Download PDF
ads:
À Margem da História, de Euclides da Cunha
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Coletivo Euclidiano <http://berrante.webjump.com>
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações
acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <[email protected]>.
Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quer
ajudar de alguma forma, mande um e-mail para <parceiros@futuro.usp.br> ou
À MARGEM DA HISTÓRIA
Euclides da Cunha
Introdução
Foi Coelho Neto, grande amigo de Euclides, que o induziu a editar seus livros na Editôra Lello, de Portugal. O
êxito editorial do autor de Livro de Prata (pelo assunto e pelo estilo) o animou a aconselhar seu colega da
Academia à prestigiosa casa do Pôrto.
A morte inesperada de Euclides, porém, as naturais dificuldades para os necessários contactos com editôres e a
falta de afinidade dos portuguêses com a temática euclidiana fizeram com que as seguintes edições de
Contrastes e Confrontos e À Margem da História se epaçassem cada vez mais e não tivessem a indispensável
assistência direta do Autor, ou de revisores afetios à matéria.
À Margem da História (obra póstuma que só saiu um mês após a morte do escritor) vem em sua 1&ordf; edição
- provàvelmente pela falta de uma revisão final de Euclides - eivada de erros e descuidos. Graças ao zêlo de seus
editôres, as ediçòes seguintes se apresentam mais corretas e melhor revistas.
Sendo crescente entre nós o interêsse pela obra euclidiana e dada a importância dos livros para a perfeita
compreensão da problemática do Autor, impunha-se fôssem eles editados entre nós, na nossa ortografia e sob
nosso cuidados revisórios.
Graças aos entendimentos da Editôra Lello Brasileira, de São Paulo, conseguindo autorização da Editôra Lello,
do Pôrto, e com o estabelecimento de textos feito pelo Sr. Dermal Monfré, temos agora (como iniciativa da
editôra nacional em comemoração ao Ano Euclidiano) os dois livros editados no Brasil.
À Margem da História compõe-se de quatro partes: Na Amazônia, Terra Sem História (7 capítulos, sôbre essa
região), Vários Estudos (3 capítulos, assuntos americanos), Da Independência à República (ensaio histórico) e
Estrêlas Indecifráveis (crônica).
O livro apresenta, bem nítidas, quatro constantes da personalidade cultural de Euclides: o cultor da língua e
verdadeiro esteta da linguagem, o ensaísta e o humanista brasileiro.
Não há preciosismo no falar euclidiano; há, sim, o rigorismo da palavra exata. Seu vocabulário riquíssimo,
técnico e profissional quando necessário, era-lhe o instrumento próprio para captar tôdas as sutilezas da
realidade e expor o logicismo de seu raciocínio de investigador e a lucidez do intérprete.
Nas palavras densas, carregadas de emoções e evocações, dispostas numa estruturação sintática de ritmo
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
veemente, que se torna frêmito de vida e poesia, temos a própria autenticidade de Euclides, numa linguagem que
é bem tropicalmente brasileira, no transbordamento fenomenológico de formas, sons, calor e luz. Se nOs
Sertões êle foi mais improvisado e por isso mais grandiloqüente e espetacular, agora ei-lo mais equilíbrio e
maturidade. O capítulo Judas Ahsverus (que nasceu inteiriço como um bloco de beleza) continua sendo uma das
melhores páginas da língua portuguêsa.
O espírito científico de Euclides, sempre estudando e sumariando os assuntos (formado na juventude conforme
o espírito da época), dado a hipóteses e prefigurações muitas vêzes discutíveis, extravasa-se na insopitável
vocação ao ensaísmo, exigindo-lhe conhecimentos e pesquisas, para que se torne mais lúcido, mais penetrante,
melhor intérprete. Por isso achamos que há necessidade de uma iniciação cultural para se sentir e compreender
Euclides. Não estranhamos ser êle um escritor pouco popular. Sua irrefreável tendência à interpretação
fisiológica dos fenômenos naturais mostra-se através de uma vibração romântica e idealística, fazendo surgir,
dos algarismos e teorias, sua figura inigualável de artista.
Euclides é inesgotável. Por mais que se queira defini-lo e caracterizá-lo, ainda se descobrem novas veredas e
magníficas perspectivas que escaparam à delimitação...
Seu tema central é a pátria e a gente brasileira. N’Os Sertões o objetivo último é o homem; n"Amazonia, o tema
principal é a terra.
Seu nacionalismo mais se prende à preocupação do bem comum e da denúncia das estruturas desequilibradas de
nossa sociedade. Já de algum tempo era sua intenção escrever um "segundo livro vingador". Deveria referir-se à
Amazônia, acusando os descasos pela terra e o desprêzo pelo homem.
Deveria chamar-se Paraíso Perdido.
Não o completou, porém, e alguns de seus capítulos constituem a Terra Sem História, que abre êste volume.
São, no entender de alguns euclidianos, as mais expressivas e belas páginas de Euclides.
Quando, em 1904, escreveu a José Veríssimo sôbre sua ida ao Acre (como Chefe da Comissão de
Reconhecimento das Nascentes do Rio Purus) confessa o intento: "Aquelas paragens, hoje, depois dos últimos
movimentos diplomáticos, estão como o Amazonas antes de Tavares Bastos; se eu não tenho a visão admirável
dêste, tenho o seu mesmo anelo de revelar os prodígios da nossa terra".
Seu desejo era mostrar os aspectos físicos e as riquezas essenciais da exuberante região.
"Além disso, se as nações estrangeiras mandam cientistas ao Brasil, que absurdo haverá no encarregar-se de
idêntico objetivo um brasileiro?"
O grande rio teve o intérprete à altura.
Conhecerá melhor a Amazônia aquêle que ler as páginas de Terra Sem História. Não é sòmente a geografia
descritiva que o empolga; são suas transfigurações no tempo.
O mesmo crítico da caatinga, d’Os Sertões, é aqui o arrebatado revelador do sistema hidrográfico da (ainda
hoje) desordenada região. E se o sertanejo é antes de tudo um forte, o seringueiro, é um tipo de lutador
excepcional. Devido, porém, ao egoísmo desenfreado dos patrões opulentos, o homem ali "trabalha para
escravizar-se".
Se n’Os Sertões a denúncia fica mais como um alerta, aqui Euclides é mais objetivo e recomenda leis
trabalhistas (isso em 1906...) para que "salvemos aquela sociedade obscura e abandonada".
Enquanto Contrastes e Confrontos está recheado de estudos e ensaios que são o desdobramento ou a
complementação d’Os Sertões, êste outro em nada a êles se assemelha, a não ser pelo mesmo tema da integração
nacional - através da penetração na Amazônia - e o mesmo desvêlo pelo sofrido homem de nossa pátria, o que
faz de Euclides da Cunha um dos primeiros e mais ardorosos cultores do humanismo brasileiro.
Continuam aqui suas preocupações e seus interêsses pelos problemas americanos, principalmente os referentes à
América do Sul. Isso em 1904. Se os tivéssemos acompanhado e estudado com igual dedicação e cuidado, hoje
teríamos uma alinaça latino-americana melhor e mais eficientemente estruturada e, conseqüentemente, uma vida
ads:
econômica e social mais condinzente com nossas possibilidades e riquezas.
O historiador Euclides tem, no esbôço Da Independência à República, um ensaio cuja leitura deve ser
obrigatória mesmo para os especialistas no assunto. É lúcido e original na interpretação do evoluir de nosso
processo histórico-social.
O livro termina com um capítulo que parece chamar a atenção para os céus indecifráveis, assunto que hoje seria
o ponto alto das pesquisas científicas, nas penetrações espaciais. É poesia, ciência e confissão do agnóstico
diante do infinito desconhecido e sua ânsia de decifrá-lo...
Os euclidianos brasileiros, exultantes, muito têm a agradecer à Lello Brasileira S.A., pelo retôrno dêstes dois
filhos pródigos...
Oswaldo Galotti
Grêmio Euclides da Cunha, de São José do Rio Pardo
I Parte
Na Amazônia, Terra Sem História
Impressões Gerais
Ao revés da admiração ou do entusiasmo, o que nos sobressalteia geralmente, diante do Amazonas, no
desembocar do dédalo florido do Tajapuru, aberto em cheio para o grande rio, é antes um desapontamento. A
massa de águas é, certo, sem par, capaz daquele terror a que se refere Wallace; mas como todos nós desde mui
cedo gizamos um Amazonas ideal, mercê das páginas singularmente líricas dos não sei quantos viajantes que
desde Humboldt até hoje contemplaram a hiléia prodigiosa, com um espanto quase religioso - sucede um caso
vulgar de psicologia: ao defrontarmos o Amazonas real, vemo-lo inferior à imagem subjetiva há longo tempo
prefigurada. Além disto, sob o conceito estritamente artístico, isto é, como um trecho da terra desabrochando em
imagens capazes de se fundirem harmoniosamente na síntese de uma impressão empolgante, é de todo em todo
inferior a um sem número de outros lugares do nosso país. Tôda a Amazônia, sob êste aspecto, não vale o
segmento do litoral que vai de Cabo Frio à Ponta do Munduba.
É sem dúvida, o maior quadro da Terra; porém chatamente rebatido num plano horizontal que mal alevantam de
uma banda, à feição de restos de uma enorme moldura que se quebrou, as serranias de arenito de Monte Alegre
e as serras graníticas das Guianas. E como lhe falta a linha vertical, preexcelente na movimentação da paisagem,
em poucas horas o observador cede às fadigas de monotonia inaturável e sente que o seu olhar,
inexplicàvelmente, se abrevia nos sem-fins daqueles horizontes vazios e indefinidos como o dos mares.
***
A impressão dominante que tive, e talvez correspondente a uma verdade positiva, é esta: o homem, ali, é ainda
um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido - quando a natureza ainda estava arrumando o
seu mais vasto e luxuoso salão. E encontrou uma opulenta desordem... Os mesmos rios ainda não se firmaram
nos leitos; parecem tatear uma situação de equilíbrio derivando, divagantes, em meandros instáveis, contorcidos
sem "sacados", cujos istmos a reveses se rompem e se soldam numa desesperadora formação de ilhas e de lagos
de seis meses, e até criando formas topográficas novas em que êstes dois aspectos se confundem; ou
expandindo-se em "furos" que se anastomosam, reticulados e de todo incaracterísticos, sem que se saiba se tudo
aquilo é bem uma bacia fluvial ou um mar profusamente retalhado de estreitos.
Depois de uma única enchente se desmancham os trabalhos de um hidrógrafo.
A flora ostenta a mesma imperfeita grandeza. Nos meios-dias silenciosos - porque as noites são fantàsticamente
ruidosas -, quem segue pela mata, vai com a vista embotada no verde-negro das fôlhas; e ao deparar, de instante
em instante, os fetos arborescentes emparelhando na altura com as palmeiras, e as árvores de troncos reilíneos e
paupérrimos de flôres, tem a sensação angustiosa de um recuo às mais remotas idades, como se rompesse os
recessos de uma daquelas mudas florestas carboníferas desvendadas pela visão retrospectiva dos geólogos.
Completa-a, ainda sob esta forma antiga, a fauna singular e monstruosa, onde imperam, pela corpulência, os
anfíbios, o que é ainda uma impressão paleozóica. E quem segue pelos longos rios, não raro encontra as formas
animais que existem, imperfeitamente, como tipos abstratos ou simples elos da escala evolutiva. A "cigana"
desprezível, por ex., que se empoleira nos galhos flexíveis das oiranas, trazendo ainda na asa de vôo curto a
garra do réptil...
Destarte a natureza é portentosa, mas incompleta. É uma construção estupenda a que falta tôda a decoração
interior. Compreende-se bem isto: a Amazônia é talvez a terra mais nova do mundo, consoante as conhecidas
induções de Wallace e Frederico Hartt. Nasceu da última convulsão geogênica que sublevou os Andes, e mal
ultimou o seu processo evolutivo com as várzes quaternárias que se estão formando e lhe preponderam na
topografia instável.
Tem tudo e falta-lhe tudo, porque lhe falta êsse encadeamento de fenômenos desdobrados num ritmo vigoroso,
de onde ressaltam, nítidas, as verdades da arte e da ciência - e que é como que a grande lógica inconsciente das
coisas.
Daí esta singularidade: é de tôda a América a paragem mais perlustrada dos sábios e é a menos conhecida. De
Humboldt a Em. Goeldi - do alvorar do século passado aos nossos dias, perquirem-na, ansiosos, todos os eleitos.
Pois bem, lêde-os. Vereis que nenhum deixou a calha principal do grande vale; e que ali mesmo cada um se
acolheu, deslumbrado, no recanto de uma especialidade. Wallace, Mawe, W. Edwards, d’Orbigny, Martius,
Bates, Agassiz, para citar os que me acodem na primeira linha, reduziram-se a geniais escrevedores de
monografias.
A literatura científica amazônica, amplíssima, reflete bem a fisiografia amazônica: é surpreendente,
preciosíssima, desconexa. Quem quer que se abalance a deletreá-la, ficará, ao cabo dêsse esforço, bem cpouco
além do limiar de um mundo maravilhoso.
Há uma frase do Professor Frederico Hartt que delata bem o delíquio dos mais robustos espíritos diante daquela
enormidade. Êle estudava a geologia do Amazonas quando em dado momento se encontrou tão despeado das
concisas fórmulas científicas e tão alcandorado no sonho, que teve de colhêr, de súbito, tôdas as velas à fantasia:
- "Não sou poeta. Falo a prosa da minha ciência. Revenons!"
Escreveu; e encarrilhou-se nas deduções rigorosas. Mas decorridas duas páginas não se forrou a novos
arrebatamentos e reincidiu no enlêvo... É que o grande rio, malgrado a sua monotonia soberana, evoca em tanta
maneira o maravilhoso, que empolga por igual o cronista ingênuo, o aventureiro romântico e o sábio precavido.
As "amazonas" de Orellana, os titânicos curriquerês de Guillaume de L’Isle e a Mana del Dorado de Walter
Raleigh, formando no passado um tão deslumbrante ciclo quase mitológico, acolchetam-se em nossos dias às
mais imaginosas hipóteses da ciência. Há uma hipertrofia da imaginação no ajustar-se ao desconforme da terra,
desequilibrando-se a mais sólida mentalidade que lhe balanceie a grandeza. Daí, no próprio terreno das
indagações objetivas, as visões de Humboldt e a série de conjeturas em que se retravam, ou contrastam, todos os
conceitos, desde a dinâmica de terremotos de Russell Wallace ao bíblico formidável das galerias pré-diluvianas
de Agassiz.
Parece que ali a imponência dos problemas implica o discurso vagaroso das análises: às induções avantajam-se
demasiado os lances da fantasia. As verdades desfecham em hipérboles. E figura-se alguma vez em idealizar
aforrado o que ressai nos elementos tangíveis da realidade surpreendedora, por maneira que o sonhador mais
desensofrido se encontre bem na parceria dos sábios deslumbrados.
Vai-se, por ex., com Fred. Katzer a seriar, a escandir e aconfrontar velhíssimos petrefactos ou graptólitos numa
longa romaria ideal pelos mais remotos pontos nas mais remotas idades - largo tempo, a debater-se entre as
classificações maciças, a enredar-se na trama das raízes gregas das nomenclaturas bravias - e de improviso, os
dizeres da ciência desfecham num quase idealismo: as análises rematam-nas prodígios; as vistas abreviadas nos
microscópios desapertam-se no descortino de um passado muitas vêzes milenário; e esboçados os contornos
estupendos de uma geografia morta, alonga-se-lhe aos olhos a perspectiva indefinida daquele extinto oceano
médio-devônico que afogava todo o Mato Grosso e a Bolívia, cobrindo quase tôda a América meridional e
chofrando no levante as antiqüíssimas arribas de Goiás, últimos litorais do continente brasilio-etiópico que
aterrava o Atlântico indo abranger a África... Segue-se com os naturalistas da Comissão Morgan, e a história
geológica, a despeito de linhas mais seguras, não perde o traço grandioso, desenvolvendo-se às duas margens do
largo canal terciário que por longo tempo separou os planaltos brasileiros e os das Guianas, até que o vagaroso
sublevar dos Andes, no Ocidente, serrando-lhe um dos extremos, o transmudasse em golfo, em estuário, em rio.
Ao cabo, ainda atendo-se aos fatos atuais da fisiografia amazônica, restam outros agentes nímio perturbadores
da fria serenidade das observações científicas.
* * *
Basta mostrar-se de relance que, ainda nos casos mais simples, há no Amazonas um flagrante desvio do
processo ordinário da evolução das formas topográficas.
Em tôda a parte a terra é um bloco onde se exercita a molduragem dos agentes externos entre os quais os
grandes rios se erigem como principais fatôres, no lhe remodelarem os acidentes naturais, suavizando-lhos.
Compensando a degradação das vertentes com o alteamento dos vales, correndo montanhas e edificando
planuras, êles vão em geral entrelaçando as açòes destrutivas e reconstrutoras, de modo que as paisagens, lento e
lento transfiguradas, reflitam os efeitos de uma estatuária portentosa.
Assim o Hoang-Ho aumentou a China com um delta, que é uma província nova; e, ainda mais expressivo, o
Mississipi assombra o naturalista, com a expansão secular do atêrro desmedido que em breve chegará às bordas
da profundura onde se encaixa o Gulf-Stream. Nas suas águas barrentas andam os continentes dissolvidos.
Mudam-se países. Deconstituem-se territórios. E há um encadeamento tão lógico nos seus esforços contínuos,
onde incidem as grandes energias naturais, que o acompanhá-los implica algumas vêzes o acompanhar-se o
próprio rumo de um aspecto qualquer da atividade humana: das páginas de Herôdoto às de Maspéro, contempla-
se a gênese de uma civilização de par com a de um delta; e o paralelismo é tão exato, que se justificam os
exageros dos que, a exemplo de Metchnikoff, vêem nos grandes rios a causa preeminente do desenvolvimento
das nações.
Ao passo que no Amazonas, o contrário. O que nêle se destaca é a função destruidora, exclusiva. A enorme
caudal está destruindo a terra. O Professor Hartt, impressionado ante as suas águas sempre barrentas, calculou
que "se sôbre uma linha férrea corresse dia e noite, sem parar, um trem contínuo carregado de tijuco e areias,
esta enorme quantidade de materiais seria ainda menor do que a de fato é transportada pelas águas..."
Mas tôda esta massa de terras diluídas não se regenera. O maior dos rios não tem delta. A Ilha de Marajó,
constituída por uma flora seletiva, de vegetais afeitos ao meio maremático e ao inconsistente da vasa, é uma
miragem de território. Se a despissem, ficariam só as superfícies rasadas dos "mondongos" empantanados,
apagando-se no nivelamento das águas; ou, salteadamente, algumas pontas de fragueados de arenito endurecido,
esparsas, a êsmo, na amplidão de uma baía. À luz das deduções rigorosas de Walter Bates, comprovando as
conjeturas anteriores de Martius, o que ali está sob o disfarce das matas, é uma ruína: restos desmantelados do
continente, que outrora se estirava, unido, das costas de Belém às de Macapá - e que se tem de restaurar,
hipotèticamente, em passado longínquo, para explicar-se a identidade das faunas terrestres, hoje separadas pelo
rio, do Norte do Brasil e das Guianas.
O Amazonas, entretanto, poderia reconstruí-lo em pouco tempo, com os só 3.000.000 de metros cúbicos de
sedimentos, que carrega em vinte e quatro horas. Mas dissipa-os. A sua corrente túrbida, adensada nos últimos
lances de seu itinerário de 6.000 milhas, com os desmontes dos litorais, que dia a dia se desbarrancam, fazendo
recuar a costa que se desenrola desde o Paru ao Araguari, decanta-se tôda no Atlântico. E os resíduos das ilhas
demolidas - entre as quais a de Caviana que lhe foi antiga barragem e se bipartiu no correr de nossa vida
histórica - vão cada vez mais delindo-se e desaparecendo, no permanente assalto daquelas correntezas
poderosas. Destarte, desafoga-se mais e mais a desembocadura principal da grande artéria e acentua-se o seu
desvio para o norte, com o abandono contínuo das paragens que lhe demoram a leste e sôbre as quais êle passou
outrora, deixando ainda, nas áreas recém-desvendadas dos brejos marajoaras, um atestado tangível daquele
deslocamento lateral do leito, que tem dado aos geólogos inexpertos a ilusão de um levantamento ou de uma
reconstrução da terra.
Porque, na realidade, esta se reconstitui mui longe das nossas plagas. Neste ponto, o rio, que sôbre todos desafia
o nosso lirismo patriótico, é o menos brasileiro dos rios. É um estranho adversário, entregue dia e noite à faina
de solapar a sua própria terra. Herbert Smith, iludido ante a poderosa massa de águas barrentas, que o viajente
vê em pleno Oceano antes de ver o Brasil, imaginou-lhe uma tarefa portentosa: a construção de um continente.
Explicou: depondo-se aquêles sedimentos do fundo tranqüilo do Atlântico, novas terras aflorariam nas vagas e
ao cabo de um esfôrço milenário encher-se-ia o golfão aberto, que se arqueia do Cabo Orange à Ponta do
Gurupi, dilatando-se desta sorte, consideràvelmente, para nordeste, as terras paraenses.
The king is building his monument! bradou o naturalista encantado e acomodando às ásperas sílabas britânicas
um rapto fantasista capaz de surpreender à mais ensofregada alma latina. Esqueceu-lhe, porém, que aquêle
originalíssimo sistema hidrográfico não acaba com a terra, ao transpor o Cabo Norte; senão que vai, sem
margens, pelo mar dentro, em busca da corrente equatorial, onde aflui, entregando-lhe todo aquêle plasma
gerador de território. Os seus materiais, distribuídos pelo imenso rio pelásgico que se prolonga com o Gulf-
Stream, vão concentrando-se e surgindo a flux, espaçadamente, nas mais longínquas zonas: a partir das costas
das Guianas, cujas lagunas, a começar no Amapá, a mais e mais se dessecam avançando em planuras de estepes
pelo mar em fora, até aos litorais norte-americanos, da Geórgia e das Carolinas, que se dilatam sem que lhes
expliquem o crescer contínuo os breves cursos d’água das vertentes orientais dos Aleganis.
Naqueles lugares, o brasileiro salta: é estrangeiro, e está pisando em terras brasileiras. Antolha-se-lhe um contra-
senso pasmoso: à ficção de direito estabelecendo por vêzes a extraterritorialidade, que é a pátria sem a terra,
contrapõe-se uma outra, rudemente física: a terra sem a pátria. É o efeito maravilhoso de uma espécie de
imigração telúrica. A terra abandona o homem. Vai em busca de outras latitudes. E o Amazonas, nesse construir
o seu verdadeiro delta em zonas tão remotas do outro hemisfério, traduz, de fato, a viagem incógnita de um
território em marcha, mudando-se pelos tempos adiante, sem parar um segundo, e tornando cada vez menores,
num desgastamento ininterrupto, as largas superfícies que atravessa.
Não se lhe apontam formações duradouras, ou fixas. Por vêzes, nas arqueaduras de seus canais remansam-se as
águas fazendo que se deponham os sedimentos conduzidos e as sementes que acarretam. Então as faculdades
criadoras do rio despontam supreendedoramente. O baixio prestes recém-formado e aflorando à superfície,
delineia-se, em contornos indecisos; define-se logo, vivamente; dilata-se e ascende, bombeando levemente nas
águas; e na ilha que se gera, crescendo e articulando-se a olhos vistos, apontoada de cabuchos, que se alongam e
se retorcem à superfície à maneira de tentáculos de um prodigioso organismo - desencadeia-se para logo a luta
das espécies vegetais tão viva e tão dramática que nem lhe faltam no baralhamento dos colmos, das hastes ou
das ramagens revôltas, estirando-se, enredando e confundindo-se, todos os movimentos convulsivos de uma
enorme batalha sem ruídos: dos aningais, que consolidam o tijuco inconsistente com a infibratura dos risomas
estirados; aos mangues, que os suplantam e repelem para as bordas, em violentos e tumultuários bracejos; aos
javaris altaneiros, que por sua vez recalcam os últimos expelindo-os para as margens apauladas, e senhoreando
os tesos consistentes...
Assim se erigiu recentemente a Ilha de Cururu, com dois km&sup2; de área; e se reconstróem tôdas as que se
observam acima dos canais de Breves.
Mas formam-se para se destruírem, ou desocarem-se incessantemente. As ilhas trabalhadas pelas mesmas
correntes que as geraram, desbarrancam-se a montante e restauram-se a jusante, e vão lento e lento derivando rio
abaixo, ao modo de monstruosos pontões desmastreados, de longas proas abatidas e pôpas altas, a navegarem
dia e noite com velocidade insensível. Por fim, desgastam-se e acabam. A de Urucurituba durou dez anos (1840-
1850) mercê da superfície vastíssima; e apagou-se numa enchente...
O mesmo fato, nas margens. Os litorais do Amazonas mal lhe definem a calha desmedida. São margens que
evitam o rio. Ficam-lhe, normalmente, fora das águas, para além das vastas planuras salpintadas de "lagos de
terra firme", que atenuam, feito compensadores, a violência das caudais, nas cheias. Aí, num cenário mais
amplo, se desdobra por vêzes a aparência de uma construção, em larga escala, de solo. O rio, multífluo nas
grandes enchentes, vinga as ribanceiras e desafoga-se nos plainos desimpedidos. Desarraíga florestas inteiras,
atulhando de troncos e esgalhos as depressões numerosas da várzes; e nos remansos das planícies inundadas,
decantam-se-lhe as águas carregadas de detritos, numa colmatagem plenamente generalizada. Baixam as águas e
nota-se que o terreno cresceu; e alteia-se de cheia em cheia, aprumando-se as "barreiras" altas, exsicando-se os
pantanais e "igapós", esboçando-se os "firmes" ondeantes, para logo invadidos da flora triunfal... até que num
assalto, de enchente, todo êsse delta lateral se abata.
Numa só noite (29 de julho de 1866) as "terras caídas" da margem esquerda do Amazonas desmoronaram numa
linha contínua de cinqüenta léguas.
É o processo antigo, invariável - patenteando-se ainda no diminuto raio da nossa história. As ribanceiras a pique
da antiga costa do Paru, onde apareceram aos condutícios de Orellana as amazonas lendárias, reduzem-se hoje a
um baixio degredado, visível apenas nas vazantes excessivas.
A inconstância tumultuária do rio retrata-se ademais nas suas curvas infindáveis, desesperadoramente enleadas,
recordando o roteiro indeciso de um caminhante perdido, a esmar horizontes, volvendo-se a todos os rumos ou
arrojando-se à ventura em repentinos atalhos. Assim êle se precipitou pela angustura afogante de Óbidos num
abandono completo do antigo leito, que ainda hoje se adivinha no enorme plaino maremático ganglionado de
lagoas, de Vila Franca; ou vai, noutros pontos, em "furos" inopinados, afluir nos seus grandes afluentes,
tornando-se ilògicamente tributário dos próprios tributários; sempre desordenado, e revôlto, e vacilante,
destruindo e construindo, reconstruindo e devastando, apagando numa hora o que erigiu em decênios - com a
ânsia, com a tortura, com o exaspêro de monstruoso artista incontentável a retocar, a refazer e a recomeçar
perpètuamente um quadro indefinido...
* * *
Tal é o rio; tal, a sua história: revôlta, desordenada, incompleta.
A Amazônia selvagem sempre teve o dom de impressionar a civilização distante. Desde os primeiros tempos da
colônia, as mais imponentes expedições e solenes visitas pastorais rumavam de preferência às suas plagas
desconhecidas. Para lá os mais veneráveis bispos, os mais garbosos capitães-generais, os mais lúcidos cientistas.
E do amanho do solo que se tentou afeiçoar a exóticas especiarias, à cultura do aborígine que se procurou erguer
aos mais altos destinos, a Matrópole longínqua demasiara-se em desvelos à terra que sôbre tôdas lhe
compensaria o perdimento da Índia portentosa.
Esforços vãos. As partidas demarcadoras, as missões apostólicas, as viagens governamentais, com as suas frotas
de centenares de canoas, e os seus astrônomos comissários apercebidos de luxuosos instrumentos, e os seus
prelados, e os seus guerreiros, chegavam, intermitentemente, àqueles rincões solitários, e armavam ràpidamente
no altiplano das "barreiras" as tendas suntuosas da civilização em viagem. Regulavam as culturas; puliam as
gentes; aformoseavam a terra.
Prosseguiam a outros pontos, ou voltavam - e as malocas, num momento transfiguradas, decaíam de chôfre,
volvendo à bruteza original.
Já nos fins do século XVIII, Alexandre Rodrigues Ferreira, ao realizar a sua "viagem filosófica", pela calha
principal do grande rio, andara entre ruínas. Na Vila de Barcelos, capital da circunscrição longínqua, antolhara-
se-lhe, tangível, a imagem do progresso tìpicamente amazônico, naquele presuntuoso Palácio das Demarcações -
amplíssimo, monumental, imponente - e coberto de sapé! Era um símbolo. Tudo vacilante, efêmero, antinômico,
na paragem estranha onde as próprias cidades são errantes, como os homens, perpètuamente a mudarem de sítio,
deslocando-se à medida que o chão lhes foge roído das correntezas, ou tombando nas "terras caídas" das
barreiras...
Vai-se de um a outro século na inaturável mesmice de renitentes tentativas abortadas. As impressões dos mais
lúcidos observadores não se alteram, perpètuamente desenfluídas pelo espetáculo de um presente lastimável
contraposto à ilusão de um passado grandioso.
Tenreiro Aranha em 1852, ao erigir-se a província do Amazonas, assumiu a sua direção, e numa resenha
retrospectiva diz-nos do extraordinário progresso que se perdera, referindo-se a "manufaturas primorosas", a
uma indústria extinta em que "o algodão, o anil, a mandioca e o café tiveram cultura tal que dava para o
consumo sobrando para a exportação; e assim as fábricas de anil, as cordoarias de piassaba, de fiação, tecidos e
rêdes de algodão, de palhinha ou de penas; as telhas e alvenaria; as de construção civil e naval, com hábeis
artistas, fazendo aparecer templos, palácios, ou possantes embarcações..."
Recua-se, porém, exatamente um século, a buscar o período decantado - e num grande desapontamento observa-
se, à luz do relatório feito em 1752 por outro insigne governador, o Capitão-General Furtado de Mendonça, que
a "capitania estava reduzida à última ruína..." Assim se desconchavam os pareceres, agitando idênticos
desânimos. Ou então se harmonizavam de modo impressionador no firmarem a mesma decadência das gentes
singulares. Em 1762 o Bispo do Grão-Pará, aquêle extraordinário Fr. João de S. José - seráfico voltaireano que
tinha no estilo os lampejos da pena de Antônio Vieira - depois de resenhar os homens e as coisas, "assentando
que a raíz dos vícios da terra é a preguiça", resumiu os traços característicos dos habitantes, dêste modo
desalentador: - "lascívia, bebedice e furto." Passam-se cem anos justos. Procura-se saber se tudo aquilo
melhorou; abrem-se as páginas austeras de Russel Wallace, e vê-se que alguma vez elas parecem traduzir, ao pé
da letra, os dizeres do arguto beneditino, porque a sociedade indisciplinada passa diante das vistas surpreendidas
do sábio - drinking, gambling and lying - bebendo, dançando, zombando - na mesma dolorosíssima
inconsciência da vida...
Assim, essa indiferença pecaminosa dos atributos superiores, êsse sistemático renunciar de escrúpulos e êsse
coração leve para o êrro, são seculares; e surgem de um doloroso tirocínio histórico, que vem da"Casa do
Paricá" à "barraca" dos seringueiros. Compulsai os nossos velhos cronistas, com especialidade o imaginoso
Padre João Daniel, e avaliareis o travamento de motivos físicos e morais que há muito, ali, entibiam os
caracteres. E lêde Tenreiro Aranha, José Veríssimo, dezenas de outros. Nestes livros se espalham, fracionadas,
tôdas as cenas de um dos maiores dramas da impiedade na História.
Depois há o incoercível da fatalidade física. Aquela natureza soberana e brutal, em pleno expandir das suas
energias, é uma adversária do homem. No perpétuo banho de vapor, de que nos fala Bates, compreende-se sem
dúvida a vida vegetativa sem riscos e folgada, mas não a delicada vibração do espírito na dinâmica das idéias,
nem a tensão superior da vontade nos atos que se alheiem dos impulsos meramente egoísticos. Não exagero. Um
médico italiano - belíssimo talento - o Dr. Luigi Buscalione, que por ali andou há pouco tempo, caracterizou as
duas primeiras fases da influência climatérica - sôbre o forasteiro - a princípio sob a forma de uma
superexcitação das funções psíquicas e sensuais, acompanhada, depois, de um lento enfraquecer-se de tôdas as
faculdades, a começar pelas mais nobres...
Mas neste apelar para o clássico conceito da influência climática esqueceu-lhe, como a tantos outros, influxo
porventura secundário, mas apreciável, da própria inconstância da base física onde se agita a sociedade.
A volubilidade do rio contagia o homem. No Amazonas, em geral, sucede isto: o observador errante que lhe
percorre a bacia em busca de variados aspectos, sente, ao cabo de centenares de milhas, a impressão de circular
num itinerário fechado, onde se lhe deparam as mesmas praias ou barreiras ou ilhas, e as mesmas florestas e
igapós estirando-se a perder de vista pelos horizontes vacios; - o observador imóvel que lhe estacione às
margens, sobressalteia-se, intermitentemente, diante de transfigurações inopinadas. Os cenários, invariáveis no
espaço, transmudam-se no tempo. Diante do homem errante, a natureza é estável; e aos olhos do homem
sedentário que planeie submetê-la à estabilidade das culturas, aparece espantosamente revôlta e volúvel,
surpreendendo-o, assaltando-o por vêzes, quase sempre afugentando-o e espavorindo-o.
A adaptação exercita-se pelo nomadismo.
Daí, em grande parte, a paralisia completa das gentes que ali vagam, há três séculos, numa agitação tumultuária
e estéril.
* * *
Como quer que seja, para a Amazônia de agora devera restaurar-se integralmente, na definição da sua psicologia
coletiva, o mesmo doloroso apotegma - ultra equinotialem non peccavi - que Barlaeus engenhou para os
desmandos da época colonial.
Os mesmos amazonenses, espirituosamente, o perceberam. À entrada de Manaus existe a belíssima Ilha de
Marapatá - e essa ilha tem uma função alarmante. É o mais original dos lazaretos - um lazareto de almas! Ali,
dizem, o recém-vindo deixa a consciência... Meça-se o alcance dêste prodígio da fantasia popular. A ilha que
existe fronteira à bôca do Purus, perdeu o antigo nome geográfico e chama-se "Ilha da Consciência"; e o mesmo
acontece a uma outra, semelhante, na foz do Juruá. É uma preocupação: o homem, ao penetrar as duas portas
que levam ao paraíso diabólico dos seringais, abdica às melhores qualidades nativas e fulmina-se a si próprio, a
rir, com aquela ironia formidável.
É que, realmente, nas paragens exuberantes das heveas e castilloas, o aguarda a mais criminosa organização do
trabalho que ainda engenhou o mais desaçamado egoísmo.
De feito, o seringueiro - e não designamos o patrão opulento, senão o freguês jungido à gleba das "estradas" -, o
seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se.
Demonstra-se esta enormidade precitando-a com alguns cifrões secamente positivos e seguros.
Vêde esta conta de venda de um homem:
No próprio dia em que parte do Ceará, o seringueiro principia a dever: deve a passagem de proa até ao Pará
(35$000), e o dinheiro que recebeu para preparar-se (150$000). Depois vem a importância do transporte, num
"gaiola" qualquer de Belém ao barracão longínquo a que se destina, e que é, na média, de 150$000. Aditem-se
cêrca de 800$000 para os seguintes utensílios invariáveis: um boião de furo, uma bacia, mil tigelinhas, uma
machadinha de ferro, um machado, um terçado, um refle (carabina Winchester) e duzentas balas, dois pratos,
duas colheres, duas xícaras, duas panelas, uma cafeteira, dois carretéis de linha e um agulheiro. Nada mais. Aí
temos o nosso homem no "barracão" senhoril, antes de seguir para a barraca, no centro, que o patrão lhe
designará. Ainda é um "brabo", isto é, ainda não aprendeu o "corte da madeira" e já deve 1:135$000. Segue para
o pôsto solitário encalçado de um comboio levando-lhe a bagagem e víveres, rigorosamente marcados, que lhe
bastem para três meses: 3 paneiros de farinha de água, 1 saco de feijão, outro, pequeno, de sal, 20 quilos de
arroz, 30 de xarque, 21 de café, 30 de açúcar, 6 latas de banha, 8 libras de fumo e 20 gramas de quinino. Tudo
isto lhe custa cêrca de 750$000. Ainda não deu um talho de machadinha, ainda é o "brabo" canhestro, de quem
chasqueia o "manso" experimentado, e já tem o compromisso sério de 2:090$000.
Admitamos agora uma série de condições favoráveis, que jamais concorrem: a) que seja solteiro; b) que chegue
à barraca em maio, quando começa o "corte"; c) que não adoeça e seja conduzido ao barracão, subordinado a
uma despesa de 10$000 diários; d) que nada compre além daqueles víveres - e que seja sóbrio, tenaz,
incorruptível; um estóico firmemente lançado no caminho da fortuna arrostando uma penitência dolorosa e
longa. Vamos além - admitamos que, malgrado a sua inexperiência, consiga tirar logo 350 quilos de borracha
fina e 100 de sernambi, por ano, o que é difícil, ao menos no Purus.
Pois bem, ultimada a safra, êste tenaz, êste estóico, êste indivíduo raro ali, ainda deve. O patrão é, conforme o
contrato mais geral, quem lhe diz o preço da fazenda e lhe escritura as contas. Os 350 quilos remunerados hoje a
5$000 rendem-lhe 1:750$000; os 100 de sernambi, a 2$500, 250$000. Total 2:000$000.
É ainda devedor e raro deixa de o ser. No ano seguinte já é "manso": conhece os segredos do serviço e pode tirar
de 600 a 700 quilos. Mas considere-se que permaneceu inativo durante todo o período da enchente, de
novembro a maio _ sete meses em que a simples subsistência lhe acarreta um excesso superior ao duplo do que
trouxe em víveres, ou seja, em números redondos, 1:500$000 - admitindo-se ainda que não precise renovar uma
só peça de ferramenta ou de roupa e que não teve a mais passageira enfermidade. É evidente que, mesmo nêste
caso especialíssimo, raro é o seringueiro capaz de emancipar-se pela fortuna.
Agora vêde o quadro real. Aquêle tipo de lutador é excepcional. O homem de ordinário leva àqueles lugares a
imprevidência característica da nossa raça; muitas vêzes carrega a família, que lhe multiplica os encargos; e
quase sempre adoece, mercê da incontinência generalizada.
Adicionai a isto o desastroso contrato unilateral, que lhe impõe o patrão. Os "regulamentos" dos seringais são a
êste propósito dolorosamente expressivos. Lendo-os, vê-se o renascer de um feudalismo acalcanhado e bronco.
O patrão inflexível decreta, num emperramento gramatical estupendo, coisas assombrosas.
Por exemplo: a pesada multa de 100$000 comina-se a êstes crimes abomináveis: a) ‘fazer na árvore um corte
inferior ao gume do machado"; b) "levantar o tampo da madeira na ocasião de ser cortada"; c) "sangrar com
machacinhas de cabo maior de quatro palmos". Além disto o trabalhador só pode comprar no armazém do
barracão, "não podendo comprar a qualquer outro, sob pena de passar pela multa de 50% sôbre a importância
comprada".
Farpeiem-se de aspas êstes dizeres brutos. Ante êles é quase harmoniosa a gagueira terrível de Caliban.
É natural que ao fim de alguns anos o "freguês" esteja irremediàvelmente perdido. A sua dívida avulta
ameaçadoramente: três, quatro, cinco, dez contos, às vêzes, que não pagará nunca. Queda, então, na mórbida
impassibilidade de um felá desprotegido dobrando tôda a cerviz à servidão completa. O "regulamento" é
impiedoso: "Qualquer "freguês" ou "aviado" não poderá retirar-se sem que liqüide tôdas as suas transações
comerciais..." Fugir? Nem cuida em tal. Aterra-o o desmarcado da distância a percorrer. Buscar outro barracão?
Há entre os patrões acôrdo de não aceitarem, uns os empregados de outros, antes de saldadas as dívidas, e ainda
há pouco tempo houve no Acre numerosa reunião para sistematizar-se essa aliança, criando-se pesadas multas
aos patrões recalcitrantes.
Agora, dizei-me, que resta, no fim de um qüinqüênio, do aventuroso sertanejo que demanda aquelas paragens,
ferretoado da ânsia de riquezas?
Não o ligam sequer à terra. Um artigo do famoso "regulamento" torna-o eterno hóspede dentro da própria casa.
Citemo-lo com todo o brutesco de sua expressão imbecil e feroz: "Tôdas as benfeitorias que o liqüidado tiver
feito nesta propriedade perderá totalmente o direito uma vez que retire-se."
Daí o quadro doloroso que patenteiam, de ordinário, as pequenas barracas. O viajante procura-as e mal
descobre, entre as sororocas, a estreitíssima trilha que conduz à vivenda, meio afogada no mato. É que o
morador não despende o mais ligeiro esfôrço em melhorar o sítio de onde pode ser expelido em uma hora, sem
direito à reclamação mais breve.
Esta resenha comportaria alguns exemplos bem dolorosos. Fôra inútil apontá-los. Dela ressalta
impressionadoramente a urgência de medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do
trabalho que nobilite o esfôrço do homem; uma justiça austera que lhe cerceie os desmandos; e uma forma
qualquer do homestead que o consorcie definitivamente à terra.
Rios em Abandono
O geógrafo norte-americano Morris Davis revelou o "ciclo vital" dos rios. Era uma concepção revolucionária; e
não houve cientista jungido à enfezada geografia descritiva, dominante ainda entre nós, que se não
escandalizasse ante o conceito desassombrado do yankee. Mas o antagonismo foi passageiro e frágil. Uma
simples monografia, Rivers and Valleys of Pennsylvania, deslocou, de golpe, desde 1889, tôda a fortaleza inerte
da rotina; e firmou um nôvo rumo ao critério geográfico, não já apenas pelo associar à forma a estrutura dos
terrenos, completando os facies inexpressivos das superfícies com os elementos geológicos, senão também
esclarecendo a gênese dos mais breves acidentes e descobrindo nas linhas pinturescas da móvel fisionomia da
terra a expressão eloqüente das energias naturais que a modelaram e sem cessar a transfiguram. Por fim
ninguém mais estranhou que Morris Davis, impelido aos últimos corolários da nova doutrina, se abalançasse a
uma espécie de fisiologia monstruosa e descrevesse dramàticamente as complexas vicissitudes da existência
milenária dos fartos cursos de águas, mostrando-no-los com uma infância irrequieta, uma adolescência revôlta,
uma virilidade equilibrada e uma velhice ou uma decrepitude melancólica, como se êles fôssem estupendos
organismos sujeitos à concorrência e à seleção, destinados ao triunfo, ou ao aniquilamento, consoante mais ou
menos se adaptam às condições exteriores.
Não acompanharemos o genial biógrafo dos rios pensilvânicos no explanar a teoria admirável, que é o caso
impressionador de uma entrada triunfante - ou de uma rush atrevida - da imaginação e da fantasia nos remansos
da ciência. Baasta-nos notar que ela foi aceita em tôda a linha e é infrangível, esteando-se em dados indutivos e
seguros.
Tôdas as caudais, de feito, atravessam períodos inevitáveis, de ritmos uniformes e constantes, malgrado a
variabilidade do teatro em que se operam: a princípio indecisas, errantes e frágeis, derivando ao acaso, ao viés
dos pendores, como à procura de um berço em cada dobra do chão, e acumulando-se nos numerosos lagos,
incoerentemente esparsos, onde repousam; depois, definidas nas primeiras linhas de drenagem mais estáveis e
fundas para onde convergem, adensadas, as chuvas, formando-se o aparelho das correntes, reprofundando-se os
leitos esboçados e iniciando-se com a energia tumultuária das cachoeiras o choque secular com as asperezas da
terra, longo tempo; até que, extintos os empeços estruturais, estabelecido um leito e definido um traçado, o rio
se constitua, com os seus afluentes fixos, um declive contínuo em curvaturas regulares, um talvegue ajustado à
contextura do solo e à diferenciação morfológica que lhe reflete a um tempo os seus vários estádios - das
cabeceiras onde perduram as águas selvagens do antigo regime torrencial, ao curso médio que lhe caracteriza a
situação presente, e ao trecho inferior, prefigurando-lhe a decrepitude, onde êle se espraia repousadamente e
constrói pela colmatagem das vasas que acarreta com velocidade insensível, a própria planície aluvial em que
descansa.
É a fase de madureza. O rio está na plenitude da vida, depois da molduragem complexa de todos os relevos.
Atinge-a rematando um esfôrço pertinaz, que é por vêzes tôda a história geológica da região.
Não houve um ponto em todo o percurso de centenares ou de milhares de quilômetros que êle não atacasse, um
grão de areia que não removesse, balanceando as escavações a montante com os aterros a jusante - construindo-
se a si mesmo - obediente à tendência universal para as situações estáveis. Adquiriu, por fim, o seu perfil
longitudinal de equilíbrio, e êste, ainda abrupto nas vertentes, onde a correnteza é máxima e o volume mínimo,
vem contìnuamente amortecendo-se, em sucessivo decair de declive, até ao quase horizontalismo no nível de
base, da foz, onde aquêles elementos se invertem, resultando o equilíbrio dinâmico do sistema da relação inversa
entre as massas liqüidas e as velocidades que se arrastam.
Como quer que seja, desde que alcança êste período, todos os elementos do seu talvegue, projetados em plano
vertical, desenham-se com a forma aproximada de um ramo de desmedida parábola, de concavidade volvida
para as alturas.
Assim se traduz geomètricamente um fato mecânico complexo. E bem que a tendência para aquela figura seja
em geral perturbada ou extinta nas camadas de resistência variável, onde as rochas desvendadas originam o
antagonismo das cachoeiras, é inegável que a curva parabólica se delineia nos terrenos homogêneos como sendo
a forma definitiva da secção longitudinal de todos os rios no remate de suas vicissitudes evolutivas.
* * *
O Purus é um dos melhores exemplos.
Desenhando-se-lhe o perfil em tôda a extensão itinerária de 3210 quilômetros que vai da embocadura no
Solimões aos últimos manadeiros do Ribeirão Pucani, na serrania deprimida e sem nome que separa as maiores
bacias hidrográficas da Terra, chega-se muito aproximadamente àquele ramo de parábola.
Pelo menos nenhuma outra curva o definirá melhor.
Demonstra-o êste quadro onde os vários trechos se sucedem de modo a acompanhar-se em todo o seu percurso a
queda regularíssima das águas:
SECÇÕES Distâncias Diferenças Declividade Declive
itinerárias de nível geral quilométrico
(Km) (metros) (metros)
Das nascentes ao
Curiuja
117 189 1/619 1,60
Do Curiuja a Curanja 278 60 1/4500 0,22
De curanja à foz do
Chandless
304 49 1/6500 0,16
Do Chandless à foz do
Iaco
300 39 1/7700 0,13
Do Iaco ao Acre 237 27 1/8700 0,115
Do Acre ao Pani 233 20 1/11000 0,085
Do Pani ao Mucuím 740 58 1/12900 0,077
Do Mucuím ao
Solimões
990 15 1/66700 0,015
Aí só há um dado vacilante: o que resulta da diferença de nível nos pontos extremos do último trecho.
Deduzimo-lo adotando um mínimo de 18 metros para altura da foz do Purus, sôbre o nível do mar, quando ela é
certamente maior e mais favorável, portanto, às nossas conclusões. Os demais elementos, devemo-los aos
trabalhos de William Chandless e às nossas observações recentes.
Ora, ao mais rápido lance de vistas, e sem que se exija um desenho facílimo, verifica-se que o grande rio,
atravessando um terreno homogêneo e mais ou menos impermeável, subordinado a um declive que, apesar de
diminuto, é dominante na vasta planura, onde as chuvas se distribuem com regularidade incomparável - é dos
que mais se adaptam às condições teóricas indicadas por Morris Davis; e no ultimar a sua evolução geológica
retrata-se admiràvelmente na parábola majestosa de que tratamos há pouco.
No estudar o seu regime geral vamos, portanto, com a firmeza de quem discute a equação de uma curva.
Assim, considerando o primeiro trecho, aquela declividade de 1,60m por quilômetro, tão diversa da que se lhe
sucede, de 0,22m, diz-nos para logo, dispensando o exame local, que o verdadeiro Alto-Purus - demarcado
oficialmente a partir da bôca do Acre, e estendido por alguns geógrafos ainda mais para jusante - principia de
fato muito além, a 3079 quilômetros da foz, na confluência do Cujar e do Curiuja, os dois tributários em que êle
se reparte numa dicotomia perfeita, perdendo o nome e esgalhando-se largamente fracionado pelos mais remotos
pontos da sua vasta bacia de captação.
Por outro lado, o declive real de mal se aproxima da conhecida relação firmada como o limite mínimo das
vertentes torrenciais.
Conclui-se, então, de pronto, que o rio, até no seu último segmento, onde é sempre mais difícil e remorada a
regularização dos leitos, está numa fase avançadíssima de desenvolvimento. É o caso excepcional de uma
grande artéria, entre as maiores existentes, capaz de ser navegada nas mais extremas nascentes, durante as cheias
que lhe encubram os numerosos degraus das corredeiras - porque em tal quadra, admitindo que as águas subam
de três metros numa calha de dez, com aquêle declive, que corresponde a 0,0015m por metro, o simples
emprêgo da fórmula de D’Aubuisson, nos diz que as corrrentes derivarão com a velocidade máxima de apenas
2,20m, fàcilmente balanceada por uma lancha veloz.
Ora, estas deduções resultantes de breve contemplação de um quadro tão expressivo que dispensa o diagrama
correspondente, ressaltam, vivamente, às mais incuriosas vistas de observador escoteiro, que ali passe depois de
varar a planura amazônica num itinerário de quinhentas léguas.
De fato, o que sobremaneira o impressiona é o espetáculo da terra profundamente trabalhada pelo indefinido e
incomensurável esfôrço dos formadores do rio. Chega, depois de trilhar o canyon coleante do Pucani, ao sopé
das últimas vertentes; defronta a clivosa escarpa de uma corda insignificante de cerros deprimidos; vinga-lhe em
três minutos a altura relativa de sessenta metros escassos - e não acredita que esteja na fronteira hidrográfica
mais extraordinária do globo, podendo ir de uma passada única do Vale do Amazonas ao Vale do Ucaiáli...
A altura em que se vê não lhe basta a desapertar os horizontes, ou a atalaiar as distâncias. É inapreciável. Não há
abrangê-la com a escala mais favorável dos mapas. E sem dúvida jamais compreenderia tão indeciso divortium
aquarum a tão opulentas artérias, se ao buscar aquêles rincões, varando, ao arrepio das itaipavas, por dentro das
calhas reprofundadas do Cujar, do Cavaljane e do Pucani, o observador se não habituasse a contemplar, longos
dias, os mais enérgicos efeitos da dinâmica poderosa das águas que transmudaram a paragem outrora mais em
relêvo e dominante. Não lhe importa a inópia de conhecimentos paleontológicos ou a carência de fósseis
norteadores. Está, evidentemente, sôbre a ruinaria de uma sublevação quase extinta, cujo sinclinal êle pôde
reconstruir, prolongando as linhas dos estratos que afloram nos sulcos onde se encaixam aquêles últimos
tributários, denunciando todos na tranqüilidade relativa, quase remansados nos intervalos de suas corredeiras
(restos de velhíssimas catadupas destruídas), a derradeira fase de uma luta em que o Purus, para alongar a sua
seção de estabilidade, teve que derruir montanhas. Pelo menos a atividade erosiva e o volume de materiais
arrebatados de todos aquêles pendores, foram incalculáveis, para que as linhas de drenagem se abatessem até
aos substrato rochoso e declinasse, como vimos, aos graus apropriados aos cursos navegáveis.
Apesar disto, a transição para o trecho seguinte ainda é repentina. Passa-se da declividade quilométrica de
4,60m, para a de 0,22m.
Mas é o único salto. Daí por diante, como o revela o quadro anterior, até ao último segmento extremado pela
foz, onde para descer-se um metro se tem de caminhar 66,700, a atenuação dos declives prossegue com uma
regularidade perfeita, incluindo o Purus entre as caudais de todo regularizadas, cujo "ciclo vital" progressivo vai
cerrrando-se.
Não aprofunda mais o leito. Os próprios afloramentos de grés (Parasandstein) aparecendo nas vazantes,
dispersos entre Huitanaã e a embocadura do Acre, e dali para cima ainda mais raros até pouco além do Iaco,
reforçam a afirmativa, bem que na aparência a invalidem. Restos de antigas corredeiras desmanteladas surgem
como testemunhos das erosões primitivas e não provocam, em geral, o mínimo desnivelamento. O pequeno
povoado da Cachoeira, que se erige defrontando um trecho tranqüilo do rio, tem o mais impróprio dos nomes,
expressivo apenas no recordar um acidente perdido em remoto passado geológico e do qual perduram apenas
alguns blocos desordenadamente acumulados em minúsculos recifes, e breves "travessões". Ali, como nos
outros trechos, o mesmo quadro da terra estirando-se, complanada, pelos quadrantes, ou docemente ondulada
denunciando a mais completa molduragem, associa-se aos demais caracteres no sugerir a derradeira fase do
processo evolutivo do vale.
Um elemento apenas falta: a regularidade na sucessão das curvas de nível das vertentes imediatas às margens,
que se fronteiam. Qualquer seção transversal do Purus representa as mais das vêzes uma praia deprimida que
mal se alteia vagarosamente até ao rebordo longínquo da planície pouco elevada, contraposta a uma barranca
despenhada, como a da margem oposta à bôca do Chandless, ou caindo às vêzes a prumo, feito uma muralha,
como na situação admirável do Catai.
É que à imutabilidade daquele perfil de equilíbrio se antepões a variabilidade da sua planta, em escala capaz de
justificar os que o incluem entre os rios "cujos leitos e margens não estão sequer delineados em seus perfis de
estrutura definida a assente".
Realmente, o Purus, um dos mais tortuosos cursos d’água que se registram, é também dos que mais variam de
leito. Divaga, consoante o dizer dos modernos geógrafos. A própria velocidade diminuta, que adquiriu e vai
decrescendo sempre até ao quase rebalsamento, nas cercanias da foz, aliada à inconsistência dos terrenos
aluvianos, formados por êle mesmo com os materiais conduzidos das nascentes, determina-lhe êste caráter
volúvel. Às suas águas, derivando em correntezas fracas, falta a quantidade de movimento necessária às
direções intorcíveis. O mínimo obstáculo desloca-as. Um tronco de samaúma que tombe de uma das margens,
abarreirando-se ligeiramente, desvia o empuxo da massa líqüida contra a outra, onde de pronto se exercita,
menos em virtude da fôrça viva da corrente que da incoerência das terras, intensíssima erosão de efeitos
precipitados.
A indecisa arqueadura, que logo se forma, circularmente, se acentua, e, à medida que aumenta, vai tornando
mais violentos os ataques da componente centrífuga da correnteza que lhe solapa a concavidade crescente,
fazendo que em poucos anos todo o rio se afaste, lateralmente, do primitivo rumo. Mas como êste se traçou
adscrito aos pontos determinantes de um perfil de equilíbrio inviolável, aquêle desvio nunca é uma bifurcação,
ou definitiva mudança. O rio, depois de rasgar o amplo círculo de erosão, procura volver ao antigo canal, como
quem contorneou apenas um obstáculo encontrado em caminho.
O círculo por onde êle se alonga tende a fechar-se. De sorte que tôda a área de terrenos abrangidos se transmuda
em verdadeira peníncula, ligada por um istmo tão delgado, às vêzes, que o caminhante o atravessa em minutos,
enquanto gasta um dia inteiro de viagem, embarcado, para perlongar o contôrno da terra quase insulada. Por fim
esta se destaca, ilhando-se de todo. No sobrevir de uma enchente o Purus despedaça a frágil barreira do istmo; e
retoma, de golpe, o primitivo curso, deixando à margem, a relembrar o desvio por onde divagou, um lago
anular, não raro amplíssimo. Prossegue. Reproduz adiante outros meandros caprichosos, completados sempre
pela criação dos mesmos lagos, ou "sacados". E assim vai - perpètuamente oscilante aos lados de seu eixo
invariável - num ritmo perfeito, refletindo o jogar de leis mecânicas capazes de se sintetizarem numa fórmula,
que seria a tradução analítica de curioso movimento pendular sôbre um plano de nível.
Desta maneira, ali se resolve naturalmente um dos mais sérios problemas de hidráulica fluvial. De fato, aquêles
lagos são verdadeiros diques, funcionando com um duplo efeito: de um lado impedem as inundações
devastadoras, absorvendo os excessos das cheias transbordantes; de outro lado, regulam o regime das águas,
durante as grandes estiagens, em que se abrem por si mesmos, automàticamente, "estourando", para usar uma
expressão local, e restituindo ao rio empobrecido da vazante parte das massas líqüidas que economizaram.
Não se calcula o valor dêstes trabalhos colossais da natureza.
Revela-no-los bem um confronto expressivo. Os hidráulicos franceses que averbaram em 1856, como pormenor
inverossímil, uma subida de 10,90m, das águas do Garona, originando uma das inundações mais funestas que
têm ocorrido na Europa, - certo não compreenderiam a própria existência do vasto território amazônico
convizinho ao Purus (que vale cêrca de cinqüenta Garonas cheios) se soubessem que êle se alteia 15 metros na
foz, onde tem uma milha de largo, e que dali a montante as águas tufam num crescendo espantoso até 23 metros
sôbre as estiagens, na confluência do Acre.
No entanto estas enchentes são inócuas.
A massa líqüida, inflada logo às primeiras chuvas, sobe, galgando velozmente as barrancas, e em poucos dias
vai bater nos esteios dos barracões eretos nos "firmes" mais altos do terreno... e todo êste dilúvio em marcha não
acachoa, não tumultua, não se arremessa em correntezas vertiginosas, não enleia as embarcações torcendo-as
nas espirais vibrantes dos remoinhos e não devasta a terra. Difunde-se; extingue-se silenciosamente; perde-se
inofensivo naqueles milhares de válvulas de segurança; e espraiando-se, raso, pelo chão das matas, ou
espalmando-se, desafogadamente, em desmarcadas superfícies onde repontam, salteadas, as últimas ramas
floridas dos igapós afogados, vai, ao contrário, regenerando aquela mesma terra, e reconstruindo-a porque a
torna de ano em ano mais elevada com a colmatagem perfeita de tôda a vasa que acarreta.
Assim, em tôda aquela planura, o notável afluente amazônico, serpenteando nas inumeráveis sinuosas que lhe
tornam as distâncias itinerárias duplas das geográficas, inclui-se entre os mais interessantes "rios trabalhadores",
construindo os diques submersíveis que o aliviam nas enchentes - e lhe repontam, intermitentemente às duas
bandas, ora próximos, ora afastados, salpintando tôdas as várzeas ribeirinhas, e avultando maiores e mais
numerosos à medida que se desce, e se amortecem os declives, até a larga baixada centralizada em Canutama
onde as grandes águas tranqüilas derivam majestosamente, equilibradas, sulcando de meio a meio a vastidão de
nível de um mediterrâneo esparso.
* * *
Mas esta formação de lagos ou reservatórios naturais, cuja função benéfica vimos de relance, acarreta
inconvenientes de tal porte, que tornam, por vêzes, em alguns pontos, quase impenetrável uma artéria fluvial
que pelos elementos privilegiados de seu perfil concorre com as mais acessíveis à navegação regular.
Realmente nesse afanoso derruir de barrancas, para torcer-se em seus incontáveis meandros, o Purus entope-se
com as raízes e troncos das árvores que o marginam.
Às vêzes é um lanço unido, de quilômetros, de "barreira", que lhe cai de uma vez e de súbito em cima, atirando-
lhe, desarraigada, sôbre o leito, uma floresta inteira.
O fato é vulgaríssimo. Conhecem-no todos os que por ali andam. Não raro o viajante, à noite, desperta sacudido
por uma vibração de terremoto, e aturde-se apavorado ouvindo logo após o fragor indescritível de miríades de
frondes, de troncos, de galhos, entrebatendo-se, rangendo, estalando e caindo todos a um tempo, num baque
surdo e prolongado, lembrando o assalto fulminante de um cataclismo e um desabamento da terra.
São, de fato, "as terras caídas", das quais resultam sempre duas sortes de obstáculos: de um lado o inextricável
acervo de galhadas e troncos, que se entrecruzam à superfície d’água, ou irrompem em pontas ameaçadoras, do
fundo; e de outro as massas argilosas, ou argilo-arenosas que a corrente pouco veloz não dissolve, permitindo-
lhes acumularem-se nas minúsculas ilhotas dos "torrões", ou, mais prejudiciais, nos rasos bancos compactos dos
"salões", impropriando a passagem aos mais diminutos calados.
Não precisamos insistir neste fato.
A sua gravidade é intuitiva. E considerando-se que êle se reproduz em tôda a extensão de 480 quilômetros, que
vai da embocadura ao Iaco à do Curiuja, onde se acumulam cada vez mais aquêles entraves, indefinidamente
crescentes, chega-se a concluir que o Purus, depois de haver conseguido um dos mais regulares perfis de tôda a
hidrografia e de aparelhar-se com os melhores elementos predispostos a uma rara fixidez de regime, erigindo-se
modêlo admirável entre as caudais mais bem talhadas à grande navegação - está, agora, a pouco e pouco
perdendo a maior parte dos seus resquisitos superiores, com o progredir de um atravancamento em larga escala,
que o tornará mais tarde inteiramente impenetrável.
Dizemo-lo baseando-nos em penosa experiência culminada por um naufrágio. Sobretudo além da embocadura
do Chandless, multiplicam-se tanto êstes empecilhos de todo estranhos à "tectônica" especial do rio, que em
longos "estirões", com a profundidade média de cinco a seis pés, nas vazantes, onde passariam carregadas as
mais poderosas lanchas, mal pode deslizar uma montaria ligeira. Escusamo-nos de exemplificar alongando estas
considerações ligeiras. Notemos apenas que a partir do tributário precitado até a bifurcação Cujar-Curiuja, o
Purus em vários lugares parece correr por cima de uma antiga derrubada. Vai-se como entre os galhos estonados
e revoltos de uma floresta morta. E se observarmos que, além dos empeços em si mesmas encerrados, estas
tranqueiras, rebalsando as águas que se filtram entre os ramos unidos, facilitam a formação de tôda a sorte de
baixios, compreender-se-á em tôda a sua latitude o progredimento contínuo dessa obstrução prejudicialíssima.
Porque os homens que ali mourejam - o caucheiro peruano com as suas tanganas rijas, nas montarias velozes, o
nosso seringueiro, com os varejões que lhe impulsionam as ubás, ou o regatão de tôdas as pátrias que por ali
mercadeja nas ronceiras alvarengas arrastadas à sirga - nunca intervêm para melhorar a sua única e magnífica
estrada; passam e repassam nas paragens perigosas; esbarram mil vêzes a canoa num tronco caído há dez anos
junto à beira de um canal; insinuam-se mil vêzes com as maiores dificuldades numa ramagem revôlta barrando-
lhes de lado a lado o caminho, encalham e arrastam penosamente as canoas sôbre os mesmos "salões" de argila
endurecida; vêzes sem conta arriscam-se ao naufrágio, precipitando, ao som das águas, as ubás contra as pontas
duríssimas dos troncos que se enristam invisíveis, submersos de um palmo - mas não despendem o mínimo
esfôrço e não despedem um golpe único de facão ou de machado num só daqueles paus, para desafogar a
travessia.
As lanchas, e até os vapores, que ali vão aparecendo mais a miúdo, à medida que avultam as safras dos cento e
vinte opulentos seringais que já se abriram acima da confluência do Iaco, viajam, invariàvelmente, nas quadras
favoráveis das cheias, quando aquêles entraves se afogam em alguns metros de fundo.
Sobem, velozes, o rio; descarregam, precipitadamente, em vários pontos as mercadorias consignadas; carregam-
se de borracha; e tornam logo, precípites, águas abaixo, fugindo. Apesar disto, algumas não se forram a
repentinas descidas de nível, prendendo-as. E lá se ficam, longos meses - esperando a outra enchente, ou o
inesperado de um "repiquete" propício, invernando paradoxalmente sob as soalheiras caniculares - nas mais
curiosas situações: ora em pleno rio, agarradas pelos centenares de braços das árvores sêcas, que as imobilizam;
ora a meio da barranca, onde as surpreendeu a vazante, grosseiramente especadas, encombentes, com as proas
afocinhando, inclinadas, em riscos permanentes de queda; ora no alto de uma barreira, como autênticos navios-
fantasmas, aparecendo, de improviso e surpreendedoramente, em plena entrada da mata majestosa.
O contraste desta navegação com as admiráveis condições técnicas imanentes ao rio é flagrante. O Purus - e
como êle todos os tributários meridionais do Amazonas, à parte o Madeira - está inteiramente abandonado.
Entretanto o simples enunciado dêstes inconvenientes, evidentemente alheios às suas admiráveis condiões
estruturais, delata que a remoção dêles, embora demorada, não demanda trabalhos excepcionais de engenharia e
excepcionais dispêndios.
O que resta fazer, ao homem, é rudimentar e simples.
Os grandes, os sérios problemas de hidráulica fluvial que ali houve, resolveu-os o próprio rio agindo no jôgo
harmonioso das forças naturais que o modelaram.
E êles representam um trabalho incalculável. O Purus é uma das maiores dádivas entre tantas com que nos
esmaga uma natureza escandalosamente perdulária.
Vejamo-lo, de relance.
Tôda a hidráulica fluvial parece ter nascido entre os leitos do Garona e do Loire, tais e tantos os monumentos
que ali levantou a engenharia francesa. Nunca o homem arremeteu com tamanha pertinácia o brilho com a
brutalidade dos elementos. Os romanos transfigurando a Argélia e os holandêses construindo a Holanda,
emparelham-se bem com os abnegados profissionais que durante um século, impassíveis ante sucessivos
reveses, se devotaram à emprêsa exaustiva de paralisar torrentes, de atenuar inundações e de encadear
avalanchas, na dupla tentativa de facilitar a navegação e de proteger os territórios ribeirinhos.. E todo êsse
magnífico esfôrço em que se imortalizaram Deschamps, Dieulafoy e Belgrand, resuktou em grande parte inútil.
Inútil ou contraproducente. Os primores da engenharia estragaram o Loire.
Os diques submersíveis ou insubmersíveis destinados a salvarem as povoações, os canais de socorro que se lhes
anexavam, as margens artificiais ladeando em dezenas de quilômetros o leito menor das caudais, os
enrocamentos antepostos às erosões, as barragens antepostas às correntezas - tinham em geral a duração efêmera
dos seis meses da estiagem, tal a inconstância irreparável daquelas artérias.
Por fim engenharam-se estupendos reservatórios alcandorados nos Pireneus, escalonando-se por todos os
pendores, para armazenar as inundações. E armazenavam catástrofes - rompendo-se-ljes os muros, de onde
saltavvam as ondas despenhadas varrendo povoados inteiros...
Mas ainda quando estas ruturas dos reservatórios compensadores não formassem os episódios mais dramáticos
da história da engenharia, e êles pudessem erigir-se estáveis e sem riscos, nós, quaisquer que fôssem os nossos
esforços e os nossos dispêndios, jamais os construiríamos como no-los construiu o Purus.
Considere-se, para isto, êste exemplo. Duponchel, para dar ao Neste - um pequeno rio com a despesa média de
25 metros cúbicos - um modêlo constante, que lhe amortecesse as inundações, calculou um reservatório de
300.000.000.000 de litros e recuou antte o algarismo colossal.
Ora, o Neste é três vêzes menor que o Iaco, que, entretanto, não se inclui entre os maiores afluentes do Purus.
Diante dêstes dados formidáveis põe-se de manifesto que a construção de reservatórios compensadores no
grande rio seria o mesmo que fazer um mar; e conclui-se que os existentes, numerosíssimos, às suas margens,
representam um capital inestimável e acima dos mais ousados orçamentos.
Precisamos ao menos conservá-lo. Aproveitemos uma lição velha de um século. O Mississipi, que no seu curso
inferior retrata o traçado do Purus com a exação de um decalque, era, pelas mesmas causas, ainda mais inçado
de empecilhos, tornando-o quase impenetrável e em muitos lugares de todo intransponível. Alguns dos seus
tributários não estavam apenas trancados: desapareciam, literalmente, sob os abatises.
No entanto o grande rio, hoje transfigurado, desenha-se como um dos traços mais vivos da pertinácia norte-
americana.
Lá está, porém, no seu vale, em um de seus afluentes, o Rio Vermelho, um caso desalentador. É um rio perdido.
O yankee descobriu-o tarde demais. A desmedida tranqueira, the great raft, exatamente formada como as que
estão formando-se no Purus, estira o labirinto de seus madeiros e das suas frondes mortas por 630 quilômetros -
e lá está, indestrutível, depois de desafiar durante vinte e dois anos os maiores esforços para uma desobstrução
impossível.
Estabelecida a proporção entre aquêle rio minúsculo e o Purus, entre nós e os norte-americanos, aquilatam-se as
dificuldades que nos aguardarão, se progredirem os obstáculos apontados, e cuja remoção atual, completando-se
com a defesa, embora rudimentar, das margens mais ameaçadas pelas erosões, é ainda de relativa facilidade. Ao
mesmo passo se atenuarão consideràvelmente as "divagações" precitadas, que constituem verdadeira anomalia
num rio aparelhado de um perfil de estabilidade demonstrável até geomètricamente, como vimos.
De qualquer modo urge iniciar-se desde já modestíssimo, mais ininterrupto, passando de govêrno a govêrno,
numa tentativa persistente e inquebrantável, que seja uma espécie de compromisso de honra com o futuro, um
serviço organizado de melhoramentos, pequeno embora em comêço, mas crescente com os nossos recursos - que
nos salve o majestoso rio.
Von den Stein, com a agudeza irrivalizável de seu belo espírito, comparou, algures, pinturescamente, o Xingu a
um "enteado" da nossa geografia.
Estiremos o paralelo.
O Purus é um enjeitado.
Precisamos incorporá-lo ao nosso progresso, do qual êle será, ao cabo, um dos maiores fatôres, porque é pelo
seu leito desmedido em fora que se traça, nestes dias, uma das mais arrojadas linhas da nossa expansão histórica.
Um clima caluniado
Na definição climática das circunscrições territoriais criadas pelo Tratado de Petrópolis tem-se incluído sempre
um elemento curiosíssimo, ante o qual o psicólogo mais rombo suplanta a competência do Professor Hann, ou
qualquer outro mestre em coisas meteorológicas: o desfafflecimento moral dos que para lá seguem e levam
desde o dia da partida a preocupação absorvente da volta no mais breve prazo possível. Cria-se uma nova sorte
de exilados - o exilado que pede o exílio, lutando por vêzes para o conseguir, repelindo outros concorrentes, ao
mesmo passo que vai adensando na fantasia alarmada as mais lutuosas imagens no prefigurar o paraíso
tenebroso que o atrai.
Parte, e leva no próprio estado emotivo a receptividade a tôdas as moléstias.
Atravessa quinze dias infindáveis a contornear a nossa costa. Entra no Amazonas. Reanima-se um momento
ante a fisionomia singular da terra; mas para logo acabrunha-o a imensidade deprimida - onde o olhar lhe morre
no próprio quadro que contempla, certo enorme, mas em branco e reduzido às molduras indecisas das margens
afastadas. Sobe o grande rio; e vão-se-lhe os dias inúteis ante a imobilidade estranha das paisagens de uma só
côr, de uma só altura e de um só modêlo, com a sensação angustiosa de uma parada na vida: atônicas tôdas as
impressões, extinta a idéia do tempo, que a sucessão das aparências exteriores, uniformes, não revela - e retraída
a alma numa nostalgia que não é apenas a saudade da terra nativa, mas da Terra, das formas naturais
tradicionalmente vinculadas às nossas contemplações, que ali se não vêem, ou se não destacam na uniformidade
das planuras...
Entra por um dos grandes tributários, o Juruá ou o Purus. Atinge ao seu objetivo remoto; e todos os desalentos
se lhe agravam. A terra é, naturalmente, desgraciosa e triste, porque é nova. Está em ser. Faltam-lhe à
vestimenta de matas os recortes artísticos do trabalho.
Há paisagens curtas que vemos por vêzes, subjetivamente, como um reflexo subconsciente de velhas
contemplações ancestrais. Os cerros ondulantes, os vales, os litorais que se recortam de angras, e os próprios
desertos recrestados, afeiçoam-se-nos às vistas por maneira a admitirmos um modo qualquer de reminiscência
atávica. Vendo-os pela primeira vez, temos o encanto de equipararmos o que imaginamos com o que se nos
antolha, numa exteriorização tangível de contornos anteriormente idealizados.
Ali, não. Desaparecem as formas topográficas mais associadas à existência humana. Há alguma coisa
extraterrestre naquela natureza anfíbia, misto de águas e de terras, que se oculta, completamente nivelada, na sua
própria grandeza. E sente-se bem que ela permaneceria para sempre impenetrável se não se desentranhasse em
preciosos produtos adquiridos de pronto sem a constância e a continuidade das culturas. As gentes que a
povoam talham-se-lhe pela braveza. Não a cultivam, aformoseando-a: domam-na. O cearense, o paraibano, os
sertanejos nortistas, em geral, ali estacionam, cumprindo, sem o saberem, uma das maiores emprêsas dêstes
tempos. Estão amansando o deserto. E as suas almas simples, a um tempo ingênuas e heróicas, disciplinadas
pelos reveses, garantem-lhes, mais que os organismos robustos, o triunfo na campanha formidável.
O recém-vindo do Sul chega em pleno desdobrar-se daquela azáfama tumultuária, e, de ordinário, sucumbe.
Assombram-no, do mesmo lance, a face desconhecida da paisagem e o quadro daquela sociedade de caboclos
titânicos que ali estão construindo um território. Sente-se deslocado no espaço e no tempo; não já fora da pátria,
senão arredio da cultura humana, extraviado num recanto da floresta e num desvão obscurecido da História.
Não resiste. Concentra todos os alentos que lhe restam para o só efeito de permanecer algum tempo, inútil e
inerte, no pôsto que lhe marcaram; mal desempenhando os mais simples deveres; indo-se-lhe os olhos em todos
os vapôres que descem - e o espírito ausente nos lares afastados, longo tempo, em um exaustivo agitar de
apreensões e conjeturas - até que o sacuda, inesperadamente,, em pleno dia canicular, um súbito estremeção de
frio, delatando-lhe a vinda salvadora, e por vêzes recônditamente anelada, da febre. E é uma surprêsa gratíssima.
A vida desperta-se-lhe de golpe, naquela cotovelada da morte que passou por perto. O impaludismo significa-
lhe, antes de tudo, a carta de alforria de um atestado médico. É a volta. A volta sem temores, a fuga justificável,
a deserção que se legaliza, e o mêdo sobredoirado de heroísmo, desafiando o espanto dos que lhe ouvem o
romance alarmante das moléstias que devastam a paragem maldita.
Porque é preciso coonestar o recuo. Então cada igarapé sem nome é um Ganges pestilento e lúgubre; e os
igapós, ou os lagos, espalmam-se nas várzeas empantanadas como lagunas Pontinas incontáveis. Traça-se um
quadro nosológico arrepiador e trágico, num imaginoso fabular de agruras; e, dia a dia, a natureza caluniada prlo
homem vai aparecendo naquelas bandas, ante as imaginações iludidas, como se lá se demarcasse a paragem
clássica da miséria e da morte...
* * *
O exagêro é palmar. O Acre, ou, em geral, as planuras amazônicas cindidas a meio pelo longo sulco do Purus,
têm talvez a letalidade vulgaríssima em todos os lugares recém-abertos ao povoamento. Mas consideràvelmente
reduzida.
Demonstra-no-lo um ligeiro confronto.
As Escolas de Medicina Colonial da Inglaterra e da França, revelam-nos, pelos simples títulos, os resguardos
com que se rodeia sempre o transplante dos povos para os novos habitats. Há esta linha de nobreza no moderno
imperialismo expansionista capaz de absolver-lhe os máximos atentados: os seus brilhantes generais
transmudam-se em batedores anônimos dos médicos e dos engenheiros; as maiores batalhas fazem-se-lhe
simples reconhecimento da campanha ulterior, contra o clima; e o domínio das raças incompetentes é o comêço
da redenção dos territórios, num giro magnífico que do Tonquim à Índia, ao Egito, à Tunísia, ao Sudão, à Ilha de
Cuba, e às Filipinas, vai generalizando em todos os meridianos a emprêsa maravilhosa do saneamento da terra.
Da terra e do homem. A tarefa é dúplice. Aos conquistadores tranqüilos não lhes basta o perquirir as causas
meteorológicas ou telúricas das moléstias imanentes aos trechos recém-consquitados, na escala indefinida que
vai das anemias estivais às febres polimorfas. Resta-lhes o encargo maior de justapor os novos organismos aos
novos meios, corrigindo-lhes os temperamentos, destruindo-lhes velhos hábitos incompatíveis, ou criando-lhes
outros até se construir, por um processo a um tempo compensador e estimulante, o indivíduo inteiramente
aclimado, tão outro por vêzes nos seus caracteres físicos e psíquicos que é, verdadeiramente, um indígena
artificial transfigurado pela higiene. Para isto o colono, ou o emigrante, torna-se em tôda a parte um pupilo do
Estado. Todos os seus atos, desde o dia da partida, prefixo nas estações mais convenientes, aos últimos
pormenores de alimentação, ou de vestir, predeterminam-se em regulamentos rigorosos. Dentro dos lineamentos
largos das características fundamentais do clima quente para onde êle se desloca, urde-se a trama de uma
higiene individual, onde se prevêem tôdas as necessidades, todos os acidentes e até os perigos da instabilidadde
orgânica inevitável à fase fisiológica da adaptação a um meio cósmico, cujo influxo deprimente sôbre o europeu
vai da musculatura, que se desfibra, à própria fortaleza de espírito, que se deprime. Assim as medidas
profiláticas, que começam inspirando-se no estudo dos fatôres físicos acabam, não raro, prolongando-se em
belíssimo código de moral demonstrada. De permeio com os preceitos vulgares para o reagir contra a
temperatura alta, e a umidade excessiva que lhe abatem a tensão arteerial e a atividade, lhe trancam as válvulas
de segurança dos poros e lhe fatigam o coração e os nervos, criando-lhe, ao cabo, a iminência mórbida para os
males que se desdobram do impaludismo que lhe solapa a vida, às dermatoses que lhe devastam a pele -
despontam, mais eficazes e decisivos, os que o aparelham para reagir aos desânimos, à melancolia da existência
monótona e primitiva; às amarguras crescentes da saudade; à irritabilidade provinda dos ares intensamente
eletrizados e refulgentes; ao isolamento - e, sobretudo, ao quebrantar-se da vontade numa decadência espiritual
subitânea e profunda, que se afigura a moléstia únida de tais paragens, de onde as demais se derivam como
exclusivos sintomas.
Abra-se qualquer regulamento de higiene colonial. Ressaltam à mais breve leitura os esforços incomparáveis das
modernas missões e o seu apostolado complexo que, ao revés das antigas, não visam arrebatar para a civilização
a barbaria transfigurada, senão transplantar, integralmente, a própria civilização para o seio adverso e rude dos
territórios bárbaros.
Nas suas páginas, o que por vêzes nos maravilha maos do que os prodígios da previdência e do saber,
desenvolvidos para afeiçoar o forasteiro ao meio, é o curso sobremaneira lento, senão o malôgro dos mais
pertinazes esforços.
A França na Indochina, de clima quase temperado, despendeu quinze anos de trabalhos contínuos para que
sobrestivesse a mortalidade; e, obedecendo aos pareceres dos seus melhores cientistas, renunciou, depois de
longas tentativas, ao povoamento sistemático da África equatorial. O mesmo sucede no geral das colônias
inglêsas, alemãs ou belgas. Basate-nos notar que a estadia regulamentar dos seus agentes oficiais tem o período
máximo de três anos. A volta aos lares nativos é uma medida de segurança indispensável a restaurar-lhes os
organismos combalidos. Dêste modo, a despeito de tão grandes sacrifícios e dispêncdios, e dos prodígios de
engenharia sanitária que transformam a rudeza topográfica dos lugares novos, formando-se uma verdadeira
geografia artística, o que nêles se forma, por fim, são umas sociedades precárias de perpétuos convalescentes
jungidos a dietas inflexíveis e vivendo através das fórmulas inaturáveis dos receituários complexos.
Ora, comparando-se estas colonizações adstritas às cláusulas de rigorosos estatutos - e de efeitos tão escassos -
com o povoamento tumultuário, com a colonização à gandaia do Acre - de resultados surpreendentes - certo não
se faz mister registrar um só elemento para o asserto de que o regime da região malsinada não é apenas
sobradamente superior ao da maioria dos trechos recém-abertos à expansão colonizadora, senão também ao da
grande maioria dos países normalmente habitados.
De fato - à parte o favorável deslocamento paralelo ao equador, demandando as mesmas latitudes - não se
conhece na História exemplo mais golpeante de emigração tão anárquica, tão precipitada e tão violadora dos
mais vulgares preceitos de aclimamento, quanto o da que desde 1879 até hoje atirou, em sucessivas levas, as
populações sertanejas do território entre a Paraíba e o Ceará, para aquêle recanto da Amazônia. Acompanhando-
a, mesmo de relance, põe-se de manifesto que lhe faltou desde o princípio, não só a marcha lenta e progressiva
das migrações seguras, como os mais ordinários resguardos administrativos.
O povoamento do Acre é um caso histórico inteiramente fortuito, fora da diretriz do nosso progresso.
Tem um reverso tormentoso que ninguém ignora: as sêcas periódicas dos nossos sertões do Norte, ocasionando
o êxodo em massa das multidões flageladas. Não o determinou uma crise de crescimento, ou excesso de vida
desbordante, capaz de reanimar outras paragens, dilatando-se em itinerários que são o diagrama visível da
marcha triunfante das raças; mas a escassez da vida e a derrota completa ante as calamidades naturais. As suas
linhas baralham-se nos traçados revoltos de uma fuga. Agravou-o sempre uma seleção natural invertida: todos
os fracos, todos os inúteis, todos os doentes e todos os sacrificados expedidos a êsmo, como o rebotalho das
gentes, para o deserrto. Quando as grandes sêcas de 1879-1880, 1889-1890, 1900-1901 flamejavam sôbre os
sertões adustos, e as cidades do litoral se enchiam em poucas semanas de uma população adventícia de famintos
assombrosos, devorados das febres e das bexigas - a preocupação exclusiva dos podêres públicos consistia no
libertá-las quanto antes daquelas invasões de bárbaros moribundos que infestavam o Brasil. Abarrotavam-se, às
carreiras, os vapôres, com aquêles fardos agitantes consignados à morte. Mandavam-nos para a Amazônia -
vastíssima, despovoada, quase ignota - o que eqüivalia a expatriá-los dentro da própria pátria. A multidão
martirizada, perdidos todos os direitos, rotos os laços de família, que se fracionava no tumulto dos embarques
acelerados, partia para aquelas bandas levando uma carta de prego para o desconhecido; e ia, com os seus
famintos, os seus febrentos e os seus variolosos, em condições de malignar e corromper as localidades mais
salubres do mundo. Mas feita a tarefa expurgatória, não se curava mais dela. Cessava a intervenção
governamental. Nunca, até aos nossos dias, a acompanhou um só agente oficial, ou um médico. Os banidos
levavam a missão dolorosíssima e única de desaparecerem...
E não desapareceram. Ao contrário, em menos de trinta anos, o Estado que era uma vaga expressão geográfica,
um deserto empantanado, a estirar-se, sem lindes, para sudoeste, definiu-se de chôfre, avantajando-se aos
primeiros pontos do nosso desenvolvimento econômico
A sua capital - uma cidade de dez anos sôbre uma tapera de dois séculos - transformou-se na metrópole da maior
navegação fluvial da América do Sul. E naquele extremo sudoeste amazônico, quase misterioso, onde um
homem admirável, William Chandless, penetrara 3.200 quilômetros sem lhe encontrar o fim - cem mil
sertanejos, ou cem mil ressuscitados,, apareciam inesperadamente e repatriavam-se de um modo original e
heróico: dilatando a pátria até aos terrenos novos que tinham desvendado.
Abram-se os últimos relatórios das prefeituras do Acre. Nas suas páginas maravilha-nos mais do que as
transformaçòes sem par que ali se verificam, o absoluto abandono e o completo relaxo com que ainda se efetua
o seu povoamento. Hoje, como há trinta anos, mesmo fora das aperturas e dos tumultos das sêcas, os imigrantes
avançam sem o mínimo resquardo, ou assistência oficial.
No entanto, as populações transplantadas se fixam, vinculadas ao solo; o progresso demográfico é surpreendente
- e das cabeceiras do Juruá à confluência do Abunã alonga-se, cada vez mais procurada, a terra da promissão do
Norte do Brasil.
* * *
O paralelo é expressivo. Não se compreende a reputaçào de insalubridade de um tal clima. Evidentemente o que
se realizou e se realiza ainda, embora em menor escala no Acre, foi a "seleção telúrica", de que nos fala
Kirchoff: uma sorte de magistratura natural, ou revista severa exercida pela natureza nos indivíduos que a
procuram, para só conceder o direito da existência aos que se lhe afeiçoam.
Mas o processo é geral.
Em tôdas as latitudes foi sempre gravíssima nos seus primórdios a afinidade eletiva entre a terra e o homem.
salvam-se os que melhor balanceiam os fatôres do clima e os atributos pessoais. O aclimado surge de um binário
de fôrças físicas e morais que vão, de um lado, dos elementos mais sensíveis, térmicos ou higrométricos, ou
barométricos, às mais subjetivas impressões oriundas dos aspectos da paisagem; e de outro, da resistência vital
da célula ou do tonus muscular, às energias mais complexas e refinadas do caráter. Durante os primeiros
tempos, antes que a transmissão hereditária das qualidades de resistência, adquiridas, garanta a integridade
individual com a própria adaptação da raça, a letalidade inevitável, e até necessária, apenas denuncia os efeitos
de um processo seletivo. Tôda a aclimação é dêsse modo um plebiscito permanente em que o estrangeiro se
elege para a vida. Nos trópicos, é natural que o escrutínio biológico tenha um caráter gravíssimo.
Não há fraudes que lhe minorem as exigências. Caem-lhe sob o exame incorruptível, por igual, - o tuberculoso
inapto à maior atividade respiratória nos ares adurentes, pobres de oxigênio, e o lascivo desmandado; o cardíaco
sucumbido pela queda da tensão arterial, e o alcoólico candidato contumaz a tôdas as endemias; o infático
colhido de pronto pela anemia e o glutão; o noctívago desfibrado nas vigílias, ou o indolente estagnado nas
sestas enervantes; e o colérico, o neurastênico de nervos a vibrarem nos ares eletrizados, descompassadamente,
sob o influxo misterioso dos firmamentos deslumbrantes, até aos paroxismos da demência tropical que o
fulmina, de pancada, como uma espécie de insolação do espírito.
A cada deslize fisiológico ou moral antepõe-se o coretivo da reação física. E chama-se insalubridade o que é um
apuramento, a eliminação generalizada dos incompetentes. Ao cabo verifica-se algumas vêzes que não é o clima
que é mau; é o homem.
Foi o que suedeu em grande parte no Acre. As turmas povoadoras que para lá seguiram, sem o exame prévio dos
que as formavam e nas mais deploráveis condições de transporte, deparavam, além de tudo isto, com um estado
social que ainda mais lhes engravescia a instabilidade e a fraqueza.
Aguardava-as e ainda as aguarda, bem que numa escala menor, a mais imperfeita organização do trabalho que
ainda engenhou o egoísmo humano.
Repitamos. O sertanejo emigrante realiza, ali, uma anomalia sôbre a qual nunca é demasiado insistir: é o homem
que trabalha para escravizar-se.
Enquanto o colono italiano se desloca de Gênova à mais remota fazenda de S. Paulo, paternalmente assistido
pelos nossos podêres públicos, o cearense efetua, à sua custa e de todo em todo desamparado, uma viagem mais
difícil, em que os adiantamentos feitos pelos contratadores insaciáveis, inçados de parcelas fantásticas e de
preços inauditos, o transformam as mais das vêzes em devedor para sempre insolvente.
A sua atividade, desde o primeiro golpe de machadinha, constringe-se para logo num círculo vicioso inaturável:
o debater-se exaustivo para saldar uma dívida que se avoluma, ameaçadoramente, acompanhando-lhe os
esforços e as fadigas para saldá-la.
E vê-se completamente só na faina dolorosa. A exploração da seringa, neste ponto pior que a do caucho, impõe
o isolamento. Há um laivo siberiano naquele trabalho. Dostoïewski sombrearia as suas páginas mais lúgubres
com esta tortura: a do homem constrangido a calcar durante a vida inteira a mesma "estrada", de que êle é o
único transeunte, trilha obscurecida, estreitíssima e circulante, que o leva, intermitentemente e
desesperadamente, ao mesmo ponto de partida. Nesta emprêsa de Sísifo, a rolar em vez de um bloco o seu
próprio corpo - partindo, chegando e partindo - nas voltas constritoras de um círculo demoníaco, no seu eterno
giro de encarcerado numa prisão sem muros, agravada por um ofício rudimentar que êle aprende em uma hora
para exercê-lo tôda a vida, automàticamente, por simples movimentos reflexos - se não o enrija uma sólida
estrutura moral, vão-se-lhe, com a inteligência atrofiada, tôdas as esperanças, e as ilusões ingênuas, e a
tonificante alacridade que o arrebataram àquele lance, à aventura, em busca da fortuna.
Paralelamente, a decadência orgânica.
A alimentação, que é a base mais firme da higiene tropical, não lha fornece, durante largos anos, a mais
rudimentar cultura. Constitui-se, ao revés de todos os preceitos, adstrita aos fornecimentos escassos de tôdas as
conservas suspeitas e nocivas, com o derivativo aleatório das caçadas.
Sobretudo isto, o abandono. O seringueiro é, obrigatòriamente, profissionalmente, um solitário.
Mesmo no Acre pròpriamente dito, onde a densidade maior das árvores de borracha permite a abertura de 16
"estradas" numa légua quadrada, tôda esta área capaz de sustentar, de acôrdo com a unidade agrícola corrente,
cinqüenta famílias de pequenos lavradores, requer a atividade de oito homens apenas, que lá se espalham e
raramente se vêem. Calcule-se um seringal médio, de duzentas "estradas": tem cêrca de 15 léguas quadradas; e
êste latifúndio, que se povoaria à larga com 3.000 habitantes ativos, comporta apenas a população invisível de
100 trabalhadores, exageradamente dispersos.
É a conservação sistemática do deserto, e a prisão celular do homem na amplitude desafogada da terra.
* * *
Ante êstes lineamentos de um quadro social tão anômalo, não é apenas opinável a letalidade do Acre. O que
ressalta, irreprimível, é o conceito de uma salubridade capaz de garantir tantas existências submetidas a tão
imperfeito regime. Acredita-se até que as características tropicais meramente teóricas, se reduzem aos paralelos
de baixas latitudes, de 8&ordm; a 11&ordm;, que interferem a região; e aquilatando-se a influência moderadora
sem dúvida exercida pela estupenda massa de florestas, que a circulam e a invadem, chega-se a concluir que
ulteriores observações meteorológicas, mal iniciadas agora, talvez lhe apaguem nos mapas a isoterma de 25
graus que a êsmo lhe traçaram.
Porque a despeito do incorreto e do vicioso do povoamento e da vida, a sociedade recém-chegada aclima-se e
progride.
Ao mais incurioso viajante que perlustre o Purus não escapa a transformação lenta e contínua.
O primitivo explorador vai, afinal, ajustando-se ao solo, sôbre o qual pisou durante tanto tempo indiferente. As
suas barracas desafogam-se nas derrubadas; e já nas praias, que as vazantes desvendam, já nos "firmes", a
cavaleiro das cheias, se delineiam as primeiras áreas de cultura. Os tristonhos barracões cobertos de fôlhas de
ubuçu, transmudam-se em vivendas regulares, ou amplos sobrados de pedrra e cal. Sebastopol, Canacori, S. Luís
de Cassianã, Itatuba, Realeza, e dezenas de outros sítios do Baixo-Purus; Liberdade e Concórdia, nos mais
longínquos trechos, com as suas casas numerosas, que se arruam às vêzes ao lado de pequenas igrejas, ampliam-
se em verdadeiras vilas. São a imagem material do domínio e da posse definitiva.
A evolução é, dêste modo, tangível.
Delatam-na até os nomes originais, extravagantes alguns, mas eloqüentes todos, das primitivas e das recentes
fundações. Na terra sem história os primeiros fatos escrevem-se, esparsos e desunidos, nas denominações dos
sítios. De um lado está a fase inicial e tormentosa da adaptação, evocando tristezas, martírios, até gritos de
desalento ou de socorro; e o viajante lê nas grandes tabuletas suspensas às paredes das casas, de chapa para o
rio: Valha-nos Deus, Saudades, S. João da Miséria, Escondido, Inferno... De outro um forte renascimento de
esperanças e a jovialidade desbordante das gentes redimidas: Bom Princípio, Nôvo Encanto, Triunfo, Quero
ver!, Liberdade, Concórdia, Paraíso...
À medida que se sobe o rio a renascença se acentua. Passada a confluência do Acre vai-se, em vários trechos,
entre as estâncias que se defrontam ou se ligam às margens, como se se percorresse cultíssima paragem há muito
descoberta. Nada mais do tôsco e do brutesco dos primitivos abarracamentos.
Em Catiana, em Macapá, como nas demais a montante, até à última, Sobral, com a minúscula plantação de
cafeeiros que lhe bastam ao consumo, nota-se em tudo, da pequena cultura que se generaliza, aos pomares bem
cuidados, o esfôrço carinhoso do povoador que aformoseia a terra para não mais a abandonar.
E os homens são admiráveis.
Vimo-los de perto; conversamo-los.
Guardamos-lhes os nomes e os apelidos bizarros - do opulento Caboclo-Real, da Cachoeira, ao gárrulo Cai
N’água das cercanias do Chandless; do velho João Amarelo, que fundou Catai, e leva ainda, sem titubear, pelos
torcicolos das "estradas", os seus setenta anos trabalhosos, ao destemeroso Antônio Dourado, da Terra Alta,
impecável atirador de rifle, cujos lances de ousadia nas arrancadas de 1903, com os caucheiros, são uma página
vibrante de bravura.
Considerando-os, ou revendo-lhes a integridade orgânica a ressaltar-lhes das musculaturas interiças, ou a beleza
moral das almas varonis que derrotaram o deserto - e recordando as circunstâncias lastimáveis, que os rodearam
nos primeiros dias do povoamento ou que ainda os rodeiam, porventura minoradas - não se lhes explicam as
existências vigorosas sob regime climatológico tão maligno e bruto como o que se fantasiou no Acre.
Não vinga, ademais, o argumento de que o sertanejo nortista, ou mais incisivamente, o jagunço, dotado da
abstinência pastoral e guerreira do árabe, se tenha apercebido para o nôvo habitat, sob a disciplina inexorável
das sêcas, além de haver-se deslocado seguindo mais ou menos os paralelos do torrão nativo
O Purus e o Juruá abriram-se há muito à entrada dos mais díspares forasteiros - do sírio, que chega de Beirute, e
vai pouco a pouco suplantando o português no comércio do "regatão"; ao italiano aventuroso e artista que lhes
bate as margens, longos meses, com a sua máquina fotográfica a colecionar os mais típicos rostos de silvícolas e
aspectos bravios de paisagens; ao saxônio fleumático, trocando as suas brumas pelos esplendores dos ares
equatoriais. E, na grande maioria, lá vivem todos; agitam-se, prosperam e acabam longevos.
Registre-se êste caso. Em 1872, Barrington Brown e William Lidstone percorreram o Baixo-Purus, até
Huitanaã, embarcados na lancha Guajará, sob o comando do Capitão Hoefner, a german speaking both english
and portuguese in addition, consoante explicam os dois viajantes no interessante livro que escreveram.
Há trinta e cinco anos...
E o Capitão Hoefner lá está, eterno comandante de lancha, a mourejar sem descanso sôbre aquelas águas
malditas, onde fervilham os piuns sugadores, os carapanãs emissários das febres, e se espalmam, derivando à
feição da correnteza insensível, os mururés boiantes, de flôres violáceas recordando as grinaldas tristonhas dos
enterros. Mas não agourentaram o germano.
Vimo-lo, em fins de 1905, na confluência do Acre. É um velho vivaz e prestadio, diligente e ativo, de rosto
aberto e rosado, emoldurado de cabelos inteiramente brancos. Se aparecesse em Berlim, mal lhe descobririam na
pele, de leve amorenada, o sombrio estigma dos trópicos.
Multiplicam-se os casos dêste teor, acordes todos na extinção de uma lenda.
Resta, talvez, à teimosia no propagá-la, um derradeiro argumento: aquêles caboclos rijos e êsse saxônico
excepcional não são efeitos do meio; surgem a despeito do meio; triunfam num final de luta, em que
sucumbiram, em maior número, os que se não aparelhavam dos mesmos requisitos de robustez, energia e
abstinência.
Neste caso atiremos de lado, de uma vez, um estéril sentimentalismo e reconheçamos naquele clima um função
superior. Ante as circunstâncias nocivas que originaram e impulsionaram o povoamento do Acre, largos anos
aberto à intrusão de tôdas as moléstias e de todos os vícios favorecidos pela indiferença dos podêres públicos,
êle exercitou uma fiscalização incorruptível, libertando aquêle território de calamidades e desmandos, que
seriam além de tôda a proporção, muito maiores do que os que ainda hoje lá se observam.
Policiou, saneou, moralizou. Elegeu e elege para a vida os mais dignos. Eliminou e elimina os incapazes, pela
fuga ou pela morte.
E é por certo um clima admirável o que prepara as paragens novas para os fortes, para os perseverantes e para
os bons.
Os Caucheiros
Aquém da margem direita do Ucaiáli e das terras onduladas, onde se formam os manadeiros do Javari, do Juruá
e do Purus, apareceu há cêrca de cinqüenta anos uma sociedade nova. Formara-se obscuramente. Perdida longo
tempo no afogado das selvas, apenas a conheciam raros comerciantes do Pará, onde, desde 1862, começaram a
chegar, provindas daqueles pontos remotos, as pranchas pardo-escuras de uma outra goma elástica concorrente
com a seringa às exigências da indústria.
Era o caucho. E caucheiros apelidaram-se para logo os aventurosos sertanistas que batiam atrevidamente
aquêles rincões ignorados.
Vinham do ocidente, transpondo os Andes e suportando todos os climas da Terra, dos litorais adustos do
Pacífico às punas enregeladas das cordilheiras. Entre êles e o torrão nativo ficavam duas muralhas altas de seis
mil metros e um longo valo escancelado em abismos. Adiante os plainos amazônicos: um estiramento de
centenares de milhas para NE, a perder-se, indefinido, na prolongação atlântica, sem a ajuda de um cêrro
balizando a imensidade.
Nunca se armou tão imponente cenário a tão pequeninos atôres.
É natural que os sertanistas pervagassem largos anos, esparsos, diminutos, invisíveis, tateantes no perpétuo
crepúsculo daquelas matas longínquas, onde, mais sérias que o desmedido das distâncias e os bravios da
espessura, outras dificuldades lhes renteavam ou perturbavam os passos vacilantes.
Realmente, tôda a zona em que se traça, ainda pontuada, a linha limítrofe brasílio-peruana, e irradiam para os
quadrantes os formadores do Purus e do Juruá, as vertentes mais setentrionais do Urubamba e os últimos
esgalhos do Madre de Diós, figurava entre as mais desconhecidas da América, menos em virtude de suas
condiçòes físicas excepcionais, vencidas em 1844 por F. Castelnau, que pelo renome temeroso das tribos que a
povoam e se tornaram, sob o nome genérico de chunchos, o máximo pavor dos mais destemerosos pioneiros.
Não há nomeá-las tôdas. Quem sobe o Purus, contemplando de longe em longe, até às cercanias da Cachoeira,
os paumaris rarescentes, mal recordando os antigos donos daquelas várzeas; e dali para montante os ipurinás
inofensivos; ou a partir do Iaco, os tucunas que já nascem velhos, tanto se lhes reflete na compleição tolhiça a
decrepitude da raça - tem a maior das surprêsas ao deparar nas cabeceiras do rio com os silvícolas singulares que
as animam. Discordes nos hábitos e na procedência, lá se comprimem em ajuntamento forçado; os amauacas
mansos que se agregam aos puestos dos extratores do caucho; os coronauas indomáveis, senhores das cabeceiras
do Curanja; os piros acobreados, de rebrilhantes dentes tintos de resina escura que lhes dão aos rostos, quando
sorriem, indefiníveis traços de ameaças sombrias; os barbudos caxibos afeitos ao extermínio em correrias de
duzentos anos sôbre os destroços das missões do Pachitéa; os conibos de crânios deformados e bustos
espantadamente listrados de vermelho e azul; os setebos, sipibos e iurimauas; os mashcos corpulentos, do Mano,
evocando no desconforme da estatura os gigantes fabulados pelos primeiros cartógrafos da Amazônia; e, sôbre
todos, suplantando-os na fama e no valor, os campas aguerridos do Urubamba...
A variedade das cabildas em área tão reduzida trai a pressão estranha que as sonstringe. O ajuntamento é
forçado.
Elas estão, evidentemente, nos últimos redutos para onde refluíram no desfecho de uma campanha secular, que
vem do apostolado das Maynas às expedições modernas e cujos episódios culminantes se perderam para a
História.
O narrados dêstes dias chega no final de um drama, e contempla supreendido o seu último quadro prestes a
cerrar-se.
A civilização, bàrbaramente armada de rifles fulminantes, assedia completamente ali a barbaria encantoada: os
peruanos pelo ocidente e pelo sul; os brasileiros em todo o quadrante de NE; no de SE, trancando o vale do
Madre de Diós, os bolivianos.
E os caucheiros aparecem como os mais avantajados batedores da sinistra catequese a ferro e fogo, que vai
exterminando naqueles sertões remotíssimos os mais interessantes aborígenes sul-americanos.
* * *
Esta missão histórica advém-lhes da fragilidade de uma árvore. O caucheiro é forçadamente um nômade votado
ao combate, à destruição e a uma vida errante ou tumulturária, porque a castilloa elástica que lhe fornece a
borracha apetecida, não permite, como as heveas brasileiras, uma exploração estável, pelo renovar
periòdicamente o suco vital que lhe retiram. É execepcionalmente sensível. Desde que a golpeiem, morre, ou
definha durante largo tempo, inútil. Assim o extrator derruba-a de uma vez para aproveitá-la tôda. Atora-a,
depois, de metro em metro, desde as sapopembas aos últimos galhos das frondes; e abrindo no chão, ao longo do
madeiro derrubado, rasas cavidades retangulares correspondentes às secções dos toros, delas retira, ao fim de
uma semana, as pranchas valiosas, enquanto os restos aderidos à casca, nos rebordos dos cortes, ou esparsos a
êsmo pelo solo, constituem, reunidos, o sernambi de qualidade inferior.
O processo, como se vê, é rudimentar e rápido. Esgota-se em pouco tempo o cauchal mais exuberante; e como
as castilloas não se distribuem regularmente pelas matas, viçando em grupos por vêzes bastante separados, os
exploradores deslocam-se a outros rumos, reeditando quase sem variantes tôdas as peripécias daquela vida
aleatória de caçadores de árvores.
Dêste modo o nomadismo impõe-se-lhes. É-lhes condição inviolável de êxito. Afundam temeràriamente no
deserto; insulam-se em sucessivos sítios e não revêem nunca os caminhos percorridos. Condenados ao
desconhecido, afeiçoam-se às paragens ínvias e inteiramente novas. Alcançam-nas: abandonam-nas.
Prosseguem e não se restribam nas posições às vêzes àrduamente conquistadas.
Atingindo qualquer trecho onde os pés de caucho se descubram, levantam à beira de uma quebrada o primeiro
tambo de paxiúba, e atiram-se à tarefa agitadíssima. Os seus primeiros instrumentos de trabalho são a carabina
Winchestewr - o rifle curto adrede disposto aos recontros no trançado das ramarias -, o machete cortante que
lhes destrana os cipoais, e a bússola portátil, norteando-se no embaralhado das veredas. Tomam-nos e lançam-se
a uma revista cautelosa das cercanias. Vão em busca do selvagem que devem combater e exterminar ou
escravizar, para que do mesmo lance tenham tôda a segurança no nôvo pôsto de trabalhos e braços que lhos
impulsionem.
São bem poucos às vêzes os que se abalançam a esta preliminar obrigatória e temerária: meia dúzia de homens,
dispersando-se e mergulhando silenciosamente na espessura. E lá se vão, perquirindo e sondando todos os
recessos; batendo palmo a palmo todos os recantos suspeitos; anotando de cor, num exaustivo levantamento
topográfico, de memória, os mais variados acidentes; ao mesmo passo que com os olhos e ouvidos armados aos
mais fugitivos aspectos e aos mais vagos rumôres dos ares murmurantes da floresta, vão premunindo-se dos
resguardos e ardilezas que se exigem naquele assombroso duelo sevilhano com o deserto.
Alguns não tornam mais. Outros, volvem indenes aos pousos, depois da perquirição inútil. Algum, porém, ao
cabo da pesquisa fatigante, lobriga ao longe, meio indistintas nas folhagens, as primeiras cabanas do selvagem.
Mal refreia um grito de triunfo, e não volve logo a comunicar aos companheiros o achado.
Refina a sua astúcia extraordinária. Cose-se com o chão, e, de rastros, fareando el peligro, aproxima-se quando
pode do inimigo descuidado.
Há, realmente, neste lance, um traço comovente de heroísmo. O homem perdido na solidão absoluta vai
procurar o bárbaro, levando a escolta única das dezoito balas de seu rifle carregado.
É um rastejamento longo, tortuoso e lento, em que êle aproveita todos os acidentes, encobrindo-se por detrás
dos troncos ou entaliscando-se nos ângulos das sapopembas, deslizando sem ruído sôbre as camadas das ramas
decompostas, ou insinuando-se entre as hastes unidas das helicônias de largas fôlhas protetoras, até que possa,
no têrmo da investida surda e angustiosa, contemplar e ouvir de perto, quase à orla do terreiro claro, os
adversários inexpertos, e inscientes do civilizado sinistro que os espia e os conta e lhes observa as maneiras e
lhes avalia os recursos - e volta depois do exame minucioso, levando aos companheiros, que o aguardam, todos
os informes necessários à "conquista".
Conquita é o têrmo predileto, usado por uma espécie de reminiscência atávica das antiqüíssimas algaras dos
condutícios de Pizarro. Mas não a efetuam pelas armas sem esgotarem os efeitos da diplomacia rudimentar dos
presentes mais apetecidos do selvagem. A um ouvimos certa vez o processo seguido: "Se los atrae al tambo por
medio de regalos: ropa, rifles, machetes, etc.; y sin hacerlos trabajar, se les deja que vayan al tolderio a decir a
sus compañeros el como son tratados por los caucheros, que nos los obligan a trabajar, sino que les aconsejan
que trabajen un poco y a voluntad, para pagar aquello que les dieron..."
Êstes meios pacíficos, porém, são em geral falíveis. A regra é a caçada impiedosa, à bala. É o lado heróico da
emprêsa: um grupo inapreciável arrojando-se à montaria de uma multidão.
Não se lhe pormenorizam os episódios.
Subordina-se a uma tática invariável: a máxima rapidez do tiro e a máxima temeridade. São garantias certas do
triunfo. É incalculável o número de minúsculas batalhas travadas naqueles sertões onde reduzidos grupos bem
armados suplantam tribos inteiras, sacrificadas a um tempo pelas suas armas grosseiras e pela afoiteza no
arremeterem com as descargas rolantes das carabinas.
Citemos um exemplo único. Quando Carlos Fiscarrald chegou em 1892 às cabeceiras do Madre de Diós, vindo
do Ucaiáli pelo varadouro aberto no istmo que lhe conserva o nome, procurou captar do melhor modo os
mashcos indomáveis que as senhoreavam. Trazia entre os piros que conquistara um intérprete inteligente e leal.
Conseguiu sem dificuldades ver e conservar o curaca selvagem.
A conferência foi rápida e curiosíssima.
O notável explorador, depois de apresentar ao "infiel" os recursos que trazia e o seu pequeno exército, onde se
misturavam as fisionomias díspares das tribos que subjugara, tentou demonstrar-lhe as vantagens da aliança que
lhe oferecia contrapostas aos inconvenientes de uma luta desastrosa. Por única resposta o mashco perguntou-lhe
pelas flexas que trazia. E Fiscarrald entregou-lhe, sorrindo, uma cápsula de Winchester.
O selvagem examinou-a, longo tempo, absorto ante a pequenez do projétil. Procurou, debalde, ferir-se, roçando
rijamente a bala contra o peito. Não o conseguindo, tomou uma de suas flexas; cravou-a, de golpe, no outro
braço, varando-o. Sorriu, por sua vez, indiferente à dor, contemplando com orgulho o seu próprio sangue que
esguichava... e sem dizer palavra deu as costas ao sertanista surpreendido, voltando para o seu tolderío com a
ilusão de uma superioridade que a breve trecho seria inteiramente desfeita. De fatom meia hora depois, cêrca de
cem mashcos, inclusive o chefe recalcitrante e ingênuo, jaziam trucidados sôbre a margem, cujo nome, Playa
Mashcos, ainda hoje relembra êste sanguinolento episódio...
Assim vai desbravando-se a região bravia. Varejadas as redondezas, mortos ou escravizados num raio de
poucas léguas os aborígenes, os caucheiros agitam-se febrilmente na azáfama estonteadora. Em alguns meses ao
lado do primitivo tambo multiplicam-se outros; a casucha solitária transmuda-se em amplo barracón ou
embarcadero ruidos; e adensam-se por vêzes as vivendas em caseríos, a exemplo de Cocama e Curanja, à
margem do Purus, a espelharem, repentinamente, no deserto, a miragem de um progresso que surge, se
desenvolve e acaba num decênio. Os caucheiros ali estacionam até que caia o último pé de caucho. Chegam,
destróem, vão-se embora. Nada pedem, em geral, à terra, à parte exíguas plantações de iúcas e bananas, a que se
dedicam os índios domesticados. A única agricultura regular, embora diminuta, que se observa no Alto-Purus,
para lá das últimas barracas dos nossos seringueiros, e a do algodão, dos campas aldeados, que até nisto delatam
a independência nativa: colhendo, cardando, fiando, tecendo e pintando as cushmas de que se revestem, e
descem-lhes dos ombros até aos pés, com o feitio de longas togas grosseiras. Assim, entre os estranhos
civilizados que ali chegam de arrancada para ferir e matar o homem e a árvore, estacionando apenas o tempo
necessário a que ambos se extingam, seguindo a outros rumos onde renovam as mesmas tropelias, passando
como uma vaga devastadora e deixando ainda mais selvagem a própria selvageria - aquêles bárbaros singulares
patenteiam o único aspecto tranqüilo das culturas. O contraste é empolgante. Seguindo do povoado campa de
Tingoleales para o sítio peruano de Shamboyaco, perto da foz do Rio Manuel Urbano, o viajante não passa,
como a princípio acredita, dos estádios mais primitivos aos mais elevados da evolução humana. Tem uma
surprêsa maior. Vai da barbaria franca a uma sorte de civilização caduca em que todos os estigmas daquela
ressaltam, mais incisivos, dentre as próprias conquistas do progresso.
Aborda a estância peruana; e nas primeiras horas encanta-o o quadro de uma existência movimentada e ruidosa.
A vivenda principal e as que se lhe subordinam, arruadas alguma vez à maneira de pequenas vilas, erigem-se
sempre num ponto bem escolhido a cavaleiro do rio; e a despeito de se construírem exclusivamente com as
fôlhas e estípites da paxiúba - que é a palmeira providencial da Amazônia - são em geral de dois andares e têm
na elegância das linhas e nas varandas desafogadas, que as circuitam, uma aparência de todo contraposta ao
aspecto tristonho dos chatos barracões dos nossos seringueiros.
No terreiro amplo, acabando na crista da baranca caindo em talude vivo sôbre o rio, uma agitação animadora e
álacre; carregadores possantes passando em longas filas sucessivas arcados sob as pranchas de caucho;
administradores ativos rompendo das portas do andar térreo e correndo para tôda a banda, para os armazéns
refertos de conservas ou para as tendas fulgurantes, onde estridulam malhos e bigornas, reparando as achas e
machetes.
Embaixo no embarcadero, coalhado das ubás velozes, onde as tanganas fisgam vivamente os ares, vozeia a
algazarra dos práticos e proeiros, e espalmam-se nas águas as balsas feitas exclusivamente de caucho, formando-
se sôbre o "caminho que marcha" a "mercadoria que conduz os condutores". E em todo o correr da ladeira que
dali serpeia até em cima, as saias vermelhas e os corpinhos brancos das cholas graciosas de Iquitos, passando e
entrecruzando-se, num embandeiramento festivo...
O viajante atravessa os grupos agitados e as surprêsas não cessam. Galga a escada que o leva à varanda da
frente, para onde dão os principais repartimentos da vivenda. No alto o caucheiro - um triunfador jovial e
desempenado sôbre os rijos tacões das suas botas de mateiro - recebe-o ruidosamente, abrindo-lhe de par em par
as portas numa hospitalidade espetaculosa e franca. E completa-se o encanto. Extinta a noção do tempo, ou do
longo espaço de milhares de quilômetros gastos no sulcar os rios solitários para atingir aquela estância
longínqua, o forasteiro insensìvelmente se imagina em algum entreposto comercial de qualquer cidade da costa.
Nada lhe falta ao engano: o longo balcão de pinho abarreirando a sala principal e cerrando o recinto, onde se
aprumam as prateleiras atestadas de mercadorias; os empregados solícitos obedientes às ordens do guarda-livros
corretíssimo, que o cumprimentou ao entrar e volveu logo à sua escrita, acurvado sôbre a secretária inclinada; o
copo de cerveja que lhe oferecem, ao invés da chicha tradicional; a folhinha artística a um lado, marcando o dia
certo do ano; os jornais de Manaus e de Lima; e até - o que é inverossímil - a tortura requintada e culta de um
fonógrafo, gaguejando, emperradamente, naquele fundo de desertos, uma ária predileta de tenor famoso...
* * *
Mas tôda esta exterioridade surpreendente desaparece ante uma observação permitindo ao visitante ver o que lhe
não mostra o seu garboso hospedeiro. A desilusão assalta-o então de chôfre; e é impressionadora. Aquêle
reflexo de vida superior não vai além da escassa nesga de chão, de menos de um hectare, constrita entre a mata
ameaçadora e próxima, ao fundo, e a barranca despenhada rio adiante.
Fora dêste falso cenário, o drama real que se desenrola é quase inconcebível para o nosso tempo.
Abaixo do caucheiro opulento, numa escala deplorável, do mestiço loretqno que ali vai em busca de fortuna ao
quíchua deprimido trazido das cordilheiras, há uma série indefinida de espoliados. Para vê-los tem-se que varar
os obscuros recessos da mata sem caminhos e buscá-los nas urmanas solitárias, onde assistem completamente
sós, acompanhados apenas do rifle inseparável, que lhes garante a existência com os recursos aleatórios das
caçadas. Ali mourejam improfàicuamente longos anos; enfermam, devorados das moléstias; e extinguem-se no
absoluto abandono. Quatrocentos homens às vêzes, que ninguém vê, dispersos por aquelas quebradas, e mal
aparecendo de longe em longe no castelo de palha do acalcanhado barão que os escraviza. O "conquistador" não
os vigia. Sabe que lhe não fogem. Em roda, num raio de seis léguas, que é todo o seu domínio, a região, inçada
de outros infieles, é intransponível. O deserto é um feitor perpètuamente vigilante. Guarda-lhe a escravatura
numerosa. Os mesmos campas altanados, que êle captou esgrimindo uma perfídia magistral contra a bravura
ingênua do bárbaro, não o deixam mais, temendo os próprios irmãos bravios, que nunca lhes perdoam a
submissão transitória.
Desta sorte o aventureiro feliz que dois anos antes, em Lima ou Arequipa, exercitava o trato mais gentil - sente-
se inteiramente livre da pressão e dos infinitos corretivos da vida social, e adquirindo a consciência do mando
ilimitado, ao mesmo tempo que o invade o sentimento da impunidade para todos os caprichos e delitos, cai, de
um salto, numa selvageria originalíssima, em que entra sem ter tempo de perder os atributos superiores do meio
onde nasceu.
Realmente, o caucheiro não é apenas um tipo inédito na História. É, sobretudo, antinômico e paradoxal. No
mais pormenorizado quadro etnográfico não há um lugar para êle. A princípio figura-se-nos um caso vulgar de
civilizado que se barbariza, num recuo espantoso em que se lhe apagam os caracteres superiores nas formas
primitivas da atividade.
E é um engano. Êstes estádios contrapostos êle não os combina criando uma atividade híbrida embora, mas
definida e estável. Junta-os apenas sem os caldear. É um caso de mimetismo psíquico de homem que se finge
bárbaro para vencer o bárbaro. É caballero e selvagem, consoante as circunstâncias. O dualismo curioso de
quem procura manter intactos os melhores ensinamentos morais ao lado de uma moral fundada especialmente
para o deserto - reponta em todos os atos da sua existência revôlta. O mesmo homem que com invejável retitude
esforça-se por satisfazer os seus compromissos, que às vêzes sobem a milhares de contos, com os exportadores
de Iquitos ou Manaus, não vacila em iludir o peón miserável que o serve, em alguns quilos de sernambi
ordinário; ou passa por vêzes da mais refinada galanteria à máxima brutalidade, deixando em meio um sorriso
cativante e uma mesura impecável, para saltar com um rugido, de cuchillo rebrilhante em punho, sôbre o cholo
desobediente que o afronta.
A selvageria é uma máscara que êle põe e retira à vontade.
Não há ajustá-la ao molde incomparável dos nossos bandeirantes. Antônio Rapôso, por exemplo, tem um
destaque admirável entre todos os conquistadores sul-americanos. O seu heroísmo é brutal, maciço, sem
frinchas, sem dobras, sem disfarces. Avança ininteligentemente, mecânicamente, inflexìvelmente, como uma
fôrça natural desencadeada. A diagonal de mil e quinhentas léguas que traçou de São Paulo até ao Pacífico,
cortando tôda a América do Sul, por cima de rios, de chapadões, de pantanais, de corixas estagnadas, de
desertos, de cordilheiras, de páramos nevados e de litorais aspérrimos, entre o espanto e as ruínas de cem trilhos
suplantadas, é um lance apavorante, de epopéia. Mas sente-se bem naquela ousadia individual a concentraçào
maravilhosa de tôdas as ousadias de uma época.
O bandeirante foi brutal, inexorável, mas lógico.
Foi o super-homem do deserto.
O caucheiro é irritantemente absurdo na sua brutalidade elegante, na sua galanteria sanguinolenta e no seu
heroísmo à gandaia. É o homúnculo da civilização.
Mas compreende-se esta antilogia. O aventureiro ali vai com a preocupação exclusiva de enriquecer e voltar;
voltar quanto antes, fugindo àquela terra melancólica e empantanada que parece não ter solidez para agüentar o
próprio pêso material de uma sociedade. Acompanha-o, em tôdas as conjunturas da sua atividade nervosa e
precipitada, o espetáculo das cidades vastas, onde brilhará um dia, transformado em esterlinos o oro negro do
caucho. Dominado de todo pela nostalgia incurável da paragem nativa, que êle deixou precisamente para a rever
apercebido de recursos que lhe facultem maiores somas de felicidades - atira-se às florestas: enterreira e subjuga
os selvagens; resiste ao impaludismo e às fadigas; agita-se, adoidadamente, durante quatro, cinco, seis anos;
acumula algumas centenas de milhares de soles e desaparece, de repente...
Surge em Paris. Atravessa em pleno esplendor dos teatros ruidosos e dos salões, seis meses de vida delirante,
sem que lhe descubram, destoando da correção impecável das vestes e das maneiras, o mais leve resquício do
nomadismo profissional. Arruína-se galhardamente; e volta... Reata a faina antiga: novos quatro ou seis anos de
trabalhos forçados; nova fortuna prestes adquirida; nôvo volver ansioso em busca da fortuna perdidiça, numa
oscilação estupenda das avenidas fulgurantes para as florestas solitárias.
A êste propósito correm as mais curiosas versões, em que se destacam famosos caucheiros conhecidíssimos em
Manaus.
Neste viver oscilante êle dá a tudo quanto pratica, na terra que devasta e desama, um caráter provisório - desde
a casa que constrói em dez dias para durar cinco anos, às mais afetuosas ligações que às vêzes duram anos e êle
destrói num dia. Neste ponto, sobretudo, desenha-se-lhe a inconstância irrivalizável. Um dêles, como lhe
perguntássemos, em Curanja, onde desposara a amauaca gentilíssima que lhe assistia há dez anos com os
desvelos de uma espôsa exemplar, retorquiu-nos, levemente irônico:
- Me han hecho regalo em Pachitéa.
Um regalo, um presente, um traste que êle abandonaria à primeira eventualidade, sem cuidados.
Reportado negociante daquele vilarejo decaído, que em Lima ou Iquitos seria um belo molde de burguês
pacífico e abstêmio, ali hambriento de mujeres, apresenta aos amigos e ao forasteiro adventício, o seu harém
escandaloso, onde se estremam a interessante Mercedes, de ojillos de venado, que custou uma batalha contra os
coronauas, e a encantadora Facunda de grandes olhos selvagens e cismadores, que lhe custou cem soles. E narra
o tráfico criminoso, a rir, absolutamente impune, e sem temores.
Não há leis. Cada um traz o código penal no rifle que sobraça, e exercita a justiça a seu alvedrio, sem que o
chamem a contas. Num dia, de julho de 1905, quando chegava ao último puesto caucheiro do Purus uma
comissão mi9sta de reconhecimento, todos os que a compunham, brasileiros e peruanos, viram um corpo
desnudo e atrozmente mutilado, lançado à margem esquerda do rio, num claro entre as frecheiras. Era o cadáver
de uma amauaca. Fôra morta por vingança, explicou-se vagamente depois. E nào se tratou mais do incidente -
coisa de nonada e trivialíssima na paragem revolvida pelas gentes que a atravessam e não povoam, e passam
deixando-a ainda mais triste com os escombros das estâncias abandonadas...
* * *
Estas lá estão em tôdas as voltas do Alto-Purus, aparecendo, entristecedoras, sob os vários aspectos que vão das
urmanas humildes dos peões às vivendas outrora senhoris dos caucheiros.
Pouco acima do Shamboyaco, uma, sôbre tôdas, nos impressionou, quando descíamos.
Fôra um pôsto de primeira ordem. Saltamos para o examinar; e vingando a custo a barranca malgradada,
descobrindo em cima o velho caminho invadido de vassouras bravas, chegamos ao terreiro onde o matagal
inextricável ia peneirando e cobrindo os acervos de vasilhas velhas, farragens repugnantes, restos de
ferramentas, e ciscalhos em montes deixados pelos prófugos habitantes. A casa principal, defronte, meio
estruída, tetos abatidos, paredes encombentes e a tombarem despegando-se dos esteios desaprumados, figurava-
se sustida apenas pelas lianas que lhe irrompiam de todos os pontos, furando-lhe a cobertura, enleando-se-lhe
nas vigas vacilantes, amarrando-lhas, e estirando-se à feição de cabos até as árvores mais próximas, onde se
enlaçavam impedindo-lhe o desabamento completo; e as vivendas menores, anexas, cobertas de trepadeiras
exuberando floração ridente, apagavam-se, desaparecendo a pouco e pouco na constrição irresistível da mata
que reconquistava o seu terreno primitivo.
Mal atentamos, porém, no magnífico lance regenerador, da flora, juncando de corolas e festões garridos aquela
ruinaria deplorável. Não estava inteiramente desabitada a tapera.
Num dos casebres mais conservados aguardava-nos o último habitante. Piro, amauaca ou campa, nào se lhe
distinguia a origem. Os próprios traços da espécie humana, transmudava-lhos a aparência repulsiva: um tronco
desconforme, inchado pelo impaludismo, tomando-lhe a figura tôda, em pleno contraste com os braços finos e
as pernas esmirradas e tolhiças como as de um feto monstruoso.
Acocorado a um canto, contemplava-nos impassível. Tinha a um lado todos os seus haveres: um cacho de
bananas verdes.
Esta coisa indefinível que por analogia cruel sugerida pelas circunstâncias se nos figurou menos um homem que
uma bola de caucho ali jogada a êsmo, esquecida pelos extratores - respondeu-nos às perguntas num regougo
quase extinto e numa língua de todo incompreensível. Por fim, com enorme esforço levantou um braço; estirou-
o, lento, para a frente, como a indicar alguma coisa que houvesse seguido para muito longe, para além de todos
aquêles matos e rios; e balbuciou, deixando-o cair pesadamente, como se tivesse erguido um grande pêso:
- "Amigos".
Compreendia-se: amigos, companheiros, sócios dos dias agitados das safras, que tinham partido para aquelas
bandas, abandonando-o ali, na solidão absoluta.
Das palavras castelhanas que aprendera restava-lhe aquela única; e o desventurado murmurando-a como um
tocante gesto de saudade, fulminava sem o saber - com um sarcasmo pungentíssimo - os desmandados
aventureiros que àquela hora prosseguiam na faina devastadora: abrindo a tiros de carabinas e a golpes de
machetes novas veredas a seus itinerários revoltos, e desvendando outras paragens ignoradas, onde deixariam,
como ali haviam deixado, no desabamento dos casebres ou na figura lastimável do aborígene sacrificado, os
únicos frutos de suas lides tumultuárias, de construtores de ruínas...
Judas-Ahsverus
No sábado da Aleluia os seringueiros do Alto-Purus desforram-se de seus dias tristes. É um desafôgo. Ante a
concepção rudimentar da vida santificam-se-lhes, nesse dia, tôdas as maldades. Acreditam numa sanção
litúrgica aos máximos deslizes.
Nas alturas, o Homem-Deus, sob o encanto da vinda do filho ressurreto e despeado das insídias humanas, sorri,
complacentemente, à alegria feroz que arrebenta cá embaixo. E os seringueiros vingam-se, ruidosamente, dos
seus dias tristes.
Não tiveram missas solenes, nem procisões luxuosas, nem lavapés tocantes, nem prédicas comovidas. Tôda a
Semana Santa correu-lhes na mesmice torturante daquela existência imóvel, feita de idênticos dias de penúrias,
os meios jejuns permanentes, de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma interminável Sexta-feira da
Paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefinida, pelo ano todo afora.
Alguns recordam que nas paragens nativas, durante aquela quadra fúnebre, se retraem tôdas as atividades -
despovoando-se as ruas, paralisando-se os negócios, ermando-se os caminhos - e que as luzes agonizam nos
círios bruxuleantes, e as vozes se amortecem nas rezas e nos retiros, caindo um grande silêncio misterioso sôbre
as cidades, as vilas e os sertões profundos onde as gentes entristecidas se associal à mágoa prodigiosa de Deus.
E consideram, absortos, que êsses sete sias excepcionais, passageiros em tôda a parte e em tôda a parte adrede
estabelecidos a maior realce de outros dias mais numerosos, de felicidade - lhes são, ali, a existência inteira,
monótona, obscura, dolorisíssima e anônima, a girar acabrunhadoramente na via dolorosa inalterável, sem
princípio e sem fim, do círculo fechado das "estradas". Então pelas almas simples entra-lhes, obscurecendo as
miragens mais deslumbrantes da fé, a sombra espêssa de um conceito singularmente pessimista da vida: certo, o
Redentor universal não os redimiu; esqueceu-os para sempre, ou não os viu talvez, tão relegados se acham à
borda do rio solitário, que no próprio volver das suas águas é o primeiro a fugir, eternamente, àqueles tristes e
desfreqüentados rincões.
Mas não se rebelam, ou blasfemam. O seringueiro rude, ao revés do italiano artista, não abusa da bondade de
seu deus desmandando-se em convícios. É mais forte; é mais digno. Resignou-se à desdita. Não murmura. Não
reza. As preces ansiosas sobem por vêzes ao céu, levando disfarçadamente o travo de um ressentimento contra a
divindade; e êle não se queixa. Tem a noção prática, tangível, sem raciocínios, sem diluições metafísicas,
maciça e inexorável - um grande pêso a esmagar-lhe inteiramente a vida - da fatalidade; e submete-se a ela sem
subterfugir na covardia de um pedido, com os joelhos dobrados. Seria um esforço inútil. Domina-lhe o critério
rudimentar uma convicção talvez demasiado objetiva, ou ingênua, mas irredutível, a entrar-lhe a todo o instante
pelos olhos a distância que o afasta dos homens; e os grandes olhos de Deus não podem descer até àqueles
brejais, manchando-se. Não lhe vale a pena penitenciar-se, o que é um meio cauteloso de rebelar-se, reclamando
uma promoção na escala indefinida da bem-aventurança. Há concorrentes mais felizes, mais bem protegidos,
mais vistos, nas capelas, nas igrejas, nas catedrais, e nas cidades ricas onde se estadeia o fausto do sofrimento
uniformizado de prêto, ou fulgindo na irradiação das lágrimas, e galhardeando tristezas...
Ali - é seguir, impassível e mudo, estóicamente, no grande isolamento da sua desventura.
Além disto, só lhe é lícito punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares para entregá-lo,
maniatado e escravo, aos traficantes impunes que o iludem - e êste pecado é o seu próprio castigo,
transmudando-lhe a vida numa interminável penitência. O que lhe resta a fazer é desvendá-la e arrancá-la da
penumbra das matas, mostrando-a, nuamente, na sua forma apavorante, à humanidade longínqua...
Ora, para isso, a Igreja dá-lhe um emissário sinistro: Judas; e um único dia feliz: o sábado prefixo aos mais
santos atentados, às balbúrdias confessáveis, à turbulência mística dos eleitos e à divinizaçào da vingança.
Mas o mostrengo de palha, trivialíssimo, de todos os lugares e de todos os tempos, não lhe basta à missão
complexa e grave. Vem batido demais pelos séculos em fora, tão pisoado, tão decaído e tão apedrejado que se
tornou vulgar na sua infinita miséria, monopolizando o ódio universal e apequenando-se, mais e mais, diante de
tantos que o malquerem.
Faz-se-lhe mister, ao menos, acentuar-lhe as linhas mais vivas e cruéis; e mascarar-lhe no rosto de pano, a
laivos de carvão, uma tortura tão trágica, e em tanta maneira próxima da realidade, que o eterno condenado
pareça ressuscitar ao mesmo tempo que a sua divina vítima, de modo a desafiar uma repulsa mais espontânea e
um mais compreensível revide, satisfazendo à saciedade as almas ressentidas dos crentes, com a imagem tanto
possível perfeita da sua miséria e das suas agonias terríveis.
E o seringueiro abalança-se a êsse prodígio de estatuária, auxiliado pelos filhos pequeninos, que deliram,
ruidosos, sem risadas, a correrem por tôda a banda, em busca das palhas esparsas e da farragem repulsiva de
velhas roupas imprestáveis, encantados com a tarefa funambulesca, que lhes quebra tão de golpe a monotonia
tristonha de uma existência invariável e quieta.
O judas faz-se como se fêz sempre: um par de calças e uma camisa velha, grosseiramente cosidos, cheios de
palhiças e mulambos; braços horizontais, abertos, e pernas em ângulo, sem juntas, sem relevos, sem dobras,
aprumando-se, espantadamente, empalado, no centro do terreiro. Por cima uma bola desgraciosa representando a
cabeça. É o manequim vulgar, que surge em tôda a parte e satisfaz à maioria das gentes. Não basta ao
seringueiro. É-lhe apenas o bloco de onde vai tirar a estátua, que é a sua obra-prima, a criação espantosa do seu
gênio rude longamente trabalhado de reveses; onde outros talvez distingam traços admiráveis de uma ironia
sutilíssima, mas que é para êle apenas a expressão concreta de uma realidade dolorosa.
E principia, às voltas com a figura disforme: salienta-lhe e afeiçoa-lhe o nariz; reprofunda-lhe as órbitas;
esbate-lhe a fronte; acentua-lhe os zigomas; e aguça-lhe o queixo, numa massagem cuidadosa e lenta; pinta-lhe
as sobrancelhas, e abre-lhe com dois riscos demorados, pacientemente, os olhos, em geral tristes e cheios de um
olhar misterioso; desenha-lhe a bôca, sombreada de um bigode ralo, de guias decaídas aos cantos. Veste-lhe,
depois, umas calças e uma camisa de algodão, ainda servíveis; calça-lhe umas botas velhas, cambadas...
Recua meia dúzia de passos. Contempla-a durante alguns minutos. Estuda-a.
Em tôrno a filharada, silenciosa agora, queda-se expectante, assistindo ao desdobrar da concepção, que a
maravilha.
Volve ao seu homúnculo: retoca-lhe uma pálpebra; aviva um ricto expressivo na arqueadura do lábio;
sombreia-lhe um pouco mais o rosto, cavando-o; ajeita-lhe melhor a cabeça; arqueia-lhe os braços; repuxa e
reifica-lhe as vestes...
Nôvo recuo, compassado, lento, remirando-o, para apanhar de um lance, numa vista de conjunto, a impressão
exata, a s;intese de tôdas aquelas linhas; e renovar a faina com uma pertinácia e uma tortura de artista
incontentável. Novos retoques, mais delicados, mais cuidadosos, mais sérios: um tenuíssimo esbatido de
sombra, um traço quase imperceptível na bôca refegada, uma torção insignificante no pescoço engravatado de
trapos...
E o monstro, lento e lento, num transfigurar-se insensível, vai-se tornando em homem. Pelo menos a ilusão é
empolgante...
Repentinamente o bronco estatuário tem um gesto mais comovedor do que o parla! ansiosíssimo, de Miguel-
Ângelo: arranca o seu próprio sombreiro; atira-o à cabeça do Judas; e os filhinhos todos recuam, num grito,
vendo retratar-se na figura desengonçada e sinistra o vulto do seu próprio pai.
É um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo: pune-se, afinal, da
ambiçào maldita que o levou àquela terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos da
rebeldia recalcando-o cada vez mais ao plano inferior da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu,
escravo, à gleba empantanada dos traficantes, que o iludiram.
Isto, porém, não lhe satisfaz. A imagem material da sua desdita não deve permanecer inútil num exíguo terreiro
de barraca, afogada na espessura impenetrável, que furta o quadro de suas mágoas, perpètuamente anônimas,
aos próprios olhos de Deus. O rio que lhe passa à porta é uma estrada para tôda a Terra. Que a Terra tôda
contemple o seu infortúnio, o seu exaspêro cruciante, a sua desvalia, o seu aniquilamento iníquo, exteriorizados,
golpeantemente, e propalados por um estranho e mudo pregoeiro...
Embaixo, adrede construída desde a véspera, vê-se uma jangada de quatro paus boiantes, rijamente travejados.
Aguarda o viajante macabro. Condu-lo, prestes, para lá, arrastando-o em descida, pelo viés dos barrancos
avergoados de enxurros.
A breve trecho a figura demoníaca apruma-se, especada, à pôpa da embarcaçào ligeira.
Faz-lhe os últimos reparos: arranja-lhe ainda uma vez as vestes; arruma-lhe às costas um saco cheio de ciscalho
e pedras; mete-lhe à cintura alguma inútil pistola enferrujada, sem fechos, ou um caxerenguengue gasto; e
fazendo-lhe curiosas recomendaçòes, ou dando-lhe os mais singulares conselhos, impele, ao cabo, a jangada
fantástica para o fio da corrente.
* * *
E Judas feito Ahsverus vai avançando vagarosamente para o meio do rio. Então os vizinhos mais próximos, que
se adensam, curiosos, no alto das barrancas, intervêem ruidosamente, saudando com repetidas descargas de
rifles aquêle botafora. As balas chofram a superfície líqüida, erriçando-a; cravam-se na embarcação, lascando-a;
atingem o tripulante espantoso; trespassam-no. Êle vacila um momento no seu pedestal flutuante, fustigado a
tiros, indeciso, como a esmar um rumo, durante alguns minutos, até se reaviar no sentido geral da correnteza. E
a figura desgraciosa, trágica, arrepiadoramente burlesca, com os seus gestos desmanchados, de demônio e truão,
desafiando maldições e risadas, lá se vai na lúgubre viagem sem destino e sem fim, a descer, a descer sempre,
desequilibradamente, aos rodopios, tonteando em tôdas as voltas, à mercê das correntezas, "de bubuia" sôbre as
grandes águas.
Não pára mais. À medida que avança, o espantalho errante vai espalhando em roda a desolação e o terror: as
aves, retransidas de mêdo, acolhem-se, mudas, ao recesso das frondes; os pesados anfíbios mergulham, cautos,
nas profunduras, espavoridos por aquela sombra que ao cair das tardes e ao subir das manhãs se desata
estirando-se, lutuosamente, pela superfície do rio; os homens correm às armas e numa fúria recortada de
espantos, fazendo o "pelo sinal" e aperrando os gatilhos, alvejam-no desapiedadamente.
Não defronta a mais pobre barraca sem receber uma descarga rolante e um apedrejamento.
As balas esfuziam-lhe em tôrno; varam-no; as águas, zimbradas pelas pedras, encrespam-se em círculos
ondeantes; a jangada balança; e, acompanhando-lhe os movimentos, agitam-se-lhe os braços e êle parece
agradecer em canhestras mesuras as manifestações rancorosas em que tempesteiam tiros, e gritos, sarcasmos
pungentes e esconjuros e sobretudo maldições que revivem, na palavra descansada dos matutos, êste eco de um
anátema vibrando há vinte séculos:
- Caminha, desgraçado!
Caminha. Não pára. Afasta-se no volver das águas. Livra-se dos perseguidores. Desliza, em silêncio, por um
estirão retilíneo e longo; contorneia a arqueadura suavíssima de uma praia deserta. De súbito, no vencer uma
volta, outra habitação: mulheres e crianças, que êle surpreende à beira do rio, a subirem, desabaladamente, pela
barranca acima, desandando em prantos e clamores. E logo depois, do alto, o espingardeamento, as pedradas, os
convícios, os remoques.
Dois ou três minutos de alaridos e tumulto, até que o judeu errante se forre ao alcance máximo da trajetória dos
rifles, descendo...
E vai descendo, descendo... Por fim não segue mais isolado. Aliam-se-lhe na estrada dolorosa outros sócios de
infortúnio; outros aleijões apavorantes sôbre as mesmas jangadas diminuta entregues ao acaso das correntes,
surgindo de todos os lados, vários no aspecto e nos gestos: ora muito rijos, amarrados aos postes que os
sustentam; ora em desengonços, desequilibrando-se aos menores balanços, atrapalhadamente, como ébrios; ou
fatídicos, braços alçados, ameaçadores, amaldiçoando; outros humílimos, acurvados num acabrunhamento
profundo; e por vêzes, mais deploráveis, os que se divisam à ponta de uma corda amarrada no extremo do
mastro esguio e recurvo, a balouçarem, enforcados...
Passam todos aos pares, ou em filas, descendo, descendo vagarosamente...
Às vêzes o rio alarga-se num imenso círculo; remansa-se; a sua corrente torce-se e vai em giros muito lentos
perlongando as margens, traçando a espiral amplíssima de um redemoinho imperceptível e traiçoeiro. Os
fantasmas vagabundos penetram nestes amplos recintos de águas mortas, rebalsadas; e estacam por momentos.
Ajuntam-se. Rodeiam-se em lentas e silenciosas revistas. Misturam-se. Cruzam então pela primera vez os
olhares imóveis e falsos de seus olhos fingidos; e baralham-se-lhes numa agitação revôlta os gestos paralisados
e as estaturas rígidas. Há a ilusão de um estupendo tumulto sem ruídos e de um estranho conciliábulo,
agitadíssimo, travando-se em segredos, num abafamento de vozes inaudíveis.
Depois, a pouco e pouco, debandam. Afastam-se; dispersam-se. E acompanhando a correnteza, que se retifica
na última espira dos remansos - lá se vão, em filas, um a um, vagarosamente, processionalmente, rio abaixo,
descendo...
"Brasileiros"
O Peru tem duas histórias fundamentalmente distintas. Uma, a do comum dos livros, teatral e ruidosa, reduz-se
ao romance rocambolesco dos marechais instantâneos dos pronunciamentos. A outra é obscura e fecunda.
Desdobra-se no deserto. É mais comovente; é mais grave; é mais ampla. Prolonga, noutros cenários, as tradições
gloriosas das lutas da Independência; e veio até aos nossos dias tão impartível e sem hiatos, apesar de seus
aspectos variáveis, que pode acapitular-se sob o título único, geralmente adotado pelos melhores publicistas
daquela República: El Problema del oriente.
A designação é perfeita. Trata-se de assunto rigorosamente positivo a resolver.
Ao peruano não lho impuseram maciços argumentos de sociólogos ou a intuição feliz de um estadista, senão o
próprio empuxo material do meio. Constrangida numa fita de terrenos adustos entre as cordilheiras e o mar,
onde acampara durante três séculos iludida pelo fausto dos conquistadores e dos vice-reis, a nacionalidade,
maior herdeira das virtudes e dos vícios por igual notáveis da Espanha cavalheiresca e decaída do século XVII,
compreendeu afinal, pelo simples instinto da defesa, a necessidade imperiosa de abandonar a clausura isolante
que a seqüestrava de todo o resto da Terra.
E começou a transmontar os Andes...
Fôra longo recontar a sua hégira para o levante, nas investidas sucessivas por cinco penosíssimas estradas
desesperadoramente retorcidas no boleado das serras, empinando-se em ladeiras altas de milhares de metros, e
unindo os portos do litoral entre Mollendo e Paita às paragens apetecidas da montaña na extrema orla amazônica
expandida do pongo de Manseriche às urmanas acachoantes do Urubamba.
Baste-nos notar que depois de transposta a última cordilheira do Oriente e atingida a bacia do Ucaiáli, pôs-se de
manifesto aos seus mais incuriosos pioneiros, a par da exuberância do vale maravilhoso capaz de regenerar-lhes
a nacionalidade exausta, uma anomalia física oriunda dos relevos orográficos ali predominantes: a melhor
porção do país entre os que mais se afiguram ribeirinhos do Pacífico, tem como único e verdadeiro mar, capaz
de consorciá-la pelo intercâmbio comercial à civilização longínque, o Atlântico, que se lhe prende graças aos
três longos sulcos desimpedidos do Purus, do Juruá e do Ucaiáli.
Nenhum milagre de engenharia lhos substituirá com vantagem. A linha férrea de Oroya e as que se lhe
emparelham nas ousadias do traçado - tornejando escarpas a pique, enfiando em túneis afogados nas nuvens, e
correndo em viadutos alcandorados nos abismos - não criarão sistemas de comunicações mais práticas e seguras.
As suas condições técnicas excepcionais, industrialmente desastrosas, tornam-nas para sempre impropriadas a
transportarem, sem fretes excessivos, os produtos do Oriente, ainda quando a abertura do Canal de Panamá
dispense, mais tarde, a longa travessia contorneante do Cabo Horn.
Assim, a saída para o Atlântico, pelo Amazonas e seus tributários de sudoeste, se tornou a primeira solução
claríssima do problema. E nas paragens novas, erigidas administrativamente no atual Departamento de Loreto,
começou para logo um intensivo trabalho de domínio, que persiste, crescente, em nossos dias.
Abriram-se caminhos demandando a opulenta zona fluvial; planearam-se, a despeito de sucessivos malogros,
colônias militares e agrícolas, reatou-se, na revivescência das missões apostólicas, a tradição admirável dos
jesuítas de Maynas; engenhou-se uma vasta regulamentação de terras; construiu-se o pôrto de Iquitos, e, para
aviventar-se o povoamento, aboliram-se todos os impostos, agindo o homem aforradamente na terra feracíssima.
Ao mesmo tempo as expedições geográficas, iniciadas em 1834 por P. Beltran e W. Smith, em que tanto se
ilustraram depois F. de Castelnau, Faustino Maldonado, A. Raimondi, John Tucker e hoje G. Stiglich, rumaram
a todos os quadrantes, ininterruptas e pertinazes, na tarefa complexa que era uma espécie de levantamento
expedito de uma nova pátria.
Aos caudilhos irrequietos contrapuseram-se os exploradores tranqüilos. No litoral revôlto pelas sedições e
guerrilhas sistematizava-se a incapacidade crônica dos governos revolucionários, e, derrancados os melhores
estímulos da recente campanha pela liberdade, os bravos salteadores do poder desmandavam-se num
militarismo pernicioso que ali, como em tôda parte, era a fraqueza irritável da nação enfêrma. Nos desertos
floridos da montaña ao arrepio ou à feição dos rios ignorados, remoinhando nos giros estonteantes das muyunas,
canoas despedidas, de frecha, nas correntadas céleres dos pongos, ou embatendo nas travancas abruptas das
cachoeiras - os geógrafos, os prefeitos e os missionários demarcavam novos cenários à pátria regenerada e,
apurando em tirocínio de perigos os mais nobres atributos da sua raça, reconstruíram o caráter nacional que se
abatera, e davam àqueles rumos, secamente definidos por traçados geométricos, um prolongamento inesperado
na História.
Porque o problema do Oriente, afinal, incluía nas suas numerosas incógnitas os destinos do Peru inteiro.
Reconheciam-nos os próprios caudilhos esmaniados. Não raro no estavanado e vacilante de seus atos, entre dois
fuzilamentos ou entre dois combates, acertavam de considerar por momentos as paragens insistentemente
aneladas, e muito dêles, de golpe, transfiguravam-se patenteando lúcidos descortinos de estadistas.
A êste propósito poderiam citar-se numerosos casos delatadores da política bifronte, do mesmo passo
reconstituinte e demolidora, que com o rigorismo de um decalque retrata na ordem moral do Peru o contraste
físico entre o Ocidente obscurecido, onde as energias se quebrantam malignadas pela história emocional
epidêmica dos pronunciamentos - e o Levante resplandecente, onde alvorecem as esperanças renascidas.
* * *
Aponte-se um exemplo.
Em 1841 a República estava a pique das maiores catástrofes. Imperava D. Agustín Gamarra. Aquêle zambo
cesareano refletia nos atos tumultuários os desequilíbrios de seu temperamento instável, de mestiço, ferrotoado
dos temores e das impaciências de um prestígio improvisado, à ventura, nos sobressaltos das guerrilhas.
O seu govêrno - govêrno de quem inaugurou no Peru o regime das deposições apeando o virtuodo La Mar - foi
naturalmente agitadíssimo. O restaurador impôsto pelas armas dos chilenos, de Bulnes, sôbre os destroços da
efêmera confederação perúvio-boliviana, assediado pelas ambições contrariadas, pelas exigências dos
condutícios incontentáveis e pelas ameaças dos conspiradores recidivos, tonteava na vertigem daquela
eminência, onde chegara desprendendo-se da parceria dos cholos e pisoando todos os melindres aristocráticos da
terra que sôbre tôdas herdara a sobranceria tradicional da Espanha. Nas conjunturas prementes dependeu-lhe,
por vêzes, a fortuna, até do gesto de uma mulher - a sua própria espôsa, amazona gentilmente heróica, que não
raro travando de uma espada e precipitando-se, à espora feita, a cavalo, pelo campo das manobras ou no mais
aceso dos combates, ia eletrizar com a presença encantadora os coronéis embevecidos e os regimentos
vacilantes...
Assim não se poderiam exigir à vida em tanta maneira perturbada e romântica, daquele presidente, ponderosas
medidas administrativas. Acompanhamo-la apenas com o interêsse artístico de quem segue a urdidura de
imaginosa novela sulcada de episódios alarmantes, ou dramáticos, até desfechar no sacrifício, inútil e glorioso,
do protagonista, sucumbindo sob uma carga furiosa dos lanceiros bolivianos nas esplanadas de Viacho...
Mas no volver de uma das páginas salteia-nos esta surprêsa:
"El ciudadano Agustín Gamarra - Gran mariscal restaurador del Perú, benemérito a la patria in grado heroico y
eminente, etc.
"Considerando que para promover la navigación por vapor en el rio de Amazonas y sus confluentes és
necesario proporcionar facilidades y ventagens que indemnicen a los empresarios...
"Decreta: 1&ordm; Se concebe al ciudadano brasileiro D. Antonio Marcelino Pereira Ribeiro el privilegio
exclusivo de navegar por buques de vapor en el rio Amazonas, en la parte que corresponde al Perú e todos sus
afluentes.
"... 3&ordm; Los buques de vapor levarón el pabellón brasileiro...
"Dada en la casa de Gobierno de Lima a 6 de Julio de 1841."
Êste decreto, extratado nos trechos principais, inculca ao mesmo tempo o caudilho, no recacho presuntuoso que
lhe emprestam aquêles adjetivos e substantivos constrangidos a escoltarem-lhe o nome, e o governante, que
primeiro traçou aos seus patrícios a marcha regeneradora para o Oriente. Mas não o reproduzimos apenas para
realce dos aspectos contrariantes da História Peruana; senão também para destacar aquela figura de brasileiro,
que seria inexpressiva se não constituísse o primeiro têrmo de uma série de compatriotas obscuros, erradios dos
nossos fastos e elegendo-se por atos memoráveis entre os melhores servidores da nação vizinha.
De fato, à medida que se rastreia a marcha peruana para o levante, exposta em todos os seuspormenores,
miudeada em regulamentos, em decretos, em circulares e em ofícios - porque é a suprema preocupação política,
militar e administrativa do Peru - observa-se nas referências obrigatórias e incisivas ao elemento brasileiro, o
intercurso de uma outra avançada obscura, mas vigorosa, e contrapondo-se-lhe numa expansão tão enérgica,
para o ocidente, que com os seus efeitos a despontarem de longe em longe, precisamente nos períodos mais
decisivos da primeira, se restauraria todo um capítulo da nossa História, que se perdeu ou se fracionou
despercebido à visão embotada dos cronistas, para ressurgir agora, esparso em fragmentos surpreendentes, nas
entrelinhas da História de outro povo.
É o que demonstram outros casos, entre nós inéditos. Apontemo-los de relance.
* * *
No período abrangido pelos governos do austero Marechal Castilla, as explorações prosseguiram. Castelnau
desceu das cabeceiras do Urubamba às ribas do Amazonas; Maldonado imortalizou-se descobrindo, numa
excursão temerária, a nova estrada para o Atlântico ajustada ao sulco desmedido do Madre de Diós; e Raimondi
desvendou os tesouros da mesopotâmia de 16.000 léguas quadradas de terras exuberantes, interferidas pelos
cursos do Huallaga e do Ucaiáli. Por fim Montferrir calculou, rigorosamente, as riquezas da Canaã vastíssima:
50.000.000 de hectares, valendo o mínimo de meio bilhão de pesos.
A aritmética tornava-se quase lírica nesta dilatação de números maravilhosos.
As medidas governamentais do grande Marechal tiveram para logo o alento dos mais enérgicos estímulos
patrióticos, a par do anseio de fortuna dos mais desassombrados aventureiros.
Os peruanos, iludidos durante largo tempo no litoral estéril, viam pela primeira vez o nôvo mundo. E a
conquista da terra, numa de suas fases mais agudas, desenrolou-se em tôda a plenitude.
Então, contravindo a tantas esperanças sob o amparo das mais lúcidas resoluções governativas - leis,
regulamentos e decretos enfeixando-se num volumoso compêndio de administração fecunda e militante -
principiou uma fase desalentadora de brilhantes tentativas abortícias.
As colônias planeadas, e para logo erigidas, espelhavam por algum tempo naqueles rincões solitários a
fantasmagoria de um progresso artificial; e extinguiam-se prestes. Já em 1854 o governador de Loreto, pueblo
obscuro cujo nome irradia hoje abrangendo aquêles lugares, ao informar do estado de duas colonizações
sucessivas que ali se estabeleceram, centralizadas em Caballo-Cocha, próximas à fronteira do Brasil, indicava-as
completamente extintas. E idênticos malogros generalizavam-se por tôda a banda.
Eram naturais. As vagas humanas nas paragens virgens não se aquietam de súbito. Carateriza-as nos primeiros
estádios a instabilidade inevitável imposta pela própria força viva adquirida no movimento da maarcha.
Precedendo ao equilíbrio das culturas, surge a pesquisa dos frutos ou das riquezas imediatas, como a permitir
aos recém-vindos, na vida errante das colheitas, dos garimpos, dos pastoreios ou das caçadas, um
reconhecimento imprescindível do seu nôvo habitat, antes da escolha de uma situação de descanso.
É a eterna função social do nomadismo, que mesmo no Peru já se manifestara na azáfama devastadora dos
cascarileros, desvendando as paragens ignotas que vão dos cerros de Carabaya às vertentes mais aastadas do
Beni.
Êste incentivo, porém, ali, estava extinto.
Por aquêle tempo, uma tenaz explorador, Marckam, comissionado pelo govêrno inglês, andava nas regiões da
quina calisaya; e conseguira transplantar tão prontamente para as Índias aquêle elemento da fortuna peruana
que, já em 1862, mais de quatro milhões de árvores, em Darjeeling, com a produção extraordinária de 370
toneladas de quinino, iniciavam uma concorrência triunfante no primeiro assalto. Dêste modo, as paragens tão
ansiosamente apetecidas mostravam-se, ante os novos povoadores, desnudas dêsses recursos que em tôda a parte
se figuram adrede predispostos a que não se desenfluam as esperanças sempre exageradas dos que emigram.
Não lhes bastariam, certo, as bombonaças para os chapéus de palha oriundos da indústria graciosa das mulheres
do Moyobamba, ou os cascalhos auríferos das vertentes do Pastaza guardadas pelos huambizas ferocíssimos.
Assim, todos os atos, e magníficos decretos, e lúcidos regulamentos, e generosas concessões de terras, do
último govêrno de Castilla, desfechariam nos mais lastimáveis insucessos se, precisamente na derradeira quadra
da sua presidência, e no mesmo ano (1862) em que a cultura indiana da quina arrebatava daqueles desertos o seu
maior atrativo _ um anônimo, um outro imortal humílimo evadido da nossa História, não aparecesse, eclipsando
de golpe os mais imponentes lances administrativos e oferecendo aos peruanos o reagente enérgico que os
alentaria até aos nossos dias na rota da Amazônia.
Um brasileiro descobriu o caucho; ou, pelo menos, instituiu ali a indústria extrativa correspondente.
No reconstruir êste trecho da nossa História, que versado mais tarde por um historiador merecerá o título de
"Expansão Brasileira na Amazônia", não vamos desacompanhados.
Diz-nos um narrador sincero:
"Antes do ano de 1862, não tinha ainda sido explorada a incalculável riqueza da goma elástica... Depois da
entrada de alguns brasileiros para o território do Departamento, principalmente do laborioso José Joaquim
Ribeiro, começou êste rico produto a figurar no catálogo dos que o Departamento exporta para o Brasil. A
primeira quantidade exportada foi de 2.088 quilogramas, produto dos ensaios daquele brasileiro que muito teria
contribuído para o desenvolvimento dessa indústria, se ao iniciá-la não encontrasse contrariedades nascidas do
cupidismo de alguns agentes subalternos que contra êle exerceram todos os ardis..."
Não comentemos o desquerer das autoridades peruanas. Era antigo. Desde 1811 o reportado D. Manoel Ijurra
denunciava "los Brazileros más próximos al Perú que tienen la bárbara costumbre de armar expediciones
militares con objeto de haccer correrías sobre los indios Maynas, atropelando muchas veces las
autoridades..."; ou apresentava-os como "absolutos monopolizadores del comercio de importación o
exportación." Cinco anos depois, em ofício alarmante, o Subprefeito de Maynas solicitava providências
urgentíssimas "al intuito de que los Brazileros moradores de Caballo-Cocha, salgan fuera de esta provincia, se
buenamente no quieren, por la fuerza"; e pintava-os laivando-os dos mais denegridos estigmas. Por fim o
Governador-Geral das Missões (1849) determinou se exigissem passaportes de todos os brasileiros que lá
entrassem, gaguejando num castelhano emperrado esta razão curiosíssima: "que no se experimentaba provecho
alguno en estos negociantes del Brazil; ni menos hay bayonetas con que poder conterlos; hacen lo que quieren
metiendo-se por los rios, extraendo zarza, manteca, salado e otras especies..."
Não prossigamos.
Adivinha-se nestas linhas, que poderiam ser prolongadas, a invasão formidável que se alastrava avassaladora
para o ocidente, desafiando os ódios do estrangeiro; espraiando-se pelo vale do grande rio, por Loreto, Caballo-
Cocha, Moremote, Perenate, Iquitos, até Nauta, na embocadura do Ucaiáli; subindo pelo Ucaiáli em fora até
além do Pachitéa: deixando nos mais vários pontos, nos sítios numerosos, nas trilhas coleantes do deserto, e até
nos costumes ainda persistentes, os traços indeléveis da passagem.
Se a historiássemos contraporíanos às verrinas oficiais dos subprefeitos apavorados, cujos dizeres se pejoravam
à medida que progredia aquela surda conquista do solo, os próprios conceitos de Antonio Raimondi. Mas aquêle
belo tipo de Joaquim Ribeiro, que em 1868 o maior naturalista peruano foi encontrar nas margens do Itaia
possuindo as melhores fazendas do Departamento, concretiza uma réplica irrefragável. Não o pearam tão
pequeninos empeços. Criada a indústria extrativa, a exportação da borracha a partir de 1871 erigiu-se
preeminente entre as dos demais produtos de Loreto. E as turmas dos extratores, sem nenhuns amparos oficiais,
rompendo espontâneos de tôda a parte e arremetentes com as mais desfreqüentadas espessuras, ultimaram em
pocuo tempo a emprêsa quase secular tantas vêzes cindida de reveses.
Desvendou-se todo o Oriente.
Mas há um reverso no quadro.
A exploração do caucho como a praticam os peruanos, derribando as árvores, e passando sempre à cata de
novas "manchas" de castilloas ainda nào conhecidas, em nomadismo profissional interminável, que os leva à
prática de todos os atentados nos recontros inevitáveis com os aborígenes - acarreta a desorganização
sistemática da sociedade. O caucheiro, eterno caçador de territórios, não tem pega sôbre a terra. Nessa atividade
primitiva apuram-se-lhe, exclusivos, os atributos da astúcia, da agilidade e da fôrça. Por fim, um bárbaro
individualismo. Há uma involução lastimável no homem perpètuamente arredio dos povoados, errante de rio em
rio, de espessura em espessura, sempre em busca de uma mata virgem onde se oculte ou se homizie como um
foragido da civilização.
A sua passagem foi nefasta. Ao cabo de 30 anos de povoamento, as margens do Ucaiáli, tão nobilitadas outrora
pela abnegação dos missionários de Sarayaco, patenteiam, hoje, nos seus vilarejos diminutos, uma decadência
moral indescritível.
O Coronel Pedro Portillo, atual Prefeito de Loreto, que as visitou em 1899, denunciou-a, indignado: Alli no hay
leyes... El más fuerte que tiene más rifles, es el dueño de la justicia". Verberou depois o tráfico escandaloso de
escravos. E, afinados pelo mesmo tom, um sem-número de outros excursionistas, que fôra longo citar, delatam,
em narativas expressivas, o regime de tropelias que se normalizou naquelas terras - e se amplia seguindo os
rastros do homem que passa pelo deserto com o só efeito de barbarizar a própria barbaria.
* * *
Ora, na presciência dos inconvenientes desta exploração, que, entretanto, determinou o pleno desdobramento de
seu domínio no Oriente, o govêrno peruano nunca renunciou ao seu primitivo propósito de uma colonização
intensiva. E para ao mesmo tempo garantir o tráfego do melhor caminho para o Amazonas, pelo Ucaiáli, que vai
da estação terminus de Oroya aos tributários principais do Pachitéa, estabeleceu em 1857, à margem de um
dêles, o Rio Pozuzo, a colônia alemã, que sôbre tôdas lhe monopolizou os cuidados e uma solicitude nunca
interrompida.
Realmente, a situação era admirável. À média distância de Iquitos, próxima aos afluentes navegáveis do Ucaiáli
e num solo exuberante, o núcleo estabelecido era, militar e administrativamente, o mais firme ponto estratégico
daquele combate com o deserto, justificando-se os esforços e extraordinárias despesas que se fizeram para um
rápido desenvolvimento, que as melhores condições naturais favoreciam.
Mas não lhe vingou o plano. A exemplo do que acontecera em Loreto, os novos povoadores, embora mais
persistentes, anulavam-se, estéreis. A colônia paralisara-se, tolhiça, entre os esplendores da floresta. Reduziu-se
a culturas rudimentares que mal lhe satisfaziam o consumo. E o progresso demográfico, quase insensível,
retratava-se numa prole linfática, em que o rijo arcabouço prussiano se engelhava na envergadura esmirrada do
quíchua. Ao visitá-la, em 1870, o Prefeito de Huanuco, Coronel Vizcarra, quedou atônito e comovido: os
colonos apresentaram-se-lhe andrajosos e famintos, pedindo-lhe pão e vestes para velarem a nudez. O romântico
D. Manoel Pinzás, que descreveu a viagem, pinta-nos em longos períodos soluçantes os lances daquele cuadro
desgarrador!, suspendendo-o em dois rijos pontos de admiração.
Viu-o ainda, passado um lustro, com as mesmas côres sombrias, o Dr. Santiago Tavara, ao descrever a primeira
viagem do Almirante Tucker.
Por fim, transcorridos trinta anos, o Coronel P. Portillo na sua rota do Ucaiáli teve notícias certas do núcleo
povoador: era uma Tebaida aterradora. Lá dentro os primitivos colonos e os seus rebentos degenerados
agitavam-se vítimas de um fanatismo irremediável, na mandria dolorosa das penitências, a rezarem, a desfiarem
rosários e a entoarem umas ladainhas intermináveis numa concorrência escandalosa com os guaribas da floresta.
Ora, o excursionista, que é hoje um dos mais lúcidos políticos peruanos, para agravar-lse-lhe o desapontamento
ante êste malôgro completo da colônia predileta da sua terra, tivera dias antes, ao passar em Puerto Victoria, na
confluência do Pichis e do Palcazu, formadores do Pachitéa, um espetáculo completamente diverso. De fato,
Puerto Victoria surgira e desenvolvera-se, tornando-se a estância mais animada e opulenta daquela redondeza,
sem que o govêrno peruano soubesse ao menos do seu aparecimento.
Jamais cogitara em povoar aquêle trecho.
A paragem era malsinada. Rodeavam-na os mais bravios entre os selvagens sul-americanos: os campas do
Pajonal, ao sul, e ao norte os caxibos indomáveis, que em 1866 haviam trucidado em Chonta-Isla, que lhe
demora a jusante, os oficiais de marinha Tavara e West. O Prefeito Benito Arana, que ali andara naquele mesmo
ano, fôra, em som de guerra, com dois vapôres e uma lancha artilhada, em revide àquela afronta sanguinolenta.
Saltou em terra; meteu-se pela mata; travou pequeninos recontros em formidáveis tiroteios; volveu num triunfo
singularíssimo, encalçado de perto pelos selvagens, que o frechavam; embarcou no tumulto da sua gente
vitoriosa, e fugindo; canhoneou furiosamente as barrancas; volveu, precípite, águas abaixo, deixando na Playa
del Castigo um traço romanesco da sua emprêsa tormentosa...
E durante três decênios a região sinistra permaneceu no isolamento que lhe criavam as gente apavoradas...
Até que, provindos do ocidente e vencendo à voga arrancada, nas ubás esguias, as correntezas fortes do
Pachitéa, atravessaram-na de extremo a extremo e foram abordar na confluência do Pichis alguns aventureiros
destemerosos.
Eram uns caboclos entroncados, de tez morena e baça, e musculatura sêca e poderosa. Não eram caucheiros. A
palavra remorada não lhes vibrava na fanfarrice ruidosa. Ao invés de um tambo, improvisaram um tejupar mal
arranjado. Não se armaram do cuchillo, misto de punhal e de navalha. Pendiam-lhes à cintura as facas de
arrasto, longas como as espadas.
Aperceberam-se sem ruídos para a emprêsa e penetraram, vagarosamente, na floresta...
Não se conhecem as peripécias da entrada temerária, que foram sem dúvida excepcionalmente dramáticas. Os
caxibos têm no próprio nome a legenda da sua ferocidade. Caxi, morcego; bo, semelhante. Figuradamente:
sugadores de sangue. Ainda nos seus raros momentos de jovialidade aquêles bárbaros assustam, quando o riso
lhes descobre os dentes retintos do sumo negro da palmeira chonta; ou estiram-se de bruços, acaroados com o
chão, as bôcas junto à terra, ululando longamente as notas demoradas de uma melopéia selvagem.
Atravessaram, indenes na bruteza, trezentos anos de catequese; e são ainda a tribo mais bravia do vale do
Ucaiáli.
Mas ao que se figura não pulsearam com vantagem o vigor nos novos pioneiros.
É que o bárbaro sanguinário tinha pela frente, enterreirando-o, um adversário mais temeroso, o jagunço.
Os recém-vindos eram brasileiros do Norte; e o seu patrão, Pedro C. de Oliveira, mais um modêlo de lidador
obscuro aparecendo em lances de fecundas iniciativas entre os acontecimentos de uma história estranha. Para
aquilatar-se-lhe a valia, observemos de relance que em janeiro de 1900 foi nomeado, apesar da sua
nacionalidade, governador de tôda a zona que o seu barracão centralizava.
O Coronel Portillo, que ali deparou agasalho sincero sem o pregão de rasgados oferecimentos, tão característico
da nossa gens obscura, trai em todos os conceitos que emitiu no seu relatório - desde o primeiro dia até
desperdir-se da "muy estimable familia del señor Olivera", o encanto que lhe causou a estância animadíssima no
centro de suas culturas fartas, e inteligentemente locada com as numerosas vivendas circulantes no alto da
barranca, a prumo sôbre a margem esquerda do rio, que se alcançava subindo uma longa escadaria resistente e
tôsca. Cativaram-no, sobretudo, os valentes tranqüilos que se lhe mostraram modestíssimos em pleno triunfo
sôbre a barbaria e a terra. Por fim, à sua visão esclarecida não escapou que aquêle forasteiro, sem um decreto e
sem uma subvenção, resolvera o problema colimado pelo govêrno de seu país, fundando no lugar mais
conveniente a estação garantidora da "via central" demandando a Amazônia. Disse-o nuamente: Pôrto Vitória
era o lugar mais apropriado para a guarnição militar e alfândega que protegessem a importação e exportação da
colônia de Chanchamayo, norte de Pajonal, Tarma e montañas do Palcazu, Matro e Pozuzo.
Concluiu: "La casa de Olivera debe ser tomada por el Supremo Gobierno como la más aparente para las
oficinas de la capitania, aduana e comandancia militar."
Foi aceito o alvitre. Um decreto do Presidente Pierola ordenou a demarcação de Puerto Victoria para
estabelecer-se comisaría destinada a proteger os colonizadores daquelas terras; e num grande ciúme da situação
vantajosa adquirida revelou o intento de uma posse exclusiva "no consentiendo, alli, en el radio de un
quilómetro, poblador alguno".
O Peru conseguira realmente uma estação fluvial admirável. E os brasileiros retiraram-se.
Passaram cinco anos.
Em 1905 um touriste parisiense, J. Delebecque, desceu o Pachitéa, em viagem para o Amazonas, e não notaria
a estância outrora florescente se não o acompanhassem alguns índios mansos conhecedores dos lugares.
No alto da barranca, que os enxurros solapavam, viam-se apenas alguns tetos abatidos e restos de culturas
afogadas num carrascal bravio.
O pôrto era uma ruína.
O viajante ali permaneceu por algumas horas a fim de secar as suas roupas encharcadas ao calor de uma
fogueira feita com as portas desquiciadas e ombreiras vacilantes das vivendas, consoante praticam todos os que
por ali passam na travessia de Iquitos; e considerou, melancòlicamente, que daquele jeito Puerto Victoria seria
em breve apenas uma recordação.
Depois abalou rio abaixo, a tôda a voga, fugindo da paragem que se ermana no mais completo abandono...
Transacreana
A carta da Amazônia, no trato que demora ao ocidente do Madeira, é o diagrama de seu povoamento inicial. A
história da paragem nova, antes de escrever-se, desenha-se. Não se lê, vê-se. Resume-se nos longos e torturosos
riscos do Purus, do Juruá e do Javari.
São linhas naturais de comunicação a que nenhumas se emparelham no favorecer um dilatado domínio.
Geomètricamente, os seus talvegues, rumados no sentido geral de SO para NE, num quase paralelismo, oblíquos
aos meridianos, facultam avançamentos simultâneos em latitude e em longitude; sob o aspecto físico, à parte os
entraves artificiais oriundos do abandono em que jazem, estiram-se de todo desimpedidos. Travam-se-lhes os
mais privilegiados requisitos. Na grande maioria dos rios amazônicos, e sobretudo no Vale do Ucaiáli, os
empeços naturais acumulam-se ao ponto de originarem estranhos têrmos geográficos. Nêles não há citar-se um
só. Nem pongos vertiginosos, nem despenhadas urmanas, nem muiúnas remoinhantes ou vueltas del diablo
desesperadores...
Daí esta expressiva conseqüência histórica: enquanto no Tocantins, no Tapajós, no Madeira e no Rio Negro, o
povoamento, iniciado desde os tempos coloniais, se entorpeceu ou retrogradou, retratando-se na ruinaria dos
vilarejos a caírem com as barrancas solapadas, ali, ajustando-se-lhes às margens, progrediu tão de improviso que
determinou, em menos de cinqüenta anos, uma dilatação de fronteiras.
Era inevitável. O forasteiro, ao penetrar o Purus ou o Juruá, não carecia de excepcionais recursos à emprêsa.
Uma canoa maneira e um varejão, ou um remo, aparelhavam-no às mais espantosas viagens. O rio carregava-o;
guiava-o; alimentando-o; protegendo-o. Restava-lhe o só esfôrço de colhêr à ourela das matas marginais as
especiarias valiosas; atestar com elas os seus barcos primitivos e volver águas abaixo - dormindo em cima da
fortuna adquirida sem trabalho. A terra farta, mercê duma armazenagem milenária de riquezas, excluía a cultura.
Abria-se-lhe em avenidas fluviais maravilhosas. Impôs-lhe a tarefa exclusiva das colheitas. Por fim tornou-lhe
lógico o nomadismo.
O nome de "montaria", da sua ubá aligeirada, é extremamente expressivo. Ela o ajustou àquelas solidões de
nível, como o cavalo adaptou o tártaro às estepes. Esta diferença apenas: ao passo que o calmuco tem nos
infinitos pontos do horizonte infinitos rumos atraindo-o ao nomadismo irradiante à roda da sua iurta, que ao
mudar-se se afigura imóvel no círculo indefinido das planuras - o jacumaúba amazonense, subordinado a
roteiros lineares, adscrito a direções imutáveis, ficou largo tempo constrangido entre as barrancas dos rios. Mal
poderia libertar-se em desvios de poucas léguas pelos sulcos laterais dos tributários. Ao invés do que se acredita,
aquelas rêdes hidrográficas, entretecidas de malhas tão contínuas, não misturam as águas das caudais diversas
em largas anastomoses, insinuando-se pelas imperceptíveis linhas de vertentes abatidas nas planícies
encharcadas. O paranamirim volve sempre ao leito principal de onde se esgalhou; e o igarapé acaba no lago que
êle alimentou nas cheias para que o alimente nas vazantes, correndo em sentidos opostos consoante as estações;
ou extingue-se, ampliando-se nos plainos empantanados escondidos pela flórula anfíbia dos igapós inextricáveis
de lianas. Entre um curso d’água e outro, a faixa da floresta substitui a montanha que não existe. É um isolador.
Separa. E subdividiu, de fato, em longos caminhos isolados, as massas povoadoras que demandavam aquela
zona.
Viu-se então, de par com primitivas condições tão favoráveis, êste reverso: o homem, em vez de senhorear a
terra, escravizava-se ao rio. O povoamento não se expandia: estirava-se. Progredia em longas filas, ou volvia
sôbre si mesmo sem deixar os sulcos em que se encaixa - tendendo a imobilizar-se na aparência de um progresso
ilusório, de recuos e avançadas, do aventureiro que parte, penetra fundo a terra, explora-a e volta pelas mesmas
trilhas - ou renova, monòtonamente, os mesmos itinerários da sua inambulação invariável. Ao cabo, a breve,
mas agitadíssima história das paragens novas, à parte ligeiras variantes, ia imprimindo-se tôda, secamente,
naquelas extensas linhas desatadas para SO: três ou quatro riscos, três ou quatro desenhos de rios, coleando,
indefinidos, num deserto...
* * *
Ora, êste aspecto social desalentador, criado sobretudo pelas condições em comêço tão favoráveis, dos rios,
corrige-se pela ligação transversa de seus grandes vales.
A idéia não é original, nem nova. Há muito tempo, com intuição admirável, os rudes povoadores daqueles
longínquos recantos realizaram-na com a abertura dos primeiros varadouros.
O varadouro - legado da atividade heróica dos paulistas compartido hoje pelo amazonense, pelo boliviano e
pelo peruano - é a vereda atalhadora que vai por terra de uma vertente fluvial a outra.
A princípio tortuoso e breve, apagando-se no afogado da espessura, êle reflete a própria marcha indecisa da
sociedade nascente e titubeante, que abandonou o regaço dos rios para caminhar por si. E foi crescendo com ela.
Hoje nas suas trilhas estreitíssimas, de um metro de largura, tiradas a facão, estirando-se por tôda a parte,
entretecendo-se em voltas inumeráveis, ou encruzilhadas, e ligando os afluentes esgalhados de tôdas as
cabeceiras, do Acre para o Purus, dêste para o Juruá e daí para o Ucaiáli, vai traçando-se a história
contemporânea do nôvo território, de um modo de todo contraposto à primitiva submissão ao fatalismo
imponente das grandes linhas naturais de comunicação.
Nos seus torcicolos, impostos pelas linhas mais altas das pequenas vertentes deprimidas, sente-se um estranho
movimento irrequieto, de revolta. Trilhando-os, o homem é, de fato, um insubmisso. Insurge-se contra a
natureza carinhosa e traiçoeira, que o enriquecia e matava. Repele-lhe tanto os amparos antigos que realiza na
maior das mesopotâmias a anomalia de navegar em sêco; ou esta transfiguração: carrega de um rio para o outro
o barco que o carregava outrora. Por fim, numa afirmativa crescente da vontade, vai estirando de rio em rio,
retramada com os infinitos fios dos igarapés, a rêde aprisionadora, de malhas cada vez menores e mais
numerosas, que lhe entregará em breve a terra dominada.
E do Acre para o Iaco, para o Tauamano e para o Orton: do Purus para o Madre de Diós, para o Ucaiáli, para o
Javari, trilhando aforradamente o território em todos os quadrantes, os acreanos, despeados do antigo traço de
união do Amazonas longínquo, que os submetia, dispersos, ao litoral afastado, vão em cada uma daquelas
veredas atrevidas, firmando um símbolo tangível de independência e de posse.
Tomemos um exemplo de testemunho estrangeiro.
Em 1904 o oficial da marinha peruana, Germano Stiglich, encontrou no Javari vários brasileiros, que o
surpreenderam com a simples narrativa de uma travessia costumeira, ante a qual se apequenavam as suas mais
estiradas rotas de explorador notável. Registrou-a em um de seus relatórios: os sertanistas entram pelo Javar,
subindo o Itacoaí até às cabeceiras; varam dali, por terra a buscarem as vertentes do Ipixuna: alcançam-nas;
transmontam-nas; descem o pequeno tributário; chegam ao Juruá; navegam até S. Felipe, onde infletem,
penetrando o Tarauacá, o Envira e o Jurupari até onde subam as suas canoas ligeiras; deixam-nas; rompem outra
vez por terra a encontrarem o Purus nas cercanias de Sobral; descem, embarcados, 760 km do grande rio até a
foz do Ituxi; e enveredando por êste último, vão, depois de uma outra varação por terra, atingir o Abunã, que
baixam, abordando, afinal à margem esquerda do Madeira.
A derrota, com a percentagem de 20% sôbre as retas da desmedida linha quebrada que a define, avalia-se em
3.000 km, ou o dôbro da estrada tradicional, dos bandeirantes, entre S. Paulo e Cuiabá. Os obscuros pioneiros
prolongam a êstes dias a tradição heróica das entradas, que constituem o único aspecto original da nossa
História.
Aquêle roteiro, entretanto, alonga-se contorcendo-se em voltas sobremaneira extensas. Abreviemo-lo,
baseando-nos em alguns dados seguros.
Partindo de Remate dos Males, no Javari, nas cercanias de Tabatinga, o viajante, em qualquer estação, pode
sulcar num dia o Itacoaí até a confluência do Ituí, percorrendo 140 km itinerários. Prossegue por terra em
terreno firme, no rumo de SE pelo extenso varadouro de 190 km que corta as cabeceiras do Jutaí e termina em S.
Felipe, à margem do Juruá, empregando apenas cinco dias de marcha. Sobe o Tarauacá, embarcado, até a foz do
Envira; e desta à do Jurupari, prosseguindo a buscar as suas mais altas vertentes, num percurso máximo de 350
km que vencerá em pouco mais de uma semana. Rompe o breve varadouro que o leva ao Furo do Juruá, e
atinge, descendo-o, ao fim de dois dias, de lancha, realizados os ligeiros reparos de que carece o rio. A sede da
Prefeitura do Alto-Purus, distante 24 km, alcança-se em duas horas de navegação; e dali, pelo varadouro do
Oriente, longo de 25 léguas percorrido normalmente em cinco dias, chega-se ao seringal Bajé, à margem
esquerda do Acre. Transpondo êste rio e seguindo para leste a cortar os derradeiros tributários do Iquiri e os
campos do Gavião, o caminhante vai ao Abunã, a jusante da embocadura do Tipamanu, e daí ao Beni, na
confluência do Madeira, percorrendo cêrca de 300 km em oito dias, por terra.
Dêste modo, em pouco mais de um mês de travessia, vencendo-se 907 km por águas e 660 por terra, pode-se vir
de Tabatinga a Vila Bela, diagonalmente, de um a outro extremo da Amazônia, naquele itinerário de 250 léguas.
A êstes números falta, sem dúvida, o rigorismo das quilometragens regulares; mas não variam talvez de um
décimo sôbre a realidade, à parte os dados demasiado falíveis relativos à navegação do Tarauacá e ao rumo por
terra do Jurupari ao Purus.
Excluamo-los nesta variante: partindo do mesmo ponto à margem do Javari e sulcando o Itacoaí até aos seus
derradeiros formadores, o viajante encontra o antigo varadouro do Ipixuna que o conduz ao Juruá e a Cruzeiro
do Sul, capital do Departamento, em percurso pouco maior do que o anterior por S. Felipe.
Ora, de Cruzeiro do Sul às sedes dos departamentos do Purus e do Acre podem remover-se todos os
inconvenientes daquela navegação precária, sujeita a fatigante roteiro.
De fato, o extenso segmento retilíneo, de 605 km, da linha Cunha Gomes, é a própria linha de ensaio de um
varadouro notável ligando as três sedes administrativas. Dando-se-lhe o desenvolvimento exagerado de 20%
sôbre a distância, terá a extensão de 726 km; ou sejam, exatamente, 110 léguas, que podem ser transpostas em
grande parte, a cavalo, em menos de doze dias.
Observe-se, de passagem, que êste projeto não se delineia nos riscos arbitrários a que se avezam os
exploradores de mapas, ou consoante "o conhecido processo do Tzar Nicolau I, riscando com a unha do polegar
o traçado da estrada de Petersburgo a Moscou".
Esteia-se em reconhecimentos, certo despidos de azimutes, ou cotas esclarecedoras de aneróides, mas práticos e
concludentes. O primeiro trecho, normal ao vale do Taruacá, planeado pelo General Taumaturgo de Azevedo, já
se acha em grande parte aberto por um seringueiro de Cocamera - e estende-se em terrenos tão afeiçoados à
marcha que, depois de concluído o caminho, "ir-se-á do Juruá ao Tarauacá, a cavalo, em quatro dias" conforme
afirma o ex-Prefeito em seu penúltimo relatório; ao passo que atualmente, para efetuar-se a mesma viagem, "em
vapor, que faça poucas escalas e dobre a foz do Tarauacá, consomem-se 15 dias, no mínimo".
O segmento intermediário, de Barcelona ou Nôvo Destino à confluência do Caeté, no Iaco, por sua vez
estudado pela Prefeitura do Alto-Purus, é de execução facílima, todo desatado sôbre breve altiplano livre das
inundações. E o último, do Iaco ao Acre, tem há muito tempo um tráfego permanente.
Dêste modo a grande estrada de 726 km, unindo os três departamentos, e capaz de prolongar-se de um lado até
ao Amazonas, pelo Javari, e de outro até ao Madeira, pelo Abunã, está de todo reconhecida, e na maior parte
trilhada.
A intervenção urgentíssima do Govêrno Federal impõe-se como dever elementaríssimo de aviventar e reunir
tantos esforços parcelados.
Deve consistir porém no estabelecimento de uma via férrea - a única estrada de ferro urgente e indispensável no
Território do Acre.
Atalhemos uma objeção inicial.
A fisiografia amazônica figura-se sempre obstáculo indispensável a tais emprêsas. Mas os que a agitam, em
argumentos que temos por escusado reproduzir, não podem, certo, compreender as linhas férreas da Índia. De
fato, no Industão pròpriamente dito, o nivelamento superficial, o solo aluviano de areias e argilas acumuladas
em espessuras indefinidas, e as características climáticas, patenteiam-se em condições idênticas. Ali, como na
Amazônia, os rios destacam-se pela grandeza, volumes excessivos nas cheias, amplitudes das inundações, e
volubilidade dos canais nos leitos divagantes. Os nulla incontáveis, serpeantes por toda a banda, desenham-se na
hidrografia caótica dos igarapés; e o Purus, o Juruá, o Acre e seus tributários, não variam tanto de curso e de
regime quanto o Ganges e os rios de Punjab, cujas pontes foram o maior problema que resolveu a engenharia
inglêsa.
Na Índia, como entre nós, não faltaram profissionais apavorados ante as dificuldades naturais - esquecidos de
que a engenharia existe precisamente para vencê-las. Ao discutir-se o memorandum Kennedy, onde germinou a
viação indu, o Coronel Grant, do corpo de engenheiros de Bombaim, pilheriou sisudamente, propondo com a
maior seriedade que os trilhos se suspendessem em todo o correr das linhas por meio de séries regulares de
cadeias, em rijos postes fronteantes, a oito pés acima do solo... E desafiou o humor magnífico de seus
fleugmáticos colegas. Os rígidos railroadmen replicaram-lhe tempos depois, esmagadoramente, com a West
Indian Peninsular, e nobilitaram tôda a engenharia de estradas de ferro obedecendo a uma de suas fórmulas
mais civilizadoras, enunciada por Mac-George: "In every country it is necessary that railway should be ladi out
with references to the distribuition of population and to the necessities of people, rather than to the mere
physical characteristics of its geography..."
Ora, no caso atual, ainda êsses caracteres físicos e geográficos evidenciam-se favoráveis.
A estrada de Cruzeiro do Sul ao Acre não irá, como as do Sul do nosso país, justapondo-se à diretriz dos
grandes vales, porque tem um destino diverso. Estas últimas, sobretudo em S. Paulo, são tipos clássicos de
linhas de penetração: levam o povoamento ao âmago da terra. Naquele recanto amazônico esta função, como o
vimos, é desempenhada pelos cursos d’água. À linha planeada resta o destino de distribuir o povoamento, que já
existe. É uma auxiliar dos rios. Corta-lhes, por isto, transversa, os vales.
Daí esta conseqüência inegável: adapta-se, naturalmente, mercê da própria direção, às deprimidas áreas
divisórias dos afluentes laterais, e, acompanhando-os, forra-se em grande parte aos empecilhos daquela
hidrografia embaralhada.
Por outro lado, ao sul do paralelo de 8&ordm; persiste, certo, o facies predominante da enorme várzea
amazonense. Mas atenuado. A inconstância tumultuária das águas não se retrata em curvas tão numerosas e
volúveis. Os terrenos, expandindo-se em ondulações ligeiras com a altitude média, absoluta, de 200 metros, são,
no geral, firmes e a cavaleiro das enchentes. Trilhamo-los em vários pontos. Está-se, visívelmente, sôbre
formações mais antigas, definidas e estáveis, que as da imensa planura pós-quaternária onde ainda se adivinham
as derradeiras transformações geológicas do Amazonas, no conflito inevitável entre os cursos d’água
inconstantes e a várzea inconsistente.
Além disto, os obstáculos naturais, reduzem-nos, ou amortecem-nos, os traçados que se lhes afeiçoes. A via
férrea em questão deve modelar-se pelas condições técnicas menos dispendiosas a um primeiro estabelecimento
- caracterizando-se, sobretudo, por uma via singela, de bitola reduzida, de 0,76 m ou 0,91 m, ou no máximo de
1,0 m entre trilhos, que lhe permita os maiores declives e as menores curvas, dando-lhe plasticidade para volver-
se em busca dos terrenos mais altos e estáveis, que lhe alteiem o grado acima das zonas inundadas em traçados
quase à flor da terra. Deve nascer como nasceram as maiores estradas atuais: trilhos de 18 quilos, no máximo,
por metro corrente, capazes de locomotivas de escasso pêso aderente de 15 a 20 toneladas; curvas que se
arqueiem até aos raios de 50 metros; e declives que se aprumem até 5% submetidos a todos os movimentos do
solo.
Não os tem muito melhores a Central Pacific, de Nevada, com a sua bitola estreita, sem balastro, serpeando
com a mesma levidade de trilhos em curvas de 90 metros, e tornejando pendores em rampas inclassificáveis. Ou
o Transiberiano, onde locomotivas de 30 toneladas, rebocando 1/6 de pêso aderente sôbre trilhos de 19 quilos,
andando com a velocidade de 20 km por hora, não raro recuavam, desandando, constrangidas, se encontravam
de frente, repelindo-as, ponteiras, as ventanias ríspidas das estepes...
Sem dúvida, de uma tal superestrutura, a que se liga o imperfeito do material rodante, de tração ou transporte,
resultará reduzidíssima capacidade de tráfego. Mas a linha acreana, a exemplo da Union Pacific Railway, não
vai satisfazer um tráfego, que não existe, senão criar o que deve existir.
Como as norte-americanas, construir-se-á aceleradamente, para reconstruir-se vagarosamente.
É um processo generalizado. Tôdas as grandes estradas, no evitarem os empeços que se lhes antolham
transpondo as depressões e iludindo os maiores cortes com os mais primitivos recursos que lhes facultem um
rápido estiramento dos trilhos, erigem-se nos primeiros tempos como verdadeiros caminhos de guerra contra o
deserto, imperfeitos, selvagens. E como para justificar o asserto, o primeiro engenheiro das suas obras
rudimentares - que hoje se fazem como há dois mil anos - de suas estacadas, de suas pontes e pontilhões de
madeira mal lavradas, superpostas em linhas sôbre os styli fixi dos tanchões roliços, é César.
Depois evolvem; e crescem, aperfeiçoando os elementos da sua estrutura complexa, como se fôssem enormes
organismos vivos.
FIM
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo