 1989 - "Macrocosmos y microcosmos
en las pinturas medievales" in Saxl, Fritz La vi-
da de las imagines. Madrid. Alianza, págs.
59-71.
Sommer. F. - 1943 - "Quem foi o impressor e quem
o ilustrador da edição primitiva do livro de Hans
Staden?" in Revista do Arquivo Municipal.
o Paulo, 8 (88), jan/fev.
Thevet. André - 1557 - Les singularitez de la Fran-
ce Antarticque, autrement nomée Amerique,
Paris, Maurice de la Porte.
- 1575 - La Cosmographie Universelle, Paris, Pier-
re LHuillier. 2v.
Caminha relata em sua carta ao rei Dom Manuel o momento em que dois índioso levados ao encontro do Capitão:
". .um deles viu o colar do Capitão e começou a acenar com ao para terra e depois para o colar, como a dizer-nos
d,ue havia ouro em terra". "Na Capitânia de Cabral ou índios à bordo da Capitânia", óleo s/tela. Museu Paulista/USP.
Foto Aparecida Gomes da Silva.
Martim Afonso de Souza, a serviço do rei Dom João III fundou em 22 de janeiro de 1532 a primeira vila do Brasil:
o Vicente. Ali foram plantados os primeiros canaviais e iniciada a criação de gado. "Fundação deo Vicente",
Benedito Calixto de Jesus, óleo s/tela. 1900. Museu Paulista/USP. Foto Rómulo Fialdini/Banco SAFRA.
Atualmente existem
apenas 6
exemplares destes
mantos, todos
conservados em
museus europeus.
Manto do Museu
Nacional de
Copenhague
(Dinamarca) e do
Museu do Homem
de Paris (França).
O índios Tupinambá
habitavam toda a
costa brasileira na
época da conquista.
Estavam todos
extintos no século
XVII. Seus mantos
de penaso
célebres: vestiam os
homens do mais
alto grau na
hierarquia social
Tupinambá e eram
utilizados por
ocasião dos grandes
rituais de passagem
masculinos.
Hercules Florence integrou como segundo desenhista a expedição organizada por Gregory lvanovitch
Langsdorf. Partindo do Rio de Janeiro, passa poro Paulo chegando à Amazónia, por via fluvial.
"Chefe Mundurukú em Santarém". Hercules Florence.
Era hábito no reinado de Dom João VI, intensificado no período de
governo de Dom Pedro I. comemorar fatos historicamente significativos,
através de pinturas e leques geralmente fabricados na China. No leque.
Dom Pedro recebe de um índio a coroa imperial, comemorando a
independência do Brasil. "Leque em marfim e papel", século XIX,
provavelmente chinês. Museu Histórico Nacional.
António Carlos Gomes recebeu uma bolsa do Imperador Dom Pedro II
para estudar na Itália. Estreou em março de 1870, no Teatro Scala de
Milão, sua obra de maior sucesso: II Guarany. Esta foi encenada em vários
países, atingindo grande sucesso na cidade do Rio de Janeiro. Folha de
rosto da partitura da ópera "II Guarany". Museu Histórico Nacional. Fotos
Rómulo Fialdini/Banco SAFRA.
Os intelectuais do século XIX. preocupados em forjar uma identidade para o império brasileiro, buscaram
imagens originárias do próprio país. Encontraram os índios, primeiros brasileiros, testemunhas da grandeza do
passado e os rios. atestando a exuberância da nossa natureza. Nesta escultura, idealizada por João
Maximiano Mafra e executada em Paris por Louís Rochet. o rio Madeira é representado por um índio. "Rio
Madeira", Louis Rochet. gesso, século XIX. Museu Histórico Nacional. Foto Rómulo Fialdini/Banco SAFRA.
Mais de 3.000
artefatos dos fndios
Bororó (Mato
Grosso) encontram-
-se depositados em
museus brasileiros.
Os Bororó
constituem um dos
grupos indígenas
das baixas terras sul-
-americanas mais
estudados pela
etnologia. Adornos
de cabeça, goivos,
colar de unhas de
tatu canastra. Museu
de Arqueologia e
Etnografia/USP.
Fotos Nelson Kon.
Grandes momentos da vida política e histórica do Brasilm servido de tema para artistas e escritores. O descobrimento
do Brasil, consagrado nos pincéis de Oscar Pereira da Silva, tem inspirado também artistas contemporâneos.
"Descobrimento do Brasil", Waldomiro de Deus, óleo s/tela, 1977. Pinacoteca do Estado.
Imagem e representação do índio
no século XIX
Mana Sylvia Porto Alegre
Este estudo pretende retomar o tema
do olhar do branco sobre o índio, desta vez
a partir da iconografia, onde a represen-
tação é permeada pela estética e expressa
pela imagem gráfica.
Proponho-me a entender as conexões
entre imagem e representação do índio bra-
sileiro na primeira metade do século XIX,
através da forma pela qual ele foi visto, re-
gistrado, classificado e nomeado, a partir
da iconografia, pelas missões científicas eu-
ropeias que percorreram o Brasil, dispos-
tas a fazer dos trópicos seu laboratório de
pesquisa
1
.
As expedições eram conduzidas por
naturalistas, médicos, botânicos e zoólogos,
que se faziam acompanhar por pintores e
desenhistas, encarregados de registrar a na-
tureza e os tipos humanos da forma mais
fidedigna e minuciosa possível, numa an-
tecipação da fotografia.
A ideia de tomar a imagem do índio
como objeto de estudo surgiu da observa-
ção do trabalho dos chamados "pintores-
-viajantes", ou "pintores-etnógrafos" (Ka-
te 1910), no decorrer de uma pesquisa
sobre iconografia indígena feita na Alema-
nha, no ano de 1989
2
. Trata-se de uma
coleção de centenas de pinturas, desenhos
e gravuras, dispersas em museus, bibliote-
cas, arquivos e coleções públicas e priva-
das, a maior parte publicada como ilustra-
ção dos livros de viagem, género literário
muito apreciado em toda a Europa na pri-
meira metade do século XIX.
Selecionei alguns autores apenas,
aqueles que percorreram grandes exten-
sões do nosso território, entrando em con-
tato direto com a diversidade das socieda-
des tribais, algumas isoladas outras em
contato com as populações regionais, e
produziram uma iconografia de reconhe-
cido valor, dos pontos de vista estético, his-
tórico e etnográfico (Baldus 1954, Hart-
mann 1978).
O exame da incontável variedade de
imagens capturadas pelo olhar desses
"pintores-viajantes", levanta várias indaga-
ções sobre a relação entre arte e ciência em
um momento de enorme expansão das
fronteiras do saber, e sobre as possibilida-
des de uso da imagem como documento
e objeto de-pesquisa.
As missões científicas, instrumento
através do qual a antropologia moderna
começou a construir seu objeto tendo co-
mo paradigma a história natural, utilizaram
largamente a pintura, o desenho e a gra-
vura, para documentar e ilustrar suas ob-
servações e conferir-lhes legitimidade, atra-
s de uma teoria da arte baseada no
"realismo criativo".
O conceito de "realismo criativo" foi
desenvolvido e aplicado, primeiramente,
por Alexander von Humboldt ao estudo do
espaço geográfico e humano em suas via-
gens à América do Sul por volta de 1810
(Loschner 1978, Beck 1978). Conceben-
do "a representação científica da natureza
numa imagem artisticamente conformada",
o uso de ilustrações acompanhando o texto
científico era visto por Humboldto só
como objeto de interesse do estudioso e
do cientista, mas como meio de populari-
zar a ciência, conquistando um público lei-
tor sempre ávido por satisfazer o antigo fas-
cínio pelo "mundo selvagem", através da
literatura de viagem.
De imediato, constata-se que a união
entre esses elementos transformou os re-
latos sobre o Brasil de tal forma que a ilus-
tração penetrou a narrativa e o artista se
sobrepôs ao pesquisador, como testemu-
nha dos dramas da expedição. O resulta-
do é uma profusão de imagens,nas quais
abundam os detalhes no uso da cor e do
traço e de onde emergem a revelação da
diversidade e a ênfase na diferença entre
as culturas observadas, numa representa-
ção das sociedades indígenas em sua mul-
tiplicidade, que caminha no sentido inver-
so ao do discurso idealizado do
romantismo de meados do século XIX, so-
bre um "índio genérico" em vias de extin-
I- Idealizações do
bom e do mau
selvagem.
Bom e mau
selvagem. "Busto de
Botocudo Quack".
Friedrich T. Kloss,
aquarela. Bibl.
Brasiliana
Robert Bosch,
Sttutgart. Foto:
António Rodrigues.
Bom e mau
selvagem. "Capitão
Jeparaque do Rio
Grande de
Belmonte". Heinrich
Keller. Aquarela a
bico de pena. Bibl.
Brasiliana Robert
Bosch, Sttutgart.
Foto: António
Rodrigues.
ção.
Como sabemos, as teorias raciais e o
evolucionismo, que impregnaram as ideo-
logias sobre o índio no século passado, dei-
tam raízes de longa duração em nossa me-
mória social, que tanto remetem para a
busca de um passado "original" como pa-
ra questões atuais sobre o lugar da identi-
dade étnica na cultura brasileira. Trazer a
imagem e a arte para esse debate, signifi-
ca, no limite, buscar novos caminhos para
a reconstituição de antigos dilemas do "dis-
curso do confronto". Significa também in-
dagar sobre os processos diferenciados en-
tre duas linguagens, que recolocam em
discussão a interdisciplinaridade, as fron-
teiras do conhecimento e as articulações
entre estética e ciência.
O exame da iconografia indígena do
passado permite identificar, através da ima-
gem, um movimento inicial de ruptura na
representação dominante sobre o índio, en-
quanto categoria indiferenciada contrapos-
ta ao branco, em direção ao reconhecimen-
to da existência das sociedades tribais
concretas e suas diferenças.
A linguagem do desenho, com seus-
digos próprios e seus significantes, revela-
-se então como documento visual de uma
temporalidade, como "arquivo de identi-
dades", poderíamos dizer, que abre inúme-
ras possibilidades de estudo para a histó-
ria indígena e para a etnologia na
atualidade, principalmente no que se re-
fere à noção de pessoa, questão que exa-
minaremos na parte final deste trabalho.
O desenho como linguagem
Tomar a imagem icônica como objeto
de análise implica ter em mente que se tra-
ta de um registro realizado em determina-
das condições, dentro das quais uma "lei-
tura antropológica" pressupõe problemas
teóricos e metodológicoso inteiramen-
te claros para o pesquisador.
Antes de mais nada torna-se necessá-
rio indagar o que diferencia a imagem de
outras formas de linguagem.
Para Barthes, além da substância lin-
guística ("uma imagem vale mais que mil
palavras"), toda imagem é portadora de
uma dupla mensagem: uma mensagem
codificada (conotação) que remete para
um determinado saber cultural e seus sig-
nificados globais, e uma mensagem sem
código (denotação), cujo caráter analógi-
co pressupõe sua capacidade de reprodu-
tibilidade do real (Barthes 1990).
A "cadeia flutuante" de significados.
que levam a uma interrogação sobre a lin-
guagem literal denotada e a linguagem
simbólica conotada, mantém uma relação
com o tipo de imagem com que estamos
tratando: pintura, desenho, fotografia, ci-
nema, etc. Assim, diz Barthes, enquanto
linguagem o desenho se aproxima da fo-
tografia, porém seu valor de denotação é
menos puro, uma vez queo há desenho
sem estilo, enquanto que na fotografia o
"ter estado aqui" inocenta a mensagem
simbólica, produzindo um mascaramento
do sentido construído, sob a aparência do
registro natural (1990:35-37).
A leitura de Barthes nos conduz à des-
coberta do sentido de "descontinuidade"
do desenho, enquanto expressão de um
determindo código cultural que permite-
rias interpretações de uma mesma ima-
gem, dependendo da contextualização e
do saber investido no olhar. Penetramos
aqui no terreno da ideologia, onde o con-
junto dos significantes (conotadores) ex-
pressam uma retórica, na qual os símbo-
los mais fortes de uma culturao
reificados em um discurso icônico que os
"naturaliza" (p.39-40).
O desenho enquanto objeto de estu-
do aponta as mesmas questões que se co-
locam para a fotografia, referentes às con-
dições de percepção, memória,
subjetividade do observador e relação que
este estabelece com a imagem. Sua análi-
se pressupõe, portanto, a necessidade de
contextualizar a representação temática à
temporalidade retratada e às peculiarida-
des estéticas de produção do trabalho do
autor (Leite 1988).
Por outro lado, o desenho distancia-se
da fotografia no sentido apontado por
Bourdieu (1985) dos seus usos sociais, na
medida em que o desenho requer um
aprendizado, uma prática criativa especia-
lizada e um grau de legitimação e reconhe-
Encantamento.
"Recueil de la
diversité des habits.
qui sont de present
en usage tant en
pays d'Europe, Asie,
Affique & Isles
sauvage. Le tout fait
aprés de naturel"
Paris. Richard
Breton. 1564. Foto:
António Rodrigues.
Padrões estéticos
ocidentais. "A
Amazona*'. Theodor
de Bry. "América.
Terceira Parte".
Frankfurt, 1593.
Foto: António
Rodrigues.
cimento conferido à obra de arte,o sen-
do acessível a qualquer amador, como a
fotografia e situando-se claramente no
"campo artístico".
Os avanços da técnica representam um
elemento chave para a compreensão da
modernidade e das transformações histó-
ricas no campo das artes rumo à moder-
nidade. Com as novas funções adquiridas
pela imagem a partir da descoberta da li-
tografia, no início do século XIX, a repro-
dutibilidade transformou as artes gráficas
em verdadeiros "documentos do cotidia-
no", distanciando seu antigo "valor de cul-
to" de um novo valor em que a arte se
constitui como "realidade exibível" (Ben-
jamin 1975).
Seria engano supor, entretanto, que as
bases ritualísticas da obra de arte tendem
a desaparecer com o avanço da técnica.
mesmo quando esta coloca em primeiro
plano o valor de exibição. Lançando seu
olhar às imagens anónimas dos homens e
mulheres retratados por Daguerre, Benja-
min observa "algo estranho e novo" que
o pode ser reduzido ao trabalho do fo-
tógrafo:
"Depois de mergulharmos suficiente-
mente fundo em imagens assim, percebe
mos que também aqui os extremos se to-
cam: a técnica mais exata pode dar às suas
criações um valor mágico que um quadro
nunca mais terá para nós" (Benjamin
1985:94).
A dimensão mágica do "inconsciente
ótico", de que fala Benjamin, guarda uma
relação com o que Barthes chama de "ter-
ceiro sentido" contido na imagem
(1990:45-61). Um sentido obtuso, que en-
cerra o paradoxo de confundir o discurso
narrativo ao mesmo tempo em que forja
um campo de permanência e permutação.
Nesse sentido, a imagem torna-se uma
"companheira de caminhada" que nos per-
mite ver até que ponto a linguagem arti-
culada é apenas aproximativa e perceber
a passagem da linguagem à significância.
Tal passagem, que se apresenta como
um dilema e um enigma para a ciência,
coloca-se, a nosso ver, como o principal
desafio a uma "leitura antropológica" que
leve em consideração o caráter de irredu-
tibilidade da mensagem icônica.
A leitura de Barthes, Benjamin e Bour-
dieu, além de abrir novos caminhos, escla-
rece os limites deste exercício de aproxi-
mação com o tema das representações.
Representações contidas na imagem, em
que procuro lançar meu próprio olhar so-
bre o índio do passado, tentando desven-
dar alguns sentidos e deixando para o lei-
tor a possibilidade, sempre aberta, da
descoberta de outros sentidos.
O olhar colccionador
Durante todo o século XIX, grande-
mero de viajantes estrangeiros percorreu
o Brasil, produzindo uma variedade de re-
latos, queo de diários impressionistas de
viagem a relatórios comerciais e estudos
científicos, passando por memórias descri-
tivas, tratados filosóficos, informes econó-
micos, etc. É uma produção bastante he-
terogénea, onde predominam os viajantes
ingleses, franceses, americanos e alemães,
Delírios do
imaginário. Ulrich
Schmidel, "Vera
história".
Nuremberg, Levinus
Hulsius. 1599. Foto:
António Rodrigues.
entre os quais, além de curiosos diletan-
tes, incluem-se representantes diplomáti-
cos, comerciantes, religiosos, artistas e cien-
tistas.
Nessa última categoria, destacam-se os
estudiosos da história natural, geralmente
vinculados a instituições de pesquisa e mu-
seus europeus, que vinham para realizar
expedições científicas eo apenas viagens
de contato e reconhecimento.
A maior parte das missões científicas
era financiada por governantes da França,
Inglaterra e Alemanha e seus integrantes
faziam parte do movimento de expansão
das ciências naturais, onde os avanços do
conhecimento, tomavam por base do-
todo a observação. Os viajantes, ansiosos
por estudar a natureza e o homem, pro-
curavam mover-se pelo território munidos
dos mais recentes equipamentos e proce-
dimentos de pesquisa, para descobrir e re-
gistrar a diversidade e o exotismo do uni-
verso tropical e estabelecer futuras
comparações, à luz das novas teorias, mo-
delos e tipologias.
As exigências do método impunham
que a observação fosse cuidadosamente
descrita, registrada, documentada e repro-
duzida através do desenho ou da pintura,
completando-se o trabalho de campo com
a coleta dos espécimes, destinados a com-
por as imensas coleções armazenadas nos
recém-criados museus de história natural.
Observar e colecionar era mais que um
objetivo científico. Era quase uma missão,
especialmente para a etnografia. No largo
período que se situa entre a criação da So-
ciedade dos Observadores do Homem
(1799-1805) e o estabelecimento da antro-
pologia moderna, como Tylor, Morgan e
Frazer, o evolucionismo social corre para-
lelo ao evolucionismo biológico. Domina-
-o um desvelo "salvacionista", que torna ur-
gente recolher todos os documentos vivos
da cultura de povos considerados em via
de extinção.
Um "espírito da última hora", para usar
uma expressão de Baldus (1954), que
olhava para trás e via no indígena ameri-
cano o remanescente em decadência da
infância da humanidade. "Falso evolucio-
nismo" ou "pseudo-evolucionismo" diria
Lévi-Strauss, para quem o evolucionismo
social, ao contrário do evolucionismo bio-
lógico, teoria científica,o é mais do que
"a maquilagem falsamente científica de um
velho problema filosófico para o qualo
existe qualquer certeza de que a observa-
ção e a indução possam um dia fornecer
a chave" (1985:56).
A etnografia das primeiras décadas do
século XIXo estava interessada em
aprofundar o conhecimento de uma deter-
minada cultura mas sim em compreender
extensivamente as práticas sociais de po-
vos distantes no espaço e no tempo, para
compará-las e demostrar a universalidade
das técnicas, das instituições, dos compor-
tamentos e das crenças (Laplantine 1988).
Para afinal realizar o paradoxo de "supri-
mir a diversidade das culturas, fingindo
conhecê-la completamente" (Lévi-Strauss
1985:55).
No contexto do pensamento social em
que se movem os cientistas-viajantes, a
perspectiva comparativa, classificatória e
colecionista é depositária também do ro-
mantismo que domina a estética e a lite-
ratura da primeira metade do século pas-
sado. Mais para o final do século,
românticos e folcloristas recorrem à antro-
pologia nascente, pelas vias abertas por
Tylor, produzindo uma analogia entre a cul-
tura do camponês europeu e as culturas
ditas primitivas, que aproximam o "selva-
gem" do "popular" (Ortiz 1985). Tal ana-
II - A ordem do
Mundo Natural
Humanidade com a
extensão da
natureza. "índios
Puri subindo nas
árvores". Maximilian
Wied-Newied. 1816.
Aquarela e bico-de-
-pena. Biblioteca
Brasiliana Robert
Bosch. Foto:
António Rodrigues.
logia, como mostram estudos históricos so-
bre o folclore no Brasil, repercute e reforça
o zelo preservacionista e colecionador, na
medida em que a cultura popular aparece
também como produto originário de um
passado ameaçado de extinção (Cavalcanti
1988).
O propósito de "salvar" as culturas do
desaparecimento dá aos museus um lugar
particularmente relevante nesse contexto,
com repercussões internas que levam as
elites intelectuais brasileiras a tentar inserir-
-se no espírito cosmopolita e nos padrões
de universalidade da ciência, com a cria-
ção de três museus: Nacional, Paulista e
Paraense Emílio Goeldi (Schwarcz 1988).
Mas é nos museus da Europa que se reú-
nem as grandes coleções arqueológicas e
etnográficas sul-americanas, sendo o mu-
seu etnográfico de Berlim o que abriga o
mais importante acervo sobre a cultura ma-
terial dos povos indígenas do Brasil no-
culo XIX, notadamente os do Xingu.
Em outro estudo (Porto Alegre 1989)
enfocamos as ações nacionalistas dos in-
telectuais brasileiros de meados do século
XIX, que se voltam para regiões longínquas
do país, organizando internamente expe-
dições semelhantes às europeias, na pre-
tensão de produzir uma "fala" científica na-
cional, assumir o lugar do "outro" e romper
o auto-silenciamento imposto pelo discurso
dominante do "velho" sobre o "novo" mun-
do. Como os processos de construção de
identidade nuncao desinteressados, esse
movimento acaba por assumir uma forte
conotação política, onde o interesse pelo
conhecimento do índio e do "povo" enco-
bre um antigo projeto das classes dominan-
tes e do Estado, de controlar a força de tra-
balho, projeto esse que se oculta sob o
manto da incorporação desses elementos
à sociedade nacional.
O tema do "outro", presente na ques-
o da identidade nacional é também o-
cleo da visão do colonizador, nas viagens
exploratórias. Tao antigo quanto a desco-
berta da América, a descoberta do "outro"
chega até nós, inicialmente, pela voz dos
cronistas dos séculos XVI e XVII, espan-
tados diante da natureza e dos habitantes
da terra. No século XVIIIo engenheiros,
cartógrafos e os primeiros naturalistas que
surgem, nas trilhas do iluminismo, escre-
vendo memórias onde procuram inven-
tariar as riquezas económicas do país. Mas
é com a passagem da corte portuguesa pa-
ra o Rio de Janeiro, no começo do século
XIX, que o movimento de viajantes estran-
geiros torna-se mais intenso e as expedi-
ções se multiplicam, cruzando o país de
ponta a ponta, pelo litoral e pelos sertões,
acolhidas e estimuladas pelo primeiro e se-
gundo impérios.
Enquanto processo discursivo, esse
desfile de relatos se apresenta como um
"lugar de significação, de confrontos de
sentidos, de estabelecimento de identida-
des, de argumentação, etc" (Orlandi 1990),
onde podemos perceber a prática de uma
violência simbólica, no confronto de rela-
ções de força que acompanham o que se
conta e o queo se conta, ao longo da
história com a qual nos identificamos en-
quanto brasileiros. Como bem coloca Eni
Orlandi, trazendo mais uma reflexão ao re-
Ill Imagens da
diversidade
Guerreiros. "Dois
botocudos com arco
e flecha". Maximilian
Wied-Neuwid. 1816.
Aquarela e bico-de-
pena. Bibl.
Brasiliana Robert
Bosch, Stuttgart.
Foto: António
Rodrigues.
ção da autoridade da mensagem discursi-
va, conferindo legitimidade ao texto. O de-
senho como denotação do real
aproxima-se da fotografia e antecipa-se a
ela no relato etnográfico, submetendo o
texto ao olhar de quem "esteve" e re-
constituiu através da imagem a cultura dis-
tanciada.
Os pintorcs-ctnógrafos
Nos cantos e nas margens dos primei-
ros mapas do século XVI apareciam sím-
bolos. elementos isolados da cultura ma-
terial e seres humanos. As xilogravuras dos
livros de André Thévet (1556), Hans Sta-
den (1557) e Jean de Léry (1558) fornece-
ram os primeiros modelos dos homens que
habitavam as terras descobertas, mas foi a
partir do trabalho do gravador Theodore
de Bry, editor de um grande livro de via-
gens, em seis volumes, repleto de gravu-
ras estilizadas e fantasiosas (1593 - 1620),
que a imagem do nativo americano pas-
sou a povoar a imaginação do leitor
europeu.
No século XVII, os artistas que acom-
panharam Maurício de Nassau ao Brasil
(1637-1644): Frans Post, Albert van der Eck-
hout e Zacharias Wagener, inauguraram
uma representação mais exata do homem
e da terra, que serviria de novo modelo vi-
sual, até fins do século XVIII, quando sur-
gem os primeiros "pintores-viajantes".
Alguns desses novos viajanteso pre-
dominantemente artistas, outros homens
de ciência ou escritores. Alguns desenham
de preferência paisagens e a vegetação;
outros animais ou seres humanos. Um é
sobretudo naturalista; outro geólogo ou bo-
tânico, um terceiro arqueólogo e etnógra-
fo. Aqueles que por sua obra artística con-
tribuíram para o estudo da etnografia e da
arqueologia sul-americana no século XIX,
formam uma categoria denominada
"pintores-etnógrafos" (Kate 1910).
Thekla Hartmann (1975) analisa minu-
ciosamente as obras deixadas pelos
pintores-viajantes, chegando à conclusão
de que numerosos fatores interferem no
seu valor documental e histórico. Verifica,
por exemplo, que os desenhos nem sem-
pre foram feitos a partir da observação di-
reta, podendo ser fruto da descrição de ter-
ceiros ou mesmo da imaginação,
registrando-se, inclusive, o uso de um único
"manequim", marcado e adornado de di-
ferentes maneiras, de acordo com a origem
tribal. Destaca, também, as alterações e dis-
torções nos desenhos originais feitos "in lo-
co", provocadas pela reprodução litográfi-
ca produzidas nas casas editoras europeias,
que visavam embelezar e romantizar a pai-
sagem e os seres humanos retratados.
Seguindo as pistas abertas por Thekla
Hartmann, comprovamos ser extrema-
mente importante que o pesquisador te-
nha acesso aos originais das obras, pois
muitas vezes o registro objetivo apresenta-
-se inteiramente deformado nas edições
ilustradas das obras de viagem, constituin-
do versões mais distanciadas da realidade,
criando inverdades, adulterando os tipos
físicos para causar impacto entre o públi-
co europeu, problema que se agravava
com a utilização de diferentes especialis-
tas na gravação das estampas publicadas,
cada um com seu próprio estilo (Hartmann
1975: 109).
Selecionamos para análise, principal-
mente, as obras deixadas pelas expedições
de Maximilian zu Wied-Neuwied (1815-
1817), Spix e Martius (1817-1820) e Hércu-
les Florence (1825-1829), este último par-
ticipante da expedição Langsdorff, que
produziram uma iconografia de valor do-
cumental, histórico e etnográfico indiscu-
tivelmente maior do que artistas mais co-
nhecidos como Debret (1816-1831) ou
Rugendas (1821-1825).
Em busca dos signos de alte-
ridade
Discípulo das teorias raciais de Blu-
membarch, da estética de Humboldt, da
frenologia de Gall, da fisiognomonia de La-
vater, o pintor-etnográfico do século XIX
é um observador que classifica indivíduos
a partir da morfologia do crânio, desenha
corpos, sistematiza traços, investiga e cons-
trói a representação da identidade através
da aparência do corpo humano, buscan-
do na sua superfície o sentido da interiori-
dade invisível.
Trabalha sob a influência da paixão da
anatomia, de uma história natural que ob-
serva e detalha os homens em sua morfo-
logia e se esforça por decifrar, sob os sig-
nos exteriores, as formações psíquicas, as
relações entre corpo e alma, definindo al-
teridades e imaginando disparidades que
lançam um novo olhar e uma nova histo-
ricidade sobre o corpo humano, tomando
a forma de um distanciamento que desti-
na o homem moderno ao paradoxo de
"um olhar sobre si, constituído fora de si"
(Courtine e Haroche 1988).
O surgimento das "massas" e da de-
sordem social fundamenta o antagonismo
entre um "físico popular" e um "físico bur-
guês" expresso pelo retrato pintado, pela
caricatura da imprensa e pela fotografia,
que tornam-se as testemunhas da violên-
cia, da feiúra e da periculosidade das clas-
ses subalternas, construindo graficamente
as ideias concebidas por Lavater e Gall de
alcançar o caráter do "homem degenera-
do" a partir da fisiologia e da anatomia, cu-
jo marco definitivo é dado por Lombroso
(idem: 44-45).
A transferência das concepções sobre
as classes perigosas para a representação
do selvagem americanoo constitui mais
do que um deslizamento. Esboços, croquis
e desenhos se conjugam para compor o
mosaico vivo e ilustrado da extinção emi-
nente desses seres ora "decadentes" e "gro-
tescos", ora "belos" e "inocentes".
As interrogações de Martiuso eluci-
dativas a esse respeito:
"... muito há que faz supor que a hu-
manidade americanao está mais no pri-
meiro passo do simples desenvolvimento
que eu denominaria o da sua história na-
tural... o que são, pois, estes homens ver-
melhos que habitam as densas matas bra-
sileiras, desde o Amazonas ao Prata, ou
que em bandos desordenados vagueiam
pelas campinas solitárias do território in-
terior? Formam eles um povo,o eles par-
tes dispersas de um todo primitivo,o po-
vos diversos, vizinhos um do outro, ouo
finalmente, tribos fragmentadas, hordas e
famílias de vários povos diferenciados pe-
los costumes, pela moral e pelas línguas?
(Martius 1982: 11-12).
Martius passou longos anos a sistema-
tizar estudos sobre os índios do Brasil e suas
Caçadores.
"Botocudo com
caça: arara e
macaco." Maximilian
Wied-Newied. 1816.
Aquarela e bico-de-
pena. Bib. Brasiliana
Robert Bosch. Foto:
António Rodrigues.
Os rituais "Dança
dos Tapuias". Albert
Echout. 1637-1644.
Pintura sobre tela.
Museu Nacional da
Dinamarca. Foto:
António Rodrigues.
"Festa dos Jurí".
Spix e Martius,
1817-1820. "Atlas de
viagem." Foto:
António Rodrigues.
indagaçõeso diferiam das preocupações
dos contemporâneos, empenhados em en-
contrar respostas científicas para as espe-
culações acerca da diversidade das cultu-
ras e elaborar uma imagem do outro onde
melhor situassem a imagem de si mesmos.
Ciência e arte caminharam juntas pa-
ra construir a representação do homem na
modernidade, em que pese a "autonomia"
do campo das artes no mundo contempo-
râneo, no sentido empregado por Bourdieu
(1982), de um campo de produção, circu-
lação e consumo que tem sua lógica pró-
pria. Nesse processo, tempo e espaço atua-
ram na descoberta da multiplicidade e
fragmentação da vida social, "quando a his-
tória da arte resgata múltiplos mundos so-
terrados, quando os viajantes e os etnó-
grafos colocam em contato com o
Ocidente milhares de culturas e expressões
artísticas distintas" (Gomes 1992:45).
Agrupamos o material iconográfico co-
letado em quatro temas analíticos:
a) idealizações do bom e do mau
selvagem
b) a ordem do mundo natural
c) imagens da diversidade
d) corporalidade: arquivos de identida-
de?
No primeiro, vamos desfilar, através
das imagens, uma galeria de idealizações
produzidas desde os primeiros séculos da
descoberta do "novo mundo", que tradu-
zem o espanto, o encantamento com o es-
tado de natureza, visões do paraíso perdi-
do, dúvidas sobre a existência da alma,
fantasias sobre o canibalismo e a ferocida-
de dos habitantes da terra, cenas grotes-
cas de degradação e estupidez. Essaso
categorias classificatórias, através das quais
o pensamento ocidental constrói o mun-
do, a noção de tempo, as ideologias de na-
turalização, do bem e do mau: imagens do
bom e do mau selvagem, ideias de civili-
zação e barbárie, que perpassam a repre-
sentação do índio até nossos dias.
No segundo, percebemos que no bo-
jo dessa construção emergem novas ima-
gens, que buscam a ordem do mundo na-
tural e entendem a humanidade que vive
nas florestas tropicais como extensão da
própria natureza, retratada pela estética do
romantismo novecentista como pródiga e
harmoniosa, plena de vida, cheia de cor
e de luz. Através do olhar observador e da
pena minuciosa do paisagista renova-se a
ideia de um paraíso natural, repleto de ino-
cência e prazer.
No terceiro, procuramos captar como,
em meio à profusão de imagens, o retrato
do homem revela, pela primeira vez, a di-
versidade das culturas observadas. Os de-
senhos agora fogem aos estereótipos de-
formados do "índio genérico". As cenas
dramáticas da expedição mostram os cor-
pos nus adornados e pintados, as armas
e objetos de uso cotidiano, as caçadas e
a guerra, a vida em família, a dura sobre-
vivência nas selvas, o nomadismo constan-
te, os rituais, as máscaras e as festas. A co-
leta é sistematizada nos museus e os
objetos expostos mostram os traços distin-
tivos de vários povos indígenas: Botocu-
dos, Pataxó, Borôro, Purí, Mundurukú,-
ri, Tukuna, Kamakã, Coeruna, Mawé,
Apiaká, entre outros.
Finalmente, no quarto grupo, é a su-
perfície do corpo que se revela como ob-
jeto central desse olhar, projeção gráfica de
uma realidade de outra ordem, distintivo
cultural da identidade indígena retratada.
O corpo e seu lugar na construção da pes-
soa. O corpo e a arte plumária como ex-
pressão estética de rara beleza. O artista
ocidental diante do artista nativo, do che-
fe, do guerreiro, da mulher, da criança. O
artista desejoso de fixar para a história do
homem, através de seu talento, esses do-
cumentos, arquivos vivos de uma outra
identidade.
Diferenças
Somáticas. "Decas
collectionis suae
craniorum
diversarum gentium
illustratas." Johann
F. Blumenbach.
1790-1828,.
Gottingen. Foto:
António Rodrigues.
"Adornos plumários
Mawé." Spix e
Martius. "Atlas de
viagem." Foto:
António Rodrigues.
"Três mulheres
Apiaka". Hércules
Florence. 1828.
"Revista Globus."
Foto: António
Rodrigues.
IV Corporalidade:
arquivos de
identidade?
"Guerreiros Apiaka".
Hércules Florence.
1828. "Revista
Globus." Foto:
António Rodrigues.
As imagens do passado como
arquivos de identidade
o por acaso, o exame da iconogra-
fia indígena remete a indagações que im-
plicam em deslocar o foco de análise, das
questões abrangentes sobre o lugar do ín-
dio na sociedade nacional, para a com-
preensão das organizações tribais enquanto
totalidades.
Nessa perspectiva, e para finalizar, pro-
curei verificar como o material seleciona-
do permite perceber indícios que apontam
para a noção de pessoa, através da cor-
poralidade, que constitui um elemento cen-
tral da construção da identidade nas socie-
dades indígenas brasileiras.
Uma instigante análise sobre a cons-
trução da pessoa nas sociedades indígenas
brasileiras inicia-se com a observação de
que só muito recentemente, após a Segun-
da Guerra, o estudo das sociedades tribais
deslocou-se de categorias abrangentes, re-
feridas à sociedade nacional de um lado
e ao índio enquanto categoria genérica de
outro, para trabalhos descritivos específicos,
"quando o focoo é mais a discussão do
lugar do índio (junto com o negro e com
o branco, na hierarquia do universo nacio-
nal), mas - isso sim - a posição daquela so-
ciedade tribal como uma realidade dota-
da de unidade " (Seeger, da Matta, Castro
1987).
Salientando as contribuições da etno-
logia dos grupos tribais brasileiros para o
campo da antropologia como um todo, os
autores desenvolvem a tese de que "a ori-
ginalidade das sociedades tribais brasilei-
ras (de modo mais amplo, sul - america-
nas) reside numa elaboração
particularmente rica da noção de pessoa,
com referência especial à corporalidade en-
quanto idioma simbólico focal" (p. 12).
As formulações de Seeger, da Matta
e Viveiros de Castroo esclarecedoras
nesse sentido:
"Ele, o corpo, afirmado ou negado,
pintado e perfurado, resguardado ou de-
vorado, tende sempre a ocupar uma posi-
ção central na visão que as sociedades in-
dígenasm da natureza do ser humano.
Perguntar-se, assim, sobre o lugar do cor-
po é iniciar uma indgação sobre as formas
de construção da pessoa" (p.13).
Como mostram vários estudos (Vidal
e Muller 1987, Seeger 1980, Turner 1980)
os significados da pintura corporalo si-
multaneamente sociais e simbólicos. Indi-
cam padrões específicos de grupos de ida-
de e sexo, diferenças de status e de
atividades, que permitem comunicar esta-
dos de espírito e posições na comunida-
de, além de ser um elemento chave para
a apreensão do universo, para a comuni-
cação entre os aspectos sociais e biológi-
cos da personalidade e para a compreen-
o dos mitos.
A linguagem simbólica da ornamenta-
ção corporal exprime, principalmente, a
concepção tribal da pessoa humana, na or-
dem social e cósmica (Vidal e Muller
1987:120). A dualidade do corpo e da pin-
tura atua, portanto, como mostrou Lévi-
-Strauss (1975), para expressar uma reali-
dade da qual o indivíduo participa,
projetando-se graficamente na sociedade
através da pintura, que o reveste como
uma "pele social" (Turner 1980).
o só a pintura, mas também os
adornos e as máscaras,o formas plásti-
cas de expressão de uma experiência ao
mesmo tempo de ordem estética, social e
mítica. A via da arte pode ser bastante fe-
cunda para investigar as afirmações cons-
cientes ou inconscientes das diferenças cul-
turais, no sentido apontado por Roberto
Cardoso de Oliveira, de considerá-las en-
quanto elementos de contrastividade, es-
sencial à elaboração da identidade étnica
e das representações que nela se configu-
ram (Oliveira 1983).
Como enfatiza o estudo de Seeger, da
Matta e Castro, sendo o corpo o locus es-
truturador da experiência e organização
das sociedades tribais sul-americanas, ele
representa a arena central onde se definem
relações e posições sociais, a partir de um
"idioma de substância" : "mais importan-
te que o grupo, como entidade simbólica,
aqui, é a pessoa; mais importante que o
acesso à terra ou às pastagens, é aqui a re-
lação com o corpo e com os nomes" (p.
24).
Os caminhos abertos pela antropolo-
gia para alcançar dimensões mais profun-
das da realidade reatam, na atualidade, os
laços entre ciência e arte, através da ten-
tativa de compreender a própria criação
dos símbolos e sua expressão estética.
Difícil tarefa, que nos deixa como con-
clusão provisória a possibilidade de pen-
sar as imagens do passado como "arqui-
vos de identidade". Arquivos de identidade
construídos tanto na busca de registros co-
mo nas projeções de natureza simbólica,
que definem um lugar para o outro. A ima-
gem especular do paraíso perdido, ou do
mal domesticado, que nos remete a novas
indagações sobre os limites entre ciência
e arte, entre expressão estética e significa-
do, entre função social e função simbólica.
Notas
1. Entre os pintores-viajantes que estiveram no Bra-
sil, no século XIX, destacam-se os alemães Wied
(1815-17), Ender (1817), Spix e Martius (1817-20),
Rugendas (1821-25), Poeppig (1827-32), Planitz
(1831-44), Adalberto da Prússia (1842), Burmeis-
ter (1850-52), Hagedorn (1852), Appun (1860-68),
Keller-Leuzinger (1874) e W. von den Steinen
(1886); os franceses Debret (1816-31), Adrian Tau-
nay (1616-1824), Florence (1825-29) e Biard
(1858-60); os ingleses Koster (1789-1845). Mawe
(1807-11), Chamberlain (1815-20), Graham
(1821-23) e Bates (1848-59) e os italianos Rad-
di(1816-18), Osculati (1847-48) e Boggiani (1898).
2. Agradeço à Profa. Dra. Re n ate Rott e ao
Lateinamerika-Institut da Universidade Livre de Ber-
lim, o convite que tornou possível a realização des-
te trabalho. Meus agradecimentos se estendem tam-
m ao DAAD e a Capes, cujo apoio financeiro
permitiu o estágio como bolsista na Alemanha, e às
seguintes instituições, que me ofereceram todo o au-
xílio necessário para o desenvolvimento da pesqui-
sa: Ibero-Amerikanisches Institut, Museum Fur Vol-
kerkunde, KupferstichKabit, Staatsbibliothek e
Baessler Archiv, pertencentes ao Preussischer Kul-
turbesitz de Berlim; Universitatsbibliothek de Heidel-
berg; Robert Bosch GmbH de Stuttgart, Staatlisches
Museum Fur Volkerkunde e Alte Pinakothek de
Munique.
Bibliografia
Baldus, Herbert (1954). Bibliografia crítica da et-
nologia brasileira.o Paulo.
Barthes, Roland (1980). La chambre claire note
sur la photographie. Paris, Gallimard.
(1990). O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira.
Beck, Hanno. (1978). "A arte descobre um conti-
nente". Artistas alemães na América Latina.
Berlim, Instituto Ibero-Americano.
Benjamin, Walter (1975). "A obra de arte na épo-
ca de suas técnicas de reprodução" Textos
escolhidos. Coleção Os Pensadores,o Pau-
lo, Abril Cultural.
(1985). "Pequena história da fotografia". Obras es-
colhidas Magia e Técnica. Arte e Política, 4? edi-
ção,o Paulo, Brasiliense.
Bourdieu, Pierre et alli (1985). Un art moyen Es-
sai sur les usages sociaux de la photogra-
phie. Paris, Minuit.
Cavalcanti, M. Laura (coord.) (1988). "Os estudos
de folclore no Brasil", XII Encontro Anual da
ANPOCS. Águas deo Pedro.
Courtine, J.J. e Haroche, Claudine (1988). "O ho-
mem perscrutado - semiologia e antropologia
política da expressão e da fisionomia do sécu-
lo XVII ao século XIX". Sujeito e Texto. Série
Cadernos PUC-31,o Paulo, Educ.
Gomes Jr., Guilherme Simões (1992). "A Herme-
nêutica cultural de Clifford Geertz". Revista
Margem. PUC/São Paulo, n.l, março, Educ,
págs. 37-46.
Hartmann, Thekla (1975). A contribuição da ico-
nografia para o conhecimento dos índios bra-
sileiros do século XIX. Coleção Museu Pau-
lista, Série de Etnologia, v.l,o Paulo, USP
Kate, Herman Ten (1910). "Sur quesques peintres-
etnographes dans I' Amérique du Sud". UAntropo-
logie. T. XXII 1911.
Laplantine, François. (1988). Aprender Antropo-
logia.o Paulo, Brasiliense.
Leite, Miriam Moreira. (1988). "A fotografia e as ciên-
cias humanas". BIB, Rio de Janeiro, n.25, págs.
83-90.
Lévi-Strauss. (1985). Raça e História. Coleção Os
Pensadores, 2a. edição,o Paulo, Abril Cul-
tural.
(1975). Antropologia estrutural, v.l., Rio de Ja-
neiro, Tempo Brasileiro.
Loschner, Renate. (1978). "A representação artísti-
ca da América Latina no século XIX sob a in-
fluência de Alexander von Humboldt". Artis-
tas Alemães na América Latina. Berlim,
Instituto Ibero-Americano.
Ortiz, Renato. (1985). Cultura popular: românti-
cos e folcloristas.o Paulo, PUC.
Martius, Cari F.P (1867). O Estado do direito en-
tre os autóctones do Brasil.o Paulo,
EDUSP, 1982.
Oliveira, Roberto Cardoso. (1983). Enigmas e so-
luções. Exercícios de etnologia e de crítica.
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
Orlandi, Eni P (1990). Terra à vista. Discurso do
confronto: velho e novo mundo.o Paulo,
Cortez.
Porto Alegre, Maria Sylvia. (1989). "O Brasil des-
cobre os sertões. A expedição científica de 1859
ao Ceará", Ciências Sociais Hoje. Vértice/
ANPOCS.
Queiroz, M.Isaura Pereira de (1988). "Viajantes,-
culo XIX: negras, escravas e livres no Rio de
Janeiro". Revista do IEB n.28.
Ribeiro, Darcy (editor) (1987). Suma etnológica
brasileira. Arte índia, v.3, Rio de Janeiro.
Schwarcz, Lilia K.M. (1988). A Era dos museus no
Brasil: 1870 -1930. Série História e Ciências
Sociais, n.6, IDESP,o Paulo.
Seeger, A., Matta.Roberto da e Castro, Eduardo V
(1987) "A construção da pessoa nas socieda-
des indígenas brasileiras".Sociedades indíge-
nas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro,
UFRJ.
Sussekind, Flora. (1990). O Brasilo é longe da-
qui.o Paulo, Companhia das Letras.
Turner, Terence. The social skin. in: Chefas, J.& Le-
vwin, R. (ed.) Not work alone. Survey of acti-
vities superfluous to survival. London, Tem-
ple Smith, págs. 112-42.
Vidal, Lux e Muller, Regina A.P "Pintura e ador-
nos corporais", in Suma etnológica brasilei-
ra. op. cit.
DIVERSIDADE CULTURAL DAS SOCIEDADES INDÍGENAS
Mitos c cosmologias indígenas no Brasil:
breve introdução
Aracy Lopes da Silva
Indiferenciação entre humanos e ani-
mais, que se relacionam como iguais;u
e terrao próximos, que quase se tocam;
viagens cósmicas, homens que voam,-
meos primevos, incestos criadores; origens
subterrâneas; dilúvios; humanidades suba-
quáticas; caos, conquistas, transforma-
ções... É o mundo tomando forma, defi-
nindo lugares e características de
personagens hoje conhecidos.o os te-
mas míticos, que narram aventuras e se-
res primordiais, em linguagem fabulosa
mas construída com imagens concretas,
captáveis pelos sentidos; situadas em um
tempo das origens mas referidas ao pre-
sente, encerrando perspectivas de futuro
e carregando experiências do passado. As-
sim, complexos,o os mitos.
São, também, incomensuravelmente
variados, já que criação original de cada
grupo com identidade cultural própria, re-
feridos às suas condições de existência e
à cosmovisão aí elaborada. Mas é igual-
mente inegável a sua condição de varia-
ções sobre temas comuns, compartilhados
o apenas localmente mas, em alguns ca-
sos, em escala universal. Particulares e lo-
cais, universais e essencialmente huma-
nos... talvez resida aí uma parte do fascínio
e do mistério dos mitos.
Em universos sócio-culturais específi-
cos, como aqueles constituídos por cada
sociedade indígena no Brasil, os mitos se
articulam à vida social, aos rituais, à histó-
ria, à filosofia própria do grupo, com cate-
gorias de pensamento localmente elabo-
radas que resultam em maneiras peculiares
de conceber a pessoa humana, o tempo,
o espaço, o cosmos. Neste plano, definem-
-se os atributos da identidade pessoal e do
grupo, distintiva e exclusiva, construída pe-
lo contraste com aquilo que é definido co-
mo o "outro": a natureza, os mortos, os ini-
migos, os espíritos...
Central é a definição do que seja a hu-
manidade e de seu lugar na ordem cósmi-
ca, por contraposição a outros domínios,
habitados e controlados por seres de ou-
tra natureza, vistos, às vezes, como mo-
mentos diversos no processo contínuo da
produção da vida e do mundo. No cosmos
concebido, há ordem, há classificação, há
oposição lógica, há hierarquia, categorias
inclusivas e exclusivas. Mas há também
movimento e um jogo constante com o
tempo, seja para suprimi-lo, permitindo aos
viventes humanos um reencontro possível
com o passado, os ancestrais, as origens,
seja para torná-lo eixo da própria existên-
cia, destinada a completar-se e a constituir-
-se plenamente após a morte, na supera-
ção eterna das limitações da condição
humana.
Cosmologiaso teorias do mundo. Da
ordem do mundo, do movimento no mun-
do, no espaço e no tempo, no qual a hu-
manidade é apenas um dos muitos perso-
nagens em cena. Definem o lugar que ela
ocupa no cenário total e expressam con-
cepções que revelam a interdependência
permanente e a reciprocidade constante
nas trocas de energias e forças vitais, de
conhecimentos, habilidades e capacidades
queo aos personagens a fonte de sua
renovação, perpetuação e criatividade.
Na vivência cotidiana, essas concep-
ções orientam,o sentido, permitem in-
terpretar acontecimentos e ponderar deci-
sões. São, de modo sintético, expressas
com clareza exemplar através da linguagem
altamente simbólica da dramaturgia dos ri-
tuais. Música, gestualidade estereotipada
mas sempre criadora, ornamentos corpo-
rais mais ou menos exuberantes, entre ou-
tros recursos, permitem o contato com ou-
tras dimensões cósmicas que aquela
habitualmente ocupada pelos humanos e
com momentos outros do mundo e do
processo da vida (e da morte). Nos rituais,
as coisas efetivamente acontecem. " E ape-
nas um ritual", diz-se, hoje, nas cidades,
quando se quer enfatizar o vazio das ações
ou das situações ritualizadas, prescritas, for-
malizadas. Ledo engano. O ritual permite
a experiência e, nela, a transformação e,
ainda, a ação. Sai-se dele renovado, em
outra condição. Em muitas sociedades in-
dígenas, o ritual é o momento mesmo da
inserção da humanidade no universo mais
amplo; é o lugar mesmo da confluência e
da presença concomitante do sobrenatu-
ral, da natureza e da humanidade. E, por
outro lado, da reafirmação dos laços de so-
lidariedade interna, da troca recíproca, da
expressão concreta da dimensão económi-
ca dos ritos, através de redistribuição e par-
tilha de alimentos.
E assim que símbolos, sentimentos,
concepções e matérias se encontram e se
mesclam no universo do mito e da cosmo-
logia, permeando vida e pensamento, so-
ciedade e natureza, dando sentido à ex-
periência humana no mundo.o como
ideologia que aliena, distorce e distancia,
mas como consciência do valor das coisas,
esquema interpretativo à disposição do su-
jeito que conhece o mundo e age sobre ele.
Conhecimento e açãoo movimen-
tos constantes, processos que se acumu-
lam e se desenvolvem, seguindo o correr
do tempo: reafirmações, ajustes, transfor-
mações, inovações. Cosmologias e seus
mitos associadoso produtos eo meios
da reflexão de um povo sobre sua vida, sua
sociedade e sua história. Expressam con-
cepções e experiências. Constróem-se e
reconstróem-se ao longo do tempo, dialo-
gando com as alterações trazidas pelo fluir
do tempo, pelo circular em novos espaços,
pelo contracenar com novos atores.
A inserção inexorável dos povos indí-
genas à sociedade nacional traz à vivên
cia e à reflexão novos desafios. Algumas
das novidadeso acomodadas na visão
já construída: o novo é traduzido no já co-
nhecido. Domesticado, torna-se familiar;
ganha um sentido instituído pela tradição;
perde o ineditismo, graças à sua localiza-
ção no passado experimentado. Ganha,
enfim, ares de reencontro.
Outras novidadesom eco na ex-
periência consagrada e na interpretação
possível. Abrem caminho à força, fazem-
-se sentido, acomodam-se imposirivamente
no cenário e nos modos de conhecimen-
to já constituídos, exigindo ampliações,
transformações e originando inovações.
o processos próprios à vida social e
à cultura, em qualquer momento históri-
co.o mecanismos de produção de va-
riação e de criação culturais. Mas, no con-
texto da Conquista, ganham força nova,
nascida da desigualdade e da dominação
típicas desse momento. Mitos da origem do
homem branco, reflexões sobre sua huma-
nidade, reavaliações do lugar dos índios no
mundo, registro de experiências do contato
na memória a ser legada, exemplarmen-
te, às gerações futuras...Os mitos se reafir-
mam e se transformam, dialogando com
a história.
Talvez seja chegada a hora de ilustrar
tudo isto com referências mais concretas
a modos indígenas específicos de conce-
ber o cosmos e de se situar nele. A tarefa
é quase impossível e demasiadamente pe-
rigosa: é grande a complexidade das teo-
rias indígenas; grande, a variedade de con-
cepções e estilos. O perigo é o da
generalização infundada, da simplificação
grosseira, da comparação ilegítima.
Dado o alerta, segue a ilustração, te-
merária, mas feita aqui apenas como ponto
de partida, exageradamente conciso, par-
cial e insuficiente. Por isso, cada caso men-
cionado vem seguido da indicação biblio-
gráfica que dará a ele o seu sentido pleno.
Assim, entre povos da família linguís-
tica Jê
J
, o cosmos é concebido como ha-
bitado por diferentes humanidades: a sub-
terrânea, a terrestre, a subaquática, a
celeste existem desde sempre. O tempo das
origens é o da indiferenciação e da desor-
dem, da convivência e da interpenetração
daqueles domínios. Astros, como o Sol e
a Lua,o gémeos primordiais que vivem
Na mitologia dos
índios Desana, a
avó do Universo
Yebá Belo constrói-
-se a si mesma a
partir de seis coisas
invisíveis: Sé-Kali
(bancos), salipu
(suportes de
panelas), Kuásulu
pu (cuias). Kuásulu
verá (cuias/ipadu),
deneke iuhku verá
pogá kuá (pés de
maniua, ipadu,
tapioca, cuia),
muhlun iuhku
(cigarros). Desenho
de Luiz Lana
coletado por Berta
Ribeiro, publicado
em "Antes o mundo
o existia".
Desenho de
máscaras
representando dois
entes sobrenaturais
de importância na
mitologia e nos
rituais de iniciação
dos índios Ticuna.
O sobrenatural
0'ma ou "'mãe do
vento" (à direita)
costuma ser
representado com
um pênis enorme,
com o qual derruba
as árvores na
floresta provocando
tempestades. Seu
acompanhante, o
Mawu. possui um
escudo circular de
grandes dimensões,
que usa para
movimentar o ar e
produzir o vento.
Desenho coletado
na aldeia de Belém
do Solimões, em
1979. por Jussara
Gruber.
aventuras na terra e aqui deixam o seu le-
gado, antes de partirem para sua morada
eterna. "Sua ação no mundo o transfor-
ma. Também a atuação dos humanos o al-
tera e vai. aos poucos, dando-lhe a forma
com que hoje se apresenta, através de um
processo contínuo de ordenação, classifi-
cação, alocação dos diversos seres que
existem em seus respectivos domínios. Se-
paração, oposição e regulamentação dos
modos de convivência; descobertas, ousa-
dias e dissaboreso experiências huma-
nas que moldam o mundo. Xamãs transi-
tam entre as muitas dimensões cósmicas,
trazendo ensinamentos, reordenando as re-
lações entre a humanidade terrestre, as de-
mais e a natureza, com suas espécies e seus
espíritos." Doenças, aqui como em quase
todo lugar,o resultado de transgressões
e desequilíbrios nos modos adequados de
relacionamento, de quebras de limites, de
interpenetração indesejada ou descontro-
lada de dimensões do universo definidas
reciprocamente como diversas. E a alma
da criança que lhe escapa durante o cho-
ro convulsivo; é o feitiço que penetra a pe-
le, envólucro da pessoa; é a força vital do
indivíduo que se esvai, quando sua ima-
gem é aprisionada ao vagar, dissociada do
corpo que dorme ou agoniza, por paragens
de "outros".
Nos mitos, há referências explícitas
às atividades de subsistência e às práticas
sociais de modo geral. Instituições sociais
- a nomeação dos indivíduos, a guerra, o
xamanismo... -m no mito descritas as
suas origens e exposta a sua essência.
Em vida, a pessoa se constrói por re-
lações de identidade e alteridade, que es-
tabelece com outras pessoas, em um mo-
vimento típico do dualismo que constitui
essas sociedades e suas cosmologias, vi-
venciado aqui no plano mínimo de exis-
tência individual. Neste plano, vê-se a pre-
sença dos mecanismos lógicos e
sociológicos queo a essas sociedades
uma grande complexidade do ponto de
vista de suas instituições e dos modos de
relacionamento que estabelecem entre seus
membros. "Cada aldeia, de planta circu-
lar ou semicircular, delimita e contém sim-
bolicamente o próprio universo e nele.
Detalhe do teto da
casa de recepções e
festividades dos
índios Wayana. Na
língua indígena, a
roda do teto é
designada Maruana
e nela estão
representados seres
sobrenaturais que
constituem o
cosmos Wayana.
Foto Lúcia Van
Velthem.
vive-se. Na morte, a ruptura quase total
com os que sobrevivem, o inaugurar de
uma nova existência, em um novo espa-
ço marcado por festas e relações de con-
sanguinidade. Vivem, então, afinal, a ne-
gação da alteridade que constituíra suas
vidas: encontram-se. agora, na aldeia dos
mortos, o mundo dos antepassados, o rei-
no da identidade mais absoluta.
Por contraste, caberia mencionar, tal-
vez, a região do Alto Rio Negro, o noroes-
te amazônico, morada de povos de língua
Tukano
2
. No início dos tempos, antepas-
sados míticos criaram o mundo que, an-
tes,o existia. Das entranhas de uma ana-
conda ancestral, que fazia o percurso do
rio, saíram, em pontos precisos daquele
percurso, os antepassados primeiros de ca-
da um dos vários povos da região, deter-
minando, assim, seus respectivos territórios,
as atribuições específicas de cada um e um
padrão hierarquizado de relacionamento
entre eles.
Cosmos, território e maloca a casa
comunal que abriga os moradores de um
grupo local organizam-se espacialmente
reproduzindo, naquele mesmo padrão, um
modelo próprio de relacionamento social
baseado principalmente no parentesco e
na sucessão das gerações ao longo do tem-
po. No ritual de Jurupari, faz-se a inicia-
ção dos jovens à vida adulta e, neste con-
texto, reafirma-se o novo por sua
aproximação com as origens. No momento
ritual, suprime-se o tempo transcorrido en-
tre os primórdios e o presente histórico: jo-
vens e ancestrais estão simbolicamente co-
locados lado a lado; o futuro se faz através
de um reencontro intenso e regenerador
com o passado mais longínquo. Suprime-
-se, no rito, o tempo para impulsioná-lo
adiante; recria-se o espaço; bebe-se nas
fontes originais a força da vida.
Em muitas cosmologias, as relações
entre os humanos e os demais sereso
pensadas através da ideia da predação, nu-
ma metáfora que simbólica e logicamente
aproxima caça, guerra, sexo e comensali-
dade. Ainda no Alto do Rio Negro
3
, o
xamã parece estar encarregado de garan-
tir que fluxos e volumes de energia vital
compartilhada por humanos e animais
mantenham-se em níveis adequados. Exa-
geros na matança de animais deflagrariam,
como contrapartida, epidemias e malefícios
entre os homens, provocados por espíri-
tos protetores dos animais. Um equilíbrio
vital nas relações entre diversos domínios
cósmicos exige uma atenção que, de ou-
tra perspectiva, chamaríamos de "consciên-
cia ecológica". Uma concepção
cosmológica que situa a humanidade co-
Nurokot, ser
sobrenatural
aquático,
representado na
roda de teto
Maruana. Kaukuxi,
ser sobrenatural
terrestre. Desenhos
de Sapotori
coletados por Lúcia
Van Velthem em
1985.
mo apenas um dos atores no mundo, e
o como seu senhor, exige dela conten-
ção e participação na manutenção da or-
dem cósmica.
Em outro extremo do país, junto ao
povo Karib mais setentrional da América
do Sul, a mesma noção básica de um cos-
mos compartilhado, de co-presença coti-
diana de dimensões diversas que se opõem
e se complementam contracenando num
eterno diálogo. Penso nos Bakairi
4
.
Uma mesma força vital, ekuru, anima
seres humanos, plantas e animais, circu-
lando entre eles. Na forma possuída, car-
regada da identidade daquele que se
utilizou dela, a força polui e é fonte de pe-
rigo para outrem. Caída na terra, é lavada
pelas águas das chuvas e rios, purificada.
Absorvida pelos vegetais, é neles reproces-
sada, tornada então apta para vitalizar no-
vamente os humanos e os animais. As
águas trazem o viço e o vigor às plantas,
abundância à mata, alegria aos grupos lo-
cais que, reunidos em festas, celebram sua
unidade e seu universo comum.
O corpo e as várias almas humanaso
abastecidos pela dieta baseada em vege-
tais e animais estritamente vegetarianos. A
morte, quando chega, traz a fragmentação
da pessoa: destinos diversoso reserva-
dos aos seus muitos componentes. Para o
fundo dos rios dirige-se um deles, a
perpetuar-se na sociedade de seus iguais.
Mas a saudade dos vivos e da vida é gran-
de: um outro componente da pessoa ten-
de a rondar as casas da aldeia e as
moradias das roças, à procura do que sa-
cie sua fome e sua sede e, nesta busca, aca-
bando por expor os parentes aos perigos
do contágio e da doença. A lembrança e
o convívio com a ideia da morteo ex-
periênias diárias na apreciação e na con-
dução da vida.
Todo o cuidado é pouco: apesar da al-
ma central localizar-se no peito, almas se-
cundárias situam-se nas extremidades dos
membros de cada indivíduo. Gestos brus-
cos, choros prolongados e altos, irritação
ou zanga demasiada, falar alto demais...
tudo pode favorecer a fuga da alma, a per-
da da vitalidade, do sangue, da saúde. Eco-
logia, dieta, conduta individual e social, ati-
vidades rituais, tudo se enfeixa e se articula
em torno de uma teoria que regula as re-
lações entre vivos, sejam eles humanos,
animais ou vegetais, e entre vivos e mor-
tos, definindo o lugar e a contribuição de
cada um na constituição deste universo in-
tegrado, global e uno.
Desde há 500 anos, não-índios produ-
zem registros, descrições e análises na ten-
tativa de interpretação e compreensão das
práticas sociais (incluídas,, as rituais) e
das concepções cosmológicas dos Tupi-
-Guarani. Do espanto inicial à sistematiza-
ção das informações dos cronistas realiza-
da no final da década de 40 e primeiros
anos da de 50
5
, passando pela cateque-
se jesuítica e pelos episódios dramáticos da
Conquista, é constante a referência cen-
tral a temas como a guerra, o canibalismo,
a vingança da morte através de novas guer-
ras e novas mortes e novas vinganças.
Em tempos recentes, o amadurecimen-
to teórico e metodológico da antropologia
como disciplina, o acúmulo de dados et-
nográficos relativos a sociedades indígenas
sul-americanas e o reencontro com grupos
Tupi atuais, contatados na década de 70,
quando da abertura da Transamazônica,
possibilitaram novas perspectivas
6
.
Uma compreensão, agora adequada,
destes povos, suas sociedades e suas cos-
mologias revela apesar da grande diver-
sidade existente entre elas, principalmen-
te no plano sociológico mas também nas
variações entre suas cosmovisões respec-
tivas — a centralidade da noção de tem-
poralidade como eixo sobre o qual
constróem-se noções fundamentais como
a de pessoa e de cosmos, aliada às rela-
ções de alteridade que os Tupi-Guarani
buscam sistematicamente situar fora do do-
mínio da sociedade propriamente dita, en-
carnadas nos inimigos, nos espíritos, nos
animais, nos mortos, nas divindades.
o há apenas oposição entre o mes-
mo e o diverso: antes, há a possibilidade
da superação da oposição e da síntese dos
contrários como destino possível e dese-
jado da pessoa, que se completa no tem-
po e, mais do que isto, no devir
7
. Dentre
os Tupi atuais, os Waiãpi
8
ilustram, na Ex-
posição "índios no Brasil", o tema da cos-
mologia indígena.
Os exemplos, ainda que simplificados
e empobrecidos pela síntese parcial, ape-
sar de tudo, talvez possam sugerir o que
um exame mais detalhado certamente re-
velaria: contrastes, variedade de concep-
ções, soluções originais, únicas. Mas, ain-
da, é possível concebê-las - às
mito-cosmologias indígenas no Brasil ( e
na América do Sul tropical) - como pro-
dutoras de variações sobre certos temas,
eleitos por essas populações como centrais
na construção de suas sociedades, de seus
mundos e de suas maneiras próprias de se
relacionarem com a natureza e com o so-
brenatural.
O cosmos Waiãpi é
composto por
diferentes patamares
superpostos, cuja
diferenciação
representa as
transformações
cíclicas quem
ocorrendo desde a
criação. No patamar
terrestre vive a
humanidade atual.
O 3º patamar deste
é a morada do
herói criador e a
aldeia dos mortos.
O desenho mostra o
caminho que o
espírito vital deve
percorrer até ou
com a possibilidade
de dispersão dos
monstros. Desenho
de Kumai Waiãpi
coletado por
Dominique Gallois.
A recorrência de assuntos, noções, fi-
guras e imagens nas mitologias indígenas
sul-americanas foram objeto da obra con-
sagrada de C. Lévi-Strauss
9
, que revelou,
por debaixo e através das variações locais,
problemáticas comuns a cuja reflexão
dedicam-se os povos cujos mitoso ana-
lisados. Prolífico o simbolismo, ricas e di-
versificadas as imagens queo concretu-
de às noções abstratas, filosóficas, que
expressam a avaliação indígena do mun-
do. Simetrias, inversões, valorações anta-
gónicas que se alternam, homologias, al-
teração de ênfases...o mecanismos da
lógica do mito e, nesta medida, da lógica
do pensamento humano, postos em mo-
vimento para propiciar a reflexão sobre
oposições como Natureza/Cultura, como
Vida/Morte, como Homem/Mulher, o
Particular e o Geral, a Identidade e a Alte-
ridade...
Tratam, as mitocosmologias indígenas,
portanto, de temas com que se preocupam
todos os homens, em maior ou menor es-
cala, com menor ou maior grau de elabo-
ração, expressão ou consciência.o te-
mas, como se, que remetem à essência
mesma do que significa ser humano e es-
tar no mundo. Por isto mesmo, apesar do
estranhamento inicial trazido por signos
desconhecidos, que carregam concepções
inesperadas, articuladas em teorias cuja tra-
dução escapa à primeira aproximação, a
comunicação é possível eo só se, na
pesquisa e na divulgação, como também
fascina e desafia. Ideias, imagens e símbo-
los podem ser desconhecidos. Mas as
questões de que falamo essencialmen-
te humanas e, nesta medida, instigantes
porque eternas e universais.
Notas
1.o falantes de línguas Jê os Xavante e Xerente
do Brasil Central, os vários subgrupos Kayapó (Xik-
rin, Gorotire, Mekrãnoti, etc), do Pará e do Mato
Grosso, e os Timbira (Krahó, Apinagé. Apaniekra.
Ramkokamekra, Pykobiê, Parakatejé etc), dos es-
tados do Tocantins. Maranhão e Pará. Alguns títu-
los de interesse para saber mais sobre mito e cos-
mologia Jê são, entre outros, os seguintes: Wilbert,
J. e Simoneau. K. (orgs.) Folk Literature of the Gê
Indians. UCLA Latin American Studies, vol. 44.
1978 e vol. 58, 1984, Los Angeles; Matta, Roberto
da - 1970 - "Mito e Anti-Mito entre os Timbira" in
Mito e Linguagem Social, Tempo Brasileiro, Rio
de Janeiro; Vidal. Lux - 1977 - Morte e Vida de
uma Sociedade Indígena Brasileira. Edusp/Hu-
citec,o Paulo; Giannini, Isabelle - 1991 - A Ave
Resgatada. Dissertação de Mestrado,o Paulo,
USP
2. Kumu, U.P. e Kenhíri, T - 1980 - Antes o Mun-
doo Existia. A Mitologia Heróica dos índios
Desâna, Cultura,o Paulo; Ribeiro, Berta - 1992
- "A Mitologia Pictórica dos Desâna", in Vidal, Lux
(org.) - Grafismo Indígena, Ensaios de Antropo-
logia Estética. Studio Nobel/Edusp/Fapesp,o
Paulo; Hugh-Jones, S. - 1976 - "Como as (olhas
no chão da floresta:Espaço e Tempo no Ritual Ba-
rasana", Mimeo.
3. Reichel-Dolmatoff. G. - 1976 - "Cosmology as
ecological analysis: a view from the rain forest" in
Man n.s. vol. II, number 3, Sept.
4. Pina de Barros, E. - 1992 - História, Sociedade
e Cosmologia de um Grupo Karíb: os Bakairí, Te-
se de Doutoramento,o Paulo, USP
5. Fernandes, Florestan - 1963 - A Oganizaçâo So-
cial dos Tupinambá. Difusão Europeia do Livro.
o Paulo: Fernandes, Florestan - 1975 - Investi-
gação Etnológica no Brasil e Outros Ensaios, Vo-
zes, Petrópolis; Métraux, Alfred - 1979 - A Religião
dos Tupinambás e suas Relações com as das De-
mais Tribos Tupi-Guaranis. Cia. Editora Nacio-
nal/Edusp,o Paulo.
6. Viveiros de Castro, Eduardo - 1986 - Araweté,
os Deuses Canibais, Jorge Zahar Editores/AN-
POCS, Rio de Janeiro: Carneiro da Cunha, M. e
Viveiros de Castro, E. - 1985 - "Vingança e Tem-
poralidade: Os Tupinambá" in Journal de la Societé
des Americanistes. n. 71.
7. Depois dos estudos de Viveiros de Castro, vie-
ram a público outros trabalhos, também resultantes
de pesquisas inéditas entre grupos Tupi atuais que
dialogam com aquele autor a partir de etnografias
inéditas. Entre eles estão:
Muller, Regina - 1990 - Os Asuriní do Xingu, His-
tória e Arte, Ed. da Unicamp, Campinas; Gallois,
Dominique - 1988 - O Movimento na Cosmolo-
gia Waiãpi: Criação, Expansão e Transformação
do Universo, Tese de Doutoramento.o Paulo,
USP; Andrade, Lúcia - 1992 -. O Corpo e o Cos-
mos. Relações de Género e o Sobrenatural entre
os Asuriní do Tocantins. Dissertação de Mestrado,
o Paulo, USP.
8. Ver também sobre os Waiãpi Gallois, Dominique
- 1986 Migração, Guerra e Comércio: os Waiã-
pi na Guiana, FFLCH/USP. Coleção Antropologia.
o Paulo.
9. Lévi-Strauss, Claude - 1964, 1967, 1968, 1971
Mythologiques, 4 volumes, Plon, Paris.
Arte indígena:
referentes sociais e cosmológicos
Lúcia Hussak uan Velthem
A Natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam filtraro raro insólitos enredos;
O homem os cruza em meio a um bosque
de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos fami-
liares.
Como ecos longos que à distância se
matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tao vasta quanto a noite e a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se har-
monizam.
Há aromas frescos como a carne dos in-
fantes,
Doces como o oboé, verdes como a
campina,
E os outros, já dissolutos, ricos e triun-
fantes,
Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas
do Oriente
Que a glória exaltam dos sentidos e da
mente.
(Baudelaire, As Flores do Mal)
Neste soneto, o poeta francês propo-
ria, segundo Schiwmmer (1989:8), o equi-
valente a um discurso antropológico sobre
arte. A primeira quadra introduziria aos
"signos convencionais" retirados da natu-
reza, mas que integram a cultura, um mun-
do familiar onde o homem evolui. Na se-
gunda, Baudelaire ultrapassaria este
mundo de aparências porque procuraria
uma unidade mais profunda na qual os
sentidos (cores, perfumes, sons) se comu-
nicariam. No detalhamento das fragrâncias,
compreendemos, enfim, que o poeta acre-
dita nas "correspondências" dos sistemas
simbólicos, o "bosque dos segredos", que
sugerem a sua compreensão sobre estéti-
ca e arte: a "exaltação dos sentidos e da
mente"...
Sobre a definição de arte se debruça-
ramo apenas poetas, mas também filó-
sofos, sociólogos, artistas, historiadores, an-
tropólogos, visto que a compreensão de
sua natureza representa um dos problemas
mais tradicionais da cultura humana.
A estética filosófica enfatiza que a arte
representa uma função universal, essencial
ao género humano. Essa opinião é com-
partilhada por diversos antropólogos ao
sustentarem que a "arte é um fenómeno
universal que afeta todas as pessoas, to-
das as sociedades e todas as culturas" (Al-
cina 1982:15). Entretanto, como a arte é, na
realidade, muito mais um conceito do que
um fenómeno, elao é homogeneamen-
te compreendida pelas diferentes culturas.
A arte que é encarada como repositó-
rio de sensações estéticas desligadas do
contexto, a utopia da "arte pela arte" re-
presenta um item da taxonomia intelectual
do ocidente e assim corresponde a uma
criação cultural e de classe, historicamen-
te determinada, que se submete a modifi-
cações a partir das avaliações da socieda-
de que as engendra (Cf. Lauer, 1983).
Entretanto, nas sociedades indígenas, a arte
o é compreendida sob uma perspectiva
completamente intraestética, pois perten-
ce ao mesmo contexto de outras expres-
sões dos objetivos humanos (Cf. Geertz,
1986). Como evocaram Baudelaire e tam-
m Levi-Strauss, o objeto estético é inte-
ligível justamente pelas correspondências,
pelas analogias entre seus diferentes
domínios
1
.
O estudo antropológico da arte indí-
gena busca o significado e a significância
desta para os membros da sociedade es-
tudada, uma vez que o objeto artísticoo
possui significado se fracionado, mas ape-
nas como totalidade, como enfatizou Mu-
karovsky na década de 30 (Cf. Schwim-
mer, 1986). O discurso antropológico sobre
arteo é portanto somente técnico, mas
está orientado para se situar no contexto
índio Wayana trança
um cesto poraxi.
Foto Lúcia Van
Velthen.
de outras expressões humanas, comparti-
lhando de um modelo de experiência co-
letiva. Ademais, a capacidade de contex-
tualizar a arte, de lhe conferir significação
cultural é sempre um assunto pertinente à
cultura onde está inserida. Em outros ter-
mos, os métodos de uma arte e o senti-
mento que a animao inseparáveis,o
se podendo compreender os objetos esté-
ticos como um encadeamento de formas,
mas sim como mecanismo cognitivo que
reflete a visão e o sentido conferido pelos
membros de uma sociedade específica (Cf.
Geertz, 1986).
A abordagem desse tema nas culturas
indígenaso se restringe, portanto, às es-
truturas, mas engloba os processos sócio-
-culturais que moldam a produção, o uso,
o significado e a categorização das produ-
ções artísticas considerando sempre que,
nestas sociedades, a arte serve sobretudo
para ordenar e definir o universo, uma vez
que é parte integrante da função cogniti-
va global como escreveu Geertz (1986:124).
Muito embora essas ideias sejam ago-
ra moeda corrente entre os académicos, as-
sim como se constata que a opinião públi-
ca reconhece na arte indígena um
poderoso veículo de expressão de identi-
dade e afirmação étnica, é forçoso lembrar
que nem sempre foi assim. Regressemos
ao passado para delinearmos sumariamen-
te essa trajetória.
Recolhendo troféus:
o ocidente e os artefatos in-
dígenas
O recolhimento de objetos manufatu-
rados das culturas ameríndias teve início
com a descoberta do Novo Mundo.
tornando-se conhecidos na Europa tam-
m por meio das crónicas orais e escri-
tas, gravuras e desenhos. Eram apreciados,
na época, muito mais por seu exotismo e
pela raridade dos materiais constituintes do
que por suas qualidades artísticas. Integra-
vam os "gabinetes de curiosidades", pre-
cursores dos atuais museus nos quais eram
ladeados por materiais heterogéneos: ani-
mais empalhados, pedras, conchas, madei-
ras (Cf. Ribeiro e van Velthem, 1992).
