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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO
ARTE E RELIGIÃO NA HERMENÊUTICA DE GADAMER
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Ciência da Religião
como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Ciência da Religião.
Por Henrique Marques Lott
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Gross
JUIZ DE FORA
2007
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Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora e especialmente
ao Prof. Dr. Eduardo Gross. Agradeço também aos meus pais,
meus irmãos, meus filhos e minha esposa. Agradeço ainda aos
amigos, familiares e ex-professores.
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“También la poesía y la calidad poética pueden
encontrase em um contexto lingüístico religioso.
“(...) Y, en definitiva, se ha de conceder hay un arte
narrativo en el modo de relatar próprio de las fuentes
originarias del Nuevo Testamento.”
Gadamer
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................01
CAPÍTULO 1 - APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS À HERMENÊUTICA DE
GADAMER...................................................................................................................04
1.1- Compreensões históricas na hermenêutica filosófica..............................................04
1.2- A hermenêutica pelo seu viés fenomenológico e a ontologia da linguagem ..........10
1.3- A experiência e a “experiência hermenêutica” em sua relação com a “tradição e os
“preconceitos” ................................................................................................................17
CAPÍTULO 2 - O JOGO COMO INSTÂNCIA COMPREENSIVA......................24
2.1- O jogo como auto-representação no culto religioso e na arte .................................25
2.2- Mimesis e transformação: a aparência da verdade no “jogo da arte” ................... 29
2.3- O jogo como “autocompreensão da fé”...................................................................34
2.4- O belo como arte e religião na perspectiva do jogo................................................38
CAPÍTULO 3 - O SÍMBOLO: SUA ORIGEM, SENTIDO E PRESENÇA NO
ÂMBITO DA RELIGIÃO E DA ARTE.....................................................................43
3.1- Diferenciações entre o símbolo e a alegoria nas expressões da religião de da arte.43
3.2- A experiência do simbólico com a religião e com o belo na arte............................47
3.3- O símbolo como representação e a função do sinal ...............................................51
3.4- O símbolo como re-conhecimento: a palavra poética e a palavra na mensagem
religiosa .........................................................................................................................56
CAPÍTULO 4 - REFLEXÕES SOBRE A FESTA....................................................62
4.1- A festa como theoria e participação: uma origem religiosa no conceito grego de
razão ...............................................................................................................................63
4.2- A historicidade própria do tempo da festa e da arte: um tema teológico...............65
4.3- Reivindicação, simultaneidade e atualização no tempo da festa.............................69
4.4- A primeira época da festa: uma origem religiosa da arte........................................72
4.5- O caráter de sacramento e sua representação festiva na obra de arte......................76
CONCLUSÃO ..............................................................................................................80
REFERÊNCIAS
Fontes Bibliográficas .....................................................................................................84
Fontes Eletrônicas .........................................................................................................87
ANEXOS
Anexo 1 ......................................................................................................................... 89
Anexo 2 ......................................................................................................................... 90
Resumo
Desenvolvemos na presente dissertação uma reflexão que teve como objetivo
demonstrar a possibilidade de uma compreensão da religião através da arte na hermenêutica
de Gadamer. Seguimos para isso três conceitos, quais sejam: o jogo, o símbolo e a festa. O
autor toma esses conceitos como base antropológico-filosófica para tratar de questões da arte.
Procuramos mostrar a partir desse viés as relações que são estabelecidas e configuradas entre
arte e religião. Em nossa trajetória por essa tríade estão presentes as noções de “experiência
de arte” e “experiência estética”, que carregam uma crítica implícita ao modelo racionalista da
“consciência estética”. Fizemos uma transposição da explicação ontológica que Gadamer faz
de arte e nos propomos a apresentar o que ele nos diz da religião como jogo, símbolo e festa.
Riassunto
In questa dissertazione abbiamo svolto una riflessione, il cui obiettivo era dimostrare
la possibilità di comprendere la religione attraverso l’arte sull'ermeneutica di Gadamer. Perciò
abbiamo seguito tré concetti, i quali: il gioco, il simbolo e la festa. L'autore prende questi
concetti come la base antropologico-filosofica per abbordare le questione d'arte. Abbiamo
cercato dimostrare, piú innanzi questo, le relazioni stabilite e configurate fra l'arte e la
religione. Sulla nostra traiettoria da questa triade sono state presenti le nozioni su "esperienza
d'arte" e "esperienza estetica", le quali criticano, in modo implicito, il modello razionalista
della "coscienza estetica". Abbiamo trasposto la spiegazione ontologica d'arte fatta da
Gadamer e abbiamo proposto presentare quello che lui ci dice sulla religione come il gioco, il
simbolo e la festa.
INTRODUÇÃO
Antes de nos dirigirmos diretamente ao assunto que nos ocupará na presente
dissertação, falemos rapidamente sobre Hans-Georg Gadamer (1900-2002). Filósofo da
hermenêutica nasceu em Breslau (hoje Wroclaw), concluiu o doutorado, em 1929, com Paul
Nartop. Lecionou em Leipzig e Frankfurt e em 1949 assumiu a cadeira de Karl Jasper na
Universidade de Heidelberg. Gadamer foi um profundo estudioso da filosofia de Platão e
Aristóteles bem como de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, além de toda a tradição
filosófica moderna e contemporânea, sobretudo, Hegel e Heidegger.
Gadamer é considerado como um filósofo do diálogo, às vezes é chamado de “o
Sócrates contemporâneo”. Suas reflexões são muito abrangentes e perpassam vários campos
da filosofia. Sua obra principal, Wahrheit und Methode, publicada em 1960 representa um
marco na hermenêutica contemporânea. Nela, o autor desenvolve seus principais postulados
que mostram, entre outras coisas, os limites da filosofia iluminista e do historicismo do século
XIX. Sua obra não é um método e seu conceito de verdade refuga o dogmatismo, seja ele
científico, filosófico ou religioso. A reflexão que propõe não se vincula a pretensões
epistemológicas e traz uma crítica implícita aos modelos das tradições da estética filosófica
moderna que nutrem um perfil dogmático e cientificista em relação à arte. O autor denomina
essas correntes de “consciência estética”. Segundo ele, tais correntes pretendem encontrar um
método objetificador através de uma “razão histórica” para assim tratar as coisas do espírito,
tal como o método científico das ciências naturais. Isso seria, na visão do autor, um grande
equívoco.
Muito mais teríamos a falar sobre Gadamer, mas o que vamos investigar aqui é a
possibilidade de uma compreensão da religião através da arte dentro de sua obra. Nós a
apresentamos a partir de três perspectivas distintas, a saber: o jogo, o símbolo e a festa. Na
primeira perspectiva apontaremos o jogo como uma instância compreensiva na qual seu
sentido de auto-representação o mantém além da subjetividade daquele que joga. Traremos
alguns exemplos disso enfocando o jogo como representação no culto religioso e na arte. O
jogo pode ser relacionado como mimesis e como transformação. Gadamer considera que o
jogo é intrínseco no modo de ser da arte e permite que façamos um tipo de reflexão bastante
2
proveitosa para a hermenêutica. É no rastro de suas reflexões sobre o jogo que faremos nossa
primeira abordagem conceitual.
Nossa segunda abordagem se dará através do símbolo. Veremos o seu sentido de
origem e presença e também o seu significado no âmbito da religião e da arte, faremos
algumas diferenciações entre o símbolo e a alegoria, falaremos da experiência do simbólico e
da experiência do belo na arte. Veremos o caráter de representação e a função do sinal no
símbolo religioso e, ainda, a noção de re-conhecimento e redenção na experiência simbólica
da mensagem cristã.
Em nossa terceira abordagem faremos algumas reflexões sobre a festa. Falaremos da
origem do conceito de theoria, de participação da festa e de uma possível origem religiosa no
conceito grego de razão. Apresentaremos a noção de tempo da festa como uma categoria
concreta e que a festa religiosa se configura como um “tempo sagrado”. Mostraremos ainda, a
reivindicação, a simultaneidade e a atualização do tempo na festa, a chamada “primeira
época” da festa localizada na Antigüidade e a origem religiosa da arte. Finalizaremos nossa
reflexão vendo a questão do caráter de sacramento e sua representação festiva nas obras de
arte onde indicamos o transparecer originário da criação, cujos sentido e origem remontam ao
discurso mítico-cosmológico.
Nossa proposta ao desenvolver esse tema nos leva a apresentar previamente um
breve esboço conceitual das áreas com as quais trabalharemos dentro da perspectiva da
hermenêutica filosófica, são elas: a “experiência de arte”, a “experiência estética” e a
“experiência religiosa”. Procuraremos extrair o que Gadamer suscita dessas noções em sua
obra seguindo as relações que se estabelecem nesses três tipos de experiência, daremos
destaque especial às que podem estar compartilhadas com o “jogo, o símbolo e a festa”, mas
cabe-nos, antes, esclarecer alguns pontos fundamentais do que o autor considera em cada uma
dessas experiências.
A “experiência estética” tem a ver com a formação cultural e os traços dessa
formação são determinantes na construção de nossa compreensão. Aqui se fundam os cânones
que vão influenciar nossos juízos, por exemplo, o que nos leva a considerar algo como “belo”
ou como “bom”. O autor faz uma longa reflexão acerca dos problemas de nossa formação
ocupando-se dela praticamente por toda a primeira parte de Verdade e Método. Ele mostra
que a “experiência estética” revela “preconceitos” fundamentais que podem nos obnubilar a
percepção caso não sejam reconhecidos e trabalhados com a devida importância. Os
“preconceitos” advindos desse tipo de experiência estão diretamente ligados com a tradição
filosófica, mas passaram ao senso comum e atuam em nós intermitentemente de um modo
3
muitas vezes imperceptível. Gadamer propõe um tipo de “experiência estética” que traz uma
crítica à “consciência estética”. Vejamos, pois, o que ele diz: “As pesquisas a seguir, portanto,
iniciam-se com uma crítica da consciência estética, a fim de defenderem a experiência da
verdade, que nos é proporcionada pela obra de arte, contra a teoria estética, que se deixa
limitar pelo conceito de verdade na ciência.”
1
Em razão de uma oposição explícita a certo tipo
de esteticismo filosófico e da contraposição ao modelo científico, o autor nos propõe uma
“experiência estética” que deverá se orientar pela “experiência de arte”.
A “experiência de arte”, segundo Gadamer, constitui a base para alçarmos um tipo
fundamental de compreensão daquilo que diz respeito às “ciências do espírito”. Em linhas
gerais diríamos que o autor propõe esse tipo de experiência como contraposição ao
estreitamento das visões científicas, como ficou claro na citação acima. Basta-nos dizer neste
início que a “experiência de arte” tal como configurada na hermenêutica filosófica segue um
caminho obrigatório em direção às obras de arte, mas desde que o embate com a obra se dê
para o espectador como um acontecimento capaz de mudar sua noção de estar no mundo. Para
o momento será suficiente apontar que a “experiência de arte” é uma via imprescindível e a
“chave” principal em nossa dissertação. Portanto, partiremos dela na tentativa de alçarmos os
pontos cruciais que pretendemos atingir. Aqui se encontra o nosso ponto de partida para
compreendermos a “experiência religiosa”.
Gostaríamos de esclarecer que todas as análises que fazemos aqui seguem tão-
somente os textos de Gadamer. Portanto, quando nos referirmos às obras de filósofos,
teólogos, poetas e artistas, não ofereceremos nenhum tipo de aprofundamento, mas, somente
aquelas considerações que forem específicas para demonstrar a nossa pesquisa.
1
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 33.
CAPÍTULO 1 - APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS À HERMENÊUTICA
DE GADAMER
Desenvolveremos inicialmente uma abordagem conceitual de caráter geral suscitada
pela obra de Gadamer. Faremos esse percurso como uma espécie de exercício de aproximação
à hermenêutica filosófica, pois acreditamos que isso nos ajudará a situarmos melhor nossa
proposta. Preparamos neste primeiro capítulo o ambiente para uma caminhada que se
desenvolverá mais especificamente nos próximos capítulos . Nesse momento seguiremos
procurando os principais contornos da hermenêutica filosófica na expectativa de reconhecer
as propriedades fulcrais de sua abordagem. Para efetuarmos nosso intento, será necessário
percorrermos algumas de suas margens ou áreas que fazem fronteira, ora aqui, ora acolá, com
campos diversos do pensamento humano. Nesse translado falaremos de relações entre
filosofia, ciência, religião e arte, temas que se encontram em discussão no seio da
hermenêutica filosófica.
1.1 - Compreensões históricas na hermenêutica filosófica.
Fazemos uma primeira aproximação partindo da própria palavra hermenêutica. Para
isso perguntamos: qual é o seu significado? É comum a referência de que o termo
hermenêutica tem possivelmente sua origem na mitologia grega com Hermes
2
,
o deus
mensageiro. Cabia a ele a tarefa de mediação entre o humano e o divino, sua missão era tornar
inteligível a mensagem dos deuses possibilitando aos mortais uma compreensão da mesma.
Em grego a palavra hermenêutica se exprime com o verbo hermeneuein (traduzir) ou com
substantivo hermeneia (tradução)
3
. As inúmeras acepções do termo em suas diferentes áreas
de utilização implicam em grandes dificuldades no que diz respeito a uma definição cabal,
2
Gadamer nos alerta que: “As investigações mais recentes colocam em dúvida se a etimologia da palavra tem a
ver com o Deus ‘Hermes’, como sugerem o uso verbal e a antiga etimologia.” (Hans-Georg GADAMER,
Verdade e Método II: complementos e índice, p.112, nota 23).
3
As definições aqui propostas seguem diretamente os textos de Gadamer indicados nas referências
bibliográficas. Não pretendemos nesse momento nenhuma abordagem aprofundada que possa dar conta de todo
o corpo teórico da hermenêutica do autor. Situamos apenas o contexto de uma compreensão geral que seja
suficiente para adentrarmos um pouco no cômputo geral de sua obra. Existem comentadores que podem fornecer
um material de abordagem extensa sobre a hermenêutica filosófica, entre vários destacamos: PALMER, R. E.
5
portanto, não há uma explicação etimológica universal sobre o campo verbal de hermeneuein.
Uma obra filosófica antiga que faz referência explícita ao termo é o tratado aristotélico
conhecido como “Peri hermeneias (Da interpretação). A hermenêutica é referenciada na
antigüidade clássica como uma “arte”
ou “tekhne”, designação que lhe dá o sentido de
“práxis”.
A “tekhne” (arte), tal como compreendida por Platão, está relacionada
primeiramente com a atividade filosófica mais elevada, a dialética, mas à “tekhne”
correspondem também a poesia, a política e a medicina. Aristóteles restringe o uso do termo
diferenciando a “tekhne” das ciências lógicas e identificando-a mais com a retórica e a
poética. No medievo a mesma palavra está relacionada às sete artes liberais: o trivium
(gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música).
A hermenêutica é práxis e assim se comporta em seus propósitos, por exemplo, no caso da
teologia, “(...) a hermenêutica significa a arte de interpretar corretamente a Sagrada
Escritura.”.
4
A hermenêutica persegue uma tarefa prática e aplicada, é uma arte que tem como
predileção trabalhar com a obscuridade e é disso que se ocupa. O “obscuro” é justamente o
que nos causa “estranheza”, aquilo que não se evidencia com facilidade à primeira vista. Isso
ocorre com as palavras, com os textos ou mesmo com a fala, em qualquer tipo de discurso há
sempre algo de “não-dito”. A hermenêutica tem por objetivo um caráter prático e mediático
de procurar traduzir e tornar compreensível o que se apresenta de modo incompreensível, sua
preocupação é trazê-lo para a superfície dando-lhe visibilidade. Essa é uma prática que,
segundo Gadamer, exige uma “arte de interpretar”.
[O] título hermenêutica abarca diversos níveis de reflexão. Hermenêutica significa
em primeiro lugar práxis relacionada a uma arte. Sugere a tekhne como palavra
complementária. A arte, em questão aqui, é a arte do anúncio, da tradução, da
explicação e interpretação, (...) é sempre exigida quando o sentido de algo se acha
obscuro e duvidoso.
5
Poderíamos pensar que essa “arte” sugere um método e realmente muitas
hermenêuticas se propuseram a construir-se como método, alguns deles tornaram-se por
demasiado dogmáticos, fruto de um racionalismo exacerbado de autoconfiança e auto-
suficiência. Esse é o caso da razão iluminista moderna e seus métodos ancorados na lógica
matemática e na ciência lógico-empírica. Mas não é esse o caso da hermenêutica filosófica.
Hermenêutica. Lisboa: Ed. 70, 1989. BLEICHER, Josef. Hermenêutica contemporânea. Lisboa: Ed. 70, 1992.
GRONDIN, Jean. Hermenêutica: introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Unisinos, 1999.
4
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 113.
5
Ibidem, p. 111-12.
6
Então, quais são os procedimentos implicados se não existe um método? A que tipo de
“certeza” poderemos chegar assegurando-nos do “uso” dessa arte? Uma arte qualquer que
seja, por si mesma já não implica um método?
Para respondermos a essas questões teremos que fazer uma breve contextualização
histórica divisando certos pontos básicos os quais diferenciam o modo de proceder da
hermenêutica gadameriana. Começamos por situar uma primeira noção que se dá através de
uma perspectiva circular, tal como a idéia do “círculo hermenêutico” e seu modus operandi.
O que vem a ser isso? O “círculo hermenêutico” parte da idéia de uma circularidade
convergente em direção à compreensão cuja representação se dá pela figura geométrica de
“círculos concêntricos”. Nesse sentido, o importante é não perder de vista a unidade na
universalidade. O mecanismo da compreensão deverá se dar então pela consideração
relacional entre “o todo e a parte”. Aqui reside uma noção fundamental, elucidada por
Gadamer com as seguintes palavras: “Trata-se da relação circular entre o todo e as partes, mas
é à luz do todo que as partes adquirem a sua função esclarecedora. (...) [A] compreensão
amplia e renova, em círculos concêntricos, a unidade efetiva do significado global e final que
é o critério da compreensão.”
6
Essa noção tem, no século XIX, primeiramente com
Schleiermacher
7
, um processo de interpretação de viés “psicologista”. Esse filósofo
valorizava sobremaneira o sentimento, sendo que Gadamer toma a noção do “círculo
hermenêutico” compreendida como relação entre “o todo e a parte”. Teria sido ele
possivelmente o precursor da hermenêutica contemporânea e do Romantismo alemão. O
caráter psicologista de sua abordagem o leva a crer ser possível a reconstituição do
pensamento original, seria como colocar-se no lugar do autor e reviver os momentos
desencadeadores de sua criação. E ainda poderíamos ir além dele, percebendo o que ele
mesmo não havia percebido ao criar sua obra. “É assim que Schleiermacher chega ao
postulado de que importa compreender um autor melhor do que ele próprio teria se
compreendido”.
8
É a partir de uma reconstrução que se opera o mecanismo da compreensão.
6
Hans-Georg GADAMER, O problema da consciência histórica, p. 58.
7
Schleiermacher (1768-1834) foi um dos precursores da hermenêutica, mas teve importância também a sua
“interpretação romântica da religião” e seus estudos sobre Platão. “Para Schleiermacher, a cisão metodológica
entre filologia e dogmática continua sendo essencial, até mesmo em face da Bíblia, onde a interpretação
psicológico-individual de cada um de seus autores fica muito atrás do significado do que há neles de unitário e
comum dogmaticamente. A hermenêutica abrange a arte da interpretação gramatical e psicológica. É em última
análise, um comportamento divinatório, um transferir-se para dentro da constituição completa do escritor, um
conceber o decurso interno da constituição completa do escritor, um conceber o ‘decurso interno’ da feitura da
obra, uma reformulação do ato criador.” (Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica, p. 292).
8
Ibidem, p. 299.
7
Esse modelo schleimarcheriano inspira o movimento da “escola historicista”,
especialmente a Dilthey
9
que foi o seu maior expoente. Dilthey pretendia uma fundamentação
científica que fosse válida para as “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften), seu debate
conceitual se deu com a filosofia da história de Hegel à qual se opunha. Criticava também o
positivismo que seguia o mesmo método pelo qual se orienta a ciência determinista da
natureza aplicando-o indistintamente às “ciências do espírito”. Para Dilthey isso não seria
válido, pois as “ciências do espírito” necessitam de um método próprio, que deve ser
desenvolvido para poder nos dar os fundamentos para a compreensão de uma “razão
histórica”; essa sim deveria fundamentar e dizer como interpretar adequadamente a história, o
“contexto do todo requer agora, necessariamente, também a restauração histórica do contexto
da vida, a que pertencem os documentos. O velho princípio interpretativo.”
10
É do desdobramento desse período que surge com maior precisão, o perfil histórico-
conceitual que delineamos. Ele começa com a “virada hermenêutica” (hermeneutic turn)
empreendida por Heidegger e levada adiante por Gadamer. Antes porém, devemos lembrar
que os primórdios desse movimento teve seu impulso gerador a partir da fenomenologia de
Husserl.
11
A compreensão sobre o “mundo da vida” (Lebenswelt) é que trouxe a primeira
semente para o hermeneutic turn, promovendo uma ruptura com o “método neokantiano”.
“Heidegger concorda com Husserl em que não é necessário separar, como fazia Dilthey, o ser
histórico do ser da natureza”.
12
Mas Heidegger tem como preocupação primordial a questão
do ser, ele estabelece um diálogo crítico-sistemático com a metafísica desde os gregos,
passando por toda a tradição filosófica ocidental até seu tempo. Este foi seu grande feito
segundo nos mostra Gadamer. Existe na filosofia heideggeriana o surgimento de um processo
desencadeador que promove a superação completa do modelo objetificador da escola
historicista. Abre-se com isso uma situação que possibilita reaplicar a idéia do “círculo
hermenêutico”, de modo desvinculado da tendência iluminista presente ainda que de forma
residual na hermenêutica elaborada por Dilthey, “graças à análise existencial de Heidegger,
9
Dilthey (1833-1911), em seu enorme esforço por fundamentar através da “crítica histórica” as chamadas
“ciências do espírito” (Geisteswissenschaften), pretendia alçar uma compreensão que fosse capaz de superar o
positivismo e o hegelianismo. O centro de sua reflexão era “a vida”, ele mesmo foi historiador e biógrafo,
escreveu sobre a vida de Schleiermacher. “As situações dadas no terreno das ciências do espírito são aliás de um
gênero especial, e é isso que Dilthey quer formular através do conceito de ‘vivência’.” (Hans-Georg
GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p.124).
10
Ibidem, p. 278.
11
Segundo Gadamer, “Dilthey quer derivar a construção do mundo histórico da reflexividade que é inerente à
vida, enquanto Husserl procura derivar a constituição do mundo histórico a partir da ‘vida da consciência’.”
(Idem, Verdade e Método II: complementos e índices, p. 379).
12
Idem, O problema da consciência histórica, p. 39.
8
descobrimos de novo o sentido da estrutura circular da compreensão.”
13
Agora o ato de
compreender (verstehen) se desenvolve por uma ação reflexiva situada originalmente numa
compreensão fundada na historicidade pessoal e passa necessariamente pela relação
elaborada “ente-mundo”. Essa foi a grande virada promovida pela “hermenêutica da
faticidade”
14
que tem como parâmetro inalienável a noção de “Dasein
15
. Considera-se desde
então, a “finitude humana” em sua base existencial, única capaz de possibilitar uma
caminhada “autêntica” ao homem. Assim ele se dá a conhecer a si mesmo e ao tomar-se a si,
percebe-se comprometido junto ao mundo. Esse comprometimento o torna portador de “uma
nova liberdade de espírito”.
16
Munido de sua própria historicidade, o “Dasein” realiza através
de sua “estrutura existencial” o seu “pro-jeto” (Entwurf).
Gadamer apreende de seu mestre a questão acerca da compreensão histórica, mas
vai além. Em “Verdade e Método I” apresenta-nos um momento importante de sua grande
obra, onde estabelece um marco sobre a “teoria da experiência hermenêutica”.
17
O autor
destaca o papel da “consciência histórica” no processo compreensivo. Nessa perspectiva,
segundo ele, o “círculo hermenêutico” ganha uma nova formulação a partir de Heidegger
preenchendo-se de um “sentido ontológico” que instaurará uma mudança de registro
estabelecendo uma “estrutura prévia”
18
posta enquanto condição compreensiva e
antecipadora. Essa é a força maior da contribuição operada pela “virada ontológica”
heideggeriana, e cujo contributo, segundo Gadamer, ultrapassa toda a discussão da “escola
histórica” criando novo horizonte que passa a ser não somente essencial para as “ciências do
espírito”, mas que surge e se coloca “em marcha no interior da compreensão própria às
ciências humanas. A importância de uma doutrina existencial como a do ‘ser-lançado’.”
19
Todavia, mesmo afirmando com toda ênfase a filosofia de Heidegger como citamos
acima, é a Hegel que por final Gadamer irá recorrer para complementar a reflexão histórica
proposta em sua hermenêutica filosófica. O “pensamento histórico” mais radical e completo
13
Hans-Georg GADAMER, O problema da consciência histórica, p. 60.
14
Ibidem, p. 39-45.
15
O “Dasein” termo alemão do vocabulário filosófico de Heidegger é traduzido em geral para o português como
“presença” ou “ser-aí”. Optamos por utilizar o termo Dasein. Para uma compreensão melhor acerca do Dasein,
cf. o “§ 9. O tema da analítica da pré-sença”. In: Martin HEIDEGGER, Ser e Tempo, p. 77-81. Cf. também,
Michael INWOOD, Dicionário Heidegger, p. 29-31.
16
Hans-Georg GADAMER, O problema da consciência histórica, p. 41.
17
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p.400.
18
A “estrutura da compreensão” é apresentada por Heidegger a partir de uma “posição prévia [Vorhabe], visão
prévia [Vorsicht] e concepção prévia [Vorgriff].” (Martin HEIDEGGER, Ser e Tempo, p. 207). Segundo nos diz
Gadamer, “Heidegger, partindo também de Dilthey, vai mais longe: torna-se o iniciador de uma reflexão
ontológica radical e revela o pro-jeto (Entwurf) existente em toda compreensão.” (Idem, O problema da
consciência histórica, p.40).
19
Ibidem, p. 44.
9
foi possivelmente o hegeliano, exacerbado às últimas conseqüências na concepção do
“Espírito Absoluto”. Hegel, segundo Gadamer, “continua sendo suspeito aos olhos da
ciência”.
20
O autor pretende perscrutar e aprender de Hegel acerca do pensamento histórico,
incorporando-o na hermenêutica. Sua ênfase no princípio hegeliano da “dialética do Espírito”
é contemplada em inúmeros momentos. Destacamos apenas uma menção para ilustrar
minimamente sua compreensão: “encontrar a razão na natureza foi a herança grega. Hegel
tratou de mostrar também essa razão na história.”
21
Todavia, Gadamer jamais poderia ou
desejaria se situar nos limites de Hegel e de seu tempo, ele apenas exercita sua práxis
hermenêutica e, nesse aspecto, não pretende sustentar sua arte ou sua reflexão filosófica e
científica por sobre os ombros daquele filósofo. A problemática da filosofia cristã implicada
na filosofia hegeliana traz recorrentemente à tona questões para a teologia e para a ciência
histórica. Gadamer exorta-nos a “aprender” com esse filósofo, mas suas ressalvas são
enfáticas: “Se eu mesmo fundei e dirijo uma associação dedicada ao estudo de Hegel, isto se
deve ao desejo de aprender de Hegel ou seja, de adestrar-me em sua precisão conceptual e
em sua radical energia de pensamento e não, com o propósito de renovar sua perspectiva.”
22
A assertiva com que o autor se expressa na última frase não nos deixa dúvidas em relação ao
que ele propõe como “diálogo com a tradição”.
