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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
DO RIO DE JANEIRO
Sonia Maria Marques de Souza Cosentino
VIDA, LIBERDADE, VERDADE E AMOR
Experiência Histórica do Espírito Santo na Sagrada Escritura
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Teologia.
Orientadora: Prof.ª Ana Maria de Azeredo
Lopes Tepedino
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
DO RIO DE JANEIRO
Sonia Maria Marques de Souza Cosentino
Vida, Liberdade, Verdade e Amor: Experiência
Histórica do Espírito Santo na Sagrada Escritura
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de s-
Graduação do Departamento de Teologia do Centro de
Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof.ª Ana Maria de A. Lopes Tepedino
Orientadora
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Prof.ª Jenura Clothilde Boff
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Prof. Luiz Fernando Ribeiro Santana
Inst. Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do
Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro,
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e da
orientadora.
Sonia Maria Marques de Souza Cosentino
Graduou-se em Teologia na PUC-Rio em 2005. É professora do
Centro Loyola de e Cultura e de cursos no Vicariato Norte. É
tutora do Curso de Teologia a Distância da PUC-Rio.
Ficha Catalográfica
CDD 200
Cosentino, Sonia Maria Marques de Souza
Vida, liberdade, verdade e amor: experiência
histórica do Espírito Santo na Sagrada Escritura /
Sonia Maria Marques de Souza Cosentino;
orientadora: Ana Maria de Azeredo Lopes Tepedino. –
2008.
234 f.; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Teologia)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2008.
Inclui bibliografia
1. Teologia – Teses. 2. Espírito Santo. 3. Sagrada
Escritura. 4. Experiência histórica. 5. Critérios de
discernimento. 6. Vida. 7. Liberdade. 8. Verdade e
amor. I. Tepedino, Ana Maria de Azeredo Lopes. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Teologia. III. Título.
A Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo, por me chamar à vida,
sustentando-a amorosamente,
por ser luz que me conduziu nesta caminhada teológica
e força que me fez superar os desafios neste difícil processo de pesquisa.
A meu amado esposo, Vicente Cosentino,
amigo e companheiro de todas as horas, pelo incentivo e dedicação,
pela compreensão e paciência em minhas “ausências-presenças”,
para que eu pudesse realizar esta dissertação.
A minha mãe que me impulsionava a cada dia com sua admiração.
A meu saudoso pai e a minha saudosa avó Albertina, que sempre acreditaram em
meu potencial e que apesar de ausentes, continuam presentes em minha vida.
A minha querida irmã, Regina Helena, que com sua amizade e carinho sempre me
apoiou em todos os momentos, tanto nos de alegria como nos de tristeza.
Aos meus queridos filhos Frederico, Vanessa e Flávia
pelo apoio e estímulos constantes.
Aos meus queridos netos Leonardo, João Vitor e Mariana
que trouxeram alegria nesta árdua jornada acadêmica.
Agradecimentos
A minha orientadora e amiga, Professora Doutora Ana Maria de Azeredo Lopes
Tepedino, pela confiança em mim depositada e pela colaboração prestada durante
todo o tempo em que decorreu este trabalho e, principalmente, pela orientação da
Dissertação que sempre foi conduzida com leveza e sensibilidade.
À Pontifícia Universidade Católica pela organização e condução do Curso de
Mestrado em Teologia.
Ao PROLIC, Programa de Apoio para o Desenvolvimento de Lideranças
Católicas, por me proporcionar uma bolsa neste período de pesquisa, sem a qual
este trabalho não poderia ter sido realizado.
A todos os professores e professoras de Teologia da PUC-Rio que colaboraram
em minha formação, em especial, ao Professor Doutor Alfonso García Rubio,
exemplo de teólogo a seguir.
Às funcionárias do Departamento de Teologia pela colaboração e carinho
prestados em todos os momentos de dificuldades.
Aos professores que participam da Comissão examinadora.
Ao Padre Ricardo Pereira Calvo, pároco e amigo, que sempre me incentivou nesta
formação teológica para que a Igreja possa ter um laicato consciente.
Aos amigos e amigas de Mestrado que partilham comigo este momento de
angústias e alegrias, em especial à querida amiga Solange que sempre me
incentivou a nunca desistir dos meus objetivos acadêmicos e pessoais.
A todos os meus alunos e alunas, a todos os meus amigos e amigas que foram um
constante incentivo para que eu continuasse firme neste projeto.
Resumo
Cosentino, Sonia Maria Marques de Souza; Tepedino, Ana Maria de
Azeredo Lopes. Vida, Liberdade, Verdade e Amor: Experiência
Histórica do Espírito Santo na Sagrada Escritura. Rio de Janeiro, 2008.
234 p. Dissertação de Mestrado Departamento de Teologia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Esta dissertação se propõe a conhecer o Espírito Santo, que se revela na
Sagrada Escritura, e recolher daí os critérios de discernimento que possibilitam ao
homem e à mulher de fé, viver uma autêntica “vida no Espírito”. Tendo como
base alguns textos seletos do Primeiro e do Segundo Testamentos este trabalho
reflete, primeiramente, a experiência histórica que o povo de Israel faz com o
Espírito de Deus. Em seguida, acompanha Jesus de Nazaré em sua experiência
com este Espírito, dando atenção à sua pregação e práxis, momento em que se
a plenitude da Revelação sobre esta Pessoa divina. Finalmente, segue a
comunidade cristã primeva em sua trajetória histórica a partir da rica experiência
que faz com o Espírito Santo, e das dificuldades que encontra em viver
coerentemente, a sua inspiração. É esta multifacetada pneumatologia bíblica que a
presente dissertação se propõe investigar e conhecer.
Palavras-chave
Espírito Santo; Sagrada Escritura; experiência histórica; povo de Israel;
Jesus Cristo; comunidade cristã primeva; critérios de discernimento; “vida no
Espírito”; Vida, Liberdade, Verdade e Amor.
Résumé
Cosentino, Sonia Maria Marques de Souza; Tepedino, Ana Maria de
Azeredo Lopes. Vie, Liberté, Vérité et Amour: Expérience Historique de
l´Esprit Saint dans la Saint Écriture. Rio de Janeiro, 2008. 234 p.
Dissertation de Maîtrise Departamento de Teologia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro
La proposition de cette dissertation est de connaître l´Esprit Saint tel qu´il
se révèle dans la Saint Écriture et de recueillir à partir de là les critères de
discernement qui permettent à l´homme et à la femme de foi de vivre une
authentique « vie dans l´Esprit ». Basé sur quelques textes choisis dans le Premier
et le Deuxième Testament, ce travail lieu reflète tout d´abord´expérience
historique que le peuple d´Israël fait de l´Esprit de Dieu. Il accompagne ensuite
Jésus de Nazareth dans l´expérience qu´il fait de cet Esprit avec une attention
particulière pour ses sermons et sa praxis car il constituent le moment a lieu en
toute plénitude la Revélation de sa Personne Divine. En dernier lieu, le texte
accompagne la communauté chrétienne au cours de sa trajectoire historique à
partir de sa riche expérience de Esprit Saint et des difficultés qu´elle rencontre
pour vivre pleinement son inspiration. C´est de cette pneumatologie biblique aux
multiples facettes qu’on se propose a faire l´objet de notre recherche et que nous
avons pour but de connaître
Mots-clés
Esprit Saint; Saint Écriture; expérience historique; peuple d´Israël; Jésus
Christ; communauté chrétienne primitive; critères de discernement ; «vie dans
l´Esprit» ; Vie, Liberté , Vérité et Amour.
Sumário
Introdução 14
1. A Experiência Histórica do Espírito de Deus no Primeiro
Testamento 21
1.1. Rûah 25
1.1.1. A Rûah Iahweh 29
1.1.2. A Experiência Histórica da Rûah Iahweh no Primeiro
Testamento 30
1.1.2.1. O Êxodo 30
1.1.2.2. A Travessia do Deserto 34
1.1.2.3. Os Juízes e as Juízas 36
1.1.2.4. A Monarquia 41
1.1.2.5. O Exílio: fonte depuradora para a Experiência da Rûah
Iahweh 52
1.1.2.6. O Pós-Exílio 64
1.2. A Sophía 66
1.2.1. O processo pelo qual passa o termo Sophía 67
1.2.1.1. A Sophía humana 67
1.2.1.2. A Sophía divina 71
1.2.2. Pneuma (Rûah) e Sophía (Hokmah) 75
1.2.3. A personificação da sophía humana e da Sophía divina 77
1.2.4. O que a ação da Sophía divina provoca na
História 78
1.3. A Shekinah 79
1.3.1. Como surge o conceito de shekinah 79
1.3.2. O significado de shekinah 80
1.3.3. Comparação entre Rûah Iahweh e Shekinah 82
1.3.4. Autodistinção de Deus 83
1.3.5. Como a teologia da Shekinah contribui para a compreensão
do Espírito de Deus 83
1.3.6. O que a ação da Shekinah provoca no ser humano 84
1.4. Balanço da investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito
de Deus no Primeiro Testamento 85
1.4.1. Identidade: Quem é o “espírito” que se encontra revelado
no Primeiro Testamento? 86
1.4.2. Ação: Quais os critérios que nos ajudam a discernir que
“espírito” está agindo no ser humano e no mundo? 87
2. A Experiência Histórica do Espírito de Deus em Jesus de Nazaré 89
2.1. Pneuma 93
2.2. João Batista 95
2.2.1. Uma vida de pobreza e austeridade 97
2.2.2. Um ensino moral que convoca as pessoas a produzirem frutos
de generosidade com os pobres e a renunciarem à opressão e à
violência 98
2.2.3. Humildade 99
2.2.4. O reconhecimento do Messias 100
2.3. Jesus de Nazaré, o homem cheio do Espírito 101
2.3.1. Jesus se deixa batizar por João 101
2.3.2. Jesus é guiado pelo Espírito 105
2.3.2.1. Ao deserto para lutar contra o Tentador 105
2.3.2.2. Para a Galiléia onde concretizará seu messianismo de
serviço 108
2.3.3. Jesus atua no Espírito 108
2.3.3.1. Jesus proclama o “Reino de Deus” 109
2.3.3.2. Jesus expulsa demônios 112
2.3.3.3. Jesus ensina com autoridade 113
2.3.3.4. Jesus leva a Boa-Nova aos “pobres” 114
2.3.3.5. Jesus proclama que o Pai revela o Reino aos “pequeninos” 116
2.3.3.6. Jesus cura e perdoa 117
2.3.3.7. Jesus acolhe as mulheres como suas discípulas e
missionárias 119
2.3.3.8. Jesus resgata os “pecadores” 122
2.3.3.9. Jesus ora e ensina a orar 124
2.3.3.10. Jesus denuncia todo tipo de injustiça 126
2.3.3.11. Jesus promete o Paráclito 128
2.3.3.12. Jesus ama até as últimas conseqüências entregando-se à
morte 130
2.3.3.13. Jesus ressuscita e entrega o Paráclito 133
2.3.4. Jesus vem do Espírito 134
2.3.5. Jesus é a revelação plena do Amor Trinitário 137
2.4. Balanço da investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito
de Deus em Jesus 139
2.4.1. Identidade: Quem é o Espírito que se revela em Jesus? 139
2.4.2. Ação: Quais os critérios que nos ajudam a discernir que
"espírito" agiu em Jesus? 141
3. A Experiência Histórica e a Teologia do Espírito Santo nas
primeiras comunidades cristãs 143
3.1. A Pneumatologia Lucana a partir da experiência histórica com
o Espírito Santo 147
3.1.1. Há uma continuidade na História da Salvação 148
3.1.2. O dom do Espírito Santo é a Nova Lei gravada no coração de
cada ser humano 149
3.1.3. O Espírito derramado em Pentecostes é um Espírito Pascal,
pois é o sopro do Ressuscitado 150
3.1.4. Não há discriminações nem privilégios entre os membros
da primeira comunidade cristã 151
3.1.5. O dom do Espírito é para que a Boa Nova trazida por Jesus
seja comunicada 152
3.1.6. O Espírito Santo é o protagonista da missão 154
3.1.7. Comunicar a “Boa Nova” no Espírito torna a mensagem
inteligível a todos/as 154
3.1.8. O dom do Espírito permite que o testemunho seja um
testemunho universal 155
3.1.9. O dom do Espírito faz testemunhas cheias de intrepidez 156
3.1.10. O dom do Espírito é livre para agir 159
3.1.11. A koinonia (comunhão) é fruto do dom do Espírito 160
3.1.12. A perseverança é igualmente um fruto do dom do Espírito 161
3.1.13. O dom do Espírito possibilita que a participação fundamental
das mulheres seja uma realidade que marca toda Igreja nascente 161
3.1.14. O Espírito Santo é o conselheiro da Igreja nascente
para o discernimento sobre a vontade de Deus 163
3.1.15. O dom do Espírito possibilita que a evangelização seja
inculturada 165
3.2. A Pneumatologia Paulina a partir da experiência histórica
com o Espírito Santo 166
3.2.1. O primeiro fruto do Espírito, no tempo, é a Ressurreição de
Cristo dentre os mortos, antecipação da Nova Criação 168
3.2.2. A vida segundo o Espírito 169
3.2.3. Paulo tem consciência que seu ministério apostólico
e as comunidades cristãs transcorrem sob a ação do Espírito Santo 172
3.2.4. O dom do Espírito se realiza na economia da fé e não da lei 173
3.2.5. O dom do Espírito nos liberta para a verdadeira Liberdade 174
3.2.6. A ação do Espírito é universal 175
3.2.7. O Espírito nos constitui filhos e filhas de Deus 176
3.2.8. O Espírito leva o ser humano a uma práxis libertadora 177
3.2.9. A oração cristã é uma ação do Espírito Santo 178
3.2.10. O Espírito possibilita o verdadeiro conhecimento de Deus
e a confissão autêntica de Cristo 180
3.2.11. O Espírito tem uma função decisiva na construção da Igreja
e na sua unidade, assim como na comunhão entre todos os
seus membros 182
3.2.12. O Espírito Santo é o arquiteto do “edifício” que é a Igreja 185
3.2.13. Todo ministério na Igreja é um ministério do Espírito com
a finalidade de edificar a comunidade, e não para alimentar o
orgulho pessoal 186
3.2.14. O extraordinário da experiência com o Espírito de Deus
esconde-se e revela-se no ordinário e cotidiano da vida humana 189
3.2.15. Não há oposição entre carisma e instituição 190
3.2.16. A experiência do Espírito traz alegria nas tribulações 191
3.2.17. Não há identificação entre o Senhor Jesus e o Espírito 192
3.2.18. É preciso discernir e ficar com aquilo que v
em do Espírito de
Deus 193
3.3. A Pneumatologia Joanina a partir da experiência histórica
com o Espírito Santo 194
3.3.1. As três grandes ações divinas na perspectiva da pneumatologia
de João 195
3.3.2. O Espírito é um outro Paráclito 197
3.3.3. A água-Espírito é a fonte de vida por excelência 205
3.3.4. O Espírito leva a afirmar a encarnação de Jesus 208
3.3.5. O Espírito é o agente dinâmico da verdadeira oração 209
3.3.6. O Espírito gera o amor efetivo 210
3.3.7. O Espírito faz nascer a comunidade 211
3.3.8. O Espírito é força para a missão 212
3.4. Balanço da investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito
de Deus nas pneumatologias das primeiras comunidades cristãs 214
3.4.1. Identidade: Quem é o Espírito que se encontra revelado
nas pneumatologias lucana, paulina e joanina? 214
3.4.2. Ação: Quais os critérios que nos ajudam a discernir se o
Espírito que agiu nas primeiras comunidades cristãs é o mesmo que
age hoje no ser humano e no mundo? 216
Conclusão 218
Bibliografia 227
Quem és tu, luz,
que me enche
e ilumina a escuridão de meu coração?
Tu me guias,
igual à mão de uma mãe
da qual, soltando-me,
não saberia caminhar
mais um só passo.
Tu és o lugar, que cerca meu ser
e em ti me acolhe.
Saindo de ti, mergulho no abismo do nada,
de onde tu elevaste o meu ser.
Tu estás mais próximo a mim,
do que eu a mim mesma.
e mais íntimo do que meu interior -
no entanto, continuas intocável
e incompreensível,
arrebatando do que existe:
Santo Espírito – Eterno Amor.
Edith Stein
Introdução
Nossa intenção nesta pesquisa consiste em extrair em seu decorrer as linguagens,
imagens e metáforas que, no Primeiro Testamento, nos permitem vislumbrar
traços da ação do Espírito de Deus no povo de Israel, em seguida recolher do
Segundo Testamento, a revelação e ão deste Espírito na vida de Jesus de
Nazaré e, posteriormente, fazer a mesma investigação na vida da comunidade
primeva. Tudo isto com a finalidade de vislumbrar o Mistério de Deus como
Espírito Santo e recolher os critérios de discernimento que sejam fiéis ao dado
revelado. Para tal, usaremos em nosso trabalho os conceitos “Primeiro
Testamento” e “Segundo Testamento” por considerar que as expressões “Antigo
Testamento” e “Novo Testamento” desqualificam a primeira parte da Bíblia como
obsoleta ou ultrapassada. Infelizmente se desenvolveu entre os cristãos/ãs uma
desvalorização do Primeiro Testamento como um livro “imperfeito”, como um
livro de anúncios, que encontraria seu cumprimento no Novo Testamento.
Entretanto, não podemos esquecer que a Bíblia é Sagrada Escritura em sua
unidade. Portanto, usando estes conceitos, queremos demonstrar nosso respeito
pelo Judaísmo, com o qual compartilhamos, pela força do mesmo Espírito, esse
documento de fé no Deus comum.
Nossa dissertação afirma que há uma unidade entre o Primeiro e o Segundo
Testamento em relação às pneumatologias encontradas. Apesar disto, sustenta
também, que existe um sabor de total novidade que nos é trazido por Jesus de
Nazaré ao revelar quem é o Espírito Santo de Deus. De tal forma isto é uma
realidade que revoluciona a vida das pessoas daquele momento histórico e nos
toca, encanta e impulsiona até os dias de hoje. Novidade esta que se encontra
narrada nas pneumatologias do Segundo Testamento que iremos pesquisar.
Portanto, o que almejamos na realidade com esta dissertação é conhecer a grande
linha mestra da pneumatologia bíblica com o objetivo de recolher daí os critérios
de discernimento que nos possibilitam saber se é realmente o Espírito de Deus
que está agindo hoje no ser humano e no mundo. pretendemos elencá-los, pois
sabemos que confrontá-los com nossa realidade existencial e eclesial exigiria de
nós o desenvolvimento de uma pneumatologia que abrangesse áreas que não
fazem parte de nosso escopo. Acreditamos que este trabalho futuro poderá ser
desenvolvido por outros/as teólogos/as de maior competência e disponibilidade.
15
Antes de iniciar nossa pesquisa propriamente dita gostaríamos, de esclarecer que
nos situamos como “mulher, esposa, mãe, avó, professora de Teologia, e leiga
católica inserida numa comunidade paroquial onde celebra e partilha sua e seus
dons”. Logo, é a partir desta realidade que nos propomos a fazer Teologia.
O que motivou nossa escolha pelo tema proposto acima foi nossa dificuldade em
relação ao movimento carismático dentro da Igreja Católica. Nele víamos,
evidentemente, que em alguns casos, uma experiência com o Espírito Santo
distante daquela que foi vivida pelo povo da Bíblia. Em outros casos,
testemunhávamos uma experiência contraditória com o que foi vivido e pregado
por Jesus de Nazaré. Além disto, sabíamos da existência de algumas experiências
carismáticas que não estavam de acordo com os critérios de discernimento que
nos deparamos nos escritos das primeiras comunidades cristãs. Um outro motivo
para escolhermos este tema foi não termos estudado pneumatologia ao fazermos a
graduação em Teologia. Por isso, entendemos que, este momento de
aprofundamento da reflexão teológica que é feito no mestrado, seria um tempo
propício para amadurecer nossa pneumatologia. Finalmente, esse tema foi
escolhido porque nos permite fazer aquilo que acreditamos ser o melhor caminho
teológico: articular a área sistemático-pastoral com a área bíblica. Desta forma,
poder elaborar uma reflexão teológico-pastoral sobre o Espírito Santo a partir da
Sagrada Escritura. Toda esta motivação, assim como nosso lugar existencial e
eclesiológico são de fundamental importância, pois condicionam nossa reflexão a
partir de uma realidade sócio-econômica, política, cultural e eclesial própria. Essa
realidade molda nosso ser e agir, nosso olhar e nosso sentir, nosso falar e nosso
calar. Exatamente por isso, queremos deixar bem claro que nossa reflexão é
pneumatológica numa perspectiva feminista, o que significa dizer que
pretendemos encontrar um Deus maior que em seu Espírito nos permite crer e
invocá-lo também no feminino. Esta perspectiva feminista de nosso olhar e falar
teológico pretende salientar que o Deus que nos cria, salva e santifica, não se
identifica privilegiadamente com um dos sexos que formam a humanidade como
muitas vezes fomos levados/as a crer. Pelo contrário, ele integra e harmoniza os
dois sexos, sem suprimir suas enriquecedoras diferenças, ao mesmo tempo que os
transcende. Portanto, como mulher e teóloga que somos é essencial para nós
destacar a revelação do feminino em Deus, a fim de sermos capazes de crer e
invocar a Deus não só como Pai forte, que impulsiona os seres humanos e os leva
16
a abrir caminhos novos nunca imaginados, mas também como Mãe que
aconchega, consola, abriga e protege.
É, portanto, a partir desta realidade existencial, cultural e eclesial que lançaremos
nosso olhar para a Sagrada Escritura, selecionando os textos onde encontramos a
presença e a atuação do Espírito de Deus. Uma correta interpretação teológica dos
versículos que apresentaremos em nossa pesquisa supõe um estudo exegético
profundo, o que não é o nosso objetivo, além de fugir a nossa competência. Este
alerta, que afirma nosso limite, deverá ser considerado em cada uma das vezes em
que utilizarmos o texto bíblico. Ademais, queremos frisar que não temos a
pretensão de esgotar a riqueza de sentidos que em si estes textos trazem, apenas
iremos explorá-los no que diz respeito mais diretamente ao tema que nos
propomos pesquisar.
Devido a nossa prática pastoral e ao exercício do ensino teológico percebemos
que as pessoas costumam apreender melhor aquilo que buscamos transmitir, isto
é, o conteúdo teológico ou catequético, quando nos utilizamos da narrativa
histórica. Sabemos que através dela as pessoas se sentem seduzidas, envolvidas,
provocadas e convocadas pela Boa Notícia de que somos porta-vozes. Portanto, é
desta forma que nos propomos apresentar esta dissertação, dito com outras
palavras, este é o método teológico que pretendemos adotar em nossa pesquisa.
Por isso, desenvolvemos nossa reflexão através de uma narrativa que se esforça
por acompanhar o Povo do Primeiro Testamento em sua experiência com o
Espírito de Deus. Para depois acompanhar Jesus de Nazaré igualmente em sua
Experiência Histórica com o Espírito Santo. Finalmente, busca narrar como as
primeiras comunidades cristãs fazem esta mesma experiência maravilhosa. Para
fazer este percurso optamos por dividir nossa pesquisa em três capítulos que
recebem os seguintes títulos: 1) a Experiência Histórica do Espírito de Deus no
Primeiro Testamento; 2) a Experiência Histórica do Espírito de Deus em Jesus de
Nazaré; 3) a Experiência Histórica do Espírito de Deus nas primeiras
comunidades cristãs.
No primeiro capítulo iremos traçar a experiência carismática que caracterizou
Israel, recorrendo a algumas imagens e símbolos usados no Primeiro Testamento
para falar do Espírito de Deus. Analisaremos de forma separada estas três
17
principais metáforas: a Rûah Iahweh, a Sophía e a Shekinah.
1
Fizemos a escolha
por estes três símbolos ou imagens, baseando-nos nos autores e autoras
pesquisados. Entretanto, temos consciência que ao escolher estas três metáforas
deixamos algumas possíveis fora de nossa análise. Apesar disto, entendemos que
aquelas que escolhemos nos dão material suficiente para o propósito de nossa
reflexão.
Neste capítulo iremos primeiramente tratar da abundância de sentidos que possui
o vocábulo rûah, para posteriormente refletir sobre a riqueza da experiência de
Israel refletida na expressão Rûah Iahweh. A partir daí acompanharemos o
caminho feito pelo povo do Primeiro Testamento. Analisaremos a ação da Rûah
Iahweh, inicialmente, na experiência fundante do povo da Bíblia, o Êxodo. Em
seguida, acompanharemos a formação deste povo em sua caminhada no deserto
quando busca, apesar de todas as dificuldades, concretizar sua libertação.
Veremos como o Espírito de Deus age em seus líderes e os orienta na caminhada.
Vamos acompanhar este povo em sua entrada na Terra Prometida e como,
instalados, se organizam liderados por Juízes e Juízas. Posteriormente,
enfocaremos a monarquia e a ação da Rûah Iahweh nos Reis. Veremos a seguir
que é neste momento histórico que surge o profetismo. Destacaremos então os
principais profetas que fazem uma profunda experiência com o Espírito de Deus,
experiência que se encontra narrada nas ginas do Primeiro Testamento. Em
seguida, acompanharemos o povo para o Exílio, momento fundamental para a
experiência com o Espírito de Deus e que se tornou uma fonte depuradora desta
experiência. Finalmente nos colocaremos no Pós-Exílio para vermos como a
Rûah Iahweh é compreendida e experimentada neste momento de reconstrução e
recomeço.
Em seguida, voltaremos nossa atenção para o símbolo Sophía. Estaremos ainda
dentro de uma perspectiva histórica, pois nos encontraremos com o povo de Israel
no tempo do Pós-exílio, momento em que aprofundam sua fé no Espírito de Deus.
Analisaremos, então, o vocábulo sophía com sua abundância de significados e
veremos que ela é experimentada como sophía humana, e também como Sophía
divina. Observaremos que no livro da “Sabedoria” a Sophía (sabedoria) e o
1
Nesta pesquisa tivemos que optar por uma grafia para os termos hebraicos e gregos utilizados, e
fomos fiéis a esta escolha em toda nossa explanação. Todavia, as citações literais dos autores/as
pesquisados, que por ventura fizermos, guardará a grafia destes mesmos termos que o autor/a
citado escolheu.
18
Pneuma (espírito) estão muitas vezes tão ligados que chegam a ser a mesma coisa.
Veremos ainda a personificação da Sophía que é feita em alguns livros do
Primeiro Testamento, sem com isto forçar o texto bíblico para afirmar que já se
tem claro o Espírito como uma pessoa divina. Finalmente destacaremos o que a
ação da Sophía provoca no ser humano e no mundo.
O último símbolo que enfocaremos é a Shekinah. Primeiramente descobriremos
seu significado primitivo e o processo pelo qual passa a partir do Exílio, para
posteriormente ver como surge a teologia da Shekinah dentro do judaísmo.
Descobriremos como esta metáfora do Espírito de Deus é hoje compreendida e
usada por alguns pneumatólogos/as cristãos/ãs. Veremos ainda como a teologia da
Shekinah, desenvolvida pelo judaísmo, contribui para compreendermos melhor o
Espírito Santo de Deus. Finalmente apontaremos alguns resultados da ação da
Shekinah no ser humano e no mundo.
O segundo capítulo desta dissertação tem como objetivo ver como o Espírito
Santo age e é compreendido no período messiânico. Nele analisaremos em
primeiro lugar o termo Pneuma com sua riqueza de significados e seu uso no
Segundo Testamento. A partir daí iniciaremos a caminhada histórica da
experiência do Espírito de Deus neste período com a figura de João Batista. Em
seguida refletiremos sobre a vida, morte e ressurreição de Jesus, sobre sua práxis e
pregação, sobre a revelação inaudita que faz de Deus e, finalmente, sobre sua
relação única com o Espírito Santo. Faremos esta abordagem a partir de uma
“cristologia ascendente”, pois ela nos permite continuar com nossa narrativa
histórica. Veremos que o Espírito Santo sempre esteve presente na vida de Jesus,
tornando-se sua unção e seu companheiro inseparável. Esta presença constante
pode ser percebida por nós com mais clareza: no batismo de Jesus no Jordão; ao
ser conduzido ao deserto onde luta contra o Maligno; ao pregar o Reino de Deus
como total gratuidade; ao expulsar demônios; ao ensinar com autoridade; ao
anunciar a Boa Nova aos pobres; ao curar e perdoar todos e todas; ao acolher as
mulheres como suas discípulas e missionárias; ao resgatar os pecadores/as; ao orar
e a ensinar a orar; ao denunciar as injustiças da sociedade palestinense de seu
tempo; ao amar de forma radical até o ponto de entregar-se à morte; ao prometer e
entregar o Paráclito; e finalmente ao ressurgir pela força deste Santo Espírito.
Após este percurso destacaremos como os discípulos/as do Mestre de Nazaré,
após a experiência pascal (morte-ressurreição-pentecostes), são capazes de
19
descobrir que ele vem do Espírito, o que significa dizer que este homem é
concebido por sua intercessão. A partir daí, constataremos que a plenitude da
revelação vem por sua pessoa: Deus é comunidade de amor, Deus é Trindade. Ao
final verificaremos que surge da vida de Jesus uma pneumatologia que mantém
muito da pneumatologia do Primeiro Testamento acrescida da grande novidade
em relação ao Espírito Santo de Deus que brota de sua vida e pregação: o Espírito
é uma pessoa divina.
No terceiro capítulo refletiremos como a presença e a ação do Espírito Santo
foram experimentadas e verbalizadas por alguns autores do Segundo Testamento e
pelas comunidades cristãs que se encontram retratadas. Esta experiência traz
um sabor de total novidade, de tal forma que revoluciona a vida destas pessoas,
como já destacamos anteriormente. Mas, é sempre bom não deixarmos de lembrar
que, apesar da total novidade que é experimentada pela comunidade cristã
primeva, também uma continuidade entre aquilo que vivem com a experiência
carismática vivida por Israel e por Jesus de Nazaré. Firmes em nossa narrativa
histórica acompanharemos os seguidores/as de Jesus a partir do momento em que
vivem a experiência de Pentecostes, marco fundamental na vida destas pessoas e
da Igreja nascente. Este fato histórico sucede, no tempo, à morte-ressurreição de
Jesus, o que nos permite afirmar que estamos seguindo cronologicamente a
história do Novo Povo de Deus. Portanto, iniciaremos esta caminhada conhecendo
a pneumatologia de Lucas, suas principais características e os critérios de
discernimento que brotam de seus relatos. Posteriormente enfocaremos a
pneumatologia de Paulo encontrada em suas cartas, onde veremos o “apóstolo dos
gentios” lidando com as dificuldades que é viver a grande novidade da “vida no
Espírito”. A partir de seus conselhos pastorais iremos colher as principais
características de sua pneumatologia e os critérios de discernimentos apontados
por ele. Finalmente penetraremos no horizonte pneumatológico de João quando
elencaremos os principais elementos de sua teologia do Espírito e os critérios de
discernimento que podemos deduzir da prática da comunidade joanina.
Nossa proposta de refletir sobre a pneumatologia bíblica chega assim a seu final.
Deste longo e fascinante caminho percorrido iremos recolher os principais pontos
que nos ajudaram a corroborar nossa tese: uma unidade fundamental e
imprescindível na experiência que o homem e a mulher bíblicos fazem com o
Espírito de Deus, pois é o mesmo Espírito que é experimentado tanto no Primeiro
20
como no Segundo Testamento. Porém, esta continuidade que pudemos perceber
nestes escritos é dinâmica porque ganha um sabor de novidade que é trazido por
Jesus Cristo. Esta continuidade dinâmica é o desígnio da graça de Deus, isto é, é a
ação dinâmica do Espírito Santo que constitui da História uma única História, a
História da Salvação. Desta forma, levantando somente a pontinha do véu,
pudemos entreolhar o mistério que é Deus em seu Santo Espírito, pudemos
conhecê-lo um pouco mais e saboreá-lo com mais intensidade, porque o
experimentamos como Vida, Liberdade, Verdade e Amor. Estes são os traços
constantes que marcam a experiência humana com o Espírito de Deus consignada
nas páginas da Sagrada Escritura. Estes traços são os quatro grandes
sinalizadores da presença deste Espírito agindo na História, que nos permitirão
levantar os principais critérios de discernimento, que tanto buscamos.
Que o Espírito Santo seja nosso Assistente, para nós, que falamos dele, e para
nossos leitores!
21
1
A Experiência Histórica do Espírito de Deus no Primeiro
Testamento
Introdução
Neste capítulo buscamos traçar a experiência histórica do Espírito de Deus que
caracterizou Israel, pois é no Primeiro Testamento que encontramos a raiz da
riqueza pneumatológica blica e as tradições onde se radica a confissão de fé
cristã no Espírito Santo. Faremos isto através de uma narrativa que busca contar
como esta experiência foi acontecendo. Iremos, portanto, narrar a história de um
povo de fé, para, a partir daí, recolher os dados que podem nos ajudar a conhecer
melhor quem é este Espírito e a elencar os critérios pneumatológicos de
discernimento que encontramos no Primeiro Testamento .
Para desenvolver este tema iremos recorrer a algumas imagens, metáforas e
símbolos usados no Primeiro Testamento. Temos claro que o recurso ao uso de
símbolos e imagens é muito comum em toda Sagrada Escritura. Que linguagem
usar para expressar e comunicar o Indizível, o Inefável? Este é o dilema do autor
bíblico que se sente chamado a comunicar uma experiência de fé que não cabe em
palavras. Sabemos que os autores semitas utilizaram as representações próprias de
sua cultura para expressar uma mensagem religiosa, viva e existencial, que possui
um significado e um valor permanentes. Compete a nós ter a capacidade de
mergulhar em seu universo de para captar o significado profundo da
experiência vivida.
Perguntamo-nos: quais são os indícios de que realmente no Primeiro Testamento,
encontramos o Espírito de Deus, compreendido e expresso como Rûah, Sophía e
Shekinah?
Isto realmente acontece ou é produto de nossa imaginação? Em que
podemos basear-nos para dizer que a Rûah, a Sophía e a Shekinah são metáforas
usadas pelo autor bíblico para aquilo que nós cristãos confessamos ser o Espírito
Santo? Enfim, estas imagens nos ajudam a conhecer melhor o Espírito Santo de
Deus que nos foi revelado por Jesus Cristo? Além disto, a partir delas podemos
recolher alguns critérios pneumatológicos de discernimento? Caso as respostas a
essas questões sejam afirmativa, perguntamo-nos ainda: o que especificamente
conseguimos colher do Primeiro Testamento sobre a revelação de Deus como
22
Espírito? E, quais os critérios de discernimento que conseguimos inferir a partir
da ação deste Espírito em Israel? Estas são as questões que nos movem neste
capítulo.
Tentando encontrar respostas para esses questionamentos buscamos ser fiéis à
experiência de fé do povo de Israel, tendo o cuidado de não ler o Primeiro
Testamento a partir do Dogma da Santíssima Trindade. Não forçamos” estes
textos para afirmar que se percebia explicitamente a ação do Espírito Santo,
como uma terceira pessoa em Deus. Sabemos que até o Cristianismo verbalizar
este dogma foram necessários vários séculos de experiência de Deus a partir da
plenitude da Revelação que se deu em Jesus Cristo. O que fizemos foi uma leitura
cristã deste Testamento, o que é pertinente para nós cristãos/ãs. Não temos dúvida
que a tradição judaica nestes relatos a ação de Iahweh, o único Deus de Israel,
pois seu monoteísmo não aceita a pluralidade em Deus. Entretanto, para nós, que
também confessamos o monoteísmo, experimentamos no único Deus que
professamos a presença das Pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Não pretendemos neste capítulo retirar do Primeiro Testamento todos os
versículos em que encontramos narrada a ação da Rûah, da Sophía e da Shekinah.
Iremos somente selecionar algumas perícopes que poderão nos ajudar a alcançar
nosso objetivo, pois nossa intenção não é a de elaborar uma pesquisa que abranja
toda a rica e profunda experiência do Espírito de Deus no Primeiro Testamento.
Estruturamos este capítulo de forma a analisar separadamente cada uma das três
maneiras, por nós escolhidas, de expressar o Espírito de Deus no Primeiro
Testamento. Em primeiro lugar, trataremos do grande potencial e da abundância
de sentidos que possui o vocábulo rûah. Em seguida, refletiremos sobre a riqueza
da experiência de Israel refletida na expressão Rûah Iahweh. A partir daí, faremos
um caminho histórico com o povo do Primeiro Testamento. Para tal, optamos
metodologicamente, por fazer uma breve contextualização de cada etapa desta
caminhada, onde vemos a experiência da Rûah Iahweh narrada, e num segundo
momento, buscamos captar o que sua ação provoca no mundo e no ser humano.
Repetiremos o esquema (contextualização da experiência com a Rûah Iahweh e o
resultado da ação desta) em todas as etapas que percorrermos. A partir desta
perspectiva, analisaremos a ação da Rûah Iahweh, inicialmente, na experiência
fundante do povo da Bíblia que é a experiência do Êxodo. Em seguida,
acompanharemos a formação deste povo em sua caminhada no deserto quando
23
busca concretizar sua libertação. Dura caminhada que muitas vezes é vencida pela
acomodação e desânimo, levando muitos deles ao desejo de voltar atrás. Mas, o
Espírito de Deus age em seus deres e os orienta na caminhada. na Terra
Prometida, veremos como se organizam e como vivem liderados por Juízes e
Juízas, período que ficou na memória do povo como o tempo mais próximo do
ideal. Posteriormente, enfocaremos a monarquia e a ação da Rûah Iahweh nos
Reis, que apesar de serem os ungidos de Israel, não são capazes de concretizar
politicamente o ideal de liberdade e vida para todos/as. Veremos a seguir que é
neste momento histórico que surge o profetismo. Os profetas são homens e
mulheres inspirados pela Rûah Iahweh, que terão a função de mediar a palavra de
Deus junto ao povo, para que se mantenha fiel ao projeto de libertação suscitado
por Iahweh. Destacaremos entre os principais profetas que fazem uma profunda
experiência com o Espírito de Deus neste período, Elias e o Proto-Isaías. Após
isto, nos depararemos com o Exílio, momento fundamental para a experiência do
Espírito de Deus e que se tornou uma fonte depuradora desta experiência. Neste
momento histórico são capazes de olhar para o passado e ver que a Salvação se
encontrava lá, momento em que elaboram as narrativas da criação. São também
capazes de olhar para o futuro com e esperança na Salvação que também se
encontra no porvir, e vislumbram aí a Nova Criação. Deste período, destacaremos
o profeta Ezequiel que é capaz de perceber que a Nova Criação é fruto da ação do
Espírito de Deus. Finalmente, nos colocaremos no Pós-Exílio para vermos como a
Rûah Iahweh é compreendida e experimentada neste momento de reconstrução e
recomeço destacando daí o profeta Joel.
Em seguida analisaremos o vocábulo sophía com sua abundância de significados
e a evolução pelo qual passa este termo. Pois, assim como aconteceu com o
símbolo da Rûah Iahweh, também a imagem da Sophía nos ajudará a
compreender quem é o Espírito de Deus que foi experimentado pelo povo do
Primeiro Testamento. Veremos que ela é experimentada como sophía humana, a
saber, como uma das qualidades do ser humano dada por Deus. Como sophía
humana eles a entendem como a habilidade artesanal, a sagacidade, a ciência, a
arte de governar e ainda a prudência que possuem homens e mulheres. Veremos a
seguir que a Sophía foi experimentada também como sendo divina. O autor
bíblico nos dirá que esta Sophía divina tem o poder de governar e ordenar o
mundo, sendo o sentido vital que Deus coloca na estrutura da criação. Ela é ainda
24
a companheira ideal do homem e o “rei messiânico” a possui entre seus atributos.
Além disto, ela provém de Deus, e mais ainda, ela se identifica com o Mistério do
próprio Deus. Destacaremos, inclusive, que no livro da Sabedoria a Sophía
(sabedoria) e o Pneuma (espírito) estão muitas vezes tão ligados que chegam a ser
a mesma coisa. Alertaremos ainda sobre a personificação da Sophía que é feita
em alguns livros do Primeiro Testamento, para que não se confunda esta
personificação com a afirmação de que ela é uma verdadeira pessoa, pois esta não
é a percepção dos autores bíblicos. Finalmente, destacaremos o que a ação da
Sophía provoca no ser humano e no mundo.
A última forma de expressar o Espírito de Deus do Primeiro Testamento que
enfocaremos é a Shekinah. Mostraremos como surge este conceito dentro do
judaísmo, e como é hoje compreendido por alguns pneumatólogos/as cristãos/ãs.
Analisaremos o seu significado primitivo e o processo pelo qual passa a partir do
Exílio. Faremos uma breve comparação entre a Rûah Iahweh e a Shekinah que nos
ajudará a refletir sobre a tese de Jürgen Moltmann de que a Shekinah se aproxima
mais daquilo que nós cristãos confessamos ser o Espírito Santo do que a imagem
da Rûah Iahweh. Veremos ainda como a Teologia da Shekinah contribui para
compreendermos melhor o Espírito de Deus. Finalmente, apontaremos alguns
resultados da ação da Shekinah no ser humano e no mundo.
A partir de tudo o que vimos e recolhemos do Primeiro Testamento, podemos
afirmar que conhecemos a pneumatologia que se encontra expressa.
Pneumatologia que ainda em “acenos” nos diz quem é o Espírito de Deus, e que
para nós cristãos e cristãs, necessita da plenitude da revelação, que se em Jesus
Cristo, para que possamos dizer que “conhecemos” este Espírito.
Todo o percurso feito neste capítulo tem por objetivo preparar o caminho para
encontrarmos, no próximo capítulo, Jesus de Nazaré, o homem cheio do Espírito
de Deus. Este homem nos mostrará como é viver a “vida no Espírito” além do
que nos revelará quem é o Espírito Santo. Com isto poderemos apontar os
critérios de discernimento que surgem de sua práxis e pregação.
25
1.1.
Rûah
A palavra hebraica de gênero feminino rûah aparece 378 vezes no Primeiro
Testamento. Ela é quase sempre traduzida para o termo grego pneûma (neutro) e
para o termo latim spiritus (masculino). Segundo Helen Schügel-Straumann o
termo rûah também é empregado como masculino em seis passagens do Primeiro
Testamento, enquanto que para J. Scharbert mais “exceções masculinas” do
que as mencionadas por Helen e, sobretudo, casos indefinidos do uso deste
termo.
2
Segundo F. Raurell, constatar que a ah é apresentada no Primeiro
Testamento, como sendo do gênero feminino em quase sua totalidade,
“deveria ser registrada com atenção teológica, principalmente ‘por causa das
tarefas, imagens e propriedades que acompanham esse Espírito. (...) Deus como
ruah revela-se de modo particular nos papéis maternos da criação, manutenção e
proteção da vida. (...) O Deus ruah da Bíblia é um Deus que está constantemente
em relação com a vida e a faz surgir como faz uma mãe’.”
3
nesta afirmação algo de importante para nossa pesquisa, a saber, encontrar o
termo rûah no Primeiro Testamento em sua grande maioria no gênero feminino,
nos revela que Deus é como uma mãe que gera e preserva a vida. Portanto, é a
partir desta informação fundamental de que a rûah está associada estreitamente ao
surgimento, manutenção e proteção da vida, como o faz uma mãe, que iremos
refletir sobre o significado etimológico deste termo. A palavra rûah não pode ser
traduzida por um único termo, pois as “épocas de procedência dos escritos [em
que aparece] são tão diversas, que se torna impossível encontrar um padrão
simples para o uso lingüístico e formar um conceito único para as situações
envolvidas.”
4
Portanto, tentaremos recolher de autores consagrados o que se pode
afirmar sobre este vocábulo.
Para Helen Schüngel-Straumann o termo rûah no início foi certamente uma
palavra onomatopaica,
5
isto é, uma palavra formada a partir da reprodução
aproximada de um som natural a ela associado com os recursos de que a língua
2
Cf. SCHÜGEL-STRAUMANN, H e SCHARBERT J. apud H. HILBERATH, B. J.
Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. (org). Manual de Dogmática. Vol. I. Petrópolis: Vozes, 2000.
p. 410.
3
RAURELL, F. apud H. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 410.
Grifo nosso.
4
HERON, A. apud MOLTMANN, J. Op. cit., p. 49.
5
Cf. SCHÜNGELS-STRAUMANN, H. apud MOLTMANN, J. Op. cit., p. 49.
26
dispunha.
6
Helen afirma ainda que etimologicamente rûah, com toda
probabilidade, tem relação com a palavra hebraica rewah que significa amplidão,
espaço aberto à vida das criaturas.
7
A partir daí podemos dizer que este termo
traduzia o vento, isto é, o ar em movimento, ar que cria espaço e possibilita a
vida, e com este sentido aparece em mais da metade do seu uso no Primeiro
Testamento.
8
Rûah significava também o ar da respiração, frágil e vacilante, ar
necessário para a vida e que sustenta e anima o corpo e sua massa. A rûah é
descrita ainda como o hálito das narinas de Iahweh, hálito de um ser muito
poderoso, por isso, se afirma que a vida começa quando vem este hálito (Gn 2,7;
cf. 27,3; 33,4; 34,14ss; Sl 104,29ss; Is 42,5; Ez 37,1-14).
9
Sendo Iahweh o
dono deste hálito, o homem vive enquanto tem nas narinas este sopro, e logo que
ele desaparece, ou é retirado por Iahweh, o homem volta ao (Sl 146,4;
104,29ss; Jó 34,14ss). Portanto, o ser humano não é senhor deste sopro, deste ar
ou respiração embora não possa passar sem ele, e morre quando este se
extingue.
10
Segundo Luiz Carlos Susin a rûah sendo atmosfera de energia é
também um sinal forte do respiro da mulher em trabalho de parto.
11
Com as analogias do “vento” e da “respiração” aplicadas à rûah, o homem bíblico
buscava ressaltar a dimensão do dinamismo, do movimento em oposição ao que é
rígido, assim como enfatizar a dimensão de alguma coisa viva que se opõe ao que
é morto.
12
Carlos Mesters ao destacar o movimento como um dos traços mais
marcantes da rûah afirma que ela não se identifica com o vento, o ar, a brisa, a
tempestade, a respiração, o fôlego, o hálito, o alento, mas que ela é algo que está
em movimento. Afirma ainda que a rûah não recebe este movimento de fora, mas
sim de uma energia que existe dentro dela, logo, “a Ruah é energia em
movimento. [...] ela não apenas se move, mas põe outras coisas em movimento”
13
Outro traço importante deste termo é sua dimensão de mistério, entendendo aqui
6
Cf. DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA 2.0a. Grifo nosso.
7
Cf. SCHÜNGELS-STRAUMANN, H. apud MOLTMANN, J. Op. cit., p. 51.
8
Cf. BEAUCHAMP, P. Verbete “Espírito Santo”. In: LACOSTE, J. Y. (dir) Dicionário Crítico de
Teologia. São Paulo: Paulinas: Edições Loyola, 2004. p 650.
9
Cf. IMSCHOOT, P. V. Verbete “Espírito”. In: VAN DEN BORN, A. (dir) Dicionário
Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1971. p. 479.
10
Cf. Ibid.
11
SUSIN, L. C. A criação de Deus. São Paulo: Paulinas; Valencia, ESP: Siquém, 2003. p. 39.
12
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., pp. 49-50.
13
MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In:
TEPEDINO, Ana Maria. (Org.). Amor e Discernimento: experiência e razão no horizonte
pneumatológico das Igrejas. São Paulo: Ed. Paulinas, 2007. p. 32
27
mistério como algo que é incompreensível, algo que não se consegue explicar ou
desvendar, ou ainda algo que não se consegue prever ou controlar. Esta
característica também é destacada no Theologisches Handwörterbuch zum Alten
Testament quando afirma que “o significado básico de rûah é simultaneamente
‘vento’ [...] e ‘respiração’ [...], mas ambos não como essencialmente presentes,
mas como a força que se encontra no golpe do sopro e do vento, cujo de onde e
aonde permanecerá enigmático.
14
Este mistério que no vento se evidencia
quando o vemos ora como um vento impetuoso e irresistível, como por exemplo,
o vento que dividiu o Mar dos Juncos para o Êxodo de Israel do Egito (Ex 14,21);
ora quando ele se insinua num simples murmúrio (1Rs 19,12); ora quando resseca
com seu sopro a terra estéril (Ex 14, 21); ora quando espalha água fecunda sobre
a terra que faz germinar (1 Rs 18,45).
15
A rûah quando apresentada como um
vento impetuoso aplicado a Deus “passa a ser uma parábola para descrever os
efeitos irresistíveis da força criadora, da ira exterminadora e da graça vivificante
de Deus (cf. Ez 13,13s; 36,26s).”
16
Outra propriedade essencial da rûah é a destacada por Bernd Jochen Hilberath
quando nos diz que “em contextos teologicamente significativos rûah refere-se à
força vital dinâmica (criativa).
17
Um outro aspecto significativo da rûah é sua
não oposição ao “corpo” ou ao “corpóreo”, pois ela não é desencarnada, mas é a
animação de um corpo. Na verdade a rûah se opõe à sarx (carne), isto é, se opõe à
realidade puramente terrestre do ser humano, caracterizada pela fraqueza,
caducidade e finitude (cf. Gn 6,3).
18
John McKenzie nos diz ainda que a
concepção da rûah como alma não ocorre em parte alguma do Primeiro
Testamento, ela “como princípio de vida é quase sempre considerada como
elemento estranho ao homem, dada por Deus e tirada por ele; nunca é concebida
como um ser pessoal.”
19
Finalmente, seguindo a reflexão feita por Carlos Mesters
14
THEOLOGISCHES HANDWÖRTERBUCH ZUM ALTEN TESTAMENT II apud BLANK, J.
Verbete Espírito Santo/Pneumatologia. In: EICHER, P. Dicionário de Conceitos Fundamentais de
Teologia. São Paulo: Paulus, 1993. p. 243. Grifo nosso.
15
Cf. GUILLET, J. Verbete “Espírito”. In: LÉON-DUFOUR, X. (dir) Vocabulário de Teologia
Bíblica. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 294
16
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit. p. 50.
17
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 409. Grifo Nosso.
18
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito. São Paulo: Paulinas, 2005. p.18.
19
McKENZIE, J. L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1983. pp. 303-304. Grifo nosso.
28
sobre o significado da rûah podemos afirmar como ele o faz “O que mais
caracteriza a Ruah é a sua liberdade.”
20
Por causa de todas estas características, podemos encontrar a rûah no Primeiro
Testamento simplesmente como vento impetuoso (Ex 14,21); ou como o sopro de
Deus que comunica a vida (Ex 15, 8-10; Sl 33,6), e conseqüentemente como a
respiração do homem, o princípio e sinal de vida (Gn 7,22; Sl 104,49-30;
freqüentemente em Jó); e também como a animação que faz realizar uma obra,
sobretudo, se é uma obra de Deus (Ex 31,3ss).
21
Tendo em mente as principais propriedades da rûah que acabamos de salientar
(movimento, vida, mistério, imprevisibilidade, incontrolabilidade, força vital
criativa, espaço aberto, oposição à fraqueza e finitude humanas, impessoalidade e
liberdade) podemos afirmar que é sua utilização num determinado contexto,
relacionado a um assunto e uma intenção que irá determinar seu valor. Segundo
Yves Congar, que na teologia atual é um dos teólogos que mais aprofundou a
reflexão pneumatológica, as 378 utilizações de rûah podem ser distribuídas em
três grupos principais a partir do significado comum que as reúne: a) vento, sopro
do ar; b) força viva no homem, princípio de vida (respiração), sede do
conhecimento e dos sentimentos; c) força de vida de Deus, pela qual ele age e faz
agir, tanto no plano físico como no plano espiritual.
22
Este teólogo afirma ainda
que a rûah sendo um princípio causador de alguns efeitos, receberá destes suas
várias qualificações. Desta forma, a rûah pode ser um sopro-espírito de
entendimento (Ex 28,3), um sopro-espírito de sabedoria (Dt 31,3; 34,9; 35,31), ou
um espírito de ciúme (Nm 5,15); ou ainda um espírito mau
23
vindo do Senhor (1
20
MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In:
TEPEDINO, A M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 33
21
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., pp. 18-19.
22
Cf. Ibid., p.17.
23
Para entender melhor a afirmação de que a rûah pode ser um espírito mau vindo do Senhor
recorremos ao que nos esclarecem dois teólogos: Vejamos primeiramente o que nos diz Jürgen
Moltmann: “De acordo com a generalizada visão espiritualista do mundo nas épocas e culturas em
que surgiram os escritos do Antigo Testamento, por toda parte existiam boas e más ruahs (...) O
que encontramos de especial na visão israelita antiga consiste, manifestamente, em o mundo ser
dominado não pelos numerosos deuses e demônios, mas sim pelo Deus Único que era entendido
como o Senhor destas forças boas e más.” MOLTMANN, J. Op.cit., p. 50. Grifo nosso. Vejamos
ainda o nos diz Bernd Jochen Hilberath: “Para o ser humano do AT tudo provém de Deus, e o
quanto isto é verdade é documentado pela observação de que se atribui certa autonomia às forças
demoníacas e negativas, que também são designadas como ruah, e de que a proveniência delas
freqüentemente permanece obscura; entretanto, elas são subordinadas a Javé de tal modo que às
vezes ele próprio aparece como seu causador (cf. 1Sm 16, 14-23; 18,10; 19,9).” HILBERATH, B.
J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 410. Grifo nosso. Portanto, ao afirmar que a
29
Sm 16, 14; 18,10). Além destas designações a rûah pode ser também um espírito
ou sopro de Deus, isto é, ser a Rûah Iahweh.
24
Resumindo, rûah pode ser
qualificada como rûah de entendimento, de sabedoria, de ciúme, rûah má vinda
do Senhor, e finalmente Rûah Iahweh.
1.1.1.
A Rûah Iahweh
Quando é que a rûah recebe esta denominação? Quando é que este sopro-espírito
é entendido como sendo de Iahweh? Quando expressa o sujeito (Iahweh) pelo
poder do qual são produzidos vários efeitos no mundo e no ser humano. Quando é
o próprio Iahweh que produz naqueles homens ou mulheres os dons de líder, de
profeta etc.
25
Assim sendo, a Rûah Iahweh é na verdade “uma força divina que
transforma personalidades humanas para torná-las capazes de gestos
excepcionais. Tais gestos são sempre destinados a confirmar o povo na vocação, a
fazer dele o servo e o parceiro do Deus santo.”
26
Com este sentido aparece trinta
e uma vezes na Primeira Escritura.
27
Às vezes a Rûah Iahweh designa o próprio
Deus e recebe então, em raríssimas passagens, a expressão Espírito Santo (Is
40,13; 63,10; Sl 51.13, Sb 9,17). O uso desta expressão “foi provavelmente
substituindo termos mais antigos como ‘o espírito de Javé’, ‘o espírito de Eloim’,
porquanto os judeus posteriores evitavam cada vez mais pronunciar os nomes de
Javé e Eloim”
28
Este sopro-espírito é santo porque é de Deus, porque pertence à
esfera da existência de Deus.
29
Para entendermos melhor a riqueza de sentido que na expressão Rûah Iahweh,
qualificativo da rûah que mais nos interessa, seguiremos a reflexão de Jürgen
Moltmann, um dos maiores pneumatólogos da atualidade. De forma sintética,
podemos afirmar que ele nos diz que a Rûah Iahweh é: a) presença divina que
penetra no mais íntimo da existência humana (Sl 139, 7.23ss), sendo o acontecer
da presença pessoal de Deus; b) força criadora de Deus que é comunicada às
criaturas, de tal forma que quando estamos falando da Rûah estamos falando
rûah é um espírito mau vindo de Deus o autor bíblico pretende enfatizar a no Deus único, além
de reafirmar que tudo o que existe está subordinado a Deus.
24
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 19.
25
Cf. Ibid.
26
GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 296.
27
Cf. BEAUCHAMP, P. Verbete “Espírito Santo”. In: LACOSTE. Op. cit., p. 650.
28
IMSCHOOT, P. V. Verbete “Espírito”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 482.
29
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p.19.
30
também da força vital delas, a força de vida imanente em tudo que é vivo; c)
espaço de liberdade onde o ser vivo pode desenvolver-se, pois a Rûah Iahweh cria
espaço, põe em movimento, leva da estreiteza para a amplidão, e assim torna vivo
todas as coisas (Sl 31,9; 36,16).
30
Mas, que fique bem claro, no Primeiro
Testamento, este Espírito ainda não está revelado como uma pessoa.
Por tudo o que acabamos de expor sobre a rûah e sobre a Rûah Iahweh, podemos
afirmar que ao tratarmos do tema “A experiência do Espírito de Deus no Primeiro
Testamento” e numa elaboração sistemático-teológica é plausível orientar-nos
pelo fio condutor “Espírito, vida e liberdade”.
1.1.2.
A Experiência Histórica da Rûah Iahweh no Primeiro Testamento
É o Espírito-Sopro de Deus, que antes de tudo é aquele que faz agir de modo a
realizar o Desígnio de Deus na história, o que nos interesse nesta pesquisa. Por
isso, não nos ateremos à rûah quando apresentada em outra perspectiva que não
esta.
A seguir, destacaremos, sempre através de uma narrativa histórica, somente
algumas das principais passagens da Primeira Escritura onde, segundo os
autores/as pesquisados, vemos esta ação da Rûah Yahweh no mundo e nos seres
humanos. Estas passagens poderão nos ajudar a apreender melhor quem é este
Espírito e como age na criação e na história, com a finalidade de percebermos o
que significa viver sob sua inspiração.
1.1.2.1.
O Êxodo
É com a experiência do Êxodo que começa toda a história do Povo de Deus. Por
isso, começamos nossa narrativa a partir desta experiência fundante. Ademais,
quem desconhece a mensagem do Êxodo jamais entenderá o sentido de toda a
Bíblia, pois a idéia que se tem de Deus, tanto no Primeiro Testamento como no
Segundo, está fundamentada neste livro. Sem ele, a Bíblia perderia seu ponto de
30
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 51.
31
partida para nos levar até Jesus Cristo e seu Reino de amor-serviço e justiça.
31
Reino que é o resultado da ação do Espírito de Deus em cada ser humano.
A palavra êxodo significa saída. No livro do Êxodo este nome está intimamente
ligado à libertação da opressão do Egito mediante a ação do único Deus, que
ouve o clamor do povo oprimido e o liberta. É a partir da experiência que se faz
ao sair da opressão para se viver num espaço amplo de liberdade, que nasce um
povo, o povo de Iahweh.
A formação deste povo começa a partir da experiência vivida no êxodo do Egito,
que se por volta de 1290-1260 a.C.
32
Nesta época o Faraó Ramsés II resolve
construir uma cidade e armazéns na região de Gessen. Este Faraó era intransigente
e passou a exigir trabalhos cada vez mais forçados de seus escravos/as.
33
Esta
situação de extrema opressão e dominação colabora para que estes/as tomem
consciência de sua condição e contribui para despertar neles/as o desejo de
liberdade que se expressa em oração (Ex 1,1-2,25). Deus responde à prece destes
homens e mulheres chamando Moisés para liderá-los na concretização desta
libertação. (Ex 3,1-12).
34
É por isso que se afirma que a experiência fundante
de Israel é o ato da libertação.” Este ato “não funda um povo, mas também
uma fé no Deus que liberta o oprimido, dando-lhe a chance de abrir caminhos
novos dentro da história.”
35
É paradigmático para entendermos o significado do Êxodo o seguinte texto
bíblico:
“Iahweh disse: ‘Eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito
por causa dos seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a
fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir desta terra para uma
terra boa e vasta, terra que mana leite e mel, o lugar dos cananeus, dos heteus,
dos amorreus, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus. Agora, o grito dos
israelitas chegou até mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os
estão oprimindo. Vai, pois, e eu te enviarei a Faraó, para fazer sair do Egito o
meu povo, os israelitas.” (Ex 3, 7-10)
31
Cf. STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Conheça a Bíblia. São Paulo: Paulus, 1986. pp. 37-
38.
32
Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 519.
33
Cf. BALANCIN, E. M. História do Povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2005. p. 15
34
Cf. MESTERS, C. Deus onde estás? Uma introdução prática à Bíblia. Petrópolis: Vozes, 2003.
p. 45.
35
STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo: o caminho para a liberdade.
São Paulo: Paulus, 1991.p. 14
32
Segundo esta perícope, Deus vê a miséria de seu povo, ouve seu grito por causa
dos opressores e conhece as angústias pelas quais passa. Por causa disto, Deus
intervém e desce para libertar esse povo e fazê-lo subir para uma terra onde
liberdade e vida. Este acontecimento fundante, onde Deus intervém na história,
como o Deus que cria vida e liberdade, não se trata de uma simples mudança de
lugar geográfico (de uma terra para outra, isto é, sair do Egito para chegar a
Canaã). Êxodo é na realidade a conquista do próprio espaço para, “na liberdade,
construir uma sociedade nova e sempre aberta à criação de espaços cada vez mais
significativos para o povo expandir a sua experiência de vida.”
36
Portanto, a
saída da terra da opressão tem um objetivo que é o de conquistar uma terra onde o
povo possa viver a liberdade e encontrar a vida. Este binômio liberdade e vida
é uma das características da Rûah Iahweh destacada por Jürgen Moltmann quando
baseando-se na afirmação de Helen Schüngels-Straumann nos diz que esta Rûah é
espaço amplo onde acontece vida e liberdade.
37
Na terra de Canaã fertilidade e espaço, realidade nova e cheia de vida, pois
corre leite e mel (Ex 3, 8). Nesta nova terra deverá haver um horizonte de
possibilidades que inclui também novas relações, a saber, um novo sistema
político, econômico, social e religioso.
38
Este novo sistema implica: a) nas
relações políticas, a participação livre das pessoas nas decisões sobre o futuro do
grupo; b) nas relações sociais, a organização de relacionamentos livres e a
formação de uma cultura e costumes próprios; c) nas relações econômicas, a
distribuição dos bens entre todos; d) nas relações religiosas, a garantia de poder
exprimir e viver os valores da no Deus libertador.
39
Por conseguinte, podemos
afirmar que o Êxodo é o caminho de saída de uma sociedade opressora e injusta,
através da inspiração do Deus libertador, para a construção de uma nova
sociedade mais fraterna, baseada na participação de todos/as no destino da
comunidade e na partilha dos bens entre todos/as. Por conseguinte, é com esta
mística que sai do Egito um grupo de escravos e escravas liderado por Moisés.
36
STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo. Op. cit., p. 15. Grifo nosso.
37
Cf. SCHÜNGELS-STRAUMANN, H. apud MOLTMANN, J. Op. cit., p. 51.
38
Cf. STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo... Op. cit., p. 33
39
Cf. Ibid., p. 13-14.
33
O que a ação da Rûah Iahweh provoca no Povo que busca Libertação
e Vida
A partir do que acabamos de expor poderíamos afirmar que foi a Rûah Iahweh
quem inspirou estes homens e mulheres a buscarem a vida e construírem sua
própria liberdade. Foi o Espírito de Deus que é espaço de amplitude, Espírito que
gera vida e liberdade, quem os conscientizou a tornar concreto e visível, no
mundo e na história este espaço vital. Queremos deixar claro que o texto bíblico
não usa o termo Rûah Iahweh para se referir ao Deus único e libertador de Israel,
somos nós que estamos fazendo esta apropriação baseando-nos na reflexão de
Juergen Moltmann e de Helen Schüngels-Straumann
40
e, principalmente, no
Trito-Isaías que afirma que “a primeira libertação, sob Moisés, havia sido feita
sob a ação do Espírito.” (63,7-14)
41
Um alerta se faz necessário: a experiência do Êxodo não é algo que aconteceu
num passado distante e que tem sentido para as pessoas que o viveram naquele
momento e local específicos. Esta experiência é fundamental para todo homem e
mulher, de qualquer espaço geográfico ou tempo histórico, pois é através deste
longo processo de libertação e vida, que podemos nos encontrar aptos/as para
concretizar relações verdadeiramente humanas, onde não oprimido/a nem
opressor/a. E, isto só é possível pela ação da Rûah Iahweh, pois ela provoca no ser
humano o desejo de ser livre e de viver em liberdade, e de construir uma
sociedade fraterna, igualitária e justa para todo/as.
Gostaríamos de destacar neste momento o comentário que faz Carlos Merters ao
elaborar uma reflexão sobre o Êxodo e seu relato bíblico. Ele nos diz que
uma mensagem de fé fundamental: “Deus estava presente e atuante naquela
tentativa humana de libertação, a Bíblia considera tal esforço de libertação como
manifestação da presença de Deus entre os homens e como início da estrada que
conduz a Cristo e à ressurreição.”
42
Estas palavras confirmam a importância do
Êxodo na vida de todo cristão/ã.
40
Cf. SCHÜNGELS-STRAUMANN, H. apud MOLTMANN, J. Op. cit., pp. 51-52.
41
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p.24.
42
MESTERS, C. Deus onde estás?... Op. cit., p. 43. Grifo nosso.
34
1.1.2.2.
A Travessia do Deserto
Durante o longo tempo em que o grupo do Egito liderado por Moisés (Ex 3,15ss),
faz a travessia do deserto, juntam-se a este grupo ainda outros grupos que também
sofriam opressão e desejavam viver sua libertação.
43
Sabemos que a maior dificuldade do oprimido/a é começar a vida em liberdade,
pois vai se deparar com muitas dificuldades, a ponto de achar melhor voltar atrás
e se acomodar na escravidão, pois esta não implica perigos e riscos, basta que se
obedeça a seu opressor/a. Em contrapartida, a liberdade acarreta desacomodação,
responsabilidade e riscos. O processo de libertação pelo qual passa o povo de
Deus no deserto implica perigo representado pelo opressor que o persegue no
momento em que está se libertando (Ex 14, 11-12); falta de comida e bebida
(itens básicos para a sobrevivência) que o faz voltar-se contra seus líderes (Ex
16,3; 17,3); e desejo de acumulação que equivale a repetir o que acontecia no
sistema opressor do qual estão se libertando (Ex 16). Portanto, ao sair da terra da
escravidão, o povo entrou no deserto, lugar da dificuldade e da tentação de voltar
atrás.
44
Como podemos ver foi dura e difícil esta travessia, que não significa
simplesmente passar pelo deserto físico do Sinai, mas significa isto sim fazer a
passagem da escravidão para a libertação. Para tal é necessário um longo tempo
de aprendizagem, aqui simbolizado pelos quarenta anos no deserto.
O que a ação da Rûah Iahweh provoca no Povo e nos Líderes que
atravessam o Deserto
Inspirados pela Rûah Iahweh, que provoca no ser humano o desejo de vida e
liberdade, os quatro grupos que fizeram a experiência do êxodo se unem. E, para
manter o ideal da libertação e da vida surge o conceito de Aliança com o Deus
libertador (Dt 19ss), que está sempre suscitando a prática da libertação.
45
Desse
modo, Iahweh aparece como protetor permanente dos oprimidos/as e exige que
43
Para conhecer estes grupos e qual a mística que cada um deles traz na formação do povo de
Deus consultar MAZZAROLO, I. A Bíblia em suas mãos. Porto Alegre: Mazzarolo editor, 2002.
p. 27.
44
Cf. STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo... Op. cit., pp. 48-52.
45
Para uma melhor compreensão do conceito Aliança no Primeiro Testamento consultar
McKENZIE, J. L. Op. cit., pp. 25-27.