Da segunda metade do século XVIII
até fins do século XIX, viajantes e natura-
listas europeus percorreram as Américas re-
colhendo elementos da fauna, flora, mine-
rais, objetivando sobretudo o estabeleci-
mento de sua taxonomia. Paralelamente
coletavam artefatos indígenas, posterior-
mente conduzidos para a Europa e depo-
sitados em instituições públicas onde eram
inseridos no universo intelectual do
ocidente.
O colecionismo do século XIX tinha
como objetivos principais evitar a perda,
o apenas das culturas indígenas, com-
preendidas na época como fadadas à ex-
tinção, como também do que esses arte-
fatos poderiam testemunhar a respeito da
origem e da evolução do homem. O valor
atribuído aos objetos era essencialmente li-
gado à sua capacidade de informar a res-
Conjunto de cestos
prontos e em
confecção
depositados num
canto de uma casa
Wayana. Foto Lúcia
Van Velthen.
índio Wayana
costura as bordas de
um cesto poraxi.
Foto Lúcia Van
Velthen.
m coletados e trazidos por viajantes e et-
nólogos e acumulados sob categorias que
consideravam sobretudo a técnica e a for-
ma, relegando a segundo plano as mani-
festações estéticas enquanto meio de in-
formação sobre as sociedades criadoras
(Cf. d'Azevedo, 1983).
Anos depois o antropólogo Franz Boas
conectou os objetos inanimados ao mun-
do dos viventes, a partir de sua inserção
no contexto cultural. Representando uma
posição revitalizadora, Boas descreve co-
peito de estágios primitivos da cultura hu-
mana, assim como de um passado comum
que confirmasse a superioridade europeia
(Cf. Clifford, 1988). Neste sentido, esse co-
lecionismo, que se estendeu até princípios
do século XX, reproduziu em sua dinâmi-
ca tanto a história do contato entre índios
e brancos como a história da ciência an-
tropológica e, em parte, a história do gos-
to estético vigente (Cf. Dominguez, 1986).
Ademais, esse sistemático despojo do pa-
trimónio cultural de povoso europeus,
configurava uma captura de herança alheia
a qual, nas palavras de Foot Hardman
(1988:61) poderia ser classificada como
"presas de conquista" denunciando a vo-
racidade hegemónica do ocidente.
A diversidade e a importância das pro-
duções artísticas fascina a comunidade
científica desde o surgimento da antropo-
logia, caminhando paralela ao seu desen-
volvimento. Nos primeiros estudos dedica-
dos a esse assunto, os esforços interpre-
tativos e classificatórios eram centralizados
em objetos encontrados em museus ou re-
tirados de escavações arqueológicas. O
principal interesse académico ligava-se ao
campo dos inanimados. Contos, trechos de
música ou descrições de danças eram tam-
Motivos ukuktop:
a) Kotkotoró uputpc
- a cabeça da
cigarra primordial
b) Walamú ictpc o
espinhaço do
mussum primordial.
mo a arte dos povos da costa noroeste dos
Estados Unidos representam "emoções que
oo estimuladas unicamente pela for-
ma, mas resultam também de estreitas as-
sociações que existem entre esta e as ideias
possuídas pelos artistas nativos" (Boas,
1955:88). Estabelecia assim as bases dos
modernos estudos de antropologia da es-
tética.
A "antropologia da estética"
2
é o ra-
mo da ciência antropológica que estuda as
produções artísticas dos povos indígenas.
Muitos termos foram cunhados para desig-
nar estas e outras produções artísticas não-
-ocidentais: "arte primitiva", "arte tribal",
"arte tradicional", "arte nativa", "arte índia".
Representam definições insatisfatórias pois
pressupõem julgamentos de valores que
estabelecem distinções entre produções so-
fisticadas e toscas;o igualmente restriti-
vas pois sugerem tradições plásticas subal-
ternas, oriundas de minorias que operam
à margem das culturas dominantes, uma
tese de difícil sustentação no confronto com
a realidade que estas vivenciam. A expres-
o "etnoarte" seria, de acordo com Silver
(1979:268) a mais apropriada, pois faz re-
ferência tanto a uma tradição plástica es-
pecífica como pressupõe a contextualiza-
ção sócio-cultural da arte ao considerar os
verdadeiros propósitos de seus produtores.
Procurando mostrar a grande impor-
tância da função estética nestas socieda-
des, as principais contribuições da antro-
pologia da estética versaram sobre as
chamadas artes visuais. Esses estudos re-
velaram que a etnoarte materializa um mo-
do de experiência que se manifesta visual-
mente, sobretudo através da decoração
corporal e do sistema dos objetos, os quais
permitem aos membros da sociedade cria-
dora olhá-los e se olharem (Cf. Geertz,
1986). Neste enfoque, a arte serve de meio
para o armazenamento e a transmissão de
informações, no que se compararia aos li-
vros (Otten 1971: XIV) e conclui, maiori-
tariamente, que a estética permite, conco-
mitantemente, refletir e reforçar a estrutura
social. Sobre este aspecto, uma acurada e
sensível análise foi feita por Vidal (1992)
a respeito da arte e da vida dos Xikrin do
sul do Pará.
Os estudos sobre a estética corporal
(pintura e decoração, máscaras) compreen-
dem a temática mais estudada até o pre-
sente, uma vez que é neste domínio esté-
tico que mais facilmente sobressaem
aspectos cognitivos importantes, como a
noção de pessoa. Outro item específico en-
volve os objetos e a estética. Enfatizando
sobretudo as representações simbólicas que
buscam conectar diferentes categorias ar-
tesanais (notadamente plumária, cestaria
e cerâmica) aos sistemas de cognição in-
dígena. A maioria desses estudos elabora
suas análises a partir da iconografia deco-
rativa dos artefatos, a qual se revela um
campo privilegiado para a visualização de
sistemas representativos, notadamente de
identidade étnica, de construção de mun-
do e das relações sociais. Estes aspectos
foram analisados brilhantemente por Guss
(1989), a partir da arte e da tradição oral
Yekuana.
A antropologia da estética ocupa-se
ainda da criatividade individual, ou seja,
o estudo do indivíduo através da sua ela-
boração cognitiva e inventividade pessoal,
inserido em seu contexto sócio-cultural. A
criação estética é analisada como uma per-
formance, reveladora de aspectos indivi-
duais e sociais. Outro ponto importante é
o estudo da estética no contexto de trans-
formação social, acarretado pelos conta-
tos inter-étnicos. A assim chamada "esté-
tica da mudança" (Cf. Graburn, 1976)
deve ser enfocada como uma forma de re-
tórica, um legítimo mecanismo de atuação
através do qual os grupos indígenas podem
redefinir a sua própria cultura e resistir so-
cial e politicamente aos impactos sofridos.
As representações visuais compreen-
dem invariavelmente um exercício contem-
plativo. No caso das sociedades indígenas.
esse exercício representa igualmente uma
forma de conhecimento (Maquet,
1979:93), pois através da arteo trans-
mitidas referências sobre a vida em socie-
dade: o sexo. a idade, o grau de parentes-
co, a filiação clânica, a metade exogâmica
de seus membros e também noções acer-
Motivos mirikut:
a) Pakirá etukukpe
as marcas do porco
caitetu primordial.
fuçando a terra.
atrás de raízes de
arumã.
b) Wama mit - a raiz
do arumã primordial
Motivos da metade
"vermelha"
1 - Clã Kabá. uma
espécie de
passarinhoo
identificado.
2 - Clã Knepú. o
pássaro japu.
3 - Clã Kurú, o
pássaro coroca.
4 - Clã Pãnhú, o
pássaro "mãe da
Lua".
5 - Clã Saú, a
formiga saúva.
6 - Clã Warú. a
arvore ucuuba.
ca do mundoo social: a natureza e a so-
brenatureza. Entretanto, como salienta Ba-
xandall (1981:10) cada indivíduo traduz as
informações transmitidas pelo olhar com
um "equipamento" diferente. Esta percep-
ção depende de vários aspectos, em par-
ticular do contexto da configuração, assim
como das capacidades interpretativas, de
categorias, de modelos e de hábitos de de-
dução e de analogia, enfim do estilo cog-
nitivo individual que possui raízes sociais
e que fazem com que cada grupo indíge-
na tenha desenvolvido o que se poderia
chamar de estilo próprio.
Para a produção artística indígena, Vi-
dal e Silva (1992:286-7) informam que é
possível detectar dois enfoques principais.
Diversas culturas privilegiam conceitos e re-
presentações mais especificamente ligadas
às relações estabelecidas entre indivíduos
e grupos em sociedade, ao passo que ou-
tras optam por representar entidades so-
brenaturais e conceitos cosmológicos mais
amplos.
Nas sociedades indígenas a arte é um
elemento que perpassa todas as suas es-
feras. O artista é antes de tudo um arte-
o e seu conhecimento está ao alcance
de todos assim como o resultado de seu
ofício, pois confecciona coisas que desem-
penham um papel pragmático na vida co-
munitária. Entretanto, sobretudo através da
decoração, esses mesmos objetos podem
clarificar para os membros desta comuni-
dade, as intrincadas e abstratas noções do
código social, como se procurará delinear
a respeito da decoração dos trançados
Mundurukú.
Na estreita vinculação da arte com a
cosmologia, as representações iconográfi-
cas se tornamo apenas um meio de co-
municação privilegiado como um mundo
sobrenatural, mas instrumentalizam igual-
mente essa realidade que é diversa da vi-
da cotidiana, tornando a arte um elemen-
to fundamental para a valorização e
identidade das sociedades indígenas, co-
mo se constatará quando enfocarmos a de-
coração da cestaria Wayana.
Tecendo tramas sociais e cos-
mológicas:
cestaria Mundurukú e Wayana
A arte do trançado é uma das mais an-
tigas manufaturas que a humanidade co-
nhece e representa a mais diversificada das
categorias artesanais indígenas ao revelar
adaptações ecológicas e expressões cultu-
rais distintas. Em sua elaboração, empre-
ga grande variedade de matérias-primas de
origem vegetal que resulta em múltiplas
formas e técnicas de entrançamento.o
igualmente variados os padrões decorati-
vos que ornamentam os trançados dos Tu-
kano. dos Baniwa, dos Timbira, dos Kaya-
bi, dos Mundurukú, dos Apalai, dos
Yekuana e dos Wayana, as quais atuam co-
mo veículo para a transmissão de mensa-
gens de ordem cosmológica ou social.
Os Mundurukú, povo de língua Tupi
do sul do Pará,o renomados pela ativi-
dade guerreira e pela plumária, esta osten-
tada num passado recente. Na
atualidade
3
, os homens continuam exer-
cendo sua maestria em outras esferas ar-
tesanais entre as quais a cestaria. Empre-
gam em sua confecção cipós, arumã e
folhas fechadas de palmeiras sobretudo do
tucumã (Astrocarium sp), confeccionando
objetos cotidianos, utilizados no processa-
mento da mandioca, no transporte e ar-
mazenamento dos mais diversos elemen-
tos.
Um dos mais importantes trançados é
o cesto cargueiro itiú. Confeccionado com
palha de tucumã, recebe reforço de cor-
déis de caroá e alça de envira. Confeccio-
nado pelo homem e oferecido à esposa ou
filha solteira, é usado no transporte de pro-
dutos da roça, de lenha, de frutos silves-
tres, dos apetrechos familiares em viagem.
E um elemento imprescindível na vida co-
tidiana Mundurukú na qual preenche ou-
tra função, pois veicula, esteticamente,
mensagens sobre a organização social.
Todos os itiúo semelhantes, o que
os diferenciao os motivos decorativos e
a alça de sustentação. Esses dois elemen-
tos se complementam e informam sobre o
lugar que ocupa, na sociedade Munduru-
, o confeccionador e a usuária do ces-
to. O itiú converte-se num painel que per-
mite visualizar e identificar a estrutura da
família nuclear no seio da sociedade indí-
gena, assim como particularizar a posse fe-
minina desse cesto cargueiro.
O motivos decorativoso aplicados
pelos homens na face externa do cesto
pronto. Utilizam atualmente pigmentos ver-
melhos à base de urucú e tracejam o mo-
tivo com a ponta dos dedos. Esses moti-
voso genericamente designados como
kuráp, "desenho, pintura" e informam so-
bre a clã patrilinear
4
ao qual pertence o
artista. A alça é feita pelas mulheres, de en-
trecasca branca ou vermelha. Essa cor in-
dica a metade exogâmica à qual a mulher
pertence: ipakpõkánye, "vermelhos" ou iri-
tiánye, "brancos". Essas metades regulam
os casamentos e compartilham caracterís-
ticas de reciprocidade, rivalidade e outros
aspectos antitéticos (Murphy, 1960:72). O
itiú de alça vermelha informa, portanto,
que a dona pertence à metade "vermelha"
e concomitantemente esclarece que seu
marido pertence à metade "branca", con-
firmada pela pintura do cesto.
Sugerimos que a organização social
Mundurukú reflete-se através desse tran-
çado, pois este representa a recapitulação
do todo, a síntese da organização social.
Entre os componentes do itiú, matérias-
-primas, decoração, coloração da alça,
ocorre um contínuo e perfeito entrosamen-
to que expressa essa realidade.
Algo semelhante pode ser afirmado
para a cestaria Wayana pois em cada ele-
mento do seu repertório há igualmente
uma vontade de síntese,o tanto da or-
ganização social mas sim da ordenação
cosmológica. Os trançados representam
um prisma através do qual as concepções
Wayana a respeito da formação e consti-
tuição do universo podem ser refletidas e
compreendidas pelos membros dessa so-
ciedade.
Os Wayana, povo de língua Carib do
norte do Pará,o conhecidos, assim co-
mo outros grupos de língua Carib, pela re-
Cesto cargueiro
Katari Anon de
confecção masculina
e utilização
exclusivamente
feminina. É a mais
difícil peça de
cestaria a ser
confeccionada
devido a
multiplicidade de
arremates
necessários. Foto:
Rómulo
Fialdini/Banco
SAFRA.
Cesto Cargueiro
itiu de confecção
exclusiva masculina
e atualmente usado
por ambos os sexos.
Foto: Rómulo
Fialdini/Banco
Safra.
os seus conhecimentos, sua condição so
ciai, as representações matafísicas. Atravéí
dos objetos revela a dinâmica de um pro-
cesso que envolve a cultura, a natureza e
a sobrenatureza e os elementos associados
à estas esferas: técnicas, matérias-primas
e decoração. Neste processo, a decoraçãc
se destaca, pois é por seu intermédio que
os artefatos recebem tanto o reconheci-
mento social como a significação cosmo-
lógica. Ademais, como intérprete fiel, a de-
coração expressa, visualmente, a
identidade dos povos que a criaram.
Assim, os objetos, até mesmo depois
de arrancados de seu meio e colocados sob
o reflexo das vitrines emitem ecos de sua
origem. Ecos que podem se tornar uma via
que nos conduza a uma reflexão a respei-
to de nossas próprias relações para com as
comunidades indígenas.
Motivos da metade
"branco"
7- Clã Burun. o
algodoeiro.
8 - Clã Datié. a ave
gavião real
9 - Clã Hakai. o
taperebazeiro.
10 - Clã Ikupí. a
vespa tapiú.
11 - Clã Iutú. uma
árvoreo
identificada.
12 - Clã Krixí. a
seringueira.
13 - Clã Kurap. o
peixe piaba.
quintada cestaria. Os homens Wayana uti-
lizam principalmente talas de arumã
(Ischnosiphon sp), mas igualmente folhas
fechadas de palmeiras e tiras de cipó com
as quais confeccionam, para uso domésti-
co e venda, dezenas de artefatos diferen-
tes
5
. Em seu acervo encontram-se instru-
mentos para o processamento da
mandioca brava, recipientes para armaze-
namento, sobretudo do algodão e da plu-
mária, cestos cargueiros para transporte,
suportes para adornos plumários (Cf. van
Velthem, 1984).
Um dos mais requintados objetos de
cestaria é o katari anon, o "cesto carguei-
ro pintado". Feito de arumã, cipó, varetas
e amarrações de caroá e algodão é usado
pela esposa do artesão para o transporte,
em viagens, de redes e outras alfaias, mas
na aldeia acondiciona os beijús. Esse ar-
tefato é considerado como a mais laborio-
sa peça de cestaria do repertório Wayana,
tanto pela complexidade da decoração co-
mo devido a multiplicidade dos arremates.
Constitui-se assim em um indicador de vir-
tuosismo artesanal masculino que se evi-
dencia nas visitas realizadas a outras
aldeias.
Um artefato trançado é sobretudo va-
lorizado pela sua decoração. No katari
anon a decoração é sobremodo elabora-
da, congregando múltiplos meios de ex-
pressão que operam em conjunto. A nível
plástico encontram-se diferentes técnicas
decorativas que instrumentalizam diferen-
tes formas de reintrodução dos tempos pri-
mevos na vida Wayana atual: a reprodu-
ção da decoração ou dos seres destes
tempos.
No cesto cargueiro os elementos de-
corativos se apresentam em vulto, ukuk-
top, "imagem" ou em uma dimensão, os
mirikut, "pintura, motivo". A primeira for-
ma decorativa reproduz elementos anató-
micos de alguns seres primordiais,
identificando-os e a segunda, as pinturas
corporais da anaconda sobrenatural, de cu-
ja pele os motivos foram extraídos nos tem-
pos primevos. Em contraposição às "ima-
gens", as "pinturas" possuem duplo
referencial, pois além de reproduzir a pele
da anaconda e assim identificá-la, concre-
tizam outros seres sobrenaturais e primor-
diais, igualmente importantes na constru-
ção da cosmologia Wayana. Nesta
perspectiva, o poder do sistema decorati-
vo adviriao tanto do seu significado, mas
sobretudo da sua capacidade em expressá-
-lo visualmente no que complementaria as
descrições orais e tornando-se um elemen-
to fundamental para os Wayana.
Entre muitas artes, a arte do trançado
oculta combates cósmicos dos quais o be-
nefício, os humanos recolhem ao final: os
objetos insdispensáveis à sua vida cotidia-
na, à sua identidade individual e grupai.
Entretanto, recolhero é o mesmo
que receber e os bensoo adquiridos
sem esforço pessoal e coletivo. A posseo
significa tampouco a manutenção e, para
que esta seja garantida e o produto final
resulte perfeito e eficiente, é necessário que
o artista lute diariamente com o processo
de confecção através dos quais transmite
Notas
1. Charbonnier, 1961:72
2. Pode ser igualmente referida como antropologia
estética ou antropologia da arte (Cf. Silver, 1979;
Flores, 1985; Vidal, 1992).
3. A pesquisa de campo entre os Mundurukú foi rea-
lizada em 1973-1974, no rio Cururú, Estado do
Pará.
4. Os Mundurukú possuíam, na década de 70, trinta
e nove clãs. Cf. Murphy, 1960 para outros detalhes
sobre esses aspectos.
5. A pesquisa entre os Wayana se desenvolve des-
de 1975 e até 1984 tinham sido levantados 42 ti-
pos de trançados.
Bibliografia
Alcina Franch, J. - 1982 - Arte y antropologia. Ma-
drid, Alianza Editorial.
Baxandall, M. - 1981 - "LOeil du Quattrocento" in
Actes de la Recherche en Sciences Sociales.
n.40, págs. 9-48.
Baudelaire, Ch. - 1985 - As flores do mal. Tradu-
ção e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janei-
ro, Nova Fronteira.
Boas, F. - 1955 - Primitive Art, New York, Dover
Publications.
Charbonnier, G.- 1961 - Entretiens avec Lévi-
-Strauss, Paris, Union Generale d'Editions.
Clifford, J. - 1988 - "On collecting art and culture"
in The predicament of culture: twentieth-
-century ethnography, literature and art.
Cambridge, Harvard Univ. Press.
DAzevedo, W. - 1958 - "A structural approach to
a esthetics: toward a definition of art in anthro-
pology" in American Anthropologist,
60:702-714.
Dominguez, V. - 1986 - "The marketing of herita-
ge" in American Ethnologist, Washington, 13
(3): 543-55.
Geertz, C. - 1986 - "L'art en tant que système cul-
turel" in Savoir local, savoir global. Les lieux
du savoir, Paris. PUF
Graburn, Nelson (Ed) - 1976 - Ethnic and tourist
arts. Cultural expressions from the fourth
world, Berkeley, Univ. of Califórnia Press.
Guss, D. -1989 - To weave and sing. Art, symbol,
and narrative in the South American rain fo-
rest, Berkeley, Univ. Califórnia Press.
Hardman. F - 1988 - Trem fantasma. A moderni-
dade na selva.o Paulo, Companhia das
Letras.
Lauer. M. - 1983 - Crítica do artesanato. Plástica
e sociedade nos Andes Peruanos,o Paulo,
Ed. Nobel.
Maquet, J. - 1979 - Introduction to aesthetic anth-
ropology, Malibu, Undena Publications.
Murphy. R. - 1960 - Headhunter's heritage. So-
cial and economic change among the Mun-
durukú indians, Berkeley, Univ. Califórnia
Press.
Otten. Charlotte - 1971 - Anthropology and art.
Readings in cross-cultural aesthetics, Aus-
tin, Univ. Texas Press.
Ribeiro, B. & Van Velthem - 1992 - "Coleções et-
nográficas: documentos materiais para a história
indígena e a etnologia" in Carneiro da Cunha,
Manuela (coord) - História dos índios no Bra-
sil, Cia. das Letras/Fapesp/SMC.
Schwimmer, E. (Ed.) -1986 - "Correspondences: Ia
construction politique de Pobject esthétique" in
Anthropologie et societés, 10 (3): 1-10.
Silver, H. - 1979 - "Ethnoart" in Ann. Rev. of Anth-
ropology, 8:267-307.
Van Velthem, L.H. -1984 - "A pele de tulupere: es-
tudo dos trançados dos índios Wayana-Apalai",
Dissertação de mestrado, USP
Vidal, L. - 1992 - "A pintura corporal e a arte gráfi-
ca entre os Kaiapó-Xikrin do Cateté" in Vidal,
Lux (coord.) - Grafismo indígena: estudos de
antropologia estética,o Paulo, Studio No-
bel/EDUSP/Fapesp.
Vidal, L. & Silva, A. L. - 1992 - "Antropologia es-
tética: enfoques teóricos e contribuições meto-
dológicas" in Vidal, Lux (coord.) - Grafismo
indígena: estudos de estética,o Paulo, Stu-
dio Nobel/EDUSP/Fapesp.
Línguas indígenas no Brasil
contemporâneo
Ruth Maria Fonini Montserrat
Virou lugar comum se dizer que hoje
no Brasilo faladas mais ou menos 170
línguas por mais ou menos 200 povos que
formam uma população indígena minori-
tária de mais ou menos 250 mil pessoas.
Cifras corretas? Mais ou menos. Ob-
ter cálculos mais exatos sobre a população
total, embora sempre provisórios, é coisa
relativamente fácil de se fazer.o ocorre
o mesmo com as duas primeiras variáveis:
é complexo e polémico decidir se as ex-
pressões linguísticas utilizadas por duas co-
munidades humanas geograficamente se-
paradas integram duas línguas diferentes,
de dois povos idem, ou dois dialetos de
uma mesma língua e, portanto (?), de um
mesmo povo.
Para que isso possa ser feito de forma
mais segura, é necessário árduo trabalho
prévio de levantamento, registro e análise
das manifestações linguísticas das distintas
comunidades indígenas, ora presentes em
território brasileiro.
É imprescindível também o concurso
de outras fontes de informação sobre tais
populações, oriundas da antropologia, da
geografia, do estudo das migrações, da his-
tória
;
etc.
É fundamental, enfim, que haja gente
interessada em fazer isso, com recursos su-
ficientes para fazê-lo, o que implica a exis-
tência de centros de pesquisa e de uma po-
lítica institucional de valorização das
características multi-étnicas e multi-culturais
do país. De qualquer forma, "o conheci-
mento que pouco a pouco vamos tendo
das línguas indígenas e de suas caraterísti-
cas resulta da contribuição de muita gen-
te. Linguistas, antropólogos, naturalistas,
missionáriosm contribuído para esse co-
nhecimento, e sobretudo índios que falam
as diversas línguas, os quaism sido os
colaboradores essenciais de todos os lin-
guistas e antropólogos e de quem quer
que, bem ou mal, faça as vezes do linguis-
ta" (Rodrigues, 1986, p. 10).
Se um maior conhecimento científico
sobre as línguas indígenas no Brasil é in-
dispensável para se poder dizer quantas e
quaiso elas e quantos e quaiso os po-
vos que as falam, seu valoro se esgota
com tal "utilidade", e muito menos seu sig-
nificado. Em primeiro lugar, há uma atra-
ção irresistível da espécie humana em di-
reção ao conhecimento e à criação de
sistemas simbólicos e teorias explicativas
para tudo quanto esteja à sua volta, no es-
paço e no tempo. E depois, porque o co-
nhecimento cada vez maior do presente,
em todas suas manifestações, permite fa-
zer inferências sobre o passado e planejar
ações visando melhorar a vida e tornar
mais felizes as pessoas que habitam o atual
"presente".
O que se pode aprender sobre o pas-
sado e o presente do território brasileiro e
de suas populações por meio de um maior
conhecimento das línguas indígenas atual-
mente existentes? Nas palavras de Urban
(1992: 87-90), "podemos formular hipó-
teses sobre a localização dos povos indí-
genas em diversos momentos do passado
... Podemos testar modelos de seqúencia-
mento cultural histórico que situam a lin-
guagem e a comunicação em relação às
forças materiais, económicas e políticas ...
Os métodos linguísticos também nos for-
necem alguns dados quanto à distribuição
espacial. Situando-se as línguas historica-
mente relacionadas num mapa, pode-se
desenvolver hipóteses quanto à localização
das línguas no passado remoto e às migra
ções que levaram à sua atual distribuição
... O método comparativo permite recons-
truir muitas das palavras que faziam parte
do vocabulário de línguas faladas há 2 mil
anos, ou até antes ... Com trabalho sufi-
ciente, poderíamos reconstruir as palavras
para plantas e animais, o que nos permiti-
ria saber algo sobre o meio ambiente em
Os estudos e conclusões sobre o Indo-
-europeu podem constituir, então, por
comparação, fonte indireta para o estabe-
lecimento de relações entre línguas que
o dispõem de registros históricos recua-
dos, como as brasileiras. Assim, "se as lín-
guas de uma família apresentam, mais ou
menos, a semelhança que existe entre as
línguas da família românica da Europa
(francês, espanhol, português, italiano, ro-
meno, etc), pode-se supor que tenham co-
meçado a se diferenciar há uns dois ou três
mil anos. E o caso, por exemplo, do-
cleo da família Tupi-Guarani (Guarani, Ko-
kama, Oiampi, Tapirapé, Tenetehara,
etc)"(Urban, 1992:89).De qualquer forma,
um horizonte mais recuadoo pode ser
visualizado claramente muito além de 4 a
6 mil anos, para qualquer grupo de línguas.
Com os dados disponíveis até agora,
já se podem fazer algumas afirmações se-
guras sobre as línguas indígenas brasileiras
e suas relações de parentesco. Mas é tan-
to o que ainda se necessita saber, que se-
ria "mais adequado falar em graus relati-
vos de incerteza do que de certeza" (Urban,
1992:87).
Quatroo os grupos maiores de lín-
guas no Brasil, com distribuição geográfi-
ca extensa e com vários membros: Tupi,
Macro-Jê, Aruak e Karib. Há depois várias
famílias menores, com menor número de
línguas, distribuídas mais compactamente.
E finalmente, há as chamadas línguas iso-
ladas, queo revelam parentesco com
nenhuma das outras e que poderiam al-
ternativamente ser consideradas famílias de
um só membro.
O Tronco Tupi é integrado por uma nu-
merosa família, a Tupi-Guarani, com repre-
sentantes em grande extensão da Améri-
ca do Sul (além do Brasil, ainda a Guiana
Francesa, Venezuela, Colômbia, Peru, Bo-
lívia, Paraguai e Argentina), e, só no Bra-
sil, com 21 línguas vivas atualmente. Ou-
tras seis famílias menores e algumas línguas
isoladas (ou famílias de um só membro),
todas faladas somente no Brasil, se rela-
cionam geneticamente com a família Tupi-
-Guarani. Quatro dessas famílias se con-
centram exclusivamente em Rondônia:
Arikém, Monde, Ramaráma e Tuparí. A fa-
mília Mundurukú está hoje restrita a alguns
Falantes de línguas
da família Tupi-
Guarani se
distribuem por
vários países da
América do Sul
como Colômbia.
Peru, Bolívia,
Paraguai e outros.
No Brasilo
faladas atualmente
21 línguas desta
família, fndios
Waiãpi falantes de
uma língua da
família Tupi-
-Guarani. Foto
Dominique Gallois.
A familia Tukano
divide-se em dois
ramos principais:
oriental e ocidental.
No Brasil só há
representantes do
lado oriental, sendo
atualmente faladas
12 línguas dessa
família. índios
Tukano. Foto Aloísio
Cabalzar
A família Pano tem
representantes no
Brasil, na Bolívia e
no Peru. Inclui entre
outras a língua
Matis(Matsés). falada
pela mulher e pelo
menino. Foto Isacc
Amorim Filho/CIMI.
afluentes do Tapajós e do Madeira, e a fa-
mília Juruna, hoje limitada a uma única lín-
gua, é falada no alto Xingu. A língua Aweti,
no alto Xingu, a língua Sateré (ou Mawé),
entre o baixo Tapajós, o baixo Madeira e
o Amazonas, e o Puruborá, em Rondônia,
o se relacionam diretamente com ne-
nhuma delas, maso inequivocamente
membros do tronco Tupi. Segundo Urban,
"a área geral de dispersão dos povos
Macro-Tupi, que teria ocorrido entre 3 e 5
mil anos atrás, situa-se provavelmente entre
o Madeira e o Xingu, ao que tudo indica
mais próximo das áreas de cabeceira do
que das várzeas dos grandes rios"
(1992:92).
Para as línguas do tronco Macro-Jê,
o muito menos seguras as evidências de
que se dispõe para o estabelecimento de
relações de parentesco. Pode-se destacar
dentro dele, como grupo mais importante
e coeso, a família, que inclui línguas fa-
ladas desde o sul do Maranhão e do Pará
passando pelos estados de Goiás e Mato
Grosso, até o Mato Grosso do Sul,o
Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Gran-
de do Sul. A família Jê se subdivide em
quatro grupos(com várias línguas em ca-
da um): Timbira, Kayapó, Akwén e Kain-
gáng. Sobre a filiação de outras famílias ao
tronco Macro-Jê, seria mais adequado fa-
lar em indícios que em evidências, já que
"a própria constituição do tronco Macro-
-Jê é altamente hipotética ainda" (Rodri-
gues, 1986:49). Se algumas das línguas que
as integram aindao faladas, outras mui-
tas deixaram de sê-lo, e só se dispõe so-
bre elas de dados históricos em geral pre-
cários, como é o caso de todas as línguas
da família Kamakã, que eram faladas na
Bahia e no Espírito Santo até o final do-
culo passado. Feitas essas ressalvas, pode-
-se falar num grupo de famílias a leste da
família Jê - Famílias Puri ou Coroado, Bo-
tocudo, Maxakalí, Kamakã e Kariri, mais
as línguas Masakará e Yatê ou Fulniô - e
num outro grupo a oeste dela, formado pe-
la família Bororó e pelas línguas Ofayé,
Guató e Rikbaktsa. Há ainda a família Ka-
rajá, no Araguaia, com três línguas.
Rodrigues (1985) avança indícios pa-
ra a hipótese de ligação genética mais dis-
tante entre o Macro-Tupi e o Macro-Jê, mas
Urban considera que "atribuir à conexão
uma profundidade cronológica mínima (di-
gamos de 5 a 7 mil anos) acrescenta pou-
co à nossa compreensão, e apenas indica
nossa incerteza" (1992:93).
O terceiro grande grupo de línguas bra-
sileiras apresenta afinidadeso grandes
entre seus membros que Rodrigues consi-
dera mais adequado chamá-lo de família,
em vez de tronco. Trata-se da família Ka-
rib, cujas línguas integrantes se distribuem
mais concentradamente na grande região
guianesa (Guiana Francesa, Suriname e
Guiana, além da Guiana Venezuelana e da
Guiana Brasileira no norte do Amazonas
e em Roraima). No Brasil, ondeo fala-
línguas faladas - no sudoeste do Amazo-
nas, nos altos rios Juruá, Jutaí e Javari -
pelos Katukina do rio Biá, pelos Txunhuã-
-djapá e pelos Kanamarí.
A família Tukáno apresenta dois ramos
principais, ambos ao norte do rio Amazo-
nas: o Tukáno Ocidental, com línguas fa-
ladas no Peru, Equador e Colômbia, sem
representantes no Brasil; e o Tukáno Orien-
tal, com ramificações queo desde a Co-
lômbia até o Brasil. No Brasil, há pelo me-
nos doze línguas dessa família, no Uaupés
e em seus afluentes Tiquié e Papuri. Elas
o todas muito próximas entre si, e in-
cluem: Tukáno, Barasána, Yebamasã, Wa-
nána, Desána e Kubéba, entre outras.
A família Makú (ou Puinave) inclui lín-
guas faladas entre os rios Uaupés, Negro
e Japurá, chegando até a Colômbia. Fo-
ram identificados pelo menos seis grupos
de índios Makú no Brasil: Bará, Húpda,
Yahúp, Nadêb, Káma e Guariba (Wariva).
A família Yanomámi (antigamente cha-
mada de Xirianá ou de Waiká) é compos-
ta por quatro línguas faladas no Brasil e na
Venezuela, mutuamente ininteligíveis mas
muito próximas entre si, todas com vários
dialetos: Ninam ou Yanám, Sanumá, Ya-
momámi (a maior das quatro) e Yanomám
ou Yainomá.
Como se pode ver, todas as famílias
menores tendem a se localizar na perife-
ria da bacia amazônica, eo em seu cur-
so principal. Maso necessários estudos
mais aprofundados para se poder estabe-
lecer mais seguramente há quanto tempo
estariam em suas regiões atuais.
As línguas isoladas, todas com reduzi-
do número de falantes, à exceção do Ti-
kuna, falado por mais de 20 mil pessoas,
"são muito importantes para se compreen-
derem as fases mais antigas da história da
cultura - datas além do alcance da técnica
comparativa, ou seja, anteriores a
4000-5000 a.C. (Urban, 1992:99). Isso é
possível se se estender para as línguas iso-
ladas o princípio básico utilizado para de-
terminar o ponto de dispersão de uma fa-
mília linguística, que seria a área geográfica
onde estão concentrados os seus membros
mais divergentes. Então, no caso das lín-
guas isoladas, as áreas em que se encon-
trassem suas maiores concentrações seriam
provavelmente focos de dispersões muito
antigas. Analisando a distribuição das lín-
guas isoladas e famílias muito pequenas na
América do Sul. Urban considera que se
podem propor três focos prováveis de an-
tiga dispersão: "1) a área do Nordeste bra-
sileiro onde, infelizmente, todas as línguas
em questão estão extintas; 2) o planalto a
oeste do Brasil e na vizinha Bolívia, em tor-
no da chapada dos Parecis e da serra dos
Pacás-Novas; e 3) norte do Peru e Equa-
dor" (1992:99).
Quantas e quaiso as línguas isola-
das ainda faladas no Brasil?
Em número de dez,o as seguintes:
Aikaná (conhecida também como Tubarão,
Huarí, Masaká, Kasupá, Mundé, Corum-
biara), falada por menos de 100 pessoas
no sudeste de Rondônia; Koaiá (Arara), cu-
jos últimos falantes vivem entre os Aika-
; Kanoê (Kapixaná), com seus últimos
falantes espalhados em diversas partes de
Rondônia;Jabuti, cujos poucos falantes vi-
vem com os Makuráp (Tupi) no Guaporé
(RO); Arikapú, com 14falantes (em 1968,
quando foram encontrados), provavelmen-
te uma variedade do Jabuti; Mky, com cer-
ca de 200 falantes e duas formas dialetais
em duas aldeias distintas, Iránxe (Aldeia
Cravari) e Mky (Aldeia Escondido), no no-
roeste do Mato Grosso; Trumái, no alto
Xingu, com cerca de 50 falantes; Awakê,
menos de 20 falantes, no alto Uaricaá, em
Roraima; Máku, também em Roraima,o
se sabendo ao certo se ainda existem fa-
lantes dela; finalmente o Tikúna, parado-
xalmente o mais numeroso povo indíge-
na no Brasil, falado no Solimões
(Amazonas) por mais de 20.000 pessoas.
Infelizmente, poucas dessas línguasm si-
do objeto de pesquisa até agora.
Segundo Rodrigues (1986:95), "a mes-
ma importância crítica das línguas isoladas
como exemplares únicos de organização
linguística e cognitivam também as lín-
guas que, embora mostrem indícios de
filiarem-se a um grande tronco, como o Tu-
pi e o Macro-Jê,o se relacionam dire-
tamente a nenhuma das famílias constituin-
tes do tronco". Estão nessa situação o
Guató (Macro-Jê), com pouquíssimos fa-
lantes (a maioria fala só o português), no
alto Uruguai; o Rikbaktsa e o Karajá, no
Mato Grosso, também isoladas dentro do
Macro-Jê, assim como o Krenák (ou Bo-
tocudo de Minas Gerais e Espírito Santo).
Em relação ao Tronco Tupi, a situação mais
isolada é a da língua Puruborá, da qualo
se sabe se ainda existe algum remanescen-
te, na Rondônia. Tem-se, além disso, as lín-
guas que se tornaram únicas representan-
tes de famílias historicamente conhecidas,
como é o caso do Juruna (Família Juru-
na) no Xingu, e do Karitiána (Família Ari-
kém), em Rondônia.
Relações que estabelecem uma origem
comum para duas ou mais línguaso cha-
madas, como apontamos no começo do
trabalho, de relações genéticas ou de pa-
rentesco. Mas há outras formas de relacio-
namento histórico entre línguaso paren-
tes, expressas claramente no seu léxico,
através do que é convencionalmente cha-
mado de empréstimos linguísticos. Assim.
o estudo dos empréstimos entre línguas in-
dígenas, que ainda precisa ser mais inten-
samente desenvolvido no Brasil, pode
constituir fonte importante para o conhe-
cimento da história e pré-história do terri-
tório brasileiro. De qualquer forma, os da-
dos existentes atualmente já permitem
verificar, segundo Urban (1992:102), "si-
tuações de intenso contato, multilingúismo,
línguas de comércio etc, para uma região
que vai do extremo oeste da bacia Ama-
zônica para o norte e em seguida para o
leste, cruzando toda a América do Sul ao
norte do Amazonas", ao contrário do cen-
tro e do oeste do Brasil, onde parece mais
provável ter correspondido a cada povo
uma língua e cultura distintas.
Em forma muito resumida e simplifi-
cada isso é o que se pode dizer sobre o pas-
sado e sobre a distribuição atual das línguas
indígenas brasileiras contemporâneas, a
partir do que sobre elas se conhece hoje.
Mas dissemos, no início, que o conheci-
mento do presente também permitiria "pla-
nejar ações visando melhorar a vida e tor-
nar mais felizes as pessoas que habitam o
atual presente". Em que, pois, o conheci-
mento das línguas indígenas, hoje, pode
contribuir para melhorar a vida de brasi-
leiros? E em primeiro lugar, de quais bra-
sileiros? Dos índios e doso índios?
É indubitável, à primeira vista, que dois
grupos de pessoaso diretamente afeta-
dos, embora de maneiras diferentes, por
tal questão: os povos indígenas falantes
dessas línguas e os pesquisadores (linguis-
tas e antropólogos, basicamente) que as in-
vestigam. A estes, a questão interessa de
uma forma indireta e de outra mais dire-
ta: indireta na medida em que lhes garan-
te espaço de trabalho e lhes permite con-
tribuir com seus estudos para o
conhecimento científico da realidade; é di-
reta na medida em que eles estejam inse-
ridos solidariamente nas lutas sociais das
minorias étnicas. Quanto aos povos indí-
genas, o maior conhecimento sobre a pró-
pria história e sobre o presente, propicia-
do pelo conhecimento sistemático de suas
línguas, pode contribuir poderosamente
para a afirmação e valorização de sua iden-
tidade étnica, num Estado prurilíngiie e
pluricultural como o Brasil.
E o que começa a ocorrer, de forma
ainda incipiente, por impulso das iniciati-
vas indígenas e das organizações que os
apoiam (que congregam, como assessores
e consultores, pesquisadores e professores
das universidades e centros de pesquisa)
e pela exigência cada vez mais insistente
das nações indígenas no sentido de que se-
jam criados e implementados processos de
educação escolarizada em suas áreas, em
escolas "indígenas" eo "para indígenas".
Nesse contexto, o conhecimento siste-
mático de suas línguas, por parte dos ín-
dios, é crucial, pois para haver escolas ver-
Dois brinquedos
com 24 palavras nas
diferentes línguas
indígenas foram
apresentados na
exposição índios no
Brasil. Foto Luís
Grupioni.
dadeiramente indígenas é necessário que
haja professores indígenas bilíngues em-
mero suficiente, e que sua formação seja
especializada, na medida em que elesm
de ser, necessariamente, os intermediários
entre duas culturas e duas línguas - a ma-
terna, vernacular, e a mais abrangente, vei-
cular, oficial, do Estado brasileiro.
Mas isso, por sua vez, requer que as
línguas indígenas se tornem línguas escri-
tas plenas (nenhuma língua brasileira tem
tradição escrita), para o que é necessário
ter, além de alfabeto e ortografia próprios
propiciados pela análise fonológica, tam-
m estudos morfológicos, sintáticos, se-
mânticos, e ainda a normalização e nor-
matização das línguas e dialetos de um
mesmo grupo, bem como a atualização
léxico-semântica dos sistemas lexicais en-
volvidos. Ou seja, necessita-se, urgente-
mente, de pesquisadores indígenas. A ex-
periência de outros países com forte
presença de populações indígenas apon-
ta para a possibilidade real de formação,
em número cada vez maior, de linguistas
e antropólogos indígenas. É o que se es-
pera possa acontecer em breve também no
Brasil.
Bibliografia
Rodrigues, Aryon DalHgna - 1985 - "Evidence for
Tupi-Karíb relationships" in Klein, H.E.M. e
Stark, L.R. (orgs.) - South American Indian
Languages: retrospect and prospect, Austin,
University of Texas Press, págs. 371-404.
1986 - Línguas brasileiras: para o conhecimen-
to das línguas indígenas,o Paulo, Loyola.
Urban, Greg -1992 - "A história da cultura brasilei-
ra segundo as línguas nativas" in Cunha, Ma-
nuela Carneiro da(org.) - História dos índios
no Brasil,o Paulo, Cia. das LetrasFa-
pespSMC, págs. 87-102.
O escravo índio, esse desconhecido
John Monteiro
Dentre os diversos mitos sobre a for-
mação da nacionalidade brasileira, o ban-
deirante certamente ocupa um lugar de
destaque. Desbravador dos sertões incul-
tos, temível conquistador de povos selva-
gens, esta figura heróica marca presença
tanto nos manuais de história quanto nos
monumentos e nos nomes de ruas, estra-
das e escolas no Brasil inteiro. Por outro
lado, uma tendência recente na bibliogra-
fia tem construído um antimito, o do ban-
deirante exterminador de índios. Imagens
contrastantes e polémicas, tanto uma
quanto a outra pecam por ignorarem a pre-
sença e o papel do índio na história do Bra-
sil. Na primeira versão, o índio é omitido
ou, na melhor das hipóteses, exerce um
papel auxiliar no processo de expansão ter-
ritorial dos portugueses. Na segunda, ele
é relegado ao papel passivo de vítima.
Herói ou bandido, na verdade o ban-
deirante é emblemático de todo um pro-
cesso mais amplo de deslocamento de po-
pulações indígenas e da constituição de
sociedades escravistas, processo esse que
o se circunscrevia tão-somente ao
Paulo. Com certeza, atrás das peripécias
dos sertanistas jaz, praticamente desconhe-
cido, o envolvente drama de inúmeros po-
vos nativos queo foram simplesmente
apagados e sim passaram por complexas
transformações, entre as quais o desenvol-
vimento da escravidão foi talvez a mais sig-
nificativa.
De fato, apesar de pouco abordada na
historiografia, a escravidão indígena de-
sempenhou um papel de grande impacto
o apenas sobre as populações nativas
como também na constituição da socieda-
de e economia coloniais. Em sua dimen-
o mais negativa, aliando-se às doenças
contagiosas, a escravização dos índios con-
correu para o despovoamento de vastas re-
giões do litoral e dos sertões mais acessí-
veis aos europeus. Ao mesmo passo,
porém, os cativos, deslocados de suas al-
deias e terras para as unidades de produ-
ção e aldeamentos coloniais, viam-se obri-
gados a recompor suas vidas e sua
identidade dentro deste novo contexto.
Colonização e escravidão no-
culo XVI
As origens da escravidão indígena no
Brasil remontam aos meados do século
XVI, quando os colonizadores portugue-
ses começaram a intensificar suas ativida-
des económicas ao longo do litoral. Neste
período inicial, o cativeiro dos índios visa-
va solucionar, de uma só vez, dois impe-
rativos da colonização: a questão militar e
o suprimento de mão-de-obra para a inci-
piente economia açucareira. Os grupos que
se mostravam resistentes às pretensões dos
europeus eram sujeitos a guerras movidas
pelos portugueses e seus aliados indígenas
e os prisioneiros eram distribuídos ou ven-
didos como escravos.
De certo modo, pelo menos nos anos
iniciais da colonização, as relações luso-
indígenas permaneciam subordinadas a
uma lógica pré-colonial. Para os portugue-
ses, a presença de cativos nas sociedades
indígenas traduzia-se na perspectiva de se-
rem adquiridos cada vez mais escravos
através das guerras entre grupos nativos.
No entanto, nas sociedades indígenas, o
cativoo possuía a conotação de escra-
vo, pois servia para fins rituais eo pro-
dutivos. Nesse sentido,o é de se estra-
nhar a resistência à venda de escravos,
inclusive entre os próprios cativos. O jesuíta
Azpilcueta Navarro, ao propor a compra
de um cativo Tupinambá nas vésperas de
seu sacrifício ritual, surpreendeu-se com a
recusa do índio, que "disse queo o ven-
dessem, porque cumpria à sua honra pas-
sar por tal morte como valente capitão".
l
Diante da dificuldade em transformar
o cativo de guerra em escravo através do
escambo com os índios, os portugueses co-
meçaram a lançaro de outros métodos
de captação de mão-de-obra. A apropria-
ção direta de cativos, através de expedi-
Caderneta do
Imperador D.Pedro
II: desenhos de
índios Botocudos e
outros de autoria do
Imperador realizados
durante sua viagem
ao nordeste. Museu
Imperial.
ções de apresamento, tornava-se o meio
mais eficaz de aumentar as reservas de
mão-de-obra nativa, porém esbarrava em
questões de ordem moral e jurídica.
De fato, devido aos abusos cometidos
pelos colonizadores ibéricos na conquista
de terras e povos indígenas, foi justamen-
te neste período que se elevavam as pri-
meiras vozes em defesa da liberdade dos
índios, ou, talvez mais precisamente, con-
tra o cativeiro injusto. Em termos concre-
tos, esse debate teve ressonância tanto no
campo da colonização onde surgiram
experiências com outras formas de orga-
nização de trabalho, tais como o aldeamen-
to missionário quanto no campo da le-
gislação, redundando numa longa sucessão
de leis e decretos que, apesar de reitera-
rem o princípio da liberdade indígena, tam-
m regulamentavam as condições nas
quais os índios pudessem ser legítimos ca-
tivos. Dentre estas condições, destacava-
-se a Guerra Justa que, em princípio, ha-
via de ser autorizada pela coroa ou seus
representantes.
A primeira vista restritivo, o recurso da
Guerra Justa na verdade tornou-se um im-
portante mecanismo para a ampliação do
número de escravos. Pouco satisfeitos com
a experiência dos aldeamentos jesuíticos,
queo forneciam trabalhadores à altura
das expectativas, tanto os colonos particu-
lares quanto alguns administradores colo-
niais tais como Mem de Sá e Jerónimo
Leitão passaram a organizar poderosas
expedições militares que, por um lado, bus-
cavam derrotar os focos de resistência Tu-
pi ao longo do litoral deo Vicente a Pa-
raíba e, por outro, visavam produzir
vultuosos números de escravos, destinados
a trabalhar na economia açucareira.o
se pode subestimar a importância deste
processo articulado de conquista, escravi-
zação e desenvolvimento dos engenhos,
uma vez que foi justamente neste período
fase ainda incipiente do tráfico de es-
cravos africanos que houve a mais acen-
tuada expansão açucareira.
O caso da guerra contra os Caetés per-
mite entrever a articulação dinâmica entre
a conquista territorial e a constituição de
uma força de trabalho durante o século
XVI. Em 1562. no bojo de uma grave cri-
se epidemiológica que assolava as popu-
lações do litoral, o governador Mem de Sá
decretou uma guerra contra os Caeté, sob
a acusação que este grupo teria trucidado
e devorado o bispo Sardinha incidente
Perspectiva da
Aldeia deo José
de Mossamedes
pertencente à Vila
Boa de Goyas
(1801). As duas
figuras indicam a
deterioração
ocorrida com o
conjunto
arquitetônico: jáo
existiam mais o
açude nem a Casa
do Engenho.
Biblioteca Mário de
Andrade. Foto in
"História dos índios
no Brasil"
aliás ocorrido seis anos antes. Sedentos de
mão-de-obra cativa, os colonos da Bahia
organizaram seus aliados em poderosas co-
lunas de guerra e investiram contra os Cae-
, além de outros grupos que se encon-
travam no caminho. De acordo com o
jesuíta Anchieta, em poucos meses foram
capturados mais de 50.000 cativos de
guerra, entre homens, mulheres e crianças,
sendo que apenas 10.000 destes chega-
ram a compor a força de trabalho nos en-
genhos do Recôncavo, os demais
sucumbindo-se à varíola ou aos maus tra-
tos dos conquistadores.
De fato, este e muitos outros episódios
semelhantes, envolvendo o deslocamen-
to forçado de grupos nativos, contribuiu pa-
ra o despovoamento de vastas áreas tanto
do litoral quanto do sertão. Estes movimen-
tos também agravavam a situação epide-
miológica das zonas de ocupação europeia,
uma vez que a introdução de elevados-
meros de cativos, praticamente sem imu-
nidade contra os contágios, aprofundava
as taxas de mortalidade. As epidemias, por
seu turno, suscitavam novas investidas ao
sertão, criando-se um ciclo devastador que
só se esgotaria na medida em que a escra-
vidão indígena deixasse de ser uma pro-
posta economicamente viável.
Uma parte da demanda por cativos era
suprida pela sucessão de Guerras Justas
que marcou a história do litoral no século
XVI: o conflito movido por António Sale-
ma contra os Tamoios do Rio de Janeiro
(1575), a primeira conquista do Sergipe
(1575-75), o assalto aos Guarani sob o co-
mando do capitão-mor vicentino Jeróni-
mo Leitão, as campanhas contra os Toba-
jara e Potiguar na Paraíba durante a década
de 1580, entre outros. Entretanto, a maio-
ria dos cativos conhecia o cativeiro através
das inúmeras expedições de caráter infor-
mal e privado que começaram a penetrar
o sertão com bastante insistência nos anos
finais do século XVI. Precursores das "ban-
deiras" e das "tropas de resgate" do sécu-
lo seguinte, as primeiras expedições de
apresamento claramente ofendiam os pre-
ceitos da legislação vigente, que coibia es-
te tipo de assalto à liberdade indígena, em-
bora muitas vezes contassem com a
descarada anuência das autoridades locais.
Além dos efeitos demográficos, o cres-
cente assalto às populações do litoral pro-
vocou outras consequências de grande al-
cance. Enfrentando uma política indigenista
cada vez mais ameaçadora, crises epide-
miológicas cada vez mais intensas e uma
demanda cada vez maior por escravos ín-
dios, as sociedades nativas desenvolveram
diversas estratégias na tentativa de rever-
ter este quadro opressivo. Estas estratégias
baseavam-seo apenas nas tradições e
práticas pré-coloniais, como também na
própria experiência histórica do contato e
da dominação. Alguns grupos locais, ao
colaborarem com os interesses dos portu-
gueses, buscaram preservar sua autonomia
através do fornecimento de escravos toma-
dos a outros grupos inimigos. Outros, já
submetidos ao jugo dos senhores de en-
genho ou dos jesuítas, procuravam resga-
tar sua liberdade através de violentas re-
voltas. Havia ainda outros que,
demonstrando a intricada relação entre o
passado indígena e a situação colonial, ar-
ticulavam complexos movimentos de pro-
testo e resistência, tais como as chamadas
santidades.
No entanto, a estratégia mais eficaz cer-
tamente residia na fuga coletiva e na re-
constituição da sociedade em regiões além
No século XIX
continuou-se a
política de
concentração dos
índios em
aldeamentos.
"Aldeia de Tapuias"
de Joahan Moritz
Rugendas. s/d.
Secretaria Municipal
de Cultura/SP. Foto
in "História dos
índios no Brasil".
do alcance dos sertanistas brancos e mes-
tiços. Ao longo do século XVI, diversos
grupos Tupi abandonaram o litoral, resta-
belecendo sua autonomia política em ter-
ras longínquas. Dentre os motivos, a es-
cravidão figurava como o mais eloquente,
conforme relatava um chefe do Rio Real
na década de 1580, ao preparar seus se-
guidores para uma longa migração:
"Vamo-nos, vamo-nos antes que venham
estes portugueses ...o fugimos da Igre-
ja nem de tua companhia porque, se tu
quiseres ir conosco. viveremos contigo no
meio desse mato ou sertão ... mas estes
portugueseso nos deixam estar quietos,
e se tus queo poucos que aqui an-
dam entres tomam nossos irmãos, que
podemos esperar, quando os mais vierem,
senão que a nós, e as mulheres e filhos fa-
o escravos?"
2
O sertanismo de apresamento
no século XVII
Se, no século XVI, a escravidão indí-
gena encontrava-se estreitamente articula-
da à expansão açucareira, esta instituição
estendeu-se para outras regiões, no segun-
do século da colonização, sob uma outra
lógica. Nas capitanias do sul, sobretudo a
deo Vicente, e no recém-constituído Es-
tado do Maranhão (1621), as atividades
económicas dos colonos eram movidas por
numerosos plantéis de escravos índios,
aprisionados em frequentes expedições pa-
ra o sertão. Embora às vezes vinculadas ao
comércio externo, estas atividades geral-
mente se limitavam à circulação regional
ou inter-regional. Próximo ao Paulo,
ponto inicial de repetidas incursões em de-
manda de cativos, constituíram-se inúme-
ros sítios e fazendas, contando com deze-
nas e mesmo centenas de trabalhadores
nativos. Já no outro extremo da América
Portuguesa, nas proximidades deo Luís
do Maranhão e Belém do Pará, brotaram
igualmente um grande número de unida-
des de produção agrícola, com considerá-
veis plantéis de índios.
Como estratégia para a reprodução da
força de trabalho, as expedições de apre-
samento mostravam-se eficazes, uma vez
que distanciavam o índio de suas origens,
geográfica e socialmente. De fato, ao lon-
go dos séculos XVII e XVIII, o apresamen-
to representava a principal forma de criar,
manter e até aumentar a população cati-
va, esboçando-se um forte paralelo com o
papel exercido pelo tráfico de escravos afri-
canos no mesmo período.
No sul, particularmente emo Pau-
lo, os colonos desenvolveram formas es-
pecíficas de apresamento, inicialmente pri-
vilegiando a composição de expedições de
grande porte, com organização e discipli-
na militares. Foram estas as expedições que
assolaram as missões jesuíticas do Guiará
(atual estado do Paraná) e Tape (atual Rio
Grande do Sul), transferindo dezenas de
milhares de índios Guarani para os sítios
e fazendas dos paulistas. Porém, a partir
de 1640, em reação às derrotas militares
sofridas nas missões, os colonos deo
Paulo começaram a imprimir novas carac-
terísticas ao sertanismo, buscando uma no-
va orientação geográfica, o que também
implicou numa nova forma de organizá-las.
Antes empreendimentos coletivos, as ex-
pedições se tornaram negócios particula-
res, regidos pela relação contratual entre
armadores financeiros e sertanistas.
Qualquer que fosse a forma preferen-
cial do apresamento, o mesmo resultou
num considerável fluxo de índios para a
economia colonial. Nas capitanias do sul,
este fluxo marcava presença em todas as
etapas da cadeia produtiva que ligava os
produtores a seus mercados. O índio ro-
çava os terrenos, plantava as sementes, cui-
dava das plantações e fazia a colheita. Po-
rém, sua principal função, atividade essa
que no final das contas possibilitou qual-
quer atividade comercial por parte dos
paulistas, foi no transporte.
Emo Paulo, a Serra do Mar, íngre-
me e inóspita, explicaria para muitos his-
toriadores — a pobreza e o isolamento dos
produtores paulistas durante o período co-
lonial. Para o carregador índio, no entan-
to, este obstáculo era vencido a, quase
diariamente, mesmo com uma carga que
beirava os trinta quilos. De acordo com o
padre António Vieira, que condenava a ex-
ploração desumana imposta aos índios de
o Paulo, "nas cáfilas deo Paulo a San-
toso só iam carregados como homens
mas sobrecarregados como azêmolas, qua-
se todos nus ou cingidos com um trapo e
com uma espiga de milho pela ração de
cada dia".
3
Outra função importante desempenha-
A escravidão dos
índios, embora
respaldada em base
legal até 1833.
continuou até o
século XX. "índios
atravessando um
riacho (caçador de
escravos)", óleo
s/tela de Jean-
-Baptiste Debret.
Museu de Arte de
o Paulo Assis
Chateaubriand. Foto
Luiz Hossaka.
Descrição de todo o
Estado do Brasil -
cópia do mapa de
João Teixeira,
cosmógrafo de sua
majestade
(Lisboa.1612).
integrante do "Livro
que dá razão do
Estado do Brasil".
executado pelo
agrimensor Juvenal
Martins em 1917.
Museu
Paulista/USP. Foto:
Rómulo
Fialdini/Banco
SAFRA.
da pelo índio no esquema produtivo dos
paulistas foi no próprio sertanismo. No de-
correr do século, a participação ativa de ín-
dios nas expedições tornava-se cada vez
mais essencial, à medida que se buscava
cativos em locais desconhecidos pelos
brancos. Para os colonos, expostos a fe-
bres, feras e índios desconhecidos, a me-
ra sobrevivência dependia do conhecimen-
to sertanejo dos índios.
A medida que chegavam aos povoa-
dos coloniais cada vez mais índios, os co-
lonos buscavam maneiras de consolidar
seu controle sobre os cativos. Conforme vi-
mos, a escravidão dos índios era proibida.
formalmente, pelas leis de Portugal, salvo
em casos específicos. Devido ao caráter
particular das expedições paulistas, que ra-
ramente eram sancionadas pelas autorida-
des, os colonos deo Paulo conviviam
com o permanente paradoxo entre a con-
dição jurídica e a situação real dos índios
introduzidos do sertão. Com certeza, ao
longo do período em que vigorava o tra-
balho indígena na região, a presença de es-
cravos legalmente capturados em Guerras
Justas permanecia quase nula.
Mesmo assim, os colonos deo Paulo
apropriaram-se dos direitos sobre a pessoa
e o trabalho dos índios. Se a lei declarava
a liberdade dos nativos, o "uso e costume
da terra" ditava a servidão dos mesmos.
Assim, ao redigir seu testamento em 1684,
o casal paulista António Domingues e Isa-
bel Fernandes expressaram uma opinião de
consenso quando declararam que os dez
índios sob seu domínio "são livres pelas leis
do Reino e só pelo uso e costume da terra
o de serviços obrigatórios." Ademais, os
colonos alegavam que esse "serviço obri-
gatório" fazia-se em troca da doutrina cristã,
do abrigo, do agasalho e dos bons tratos.
O conhecido sertanista Domingos Jorge
Velho, em carta ao Rei D. Pedro II, justifi-
cou este "direito" da seguinte maneira: "se
depois [de reduzir os índios] nos servimos
deles para as nossas lavouras, nenhuma in-
justiça lhes fazemos, pois tanto é para os
sustentarmos a eles e a seus filhos como
as e aos nossos; e isto bem longe de
os cativar, antes se lhes faz um irremune-
rável serviço em os ensinar a saberem la-
vrar, plantar, colher, e trabalhar para seu
sustento, coisa que antes que os brancos
lho ensinem, eleso sabem fazer."
Na Amazónia portuguesa, o sertanis-
mo de apresamento também ganhou vul-
to no século XVII, embora exibisse carac-
"Tribo Guaicuru em
busca de novas
pastagens",
aquarela s/papel.
Jean Baptiste
Debrel 1823.
Museus Castro
Maya. Foto Eduardo
Mello.
"Chefe dos
Bororenos partindo
para um ataque",
aquarela s/papel.
Jean Baptiste
Debret s/d.
Museus Castro
Maya. Foto Eduardo
Mello.
terísticas próprias à região. Se, nas
capitanias do sul, as expedições foram em-
preendidas à revelia das autoridades, a pre-
sença e ingerência do estado no abasteci-
mento e distribuição da mão-de-obra nativa
eram notáveis no Estado do Maranhão.
Durante a primeira metade do século
XVII, a tropa de resgate representava a
principal forma de recrutamento de mão-
de-obra indígena. As tropas, devidamen-
te licenciadas pelas autoridades régias, em
teoria visavam resgatar índios destinados
a serem devorados por seus inimigos. Po-
rém, poucas tropas observavam pontual-
mente a lei, tornando-se pretextos para a
escravização e destruição de inúmeras tri-
bos ao longo dos principais rios da Ama-
zónia. Com o financiamento de comercian-
tes de Belém ouo Luís, que também se
interessavam pelas "drogas do sertão", ser-
tanistas especializados organizavam flotilhas
de canoas para penetrar os caudalosos rios
da Amazónia. Os armadores dessas expe-
dições geralmente arcavam com o seu cus-
teio, fornecendo armas, correntes, ferra-
mentas e alimentos. Tanto sertanista
quanto armador contavam, ainda, com a
conivência de autoridades corruptas, que
permitiam abusos em troca de escravos e
outros favores. O Governador Francisco
Coelho de Carvalho, por exemplo, ganhou
notoriedade enquanto próspero negociante
de "tapuias", enviados para as capitanias
do nordeste e até para as colónias espa-
nholas.
4
o existem muitos registros destas pri-
meiras expedições; contudo, deixavam sua
indelével marca no despovoamento do
Baixo Amazonas. Quando chegou emo
Luís, na década de 1650, o padre Antó-
nio Vieira denunciou a magnitude do mo-
vimento, declarando que, nos 40 anos an-
teriores, cerca de dois milhões de índios
teriam sido extinguidos pelos colonos do
Estado do Maranhão. Estes, por seu tur-
no, pouco se importavam com a sobrevi-
vência de seus cativos, uma vez que a
Amazónia parecia proporcionar-lhes uma
inexaurível fonte de trabalhadores. O pró-
prio Vieira verificava o processo de despo-
voamento em sua primeira grande aven-
tura para o sertão quando, em 1654,
acompanhava uma tropa para o rio Tocan-
tins. Habitada outrora por populosa tribo
da língua geral, a região guardava apenas
no nome do rio a memória dos índios To-
cantins, segundo Vieira, dizimados pelos
portugueses em poucos anos.
A exemplo das capitanias brasileiras no
século XVI, o fluxo cada vez maior de es-
cravos do interior para os povoados e as
unidades de produção dos portugueses
suscitava, também no Estado do Mara-
nhão, um tumultuado confronto entre co-
lonos e jesuítas. A chegada do padre An-
tónio Vieira em 1653 mudou de modo
fulminante o rumo da história do Estado
do Maranhão, em particular no que dizia
respeito à questão indígena. Com o apoio
da corte, Vieira introduziu uma política que
visava transferir para os jesuítas o controle
absoluto da população indígena introdu-
zida do sertão. Em eloquentes sermões e
longas correspondências, Vieira atacava,
sob todos os aspectos, o injusto cativeiro
praticado pelos colonos. Ecoando as ques-
tões surgidas no litoral anos antes, Vieira
buscava definições para as seguintes po-
lémicas: Quem podia descer índios do ser-
tão? Os índios descidos seriam escravos ou
forros? Quem administraria os índios já
descidos? Os colonos ou os padres?
Apesar da ferrenha oposição dos co-
lonos, que reivindicavam o direito de con-
tinuar suas práticas de escravização atra-
s das "guerras justas" e dos "resgates",
o agitado esforço do padre Vieira fez com
que o pêndulo legislativo voltasse a favo-
recer a postura dos jesuítas: a lei de 1655,
fruto dos apelos do padre junto ao rei D.
João IV, passou a fornecer rígidas diretri-
zes para o sertanismo no Estado do Mara-
nhão. Além de garantir o monopólio espi-
ritual e temporal dos jesuítas sobre os índios
dos aldeamentos, também conferia aos
mesmos padres a responsabilidade de
acompanhar as tropas de resgate para o
sertão e o poder de julgar a legitimidade
do eventual cativeiro de índios. Contudo,
a lei de 1655o eliminava a escravidão
e, como tantos outros decretos anteriores,
na verdade buscava estabelecer com maior
clareza as condições para o cativeiro le-
gítimo.
Apesar das novas restrições impostas,
os anos 1650 presenciaram um sensível au-
mento no apresamento de índios, tanto pe-
las tropas de resgate oficiais quanto pelas
numerosas expedições particulares que pe-
netravam o sertão ilegalmente. Junto com
os "descimentas" feitos pelos missionários,
as expedições de apresamento proporcio-
naram um movimento de índios do inte-
rior para o litoral que atingia novas propor-
ções nestes anos. De acordo com o padre
Bettendorf, uma única entrada em 1655
teria descido 2.000 nativos do Rio Ama-
zonas, sendo outros 600 introduzidos, em
1658, "pela porta lícita do cativeiro."
5
Conforme a política prevalecente, ca-
da ano era organizada uma expedição que
contava com a participação do Estado e da
"índio Guarani
civilizado". Aquarela
s/papel, Jean
Baptiste Debret. s/d.
Museus Castro
Maya. Foto Eduardo
Mello.
"índia Guarani
civilizada a caminho
da igreja em trajes
domingueiros".
"índios Guanás,
feitos emo Paulo,
junho 1830".
nanquim aguado.
Coleção Cyrillo
Hércules Florence.
Foto in "História dos
índios no Brasil".
iniciativa privada, além da presença dos je-
suítas. De caráter misto, portanto, estes em-
preendimentos serviam tanto para "descer"
índios considerados mansos para os aldea-
mentos, quanto para "resgatar" escravos.
Em diversas ocasiões, as tropas assumiram
a característica de expedições punitivas, as
vezes atingindo proporções semelhantes às
grandes bandeiras paulistas.
O estatuto jurídico dos índios egressos
do sertão provinha, neste sentido, das con-
dições de apresamento. A diferença entre
"forros" e "escravos"o deixava de sus-
citar dúvidas e mesmo provocar situações
bastante contraditórias, conforme o padre
Vieirao cansava de destacar. O caso de
um grupo Tupi do Tocantins chamava a
atenção do padre, pois, chegados em Be-
m em 1654 na condição de forros, en-
contravam parentes próximos que haviam
chegado em 1647 como escravos numa
outra tropa. Apesar de perfeitamente "le-
gal" segundo a legislação vigente, a con-
vivência dos "forros" com seus irmãos con-
siderados cativos causava constrangimen-
to para o relator inaciano.
6
Emborao conseguisse evitar a escra-
vização ilegal de centenas de cativos, a pre-
sença militante de Vieira e de outros jesuí-
tas pelo menos foi suficientemente
desconcertante para aquecer o conflito en-
tre missionários e colonos. Os padres
acompanhando as tropas de resgateo
deixavam de perceber que raras foram as
guerras justas e poucos eram os legítimos
resgates. Mas os colonos desejavam o con-
trole absoluto sobre os trabalhadores egres-
sos do sertão, pois a mediação dos padres
tanto no julgamento dos cativos quanto na
distribuição da mão-de-obra "forra" das
missões tornava-se cada vez mais incon-
veniente. Seguindo o exemplo de seus se-
melhantes paulistas de vinte anos antes, os
colonos do Estado do Maranhão resolve-
ram radicalizar o conflito e partiram, em
1661, para a expulsão dos padres.
Assim, durante os anos 1660 e 1670,
sem maior interferência dos jesuítas, inú-
meras tropas penetravam os rios da Ama-
zónia em busca de escravos. No entanto,
a evidente devastação das populações e a
impunidade dos colonos suscitaram uma
nova reviravolta na política indigenista, com
a lei de 1680, que mais uma vez enfatica-
mente proibiu o cativeiro dos índios. A rea-
ção dos colonos deo Luís foi forte e
imediata, pois defendiam até a morte o di-
reito de descer índios do sertão e de ex-
piorar o trabalho nativo. O resultado foi o
violento levante liderado por Manuel Beck-
mann em 1684, depondo o governador e
expulsando novamente os jesuítas.
A revolta de Beckmann, apesar de du-
ramente reprimida, forçou a coroa a se po-
sicionar mais claramente diante da ques-
o indígena no Estado do Maranhão. A
partir da consulta com autoridades régias,
missionários e colonos, o Conselho Ultra-
marino lançou o Regimento das Missões
em 1686. Este código restituía novamen-
te aos jesuítas o controle sobre os aldea-
mentos, porém, com ressalvas. Por um la-
do, os padres tinham a obrigação de
estabelecer novos aldeamentos em locais
próximos aos povoados portugueses, as-
sim oferecendo uma força de trabalho pa-
ra a economia colonial. Por outro, agora
cabia às autoridades leigas a repartição da
mão-de-obra indígena. Contudo, como era
de se esperar, este sistema jamais atende-
ria à elevada demanda dos colonos parti-
culares, acostumados com o livre acesso
a índios do sertão. Mediante a insistência
do Governador Gomes Freire de Andra-
de, a coroa recuou em 1688, autorizando
a retomada de tropas de resgate anuais,
obedecendo o mesmo esquema dos anos
1650. Porém, desta vez foi o próprio esta-
do que assumia os encargos financeiros das
expedições, assim tornando-se aviador,
com a correspondente expectativa de um
retorno em impostos sobre cada "peça" res-
gatada no sertão. No ano seguinte, recua-
va mais ainda, permitindo a organização
de expedições particulares, assim abrindo
mais uma brecha para o descimento e es-
cravização indiscriminada eo fiscaliza-
da de índios.
Portanto, ao invés de controlar a escra-
vidão indígena e de amenizar as relações
luso-indígenas na Amazónia, a nova polí-
tica na verdade preservava aquilo que os
colonos percebiam como sendo o seu di-
reito já tradicional. Assim, com a usual co-
nivência das autoridades coloniais, as tro-
pas oficiais, semi-oficiais e particulares
continuavam a penetrar o sertão com bas-
tante insistência. Embora os jesuítas insis-
tissem, até sua expulsão definitiva em
1759, em questionar e combater o cativeiro
injusto, as tropas de resgateo apenas
persistiam como ganhavam novo fôlego no
século XVIII, acoplando-se a um crescen-
te número de expedições de coleta das
"drogas do sertão".
Palco de luta, espaço de sobre-
vivência
Os elaborados esquemas de apresa-
mento desenvolvidos pelos colonos no sul
e no norte da América Portuguesa deter-
minavam, em larga medida, os contornos
demográficos da escravidão indígena. Con-
tudo, a articulação de um sistema escra-
vista passava igualmente pela convivência
entre dominadores e dominados.
Emo Paulo, à medida que a cama-
da senhorial apurava seus mecanismos de
controle e opressão, os índios desenvolve-
ram contra-estratégias que visavam forjar
um espaço para uma sobrevivência um
pouco mais digna e humana. Resistindo à
opressão dos senhores os índios resistiam
à ordem a que estavam submetidos de to-
das as maneiras possíveis. E se, dada a es-
cassez de meios que dispunham os índios,
as revoltas organizadas, embora tenham
existido,o foramo frequentes, os ca-
tivos mostravam sua rebeldia de todas as
maneiras que dispunham. Fugindo do ca-
tiveiro, furtando de seus senhores e vizi-
nhos, invadindo propriedades, negocian-
do produtos livremente, os índios
buscavam estabelecer alguma independên-
cia de ação frente à estrutura escravista.
Nesse sentido, os contornos da escravidão
indígena também foram definidos pelas
ações concretas e as vivências cotidianas
dos índios.
Um primeiro espaço importante foi en-
contrado na elaboração de um comércio
paralelo, atendendo sobretudo o modes-
to mercado proporcionado pelos peque-
nos núcleos semi-urbanos. Na década de
1650, a competição indígena já chegava
a ameaçar as atividades de mascates por-
tugueses, especialmente no comércio de
produtos locais, tais como farinha e cou-
ros. Diversas vezes ao longo do século
XVII, as autoridades da colónia lançaram
ofensivas contra esta economia informal
movimentada pelos índios. Em 1647, a
Câmara registrou uma queixa referente aos
"roubos e outras desordens e excessos", de-
correntes do comércio com os "negros da
terra de serviços obrigatórios." Em segui-
da, recomendou aos colonos que nego-
ciassem apenas com os índios munidos da
autorização de seus senhores para vender
produtos da terra. Em 1660, a Câmara en-
dureceu de vez, proibindo qualquer comér-
cio com os índios, "sob pena de se lhe ser
demandado de furto." Pouco depois, en-
tretanto, qualificou a interdição ao restrin-
gir o comércio com os "negros da terra"
a valores inferiores a 200 réis, o que ex-
cluía quase tudo menos pequenas quanti-
dades da produção local.
7
Apesar da insistência das autoridades,
a Câmara Municipal foi incapaz de coibir
as atividades informais e independentes
dos índios. A consternação permanente da
Câmara manifestava-se, basicamente, por
dois motivos. Em primeiro lugar, o desen-
volvimento de um mercado paralelo de
couros e de carnes violava os privilégios
monopolistas de comerciantes portugue-
ses, cujos contratos municipais lhes propor-
cionavam direitos exclusivos sobre a comer-
cialização do gado, origem de todo tipo de
abuso. Em segundo, grande parte da car-
ne e dos couros vendidos pelos índios nas
vilas provinha do furto de gado, o que
apresentava sérios problemas no que diz
respeito ao controle social.
Na segunda metade do século, tais ati-
vidades viraram corriqueiras, chegando a
ocupar um lugar na pauta da justiça colo-
nial com regularidade. Por exemplo, Grá-
Cia de Abreu referiu-se no seu testamento
a uma ação movida por Salvador Bicudo
contra ela porque sua "gente" tinha furta-
do duas cargas de farinha de trigo e mata-
do diversos porcos pertencentes a Bicudo.