Não é simplesmente um uso instrumental que pretende equacionar como método um
determinado procedimento reflexivo. O que ele pretende na realidade é manter-se numa
“perspectiva de abertura” possibilitando sempre novas compreensões e incorporações que
“dialogam, tendo como referencial o seu horizonte de “pertencimento” a uma tradição. Ter em
vista esse horizonte é uma conditio sine qua non para a práxis da hermenêutica gadameriana.
É esse um dos sentidos em que Gadamer pode tirar proveito das reflexões históricas que faz
sobre Hegel e Heidegger. O primeiro o ajuda a retomar o segundo, gerando uma nova
compreensão que engloba o jovem e o velho Heidegger. A problemática filosófica sobre a
“finitude” define-se, a partir daí, em novo perfil.
23
“Para se proceder a uma hermenêutica
histórica deve-se, conseqüentemente, começar por remover a oposição abstrata entre tradição
e pesquisa histórica, entre história e saber.”
24
20
Hans-Georg GADAMER, A razão na época da ciência, p. 30.
21
Ibidem, p. 38.
22
Ibidem, p. 31.
23
“A finitude em Gadamer é aquela onde nunca nada termina. (...) É uma opção sobre a história. Menos
totalitária que aquela de Hegel, mas menos ambiciosa que aquela de Heidegger.” (A. de WAEHLENS, Sur une
herméneutique de l’herméneutique, p. 589. Apud: Luiz ROHDEN, Hermenêutica filosófica, p. 96).
24
Hans-Georg GADAMER, O problema da consciência histórica, p. 45.
10
Como podemos ver, não há aqui nenhum tipo de repetição ou simples
instrumentalização pela apropriação de qualquer tradição, mas sim reconhecimento,
interpelação e reelaboração. Não há também a pretensão de se chegar a nenhum tipo de
axioma como os do cogito cartesiano, contudo a racionalidade é preservada pela estrutura do
diálogo. Sua crítica é certeira em relação a um certo tipo de pensamento científico. “A certeza
científica sempre tem uma feição cartesiana.”.
25
Ademais, a hermenêutica filosófica difere
justamente por sua posição não dogmática ou fechada, não se pautando por nenhum tipo de
objetificação, ela não pretende estar pronta para oferecer um método com princípio meio e
fim. “Uma primeira distinção a fazer com respeito à hermenêutica tradicional, é o fato de que
a hermenêutica filosófica está mais interessada nas perguntas que nas respostas.”
26
A
perspectiva de “abertura” se mantém e com ela uma contínua renovação calcada no diálogo,
na relação e na alteridade. A compreensão histórica recebe nova luz em Gadamer, atentando-
nos para o fato de que em nossos próprios “limites” situam-se nossas possiblilidades. Nesse
caso, “é preciso que cada um esteja plenamente consciente do caráter particular de suas
perspectivas. (...) Ter senso histórico significa pensar expressamente o horizonte histórico
coextensivo à vida que vivemos e seguimos vivendo.”
27
Esse é o locus do qual devemos
partir, é o solo apropriado para semearmos nossa atitude relacional entre “hermenêutica e
história”.
Falaremos a seguir de algumas noções fundamentais em relação aos procedimentos
de Gadamer. Veremos que, mesmo não estabelecendo nenhum tipo de “método”, ele
apresenta uma elaboração que segue postulações as quais se mostram como verdadeiras
“chaves hermenêuticas”, propondo-nos um embate interpelativo e criativo que deve se dar
pela confrontação com o fenômeno a ser interpretado.
1.2 - A hermenêutica pelo seu viés fenomenológico e a “ontologia da linguagem”
Situamos antes um certo contexto histórico da hermenêutica filosófica e as linhas
gerais de sua aparição e sua concepção de historicidade. Agora falaremos mais do interior de
seu agir e do seu modo de interagir com as “coisas” do mundo. Apresentaremos a
hermenêutica nesse tópico a partir de duas perspectivas: a fenomenologia e a ontologia da
25
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 363.
26
Idem, A razão na época da ciência, p. 72.
27
Idem, O problema da consciência histórica, p.18.
11
linguagem. Veremos que em certos aspectos essas duas instâncias de compreensão
entrelaçam-se e se aliam como modus operandi.
A fenomenologia encontra-se presente na obra de Gadamer e sua proximidade com
ela é de fato histórica como mencionamos acima. Registraremos aqui alguns aspectos desse
viés, contudo, não é nossa intenção aprofundarmos esse assunto na presente dissertação, mas
consideramos importante mencionar alguns pontos que ora vinculam, ora distanciam a
hermenêutica filosófica da fenomenologia. Um ponto fundamental que a hermenêutica nos
mostra e que a vincula de certo modo à fenomenologia diz que precisamos desenvolver o
“olhar”, ele deve estar apto para lidar com o inusitado e o inaparente, estar preparado
outrossim para não se desviar no reconhecimento da “coisa (Sache)”
28
, daquilo que temos
diante de nós. “Para ser autêntico, o olhar da investigação deve dirigir-se à ‘coisa mesma’, de
tal modo que ela seja apreendida, por assim dizer em pessoa.”
29
Esse tipo de adestramento do
“olhar da investigação” surge das bases lançadas pela fenomenologia e sua idéia de epoché.
30
Aquilo que se observa é o que deve determinar qualquer tipo de categorização e esta só pode
se constituir junto à “coisa”, em seu apelo inalienável de “estar aí”. Não há nesse caso como
recorrermos a qualquer tipo de apriorismo ou empirismo lógico cujo escopo teórico pré-
determina uma situação inicial para a análise de qualquer “coisa dada”. O modo pelo qual
apreendemos nesse caso orienta-se pela “intencionalidade da consciência”,
31
e é a partir dela
que tomamos consciência do fenômeno em seu mostrar-se. Essa é uma práxis que nunca se
esgota ou se fecha e permite manter o “olhar” aberto, mas ao mesmo tempo vigilante e
desapressado, apto a perceber sempre algo novo e a renovar-se. “Compreender ‘a coisa’ que
surge ali, diante de mim, não é outra coisa senão elaborar um primeiro projeto que se vai
corrigindo”.
32
28
“O conceito de coisa (Sache) não traduz apenas o conceito jurídico romano de res; a palavra alemã Sache
(coisa) e seu significado assumem sobretudo o que expressa a palavra latina causa. No uso da língua alemã, a
palavra Sache significa em primeiro lugar causa, isto é, a coisa (Sache) litigada, que está em questão.” (Hans-
Georg GADAMER. Verdade e Método II: complementos e índice, p.83).
29
Idem, O problema da consciência histórica, p. 61.
30
A palavra epoché do grego έποχή, “suspensão dos juízos”, tem no caso da fenomenologia um perfil
diferenciado daquele dos céticos. Nela os juízos que devemos suspender são: as categorias conceituais da
tradição filosófica e seus problemas metafísicos, a metodologia científica e sua lógica prospectiva, bem como as
compreensões do senso comum. Para que isso ocorra, é preciso que nos voltemos de uma maneira radical para
“as coisas mesmas”, para o “mundo da vida” (Lebenswelt), é lá onde se encontram as “coisas” com que devemos
nos haver, olhando o fenômeno diretamente, suspendendo e colocando entre parênteses todas essas categorias e a
partir de então, descreve-se a “coisa” tal como ela se mostra. (André DARTIGUES, O que é a fenomenologia?,
1973, p. 15-32).
31
A fenomenologia busca intuir sobre as essências das coisas. A “intencionalidade da consciência” é nesse
sentido: ter consciência noese na intenção do sujeito em sua percepção imediata como sendo distinta do objeto
que se manifesta em sua consciência, noema. Nessa compreensão “o real é individual”. Essa noção foi elaborada
por Husserl sob a influência de seu professor Bretano (1838-1917). Cf. Ibidem.
32
Hans-Georg GADAMER, O problema da consciência histórica, p. 61.
12
Todavia, perguntamos de onde surge a possibilidade dessa correção? O que garante
eficácia e validade no desenvolvimento desse “olhar investigativo” fenomenológico-
hermenêutico? A busca desse encontro com a “coisa” seguindo o procedimento
fenomenológico permite uma aproximação cada vez maior com aquilo que se nos apresenta
ou suscita nossa apreensão. Entretanto, nenhuma destreza conceitual ou apuro no trato com a
“coisa” deve fechar-se epistemologicamente. Chega-se, sim, a uma superação de um ponto
atingido anteriormente que se incorpora de modo transformado e depurado num momento
seguinte. É através desse viés fenomenológico que a hermenêutica incorpora um modo de
olhar em seus procedimentos, mas não pára por aí, segue adiante e vai contornando
pacientemente o desenho que faz da realidade, agindo de tal maneira que as linhas desse
desenho podem e até devem ser retocadas permanentemente. Não se deve hesitar em começar
sempre de novo e, se for o caso, apagar todas as marcas visíveis do desenho inicial refazendo-
o parte a parte, – ele estará sempre a caminho, – essa “incompletude” pode se tornar uma de
suas virtudes essenciais. É na permanência caminhante do sujeito interpretante, no
movimento em direção à “coisa” que se dá a possibilidade de uma compreensão ampliada, um
lugar que as especulações de caráter lógico
33
não atingem. “Todo enunciado tem pressupostos
que ele não enuncia.”
34
É justamente aí que a hermenêutica torna-se necessária, ela vai buscar
revelar a obscuridade do “não-dito”. Esse objetivo primeiro distancia um pouco a
hermenêutica da fenomenologia. A fenomenologia quer se haver com as coisas do mundo na
pretensão de refundar novas bases de investigação para os fenômenos, propondo um método
para alcançar esse intento. Assim, acredita poder abstrair dos “a prioris de toda a tradição
que viciara o “olhar” ao modo das categorias filosóficas. A hermenêutica toma parte dessa
lição, mas encaminha-se diferentemente ao dirigir-se para a compreensão do “ser no mundo”
como linguagem.
A linguagem é um modo de ser das “coisas”, nesse sentido, é o terreno de interesse
mais próprio da hermenêutica filosófica
35
. O olhar vigilante que não se distrai aprendido da
fenomenologia, dirige-se agora em outra direção. É a “caminho da linguagem” que a
33
“[A] ciência moderna nada mais fez do que radicalizar os pressupostos da ciência grega, decisivos para o
conceito de logos, enunciado e juízo. A investigação fenomenológica, marcada em nossa geração na Alemanha
pelo pensamento de Husserl e Heidegger, teve por interesse dar conta dessa questão, perguntando pelas
condições de verdade do enunciado que ultrapassam o âmbito do lógico.” (Hans-Georg GADAMER, Verdade e
Método II: complementos e índice, p. 66). “2 - O problema da história na filosofia alemã mais recente (1943)”.
(Ibidem, p. 37-48).
34
Ibidem, p. 67.
35
Compartilhamos aqui a compreensão de João Biagioni acerca da temática da linguagem em Gadamer.
Segundo ele: “Em Heidegger e sobretudo em Gadamer, essa temática ocupa um lugar central, e História e
Linguagem (...) [fecundam-se] reciprocamente mas como aspectos essenciais de todo o processo hermenêutico”
(João BIAGIONI, A ontologia hermenêutica de H. G. Gadamer, p. 34).
13
hermenêutica segue para sua reflexão. “Há um caminho que testemunha essa correspondência,
ao qual o filosofar é remetido de modo cada vez mais claro. É o caminho da linguagem.”
36
Esse passa a ser o caminho primordial e a ocupar um “lugar comum” na filosofia
contemporânea. Todavia, é preciso distinguir o termo linguagem tal como Gadamer o propõe,
sob pena de fazermos uma redução indevida. Cabe então a pergunta: a que o autor se refere
quando fala de linguagem? A hermenêutica gadameriana não é uma filosofia da linguagem
nem mesmo uma ciência lingüística, em sua compreensão, linguagem e ser se relacionam a
todo momento. Isso é levado a último termo na célebre afirmação: “O ser que pode ser
compreendido é linguagem.”
37
Na linguagem o ser é aquilo que se diz da coisa, é o que vem à
fala, mas uma vez sendo dito se recolhe e se reserva em parte de si, ele não se dá por inteiro e
aquilo que exibe é o seu próprio véu que o torna inviolável e insondável na inteireza de seu
ser.
Mas sendo assim, perguntamos de que vale todo o esforço compreensivo se só temos
o que pode ser dito, a aparência, o limite sensível? O que temos a fazer é estabelecer nosso
horizonte de relação, uma espécie de ponto de fuga no qual nos posicionamos e do qual
olhamos sob certos ângulos um determinado objeto. Se não podemos acessar o ser de
qualquer “coisa (Sache)” talvez possamos “intuir sua essência”, e o melhor modo de fazê-lo é
descrevendo aquilo que se mostra. Isso exige um dizer sobre a coisa (Sache). É assim que
podemos nos aproximar das “coisas”, falando a respeito delas, descrevendo seus contornos e
ressaltando o que lhes é inalienável em sua constituição de “coisa”. “O modo de ser de uma
coisa só se expressa quando falamos sobre ela.”
38
Mas por onde começar a falar? Existe
algum sinal visível pelo qual podemos orientar nosso caminho?
A fala, tal como Gadamer a concebe, transcende
39
o falar explícito, ela pode ocorrer
em forma de diálogos, textos, obras de arte ou ainda através da “palavra interior”
40
de cada
um. Contudo, é preciso desencadear a “pergunta pelo ser”, nesse sentido é válido preparar o
36
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método II: complementos e índices, p. 88. Esse “caminho da linguagem
a que Gadamer se refere perpassa toda a filosofia contemporânea e surge com forças para “transpor o maior
abismo filosófico hoje existente entre os povos, qual seja, a oposição entre o extremo do nominalismo anglo-
saxão, por um lado, e a metafísica do continente por outro. Em todo caso, a análise da linguagem, que começa
refletindo sobre a problemática das lógicas das linguagens artísticas na Inglaterra e na América, aproxima-se
surpreendentemente da reflexão e investigação fenomenológica de E. Husserl. (...) Da informação ao mito e à
saga, a linguagem perfaz o tema comum de todos.” (Ibidem, p. 67).
37
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 687.
38
Idem, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 71.
39
Acenamos aqui nossa concordância com Hubert Lepargneur, segundo quem: “A partir de Gadamer a
hermenêutica ultrapassa a interpretação de textos para alcançar todo vestígio de produção cultural.” (Hubert
LEPARGNEUR, H-G. Gadamer, 1900-2002, p. 1025).
14
desenvolvimento desse “olhar investigativo”, desapressado e eivado pela fenomenologia para
que o ser vá pouco a pouco se deixando dizer, exortando-nos assim a caminharmos no encalço
de nossos horizontes de possibilidades de compreensão da “coisa (Sache) no mundo”. É
justamente que se desenvolve o “fenômeno hermenêutico” cujo caráter de universalidade
aponta a compreensão do ser tendo como caminho único a linguagem. Eis a “grande virada”
operada pela hermenêutica filosófica
41
, que pode ampliar esse olhar fenomenológico
iluminando algo que ainda não recebera luz.
42
“Por isso não falamos somente da linguagem
da arte, mas também da linguagem da natureza, e inclusive de uma linguagem que as coisas
exercem.”
43
Em relação às “coisas” (objetos), isso ocorre com evidência corpórea imediata.
Em relação aos textos, podemos dizer que eles necessitam ser lidos para que assumam essa
configuração, mas lidos de uma maneira tal como nos dedicamos a ouvir uma música. Nesse
sentido “estão aí”. “Minha tese é que estão aí unicamente no ato de retorno a eles. (...)
Palavras que só estão ‘aí’ quando se retorna a elas, realizam o verdadeiro sentido de texto a
partir de si mesmas.”
44
Deste modo, podemos considerá-los em sua “presença (Dasein)”
mediante o seu ato de dizer-se através de nós. Somos nós mesmos os agentes das palavras que
atualizamos através dos textos.
Uma das falas humanas mais privilegiadas é a fala poética, ela tem tanta força quanto
o discurso filosófico ou científico. O poeta busca a palavra plena para expressar o mundo e a
extrai de seu próprio universo cultural, mantendo uma verdadeira “abertura ao ser”. Nesse
sentido, sua obra o supera. Isso ocorre quando “um poema é bem-sucedido [e assim]
surpreende e supera o poeta.”
45
Sua obra entra assim no âmbito universal. Quando o poeta diz
algo sob essas condições, ele ultrapassa a si mesmo e atinge a própria “coisa” (Sache) ali
implicada. A poesia diz não somente de si, mas também do que as “coisas exercem” sobre nós
no cumprimento de seu “estar aí”. Perguntamos, contudo, como podemos experimentar essa
operação a partir da poesia? O processo pode ser percebido pela linguagem retornada a nós da
40
“A palavra interior, na medida em que expressa o pensar, reproduz ao mesmo tempo a finitude da nossa
compreensão discursiva.” (Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma
hermenêutica filosófica, p. 614). Cf. “Linguagem e verbum” (Ibidem, p. 608-621).
41
“[Q]uesto movimento di radicalizazione ontológica del fenomeno interpretativo, che finisce per essere
identificato com la strutyura stessa dell’esistenza e che approda ad uma filosofizzazione ulteriore del discurso
ermeneutico, trova in Gadamer la maggior figura dell’ermeneutica contemporânea – il suo erede piú
reppresentativo”. (Nicola ABBAGNANO, Storia della filosofia, p. 488).
42
“No desenvolvimento originário da investigação fenomenológica levada a efeito por Husserl e Scheler, a
linguagem permaneceu na penumbra, apesar da guinada que se deu rumo à Lebenswelt (‘mundo da vida’)”.
(Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 418). “25 - Destruição e
desconstrução (1985)”. (Ibidem, p. 418-432).
43
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 687.
44
Idem, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 406.
45
Ibidem, p. 406.
15
“coisa” filtrada através da fala poética. Quando lemos uma poesia tomamos contato em nossa
consciência com a “presença” da “coisa” que ela evoca por seu tema. Por exemplo, se lemos
ou dizemos em voz alta, fixamos na consciência o sentido de universalidade daquilo que se
expressa como “ser no mundo”, e cada vez que lemos um poema experimentamos sua
dimensão ontológica de obra de arte. Trata-se, portanto, de um dizer sobre a coisa (Sache) que
se instala como fenômeno transformador porque pode se revelar no concreto particular de
cada um de nós, mas ao mesmo tempo manter-se dentro da perspectiva universal da
linguagem, em que podemos experienciar a “presença” da “coisa” que a palavra evoca. “Si un
poeta describe una casa con sus palabras o convoca la representación ‘casa’, no miramos a
una casa cualquiera, sino que cada uno se construye su casa, y de tal modo que ‘la casa’ esté
ahí para él.”
46
Mas, não somente a poesia enquanto texto é o lugar da linguagem, ela é um
medium
47
que perpassa a quaisquer outras expressões artísticas e culturais. A filosofia, por
exemplo, constrói-se pela linguagem e pela fala que empreende sobre a realidade. E não é
diferente com a religião, em especial a religião revelada em que a própria “tarefa do anúncio é
a transposição em palavras.”
48
A pergunta pelo ser é a pergunta mais antiga da filosofia e encontra na
contemporaneidade um “caminho” de buscas que responde grande parte de suas indagações.
Entretanto, essa tradição metafísica da filosofia grega, medieval e moderna, que marcou a
trajetória ocidental durante séculos, foi se “esquecendo” de fazer continuadamente e de modo
fundamental a sua mais antiga pergunta: “O que é o ser?” Gadamer vai dizer que: “a
metafísica encobre o caráter próprio da linguagem dessa experiência do ser. Dessa forma,
também a herança grega, a escolástica medieval, concebe a palavra a partir da species, como
sua perfeição, sem descobrir o mistério da encarnação.”
49
Esta é uma longa caminhada na
qual o pensamento filosófico e teológico do Ocidente se empreendeu e que de certa forma
veio pouco a pouco mitigando a dimensão de “ser no mundo” como uma forma peculiar da
linguagem. Essa forma acaba por ser encoberta e vai se desviando das “coisas”, desse modo
obstrui “o acesso à experiência originária do ser.”
50
Mediante o exposto, perguntamos qual é a proposta da hermenêutica filosófica diante
dessa constatação do “esquecimento do ser”? Como resgatá-lo desse “esquecimento” a partir
46
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenéutica, p. 118.
47
“[A] linguagem não se posiciona ao lado da arte, do direito e da religião, mas representa o médium sustentador
de todos estes fenômenos.” (Idem, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 89).
48
Ibidem, p. 477.
49
Ibidem, p. 90.
50
Ibidem.
16
da compreensão dessa “coisa no mundo”? O que temos na linguagem que favorece uma
“abertura” para tudo isso é o fato de que ela tem em si, como elemento constitutivo, a
peculiaridade de ser um “medium”, e nessa condição pode perpassar todas as ações humanas.
É justamente nesse embate com a linguagem que fazemos a experiência hermenêutica. “[A]
linguagem já sempre nos ultrapassou.”
51
Por isso mesmo ela abre a nossa perspectiva de
“universalidade”, através dela dizemos de nós e da nossa “experiência do mundo”, estamos na
condição de participantes desse “acontecimento” que passa por nós, indo além, e com isso nos
dá indicações de nossa dimensão de ser e de mundo. A linguagem mostra a nossa relação de
seres “finitos” com o “infinito”
52
que pertence e dá sentido a cada um de nós. Mas sempre
existe algo que nos escapa. “Nenhum indivíduo quando fala tem uma verdadeira consciência
de sua fala. São muito raras as vezes em que alguém está consciente da linguagem que fala.”
53
A linguagem é mais extensa do que qualquer análise lógica que se proponha a decifrá-la, não
se submete também às teorias gramaticais acerca do uso da língua. É justamente pelo fato de
que ela nos percorre a todos e nos ultrapassa que é “mediação” para tudo em nós. Se a
metafísica se “esqueceu” do ser, deixando-o numa espécie de arquivo morto desde a
Antigüidade grega, a linguagem conserva-o presente e renovado.
Contudo, nem sempre temos consciência disso, precisamos estar receptivos e com
olhos e ouvidos atentos para que possamos vislumbrar novamente o ser tal como ele emerge
na linguagem pela fala. “A voz (la voix) que anuncia está subordinada de certo modo à
presença do que é pensado no pensamento.”
54
Nessa dinâmica que ocorre entre o pensar e
aquilo que vem à fala experimentamos sensivelmente o que se diz, a “coisa”, esse ou aquele
assunto, mas somos quase sempre pegos de surpresa pelo modo furtivo com que o ser se
mostra através da linguagem no instante em que esta acontece. “Quanto mais vivo o ato de
linguagem, tanto menos consciência temos dele.”
55
Esse “ato” vem nos apartear pelo próprio
“agir da coisa” sobre nós e com isso amplia nossa consciência de “finitude” e, assim, de
sermos um projeto em curso.
51
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 230.
52
“Na linguagem, no caráter próprio que ela imprime em nossa experiência de mundo, encontra-se a mediação
entre finito e infinito, adequada a nós, como seres finitos.” (Ibidem, p. 94).
53
Ibidem, p. 178.
54
Ibidem, p. 430.
55
Ibidem, p. 179.
17
1.3 - A Experiência e a “experiência hermenêutica” em sua relação com a “tradição” e os
“preconceitos”
A experiência
56
, segundo Gadamer, sofre de uma “deficiência” no que diz respeito à
configuração de seu conceito. Para ele, houve um verdadeiro encarceramento desse conceito
pelo prisma da metodologia cientificista das ciências da natureza. Isso nos condiciona a uma
indicação que leva em conta apenas o caráter científico da experiência. Tal modelo, que
perdura por toda a longa tradição ocidental e é ainda vigente em nossos dias, burla nossa
própria historicidade e por isso mesmo é “deficiente”. “De fato, a deficiência da teoria da
experiência, que constatamos até hoje, e que afeta também a Dilthey, consiste em que ela está
integralmente orientada para a ciência e por conseguinte, não percebe a historicidade interna
da experiência.”
57
O “conceito de experiência” em Gadamer não se limita ao que conhecemos como
experiência empírica. A “experiência”, para ele, está relacionada com a produção de uma
“unidade consigo mesma” que perpassa a noção da historicidade humana e desperta na
existência do indivíduo uma percepção de auto-reconhecimento. Vejamos, pois, os
desdobramentos da experiência tal como proposta na reflexão do autor. Segundo ele, tanto na
“ciência da natureza” quanto nas “ciências do espírito”, existe uma exigência comum que
requer a necessidade de que os experimentos sejam comprovados. “Tal como na ciência da
natureza os experimentos têm de ser possíveis de comprovação posterior, também nas
ciências do espírito o procedimento completo tem que ser possível de controle.”
58
Mas que
tipo de controle é esse? Não se trata de um mesmo tipo de “controle” entre as duas ciências,
Gadamer nos apresenta um conceito ampliado e mais próprio para a experiência. Para isso, ele
reconstrói uma verdadeira arqueologia do “conceito de experiência”. Comentaremos alguns
pontos desta sua trajetória.
Situamos de início as compreensões teleológicas em torno da problemática
conceitual da experiência. Começamos por comentar algumas passagens do texto de Gadamer
acerca da filosofia de Francis Bacon e sua noção de experiência. É interessante notar que a
fundamentação do conceito de experiência em Bacon não se restringe à indução pura e
simples, isto é, não se limita a ser uma metodologia que possa servir apenas para o
“investigador naturalista”. O que temos a mais então? Temos que, na concepção de Bacon,
56
“O conceito da experiência e a essência da experiência hermenêutica.” (Hans-Georg GADAMER, Verdade e
Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 512-33).
57
Ibidem, p. 512-3.
58
Ibidem, p. 513.
18
além de toda elaboração metódica para “superar” as percepções triviais da “experiência
cotidiana”, encontramos ainda como postulado, a idéia de que “experimento é também e
sobretudo um hábil direcionamento do espírito que é impedido de abandonar-se em
generalizações prematuras”.
59
O mérito da filosofia baconiana e sua “teoria dos ídolos” foi ter
elaborado a problemática dos “preconceitos” dando-lhe um tratamento metodológico e
racional. Os “preconceitos” que adquirimos induzem-nos a conclusões equivocadas. A
questão da linguagem retorna como problema a ser equacionado, no caso de Bacon, adquire
uma “negatividade” nos “idola fori”. A confusão, gerada pelas palavras em suas múltiplas
possibilidades de uso, cria obstáculos para nossa percepção sobre as coisas.
Essa visão “negativa” sobre a linguagem afeta também a Husserl, contudo, segundo
Gadamer, “é igualmente certo que a linguagem é simultaneamente condição e guia positivos
da própria experiência. De outra parte, também Husserl leva em conta, como Bacon, mais o
negativo que o positivo na esfera da expressão lingüística.”
60
Existe em ambos uma
orientação teleológica para a experiência, tal orientação é sob certos aspectos, tão antiga
quanto a religião grega. A situação trágica do homem diante do destino é justamente o que o
separa do divino e, assim, marca indelevelmente sua existência. Essa é uma “experiência
humana” fundamental na qual se estrutura o princípio teleológico da experiência.
Desde o Prometeu de Ésquilo a essência da esperança caracteriza tão
evidentemente a experiência humana que, frente ao seu significado antropológico,
não há outro remédio senão considerar o princípio de dar validez somente ao
padrão teleológico da produção cognoscitiva, como unilateral.
61
Gadamer não compartilha totalmente desses princípios teleológicos e nos convida
outrossim a percorrermos outros caminhos. Quais são, pois, esses caminhos? A tradição e,
aqui, a posição de Aristóteles ajudam a completar uma lacuna do ponto de vista conceitual e
ao mesmo tempo, nos oferece um modo de observar empiricamente o que garante a “unidade”
da experiência. Na “Analytica posteriora” Aristóteles contempla o tema da experiência
assegurando seu caráter científico sob o ponto de vista do observador, mas garantindo o seu
caráter de “unidade”. Essa “unidade” relaciona-se como sendo “unidade de um geral. Porém,
a generalidade da experiência ainda não é a generalidade da ciência. Aristóteles adota, antes,
uma posição intermediária.”