35
ninguém seja opressor/a.
46
Esta aliança é resumida na seguinte fórmula: ‘Eu
serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo’ (Jr 7,23; 11,4; 24,7; Ez 11,20; 14,11;
Os 2,25).”
47
Além disto, surge também a idéia de Eleição, isto é, a idéia de que
Israel está destinado a ser o povo de Iahweh por escolha do próprio Iahweh.
48
A
Eleição não se deve aos méritos de Israel (Dt 4,9ss) nem a seu número (Dt 7,7),
portanto, Iahweh não o escolhe por ser melhor ou maior que os outros povos, mas
este povo é eleito para tornar-se um povo consagrado a Iahweh (Dt 14,2), com a
obrigação de reconhecê-lo como Deus (Dt 4,39) e observar os seus
mandamentos (Dt 4,40; 7,9ss; 10,16ss).
49
Portanto, “o povo vai pouco a pouco
descobrindo o Deus que o acompanha na história. Ele é o Deus que não fica
restrito num santuário ou numa montanha, mas desce para ficar junto com o povo,
solidarizando-se com ele na situação de opressão (cf. Ex 3,8).”
50
Como podemos ver, a Rûah Iahweh acompanha o povo em sua caminhada
provocando entre as pessoas a necessidade de estabelecer uma relação de Aliança
com ela. Além disto, leis (Ex 20, 1-17; Dt 5, 1-21) a este povo para que possa
transformar as relações entre seus integrantes, fundando assim uma comunidade
onde deve ser assegurada a vida, a liberdade e a dignidade de todas as pessoas.
Um texto muito importante, e destacado pela maioria dos autores/as pesquisados
quando tratam deste período, é o que retrata a Rûah Iahweh que estava em
Moisés, sendo repartida por Deus com os setenta anciãos (Nm 11,16-30). A partir
daí “eles se põem a profetizar e Josué se escandaliza que tal privilégio tenha sido
concedido de forma pouco seletiva.”
51
“Iahweh disse a Moisés: ‘Reúne setenta anciãos de Israel, que tu sabes serem
anciãos e escribas do povo. Tu os levarás à Tenda da Reunião, onde
permanecerão contigo. Eu descerei para falar contigo; tomarei do Espírito que
está em ti e o porei neles. Assim levarão contigo a carga deste povo e tu não a
levarás sozinho. ’” (vv. 16-17).
“Moisés saiu e disse ao povo as palavras de Iahweh. Em seguida reuniu setenta
anciãos dentre o povo e os colocou ao redor da Tenda. Iahweh desceu na Nuvem.
Falou-lhe e tomou do Espírito que repousava sobre ele e o colocou nos setenta
anciãos. Quando o Espírito repousou sobre eles, profetizaram...” (vv. 24-25)
46
Cf. STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo... Op. cit., p. 55.
47
McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 25
48
Para aprofundar o conceito de Eleição consultar McKENZIE, J. L. Op. cit., pp. 271-272.
49
Cf. Ibid., p. 271.
50
STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo... Op. cit., pp. 28-29. Grifo
nosso.
51
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p.21.
36
“Josué, filho de Nun, que desde a sua juventude servia a Moisés, tomou a palavra
e disse: ‘Moisés, proíbe-os!’ Respondeu-lhe Moisés: ‘Estás com ciúme por minha
causa? Oxalá todo o povo de Iahweh fosse profeta, dando-lhe Iahweh o seu
Espírito!’” (vv. 28-29)
Segundo esta passagem, podemos afirmar que a Rûah Iahweh quando repousa
sobre o ser humano pode levá-lo a profetizar. Este Espírito é dado por Deus a
quem ele deseja dar e não a quem o deseja, pois Deus não é manipulável.
“Quando, porém, Moisés, tendo chegado a avistar a terra prometida, for morrer,
Deus lhe inspirará o ato garantindo sua sucessão.”
52
“Moisés falou a Iahweh e disse: ‘Que Iahweh, Deus dos espíritos que anima toda
carne, estabeleça sobre esta comunidade um homem que saia e entre à frente dela
e que a faça sair e entrar, para que a comunidade de Iahweh não seja como um
rebanho sem pastor’ Iahweh respondeu a Moisés: ‘Toma a Josué, filho de Num,
homem em quem está o espírito. Tu lhe imporás a mão’”. (Nm 27,15-18)
Portanto, para ser o pastor que guiará o rebanho na entrada da Terra Prometida e
na ocupação desta terra, Deus manda que Moisés imponha suas mãos sobre Josué,
garantindo que nele encontra-se a presença de seu espírito. Sendo assim,
podemos deduzir que para liderar o povo é preciso a presença deste Espírito
enviado por Iahweh.
1.1.2.3.
Os Juízes e as Juízas
Por volta de 1200 a.C., após um longo processo de aprendizagem no deserto do
Sinai, trajetória que implica lutas pela libertação em vários lugares, este povo
entra na Terra Prometida trazendo experiências importantíssimas. Entre elas a
certeza de que é possível vencer o opressor/a, além do nome diferente de Deus,
Iahweh,
53
que não se confunde com o deuses das cidades-Estados de Canaã, o El.
52
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p.21.
53
Em Ex 3,14 Deus diz: “Eu sou aquele que sou”. Logo depois, diz simplesmente: “Eu sou”. Isto
pode ser entendido de várias maneiras: a) Eu existo; b) Eu serei quem estou sendo; c) Eu sou
aquele que faz ser; d) Eu estou presente; etc. Esse mistério em torno do nome de Deus mostra de
um lado que o homem é incapaz de penetrar o segredo de Deus, e por outro, que ninguém é capaz
de manipulá-lo ou dominá-lo. Cf. STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do
Êxodo... Op. cit., p. 28.
37
Estas experiências vão ser fundamentais para unir cada vez mais os grupos em
torno de uma causa comum: criar uma sociedade nova dentro de Canaã.
54
Para concretizar o ideal de vida e liberdade, é preciso agora, habitando na terra
onde corre leite e mel, construir esta sociedade lentamente, pois, como
expusemos, a libertação não é algo que se conquiste de uma vez para sempre. Ela
é na realidade um processo contínuo que se encontra aberto na história, onde todo
o povo está constantemente à mercê de novos opressores/as.
55
Portanto, com estes
valores sociais e religiosos (viver a liberdade, o que implica em não se deixar
explorar ou oprimir por nada nem ninguém, mas igualmente, não explorar nem
oprimir o irmão/ã; e expandir a experiência de vida), este grande grupo irá se
organizar na terra de Canaã, reunindo-se em famílias, clãs e tribos.
56
A reunião
de todas as tribos que fizeram a experiência do Êxodo e que se instalam em Canaã
irá formar a Confederação das Doze Tribos de Israel. Para John McKenzie “a
origem e a função desta Confederação são obscuras em muitos pontos.”
57
Euclides Martins Balancin afirma que esta Liga ou Confederação nasceu para que
se pudesse tornar viável um sistema diferente de sociedade, pois a grande
preocupação das tribos era a de não criar entre elas a mesma opressão que tinham
sofrido.
58
As “doze tribos” vivem em regiões separadas por causa do terreno ou floresta,
onde exercem atividades agrícolas ou pastoris. Além disto, as tribos entre si não
apresentam qualquer sinal de unidade política além do constituído por um sistema
tribal comum, pelo culto a Iahweh e pela confissão da experiência básica dos
pais (e mães) de que o próprio Deus havia tirado ‘Israel’ da casa da servidão, o
Egito, e o conduzido à terra prometida (cf. o chamado credo histórico-salvífico
em Dt 26)”.
59
Este período da história israelita em que o povo vive organizado desta forma vai
desde o estabelecimento em Canaã até o surgimento da monarquia.
60
Este período
54
Cf. BALANCIN, E. História do Povo de Deus... Op. cit., p. 22.
55
Cf. STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo... Op. cit., p. 55.
56
Sobre a temática das famílias, clãs e tribos e quais suas atribuições neste momento histórico ver
BALANCIN, E. M. Op. cit. p. 23.
57
McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 947.
58
Cf. BALANCIN, E. M. Op. cit., pp. 24-25.
59
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 411. Grifo nosso.
60
Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 519
38
ficou na memória do povo de Israel como o tempo em que se viveu mais próximo
do ideal.
O que a ação da Rûah Iahweh provoca nos Juízes e nas Juízas
Devido à organização que acabamos de descrever e às circunstâncias críticas em
que se encontrava o povo, surgem nas tribos uma espécie de líderes ou de
guerreiros carismáticos a quem damos o nome de Juízes e Juízas.
61
Para o povo,
estes distintos líderes são escolhidos por Iahweh, como havia feito outrora ao
escolher Moisés. Este povo agora experimenta diretamente a atuação do Espírito
divino que presenteia o carisma de líderes a estes homens e mulheres que irá
conduzir.
62
É no livro dos Juízes onde encontramos narrada esta época, e que nos
oferece um relato do agir histórico do espírito de Deus em seus líderes
carismáticos.
63
Em meio à situação em que se encontravam uma ou mais tribos,
uma pessoa recebe a Rûah Iahweh que pousa sobre ela e assim sente-se
impulsionada à missão de libertar o povo da opressão causada pelo inimigo.
64
Sendo assim, as tribos são governadas por chefes que têm um cargo vitalício
(juízes menores ou administradores permanentes da justiça), enquanto que nos
momentos de grande dificuldade surgem os chefes carismáticos (juízes maiores ou
líderes militares ocasionais), que unem e lideram as tribos contra os inimigos.
65
Estes são libertadores temporários, e a Rûah Iahweh os deixa uma vez cumprida a
sua missão. Segundo Jürgen Moltmann os dons carismáticos dos juízes e juízas
são:
espontâneos e por prazo limitado, de indivíduos em benefício de todo povo, e
neste sentido, são também dons corporativos do povo inteiro. Pois Israel como
um todo deve ser um ‘sacerdócio régio’ para os povos. Além disto, “o dom
carismático produz vidência, sabedoria, profecia e liderança.”
66
61
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p.21.
62
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 411.
63
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 52.
64
Cf. STORNIOLO, I. Como ler o Livro dos Juízes: aprendendo a ler a história. São Paulo:
Paulus, 1992. p. 37.
65
STORNIOLO, I.e BALANCIN, E. M. Conheça a Bíblia... Op. cit., p. 57. e STORNIOLO, I..
Como ler o Livro dos Juízes... Op. cit., p. 35.
66
MOLTMANN, J. Op. cit., p. 52. Grifo nosso.
39
Mas, o que significa o dom recebido pelo Juiz/a ser um dom corporativo? Não
podemos esquecer que a noção de um indivíduo representando um grupo e
reciprocamente um grupo social representado por um indivíduo era muito comum
para este povo.
67
Logo, os Juízes e Juízas eram personagens corporativas, isto é,
eram entendidos como uma pessoa que representava Deus no meio do povo e
representava o povo diante de Deus. Conseqüentemente ao receberem os carismas
da Rûah Iahweh estariam recebendo dons corporativos do povo da Aliança, o que
significa dizer que todo o povo recebia estes dons através da figura do Juiz/a.
É digno de destaque o papel da mulher como der do povo, isto é, como Juíza
neste período da história que, como já dissemos, ficou na memória do povo como
um tempo ideal. São possivelmente personagens desta época Judite e Ester,
apesar dos livros que narram suas façanhas terem sido escritos depois do Exílio da
Babilônia (entre o III e o II séculos a.C.). Estas mulheres associam astúcia,
sedução e mística profética em favor do povo. Temos ainda entre as Juízas deste
período, Débora que estabeleceu seu tribunal à sombra de uma palmeira, que
ficou conhecida como a palmeira de Débora. A ela vinham os filhos de Israel para
obter justiça (Jz 4,5). Esta mulher é verdadeiramente juíza e profetiza dentro da
história do povo de Deus.
68
O período dos Juízes e Juízas é um tempo de “democracia” (Jz 21,25), porém
cheio de dificuldades. Durante esta época, de aproximadamente cento e cinqüenta
anos, podemos ver Otoniel, Gedeão, Jefté e Sansão, deres militares ocasionais
69
recebendo a Rûah Iahweh, e observar o que ela provoca nestes homens:
“O espírito de Iahweh esteve sobre ele (Otoniel), e ele julgou Israel e saiu à
guerra. Iahweh entregou em suas mãos Cusã-Rasataim, rei de Aram, e ele
triunfou sobre Cusã-Rasataim.” (Jz 3,10).
“O espírito de Iahweh revestiu Gedeão...” (Jz 6,34)... “O povo de Israel disse a
Gedeão: ‘Sê nosso soberano, tu, o teu filho e o teu neto, porque nos salvaste das
mãos de Madiã.’ Gedeão, porém, lhes respondeu: ‘Não serei eu vosso soberano,
nem tampouco meu filho, porque é Iahweh quem será vosso soberano.’” (Jz 8,
22-23).
“O espírito de Iahweh veio sobre Jetfé... Jefté passou aos amonitas para os atacar,
e Iahweh os entregou nas suas mãos.” (Jz 11,29. 32).
67
Cf. TEPEDINO, A. M. A. Encontro com a Igreja de Jesus Cristo (Eclesiologia) in: Iniciação
Teológica. Departamento de Teologia. PUC/Rio: Edição Experimental, 2005. p.40.
68
Cf. MAZZAROLO, I. A Bíblia em suas mãos... Op. cit., pp. 31-32.
69
Segundo Ivo Storniolo uma exceção entre esses líderes ocasionais que é a situação de Jefté.
Este juiz foi também administrador permanente da justiça (Jz 11,7). Cf. STORNIOLO, I. Como ler
o Livro dos Juízes... Op. cit., p. 36. Entretanto Jz 15, 20 nos diz que “Sansão julgou Israel na época
dos filisteus, durante vinte anos.”
40
“O espírito de Iahweh começou a impeli-lo (Sansão)...” ( Jz 13,25). “O espírito de
Iahweh veio sobre ele” e lhe deu tanta força que sem nada na mão ele
esquartejou o leão” (Jz 14, 6). “Então, o espírito de Iahweh caiu sobre ele e se
apossou dele...” “e ele matou trinta homens.” (Jz 14, 19).
Segundo estes versículos o Juiz é entendido como um líder carismático, todavia,
“o sujeito atuante e real nestas histórias é sempre a ruah Iahweh.”
70
Esta Rûah
Iahweh é concedida como espírito sobrenatural, que leva a fazer ou dizer coisas
que estão além da capacidade humana comum.
71
É da seguinte forma que os
Juízes e Juízas são suscitados pelo Espírito de Deus:
“Sem esperar, e sem que nada os predisponha para isso, sem poder opor
resistência, de simples filhos de camponeses, Sansão, Gedeão, Saul são brusca e
totalmente transformados, não somente tornados capazes de feitos excepcionais
de audácia ou de força, mas dotados duma nova personalidade, aptos para
desempenhar uma função e cumprir uma missão, a de libertar seu povo. Por suas
mãos, o Espírito de Deus prolonga a epopéia do Êxodo e do deserto, assegura a
unidade e a salvação de Israel, e vem assim a estar na origem do povo santo.
72
Como podemos ver a Rûah Iahweh torna pessoas comuns em líderes do povo a
fim de cumprir a missão de libertá-lo de uma nova opressão, mantendo-o unido, o
que garante sua salvação.
Nestes primórdios de Israel encontramos, além das tradições das guerras de
Iahweh com seus guerreiros carismáticos, o discurso acerca da Rûah no contexto
do profetismo extático.
73
Nestes casos a Rûah Iahweh, na maioria das vezes, vem
sobre um grupo inteiro de profetas sem que, entretanto, fique restrita a este
círculo. (1Sm 10,5-13; 19,20-24). O primeiro livro de Samuel (10, 5-6) narra o
profetismo extático com as seguintes palavras: “Tu te defrontarás com um bando
de profetas [...]. Eles estarão em transe profético. Então o espírito do Senhor virá
sobre ti, entrarás em transe com eles e serás transformado em outro homem.” Esta
atuação da Rûah Iahweh colocando pessoas em transe é uma manifestação
passageira (cf. 1Sm 19,24), de caráter meramente episódico. É de fundamental
importância destacar que o êxtase profético não representa um aspecto específico
da experiência do Espírito vivida por este povo. O que é decisivo para
70
MOLTMANN, J. Op. cit., p. 52.
71
Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 520.
72
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 412.
73
Para conhecer um pouco mais este fenômeno consultar SICRE, J. L. Profetismo em Israel: O
profeta. Os Profetas. A mensagem. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 106.
41
entendermos o êxtase, é que embora seja produzido pelo Espírito, não está ligado
às palavras e ações salvadoras de Iahweh. Além disto, uma acentuada atitude
negativa em algumas narrativas bíblicas para com o êxtase profético,
provavelmente porque este fenômeno era provocado e repetido. (cf. 1Sm 10,10-
13; 19,8-24).
74
1.1.2.4.
A Monarquia
A passagem do sistema tribal para o regime monárquico não é historicamente
muito clara, além de o se ter uma idéia muito precisa do que significava a
realeza nos primeiros tempos de Israel. Encontramos relatos desta passagem com
várias versões, algumas delas chegando a ser contraditórias.
75
Assim como
encontramos várias fontes sobre a eleição de Saul como Rei de Israel, assim
também localizamos várias fontes que narram a entrada de Davi a serviço deste
rei e ainda dois relatos sobre a morte de Saul.
76
Para a finalidade de nossa
pesquisa basta-nos destacar somente como, neste novo sistema de governo,
acontece a ação da Rûah Iahweh sobre o monarca de Israel.
A - Os Reis
“Em Israel, o rei não pertence, como nas civilizações vizinhas, à esfera do
divino. Permanece sujeito, tanto quanto os outros homens, às exigências da
Aliança e da Lei.” Entretanto, ele é considerado uma pessoa sagrada, pois é o
ungido de Iahweh e esta unção deve ser respeitada (1Sm 24,11; 26,9). É a partir
de Davi que em Israel Deus faz dos reis seus filhos adotivos (2Sm 7,14; Sl 2,7;
89,27s), depositários de seus poderes e virtualmente estabelecidos à frente de
todos os reis da terra (Sl 89,28; cf. 2,8-12; 18,44ss). O rei em Israel deve ser fiel a
Deus o que lhe garante a proteção divina. Deve ainda garantir a prosperidade do
povo (cf. 20,21) e fazer reinar a justiça dentro de seu reino (Sl 45,4-8, 72,1-7.12ss;
Pr 16,12; 25,4s; 29,4. 14). Além disto, eventualmente, deve exercer certas funções
74
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 412.
75
Um exemplo disto encontra-se no primeiro livro de Samuel onde existe um relato contra a
monarquia (1Sm 8; 10, 17-27) e um outro que é a favor da monarquia (1Sm 9,1-10,16; 11).
76
Para conhecer estas versões consultar STORNIOLO I. e BALANCIN E. M. Como ler os Livros
de Samuel: a função da autoridade. São Paulo: Editora Paulus, 2003.p. 32. e ainda McKENZIE, J.
L. Dicionário Bíblico... Op. cit., p. 855.
42
cultuais (2Sm 6,17s; 1Rs 8,14. 62s) o que nos possibilita falar de um sacerdócio
real (Sl 110,4).
77
“Ele é um chefe carismático, tal como os juízes; isto significa
que ele estava impregnado do espírito de Iahweh para desempenhar suas
funções.”
78
Este rei que deveria ser justo, pacífico e fiel é um rei ideal (Sl 101).
Podemos ver narrados nos livros históricos e proféticos que a experiência
histórica da realeza não concretizou este ideal de rei. Muito pelo contrário, os
maus reis são numerosos, tanto em Israel como em Judá.
79
O que a ação da Rûah Iahweh provoca nos Reis
Com Saul, personagem que faz a transição entre a época dos Juízes/as e a
monarquia, o carisma espontâneo e por tempo definido que era dado a estes/as
deixou de manifestar-se. Entretanto, a presença da Rûah Iahweh sobre Saul ainda
guarda o caráter meramente episódico. Podemos observar isto comparando dois
textos bíblicos. Num deles, quando Saul é ungido por Samuel, se diz: Deus
mudou o coração de Saul (10,9)... o espírito de Deus veio sobre ele, e ele entrou
em transe profético com eles” (1 Sm 10,10; 10,6). No outro texto que trata da
entrada de Davi a serviço de Saul já se diz: “O espírito de Iahweh tinha se
retirado de Saul...” (1Sm 16,14). Então a Rûah Iahweh passa para Davi e agora se
diz: “O espírito de Iahweh precipitou-se sobre Davi a partir desse dia e também
depois.” (1Sm 16,13).
80
Podemos perceber que a partir de Davi a Rûah Iahweh
torna-se um dom permanente para o ungido de Deus, que necessita de qualidades
especiais para governar. Desta forma Deus faz uma aliança especial com o rei,
assim como o fez com seu povo, e a Rûah Iahweh é esperada como uma presença
divina especial que acompanhará o rei de Israel. Novamente aplica-se aqui a
compreensão de personalidade corporativa, a saber, o rei representa Deus no
povo e o povo diante de Deus, portanto, seu carisma faz parte dos dons
corporativos deste povo.
81
Portanto, é com Davi que a experiência da Rûah
Iahweh atinge um novo estágio. Ela, agora, não intervém mais em situações de
extrema aflição, como acontecia na época dos Juízes/as, mas torna-se uma dádiva
77
Cf. GRELOT, P. Verbete “Rei”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 866.
78
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 782. Grifo nosso.
79
Cf. GRELOT, P. Verbete “Rei”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., pp. 866-867.
80
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 412.
81
MOLTMANN, J. Op. cit., p. 52.
43
permanente para o ungido de Iahweh.
82
Desta forma Davi recebe o título
carismático que o habilitará a reinar sobre a Confederação das Doze Tribos (1 Sm
16,1-13).
83
A concessão e a ação da Rûah Iahweh associam-se à pregação e
instrução autoritativa do rei e podemos observar isto nas últimas palavras de Davi
(2Sm 23,1-7) que afirmam O espírito de Iahweh falou por meio de mim, a sua
palavra está na minha língua.” (v. 2). Entretanto, é importante enfatizar que as
palavras e ações do rei não são atribuídas a uma atuação direta da Rûah Iahweh.
84
Isto fica claro com a vida conturbada do próprio rei Davi, que nos mostra este
homem como: fugitivo (1Sm 19,11ss); mercenário a serviço do inimigo de seu
povo e bandido formador de um bando, (1Sm, 21-31); adúltero e assassino (2Sm
11).
85
Salomão, filho de Davi com Betsabéia, irá reinar sobre Israel depois da morte de
seu pai. Com a morte de Salomão o império se divide (931 a.C.) em dois reinos: o
reino de Israel, com sede em Samaria, que caiu em poder da Assíria em 722 a.C.,
e o reino de Judá, com sede em Jerusalém, que caiu em poder da Babilônia em
586 a.C. A monarquia torna-se o oposto daquilo que se buscava com o Êxodo. O
grande anseio do povo era o de ser governado por uma autoridade capaz de
discernir e realizar a justiça. Entretanto, isto não acontece. Não mais
liberdade, vida, justiça, direito, solidariedade e partilha. Portanto, quebra-se a
Aliança com Iahweh. Todos estes acontecimentos das vidas e das opções dos reis
deste povo tornarão determinante a história futura da de Israel. Vai ficando
cada vez mais claro que:
a coalizão de Espírito de Deus e poder político é efetivamente frágil. Encaixa-se
nesse contexto o fato de que nos textos legais e jurídicos do AT a ruah Yahweh
não tem qualquer importância. Na esteira da escatologização da fé de Israel a
idéia da monarquia no Espírito de Javé passa para o messias como rei salvífico
pelo qual se anseia (cf. Is 11,2; 42,1; 61,1).”
86
Além disto, a unção ritual não basta para fazer dos reis fiéis servos de Deus,
capazes de garantir para Israel a salvação, a justiça e a paz. Para cumprir essa
função requer-se uma ação do Espírito mais profunda, a ação direta de Deus que
marcará o messias.”
87
82
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 412.
83
Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit. p. 215.
84
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 412.
85
Para conhecer um pouco mais sobre a vida de Davi consultar McKENZIE, J. L. Op. cit., pp.
215-220.
86
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 412.
87
GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 297. Grifo nosso.
44
Percebe-se que a Rûah Iahweh não está ligada necessariamente ao poder político
(reis), pois ser ungido ritualmente não basta para que um rei se torne um fiel servo
de Iahweh. A frustração sofrida por causa da monarquia faz crescer a esperança
num ungido (messias) fiel e justo. Ele receberá a ação direta e profunda da Rûah
para realizar o projeto de Deus (Is 42, 1-9). Ele será o rei salvador deste povo!
Surge ainda uma outra esperança: a Rûah descerá sobre todo o povo de Deus (Ez
36,27; 39,29; Is 32,15; 44,3).
88
O profetismo tem um grande papel neste momento histórico.
B – Os/as profetas
Quem são estas figuras que aparecem com tanta freqüência a partir da monarquia?
O termo nabî’ é o mais freqüentemente utilizado para referir-se aos profetas.
89
Segundo José Luiz Sicre ele aparece 315 no Primeiro Testamento, sobretudo, a
partir do final do século VII e durante o VI a.C. Esta abundância de citações
provoca muitos problemas, porque o tulo nabî’ acabou sendo aplicado a diversas
pessoas, inclusive com comportamentos e características opostas. Porém, todo
nabî’ comunica a palavra de outra pessoa, seja a de Baal, se for um/a profeta de
Baal, seja a de Iahweh, se for um/a profeta de Iahweh.
90
Nossa pesquisa não tem
por escopo entrar na análise do fenômeno profético, por isso trataremos do
profetismo como um todo. Nossa reflexão que busca conhecer a experiência
histórica da Rûah Iahweh nos profetas enfocará somente os/a profetas de Iahweh.
Tentaremos fazer uma ntese das características destes/as personagens a partir de
alguns autores/as para que assim possamos entender como se dá neles/as a ação da
Rûah Iahweh.
Segundo Isidoro Mazzarolo o profeta de Iahweh é:
“um vidente, um embaixador de Deus, um arauto da justiça e, por conseqüência,
perseguido, caluniado e difamado (cf. Mt 5, 11-12). O Profeta é a memória da
Libertação do Egito e a consciência da cidadania e direitos sociais em nome da
fé. O Profeta não tem outro parâmetro para a crítica social, política ou religiosa
senão a em um Deus que liberta (Ex 20,1) e que não admite a escravidão, em
88
MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In:
TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., pp. 34-35.
89
Para saber quem são os nabîs’ ver GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus” in: LÉON-
DUFOUR, X. Op. cit., p. 297. e SICRE, J. L. Profetismo em Israel: O profeta. Os Profetas. A
mensagem. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 81.
90
Para aprofundar este tema consulte SICRE, J. L.Op. cit., p. 89. e MAZZAROLO, I. O Clamor
dos Profetas ao Deus da Justiça e Misericórdia. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2007. p. 14.
45
qualquer de seus desdobramentos. O Profeta é a consciência e o discernimento
da dignidade do ser humano e sua dupla relação: com Deus e o outro.”
91
Para José Luís Sicre o profeta:
“é o homem da palavra [...] No drama dos livros proféticos, o primeiro
personagem é a palavra [...] [Ela] apodera-se do profeta com tal força, que a
partir desse instante se deve definir toda a existência dele em termos de palavra
[...], o profeta nunca pronuncia palavras próprias, mas a palavra que Deus põe na
sua boca para que a transmita aos contemporâneos.
92
McKenzie nos afirma que:
“O espírito de Iahweh é muitas vezes a força que inspira a profecia (Nm 11,17ss;
24,2, 2Sm 23,2; 1 Cr 12,18; Is 61,1; Mq 3,8; Ez 2,2; 3,12.14.24; 8,3; 11,1.5.24;
37,1; 43,5; Ne9,30; Zc 7,12). O profeta é um homem do espírito (Os 9,7). Na era
messiânica uma efusão geral do espírito dará a todo Israel a visão profética (Jl
3,1-2). Deve-se notar que, à exceção de Os 9,7 estas passagens são muito
provavelmente pós-exílicas; e o espírito como agente inspirador não aparece na
antiga literatura profética, onde a inspiração consiste em ouvir a palavra de
Iahweh.”
93
Segundo estas afirmações podemos dizer que o profeta de Iahweh é o homem do
Espírito que tinha a função de mediar o dabar divino (palavra de Deus) junto ao
povo, isto é, tinha a função de comunicar ao povo esta Palavra que liberta e
possibilita a vivência da justiça. O fundamental para nós nestas citações é a
afirmação de que o profeta é o homem do Espírito, e também o homem que ouve a
palavra de Deus e a comunica. Portanto, com base nestas declarações podemos
ratificar a afirmação de Yves Congar, a saber, Espírito e Palavra estão muito
unidos especialmente nos eventos proféticos.”
94
Jacques Guillet faz esta mesma
vinculação quando ao falar dos profetas afirma que “a palavra que anunciam
provém deles, mas não nasceu neles, ela é a própria palavra do Deus que os
envia. Assim se delineia a conexão que aparece em Elias (1Rs 19,12ss) e não
mais se acabará, entre Palavra de Deus e o seu Espírito.”
95
91
MAZZAROLO, I. O Clamor dos Profetas ao Deus da Justiça e Misericórdia... Op. cit., p. 13.
Grifo nosso.
92
Cf. SICRE, J. L. Op. cit., pp. 101-102. Grifo nosso.
93
McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 304. Grifo nosso.
94
CONGAR, Y. A Palavra e o Espírito. São Paulo: Edições Loyola, 1989. p. 26
95
GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 298.
46
Além de apontarmos este vínculo entre Palavra e Espírito na atividade profética,
é necessário destacarmos ainda algumas das principais características do profeta
de Iahweh. A mais fundamental delas é a de ser o guardião do projeto de Deus,
que coincide com as aspirações do povo,
96
sendo a missão verdadeira do profeta
de Iahweh a de revelar a bondade de Deus aos pequenos.
97
Para isso, ele é
escolhido por Deus. Ninguém escolhe ser profeta por si mesmo (1Sm 3). O
momento deste chamado (vocação) supõe uma experiência de Deus, uma
descoberta que marca a existência do profeta e onde ocorre algo de novo.
98
Outra
característica do nabî’, que devemos destacar, é a de poder atuar às vezes de
maneira independente, conforme o faz Elias e tantos outros, e às vezes em grupo,
conforme a prática de Eliseu.
99
Finalmente, uma outra particularidade importante
do profeta de Iahweh é a que nos traz Sicre quando nos afirma que “as mulheres
podem fazer parte deste movimento, e até com grande prestígio, dado este muito
importante se recordarmos que em Israel elas o têm acesso ao sacerdócio.”
100
Este autor cita como exemplo de profetas mulheres: Maria, irmã de Aarão, que
une profetismo e música (Ex 15,20); Débora (Jz 4,4) profetisa e juíza; Hulda (2Rs
22,14).
101
Com estas informações preciosas sobre o profeta de Iahweh destacaremos a seguir
alguns destes que são considerados os mais importantes quando se trata do tema
experiência do Espírito. Iremos situá-los historicamente a partir da divisão feita
por José Luís Sicre em seu livro “Profetismo em Israel”.
102
a) O profeta Elias: “O início da profecia bíblica”
O profeta Elias
103
desenvolveu sua atividade profética nos reinados de Acab e
Ocozias no Reino do Norte (874-852). Ele é um profeta itinerante, sem
96
Cf. STORNIOLO, I.; BALANCIN, E. M. Os Livros de Samuel: a função da autoridade. 3. ed.
São Paulo: Paulus, 2003. p. 14.
97
Cf. VARONE, F. Esse Deus que dizem amar o sofrimento. São Paulo: Editora Santuário, 2001.
p. 32.
98
Cf. SICRE, J. L. Op. cit., p. 119.
99
Cf. Ibid., p. 89.
100
Ibid., p. 90.
101
Cf. Ibid., pp. 81-82.
102
Este autor divide o profetismo em Israel nas seguintes etapas: a) os inícios da profecia bíblica;
b) o século áureo da profecia; c) silêncio e apogeu; d) junto aos canais da Babilônia, e) anos da
restauração; f) a caminhada para o silêncio. Cf. Ibid., pp. 231-338
103
A reflexão que desenvolvemos sobre este profeta se baseia em VARONE, F. Op. cit., pp. 27-
52.
47
vinculação a um santuário, e que aparece e desaparece de forma eventual.
104
Elias
é um profeta que insiste no caráter único da divindade Iahweh e no repúdio a
qualquer culto a outros deuses.
105
Este homem prediz ao rei Acab uma seca de
três anos (1 Rs 17,1), provocando assim uma confrontação de poder entre ele e o
rei. Esta confrontação pretendia representar um confronto entre Deus e Baal. Com
isto Elias queria ser reconhecido como o representante do “deus” mais forte que
Baal. Depois de fazer esta previsão ele se esconde (1Rs 17, 2-8). A partir daí é
conduzido por Deus para a torrente do Carit (1Rs 17, 2-3) e depois para Sarepta,
na Fenícia (1Rs 17, 8). Iahweh pretende mostrar a este profeta que não é um outro
Baal mais forte do que o Baal do rei e da rainha. Na realidade Iahweh é um Deus
diferente, e isto Elias iaprender muito lentamente. Em Sarepta, Elias se depara
com a vida dos fracos e com seus problemas mais simples (1Rs 17,7-16). É aí que
“a palavra de Deus estará verdadeiramente em sua boca” (1Rs 17,24), pois entre
o grande desafio da seca e o milagre do humilde jarro que jamais se esvaziará
(1Rs 17,14), a palavra de Deus fez sua escolha pela humildade e fraqueza. O filho
da viúva vem a adoecer e falecer e nada é mais fraco do que um menino morto.
Elias encontra-se diante da insignificância individual, tão diferente da
magnificência da corte, e assim, ele pode agir fazendo o menino voltar à vida (1Rs
17, 17-24). Depois de passados dois anos, tempo de uma reciclagem para este
profeta, Elias apresenta-se a Acab desafiando-o a uma prova com os profetas de
Baal, os protegidos da rainha, Jezabel. Elias ainda não percebeu quem é realmente
Iahweh. Por isso, retoma a confrontação de poder: quem enviaria chuva depois de
tão longa seca, Baal ou Iahweh? É no monte Carmelo que esta prova tem lugar. É
importante notarmos que a narração bíblica não cita nenhuma palavra, nenhum
mandato de Deus para provocar o rei e seus profetas numa prova de força e muito
menos de matar estes profetas depois da “vitória”. Segundo a compreensão de
Elias, Iahweh responde a seu apelo dando-lhe o “triunfo” sobre os profetas de
Baal (1Rs 18, 18-46). Ele acredita que revelou o poder de Iahweh e que agora
pode servir-se deste para reunir todo Israel numa grande estrutura de poder. Passa
então a agir como os poderosos. Elimina primeiro a concorrência (1Rs 18,40),
depois torna-se colaborador do rei: como camareiro (1Rs 18,41), mestre de
cerimônia (1Rs 18,44), e arauto do rei (1Rs 18,46). Finalmente entra de forma
104
Cf. SICRE, J. Op. cit., p. 238
105
McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 273.
48
triunfal na capital Jezrael. Entretanto, Elias esquece que num regime de violência,
a rainha é mais forte do que ele. Por isso, é hostilizado e perseguido por Jezabel,
sendo obrigado a fugir para o monte Horeb. Lá, despojado de todas as ilusões de
poder e de soberba que possuiu anteriormente, encontra-se agora preparado
para a teofania do Deus diferente, pois Iahweh é o oposto do “deus” do poder
(1Rs 19, 1-21).
106
O que a ação da Rûah Iahweh provoca em Elias
Este profeta encontra-se dentro da própria caverna onde Moisés tinha sido
beneficiado com a teofania fundadora da aliança (cf. Ex 33, 21-23) quando Deus
lhe diz:
Sai e fica na montanha diante de Iahweh.’ E eis que Iahweh passou. Um
grande e impetuoso furacão fendia as montanhas e quebrava os rochedos diante
de Iahweh, mas Iahweh não estava no furacão; e depois do furacão houve um
terremoto, mas Iahweh não estava no terremoto; e depois do terremoto um fogo,
mas Iahweh não estava no fogo; e depois do fogo, o ruído de uma leve brisa.
Quando Elias o ouviu, cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da
gruta. Então veio uma voz que lhe disse: Que fazes aqui, Elias?’ (1 Rs 19, 11-
13)
Como podemos ver Elias encontra-se sozinho no Horeb, sem nenhum desafiador,
seja o rei Acab, a rainha Jezabel ou os profetas de Baal para seduzi-lo em suas
relações de poder. Está diante de Deus, como estava em Sarepta diante da mulher,
no mesmo estado de despojamento, de fraqueza e de necessidade, portanto de
verdade. Desta forma, este profeta encontra-se apto a ver o próprio Deus se
‘projetar’ em sua direção. Conseqüentemente Elias percebe que Iahweh não se
encontra no terremoto, no furacão ou no fogo, pois ele está na brisa suave, ou
seja, nos meios secretos. Compreende que ele não se alia aos poderosos e que não
gosta de espetáculos retumbantes, nem de sacrifícios humanos, além disto,
entende que Iahweh respeita as opções dos seres humanos, mas toma sempre o
partido dos mais fracos. Na atividade profética de Elias se deu um longo processo
de aprendizado e conversão, frutos da ação pedagógica divina, movimento lento
e amoroso da Rûah Iahweh em Elias. A luta entre os dois mundos que se
encontravam em tensão diante de Elias (mundo do poder e da dominação, e
106
Cf. VARONE, F. Op. cit., pp. 31-40.
49
mundo da fragilidade humana e da libertação), foi também uma dura luta interna
travada no mais profundo de seu íntimo para que pudesse optar por um destes dois
mundos. Esta difícil e penosa luta, ou melhor, este combate espiritual, só chega ao
fim desejado, porque Elias se abre à ação da Rûah Iahweh e aos pequenos. Este
profeta no Horeb descobre que Iahweh age no mistério, no íntimo das liberdades
pessoais daqueles que se mantêm diante dele em verdade. Elias percebe então que
Iahweh permanece “inatingível, nem utilizável, nem assinável, escapando aos
desejos do poder de seu profeta, deixando-o antes se atrapalhar até que a vida
lhe faça descobrir a vaidade de suas escolhas.”
107
Portanto, foi a Rûah Iahweh, agindo no coração deste profeta e nos fatos
cotidianos de sua história, que possibilitou que ele conhecesse verdadeiramente
Iahweh e qual é a sua missão como profeta. É ainda a Rûah Iahweh que lhe
coragem para continuar nesta missão.
b) O profeta Proto-Isaías: “O século áureo da profecia”
O profeta Isaías desenvolve sua atividade profética entre os anos de 740 a 690
a.C. no reino do norte (Judá). Presencia e vivencia a injustiça praticada pela elite
dirigente
108
e as tristes conseqüências dessa situação na vida do povo. É profeta
do Templo e conselheiro do rei (2Rs 19,1-7) o que não significa dizer que
apoiasse as injustiças e corrupções das classes altas. Muito pelo contrário, é
homem decidido que demonstra energia enfrentando reis e políticos. Seus maiores
ataques são dirigidos contra os grupos dominantes (autoridades, juízes,
latifundiários, políticos, mulheres da classe alta de Jerusalém). Defende com
paixão os oprimidos, os órfãos e as viúvas (1,17), e o povo explorado (3,12-15).
Quando fracassa nas suas tentativas de converter o povo não se deixa abater. Cala-
se por alguns anos, não por desânimo, mas por ser um homem de paixão
controlada. Segundo José Luiz Sicre sua profecia está baseada em quatro pontos
fundamentais: a santidade de Deus, a consciência de pecado (pessoal e coletivo), a
necessidade de um castigo, e a esperança de salvação.
109
“Grande parte de sua
pregação era baseada na escolha divina de Jerusalém e na eleição da dinastia
107
Ibid., p. 45.
108
Atua nos reinados de Ozias, de Joatão, de Acaz, e de Ezequias (cf. Is 1,1).
109
Cf. SICRE, J. Op. cit., pp. 265-266.
50
davídica, princípios teológicos fundamentais, reflexo da que o sustentava.”
110
O fundamental na teologia de Isaías é a concepção da santidade de Iahweh, a
saber, a transcendência física e moral torna Iahweh “totalmente outro” do ser
humano. A segunda idéia fundamental deste profeta é a compreensão de que Deus
possui desígnios com o qual dirige os acontecimentos e os conduz à meta por ele
estabelecida. Estes desígnios são diferentes dos desígnios dos homens e das
mulheres.
111
A pregação de Isaías pretende converter seus contemporâneos/as e levá-los a uma
mudança de conduta. Para ele, converter-se significa estabelecer as relações
corretas entre Deus e o ser humano. Este profeta tinha consciência de ser pecador
e de viver no meio de um povo impuro. Portanto, o fundamental, na pregação
profética de Isaías, é o desejo de provocar no povo o encontro com Deus e a
aceitação plena de Iahweh no meio do povo.
112
O que a ação da Rûah Iahweh provocará no Messias
Como assinalamos anteriormente, foi ficando cada vez mais claro para a de
Israel que a unção ritual sobre os reis não bastava para fazê-los fiéis servos de
Deus e cumpridores do ideal do Êxodo. Por isso mesmo, surge a expectativa do
messias salvador de Israel. É na dificuldade e no perigo que Isaías vai percebendo
esta dura realidade e anuncia a libertação e um futuro de esperança. Faz isto em
primeiro lugar a Acaz através da profecia do Emanuel (Is 7,10ss), depois a
Ezequias durante a invasão de Senaqueribe (Is 37,21-35).
113
Posteriormente,
quando a Assíria reduz Judá a um reino-vassalo Isaías entrevê um renascimento
da dinastia no futuro.
114
É no meio desses dramas que Isaías prediz:
“Um ramo saido tronco de Jessé, um rebento brotará de suas raízes. Sobre ele
repousará o espírito de Iahweh, espírito de sabedoria e de inteligência, espírito
de conselho e de fortaleza, espírito de conhecimento e de temor de Iahweh: no
temor de Iahweh estará a sua inspiração. Ele não julgará segundo a aparência.
Ele não dará sentença apenas por ouvir dizer. Antes, julgará os fracos com
110
NAKANOSE, S; PEDRO, E. P. Como ler o Primeiro Isaías (Is 1-39): confiar em Javé, o Santo
de Israel. São Paulo: Paulus, 2002. pp. 10-11
111
Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 451.
112
Cf. SICRE, J. Op. cit., pp. 275-276.
113
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p.23.
114
Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 607.
51
justiça, com eqüidade pronunciará sentença em favor dos pobres da terra.” (Is
11, 1-4a).
115
Isaías pressente a existência dum Espírito santo e santificante, fonte única de
todas as transformações interiores (v.2).
116
O messias receberá deste Espírito, que
repousará sobre ele, todos os dons necessários para reinar segundo a justiça.
117
Estes dons são as seis virtudes do governante (sabedoria, inteligência, conselho,
fortaleza, conhecimento e temor de Iahweh). Isaías ainda defende a estrutura
política do reino messiânico, mas estabelece a necessidade da regeneração moral
do reino. Portanto, podemos afirmar que o messianismo de Isaías não pode de
modo algum ser chamado de messianismo político, isto porque é a Rûah Iahweh o
verdadeiro criador do reino messiânico.
118
Podemos ainda perceber que os
versículos destacados acima traçam o retrato ideal do novo rei como sendo o
oposto daqueles que havia em Israel.
“Sobre o messias o Espírito não descerá, mas repousará (Is 11,2); nele fará
brilhar todos os seus recursos, a sabedoria e a inteligência como em Besaleel (Ex
35,31) ou em Salomão, o conselho e a força como em Davi, o conhecimento e o
temor de Deus, ideal das grandes almas em Israel. Esses dons abrirão para o país
assim governado uma era de felicidade e de santidade (Is 11,9).”
119
Portanto, a ação da Rûah Iahweh provocará no messias futuro a possibilidade de
estabelecer a justiça e a felicidade. Com isso, ele não julgará o povo pela
aparência nem pelo que ouve dizer. Como conseqüência da ação da ah sua
sentença privilegiará os fracos e os pobres. Ele decidirá com retidão pelos fracos
da terra. Tudo isto porque o novo rei recebe uma investidura espiritual. Afirmar
que a Rûah repousa sobre ele está indicando que o dom do Espírito não é
passageiro, mas duradouro. Estes dons não são para seus próprios méritos, mas
115
Sicre aponta que críticos que duvidam que o oráculo ou poema messiânico de 11, 1-9
pertença a Isaías, enquanto que autores que defendem sua autenticidade Cf. SICRE, J. Op. cit.,
p.267 e p. 273. Para a finalidade de nossa reflexão nos parece irrelevante esta questão. Queremos
enfocar o que a ação da Rûah Iahweh provoca no autor deste texto, seja ele o Proto-Isaías ou
qualquer outro profeta de Deus.
116
Cf. GUILLET, J. Verbete “Espírito”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 294.
117
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 24.
118
McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 607.
119
GUILLET, J. Verbete “Espírito”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 297.
52
para serem usados em favor do povo, para que ele possa exercer o governo
baseado na justiça, praticando o direito em benefício dos pobres e excluídos.
120
1.1.2.5.
O Exílio: fonte depuradora para a Experiência da Rûah Iahweh
Durante o Exílio da Babilônia (585-538 a.C.) os judeus/ias, que corriam o risco de
perder a própria identidade, cultura e religião, dirigem seu olhar não só para
frente, isto é, para a possibilidade de salvação no futuro a partir de uma Nova
Criação, mas também lançam um olhar para trás na história. Fazem isto com
novos olhos, abertos pela experiência do desterro e do Exílio. Neste momento
duro e sofrido se desenvolve a reflexão sobre a experiência histórica pregressa de
salvação de Israel. Este olhar para trás ajuda a complementar e ampliar a visão do
povo também em termos de teologia da criação. Portanto, podemos afirmar que o
enriquecimento da experiência e da teologia do Espírito foi determinado pelo
Exílio em duas direções salvíficas: a salvação passada que se deu na criação e a
salvação futura que se abre a partir da nova criação.
121
A - A Salvação já estava no passado: a Criação
Os fiéis pensadores de Israel, tentando responder à questão que levantam nestes
amargos anos de Exílio: de onde viemos e qual o sentido de estarmos aqui?”,
depuram e aprofundam a experiência de Iahweh e desenvolvem o discurso acerca
de Deus como criador do mundo, do ser humano e de todas as coisas criadas.
Neste momento é dado um grande passo na compreensão sobre Deus.
“Israel inicialmente encontrou Deus pelas intervenções divinas em sua própria
história. Javé lhe apareceu, primeiro como seu Deus próprio, o Deus da Aliança
que escolheu Israel como seu povo. A antiga fé javista israelita se autodefinia, em
função de determinadas experiências históricas, exclusivamente como fé-na-
salvação. Obras divinas em favor de Israel são, pois primeiramente intervenções
de Deus na história. Mas, pouco a pouco, descobre Israel que o seu Deus é
também o do universo, que sua soberania se estende a tudo, que ele é o Senhor
das forças cósmicas e que delas dispõe a seu bel-prazer.”
122
120
Cf. MAZZAROLO, I. O Clamor dos Profetas ao Deus da Justiça e Misericórdia... Op. cit., pp.
103-105.
121
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 414.
122
DANIÉLOU, J. No Princípio: Gn 1-11. 2. Petrópolis: Vozes, 1966. p. 38. Grifo nosso.
53
Além disto, o que antes havia sido experimentado em diferentes situações da vida,
agora se amplia e percebem a dependência permanente da Rûah como doadora de
vida de Iahweh.
123
É no livro do Gênesis que encontramos narrados dois relatos,
um exílico e outro pós-exílico, que buscam responder a questão sobre as
origens.
124
a) O Primeiro Relato da Criação: Deus age através de sua Rûah
O relato que se encontra em primeiro lugar no texto bíblico (Gn 1,1-2,4a) é a
Narrativa Sacerdotal
125
e nos apresenta uma teologia cheia de antropomorfismos
que nos ensinam grandes coisas. Esta narrativa não é histórica no sentido atual
daquilo que um historiador faz. Ela “tem a forma de um grande poema, e assim
deve ser vista, deixando de lado a comparação com as modernas concepções sobre
a origem do universo”
126
No entanto, o seu conteúdo tem um alcance muito
maior, pois busca analisar o que aconteceu no mais profundo da história e da
vida. Portanto, contém reflexões do povo de Deus, a partir de sua fé, sobre suas
origens e a origem de todas as coisas, afirmando que elas se encontram em Deus
que sopra sua Rûah e diz sua Palavra, e nele. Temos uma mensagem de
de enorme valor religioso e existencial que consiste na afirmação de que Deus, “e
unicamente Ele, é o criador de tudo quanto existe e, assim a realidade toda a Ele
pertence.”
127
O autor bíblico para fazer esta afirmação de fé se expressa da
seguinte forma: “Ora a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e o
sopro de Deus agitava a superfície das águas.” (Gn 1,2). Vemos neste versículo a
Rûah Elohim
128
“vibrando”
129
sobre a terra vazia, agitando desta forma as águas
123
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 414.
124
Para aprofundar estes dois relatos da criação consultar MAZZAROLO, I. Gênesis 1-11: E
assim tudo começou... Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2003. pp. 65-99 e também DANIÉLOU,
J. Op. cit., 1966.
125
Para aprofundar sobre o que a exegese moderna nos diz a respeito dos dois relatos da criação
consultar GARMUS, L. Uma leitura ecológica dos relatos criacionais de Gn 1-3. In: MÜLLER, I.
Perspectivas para uma nova Teologia da Criação. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 168 e ainda
BOUZON, E. Gn 2,4b-24 e os relatos mitológicos do Antigo Oriente. In: MÜLLER, I. Op.
cit.,.p.133.
126
STORNIOLO, I.; BALANCIN, E. M. Como ler o Livro do Gênesis: Origem da vida e da
história. São Paulo: Paulus, 1991. p. 13.
127
GARCIA RUBIO, A. Elemento de Antropologia Teológica. Salvação cristã: salvos de qe
para quê? Petrópolis: Vozes, 2004. p. 60.
128
Elohim é o nome de Deus dado pelo autor deste relato.
54
primordiais. Na expressão de M. Buber este sopro de Deus bafeja e brame como
se fosse um vento, pois, esta é a impressão do homem bíblico com referência ao
espírito.
130
Segundo Norman G. Habel em Gn 1,2 encontramos a seguinte
situação neste relato da criação: 1- a terra informe e desabitada encontra-se
escondida nas águas primordiais, enquanto que o sopro de Deus paira sobre estas
águas; 2- a terra encontra-se escondida na obscuridade primordial e aguarda
silenciosamente a manifestação deste sopro; 3- não uma situação de aparente
dualismo ou conflito. O que significa dizer que não um caos primitivo que é
vencido pelas obras do Criador.
131
Podemos ainda apresentar outra interpretação
possível para este versículo onde se afirma que a Rûah pairava sobre a
anticriação.
132
Os termos tohu wahobu usados pelo autor bíblico sugerem, ao
mesmo tempo, o vácuo e a desordem, ou seja, a realidade caótica que precedeu a
criação. Entretanto, este caos não significa algo maléfico. Logo, se o Espírito de
Deus está pairando sobre o caos, podemos concluir que ele é mais do que uma
possibilidade, é promessa de vida pairando sobre a realidade caótica.
133
Vale a
pena conferir ainda o que nos diz Philips sobre a Rûah divina no momento da
criação do mundo. Este teólogo afirma que a Rûah pairava e plainava como um
sopro do parto criacional.
134
Nesta mesma linha, Paul Evdokimov, o grande
teólogo russo ortodoxo, afirma que a Rûah neste relato da criação choca’ o ovo
do mundo.
135
Para nós é de suma importância destacar a Rûah como o faz Maria
Clara Bingemer quando nos diz que ela é “como uma Grande Mãe, que de suas
amorosas e fecundas entranhas, à luz e faz eclodir o universo [...] ela é mãe e
senhora da vida que traz as coisas do lugar de onde não são para que sejam.”
136
129
É Moltmann quem usa esta expressão. Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 50.
130
Cf. BUBER M. apud BLANK, J. verbete “Espírito Santo/Pneumatologia”. In: Dicionário de
Conceitos Fundamentais de Teologia. São Paulo: Ed. Paulus, 1993. p. 243.
131
Cf. HABEL, N. G. apud GARMUS, L. Uma leitura ecológica dos relatos criacionais de Gn 1-3.
In: MÜLLER, I. Op. cit., pp. 170-171. Este artigo é escrito numa perspectiva que busca reler a
herança bíblica à luz da crise ambiental pela qual passa nosso planeta. Para esta releitura ecológica
da Bíblia é fundamental apresentar a obra criada e seu Criador numa harmonia. Portanto, ela nega
qualquer dualismo entre os dois de forma que Deus precise vencer o caos existente anteriormente.
132
Esta interpretação não tem a preocupação ecológica que a anterior apresenta. Sua leitura é
exclusivamente pneumatológica.
133
SANTANA, L. F. R. Recebereis a força do Espírito Santo. São Jo dos Campos, Ed.
COMDEUS, 2000. p. 17.
134
Cf. PHILIPS, G. apud BINGEMER, M. C. L. A Trindade a partir da perspectiva da mulher. In:
Teologia Feminina na América Latina. REB 46. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 81.
135
Cf. EVDOKIMOV, P. apud BINGEMER, M. C. L. A Trindade a partir da perspectiva da
mulher. In: Teologia Feminina na América Latina... Op. cit., p. 81.
136
BINGEMER, M. C. L. A Trindade a partir da perspectiva da mulher. In: Teologia Feminina na
América Latina... Op. cit., p. 81.
55
O que a ação da Rûah Elohim provoca na terra vazia, nas trevas e
nas águas primordiais
“Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus
agitava a superfície das águas. Deus disse: ‘Haja luz, e houve luz’...” Deus disse:
‘Haja um firmamento no meio das águas...’, e assim se fez... Deus disse: ‘Que as
águas que estão sob o céu se reúnam num lugar e, que apareça o continente’, e
assim se fez... Deus disse: ‘Que a terra verdeje de verdura...’ A terra produziu
verdura... Deus disse: ‘Que haja luzeiros no firmamento para separar o dia da
noite...’ e assim se fez... Deus disse: ‘Fervilhem as águas um fervilhar de seres
vivos e que aves voem acima da terra...’ e assim se fez... Deus disse:Que a terra
produza seres vivos segundo sua espécie...’ e assim se fez... Deus disse: ‘Façamos
o homem à nossa imagem, como nossa semelhança...’ Deus criou o homem à sua
imagem e semelhança, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os
criou.” (cf.Gn 1, 2-27).
137
No relato completo de Gn 1,1-2,4a encontramos associados a Palavra de Deus e
seu Sopro. O Sopro de Deus sai de sua boca, assim como sua Palavra. A boca é o
órgão da palavra e é ainda por onde sai o sopro. No princípio, o Sopro de Deus
paira sobre uma criação que ele realiza por sua Palavra (Gn 1,2s).
138
Conseqüentemente,
“Quando a ruah é associada a Deus e Deus associado à ruah, então ruah e dabar
Yahweh se aproximam. Ruah é entendida como sopro da voz de Deus (...)
Portanto, quando esta unidade de sopro e voz aplicada à ação criadora de
Deus, então as coisas são chamadas à vida pelo espírito e pela palavra de
Deus.”
139
Esta associação entre Sopro e Palavra de Deus não é exclusiva deste relato da
criação. Podemos encontrá-la também no Sl 33 quando o hagiógrafo ao fazer um
hino à providência nos diz: “o céu foi feito com a palavra de Iahweh, e seu
exército com o sopro de sua boca” (v.6). Igualmente encontramos essa mesma
associação no chamado dos profetas. Percebemos, por exemplo, que nos tempos
mais antigos eles são chamados pela Rûah Iahweh (sopro), sendo que mais tarde
eles serão convocados, na maioria das vezes pelo Dabar Iahweh (palavra).
140
137
Para que a citação bíblica não fique muito extensa entendemos ser mais conveniente retirar
desta perícope os versículos que nos dão possibilidade de perceber o que a ação da Rûah provoca.
Buscamos colocar em itálico o que consideramos ser pertinente para tal objetivo.
138
Cf. CONGAR, Y. A Palavra e o Espírito... Op. cit., pp. 25-26.
139
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 50.
140
Cf. Ibid.
56
No relato sacerdotal da criação, esta profunda relação entre Palavra e Sopro de
Deus, fica mais clara, pois aí vemos Deus criando todas as coisas por sua palavra,
e falando através das energias criadoras da sua Rûah (sopro).
141
“De acordo com a analogia do sopro e da voz pode-se mesmo dizer que as
palavras criadoras especificam e definem, mas que elas são proferidas no
mesmo sopro, de modo que todas as criaturas são chamadas à vida pela mesma
ruah, e que esta constitui a comunhão de todas elas na criação. A palavra
masculina (dabar) e a força vital (ruah) necessariamente se completam.”
142
Finalmente, precisamos destacar que a partir do Exílio, assim como a palavra
profética e o Espírito divino que a inspira estão interligados, assim também a
palavra criadora e a Rûah criadora de Iahweh encontram-se igualmente
interligados.
143
Tendo em mente esta íntima relação, que acabamos de destacar,
vejamos a seguir o que podemos afirmar sobre o resultado da ação da Rûah a
partir da perícope que destacamos.
É a ação do Sopro e da Palavra, aqui associados, que cria a luz, fazendo a
distinção entre luz e trevas. E, desta forma, Deus vai criando o firmamento, a
terra, a vegetação, o sol, a lua, as estrelas, todos os animais, e o homem e a
mulher. O que é o essencial para destacarmos neste primeiro relato da criação é o
fato do autor bíblico usar a expressão “Deus criou”. O verbo “criar” em hebraico é
bara’, e o Primeiro Testamento só o usa para Deus, o que significa dizer que é um
vocábulo sagrado. Bara’ designa assim um modo próprio do agir divino, que não
é análogo ao que faz o ser humano como “fabricar” ou “construir”. O termo bara’
indica aquilo que Deus é capaz de fazer, a saber, criar a partir do nada.
Portanto, esta é a originalidade essencial deste relato, a insistência no fato de que
cada um dos elementos do mundo, e o ser humano são obras de Deus.
144
Podemos ainda afirmar que se o Espírito de Deus transformou o caos primordial
em vida, e esta realidade tornou-se um referencial significativo para toda espécie
de caos que foi experimentado pelo homem e pela mulher bíblicos. Sempre que
este homem e esta mulher viram-se ameaçados/as pelas forças que geravam o caos
ele/a se segurava nesta pedagogia divina: assim como ele agira no princípio,
141
Cf. Ibid.
142
Ibid., p. 50. Grifo nosso.
143
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 414.
144
DANIÉLOU, J. Op. cit., p. 37-39.
57
soprando sobre o caos e cosmificando-o, qualquer situação caótica da história
pessoal ou social do homem já contém em si um germe de promessa criadora.”
145
b) O Segundo Relato da Criação: O ser humano é chamado à vida
pelo “hálito” divino
Este segundo relato da criação (Gn 2,4b-7) é o mais antigo e mais breve. É a
Narrativa Javista, ou como hoje se prefere denominar na exegese moderna,
Narrativa Pré-Sacerdotal. Aqui não encontramos o relato da criação do mundo,
mas sim o da criação do ser humano. Nele encontramos os versículos 4b-6 como
uma mensagem preparatória para o que será dito no versículo sete. Nestes
versículos precedentes, afirma-se que a realidade que conhecemos não existia no
momento em que Deus criou o homem. Com esta elaboração preliminar chega-se
a esta declaração: Então Yahweh Deus modelou o homem com a argila do solo,
insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente.”
(Gn 2,7). Este versículo narra a criação do homem em dois atos seguido do
resultado que estes atos causam. No primeiro ato Iahweh modela o homem da
forma como o faz um oleiro quando trabalha um vaso de argila.
“Embora a relação ’adam e ’adamah seja clara, o v. 7 apresenta como material
empregado na modelagem do homem o ‘apar que pode indicar tanto o ‘barro’,
‘argila’, como também o ‘pó’ que não seria, propriamente, o material usado por
um oleiro. É provável que, com o uso deste termo, o autor do relato queira
acentuar a limitação, a fraqueza do ser criado. O homem (’adam) é, em sua
limitação, terreno; é uma criatura que pertence à terra (’adamah). Foi tirado da
terra-mãe; sua missão é trabalhar a terra e quando morrer voltará à terra.”
146
No segundo ato vemos a respiração de Deus, seu hálito, sendo comunicado ao ser
humano por insuflação divina.
147
Portanto, o homem é alguém que por meio do
“sopro divino” se torna um ser vivente.
O que a ação do “hálito” divino provoca no ser humano
“... e o homem se tornou um ser vivente.” (Gn 2, 7c)
145
SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 17.
146
BOUZON, E. Gn 2,4b-24 e os relatos mitológicos do Antigo Oriente. In: MÜLLER, I. Op. cit.,
p. 136.
147
McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 303.
58
Este é o resultado da ação divina no homem modelado a partir da argila ou da
terra. O Primeiro Testamento, desta forma, “no homem criado uma unidade e
não um composto. A argila modelada torna-se pelo hálito vital que Deus sopra
nela um ser vivente.”
148
A Rûah é um poder vital divino que domina o homem e
que nunca se torna um componente natural do ser humano. A rûah dos seres vivos
depende permanentemente da Rûah criadora de Iahweh. Desta forma, a ah “não
é a dimensão divina das profundezas da vida, e sim potência de vida presenteada
por Deus em sua solicitude para com o ser humano.”
149
B - A Salvação futura: a Nova Criação
Como já assinalamos anteriormente a experiência do Exílio, onde a opressão e o
sofrimento são vividos com intensidade, faz com que os pensadores de Israel, e
em especial os profetas, lancem um olhar para o futuro à luz da fé e sejam capazes
de perceber que um futuro de salvação que os espera. Além disto, percebem
que é preciso construir este futuro desde .
150
É neste momento histórico que
brota no povo de Israel a esperança de uma Nova Criação. Entretanto, essa tese
teológico-bíblica precisa ser confirmada por uma reflexão sobre o Espírito
recriador, isto é, uma reflexão que possibilita de maneira nova a Vida e as
relações entre os seres humanos.
151
a) O profeta Ezequiel e a Nova Criação
A atividade profética de Ezequiel
152
pode ser situada entre os anos de 593-571
a.C., o que significa dizer que profetiza antes e depois da destruição de Jerusalém
em 587 a.C. O local mais provável de onde profetiza é a Babilônia.
153
A opinião
148
BOUZON, E. Gn 2,4b-24 e os relatos mitológicos do Antigo Oriente. In: MÜLLER, I. Op. cit.,
p. 137
149
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 415.
150
NAKANOSE, S. e PEDRO, E. P. Como Ler o Segundo Isaías (40-55): da semente esmagada
brota nova vida. São Paulo: Paulus, 2004. p. 9
151
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 415.
152
Durante o Exílio da Babilônia voltamos a encontrar nos profetas Ezequiel e utero-Isaías um
forte apelo à Rûah Iahweh e à inspiração em visões e profecias. Isto acontece, sem que haja neles
os estranhos fenômenos que acompanhavam os primeiros profetas e videntes em Israel. Cf.
MOLTMANN, J. Op. cit., p. 53.
153
Cf. ROSSI, L. A. S. Como ler o Livro de Ezequiel: o Profeta da Esperança. São Paulo: Paulus,
2001. p. 9
59
predominante entre os/as especialistas é a de que Ezequiel foi desterrado com
Jeconias em 597. No exílio é vocacionado por Deus, e em meio aos exilados/as
desenvolve sua atividade profética.
154
Viveu os últimos anos da monarquia
judaica e sua mensagem tem duas partes diferenciadas. O marco divisor é a queda
de Jerusalém.
155
É bem provável que Ezequiel tenha sido sacerdote e com o
desterro para longe de Jerusalém, não tenha podido exercer seu ministério
sacerdotal. É difícil precisar a personalidade deste homem. Alguns autores/as
chegaram a considerar Ezequiel como uma personalidade doentia devido às
freqüentes visões que possuía (1,1-3,15; 3,16a.22s; 8-11; 37,1-14; 40-48); às
ações simbólicas e mímicas que realizou (bater palmas, bater com os pés); ao
freqüente abatimento, embora em outras vezes se mostre quase insensível; e ao
longo tempo que perdeu a fala. Entretanto, hoje, parece certo afirmar que ele tinha
uma sensibilidade especial, mais fina e aguda que a de outros profetas.
156
Na primeira parte da atividade deste profeta (597-586 a.C.) sua mensagem gira em
torno do mesmo tema, “o castigo de Judá e de Jerusalém, justificado com um
espectro cada vez mais amplo de acusações: sincretismo, injustiças, alianças com
estrangeiros.
157
Na segunda fase (585 a.C.-?) Ezequiel condena os povos que
colaboraram na destruição desta cidade e, o mais importante, anuncia que
doravante Deus julgará cada um segundo a sua conduta. Vemos aqui uma
superação da mentalidade coletiva, e um caminho para a responsabilidade
individual (18; 33,12-20). Este é um grande progresso na história teológica de
Israel.
158
Entretanto, não foi este profeta quem descobriu o princípio da
responsabilidade pessoal. Ele era conhecido pelas tradições mais antigas e pela
Lei de Israel. Apesar disto, foi Ezequiel quem o reafirmou com a energia
necessária que sua época exigia.
159
Ezequiel denuncia os príncipes, sacerdotes,
nobres, profetas, latifundiários (22,23-31), e também os pastores (reis) e os
poderosos (34) como os responsáveis pela catástrofe ocorrida. Depois anuncia
uma nova situação de paz e bem-estar, onde o próprio Deus apascentará suas
ovelhas (34,11-16). Para realizar tal tarefa Iahweh suscitará uma autoridade que
se colocará a serviço do povo fraco e empobrecido (34,23-31). Como podemos
154
Cf. SICRE, J. Op. cit., p. 302.
155
Cf. Ibid., p. 298.
156
Cf. Ibid., pp. 303-304.
157
Ibid., p. 306. Grifo nosso.
158
Cf. Ibid., p. 309.
159
Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 334.
60
ver nesta nova fase as palavras de Ezequiel não são mais palavras de lamentações
e gemidos, pois são anúncios de esperança.
160
A ação da Rûah Iahweh provoca uma Nova Criação
Estamos num dos momentos principais da profecia de Ezequiel. Ele experimenta
que a libertação agora será renovada e um Êxodo novo está a caminho (36,23). A
intervenção de Iahweh se de forma definitiva libertando e reconstruindo a vida
do seu povo, pois a destruição, o exílio e a miséria não têm a última palavra.
161
“Dar-vos-ei coração novo, porei no vosso íntimo espírito novo, tirarei do vosso
peito o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei no vosso íntimo o
meu espírito e farei com que andeis de acordo com os meus estatutos e guardeis
as minhas normas e as pratiqueis. Então habitareis na terra que dei a vossos pais:
sereis o meu povo e eu serei o vosso Deus; libertar-vos-ei de todas as vossas
impurezas. ” (36, 25-29a)
Iahweh derramará uma Rûah Nova que é a Sua Rûah no mais íntimo das pessoas.
Somente com esta força do alto o coração de pedra (vida baseada nos pequenos
ritos e sacrifícios prescritos pela lei e que encobrem a manipulação da verdade e
da justiça) poderá se transformar em coração de carne (vida baseada na ação da
Rûah Iahweh). Somente um coração novo movido pela Rûah divina é capaz de
ouvir e colocar em prática os estatutos e os mandamentos de Iahweh.