Parece provável que ambos estes itens,
com valor significativo dentro do contexto
da economia local, chegaram a ser vendi-
dos no mercado. Em caso semelhante, po-
m com enredo mais violento, Francisco
Cubas abriu uma ação contra os herdeiros
de José Ortiz de Camargo, sustentando
que os índios do falecido Camargo tinham
invadido repetidamente sua fazenda de ga-
do no bairro de N. S. do O, matando ga-
do e saqueando a lavoura. Certa altura, os
índios atacaram o filho de Cubas, que ad-
ministrava a fazenda, "com armas ofensi-
vas e defensivas... com vozes dizendo ma-
ta, mata a João Cubas", que escapou
"milagrosamente em uma camarinha" da
fúria dos invasores, embora o índio Agos-
tinho tenha perecido "com muitas frecha-
das que lhe deram e lhe quebraram a ca-
beça e despiram e roubaram a casa e
sítio".
8
Cenas iguais a essao foram raras em
o Paulo colonial, pois em diversas oca-
siões os índios apelavam para a violência
para combater a injustiça do seu cativeiro.
Com certeza, os colonos tinham razões de
sobra para recear revoltas de escravos ín-
dios. Tal receio começou a se confirmar em
1652, quando explodiu a primeira grande
revolta na propriedade de António Pedro-
so de Barros, no bairro de Juqueri. Pedroso
de Barros, um dos principais produtores de
trigo, possuía entre 500 e 600 índios, divi-
didos entre Carijó e Guaianá, a maior parte
recém-chegada do sertão. Além de truci-
darem Pedroso de Barros e outros bran-
cos que se achavam na fazenda, os índios
também destruíram as plantações e as cria-
ções. Coube a Pedro Vaz de Barros, irmão
da vítima, descrever a devastação: "Foi tan-
to o número de gentio que naquela oca-
sião acudiu à morte do seu amo e outros
alheios queo deixaram coisa viva que
o destruíssem, matassem e co-
messem."
9
Esta revolta foi seguida por diversos
outros levantes que chegaram a balançar
as bases da escravidão indígena. Tornava-
se cada vez mais claro que a simples pre-
ponderância de cativos no conjunto da po-
pulação chegando, no seu auge, a uma
média de 40 índios para cada proprietário
, representava uma ameaça constante.
Contando com uma esmagadora vanta-
gem numérica, os índios colocaram em-
vida, de maneira frontal, a dominação ab-
soluta exercida pelos colonos.
Embora representasse uma estratégia
importante, a luta dos índioso se esgo-
tou no confronto violento. Em prol de
maior autonomia e até da liberdade, mui-
tos índios lançaramo de meios tanto ile-
gais quanto legais. Acompanhando o de-
clínio da escravidão indígena provocado
pela queda no apresamento e pelo desco-
brimento do ouro das Minas Gerais no fi-
nal do século XVII nota-se um aumen-
to sensível nas fugas individuais e nos
litígios movidos por índios.
A construção da
figura do
bandeirante,
considerado ora
herói ora bandido,
apagou o papel
histórico do índio,
omitido ou relegado
a vitima no processo
de espansão
territorial dos
portugueses. Selos
comemorativos.
Coleçâo Nelson Di
Francesco.
De fato, no início do século XVIII, os
índios começavam a conscientizar-se das
vantagens do acesso à justiça colonial, so-
bretudo com respeito à questão da liber-
dade. Buscando a liberdade a partir de ar-
gumentos fundamentados num
conhecimento da legislação em vigor, os
próprios índios passaram a ser frequentes
autores de petições e litígios. Afinal de con-
tas, como todo mundo sabia, o cativeiro
dos índios era notoriamente ilegal. Foi nes-
se sentido que Rosa Dias Moreira moveu
processo contra seu senhor, Francisco Xa-
vier de Almeida, alegando que, por ser
descendente de "Carijós", seu cativeiro era
ilícito. Em caso semelhante, dois "descen-
dentes de Carijós" abriram litígio contra Jo-
sé Pais pelo mesmo motivo.
10
Assim, ao
constatar sua descendência indígena, o ín-
dio litigioso buscava garantir sua condição
de livre, juridicamente determinada pelas
leis de Portugal. Em alguns casos, procu-
rava reforçar o pleito alegando maus tra-
tos ou cativeiro injusto, na tentativa de ca-
racterizar sua condição como equivalente
à do escravo.
Ao buscar a liberdade através da justi-
ça colonial, instituição essa que também os
oprimia, os índios deo Paulo contribuí-
ram ativamente para a desagregação da es-
cravidão indígena. Recompensados com a
liberdade, contudo, os remanescentes dos
milhares de índios escravizados pelos pau-
listas ao longo dos anoso conseguiram
recuperar sua identidade indígena, antes
passando a engrossar as legiões de bran-
cos e mestiços pobres que constituíam a
maioria da população rural.
Como emo Paulo, os índios cativos
do Maranhão e Pará igualmenteo as-
sistiram passivamente a injustiça de seu ca-
tiveiro. A resistência à escravização muitas
vezes começava ainda no sertão. Tal seria
o caso de um grupo Juruna do Rio Xingu
que, sofrendo repetidos assaltos dos colo-
nos do Maranhão e mesmo de algumas
tropas paulistas que alcançaram este ser-
tão, "se tinham fortificado em uma ilha de
pau a pique", segundo relatava Betten-
dorf.
11
Outras informações interessantes
podem ser acrescentadas a partir do rela-
tório inédito do sertanista João Velho do
Valle, escrito na década de 1680, onde se
registrava o discurso de um líder Juruna
(no relatório, Charuna), que recebeu a tro-
pa. Mediado pelo seu compadre Maragu,
chefe dos índios Caicaizes que acompa-
nhavam a expedição, o chefe Juruna in-
dagava: "Que é isto? Tu trazes brancos con-
tigo?" O chefe Caicai buscava assegurar seu
compadre Juruna que o Capitão do Valle
apenas intentava firmar a paz, por ordem
do governador do Maranhão. Inconforma-
do, o chefe Juruna disparava: "Tu mentes
ques Caicaizes trazeis tropas de bran-
cos para nos matarem e cativarem filhos
"Botocudo e seu
prisioneiro Pataxó" -
Maximiliam Wied-
-Neuwid, aquarela e
bico-de-pena.
Biblioteca Brasiliana
Robert Bosch. Foto:
António Rodrigues.
e Mulheres."o foi mera paranóia o re-
ceio do chefe dos Jurunas: afinal de con-
tas, seu povoo era estranho aos objeti-
vos dos brancos. Além das relações com
os índios da Serra da Ibiapaba, havia en-
tre eles alguns escravos africanos fugidos,
que certamente reforçavam a estratégia de
refúgio como alternativa ao confronto e à
submissão. Contudo, apesar das intenções
do capitão João Velho do Valle serem
amistosas, a profecia acabou por se com-
pletar poucos anos depois, quando estes
Juruna foram escravizados e dizimados pe-
la tropa do Sargentor Domingos Ma-
tos Leitão e Silva.
12
Semelhante destino tiveram os chama-
dos Caicaizes, fiéis auxiliares do Capitão
do Valle, mostrando como, em curto tem-
po, um grupo podia passar de aliado a ini-
migo. Junto com os Juruna, os Caicaizes
também tornaram-se objetos de uma guer-
ra movida pelo sargento-mor Leitão e Sil-
va na década de 1690. No processo de de-
vassa contra eles, contrariando a imagem
favorável esboçada no relato do Valle, ago-
ra eram descritos como "gentio do corso",
merecedores do castigo do cativeiro. Exa-
minado o caso, o Conselho Ultramarino
determinou queo se tratava de Guerra
Justa, e que os índios haviam de ser pos-
tos em liberdade e deslocados para a Ilha
do Marajó. Porém, a resolução veio tarde
demais: com a conivência das autoridades
locais, os índios foram vendidos aos colo-
nos, submetidos a trabalhos forçados e, por
fim, vitimados pela terrível epidemia de va-
ríola de 1695.
13
Além do recuo ou do confronto dire-
to no sertão, os índios escravos e forros,
uma vez transferidos de seus locais de ori-
gem, também desenvolveram estratégias
próprias para enfrentarem a dominação
portuguesa. O processo de adaptação ao
novo regime certamenteo era fácil. De
acordo com o padre João de Sousa Fer-
reira, "os índios novamente descidos pa-
recia razão seo entendesse os primei-
ros dois ou três anos."
14
Somado à
dificuldade de adaptação era o descaso dos
senhores com seus índios, submetendo-os
a um duro regime de trabalho e a igual-
mente severos castigos. Mesmo no contex-
to rude do Maranhão colonial, o tratamen-
to dos índios era assunto notório durante
o século XVII. Já em 1648, o Provedor da
Fazenda do Maranhão escrevia ao Conse-
lho Ultramarino denunciando a exploração
de forros nas lavouras de tabaco, em pre-
juízo a suas próprias plantações nos aldea-
mentos. Na ocasião, o Provedor pedia pro-
vidências no sentido de liberar os mesmos
índios nos meses de dezembro, janeiro,
maio e junho, assim permitindo que tra-
balhassem para seu sustento, pedido que
foi atendido por um Alvará do João IV.
u
Os frequentes surtos de doenças con
tagiosas prejudicavam mais ainda o bem-
estar do índio colonial. Criava-se o ciclo vi-
cioso comum a toda a América Portugue-
sa ao longo do período colonial: a alta mor-
talidade suscitava repetidas investidas ao
sertão em busca de novos cativos que, sem
qualquer resistência biológica, agravavam
as mesmas crises epidemiológicas. A me-
dida em que os colonos podiam repor seus
estoques de escravos com facilidade atra-
s do sertanismo, existia pouco estímulo
além da voz estridente de alguns jesuí-
tas e as inconstantes manifestações da co-
roa para modificar o esquema de ex-
ploração através de melhorias nas
condições de trabalho. Em 1673, o padre
Bettendorf resumia a condição dos escra-
vos da terra: "O Estado [do Maranhão] é
paupérrimo, sem possuir nada de seu; os
quem hoje cem escravos, dentro de pou-
cos diaso chegam a ter seis. Os índios,
de frágil condição, estão sujeitos a incrível
mortalidade, qualquer disenteria os mata,
e por qualquer leve desgosto seo a co-
mer terra ou sal e morrer." Pouco depois,
o padre João de Sousa Ferreira ilustrava
bem a situação demográfica e sua relação
com o cativeiro: "Metendo dez escravos em
casa, daí a dez anoso havia um; mas
fugindo um casal para o mato, achava-se
daí a dez anos com dez filhos."
16
O abuso da mão-de-obra indígena,
tanto pelos colonos quanto pelos próprios
missionários, dava ocasião a atos rebeldes
dos índios. O jesuíta Bettendorf, o princi-
pal cronista do Maranhão seiscentista, nar-
rava o caso da morte de quatro jesuítas no
engenho administrado por estes no Rio Ita-
picuru. O Padre Francisco Pires havia man-
dado açoitar uma escrava "por seus des-
mandos em matéria do sexto
[mandamento]," o que ocasionou a fuga
da mesma para seu povo de origem, os ta-
puias Uruatis, que, por sua vez, invadiram
a fazenda e quebraram as cabeças dos pa-
dres e irmão jesuítas. O mesmo jesuíta
igualmente relatava uma série de subleva-
ções de escravos índios nas fazendas dos
colonos, incidentes que ele atribuía ao cas-
tigo divino pela expulsão dos padres em
1661.
17
Mas tais atos de violência praticados
pelos índios mostravam-se pequenos e re-
lativamente ineficazes diante da violência
maior do apresamento. As frequentes ex-
pedições, com ou sem autorização, com ou
sem a fiscalização dos jesuítas, concorre-
ram para o despovoamento das margens
e várzeas dos grandes rios da Amazónia
em curto espaço de tempo. Escrevendo na
última década do século XVII, o padre
João de Sousa Ferreira declarava que no
Rio Amazonas encontrava-se "tudo despe-
jado", sendo necessário viajar pelo menos
dois meses até o Solimões "para alcançar
alguns escravos."
18
Porém o processoo
terminou por: as tropas de resgate, os
descimentos e as expedições punitivas -
práticas essas criadas e consagradas no-
culo XVII perduravam até meados do
XVIII, estendendo-se a destruição para no-
vos campos de ação, tais como o Rio Ne-
gro, o Branco e o Madeira, entre outros.
Comentários finais
Ao longo deste texto, sublinhamos a
importância da presença indígena nos pri-
meiros séculos da história do Brasil.o
se trata de um simples "resgate" do homem
esquecido, nem de uma exaltação dos opri-
midos ou vencidos da história. Antes pro-
curamos demonstrar que a história, embora
escrita e distorcida por uma pequena mi-
noria com interesses próprios, foi feita e vi-
vida por agentes muitas vezes desconhe-
cidos. De fato, a história dos índios
apresenta um claro exemplo da omissão
de um ator significativo nos livros de his-
tória mais convencionais, pois com a cons-
trução da figura do bandeirante, entre ou-
tros mitos da colonização, o papel histórico
do índio foi completamente apagado.
Ao mesmo tempo, é possível identifi-
car no índio colonial algumas característi-
cas constantes do tratamento estendido à
população trabalhadora ao longo de toda
a história do Brasil. Na verdade, trata-se
do primeiro exemplo de como os grupos
dominantesm lidado com a maioria da
população, tratando-a como um povo con-
quistado ou colonizado, digno de ser ex-
plorado economicamente e, finalmente,
excluído da história. No contraponto aqui
esboçado, ressalta-se a importância das vi-
vências e embates desta maioria ausente
da história oficial mas que, antes de mais
nada, lutou, através dos meios que dispu-
nha, contra uma minoria privilegiada e um
modelo económico brutalmente injusto,
que os mantinham cativos.
Notas
1. João de Azpilcueta Navarro ao Colégio de Coim-
bra, agosto de 1551, Cartas dos Primeiros Jesuí-
tas (São Paulo, Comissão do IV Centenário, 1956.
vol. 1:279).
2. Citado em Florestan Fernandes - 1949 - A Or-
ganização Social dos Tupinambá.o Paulo, Pro-
gresso, pág. 36.
3. "Voto do Padre António Vieira sobre as dúvidas
dos moradores da Cidade (sic) deo Paulo." 12
de julho de 1692, Instituto de Estudos Brasileiros,
Coleção Lamego 42.3.
4. Citado cm David Sweet - 1974 - A Rich Realm
of Nature Destroyed: The Middle Amazon Valley,
1640-1750, Tese de Doutorado, Univ. Wisconsin,
p. 122.
5. Bertendorf S.J., João Felipe - [1699] - Crónica
dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do
Maranhão, ed. fac-similar, Belém, Secretaria da
Cultura, 1990.
6. Hemming, John - 1978 - Red Gold: The Con-
quest of the Brazilian Indians, 1500-1760, Cam-
bridge, Harvard University Press, pág. 325.
7. Atas da Câmara Municipal deo Paulo, di-
versos volumes,o Paulo, Prefeitura Municipal,
1914, 5: 261, 295; 6 bis: 216, 382.
8. Ação Cível inédita de Francisco Cubas contra os
herdeiros José Ortiz de Camargo, 1664, Arquivo do
Estado deo Paulo caixa 6033-1.
9. Inventários e Testamentos, 44 vols..o Paulo,
Imprensa Oficial, 1921-77, vol. 20:55-56.
10. Registro inédito de Petições Criminais, diversas
datas (século XV111), Arquivo do Estado deo Pau-
lo cx. 437-79.
11. Bertendorf, Crónica, p. 116.
12. Arquivo Histórico Ultramarino, Maranhão cx. 8
doe. 10. Trechos deste documento foram publica-
dos em João Renôr, "Documentos Raros da Histó-
ria do Maranhão", série de artigos no jornal Estado
do Maranhão, 1989-90.
13. Renôr, "Documentos raros." Sobre a epidemia
de 1695, ligada a chegada de escravos africanos,
ver Dauril Alden e Joseph Miller, "Out of Africa: The
Slave Trade and the Transmission of Smallpox to
Brazil," Journal of Interdisciplinary History, 18, no.
1, 1987, pp. 195-224.
14. João de Sousa Ferreira, "América Abreviada ...",
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro, 57, pt. 1, 1894, p. 85.
15. Boletim CEDEAM, 1987, p. 151.
16. Serafim Leite, História da Companhia de Je-
sus no Brasil, 10 vols., Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1938-50, vol. 7:295; Sousa Ferreira,
"América Abreviada," p. 117.
17. Bertendorf, Crónica, pp. 69-70, 239 e seq.
18. Sousa Ferreira, "América Abreviada," p. 117.
Bibliografia
Beozzo, José Oscar - 1983 - Leis e Regimentos das
Missões: Política Indigenista no Brasil,o
Paulo, Loyola.
Carneiro da Cunha, Manuela, et alii. - 1987 - Os
direitos do índio, ensaios e documentos,o
Paulo, Brasiliense/Comissão Pró-índio deo
Paulo.
Carneiro da Cunha, Manuela, (org.) - 1992 - His-
tória dos índios no Brasil,o Paulo, FA-
PESP/SMC-SP/Cia. das Letras, (sobre o assun-
to, vejam-se os artigos de Beatriz
Perrone-Moisés, António Porro, Marta Amoro-
so, Beatriz G. Dantas et alii, Maria Hilda Paraí-
so e John Monteiro).
Davidoff, Carlos Henrique - 1982 - Bandeirantis-
mo, verso e reverso, S.ão Paulo, Brasiliense,
(coleção Tudo é História).
Farage, Nádia - 1991 - As muralhas dos sertões:
os povos indígenas no Rio Branco e a colo-
nização, Rio de Janeiro, Paz e Terra/Anpocs.
Hemming, John.- 1978 - Red Gold: The Conquest
of the Brazilian Indians, 1500-1760, Cambrid-
ge, Harvard University Press.
Holanda, Sérgio Buarque de - 1975 - Caminhos
e Fronteiras, 2a ed, Rio de Janeiro, José
Olympio.
Holanda, Sérgio Buarque de - 1990 - Monções -
3a ed. ampliada,o Paulo, Brasiliense.
Malheiro, A. M. Perdigão - [1866] - A escravidão
no Brasil, ensaio histórico-jurídico-social, 3
vols., Petrópolis, Vozes.
Marchant, Alexander - 1980 - Do escambo à es-
cravidão: as relações económicas de portu-
gueses e índios na colonização do Brasil,
1500-1580, 2a ed.,o Paulo, Companhia Edi-
tora Nacional.
Moreira Neto, Carlos - 1988 - índios da Amazónia
1750 a 1850: de maioria a minoria, Petró-
polis, Vozes.
Ribeiro, Berta - 1983 - O índio na história do Bra-
sil,o Paulo, Global, (série História Popular
13).
Schwartz, Stuart B. - 1988 - Segredos Internos: en-
genhos, escravos na sociedade colonial.o
Paulo, Companhia das Letras.
Thomas, Georg - 1982 - Política Indigenista dos
Portugueses no Brasil, 1500-1640,o Pau-
lo, Loyola.
Volpato, Luiza - 1986 - Entradas e Bandeiras,o
Paulo, Global, (série História Popular 2).
Zenha, Edmundo - 1970 - Mamelucos,o Paulo,
Revista dos Tribunais.
De arredio a isolado:
perspectivas de autonomia para os povos
indígenas recém-contactados
Dominique Tilkin Gallois
Mais de 50 grupos indígenas distribuí-
dos em várias regiões da Amazónia conti-
nuam vivendo, hoje, praticamente sem
contato com a sociedade nacional. Ainda
o descobrir, ou redescobrir, o Brasil. É
preciso garantir-lhes espaço e tempo ne-
cessários para que a opção do contato de-
penda deles eo da decisão dos serta-
nistas do órgão indigenista oficial.
Enquantoo estiverem ameaçados dire-
tamente, o Estadoo promove o conta-
to, apenas protege, à distância, seu habi-
tat. Esta nova política "para os isolados",
implantada pelo Departamento de índios
Isolados da Funai, representa, enquanto
construção teórica, uma alternativa signi-
ficativa à forma com que esses grupos vi-
nham sendo tratados nas últimas décadas.
o se pretende levantar, aqui, as di-
ficuldades enfrentadas ao nível prático das
intervenções, devidas principalmente à re-
sistência de setores governamentais em
subscrever à política protecionista e decor-
rentes dos interesses económicos que pe-
sam sobre os redutos territoriais dos índios
isolados. Entretanto, parece-me relevante
questionar alguns impasses com que se de-
fronta esta política, ao nível conceituai. A
primeira ambiguidade relaciona
:
se com a
própria construção da categoria de isola-
do. Quais fronteiras cercam os isolados e
quando deixam de sê-lo?
A permanência de representações am-
bíguas sobre as noções de isolamento, de
autenticidade e pureza, articuladas à de fra-
gilidade, de inocência e de marginalidade
condicionam as relações que historicamen-
te nossa sociedade mantêm com esses gru-
pos. Ampliar o debate em torno desses
conceitos, além do círculo restrito de es-
pecialistas, é um desafio permanente pa-
ra a antropologia, e especialmente para a
etnologia.
Como mostram os estudos sobre a his-
tória indígena nas Américas, o etnocídio
resulta tanto dos efeitos da introdução de
doenças, de tecnologias e de valores alie-
nígenas quanto da intenção de dominação
que preside à esta introdução. Intenção
simbolicamente desempenhada, historica-
mente, no próprio evento da pacificação,
quando distribuiam-se roupas, cruzes e ins-
trumentos de trabalho. A dominação
concretizava-se através da política de se-
dentarização visando a liberação dos ter-
ritórios tradicionais, ou através da transfe-
rência para áreas distantes, ou através do
engajamento dos índios em trabalhos con-
siderados produtivos. Hoje, a intenção mu-
dou: procura-se efetivamente proteger,
preservar e controlar relações de contato
destrutivas, em prol da sobrevivência físi-
ca e cultural dos grupos isolados. A práti-
ca do contato também mudou: mesmo que
se continue oferecendo ferramentas - sím-
bolo da superioridade tecnológica que nos-
sa sociedade se atribui - distribuem-se tam-
m vacinas e remédios.
Para abordar a relação do Estado com
os índios, é interessante observar uma fa-
se particularmente difícil na experiência de
contato de grupos indígenas recém-
-contactados: o momento em que deixam
de receber proteção especial do Estado,
porque saem da condição de isolados. A
passagem para a situação de contactados
manifesta-se pela simplificação e banaliza-
ção dos serviços assistenciais, dispensando-
-se ações que se relacionam tradicional-
mente com a estratégia da pacificação:
diminuição do número de agentes, menor
sistematização e menor especificidade dos
serviços de saúde e, sobretudo, interrup-
ção da distribuição de bens para fins de se-
dução. Também diminui o controle do ór-
o estatal sobre a presença de agentes
externos nas áreas indígenas. Mas essa pas-
sagem é especialmente marcada por uma
mudança de natureza nas intervenções:
aos índios em contato, oferece-se projetos
económicos, programas escolares, etc...
Voltarei a esta transfiguração, adiante.
Até quando e até onde se exerce a pro-
teção especial ? Se olharmos através des-
te prisma, torna-se evidente que a eman-
cipação da condição de isoladoso é
definida pelo grupo, mas pela política in-
digenista oficial, que num certo momento
deixa de exercer tal proteção, a que só uma
nova leva de povos em transiçãom di-
reito. Inversamente, se olharmos para o iní-
cio do processo, veremos que muitos gru-
pos considerados isolados mantêm, de
longa data, relações com segmentos da so-
ciedade nacional e só estão incluídos na
categoria de isolados por serem conside-
rados ameaçados ou frágeis, ainda que
provisoriamente. Vista desta perspectiva,
a construção desta categoria continua fun-
damentalmente delineada pela relação de
dominação que nossa sociedade impõe às
sociedades indígenas. A condição de iso-
lado resulta de uma classificação operada,
em via única, pela sociedade nacional
1
.
Em períodos anteriores, a fase de pro-
teção especial era curta, senão ausente.
Partia-se imediatamente para intervenções
visando a sedentarização e a integração dos
índios ao Brasil produtivo. Hoje, a prática
de uma fase de transição se mantém
2
,
mesmo que os critérios considerados pa-
ra mudar a relação sejam mais abrangen-
tes. Como se procura abolir, no atual dis-
curso indigenista, a sequência de etapas
que levam do índio tribal ao integrado (de-
limitadas no tempo da colónia e detalha-
das pelo SPI), os critérios que definem a
condição de isolado em oposição à de gru-
po em contatoo hoje particularmente
confusos. Mas a ideia de passagem de um
estágio para o outro constitui uma baliza
fundamental, a partir da qual se constrói.
em cada época e até agora, o conceito de
isolado. Fora desta trajetóriao haveria
isolados, nem justificativas para uma polí-
tica de proteção.
Antes de discutir, à luz de alguns exem-
plos, a ambiguidade das delimitações que
cercam os grupos indígenas em seu cami-
nho para o convívio interétnico, é neces-
sária uma rápida revisão do conceito de
isolamento.
O isolamento enquanto opção
Praticamente todos os grupos indíge-
nas que vivem hoje independentes da re-
lação de dominação que nossa sociedade
lhes reserva,o apenas mantêm, mas re-
constroem continuamente sua posição de
isolamento. Posição esta que, quase sem-
pre, resulta de experiências anteriores de
contato, direto ou indireto: a atitude arre-
dia é reativa ao contato. Essas situações de-
vem, por conseguinte, ser analisadas à luz
de múltiplos fatores - internos e externos
- que podem explicar a opção pelo isola-
mento: a história própria do grupo e de
suas relações com outros povos indígenas,
a história das frentes de ocupação e os con-
dicionantes geográficos que. de modo ar-
ticulado ou não, garantiram a continuida-
de desta situação.
E difícil sustentar, em termos etno-
-históricos ou etnológicos, que os índios
isolados "se mantiveram isolados da socie-
dade nacional desde a época do descobri-
mento até os nossos dias" e que represen-
tam as "últimas sociedades humanas que
ficaram à margem de todas as transforma-
ções ocorridas na face da terra". Este ar-
gumento só se justifica em termos políti-
cos, pela necessidade de uma intervenção
protecionista sobre a sua condição de
"marginalizados da sociedade, inclusive da
assistência governamental"
3
.
A ambiguidade dos preconceitos asso-
ciados à situação de isolamento e sua pe-
renidade no discurso protecionista - oficial
ouo - merece alguns comentários. Se
"a ideia de isolamento deve ser usada com
cautela em qualquer hipótese" (Carneiro
da Cunha, 1992) sua relativização pode ser
abordada de vários ângulos, que dizem res-
peito a diferentes níveis de isolamento: his-
tórico. cultural e sócio-político.
O isolamento enquanto dinâmi-
ca histórica e cultural
Os relatos de índios recém-contactados
sobre mortes decorrentes de doenças epi-
démicas, antes desconhecidas, assim co-
mo suas estratégias para obter utensílios,
que os levam, efetivamente, a se aproxi-
mar dos brancos, confirmam quanto é fa-
Grupo de mulheres
e crianças no páteo
da aldeia Enawenê-
Nawê. no Rio Iquê.
Foto Egon
Heck/CIMI.
O isolamento enquanto depen-
dência e marginalização
A ilusão do primitivismo que vigora em
nosso imaginário condena essas socieda-
des a uma eterna mas frágil "infância" (Car-
neiro da Cunha, 1992). E através de um
embasamento em noções evolucionistas
como estas que se constrói, historicamen-
te e até hoje, a intervenção protecionista.
A noção de fragilidade que resulta das pré-
-concepções de isolamento acima mencio-
nadas redundam na definição da catego-
ria de isolados em termos de
marginalidade. Esses grupos são, efetiva-
mente, alheios às diretrizes que orientam
as relações sociais, económicas e políticas
da sociedade nacional. Sua autonomia,
transfigurada em marginalidade, é o argu-
mento mestre da política de proteção, e sua
manutenção necessária à sustentação de
intervenções autoritárias, realizadas "em
nome da proteção e segurança" dos po-
vos isolados
5
.
A maioria dos setores que lidam com
a questão indígena, e o lema de todas as,
campanhas pro-índio, continuam enfatizan-
do que o "problema indígena é fundamen-
talmente político e económico". Problema
para quem? Os índios sempre foram e con-
tinuam sendo vistos como um estorvo pa-
ra a integração económica e política do
país. Mas admite-se hoje a perspectiva in-
versa: o problema é o desenvolvimento de-
senfreado que atinge os redutos territoriais
indígenas através de frentes de contatoo
controladas e que esses grupos minoritá-
riosom capacidade para enfrentar so-
zinhos.
É importante ressaltar, neste ponto, a
dificuldade de se pensar uma política pa-
ra os povos indígenas isolados sem medi-
das autoritárias de protecionismo - espe-
cialmente no que diz respeito aos seus
direitos territoriais - uma vez que esta for-
ma de atuação se coloca como o principal
anteparo à destruição, experimentada por
inúmeros grupos indígenas que desapare-
ceram do mapa. Mas é preciso ter claro que
tal anteparo pressupõe relações de domi-
nação que se fundamentam em concep-
ções de história e evolução cultural unili-
near, antropologicamente equivocadas,
mesmo que preeminentes na forma como
nossa sociedade trata o índio
6
.
Hoje, a política indigenista oficial opta
pela segunda definição do "problema",
colocando-se ao lado dos índios para
defendê-los dos abusos da política desen-
volvimentista - que por sua vez, também
se apoia na fragilidade da cultura indíge-
na para propor sua rápida assimilação.
Mesmo que tenha mudado a perspectiva
de onde se aborda o "problema", a ques-
o indígena continua apoiada num con-
ceito de marginalidade diretamente relacio-
nado às miragens do isolamento histórico
e cultural acima mencionadas. Se existe,
de fato, uma mudança na construção teó-
rica do ideário indigenista, a persistência
de conceitos como estes gera impasses na
condução e nos limites da proteção, espe-
cialmente quando voltada para os grupos
isolados.
Ambiguidades do prote-
cionismo
A intenção de "proteger e conservar"
a autonomia dos grupos isolados surge no
bojo das reivindicações de autodetermina-
ção expressadas pelo movimento indíge-
na e passa, recentemente, a ser adotada
enquanto obrigação do estado. A contra-
dição básica desta formulação - que con-
diciona a autonomia à proteção - reitera
a persistência instrumental de conceitos
evolucionistas. A autonomia dos isolados
acaba reduzida conceitualmente à margi-
nalidade, que exige proteção (pois os iso-
ladoso posicionados num gradiente evo-
lutivo) e conservação (dada a fragilidade
de sua cultura).
O descompasso entre a origem desta
ideologia - construída a partir da crítica às
ações integracionistas implementadas pe-
lo Estado - e sua aplicação - monopoliza-
da por setores governamentais ou por ins-
tituições autorizadas, especialmente as
missões religiosas -, importante de ser con-
siderada e foi amplamente estudada
8
. Por
outro lado, os etnólogosm analisado -
na introdução de suas etnografias e em al-
guns trabalhos específicos - os impasses da
prática protecionista em casos
particulares
9
.
Sem pretender abordar a questão de
modo exaustivo, é significativo ilustrar o im-
passe através de alguns exemplos. Reto-
mo aqui o fio proposto no início do texto,
segundo o qual as contradições do prote-
cionismo seriam melhor esclarecidas no
prisma da "passagem" da condição de iso-
lado à de povo em contato, que na pers-
pectiva do primeiro contato (ou da pacifi-
cação), dificilmente identificável. O que se
costuma considerar como o ponto zero da
história das relações interétnicas - a pacifi-
cação realizada por uma agência oficial -
é, na perspectiva indígena, apenas uma
etapa numa trajetória muito mais comple-
xa e constantemente reelaborada em suas
representações sobre o contato
10
.
Conteúdo pragmático da
proteção
Um primeiro aspecto diz respeito ao
conteúdo específico dos programas volta-
dos para a proteção dos índios isolados e
sua transfiguração quando se tornam me-
didas assistenciais para povos em contato.
Há algum tempo, costuma-se planejar a
preservação da autonomia indígena em
torno de três poios: garantir a sobrevivên-
cia territorial, física e socio-cultural.o
concebidas como medidas preventivas: in-
terditar a área territorial, controlar epide-
mias de malária e gripe, campanhas de va-
cinação,o prioridades absolutas no
planejamento da assistência aos grupos
recém-cóntactados. No que diz respeito à
terra, procura-se intervir imediatamente
após o contato ou, idealmente, antes,o
logo o grupo isolado tenha sido localiza-
do. É inquestionável que a sobrevivência
sócio-cultural dos grupos isolados e recém-
-contactados depende essencialmente da
manutenção equilibrada dos dois níveis an-
teriores. Razão pela qual, a proteção terri-
torial e físicao programadas a partir de
princípios a priori, que dispensam a parti-
cipação dos índios. Em função desta prio-
ridade, e do caráter emergencial da atua-
ção,o se planifica a proteção da
autonomia sócio-cultural propriamente di-
ta, ao ser através de recomendações ge-
néricas, relativas ao "respeito" à cultura.
A interpretação do que se deve respei-
tar, ou não, fica a critério dos agentes, de-
pendendo portanto de sua sensibilidade,
experiência e capacidade de resistência ao
assédio dos índios. Assim, atualmente, nos
postos de atração, aceita-se a distribuição
de machados, terçados, anzóis e linhas,
maso de lanternas, isqueiros ou lonas;
panela de alumínio ou miçanga de vidro
podem ser distribuídos, mas com ressalvas,
pois se admite que, ao adquirir esses arte-
fatos, os índios deixarão de confeccionar
seus artefatos tradicionais. Os critérios ado-
tados como medidas preventivas para evi-
tar o choque cultural relacionam-se basi-
camente ao cálculo das dependências e
das perdas culturais. Podem mudar: a dis-
tribuição de roupas, anteso simbólica
quanto a de ferramentas, foi hoje totalmen-
te abolida.o pequenas mudanças que
o alteram o conteúdo da relação prote-
cionista. Na prática, a seleção de traços a
serem preservados se apoia em critérios va-
gos e aleatórios.o leva em conta a se-
quência de impactos que - inevitavelmen-
te - a introdução de qualquer informação
ou técnica nova irá provocar. Assim, para
citar apenas um elemento, passar da pes-
ca com timbó nas cabeceiras dos igarapés
à técnica da linha com anzol, exige readap-
tações profundaso apenas no gestual,
na divisão de trabalho, etc... mas sobretu-
do na seleção de áreas propícias para esta
forma de pesca: altera portanto a relação
do grupo com seu território
11
. Mas anzol
"pode", já que se acredita que a difusão
desta técnica representa uma melhoria ime-
diata na aquisição de proteínas. Aplicação
de terapias químicas pesadas também "po-
de", apesar dos impactoso apenas bio-
físicos mas sociológicos e sobretudo sim-
bólicos que nossa prática médica
provoca
12
. Para salvar os que são, na vi-
o comum, sub-niitridos e doentios,o
há tempo para avaliar os choques culturais.
Confronto de estratégias: a po-
lítica do contato
Um segundo aspecto a ser considera-
do diz respeito ao confrontoo apenas
cultural mas político entre atuação prote-
cionista e estratégia indígena. As medidas
de proteção à inocência e fragilidade dos
isolados escamoteiam o importante nível
da política do contato, levada à frente tan-
to pelos agentes de contato quanto pelos
índios recém-contactados. No cotidiano de
sua atuação, a maior parte dos agentes de
contatoo toma consciência de estar pro-
movendo relações de dominação. Os ín-
dios, quanto a eles, tem plena consciên-
cia destas relações e se prestam, através de
estratégias diversas, ao jogo da submissão.
Sua insistência em pedir, ou tomar, os bens
que lheso oferecidos à conta-gotas - ati-
tude sovina expressamente desprezada -
o significa que incorporem as relações
de subordinação implícitas nessas distribui-
ções. Razão pela qualo aceitam os cri-
térios que presidem à escolha dos objetos
ofertados. Na região do Cuminapanema,
norte do Pará, os índios Zoe consideram
os brancos como "doadores de algodão",
uma categoria construída em função de
suas primeiras experiências de contato. Há
várias décadas, eles obtêm episodicamente
peças de roupa queo desfiadas para reu-
tilização no trançado de tipóias, de redes
e nas amarrações de flechas. Encontrados
em 1987 pela Missão Novas Tribos, foram
agraciados durante algum tempo por far-
ta distribuição de roupas, utilizadas como
vestes ou desfiadas. Bruscamente, os mis-
sionários deixaram de distribuí-las, por es-
tarem preocupados com as críticas que a
Funai faria à sua atuação "aculturativa".
Efetivamente, os agentes da Funai que
substituíram os missionários recolheram o
máximo de roupas que puderam encon-
trar nas casas. Os Zoe têm, como única al-
ternativa, furtar panos que usam como ves-
te ou para as amarrações de suas flechas.
Sua lógicao é apenas utilitária, mas po-
lítica:, usar roupa é se parecer com os bran-
cos e estabelecer, através da aparência,
uma "relação mais igualitária com eles.
Nosso imaginário cristalizou nesses úl-
timos anos um composto genérico de tra-
ços que nos parecem genuinamente "in-
dígenas". Em sua passagem do isolamento
para o contato, o índio deve continuar cor-
respondendo à imagem daquilo que se
quer preservar: protegem-se os elementos
da indianidade idealizada por nossa socie-
dade, mesmo ao preço de relações auto-
ritárias e, sempre, reducionistas
13
. Razão
pela qual recomenda-se, quando necessá-
rio, defender os índios contra eles mesmos.
o considerados inocentes, mas também
perversos. Há inúmeros exemplos de ati-
tudes tomadas nesse contexto. Assim,
recomendava-se às frentes do SPI deixar
os índios isolados "em paz" sem, no en-
tanto, deixar de fiscalizar suas relações com
As missões-de-fé e os povos isolados
Ao mesmo tempo em que a Funai man-
m um cadastro de grupos isolados, com in-
formações que devem permitir ao Estado uma
fiscalização mais ágil de seus territórios, as mis-
sões fundamentalistasm levantamentos de-
talhados dos povos "sem" espalhados em
todos os cantos do planeta. Ali estão registra-
dos dados significativos para as intervenções
que essas agências priorizam. Seus cadastros
descrevem os numerosos "povos perdidos do
Brasil", que incluem todos os queo foram
atingidos pela "revelação do evangelho". Inves-
tigam cuidadosamente a presença de grupos
isolados queo seu alvo privilegiado.
As agências fundamentalistas preferem ini-
ciar trabalhos entre povos onde nenhum ou-
tro trabalho missionário tenha sido iniciado e,
de preferência, nenhuma outra instituição es-
teja atuando. A inexistência de alternativas
e/ou de comparações garantiria maior eficácia
de seu trabalho. De acordo com esta estraté-
gia, o fato dos isoladoso terem tido uma his-
tória de confronto interétnico através da qual
poderiam ter consolidado sua auto-identidade,
tornariam esses grupos mais permeáveis às no-
vas ideias. O cartaz de propaganda da Missão
Novas Tribos (ao lado) evidencia que os isola-
dosoo vistos exatamente como povos
"virgens": praticam atos "selvagens", levados
por impulsos que denotam serem apenas "cor-
pos físicos". Segundo esta lógica, poro te-
rem tido ainda experiência espiritual, represen-
tam o campo ideal para a concretização de
todas as etapas (especialmente as iniciais, que
as missões-de-fé almejam monopolizar) da en-
genharia cultural a que elas se propõem. Gru-
pos isoladoso oporiam defesas às inovações
materiais e espirituais, que exigem a substitui-
ção dos traços considerados "negativos" por
eliminação e adaptação aos queo compatí-
veis com a civilização, tida como única, uni-
versal.
O caráter coercitivo dessa estratégia está
evidente no instrumento técnico que as mis-
sões evangélicas privilegiam: a língua. Todos
os valores alienígenas a serem introduzidoso
traduzidos na língua nativa, para serem expres-
sos e transmitidos nos termos e nos modos de
concepção indígena e, desta forma, apropria-
dos. O aparente respeito à língua e à cultura
é, na verdade, apenas uma instrumentalização
que visa a assimilação completa dos índios ao
mundo cristão/civilizado.
O cartaz ao lado pergunta: "São os selva-
gens realmente felizes? Medo, superstição, fei-
tiçaria, infanticídio... Algumas tribos enterram
vivos seus bebés acreditando serem um mau
presságio. Ide em todo o mundo e pregai o
evangelho para cada criatura" (Revista Brown
Gold - MNTB).
outros grupos indígenas, para "evitar lutas
intertribais"
14
. Atualmente, continuam de
praxe interferências que pretendem evitar
o surgimento de conflitos internos, mesmo
quando se sabe que as tensões tradicionais
entre facções políticaso avivadas pela in-
terferência da política assistencial. Entre os
Waiãpi do Amapá, por exemplo, uma-
rie de episódios dramáticos ilustram o ca-
ráter muitas vezes autoritário da atuação
preservacionista. Em 1980, após ter força-
do a convivência de dois sub-grupos que
haviam declarado repetidamente suas dis-
senções históricas e suas intenções de vin-
gança, ocorreu a morte do líder de uma
facção pelas mãos dos que haviam sido
obrigados à hospedá-lo; a medida proteti-
va foi de evacuar - para Belém - duas crian-
ças ligadas à facção atingida, por medo de
novos revides e apesar da insistência dos
Waiãpi em declarar queo iriam prosse-
guir a vingança sobre crianças que consi-
deravam suas. Anos depois, solucionou-
-se outra dissensão interna desarmando os
índios e dificultando-se, por vários meses,
a distribuição de munição. Em 1992, um
novo episódio de morte leva agentes do
posto a promover arbitrariamente - isto é,
adiantando-se a decisões que seriam to-
madas internamente - a separação de
membros da aldeia, para evitar o aumen-
to de tensões. Essas atitudes decorrem
principalmente da incompreensão da-
gica da política indígena, mas também de
Uma suspeição permanente quanto à na-
tureza da violência nessas sociedades. O
medo, concomitante às acusações de irra-
cionalidade, é habitualo apenas na re-
lação com grupos isolados e recém-
-contactados, mas prossegue-se na rotina
dos postos, onde os chefes de posto se
comportam como guardiães da integrida-
de moral e cultural indígena. Uma integri-
dade que é - na fase da convivência - posta
como inevitavelmente degradada e que, na
lógica protecionista, só os de fora, chefes
de posto, indigenistas e, em último caso,
antropólogos, seriam capazes de identifi-
car e, eventualmente, recuperar através de
intervenções preservacionistas. O que nos
leva a questionar, em outra perspectiva, o
gradiente de programas destinados incial-
mente à preservação e posteriormente à
recuperação da cultura indígena.
Proteger, por um "tempo": o
quê?
No contexto desse gradiente, é relevan-
te avaliar o tempo durante o qual é apli-
cada a proteção especial aos povos
isolados
15
. Além deo considerarem a
lógica da integração cultural e de opera-
rem recortes arbitrários no que se preten-
de conservar - como se mencionou acima
- as experiências demostram que os cui-
dados tomados parao ferir a cultura dos
grupos isoladosm curta duração. As in-
tervenções passam da lógica da proteção
à interferência, patente na tranformação de
um "posto de atração" em um "posto in-
dígena". Entre os dois tipos de atuação, a
passagem é habitualmente brusca. Os ín-
dios emancipados da condição de isolados
passam, conceitualmente, do estado de
inocência ao de povos inferiorizados pelo
contato; a situação de dominação
manifesta-se nas múltiplas formas dirigidas
de auxílio, que pretendem a recuperação
de sua autonomia.
Esta transfiguração pode ser ilustrada,
mais uma vez, pelas implicações subjacen-
tes à distribuição de bens. Na fase de pri-
meiros encontros, a oferta de bens dese-
jados pelos índios visa apaziguar a eventual
agressividade dos isolados. A aceitação e
a troca de artefatos por parte dos índios,
representou, historicamente, um marco da
conquista. No passado,o muito remo-
to, os "pacificadores" recolhiam sobretudo
armas (ou seja, desarmavam os índios) que
eram encaminhadas aos museus, cujos
acervos evidenciam hoje a desproporção
desse tipo de artefatos em relação a ou-
tros objetos da cultura material indígena.
Atualmente, os propósitos da distribuição
de bens mudaram, mas a manipulação de
presentes para atração continua um ele-
mento central nas técnicas dos "primeiros
contatos". Admitindo-se que a maioria dos
grupos isoladoso só tem conhecimen-
to da tecnologia dos brancos, como se
aproximam deles para obter tais objetos,
sua distribuição se transforma rapidamen-
te numa relação de poder. O gesto se trans-
forma num meio de obtero apenas do-
cilidade, mas sobretudo criar relações
privilegiadas com determinados segmen-
tos ou indivíduos do grupo. A competição
entre agências de contato exerce-se habi-
tualmente através dessas relações. Quan-
do o gesto, de momentâneo ou ocasional,
se transforma numa política de relaciona-
mento - operando seleções definidas pe-
los agentes de contato - ele acaba por afe-
tar diretamente o sistema de relações
sociais e políticas internas da sociedade
indígena
16
.
Na rotina dos postos, as cautelas incial-
mente observadas no que se refere à pre-
servação cultural tornam-se rapidamente
obsoletas. Uma vez instaurada a depen-
dência dos índios em relação aos bens que
os atraíram para os postos, passa-se a jus-
tificar a necessidade da introdução de uten-
sílios, de cultivares agrícolas, etc... como
meio de suprir a pobreza da tecnologia in-
dígena. Visão esta que ressurge com toda
força, logo terminada a fase de encanta-
mento do recém-contato. Esse desencan-
tamento seria, afinal, o marco a partir do
qual os isoladoso promovidos, passan-
do da infância à idade adulta, do paraíso
à pobreza, que precisa ser aliviada.
Os exemplos acima - que representam
apenas alguns aspectos mais evidentes de
um conjunto de relações muito mais com-
plexas - nos trazem de volta à questão ini-
cial: por que um marco entre a situação de
isolamento e de contato? Quais as impli-
cações desta passagem se a posição de iso-
lado é, por definição, transitória? Qual o
objetivo da proteção se, na prática, as re-
lações políticas implantadas no contato cris-
talizam a dependência dos povos que se
apresentam, inicialmente a nossos olhos,
como povos autónomos?
Um bom exemplo para refletir sobre as
contradições do protecionismo é a prática
- persistente inclusive na atual política in-
digenista - de repassar as obrigações assis-
tenciais do Estado às missões evangélicas,
que atualmenteo pletora
17
e continuam
manipulando seu objetivo fundamentalis-
ta com uma face científica (linguistas, ecó-
logos e etnólogos) ou assistencial (dispõem
Nas idas e vindas
entre as aldeias e os
postos de
assistência, obtêm-se
objetos como os
que a índia Terã
conseguiu: terçados.
espelho, latas
usadas como
recipientes. Base
Cuminapanema,
1990. Foto
Dominique Gallois.
de recursos e de quadros com quem a Fu-
naio consegue competir). Houve uma
mudança nas últimas gestões da Funai,
que proibiu a atuação de missões-de-fé em
áreas de índios isolados. O órgão indige-
nista oficial as considera agora "desquali-
ficadas" para garantir a esses grupos con-
dições de manterem sua autonomia:
repudia-se oficialmente as interferências
deculturativas que os fundamentalistas pro-
movem,o apenas através do proselitis-
mo religioso, mas em todos os níveis da vi-
da social, económica e política dos grupos
indígenas.
Ora, se as missões-de-féo desqua-
lificadas nesta fase, porqueo o seriam
numa fase posterior ao contato? Observa-
-se, porém, que nesta altura, sua atuação
o só é permitida, como referenciada pe-
los próprios agentes do órgão protecionista:
conta-se com sua dedicação para tomar
conta de índios marginalizados, em casos
espinhosos (por exemplo: dois índios Tu-
pi isolados em difícil situação de convivên-
cia com outros povos foram entregues aos
cuidados de um missionário da MNTB);
conta-se com eles enquanto microscopis-
tas ou enfermeiros (porque a Funaio
consegue contratar ou formar especialis-
tas em seus quadros), ou como mecâni-
cos, ou motoristas, ou professores. Os téc-
nicos regionais de educação da Funai -
quandoo produzem métodos ou mate-
riais alternativos ao modelo de alfabetiza-
ção "bicultural" implantado pelas missões-
-de-fé -o só permitem como divulgam
o método das missões, que consideram
adequado ao ensino nas escolas de aldeia,
por comodismo ou ignorância, sem ter as
condições de avaliar os pressupostos e os
efeitos deste método. Tudo isto, é claro, tem
seu preço, pago pelos índios.
Voltamos, enfim, ao ponto de partida:
o existe, no quadro da política indige-
nista oficial, uma programação capaz de
dar conteúdo à proposta de "preservar a
autonomia" indígena, em termos sócio-
-políticos e culturais. Razão pela qual, em
última instância, política governamental e
fundamentalista se apoiam mutuamente,
ao sabor das conveniências. Terminada a
fase de isolamento, o índio é apenas um
marginalizado que deve rapidamente ser
reconduzido à aparência do "índio" que
nossa sociedade idealiza. E para isso, as
missões evangélicaso altamente quali-
ficadas.
De arredios a isolados, de puros a acuí-
turados, os índioso submetidos a atitu-
des protecionistas que se transfiguram ra-
pidamente em intervenções reeducativas.
As concepções relativas a fragilidade de sua
cultura e à sua marginalidade política orien-
tam uma sequência de intervenções cujo
objetivo, antes, era abertamente "civiliza-
dor" e visava eliminar por completo as ca-
racterísticas do ser indígena. Agora, as in-
tervenções almejam a manutenção de
características idealizadas do ser índio
18
.
Quando necessário, pretende-se inclusive
reensinar-lhes suas tradições perdidas.
Mesmo que o conteúdo do ensinamento
tenha mudado, esse relacionamento con-
tinua embasado no pressuposto da "capa-
cidade de perfectibilidade e civilização das
populações indígenas" (Lima, 1992:81).
Hoje, como ontem, o Estado arroga-
-se o monopólio (mesmo queo consi-
ga mantê-lo) na condução da passagem do
isolamento ao convívio interétnico. Uma
vez concluída a transição - num momento
que também cabe ao Estado definir - ou-
tras agênciaso autorizadas a prosseguir
o trabalho. Mas, na maioria das vezes, ter-
minada a pacificação, larga-se esses gru-
pos à própria sorte, deixando-os no esque-
cimento. Poderão ressurgir na figura de
grupos que lutam por sua sobrevivência,
por suas terras. A estes, oferece-se inter-
venções totalmente contraditórias com a
orientação da fase anterior, de preserva-
ção cultural. A garantia do território, "in-
terditado" no momento do contato, leva
anos para sair desta precária situação jurí-
dica; os projetos económicos, genéricos e
inadequados tanto à realidade sócio-
-política quanto às características ecológi-
cas das diferentes áreas ocupadas pelos po-
vos indígenas, visam apenas aliviar as li-
mitações da subsistência comprometida pe-
la sedentarização e pelas perdas territoriais;
os programas de educação e saúde perdem
especificidade quando repassados ao con-
trole de agências municipais ou estaduais,
ou aos cuidados de missões religiosas. O
que, então, se protege "por um tempo"?
Sair do isolamento: uma políti-
ca de informação
Ao questionar o conteúdo da atuação
protecionista destinada aos grupos isola-
dos, procurou-se evidenciar a necessida-
de de transformações consistentes que per-
mitam concretizar os objetivos
recentemente determinados pela atual po-
lítica indigenista em favor dos povos isola-
dos. O intuito foi essencialmente esboçar
a complexidade da questão, mencionan-
do alguns aspectos de uma problemática
que deve ser ampliada, num debate que
acreditamos ser urgente, e para o qual di-
versos setores devem contribuir.
O respeito à autodeterminação vem
sendo reivindicado há muito tempo por re-
presentantes indígenas, em nível interna-
cional ou nacional, mas também local. Esse
direito fundamental à autonomia, que gru-
pos em contato há séculos reconquistam
a duras penas, deve ser garantido - como
propõem as diretrizes da Departamento de
índios Isolados/Funai - já no momento da
instalação do relacionamento, mesmo que
limitado, com agentes protecionistas. Mas
o diz respeito exclusivamente à política
"para os isolados": deve ter continuidade
nas etapas subsequentes do convívio inter-
-étnico.
Os exemplos acima citados evidenciam
que, tradicionalmente, o protecionismoo
só não garante autonomia, como cria con-
dições para seu esfacelamento. Esta forma
de controle monopoliza um intervalo de
tempo durante o qual, na maioria dos ca-
sos, apenas se consolidam relações de de-
pendência em relação às agências oficiais.
O fortalecimento da autonomia dos povos
indígenas - recém-contactados ou em con-
tato -o brotará do intervalo preservacio-
nista que, na prática, elimina a possibilida-
de de conhecer, e comparar, outras formas
de convívio.
A garantia da autonomia indígena de-
penderia, portanto, da capacidade da po-
lítica protecionista em abrir, aos grupos iso-
lados, a realidade diversificada do mundo
de fora. Neste processo, obviamente gra-
dativo e controlado, é mais importante ga-
rantir um espaço de relacionamento que
um tempo de resguardo. Como vimos, este
é pura máscara. Controlaro quer dizer
fechar. Para sair do isolamento, e da situa-
ção de marginalização, é importante ter
acesso ao diálogo com múltiplos agentes,
múltiplas situações, que favoreçam a refle-
o indígena sobre sua posição no jogo de
poder das relações interétnicas
19
. A con-
dução autónoma dessas relações exigindo
compreensão, por parte dos grupos isola-
dos, de alternativas disponíveis, o que de-
pende, enfim, de uma política de in-
formação.
A condução autónoma da relação in-
terétnica seria favorecida através de um re-
passe mais eficaz de informações abran-
gentes sobre a existência e a situação de
outros povos indígenas, sobre segmentos
diferenciados da sociedade nacional, etc...
o seria inviável controlar os impactos de-
correntes da absorção de tais informações
pelo grupo isolado, se fossem introduzidas
em acordo com suas características cultu-
rais, situacionais e sobretudo, em conso-
Jurusi "escreve" no
caderno da
antropóloga, para
lhe explicar
diferentes tipos de
plantas cultivadas,
numa forma que
considera
compreensível e
significativa para os
brancos. Base
Cuminapanema,
1990. Foto
Dominique Gallois.
nância com suas expectativas. O planeja-
mento de informações a serem repassadas
aos grupos recém-contactados exige for-
mas didáticas específicas à cada situação,
antecipando e revendo os programas mais
genéricos queo implantados em fases
posteriores. E importante ressaltar, entre-
tanto, que a seleção e adaptação de tais
informações só pode ser realizada plena-
mente pelo próprio grupo indígena, que
as utilizará de acordo com suas necessida-
des, que evoluem em função das altera-
ções da situação de contato. Aos agentes
de contato, cabe apenas promover esta
abertura
20
.
Esta forma de atuação implica, aparen-
temente, numa imersão no mundo dos
brancos, na medida em que promove a
adaptação e a instrumentalização dos ín-
dios com técnicas e saberes novos. Em fun-
ção disto, tal orientação confronta-se ha-
bitualmente com o ideário preservacionista,
cujos critérios de "respeito" à cultura ques-
tionamos acima. Assim, os programas de
educação que o senso-comum considera
"adaptados"o normalmente os que en-
fatizam o uso exclusivo da língua mater-
na, considerada a única capaz de preser-
var a cultura indígena. Na área de saúde,
programas preservacionistas preconizam o
uso de plantas medicinais ou a integração
dos pajés nas curas. As comunidades in-
dígenas, quanto a elas, reivindicam melho-
rias na qualidade dos serviços de saúde e
de ensino. Os índioso esperam dos
brancos que lhes reensinem suas tradições,
mas querem dominar o português, a ma-
temática e outras técnicas habitualmente
monopolizadas pelos brancos.o se ilu-
dem com as concessões feitas a seus sa-
beres tradicionais quandoo relegados à
condição de enfeites culturais e quando se
acompanham de evidente ineficácia no
combate às epidemias.
Para sair do isolamento, é necessário
criar condições para que o grupo recém-
-contactado possa refletir e reelaborar os
parâmetros de sua própria identidade. Ou
seja, permitir ao grupo construir, através
de arranjos conceituais e organizacionais
próprios à sua cultura, formas de relacio-
namento com diversos segmentos da so-
ciedade nacional, através do qual eleo
só poderá resguardar, mas reforçar uma es-
tratégia de convívio que garanta a preser-
vação - por ele controlada - de sua dife-
rença étnica e cultural.
A antropologia dos movimentos étni-
cos evidenciou que a forma mais eficiente
de fortalecer a autonomia de um grupo é
permitir que se reconheça - demarcando-
-se dos outros - numa identidade coletiva.
Fortalecimento este que consiste num pro-
cesso dinâmico, num trabalho de adapta-
ção constante, queo é nem contagioso
nem hereditário. Razão pela qual constata-
-se em várias partes do mundo que a iden-
tidade culturalo desaparece ao contato
com modos de ser e pensar diferenciados.
Ao contrário. A identidade morre nos es-
paços fechados, que limitam a reflexão
comparativa, queo propiciam a praxis
contrastiva, ou que refletem apenas um es-
pelhamento com agentes transfigurados
em protetores de uma cultura dita tradicio-
nal, idealizada e imobilizada no tempo. A
cultura - queo é feita apenas de tradi-
ções - só se mantém enquanto movimen-
to, devendo ser constantemente recon-
firmada.
Notas
1. Como mostra Souza Lima, esta categoria rela
cional é construída a partir de três criférios básicos,
de distância social, forma de integração com o civi-
lizado e relação com o espaço, operados na pers-
pectiva da sociedade nacional. Nesta perspectiva,
a categoria de isolado pode assim ser aproximada
conceitulmente do contraste histórico entre manso
(ou domesticado) e bravio (ou hostil) (1992: 83-85).
2. cfr. Programa Artíndia, que se propõe instrumen-
talizar esta mediação (grifos nossos): "Os trabalhos
de atração de grupos indígenas arredios e isolados
encontram na "troca de objetos" o recurso que for-
maliza o contato pacifico entre índios e membros de
nossa sociedade. Há mais de 20 anos, as equipes
de atração da Funai encaminhavam ao Museu do
índio os artesanatos oferecidos pelos indígenas. Do
acúmulo de peças que ali chegavam surgiu a id£ia
de criar um mecanismo que servisse, ao mesmo
tempo, para promover, resgatar, fortalecer, divulgar
as manifestações artísticas das sociedades indígenas
brasileiras e garantir-lhes alternativa de renda" (Fo-
lheto Artíndia / Funai, s/d).
3. cfr. Documento CH/Funai, 09/89.
4. Ver o estudo de Farage sobre a imbricação das
relações intertribais e interétnicas no rio Branco
(1991).
5. Intervenções estas que o Estado tem o monopó-
lio de exercer, desde a época do SPI: "a pacifica-
çãoo é o primeiro contato... é o momento do de-
sempenho de atos heróicos, da legitimação do SPI,
que só ele poderia realizar , tornando seus possí-
veis concorrentes incapacitados para o trabalho com
populações indígenas" (Lima, 1992:115).
6. Em manchete no Jornal do Brasil no Dia do ín-
dio de 1986, Memelia Moreira escreve: "índio quer
ser respeitado" e pergunta: "o que esperam os ar-
redios?" Como indica a jornalista, "os arredioso
ocupam as manchetes, desconhecemos as denomi-
nações dos grupos e só sabemos da existência de-
les quando acontece o encontro casual com serin-
gueiros, caçadores de pele e outros exploradores.
Eles desconhecem os caminhos de Brasília, jamais
ouviram falar da Funai eo podem vir reivindicar
seus direitos ou pedir dinheiro". Hoje, por força da
política de proteção que setores governamentais e
pro-índio assumiram, a situação mudou: os arredios
são, sim, manchete de jornais. Na maioria dos ca-
sos, porém, só aparecem como pano de fundo nas
notícias que anunciam seu "contato" por parte de
uma frente da Funai. Tornam-se notícia porque en-
tram, pelas mãos da Funai, na história. Depois, de-
saparecem do noticário. Só voltarão ao cenário
quando forem noticiadas consequências de epide-
mias, invasão de suas terras, ou mais tarde, quan-
do tiverem, como fizeram os Kaiapó, encontrado ca-
minhos próprios para "pedir dinheiro", através de
acordos construídos, sem a mediação protecionis-
ta, com seus vizinhos regionais. O caminho de sua
entrada na história seria, como afirma o cliché da
revista Manchete a respeito do contato com os iso-
lados do Cuminapanema, "o crepúsculo de uma
raça"?.
7. cfr. o atual programa da Funai para os isolados
(grifos nossos): "A Funai, respaldada na Constitui-
ção Federal de 1988, está seguindo uma política
orientada para a autonomia desses povos, rejeitan-
do qualquer tipo de iniciativa integracionista. As-
sim, ao contrário da visão difundida até pouco tem-
po, os grupos isoladosoo aqueles que
obrigatoriamente devam ser "atraídos" ou "conta-
tados" para pacificamente serem incorporados à so-
ciedade brasileira" (Brasil Indígena, 1992).
8. Ver, entre outros: DRibeiro (1970), Carneiro da
Cunha (1992), Lima (1992).
9. Ver, entre outros: Oliveira (1988) e Baines (1991).
10. Ver a análise dos discursos políticos e de narra-
tivas mítico-históricas através das quais os Waiãpi
reelaboram suas experiências de convivência com
os brancos, construindo uma nova auto-
-representação (Gallois, 1992).
11. Ver a análise de Métraux (1959) sobre os im-
pactos da introdução de ferramentas entre os Xok-
leng, construída na perspectiva funcionalista, parti-
cularmente adequada à leitura que os agentes de
assistência fazem da aquisição de dependências de-
correntes da introdução de técnicas novas.
12. Ver análise de Buchillet (1991) sobre os impac-
tos e as adaptações simbólicas e sócio-políticas re-
sultantes da introdução de novas técnicas de saúde.
13. Ver análise de Andrade e Viveiros de Castro so-
bre a concepção de "povos naturais" que assimila
as sociedades indígenas ao seu ambiente, despoliti-
zando a relação de contato (1988).
14. cfr.DRibeiro: "os grupos isolados ou arredios,
queo estão em contato com civilizados e queo
correm o risco de ser alcançados pela expansão de
nossa sociedade, nos próximos anos, devem ser dei-
xados em paz, apenas assistidos por turmas de vi-
gilância, com o objetivo de evitar lutas intertribais
(1962: 161 - grifos nossos).
15. cfr. Documento CII/Funai: "Não se pretende
mantê-los em redomas para o deleite de quem quer
que seja, mas propiciar ao índio tempo, fator fun-
damental no processo de aculturação" (09/89 - gri-
fos nossos).
16. Ver análise de Lizot (1984) sobre os impactos
da introdução de nova tecnologia entre os Yanoma-
mi e a instauração de novas relações económicas
que acabam transformando o sistema de relações
sociais internas àquela sociedade.
17. A atual gestão da Funai pretende efetuar uma
revisão dos convénios existentes com missões-de-
-fé, entre as quais as mais ativas são: o Summer Ins-
titute of Linguistics (SIL). a Associação Linguística
Evangélica Misssionária (ALEM), a Missão Novas Tri-
bos do Brasil (MNTB), a Missão Evangélica da Ama-
zónia (MEVA), a Missão Cristã Evangélica do Brasil
(MICEB), a Convenção Batista Nacional, que atuam
em cerca de 100 aldeias indígenas (APL/Funai,
Convénios, 1988).
18. Esta transfiguração foi durante muito tempo ca-
racterística das intervenções da Igreja: é o caso da
atuação dos Salesianos, no rio Rio Negro ou entre
os Bororó (ver a análise de Novaes sobre essas re-
lações, no início do século e hoje, 1990). Atualmen-
te, é muito nítida também nos programas estatais
de proteção, educação e recuperação da cultura in-
dígena promovidos pela Funai.
19. cfr. Documento final do "Encontro sobre índios
isolados e de contato recente" promovido pelo CI-
MI/ORAN em 1986: "Precisa criar condições para
que o grupo indígena (isolado) conheça a realida-
de regional em que está inscrito, ajudando a divisar
os aspectos mais amplos da realidade nacional, con-
siderando estes conhecimentos como subsídios in-
dispensáveis para um projeto de autonomia frente
à sociedade nacional. Tal postura supõe a promo-
ção de acesso e intercâmbio do grupo indígena com
outros agentes regionais, de maneira a estimular no
vos e diferentes graus de identidade étnica. No mes-
mo sentido, seria válido promover contatos com ou-
tros grupos indígenas vizinhos, possibilitando sua
articulação e organização própria".
20. Uma opção interessante consiste em possibili-
tar o repasse de informações aos índios recém-
-contactados através do diálogo com outros grupos
indígenas. As visitas de representantes de outros po-
vos, ou a apresentação de imagens em vídeo (cfr.
Programa Vídeo nas Aldeias / CTI, Carelli, 1986)
permitem introduzir informações culturalmente sig-
nificativas, relativas à diversidade dos brancos, am-
pliando as experiências restritas e localizadas de cada
grupo. Note-se, porém, que estas alternativaso
radicalmente diferentes das soluções tradicionalmen-
te adotadas pela Funai, que engaja índios intérpre-
tes nas equipes de contato, onde atuam ao lado dos
sertanistas, numa posição dependente frente a es-
ses, e de dominação frente aos isolados (cfr. Bai-
nes, 1991).
Bibliografia
Andrade, L. & Viveiros de Castro, E. - 1988 - Hi-
drelétricas do Xingu: o Estado contra as Socie-
dades Indígenas - in As Hidrelétricas do Xin-
gu e os povos indígenas,o Paulo, Comissão
Pró-Indio deo Paulo.
Baines, S. -1991 - "É a Funai que sabe": a frente
de atração Waimiri-Atroari - Belém,
Col.Eduardo Galvão, Museu Pareanse
E.Goeldi.
Buchillet, D. - 1991 - "Impacto do contato sobre as
representações tradicionais da doença e seu tra-
tamento: uma introdução" - in Medicinas Tra-
dicionais e Medicina Ocidental na Amazó-
nia, Belém, Ed.Cejup.
Carelli, V - 1986 - "Vídeo e reafirmação étnica" in
Antropologia Visual, Rio de Janeiro, Museu
do Indio/Funai.
Carneiro da Cunha, M.L. - 1986 - "Etnicidade: da
cultura residual mas irredutível" in Antropolo-
gia do Brasil: mito, história, etnicidade -o
Paulo, Brasiliense/EDUSP.
- 1992 - "Introdução à uma história indígena" in His-
tória dos índios no Brasil -o Paulo, FA-
PESP/SMC-SP/Cia. das Letras.
CIMI/OPAN 1986 - Documento Final: Encon-
tro sobre índios isolados e de contato recen-
te, Cuiabá.
Farage, N. - 1991 - As muralhas dos sertões: os
povos indígenas no rio Branco e a coloniza-
ção,o Paulo, Anpocs/Paz e Terra.
FUNAI/CU - 1989 - Sistema de Proteção ao ín-
dio Isolado (3 parte: indicações gerais), Brasília.
- 1989 - índios isolados: por que protegê-los ?,
Brasília.
- 1992 - Brasil Indígena. Presidência, Brasília.
Gallois, D.T - 1992 (no prelo) - "Jane ayvu kasi: dis-
curso político e auto-representação Waiãpi" in
A.Ramos e B.Albert (org.) Imagens do Bran-
co, Brasília, UNB/ORSTOM.
- 1992 - Mairi revisitada: a reintegração da for-
taleza de Macapá na tradição oral dos Waiã-
pi, NHII/USP, dat.
Gallois, D.T. & Grupioni, L.D. -1991 - "A redesco-
berta dos amáveis selvagens" - Aconteceu Es-
pecial Povos Indígenas, 1987/90,o Pau-
lo. PIB/CEDI.
Lima, AC.de Souza - 1992 - Um grande cerco de
paz: poder tutelar e indianidade no Brasil -
Tese de doutorado, Rio de Janeiro,
UFRJ/PPGAS.
Lizot, J. - 1984 - "Aspects économiques et sociaux
du changement culturel" in Les Yanomami
Centraux. Paris, Cahiers de 1'Homme, EHESS.
Métraux, A. - 1959 - "La révolution de la hache"
- Diogene n.25, jan.-mar.
Novaes, SC. - 1990 - Jogo de Espelhos: imagens
da representação de si através dos outros,
Tese dout., FFLCA/USP.o Paulo.
Moreira, M. - 19.04.1986 - "índio quer ser respei-
tado" - Jornal do Brasil, Brasília.
Oliveira F.,J.P. - 1988 - O nosso governo: os Ticu-
na e o regime tutelar -o Paulo, Marco Ze-
ro/CNPq.
Ribeiro, D. - 1962 - A política indigenista brasilei-
ra - Ministério da Agricultura, Rio de Janeiro.
1970 - Os índios e a civilização: a integração
das populações indígenas no Brasil moder-
no, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
As artes da vida do indígena brasileiro
Berta G. Ribeiro
Lewis Henry Morgan, um dos "foun-
ding fathers" da Antropologia, chamava
"Artes da Vida" as técnicas que implicam
no desenvolvimento de implementos pa-
ra o manejo de recursos naturais. E consi-
derou a tríade - cerâmica, trançado, fiação
e tecelagem - como técnicas básicas das ar-
tes da vida.
Os estudos de cultura material de po-
pulações indígenas, que marcaram época
quando a antropologia estava sediada prin-
cipalmente em museus etnográficos ou de
história natural, perderam força na medi-
da em que essa disciplina transportou-se
para as universidades. Entre as décadas de
50 e 80 registrou-se um vazio bibliográfi-
co no que tange a esses estudos. Contu-
do, a temática ligada à cultura materialo
desapareceu de todo. Entre outras razões
porque, como documentos materiais, in-
clusive iconográficos, exprimem a identi-
dade de uma cultura. Como objetos úteis
eleso consumidos. E como bens simbó-
licoso dotados de significado. Os dois
aspectos, embora possam coexistir,
colocam-se, na maioria dos casos, em po-
ios opostos (Pomian 1985:71).
No presente artigo trataremos dos ob-
jetos necessários ao provimento da subsis-
tência, isto é, dos utilitários, e daqueles su-
pérfluos à subsistência: os objetos rituais.
Ambos assumem crescente importância
para os próprios índios, como acentua D.
Gallois (1989:140): "... por um lado, por-
que muitos gruposm encontrado na ven-
da de "artesanato" uma apreciável fonte de
renda e, por outro lado, porque a manu-
tenção de uma cultura material diferencia-
da serve de marca ao movimento de re-
sistência étnica, como sinal de autonomia
a ser reconquistada".
A cerâmica
A argila é a matéria-prima básica na
confecção da cerâmica. O preparo da ar-
gila exige tempo e paciência. E pulveriza-
da, quando seca, ou trabalhada à mão,
quando úmida. A qualidade da cerâmica
depende da obtenção de um grão fino, ho-
mogéneo.
A argila é geralmente recolhida às mar-
gens ou nos leitos dos rios ou córregos. Ar-
mazenada em cestos ou folhas de palmei-
ra, é colocada em lugares frescos para
evitar o ressecamento. Depois é depurada
de impurezas - fragmentos vegetais, mine-
rais, pequenos seixos - borrifada com água,
pulverizada no pilão e amassada.
Para obter-se uma boa liga é necessá-
rio adicionar certas substâncias que neu-
tralizem a excessiva plasticidade da argila.
Tais são: 1) dentre as orgânicas - palha pi-
cada, raízes, ossos moídos, etc; 2) dentre
as inorgânicas - grãos de quartzo, mica,
feldspato, pedras calcárias, areia, etc; 3)
dentre as bio-minerais - casca queimada e
triturada de árvore rica em sílica, chama-
da cariapé Licania octandra, conchas es-
fareladas, etc. 4) cacos de cerâmica pul-
verizados. A adição desses materiais nem
sempre ocorre, uma vez que eles já se en-
contram naturalmente misturados nos de-
pósitos de argila.
A sequência operacional da modela-
gem de uma peça se inicia com o preparo
de um bloco de barro. Segue-se a super-
posição de roletes de argila em forma de
anéis em espiral.
O tratamento interno e externo da su-
perfície de uma peça de cerâmica se faz
com a ajuda de implementos simples: con-
chas, pedaços de cuias, facas ou colheres
de metal. Com essa técnica elementar, mas
que exige grande habilidade manual,
alisam-se as paredes, preparando-as para
o polimento. Este se processa com seixos
rolados, cocos ( como o da palmeira inajá
- Maximiliana regia), frutos, sementes,
conchas, etc. Entre a raspagem e o poli-
mento costuma-se ainda lixar a peça com
a folha de um arbusto (Dileniacea sp.).
Preparada a peça de cerâmica,
procede-se à queima que geralmente an-
tecede a decoração pintada. Algumas tri-
bos, como os Asuriní, escolhem com to-
Mulher Tikuna
processa alimentos
dentro de um vaso
de cerâmica. Aldeia
de Belém do
Solimões. Foto
Jussara Gruber.
do o cuidado o combustível para o fogo.
No caso citado, a bainha da folha da pal-
meira babaçu (Orbygnia phalerata). Ou-
tros grupos procuram vegetais que contém
látex, a fim de obter uma boa chama e tem-
peratura elevada. A queima é feita geral-
mente ao ar livre, isto é, em atmosfera oxi-
dante.
Na cerâmica utilitária, o acabamento
interno e externo das peças é feito com a
seiva de entrecasca de algumas árvores, ge-
ralmente do ingá (Ingá spp.). Esse trata-
mento contribui para a impermeabilização
da superfície.
Após a queima e a decoração do va-
silhame, os índios Asuriní, entre outros, vi-
trificam a peça com a aplicação de resina
vegetal. Para isso, utiliza-se o breu de jutaí
e a resina de jatobá, ambas do género
Hymenaea. Os Tukúna empregam o leite
de sorva Couma utilis.
Quanto à decoração, ensina Andrade
Lima (1986:177): "De um modo geral, os
mesmos padrões decorativoso aplicados
a diferentes suportes: pintura corporal, ces-
taria, tecelagem e cerâmica. Isto é evidente
na arte do alto Xingu, entre os Kadiwéu,
Marúbo, Asuriní e Kaxináwa, onde os mes-
mos motivos geométricos amoldam-se a
superfícies e materiais substancialmente di-
ferenciados, exigindo adaptações de ordem
técnica. Esses padrões podem revestir-se
de conteúdos simbólicos ou ter apenas sen-
tido estético".
Os trançados
A mais importante técnica manufatu-
reira propriamente dita - isto é, que utiliza
ao em atividade prênsil - é a dos tran-
çados. Nesta arte, das mais antigas que a
humanidade pratica, os índios do Brasil al-
cançaram alto grau de domínio.