62
Tal posição é lapidar para compreendermos o processo pelo
qual podemos constatar uma experiência. Para tanto, é necessário ter em conta um ponto de
59
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 515.
60
Ibidem, p. 517.
61
Ibidem.
62
Ibidem, p. 518.
19
observação, ou seja, nos colocamos a observar algo repetidas vezes até constatarmos e, assim,
comprovarmos a “unidade” da experiência.
De que modo é possível construir essa observação e como haurir daí a percepção
dessa unidade da experiência? Gadamer mostra isso na obra de Aristóteles a partir de uma
ilustração em que: “Ele [Aristóteles] compara a multidão de observações que alguém faz, com
um exército em fuga”
63
. O fenômeno que pode ser observado no exemplo aristotélico consiste
no seguinte: a partir de observações continuadas podemos confirmar um dado momento em
que ocorre o recuo de um exército em combate. Poderemos observar em diferentes maneiras
individuais, isto é, em cada exército particular que entra em fuga, se constata uma
“experiência que se repete” e se “confirma”. Aqui reside a “unidade” que caracteriza uma
experiência, demarcando o instante do seu acontecer, o colocar-se em fuga. Segundo
Gadamer, essa “imagem” ajuda-nos a perceber o que se configura como “essência da
experiência” e a conformidade desta conceituação como meio de se fazer ciência.
Como toda imagem, ela é manca, mas esse mancar de uma imagem não é uma
deficiência, mas a outra face do desempenho abstrativo. (...) A imagem aristotélica
do exército em fuga manca, na medida em que faz uma pressuposição distorcida.
(...) [Entretanto:] A imagem mantém firme essa peculiar abertura, de repente, de
improviso, (...) Esta generalidade da experiência, através da qual surge, segundo
Aristóteles, a verdadeira generalidade do conceito e a possibilidade de ciência.
64
Todavia, essa “possibilidade de ciência”, tal como proposta por Aristóteles, mantém
ainda certo estreitamento em relação à compreensão acerca da “essência da experiência”.
Segundo Gadamer, esta deveria ser pensada de modo mais abrangente, isto é, além de uma
“mera referência” da experiência em sua configuração de aplicação à ciência. Estaria, assim,
nos limites de uma reconstrução lógica que muito bem serve aos métodos cientificistas e suas
pretensões de conhecer o geral no particular. Apesar de toda a contribuição que a perspectiva
aristotélica nos oferece para pensarmos o “conceito de experiência”, ela “[passa] por cima do
verdadeiro processo da experiência; pois este é essencialmente negativo.”
65
Será preciso
então, pensarmos a experiência ainda em outro registro, qual seja, o hegeliano.
É sob o ponto de vista da “negatividade”, que se instala o desenvolvimento da
“consciência do espírito”. Na “Fenomenologia do espírito”, Hegel elabora como se dá esse
processo, no qual o papel da representação adquire valor produtivo para a experiência. Toda
experiência se funda a partir de uma “inversão”, resultado de uma objetivação, que a
63
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 520.
64
Ibidem, p. 520-1.
65
Ibidem, p. 521
20
“consciência” realiza como processo de “auto-conhecimento de si”. Para isso, a “consciência”
torna-se um “objeto de si”. Segundo Gadamer, o desdobrar dialético da filosofia hegeliana
traduz de forma exemplar o que vem a ser a “essência da experiência”. “Na realidade a
consciência filosófica compreende o que verdadeiramente faz a consciência que experimenta
quando avança de um para outro: inverte-se. Hegel afirma pois que a verdadeira essência da
experiência é esta inversão.”
66
Ora, essa “inversão” é o modo como o “espírito” se posiciona
em relação a si mesmo. Ao colocar-se como externo, ele se vê como “diferente, isto é, se faz
“objeto” mediante o seu próprio interior que agora se externaliza tornando-se outro. Esse é,
em linhas bem gerais, o modo como o “espírito” se constrói em sua própria historicidade na
dialética hegeliana. Essa “experiência do espírito” é fundamentalmente “negação”, uma cisão
e ao mesmo tempo um reatamento. Não pretendemos discorrer sobre os muitos aspectos desse
processo em Hegel, o que nos interessa é mostrar com Gadamer que esse movimento pode ser
observado em nós mesmos na medida em que “face à experiência que se faz em outro objeto,
se alteram duas coisas, nosso saber e seu objeto. Agora sabemos outra coisa e sabemos
melhor, e isto quer dizer que o próprio objeto ‘não se sustenta’. O novo objeto contém a
verdade sobre o anterior.”
67
Não obstante à grande contribuição de Hegel no que concerne à compreensão da
“essência da experiência”, Gadamer nos diz que essa compreensão histórica de Hegel esbarra
em seus limites no que diz respeito à questão hermenêutica. Não seria adequado adotar essa
posição que encontra no “Absoluto” o princípio de superação para toda e qualquer
experiência, tanto do ponto de vista hermenêutico, como do científico, visto que “a própria
experiência jamais pode ser ciência.”
68
Mediante o que dissemos acima, apresentaremos em seguimento uma “busca” de
sentido acerca da reflexão sobre a experiência a partir do habitat da “experiência
hermenêutica”. Voltemos à tragédia grega, pois temos aí um princípio originário a ser
identificado, qual seja, a noção do sofrimento humano. Essa noção que carrega uma
“negatividade fundamental” implica em uma capacidade de “penetração do espírito” que,
segundo Gadamer, encontra-se numa “fórmula de Ésquilo” a qual expressa metafisicamente o
que vem a ser a “essência da experiência”. Gadamer afirma: “seria certamente Ésquilo. Ele
encontrou a fórmula, ou melhor, a reconheceu em seu significado metafísico, fórmula que
expressa a historicidade interna da experiência: aprender pelo sofrer.”
69
Todavia, não se trata
66
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 523.
67
Ibidem, p. 524.
68
Ibidem, p. 525.
69
Ibidem, p. 526.
21
de um puro e simples “aprender pelo sofrer”, nisso se reflete uma questão fundamental da
existencialidade humana, que se esclarece pela forma com que a tragédia grega a manifesta. O
elemento trágico da “dor” traduz nossos “limites” e, por assim dizer, a nossa “finitude”, é
desse elemento cerceador e condicional em nosso estar no mundo que se revela nossa
condição histórico-temporal e, assim, a “abertura” para a “experiência hermenêutica” que se
dá primeiramente como “experiência da finitude humana.”
70
É a partir dela que aprendemos a
“reconhecer o real” e isso se completa no âmbito da historicidade pessoal.
Uma das características com a qual se identifica a “experiência hermenêutica” é a de
manter-se em relação com a tradição, mas, sobretudo, de querer permitir nessa relação uma
“alteridade profunda” que procura dentro do possível garantir e deixar que o outro fale.
A experiência hermenêutica tem a ver com a tradição. É esta que deve chegar à
experiência. Todavia, a tradição não é simplesmente um acontecer que se pode
conhecer e dominar pela experiência, mas é linguagem, isto é, fala por si mesma,
como faz um tu.
71
Como ser capaz de reconhecer e de manter-se nessa “abertura” ao ser do outro e
assim deixá-lo falar? Encontramo-nos aqui em torno de um “fenômeno moral” e com o qual
nos deparamos, ao confrontá-lo com a tradição. Isso se dá na perspectiva de um vínculo de
relação que se estabelece como “eu e tu”. Nesse sentido, a tradição adquire o “caráter de
pessoa” e exige de nós uma “determinação moral” que nos mantenha no horizonte ético, isso
é o que caracteriza uma “experiência do tu”. No que diz respeito à “experiência
hermenêutica”, Gadamer vai dizer que “no terreno hermenêutico o correlato dessa experiência
do tu é o que se costuma chamar de consciência histórica.”
72
Tanto em um tipo de experiência
como em outro, temos uma tomada de posição em que não é possível uma objetivação. Desse
modo, não devemos pretender qualquer tipo de “conversão para o tu”. Ele não pode se tornar
objeto, somente assim, dentro dessa ótica não cientificista e não objetificadora que poderemos
ouvir o outro. Nesse sentido, haveremos de confirmar com o autor que “o objetivismo é uma
ilusão.”
73
Ao lado da “tradição”, situaremos a noção do “preconceito (Vorurteil)” e sua
proximidade com a “experiência hermenêutica”. Libertar-se dos “preconceitos” foi um desejo
70
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 527.
71
Ibidem, p. 529.
72
Ibidem, p. 531. A hermenêutica filosófica de Gadamer tem sido comumente considerada por alguns autores
como sendo uma “hermenêutica das tradições”. Paul Ricoeur reproduz o debate de Gadamer com a “crítica das
ideologias”. Ricoeur pretende uma “síntese produtiva” a partir de uma interação positiva entre a “hermenêutica
e as ideologias” diferenciando em especial as posições de Gadamer e Habermas. Cf. Paul RICOEUR,
Interpretação e ideologias.
73
Hans-Georg GADAMER, O problema da consciência histórica, p. 57.
22
ilusório da “razão iluminista” que se manteve na “aparência dialética” e com isso não se
desprendeu das amarras de suas pretensões epistemológicas. Os filósofos iluministas
acreditavam poder superar e até mesmo anular por completo os seus “preconceitos”.
Pretendiam assim conseguir uma visão puramente científica de seu objeto. “São os
preconceitos não percebidos os que, com seu domínio, nos tornam surdos para a coisa de que
nos fala a tradição.”
74
Essa “adesão” de Gadamer aos “preconceitos” e a sua insistência em
recorrer à “tradição” corporificam em sua noção de “experiência hermenêutica” dois
condutores básicos que se encontram em íntima relação com o que diz respeito à “consciência
histórica”. O autor se vale em certa medida da “crítica dos românticos” e suas contribuições
para a superação ou “libertação dos preconceitos”
75
, bem como de suas manifestações
culturais que nutriam um “sentimento nostálgico” para com o passado. Entretanto, não
pretende como os românticos reconduzir a autoridade da “tradição” e sim estabelecer uma
relação de alteridade e o reconhecimento dos “preconceitos” aí implicados. O que a
hermenêutica filosófica nos convida é a “colocá-los em jogo”, isto é, manejá-los no processo
compreensivo.
Os nossos preconceitos devem ser colocados em jogo no processo do
compreender... Na concreção da experiência hermenêutica, conceitos como
‘esclarecimento’, ‘emancipação’, ‘diálogo livre de coerção’ revelam-se como
pobres abstrações. A experiência hermenêutica faz ver o enraizamento profundo
que podem ter os preconceitos e o pouco que uma mera conscientização pode fazer
para dissolver sua força.
76
Todavia, não é tão simples “jogar” com os “preconceitos”, eles não se evidenciam
com facilidade e não basta nossa boa vontade para que possamos usá-los de modo proveitoso.
É preciso um bom “direcionamento do espírito” e um desprendimento que nos permita
interrogar hermeneuticamente a nós mesmos em relação à “tradição”. Essa deve nos falar
pela expressão de sua própria alteridade para assim nos permitir a percepção do que atua em
nós como “preconceito”. Contudo, não devemos ser passivos e apenas receptivos ao que
suscita nossa percepção sob a forma de “preconceito”, uma vez que:
a descoberta de um preconceito não é possível enquanto ele permanecer
simplesmente operante; é preciso de algum modo provocá-lo. Ora, tal provocação
74
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 406.
75
Gadamer assume em certa medida a “crítica romântica” quando diz: “podemos nos apoiar na crítica romântica
ao Aufklärung. Pois existe uma forma de autoridade que foi particularmente defendida pelo romantismo: a
tradição.” Cf. “Os preconceitos como condição de compreensão: a reabilitação de autoridade e tradição”.
(Ibidem, p. 416-27).
76
Idem, Verdade e Método II: complementos e índices, p. 140. Cf. “hermenêutica clássica e hermenêutica
filosófica (1868)”. (Ibidem, p. 111-42).
23
de nossos preconceitos é primeiramente fruto de um reencontro renovado com uma
tradição que se encontra, talvez, na origem deles.
77
Provocar o “preconceito”, elaborar seus impactos sobre nós e reconhecê-lo, não é
colocá-lo para fora e deixá-lo à deriva e sim assumi-lo como parte do que nos diz respeito até
então. Ao se mostrar para nós, o “preconceito” percebido não permanece o mesmo, contudo,
não é posto ao lado ou descartado para ser substituído por um outro que se revelou em nossa
“experiência hermenêutica” e que de algum modo pode trazer à luz parte de sua obscuridade.
O que importa é saber reconhecer que “qualquer posição ‘nova’ que substitui uma outra segue
necessitando da antiga.”
78
77
Hans-Georg GADAMER, O problema da consciência histórica, p. 68.
78
Ibidem, p. 69.
CAPÍTULO 2 - O JOGO COMO INSTÂNCIA COMPREENSIVA
Apresentaremos agora uma reflexão sobre o jogo que tem como objetivo mostrar as
plausibilidades que ele nos oferece para essa pesquisa. É válido ressaltar que a palavra “jogo
(Spiel)”, na língua alemã, tem um espectro bem mais amplo do que na língua portuguesa,
podendo abarcar outras acepções como, por exemplo, executar uma peça musical ou
representar e interpretar no teatro e no cinema. Gadamer propõe uma “explicação ontológica”
permeada pelo jogo. Seu interesse é perscrutar a obra de arte e encontrar o “significado
hermenêutico” que ela traz.
O conceito de jogo é elaborado pelo autor como uma dimensão ontológica da obra de
arte, configurando assim o seu próprio modo de ser.
79
O jogo se constitui como um elemento
que transcende a racionalidade, mas ao mesmo tempo permite que ela permaneça atuando.
Além de nos ajudar na “explicação ontológica” da obra de arte, o jogo nos ajuda também no
que diz respeito à religião e nos oferece uma possibilidade compreensiva que vai além dos
limites da “consciência estética”. Nesse sentido, diremos com Gadamer que “a relação entre
fé e compreensão, vista sob o ponto de vista do jogo, merece uma atenção especial.”
80
A partir
dessa orientação que seguiremos no momento, nosso intuito é permear a compreensão do jogo
com a “experiência de arte” e com a “experiência religiosa”.
Nessa trajetória traremos indicações que nos permitem uma análise conceitual da arte
em sua forma de ser no culto e no mito. Procuraremos mostrar isso através das suas
expressões plásticas, sonoras e gestuais. Ressaltaremos o papel do espectador como partícipe
desse processo que deverá acontecer no aberto das possibilidades em que a obra enquanto
coisa (Sache) nos oferece por si mesma. Convidamos então o leitor a participar conosco dessa
perspectiva que tem o jogo como uma instância compreensiva.
79
Cf. “2.1. O jogo como fio condutor da explicação ontológica”. (Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método:
traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 174-219).
80
Idem, Verdade e Método II: complementos e índices, p. 153. Cf. “Sobre a problemática da autocompreensão –
Uma contribuição hermenêutica ao tema da ‘desmitologização’ (1961) ”. (Ibidem, p. 145-58).
25
2.1 - O jogo como auto-representação no culto religioso e na arte
“Todos os jogos sagrados da arte são apenas
reproduções remotas do jogo infinito do mundo, da
obra de arte que se forma eternamente.”
81
Friedrich Schlegel
Uma primeira tarefa que Gadamer empreende ao tematizar o jogo é a de “libertá-lo”
do subjetivismo estético de Kant e Schiller. Em contraposição a esse modelo de caráter
subjetivista correspondente à “consciência estética” e que perdura até hoje, o autor propõe o
seu modelo da “experiência de arte”. Tal modelo oferece uma mudança substancial de
perspectiva para o estudo das “ciências do espírito”.
O jogo é parte constitutiva de toda e qualquer cultura, visto que sua estrutura
antecede a todas elas, pois traz em sua própria natureza uma ancestralidade abissal em relação
a todo ser humano. Isso ocorre não somente pelo fato de o jogo ser “pré-racional” e se
encontrar também como base de toda forma de expressão seja na religião, no mito, na arte, na
política, no direito. O jogo existe no mundo antes da raça humana, ele habita a realidade há
muito mais tempo, ou seja, ele já se encontra na natureza animal.
82
Por tudo isso o jogo nos
sobrepuja e, segundo Gadamer, não pode ser reduzido à “consciência estética”, devemos
apreendê-lo, portanto, a partir da “experiência de arte”.
Quando, em correlação com a experiência de arte, falamos de jogo, jogo não
significa aqui comportamento ou muito menos o estado de ânimo daquele que cria
ou daquele que usufrui e, sobretudo, não significa a liberdade de uma subjetividade
que atua no jogo, mas o próprio modo de ser da obra de arte.
83
O autor vai reivindicar a partir desse modo de ser uma “seriedade sagrada”
84
para o
jogo, mesmo que esse se insira num lugar imaginário e que, assim, suspenda a realidade do
mundo criando um espaço fictício dentro de um conjunto de regras. Conhecendo um pouco
dessa natureza do jogo e tomando-o por “fio condutor”, somos colocados na posição de um
espectador que participa, que faz parte, que está em relação com algo representado. Nesse
sentido, o jogo tem a prerrogativa de ser sujeito em relação àqueles que o jogam. “O sujeito
do jogo não são os jogadores, porém o jogo, através dos que jogam, simplesmente ganha
representação.”
85
81
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 179-80.
82
“El fenómeno elemental del juego domina el mundo animal entero. Resulta obvio que ese ser natural que es el
hombre también esté determinado por él”. (Idem, Estética y hermenéutica, p. 129).
83
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 174.
84
Ibidem.
85
Ibidem, p. 176.
26
A representação tal como se dá no jogo implica numa reciprocidade por parte de
quem joga (ator) com a parte de quem assiste. Na medida em que se reproduz através dos
atores, a obra de arte permite ao espectador uma “experiência de arte”, mas essa deve advir da
própria obra e não da subjetividade da “consciência estética”, isto é, quem faz
verdadeiramente essa experiência se transforma porque se encontra diante da alteridade
radical da obra. “O ‘sujeito’ da experiência de arte, o que fica e persevera, não é a
subjetividade de quem a experimenta, mas a própria obra de arte.”
86
Essa perspectiva nos ajuda na compreensão da religião, para isso tomaremos como
exemplo os jogos referentes às encenações dos cultos religiosos. Eles se configuram como um
jogo de representações e é em torno de um “espaço sagrado” que se desenvolve a cena das
significações as quais são representadas pelos atores do culto. Essas encenações podem ser
observadas nos diversos cultos, todos eles são potencialmente uma auto-representação, nesse
sentido são como as obras de arte em seu modo de ser como jogo. “Il gioco è, per
antonomasia, autorappresentazione.”
87
Vejamos como se dá isso no caso da representação no
culto.
O caráter de espetáculo que acompanha os cultos religiosos configura um jogo
cênico no qual a situação acontece na interação entre jogadores (atores) e espectador. Cria-se,
assim, uma abertura através do fenômeno lúdico para que alguém faça uma experiência a
partir do que se representa e se adquire em sentido figurado. O jogo toma aqui a categoria de
mediação de uma realidade que transcende os participantes e se revela tal como uma obra de
arte. Todavia, é preciso querer jogar, mas para que isso ocorra o jogador tem que suspender a
si mesmo e fazer sua “escolha”. A representação nesse sentido se dá na dinâmica de um
movimento em que a “escolha” permanece, mas se mantém dentro do movimento do jogo.
Entretanto, isso não deve ser visto somente como uma limitação, pois a abertura se preserva
naquilo que é representado. Segundo Gadamer, isso se dá plenamente no culto, pois “o
espetáculo cúltico ou profano, por mais que seja um mundo fechado em si, que o representa, é
como que aberto para o lado do espectador.”
88
Essa abertura é o que pode nos proporcionar
toda e qualquer relação com esse ser que é representado por si mesmo, divino ou profano ele
atua em nós espectadores tal como num jogo que se auto-representa.
O jogo dentro dessa perspectiva pode ser para o espectador um modo de acesso a
essa “coisa (Sache)” que se auto-representa. Tomando-o nesse sentido, ele se mantém como
86
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 175.
87
Idem, Veritá e Método, p. 139.
88
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 185-6.
27
uma espécie de fio condutor que se manifesta num “ir e vir” que nos engloba. Mas, somente
no caso de haver uma relação atenta e comprometidamente interessada é que temos qualquer
acesso, ou seja, temos que nos estabelecer como jogadores. Eis aqui a seriedade do jogo, é
preciso levá-lo a sério e segui-lo em suas regras, contudo, devemos sempre arriscar, e é
precisamente nisso que reside o sentido de jogar. Com o tema do jogo e o seu significado
hermenêutico indicamos através da representação um tipo de acesso que se situa na própria
natureza estrutural do jogo. Essa reflexão filosófica é parte da busca de Gadamer por uma
ontologia da obra de arte, mas nela reside também uma práxis hermenêutica que toma como
mediação uma explicação. Essa explicação comporta um fundo religioso que é inerente à
própria arte. Os desdobramentos compreensivos aqui propostos situam-se não mais em uma
“consciência estética”, mas na abertura que o jogo nos oferece para compreendermos o papel
da representação na experiência de arte e na experiência religiosa, abrindo caminhos para a
filosofia e para a teologia. “Considero que, no compreender, se dá um momento de
desprendimento de si mesmo que merece a atenção também da hermenêutica teológica e que
deveria ser investigado sob o fio condutor da estrutura do jogo.”
89
Encontramos nesse modelo de compreensão uma explicação em que a representação
no culto e no teatro adquire uma conceituação própria no sentido de manter uma parte
permeável que pode nos levar ao interior da “coisa (Sache)”. Aqui o autor nos chama a
atenção para as peculiaridades que se mantêm na abertura desses dois tipos de jogos.
Diferentemente dos “jogos infantis” é o que se representa no culto e no teatro, mas onde está a
diferença mais substancial? Essa diferença reside em um “movimento ordenado” onde o ato
de representar não é um “mero representar”, mas sempre se destina a outrem. O jogo se
caracteriza por manter-se numa “unidade fechada” como que a quatro paredes, mas no caso
do espetáculo cúltico ou teatral o jogo encontra uma abertura sem perder, entretanto, essa
unidade. “O espaço fechado do mundo do jogo deixa cair aqui ao mesmo tempo uma parede.
A representação do culto (Kultspiel) e teatral (Schauspiel) não representam evidentemente do
mesmo modo e num mesmo sentido, como representa uma criança que joga.”
90
Essa “quarta parede” é o que nos permite consumar o aberto da representação (Spiel).
Contudo, a condição de unidade e fechamento do jogo não se ausenta, ou seja, a quarta parede
continua a existir e é fundamental para o jogo da arte porque mantém a abertura para o lado
do espectador. A peculiaridade lúdica do culto e do teatro difere também dos jogos
competitivos que, mesmo tendo espectadores não se joga exclusivamente para eles, o que
89
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 151.
90
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 184.
28
mais importa é vencer a competição. No caso da atividade do teatro, e mais ainda no culto
religioso, sempre se leva o representar para aqueles que assistem. Assim, o espectador é
partícipe no processo, pois o jogo se produz para ele.
Justamente algo assim é a procissão, que é uma parte da atividade cúltica e é mais
do que um espetáculo, porque, de acordo com seu sentido próprio, abrange toda a
comunidade de um culto. E, não obstante, o ato cúltico é uma verdadeira
representação para a comunidade, e, da mesma forma, o espetáculo teatral é um
processo lúdico que, por sua natureza, exige a presença do espectador.
91
O jogo convoca a quem o assiste para uma participação interior. Assim é o modo
como a arte se comunica a nós, nela podemos constatar uma identidade hermenêutica que nos
mostra a sua unidade. A arte é como um movimento vivo que interage conosco. Nesse sentido
podemos dizer que tem vida própria naquilo que comunica, entretanto, não se restringe a ser
uma simples comunicação! Do observador exige uma participação que deve ir além de um
olhar atento, como no caso dos jogos esportivos, no jogo da arte reside algo que vem de
uma “vitalidade religiosa” a qual permeia a sua forma de representação. Desse modo, diremos
que arte e religião se situam quase no mesmo compasso e permitem uma sintonia de contexto.
Para ilustrar isso, destacamos um pano de fundo de compreensão religiosa que se apresenta
nas palavras de Gadamer:
[E]spero ter mostrado que quase não há mais nem um passo que leve a dança do
culto à celebração do culto tomada como representação. E que quase não há um
passo que leve daí à representação em si, por exemplo, ao teatro, que surgiu desse
contexto de culto como sua representação. Ou às artes plásticas, cuja função
decorativa e expressiva procede no todo de um contexto vital religioso.
92
Esse contexto religioso da representação perpassa, portanto, o contexto da obra de
arte e como culto se insere no âmbito social ao convocar e se dirigir a toda a comunidade. A
unidade desse modo de representar que ocorre no jogo e no mito se apresenta como um
espetáculo que ultrapassa os jogadores (atores) e também ao espectador enquanto indivíduo.
O que se representa como Deus nas religiões monoteístas ou no mito grego e o que se
desenvolve nesses acontecimentos culturais e artísticos, permite-nos uma participação na
“totalidade de sentidos” que esses eventos nos proporcionam em ato. Assim, fazemos a
experiência como participantes naquilo que a representação (Spiel) configura como algo de si
mesma.
A representação de Deus no culto, a representação do mito no jogo são, portanto,
jogos apenas no sentido de que os jogadores participantes, por assim dizer,
revelam-se no jogo representativo, encontrando nisso, intensificada, sua auto-
91
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 185.
92
Idem, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 40.
29
representação elevada, mas ultrapassando-se, saem de si para adentrar no fato de
que os atores representam uma totalidade de sentidos para o espectador.
93
O desenrolar proveniente da representação do jogo envolve os participantes na
consumação de um movimento que é múltiplo e ao mesmo tempo é articulado como unidade.
Todavia, o jogo só se revela quando nos dispomos e nos colocamos em ato como espectadores
que assistem e assim co-representam. A filosofia hermenêutica se apropria desse tipo de
acesso para superar o modelo da “consciência estética”, para isso, nos propõe incorporar uma
mediação mais orgânica com o ser da obra de arte jogando o seu jogo.
2.2 - Mimesis e transformação : a aparência da verdade no “jogo da arte”
Veremos agora os aspectos figurativos que residem no jogo da arte e a sua expressão
na religião, na filosofia e na teologia. Para tanto, lançaremos mão inicialmente do conceito de
mimesis, uma categoria da estética clássica que define a arte como imitação. As palavras, os
gestos e os sons são expressões que podem atingir o seu grau máximo de espetáculo. Isso
ocorre na medida em que se consegue imprimir um sentido figurado à realidade. A
gestualidade, a plasticidade e a sonoridade se unem no todo do espetáculo para formar uma
imagem. No entanto, aquele que imita não o faz por completo, visto que, “quem imita tem de
deixar algo fora ou realçar algo.”
94
Esse imitar característico da arte encontra-se radicado em bases que se fundam numa
relação originária de conteúdo religioso, pois se referem à própria noção de imitação do
divino. Tal compreensão se dá, sobretudo, na concepção da estética clássica e suas teorias que
consideram a arte como mimesis. “Também a antiga teoria da arte, que coloca o conceito de
mimesis, isto é, da ‘imitação’ à base de todas as artes, partiu aqui, claramente, do jogo que,
como dança, é a representação da divindade.”
95
Aqui se estabelece uma relação identificada
como uma “mímica originária” que acompanha os movimentos e a forma do divino
expressando-o de modo figurado.
A mimesis é uma espécie de conhecimento que busca enxergar a realidade em seu
conjunto, contudo, sua forma de conhecer mais elevada se dá como reconhecimento
96
e como
93
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 185.
94
Ibidem, p. 193.
95
Ibidem, p. 191.