162
Ezequiel
(vv. 26-27) assim como Isaías (32, 15-20) e o Salmo 51 (v. 12) vislumbram um
futuro sem rei, em que o povo renasce, cada vez de novo, pela efusão do Espírito
no coração do próprio povo.”
163
No capítulo seguinte Ezequiel é conduzido pela Rûah Iahweh para um vale cheio
de ossos, onde Deus lhe diz:
‘Filho do homem, porventura tornarão a viver estes ossos?’ Ao que respondi:
‘Senhor Iahweh, tu o sabes.’ Então me disse: ‘Profetiza a respeito desses ossos e
dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra de Iahweh. Assim fala o Senhor Iahweh a
estes ossos: Eis que vou fazer com que sejais penetrados pelo espírito e vivereis.
Cobrir-vos-ei de tendões, farei com que sejais cobertos de carne e vos revestirei
160
Cf. ROSSI, L. A. S. Como ler o Livro de Ezequiel: o Profeta da Esperança. São Paulo: Paulus,
2001. pp. 50-54.
161
Cf. Ibid., p. 56.
162
MAZZAROLO, I. O Clamor dos Profetas ao Deus da Justiça e Misericórdia… Op. cit., p.38.
163
MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito. Uma reflexão a partir da Bíblia. In:
TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 35.
61
de pele. Porei em vós o meu espírito e vivereis. Então sabereis que sou Iahweh.’ ”
(37, 3-6)
A Palavra de Iahweh e seu Espírito estão juntos no projeto de libertar e
reconstruir o povo. O profeta entende a ressurreição destes ossos como uma Nova
Criação. A ação do espírito ressuscita os mortos e lhes traz a vida eterna.
164
Ela
não será simplesmente um melhoramento progressivo da velha criação. Assim
como o coração de pedra lugar para um coração de carne, a velha criação
lugar para a Nova Criação. Como podemos ver não é um projeto de continuidade,
mas sim de ruptura. E, quem possibilita essa nova vida é a Rûah Iahweh agindo
no interior da humanidade.
Segundo Yves Congar os capítulos 36 e 37 do livro de Ezequiel são inigualáveis.
Neles vemos que “Iahweh está mais do que nunca presente junto aos fiéis, seu
Espírito reanimará as ossadas, seu sopro (Rûah) fará deles pessoas vivas, e fará
isso comunicando-se dentro do coração deles.”
165
b) O Dêutero-Isaías (40-55): “da semente esmagada brota Nova Vida”
Este é um profeta anônimo que vive no Exílio e é considerado por muitos como o
maior profeta e o melhor poeta de Israel. Muito se tem dito sobre ele, entretanto,
não existe unanimidade entre seus/as comentaristas. Apesar disto, a maioria
deles/as aceita que sua atividade profética se deu entre 533-539 a.C., antes da
vitória final de Ciro, rei da Pérsia, sobre o império neobabilônico. Neste período,
em que o povo deportado vive “junto dos canais da Babilônia” cresce entre os/as
israelitas o ódio, os desejos de vingança, a saudade da terra prometida e as ânsias
de libertação. Sentimentos que vão acompanhados de uma crise de e de
esperança.
166
Isto porque os judeus/ias encontram-se no “fundo do poço”. Entre
eles/as fome, sede, trabalhos forçados, violência e confinamento. A vida destes
homens e mulheres é sugada dia-a-dia. Entretanto, o sofrimento torna-se maior
quando imaginam que tudo pelo qual passam é castigo de Deus.
167
A mensagem
do Dêutero-Isaías reflete este momento histórico, onde se faz necessária uma
resposta de fé e esperança para este povo sofrido.
164
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 72.
165
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito… Op. cit., p. 25
166
Cf. SICRE, J. Op. cit., pp. 310-311.
167
Cf. NAKANOSE, S. e PEDRO, E. P. Como Ler o Segundo Isaías (40-55)... Op. cit., p. 21.
62
Os capítulos escritos por este profeta que se encontram dentro do livro de Isaías
(40-55) são conhecidos como o “livro da consolação”, devido às suas palavras
iniciais: “consolai, consolai o meu povo, diz o Senhor”. Título que lhe cabe muito
bem, pois o tema da consolação volta a ressoar por muitas vezes ao longo de sua
obra (40, 27-31; 41,8-16; 43,1-7; 44,1-2; etc), mostrando o amor e a preocupação
de Iahweh pelo seu povo. Mas, em que consiste esta consolação que o Dêutero-
Isaías faz questão de anunciar? Segundo José Luís Sicre:
“O livro responde em duas etapas. Na primeira (cap. 40-48) nos diz que consiste
na libertação do jugo babilônico e no regresso à terra prometida, uma espécie de
segundo êxodo, semelhante ao primeiro, quando o povo saiu do Egito. A segunda
parte (cap. 49-55) fala-nos da reconstrução e restauração de Jerusalém.”
168
Por volta de 550 a.C. surge uma luz no horizonte: a possibilidade do rei Ciro
derrotar a Babilônia e desta forma chegar ao fim o exílio pelo qual passa o povo
de Israel. Com a esperança de poder voltar a Jerusalém, o Segundo Isaías anuncia
às comunidades exiladas, o fim do sofrimento. Desta forma sua profecia busca
fortalecer a fé e a vontade de viver entre as pessoas que não têm motivos para crer
e se alegrar com mais nada.
169
Iremos nos centrar na primeira etapa de consolação anunciada pelo Segundo
Isaías, pois é que encontramos os “quatro cantos do servo”. Na opinião de José
Luís Sicre com estes cantos atingimos um dos auges teológicos do Primeiro
Testamento, pois nunca antes se havia falado tão claramente do valor redentor do
sofrimento. É este profeta que proclama pela primeira vez que “se o trigo cair na
terra e morrer, produz muito fruto”.
170
Entre os quatro cantos compostos por este profeta iremos destacar somente o
primeiro, visto que nosso objetivo é o de conhecer sua pneumatologia que pode
ser vislumbrada a partir deste canto.
O que a ação da Rûah Iahweh provoca em seu Servo
“Eis o meu servo que eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Pus sobre
ele o meu espírito, ele trará o direito às nações. Ele não clamará, não levantará a
voz, não fará ouvir a voz nas ruas; não quebrará a cana rachada, não apagará a
168
SICRE, J. Op. cit., p. 312. Grifo nosso.
169
NAKANOSE, S. e PEDRO, E. P. Como Ler o Segundo Isaías (40-55)... Op. cit., p. 17.
170
Cf. SICRE, J. Op. cit., p. 313.
63
mecha bruxuleante, com fidelidade trará o direito. Não vacilará nem
desacorçoará até que se estabeleça o direito na terra; e as ilhas aguardem seu
ensinamento. Assim diz Deus, Iahweh, que criou os céus e os estendeu, que
firmou a terra e o que ela produz que deu alento aos que a povoam e o sopro da
vida aos que se movem sobre ela. ‘Eu, Iahweh, te chamei para o serviço da
justiça. Tomei-te pela mão e te modelei, eu te constituí como aliança do povo,
como luz das nações, a fim de abrires os olhos aos cegos, a fim de soltares do
cárcere os presos, e da prisão os que habitam nas trevas.’ Eu sou Iahweh; este é
o meu nome! Não cederei a outrem a minha glória, nem a minha honra aos ídolos.
As primeiras coisas se realizaram, agora vos anuncio outras, novas; antes que
elas surjam, eu vo-las anuncio.” (Is 42, 1-9)
Não nos cabe aqui entrar na discussão sobre a identidade do “Servo de Iahweh”
devemos somente alertar que ele tanto pode ser o povo, como é a opinião de José
Luís Sicre
171
e igualmente a opinião de Shigeyuki Nakanose e Enilda de Paula
Pedro
172
, assim como pode ser também o próprio profeta.
Ao longo da história este “servo” que vemos cantado nos poemas do Dêutero-
Isaías foi visto como personagens diferentes (entre os judeus nacionalistas ele
seria Ciro, o rei persa; entre os Hassidim seria o Mestre da Justiça da comunidade
de Qumram; e entre os cristãos seria Jesus). A questão quanto à identidade
continua aberta, porém, estes “poemas apresentam um retrato falado de alguém
que possui um comportamento e um caráter especial, uma forma humana tão
perfeita que nela se pode perceber o divino.”
173
Logo, “não nada de estranho
em que a Igreja primeva conceber tão grande valor a estes poemas e ver
antecipados neles a existência e o destino de Jesus.”
174
Exatamente por isso,
podemos, como cristãos/ãs que somos, ler estes poemas aplicando-os a Jesus de
Nazaré.
O versículo primeiro deste canto sinaliza que é preciso abandonar a política
determinada pela busca e amplidão do poder, pois o eleito de Iahweh é chamado
de “servo” e é sobre ele que o Espírito de Deus repousa para que traga o direito
aos povos.
175
Portanto, a grande promessa para o futuro que encontramos neste
primeiro canto é a do Messias-servo que será ungido pelo Espírito para
estabelecer o direito na terra e anunciar a Boa-Nova aos pobres.”
176
Desta
171
Cf. Ibid., p. 312 nota de rodapé 28.
172
Cf. NAKANOSE, S. e PEDRO, E. P. Como Ler o Segundo Isaías (40-55)... Op. cit., p. 44.
173
MAZZAROLO, I. A Bíblia em suas mãos… Op. cit., p. 54.
174
SICRE, J. Op. cit., p. 313.
175
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 417.
176
MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito. Uma reflexão a partir da Bíblia. In:
TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 35. Grifo nosso.
64
forma, através da unção da Rûah Iahweh a Vida Nova está a acontecer, vida
pautada na justiça entre os seres humanos e na integridade de suas relações.
Um outro ponto digno de destaque deste poema é a finalidade de Deus repousar
sua Rûah neste “servo” que nos é apresentada pelo Dêutero-Isaías. Nas palavras
de Isidoro Mazzarolo:
“Deus põe sobre o seu servo o seu espírito (42,1) para que ele possa proclamar o
julgamento sobre as nações e levar a missão até o fim. Ele é modelado para ser a
Aliança do meu povo, que se expressa em abrir os olhos dos cegos; libertar os
presos; conduzir à luz os que estão nas trevas (42,1-9).”
177
1.1.2.6.
O Pós-Exílio
Este período é conhecido também como a fase da reconstrução onde se o
último período profético do Primeiro Testamento. É tempo da reconstrução do
Templo de Jerusalém, tempo do domínio imperialista da Pérsia, tempo de
precariedade e tempo de crise. Esta crise está relacionada ao desânimo causado
pelo Exílio babilônico, que deixou o povo sem instituições e sem seus símbolos
vitais: o Templo, a cidade, a monarquia e, conseqüentemente, sem o
funcionamento do culto como acontecia antes do Exílio. Entretanto, tudo isto é
coisa do passado. Apesar disto, esta é uma época difícil para o povo de Deus, pois
se vive uma nova etapa que está se iniciando. Devido a isto, a tonalidade da
profecia muda, e encontramos um tom mais otimista e consolador.
178
O profeta Joel: “a caminhada para o silêncio”
Este profeta, que é também poeta de grande talento, desenvolve sua atividade
profética no começo do século IV a.C.
179
Joel é um judeu que possuía um
conhecimento profundo da vida do campo, como demonstra a sua descrição da
praga de gafanhotos.
180
Esta praga devastadora assola Judá e devasta a terra, o
177
MAZZAROLO, I. A Bíblia em suas mãos... Op. cit., p. 54. Negrito nosso.
178
Cf. SICRE, J. Op. cit., p. 326.
179
Esta é a tendência dominante na datação da atividade profética de Joel, apesar de encontrarmos
estudiosos/as que apontam datas que vão desde o século IX até o III a.C. Cf. Ibid., p.325.
180
“Em época eminentemente agrícola, este simples dado não basta para considerá-lo um
camponês, ao estilo de Miquéias. Mais ainda: suas grandes qualidades poéticas, seu conhecimento
65
mais forte laço entre Deus e o povo. Diante desta situação crítica o povo pensa
que se cumpria o que alguns profetas haviam dito sobre o Dia do Senhor. Este
dia na crença popular israelita pré-exílica era o dia em que Iahweh se manifestaria
em todo o seu poder e sua glória. Os profetas adotam este simbolismo popular e o
aplicam tanto ao julgamento de Israel como ao julgamento de toda a humanidade.
É esta compreensão de julgamento terrível que desolará a terra inteira e destruirá
os pecadores/as que está na memória do povo no Pós-exílio.
181
Joel é devedor à
tradição sobre o Dia do Senhor que remonta a Amós (5,18-20), Sofonias (1,14-
18), Abdias (15), Zacarias (12,3; 14,1) e Malaquias (3,2. 18.23), onde este dia é
um dia terrível. Entende, entretanto, que já tendo chegado o castigo contra Israel,
com a queda de Jerusalém, as perspectivas precisam mudar profundamente. Faz-
se necessária a conversão. Somente depois disto o perdão será recebido. Desta
forma, o Dia do Senhor adquire dimensão de felicidade e de esperança. Em meio
a tantas situações desesperadoras este profeta, homem de intensa e de profunda
esperança, soube buscar alimento para sua profecia na mística dos profetas que o
antecederam (Ezequiel, Ageu e Zacarias). Ele usa, assim como o fizeram estes
profetas, a calamidade para ensinar e convidar à conversão.
182
“Joel não anuncia a salvação incondicionada. Exige a conversão interior,
profunda (“rasgai os vossos corações, e não as vossas vestes”)... Espera a grande
mudança definitiva, a irrupção desse mundo maravilhoso anunciado por Ezequiel,
Ageu, Zacarias. Passaram os anos sem que se cumprisse as esperanças, sem que o
povo recobrasse a liberdade e sem os inimigos serem castigados, sem que se
produzisse a efusão do espírito anunciada por Ezequiel... Espera o cumprimento
dela e o anuncia.”
183
Somente a partir deste contexto que podemos entender a profecia de Joel.
O que a ação da Rûah Iahweh provoca em toda humanidade
“Depois disto, derramarei o meu espírito sobre toda carne. Vossos filhos e
vossas filhas profetizarão. Vossos anciãos terão visões. Até sobre os escravos e
sobre as escravas, naqueles dias, derramarei o meu espírito.” (3,1-2)
dos profetas que o precederam, nos levam a situá-lo em um ambiente bastante elevado
culturalmente.” Ibid., p.325.
181
Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 234.
182
Cf. ROSSI, L. A. S. Como ler o Livro de Joel: Profecia em tempos de crise. São Paulo: Paulus,
1998. pp.11-36.
183
SICRE, J. Op. cit., pp. 326-327. Grifo nosso.
66
Portanto, depois da conversão e do perdão recebido o Espírito derramado por
Deus é capaz de romper todas as barreiras: primeiramente as barreiras entre os
povos e nações visto que ele é derramado “sobre toda carne”; as barreiras do
sexo, pois são os “filhos e as filhas que profetizarão”, e os “escravos e escravas
receberão a efusão do espírito”; as barreiras da idade, pois também os “anciãos
terão visões”; e finalmente as barreiras das classes sociais, pois “até sobre os
escravos e as escravas o espírito será derramado”. Para Joel não nem pode
haver monopólio do Espírito, pois como acabamos de ver não sequer uma
única pessoa ou instituição que possa pretender ter o privilégio do Espírito.
184
“Embora mais tarde essa linha pneumatológica universal de um carisma profético
de todos os crentes não se tenha mantido, a partir de então o profetismo e a dádiva
do Espírito (inspiração) formavam uma unidade.”
185
1.2.
A Sophía
Nossa intenção agora é a de analisar outro conceito fundamental que encontramos
no Primeiro Testamento para poder desta forma entender com mais profundidade
quem é o Espírito Santo de Deus que se revela em suas páginas. Este conceito é a
sophía. Segundo Yves Congar a aproximação entre sophía (sabedoria) e pneuma
(espírito) se nos escritos sapienciais que se desenvolvem nos quatro séculos
que precedem a era cristã: Jó e Provérbios (entre 400 e 500); numerosos Salmos, o
Eclesiastes e o Eclesiástico (por volta de 187); finalmente, Sabedoria (por volta do
ano 50 a.C.). Para este autor a literatura sapiencial do judaísmo helenizado
contém uma notável reflexão sobre a Sabedoria, que a aproxima do Espírito,
quase que identificando as duas realidades, ao menos consideradas em sua
ação.
186
Johan Konings esclarece que estes escritos sapienciais do período
helenista, citados aqui por Congar, são os livros do Eclesiastes, do Eclesiástico e
da Sabedoria.
187
Para entendermos como aconteceu a aproximação ou quase
identificação entre Pneuma e Sophía, que se deu nestes escritos, e que é a
proposição que nos interessa, será necessário retroceder no tempo para ver como o
termo sophía era entendido em tempos mais remotos. Nossa exposição seguirá
184
Cf. ROSSI, L. A. S. Como ler o Livro de Joel... Op. cit., pp.37-38.
185
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 413.
186
CONGAR, Yves. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. -27.
187
KONINGS. J. A Bíblia nas origens e hoje... Op. cit., p. 116-123.
67
uma ordem lógica que apenas em parte se identifica com o processo real temporal
do conceito sophía, sem, contudo abandonar nossa opção metodológica, pois o
período da aproximação entre sophía e pneuma, como já esclarecemos se nos
quatro séculos que antecedem o evento Jesus Cristo.
188
1.2.1.
O processo pelo qual passa o termo Sophía
O vocábulo original hebraico hokmah ou sua tradução grega sophía (sabedoria)
nem sempre significou a mesma coisa. Portanto, podemos falar de uma evolução
que se deu lentamente e em matizes diferentes que foram sendo ressaltados com o
passar do tempo.
189
Inclusive podemos dizer que este vocábulo possuía sentidos
contraditórios, pois a sophía pode ser vista como uma qualidade natural do
homem que se desenvolve por educação e experiência, assim também como um
atributo próprio de Deus, que a reserva para si, comunicando-a por graça a
alguns privilegiados.
190
É a partir da pluralidade e matizes de significados do
termo sophía e de sua ação na história de Israel que iremos aprofundar ainda
mais o assunto que estamos desenvolvendo e assim possibilitaremos a passagem
para a reflexão sobre o Espírito no Segundo Testamento.
191
1.2.1.1.
A Sophía humana
Neste momento restringimos nossa atenção sobre a sophía relacionada
diretamente com o ser humano. Veremos como ela foi sendo experienciada na
história de Israel e como foi compreendida e tematizada pelos autores bíblicos.
a) A sophía-artesanal
Na literatura bíblica, e em geral na antiga, o vocábulo feminino sophía aparece em
primeiro lugar aplicado à dimensão das atividades manuais. Portanto, sophía é
188
Este é exatamente o período em que nos encontramos dentro da narrativa histórica que fazemos
da Experiência Histórica do Espírito de Deus no Primeiro Testamento.
189
Cf. LÍNDEZ, J. V. Sabedoria e Sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999. Encontramos nas
páginas 29-58 deste livro a evolução do termo sophía.
190
IMSCHOOT, P. V. Verbete “Sabedoria”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 1343.
191
BLANK, J. Verbete “Espírito Santo/Pneumatologia”. In: EICHER, P. Op. cit., p. 245.
68
habilidade, destreza, perícia, enfim é a arte manual que possui os homens e as
mulheres, porque também estas colaboravam com sua sophía prática na
confecção dos utensílios e ornamentos da Tenda sagrada. Podemos constatar isto a
partir do texto bíblico que nos diz: “As mulheres habilidosas traziam o que por
suas próprias mãos tinham fiado [...] As mulheres às quais o coração movia a
trabalhar com habilidade fiavam os pêlos de cabra.” (Ex 35,25-26). Essa sophía
artesanal ou habilidade prática é concedida por Deus, pois é ele quem outorga os
dons ou habilidades, ou como é dito em algumas passagens bíblicas, o “espírito
de sabedoria” é dado por Deus ao artesão/ã (o/a sophós).
192
“Dirás a todas as pessoas hábeis, a quem enchi de espírito de sabedoria, que
façam vestimentas para Aarão, para consagrá-lo ao exercício do meu sacerdócio.”
(Ex 28,3).
“Iahweh falou a Moisés [...] ‘ Eis que chamei pelo nome Beseleel [...] Eu o enchi
com o espírito de Deus em sabedoria, entendimento e conhecimento para toda
espécie de trabalho, para elaborar desenhos, para trabalhar em ouro, prata e
bronze, para lapidação de pedras de engaste, para entalho de madeira, e para
realizar toda espécie de trabalhos. Eis que lhe dou por companheiro Ooliab [...]:
coloquei a sabedoria no coração de todos os homens de coração sábio, para que
façam o que te ordenei.’ ” (Ex 31, 1-6)
Todavia, afirmar que Iahweh concede o espírito de sabedoria”, não significa
dizer que esta sophía recebida é um dom infuso, pois, na realidade ela supõe o
esforço da aprendizagem por parte do/a perito.
193
b) A sophía-sagacidade
Do plano das tarefas e ofícios basicamente manuais, como o que acabamos de
exemplificar, passa-se às atividades mentais. Estas atividades mostram que o ser
humano é um ser que pensa, sente e pode acumular experiências e conhecimentos
de índole espiritual. Neste plano, que é o das relações inter-humanas, a sophía
não se refere a uma qualidade ou virtude que por si mesma enobrece aquele que
a possui.
194
Podemos perceber esta sophía-sagacidade, que não significa
necessariamente uma virtude positiva, quando o profeta Isaías preconiza o
seguinte oráculo contra Jerusalém: Diz o Senhor: [...] o que me resta é continuar
192
Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., pp. 38-39.
193
Cf. Ibid., pp. 38-40.
194
Cf. Ibid., pp. 40-43.
69
a assustar este povo com prodígios e maravilhas; a sabedoria dos seus sábios
perecerá e o entendimento dos entendidos se desfará(Is 29, 13s). Portanto, esta
sabedoria não era uma virtude positiva. outro texto, este agora do profeta
Ezequiel, em que podemos ver com mais clareza a sophía somente como
sagacidade, engenho, talento, sem ter valor moral:
“Por tua sabedoria e inteligência adquiriste riqueza e acumulaste ouro e prata nos
teus tesouros. Tão notável é a tua sabedoria nos negócios que multiplicaste tua
riqueza e teu coração se orgulha dela. Por isso, assim fala o Senhor Iahweh: Visto
que em teu coração te igualaste a Deus, também eu trarei contra ti estrangeiros, a
mais terrível das nações. Desembainharão a espada contra a beleza da tua
sabedoria, e profanarão o teu esplendor.” (Ez 28,4-7)
Segundo Van Imschoot esta sophía se aproxima daquilo que consideramos
esperteza, astúcia, ardil, vivacidade (2Sm 13,3; 14,2; 20,16).
195
c) A sophía-ciência
A sophía também é entendida como um saber acumulado, ciência, doutrina. É ela
que possibilita o grau de observação necessário ao suposto sophós, pois ele
precisa interpretar, por meio das condutas e dos gestos, os pensamentos ocultos
das pessoas. Aqui a sophía se aproxima mais da nossa maneira de concebê-la.
Vemos isto no prólogo do livro do Eclesiástico, quando se fala duas vezes da
“instrução e sabedoria” e ainda, quando neste mesmo livro se diz: “Uma
instrução de sabedoria e ciência, eis o que gravou neste livro Jesus, filho de
Sirac, de Eleazar, de Jerusalém, que derramou como chuva a sabedoria de seu
coração.” (Eclo 50,27). Não se nasce sábio, mas é necessário aplicar-se
intensamente para chegar a sê-lo (Eclo 6,32).
196
Para esta compreensão de
sabedoria o sophós é o douto que na grande maioria das vezes sabe ler, escrever e
manejar a lei (Jr 2,8; 8,8), podendo chegar a subir aos mais altos cargos na corte
(2Rs 25,19) e desempenhar grande influência (2Sm 15,31.37; 1Rs12,6; 20,8;
Pr16,13s).
197
195
IMSCHOOT, P. V. Verbete “Sabedoria”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 1343.
196
Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., pp. 43-46.
197
Cf. IMSCHOOT, P. V. verbete “Sabedoria”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 1343.
70
d) A sophía-arte de governar
A sophía também é entendida como a arte de governar, o que significa dizer que
ela é a prudência política. Por isso, o rei ideal teque possuí-la (Is 11,2). Essa
sabedoria envolve perspicácia e sagacidade, prudência e talento, valentia e
decisão. Os autores sagrados acreditam, que a prudência política e o sábio
governo são bens tão grandes que somente Deus pode concedê-los, por isso, o
governante deve pedi-los a Iahweh (2 Cr1,10; 1Rs3,6-9; Sb9,4.6).
198
e) A sophía-prudência
O grau mais elevado e nobre da sophía no meio humano encontra-se na atividade
do sábio quando reflete problemas que afetam às pessoas: as desigualdades
sociais (cf. Pr 14,20s. 31; 17,5; 19,1.4.7.17; 22,2), as injustiças flagrantes (cf. Pr
11,1-11.18s; Ecl 8,12-14; Sb 2), o tema onipresente da morte (em todos os livros
sapienciais, com seus matizes); e o tema de Deus e do temor a Deus (com seus
aspectos distintos em cada um dos livros sapienciais). Aqui entramos no plano
estritamente moral do ser humano. Neste nível a sophía é prudência, sensatez,
portanto, é uma virtude positiva, enriquecedora de quem a possui, e pela qual
orienta sua vida ordenadamente e segundo a vontade do Senhor.
199
Com este
sentido vemos Moisés exortando o povo:
“Portanto, cuidai de pô-los [os mandamentos e decretos do Senhor] em prática,
pois isto vos tornará sábios e inteligentes aos olhos dos povos. Ao ouvir todos
estes estatutos, eles dirão: ‘Só existe um povo sábio e inteligente: é esta grande
nação! ’ ” (Dt 4,6).
f) Os sábios/as de profissão
É bem provável que existissem sábios/as de profissão em Israel, como fica
sugerido no segundo livro de Samuel: “O conselho que Aquitofel dava naquele
tempo era recebido como um oráculo de Deus. Assim era o conselho de
Aquitofel, tanto para Davi como para Absalão” (2Sm 16,23). Vemos ainda no
198
Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., pp.46-48.
199
Cf. Ibid., pp. 49-51.
71
profeta Jeremias (8,8; 18,18) esse indício. Estes sábios/as originavam-se
geralmente da classe dos escribas e se distinguiam por certo grau de experiência.
É importante destacarmos ainda que “também as mulheres eram respeitadas por
sua sabedoria e seu conselho (Sm 14,2; 20,16; Jz5,29): estas mulheres deviam ser
conselheiras de profissão.”
200
g) A evolução do termo sophía no plano moral
No início o termo sophía, como acabamos de ressaltar, não guardava qualquer
referência à moralidade dos atos humanos. Com o passar do tempo o qualificativo
sophía é aplicado ao plano moralmente bom. Ao final da evolução conceitual, que
coincide com o final da época intertestamentária, o/a sophós por excelência já não
é o enciclopédico rei Salomão, mas o homem e a mulher justos (Pr 23,24; Ecl 9,1;
Eclo 18,27). Portanto, a sophía está no homem e na mulher que se manifesta: a)
diante de Deus pelo reconhecimento incondicional de sua soberania, respeitando e
guardando fielmente os seus mandamentos; b) diante dos outros por seu proceder
livre em face dos poderosos, respeitoso/a com os seus/as semelhantes,
compassivo/a com os fracos; c) diante da criação inteira quando respeita e
procura refletir em sua vida particular a ordem interna e estrutural do universo.
201
1.2.1.2.
A Sophía divina
Agora penetraremos na relação Sophía e meio divino. Esta relação irá nos revelar
algo do mistério de Deus, pois iremos refletir sobre a Sophía divina.
Segundo José Vílchez Líndez aceitar que Deus possa comunicar a Sophía, como
um dom distinto de si mesmo ao ser humano, não oferece dificuldade especial,
quando estamos falando do Segundo Testamento. Entretanto, é uma grande
dificuldade para muitos perceber que ele é a fonte da Sophía sem sair do Primeiro
Testamento. Todavia, esta autocomunicação de Deus:
“já se encontra no Livro da Sabedoria, como podemos comprovar na petição que
o pseudo-Salomão faz da sabedoria, aqui atributo divino: Dá-me a sabedoria
200
McKENZIE, J. L. Op. cit., p.813.
201
Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., p. 58.
72
entronizada junto a ti’ (Sb 9,11); e ‘Quem conheceu teu desígnio, se tu não
concedeste a ele a sabedoria e enviou a ele teu santo espírito do céu’ (Sb 9,17; cf.
7,15; 9,6)”
202
Logo, pretendemos agora destacar em alguns textos seletos do Primeiro
Testamento onde a Sophía aparece como atributo divino dado por Deus aos seres
humanos, e como é compreendida pelos hagiógrafos.
a) A Sophía é poder organizador e ordenador do mundo
Encontramos, nos três grandes poemas didáticos Pr 8, Jó 28 e Eclo 24, a sabedoria
de Deus sendo apresentada como um poder de organização e de ordem
“imanente ao mundo”.
203
“Iahweh me criou, primícias de sua obra, de seus feitos mais antigos. Desde a
eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes da origem da terra. Quando os
abismos não existiam, eu fui gerada, quando não existiam, os mananciais das águas.
Antes que as montanhas fossem implantadas, antes das colinas, eu fui gerada; ele
ainda não havia feito a terra e a erva, nem os primeiros elementos do mundo. Quando
firmava os céus, estava eu, quando traçava a abóboda sobre a face do abismo;
quando punha um limite ao mar: e as águas não ultrapassavam o seu mandamento,
quando assentava os fundamentos da terra.” (Pr 8,22-29).
Esta perícope nos mostra a natureza da sophía no seio de Deus e a sua
manifestação na criação e na história dos homens e das mulheres. Ela precede a
criação (vv. 22-25), sendo ao mesmo tempo, o primeiro fruto de toda a criação, e
estando presente a tudo, como que acompanhando a obra criadora.
204
Segundo
José Vílchez Líndez a sabedoria “governa o universo com acerto” (Sb 8,1), pois
está presente e o penetra todo, como o próprio espírito de Deus, do qual é perfeita
imagem (Sb 7,24-26).
205
202
Ibid., p.53. Grifo nosso.
203
Esta expressão é usada por G. VON RAD e por G. SCHIMANOWSKI apud MOLTMANN, J.
Op. cit., p. 54.
204
STORNIOLO, I. Como ler o Livro dos Provérbios. A Sabedoria do povo. 3. Ed. São Paulo:
Editora Paulus, 1992. p. 46.
205
LÍNDEZ, J. V. Op. cit., p. 54.
73
b) A Sophía é o sentido vital que Deus colocou na estrutura da
criação
Ela é de origem transcendente e encontra-se junto de Deus antes da criação do
mundo, divertindo-se o tempo todo em sua presença.
206
“Eu estava junto com ele como mestre-de-obra, eu era o seu encanto todos os
dias, todo o tempo brincava em sua presença: brincava na superfície da terra,
encontrava minhas delícias entre os homens.” (Pr 8, 30-31).
A Sophía acompanhava a obra criadora como um arquiteto ou mestre-de-obras.
Dito de outra forma: a Sabedoria de Deus marcou a própria estrutura de tudo o
que foi criado. Aqui a criação é apresentada como o jogo alegre de uma criança e
a humanidade como o objeto com que a Sophía se deliciava.
207
Segundo Ivo
Storniolo Pr 8,22-36 é o ponto alto de toda reflexão sapiencial, e:
“quer mostrar que a Sabedoria é o sentido vital que Deus colocou na estrutura de
toda criação. Assim sendo, ela está sempre ao alcance de todos os que a
procuram, em qualquer tempo e lugar, independentemente de raça ou nação,
credo ou religião. Observando o mundo e a história, a humanidade pode
encontrar a sabedoria e tomar consciência dela, aceitando-a como guia para a
realização da vida, e entrando assim em perfeita harmonia com toda a
realidade.”
208
c) A Sophía é a companheira ideal para o homem
Ela “é decantada no livro da Sabedoria com poemas de amor. Alguém que sonha
com a Sabedoria que vem de Deus é como um jovem que sonha com a sua
namorada para casar (8,2.9.17).”
209
A sophía, portanto, é feminina e está ligada
ao espírito feminino, sendo apresentada como uma amada que se deixa encontrar
e amar (Sb 8, 2-16). “O autor do Livro da Sabedoria ressalta essa presença
mediadora feminina de Deus ao longo de toda a história da Salvação do povo
eleito, como companheira e guia que assiste e acompanha nas provações e
perigos.”
210
Unidos à sophía, homens e mulheres (masculino e feminino), podem
chegar à percepção global da realidade, evitando os obstáculos de quaisquer tipos
206
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 54
207
Cf. STORNIOLO, I. Como ler o Livro dos Provérbios... Op. cit., pp. 46-47.
208
Ibid., p. 47.
209
MAZZAROLO, I. A Bíblia em suas mãos... Op. cit., p. 89.
210
BINGEMER, M. C. L. A Trindade a partir da perspectiva da mulher. In: Teologia Feminina na
América Latina. Op. cit., pp. 81-82.
74
de parcialidades, sempre geradoras de desastres. Logo, é esta companheira ideal
que dá ao ser humano a capacidade de praticar a justiça.
211
d) A Sophía é característica da era messiânica
Ela é descrita como uma pessoa com um discurso autoconsciente.
212
Ela fala
como se fosse o próprio Deus e é apresentada com os atributos próprios do rei
davídico, o messias dos profetas.
213
“Eu, a Sabedoria, moro com a sagacidade, e possuo o conhecimento da reflexão.
(O temor de Iahweh é o ódio do mau.) Detesto o orgulho e a soberba, o mau
caminho e a boca falsa. Eu possuo o conselho e a prudência, são minhas a
inteligência e a fortaleza. É por mim que reinam os reis, e que os príncipes
decretam a justiça; por mim governam os governadores, e os nobres dão
sentenças justas. Eu amo os que me amam, e os que madrugam por mim hão de
me encontrar. Comigo estão a riqueza e a honra, os bens estáveis e a justiça. Meu
fruto é melhor que o ouro, que o ouro puro, o meu lucro vale mais que a prata de
lei. Eu caminho pela senda da justiça e ando pelas veredas do direito. Para levar o
bem aos que me amam, e encher os teus tesouros.” (Pr 8,12-21)
Se compararmos Pr 8,12-21 com Is 11,1-3 veremos que as qualidades da Sophía
são as mesmas do messias. Ela é apresentada como a qualidade dos que governam
com justiça. No contato com ela o povo é levado a um plano de vida que é a plena
realização, a felicidade (8,21).
214
e) A Sophía é proveniente de Iahweh
Por isso, Iahweh pode comunicá-la a quem quiser, pois é o próprio Sábio por
excelência. Os autores sagrados contemplam em Deus a Sabedoria da qual decorre
a deles. Esta sophía “sai da boca do Altíssimo” como seu hálito (Rûah ou
Pneuma) ou sua Palavra (Eclo 24,3).
215
Podemos perceber aqui uma aproximação
entre Sophía, Pneuma e Logos. A Sophía habita no céu (Eclo 24,4), partilha o
trono de Iahweh (Sb 9,4), vive na sua intimidade (Sb 8,3).
211
STORNIOLO, I. Como ler O Livro da Sabedoria... Op. cit., p. 37.
212
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 54. Este autor afirma que a sophía é apresentada como “filha
de Deus”.
213
Cf. STORNIOLO, I. Como ler o Livro dos Provérbios... Op. cit., p. 44.
214
Cf. Ibid., pp. 44-45.
215
Cf. BARUCQ, A., GRELOT, P. Verbete “Sabedoria”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., pp.
919-920.
75
f) A Sophía é identificada com o Mistério do próprio Deus
Ela é apresentada como pertencente ao plano estritamente divino, porquanto o que
a ela se atribui apenas se pode dizer de Deus. É neste nível, em que é apresentada
como atributo divino, que chegamos ao ápice da concepção da Sophía.
216
No
livro da Sabedoria afirma-se que ela “a tudo renova, e sua presença faz ‘amigos
de Deus e profetas’ (7,27); ela é confidente de Deus e do saber divino, visto que
está entronizada junto a ele nos céus (cf. 8,4; 9,4.9-11). Como Deus, a sabedoria
tem um espírito poderoso (cf. 7,23.27), por isso pode ser chamada, com razão,
criadora de tudo quanto existe (cf. 7,21b e 8,6).”
217
Procura-se ainda dar uma
idéia do Inefável, a partir da essência última da Sophía. Desta forma o autor
bíblico vai atribuindo-lhe todas as qualidades possíveis e inimagináveis, chegando
finalmente a identificá-la com o mistério do próprio Deus. Ela se origina da vida
do próprio Deus, ou dito de outra forma, a Sophía é Deus se expandindo e
penetrando todas as coisas, renovando continuamente a vida e a humanidade.
218
“Nela [Sabedoria] um espírito inteligente, santo, único, múltiplo, sutil, móvel,
penetrante, invulnerável, amigo do bem, agudo, incoercível, benfazejo, amigo dos
homens, firme, seguro, sereno, tudo podendo, tudo abrangendo, que penetra todos
os espíritos inteligentes, puros, os mais sutis. A Sabedoria é mais móvel que
qualquer movimento e, por sua pureza, tudo atravessa e penetra. Ela é eflúvio do
poder de Deus, uma emanação puríssima da glória do Onipotente, pelo que nada
de impuro nela se produz. Pois, ela é reflexo da luz eterna, espelho nítido da
atividade de Deus e imagem de sua bondade.” (Sb 7,22-26)
1.2.2.
Pneuma (Rûah) e Sophía (Hokmah)
O livro da Sabedoria considerado em linha cronológica é o último do Primeiro
Testamento, foi escrito diretamente em grego, provavelmente na Alexandria do
Egito, e como já dissemos por volta do ano 50 a.C.
219
O autor deste livro ao tratar
do tema pneuma soube conciliar a corrente semítica com as correntes filosóficas
gregas. Encontramos neste livro praticamente quase todas as acepções do rico
vocábulo pneuma que foi destacado quando tratamos do termo correlato
hebraico rûah. Logo, pneuma aparece no livro da Sabedoria como sopro, vento
216
Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., pp. 54-55.
217
Ibid., pp.54-55. Grifo nosso.
218
STORNIOLO, I. Como ler O Livro da Sabedoria... Op. cit., p.35.
219
Cf. MAZZAROLO, I. A Bíblia em suas mãos... Op. cit., p. 88.
76
suave ou simplesmente ar (cf. 5,11c. 23a); como alento, respiração, sinal de vida
animal e sinal de vida no homem (2,3; 5,3b; 15,11c.14b.16b); e como pneuma de
Deus (1,5a.6a.7a.7b.22; 9,17b; 12,1; 11,20a).
220
Porém, de todos esses sentidos
que recebe a palavra pneuma no livro da Sabedoria o que nos interessa é o de
Espírito (Pneuma) de Deus, que é na realidade o estágio final da evolução deste
termo. Logo, podemos afirmar que tanto no vocábulo pneuma, como no vocábulo
sophía, houve uma evolução que num estágio posterior aplicam-se a Deus,
mesmo que com aspectos diferentes. Vejamos: a) o pneuma associa-se à atividade
de Deus quanto a seu poder em todas as ordens e à eficácia na execução; b) a
sophía associa-se ao plano do entendimento no planejamento e na alta direção do
governo do mundo e do homem.
221
Jürgen Moltmann afirma que no livro da Sabedoria a aproximação entre Rûah e
Hokmah acontece de tal forma que podemos trocá-las (1,7; 12,1), a ponto de no
capítulo sete deste livro, tudo o que é dito a respeito da Sabedoria pode ser dito
também do Espírito. Sob a forma da sabedoria, o espírito é de certa maneira um
interlocutor, um vis-à-vis em Deus mesmo, e representa ao mesmo tempo a
presença divina na criação e na história.
222
Sophía (Sabedoria) e Pneuma
(Espírito) estão muitas vezes tão ligados a ponto de chegarem a ser a mesma
coisa. Segundo Larcher:
As duas realidades são idênticas de várias maneiras: a Sabedoria possui um
espírito (Sb 7,22b) ou ela é um espírito (Sb 1,6), ela age sob a forma de um
espírito (Sb 7,7b). Além do mais, ela dispõe do poder e ela atribuída a si as
diferentes funções do Espírito no Antigo Testamento: ela exerce uma unção
cósmica universal, ela suscita os profetas, ela se faz guia da humanidade, depois
do povo eleito, ela aparece enfim como a grande mestra interior das almas. A
assimilação indica em muitos pontos que a Sabedoria aparece antes de tudo
como uma sublimação da função exercida pelo Espírito no Antigo Testamento. E
isso explica porque certos Padres da Igreja a consideram como uma
prefiguração, não do Verbo, mas do Espírito Santo.”
223
220
Encontramos ainda uma acepção secundária que é a de pnuema como seres intermediários
entre Deus e os seres humanos (7,20b. 23d). Neste caso o vocábulo pneuma encontra-se no plural.
221
Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., pp.247-249.
222
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 55.
223
LARCHER, C. apud. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 27.
77
1.2.3.
A personificação da sophía humana e da Sophía divina
O recurso literário chamado “personificação” consiste em fazer passar como
pessoa algo que não o é. Este recurso é aplicado com freqüência à sophía nos
livros sapienciais. comentadores que confundem os termos personificação e
hipóstase. Hipóstase, na terminologia teológica, quer dizer pessoa. Personificação
como acabamos de ver não chega a tanto. Na realidade o tratamento de pessoa
dado à sophía nos livros sapienciais guarda a compreensão de que ela não é
verdadeiramente uma pessoa.
224
Na esfera do humano ela é apresentada como
uma pessoa que: edifica sua casa e prepara um banquete (cf. Pr 9, 1-3); instrui e
une com o Senhor os que a amam (cf. Eclo 4,11-14; Sb 6,12); é digna de ser
buscada a todo custo (Eclo 6, 18-37); facilmente é encontrada (cf. Eclo 6,12-16);
eleva sua voz diante de um auditório (Pr 1,20s; 8,1-3; Eclo24,1-2); fala na
primeira pessoa (Pr 8,12-36; cf. 1,20-33; 9,4-6; Eclo 4,15-19; 24,3-22). Na esfera
do divino é apresentada como a Lei do Senhor que é uma criatura de Deus, porém
eterna, e que está presente, como testemunho, desde o começo da criação (Pr
8,22; cf. Eclo 1,9; 24,3-9; Sb 9,9).
225
É apresentada ainda como a bem-amada a
quem se procura avidamente (Eclo 14,22ss); uma mãe protetora (Eclo14,26s);
uma esposa nutriz (Eclo15,2s); uma hospedeira acolhedora que convida ao seu
festim (Pr 9,1-6).
226
Van Imschoot ao falar da personificação da Sophía divina em
alguns textos poéticos do livro dos Provérbios, do Eclesiástico e da Sabedoria,
afirma que:
“nestes textos muitos viram a descrição de uma pessoa distinta de Deus que opera
de modo independente. Essa opinião é errônea. Em Pr 8,1-21 e 9,1-6 a sabedoria
divina é tampouco uma pessoa real como a sua antagonista, a dona estultícia, que
seduz os homens e os leva à morte (9,13-18). A mesma coisa vale para Eclo 24,1-
24. [O livro da] Sabedoria insiste mais no caráter intelectual e material da
sabedoria divina e desenvolve sua personificação; não se pensa, porém, numa
pessoa real. Um monoteísta convencido como o autor de Sabedoria certamente
não consideraria a sabedoria como uma esposa assentada ao lado de Deus,
portanto como uma deusa. Se esse detalhe tem que ser tomado em sentido
metafórico, então os outros também. A maior parte dos exegetas modernos
concede plenamente que a sabedoria divina no AT não é uma pessoa divina, mas
pensa que se deve ver nela algo mais do que uma personificação poética; falam
então de hipóstase. As chamadas hipóstases, porém, veneradas em muitas
224
Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., pp. 243-244.
225
Cf. Ibid., pp. 53-55.
226
BARUCQ, A., GRELOT, P. Verbete “Sabedoria”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 919.
78
religiões antigas, têm sempre uma existência e uma atividade mais ou menos
independentes, ao lado da divindade. Ora, em Provérbios, Eclesiástico e
Sabedoria a atividade da sabedoria divina, bem como a da palavra ou do espírito
de Deus, é a própria atividade de Deus (cf. Sb 9,1s), exatamente como a
sabedoria, a palavra e o espírito do homem não é independente do homem.”
227
Comentando sobre a personificação da sophía José Vílchez Líndez assegura que
este recurso foi a maneira como o judaísmo encontrou para defender sua
monoteísta em Iahweh diante do helenismo e do estoicismo.
228
1.2.4.
O que a ação da Sophía divina provoca na História
A Sophía está associada a tudo o que Deus faz no mundo. Podemos dizer que são
obras resultantes da ação da Sophía: a) a criação do mundo (Pr 3,19s; 26,12;
28,25-27; Sb 7,24; 9,1s; 14,3; cf. Sl 33,6; 104,30; Jd 16,17; Sb1,7); b) o poder do
rei
229
(Pr 8,14s; Sb 8,7-14; cf. Is 11,2-8); c) a proteção do povo de Deus (Sb 10,5-
11,2; cf. Is 63,11-14); d) a educação dos homens para a virtude (Pr 8,32-36; 9,1-
12; Eclo 24,18-22; Sb1,4s etc.; cf. Ne 9,20.29s; Zc 7,12).
230
Segundo Yves
Congar “a Sabedoria procede de Deus, ela é como a sua ação em benefício de
suas criaturas para as conduzir corretamente [...] Todavia a função própria da
Sabedoria é conduzir os homens de acordo com a vontade de Deus.”
231
André
Barucq e Pierre Grelot ao tratarem da atividade da Sabedoria afirmam que:
“Ao longo de toda história da salvação Deus a enviou em missão à terra. Ela se
instalou em Israel, em Jerusalém, como uma árvore da vida (Si 24,7-19),
manifestando-se na forma concreta da Lei (Si 24,23-34). Desde então ela mora
familiarmente com os homens (Pv 8,31; Ba 3,37s). Ela é a providência que dirige
a história (Sb 10,1-11,4), e é ela que garante aos homens a salvação (9,18). Ela
desempenha um papel semelhante aos dos profetas, dirigindo suas censuras aos
desviados cujo juízo anuncia (Pv 1,20-33), convidando os que são dóceis a se
beneficiarem de todos os seus bens (Pv 8,1-21.32-36), a se assentarem à sua mesa
(Pv 9,4ss; Si 24,19-22). Deus age por ela como age por seu Espírito (cf. Sb
9,17); é portanto a mesma coisa recebê-la ou ser dócil ao Espírito. Se esses
textos ainda não fazem da Sabedoria uma pessoa divina no sentido do NT,
227
IMSCHOOT, P. V. Verbete “Sabedoria”. In: VAN DEN BORN. Op. cit., pp. 1345-1346.
228
Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., p. 55.
229
Devemos entender este rei como aquele que governa o povo com justiça e lhe proporciona e
garanta bens necessários à vida.
230
IMSCHOOT, P. V. Verbete “Sabedoria”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 1345.
231
CONGAR, Yves. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 27.
79
perscrutam aos menos em profundidade o mistério do Deus único e preparam
uma revelação mais precisa do mesmo.
232
Além de todos estes aspectos apontados pelos autores/as pesquisados sobre o que
provoca a ação da Sophía divina, podemos ainda destacar o que nos apresenta Ivo
Storniolo. Este autor nos diz ser a Sophía o espírito vivo de Deus que ele
comunica ao ser humano e que “não consiste na cultura ou erudição, mas, em
primeiro lugar, no senso da justiça.”
233
Portanto, a Sophía divina quando age no
homem e na mulher os leva a praticar a justiça.
1.3.
A Shekinah
Segundo Jürgen Moltmann, a reflexão de alguns teólogos/as cristãos sobre a rûah
Iahweh como sendo o “evento da presença de Deus” ou “presença divina” é mais
adequada à idéia de shekinah do que à própria idéia de rûah Iahweh.
234
É a partir
desta afirmação que nos propomos a refletir neste momento sobre a shekinah.
Nosso método de pesquisa é o de buscar na Sagrada Escritura a revelação de Deus
como Espírito a partir do recurso a imagens e mbolos do Primeiro Testamento,
destacando como se sua ação na economia salvífica no meio da humanidade.
Por isso, precisamos ver quais são os indícios de que no Primeiro Testamento,
encontramos esta “presença de Deus”, compreendida como shekinah. Em que
podemos basear-nos para dizer que a shekinah é esta presença? Para podermos
chegar a esta afirmação devemos, primeiramente, compreender como surge esta
idéia, para depois examinarmos o conceito primitivo de shekinah e finalmente ver
o que a teologia da shekinah contribui para a compreensão do Espírito de Deus e
dos critérios de discernimento que brotam da Sagrada Escritura.
1.3.1.
Como surge o conceito de shekinah
Segundo Maria Clara Bingemer a sophía, através da qual Deus medeia a obra da
criação, a sophía que Salomão invoca como “esposa de sua alma” e que, além
232
BARUCQ, A., GRELOT, P. Verbete “Sabedoria”. In: ON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 920.
Grifo nosso.
233
STORNIOLO, I. Como ler O Livro da Sabedoria... Op. cit., p.13.
234
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 55.
80
disto, é uma sophía imaginada como a mãe que transmite sabedoria a seus filhos
(Pr 8,32-35), desaparece no pensamento rabínico. Isto acontece após o advento da
era cristã e possivelmente por causa de seu uso no gnosticismo. Apesar disto,
reaparece na judaica naquilo que tem de mais básico e mais central como
shekinah, sendo entendida como uma nova imagem da presença mediadora de
Deus no feminino no meio do povo.
235
Corroborando com esta afirmação a
Enciclopédia Wikipedia esclarece que no judaísmo a shekinah designa a faceta da
revelação divina aos homens, a "Divina Presença", sendo também considerada a
face "feminina" e "materna" desta presença.
236
1.3.2.
O significado de shekinah
Assim como aconteceu com os conceitos ou imagens “rûah” e sophía” que
sofrem uma evolução, o mesmo aconteceu com o conceito shekinah. Vejamos
como isto se deu.
a) O conceito primitivo
O vocábulo shekinah não aparece nem no Primeiro Testamento nem no Segundo.
É uma derivação da raíz hebraica ש-כ-נ (sh-k-n) que significa “habitar”, “fazer
morada”. No princípio do culto a Iahweh, quando o povo ainda caminhava pelo
deserto, é dito que os israelitas tinham como santuário uma Tenda:
“Quem queria “consultar Iahweh” ia à Tenda, onde Moisés servia de
intermediário junto a Deus, Ex 33.7. A tradição sacerdotal manteve o mesmo
nome, com o mesmo sentido: a Tenda da Reunião é o lugar do ‘encontro’ com
Moisés e o povo de Israel, Ex 29.42-43; 30.36. Mas essa tradição prefere chamá-
la a Habitação, miskan, um termo que parece ter designado primeiramente a
habitação temporária do nômade, cf. o antiqüíssimo texto de Nm 24.5 e o verbo
correspondente em Jz 8.11, cf. também 2 Sm 7.6, logo, um sinônimo para ‘tenda’.
Os relatos sacerdotais escolheram essa palavra arcaica para exprimir o modo de
habitação terrena do Deus que reside no céu. Eles preparam a doutrina judaica
da Shekinah e João também lembra que: ‘O Verbo...armou uma tenda entre nós’,
Jo 1.14”
237
235
Cf. BINGEMER, M. C. L. A Trindade a partir da perspectiva da mulher. In: Teologia Feminina
na América Latina... Op. cit., pp. 81-82.
236
Cf.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Shekinah. Acesso dia 19/06/2008.
237
DE VAUX, R. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Editora Teológica,
2003. p. 333. Grifo nosso.
81
Portanto, a idéia de shekinah (falamos aqui em idéia e não no vocábulo) como
presença divina no meio do povo de Israel aparece no Primeiro Testamento
bem cedo quando Deus disse ao seu povo “faze-me um santuário para que eu
possa habitar no meio deles [dos israelitas]” (Ex 25,8); “e habitarei no meio dos
israelitas e serei o seu Deus" (Ex 29,45); e Iahweh dos exércitos, que habita no
monte Sião
(Is 8,18). Esta idéia de shekinah que provém da linguagem cúltica
afirma o morar de Deus junto ao seu povo na arca transportável, e mais tarde,
como se pode ver no texto de Isaías, afirma-se que ele habita no templo, no monte
Sião, pois é aí que ele encontra seu repouso.
238
b) A shekinah inabita no povo
Quando se a destruição do templo e a deportação do povo para o exílio da
Babilônia, uma questão fundamental é levantada: onde se encontra Iahweh visto
que já não existe mais sua morada no monte Sião?
“Surge o pensamento de que Deus inabita em seu povo e que ele acompanha seu
povo ao exílio através da shekiná. A shekiná está presente na comunidade dos
orantes. Ela está nas sinagogas, no colégio dos juízes, no meio dos pobres, dos
doentes etc. A shekiná compartilha das alegrias e dos sofrimentos de Israel. Ela é
de maneira particular o divino ‘companheiro do sofrimento de Israel’. Daí surge a
esperança de que junto com o povo, a shekiná exilada haverá de retornar da terra
estranha para Jerusalém. Quando Deus redime seu povo e o conduz para casa sua
shekiná peregrinante será redimida de suas errantes peregrinações e retornará
para casa.”
239
Desta nova compreensão de shekinah como inabitação de Deus no povo e não
somente morando no Templo, podemos destacar os seguintes pontos principais: a)
o Deus de Israel é experimentado como “Senhor” e também como o “servo de
Israel” (Is 63,9; Sl 91,15; Is 63,8s); b) Iahweh alia-se com Israel de tal forma que
se fala na consoladora companhia da shekinah (Sl 23,4), pois ele é um Deus com-
passivo e sofre com seu povo; c) a shekinah peregrina na terra até que Israel seja
redimido, pois a auto-redenção de Deus se dá juntamente com a redenção de Israel
(entendendo aqui redenção de Deus como o retornar da shekinah e o tornar unir-
se a Deus). Logo, a redenção de Deus se naquele acontecer em que o eterno se
238
Cf. JANOWSKI, B. apud MOLTMANN, J. Op. cit., p. 55.
239
KUHN, P. apud p. MOLTMANN, J. Op. cit., 56. Grifo nosso.
82
une à sua shekinah. Portanto, a shekinah é a presença terrena, temporal e espacial
do próprio Deus, mas presença que não pode ser confundida com sua onipresença,
pois esta faz parte da essência de Deus. Apesar disto, esta presença é muito
especial, querida e prometida. Presença que se identifica com Deus e ao mesmo
tempo é distinta dele, pois este descer e estabelecer divino em um determinado
lugar deve distinguir-se dele.
240
Roland De Vaux também alerta para esse cuidado
que precisamos ter quando falamos deste “estar presente de Deus no meio de
Israel de maneira especial”, pois esta “habitação”, que exprime a presença
graciosa de Iahweh, não pode e nem deve diminuir em nada sua
transcendência.
241
1.3.3.
Comparação entre Rûah Iahweh e Shekinah
Os israelitas quando usavam a expressão Rûah Iahweh não tinham em mente
aquilo que os teólogos/as cristãos entendem, isto é, não pensavam no “evento da
presença de Deus” ou na própria “presença divina”. Para eles “espírito santo”,
expressão usada poucas vezes e em épocas tardias, tinha um significado restrito
que era o de “espírito do santuário”. Além disto, “espírito santo” nunca foi a
denominação de Deus, mas sim um de seus dons. para os teólogos/as cristãos
Espírito Santo é Deus mesmo, pois o Espírito é o doador em seu dom. A idéia de
shekinah, esta sim, significa para o judaísmo a inabitação de Deus no espaço e
no tempo, num determinado lugar e em determinado tempo de criaturas terrenas e
em sua história.”
242
Por isso, Moltmann afirma que a idéia da Shekinah
desenvolvida pelo judaísmo se aproxima mais daquilo que os cristãos/ãs
confessam ser o Espírito Santo. É importante neste momento fazermos um alerta:
a afirmação de Moltmann nos diz que a idéia de Shekinah desenvolvida no
judaísmo “se aproxima” do que nós cristãos confessamos ser o Espírito Santo.
Precisamos ter cuidado para não afirmarmos que este teólogo diz que a Shekinah é
o Espírito Santo na perspectiva judaica.
240
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., pp. 57-58.
241
Cf. DE VAUX, R. Op. cit., p. 365.
242
MOLTMANN, J. Op. cit., p. 55.
83
1.3.4.
Autodistinção de Deus
Este conceito foi recolhido de Hegel por Franz Rosenzweig
243
pois ele permite
manter a soberania de Deus sobre a história de sofrimento de sua Shekinah.
Afirmar a “autodistinção de Deus” significa assumir nele “uma diferença entre o
que distingue e o que é distinguido, entre o Deus que dá e o Deus que é dado, e no
entanto é mantida ao mesmo tempo a identidade do Deus Uno”.
244
Este conceito
é muito caro a Jürgen Moltmann, pois torna possível imaginar a plena e real
presença de Deus em sua shekinah e em seu Espírito na história. O que não
acontece, segundo ele, com as interpretações teológicas que falam do Espírito de
Deus como uma emanação de Deus e que entendem a Shekinah como uma
propriedade de Deus. Além disto, é digno de destaque um esclarecimento sobre o
conceito “autodistinção de Deus”: ele não implica numa aceitação da doutrina
cristã da Trindade.
245
1.3.5.
Como a teologia da Shekinah contribui para a compreensão do
Espírito de Deus
Podemos afirmar que esta teologia torna claro o caráter pessoal do Espírito, pois
ele é a presença atuante na história do próprio Deus em pessoa, sendo mais do que
uma qualidade ou dom divino às criaturas. Ele é a capacidade de Deus sentir o que
a pessoa sente (empatia de Deus). Além disto, chama a atenção para a
sensibilidade do Espírito, pois ele inabita na criatura errante e sofredora,
participando do sofrimento, se entristecendo e se enfraquecendo. Entranto, ele
também se alegra quando repousa na nova e perfeita criação. Finalmente, aponta
para a kénosis do Espírito, pois em sua Shekinah Deus renuncia a sua
invulnerabilidade e se torna capaz de sofrer, porque ele quer o amor.
246
243
ROSENZWEIG, F. apud MOLTMANN, J. Op. cit., p. 56.
244
MOLTMANN, J. Op. cit., p. 56. Grifo nosso.
245
Cf. Ibid., p. 58.
246
Cf. Ibid., p. 59.
84
1.3.6.
O que a ação da Shekinah provoca no ser humano
No intuito de ampliar a idéia de experiência histórica da Shekinah, Jürgenn
Moltmann, num seminário de inverno de 1989/1990, faz uma interpretação
apropriativa sobre a “peregrinação errante da Shekinah” e de sua “unificação com
Deus” aplicando-as à criação e a nós pessoalmente. Acreditamos que esta
releitura feita por Moltmann pode nos ajudar a ver como age a Shekinah e o que
ela provoca no ser humano e em todas as coisas. Assim se expressa este
pneumatólogo:
“Deus ama sua criação. Deus está ligado a cada uma de suas criaturas por uma
apaixonada afirmação. Deus ama com amor criador. Por isso ele mesmo, graças a
seu amor, inabita empaticamente em cada criatura. O amor, por assim dizer, o
arranca de si próprio e o transfere inteiramente às criaturas amadas. Sendo ele o
‘amante da vida’, seu eterno espírito está por essa razão ‘em todas as coisas’
como força vital. Na autodistinção e na auto-entrega do amor de Deus está
presente em todas as suas criaturas e é ele próprio o seu segredo mais íntimo.
No momento em que uma criatura se afasta deste amor de Deus, do qual no
entanto ela vive, ela se torna angustiada, agressiva e destrutiva, porque se torna
egoísta. Sua vontade separa-se da vontade de Deus e sua vida afasta-se do amor
de Deus e se volta para o ódio contra si própria. Todas as misérias do homem
procedem do fracassado amor a Deus. Com isto se chega, por um lado, a um
‘esvaziar-se [‘Entselbstung’] de Deus’, como o denomina M. Buber. Sua shekiná,
que inabita em cada uma de suas criaturas, torna-se ela própria alienada de
Deus, se entristece e fica ferida, mas não abandona os perdidos. Ela sofre nas
vítimas do mal e é torturada nos que praticam o mal. A shekiná não nos
abandona; com seu grande anseio por Deus, com seu grande desejo de união com
Deus, ela nos acompanha mesmo em nossos piores erros. Sentimos sua dor na
‘atração’ do espírito.
Com toda e qualquer parcela de egoísmo e de autocontradição que devolvemos à
vontade do Criador que nos ama, a shekiná chega mais perto de Deus. Quando
vivemos inteiramente na oração ‘Seja feita a tua vontade’, então a shekiná em nós
se une com o próprio Deus. Voltamos a viver plenamente e com indivisa
afirmação da vida. Termina a peregrinação errante, a meta é atingida.
Experimentamos em nós a felicidade de Deus e experimentamo-nos a nós mesmos
na bem-aventurança de Deus.
Quando é que isto acontece? Acontece quando experimentamos a alegria
avassaladora: Tornamo-nos felizes sem egoísmo e nos unimos a nós mesmos
inteiramente. Acontece quando experimentamos graves sofrimentos.
Vivenciamo-nos a nós mesmos na dor e confiamo-nos inteiramente a Deus. Não
precisa ser definitivo, pode ser também por um breve espaço de tempo. Quando
voltamos a nos dividir em nós mesmos, a shekiná retoma conosco a peregrinação
errante. Quando estamos em união conosco mesmos, ela chega ao repouso. Mas
sempre que a shekiná que nos impele se aproxima intensamente de Deus, isto
está ligado em nós a uma indescritível alegria. Tornamo-nos sensíveis para a
shekiná em nós e da mesma forma para a shekiná nas outras pessoas e em todas
as criaturas. Esperamos pela união mística da shekiná com Deus em todo
encontro real. Por isso ansiamos pelo amor em que nos esquecemos de nós e em
85
que ao mesmo tempo nos encontramos. Encontramo-nos com qualquer outra
criatura com a esperança de encontrar a Deus. Pois tivemos a experiência de que
nas outras pessoas e nas outras criaturas Deus espera por nosso amor e pelo
retorno de sua shekiná: ‘O que fizeste a um de destes meus irmãos menores, a
mim o fizestes’ ” (Mt 25).
247
O que dizer depois de tão bela interpretação? Simplesmente que nesta releitura de
Moltmann podemos compreender melhor o Amor de Deus por suas criaturas e
como ele põe a caminho sua Shekinah num “peregrinar errante” até que ela inabite
cada uma destas criatruras amadas. Com esta inabitação, ela chega a sofrer
empaticamente com o sofrimento destes perdidos/as que se alienam de Deus. Esta
alienação não a faz abandoná-los/as nunca. Mais ainda, a Shekinah continua
deixando no mais íntimo de cada um/a o desejo ou atração por Deus. Além disto,
em cada atitude egoísta vivida pela criatura amada, a Shekinah se aproxima mais
de Deus. Entretanto, quando a vontade de Deus é concretizada, mesmo que num
pequeno espaço de tempo, a Shekinah alcança sua meta e se une misticamente
com Deus na criatura amada. Neste momento o ser humano experimenta em si a
verdadeira felicidade. assim termina a “peregrinação errante” da Shekinah.
Destarte, quando o ser humano volta a se dividir, a Shekinah retorna sua
“peregrinação errante”, pois Deus continua esperando que o Amor seja realidade
em cada uma de suas criaturas para que sua Shekinah retorne e se una novamente
a ele. Portanto, isto é o que a ação da Shekinah provoca em nós: une-se a nós, nos
atrai para Deus, sofre conosco quando nos afastamos de Deus, igualmente se
alegra conosco quando fazemos a vontade de Deus. Finalmente, é a Shekinah em
nós, que nos une misticamente a Deus nela.
1.4.
Balanço da investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito de
Deus no Primeiro Testamento
Nossa intenção é a de reunir neste item, e de forma sintética, os dados que
pudemos recolher das três imagens escolhidas por nós do Primeiro Testamento e
que apontam para a presença e atuação do Espírito de Deus: Rûah Iahweh, Sophía
e Shekinah. Iremos, simplesmente, elencá-los em duas grandes linhas: identidade
(quem é o Espírito de Deus revelado no Primeiro Testamento) e ação (como age
247
Ibid., pp. 58-59. Grifo nosso.
86
esse Espírito). Estas informações nos darão a possibilidade de mais tarde conhecer
melhor quem é o Espírito Santo e elencar os critérios de discernimento que
encontramos nos textos sagrados.
1.4.1.
Identidade: Quem é o “espírito” que se encontra revelado no
Primeiro Testamento?
Com base naquilo que refletimos sobre a Rûah Iahweh, a Sophía e a Shekinah
podemos destacar os principais traços que identificam o “espírito” revelado no
Primeiro Testamento. Ele/Ela
248
: a) é a Vida ou o princípio vital que Deus coloca
na estrutura da criação, sendo o poder organizador e ordenador do mundo que está
presente acompanhando toda obra da criação; b) é de origem transcendente e
antes da criação do mundo divertia-se na presença de Deus; c) é força criadora
divina comunicada às suas criaturas, sendo a força vital em tudo o que vive; d) é
uma Grande Mãe, que de suas amorosas e fecundas entranhas, à luz e faz
eclodir o universo; e) é a Liberdade ou o espaço de liberdade onde o ser humano
pode desenvolver-se; f) é espaço de amplitude para que haja vida e liberdade; g) é
força que inspira a profecia; h) é o oposto da sarx (limitação humana); i) é a
realidade feminina do Mistério de Deus, sendo Mãe de ternura e bondade que
protege, acalanta, aconchega, consola, abriga, nutre e que transmite sabedoria a
seus filhos. É ainda a companheira ideal para o homem, que o acompanha e guia
nas provações e perigos; j) é promessa criadora de vida em toda situação caótica
da história pessoal ou social do ser humano; l) é unidade íntima e perfeita com a
Palavra; m) é a Lei do Senhor instalada no meio dos homens como uma árvore da
vida, é a própria Verdade que é Deus; n) é providência e o senso da justiça que
dirige e atua na história; o) é quem inabita empaticamente toda criatura, sendo a
presença divina constante e dinâmica, o segredo mais íntimo destas, não
abandonando jamais nenhuma de suas criaturas amadas; p) é o Amor que ama
sem limites o ser humano respeitando suas opções, mas tomando sempre partido
dos mais fracos.
248
Sem tentar “forçar” o texto bíblico podemos dizer que encontramos no Primeiro Testamento
núcleos semânticos que abrem o acesso para falarmos da realidade feminina do Mistério de Deus.
Perceber isto nos permite afirmar que Deus tem traços tanto masculinos como femininos, visto que
a imagem divina se encontra tanto no homem, quanto na mulher (cf Gn 1,27).
87
1.4.2.
Ação: Quais os critérios que nos ajudam a discernir que “espírito”
está agindo no ser humano e no mundo?