O trançado indígena pode ser carac-
terizado por dois macro-estilos em função
da matéria-prima empregada e da elabo-
ração: 1) trançado feito predominantemen-
te de palha (folíolos do olho da folha no-
va da palmeira); 2) trançado feito
predominantemente de tala (material mais
rígido extraído do pecíolo da folha nova da
palmeira buriti Mauritia flexuosa, ou la-
minado da haste de gramíneas (Arundina-
ria sp.) ou de marantáceas como o arumã
(Ischosiphon aruma)
O trançado feito com fasquias de cipó,
uma ipífita, que caracteriza um terceiro es-
tilo ou um subestilo, carece, de um modo
geral, de decoração. É empregado na con-
fecção de peças mais rústicas: cestos-
-cargueiros, armadilhas de peixe e na cons-
trução das casas.
E cabível fazer-se uma correlação en-
tre estilos de trançados de alguns grupos
indígenas do Brasil e seus modos de vida.
Os grupos campestres, que vivem lon-
ge dos grandes rios - quase todos filiados
à família linguística Jê ou macro-Jê - pra-
ticam predominantemente o estilo "de pa-
lha". As tribos silvícola-ribeirinhas, provi-
das de canoas, desenvolveram, em maior
proporção, o estilo "de tala", bicromo, que
propicia a elaboração de uma infinidade de
desenhos geométricos realçados pelo claro-
-escuro das talas.
O trançado feito com fasquias de ci-
pó caracteriza o subestilo dos grupos que
vivem no interior da floresta, longe dos
grandes cursos d'água, a exemplo dos ín-
dios Makú e Yanomami.
A distinção mais elementar que cabe
fazer para classificar os trançados é
diferenciá-los, por sua estrutura, em duas
grandes classes: 1) trançados entre-
-trançados; d) trançados costurados ou es-
piralados. Uma classificação dos entretran-
Trançado sarjado
com folha nova da
Í
>almeira buriti.
ndios Jurúna,
Parque Indígena do
Xingu. Foto Fred
Ribeiro.
Detalhe de trançado
monocromo de talas
do pecfolo da folha
nova do buriti.
Cesto cargueiro dos
índios Yawalapiti.
Foto Fred Ribeiro.
çados que leve em conta o elemento móvel
- a trama - permite distinguir três proce-
dimentos capitais: entrecruzar (weaving),
entrelaçar (wraping), entretorcer (twining).
Se fôssemos estudar os trançados de
cultura popular,o indígena, talvezo
houvesse necessidade de uma classificação
e nomenclatura para defini-los. Os trança-
dos indígenas, sendo muito mais comple-
xos quanto à técnica, forma é docoração,
e prestando-se a um grande espectro de
usos, carecem de uma nomenclatura es-
pecífica que os defina e identifique. Tanto
assim é que muitas palavras de origem tu-
pi foram incorporadas ao vernáculo para
identificar objetos trançados de origem in-
dígena transmitidos aos brancos. Entre ou-
tros, podemos citar: jequi para covo ou re-
dil de pesca; patuá para estojo; tupé para
esteira; urupema para peneira; tipiti - tu-
bo flexível para extrair o ácido hidro-ciânico
da mandioca; jamaxim, jaca, panacu e atu-
ra para cesto-cargueiro; apá - uma espé-
cie de peneira mais funda na forma de
meia calota. (Cf. B.G. Ribeiro
1986:283-321, 1988:39-76).
A fiação
A transformação de matéria-prima (al-
godão, bromeliácea ou palmácea) em fio
exige grande habilidade manual. No caso
do caraguatá (Bromelia pinguin), a folha
é mergulhada na água para decompor as
matérias-primas não-fibrosas e posterior-
mente batidas, lavadas e secas ao sol. Pa-
ra libertar o linho da fibra de outra brome-
lia, o caroá (Neoglaziovia variegata), e a
do olho (prefoliação) da palmeira buriti
(Mauritia flexuosa) ou tucum (Astrocar-
yum tucuma) o procedimento é mais di-
reto: separa-se a "seda" da palha (no ca-
so da palmeira) sendo esta última usada
para o trançado ou descartada.
A torção da fibra de bromeliácea ou
palmácea para produzir o fio é feita na coxa
com a palma da mão, em movimento de
vaivém. Bastante mais complexa é a tor-
ção do algodão que exige o emprego do
fuso. O fuso compõe-se de uma vareta, on-
de é bobinado o fio depois de torcido. Es-
sa vareta é encastoada num disco que ser-
ve de volante e de peso para imprimir ao
Mulher Wayana
fiando algodão com
um fuso. Foto Lúcia
Van Velthcn.
tear portátil, próprio para executar tecidos
de pequenas dimensões, é designado tear
em U, tear em arco ou "tipo ucaiali". Nele
o executados adornos tecidos para os
braços e as pernas e as tangas de miçangas.
Apenas os grupos indígenas que tive-
ram contato com a civilização incaica, co-
mo os Omágua, e os grupos de língua Pa-
no dos afluentes do rio Ucaiali (Kaxináwa
e outros) utilizam o tear de cintura. Neste
tipo de tear. a tensão dos fios é dada pela
tecelã, que passa um cinto em torno da cin-
tura para firmá-los.
No sistema de tecelagem conhecido
como "trabalho em malha" o produto é ob-
tido com um fio enredador contínuo, de
extensão limitada, uma vez que tem de
passar dentro das malhas, guiado geral-
mente por agulha de orifício.
fuso um movimento de rotação. (Cf. B.G.
Ribeiro, 1986:283-321; 1988:41-76).
A arte de tecer
A arte do tecido alcançou entre nos-
sos índios o mesmo relevo que a do tran-
çado. a arte plumária e a cerâmica. Culti-
vando o algodão e conhecendo outras
fibras têxteis, os índios brasileiros dispu-
nham de materiais apropriados à te-
celagem.
Na classificação da produção têxtil dos
índios brasileiros distinguem-se duas gran-
des classes de técnicas básicas: 1) trabalho
em trama; 2) trabalho em malha. O tra-
balho em trama se processa com o uso de
dois fios descontínuos: urdidura e trama.
O trabalho em malha é feito com um fio
contínuo.
A técnica de tecelagem - chamada
"verdadeira" - se processa pelo entrecru-
zamento em ângulos retos de duas séries
de fios: urdidura, os passivos, e trama, os
ativos. A tecelagem verdadeira exige o uso
de uma armação - o tear - para distender
e separar convenientemente os fios da ur-
didura. E chamado, por isso, tear de
tensão.
Entre índios brasileiros encontramos,
basicamente, três tipos de tear. O primei-
ro é formado de duas barras horizontais -
as urdideiras - porque nelas é passado o
urdume, amarradas a duas traves na ver-
tical. Esse tipo de tear é conhecido na bi-
bliografia etnológica como "tear amazôni-
co ou tipo aruak". É também chamado tear
com a urdidura na vertical. Nesse tear se
produz a tecelagem entretecida (weaving),
"tecelagem verdadeira".
Um segundo tipo de tear, mais expan-
dido que o primeiro, é constituído de dois
esteios fincados no chão em torno dos
quais é passada a urdidura em sentido ho-
rizontal. E chamado por isso, tear com o
urdume na horizontal. Presta-se para con-
feccionar tecido entretorcido (twined) ou
contratorcido (countertwined).
O terceiro tipo de tear é formado por
uma vara dobrada em forma de ferradu-
ra, com as pontas amarradas a certa dis-
tância uma de outra. Nesse intervalo e na
dobra é passada o urdume. Esse tipo de
Mulheres Araweté
tecem uma rede de
algodão em tear
com o urdume na
horizontal. Foto Fred
Ribeiro.
O tecido enredado (filé) é empregado
primordialmente na confecção das redes
de pescar, nas bolsas ou sacolas e nos
sacos-cargueiros, executados com ou sem
nós. Além desses, as técnicas de tecelagem
o empregadas na confecção de redes de
dormir, tipóias para levar o filho ao colo
ou transporte de objetos, adornos de cor-
po (pulseiras, braçadeiras, jarreteiras, tor-
nozeleiras, colares, cintos), saia feminina,
tanga masculina e suporte para adornos
plumários. (Cf. B.G. Ribeiro,
1986:283-321; 1988:41-76).
Arte plumária
A arte plumária, a mais bela expressão
estética dos povos indígenas do Brasil,o
obstante a devastação das matas e a acul-
turação dos grupos plumistas. continua vi-
va para inúmeros deles.
Todas as tribos que apreciavam o va-
lor decorativo da plumagem dos pássaros
deviam atribuir-lhes algum significado sim-
bólico, além do estético. Essa mensagem
se perdeu para sempre no caso de grupos
como os Tupinambá, que deixaram de si
o testemunho de seus mantos de penas.
Os seis remanescentes pertencem a mu-
seus europeus: os de Florença, Milão, Ba-
sileia, Copenhague e Paris.
A associação de penas e plumas a tran-
çados e a tecidos lhes empresta caracterís-
ticaso peculiares que podem servir de
critério para distinguir duas famílias estilís-
ticas diversas. Um desses estilos é voltado
à suntuosidade devido à associação de pe-
nas longas e varetas e a suportes trança-
dos, conferindo a seus portadores um mag-
nífico efeito cénico. Exemplificam esse
estilo a plumária ainda hoje confecciona-
da pelos Wayana-Aparai, Bororó, Karajá,
Tapirapé e Kayapó.
Os mais altos representantes da segun-
da família estilística, cujas criações se dis-
tinguem pela flexibilidade dos adornos -
permite aplicá-los diretamente ao corpo -
o atualmente os índios Kaapor e Erikpat-
sa.o criações de dimensões diminutas,
matizes cromáticas sutis e requintes de aca-
bamento.
Estudos recentesm demonstrado
que a plumária - na sua qualidade de ob-
jeto ritual - é um veículo de mensagens.
Ou seja, uma forma de comunicação so-
cial semelhante à linguagem oral. Os as-
pectos simbólicos mais significativos - no
caso do adorno plumário - dizem respeito
a: 1) aves preferidas, seja por suas caracte-
rísticas físicas ou canoras; 2) tamanho, co-
lorido e disposição das penas no conjun-
to; 3) significado mítico-religioso dos
adornos; 4) seu caráter de prerrogativa de
linhagens e indicador de todo tipo de clas-
sificações sociais.
A arte plumária, voltada originariamen-
te ao domínio mítico-estético-ritual, à per-
sonalização do corpo - que implica num
conceito de beleza etnicamente definido -
vem perdendo sua função e sua mística na
medida em que se destina, em grande me-
dida, ao comércio externo. Esse comércio
deve ser coibido - exceto para coleções de
museus - se se deseja conservaro só a
arte plumária como a avifauna de que se
serve (Cf. Ribeiro, 1986b:189/23 S.F. Dor-
ta, 1986b:227-236).
Música e instrumentos musicais
A música e os instrumentos musicais
se relacionam a aspectos da organização
social e da cosmologia. O rito é, invaria-
velmente, um evento musical. A matéria-
prima de que é feito o instrumento e o lu-
gar do corpo em que é fixado possuem,
também, um significado que varia confor-
me a tribo e o evento musical. O fato de
determinados indivíduos tocarem música
num ou noutro espaço, para certas plateias
eo para outras, produzindo efeitos so-
noros distintos pode ser altamente signifi-
cativo para a correia interpretação de um
rito (Seeger, 1986b:174).
Os instrumentos musicais dos índios do
Brasil se enquadram no sistema classifica-
tório elaborado pelos etnólogos alemães
Erich von Hornboster e Curt Sachs e as-
sim definidos por Seeger (1986b: 174-175):
Idiofones: Instrumentos em que a subs-
tância em si. devido à sua elasticidade e
solidez, ressoa sem requerer membranas
ou cordas. Compreendem grande núme-
ro de instrumentos indígenas (chocalhos,
maracás, etc), dividindo-se em diversas
subcategorias.
Membranofones: Instrumentos em que
o som é criado através de uma membrana
Os adornos
plumários bororó se
caracterizam pelo
uso de penas
caudais de aves
montadas sobre
suportes rijos. Foto
Foerthmann
Muitos rituais
realizados pelos
Waiãpi relacionam-
-se com o tema
mítico da
especiação, quando
os homens
apreenderam dos
animais seus cantos
e seus enfeites,
reproduzidos nas
festas que celebram
até hoje esse
momento crucial do
surgimento de uma
humanidade
diferenciada.
Durante o ritual do
"jupará" um grupo
de rapazes Waiãpi
tocam flautas de
pan que foram
confeccionadas
especialmente para
esta ocasião. Foto
Dominique Gallois.
sob tensão. Trata-se, basicamente, de tam-
bores. Este grupo é pouco representativo
na América do Sul.
Cordofones: Instrumentos com uma ou
mais cordas estendidas entre pontos fixos.
Igualmente raros na música tradicional in-
dígena, com a possível exceção de arcos
musicais, cuja presença pré-colombiana foi
motivo de intenso debate.
Aerofones: Nesses instrumentos o ar é em
si o vibrador em sentido primário. Talvez
seja o grupo de maior importância simbó-
lica na América do Sul, constituindo uma
família de instrumentos que passou por
muita elaboração na sua forma de soar."
O significado das máscaras
As máscaras, no contexto mágico-
religioso, representam figuras de antepas-
sados, espíritos protetores da floresta, da
fauna e do ambiente natural. As máscaras
recolhem e exprimem as forças benignas
e malignas espalhadas no universo indíge-
na.o estátuas que, ao som da música
e ao ritmo da dança, ganham vida e mo-
vimento. Constituem, portanto, o aspecto
dinâmico dos rituais mágico-religiosos. E
através delas que se manifestam e se tor-
nam presentes os espíritos ancestrais e dos
heróis culturais. Na dança, seu portador co-
meça a representar o papel do espírito cuja
máscara ostenta, para assim transmitir sua
mensagem.
Diante da multiplicidade de caracteres
figurados, e da impossibilidade de
inventariá-los em sua totalidade, optamos,
na classificação das máscaras, por um cri-
tério morfológico, que leva em conta as
matérias-primas e, consequentemente, as
técnicas compatíveis.
Desse ponto de vista, distinguimos para
o Dicionário do Artesanato Indígena (Ri-
beiro, 1988 : 304) os seguintes macro-tipos:
"1) Máscaras trançadas, registradas entre di-
versos grupos do tronco Jê (Timbira, Ka-
índios Waiãpi
durante o ritual do
"pacuasu". Os
dançarinos usam
máscaras com
peixes
dependurados e sua
coreografia
representa a luta
entre diferentes
espécies de peixes.
Foto Dominique
Gallois.
yapó, Xerente, Xavante, índios do alto Xin-
gu, Karajá e Tapirapé). 2) Máscaras de líber
encontradas nos rios Japurá, Solimões e
no noroeste amazônico (Juri-taboca - ex-
tintos -, Tukúna, índios do alto rio Negro).
3) Máscaras tecidas (alto Xingu, alto rio Ne-
gro). 4) Máscaras com "cara" de madeira
(alto Xingu, Tukúna, Tapirapé). 5) Másca-
ras com "cara" de cabaça (alto Xingu, Ka
xináwa, Timbira). 6) Máscaras compostas
de capuz, calça e camisa (alto Xingu, Xik-
rin)."
Além dos instrumentos musicais e das
máscaras, outros objetos rituais procuram
exprimir os arquétipos do mundo sobrena-
tural revestidos dos atributos que lheo
peculiares. Taiso os objetos usados pe-
los xamãs (pajés), chefes de aldeia e per-
sonagens destacados de um rito. Todos eles
o finamente decorados e valem como
símbolos de poder, a exemplo dos bastões
de mando, dos bancos, cetros, arcos e fle-
chas cerimoniais, lanças e bordunas, o ma-
chado semilunar dos grupos, além de
inúmeros outros.
A instrumentália do pajé é difícil de ser
inventariada uma vez que se distribui por
várias categorias de artefatos e, mesmo
dentro de um único artefato, existiriam "en-
cantamentos" difíceis de definir. É o que
diz Zerries a propósito do maracá: "O con-
teúdo do maracá, que compreende diver-
sos tipos de pedrinhas, sementes, etc. for-
neceria material para toda uma dissertação"
(Zerries, 1981:333).
Posfácio
Tal como ocorre em outras esferas da
cultura, o artesanato indígena tem sido du-
ramente atingido pelo processo de acultu-
ração. Constituindo o símbolo mais visível
de etnicidade, sua perda ou descaracteri-
zação representa a quebra da afirmação tri-
bal.
Os fatores que incidem negativamen-
te sobre a produção artesanal podem ser
assim sumariados: 1) o equipamento de
ação sobre a natureza (objetos utilitários)
enfrenta a competição desleal de bens in-
dustriais(lataria, panos, plásticos) introdu-
zidos nas aldeias. Esses objetoso ado-
tados pelos índios principalmente pelo
poder e prestígio da sociedade dominan-
te. 2) A paramentália ritual é afetada pelo
preconceito que recai sobre a "pele social"
do índio: seus adornos e pintura corporal.
Desde o inicio da década de 70, o ar-
tesanato indígena passou a ser objeto de
demanda por parte do mercado turístico.
Apesar do risco de deturpação que a ati-
vidade artesanal para fora conduz em si,
ela contribui, em alguns casos, para salvar
a arte indígena de total desaparecimento.
Urge revigorar a atividade artesanal pa-
ra fora, no que se refere a artefatos profa-
nos, remunerando-a condignamente. E in-
centivar a de caráter endógeno como
forma de preservar a configuração sócio-
-cultural em sua integridade.
Bibliografia
Andrade Lima, Tânia - 1986a - "Cerâmica indíge-
na brasileira" in Ribeiro, D. (Ed.) e Ribeiro, B.G.
(Coord.), - Suma Etnológica Brasileira, vol.
2. pp. 173-229.
Dorta, Sônia Ferraro - 1986b - "Plumária Bororó"
in Ribeiro, D. (Ed.) e Ribeiro, B.G. (Coord.), -
Suma Etnológica Brasileira, vol. 2, vol. 3, pp.
227-236.
Gallois, Dominique - 1989 - "O acervo etnográfico
como centro de comunicação intercultural" in
Ciências em Museus, 1(2) pp. 137-192, Be-
lém, Museu Paraense Emílio Goeldi/CNPq.
POMIAN, Krzysztof - 1985 - "Coleção" in Enciclo-
pédia Einaudi vol. 1 - Memória-História, Por-
to, Impr. Nac. Casa da Moeda, pp. 51-86.
Ribeiro, Berta G. - 1986a - "A arte de trançar: dois
macroestilos, dois modos de vida. Glossário dos
trançados" in Ribeiro, D. (Ed.) e Ribeiro, B.G.
(Coord.), - Suma Etnológica Brasileira, vol.
2, pp. 283-321.
- 1986a - "Artes têxteis indígenas do Brasil. Glossá-
rio dos tecidos" in Ribeiro, D. (Ed.) e Ribeiro.
B.G. (Coord.), - Suma Etnológica Brasileira.
vol. 2, pp. 351-395.
- 1986b - "Bases para uma classificação dos ador-
nos plumários dos índios do Brasil" in Ribeiro,
D. (Ed.) e Ribeiro, B.G. (Coord.), - Suma Et-
nológica Brasileira, vol. 3, pp. 189-226.
-1988 - Dicionário do Artesanato Indígena, Belo
Horizonte, EDUSP/Ed. Itatiaia, 343 p.
Ribeiro, Darcy (Ed.) e Ribeiro, Berta G. (Coord.) -
1986a - Tecnologia Indígena, vol. 2 da Suma
Etnológica Brasileira, 448 p.; Arte índia, vol.
3 da Suma Etnológica Brasileira, 300 p., Pe-
trópolis, FINEP/Vozes.
Seeger, Anthony - 1986b - "Novos horizontes na clas-
sificação dos instrumentos musicais" in Ribei-
ro, D. (Ed.) e Ribeiro, B.G. (Coord.), - Suma
Etnológica Brasileira, vol. 3, pp. 173-179.
Travassos, Elizabeth - 1986b - Glossário dos instru-
mentos musicais.in Ribeiro, D. (Ed.) e Ribeiro,
B.G. (Coord.), - Suma Etnológica Brasileira,
vol. 3, pp. 180 - 187.
Zerries, Otto -1981 - "Atributos e instrumentos rituais
do xamã na América do Sulo andina e o
seu significado" in Hartmann, T e Coelho, V.P
(Org.) - Contribuições à antropologia em ho-
menagem ao prof. Egon Schaden, col. Mu-
seu Paulista, série Ensaios n. 4, pp. 319-359,
o Paulo.
Os índios e suas relações com a natureza
Isabelle Vidal Giannini
Hoje, quando o nosso predomínio so-
bre a natureza parece quase completo, sur-
gem inúmeras correntes ambientalistas dis-
postas a tornarem os olhos com nostalgia
para períodos passados, em busca de um
equilíbrio mais justo A preservação da na-
tureza tornou-se uma das maiores preocu-
pações deste fim de século.
Atualmente, de um modo geral, quan-
do nos referimos à natureza, pensamos em
"recursos naturais", "preservação do meio
ambiente", "ecologia".
As sociedades indígenas, pela sua re-
lação bastante íntima com a natureza, so-
frem entretanto, na visão do senso comum,
de um preconceito que distorce a com-
preensão da relação destas sociedades com
o seu meio ambiente. Evidencia-se sobre-
tudo o fato de estas sociedades preserva-
rem o seu meio circundante, de viverem
um eterno romance com o mundo animal
e vegetal e de serem as guardiãs dos "se-
gredos" da floresta.
Devemos lembrar que o conceito de
natureza e sociedade se exprime essencial-
mente por uma construção cultural. A ideia
de natureza é algo específico de uma da-
da sociedade, isto é, ela depende da for-
ma como uma sociedade humana recorta
o mundo natural como sendo "da nature-
za".
Na visão de mundo das sociedades in-
dígenas, o cosmos inclui tanto a socieda-
de como a natureza que interagem cons-
tantemente. Natureza e sociedade
representam uma oposição que se inter-
-relaciona através de um processo contí-
nuo de reciprocidade através de metáfo-
ras e símbolos, mitos e cerimoniais e
mesmo comportamentos dos mais cotidia-
nos como resguardos, evitação ou absten-
ção de atividades.
Neste sentido, a distinção entre natu-
reza e sociedade repousa nas diversas es-
feras sociais organizadas por uma cosmo-
logia mais ampla. Por outro lado,o
podemos dizer que as sociedades indíge-
naso "naturalmente integradas à Natu-
reza" pois "a prática social da natureza se
articula sobre a ideia que uma dada socie-
dade se faz de si própria, sobre a ideia que
ela se faz do ambiente que a circunda e so-
bre a ideia que ela se faz de sua interven-
ção sobre o meio ambiente" (Descola,
1986). Cada sociedade possui uma certa
criatividade cultural explicitada na forma
como esta socializa a natureza. Analogias
e metáforas animais no discurso cotidiano,
mítico e ritual das sociedades indígenas re-
forçam o sentimento de que homens e ani-
mais participam da construção do cosmos.
Existe sim a convicção de que homens e
natureza estão inseridos em um só mun-
do. Tanto o mundo das plantas como o dos
animais estão carregados, assim, de senti-
do simbólico, aproximando-os da socieda-
de humana, sejam as relações assim esta-
belecidas atrativas ou repulsivas.
Dentro do contexto das representações
da Natureza, pelas sociedades indígenas,
incluímos a produção de um conhecimento
classificatório dos elementos naturais. O co-
nhecimento indígena sobre a naturezao
visa somente ao utilitarismo, como foi co-
locado pela antropologia ecológica, nem
visa somente às representações, como foi
colocado pela antropologia simbólica.
Todos os povos desenvolvem teorias
para entender o mundo. A cosmologia de
cada sociedade representa a ordenação do
universo, ordem esta que está vinculada a
todos os aspectos da vida societária. Por
outro lado, Lévi-Strauss (1962) coloca que
o conhecimento do mundo da natureza re-
pousa no desejo universal quem todos
os povos de conhecer e classificar seu meio
ambiente, seja simplesmente pelo saber em
si, seja pela satisfação de impor um padrão
ou de ordenar o "caos".
No contexto da exposição "índios no
Brasil", tentamos mostrar, através da apre-
sentação de diferentes espécies de aves, a
forma como a sociedade indígena Xikrin,
habitante das margens do rio Cateté, Es-
tado do Pará, agrupa e classifica a avifau-
na de sua região. Gostaríamos de apresen-
Xamã
Nhiàkrekampin
elabora desenhos
xamanísticos: seres
subaquáticos, que
o perigosos mas
que auxiliam o
xamã. Xikrin do
Cateté. Foto Lux
Vidal.
tar, neste artigo, esta classificação mais
detalhadamente, passando posteriormente
para as representações simbólicas do mun-
do animal e vegetal no universo deste gru-
po. Desta forma e através de um exemplo
específico, serão evidenciados dois tipos de
relações que se estabelecem entre uma da-
da sociedade e a natureza. A primeira se
refere ao sistema de categorias explícitas
e ideais, que recorta o universo vegetal e
animal em classes morfológicas, indepen-
dentemente de qualquer utilização práti-
ca; a segunda se refere a um sistema de
categorias implícitas, estruturadas por uma
finalidade utilitarista ou simbólica (Desco-
la. 1986).
A classificação Xikrin das aves
No sistema de classificação Xikrin da
avifauna o termo indígena àk engloba to-
das as aves, correspondendo diretamente
à categoria científica. As aveso agrupa-
das por critérios morfológicos e a nomen-
clatura específica pode ser descritiva ou
onomatopéica. A nomenclatura indígena
de cada ave pode refletir o canto, o chil-
rear, o grasnar, o chiar ou qualquer som
por ela produzido. Neste sentido, cabe lem-
brar o que disse Sick(1984: 55) com rela-
ção ao registro das vozes das aves: "Ob-
servadores experientes conseguem
escrever a voz de modo muito semelhan-
te, embora cada um na fonética de sua pró-
pria língua. Diferenças podem surgir devi-
do ao grau de percepção dos observadores,
o que ressalta o caráter subjetivo dessa
técnica".
No caso dos índios Xikrin temos, co-
mo exemplo, a nomenclatura onomatopéi-
ca bem-te-vi (nome popular) e rãrãti (Xik-
rin), aracuã (nome popular) e kokakuã (
Xikrin). Em ambos os exemplos, notam-
-se facilmente as semelhanças rítmicas e so-
noras entre os termos regionais e indígenas.
Do ponto de vista cognitivo a nomen-
clatura onomatopéica é extremamente im-
portante. As sociedades indígenas apresen-
tam riquezas nos artefatos plumários e as
aves, além de fornecerem penas, cantam.
Como coloca Patrick Menget ao tratar da
definição humana nas sociedades amerín-
dias: "são verdadeiros homens de penas
que gostam sobretudo de música". Atra-
s da nomenclatura das aves, percebemos
a existência de outro meio para o conhe-
cimento e para a simbolização entre os Xik-
rin: a audição. E de fato, vários "cantos de
aves"o entoados durante os rituais.
A nomenclatura descritiva das aves nos
remete, ainda, a um outro plano do conhe-
cimento indígena: o morfológico e compor-
tamental. Os nomes podem se referir ao
tamanho de uma espécie em relação às ou-
tras ou descrever um aspecto sobressaliente
da ave.
No que se refere a taxonomia, existem
na classificação Xikrin, quatro níveis que
denominamos de categoria inicial, catego-
ria supragenérica, categoria genérica e ca-
tegoria específica. Estas categoriaso se-
melhantes às categorias criadas por Lineu.
Aliás, sempre me perguntei se Carlos Li-
neu (1707 - 1778) teria criado os princí-
pios da sistematização ou taxonomia. Mi-
nha conclusão, ao contrário, foi a de que
ele comprovou a existência de taxonomias
nativas pré-existentes ao seu estudo. Seu
trabalho foi o de sistematizar os dados co-
lhidos por viajantes e naturalistas, previa-
mente agrupados e nomeados pelos nati-
para esta sociedade indígena. Notamos
que, no mito, existe uma hierarquia na cria-
ção das espécies, sendo que as primeiras
pertencem ao grupo dos Falconiformes.
Neste caso, a classificação das aves está di-
retamente relacionada a esta hierarquia,
sendo queo existem sequer categorias
intermediárias.
A denominação Kamri, outra catego-
ria taxônomica, engloba a ordem científi-
ca Ciconiformes, além de mais três famí-
lias científicas: Anatidae, Phalacrocoracidae
e Aramidae. Este agrupamento se baseia
nos hábitos ribeirinhos, de banhados e la-
goas e na alimentação: todas as espécies
desta categoria se alimentam de peixes.
Neste grupo já existe a categoria genérica
e intermediária.
ADesar de reconhecerem a existência
de uma diferenciação no nível da comes-
tibilidade, dos artefatos, isto é, no nível
pragmático,o podemos falar em crité-
rios utilitaristas como definidores da clas-
sificação Xikrin das aves, porque o cam-
po de espécies nomeadas é muito amplo,
ultrapassando os limites de uma pura clas-
sificação adaptativa. No entanto, percebe-
mos que sobressaem linguisticamente os
animais que, tanto no nível da alimenta-
ção como das representações,o impor-
tantes numa certa cultura.
Após este breve comentário sobre as
formas de classificação, ressaltando um sis-
tema de relação entre uma dada socieda-
de e a natureza do ponto de vista da iden-
tificação e ordenação dos elementos
naturais, passaremos, a seguir, a tratar das
representações simbólicas existentes entre
natureza e sociedade.
A construção simbólica da na-
tureza
Os índios Xikrin definem espaços na-
turais distintos: a terra, dividida em clarei-
ra e floresta, o céu, o mundo aquático e
o mundo subterrâneo; concebem-no com
atributos e habitantes distintos e se relacio-
nam com cada um deles de maneira dife-
renciada. Os espaços naturaiso os dife-
rentes domínios que compõem o cosmos.
Procuraremos, a seguir, caracterizá-los em
sua especificidade.
A floresta é a moradia de diferentes ca-
tegorias étnicas inimigas, dos animais ter-
restres e também das plantas. Ela é o es-
paço da caça prestigiada, como no caso da
anta, jabuti, tatu e outros. Mas a apropria-
ção indevida, sem regras, do mundo ani-
mal, causa a fúria de uma entidade sobre-
natural, o dono-controlador dos animais
que, através do feitiço, regula a ação pre-
datória dos homens.
Por outro lado, é da floresta que pro-
m atributos importantes da sociabilida-
de Xikrin. Foi neste domínio que, no tem-
po das origens, os índios se apoderaram
do fogo e da linguagem cerimonial. A flo-
resta é vista como um espaço físico com-
partilhado por animais e grupos inimigos:
é um espaço competitivo, agressivo. Nas
situações de doenças, é o domínio com o
qualo se deve ter contato.
Para minimizar estas agressões os ho-
mens devem ser iniciados neste domínio
através de rituais específicos. A neutraliza-
ção da agressividade é realizada na clarei-
ra, lugar da aldeia e das roças, através das
espécies animais domesticadas e das plan-
tas cultivadas. A clareira é o lugar das re-
lações de parentesco e aliança, da cons-
trução da pessoa e da socialização do
indivíduo, enfim, da definição da humani-
dade.
Desenho do xamã
Nhiàkrekampin. No
lado esquerdo há a
representação do
dono-controlador do
mundo aquático. Do
lado direito, o dono-
-controlador da
floresta. No centro,
a representação do
feitiço dos donos-
-controladores.
'*A queda do
Gavião-real".
Desenho do xamã
Nhiàkrekampin.
No fim da tarde.
mulher e filhos
voltam do trabalho
na roça. Aldeia
Xikrin do Cateté.
Foto Lux Vidal.
No domínio aquático, encontramos a
possibilidade do fortalecimento dos aspec-
tos físicos e psicológicos do indivíduo. A
água faz amadurecer rapidamente através
de rituais de imersão, sem porém alterar
a substância do ser. A água é um elemen-
to da criação, contrariamente ao fogo, ele-
mento da transformação. Neste domínio
existe também um dono-controlador. Sua
relação com os homens é de solidarieda-
de e, no tempo mítico, marca o início das
relações entre os homens e os outros do-
mínios. Foi o dono-controlador do mun-
do aquático que ensinou aos homens a cu-
ra das doenças. As plantas medicinaiso
do domínio terrestre, mas seu conhecimen-
to e as regras de sua manipulação para o
benefício dos homens foram adquiridos no
mundo aquático através da mediação de
um xamã e de sua relação com o dono-
-controlador deste domínio.
O mundo subterrâneo está relaciona-
do ao sangue, ao comer cru, ao canibalis-
mo, representa a condição verdadeiramen-
te anti-social, em que os homenso
presas eo predadores. Ele representa
aquilo que os homenso querem ser.
No domínio do céu, o leste é o lugar
da luz eterna, origem dos índios Xikrin. É
também o habitat do gavião-real, iniciador
do xamã com quem este mantém uma re-
lação especial: é o gavião-real que, segun-
do o mito, perfura a nuca do iniciando para
que se torne um bom xamã.
A categoria das aves está relacionada
ao espaço físico do céu. As aves e os arte-
fatos plumários foram, como já citamos,
criados pelos heróis mitológicos, possibili-
tando assim a humanidade Xikrin, diferen-
ciando os verdadeiros humanos de outros
grupos étnicos e dos animais.
Sendo assim, para os Xikrin, a arte plu-
máriao é considerada apenas como um
adorno, o que ela representa na verdade
para os homens é a conquista da humani-
dade. Os ornamentos corporais fazem par-
te de um conjunto de características que
expressam a identidade desta sociedade.
Se por um lado, como vimos, existem
diferenças entre os vários domínios cosmo-
lógicos, encontramos também vários siste-
mas mediadores que evidenciam a relação
entre os humanos e estes domínios. No ca-
so dos Xikrin, por exemplo, a origem dos
nomes pessoais estabeleceo somente
uma herança dos ancestrais de geração a
geração como também um vínculo entre
os Xikrin e a Natureza. Eles colocam em
relação os humanos, os animais terrestres
e os peixes, estabelecendo-se assim um pa-
rentesco simbólico entre os habitantes dos
diferentes domínios, relacionando os hu-
manos e animais entre si. Observamos as-
sim que a nominação, enquanto sistema
de classificação social, se define como um
sistema de relações. E interessante notar
que estas mediações se estabelecem pela
ação de um xamã que ao se comunicar
com os animais, aprende seus nomes, dan-
ças e cantos, transmitindo estes conheci-
mentos aos homens.
As mediações entre natureza e socie-
dade verificam-se ainda, através de certas
práticas cotidianas como o fato de um ca-
çador, ao retornar de uma caçada bem su-
cedida, cantar para que o espírito do ani-
mal caçado permaneça na floresta; de
certas escarificações realizadas para que o
indivíduo desenvolva atributos valorizados
de certos animais; e, de forma mais com-
plexa, nas sucessivas fases dos rituais de
nominação e iniciação.
Os rituais possuem aspectos simbólicos
que transcendem a organização social, re-
lação de parentesco, transmissão de nomes
e prerrogativas. O canto, a coreografia e
os ornamentos, dos quais os homens se
apropriaram no tempo das origens,o re-
produzidos no ritual como manifestação da
situação atual da humanidade no cosmo.
Os rituais de iniciação e nominação
mostram que a humanidade Xikrin se
constrói a partir dos atributos dos diferen-
tes domínios que compõem o universo. E
a interligação dos domínios, que tem no
centro os próprios Xikrin, que permite a
construção de sua sociedade.
Nesta sociedade, a noção de contágio
demonstra também a relação existente en-
tre sociedade e natureza. Ela envolve tan-
Crianças Xikrin
voltam com o
resultado de uma
pescaria. Foto Lux
Vidal.
to aspectos positivos, como a aquisição de
atributos animais valorizados pela socieda-
de, quanto aspectos negativos, relaciona-
dos à transgressão das regras sociais ou de
um contato nocivo com substâncias peri-
gosas do domínio da natureza. A noção de
contaminação é algo muito abrangente, e
só pode ser entendida se pensarmos, con-
comitantemente, nos elementos constitu-
tivos da pessoa, nas relações entre grupos
e indivíduos e na relação entre a socieda-
de e a natureza. Como coloca Michel Per-
rin (1985: 103 - 122) ao tratar da questão
do contágio entre os Guarijo, o contágio
é um poder "extra-ordinário", que lembra
à humanidade suas constantes relações e
dependências destes "outros mundos", ora
refutados, ora incorporados.
Para finalizaro poderíamos deixar de
falar sobre o papel que desempenha o xa-
mã nesta sociedade indígena. O xamã, in-
divíduo sobre-humano e cujos podereso
adquiridos "extra sociedade" é o mediador
entre a sociedade Xikrin e a natureza, en-
tre a sociedade Xikrin e o sobrenatural. O
xamã tem o poder de transitar tanto no
mundo dos homens como no mundo da
natureza. Os humanos, ao longo de suas
vidas, acumulam atributos de diferentes
domínios cósmicos e se constróem através
deles. O xamã vivência, compartilha e se
comunica continuamente com estes domí-
nios. Ele detém o papel de intermediador
por excelência.
O xamã é um ser pleno: vive na so-
ciedade dos homens, compartilha da so-
ciedade dos animais, do sobrenatural e tem
a capacidade de manipular os diferentes
domínios. Ele pode, entre tantos outros
atributos, negociar com os donos-
-controladores do mundo animal, uma boa
caçada ou uma farta pescaria. Ele é inicia-
do pelo grande gavião - real, habitante do
mundo celeste, adquirindo assim, a capa-
cidade de voar e voando, possui uma vi-
o cósmica do universo.
Se o discurso moderno ocidental se
sustenta na relação de "posse", "conquis-
ta" e "domínio", isto é, numa relação on-
de a concepção de natureza passa a ser
mero objeto para o homem, vimos, atra-
s de um exemplo específico, que nas so-
ciedades indígenas as diferentes partes que
compõem o universo se interpenetram.
o existe uma dicotomia natureza/socie-
dade mas uma continuidade entre os do-
mínios tal como concebidos pelos Xikrin.
É claro que ao tratarmos das relações en-
tre sociedades indígenas e naturezao po-
demos deixar de apontar a existência de
sutis diferenças de interação e de definição
dos domínios cósmicos e seus atributos,
particulares à cada sociedade.
Bibliografia
Descola, Ph. - 1986 - La Nature Domestique, Pa-
ris, Editions de la Maison des Sciences de
l'Homme.
Galvão Coelho, R. - 1989 - "Planos de cognição e
processos culturais" in Tempo Social - Rev. So-
ciol. da Universidade deo Paulo, 1(1):
81-104.
Giannini.I. - 1991 - "A ave resgatada: a impossibili-
dade da leveza do ser", Dissertação de mestra-
do, Universidade deo Paulo.
Hanson, E.D. -1973 - Diversidade animal.o Pau-
lo, Edgard Blusher/Edusp.
Lévi - Strauss, Cl. - 1962 - La pensée sauvage, Pa-
ris, Plon Perrin.
- 1985 - "Les fondements d'une catégorie ètiologi-
que" in Uetnographie, numero spécial, 96-97.
Sick, H. - 1985 - Ornitologia Brasileira, Vol. 1 e
II, Brasília, Ed. Universidade de Brasília.
Stoni, J. - 1944 - Hortus guaranensis, Tucumán,
Universidad National de Tucumán.
O direito envergonhado:
o direito e os índios no Brasil*
Introdução
Nada é mais dramaticamente pareci-
do com a realidade dos direitos dos povos,
escravos, índios, camponeses, mulheres e
outros segmentos discriminados da socie-
dade latino-americana do que o conto de
Kafka, "Diante da Lei". Um homem passa
a vida inteira diante da porta da Lei espe-
rando para entrar, sempre há um impedi-
mento, uma ressalva, uma proibição mo-
mentânea, uma ameaça, até que o homem
morre. No momento de sua morte, vê que
o porteiro fechará a porta e, interrogando
a razão do fechamento, descobre que a
porta estivera aberta somente para ele du-
rante todo o tempo, e já que eleo en-
trara,o havia mais razão para a porta
permanecer aberta.
Assim os oprimidos quando chegam à
porta da lei encontram um obstáculo, difi-
culdade, impedimento ou ameaça, mas o
Estado e o Direito continuam afirmando
que a porta está aberta, que a lei faz de
todos os homens iguais, que as oportuni-
dades, serviços e possibilidades de inter-
venção do Estado estão sempre presentes
para todos, de forma isonômica e cega. E
a sistemática, usual, crónica injustiça da so-
ciedade é apresentada como exceção, coin-
cidência ou desventura. O Estado e seu Di-
reitoo conseguem aceitar as diferenças
sociais e as injustiças que elas engendram
e na maior parte das vezes as omitem ou
mascaram, ajudando em sua perpetuação.
Aos olhos da lei a realidade social é ho-
mogénea e na sociedadeo convivem di-
ferenças profundas geradas por conflitos de
interesses de ordem económica e social. O
Sistema Jurídico os transforma em ques-
tões pessoais, isola o problema para ten-
tar resolvê-lo em composições de partes,
como se elaso tivessem, por sua vez,
ligações profundas com outros interesses
geradores e mantenedores dos mesmos
conflitos. O Estado, quando legisla, exe-
Carlos Frederico Marés de Souza Filho
cuta políticas ou julga,o trata os confli-
tos de terra, por exemplo, como o choque
de interesses de classes, segmentos sociais
ou setores da sociedade, mas como o con-
flito entre o direito de propriedade do fa-
zendeiro tal contra o direito subjetivo do
posseiro qual. Tudo fica reduzido a desa-
fetos pessoais e a Lei, geral e universal em
princípio, se concretiza apenas nos confli-
tos individuais, podendo ser injusta na apli-
cação, mas mantendo sua aura de Justiça
na generalidade.
Se a distância entre o justo e o legal
em matéria de Direito Privado, marcado
pela hegenomia da propriedade, que se
transforma em seu parâmetro e paradig-
ma, é claramente verificável apenas surja
o conflito entre indivíduos de classes so-
ciais diferentes e o Estado seja, através do
Juízo, chamado a compô-lo, no Direito Pe-
nal, que tem teoricamente o primado da
Justiça e a recuperação do delinquente co-
mo fundamento, as coisasoo assim
o claras, porque a relaçãoo se esta-
belece diretamente entre desiguais, mas en-
tre o Estado (portador da Justiça) e o in-
divíduo presumivelmente inocente. Mas,
contraditoriamente, é na aplicação das pe-
nas que se pode verificar o profundo con-
teúdo de classe do Direito, talvez porque,
enquanto o Direito Privado é voltado pa-
ra as relações jurídicas da minoria da po-
pulação que contrata, distrata, discute o pa-
trimónio, disputa a herança e busca
indenização, o Direito Penal é criado co-
mo forma de coibir a violência pessoal,o
pouca vezes filha da violência social, inti-
midando e desestimulando a grande maio-
ria de injustiçados de procurar a justiça por
suas próprias mãos, por isso o Direito Pe-
nal é voltado para a grande maioria da po-
pulação, e por ela conhecido como instru-
mento de intimidação. O Direito Privado
é o direito dos poderosos, o Penal dos opri-
midos, aquele para garantir seus bens, es-
te para intimidar ação socialmente re-
provável.
Quando se estuda o Direito brasileiro
em relação aos povos indígenas ou negros,
estas contradições se revelam muito facil-
mente, e fica claro este sentido da Lei que
ora se omite parao consagrar direitos,
ora tergiversa para esconder injustiças.
O direito dos índios
No Brasil hoje vivem mais de duzen-
tos e cinquenta mil índios distribuídos em
mais de cento e oitenta grupos étnicos,
com profundas diferenças sociais e orga-
nizativas. Cada um destes grupos tem um
Direito próprio,o escrito, mas rigidamen-
te obedecido.
Porém, o Estado e seu Direito negam
a possibilidade de convivência, num mes-
mo território, de sistemas jurídicos diver-
sos, acreditando que o Direito Estatal seja
único e onipresente. O exemplo do Bra-
sil, porém, com a existência destas várias
Nações Indígenas com maior ou menor
contato com a sociedade brasileira, faz por
desmentir aquelas concepções.
As relações de família, propriedade, su-
cessão, casamento e crime, são, numa so-
ciedade indígena, nitidamente reconheci-
das por toda a comunidade, de tal forma
que se estabelece um sistema jurídico com-
plexo, com normas e sanções. A varieda-
de de sanções corresponde à importância
da transgressão e a legitimidade da forma
e da sançãoo é questionada, porque
o deriva de um poder acima da comu-
nidade, mas da própria comunidade que
as estabelece no processo social, de acor-
do com as necessidades do grupo.
E fácil, porque transparente, observar
a existência do direito indígena nas regras
penais. Assim nos relata Alcida Ramos:
"Quando uma ação criminosa é consuma-
da, aplica-se, então, a punição correspon-
dente: ostracismo, expulsão ou mesmo
morte"
l
.oo menos "visíveis" as re-
gras ao casamento nas culturas indígenas,
a tal ponto de que muitas vezes, se possa
afirmar, sem exageros, que as opções de
liberdade individual em relação ao casa-
mento sejam quase nulas.
Por terem um direito próprio e por se
organizarem segundo os parâmetros de sua
sociedade, conceitos como território e povo
e as relações com os brancos ou com ou-
tras comunidadeso compreendidos e
vistos a partir de seus valores culturais que
geram normas exigíveis e puníveis. As ex-
plicações para os fenómenos do mundo,
inclusive a invasão de seus territórios pe-
los brancos,o dadas pelo seu sistema
sócio-cultural, exatamente por isto, é muito
diferente a reação de cada povo indígena
às invasões ou à existência de estranhos
em suas terras
2
.
A existência de um Direito entre os po-
vos indígenas, e seu reconhecimento,o
é uma polémica recente, mas remonta ao
início das invasões europeias em território
americano. E significativo o fato do frei Bar-
tolomé de Las Casas ter escrito vasta obra
em defesa deste princípio e, ainda assim,
o ter sido aceito ou entendido. Muito
contestado, mas com muita paixão, dizia
Las Casas naqueles idos de 1500: "Cua-
lesquier naciones y pueblos, por infieles
que sean, (...) son pueblos libres, y que no
reconocem fuera de si ningun superior, ex-
cepto los suyos próprios, y este superior
o estes superiores tienen la misma plenísi-
ma potestad y los mismos derechos dei
príncipe supremo en sus reinos, que los
que ahora posea el imperador en su im-
pério"
3
.
Os poucos juristas que tratam da His-
tória do Direito brasileiro, fazem referências
ao direito pré-colombiano, como se as Na-
ções indígenas tivessem existido apenas até
o advento do Estado Brasileiro. Esta inter-
pretação etnocêntrica, pressupõe a unici-
dade do Direito Estatal de tal forma que
só admite direitos das sociedades indíge-
nas enquantoo houve Estado, portu-
guês ou brasileiro, que providenciasse um
Direito único com sua fonte exclusiva ou,
pelo menos prioritária, a Lei. Em todo ca-
so, nestas análises e estudos, há um mar-
cante desconhecimento e mesmo referên-
cias à existência ainda hoje de grupos e à
nações indígenas, algumas das quais sem
praticamente nenhum contato com a so-
ciedade brasileira. A guisa de exemplo, é
interessante analisar o livro do Prof. João
Bernardino Gonzaga que, admitindo a
existência do Direito em povoso orga-
nizados estatalmente, já a partir do título
que deu a seu trabalho: "O Direito Penal
Indígena à Época do Descobrimento do
Brasil"
4
, descarta a possibilidade daque-
las normas e sanções estarem sendo apli-
cadas ainda hoje pelos remanescentes in-
dígenas. Além disso, a leitura do livro
ressalta todo o preconceito da sociedade
europeia em relação aos povos america-
nos,o constantes termos como "primi-
tivismo", "estado tosco de organização so-
cial", etc. Mas o grande equívoco em rela-
ção às análises do Direito Indígena é a ten-
tativa de encontrar traços comuns a todas
as Nações, fazendo tabula rasa das profun-
das diferenças sociais e culturais de cada
um dos povos indígenas que viviam e vi-
vem em território brasileiro. João Bernar-
dino Gonzaga faz expressa referência a este
fato, afirmando ser muito difícil o estudo
do direito penal indígena exatamente por-
queo "incontáveis os grupos" existen-
tes. Ainda assim se propõem a fixar as
ideias comuns a todos eles.
Esta determinação de considerar todos
os povos indígenas numa única categoria
é uma constante na história das relações
dos colonizadores com os povos indígenas,
tendo gerado o termo único "índio" em
contraposição ao nome de cada uma das
nações, a "língua-geral", pela qual os mis-
sionários queriam que todos os povos os
entendessem e se entendessem entre si,
fruto de uma religião única e universal. A
dimensão do preconceito, discriminação e
etnocentrismo está clara nesta tentativa de
unificar a religião, a língua, a cultura e o
direito, negando a diversidade. É evidente
a existência de línguas, culturas, religiões
e direitos diferentes que até hoje sobrevi-
vem, a duras penas é verdade, na socie-
dade brasileira. Maso acima de 170 gru-
pos que praticam essas diferenças e que
organizam a sua vida segundo normas ju-
rídicas que nadam a ver com direito es-
tatal, porqueo a expressão de uma so-
ciedade sem Estado, cujas formas de poder
o legitimadas por mecanismos diferen-
tes das formais e legais instâncias do
Estado.
O Direito Estatal, porém,o pode ad-
mitir que este conjunto de regras que or-
ganiza e mantém organizada uma socie-
dade indígena seja efetivamente Direito e,
muito menos, que o Estado o acate, sem
abalar sua estrutura de Direito único e fonte
única de Direito. Mas, de uma forma en-
vergonhada, a legislação brasileira moder-
na, repetindo preceitos da Convenção 107
5
da Organização Internacional do Traba-
lho, respeita os usos, costumes e tradições
das comunidades indígenas nas relações
de família, sucessões e negócios entre ín-
dios, assim como aceita nos crimes intra-
-étnicos a punição da comunidade, desde
queo seja com pena infamante ou de
morte. O Direito Indígena, mesmo nos ter-
ritórios e na convivência da comunidade.
é apenas uma fonte secundária do Direito
Estatal, tolerada quando a lei for omissa
ou desnecessária.
O Direito de cada uma das nações in-
dígenas, indissoluvelmente ligado às prá-
ticas culturais, é o resultado de uma vivên-
cia aceita e professada por todos os
habitantes igualmente. Ao contrário disso,
o Direito estatal brasileiro é fruto de uma
sociedade profundamente dividida, onde
a dominação de uns pelos outros é o pri-
mado principal e o individualismo o mar-
O dominicano
Bartolomé de Las
Casas defendia a
existência de um
direito entre os
índios que deveria
ser respeitado pelos
conquistadores.
Notabilizou-se no
debate de Valladolid
quando enfrentou o
jurista Juan Ginés
de Sepúlveda. Capa
do livro "Narratio
regionum
indicarum" de Las
Casas. Biblioteca
Mário de Andrade.
Foto Sosô Parma.
cante traço característico. A distância que
medeia o Direito indígena do estatal é a
mesma que medeia o coletivismo do indi-
vidualismo. Daí decorre outra diferença
fundamental: o Direito de cada nação in-
dígena é "estável", porque nascido de uma
praxis de consenso social,o conhece ins-
tância de modificação formal, modifica-se
na própria praxis; o Direito estatal, tendo
o legislativo como instância formal de mo-
dificação, está em constante alteração.
Exatamente esta possibilidade de mo-
dificação, esta "instabilidade" do Direito
brasileiro é que ganha visibilidade quando
o índio se encontra com a sociedade bran-
ca e com ela trava os primeiros conheci-
mentos jurídicos. Esta visão indígena do Di-
reito estatal foi traduzida com poesia e
eloquência por Paiaré - parkategê do sul
do Pará - por ocasião de discussões sobre
a passagem de uma estrada de ferro para
transporte de minério da Serra de Cara-
jás, na Amazónia, que deveria cortar, co-
mo de fato cortou, o território de seu po-
vo: "A lei é uma invenção. Se a leio
protege o direito dos índios (sobre suas ter-
ras), o branco que invente outra lei". Tem
razão Paiaré, o Direito estatal é lei, porque
lei é sua fonte, sua matriz e sua legitimida-
de. E a lei é criada - ou inventada - por
um grupo de homens, que teoricamente
representam todas as sociedades, mas que
o raras vezes legislam contra os interes-
ses da Nação. De qualquer forma, numa
sociedade dividida e injusta como a nos-
sa, a lei é uma invenção de uns contra os''
outros. O que Paiaré, na sua arguta cons-
tatação da realidade, desejava é que ela
fosse a invenção de uns a favor de
outros
6
.
o raros, como já dissemos, os estu-
dos destas diversas expressões jurídicas e
quase todos genéricos e, consequentemen-
te, pouco profundos, muitas vezes marca-
dos mais pelo sentimento de "simpatia por
uma das raças que contribuíram para a for-
mação do povo brasileiro", como dizia Cló-
vis Beviláqua,
7
do que pelo espírito cien-
tífico.
Por outro lado, a simples existência
destes povos, com sua realidade e direito
próprios, deixa perplexo o mecânico racio-
cínio do Direito Estatal; o conceito de so-
ciedade indígena lhe é incompatível: co-
mo enquadrar a ideia de território indígena
aos limites individualistas do direito de pro-
priedade? Como conter o conceito de po-
vo nas restritas concepções de personali-
dade jurídica privada? Como impor a
representação-fundamento democrático da
sociedade estatal - a grupos humanos cu-
jo poder é exercido por aceitação coletiva
e necessariamente consensual?
Para responder a estas inquietantes
questões, preenchendo lacunas perigora-
mente abertas, o Direito Estatal se vê na
contingência de criar regras legais capazes
de aproximar conceitos, buscar analogias,
estabelecer parâmetros que enquadrem a
sociedade indígena ao desenho de sua lei.
o poucos os Estados latino-americanos
que já criaram leis para promover este en-
quadramento; o Brasil está entre eles. Por
vezeso basta a elaboração da lei, há uma
distância entre a decisão legislativa e a exe-
cução de políticas de acordo com a lei vi-
gente e, ainda, a aplicação judicial para so-
lução de conflitos. O caso do Brasil é
exemplar. Atualmente, desde 1988, a
Constituição da República dedica um ca-
pítulo para os índios, reconhecendo seus
direitos, suas terras, seus costumes, suas
línguas; já o braço executor do Estado ne-
ga esses direitos, invade suas terras, des-
respeita seus costumes, omite suas línguas,
e o Judiciário ou se cala ou simplesmente
o é obedecido.
E dentro deste quadro - analisando e
rastreando historicamente a evolução do
direito brasileiro, comparando inclusive
com a-legislação sobre escravos - que se
poderá ter a dimensão das omissões do Es-
tado e de seu Direito em relação a estes
povos, e a certeza de que estas omissões
e as criações de figuras jurídicas para preen-
cher as lacunasoo mais do que ten-
tativas de esconder uma realidade da qual
a classe dominante, seu Direito e seu Es-
tado se envergonham.
A ma nu missão silenciosa
O estudo das leis brasileiras sobre a es-
cravidão, especialmente sobre os escravos,
éo interessante quanto revelador das ver-
gonhas que sente o direito em tratar de as-
suntos que exponham as injustiças da so-
ciedade.
Capa da edição fac-
- similar do livro de
João Mendes Júnior
que defende o
direito histórico dos
índios às terras, por
antecederem a
formação do Estado
brasileiro.
Manuela Carneiro da Cunha, em bri-
lhante estudo publicado originalmente pela
UNICAMP - Universidade de Campinas -
intitulado "Sobre os silêncios da lei. Lei cos-
tumeira e positiva nas alforrias de escravos
no Brasil no século XIX",
8
relata, visitan-
do os historiadores, viajantes e cronistas da
época, que os escravos podiam obrigar o
seu senhor a manumiti-lo, se pagassem
preço pelo qual foram comprados. Ainda
que fosse difícil para o escravo fazer valer
este direito diante de eventual recusa do
seu senhor, contam os cronistas que era
um direito reconhecido por todos, de tal
forma que, dizia Koster em 1816, deveria
estar consagrado em lei.
Demonstra a Profa Manuela Carneiro
da Cunha que tratava-se de um equívoco
de Koster; em realidade, ainda que ampla-
mente reconhecido, este direito do escra-
vo, somente viria a se tornar lei em 1871,
com longo regulamento editado em 1872,
antes disso era um costume, respeitado co-
mo lei, mas singelamente omitido de ex-
pressão legal. Quer dizer, era um direito
costumeiro que convivia num sistema de
direito positivo.
Na realidadeo fazia muita diferen-
ça a existência de norma legal escrita, des-
de que a manumissão fosse garantida, ape-
sar de que a inexistência da norma
facilitava ao observância do direito pe-
los senhores de escravos. O que chama
mais a atenção é o fato deo haver re-
gulamentação escrita para uma práticao
jurídica eo comum como a munimissão,
que foi objeto de uma complexa lei (com
100 artigos). Imediatamente se iniciou o
processo de libertação dos escravos, em
1871. Por certoo se pode creditar este
silêncio ao pouco desenvolvimento da le-
gislação brasileira oitocentista. Deve ser
lembrado que em 1824 foi promulgada a
Constituição Imperial, a primeira do Bra-
sil, e em 1830 o Código Criminal, e am-
bos silenciavam sobre a existência de es-
cravos, ambos deixavam de reconhecer a
sociedade escravagista para a qual haviam
sido elaborados. Significa este trabalho le-
gislativo, somado a muitos outros, queo
era pequena nem incipiente a elaboração
legislativa do Brasil do século passado, mas
singularmente omissa em relação à muni-
missão dos escravos. Do ponto de vista es-
tritamente jurídico a explicação para a au-
sência desta legislação era o fato de que
escravoo era considerado pessoa, isto
é,o podia ser sujeito de direitos, posto
que era um bem jurídico.
O estudo da Profa Manuela Carneiro
da Cunha conclui: "O silêncio da leio
era certamente esquecimento." "...a par de
sua função política, vincula-se também a
fontes ideológicas. Nos seus níveis mais
abstratos, da Constituição aos Códigos, o
direito do Império teve de se acomodar
com a contradição que era se descreverem
as regras de uma sociedade escravista e ba-
seada na dependência pessoal com a lin-
guagem do liberalismo".
9
Este falacioso pudor que cobriu a le-
gislação oitocentista em relação aos escra-
vos, veio se repetir na primeira metado do
século vinte, no Direito Penal, em relação
aos índios, como veremos mais adiante.
Os índios e reconhecimento
civil
Se assim era o tratamento do Direito
positivo dado aos escravos, por imposição
ou vergoha da sociedade, muito outro era,
nessa época, o tratamento dispensado aos
índios. O mesmo discurso liberal, incom-
patível com a manutenção do escravismo,
ficava enaltecido com a defesa e proteção
das populações indígenas, especialmente
porque a sua defesao comprometia o
processo produtivo, de que os índioso
participavam, desde que suas terras, ou a
defesa de suas terras,o atrapalhassem
a propriedade da terra dos senhores por-
tugueses. O Direito oitocentista e até mes-
mo anterior, reconhece aos índios que vi-
vem em território brasileiro o direito a
usufruir da sociedade dita civilizada, e se
propõe a receber os índios como integran-
tes desta sociedade. Revelador é o Alvará
de 1775, 4 de abril, do rei de Portugal: "Eu
El-Rei, sou servido declarar que os meus
vassalos deste reino e da América que ca-
sarem com as índias delao ficam com
infâmia alguma, antes se farão dignos de
real atenção. Outrossim proíbo que os di-
tos meus vassalos casados com índias ou
seus descendentes, sejam tratados com o
nome de caboclos ou outro semelhante
que possa ser injurioso. O mesmo se pra-
ticará com portuguesas que se casarem
com índios." (Ortografia atualizada).
Estava aberto assim o caminho da po-
lítica integracionista praticada até nossos
dias, (rompida, na lei, muito recentemen-
te, com a promulgação da Constituição de
1988), pela qual se oferece aos índios a ex-
trema felicidade de poder ingressar na so-
ciedade que os envolve, oprime, rouba
suas terras e mata.
Apesar de relativamente vasto o núme-
ro de dispositivos legais que falam em ín-
dios, na verdade é muito difícil visualizar
o desenho da concepção jurídica que o di-
reito do século passado tinha destes po-
vos. Poucos, raríssimos dispositivos, tratam
da pessoa do índio; normalmente se refe-
rem a limitações e garantias de direito
alheio, como no Alvará acima citado, on-
de o que está em jogoo é exatamente
a pessoa do índio, mas sim a do português
ou portuguesa que com ele se casa. Gran-
de parte dos dispositivos trata das questões
de terras, mais como a limitação que a ocu-
pação indígena exerce sobre a disponibili-
dade das terras do Estado e de particula-
res do que como garantia das terras aos
índios. É visível, pela leitura dos atos le-
gislativos, que a única preocupação dos co-
lonizadores para com os indígenas era a in-
tegração destes na nova sociedade que
chegava. O que os índios pensavam, fa-
ziam ou queriam fazer,o entrava em co-
gitação. A existência de outras culturas, ou-
tras práticas sociaiso era, para nada,
levada em conta pela legislação. O Códi-
go Criminal do Império, de 1830, é singu-
larmente omisso e de sua leitura isolada se
poderia deduzir da inexistência de índios
no Brasil.
Ao contrário de tentar esconder a exis-
tência de índios no Brasil, como fazia a en-
vergonhada legislação escravagista, a legis-
lação indigenista apregoava a integração
pela razão, pelo medo ou pela força,o
omitia a existência de índios, apenaso
reconhecia a diferença e propugnava a sua
integração, demagógica e mentirosa.
Exemplar é a história da Carta de Lei
de 27 de outubro de 1831, que declarou
o fim da escravidão indígena e a sujeição
dos ex-escravos a uma tutela orfanológi-
ca, de caráter civil. Tudo começou em
1808, com uma Carta Régia que declara-
va guerra os índios Botucudos do Paraná,
então província deo Paulo, e determi-
nava que os prisioneiros fossem obrigados
a servir por 15 anos aos milicianos ou mo-
radores que os apreendessem, abrindo a
oportunidade de, àqueles que depusessem
armas e se submetessem às leis reais e se
aldeassem, "gozarem dos bens permanen-
tes de uma sociedade pacífica e doce de-
baixo das justas e humanas leis que regem
os meus povos".
Em maio do mesmo ano de 1808 ou-
tra Carta Régia declarava guerra aos Bo-
tucudos do Vale do Rio Doce, garantindo
aos milicianos que os aprisionassem, 10
anos de prestação de serviço, que pode-
riam se estender até que fossem pacifica-
dos. No mesmo ano, em dezembro, outra
Carta Régia determinava que os índios do
Vale do Rio Doce que se dispusessem a
ficar sob o julgo das "justas e humanas"
leis do reino, seriam entregues, em peque-
nos grupos, aos fazendeiros que os edu-
cariam, podendo, como pagamento, usu-
fruir de seu trabalho gratuitamente.o se
tratava de escravizar os índios, explicava a
Carta Régia, mas de educá-los à convivên-
Ailton Krenak pinta
seu rosto durante a
defesa de uma das
emendas populares
sobre os direitos
indígenas na
Assembleia Nacional
Constituinte. Foto
Reynaldo
Stavale/ADIRP.
cia da sociedade "doce e pacífica".
Vinte e três anos depois destas decla-
rações de guerra e escravização simulada,
envergonhada, mas efetiva, em 1831, a ci-
tada Carta de Lei de 27 de outubro revo-
gava estes dispositivos, reconhecendo que
aquilo era efetivamente servidão e decla-
rava que todos os índios que vivessem sob
julgo de algum senhor seriam dele exone-
rados a partir daquele momento. Esta Car-
ta de Lei, em seus seis singelos artigos é
a declaração de liberdade dos índios, e um
reconhecimento formal de que, embora já
proibida, existia a sua escravização legal.
Entretanto, a solução que aquela Carta de
Lei encontrou para reparar os danos cau-
sados aos índios em cativeiro, foi declarar-
-lhes órfãos para que os Juízes respectivos
os depositassem onde viessem a ter traba-
lho ou ofício fabril. A liberdade dos índios,
portanto,o significava para aquele mo-
mento e aquela lei a possibilidade de vol-
tarem a ser índios, reencontrarem a sua cul-
tura proibida e seus parentes, maso
somente homens livres capazes de dispu-
tar o salário e aprender um ofício, como
qualquer homem branco pobre. O senti-
do da lei, porém, era tão, somente decla-
rar órfãos os índios que estivessem ainda
em cativeiro por força daquelas declarações
de guerra e, por extensão, de qualquer ín-
dio em cativeiro, o que já era proibido, mas
seguramente praticado.
Embora fique claro que a Carta de Lei
de 27 de outubro de 1831 transformava
em órfãos apenas os índios cativos,o foi
assim que a sociedade e o Estado passa-
ram a entendê-los. Os Tribunais, nas raras
vezes que se viram na contingência de de-
cidir sobre coisas indígenas, interpretaram
extensivamente este dispositivo, passando
a considerar que todos os índioso inte-
grados no serviço como trabalhadores li-
vres, seriam órfãos. É estranho mas per-
feitamente compreensível o raciocínio e a
comparação: os índios arrancados de seu
território, agredidos em sua cultura, violen-
tados em sua vontade e religiãoo per-
feitamente comparáveis aos órfãos, como
se houvessem perdido os próprios pais, até
que, integrados pelo trabalho como traba-
lhadores livres, deixassem de ser índios e,
portanto, reencontrassem seus pais na so-
ciedade "doce, justa, humana e pacífica"
que se lhes oferecia.
Abolida a escravatura e proclamada a
república, o Estado brasileiro continuava a
aplicar o que a velha Carta de Lei de 1831
o dizia: todos os índios deveriam ser re-
putados como órfãos. Textualmente, o Su-
perior Tribunal de Justiça do Estado do Ma-
ranhão, em 25 de outubro de 1898, no
limiar do século XX, afirma: "Os Juízes de
órfãosm atribuições especiais em rela-
ção às pessoas e bens dos índios, sendo
que esteso reputados como órfãos" (Lei
de 27 de outubro de 1831).
10
Assim, o Direito positivo oitocentista,
se bem autoritário, etnocêntrico e integra-
cionista em relação à população indígena,
tratava da questão, omitindo os índios ape-
nas no Código Criminal. Aliás a análise
deste Código Criminal é muito reveladora
porque, por um lado, mostra uma omis-
o em relação aos índios,o considera
sequer sua "orfandade"; já em relação aos
escravos, omitidos totalmente na legislação
civil,o tratados na lei criminal. E estra-
nho, mas perfeitamente compreensível
dentro do sistema: a lei penal - dedicada
integralmente aos marginados sociais -o
registra referência à mais marginal de to-
das as populações, os indígenas, porque
ou estavam fora da sociedade,o lhes al-
cançando a ação penal o simples revide
guerreiro, ou dentro da sociedade eo
se diferenciavam dos pobres marginaliza-
dos. Em relação aos escravos diz tão-
-somente que as penas de trabalhos for-
çados em galés e a de morte serão
substuídas pela de açoites, para que o seu
donoo sofresse prejuízo; isto é, a dire-
ção da norma é a proteção da proprieda-
de do senhor,o a pessoa do apenado.
O ardil do código penal de 1940
Quando da elaboração do Código Ci-
vil de 1916, o legislador brasileiro resolveu
assumir como verdade jurídica aquilo que
a lei de 1831o dissera mas se transfor-
mara em ordem legal: a relativa capacida-
de civil dos índios, sua minoridade, sua or-
fandade. Com efeito, o Código Civil
equipara em seu artigo 6? os silvícolas -
assim chama os índios - aos pródigos e
maiores de 16 e menores de 21 anos, in-
capazes relativamente para a prática de cer-
tos atos da vida civil. Esclarece que este
regime tutelar fica sujeito a lei especial e
cessará na medida em que os índios forem
se adaptando à civilização do país. Este
Código sedimenta juridicamente os pre-
conceitos do século anterior de que os ín-
dios estavam destinados a desaparecer sub-
mersos na "justa, pacífica, doce e humana"
sociedade dominante. Tal como El-Rei no
começo do século XIX, a República do-
culo XX se oferece aos índios como tábua
de salvação à sua ignota existência; somen-
te que a lei o diz, agora, envergonhada-
mente, sem a clareza da lei imperial, dei-
xa apenas sugerido que os índios se
acabarão um dia.
O Código Civil, minucioso e detalhis-
ta em todos os aspectos da vida da socie-
dade brasileira se cala, sintomaticamente,
em relação às terras indígenas e à perso-
nalidade jurídica dos grupos e comunida-
des indígenas, ainda que trate com desen-
voltura das terras públicas e das pessoas
jurídicas de direito público.o é, porém,
no conjunto das leis civis que o Direito bra-
sileiro expressa seu pudor em tratar das coi-
sas dos índios, neste século.
O Código Penal, elaborado dentro dos
parâmetros da técnica jurídica, em 1940,
buscando a precisão própria de sua épo-
ca, omite a palavra índio ou silvícola. Pos-
to que omite a palavra, admite o concei-
to, encontrando uma fórmula mágica para
atenuar as penas eventualmente impostas
aos índios, imitando a relativa capacidade
exposta no Código Civil. O artigo 22 ex-
pressa: "É isento de pena o agente que,
por doença mental ou desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, era, ao
tempo da ação ou da omissão, inteiramen-
te incapaz de entender o caráter crimino-
so do fato ou de determinar-se de acordo
com este entendimento". Passaria desaper-
cebido este artigo a quem estivesse procu-
rando índios no Código Penal se, na lon-
ga Exposição de Motivos que o antecede,
assinada pelo Ministro Francisco Campos,
e que faz parte integrante da Lei,o se
pudesse ler: "No seio da Comissão foi pro-
posto que se falasse de modo genérico, em
perturbação mental; mas a proposta foi re-
jeitada, argumentando-se em favor da fór-
mula vencedora, que esta era mais com-
preensiva, pois, com a referência especial
ao "desenvolvimento incompleto ou retar-
dado, e devendo-se entender como tal a
própria falta de aquisições éticas (pois o ter-
mo mental é relativo a todas as faculda-
des psíquicas, congénitas ou adquiridas,
desde a memória à consciência, desde a
inteligência à vontade, desde o raciocínio
ao senso moral), dispensava a alusão ex-
pressa aos surdos-mudos e aos silvícolas
inadaptados".
n
Qual teria sido o escrúpulo da Comis-
o em fazer referência expressa aos silví-
colas? Por queo dizer com todas as le-
tras que os silvícolas ou os índios aoo
índio Kayapó lê um
dos projetos de
Constituição
elaborado pelos
parlamentares
constituintes. O
perigo de retrocesso
na tramitação dos
direitos indígenas
esteve presente
durante todo o
período de trabalho
da Assembleia
Nacional
Constituinte. Foto
Guilherme
Rangel/ADIRP.
A Subcomissão dos
Negros, Populações
Indígenas. Pessoas
Deficientes e
Minorias do
Congresso Nacional
recebe em audiência
lideranças indígenas.
Foto Reynaldo
Stavale/ADIRP.
serem capazes de entender o caráter deli-
tuoso de um ato deveriam ter diverso tra-
tamento penal? Que estranha razão teria
a Comissão para omitir aquilo que a lei ci-
vil chamou de relativa incapacidade dos ín-
dios? Esta intrigante questão foi respondi-
da por um dos membros da Comissão e
um dos mais respeitados penalistas de sua
época. Nelson Hungria, que em seu alen-
tado "Comentários ao Código Penal" se
expressa clara e francamente: "O artigo 22
fala em "desenvolvimento incompleto ou
retardado. Sob este título se agrupamo
só os deficitários congénitos do desenvol-
vimento psíquico ou oligofrênicos (idiotas,
imbecis, débeis mentais), como os queo
por carência de certos sentidos (surdo-
-mudos) e até mesmo os silvícolas inadap-
tados... assim,o há dúvida que entre os
deficientes mentais é de se incluir também
o homo sylvester, inteiramente desprovi-
do das aquisições éticas do civilizado ho-
mo medius que a lei penal declara respon-
sável". (Grifos no original).
12
Depois desta
preconceituosa declaração, queo admite
a existência de outros padrões éticos, o ju-
rista consegue ser ainda mais claro, expres-
sando a vergonha da lei em manifestar a
existência de índios no Brasil: "Dir-se-á que
tendo sido declarados, em dispositivos à
parte, irrestritamente irresponsáveis os me-
nores de 18 anos, tornava-se desnecessá-
ria a referência ao 'desenvolvimento men-
tal incompleto; mas explica-se: a Comissão
Revisora entendeu que sob tal rubrica en-
trariam, por interpretação extensiva, os sil-
vícolas, evitando-se que uma expressa alu-
o a estes fizesse supor falsamente, no
estrangeiro, que ainda somos um país in-
festado de gentio". (Grifo no original).
13
o se pode dizer queo seja ardi-
loso o Código Penal brasileiro, ao mesmo
tempo que prega uma peça aos estrangei-
ros (curiosa preocupação ao se elaborar
uma lei nacional), queo poderão ima-
ginar a existência de índios "infestando" a
civilização, garantem aos "infestadores" um
escondido direito, de difícil aplicação e sin-
gularmente inútil. Esta vergonha do Direi-
to Penal brasileiro de 1940 tem a mesma
cor e fundamento da vergonha da lei em
relação aos escravos, no século XIX, o te-
mor de mostrar ao mundo a realidade na-
cional, suas mazelas, injustiças e "defeitos".
Está presente, porém, neste esconderijo da
lei penal a ideia de que os índios se aca-
barão num futuro próximo, quando encon-
trarem a alegria de viver na "pacífica, jus-
ta, doce e humana" sociedade dos brancos,
e então o Direito Penal ser-lhes-á aplica-
do em plenitude, e os juristaso se en-
vergonharão mais nos congressos interna-
cionais. É transparente neste episódio
jurídico a ideia etnocêntrica e monista de
que o sonho de todo índio é deixar de-
-lo. É presente a incompreensão do direi-
to dos povos indígenas de continuarem a
ser índios ainda que em contato longo e
até mesmo amistoso com a sociedade
branca.
A punição à margem da lei
Curioso é que o Decreto 5.484, de 27
de junho de 1928, de apenas doze anos
antes do Código Penal, e que regulava a
"situação dos índios nascidos em territó-
rio nacional" tratava da aplicação das pe-
nas aos índios que cometessem crime.
o seria verdadeiro afirmar, portan-
to, que o Direito Penal brasileiro tratava dos
índios como uma mera referência hipoté-
tica na Exposição de Motivos que apresen-
ta o Código de 1940. Na realidade o-
digo Penal teve vergonha de apresentar a
forma e os requisitos especiais de punibili-
dade e aplicação de pena aos índios. Ver-
gonha, que a sinceridade de Nelson Hun-
gria nos clareia, de ser cotejado com os
Códigos de outros países e os estrangei-
ros notarem que no Brasil ainda viviam ín-
dios "não civilizados".
Comoo tratou de índio, o Código
Penalo revogou o estabelecido no De-
creto de 1928, que, uma espécie de-
digo dos índios, tratava de diversas ques-
tões, desde o registro civil até a gestão de
bens e, dos seus 50 artigos, 5 tratam dos
crimes praticados por índios. Estabelecia o
Decreto que os índios com menos de 5
anos de integração que cometessem crimes
seriam recolhidos, mediante requisição do
inspetor de índios, a colónias correcionais
ou estabelecimentos industriais disciplina-
res, pelo tempo que parecesse necessário
ao inspetor, nunca superior a cinco anos.