96
Segundo Gadamer, “mesmo Platão, o mais radical crítico da categoria do ser da arte que a filosofia da história
conhece, fala esporadicamente, sem diferenciar entre a comédia e a tragédia da vida, como a do palco.” (Ibidem,
p. 189).
30
tal é capaz de abarcar a própria vida. A mimesis deve ter força de transformação e de
modificação, de transferir-se numa nova configuração (Gebild). Tal como na experiência de
arte ou religiosa,“a transformação em configuração significa que aquilo que era antes, não é
mais.”
97
Desse modo funciona o jogo em suas potencialidades figurativas, dele emerge para
nós o próprio ser da obra de arte que poderá ser levado à vida mostrando assim seu lado
trágico ou cômico.
98
O modo de representar tudo isso se exerce através da mimesis, mas para
que essa aconteça em plenitude é necessário que adquira uma qualidade que transcenda à
imitação pura e simples e possa, ao se colocar em ato, resgatar uma “mímica originária”, tal
como a que se encontra no culto religioso que oferece-nos uma experiência religiosa
permeada pela experiência estética e pela experiência de arte.
No es necesario, por lo tanto, referir artificialmente el concepto de mimesis, al que
da expresión esta experiencia ‘estética’, a una situación originaria en la que todas
las artes todavía estuvieran, en cierto modo, juntas; quiero decir, a la
representación ritual en el culto religioso por medio de la palabra, el sonido, la
imagen y el gesto. Lo mímico es y será una relación originaria en la que no sucede
tanto una imitación como, más bien, una transfomación. Es, como la he llamado en
otro contexto y con consciente artificiosidad, la no-distinción estética lo que
constituye la experiencia del arte.
99
O ato de imitar, sob o prisma da experiência de arte, não é somente imitação, mas
transformação e alcançará sua completude na medida em que mais e mais o seu aparecer
estiver em consonância com o que é verdadeiro, isto é, com aquilo que é a própria realidade.
Conhecer o ser que está aí é o que pretende essa mímica, não de modo enfeitiçado, mas como
uma experiência na qual se encontra o que se deseja e o que se teme, o futuro indefinido que
gera expectativas e possibilidades de que algo esperado possa tornar-se real. Na noção de
verdade da arte tal como na religião, a “transformação no verdadeiro” equivale a ver o
conjunto da realidade expresso através de uma forma transformadora, que revela a verdade do
ser, daquilo que é e está além da palavra, da “palavra salvadora e retransformadora, mas ela
mesma é salvação e retransformação no verdadeiro ser. Na representação do jogo (espetáculo)
resulta o que é.”
100
O ser da coisa que se joga.
Experimentamos uma certa perda de identidade ao jogar, pois, somos transferidos
para uma outra realidade onde se encontra um “outro mundo” que é o mundo do jogo.
Observamos isso na tradição mítica em que a questão do aparecer da verdade encontra seu
habitat na arte, sobretudo na poesia. Essa verdade da arte implicará em um “conhecimento
97
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 188.
98
Ibidem, p. 190.
99
Idem, Estética y hermenéutica, p. 128.
100
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p.190.
31
religioso”
101
e trará questões para a filosofia e também para a teologia que pretende encontrar
nisso um “sentido último”. A antigüidade grega nos oferece uma perspectiva de compreensão
a esse respeito, temos essa expressão de modo nítido na doutrina platônica da anamnesis.
Platão, ao pretender mostrar a verdade do ser, cria uma concepção mítica como um jogo do
conhecimento, para isso segue o caminho da dialética que irá encontrar na linguagem aquilo
que poderá se tornar uma imagem do ser e, assim, uma mimesis mais elevada em direção ao
divino, unindo religião e poesia de um modo lúdico e indissolúvel com a filosofia e a teologia.
La unidad indisoluble del discurso religioso y poético se muestra, no en última
instancia, en que incluso la crítica de esta tradición religiosa por la filosofia griega
siegue siendo, en su sentido último, teología. Si Platón, por un lado, sabe
configurar sus mitos con especial maestría a partir de una barroca mezcla de
motivos religiosos tradicionales y conceptos filosóficos, conserva también, por
otro, algo que es característico de toda la tradición: mezclar lo verdadero y lo falso,
ser a la vez mensaje de lo más alto y libertad del juego.
102
Através dessa liberdade do jogo podemos perfazer o caminho que nos leva da arte à
religião e da filosofia à teologia. O que Gadamer ressalta nessa tradição é que conhecimento é
reconhecimento, é nesse ponto que a mimesis encontra o seu valor de representação e reflete
um conhecimento que não é meramente uma figuração, mas abriga um conteúdo liberto de
sua aparente causalidade. Ademais, tal conteúdo reflete a verdade através de um “modelo
originário”, que ganha configuração na idealidade da linguagem.
A imagem artística que se constrói por seus personagens pretende ser colocada além
do casual. Tal imagem deve mostrar em sua essência aquilo que está acima do contingente e,
portanto, deve estar livre das amarras da materialidade do mundo. A idealidade figurada
ultrapassa assim o mero imitar para atingir a essência do modelo original, que está além da
matéria. A mimesis pode mostrar-se desse modo como aparência da verdade e comportar o
caráter de um tipo de conhecimento que é reconhecimento, que confirma uma “verdade
válida” e não apenas uma reprodução figurativa, seu representar traduz um sentido de
elevação.
Mas também aquilo que é representado, o conhecido processo da tradição
mitológica, será elevado concomitantemente, através da representação, à sua
verdade válida. Tendo em vista o conhecimento do verdadeiro, o ser da
representação é mais do que o ser da matéria representada, o Aquiles de Homero,
mais do que seu modelo originário.
103
101
Situamos aqui com Gadamer a poesia grega antiga: “la poesía griega temprana poesía el contenido de verdad
del conocimento religioso.” (Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenéutica, p. 111).
102
Ibidem, p. 139.
103
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 193.
32
Gadamer recusa a compreensão objetivista da autoconsciência estética, uma
conseqüência da subjetividade moderna que em geral anula a obra com sua pretensão de
esgotá-la de forma crítica, mas isso, com efeito, resulta no malogro e no afastamento do ser da
obra. Precisamos, segundo o autor, mudar o “modelo de autoconsciência” que utilizamos
comumente para seguirmos um outro modo de pensar. Esse outro modo não adviria mais das
teorias estéticas da tradição filosófica, mas da experiência religiosa. “O autêntico conceito de
autocompreensão, o único aplicável a todos estes casos, não deve ser pensado a partir do
modelo da autoconsciência, mas a partir da experiência religiosa”.
104
Essa experiência limite
entre o humano e o divino é transformadora, pois revela um grau de alteridade na existência
daquele que faz a experiência e, como na experiência de arte, re-configura-se e se coloca em
jogo.
A arte, ao buscar sua expressão em uma mímica originária, adquire uma aparência de
verdade em relação ao modelo que imita, no entanto, não se trata de uma cópia e sim de uma
aparência verdadeira, de um mostrar concreto. Também não se restringe a ser uma imitação
de caráter naturalista, sua força imagética maior reside em sua capacidade de abstrair-se das
contingências. “Apariencia verdadera; ésa es la conformación del arte.”
105
A mimesis abriga assim uma função de conhecimento, quer fazer ver a essência e se
mostra para o espectador como num jogo de representações. Todavia, segundo Gadamer, o
conceito de mimesis foi prejudicado por sua vinculação com a estética moderna e acabou
sendo formatado dentro de uma concepção nominalista que modelou o perfil da consciência
estética até o século XX. A maior dificuldade desse modo de conhecer é que ele não se divide
de si e assim não atinge o âmago da experiência humana em suas expressões culturais. O
conceito de mimesis dentro dessa perspectiva de pensar estético apreende o objeto somente
objetificando-o, mas com isso vela a compreensão da obra que lhe escapa. A arte como
mimesis traz em si sua própria verdade e com isso o seu próprio ser, é como uma imagem
religiosa que em seu ato como imagem no culto representa para uma comunidade uma
verdade religiosa.
Um consciente estético ainda tão reflexo não pode mais achar que somente a
diferenciação estética, que coloca o objeto estético para si, atinja o verdadeiro
sentido da imagem cúltica ou do jogo (espetáculo) religioso. Ninguém poderá
imaginar que a execução da ação cúltica seja inessencial para a verdade religiosa.
A mesma coisa de maneira semelhante vale para o espetáculo teatral em si e para
aquilo que ele é enquanto poesia.
106
104
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 93.
105
Idem, Estética y hermenéutica, p. 134.
106
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 195.
33
Como vimos, Gadamer vai buscar na tradição grega e na religião uma reparação do
conceito de mimesis e mostra-nos que a arte não é uma fórmula vazia a ser preenchida com
aquilo que ela representa, mas o seu próprio ser é aquilo que ela exerce em ato com quem
assiste. O autor aproxima assim a experiência de arte e a experiência religiosa através do
conceito de jogo. A mimesis se resguarda então da contingência por representar uma essência.
Contudo, acontece em forma materializada, como imagem que se expressa plasticamente ou
através de sons, gestos e palavras, isto é, precisa ser executada para que exista. “Antes, na
execução e somente nela – o mais claro exemplo é o da música – encontra-se a obra, ela
mesma, tal qual no culto encontra-se a divindade. Aqui se torna visível o proveito metódico
que se obtém, partindo do conceito de jogo (espetáculo).”
107
A mimesis em seu modo de ser enquanto transformação exerce através da linguagem
a aparência da verdade. Assim se configura a sua essência no jogo da arte, mostrando a
imagem de uma realidade mais profunda e perene, como uma palavra que ao ser proferida
pode nos levar de volta ao nosso próprio interior e se dirigir à nossa “palavra interior, a
palavra do coração e sua relação com a intelligentia.”
108
Aqui encontramos um ponto crucial
para uma tomada de posição, que distingue e mostra o jogo e o proveito que podemos tirar
dele como espectadores. Esse procedimento é validado pela hermenêutica filosófica,
sobretudo para o trato com as coisas do espírito e, como mostramos aqui, especialmente para
a filosofia e a teologia.
No jogo da arte encontramos uma “unidade na verdade”, um tipo de conhecimento
próprio que se nos revela através da experiência de arte. A palavra poética e sua encenação,
no culto ou no teatro, adquirem uma configuração duplicada, tomam por assim dizer a forma
de uma “dupla mimesis” e podem ser reconhecidas e diferenciadas como tais na relação entre
poeta e ator.
O que o ator representa e o espectador reconhece são as formulações e a própria
ação, tal qual foram pensadas pelo poeta. Temos aqui uma dupla mimesis: o poeta
representa e o ator representa. Mas justamente essa dupla mimesis é una: O que se
torna a existência em um e no outro é a mesma coisa (...) À dupla diferenciação da
obra poética e de sua matéria e da obra poética e a encenação, corresponde a uma
dupla diferenciação tida como a unidade da verdade, que se reconhece no jogo da
arte.
109
A verdade (aletheia) se desvela ao espectador participante do jogo da arte. É nessa
perspectiva que podemos voltar a compreensão para a religião, tomando-a em sua expressão
107
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 195.
108
Ibidem, p. 611.
109
Ibidem, p. 196-7.
34
como “referência à verdade”, uma verdade que a hermenêutica busca nas camadas subjacentes
da obra. Como diz Gadamer: “sempre que alguém se esforça por compreender – por exemplo,
a Escritura Sagrada ou os clássicos – está operando, indiretamente, uma referência à verdade
que está oculta no texto e que deve chegar a luz.”
110
2.3 - O jogo como “autocompreensão da fé”
Veremos agora uma perspectiva do jogo na qual a hermenêutica filosófica identifica
um movimento que aponta para uma “autocompreensão da fé”. O conceito de jogo nos será
útil aqui para evocarmos a sua liberdade e, a partir dela, apresentarmos um procedimento
hermenêutico que mostra os limites da ciência moderna nesse tipo de compreensão e valoriza
a experiência religiosa e a experiência de arte nesse jogo compreensivo.
O problema da consciência filosófica surge muito cedo e nasce da relação entre
filosofia e mito na Grécia antiga, mas o mito permanece intacto em sua vida própria e mantém
a mesma liberdade de espírito que sempre teve, não se esgota, portanto, pelo destrinchar
crítico da racionalidade filosófica. Contudo, existe aí uma importante contribuição que
emerge do âmago do espírito humano. O mito grego descreve uma realidade viva e a relação
entre mito e logos aparece com o alvorecer da filosofia e cristaliza-se principalmente em
Platão no período clássico.
Nesses primórdios, especialmente na filosofia Ática, houve uma verdadeira
reconciliação entre mito e logos, que implicou em “uma reconciliação secular entre a tradição
religiosa e o pensamento filosófico[,] sobretudo platônico.”
111
Segundo Gadamer, existe no
contexto filosófico da Antigüidade algo bem mais complexo do que os postulados da filosofia
iluminista puderam supor, reduzindo o pensamento grego a um caminho que vai do mito ao
logos e que implica como conseqüência no “desencantamento de mundo”. Em verdade, os
gregos revelam algo bem mais profundo, que esse olhar desencantado não atinge.
Compreender essa Antigüidade como uma passagem necessária do mito ao logos é, portanto,
um “preconceito moderno”.
Pois bem, a partir desse esclarecimento o autor nos mostra que “no fundo, a relação
de um teólogo cristão com a tradição bíblica não é muito diferente da relação de um grego
110
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 290.
111
Idem, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 251-252. Cf. “Sobre a problemática da
autocompreensão Uma contribuição hermenêutica ao tema da ‘desmitologização’ (1961)”. (Ibidem, p. 145-
58).
35
com seus mitos.”
112
No âmbito dessa tradição teológica, travou-se uma grande luta contra as
premissas do iluminismo, sobretudo no que concerne ao estudo bíblico. É pelo “chamado da
fé”, pelo exercício da palavra no querigma que o teólogo deve inspirar sua tese anti-
iluminista. O “preconceito moderno” caracteriza a Sagrada Escritura como um texto mítico.
Contra isso, a teologia cristã vai partir de um pressuposto interno da fé.
A autocompreensão da fé determina-se pelo fato de que, vista teologicamente, a fé
não constitui uma possibilidade do homem, mas um ato da misericórdia de Deus
que sobrevém ao crente. E difícil, contudo, manter essa visão teológica e essa
experiência religiosa na autocompreensão interna do homem, enquanto essa estiver
sob o domínio da ciência moderna e de sua metodologia.
113
Podemos assinalar um caminho reflexivo para essas questões através das noções de
liberdade e auto-esquecimento implicadas no jogo. O “preconceito moderno” se alimenta de
uma pretensão epistemológica universalista, entretanto, a sua metodologia o leva a uma
autocompreensão que se torna em verdade uma autopossessão. As noções de liberdade e de
auto-esquecimento do jogo encontram, ao contrário, uma compreensão elevada, pois
permitem ao sujeito a liberdade de elevar-se sobre si e assim ele exercita o seu auto-
esquecimento. Nesse sentido, “a consciência daquele que está jogando encontra-se num
equilíbrio indistinguível entre fé e falta de fé.”
114
A autocompreensão se dá tanto no âmbito
do si mesmo, quanto no âmbito da fé. Não existe nesse caso a posse do si mesmo e sim um
movimento que acontece mediante uma “subjetividade lúdica”. Desse modo, “o que entra em
jogo já não depende de si mesmo, mas é dominado por essa relação chamada jogo”
115
.
A tradição teológica nos oferece um conceito de autocompreensão fundamentado na
palavra onde o que abriga o sentido último de toda palavra é Deus. Eis o que é para essa
tradição o axioma maior para toda e qualquer compreensão. A capacidade humana para a
palavra e para o diálogo se dá num espaço comum e comporta um jogo de linguagem que é
inerente a todos.
116
Na autocompreensão dessa tradição teológico-cristã a palavra adquire um
sentido sobre-humano. “O si mesmo que nós mesmos somos não possui a si mesmo.”
117
É
nisso que implica a liberdade e o auto-esquecimento do jogo e, nesse caso, a palavra como
diálogo, que nos percorre como linguagem, encontra na palavra Deus toda e qualquer
possibilidade de compreensão. Tal como na experiência arte, também na experiência
religiosa, experienciamos uma transformação. Uma autocompreensão no âmbito da fé
112
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 152.
113
Ibidem, p. 155
114
Ibidem.
115
Ibidem, p. 154.
116
Gadamer nos diz que: “tudo que aprendemos, realiza-se em jogos de linguagem.” (Ibidem, p. 156).
117
Ibidem, p. 155.
36
significa um nascer de novo, é uma experiência do extraordinário que aponta para o inefável e
assim nos transforma. “E é isso que diz o teólogo: que a fé é o extraordinário evento em que
nasce um novo homem.”
118
Na tradição teológico-cristã encontramos o primado da palavra em seu sentido último
em que Deus é a própria palavra. Segundo Gadamer, essa é a primeira noção que fundamenta
o conceito de autocompreensão no Ocidente, é um conceito formulado pela teologia.
Perguntamos a partir daí: o que o jogo tem a ver com isso? Tem a ver com uma “alternância
viva”, com um momento em que se alcançará uma forma de compreender, a da fé
119
, ela se dá
especialmente no âmbito do diálogo e da palavra. Desse modo:
[O] conceito de autocompreensão tem um cunho originalmente teológico. Está
relacionado com o fato de que nós próprios não nos compreendemos a não ser
diante de Deus. Deus, porém, é a palavra. Desde os primórdios, a palavra de Deus e
o mistério da Trindade. Sobretudo Agostinho descreveu em muitas variantes o
mistério sobre-humano da Trindade a partir da palavra e do diálogo, e de como este
se dá entre os seres humanos. Ora, a palavra e o diálogo tem em si um momento de
jogo.
120
Esse momento do jogo é o que nos mostra a linguagem e seus usos, nas conversas em
que cada um exerce a sua própria linguagem numa continuidade da conversação e o que vem
à fala no diálogo, aquilo que pode ser comunicado um com o outro por um entendimento
mútuo. A alternância do jogo no diálogo pode ser aplicada aos textos, na Escritura Sagrada o
papel do anúncio da palavra pode ser visto aqui, dessa forma, como um jogo de compreensão.
“[T]ambém na compreensão do anúncio conservado na Sagrada Escritura. A vida da tradição
e principalmente a do anúncio consiste nesse jogo da compreensão.”
121
Aquele que lida com os textos exerce uma espécie de “linguagem do intérprete”, que
acontece como num diálogo onde, o dar e o receber fazem parte de uma unidade essencial
com o falar. O acolhimento interior da palavra se revela no jogo que o intérprete estabelece
com o texto, ali ele encontra suas respostas. É na própria linguagem que ele exerce, que o
texto lhe vem à fala. É através desse falar interno que o anúncio no evangelho encontra um
fazer pleno da palavra consigo mesma, assim, é na linguagem do próprio intérprete que o
texto é compreendido.
118
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 155.
119
Destacamos nossa opinião aqui em convergência com C. Benincasa: “I due fenomeni fondamentali che sono
determinanti per l’ermeneutica di Gadamer, sono quello del gioco (das Spiel) e quello del dialogo (das
Gespräch). Seguendo la descrizione che Gadamer fa dello Spiel (giuoco), noi potremo cogliere il giusto punto di
avvio del suo pensiero, tanto piú che Gadamer stesso cerca di rendere compreensibile per mezo di questo
fenómeno una delle forme piú elevate del comprendere, vale a dire quella della fede[.]” (C. BENINCASA, La
struttura dell’ermeneutica. La scuola Católica, p. 312).
120
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 156.
121
Ibidem, p. 157.
37
Isso se aplica perfeitamente ao texto do anúncio evangélico, uma vez que este só
pode ser compreendido verdadeiramente quando aparece como o que diz a si
mesmo. É só na pregação que a compreensão e interpretação do texto alcança sua
realidade plena. O que está a serviço imediato do anúncio não é o comentário
explicativo nem o trabalho exegético do teólogo, mas a pregação. E isso porque a
pregação não se limita a transmitir a compreensão do que diz a Sagrada Escritura à
comunidade, mas deve ela mesma testemunhá-la.
122
A fala então se realiza em nós e encontra por suas palavras algo além da
autocompreensão, que não é suficiente por si mesma especialmente se tomada como método
de interpretação. É preciso o testemunho da palavra e uma vez que ela já se encontra no
evangelho como palavra mediadora é assim que se realiza plenamente em nós. Contudo, é
preciso “acolher a pregação como chamado que se dirige a todos.”
123
Portanto, uma
autocompreensão não pode oferecer nesse caso critérios para a interpretação, visto que
se o que ocorre ali é uma autocompreensão, trata-se então de uma
autocompreensão muito paradoxal, para não dizer negativa, onde nos vemos
chamados à conversão. De certo, essa autocompreensão não estabelece um critério
para a interpretação teológica do Novo Testamento. Além do mais, os próprios
textos do Novo Testamento já são interpretações da mensagem salvífica e
mediadores da boa-nova sem nenhuma pretensão de ser compreendidos em si
mesmos.
124
A compreensão nasce desse movimento lúdico do diálogo. Nesse sentido, “a
compreensão é um jogo”
125
que nos torna livres da autopossessão e nos permite exercitar o
nosso auto-esquecimento. A palavra se dá como anúncio e encarna do mesmo modo que a
palavra do poeta por seu dizer, revelando a sua experiência que, como tal, “testemunha por si
mesmo o que anuncia.”
126
Essa mesma qualidade de testemunho e anúncio reside também na pregação da
palavra onde encontramos as mediações que nos são possíveis contemplar no Evangelho, é
através delas que as palavras brotam e assim se apresentam sempre de modo renovado,
comunicam-se por si mesmas como uma “grande poesia”.
O anúncio do Evangelho fala por intermédio de todas essas mediações, de maneira
semelhante ao que ocorre com uma lenda que continua a ser transmitida ou a uma
tradição mítica, constantemente transformada e renovada pela grande poesia.
127
A “grande poesia” é o falar pleno, que une a totalidade e a multiplicidade de
sentidos. A hermenêutica nos mostra que o “evento da compreensão” encontra-se além
122
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 158.
123
Ibidem.
124
Ibidem.
125
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 708.
126
Ibidem, p. 705.
127
Idem, Verdade e Método II: complementos e índice, p.158.
38
daquilo que é metodológico, não podemos reduzir as palavras do outro a um objeto. O que
nos permite compreender o texto bíblico não é o fruto da autocompreensão tanto filosófica
quanto teológica, mas “se dá na própria Bíblia.”
128
O que Gadamer nos anuncia é um novo
modo de compreender que resgata a experiência religiosa e a experiência estética no trato com
as ciências do espírito, ele não se fia pelo método epistêmico ou lógico-empírico. Uma das
formas que a hermenêutica nos mostra para alcançar este “novo modo de compreender” está
na superação de qualquer axioma que pretenda encontrar a verdade através de um método.
Com isso, o autor rechaça qualquer espécie de dogmatismo filosófico ou teológico. Sua crítica
aos modelos do “preconceito moderno” ou da autoconsciência não nos deixa um espaço
hermenêutico vazio. Uma de suas alternativas é justamente a que nos detivemos nesse tópico,
aquela que propõe o auto-esquecimento e a liberdade do jogo como autocompreensão da fé.
2.4 - O belo como arte e a religião na perspectiva do jogo
Desenvolveremos nossa reflexão nesse momento situando alguns elementos de
religiosidade da arte grega, da concepção imagética da arte cristã e, por fim, trataremos da
arte contemporânea especialmente no que diz respeito aos cânones de representação religiosa.
Tomaremos como fio condutor nessas três abordagens conceituais a perspectiva do jogo e sua
relação com a experiência do belo. Seguiremos indicações que nos mostram que podemos
empregar no fenômeno hermenêutico, o mesmo conceito do jogo que empregamos para a
experiência do belo.”
129
Uma das formas fundamentais da arte no Ocidente advém de uma espécie de
“narrativa em imagens”. Esse tipo de narrativa se concretizou na Igreja por seu intuito em
tornar a mensagem bíblica acessível a um maior número possível de pessoas. As artes
plásticas se justificam nesse contexto por sua tarefa de servir a essa narrativa. Foi preciso
transmitir a mensagem cristã para uma população que em sua maioria era iletrada e que viveu
predominantemente na segunda metade do primeiro milênio de nossa era. Essa “narrativa em
imagens” adveio de uma necessidade da Igreja em propagar a palavra bíblica, para isso, teve
de produzir uma “bíblia para os pobres que não sabem ler nem conhecem o latim[.]”
130
A arte
recebe com isso um conteúdo específico que lhe dá “nova legitimação”.
128
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 158.
129
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 708.
130
Idem, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 13. Gadamer situa esse momento com mais
ênfase “na evolução tardia da Igreja Cristã do primeiro milênio, principalmente no 6º ou 7º séculos. Naquela
39
Pois bem, Gadamer vai nos mostrar que essa decisão da Igreja delineou o perfil de
toda a arte no Ocidente até o século XIX. Nesse contexto, a arte cristã por si só justificaria a
arte ocidental.
131
Segundo o autor, isso se reflete em nossa formação e vai configurar a nossa
noção de autoconsciência.
Na consciência de nossa formação, vivemos amplamente dos frutos dessa decisão,
isto é, da grande história cristã na idade média e da renovação humanitária da arte
grega e romana, uma linguagem formal coletiva para os conteúdos de nossa
autoconsciência até os dias dos fins do século XVIII, até a grande transformação
social, política e religiosa com que teve início o século XIX.
132
Esse longo percurso foi permeado de um modo ou de outro, por uma certa “narrativa
em imagens” que preponderou em toda essa história da arte. Houve, porém, uma ruptura
radical na arte do século XX, que foi capaz de dissolver em grande medida o vínculo que tem
como base a representação dessa longa tradição religiosa. Essa arte renegou ainda o que
durante milênios se firmou em nossa cultura: a figuração. Gadamer vai buscar nos
“fundamentos antropológicos” uma nova legitimação para interpretarmos o fenômeno da arte,
ele parte de uma matriz de compreensão religiosa e apresenta-nos “o jogo livre” que
transcorre entre representação artística e fruidor.
133
Nesse jogo de representação que a estética filosófica se detém, a arte é comumente
associada pela filosofia à idéia de belo. Na Antigüidade o belo está relacionado com o cosmo,
ele se identifica com uma “idéia de ordenação” que os antigos filósofos gregos desenvolveram
a partir de suas observações da natureza. Nesse sentido, o belo é aquilo que aparece e assim
se revela como uma certa “ordem do céu”.
134
Essa elaboração conserva na noção grega de
belo uma regularidade em sua aparência, regularidade que nos envolve e se estabelece como
uma experiência vivida que é expressa por nossas próprias limitações como seres finitos. O
mito platônico narrado no Fedro traduz exemplarmente a idéia de belo do legado grego.
“Graças ao belo, é possível, com o tempo, lembrar-se de novo do mundo verdadeiro.”
135
época, a igreja encontrou uma nova significação para a linguagem formal dos artistas plásticos e mais tarde
também para as formas de expressão da poesia e da arte narrativa que trouxe à arte uma nova legitimação.”
(Hans-Georg GADAMER, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 12).
131
Ibidem.
132
Ibidem.
133
Ibidem, p. 36.
134
Ibidem, p. 26. Segundo Gadamer, “o conceito de belo chega-nos hoje em empregos múltiplos, nos quais
sobrevive algo do sentido antigo e finalmente grego da palavra belo (καλόν). Nós também relacionamos com o
conceito de ‘belo’, ainda circunstancialmente, que algo é reconhecido publicamente através do uso e costume:
que, como dizemos, sabe fazer-se ver e que é determinado pela aparência.” (Ibidem).
135
Ibidem, p. 28.
40
No caminho dessa reflexão encontramos o diálogo com a tradição como uma
alternativa para o jogo hermenêutico. Destacaremos a noção de “passado da arte”
136
para
apontar uma diferenciação de configuração entre a arte cristã e a arte grega.
No mundo grego, tratava-se do fenômeno do divino na escultura e no templo que, à
luz meridional, integrava-se aos eternos poderes da natureza; era na grande
escultura que o divino era representado, visualizando-se na configuração dos
homens na figura dos homens.
137
A situação se altera em relação à arte cristã, essa forma de expressão não é mais
possível, o divino se retira da arte, ela agora carece de justificar-se, pois, a divindade situa-se
além e não cabe em nenhuma arte tal como cabia na escultura grega. O que é fundamental ter
em conta no destaque que fazemos é que:
[C]om o cristianismo e sua nova visão em profundidade do deus no além, já não é
mais possível uma expressão adequada da própria verdade, na linguagem formal
artística e na linguagem imagética da fala poética. A obra de arte não é mais o
divino propriamente dito que nós veneramos. O caráter de passado da arte
apresenta uma tese que inclui o fato de que, com o fim da antigüidade, a arte tem
que se apresentar como que necessitando de uma justificativa.
138
Essa idéia percorre a arte cristã até o século XIX. Entretanto, desde a Renascença a
arte ganha uma autonomia de representação que não ocorreu no medievo. A perspectiva e a
humanização dos modelos deslocam a pintura do plano bidimensional para o tridimensional.
Essa foi uma primeira libertação quando a arte torna-se laica. Todavia, continua a servir
preponderantemente aos temas religiosos, só que os critérios da avaliação se mantêm agora
sob o signo das belas artes. Uma beleza livre que passa a ser instituída por padrões estéticos e
não mais religiosos. Contudo, essa arte se mantém a serviço da religião. Segundo Gadamer,
foi “pela igreja cristã e [pela] fusão humanista com a tradição antiga, ao correr dos séculos,
[que se apresentou de] maneira grandiosa [o] que chamamos arte cristã.”
139
Todo esse processo pode ser contemplado na história da arte. A partir desse legado
encontramos uma elaboração extremamente perspicaz na estética hegeliana
140
e sua reflexão
sobre o “passado da arte”. Entretanto, tal compreensão encontra seus limites no que diz
respeito à arte do século XX, que deixa de acolher os cânones dessa “religião formativa” e
136
A noção de “passado da arte” é extraída da filosofia de Hegel, Gadamer vai mostrar a perspicácia dessa lógica
hegeliana para compreender a arte, contudo, apresenta-nos os limites dessa reflexão no que diz respeito à arte
contemporânea. (Hans-Georg GADAMER, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 11-7). Cf.
também, Idem, La resposta del pensare, saggi ermeneutici, p. 168-73.
137
Idem, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 15
138
Ibidem, p. 15-6.
139
Ibidem, p. 16.
140
l’Estetica di Hegel rappresenta il primo progetto fondamentale di una storia dell’arte.” (Idem, La resposta
del pensare, saggi ermeneutici, p. 168).
41
nutre-se de uma liberdade de expressão que não existia até então, houve assim, uma “cisão
entre arte e religião formativa”
141
. Em virtude disso, cria-se uma espécie de silêncio da
imagem, esta passa a se traduzir como uma visão interior expressando-se como se fosse uma
“música para os olhos”.
142
Antes desse advento, toda a história da arte no Ocidente não se
identificava somente como arte, havia sempre uma justificativa que vinha de instâncias
diversas nas quais a arte se punha a serviço. Era preciso um sentido de elevação para justificá-
la. “L’intera, ampia storia dell’arte è una storia dell’arte che non si sa come arte. Essa è
collocata in un contesto di vita religiosa, o profana, o politico-sociale, a cui offre ornamento, e
bellezza, ed um più alto grado di esistenza.”
143
Mas a partir do século XX esse modelo perde a vigência e, com ele, toda a noção de
belo que predominava no contexto da arte agora o feio pode ser belo e com isso cria-se um
problema hermenêutico
144
, visto que a arte torna-se incompreensível sob o ponto de vista do
modelo apresentado acima, sobretudo, a arte não-figurativa. Aqui se encontra o limite do
idealismo hegeliano cuja historicidade é o produto de seu próprio tempo.
Ele [Hegel] não sabia, o que nós sabemos se olhamos para trás, que então começara
o século historicizante, e não previa que no século XX a audaz auto-libertação dos
laços históricos do século XIX tornaria verdadeiro, num outro sentido, audacioso
este, que toda arte de até então aparecesse como algo passado.
145
A pretensão de um estatuto científico para a arte esbarra hoje com uma dificuldade
de interpretação que não ocorrera nos séculos anteriores. A revolução da imagem plasma no
quadro moderno uma nova realidade, uma realidade interior que é representada na pintura
contemporânea. A ruptura com os padrões da tradição suscita novas questões para a filosofia e
para a crítica de arte. “Há um novo agente social na pretensão do artista moderno.”
146
Surge com isso uma nova mentalidade que cria por si e traz a pretensão de exercer
toda liberdade no ato criador, almejando ser uma “arte pura”. Como compreender esse
processo?
O campo da crítica de arte que se ocupa disso cintila oscilante entre a verificação
“científica” e um sentido de qualidade, insubstituível por qualquer cientificação,
que determina o juízo. A “crítica”, ou seja, a distinção entre o belo e o menos belo
não é propriamente um juízo póstero, nem de uma submissão científica do “belo” a
conceitos, nem de uma aquilatação comparativa da qualidade: é a experiência do
belo ele mesmo.
147
141
Hans-Georg GADAMER, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 17.
142
Idem, Estética y hermenéutica, p. 240.
143
Idem, La resposta del pensare, saggi ermeneutic, p. 169.
144
Ibidem, p. 173.
145
Idem, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 15.
146
Ibidem, p. 21.
147
Ibidem, p. 32.
42
Gadamer nos indica que os caminhos para uma hermenêutica da arte devem recorrer
a experiências humanas fundamentais. O jogo ocupa aqui um lugar e se por um lado podemos
descartar a pretensão da “consciência estética” que pretendia objetificar a arte e que ainda
hoje encontra seus adeptos, não descartamos, entretanto, a experiência religiosa. Quanto à
tradição iluminista, é preciso tomar o devido cuidado no que diz respeito à compreensão
filosófica ou crítica da arte, que ainda hoje resguarda princípios cientificistas. Precisamos ter
em conta que “os nossos preconceitos devem ser colocados em jogo no processo do
compreender.”
148
O reconhecimento aqui é a própria condição para um passo hermenêutico
significativo e que implicará na própria liberdade do sujeito interpretante. Devemos evitar a
crença exagerada na razão e assim estaremos evitando a “corrupção da razão”; colocando em
jogo e relativizando o poder desse tipo de compreensão, encontraremos parte de nossas
limitações visto que “quem não reconhece sua dependência e acredita ser livre, quando na
realidade não o é, está vigiando suas próprias algemas.”
149
Para acessarmos melhor essa “anti-arte” contemporânea “anti-arte” por negar quase
toda a arte do passado – precisamos romper com nossas expectativas. É colocando em jogo as
expressões que se manifestaram na arte moderna que poderemos interagir com seu discurso
plástico e assim tomaremos o “choque estético” que essas obras propõem. Podemos
apresentar exemplos disso nas obras de Duchamp, Van Gogh, Picasso e Braque, que entre
tantos outros artistas contemporâneos provocaram mudanças radicais. Bem diferente é
“quando enfocamos a assim chamada arte clássica, vemos que ela era uma produção de obras
que se encontravam no meio religioso.”
150
148
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método II: complementos e índice, p. 140.
149
Ibidem, p. 55.
150
Idem, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 33.
CAPÍTULO 3 - O SÍMBOLO: SUA ORIGEM, SENTIDO E PRESENÇA
NO ÂMBITO DA RELIGIÃO E DA ARTE
O símbolo, tal como Gadamer nos apresenta, encontra múltiplas aplicações. O autor
faz uma verdadeira arqueologia desse conceito mostrando as várias facetas que ele adquiriu
em seu processo histórico, percorrendo uma grande caminhada até alcançar uma concepção
“mais própria”. Nesse ínterim houve várias acepções, mas está fora de nosso escopo enumerá-
las ou contemplá-las todas aqui, o que nos interessa primordialmente é tratar dos aspectos de
configuração religiosa que circundam a noção de símbolo. Apresentaremos também as
peculiaridades dessa noção no que diz respeito aos desdobramentos compreensivos no âmbito
artístico e o faremos através da reflexão estética.
Mostramos inicialmente uma abordagem acerca das origens conceituais do símbolo
em que distinguimos o sentido de sua expressão da alegoria e apresentamos o seu caráter
peculiar de presença. A partir dessas distinções mostraremos a significação que o simbólico
adquire na religião e na arte dentro da perspectiva da experiência do simbólico e do belo.
Veremos aí algumas reflexões que a tradição apresenta no contexto filosófico-teológico.
Veremos também o que o símbolo é enquanto representação e a função do sinal,
faremos uma distinção e uma aproximação entre símbolo e sinal como representação na
tradição cristã e na arte, tomaremos como exemplo a representação nas artes plásticas e na
poesia mítica. Concluiremos nossos comentários neste capítulo abordando o símbolo como re-
conhecimento e suas implicações hermenêuticas como estranhamento e redenção na
mensagem cristã.
3.1 - Diferenciações entre o símbolo e a alegoria nas expressões da religião e da arte
Para situarmos melhor o conceito de símbolo, será necessário diferenciar o sentido
do que é simbólico daquilo que é alegórico visto que “nas proximidades [do] conceito de
alegoria começa a surgir também o conceito de símbolo”.
151
A diferença básica é que a
151
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p.135.
44
alegoria alude a algo e o símbolo é a presença de algo. A primeira encontra-se na “esfera do
logos”, enquanto o símbolo é parte de si e como tal exibe seu próprio ser, ao mesmo tempo
refere-se à outra parte de si, assim encontra-se situado de forma presente e além.
Outra distinção que destacamos está baseada na seguinte afirmação: “Símbolo é a
coincidência do sensível e do não-sensível; alegoria é uma referência significativa do sensível
e do não-sensível.”
152
O alegórico representa um outro que é diferente de si e o simbólico é a
própria presença daquilo que é em seu exibir-se. Seu exibir possui a legitimidade do ser que
exibe, é um documento pelo qual é reconhecido. A alegoria nasce na “esfera do discurso” e
como tal ganhou uso na hermenêutica e na retórica, ela alude e mostra algo diferente, faz ver a
um outro. No contraponto entre esses dois conceitos encontra-se algo de aplicação comum
que é a religião e é aí que, segundo nos diz Gadamer, manifesta-se uma aplicação congênita
na qual “ambos [símbolo e alegoria] encontram sua aplicação preferencial no âmbito
religioso. A alegoria surge da necessidade teológica de eliminar o escândalo na tradição
religiosa.”
153
O símbolo traz a unidade naquilo que referencia, não é somente a representação
de um conteúdo metafísico e sim, o próprio conteúdo. Entretanto, permite a divisão sem
perder a unidade. De um modo bem distinto da alegoria, o símbolo se relaciona com o
fenômeno religioso, ele não é um discurso acerca do divino, mas a expressão sensível de sua
forma espiritual. De maneira que “a forma religiosa do símbolo corresponde assim,
exatamente, a determinação original do símbolo, que é o de ser a divisão do uno e a sua
reunificação da dualidade.”
154
Encontramos nessa correlação conceitual, aplicações também na arte, sobretudo nas
artes plásticas e na poesia. Será válido refletir acerca de alguns contrastes que permeiam o
símbolo e a alegoria. Uma relação muito antiga e possivelmente ainda presente, que segrega
uma ancestralidade germinal e expande-se adquirindo uma pluralidade de significados. “Esse
relacionamento significativo, através do qual o que não tem sentido ganha sentido, encontra-
se tanto no campo da poesia e das artes plásticas, como também no âmbito religioso-
sacramental”.
155
Essa familiaridade de sentidos abriga a expressão do simbólico como
experiência religiosa e experiência de arte.
Na modernidade filosófica esses dois conceitos ganham posições antagônicas e
tornam-se importantes para o desenvolvimento da estética. O símbolo perde com isso as suas
propriedades gnosiológicas. Essa mudança se desdobra a partir de Kant com a Crítica do
152
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 137.
153
Ibidem, p. 135.
154
Ibidem, p. 142.
155
Ibidem, p. 134.
45
juízo, que influenciará a elaboração da “estética do gênio” desenvolvida principalmente por
Schiller e Goethe. O gênio ultrapassa a racionalidade, com isso “o conceito moderno de
símbolo é desprovido [de sua] função gnóstica, e não é o seu bastidor metafísico
compreensível.”
156
O conceito de alegoria tornar-se-á para a estética do século XVIII uma espécie de
“contra-conceito” em relação ao que é ou não é a arte. O alegórico passa a ser contrário à arte
e com isso cria-se um novo sentido para o conceito de símbolo que toma o aspecto do
“artístico positivo”. Isso quer dizer que a arte é automaticamente identificada como símbolo,
ou seja, a arte verdadeira é como o símbolo e a falsidade na arte é como o alegórico. Essa
noção vai se concretizar como uma nova concepção para o símbolo que passa a ser
identificado como o verdadeiro em relação ao falso na arte. Essa visão surge “no intercâmbio
entre Schiller e Goethe [quando] começa a se delinear [essa] nova cunhagem do conceito de
símbolo.”
157
Schiller circunscreve a questão mais restrita ao campo da estética, já Goethe
pretende uma “experiência da realidade”, dos fenômenos. Para isso ele aplica o conceito de
símbolo e deixa propagar um aporte de fundo que vai além do estético e faz ressoar a tradição
religiosa através do fenômeno lingüístico. Segundo Gadamer, “para Goethe não se trata tanto,
‘de uma experiência estética, como de uma experiência da realidade’, para a qual ele atrai, ao
que parece, segundo o uso lingüístico do antigo protestantismo, o conceito de símbolo.”
158
O símbolo traz em seu bojo uma relação com o divino e tem, portanto, uma aplicação
preferencial na religião. Em sua origem terminológica “da língua grega (...) significa pedaços
de recordação.”
159
O autor alude aqui a uma lenda que representa a hospitalidade, ela é
identificada como uma divisão, um partir ao meio em que cada parte mantém em si uma
unidade com a outra metade que formava anteriormente. Essa é a noção da “tessera
hospitalis”, uma espécie de passaporte que identifica e recorda um antigo hóspede. “Um
anfitrião dá a seu hóspede a chamada ‘tessera hospitalis’, ou seja, ele quebra um caco no
meio, conserva uma metade e dá a outra a seu hóspede.”
160
Essa é uma primeira experiência
do simbólico e talvez o seu sentido mais ancestral ser parte de um outro garante a presença
do mesmo e é simultaneamente referência a um outro de si mesmo.
156
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 136.
157
Ibidem, p. 139. Segundo Gadamer, ambos os conceitos de símbolo e de alegoria chegaram a ser tomados
como “sinônimos, o qual vale para o todo da literatura estética do século XVIII.” (Ibidem).
158
Ibidem, p. 140.
159
Idem, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 50.
160
Ibidem, “Um antigo passaporte: este é o sentido originário de símbolo.” (Ibidem).
46
O símbolo traz uma dimensão sensorial e, ao mesmo tempo, eleva-se a uma
dimensão extra-sensorial, cria, por conseguinte, uma ponte entre o divino e o humano. Esse
modelo do simbólico aponta para um sentido originário e encontra nos primórdios da tradição
neoplatônica cristã uma compreensão que indica “a necessidade de se proceder
simbolicamente (symbolikos), a partir da inconveniência da existência supra-sensorial de Deus
para nosso espírito acostumado ao sensorial.”
161
Ao que parece, ainda permanece uma forte relação conceitual entre esses dois termos
e isso se confirma na tradição romântica e idealista. Todavia, o autor questiona se tal
compreensão acerca do simbólico foi capaz de se desprender do mítico-alegórico
162
e até que
ponto, não haverá uma relativização da “contradição artística entre alegoria e símbolo”.
163
A
aparente contradição mantém sua continuidade e dessa trilha não escapou a chamada “religião
estética instruída do século XIX.”
164
Ela partilhará dessa oposição conceitual fundada no
contraponto de um entendimento, que será polarizado e verificado entre o simbólico e o
alegórico. Entretanto, Gadamer nos adverte que:
A alegoria não é, certamente, apenas questão do gênio. Repousa sobre sólidas
tradições (...) o conceito e a questão da alegoria estão solidamente vinculados com
o dogmatismo: com a racionalização do místico (tal qual no Aufklärung grego) ou
com a interpretação cristã da Bíblia Sagrada, no sentido da unidade de uma
doutrina (tal qual a patrística) e, finalmente, com a reconciliação da tradição cristã
com a formação da antigüidade, que forma a base da arte e da poesia dos povos
mais recentes e cuja derradeira forma do mundo foi o Barroco. Com a ruptura
dessa tradição rompeu-se com a alegoria. Isso porque a essência da arte se libertou
de vinculação dogmática, podendo ser definida através da produção inconsciente
do gênio, a alegoria teria de, esteticamente, tornar-se questionável.
165
Contudo, fica uma diferenciação bem definida que dirige a compreensão da arte para
o seu valor ontológico, fruto de uma liberdade conquistada pelo erigir autônomo da criação
artística. Esse erigir se encontra com o sentido e a presença de si, tal como o símbolo que se
aproxima mais dessa forma de ser. Mediante o exposto podemos concluir que “na
representação que uma obra de arte é, ela não representa algo que não é, não sendo portanto
uma alegoria, ou seja, ela não diz algo, para que se pense outra coisa, mas justamente nela se
encontra o que ela tem a dizer.”
166
Isso vale para o símbolo, sobretudo em sua “forma
religiosa”, entretanto aquilo que se expressa como algo presente em um símbolo religioso é
161
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 135-6.
162
Segundo Gadamer, mesmo no contemporâneo alguns autores recorrem ao conceito de alegoria para
conceituar o símbolo. “Ainda em Cassirer encontramos, num sentido semelhante, o simbolismo estético, em face
do simbolismo mítico.” (Ibidem p. 145).
163
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 134.
164
Ibidem, p. 145.
165
Ibidem, p. 144.
166
Idem, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 59.
47
remetido à presença do divino, une sensível e supra-sensível. O símbolo religioso traz nesse
sentido, a capacidade de unir a matéria e a forma do divino.
3.2 - A experiência do simbólico com a religião e com o belo na arte
O que vem a ser a experiência do simbólico? Segundo Gadamer, no diálogo
platônico O Banquete, encontramos uma parábola que representa de modo significativo esse
tipo de experiência. Temos ali também a noção de duas metades que são representadas pelo
mito no qual se narra a precipitação do homem na matéria, evento o qual determinou que
“cada homem seja como que um pedaço quebrado”.
167
Essa queda do homem do mundo
espiritual para o material recebe através da experiência do simbólico uma promessa de cura,
que se completará com o encontro de nossa outra parte, ela é nosso “fragmento vital”. Assim,
vivemos a procurar nossa parte quebrada. Aqui se define novamente a noção de símbolo como
a possibilidade de se unir dois mundos, o espiritual e o material.
Gadamer nos propõe repensar essa parábola platônica na perspectiva do belo. “Essa
parábola profunda para o encontro de almas e as afinidades eletivas pode ser repensada na
experiência do belo no sentido da arte.”
168
O autor quer ressaltar que ao fazermos esse tipo de
experiência podemos fazê-la sob o prisma de uma realidade histórica, o belo se revela em sua
atualidade e se expressa para nós como seres finitos, é daí que decorre uma aplicação
hermenêutica importante, visto que “tanto o evento do belo como o acontecer hermenêutico
pressupõem fundamentalmente a finitude da existência humana.”
169
O belo é o que aparece
aos sentidos, ele nos proporciona um contato sensorial, mostra-nos uma certa “ordem sadia” e
abriga com isso uma espécie de ascese. O belo revela o bom e com isso guia nossa alma do
sensível para o supra-sensível. O símbolo também abriga essa simultaneidade entre sensível e
não-sensível, traz em si uma identidade que mantém sua unidade como dualidade, pois é um
pedaço, uma parte que se completa com outra, representa a idéia de um “fragmento vital” e
regenerador, esse é um modo pelo qual podemos experienciá-lo.
[A] experiência do simbólico, significa que este algo único, este algo especial
representa-se como um pedaço do ser que promete completar o algo a ele
correspondente, a fim de curá-lo, de integrá-lo, ou ainda, que o que completa o
todo, o outro pedaço quebrado sempre procurado, torna-se nosso fragmento vital.
167
Hans-Georg GADAMER, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 51.
168
Ibidem.
169
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 702.
48
(...) [Também] a experiência do belo e em especial do belo no sentido da arte, é a
evocação de uma ordem sadia onde quer que ela esteja.
170
Essa compreensão sobre o belo e o símbolo terá em sua significação como arte uma
diferença básica em relação à “religião formativa” inspirada na tradição idealista. O belo em
relação à arte é o que aparece, ele não é a representação da idéia infinita através do finito, esse
foi um “descaminho idealista” que ocasionou um descaminho para a estética permitindo em
certos aspectos uma redução da arte ao signo. Segundo o autor, a arte não é um mero suporte
de sentidos, se assim o fosse ela estaria negando seu próprio ser, ela é por si, é um estar-aí.
Por conseguinte, quando se fala de “uma obra de arte, não se trata de um mero signo
recordativo, de um ‘remeter’ a e um ‘substituir por’ da existência.”
171
Todavia, o processo de libertação da arte culmina somente quando ela se apropria de
sua própria matriz de sentidos e isso só eclodiu no contemporâneo. É bem verdade que houve
antes um longo processo de libertação e autonomia da arte em relação ao religioso, que
ocorreu, sobretudo, com a Renascença e o uso da perspectiva e dos temas naturalistas. No
entanto, uma libertação mais radical só aparece com a arte não-figurativa do século XX.
“Soltanto ora l’arte è presente come arte, é non più come elemento di secondo ordine.”
172
A
arte recebe com isso um novo peso conceitual, que a coloca acima de qualquer conteúdo de
representação. De um objeto aparentemente “desprovido” de sentido próprio e que necessita
da referência a algo para adquirir sentido, a arte passa a ter seu próprio sentido. Deixa de ser
um objeto empírico que só adquire sentido através de um conteúdo religioso, histórico ou
político e passa a ser, por si mesma, a sua referência objetiva, é nisso que consiste “il nuovo
peso religioso del concetto dell’arte.”
173
De modo análogo podemos nos referir ao símbolo religioso, por exemplo, no caso da
ceia de Cristo e o problema da transubstanciação e da consubstanciação do corpo e do sangue
como vinho e pão. Gadamer se diz “convencido de que as palavras de Jesus: ‘Esta é minha
carne e este é o meu sangue’ não querem dizer que o pão e o vinho ‘significam’, isto.”
174
O
autor apresenta através desse exemplo de símbolo religioso, que foi configurado como um
dogma sagrado, um contraponto para a compreensão da arte e mostra com isso o estatuto
ontológico e a própria “carne” da arte. A tradição da igreja antiga sustentou o dogma de que
170
Hans-Georg GADAMER, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 51.
171
Ibidem, p. 55. “Agradecemos finalmente a Heidegger em nosso século, a possibilidade de furtar-nos ao
conceito idealista e por assim dizer a percebermos a plenitude do ser ou a verdade que nos toca vinda da arte”.
(Ibidem, p. 54).
172
Idem, La resposta del pensare, saggi ermeneutici, p. 167.
173
Ibidem.
174
Idem, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 55.
49
“‘o pão e o vinho do sacramento são a carne e o sangue de Cristo.’”
175
Existe aí uma
identidade ontológica que participa não só como representação ritualística, mas que acredita,
de fato, que na celebração eucarística o pão e o vinho se transformam no corpo e no sangue de
Cristo.
Através desse símbolo religioso o autor apresenta-nos um contraponto para se pensar
a experiência de arte.
Tomo esse problema dogmático como exemplo, (...) para dizer que podemos e
até precisamos pensar assim, quando queremos pensar a experiência de arte; que na
obra de arte, não apenas se remete a algo, mas que nela está propriamente aquilo a
que remete.
176
Aqui temos implicado o “estar-aí” da obra de arte, ela não está em outro lugar senão
naquele que é o seu lugar. Com efeito, não devemos procurar seu sentido fora dela. Gadamer
nos propõe que a essência da obra pode ser pensada tal como o dogma eucarístico. O recurso
a um pano de fundo religioso ressoa novamente aqui; o conceito arte ganha assim esse novo
peso. Por conseguinte, a partir daí, a arte pode ser pensada tal como esse símbolo religioso,
visto que ela encarna materialmente o seu espírito naquilo que exprime por sua materialidade.
A matéria recebe com isso uma dignidade supra-sensível, pois algo se encontra presente ali na
própria obra.
Essa reflexão sobre a experiência do simbólico e do belo na arte abriga a dimensão
da finitude, vai de encontro àquilo que se dá no sensível, que aparece. Todavia, o aparecer
aqui não comporta o infinito tal como na visão idealista, mas se revela a nós como coisa
(Sache) no mundo.
Inclusive podemos fazer a pergunta se um espírito infinito poderia experimentar o
elo como nós o experimentamos. (...) O “aparecer” do belo parece reservado à
experiência humana finita. O pensamento medieval conhece um problema análogo,
o de como é possível a beleza em Deus, se ele é uno e não múltiplo. (...) O Deus
aristotélico (e também o espírito hegeliano) deixou para trás de si a “filosofia”, esse
movimento da existência finita. Nenhum dos deuses filosofa, diz Platão.
177
De fato, o belo nessa concepção tem uma forma concreta e visível, ele é presente e
como tal pode ser percebido, essa é a maneira como podemos experienciá-lo, ele se dá na
concretude de nossa existência, tem o “caráter de evento” e de acontecimento. O belo não
necessita de conseqüências, ele é experienciado como imediatez e assentimento. Mostra-se,
portanto, com um “nexo de verdade” que é visto por uma certa tradição filosófica na qual se
175
Hans-Georg GADAMER, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 55.
176
Ibidem.
177
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 702-3.
50
elabora uma “metafísica da luz”. A luz que emana e coincide com aquilo que tem o maior
brilho, ao repensar a experiência do belo e do símbolo na doutrina platônica. Com isso
Gadamer nos propõe um olhar que busca uma “outra face” da doutrina platônica da beleza,
ela nos revelará uma compreensão do belo na arte ao modo da mística. Todavia, isso se dá na
finitude de nossa própria existência, na dimensão da linguagem que o belo exerce sobre nós e
isso nos mostra que
o centro da linguagem, (...) essa outra face da doutrina platônica da beleza, a que
acompanha a história da metafísica aristotélico-escolástica como uma espécie de
corrente subterrânea, e que emerge, de vez em quando, como ocorre na mística
neoplatônica e cristã, e no espiritualismo filosófico e teológico. Nessa tradição do
platonismo é onde se desenvolve o vocabulário conceitual que o pensamento da
finitude da existência humana necessita.
178
Outro viés pelo qual encontramos o eco de uma compreensão religiosa que ocorre de
modo análogo com a experiência do simbólico e do belo se dá em um corte epistemológico
que Gadamer apresenta através do “esquematismo transcendental” da filosofia kantiana.
Temos aqui uma análise de cunho filosófico-teológico que reúne a experiência do símbolo e
do belo. O aspecto que ressaltamos com o autor é referente à questão da “representação
simbólica”, ela mantém uma analogia entre o belo e o bom e ao mesmo tempo tem um papel
indireto. A configuração desse papel indireto é como um “símbolo reflexivo” que permite
uma grande liberdade e confere um “significado humano” sobretudo no que diz respeito ao
juízo estético. “‘O belo é o símbolo do eticamente bom’: nessa fórmula, (...) Kant unifica a
exigência de uma inteira liberdade de reflexão do juízo estético com seu significado
humano”.
179
Todavia, a configuração desse significado distingue através de uma analogia entis,
aquilo que se diferencia como “verdade teológica”. O conceito de “representação simbólica”
assegura desse modo um conceito próprio de Deus, que não se deixa reger por conceitos
humanos.
Esse conceito da representação simbólica é um dos mais brilhantes resultados do
pensamento de Kant. Com isso, Kant faz jus à verdade teológica que recebeu sua
configuração escolástica no pensamento da analogia entis, e mantém distanciados
de Deus os conceitos humanos.
180
Kant postula uma liberdade própria para o fato estético, ele vai além do formalismo e
permite uma “beleza livre” para a arte e é nesse sentido que Gadamer retoma um diálogo com
Kant já que teria sido ele “o primeiro a reconhecer, na experiência do belo e da arte um
178
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 703.
179
Ibidem, p. 138.
180
Ibidem.
51
questionamento próprio para a filosofia.”
181
O belo permite um “agradar desinteressado”, ele
não precisa dos conceitos e não se reduz a ser um “objeto finalista” que possa ser utilizado,
ele está além da serventia.
Contudo, Gadamer nos chama a atenção para o fato de que nesse modelo kantiano
ocorre um certo estreitamento, porque “somente a partir do ponto de vista moral é que se pode
encontrar um interesse pela existência (Dasein) do belo”
182
. O símbolo do belo nesse sentido é
reduzido ao “bem-ético”. Entretanto, a análise sobre a “representação simbólica” e o belo, na
arte, ganha aqui uma independência em relação àquilo que é “dado previamente”.
Essa reflexão nos ajuda na compreensão da religião. O símbolo não se esgota em seu
significado, ele é presença viva e dinâmica e, portanto, não é de todo apreendido através de
um procedimento intelectual. O símbolo garante por si só a sua significação, tal como
mencionamos acima acerca do “símbolo eucarístico”. Mostramos que se trata de um
“autêntico símbolo”, que encarna a idéia de abrigar a presença do corpo e do sangue de
Cristo. Com efeito, assim se traduz a essência de uma experiência simbólico-religiosa, ela
promete a cura em si mesma e, no caso da ceia de Cristo, oferece-se o pão e o vinho para
ingerirmos como uma parte daquilo que é divino e que pode resgatar nossa unidade com esse
divino. Gadamer não crê que o pão e o vinho sejam a presença do Cristo, mas ele se apropria
dessa concepção religiosa como algo válido para se pensar a arte, ou seja, ele não pretende de
modo algum comprovar qualquer tipo de “verdade religiosa”, o que o interessa é um modo
novo de lidar hermeneuticamente com a arte. Ao tomá-la como símbolo, Gadamer mostra que
a arte remete de si mesma, como o belo que está presente naquilo que mostra.
3.3 - O símbolo como representação e a função do sinal
Falaremos agora acerca do caráter de representação do símbolo, veremos esses
aspectos especificamente a partir da experiência religiosa e da experiência estética. De início
alertamos que não devemos “confundir o sentido especial da representação, que convém à
obra de arte, simplesmente com a representação sagrada, como convém, por exemplo, ao
símbolo”.
183
É mister levar em consideração essa observação para seguirmos adiante neste
momento. Essa diferenciação ajuda-nos a situar o tipo de representação que se encontra no
181
Hans-Georg GADAMER, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 31.
182
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 706.
183
Ibidem, p. 244.
52
âmbito do símbolo religioso, em contraste com o tipo de representação que ocorre na arte.
Vejamos, pois, algumas evidências dessas expressões.
Em primeiro lugar ressaltamos que “el sentido griego primitivo de las respectivas
palabras: ‘poesia’ es hacer por médio de la palabra y Theo-logia, el discurso acerca de lo
divino.”
184
Contudo, nesses primórdios existe uma unidade de discursos que fundem o
religioso e o artístico em um só discurso. No início dessa tradição grega antiga, a poesia é
uma expressão lingüística que narra uma cosmovisão de conteúdo mítico-religioso. Tendo em
conta esse ponto de vista podemos dizer que, nesse caso, a religião e a poesia encontram-se
como que misturadas.
Desse modo, não há como desvencilhar por completo o poético do teológico, uma
vez que “para todo el que conozca la poesía y la ‘teologia’ griegas, es claro que no se puede
distinguir en ellas el linguage de la poesía y el de la tradición mitológica.”
185
Por conseguinte,
nesse caso não se trata de duas coisas que possamos separar essencialmente de uma maneira
simples. Tal como nas antigas culturas orientais, por exemplo, como no caso do taoísmo, não
podemos pretender uma forma totalmente distinta entre a religião, a poesia ou a filosofia.
Com efeito, não devemos buscar nesses casos uma distinção evidente a esse respeito. “Seria
absurdo interrogarse si Lao-Tse era poeta, o más bien profeta religioso, o filósofo.”
186
Pois bem, com o desenvolvimento do “espírito ocidental” se demarca o surgimento
de uma primeira cisão de conteúdos que possibilitará uma distinção mais clara do que venha a
ser a representação no âmbito do religioso ou do poético. Somente com o alvorecer da
filosofia e da ciência é que começa uma distinção real desses dois conteúdos. “[C]on el
despertar de la ciência y la filosofía, se inicia un tenso conflicto con la tradición religiosa y
poética.”
187
E também na tradição judaico-cristã as esferas da poesia e da religião são
distribuídas como instâncias separadas, desse modo “ocurre, entonces, que esta forma de
religión en cuya tradición estamos, aparece conectada con el hecho de que para nosotros
estén separadas no sólo la ‘filosofía’ y la poesía, sino también la poesía y la religión.”
188
A partir do exposto, retomaremos o que dissemos logo acima sobre o que concerne
ao conteúdo de representação na arte e no símbolo. Voltamos, portanto, ao símbolo em seu
sentido de presença na representação. Encontraremos com isso uma possibilidade de
esclarecermos de modo mais preciso o que se representa na obra de arte e o que se representa
184
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenéutica, p. 139.
185
Ibidem.
186
Ibidem, p. 140
187
Ibidem, p. 139.
188
Ibidem.
53
na religião como forma simbólica. Para tanto, é necessário salientar que “a função da
representação do símbolo não é uma referência a algo não-presente.”
189
Vejamos primeiramente a questão dentro de uma perspectiva específica da arte. Para
isso, vamos recorrer a uma expressão própria das artes plásticas e a apresentaremos a partir do
que Gadamer nos diz acerca da “essência do quadro”. A representação em um quadro de
pintura traz em si uma posição situada entre dois extremos que são a “essência do sinal” e a
“essência do símbolo”. Todavia, “um quadro não é um sinal.”
190
Mas o que é afinal a
essência de um quadro ?
A essência do quadro encontra-se ao mesmo tempo, no meio, entre dois extremos.
Esses extremos de representação são o puro referir a essência do sinal e o
puro fazer as vezes de outro (Vertretten) a essência do símbolo. De ambos há
alguma coisa na essência do quadro.
191
Um quadro tem então um pouco de cada uma dessas coisas, ele é em parte um “puro
referir” e é ao mesmo tempo um “puro fazer” no sentido já mencionado. Contudo, um quadro
representa exatamente aquilo que está nele, ele não é nesse caso como umpuro referir”, ou
seja, um sinal. Por conseguinte, não é como um cartaz que, como um sinal, quer mostrar o
“não-presente” e tem, portanto, uma função abstrata. “A mesma coisa vale para todos os
sinais, (...) [eles] têm algo esquemático e abstrato, porque não querem mostrar-se a si
mesmos, mas sim o não-presente”.
192
O quadro tem uma “participação ontológica” naquilo
que ele representa e nessa medida se distingue do sinal.
A diferença básica advém do fato de que o quadro possui sua própria origem, não é
apenas uma indicação ou uma referência a algo, ele é esse algo. Ao contrário da cópia, que
não se origina em si mesma, mas através do quadro original. Entretanto, “somente através do
quadro, o quadro original se torna imagem-da-origem”.
193
Assim, podemos concluir que o
quadro realmente não se restringe a ser um sinal. Há, portanto, uma diferença fundamental
aqui, ela se expressa especialmente pelo sentido de presença e participação que existe no
quadro. “O quadro não é totalmente absorvido na sua função de referência, mas tem
participação, a partir de seu próprio ser, naquilo que reproduz.”
194
Com isso, o quadro exige
diante de si a permanência do observador, ele de fato está ali em seu lugar; embora o quadro
possa sinalizar algo, esse sinal vem dele próprio.
189
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 247.
190
Ibidem, p. 245.
191
Ibidem.
192
Ibidem.
193
Ibidem, p. 230.
194
Ibidem, p. 246.
54
Tendo em vista que o quadro participa ontologicamente de seu ser, vamos aproximá-
lo agora da noção de símbolo. O símbolo também não é um sinal, ele é presente não apenas
como indicação ou referência, pois participa de seu próprio ser. “Uma tal participação
ontológica é atribuída, é claro, não somente ao quadro, mas também àquilo que denominamos
de símbolo.”
195
Ambos se identificam nesse tipo de consideração com a presença no sentido
do “estar-aí”, que ocupa o seu lugar originário. Sob esse aspecto a representação do quadro se
encontra próxima da representação do símbolo. Desse modo, o quadro funciona em parte
como um símbolo, há, portanto, uma “proximidade objetiva entre a representação do quadro e
a função do símbolo.”
196
Entretanto, isso não implica em uma redução de uma coisa à outra. Temos aqui
somente uma “proximidade objetiva”. De fato, isso não quer dizer que o quadro é um
símbolo, visto que “um quadro como tal não é um símbolo.”
197
Ele é o que dissemos acima
acerca de essência, uma posição mediana que se coloca entre o símbolo e o sinal. Isso quer
dizer que o seu “status ontológico” reside justamente nisso e daí ele se identifica em certa
parte com cada um dos dois extremos, mas ao mesmo tempo se mantém numa distância que o
distingue. “Assim, o quadro encontra-se no meio entre o sinal e o símbolo. O seu representar
não é nem um puro referir nem um fazer as vezes de outro.”
198
Vejamos agora a questão do símbolo e a função do sinal tendo como conteúdo a
representação religiosa. Tomemos como exemplo a situação do símbolo e do sinal quando
inseridos em uma comunidade religiosa, nesse caso podemos falar da existência de uma
“pertença comum”, que identifica uma função de sinal no símbolo. “Se denominarmos de
‘símbolo’ o sinal de reconhecimento entre amigos afastados ou membros espalhados de uma
comunidade religiosa, no qual demonstra-se uma pertença comum, um tal símbolo terá,
certamente a função de sinal.”
199
Todavia, um símbolo não se restringe a isso, ele torna visível a existência dessa
“pertença comum” como uma expressão viva de uma vida passada que se faz presente e assim
é percebida e experienciada. Aqui se expressa o sentido de presença do símbolo. A “tessera
hospitalis” traduz exemplarmente essa idéia, ela representa um testemunho vivo, que é capaz
de tornar presente o sentido de algo vivido anteriormente.
A ‘tessera hospitalis’ é um resto de uma vida vivida outrora e, através de sua
existência, testemunha aquilo que indica, isto é, permite que o próprio passado se
195
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 247.
196
Ibidem, p. 248.
197
Ibidem.
198
Ibidem, p. 248-9.
199
Ibidem, p. 247.
55
torne presente e que seja reconhecido como válido. Com tanto mais razão isso vale
para os símbolos religiosos, pois não funcionam somente como distintivos, mas é o
sentido desses símbolos que é entendido por todos, vincula a todos por isso mesmo
pode assumir também a função de sinal.
200
No entanto, essa é uma “função do sinal” na qual o simbolizado presta a si mesmo
uma espécie de honra naquilo que ele representa. Nesse sentido, um símbolo não é pura e
simplesmente um sinal, contudo, a “função do sinal” pode se manter presente. A
representação é inevitável nesse tipo de símbolo religioso. Assim “o que vem a ser
simbolizado estará, portanto, necessitando certamente da representação, na medida em que ele
próprio é não-sensorial, infinito e não-representável, mas é capaz de sê-lo.”
201
Isso soa de
modo paradoxal, mas é o sentido de presença que salvaguarda essa capacidade de ser do
símbolo, nesse caso ele torna presente porque “faz as vezes” desse.
Voltemos à questão do quadro, especificamente ao quadro religioso. Considerando
essa especificidade, é possível uma aproximação maior da representação dos conteúdos tanto
da arte, quanto da religião. O quadro religioso é exemplar para elucidarmos essa questão, a
representação da imagem, nesse caso, “terá de corresponder à expectativa da imagem que lhe
é atribuída.”
202
O quadro tem na imagem a sua própria realidade. Mas, se formos além de uma
“ontologia profana” acerca do que representa um quadro, chegaremos a uma ontologia mais
profunda de sua constituição. No quadro religioso, palavra e imagem exprimem o divino por
um só gesto.
É notório, porém, que somente o quadro religioso permite que sobressaia
inteiramente o verdadeiro poder do quadro. Pois é da manifestação do divino que
se afirma alcançar sua plasticidade tão-somente através da palavra e da imagem. O
significado do quadro religioso é, portanto exemplar.
203
Essa compreensão acerca do quadro religioso nos mostra uma representação de
conteúdos diferenciados, mas que ao mesmo tempo se encontram juntos, encarnam, portanto,
a sua significação em si mesmos. Por conseguinte, encontramos um ganho de significado e a
perspectiva de uma “ontologia positiva” para o quadro a partir de fundamentos e conteúdos
simbólico-religiosos. Tais conteúdos abrigam dentro de si um re-presentar que traz de
imediato a presença. O exemplo da comunidade religiosa mostra-nos uma múltipla atuação do
símbolo que incorpora a função de sinal e como tal é participado e partilhado dentro de uma
comunidade como testemunho de algo já vivido, como uma “tessera hospitalis”.
200
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 247.
201
Ibidem.
202
Ibidem, p. 230.
203
Ibidem, p. 231.
56
3.4 - O símbolo como re-conhecimento: a palavra poética na arte e a palavra na
mensagem religiosa
O símbolo é como um passaporte em que nele se reconhece algo. No discurso
poético-religioso do mito encontramos, como dissemos acima, uma forma em que “no
podemos separar lo poético de [lo] religioso.”
204
Todavia, segundo Gadamer, a literatura tem
como objetivo primordial o fenômeno lingüístico, nisso resulta de fato uma distinção. Nessa
concepção o sentido de um texto não é o seu único sentido, existe um ideal que pretende
expressar-se como “poesia pura”. Isso ocorre especialmente na “lírica simbólica” cuja
essência não se pode traduzir, o poeta busca nesse caso uma “idealidade sensível”, que seja
capaz de alcançar uma unidade plena em sua própria execução.
El “extremo” de una literatura semejante, que se acerca a la intraducibilidad plena,
es claramente el ideal de la lírica simbólica, la poésie pure. Representa ésta la
consecuencia más extrema de una configuración lingüística que deja traz de si toda
comunicación de contenidos a favor de la ejecución misma.
205
O discurso poético pretende uma “correspondência absoluta” entre a fala e o texto,
não é somente uma aproximação. O texto enquanto poesia quer ser como “algo que fala”,
busca uma unidade fundamental entre o sentido e o som, essa sua forma de ser adquire uma
configuração última em que “tudo é símbolo”. No caso de um texto poético-religioso o
reconhecimento do conteúdo simbólico é como um documento que se comprova pela própria
narrativa.
Parece que el crecimiento de la obra poética a partir de la forma de comunicación
preliteraria que era la narración de leyendas alcanza aquí un final en el que “todo es
símbolo”. Ahora quisiera poner junto a esta forma de texto eminente la “Escritura”
y el libro sagrado, en el cual la historia narrada originaria se convierte en
documento.
206
É interessante notar aqui o modo como Gadamer recorre a exemplos do âmbito da
experiência religiosa para sua hermenêutica da arte. A questão do falar e a da palavra que ele
aponta como sentido pleno de “poesia pura” são ilustradas a partir de compreensões que
mostram no fenômeno da arte uma estrutura totalmente autônoma, o autor compara essa
estrutura da arte de um modo conceitual com a religião. Vejamos o que ele diz acerca dessa
noção de “poesia pura” na arte onde aponta um sentido semelhante que ocorre com o uso da
palavra bíblica representada através de exemplos na fé judaico-cristã. Nesse caso a palavra é a
204
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenéutica, p. 144.
205
Ibidem, p. 145.
206
Ibidem, p. 145-6.
57
própria realidade do divino, ao proferi-la torna-se presente. O exercício e a prática na
pregação constituem o sentido simbólico dessa presença que é em ato. O texto sagrado é
assim atualizado no ato da pregação, torna-se uma “palavra plena”.
O autor mostra que essa compreensão da religião tem um sentido simbólico que
pode ser comparado com o da arte, assim ele define a arte poética como uma totalidade no seu
falar. Esse é um falar que atinge o máximo de plenitude na noção de “poesia pura”, reside aí a
idéia de uma identidade fundamental do texto em sua própria execução, ao ser proferido ele
passa a ser como algo que fala. Entretanto, a palavra exige ser atualizada, exige a
permanência do espectador que a lê ou a profere de uma obra poética.
Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento, a mensagem adquire um
teor de documento. Esse documento é a própria realidade vivida e o testemunho histórico da
mesma. O caráter documental da mensagem é comum tanto na religião judaica quanto na
cristã. “Ambas religiones tienen documentos que no sólo cuentan una historia, sino que dan
directamente prueba de ella.”
207
Todavia, no caso do Antigo Testamento existe uma lei
vinculada a uma promessa e ambas formam um pacto que exige uma obediência rigorosa. O
pacto que Deus faz com o povo de Israel ao mesmo tempo promete e obriga, quer a fidelidade
no cumprimento daquilo que ordena a lei. Estabelecem-se assim as leis que devem ser
seguidas, nisso consiste a ira e a fidelidade de Deus. Para essa crença existe aí uma realidade
histórica que é narrada como texto sagrado, é uma história provada, vivida e documentada de
modo que tem plena realidade e presença. “El Antiguo Testamento tiene la pretensión de ser
la palabra de Dios; una ley que obliga y una promessa fundada en el cumplimento de la ley: la
ira de dios y su fidelidad son una sola cosa.”
208
No caso do Novo Testamento, a “essência da promessa” muda de contexto e
significado, já não é mais um pacto que exige a obediência severa da lei. Agora trata-se de
uma “Nova Aliança”, um novo pacto onde não mais se obriga e se exige um cumprimento
radical da lei. A promessa se funda aqui no princípio da liberdade da escolha, isso muda
substancialmente o conteúdo da mensagem, ela passa a solicitar do crente um livre
oferecimento. “El mensage del Evangelio es un ofrecimiento libre.”
209
Aqui a promessa se
conjuga com a liberdade, ela é constitutiva na “Nova Aliança”. Essa distinção tomada entre
esses dois símbolos religiosos se evidencia naquilo que se reconhece na mensagem.
La ‘Nueva Alianza’ ya no es el mismo pacto. En lugar de ‘ley’ y ‘obediencia’, aquí
hay que decir Kerygma embajada, mensaje y ‘fe’. Si ahora, a fin de
207
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenéutica, p. 146.
208
Ibidem.
209
Ibidem, p. 147.
58
contrastarla con la relación de ley y obediencia en el Antiguo Testamento, tuviera
que dar en una imagen profana la relación estructural entre mensaje y fe, yo me
remitiría a la esencia de la promesa.
210
A mensagem cristã tem um caráter de universalidade que se expressa pela “promessa livre”,
quem a aceita não pode reivindicá-la somente para si, ela é universal e sendo assim é para
toda a humanidade. A mensagem deve, portanto, ser levada indistintamente a todos porque se
dirige a todos. Entretanto, a propagação da mensagem não implica em uma repetição pura e
simples de seu conteúdo. “Propagar un mensaje no significa repetirlo.”
211
É preciso
compreender a mensagem para que sua propagação se realize plenamente, com efeito, ela
deve ser transmitida de modo claro para que possa se difundir e chegar ao outro em sua
própria compreensão.
Quiero decir que si el mensaje cristiano es un libre ofrecimiento, una promesa
libre, de tal especie que ningún ser humano puede reivindicarlo para sí, entonces
está dirigida a todo el mundo[.] (...) La traducibilidad universal pertenece a la
esencia del mensaje cristiano.
"212
Gadamer procura extrair daí as implicações hermenêuticas da mensagem cristã, o
estranhamento é o caminho em que a hermenêutica se coloca e ela faz isso como uma tarefa.
Na medida em que a mensagem cristã rompe com a idéia de “castigo e recompensa”, ela
rompe com nossa “expectativa natural” e isso nos causa estranheza.
La exigencia que representa el mensaje cristiano rompe, antes bien, toda
expectativa natural al no seguir la comprensión de castigo y recompensa, de mérito
y culpa que nos guía. (...) Pero la tarea más propia de la hermenéutica es la
extrañeza y el extrañamiento que hay en el mensaje cristiano mismo.
213
A estranheza que experimentamos com essa mensagem nos surpreende, ela não segue mais a
parâmetros tais como os de mérito e valor e isso implica em uma posição contrária àquilo que
comumente esperamos em nossa “expectativa natural.”
Já acentuamos algumas distinções entre o discurso religioso e o discurso poético.
Todavia, mesmo sendo distintos é possível aproximar um discurso do outro, isto quer dizer
que “no excluye que también por medio de la poesia puedan transmitirse contenidos
religiosos, y a la inversa.”
214
O símbolo e seu sentido de reconhecimento trazem algo de
significativo para essa questão, no que diz respeito à arte podemos dizer que ela tem como
traço comum uma força simbólica que se expressa como reconhecimento. Assim, “desde el
210
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenéutica, p. 146.
211
Ibidem, p. 147.
212
Ibidem.
213
Ibidem, p. 148.
214
Ibidem, p. 148-9.
59
encuentro con el rey Edipo hasta, por ejemplo, la vista de uno de esos cuadros de Mondrian
que incuban el mutismo. Hay, sin embargo, algo común: reconocimento.”
215
O reconhecimento é também uma das características fundamentais do símbolo, nele
nós conhecemos aquilo que ele é como tal. Conhecer aqui significa entrar em contato com o já
conhecido e é, portanto, um re-conhecimento. Assim se define o símbolo. “El símbolo viene
definido porque en él se conoce y se re-conoce algo. La fuerza simbólica de la obra de arte
queda definida, no por remitir, poniéndose en su lugar, a algo común, sino por hacer
consciente de que hay algo común a través de su propria fuerza declarativa.”
216
Tomemos essa idéia de força declarativa da arte e a apliquemos para o símbolo
religioso. Segundo Gadamer, o símbolo tem, sobretudo no que diz respeito à sua relação com
a comunidade religiosa, um sentido que abriga o re-conhecimento que se afirma.
La comunidad reconoce sus símbolos, y se afirma en el reconocimiento de ellos. Se
la estética clásica alemana le dio una nueva extensión universal al concepto de
símbolo, que procedía originalmente del platonismo cristiano y mas tarde llegó a
ser habitual en las disputas modernas entre confesiones, lo hizo siguiendo el
significado originario de la palabra ‘símbolo’: ser algo en lo que se conoce y se re-
conoce algo.
217
Este re-conhecer que o símbolo proporciona tem no caso da arte um tipo de
representação que nos impele à ação e assim nos move, isso ocorre enquanto permanecemos
diante da obra de arte, enquanto atualizamos nossa relação com ela, conhecemos e então
reconhecemos a própria obra que se produz, ela é uma presença viva e dinâmica.
A representação simbólica que produz arte não precisa de nenhuma dependência
determinada de coisas dadas previamente. Justamente nisso está a distinção da arte:
que aquilo que nela vem à representação, quer rico ou pobre de conotações, quer de
mero nada de conotações, move-nos a permanecer nele ou estar de acordo com ele,
como se num re-conhecimento.
218
Tomaremos agora os modelos da mensagem cristã e da mensagem pascal tal como
analisados no texto de Gadamer para concluirmos nossa reflexão acerca do caráter de re-
conhecimento do símbolo em sua configuração na mensagem religiosa. Segundo o autor, a
promessa messiânica e o evento da encarnação traduzem uma estrutura simbólica que é sob
certos aspectos muito próxima da mensagem pascal, trata-se de uma experiência de re-
conhecimento, isso é o que ocorre com essas duas formas de expressão simbólico-religiosas.
Todavia, na crença cristã, somente através da melancolia trágica expressa pela paixão e morte
de Jesus que se supera a questão da morte.
215
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenéutica, p. 149.
216
Ibidem.
217
Ibidem.
218
Idem, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p.57.
60
La estructura simbólica parece idéntica en ambas experiencias del re-conocimiento.
Y, sin embargo, la especie de notoriedad sobre la que descansa el re-conocimiento
en una y otra es fundamentalmente diferente. Pues tal era la pretensión del mensaje
cristiano, y lo que le otorga su exclusividad es que, al proclamar la pasión y muerte
de Jesús por nosotros como un acto de redención, sólo el mensaje cristiano a
superado realmente a la muerte.
219
A mensagem cristã alcança através da proclamação a superação da morte, ou seja, a
noção de que com a paixão de Cristo, nós reconhecemos nossa vida vivida no passado e é
através do reconhecimento da origem, sentido e presença que esse símbolo religioso torna-se
uma tessera hospitalis, um pedaço vivenciado que representa uma cura através do re-
conhecimento na mensagem cristã.
El mensaje narrado de este modo quiere ser tomado como mensaje. Pero significa,
no tanto una forma simbólica del re-conocimiento, como un signo que se hace para
mí. No obstante, me parece que no tiene sentido construir una contraposición de
arte y religión; mejor dicho, de discurso poético y religioso, o rechazar cualquier
pretención de verdad en lo que el arte le dice a uno. Em toda declaración del arte se
da um mensaje, se conoce y se re-conoce algo. Es siempre algo así como uma
turbación lo que se enlaza com um re-conocimiento semejante, un asombro y casi
un espanto de que algo así ocurriera, o que seres humanos lograran algo así. No
obstante, la pretensión del mensaje cristiano va más allá. Apunta en la dirección
contraria. Muestra qué es lo que no pueden conseguir los seres humanos, y es
precisamente ahí donde gana su pretensión y la radicalidad de su ofrecimiento.
220
Essa noção de re-conhecimento do símbolo, que se expressa como palavra e
mensagem, encontra no texto de Gadamer aplicações para uma hermenêutica da arte.
Entretanto, um símbolo na arte não é o mesmo que um símbolo na religião. No caso da
palavra poética, a arte em sua mensagem é antes de tudo ela mesma. Ela é por sua própria
forma o seu estar-aí como coisa, assim, é uma “coisa que fala” como criação artística, ou seja,
ela é totalmente autônoma em seu dizer, mesmo que esse dizer expresse um discurso mítico
ou religioso. O que interessa na arte é unir matéria e forma numa plenitude de expressão.
Todavia, o autor ao explicar a arte como símbolo, é capaz de articular exemplos que são
comparados com a expressão simbólica da mensagem religiosa. Nesse caso o autor nos
apresenta a estrutura simbólica mediante o discurso de uma tradição religiosa e sua mensagem
de redenção, é bem verdade que ele nos diz que essa noção de reconhecimento tem na
mensagem religiosa uma proximidade com a noção de reconhecimento da estrutura simbólica
da arte. No entanto, não há nenhuma vinculação necessária entre a estrutura simbólica da arte
219
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenêutica, p. 150.
220
Ibidem, p. 152.
61
com a da religião. Isso quer dizer que o discurso da arte se basta somente pela palavra
enquanto forma e que enquanto arte encontra plena realização como “palavra plena”.
CAPÍTULO 4 - REFLEXÕES SOBRE A FESTA
“A cada vez que ocorre, a festa vai se
modificando. Pois sempre algo diverso é
simultâneo com ela.”
221
Gadamer
Com a temática da festa fechamos o círculo de nossa reflexões na presente
dissertação. A festa torna-se aqui a terceira base antropológica que seguimos como fio
condutor em nossa pesquisa. Falaremos primeiramente de configurações que indicam uma
relação entre a festa, a theoria e a participação, para mostrar uma possível origem religiosa no
conceito grego de razão. Em seguida, veremos o exemplo modelo da festa e sua estrutura
temporal como um tempo “supra-histórico”. Aproximaremos dessa questão algumas noções
de tempo a partir da arte e, sobretudo, de exemplos hauridos das festas míticas e religiosas,
especialmente as da cultura grega e as da tradição cristã.
Trataremos das peculiaridades que envolvem a festa enquanto reunião da
coletividade, comemoração e celebração. Trataremos também sobre a questão da
temporalidade da festa a partir da perspectiva da reivindicação, da simultaneidade e da
atualidade, conceitos que apresentaremos com uma abordagem que se aproxima de questões
teológicas e filosóficas. Falaremos ainda da festa como uma origem religiosa da arte na qual
situamos uma “primeira época” em que o teatro fazia as vezes da religião nos cultos festivos.
Por fim, procuraremos mostrar o caráter de “sacramento festivo” e sua expressão nas artes
plásticas, no mito e sua relação com a celebração na festa religiosa. Essas são questões que
procuraremos elucidar no presente capítulo, para isso, percorreremos um pouco desse “viejo
impulso festivo del viejo y eterno gênero humano.”
222
221
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 204.
222
Idem, Estética y hermenêutica, p. 217.
63
4.1 - A festa como theoria e participação: uma origem religiosa no conceito grego de
razão
Comecemos, pois, a falar sobre a festa e suas relações com a theoria e a participação.
Perguntamos então que tipo de relação pode existir entre theoria, participação e festa?
Segundo Gadamer, a theoria tal como concebida na Antigüidade grega está diretamente
ligada com o participar, é o “tomar-parte” que caracteriza a sua função. Todavia, esse “tomar-
parte” pode se dar através da atitude do espectador em seu “‘dedicar-se-a-coisa’. Assistir é,
pois, uma genuína forma de participação.”
223
Segundo o autor, sob esse ponto de vista, a festa está intimamente relacionada com o
conceito grego de theoria e este, por sua vez, se fundamenta no conceito de comunhão sacral.
Isso implica que para os gregos a theoria só se realiza na medida em que há uma “verdadeira
participação”. Aqui se situa uma noção de theoria que está vinculada com a participação em
um ato festivo. “É preciso que se relembre o conceito da comunhão sacral, tal qual alicerça o
originário conceito grego de teoria. Theoros significa, como se sabe, o participante de uma
delegação de festa.”
224
Desse modo, o espectador busca uma posição como observador e, com isso, participa
ativamente do evento da festa. Ele está presente em ato e assim toma parte. Ao fazê-lo, exerce
uma função que pode lhe proporcionar uma distinção especial e esta lhe confere um “direito
sagrado”. O participante da festa, com efeito, toma parte como quem assiste e com isso busca
sua distância correta, ajusta por assim dizer o seu ponto de observação e por ele se distingue.
“No sentido mais genuíno da palavra, o theoros é, pois, o espectador que, através de seu
tomar-parte, participa do ato festivo, e através disso ganha sua distinção de direito sagrado, p.
ex., sua imunidade.”
225
Para situarmos melhor a questão, vamos recorrer novamente à experiência de arte.
Aquele que contempla uma obra de arte procura, de um modo ou de outro, obter uma
“distância justa”. O espectador realiza, como sujeito, o desocultamento da obra, nisso consiste
a aletheia. Entretanto, a aletheia para os antigos gregos não se reduz a ser somente isso, ela
tem a ver com uma “ordem bela”. Na filosofia platônica essa “ordem bela” é que nos incita a
recordação; é a “nostalgia do amor”, que nos advém da contemplação do belo, que nos
permite realizar o desocultamento da obra. Quando nos lembramos da visão que tivemos no
223
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 206.
224
Ibidem.
225
Ibidem.
64
mundo espiritual nos lembramos do belo, pois é aquilo que mais brilha
226
. É a visão daquilo
que é mais reluzente que nos permite contemplar uma certa ordem cósmica.
Alétheia no se refiere simplesmente al desocultamiento. Cierto es que hablamos de
que ‘emerge’, pero el emerger tiene una constitución peculiar. Consiste en que una
obra del arte se presenta en tanto que se oculta, y a la vez, responde de sí misma.
Lo que los griegos llamaban ‘resplandecer de lo bello’ pertenecía a un orden del
mundo que ofrecía su verdadera culminación en el firmamento estrellado.
227
Assim como podemos contemplar fenomenologicamente a ordem estrelada do cosmo
que nos mostra o belo, podemos fazê-lo de modo análogo na arte. O belo na arte implica em
participar da obra como um “tomar-parte”, por exemplo, aquele “que contempla una pintura
busca la distancia justa en la que ésta emerge corretamente.”
228
Isso vale para quem assiste de
modo participativo a uma festa, ele deve procurar suas distâncias. É desse modo que participa
como espectador, que faz sua parte, e na medida em que o faz toma parte de modo real. A
realidade na experiência do espectador advém daí. Retornamos aqui à questão da noção grega
de theoria que Gadamer identifica com a participação em um ato festivo. “El sentido
originario da expresión griega theoria significa algo importante. La palabra griega se refiere a
la participación en un ato festivo, al estar presente en él. Contemplar, pues, no es ser un mero
espectador.”
229
O contemplar como “tomar-parte” na festa ocorre tal como se concebe a theoria na
metafísica grega. A theoria nesse caso não se restringe à subjetividade do sujeito, ela
desencadeia seu processo na medida em que o sujeito se depara com aquilo que olha e ao
olhar ele contempla o “ser verdadeiro”. Essa é a forma como “a metafísica grega compreende
a natureza da theoria e do nous como sendo o puro tomar-parte no ser verdadeiro.”
230
Teorizar é no sentido aqui exposto: ser acometido por um pathos que se eleva pela visão do
“ser verdadeiro”, assim se obtém uma imagem que se revela como uma realidade superior. O
theoros que participa do ato festivo se dedica a esse olhar, é dessa compreensão que Gadamer
destaca na origem da razão grega um conteúdo de fundo religioso. É a visão do divino que o
theoros contempla como participante da festa. Desse modo, “a theoria é verdadeira
participação, não é atividade, mas um sofrer (pathos), isto é, um ser tomado de modo
226
Segundo Gadamer, “Platone celebra la caratterizzazione del Bello, e dice che il Bello è ciò che maggiormente
riluce in tutto, e ciò che maggiormente risveglia la nostalgia d’amore, perché stimola il ricordo del vero essere.”
(Hans-Georg GADAMER, La desposta del pensare, saggi ermeneutici, p. 176).
227
Idem, Estética y hermenéutica, p. 297
228
Ibidem.
229
Ibidem.
230
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 206.
65
arrebatador pela visão. A partir daí, recentemente tornou-se compreensível o pano de fundo
religioso do conceito grego de razão.”
231
O estímulo da visão que atinge o espectador lhe dá a possibilidade de “estar-fora-de-
si” e com isso ele toma parte em um grau que lhe permite um auto-esquecimento. Esse é um
desempenho produtivo, não é um olhar meramente curioso, é um perfazer que vê. Por
conseguinte, “perfaz a natureza do espectador, o fato de estar entregue a uma visão,
totalmente esquecido de si.”
232
A festa nos permite uma “comunicação recuperada”, ela nos
re-coloca como participantes de uma comunidade.
4.2 - A historicidade própria do tempo da festa e da arte: um tema teológico
A festa nos convoca a viver um tempo especial, ela é um acontecimento que abrange
um transcurso temporal próprio que se percorre por todo o evento festivo. Quem escolhe
participar da festa permite-se sair do isolamento e com isso adquire a possibilidade de elevar
sua representação à coletividade. Entretanto, pode-se escolher também não participar, mas
isso não impede que “uma festa [seja] sempre para todos. É assim que dizemos ‘fulano se
exclui’, quando alguém não participa de uma festa.”
233
A questão do tempo da festa exige uma reflexão cuidadosa, visto que traz
peculiaridades um tanto quanto imprecisas.
234
O tempo nesse caso realiza uma pausa, ele pára
o mundo e altera a rotina da vida cotidiana criando, por assim dizer, um intervalo que se
distingue de um “tempo comum”. A experiência temporal da festa implica em uma reunião e
assim realiza uma espécie de vivência comum. Por conseguinte, não se trata de um tempo
neutro, mas de um tempo produzido pela coletividade no qual “a festividade faz parar o
tempo.”
235
Uma das peculiaridades da festa é o seu caráter comemorativo, nesse aspecto ela tem
uma afinidade especial com o modo de ser da arte visto que “comemorar é uma arte.”
236
Segundo Gadamer, essa arte foi extremamente sofisticada no passado, tanto na Antigüidade
como nas culturas autóctones. Uma das expressões da comemoração festiva diz respeito às
231
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 206-7.
232
Ibidem, p. 208.
233
Idem, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 61.
234
Segundo Gadamer, “não é fácil manter os pensamentos claros acerca deste caráter de festa e da estrutura da
experiência temporal, relacionada com ele.” (Ibidem).
235
Ibidem, p. 65.
236
Ibidem, p. 62.
66
solenidades, sobretudo ao “silêncio solene” e seu momento de representação na festa. “Há
também uma forma de expressão que corresponde e subordina-se à comemoração e à festa.
Fala-se de expressões solenes. Mas muito mais ainda que a expressão solene, pertence o
silêncio à solenidade da festa.”
237
Esse é um tipo de silêncio que se reflete na interioridade do sujeito, ele pode ser
observado quando realizamos uma experiência religiosa ou artística na qual experimentamos
um silêncio que nos toca a alma. Trata-se de um “silêncio solene” que se reflete pelo processo
impactante ocorrido quando de súbito nos deparamos com a religião e a arte. “Podemos dizer
do silêncio que ele como que se espalha, e assim acontece com qualquer um que é posto de
repente diante de um momento artístico ou religioso.”
238
O tempo da festa encontra raízes
intimamente relacionadas com a dimensão religiosa, nos momentos de comemoração e
celebração da festa a comunidade é convocada a reviver e a representar uma espécie de tempo
sagrado e, segundo Gadamer é “um tema teológico o que a festa e o tempo da festa são
propriamente”.
239
A experiência temporal que realizamos tomando parte no evento festivo é sempre
uma participação no tempo presente, uma festa nunca é a mesma, ela se modifica a cada nova
comemoração. A periodicidade característica do calendário festivo com o retorno das
comemorações não é, portanto, uma mera repetição do tempo, visto que a “festividade é,
antes, a comemoração, que é um presente sui generis”.
240
O tempo aqui é por assim dizer
diferenciado em sua sucessão, ele se comporta como um ente que está em devir.
Segundo o autor, as conceituações sobre o “dia da festa” no pensamento grego antigo
remontam à reflexão sobre o “ser do apeíron”.
241
A celebração da festa abriga uma
radicalidade existencial concreta, ela é como um ente temporal e nesse sentido é sempre
diferente, ou seja, uma festa nunca é igual a outra. Esse tipo de reflexão sobre o dia da festa
não se refere ao tempo como uma mera sucessão, tal qual experienciamos como tempo
comum, mas como um tempo de historicidade própria.
Quando pensadores originários pensavam o ser, isto é, a presença poderia parecer-
lhes o que era seu objeto à luz da comunicação sacral, em que se mostra o divino?
Para o próprio Aristóteles, a parusia do divino é, não obstante, o ser mais autêntico,
a energeia, não restringida por nenhuma dynamis (Met., XIII, 7). Este caráter
237
Hans-Georg GADAMER, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 62.
238
Ibidem.
239
Ibidem, p. 61-2.
240
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 204.
241
“Aristóteles, em sua caracterização de ser do apeiron, portanto, em sua relação com Anaximandro, refere-se
ao ser do dia e da competição, portanto, da festa. (Physica. III, 6,206 a 200). (...) No Parmênides 131 b, de
Platão, Sócrates procura ilustrar a relação da idéia com as coisas, com a presença do dia que é para todos.”
(Ibidem, p. 205, nota 225).
67
temporal não é concebível a partir da experiência habitual do tempo como
sucessão. As dimensões do tempo e a experiência que dele temos somente
permitem compreender o retorno da festa como histórico.
242
A partir da historicidade do tempo da festa, o autor faz uma conexão com o tempo da
arte, nessa conexão existe uma noção comum de tempo que pode ser comparada por sua
estrutura temporal. “Perguntemo-nos pela estrutura temporal da festa e daí chegamos à
festividade da arte e à estrutura temporal da obra de arte.”
243
Tomemos primeiramente o exemplo da comemoração, a comemoração que se aplica
sobre a experiência temporal da festa se constitui como reunião e isso ocorre também na arte.
“Comemoramos e isso fica bastante claro, quando se trata da experiência de arte ,
reunindo-nos para algo.”
244
Essa idéia de reunião aplicada também no caso da arte abriga uma
noção onde o tempo é único
245
, está além da historicidade de um tempo comum de vivência
cotidiana.
Gadamer reivindica uma legitimação para a obra de arte que atinge aqui uma
compreensão de tempo em que o presente não é efêmero, ele é como que um “tempo
sagrado”. Entretanto, não se trata simplesmente de distinguir o tempo da arte como sagrado
ou profano visto que
destacar a temporalidade própria da obra de arte, enquanto “tempo sagrado”, do
tempo decadente e histórico, fica na verdade, um mero reflexo da experiência
humano-finita da arte. Somente uma teologia bíblica do tempo, que não soubesse a
partir do ponto de vista da auto-evidência humana, mas da revelação divina poderia
falar de um “tempo sagrado” e legitimar teologicamente a analogia entre a-
temporalidade da obra de arte e esse “tempo sagrado”. Sem essa legitimação
teológica, o discurso sobre o “tempo sagrado” encobre o verdadeiro problema que
reside, não na reversibilidade do tempo da obra de arte, mas na sua temporalidade.
[Mas,] que temporalidade é essa?
246
É preciso diferenciar o tempo da arte, a “a-temporalidade” da arte tal como a da festa
reivindica para si o seu próprio tempo como sendo sagrado.
247
Desse modo, o autor mostra
242
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 205,
nota 225.
243
Idem, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 63.
244
Ibidem.
245
Gadamer nos oferece a possibilidade de “esclarecermos” o que ele considera como sendo um “mal-
entendido” em relação ao conceito de temporalidade em Heidegger. Isso ocorre especialmente no que o autor
divisa sobre a ontologia heideggeriana da arte e suas questões fundamentais acerca do tempo. “É aqui que o
mal-entendido que se deu com a exposição ontológica do horizonte do tempo de Heidegger se vinga.” (Idem,
Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 202-3).
246
Ibidem, p. 203.
247
Sobre a questão do tempo sagrado e a festa é interessante contrastar as concepções de Gadamer com as de
Mircea Eliade. Eliade diz que “os participantes da festa tornam-se os contemporâneos do acontecimento mítico.
Em outras palavras, ‘saem’ de seu tempo histórico quer dizer, do Tempo constituído pela soma dos eventos
profanos, pessoais e intrapessoais e reúnem-se ao Tempo primordial, que é sempre o mesmo, que pertence à
Eternidade.” (Mircea ELIADE, O Sagrado e o Profano: a essência das religiões, p. 79).
68
uma configuração onde desenvolve um tema teológico para tratar sobre o tempo da arte. Mas
é preciso considerar que a experiência com a temporalidade da arte tal como a da festa é a
experiência de um tempo presente e único que se dá no momento em que acontece. “A
experiência do tempo com relação à festividade é, antes, a comemoração, que é um presente
sui generis.”
248
Como vimos, essa noção de “tempo sagrado” que encontramos na arte pode ser
tangível para a festa. Existe uma espécie de parentesco entre ambas as experiências de tempo,
contudo, a temporalidade que se exerce aqui traz um tipo de experiência em que “o tempo é
experienciado como aquilo que precisa ser ‘passado’ ou que é ‘passado’”.
249
Isso implica
numa espécie de negação do tempo e parece soar de modo paradoxal. Segundo Gadamer,
naquilo que diz respeito à temporalidade, seja ela a da arte, seja ela a da festa, a experiência
que realizamos não se dá como tempo e é nesse sentido que ocorre uma proximidade entre a
arte e a festa, o autor a expressa dizendo que “o tempo aqui não é experienciado como tempo.
Ao lado desta, existe uma experiência de tempo aparentada tanto com a da festa como com
a da arte.”
250
Voltamos assim, ao tema teológico que a festa suscita, para isso falaremos de sua
celebração e de seu retorno. A festa se repete e com isso é celebrada periodicamente e volta
desse modo a reunir a comunidade. Um dia festivo não é simplesmente um dia de feriado, de
um “tempo vago”, nem tampouco é um tempo neutro no qual possamos incluir nossa
contagem habitual e nem mesmo o tempo em que gastamos nos preparando para ir a uma
festa. “A celebração é assim que não se tem que ir antes para depois chegar lá. Celebrando-se
uma festa ela está lá o tempo todo.”
251
O tempo que experimentamos nesse caso é diferente
daquele no qual estabelecemos uma relação pragmática em que medimos o tempo para
realizarmos alguma coisa.
A recorrência das festas suscita uma espécie de “ordem temporal” própria, que se
expressa através de seu retorno. Podemos tomar como exemplo para esse caso as festas
religiosas, elas se repetem e se realizam sem submissão à quantificação que comumente
fazemos acerca do tempo. Temos uma concepção pré-formada de tempo que se nos impõe por
nossa própria existencialidade, mas é preciso procurar como tarefa o pôr às claras do
procedimento hermenêutico. Algo aqui é diferenciado daquilo que é a pura quantificação do
tempo em segundos, minutos, horas, dias e anos, que informam e dão forma a um tipo de
248
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método : traços fundamentais de uma hermenêutica, p. 202-3.
249
Idem, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 64-5.
250
Ibidem, p. 65.
251
Ibidem, p. 63.
69
construção cultural de tempo. Tal construção em nossa vivência existencial nos traz
impressões em que as “formas básicas do tempo são, a infância, a juventude e a velhice”.
252
Contudo, precisamos aprender a distinguir coisas que se expressam a partir dessas
“formas básicas”, elas se situam além da relação lógica que estabelecemos para a contagem
do tempo, não devemos transferi-lo para a realidade objetificada de nosso existir. Com a festa
se celebra um tempo que nos torna em certa medida livres dessa relação lógica ou numérica e
assim poderemos nos pensar de um modo em que “o tempo que faz alguém ficar jovem ou
velho não é o tempo do relógio”.
253
Segundo Gadamer, essa experiência nós constatamos, por exemplo, com a
recorrência das festas, sobretudo, das festas religiosas onde podemos observar um tipo de
relação temporal recorrente, que tem a sua ordem e não se deixa reger pela imposição
numérica do tempo e sim, por uma concretude que ultrapassa as fronteiras de um “tempo
contado”.
As festas recorrentes não são assim chamadas porque são registradas numa ordem
temporal, mas ao contrário, a ordem temporal surge a partir do retorno das festas: o
ano canônico, as festas da igreja, mas também as formas nas quais nós mesmos, em
nossa contagem abstrata do tempo, não falamos simplesmente do nome dos meses,
mas justamente de Natal e Páscoa ou outras tudo isso representa em verdade o
primado do que vem a seu tempo, do que tem seu tempo e não se submete a uma
contagem ou a um preenchimento abstrato do tempo.
254
A festa representa um tempo sagrado que retorna e desse modo se renova, nesse sentido, a
festa pára o tempo, ela sobrepassa, com efeito, o tempo dos relógios que marcam o compasso
de um viver cotidiano que é restrito à objetividade que impingimos ao mundo. Com a festa e
através de sua estrutura temporal, abre-se a possibilidade de se escapar de um tempo
pragmático e rotineiro, isso é o que nos possibilita a experiência de atualizar e
simultaneamente vivenciar o tempo da festa.
4.3 - Reivindicação, simultaneidade e atualização no tempo da festa
Exporemos agora as noções de atualização e simultaneidade e o faremos a partir da
compreensão de uma reivindicação do tempo da festa. Ao fazermos uma reivindicação, nós
instauramos inevitavelmente um momento de “consciência individual” e, ao mesmo tempo,
252
Hans-Georg GADAMER, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 65.
253
Ibidem.
254
Ibidem, p. 64.
70
estabelecemos uma relação de alteridade. “[A] reivindicação tem consciência frente a alguém
e tem de se fazer valer junto a ele.”
255
Entretanto, o ato de reivindicar implica em uma tomada
de posição que requer “algo duradouro” e é sob esse aspecto que inseriremos nossas questões.
Retomamos assim, as nossas reflexões sobre o âmbito da experiência religiosa e
sobre âmbito da experiência de arte. Ao propormos esse caminho apontaremos novamente
abordagens em que Gadamer desenvolve um pano de fundo de compreensão religiosa. No
presente caso, trataremos inicialmente a questão começando com um tipo de reflexão extraída
do âmbito filosófico-teológico e que nos fala do sentido que a reivindicação adquire.
A palavra reivindicação não se apresenta a alguém a partir de meias medidas. Na
reflexão teológica estimulada por Kierkegaard, que denominamos de “teologia
dialética”, não por acaso esse conceito possibilitou uma explicação teológica do
que é pensado como conceito da simultaneidade de Kierkegaard. Uma
reivindicação é algo duradouro. Sua justificação (ou a presunção de tal) é a
primeira coisa. Justamente porque a reivindicação existe, poderá ser tornada válida
a qualquer tempo.
256
A reivindicação implica nesse sentido em uma exigência, ou seja, ela pretende se
fazer valer como um “fundamento legal”, pois não comporta “meias medidas”, quer validar e
assim legitimar a ação reivindicatória.
Segundo Gadamer, a palavra no caso da pregação tem como objetivo uma
intermediação que seja capaz de proporcionar uma experiência temporal de simultaneidade.
Há aí uma reivindicação de tempo que é suscitada através dos cultos ou da leitura dos textos
sagrados. Essa é uma reivindicação de fé que interessa ao procedimento hermenêutico do
autor e cuja ordem de reflexão desdobrar-se-á em função de sua explicação ontológica da arte.
A aplicação à teologia de Lutero reside no fato de que a reivindicação da fé existe
desde a anunciação e que na pregação volta a ser válida de novo. A palavra
pregação produz exatamente a mesma intermediação total que, de outro modo,
cabe à ação cúltica por exemplo, na santa missa. Ainda veremos que a palavra
também é invocada noutras ocasiões, a fim de realizar a intermediação da
simultaneidade, e que por isso, no problema da hermenêutica cabe-lhe condução.
Seja como for, a “simultaneidade” convém ao ser da obra de arte. Ela perfaz a
natureza do “tomar-parte”.
257
Na esteira dessa discussão, retomamos a questão da “experiência de arte” e o
problema da “consciência estética”. A participação em um evento artístico (e aqui incluímos a
festa) implica em um “tomar-parte” que é simultâneo com a obra. Temos com isso uma
instância compreensiva perpassada por um sentido muito mais próximo ao da reflexão
teológica aludida acima do que do modelo da consciência estética, visto que a questão da
255
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 209.
256
Ibidem, p. 209.
257
Ibidem.
71
simultaneidade na experiência de arte implica que “o espectador é um momento da essência
do próprio espetáculo que denominamos estético.”
258
Esse processo acontece na consciência, entretanto, com a experiência de arte passa-se
a uma função que se caracteriza por constituir-se como tarefa para a consciência, que deverá
ligar-se com o seu ser participante. Nesse caso, a consciência empreende-se em uma
construção representativa que procura sintetizar seu momento de modo a atualizar e a
simultaneamente viver o seu tempo. Por conseguinte, a “simultaneidade” da arte é diferente
daquela da “consciência estética”. Vejamos o que Gadamer diz a respeito:
Não é a simultaneidade da consciência estética. Pois essa simultaneidade significa
o ser-ao-mesmo-tempo e a igual validade de diversos objetos estéticos da vivência
numa consciência. A “simultaneidade”, ao contrário, significa aqui que algo
individual, por mais remota que seja sua origem, na sua representação, alcança
plena atualidade.
259
Essa atualidade se identifica com a reivindicação e a simultaneidade da presença, e
veremos como essa compreensão se aplica ao caso da festa religiosa. Para isso tomaremos
como exemplo a festa natalina. Como já dissemos anteriormente, a festa tem como uma de
suas principais características a periodicidade, isto é, ela retorna e assim mantém sempre a
possibilidade de seu regresso. “Por su esencia, la fiesta es periódica, regresa.”
260
Nesse
sentido, a festa natalina é exemplar para o que nos interessa aqui, ela é uma comemoração que
acontece como recordação de uma origem. Quando se celebra a data de um aniversário,
especialmente no que concerne à tradição cristã, temos um evento que se relaciona com uma
“recordação festiva” abrigando uma dimensão de mistério que “detém o tempo”. O instante é
assim apreendido e permite-nos um “instante de unidade”. A recordação festiva do
nascimento reporta-nos a um instante em que ao mesmo tempo que se recorda de um tempo
passado, este também se dá de modo real e, portanto, é atualizado e assim torna-se presente.
Recuerdo y presente son en ella una sola cosa. La Natividad, por ejemplo, es,
verdaderamente, algo más que el recuerdo festivo del Redentor, que ocorrió y fue
presente hace dos mil años: de um modo misterioso, cada Natividad es simultánea
con aquel lejano presente.
261
O conceito de simultaneidade abarca aqui a dimensão filosófica e teológica e, com
efeito, está situado além da consciência estética. Seguindo o viés hermenêutico tomamos o
simultâneo visto a partir da temporalidade da festa como sendo algo a ser pensado de um
258
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 211.
259
Ibidem, p. 210.
260
Idem, Estética y hermenéutica, p. 215.
261
Ibidem.
72
modo a estar além da consciência estética. Dessa forma será possível vislumbrar um modo de
conhecimento que se dá através da experiência religiosa ou da experiência de arte.
Voltamos agora ao destaque que Gadamer faz do conceito de simultaneidade no
pensamento teológico de Kierkegaard. Ali encontramos uma proposta que nos dá a dimensão
de um tempo que pode ser aplicado proficuamente para a festa, sobretudo, em se tratando da
festa cristã.
Simultâneo em Kierkegaard, não quer dizer ser-ao-mesmo-tempo, mas, formula a
tarefa, que é proposta aos crentes, ou seja, de intermediar entre si aquilo que não é
ao-mesmo-tempo, com a própria presença e a salvação de Cristo, de tal maneira
pleno, que elas, apesar de tudo, possam ser experimentadas e levadas a sério como
algo presente (em vez do distanciamento de outrora).
262
A experiência desse “algo presente” pode ser a mesma que é co-respondida pelo
crente em sua representação participativa no evento festivo. Com isso ele faz junto a si e à
comunidade uma reivindicação que evoca o caráter simultâneo e atual do tempo. Essa
compreensão é uma clara proposta de superar o modelo da “consciência estética”, mas não é
só isso. O exercício prático da hermenêutica gadameriana procura iluminar através de seu
diálogo com a tradição algo que falta ao modelo moderno e que vigora ainda hoje na vida
contemporânea.
Pues parte de la forma extrema de vida que domina nuestra civilización moderna,
de la ambición regida por la voluntad de poder y de lo útil, de la tendencia a recibir
las cosas en la mano y dominarlas, a la cual lê debemos la magnificiencia de nostra
civilización moderna. Pero ignora que la esencia originaria y todavía viva de la
fiesta es creación, elevación a um ser transformado.
263
Sendo por excelência criação, a festa é colocada por essa categorização ao lado da
arte, sobretudo, naquilo que diz respeito ao seu ser de simultaneidade e reivindicação.
Contudo, podemos dizer que tanto a festa quanto a arte têm uma origem religiosa. Isso é o que
veremos a seguir.
4.4 - A primeira época da festa: uma origem religiosa da arte
Falaremos agora de uma origem religiosa da arte através da festa. Focamos essa
questão basicamente em alguns aspectos representados nas festas religiosas grega e cristã. A
experiência do legado cultural grego incorporou um espírito objetivador que se expressou
262
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 210.
263
Idem, Estética y hermenéutica, p. 215.
73
solenemente através das festas religiosas. O teatro é, nesse contexto, o palco de representação
deste caráter festivo que revela a alma da paidéia grega. Além de ser um espetáculo da
técnica, o que ocorre com a festividade grega é que ela é essencialmente religiosa. Para
compreendermos o sentido básico do que isso significa acompanhamos o que Gadamer
ressalta como originário na festa grega, o autor nos mostra que ali reside algo que se expressa
como originário da arte e que ainda hoje nos faz estremecer.
El logro objetivador del espíritu griego es haber creado, a partir de las formas de
celebración cultual de la danza y el ritual, este algo nuevo que aún hoy nos
estremece. Pues no cabe duda de que el teatro tiene también un origen religioso;
era parte integrante de la fiesta griega y por ello, como todas las formas de
manifestarse la vida pública de los griegos, de carácter sagrado.
264
É esse “caráter sagrado” que dá a configuração e que insufla a produção da
festividade grega. Ele se representa através de um modelo cósmico que é marcado pelo
compasso ritmado do universo. Desse modo, acompanha a periodicidade das forças naturais e
assim os ciclos e as estações do ano. As divinidades gregas representadas nas festas traduzem
uma interpretação das forças vivas da natureza e do sentimento humano em relação a elas.
Durante as festividades e suas inúmeras atividades esse sentido religioso é produzido como
forma de arte, especialmente no teatro e na sua prática nos cultos e nas solenidades que
acompanham as festividades. Desse modo, “quien participa así en un culto deja también
‘emerger’ a lo divino, de modo que está ahí como una manifestación corporal. Donde más
certo resulta esto es en la obra de arte.”
265
Vejamos agora alguns aspectos dessa mesma questão através da festa cristã.
Seguindo o fio condutor da hermenêutica podemos dizer, por exemplo, que algumas
representações da festa cristã encontram um perfil próximo ao da festa grega. Gadamer, ao
buscar uma explicação ontológica da arte, indica-nos que ambas as tradições buscam através
de seus cultos festivos uma espécie de teofania. Ao refletir sobre a arte, o autor traz
considerações oriundas do meio religioso, ao dizer em relação ao teatro que “en la vida
pagana de la Antigüedad, eso lo hacía el culto en la forma de la teofanía; en el culto cristiano,
el sacrificio de la misa tiene un sentido comparable, y eso es lo que, a su mod, siegue
haciendo el teatro todavia.”
266
A festa permite uma “elevação individualizada” visto que condensa um “instante
originário” cujo significado repousa na idéia de uma “instantaneidade unitária”. Além dessa
264
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenéutica, p. 214.
265
Ibidem, p. 297.
266
Ibidem, p. 216.
74
“elevação individualizada” a festa é também uma elevação comunitária e por isso abriga o
caráter de solidariedade. O compartilhamento entre os participantes torna-se uma espécie de
vivência comum que alcança uma instância na qual a vivência individual não se perde e sim se
eleva.
Esta individualización de los fines cede en el instante elevado de la solidaridad de
la fiesta, un instante que no tiene su sentido merced a aquello que soporta, merced
aquello que se persiegue y debe reportar benefícios, sino un instante que, em cierto
modo, se cumple consigo mismo. Se comprende que sea en el culto donde se
presenta este autocumplimiento del instante de modo originario y ejemplar. El Dios
que se manifesta es el presente absoluto, en el cual recuerdo y presente se juntan en
una instantaneidad unitaria. Y a partir de ahí se comprende también que se trate
solo de una forma de determinación negativa quando hablamos del carácter
solemne de una fiesta.
267
A solenidade da festa e o seu congregar comunitário é um tipo de manifestação pela
qual perpassa uma criação genuína e que nos sobrepuja através de sua configuração. Na
origem do teatro (na festa grega) abrigava-se uma espécie de representação que encontrava o
âmago de sua expressão nas atividades solenes, atingindo seu ápice com sua representação no
teatro. Também na tradição cristã o teatro abriga uma essência originária de “caráter festivo”.
Quien periódicamente realiza el ejercicio de la adoración de algo determinado, lo
que llamamos culto, sabe también lo que es una fiesta. Lo que aún siegue teniendo
lugar en las formas secularizadas de la fiesta cristiana el carnaval en las
religiones católicas, por ejemplo no queda ya tan lejos del objeto de nuestra
cuestión, a saber, el teatro y el carácter festivo que es inherente al teatro.
268
A festa nos traz a compreensão de uma “consciência cósmica” e essa se revela como
um “grande momento”. Quando o tempo torna-se festivo, ganha outra dimensão, transforma-
se em um tempo que é o tempo originário da arte. Com a festa nos encontramos com a
possibilidade de participar da experiência religiosa e concomitantemente da experiência de
arte aí originada, é esse o caminho que a hermenêutica indica como um modo de
vivenciarmos esse sentido original que, como dissemos acima, ainda hoje nos estremece. O
“grande momento” que nos advém da festa é o de estar participando de um momento único,
de um acontecimento cósmico, que se expressa através dos ritmos que traduzem esse instante
festivo e sua manifestação de passado e presente como um único instante.
Hemos visto que toda fiesta se caracteriza en sí por que tiene su retorno ritmico
fijo, por que se alza sobre el flujo del tiempo y, como una especie de cósmica
conciencia rítmica nos transmite que no todos los momentos son iguales en su
pasar indiferenciado, sino que, en la hora de la fiesta, hay el retorno del gran
momento.
269
267
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenéutica, p. 215.
268
Ibidem, p. 216.
269
Ibidem.
75
O “grande momento” da festa celebra e reúne a comunidade para vivenciar o retorno
de um “momento primevo” que convoca todos a revivê-lo. Esse cenário festivo que se
apresenta como uma “presença religiosa” aponta, segundo Gadamer, um sentido originário
para a arte. Esse modo de ser, que se deu nas festas gregas e cristãs, encontra ainda hoje fortes
ressonâncias na arte, sobretudo, no teatro. “Esta época de la presencia religiosa, en la cual la
celebración teatral representaba un elemento de la comunidad general que celebra la fiesta,
siegue siendo un trozo de realidad en cada pequeña velada teatral nuetra de hoy dia.”
270
As questões que tratamos aqui inserem-se em um momento da experiência festiva
situado num período primevo da cultura, entretanto, como nos mostra o autor, na produção
recente encontram-se ressonâncias desses primórdios e deles ecoa uma “presença religiosa”.
Essa é a “primeira época”. Existe, nesse período, uma profunda ligação entre a festa religiosa
e a arte que perfaz os caminhos de um “velho impulso”.
Permeando essas indicações hermenêuticas propostas em torno da festa,
retomaremos a questão a partir da “experiência religiosa” e da “experiência de arte”. Quando
Gadamer fala da arte e da festa nas tradições grega e cristã ele enfoca uma “primeira época”
da arte que se caracteriza, sobretudo, pela presença religiosa e aqui temos novamente o
exemplo do teatro e da festa.
La primera época, que llega justo hasta la creación del teatro permanente, quisiera
caracterizarla como la era de la presencia religiosa, o de elevacion religiosa. Aquí
es obvio que el teatro es un accidens, una aparición que acompaña al sentido de la
fiesta religiosa, y que cumple, en una fiesta y en el marco de una fiesta, una
determinada función de congregar a la comunidad festiva. Esta forma de
celebración comunitária, que era especialmente característica del culto a Dionisos
ese culto en que nació el teatro antigo.
271
O modelo da festa encarna, com a celebração dos cultos nas festas dionisíacas, não
somente algo de um passado, mas uma experiência histórica e reveladora que se apresenta
como arte. Esse tipo de festa tão milenar infunde ainda hoje uma atualidade, pois permanece
nas camadas mais profundas do sentimento humano e da arte que é originária desse “velho
impulso” criativo religioso-festivo.
270
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenêutica, p. 217.
271
Ibidem.
76
4.5 - O caráter de sacramento e sua representação festiva na obra de arte
Finalizamos nossa reflexão sobre a festa tratando a respeito desse sentido religioso
da festividade a partir de dois exemplos nas artes plásticas e concluiremos com um breve
comentário acerca da festa mítico-religiosa. Tomamos inicialmente dois pontos isolados no
contexto geral da história da arte para a presente análise; ambos estão relacionados com a arte
pictórica. O primeiro deles refere-se ao quadro Rendição de Breda, do pintor espanhol Diego
Velásquez (anexo 1). O segundo diz respeito a um tipo de pintura contemporânea que recebeu
a denominação de arte abstrata e que carrega uma perspectiva conceitual na qual tomamos
como exemplo a abstração do pintor holandês Piet Mondrian (anexo 2). Em ambas as
perspectivas confrontamos a possibilidade de uma reflexão permeada por “conceitos
religiosos”, que possam ser relacionados com a expressão de festividade e considerados aqui
como inerentes à arte.
O sentido de sacramento que suscitamos a partir dessa obra segue somente aquilo
que extraímos do texto de Gadamer, isso quer dizer que não faremos nenhuma análise
histórico-conceitual ou técnica das obras que mencionamos aqui. O que nos interessa é
mostrar a dimensão de festividade e de sacramento segregados por essas obras a partir daquilo
que o autor nos apresenta. Nesse caso, falaremos do caráter pictórico na medida em que ele
incorpora em sua representação uma espécie de “sacramento festivo”.
Vejamos o primeiro caso, a obra de Velásquez. Existe uma certa realidade que
somente ganha significação quando é representada como entidade através de um quadro. “Há
entes que necessitam do quadro e dele são dignos e que somente se realizam em sua natureza
quando estão representados no quadro.”
272
Nessa concepção encontra-se uma relação em que
se conjuga a possibilidade da aplicação de “conceitos religiosos” para se tratar das obras de
arte. Tais conceitos encontram o acolhimento da hermenêutica que nos colocam no caminho
de superação do esteticismo filosófico e do seu modelo de consciência histórica. Ajudam-nos,
com isso, a superar a auto-suficiência de uma razão iluminista permitindo um olhar
diferenciado sobre a religião e a arte. Desse modo “não é por acaso que se interpõem
conceitos religiosos, quando se quer fazer valer o status ontológico das obras das belas
artes.”
273
272
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 241-2.
273
Ibidem, p. 242.
77
O exemplo modelo do quadro de Velásquez, embora se trate da representação de um
episódio militar, traz em sua expressão própria a noção de sacramento que está de certo modo
ligada a um acontecimento festivo.
[A] Rendição de Breda, de Velásquez, “um sacramento militar”. (...) Esse quadro
não é um portrait de um grupo e também não, um mero quadro histórico. O que
aqui se deixou fixado no quadro não é somente um acontecimento solene como tal.
Antes a festividade dessa cerimônia está tão presente no quadro, porque pertence a
ela mesma o caráter de ser pictórica e é realizada como um sacramento.
274
Essa realização como sacramento se dá na obra de arte de um modo independente, ou
seja, ela não se submete ao seu tema. No entanto, segundo Gadamer, as obras de arte
conservam uma certa imprecisão com relação aos conceitos de sagrado e profano, que
exercem uma expressão relativa na arte e isso é válido tanto para as obras de arte religiosa,
quanto para qualquer outra. Todavia, há que se falar em um sentido de sacralidade para a arte.
“E afinal de contas, toda obra de arte possui algo que se rebela contra a profanação.”
275
O exemplo do quadro de Velásquez é aplicável de um modo geral para as obras das
belas artes cujo legado nos advém da pintura européia. A representação figurativa da pintura
clássica da Europa Moderna encontra-se permeada de significação religiosa.
[La] gran época de la pintura de cuadros europea, que comenzara en el
Renacimiento, representa un fenômeno semejante de disfrute intelectual; también
en rangos diversos, también ligada a necesidades de suntuosidad y ornamentos (la
de las iglesias y cortes), y, sin embargo, a la vez, de um significado religioso.
276
Mas vejamos também, o caso da pintura abstrata do século XX. Ela segue um tipo de
“inspiração privada”
277
, que não está povoada de entes que possamos reconhecer como
objetos de representação. Com a arte abstrata perde-se a importância da figuratividade
objetiva, não há mais nenhum interesse em representar os entes do mundo, o que interessa
nesse movimento é expressar algo oriundo de uma “inspiração privada”. O exemplo modelo
que tomamos para representar esse tipo de arte é a arte abstrata de Mondrian. Segundo
Gadamer, a pintura de Mondrian resguarda uma espécie de “metafísica cósmica” e daí,
direciona-se para um tipo de arte reflexiva. “¿Y qué pasa con el testimonio representado por
Mondrian? Él mismo, en una reflexión teórica, derivó del cubismo su ascético arte de líneas y
superfícies, elevándolo a una metafísica cósmica.”
278
274
Hans-Georg GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 241.
275
Ibidem, p. 243.
276
Idem, Estética y hermenéutica, p. 229-30.
277
Ibidem, p. 229.
278
Ibidem, p. 228.
78
Estamos nesse caso, diante de um tipo de “arte reflexiva”, que traz uma
expressividade característica da arte contemporânea do século XX. Mas considera-se aqui
uma “postura reflexiva propia de la cultura moderna.”
279
Essa arte expressa uma
“reflexividade crônica” e o quadro contemporâneo foi o elemento desencadeador disso. O
distanciamento que se impôs ao passado representa uma verdadeira cisão. O modo festivo de
representação e o seu caráter de sacralidade encontra-se nesse caso em outro registro, é
diferente, portanto, do modelo das belas artes mencionado acima. Com essa arte da reflexão
houve uma ruptura radical e sob certos aspectos irreversível com a pintura do passado,
impunha-se assim, uma “arte reflexiva”.
Todavia, a ruptura sempre resguarda alguns princípios e os carrega como partes
constitutivas de seu processo. Por isso, novamente retomamos a possibilidade do trato de
“conceitos religiosos” e a sua aplicação na arte. No caso de Mondrian não se pode tomar o
mesmo modelo de expressão do religioso tal como instituído pela igreja ou outras instituições
religiosas. Não obstante, com toda a mudança que se operou de modo revolucionário na
pintura moderna, algo do passado ainda permanece resguardado. A arte reflexiva de Mondrian
encontra a liberdade de uma expressão que nega quase todo o “passado da arte”, ela não se
presta mais a ilustrar qualquer tema religioso ou político. Todavia, a própria reflexividade
advinda dessa forma de arte volta a questões que comportam pelo lado da estética um sentido
em que “con razón habla Kant del ‘gusto de reflexión”
280
. Este juízo reflexivo resguarda os
primórdios de um refletir cuja originariedade advém de bem longe, ela nos relembra de uma
metafísica cósmica e assim, de uma ordem geométrica do universo.
O que muda na representação da arte moderna em relação com a antiga é que ela se
realiza sem a necessidade de nenhuma referência ao mundo fenomênico ou a representações
de caráter narrativo. O que permanece e o que se verifica em ambas as tendências é que existe
um caráter de sacramentalidade que ultrapassa a mera representação, seja pela figuração de
personagens, seja pela construção geométrica, a arte se coloca além do mero representar.
Quando falamos anteriormente acerca da theoria e do culto na festa, assinalamos que
o que existe ali é fundamentalmente criação, a festa abriga um sentido que cria sua própria
temporalidade e, por conseguinte, é comparável à temporalidade da obra de arte. Desse modo,
a arte participa festivamente da criação do tempo e do mundo e abriga uma dimensão de
inspiração contemplativa que, guardando as devidas proporções nos faz recordar a forma
mítica de representação. Através de uma metafísica cósmica resguarda-se um passado cuja
279
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenéutica, p. 229.
280
Ibidem.
79
fonte propulsora e originária nos lembra uma relação mítico-cosmológica, na qual reportamos
aqui à festa religiosa. “El espectador do teatro ático, que celebraba una fiesta religiosa a la vez
que hacía de juez artístico, disfrutaba refexivamente — en los rangos más diversos — con el
‘espectáculo lúdico del mito’ que se representaba.”
281
281
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenéutica, p. 229.
80
CONCLUSÃO
A partir da idéia de festa religiosa e de sua expressão como “espetáculo lúdico”,
temos a possibilidade de retomar os três fios condutores que seguimos em nossa trajetória.
Voltamos, assim, ao ponto de vista que escolhemos para olhar a religião e a arte, qual seja:
através do jogo, do símbolo e da festa. O que procuramos demonstrar em todo o texto é que a
reflexão estética que Gadamer faz sobre a arte nos permite um tipo de compreensão da
religião. Acreditamos, por conseguinte, que esse ponto de vista que tomamos nos permitiu um
olhar diferenciado sobre o fenômeno religioso como também sobre a arte e a partir dele
teceremos nossas considerações finais. Não podemos deixar de lado também as implicações
conceituais das quais tratamos no primeiro capítulo, que estiveram presentes e nos ajudaram a
desenvolver e a aplicar conceitos como os de experiência de arte, de experiência religiosa e de
experiência do belo, bem como da crítica implícita ao modelo da “consciência estética”.
Tiramos aí proveito de um instrumental conceitual que perpassa as noções de historicidade, de
linguagem, de experiência, de preconceito e que aporta um viés fenomenológico que nos
indica a situarmos o nosso olhar de modo a procurar não desviá-lo das coisas e assim permitir
que elas nos interpelem como ser no mundo.
O que procuramos afirmar desde o início é que a explicação ontológica acerca da arte
que o autor apresenta volta recorrentemente a questões de caráter religioso, por exemplo, ao
falar da arte como jogo, ele nos fala também de uma origem religiosa do jogo e da qual deriva
a arte. Propusemos uma instância compreensiva oriunda do conceito de jogo em Gadamer.
Mostramos com o autor que o jogo nos sobrepuja e é parte constitutiva em toda e qualquer
cultura, e que, por isso, consideramos que nos oferece um bom modelo de reflexão para a
presente pesquisa. A religião e a arte aparecem assim perpassadas pela noção de jogo no culto
em sua auto-representação, situando o momento do espetáculo cúltico e seu caráter de
mediação com o espectador que co-participa como jogador. O jogo nesse sentido se mantém
em sua “unidade fechada”, mas preserva um lado de abertura para o espectador, deixa por
assim dizer uma “parede aberta”. Trouxemos compreensões no texto de Gadamer que
mostram, por exemplo, no jogo cúltico representativo da divindade, um sentido de “auto-
representação elevada”. Indicamos aí uma proximidade entre arte e religião e a apresentamos
81
como jogo. Segundo o autor, sob esse ponto de vista, a arte “(...) procede de um contexto vital
religioso”.
282
Chamamos a atenção também para as categorias de mimesis e transformação
presentes no “jogo da arte”, procurando apresentá-las sob as bases de uma relação originária
de conteúdo religioso através da noção de mimesis como uma imitação do divino e sua força
de transformação oriunda de uma “mímica originária”. Mostramos que essa mímica tem
implicações também na filosofia e na teologia quando se trata da questão da mescla entre a
verdade e a falsidade no jogo da arte e, que, nesse caso, trata-se de um “conhecimento
religioso”. Sobretudo, no caso da tradição platônica, vale lembrar as seguintes palavras:
“mezclar lo verdadero y lo falso, ser a la vez mensaje de lo más alto y libertad del jogo.”
283
É
essa liberdade do jogo que nos permitiu apresentar sua força imagética permeada pela
experiência de arte e pela experiência religiosa.
Procuramos demonstrar, ainda, o jogo como “auto-compreensão da fé” destacando o
que dissemos naquele momento acerca de palavra e diálogo. Indicamos com isso uma
configuração teológica que nos mostra um momento de jogo em relação a muitas questões da
religião. Um dos exemplos que apresentamos refere-se à questão da palavra Deus e sua
relação com o conceito de auto-compreensão. Ali indicamos que há um ponto de reflexão na
filosofia grega situado além do que o “preconceito moderno” compreendeu, quando reduziu a
filosofia a uma passagem do mito ao logos. Essa é uma redução indevida, uma vez que,
segundo Gadamer, a filosofia grega encontra-se mais próxima de uma “auto-compreensão da
fé” e nos mostra que “palavra e diálogo tem em si um momento de jogo.”
284
É nessa
alternância entre palavra e diálogo que o autor aponta uma aplicação verificada na longa
tradição filosófico-teológica grega e também cristã, em que o “anúncio da palavra” em seu
sentido testemunhal na pregação torna-se uma “escolha livre”, permitindo uma alternância do
jogo como palavra e diálogo e sua aplicação aos textos sagrados. Um exemplo que
destacamos na tradição cristã refere-se a Agostinho e as variantes da trindade que, segundo o
autor, trazem essa noção de jogo entre palavra e diálogo.
Ao lembrarmos o que dissemos em relação à experiência do belo e do jogo,
extraímos daí compreensões que situam exemplos onde acentuamos alguns pontos
diferenciados entre as expressões religiosas da arte grega e cristã. Falamos ainda sobre o
“silêncio da imagem” e sua compreensão nas artes plásticas do século XX. A experiência do
282
Hans-Georg GADAMER, A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 40.
283
Idem, Estética y hermenéutica, p. 139.
284
Idem, Verdade e Método II: complementos e índices, p. 156.
82
belo como jogo nos permitiu correlacionar exemplos advindos da religião, da arte, da filosofia
e da teologia, que foram apresentados tal como se “festejaba en la levedade divina del juego el
poder criador de la vida y del arte.”
285
Ao tratarmos do símbolo, tivemos, como no caso do jogo, a oportunidade de
expormos a todo momento o seu sentido religioso, seja através dos exemplos que
apresentamos por suas relações com o simlico religioso, seja quando nos aproximamos de
suas relações com a arte e a ela nos referimos. A idéia da “tessera hospitalis” traduz bem o
que vem a ser a noção de origem, sentido e presença do símbolo. Essa conceituação nos
permitiu aprofundar algumas considerações que fizemos acerca do símbolo e aplicá-las ao
objeto de nossa pesquisa. Mostramos que existe uma área fronteiriça que distingue o
simbólico do alegórico e que gerou inúmeras controvérsias ao longo das discussões
filosóficas, teológicas e artísticas. Vimos que o símbolo e a alegoria encontram em seu bojo
uma “aplicação preferencial” na religião e que o símbolo se diferencia por ter uma
determinação originária de presença. Conferimos um pouco do que houve no desdobramento
de um debate da experiência estética e filosófica em suas definições acerca da arte, em que o
símbolo adquire um sentido de “artístico positivo” e a alegoria de “artístico negativo”. Vimos
que o símbolo religioso distingue-se por sua forma e que implica em uma reunificação. “A
forma religiosa do símbolo corresponde assim, exatamente, a determinação original do
símbolo, que é o de ser a divisão do uno e a sua reunificação da dualidade.”
286
Procuramos demonstrar também as relações que se estabelecem entre a experiência
do simbólico e a experiência do belo. Apontamos isso ao abordar a possibilidade que
Gadamer nos oferece de repensar a filosofia platônica à luz da experiência do belo na arte.
Mostramos que tal experiência se apresenta sob o prisma de uma realidade histórica e que se
revela na medida de nossa finitude. O belo é aquilo que se mostra como uma “ordem sadia” e
abriga como o símbolo essa mesma simultaneidade entre sensível e não-sensível.
Verificamos, quando comentamos sobre a representação simbólica e a função do sinal, uma
diferenciação entre a representação artística e a representação religiosa. A poesia em seus
primórdios traz um conteúdo mítico-religioso, entretanto podemos distinguir poesia de
teologia do seguinte modo: “‘poesia’ es hacer por médio de la palabra y theo-logia, el
discurso acerca de lo divino.”
287
Verificamos também que na representação o símbolo
285
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenéutica, p. 137.
286
Idem, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 142.
287
Idem, Estética y hermenéutica, p. 139.
83
religioso pode adquirir a “função de sinal”, sobretudo no caso de uma comunidade religiosa
como sinal de reconhecimento.
Quando apresentamos a festa, trilhamos o mesmo caminho e assim procuramos
aproximações que nos dessem evidências para nossa pesquisa, o que nos levou novamente a
questões situadas do ponto de vista da filosofia e da teologia para que assim pudéssemos levar
nossa tarefa adiante. Começamos apresentando a festa a partir dos conceitos de theoria e
participação. Naquele momento procuramos demonstrar uma possível origem religiosa no
conceito grego de razão. Mostramos a idéia de “tempo sagrado” da arte e da festa e daí a sua
legitimação que nos põe a repensar esse tempo da festa com sua historicidade própria que é
diferenciada de um tempo de contagem comum.
Além disso, mostramos a possibilidade de aplicações de conceitos religiosos para
obras de arte dentro do texto de Gadamer e destacamos, sobretudo, o que o autor distingue
como presença religiosa nas artes plásticas e como ele a mostra através da representação
festiva que adquirem as obras de arte. Ali verifica-se um sentido de sacramento que
procuramos exemplificar através da pintura européia dos séculos XVIII e XIX.
A reivindicação e a simultaneidade mediadas pela atualização do tempo da festa,
recordação, regresso e presença são ainda outros desdobramentos que apresentamos para
demonstrar nossos postulados nessa pesquisa. Com isso, confrontamos noções que indicam
que a festa e a arte se originam na religião. Destacamos aqui o exemplo que apresentamos
acerca da celebração da festa Natalina e o sentido de sua realização como algo misterioso e
simultâneo entre passado e presente, onde o recordar da celebração da festa na tradição cristã
é capaz de remontar “el recuerdo festivo del Redentor.”
288
Essas são, em linhas gerais, as conclusões a que chegamos. Perguntamos se nossa
abordagem teria sido suficiente em sua proposta e se é possível uma compreensão cabal do
fenômeno religioso seguindo o caminho que escolhemos? Diremos que, seguindo um bom
conselho da hermenêutica, não tivemos aqui a pretensão de objetificar a religião. Contudo,
talvez nossa abordagem tenha nos permitido um olhar diferenciado e, em nosso entendimento,
dentro da perspectiva que escolhemos nos textos de Gadamer, constatamos que existe a
possibilidade de uma compreensão da religião através da arte.
288
Hans-Georg GADAMER, Estética y hermenêutica, p. 215.
84
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SODRÉ, Felipe de Arruda. A hermenêutica do verbo : algumas considerações sobre a
interpretação... Ágora Filosófica, v. 3, fascículo 1/2, p. 51-67, 2003.
STAIN, Ernildo. Compreender em vez de fundamentar: a hermenêutica de Hans-Georg
Gadamer. Veritas, v. 47, fascículo 01, p. 99-102, 2002.
______. Dialética e Hermenêutica. Síntese Nova Fase, v. 29, p. 21-48, 1983.
VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. Trad.
Cynthia Marques. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 2004.
VEGAS, Jesus Luís Castilho. Tradicion y lenguaje en la hermenéutica de Hans-Georg
Gadamer. Crítica-Revista de Filosofia, v. 01, fascículo 4, p. 363-374, 1996.
FONTES ELETRÔNICAS:
RORTY, Richard. Gadamer e sua utopia. Disponível em:
<http://www.filosofia.pro.br/modules.php?name=news&file=artiche&sid=13>.
Acesso em: 21 mai 2006.
SCHUCK, Rogério José. O jogo como fio condutor da explicação ontológica em Gadamer:
subjetividade e compreensão. Disponível em: <http:
www.dialetica-
brasil.org/Schuck-site.htm
>. Acesso em: 27 nov. 2005.
88
ANEXOS
89
ANEXO 1
Autor: Diego Velásquez
"A rendição de Breda"
Óleo s/
tela
307 X 367 cm
Museu do Prado
90
ANEXO 2
Autor: Piet Mondrian
“Composição diagonal”
Óleo s/
tela
60,1 X 60,1 cm
Museu de Chicago
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