Segundo o que pudemos observar sobre a forma de agir da Rûah Iahweh, da
Sophía e da Shekinah podemos afirmar que a ação destas: a) torna o ser humano
um ser vivente; b) põe tudo em movimento, levando as pessoas da estreiteza para
a amplidão; c) conscientiza homens e mulheres sobre sua condição de opressão,
mostrando-lhes que é possível vencer o opressor, provocando-lhes o desejo de
construir uma sociedade justa, fraterna e igualitária. Possibilita-lhes viver relações
verdadeiramente humanas, onde não oprimido nem opressor. Desta forma são
capazes de construir no tempo e no espaço o ideal libertário do Êxodo, que é o
“Desígnio de Deus na história”; d) cria laços de união entre as pessoas que
desejam mais vida e liberdade, capacitando-os para que possam abrir caminhos
novos dentro da história; e) acompanha o ser humano em sua caminhada histórica,
pois não está preso a nenhum espaço físico. Fica junto, solidarizando-se com seu
povo, fazendo uma Aliança com ele; f) produz em alguns homens e mulheres dons
de profetas, colocando em suas bocas palavras que libertam e possibilitam a
vivência da justiça para que sejam transmitidas a seus contemporâneos/as. Além
disto, conscientiza-os de que Deus não gosta de espetáculos retumbantes, nem de
sacrifícios humanos; de que Deus lhes coragem para continuar em sua missão;
g) transforma homens e mulheres em pessoas capazes de gestos excepcionais com
a finalidade de confirmar o povo na vocação de parceiros de Deus; h) leis que
possibilitam construir uma sociedade justa e fraterna; i) capacita homens e
mulheres para julgar com justiça, levando-os/as a fazer coisas que estão além da
capacidade humana comum; j) derruba todas as barreiras criadas pelos seres
humanos (barreiras entre os povos e nações, entre os sexos, as raças, as idades, as
classes sociais); l) unge com sua presença aqueles/as que precisam governar,
dando-lhes qualidades especiais, entretanto, não age de forma mágica; m) age de
forma lenta e amorosa no íntimo das liberdades pessoais e no mistério,
respeitando o tempo de cada um/a; n) não se deixa monopolizar, apesar disto,
renuncia a sua invulnerabilidade e sofre (kénosis do Espírito) com o ser humano
que se afasta de Deus e dos irmãos; o) alegra-se com o ser humano que se abre à
ação de Deus, unindo-o misticamente a Deus todas às vezes em que se um
encontro real com qualquer outra criatura; p) deixa claro para o profeta que num
88
futuro próximo o Messias virá e que o Espírito agirá profundamente sobre ele
dando-lhe as seis virtudes do governante. Por causa disto, o Messias julgará os
fracos com justiça, com eqüidade e pronunciando sentenças em favor dos pobres;
q) age no interior da humanidade e suscita uma Nova Criação, transformando
corações de pedra em corações de carne.
Segundo nossa compreensão estes são os critérios, colhidos do Primeiro
Testamento, que podem servir de parâmetro para discernirmos se quem age no
mundo e no ser humano é ou não o Espírito de Deus.
Com estes elementos recolhidos do Primeiro Testamento sobre o Espírito de Deus
nos encontramos agora preparados/as para adentrar-nos na Experiência Histórica
que Jesus de Nazaré faz com este Espírito. Conheceremos melhor como se sua
ação na vida de Jesus, fazendo-o viver totalmente aberto ao Pai e a seus irmãos/ãs.
89
2
A Experiência Histórica do Espírito de Deus em Jesus de
Nazaré
Introdução
Depois de termos recolhido do Primeiro Testamento a maneira como foi
experimentada a presença do Espírito de Deus e como foi percebida sua ação em
Israel, veremos a partir de agora a Experiência Histórica deste Espírito narrada no
Segundo Testamento. No presente capítulo refletiremos como isto aconteceu na
pessoa de Jesus de Nazaré, que possuía o Espírito de Deus “sem medida” (Jo
3,34), para que no próximo capítulo possamos destacar como esta experiência
ocorreu em algumas comunidades cristãs que se encontram retratadas na Sagrada
Escritura. Tudo isto com a mesma finalidade que conduz nossa pesquisa que é a
de conhecer quem é realmente o Espírito Santo que nos é revelado por Jesus e a
de elencar os critérios de discernimento que brotam da Palavra de Deus.
Temos claro que podemos compreender como a plenitude da manifestação do
Espírito de Deus se deu em Jesus de Nazaré, depois de termos feito o caminho
com o povo de Israel, que acabamos de percorrer no capítulo anterior, pois é
que encontramos os fundamentos de nossa fé. Da mesma forma é fundamental
para nós, conhecermos Jesus de Nazaré, o homem cheio do Espírito, para entender
como ele se tornou o paradigma para se elaborar a pneumatologia dos autores
cristãos da primeira hora, que enfocaremos no próximo capítulo. Portanto, o
presente capítulo é de essencial importância para nossa dissertação.
Como viveu Jesus de Nazaré sua experiência histórica com o Espírito de Deus?
Esta experiência que é expressão da íntima união vivida com o Espírito suscita em
Jesus a vivência concreta do amor agápico?
Dito de outra forma: é o Espírito
Santo que possibilita a Jesus viver em radicalidade o amor agápico? Ele soube
entregar-se livremente à experiência extraordinária do Espírito que plenifica o
coração, com experiência ordinária do Espírito que leva o ser humano a um
compromisso concreto e solidário com os irmãos mais necessitados? Ou será que
as duas coisas, experiência extraordinária e ordinária do Espírito não estavam
integradas na vida do Nazareno? Jesus soube unir ação (conduta ética) e oração
(experiência mística)? Caso as respostas a estas questões sejam positivas,
perguntamo-nos: sendo os cristãos/ãs, homens e mulheres de no Deus revelado
90
em Jesus Cristo, não devem necessariamente ter como modelo de sua relação com
o Espírito Santo aquele vivido pelo Mestre de Nazaré? Além disso, não deve ser
esta a pneumatologia que se faz indispensável em nosso mundo, pois nos
apresenta critérios de discernimentos verdadeiramente cristãos? Estas são
algumas das questões que movem nossa reflexão neste capítulo. Portanto,
precisamos ter claro como foi vivida a relação de Jesus com o Espírito Santo, para
que, como cristãos/ãs, possamos vivê-la de forma coerente com a que
professamos.
Muitas poderiam ser as formas de abordar tema tão rico e fascinante, no entanto,
optamos por uma narrativa histórica, por compreender que esta nos permite
elencar com mais fidelidade histórica a pneumatologia que brota da vida de
Jesus, assim como os critérios de discernimento que podemos recolher de sua
vida vivida plenamente no Espírito. Faremos esta abordagem a partir de uma
“cristologia ascendente”, percorrendo o mesmo caminho feito pelos discípulos/as
do “homem de Nazaré”, para ao final do percurso poder afirmar, assim como
eles/as o fizeram, que este homem, que viveu na primeira metade do século I, na
Palestina, é Deus.
O Espírito Santo sempre esteve presente na vida de Jesus, tornando-se sua
unção e seu companheiro inseparável, portanto, podemos afirmar que toda a
atividade que Jesus realizou em sua vida transcorreu na presença deste
Espírito. Afirmar isto nos faz evocar imagens de intimidade e amizade, entre
Jesus e o Espírito, porém estas imagens estão longe daquilo que realmente
acontecia no íntimo de Jesus em sua experiência com o Espírito de Deus nos
dias de sua vida terrena. Esta presença contínua na vida do Nazareno sobressai
em alguns momentos particulares, que se encontram narrados nos Evangelhos.
Os quatro evangelistas narram estas passagens dando-lhes um colorido próprio,
correspondente a sua intenção teológica. Sabendo disto, fizemos uma opção por
um dos relatos, onde se encontra narrada a experiência carismática de Jesus,
deixando de lado os outros relatos paralelos que por ventura existam. Isso foi
feito porque nossa intenção não é a de comparar estes relatos, mas sim a de
recolher de alguns deles o que nos ajuda a alcançar nosso objetivo. Portanto, é
esta presença misteriosa na vida de Jesus de Nazaré o que nos propomos
averiguar neste capítulo para conhecermos melhor a revelação do Espírito de
91
Deus na época messiânica, tendo consciência de que esse Mistério só pode ser
por nós, parcialmente desvelado.
Para desenvolver este capítulo, num primeiro momento analisaremos o termo
pneuma com sua riqueza de significados e seu uso no Segundo Testamento. A
partir daí, iniciaremos a caminhada histórica da experiência do Espírito de Deus
no período messiânico com a figura de João Batista. Fizemos essa escolha porque
a comunicação aos homens das promessas de salvação de Deus que se cumpriram
em Jesus de Nazaré, isto é, a proclamação do Evangelho, começa com o chamado
à conversão feito por João Batista a seus contemporâneos, e com o batismo que
efetua em Jesus (cf. Mc 1,1s). Além do que, este homem é o personagem que liga
o Primeiro Testamento ao Segundo. Destacaremos em seguida o que a ação do
Espírito de Deus provoca no Batista. Posteriormente acompanharemos o homem
de Nazaré em seu batismo no Jordão e ressaltaremos o que este Espírito provoca
em Jesus quando é batizado. A partir desta experiência, o Nazareno se deixa guiar
pelo Espírito de Deus até o deserto onde luta contra o Maligno. Veremos como
este Espírito age em Jesus no deserto. A seguir, deixando-se ainda guiar pelo
mesmo Espírito, Jesus dirige-se para a Galiléia onde irá atuar sob a ão deste
Espírito Santificador. Em seguida, ressaltaremos o que o Espírito de Deus
provoca em Jesus quando o inabita. Veremos que esta inabitação o leva a pregar
o Reino; a expulsar demônios; a ensinar com autoridade; a anunciar a Boa Nova
aos pobres; a curar e perdoar a todos e todas; a acolher as mulheres como suas
discípulas e missionárias; a resgatar os pecadores/as; a orar e a ensinar a orar; a
denunciar as injustiças daquela sociedade palestinense; a amar de forma radical
até o ponto de entregar-se à morte; a prometer e entregar o Paráclito; e finalmente
a ressurgir pela força do Espírito.
Depois de acompanhar Jesus em sua vida pública pela Palestina da primeira
metade do século I poderemos fazer a seguinte profissão de que fizeram seus
seguidores/as: Jesus de Nazaré vem do Espírito, o que significa dizer, este homem
é concebido por sua intercessão. Por conseguinte, este homem que viveu cheio do
Espírito de Deus, que vem do Espírito, que é guiado pelo Espírito, que atua no
Espírito, que promete o Espírito, que o doa aos seus/as e que se entrega à morte na
cruz pelo Espírito é a presença do próprio Deus no meio de nós. A partir daí, ao
constatarmos que Jesus é o Filho de Deus, daremos atenção para a plenitude da
revelação que vem por sua pessoa: Deus é comunhão de amor, Deus é Trindade,
92
Ele é Tri-Uno! Finalmente recolheremos os principais dados de nossa
investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito de Deus em Jesus de
Nazaré apontando a identidade deste Espírito (ser) e a maneira como se sua
ação (agir) no Homem de Nazaré, o Cristo de Deus.
Ao final de todo caminho percorrido, poderemos verificar que surge uma
pneumatologia da vida de Jesus que mantém muito daquilo que vimos no capítulo
anterior quando refletimos sobre a pneumatologia do Primeiro Testamento.
Entretanto, Jesus nos revela uma grande novidade em relação ao Espírito Santo de
Deus a partir de sua prática e pregação: o Espírito é uma pessoa divina.
Todo o caminho, que faremos neste capítulo, tem como finalidade nos preparar
para que no próximo possamos conhecer a pneumatologia de algumas das
primeiras comunidades cristãs que se encontram retratadas no Segundo
Testamento, assim como conhecer os critérios de discernimento que foram
surgindo a partir da experiência carismática destas comunidades.
93
2.1.
Pneuma
Para conhecermos a Experiência Histórica que se no Segundo Testamento se
faz necessário em primeiro lugar entender o significado da palavra pneuma. Ela é
um termo grego neutro que quase invariavelmente traduz na Septuaginta a palavra
feminina hebraica rûah.
249
Aparece trezentos e setenta e nove vezes no Segundo
Testamento,
250
sendo usado revestido de quatro sentidos. Com o sentido literal
significando o movimento do ar, o sopro, o vento, ele aparece três vezes. com o
sentido antropológico designando o princípio da vida que parte na hora da morte
(Mt 27,50 etc.), ou designando o homem em sua totalidade, ou ainda indicando o
ser humano visto sob o aspecto de sua “interioridade” (Mc 2,8; 8,12 +), este
termo aparece quarenta e sete vezes. Ainda aparece cerca de trinta e oito vezes
com o sentido demonológico que remete aos espíritos maus ou impuros (Mc 1,23-
27; 3,11; 3,30; 5,2 +). E, finalmente, com o sentido teológico significando o
Espírito transcendente de Deus e de Cristo, ele aparece duzentos e setenta e cinco
vezes, sendo este o seu sentido dominante no Segundo Testamento. Com este
sentido teológico aparece: a) cento e quarenta e nove vezes no sentido absoluto; b)
noventa e três vezes como Espírito Santo ou de santidade; c) dezoito vezes como
Espírito de Deus; d) uma vez como Espírito do Pai; e) cinco vezes qualificado
cristologicamente. Deve-se notar que exceto no corpo lucano, a expressão
“Espírito Santo” não é dominante no Segundo Testamento.
251
É digno de destaque observar que a maior parte das expressões com que as
atividades do Espírito de Deus são descritas no Primeiro Testamento encontram-
se também no Segundo ao se falar desse Espírito. Por exemplo: ele vem do alto do
céu (Mc 1,10; Jo 1,32s; 1 Pd 1,12); vem do Pai (Jo 15,26; 16,13); ele desce (At
10,44; 11,15); é enviado ou dado pelo Pai (Lc 11,13; 1 Jo 3,24; 4,13; Gal 4,6; Rm
8,15s); é derramado (At 2,17; Tt 3,5s); ele enche o homem (Lc 1,15; 4,1; At 2,4;
4,6); repousa sobre ele (Jo 1,32s); ou mora nele (Rm 8,9; 1 Cor 3,16).
252
249
Cf. DODD, C. H. A Interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Editora Teológica, Paulus,
2003. p. 284.
250
É interessante ressaltar que o termo rûah aparece trezentos e setenta e oito vezes no Primeiro
Testamento.
251
CF. ZUMSTEIN, J., DETTWILER, A. Verbete “Espírito Santo”. In: LACOSTE, J. Y. Op. cit.,
p. 650.
252
Cf. IMSCHOOT, P. V. verbete “Espírito”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 485.
94
O uso do termo pneuma (espírito) nos Atos dos Apóstolos, em Paulo e até certo
ponto nos evangelhos sinóticos é ambíguo. Vemos nestes escritos o espírito sem o
artigo definido (espírito) outras vezes com este artigo (o espírito). Podemos
encontrá-lo ainda qualificado pelo adjetivo “santo” ou os genitivos “de Deus”, “do
Senhor”, “de Jesus”, mas, apesar de ser usado desta forma, não podemos afirmar
que ele é compreendido nestes casos como uma identidade pessoal. Para sermos
fiéis aos hagiógrafos devemos guardar esta ambigüidade, pois tentar eliminá-la
usando letra maiúscula (o Espírito Santo) não é sempre certo.
253
Entretanto, em
João, quando o espírito aparece como o Paráclito, talvez seja afirmado mais
explicitamente uma realidade pessoal do que em qualquer outra parte no
Segundo Testamento.
254
Toda esta dificuldade para captarmos o real sentido deste
termo no Segundo Testamento é devido ao fato de que “como observa F. Büchsel,
os evangelhos operam com a pneumatologia herdada do Antigo Testamento e do
judaísmo.”
255
Além disso, é importante destacar que, “quando no judaísmo
helenístico ruah se torna pneuma, as idéias hebraicas e as gregas associadas com o
termo devessem agir e reagir umas sobre as outras.”
256
A partir do exposto, podemos afirmar que o Segundo Testamento traz no termo
pneuma a riqueza de significados que seu termo correlato rûah possui, somado
ainda a algumas idéias do helenismo que são absorvidas no encontro que Israel
faz com esta cultura. Entretanto, é indispensável afirmar que a concepção de
pneuma como força de Deus que encontramos no Segundo Testamento é em
muitos momentos diferente daquela concepção de força de Deus que encontramos
no Primeiro. Nestes casos encontramos a grande novidade que o Segundo
Testamento nos traz em relação à compreensão do Espírito de Deus, e isto foi
possível devido à plenitude da revelação trazida por Jesus Cristo.
257
um alerta que precisamos fazer todas as vezes que falamos em pneuma, isto é,
em “espírito”. Portanto, não podemos deixar de esclarecer, neste momento, e
através das palavras de José Comblin, que:
253
Cf. McKENZIE, J. Op. cit., p 306.
254
Cf. Ibid. p. 308.
255
BÜCHSEL F. apud CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., pp. 32-33.
256
DODD, C. H. Op. cit., p. 286. No oitavo capítulo deste livro Charles Harold Dodd faz uma
análise de como se encontram entrelaçadas essas idéias no conceito pneuma.
257
Cf. McKENZIE, J. Op. cit., p. 305.
95
“... nossa palavra “espírito” evoca algo completamente diferente do Espírito de
Deus. Demonstrou-se a que ponto nossa palavra “espírito” se acha comprometida
pelo dualismo matéria-espírito, ou corpo-espírito, comum a todas as filosofias
derivadas da Grécia. Para nós, “espírito” evoca sempre o contrário de corpo ou
matéria. Espírito evoca sempre uma certa substância não-material. Tudo isso
nada tem a ver com o sentido cristão do Espírito. No entanto, a força da
linguagem é de tal ordem, que somos obrigados a repetir, cada vez que falamos
do Espírito Santo, que o espírito de modo algum se opõe seja à matéria, seja ao
corpo. Espírito quer dizer força ou ação. Dizer que Deus é Espírito é dizer que
Deus é ação, energia, movimento.”
258
Portanto, é com esta compreensão de pneuma, que iniciaremos a caminhada
histórica do Espírito Santo narrada no Segundo Testamento. Evidentemente
enfocaremos o pneuma em seu sentido teológico, onde este designa o Espírito de
Deus e de Cristo, deixando de lado os outros sentidos por nós apontados
anteriormente. Para tal destacaremos somente algumas das principais passagens
do Segundo Testamento onde, na opinião dos autores/as pesquisados, vemos esta
ação com maior evidência. Elas nos ajudarão a conhecer melhor quem é este
Espírito e como ele age no Mestre de Nazaré, com a finalidade de percebermos o
que significa para o ser humano e, principalmente, para o cristão e a cristã viver
sendo inabitado por ele. Mas, para alcançarmos este objetivo, precisamos
conhecer, primeiramente, como se dá a experiência de João Batista com o Espírito
de Deus e o que a ação deste Espírito provoca em sua pessoa, para assim nos
situarmos no contexto em que surge Jesus de Nazaré com sua práxis e pregação.
2.2.
João Batista
Quem é este “João”?
259
Segundo o que lemos nos Evangelhos é o Batista que
desde o seio materno se encontra “cheio do Espírito Santo” (Lc 1,15) e que
“crescia e se fortalecia em espírito” (Lc 1, 15.80). Homem enviado por Deus para
dar testemunho da luz (Jo 1,6. 15). Ele aparece no deserto de Judá, cercado por
uma grande multidão que vai vê-lo e ouvi-lo (Mt 3,5.7; Mc 1,5), anunciando o
reino (Mt 3,1), o dia do juízo e conclamando ao batismo e à penitência (Mc 1,4).
João se considera o precursor daquele que haveria de batizar no Espírito e no fogo
258
COMBLIN, J. O Tempo da ação: Ensaio sobre o Espírito e a História. Petrópolis: Vozes, 1982.
p.51.
259
Para aprofundar o conhecimento deste homem na perspectiva do historiador Flávio Josefo que
faz sua reconstrução da história do povo judeu consultar FABRIS, R. Jesus de Nazaré: história e
interpretação. São Paulo: Loyola, 1988. pp. 91-94.
96
(Mt 3,11s; Mc 1,7s; Lc 3, 15-18), sendo o seu batismo uma preparação para o
batismo daquele que havia de vir. Vestia-se de um modo que recorda Elias
(comparar Mt 3,4 com 2Rs 1,8) e sua vida no deserto também é um eco do modo
de vida de Elias. Enfim, João é “um homem de Deus, homem carismático-
profético que apresenta uma grande afinidade com o Dêutero-Isaías (cf. Is 40-
55)”.
260
O que caracteriza João é sua inexorável pregação do Juízo (o esperado
fim da história), que vinha associada à oferta de um batismo de imersão na água
corrente do Jordão. Este rito batismal, que em face do juízo que se aproxima
exigia de todos a conversão, é o elemento novo que marca sua atividade. Este
homem é uma figura que tem importância e grandeza própria.
261
A pregação de
caráter ético-religioso e o batismo de João provocam um movimento popular que
irá despertar as suspeitas do tetrarca Herodes Antipas. Por precaução este manda
prender e matar o Batista (cf. Mc 6, 17-29; Mt 14, 3-12; Lc 3, 19-20).
262
Na visão de Rinaldo Fabris não é nada improvável que Jesus depois de receber o
batismo de João no Jordão, haja feito parte de seu grupo de discípulos. Depois se
separou deste grupo, levando consigo uma parte de simpatizantes, alguns dos
quais se tornaram seus discípulos (Jo 1, 37-42).
263
Jürgen Moltmann concorda
com esta probabilidade aventada por Fabris quando nos afirma que “Jesus de
Nazaré de ter sido um dos discípulos do Batista. Jesus só se manifesta em
público depois que o Batista foi pela força, reduzido ao silêncio, e o teor de sua
mensagem é o mesmo que o de João: ‘Convertei-vos, porque está próximo o reino
dos céus’ (Mt 3,2; 4,17).”
264
Apesar disso, é preciso afirmar que uma grande
diferença entre estes dois homens de Deus. Alfonso García Rubio ao estabelecer a
distinção entre João Batista e Jesus de Nazaré nos aponta as seguintes diferenças:
a) o batismo de João não realiza a salvação, pois a renovação do ser humano
concretiza-se mediante o batismo no Espírito daquele que de vir; b) para João,
Deus vem como um juiz severo, enquanto para Jesus, Deus vem com sua
misericórdia; c) João vem ao Jordão para batizar e Jesus vem para ser batizado,
e o faz de forma oculta.
265
260
GARCÍA RUBIO, A. O encontro com Jesus Cristo vivo: um ensaio de cristologia para nossos
dias. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 29.
261
GNILKA, J. Jesus de Nazaré: mensagem e história. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 74-75.
262
Cf. FABRIS, R. Jesus de Naza... Op. cit., p. 95.
263
Cf. Ibid. p. 97.
264
MOLTMANN, J. Op. cit., p. 67. E também FABRIS, R. Jesus de Nazaré... Op. cit., p. 97.
265
Cf. GARCÍA RUBIO, A. O encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p. 29.
97
O que a ação do Espírito Santo provoca em João Batista
Como acabamos de destacar João desde o seio materno se encontra “cheio do
Espírito Santo” e “crescia e se fortalecia em Espírito”. Portanto, iremos neste
momento destacar os quatro pontos que consideramos os principais resultados da
ação do Espírito de Deus em João Batista, tendo claro que esta ação é muito mais
abrangente do que aquilo que enfocaremos a seguir.
A ação do Espírito de Deus em João Batista provoca:
2.2.1.
Uma vida de pobreza e austeridade
“Naqueles dias, apareceu João Batista pregando no deserto da Judéia e dizendo:
‘Arrependei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo’. Pois foi dele que falou
o profeta Isaías, ao dizer: ‘Voz no deserto: preparai o caminho do Senhor, tornai
retas suas veredas’.
João usava uma roupa de pêlos de camelo e um cinturão de couro em torno dos
rins. Seu alimento consistia em gafanhotos e mel silvestre. Então vieram até ele
Jerusalém, toda a Judéia e toda a região vizinha ao Jordão, confessando os
pecados”. (Mt 3, 1-6)
João desafia a tradição familiar e religiosa de seu tempo. Como filho primogênito
do sacerdote Zacarias deveria dedicar-se ao serviço do Templo, pois é sacerdote
por profissão (Ex 13, 11-16; 22 28-30; Dt 26, 1-2). Apesar disso, prega no
deserto, sendo Jericó o lugar escolhido por ele, por ser a porta de entrada do povo
do Êxodo. Faz isto porque acredita num novo Êxodo originado na penitência e na
conversão. Do Templo (seu lugar por direito) para o deserto (opção
revolucionária), este homem renuncia aos privilégios sacerdotais, sociais e
políticos para assumir uma vida de pobreza e austeridade. Troca a segurança
econômica e o bem-estar, pela insegurança de subsistência e pelas agruras do
deserto. Assume por consciência crítica, por sensibilidade à realidade que o
cerca, e pela certeza da necessidade de reconstrução da justiça, o estilo de vida
profética. O traje de João é o mesmo dos beduínos do deserto, daqueles que
vivem desprovidos de tudo. Ele não precisa viver desta forma, nem de vestir-se
assim, porém, faz essa escolha livremente para condenar a luxúria de Jerusalém
98
(Ez 23, 21-48). Sua alimentação é também uma forma de protestar contra os
bacanais e banquetes com ovelhas e cabritas roubadas.
266
2.2.2.
Um ensino moral que convoca as pessoas a produzirem frutos de
generosidade com os pobres e a renunciarem à opressão e à
violência
“Ele dizia às multidões que vinham para serem batizadas por ele: ‘Raça de
víboras! Quem vos ensinou a fugir da ira que está por vir? Produzi, então, frutos
dignos do arrependimento e não comeceis a dizer em vós mesmos: Temos por pai
a Abraão. Pois eu vos digo que até mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos
a Abraão! O machado está posto à raiz das árvores; e toda a árvore que não
produzir bom fruto será cortada e lançada ao fogo’.
E as multidões o interrogavam: ‘Que devemos fazer?’ Respondia-lhes: Quem
tiver duas túnicas, reparta-a com aquele que não tem, e quem tiver o que comer,
faça o mesmo’. Alguns publicanos também vieram para ser batizados e disseram-
lhes; ‘Mestre, que devemos fazer?’ Ele disse: Não deveis exigir nada além do
que vos foi prescrito’. Os soldados, por sua vez, perguntavam: ‘E nós, que
precisamos fazer?’ Ele disse: ‘A ninguém molesteis com extorsões; não
denuncieis falsamente e contentai-vos com o vosso soldo’.” (Lc 3, 7-14)
A pregação de João é dura (v. 7-9), no entanto, entre a multidão que ia até ele
para receber o batismo (v. 12-14) encontram-se publicanos e soldados. Isto
porque, eles não querem apenas água sobre a cabeça como rito de “expiação”, mas
querem uma mudança de vida e buscam em João uma orientação para uma vida
nova. É a partir desse contexto que Lucas nos mostra o ensinamento moral do
Batista (v. 10-14): é preciso produzir frutos de generosidade para com os pobres
e renunciar à prática da violência e da opressão em relação aos pequeninos da
sociedade.
267
Comentando sobre a radicalização da pregação do Batista, sobre a
dureza do caminho apontado por ele para aqueles que buscam a conversão, e
sobre o significado de cada uma de suas exortações, Isidoro Mazzarolo nos diz
que apesar disso:
“vinham a ele as multidões que abarcavam gente de todas as categorias sociais e
de todos os partidos religiosos. ‘Quem tem duas túnicas uma a quem não
tem...’ (3,12) significa a nova proposta política da distribuição, da partilha e do
compromisso sociológico com todos, em nome do Evangelho. Vinham também
publicanos, e a estes dizia: ‘Não exijais mais do que está estipulado’ (3,13) revela
que João conhecia o caminho pelo qual os fiscais podiam corromper-se e
266
Cf. MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus: ouvistes o que foi dito...? Eu, porém vos digo...!
Coisas velhas e coisas novas! Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2005. pp. 44-50.
267
McKENZIE, J. Op. cit., p. 489.
99
corromper. A honestidade de quem cobra é proporcional a quem paga, e a
corrupção ou falsificação dos critérios levava muitos deles a buscar riquezas por
caminhos ilícitos. Vinham também soldados (3,14), e também eles tinham
caminhos de corrupção: ‘Não maltrateis nem denuncieis ninguém e contentai-vos
com vosso pagamento’. João Batista tinha conhecimento dos caminhos pelos
quais os soldados exigiam prêmios para não prender, para soltar presos ou para
facilitar a vida dos corruptos. Por outro lado, os inocentes podiam pagar a conta
sem serem responsáveis. Todos os que iam para o deserto à procura do profeta
perguntavam o que deveriam fazer, e João lhes dava respostas concretas: Quem
tem, reparte com quem o tem. Quem não tem nada pode ter dons e com eles
realizar comprometedoras ou transformadoras ações.”
268
Estes são os frutos concretos indicados por João Batista e que dirão se houve ou
não conversão real daqueles que buscam uma “vida nova” e não somente um rito
de purificação.
2.2.3.
Humildade
João é humilde o suficiente para reconhecer seu lugar. Desta forma é capaz de
prenunciar que aquele que vem depois dele é mais forte e tem mais poder que ele.
Eu vos batizo com água para o arrependimento, mas aquele que vem depois de
mim é mais forte do que eu. De fato, eu não sou digno nem ao menos de tirar-lhe
as sandálias. Ele vos batizará com o Espírito Santo e com o fogo.” (Mt 3,11)
João realiza o batismo com água como preparação para o Reino de Deus e para a
vinda daquele que haveria de batizar com o Espírito Santo e com o fogo. Isidoro
Mazzarolo nos esclarece que:
“O batismo na água estava ligado aos ritos de purificação das tradições dos
judeus e, mais especificamente, dos essênios, mas João acrescentava um
elemento novo a esse rito das tradições, a conversão. A conversão não fazia parte
dos ritos judaicos, purificar-se não era converter-se, mas lavar-se. As purificações
judaicas eram apenas um medo de doenças e contaminações, mas não atingia o
interior da pessoa, seu comportamento e sua consciência”.
269
Portanto, João com seu batismo prepara a grande purificação messiânica.
270
Este
homem é humilde igualmente ao confessar sua função de precursor, não querendo
268
MAZZAROLO, I. Lucas: a antropologia da salvação. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor,
2004. pp. 76-77.
269
MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus... Op. cit., p. 56. Grifo nosso.
270
Cf. IMSCHOOT, P. V. Verbete “Espírito”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 486.
100
que seus ouvintes sejam confundidos a respeito do Messias. É capaz de perceber a
grande diferença entre ele e o Messias a ponto de confessar-se indigno de tirar
suas sandálias. Para entendermos o alcance desta afirmação de João vejamos
ainda o que nos diz Isidoro Mazzarolo a respeito da função de “tirar as sandálias
de uma pessoa” naquela sociedade:
“O escravo tirava as sandálias do seu senhor, carregava-as com cuidado, lavava-
lhe os pés e prestava o serviço de submissão. João acredita que a diaconia para
Jesus exigia uma qualificação maior em termos de dignidade e condições
pessoais; por isso o se considera capaz para essa tarefa”.
271
Portanto, a humildade de João Batista chega ao ponto de, apesar de viver uma
vida de austeridade dedicada a Deus e à conversão de seus irmãos, se considerar
indigno de ser um escravo do Messias.
2.2.4.
O reconhecimento do Messias
João é capaz de reconhecer Jesus como um Cordeiro pascal que tomaria para si a
culpa do povo e realizaria um ato libertador definitivo. Além disto, confessa com
alegria e humildade sua própria condição de intermediário que levaria as pessoas
a conhecer, acolher e crer em Jesus.
272
“No dia seguinte, ele Jesus aproximar-se dele e diz: Eis o Cordeiro de Deus,
que tira o pecado do mundo. Dele é que eu disse: Depois de mim, vem um homem
que passou adiante de mim, porque existia antes de mim. Eu não o conhecia, mas,
para que ele fosse manifestado a Israel, vim batizar com água’. E João deu
testemunho, dizendo: ‘Vi o Espírito descer, como uma pomba vinda do céu, e
permanecer sobre ele. Eu não o conhecia, mas aquele que me enviou para batizar
com água, disse-me: ‘Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer é o
que batiza com o Espírito Santo. E eu vi e dou testemunho que ele é o Eleito de
Deus’. ” (Jo 1, 29-36)
“João Batista, ao esperar o Messias, esperava ao mesmo tempo o Espírito em todo
o seu poder; este iria substituir os gestos do homem pela irresistível ação de
Deus.”
273
271
MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus... Op. cit., pp. 56-57. Grifo nosso.
272
Cf. MAZZAROLO, I. Nem aqui, nem em Jerusalém: O evangelho de São João. Rio de Janeiro:
Mazzarolo editor, 2001. pp. 57-59.
273
GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 299.
101
Portanto, com estes pequenos dados que pudemos conhecer da vida de João
Batista, assim como com o resultado da ação do Espírito Santo em sua pessoa,
encontramo-nos preparados/as para adentrar na Experiência Histórica que Jesus de
Nazaré faz com este mesmo Espírito.
2.3.
Jesus de Nazaré, o homem cheio do Espírito
Enfocaremos agora com maiores detalhes como se deu o relacionamento de Jesus
de Nazaré com o Espírito de Deus em sua vida histórica. Percorrendo os
evangelhos constataremos que este homem viveu cheio deste Espírito, tendo-o
como seu companheiro inseparável. A partir das narrativas evangélicas
perceberemos como a ação do Espírito atua constantemente em Jesus, que se
torna dócil a sua orientação. É importante percorrer este caminho histórico, pois
ele nos mostrará que as escolhas feitas por Jesus foram o resultado da inabitação
do Espírito de Deus e de sua ação na pessoa do Nazareno. O Espírito habitou em
Jesus de maneira plena, total e sem limitação, com toda sua abundância e
redundância. Veremos a seguir como isto se deu concretamente na vida e na
pregação de Jesus de Nazaré.
2.3.1.
Jesus se deixa batizar por João
“A tradição neotestamentária atesta unanimemente que Jesus é o portador do
Espírito por excelência, e em todos os quatro evangelhos o batismo de Jesus por
João constitui a cena-chave nesse sentido”.
274
É importante destacamos que
“antes do batismo Jesus não aparece agindo na força do Espírito, e seus
compatriotas de Nazaré não viam nele nada de excepcional.”
275
Isso pode ser
constatado a partir do espanto de seus conterrâneos ao verem Jesus na Sinagoga
de Nazaré lendo um texto do profeta Isaías causando admiração a todos por suas
palavras cheias de graça (Lc 4,22), ou ainda quando se perguntam de onde vem a
sabedoria e os milagres feitos por aquele homem (Mt 13,54-56; Mc 6, 1ss).
Portanto, o batismo inaugura um novo capítulo na vida de Jesus, é como um
274
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p.
428.
275
CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p.32.
102
marco, um referencial apesar de “Jesus ser o Filho de Deus e habitado pelo
Espírito Santo desde o seio de Maria.”
276
Portanto, é a partir do batismo que marca tão fortemente a vida deste homem, que
iniciaremos o percurso de sua experiência carismática.
“Aconteceu, naqueles dias, que Jesus veio de Nazaré da Galiléia e foi batizado
por João no rio Jordão. E, logo ao subir da água, ele viu os céus se rasgando e o
Espírito, como uma pomba, descer até ele, e uma voz veio dos céus: Tu és meu
Filho amado, em ti me comprazo ”. (Mc 1, 9-11)
Este relato ao utilizar duas referências ao Antigo Testamento (Sl 2,7, salmo régio
e messiânico e Is 42,1, o primeiro versículo do primeiro Cântico do Servo de
Isaías) quer afirmar que este homem, Jesus de Nazaré, anônimo e perdido na
multidão é o Messias esperado pelo povo e especificar ainda o tipo de
messianismo que ele assume em conformidade com a vontade do Pai: o
messianismo de serviço. Esta messianidade é determinada pelo dom do Espírito.
O relato ainda afirma que Jesus é guiado nesse seu caminho pelo Espírito de Deus
que o impulsiona e ilumina em sua vida, paixão, morte e ressurreição.
277
Podemos ainda perceber que em seu batismo, Jesus faz uma experiência
particular do Espírito de Deus: ele os céus se rasgando e o Espírito de Deus se
manifestando sobre ele numa forma, ao mesmo tempo simples e divina, como
uma pomba (v. 10),
278
e ouve a voz de Deus (v.11).
Yves Congar ao falar do batismo de Jesus afirma que:
“Ao ser batizado por João, Jesus é designado e consagrado como aquele por cuja
palavra, sacrifício e ação o Espírito entra em nossa história como dom
messiânico e, ao menos em ‘penhor’, como dom escatológico. Certamente o
Espírito já esteve em ação anteriormente e já na antiga Disposição”
279
276
Ibid. p. 33.
277
Cf. GARCÍA RUBIO, A. Elementos de Antropologia Teológica... Op. cit., p. 167 e O Encontro
com Jesus Cristo Vivo... Op. cit, p. 30-31.
278
“Não tem sido possível dar qualquer interpretação garantida a esse simbolismo. Mui
provavelmente, não se trata de alusão à pomba que retorna à arca de Noé (Gn 8, 8-12). Alguns,
baseando-se em tradições judaicas, identificam a pomba com Israel. Porventura não sugere ela
antes o amor de Deus a descer simbolicamente à terra? Enfim, de acordo com outras tradições
judaicas que viam uma pomba no Espírito de Deus pairando sobre as águas (Gn 1,2), certos
críticos julgam que ela lembra a nova criação que ocorre no batismo de Jesus”. LÉON-DUFOUR,
X. Verbete “Pomba”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 793. Consultar ainda CONGAR, Y.
Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., pp. 34-35, e CHEVALIER, J.; GHEERBRANT,
A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio
de Janeiro: José Olympio, 2007. p. 728.
279
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 32
103
Como age este Espírito que entra na história humana como dom messiânico
através do batismo de Jesus de Nazaré? Ele revela o Messias prometido à sua
maneira misteriosa, a saber, sem parecer agir. Percebemos no relato bíblico que o
Filho age e se faz batizar, o Pai fala ao Filho, mas o Espírito não fala e nem age.
Entretanto, sua presença é necessária e indispensável para que aconteça o diálogo
entre o Pai e o Filho. Apesar disso, permanece mudo e aparentemente inativo.
Como podemos constatar ele não une sua voz à voz do Pai, não acrescenta
nenhum gesto seu aos de Jesus. Podemos então nos perguntar: o que faz então o
Espírito? Ele: a) faz com que se realize o encontro entre Pai e Filho; b) faz com
que a palavra do Pai seja comunicada a Jesus, palavra de complacência, de
orgulho e amor pelo Filho; c) permite que Jesus se coloque numa atitude de Filho;
d) faz elevar-se até o Pai a consagração de Cristo, as primícias do sacrifício do
Filho bem-amado.
280
Esta maneira de agir do Espírito de Deus no batismo de
Jesus é a sua maneira própria de ser. É uma forma kenótica, isto é, o Espírito
“esvazia-se de si mesmo” para que o outro, neste caso, o Pai e Jesus, possam ser o
protagonistas da ação possibilitada por ele.
Jürgen Moltmann ainda nos diz que:
“O Espírito deve ser entendido como o sujeito propriamente dito da especial
relação de Deus com Jesus e da especial relação de Jesus com Deus. Por isso o
Espírito também ‘conduz’ Jesus à história de mútua interação com Deus, seu Pai,
em que ‘por obediência’ ele de ‘aprender’ seu papel de Filho messiânico... As
expressões do descer do Espírito sobre Jesus e do ‘repousar’ do Espírito sobre
ele levam a que o Espírito seja entendido como a shekiná de Deus. É o
autolimitar-se e o auto-rebaixar-se do Espírito eterno e a empatia na pessoa de
Jesus e na história de sua vida e de sua paixão, da mesma maneira como de
acordo com a idéia dos rabinos o Espírito de Deus ligou-se à história da vida e da
paixão do povo de Israel.”
281
No relato bíblico do batismo de Jesus ainda podemos constatar que Jesus faz o
mesmo movimento do povo, a saber, vai ao deserto para ver o Batista. Neste
movimento de Jesus atestamos sua pedagogia: ele sendo o maior, submete-se ao
280
GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 300.
281
MOLTMANN, J. Op. cit., pp. 67-68. Grifo nosso. É fundamental reportar nosso leitor ao que
dissemos sobre a Shekinah no primeiro capítulo deste trabalho.
104
menor, sendo o Filho amado, valoriza e considera a grandeza de João, conferindo
dignidade e nobreza à missão do precursor.
282
O que a ação do Espírito provoca em Jesus no seu Batismo
Segundo Jürgen Moltmann presume-se que Jesus na hora de seu batismo tenha
feito “uma experiência particular do Espírito e que através dela ele tenha
reconhecido sua própria vocação e missão.”
283
Corroborando com esta afirmação
encontramos Ch. H. Dodd que nos diz: “No batismo aconteceu algo que modificou
o curso da vida de Jesus...; estamos autorizados a supor que aquele foi o momento
em que Jesus aceitou sua vocação”.
284
A estas palavras Raniero Cantalamessa
acrescenta que isto aconteceu:
“não porque antes não a tivesse aceitado, mas porque somente neste ponto de seu
‘crescimento em sabedoria e graça’, como homem, ela se lhe manifestou clara e
concretamente [...] É nesse momento, pois, que se verifica a fusão na consciência
de Jesus (enquanto consciência também humana) das duas figuras ideais do
Messias e do servo de Javé, fusão que determinará, doravante, a identidade e a
novidade messiânica de Jesus e dará um cunho inconfundível a toda sua palavra
e ação ”.
285
Yves Congar ainda pondera que neste momento Jesus toma plena consciência de
ser aquele que ‘o Pai consagrou e enviou ao mundo’ (Jo 10, 36), sendo este um
tema delicado e difícil de ser tocado: o crescimento do conhecimento humano de
Jesus sobre sua qualidade e missão.
286
Apesar disto, continua afirmando:
“O evento do seu batismo, seu encontro com João Batista, a Palavra que o
acompanhou, representam certamente um momento decisivo na explicação da
consciência que ele teve, em sua alma humana, de sua qualidade de eleito,
enviado, Filho de Deus e Servo-cordeiro de Deus”.
287
A partir do que acabamos de recolher de autoridades neste assunto podemos
afirmar que a ação do Espírito em Jesus na hora de seu batismo o faz reconhecer
282
MAZZAROLO, Isidoro. Evangelho de Marcos: Estar ou não com Jesus. Rio de Janeiro:
Mazzarolo editor, 2004. pp.34-35
283
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., pp. 67-68. Grifo nosso
284
DODD, H. apud CANTALAMESSA, R. O Espírito Santo na vida de Jesus: o mistério da
unção. São Paulo: Ed. Loyola, 1985. p. 12. Grifo nosso.
285
CANTALAMESSA, R. Op. cit., p. 12. Grifo nosso.
286
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p.35.
287
Ibid. pp.35-36.
105
sua vocação de Messias de Deus e assumir livremente sua missão de Servo de
Iahweh através do messianismo de serviço. Este messianismo significa a vivência
concreta do amor-serviço e da solidariedade na medida em que se ajuda o outro/a
a crescer e superar a desigualdade entre os parceiro/as da relação. Jesus Cristo
vive o sentido verdadeiro de serviço na perspectiva cristã, pois ao se aproximar do
outro/a, leva-o/a a sério como outro/a, e coloca-se à sua disposição a fim de
ajudá-lo/a a crescer e ser ele/a mesmo. Logo, toda a pregação e práxis de Jesus são
vividas como amor-serviço na dimensão de existir-para-o-outro/a.
288
Portanto, depois do batismo, Jesus tendo consciência de sua vocação e missão,
abandona o estilo de vida privada e inicia uma atividade pública de intenso
compromisso religioso. Nesta perspectiva “o batismo representa uma linha
divisória entre as duas formas de vida de Jesus, entre o carpinteiro de Nazaré e o
profeta da Galiléia, anunciador do reino de Deus”.
289
2.3.2.
Jesus é guiado pelo Espírito
A unção pneumática do Jordão impulsiona Jesus e este se deixa guiar livremente
pelo Espírito de Deus. A descida deste sobre o Mestre de Nazaré é uma unção que
o prepara para a vida pública, vida que será vivida em conformidade com a
vontade do Pai. Desta forma Jesus, pleno do Espírito Santo depois de seu batismo,
é guiado ao deserto para enfrentar o tentador e posteriormente guiado à
Galiléia, onde deverá vivenciar concretamente seu messianismo de serviço.
A seguir veremos o Espírito de Deus guiando Jesus:
2.3.2.1.
Ao deserto para lutar contra o Tentador
Qual o significado de “deserto” no tempo de Jesus? O deserto representa um rico
simbolismo tanto no Primeiro Testamento quanto no Segundo. Vale à pena
conferir o que nos diz Isidoro Mazzarolo a este respeito:
“Na tradição veterotestamentária, o deserto era a morada dos espíritos maus, de
satanás e as suas potências. O deserto era o lugar da morte. Para lá era mandado,
288
GARCÍA RUBIO, A. Elementos de Antropologia Teológica... Op. cit., p. 28-29.
289
FABRIS, R. Jesus de Nazaré... Op. cit., p. 101.
106
anualmente, o bode expiatório, carregado com os pecados do povo, e sua sorte
não era outra, senão ser devorado pelas feras (Lv 16, 20-28)”.
290
Quem é o “Tentador”? Ele “simboliza todas as forças que perturbam, inspiram
cuidados, enfraquecem a consciência e fazem-na voltar-se para o indeterminado e
para o ambivalente: centro da noite, por oposição a Deus centro da luz. Um arde
no mundo subterrâneo, o outro brilha no céu.”
291
Toda esta riqueza de significados e simbolismos tanto do “deserto”, como do
“Tentador”, encontram-se por trás das narrativas da tentação sofrida por Jesus no
deserto.
292
“Então Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. Por
quarenta dias e quarenta noites esteve jejuando. Depois teve fome. Então,
aproximando-se o tentador, disse-lhe. Se és o Filho de Deus, manda que estas
pedras se transformem em pães’. Mas Jesus respondeu: ‘Está escrito: Não de
pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’. Então o diabo
o levou à Cidade Santa e o colocou sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: Se
és o Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus
anjos a teu respeito, e eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em
nenhuma pedra’. Respondeu-lhe Jesus: ‘Também está escrito: ‘Não tentarás ao
Senhor teu Deus’. Tornou o diabo a levá-lo, agora para um monte muito alto. E
mostrou-lhe todos os reinos do mundo com o seu esplendor e disse-lhe: ‘Tudo
isto te darei, se, prostrado, me adorares’. Jesus lhe disse: ‘Vai-te, Satanás,
porque está escrito: ‘Ao Senhor teu Deus adorarás e a ele só prestarás culto’. Com
isso, o diabo o deixou. E os anjos de Deus se aproximaram e puseram-se a servi-
lo”. (Mt 4, 1-11)
É o Espírito que “leva” Jesus ao deserto (v. 1) depois de seu batismo. É, portanto,
no Espírito que ele enfrenta o demônio. Além disto, é necessário destacar que a
tentação está ligada ao batismo de Jesus e à declaração: “Tu és (Este é) o meu
Filho bem amado”. Segundo Yves Congar o Tentador ao dizer por duas vezes “Se
tu és o Filho de Deus” está colocando à prova a obediência de Jesus ao Pai.
Logo, o desfecho vitorioso de Jesus foi decisivo. Satanás fica amarrado, e Jesus
o expulsará constantemente, e isso através do ‘dedo’ ou Espírito de Deus”.
293
Podemos nos perguntar: qual o real sentido da tentação sofrida por Jesus? Mateus
(assim também o faz Lucas) relaciona as tentações de Jesus com as sofridas por
290
MAZZAROLO, I. Lucas em João: uma nova leitura dos evangelhos. Porto Alegre: Mazzarolo
Editor, 2000. p. 207. Grifo nosso.
291
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 337.
292
Desenvolver o tema do deserto não cabe a nós nesta pesquisa, entretanto para aprofundá-lo
consultar McKENZIE, J. Op. cit., pp. 228-230; como também CHEVALIER, J.; GHEERBRANT,
A. Op. cit., pp.331-332
293
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p.37.
107
Israel no deserto, mostrando que Jesus é o novo Israel que tem êxito onde este
fracassou. Já Marcos deseja fazer alusão ao diferente resultado das tentações em
Jesus e em Adão, querendo dizer que Jesus é o novo Adão que, tendo vencido o
tentador, reintroduz o homem no paraíso perdido. Entretanto, é o próprio Jesus
que nos diz o real sentido de sua luta com o Tentador no deserto: “Ninguém pode
entrar na casa de um homem forte e roubar-lhe os bens sem primeiro amarrá-lo;
só então poderá saquear a sua casa” (Mc 3, 27). Portanto, no deserto, sob a força
do Espírito, Jesus “amarrou” o adversário. Primeiro acertou as contas com ele, e
depois se pôs ao trabalho, levando avante a sua campanha em território inimigo.
294
Todavia, este “amarrar o adversário” apontado por Congar e Cantalamessa, não
significa que depois do deserto Jesus não tenha sofrido mais nenhuma investida
do Maligno. Muito pelo contrário, ao longo de toda sua missão o Adversário se
manifestará diante do Homem de Nazaré tentando-o e buscando aniquilá-lo
através dos diferentes grupos (saduceus, fariseus, escribas, sacerdotes e Herodes)
que se opõem, combatem e criticam Jesus. “Ele se apresenta também no final, de
modo particular, na figura do Sumo Sacerdote e de Herodes, que exigem a
sentença de morte, confirmando a opção pelo ódio contra o amor (Jo 15,25).”
295
Jürgen Moltmann faz um ótimo resumo sobre o significado das tentações que o
Espírito de Deus impeliu Jesus a passar:
“As tentações mesmas não m como alvo sua [de Jesus] fraqueza humana, mas
sim sua relação com Deus: ‘Se és o Filho de Deus, então...’ O reinado
messiânico de Jesus é posto à prova, e nesta prova ele recebe sua exata definição.
Há de ser um reino messiânico sem pão para as massas famintas [vv. 3-4], sem a
libertação de Jerusalém [vv. 5-6] e sem uma dominação conquistada pela força
[vv. 9-10]. Com isto o caminho de sua paixão já está prefigurado. Se Jesus
permanece em seu dom messiânico do Espírito sem os recursos econômicos,
políticos e religiosos da dominação pela força, então ele não pode senão sofrer
as forças que se levantam contra ele, e então terá que morrer na fraqueza. Mas é
o caminho em que ele é ‘conduzido’ pelo Espírito e por conseguinte o caminho
que lhe traz a certeza de sua messianidade. Ao longo deste caminho ele aprende
a compreender aquele papel messiânico que lhe é atribuído pelo Espírito de
Deus”.
296
294
Cf. CANTALAMESSA, R. Op. cit., p. 21.
295
MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus... Op. cit., p. 62.
296
MOLTMANN, J. Op. cit., p. 68.
108
Como podemos ver, no deserto, diante do Tentador fica confirmada e aceita por
Jesus, a experiência que havia vivido em seu batismo: seu reinado messiânico,
dom do Espírito, só pode ser vivido na fraqueza e nunca na dominação.
2.3.2.2.
Para a Galiléia onde concretizará seu messianismo de serviço
Após as tentações e a vitória de Jesus sobre o Tentador ele é conduzido pelo
Espírito de Deus e com a força deste Espírito retorna à Galiléia” (Lc 4, 14). O
Homem de Nazaré experimenta assim a “presença do Espírito ativo em sua
pessoa para que possa tornar presente o Reino de Deus e, portanto, eliminar o
reino do demônio.
297
Nos arredores da Galiléia, ele ensina causando alegria,
admiração e surpresa a todos/as.
298
2.3.3.
Jesus atua no Espírito
Toda a conduta de Jesus manifesta que nele age o Espírito (Lc 4, 14) porque este
o inabita, e porque Jesus se deixa livremente ser tomado por esta presença divina.
É esta inabitação, a saber, este ser habitado por dentro pelo Espírito de Deus que
possibilita a Jesus a comunhão com o próprio Deus.
299
É esta inabitação que leva
ao Nazareno a força de Deus para que possa agir, atuar coerentemente com seu
messianismo de serviço que é em síntese a vontade do Pai para o Filho Amado.
Queremos reportar-nos ao que afirma Jürgen Moltmann sobre a shekinah. Diz este
teólogo que ela é a inabitação de Deus no espaço e no tempo, num determinado
lugar e em determinado tempo de criaturas terrenas e em sua história.”
300
É isto o
que acontece em Jesus de Nazaré, quando, livremente, se deixa preencher pela
presença do Espírito de Deus que é força para sua missão. Igualmente, é o que
acontece com cada ser humano que permite que este Espírito o/a habite. A
inabitação do Espírito leva a força vital de Deus em Jesus a uma efusiva
plenitude, a tal ponto que o autor do evangelho de João chama o dom único do
297
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p.37.
298
Cf. MAZZAROLO. I. Lucas: a antropologia da salvação... Op. cit., p. 83
299
Cf. BINGEMER, M. C. L. Encontro com o Deus de Jesus Cristo (Trindade). In: Iniciação
Teológica. Rio de Janeiro: Edição Experimental, 2006. p. 24.
300
MOLTMANN, J. Op. cit., p. 55.
109
Espírito de Jesus um “dom sem medida(Jo 3, 34).
301
Além disso, é a presença
do Espírito no agir de Jesus que caracteriza este agir como “agir salvífico”, ou
seja, como agir que transmite a homens e mulheres vida e salvação pura e
simplesmente. Finalmente, podemos afirmar como o faz Luiz Fernando Santana:
“Jesus, na qualidade de ungido do Senhor, é o ‘pneumatóforo’ messiânico dos
últimos tempos, o qual plenifica todas as promessas da efusão do Espírito
reservada para os tempos escatológicos (cf. Is 32, 15-20; 44 3-5; 59 21).”
302
O que a ação do Espírito de Deus provoca em Jesus quando o
inabita
A seguir veremos o que a presença contínua e amorosa do Espírito Santo que
acompanha, conduz, envolve e inabita Jesus de Nazaré provoca em sua pessoa.
2.3.3.1.
Jesus proclama o “Reino de Deus”
O que é o Reino de Deus? Segundo Schillebeeckx ele é a causa de Deus enquanto
causa do homem[...] É o amor universal de Deus manifestado aos homens na vida
prática de Jesus[...] É a ação de Deus no mundo manifestando-se contra todas as
formas de mal[...] É seu triunfo sobre o mal que “já” está acontecendo na história,
porém “ainda não” em plenitude.
303
O que é o Reino de Deus para Jesus? Observando a vida do Homem de Nazaré
percebemos que para ele uma vinculação inseparável Abbá-Reino. Esta
vinculação “constitui toda a chave daquilo que parece Jesus pessoalmente vivia,
constitui todo o horizonte daquilo que Jesus quis pregar, e constitui todo o sentido
do discipulado que, para Jesus, parece não ser mais do que uma introdução a esta
experiência.”
304
Portanto, Abbá-Reino é a chave da pregação, da práxis e da
proposta de seguimento de Jesus, pois sem o Reino de Deus, que é Abbá, não é
possível compreender este homem.
301
Cf. Ibid. p. 68.
302
SANTANA, L. F. R. Op. cit., p.54. Grifo nosso.
303
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jésus. La historia de un viviente. Madrid, 1983. pp. 134, 140-141,
161-162. Para aprofundar o significado de “Reino de Deus” na pregação e práxis de Jesus
consultar GNILKA, Joachim. Jesus de Nazaré: mensagem e história. Petrópolis: Vozes, 2000. pp.
83-146.
304
GONZALES FAUS, J. I. Acesso a Jesus: ensaio de teologia narrativa. São Paulo: Loyola, 1981.
p. 36.
110
“Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galiléia proclamando o Evangelho
de Deus: Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e
crede no Evangelho’. ” (Mc 1, 14-15)
Depois da prisão de João, Jesus inicia sua atividade autônoma na Galiléia fazendo
ouvir sua pregação que é feita no Espírito. É digno de destaque lembrar que o
próprio Jesus não faz do Espírito um tema de sua pregação. No entanto,
“tradições pós-pascais antigas descrevem sua mensagem acerca do senhorio
próximo de Deus e suas ações poderosas como operadas pelo Espírito; e mais:
descrevem sua vida toda, desde a concepção até a ressurreição, como existência a
partir do Espírito.”
305
Toda a pregação do Nazareno encontra-se centrada no
anúncio da chegada iminente do Reino de Deus que tem como principais
destinatários os “pobres”. Jesus quando se referia aos “pobres” estava falando de
pobres no sentido amplo do termo, a saber, todos marginalizados/as e
desprezados/as pela sociedade e que Deus quer tomar a seu cuidado. Segundo
Jesus, o Reino é para eles, não por terem títulos ou qualidades especiais que os
recomende junto a Deus, mas porque Deus é ‘justo’, isto é, liberta e salva os que
estão precisando. Este anúncio de Jesus de que o Reino de Deus é dos pobres é
uma declaração de que os esquecidos/as e vilipendiados/as pela sociedade podem
contar com o amor gratuito e salvador de Deus.
Como podemos ver este anúncio
inaugural de Jesus resume a esperança que percorre toda a história bíblica, desde o
Êxodo até os profetas do Exílio.
306
Através desta pregação do Reino compreende-
se que ele é dom do amor de Deus (cf. Lc 12, 32), é graça oferecida, é presente
dado gratuitamente, é soberania divina que se aproxima do ser humano através de
Jesus Cristo.
Portanto, podemos afirmar que o Reino de Deus é Jesus em pessoa,
e quem faz de Jesus o Reino em pessoa é o Espírito de Deus.
307
Logo, o Reinado
de Deus não está mais distante, pois, com Jesus, que vive pleno do Espírito, ele
irrompe na história.
O Reino de Deus anunciado por Jesus de Nazaré, na presença constante do
Espírito revela um Deus
305
HILBERATH, B. J. In: SCHENEIDER, T. Op. cit., p. 420.
306
Cf. FABRIS, R. Jesus de Nazaré. História e Interpretação. Op. cit., p.113.
307
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 68.
111
muito desconcertante para o status quo religioso que predominava na Palestina
da primeira metade do séc. I. Certamente, o Deus revelado na pregação e nas
atitudes de Jesus não é um Deus opressor, ciumento das realizações humanas, juiz
implacável, defensor do moralismo superficial, estéril e hipócrita apresentado
pela sociedade bem-pensante da época; não é um Deus que mantém relações
comercializadas com o ser humano, e tampouco é um Deus ‘quebra-galho’ ou
‘tapa-buraco’ a manter o ser humano no infantilismo e na passividade alienada;
não é um Deus ‘primeiro motor’ do universo ou um Deus impassível e distante do
sofrimento, da alegria, do prazer e da angústia humanas...
Jesus nos revela com sua palavra e com seu comportamento e atitudes um Deus
de misericórdia, um Deus que nos ama com ternura de Pai (e de Mãe, por que
não?), um Deus pronto para o perdão e a reconciliação, um Deus que quer
sempre o nosso bem, pronto sempre a nos ajudar para consegui-lo, um Deus que
nos capacita para sair do infantilismo e da irresponsabilidade para uma vida que
possamos ser e viver livremente, como bem entendeu S. Paulo (cf. Gl 5, 1.13) ou
na expressão tão rica de conteúdo de 1 Jo 4,8, um Deus que é Ágape (amor
gratuito). O Deus revelado por Jesus Cristo (cf. Jo 1,18) não sobrecarrega o ser
humano de normas e leis. Para esse Deus apenas importa o amor-serviço que é,
na realidade, o único mandamento (cf. Jo 13,34; Rm 13,8-10). Um Deus que não
pode ser comprado com presentes, promessas, virtudes, trabalhos pastorais
diversos etc. E como poderíamos comprar o Amor, dado que Deus é Amor?”
308
Jesus revela Deus, desta forma tão inusitada para os padrões religiosos de seu
tempo, porque a experiência que faz deste Deus, Pai-Mãe de ternura e bondade, é
feita no Espírito, que o inabita e possibilita-lhe esta compreensão.
Outro aspecto fundamental no anúncio do Reino de Deus feito por Jesus no
Espírito refere-se à mudança de vida (“arrependei-vos e crede no Evangelho” tem
um sentido de metanóia radical) que o Reino suscita no ser humano. Logo, a ação
de Deus através de seu Espírito orientada para a salvação dos homens e mulheres
encontra-se em profunda relação com a ortopráxis (prática de acordo com o Reino
de Deus).
309
Nas palavras de Schillebeeckx: A solicitude do homem por seu
semelhante é a forma visível em que se manifesta a vinda do Reino de Deus.”
310
ou ainda “o amor a Deus, demonstrado no amor ao homem, em ‘servir’, é o sinal
que permite reconhecer a irrupção da soberania de Deus neste mundo e em nossa
história.”
311
Podemos resumir a pregação de Jesus sobre o Reino de Deus inspirada pelo
Espírito, e sua práxis vivida sob a ação deste mesmo Espírito, em três elementos
básicos sobre o Reino: a) ele é graça de Deus; b) ele exige do ser humano uma
conduta em consonância com a prática de Jesus (“arrependei-vos”); c) nele não
308
GARCÍA RUBIO, A. Elementos de Antropologia Teológica... Op. cit., pp. 79-80. Grifo nosso.
309
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jésus. La história de... Op. cit., p. 137, 140, 151.
310
Ibid., p.140.
311
Ibid., p.151.
112
existe direito a retribuição (“crede na Boa Nova”, a saber, Deus a salvação a
todos/as de graça. O reino de Deus é gratuidade).
312
2.3.3.2.
Jesus expulsa demônios
O que significa realmente “expulsar demônios”? No Dicionário de Espiritualidade
é afirmado que o primordial nos relatos do Segundo Testamento sobre esta prática
de Jesus é que ele:
vence o poder do mal; a concepção materialista de tal poder, que se manifesta na
ação de espíritos malignos pessoais, é secundária, embora pareça defendida pelos
textos interpretados no contexto da revelação bíblica total [...] a missão de Jesus
se relaciona com a cura de toda a pessoa no corpo, na mente, na psique e no
espírito. Jesus realiza os exorcismos curando as enfermidades de todo tipo, bem
como a pecaminosidade e a ignorância humanas. [...] Jesus compreendeu que
nunca basta limitar-se a exorcizar o diabo. Ensinou que é preciso substituir o
poder demoníaco por um poder de fazer o bem e por uma iluminação interior do
indivíduo; do contrário, a condição posterior deste pode ser ainda pior do que a
primeira (Mt 12, 43-45). Portanto, o exorcismo é apenas o primeiro passo do
processo de cura; o espírito mau é lançado para fora a fim de ser substituído
pelo Espírito Santo”.
313
A partir desta colocação de John Navone podemos afirmar que a expulsão de
demônios não está ligada a ritos mágicos pretensamente feitos por Jesus, mas
que significa na realidade a expulsão dos espíritos impuros, das forças que
influenciam o mau comportamento e o desvio da conduta das pessoas. Logo, um
mau espírito pode ser uma convicção interna que a pessoa teimosamente cultiva,
que lhe traz problemas e ainda prejudica os outros. Mais ainda, este mau espírito
que habita a pessoa precisa ser lançado fora para que seja substituído pelo
Espírito de Deus. Além disso, nos esclarece Isidoro Mazzarolo:
Jesus não é exorcista; Jesus é senhor sobre o demônio, sobre satã, sobre os
espíritos impuros e sobre os seus príncipes. Esta superioridade de Jesus não é
demonstração de força, mas de objetivos. Enquanto os demônios estão divididos
ou unidos entre si para dominar e para destruir, Jesus está com o Pai e com o
Espírito para libertar, para restaurar e conduzir”.
314
312
Cf. Ibid., p.152.
313
NAVONE, J. Verbete “Diabo/Exorcismo”. In: DE FIORES, Stefano e GOFFI, Tullo (org).
Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulus, 1993. p. 274. Para aprofundar o tema do
exorcismo, consultar ainda GNILKA, J. Jesus de Nazaré... Op. cit., p. 119.
314
MAZZAROLO, I. Lucas: a antropologia da salvação... Op. cit., p.172. Grifo nosso.
113
Portanto, é a partir desta compreensão que iremos enfocar Jesus, o homem pleno
do Espírito, expulsando os espíritos impuros que impedem o ser humano de ser
inabitado pelo Espírito de Deus.
Ele expulsava um demônio que era mudo. Ora, quando o demônio saiu, o mudo
falou e as multidões ficaram admiradas. Alguns entre eles, porém, disseram: ‘É
por Beelzebu, o príncipe dos demônios, que ele expulsa os demônios’. Outros,
para pô-lo à prova, pediam-lhe um sinal vindo do céu. Ele, porém, conhecendo-
lhes os pensamentos, disse: ‘Todo reino dividido contra si mesmo acaba em
ruínas, e uma casa cai sobre outra. Ora até mesmo Satanás, se tiver dividido
contra si mesmo, como subsistirá seu reinado?... Vós dizeis que é por Beelzebu
que eu expulso os demônios; ora se é por Beelzebu que eu expulso os demônios,
por quem os expulsam vossos filhos? Assim, eles mesmos serão vossos juízes.
Contudo, se eu expulso os demônios pelo dedo de Deus, sem dúvida o Reino de
Deus chegou a vós. Quando um homem forte e bem armado guarda sua moradia,
seus bens ficarão a seguro; todavia, se um mais forte o assalta e vence, tira-lhe a
armadura, na qual confiava, e distribui seus despojos’ .” (Lc 11, 14-22)
À luz dos evangelhos, depois de Jesus vencer a tentação no deserto, tem-se a
impressão que um avanço irresistível da luz que põe em debandada a frente
demoníaca das trevas.
315
Assim sendo, a expulsão do poder do mal faz parte
integrante da chegada da Boa Nova. É no Espírito, isto é, pelo dedo de Deus que
Jesus liberta suas vítimas do poder do mal (v.20). Fazer isto, antes de revelar a
divindade de Jesus, visa mostrar que o Reino está presente e fermentando
dentro do velho mundo. “Ninguém pode entrar na casa do forte e saqueá-la se
primeiro não amarra o forte” (Mc 3,27). Desse modo, é no Espírito que Jesus é
aquele mais forte que vence o forte e os demônios impuros cedem lugar ao
Espírito de Deus. (Mt 12,28).
316
Além disso, podemos perceber que a
interpretação hostil e falsa que os opositores de Jesus fazem de seu poder sobre o
Mal e o Maligno acaba confirmando que ele tinha e agia pelo Espírito de Deus.
317
2.3.3.3.
Jesus ensina com autoridade
Jesus vai à sinagoga de Cafarnaum não para cumprir o preceito sabático, mas sim
com a intenção de ensinar. Ensinar constitui-se a meta prioritária do Mestre de
315
Cf. CANTALAMESSA, R. Op. cit., p. 21.
316
BOFF, L. Jesus Cristo Libertador: ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo. Petrópolis:
Vozes, 1998. p. 42.
317
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p.37.
114
Nazaré neste momento que caracteriza a abertura de sua atividade missionária,
dentro do evangelho de Marcos. Ele ensina de tal forma que todos se admiram
diante da autoridade com que instrui.
318
“Entraram em Cafarnaum e, logo no sábado, foram à sinagoga. E ali ele ensinava.
Estavam espantados com o seu ensinamento, pois ele os ensinava como quem tem
autoridade e não como os escribas” (Mc 1, 21-22)
Esta autoridade com que Jesus ensina e age, leva-nos a questionar: onde ele
estudou? Onde adquiriu tais conhecimentos? Segundo Josef Blank o que se
expressa com estes versículos do evangelho de Marcos é a “autoridade” de Jesus
como sendo operada pelo Espírito. Essa afirmação não se trata de mera
“legitimação” que o evangelista Marcos deseja dar aos ensinamentos de Jesus,
mas tem como finalidade ressaltar que sua “competência” vem do Espírito e que
Jesus irá “irradiar” este mesmo Espírito em toda sua vida.