Dizia ainda o Decreto que se o autor do
crime tivesse mais de cinco anos de con-
vívio com a sociedade envolvente seria
aplicada a lei comum, com as penas redu-
zidas à metade, nunca devendo ser apli-
cada prisão celular, que seria sempre subs-
tituída por prisão disciplinar, o que
significava que o cumprimento da pena se
daria em instituições penais especialmen-
te criadas para índios.
Esta situação gerada, seguramente, pe-
la boa vontade e humanismo dos indige-
nistas da década de 1920, tornou-se rapi-
damente um instrumento de opressão.
Foram criadas prisões indígenas e a puni-
ção e o cumprimento da pena deixaram
de ser controlados pelo Poder Judiciário,
de tal forma que a agência indigenista ofi-
cial, na época o Serviço de Proteção ao
índio - SPI -, órgão do Poder Executivo,
passou a exercer a judicatura, apenando
segundo o critério do inspetor e proceden-
do a fiscalização do cumprimento da pe-
na, isto é, fiscalizando a si mesmo.
Como o Código Penal de 1940o
tratou do assunto, permitiu que essa prá-
tica se prolongasse até a década de 60,
quando tantos eo aberrantes atos de cor-
rupção, desmandos e injustiças foram co-
metidos pelo SPI, que, sob pressão da so-
ciedade civil e da comunidade científica
nacional e internacional, a então ditadura
militar houve por bem fechá-lo, e com ele
alguns instrumentos de visível opressão, co-
mo as prisões indígenas, criando, em 1967,
um novo órgão, a FUNAI - Fundação Na-
cional do índio - que vinte anos depois já
estavao corrupto e desacreditado quanto
o seu antecessor.
O sistema jurídico brasileiroo admite
a existência de outros sistemas paralelos
que impliquem em jurisdição e aplicação
de lei fora do Poder Judiciário. Entretan-
to, durante quarenta anos conviveu com
o sistema punitivo, formas oficiais de pu-
nição aos índios,o apenas com leis pró-
prias, mas com um completo sistema pe-
nitenciário especial, com autoridades e
procedimentos alheios às leis do país, mas
extremamente eficiente e temido. Ao con-
trário do que ocorria com os escravos no
século passado, que emborao tivessem
seu direito expresso nas leis do país, o ti-
nham respeitado na jurisdição, os índios do
século XX brasileiro tinham seus direitos
estabelecidos em leis, mas para eles havia
um sistema judiciário próprio, autoritário,
marginal e cruel.
A lei vigente
Em 1973, seguindo o fechamento do
SPI e as alterações na política indigenista
oficial, o Estado brasileiro tratou de elabo-
rar uma nova lei geral para os índios, e foi
editado o Estatuto do índio, Lei 6.001, de
19 de dezembro de 1973. Trata o Título V
das normas penais, sobre os crimes prati-
cados por índios e dos praticados contra
os índios. O artigo 56 estabelece que na
condenação por infração penal o índio te-
rá sua pena atenuada e na aplicação será
levado em conta o grau de integração do
índio. Textualmente: "No caso de conde-
nação de índio por infração penal, a pena
deverá ser atenuada e na aplicação o juiz
atenderá também ao grau de integração do
silvícola".
A leitura simples e direta do dispositi-
vo legal nos remete à vontade do legisla-
dor de dar aos índios um tratamento dife-
renciado no julgamento da ação ou
omissão criminosa dos índios, que, só pe-
lo fato de sê-lo, deverão ter a pena atenua-
da. Na aplicação da pena atenuada, de-
verá o juiz atender ao grau de integração.
Quer dizer, em qualquer hipótese, o índio
terá sua pena atenuada, conforme expres-
samente determina o texto legal, e de acor-
do com o seu grau de integração a aplica-
ção será minorada.o é este o
entendimento dos Tribunais, como vere-
mos adiante, nem de alguns comentaris-
tas que procuram minorar este dispositivo
de tal forma que o transforma em letra
morta para o sistema jurídico nacional, co-
mo, por exemplo, Ismael Marinho Falcão,
que em seus comentários diz que esta ate-
nuante somente poderá ser aplicada se ou-
tra atenuanteo houver, de tal forma que
o juiz somente deve aplicar esta regra se
o puder aplicar nenhuma atenuante do
Código Penal
14
, e o afirma sem maiores
explicações, aparentemente com o único
propósito de dificultar a sua aplicação^
Estabelece também o Estatuto do ín-
dio que as penas de reclusão e de deten-
ção aplicadas aos índios serão cumpridas,
se possível, em regime especial de semi-
-liberdade, em local próximo à habitação
do condenado. Novamente aqui, a inter-
pretação dos comentaristas e dos Tribunais
é no sentido de queo se aplica a qual-
quer índio, mas somente àqueles queo
estejam integrados à "civilização".
Raro desvelo do Direito, quando a lei
garante uma regalia a um índio, mesmo
que se trate de uma mínima melhoria na
aplicação de pena, que significa uma di-
minuição, ou facilitação na execução, há
imediatamente o intérprete e o julgador pa-
ra dizer que a leio quiz dizer isto, que
aquela regalia é um equívoco eo pode
ser aplicada. Entretanto, enquantoo se
aplicava a lei e se punia por meio de es-
truturas extra-judiciais, cruéis e desumanas
como fazia o antigo SPI,o havia enten-
dimento oficial, doutrinária ou jurispruden-
cial, discordante, e o Direito se mantinha
em um silêncio envergonhado.
Finalmente, o Estatuto do índio tolera
- e utiliza esta expressão - a aplicação de
penas pelos grupos tribais, desde queo
tenham caráter infamante ou cruel eo
sejam de morte. Esta aceitação se dá ape-
nas quando a sanção é dirigida a membros
do próprio grupo.
A ideologia integracionista e a
lei
o é comum encontrar nas coleções
de julgados dos Tribunais Superiores bra-
sileiros decisões sobre crimes praticados por
índios, o que demonstra que na maior par-
te das vezes sequer é considerado o fato
do agente ser um índio. Por outro lado, a
maior parte dos julgamentos se encerra na
primeira instância, de tal forma queo
apreciados pelos Tribunais Superiores na-
da mais que questões formais, onde os
problemas de cunho étnicooo leva-
dos em conta. Esta dificuldade é acresci-
da pelo fato de que durante todo o perío-
do inaugurado com a lei de 1928 até o
Estatuto do índio em 1973, os índios eram
diretamente punidos pela agência indige-
nista oficial, praticamente sem intervenção
do sistema oficial de punição do Estado,
o Poder Judiciário.
Nos poucos casos que chegaram aos
Tribunais Superiores, porém, é pacífica a
decisão deo serem aplicada as regalias
oriundas da origem étnica, com o argu-
mento de que, nos casos concretos, os
agentes já estariam suficientemente "acul-
turados". Este raciocínio revela o velho pre-
conceito claramente estabelecido nas leis
imperiais de que o ideal para o índio é vi-
ver sob a proteção da "justa, humana, pa-
cífica e doce" sociedade brasileira. Quer di-
zer, o índio, na medida em que vai
conhecendo a "civilização", a "cultura", vai
dela se abeberando e se transformando em
um civilizado, deixando, por isso de ser
índio.
Porém, a leitura atenta das recentes leis
brasileiras sobre a matéria, especialmente
o Estatuto do índio, de 1973, e a Consti-
tuição Federal, de 1988, nos indica que a
leio adota mais o princípio assimilacio-
nista, apesar de alguns escorregões oficiais.
Diz o estatuto do índio que "índio ou
silvícola é todo indivíduo de origem e as-
cendência pré-colombiana que se identifi-
ca e é identificado como pertencente a um
grupo étnico cujas características culturais
o distinguem da sociedade nacional" (Ar-
tigo 3? do Estatuto do índio). Ainda que
possa haver divergência quanto à precisão
antropológica do conceito,o há dúvida
quanto a: 1. haver sinonímia legal entre ín-
dio e silvícola; 2. independe do grau de re-
lação com a sociedade e cultura envolvente
para a pessoa ser considerada índio; 3. se
define um índio, principalmente, pela sua
identidade com um grupo étnico e pelo re-
conhecimento que este mesmo grupo faz
do indivíduo, desde que o grupo tenha as-
cendência pré-colombiana.
Admite o artigo 4? do Estatuto que
existem três espécies de índios: isolados -
sem contato -; em vias de integração; e in-
tegrados - "quando incorporados à comu-
nhão nacional e reconhecidos no pleno
exercício dos direitos civis, ainda que con-
servem usos, costumes e tradições carac-
terísticos de sua cultura". As três espécies,
porém, atendem pelo nome genérico de
índios.
Isto equivale a dizer que quando ou-
tras leis dizem índios, estão se referindo ao
conceito genérico do artigo 3?; se preten-
dem se referir a qualquer das outras cate-
gorias, deverão agregar o adjetivo "isola-
do", "em via de integração" ou "integrado".
Assim é, por exemplo, a lei que trata da
responsabilidade civil, ao afirmar queo
relativamente incapazes os silvícolas até
que seo adaptando à "civilização do
país". Esta afirmação de 1916, traduzida
para o entendimento do Estatuto significa
"até que sejam integrados". Absolutamente
o se refere a isto a lei penal, em nenhum
dispositivo, salvo no já derrogado Decreto
de 1928, que, de resto, praticamente ex-
cluía as ações ou omissões criminosas de
índios da apreciação judicial. Já vimos que
o Código Penal de 1940, por pudor,o
se refere a índios, e o Estatuto que trata
da punição de crimes por eles cometidos
o diz que deve ser considerada a dife-
rença entre isolados ou aculturados na apli-
cação de pena. Ao contrário, deixa claro
que os índios - genericamente - terão tra-
tamento especial na aplicação de penas e
julgamento dos crimes por eles praticados.
Os poucos comentaristas que se aven-
turaram a tratar desta espinhosa matéria di-
zem claramente o contrário, como já vimos.
Os Tribunais Superiores, igualmente, jul-
gam como se a lei dissesse o queo diz
e, invariavelmente, analisam o grau de in-
tegração do índio, quando o que deveria
ser analisado, para a correta aplicação da-
quela norma penal, seriao somente se
existe o grupo indígena ao qual aquele in-
divíduo diz pertencer, e se o grupo o re-
conhece e o identifica. Em outras palavras,
a indagação deveria ser apenas se aquele
Parlamentares
constituintes
viajaram até a aldeia
dos Gorotire (PA)
para uma audiência
pública com os
índios. Foto
Eduardo Leão/Cimi.
Direitos dos índios
As referências constitucionais aos direitos in-
dígenaso as seguintes:
NO TÍTULO III - DA ORGANIZAÇÃO DO
ESTADO:
CAPÍTULO II - DA UNIÃO
art. 20 -o bens da União:
XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios
art. 22 - Compete primitivamente à União le-
gislar sobre:
XIV - populações indígenas;
NO TÍTULO IV - DA ORGANIZAÇÃO DOS
PODERES
CAPÍTULO I - DO PODER LEGISLATIVO
SEÇÃO II - DAS ATRIBUIÇÕES DO CON-
GRESSO NACIONAL
art. 49 - É da competência exclusiva do Con-
gresso Nacional:
XVI - autorizar, em terras indígenas, a explo-
ração e o aproveitamento de recursos hídricos
e a pesquisa e lavra de riquezas minerais;
CAPÍTULO III - DO PODER JUDICIÁRIO
SEÇÃO IV - DOS TRIBUNAIS REGIONAIS
FEDERAIS E DOS JUÍZES FEDERAIS
art. 109 - Aos juízes federais compete proces-
sar e julgar:
XI - a disputa sobre direitos indígenas
CAPÍTULO IV - DAS FUNÇÕES ESSEN-
CIAIS JUSTIÇA
SEÇÃO I - DO MINISTÉRIO PÚBLICO
art. 129 -o funções institucionais do Minis-
tério Público:
V - defender judicialmente os direitos e inte-
resses das populações indígenas;
NO TÍTULO VII - DA ORDEM ECONÓMICA
E FINANCEIRA
CAPÍTULO I - DOS PRINCÍPIOS GERAIS DA
ATIVIDADE ECONÓMICA
art. 176 - As jazidas, em lavras ou não, e de-
mais recursos minerais e os potenciais de ener-
gia hidráulica constituem propriedade distinta
da do solo, para efeito de exploração ou apro-
veitamento, e pertencem à União, garantida ao
concessionário a propriedade do produto da
lavra.
1. - A pesquisa e a lavra de recursos minerais
e o aproveitamento dos potenciais a que se re-
fere o capítulo deste artigo somente poderão
ser efetuados mediante a autorização ou con-
cessão da União, no interesse nacional, por
brasileiros ou empresa brasileira de capital na-
cional, na forma da lei, que estabelecerá as
condições específicas quando essas atividades
se desenvolverem em faixa de fronteira ou ter-
ras indígenas.
NO TÍTULO VIII - DA ORDEM SOCIAL
CAPÍTULO III - DA EDUCAÇÃO, DA CUL-
TURA E DO DESPORTO
SEÇÃO I - DA EDUCAÇÃO
art. 210 - Serão fixados conteúdos mínimos pa-
ra o ensino fundamental, de maneira a asse-
gurar formação básica comum e respeito aos
valores culturais e artísticos, nacionais e re-
gionais.
2. O ensino fundamental regular será ministra-
do em língua portuguesa, assegurada às comu-
indivíduo é índio, no conceito da lei.
Na raiz desta visão, queo consegue
ler o que a lei diz, está a ideologia integra-
cionista, à qual se filiaram sempre o Direi-
to e o Estado brasileiros, como consequên-
cia direta do pensamento dominante.
Exatamente por isso éo difícil para co-
mentaristas e juízes entenderem porque os
índios devem ter regalias apenas porque
o índios. Na visão dominante, a única
justificativa para atenuar as penas e mino-
rar os efeitos de sua aplicação aos índios,
é o fato de que eles teriam um entendi-
mento incompleto do caráter delituoso, por
falta de compreensão das regras sociais e,
numa visão que chega ao limite do racis-
nidades indígenas também a utilização de suas
línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem.
SEÇÃO II - DA CULTURA
art. 215-0 Estado garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e acesso às fon-
tes da cultura nacional, e apoiará e incentiva-
rá a valorização e a difusão das manifestações
culturais.
1 - O Estado protegerá as manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras,
e das de outros grupos participantes do pro-
cesso civilizatório nacional.
CAPÍTULO VIII - "DOS ÍNDIOS"
art. 231 -o reconhecidos aos índios sua or-
ganização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre terras
que tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e fazer respeitar
todos os seus bens.
1.o terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios as por eles habitadas em caráter perma-
nente, as utilizadas para suas atividades pro-
dutivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem es-
tar e as necessárias a sua reprodução física e
cultural, segundo seus usos, costumes e tra-
dições.
2. As terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios destinam-se a sua posse permanente,
cabendo-lhes o usufruto exclusivo das rique-
zas do solo, dos rios dos lagos nelas existentes.
3. O aproveitamento dos recursos hídricos, in-
cluídos os potenciais energéticos, a pesquisa
e a lavra das riquezas minerais em terras indí-
genas só podem ser efetivadas com autoiiza-
ção do Congresso Nacional, ouvidas as comu-
nidades afetadas. ficando-lhes assegurada
participação nos resultados das lavras, na for-
ma de lei.
4. As terras de que trata este artigoo inalie-
náveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas
o imprescritíveis.
5. É vedada a remoção dos grupos indígenas
de suas terras, salvo, ad referendum do Con-
gresso Nacional, em caso de catástrofe ou epi-
demia que ponha em risco sua população, ou
no interesse da soberania do País, após deli-
beração do Congresso, garantindo em qual-
quer hipótese, o retomo imediato logo que ces-
se o risco.
6.o nulos e extintos,o produzindo efei-
tos jurídicos, os atos que tenham por objeto a
ocupação, o domínio e a posse das terras a que
se refere este artigo, ou a exploração das rique
zas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes, ressalvado relevante interesse-
blico da União, segundo o que dispuser lei
complementar,o gerando a nulidade e a ex-
tinção do direito à indenização ou a ações con-
tra a União, salvo, na forma da lei, quanto às
benfeitorias derivadas da ocupação de boa.
7.o se aplica às terras indígenas o disposto
no art. 174, 3. e 4.
art. 232 - Os índios, suas comunidades e or-
ganizaçõeso partes legítimas para ingressar
em juízo em defesa de seus direitos e interes-
ses, intervindo o Ministério Público em todos
os atos do processo.
NO "ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITU-
CIONAIS TRANSITÓRIAS"
art. 67 - A União concluirá a demarcação das
terras indígenas no prazo de cinco anos a par-
tir da promulgação da Constituição.
Fonte: Constituição da República Federativa do
Brasil
mo, por inferioridade ética ou mental. A
ideologia dominanteo consegue enten-
der que os índios pertencem a outra so-
ciedade, cultural e organizativamente dife-
renciada, de tal forma que o tipo de pena
e a forma de seu cumprimento devem tam-
m ser diferenciados. E é isto que preten-
de dizer o Estatuto do índio, jamais en-
tendido.
Ainda mais clara que o Estatuto, tal-
vez porque mais recente, a Constituição Fe-
deral de 1988 reconhece esta diferença,
emborao trate da questão criminal. Diz
o artigo 231, da Constituição: "São reco-
nhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e
os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e fazer respei-
tar todos os seus bens". Apesar desta cla-
reza, desta declaração de princípio, o pró-
prio Estado tem sido o algoz das terras
indígenas, dos seus direitos e de sua vida.
Jáo me refiro ao Estado brasileiro do
século passado, ou do Império, que decla-
rava guerra de conquista aos índios, mas
ao Estado brasileiro de 1990, que vê pas-
sivo o povo Yanomami sucumbir às doen-
ças, invasões e rapina a que estão sujeitos.
Assim o Estado, apesar de suas leis,
tem tido uma dramática, cruel e genocida
política em relação aos índios, mas tem,
invariavelmente, apresentado um-discurso
pluralista, liberal e democrático, elevando
à categoria de sistema um direito envergo-
nhado, que liberta os índios da escravidão,
mas o intérprete lê como se fosse aplica-
ção da tutela orfanológica, dá tratamento
diferenciado na aplicação e execução da
pena, e o julgador entende como reconhe-
cimento de inferioridade ética e um estí-
mulo à integração, dá total garantia a suas
terras, e a administração pública autoriza
invasões e decreta reduções de áreas. Na
divergência entre o discurso e prática, en-
tre o Direito e o Processo, a vergonha da
sociedade dividida e cruel fica encoberta
pela falaciosa marca da injustiça.
Notas
* Trabalho preparado originalmente para o "Encuen-
tro Taller sobre la Administración de la Justicia Pe-
nal y los Pueblos Indígenas en América, San José,
Costa Rica", em 1990, organizado pelo Instituto In-
teramericano de Derechos Humanos. Ampliado pa-
ra publicação em maio de 1992.
01. cf. Ramos, Alcida Rita - 1986 - Sociedades
Indígenas.o Paulo, Ed. Ática.
02. Melarti, Júlio Cezar 1980 índios do Bra-
sil,o Paulo, Ed. Hucitec.
03. cf. Las Casas. Bartolomé - 1985 - Obra In-
digenista, Madrid, Alianza Editorial.
04. cf. Gonzaga, João Bernardino s/d O Di-
reito Penal Indígena à Época do Descobrimento,
o Paulo, Editora Loyola.
05. A organização Internacional do Trabalho apro-
vou em 7 de junho de 1989, em Genebra, nova
Convenção sobre povos indígenas e tribais em paí-
ses independentes, de n? 169, regulando a relação
entre os direitos dos povos indígenas e o direito es-
tatal com o seguinte dispositivo: "Ao aplicar a legis-
lação nacional aos povos interessados deverão ser
tomadas devidamente em consideração seus cos-
tumes, o seu direito consuetudinário. A Convenção
n? 169 está em processo de ratificação pelo siste-
ma jurídico brasileiro.
06. cf. Souza Filho, C. F. Marés de, et alii - 1988
índios e Negros: no Cativeiro da História, Rio
de Janeiro, Col. Seminários. Ed. AJUP.
07. Beviláqua, Clóvis 1896 "Instituições e cos-
tumes jurídicos dos indígenas brasileiros ao tempo
da conquista" in Criminologia e Direito, Bahia, Li-
vraria Magalhães.
08. Cunha, Manuela Carneiro da 1986 An-
tropologia do Brasil,o Paulo, Editora Brasiliense.
09. Cunha, Manuela Carneiro da 1986 An-
tropologia do Brasil,o Paulo, Editora Brasiliense.
10. cf. O Direito, vol. 79, ano 27, Rio de Janeiro,
1899, p. 781.
11. cf. Código Penal Brasileiro,o Paulo, Edito-
ra Sugestões Literárias, 1979, p. 32.
12. cf. Hungria, Nelson 1958 Comentários
ao Código Penal. vol. I, tomo II, Rio de Janeiro,
Editora Forense, 4? ed., p. 336.
13. idem ibidem, p. 337.
14. cf. Falcão, Ismael Marinho - 1985 - O Esta-
tuto do índio Comentado, Brasília, Ed. Senado
Federal.
"Homem Camacan-
Mongoio" e "Mulher
Camacan-Mongoio",
Jean Baptiste Debret,
s/d, aquarela s/
papel. Museus
Castro Maia. Foto
Eduardo Mello.
"índios Bororó de
Vila Maria",
Hercules Florence,
1827. nanquim
a pena. Coleção
Cyrillo Hercules
Florence. Foto in
"História dos
índios no Brasil".
O amor trágico e infeliz de uma índia por um português é tema do poema épico Caramuru. Meirelles -
-em "Moema"- registra o momento em que o corpo da jovem e sedutora indígena é lançado à praia,
trazido pelas ondas, após lutar com o mar. "Moema". Victor Meirelles de Lima, óleo s/ tela, 1866.
Museu de Arte deo Paulo Assis Chateaubriand. Foto Luiz Hossaka.
A escultura "Caramuru" é inspirada no episódio do tiro de trabuco do poema épico escrito no início
do século XIX por Frei José de Santa Rita Durão. O poema fala da vida de um marinheiro português
náufrago que teria vivido por mais de 50 anos entre os Tupinambá. "O Caramuru". Eduardo de,
bronze, s/d. Museu Histórico Nacional. Foto Rómulo Fialdini/Banco Safra.
No início dos anos 40, Cândido Portinari realiza um conjunto de 25 pranchas para ilustrar o livro "A
Verdadeira História" de Hans Staden. Procurando-se distanciar das representações idílicas e
folclorizadas dos índios. Portinari busca uma leitura profunda e fiel da obra de Hans Staden. Os
desenhos, entretanto,o recusados pelo editor, sob a alegação de que apresentavam uma "ênfase
demasiada à carnificina e à brutalidade". "Restos de Homem", Cândido Portinari, desenho a nanquim
bico-de-pena/papel, 1941. Coleção João Cândido Portinari. Publicado Revista Nossa América.
"índios Xavantes na
Missãoo Marcos".
Baendercck Sepp,
óleo s/ tela, 1976.
Museu de Arte de
o Paulo Assis
Chateaubriand. Foto
Luiz Hossaka.
"Comei-vos uns aos outros", Clécio Penedo, grafite e lápis de cor, s/d. Coleção Clécio Penedo.
ÍNDIOS DO PRESENTE E DO FUTURO
As mulheres Kayapó dedicam grande parte de seu tempo à
pintura de seus corpos. A pintura expressa, de maneira
formal e sintética, a compreensão Kayapó de sua cosmologia
e estrutura social, das manifestações biológicas e de suas
relações com a natureza. Atendendo pedido da etnóloga. as
mulheres executaram motivos da pintura corporal no papel.
Fotos e pranchas coletadas por Lux Vidal. Publicado em
"Grafismo Indígena".
O índio e a modernidade
Washington Novaes
É preciso começar com uma advertên-
cia: o que se vai ver aquio é, nem pre-
tende ser, uma visão científica da questão
do índio diante da modernidade.o é
uma visão das chamadas ciências sociais.
E apenas o relato despretensioso de quem,
por força da atividade como jornalista, co-
mo documentarista, teve o privilégio da
convivência com alguns grupos indígenas
na Amazónia, no Centro-Oeste e no Sul
do país, alguns deles ainda na força de sua
cultura, antes do massacre determinado
pela convivência forçada com outras
culturas.
Ao fim de muitos anos de convivência
e observação, resta a convicção muito for-
te de que nas culturas indígenas se encon-
tram muitos traços, muitas direções, de
uma verdadeira modernidade.
o significa que se proponha um re-
torno coletivo à condição de índios - nem
teríamos competências para isso. Signifi-
ca que o encontro de uma verdadeira mo-
dernidade, no caso brasileiro, exige a rein-
corporação de muitos modos de ser e de
viver encontráveis nas culturas indígenas,
da organização política à organização so-
cial e ao relacionamento com o meio am-
biente. Tal reencontro, além do mais, nos
permitiria valorizar, realçar, desfrutar de
nossa incomparável diversidade cultural -
temos ainda umas 150 culturas -, hoje des-
prezada e esmagada, e da nossa diversi-
dade biológica.
Poderíamos, se caminharmos nessa di-
reção, escapar às visões que a maioria da
sociedade brasileira tem hoje do índio. Uma
parte dos brasileiros sequer entende ou ad-
mite que se demarquem terras indígenas
e se cogite da preservação dos grupos, sob
o argumento de que se trata de indivíduos
improdutivos, obstáculos ao "progresso" ou
ao "desenvolvimento", numa hora em que
tantas pessoas vivem na miséria. Outra par-
te, numa visão condescendente, admite a
demarcação, embora aqui e ali invoque a
necessidade de "compatibilizar" a preser-
vação com outros interesses nacionais, se-
jam eles o "desenvolvimento", a manuten-
ção da soberania ou "um limite de terra por
índio". Uma terceira parcela de brasileiros,
minoritária, defende a demarcação das
áreas indígenas como um direito constitu-
cional, ao mesmo tempo em que procla-
ma o direito dos indígenas à existência e
à diferença cultural.
Quanto à primeira visão,o é difícil
lembrar que transfere para o índio a res-
ponsabilidade por injustiças sociais que de-
vem ser localizadas em outros grupos so-
ciais - pois essa visãoo contesta nenhum
outro tipo de propriedade de terras, seja
qual for a extensão ou a utilização do pa-
trimónio. A segunda visão tambémo re-
siste a confronto, na medida em que o ar-
gumento da ressalva só é invocado quando
se trata de índios e deslembrando que sua
posse da terra é imemorial, numa socie-
dade que admite até a propriedade por
usucapião, após duas décadas de posse
por não-índios. E mesmo a visão mais ge-
nerosa, que proclama o direito à existên-
cia e à diferença cultural, talvez precise ser
completada com outra visão: a do direito
à semelhança, lembrado, por exemplo, pe-
lo prof. Kabengele Munanga, da Universi-
dade deo Paulo, elepróprio um discri-
minado racial na sua Africa. Diz o prof.
Munanga que o racista agride e mata por
o admitir o direito à semelhança, à pos-
sibilidade de o discriminado fazer o que ele,
racista, é capaz de fazer profissionalmen-
te, à possibilidade de esse discriminado
ocupar o lugar dele, racista. Nada mais ver-
dadeiro em relação ao índio: é a cobiça por
sua terra e pelo que nela se encontra que
explica a negação de seus direitos, da mes-
ma forma que em outros tempos foi o de-
sejo de transformá-lo em escravo, de apro-
priação do seu trabalho. E a tal ponto que
foi preciso um papa proclamar que índio
também tinha alma para negar o "direito"
de morte sobre ele.
Será indispensável, entretanto, que a
sociedade brasileira - para mudar sua vi-
o -, além de ser informada corretamen-
te sobre a questão indígena e os direitos
dos 250 mil índios remanescentes, tome
A ignorância inicial desse sistemao
sofisticado quase custou a Orlando e seu
irmão Cláudio as próprias vidas. Porque na
aproximação com um grupo aindao
contatado, no Xingu, levaram apenas pre-
sentes que interessavam aos homens - ma-
chados, anzóis etc. Indignadas, todas as
mulheres da aldeia se foram. Os homens
tentaram atraí-las preparando comidas e
chamando-as - elas pisotearam as comidas
e se foram de novo. Furiosos, os homens
resolveram culpar Orlando, Cláudio e seus
companheiros - que só escaparam porque
uma velha se apiedou.
Da mesma forma que se pode falar
nessa singularíssima relação entre os sexos,
pode-se falar na relação entre adultos e
crianças, ou entre a sociedade e os idosos.
Um índioo grita com crianças,
quanto mais espancá-las. A paciência de
um pai ou umae podem ser quase in-
finitas, ainda que a criança ateie fogo à
casa.
O velho continuará morando em sua
casa, relacionando-se com'seus descen-
dentes, e provendo ele próprio suas neces-
sidades. Será ouvido pelos mais novos,
que respeitarão sua experiência.
O produto final dessas relações políti-
cas e sociais será uma organização da qual
estarão ausentes muitas das instituições
que constituem exatamente as mazelas da
nossa sociedade - o asilo de velhos, o or-
fanato, o bordel, a cadeia.
Será ainda uma sociedade capaz de
relacionar-se com seu ambiente de modo
muito mais adequado que as culturas di-
tas civilizadas. Basta olhar o mapa mundi
e conferir onde estão, no nosso planeta,
as manchas preservadas - lá estarão "ín-
dios". Uma das razões fundamentais está
na prudência emo promover concen-
trações demográficas além de certos limi-
tes - e aí se pode lembrar que, em estudos
da ONU. está dito que as comunidades aci-
ma de 10 mil habitantes começam a gerar
A organização do
trabalho nas
comunidades
indígenas se faz a
partir da divisão das
tarefas pelo sexo e
pela idade. Mulheres
Kadiwéu da Aldeia
da Bodoquena (MS)
decoram potes de
cerâmica queo
vendidos no
comércio da região.
Foto Jaime Siqueira.
A atitude dos pais e
pessoas mais velhas
é sempre de grande
tolerância,
paciência, atenção e
respeito às
peculiaridades das
crianças.e
Parakanã com seu
filho. Foto Lux
Vidal.
problemas na prática insolúveis, na medi-
da em que as soluções acarretam outros
problemas que exigem novas soluções
que... uma rosca sem fim.
o é difícil observar todos esses tra-
ços dessas sociedades organizadas de mo-
do verdadeiramente racional e respeitoso:
basta ter a oportunidade de contato com
elas e a capacidade de olhá-las sem pre-
conceitos e sem desejo de enquadrá-las em
outras lógicas. Isso deveria bastar para que
a nossa sociedade as respeitasse eo im-
pedisse sua sobrevivência pacífica. Maso
tem sido assim. O Brasil, dizem os histo-
riadores, tinha cerca de 5 mil culturas di-
ferentes na época do descobrimento. Ho-
je,o cerca de 150 apenas, muitas delas
a caminho da extinção. Só neste século já
desapareceram mais de 100.
Então, é preciso mais. E preciso que
a nossa sociedade tome consciência de sua
necessidade de que as culturas indígenas
sobrevivam e se afirmem. "No dia em que
o houver lugar para o índio no mundo,
o haverá lugar para ninguém", diz Ail-
ton Krenak, da União das Nações Indíge-
nas. Porque seo houver lugar para o ín-
dio, terá desaparecido a possibilidade de
sociedades com as características mencio-
nadas: sem dominação de indivíduo, gru-
pos ou sexo; respeitosa com as crianças,
os idosos e a natureza; respeitosa da liber-
dade de cada pessoa.
Talvez a questão ambiental, bem tra-
tada, possa conduzir-nos nessa direção.
Pode-se partir,, da demarcação de re-
servas.
Ainda há pouco, o governo brasileiro
demarcou e homologou a reserva Yano-
mami, um território de 9,4 milhões de hec-
tares, que, somado à área Yanomami do
lado da Venezuela - formando um territó-
rio contínuo -, constitui um espaço de mais
de 17 milhões de hectares, maior que Por-
tugal, e praticamente intocado.
A importância dessa preservação pa-
ra o Brasil e para a sociedade brasileira é
decisiva. Quando se preserva um ecossis-
tema dessa dimensão, pode-se preservar
todas as cadeias alimentares e reproduti-
vas, eo umas poucas espécies isoladas.
Pode-se, portanto, proteger biodiversidade
num espaço considerável. E a biodiversi-
dade representa a grande possibilidade bra-
sileira nas próximas décadas e séculos. Por-
que dela virão os novos alimentos, os
novos medicamentos, os novos materiais,
queo só atenderão a necessidades ho-
jeo atendidas, como substituirão os ma-
teriais que estão se esgotando (como pe-
tróleo e certos minérios).
"Na biodiversidade, o Primeiro Mun-
do somos nós", lembra a diretora do Jar-
dim Botânico de Brasília, Anajúlia Herin-
ger Salles. Mas advertindo: é preciso saber
o que vamos fazer com essa biodiver-
sidade.
De fato, calcula-se que na Amazónia
brasileira estejam uns 30% da biodiversi-
dade do nosso planeta, milhões de espé-
cies, das quais muito poucas já conheci-
das e estudadas.
Para que possam ser conhecidas e uti-
lizadas adequadamente pela nossa socie-
dade, é preciso que se conservem essas es-
pécies como partes integrantes das cadeias
alimentares e reprodutivas a que todas per-
tencem. E isso é tarefa complexa e custosa.
Um exemplo ajuda a entender. Há al-
guns anos, uma bióloga de Mato Grosso
decidiu estudar a biodiversidade da Cha-
pada dos Guimarães. Para isso, tomou co-
mo ponto de partida três tipos diferentes
de goiabeira que existem ali. Ao fim de
quase dois anos de estudo, havia verifica-
do que cada uma das goiabeiras era ferti-
lizada por agente diferente, pássaros dife-
rentes. E cada uma delas se reproduzia
também por caminhos diversos - uma, es-
palhando suas sementes através das fezes
de um morcego que comia as goiabas; as
outras, via fezes de outros dois tipos de
pássaros.
A bióloga foi estudar então o morce-
go e os cinco pássaros envolvidos na ferti-
lização e na reprodução das goiabeiras. E
verificou que cada um deles também se ali-
mentava de espécies diferentes. Até ai che-
gara seu estudo. Mas já com a certeza de
que, se um dia conseguir finalizar seu es-
tudo, terá envolvido na vida das três goia-
beiras todo o ecossistema da Chapada dos
Guimarães. E precisará estudar, em segui-
da, as relações desse ecossistema com os
ecossistemas confinantes.
Neste ponto, convém ressaltar o que
diz o espanhol José Esquinas Alacazar, que
dirige a Comissão da FAO (Organização
para a Alimentação e a Agricultura, das
Nações Unidas) para Recursos Genéticos
Vegetais: do início deste século para, já
desapareceram mais de metade das varie-
dades dos 20 alimentos mais importantes
para espécie humana, aí incluídos o arroz,
o trigo, o milho, o feijão, a aveia, a ceva-
da, a ervilha. Nos Estados Unidos, nesse
mesmo período, desapareceram 80% das
variedades de frutas e hortigranjeiros.
Processos comerciais de domínio de
mercados via seleção de sementes com
certeza influíram decisivamente. Mas, seja
como for, vamos depender cada vez mais,
no futuro, de novas espécies que, inclusi-
ve por cruzamentos genéticos, produzirão
variedades mais resistentes a pragas e aci-
dentes climáticos (mesmo porque quando
desaparece uma espécie, com ela se per-
dem combinações genéticas únicas, que
respondem por sabores, valores nutritivos,
capacidade de adaptação a solos e clima,
resitência a predadores etc).
Mas, como demonstrou a bióloga
mato-grossense,a preservação das espécies
depende da preservação das cadeias ali-
mentares e reprodutivas, da preservação
do ecossistema como um todo. Uma es-
pécie isolada podeo resistir. Basta ver
o exemplo da tentativa de implantar cas-
tanhais homogéneos, no Pará, com o pro-
pósito de produzir castanhas de modo mais
económico, num espaço fechado. Isoladas
do seu ecossistema, as castanheiras se re-
velaram estéreis.
O Brasil foi o primeiro signatário da
convenção de proteção da biodiversidade,
A morte de um
indivíduo, entre os
índios Bororó,
desencadeia um
longo ciclo de
rituais, danças,
cantos, caçadas e
pescarias coletivas e
representações
cerimoniais, que
m por objetivo
efetuar a passagem
da "alma" para a
aldeia dos mortos e
reorganizar a
sociedade dos vivos.
que perdeu um de
seus membros. Foto
Luís Grupioni.
Yawalapiti toca um
clarinete durante um
dos muitos rituais
realizados no Parque
Indígena do Xingu.
Foto Fred Ribeiro.
na II Conferência da Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento, em ju-
nho de 1992, no Rio de Janeiro.
Como vamos cumprir essa convenção?
O caminho mais simples parece ser exata-
mente demarcando as reservas indígenas.
Mas isso exigirá decisão política e apoio da
sociedade. Das 511 áreas indígenas reco-
nhecidas pela FUNAI, 130 (26% do total)
om sequer estudos para delimitação;
117 (23%) estão delimitadas maso de-
marcadas; 64 (13%) foram demarcadas
mas aguardam homologação. Apenas 190
(38% do total) já estão homologadas, mas
sob ameaça dos que querem fazer uma
"revisão". Pior ainda, o orçamento propos-
to para a FUNAI em 1993 (quando termi-
na, em outubro, o prazo dado pela Cons-
tituição de 1988 para concluir as
demarcações) reserva para as demarcações
menos de 1% dos 110 milhões de dólares
que esse órgão precisa para o trabalho.
Seo nos apressarmos, vamos cor-
rer riscos inaceitáveis. Porque é exatamente
nos grupos indígenas que se concentra o
maior conhecimento, o maior volume de
informações sobre essa biodiversidade. Um
conhecimentoo escrito, que se perde
com a aculturação e com a morte dos mais
velhos ("cada vez que morre um velho nu-
ma tribo africana, é como se se incendias-
se uma biblioteca, escreveu anos atrás um
diplomata da ONU; a frase vale para o
Brasil").
Alguns meses atrás, uma organização
não-governamental calculou em 40 bilhões
de dólares anuais o valor comercial de pro-
dutos (alimentos e medicamentos) cujo co-
nhecimento pertenceu a índios. Mas eles
o receberam um centavo por isso.
Eo apenas eles. Cientistas brasilei-
ros quem descoberto novos medicamen-
tos, alimentos e materiais na nossa biodi-
versidade têm-se visto obrigados a
desenvolvê-los em laboratórios em outros
países, por falta de recursos científicos aqui.
Cada uma dessas descobertas significa de-
zenas de milhões de dólares por ano, co-
mo é o caso das utilizações da reserpina,
da policarpina, do veneno da jararaca (para
controlar os mecanismos da hipertensão
arterial humana).
A convenção de proteção da biodiver-
sidade. ao estabelecer que os países deten-
tores dessa biodiversidadem direito de
participar dos resultados comerciais e cien-
tíficos da descoberta, quebraram regras se-
culares, impostas inicialmente pela força
das armas e depois pelo dinheiro. Mas es-
sa é uma conquista ameaçada por muitos
ângulos - e principalmente pelas ameaças
que pesam sobre os grupos indígenas.
Como a nossa sociedade tem imensa
dificuldade em reconhecer qualquer coisa
queo leve a chancela da ciência, talvez
valha a pena lembrar as páginas iniciais de
O Pensamento Selvagem, de Lévi-
-Strauss. O mestre francês menciona nar-
rativas de numerosos viajantes e naturalis-
tas que conviveram com os ditos primitivos
e mostra a extensão do seu conhecimen-
to sobre a flora, a fauna, o mundo que os
cercava. Conhecimento científico, diz
Lévi-Strauss: "O homem do neolítico ou
da proto-história foi, portanto, o herdeiro
de uma longa tradição científica".
Já no neolítico, diz ele, estava confir-
mado o domínio humano sobre as gran-
des artes da civilização - cerâmica, tecela-
gem, agricultura e domesticação de
animais: "Hoje, ninguém mais pensaria em
explicar essas conquistas imensas pela acu-
mulação fortuita de uma série de achados
feitos por acaso ou revelados pelo espetá-
culo passivamente registrado de determi-
nados fenómenos naturais. Cada uma des-
sas técnicas supõe séculos de observação
ativa e metódica, hipóteses ousadas e con-
troladas, a fim de rejeitá-las ou confirmá-
-las através de experiências incansavelmen-
te repetidas". Da mesma forma, acentua,
no neolítico já se registrava o domínio da
metalurgia do bronze e do ferro e dos me-
tais preciosos, "todas exigindo já uma com-
petência avançada".
Neste ponto, Lévi-Strauss coloca uma
pergunta ainda sem resposta completa: "Se
o espírito que inspirava o homem do neo-
lítico, assim como a todos os seus antepas-
sados, fosse exatamente o mesmo que o
dos modernos, como poderíamos enten-
der que ele tenha parado e que muitos mi-
lénios de estagnação se intercalem, como
um patamar, entre a revolução neolítica e
a ciência contemporânea? O paradoxo ad-
mite apenas uma solução: é que existem
dois modos diferentes de pensamento cien-
tífico, uma e outra funções,o estágios
desiguais de desenvolvimento, do espírito
humano, mas dois níveis estratégicos em
que a natureza se deixa abordar pelo co-
nhecimento científico - um aproximada-
mente ajustado ao da percepção e imagi-
nação, e outro deslocado; como se as
relações necessárias, objeto de toda ciên-
cia, neopolítica ou moderna, pudessem ser
atingidas por dois caminhos diferentes: um
muito próximo da intuição sensível e ou-
tro mais distanciado".
Mais ainda: "Não voltamos à tese vul-
gar segundo a qual a magia seria uma for-
ma tímida e balbuciante de ciência, pois
privar-nos-íamos de todos os meios de
compreender o pensamento mágico se
pretendêssemos reduzi-lo a um momento
ou uma etapa da evolução técnica e cien-
tífica. Mais uma sombra que antecipa seu
corpo, num certo sentido ela é completa
como ele,o acabada e coerente em sua
imaterialidade quanto o ser sólido por ela
simplesmente precedido. O pensamento
mágicoo é uma estreia, um começo, um
esboço, a parte de um todo aindao rea-
lizado; ele forma um sistema bem articu-
lado, independente, nesse ponto, desse ou-
tro sistema que constitui a ciência, salvo a
analogia formal que os aproxima e que faz
do primeiro uma espécie de expressão me-
tafórica do segundo. Portanto, em lugar de
opor ciência e magia, seria melhor colocá-
-las em paralelo, como dois modos de co-
nhecimento desiguais quanto aos resulta-
dos teóricos e práticos (...), maso devido
à espécie de operações mentais que am-
bas supõem que diferem menos na natu-
reza que na função dos tipos de fenóme-
no aos quaiso aplicadas".
E esse conhecimento que está amea-
çado nesta hora crucial para o ser huma-
no, quando as questões fundamentais pa-
recem deslocar-se do campo ideológico
Os índios expressam
momentos
importantes de suas
vidas pintando suas
faces, seus corpos e
seus objetos com
urucum. jenipapo,
carvão, barro e
resinas vegetais e
animais. Mulher
Assurini. Foto Fred
Ribeiro.
A suntuosidade dos
artefatos plumários
feitos pelos índios
brasileiros tem
chamado atenção
desde o tempo do
descobrimento.
Verdadeiras
"roupas" expressam
padrões estéticos e
culturais. índio
Kaapor com
paramentos
plumários. Foto
Foerthmann,l950.
para o campo biológico. Quando uma con-
ferência como a Eco 92 reconhece, pela
palavra de mais de 100 chefes de Estado,
que a sobrevivência do planeta e da espé-
cie humana está em risco, talvez seja para
questões como as colocadas pelas cultu-
ras indígenas que tenhamos de voltar-nos.
E se é assim, é de modernidade que
estamos falando.
No painel "O índio e a modernidade"
que realizamos no Teatro Municipal deo
Paulo, no âmbito desta comissão de direi-
tos dos índios, muitas coisas interessantes
foram ditas.
Marcos Terena, do Comité Intertribal,
começou batendo duro: "Nós, índios, olha-
mos para esse mundo do homem branco
e verificamos que essa civilizaçãoo deu
certo". A seu ver, porque "o homem bran-
co nunca quis escutar a história dos índios;
sempre considerou a história dos índios um
poema, um folclore, uma coisa que era boa
para os índios, era boa para o teatro, para
a música, maso para ser praticada".
Será preciso retomar uma caminhada
interrompida, disse Terena: "Nós vamos
elaborar uma Carta da Terra. Nunca fize-
mos isso, mas agora é preciso fazer por-
que o homem branco que vai discutir o fu-
turo do planeta vai brigar com outro
homem branco, eleso brigar entre eles,
porque um país é rico e o outro é pobre.
O rico quer que o pobre continue pobre,
para ser fonte de matéria prima. E o país
pobre quer virar rico maso tem dinhei-
ro para isso. Tudo gira em torno da eco-
nomia e do dinheiro. Mas na nossa socie-
dadeo existe rico nem pobre."
Sua conclusão: "Vocêso maioria,
s somos apenas 240 mil pessoas. Mas
tudo que está na terra da gente, desde
aquilo que se chama riqueza mineral, vai
ter sentido pra nós, índios, mas só vai ter
sentido pra vocês se vocês souberem de-
cifrar e tentar conjugar a prática do dia-a-
-dia de vocês com a prática das nossas vi-
das. Ou seja, equilíbrio e igualdade.
Igualdade apesar das nossas diferenças."
José Luiz, o chefe xavante, também foi
muito contundente: "O brancoo sabe
o que é natureza,o sabe o que é o rio,
o sabe o que é a árvore,o sabe o que
é montanha,o sabe o que é mar. Para
vocês, o que está existindo na natureza é
a riqueza sua. Ao invés de você respeitar
uma árvore, a floresta, você destrói, você
corta pedaço, você faz seca, você faz tu-
do. O mar, pra que existe o mar, o seu
Deus colocou o mar pra que? Pra você res-
peitar. Mas até hoje vocêso respeitaram
o mar. O que vocês fizeram com o mar?
Jogaram coisas e poluíram esse mar. Vo-
cêo respeita montanhas. Veja lá no Rio,
vocês destruíram todas as montanhas, to-
das as matas."
José Luiz conhece o processo históri-
co de apropriação do conhecimento indí-
gena sobre a biodiversidade. Eo o aceita
mais: "Euo vou ensinar nem um peda-
cinho, porque tudo que está existindo aqui
tiraram de nós, eo devolveram nenhum
para nós, euo vou dar de graça essas
medicinas naturais".
Tambémo aceita mais conceitos e
Existem cerca de 50
grupos isolados na
Amazónia,
praticamente sem
contato com
segmentos da nossa
sociedade. Um
grupo de Zoé volta
do igarapé onde
buscou água. Foto
Luís Grupioni.
Os índios estão
buscando formas
mais equilibradas de
relacionamento com
a nossa sociedade.
Casal de índios
Suruí participa da I
Assembleia dos
Povos Indígenas de
Rondónia e norte
do Mato Grosso
(1991). Foto António
Queiroz/CIMI.
preconceitos na relação entre "civilizados"
e "índios": "Você vai me dizer: o índio tá
falando mas é selvagem; selvagem é vo-
cês, milhares de anos estudando e nunca
aprenderam a ser civilização. Pra que que
vocês está estudando? Pra destruir a na-
tureza e no fim destruir a própria vida mes-
mo?"
O prof. Sérgio Cardoso recorreu a
Montaigne, à sua descrição de um encon-
tro entre índios e brancos, no século XVI.
para dizer que "vários sinais nos mostram
hoje uma espécie de esgotamento de uma
série de modos, de concepção do social.
concepção do mundo, que nasceram so-
bretudo a partir do século XVII". Para fu-
gir ao esgotamento, pensa ele. é preciso
uma nova postura: "Seo houver essa
atitude de desarmar, de nos desarmar des-
sa escuta (os modos esgotados),o va-
mos simplesmente ter possibilidade de sair
dos nossos impasses".
O prof. Sérgio Cardoso, lembrando
ainda Montaigne, mencionou a estranhe-
za dos índios ao ver que os homens bran-
cos obedeciam a um rei de apenas 13 anos
de idade. E mais estranheza ainda por ve-
rem que uma grande parte dos brancos,
"descarnados pela fome e pela pobreza",
o agarrassem os outros brancos pela gar-
ganta eo ateassem fogo a suas casas.
E enfatizou que Montaigne, já no século
XVI, percebera que as sociedades indíge-
naso "sociedades de liberdade" - socie-
dades diferentes das nossas, em que nos
consideramos "livres sob a lei". Nas socie-
dades indígenas, os indivíduos se conside-
ram "livres no interior da sociedade mes-
ma, eo sob a lei". Moderno, sem dúvida.
A professora Berta Ribeiro, ao mencio-
nar entrevista na qual Lévi-Strauss disse
que "na nossa sociedade tudo se separa",
enquanto nas sociedades indígenas "tudo
é misturado", deu o mote para a fala final,
síntese brilhante, da professora Marilena
Chaui.
A seu ver, dois pontos importantes fo-
ram colocados no painel sobre a moder-
nidade das culturas indígenas: "A primei-
ra é que os índioso modernos no sentido
de que elesm uma cultura, elesm uma
sabedoria, queo é velha,o é arcai-
ca,o é atrasada,o está atrás da nos-
sa, mas é contemporânea a nossa e tem
o mesmo valor, uma valor sob certos as-
pectos maior que o nosso".
Rituais constituem
momentos
importantes que
marcam a
socialização de um
indivíduo ou a
passagem de um
grupo de uma
situação para outra.
Manifestam as
relações entre o
mundo social e o
mundo cósmico.
entre o universal e o
natural. índios
Waiãpi tocam
clarinetes e apitos
durante o ritual do
"'papamel". Foto
Dominique Gallois.
"O outro aspecto é que a modernida-
de dos índiose em questão, nos faz dis-
cutir, qual é o valor da ideia de progresso.
Será que nós, ocidentais,o nos deixa-
mos enganar durante os últimos cinco-
culos com a ideia de progresso, isto é, de
que aquilo que vem depois é melhor do
que aquilo que veio antes?s vimos ho-
je que existem certas perguntas queo
fundamentais para a humanidade. De on-
des viemos? Para ondes vamos? Co-
mo é que uma sociedade se organiza de
modo igualitário? Como é que uma socie-
dade é capaz de respeitar a liberdade de
cada um? Como é que uma sociedade é
capaz de respeitar no seu interior a justi-
ça? Como é que uma sociedade é capaz
de pensar nas crianças como a continui-
dade de sua existência, nos velhos como
preservação da sua memória? Como é que
uma sociedade é capaz de exprimir a re-
lação que ela tem com a natureza, com os
outros seres humanos, com os animais,
com o sagrado, de uma maneira integra-
da?"
A nossa civilização, disse Marilena
Chaui, é "toda compartimentada, toda
fragmentada, toda separada". Enquanto is-
so, na sociedade indígena, "cada ato, ca-
da objeto, cada instituição da sociedade é
sempre uma unidade, e isso é que é fun-
damental na existência dos seres humanos
e talvezs tenhamos perdido inteiramen-
te, justamente porques acreditamos na
ideia do progresso. E que foi o progresso?
O progresso foi a separação de tudo (...)
O que a cultura indígena nos ensina é que
o verdadeiro progresso é a presença disso
que é fundamental, essa integração entre
o sagrado e o profano, o humano e o di-
vino, o humano e a natureza e as relações
de liberdade, justiça, comunidade, igualda-
de entre os próprios seres humanos".
"Seso aprendermos isso", disse
Marilena Chaui, "o xavante terá razão: es-
taremos perdidos".
Nestes tempos em que estamos sen-
do obrigados a reaprender que no nosso
planeta tudo influencia tudo, tudo que se
faz tem consequência em todo o univer-
so, certamente é essa a lição principal. É
para ela que aponta a modernidade do
índio.
As terras indígenas no Brasil
Lux Boelitz Vidal
Informar e envolver cada vez mais seg-
mentos significativos da população,
mobilizá-la mesmo, num movimento de so-
lidariedade para com as populações indí-
genas, apontava, sem dúvida, como uma
tarefa exemplar a ser cumprida durante as
inúmeras manifestações que acompanha-
riam a conferência internacional sobre de-
senvolvimento e meio ambiente da ONU-
a Rio 92 - e as comemorações do V Cen-
tenário - 500 anos de resistência indígena.
Na Cidade deo Paulo, a Comissão
"índios no Brasil" realizou um trabalho pio-
neiro de reflexão e divulgação das ques-
tões fundamentais relativas aos povos in-
dígenas, visando uma construção da
cidadania capaz de promover e incluir o
diálogo cultural e o respeito à diferença.
Paralelamente a estes debates, uma
grande exposição no prédio da Bienal, a
mais completa e abrangente realizada até
hoje sobre índios no Brasil, e duas no Cen-
tro Culturalo Paulo, todas de grande im-
pacto, tanto pela proposta conceituai co-
mo pela beleza do material exposto,
proporcionaram ao grande público da ci-
dade e especialmente à população em ida-
de escolar uma oportunidade única de co-
nhecer melhor a história e as manifestações
culturais dos povos indígenas no Brasil.
Mostrou-se ainda os inúmeros desafios que
estas populações enfrentam no seu dia a
dia para assegurar os seus direitos, a ga-
rantia de suas terras e as possibilidades de
sobrevivência física e cultural, abrindo as-
sim uma possibilidade de compreensão
mútua mais esclarecida e de um compro-
misso assumido em bases mais demo-
cráticas.
A questão indígenao pode ser de-
batida apenas pelos especialistas "aqueles
que entendem do assunto", sob pena de
deixar um perigoso espaço na consciência
social para ser preenchido, seja pelos pre-
conceitos e estereótipos vigentes na popu-
lação brasileira, há séculos, como conse-
quência do processo colonizador, seja pelo
sistema educacional ainda vigente entre
nós. A questão indígena, hoje, está intima-
mente ligada à construção da cidadania em
nosso país e deve se tornar um assunto
compreensível e significativo para o con-
junto da população. Como bem coloca
João Pacheco de Oliveira "isso exige um
exercício de compreensão política da ques-
o indígena referenciando-a ao conjunto
das forças sociais e aos seus eixos de mo-
bilização. Para isso é preciso focalizar o pro-
cesso de dominação a que o índio está su-
jeito, explicitar as condições económicas,
políticas e ideológicas em que isso se,
recuperando inclusive as analogias com a
experiência de vários setores do campesi-
nato e da população urbana" .
Possivelmente, os antropólogos, os in-
digenistas e todos aqueles que apoiam a
causa indígena, especialmente quando pre-
cisavam se opor às contínuas investidas as-
similacionistas por parte do Governo, dos
militares e dos poderes locais, acabaram,
imperceptivelmente, realçando em dema-
sia as diferenças existentes entres e os
índios, acarretando, desta maneira, no-
vel do senso comum, a incapacidade em
distinguir entre o direito à diferença sócio-
-cultural e a posse exclusiva e comunitária
da terra por um lado e o direito à cidada-
nia plena por outro lado, direitos estes que
o se excluem e hojeo reconhecidos
na Constituição.
Quemo ouviu, inúmeras vezes, fra-
ses simplistas e polarizadas, proferidas mes-
mo por pessoas esclarecidas quando opi-
nam sobre outros assuntos da política
nacional: "deixem estes índios coitados
tranquilos, viverem do seu jeito, lá no lu-
gar deles", deixando de reconhecer, assim,
que os índios vivem hoje, em um contex-
to multi-étnico, em interação contínua, pelo
menos na sua maioria, com a comunida-
de nacional e com necessidades básicas
iguais ao resto da população. Ou ainda:
"Estes índios já é tudo igual a civilizado,o
existe mais índio puro, inocente. Eu li na
Veja, estes dias, que até carro eles com-
pram, hoje é tudo safado". Neste caso, "in-
índios Kayapó
lideram a vigília
realizada por
diferentes povos
indígenas durante as
negociações do
capítulo dos índios
na Constituinte.
Destacam-se o
cacique Raoni e o
coronel Tutu Pombo.
falecido
recentemente. Foto
Luís Grupioni.
felizmente",o há mais o que fazer, a
questão indígena perdeu a sua especifici-
dade exótica, a única merecedora de uma
atenção diferenciada. Consequência: iso-
lamento e segregação.
Esta falta de consciência social por con-
veniência ou omissão, contrasta com dois
outros aspectos relativos à questão in-
dígena.
De um lado,
1
os inegáveis avanços
obtidos no nível institucional, na Constitui-
ção Federal, bastante favorável aos índios,
e no compromisso do Ministério Público na
defesa dos direitos indígenas.
2
A quanti-
dade e qualidade do conhecimento pro-
duzido nestes últimos anos tanto pela an-
tropologia como pelas entidades de apoio,
especialmente com relação às terras indí-
genas e às situações diferenciadas de con-
tato e articulação entre comunidades indí-
genas e sociedade nacional.
3
A
importância do movimento e das organi-
zações indígenas, cada vez mais atuantes,
no nível regional e nacional.
Por outro lado, uma vida cada vez mais
difícil para os índios, nas aldeias e nas Re-
servas. Situações dramáticas, devido aos
incessantes conflitos com invasores, mor-
tes violentas e falta total de recursos para
as necessidades básicas como saúde, edu-
cação, transporte e mesmo alimentação.
Abandonados a sua sorte, os índios acei-
tam. a troca de indenizações pouco escla-
recidas e de alguma assistência, a implan-
tação de projetos estatais e privados em
seus territórios ou sucumbem às investidas,
ainda mais agressivas, de madeireiras e ga-
rimpeiros. Persiste também a resistência
crónica por parte dos militares, dos gover-
nadores e políticos do norte do país e dos
adeptos de um nacionalismo exacerbado,
em reconhecer e apoiar as demarcações
das terras indígenas, insistindo, e apesar de
todas as evidências em contrário, em uma
política assimilacionista, cujo nome é et-
nocídio.
Estes diferentes aspectos da questão in-
dígenao evoluem da mesma forma e
parecem cada um per si, pertencer a esfe-
ras distintas da realidade: a mentalidade
preguiçosa que se contenta em reproduzir
apenas estereótipos e clichés seculares; a
dinâmica progressista do movimento indí-
gena e das entidades de apoio em produ-
zir de maneira articulada subsídios para
uma verdadeira consolidação democráti-
ca das instituições; a visão anacrónica de
militares e nacionalistas e a barbárie, a ga-
nância, a lei do mais forte que prevalecem
no campo e nas reservas indígenas onde
invasores inescrupulosos submetem os ter-
ritórios indígenas a um verdadeiro saque,
índios assistem a
votação do capítulo
da Constituição
referente a seus
direitos. Congresso
Nacional, Brasília.
Fotos Castro
Júnior/ADIRP.
deixando no seu rastro a destruição am-
biental, a miséria e a desorganização so-
cial.
Em resumo, o avanço obtido no cam-
po das instituições e do conhecimentoo
corresponde a uma melhora real da situa-
ção vivida pelas comunidades indígenas,
no seu cotidiano. E esta situação, infeliz-
mente, tende a piorar.
Considerações preliminares
Estima-se que vivem hoje no Brasil
250.000 índios aproximadamente, rema-
nescentes de uma população calculada em
milhões na época da chegada dos eu-
ropeus.
o 200 grupos étnicos que habitam
áreas ecológicas diversas e que falam mais
de 170 línguas e dialetos.
As sociedades indígenas no Brasilo
extremamente diversificadas entre si: viven-
ciam processos históricos distintos eo
portadoras de tradições culturais espe-
cíficas.
A diversidade destas sociedades indí-
genas é consequência também da existên-
cia de diferentes situações de contato com
segmentos da sociedade brasileira, queo
desde a total ausência de contato (como
o grupo tupi do rio Cuminapanema, a 300
km ao norte de Santarém, Pará) até gru-
pos que convivem com a sociedade evol-
vente há séculos (é o caso das sociedades
indígenas do nordeste, por exemplo, cer-
ca de 32.000 indivíduos, aproximadamen-
te, e que sob muitos aspectos pouco se di-
ferenciam da população regional).
Estes grupos indígenas vivem distribuí-
dos em todo o território brasileiro, sendo
que 60% concentram-se na Amazónia,
área de refúgio, onde foi mais recente a pe-
netração das frentes de expansão.
Mesmo se alguns grupos contam com
contingentes populacionais elevados, co-
mo os Ticuna do Alto Solimões, os Yano-
mami e Macuxi de Roraima, os Tukano do
Alto Rio Negro e outros, é importante fri-
sar que as sociedades indígenas no Brasil
são, em geral, pequenas. Sua reprodução
culturalo depende de grandes efetivos
demográficos, mas exige dada a ênfase na
caça, pesca e coleta e mesmo agricultura
itinerante, territórios extensos e que, seja
dito de passagem, os índios souberam pre-
servar quandoo pressionados irremedia-
velmente pelas frentes de penetração.
Por outro lado, em alguns municípios,
como em Roraima, Alto Solimões, Oiapo-
que e outros, a população rural é maciça-
mente indígena e reconhecidamente pro-
dutiva.
E importante lembrar ainda que ape-
sar de representar uma parte ínfima da po-
Mais de 350
lideranças
representando 101
povos indígenas se
reuniram em
Luziânia/GO para
discutir a revisão do
Estatuto de índio.
No último dia do
Encontro, os índios
fizeram uma
manifestação na
rampa do
Congresso Nacional.
Foto Luís Grupioni.
pulação do país (o Brasil conta hoje com
145 milhões de habitantes), entre muitos
grupos indígenas, a população tende a au-
mentar.
A Constituição brasileira respeita os di-
reitos territoriais indígenas a partir de sua
alteridade, enquanto grupos culturalmen-
te diferenciados. Isso é um dado que a an-
tropologia sabe expor adequadamente. Os
fatores que um grupo étnico considera co-
mo básicos e necessários para integrar o
seu território decorrem de coordenadas
culturais particulares, provenientes de seu
sistema económico, da sua forma de pa-
rentesco e organização social, de sua vida
cerimonial e religiosa. O argumento em re-
lação a uma área jamais poderá ser discu-
tido em termos quantitativos como uma re-
lação índio/hectare ou família/hectare.
Sendo assim, é evidente que em pri-
meiro lugar deve se reconhecer que índio
e terrao assuntos indissociáveis, só po-
de existir o índio (indivíduo) quando esti-
ver preservada a sua coletividade (etnia)
e esta conseguir manter um território pró-
prio (J. Pacheco de Oliveira).
No fim dos anos 70 e na década de
oitenta as frentes de expansão económica
penetravam na Amazónia, chegando aos
extremos norte e oeste do território nacio-
nal. Estimuladas pelas políticas de trans-
porte, de incentivos fiscais e de abertura pa-
ra o capital estrangeiro, desenvolvidas nos
governos militares, as frentes de expansão
projetaram os conflitos, decorrentes da
ocupação desordenada, sobre as frontei-
ras do país.
Ainda nos anos 50-60, os índios Ka-
yapó, no Pará, eram considerados "índios
do mato", desconhecidos, temidos pela po-
pulação regional, escondidos em uma re-
gião de floresta, onde poucos brancos ha-
viam se aventurado.
Hoje, a Amazónia e o Sudeste do Pa-
rá estão sofrendo um processo de ocupa-
ção desordenada e de destruição acelera-
da de suas riquezas naturais. Projetos de
grande porte como a construção da Hidre-
lética de Tucuruí, a implantação do Proje-
to Ferro Carajás, assim como a abertura de
inúmeras rodovias, aliados a programas ofi-
ciais de colonização, provocaram fluxos mi-
gratórios importantes para a Amazónia,
provocando profundas mudanças ecológi-
cas e na vida das populações locais.
A região habitada pelos Kayapó tem
sido uma das mais atingidas por estes pro-
jetos desenvolvimentistas e predatórios.
Mas a mesma situação se repete em inú-
meras outras áreas, como em Rondônia,
Acre, e entre os Kaingang e Guarani do Sul
do país, áreas já bastante devastadas há
muito tempo.
Convém lembrar que no Governo Sar-
índios Guarani
durante
manifestação
indígena na rampa
do Congresso
Nacional. Foto Luís
Grupioni.
ney implantou-se o Projeto Calha Norte
que objetívava, entre outras coisas, a vivi-
ficação da fronteira Norte do país, a rede-
finição da política indigenista e o fortaleci-
mento da presença militar na Amazónia.
Naquela época a redefinição da política in-
digenista se materializou com os Decretos
94.945 e 94.946 ambos de 1987, que es-
tabeleceram a participação de segmentos
militares na definição de áreas indígenas
e a distinção de índios entre "aculturados"
e "não aculturados", medida que permitiu
a redução violenta de áreas indígenas, par-
ticularmente na Amazónia. Os argumen-
tos destes segmentos políticos é que as ter-
ras indígenas e as áreas de proteção
ambiental congelam as riquezas existentes
no solo e subsolo dessas áreas.
Maso existe incompatibilidade en-
tre a garantia dos direitos indígenas e a de-
fesa da soberania e o desenvolvimento na-
cional. A Constituição de 1988
estabeleceu, com clareza, os instrumentos
desta compatibilização.
A Nova Constituição de 1988, além de
dar um tratamento exaustivo aos direitos
indígenas, conferindo-lhes um inédito sta-
tus constitucional, pela primeira vez reco-
nhece aos índios o seu direito à diferença,
rompendo com a tradição assimilacionis-
ta que prevalecia nas Constituições ante-
riores. A Constituição institui a União co-
mo instância privilegiada nas relações entre
os índios e a sociedade nacional, amplian-
do enormemente as competências dos po-
deres Legislativos e Judiciário quanto aos
Direitos Indígenas.
E particularmente importante o reco-
nhecimento constitucional das organiza-
ções indígenas que, nos termos do artigo
232.o partes legítimas para ingressar em
juízo em defesa dos direitos e interesses dos
índios.
Essa conquista estimula o surgimento
e o crescimento das organizações locais e
regionais e facilita o acesso dos índios às
instancias decisórias do processo institu-
cional.
Nesse mesmo sentido, "a Constituição
estabelece relações diretas entre os índios
e o Congresso Nacional e deles com o Mi-
nistério Público. Portanto os povos indíge-
nas adquiriram condições de interlocução
direta junto aos poderes da República, di-
reito que deve ser agora assegurado poli-
ticamente" (Santilli, 1992).
A política do Governo Collor, de re-
cessão e cortes nas despesas públicas, par-
ticularmente na área social, implicou na pa-
ralização da estratégia anterior, inclusive
com cortes de verbas para o Projeto Ca-
lha Norte e para a área militar, o que pro-
vocou descontentamentos no setor. Por
outro lado encenou mudanças nas políti-
cas ambiental e indigenista para recuperar
o prestígio do País no exterior, abalado pe-
las denúncias de devastação de florestas e
do péssimo tratamento dispensado aos po-
vos indígenas.
Mas as forças contrárias à demarcação
das terras indígenas reagiram imediatamen-
te. Em 1990 as forças "nacionalistas" ele-
geram uma grande bancada de deputados
federais, conhecidos como "bloco amazô-
nico" que, nos meses iniciais de 1991. ins-
talaram a Comissão Parlamentar de Inqué-
rito da "Internacionalização da Amazónia"
contra ambientalistas, indigenistas e mis-
sionários, acusados de defenderem interes-
ses externos contrários ao país. Essas for-
ças também se opuseram firmemente à
demarcação da área Yanomami.
Em 17 de junho de 1992, o Tribunal
de Contas da União, extrapolando suas
funções constitucionais, aprovou parecer
que recomendava ao Congresso Nacional
e à Presidência da República, para que na
criação de áreas indígenas, fossem ouvi-
dos o Estado Maior das Forças Armadas,
o Departamento Nacional de Produção Mi-
neral, a Eletrobrás e a Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária. Em 15 de ju-
lho o Governo Collor acatou as recomen-
dações através do "Aviso 745". A Consul-
toria do Ministério da Justiça e a
Procuradoria Geral da República conside-
raram ilegal o aviso, poro estar ampa-
rado em lei ou em qualquer outra norma
superior (F. Damasceno). Consequente-
mente, o que até hoje prevalece é o De-
creto 22/91 que dispõe sobre o processo
de demarcação de terras indígenas (vide
adiante).
Preocupadas com as novas paralisa-
ções, desde julho de 1992, as organizações
indígenas, através da COIAB e outras en-
índios reunidos para
discussão das
diferentes propostas
de revisão do
Estatuto do índio,
em tramitação no
Congresso Nacional.
Foto Luís Santos
Lobo/CIMl.
tidades, tomaram a iniciativa de promover
a Campanha pela demarcação das Terras
Indígenas na Amazónia, a fim de pressio-
nar o Governo e os órgãos responsáveis
para que o processo de demarcação seja
acelerado e o prazo constitucional res-
peitado.
Terras indígenas no Brasil: as-
pectos formais
1
I. O Poder Público e o artigo 231 da
Constituição
No Brasil, quando se fala em demar-
cação de terras indígenas, trata-se, em pri-
meira instância, de uma definição jurídica
materializada na Constituição Federal em
vigor, aprovada em 1988, e na legislação
específica, atualmente em fase de revisão
no Congresso Nacional, o chamado "Es-
tatuto do índio".
Segundo a Constituição Federal em vi-
gor, artigo 231,o reconhecidos aos ín-
dios os direitos originários sobre as ter-
ras que tradicionalmente ocupam.
destinadas a sua posse permanente,
cabendo-lhes o usufruto exclusivo das ri-
quezas do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes. As terras tradicionalmente ocu-
padas pelos índioso consideradas tam-
m pela Constituição como bens da
União (art. 20). Tais terraso definidas
no parágrafo primeiro, do referido artigo
231:
"São terras indígenas tradicionalmen-
te ocupadas pelos índios as por eles habi-
tadas em caráter permanente, as utilizadas
para suas atividades produtivas, as impres-
cindíveis à preservação dos recursos am-
bientais necessários a seu bem estar e as
necessárias para sua reprodução física e
cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições".
Portanto, compõem o conceito quatro
elementos que se integram e se somam e
devem ser reconhecidos à luz dos usos,
costumes e tradições indígenas. Para ha-
ver o reconhecimento é necessário que ha-
ja uma lei que regulamente o seu proces-
so administrativo. Estas terras, porém, por
força do dispositivo constitucional,o de-
pendem do reconhecimento do Poder-
blico para serem terras indígenas, inaliená-
Manuel Moura
discursa na
assembleia geral das
Organizações
Indígenas da
Amazónia brasileira
realizada em
Manaus/AM. Foto
Egon Heck/CIMI.
veis e indisponíveis, de tal forma que o ato
que as reconhece nada mais faz que dar
uma declaração de caráter indígena, para
conhecimento de todos, sem outra conse-
quência jurídica que contestar presunção
de boa-fé em eventuais agressões àquelas
terras por particulares.
Sendo assim, o ato de reconhecimen-
to e demarcação física é secundário e vin-
culado à definição constitucional. Isto é, o
Poder Público Federalo pode deixar de
reconhecer ou deixar de demarcar uma ter-
ra ou parte de uma terra que se enquadre
na definição constitucional, ao seu arbítrio.
Porém, o Poder Público pode reconhecer
e demarcar em qualquer momento, por-
que a oportunidade deste atoo está de-
finida na lei, salvo o seu prazo final: 5 de
outubro de 1993 (art. 67 das disposições
constitucionais transitórias).
II. A atual sistemática em vigor para o
reconhecimento de terras indígenas pe-
lo Poder Público Federal.
Através do Decreto no. 22 de
04/02/91, o governo Collor criou uma sis-
temática administrativa de identificação e
demarcação de Terras indígenas. A extin-
ção dos Ministérios do Interior, da Refor-
ma Agrária e da própria SADEN, que pas-
sou a se chamar Secretaria de Assuntos
Estratégicos, fez com que a instância de de-
cisão técnica sobre os processos de terra,
o chamado "Grupão", deixasse de existir,
uma vez que estes órgãos eram integran-
tes do Grupo de Trabalho criado pelo De-
creto 94.945. Esta nova sistemática retor-
nou à FUNAI a competência de instruir,
analisar e emitir parecer técnico conclusi-
vo sobre os processos de demarcação, ca-
bendo ao Ministro da Justiça a decisão po-
lítica de emitir Portaria reconhecendo os
limites da terra para posterior demarcação
física. Uma vez a terra demarcada ela será
homologada através de decreto do presi-
dente da República, publicado no DOU
(Diário Oficial da União) e finalmente re-
gularizada através do registro da terra no
Departamento de Património da União e
no cartório imobiliário da comarca corres-
pondente. A nova sistemática prevê a ne-
cessidade da anuência do povo indígena
sobre os limites propostos. Abre, porém,
a possibilidade de manifestação de interes-
sados sobre a proposta encaminhada pe-
la FUNAI ao Ministro da Justiça.
Segundo um levantamento realizado
pelo CEDI (Centro Ecuménico de Docu-
mentação e Informação/Programa Povos
Indígenas no Brasil) a situação jurídica das
terras indígenas no Brasil em 07/10/92 é
a seguinte:
Extensão das terras do país: 850 milhões
de hectares.
Número de áreas indígenas: 503, exten-
o 89.245.185ha ou 10,49% das terras
do país.
População indígena 250.000 pessoas vi-
vendo em aproximadamente 4.000
aldeias.
Terras Indígenas:
Áreas Sem Providência: 88 (17,50%).
Áreas Identificadas: 49 (9,74%) com
6.538.449ha (7,33%).
Áreas Interditadas: 31 (6,16%) com
17.987.500ha (20,16%).
Áreas Delimitadas: 85 (16,90%) com
18.147.397 (20,33%).
Áreas Homologadas: 173 (34,39%) com
29.468.700 (33,02%).
Áreas Regularizadas: 77 (15,31%) com
17.102.939 (19,16%).
Na Amazónia Legal, com uma exten-
o de 480 milhões de hectares,
concentram-se 160 povos contatados com
aproximadamente 143.000 índios. Há in-
dícios de 53 grupos indígenas aindao
contatados, sendo que a FUNAI já confir-
mou 12 desses grupos.
As áreas indígenaso 345 com
88.071.167ha, o que significa 98,68% da
extensão das áreas Indígenas no Brasil e
18,34% das terras da Amazónia.
Sem Providência: 56 (16,18%).
Identificadas: 31 (8,99%) com
6.452.282ha (7,33%).
Interditadas: 28 (8,12%) com
17.946.824ha (20,38%).
Delimitadas: 66 (19,13%) com
18.048.095ha (20,49%).
Homologadas: 102 (29,57%) com
29.119.004ha (33,06%).
Regularizadas: 62 (17,97%) com
16.504.962ha (18,74%).
