Porque, na realidade, esta se reconstitui mui longe das nossas plagas. Neste ponto, o rio, que sôbre todos desafia
o nosso lirismo patriótico, é o menos brasileiro dos rios. É um estranho adversário, entregue dia e noite à faina
de solapar a sua própria terra. Herbert Smith, iludido ante a poderosa massa de águas barrentas, que o viajente
vê em pleno Oceano antes de ver o Brasil, imaginou-lhe uma tarefa portentosa: a construção de um continente.
Explicou: depondo-se aquêles sedimentos do fundo tranqüilo do Atlântico, novas terras aflorariam nas vagas e
ao cabo de um esfôrço milenário encher-se-ia o golfão aberto, que se arqueia do Cabo Orange à Ponta do
Gurupi, dilatando-se desta sorte, consideràvelmente, para nordeste, as terras paraenses.
The king is building his monument! bradou o naturalista encantado e acomodando às ásperas sílabas britânicas
um rapto fantasista capaz de surpreender à mais ensofregada alma latina. Esqueceu-lhe, porém, que aquêle
originalíssimo sistema hidrográfico não acaba com a terra, ao transpor o Cabo Norte; senão que vai, sem
margens, pelo mar dentro, em busca da corrente equatorial, onde aflui, entregando-lhe todo aquêle plasma
gerador de território. Os seus materiais, distribuídos pelo imenso rio pelásgico que se prolonga com o Gulf-
Stream, vão concentrando-se e surgindo a flux, espaçadamente, nas mais longínquas zonas: a partir das costas
das Guianas, cujas lagunas, a começar no Amapá, a mais e mais se dessecam avançando em planuras de estepes
pelo mar em fora, até aos litorais norte-americanos, da Geórgia e das Carolinas, que se dilatam sem que lhes
expliquem o crescer contínuo os breves cursos d’água das vertentes orientais dos Aleganis.
Naqueles lugares, o brasileiro salta: é estrangeiro, e está pisando em terras brasileiras. Antolha-se-lhe um contra-
senso pasmoso: à ficção de direito estabelecendo por vêzes a extraterritorialidade, que é a pátria sem a terra,
contrapõe-se uma outra, rudemente física: a terra sem a pátria. É o efeito maravilhoso de uma espécie de
imigração telúrica. A terra abandona o homem. Vai em busca de outras latitudes. E o Amazonas, nesse construir
o seu verdadeiro delta em zonas tão remotas do outro hemisfério, traduz, de fato, a viagem incógnita de um
território em marcha, mudando-se pelos tempos adiante, sem parar um segundo, e tornando cada vez menores,
num desgastamento ininterrupto, as largas superfícies que atravessa.
Não se lhe apontam formações duradouras, ou fixas. Por vêzes, nas arqueaduras de seus canais remansam-se as
águas fazendo que se deponham os sedimentos conduzidos e as sementes que acarretam. Então as faculdades
criadoras do rio despontam supreendedoramente. O baixio prestes recém-formado e aflorando à superfície,
delineia-se, em contornos indecisos; define-se logo, vivamente; dilata-se e ascende, bombeando levemente nas
águas; e na ilha que se gera, crescendo e articulando-se a olhos vistos, apontoada de cabuchos, que se alongam e
se retorcem à superfície à maneira de tentáculos de um prodigioso organismo - desencadeia-se para logo a luta
das espécies vegetais tão viva e tão dramática que nem lhe faltam no baralhamento dos colmos, das hastes ou
das ramagens revôltas, estirando-se, enredando e confundindo-se, todos os movimentos convulsivos de uma
enorme batalha sem ruídos: dos aningais, que consolidam o tijuco inconsistente com a infibratura dos risomas
estirados; aos mangues, que os suplantam e repelem para as bordas, em violentos e tumultuários bracejos; aos
javaris altaneiros, que por sua vez recalcam os últimos expelindo-os para as margens apauladas, e senhoreando
os tesos consistentes...
Assim se erigiu recentemente a Ilha de Cururu, com dois km² de área; e se reconstróem tôdas as que se
observam acima dos canais de Breves.
Mas formam-se para se destruírem, ou desocarem-se incessantemente. As ilhas trabalhadas pelas mesmas
correntes que as geraram, desbarrancam-se a montante e restauram-se a jusante, e vão lento e lento derivando rio
abaixo, ao modo de monstruosos pontões desmastreados, de longas proas abatidas e pôpas altas, a navegarem
dia e noite com velocidade insensível. Por fim, desgastam-se e acabam. A de Urucurituba durou dez anos (1840-
1850) mercê da superfície vastíssima; e apagou-se numa enchente...
O mesmo fato, nas margens. Os litorais do Amazonas mal lhe definem a calha desmedida. São margens que
evitam o rio. Ficam-lhe, normalmente, fora das águas, para além das vastas planuras salpintadas de "lagos de
terra firme", que atenuam, feito compensadores, a violência das caudais, nas cheias. Aí, num cenário mais
amplo, se desdobra por vêzes a aparência de uma construção, em larga escala, de solo. O rio, multífluo nas
grandes enchentes, vinga as ribanceiras e desafoga-se nos plainos desimpedidos. Desarraíga florestas inteiras,
atulhando de troncos e esgalhos as depressões numerosas da várzes; e nos remansos das planícies inundadas,
decantam-se-lhe as águas carregadas de detritos, numa colmatagem plenamente generalizada. Baixam as águas e
nota-se que o terreno cresceu; e alteia-se de cheia em cheia, aprumando-se as "barreiras" altas, exsicando-se os
pantanais e "igapós", esboçando-se os "firmes" ondeantes, para logo invadidos da flora triunfal... até que num só
assalto, de enchente, todo êsse delta lateral se abata.
Numa só noite (29 de julho de 1866) as "terras caídas" da margem esquerda do Amazonas desmoronaram numa