319
Portanto, a
autoridade e os ensinamentos excepcionais de Jesus, que causam espanto a todos,
vem de sua intimidade com o Espírito, este sim, o seu Mestre. Jesus não tem
necessidade de mestres especiais, mas tem princípios que o levam a uma
pedagogia da inclusão.
320
Segundo O. Spinetoli, o Espírito Santo é o pedagogo
de Jesus e dos cristãos.
321
Portanto, permitimo-nos acrescentar que estes
princípios de sabedoria, justiça, inclusão e de gratuidade que caracterizam a
pedagogia de Jesus lhe são segredados pelo Espírito Santo de Deus que o inabita
em plenitude.
2.3.3.4.
Jesus leva a Boa-Nova aos “pobres”
Quem eram os “pobres” na sociedade judaica do tempo de Jesus? Já tocamos
nesse ponto anteriormente, entretanto, desejamos agora ampliar um pouco mais
esse conceito para que fique mais claro quem eram os “pobres” na perspectiva da
sociedade judaica contemporânea de Jesus. Embora “pobre” para esta sociedade,
não se refira exclusivamente aos economicamente despossuídos, certamente os
inclui. Vejamos agora quem são estes homens, mulheres e crianças. Eram pobres:
318
Cf. MAZZAROLO, I. Evangelho de Marcos... Op. cit., p. 65
319
Cf. BLANK, J. Verbete “Espírito Santo/Pneumatologia”. In: EICHER, P. Op. cit., p. 246.
320
MAZZAROLO, I. Evangelho de Marcos... Op. cit., pp. 65-66.
321
SPINETOLI, O. apud MAZZAROLO, I. Lucas em João... Op. cit., p. 206.
115
a) em primeiro lugar, os mendigos: os doentes e aleijados, que tinham recorrido à
mendicância porque não tinham possibilidade de ser empregados e não tinham
parentes que pudessem ou quisessem sustentá-los; b) as viúvas e os órfãos:
mulheres e crianças que não tinham quem as sustentassem, assim como não
tinham nenhum forma de ganhar a vida para seu sustento naquela sociedade.
Viviam de esmolas de comunidades piedosas e do tesouro do Templo; c) os
operários diaristas desqualificados que se encontravam freqüentemente
desempregados e dependiam da ajuda de outras pessoas; d) os camponeses que
trabalhavam a terra de outrem e que mal tinham como sobreviver; e) finalmente,
os escravos. Portanto, a palavra “pobre” na época de Jesus abrangia todos os
oprimidos/as pela sociedade, enfim, todos aqueles/as que dependiam da
misericórdia dos outros para sobreviver. Estes homens, mulheres e crianças eram
a avassaladora maioria da população na Palestina, a massa ou as multidões dos
evangelhos.
322
Lucas, o evangelista do Espírito Santo, como o chama com razão João
Crisóstomo, descreve-nos a visita que fez Jesus à sinagoga de Nazaré e a leitura
que ali fez da Palavra de Deus da seguinte forma:
“Ele foi a Nazara, onde fora criado, e, segundo seu costume, entrou em dia de
sábado na sinagoga e levantou-se para fazer a leitura. Foi-lhe entregue o livro do
profeta Isaías; desenrolou-o, encontrando o lugar onde está escrito: ‘O Espírito do
Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os
pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a
recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar
um ano de graça do Senhor’. Enrolou o livro, entregou-o ao servente e sentou-se.
Todos da sinagoga olhavam-no atentos. Então começou a dizer-lhes: ‘Hoje se
cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura’. Todos testemunhavam
a seu respeito, e admiravam-se das palavras cheias de graça que saíam de sua
boca.” (Lc 4, 16-22a).
“Nestas palavras de Jesus manifesta-se a sua consciência de realizar, pela sua
pregação, as profecias, e de anunciar a vinda do Reino de Deus. Jesus traz a boa-
nova dos últimos tempos tão longamente esperados”.
323
Neste momento o
Espírito consagra Jesus com sua unção para que ele leve a Boa-Nova aos pobres,
liberte os presos, recupere a visão dos cegos, restitua a liberdade aos oprimidos e
proclame um ano de graça do Senhor (vv. 18-19). Esta unção a Jesus
322
Cf. NOLAN, A. Jesus antes do cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1987. pp. 40-42; 47.
323
GROSSOUW, W. Verbete “Evangelho”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 513.
116
autonomia e liberdade que jamais poderia receber das autoridades do Templo
para dizer as palavras ditas neste momento. Somente o Espírito de Deus pode
conferir a Jesus a autonomia da vontade do Pai, de forma a que ele possa realizar
as obras do Pai e não aquelas que as autoridades do Templo desejam.
324
Segundo
Spineloti, Conzelmann, Fabris, Maggioni e Manicardi citados por Lina Boff em
seu livro “Espírito e Missão na obra de Lucas”:
A unção de Jesus com o Espírito Santo está relacionada diretamente com os
pobres. Para estes, Jesus vem anunciar-lhes a libertação do rebaixamento a que
são submetidos, resgatar-lhes a dignidade de pobres e realizar a antiga promessa
dos patriarcas e profetas de devolver-lhes a esperança e a alegria que sempre
buscaram.”
325
A Boa-Nova trazida por Jesus sob a inspiração do Espírito significa que Deus
entrou na história para nos revelar que todos/as têm salvação. Esta boa notícia
chega com mais força e traz mais alegrias àqueles/as que se julgam
impossibilitados/as de recebê-la, a saber, os pobres, todos/as marginalizados/as e
espoliados/as da sociedade.
2.3.3.5.
Jesus proclama que o Pai revela o Reino aos “pequeninos”
Quem são estes “pequeninos” a quem o Pai revela o Reino? Na expressão de
Alfonso García Rubio são homens e mulheres do povo: camponeses e
camponesas, pescadores etc. São pessoas que não têm títulos honoríficos para
apresentar a Deus, nem posição social, nem estudos especiais, nem poder de
qualquer tipo”.
326
Na pessoa de Jesus o Espírito de Deus encontra sua morada estável e com ele
entra em plena relação pessoal. É sob a ação deste Espírito que exultando de
alegria Jesus diz:
‘Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos
sábios e entendidos, e a revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do
teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece quem é o
324
MAZZAROLO, I. Lucas: a antropologia da salvação... Op. cit., p. 84.
325
SPINELOTI, CONZELMANN, FABRIS, MAGGIONI e MANICARDI apud BOFF, Lina. Op.
cit., p. 28.
326
GARCÍA RUBIO, A. O encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p. 42-43
117
Filho senão o Pai, e quem é o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser
revelar.” (Lc 10, 21-22)
Aqui se faz necessário esclarecer o porquê dos sábios e entendidos não captarem a
revelação do Reino de Deus trazida por Jesus. Seguindo ainda a reflexão de
Alfonso García Rubio ele nos elucida esse ponto dizendo que:
“Os letrados orgulhosos e os poderosos em geral (os sábios e entendidos), que
usam de seu poder para dominar e desprezar os outros, não estão em condições de
captar a maravilhosa e libertadora realidade do Reino. Este é oferecido àqueles
que o recebem como dom, àqueles que não exigem pagamento por suas supostas
virtudes ou títulos de merecimento.”
Portanto, os homens e mulheres orgulhosos de seu conhecimento e de sua posição
privilegiada na sociedade, aqueles/as que usam do poder que possuem para
dominar e desprezar os “pequeninos” não são capazes de captar exatamente o
significado do Reinado de Deus revelado por Jesus. Na realidade eles/as não
desejam e não aceitam um Reino de gratuidade, pois acreditam que o
alcançaram ou quem sabe, até o “compraram” com suas qualidades, virtudes e
práticas religiosas. Desta forma, estas pessoas o têm ouvidos para ouvir que o
Reino de Deus, anunciado por Jesus é dom do Amor, dado a todos/as que se
abrem à sua ação possibilitada pela inabitação do Espírito de Deus em cada ser
humano.
2.3.3.6
Jesus cura e perdoa.
O que significam as “curas” feitas por Jesus? Elas estão ligadas ao perdão dos
pecados, ou estas duas práticas de Jesus, perdão e cura, são coisas distintas?
Encontramos uma ótima síntese para nos responder a estas questões em Cécile
Turiot que nos diz:
“Cura no sentido próprio, designa a libertação de um mal físico, no sentido
figurado a de um mal moral, a mitigação de uma dor. Enquanto o homem
ocidental contemporâneo está habituado a distinguir claramente os dois registros,
a Escritura apresenta narrativa em que o sentido próprio e o figurado estão
enredados, onde os registros de doenças e do pecado se entrecruzam: não se
pode tratar do corpo humano adequadamente senão no encontro dos dois planos.
O conceito de cura não pode ser separado na noção da salvação nem da de
purificação (pureza/impureza). O pedido de salvação na boca de um paciente
118
pode também ser, de fato, tanto um pedido de cuidados orgânicos, quanto um
apelo a uma palavra do terapeuta.”
327
Outro esclarecimento importantíssimo sobre as curas feitas por Jesus encontramos
em Edward Schillebeeckx. Ele nos afirma que a doença no sentido mais amplo da
palavra significava, para a mentalidade judaica do tempo de Jesus, “estar debaixo
do poder do maligno”. Logo, a cura significava que o “poder de Deus” presente
em Jesus vencia o “poder do maligno” presente no doente.
328
A partir destes esclarecimentos sobre o que significa a cura na época de Jesus,
vejamos como este homem pleno do Espírito de Deus ou pleno do “poder de
Deus” pode curar e perdoar pecados:
“Entrando de novo em Cafarnaum, depois de alguns dias souberam que ele estava
em casa. E tantos foram os que se aglomeravam, que nem havia lugar à porta.
E anunciava-lhes a Palavra. Vieram trazer-lhe um paralítico, transportado por
quatro homens. E como não pudessem aproximar-se por causa da multidão,
abriram o teto à altura do lugar onde ele se encontrava e, tendo feito um buraco,
baixaram o leito em que jazia o paralítico. Jesus, vendo sua fé, disse ao paralítico:
‘Filho, teus pecados estão perdoados’. Ora, alguns dos escribas que estavam
sentados refletiam em seu coração: ‘Por que está falando assim? Ele blasfema!
Quem pode perdoar pecados a não ser Deus?’ Jesus imediatamente percebeu em
seu espírito o que pensavam em seu íntimo, e disse: ‘Por que pensais assim em
vossos corações? Que é mais fácil dizer ao paralítico: Os teus pecados estão
perdoados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda? Pois bem, para que
saibais que o Filho do Homem tem poder de perdoar pecados na terra, eu te
ordeno disse ele ao paralítico levanta-te, toma o teu leito e vai para tua
casa’. O paralítico levantou-se e, imediatamente, carregando o leito, saiu diante
de todos, de sorte que ficaram admirados e glorificaram a Deus, dizendo: ‘Nunca
vimos coisa igual!’.” (Mc 2, 1-12)
Os sinais que Jesus realiza, na força do Espírito, põem em xeque o mal e a morte.
É o Espírito que concede a Jesus o dom da cura. O acolhimento, o consolo e o
perdão trazidos por Jesus e que reintegram as pessoas, eliminam a somatização
dos problemas e produzem as curas.
329
A cura e o perdão oferecidos por Jesus,
mediante o Espírito, atingem a pessoa humana tanto em sua dimensão física como
espiritual. As múltiplas curas realizadas por Jesus provam sua grande compaixão
327
TURIOT, C. Verbete “Cura”. In: LACOSTE, J. Y. Op. cit., p. 502. Grifo Nosso. Para
aprofundar o significado das curas e milagres realizados por Jesus consultar GNILKA, J. Jesus de
Nazaré... Op. cit., pp. 111-131. Recomendamos ainda o excelente artigo de Ludovico Garmus
“Jesus Cristo, seus milagres e suas curas” In: MIRANDA, M. F. A pessoa e a Mensagem de Jesus.
São Paulo: Ed. Loyola, 2002. pp. 143-167.
328
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jésus. La história de un viviente... Op. cit., p. 167.
329
Cf. MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In:
TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p.46.
119
diante das misérias humanas, e visam libertar as pessoas desses males. Na
perspectiva de Jesus, as curas são também sinais da salvação espiritual, isto é, da
libertação do pecado (Mc 2,1-12). Desta forma, a ação de Jesus por visar o ser
humano em sua totalidade leva a este a cura física e a libertação espiritual. Há,
portanto, como dissemos anteriormente, uma estreita relação entre perdão e
cura que são ofertados por Jesus.
2.3.3.7.
Jesus acolhe as mulheres como suas discípulas e missionárias
Quem eram as mulheres na sociedade judaica do tempo de Jesus? Comentando
sobre este assunto Isidoro Mazzarolo nos esclarece que:
“Na época de Jesus os judeus resistiam à integração das mulheres na sociedade.
Na sinagoga elas tinham seu espaço separado, nos ambientes sociais se
mantinham afastadas, e na esfera familiar continuavam propriedade do marido
ou do pai. A mulher, na sociedade judaica, é sempre uma menor, ou seja, sem
direitos.
330
Apesar dessa dura realidade sexista, os evangelhos testemunham o jeito
libertador e sem preconceitos de Jesus olhar e se relacionar com as mulheres,
“atitude subversiva” que causa surpresa ainda hoje. Muitas pessoas continuam
duvidando da veracidade da afirmação de que as mulheres foram aceitas como
discípulas pelo Nazareno. Entretanto, os relatos evangélicos estão aí para
comprovar esta declaração.
“Depois disto, ele andava por cidades e povoados, pregando e anunciando a
Boa Nova do reino de Deus. Os Doze o acompanhavam, assim como algumas
mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e doenças: Maria,
chamada Madalena, da qual haviam saído sete demônios, Joana, mulher de
Cuza, o procurador de Herodes, Susana e várias outras, que o serviam com
seus bens”. (Lc 8, 1-3)
330
MAZZAROLO, I. Lucas em João: uma nova leitura dos evangelhos... Op. cit., p. 151. Grifo
nosso. Para aprofundar este tema, recomendamos que se consulte o capítulo dois do livro As
discípulas de Jesus” onde se reflete sobre a situação da mulher no Antigo Oriente Próximo, dando
espacial destaque para a situação da mulher em Israel. Ana Maria Tepedino neste livro aponta as
seis discriminações religiosas e legais que as mulheres sofriam em Israel, simplesmente por serem
mulheres. Estas discriminações nos esclarecem o porqdelas serem mantidas afastadas de tudo,
ficando confinadas ao espaço doméstico. TEPEDINO, A. M. As discípulas de Jesus. Petrópolis:
Ed. Vozes, 1990. pp.56-84; consultar ainda MAZZAROLO, I. Paulo de Tarso: Tópicos de
antropologia bíblica. Porto Alegre: Edições EST, 1997. pp.71-75; consultar igualmente GNILKA,
J. Jesus de Nazaré... Op. cit., p. 69.
120
Ana Maria Tepedino ao refletir sobre o movimento inclusivo de Jesus nos
afirma que alguns relatos bíblicos, apesar de terem sido:
“escritos em contexto patriarcal, não conseguem obscurecer o fato da presença
e atuação das mulheres no movimento de Jesus. O texto de Lc 8, 1-3 nos
introduz na realidade de que no movimento de Jesus não havia apenas os
‘doze’ homens, mas também mulheres.”
Além disto, “essa realidade da
presença das mulheres no movimento itinerante de Jesus aparece em todos os
evangelhos, que apontam para outro aspecto de seu movimento: suas casas são
lugar de reunião da comunidade cristã, como a casa de Marta, Maria e Lázaro
de Betânia (Jo 11, 1-42; 12, 1-8; Lc 12, 38-42)”.
331
É importante ainda percebermos que Lucas em seu evangelho “enfatiza a
experiência da diaconia da mulher antes de enfatizar o ministério apostólico dos
homens, coisa que somente é feita em Lc 9, 1-6. Estas mulheres discípulas eram
mulheres que haviam experienciado a graça da cura e da libertação de seus
males.
332
Lina Boff ao destacar a pneumatologia de Lucas que podemos
recolher em seu evangelho ressalta a importância da missão das mulheres como
sendo um dos traços da ação do Espírito Santo em Jesus.
333
Como podemos ver
Jesus tem um relacionamento com as mulheres diferente daquele encontrado no
judaísmo de seu tempo, a ponto delas desempenharem um papel importante no
seu ministério e de encontrarem-se lado a lado com os seus discípulos
homens.
334
Parece-nos que Jesus quer chamar a atenção para a situação de
marginalização em que estas vivem. O relacionamento igualitário de Jesus
busca restituir-lhes a verdadeira dignidade que possuem como filhas amadas de
Deus, com potencialidades para serem suas discípulas e missionárias.
335
Quem
possibilitou a Jesus este comportamento igualitário e inclusivo? Reportamo-nos
ao que nos disseram anteriormente Isidoro Mazzarolo e Spinetoli: a pedagogia
da inclusão, característica da práxis de Jesus provém de sua intimidade com o
331
TEPEDINO, A. M. Jesus e seu movimento inclusivo (Gl 3,28). In: MIRANDA, M. F. Op. cit.,
pp. 170-171.
332
Cf. MAZZAROLO, I. Lucas: a antropologia da salvação... Op. cit., p. 124. Resgatamos aqui o
sentido de “cura” que desenvolvemos anteriormente.
333
Cf. BOFF, Lina. Espírito e missão na obra de Lucas-Atos: para uma teologia do Espírito. São
Paulo: Paulinas, 1996. pp.54-57.
334
Cf. MAZZAROLO, I. Lucas: a antropologia da salvação... Op. cit., p. 125.
335
Cf. TEPEDINO, A. M. As discípulas de Jesus... Op. cit., p. 84
121
Espírito, que é seu pedagogo.
336
Portanto, incluir a mulher em seu discipulado
é obra do Espírito de Deus na pessoa do Nazareno.
Este relacionamento inusitado de Jesus com as mulheres pode ser percebido em
vários relatos evangélicos. Como o objetivo de nossa pesquisa não nos permite
desenvolver o tema do Discipulado das Mulheres que seguiam o Nazareno,
apresentamos a seguir uma breve síntese de uma pesquisa que fizemos sobre “O
papel das mulheres no Quarto Evangelho”. Podemos destacar entre os relatos
bíblicos que nos atestam o discipulado da mulher no movimento de Jesus: a) Jo 4,
1-42 que nos mostra Jesus revelando-se à mulher samaritana como Fonte de Vida
e como Messias, transformando-a em Missionária e Evangelizadora. Esta mulher,
em autêntica função missionária, convence uma cidade inteira pela força da sua
palavra; b) Jo 11, 1-31 que atesta Jesus revelando-se a Marta de Betânia como
Ressurreição e Vida, transformando-a em Profeta e Teóloga. É dos lábios desta
mulher que sai a profissão de fé, verdadeira síntese teológica, que a coloca ao lado
de Pedro; c) Mt 26, 6-13; Mc, 14, 3-9; Jo 12, 1-8 onde vemos Jesus se deixando
ungir por Maria de Betânia e elogiando-a por seu gesto amoroso e gratuito. Esta
mulher torna-se uma Discípula Amada que crê e ama, tendo com o seu gesto
profético reconhecido Jesus como o Messias esperado; d) Mt 28, 1-8; Mc 16, 1-8;
Lc 24 1-10; Jo 20, 1-18 nos declaram que Jesus aparece como Senhor
Ressuscitado pela primeira vez a Maria Madalena anunciando-lhe a estupenda
maravilha de sua Ressurreição. Ele estabelece esta mulher como a Testemunha da
primeira hora e sua Primeira Enviada a comunicar sua ressurreição. Portanto,
podemos dizer que esta mulher foi a Primeira Missionária da Boa Nova; e) Jo 2,
1-12 manifesta que em Caná da Galiléia Jesus aceita que Maria, sua Mãe seja a
Mediadora da , realizando, a partir da intervenção desta, seu primeiro sinal. Já
em Jo 19, 25-27 vemos Jesus entregando Maria como Mãe da comunidade de .
Aos pés da cruz faz desta mulher a Eminência de todos/as Discípulos/as
Amados/as e Mãe destes/as.
Como podemos constatar todas estas mulheres fazem uma experiência
transformadora através de seu relacionamento com o Nazareno. Assim como
estas que destacamos, tantas outras mulheres que se encontram retratadas nos
evangelhos e que não ressaltamos acima, fazem esta experiência transformadora.
336
Cf. MAZZAROLO, I. Evangelho de Marcos... Op. cit., pp. 65-66; Cf. SPINETOLI, O. apud
MAZZAROLO, I. Lucas em João: uma nova leitura dos evangelhos... Op. cit., p. 206.
122
Podemos ainda afirmar que muito provavelmente outras mulheres fazem
igualmente esta experiência, mulheres que não tiveram seus encontros com Jesus
narrados pelos evangelistas, mas que são acolhidas e resgatadas em sua dignidade
e valor por ele. Todas elas a partir do encontro com Jesus tornam-se humanas,
recuperadas e dignificadas, sendo capazes de descobrir suas potencialidades e
sabendo pô-las a serviço do Reino com alegria, esperança e paixão.
337
Diríamos
hoje que elas vivem um processo de humanização-salvação possibilitado pela
ação do Espírito de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré e, igualmente,
possibilitado pela ação deste mesmo Espírito em cada uma delas que pode se abrir
a esta ação amorosa de Deus.
Para sintetizar o significado da presença feminina ao lado de Jesus e de sua
acolhida amorosa unimos nossa voz à voz de Elizabeth Fiorenza que nos diz:
“Onde quer que o Evangelho venha a ser pregado, promulgado e lido, o que as
mulheres fizeram não ficará totalmente esquecido, porque a narrativa
evangélica recorda que o discipulado e a liderança das mulheres constituem
parte integrante da práxis ‘alternativa’ de Jesus de ágape e serviço. A ‘luz
brilha nas trevas’ da repressão e olvido patriarcais, e essas ‘trevas jamais a
venceram’ ” .
338
Portanto, é fundamental não deixar cair no esquecimento de nenhum dos
seguidores/as de Jesus, aquilo que se encontra atestado nos evangelhos: na
práxis libertadora do Nazareno, ele vive a pedagogia da inclusão através do
amor agápico e do amor serviço. Isto faz com que as mulheres possam
participar de seu grupo de discípulos/as, assim como exercer papéis de
liderança em seu movimento inclusivo e de serem missionárias do Reino por ele
vivido e pregado.
2.3.3.8.
Jesus resgata os “pecadores”
Quem são os “pecadores” no tempo de Jesus? Não são somente as pessoas de
conduta (prostitutas, assaltantes, usurários, jogadores...), mas também aquelas
pessoas que desconhecem a lei ou as que exercem profissões consideradas
337
Cf. TEPEDINO, A. M. As discípulas de Jesus... Op. cit., p. 124.
338
FIORENZA, E. S. As Origens Cristãs a partir da Mulher: uma nova hermenêutica. Tradução:
João Rezende Costa. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 382.
123
“impuras” do ponto de vista da lei judaica (açougueiros, cobradores de impostos,
pastores etc.).
339
A categoria de pecadores inclui também, os que não pagam o
dízimo aos sacerdotes, e os que são negligentes quanto à observância do repouso
sabático e da pureza ritual. Os analfabetos e os não instruídos são igualmente
pecadores, pois se encontram incapacitados de cumprir as leis e os costumes que
os fariam pessoas “virtuosas”. Todos eles são considerados “a ralé que não sabe
nada da lei” (Jo 7, 49). Portanto, os pecadores são os párias sociais.
340
“Todos os publicanos e pecadores aproximavam-se para ouvi-lo. Os fariseus e os
escribas, porém, murmuravam: ‘Este homem recebe os pecadores e come com
eles’ ”. (Lc 15,2)
“Aconteceu que, estando à mesa, em casa de Levi, muitos publicanos e pecadores
também estavam com Jesus e os seus discípulos - pois eram muitos os que o
seguiam. Os escribas dos fariseus, vendo-o comer com os pecadores e os
publicanos, diziam aos discípulos dele: ‘Quê? Ele come com os publicanos e
pecadores?”. (Mc, 2,15-16)
A maioria das pessoas de hoje, dificilmente, pode entender o escândalo que Jesus
provoca na sociedade de seu tempo ao misturar-se com os pecadores. “Sentar-se à
mesa com alguém” ou “partilhar refeição”, para a cultura judaica do tempo de
Jesus, significa que a pessoa está se associando a esta outra. Logo, partilhar
refeição é uma forma de amizade particularmente íntima. Portanto, com esta
atitude Jesus está aceitando o pecador e demonstrando que queria ser realmente
“amigo de publicanos e pecadores” (Mt 11,19). Esta aceitação e amizade causam
um efeito miraculoso sobre os pobres e oprimidos desta sociedade tão sectária e
preconceituosa.
341
De onde Jesus capta este comportamento tão excepcional e insólito para os
moldes religiosos de seu tempo? Para que ele possa viver e conviver
comprometido com estes homens e mulheres considerados pecadores/as, e ainda
marginalizados/as pela sociedade palestinense do século I, Jesus vivia em total
intimidade com o Pai no Espírito. No Espírito este homem experimenta que Deus
é uma experiência de amor, não um conceito doutrinário ou teológico. Deus é, em
339
Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p.43. Para conhecer a
situação espiritual, religiosa e social em Israel no tempo de Jesus recomendamos consultar
GNILKA, J. Jesus de Nazaré... Op. cit., pp. 49-70. Nestas páginas o autor faz uma boa síntese da
sociedade civil e religiosa de Israel na época de Jesus.
340
Cf. NOLAN, A. Jesus antes do cristianismo... Op. cit., p. 42.
341
Cf. Ibid. p.60.
124
Jesus, uma experiência afetiva e afetuosa. Esta experiência leva Jesus a perceber
que Deus ama a todos, sem exceção, irremediavelmente e apaixonadamente.
342
Portanto, é a partir desta vida no Espírito que Jesus pode acolher a prostituta, o
ladrão, a adúltera,... (cf. Mt 21, 31); comer com os publicanos (cf. Mt 9, 10- 13);
perdoar-lhes os pecados (cf. Lc 7,41-43; Mt 18, 23-25; Lc 15, 11-32...); hospedar-
se na casa de alguns deles e até convidar um para ser seu discípulo (cf. Mt 9,9).
Enfim, Jesus acolhe todos os excluídos/as, e numa postura altamente irreverente,
se deixa envolver, se apaixona, se compadece do povo sofrido e se compromete
com cada um e cada uma.
2.3.3.9.
Jesus ora e ensina a orar
Nos evangelhos existe um Jesus “íntimo” e quase oculto em suas entrelinhas. É o
Jesus que ora. Os trechos que apresentam Jesus em oração não passam de
pequenas frases, e, às vezes é muito fácil ir adiante sem dar-nos conta deste Jesus
orante.
343
Apesar disso, devemos perceber que os evangelhos revelam a
necessidade absoluta de oração que Jesus possui e o lugar que ela ocupa em sua
vida. Além disto, estaríamos errados se reduzíssemos essa oração a um simples
desejo que Jesus possui de intimidade e consolo com o Pai. A oração de Jesus diz
respeito à sua missão, à sua vida, às suas opções, à sua pregação, à sua prática, e
à educação dos discípulos.
344
Para adentrar no mistério da oração de Jesus recorremos ao evangelista Lucas,
pois é ele quem mais nos mostra Jesus orando. Iremos simplesmente recolher
deste evangelista as ocasiões em que Jesus se encontra em oração, pois não é
possível fazer uma exposição mais aprofundada da realidade misteriosa que foi
esta oração, coisa que escapa ao objetivo de nossa pesquisa.
Segundo o evangelista Lucas:
a) Jesus estava em oração quando recebeu o batismo:
“Ora, tendo o povo recebido o batismo, e no momento em que Jesus, também
batizado, achava-se em oração, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre ele
342
Cf. MOREIRA, G. L. Mística evangélica do compromisso com os pobres. In: Horizonte
Teológico. Belo Horizonte: O Lutador, 2003. pp. 83-84
343
Cf. CANTALAMESSA, R. Op. cit., p. 47
344
BEAUCHAMP, P. Verbete “Oração”. In: LACOSTE, J. Y. Op. cit., p. 681.
125
em forma corporal, como pomba. E do céu veio uma voz: ‘Tu és meu Filho; eu,
hoje, te gerei!’ ” (3, 21-22)
b) Jesus se retira para lugares isolados para entrar em diálogo com o Pai:
“A notícia a seu respeito, porém difundia-se cada vez mais, e acorriam numerosas
multidões para ouvi-lo e serem curadas de suas enfermidades. Ele, porém permanecia
retirado em lugares desertos e orava” (5, 15-16)
c) Jesus ora uma noite inteira antes da escolha dos doze:
“Naqueles dias, ele foi à montanha para orar e passou a noite inteira em oração
a Deus. Depois que amanheceu, chamou os discípulos e dentre eles escolheu os
doze aos quais deu o nome de apóstolos.” (6, 12-13)
d) Jesus sobe o monte para “orar” e “enquanto ora” o seu rosto muda de aspecto e
se transfigura:
“Mais ou menos oito dias depois dessas palavras, tomando consigo a Pedro, João
e Tiago, ele subiu à montanha para orar. Enquanto orava, o aspecto de seu rosto
se alterou, suas vestes tornaram-se de fulgurante brancura.” (9, 28-29)
e) Certo dia, Jesus orava; ao vê-lo orar os discípulos que estão em torno dele
descobrem, pela primeira vez, o que é oração, dão-se conta que eles na realidade
nunca rezaram, pedem a Jesus que os ensine a rezar. Nasce assim o Pai-Nosso
que é como que um eco vivo da oração de Jesus transmitido aos discípulos.
345
“Estando em certo lugar, orando, ao terminar, um de seus discípulos pediu-lhe:
‘Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou a seus discípulos. ’ ” (11,1)
f) A última cena no evangelho de Lucas em que Jesus reza é a do Getsêmani:
“E afastou-se deles mais ou menos a um tiro de pedra, e, dobrando os joelhos,
orava.” (22, 41).
Enfim, é o Espírito Santo que suscita no coração de Jesus a palavra Abbá (querido
paizinho) para se dirigir a Deus, é este mesmo Espírito que provoca sua oração de
345
Para aprofundar a beleza e o rico conteúdo desta oração que nos foi ensinada por Jesus,
consultar CASTRO, S. Verbete “Pai-Nosso”. In: DE FIORES, S. e GOFFI, T. Op. cit., pp. 879-
889. Nestas páginas o autor analise detalhadamente cada uma das invocações e dos pedidos que
compõem esta oração.
126
louvor, de exultação, de agradecimento, de angústia, de tristeza, e de suprema
oferenda da vida.
346
Edward Schillebeeckx ao tratar da oração de Jesus que
invoca a Deus como Abbá nos diz:
“A forma como Jesus ora ao Pai reflete um modo de falar sobre Deus que deixa
surpresos seus ouvintes, a tal ponto que, inclusive, em alguns casos chega a ser
escandaloso. O fato de que Jesus invoca a Deus como Abba não o distancia do
judaísmo tardio; mas esta invocação (expressão de uma peculiar experiência
religiosa) começa agora a suscitar questões teológicas, por estar unida à
mensagem, à atividade e à práxis de Jesus.”
347
Portanto, Jesus não faz a experiência no Espírito de que Deus é Paizinho. Mas,
também age, no mesmo Espírito, de acordo com aquilo que experimenta em sua
oração. E, é exatamente isto o que incomoda ao status quo religioso de seu
tempo. Dito de outra forma, a oração de Jesus está intimamente vinculada aos
acontecimentos de sua vida e sua vida é o reflexo de sua oração. Mística (oração)
e prática concreta (ação) encontram-se articuladas na vida do Nazareno, uma
alimentando a outra, sem dualismos mutiladores. Portanto, não encontramos na
oração de Jesus qualquer forma de alienação ou fuga, pois a oração feita por ele
fecunda sua vida, e esta por sua vez, está aberta diretamente à oração que faz.
348
“Uma característica básica da vida de Jesus é transitar da montanha para a
planície, ou seja, dos infernos da vida’ para a intimidade com Deus. Jesus se
preocupava em dedicar tempo à comunhão com Deus. E conciliava militância
com momentos de oração. Militância e oração: uma alimenta a outra. Para Jesus,
ação não é oração – Ele pára para orar.”
349
É de fundamental importância para a realidade que vivemos nos dias de hoje
perceber esta espiritualidade integrada na vida de Jesus de Nazaré, onde oração e
ação se retroalimentam.
2.3.3.10.
Jesus denuncia todo tipo de injustiça
Os judeus contemporâneos de Jesus não faziam distinção entre política e religião.
Questões que nós hoje classificaríamos como políticas, sociais, econômicas ou
346
Cf. CANTALAMESSA, R. Op. cit., pp.49-50.
347
SCHILLEBEECKX, E. Jésus. La história de un viviente... Op. cit., p. 242.
348
Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p. 87.
349
MOREIRA, G. L. Op. cit., p.83.
127
religiosas, seriam todas elas consideradas por eles em termos de Deus e sua Lei.
Um problema secular teria sido inconcebível naquela sociedade teocrática, e isto
pode ser constatado no Primeiro Testamento. Nesta perspectiva o
relacionamento de Israel com Roma é uma questão político-religiosa e Jesus,
como homem de seu tempo, não difere desta visão. Ele quer que Israel seja
libertado sim. Porém, pretende cumprir essa expectativa político-religiosa, não do
modo como os seus contemporâneo/as esperavam, e certamente não do modo
como os zelotas tentavam cumpri-la. Jesus deseja libertar Israel de Roma,
persuadindo Israel a mudar, pois pleno do Espírito, enxerga aquilo que alguns
homens cheios do Espírito (os profetas) conseguiram enxergar: havia mais
opressão e exploração dentro do judaísmo do que fora dele. Sem mudança de
mentalidade no interior do próprio Israel, a libertação seria impossível. Jesus quer
um mundo qualitativamente diferente: o Reino de Deus. Ele não aceita a simples
troca de um reino mundano por outro, pois isso não seria libertação nenhuma. Seu
desejo, portanto, é transformar Israel, de modo que Israel possa apresentar aos
romanos um exemplo vivo dos valores e ideais do Reino.
350
Para que tal
transformação aconteça, Jesus denuncia toda forma de injustiça, o que não o faz
um revolucionário social e político como hoje o entendemos.
351
Entretanto,
podemos afirmar que ele é um homem comprometido social, econômica, religiosa
e politicamente diante da realidade de seu tempo (Mc 7, 2-13; Mt 12,9-14; Mt
23,1-36...). Assim age porque seria impossível viver a novidade do Reino sem seu
comprometimento solidário com o sofrimento dos seres humanos concretos que
estão a sua volta e sem denunciar as estruturas desumanizantes de sua sociedade.
“Jesus então dirigiu-se às multidões e aos discípulos: ‘Os escribas e fariseus estão
sentados na cátedra de Moisés. Portanto, fazei e observai tudo quanto vos
disseram. Mas não imitais suas ações, pois dizem mas não fazem. Amarram
fardos pesados e os põem sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos nem
com um dedo de dispõem a movê-los. Praticam todas as suas ações com o fim de
serem vistos pelos homens. Com efeito usam largos filatérios e longas franjas.
Gostam do lugar de honra nos banquetes, dos primeiros assentos nas sinagogas,
de receber saudações nas praças públicas e de que os homens lhes chamem de
Rabi. (Mt 23, 1-7)
350
Cf. NOLAN, A. Op. cit., pp. 136-142.
351
Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p. 92.
128
Todo o capítulo 23 de Mateus mostra a ruptura de Jesus com os fariseus, os
escribas e as autoridades do Templo. Apresenta-nos ainda o Nazareno fazendo
uma catequese e algumas exortações aos seus discípulos e à multidão.
352
Entendemos que a citação bíblica (Mt 23) ficaria muito extensa se a colocássemos
por inteiro. Por isso, optamos por apresentar a seguir uma síntese dos “sete
anátemas contra os escribas e fariseus” onde vemos Jesus “colocando o dedo” na
ferida desta sociedade. Seguindo a reflexão de Isidoro Mazzarolo estes são os sete
anátemas pronunciados por Jesus:
“1° Ai dos que fecham as portas. Eles não entram e fecham aos outros o acesso
ao Reino. [...] 2° Ai dos que fabricam prosélitos à sua imagem e semelhança, mas
estes também não conseguem entrar no Reino, pois é duas vezes pior que eles.
[...] Ai dos cegos que conduzem cegos. [...] Ai dos que pagam dízimo, mas
omitem a justiça, a misericórdia e a fidelidade. [...] Ai dos que limpam o prato
e o copo por fora, mas por dentro estão cheios de rapina. [...] Ai daqueles
que são sepulcros caiados com defuntos dentro. [...] Ai dos que edificam
túmulos aos defuntos e matam os vivos”.
353
Com estes sete anátemas o Nazareno está indicando com radicalidade e
profundidade a raiz da podridão social e religiosa daquela sociedade. Jesus deixa
claro a corrupção, a hipocrisia, a falsidade, o legalismo, a ganância, o crime
organizado, o rigorismo escravizante, o fanatismo, o sectarismo e a mentira destes
grupos dominantes, denunciando-os e desmascarando-os.
354
É fundamental
lembrarmos que todo este comportamento de Jesus é fruto de sua íntima relação
com o Pai feita no Espírito.
2.3.3.11.
Jesus promete o Paráclito
A promessa do Paráclito é uma característica própria da pneumatologia joanina,
355
pois “a ausência física de Jesus leva João a uma reflexão bem original sobre o
Espírito”.
356
Por esta razão deixaremos para analisá-la com mais profundidade no
próximo capítulo, quando trataremos da teologia do Espírito em João. Entretanto,
352
Cf. MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus... Op. cit., p. 323.
353
MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus... Op. cit., pp. 327-331.
354
Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p. 73.
355
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p. 77.
356
KONINGS, J. Evangelho Segundo João: amor e fidelidade. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo:
Sinodal, 2000. p. 317.
129
apresentaremos a seguir uma breve síntese da promessa feita por Jesus de não
deixar abandonados os seus/as. Podemos encontrar esta promessa em cinco
sentenças que se encontram dentro do discurso de despedida de Jesus. Nestas
sentenças Jesus esclarece:
1- Como será a situação dos discípulos/as no tempo de sua ausência. Eles/as
precisarão de um outro protetor, um outro defensor, pois diante do confronto com
o mundo precisarão saber a Verdade de Deus e precisarão igualmente falar a
verdade, dando o testemunho certo (cf. Mc 13,13). Por isso, Jesus roga ao Pai que
lhes dê o Espírito da Verdade.
357
“e rogarei ao Pai e ele vos dará um outro Paráclito, para que convosco
permaneça para sempre, o Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher,
porque não o nem o conhece. Vós o conheceis, porque permanece convosco.”
(14, 16-17)
2- O Espírito Santo que o Pai enviará em nome de Jesus é sua memória viva, pois
ensinará tudo e recordará tudo o que ele mesmo disse e ensinou quando
caminhavam juntos em sua vida terrena.
358
“Mas o Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ensinar-vos-
á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito.” (14,26)
3- O Paráclito não vem somente do Pai a pedido de Jesus, mas ele mesmo o envia
da parte do Pai.
359
“Quando vier o Paráclito, que vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade,
o qual procede do Pai, dará testemunho de mim. Também vós dareis testemunho,
porque estais comigo desde o princípio.” (15,26-27)
4- O Paráclito mostrará que Jesus tem razão e que aqueles/as que o rejeitaram se
condenam a si mesmos/as. Desta forma o chefe deste mundo já está condenado.
360
“No entanto, eu vos digo a verdade: é de vosso interesse que eu parta, pois se não
for, o Paráclito não virá a vós. Mas, se for, enviá-lo-ei a vós. E quando ele vier,
estabelecerá a culpabilidade do mundo a respeito do pecado, da justiça e do
julgamento: do pecado, porque não crêem em mim; da justiça, porque vou para o
357
Cf. Ibid.
358
Cf. Ibid.
359
Cf. Ibid.
360
Cf. Ibid.
130
Pai e não mais me vereis; do julgamento, porque o Príncipe deste mundo está
julgado.” (16,7-11)
5- A Verdade plena, que é o Espírito, guiará os discípulos de Jesus, é a própria
Verdade de Jesus, pois o Espírito atualiza o papel do Nazareno em sua ausência.
O Espírito fará os seguidores/as de Jesus conhecê-lo em todos os tempos, pois se
Jesus estivesse presente no meio de nós diria as mesmas coisas que diz o
Paráclito.
361
“Tenho ainda muito a vos dizer, mas não podeis agora suportar. Quando vier o
Espírito da Verdade, ele vos guiará na verdade plena, pois não falará de si
mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas futuras. Ele
me glorificará porque receberá do que é meu e vos anunciará. Tudo o que o Pai
tem é meu. Por isso vos disse: ele receberá do que é meu e nos anunciará.”
(16,12-15)
A partir desses ditos sobre o Paráclito podemos afirmar que Jesus não nos deixa
órfãos, pois pede ao Pai que nos mande um outro Paráclito, que permanecerá
conosco para sempre (14,14-18.26), que nos defenderá nos tribunais (15,26) e no
grande julgamento da história (16,7-8).
362
Isidoro Mazzarolo comentando sobre a
função do Espírito/Paráclito nos diz que:
“A apresentação do Espírito e sua função junto aos discípulos e ao mundo
revelam a missão da Trindade. uma integração das pessoas e, de forma
análoga, uma sintonia na missão. O Espírito cumpre a missão do Filho que
também cumpre a missão incumbida a ele pelo Pai (5,19-29).”
363
2.3.3.12.
Jesus ama até as últimas conseqüências entregando-se à morte
A morte de Jesus tem íntima conexão com sua vida, seu anúncio do Reinado de
Deus e suas práticas libertadoras. As exigências de conversão, a nova imagem de
Deus revelada por ele, sua liberdade diante das sagradas tradições, e sua crítica
profética aos detentores do poder político, econômico e religioso provocam um
conflito do qual resulta sua morte violenta. Podemos ainda garantir que Jesus não
provoca sua morte. Esta lhe é imposta por uma conjuntura histórica e ele não a
361
Cf. Ibid. pp. 137-138.
362
Cf. Cf. MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia.
In: TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 37.
363
MAZZAROLO, I. Nem aqui, nem em Jerusalém... Op. cit., p. 173.
131
aceita resignadamente. Apesar disso, Jesus não compactua com os poderosos para
poder sobreviver, mas permanece fiel à sua missão de anunciar a Boa-Nova do
Reino de Deus e permanece igualmente fiel aos bem-aventurados deste Reino até
a morte, amando os seus/as até o fim (Jo 13, 1).
364
A entrega de sua vida é
expressão de seu amor, de sua liberdade e de sua fidelidade à causa do Reino de
Deus e ao Deus deste Reino. Portanto, sua morte é expressão de seu amor à causa
do ser humano, visto que esta causa é em síntese a causa do Reino, como nos
alerta Edward Schillebeeckx.
365
“Embora o Espírito encha Jesus com as forças vitais de Deus, pelas quais os
enfermos são curados, ele não faz de Jesus nenhum super-homem, mas toma parte
em seus sofrimentos até a morte de cruz.”
366
O Espírito por sua Shekinah se liga
ao destino de Jesus em toda sua vida, como vimos até agora, e se une inclusive à
sua morte, fazendo isso sem identificar-se com ele. Desta forma o Espírito de
Deus passa a ser o Espírito da paixão e o Espírito do crucificado. Nesse processo
de entrega Cristo é conduzido e determinado pelo Espírito eterno. Entretanto, é
bom deixar bem claro que Jesus não é propriedade do Espírito. O que o Espírito
faz é dar sua força para que Jesus se disponha a entregar sua vida e, além disto,
lhe sustentação a esta entrega.
367
“Na paixão e morte de Cristo, quem esteve
verdadeiramente ativo não foram os romanos, nem também a morte, mas sim o
próprio Cristo pela força do Espírito de Deus que atua nele. Na ‘teologia da
entrega’, Cristo, pelo Espírito de Deus, passa a ser sujeito de sua paixão e de sua
morte”.
368
“Depois, sabendo Jesus que tudo estava consumado, disse, para que se cumprisse
a Escritura a o fim: Tenho sede!’ Estava ali um vaso cheio de vinagre.
Fixando, então, uma esponja embebida em vinagre num ramo de hissopo,
levaram-na à sua boca. Quando Jesus tomou o vinagre, disse: ‘Está consumado!
E, inclinando a cabeça, entregou o espírito.” (Jo 19, 28-30)
364
Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., pp. 91-101. Nestas páginas o
autor nos esclarece a causa da morte violenta de Jesus como sendo a conseqüência histórica do
tipo de vida assumido por ele, o messianismo de serviço em conformidade com a vontade do Pai.
Aliado a isto a pregação e práxis de Jesus desestabiliza o sistema religioso e social predominante
entre os judeus de seu tempo.
365
SCHILLEBEECKX, E. Op. cit., p. 130.
366
MOLTMANN, J. Op. cit., p. 68-69.
367
Cf. Ibid. p. 69.
368
Ibid. Grifo nosso.
132
Segundo Ana Maria Tepedino a frase do versículo 30 b “E, inclinando a cabeça,
entregou o espírito” dentro da teologia do Quarto Evangelho tem duplo sentido: o
de exaltar o último suspiro e o ato de cumprir a promessa de doar o Espírito aos
crentes.
369
Podemos perguntar-nos: qual é a “vontade do Pai” neste momento da
entrega radical de Jesus e de doação de seu Espírito? A “vontade do Pai” fica
expressa na cruz através de seu silêncio ao pedido do Filho. um grande mal
entendido quanto à “vontade do Pai” neste momento crucial da vida de Jesus. Por
isso, precisamos reafirmar que a “vontade do Pai” sempre foi a de que Jesus
assumisse o messianismo de serviço, coisa que ele o faz até ser rejeitado por seres
humanos concretos. Portanto, é da “vontade do Pai” que Jesus seja fiel ao
messianismo de serviço até as últimas conseqüências, estando incluída a
possibilidade da morte violenta.
370
O Espírito neste momento de dor e abandono “experimenta” o “expirar” e o
“entregar-se” de Jesus moribundo (Mc 15,36; Jo 19,30), pois ele também está
envolvido no sofrimento, visto que repousa no Filho e o acompanha em sua
paixão. Podemos admitir aqui, como o faz Jürgen Moltmann, uma kénosis
371
do
Espírito, que em sua Shekinah pode ser visto no Jesus que sofre, que é acusado e
que está prestes a morrer. Caso não aceitássemos esta “fraqueza” no Espírito e o
víssemos somente como uma força que impulsiona Jesus, sua ação seria somente
exterior.
372
São profundamente belas as palavras de Moltmann que tentam
traduzir, mesmo que limitadamente, este mistério que nos atesta a presença do
Espírito de Deus na experiência da ausência de Deus Pai ( Mt 27, 46; Mc 15, 34)
no momento da morte de seu “Filho Amado”:
Graças ao Espírito de Deus que inabita nele e que sofre com ele, Jesus suporta o
abandono de Deus em lugar do mundo abandonado por Deus, com isto levando-o
para mais perto de Deus, isto é, reconciliando-o com Deus. Ele próprio leva o
Espírito de Deus ao mundo abandonado por Deus, aquele Espírito que roga por
nós com gemidos inefáveis, como diz Paulo em Romanos 8 [...] ”
373
369
Cf. TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In:
Atualidade Teológica. Fac. 20. Rio de Janeiro: Letra Capital Editora, 2005. p. 161.
370
Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., pp.93-95.
371
Para aprofundar este conceito consultar BRITO, E. Verbete “Kenose”. In: LACOSTE, J. Y. Op.
cit., pp. 983-987.
372
MOLTMANN, J. Op. cit., p.73.
373
Ibid. p.71.
133
Finalmente Moltmann nos esclarece que “O Espírito de Deus não é somente
aquele que conduz Jesus em sua entrega à morte, mas muito mais aquele que o
liberta da morte.”
374
2.3.3.13.
Jesus ressuscita e entrega o Paráclito
A revelação de Deus vinda ao mundo por meio de Jesus não termina com sua
morte. O Espírito de Deus que o conduz por toda sua vida e em sua entrega à
morte na cruz é o mesmo que o liberta da morte. Este fato é enfatizado nos
testemunhos cristãos mais antigos (Rm 1,1-4; 1 Tm 3,16; 1 Pd 3,18). Apesar
disso, a ressurreição de Jesus, fato central da pregação apostólica, e do qual
depende inteiramente a explícita em Jesus Cristo (1 Cor 15, 17), não é narrada
no Segundo Testamento. O que se encontra narrado, em primeiro lugar é o
encontro do túmulo vazio e, posteriormente, as aparições do ressuscitado.
375
É exatamente o sofrimento que o Espírito passa com o Filho até a morte de cruz
(kénosis do Espírito) que torna interiormente possível o renascimento de Cristo
pelo Santo Espírito. Por haver acompanhado o Filho do Homem até o fim, ele
pode fazer deste fim o novo começo.
376
É o valor da vida, das atitudes, das
opções, do comportamento, da mensagem e da morte de Jesus, tudo isso vivido no
Espírito em fidelidade e amor ao Pai, que a ressurreição confirma como sendo o
único caminho possível para a Vida em Plenitude. Portanto, a ressurreição não é
um milagre bonito de se olhar, mas é a proclamação para o mundo de que Jesus
tinha razão em tudo o que fez e falou.
377
Ela confirma que Jesus agora é
“Senhor”, junto com o Deus Vivo e Presente (Fl 2, 5-11).
Como apontamos anteriormente Jesus precisou partir para deixar o Espírito (“é
de vosso interesse que eu parta, pois se não for, o Paráclito não virá a vós. Mas se
for, enviá-lo-ei a vós.” Jo 16, 7). Nas palavras de Yves Congar:
“O Cristo glorificado, “Adão escatológico”, não se tornou somente corpo
espiritual, mas “espírito que a vida” (1Cor 15,42-45). Tendo dado seu corpo
374
Ibid.
375
Por este motivo não apresentaremos nenhum texto bíblico sobre a ressurreição.
376
Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p.73.
377
Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p. 113.
134
carnal em sacrifício, Jesus recebeu um corpo espiritualizado, glorioso, fonte de
vida.”
378
É exatamente por isso, que o Ressuscitado, comunicador de vida em plenitude,
concede a seus discípulos/as os dons de seu Espírito. Jesus não está mais presente
na forma humana, a olhos vistos, razão pela qual deixa em seu lugar o Paráclito
(“E, inclinando a cabeça, entregou o espírito.” Jo 19, 30 b). Portanto, na ausência,
de Jesus, ele estará presente na história, como Senhor, por meio de seu
Espírito.
379
2.3.4.
Jesus vem do Espírito
Somente depois de percorrermos todo este caminho feito por Jesus de Nazaré,
podemos fazer a afirmação: este homem de Nazaré vem do Espírito. Ou ainda
como o faz Leonardo Boff quando exclama: “humano assim pode ser Deus
mesmo!”
380
Neste momento, encontramo-nos preparados/as para lançar um olhar
para o início da história de Jesus de Nazaré e “compreendê-la” em todo o seu
mistério.
“No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia,
chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa
de Davi; e o nome da virgem era Maria. Entrando onde ela estava, disse-lhe:
‘Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!’ Ela ficou intrigada com essa
palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém,
acrescentou: ‘Não temas, Maria! Encontraste graça junto a Deus. Eis que
conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e o chamarás com o nome de Jesus.
Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o
trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado
não terá fim’. Maria, porém, disse ao anjo: ‘Como é que vai ser isso, se eu não
conheço homem algum?’ O Anjo lhe respondeu: ‘O Espírito Santo virá sobre ti e
o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer
será chamado Filho de Deus. Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na
velhice, e este é o sexto mês para aquela que chamavam estéril. Para Deus, com
efeito, nada é impossível’. Disse, então, Maria: ‘Eu sou a serva do Senhor; faça-
se em mim segundo tua palavra!’ E o Anjo a deixou.” (Lc 1, 26-38)
378
CONGAR, Y. A Palavra e o Espírito... Op. cit., p. 105. Grifo nosso.
379
Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 404.
380
BOFF, L. Jesus Cristo Libertador... Op. cit., p. 131.
135
É, portanto, o envio do Espírito Santo que constitui como “santo” e como “Filho
de Deus” o menino suscitado no seio de Maria. Yves Congar ao esclarecer essa
afirmação nos diz que:
“O que chamamos de união hipostática é, como obra ad extra’, o ato das Três
Pessoas; o resultado dessa ação é a união na Pessoa do Verbo-Filho. Mas é o
Espírito que, ao atualizar em Maria a capacidade feminina de conceber (e,
portanto, suprindo os 23 cromossomos masculinos) suscita o ser humano que se
une ao Verbo-Filho e, por isso, mesmo o faz ‘santo’. De maneira que Jesus é
Emanuel, Deus conosco, porque ele é (concebido) pelo Espírito Santo.
381
É interessante perceber que uma clara intenção teológica, no fato do Novo
Testamento (Mt 1,18-25 e Lc 1,26-38) retrotrair até o início do devir humano de
Jesus. Esta intenção é a de afirmar a identidade originária de Jesus, afirmar seu
“surgimento pelo Espírito”. Portanto, a intenção é cristológica e não
mariológica.
382
Apesar de sabermos disso, gostaríamos de acrescentar, mesmo que
de forma sintética a perspectiva mariológica sobre a concepção de Jesus que nos
apresenta Clodovis Boff. Este teólogo nos diz que o versículo onze é o vértice de
toda a perícope de Lc 1, 26-38, quando o evangelista assinala que, pela
intervenção do Espírito de Deus, Maria gera o Messias. Ele nos afirma ainda que:
“o verbo ‘cobrir com a sombra’ ou ‘ensombrear’ (epi-skiá-zein), evoca a Nuvem
misteriosa do Êxodo que ‘ensombreava’ a ‘Tenda da reunião’, transformando-a
na Morada de Deus (Shekinah) (cf. Ex 40, 34 LXX; Nm 10, 34). Com estas
evocações, Lc parece sugerir o seguinte e maravilhoso sentido: cobrindo a
Virgem com sua sombra e tornando-a fecunda do Filho de Deus, o ES transforma
Maria na nova Shekinah, a nova Casa de Deus. Ela é agora o novo ‘Tabernáculo
do encontro’, onde a humanidade pode entrar em comunhão com seu Deus.”
383
381
CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p.33. Nota de rodapé 3a. Grifo nosso.
382
Cf. BLANK, J. Verbete “Espírito Santo/Pneumatologia”. In: EICHER, P. Op. cit., p. 246.
383
BOFF, C. Introdução à Mariologia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 51. Grifo nosso. Precisamos
estar alertas com relação a esta afirmação feita por Clodovis Boff para não fazermos uma relação
direta com a afirmação de Jürgen Moltmann sobre a shekinah. Aqui, em Clodovis Boff, a shekinah
é entendida em seu significado original de “morada de Deus”, logo, podemos afirmar que Maria é
esta morada, visto que Deus habitou em seu ventre. Conseqüentemente, podemos dizer que Maria
é a shekinah. na reflexão de Moltmann a shekinah é entendida como a “presença de Deus no
meio do povo”, com outras palavras, é a “inabitação de Deus no espaço e no tempo, num
determinado tempo de criaturas terrenas e em sua história”. Conseqüentemente, é pertinente se
afirmar, como o faz Jürgen Moltmann, que a idéia da shekinah desenvolvida pelo judaísmo se
aproxima mais daquilo que nós cristãos/ãs confessamos ser o Espírito Santo. Desejamos deixar
bem claro que ao fazermos a citação de Clodovis Boff não pretendemos dizer que Maria se
aproxima daquilo que entendemos ser o Espírito Santo. Na realidade nossa intenção ao usar este
texto de Clodovis Boff em nossa dissertação é a de destacar o papel importantíssimo desta mulher
em toda obra salvífica. Ressaltar como Maria se abriu totalmente à ação do Espírito Santo, que a
inabitou, vivendo totalmente para Deus e para seus irmãos e irmãs, de tal forma que pode gerar em
seu ventre o Filho de Deus, isto é, o próprio Deus.
136
Portanto, é a inabitação do Espírito de Deus no seio da jovem Maria, que a fará
gerar o Messias. Mas, apesar disso, é usando de sua liberdade que a Virgem
consente a ação em plenitude do Espírito Santo em sua pessoa, e faz isto na fé.
Logo, Maria nos é apresentada neste relato como figura de liberdade e figura de
, pois é seu ato de liberdade e de que abre a possibilidade do próprio Deus vir
habitar no meio de nós.
384
Maria Clara Bingemer em seu artigo “Abba: um Pai Maternal”, que busca resgatar
a imagem de Deus como um Pai de entranhas femininas, ao falar da concepção
virginal de Maria nos afirma que ela é obra do Pai, alertando-nos que ao mesmo
tempo este trabalho do Pai é recebido pelo Espírito Santo, Amor Materno, Amor
Concebente fértil, receptividade divina que faz grávida a virgem que torna
divinamente possível aquilo que é humanamente impossível.
385
O chamado de Jesus à vida ocorre no Espírito. Desde o primeiro instante ele
habita em Jesus e o faz existir, desde o seio materno ele faz de Jesus, o Filho de
Deus.
386
Os dois evangelhos da infância acentuam esta ação inicial do Espírito
(Mt 1,18 “antes que coabitassem, achou-se grávida pelo Espírito Santo”; e Lc
1,35 que relatamos acima). Entretanto, o evangelho de Lucas ao comparar a
anunciação feita a Maria com as anunciações anteriores encontradas na Bíblia,
seja a de Sansão (Jz 13,5), ou a de Samuel (1 Sm 1,11) ou ainda a de João Batista
(Lc 1, 15), quer enfatizar que estes três foram consagrados a Deus desde sua
concepção, mas que em Jesus a ação do Espírito é mais do que uma consagração.
Nele sem intermédio de qualquer rito, sem a intervenção de qualquer homem, mas
unicamente pela ação do Espírito de Deus em Maria, Jesus é “santo” pelo seu
próprio ser.
387
Entre os inspirados de Israel as manifestações do Espírito de Deus tinham sempre
algo de ocasional e transitório, como vimos no primeiro capítulo. Em Jesus elas
são permanentes. Ninguém jamais teve o Espírito como ele, além de toda
medida” (Jo 3, 34). Os inspirados do Primeiro Testamento tinham consciência de
serem possuídos por “alguém” mais forte que eles. Em Jesus não vemos este
384
Cf. BOFF, C. Op. cit., p. 53.
385
MANTEAU, H. M.; BONAMUY. apud BINGEMER, M. C. L. Abbá: um Pai maternal. In:
Atualidade Teológica n° 5, 1999. pp. 142-143
386
Yves Congar nos alerta que Lc 1, 35 não se refere à preexistência do Verbo ao falar da
concepção de Jesus pelo Espírito. Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p. 32.
387
Cf. GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LEON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 300
137
resquício da inspiração. Parece que ele pode realizar as obras de Deus sem a ação
do Espírito. Não que ele possa jamais prescindir do Espírito, como igualmente não
pode prescindir do Pai; mas, como o Pai “está sempre com ele” (Jo 8, 29), assim
também o Espírito nunca lhe pode faltar. A ausência, em Jesus, das habituais
repercussões do Espírito é sinal de sua divindade. Ele não sente o Espírito como
uma força que o invadisse de fora. O Espírito está “em casa” e Jesus está “à
vontade” no Espírito: o Espírito é dele, é o seu próprio Espírito (cf. Jo 16, 14s).
388
2.3.5.
Jesus é a revelação plena do Amor Trinitário
Chegando ao final de toda esta caminhada feita através da vida terrena do
Nazareno, podemos agora afirmar que ele é:
“... um autêntico fenômeno do Espírito: concebido, inspirado, enviado, assistido,
guiado e ressuscitado dos mortos por seu poder. Usando uma imagem da arte
cinematográfica, podemos dizer que Jesus de Nazaré era ao ator principal e o
Espírito Santo o diretor. Por meio da história humana de Jesus, o Espírito que
penetra todo o universo torna-se concretamente presente numa pequena porção
desse mesmo universo. Portanto, a totalidade da vida de Cristo da encarnação à
ressurreição representa na história a expressão perfeita da experiência da
atuação do Espírito. Por isso, é critério para avaliar qualquer outra experiência
histórica de sua ação. Toda experiência cristã da atuação do Espírito Santo é
constitutivamente cristológica.”
389
Essa afirmação é para nós de fundamental importância visto que afirma uma de
nossas teses: Jesus Cristo, (vida, pregação, práxis, morte e ressurreição) é o
critério para avaliarmos a experiência do Espírito Santo na história e na vida de
cada ser humano.
É neste Jesus de Nazaré, homem pleno do Espírito de Deus e que vive uma íntima
união com o Pai, que se dá a plenitude da revelação: Deus é Trindade! O
conteúdo “Deus é Pai”, “Deus é Filho” e “Deus é Espírito Santo” é manifestado
no e pelo Filho.
Ao revelar que Deus é Pai Jesus nos leva a compreender que Deus é:
388
Cf. Ibid. p. 301
389
HOTTZ, P. R. O Espírito de Jesus Cristo e o desafio da religiosidade pentecostal. In: FRANÇA
MIRANDA, M. (Org). A pessoa e a mensagem de Jesus. São Paulo: Ed. Loyola, 2002. p.208.
138
Transcendência, superioridade, criador, fonte escondida, origem sem origem,
mistério fontal do qual tudo provém e ao qual tudo retorna... [Ele] é a fonte da
vida. É aquela realidade que não entendemos, mas sentimos que nos abarca, nos
abraça, nos cria, nos faz, nos mantém vivos a cada minuto de nossa existência.”
390
Afirmando que Deus é Pai Jesus se revela como o Filho. Logo, Deus também é
Filho. Revelando-nos sua filiação divina Jesus nos leva a perceber que:
“no Filho, Deus o Transcendente, o separado, o inatingível, aquele a quem
ninguém podia ver e continuar vivo se torna um de nós, se torna de carne e
osso como nós, se torna humano conosco e como nós.”
391
No entanto, toda essa revelação feita por Jesus foi possível a partir do Espírito
Santo. “Jesus é o homem do Espírito que realiza o plano salvífico do Pai no meio
de seu povo.”
392
Jesus é o Cristo que revela o Pai na glorificação pelo Espírito.
Revelando que Deus também é Espírito, Jesus Cristo nos deixa entrever que este
Espírito:
“constitui a força ativadora de Deus na história. Neste sentido Ele significa o
próprio Deus enquanto age, inova, abre caminhos novos na história com os
homens e mulheres e com a criação... A obra do Espírito, entretanto, reside
fundamentalmente em revelar para todos o Filho e atualizar a gesta libertadora
do Filho. O acesso ao Filho se no Espírito... Este Espírito é também aquele
que sonda as profundezas de Deus (Pai)... Ninguém conheceu o que em Deus
senão o Espírito de Deus (1 Cor 2, 11). ”
393
Portanto, o Deus revelado em Jesus e por Jesus é Uno e Trino. Portanto,
“Trindade é o mistério da comunidade das pessoas divinas, mistério de fé, de
salvação, de comunhão e de amor. Não é e não pode ser mistério lógico porque
justamente funda uma lógica nova: a lógica da gratuidade, do amor, do Dom.”
394
O Deus cristão é Pai, Princípio e Fim da Salvação; é Filho, Mediador da Salvação;
e é Espírito Santo, Motor da Salvação. E o ser humano pode penetrar neste
mistério trinitário de amor através de Jesus que foi enviado pelo Pai e viveu toda
sua existência no Espírito.
390
BINGEMER, M. C. Encontro com o Deus de Jesus Cristo (Trindade). In: Iniciação Teológica...
Op. cit., p. 21. Grifo nosso.
391
Ibid. p. 22.Grifo nosso.
392
BOFF, Lina. Op. cit., p. 64
393
BOFF. L. A Trindade e a sociedade. Série II: O Deus que liberta seu povo. Petrópolis: Ed.
Vozes, 1987. pp. 51-52. Grifo nosso.
394
BINGEMER, M. C. Encontro com o Deus de Jesus Cristo (Trindade). In: Iniciação Teológica...
Op. cit., p.26. Grifo nosso.
139
2.4.
Balanço da investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito de
Deus em Jesus
Nossa intenção é a de reunir agora, e de forma sintética, os principais dados que
pudemos recolher sobre a ação do Espírito Santo em Jesus de Nazaré e que se
encontra relatada no Segundo Testamento. Usaremos o mesmo método utilizado
no primeiro capítulo quando fizemos o balanço da investigação das três imagens
que no Primeiro Testamento apontam para a presença e atuação do Espírito de
Deus no povo de Israel. Iremos, portanto, elencar estes dados recolhidos em duas
grandes linhas: identidade (quem é o Espírito de Deus revelado na pregação e
práxis de Jesus) e ão (como age esse Espírito em Jesus de Nazaré). Estas
informações nos darão a possibilidade de mais tarde conhecer melhor quem é o
Espírito revelado nas páginas da Sagrada Escritura e elencar os critérios de
discernimento que nos possibilitarão avaliar se é realmente o Espírito de Deus que
está atuando hoje em nós e no mundo.
2.4.1
Identidade: Quem é o Espírito que se revela em Jesus?
A partir daquilo que acabamos de refletir sobre a vida, morte e ressurreição de
Jesus, sobre sua práxis e pregação, sobre a revelação inaudita que faz sobre Deus
e sobre sua relação única com o Espírito Santo podemos dizer que este Espírito é:
a) a Luz que capacita Jesus para reconhecer sua própria vocação e missão de eleito
e enviado do Pai; b) a Força Animadora (coragem) que condições a Jesus de
Nazaré de assumir livremente seu messianismo de serviço; c) a Força
Sobrenatural que atua em Jesus em momentos particulares como quando ele
enfrenta o Tentador, ou quando expulsa o demônio, ou ainda quando cura os
doentes; d) a Voz de Deus no coração de Jesus “segredando-lhe” como deve ser
sua pregação sobre o Reino de Deus e a respectiva prática coerente com este
Reino (acolhimento a todos os excluídos); e) a Inspiração que possibilita Jesus
perdoar todos/as que desejam e que se percebem necessitados/as dessa oferta
maravilhosa; f) a Liberdade que habita Jesus e que lhe propicia ser livre diante de
uma sociedade civil e religiosa tão marcada pelo preconceito e por leis
escravizantes; g) o Mestre de Jesus que lhe possibilita ensinar com autoridade e a
140
viver a “Pedagogia da Inclusão”; h) o Mistagogo que introduz Jesus no Mistério
de Deus e lhe proporciona experimentar Deus como Abbá; i) o Amor que plenifica
Jesus levando-o a amar sem impor condições, a amar todo ser humano, somente
porque é humano; j) o Princípio de Discernimento que conscientiza Jesus da
necessidade de transformar Israel que havia se tornado uma sociedade
corrompida, hipócrita, falsa, legalista, gananciosa, fanática, sectária e mentirosa; l)
o Protagonista de toda vida de Jesus de Nazaré. Falar isso não significa dizer que
Jesus não mantinha sua liberdade e que não fez suas próprias escolhas, mas que
fez tudo isso sob a “orientação” do Espírito, ao qual esteve sempre aberto e
receptivo; m) a Interioridade Profunda de Jesus que age nele desde dentro, isto é,
que o inabita constantemente; n) a Alegria que exulta no coração de Jesus em seus
momentos de intimidade com o Pai e de relacionamento com os “pequeninos”; o)
o Sustentáculo de Jesus em todas as horas de dificuldade, de dúvida, de traição, de
abandono e de dor; p) o Consolador, em quem Jesus encontra apoio nas horas
mais difíceis de sua vida terrena; q) a Confirmação Divina necessária para que
Jesus possa continuar com sua opção pelos pobres, pecadores e pequeninos; r) a
Verdade plena que guiará os discípulos de Jesus em sua ausência; s) o Amor
Materno, o Amor Concebente Fértil que possibilita a Maria, mesmo sendo
virgem, gerar em seu ventre o próprio Deus feito fraqueza humana, Jesus de
Nazaré; t) o Comunicador de Humanidade que possibilita ao Nazareno ser “ser
humano” em plenitude; u) o Deus Vulnerável que acompanha, conduz e envolve
Jesus em toda sua vida e que na cruz também padece (Espírito da Paixão),
também agoniza também se esvazia! v) o Princípio de Vida Eterna que ressuscita
Jesus, fazendo do fim aparente, a morte, um novo e maravilhoso começo; x) o
Santificador que está tão intimamente ligado a Jesus que se torna o Espírito de
Cristo.
Parece-nos que essas características recolhidas da experiência histórica de Jesus
de Nazaré com o Espírito de Deus estão muito próximas daquelas características
que encontramos a partir da investigação que fizemos no primeiro capítulo desta
pesquisa em relação à revelação de Deus como Espírito a partir das metáforas
usadas no Primeiro Testamento (Rûah Iahweh, Sophía e Shekinah). Portanto,
entendemos ser pertinente afirmar que uma coerência entre as experiências
com o Espírito de Deus narradas nos dois Testamentos, apesar de precisarmos
141
destacar que com Jesus Cristo ela ganha uma relevância inaudita, a saber o
Espírito Santo é Deus!
2.4.2
Ação: Quais os critérios que nos ajudam a discernir que “espírito”
agiu em Jesus?
Segundo o que pudemos observar sobre a forma de agir do Espírito Santo em
Jesus podemos afirmar que sua ação se dá: a) no “silêncio” do extraordinário
acontecendo no ordinário da vida de Jesus de Nazaré; b) possibilitando a relação
entre Jesus e o Pai, e entre Jesus e os seres humanos; c) dando força, luz,
discernimento, sustentação, liberdade, inspiração, coragem para que Jesus possa
viver seu messianismo de serviço; d) na alegria que exulta no coração de Jesus
quando se experimenta amado e acolhido pelo Pai e igualmente quando se
encontra com os “preferidos/as” do Deus do Reino; e) autolimitando-se, auto-
rebaixando-se para que Jesus seja o “Deus conosco” anunciando e vivendo o
Reinado do Pai. Esta é a kénosis do Espírito! Aquele que age “esvaziando-se de si
próprio” para que o Pai e o Filho possam ser reconhecidos e louvados.
Podemos ainda destacar que a ação do Espírito Santo em Jesus: a) unge-o para ser
o Messias Servidor; b) fortalece-o para vencer o mal que impede a atuação do
Reino; c) ilumina-o para ser no mundo a Palavra do Pai; d) encoraja-o para ser
fiel ao projeto amoroso do Pai; e) liberta-o para que ele seja a Liberdade que
liberta a humanidade; f) capacita-o com seus dons para que os partilhe com os
seres humanos. Desta forma Jesus cura, perdoa, ensina, acolhe os excluídos,
resgata os marginalizados; g) introduzindo-o no Mistério de Deus para que ele
encontre o amor restaurador do Pai que lhe possibilitará partilhá-lo com seus
irmãos/ãs. Fizemos questão de frisar quais são as finalidades ou objetivos da ação
do Espírito de Deus em Jesus de Nazaré para que sirvam de critérios de
discernimento sobre a ação deste mesmo Espírito que continua agindo hoje no
mundo. Como podemos constatar toda a ação do Espírito Santo em Jesus tem
como finalidade sua abertura a Deus e aos irmãos e as irmãs. Este Espírito nunca
leva Jesus a fechar-se em si mesmo, mas pelo contrário é ele que possibilita a
relação entre Jesus e os outros/as e o grande Outro.
Com estes elementos recolhidos sobre a ação do Espírito de Deus na vida do
Nazareno nos encontramos agora preparados/as para adentrar-nos na Experiência
142
Histórica que as comunidades cristãs da primeira hora fazem com este Espírito e
que se encontra retratada no Segundo Testamento. Conheceremos como se sua
ação na vida dos primeiros cristãos/ãs, fazendo-os viver o seguimento a Jesus no
Espírito. Este é o tema que abordaremos no próximo capítulo.
143
3
A Experiência Histórica e a Teologia do Espírito Santo nas
primeiras comunidades cristãs
Introdução
temos em mãos como foi experimentada a presença do Espírito de Deus e
como foi percebida sua ação em Israel, e sabemos igualmente como se deu a
experiência histórica deste Espírito em Jesus de Nazaré que se revela o Cristo de
Deus. É importante destacarmos que todos os evangelistas expressam a seu modo
o fato de que existe uma continuidade dinâmica entre Cristo e a comunidade
formada por homens e mulheres que buscaram segui-lo desde a primeira hora.
Esta continuidade é o desígnio da graça de Deus que vem dar cumprimento
àquilo que antes havia sido prometido, e que se sob o signo do Espírito Santo.
A seguir iremos refletir como a presença e a ação deste Espírito foram
experimentadas e verbalizadas por alguns autores do Segundo Testamento e pelas
comunidades cristãs que se encontram retratadas. Faremos isto mantendo-nos
fiéis à finalidade que nos orienta desde o início desta pesquisa que é a de conhecer
quem é o Espírito Santo e a de elencar os critérios de discernimento que brotam
da Sagrada Escritura.
Continuamos neste capítulo seguindo a narrativa histórica de um povo, o Povo de
Deus, agora denominado o Novo Povo de Deus, e que tem como protagonista o
Espírito Santo. Para prosseguirmos na caminhada que nos propusemos,
perguntamo-nos: como as comunidades primevas (Igreja nascente) vivem a
experiência histórica com este Espírito? realmente continuidade entre a
experiência carismática vivida por Israel e posteriormente por Jesus de Nazaré,
com aquelas experiências vividas pelos seguidores/as de Jesus e que vemos
narradas no Segundo Testamento? Jesus de Nazaré é verdadeiramente o
paradigma da experiência com o Espírito para as comunidades apostólicas? A
pneumatologia elaborada pelos autores do Segundo Testamento está em sintonia
com aquela que pudemos extrair da vida de Jesus? Caso as respostas a estas
questões sejam positivas, perguntamo-nos ainda: que critérios de discernimento
podemos colher destas comunidades a partir de suas experiências carismáticas?
Dito de outra forma, o que distingue o Espírito ali manifestado de outros
144
possíveis? É pertinente conhecer a pneumatologia do período apostólico para que
sirva de referencial à prática eclesial de hoje? Essas são algumas das questões que
movem nossa reflexão neste capítulo e às quais tentaremos responder.
Pretendemos demonstrar que a pneumatologia do período apostólico fornece
elementos primordiais para o cristão/ã de hoje que, assim como aqueles homens e
mulheres, não possui mais a presença física de Jesus de Nazaré. Com esta
pneumatologia podemos aprender como é possível viver uma “vida no Espírito,
no hoje da história, sem perder Cristo como o caminho, verdade e vida (Jo 14,6), e
o Pai como meta.
Vimos no capítulo anterior, que as discípulas e os discípulos de Jesus de Nazaré
que viveram a seu lado, o viram pregando o Reino de Deus; expulsando
demônios; ensinando com autoridade; anunciando a Boa Nova aos pobres;
curando e perdoando; acolhendo as mulheres como suas discípulas e missionárias;
resgatando os pecadores; orando e ensinando a orar; denunciando as injustiças;
amando até o ponto de entregar-se à morte; prometendo e entregando o Paráclito;
e finalmente, ressurgindo pela força do Espírito. E, veremos no presente capítulo,
que foi somente depois da experiência de Pentecostes que o grupo que o seguia
em vida se encontra animado e com coragem para iniciar a pregação e a vivência
da Boa Nova trazida por Jesus. Isto acontece porque as duas grandes esperanças
das Escrituras desde o Exílio se cumprem, isto é, eles percebem e experimentam
que Jesus é o Messias ungido pelo Espírito e que eles mesmos são o povo
presenteado com seu Espírito. Estes homens e mulheres seguidores de Cristo, no
período pós-pascal, experimentam e descrevem através de diversos fenômenos
espirituais como em suas vidas o Espírito está sendo derramado e como ele age.
Portanto, a experiência vivida por Israel e por Jesus de Nazaré com o Espírito
Santo de Deus, de que ele é vida, verdade e liberdade, permanece determinante
também para as primeiras comunidades cristãs que se encontram narradas no
Segundo Testamento. Além disso, a grande novidade trazida por Jesus em relação
ao Espírito começa a ser experimentada e vivida ainda que de forma não muito
clara por seus seguidores/as. É toda esta rica e multiforme realidade que nos
dispomos a pesquisar neste capítulo.
Muitas poderiam ser as formas de abordar este tema fascinante, apesar disto,
buscando ser coerentes com a escolha feita desde o início de nossa pesquisa,
optamos por seguir a narrativa histórica e deste modo iremos relatar a
145
Experiência Histórica do Espírito Santo nas primeiras comunidades cristãs. Por
isso, acompanharemos, neste terceiro capítulo, os seguidores/as de Jesus a partir
do momento em que vivem a experiência de Pentecostes, marco fundamental na
vida dessas pessoas. Portanto, iniciaremos esta caminhada conhecendo a
pneumatologia de Lucas que brota de um dos livros de sua autoria, os Atos dos
Apóstolos, onde encontramos relatada a experiência carismática de Pentecostes. A
partir daí e dos relatos que faz sobre a vida da Igreja nascente, elencaremos, com
base em algumas perícopes, as principais características da pneumatologia lucana
e veremos que critérios de discernimento brotam de seus relatos. Posteriormente
enfocaremos a pneumatologia de Paulo encontrada em suas cartas, onde vemos o
“apóstolo dos gentios” lidando com as dificuldades para viver a grande novidade
da “vida no Espírito”. A partir de seus conselhos pastorais iremos colhendo as
principais características de sua pneumatologia e os critérios de discernimentos
apontados por ele. Finalmente, penetraremos no horizonte pneumatológico de
João que encontramos no evangelho de sua autoria e na primeira carta por ele
escrita a sua comunidade. Com base nestes dois escritos joaninos elencaremos os
principais elementos desta teologia do Espírito e, como fizemos com as duas
pneumatologias anteriores, iremos recolher os critérios de discernimento que
podemos deduzir da prática da comunidade joanina. Portanto, estamos
delimitando nossa pesquisa a estes escritos e a algumas passagens seletas dos
mesmos. É evidentemente impossível, e seria fora de propósito, examinar todas as
passagens do Segundo Testamento onde estão narradas as experiências
carismáticas nos escritos destes autores. Por isso, limitamos nossa análise às mais
importantes, segundo a opinião dos autores/as pesquisados.
Pretendemos conhecer melhor a experiência que estes homens e suas
comunidades fazem com o Espírito Santo e como são capazes de elaborar
teologicamente a experiência vivida. Essa experiência traz um sabor de total
novidade, de tal forma que revoluciona a vida destas pessoas. Além disto, por ser
novidade, acarreta também muitas surpresas e problemas, o que torna necessário
encontrar critérios de discernimento para tentar resolvê-los. Mas, é sempre bom
lembrar que, apesar da total novidade que é experimentada pela comunidade cristã
primeva, também uma continuidade entre aquilo que vivem com aquela
experiência com o Espírito vivida por Israel e por Jesus de Nazaré. Veremos,
finalmente, que surge agora um elemento novo, que é a especificidade
146
fundamental da elaboração teológica deste período e que se baseia na plenitude da
revelação que lhes chega através de Jesus: o Espírito Santo é uma pessoa divina.
Mas, não esqueçamos que é uma elaboração feita ainda entre luzes e sombras, que
precisará de um longo caminho até ser percebida com mais clareza pelos teólogos
cristãos dos primeiros séculos.
Com os dados recolhidos das três principais pneumatologias do Segundo
Testamento, faremos finalmente um balanço sobre a Experiência Histórica com o
Espírito Santo nas primeiras comunidades cristãs para podermos conhecer melhor
quem é o Espírito Santo que age, e quais são os critérios de discernimento que
encontramos nestes escritos.
Acreditamos que ao final deste capítulo nos encontraremos preparados/as para
reunir todos os dados anteriores que levantamos em nossa pesquisa, e assim
conhecer quem é o Espírito que se encontra revelado nas páginas da Sagrada
Escritura e quais são os critérios de discernimento que encontramos e que nos
ajudam saber que “espírito” está hoje agindo no mundo e no ser humano.
147
3.1.
A Pneumatologia Lucana a partir da experiência histórica com o
Espírito Santo
Como falar da Igreja nascente e da tentativa de expressar a experiência vivida por
ela com o Espírito Santo de Deus, sem nos determos no escrito do Segundo
Testamento que relata como vivem os primeiros homens e mulheres que seguem
Jesus Cristo, obedientes ao mandato do Pai e na força do Espírito Santo? Como
seguir narrando a história do Povo de Deus, que agora se compreende como o
Novo Povo de Deus, sem iniciarmos este percurso pelo livro dos Atos dos
Apóstolos? Para nós é impossível, pois nele encontramos a história do
desenvolvimento da Igreja sob o impulso do Espírito Santo. Nele deparamo-nos
com a proeminência do Espírito, a tal ponto que, para muitos estudiosos este
escrito é considerado como o Evangelho do Espírito, assim como o Evangelho
segundo Lucas é o Evangelho do Filho. Podemos ver, através das narrativas
encontradas nas páginas dos Atos dos Apóstolos, como a plenitude do Espírito e
da missão da Igreja o vistas na expansão da Igreja pelo mundo gentio.
395
Segundo Ana Maria Tepedino, para o autor destes escritos a história de Jesus,
toda ela vivida sob a inspiração do Espírito Santo, e a história da comunidade
nascente, igualmente vivida sob a ação do mesmo Espírito, situam-se ao mesmo
nível. Ela afirma ainda que:
“A pregação do Reino feita por Jesus é colocada na mesma linha que a pregação
do Reino feita por Pedro e Paulo inspirada pelo Espírito Santo. Esta perspectiva
representa um grande salto teológico. O evangelista chama a atenção para o fato
de que a Boa Nova se refere não ao que Jesus fez, mas também ao que o
Espírito inspira homens e mulheres a realizarem. ”
396
Segundo esta compreensão podemos dizer que é o Espírito Santo quem “costura”
os fios fundamentais da História da Salvação,
397
dito de outra forma, é ele que
une toda a História tornando-a uma única expressão do amor salvífico de Deus
por sua criação e por suas criaturas. É ele quem possibilita a continuidade que
encontramos aí, apesar das rupturas com as quais nos deparamos. Além disso, é
395
Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 93.
396
TEPEDINO, A. M. Iniciação Teológica: Encontro com a Igreja de Jesus Cristo (Eclesiologia)...
Op. cit., p. 53. Grifo nosso.
397
VANCELLS, T. apud TEPEDINO, A. M. A importância do Espírito Santo/Paráclito na
Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 158.
148
fundamental destacar ainda que “à luz de recentes pesquisas na área da exegese
bíblica e da teologia dogmática, podemos afirmar que a Teologia Lucana oferece
um dos modelos pneumatológicos mais importantes de todo o Novo
Testamento.”
398
É nossa intenção elencar as principais características da Teologia do Espírito
segundo Lucas. Para alcançar tal objetivo iremos privilegiar da obra de Lucas, o
livro dos Atos dos Apóstolos, onde encontramos narrada a vida carismática das
primeiras comunidades cristãs. Faremos isto, pois no segundo capítulo deste
trabalho colhemos do evangelho narrado por este autor a experiência histórica do
Espírito Santo na vida de Jesus de Nazaré, manifestado como o Cristo de Deus, de
onde pudemos recolher alguns elementos de sua pneumatologia. Portanto, neste
capítulo iremos ter como base para a análise da pneumatologia lucana somente o
livro dos Atos dos Apóstolos.
A seguir destacamos as principais características da pneumatologia lucana que
nos deixam conhecer o Espírito Santo e nos dão base para destacar os critérios de
discernimento que Lucas vai deixando entrever em seus relatos.
3.1.1.
Há uma continuidade na História da Salvação
Lucas faz uma profunda relação entre Jesus e a Igreja nascente em Atos. Jesus
recebe, em seu batismo no Jordão, o Espírito que o guia para realizar sua
atividade de testemunha e agente do projeto do Pai. Assim também, os apóstolos
e os discípulos/as recebem em Pentecostes
399
o batismo do mesmo Espírito para
testemunhar a todos os seres humanos o projeto de Deus realizado por Jesus.
Portanto, é a força do Espírito, isto é, a força do próprio Deus, que agindo
naquele e naquela que se abre a sua ação e se coloca disponível a seus impulsos,
que leva esta comunidade a continuar o que Jesus começou. É uma necessidade
para Lucas dar continuidade àquilo que havia escrito em seu evangelho,
mostrando o testemunho dos primeiros cristãos/ãs, como sendo a continuação do
testemunho de Jesus. Ele quer manifestar como as comunidades cristãs da
398
SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 63.
399
Trataremos com mais profundidade do primeiro Pentecostes narrado por Lucas, apesar dele
apresentar no livro dos Atos dos Apóstolos vários Pentecostes sucessivos (4, 25-31; 8, 14-17; 10,
44-48; 11, 15-17; 19, 1-6).
149
primeira hora continuam testemunhando Jesus, através de palavras e ações, que
provocam transformações na sociedade e na história. Na realidade deseja deixar
patente que Jesus continua vivo e presente na vida da comunidade, mesmo depois
de sua morte.
400
E quem possibilita isto é o Espírito Santo!
Dar continuidade à história de Jesus na história da comunidade cristã, além de
apresentar uma coerência interna na obra de Lucas, ajuda seu leitor a perceber que
a realização das promessas, tanto as do Primeiro Testamento, como as feitas pelo
Pai através do Evangelho anunciado por Jesus de Nazaré, estão acontecendo pela
ação do Espírito Santo nos discípulos e discípulas deste Mestre. Lina Boff faz
uma síntese deste pensamento lucano ao afirmar que:
“O critério que domina o pensamento teológico de Lucas, ao conceber a missão
como anúncio do Ressuscitado, é o da continuidade da história da salvação, obra
do Espírito em Jesus e na comunidade. Em ambos age o mesmo espírito de Deus
que atuou no povo de Israel. Nisto consiste a unidade e continuidade da ação de
Deus no meio de todas as nações da terra.”
401
Do ponto de vista da teologia de Lucas “Páscoa-Ascenção-Pentecostes” são três
aspectos de um mesmo acontecimento da História da Salvação, por isso, ele faz
questão de deixar claro que uma conexão entre o Mistério Pascal e o Dom do
Espírito Santo derramado sobre a comunidade cristã em Pentecostes.
402
3.1.2.
O dom do Espírito Santo é a Nova Lei gravada no coração de cada
ser humano
Para o povo de Israel, Pentecostes era uma festa celebrada sete semanas depois da
Páscoa, quando terminava a colheita, conhecida como “festa das semanas” (Ex 34,
22; Nm 28, 26). Nela comemorava-se a Aliança e o dom da Lei que era sua
conseqüência prática. Não podemos esquecer que as tábuas da Lei tinham sido
escritas pelo dedo de Deus (Ex 31, 18), portanto, a Lei havia sido inspirada
pelo Espírito de Deus (Lc 11, 20). Na compreensão de Lucas há uma Nova Lei, e
esta é o próprio “Espírito dando testemunho de Jesus e em todos os povos.”
403
400
Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos: o caminho do Evangelho. São Paulo:
Paulus, 2008. p. 18-19.
401
BOFF, Lina. Op. cit., p. 106.
402
Cf. SANTANA, L. F. R. Op.cit., p. 65.
403
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 67.
150
Este autor colocando o dom do Espírito em Pentecostes sugere que a plenitude da
Aliança não é mais a Lei escrita na pedra, mas sim o dom recebido do Espírito e
gravado no coração de cada ser humano. É este dom que faz as pessoas
compreenderem em profundidade a vontade e o projeto de Deus. Desta forma,
aquilo que os profetas Jeremias e Ezequiel haviam anunciado estava sendo
cumprido, a saber, não haverá mais a necessidade de uma Lei escrita na pedra,
porque a Lei estará interiorizada em cada homem e em cada mulher. Ela é o
próprio Espírito de Deus, capaz de produzir transformações radicais e levar a
vida plena para todo ser que se abrir a sua ação (Jr 31, 31-34; Ez 36, 25-28).
404
Portanto, a promessa trazida pelos profetas de que nos “últimos tempos”, o povo
de Deus receberia os ricos e abundantes dons do Espírito, está se realizando agora.
É este evento, o Novo Pentecostes, que se encontra narrado por Lucas nos Atos
dos Apóstolos: a) a descida do Espírito Santo sobre a comunidade primeva (At 2,
1-13); b) o discurso de Pedro (At 2, 14-36); c) a formação da primeira igreja cristã
(At 2, 37-41) e o relato de seu projeto de vida (At 2, 42-47).
3.1.3.
O Espírito derramado em Pentecostes é um Espírito Pascal, pois é o
sopro do Ressuscitado
Ao final de seu evangelho, Lucas narra as últimas instruções de Jesus, momento
em que este promete a seus apóstolos a dádiva do Espírito Santo como força para
continuar o caminho que ele havia apontado. São estas as palavras que Jesus
pronuncia: “Eis que eu enviarei sobre vós o que meu Pai prometeu. Por isso,
permanecei na cidade até serdes revestidos da força do Alto.” (Lc 24, 49). No dia
de Pentecostes, Lucas coloca na boca de Pedro estas palavras: “Portanto, exaltado
pela direita de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e o derramou,
e é isto o que vedes e ouvis.” (2,33) Como podemos constatar, Lucas, de forma
magistral, acrescenta um elemento novo a tudo o que já havia dito sobre o Espírito
em seu Evangelho (Lc 1,15. 35. 41. 67; 2, 25-27; 3,16. 22; 4,1. 14. 18; 10, 21; 11,
13; 12, 10. 12, 23, 46), pois apresenta, nos Atos dos Apóstolos, Jesus como o
dispensador do Espírito à Igreja.
405
Entretanto, na compreensão lucana o
404
Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 29.
405
Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 306.
151
Espírito, apesar de ser o sopro do Ressuscitado,
406
não é um substituto total de
Cristo, pois o que Jesus transmite aos seus discípulos/as é a assistência do
Espírito que ele mesmo recebeu do Pai no Jordão, e que agora possui a missão
profética de ser o porta-voz da mensagem de Deus.
407
3.1.4.
Não discriminações nem privilégios entre os membros da
primeira comunidade cristã
Lucas inicia sua narrativa de Pentecostes afirmando “Tendo-se completado o dia
de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar.” (At 2,1) Quem são estes
“todos” que compõem a primeira comunidade cristã? Segundo o que encontramos
em At 1, 12-14 são os onze apóstolos, algumas mulheres, certamente as que
acompanhavam Jesus (Lc 8,2) e testemunharam a sua ressurreição (Lc 24, 10),
além de Maria, mãe de Jesus, e os irmãos, que são propriamente os parentes de
Jesus. Analisando os membros que compõem esta comunidade, podemos afirmar
que nela não discriminações nem privilégios seja de sexo, de laços de
parentesco, de função social ou de qualificação cultural, pois é composta pelos
apóstolos, pelas discípulas e discípulos, pela mãe e pelos parentes de Jesus. Esta é
a miniatura do Novo Povo de Deus.
408
Para podermos confirmar que na comunidade que está nascendo com a efusão do
Espírito Santo não há discriminações, basta ver como Pedro interpreta Pentecostes
através de um texto do profeta Joel (Jl 3, 1-5). Lucas coloca na boca deste
apóstolo estas palavras:
“O que está acontecendo é o que foi dito por intermédio do profeta: Sucederá nos
últimos dias, que derramarei do meu Espírito sobre toda carne. Vossos filhos e
vossas filhas profetizarão, vossos jovens terão visões e vossos velhos sonharão.
Sim, sobre meus servos e minhas servas derramarei do meu Espírito.(At 2, 16-
18)
A profecia escatológica de Joel recebe uma interpretação original e um sensus
plenior, quando Pedro faz menção ao cumprimento da efusão do Espírito
406
SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 65.
407
HAYA-PRATS. apud CONGAR, Yves. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., pp. 68-
69.
408
Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 26.
152
destinada ao futuro messiânico (v. 16).
409
Além disto, é importante destacar que
aquilo que interessa a Pedro ao usar da profecia de Joel, segundo a pneumatologia
lucana, é o fato da efusão do Espírito, se estender a todos os membros do povo de
Deus sem discriminações. Logo, este texto do profeta Joel ajudou Pedro a
encontrar um sentido para as coisas que a comunidade vivia naquele momento.
410
Na concepção do autor dos Atos, a profecia de Joel (Jl 3, 1-5) feita no período do
Pós-Exílio está se cumprindo agora. O Espírito está sendo derramado por Deus e
com isto rompendo todas as barreiras. Primeiramente as barreiras entre os povos
e nações, visto que ele é derramado “sobre toda carne”; depois as barreiras do
sexo, pois são os “filhos e as filhas que profetizarão”, e os “escravos e escravas
que receberão a efusão do espírito”; em seguida as barreiras da idade, pois os
jovens e também os anciãos terão visões (sonharão); e finalmente as barreiras das
classes sociais, pois até sobre os servos (escravos) e as servas (escravas) o espírito
será derramado. É toda esta maravilha preparada pelo profeta Joel que se encontra
agora sendo realizada. Portanto, “chegou o dia do Senhor” tão ansiosamente
esperado por todo o povo, quando não haverá mais discriminações nem
privilégios no Povo de Deus.
3.1.5.
O dom do Espírito é para que a Boa Nova trazida por Jesus seja
comunicada
Para Lucas as promessas de Jesus e aquelas proferidas pelos profetas realizam-se
no dia do Novo Pentecostes.
De repente, veio do céu um ruído como o agitar de um vendaval impetuoso, que
encheu toda a casa onde se encontravam. Apareceram-lhes, então, línguas como
de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram
repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o
Espírito lhes concedia se exprimirem. (At 2, 2-4)
É sobre a comunidade que acabamos de descrever, e que se encontra reunida no
mesmo lugar em que Jesus celebrou sua última Páscoa e a primeira Eucaristia, que
o Espírito Santo se manifesta simbolicamente como um “vendaval impetuoso” e
ainda como “línguas de fogo”. Na realidade, estes homens e mulheres vivem uma
409
Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 65.
410
Cf. BOFF, Lina. Op. cit., p. 108.
153
experiência tão forte e peculiar que não sabem relatar muito bem e por isso, Lucas
utiliza-se destes simbolismos. Sabemos que estes elementos (barulho, vento, fogo)
são típicos da manifestação de Deus em toda a Bíblia. Eles significam que Deus
está agindo. É a partir do simbolismo das “línguas de fogo” que podemos
recolher um outro aspecto importante do dom do Espírito segundo Lucas. A
língua é instrumento de comunicação, de fala, e origem à linguagem, que é o
meio de comunicação entre as pessoas. Somente depois que as “línguas de fogo”
repousam sobre os membros da primeira comunidade cristã, é que eles/as “ficam
repletos do Espírito Santo” e começam a falar em outras línguas conforme o
Espírito lhes concedia exprimirem”. Falar em outras nguas, aqui, nada tem a ver
com o fenômeno da glossolalia que aparece retratada na primeira carta de Paulo
aos Coríntios (12, 10; 14, 2-19) e em At 4, 8.31; 9, 17; 13, 9.
411
A glossolalia
significa falar em línguas que ninguém entende, e que, por conseguinte não
comunica nada. É um fenômeno que consiste numa pessoa em êxtase, proferir
sons ininteligíveis e palavras sem nexo. Estes sons se tornam compreensíveis
apenas para quem possui o carisma da interpretação (1 Cor 14, 10). A glossolalia
está em oposição ao carisma da profecia, pois o tem por fim nem a edificação
nem a instrução da comunidade, mas apenas a confirmação da presença do
Espírito divino.
412
O dom do Espírito não tem como finalidade a edificação pessoal, mas recebê-lo,
possibilita ao ser humano a comunicação do Evangelho. Possibilita que a “boa
notícia” trazida por Jesus e atualizada pela ação do Espírito transforme as
relações humanas e faça surgir a fraternidade e a partilha que proporcionam
liberdade e vida para todos.
413
Portanto, é isto o que vemos acontecer no Novo
Pentecostes, isto é, todos se entendem porque falam a linguagem do amor.
411
Esta é a compreensão de STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., pp. 29-
30. Colocamo-nos de acordo com esta interpretação. Entretanto, não podemos deixar de
acrescentar que segundo a compreensão de alguns autores este falar em outras línguas” pode ser
interpretado como o fenômeno da glossolalia. Entre eles podemos citar: HILBERATH, B. J.
Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p.434; a nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém. p.
1902; e ainda BOUWMAN. Verbete “Glossolalia” in: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 643.
412
Cf. BOUWMAN. Verbete “Glossolalia” in: VAN DEN BORN, A. Op. cit., pp. 642-643.
413
Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., pp. 29-31.
154
3.1.6.
O Espírito Santo é o protagonista da missão
Na teologia de Lucas uma relação vital entre pneumatologia e missiologia,
entre Espírito e Missão.
414
Podemos ver isto com mais clareza nas palavras de
Cristo ressuscitado que são ditas para seus discípulos e discípulas: “Mas
recebereis uma força, a do Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis minhas
testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e a Samaria, e até os confins da
terra.” (1,8) Neste versículo percebe-se facilmente o motivo dos discípulos e
discípulas receberem o mesmo Espírito que Jesus recebeu no batismo, a saber,
recebem-no para serem testemunhas, isto é, anunciadores/as de Cristo até os
“confins da terra”. Deste modo, a função do Espírito segundo os Atos dos
Apóstolos é de fato: atualizar e propagar a salvação adquirida por e em Cristo,
através do testemunho de seus seguidores/as. O Espírito, portanto, anima seus
discípulos/as para anunciá-lo.
415
Mas, o que devem estas testemunhas anunciar?
Tudo o que viram, ouviram e experimentaram da pessoa de Jesus. E, para que esta
atividade missionária possa acontecer, como destacamos, recebem o Espírito
Santo como o animador da missão que são chamados/as a cumprir. Com a
dýnamis do Espírito é que, de fato, estes homens e mulheres tornam-se capazes de
ser ‘testemunhas’ de Cristo no mundo até o seu retorno glorioso. É assim que a
missão prevista por Cristo abarca toda a história até seu zênite na escatologia.
416
3.1.7.
Comunicar a “Boa Nova” no Espírito torna a mensagem inteligível a
todos/as
Achavam-se então em Jerusalém judeus piedosos, vindos de todas as nações que
há debaixo do céu. Com o ruído que produziu, a multidão acorreu e ficou
perplexa, pois cada qual os ouvia falar em seu próprio idioma. Estupefatos e
surpresos, diziam: ‘Não são, acaso, galileus todos esses que falam? Como é, pois,
que os ouvimos falar, cada um de nós, no próprio idioma em que nascemos?
Partos, medos e elamitas; habitantes da Mesopotâmia, da Judéia e da Capadócia,
do Ponto e da Ásia, da Frigia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia
próximas de Cirene; romanos que aqui residem; tanto judeus como prosélitos,
414
Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 73.
415
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 68.
416
Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 73.
155
cretenses e árabes, nós os ouvimos anunciar em nossas próprias línguas as
maravilhas de Deus!’ Estavam todos estupefatos. E, atônitos, perguntavam uns
aos outros: ‘Que vem a ser isto?’ Outros, porém, zombavam: ‘Estão cheios de
vinho doce!’ ” (At 2, 5-13)
A narrativa de Pentecostes acrescenta que aqueles que ouviram estes homens e
mulheres, que se encontravam repletos do Espírito Santo falar em outras línguas,
ficam admirados a ponto de dizerem: “Nós os ouvimos anunciar em nossas
próprias línguas as maravilhas de Deus(v. 11b). É fundamental destacar que a
linguagem suscitada pelo Espírito em Pentecostes é compreensível porque os
discípulos e as discípulas anunciam as maravilhas de Deus. Falam a linguagem
universal do amor, da gratuidade, da partilha, da concórdia, da fraternidade, e é
exatamente por isso, que são entendidos/as por todos/as. Os Santos Padres assim,
como alguns exegetas viram neste milagre do Espírito a inversão da dispersão da
Babel onde ninguém se entendia apesar de falarem a mesma língua (Gn 11, 1-9).
Na expressão de Yves Congar: “O próprio do Espírito é, permanecendo único e
idêntico, estar em todos sem desflorar a originalidade nem das pessoas nem dos
povos, de seu gênio, de sua cultura, e fazer assim que cada um expresse em sua
própria língua as maravilhas de Deus.”
417
Portanto, a linguagem da fé, aquela
suscitada pelo Espírito de Deus é o fermento que ativa os diversos povos dentro de
suas culturas e histórias próprias. O Espírito fala na língua de todos e está
presente nas histórias de todos os povos, sempre ativando seu projeto de
liberdade e vida para todos.
418
Por isso, este Espírito, que se encontra em cada
ser humano, respeitando-o e incentivando-o em sua caminhada, possibilita que a
mensagem do Evangelho, que vem ao encontro do desejo mais profundo de todo
homem e toda mulher, que é o desejo de realização humana, seja entendida por
todos e todas.
3.1.8.
O dom do Espírito permite que o testemunho seja um testemunho
universal
Lucas ao narrar a experiência de Pentecostes tem a preocupação de afirma que se
achavam em Jerusalém judeus piedosos, vindos de todas as nações que
417
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., pp. 67-68.
418
Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 135.
156
debaixo do céu e ainda habitantes de todas as partes do mundo conhecido de então
(cf. 2,5;9-10). Esta mesma preocupação a encontramos quando Lucas narra a
Ascensão do Senhor. Como vimos acima, coloca como as últimas palavras
proferidas por Jesus Ressurreto as seguintes: Mas recebereis uma força, a do
Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém,
em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra. (1,8). Com base nestas
declarações de Lucas podemos concluir que uma das características da ação do
Espírito para ele é a comunicação do Evangelho a todas as criaturas, estejam elas
onde estiverem, isto é, em qualquer região da terra.
419
Latourelle afirma que o
Espírito derramado copiosamente sobre a comunidade vai impulsioná-la a tomar
decisões importantes e vai prepará-la para a missão além de suas próprias
fronteiras.”
420
Portanto, o dom do Espírito, que leva a pessoa a testemunhar Jesus
Cristo, faz com que esse testemunho não se detenha diante de nenhuma barreira
possível, pois é um testemunho possibilitado pelo Espírito que ultrapassa todo e
qualquer obstáculo. Logo, é o Espírito Santo de Deus que viabiliza o testemunho
universal.
421
Um alerta aqui se faz necessário: na compreensão de Lucas
testemunhar é muito mais do que simplesmente falar. Testemunhar é viver
segundo o projeto do Pai manifestado e instaurado por Jesus Cristo. É somente
este testemunho pregado e vivido, aquele que é capaz de comunicar a Boa Nova
de que Deus ama gratuitamente e salva a todo/as, sem que haja distinção alguma.
3.1.9.
O dom do Espírito faz testemunhas cheias de intrepidez
Sabemos muito bem como depois da prisão de Jesus seus discípulos se dispersam
e com medo dos judeus e dos romanos, se escondem. Depois da paixão e morte de
seu Mestre continuam escondidos até que vivem a experiência única com Jesus
ressuscitado. Apesar desta experiência maravilhosa, continuam com as portas
fechadas e com medo (Jo 20,19. 26). É somente depois da efusão do Espírito em
Pentecostes que aquele grupo de homens e mulheres amedrontados faz uma
experiência interior forte que os torna corajosos/as e com muita audácia a ponto
de serem capazes de sair anunciando a Jesus. Pentecostes torna-se, portanto, o
419
Hoje diríamos “em qualquer região do universo”.
420
LATOURELLE, R. apud BOFF, Lina. Op. cit., p. 136. Grifo nosso.
421
Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., pp. 19-21.
157
momento chave na vida da Igreja nascente.
422
A partir desse momento os
discípulos e discípulas de Jesus tornam-se testemunhas cheias de intrepidez (a
parresia).”
423
“A parresia é a liberdade, a franqueza e a audácia com que os
missionários/as do Evangelho portavam o kerygma apostólico.”
424
Podemos constatar a transformação que na postura dos discípulos e discípulas
de Jesus a partir do que vemos em Pedro. Ele que anteriormente havia negado o
Senhor, fugindo e se escondendo por medo, logo após a experiência de
Pentecostes muda de atitude. Diante de uma multidão e da caçoada daqueles/as
que dizem que o cristianismo não passa de bobagem de bêbados, com coragem e
audácia ele é capaz de fazer o primeiro anúncio (querigma) dos seguidores de
Jesus (At 2, 14-36).
“Homens de Israel, ouvi estas palavras! Jesus, o Nazareno, foi por Deus aprovado
diante de vós com milagres, prodígios e sinais, que Deus operou por meio dele
entre vós, como bem o sabeis. Este homem, entregue segundo o desígnio
determinado e a presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o pela mão dos
ímpios. Mas Deus o ressuscitou, libertando-o das angústias do Hades, pois não
era possível que ele fosse retido em seu poder. [...] A Jesus Deus o ressuscitou, e
disto nós todos somos testemunhas. Portanto, exaltado pela direita de Deus, ele
recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e o derramou, e é isto que vedes e
ouvis. [...] Saiba, portanto, com certeza, toda a casa de Israel: Deus o constituiu
Senhor e Cristo, este Jesus a quem vós crucificastes.” (At 2, 22-24. 32-33. 36)
425
Podemos dizer que com estas palavras Pedro, audaciosamente, sintetiza a essência
fundamental do cristianismo: Jesus homem justo e inocente realiza sinais de que o
Reino de Deus chegou e está libertando as pessoas, levando-lhes vida. Este
mesmo Jesus é morto porque é um perigo para a sociedade que perpetua a morte e
a injustiça. Os chefes do povo pensam livrar-se de Jesus ao matá-lo. Porém, Deus
o ressuscita e, através de seus seguidores, o Senhor continua presente e agindo de
forma multiplicada, através de seu Espírito!
426
Encontramos ainda, nos Atos dos Apóstolos, reproduzida em muitos dos
seguidores/as de Jesus esta mesma coragem que vemos aqui retratada neste
discurso de Pedro. Lucas usa várias vezes a expressão “parresia” para
422
Cf. TEPEDINO, A. M. Iniciação Teológica: Encontro com a Igreja de Jesus Cristo
(Eclesiologia)... Op. cit., p. 54
423
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 69.
424
SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 74.
425
Assim como já o fizemos anteriormente, optamos por privilegiar do Discurso de Pedro algumas
partes que nos auxiliam na busca da pneumatologia de Lucas.
426
Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., pp.36-37.
158
caracterizar o comportamento destas pessoas que, plenas do Espírito Santo, são
capazes de enfrentar um mundo hostil para levar a Boa Nova a toda parte.
427
Entre estas narrativas é digno de destaque o episódio em que Pedro e João
enfrentam o poder religioso do Sinédrio com ousadia. (At 4, 13). Anteriormente
eles haviam curado um coxo de nascença no Templo. Suprema ousadia, porque
fizeram isto em nome de Jesus e ainda por cima, dentro do Templo, local que era a
sede dos mesmos poderes que haviam condenado Jesus (At 3, 1-10). Diante do
Sinédrio cometem a maior das audácias possíveis: anunciam a ressurreição de
Jesus, aquele mesmo que havia sido condenado por este “tribunal religioso” e
entregue ao poder romano para ser morto. Pedro e João são presos até o dia
seguinte. Ninguém presencia a deliberação do Sinédrio, mas o relato nos diz que
os dois são soltos, porém ameaçados e proibidos de falar “neste nome”, isto é, não
podiam anunciar as maravilhas de Deus que Jesus havia trazido, no Espírito, para
a humanidade. Logo após serem libertados encaminham-se para junto dos seus e
elevam a voz para Deus em oração (At 4, 23-31).
428
Este é um trecho da oração
que fazem:
“Agora, pois, Senhor considera suas ameaças e concede a teus servos que
anunciem com toda intrepidez tua palavra, enquanto estendes a mão para que se
realizem curas, sinais e prodígios, pelo nome do teu servo Jesus” Tendo eles
assim orado, tremeu o lugar onde se achavam reunidos. E todos ficaram repletos
do Espírito Santo, continuando a anunciar com intrepidez a palavra de Deus.”
(At 4, 29-31).
429
um outro relato em que Lucas faz questão de confirmar que esta intrepidez
(parresia) acompanha aqueles/as que estão cheios do Espírito Santo. Faz esta
afirmação quando da primeira viagem missionária de Paulo. Juntamente com
Barnabé, Paulo vai, segundo o costume, anunciar o Evangelho na sinagoga, onde
judeus helenistas e gregos prosélitos se convertem. Lucas então afirma: “Quanto a
Paulo e Barnabé demoraram-se ali bastante tempo, cheios de intrepidez no
Senhor, que dava testemunho à palavra da sua graça e concedia que realizassem
sinais e prodígios por meio de suas mãos.” (At 14,3). Portanto,
“o livro dos Atos dos Apóstolos proclama que as testemunhas eleitas e, com base
na pregação, todas as pessoas que chegam à são repletas com o Espírito Santo.
427
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 69.
428
Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., pp. 53-56.
429
Este é mais um dos Pentecostes narrados por Lucas nos Atos dos Apóstolos.
159
Na oração, na e no batismo o Espírito Santo concede a força para a confissão
destemida e conduz a Igreja em sua caminhada missionária.”
430
Com estas palavras Bernd Jochen Hilberath confirma que na teologia do Espírito
que encontramos em Lucas, a parresia é um dos frutos do Espírito Santo.
3.1.10.
O dom do Espírito é livre para agir
Na comunidade de Samaria vive Simão. Este homem é mago ou mágico, o que
significa dizer que fabrica ilusões. Iludindo o povo, que pensa ter ele poder
divino, consegue muito dinheiro (8, 9-11). É provável que com a chegada de
Filipe, que vem evangelizar a cidade onde mora Simão, este veja naquele
evangelizador um concorrente, com isto adere logo á cristã. É bom lembrarmos
que aquilo que Filipe faz não é mágica, mas sim a manifestação da Boa Nova que
liberta.
431
Mas, na realidade o que deseja verdadeiramente Simão?
“Quando Simão viu que o Espírito era dado pela imposição das mãos dos
apóstolos, oferece-lhes dinheiro, dizendo: Daí também a mim este poder, para
que receba o Espírito Santo todo aquele a quem eu impuser as mãos.’ Pedro,
porém, replicou: ‘Pereça o teu dinheiro, e tu com ele, porque julgaste poder
comprar com dinheiro o dom de Deus!’”. (8, 18-20)
Como podemos ver as intenções de Simão não são evangélicas. Ele deseja somar
mais prestígio ao que possui e, além disto, conseguir mais dinheiro. Esta é a
verdadeira intenção dele. Simão quer ter o mesmo poder de impor as mãos e
comunicar o Espírito, para isto oferece dinheiro. Vemos então o desejo de
comprar o dom do Espírito para conseguir mais prestígio e dinheiro. Com isto
Simão estaria de posse de uma gica que seria eficiente em termos financeiros.
A resposta de Pedro é radical: o dom de Deus, isto é, o dom do Espírito Santo não
se compra (v. 20). Portanto, podemos dizer como o faz Ivo Storniolo, que Pedro
condena dois erros: o que é dom de Deus não pode ser comprado, nem vendido,
ou seja, não pode ser objeto de comércio, além disto, o dom de Deus á para
todos/as, e deve ser partilhado igualmente entre todos/as.
432
Tudo isto significa
430
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T... Op. cit., p. 435.
431
Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 80.
432
Cf. Ibid. pp. 80-81.
160
dizer que o Espírito Santo é livre para agir onde quer e sobre quem ele escolhe.
Logo, ele não está restrito a um lugar, como por exemplo, uma igreja, nem restrito
a uma pessoa, como por exemplo, os consagrados.
3.1.11.
A koinonia (comunhão) é fruto do dom do Espírito
Lucas não se refere expressamente ao Espírito Santo quando descreve a vida da
primeira comunidade cristã com as seguintes palavras “Eles mostravam-se
assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às
orações.” (At 2, 42). Apesar disto, Yves Congar pergunta se este sumário, que
resume toda a vida eclesial, e que inclui a comunhão, não é descrito por Lucas tal
como emana de Pentecostes. Portanto, se a Igreja foi lançada ao mundo através
do evento do Espírito, este anima tanto sua vida interna quanto sua vida externa.
Logo, segundo Congar, a comunhão que há entre os membros desta comunidade é
fruto da ação do Espírito Santo. Ele ainda nos alerta que “Lucas não tem uma
teologia dos efeitos e frutos do Espírito na vida do cristão, como são Paulo (Cristo
em nós)... Lucas se atém ao testemunho missionário.”
433
Mas, apesar disto
podemos inferir de seu relato que a koinonia é fruto do Dom do Espírito. Nas
palavras de Luiz Fernando Santana podemos encontrar esta mesma constatação:
“... o Espírito Santo se revela, ao mesmo tempo, como força unificante e força de
expansão da Igreja. Antes de tudo, Ele cria a unidade na Igreja; reúne sobre o
Monte Sião, conforme as profecias, a assembléia dos povos. Realiza no primeiro
núcleo da Igreja de Jerusalém a unidade espiritual entre judeus e os prosélitos de
todas as nações, em torno do único ensinamento e do mesmo Pão Eucarístico (cf.
At 2, 42 ss).”
434
É claro que Lucas quando escreve o livro dos Atos dos Apóstolos não está
interessado em fazer uma crônica ou reportagem da vida da comunidade. Sua
finalidade é teológica, apesar de não podermos negar a base histórica que em
seus escritos. O sumário de At 2, 42 é uma visão idealizada que este autor possui
da comunidade que brota do Espírito Santo. Sua intenção é a de apresentar um
projeto de como deve ser a comunidade daqueles/as que aderem ao projeto de
Jesus. Mas, que fique bem claro, para ele a comunhão fraterna imprime a
433
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 71.
434
SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 66. Grifo nosso.
161
identidade desta comunidade, sendo aquilo que a diferencia de outros grupos
sociais. Por isso, a palavra grega koinonia usada por Lucas neste relato expressa a
união dos cristãos, que se encontra baseada na mesma e no mesmo projeto de
vida. É um compromisso com Jesus, e que o Espírito Santo confirma com sua
força e luz. Este compromisso se traduz externa e concretamente pela
solidariedade material: Todos os que abraçavam a eram unidos e colocavam
em comum todas as coisas; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o
dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um.” (2, 44-45). Na
compreensão de Lucas aderir a Jesus no Espírito suscita transformações radicais
na comunidade. Somente assim o projeto de Deus (liberdade e vida para todos)
pode ser concretizado no mundo.
435
3.1.12.
A perseverança é igualmente um fruto do dom do Espírito
O elemento principal do sumário At 2, 42 é a perseverança. “A comunidade
persevera no empenho e no compromisso assumido por ocasião da conversão.
Esta não foi mero fogo de palha, mas a porta de entrada para uma nova forma de
viver, sempre se aprofundando e se expandindo.”
436
Como podemos notar a
comunidade era perseverante (assídua) ao ensinamento dos apóstolos, era
igualmente perseverante à comunhão fraterna, assim como à fração do pão e
finalmente perseverante às orações. Quem possibilita que esta primeira
comunidade cristã viva desta forma, apesar de todas as dificuldades que sabemos
ter enfrentado? É o Espírito Santo que a todo cristão/ã esta força para ser fiel
ao projeto de Deus comunicado ao mundo por Jesus de Nazaré. Sem o ânimo que
vem do Espírito, aquela comunidade não teria a capacidade de perseverar, pois
tudo era muito novo e difícil de ser vivido e praticado.
3.1.13.
O dom do Espírito possibilita que a participação fundamental das
mulheres seja uma realidade que marca toda Igreja nascente
Para Lucas “a participação das Mulheres nas atividades que dizem respeito à obra
do Senhor se não através da comunidade de Jerusalém, mas de todas as que
435
Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., pp. 42-43.
436
Ibid. p. 42. Grifo nosso.
162
se formam a partir do anúncio feito por aquela.”
437
Estas mulheres participam,
ao lado dos homens, das primeiras comunidades cristãs e isto é confirmado por
alguns textos de Atos, onde encontramos Lucas destacando esta presença
feminina. No primeiro deles, mencionado acima (1, 14-15), este autor nos diz
que homens e mulheres recebem o batismo do Espírito Santo. Assim como em
At 8, 12 vemos Lucas confirmando esta mesma prática com as seguintes palavras:
“Quando, porém, acreditaram em Filipe, que lhes anunciara a Boa Nova do Reino
de Deus e do nome de Jesus Cristo, homens e mulheres faziam-se batizar.” A
partir destes dois textos podemos concluir que homens e mulheres, recebendo o
batismo, formavam a igreja nascente. Mas, como é a atividade missionária desta
comunidade recém formada? É outro texto de Atos que nos ajuda a responder esta
questão. A partir dele podemos ver que a propagação da mensagem cristã é tão
fundamental, que toda ajuda é bem-vinda (cf. 2, 17-18: texto destacado no item
acima). Portanto, a concepção de ministério como serviço, para aquela
comunidade, não se encontra restrita a um determinado sexo, pois todos/as estão
empenhados e são aceitos/as como ministros da divulgação da mensagem do
Reino.
uma outra questão que podemos levantar: como acontecia a adesão à igreja
primitiva? É ainda Lucas que nos responde. Diz ele em At 5, 14: “Mais e mais
aderiam ao Senhor, pela fé, multidões de homens e mulheres.” Esta menção de
Lucas nos mostra que na igreja primitiva, muitos homens e muitas mulheres
aderiam à proposta de Jesus Cristo. Faziam esta adesão livremente e pela fé.
Podemos ainda nos perguntar: como agiam as comunidades cristãs diante da
perseguição? Lucas ao falar de Saulo, como perseguidor dos cristãos/ãs, em At 8,
3 afirma “Quanto a Saulo, detestava a Igreja: entrando pelas casas, arrancava
homens e mulheres e metia-os na prisão.” Podemos perceber que o Dom do
Espírito levava homens e mulheres a lutar ombro a ombro para colaborar na
construção do Reino. Faziam isto com coragem e assumindo todas as
conseqüências possíveis.
Além daquilo que destacamos, podemos ainda perceber que as mulheres
exerciam funções de liderança nas comunidades primevas. Lucas destaca a
presença de Priscila, ao lado de seu marido Áquila, em Éfeso, como líder desta
437
SAOÛT, Y.; MILITELLO, C.; AMALADOS, M. apud BOFF, Lina. Op. cit., p. 108. Grifo
nosso.
163
comunidade (18,18), assim como nos fala de Lídia de Tiatira como chefe de
algumas das igrejas domésticas tão comuns no início da Igreja (16, 14).
Por todos estes pontos que Lucas faz questão de destacar em Atos, podemos
afirmar que a presença atuante da mulher num mundo sexista como o da
Palestina do século I foi valorizada devido ao dom do Espírito Santo. Isto leva-nos
a perceber que os primeiros cristãos/ãs haviam compreendido a mensagem de
Jesus Cristo: Deus é libertador e em seu Reino, homens e mulheres, não vivem
mais relações de dominação/dependência patriarcais, mas são pessoas que vivem
em presença do Deus vivo. Além disto, haviam captado através da práxis de Jesus,
onde imperava a igualdade de homens e mulheres, que todos os seres humanos
são chamados à idêntica vocação de filhos/as de Deus. Enfim, haviam
compreendido, pela ação do Espírito Santo, que o Deus revelado por e em Jesus
não suporta opressão, inferiorização, marginalização e segregação de nenhum de
seus filhos e filhas.
438
3.1.14.
O Espírito Santo é o conselheiro da Igreja nascente para o
discernimento sobre a vontade de Deus
Lucas não concebe o Espírito Santo separado da comunidade. Ele é o motor, a
força, a luz que guia e sustenta toda comunidade cristã e cada membro dela em
particular.
439
É ele que guia a Igreja em cada discernimento a ser tomado,
ilumina as decisões e corrobora o testemunho dos evangelizadores com sinais. É
esta “Força” misteriosa que cumprindo as promessas feitas por Jesus após sua
ressurreição (cf. At 1,8), assiste e conduz a comunidade de fé.
440
Podemos
constatar isto quando Lucas narra o “Concílio” de Jerusalém (15, 1-35). Na
análise de Ivo Storniolo “estamos no momento central do livro dos Atos e da
história da Igreja: a primeira reunião deliberativa para esclarecer e decidir a
teoria e a prática do cristianismo.”
441
Este é um momento decisivo para a Igreja
nascente que se questiona após a primeira viagem missionária de Paulo e Barnabé:
para ser cristão, o pagão que abraça a em Jesus Cristo fica obrigado ao ritual da
438
TEPEDINO. A. M. As discípulas de Jesus... Op. cit., pp. 125-127. Para aprofundar o tema das
mulheres como missionárias a partir do livro dos Atos dos Apóstolos recomendamos consultar
BOFF, Lina. Op. cit., pp.118-134.
439
Cf. BOFF, Lina. Op. cit., p. 138.
440
Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 69.
441
STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 131. Grifo nosso.
164
circuncisão e à observância da lei judaica? Em outras palavras: para ser cristão/ã é
preciso antes se converter ao judaísmo? Se isto é necessário, então, a salvação
trazida por Jesus depende da pertença ao povo de Israel. Como podemos observar
a questão é fundamental para o cristianismo que começa a refletir sobre sua
própria identidade. Para nós, tais questões são tão óbvias que, muitas vezes não
penetramos a fundo na essência de tal momento e por isso, perdemos o que está aí
acontecendo e sendo gestado pela ação amorosa do Espírito. É neste momento
crucial, e diante de questões essenciais apresentadas à Igreja de Jerusalém, que
Pedro apresenta sua posição. Este é o argumento decisivo apresentado por ele: os
pagãos/ãs receberam o mesmo Espírito Santo que os judeus convertidos. Deus
“não faz distinção entre nós e eles, purificando seus corações pela fé.” (15, 9).
Tiago, diante da posição de Pedro, seu parecer com as seguintes palavras “Eis
porque, pessoalmente, julgo que não se devam molestar aqueles que, dentre os
gentios, se convertem a Deus.” (15, 19). O fruto dessa primeira reunião é o
esclarecimento de que a salvação cristã depende exclusivamente daem Jesus, e
que não é necessário antes ser judeu para depois tornar-se cristão/ã.
442
O que para nossa reflexão é fundamental destacar desta controvérsia apresentada à
Igreja de Jerusalém é o versículo 28 da carta apostólica escrita pelos apóstolos e
anciãos desta cidade (15, 22-29). Nela lemos “De fato, pareceu bem ao Espírito
Santo e a nós não vos impor nenhum outro peso além destas coisas necessárias:”
Nesta fórmula pareceu bem ao Espírito Santo e a nós encontra-se expressa a
consciência daquela comunidade de que nem ela como um todo, nem menos quem
a preside, dispõem do Espírito Santo. Na realidade é ele quem guia a comunidade
por caminhos novos e impensados, desde que cada membro se abra a sua ação.
443
Logo, é o Espírito Santo quem possibilita à Igreja (o “nós” da fórmula destacada
acima) conhecer a vontade de Deus sobre o caminho que deve seguir em cada
momento histórico. Ele é o conselheiro da Igreja. Enfim, ele é o próprio
Discernimento em pessoa!
442
As restrições de 15,20 devem datar de outra ocasião e Lucas escrevendo tempos depois juntou
tudo num único momento. Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit.,
pp.131-. 133.
443
Cf. BOFF, Lina. Op. cit., p. 138.
165
3.1.15.
O dom do Espírito possibilita que a evangelização seja inculturada
O episódio de Paulo em Atenas, centro cultural e religioso do mundo grego, ocupa
outro lugar central no livro dos Atos. Com o discurso deste apóstolo, Lucas
procura demonstrar que o anúncio cristão está penetrando em outra cultura.
Deseja com isto mostrar como este anúncio será acolhido num ambiente idolátrico
e culturalmente importante.
444
“De pé, então, no meio do Areópago, Paulo falou: ‘Cidadãos atenienses! Vejo
que, sob todos os aspectos, sois os mais religiosos dos homens. Pois, percorrendo
a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um
altar com a inscrição : Ao Deus desconhecido. Ora bem, o que adorais sem
conhecer, isto venho eu anunciar-vos.
O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, o Senhor do céu e da terra, não
habita em templos feitos por mãos humanas. Também não é servido por mãos
humanas, como se precisasse de alguma coisa, ele que a todos a vida,
respiração e tudo o mais. De um ele fez toda a raça humana para habitar sobre
toda face da terra, fixando os tempos anteriormente determinados e os limites do
seu hábitat. Tudo isto para que procurassem a divindade e, mesmo se às
apalpadelas, se esforçassem por encontrá-la, embora não esteja longe de cada um
de nós. Pois, nele vivemos, nos movemos e existimos, como alguns dos vossos,
aliás, já disseram: Porque somos também de sua raça.
Ora, se nós somos da raça divina, não podemos pensar que a divindade seja
semelhante ao ouro, à prata, ou à pedra, a uma escultura de arte e engenho
humanos.
Por isso, não levando em conta os tempos da ignorância, Deus agora notifica aos
homens que todos e em toda parte se arrependam, porque ele fixou um dia no
qual julgará o mundo com justiça por meio do homem a quem designou, dando-
lhe crédito diante de todos, ao ressuscitá-lo dentre os mortos.’ ” (17, 22-31)
Este discurso de Paulo nos apresenta o modelo da verdadeira evangelização
inculturada.
445
Podemos destacar como passos importantes desta evangelização:
a) Paulo parte da realidade que havia observado. Os gregos têm muita
religiosidade, mas não conhecem o Deus verdadeiro, que para eles é
desconhecido. É para esse “Deus desconhecido” que Paulo chama a atenção
dizendo que é a ele que anuncia (vv. 22-31); b) Depois passa a falar desse Deus
como sendo o Deus único, criador de tudo e autor da vida. Este Deus sendo o
autor da vida, não pode ser encerrado num santuário e nem receber nada das mãos
humanas. Com isto Paulo tenta aproximar as idéias concebidas pelos filósofos
444
Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 149.
445
Para o aprofundamento do tema “inculturação” indicamos o livro de MIRANDA M. F.
Inculturação da Fé: uma abordagem teológica. São Paulo: Loyola, 2001.
166
gregos das revelações contidas nas Escrituras (vv. 24-26); c) Paulo continua e
mostra aos atenienses a finalidade da vida humana. Diz ele que esta finalidade,
buscar a Deus, encontra-se no homem. O homem pode descobri-lo nas realidades
e acontecimentos como que apalpando, pois tudo testemunha a presença e a ação
de Deus. É como se a humanidade habitasse num meio divino, pois “nele vivemos,
nos movemos e existimos”. Para se aproximar ainda mais de seus ouvintes Paulo
cita um poeta grego: “Somos da raça do próprio Deus.” A partir desta citação
Paulo explica que se somos da raça de Deus, não tem sentido adorar coisas,
mesmo que sejam preciosas (vv. 27-29); d) Somente a partir deste momento é que
Paulo faz o anúncio de Jesus Cristo e convida seus ouvintes à conversão (propõe
a vida nova que significava deixar os ídolos para servir o Deus vivo). Finalmente,
anuncia a ressurreição de Jesus, a grande novidade de seu anúncio.
446
Os gregos
entenderam muito bem a mensagem trazida por Paulo e a rejeitaram. Por isso,
Paulo se retira do meio deles (vv. 30-31). Entretanto, Lucas faz questão de
destacar que alguns acolheram o anúncio e se converteram (v. 34). Sendo assim, a
mensagem cristã começa a se abrir aos centros mais influentes daquela época,
atingindo, posteriormente, Roma e o extremo Ocidente. Podemos nos perguntar:
quem é o possibilitador desta abertura, desta expansão?
“Tal expansão, que significa muito mais do que uma mera difusão geográfica,
capaz de quebrantar até mesmo barreiras sociais, étnicas e religiosas, não seria
possível sem uma efetiva ação d’Aquele que torna a Igreja missionária, o
Espírito Santo.
447
Portanto, é a ação do Espírito Santo que possibilita que a Igreja missionária seja
capaz de comunicar a Boa Nova a partir da realidade que encontra, mas sem com
isto perder sua essência e identidade.
3.2.
A Pneumatologia Paulina a partir da experiência histórica com o
Espírito Santo
Toda a pneumatologia paulina brota da própria experiência de Paulo, homem de fé
incontestável e vivência cristã inquestionável, e igualmente das comunidades
446
Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 150-152.
447
SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 74. Grifo nosso.
167
cristãs com as quais ele mantém contato. Ninguém questiona a posição deste
homem como o maior pensador da história do cristianismo nascente, e como o
principal pneumatólogo do Segundo Testamento. Além disto, não podemos negar
que os grandes movimentos do pensamento cristão se desenvolveram sempre com
uma base em Paulo.
448
Alguns chegam a afirmar, com demasiado exagero, que o
cristianismo histórico é mais paulino do que cristão. Isto de certa forma chega a
ser uma ironia, visto que “todo o seu ministério foi dedicado a ocultar a si mesmo
por trás de Cristo com quem se identificava.”
449
Como vivem as comunidades fundadas e orientadas por este homem apaixonado
por Jesus e pela oferta gratuita de salvação que ele traz à humanidade? Como
experimentam a ação do Espírito de Deus e descobrem o rumo que o Espírito
traça para suas vidas? Como são capazes de discernir que espírito está agindo em
suas vidas, visto que nem tudo o que parecia ser do espírito era do Espírito de
Jesus? Como Paulo é capaz de perceber os critérios para fazer tal discernimento?
Podemos afirmar que é a partir daquilo que vive este homem, e daquilo que ele
observa nas comunidades cristãs, que irá lançar as bases da pneumatologia cristã.
Conhecemos Paulo e o pensamento paulino, sobretudo, por meio de suas cartas.
Isto porque os Atos dos Apóstolos, embora tragam muitas informações sobre a
obra e a personalidade de Paulo, obedecem a uma intenção mais teológica do que
estritamente historiográfica. Já pudemos destacar que nesse livro, concebido como
seqüência ou segunda parte do Evangelho, Lucas procura mostrar a atuação do
programa confiado por Jesus a seus discípulos/as antes de sua ascensão ao céu.
450
Além disso, é preciso lembrar-nos que as cartas de Paulo na realidade são uma
fase posterior de sua vida e das comunidades às quais escreve. Elas surgem da
impossibilidade de realizar uma visita pessoal onde levaria suas orientações às
comunidades em dificuldade e que, na grande maioria das vezes havia fundado
anteriormente. Desta forma, suas cartas são determinações ou linhas básicas para
problemas pastorais específico. Com isto Paulo busca esclarecer e animar os
grupos que haviam aderido ao anúncio de Jesus Cristo.
451
Estas orientações
continuam atuais, pois nos parece que as dificuldades enfrentadas pelas
448
Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., pp. 703-704.
449
Ibid. p. 703.
450
Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 5.
451
Cf. BORTOLINI, J. Como ler A Primeira Carta aos Tessalonicenses: Fé, Amor e Esperança.
São Paulo: Paulus, 1991. pp. 7-8.
168
comunidades no início do caminhar da Igreja continuam sendo muito parecidas
com as que enfrentamos ainda hoje. É claro que para aquelas comunidades, que
começam a trilhar um caminho novo, tudo é muito mais incerto, e, por isso, o
deixar-se conduzir pelo Espírito é fundamental. Coisa que continua ainda hoje
essencial para a vida da Igreja. É esta experiência carismática, que lentamente foi
sendo captada e discernida que encontramos relatadas nas epístolas paulinas.
Entretanto, não podemos esperar encontrar aí uma teologia do Espírito Santo
elaborada sistematicamente. Não nos esqueçamos que estamos nos albores do
cristianismo. Apesar disto, é possível colher de seus escritos os principais pontos
de sua pneumatologia. É o que nos propomos a seguir, tendo como nossa linha
mestre a afirmação de Bernd Jochen Hilberath que aponta como centro da teologia
paulina a concepção de que:
“O Crucificado Ressurreto em sua existência pneumática, que foi enviado pelo
Pai em semelhança de carne para romper o poder do pecado, possibilita uma vida
nova, que não esmais sob as condições da carne e da lei impotente por causa
disso, mas segue a lei do Espírito e da vida em Cristo Jesus’ (cf. Rm 8, 2s).
Quem se vincula a esse Senhor ‘constitui com ele um só espírito’ (1 Cor 6,
17).”
452
A seguir destacamos as principais características da reflexão paulina sobre o
Espírito Santo e os critérios de discernimento que este apóstolo vai cunhando a
partir de sua prática pastoral.
3.2.1.
O primeiro fruto do Espírito, no tempo, é a Ressurreição de Cristo
dentre os mortos, antecipação da Nova Criação
Em sua carta aos Romanos por duas vezes Paulo diz que a ressurreição de Cristo é
fruto do Espírito: “estabelecido Filho de Deus com poder por sua ressurreição
dos mortos, segundo o Espírito de santidade, Jesus Cristo nosso Senhor,” (1,4) e
ainda se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em
vós, aquele que ressuscitou Jesus Cristo dentre os mortos dará vida também a
vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós.” (8,11). Para
Paulo foi o Espírito da vida que animou Jesus possibilitando sua ressurreição.
452
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 421
169
Jürgen Moltmann ao comentar sobre esta percepção de Paulo, nos mostra que ela
é enfatizada de maneira particular nos testemunhos cristãos mais antigos (cf. Rm
1,1-4; 1 Tm 3,16; 1 Pd 3,18), estando em consonância com a apresentação da
ação temporal do Espírito segundo Ezequiel (cap. 37). Como vimos
anteriormente, Ezequiel no capítulo 37 de seu livro, nos apresenta o Espírito como
uma criação que ressuscita os mortos e traz vida. Portanto, para os testemunhos
cristãos primitivos, e em especial para a pneumatologia paulina:
“Se Cristo, em nome de todos e à frente de todos, ‘foi despertado dos mortos’,
então o agir nele do Espírito que ressuscita e que vivifica tem que ser entendido
como a antecipação e o início da nova criação do mundo no final dos tempos.
Cristo foi ressuscitado pela ruah Jahwe, a divina força da vida, de modo que sua
ressurreição e sua presença com ‘aquele que vive’ é a revelação do Espírito de
Deus, que de transformar este mundo perecível num mundo de vida eterna.
453
Esta consciência de Paulo encontra sua raiz última nas aparições do Ressuscitado
que foram experimentadas pelas mulheres, pelos discípulos, pelo próprio Paulo e
pelo João do Apocalipse. Nestas experiências excepcionais estes homens e
mulheres, são possuídos pelo Espírito da vida e Jesus lhes aparece no esplendor
da glória e do poder divinos. Na contemplação do Cristo ressurreto todos
experimentam a força vivificante do Espírito, assim como, é esta força vivificante
que os permite perceber que aquele mesmo que foi morto está plenamente vivo.
454
Portanto, é a partir de sua própria experiência pessoal, do relato da experiência
com o ressuscitado que alguns/as viveram e, ainda, com base na tradição profética
(Ez 36) que Paulo é capaz de perceber que o Espírito que ressuscita Jesus,
possibilita o novo nascimento de tudo quanto vive e a Nova Criação de todas as
coisas.
3.2.2.
A vida segundo o Espírito
Se o Espírito é vida e comunica vida para todos/as que estão condenados/as à
morte,
455
podemos afirmar que na pneumatologia paulina “sob formas variadas, a
experiência do Espírito é no fundo sempre a mesma: uma existência condenada e
453
MOLTMANN, J. Op. cit., p. 72.
454
Cf. Ibid.
455
Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., p. 535.
170
já marcada pela morte que lugar à vida.
456
Mas, para Paulo isto não acontece
de maneira mágica, pois essa vida que nos é dada gratuitamente, “nos é dada na
luta, porque neste mundo temos do Espírito ainda apenas ‘o penhor’ (2 Cor 1,22;
5,5; Ef 1,14) e as ‘primícias’ (Rm 8,23).”
457
Paulo de forma paradoxal no início do capítulo 8 da carta aos Romanos afirma
que “A Lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da
morte.” (v.2). Em todo este capítulo ele pretende esclarecer aos romanos que eles
estão libertos da Lei e de tudo o que ela implica. Como então falar de Lei do
Espírito que liberta da Lei? Estaria Paulo substituindo uma Lei por outra? Na
realidade Paulo entende que a Lei do Espírito se identifica com o próprio Espírito
e que este é a força libertadora que possibilita os que crêem se libertarem do
regime da lei, do pecado e da morte. A seguir ele trabalha uma antítese de dois
projetos de existência:
“Com efeito, os que vivem segundo a carne desejam as coisas da carne, e os que
vivem segundo o espírito, as coisas que são do espírito. De fato, o desejo da carne
é a morte, ao passo que o desejo do espírito é a vida e a paz, uma vez que o
desejo da carne é inimigo de Deus: pois ele o se submete à lei de Deus, e nem
pode, pois os que estão na carne não podem agradar a Deus. Vós não estais na
carne, mas no espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós, pois quem não
tem o Espírito de Cristo não pertence a ele. Se, porém, Cristo está em vós, o
corpo está morto, pelo pecado, mas o Espírito é vida, pela justiça. E se o Espírito
daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que
ressuscitou Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais,
mediante o seu Espírito que habita em vós.
Portanto, irmãos, somos devedores não à carne para vivermos segundo a carne.
Pois se viverdes segundo a carne, morrerei, mas se pelo Espírito fizerdes morrer
as obras do corpo, vivereis.” (Rm 8, 5-13)
Todo o capítulo 8 desta carta pode ser resumido na expressão “a vida no Espírito”.
Na perícope acima Paulo quer deixar claro que o Espírito é vida e comunica a
vida.
458
Com tal objetivo mostra que existem dois projetos de existência: a “vida
segundo a carnee a “vida segundo o espírito”. Estas duas expressões usadas por
Paulo já causaram muitos mal entendidos dentro e fora do cristianismo. Isto
aconteceu no início do cristianismo e, infelizmente, ainda acontece nos dias de
hoje, a partir da visão dualista, que penetrou na cristã devido à necessária
456
GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 303. Grifo
nosso.
457
GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus” in: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., pp. 303-304.
458
Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., p. 535.
171
mediação cultural do helenismo. Este dualismo acabou inspirando um
espiritualismo desencarnado,
459
algo totalmente contrário ao pensamento cristão
e paulino. Portanto, se faz necessário esclarecer que para o “apóstolo dos gentios”
o vocábulo sárx, “carne”, está associado ao “pecado”, à “fraqueza” ou
“impotência”, e à “morte” (vv. 3. 6. 13). Desta forma, a carne, na perspectiva
paulina, se opõe ao Espírito e a Deus (vv. 7.8). Paulo não opõe sôma, “corpo”, a
pneuma, “espírito”. Podemos confirmar isto, a partir do texto acima, onde ele
chega a dizer que diferentemente da carne, o corpo está destinado à ressurreição
graças à presença do Espírito (v. 11). Para Paulo duas lógicas contrapostas
que inspiram as pessoas que vivem “segundo a carne” e aquelas que vivem
“segundo o Espírito”. São dois projetos de vida antitéticos: um conduz à morte e
o outro, ao contrário, conduz à vida e à paz.
460
Concordando com este
pensamento José Bortolini nos esclarece que para Paulo, carne’ é a pessoa
abandonada a si própria e a seu egoísmo, fazendo de si mesma um ídolo ou
adoradora de ídolos. Quem vive segundo a carne” põe-se como centro de tudo,
pautando sua vida por critérios contrários aos de Jesus, que foram os critérios da
doação e entrega aos outros. De maneira oposta, a “vida segundo o Espírito” é a
vida vivida como Jesus a viveu, doando-se plenamente. Paulo entende que é o
mesmo Espírito que animou toda a vida de Jesus, que agora se manifesta na vida
dos cristãos/ãs, ajudando-os a recordar tudo o que o Mestre fez, a fim de que
possam dar continuidade ao projeto de Deus. “Ser existência espiritual significa
para Paulo: ‘Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim’ (Gl 2,20).
461
Sendo assim, uma incompatibilidade entre vida segundo o Espírito” e a vida
segundo a carne”, antítese que encontramos ao longo dos escritos de Paulo. A
459
Espiritualismo desencarnado é o cultivo do espírito à custa da negação ou desvalorização da
corporeidade. Esta é uma deturpação decorrente do dualismo e que penetrou na cristã. Segundo
Alfonso García Rubio na verdadeiramente cristã “O corpo deve ser valorizado e cuidado, pois
faz parte da perfeição do ser humano. O corpo, convém insistir, é comunicação e expressão,
mediação do encontro-relação com as outras pessoas, com o mundo e certamente com Deus.
Todavia, a corporeidade é uma dimensão a ser integrada na globalidade de dimensões que é o ser
pessoal. O cuidado e a preocupação com o corpo deve estar a serviço do projeto pessoal de vida. A
acentuação unilateral do valor da corporeidade empobrece e mutila o ser humano tanto quanto a
acentuação unilateral do valor da dimensão espiritual.” GARCÍA RUBIO, A. Evangelização e
maturidade afetiva. São Paulo: Paulinas, 2006. p. 101.
460
Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., pp. 535- 536.
461
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 424.
172
primeira conduz à vida e a segunda conduz à morte.
462
Portanto, o Espírito que é
vida, nos conduz à Vida.
3.2.3.
Paulo tem consciência que seu ministério apostólico e as
comunidades cristãs transcorrem sob a ação do Espírito Santo
Vejamos o que nos diz Paulo no primeiro escrito do Segundo Evangelho e,
obviamente, no primeiro texto escrito por ele que chegou às nossas mãos:
“Sabemos, irmãos amados de Deus, que sois do número dos eleitos porque o
nosso Evangelho vos foi pregado não somente com palavras, mas com grande
eficácia no Espírito Santo e com toda convicção.” (1 Ts 1, 4-5). Ainda nesta
mesma linha de pensamento podemos destacar as palavras de Paulo aos coríntios:
“minha palavra e minha pregação nada tinham da persuasiva linguagem da
sabedoria, mas eram uma demonstração do Espírito e poder, a fim de que a vossa
fé não se baseie na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus.” (1 Cor 2, 4-5).
Portanto, para Paulo o verdadeiro ministério apostólico transcorre sob a ação
do Espírito Santo. Além disso, o apóstolo dos gentios tem certeza de que as
comunidades cristãs são igualmente impulsionadas pela ação do Santo Espírito. É,
sobretudo, na comunidade de Corinto onde se encontra o quadro mais exuberante
da espiritualidade carismática e da fecundidade de dons e carismas do Espírito
vividos pelos fiéis cristãos/ãs da primeira hora. A partir desta comunidade
podemos traçar a dimensão pneumático-carismática da Igreja nascente, tão cara à
teologia paulina e de extrema atualidade para os cristãos/ãs que ousam desvelar o
mistério de Deus que intervém no mundo, pela ação de seu Espírito. Para Paulo o
Espírito Santo é uma presença operante nas comunidades cristãs.
463
Se aplicarmos hoje este princípio paulino podemos afirmar que o verdadeiro
ministério da Igreja acontece quando o ministro/a ordenado ou não, ou o/a
agente pastoral, se este ou esta se deixa conduzir pela ação do Espírito Santo. Sem
isso o que acontece é simplesmente vaidade pessoal, é retórica vazia que muitas
vezes reproduz na comunidade cristã e no mundo, o tipo de sociedade injusta e
desigual que o cristianismo busca transformar.
462
Cf. BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos romanos: o evangelho é a força de Deus que salva.
São Paulo: Paulus, 1997. pp. 57-58.
463
Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., pp. 76-77
173
3.2.4.
O dom do Espírito se realiza na economia da fé e não da lei
Paulo encontra-se diante da ofensiva dos missionários judeu-cristãos que se
manifesta na Galácia. Eles são os judaizantes, pessoas que estão semeando
confusão nas Igrejas desta região querendo deturpar o Evangelho de Cristo (Gl 1,
6-7). Desta forma, ameaçam a liberdade do Evangelho. Eles pregam que a
condição prévia para alguém fazer parte do povo dos salvos é a circuncisão, que
Deus exigiu de Abraão e de sua descendência. Logo, os judaizantes, defendem
que a fé em Jesus Cristo não pode prescindir das “obras da lei”, a saber, a
observância de todas as prescrições dadas por Deus a seu povo. A documentação
mais ampla e detalhada que temos sobre esta “crise” se encontra na carta enviada
por Paulo aos gálatas. Nela, Paulo precisa esclarecer dois pontos fundamentais: o
primeiro é sobre sua legitimidade e autoridade como Apóstolo ou “servo de
Cristo”, e o segundo diz respeito à “liberdade do Evangelho”.
464
Para nosso
objetivo é no segundo ponto que devemos nos deter. Os gálatas acolheram com
grande entusiasmo esta Boa Notícia de vida nova e liberdade trazida por Jesus e
possibilitada pelo Espírito. Paulo lembra-lhes que “no passado, quando vocês
não conheciam a Deus, eram escravos de deuses, que na realidade não são
deuses” (Gl 4,8). Depois do anúncio trazido por este apóstolo acontece uma
maravilhosa transformação na vida dos gálatas, pois os excluídos/as começam a
fazer parte do povo de Deus, sem precisar passar pela circuncisão e pela Lei de
Moisés.
465
Paulo, então, pergunta a estes homens e mulheres, que se encontravam
desorientados diante da investida dos judaizantes:
“Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou, a vós ante cujos olhos foram
delineados os traços de Jesus Cristo crucificado? isto quero saber de vós: foi
pelas obras da Lei que recebestes o Espírito ou pela adesão à fé? São tão
insensatos que, tendo começado com o espírito, agora acabais na carne? Foi em
vão que experimentastes tão grandes coisas? Se é que foi em vão! Aquele que vos
concede o Espírito e opera milagres entre vós o faz pelas obras da Lei ou pela
464
Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., pp. 437- 439.
465
Cf. BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos Gálatas: Evangelho é liberdade. 2 ed. São Paulo:
Paulus, 1991. p. 34.
174
adesão da fé?”[...] “Ora, a Lei não é pela fé, mas: quem pratica essas coisas por
ela viverá. Cristo nos resgatou da maldição da Lei tornando-se maldição por nós,
porque está escrito: Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro, a fim de que
a bênção de Abraão em Cristo Jesus se estenda aos gentios, e para que, pela
recebamos o espírito prometido.” (Gl 3, 1-5. 12-14)
Paulo lembra-lhes que antes deles conhecerem a Lei, (não esqueçamos que eles
eram gentios) Jesus Cristo morreu por eles/as, a fim de salvá-los/as deste mundo
de escravidão. Crendo em Jesus, isto é, pela fé, receberam o Espírito Santo e
fizeram experiências extraordinárias de vida nova. Entretanto, dando ouvidos aos
judaizantes estão caindo, insensatamente, na escravidão da Lei, o que torna inútil
a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
466
Além disto, mostra aos gálatas que
o dom do Espírito, em dependência da redenção pela cruz de Cristo, realiza a
promessa feita a Abraão, promessa ligada à e não à Lei.
467
Paulo continua sua
argumentação lembrando-lhes que:
É para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei livres, portanto, e não
vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão. Atenção! Eu, Paulo, vos digo:
se vos fizerdes circuncidar, Cristo de nada vos servirá. Declaro de novo a todo
homem que se faz circundar: ele é obrigado a observar toda lei. Rompestes com
Cristo, vós que buscai a justiça na Lei; caíste fora da graça. Nós, com efeito,
aguardamos, no Espírito, a esperança da justiça que vem da . Pois, em Cristo
Jesus, nem a circuncisão tem valor, nem a incircuncisão, mas apenas a agindo
pela justiça.” (Gl 5,1-6.).
Toda esta argumentação de Paulo, e por que não dizer, toda a carta aos gálatas se
resume numa única frase: “Cristo nos libertou para que sejamos verdadeiramente
livres”.
468
“Escravidão” é desta forma que Paulo descreve a vida baseada na Lei.
Enquanto que Liberdade” para ele é a vida segundo o Espírito, pois “onde se
acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2 Cor 3, 17b).
469
3.2.5.
O dom do Espírito nos liberta para a verdadeira Liberdade
Apesar de Paulo estar convicto de que a liberdade é uma das características
fundamentais do Espírito havia muito mal entendido entre os coríntios em relação
a esta liberdade. A ruptura com o passado favorecia com que algumas pessoas da
466
Cf. Ibid. p. 33.
467
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 49.
468
CF. BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos Gálatas... Op. cit., p. 29
469
Ibid. p. 36.
175
comunidade se sentissem finalmente livres do jugo da Lei, chegando a dizer:
“Tudo me é permitido!” (1 Cor 6,12). Desta forma em nome da liberdade do
Espírito, faziam o que bem entendiam e chegavam a atitudes que nem os pagãos
tinham: “Só se ouve falar de imoralidade entre vós, e imoralidade tal que não se
encontra nem entre os gentios: um de vós vive com a mulher de seu pai!” (1Cor
5,1).
470
As pessoas que assim agiam acreditavam que podiam fazer tudo o que
queriam. Este é o risco que se corre quando a vida no Espírito fica solta e
desligada da história do povo e da pessoa de Jesus.
471
Paulo então precisa alertar
os coríntios dizendo “Tudo me é permitido, mas não me deixarei escravizar por
coisa alguma” (v. 12b). Portanto, a Liberdade que nos vem do Espírito é aquela
que nos torna livres para escolher aquilo que não nos escraviza.
3.2.6.
A ação do Espírito é universal
Paulo encontra-se diante do dilema pelo qual passa a comunidade dos gálatas:
deve-se viver sob o regime da Lei que aprisiona, ou sob o regime da em Cristo
que liberta o cristão/ã de todas as amarras do legalismo? Esta maravilhosa
liberdade conquistada por Cristo é infundida pelo Espírito no batismo de todos/as
que fazem esta adesão pela fé e que o desejam livremente. É a partir desta
dificuldade que o “apóstolo dos gentios” amplia a ação do Espírito Santo a
todos/as:
“Antes que chegasse a fé, nós éramos guardados sob a tutela da Lei para a que
haveria de se revelar. Assim a Lei tornou nosso pedagogo até Cristo, para que
fôssemos justificados pela fé. Chegada, porém, a fé, não estamos mais sob
pedagogo; vós todos sois filhos de Deus pela em Cristo Jesus, pois todos vós
que foste batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não judeu nem grego,
não escravo nem livre, não homem nem mulher, pois vós sois um em
Cristo Jesus” (Gl 3, 23-28).
Paulo afirma no v. 28, que é uma fórmula batismal da igreja nascente, que depois
de receber o Espírito no batismo nos revestimos de Cristo e, portanto, não existem
mais diferenças entre aqueles/as que recebem o mesmo Espírito. Ele é derramado
sobre todos/as não fazendo distinção de pessoa. Não podemos esquecer que o rito
470
MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In:
TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 28.
471
Cf. Ibid. p. 30.
176
de iniciação judaico é a circuncisão, rito sexista e que privilegia um único povo, o
povo de Israel. Diante disto, Paulo lembra aos gálatas que a liberdade trazida por
Jesus Cristo não fica “presa às fronteiras da distância geográfica, da pertença
racial, étnica ou familiar, ou sexual, da Lei que aprisiona e não liberta.”
472
Portanto, é o Espírito que opera a igualdade entre todos os seres humanos, porque
ele age igualmente em todos/as e lhes a possibilidade de ser um em Cristo
Jesus.
3.2.7.
O Espírito nos constitui filhos e filhas de Deus
Paulo desenvolve o tema da filiação divina como um fruto da morte-ressurreição
de Jesus e da efusão do Espírito Santo, sobre o ser humano que crê em Jesus
Cristo. Sendo assim, todos/as que se deixam conduzir pelo Espírito poderão ter
acesso ao projeto de Deus que é vida e liberdade para seus filhos e filhas. Por
Jesus e no Espírito somos filhos/as e herdeiros/as deste projeto do Pai. É claro
que para Paulo o Espírito é dádiva da . Ele entende que o/a crente morre e
ressuscita com Cristo no batismo, e desta forma recebe o Espírito que o/a torna
filho e filha livre do Pai.
473
Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Com
efeito, não recebestes um espírito de escravos, para recair no temor, mas
recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba! Pai! O
próprio Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de
Deus. E se somos filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-
herdeiros de Cristo, pois sofremos com ele para também com ele sermos
glorificados.” (Rm 8,14-17)
“E porque sois filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito do seu Filho,
que clama: Abba, Pai! De modo que não és escravo, mas filho. E se és filho, és
também herdeiro, graças a Deus.” (Gl 4, 6-7)
Como vimos no segundo capítulo desta dissertação é o Espírito que faz da
humanidade de Jesus uma humanidade completa de Filho de Deus. “De modo
semelhante faz de nós, carnais que somos de nascença, filhos de Deus: filhos no
Filho, chamados a herdar com ele, a dizer depois dele ‘Abbá, Pai!’ [...] Assim o
472
BINGEMER, M. C. L.. Iniciação Teológica: Encontro com o Deus de Jesus Cristo
(Trindade)... Op. cit., p. 94.
473
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 422.
177
próprio Deus se comunica conosco, se torna ativo em nós para suscitar os atos
da vida filial, os de ‘Cristo em nós’.”
474
É o Espírito que gera a adoção filial, pelos méritos de Jesus Cristo. Desta forma, é
possível uma nova maneira de relacionamento entre as pessoas, pois somos todos
irmãos e irmãs, filhos e filhas do mesmo Pai. O Espírito é o motor da
transformação, aquele que traz vida nova de filhos/as a todos/as que abandonam o
egoísmo (subjetividade fechada) e se deixam guiar por sua ação amorosa.
Segundo Yves Congar ser filho/a de Deus no Filho é o fruto próprio do Espírito,
princípio de nossa vida escatológica (cf 1 Cor 15, 44s).
475
A partir daí podemos
afirmar que todos os frutos do Espírito que Paulo irá elencar em suas cartas são
frutos deste Fruto: somos filhos/as de Deus, portanto, herdeiros/as de seus dons e
da vida eterna! Mas, como discernir o caminho da libertação que nos levará à vida
eterna? Para responder esta questão fundamental Paulo elabora alguns critérios de
discernimento que encontramos espalhados por suas cartas.
3.2.8.
O Espírito leva o ser humano a uma práxis libertadora
Para Paulo a filiação divina e a vida no Espírito não são atributos mágicos
recebidos de Deus. O que significa dizer que, tanto uma quanto a outra, não
dispensam o cristão/ã da luta pelas transformações necessárias na sociedade,
tornando-a mais justa e fraterna. Da mesma forma não os/as dispensa de lutar por
sua própria libertação definitiva. Isto porque, ser filho/a de Deus e possuir os
primeiros frutos do Espírito, significa ter a possibilidade de gerar e iluminar um
mundo novo.
476
O Espírito é algo que se sabe e se conhece por experiência. Mas, fazer esta
experiência pode levar o cristão/ã a correr o risco de deleitar-se em tal experiência
imobilizando-o, diante da necessária ação efetiva e eficaz que transforma a
sociedade.
477
É isto o que está acontecendo entre os cristãos/ãs de Corinto.
Muitos se deleitam nas experiências espirituais e se esquecem que, se é realmente
o Espírito de Deus que estão experimentando devem transformar a sociedade
474
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 52. Grifo nosso.
475
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 53.
476
BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos romanos... Op. cit., pp. 60-61.
477
Cf. BINGEMER, M. C. L.. Iniciação Teológica: Encontro com o Deus de Jesus Cristo
(Trindade)... Op. cit., p. 94.
178
injusta em que vivem. Esta transformação deve começar no meio deles. Paulo
chama a atenção para aquilo que está acontecendo quando celebram a Ceia do
Senhor.
“Dito isto, não posso louvar-vos: vossas assembléias, longe de vos levar ao
melhor, vos prejudicam. Em primeiro lugar, ouço dizer que, quando vos reunis
em assembléia entre vós divisões, e, em parte, o creio. É preciso que haja
mesmo cisões entre vós, a fim de que se tornem manifestos entre vós aqueles que
são comprovados. Quando, pois, vos reunis, o que fazeis o é comer a Ceia do
Senhor, cada um se apressa a comer a sua própria ceia; e, enquanto um passa
fome, o outro fica embriagado. (1 Cor 11, 17-21)
Segundo Paulo, esta comunidade quando se reúne para celebrar o memorial de
Jesus está reproduzindo dentro da própria comunidade a sociedade injusta onde
vivem. Os coríntios haviam perdido de vista a perspectiva transformadora como
possibilidade que lhes é dada pelo dom do Espírito. Esquecem que ser filho/a de
Deus implica necessariamente numa comunhão com Jesus e com as outras
pessoas. Uma coisa não é possível sem a outra. É esta a denúncia do apóstolo que
encontramos em 1 Cor 11, 17-34: se não comunhão na vida do dia-dia não
comunhão eucarística! Conseqüentemente, podemos desconfiar das celebrações
eucarísticas que não levam à transformação pessoal, comunitária e social.
478
3.2.9.
A oração cristã é uma ação do Espírito Santo
Paulo precisa esclarecer como, concretamente, na vida do dia-a-dia da
comunidade e de cada cristão/ã é possível escolher o caminho a seguir para
viabilizar o projeto do Pai. Qual o caminho que nos leva à libertação e à vida em
abundância? Para o apóstolo dos gentios” é o Espírito, que vindo em auxílio de
nossa fraqueza, nos faz relembrar o caminho indicado por Jesus através de sua
práxis e pregação. É o Espírito que, em nós, fala a Deus aquilo que precisamos e
escuta dele suas orientações.
“Assim também o Espírito socorre a nossa fraqueza. Pois não sabemos o que
pedir como convém; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos
inefáveis, e aquele que perscruta os corações sabe qual o desejo do Espírito; pois
é segundo Deus que ele intercede pelos santos.” (Rm 8, 26-27)
478
Cf. BORTOLINI, J. A Primeira carta aos Coríntios... Op. cit., p. 57
179
Não sabemos o que pedir a Deus para concretizar uma vida verdadeiramente
cristã. Muitas vezes nossos pedidos não estão em sintonia com o projeto do Pai:
Vida e Liberdade para todos/as. Na maioria das vezes nossa oração se resume a
pedidos egoístas que não nos realizam como seres humanos. Não sabemos louvar,
não sabemos agradecer, não sabemos olhar em volta para pedir o que realmente é
necessário. Além disto, esquecemos de concretizar na vida aquilo que rezamos.
Esta postura é o resultado da visão dualista que penetrou no cristianismo, e que
leva a pessoa a não conseguir integrar oração e ação, como se fossem realidades
opostas e excludentes. Entretanto, a oração de nosso Mestre, como já destacamos
no capítulo anterior, sempre esteve intimamente vinculada aos acontecimentos de
sua vida, assim como sua vida sempre foi o reflexo de sua oração. Mística
(oração) e prática concreta (ação) encontravam-se articuladas na vida do
Nazareno, uma alimentando a outra, sem dualismos mutiladores. Portanto, não
percebemos na oração de Jesus qualquer forma de alienação ou fuga, pois a
oração feita por ele fecunda sua vida, e esta por sua vez, está aberta diretamente à
oração. Portanto, a oração do cristão/ã, a exemplo de seu Mestre, deve estar aberta
diretamente à ação concreta daquilo que reza, assumindo-a, fecundando-a,
iluminando-a etc. E por sua vez, sua ação deve repercutir diretamente em sua
oração, ajudando-o a se tornar mais disponível em relação à vontade de Deus e
mais solidário com a caminhada dos irmãos/ãs. Esta oração deve influenciar
novamente a ação e vice-versa, num dinamismo próprio à unicidade da vida cristã
da pessoa.
479
Exatamente por isso, a oração do cristão/ã deve ter na oração feita
por Jesus o seu modelo. Paulo em total sintonia com a práxis de Jesus percebe que
a verdadeira oração cristã pode ser feita no Espírito. Se, é o Espírito Santo
que suscitada no coração de Jesus a palavra Abbá para se dirigir a Deus, se é ele
que provoca a oração de louvor, de exultação, de agradecimento, de angústia, de
tristeza, e de suprema oferenda de Jesus, então, é este mesmo Espírito que deve
estar no cristão/ã quando este/a ora. Portanto, “o Espírito é o intérprete de nossos
sentimentos mais íntimos, tornando-se o porta-voz da súplica de quantos lutam
pelo mundo novo.”
480
O Espírito é a melhor oração de súplica, de agradecimento
ou de louvor do cristão/ã. É ao mesmo tempo o maior conforto para sua
479
Cf. GARCÍA RUBIO, A. Unidade na Pluralidade... Op. cit., p. 108.
480
BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos romanos... Op. cit., p. 62.
180
esperança. Finalmente ele é aquele que intercede por nós com gemidos que as
palavras não conseguem explicar. São suas as palavras que em nós chegam a
Deus, pois elas estão em perfeita harmonia com a vontade de nosso Pai.
481
3.2.10.
O Espírito possibilita o verdadeiro conhecimento de Deus e a
confissão autêntica de Cristo
Entre os vários problemas, tensões e conflitos que encontramos na comunidade de
Corinto, podemos destacar a pretensão de alguns que acreditam ter o monopólio
da sabedoria. A ideologia de uma sabedoria elitista cria nas outras pessoas, que
acreditam não possuí-la, um complexo de inferioridade, colocando-as à margem.
A tal ponto isto acontece nesta comunidade que, na oração de agradecimento que
no início da primeira carta de Paulo aos cristãos de Corinto (1, 4-9), ele deseja
alertar que a sabedoria foi revelada a todos os crentes, sem que somente alguns
privilegiados/as a possuam.
482
Diz ele: “Dou incessantemente graças
a Deus a
vosso respeito, em vista da graça de Deus que vos foi dada em Cristo Jesus. Pois
fostes nele cumulados de todas as riquezas, todas as da palavra e todas as do
conhecimento.” (vv. 4-6).
A busca do saber que havia em Corinto e que privilegia uns/as em detrimento dos
outros/as, encontra sua raiz última na concepção pagã de sabedoria. Nesta visão o
sábio/a é uma pessoa bonita, livre, famosa e rica, sendo um pouco inferior a Zeus,
o deus mais importante no mundo grego. Sendo assim, não deveria trabalhar,
vivendo de privilégios e à custa das outras pessoas. Além disso, conhecia os
mistérios do mundo, sabendo, inclusive, interpretar a vontade divina.
Conseqüentemente, o bio/a encontrava-se mais perto de Deus. Poucos podiam
ser sábios/as, pois, isso dependia do capricho dos deuses que escolhiam somente
raríssimas pessoas que se viam dotadas de tal sabedoria. Paulo acha isso tudo
inconcebível, pois para ele a sabedoria é o sentido da vida que Deus pôs em toda
criação. Todos/as têm acesso a esta sabedoria, principalmente os mais pobres e
os marginalizados/as pela sociedade. Estes homens e mulheres possuem a
sabedoria de Deus, e não somente alguns/as “escolhidos/as” por Deus.
483
É diante
481
Cf. BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos romanos... Op. cit., p. 62.
482
Cf. BORTOLINI, J. A Primeira carta aos Coríntios... Op. cit., 21-22.
483
Cf. Ibid. p. 24-25.
181
da “sabedoria dos grandes”, aquela que está distorcendo a em Jesus Cristo
crucificado, que Paulo escreve:
“A nós, porém, Deus o revelou pelo Espírito. Pois o Espírito sonda todas as
coisas, até mesmo as profundidades de Deus. Quem, pois, dentre os homens
conhece o que é do homem, senão o espírito do homem que nele está? Da mesma
forma, o que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus.”! (1
Cor 2, 10-11) “Por isto, eu vos declaro que ninguém, falando com o Espírito de
Deus diz: ‘Anátema seja Jesus!’, e ninguém pode dizer: ‘Jesus é Senhor’ a não
ser no Espírito Santo.” (1 Cor 12, 3)
Portanto, para o cristão/ã esta é a sabedoria que deve ser buscada, aquela que lhe é
infundida pelo Espírito e que lhe permite reconhecer Jesus Cristo como Senhor,
isto é, como Deus e nosso salvador. Paulo, então explica qual é a verdadeira
sabedoria cristã, aquela que se opõe a sabedoria do mundo.
“Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência
dos inteligentes. Onde está o sábio? Onde está o homem culto? Onde está o
argumentador deste século? Com efeito, visto que o mundo por meio da
sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus, [...] mas para aqueles
que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e
sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens.
[...] Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios [...]
a fim de que nenhuma criatura possa vangloriar-se diante de Deus. Ora, é por ele
que vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria proveniente de
Deus, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, aquele
que se glorie, glorie-se no Senhor.” (1 Cor 1, 19-21a. 24-25a. 29-31)
Jesus é a sabedoria de Deus, aquela que não é reconhecida pelas pessoas que
desejam e crêem ter a sabedoria do mundo (esta traz privilégios). Deus revelou a
verdadeira sabedoria ao mundo por meio de Jesus Cristo crucificado e este a
comunica aos fiéis mediante seu Espírito.
484
Esta sabedoria que se apresenta na
cruz de Cristo é aquela que nos revela um Deus que subverte os projetos humanos
de sabedoria. É o Espírito Santo que possibilita ao crente ver na cruz de Cristo, a
entrega total de Deus que se fez como um de nós, por amor e para nossa salvação.
Descobrir esta verdade é encontrar a sabedoria que leva homens e mulheres a
experimentarem que existe um sentido para suas vidas. Este sentido encontra-se
em viver este amor até as últimas conseqüências.
484
Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., pp. 464-465.
182
3.2.11.
O Espírito tem uma função decisiva na construção da Igreja e na sua
unidade, assim como na comunhão entre todos os seus membros
Como acabamos de ver a comunidade cristã de Corinto apresenta vários tipos de
tensões e desordens. Uma delas é a divisão interna que se depois da partida de
Paulo. Um dos prováveis motivos dessa tensão é pelo fato da comunidade ser
composta por pessoas com acentuadas diferenças econômicas, sociais, culturais,
raciais, etc.
485
A partir daí formam-se vários grupos que começam a se contrapor
a outros, apelando para um personagem de prestígio entre os pregadores
itinerantes ou líderes históricos (1 Cor 1,10-12). Com isto os cristãos/ãs de
Corinto estão reproduzindo o tipo de sociedade que privilegia as pessoas que têm
mais prestígio. Instala-se entre eles/as a inveja e a discórdia. Podemos dizer que
esta igreja passa pela crise da unidade e coesão eclesial.
486
Diante disto Paulo se
pronuncia:
“Com efeito, o corpo é um e, não obstante, tem muitos membros, mas todos os
membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo. Assim também
acontece com Cristo. Pois, fomos batizados num só Espírito para ser um
corpo, judeus e gregos, escravos e livres, e todos bebemos de um Espírito.” (1
Cor, 12, 12-13).
Com base na perícope acima podemos afirmar que Paulo tem consciência que
todas as divisões deixam de existir desde o momento em que a pessoa se torna
igreja, isto é, um corpo bem unido. Os cristãos/ãs de Corinto precisam perceber
que com o batismo no mesmo Espírito as divisões, sejam elas entre judeus e
gregos, entre escravos e livres, ou de qualquer natureza, não podem mais existir.
Eles/as, através do batismo, morreram com Cristo e renasceram com ele, pelo
Espírito, tornando-se homens e mulheres novos. Este “novo ser”,
necessariamente, tem um novo modo de se relacionar com Deus e com as outras
pessoas, o que gera um novo tipo de sociedade que aceitando as diferenças é
capaz de viver na unidade.
487
Portanto, para Paulo é o Espírito quem possibita a
unidade na Igreja.
485
Para conhecer um pouco mais a comunidade cristã de Corinto consultar FABRIS. R. Paulo:
apóstolo dos gentios... Op. cit., pp. 379-386.
486
Cf. Ibid. pp. 462-463.
487
Cf. BORTOLINI, J. A Primeira carta aos Coríntios... Op. cit., pp. 24-25.
183
Em decorrência do v. 13 podemos ainda afirmar que a koinonia (comunhão)
possibilitada pelo Espírito é uma meta a ser almejada por aqueles/as que a partir
do batismo, passaram a formar “um corpo”, pois o mesmo Espírito nos põe em
contato não com o Pai e o Filho, mas também com todos os membros da
comunidade eclesial. A tal ponto isso está no pensamento paulino que ele chega a
desejar aos cristãos/ãs de Corinto: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai
e a comunhão (koinonia) do Espírito estejam com todos vós.” (2 Cor 13,13). Esta
é a espiritualidade da comunhão que encontramos em Paulo.
488
Para o “apóstolo dos gentios” a existência cristã nasce com o batismo. Entretanto,
a em Jesus Ressuscitado antecede este sinal sagrado, pois é pela que
recebemos o Espírito prometido (cf. Gl 3, 14). Mas, o que significa para Paulo?
Seria somente um assentimento intelectual à pessoa de Jesus ressuscitado? Seria
um dom recebido que não daria frutos? Para ele é possível haver fé sem obras? As
obras sem têm algum valor? Estas questões causaram condenações na Igreja
com efeito divisor. Não esqueçamos que a Doutrina da Justificação teve
importância central para a Reforma luterana do século XVI. Como estas questões
são fundamentais para nosso tema, não podemos deixar de tocar nelas. Nosso
escopo é o de demonstrar que a pneumatologia do Segundo Testamento afirma
que devemos viver uma vida no e pelo Espírito que nos aproxima do tipo de vida
vivida por Jesus. O que significa dizer que viver no e pelo Espírito é deixar-se
cristificar por ele, vivendo desta forma as mesmas opções concretas que o
nazareno viveu. Mas, para demonstramos isso é preciso entender o que significa a
que segundo Paulo nos leva a aceitar o batismo e a participar da celebração da
partilha do pão, constituindo-nos em Igreja. Segundo John Mackenzie:
“O conteúdo da fé cristã para Paulo era que Jesus é o Cristo (Messias), Senhor,
Filho de Deus, que morreu e mediante a sua morte livrou-nos de nossos pecados,
ressurgiu da morte e por meio de sua ressurreição comunica a nova vida àqueles
que crêem nele e são batizados. [...] Ninguém, ao observar a lei sem fé no Senhor
Jesus, pode alcançar a justiça prometida àqueles que crêem. [...] Mas a
implicava obrigações e ‘obras’ próprias a ela. Paulo nunca professou uma fé que
fosse mero sentimento inoperante. Aquele que crê com o coração também deve
confessar com a boca (Rm 10,9); a deve ser externada ao menos pela profissão
pública. Duas vezes resume todas as obrigações da lei no único mandamento de
amor ao próximo. (Rm 13,8-10; Gl 5, 6.14).”
489
488
Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 83.
489
McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 342.
184
Concordando com este pensamento sobre o significado de em Paulo, Jean
Duplacy nos diz que para este apóstolo:
“o homem é justificado pela sem as obras da Lei (Rm 3,28; Gl 2,16). Essa
afirmação de Paulo proclama a inutilidade das práticas da Lei sob o regime da fé,
mais que isto, em maior profundidade ainda, ela significa que a salvação não é
jamais algo de devido, mas uma graça de Deus recebida pela (Rm 4,4-8).
Claro que Paulo não ignora que a deve ‘operar’ (Gl 5,6; cf. Tg 2,14-26) na
docilidade ao Espírito recebido por ocasião do Batismo (Gl 5,13-26;. Rm 6; 8,1-
13).
490
Esta operante transforma internamente o/a crente: “Mas vós vos lavastes, mas
fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso
Deus.” (1 Cor 6, 11). Portanto, podemos dizer que para Paulo é dom do Espírito
e resposta humana possibilitada pela vida-morte-ressurreição de Cristo, através
do Espírito, resposta que se concretiza no amor serviço àqueles/as que mais
necessitam de nós.
Além do batismo, e da necessária para recebê-lo, Paulo nos aponta como o
centro da comunidade eclesial, a “ceia do Senhor (1 Cor 11, 23-27). Yves
Congar ao comentar este aspecto da teologia paulina nos diz que “aquele que se
une ao corpo glorioso de Cristo, inteiramente penetrado do Espírito, pela viva,
pelo batismo, pelo pão e pelo cálice da última ceia, torna-se espiritualmente
realmente um membro de Cristo: torna-se corpo com ele no plano da vida filial
que promete a herança de Deus.”
491
Portanto, na Igreja apresentada por Paulo se
entra pela (cf. Rm 4,13-24), através do batismo (cf. 1 Cor 12, 13), sendo o
centro da comunidade eclesial, a ceia do Senhor.
492
Todo este processo é tornado
realidade no Espírito. É o Espírito quem incorpora os crentes a Cristo e a Igreja,
seu Corpo místico. Somente enxertados neste Corpo através do batismo,
configurados ao Ressuscitado por meio do Espírito, os homens e mulheres de
tornam-se idôneos para a participação na Ceia do Senhor.
493
Perguntamo-nos: o
que significa tornar-se idôneo? Acreditamos que seja um processo pelo qual vive
todo homem e mulher que se abre à graça divina, processo que damos o nome de
santificação. A “causa meritória” da santificação do crente é Jesus Cristo, porém a
490
DUPLACY J. Verbete “Fé”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. Cit., pp. 343-344.
491
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 53.
492
Cf. TEPEDINO, A. M. Iniciação Teológica: Encontro com a Igreja de Jesus Cristo
(Eclesiologia)... Op. cit., p. 33
493
Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., pp. 81-82. Grifo nosso.
185
“causa eficiente” é o Espírito Santo, pois ele é o agente de nossa união com o
Senhor ressuscitado (Rm 15, 14). Somente a pessoa que vive este processo de
santificação, que nada tem a ver com a perfeição no sentido mundano do termo,
está apta a sentar-se à mesa da Eucaristia e partilhar o pão com os irmãos.
Yves Congar chama-nos a atenção para o seguinte aspecto: o “corpo de Cristo que
os fiéis formam na terra precisa ser construído: 1 Cor 3,9; Ef 2,20; 4,12. Assim, o
que se constrói é morada de Deus pelo Espírito(Ef 2,22), uma ‘casa espiritual’,
um templo onde é oferecido a Deus um culto espiritual (1 Pd 2,5s; Fl 3,3).”
494
Por
isso, afirmamos que para Paulo a comunidade cristã, a qual damos o nome de
Igreja, é o Corpo de Cristo e ao mesmo tempo é Templo do Espírito, pois é ele
quem a constrói na história e a mantém em comunhão e unidade. No item a seguir
veremos como a Igreja é construída pelo Espírito.
3.2.12.
O Espírito Santo é o arquiteto do “edifício” que é a Igreja
“Assim, ele (Jesus Cristo) veio e anunciou a paz, a vós que estáveis longe e paz
aos que estavam perto, pois por meio dele, nós, judeus e gentios, num só Espírito,
temos acesso ao Pai. Portanto, não sois estrangeiros e adventícios, mas
concidadãos dos santos e membros da família de Deus. Estais sobre o
fundamento dos apóstolos e dos profetas, do qual é Cristo Jesus a pedra angular.
Nele bem articulado, todo o edifício se ergue como santuário santo, no Senhor, e
vós, também, nele sois co-edificados para serdes habitação de Deus, no
Espírito.” (Ef 2, 17-22)
Depois de Cristo na cruz e de sua gloriosa ascensão, a humanidade pode celebrar
o acesso possível ao Pai e o reencontro entre todos os seres humanos, pois
todos/as são irmãos/ãs, pessoas de valor e dignidade iguais. A reconciliação feita
por Jesus acaba com o muro de separação, o ódio é morto, a Lei dos mandamentos
é abolida, as distâncias são superadas e as divisões não mais existem (2, 14-18).
495
Jesus relativiza o que é mais próprio do judaísmo, a separação entre povo eleito e
os outros povos. E esta unidade é possibilitada pelo Espírito (vv. 17-18), unidade
que não apaga as diferenças, pois é uma unidade na pluralidade. É desta forma
que Paulo compreende a Igreja!
494
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 53. Grifo nosso.
495
BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos Efésios: o universo inteiro reunido em Cristo. São
Paulo: Paulus, 2005. p. 39.
186
A imagem de Igreja como construção (vv. 20-22) é tirada da engenharia civil e da
arquitetura, fruto da observação de uma cultura urbana. Esta imagem tem também
como seu horizonte de compreensão o Templo de Jerusalém, onde tudo era muito
bem ordenado. Paulo,
496
ao usá-la, pretende mostrar que o edifício que é a Igreja,
é uma realidade bem articulada. Ela tem os apóstolos e os profetas, dois
“ministérios” importantes nas comunidades primevas fundadas por ele (cf. 1 Cor
12,28), como seus fundamentos. Porém, Jesus Cristo é a pedra angular deste
edifício, isto é, Cristo é o elemento mais importante
na construção da Igreja.
“Para compreender isso é preciso pensar nas construções antigas, com grandes
portais em forma de arco. No alto da arcada punha-se a ‘pedra angular’, que dava
sustentação a toda construção.”
497
Sobre este alicerce (apóstolos e profetas) e
buscando coesão com a pedra angular (Jesus Cristo) é que o edifício é construído.
Construção que vai sempre acontecendo no tempo até o final dos tempos. Este
edifício que está sempre em construção, sem parar e sempre em crescimento, tem
como arquiteto o Espírito Santo (v.22).
498
Como podemos ver o Corpo de Cristo
que é a Igreja não é estático, pois como acabamos de dizer, está sempre em
crescimento. “Cada cristão, na medida em que ascende na experiência de Deus e
no conhecimento de Cristo por meio do Espírito, torna-se um agente ativo que
contribui, segundo seu chamado, para o crescimento e a vitalidade da Igreja.”
499
Como “o corpo não se compõe de um só membro, mas de muitos.” (1 Cor 12, 14),
a construção deste edifício depende de outras pedras, que são os outros membros
com seus respectivos ministérios. Veremos a seguir como Paulo entende a Igreja e
seus ministérios.
3.2.13.
Todo ministério na Igreja é um ministério do Espírito com a
finalidade de edificar a comunidade, e não para o orgulho pessoal
Paulo está preocupado com a comunidade de Corinto que viveu cercada de
tensões e conflitos e, certamente, foi aquela que lhe trouxe mais problemas.
Podemos citar alguns destes problemas pelos quais passa esta comunidade: eles
496
Para nosso objetivo não acrescenta nada discutir a autenticidade paulina desta carta, nem seus
destinatários. Por isso, não abordamos estes temas.
497
BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos Efésios... Op. cit., p. 41.
498
Cf. Ibid.
499
SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 82.
187
“vão desde o entusiasmo espiritualista à procura de experiências carismáticas
espetaculares, do laxismo ético ao fragmentarismo eclesial, da venalidade na
aceitação de pregadores itinerantes ao individualismo exasperado.”
500
Esta
comunidade levada pela sociedade injusta que privilegia os poderosos e sábios,
passa a valorizar somente os dons extraordinários.
501
Há, portanto, um clima de
entusiasmo espiritual entre os cristãos/ãs de Corinto, e aqueles/as que possuem os
carismas espetaculares, como a glossolalia, enchem-se de orgulho diante dos
outros. Chegam a considerar-se os donos da comunidade. Este fenômeno acontece
nas reuniões de oração, quando num clima de forte emoção religiosa, alguém
começa a rezar ou falar com sons inarticulados, recorrendo até a outras línguas.
Diante disto, aqueles/as que exercem tarefas como administrar os bens e assistir
aos pobres, ficam com a impressão de que não têm nenhuma experiência do
Espírito ou são inúteis.
502
Esta situação onde “fortes” (os que possuem o dom
da glossolalia) e “fracos” (os que possuem os outros dons) perverte totalmente o
sentido das celebrações e a própria vida da comunidade.
503
Paulo então os faz
ver que se há alguém que deve receber privilégios na Igreja, estes são justamente
os empobrecidos/as e os mais fracos/as. Usa então a comparação entre Igreja e
corpo humano. Diz ele:
“Pelo contrário, os membros do corpo que parecem mais fracos, são os mais
necessários, e aqueles que parecem menos dignos de honra do corpo, são os que
cercamos de maior honra, e nossos membros que são menos decentes, nós
tratamos com mais decência.” (1 Cor 12, 22-23)
Podemos perceber “a intocável opção de Paulo pelos pobres! Marginalizá-los é
mutilar o corpo de Cristo. Promovê-los é reconstruir o corpo de Cristo.”
504
Paulo experimenta que é o mesmo e único Espírito que tudo realiza na
comunidade, distribuindo a cada um os seus dons, conforme lhe apraz. (1 Cor
12,11) O Espírito Santo, o arquiteto da construção que é a Igreja é, que suscita os
dons necessários para sua edificação. Na concepção de Paulo são este os
ministérios necessários para que haja a comunidade de seguidores de Jesus Cristo,
a Igreja:
500
FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., p. 461.
501
BORTOLINI, J. A Primeira carta aos Coríntios... Op. cit., pp. 15-17.
502
Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., pp. 480-481.
503
Cf. BORTOLINI, J. A Primeira carta aos Coríntios... Op. cit., p. 58.
504
Ibid. p. 59.
188
Ora, vós sois o corpo de Cristo e sois seus membros, cada um por sua parte. E
aquele que Deus estabeleceu na Igreja são, em primeiro lugar, apóstolos; em
segundo lugar, profetas; em terceiro lugar doutores...Vêm, a seguir, os dons dos
milagres, das curas, da assistência, do governo e o de falar em diversas línguas.
Porventura, são todos apóstolos? Todos profetas? Todos doutores? Todos
realizam milagres? Todos têm o dom de curar? Todos falam línguas? Todos as
interpretam? (1 Cor 12, 27-30).
Logo, todos os ministérios são necessários e importantes na comunidade eclesial,
porém os mais espetaculares são os últimos em importância, segundo a
compreensão deste apóstolo. Além disto, “não deve haver motivos para a
contraposição entre carismas espetaculares ou de prestígio e os carismas
humildes, pois todos os fiéis batizados, embebidos no único Espírito, formam o
único corpo que é Cristo.”
505
Tendo esclarecido este ponto Paulo ajuda esta
comunidade a dar mais um passo. Percebendo o perigo que há em se ficar no gozo
que as experiências espirituais podem causar, isto é, na pura satisfação fechada em
si mesma, Paulo salienta que o Espírito é força para construir. Exatamente por
causa disso, é necessário desejar os dons que constroem.
506
Com base neste
princípio, ele convida esta comunidade a:
Procurai a caridade. Entretanto, aspirai aos dons do Espírito, principalmente à
profecia. Pois aquele que fala em línguas, não fala aos homens, mas a Deus.
Ninguém o entende, pois ele, em espírito, enuncia coisas misteriosas. Mas aquele
que profetiza fala aos homens: edifica, exorta, consola. Aquele que fala em
línguas edifica a si mesmo, ao passo que aquele que profetiza edifica a
assembléia. Desejo que todos faleis em línguas, mas prefiro que profetizeis.
Aquele que profetiza, é maior do que aquele que fala em línguas, a menos que
este as interprete, para que a assembléia seja edificada. [...] Assim também vós:
que aspirais aos dons do Espírito, procurai tê-los em abundância, para a
edificação da assembléia.” (1 Cor 14, 1-5. 12)
No capítulo 13 desta carta, trecho que antecede a perícope acima, Paulo mostra
que, a caridade (amor-solidariedade) é o maior dom que pode existir e que sem
ela, todo o bem que se possa fazer não passa de exaltação e puro exibicionismo
vazio.
507
Afirma, além disto, que há “um critério fundamental para avaliar e viver
cada carisma: é o dom do Espírito por excelência, o do amor ou ágape. Este é o
carisma que valor a todos os outros. De fato, ele permanecerá até mesmo
505
FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., p. 481. Grifo nosso.
506
COMBLIN, J. O Tempo da ação... Op. cit., p. 95.
507
Cf. BORTOLINI, J. A Primeira carta aos Coríntios... Op. cit., p. 59.
189
quando cessar a função de todos os outros, ao terminar a experiência histórica da
Igreja.”
508
Com base neste belo hino, Paulo recomenda, no início do capítulo 14,
que a comunidade procure esse dom maior (v. 1). A partir daí convida os
cristãos/ãs de Corinto que possuem o dom de falar em línguas a não ficarem
orgulhosos. Na realidade eles/as devem procurar os carismas que facilitam a
participação ou o crescimento da comunidade. Chega a recomendar
principalmente o carisma da profecia, pois este carisma se manifesta de forma
clara e compreensível para a instrução, exortação e conforto de todos/as.
509
Paulo faz toda esta explanação porque percebe que “os coríntios se agarram mais
aos dons do Espírito, de que gozam, em vez de se agarrarem ao próprio Espírito,
Sujeito transcendente que, além de toda ‘experiência espiritual’ pessoal, busca,
através de seus dons, a construção da Igreja.”
510
Portanto, na concepção de Paulo
é desta forma que a Igreja é edificada: o Espírito suscita dons entre seus membros,
para o crescimento da mesma, e o fiel não pode ter motivo de orgulho devido ao
dom recebido. Além disto, dentro da comunidade os mais fracos são aqueles/as
que devem receber maior atenção. Segundo Yves Congar “este capítulo (ele está
se referindo ao capítulo 12) é de uma verdade e atualidade notáveis na Igreja de
nossos dias.”
511
3.2.14.
O extraordinário da experiência com o Espírito de Deus esconde-se e
revela-se no ordinário e cotidiano da vida humana
Ainda com base na primeira carta de Paulo aos coríntios (14, 1-40) podemos
afirmar como o faz Carlos Mesters que na concepção de Paulo, assim como na de
Lucas,
512
a “vida no Espírito” revela duas coisas aparentemente opostas entre si: a
articulação entre o extraordinário e o ordinário. O aspecto extraordinário da
experiência carismática que vemos relatado na vida das primeiras comunidades
508
FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., p. 482. Grifo nosso.
509
Cf. Ibid. pp. 482-483.
510
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 56.
511
Ibid. pp. 54-55.
512
Quando abordamos a pneumatologia lucana, a partir do fato ocorrido com Simão Mago (At 8,
9-24), priorizamos uma de suas características, a saber, o dom do Espírito é livre para agir.
Entretanto, poderíamos ter destacado que Simão recusava o ordinário da experiência carismática
querendo ficar somente com o extraordinário ou mágico. É isto o que Carlos Mesters aponta em
seu artigo Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In:
TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 27
190
encontra-se encarnado nas ações ordinárias e comuns da vida destas pessoas. Para
estes dois pneumatólogos do Segundo Testamento falar, rezar, caminhar, viajar,
orientar, cantar, criticar, decidir, ficar alegre, crescer, anunciar, servir e tantas
outras atividades comuns do dia-a-dia são ações que podem e devem ser vividas
como o resultado da presença do Espírito.
513
Vemos, portanto, que a verdadeira
vida vivida no Espírito Santo leva o ser humano a articular mística e prática do
amor fraterno. Dito com outras palavras: a verdadeira “vida no Espírito” não
aprisiona o ser humano no gozo da experiência extraordinária, mas impulsiona o
homem e a mulher de fé a vivê-la constantemente em todas as ações ordinárias da
vida humana.
3.2.15.
Não há oposição entre carisma e instituição
Tendo agora em mãos os dados que recolhemos de algumas passagens de Paulo
podemos esclarecer o significado de “charisma”, termo muito caro na teologia
deste apóstolo. Sem isso podemos correr o risco de não penetrar naquilo que é o
mais específico da pneumatologia paulina. O termo “charisma” é oriundo da
língua grega e significa dom gratuito. É utilizado dezessete vezes no Segundo
Testamento, e a exceção de 1 Pd 4,10, todas as outras vezes em que é usado,
aparece no epistolário paulino (usado principalmente em 1 Cor e Rm). Não
encontramos, no uso deste termo, um significado único nas diversas passagens em
que aparece. Entretanto, podemos afirmar que ele significa em síntese os diversos
dons ou talentos que dependem e são provenientes da mesma graça, a graça de
Deus. São os dons da salvação, da vida cristã e da vida eterna. Resumindo como o
faz Yves Congar baseando-se em Chevalier, podemos dizer que os carismas:
“1°) são atribuídos pelo Espírito ‘segundo sua vontade’; 2°) são variados: ele
(Paulo) fornece diversas listas que o coincidem inteiramente e não pretendem
ser exaustivas; 3°) que o Espírito os dá, diferentes, em vista do bem de todos, isto
é, para que sirvam na construção da comunidade eclesial ou na vida do Corpo de
Cristo. Enfim 4°) ele (Paulo) coloca acima de todos o dom ou carisma do amor e
põe no devido lugar dois ‘dons do Espírito’ ou pneumatika (12,1 e 14,1), que
eram muito apreciados pelos coríntios: falar em línguas e a profecia.”
514
513
Cf. Ibid. pp. 26-27.
514
CHEVALIER M.-A. apud CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 58.
191
Para completar esta compreensão de carisma em Paulo, Bernd Jochen Hilberath
nos lembra que um duplo aspecto característico na doutrina paulina dos
carismas. Ele nos diz que: “1) dons do Espírito não são apenas fenômenos
extraordinários, mas atitudes cristãs básicas (fé, esperança, amor;
caritas/diaconia) e o esforço cotidiano de ser cristão. 2) também funções
‘ministeriais são dons do Espírito e devem servir à vida espiritual das
comunidades.”
515
Portanto, podemos dizer que na concepção de Paulo não
oposição entre carismas e ministérios hierárquicos, dito de outra forma, não
contraposição entre carisma e instituição. O que existe na realidade é uma
conexão entre os mesmos.
“Assim é que em 1 Cor 12, 28, Paulo os unifica em uma única frase, fazendo-os
depender de um mesmo verbo (‘estabeleceu’), o que significa que Deus é o único
sujeito da ação tanto no que se refere aos ministérios institucionais (‘apóstolos’,
‘profetas’, ‘doutores’) como no que concerne aos dons e carismas do Espírito
(dons dos milagres, das curas, da assistência, do governo, de falar em diversas
línguas).
516
Este é um ponto fundamental para sermos fiéis à eclesiologia que brota dos
escritos paulinos. Ponto igualmente fundamental para refletirmos sobre a Igreja de
hoje, onde não deve haver oposição entre ministérios hierárquicos e ministérios
laicais. O laicato começa a ter uma nova consciência de participação e
colaboração nas tarefas pastorais da Igreja contribuindo assim para o crescimento
da ministerialidade laical. Este fato pode assustar muitas vezes à hierarquia,
porém, deve ser assumido por todos/as como um dom do Espírito suscitado no
coração do cristão/ã para ser colocado a serviço da comunidade de fé. Portanto,
que saibamos trabalhar na seara do Senhor, lado a lado, cada um/a de acordo com
seus dons, respeitando e aceitando o dom e serviço que outro/a recebeu do mesmo
e único Espírito para o bem de todos/as.
3.2.16.
A experiência do Espírito traz alegria nas tribulações
“Sabemos, irmãos amados de Deus, que sois do número dos eleitos porque o
nosso Evangelho vos foi pregado não somente com palavras, mas com grande
515
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p.
426.
516
SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 79.
192
eficácia no Espírito Santo e com toda convicção. Assim, sabeis como temos
andado no meio de vós para o vosso bem. Vós vos tornastes imitadores nossos e
do Senhor, acolhendo a Palavra com a alegria do Espírito Santo, apesar das
numerosas tribulações.” (1 Ts 1, 1-6)
A alegria é um dos frutos do Espírito (Gl 5, 22). Entretanto, esta alegria não
significa alienação diante da realidade vivida, muito menos entusiasmo
passageiro. Ao mesmo tempo precisamos perceber que a experiência do Espírito
não preserva a pessoa do sofrimento e da perseguição. Isto porque a fidelidade ao
Evangelho implica necessariamente incomodar os “poderosos deste mundo, o
que provoca perseguições e tribulações na vida do discípulo/a de Cristo. Portanto,
podemos dizer que para Paulo a “alegria nas tribulações”, que é dom do Espírito é
o indicador mais poderoso da autêntica experiência do Espírito. É digno de nota
perceber que o verbo alegrar-se aparece 28 vezes no Segundo Testamento e que a
palavra alegria ocorre 22 vezes. Em todos estes casos aparece referida ao Espírito
Santo, que é o único que pode provocar a verdadeira alegria.
517
3.2.17.
Não há identificação entre o Senhor Jesus e o Espírito
Apesar de não haver identificação entre o Espírito Santo e Jesus, o primeiro, tal
qual nos é dado conhecer, é totalmente relativo a Cristo. É ele que leva o cristão/ã
a crer e confessar, pela boca e pela vida, que Jesus é Senhor. O Espírito a
conhecer, reconhecer e viver Cristo. De tal forma isto acontece, que podemos
dizer que do ponto de visto do conteúdo, não há autonomia nem desigualdade de
uma obra do Espírito em relação à de Cristo.
518
“Paulo atribui, seja a Cristo, seja
ao Espírito, as operações e os frutos da vida cristã. De tal modo que parece
identificar os dois.”
519
Paulo afirma que “é somente pela conversão ao Senhor
que cai o véu. Pois, o Senhor é o Espírito, e onde está o Espírito do Senhor aí está
a liberdade.” (2 Cor 3, 16-17). Ao comentar estes versículos Yves Congar se
baseia numa monografia completa sobre este texto onde Ingo Hermann:
517
Cf. BINGEMER, M. C. L.. Iniciação Teológica: Encontro com o Deus de Jesus Cristo
(Trindade)... Op. cit., p. 94.
518
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 61.
519
Ibid. p. 63. Grifamos o verbo ´parecer’ para chamar a atenção nas palavras deste autor que nos
diz que PARECE haver uma identificação entre o Espírito Santo e Jesus Cristo, coisa que ele na
verdade afirma não existir.
193
elimina as interpretações segundo as quais o Espírito seria o Senhor (pois o
Senhor é Cristo) ou que a substância do Senhor (Jesus) seria feita de espírito.
Esse enunciado, diz ele, deve ser entendido no sentido de uma experiência
existencial: nós experimentamos ou provamos o Senhor Jesus como Espírito. Ou
então: o que nós experimentamos como Espírito é na realidade o Senhor Jesus
glorificado.”
520
Portanto, se no v. 17b do texto em questão Paulo distingue Senhor (kyrios) de
Espírito (pneuma), então isso prova que no v. 17a, ele não estabelece identidade
entre as duas pessoas. Na realidade Paulo define pela palavra Espírito o modo de
existência do Senhor. É desta forma que ele, o Senhor Ressuscitado e Glorificado,
vem ao encontro de sua comunidade.
521
Portanto, o que Paulo está designando é a
existência e a ação de Cristo glorificado. Logo, “do ponto de vista funcional o
Senhor e seu Espírito fazem a mesma obra, na dualidade da função deles.”
522
Bernd Jochen Hilberath ao comentar sobre a pneumatologia paulina afirma que
ela em seu conjunto não supõe que haja identidade total (Cristo = Senhor =
Espírito). Em conformidade com Paulo pode-se falar de uma identidade dinâmica
ou unidade de atuação entre o Senhor e o Espírito. “Em virtude de sua existência
pneumática o Crucificado Ressurreto atua no Espírito em relação aos seus, e por
Cristo eles experimentam no Espírito a presença viva de Deus.”
523
Finalmente Congar nos alerta que, apesar de não haver uma identificação
ontológica entre Espírito e Jesus Cristo, na experiência cristã, “Espírito de Deus”,
“Espírito de Cristo” e “Cristo em nós” expressam a mesma coisa.
524
3.2.18.
É preciso discernir e ficar com aquilo que vem do Espírito de Deus
Segundo o que lemos na primeira carta de Paulo aos tessalonicenses tudo nos leva
a supor que havia nas celebrações desta comunidade o desprezo pelas profecias,
isto é, não se levava a sério o Espírito que falava por meio das pessoas (aquela
palavra oportuna saída da boca de pessoas simples que participam da celebração e
520
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 64.
521
Cf. SCHWEIZER apud CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 64.
522
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 64.
523
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p.
422.
524
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 64.
194
que muitas vezes toca nossas feridas).
525
Por isso Paulo admoesta esta
comunidade dizendo:
“Não extingais o Espírito! Não desprezais as profecias! Discerni tudo e ficais
com o que é bom.” (1 Ts 5, 19-21).
Para Paulo deve haver uma ordem na vida espiritual comunitária e particularmente
no culto. Entretanto, ele deixa bem claro que isto deve e pode acontecer, sem que
se extingam os dons suscitados pelo Espírito. A ordem na comunidade eclesial
deve ser acompanhada da percepção, do desenvolvimento e do discernimento dos
dons espirituais.
526
Portanto, Paulo não prega uma desordem comunitária, mas
igualmente não deseja uma ordem engessada que iniba a presença do Espírito. Por
isso, segundo ele, faz-se necessário o discernimento, pois nem tudo o que se pensa
vir do Espírito de Deus o é, visto que pode ser oriundo do espírito do mal, assim
como, nem tudo o que se pensa ser opinião de uma pessoa o é, pois pode ser uma
profecia do Espírito.
527
Conseqüentemente, “discerni tudo e ficai com o que é
bom.”
3.3.
A Pneumatologia Joanina a partir da experiência histórica com o
Espírito Santo
Ela é considerada pelos estudiosos como a segunda grande pneumatologia do
Segundo Testamento, deixando para a de Paulo a primazia destes escritos. Apesar
disto, a concepção joanina do Espírito, pondo à parte o “discurso de despedida”
(Jo 13-17), é próxima da concepção do cristianismo primitivo clássico (Paulo e
Lucas), embora não possamos esquecer as diferenças de acento que apresenta esta
pneumatologia. Encontra-se exatamente no “discurso de despedida” a concepção
especificamente joanina sobre o Espírito. Ela é marcada pelo aparecimento de um
novo conceito, o de Paráclito, que está em relação estreita com o de Espírito
Santo (14,26) ou do Espírito da verdade (14,17; 15, 26; 16,13).
525
BORTOLONI, J. Como ler A primeira carta aos tessalonicenses... Op. cit., p. 37.
526
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit.,
p. 427.
527
Cf. MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In:
TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 24.
195
“O quarto evangelho descreve uma experiência e uma teologia do Espírito mais
permanente, mais tranqüila. Trata-se de sentir profundamente que Jesus
permanece com a comunidade e a leva a praticar o ágape, o amor, a
caridade.”
528
É importante lembrar que a pneumatologia que encontramos nos
escritos joaninos não está baseada em conceitos abstratos, mas advém de uma
realidade experiencial, pois tanto João como a comunidade joanina sentem que o
Espírito Santo de Deus permanece neles/as e os faz experimentar que participam
da comunhão divina (cf. 1 Jo 3,24; 4,13).
529
É a partir desta experiência espiritual
que João vai percebendo como o Espírito divino é concedido à comunidade de fé
cristológica e como esta comunidade deve agir. Veremos a seguir como isto
acontece na pneumatologia joanina.
3.3.1.
As três grandes ações divinas na perspectiva da pneumatologia de
João
Segundo a compreensão de João o Espírito é concedido em três grandes ações
divinas que estão profundamente relacionadas: primeiramente Deus concede o
Espírito a Jesus, posteriormente Jesus concede este mesmo Espírito aos seus, e
finalmente o Espírito concedido por Jesus impulsiona o homem e a mulher de
para levá-lo a toda humanidade. Vejamos como isto se dá a partir de alguns textos
do quarto evangelho (QE):
a) O Pai concede o Espírito a Jesus
João Batista o seguinte testemunho sobre Jesus: “Eu vi o Espírito como uma
pomba, descer do céu e permanecer sobre ele.” (Jo 1,32). O Espírito que desce do
céu sobre Jesus, em seu batismo, não o faz comedidamente como fazia com os
profetas (cf. Nm 11,25). Jesus tem o Espírito ilimitadamente, pois este como nos
diz João “permanece sobre ele”. Este mesmo João numa outra ocasião chega a
528
BINGEMER, M. C. L. Crer e dizer Deus Pai, Filho e Espírito Santo. In: Atualidade Teológica
n° 9. Rio de Janeiro, 2001. p. 195. Grifo nosso.
529
Cf. TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In:
Atualidade Teológica... Op. cit., p. 160.
196
afirmar: “Com efeito, aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus, que lhe
concede o Espírito Santo sem medida.” (Jo 3,34).
530
b) Jesus concede aos “seus” o Espírito recebido do Pai
Assim se expressa o Nazareno: “Quando vier o Paráclito que vos enviarei de junto
do Pai,” (15,26a). Este segundo movimento que complementa o primeiro é tão
fundamental na pneumatologia joanina que Juan Mateos e Juan Barreto chegam a
dizer que esta é a missão de Jesus como Messias (1,33: o que batizará com
Espírito Santo), sendo contraposta à missão de João Batista (1,26: eu batizo com
água).
531
Para estes teólogos, na perspectiva joanina a missão do Messias é a de
conceder o Espírito aos seus.
c) O Espírito concedido ao homem e à mulher de os impulsiona a
levá-lo a toda humanidade
O Espírito recebido do Pai através do Filho leva necessariamente o/a crente para o
mundo, pois esta é a missão do/a crente: “Como o Pai me enviou, também eu vos
envio” (Jo 20,21). Somente desta forma o movimento pneumático se completa: do
Pai ao Filho, do Filho aos seus e, finalmente, dos seus ao mundo.
Veremos a seguir quem é este Espírito, dentro da compreensão joanina, que é
recebido do Pai por Jesus, por ele concedido, e finalmente disseminado no mundo
pelos homens e mulheres de fé. E, concomitantemente, iremos destacando os
critérios de discernimento encontrados nos escritos joaninos.
530
O versículo 34b pode receber duas traduções: Deus, que lhe concede o Espírito sem medida”
ou ainda “pois ele [Jesus Cristo] dá o Espírito Santo sem medida”. Optamos pela primeira
possibilidade apoiados em Yves Congar e Johan Konings que afirmam ser esta interpretação quem
coerência a todo versículo, assim como concorda com o testemunho de João Batista (1,32).
Segundo Congar, Jesus ter recebido o Espírito de Deus sem medida fundamenta o fato dele poder
dizer as palavras de Deus e fazer suas obras (3,37a). Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência
do Espírito... Op. cit., p. 72. e Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 136.
531
MATEOS, J. BARRETO, J. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João. São Paulo:
Paulinas, 1989. p. 89.
197
3.3.2.
O Espírito é um outro Paráclito
Como vimos anteriormente o Espírito aparece de forma notável em muitos dos
escritos do Segundo Testamento. Entretanto, o papel pessoal dele no QE sob o
título de “Paráclito” é único.
532
Podemos dizer que a comunidade joanina
personaliza o Espírito Santo ao dar-lhe este nome.
533
Além disto, nomear o
Espírito como Paráclito, dando ênfase em sua personalidade, é uma especificidade
da pneumatologia joanina, a tal ponto que se torna a grande contribuição de João
para a compreensão posterior do Espírito Santo.
534
Os cinco ditos sobre o Paráclito que temos neste evangelho, todos eles se
encontram dentro do discurso de despedida de Jesus (14, 16s; 14,26; 15,26; 16,7-
11; 16,13ss).
535
Este pequeno detalhe é muito importante se nos colocamos dentro
do contexto dos discursos de despedida. Mas, o que na realidade significam estes
discursos? Nos povos antigos os discursos de despedida eram muito conhecidos.
Os anciãos passavam suas últimas instruções e desejos aos seus filhos, herdeiros
ou súditos, no momento derradeiro. Neles falava-se de saudade, dor e afeto, assim
como deixavam algumas instruções, ensinamentos e ordens a serem executadas.
Estes discursos eram também uma forma de testamento e de compromisso, de
quem fica, em executar os preceitos deixados pela pessoa que parte. O discurso de
despedida de Jesus (Jo 13-17) está dentro deste quadro e igualmente dentro dos
moldes dos grandes discursos de despedida do Primeiro Testamento (Gn 47, 29-
49, 33; Js 22-24; 1 Cr 28-29; 2 Rs 2, 1-10, Dt 32-33).
536
É dentro destas
circunstâncias que Jesus vai despedir-se dos seus discípulos/as pedindo ao Pai
“alguém” que, na sua ausência ajude-os, proteja-os, defenda-os. Este auxílio é um
outro Paráclito”. O Pai enviará um continuador do primeiro auxílio que foi
Jesus mesmo, na sua missão terrestre. Jesus pede este Espírito ao Pai, porque é o
mesmo Espírito que permanece sobre ele em sua vida terrestre.
537
Segundo
Bernd Jochen Hilberath “três palavras-chave caracterizam o Sitz im Leben ou
532
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo Amado. São Paulo: Paulinas, 1984. Op. cit., p.
145.
533
Cf. TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In:
Atualidade Teológica... Op. cit., p. 159.
534
Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 87.
535
ZUMSTEIN, J. DETTWILER, A. Verbete “Paráclitos”. In: LACOSTE, J. I. Op. cit., p. 652.
536
Cf. MAZZAROLO, I. Nem aqui, nem em Jerusalém... Op. cit., pp. 166-167.
537
Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 315.
198
lugar vivencial dos discursos de despedida joanino: partida de Jesus abandono
das discípulas e discípulospromessa do Espírito.”
538
A partir destes cinco ditos sobre o Paráclito que encontramos no QE
539
podemos
destacar os quatro principais sentidos que o Espírito possui na perspectiva
joanina.
a) O Paráclito é o Defensor, Intercessor, Consolador e Encorajador
da comunidade
Para compreender este primeiro sentido devemos recorrer ao significado real da
palavra “paráclito”. Ela designa não a natureza de alguém, mas sim sua função. O
paráclito é aquele que é “chamado ao lado de” e exerce a função ativa de
assistente, de sustentáculo.
540
Para entendermos melhor o vocábulo grego
“paráclito” se faz necessário investigar, como o faz Carlos Mesters, a palavra
hebraica Go’êl, que tem sua origem numa prática secular, vinda da época tribal. A
lei do Go’êl era uma lei de solidariedade que surgiu como instrumento para
defender as famílias e as pessoas. Na convicção de Israel, a terra e as pessoas
eram propriedades de Iahweh e não podiam ser vendidas nem compradas para
sempre. Caso isto acontecesse o Go’êl entrava em ação para restabelecer o direito
prejudicado. Também em caso de assassinato ou de pobreza extrema, quando a
pessoa era obrigada a vender suas terras ou entregar seus familiares como
escravos/as, o parente mais próximo assumia a missão do Go’êl para resgatar a
pessoa ou a terra (cf. Lv 25, 23-55). Este resgate ficou ligado à celebração do ano
jubilar (Lv 25, 8-17). Portanto, o Go’êl era aquele que resgata”, isto é, o
defensor, o advogado, o redentor, o libertador, o salvador, o parente próximo. A
lei do Go’êl perdurou até o exílio da Babilônia, quando não havia mais
possibilidade de aplicá-la, pois, até mesmo o parente mais próximo encontrava-se
cativo. A partir desta realidade o Deutero-Isaías retomou o termo antigo, porém
com um sentido novo, abrindo assim seu significado para a vivência da . Com
esta nova compreensão o próprio Deus passa a ser visto como o Go’êl, o
redentor, aquele que resgata o seu povo (Is 41,14; 43,14; 44,6.24; 47,4; 48,17
538
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p.
437. Grifo nosso.
539
Neste capítulo não iremos transcrever estes ditos visto que já o fizemos no capítulo anterior.
540
LÉON-DUFOUR, X. Verbete “Paráclito”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 714.
199
etc.). Neste momento histórico em torno do termo Go’êl se concentra a esperança
messiânica. O messias será o Go’êl do povo (Rt 4,14). É, portanto, a partir desta
compreensão que João, irá aplicar o mesmo termo, tanto para Jesus (“Meus
filhinhos, isto vos escrevo para que não pequeis; mas, se alguém pecar, temos
como advogado, junto do Pai, Jesus Cristo o Justo. [1 Jo 2,1]), como para o
Espírito (os cinco ditos sobre o Paráclito do evangelho de João). Os dois recebem
o título de Go’êl ou Paráclito.
541
Mas, por que João faz uso deste termo para se
referir tanto a Jesus como ao Espírito? A realidade histórica vivida por João e pela
comunidade joanina caracteriza-se pelo conflito externo devido à expulsão da
sinagoga e pela incompreensão do mundo, e pelo conflito interno devido à divisão
dentro do próprio grupo. Tudo isto gera nesta comunidade medo, angústia,
tristeza, dúvidas e sentimentos de orfandade. É em meio a esta dura realidade que
a comunidade vivencia a presença real de Deus que veio e continua presente
através da experiência do Espírito.
542
Experimentam que têm “alguém” que os
defende, consola, encoraja, fazendo-os superar as dificuldades. Segundo Raymond
Brown encontramos dentro deste contexto de perseguição do mundo o principal
catalisador da compreensão joanina a respeito do Paráclito.
543
Como podemos
ver João aplicando o termo Go’él ou Paráclito ao Espírito Santo e ao dizer que
temos um outro Paráclito, está afirmando que Jesus não nos deixa órfãos, pois
permanecerá conosco para sempre (Jo 14, 14-18. 26), que nos defenderá nos
tribunais (Jo 15,26; Mc 13,11) e no grande julgamento da história (Jo16, 7-8).
544
O Paráclito, que na acepção originária do termo é o ‘chamado para junto de’,
545
encoraja o discípulo/a, sendo o Espírito de Verdade necessário para que o
cristão/ã dê testemunho de Jesus (Jo 15, 26-27).
541
Cf. MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia.
In: TEPEDINO, A. Amor e Discernimento... Op. cit., pp.36-37.
542
Cf. TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In:
Atualidade Teológica... Op. cit., p. 164.
543
BROWN. R. apud TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição
Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 164.
544
Cf. MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In:
TEPEDINO, A. (Org.). Amor e Discernimento... Op. cit., p. 37.
545
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit.,
p. 438.
200
b) O Paráclito é a Testemunha de Jesus e o Mestre da comunidade.
Com a morte do Discípulo Amado, se estabelece uma outra crise na
comunidade, esta com relação à memória. Mas, quem é este Discípulo?
Segundo Raymond Edward Brown o “Discípulo Amado” é uma figura
misteriosa que aparece no QE e que é o herói desta comunidade. Ele é
idealizado pelos componentes da comunidade, mas, apesar disto, é uma figura
histórica e companheiro de Jesus de Nazaré em sua vida terrena. O “Discípulo
Amado” aparece assim nomeado “na hora” (13,1). Dizer isso não significa
que ele não tenha estado junto a Jesus durante seu ministério público. Significa
afirmar que somente a partir da “hora de Jesus”, o momento mais importante
para este evangelho, é que este discípulo recebe o título que o distingue dos
outros/as. Portanto, ele completa sua identidade, isto é, ser o Discípulo que
Jesus amava, num contexto cristológico. Logo, o “Discípulo Amado”, assim
como a comunidade joanina, vive um processo de crescimento na percepção
cristológica.
546
Brown ainda nos esclarece que o autor do QE fala do herói da
comunidade não como um apóstolo, mas como um discípulo, visto que esta é a
primeira e mais importante categoria para ele. Portanto, é a aproximação que o
discípulo tem com o Mestre e não a missão apostólica que confere dignidade ao
seguidor de Jesus.
547
Na expressão de Konings:
“A opinião mais razoável é reconhecer no Discípulo Amado a testemunha por
excelência. Ele sabe que Jesus não se abalou com a traição de Judas (13, 23-
26), ele é a testemunha da cruz (19,35), ele pode com plena autoridade
anunciar e interpretar a mensagem a respeito de Jesus (neste sentido ele é
também o símbolo de todo iniciado perfeito).”
548
Comentando sobre o “Discípulo Amado” numa perspectiva eclesiológica, Ana
Maria Tepedino corrobora com a opinião de Konings e nos diz que:
“para o QE o herói da comunidade não é Pedro, nem um dos apóstolos, mas um
personagem anônimo chamado o Discípulo Amado, aquele que soube crer e amar
Jesus. Este discípulo permanece anônimo para que nós, em cada época,
possamos seguir seus passos e nos tornarmos também discípulos e discípulas
546
Cf. BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo Amado... Op. cit., pp. 31-34.
547
Cf. Ibid. p. 86
548
KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 301.
201
amadas. Na verdade, ele também representa a comunidade joanina, que tinha a
pretensão de ser a verdadeira e fiel seguidora de Jesus.”
549
Sem a presença desta testemunha por excelência, quem iria agora falar de Jesus,
lembrar o que ele fez, o que disse, como agiu? “A presença do Espírito/Paráclito
parece ser uma resposta a este problema, pois através de sua atuação prossegue,
sem perda de continuidade, a obra de Deus revelada em Jesus.”
550
Vai ficando
claro para João que a presença de Jesus no mundo não se extingue com sua morte.
Ele continua presente através do Paráclito que habita o interior das pessoas que
amam a Jesus e reproduzem no mundo a prática do amor-solidariedade vivido
pelo Nazareno. A experiência do Espírito prova para a comunidade joanina que
Jesus “permanece” com ela.
551
O Paráclito desempenha na concepção joanina a função de ser a Testemunha
autorizada de tudo o que Jesus disse e fez. Ele se assemelha tanto a Jesus que
podemos dizer que é a presença permanente de Jesus, depois que este subiu ao
céu. Inclusive o Paráclito desempenha o mesmo papel revelador em relação a
Jesus como Jesus desempenhou em relação ao Pai.
552
Portanto, o Paráclito que o
Pai enviará em nome de Jesus, é a sua memória viva, pois ensinará tudo e
recordará tudo o que ele mesmo disse e ensinou quando caminhava junto com os
seus em sua vida terena.
553
É desta forma que Jesus se expressa em seu discurso
de despedida (Jo 14, 26. 16, 12-15). Portanto, Jesus esclarece, que a Verdade
plena que o Espírito guiará os seus discípulos, é sua própria Verdade, pois o
Espírito atualiza o papel de Jesus em sua ausência. O Espírito fará os seguidores
de Jesus conhecê-lo em todos os tempos, pois se Jesus estivesse presente no meio
de nós diria as mesmas coisas que diz o Espírito.
554
É de fundamental importância para nós o alerta que nos faz Ana Maria Tepedino
ao comentar a função do Paráclito como Testemunha de Jesus. Ela nos diz:
549
TEPEDINO, A. M. de A. L. Iniciação Teológica: Encontro com a Igreja de Jesus
(Eclesiologia)... Op. cit., p. 58.
550
TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In:
Atualidade Teológica... Op. cit., p. 160.
551
BINGEMER, M. C. L.. Iniciação Teológica: Encontro com o Deus de Jesus Cristo
(Trindade)... Op. cit., p. 96.
552
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo Amado... Op. cit., p. 145.
553
Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 317.
554
Ibid. pp. 317-318.
202
“O Paráclito não apenas recorda o que Jesus fez e disse, como também, em cada
nova situação histórica inspira o que deve ser e por onde anda o seguimento de
Jesus. Ele opera a articulação entre espiritualidade e ética, entre crer em Jesus e
amar aos irmãos e irmãs. O Espírito é quem inspira e anima a comunidade para
um verdadeiro discipulado, dentro das novas situações e desafios históricos.”
555
Portanto, uma verdadeira experiência do Espírito, que nos recorda toda vida-
morte-ressurreição de Jesus, não deixa a pessoa imóvel na própria experiência,
mas a impulsiona para a concretização efetiva daquilo que experimentou. A
pessoa é levada a amar seus irmãos/ãs. Este amor se manifesta na partilha do que
se possui e na entrega de si mesmo/a no dom. Dito com outras palavras: o Espírito
atualiza a memória de Jesus, tornando-o presente na comunidade, fazendo
acontecer hoje novos eventos fundados em Jesus.
556
Logo, o Paráclito como
Testemunha de Jesus nos lembra que somos discípulos e discípulas do Mestre de
Nazaré, e que, portanto, devemos segui-lo em sua prática solidária, mesmo diante
de todas as dificuldades que devemos enfrentar.
Entretanto, o Paráclito é também Mestre da comunidade. O ensinamento do
Paráclito está relacionado diretamente com a revelação do mistério e da pessoa de
Jesus. Cabe a ele rememorar e atualizar o que Jesus realizou, não possuindo um
ensinamento que lhe seja próprio, isto é, nada ensina que seja diferente daquilo
que o Nazareno ensinou. Portanto, o Paráclito é Mestre da comunidade, mas um
Mestre que ensina aquilo que o Mestre Jesus havia ensinado. Mas, é primordial
lembramos que tudo o que Jesus ensinou provém do Pai. O ensinamento de Jesus
é transmissão autorizada daquilo que recebera do Pai para comunicar aos seus
discípulos/as ao longo dos tempos.
557
Como Mestre, o Paráclito tem uma dupla função: Pedagogo e Mistagogo. Como
Pedagogo traz à memória os fatos ocorridos no tempo de Jesus e faz com que as
pessoas tenham um entendimento mais profundo destes fatos, coisa que ainda não
haviam alcançado. Portanto, o Paráclito é o intérprete, o hermeneuta que
possibilita o/a crente entrar no mistério de Deus através da compreensão mais
adequada da vida-morte-ressurreição de Jesus. Surge desta forma o
555
TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In:
Atualidade Teológica... Op. cit., p. 163.
556
Cf. FERRARO E. apud TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na
Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 163.
557
Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., pp. 93-94.
203
Paráclito/Mistagogo que introduz amorosamente o homem e a mulher de na
experiência de Deus.
558
Finalmente, podemos afirmar que o Paráclito não é um mero repetidor do que
disse e fez Jesus; “antes, ele aprofunda o conhecimento (que, em termos bíblicos e
especificamente joaninos, deve ser entendido de modo integral) da e conduz à
plenitude da verdade.”
559
“Como Swete diz de modo muito apropriado: ‘Jesus é o
caminho (he odos), o Espírito é o guia (ho hodegos) que orienta essa
caminhada.’”
560
c) O Paráclito é o “alter ego” de Jesus
No primeiro capítulo deste trabalho ao refletir sobre o “espírito” revelado no
Primeiro Testamento vimos que em síntese ele é a misteriosa potência que Deus
coloca na estrutura da criação (Gn 1,2), sendo o poder organizador e ordenador do
mundo que está presente em toda obra da criação; é o princípio vital comunicado
ao homem, a mulher (Gn 2,7) e a toda criatura; além disto, é a presença divina
constante e dinâmica capaz de renovar as pessoas (Cf. Ez 36,25; Is 11,1-9).
No segundo capítulo vimos que este Espírito em síntese é a presença constante
que acompanha Jesus em toda sua vida, sendo o Protagonista desta vida. Jesus faz
suas próprias escolhas, mas o faz sob a “orientação” do Espírito, ao qual está
sempre aberto e receptivo. Portanto, tudo o que Jesus diz (pregação) e faz (ações)
é fruto da presença do Espírito em sua pessoa. Entretanto, é somente depois da
morte-glorificação de Jesus que a compreensão sobre o Espírito entra numa nova
complexidade e ele passa a ser definido de forma personalizada como “o
Paráclito”. Somente depois da experiência pascal (Ressurreição e Pentecostes) é
que o Espírito aparece dotado de traços semelhantes aos da pessoa de Jesus
Cristo. Ele tem a mesma função do Nazareno e sua personalidade reflete a pessoa
de Jesus.
561
Todavia, distinções entre eles, e a mais fundamental encontra-se
na maneira como cada um desempenha sua função salvífica. A ação do Filho se
558
Cf. TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In:
Atualidade Teológica... Op. cit., pp. 162-163.
559
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p.
439.
560
SWETE apud CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 83.
561
Cf. BURGE apud TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição
Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 170.
204
na sarx e num determinado tempo histórico, enquanto que o Espírito age no
interior de cada pessoa humana, permanecendo presente para sempre na
humanidade.
562
Devido às diferenças que existem entre os dois podemos afirmar
que o Espírito não é um novo modo de existência de Jesus, pois ele é um “outro
Paráclito”, isto é, ele é como se fosse um “outro Jesus”.
563
São esclarecedoras as
palavras de Luiz Fernando Santana ao comentar sobre o Paráclito como “alter
ego” de Jesus:
“Como continuador da obra salvífica de Jesus, o Espírito Santo pode ser
qualificado como alter Ego’ de Cristo, sendo, ao mesmo tempo, d’Ele distinto;
nesse sentido, sua função na Igreja é clara: garantir e prolongar até a
consumação dos tempos a missão que o Filho recebeu do Pai, sem substituí-la,
no entanto.”
564
Portanto, o Paráclito não é o substituto de Cristo na história da Salvação, mas um
continuador da atuação salvífica de Deus na história.
565
d) O Paráclito é Teólogo e Autor do Evangelho
É evidente que esta é uma afirmação redundante para o cristão e a cristã. Eles/as
não têm dúvida de que toda Sagrada Escritura é inspirada pelo Espírito Santo, o
que significa dizer que ele é o seu autor último. Entretanto, esta afirmação de
cristã, que inclui naturalmente a autoria dos Evangelhos, fica mais patente quando
adentramos no QE. Nele encontramos a afirmação do Paráclito como autor de
suas páginas de forma mais direta, forte e explícita. Percebemos aí que
“sem o Espírito, a vida de Jesus é opaca e aberta a mal-entendidos e
incompreensões. Somente sua ação possibilita o conhecimento do mistério de
Jesus. Portanto, a chave de compreensão cristológica joanina é o Paráclito.”
566
Logo, ele capacita o homem e a mulher a lançar um olhar para a vida histórica do
Nazareno possibilita-lhes captar a Verdade e o sentido real dos acontecimentos
562
VANCELLS apud c p. 170.
563
Cf. BROWN apud TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição
Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 171.
564
SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 94. Grifo nosso.
565
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit.,
p. 438.
566
TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In:
Atualidade Teológica... Op. cit., p. 166.
205
vividos na Palestina, na primeira metade do século I, e que mudou o curso da
história da humanidade. É o Paráclito que mostra ao mundo que tudo aquilo que
Jesus disse e fez vinha de Deus e é o caminho para nossa salvação. Além disto,
deixa claro que aqueles/as que rejeitam Jesus e sua Boa Nova se condenam a si
mesmos. Desta forma o chefe deste mundo está condenado (Jo 16, 7-11).
567
A
partir de tudo isso podemos dizer que o Espírito é este critério de discernimento
que nos permite conhecer Jesus e sua mensagem, além do que nos coloca diante
de uma escolha: estar ou não ao lado da fé e da justiça trazidas por Jesus.
3.3.3.
A água- Espírito é a fonte de vida por excelência
Podemos perceber esta afirmação com mais vigor em dois encontros de Jesus que
vemos narrados neste evangelho, o que aponta para sua importância na
perspectiva joanina. O primeiro deles, relatado no capítulo três do QE, é o
encontro com Nicodemos, um fariseu, um “notável dos judeus” como é afirmado
no texto (3,1), o que significa dizer que Nicodemos é um dos membros do
Sinédrio. Este homem, um fariseu honesto, profundamente convencido da
validade da Lei, depois de ver os sinais que Jesus havia realizado no templo, fica
impressionado e interessado em saber mais e melhor a seu respeito. Temendo
represália dos seus amigos “notáveis”, vai visitar Jesus à noite (3,2). “Noite”
simboliza aqui a confusão, o medo, o enigma. Este mestre dos judeus tem mais
medo dos seus do que de Jesus, por isso escolhe à noite para não ser notado.
568
Nicodemos, observante e mestre da Lei, está convencido que a Lei é manifestação
definitiva da vontade divina, sendo portanto, partidário da ideologia legalista que,
não percebe ele, submete o povo e o impede de realizar o desígnio divino. Ele
dirige-se a Jesus usando o título de “Rabi” (v.2), portanto, aceita o Nazareno
como Messias-mestre. Mas, o que significa Nicodemos aceitar Jesus como
Messias-mestre? Na realidade significa que ele aceita Jesus como àquele que
impondo a observância da Lei instaura o reinado de Deus. Como podemos ver
este messianismo na perspectiva de Nicodemos está em total oposição com o
567
Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 317.
568
Cf. MAZZAROLO, I. Nem aqui, nem em Jerusalém... Op. cit., pp. 74-75
206
messianismo de serviço vivido por Jesus. Diante deste mal entendido, Jesus faz a
seguinte afirmação categórica a este mestre dos judeus:
569
“‘Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer de novo não pode ver o
Reino de Deus.Disse-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo já
velho? Poderá entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer?’ Respondeu-
lhe: ‘Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer da água e do Espírito
não pode entrar no Reino de Deus. O que nasceu da carne é carne, o que nasceu
do Espírito é espírito. Não te admires de eu te haver dito: vós deveis nascer de
novo. O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde vem
nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito.’”
(Jo 3, 5-8)
Jesus mostra para Nicodemos que o Reino de Deus não se baseia no anterior, mas
exige um novo começo, por isso, é preciso nascer de novo/do alto” (vv. 3.7).
Este nascimento se dá a partir da água-Espírito e é indispensável para se entrar no
Reino. Não é o esforço pessoal, aquele que nasce da fraqueza humana (sarx), que
propicia ao homem e à mulher participarem do Reino (v. 6: da carne nasce carne).
Para fazer parte deste Reino é necessário um princípio vital novo, infundido por
Deus, o Espírito, que cria no ser humano a condição de “espírito”, o que lhe
possibilita a capacidade de amar (v.6: do Espírito nasce espírito). Este novo
nascimento produz uma liberdade que orienta toda a vida da pessoa (v.8).
570
Entretanto, é fundamental deixar bem claro que o “nascer de novo”, na perpectiva
joanina, não se realiza automaticamente nem é um processo mágico ou misterioso,
mas é um acontecimento marcado pela liberdade, em que se recebe o Espírito e a
ele se responde. Logo, o v.8 se refere à liberdade do Espírito e à liberdade da
pessoa que é por ele presenteada. Como podemos ver também João afirma o nexo
entre e recebimento do Espírito, ser batizado e vida nova a partir do Espírito.
571
O ser humano nascido do Espírito, isto é, nascido “do alto” passa por uma
transformação radical. Quem nasce da “carne” continua sendo mero ser humano
fechado em seu egoísmo. Entretanto, ao nascer do Espírito que é verdadeira vida,
o ser humano se transforma em pessoa impulsionada por Deus. O que significa
dizer que é capaz de viver uma nova vida que não se acreditava capaz.
572
Portanto, para João, é o Espírito, que sendo Vida, gera a vida, o nascimento do
569
Cf. MATEOS, J., BARRETO, J. Op. cit., p. 209.
570
Cf. Ibid.
571
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit.,
p. 440.
572
Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 129.
207
alto ou “de Deus” nos seres humanos, desta forma, é ele quem gera a Vida por
excelência, a Vida Nova.
573
O segundo encontro, onde podemos perceber esta característica da pneumatologia
joanina, é o de Jesus com a samaritana, narrado no capítulo quarto do evangelho
de João. Nele encontramos Jesus descansando à beira do poço, a “fonte de Jacó”,
com o sol a pino. Neste momento chega uma mulher da cidade de Sicar, portanto,
uma samaritana, para tirar água do poço. Jesus lhe pede de beber e a mulher
estranha esta atitude vinda de um homem, e ainda por cima, de um judeu. Jesus
então lhe responde:
Se conhecêsseis o dom de Deus e quem é que te diz: ‘Dá-me de beber’, tu é que
lhe pedirias e ele te daria água viva! [...] Aquele que bebe desta água (da fonte)
terá sede novamente; mas quem beber da água que lhe darei, nunca mais terá
sede. Pois a água que lhe der tornar-se-á nele fonte de água jorrando para a vida
eterna.” (4, 10. 13-14)
No encontro de Jesus com a samaritana podemos perceber um “diálogo de
revelação” a partir do versículo dez. Jesus vai introduzindo a samaritana em seu
mistério progressivamente. Num primeiro momento Jesus se revela como aquele
que dará a “água viva” (v.10). Esta mulher entende “água viva” a água corrente da
mina do fundo do Poço do Pai Jacó. Ela não entende que “água” é esta. Jesus
continua a iniciação da samaritana (vv.13b-14a). Apesar disto ela ainda não
entende, pois quer a água para não ter que tirá-la mais do poço (v.15). No
simbolismo do Primeiro Testamento a água viva (Eclo 21,13; 24,23-34)
representa a sabedoria e a Lei (cf. Pr 13,14; 16,22; Br 3,12; Eclo 24,21; Is 55,1).
Mas, este símbolo pode representar também o Espírito de Deus (Is 32,15; 44,3; Ez
36,25-27).
574
Segundo Johan Konings:
“Esses dois simbolismos parecem convergir aqui, como em outros textos de João
e da catequese batismal dos primeiros cristãos. Ora, a sabedoria deixa a gente
com sede (Sr 24,21), mas Jesus não: ‘A água que eu darei se tornará nele uma
fonte de água jorrando para a vida eterna’ (cf. 6,35). Jesus é mais que Jacó, mais
que a Sabedoria dos livros bíblicos. A comunhão com Jesus, simbolizada pela
água do batismo, é uma fonte de vida que não estanca e que nos comunica o
Espírito (cf. 7,37-39).”
575
573
CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 73.
574
Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., pp. 141-142.
575
Ibid. p. 142. Grifo nosso.
208
Esta água-Espírito, que é o guia interior da conduta do ser humano, transforma-se
em manancial interior que fecunda o ser (v. 14). Ela rega a terra de cada um
desenvolvendo nele suas próprias potencialidades. Esta água-Espírito que Jesus
concede se torna princípio interno de Vida.
576
No Primeiro Testamento a imagem mais característica do Espírito (ruah) é o
vento, o sopro. Na linha joanina esta imagem é a água, que apesar de não ser de
uso habitual, tornando-a de difícil compreensão aos ouvintes de Jesus, foi
compreendida por João (7, 39).
577
Portanto, para João o Espírito é aquele que
gerando a vida nova impulsiona e anima o fiel até a vida eterna, do mesmo
modo como uma água vinda do alto faz subir a esse mesmo nível.”
578
3.3.4.
O Espírito leva a afirmar a encarnação de Jesus
A preocupação dominante de João em sua primeira epístola
579
é a de fortalecer
seus leitores contra um grupo que se afastou da comunidade (2,19), e que ainda
tenta conquistar outros adeptos. Os participantes deste grupo não reconhecem que
Jesus Cristo veio na carne (sarx), o que significa o mesmo que negar sua
importância salvífica (4,2-3). Eles chegam a crer que não têm necessidade de
guardar os mandamentos, pois acreditam estar livres da culpa do pecado (1,6. 8 ;
2,4). Além disso, não mostram amor aos irmãos (2,9-11; 3,10-24; 4,7-21).
580
Diante disto João afirma:
“Amados, não acrediteis em qualquer espírito, mas examinais os espíritos para
ver se são de Deus, pois muitos falsos profetas vieram ao mundo. Nisto
reconhecereis o espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio
na carne é de Deus; e todo espírito que não confessa Jesus não é de Deus; (1 Jo
4, 1-3a)
Mas, o que significa “não confessar Jesus na carne”? É exatamente o que os
separatistas desta comunidade estão fazendo: enfatizam tanto o princípio divino
em Jesus que negligenciam a carreira terrestre do princípio divino.
581
É claro que
576
Cf. MATEOS, J. BARRETO, J. Op. cit., p. 20.
577
Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... op. cit., p. 75.
578
Ibid. p. 73. Grifo nosso.
579
Não entramos aqui na discussão sobre a autoria desta epístola.
580
Cf. BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo Amado... Op. cit., p. 98.
581
Cf. Ibid. p. 116.
209
para João a divindade de Jesus, sua pré-existência como Filho de Deus, é
fundamental na confissão de fé do cristão/ã, tanto quanto a afirmação de sua
humanidade. Podemos perceber isto no prólogo do QE onde seu autor articula
magistralmente a humanidade e a divindade de Jesus: “E o Verbo se fez sarx
[humanidade] e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória [divindade] que ele
tem junto ao Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade.” (Jo 1, 14).
Apesar disso, o problema que João enfrenta neste momento é a negação da
humanidade de Jesus, e, portanto, é este aspecto que é por ele enfatizado como um
dos critérios de discernimento espiritual. Quem, a partir da experiência do
Espírito nega a humanidade de Jesus, na realidade não está fazendo uma
verdadeira experiência do Espírito, pois ela leva a pessoa a confessar que Jesus
não veio na sarx.
3.3.5.
O Espírito é o agente dinâmico da verdadeira oração
Encontramo-nos novamente com Jesus e a samaritana. Como dissemos
anteriormente temos neste encontro um diálogo de revelação que agora passa a
aprofundar-se um pouco mais. Com o intuito de conscientizar esta mulher Jesus
manda-a chamar seu esposo. Ela responde que não tem marido (Jo 4,16-17a).
Como um profeta de visão aguda e palavra provocante Jesus responde: “Bem
disseste que não tens marido, pois cinco tiveste, e o que tens agora não é teu
marido” (Jo 4,17-18). Com esta resposta Jesus demonstra todo o seu
conhecimento do ser humano. No momento em que denuncia sua situação, a
mulher reconhece nele um profeta. A partir daí a samaritana começa logo a falar
de religião perguntando a Jesus quem está certo, os judeus que adoram no templo
de Jerusalém ou os samaritanos que adoram no monte Garizim? (cf. Jo 4,20).
Neste momento Jesus a coloca num nível mais profundo da revelação ao lhe dizer
que vem a hora em que nem no monte Garizim, nem no Templo de Jerusalém
poderá se adorar o Pai (cf. 4,21).
582
O diálogo segue, e Jesus diz à samaritana:
“Mas vem a hora e é agora em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai
em espírito e verdade, pois tais são os adoradores que o Pai procura. Deus é
espírito e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade.” (Jo 4, 23-
582
Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., pp. 142-144.
210
24). Portanto, para a pneumatologia joanina a verdadeira oração acontece no
Espírito e a fundamentação para isto está na afirmação “Deus é Espírito” (v. 24):
porque Deus se aos seres humanos no Espírito, estes podem ter acesso a ele
no Espírito. Logo, conseguimos nos aproximar de Deus porque ele se voltou a
nós em seu Espírito, dando-nos seu Espírito e fazendo-nos renascer a partir de seu
Espírito.
583
Mas, o que significa realmente “adorar em espírito e verdade”?
Significa dizer que o homem e a mulher de fé adorarão a Deus, movidos/as por
seu sopro, o Espírito Santo, e fiéis à manifestação de Deus em Cristo, que é a
verdade. Logo, adorar em “espírito e verdade” é a verdadeira forma de oração
cristã que é possibilitada pelo Espírito tendo como objetivo a ser buscado a
conduta de Jesus Cristo. “Adorar em espírito e verdade” não é realizar um culto
“meramente espiritual”, mas pressupõe uma vida centrada na verdade manifestada
em Jesus, isto é, na prática do amor fraterno, possibilitada pelo Espírito.
584
Vale
a pena conferir o que nos diz Luiz Fernando Santana sobre o culto em “Espírito e
Verdade”:
“Adorar em Espírito e Verdade é expressão que indica adoração na luz e sob a
moção da Palavra reveladora de Jesus que, mediante o Espírito, tornou-se a posse
interior e a fonte permanente do crente. Trata-se não de dois princípios, mas de
um só: A verdade recebida e feita própria mediante o Espírito, ou então, o
Espírito que anima a palavra de revelação de Jesus. Princípio cristológico e
princípio pneumático estão intimamente unidos. Eles realizam a adoração
autêntica de Deus Pai que é Espírito, isto é, dom do Espírito.”
585
3.3.6.
O Espírito gera o amor efetivo
A vida de Jesus, que destacamos no capítulo anterior resume-se no amor-serviço
concretizado efetivamente pela atuação do Espírito de Deus que o habita sem
medida. Este amor efetivo tem como atenção especial os pequeninos/as e os
renegados/as da sociedade. Vimos ainda que o Nazareno, na força do Espírito,
ama, serve e é solidário até às últimas conseqüências. Tudo isto é possível porque
Jesus de Nazaré sente-se amado de forma incondicional pelo Pai. De tal forma
experimenta-se amado, que é capaz de responder a este amor, amando seus
583
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit.,
p. 440.
584
Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 144.
585
SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 92. Grifo nosso.
211
semelhantes. Esta experiência amorosa é feita por Jesus no Espírito. Para o
Nazareno não outra forma de demonstrar o seu amor ao Pai a não ser
cumprindo seu desejo de revelá-lo como Abba que ama a todos/as sem exceção.
Este amor do Pai dado incondicionalmente a todos/as, e que nos é revelado por
Jesus, deve unir as pessoas numa grande família de irmãos/ãs que se amam
mutuamente. Esta corrente de amor que vem do Pai e chega ao Filho, e daí,
alcançando os seres humanos é possibilitada pelo Espírito. Ele é o “condutor”
deste amor que vem do Pai pelo Filho aos seres humanos. Assim, também da
mesma forma, todo amor para chegar ao Pai passa pelo amor efetivo entre os
irmãos/ãs, amor possibilitado pelo Espírito, e que é vivido e testemunhado por
Jesus. Somente assim, esta corrente amorosa pode nos ligar ao Pai. Portanto, é
novamente o Espírito Santo aquele “condutor” do amor que vai agora dos seres
humanos até o Pai, pelo Filho. João percebe muito bem esta maravilhosa realidade
quando alerta sua comunidade:
Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia seu irmão, é um mentiroso: pois
quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar. E
este é o mandamento que dele recebemos: aquele que ama a Deus ame também
seu irmão. (1 Jo 4, 20-21)
Este amor mútuo entre os irmãos/ãs gera uma ética solidária entre as pessoas, isto
é, gera uma forma de comportamento baseada no serviço e na ajuda efetiva a
quem mais necessita desta. Este comportamento, fruto da ação do Espírito, está
muito claro para o autor do QE. Podemos ver isto com mais evidência no relato do
Lava-pés (Jo 13, 1-16). Segundo Johan Konings o acento mais forte deste relato
encontra-se naquilo que os discípulos/as devem fazer em imitação de Jesus.
586
É
este amor-serviço, amor efetivo e concreto que, segundo a pneumatologia joanina,
é gerado no seio de cada homem e de cada mulher pelo Espírito Santo.
3.3.7.
O Espírito faz nascer a comunidade
Esta outra característica do Espírito dentro da pneumatologia joanina é
decorrência da anterior. O amor efetivo e solidário gerado pelo Espírito une as
pessoas, pois entre elas o amor mútuo. Isto faz com que os homens e mulheres
586
Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 291. Grifo nosso.
212
que aderem ao projeto amoroso do Pai no seguimento a Jesus formem uma
comunidade. Pois, “abrir-se para os outros, possibilitar comunicação e juntar as
pessoas para a unidade, para a koinonia/communio isso constitui a essência do
Espírito.”
587
Dito de outra forma: é o Espírito que “colabora para que a pessoa (o
‘eu’) se abra para realizar a comunidade (o ‘nós’), e aconteça a ‘koinonia’, pois a
ordem do Espírito não é apenas trans ou supra-individual, mas é também
intersubjetividade.”
588
De tal forma a comunidade é obra do Espírito que
podemos afirmar que ele é o sujeito e o princípio da mesma. Conseqüentemente
todo serviço e ministério que aí encontramos é fruto da ação do Espírito.
589
Portanto, o é Espírito que faz nascer a comunidade, aquele que atua
constantemente em todos os membros da mesma para que possam servir. Aqui
encontramos a outra característica do Espírito na perspectiva joanina que veremos
a seguir.
3.3.8.
O Espírito é força para a missão
Acabamos de ver que o Espírito gera a comunidade a partir do amor tuo que
une as pessoas. Entretanto, se esta comunidade é verdadeiramente fruto do
Espírito não fica fechada em si mesma, pois este Espírito impulsiona seus
membros para a missão no mundo. Como podemos afirmar isto? Vimos acima que
o Paráclito-Espírito é o continuador da obra de Jesus na comunidade. Foi esta
presença misteriosa que modelou a visão missionária desta comunidade,
tornando-a estritamente ligada à missão de Jesus, o “apóstolo” do Pai por
excelência. Logo, “a Igreja joanina olhava para si mesma como continuadora da
missão apostólica do Ressuscitado-Glorificado, sempre presente em meio aos
seus mediante a assistência do Paráclito.”
590
Portanto, podemos afirmar que a
comunidade joanina impulsionada pela força do Espírito se abre ao mundo, onde
em missão, leva a Boa Nova do Pai revelada por Jesus. Entretanto, esta
comunidade foi acusada por muitos dos estudiosos de ser uma seita, isto é, uma
587
HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p.
442.
588
ONUKI apud TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição
Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 167.
589
Cf. TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In:
Atualidade Teológica... Op. cit., p. 168.
590
SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 87.
213
comunidade fechada em si, devido ao amor mútuo. Acusação sem fundamento,
visto que este amor gera a comunidade dos seguidores de Jesus que é “impelida”
pelo Espírito para o mundo. Não podemos esquecer que foi este mesmo Espírito
que impulsionou Jesus em sua missão em direção ao mundo para cumprir o
projeto amoroso do Pai. Na expressão de Ana Maria Tepedino: “Como entender
uma comunidade fechada no seguimento de Jesus enviado ao mundo pelo amor
louco do Pai?”
591
Na realidade isto é impossível. Afirmar que a comunidade
joanina é fechada, significa o mesmo que negá-la como essencialmente
cristológica e pneumatológica, coisa que todos os autores pesquisados afirmam
ser. Podemos destacar isto em um dos textos do QE em que a percebemos indo,
com a proteção do Espírito, em direção ao mundo.
“À tarde desse mesmo dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas onde
se achavam os discípulos, por medo dos judeus. Jesus veio e, pondo-se no meio
deles disse: ‘A paz esteja convosco!’ Tendo dito isso, mostrou-lhes as mãos e o
lado. Os discípulos, então, ficaram cheios de alegria por verem o Senhor. Ele lhes
disse de novo: ‘A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou, também eu vos
envio.’ Dizendo isso, soprou sobre eles e lhes disse: ‘Recebei o Espírito Santo.”
(Jo 20,19-22)
Os discípulos/as encontram-se trancados por medo dos judeus. Jesus ressurreto
aparece e lhes diz por duas vezes “A paz esteja convosco!”. Esta saudação
repetida parece implicar na realização das promessas anunciadas por Jesus na
hora da despedida. Ele havia prometido que os seus haviam de revê-lo (14,19;
16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a paz (14,27). A paz e
a alegria contrastam com o medo que aprisionava os discípulos/as anteriormente.
Realiza-se assim a promessa: “Tende coragem, eu venci o mundo” (16,31; cf.
16,11). É nesta perspectiva que devemos interpretar a missão que Jesus confia
aos discípulos/as. Em sua oração ao Pai, ao terminar seu discurso de despedida,
Jesus confia uma missão aos seus/as, que nada mais é que a mesma missão que o
Pai havia a ele confiado: “Como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei
ao mundo”. (Jo 17,18). A missão, portanto, é a mesma. Para que os seus/as
possam realizar esta missão, e num gesto que lembra a ação de Deus na criação
(Gn 2,7), Jesus sopra (insufla) sobre eles o Espírito da parte de Deus. Eles não
recebem um simples carisma, mas sim uma vida nova, como sugere a
591
TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In:
Atualidade Teológica... Op. cit., p. 169.
214
proximidade da imagem do insuflar.
592
Os discípulos/as possuem agora o Espírito
para que possam cumprir a missão de serem testemunhas da frente à descrença
do mundo, que segundo a perspectiva joanina é o pecado do mundo.
593
“O sopro
do Cristo ressuscitado opera nos discípulos/as uma transformação radical, recria-
os e os torna aptos à obra sobre-humana da qual passam a ser responsáveis e os
consagra à missão.”
594
Portanto, é a partir desta nova vida advinda do Espírito,
que os discípulos/as renovados e animados, encontram-se cheios de alegria, paz e
coragem para assumir a missão cristã no mundo.
3.4.
Balanço da investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito de
Deus nas pneumatologias das primeiras comunidades cristãs
Como fizemos anteriormente nos dois capítulos precedentes iremos agora
reunir neste item, e de forma sintética, os dados que pudemos recolher das três
principais pneumatologias do Segundo Testamento. Mantendo-nos fiéis a nossa
metodologia iremos, simplesmente, elencá-los em duas grandes linhas: identidade
(quem é o Espírito de Deus revelado nas pneumatologias de Lucas, Paulo e João )
e ação (como age esse Espírito nas comunidades nascentes). Estas informações
nos darão a possibilidade de conhecer quem é o Espírito que se encontra revelado
nas páginas da Sagrada Escritura e os critérios de discernimento que podemos
extrair destas páginas.
3.4.1.
Identidade: Quem é o Espírito que se encontra revelado nas
pneumatologias lucana, paulina e joanina?
Com base naquilo que acabamos de refletir podemos dizer que o Espírito Santo
revelado no Segundo Testamento é aquele que: a) sendo o Espírito da vida
animou Jesus possibilitando sua ressurreição e Espírito que possibilita,
igualmente, o novo nascimento de tudo quanto vive. Logo, o Espírito é Vida e
comunica a Vida sendo o princípio de nossa vida escatológica. Por isso, é a
antecipação e o início da nova criação do mundo no final dos tempos. Ele é a
592
Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., pp. 406-407.
593
Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit.,
p. 437.
594
SANTANA, L. F. R. Op. cit., pp. 88-89. Grifo nosso.
215
fonte de vida por excelência, o princípio vital novo, infundido por Deus e que cria
no ser humano a condição de “espírito”, dando-lhe a capacidade de amar e
conseqüentemente a possibilidade de salvar-se; b) constitui homens e mulheres
como filhos e filhas de Deus. Gera a adoção filial, pelos méritos de Jesus Cristo
sendo o motor da transformação que traz vida nova a estes filhos/as que
abandonam o egoísmo (subjetividade fechada) e se deixam guiar por sua ação
amorosa; c) dá continuidade a História da Salvação, pois é ele que une toda a
História tornando-a uma única expressão do amor salvífico de Deus por sua
criação e por suas criaturas; d) é a presença viva de Jesus na vida da comunidade
depois de sua morte-glorificação. É o “alter ego” de Jesus tendo a mesma função
dele e sua personalidade reflete a pessoa de Jesus. O Espírito atualiza e propaga a
salvação, adquirida por e em Cristo. É a força do próprio Deus, que agindo
naquele e naquela que se abre a sua ação e se coloca disponível a seus impulsos,
leva-os/as a continuar o que Jesus começou. Portanto, inspira e anima o/a fiel
para um verdadeiro discipulado, dentro das novas situações e desafios históricos;
e) é Liberdade, a Nova Lei gravada no coração de cada ser humano, isto é, a força
libertadora que possibilita os que crêem libertarem-se do regime da lei, do pecado
e da morte. Possibilita a adesão a Jesus suscitando transformações radicais na
comunidade e levando o ser humano a uma práxis libertadora. Além disto, ele
também está presente nas histórias de todos os povos, sempre ativando seu
projeto de liberdade e vida para todos/as, sendo a sua ação universal; f) é Amor
(ágape), por isso, rompe todas as barreiras possibilitando a verdadeira
comunicação entre as pessoas, pois lhes a linguagem universal do amor, da
gratuidade, da partilha, da concórdia, da fraternidade. Sendo Amor gera o amor
efetivo entre as pessoas originando uma ética solidária entre elas, uma forma de
comportamento baseada no serviço e na ajuda efetiva a quem mais necessita; g)
tem a função decisiva na construção da Igreja e na sua unidade. De tal forma a
comunidade é obra do Espírito que podemos afirmar que ele é o sujeito e o
princípio da mesma. Além disso, possibilita à Igreja conhecer a vontade de Deus
sobre o caminho que deve seguir em cada momento histórico. É o Defensor,
Intercessor, Consolador e Encorajador da comunidade eclesial. Gera os
ministérios na Igreja com a finalidade de edificar a comunidade. É a intrepidez
(parresia) que acompanha o homem e a mulher de fé, sendo a força para a missão
que devem desempenhar no mundo, dando-lhes a capacidade de evangelizar de
216
forma inculturada. Além disto, possibilita a koinonia (comunhão) que há entre os
membros da comunidade; h) possibilita que homens e mulheres lutem ombro a
ombro para colaborar na construção do Reino; i) gera a verdadeira oração cristã
possibilitando que o ser humano ouça e fale com Deus, pois é o intérprete de
nossos sentimentos mais íntimos, tornando-se o porta-voz da súplica de quantos
lutam pelo mundo novo; j) possibilita a todos/as a sabedoria que vem de Deus,
principalmente aos mais pobres e aos marginalizados/as, sabedoria que leva-nos
a encontrar um sentido para nossas vidas; l) traz a alegria nas tribulações, alegria
que não significa alienação diante da realidade vivida, muito menos entusiasmo
passageiro; m) é o Espírito da Verdade, a Testemunha autorizada de tudo o que
Jesus disse e fez, portanto, é a sua memória viva. É o Mestre da comunidade, mas
um Mestre que ensina aquilo que Jesus havia ensinado. É o Pedagogo que traz
à memória os fatos ocorridos no tempo de Jesus e faz com que as pessoas tenham
um entendimento mais profundo destes fatos. É o Mistagogo que possibilita o/a
crente entrar no mistério de Deus através da compreensão mais adequada da vida-
morte-ressurreição de Jesus. É Teólogo e Autor do Evangelho mostrando que tudo
aquilo que Jesus disse e fez vinha de Deus e é o caminho para nossa salvação.
Portanto, leva o/a fiel a afirmar a encarnação de Jesus e igualmente sua
divindade. Além disto, deixa claro que aqueles/as que rejeitam Jesus e sua Boa
Nova condenam a si mesmos/as.
3.4.2.
Ação: Quais os critérios que nos ajudam a discernir se o Espírito que
agiu nas primeiras comunidades cristãs é o mesmo que age hoje no
ser humano e no mundo?
Segundo o que pudemos observar sobre a forma de agir do Espírito Santo nas
comunidades primevas podemos afirmar que sua ação: a) gera vida, liberdade,
verdade e amor entre todos os seres humanos; b) conscientiza as pessoas que sua
existência marcada pela morte lugar à vida; c) estimula as pessoas a buscarem
sua própria liberdade e a libertarem aqueles/as que vivem como escravos/as; d)
encoraja homens e mulheres a lutarem por transformações necessárias na
sociedade, para torná-la mais justa e fraterna; e) origina o amor efetivo (ágape)
entre os seres humanos; f) determina onde se encontra a verdade, pois é a luz que
ilumina os caminhos tortuosos da humanidade; g) constitui a comunidade dos
217
seguidores/as de Jesus; h) se estende a todos os membros do povo de Deus sem
que haja qualquer tipo de discriminação; i) não tem como finalidade a edificação
pessoal, mas possibilita ao ser humano a comunicação do Evangelho; j) leva o
homem e a mulher de a testemunhar, através da pregação e da vida, que Deus
ama gratuitamente e salva a todos e todas, sem que haja distinção alguma; l) faz
nascer testemunhas cheias de intrepidez, coragem e audácia; m) possibilita a
presença atuante da mulher e sua aceitação e valorização por todos os membros
da comunidade; n) gera os verdadeiros ministérios e serviços eclesiais deixando
claro que todos eles são necessários e importantes, porém os mais espetaculares
devem ser os últimos em importância; o) possibilita a conscientização de que não
oposição entre carisma e instituição; p) leva a pessoa a perceber que o
extraordinário da experiência com o Espírito de Deus esconde-se e revela-se no
ordinário e cotidiano da vida humana; q) gera articuladamente mística (oração) e
prática concreta do amor-serviço (ação) de forma que uma alimenta a outra, sem
dualismos mutiladores; r) possibilita àqueles/as que se deixam cristificar por ele,
viverem as mesmas opções concretas que o nazareno viveu, isto é, viverem o
amor serviço; s) condição de possibilidade para que haja ordem na
comunidade, porém sem que se extingam os dons suscitados por ele; t) gera uma
comunidade onde seus membros encontram-se abertos/as para a missão no mundo
sendo continuadores/as da missão do Ressuscitado-Glorificado.
Como podemos constatar a ação do Espírito revelado no Segundo Testamento tem
como finalidade a abertura do ser humano a Deus e aos irmãos e as irmãs, pois
nunca leva a pessoa a fechar-se em si mesma, mas pelo contrário é ele que
possibilita a relação, fazendo cair todas as barreiras que possam existir entre as
pessoas. Além disto, gera a comunidade e a impulsiona para o mundo.
Com estes elementos recolhidos sobre a identidade e a forma de agir do Espírito
de Deus na vida dos primeiros cristãos/ãs estamos preparados/as para uni-los aos
dados recolhidos dos dois capítulos anteriores e assim poder conhecer quem é o
Espírito Santo que se encontra revelado na Bíblia e elencar os critérios de
discernimento que brotam da Sagrada Escritura.
218
Conclusão
Fizemos uma afirmação no início de nosso trabalho que gostaríamos de recolher
neste momento: a Bíblia é Sagrada Escritura em sua unidade. Esta unidade
fundamental imprescindível podemos percebê-la em relação ao tema que
abordamos. Existe uma harmonia, uma total coerência entre a Experiência
Histórica vivida pelo Povo de Deus do Primeiro Testamento com seu Espírito,
com a vivida por Jesus de Nazaré e, igualmente, com a que viveram seus
seguidores e seguidoras no início do cristianismo. Podemos ainda perceber, que
esta unidade se numa continuidade dinâmica. Dizer isso, significa afirmar que
há uma continuidade nestas experiências pneumatológicas porque é o mesmo
Espírito que é experimentado, mas, ao mesmo tempo, significa afirmar que esta
continuidade é dinâmica porque ganha um sabor de total novidade que é trazida
por Jesus Cristo. Esta continuidade dinâmica é o desígnio da graça de Deus que
vem se cumprindo amorosa e pedagogicamente no Povo de Deus até que, na
plenitude dos tempos, aquilo que antes havia sido prometido e que era tão
ansiosamente esperado se realiza. Tudo isto se dá sob o signo do Espírito Santo!
Com base naquilo que refletimos até aqui, pretendemos neste momento recolher
os traços constantes que marcam a experiência humana com o Espírito de Deus a
partir da revelação que vemos consignada nas páginas da Sagrada Escritura. Isso
nos permitirá levantar os critérios de discernimento, que poderão, num estudo
posterior, servir de base para o desenvolvimento de uma Pneumatologia Integral
que poderá ser colocada em confronto com a prática eclesial.
As quatro afirmações fundamentais que se faz na Bíblia quando se
quer expressar a Experiência Histórica com o Espírito de Deus
Fundamentando-nos na pesquisa que fizemos em autores/as renomados, podemos
afirmar que na Sagrada Escritura quatro grandes sinalizadores da presença
deste Espírito agindo na História. A especificidade de cada uma das etapas que
fomos encontrando ao trabalhar os três capítulos desta dissertação não será agora
contemplada, pois o que buscamos neste momento é destacar aquilo que se repete
continuamente na experiência com o Espírito Santo. Estes quatro sinais que
219
apontam para a presença deste Espírito agindo em toda criação e na História,
estão de alguma forma presentes no Primeiro Testamento, mesmo que não o
encontremos com toda a clareza que alcançam a partir da plenitude da revelação
que se dá em Jesus Cristo. Vejamos a seguir quais são estes sinalizadores.
1.
O Espírito é Vida
A primeira e mais fundamental característica desta experiência com o Espírito de
Deus é a afirmação de que ele é Vida. Dito com outras palavras ele é o princípio
vital de tudo o que existe. Deus coloca este princípio, que é o seu Espírito, na
estrutura da criação e em cada criatura criada. Este Espírito, além disso, é o poder
organizador e ordenador do universo que está presente nele e acompanhando-o
sempre. Ele é como uma Grande Mãe, que de suas amorosas e fecundas
entranhas, à luz e faz eclodir o universo, trazendo as coisas do lugar de onde
não são para que sejam. Por isso, podemos crer e invocar a Deus não só como Pai
forte, mas também como Mãe que aconchega, consola, abriga e protege. O
Espírito de Deus transformou o caos primordial em vida e esta realidade tornou-se
um referencial significativo para toda espécie de caos que foi experimentado pelo
homem e pela mulher bíblicos. Sempre que este/a se viu ameaçado pelas forças
que geravam o caos ele/a se lembrava que o Espírito de Deus é Vida e doador de
Vida. Portanto, ele é a promessa criadora de Vida que encontramos em toda
situação caótica da história pessoal ou social do ser humano. Sendo assim,
podemos afirmar que ele é o motor da transformação que traz Vida Nova a toda
pessoa humana que se deixa guiar por sua ação amorosa. Somente desta forma
esta pessoa se torna capaz de abandonar o seu egoísmo (subjetividade fechada) e
abrir-se para o outro/a. Ele é ainda o Princípio de Vida Eterna que possibilita ao
fim aparente que é a morte, se transformar num novo e maravilhoso começo, pois
ele a tudo renova. Logo, o Espírito é Vida e comunica a Vida sendo a antecipação
e o início da Nova Criação do mundo no final dos tempos. Ele é a fonte de Vida
por excelência que cria no ser humano a condição de “espírito”, dando-lhe a
capacidade de amar e, conseqüentemente, a possibilidade de salvar-se.
220
2.
O Espírito é Liberdade
O segundo traço marcante do Espírito Santo que perpassa toda a revelação é o de
que ele é Liberdade. Ele é na realidade o espaço de liberdade onde o ser humano
pode desenvolver-se. É o desejo de Liberdade gravado no coração de cada pessoa
humana, isto é, ele é a força libertadora que condição de possibilidade a todo
homem e mulher de viver livremente. É ele quem os inspira a se posicionarem a
favor da Liberdade também para os outros seres humanos, o que lhes possibilita
viver uma práxis libertadora. Finalmente, é o Espírito Santo de Deus quem está
presente nas histórias de todos os povos, sempre ativando seu projeto de
liberdade e vida para todos/as.
3.
O Espírito é Verdade
A outra qualidade fundamental do Espírito de Deus é dele ser Verdade. Ele é a
Verdade divina agindo naquele e naquela que se abre a sua ação e se coloca
disponível a seus impulsos. Sendo assim, leva-os a encontrar a Verdade que é a
vontade de Deus que os orienta sobre o caminho a ser seguido e concretizado em
cada momento histórico, dentro das novas situações e desafios que devem
enfrentar. Além disso, conscientiza o ser humano sobre a necessidade de
transformar a sociedade para que seja mais justa e fraterna. Ele é a Sabedoria que
vem de Deus, a companheira ideal que ao ser humano a capacidade de
encontrar um sentido para sua vida. Portanto, por ser Verdade, ele é o Princípio
de Discernimento que sinaliza para o homem e a mulher a escolha que deve ser
feita para concretizar historicamente o Reino de Deus.
4.
O Espírito é Amor
A quarta característica que pudemos perceber que se encontra em toda revelação
sobre o Espírito Santo, e que desponta com maior fulgor, principalmente, no
Segundo Testamento, é a de que ele é Amor. O Espírito é o Amor que no
coração de todo ser humano. Ele é o Amor que ama sem limites o ser humano,
simplesmente porque ele é humano. Mas, exatamente por ser Amor, respeita as
221
opções de toda pessoa humana, tomando sempre o partido dos mais fracos. É
Amor-agápico que possibilita à pessoa romper todas as barreiras que impedem a
vivência do verdadeiro Amor. Ele condições de possibilidade para que
aconteça a verdadeira comunicação, pois suscita entre as pessoas a linguagem
universal do amor, da gratuidade, da partilha, da concórdia, da fraternidade. É
ele, quem possibilita que as quatro relações fundamentais constitutivas do ser
humano aconteçam na total abertura ao outro/a e ao grande Outro. Sendo Amor
ele gera o amor efetivo entre as pessoas originando uma ética solidária entre elas.
Por ser Amor tem a função decisiva na construção de toda comunidade humana a
tal ponto que podemos afirmar que ele é o sujeito e o princípio de toda e qualquer
comunidade humana. Ele possibilita ainda a comunhão que entre os membros
destas comunidades, fazendo com que homens e mulheres lutem ombro a ombro
para colaborar na construção de um mundo melhor.
Os principais critérios de discernimento que encontramos na
Sagrada Escritura
Estes critérios, que são muitos e variados, encontram-se espalhados por toda
Bíblia. Entretanto, podemos vê-lo com maior clareza, principalmente, no Segundo
Testamento. Como já dissemos ao longo de nossa pesquisa, eles surgem dos
problemas encontrados em lidar com a novidade que os primeiros cristãos/ãs
estavam vivendo, a vida no Espírito. Desta forma, iremos nos basear nas quatro
linhas mestres da ação do Espírito de Deus na Criação e na História que acabamos
de destacar, para assim podermos apresentar os critérios de discernimento que
brotam da Sagrada Escritura. Não devemos esquecer que a questão que está por
trás destes critérios que elencaremos a seguir é a esta: Como saber que “espírito” é
este que está agindo no ser humano e na comunidade? Ou ainda: O que nos
garante que o “espírito” que está agindo é realmente o Espírito Santo de Deus?
Encontramos algumas respostas para estas questões nas ginas da Bíblia,
entretanto, estamos conscientes que outras mais poderão ser ainda encontradas.
São estas as respostas que fomos capazes de perceber na Sagrada Escritura:
222
- Onde está o Espírito Santo de Deus aí se encontra a Vida
Este critério nos afirma que SE o Espírito é Vida e está constantemente em
relação com a Vida fazendo-a surgir como o faz uma Mãe; SE ele preserva a
vida, sendo a força de vida imanente em tudo quanto é vivo; SE ele age no
interior da humanidade inteira suscitando o homem novo e a mulher nova ao
transformar seus corações de pedra em corações de carne; SE ele faz expandir a
experiência de vida em toda a Criação e em toda História; SE é ele quem fará
surgir, no final dos tempos, a Nova Criação; ENTÃO podemos afirmar que em
todo lugar onde a vida é negada, onde vemos sinais de morte, o Espírito Santo
encontra-se impossibilitado de agir.
- Onde está o Espírito Santo de Deus aí se encontra a Liberdade
Este critério nos afirma que SE o Espírito é Liberdade que age de forma lenta e
amorosa no íntimo das liberdades pessoais; SE ele é Liberdade que não pode ser
confundida com arbitrariedade ou licenciosidade, pois o amor é a “regra” que rege
a liberdade infundida por ele nos seres humanos; SE ele é movimento que põe
tudo em movimento, levando as pessoas da estreiteza para a amplidão; SE ele é
Liberdade que não se encontra preso a nenhum espaço físico, não sendo possível
“domesticá-lo” ou “manipulá-lo”; SE ele estimula as pessoas a buscarem sua
própria liberdade e a libertarem aqueles/as que vivem como escravos/as; SE ele
provoca no ser humano o desejo de ser livre e de viver em liberdade, assim como
o desejo de construir uma sociedade fraterna, igualitária e justa para todo/as;
ENTÃO, podemos afirmar que onde estagnação, paralisia, ou onde
encontramos estruturas esclerosadas e engessadas; onde opressão, opressor e
oprimido; onde homens e mulheres vivem relações de dominação/dependência
patriarcais; onde há tentativas de manipular este Espírito; onde há qualquer tipo de
escravidão, o Espírito Santo não está tendo oportunidade de agir e de concretizar
historicamente a verdadeira liberdade.
223
- Onde está o Espírito Santo de Deus aí se encontra a Verdade
Este critério nos afirma que SE o Espírito é Verdade; SE ele é o discernimento
que possibilita a todo e qualquer ser humano viver uma vida de amor e serviço, a
exemplo daquela vivida por Jesus; SE ele determina onde se encontra a Verdade,
pois é a luz que ilumina os caminhos tortuosos da humanidade; SE é ele quem
esclarece aos homens e às mulheres onde se encontra a mentira que impede a
atuação do Reino no “já” da História, encorajando-os a serem fiéis ao projeto
amoroso do Pai; SE ele é a Verdade de Deus que se encontra no mais íntimo de
todo ser humano; SE ele é a Verdade plena que guia os discípulos/as de Jesus,
pois atualiza o papel do Nazareno em sua ausência; SE ele possibilita que o ser
humano conheça a vontade de Deus sobre o caminho que deve ser seguido em
cada momento histórico; ENTÃO, podemos afirmar que ele é o próprio
Discernimento em pessoa que se encontra “abafado”, “calado” em todo e qualquer
lugar onde reina a mentira, a falsidade, a injustiça e o mal.
- Onde está o Espírito Santo de Deus aí se encontra o Amor
Este critério afirma que SE o Espírito Santo é o Amor de Deus que está presente
em todas as suas criaturas; SE ele introduz o ser humano no Mistério de Deus
para que este encontre o Amor restaurador que nos possibilita amar o irmão/ã,
originando desta forma o amor agápico; SE ele capacita todo homem e mulher
com seu dom para que o partilhe com os outros seres humanos; SE é ele
o“condutor” da corrente de amor que vem do Pai pelo Filho até que chegue a nós
seres humanos, sendo igualmente, o condutor” do amor que vai de nós até o Pai,
pelo Filho; SE é ele quem gera o amor-serviço, amor efetivo e concreto no seio
de cada homem e de cada mulher; ENTÃO, onde não encontramos relações
baseadas no amor concreto e solidário; onde o que pauta a vida das pessoas é o
poder e não o amor-serviço, podemos afirmar que o Espírito Santo encontra-se
impossibilitado de agir.
224
- Onde o Espírito de Deus se encontra o extraordinário de sua
experiência esconde-se e revela-se no ordinário e cotidiano da vida
humana
Este critério afirma que SE a “vida no Espírito” encontra-se encarnada nas ações
ordinárias e comuns da vida das pessoas; SE o falar, rezar, caminhar, viajar,
orientar, cantar, criticar, decidir, ficar alegre, crescer, anunciar, servir e tantas
outras atividades comuns do dia-a-dia podem e devem ser vividas no Espírito; SE
a “vida no Espírito” impulsiona o homem e a mulher de a vivê-la
constantemente em todas as ações ordinárias da vida humana levando-os a
articular mística e prática concreta do amor-serviço de forma que uma alimenta a
outra, sem dualismos mutiladores; SE a “alegria nas tribulações” é o indicador
mais poderoso da autêntica experiência do Espírito; SE o lugar sociológico do
Espírito é estar no mundo, permanecendo nos fiéis, de tal forma que o
espiritualismo é o pior inimigo do Espírito; ENTÃO quando a experiência
carismática aprisiona a pessoa no gozo da mesma; quando leva a pessoa a buscar
nesta experiência o maravilhoso ou mágico, com a finalidade de facilitar a vida
cotidiana, podemos afirmar que não é o Espírito Santo de Deus que está agindo
neste homem ou mulher.
- Onde o Espírito Santo de Deus se encontra as relações humanas
são vividas na abertura ao “outro” e ao grande Outro
Este critério afirma que SE o Espírito possibilita a abertura do ser humano a
Deus e aos irmãos e as irmãs; SE ele nunca leva a pessoa humana a fechar-se em
si mesma, mas pelo contrário possibilita a relação com os outros/as e o grande
Outro; SE ele derruba todas as barreiras criadas pelos seres humanos que os
impede de amar verdadeiramente; ENTÃO onde fechamento, egoísmo, auto-
suficiência; onde o ser humano cria barreiras discriminatórias, podemos afirmar
que o Espírito Santo não está tendo possibilidade de agir.
- Onde o Espírito Santo de Deus se encontra as pessoas se unem
em comunidade
Este critério afirma que SE o Espírito é o motor, a força, a luz que guia e sustenta
toda comunidade humana; SE ele cria laços de união entre as pessoas que
225
desejam mais Vida e Liberdade, capacitando-as para que possam abrir novos
caminhos dentro da História; SE ele gera comunidades onde todos se entendem
apesar das diferenças pessoais; SE ele faz destas diferenças o enriquecimento da
comunidade; ENTÃO quando as pessoas não se entendem dentro de uma
comunidade possibilitada pelo Espírito; quando as diferenças são motivos de
desunião e fragmentação, podemos dizer que o Espírito de Deus encontra-se
“abafado”, isto é, as pessoas não estão dando ouvidos a seus apelos de unidade e
comunhão.
Como podemos constatar o Espírito Santo revelado em toda Sagrada Escritura, e
com mais clareza e força no Segundo Testamento, nos deixa vislumbrar que ele é
o Protagonista da História da Salvação. Ele autolimitando-se, auto-rebaixando-se
inabita empaticamente toda criatura, sendo a presença divina constante e
dinâmica, o segredo mais íntimo destas, sem jamais abandonar nenhuma de suas
criaturas amadas. Esta é a forma kenótica do Espírito atuar: “esvaziando-se de si
mesmo” para que o outro/a possa ser o “protagonista” da ação possibilitada por
ele.
Depois desta longa e gratificante caminhada, que nos foi possibilitada pelo Santo
Espírito, a única maneira que entendemos ser possível terminar esta nossa
pesquisa é em forma de oração. Por isso, rezamos humildemente:
Mistério escondido,
maravilha inebriante,
realidade indizível
que só entre véus
posso vislumbrar.
Espírito de Vida,
amada Mãe que me gera
em seu generoso ventre,
e que me protege,
acalenta e consola.
Espírito de Liberdade,
movimento incontrolável
226
que sopra em meu coração
inspirando-me a buscar
Liberdade para minha vida,
e para a vida de todo ser humano.
Espírito de Verdade,
luz que me ilumina e guia
pelos caminhos que escolho percorrer.
Espírito de Amor
derramado abundantemente em meu coração
para que eu possa partilhá-lo
com meus irmãos e irmãs de caminhada.
Espírito de Unidade e Comunhão,
vínculo de amor que me une
a todas as criaturas,
e que me impulsiona a formar comunidade.
Espírito de Paz,
de Confiança e de Alegria,
que me fortalece nos momentos difíceis
possibilitando-me seguir,
apesar das tribulações.
Espírito de Esvaziamento,
que se reveste do meu corpo,
pois aceita tê-lo como seu corpo.
Espírito de Inabitação,
ajuda-me a tomar consciência
de tua eterna presença em mim.
Assim, aberta a tua amorosa ação,
serás em mim
a regeneração de meu ser,
a Nova Vida acontecendo,
desde já em minha história.
Amém.
227
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