Durante o segundo semestre de 1991
e o primeiro de 1992 houve uma certa agi-
lização no encaminhamento dos processos
demarcatórios devido essencialmente às
pressões internacionais para a demarcação
do território Yanomami e o início da orga-
nização e discussões preparatórias para a
conferência internacional sobre desenvol-
vimento e meio ambiente da ONU em ju-
nho de 1992, onde a sobrevivência dos po-
vos habitantes das áreas de florestas do
planeta seriam objeto de discussão e de co-
branças. Neste período 52 áreas foram de-
limitadas representando um total de
15.839.021ha e 112 áreas homologadas.
As áreas Yanomami (9.664.975ha), Cer-
rito (1.951ha), Guasuti (959 ha), Jaguari
(405ha), Pirakuá (2.384ha) e Kaxarari
(145.889ha) foram delimitadas, demarca-
das e homologadas.
A partir de julho de 1992 registrou-se
novamente uma total paralização dos pro-
cessos encaminhados ao Ministro da Jus-
tiça, deixando assim 13 áreas à espera de
aprovação, num total de 4.460.827ha.
Trata-se das áreas Trincheira-Bacajá
(1.655.000ha), Arara do Rio Branco
(122.000ha), Cachoeira Seca
(740.479ha), Rio dos Pardos (828ha), Ma-
raiwatsede (168.000ha), Curuá
(19.450ha), Ipixuna (179.640ha), Paumari
do Cuniuá (35.000ha), Kampa do Rio Eu-
vira (247.200ha), Taihantesu (4.700ha),
Rio Biá (1.180.200ha), Canauinim
(11.650ha) e Cabeceira do Rio Acre
(76.680ha).
A área indígena do Alto Rio Negro
com 8.150.000ha de superfície está a es-
pera de uma revogação dos decretos assi-
nados pelo presidente Sarney que demar-
cou 14 áreas descontínuas, combinadas
com 11 florestas nacionais, reduzindo o ter-
ritório indígena em 68%.
O quadro acima mostra os avanços
conseguidos na defesa dos direitos indíge-
nas quer seja no texto da Constituição Fe-
deral ou no conhecimento produzido ao
longo destes últimos anos com relação às
terras indígenas. Estas conquistas devem-
-se às pressões cada vez mais organizadas
dos próprios índios e ao trabalho de apoio
das ONG's e diferentes entidades civis li-
gadas à causa indígena. Do ponto de vis-
ta da política indigenista oficial houve um
certo fluxo de encaminhamento de proces-
sos ao Ministério da Justiça, incluindo a
aprovação por parte da Presidência da Re-
pública dos casos emblemáticos como a
terra Yanomami e a terra dos Kayapó-
-Mekranoti.
"O Caso dos Xis",
uma história em
quadrinhos
apresentada na
exposição índios no
Brasil, mostra a luta
dos índios pela terra
e traz informações
sobre as terras
indígenas no Brasil.
Texto e desenho de
André Toral. Foto
Luís Grupioni.
Deve ficar claro, porém, que todos os
povos indígenas merecem o mesmo trata-
mento com relação aos seus direitos terri-
toriais.
Entendemos que nada poderia, atual-
mente, justificar uma nova paralização da
sistemática para o reconhecimento de ter-
ras indígenas, comprometendo o cumpri-
mento do prazo constitucional de outubro
de 1993 para o término total das demar-
cações.
Vale ressaltar que está prevista uma re-
visão da Constituição Federal para 1993
na qual os direitos territoriais atualmente
reconhecidos aos índios certamente serão
contestados pelos interesses anti-indígenas.
Existe de fato uma grande resistência por
parte de Governadores do Norte do país
contra as demarcações e também no Con-
gresso Nacional, em Brasília, através de po-
líticos da chamada "bancada amazônica".
Isso cria dificuldades objetivas à demarca-
ção das terras indígenas, por exemplo di-
ficultando a aprovação de créditos espe-
ciais para esse fim. Outrossim, nos últimos
anos temos presenciado um crescente es-
vaziamento da Fundação Nacional do ín-
dio (FUNAI), em relação à prática do in-
digenismo oficial. Um conjunto de decretos
visando a descentralização das iniciativas
até então pertinentes ao órgão acabaram
estimulando uma maior interferência dos
interesses locais e regionais nas questões
indígenas. Com tais iniciativas o governo
federal se desobrigou de suas próprias res-
ponsabilidades frente a casos concretos de
extermínio e de violência aos direitos dos
índios (Sílvio Coelho dos Santos).
Neste sentido é imprescindível que o
maior número de terras indígenas tenham
sido reconhecidas legalmente, permitindo
que em bases concretas tanto as organi-
zações indígenas como a sociedade civil
possam se mobilizar para consolidar mais
uma vez os dispositivos constitucionais já
conquistados e, se possível, permitir a sua
ampliação.
III. A garantia das terras indígenas e a
procura de um modelo de desenvolvi-
mento sustentável.
Um aspecto importante da questão in-
dígena hoje é, de um lado, assegurar de
fato aos índios o usufruto exclusivo das ri-
quezas existentes em seus territórios, pro-
movendo, além das atividades de subsis-
tência tradicionais, novas atividades eco-
nómicas em bases condizentes com a pro-
teção ambiental. E, por outro lado, proteger
os territórios indígenas, de acordo com a
lei, seja dos danos causados por grandes
projetos desenvolvimentistas, seja das in-
vasões cada vez mais agressivas por parte
de garimpeiros e madeireiras, especialmen-
te na Amazónia.
Estes invasores desenvolvem as suas
atividades na total ilegalidade, causando
danos irreparáveis ao meio ambiente e às
comunidades indígenas, totalmente inde-
fesas frente a estas investidas predatórias.
Em muitas regiões da Amazónia as re-
lações interétnicas vem se caracterizando
por um aumento de conflitos e muita vio-
lência. Uma realidade, aliás,o muito di-
ferente daquela vivida por muitos campo-
neses e segmentos marginalizados nos
grandes centros urbanos. A crise é gene-
ralizada e as soluções, evidentemente, ape-
nas virão quando acompanhadas de mu-
danças estruturais globais.
O grau e as formas de intrusamento
das reservas indígenas é assustador. Ho-
je, muito mais do que as terras indígenas
em si, os interesses estão voltados para os
recursos de grande valor económico exis-
tentes em estas terras.
Por estas razões, fica evidente, que
apenas demarcar as terras indígenaso
é o suficiente.
Uma vez concluída a demarcação, e
mesmo antes, já que o direito dos índios
às suas terras independe da demarcação
física, devem ser acolhidos projetos indí-
genas de manejo, controle e vigilância de
suas terras, a longo prazo, com linhas es-
pecíficas de apoio técnico e financeiro da
parte de órgãos públicos e privados.
Devem ser promovidas práticas atua-
lizadas para a garantia das terras e o seu
aproveitamento adequado visando o de-
senvolvimento das comunidades como um
todo. É importante ressaltar este último as-
pecto, porque na maioria dos casos, os in-
vasores conseguem cooptar algumas lide-
ranças, especialmente os mais jovens, que
se associam às atividades altamente pre-
datórias dos garimpeiros e das madeirei-
ras, assinando contratos, em bases absur-
das, em nome da comunidade. É verdade
que alguns grupos, após amargas expe-
riências, estão tratando de reverter esta si-
tuação inclusive entrando com processos
na justiça.
Por outro lado,o se pode esquecer
que as pressões destes grupos de interes-
seoo diminuiro cedo. As madei-
reiraso hoje a ponta de lança da pene-
tração da Amazónia. Apenas para dar um
exemplo: a extração seletiva do mogno.
Segundo um levantamento recente, 47%
da mancha de mogno existente na Ama-
zónia incide sobre o estado do Pará e 22%
desta percentagem encontra-se em áreas
indígenas. Uma árvore de mogno rende-
quido 1000 dólares à madeireira que pa-
ga às jovens lideranças indígenas entre 50
e 60 dólares.
Para extrair apenas o mognoo des-
truídos hectares de floresta, inúmeros ecos-
sistemas naturais e tudo aquilo que é co-
nhecido hoje pelo nome de biodiversidade.
Enquanto aos índios, o dinheiro que
recebem é gasto, de imediato, em um con-
sumismo supérfluo, junto ao comércio lo-
cal, também controlado pelas madeireiras.
E tudo isso acontece em terras indígenas,
isto é, em terras da União e sob o nariz das
autoridades coniventes.
Frente a esta situação dramática é de
se lamentar a falta total de um projeto con-
ceituai por parte do Governo e da FUNAI,
que aponte para pesquisas, programas
educativos e captação de recursos, capaz
de promover a implantação de atividades
de desenvolvimento sustentável em áreas
indígenas. Esta situação é ainda mais preo-
cupante quando se verifica o retrocesso por
parte de um órgão como o IBAMA, que
começa a questionar a participação de
ONGs em projetos ambientais e a esvaziar
um órgão como o Centro Nacional de Po-
pulações Tradicionais (CNPT).
O IBAMA tem questionado também o
financiamento de componentes indígenas
em projetos ambientais, tais como o Pla-
no Piloto de Proteção das Florestas Tropi-
cais, a ser financiado pelo G-7.
Nas regiões de colonização mais anti-
gas, para os índios, as estratégias de so-
brevivência tem sido sempre problemáticas.
Até certo ponto o processo já é irreversí-
vel. Resgatar o sistema tradicional de ma-
nejo de seus recursos naturais é pratica-
mente impossível. As soluções para o
futuro deverão ser construídas em novas
bases, mas que, se bem orientadas, pode-
o resultar em experiências interessantes.
Hoje algumas comunidades indígenas, no
Acre, no Amapá e entre os Xavante estão
tentando implantar projetos alternativos e
que merecem ser apoiados.
Alguns grupos ainda possuem faixas
extensas de terras, mas cercadas por um
ambiente totalmente modificado. Outros
grupos perderam a maior parte de seus ter-
ritórios, que se resumem a poucas ilhas de
mata, extremamente vulneráveis. A vida,
para a grande maioria dos grupos, é hoje
mais sedentária, com um aumento sensí-
vel das atividades agrícolas. A caça torna-
-se mais escassa. A contínua derrubada de
floresta virgem para a agricultura, em uma
reserva demarcada, também coloca novos
problemas. Antigamente, os índios, possui-
dores de imensos territórios, exploravam
apenas parte dos recursos naturais dispo-
níveis. Hoje estes recursoso se apresen-
tam mais como inesgotáveis. Neste caso,
novas formas de relacionamento com o
meio ambiente deverão ser pensadas e am-
plamente discutidas com as comunidades
indígenas.
O destino das terras indígenas vai de-
pender muito da capacidade de luta por
parte dos índios, exercendo, cada vez mais,
os seus direitos de cidadania e assumindo
novas responsabilidades. Por parte da so-
ciedade brasileira vai depender de sua von-
tade em progredir, preservando o seu pa-
trimónio ambiental e cultural e respeitando
a diversidade cultural e ambiental dos po-
vos indígenas: uma verdadeira comunida-
de inter-cultural, livre e democrática. Úni-
cas bases possíveis para "O Nosso Futuro
Comum".
Notas
l.Textos e dados provenientes de CEDI - 1991 - Po-
vos Indígenas no Brasil- 1987/88/89/90 - Acon-
teceu Especial 18 - CEDI - Autores: Carlos A. Ri-
cardo, Fany Ricardo, André Villas Boas, Carlos
Frederico Marés e Márcio Santilli do Núcleo de Di-
reitos Indígenas e João Pacheco de Oliveira PE-
TI/Museu Nacional.
Bibliografia
CEDI 1991 - Povos Indígenas no Brasil
1987/88/89/90, Aconteceu Especial 18,o
Paulo.
- 1991 - Terras Indígenas no Brasil: Reconheci-
mento Oficial de Direitos Territoriais como
Processo Político (mimeo). Texto apresenta-
do no "Seminário Sobre Reconhecimento dos
Direitos Territoriais Indígenas na América do
Sul", Brasília, 9-12 dez.
Coelho dos Santos, Silvio - 1991 - Constituição e
Violação dos Direitos dos Povos Indígenas
no Brasil, (mimeo). Texto apresentado no 47?
Congresso dos Americanistas, Nova Orleans,
7-12 julho.
Damasceno, Felisberto - "Nacionalismo e Direitos In-
dígenas" in Porantim - Ano XV - n? 150,
Brasília.
Pacheco de Oliveira Filho. João - 1987 - Terras In-
dígenas no Brasil. CEDI/Museu Nacional.
- 1990 - "Quemo os Inimigos dos índios?", Bo-
letim Nacional do PT. (mimeo).
Santilli, Márcio - 1992 - "O Aviso do Retrocesso"
in Tempo e Presença - Ano 14, n? 265,o
Paulo.
Vidal, Lux - 1990 - "Le Programme Grand Carajás
et la Question Indienne" in ETHNIES - Droits
de rhomme et peuples autochtones, 11-12,
Printemps.
- 1991 - "Tribunal Permanente dos Povos" in Ca-
dernos de Campo - Ano I - n? 1,o Paulo,
FFLCH/USP
"Xeto, marromba, xeto!" -
a representação do índio nas
religiões afro-brasileiras
1
Ornar Ribeiro Thomaz
Introdução
"O caboclo verdadeiro é só o índio.
Porque na realidade o caboclo mesmo é
aquele que veste penas."
(Definição de um adepto do candomblé
baiano, apud Santos, 1992: 60)
As populações indígenas no Brasilm
sido objeto de inúmeras representações por
parte da sociedade envolvente. Da apro-
priação ideológica feita pelos órgãos do Es-
tado aos meios de comunicação de mas-
sa, passando pelo mundo das artes e da
literatura, diferentes representações se so-
brepõem indicando a importância da figura
do índio no imaginário nacional. Enten-
dendo por imaginário uma dimensão que
institui e reproduz as relações entre os gru-
pos sociais (Castoriadis, 1975), acredito
que a compreensão do "lugar do índio"
neste imaginário nacional nos aproxima do
complexo diálogo desenvolvido entre as
sociedades indígenas e a sociedade na-
cional.
A sociedade brasileira, como sabemos,
está longe de compor um todo uniforme.
De um lado encontramos o índio dos mo-
vimentos literários e artísticos da elite na-
cional, o índio do cinema e dos meios de
comunicação de massa; de outro, e pro-
fundamente relacionado com o primeiro,
porémo a sua imagem, o índio da cul-
tura popular. Este último povoa as esco-
las de samba e os bailes de carnaval, os fol-
guedos populares, os contos e a literatura
de cordel, e também o universo mítico e
religioso das^ denominadas religiões afro-
-brasileiras. É sobre este índio que "baixa"
nos toques, sessões e festas de caboclo que
trata este artigo.
A imagem do índio: da literatura india-
nista aos cultos afro-brasileiros
Diferentes movimentos literários e ar-
tísticos reivindicaram a figura do índio. O
prematuro nativismo brasileiro na literatu-
ra vê no índio um símbolo nacional. Esta
mesma simbologia alcança o seu esplen-
dor com o indianismo romântico de Gon-
çalves Dias e, sobretudo, José de Alencar.
Como afirma António Cândido (1981),
Alencar fixa um dos mais caros modelos
da sensibilidade brasileira, o do índio ideal,
heróis de uma mitologia nacional a ser
construída. O índio de Alencar, ou está
num passado remoto anterior à chegada
dos portugueses (Ubirajara). ou surge co-
mo a marca da nossa suprema diferença
no encontro entre portugueses e índios (O
Guarani e Iracema). E o índio do passa-
do, de um passado imaginário, de uma his-
tória a ser escrita. O impacto desta ima-
gem, é sentido até os dias atuais: o índio
como símbolo da nacionalidade brasileira.
Se por um lado no culto aos caboclos
temos a incorporação, no universo mítico
e religioso afro-brasileiro, deste "índio he-
rói" -o caro às elites nacionais - por ou-
troo podemos interpretar o caboclo co-
mo mera reprodução de um índio
produzido pelas classes hegemónicas. A
simples transformação de um símbolo na-
cional em objeto de culto religioso indica
uma reinterpretação.
Nos caboclos dos terreiros de candom-
blé angola
2
e de candomblé de caboclo,
Edison Carneiro encontrará uma "leve tin-
tura" do índio romântico de Alencar: "(...)
o indígena oficial, valente, ágil, esperto,
profundo conhecedor dos segredos das
plantas e em contato com as forças da na-
tureza." Para E. Carneiro, porém, "(...) es-
tes encantados
3
o simples reproduções
de orixás nagôs", que nos candomblés de
caboclo denotam fortes influências
-
espíri-
tas e, raramente, uma "real" influência in-
dígena (1986: 75).
Nos estudos sobre umbanda (Ortiz,
Estátua de caboclo
do terreiro dee
Silvia de Oxalá.
Foto Fabiana
Marquezi.
1978; Brown, 1977; Montero, 1985), o ca-
boclo aparece definitivamante como o "he-
i nacional romântico". A umbanda seria
a transposição para o plano mítico e reli-
gioso da fábula das três raças. Na escala
espiritual mais elevada, encontraríamos os
caboclos: a glorificação dos nossos ante-
passados míticos, a afirmação nacionalis-
ta desta religião. Sem poder fugir da sua
herança africana, os umbandistas, contu-
do. situam o caboclo no ápice da "evolu-
ção" espiritual, afirmando a inserção da
umbanda num momento de grandes trans-
formações da sociedade brasileira (Ortiz,
1978).
O culto aos caboclos: extensão e diver-
sidade
Para a análise uma dificuldade se apre-
senta de início: a própria extensão do cul-
to aos caboclos. Este aparece, de diferen-
tes formas, dos batuques de Porto Alegre
à pajelança do norte do país.
As vezes, o caboclo é a figura central
do culto, como no caso da umbanda, dos
candomblés angola, da pajelança e dos ca-
timbós do norte e nordeste do país; às ve-
zes, porém,o cultuados em segredo, co-
mo nos candomblés da nação queto
comprometidos com a noção de "pureza"
ritual (da qual falaremos mais adiante), o
que denota a clara relação de inferiorida-
de destas entidades com relação aos ori-
s africanos. Neste caso, o caboclo torna-
-se uma entidade importante na construção
das identidades contrastivas dos grupos re-
ligiosos de umbanda e de candomblé, ou
mesmo das diferenças internas entre as-
rias nações do candomblé. E é como ele-
mento revelador ouo de uma "pureza"
ritual que a imagem do caboclo será asso-
ciada em diferentes sistemas religiosos.
Apesar da diversidade, o caboclo, em
geral, é representado como "o índio". Aqui.
procuraremos dar conta dos aspectos ge-
rais desta entidade, eo das particulari-
dades que cada culto apresenta.
A força da imagem
Nas portas das lojas de artigos para a
umbanda e candomblé é muito frequente
encontrarmos a imagem de um caboclo.
De cor morena, seu porte, em geral, é atlé-
tico, indicando o vigor físico, e o seu olhar,
fixo e autoritário. Muitos adotam posturas
que indicam movimento, luta. Outros,-
gidos e altivos,m a atitude de um ver-
dadeiro chefe. Se algunso caboclos bra-
sileiros, a maioria deles se assemelha muito
mais aos índios dos filmes norte-
-americanos. com seus cocares atravessan-
do as costas até a altura das pernas.
No interior da loja, um mundo de chei-
ros, cores e imagens impõe aos consumi-
dores as representações materiais do uni-
verso mítico afro-brasileiro. Ao lado de
entidades típicas da umbanda - pretos e
pretas velhas, Exus e pombagiras, ciganas
e sereias - as imagens de cabocloo as
que mais se ressaltam, tanto pela quanti-
dade como pela diversidade. O Pena Bran-
ca, o Junco Verde, o Tupiniquim, Tupã, Tu-
pi, Tibiriça, Peri, Iracema, Ubirajara,
Jurema, Cobra Coral. Quebra Galho... e
tantos outros. O vendedor possui um ca-
tálogo, com todas as imagens disponíveis
na fábrica. Porém, o caboclo desejado po-
de ser único: um índio que anunciou-se
num sonho. Nesse caso, desenha-se este
caboclo, único, e a encomenda é realizada.
Embora diversas, a partir das imagens
podemos aproximar-nos da representação
que se faz do índio nas religiões afro-
-brasileiras: o corpo em movimento,arma-
do com machadinha ou com arcos e fle-
chas, indica sua personalidade forte que
subjuga a natureza ou resiste heroicamen-
te ao colonizador português. A posição de
luta nos leva aos domínios do caboclo: a
mata virgem. Conhecedor dos seus mis-
térios, o caboclo é caçador. Altivo, é rei,
chefe, autoridade e autoritário - o pajé. Os
caboclos sempre vêem adornados com co-
cares, plumas, braceletes. As vezes, ao la-
do de uma cabocla, um animal, de prefe-
rência um veado.
A loja, evidentemente,o configura
um lugar propriamente "sagrado", mas re-
flete o dinâmico diálogo estebelecido en-
tre as religiões afro-brasileiras. com forte
apelo mágico e ritual, e a cidade moder-
na (o terreiro enfrentaria sérias dificulda-
des para se estabelecer na cidade seo
pudesse contar com um "entreposto" de ar-
tigos litúrgicos para as suas práticas rituais)
(Gonçalves da Silva, 1992). Daí ser fre-
quente observarmos diante das estátuas
dos caboclos - e também de outras enti-
dades - oferendas em dinheiro, feita por re-
ligiosos ou não, que ali mesmo na loja rea-
lizam preces e pedidos. Fora do terreiro, e
portanto longe do espaço sagrado, a ima-
gemo perde a força ritual: na estátua
o povo vê aquele caboclo que nas festas,
toques e sessões feitas em sua homena-
gem. "baixa" para trabalhar para os
homens
4
.
Assim, as imagens (muitas vezes con-
sideradas de "mau gosto" pelos pesquisa-
dores) estão longe de configurar-seo so-
mente numa apropriação da indústria de
massa de uma imagem de caráter religio-
so. Ao lado dos caboclos produzidos em
série pelas fábricas de imagens religiosas,
Caboclo Junco
Verde incorporado
em Pai Doda de
Ossaim, no terreiro
llê Axé Ossaim
Darê. Foto Lufs
Grupioni.
temos àquelas feitas sob encomenda se-
gundo a descrição do fiel para quem o es-
pírito do caboclo teria se manifestado sob
aquelas características. Aliás, a autoridade
de um pai-de-santo com relação ao cabo-
clo se dá muitas vezes a partir de aparições
oníricas ou em visões.
"Quem a fez
5
, dona?-
Ninguém. - o tom era cauteloso - o sr.
sabe que nós, as mães caboclas,o so-
mos tocadas poro humana. Quem me
fez foi o espírito de um índio que veio a
mim em sonho. Ele morreu há centenas
de anos e é o meu anjo-da-guarda." (Diá-
logo entre E. Carneiro em uma mãe-de-
-santo de candomblé de caboclo, apud
Landes, 1967: 178)
Diante das estátuas, ou em simples ofe-
rendas aos caboclos, as velaso verdes
e amarelas, cores com as quais se enfei-
tam os terreiros nos dias de toques e fes-
tas dedicados a esta entidade. Muitas ve-
zes, os barracõeso decorados com
bandeiras do Brasil, indicando o caráter na-
cional do caboclo em contraposição aos
orixás africanos.
No barracão constróem-se verdadeiras
"malocas" de índios, com muito verde e
plantas ao redor. Ao cabocloo ofereci-
das frutas em grande quantidade, carne,
crua ou assada, e mel.
Quando "baixam", os cabocloso
ágeis e autoritários: exigem bebidas - em
geral vinho ou cerveja - e charutos . En-
feitados com as insígnias características de
cada caboclo - Pena Branca, um cocar
branco, Junco Verde, penas azuis e verdes,
etc. - arcos e flechas, lanças e facões, os
caboclos bailam. O público, animado, canta
e bate palmas, acompanhando a festa. As
músicaso em português, às vezes entre-
cortadas por palavras em banto e em "lín-
gua indígena"; os atabaqueso tocados
com as mãos, toque próprio da umbanda
e dos candomblés da nação angola.
Após a vigorosa e alegre dança, os ca-
boclos se retiram para algumas partes do
barracão. A assistência (os consulentes) faz
filas para consultar aquele de sua preferên-
cia. As pessoas narram aos caboclos suas
aflições e penas, pedem ajuda e conselhos.
Muitas vezes é necessário um "cambono"
- auxiliar do culto que se encarrega de ano-
tar as receitas e traduzir palavras dos ca-
boclos e outras entidades para os consu-
lentes. O "cambono" anota o nome do
consulente e de familiares e amigos em pe-
quenos papéis que entrega ao caboclo. O
caboclo localiza o mal e interpreta o sofri-
mento do povo; receita ervas, pois conhece
as matas e os seus segredos. Às vezes se
zanga com o consulente, que há muito já
conhece, quando esteo age de acordo
com as suas prescrições.
Muitas vezes, as festas de caboclo dos
candomblés de angola começam com o cli-
ma religioso de qualquer candomblé. A
alegria dos caboclos, que interpelam o-
blico convidando o povo para dançar, faz
com que pouco a pouco a festa sagrada
se transforme numa festa profana: as-
sicas religiosaso substituídas pelas can-
tigas de "sotaque" - cantigas maliciosas e
provocativas - e depois por uma roda-de-
-samba (Amaral, 1992).
Nos dias dedicados ao orixá Oxóssi -
orixá caçador e dono das matas, protetor
de todos os que habitam a floresta -, os
adeptos da umbanda, sobretudo, mas tam-
m alguns terreiros de candomblé, se re-
tiram para os arredores da cidade, onde en-
contram áreas verdes e cachoeiras. Neste
dia, os umbandistas tocam para Oxóssi, e
os caboclos incorporam. As identificações
entre o deus caçador e os cabocloso
muitas: amboso conhecedores das ma-
tas e das ervas,o caçadores e usam ar-
co e flecha. A diferença, segundo os mi-
tos, está em que Oxóssi aprendeu a
conhecer as ervas com Catandê (Ossaim),
outro orixá; os caboclos, índios brasileiros,
nascem sabendo o segredo (Santos, 1992).
Na mata o povo toca atabaques, os ca-
boclos incorporam e se vestem com as in-
sígnias características. O povo saúda: "Oké,
caboclo!", "Xeto, marromba, xeto!". Os ca-
boclos gritam e cumprimentam a assistên-
cia. Muito do gestual dos cabocloso
idênticos ao dos filhos de Oxóssi, que in-
corporam o seu deus nos terreiros de can-
domblé: ao cumprimentar a assistência, se
curvam e "gritam" como pássaros
6
.
Belas oferendaso feitas às entidades
das matas: frutas das mais diversas quali-
dades, melões, melancias, cocos, bananas
e abóboras, flores e mel; oferecem-lhes be-
Caboclos dançam
no terreiro llê Axé
Ossaim Darê. de Pai
Doda de Ossaim.
Foto Luís Grupioni.
(Gonçalves da Silva, 1992)
9
. Grande par-
te dos pais e mães-de-santo que atualmen-
te chefiam terreiros de candomblé na ca-
pital paulista, passaram anteriormente pela
umbanda. Se nesta passagem, às entida-
des de umbanda como as ciganas, pretos-
-velhos, pombagiras, Exús, etco muitas
vezes excluídas, o caboclo é, na maioria das
vezes, tolerado.
"(...) em geral tem-se na figura do ca-
boclo um intermediário que separa e apro-
xima estas religiões. No candomblé, fre-
quentemente, a possessão pelo caboclo é
aceita somente depois de completado um
ano de iniciação do iaô (filho-de-santo, pes-
soa que passou pelos rituais de iniciação).
momento, aliás, em que lhe é retirado o
contra-egum
10
(fio de palha trançado usa-
do no braço, cuja finalidade é dar prote-
ção contra os eguns - espíritos dos mor-
tos). A incorporação do caboclo costuma
ser vista nos terreiros queto como uma
"consessão", pois no modelo "mais puro"
de candomblé (como idealmente se vêem
estes terreiros)o deveria existir caboclo."
(Gonçalves da Silva, 1992: 98).
No recente processo de reafricanização
dos candomblés queto deo Paulo, o ca-
boclo aparece como uma figura incómo-
da. Gozando da preferência dos fiéis, mui-
tos dos quais com passagem pela
umbanda, é condenado pelo crescente
prestígio daqueles terreiros queo dire-
tamente à Africa na busca de origens e da
purificação do ritual. O prestígio do cabo-
clo junto ao povo de santo, atestado tanto
na Bahia (Santos, 1992) como emo
Paulo (Gonçalves da Silva, 1992), se de-
ve ao contato direto desta entidade com
o público religioso: ao caboclo o povo con-
ta os seus problemas, dores e doenças, so-
licita favores e pede proteção. Enquanto o
orixá africano é distante e a relação com
ele se dá mediante a intervenção do pai-
-de-santo ou dos altos cargos hierárquicos
do terreiro, o contato com o caboclo é di-
reto .
"Na minha casa tenho caboclo sim;
porque, veja bem, minha formação era
umbandista. o candombléo tem esse la-
do, pode dar passagem aqui no Brasil. Lá
na Africa só existe orixá. Na minha casa
tem caboclo porque o santoo fala, ele
traz a mensagem mas eleo fala, ao
ser com ogã ou equede e muito baixinho,
eleo fala em público, em voz alta. E as
pessoaso buscar no candomblé uma pa-
lavra de conforto, um amparo. Então eu
sou mãe-de-santo do candomblé mas pa-
ra conforto da comunidade a gente tem
que abriro e usar este escravo do san-
to que é o caboclo."(Mãe Neuza de Oxós-
si, ex-umbandista e atualmente chefe de
um terreiro de candomblé do rito queto.
Junco Verde se
prepara para dar
consulta a um
"filho" da casa, no
terreiro de Pai Doda
de Ossaim. Foto
Luís Grupioni.
apud Gonçalves da Silva, 1992: 127).
A reafricanização do culto supõe mui-
tas vezes o "despacho"
11
das entidades
caboclas, o que cria fortes conflitos entre
a comunidade religiosa mais ampla e os
chefes de terreiros responsáveis pelas mo-
dificações no culto. É interessante notar
que na Bahia a reação dos pais e mães-
-de-santo dos terreiros ortodoxos se,
atualmente, contra o sincretismo afro-
-católico, havendo um reconhecimento da
importância dos caboclos nos candomblés
de Salvador (Santos: 1992: 19).
Como vemos, no cabocloo temos
apenas uma figura ideal no sentido de en-
tender as disputas no interior do próprio
campo religioso afro-brasileiro, como tam-
m a possibilidade de compreender a di-
reção claramente ideológica dos estudos
contagiados pela "pureza nagô".
Para Peter Fry (1986), no culto aos ori-
s teríamos o "realmente outro", exótico,
distante: deidades africanas, com danças,
gestual, cores a serem absolutamente de-
cifradas pelo pesquisador. No caso do ca-
boclo, o pesquisador se sente visivelmen-
te perturbado: uma espécie de pastiche dos
índios românticos dos livros escolares, com
trajes daqueles que vemos nos filmes ame-
ricanos. Próximos demais do pesquisador
(associado ao "mau gosto" das classes po-
pulares), o caboclo permite a análise mas
o a identificação. Razão pela qual as con-
versões dos pesquisadores ao candomblé
serem relativamente frequentes, o mesmo
o se podendo dizer da umbanda.
No caboclo porém, encontramos a
possibilidade de observar o dinâmico diá-
logo estabelecido entre o povo-de-santo e
a sociedade envolvente. Afinal, os can-
domblés, batuques, xangôs, ou terreiros de
mina, estão longe de serem pequenas ilhas
africanas no Brasil.
Diálogo cultural
Ao lado dos artefatos produzidos pelo
próprio povo-de-santo e daqueles compra-
dos nas lojas do ramo - roupas especiais
para os caboclos, arcos e flechas, couro pa-
ra os caboclos boiadeiros, machadinhas,
adornos com pena, artefatos de palha tran-
çada, etc, encontrei em terreiros de um-
banda e candomblé da grandeo Paulo,
"autênticos" artefatos trazidos de áreas in-
dígenas.
O caboclo Junco Verde do terreiro de
Pai Doda de Ossaim (Ilê Axé Ossaim Da-
, em Pirituba,o Paulo) guarda com
muito zelo lanças que os Guaranis deo
Paulo fazem para o comércio, e que no es-
paço do terreiro ganham valor de instru-
mentos litúrgicos. Outros artefatos utiliza-
dos por Junco Verdem de áreas
indígenas distantes, como uma bela más-
cara ritual, possivelmente proveniente de
uma área Xavante, e que lembra a más-
cara utilizada pelo orixá Obaluaiê, deus da
peste e da doença.
O valor destes artefatos está na sua
procedência: "feito pelos índios". O seu
sentido é absolutamente outro, ganhando
uma força inesperada no espaço ritual do
terreiro. Ao serem "feitos por índios",m
a força deste povo, que ao mesmo tempo
representa os nossos gloriosos ante-
passados.
Ao lado daqueles objetos feitos pelo
povo-de-santo como "coisas de índios", ob-
jetos provenientes de áreas indígenas atuais
o re-significados no espaço mágico do
terreiro.
Rita Amaral nos relata que no terreiro
de Wilson de Iemanjá (Candomblé Ango-
la Yeyé Omó Ejá, em Parelheiros, na cida-
de deo Paulo), chama a atenção a ca-
sa do famoso Boiadeiro Laçador:
"(...) toda em massapé, coberta de sa-
, circular, no estilo das malocas indíge-
nas. Esta casa, aliás, foi construída por des-
cendentes de uma tribo indígena que
habita o bairro do Cipó (extremo sul de
Santo Amaro, depois de Parelheiros). Es-
tes índios também fazem a manutenção da
cobertura da casa do boiadeiro, que deve
ser refeita de tempos em tempos." (1992:
102)
As representações do "índio" pelo
povo-de-santo passam também pela his-
tória dos índios e dos africanos no Brasil:
a história do contato é reinventada. A mi-
tificação do caboclo como o "dono da ter-
ra" escreve uma nova história na qual se
enfatizam as alianças e a suposta união
existente entre índios e negros nos antigos
tempos da escravidão. Os momentos de
conflito - onde os índios se unem aos bran-
cos contra os quilombos, ou os negros lu-
tam ao lado dos portugueses contra as tri-
bos hostis -o absolutamente esquecidos
(Santos, 1992).
"Quem era os donos das terras em ge-
ral eram os índios; então, na luta para to-
mar a terra dos índios mataram muitos ín-
dios, muito cacique teve que lutar, botar
os filho, inocentes, sem saber manejar o
arco, uma flecha, para lutar pela tribo. En-
o muitos inocentes morreram, e muitas
índias grávidas, muitos menininhos que fi-
Instalação
reproduzindo uma
"roça" de caboclo
na exposição índios
no Brasil. Vários
visitantes
depositaram
dinheiro como
oferenda junto a
estátua do caboclo
Ubirajara. Foto Luís
Grupioni.
caram na tribo. Incendiaram tribos, mor-
reram; porque a turma invadiu as terras dos
índios. Então os índios morre, morre nor-
mal, que nems morremos, todos vamos
morrer, os outros já morreram. Então eles
voltam sendo Orixás, para defender àqui-
lo que era deles, defendendo os filhos,
amigos, avós, pais, irmãos..."(Cabocla de
um terreiro de umbanda, apud Brumana,
F. e Martinez, E., 1991: 294) .
Podemos afirmar que o caboclo é uma
representação mítica do índio
12
feita pelas
religiões afro-brasileiras a partir do modo
como se deram as relações entre brancos,
negros e índios ao longo de quase cinco
séculos de contato. Nesta representação
encontramos, portanto, um diálogo extre-
mamente dinâmico dos adeptos das reli-
giões afro-brasileiras com a sociedade en-
volvente: como já vimos, os terreiros estão
longe de serem pequenas ilhas que repro-
duziriam a Africa no Brasil.
O caboclo está profundamente relacio-
nado ao índio fixado pelo movimento ro-
mântico indianista, símbolo da nacionali-
dade brasileira. Esta relação porém é
insuficiente para explicá-lo: no interior dos
terreiros, este "índio", transformado em en-
tidade religiosa, é re-significado e a histó-
ria das relações entre índios e negros, rein-
ventada.
Os caboclos devem ser compreendidos
em contraposição às outras entidades. No
interior dos terreiros, representam a parte
brasileira do culto,o os originários do-
nos da terra brasileira. Suas cores,o as
da bandeira: suas músicas cantadas em
português; suas festas, animadas e contam
com a participação de um público mais am-
plo. O povo-de-santo sente no caboclo
uma entidade próxima, sempre pronta pa-
ra auxiliá-lo em momentos de aflição.
Opondo-se aos caboclos, encontramos
nos candomblés os orixás, deuses africa-
nos que, incorporando os seus filhos, re-
vivem na terra os mitos de origem. Na um-
banda, entidades como pretos velhos ou
Exús fazem também clara referência à he-
rança africana. Os caboclos aquio cla-
ramente os heróis nacionais, que "baixam"
para trabalhar para os homens.
Entidade espiritual, um semi-deus, ou
um "orixá brasileiro", o caboclo é uma es-
pécie de "reserva moral" do imaginário
afro-brasileiro. Guardião de um mundo de
equilíbrio entre os deuses, o homem e a
natureza. E o respeito que eles nos ensi-
nam com relação a estas dimensões da vi-
da é sempre um ideal a ser perseguido para
a formação da cidadania e da convivên-
cia entre as culturas. Neste ideal, reside, tal-
vez, a grandeza e a beleza da sua imagem
e o sentido do seu culto.
Notas
1. A publicação deste artigoo teria sido possível
sem o apoio, leitura crítica e sugestões de Luís Do-
nisete B. Grupioni, Vagner Gonçalves da Silva, Fer-
nanda Massi e Maria Lúcia Montes.
2. Angola, queto, jeje-nagô, mina, caboclo fazem
referências às diferentes "nações" às quais se ads-
crevem os distintos terreiros. A "nação" é atribuída
em função da origem ou no caso do candomblé de
caboclo, em função da importância desta entidade
no culto.
3. O caboclo é representado muitas vezes como um
"encantado": um índio que morreu, esteve na terra
dos orixás, e "encantou", voltando como um se-
mideus.
4. Na pequena "roça de caboclo" que montamos
na exposição "índios no Brasil: Alteridade, Diversi-
dade e Diálogo Cultural" o espaço profano da
exposição — e o sagrado — a "roça" (simulada)
imprevisivelmente se misturaram: ao final de cada
jornada os organizadores recolhiam de uma cum-
buca deixada diante da estátua do caboclo Ubiraja-
ra notas e moedas representando pedidos da po-
pulação que visitara a exposição. O dinheiro
coletado foi oferecido num toque de caboclos de um
terreiro na periferia deo Paulo.
5. "Fazer no santo" significa um conjunto de rituais
de iniciação através dos quais o pai ou a mãe-de-
-santo vincula um indivíduo a um orixá. No caso
do caboclo, a "feitura"o seria necessária. "O pro-
blema da "feitura" mostra-se, portanto, como um si-
nal de legitimidade no universo afro-brasileiro, ser-
vindo de marca para a distinção caboclo-orixá."
(Santos, 1992: 73)
6. É importante salientar que a associação entre
Oxóssi e os caboclos já fora feita por Roger Bastide
(1989), que viu nesta associação uma forma de pre-
servar a "pureza nagô" dos tradicionais terreiros por
ele estudados na Bahia.
7.o pretendo acrescentar nada novo com rela-
ção ao complexo debate em torno da pureza nagô,
mas sim ressaltar a importância da polémica quan-
do se trata de entender o "status" que o caboclo ocu-
pou na literatura especializada, por um lado, e por
outro, o seu papel no interior das próprias disputas
no interior dos diferentes campos religiosos afro-
-brasileiros. Para maiores informações, ver Fry (1982,
1986), Góis Dantas (1982. 1988), Santos (1992).
Gonçalves (1992).
8. Nome dos terreiros que cultuam outras entida-
des, sobretudo caboclos, além dos orixás africanos
em Sergipe.
9. Ver também Prandi. 1991.
10. E interessante notar que as entidades cultuadas
na umbandao tidas, em geral, pelos adeptos do
candomblé como "eguns". ou seja, espíritos dos mor-
tos. O culto aos eguns é. muitas vezes, condenado
pelo candomblé, com exceção de alguns terreiros.
Com relação ao caboclo, como chama a atenção
Santos, "(...) essa identificação do caboclo como sen-
do um egun deve ser entendida no campo das di-
ferenças entre terreiros queo cultuam abertamen-
te os caboclos, e os demais terreiros que o cultuam
e ressaltam a sua importância no panteão ao lado
dos orixás. Temos portanto duas posturas. Na pri-
meira, o caboclo é considerado como um espírito
de um morto ancestral. Na segunda, o caboclo é de-
finido como uma deidade a ser cultuada nos mol-
des do culto aos orixás." (1992: 62)
11. "Despachar" significa a expulsão da entidade do
panteão do terreiro. A tese de Vagner Gonçalves da
Silva possui a descrição do despacho de um cabo-
clo boiadeiro de um terreiro queto em processo de
reafricanização (129 - 131).
12.o tratei neste artigo de outras entidades as-
sociadas aos caboclos, como o boiadeiro (Santos,
1992) e o Martim Pescador (Carneiro, 1986; San-
tos, 1992). Podemos, contudo, afirmar que o ca-
boclo é, em geral, associado à imagem do índio.
Bibliografia
Amaral. Rita de Cássia M. P - 1992 - Povo-de-
-Santo, Povo de Festa: Estudo Antropológi-
co do Estilo de Vida dos Adeptos do Can-
domblé Paulista. Dissertação de Mestrado.o
Paulo, USP.
Bastide, Roger - 1973 - Estudos Afro-Brasileiros.
o Paulo. Perspectiva.
1978 - O Candomblé da Bahia.o Paulo. Com-
panhia Editora Nacional.
- 1989 - As Religiões Africanas no Brasil.o Pau-
lo, Pioneira.
Brown, Diana - 1977 - Umbanda - Politics of an
Urban Religious Movement, PhD Thesis, De-
partament of Anthropology, Columbia Uni-
versity.
Brumana, Fernando G. e Martinez, Elda G. - 1991
- Marginália Sagrada, Campinas, Editora da
UNICAMP.
Cândido, António - 1981 - Formação da Literatu-
ra Brasileira, vol. 2, Belo Horizonte. Itatiaia.
Carneiro, Edison - 1986 - Candomblés da Bahia.
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
Castoriadis, Cornelius - 1975 - UInstitution Ima-
ginaire de la Société. Paris.
Dantas, Beatriz G. - 1982 "Repensando a pureza
nagô" in Religião e Sociedade n. 8, Rio de
Janeiro.
1988 - Vovó Nagô e Papai Branco. Rio de Ja-
neiro, Graal.
Durham, Eunice - 1983 - "O lugar do índio" in O
índio e a Cidadania.o Paulo. Comissão
Pró-índio/Brasiliense.
Fry, Peter - 1982 - "Feijoada e Soul Food: Notas so-
bre a Manipulação de Símbolos Étnicos e Na-
cionais" in Para Inglês Ver, Rio de Janeiro,
Zahar.
- 1986 - "Gallus Africanus Est. ou, Como Roger Bas-
tide se Tornou Africano no Brasil" in Revisi-
tando a Terra de Contrastes: a atualidade da
obra de Roger Bastide.o Paulo. CE-
RU/FFLCH-USP.
Gonçalves da Silva, Vagner - 1992 - O Candom-
blé na Cidade: Tradição e Renovação. Dis-
sertação de Mestrado,o Paulo, USP.
Landes, Ruth - 1967 - A Cidade das Mulheres. Rio
de Janeiro. Civilização Brasileira.
Maggie. Yvonne - 1975 - Guerra de Orixá. Rio de
Janeiro. Zahar.
Montero, Paula - 1985 - Da doença à Desordem:
a Magia na Umbanda, Rio de Janeiro, Graal.
Ortiz, Renato - 1978 - A Morte Branca do Feiti-
ceiro Negro, Petrópolis, Vozes.
Prandi, Reginaldo - 1991 - Os Candomblés deo
Paulo,o Paulo, HUC1TEC/EDUSR
Ramos, Artur - 1979 - As Culturas Negras no No-
vo Mundo,o Paulo, Companhia Editora Na-
cional.
Rodrigues, Nina - 1977 - Os Africanos no Brasil,
o Paulo, Cia Editora Nacional.
Santos, Jocélio T.- 1992 - O Dono da Terra: a Pre-
sença do Caboclo nos Candomblés da Ba-
hia, Dissertação de Mestrado,o Paulo, USR
Amazónia, Amazónia:
o os abandoneis.
Gerôncio Albuquerque Rocha
I
Jáo quinhentos anos, Amazónia, e
você pareceo se dar conta do que está
se passando. Os que aqui, antes de nós,
sempre viveram,m a memória do tem-
po e da história; sabem que o cerco está
se fechando e, insistentemente, mandam
avisos desesperados. Seo os defender-
des,o haverá perdão. Está escrito: - "o
que ocorrer com a terra, recairá sobre os
filhos da terra". Cinco séculosoo dias.
No princípio, os invasores os saqueavam,
em busca do ouro e da prata; depois, os
destruíam, forçando-os ao trabalho escra-
vo nos aluviões e nas minas. Foi assim em
o Domingos, Porto Rico e Cuba; depois
no Chile e Potosi, Bolívia; e no México.
Quaseo havia quem os defendesse, mas
algumas vozes clamavam de indignação:
- "não é a prata o que se envia à Espanha,
é o suor e o sangue dos índios". Hoje, os
que restaram mantiveram-se abrigados so-
bre vosso chão, na proteção dos deuses.
Tudo o que sois, a eles o deveis. Quando
vos agridem, eleso os primeiros a sentir
o golpe; quando vos enaltecem, eles des-
confiam; e quando se apiedam de vossa
exuberância mendiga, eles ficam indigna-
dos. Afinal, quem vos protege, Amazónia?
-o os abandoneis.
II
No inicio do século, o paraense Inglês
de Souza, trabalhando sobre o lendário da
região, escreveu o primoroso conto "O Bai-
le do Judeu". Um dia o homem resolve dar
uma festa em sua casa, à beira do rio Ama-
zonas. O centro da atenções era a sua be-
la mulher e "a faceirice com que sorria a
todos, parecendoo conhecer maior pra-
zer do que ser agradável a quem lhe fala-
va". No auge da festa, entra no salão um
indivíduo esquisito, de chapéu desabado
cobrindo o rosto, e tira a dama para dan-
çar, em meio ao espanto de todos. E uma
dança vertiginosa, de nunca acabar; e,
quando a orquestra pára de cansaço, ele
a arrasta pela porta fora e com ela se atira
nas águas. Era um boto.
Hoje em dia, jáo há lugar para a
lenda. Mesmo assim,o custa imaginar
que aquela mulher bonita é a própria Ama-
zónia. E há um boto. Queo deixa ver
o rosto e confunde a todos numa dança
frenética e sem fim.
Márcio Souza (1990), outro escritor na-
tivo, passa a limpo o processo histórico da
Amazónia e mostra como a região sempre
se manteve isolada e à margem do con-
traditório processo de desenvolvimento do
país. Dependente do sistema extrativista,
vegetou no abandono e na miséria por lon-
gas décadas, desde que o mercado mun-
dial encontrou outras fontes de suprimen-
to da borracha. Com o inicio da revolução
burguesa, nos anos 30, viu-se excluída do
cenário nacional porque os esforços de in-
dustrialização se concentraram no Sudes-
te e a estrutura de poder da região (a "cul-
tivada ignorância de sua elite")o tinha
a mínima influência. Nos últimos vinte
anos, e de novo sem voz e sem vez, foi es-
cancarada à exploração internacional do
capital, num projeto económico iniciado na
Ditadura.
Agora, por ocasião da ECO-92, no Rio
de Janeiro, a Amazónia torna-se o centro
das atenções. Todos apregoam um modelo
de desenvolvimento auto-sustentado (o
termo mais adequado é motivo de contro-
vérsia...). Os governos dos países centrais
acenam com recursos para projetos exem-
plares, maso abremo de territórios
para onde possam exportar suas tecnolo-
gias sujas e ainda obter lucro.
O resultado da voracidade capitalista
sobre a Amazónia é bem conhecido. A ex-
ploração de minérios constitui mera trans-
ferência de matéria-prima, sem nenhuma
No final dos anos
80 surgiram
diferentes
organizações e
associações
indígenas em todo o
país. A COIAB -
Coordenação das
Organizações
Indígenas da
Amazónia Brasileira,
que reúne várias
organizações
indígenas, em seu
III Encontro de
reflexão e
planejamento,
(1991). Foto Egon
Heck/CIMI.
contribuição ao desenvolvimento regional
e a melhoria das condições de vida da po-
pulação. Carajás, o mais famoso dos pro-
jetos mínero-metalúrgicos, é o símbolo do
modelo colonial mina-ferrovia-porto, de
sangria das riquezas minerais. O jornalista
Eric Nepomuceno mostra o grau de absur-
do deste empreendimento: "para produ-
zir uma tonelada de íerro-gusa consome-
-se uma tonelada de carvão vegetal.
Exportada para a Europa, essa tonelada de
ferro-gusa vale aproximadamente 120-
lares. A tonelada de carvão vegetal vale en-
tre 300 e 400 dólares". O setor elétrico
(Eletrobrás-Eletronorte) tem um plano des-
comunal para a exploração dos recursos
hídricos da região por meio de grandes hi-
drelétricas. Duas delas, Tucuruí e Balbina,
já foram construídas mas a energia gera-
da, em lugar de atender às cidades e vi-
las, é destinada à indústria metalúrgica do
alumínio, a preços subsidiados.
A frente mais ampla e extensiva de
ocupação do território amazônico é a ex-
ploração agro-florestal e pecuária, que de-
sestruturou o modo de produção extrati-
vista e introduziu um vertiginoso processo
de especulação da terra, de concentração
fundiária e de devastação da floresta.
Este é o modelo de desenvolvimento
sustentado por todos os brasileiros, a co-
meçar das centenas de milhares de agri-
cultores expulsos da terra e que hoje pe-
rambulam pelos campos de garimpo da
região, trabalhando em condições de semi-
-escravidão, ou engrossam os centros ur-
banos como mão-de-obra disponível. Em-
presas de mineração e donos de garimpo
avançam sobre as terras dos índios que, in-
defesos,om como resistir às invasões.
III
Desde 1983, com a promulgação do
decreto n? 88.985, pelo então presidente
Figueiredo, abrindo as terras indígenas à
mineração, as pressões contra os índiosm
evoluído de forma crescente, embora com
variações de tática por parte dos setores en-
volvidos. "De um lado, as empresas de mi-
neração tentam ganhar no papel a legali-
zação das áreas de pesquisa e lavra como
condição de segurança para seus investi-
mentos de capital. De outro, os empresá-
rios do garimpo fomentam invasões e in-
trusões de garimpeiros em várias áreas
indígenas, buscando por meio do fato con-
sumado, antecipar-se às empresas.
A invasão
desenfreada do
território Yanomami
por ondas sucessivas
de garimpeiros tem
levado ao genocídio
esse povo indígena.
Vista aérea da pista
de pouso para
aviões do garimpo
denominada
Chimarrão, na
região do Alto
Mucajaí, Roraima.
Foto Charles
Vincent/CEDI-CCPY.
roeste de Mato Grosso. Regina Valadão, do
Centro de Trabalho Indigenista, é testemu-
nha. No início de 1990, a Mineradora San-
ta Elina fechou um acordo com a Coope-
rativa Mista dos Garimpeiros e Produtores
de Ouro do Vale do Sararé, para explora-
ção de ouro ao longo do córrego Água Su-
ja, limite natural da área indígena Sararé.
Um ano depois, em maio de 1991, foi ve-
rificada a presença de 1.300 garimpeiros;
em junho, uma equipe com gente de-
rios órgãos federais e estaduais constatou
a situação: já havia 2.000 garimpeiros em
atividade, várias dragas e bombas em ope-
ração e, em lugar do córrego, crateras, de-
vastação e poluição por mercúrio, óleos e
graxas. Mais de 75% da população foi atin-
gida pela malária, inclusive com a morte
de índios. O comportamento dos poderes
públicos é patético: o acordo inicial foi sub-
metido à FUNAI, queo o assinou, mas
fez vista grossa; IBAMA, DNPM, Polícia Fe-
deral, órgãos do governo do Mato Gros-
so, todos reconhecem que é preciso resol-
ver a situação, mas sempre alegam a falta
de recursos e meios. Em outubro de 1991,
por solicitação do Núcleo de Direitos Indí-
genas, foi concedida liminar da 9
a
Vara do
Distrito Federal para que fosse feita a reti-
rada imediata dos garimpeiros. E até hoje
o se cumpre o que a justiça determina.
Esta é a segunda ameaça total à sobrevi-
vência dos índios Nambiquara. Eles foram
contatados na década de 70 e, em segui-
da, tiveram suas terras invadidas por ma-
deireiras e pela agro-pecuária. Muitos mor-
reram, os sobreviventes foram resgatados
de helicóptero e a Cruz Vermelha Interna-
cional intercedeu junto ao governo brasi-
leiro para a destinação das áreas que hoje
ocupam.
O processo de exploração dos recur-
sos naturais da Amazónia - minérios, ma-
deira e recursos hídricos - atinge diferen-
temente inúmeras áreas indígenas.
No setor da mineração, um levanta-
mento efetuado em 1986 por geólogos e
antropólogos do grupo de estudos CEDI-
-CONAGE revelou que 560 autorizações
e 1.685 pedidos de pesquisa mineral fo-
ram ilegalmente concedidos a 69 grupos
económicos, incidindo parcial ou totalmen-
te sobre 77 terras indígenas. As terras in-
dígenas dos Estados do Pará (219 alvarás,
357 requerimentos) e de Rondônia (163
alvarás. 124 requerimentos)o as mais
atingidas pelos interesses das empresas.
, também, uma grande quantidade de
requerimentos de pesquisa no Amazonas
(418) e em Roraima (589).o estão com-
putados no levantamento as penetrações
e enclaves das frentes de garimpo (CEDI.
1988).
A exploração dos recursos hídricos pa-
ra a produção de energia elétrica constitui
uma estratégia do poder central - por meio
da associação entre o sistema Eletro-
brás/Eletronorte e as grandes empresas de
construção civil - voltada para atender aos
futuros desequilíbrios da região Sudeste, e
o para benefício da Amazónia. O plano
descomunal desse consórcio - chamado
Plano 2010 - é o de construir 79 barragens
na região, algumas delas com lagos artifi-
ciais cujas dimensões variam de 1.000 a
6.000 Km
2
. Duas grandes barragens já
construídaso paradigmas deste mega-
projeto. "A hidrelétrica de Balbina (situa-
da no vale do rio Uatumã, no Estado do
Amazonas)o atende a qualquer neces-
sidade regional, sendo ainda extremamen-
te predatória e alagando um território sem
proporção, 2.400 Km
2
, com a sua capa-
cidade relativamente irrisória de 250 MW"
(CIMI, 1986). A outra, a hidrelétrica de Tu-
curuí, no Pará, com um lago de 2.400
Km
2
e a capacidade nominal de 3.600
MW, tem energia destinada à indústria me-
talúrgica do alumínio, com tarifas reduzi-
das. Com o enchimento do lago, em 1984,
foram submergidos 14 povoados, duas re-
servas indígenas e deslocadas cerca de
5.000 famílias de pequenos agricultores.
A próxima investida do setor elétrico
será a construção das hidrelétricas do Xin-
gu, que a Eletronorte chama eufemística-
mente de "Complexo de Altamira" para
evitar associações com os índios da região.
o dois grandes lagos, Juruá/Cararaô e
Babaquara, de 1.200 e 6.000 Km
2
res-
pectivamente, com capacidade total de
17.600 MW e valor estimado de 25 bilhões
de dólares. Se consumado, o empreendi-
mento afetará irremediavelmente sete po-
vos indígenas da região.
A exploração florestal, que é a frente
mais ampla e extensiva de ocupação e de-
vastação do território amazônico, avança
sobre as terras dos índios, principalmente
em Rondônia e no Pará. Betty Mindlin e
Isabelle Gianninim acompanhado de
perto a escalada de saque promovida pe-
las madeireiras há dez anos.
No inicio, predominava o roubo de
grandes quantidades de madeira de lei; a
partir de 1987, a venda da madeira foi pro-
movida pela própria FUNAI (gestão Rome-
no Jucá), mediante contratos ilegais com
as madeireiras ou mesmo estimulando ne-
gociações diretas com os índios.o tran-
sações absolutamente desorganizadas, em
que os índioso levam nenhuma vanta-
gem. As grandes madeireiras fazem a ex-
tração seletiva do mogno, que vale no mer-
cado internacional cerca de 500 dólares
por metro cúbico mas, nas negociações é
vendida a 20 ou 30 dólares por metro-
bico; e nem isso os índios recebem, pois
o há controle de medição da madeira ex-
traída. Neste período, estima-se que te-
nham sido retiradas em terras indígenas de
Rondônia 1 milhão de metros cúbicos de
mogno.
IV
A cobiça pelas terras dos índios assu-
miu a forma de uma guerra de posições,
extremamente desigual. Empresários, do-
nos de garimpo, atravessadores, contraban-
distas e políticos oportunistas, ao mesmo
tempo que promovem invasões e intru-
sões, utilizam-se de um variado arsenal de
justificativas e propostas cujo traço comum
é a ideia economicista e salvacionista de
expandir, com urgência, a fronteira agrícola
e a exploração mineral na Amazónia, em
nome do "interesse nacional". Os povos in-
dígenas passam, então, a ser vistos como
um obstáculo ao "progresso", uma pedra
no meio do caminho.
A mistificação do "interesse relevante
para o desenvolvimento ou a segurança do
País" é flagrante, principalmente no caso
da mineração. Os bens minerais mais vi-
sados pelos grupos económicoso o ou-
ro e a cassiterita (estanho). No caso da cas-
siterita, o Brasil é um dos primeiros
produtores mundiais do minério, dispon-
do de várias áreas de produção - todas elas
situadas fora dos domínios das terras indí-
genas - com recursos em exploração em
volume suficiente para atender às neces-
sidades do mercado interno e de geração
de excedentes exportáveis nos próximos
30 anos. Quanto à corrida em busca do
ouro, o fenómeno é bem conhecido: em-
presários e donos de garimpo lideram le-
giões de homens desfigurados, expulsos da
terra, tangidos pela fome e o desempre-
go, que avançam sobre os aluviões dos rios
e igarapés da região, - "independentemen-
te de existirem ouo indígenas nas pro-
ximidades". A produção de ouro no Bra-
sil é da ordem de 120 toneladas/ano, com
valor equivalente a 1,5 bilhões de dólares.
Mais da metade do ouro produzido é des-
viado por contrabandistas, entrando depois
no mercado negro e na bolsa de valores,
para especulação financeira.
Os invasores cultivam a imagem de
bandeirantes modernos, buscando uma as-
sociação com supostos feitos épicos do
passado colonial. Mas Severo Gomes, em
cortante observação, assinalou que, tanto
no passado como no presente, bandeiran-
tismo e banditismo andam de mãos dadas.
Em todos os relatos e depoimentos pe-
rante à Comissão índios no Brasil ficou pa-
tente a co-responsabilidade dos poderes
públicos nesta verdadeira tragédia que se
abate sobre os índios: omissão, impotên-
cia, conivência.
E oportuno fazer aqui um registro his-
tórico. Em outubro de 1990, reuniu-se em
Paris o Tribunal Permanente dos Povos,
constituído de juristas de onze paises, que
se pronunciou sobre os danos causados
aos povos indígenas e às populações da
Amazónia, com a seguinte sentença:
Decisão do Tribunal
Em resposta às questões que lhe foram
submetidas, o Tribunal decide o seguinte:
1. A soberania que a República Fede-
rativa do Brasil exerce sobre o território da
Amazónia, parte integrante do território na-
cional, não confere somente prerrogativas
garantidas pelo Direito Internacional, mas
acarreta, também, obrigações. Em primeiro
lugar, a obrigação de promover o bem-
estar do povo brasileiro e o respeito do
meio ambiente natural da Amazónia, no
interesse da população inteira do país, sem
que sejam postos em perigo os direitos par-
ticulares do povo da Amazónia.
Adotando uma nova Constituição,
aderindo a numerosos tratados internacio-
nais sobre a proteção dos direitos funda-
mentais e sobre o respeito ao meio ambi-
ente natural o Brasil reconheceu, ele pró-
prio, o limite no qual está encerrado o exer-
cício da soberania.
Entre as obrigações gerais do Estado
inclui-se o dever de dar execução às suas
próprias leis, de prevenir as infrações à sua
legislação e de reprimi-las quando elas ti-
verem sido cometidas. A Constituição bra-
sileira e o direito internacional impõem
também obrigações particulares em relação
às comunidades indígenas, primeiras ocu-
pantes do território nacional e portadoras
de valores culturais originais.
Os elementos de prova de que o Tri-
bunal dispõe revelaram atentados graves
aos direitos fundamentais, tanto por ações
arbitrárias de órgãos públicos quanto em
razão de uma deficiente proteção da vida
Pistas de garimpos
foram abertas perto
de malocas
Yanomami
comprometendo
seriamente o habitat
indígena. Distante
duas horas a pé da
maloca do Aemosh,
coberta com lona
plástica, está a pista
de pouso
Chimarrão. Foto
Charles Vincent/
CEDI-CCPY.
Contaminados por
mercúrio e pelas
doenças levadas
pelos garimpeiros,
os Yanomami
morrem sem
assistência. Piloto de
helicóptero da Força
Aérea Brasileira
(FAB) remove uma
Yanomami doente
da maloca Aemosh
para o posto médico
de Surucucus. Foto
Charles Vincent/
CEDI-CCPY
e da integridade física de todos os ci-
dadãos.
2. Os atentados à vida e ã integridade
das comunidades indígenas foram invoca-
dos perante o Tribunal, a fim de sustentar
a acusação de genocídio. Os dois primei-
ros elementos desse crime contra a huma-
nidade foram suficientemente demons-
trados. Quanto ao elemento intencional,
ele poderia resultar da reiteração de tais fa-
tos. Embora o Tribunal tenha considerado
que esse elemento não estava demonstra-
do, fora de qualquer dúvida, ele teve que
admitir que se medidas adequadas não fo-
rem adotadas, sem tardança, para a pro-
teçõo das comunidades indígenas, a
intenção de destruir, como tal, poderá ser
admitida.
3. Os argumentos algumas vezes invo-
cados, tendo por base a necessidade do
desenvolvimento do País, não poderiam
justificar os atentados constatados. O Tri-
bunal revelou, todavia, o fato de que um
modelo de desenvolvimento predatório foi,
em parte pelo menos, imposto aos gover-
nos brasileiros, notadamente em razão do
peso considerável da dívida externa e da
adesão do Brasil ao modelo de desenvol-
A retirada ilegal de
madeiras em áreas
indígenas tem sido
prática corrente na
região central e norte
do Brasil, contando em
muitos casos com a
convivência ou
omissão da FUNAI
Foto Luís Grupioni
uimento inspirado e dominado pelos paí-
ses mais industrializados.
Os governos sucessivos do Brasil, in-
clusive o governo atual, não são os úni-
cos responsáveis pela crescente degrada-
ção da condição de vida da maioria da po-
pulação. As responsabilidades internacio-
nais jã foram destacadas na sentença de
Berlim em 1988. Ela inclui as Instituições
Financeiras Internacionais, a Comunidade
Económica Europeia e os países cujas em-
presas contribuíram para a destruição de
parte considerável do território da
Amazónia.
4. O valor inestimável da Amazónia
para o equilíbrio ecológico do planeta não
poderia ter por si o efeito de restringir,
conforme as regras de Direito Internacio-
nal e dos Direitos dos Povos aplicáveis a
todos os Estados, o exercício, pelo Brasil,
de suas competências territoriais. A opres-
são da qual os povos da Amazónia têm si-
do vítima, ocorrida no último decénio, foi,
em grande parte, uma agressão interna-
cional.
Somente uma ação conjunta das for-
ças políticas e económicas da comunida-
de universal e a vontade de instaurar uma
nova ordem económica mundial poderão,
de maneira eficaz, ir ao encontro da ne-
cessidade de desenvolvimento do Brasil,
sem atentar contra os direitos fundamen-
tais do povo da Amazónia e à salvaguar-
da de seu meio ambiente natural.
Bibliografia
Castro, E.M.R. & Hébette, J. (orgs) - 1989 - Na Tri-
lha dos Grandes Projctos - Modernização e
Conflito na Amazónia. Cadernos NAEA, 10,
NAEA/UFPa. Belém, 252p.
CCPY/CED1/C1MI/NDI - 1990 - Yanomami: a to-
dos os povos da Terra. Segundo relatório da
Ação pela Cidadania sobre o caso Yanomami,
referente a acontecimentos do período junho
de 1989 a maio de 1990. 46 p, fotos, mapas.
CEDI/CONAGE -1988 - Empresas de Mineração
e Terras indígenas na Amazónia, ed. CEDI.
82 p.
CEDI 1991 - Povos Indígenas no Brasil
87/88/89/90. Aconteceu Especial. 18.o
Paulo.
Grupioni, L. D. B. (edit.) - 1992 - "Ata da 4a.Reu-
nião" in Documento - Registro da Comissão
índios no Brasil -o Paulo, Secretaria Mu-
nicipal de Cultura/SP.
Conselho Indigenista Missionário-CIMI (1986) - Se-
minário Amazónia: dossiê, Brasília, 23 p,
mimeo.
Fernandes, F.R.C.. org. - 1987 - A Questão Mine-
ral da Amazónia: seis ensaios críticos.
CNPq/MCT, 216 p.
Fearnside, PM. - 1991 - "Rondônia: Estradas que
Levam à Devastação" in Revista Ciência Ho-
je, volume especial Amazónia.
Frente Brasil Popular - 1989 - Plano de Ação do
Governo - Amazónia, Textos para discussão
interna. 38 p., mimeo.
Nepomuceno, E. - 1992 - "Amazónia: A Vida Eter-
na - A Vida Real" in Revista Goodyear,
JAN/FEV/MAR/ABR/92, p. 48-61.
Ricardo, CA & Rocha, G.A. - 1990 - "Compagnies
Minieres et Terres Indiennes" in Revue Etnnies,
11-12, p. 28-32.
Rocha, G.A. (org.) - 1984 - Em Busca do Ouro:
garimpos e garimpeiros no Brasil, CONA-
GE/Marco Zero, 222 p.
Seva. O. - 1988 - "Obra na Volta Grande do Xingu
- Um Trauma Histórico Provávej?" in As Hidre-
létricas do Xingu e os Povos Indígenas. Co-
missão Pró-índio deo Paulo,o Paulo. p.
25-41.
Souza, I. - s/d - "O Baile do Judeu" in Ramos, Gra-
ciliano - Seleção de Contos Brasileiros, vol.l
- Norte e Nordeste, Edições de Ouro.
Souza, M. - 1990 O Empate contra Chico Men-
des, Editora Marco Zero.o Paulo, 168 p.
Tude de Souza, A.M. - 1988 - "Os trabalhadores na
Amazónia Paraense e as Grandes Barragens"
in As Hidrelétricas do Xingu e os Povos Indí-
genas, Comissão Pró-índio deo Paulo, p.
121-134.
Tribunal Permante dos Povos - 1990 - Sessão Ama-
zónia Brasileira, Paris, 12 a 16 de outubro
de 1990 - Sentença. Fundação Lélio Basso, 42
P-
Vilar, P - 1980 - Ouro e Moeda na História
(1450-1920). Ed. Paz e Terra. 428 p.
Imprensa e questão indígena:
relações conflituosas
Priscila Siqueira
Os articuladores da Conferência Mun-
dial dos Povos Indígenas Sobre Território,
Meio Ambiente e Desenvolvimento, orga-
nizada pelo Comité Intertribal 500 Anos de
Resistência, realizada em Jacarepaguá, no
Rio de Janeiro, de 25 a 31 de maio deste
ano,o queriam a presença de jornalis-
tas brasileiros neste encontro que reuniu
cerca de 800 lideranças indígenas de to-
do o planeta. "A Imprensa Nacionalo
prestigia a nossa causa; a luta indígena no
país só recebe apoio da Imprensa Interna-
cional", afirmava o coordenador da con-
ferência, índio Marcos Terena.
Por pouco, a entrevista coletiva reali-
zada na abertura dos trabalhos do evento
só teria a presença de jornalistas estrangei-
ros. Foi toda uma negociação mostrando
aos indígenas que esta seria a oportunida-
de de expor na Imprensa Nacional suas rei-
vindicações e projetos. Mesmo assim,o
foram todos os órgãos da grande Impren-
sa Nacional que noticiaram os aconteci-
mentos ocorridos durante esta semana na
Conferência de âmbito internacional. Isto,
apesar de todos eles estarem representa-
dos por seus jornalistas queo arredaram
o pé do Parque Kari-Oca naqueles dias.
Apesar mesmo, da Conferência ter sido -
provavelmente - a mais importante reunião
de lideranças dos povos nativos em todo
o mundo. Neste local privilegiado no so-
pé da Serra do Mar, aynos do Japão, la-
pões da Península Escandinava; esquimós
da antiga União Soviética; aborígenes aus-
tralianos; comunidades indígenas da Afri-
ca, Estados Unidos, Canadá, Filipinas e
América Latina reuniram-se com represen-
tantes de Nações Indígenas brasileiras dis-
cutindo problemas comuns sobre posse da
terra e identidade cultural.
Entretanto, duas semanas após o iní-
cio da Conferência dos Povos Indígenas,
já em pleno andamento da Rio 92 e do-
rum Global sobre Desenvolvimento e Meio
Ambiente, todas as telas de TV e manche-
tes de jornais de nosso país noticiavam um
fato ocorrido então com cerca de ums
de atraso: o estupro de uma garota atribuí-
do ao índio Paulinho Paiacã. Será coinci-
dência a forma diferenciada no tratamen-
to dessas duas notícias relacionadas com
o mesmo assunto, isto é, a causa indígena
no país?
Reconheço que para obter uma res-
posta mais segura a tal pergunta, sem cor-
rer o risco de cometer injustiças, muita pes-
quisa deveria ser feita na produção da
Imprensa Brasileirao só no leste-sul do
país, mas também nos estados do norte
onde a luta indígena é mais candente por
estar mais próxima. Porém, nos contatos
com profissionais da área que atuam nas
cidades de Belém e Manaus - colegas nos-
sos da Associação Brasileira de Jornalis-
mo Científico - a opinião geral é de que
a notícia relacionada com a questão indí-
gena é sempre factual. Sobre elao há
maior reflexão de suas causas e conse-
quências que se traduziriam por editoriais,
artigos ou mesmo as "suites", ou seja, o tra-
tamento continuado destas matérias.
Conflitos
O que se percebe na cobertura feita pe-
la Imprensa Nacional sobre os assuntos in-
dígenas é um grande conflito entre as cau-
sas humanistas - às quais quase a
totalidade dos jornalistas é sensível - e os
interesses económicos da Imprensa de in-
formação. Interesses ligados aos de seus
anunciantes ou de setores do Governo
com os quais a empresa jornalísticao
quer se indispor.
As vésperas da revisão constitucional
a ser realizada no ano que vem e da ela-
boração do Estatuto do índioo eviden-
tes os poderosos interesses contrários às
Álvaro Tukano.
membro do Comité
Intertribal 500 anos
de Resistência,
supervisiona a
construção de uma
das casas indígenas
que abrigariam os
membros da
Conferência Mundial
dos Povos
Indígenas. Foto
Denise Fajardo.
reivindicações indígenas. No caso da revi-
o constitucional em 93, muito mais que
em 88, quando a nossa Carta Magna foi
elaborada, a causa indígena tem contra ela
uma bancada poderosa no Congresso Na-
cional. Por ironia do destino, o fortaleci-
mento desta bancada ocorreu também por
consequência da atual Constituição que
ampliou o número de Estados da Federa-
ção na região norte do país. Infelizmente,
na maior parte das vezes as representações
políticas desses estadosoo constituí-
das de lideranças populares e indígenas
mas por setores ligados à mineração, ex-
ploração de madeira e grandes proprietá-
rios de terra.
No que diz respeito ao Estatuto do ín-
dio, as posições da relatora Teresa Jucá
trouxeram grande apreensão aos indígenas
e indigenistas que acompanham sua ela-
boração. Tanto é que o NDI, CIMI. FUNAI
e Procuradoria Geral da República uniram
seus esforços na apresentação de emen-
das aos substitutivos de Teresa Jucá.o
dá para esquecer que a deputada federal
é esposa de Romero Jucá. Este, como ex-
-superintendente da FUNAI, reduziu a área
Ianomami em 70% e depois, como gover-
nador nomeado de Roraima, abriu o res-
tante deste território indígena aos garim-
peiros. Ao ser registros esporádicos de
articulistas como Washington Novaes, onde
está a denúncia deste fato na Imprensa Na-
cional? Outro exemplo: no dramático acon-
tecimento ocorrido em 12 de outubro pas-
sado, quando Ulisses Guimarães e Severo
Gomes perderam a vida com suas espo-
sas num desastre aéreo, qual o grande jor-
nal ou TV brasileira que divulgou a atua-
ção do ex-senador junto à luta indígena?
Severo Gomes foi o grande articulador das
reivindicações dos índios brasileiros na
Constituição de 88. Ele seria fundamen-
tal na revisão constitucional e na elabora-
ção do Estatuto Indígena como articulador
no PMDB. Sem os votos desse partido po-
lítico a luta indígena poderá sofrer um grave
retrocesso na Legislação Brasileira. Quem
alertou o país para isto?
Além dos conflitos de terra envolven-
do mineradoras multinacionais e nacionais
e das grandes madeireiras interessadas nos
territórios indígenas, há outro conflito em-
baçando a cobertura jornalística deste as-
sunto: é o conflito ideológico. O clima de
paranóia vivido antes da Rio 92, quando
um simples cantor como Sting parecia
ameaçar nossa Segurança Nacional, foi um
exemplo bem explorado pelos meios de
comunicação. A falta do "inimigo comu-
nista" parece ter trazido uma crise de iden-
tidade para setores do Exército Nacional
que tentam achar substitutos entre ambien-
talistas e indigenistas. Até o ex-ministro Jo-
sé Lutzemberger -o criticado pelo mo-
vimento ambientalista brasileiro por nada
ter feito de concreto na defesa ambiental
do país -o escapou do estigma de "mau
brasileiro". Na realidade os que defendem
a Teoria da Segurança Nacional temem o
que seriam as fronteiras autónomas, facil-
mente identificáveis com os territórios in-
dígenas.
Talvez seja por isto que, contrariando
nossa Constituição, a Secretaria Geral da
Presidência da República pretende subme-
ter as futuras demarcações de áreas indí-
genas à aprovação prévia do Departamen-
to Nacional de Proteção Mineral,
Eletrobrás, Embrapa e Estado Maior das
Forças Armadas. Com isto, tanto os inte-
resses económicos que atuam no país co-
mo os militares, estariam preservados do
"perigo indígena". Também deve ser por
isto, que o prazo de cinco anos para que
fossem feitas as demarcações das terras in-
dígenas no país, previsto no artigo 67 das
Disposições Transitórias da Constituição,
está longe de ser cumprido apesar de ex-
pirar em 93. Mesmo a lei assegurando es-
te direito aos índios brasileiros, das 511
áreas reconhecidas pela FUNAI, 130 ou
26%om estudos para sua delimita-
ção; 117 (23%) estão delimitadas maso
demarcadas; 64 (13%) foram demarcadas
maso homologadas.
Apenas 190 (38% do total) estão com
seu processo jurídico concluído. Os indí-
genas brasileiros, primeiros donos desta ter-
ra, reivindicam 12% do território nacional
para poderem viver em paz.
Segundo Sidney Possuelo, atual supe-
rintendente da FUNAI, ele precisa de 110
milhões de dólares para demarcar estas
áreas. Porém, no orçamento de 93, a FU-
NAI vai receber um milhão de dólares, me-
nos de 1% do necessário. Novamente a
pergunta: esses dados foram divulgados na
sociedade brasileira?
A situação atual do país com a misé-
ria correndo solta, desemprego generaliza-
do, "arrastões" de crianças e adolescentes
Uma das casas
indígenas
construídas no
Parque Kari-Oca,
em Jacarepaguá,
que sediou a
Conferência dos
índios durante a
ECO-92. Foto
Denise Fajardo.
Paulinho Paiacãn,
importante liderança
indígena na
mobilização pela
garantia dos direitos
indígenas na
Constituição de
1988, recentemente
acusado de ter
estuprado uma
jovem branca em
Redenção/PA. Foto
Reynaldo
Stavale/ADIRP
A deputada Teresa
Jucá, relatora do
projeto de revisão
do Estatuto do
índio, recebe as
sugestões dos índios
formuladas durante
o Encontro de
Luziânia/GO, que
reuniu mais de 350
lideranças indígenas.
Foto Luis Grupioni.
nos redutos da classe média, reforça a ideia
na sociedade brasileira de que há muita ter-
ra para pouco índio. Em época de crise fi-
ca difícil entender os argumentos huma-
nitários de defesa do território para a de-
fesa de culturas diferentes das nossas. Fi-
ca difícil perceber que a miséria da cidade
e a expulsão do índio de seu territóriom
uma causa comum: o sistema econômico-
-social de nossa sociedade.
Democratização da informação
Sabemos o papel fundamental que a
Imprensa exerce na democratização da in-
formação, no seu papel de guardiã da De-
mocracia.o é nenhum intelectual de es-
querda que nos alerta: é o próprio Alvin
Toffler que enumera os três mecanismos
de dominação social - a força bruta, o ca-
pital e a informação.
Pois bem, cabe as jornalistas que li-
damos com a informação, democratizá-la
fazendo-a acessível ao maior número de
pessoas. Temos de superar a ideia que só
a elite deve ser informada. Pois só de pos-
se da informação do que acontece no país
e no mundo, temos condições de refletir
sobre nossas próprias vidas e destinos, des-
cobrindo assim nossa própria cidadania. E
quando está em jogo a questão indígena,
nosso compromisso de jornalista, de for-
mador de opinião pública, é ainda maior.
Compromisso de resgate de 500 anos de
opressão das populações nativas do nos-
so continente; compromisso de resgate de
culturas que só podem enriquecer a nos-
sa própria; compromisso de sobrevivência
o só de parcelas consideráveis de nos-
sa população mas da sobrevivência mes-
mo de quem provou ser até agora, os úni-
cos que souberam conviver com a natureza
sem expropriá-la.
Admito que se torna urgente uma pes-
quisa aprofundada de como está sendo tra-
tada e difundida pela Imprensa Nacional
a questão indígena no país. Fica aqui o de-
safio. Afinal, nem que seja por egoísmo,
devemos nos lembrar que a sobrevivência
de nosso planeta está intrinsicamente liga-
da ao conhecimento/informação dos se-
gredos da Terra queo é propriedade
nossa, mas sim, de nossos irmãos in-
dígenas.
CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO ÍNDIOS NO BRASIL
Inventário dos artefatos c obras da exposição
"índios no Brasil: alteridade, diversidade e
diálogo cultural"
Luís Donisete Benzi Grupioni
ALTERIDADE: FIGURAÇÕES DO OUTRO
Novo Mundo: encontros e des-
cobertas
"A chegada de Cristóvão Colombo à
América em 1492 - sem dúvida o aconte-
cimento mais extraordinário e decisivo da
moderna história do Ocidente - deu início
ao mais profundo e complexo processo de
trocas inter-culturais da humanidade. A via-
gem do Almirante Colombo e daqueles
que depois o seguiram, como Pedro Álva-
res Cabral em 1500, colocaram definitiva-
mente em contato dois mundos que até
entãoo se conheciam.
A descoberta do Novo Mundo habita-
do por povos desconhecidos desencadeou
uma vasta elaboração de discursos, repre
sentações e imagens. Oscilando entre o in-
ferno bestial e o paraíso terrestre, os indí-
genas e suas sociedades foram represen-
tados ao sabor dos interesses e fantasias
que presidiram o tempo da conquista.
Ao longo desses cinco séculos, muitos
dos primeiros habitantes da América su-
cumbiram perante a determinação do eu-
ropeu colonizador. Sociedades indígenas
inteiras foram dizimadas e se extinguiram
no processo histórico de formação dos
Estados-nacionais latino-americanos. Mas,
a verdade, muitas vezes negada ou igno-
rada, é que outras tantas sociedades resis-
tiram.
Existem hoje no Brasil cerca de 200 so-
ciedades indígenas diferentes, falando cer-
ca de 170 línguas e dialetos conhecidos,
com uma população estimada em 250.000
indivíduos, distribuídos em centenas de al-
deias em todo o território nacional.o re-
manescentes de um grande contingente
populacional que deveria oscilar em tor-
no de 6 milhões de pessoas quando da
chegada dos primeiros europeus no sécu-
lo XVI."
Reprodução de um trecho da carta de
Pêro Vaz de Caminha ao Rei Dom Manuel.
Livro: NOORT, Olivier van. Descrip-
tion du penible voyage fait entour de
1'univers ou tjlobe terrestre. Amesterdam,
1610. Acervo da Biblioteca Mário de An-
drade/SMC-SP.
Prato Ornamental, porcelana/pintu-
ra, Portugal, cena representando a 1. mis-
sa no Brasil. Museu Histórico Nacional, Rio
de Janeiro.
Niels Aagard Lutzen (1826 - 1890)
"Pintor dinamarquês, executou, a pe-
dido do Imperador D. Pedro II, cópias de
alguns quadros de Albert Eckhout. Em
1876, o Imperador Dom Pedro II visita a
Dinamarca e demonstra grande interesse
por uma série de pinturas de Eckhout per-
tencentes ao Museu Nacional de Copenha-
gen. Encomenda a Lutzen a cópia de seis
dos trabalhos que foram depois enviadas
ao Instituto Histórico e Geográfico Brasi-
leiro."
Os textos que
integram a
exposição "Índios
no Brasil" foram
redigidos por
Isabelle Vidal
Giannini e Luís
Donisete Benzi
Grupioni com a
participação, em
trechos específicos.
de Dominique T.
Gallois, Manuela
Carneiro da Cunha.
Lux B. Vidal. Ornar
Ribeiro Thomaz,
Flora Dias. Aloísio
Cabalzar e Rui
Corrêa Costa.
Albert Eckhout (1610- 1665)
"O pintor e desenhista holandês inte-
grou a Corte do Conde João Maurício de
Nassau-Siegen, nos quase oito anos em
que este governou o Brasil Holandês ad-
ministrando a Companhia das índias Oci-
dentais. Ficou a maior parte do tempo em
Pernambuco. Sua tarefa como pintor, nas
palavras de Nassau, seria "representar tu-
do o que era desconhecido na Europa ou
de interesse para o Velho Mundo". Esta ta-
refa era dividida com Franz Post, cabendo
a este as paisagens e a Eckhout as popu-
lações indígenas, africanas e mestiças, ima-
gens da flora e da fauna."
Neils Aagard Lutzen
1. índia Tapuia, óleo sobre tela, (có-
pia do original de Albert Eckhout), s/d. Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio
de Janeiro.
2. índia Tupi com criança, óleo so-
bre tela, (cópia do original de Albert Eck-
hout), s/d, Instituto Histórico e Geográfi-
co Brasileiro, Rio de Janeiro.
3. Mulher Mameluca, óleo sobre te-
la, (cópia do original de Albert Eckhout),
s/d, Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro, Rio de Janeiro.
4. índio Tarairiu, óleo sobre tela, (có-
pia do original de Albert Eckhout), s/d, Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio
de Janeiro.
Livro: PISO, Willem. Historiae Natu-
ralis Brasiliae. Lugdun. Batavorum, apud
Franciscum Hackium; Amstelodami, paud
lud. Elzevirium, 1648. (Contém: Georgi
Marcgravi de Liebstadt, Historiae rerum
naturalium Brasiliae, Libri octo. Acervo
da Biblioteca Mário de Andrade/SMC-SP.
Pierre Mariette
Le Brésil (seg. dAbbeville, N.Sanson),
mapa do Brasil, mostrando as capitanias
desde o Pará atéo Vicente, tribos indí-
genas e rios, buril colorido, 36.9 x 54.4 cm,
1656, Fundação Museus Raymundo Ot-
toni de Castro Maya, Rio de Janeiro.
Cronistas, Naturalistas c Viajan-
tes - séc. XVI a XIX
"Desde épocas antigas, as narrativas
Livro: STADEN, Hans. Americae ter-
tia pars memorabile provinciae Brasiliae
historiam contins. Francofurti ad Moe-
num, Theodori de Bry, 1592. Acervo da
Biblioteca Mário de Andrade/SMC-SP.
Livro: LERY, Jean de. Histoire d'un
voyage fait en la terre du Bresil, dite
Amerique, Geneve, Antoine Chuppin,
dos viajantes aliavam fantasia e realidade.
Descrevendo o que viam, o que ouviam
e o que queriam ver, os viajantes traziam
notícias de homens e de terras desconhe-
cidas. Os estranhos costumes dos povos da
Africa e do Oriente durante muito tempo
alimentaram o imaginário europeu. As nar-
rativas registram as experiências dos anti-
gos viajantes, o seu deslumbramento com
a variedade de formas, dos seres e das co-
res das terras distantes.
A chegada num continente Novo,
inaugura uma tradição narrativa e pictóri-
ca dos viajantes na América. Das mais di-
versas procedências, entre os séculos XVI
e XIX, os viajantes percorreram parte do
imenso continente. Das narrativas emer-
gem o inferno e o paraíso, o bom e o mau
selvagem, a natureza exuberante que atrai
e assusta.
O século XVIII inaugura um novo ci-
clo de viagens que se estende por todo o
século XIX. As expedições científicas além
de alimentar o imaginário europeu sobre
as terras americanas, alimentam o seu es-
pírito científico e classificatório. O mundo,
os seus povos e as suas obras, tornam-se
passíveis de se transformar em peças de
museu. As narrativas e os desenhos dos
viajantes registram minuciosamente os po-
vos e os tipos humanos, a fauna e flora,
as paisagens e as cidades."
Livro: WALLACE, Alfred Russel. A
narrative of traveis on the Amazon and
Rio Negro, with an account of the Nati-
ve Tribes, London, Reeve and co., 1853.
Acervo da Biblioteca Mário de Andra-
de/SMC-SR
Livro: SCHMIDT, Max. Indianerstu-
dien Zentralbrasilien erlebbnisse und
Ethnologische ergebnisse einer reise in
den Jahren 1900 bis 1901. Berlin, 1905.
Acervo da Biblioteca Mário de Andra-
de/SMC-SR
Balcão com os livros da série Recon-
quista do Brasil (Edusp/ltatiaia) para con-
sulta do público.
Maximiliano von Wied-Neuwied
(1783-1867)
"Zoólogo, desenhista e pintor, Wied-
-Neuwied escolheu o Brasil como objeto
das suas explorações por considerá-lo um
país com imensos territórios virgens ainda
por conhecer. Chegou ao Rio de Janeiro
em 1815, permanecendo no país até 1817.
Viajou pelo litoral fluminense e pelo inte-
rior da Bahia e de Minas Gerais. Ao retor-
nar à Europa levou consigo farto material
etnográfico e classificações da fauna bra-
sileira. Entre 1820 e 1821 surge a primei-
ra publicação do livro "Viagem pelo Bra-
sil", e entre 1822 e 1831 é publicada uma
coleção de estampas de Wied-Neuwied.
Estas ilustrações serão um complemento
fundamental da "História Natural Brasilei-
ra", publicada em quatro volumes entre
1825 e 1833."
Pranchas: Apresentação de 8 pran-
chas ("Eine Familie der Botocudos auf der
Reise", "Zuveikaempfe der Botocudos am
Rio Grande de Bellmonte", "Die Puris in
ihren Waldern", "Die Patachos am Rio do
Prado", "Gruppe einiger Camacans im
Walde". "Gerathscheften der Puris", "Ge-
rathscheften und Zierrathen der Botocu-
dos", "Zierrathen und Gerathscheften der
Camacans") e um mapa ("Ostkuste von
Brazilien") do livro WIED-NEUWIED, Ma-
ximilian Alexander Philipp von. Reise nach
Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817.
Frankfurt a.M., Gedruckt und verleget bei
Heinrich Ludwig Bronner, 1820-1821.
Livro: RUGENDAS, Johann Moritz.
Malerische Reise in Brasilien. Paris, He-
rausgegeben von Engelmann e cie, 1835.
Acervo da Biblioteca Mário de Andra-
de/SMC-SP.
1. índios Puri, gravura, s/d, Acervo
Artístico Cultural Palácios do Governo (Pa-
lácio dos Bandeirantes),o Paulo.
2. índios Coroatos, gravura, Acervo
Artístico Cultural Palácios do Governo (Pa-
lácio dos Bandeirantes),o Paulo.
Acervo da Biblioteca Mário de Andra-
de/SMC-SP.
Johan Moritz Rugendas (1802-1858)
"Pintor e desenhista alemão proceden-
te de uma família de pintores, ingressou em
1818 na Academia de Artes de Munique,
onde dedicou-se à pintura de paisagens e
quadros de género. Convidado por Langs-
dorf para integrar como desenhista uma ex-
pedição científica pelo Brasil, embarcou pa-
ra o Rio de Janeiro em 1824. Com
Langsdorf, visitou a província de Minas Ge-
rais, onde fez importantes registros pictó-
ricos de Ouro Preto, e também entrou em
contato com os índios Monoxós e Maxa-
calis, retratando-os em sua atividade de co-
leta de palmito. Durante a expedição,
desentendeu-se com Langsdorf, seguindo
sozinho pelas províncias do Rio de Janei-
ro, Minas Gerais, Mato Grosso. Espírito
Santo e Bahia. Em 1825 regressou à Eu-
ropa, onde publicou sua "Viagem Pitores-
ca". Após esta publicação viajou durante
quatorze anos pelo México, Chile, Peru,
Bolívia, Argentina, Uruguai e Brasil, resul-
tando desta viagem um enorme acervo de
esboços. Retornou a Alemanha em 1846."
Johan Moritz Rugendas
3. Aldeia de Tapuias, aquarela, 15,5
x 28,4 cm, s/d, Secretaria Municipal de
Cultura deo Paulo,o Paulo.
4. índios prepraram comida, lápis,
15,3 x 28,4 cm, s/d, Secretaria Municipal
de Cultura deo Paulo,o Paulo
Cari Friedrich Phillip von Martius
(1794-1868)
"O naturalista alemão Cari F.P. von
Martius viaja pelo Brasil entre 1817 e 1820
em companhia do zoólogo Johan Baptist
Spix. Viajando poro Paulo, Minas Ge-
rais, Bahia, Piauí, Maranhão e pela região
amazônica, recolhe cerca de 6500 espé-
cies de plantas, e farto material etnográfi-
co e filológico. Os relatos da expedição, es-
crito em conjunto com Spix,o
publicados entre 1823 e 1831 sob o título
de "Viagem pelo Brasil". Sua maior reali-
zação foi, no entanto, a obra "Flora Brasi-
liensis", iniciada em 1840 e por ele dirigi-
da até sua morte em 1868. Concluída em
1906 por diversos especialistas, compreen-
de 15 volumes, onde estão classificadas
850 famílias com a descrição de mais de
8000 espécies vegetais."
Johan Baptist von Spix (1781-1826)
"Zoólogo alemão, viajou em missão
científica ao Brasil em companhia de von
Martius entre 1817 e 1820. Durante esse
período realizou extensa classificação da
fauna brasileira, e, sozinho, percorreu a re-
gião amazônica. Retornou à Europa com
um inventário de 3.381 animais brasileiros.
Morreu prematuramente antes de ver a pu-
blicação final dos relatos das suas viagens,
concluída por von Martius, em 1831."
Livro: Spix, Johan Baptist von und
MARTIUS, Cari Friedrich Phillip von. Atlas
zur reise in Brasilien, 1823-1831. Acer-
vo da Biblioteca Mário de Andra-
de/SMC-SP.
Spix e Martius
1. Iuri, litografia, Laboratório de Re-
cursos Visuais e Sonoros em Antropolo-
gia da Universidade deo Paulo,o
Paulo.
2. Mundurucú, Uairumá, Puru-puru,
litografia, Laboratório de Recursos Visuais
e Sonoros em Antropologia da Universi-
dade deo Paulo,o Paulo.
Hercule Florence (1804-1879)
"Desenhista e fotógrafo francês, se es-
tabeleceu no Rio de Janeiro em 1824. Em
1825 foi aceito para o cargo de segundo
desenhista da expedição organizada por
Gregory Ivanovitch Langsdorf, consul-geral
da Rússia no Brasil e membro da Acade-
mia de Ciências deo Peterburgo. A ex-
pedição parte do Rio de Janeiro com des-
tino a Santos. De, passando poro
Paulo, se dirigiu ao interior do país, che-
gando à Amazónia por via fluvial. Floren-
ce documentou com desenhos os lugares
atravessados pela expedição, os tipos hu-
manos e costumes. Escreveu um diário,
"Esboço Pitoresco da Viagem de Porto Feliz
e Cuiabá e Explicação dos desenhos aí
anexados", publicado em 1875, em tradu-
ção para o português de Alfredo de Tau-
nay. Florence se estabeleceu em Campi-
nas, onde casou, em 1830. Realizou
trabalhos pioneiros em fotografia, além de
ter impresso, em 1836, o jornal "O Paulis-
ta", primeiro no interior do Estado."
Livro: FLORENCE, Hercule. Viagem
fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a
1829.o Paulo, Melhoramentos, 1941.
Acervo da Biblioteca Mário de Andra-
de/SMC-SP.
Hercule Florence
1. Jovem Apiacá, desenhado em
Diamantino, 25 de março de 1928, nan-
quim aguado, 21 x 25,5 cm, Coleção par-
ticular Cyrillo Hercules Florence.
2. Jovem Apiacá, nanquim aguado,
21 x 26 cm, Coleção particular Cyrillo Her-
cules Florence.
3. Apiacás na vista do Salto do ju-
ruena conhecido como Salto Augusto,
nanquim aguado, 21 x 26 cm, Coleção
particular Cyrillo Hercules Florence.
4. Jovem Apiacás, aquarela e nan-
quim a pena, 34 x 24 cm, Coleção parti-
cular Cyrillo Hercules Florence.
5. Apiacá, aquarela, nanquim a pena
e lápis, 26 x 37 cm, Coleção particular
Cyrillo Hercules Florence.
6. Apiacá em costume, aquarela e
nanquim a pena, 23 x 30 cm, Coleção par-
ticular Cyrillo Hercules Florence.
7. Apiacás com ornamentos, 1828,
aquarela e nanquim a pena, 20 x 29,5 cm,
Coleção particular Cyrillo Hercules
Florence.
8. Duas mulheres Apiacás socando
milho, 1828, aquarela e nanquim a pena,
25 x 41 cm, Coleção particular Cyrillo Her-
cules Florence.
9. índio Apiacá, poligrafia, 23,8 x 34
cm, Coleção particular Cyrillo Hercules
Florence.
10. índio Apiaca, lápis, 22,5 x 28,8
cm, Coleção particular Cyrillo Hercules
Florence.
11. Maloca Apiacá no Rio Juruena,
1828, nanquim a pena, 51,5 x 25,4 cm,
Coleção particular Cyrillo Hercules
Florence.
12. Bororó, Setembro, 1827, nan-
quim aguado, 20 x 25,5 cm, Coleção par-
ticular Cyrillo Hercules Florence.
13. Bororós, Jacobina, nanquim
aguado, 20,5 x 25,5 cm, Coleção particu-
lar Cyrillo Hercules Florence.
ça e jogos Bororó, em Jacobina, 1827,
nanquim a pena, 43,5 x 32 cm, Coleção
particular Cyrillo Hercules Florence.
17. Crianças Bororó, Setembro,
1827, nanquim a pena, 20,5 x 25,5 cm,
Coleção particular Cyrillo Hercules
Florence.
18. Bororós de Villa Maria, nanquim
a pena, 20,5 x 25,5 cm, Coleção particu-
lar Cyrillo Hercules Florence.
19. Bororós, Setembro, 1827, nan-
quim a pena, 20,5 x 25,5 cm, Coleção par-
ticular Cyrillo Hercules Florence.
20. índia Bororó, em Jacobina, nan-
quim a pena, 20,5 x 25,2 cm, Coleção par-
ticular Cyrillo Hercules Florence.
21. Mulher da tribo Chamacoco,
nanquim a pena, 20,5 x 25,5 cm, Cole-
ção particular Cyrillo Hercules Florence.
22. índia Chamacoco, serva em Cu-
yabá, desenho a lápis, 20,5 x 25,5 cm, Co-
leção particular Cyrillo Hercules Florence.
23. índio Chamacoco, criado entre
os Guanás, desenho a lápis, 20,5 x 25,5
cm, Coleção particular Cyrillo Hercules
Florence.^
24. índia Chamacoco, serva em
Cuiabá, desenho a lápis, 20,5 x 25,5 cm,
Coleção particular Cyrillo Hercules
Florence
;
25. índios Guanás, feitos emo
Paulo, junho 1830, nanquim aguado, 41,5
x 26 cm, Coleção particular Cyrillo Her-
cules Florence.
26. Guanitá, Capitão-Mor dos Gua-
s e moça, aquarela, 23,5 x 32 cm, Co-
leção particular Cyrillo Hercules Florence.
27. Três índios Guanás, desenho a-
pis, 25,5 x 20,5 cm, Coleção particular
Cyrillo Hercules Florence.
28. índio Guató, chamado Tohé, ca-
çador do Comandante de Albuquerque
no Rio Paraguay, nanquim a pena, 21,5
x 27,5 cm, Coleção particular Cyrillo Her-
cules Florence.
29. Família de Guatós, nanquim a pe-
na, 25,5 x 30 cm, Coleção particular Cyril-
lo Hercules Florence.
30. índios Guatós, confluência do
Rioo Lourenço e o Paraguay, 27 De-
zembro de 1826, aquarela e nanquim a
pena, 25 x 20,5 cm, Coleção particular
Cyrillo Hercules Florence.
31. Guatós na Passagem Velha a 4
14. Bororó, Vila Maria, 1827, nan-
quim a pena, 20,5 x 25,5 cm, Coleção par-
ticular Cyrillo Hercules Florence.
15. Dança dos Bororós, nanquim a
pena, 31 x 19,5 cm, Coleção particular
Cyrillo Hercules Florence.
16. Estudos de movimentos de dan-
léguas da Villa, desenho a lápis, 19,5 x
31 cm, Coleção particular Cyrillo Hercu-
les Florence.
32. Velho e Jovem Guatós. desenho
a lápis, 20,5 x 25.5 cm, Coleção particu-
lar Cyrillo Hercules Florence.
33. Mulher e criança Mundurucus,
aquarelada, 20,5 x 25,5 cm, Coleção par-
ticular Cyrillo Hercules Florence.
34. índio do Paraná educado em Por-
to Feliz, nanquim a pena. 20,5 x 25,5 cm,
Coleção particular Cyrillo Hercules
Florence.
35. índio do Paraná educado em Por-
to Feliz, nanquim a pena, 20 x 26 cm, Co-
leção particular Cyrillo Hercules Florence.
36. índio desenhado do natural em
Camapuã. 12 de outubro de 1826. nan-
quim a pena, 16,5 x 22,5 cm, Coleção par-
ticular Cyrillo Hercules Florence.
37. índio da Chapada. S. Carlos, 27
de março de 1830, lápis, 25,5 x 20,5 cm,
Coleção particular Cyrillo Hercules
Florence.
38. Costume - índio civilizado com
Poncho, aquarela, 25,2 x 19,8 cm, Cole-
ção particular Cyrillo Hercules Florence.
39. Bororó e Guató, desenho a lápis,
20.3 x 25,2 cm, Coleção particular Cyril-
lo Hercules Florence.
40. Jovem Apiacá e índio Munduru-
cu. lápis e nanquim a pena, 20,5 x 25 cm.
Coleção particular Cyrillo Hercules
Florence.
41. Viagem Fluvial do Tietê ao Ama-
zonas, 8. caderno, manuscrito, 22,5 x 32
cm, Coleção particular Cyrillo Hercules
Florence.
(Os desenhos sem data foram feitos no pe-
ríodo entre 1825-1829, quando Florence
participou da expedição Langsdorff.)
42. Sem título (cabeça de índio), mo-
notipia, 48 x 35,5 cm, s/d. Museu de Ar-
te deo Paulo Assis Chateaubriand,o
Paulo.
Jean Baptiste Debret (1768-1848)
"Parente de pintores como François
Bouchet e Louis David, Debret era dono
de uma considerável biografia artística
quando integrou a Missão Artística Fran-
cesa organizada por Joachin Le Breton,
que embarcou para o Rio de Janeiro em
1815. Na então capital do reino, dedicou-
-se ao ensino das Artes Plásticas na recém
criada Academia de Belas Artes e na Es-
cola Real de Artes e Ofícios. Durante os
15 anos que permaneceu no Brasil, desen-
volveu um importante trabalho artístico e
educacional, integrando a Academia Im-
perial de Belas Artes, a partir de sua fun-
dação. em 1825. Em 1829, realizou a pri-
meira exposição de Belas Artes no Brasil.
cujo catálogo teve por título "Exposição da
Classe de Pintura Histórica na Imperial
Academia de Belas Artes. No ano de 1829:
quarto ano de sua instalação".
Em 1831 retornou à França, publican-
do, entre 1834 e 1839, "Viagem Pitores-
ca e Histórica ao Brasil". A edição, em três
volumes, limitou-se a duzentos exempla-
res: o primeiro volume contém textos e ilus-
trações de vários grupos indígenas, seus
costumes e cultura material; o segundo,
ilustrações e descrições de tipos populares
do Rio de Janeiro. Finalmente o terceiro,
acontecimentos históricos, vistas do Rio de
Janeiro, retratos, costumes e vestimentas
típicas."
Livro: DEBRET, Jean Baptiste. Voya-
ge pittoresque et historique au Brésil; ou,
Séjour d'un artiste français au Brésil, de-
puis 1816 jusqu'en 1831 inclusivement.
Vol. I(autografado pelo autor) e vol. II. Pa-
ris, Firmin Didot frères. 1834-1839. Acer-
vo da Biblioteca Mário de Andra-
de/SMC-SP.
Jean Baptiste Debret
1. Charge de cavalerie Gouaycou-
rous. aquarela s/ papel, 1822, Fundação
Museus Raymundo Ottoni de Castro Ma-
ya. Rio de Janeiro.
2. Chef de Gouaycourous partant
pour comercer avec les européens, aqua-
rela s/ papel, 15,0 x 21,6 cm, 1823, Fun-
dação Museus Raymundo Ottoni de Cas-
tro Maya, Rio de Janeiro.
3. Peuplade Gouaycourous chan-
geant de paturages, aquarela s/ papel,
15,7 x 21,8 cm, 1823, Fundação Museus
Raymundo Ottoni de Castro Maya, Rio de
Janeiro.
4. Femme Gauarani civilisée allant
a la Messe le Dimanche, aquarela s/ pa-
pel, 26,8 x 20,0 cm, s/d, Fundação Mu-
seus Raymundo Ottoni de Castro Maya,
Rio de Janeiro.
5. Filie Sauvage Camacan, aquare-
la s/ papel, 27,0 x 20,6 cm, s/d, Funda-
ção Museus Raymundo Ottoni de Castro
Maya, Rio de Janeiro.
6. Cabloco, aquarela s/ papel, 22,0 x
27,2 cm, s/d, Fundação Museus Raymun-
do Ottoni de Castro Maya, Rio de Janeiro.
7. Homem Camacan Mongoio, aqua-
rela s/ papel, 27,6 x 20,6 cm, s/d, Fun-
dação Museus Raymundo Ottoni de Cas-
tro Maya, Rio de Janeiro.
8. Le Signal de Combat (Coroados),
aquarela s/ papel, 27,2 x 21,8 cm, 1827,
Fundação Museus Raymundo Ottoni de
Castro Maya, Rio de Janeiro.
9. Chef de Bororenos partant pour
une expédition, aquarela s/ papel, 24,1
x 32,7 cm, s/d, Fundação Museus Ray-
mundo Ottoni de Castro Maya, Rio de
Janeiro.
10. Aldeã de caboclos à Canta-Gallo,
aquarela s/ papel, 19,8 x 26,8 cm, s/d,
Fundação Museus Raymundo Ottoni de
Castro Maya, Rio de Janeiro.
11. Chef
de Charruas, aquarela s/ pa-
pel, 27,8 x 20,8 cm, s/d, Fundação Mu-
seus Raymundo Ottoni de Castro Maya,
Rio de Janeiro.
12. Botocudos, Puris, Patachos e
Machacalis, aquarela s/ papel, 27,7 x
18,2 cm, s/d, Fundação Museus Raymun-
do Ottoni de Castro Maya, Rio de Janeiro.
13. Sauvage Gurarani civilisé riche
cultivateur de vignes, aquarela s/ papel,
27,0 x 20,0 cm, s/d, Fundação Museus
Raymundo Ottoni de Castro Maya, Rio de
Janeiro.
Portinari c os índios canibais de
Hans Staden
"No início dos anos 40, o artista pau-
lista Cândido Portinari recebe um convite
do diretor de uma editora de Nova York
para ilustrar o livro A verdadeira história
de Hans Staden, que seria editado nos
EUA e no Brasil por José Olympio.
Portinari prepara 25 pranchas queo
enviadas para o editor, que as recusa e so-
licita que seja feita uma nova série de ilus-
trações. O editor argumenta que os traba-
lhos enviadoso muito diferentes das
obras então conhecidas de Portinari e que
provavelmente os leitoreso iriam apre-
ciar aqueles desenhos. Estes revelavam, se-
gundo o editor, uma "ênfase demasiada à
carnificina e à brutalidade" que, embora
presentes no livro,o deveriam estar re-
fletidas nas ilustrações. O editor esperava
receber "algumas paisagens simples do país
no qual Hans Staden se encontrava quan-
do foi capturado pelos canibais, e alguns
desenhos simples ou litografias dos índios
daqueles dias". Portinari se recusa a fazer
novos desenhos, argumentando a liberda-
de de criação e de expressão do artista.
Os desenhos permaneceram inéditos
em virtude deste desencontro. De um la-
do, a expectativa do editor, a busca de um
cronista que produzisse imagens de paisa-
gens brasileiras e figuras realistas e simples
de índios tranquilos. De outro, o desejo do
artista de se distanciar das inúmeras repre-
sentações idílicas e folclorizadas dos índios
e se aproximar de uma leitura profunda e
fiel da obra de Hans Staden."
Livro: STADEN, Hans. Warhaftige
Historia und beschreibung eyner Landts-
chafft der wilden nacketen grimmigen
Meschíresser Leuthen un der Newenwelt
Amercia gelegen; Faksimile Wiedergabe
nach der Erstausgabe "Marpurg uff Fast-
nacht 1557" mit einer Beglleitschrift von
Richard N. Wegner. Frankfurt a. M., Fak-
similedruck und Verlag: Wusten e co, 1925.
Acervo da Biblioteca Mário de Andra-
de/SMC-SP.
Cândido Portinari
1. Hans e índios III, desenho a nan-
quim bico-de-pena e aguada/papel cola-
do em cartão, 22,3 x 25,2 cm, 1941. Co-
leção particular João Cândido Portinari,
Rio de Janeiro.
2. Hans, desenho a nanquim bico-de-
-pena/papel colado em cartão, 20,5 x 8,6
cm, 1941, Coleção particular João Cân-
dido Portinari, Rio de Janeiro.
3. Hans e índios II, desenho a nan-
quim bico-de-pena e aguada/papel cola-
do em cartão, 18 x 20,8 cm, 1941, Cole-
ção particular João Cândido Portinari, Rio
de Janeiro.
4. índios Atirando, desenho a nan-
quim bico-de-pena e aguada/papel, 24,2
x 30,8 cm, 1941, Coleção particular João
Cândido Portinari, Rio de Janeiro.
5. índios Pescando, desenho a nan-
quim bico-de-pena e aguada/papel, 22,8
x 30,5 cm, 1941, Coleção particular João
Cândido Portinari, Rio de Janeiro.
6. índio Esquartejando um Cadáver,
desenho a nanquim bico-de-pena/papel,
- 26,5 x 31 cm, 1941, Coleção particular
João Cândido Portinari, Rio de Janeiro.
7. Dois Homem, desenho a nanquim
bico-de-pena/papel, 20,5 x 23,8 cm,
1940, Coleção particular João Cândido
Portinari, Rio de Janeiro.
8. Restos de Homem, desenho a nan-
quim bico-de-pena/papel, 23,3 x 27,5 cm,
1941, Coleção particular João Cândido
Portinari, Rio de Janeiro.
9. índio e Hans, desenho a nanquim
bico-de-pena e aguada e crayon/papel,
26,5 x 33 cm, 1941, Coleção particular
João Cândido Portinari, Rio de Janeiro.
10. Hans e índios I, desenho a nan-
quim bico-de-pena e aguada/papel cola-
do em cartão, 18,5 x 23,3 cm, 1941, Co-
leção particular João Cândido Portinari,
Rio de Janeiro.
11. Tamanduá, desenho a nanquim
bico-de-pena/papel, 17,3 x 32,7 cm, 1941,
18. Hans preso pelos índios, desenho
a nanquim bico-de-pena e aguada/papel,
colado em cartão, 25,3 x 29,8 cm, 1941.
Coleção particular João Cândido Portina-
ri, Rio de Janeiro.
Coleção particular João Cândido Portina-
ri, Rio de Janeiro.
12. Arara, desenho a nanquim bico-
-de-pena/papel, 15,5 x 7 cm, 1941, Co-
leção particular João Cândido Portinari.
Rio de Janeiro.
13. Porco do Mato. desenho a nan-
quim bico-de-pena e aguada/papel, 14,6
x 20,4 cm, 1941. Coleção particular João
Cândido Portinari, Rio de Janeiro.
14. Navio e Peixes, desenho a nan-
quim bico-de-pena e aguada/papel cola-
do em cartão, 26 x 30.6 cm. 1941, Cole-
ção particular João Cândido Portinari, Rio
de Janeiro.
15. Hans e índios, desenho a nan-
quim bico-de-pena e aguada/papel. 23 x
28 cm, 1941, Coleção particular João Cân-
dido Portinari, Rio de Janeiro.
16. índio com Facão, desenho a nan-
quim bico-de-pena e aguada/papel. 22 x
30,5 cm, 1941, Coleção particular João
Cândido Portinari, Rio de Janeiro.
17. Hans e índios IV, desenho a nan-
quim bico-de-pena e aguada/papel, 18,4
x 23,4 cm, 1941, Coleção particular João
Cândido Portinari, Rio de Janeiro.
19. índias, desenho a nanquim bico-
-de-pena e aguada/papel, 18,2 x 23,4 cm,
1941, Coleção particular João Cândido
Portinari, Rio de Janeiro.
20. índio Roendo Osso, desenho a
nanquim bico-de-pena/papel, 21,5 x 24,2
cm, 1941, Coleção particular João Cân-
dido Portinari, Rio de Janeiro.
21. Taba com figuras e Duas Cavei-
ras, desenho a nanquim bico-de-pena e
aguada/papel, 16,8 x 20.4 cm, 1941, Co-
leção particular João Cândido Portinari,
Rio de Janeiro.
22. índio com Ave, desenho a nan-
quim bico-de-pena e aguada/papel, 21,3
x 15,4 cm. 1941, Coleção particular João
Cândido Portinari, Rio de Janeiro.
23. índio e Canoas, desenho a nan-
quim bico-de-pena e aguada/papel, 17,6
x 24,5 cm. 1941, Coleção particular João
Cândido Portinari, Rio de Janeiro.
Os índios c o Império
Varanda de rede, trabalho em penas,
feito por índios e que teria pertencido a D.
Pedro II, comp. 1,68 cm, Museu Imperial,
Petrópolis.
Brasão de penas, apresentando as ar-
mas do Império, 0,29 x 0,39 cm, Museu
Imperial, Petrópolis.
Reprodução da Caderneta do Impe-
rador. com desenhos de Botocudos de au-
toria de D.Pedro II em sua viagem ao Nor-
deste, Museu Imperial, Petrópolis.
Alegoria alusiva ao Juramento de
D.Pedro I à Constituição do Império -
1824, "Salve 1. Querido Brasileiro Dia!"
"25 de março de 1824", litografia, Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Leque Chinês, D. Pedro recebe de um
índio a coroa imperial, papel, marfim e pin-
tura, 31 cm, Museu Histórico Nacional, Rio
de Janeiro.
Pintura Histórica e a literatura
romântica: o indianismo
"A independência política do Brasil em
1822 criou um Estado, porém,o uma
nação. O sentimento de pertencer a uma
comunidade nacional deveria ser criado.
tendo como base uma história, uma espe-
cificidade e símbolos nacionais. Foi na ima-
gem do índio - eo no índio em si - que
a elite letrada do século XIX encontrou o
símbolo da nacionalidade brasileira em ges-
tação.
Na figura do índio, escritores como Jo-
sé de Alencar, Gonçalves Dias ou Gonçal-
ves de Magalhães encontraram a fonte de
inspiração para a criação dos seus heróis,
compondo uma verdadeira mitologia épi-
ca nacional.
A pintura brasileira do século XIX
inspirou-se, por sua vez, no indianismo li-
terário: a imagem do índio foi aquela que
mais se enquadrou no projeto de gestação
da nova nacionalidade. Dos pincéis de Be-
nedito Calixto e António Parreiras sairam
o registro de heróicos momentos do pas-
sado: a primeira missa, as fundações de
o Vicente e da Cidade deo Paulo, o
encontro de índios e portugueses. Antó-
nio Parreiras e Vitor Meirelles encontram
em Iracema e Moema o ideal de mulher
romântica.
O fim de século europeu se encanta
com a ópera O Guarani, composta pelo
campineiro Carlos Gomes em italiano. Mo-
tivo de orgulho da elite nacional, Carlos
Gomes parte do romance de José de Alen-
car e povoa os palcos italianos com as he-
róicas figuras dos indígenas brasileiros.
O século XIX inaugura uma tradição
pictórica e literária onde os índios brasilei-
roso representados como deuses gregos
e heróis clássicos: imagens idealizadas, dig-
nas de uma épica nacional."
António Diogo da Silva Parreiras (Nite-
rói, RJ, 1869 - Niterói. RJ. 1937)
Fundação deo Paulo, óleo s/ te-
la, 179 x 279,5 cm, 1913, Prefeitura do
Município deo Paulo (Gabinete da Pre-
feita),o Paulo.
Oscar Pereira da Silva (São Fideliz, RJ,
1867 -o Paulo, SP, 1939)
Nau Capitânea de Cabral ou índios
à bordo da Capitânea. óleo s/tela. 60,2
x 42,0 c ii. Museu Paulista da Universida-
de deo Paulo,o Paulo.
Benedito Calixto
Fundação deo Vicente, óleo s/ te-
la, 217 x 430 cm, 1900, Museu Paulista
da Universidade deo Paulo.
Pedro II aceitou com prazer a dedicatória
de O Guarani, manuscrito, Museu Histó-
rico Nacional, Rio de Janeiro.
Carlos André Gomes
Sem título, dois índios em pé pegan-
do pássaros, desenho, 22 x 35 cm, s/d,
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Modernismo
Revista de Antropofagia, n.l.o Pau-
lo, 1928. Acervo da Biblioteca Mário de
Andrade/SMC-SP.
Vicente do Rego Monteiro (Recife, Pe,
1899 - Recife, Pe, 1970)
1. A morte do prisioneiro, aquarela
e nanquim sobre papel, 35,8 x 28,5 cm,
1920, Museu de Arte Contemporânea da
Universidade deo Paulo.
2. Coaraci/O Sol, aquarela e nan-
quim sobre papel, 28,6 x 16,3 cm, 1921,
Museu de Arte Contemporânea da Univer-
sidade deo Paulo.
3. Tatu Acu/ O tatu grande, aquare-
la e nanquim sobre papel, 28,6 x 16,0 cm,
1921, Museu de Arte Contemporânea da
Universidade deo Paulo.
4. Máscaras e Túnicas da Festa de
Theboah, aquarela e nanquim sobre pa-
pel, 26,1 x 34,4 cm, 1921, Museu de Arte
Contemporânea da Universidade deo
Paulo.
Emiliano Di Cavalcanti (Rio de janeiro,
RJ, 1897 - Rio de janeiro, RJ, 1976)
Sem Título (Figura e paisagem),
aquarela, guache e nanquim, 29,9 x 21,4
cm, s/d, Secretaria Municipal de Cultura
deo Paulo,o Paulo.
Pintura Contemporânea
"A temática indianista sempre esteve
presente na arte brasileira. Nela porém,
mais do que possíveis retratos dos índios,
temos a representação plástica das diferen-
tes visões que setores da sociedade nacio-
nal elaboram sobre as populações indíge-
nas. Ao lado destas visões, movimentos
artísticos se apropriaram de imagens de ín-
dios na busca de um projeto artístico na-
cional específico. Longe de um diálogo
1. Luta dos índios Galápagos, escul-
tura/bronze, s/d, Museu de Arte Contem-
porânea da Universidade deo Paulo.
2. índia com Filha no Colo, escultu-
ra, fundição/bronze, 65 x 19,5 x 16 cm,
Acervo Artístico Cultural Palácios do Go-
verno (Palácio Boa Vista), Campos do
Jordão.
com as populações indígenas a partir da
arte, temos os próprios dilemas dos gru-
pos artísticos nacionais inseridos numa tra-
dição plástica queo pode ignorar a fi-
gura do índio.
Recentemente - e com grande vigor
nos meios de comunicação de massa - a
figura do índio é associada à natureza exu-
berante que o rodeia: como ela, o índio de-
ve ser preservado. O artista sente-se pró-
ximo do cataclisma ecológico, as
populações indígenas estão, mais uma vez,
ameaçadas. No sentido de resgatar ima-
gens que o futuro parece condenar ao de-
saparecimento, o artista brasileiro explora,
dramaticamente, a luminosidade específi-
ca das terras brasileiras, os estranhos sons
e cheiros que provocam os nossos sentidos.
Diversos artistas usam motivos indíge-
naso só como decoração: percebem nas
manifestações artísticas dos diferentes gru-
pos indígenas sua imensa riqueza formal,
iconográfica e técnica, e nutrem-se do seu
veio criador."
Victor Brecheret
Cândido Portinari
índia Karajá, óleo s/ tela, obra ina-
cabada, 100 x 85 cm, Coleção particular
João Cândido Portinari.
Alfredo Volpi (Lucca, Itália, 1896 -o
Paulo)
índios no Banho, pintura em esmal-
te/azulejo, Osirart, 136 x 226 cm, Coleção
particular Marisia Portinari.
Hilde Weber
índios dançando. Pintura em esmal-
te/azulejo, Osirart, 30 x 45 cm, Galeria Re-
nato Magalhães Golveia
Manuel Faria
Evangelho na Selva, óleo s/tela, 190
x 220 cm, s/d, Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro.
Luis Rochet
Rio Madeira, escultura em gesso mol-
dado, maquete do monumento a D.Pedro
I, Praça Tiradentes, Museu Histórico Na-
cional, Rio de Janeiro.
Eduardo de Sá
Caramuru, escultura em bronze, mo-
delo para monumento, Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
Theodoro José da Silva Braga (Belém,
PA, 1872 -o Paulo, SP, 1953)
1. Pira-y-amára. guache, 23 x 16 cm,
1923, Secretaria Municipal de Cultura de
o Paulo,o Paulo.
2. Pira-y-amára, guache, 23 x 16 cm,
1923, Secretaria Municipal de Cultura de
o Paulo,o Paulo.
3. Pira-y-amára, guache, 23 x 16 cm,
1923, Secretaria Municipal de Cultura de
o Paulo,o Paulo.
4. Pira-y-amára, guache, 23 x 16 cm,
1923, Secretaria Municipal de Cultura de
o Paulo,o Paulo.
Waldomiro de Deus Souza (Itajibá, BA,
1944)
Descobrimento do Brasil, óleo s/ te-
la, 220 x 335 cm, 1977, Pinacoteca do Es-
tado,o Paulo.
Teresa D'Amico Fourpome (São Paulo,
SP, 1914 - São^ Paulo, SP, 1965)
Figura de índia, escultura/cimento,
36,6 x 25,8 x 58,7 cm, s/d. Pinacoteca do
Estado,o Paulo.
Baendereck Sepp (Modzag, Iugoslávia,
1920 -o Paulo, 1988)
índios Chavantes na Missãoo
Marcos, óleo s/ tela, 200 x 150 cm, 1976,
Museu de Arte deo Paulo Assis Cha-
teaubriand,o Paulo.
J. Leitão de Barros
1. Uma Bandeira dos desbravadores,
no desfile histórico, nanquim/aquarela,
35 x 50,5 cm, 1960, Museu de Arte deo
Paulo Assis Chateaubriand,o Paulo.
2. Desfile Histórico - primeiros con-
tatos com a população, nanquim/aqua-
rela, 35 x 50,5 cm, 1960, Museu de Arte
deo Paulo Assis Chateaubriand,o
Paulo.
Poty Lazarrotto
Xingu, xilogravura. 24,5 x 17,5 cm,
1982, Museu de Arte deo Paulo Assis
Chateaubriand,o Paulo.
Reuther
1. Sem Título, litografia, 50 x 56 cm,
1974, Museu de Arte deo Paulo Assis
Chateaubriand,o Paulo.
2. Sem Titulo, água-forte aquarelada,
38 x 57 cm, 1975, Museu de Arte deo
Paulo Assis Chateaubriand,o Paulo.
Clécio Penedo
1. Comei-vos uns aos outros, grafi-
te/lápis de cor, 32 x 48 cm, Coleção par-
ticular Clécio Penedo.
MORTE DE MOEM/K
2. Comei-vos uns aos outros, grafi-
te/lápis de cor, 32 x 48 cm, Coleção par-
ticular Clécio Penedo.
Henrique Cavaleiro
Cabralia, óleo s/ tela, 131 x 200 cm,
1943, Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro.
Farnese de Andrade
Armário de índio, assemblage: armá-
rio, foto, serra, madeira, 202,5 x 70 x 34
cm, 1985. Museu de Arte Moderna deo
Paulo,o Paulo.
Tomoshigue Kusuno
Amazonas I, liquitex e grafit s/ tela,
200 x 300 cm, 1985/86, Museu de Arte
Moderna deo Paulo,o Paulo.
Glauco Rodrigues
No I Reinado (1822-1831), óleo s/ te-
la, 73 x 60 cm, 1977, Museu de Arte Mo-
derna deo Paulo,o Paulo.
Conceição Cahu
1. Temática indígena (Jabuti), óleo s/
tela, s/d, Coleção Particular Conceição Ca-
hu,o Paulo.
2. Temática indígena (Onça-pintada),
óleo s/ tela, s/d, Coleção Particular Con-
ceição Cahu,o Paulo.
Taro Kaneko
índia, óleo s/tela, s/d. Coleção Parti-
cular Taro Kaneko.
Vitrine:
1.História da índia Necy, João Mar-
tins de Athayde, Juazeiro do Norte,
20/6/78.
2. Romance de Iracema: a virgem
dos lábios de mel, João Martins de Athay-
de, Juazeiro do Norte, Ceará, 8/10/81.
3. O índioo é bicho, Franklin Ma-
xado,o Paulo, maio de 1980.
4. A índia feiticeira ou o milagre de
nossa senhora. Alípio Mendes, s/d.
5. A Peleja dos Ipixunas com os
brancos invasores, Jairo Mozart, s/d.
6. História do índio Ubirajara e a Ba-
talha do índio Pojucan, Severino Milanês
da Silva, s/d.
O índio e a cultura popular
O índio e a literatura de cordel
Apresentação de trechos de textos de
literatura de cordel, xilogravuras de capa
de folhetos de cordel e livretos de cordel.
O índio e as religiões afro-
-brasileiras
"A figura do índio ganha grande des-
taque nas religiões afro-brasileiras no cul-
to aos caboclos. Representação de espíri-
tos ancestrais no panteão afro-brasileiro, os
cabocloso altivos e exigentes - afinal, re-
sistiram com coragem ao invasor português
e, posteriormente, à escravidão. A coragem
se reflete na dança dos caboclos: o gestual,
vigoroso, lembra a luta contra o coloniza-
dor e o pleno domínio da natureza.
Com a autoridade conferida pelas gló-
rias passadas, o cabloco é conhecedor das
ervas, dos males do corpo e do espírito.
Socorre os aflitos quando "baixa" nos to-
ques, nas festas e nas sessões dos terrei-
ros de Umbanda e Candomblé. Os fiéis se
dirigem ao caboclo e a eles confiam os seus
problemas, dúvidas e angústias. Os cabo-
clos ensinaram ao africano os mistérios da
terra: atualmente, as religiões afro-
-brasileiras lhes rendem culto e homena-
gem."
Instalação, decorada com bandeirinhas
verde-amarela e esteiras, reproduzindo
uma "roça" de caboclo composta por uma
estátua do caboclo Ubirajara (1,90 m de al-
tura) rodeado por oferendas (velas, cha-
ruto, frutas, mel e bebida), por um assen-
tamento (representação material da
entidade) e um altar com a estátua da ca-
bocla Jurema com oferendas.
Uma vitrine com artefatos utilizados no
culto ao Junco Verde do terreno Pai Do-
da de Ossaim: máscara ritual dos índios
Xavante, Lanças, facão, tacape, cocar e
roupas de caboclos.
Conjunto de 19 estátuas representan-
do as diferentes representações assumidas
pelo caboclo: Jurema, Caboclinha da ma-
Apresentação de mais de 60 produtos
comerciais que utilizam nomes ou referên-
ta. Bororó, Pena Branca, Tupi, Tupã, Tu-
piniquim, Quebra-Galho, Cobra-Coral, Gi-
rassol, Lua, Iracema, Flecheiro, Guarani,
Tibiriça, Pajé, Cacique, Tupinambá e Peri.
Os índios e o carnaval
Apresentação do samba-enredo da Es-
cola de Samba Barroca Zona Sul do ano
de 1989, acompanhado do organograma
da escola de samba (com a distribuição das
diversas alas da escola), de fotografias de
alguns carros alegóricos, de desenhos de
figurinos e uma fantasia de índio reprodu-
zindo um dos figurinos utilizado durante o
desfile da escola no carnaval paulista.
Organograma da escola de samba e
desenhos de figurinos elaborados por Maria
Aparecida Urbano. Fantasia de índio ela-
borada pelo carnavalesco José Maria
Polezi.
Os índios e os produtos co-
merciais
"Nomes, objetos e imagens de índios
m sido apropriados, de diferentes formas,
pela sociedade brasileira.
Inúmeras cidades possuem nomes
que, muitas vezes, lembram os habitantes
originais do local. Da mesma forma, bair-
ros e ruas de nossa cidade receberam no-
mes indígenas, como os populares Vale do
Anhangabaú, o parque do Ibirapuera ou
o bairro do M'Boi Mirim.
Algumas empresas utilizam imagens e
nomes de índios nos seus rótulos e emble-
mas, muitas vezes procurando reafirmar o
seu caráter nacional."
cias indígenas, acompanhados de algumas
fotografias de empresas com nomes in-
dígenas.
Apresentação da seleção de 50 gar-
rafas de pingas rotuladas com nomes ou
imagens indígenas da coleção particular de
Augusto Martins Capela,o Paulo.
Os índios na filatelia
Seleção de selos e carimbos comemo-
rativos da coleção particular do Sr. Nelson
Di Francesco, membro da Associação Bra-
sileira de Filatelia Temática (ABRAFITE).
1. Máscara Tapirapé - Mato Gros-
so, Brasil 80, 4,00, (Carimbo: Primeiro dia
de circulação 18.04.80,o Paulo).
2. Máscara Tukuna - Amazonas,
Brasil 80, 4,00, (Carimbo: Primeiro dia de
circulação 18.04.80,o Paulo).
3. Máscara Kanela - Maranhão,
Brasil 80, 4,00, (Carimbo: Primeiro dia de
circulação 18.04.80,o Paulo).
4. IV Centenário de Niterói, Correio
Brasil 73, 0,20.
5. Resplendor Karajá - GO, Brasil
76, 1,00 (Carimbo: Primeiro dia de circu-
lação 19.04.76,o Paulo).
6. Pintura Corporal Kaiapó - MT,
PA, Brasil 76, 1,00, (Carimbo: Primeiro dia
de circulação 19.04.76,o Paulo).
7. Máscara Bakairi - MT, Brasil 76,
1,00, (Carimbo: Primeiro dia de circulação
19.04.76,o Paulo).
8. Etnia Brasileira, Correio Brasil
74, 0,40.
9. Oca Indígena - Rondônia, Brasil
75, 1,40.
10. Oca Indígena - Rondônia, Brasil
75, 1,40.
11. Cultura Indígena - Tribo Yanoma-
mi, Brasil 91, Cr$ 40,00.
12. Cultura Indígena - Tribo Yanoma-
mi, Brasil 91, Cr$ 40,00.
13. Cerâmica Karajá, Brasil Correio
1972, 1,15.
14. Cerâmica Marajoara - Pará, Bra-
sil 75, 1,00.
15. Tanga Marajoara - Museu Pa-
raense Emílio Goeldi - Brasil 81, 7,00,
(Carimbo: Primeiro dia de circulação
18.05.81,o Paulo).
16. Urna Funerária Maracá - Museu
Nacional do Rio de Janeiro, Brasil 81,
22. Centenário de Carlos Gomes
1836-1936, Brasil Correio - 300 réis,-
rie marrom.
23. II Guarany - Centenário de Car-
los Gomes 1836-1936, Brasil Correio, 700
réis, série azul.
24. II Guarany - Centenário de Car-
los Gomes 1836-1936, Brasil Correio. 700
réis, série laranja.
25. Centenário da Ópera "O Guara-
ni" 1970, Brasil correio, 20 cts.
26. Sesquicentenário do Nascimen-
to de António Carlos Gomes, Brasil 86,
Cz $ 0,50.
27. IV Congresso Interamericano de
Educação Católica Rio de Janeiro -
1951, Brasil Correio, Cr$ 0,60.
28. 450 anos da Fundação da Vila
deo Vicente, por Martim Afonso de
Souza - 1532-1982, Brasil 82, 17,00.
29. Sesquicentenário de Vítor Mei-
reles (Primeira Missa no Brasil), Brasil
83
r
250,00.
7,00, (Carimbo: Primeiro dia de circulação
18.05.81,o Paulo).
17. Cerâmica Tupi-Guarani - Museu
de Arqueologia e Artes Populares de Pa-
ranaguá, Brasil 81, 7,00, (Carimbo: Pri-
meiro dia de circulação 18.05.81,o
Paulo).
18. Centenário de Nascimento do
Marechal Cândido Mariano da Silva
Rondon - 5 de maio de 1865, Correios do
Brasil 1965, 30.
19. Projeto Rondon - Integrar para
o entregar, Brasil Correio, 50 cts, s/d.
20. Homenagem ao Projeto Rondon
- Brasil 80, 4,00 (Carimbo: Homenagem
ao Projeto Rondon, ECT 11 a 17 jul 1980,
o Paulo).
21. Centenário de Carlos Gomes
1836-1936, Brasil Correio - 300 réis,-
rie vermelha.
30. Anchieta 1534-1934. Brasil Cor-
reio, 2,00, série laranja.
31. Anchieta 1534-1934. Brasil Cor-
reio, 3,00, série roxa.
32. Anchieta 1534-1934, Brasil Cor-
reio, 1,000, série verde.
33. Cidade do Salvador 1549-1949,
Brasil Correio Aéreo, Cr$ 1,20.
34. Cinquentenário da Publicação de
Casa Grande e Senzala, Brasil 84, 45,00.
35. IV Centenário da Colonização do
Brasil -1532o Vicente 1932, Correio,
100 rs.
36. 1. Aniversário do Edifício-sede
da União Postal das Américas e Espa-
nha, Brasil 84, 65,00.
37. IV Centenário da Colonização do
Brasil - Desembarque de Martim Afon-
so de Souza -o Vicente 1532-1932,
Correio, 700rs.
38. 1719 - 250 Aniversário da Fun-
dação de Cuiabá - 1969, Brasil Correio,
5 cts.
39. Centenário da Publicação do Li-
vro "Iracema" de José de Alencar, Cor-
reios do Brasil, 1965, 30 cruzeiros.
40. Homenagem a José de Alencar
- Dia do Livro, Brasil 77, 1,30, (Carimbo:
Primeiro dia de circulação 24.10.77,
Goiânia-GO).
41. 200 anos da Publicação do Poe-
ma Caramuru, Brasil 81, 12,00 (Carim-
bo: Dia do livro. Brasil 81, Bicentenário da
publicação do poema Caramuru, Frei San-
ta Rita Durão, ECTo Paulo/SP, 29/10
a 4/11/81).
42. Carimbo - Série Arte Indígena,
ECT, 18 a 24/04/80, Brasília, DF.
43. Carimbo - Série preservação da
cultura indígena, ECT, 19 a 25/04/76.
44. Carimbo - Série formação da et-
nia brasileira, ECT, 3 a 11/05/74,o
Paulo.
45. Carimbo - Sociedade Geográfi-
ca Brasileira, Correios 1 a 10 de amio de
1965.
46. Carimbo - Dia do índio das Amé-
ricas - Rondon - Morrer se preciso for
matar nunca, Correios, 19.04.58, Rio de
Janeiro, DF.
47. Carimbo - Guaicurus -18.07.90.
o Paulo, Brasil ECT, Correio, 15,50.
48. Carimbo - Tupi Paulista - Bru -
08.02.92.
49. Carimbo - Tamanduateí - Sto.
André-SP, 11.01.89, Brasil Correio, 68,50.
50. Cartão comemorativo: Beatifica-
ção do Padre José de Anchieta. Selo:
Beatificação do Padre José de Anchie-
ta, Brasil 80, 5,00. (Carimbo: Primeiro dia
de circulação 08.12.80,o Paulo).
Os índios na numismática c na
medalhística
50 mil réis, Império do Brasil (Desco-
brimento do Brasil), papel-moeda, 1835 a
1843, Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
Medalha comemorativa da Coroa-
ção de D. Pedro II, prata/cobre/ferro/es-
tanho, 60 mm, 1841, Museu Histórico Na-
cional, Rio de Janeiro.
Medalha comemorativa da Coroa-
ção de D. Pedro II, metal dourado (c/ fu-
ro no ápice) cobre/ ferro/ liga de metal/es-
tanho, 42 mm, 1841, Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
Medalha maçónica em homenagem
ao Visconde do Rio Branco pela Lei do
Ventre Livre, prata/bronze/cobre, 70 mm,
1871, Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
Medalha Comemorativa do 4. Cen-
tenário do Descobrimento do Brasil, co-
bre/cobre, 70 mm, 1900, Museu Históri-
co Nacional, Rio de Janeiro.
Medalha comemorativa do XX. Con-
gresso Internacional de Americanistas
reunidos no Rio de Janeiro, bronze, 62
mm, 1922, Museu Histórico Nacional, Rio
de Janeiro.
Medalha Comemorativa do 4. Con-
gresso de História Nacional, bronze, me-
dalha/placa, 42,5 x 71 mm, 1949, Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Medalha comemorativa da 1. Olim-
píada do Exército, bronze. 56 mm, 1949,
Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro.
5 cruzeiros, 1. estampa, 2 cédulas,
Coleção particular Cláudio Patrick Ama-
to,o Paulo.
1000 cruzeiros, 1. estampa, 2 cédu-
las, Coleção particular Cláudio Patrick
Amato,o Paulo.
5 cruzeiros, 2. estampa. 2 cédulas,
Coleção particular Cláudio Patrick Ama-
to,o Paulo.
Instalação com três cenários representando momentos
importantes dos rituais de nominação, iniciação e funeral
bororó com a apresentação de personagens em tamanho
natural ornamentados com artefatos etnográficos. Fotos Luís
Grupioni.
Reprodução de uma casa de farinha dos índios Tukano. Fotos Luís Grupioni.
No módulo Alteridade da exposição, mais de 200 obras de arte, livros raros e outros artefatos foram
apresentados em vitrines e painéis procurando recuperar o olhar dos brancos sobre os índios. Fotos
Luís Grupioni.
Fotografias de índios ampliadas abriram o módulo da Diversidade na exposição. Vitrines com artefatos
etnográficos demonstravam as diferenças materiais e estéticas dos povos indígenas. Instalação fechada
reproduzia a cosmovisão dos índios Waiãpi. Pássaros indicavam a etno-classificação das aves Xikrin.
Painéis com fotografias e textos procuravam indicar a
modernidade das culturas indígenas e sua presença efetiva no
cenário brasileiro contemporâneo. Fotos Lufs Grupioní.
índios da aldeia Morro da Saudade representam um dos mitos de criação Guarani. Atividade que
juntamente com a oficina de confecção de bonecas em argila integrou a programação dos eventos
paralelos da exposição. Fotos Luís Grupioni.
tos plumários destacaram-se do restante da
produção material dos índios brasileiros,
constituindo-se numa de suas expressões
artísticas mais significativas.o só obje-
tos, entretanto, foram carregados para o
Velho Mundo. Os próprios indígenas foram
levados e apresentados em feiras ou doa-
dos para nobres, para realizarem peque-
nas tarefas ou, simplesmente, serem apre-
sentados como curiosidades, exemplares
que materializavam as proezas feitas em
outras terras.
na Itália (Museu Nazionale di Antropolo-
gia i Etnologia e Museu Setalla DeFAmbro-
siano), na Bélgica (Museés Royal d'Art et
d'Histoire), na Suíça (Museum fur Volker-
kunde) e na Dinamarca (Nationalmuseet
Etnografisk Samling).
Mantos Tupinambá na exposição "ín-
dios no Brasil": A ocasião desta exposi-
ção deu ensejo à iniciativa de trazer um dos
mantos emplumados Tupinambá para que
fosse exibido no Brasil. Foram contatados
todos os museus europeus que possuem
exemplares do manto. Algunso respon-
deram. Outros, negaram formalmente o
pedido de empréstimo, alegando que os
mantos seriam utilizados em exposições na
Europa e que seus estados de conserva-
çãoo permitiam o transporte. Entretanto,
um desses mantos, acabava de retornar à
Europa após sua apresentação numa ex-
posição em Washington, nos Estados Uni-
dos. Extra-oficialmente, um museu mani-
festou sua apreensão de que, uma vez o
manto no Brasil, ele poderia ser objeto de
uma reivindicação nacionalista.
Festa Ameríndia em Rouen: Em pri-
meiro de Outubro de 1550 inicia-se, na ci-
dade de Rouen, uma festa, oferecida ao
rei Henrique II e Catarina de Mediei, que
durou três dias. Apresentaram-se 300 ín-
dios Tupinambá, dos quais 50 eram autên-
ticos e o restante era constituído por mari-
nheiros franceses, falantes da língua Tupi
e prostitutas que encenaram, na margem
esquerda do rio Sena, a vida dos Tupinam-
. Dançaram, cantaram e simularam um
ataque a uma aldeia inimiga. Esta festa foi
promovida pelos habitantes de Rouen que
comercializavam com o Brasil e queriam
que a coroa francesa investisse recursos e
estabelecesse uma colónia no Brasil.
Fotografias ampliadas dos mantos de
penas do Museu do Homem (França), Mu-
seu Real de Arte e História (Bélgica), Mu-
seu Nacional de Copenhague (Dinamar-
ca) e Museu Setalla DelAmbrosiano (Itália).
Museu do Homem (França):
Acredita-se que o manto existente no Mu-
seu do Homem tenha sido trazido para a
França por André Thévet, frade francisca-
Mantos Tupinambá em museus eu-
ropeus: Atualmente. existem apenas seis
exemplares de mantos de penas dos ex-
tintos índios Tubinambá, todos conserva-
dos em museus europeus.
Emborao seja possível precisar sua ori-
gem (coletores e datas), presume-se que
foram levados para a Europa entre os-
culos XVI e XVII, por viajantes, missioná-
rios e militares que estiveram em missões
no Brasil.
Todos esses mantos mostram seme-
lhanças marcantes em seus detalhes.
Apresentando-se na forma de capas,m
a borda inferior ligeiramente arredondada
e mais larga que a parte superior. O man-
to guardado no "Museu do Homem", Pa-
ris, se diferencia dos demais por possuir um
capuz e apresentar, em sua extremidade
superior, uma tira de miçangas azuis e
brancas. Isso demonstra que, possivelmen-
te, esse manto tenha sido adquirido de ín-
dios que já mantinham relações de troca
com os europeus.
Além desse manto que está na Fran-
ça, existem mantos de penas Tupinambá
no e cosmógrafo do rei, em 1555. Foi doa-
do ao Museu do Louvre, entrando para a
coleção do Museu do Homem entre
1860-1865.
a de que o manto teria pertencido a Mon-
tezuma.
Museu Nacional de Copenhague (Di-
namarca): O primeiro registro do manto
Tupinambá existente em Copenhague é do
inventário das peças depositadas no Kunst-
kammer real em 1690. Provavelmente este
manto integrava a coleção do príncipe
Maurice de Nassau formada durante sua
permanência no Brasil.
Museu Setalla DeFAmbrosiano (Itá-
lia): Uma iconografia deste manto (dese-
nho colorido) foi publicada no catálogo do
Códice Campário, como tendo figurado no
Museu Setalla, século XVII. No entanto,
só em 1980 o exemplar foi reconhecido co-
mo um manto Tupinambá."
Reprodução de cartas da Prefeita de
o Paulo, Luiza Erundina, e da Secretá-
ria de Cultura, Marilena Chaui, endereça-
das aos museus europeus solicitando o em-
préstimo dos mantos para exibição na
exposição e algumas das respostas re-
cebidas.
Museu Real de Arte e História (Bél-
gica): A referência mais antiga deste manto
está num inventário, datado de 1781, das
coleções do acervo real feito por Georges
Gerárd, membro da Academia de Ciências
e Belas Letras de Bruxelas. Uma informa-
ção errónea está contida neste inventário:
DIVERSIDADE CULTURAL
Culturas Indígenas: a
diversidade sócio-cultural
no Brasil
"Existem algumas ideias muito difun-
didas e equivocadas à respeito dos índios
no Brasil: a ilusão de que só existem ín-
dios na Amazónia; o sentimento de que.
com o tempo, suas culturas tendem ao em-
pobrecimento e à uniformização; e a con-
vicção de que os índios estão diminuindo
e desaparecerão inevitavelmente.
Hoje, cerca de 250 mil índios, dividi-
dos em 200 povos, moram em milhares de
aldeias e falam 170 línguas diferentes. A
diversidade destes povos é ainda maior do
que deixam transparecer os dados estatís-
ticos, porque, além das diferenças cultu-
rais continuarem muito marcadas, esses
povosm se adaptando à situações de
contato também muito diversificadas.
Coexistem hoje no território brasileiro
desde povos com 500 anos de história de
convívio com a nossa sociedade, principal-
mente ao longo da costa e ao sul do país,
até os pequenos grupos que ainda se es-
condem da aproximação de estranhos em
bolsões isolados da Amazónia.
E verdade que quanto mais perto da
costa ou do sul do país, mais tempo de
contato os índios têm, e menoreso suas
reservas. Mas a população destas comu-
nidades cresce em ritmo acelerado. Os
Guarani, mesmo com quinhentos anos de
contato, somam hoje mais de quarenta mil
eo um exemplo de resistência cultural.
Istoo quer dizer que os Yanomami,
ainda extremamente sensíveis ao contágio
por epidemias, no continuem sofrendo
uma dramática depopulação. A luta para
manter o espaço vital de sobrevivência é
to árdua para os Yanomami como para os
Guarani.
A maioria dos povos indígenas ocu-
pam, no entanto, a região mais interior do
país: os cerrados e chapadas do Brasil Cen-
tral, do Mato Grosso à pré-Amazônia ma-
ranhense, e as florestas tropicais da Ama-
zónia. Estabeleceram seus primeiros
contatos nos últimos cinquenta anos e ain-
da vivem padrões culturais muito tradi-
cionais.
A valorização dada hoje às questões
ambientais, ao conhecimento dos povos
que sempre souberam viver em harmonia
com o seu meio e a valorização da diver-
sidade cultural é percebida pelos índios,
que esperam poder contar com aliados ca-
da vez mais efetivos entre nós."
Totens
AU A - Foto: Nancy Flowers.
BORORÓ - Foto: Luís Donisete Grupioni.
KADIWÉU - Foto: Jaime Garcia Siqueira
Júnior.
KARAJÁ - Foto: André Amaral de Toral.
KAXINAUÁ - Foto: Elsje Maria Lagrou.
KRAHÓ - Foto: Walber Kontsá.
MATIS - Foto: Isacc Amorim Filho.
PARAKANÃ - Foto: António Carlos Ma-
galhães.
Cestaria
Abanos, cestos, estojos, bolsas e pe-
neiras dos índios Makuxi, Kadiwéu, Waiã-
pi, Rio Negro, Xikrin, Bororó, Tirió, Xavan-
POTIGUARA - Foto: Sylvia Caiuby
Novaes.
SURUÍ - Foto: António Carlos Queiroz.
TUIUCA - Foto: Aloísio Cabalzar.
UAÇA - Foto: Lux Vidal.
ASSURINI - Foto: Fred Ribeiro.
XAVANTE - Foto: Eduardo Carrara.
XERENTE - Foto: Cristina Ávila.
XIKRIN - Foto: Isabelle Giannini.
XOKLENG - Foto: Lux Vidal.
ZOE - Foto: Luís Donisete Grupioni.
WAIÃPI - Foto: Dominique Gallois.
WAYANA-APALAI - Foto: Paula Morgado.
YANAN - Foto: Padre Sabatine.
YALAPITI - Foto: Fred Ribeiro.
Mapas
1. Áreas Indígenas e Grandes Projetos,
CIMI, CEDI, IBASE, GhK, Escala 1:
5.000.000. 1986.
2. Mapa das áreas indígenas da Amazó-
nia Brasileira, Projeto de Monitoramen-
to das terras indígenas da Amazónia e es-
tudos de casos do Programa Povos
Indígenas do Brasil do CEDI, Esc. 1:
4.000.000, 1992.
Vitrines:
Cerâmica
Vasos, panelas, potes, tigelas e pratos
dos índios Waurá, Kaingang, Kadiwéu, Tu-
cano, Karajá, Waiãpi, Parakanã, Wayana-
-Apalai, Bororó e sem identificação. Cole-
ção do Museu de Arqueologia e Etnologia
da USP (acervo originário Plinio Ayrosa).
te, Canela, Yanomami, Wayana-Apalai,
Hiscariana, Karajá, Assurini, Parakanã,
Mekranoti e Tukano. Coleção do Museu de
Arqueologia e Etnologia da USP (acervo
originário Plinio Ayrosa).
Plumária
Tornozeleiras, coifa de penas, braçadei-
ras, coroas radiais, diademas verticais,
grampos de cabeleira, pele emplumada,
brincos, saiote e tiaras dos índios Karajá,
Yanomami, Mekranoti, Wayana-Apalai, Tu-
kano, Bororó, Parintintim, Assurini. Cole-
ção do Museu de Arqueologia e Etnolo-
gia da USP (acervo originário Plinio
Ayrosa).
Tecido
Redes, tipóias, cintos, tanga de cor-
dões, colar, cobertor, faixas dos índios
Guarani-Kaiowá, Surui, Bororó, Wayana-
-Apalai, Kadiwéu. Waiãpi, Yanomami,
Caiuá, Xavante, Gavião, Xikrin e sem iden-
tificação. Coleção do Museu de Arqueo-
logia e Etnologia da USP (acervo originá-
rio Plinio Ayrosa).
Máscara
Máscaras rituais dos índios Canela, Ka-
yapó, Xikrin, Tukano, Xavante, Waiãpi, Ti-
kuna, Wayana-Apalai e Rio Branco. Co-
leção do Museu de Arqueologia e
Etnologia da USP (acervo originário Plinio
Ayrosa).
Tupi or not Tupi: diversidade
das manifestações linguística
nas sociedades indígenas
"A categoria "índio" só se define por
oposição aos não-índios. O "índio" gené-
ricoo existe. Existem os Kulina, os Ka-
diwéu, os Xokleng, os Parintintim, os Xo-
, os Yanomami e muitos outros. Os
grupos indígenasoo diferentes ape-
nas dos não-índios, mas também se dife-
renciam entre si. A diversidade está nas tra-
dições, nos cantos, nas danças, na arte, na
religião, na economia, nas línguas. Cada
grupo indígena tem um modo próprio de
ser e uma visão de mundo específica. A
atitude das sociedades indígenas diante da
vida, da morte, do feio e do bonito, do pos-
sível e do impossível varia muito.
A língua é, sem dúvida, o primeiro cri-
tério sempre lembrado em termos de di-
versificação cultural.o cerca de 170 dia-
letos e línguas indígenas conhecidas,
classificadas e distribuídas, faladas no Bra-
sil, atualmente. Poucas foram estudadas
em profundidade. Diferenciam-se entre si
e também das demais línguas faladas no
mundo, entre outros fatores, pelo conjun-
to de sons que utilizam e pela forma co-
mo combinam tais sons, formando pala-
vras que se organizam em frases, que
expressam conceitos particulares e espe-
cíficos. Algumas dessas línguas indígenas
se assemelham e podem ser agrupadas em
famílias linguísticas. Elas mantêm uma ori-
gem comum no início e teriam se diversi-
ficado no correr do tempo. Povos que fa-
lam línguas semelhantes podem ter
mantido contatos históricos e apresentam
alguns traços culturais comuns. Outros, fa-
lantes de línguas diferentes, acabaram con-
vivendo intensamente, constituindo um
grande e único complexo sistema cultural.
Embora as sociedades indígenas sejam
distintas umas das outras, é verdade que
elas compartilham uma série de traços co-
muns. Sociedades indígenaso igualitá-
rias, sem estratificações em classes sociais
e sem distinções entre possuidores dos
meios de produção e da força de trabalho,
entre ricos e pobres, entre donos e não-
-donos.o sociedades que se reprodu-
zem a partir da posse coletiva da terra e
dos recursos nela existentes e da sociali-
zação do conhecimento básico indispen-
sável à sobrevivência física e ao equilíbrio
sócio-cultural dos seus membros. Na sua
maioriao constituídas por pequenos con-
tingentes populacionais e se caracterizam
pela ausência de Estado e pelo estabeleci-
mento de obrigações de reciprocidade e de
redistribuição dos bens acumulados."
Painéis com a classificação de todas as
línguas indígenas faladas no Brasil.
Fonte: Aryon D. Rodrigues - Línguas
brasileiras - para o conhecimento das
línguas indígenas. Edições Loyoia, oao
Paulo, 1986.
Dois "brinquedos" com 24 palavras nas
línguas indígenas Kaxarari, Kulina, Waimiri,
Apurinã, Kaxinawá, Yanomami, Yamama-
, Xavante, Bororó, Xikrin, Myky, Cinta-
-larga, Aweti e Tupi Antigo...
Habitações indígenas: onde os
índios penduram suas redes
"Nas terras baixas da América do Sul,
o material usado para a construção de ca-
sas e abrigos varia pouco: a matéria-prima
é a madeira para esteios e travessões, fo-
lhas de palmeiras para a cobertura e tiras
de embira para amarração. Mesmo assim,
podemos imediatamente reconhecer uma
casa Waurá e distinguí-la de uma casa Xa-
vante ou Karajá.
A forma como os membros de uma
determinada sociedade percebem o espa-
ço por eles habitado é extremamente im-
portante. Revela as diferentes concepções
que envolvemo apenas uma adaptação
ecológica específica ao meio ambiente, mas
sobretudo, apropriações diferenciadas e
hierarquizadas do espaço habitado.
As grandes casas dos Tucanos, do Al-
to Uapés, abrigam uma comunidade intei-
ra, 200 a mais indivíduos, e lá dentro se
desenvolvem tanto as atividades cotidianas,
como os grandes rituais.
Para vários grupos, como os Timbira,
Bororó, Xikrin e Xavante,o é a casa o
ponto de referência, mas sim um espaço
mais amplo, a aldeia. Sob o mesmo teto
vivem várias famílias nucleares, relaciona-
das pelo lado materno, como, por exem-
plo, uma mulher de idade, suas filhas e os
maridos e os filhos destas. Desta forma as
mulheres nascem, vivem e morrem na
mesma casa. Estes grupos dispõem suas
habitações de forma circular. As casas apa-
recem como unidades fisicamente defini-
das e demarcadas onde se desenvolvem
Painel com fotografias de casas e al-
deias, destacando os Krahô (foto: Bene-
dito Prezia e Claude Dumenil), Assurini (fo-
to: Fred Ribeiro), Enawenê-Nawe (foto:
Egon Heck), Yanomami (foto: Loretta Emi-
hi), Bororó (foto: Luís Donisete Grupioni).
Kamayurá (foto: Fred Ribeiro), Matis (fo-
as atividades domésticas ligadas à produ-
ção. O centro da aldeia ou pátio, formado
pelo círculo das casas, é o espaço das de-
cisões e de toda a vida ritual.
De outra forma, as casas Waiãpi cor-
respondem à unidade familiar, ocupadas
nor anpnas uma família nuclear (pai,e
e iunosj. cm caaa casa vivem de o a / pes-
soas. A forma dos assentamentos Waiãpi
é extremamente diversificada,o obede-
cendo a nenhum padrão rígido. Algumas
aldeiasm apenas uma ou duas habita-
ções. enquanto outras reúnem mais de 15
casas. Na aldeia, a casao representa a
totalidade da vida familiar incluindo-se,
além dela, o domínio particular de cada fa-
mília, como a casa de cozinha, de domí-
nio feminino. Em certas aglomerações é
possível distinguir vários pátios. Nesses-
tios, delimitados pelas casas se realizam a
maioria das atividades comunitárias mas-
culinas.
As habitações indígenaso devem ser
vistas apenas pela análise da arquitetura ou
das limitações impostas pelo meio ambien-
te em que vivem estas comunidades. As
casas representam a visão que cada povo
tem da vida ideal."
to: Isaac Amorim Filho), Pataxo Hãhãhãe
(foto: Eduardo Leão), Krenac (foto: Eduar-
do Leão), Xavante (foto: Eduardo Carra-
ra), Kadiwéu (foto: Jaime Garcia), Waiãpi
(foto: Dominique Gallois), Arara (foto: Fritz
Tschol), Parakanã (foto: Fritz Tschol e Lux
Vidal), Zoe (foto: Luís Donisete Grupioni),
Matsés (foto: Sílvio Cavuscenas), Xikrin
(foto: Lux Vidal), Marubo (foto: Sílvio Ca-
vuscenas), Waiana-Apalaí (foto: Paula
Morgado), Kaxinauá (foto: Elsje Maria La-
grou), Kaiowá (foto: Veronice Rosatto), Ua-
ça (foto: Antonella Tassinari).
Algumas das fotos apresentadas per-
tencem ao arquivo fotográfico do Po-
rantim.
Maquetes de casas indígenas: Xavan-
te, Tukano, Karajá, Tirió, Yanomami, Wau-
. Acervo do Museu de Arqueologia e Et-
nologia da USP.
Ciclos anuais de subsistência:
adaptação aos tempos da chu-
va e da seca
"A Floresta Amazônica vem sendo, há
milénios, o habitat de centenas de povos
indígenas. Eles aprenderam a conhecê-la,
tirando proveito daquilo que lhes era ofe-
recido e se adaptando às forças queo
podiam dominar.
Na floresta estes grupos encontram tu-
do aquilo que necessitam para sua sobre-
vivência física e cultural. Alimentos e me-
dicamentos foram experimentados.
domesticados e consumidos. Com as es-
pécies naturais - vegetais, animais, mine-
rais -, estes povos estabeleceram relações
simbólicas e sociais que fundam suas vi-
sões de mundo.
Várias sociedades indígenas na Ama-
zónia, e também em outras regiões do país,
possuem aldeias permanentes que, em cer-
tos períodos do ano,o abandonadas. Os
índios saem para percorrer vastas áreas ti-
rando maior proveito dos recursos do seu
território.
Retornam às aldeias na época da co-
lheita das roças. As roçaso temporárias.
aproveitadas por 2 ou 3 anos em média
e abandonadas quando o terreno cultiva-
do jáo produz satisfatoriamente. Man-
dioca, milho, inhame, batata-doce, abóbo-
ra, mamão e bananao alimentos
encontrados na maioria das roças in-
dígenas.
Além da agricultura, os índios obtêm
alimentos através da caça, da pesca e da
coleta de alimentos silvestres. Estes incluem
dezenas de plantas com raízes comestíveis,
frutas, sementes, castanhas e favas, que
o encontrados na floresta. Inúmeras es-
pécies de mamíferos, peixes e répteis com-
pletam a alimentação básica dos povos in-
dígenas. Algumas espécies foram
interditadas e seu consumo só é possível
se respeitadas certas restrições.
As tarefas do dia-a-diao repartidas
entre homens e mulheres, de acordo com
suas idades, e nenhuma classe ou grupo
detém o monopólio sobre uma parte do
processo produtivo ou sobre uma ativida-
de específica. Regras, compromissos e obri-
gações estabelecidos pelas relações de pa-
rentesco, de amizade ou criadas em rituais
e em contextos políticos definem a distri-
buição de bens e serviços. Generosidade,
redistribuição e reciprocidade criam, re-
criam e intensificam relações entre os mem-
bros de uma mesma comunidade."
Reprodução de quatro calendários re-
ferentes ao ciclo de subsistência das socie-
dades indígenas: Waiwai. Jivaro, Kamayurá
e Sirionó.
Fonte: Meggers, Betty - 1987 - A ilusão
do Paraíso, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia.
Armas
Vitrines:
Tacape dos índios Karajá, Xikrin, Ca-
nela, Galibi. Macuxi, Bororó e sem identi-
ficação. Coleção do Museu de Arqueolo-
gia e Etnologia da USP (acervo originário
Plinio Ayrosa).
Painéis:
Flechas dos índios Xavante, Parakanã,
Galibi, Tirió, Bororó, Suruí, Araweté,
Xokleng-Kaingang, Xikrin, Zoé e Yanoma-
mi. Arcos dos índios Xokleng-Kaingang,
Araweté, Umutina, Bororó, Yanomami e
Zoé. Lança dos Arapassu e dardo do Xin-
gu. Coleção do Museu de Arqueologia e
Etnologia da USP (acervo originário Plinio
Ayrosa) e coleção particular Dominique
Gallois e Luís Donisete Grupioni.
Socialização: o espaço da crian-
ça nas sociedades indígenas
"Como em todo lugar, as crianças ín-
diasm seu pequeno mundo.m brin-
quedos de palha, de madeira, de barro e
cabaça. Brincam com animais de estima-
ção como o quáti, o macaco e o jabuti.
Gostam de imitar os adultos nos afazeres
cotidianos. Conversam, cantam, dançam.
sobem em árvores, fazem de conta queo
bichos, pulam no rio, nadam, correm e
brincam na chuva.
As crianças indígenaso criadas com
muita liberdade. Embora os pais sejam os
responsáveis mais diretos pela criação dos
filhos, o processo mais amplo de sociali-
zação, de transformar as crianças em com-
pletos membros de sua sociedade, é efe-
tuado também pelos parentes mais
próximos e até pela comunidade inteira.
Tios, tias, avós, avôs e irmãos mais velhos
participam ativamente deste processo.
A infância é uma fase de aprendizado
social. As criançaso totalmente integra-
das na vida comunitária. Quando peque-
nas, sempre acompanham os adultos nas
suas idas e vindas pelo território: ir à roça,
pescar, sair para visitar uma outra aldeia.
Nestas caminhadas as criançaso apren-
dendo a conhecer melhor a natureza, re-
conhecendo os hábitos dos animais, a uti-
lidade das plantas e as técnicas para
conseguir alimentos. Aprendem também
cantos e histórias queo contadas pelos
mais velhos.
Nas sociedades indígenaso há es-
cola, nem livros. Todo o conhecimento é
transmitido oralmente dos mais velhos para
os mais novos. Histórias que falam sobre
a origem do mundo, dos animais e das
plantas, dos cantos e dos rituaiso con-
tadas e recontadas.
Muito raramente as crianças indígenas
o punidas; quase nunca fisicamente. A
atitude dos pais e dos mais velhos é sem-
pre de grande tolerância, paciência, aten-
ção e respeito às suas peculiaridades. Des-
de cedo, as crianças indígenas aprendem
as regras do jogo social, daquilo que po-
de ouo pode ser feito.
E brincando, imitando os pais, ouvin-
do as histórias que os velhos contam, par-
ticipando das atividades cotidianas e dos
Vitrine:
Brinquedos
Figura zoomórfica de barro, bolsinhas,
caixinhas, panelinhas, peteca, chocalhos,
flechinhas, arco, boneca de barro, pilãozi-
nho, banquinho de madeira, pássaro de fo-
lha de palmeira, dobradura de palha, más-
cara, remo e canoa dos índios Assurini,
Karajá, Guarani, Krahô e Canela. Coleção
do Museu de Arqueologia e Etnologia da
USP (acervo originário Museu Paulista).
Foto: Crianças Araweté (Aldo lo Curto).
Música indígena: comunicação
com a natureza e o sobrenatural
"O grande tema tratado na música in-
dígena é a natureza. As letras dos cantos,
retransmitidos oralmenteo descrições mi-
nuciosas da fauna, da flora e da relação dos
homens com a natureza. Numa perspecti-
va mítica, uma ideia de fundo comparti-
lhada pela mitologia destes povos situa a
origem da música nos primórdios da cria-
ção, quando os bichos falavam e os ho-
mens aprenderam com eles as melodias,
as danças, além de uma série de técnicas
e enfeites. Houve então uma ruptura e os
bichos desaprenderam tudo. ficando os ho-
mens com toda a herança deste conhe-
cimento.
Os instrumentos musicais parecem
sempre estar querendo imitar o som de en-
tidades sobrenaturais -animais, heróis, mor-
tos, espíritos. Interpretar estas músicas, é
passar para outra realidade, para o universo
mítico, de alguma forma se comunicar com
rituais que as crianças crescem e se tornam
adultas. Sem instrução formal e sem vio-
lência."
os mortos, com os animais, com os inimi-
gos. Muitas vezes o intérprete é, naquele
momento, aquele animal ou aquela enti-
dade. Esta passagem para o mitoo é
tanto uma volta ao passado, mas um con-
tato com as forças originárias, indispensá-
vel à continuidade do grupo.
Daí a importância que os índioso
ao bom desempenho da performance mu-
sical ou do cerimonial. Um erro do cantor
ou um momento de desatenção pode, em
alguns casos, deixar de produzir os efeitos
benéficos e também trazer graves conse-
quências para a aldeia.
A música sempre ocorre em contextos
precisos: cantigas de roda para brincadei-
ra de crianças, cantos de caçada, gritos ou
buzinas para comunicação à distância ou
cerimoniais de iniciação, ciclos propiciató-
rios, rituais guerreiros ou fúnebres, curas
xamanísticas ou cantos religiosos. Quem
toca ou canta o quê em cada um destes
contextos também é algo bem definido.
A realização destes cerimoniais propi-
ciao só a renovação espiritual da aldeia,
como a atualização de todas as relações so-
ciais da comunidade. Eles permitem dis-
solver tensões acumuladas e reforçar os la-
ços de cooperação internas do grupo,
recolocar em evidência diferenciações in-
ternas, de status, poder e conhecimento,
fundamentais para a manutenção da or-
dem social. O cerimonial é o momento da
transmissão de valores e de conhecimen-
tos e do direito de executar determinados
cantos ou instrumentos, de usar nomes ou
ornamentos.
A música está, quase sempre, associa-
da à dança. A repetição das letras, o rit-
mo marcado, a energia do coletivo levam
à um transe musical. Os cantos podem ser
ensaiados diariamente durante meses de
preparação e repetidos por mais de doze
horas consecutivas no encerramento de um
cerimonial."
Vitrines:
1. Flautas longitudinais com aeroduto:
Ramkokamekra-Canela, Tukurina, Ka-
diwéu, Avá-canoeiro, Wayana-Apalai,
Bororó e sem identificação.
2. Flauta globulares: Kadiwéu, Xavan-
te, Nambiquara, Krahô, Makuxi, Tiku-
na e Guarani-Kaiowa.
3. Flautas sem aeroduto longitudinal
pan: Parakanã, Xavante, Gavião. Tu-
kano e Rio Negro.
4. Flauta Transversal: Mekranoti.
5. Clarinetes: Bororó, Waiapi e sem
identificação.
6. Trompete Transversal: Ramkokame-
kra-Canela, Kaingang, Kaxinauá, Mek-
ranoti, Xerente, Gavião e sem identi-
ficação.
7. Trompete Longitudinal: Ramkokame-
kra-Canela e Mekranoti.
8. Chocalho em fieira: Waiãpi, Canela,
Xavante, Kayapó, Mekranoti e sem
identificação.
9. Maracá: Tukano, Assurini, Xikrin, Ca-
nela e sem identificação.
10. Arco de boca: Tukurina e Krahô.
11. Tambor: Tikuna.
12. Zunidor: Waurá
Fotos: Fabricação e uso de instrumen-
tos musicais em festas e rituais Waiãpi (fo-
tos: Flora Dias).
Rituais de vida c morte: nomi-
nação, iniciação e funeral entre
os índios Bororó
"Os rituais indígenasoo simples
festas, onde os índios cantam e dançam,
como muita gente imagina. Os rituais cons-
tituem momentos importantes que marcam
a socialização de um indivíduo ou a pas-
sagem de um grupo de uma situação pa-
ra outra. Eles manifestam as relações en-
tre o mundo social e o mundo cósmico,
entre o universo natural e sobrenatural.
Os rituais marcam momentos da cons-
trução da identidade dos indivíduos nas di-
ferentes fases de sua vida, incluindo a pas-
sagem para o mundo dos mortos. Esses
"ritos de passagem" normalmente se de-
senvolvem através de três fases: a separa-
ção, a transição e, finalmente, a incorpo-
ração em uma nova situação.
A maioria destes rituaiso planejados
e preparados com antecedência. Eles en-
volvem grande quantidade de alimentos,
queo conseguidos com a realização de
caçadas e pescarias coletivas. Longas dis-
cussões, confecção de artefatos, convites
a parentes e aliados também antecedem
os rituais.
Os índios Bororó, que habitam oito al-
deias num território descontínuo no Vale
do Rioo Lourenço, Estado do Mato
Grosso, marcam com a realização de rituais
vários momentos de suas vidas. O nasci-
mento de um novo ser, a incorporação de
um garoto no mundo dos adultos e a morte
de uma pessoao objeto de cantos, dan-
ças, representações, rituais e obrigações ce-
rimoniais.
A nominação - ato de receber publi-
camente um nome - é uma cerimónia fun-
damental para a criança, pois representa
a sua entrada formal na sociedade Boro-
. Os nomes Bororóoo escolhidos
a esmo, mas sim dentro de um conjunto
de nomes tradicionais. Um parente dae
da criança, no centro da aldeia, levanta a
criança pelos braços e repete, várias vezes,
o nome que ela está recebendo.
Anos depois, já garoto, ele deixará a
sociedade dos meninos para ingressar na
sociedade dos homens. A passagem de um
nível social para outro é marcada pelo re-
cebimento do estojo peniano (um cartu-
cho feito com um broto de palmeira baba-
çu, que é colocado no pênis). Durante o
ritual, o menino tem seu estojo peniano co-
locado pelo seu padrinho que após este ato
toca um trompete. A partir deste momen-
to, ele é reconhecido pela coletividade co-
mo homem, podendo assistir às cerimo-
nias próprias dos homens e casar-se.
A morte de um indivíduo, entre os Bo-
roró, desencadeia um longo ciclo de rituais.
danças, cantos, caçadas e pescarias cole-
tivas e representações cerimoniais, que tem
por objetivo efetuar a passagem da "alma"
do morto para a aldeia dos mortos e reor-
ganizar a sociedade dos vivos, que perdeu
um de seus membros. O ciclo funerário é
o grande momento de interação de toda
a sociedade Bororó.
O funeral Bororó pode durar até três
meses, contados a partir da morte do in-
divíduo até o enterro definitivo de seus os-
sos, longe da aldeia, numa baía ou num
pântano. O indivíduo quando morre é en-
terrado numa cova rasa, no centro da al-
deia, que é aguada constantemente para
acelerar o processo de decomposição das
partes moles do corpo. Após este período,
os ossoso desenterrados e lavados pe-
los chefes cerimoniais, que coordenam e
orientam todas as atividades do funeral. Os
ossos são, então, pintados com urucum e
decorados com penugem e penas de pás-
saros. Depois dissoo colocados dentro
de um grande cesto de palha trançado e
enfeitado, que é enterrado definitivamen-
te."
Visualização de momentos de rituais
Bororó através de três cenários com apre-
sentação de personagens em tamanho na-
tural ornamentados com adornos bororó.
Nominador segurando o bebe: coroa
de folíolo, esteira, bandeja de palha, fura-
dor, adorno do ocipíceio, adorno da face
(capacete de penas).
Padrinho tocando trompete e garo-
to iniciante: estojos penianos, esteira, dia-
dema de Penas, instrumento de sopro.
Três dançarinos (dois representantes
do morto - um segurando um arco ceri-
monial e outro com uma bandeja de pa-
lha - e o cantador: cesto funerário, ban-
deja de palha, saias de folíolos de palmeira,
cerâmica, labretes de Madrepérola, colar,
corda de cabelos humanos, arco, adorno
do ocipíccio, diademas de penas, braçadei-
ras de penas, viseira com penas, brincos,
grampo de cabeleira, instrumentos de so-
pro, chocalhos.
Coleção do Museu de Arqueologia e
Etnologia da USP (acervo originário Plínio
Ayrosa) e coleção de Sylvia Caiuby Novaes
e Sónia Ferraro Dorta.
Casa de farinha: o processa-
mento da mandioca entre os
Tukano
"Os índios Tukanos Orientais vivem na
região do alto Rio Negro, no noroeste do
Estado do Amazonas e em áreas adjacen-
tes dos territórios da Colômbia e da Vene-
zuela. Além dos Tukanos, esta área tam-
m é habitada por grupos Arawak e
Makô. Aproximadamente 15 grupos for-
mam a família linguística Tukano Oriental;
dentre eles os Tukano, Desana. Cubeo, Ua-
nano, Tuyuka, Barasana e Tatuyo. Tradi-
cionalmente, os Tukanos vivem em malo-
cas situadas às margens dos principais rios
da região. Suas principais atividadeso o
cultivo da mandioca brava, a pesca, a co-
leta de frutos silvestres, larvas e insetos co-
mestíveis e a caça.
A casa dos índios Tucano é dividida em
dois espaços. O primeiro, contíguo à por-
ta das mulheres, é aquele ondeo reali-
zadas as atividades femininas, principal-
mente o processamento da mandioca. O
espaço masculino, próximo à outra porta.
é ocupado pelos homens, onde fazem seus
trabalhos (cestaria, objetos de uso cotidia-
no e ritual, preparativos para excursões de
caça e pesca, etc...). Neste espaço os ho-
mens conversam e recebem visitas.
Em média, a casa tradicional destes po-
vos é três vezes maior que o modelo apre-
sentado durante a exposição. Os espaços
lateraiso subdivididos em compartimen-
tos das famílias, que se distribuem a partir
da porta das mulheres. Na parte central e
junto da porta dos homens existe um gran-
de espaço ondeo realizados os rituais e
danças do grupo.
Os índios Tukanom como base de
sua alimentação a mandioca brava. 70%
das calorias de que necessitam provêem
do cultivo deste tubérculo. Os homenso
responsáveis pelo preparo (desmatamen-
to e queima) da área a ser cultivada e aju-
dam as mulheres na plantação. Todo o tra-
balho de colheita, replantio e processa-
mento culinário da mandioca é feminino.
A transformação da mandioca em suas
formas comestíveis requer, basicamente, os
seguintes procedimentos: a mandioca é co-
lhida e transportada até o rio, onde é des-
cascada e lavada; depois é carregada pa-
ra casa para ser ralada. A massa resultante
é lavada com água no cumatá para que as
substâncias tóxicas existentes na mandio-
ca sejam extraídas. Feito isto, tanto a mas-
sa quanto o suco resultante desta lavagem
o aproveitados: a massa será prensada
no tipiti e, depois de bem enxuta, será as-
sada no forno para fazer o bolo de man-
dioca chamado beiju; já o suco será fervi-
do por várias horas em uma panela, até
que o princípio ativo do veneno seja que-
brado para produzir um líquido espesso
chamado manicuera. Outros alimentos
tambémo preparados com sub-produtos
deste processo e pela adição de outros in-
gredientes: pimenta, banana amassada, ex-
traio de açaí ou buriti, dentre outros, de-
pendendo do caso."
Reprodução de uma casa de farinha
dos índios Tukano, ambientada com arte-
fatos etnográficos, seguindo projeto con-
ceituai de Berta G. Ribeiro e projeto arqui-
tetônico de Hamilton Botelho.
Armadilha de peixe, rede, peneiras,
cestos, abanos, cuias, atura, esteira, rala-
dor, tipitis, zarabatana, flechinhas de zara-
batana, arcos, flechas, bancos de madei-
ra, remos, vassouras, colares de quartzo,
pote, trocano, baquetas do trocano.
Coleção do Museu de Arqueologia e
Etnologia da USP (acervo originário Plinio
Ayrosa)
Forno de farinha. Coleção do Depar-
tamento de Património Histórico da Secre-
taria Municipal de Cultura deo Paulo.
Pintura Corporal: a arte de pin-
tar entre os Kayapó
"Pintando suas faces, seus corpos e
seus objetos, os índios expressam momen-
tos importantes em suas vidas. Jenipapo,
urucum, carvão, barro e resinas vegetais e
mineraiso utilizados como
matéria-prima.
Os índios Kayapó-Xikrin, habitantes de
matas de transição e cerrado, no Mato-
-Grosso e Sul do Pará,o conhecidos pe-
las suas pinturas corporais, verdadeiras ves-
timentas ou "peles sociais".
A ornamentação e, especialmente a
pintura corporal entre os Kayapó expres-
sam de maneira clara e formal a compreen-
so que estes índios possuem de sua visão
de mundo e organização social, das ma-
nifestações biológicas e das relações com
a natureza.
Os motivos decorativos se adaptam a
um suporte plástico, o corpo, que por sua
vez é portador de um outro conjunto de
significados. Aplicada no corpo, a pintura
possui função essencialmente social e
mágico-religiosa, mas também é a manei-
ra reconhecidamente estética e correta de
se apresentar.
Entre os Kayapó-Xikrin, a pintura é ta-
refa exclusivamente das mulheres, que a
transformam num verdadeiro hábito, como
ir à roça, cozinhar e cuidar dos filhos. To-
das pintam, e portanto a qualidade de pin-
tora é considerada como atributo inerente
à natureza feminina."
23 pranchas contendo desenhos feitos
com jenipapo pelas índias Nhiokpu Xikrin
e Nhikaere Xikrin. Coleção de Lux B.
Vidal.
Classificação das aves: o etno-
conhecimento dos índios Xikrin
"Assim comos e todos os povos, os
índios também constroem o seu discurso
sobre a natureza. Assim como nós, eles or-
denam e classificam os domínios e os se-
res da natureza. Neste sentido, existe uma
lógica universal compartilhada por todos
os humanos: a de colocar ordem no mun-
do em que vivem. Entretanto cada socie-
dade possue o seu modo específico para
se relacionar com o meio ambiente. O sa-
ber indígena sobre as aves, entre os Xik-
rin, revela, de um lado, a existência de uma
classificação que podemos chamar cientí-
fica e que recorta o universo em catego-
rias nomeadas e independentes de qual-
quer utilização prática. Na cultura destes
índios, por outro lado, as aves ocupam um
lugar relevante no discurso mítico, nos ri-
tuais, nos cantos e nos artefatos plumários.
As aves pertencem ao patamar celes-
te eo criação dos heróis mitológicos.
Correspondem, enquanto representação
simbólica privilegiada, à concepção indíge-
na do que seja a própria humanidade. Os
heróis, dois meninos gigantes, conseguem
matar o grande Gavião-real. De suas pe-
nas lançadas ao ar criam todas as aves dan-
do origem ainda aos artefatos plumários.
Para os Xikrin, as avesoo impor-
tantes que o xamã, pessoa que entra em
contato com o sobrenatural, deve ser ini-
ciado simbolicamente pelo gavião-real."
Instalação com a apresentação da et-
noclassificação dos pássaros realizada pe-
los índios Xikrin através aves empalhadas
e de vitrines com artefatos etnográficos
Xikrin.
Aves:
Gavião real, Urubu-rei, Jacupemba,
Pica-pau, Tucanuçu. Jaó verdadeiro. Co-
ruja, Arara vermelha. Papagaio verdadei-
ro, Curica e Alma de gato. Coleção do Mu-
seu de Zoologia da Universidade deo
Paulo.
Vitrines:
Colar, diadema rígido, testeira, garra de
gavião real, diademas de fileira dupla, bra-
çadeiras, colar de inciação masculina, ador-
no dorsal. Coleção de Lux Boelitz Vidal e
Isabelle Vidal Giannini.
Cosmologia indígena: o univer-
so dos índios Waiãpi
"Os índios Waiãpi, de língua Tupi-
-Guarani, habitam uma vasta extensão de
floresta de terra firme na fronteira Brasil-
-Guiana Francesa. Atualmente, a evolução
da população Waiãpi na régio do Amapa-
ri atesta uma vasta taxa de crescimento ex-
tremamente elevada: a população passou
de 151 indivíduos, na época do contato,
em 1973, ao total de 310 indivíduos. A
principal característica da organização
sócio-política dos Waiãpi está na autono-
mia dos vários grupos locais. Os diferen-
tes grupos podem ser identificados em re-
lação às "áreas de ocupação", onde cada
grupo mantém diversas roças e habitações
e na qual desenvolve suas atividades de
subsistência.
O cosmo Waiãpi enfatiza a separação
entre diferentes patamares superpostos, cu-
ja diferenciação representa as transforma-
ções cíclicas quem ocorrendo desde a
criação do mundo.
O eixo central leste-oeste acompanha
os movimentos do sol, da lua e os fenó-
menos astronómicos representados pelo
vento e pela chuva. Existem também ou-
tras direções que funcionam como pontos
cardeais na representação do universo: o
oceano, o lugar da cobra Anaconda, a ca-
sa do herói Ianejar e o lugar dos brancos.
formação. Na transposição dos relatos-
ticos para o cenário foram selecionados
apenas alguns elementos das relações que
equilibram os domínios celeste, terrestre e
subterrâneo.
Personagens e figuras: Na camada
subterrânea habita um monstro canibal. Na
camada terrestre foi representado os Waiã-
pi, o xamã, os porcos do mato, a cobra
anaconda, o arco-íris, as borboletas ama-
relas e a fortaleza de Macapá. Há uma ga-
roto escorregando para o mundo subter-
râneo. Na primeira camada celeste há o
urubu de duas cabeças e o gavião real que
carrega uma criança no cesto. Na segun-
da camada celeste, mundo dos mortos, es-
o representados dois antepassados.
Artefatos: adornos de cabeça (akane-
tá), panela com cipó em volta, bastão de
dança, rede, cinto masculino, cuias, ces-
tos. Coleção do Museu de Arqueologia e
Etnologia da USP (acervo originário Plinio
Ayrosa) e coleção particular Dominique
Gallois.
Entidades de Apoio aos índios;
a atuação da sociedade civil or-
ganizada
"No final dos anos 70, em diferentes
cidades do território brasileiro surgiram os
primeiros grupos e entidades de apoio aos
índios. Constituindo-se como reação à pro-
posta de emancipação forçada dos índios,
elaborada pelo governo militar, estes gru-
pos dedicaram-se à realização de campa-
nhas de solidariedade aos povos indígenas
e de denúncias das ameaças que pairavam
sobre eles.
Estas entidades desenvolveram proje-
tos de intervenção local junto a vários po-
vos indígenas, nas áreas de saúde, educa-
ção, atividades económicas e de proteção
legal de suas terras. A atuação local, mul-
tifacetada, e o contato com profissionais va-
riados talvez seja o que melhor traduz o iní-
cio da atuação destas entidades.
Ao longo dos anos 80, tais grupos fo-
ram, paulatinamente, se profissionalizan-
do e conseguindo recursos para montar es-
critórios, elaborar projetos de apoio,
intervenção e assistência, obter financia-
mento para realização de projetos e formar
quadros de pessoal especializado. Nesse
processo de profissionalização, essas enti-
dades passaram das denúncias à formula-
ção de projetos alternativos de intervenção.
Constituiram-se em interlocutores para-
rias questões relacionadas aos destinos dos
índios no Brasil. Ao mesmo tempo,
acirraram-se as disputas entre as entidades
pelo controle de certas áreas de atuação,
pelo direito de falar sobre certos assuntos
e interferir em determinados contextos.
Uma das marcas do trabalho realiza-
do pelas organizaçõeso governamentais
de apoio aos índios é a produção de-
rias publicações especializadas relativas à
temática indígena. Hoje, algumas destas
entidades possuem informações mais de-
talhadas e completas do que os órgos ofi-
ciais. Apresentando informações confiáveis
e atualizadas, as publicações editadas por
estas entidades constituem importantes ins-
trumentos de pressão e de divulgação da
problemática indígena contemporânea."
Apresentação dos trabalhos das enti-
dades e organizações de apoio aos índios
através de cartazes de campanhas e de pu-
blicações realizadas por elas. Foram sele-
cionados materiais das principais entidades
de apoio: ANAI/BA - Ação pela Cidada-
nia - CEDI - CPI/SP - CCPY - CIMI NA-
CIONAL - CTI - GTME - COMIN - CI-
MI/RO - Centro MAGUTA - CPI/RR -
Fundação Mata Virgem - IAMA - MA-
RI/USP - OPAN - NDI.
Vitrines: Livros, folhetos, relatórios de
atividades, camisetas, cartões-postais, car-
tilhas de alfabetização, jornais e boletins.
DIALOGO CULTURAL: ÍNDIOS DO PRESENTE E DO FUTURO
Painel: Cartazes de campanhas produ-
zidas pelas entidades de apoio aos índios
nos últimos dez anos.
Organizações e Associações in-
dígenas: novas formas de repre-
sentação política
"No final dos anos 80, principalmente
após a promulgação da atual constituição,
surgiram diferentes organizações e associa-
ções indígenas.
Realizando assembleias e reuniões, ele-
gendo diretorias, registrando estatutos em
cartórios e abrindo contas bancárias,-
rios grupos indígenas se apropriaram des-
tas formas de representação política.
Essas novas formas de organização po-
lítica fizeram surgir novos líderes e novas
possibilidades de aliança.
Conquistando espaços na mídia, local
e nacional, passaram a interlocutores na
discussão e no encaminhamento de reivin-
dicações, junto a órgos do governo e ou-
tras entidades do movimento social.
Desempenhando, prioritariamente, a
função de representação política, essas en-
tidadeso resposta à falência dos servi-
ços de assistência prestados pelos órgãos
do governo. Paralelamente ao surgimento
destas organizações, os índios participam
cada vez mais dos pleitos regulares,
elegendo-se vereadores e deputados.
Embora muitas pessoas acreditem que
os índioso farão parte de nosso futuro,
a organização dos índios hoje demonstra
que eles estão aqui, e para ficar."
vidas pelas organizações indígenas de An-
tónio Carlos Queiroz, Veronice Rossato,
António Brand, João Saffírio, Fábio Villas,
Fritz Tschol, Egon Heck, Walber Kontsá,
Cristina Ávila e Darci Ciconetti (fotografias
pertencentes ao acervo fotográfico do Po-
rantim) e de Luís Donisete Benzi Grupioni.
Mapa com a localização de 82 orga-
nizações indígenas elaborado pelo Setor de
Documentação do CIMI/Nacional.
Fotografias de lideranças indígenas pre-
sentes no Encontro de Povos e Organiza-
ções Indígenas do Brasil (Luziânia, GO -
25 a 30 de abril/1992) de Celso Maldos.
Os direitos dos índios na Cons-
tituição do Brasil
"Em 1988, durante os trabalhos da As-
sembleia Nacional Constituinte, o movi-
mento indígena e o movimento de apoio
aos índios articularam-se para conduzir as
iniciativas referentes aos direitos indígenas
na futura Constituição do país.
Além de participar das discussões so-
bre temas referentes à questão indígena,
eles assessoraram os parlamentares na ela-
boração de propostas e emendas consti-
tucionais, mobilizando, ainda, a opinião
pública em favor dos direitos indígenas.
Essa articulação foi fundamental para
que a Assembleia Constituinteo só apro-
vasse os direitos consagrados nas consti-
tuições anteriores, como ampliasse a defi-
nição de outras importantes garantias.
Painel: Fotografias de encontros, as-
sembleias e manifestações públicas promo-
Promulgada em 05 de outubro de
1988, a nova Constituição da República
Federativa do Brasil estabelece os direitos
dos índios em um capítulo específico ("Dos
índios") e de oito artigos, distribuídos em
diferentes títulos.
A inovação mais importante desta
Constituição foi o abandono da postura in-
tegracionista, que sempre buscou enqua-
drar os índios na "comunidade nacional",
entendendo-os como uma categoria étni-
ca e social transitória, condenada ao de-
saparecimento.
Com o novo texto constitucional em
vigência, os índios deixaram de ser uma
"espécie em vias de extinção". Sua orga-
nização social, costumes, línguas, crenças
e tradições foram asseguradas, a partir do
direito à diferença cultural.
Ao contrário do que determinavam as
Constituições anteriores, a União passou
a legislar sobre as populações indígenas
com o fim de protegê-las.
Outro dispositivo importante desta
Constituição é reconhecer que os índios
m direitos originários sobre as terras que
ocupam, porque foram os primeiros habi-
tantes e donos destas terras e por terem
precedido a formação do Estado brasileiro.
É necessário, entretanto, reconhecer
que. no Brasil, sempre houve grande dis-
tância entre o que está estabelecido na lei
e o que ocorre na prática. Os índios e as
organizações que os apoiam estão traba-
lhando para que esses direitos se consoli-
dem eo sejam alterados na revisão cons-
titucional de 1993."
Painel: Apresentação dos dispositivos
constitucionais referentes aos direitos dos
índios na atual Constituição brasileira
acompanhado de fotografias da mobiliza-
ção indígena durante os trabalhos da As-
sembleia Nacional Constituinte. Fotografias
de Egon Heck e Luís Santos Lobo (Poran-
tim), Guilherme Rangel e Reynaldo Sta-
vale (ADIRP) e Luís Donisete B. Grupio-
ni.
Grupos Isolados na Amazónia
"A maioria das sociedades indígenas
contemporâneas está em contato com seg-
mentos da sociedade brasileira há muitos
anos.
Outras, optaram por permanecer iso-
ladas. Abrigadas em refúgios naturais, co-
mo regiões montanhosas ou interfluxo de
rios e igarapés, ou, ainda, fugindo quan-
do encontram sinais da presença dos bran-
cos, essas sociedades relutam em aceitar
o contato permanente, adiando o momen-
to de "pacificarem" os brancos.
Várias delas já experimentaram o con-
vívio com garimpeiros, caçadores, madei-
reiros, fazendeiros, sertanistas e missio-
nários.
Estima-se que vivem hoje em várias re-
giões da Amazónia cerca de 53 grupos iso-
lados, praticamente sem contato com a so-
ciedade envolvente.
Estes grupos indígenas ainda terão que
decidir o momento de estabelecer relações
permanentes com os brasileiros das fron-
teiras, com suas ferramentas, suas máqui-
nas, suas bíblias, suas doenças...
Até recentemente, o grupo Tupi do
Cuminapanema permaneceu isolado, no
norte do Pará, a 300 km de Santarém. Em
1987, cem deles se aproximaram da base
da Missão Novas Tribos do Brasil, que des-
de 1982 tentava encontrá-los e atraí-los.
A Funai sabia de sua existência desde
1976, quando foi planejada a construção
da rodovia Perimetral Norte, mas optou por
o promover o contato. No final de 1988,
a Funai foi alertada pela Missão de que um
surto de doenças tinha atingido o grupo,
causando a morte de vários indivíduos.
Hoje, os Tupi do Cuminapanemao
133 indivíduos, que vivem em quatro al-
deias diferentes, localizadas numa região
de floresta entre os rios Erepecuru e Cu-
minapanema, por ondem penetrado
castanheiros e garimpeiros. Morreram cerca
de trinta pessoas nos últimos cinco anos.
Além de ferramentas e de outros bens
industrializados, os Tupi do Cuminapane-
ma estão procurando remédios junto aos
brancos. Mas, aparentemente, eleso
querem mudar seu ritmo e seus padrões
de vida em troca dessas coisas. Aceitar o
contato, para eles, ainda depende de "pa-
cificar os brancos"."
Apresentação da exposição fotográfi-
ca itinerante "Descobrindo o Brasil: índios
Tupi encontram os brancos no Cuminapa-
nema" realizada pelo Cedi, USP e Secre-
taria Municipal de Cultura/SP em 1990
apresentando fotografias de Dominique
Gallois e Luís Donisete Benzi Grupioni.
Vitrine: Tipóia, pente, adorno de bra-
ço, colar, goivo com pingente, isqueiro com
revestimento, colher confeccionada com
cabeça de macaco, pulseira de castanhei-
ra, adorno labial, estojo peniano, tiara de
plumas de urubu, furador de osso de ma-
caco, panela de cerâmica, abano de palha,
diadema frontal de penas, tiara de folha de
palmeira, cortador com lâmina de metal,
cesto com tampa, fuso com roliço de ce-
râmica, ramo de bacaba seco (vassoura).
arco, arpão e flecha. Coleção: Dominique
Gallois e Luís Donisete B. Grupioni.
Mineração em terras indígenas:
uma grande ameaça
"A questão da mineração em terras in-
dígenas, sobretudo na Amazónia brasilei-
ra, tem sido, ao longo dos últimos anos,
assunto polémico e preocupante, em vir-
tude do jogo de interesses económicos e
políticos envolvidos. De um lado, estão as
empresas privadas e estatais e os empre-
sários do garimpo ansiosos por encontrar
e explorar novas reservas de minérios. Do
outro lado. estão os índios e entidades da
sociedade civil, preocupados com as con-
sequências da mineração para os índios e
seus territórios.
Durante os trabalhos da Assembleia
Nacional Constituinte, a questão da mine-
ração em terras indígenas gerou muitos de-
bates. Para se contrapor aos interesses das
empresas mineradoras, que queriam ter
autorização para explorar recursos mine-
rais em áreas indígenas, organizações da
sociedade civil levaram ao Congresso Na-
cional os resultados de uma pesquisa im-
portante. Essa pesquisa demonstrava que
as empresas mineradoras tinham interes-
se sobre mais de um terço das áreas indí-
genas da Amazónia. Mostrava, também
que o Governo brasileiro tinha, na época,
autorizado 560 alvarás de pesquisa e ha-
viam sido pedidos mais de 1.685 requeri-
mentos para pesquisa de mineração que
atingiam 77 áreas indígenas diferentes.
Diante dessa denúncia e do perigo que
essas atividades podem causar aos índios
e a seus territórios, os parlamentares incluí-
ram. na Constituição, um artigo que esta-
belece que somente o Congresso Nacio-
nal pode autorizar o aproveitamento dos
rios e a lavra em áreas indígenas. Atual-
mente. existem pressões para que esse ar-
tigo seja modificado. E há uma oportuni-
dade para que isso aconteça: a revisão
constitucional no próximo ano."
Painel: Mapa "Empresas de Mineração
e Terras Indígenas na Amazónia" elabora-
do pelo CEDI/CONAGE e apresentado
durante os trabalhos da Assembleia Nacio-
nal Constituinte (1988).
Garimpo cm áreas indígenas: o
caso dos índios Nambiquara
"O Garimpo é uma atividade que al-
tera em grande escala o meio ambiente.
o se pode mexer no sub-solo sem afe-
tar o solo. O garimpo manual, além de po-
luir os rios com mercúrio, espanta animais
silvestres e altera a composição da flora
local.
Quando praticado de forma desorde-
nada, suas consequênciaso devastado-
ras para as sociedades indígenas, que man-
m estreita relação com a natureza.
Há alguns anos, a sociedade nacional
e internacionalm acompanhando as di-
ficuldades enfrentadas pelos índios Yano-
mami, que tiveram suas terras invadidas
por milhares de garimpeiros.
Muitos Yanomami moreram contami-
nados por mercúrio e por doenças trans-
mitidas pelos garimpeiros.
A mesma história se repete, agora, en-
tre os índios Nambiquara, que vivem no
sul do Mato-Grosso.
Em 18 de janeiro de 1989, a minera-
dora Santa Elina Indústrias e Comércio
Ltda. obteve alvará do Departamento de
Produção Mineral/DNPM, autorizando-a
a pesquisar minério na Gleba Sararé. Esta
Gleba está localizada na margem direita do
Córrego Água Suja, limite natural da Área
Indígena Sararé, habitat imemorial dos
Nambiquara.
Um ano depois, essa empresa efetuou
um Termo de Acordo com a Cooperativa
Mista dos Garimpeiros e Produtores de Ou-
ro do Vale do Sararé. O acordo permitia
aos garimpeiros a extração do ouro nos li-
mites da área indígena. O acordo firmado
foi apresentado à Funai para anuência. Mas
essa entidade, apesar deo fornecê-la,
silenciou e omitiu-se sobre os fatos.
O contrato limitava-se à presença de
735 garimpeiros. Porém, pouco tempo de-
pois, a atividade garimpeira cresceu desor-
denada e rapidamente avançando sobre a
área indígena. Constatou-se a presença de
1300 garimpeiros, passando logo para
1800, 2000.
Em 18 de dezembro de 1991, o juiz da
9 Vara do Distrito Federal, Dr. Mário-
zar Ribeiro, concedeu liminar favorável à
retirada dos garimpeiros da área indígena.
Para cumprir a liminar, os órgos res-
ponsáveis - Funai, Ibama e Polícia Federal-
alegaram falta de verbas. No entanto, exis-
tem recursos do Banco Mundial disponí-
veis.
Por outro lado, a área indígena está de-
marcada existindo provas da invasão e da
depredação ambiental causada pelos ga-
rimpeiros. Todas as evidênciaso favorá-
veis para que a liminar se cumpra.
O número de garimpeiros chegou a
3000 e a invasão levou a disseminação de
doenças, como viroses e malária, que atin-
giram mais de 70% da população indíge-
na e já ocasionaram a morte de um adul-
to e duas crianças.
A devastação ambiental pode ser ates-
tada pela mortandade dos peixes, assorea-
mento dos rios, poluição dos córregos com
óleo e graxa e destruição das matas cilia-
res.
Embora a atividade garimpeira em área
indígena seja absolutamente ilegal, nada foi
feito até o momento."
Vídeo: "Boca Livre no Sararé" de Vi-
cent Carelli, Virgínia Valadão e Maurício
Congobardi. Produção CTI/TV Cultura,
1992 (vídeo sobre a invasão de garimpei-
ros na área indígena Nambiquara).
Centro de Cultura Indígena
Guarani Ambá Arandu: resistên-
cia e resgate
"Poucas pessoas sabem que existem ín-
dios na cidade e mesmo no Estado deo
Paulo. Bem perto de nós, entretanto, mo-
ram os índios Guarani. Eles convivem com
nossa sociedade desde os tempos do des-
cobrimento.o exemplo de uma cultura
milenar.
Algumas pessoas acreditam que, por
falarem a língua portuguesa e utilizarem,
no seu cotidiano, produtos industrializados,
os Guarani estão deixando de ser índios.
Porém, é bom lembrar, que as culturas in-
dígenaso antigas, maso paradas no
tempo. Elasm se transformado, se mo-
dificado. A cultura de um povoo é algo
congelado no passado: é um modo parti-
cular de viver, de entender e explicar o
mundo, que se transforma em função dos
novos acontecimentos e situações.
Os Guarani da Aldeia do Morro da
Saudade estão construindo o Centro de
Cultura Indígena Ambá Arandú. Através
de uma instituição típica da nossa cultura
- o centro cultural - os Guarani buscam res-
gatar e valorizar suas tradições, especial-
mente para as crianças, índias ou não-
-índias. Além disso, o Centro prope o
desenvolvimento de projetos práticos, vol-
tados para busca da auto-suficiência eco-
nómica dos Guarani, e de atividades cul-
turais, com a apresentação de danças e
explicações sobre a tradição Guarani."
Povo Ticuna constrói seu pró-
prio museu
"Os Ticuna contam hoje com uma po-
pulação de 23.000 indivíduos. Localizados
na região Amazônica, na fronteira do Bra-
sil, Peru e Colômbia, eleso um dos po-
vos indígenas mais numerosos do Brasil.
Divididos em 90 aldeias, todas elas si-
tuadas nas margens, ilhas e afluentes do
rio Solimões, os Ticuna se distribuem em
seis municípios: Benjamin Constant, Taba-
tinga,o Paulo de Olivença, Amaturá,
o António dea e Tocantins.
No dia 06 de dezembro de 1991, os
índios Ticuna e o Centro de Documenta-
ção e Pesquisa do Alto Solimões fundaram,
em Benjamin Constant, o Museu Magu-
ta. Trata-se do primeiro museu fundado
por índios.
O museu tem por objetivo preservar e
divulgar aspectos da cultura indígena, tanto
para as futuras gerações de Ticuna, como
também para os não-índios que moram na
região.
Maguta, nome escolhido para deno-
minar o museu, é o nome do primeiro po-
vo pescado por Yoi, um herói cultural, na
região chamada Evaré. Os Ticuna acredi-
tam que descendem deste povo."
convite
OB IndlOS TICUNA e o CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E
PESQUISA DO ALTO SOLIMÕES convidam paro a cerlmônl
de Inauguração do Museu Maguta. a roallzar-se no dia 6 d>
dezembro de 1991, as 10 hs.
MAGUTA e o nome do primeiro povo pescado
por Yoi (herói cultural) no Evare.
Os Ticuna descendom deste povo.
Painéis: Fotografias de detalhes da
construção do Centro de Cultura Guarani
e de aspectos do cotidiano da aldeia Mor-
ro da Saudade. Fotos de Ivo Adolfo Fucker.
"O Museu do Centro Maguta é impor-
tante para nós, porque nele vai ficar guar-
dada a cultura do nosso povo, para o fu-
turo dos nossos filhos e netos. É
importante, também, para os brancos co-
nhecerem nossa arte, nossa ciência, para
compreenderem que os Ticunao gente
quem história, quem cultura, que tem
sua própria língua, como qualquer outro
povo que existe no mundo. Para os Ticu-
na, o Centro Maguta é como a nossa ter-
ra sagrada, o Evaré."( Pedro Inácio Pinhei-
ro, Ngematucu Presidente do Conselho
Geral da Tribo Ticuna - CGTT)."
"O Museu é importante porque foi or-
ganizado com nossa participação; porque
foi feito perto das nossas aldeias. O povo
Ticuna vai poder visitar, vai poder mostrar
para os não-índios sua arte, sua cultura,
que quase ninguém conhece nesta região.
E o primeiro Museu feito pelos próprios ín-
dios, conforme nosso pensamento. É um
lugar para conservar nossa cultura e relem-
brar nossa história". (Constantino Ramos
Lopes, Cupeatucu, Museólogo).
Abaixo-assinado
"Você pode manifestar seu apoio em
favor da demarcação das terras in-
dígenas.
Sr. Presidente do Brasil,
Tendo em vista o prazo que se esgota
em 05 de outubro de 1993 para o cum-
primento do artigo 67 do Ato das Dispo-
sições Constitucionais Transitórias da Cons-
tituição do Brasil, onde está estabelecido
que "A União concluirá a demarcação das
terras indígenas no prazo de cinco anos a
partir da promulgação da Constituição", pe-
dimos a aceleração dos processos de re-
conhecimento e demarcação das terras in-
dígenas. Entendemos que a garantia das
terras indígenas é condição fundamental
para a sobrevivência das populações nati-
vas de nosso país.
Nome: R.G.
Sr. Presidente do Brasil,
Os índios precisam de terras para so-
breviver. Eles preservam a natureza eo
exemplos para todos os brasileiros. Tem di-
reito às suas tradições e ao seu modo pró-
prio de viver.o cidadãos e por isso de-
Painéis: Fotografias do processo de
constituição do Museu Tikuna e de seu uso
por parte das crianças Tikuna. Fotos de
Jussara Gruber.
Demarcação de terras indígenas
Instalação com a história O Caso dos
X: quadrinhos e textos com informações
sobre a situação das terras indígenas no
Brasil. Em 16 painéis uma história em qua-
drinhos, ampliada fotograficamente, mostra
o lado dos índios da luta pela terra. Texto
e desenho de André Toral.
vem ser respeitados. Nós, crianças,
pedimos que as terras dos índios sejam lo-
go demarcadas."
Painel: Resumo da situação jurídica
das terras indígenas no Brasil no ano de
1992 e texto de abaixo-assinado pela de-
marcação das terras indígenas.
Créditos da Exposição índios no
Brasil: Alteridade, Diversidade e
Diálogo Cultural
Prefeitura do Município deo Paulo
Prefeita: Luiza Erundina de Sousa
Secretaria Municipal de Cultura
Secretária: Marilena de Souza Chaui
Coordenador V Centenário
José Américo Motta Pessanha
EXPOSIÇÃO ÍNDIOS NO BRASIL
Curadores:
Isabelle Vidal Giannini
Luís Donisete Benzi Grupioni
Consultores:
Berta G.Ribeiro. Cristina Bruno, Domini-
que T. Gallois, Lúcia Hussak van Velthem,
Lux Boelitz Vidal, Sérgio Cardoso, Sônia
T. Ferraro Dorta.
Eventos Paralelos:
Coordenação: Rejane de Cássia B. da
Nóbrega
Visitas monitoradas:
Coordenação: Ana Maria Campanhã
Aloísio José da Silva, Christina Evangelis-
ta, Eurides Feitosa da Silva, Maria Cristi-
na Barreto de Souza, Maria Delcina Feito-
sa, Miria de Moraes, Neusa Gonçalves, Rita
Daher, Robson Donizete de Jesus, Sandra
F. de Araújo Montagmoli, Sónia Valério da
Costa, Teresa Cristina Brando César.
Assessoria de Projetos Especiais
José Jacinto de Amaral, Maria das Graças
de Souza, Hilvânia Maria de Carvalho,
Maria Valéria Ribeiro Sostena, Maria Cris-
tina Martins.
Montagem:
Escritório Júlio Abe Wakahara
Coordenação Geral:
Júlio Abe Wakahara
Projeto Arquitetônico:
Coordenação: Carlos Verna
Dalva Thomaz
Glória Bayeux
Produção e Controller:
Coordenação: Elida Gagete
Sandra Miyuki Tsuji
Cenografia:
Maria Helena Grembrecki
Conservação Obras de Arte:
Celso do Padro
Serviços Fotográficos:
Coordenação: Haroldo Kinder
Cláudio Wakahara, Cinara Dias, Luciana
Guidorzi, Jorge von Simson, Caio Vilela,
Roberto Wakahara.
Coordenadores de Produção:
Música Indígena: Flora Dias
Bonecos Waiãpi e Bororó: Elsje Maria
Lagrou
História em Quadrinhos: André Toral
Casa de Farinha: Aloísio Cabalzar
Cultos Afros e Produtos Comerciais: Ornar
Thomaz
Coordenadores de Montagem:
Cosmologia Waiãpi e Sala do Manto: Jo-
sé Maria Polezi
Casa de Farinha: José Mendes de
Camargo
Bonecos Waiãpi e Bororó: Anésia Maria
Braz e Júlio Lopes
Estandartes: Cirineu Tarciso Diccianoi
Painéis Bororó: Júlio Pequeno
Painéis Cosmologia Waiãpi: Rosana G. de
Andrade
INSTITUIÇÕES COLABORADORAS
Acervo Artístico Cultural Palácios do
Governo
Biblioteca Mário de Andrade /SMC/PMSP
Centro Cultural deo Pau-
lo/SMC/PMSP
Departamento de Património Histórico -
SMC/PMSP
Fundação Museus Raymundo Ottoni de
Castro Maya
Gabinete da Prefeita - Secretaria do Go-
verno Municipal/PMSP
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
Laboratório de Recursos Visuais e Sono-
ros em Antropologia da Universidade de
o Paulo
Museu de Arqueologia e Etnologia da Uni-
versidade deo Paulo
Museu de Arte Comtemporânea da Uni-
versidade deo Paulo
Museu de Arte deo Paulo
Museu de Arte Moderna deo Paulo
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
Museu de Zoologia da Universidade de
o Paulo
Museu Histórico Nacional
Museu Imperial
Museu Paulista da Universidade deo
Paulo
Pinacoteca do Estado deo Paulo
Projeto Portinari/PUC/RJ
Colecionadores Particulares
Augusto Martins Capela
Cláudio Patrick Amato
Clécio Penedo
Dominique T. Gallois
Isabelle Vidal Giannini
João Cândido Portinari
Leila Florence Moraes
Luís Donisete B. Grupioni
Lux B. Vidal
Maria da Conceição de Souza Cahu
Marisia Portinari
Nelson Di Francesco
Renato Magalhães Gouvea
Sônia Ferraro Dorta
Sylvia Caiuby Novaes
Taro Kaneko
ENTIDADES COLABORADORAS:
AÇÃO PELA CIDADANIA
ABRAFITE - Associação Brasileira de Fi-
latelia Temática
ADIRP - Congresso Nacional
ANAI/BA -Associação Nacional de Apoio
ao Índio/Bahia
CCPY - Comissão para Criação do Parque
Yanomami
CEDI - Centro Ecuménico de Documen-
tação e Informação
CENTRO MAGUTA
CIMI - Conselho Indigenista Missionário
CIMI/RO - Conselho Indigenista Missio-
nário de Rondônia
COMIN - Conselho de Missão entre In-
dios/IECLB
CPI-RR - Comissão Pró-Indio de Roraima
CPI/SP - Comissão Pró-Indio deo
Paulo
CTI - Centro de Trabalho Indigenista
FUNDAÇÃO MATA VIRGEM
GTME - Grupo de Trabalho Missionário e
Evangélico
IAMA - Instituto de Antropologia e Meio
Ambiente
MARI - Grupo de Educação Indígena da
USP
MIS - Museu da Imagem e do Som
NDI - Núcleo de Direitos Indígenas
OPAN - Operação Anchieta
AGRADECIMENTOS:
Aldo lo Curto, Aloísio Cabalzar. André
Amaral de Toral, André Dusek, André Vil-
las Boas, Antonella Tassinari, António nuela Carneiro da Cunha, Márcio Santilli,
Afonso de Miranda, António Carlos Ma- Maria Aparecida Urbano, Maria Helena Or-
galhães, Celso Maldos, Cinemateca, Cláu- tolan Matos, Marta Azevedo, Maureen Bi-
dia Andujar, Columbia Filmes. Dominique silliat,e Silvia de Oxalá. Memorial da
T. Gallois, Eduardo Carrara, Fany Ricar- América Latina, Museu de Copenhague,
do, Flávio Giannini, Flora Dias, Francisco Museu do Homem, Nanmcy Flowers, Pai
Ramalho Jr., Guilherme Rangel, H.B. Fil- Doda de Ossaim, Paula Morgado Dias Lo-
mes Ltda, Heloísa Fenelon Costa, Herma- pes, Paulo Vanzolini, Reynaldo Stavale, Ri-
no Pena, Isaura de Oliveira Santos, Ivo zio Bruno Sant'ana, Ruth Monserrat, So-
Adolfo Fucker, Jaime Garcia Jr., Jerusa Pi- nia Salstein, Sylvia Caiuby Novaes,
res Ferreira, João Salvador Rodrigues, Jota Universidade de Brasília, Vagner Gonçal-
Barros, Jussara Gruber, Loretta Emihi, Ma- ves da Silva, Virgínia Valadão.
SOBRE OS AUTORES
Ana Maria de M. Belluzzo, Professora-
Doutora do Departamento de História da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
USP onde leciona História da Arte desde
1978. Mestre em Artes pela Escola de Co-
municações e Artes da USP com a tese
"Voltolino e as raízes do modernismo",
1981 e doutora pela FAU com o tema "Ar-
tesanato, Arte, Indústria", 1987. Foi cura-
dora da exposição "Walter Cordeiro", no
MAC/USP, e do módulo "Modernos" na
exposição "Tradição e Ruptura", na Bienal
deo Paulo. Organizou a coletânea Mo-
dernidade e as Vanguardas Artísticas na
América Latina (1990) e tem publicado
artigos de história e crítica de arte em re-
vistas especializadas. Dirigiu o Centro de
Documentação e Informação Artística da
SMCSP. Colaborou nos Conselhos do Mu-
seu de Arte Contemporânea da USP, Bie-
nal deo Paulo, FUNARTE e Bolsas VI-
TAE de Artes.
Aracy Lopes da Silva, doutora em Antro-
pologia Social pela Universidade deo
Paulo, onde leciona desde 1974, com pós-
-doutorado na Universidade de Harvard
(1988-89). Ex-presidente da Comissão
Pró-índio deo Paulo é atualmente coor-
denadora do MARI - Grupo de Educação
Indígena da USP. Fez pesquisa de campo
entre os Xavante e os Xerente do Brasil
Central e os Pataxó Hãhãhãi do sul da Ba-
hia. Suas publicações incluem estudos so-
bre estrutura social e mitologia, educação
escolar indígena e trabalhos de divulgação
científica sobre sociedades indígenas e sua
problemática atual destinados a crianças jo-
vens e não-índios e seus professores. E au-
tora do livro Nomes e Amigos: da práti-
ca Xavante a uma reflexão sobre os,
FFLCH-USP, 1986.
Berra Ribeiro, licenciada em Geografia e
História pela UERJ e doutora em Antro-
pologia Social pela USP. É Professor-
-adjunto do Museu Nacional/UFRJ e pro-
fessora do curso de pós-graduação em
Artes Visuais da Escola de Belas Ar-
tes/UFRJ. Sua área de especialização é et-
nologia indígena e, dentro desta, cultura
material, tecnoeconomia e etnoestética.
Publicou cerca de quarenta trabalhos, em
revistas especializadas e de divulgação cien-
tífica, e vários livros, destacando-se: Diá-
rio do Xingu, O índio na História do Bra-
sil, O índio na Cultura Brasileira,
Dicionário do Artesanato Indígena. Foi
coordenadora dos três volumes Etnobio-
logia, Tecnologia Indígena e Arte índia da
Suma Etnologia Brasileira. O último -
Amazónia Urgente, Cinco Séculos de
História e Ecologia - é o guia de uma ex-
posição do mesmo nome, laureado com
"Menção Honrosa" - Prémio Nacional de
Ecologia de 1989 - pelo CNPq.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho,
mestre em Direito Público pela UFPR e
professor de Direito Agrário e Ambiental
no Curso de Direito da PUC-PR. É pro-
curador do Estado do Paraná, ocupando
o cargo de Procurador Geral e diretor téc-
nico do Núcleo de Direitos Indígenas. É
membro da Junta Diretiva de ILSA - Insti-
tuto Latinoamericano de Serviços Legais
Alternativos (Colômbia), do comité
ICOMOS-BR, e da Comissão índios no
Brasil. Foi Secretário Municipal de Cultu-
ra de Curitiba no período de 1983-88. Pu-
blicou ensaios e artigos sobre direito, índios,
meio ambiente, património cultural e direi-
tos humanos.
Dominique Tilkin Gallois, Professora-
- Doutora do Departamento de Antropolo-
gia da Universidade deo Paulo. É pes-
quisadora colaboradora do Programa
Povos Indígenas no Brasil do Centro Ecu-
ménico de Documentação e Informação e
membro do Centro de Trabalho Indigenis-
ta. Entre 1983 e 1989 foi coordenadora
das atividades de organização, pesquisa e
divulgação das coleções etnográficas do
Acervo Plinio Ayrosa da USP. Tem orga-
nizado exposições etnográficas,
destacando-se a coordenação da mostra
"Kaa eté: Waiãpi, povo da floresta" e "Des-
cobrindo o Brasil: índios Tupi encontram
os brancos no Cuminapanema". Desenvol-
ve pesquisa etnológica entre os Waiãpi do
Amapá e os Tupi do Cuminapanema. Tem
trabalhos publicados sobre a história do
contato, a cosmologia e o xamanismo dos
povos indígenas da região Guiana Brasi-
leira. É autora do livro Migração, Guerra
e Comércio: os Waiãpi na Guiana,
FFLCH-USP, 1986.
Gerôncio Albuquerque Rocha, geólogo,
secretário geral da Coordenadoria Nacio-
nal dos Geólogos - CONAGE - e membro
do Conselho Diretor da Sociedade Brasi-
leira de Geologia. Organizou o livro Em
busca do ouro: garimpo e garimpeiro no
Brasil (CONAGE - Ed. Marco Zero, 1984).
É membro da Comissão índios no Brasil.
Isabelle Vidal Giannini, bióloga de forma-
ção. Fez mestrado em Antropologia na
USP tendo defendido a tese "A Ave Res-
gata: a impossibilidade da leveza do ser",
que ganhou o primeiro lugar do prémio
ABA/FORD - 1990 de melhor tese sobre
sociedades indígenas e meio-ambiente.
Realiza pesquisa entre os Xikrin do Cate-
té (Pará) desde 1983. E assessora dos ín-
dios no Convénio Xikrin - Cia. Vale do Rio
Doce. Atualmente desenvolve trabalho de
manejo sustentável, financiado pelo Fun-
do do Meio Ambiente/SEMAN (Secreta-
ria do Meio Ambiente) na área Xikrin do
Cateté, tendo como objetivo a auto-
-sustentação deste povo. E colaboradora do
Programa Povos Indígenas no Brasil do
Centro Ecuménico de Documentação e In-
formação. É membro-fundadora do MA-
RI - Grupo de Educação Indígena, onde
assessora diretamente grupos indígenas na
formulação de currículos diferenciados.
John Manuel Monteiro, doutor em His-
tória pela Universidade de Chicago, é pes-
quisador visitante do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento (CEBRAP) e pre-
sidente da Associação Nacional de Profes-
sores Universitários de História (Núcleo Re-
gional deo Paulo). Vinculado ao Núcleo
de História Indígena e do Indigenismo da
USP desde seu início, coordena o Projeto
"Guia de Fontes para a História Indígena
em Arquivos Brasileiros", com o objetivo
de cadastrar e descrever os principais acer-
vos de todas as capitais do país. E compi-
lador das bibliografias básicas América La-
tina Colonial (com Francisco Moscoso) e
A Escravidão na América Latina e no
Caribe (com Horácio Gutiérrez). Publicou
diversos trabalhos sobre a presença e o pa-
pel das sociedades indígenas na história do
Brasil.
Laymert Garcia dos Santos, jornalista,
professor na Universidade Estadual de
Campinas. Atualmente faz pós-doutorado
na Universidade de Oxford na Inglaterra.
Publicou Desregulagem e Alienação e
Capitalismo (Brasiliense), Tempo de En-
saio (Companhia das Letras) e artigos em
revistas especializadas e jornais. É secre-
tário geral da Comissão índios no Brasil.
Lúcia Bettencourt, formada em Português
e Literaturas pela UFRJ. Atualmente está
filiada a "Yale University", onde já obteve
o título de Mestre e agora completa seu
Ph.D. Além de ensinar Português em "Ya-
le", fez várias conferências em universida-
des americanas, tais como "Trinity Colle-
ge" e "Louisiana State University". Também
foi convidada a participar de seminário in-
ternacional na Universidade do Minho em
Portugal e a apresentar seus trabalhos no
"New England Modem Language Associa-
tion" e em solenidades comemorativas do
ensino bi-lingue do sistema escolar da ci-
dade de Bridgeport, em Connecticut, EUA.
Dedica-se atualmente ao estudo compa-
rativo das literaturas do continente ameri-
cano. Sua tese concentra-se na importân-
cia do banquete como metáfora nas
literaturas brasileiras e latino-americanas.
Lúcia Hussak van Velthem, pesquisado-
ra do Museu Paraense Emilio Goeldi des-
de 1975 e curadora do acervo etnográfi-
co dessa instituição. Graduada em
Museologia, recebeu em 1984 o título de
Mestre em Antropologia Social pela Uni-
versidade deo Paulo com a dissertação
"A pele de tulupere: estudo dos traçados
Wayana-Apalai". Realiza pesquisa entre os
Wayana, povo de língua karib do norte do
Pará, desde 1975, e tem como interesse
central os estudos de cultura material e et-
noestética, com ênfase especial nos moti-
vos decorativos. Desenvolve para tese de
doutoramento um projeto que tem como
tema as representações Wayana da cultu-
ra material.
Luís Donisete Benzi Grupioni, aluno de
Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade deo Paulo e membro do
MARI - Grupo de Educação Indígena. Foi
pesquisador no Acervo Plinio Ayrosa da
USP, quando realizou pesquisa de campo
sobre a cultura material dos índios Bororó
no Mato Grosso. Atualmente coleta dados
para sua tese sobre o início da etnologia
indígena no Brasil e paralelamente pesqui-
sa entre os índios Tupi isolados do rio Cu-
minapanema no Pará. Tem organizado ex-
posições etnográficas e mostras de
fotografias sobre os índios, entre as quais
destacam-se "Os Bororó: quando a vida
passa pela morte" e "Descobrindo o Bra-
sil: índios Tupi encontram os brancos no
Cuminapanema" Assessora o Projeto 500
Anos da Secretaria Municipal de Cultura
deo Paulo desde 1991.
Lux Boelitz Vidal estudou na França, Es-
panha e Estados Unidos, onde obteve o
título de Bachelor of Arts em Filosofia, An-
tropologia e Teatro. Foi professora no Li-
ceu Pasteur e desde 1969 é professora do
Departamento de Antropologia da Univer-
sidade deo Paulo, onde obteve os títu-
los de Mestre e Doutor. Foi responsável pe-
lo Acervo Plinio Ayrosa, tendo organizado
várias exposições etnográficas. Tem como
áreas de interesse a teoria antropológica,
os índios do Brasil e a etnoestética. É mem-
bro do Conselho da Comissão Pró-lndio
deo Paulo e assessora os índios Kayapó-
-Xikrin do Cateté e do Bacajá. Desenvol-
ve pesquisa entre os Kayapó e os povos
da bacia do Uaça, Oiapoque , Amapá. E
autora do livro Morte e Vida de uma So-
ciedade Indígena Brasileira, organizadora
do livro Grafismo Indígena: Estudo de
Antropologia Estética e de vários artigos
e capítulos de livros sobre assuntos ligados
à etnologia brasileira e política indigenis-
ta. E membro da Comissão índios no
Brasil.
Maria Sylvia Porto Alegre, graduada em
Ciências Sociais e doutora em Antropolo-
gia pela Universidade deo Paulo. Iniciou
seus estudos de campo em 1976, entre os
artistas e artesãos do nordeste.
Aprofundou-se na pesquisa sobre as ori-
gens do artesanato brasileiro e do trabalho
livre, no Arquivo Histórico Ultramarino de
Lisboa e na Universidade de Barcelona,
onde foi pesquisadora visitante em
1983-1984. Desses estudos resultou sua te-
se de doutoramento, defendida na USP em
1988. Em 1989 foi bolsista de pós-
-doutorado no Instituto Latino-Americano
da Universidade Livre de Berlim. É auto-
ra de estudos sobre trabalho indígena, ico-
nografia e representações étnicas, relações
interétnicas e fontes arquivísticas para a his-
tória indígena. Desde 1975 é professora do
Departamento de Ciências Sociais e do
Mestrado de Sociologia da Universidade
Federal do Ceará.
Marilena Chaui, professora titular de His-
tória da Filosofia Moderna e Filosofia Po-
lítica da Universidade deo Paulo;
membro-fundador do Centro de Estudos
de Cultura Contemporânea (CEDEC) e da
Association des Amis de Spinoza (Paris).
Publicou: O que é Ideologia, Apontamen-
tos para uma crítica da Ação Integralista
Brasileira, Cultura e Democracia, Da
Realidade sem Mistérios ao Mistério do
Mundo: Espinosa, Voltaire, Merleau-
-Ponty, Conformismo e Resistência - No-
tas sobre a Cultura Popular, Repressão
Sexual Esta Nossa (Des) Conhecida, Se-
minários sobre o Nacional e o Popular
na Cultura, e diversos artigos sobre aspec-
tos da história da filosofia, teoria política
e política brasileira. E membro-fundador do
Partido dos Trabalhadores e Secretária Mu-
nicipal de Cultura na gestão da prefeita Lui-
za Erundina de Sousa.
Ornar Ribeiro Thomaz, aluno de Pós-
-Graduação em Antropologia Social da
Universidade deo Paulo, bolsista do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamen-
to (CEBRAP) e pesquisador do Grupo de
Estudos do V Centenário (USP). Forma-
do em História e Geografia com especiali-
zação em História da Arte na Universida-
de de Barcelona, realizou pesquisa de
campo em áreas urbanas da Guiné-Bissau.
Atualmente desenvolve pesquisa para a
sua dissertação de mestrado sobre a "Ques-
o Africana" no discurso político salaza-
rista e o luso-tropicalismo de Gilberto Frey-
re. É secretário-editorial da revista
Cadernos de Campo (Revista dos alunos
de pós-graduação em Antropologia Social
da USP).
Priscila Dulce Dalledone Siqueira, jor-
nalista profissional trabalhando, atualmen-
te, na Agência Estado. Como correspon-
dente desta agência no litoral norte paulista
e sul fluminense, especializou-se em assun-
tos ligados ao Meio Ambiente, comunida-
des tradicionais e na questão indígena. E
membro-fundador da SOS Mata Atlânti-
ca, fazendo parte de seu Conselho Admi-
nistrativo. Também ajudou a fundar o Mo-
vimento de Preservação deo Sebastião
- Mopress - participando de sua atual di-
retoria. De 1988 a 1990 editou a Revista
Mulher Libertação. Ganhou o Prémio Clu-
be de Criação deo Paulo, 1986, pela
série publicada no Jornal da Tarde, intitu-
lada "Terra à vista ou Terra a prazo", sobre
as ilhas e ilhéus do litoral paulista. Foi en-
viada especial da A.E. para os assuntos re-
lacionados à questão indígena nos even-
tos ligados à Rio 92. É autora do livro
Genocídio dos Caiçaras e de vários arti-
gos sobre a responsabilidde da Imprensa
na divulgação das lutas das minorias em
nosso país. É membro da Comissão índios
no Brasil.
Ruth Maria Fonini Montserrat, linguista,
mestre em Ciências Filológicas pela Uni-
versidade da Amizade dos Povos Patrice
Lumumba, de Moscou e professor adjun-
to da Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro. Ex-bolsista-pesquisadora do Conse-
lho de Pesquisa para Graduados (CPEG)
da UFRJ e do CNPq. Tem trabalhos reali-
zados, publicados e/ou apresentados em
congressos, sobre várias línguas indígenas
brasileiras: Aweti (Tupi), Kulína (Arawá),
Mundurukú (Tupi), Botocudo (Macro-Jê),
Yamamadí (Arawá), Myky (isolada). Suruí
Mudjetíre. Asurini do Xingu e Parakanã
(Tupi-Guarani), Cinta Larga, Suruíe Zoró
(Tupi Monde), além de estudos de tipolo-
gia diacrônica das línguas Tupi (hierarquia
referencial, classes lexicais, ergatividade).
Organizou o livro A Conquista da Escri-
ta (OPAN/Iluminuras). E assessora e con-
sultora linguística de vários projetos de edu-
cação escolar indígena, no Mato Grosso,
Rondônia e Mato Grosso do Sul. Atual-
mente é coordenadora do Seminário Per-
manente de Educação e Estudos Indíge-
nas (Sepeei) da Faculdade de Letras da
UFRJ.
Washington Novaes, bacharel pela Facul-
dade de Direito da Universidade deo
Paulo. Trabalhou nos principais jornais (Fo-
lha deo Paulo, O Estado deo Pau-
lo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã,
O Jornal, entre outros) e revistas brasilei-
ras (Veja e Visão). Foi editor-chefe de Te-
lejornalismo da TV Rio e do Globo Repór-
ter, além de editor do Jornal Nacional.
Como produtor independente, dirigiu as
séries Xingu, Kuarup e Os Caminhos da
Sobrevivência, para a TV Manchete, que
receberam vários prémios internacionais e
nacionais. Xingu foi ainda sala especial na
Bienal de Veneza (1985). Autor de vários
livros (Xingu - uma flecha no coração, A
quem pertence a informação, Xingu (edi-
ção Olivetti) e co-autor de outros, recebeu
o Prémio Rei de Espanha, pelo conjunto
da obra, e Golfinho de Ouro, pela obra em
televisão. Dirigiu ainda 14 documentários
sobre o Centro Oeste para a TV Brasil Cen-
tral de Goiânia.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo