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Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/IFICS
Mestrado História Comparada/PPGHC
GONZALO RODRIGUES PEREIRA VELOSO
Tropicália pós-moderna:
a “geléia geral” fragmentária no contexto dos anos 60
RIO DE JANEIRO
2005
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GONZALO RODRIGUES PEREIRA VELOSO
Tropicália pós-moderna:
a “geléia geral” fragmentária no contexto dos anos 60
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ,como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em História Comparada.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria da Conceição Pinto de Góes
Rio de Janeiro
Agosto de 2005
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Veloso, Gonzalo Rodrigues Pereira
Tropicália pós-moderna: a geléia geral fragmentária
no contexto dos anos 60/ Gonzalo
Rodrigues Pereira Veloso –
2005
129 folhas
Dissertação (Mestrado em História Comparada)
- Universidade Federal do Rio de Janeiro,
IFICS, Rio de Janeiro, 2005
Orientador: Prof.ª Dr.ª Maria da Conceição Pinto de Góes
1. Música e cultura popular brasileira 2. Pós-modernismo e modernismo
3. Indústria Cultural 4. Rebeldia jovem – Teses
I. Góes, Maria da Conceição Pinto de (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
IFICS/ Programa de Pós-Graduação em História Comparada
III. Tropicália pós-moderna: a geléia geral fragmentária no contexto dos anos 60
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FOLHA DE APROVAÇÃO
Tropicália pós-moderna: a “geléia geral” fragmentária no contexto dos anos 60
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ,como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em História Comparada.
Aprovada em: __________________
__________________________________________________________
(Prof.ª Dr.ª Maria da Conceição Pinto de Góes, IFICS/ PPGHC, UFRJ)
__________________________________________________________
(Prof. Dr. Silvio de Almeida Carvalho Filho, IFICS/ PPGHC, UFRJ)
___________________________________________________________
(Prof. Dr. Amândio de Jesus Gomes, Instituto de Psicologia, UFRJ)
5
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a todos os que contribuíram formal e informalmente para a realização desta
pesquisa. Inicialmente devo agradecer a meus primeiros orientadores Carlos Addor e Francisco
Carlos Teixeira da Silva que me ajudaram a enveredar no conhecimento da década de 1960; à
minha orientadora Maria da Conceição Pinto de Góes que muito me auxiliou nas questões
metodológicas e com sua vivência e farto conhecimento do período abordado.
A todos os funcionários da secretaria do PPGHC, a amiga e revisora Regina Mesquita, a
Maria Cláudia Tostes, aos funcionários do Colégio Estadual Joaquim Távora e a todos os amigos
que incentivaram a pesquisa. A meus tios Cid Veloso, médico, professor e ex-reitor da UFMG;
Roselis Veloso Castilho, ex-professora da UFMG; Magda Veloso Tolentino, professora da
FUNREI; Margarida Autran e Christina Autran Garcia, jornalistas.
Um agradecimento especial a minha mãe, a produtora cultural e socióloga Betty Autran, a
meu pai, o cineasta Geraldo Veloso e a meus irmãos o produtor editorial Lourenço e a oceanógrafa
Jacyra Veloso por todo o apoio proporcionado durante minha existência, como também a meus
avós Cristina Coutinho e Geraldo Alcântara Veloso e Lygia Portella Passos Autran e Armando
Rodrigues Pereira.
6
RESUMO DA DISSERTAÇÂO
VELOSO, Gonzalo Rodrigues Pereira. Tropicália pós-moderna:a “geléia geral” fragmentária
no contexto dos anos 60, Rio de Janeiro; dissertação mestrado PPGHC/UFRJ; 2005
A pesquisa Tropicália pós-moderna: a geléia geral fragmentária terá como tema a
interação do Tropicalismo com os movimentos da década de 1960. A rebeldia estudantil, o
questionamento da modernidade e seus parâmetros de progresso infinito mudaram a ética e a moral
dominantes. O Tropicalismo, junto com a música pop, teve grande parcela de responsabilidade na
divulgação de uma nova consciência e na renovação observada junto à música popular brasileira.
Deve-se salientar o nascimento de uma nova estética paralelo às transformações globais ocorridas
na década de 1960, como a pós-modernidade, tão paradoxal e polêmica.
Esta pesquisa pretende tematizar o Tropicalismo como um movimento ocorrido entre os
festivais da Record de 1967 e o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Porém, deve-se ter em
mente que o “som universal” criado pelos tropicalistas não se esgotou no período citado.
A intertextualidade, a paródia e a referência fragmentária da realidade mundial são
características marcantes do Tropicalismo, que julga a necessidade de compreensão desta realidade
paradoxal e plural. O movimento artístico pop, por ser uma linguagem global inserida no contexto
da rebelião juvenil, teve papel determinante na criação tropicalista. Assim sendo, esta pesquisa
busca elementos que possam comprovar a existência de particularidades pós-modernas
questionadoras do ciclo modernista na estética tropicalista.
7
ABSTRACT
VELOSO, Gonzalo Rodrigues Pereira, Tropicália pós-moderna:a “geléia geral” fragmentária
no contexto dos anos 60, Rio de Janeiro; dissertação mestrado PPGHC/UFRJ; 2005
The research “Post-modern Tropicalism: the fragmentary general jelly” has as its subject the
musical movement known as Tropicalism and its interaction with other 1960’s manifestations. The
student rebellions, the questioning of modernity and of its notion of infinite progress promoted a
change on then ruling ethics and morality. Tropicalism and Pop music were greatly responsible for
the spread of a new social conscience and the renovation of the Brazilian popular music. The birth
of a new aesthetics, such as the paradoxical and polemic post-modernistic movement, parallels the
global changes of the 60’s.
This work attempts to define the Tropicalist movement as one occurred between the TV
Record Music Festival of 1967 and the exile of Caetano Veloso and Gilberto Gil after the AI-5´s
(Institutional Act 5) promulgation. But this definition would keep in mind that the “universal
sound” created by Tropicalist musicians is still contemporaneous and that the Tropicalist aesthetics
and experimentalism rules the artistic creation of their members to this day.
The intertextual, fragmented and parodical reference to the global reality is a peculiarity of
Tropicalism, which tries to understand its paradoxes and plurality. The Pop movement, being a
global artistic language present on student movements and rebellion of that time, had an important
role on the Tropicalist creative process. This investigation tries to prove the existence in the
Tropicalist aesthetics of post-modernistic elements that question modernity.
8
RÉSUMÉ DE LA DISSERTATION
VELOSO, Gonzalo Rodrigues Pereira, Tropicália pós-moderna:a “geléia geral” fragmentária
no contexto dos anos 60, Rio de Janeiro; dissertação mestrado PPGHC/UFRJ; 2005
La recherche “Tropicália postmoderne: la gelée générale fragmentaire” aura comme
thème l’interration du tropicalisme avec les mouvements des anées 1960. La révolte des étudiants,
les questions autour de la modernité et ses paramètres de progrès infinis, ont changé l’ethique et la
morale dominantes. Le “tropicalisme” et la pop musique ont contribué à la divulgation d’une
nouvelle conscience et du renouvellement observé auprès de la musique populaire brésilienne. Il ne
faut pas oublier la naissance d’une nouvelle estéetique en paralelle aux transformations globales des
années 1960, comme le postmodernisme si paradoxal et polemique.
Cette recherche essaie de thematizer le tropicalisme comme un mouvement qui a eu lieu
entre les festivals de la Record de 1967 et l’exil de Caetano Veloso et Gilberto Gil. Cependant, nous
ne pouvons oublier que le “son universel” crée par les tropicalistes ne s’est pas epuisé pendant telle
période.
L’intertextualité, la parodie et la référence fragmentaire de la réalité mondiale constituent des
caracteristiques importantes du tropicalisme, qui juge la nécessité de compréhension de cette réalité
comme paradoxale et plurielle. Le mouvement artistique pop, étant un langage global inséré dans le
contexte de la rebelión juvenile, determina la création tropicaliste. Cela dit, cette recherche poursuit
des éléments comprobatoires de l’éxistence de particularités postmodernes qui questionnent le cycle
moderniste dans l’esthétique tropicaliste.
9
SUMÁRIO
Introdução 10
Fontes e metodologia de trabalho 16
Capítulo 1- A experiência musical tropicalista 21
A paródia e o kitsch na estética tropicalista 22
A crise da modernidade 24
A lógica cultural do capitalismo tardio 27
A crise da modernidade e do conceito de superação 35
A dessacralização tropicalista, o niilismo e as vanguardas 40
Prenúncios do pós-moderno na explosão estudantil da década de 1960 44
O termo pós-modernismo e sua história 46
Jean Baudrillard e a economia política do signo 49
Capítulo 2 –A discussão sobre o conceito de progresso no Tropicalismo 53
O questionamento sobre o fim da história e o multiculturalismo 56
Capítulo 3 – Movimento de contestação estudantil e a criação artística 63
A contracultura norte-americana e a revolta estudantil 72
As barricadas estudantis do maio de 1968: elementos para a composição estética
tropicalista 78
O setor cultural no Brasil frente à conjuntura social 82
A ilusão do iminente governo popular 85
As novas estéticas de “subversão” 89
A execução de “É Proibido Proibir” 92
Capítulo 4- O momento da ruptura tropicalista 96
A formação da ideologia jovem 101
“Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades
técnicas” 106
Inserção ou questionamento da indústria cultural 111
Conclusão 117
Bibliografia 124
10
INTRODUÇÃO
“A arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o
homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nessa realidade
absurda”
Glauber Rocha o filme, labirinto do Brasil de Sílvio Tendler
O movimento tropicalista será o principal objeto desta pesquisa. Ele será estudado desde o
nascimento do Tropicalismo, tradicionalmente vinculado à exibição das músicas Alegria, Alegria e
Domingo no Parque, em outubro de 1967, ao exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil na Inglaterra
em 1969. Porém, graças ao enfoque contextual que a pesquisa visará obter, deve-se somar à análise
do período da eclosão do Tropicalismo, o exame de canções anteriores e posteriores a este
momento. A fase tropicalista moldará toda a linha de trabalho de seus membros, que continuam
utilizando, até hoje, tal abordagem em suas composições. É importante chamar atenção para o
legado histórico da década de 1960 com seu papel determinante na mentalidade contemporânea e a
interpretação do período efetuada pelos tropicalistas. A citação fragmentária de toda esta realidade é
o cerne da estética tropicalista, incorporando na música popular problemáticas regionais e globais
1
,
a estética pop, o movimento hippie, o inconformismo e a rebeldia da juventude, o psicodelismo, a
interpretação (livre) da realidade nacional e a linguagem kitsch.
Esta pesquisa buscará observar, de forma imparcial, o momento histórico do fenômeno
conhecido como Tropicalismo concomitante à revolta estudantil e outros eventos que explicitavam
o inconformismo e o experimentalismo de uma geração. Estes acontecimentos foram observados na
segunda metade da década de 1960 em todo planeta. Caracterizada pela explosão da cultura pop,
com latentes reflexos globais, a chamada revolução dos jovens possuía a contestação dos valores
estabelecidos como principal meta. A norma capitalista era questionada em sua medula pela
juventude que passava a conviver na chamada “aldeia global” decorrente da massificação das
transmissões via-satélite e dos bens de consumo. O rápido acesso e afluxo de informação criava
uma juventude intelectualizada, originando uma geração ímpar na história, que possuía um
arcabouço intelectual universal jamais imaginado pelas gerações anteriores.
1
“O cinema sempre se dividiu entre local e global. Pasolini era completamente local, assim como Glauber e Cacá Diegues. É por isso que eles são
universais. Quanto mais local um filme é, quanto mais próximo da verdade de sua gente, mais universalizado será o seu poder de comunicação.” Ao
analisar o cinema Jean Pierre Gorin traz a clara expressão da realidade artística da década de 1960. Gorin fez parte, junto de Jean Luc Godard, Jean
Henri Roger e outros, do Grupo Dziga Vertov, ligado ao cinema político. Dziga Vertov é o codinome de Denis Abramovich Kaufman que propunha o
intitulado “cinema-olho”, o retrato cru da realidade nos filmes documentários. Ver “O cinema é política”; O Globo; 23/08/2005
No decorrer da dissertação pode-se observar a inter-relação do cinema com a música e da literatura com as artes plásticas. Na década de 1960 há uma
maior permuta entre as diversas manifestações artísticas, sendo que o cinema tem um papel marcante na formação desta geração
11
No Brasil, vivia-se o período da ditadura militar ainda em seu início, no que Élio Gaspari
intitula de ditadura envergonhada. A juventude tupiniquim não apresentava as mesmas
características que seus contemporâneos europeus. Aqui havia uma forte vinculação partidária no
movimento estudantil, sendo mais pungente a luta cotidiana contra a repressão da ditadura militar.
Com a preocupação voltada para conjuntura nacional, dava-se pouca importância ao processo de
questionamento do sistema exposto pelos estudantes do Primeiro Mundo. Talvez por viverem
situações onde a vinculação a partidos seria considerada um anacronismo (nos EUA os jovens
selecionados para a guerra do Vietnã queimavam seus certificados de alistamento e entravam na
clandestinidade, fugindo para países vizinhos ou comunidades alternativas), criou-se uma dinâmica
mais utópica e radical junto à juventude do chamado Primeiro Mundo, vinculado a um discurso de
caráter mais libertário. A figura do Partidão (Partido Comunista Brasileiro-PCB) e suas dissidências
tinham grande peso entre os estudantes brasileiros até o período pré-radicalização da luta de
oposição à ditadura, que se dá em fins da década de 1960.
2
Parte do mercado consumidor da indústria fonográfica era formado pela platéia jovem,
ligada às discussões quanto ao papel da arte como uma arma política ou obra de caráter estético
apurado. Os festivais de música popular brasileira (MPB) eclodiam como solução para a
precariedade técnica da ainda incipiente televisão nacional, constituindo grandes aglutinadores e
formadores de opinião. Dentro destes festivais surge o movimento tropicalista musical, com
destaque para Gilberto Gil e Caetano Veloso. O Tropicalismo, com uma linguagem fragmentária e
paródica, tentava exprimir as idiossincrasias de um país que buscava a todo custo a modernização
acelerada (“50 anos em 5” como foi apregoado pelo presidente Juscelino Kubitschek) mas, por
outro lado, convivia com o arcaísmo interiorano. Utilizando novas abordagens musicais
(experimentalismo pop, música aleatória e uso de instrumentos eletrônicos), letras sofisticadas de
difícil compreensão e apresentações cercadas pela polêmica, os tropicalistas angariaram
manifestações apaixonadas de repúdio ou aceitação, principalmente junto ao público jovem e
universitário. A tomada de consciência jovem e o protagonismo da juventude nas modificações
éticas e estéticas tiveram papel determinante em todo planeta e Caetano Veloso, influenciado pelos
acontecimentos globais, dizia na época: “Estou me esforçando para respeitar meu público, que é
jovem como eu, e que está também interessado em que sejamos gente do mundo de agora.”
3
O Tropicalismo, com enfoque específico no Tropicalismo musical e o experimentalismo do
chamado “grupo baiano”, é o objeto da pesquisa referida. A estética tropicalista, com sua crítica ao
2
Não pode-se esquecer que havia uma grave oposição à política imperialista norte-americana e, obviamente, à Guerra do Vietnã, sendo recorrentes as
manifestações anti-Vietnã entre os estudantes brasileiros. Porém, tais manifestações nunca tinham um conteúdo existencialista e questionador da
ordem política conservadora
3
“Bat-poética”; Folha de São Paulo; suplemnnto Mais; 23/02/2005, pg. 8
12
modernismo e à “sociedade unidimensional”
4
, tinha um claro caráter contestatório, semelhante à
juventude questionadora organizadora de manifestações anti-establishment em todo o mundo. É
interessante perceber que a mudança ocorrida em diversas esferas da vida contemporânea ajudou a
redefinir o papel da cultura e, mais especificamente, da música.
O grande mote para a criação tropicalista se referia à renovação musical gerada por seus
elementos, o questionamento das bases da música nacional e da arte visceralmente engajada.
Durante suas apresentações, os tropicalistas refutavam a crítica tradicional, os canais de
comunicação, o grupo engajado da arte popular e o regime militar. O fato de não se inserirem em
uma linha estética bem definida os distanciava dos grupos engajados, sem que isso representasse
uma fácil aceitação pelo mercado consumidor. O Tropicalismo contestava a arte feita apenas em
prol da conscientização política, possuidora de propostas únicas e bem sedimentadas. Os
tropicalistas desejavam criar uma imagem do mundo sem parâmetros, uma imagem baseada em
vários estímulos e reminiscências do Brasil. A base da criação tropicalista consistia na reunião de
diversos elementos da modernidade tecnológica-industrial acrescida do tosco primitivismo nacional.
Obviamente esta pesquisa não deverá buscar respostas simplistas junto aos fatos e
acontecimentos do período para compreender o fenômeno tropicalista, nem mesmo julgar as
canções como respostas a momentos específicos e pontuais. Ao investigar tal tema, é importante ter
em mente a peculiaridade do momento histórico da década de 1960 em todo o mundo e as
reverberações de diversos movimentos filosóficos, morais, civis, éticos e reivindicações propostas
pela sociedade, principalmente por sua parcela mais jovem. O Tropicalismo, como a música pop, o
cinema “udigrudi” nacional, as artes plásticas e outras manifestações artísticas, apresentou uma
modificação radical na elaboração da obra de arte. Exibindo de forma caleidoscópica a cultura
brasileira e mundial (Geléia Geral aparece como um ótimo exemplo do amálgama entre tradição
folclórica nacional e a música estrangeira), os músicos pretendiam vicejar uma crítica requintada e
bem informada, construída num país que possuía ilhas de grande desenvolvimento tecnológico em
contraponto ao atraso da periferia e das regiões rurais. Para compreender esta crítica é necessário
observar todo o quadro cultural e político vivenciado por aquela geração. Questões políticas, que
vinham sendo produzidas com grande repercussão desde a organização dos primeiros sindicatos
proletários com a reunião da Internacional Comunista na década de 1860, viveram um momento
de aquecimento com a Guerra Civil espanhola em 1930 e explodiram após a década de 1960 com as
jornadas estudantis mundiais. Em um momento que o marxismo-leninismo era combatido pelos
estudantes anarquistas, trotskystas, maoístas e esquerdistas em geral, havia um farto arsenal para a
4
Termo cunhado por Hebert Marcuse ao se referir à sociedade contemporânea e sua racionalidade pasteurizada
13
juventude que propunha que: “A humanidade não será feliz enquanto o último burocrata (burocrata
podendo simbolizar os líderes comunistas
5
) não for enforcado nas tripas do último capitalista.”
6
Na Europa e nos EUA, a filosofia anarquista, auto-gestionária e pacifista, angariou
personalidades que propunham nova percepção crítica da revolução tecnológica. No Brasil, este
pensamento alternativo foi taxado por elementos ligados ao movimento estudantil e aos setores
mais politizados como uma atitude hippie e desbundada
7
. O Tropicalismo, por diversas vezes, se
aproximava da linguagem anarquista e sua percepção iconoclasta, dessacralizadora da realidade. O
que Gilberto Vasconcellos chama de linguagem da “fresta”: a procura por amalgamar diversas
tendências de forma criativa fazendo uma crítica velada à realidade, tangível através da sutileza da
língua, da alegoria e da paródia.
Devido à adaptação do discurso ao contexto, o Tropicalismo adquire um papel crucial na
produção musical atual sendo fonte inspiradora para diversos artistas posteriores à eclosão do
Tropicalismo. O crescimento da indústria fonográfica tem grande importância no processo de
adequação dos artistas ao mercado musical e a um novo modo de audição e percepção: a
reprodução em pequenos ambientes muitas vezes solitária e a utilização de aparelhos com grande
qualidade sonora que simulam verdadeiras apresentações.
8
Estas transformações junto ao mercado
da cultura e à política mundial são de grande importância nesta análise, sendo um dos pilares para a
comprovação da hipótese do Tropicalismo situar-se próximo à estética pós-moderna, questionadora
da modernidade e imbuída de uma construção estética fragmentária e intertextual com
características contraditórias e enigmáticas, sempre aberta ao questionamento.
Alguns pontos serão mais aprofundados no corpo do texto como: o conceito de pós-
modernidade, o niilismo e a questão do fim das utopias. Seguindo a proposição da pós-modernidade
como um meio termo entre a exacerbação das propostas modernistas (a originalidade do autor, a
individualidade, o papel exemplar e universal de sua filosofia e o vanguardismo artístico) e a
preponderância de um mundo voltado para a interculturalidade, o fim das meta-narrativas, o
questionamento da universalidade e da padronização, esta pesquisa buscará observar o
Tropicalismo dentro da antítese entre representar uma obra de arte única e original, ser o retrato fiel
5
Nota do autor
6
Grafite dos muros parisienses durante maio de 1968
7
Desbunde: nas décadas de 1960-70 simbolizava o indivíduo que não participava politicamente, voltava-se para o auto-conhecimento, ligava-se à
formação de comunidades alternativas, ou negava a luta armada e muitas vezes envolvia-se com o uso de drogas. Obviamente, não podemos imputar
todas estas qualidades ao “desbundado”. Para Aurélio Buarque de Holanda significava: desvario, loucura, perder o autodomínio, por efeito de drogas.
Enfim um indivíduo despolitizado e alienado da realidade que o cerca
8
A popularização da vitrola ocorre na década de 1960, num momento que cresce abruptamente a venda de LP’s e a popularidade de músicos e
cantores
14
de uma realidade ou criar música para recreação descompromissada. Dentro destas alternativas, os
tropicalistas irrompiam com um “som universal”
9
tecido com toques de Vicente Celestino e
Monsueto, combinados com Frank Sinatra, Beatles e Jimi Hendrix. Uniam assim a música mais
avançada a reminiscências do Brasil folclórico, fazendo referências a vivências pessoais e
universais, utilizando sua percepção da contemporaneidade de forma clara e coerente com a visão
de sua geração. Os tropicalistas abalaram os conceitos musicais em seus alicerces, como nem
mesmo a Bossa-Nova havia feito, e buscavam desconstruir os rótulos e abordagens artísticas no
intuito de fazer uma estética original e contemporânea. Linda Hutcheon frisa a tendência à anti-
totalização e contradição do fenômeno pós-moderno, questionando todos os conceitos estabelecidos
ao implantar um mundo de incertezas e relativismo.
A paradoxalidade da teoria pós-moderna está vinculada à sua própria formação em meio à
oposição explícita ao modernismo e a continuidade de um pensamento vanguardista tipicamente
moderno. O anti-academicismo, a intertextualidade e a paródia são atitudes voltadas ao
questionamento das instituições e à ideologia dominante. O pós-modernismo nasce, na década de
1960, como um movimento ideológico mais ou menos consciente, conforme muitos teóricos gostam
de frisar. As modificações e manifestações que marcaram a década tiveram papel determinante na
criação da nova percepção de mundo. Os principais acontecimentos que marcaram a criação
tropicalista foram: a chegada à Lua, as transmissões via-satélite, a emancipação feminina, o
desenvolvimento científico-tecnológico, a massificação da Indústria Cultural com o advento da TV
e da vitrola
10
, os movimentos culturais, as manifestações estudantis e a formação de uma ideologia
jovem global. Estes acontecimentos são de enorme importância para esta análise pois, através deles,
antevê-se o instante gerador de uma nova estética (Tropicalismo) correspondente à formação de
uma teoria esclarecedora quanto ao mundo contemporâneo (pós-modernismo). Esta nova teoria,
chamada por alguns de terceiro estágio do capitalismo ou pós-modernidade, será compreendida
como um período da história contemporânea onde a cultura alcança um papel preponderante na
mentalidade coletiva, moldando a ética e o gosto através de suas mensagens e narrativas. Deve-se
frisar que dentro da pós-modernidade espaço para o questionamento do etnocentrismo com uma
relativização cultural e pluriculturalidade impensáveis anteriormente.
O reconhecimento das minorias e a constituição de novos mercados consumidores são
conseqüências da transformação no nível das mentalidades, observada após as manifestações
estudantis e de minorias ocorridas na década de 1960. Com este reconhecimento, uma virtual
9
Como a música Tropicalista deveria ser conhecida, segundo seu empresário Guilherme Araújo
10
A vitrola estereofônica que é popularizada em 1968, com o lançamento dos primeiros toca-discos automáticos datando de 1970. Revista Veja 30
Anos, setembro de 1998, pg. 122
15
democratização do capital cultural e uma rapidez, gerada pela inovação tecnológica, da transmissão
de informação pelo mundo. Criou-se uma demanda por bens culturais particulares e assim surgiram
várias manifestações culturais que tentavam compreender e traduzir a realidade contemporânea. A
pós-modernidade, com suas manifestações anti-globalização e movimentos utópicos (hippies,
movimento-sem-terra, comunidades alternativas e movimentos anti-globalização) pode traçar um
painel positivo da relativização política e cultural. Apesar de obliterarem o lado cruel da
contemporaneidade, com a existência da mercantilização exacerbada, o crescimento do poder das
corporações transnacionais capitalistas e do capital flutuante com suas bolhas de desenvolvimento
artificial, a padronização dos gostos gerada pela massificação da indústria cultural e seus produtos
middle-brow, há na crítica e pluriculturalidade pós-modernas, uma riqueza que traz o fim dos
universalismos. Enfim, uma realidade singular, com novas tendências e enfoques, onde se faz
necessária criação de novos conceitos e abordagens.
O que se pode reconhecer na contemporaneidade é a paradoxalidade, a incerteza e a
dificuldade de construção de meta-narrativas que possam criar um conceito universal de civilização.
Em meio ao terrorismo e ao fundamentalismo religioso e ideológico atualmente observa-se a
segmentação dos grupos sociais em facções que defendem sectariamente seu ideário, ao lado de
uma crítica riquíssima, que troca informações em tempo real e discute estarrecida como podemos
dar luz a uma realidade tão contraditória. Nesta pesquisa compreende-se o pós-moderno junto a
estas idiossincrasias, mas com uma bagagem modernista e iluminista ainda marcante, criada com o
questionamento dos conceitos mais caros ao modernismo (universalidade, formação de vanguardas
originais e o individualismo burguês).
A paródia constitui a principal característica modernista herdada pelo pós-moderno. A
paródia, citação irônica ou crítica da realidade, representava o foco da estética tropicalista que
almejava cruzar a história passada com o momento presente, construindo, de forma intertextual,
uma rede complexa de citações. A pós-modernidade representaria a realidade contemporânea rica
em eventos e manifestações culturais, voltadas para um público consolidado, de valores e
comportamento semelhantes. Seguindo uma lógica onde o capital concreto possui mesmo peso que
o capital simbólico, a cultura constrói ícones e desejos com a mesma rapidez que os aniquila.
Viveríamos numa realidade ligada atavicamente a expressões áudio-visuais, onde a simulação é a
norma nas relações cognitivo-sensoriais do indivíduo moderno. A construção de um capital
simulacional, o papel dos construtores de signos e significados (os publicitários e a mídia) adquire
preponderância na venda de sonhos propalada pelo neo-liberalismo.
A estética pós-moderna teve na década de 1960 com o pop, as manifestações jovens e o
Tropicalismo o seu gérmen. Momento onde os cânones modernistas foram questionados e pôde
16
surgir uma nova estética ou teoria da realidade, onde a pluralidade era apresentada em variadas
esferas, sendo latente no campo cultural e político. As manifestações estudantis compunham um
bom exemplo, pois reuniam variadas classes sociais, faixas etárias e ideologias políticas,
consistindo num local onde a variedade cultural se fazia patente.
Fontes e metodologia de trabalho
As principais fontes usadas na pesquisa foram: as canções tropicalistas, havendo também
análise de outras manifestações artísticas coetâneas, anteriores ou posteriores ao movimento;
entrevistas concedidas por seus principais expoentes e reportagens publicadas na imprensa escrita e
trabalhos sobre a MPB. Obviamente, as fontes primárias consistem nas canções tropicalistas, sendo
também de grande importância para o desenvolvimento da pesquisa o acompanhamento de outras
documentações que, muitas vezes, não dizem respeito diretamente ao objeto de pesquisa
(Tropicalismo musical) mas que introduzem informações relevantes para a contextualização do
período. Estas fontes devem ser compreendidas como inseridas dentro de seus contextos, sendo
abordadas de forma crítica e explicativa do fenômeno, relacionando as forças psico-sociais que as
moldaram.
As fontes serão abordadas de acordo com o método da análise de discurso que trata do
trinômio: produção-circulação-recepção de discursos e da importância da contextualização histórica
e social da produção cultural. Através desta metodologia poderá ser revelada a interação existente
entre os diversos eventos ocorridos no período analisado e a gênese do Tropicalismo, missão que é
de vital importância para a comprovação da hipótese deste projeto: o Tropicalismo consistir em
uma estética pós-moderna, como o pop e as agitações populares reivindicatórias (muitas vezes
claramente revolucionárias). Os códigos e práticas discursivas devem ser compreendidos como
determinados pelo contexto, compreendendo que uma mesma obra, inserida em contextos diversos,
tem apreciações divergentes.
A principal problemática ao trabalhar com o tema diz respeito à polêmica em torno da teoria
pós-moderna e o movimento tropicalista. O pós-modernismo é ainda fruto de acaloradas discussões
entre seus detratores (Fredric Jameson e Jürgen Habermas) e os que defendem uma posição crítica
em relação à padronização comportamental e as corporações multinacionais (transnacionais), mas
que vêem de bom grado a interculturalidade pós-moderna (como Hayden White e Linda Hutcheon).
No hiato das duas tendências estão os que não reconhecem a teoria pós-moderna, entendendo o
17
momento atual como uma radicalização dos pressupostos modernistas, sem haver uma ruptura com
sua teoria.
No tocante à tradição dos trabalhos e estudos sobre o Tropicalismo, a tendência em
classificá-lo como diluidor da modernização nacional e mantenedor dos traços antropofágico-
modernistas de Oswald de Andrade. O antropofagismo, inegavelmente, teve grande crédito na
formação da linguagem tropicalista, mas não alcançou o papel de norteador do movimento. Dentro
da grande teia de influências erigida pelos tropicalistas o modernismo era um dos principais temas,
por sua posição de preponderância cultural e pela crítica tropicalista ao próprio modernismo.Várias
manifestações - como a sica folclórica nacional, música experimental (música serial e música
eletrônica), a poesia concreta, o cinema novo e o movimento beatnik - tiveram papel determinante
no Tropicalismo, rendendo uma arte intertextual, que reunia fragmentos da realidade planetária na
tessitura de um quadro de inventividade única.
Dentre os trabalhos mais recentes e interessantes sobre a MPB (Música Popular Brasileira)
que vicejaram na década de 1990 sublinhamos os realizados por Marcos Napolitano
11
e Liv Sovik
12
,
ambos apresentados como tese de doutorado na USP, em história e comunicação social
respectivamente. Napolitano trata da criação da estética nacional-popular dentro da música
brasileira, enquanto Sovik defende a hipótese do Tropicalismo compor uma estética pós-moderna.
Outros estudos que podem ser considerados clássicos junto à pesquisa da MPB são: a tese de
Heloísa Buarque de Hollanda
13
que trata a cultura brasileira dos anos 60 e 70, abordando desde os
CPCs (Centro Popular de Cultura da UNE) e as polêmicas dos festivais de música até a chamada
geração do desbunde de inícios dos anos 70; a tese de mestrado de Celso Favaretto
14
que fala em
uma “mistura Tropicalista”, uma revisão cultural na busca de um movimento de “redescoberta” do
Brasil junto à conjuntura de dependência econômica, à concretização de uma sólida indústria
cultural e de uma política de conscientização popular empreendida por setores engajados de nossa
cultura; Gilberto Vasconcellos
15
que vê o Tropicalismo como responsável por uma atitude voltada a
combater a mesmice cultural pós-64, partindo para uma ação de consciência renovada; Walnice
Galvão
16
que analisa a música de protesto como reflexo de um momento onde o conformismo
estaria travestido por letras engajadas que propunham a interferência na realidade e conscientização
11
Napolitano, Marcos F.; Seguindo a canção: Engajamento Político e Indústria Cultural na Trajetória da Música Popular Brasileira (1959-
1969), tese de doutorado apresentada em novembro de 1998, junto ao Programa de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo
12
Sovik, Liv; Vaca Profana: teoria pós-moderna e música popular brasileira, tese de doutorado defendida junto à ECA/USP, 1994
13
Hollanda, Heloísa Buarque de; Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70, Rio de Janeiro, Rocco, 1992
14
Favaretto, Celso; Tropicália: Alegoria, Alegria, São Paulo, Ateliê Editorial, 1996
15
Vasconcellos, Gilberto; Música Popular: de olho na fresta, Rio de Janeiro, 1977
16
Galvão, Walnice; “MMPB: uma análise ideológica”; In. Sacos de gatos: ensaios críticos, São Paulo, Duas Cidades, 1976, pg.94
18
do público enquanto tolhe a ação do espectador ao exibir dois “seres imaginários” presentes nas
canções: o “dia que virá” e o culto à canção como objeto fetiche.
Nesta pesquisa deve-se ter em mente a adequação do Tropicalismo à realidade circundante,
a problematização da noção de representação na arte. Questões como a representação, a apropriação
e o uso de uma linguagem multifacetada fazem com que haja tendência em abordar o movimento
dentro da ótica pós-moderna. A influência burlesca na literatura, o experimentalismo da arte pop, o
crescimento de uma nova sensibilidade jovem, a liberação da instintividade e a chamada “revolução
dos costumes” tiveram forte apelo na construção das músicas tropicalistas: “ela pensa em
casamento/ e eu nunca mais fui à escola/ sem lenço sem documento/ eu vou”.
17
Dentro de uma sociedade abalada pela ditadura militar a música era representante dos
canais de resistência ao regime militar constituindo, junto a outras manifestações artísticas, um dos
últimos bastiões do pensamento livre no Brasil. Porém, os tropicalistas não enveredavam pelos
caminhos da “música de protesto” engajada, surgindo, assim, uma oposição ao seu
experimentalismo. Esta divisão entre partidários de uma arte voltada para a realidade do povo mais
humilde e os que valorizavam a busca de novas tendências e sonoridades permanece enraizada em
nossa cultura até os dias de hoje. Alguns pesquisadores ainda tratam o Tropicalismo como uma
“macaquice” de país subdesenvolvido não aludindo à importância desta manifestação para a
“retomada da linha evolutiva da música popular brasileira”, como afirmava Caetano Veloso. ”Linha
evolutiva” que pode ser problematizada através do questionamento do conceito de progresso e
evolução inserido no capítulo que versa sobre o mencionado conceito. Idéia de evolução diferente
da concebida pelos integrantes do grupo engajado que pretendiam criar uma arte ligada ao povo, a
temas e sonoridades rurais, pouco valorizadas pelo mercado.
Caetano propunha a fusão da arte popular com o a arte erudita, num processo de acesso
massificado às grandes obras primas da cultura universal. A atitude de reunir o burlesco e o culto, o
lowbrow ao highbrow, gera uma cultura de massas também conhecida como midbrow que procura
uma configuração intelectualizada a obras que devem ter compreensão universal, obras que buscam
a popularização do “bom-gosto cultural”.
18
O que os tropicalistas buscavam criar se assemelhava a
esta cultura midbrow, tentando transformar o artista em algo similar à apresentação de José
Agrippino de Paula feita por Carlos Heitor Cony: “um artista que, através do moderno e bem
informado artesanato literário, consegue construir o seu universo peculiar e universal; para ser mais
17
Alegria, Alegria de Caetano Veloso, 1967
18
Questões discutidas por Umberto Eco Apocalípticos e Integrados, São Paulo, Perspectiva, 1976 Onde trabalha com o conceito de Dwight
MacDonald exibido em Against the American Grain, Random House, New York, 1962
19
exato, seu universo particularmente universal.”
19
Exatamente como se pode definir a estética pós-
moderna e o Tropicalismo (os dois não são similares, fique bem entendido): manifestações que
buscavam traduzir as ansiedades, sonhos e percepções de seus autores, erigidas de forma
fragmentária e referencial. Alguns analistas como Gilberto Vasconcellos faziam questão de
enfatizar a sagacidade da crítica política tropicalista afirmando que era a forma mais inteligente de
“incorporação da matéria política” da MPB. Na fresta, na fronteira entre o sofisticado e o brega, o
Tropicalismo realizava sua crítica à massificação e padronização comportamental e ideológica
propagandeada pelo mass media, invertendo e subvertendo o significado dos símbolos da indústria
cultural.
Deve-se ter em mente o estudo das características da obra tropicalista como antecessora de
uma série de revisões da música popular e inclusão de elementos internacionais na música brasileira
que, como foi observado, nem a Jovem Guarda ou a Bossa-Nova reuniram tão bem. Com a
introdução de instrumentos elétricos, a maior atenção para a música internacional e a nova
mentalidade jovem global, os tropicalistas pavimentaram o caminho para o aparecimento de
manifestações inusitadas como o “forrócore” dos Raimundos, o “maracatu dub” de Chico Science e
Nação Zumbi, o rock de Rita Lee, o soul de Tim Maia, o rock brega de Raul Seixas
(contemporâneo de Caetano Veloso e Gilberto Gil em Salvador) enfim, variados grupos e
movimentos musicais que propõem a utilização do tempero nacional junto à base cosmopolita.
Um dos principais motivos para a introdução de elementos estrangeiros na MPB estaria
ligado ao crescimento da indústria fonográfica e ao processo de modernização nacional. Estes
elementos provocaram um fluxo de informações jamais visto anteriormente, sendo um ótimo meio
para a exposição de uma crítica à realidade nacional e para a apropriação de novos elementos
estilísticos. Aproveitando este rescaldo cultural, os tropicalistas criaram meios de difundir sua
estética através de práticas impactantes e cercadas de polêmica, servindo-se da indústria cultural
para exibir suas obras. As principais questões a serem trabalhadas vertem exatamente desta
construção crítica tropicalista, da identificação com os anseios da juventude mundial e da idéia do
Tropicalismo estar ligado atavicamente à indústria cultural, questão esta que será criticada nesta
dissertação. A indústria cultural foi o principal tema e referência para a crítica à realidade
contemporânea realizada pelos músicos tropicalistas e pelo movimento pop artístico mundial.
A relevância desta pesquisa reside no fato dela ter como temática as transformações vividas
pela sociedade contemporânea e seus reflexos na cultura brasileira e mundial. Ao fazer uma
19
Revista Civilização Brasileira; “Inquérito: o Romance urbano”, Rio de Janeiro, Ano, número 7, maio de 1966, pg. 220
20
abordagem baseada na análise da música brasileira num período pontual, busca-se tratar a cultura
como determinante na formação de uma nova realidade. Uma realidade onde a cultura adquire
função mediadora entre a infraestrutura e a superestrutura, onde a cultura modifica os padrões
materiais e simbólicos e se sobrepõe a outras esferas, eclodindo como a principal influência junto à
sociedade voltada para a criação de novos anseios e desejos, muitas vezes baseados no simulacro e
na ilusão, bases da cultura áudio-visual contemporânea.
Por ter um enfoque voltado para a compreensão de uma nova realidade, não se limitando ao
estudo da música tropicalista com suas características e problemáticas, esta pesquisa busca
contribuir de forma decisiva para que se retenha um período da história mundial caracterizado pela
rebeldia e inventividade. Um período que alguns colocam como o ocaso das utopias, o último
suspiro das ideologias revolucionárias e que será visto nesta pesquisa como um momento de
conflito ideológico e de grande criatividade artística. Um período onde o mundo viveu
acontecimentos que iriam modificar para sempre a sua história e que o Tropicalismo buscou
abranger em suas mudanças, conflitos e permanências.
21
CAPÍTULO 1
“Weder dem Vergangenen anheimfallen noch dem Zukünftigen. Es
Kommt darauf ein ganz gegenwärtig zu sein.”
“Não almejar nem os que passaram nem os que virão. Importa ser
de seu próprio tempo.”
Karl Jaspers, epígrafe de Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt
A experiência musical tropicalista
A presente pesquisa visa buscar elementos que aproximem a estética tropicalista do
denominado “terceiro estágio do capitalismo”, descrito por Ernest Mandel em seu O capitalismo
tardio. Para correlacionar o Tropicalismo e o pós-moderno é primordial focalizar o objeto de nossa
pesquisa sob uma ótica diferenciada dos trabalhos anteriores sobre o tema. Faz-se mister realizar
uma abordagem não interdisciplinar como também dar primazia a uma fundamentação teórica
baseada na contextualização do momento gerador do movimento tropicalista, buscando auxílio
junto aos enunciados desta estética, de modo a compreendê-los como condicionados e adequados à
sua realidade circundante. Por buscar relacionar a estética tropicalista à perspectiva pós-moderna, é
necessária uma breve explanação sobre o nascimento do termo “pós-modernismo” e a compreensão
deste polêmico conceito.
Quanto ao movimento tropicalista, será abordado o período 1967-1969, tendo como marco
principal: o III Festival da Música Popular Brasileira (MPB) organizado pela TV Record (outubro
de 1967), palco do lançamento do “som universal” tropicalista, representado pelas músicas Alegria,
Alegria e Domingo no Parque; finalizando com a instituição do AI-5, o aprisionamento e
conseqüente exílio de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Não esquecendo a importância de sua
produção posterior, útil para o diálogo com o Tropicalismo e os ideais estéticos contemporâneos. O
papel do Tropicalismo será discutido junto às transfigurações da MPB na cada de 60, sua relação
com a indústria cultural e as transformações conjunturais suscitadas pelo advento da cultura de
massas (mass media) coadunadas com a solidificação de um mercado jovem, de caráter
contestatório e inovador.
Haverá a tentativa de compreender a magnitude do fenômeno cultural na década de 1960,
com enfoque na música e estética tropicalistas. Ao tratar de um tema sempre suscetível a
influências hodiernas, a cultura da época deve ser analisada sob a perspectiva de um conjunto
heterogêneo e plural, nunca compreendida como um bloco uniforme. A música, principal enfoque
22
desta pesquisa, por sua propensão em utilizar a linguagem coloquial e estar mais aberta a várias
influências, terá que ser analisada de maneira peculiar.
Deve-se compreender o fenômeno musical como uma manifestação espontânea e bissexta,
com grande capacidade de retratar o ambiente e a mentalidade de uma época, uma espécie de
laboratório sonoro para a pesquisa histórica. Um laboratório com uma inesgotável capacidade de
suprir os pesquisadores de detalhes e informações sobre a sociedade e a conjuntura contemporânea
à criação artística. Porém, todas estas formas de examinar a música devem, indiscriminadamente,
tomar como parâmetro o contexto mental, social e político contemporâneo à criação, principalmente
quanto ao papel da música como mediadora entre diversas áreas culturais. Esta pesquisa se
aproxima das abordagens contemporâneas da música que levam em conta o contexto, como é
colocado no Dicionário do pensamento social do século XX: “A história social da música é
encarada cada vez mais em termos do objetivo de recuperar o significado de uma dada peça musical
por meio de consideração dos valores culturalmente específicos que lhe informam a produção, o
consumo e disseminação.“
20
É de suma importância o instante que a produção cultural se insere e as
conseqüências do contexto nesta produção para poder entender as motivações e influências de seus
produtores. Especificamente falando, a urbanização e a massificação da indústria cultural, correlato
às mudanças ocorridas no mundo serão os principais temas desta pesquisa sobre a música
tropicalista e sua inserção nos movimentos de questionamento da realidade contemporânea. A
compreensão do Tropicalismo como imbuído de uma forte crítica e necessidade de se adaptar à
urbanização, às premissas mais caras ao alto modernismo e à ditadura servirá como o ponto de
partida. A análise das letras musicais e os meios de comunicação são as principais fontes para a
comprovação da hipótese do Tropicalismo consistir num movimento contemporâneo, com
características semelhantes à estética pós-moderna.
A paródia e o kitsch na estética tropicalista
Diante de novas atitudes e visões de mundo, o Brasil, pela sua riqueza e pluralidade cultural,
deveria representar o novo paradigma para as transformações contemporâneas e o Tropicalismo
assumiria o papel de agente transformador e crítico dessa nova ordem. Essa transformação passava
inexoravelmente pelo reconhecimento do descentramento parodístico e do kitsch praticados pela
estética tropicalista. Quando se coloca um trabalho como uma obra centrada significa que esta obra
segue normas bem definidas quanto a seu conteúdo e formato. a obra descentrada representaria a
20
Outhwaite, William e Bottomore, Tom; Dicionário do pensamento social do século XX, versão brasileira; Renato Lessa e Wanderley Guilherme
dos Santos; Rio de Janeiro, Zahar, 1996
23
obra que não seguiria conduta pré-estabelecida, que faria uso da paródia
21
e da fragmentação,
questionando a tradição musical nacional. Affonso Romano coloca a questão do descentramento
muito bem:
“E a paródia de Caetano se dá sempre em dois níveis. Primeiro, numa relação intertextual referindo-se a textos
de outros autores, citando-os e deles se apropriando. Em segundo lugar, de uma maneira sonora, usando a linguagem
musical que outros usam, mas justamente para lhes dar uma nova usança.”
22
A intertextualidade pode ser denominada também de apropriação ou bricolagem, sendo suas
características básicas o sincretismo e o uso de um leque variado de influências e adaptações tanto
musicais como relacionados à produção de narrativas ou obras artísticas. O sincretismo designaria a
prática de amalgamar elementos díspares e até mesmo antagônicos, na construção de um elemento
novo que ainda preservaria sinais de sua origem plural. É interessante notar que o pós-modernismo
tem como característica a profusão de signos e a preocupação com o texto, com a preponderância
de uma linguagem comercial ou populista, que mascara qualquer diferença entre a cultura erudita e
a cultura popular, o que alguns acusariam de consistir na mercantilização da obra de arte. A música
pop da década de 1960 tem um papel importante dentro da estética pós-moderna e sua total inserção
na chamada indústria cultural. O rock inglês e norte-americano dos anos 1960, que muito teria
influenciado o Tropicalismo, tinha uma atitude agressiva e questionadora, agindo contra o chamado
sistema comercial da arte e da indústria cultural. Porém, desde a década de 1980, com a supremacia
de determinados canais de veiculação da música (principalmente com a solidificação da MTV
norte-americana), criou-se um mercado da música balizado pelas aparições dos artistas em revistas
específicas do público de rock e nos vídeo-clipes televisivos. Assim, houve a pavimentação de um
canal singular de veiculação musical, os vídeo-clipes, que passam a moldar letras, cenografia e
noção temporal da música contemporânea, servindo de parâmetro para os processo criativos atuais.
A hipervisualização, típica da pós-modernidade e de canções tropicalistas (Alegria, Alegria e
Domingo no Parque), é utilizada maciçamente pelos músicos atuais em seus vídeos, realizados
com a preocupação que a música deva ser elaborada como o videomaker elabora um vídeo, de
forma fragmentária e multifacetada..
Na cada de 1960 a imagem adquire um peso cada vez maior na formação do mercado
consumidor, havendo uma intervenção na estética visual das mercadorias e das manifestações
culturais dentro da indústria cultural. Cientes de tais acontecimentos, os tropicalistas utilizavam
cenografias e figurinos de forte apelo visual, certos que tais procedimentos lhes renderiam maior
21
“A paródia é uma linguagem que corta a linguagem convencional, invertendo o significado de seus elementos. Ela denuncia e faz falar aquilo que a
linguagem normal oculta. Tirando um texto de seu uso habitual e colocando-o em outro contexto faz-lhe ressaltar o ridículo.” Sant’anna; Affonso
Romano de; Música popular e moderna poesia brasileira; Petrópolis, Vozes, 1977, pg. 109
22
Sant’anna; Affonso Romano de; Música popular e moderna poesia brasileira; Petrópolis, Vozes, 1977, pg. 109
24
repercussão junto à indústria cultural. Episódios como a campanha da indústria têxtil (Rhodia) e a
adoção de uma linguagem jovem mostram a atração exercida pela indústria cultural junto aos
tropicalistas. Porém, a veiculação de sua estética junto à mídia não esvaziava o caráter crítico e
desmistificador das obras tropicalistas. A sua exposição tinha um cunho polêmico e dessacralizador,
com várias críticas à sua “frescura”
23
ou apropriação de estrangeirismos. Em conformidade com seu
tempo, o Tropicalismo inseria elementos de uma realidade inapresentável e absurda na simulação
do real. Exibia trabalhos voltados não apenas para o seu ramo de atuação (a música tropicalista),
mas para estímulos visuais e sonoros que pudessem estar de acordo com os novos meios de
comunicação e percepção.
A crise da modernidade
Por convenção, deve-se usar determinados termos correntes ao vocabulário cotidiano como
modernismo, modernidade, pós-modernismo e pós-modernidade. Para fazer uso de tais conceitos é
imprescindível delimitá-los e compreendê-los. Nos dias de hoje, há uma grande discussão no
sentido de encontrar uma denominação apropriada para a realidade contemporânea. É fluente o uso
do termo “crise da modernidade” ou “fim da modernidade” para se referir ao mundo
contemporâneo, no momento que se inicia o questionamento maciço dos valores e do processo
modernizador infindável.
Muitos colocam essa crise como o colapso da estrutura capitalista extrativista e predadora,
que tende a esgotar os bens minerais e acarreta graves conseqüências para o modelo econômico
neo-liberal. Com a tendência ao esgotamento dos bens naturais e a virtual impossibilidade de dar a
toda população acesso aos avanços da modernidade, despontam movimentos preservacionistas ou
ligados ao fomento de materiais e combustíveis alternativos. Desta virtual dificuldade em
harmonizar o uso dos bens naturais, surge uma questão colocada por vários autores: a definição de
novos parâmetros de desenvolvimento e o questionamento desta idéia de eterno desenvolvimento e
modernização.
Fredric Jameson e Jean Baudrillard, de forma diversa, vêem a crise da modernidade como o
avanço de um novo período do capitalismo, o que alguns chamam do “terceiro estágio do
capitalismo”, “sociedade pós-industrial”, “capitalismo multinacional”, “sociedade do espetáculo e
da imagem”, “sociedade do simulacro”, enfim, denominações que remetem a uma permanência do
capitalismo, agora fundado em novas bases. Esse “novo” sistema seria caracterizado pela:
23
Referência a matéria “Interdependência ou a frescura instalada em nossa música popular?” de Sérgio Cabral no Pasquim de 07/1969 número II,
onde criticava Egberto Gismonti pela adoção de influências musicais orientais em sua produção.
25
globalização e transnacionalização do capital, descolonização das antigas colônias africanas e fuga
da produção para áreas do Terceiro Mundo no objetivo de baratear a produção. O setor cultural teria
como particularidades: o simulacro e a mercantilização da obra de arte, paralela à culturalização da
mercadoria e o esmaecimento das propostas das vanguardas modernistas que se destacavam pela
originalidade e experimentalismo em suas obras. O chamado pós-moderno, principalmente no
tocante às atividades produtivas, se liga ao progresso das forças produtivas, à manutenção da
exploração do trabalhador através do recrudescimento da mais-valia relativa, ao redimensionamento
dos custos buscando a terceirização, ao máximo aproveitamento das capacidades, a maciça
mecanização e informatização industrial. a busca intermitente do lucro pelo empresariado, o
fomento do mercado especulativo mundial, o nascimento de novas técnicas produtivas, o uso
maciço da tecnologia no mundo produtivo e cultural (outra característica do ideal de progresso
interminável modernista) e, mais eloqüentemente, o emprego da imagem junto à formação de uma
realidade simulacional, muitas vezes irreal, para estimular o desejo de consumo e nortear o
imaginário contemporâneo.
No que se refere à estética e às práticas culturais, o pós-modernismo simbolizou uma clara
tendência à abertura a novas linguagens e propostas, com um singular esmaecimento do
universalismo e de suas conseqüências. Ihab Hassan
24
, um dos principais teóricos da pós-
modernidade, elencou entre as diferenças esquemáticas do pós-modernismo e do modernismo: o
acaso, a dispersão, a história local e pessoal, o individual, a ironia, a imanência em comparação
com o projeto modernista, que sobrepunha-se com o centramento, a grande narrativa, a metafísica e
a transcendência, respectivamente. No pós-modernismo a tendência seria a justaposição
heterogênea de estilos e imagens, valorização da crítica à uniformidade e à racionalidade. ainda
uma dificuldade em se usar o termo pós-moderno em detrimento de moderno ou modernismo. Essa
dificuldade se pelo peso de uma tradição modernista que paira sobre as mentes contemporâneas,
as influenciando e questionando sua validade. O pós-modernismo, observado genérica e
esquematicamente, apresenta oposições em relação ao modernismo. Porém quando se conclui que o
pós-modernismo e sua tendência à efemeridade, ao questionamento e à fragmentação o aproximam
das vanguardas tipicamente modernas e, de sua avidez pela originalidade, surge um paradoxo.
Nos anos 1960 foi criado um ambiente propício para o desenvolvimento de mercados
consumidores de produtos alternativos, com o crescimento de uma mentalidade comunitária jovem,
avessa ao consumismo. A mesma crítica ao consumismo provocou o crescimento da procura por
produtos naturais, orgânicos, autênticos e ecologicamente corretos, nascendo um mercado de alto
24
Hassan, Ihab; The Dismemberment of Orpheus, extraído de Connor, Steven; Cultura Pós-moderna; São Paulo, Ed. Loyola; 1992, pg. 94
26
poder aquisitivo. Na cultura a procura por artistas vinculados a um discurso alternativo gera uma
indústria fonográfica forte e diversificada. No intuito de abastecer os desejos de um mercado jovem
e sequioso por novidades, a indústria investe em gêneros de pouco destaque e em obras esquecidas
de artistas pré-indústria fonográfica. A arqueologia sonora passa a constituir um dos principais
passatempos dos músicos das décadas de 1950 e 1960, ajudando a formar uma geração com rara
percepção histórica da música, possuidora de acesso a sonoridades e temas graças à facilidade de
transmissão de informações gerada pela revolução tecnológica.
Ao observar essas permanências, ou sofisticações da modernidade, há a indagação em
corroborar o nascimento de um novo sistema produtivo de alcance global, pois persistem os
sintomas modernistas, ainda muito bem fundados, junto a uma série de transformações que podem
ser classificadas como pós-modernas. O que assistimos atualmente é a transição ou aprimoramento
de um sistema com claras repercussões em todo o planeta. Modificações que se iniciam após a
Segunda Guerra Mundial com a vitória dos aliados e o auxílio concedido pelo Plano Marshall às
nações vítimas da guerra que ajudarão a consolidar o capitalismo sob os moldes norte-americanos
em toda a Europa e, conseqüentemente, em todo o mundo. É interessante observar que, junto ao
predomínio do modelo norte-americano no setor produtivo, a fixação de uma cultura norte-
americana como representante do que poderia haver de mais refinado. Com o rock, a cultura norte-
americana toma de assalto todo o mundo e assim são lançados os pilares do pop. Cultura pop que
era assimilada por todo o mundo, principalmente através do fomento da indústria fonográfica e do
cinema norte-americano, que transmitiam as músicas e o modo de vida ianque. As universidades
buscam cientistas e professores na Europa destruída pela guerra. Os mercados europeus, com suas
indústrias se reerguendo, passam a constituir valiosos mercados consumidores de produtos dos
EUA.
Neste momento, o fluxo de difusão cultural é transformado com a proeminência dos norte-
americanos no envio de produtos culturais. Fluxo este que sempre foi em via contrária com a
Europa moldando os gostos e difundindo seus produtos pelo mundo. O mais interessante dentro
desta questão da mudança do pólo cultural é ver que sempre houve uma interação entre os dois
pólos: metrópole e colônia, Europa e Oriente, o Velho e o Novo Mundo. Muitas vezes a interação
foi feita de forma desfavorável para o lado dos colonizados. Todavia, é inegável a forte influência
da expansão marítima na mudança dessa mentalidade. Da mesma forma que os europeus adquirem
a cultura americana com um gosto de exotismo e descoberta de novos hábitos, impositiva ou
pacificamente, os americanos se adestram na cultura européia. As trocas entre o Novo e o Velho
Mundo frutificam novas culturas originais e embebidas de influências diversas, os africanos levados
pela escravidão, os europeus colonizadores, os indígenas autóctones e um novo homem, o colono
27
que possui na América espanhola uma denominação específica criollo e as variadas miscigenações
geradas pela variedade racial. Estes colonos é que irão transformar a América num continente onde
irá vicejar uma cultura sincrética, que não possui um foco bem definido. Uma cultura que explora
influxos eruditos e locais, transformando o eruditismo católico europeu numa versão palatável ao
Novo Mundo.
25
A entrada de produtos norte-americanos, após a Segunda Guerra, é feita de forma maciça
pela indústria fonográfica havendo, acima de tudo, a descoberta de novas sonoridades e linguagens
artísticas, não propagadas pela mídia. Produtos como o jazz, o blues, a literatura beatnik e outras
manifestações marginalizadas pela indústria cultural adquirem um espírito mítico junto ao público
europeu. O Brasil não se viu livre da avalanche de produtos norte-americanos após a Segunda
Guerra, com o rock tendo papel disseminador da cultura jovem, semelhante ao realizado na Europa
e no resto do mundo.
Porém, o fato do pós-moderno estar intimamente ligado à permanência das práticas
capitalistas, práticas estas cada vez mais corporativas e globais, provoca uma análise dúbia do pós-
moderno. Contraditoriamente, o pós-moderno é situado como uma manifestação de pluralidade
cultural e compreensão de novas identidades sociais e culturais, sendo, ao mesmo tempo o
responsável pelo virtual domínio de uma infraestrutura capitalista global nos moldes norte-
americanos, implementando a transnacionalização do capital. Através da dominância do sistema
capitalista a nível global uma virtual preservação de práticas comuns ao imperialismo, agora
exercido de forma mais sutil e cruel.
26
Essas visões ocasionam abordagens que apresentam o
período atual como uma modernidade avançada. Anthony Giddens afirma: “Em vez de estarmos
entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as
conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que
antes.”
27
A lógica cultural do capitalismo tardio
Em oposição a Giddens, Fredric Jameson sugere a imposição da lógica cultural como o
principal marco para compreender as modificações do capitalismo contemporâneo. A cultura se
torna uma “segunda natureza”
28
havendo uma enorme distenção da esfera da cultura, o que Jameson
25
Vide o notável e original sincretismo cultural e religioso ocorrido na América Latina
26
Ver Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo; São Paulo, Companhia das Letras, 1989
27
Giddens, A., Consequências da Modernidade; São Paulo, Unesp, 1991; pg. 12-13
28
Jameson, F.; Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio; São Paulo, Ática, 1996, pg. 13
28
coloca também como a esfera da mercadoria, “(...) uma aculturação do Real imensa e
historicamente original, um salto quântico no que Benjamin ainda denominava a ‘estetização’ da
realidade.”
29
Jameson afirma que atualmente a própria cultura teria se transformado em um produto
de consumo, ao mesmo tempo que configuraria num meio de transformar produtos e desejos
supérfluos em necessidades indispensáveis.
É importante observar o pensamento de Jameson para compreender a capacidade
simulacional e a importância da imagem no mundo atual. Ele ressalta o crescente prestígio dos
veículos de comunicação junto à indução ao consumo consistindo nos principais formadores de
opinião presentemente. Não sem motivos, há o cerceamento do que pode ser veiculado nestes
canais de comunicação, pois eles consistem o chamado quarto poder ou o que alguns imaginam
como a sociedade civil
30
. Sociedade que se faz ouvir através dos meios de comunicação. Como
melhor exemplo citamos a censura dos meios jornalísticos na cobertura das guerras, quando, para
não enfraquecer o moral da tropa, a imprensa não pôde relatar baixas ou ataques inimigos. Uma
cobertura imune à censura poderia fomentar a oposição à guerra entre os cidadãos, como ocorreu
durante a guerra do Vietnã, de onde a televisão transmitia ao vivo as cenas de guerra, com toda sua
violência e agressividade. Cenas veiculadas nos noticiários transmitiam para dentro dos lares
americanos as atrocidades da guerra, relatando mortes de soldados norte-americanos e trazendo o
repúdio da sociedade à guerra. Sendo a primeira guerra transmitida via satélite e ao vivo, as reações
eram imediatas aos acontecimentos, com a juventude tomando a frente dos protestos pacifistas
denunciando massacres de vietnamitas e o alistamento compulsório nos EUA. A mesma imprensa
que é manipulada no intuito de divulgar notícias falsas voltadas a confundir o inimigo e testar seu
poder de reação.(o Pentágono divulgou a notícia do ataque a Fallujah, bastião da resistência
iraquiana, meses antes do efetivo ataque para poder estudar a reação e organização do oponente; ou
um escândalo recente quando um falso repórter pago por instituições de propaganda republicana
fazia questões combinadas, no intuito de fazer propaganda para o governo norte-americano)
31
Goebbels, o responsável pela propaganda nazista alemã, do controle psicológico e cultural de sua
população é um personagem típico do crescente poder da cultura e da sua importância.
A cultura passa a permear todas as esferas da vida cotidiana, da produção à construção das
idéias, passando pela comercialização de mercadorias. a transposição da esfera da produção de
mercadorias para a esfera da produção de imagens e sonhos simbolizados por mercadorias.
29
Jameson, F.; Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio; São Paulo, Ática, 1996, pg. 14
30
Casos clássicos são: a deposição de Richard Nixon da presidência norte-americana por causa do escândalo de Watergate e o impeachment de
Fernando Collor de Melo no Brasil
31
Rich, Frank; “Repórteres falsos promovem Casa Branca”; Folha de São Paulo; 20/02/2005, originalmente publicado no New York Times
29
Nas obras construídas sob a égide pós-moderna a virtual simulação de um real
inexistente, como Jameson diz de forma negativa:
“(...) a produção cultural é relegada a um espaço mental que não é mais o do velho sujeito monádico, mas o de
um ‘espírito objetivo’ coletivo e degradado...”
“Se sobrou algum tipo de realismo aqui, é o ‘realismo’ derivado do choque da percepção desse confinamento e
da consciência gradual de que estamos condenados a buscar a História através de nossas próprias imagens pop e dos
simulacros daquela história que continua sempre fora de nosso alcance.”
32
Essa negatividade é explicada pela visão de Jameson ligada ao marxismo com a dificuldade
em totalizar coerentemente o fenômeno pós-moderno. Além dessa dificuldade, a apreensão do
papel da simulação na vida contemporânea, simulação que promove uma massificação de imagens
publicitárias e midiáticas que fruem com grande desenvoltura na formação da mentalidade
contemporânea. Jameson vê a história fora do alcance do indivíduo comum consistindo, na verdade,
numa construção realizada por variados canais de difusão de informações e imagens.
Variados elementos tomam parte atuante na simulação de uma linguagem baseada na
imagem. O gadget e o kitsch são dois elementos que servem para Jean Baudrillard apresentar a
teoria do simulacro e sua inserção tanto no mundo da cultura, quanto no mundo econômico, onde a
construção de desejos e miríades consumistas supérfluas é a constante. Lembrando a estética pós-
moderna, o gadget e o kitsch exibem características ligadas à nova norma cultural. A definição do
kitsch realizada por Baudrillard é elucidativa:
“O kitsch constitui, como a engenhoca (gadget), uma das categorias maiores do objeto moderno. (...) O kitsch
surge com o equivalente do clichê (lugar-comum) no discurso. (...) O kitsch pode encontrar-se em todo o lado... Será
melhor defini-lo como pseudo-objeto, isto é, como simulação, cópia, objeto factício e estereótipo, como pobreza de
significação real e sobreabundância de sinais, de referências alegóricas, de conotações discordantes...”
33
O termo kitsch surge na Alemanha para especificar uma fase de gênese estética de um estilo
marcado pela falta de estilo, com sua marca supérfula e pouco usual. A palavra kitsch, no sentido
moderno, aparece em Munique por volta de 1860. Palavra usual no sul da Alemanha, kitschen
significa fazer móveis novos com velhos; verkitchen quer dizer trapacear, receptar. Ludwig Giesz
atribui o termo ao verbo alemão kitschen, que significa literalmente, colher o lixo das ruas numa
aproximação do conceito artistic rubisch associado ao termo junk art. O termo, enfim, é permeado
de um sentido negativo.
32
Jameson, Frederic; Pós-modernismo: lógica cultural do capitalismo tardio, São Paulo, Ática, 1996, pg. 52
33
Baudrillard, J.; A Sociedade de Consumo, Lisboa, Edições 70, 1975, pg. 175
30
“O Kitsch é a mercadoria ordinária (Duden), é uma secreção artística derivada da venda dos produtos de uma
sociedade em grandes lojas que assim se transformam, a exemplo das estações de trem, em verdadeiros templos”
34
O kitsch surge como categoria cultural, como uma linha bem clara de pensamento e de ação
para fundamentar a nova percepção artística contemporânea. O kitsch teria um papel subversivo e
dessacralizador, alguns viam o uso do mau-gosto, do kitsch como representativo da carnavalização
do movimento tropicalista, ou do esvaziamento de sentido do próprio movimento. Gilberto
Vasconcellos caracterizava o uso do kitsch pelos tropicalistas como a “caricaturização da
modernização reflexiva”
35
, ou seja, o kitsch seria utilizado para expor a modernização brasileira e
as suas dificuldades e idiossincrasias. Através da exibição de características kitsch, o Tropicalismo
tornava público o processo modernizador nacional, “a criança sorridente, feia e morta” que “estende
a mão” o faz tendo “uma roseira/ autenticando eterna primavera/ e nos jardins os urubus passeiam a
tarde inteira entre os girassóis”, junto ao monumento que é “bem moderno” simbolizariam a
permanência do arcaísmo, da miséria e da forte formação cristã brasileira coadunada à ditadura
militar que passeia e observa os movimentos estudantis e culturais, militares auxiliados pela
tecnocracia estatal que cria a visão de Brasil grande e do milagre econômico. O kitsch seria prática
comum dos tropicalistas e da música pop que buscaram extrapolar e refundar os limites do bom-
gosto tradicional. Os Beatles e suas franjas, que depois se tornariam moda entre a Jovem Guarda; as
batas indianas e a roupa colorida dos hippies, longe dos padrões ocidentais tradicionais; o uso da
linguagem coloquial e a criação de neologismos; todos estes exemplos seriam ótimos para reter um
pouco do uso do kitsch por parte da geração de 1960.
Porém, com a introdução de modelos mais despojados e ligados à cultura jovem, a indústria
se adequou ao gosto do público consumidor gerando a padronização e o esvaziamento do sentido
catártico e dessacralizador originais da manifestação kitsch. No caso da cultura, da obra de arte,
mais especificamente, surge o problema da reprodução ser tão grande que venha atingir níveis que
superexponham a obra, causando a banalização e a perda da chamada aura pertencente à obra de
arte original. Até mesmo o conceito de originalidade se perde pois a uma forte rede de
influências e referências nas criações artísticas ocasionando um virtual esvaziamento do sentido de
originalidade e ineditismo, tão prezados pelo alto modernismo. Quando se fala da música
tropicalista a dificuldade de conceituar quanto a sua originalidade. Influenciada pelo
experimentalismo do grupo Música Nova (Rogério Duprat, Júlio Medaglia, dentre outros),
referências nas canções tropicalistas ao iê-iê-iê, ao pop internacional, à música nordestina e à
música clássica. Essas relações entre variadas tendências explicam, em parte, a dificuldade de reter
34
Moles, Abraham; O Kitsch, pg. 10
35
Vasconcellos, Gilberto; Música Popular: de olho na fresta, Rio de Janeiro, 1977, pg. 49
31
uma originalidade nas canções tropicalistas, principalmente quando os Mutantes fazem clara
referência aos Rolling Stones em Mágica ou Caetano Veloso canta Vicente Celestino, Coração
Materno, em tom melodramático, numa referência ao Brasil rural e tosco. A massificação do kitsch
resulta na multiplicação industrial e na vulgarização ao nível do objeto, dos sinais distintivos tirados
de todos os registros e da oferta desordenada de sinais. Jameson afirmava que:
“(...) os pós-modernismos têm revelado um enorme fascínio justamente por essa paisagem ‘degradada do
brega e do kitsch, dos seriados de TV e da cultura do Reader’s Digest, dos anúncios e dos motéis, dos late shows e dos
filmes B hollywoodianos, da assim chamada paraliteratura (...) todos esses materiais não são mais apenas ‘citados’,
como poderiam fazer um Joyce ou Mahler, mas são incorporados à sua própria substância.”
36
O kitsch surge, com a sua massificação e penetração no mercado consumidor como
categoria cultural, resultado da:
“(..) multiplicação industrial e da vulgarização ao nível do objeto, dos sinais distintivos tirados de todos os
registros (o passado, o neo, o exótico, o folclórico e o futurista) e da oferta desordenada de sinais ‘já feitos’. Baseia-se,
como a ‘cultura de massa’, na realidade sociológica da sociedade de consumo.”
37
A linguagem tropicalista explora a estética dita popular, ou de “mau gosto”, com a inserção
de variadas linguagens e influências junto a suas criações, imbuídas do estilo kitsch, ou brega. Os
tropicalistas apresentavam a simbiose da tradição da música popular com a popularidade da Jovem
Guarda, a bossa nova e o brega
38
. Os tropicalistas aliavam à estética ligada ao bom gosto a cultura
embebida do eruditismo do alto modernismo, o canto popular, as festas regionais e o “mau gosto”
que dominavam a cena entre a população de menor renda. Essa aliança que se dava em variadas
instâncias, como foi falado anteriormente, possuía a intencionalidade, a consciência dos artistas pop
da década de 1960, como uma de suas características mais marcantes. Em todas as esferas culturais
havia a clara tendência da interdisciplinariedade, da interculturalidade como premissa básica. As
artes plásticas se embebiam da música para produzir seus trabalhos como os músicos se inspiravam
nas artes plásticas para produzir. Caetano Veloso compôs a canção Lindonéia inspirado no quadro
de Rubens Gerchman, Lindonéia ou a Gioconada de Subúrbio, que retratava uma moça de
subúrbio como lhe parecia no quadro de Gerchman. O multifacetamento da obra de arte pós-
moderna, também característica do Tropicalismo, é um dos flagrantes do maior interesse por nichos
pouco explorados e linguagens pouco usuais. Por outro lado, a operação sincrética e a bricolagem
36
Jameson, F.; Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio; pg. 28
37
Baudrillard, J. Op. Cit., pg. 176
38
Repetidas vezes os Tropicalistas revisitavam temas populares e músicos ligados ao brega como Vicente Celestino, Sílvio Caldas, Humberto
Teixeira, dentre outros
32
tropicalista norterariam a tendência, habitual presentemente, do sampler com o emprego de trechos
de músicas e referências a sonoridades distintas sem qualquer nexo lógico.
Celso Favaretto dedica um capítulo inteiro do clássico Tropicália: alegoria, alegria à
explicação do procedimento cafona tropicalista, definindo-o como: “resultante da conjugação de
estágios diferenciados de um mesmo fenômeno cultural, equivale a uma operação descentradora.”
(Favaretto afirma que a descolonização no nível da cultura coincide com o descentramento do
sujeito, com o consequente esvaziamento das ideologias) Ele critica a tendência, citando Augusto
Boal
39
e Affonso Romano
40
que viam no cafonismo uma “adaptação estilística, efetuada pela
pressão da modernização, assimilando-o a uma reação localista, provinciana, contra a penetração da
moda internacional;”
41
ou pela transformação do mau gosto em símbolo de contestação, no uso
sistemático do deboche. Favaretto vê incorreções nestas análises:
“(...) o Tropicalismo, como qualquer manifestação artística, refere-se ao social, porém esta referência deve ser
buscada em seu modo de construção. Segundo a caracterização da paródia, feita anteriormente, o procedimento cafona
produz o efeito de uma indeterminação nas canções: a cena que expõe é radicalmente um outro corroído pelo ‘riso
mortuário do eu dessacralizado’
42
, um espaço de jogo em que o político não é ordenado por um trabalho que se inscreva
nos modos institucionalizados, mas uma prática ou um conjunto de experiências variadas, ainda não determinadas, e
tidas como ‘não sérias’
43
A ideologia e o sistema social são atingidos pela análise do sujeito na sua relação com a língua
e o sexo, pela confusão dos valores estabelecidos, e pela exibição das convenções repressoras. A exposição do absurdo
não implica a sua contemplação, podendo levar à desmistificação. O riso cafona é criticado, no fundo, por não traduzir
intenções. Estas são tributárias de uma estética que, ao dissociar forma e conteúdo, privilegia a linearidade e a
temporalidade do discurso, como ocorria na maior parte das canções da época. Vista à luz da utopia, é certo que a
crítica Tropicalista pode ser considerada inócua, pois suas manifestações se esgotavam no próprio momento da
ocorrência sem propor nenhum modelo que preenchesse o vazio resultante. Compunha uma sintaxe de atos, entendida
como semântica, que teve a eficácia de produzir um curto-circuito na música brasileira.”
44
O procedimento cafona seria sinônimo de uma linguagem kitsch, onde o uso de alegorias
virtualmente díspares nos traria uma imagem do Brasil fragmentário e irreal. Favaretto afirma que o
uso desta linguagem indeterminante e intencionalmente inapresentável seria uma atitude de defesa
tropicalista contra a censura e a perseguição política que a cultura nacional estava passando naquele
momento. Ao apresentar a construção de uma nação inexistente haveria a antropofagização ou
descolonização de elementos modernos externos que se adequam à construção e levam à
contradição, graças à reunião desses elementos modernos dentro de uma nação ainda aprisionada
pela realidade arcaica. Exibem, desta forma, um Brasil onde o avanço industrial, a indústria de
automóveis e a criação de um produto “made in Brazil” convivem com o jegue, a rendeiras de bilro
39
“Que Pensa Você da Arte de Esquerda?”, folheto de apresentação da I Feira Paulista de Opinião de 1968
40
“Tropicalismo! Tropicalismo! Abre as Asas sobre Nós”, Jornal do Brasil, 02/03/1968
41
Favaretto, Celso; Tropicália: alegoria, alegria; 2 ed. rev.; São Paulo, Ateliê Editorial, 1996, pg. 107
42
Kristeva, Julia; “Une poétique ruinée”, introdução a La poétique de Dostoievski de M. Bakhtin, Paris, Seuil, 1970, p. 19 extraído de Favaretto,
Celso; Tropicália: alegoria, alegria
43
Lyotard, J. F.; Des dispositifs pulsionnels, Paris, UGE, 1973, p. 135
44
Favaretto, C.; Op. Cit.; pg. 108-109
33
e a cultura primitiva nacional representada pelo velhos e cegos sanfoneiros das feiras do interior
nordestino que tanto fascinaram Gilberto Gil na sua infância. Caetano é muito claro no tocante à
inserção do chamado brega, ou o kitsch em sua criação:
“O que me interessou a princípio foi o problema da música comercial no Brasil. Antes disso o que me
interessou foi quebrar o cerco de bom gosto então vigente, então todas as coisas que estavam fora desse cerco
começaram a me fascinar mais do que o que estava dentro e eleito, o eu estava dentro e eleito começou a me
desinteressar. (...) Então num determinado momento João Gilberto passou a soar pra mim tão estranho quanto Gregório
Barrios em matéria de bom gosto eu comecei a me interessar muito, a ficar fascinado nas coisas que não estavam
dentro do bom gosto, de uma certa forma, estabelecido no grupo de gente que fazia música no Brasil naquela época.”
45
A canção Saudosismo composta por Caetano Veloso investia nessa crítica ao bom gosto,
sendo contra a canonização da geração Bossa-Nova pela crítica especializada. Caetano, nesse
momento, tinha a visão que elementos populares poderiam ser amalgamados ao Tropicalismo, com
a Jovem Guarda e músicas “dor-de-cotovelo” tendo um papel marcante na definição deste novo
estilo. A inclusão de ritmos populares, situados muito longe do que poderíamos consagrar como
uma produção de qualidade insofismável, o uso de guitarras distorcidas e a linguagem pop são
marcas tropicalistas. Este sincretismo é utilizado largamente pelos artistas que aderem ao pop na
década de 1960. O rock’n’roll formara-se através da assimilação de ritmos negros (rhythm’n’blues,
gospel, blues, boogie-woogie) pelos brancos norte-americanos ligados ao country interiorano. Os
tropicalistas viam sua música mudar de acordo com o sabor dos acontecimentos mundiais,
influenciados pela mídia e pelas discussões pungentes ocorridas no período.
Voltando para a canção Saudosismo que parecia uma homenagem à influência de João
Gilberto e acaba deflagrando um happening de Caetano Veloso. Numa letra criada poucos dias
antes do show, Caetano entrava tocando violão em compasso bossa nova e rapidamente mudava o
ritmo com guitarras distorcidas e gritos, cantando “Quarta feira de cinzas no país/e as notas
dissonantes se integraram /ao som dos imbecis/sim, você, nós dois/já temos um passado, meu
amor/a bossa, a fossa, a nossa grande dor/como dois quadradões”. Com argúcia, Caetano mescla
estilos e realiza a crítica da questão da superação do fenômeno bossa-novista criando manifestações
questionadoras quanto ao virtual encastelamento e canonização de alguns ritmos musicais.
Interrogava-se também sobre a incapacidade para criar saídas viáveis para a música brasileira, que
alcançava o poder de porta-voz de toda uma sociedade oprimida pela repressão militar e convivia
com a censura dos meios divulgadores de suas manifestações. Augusto de Campos dizia que, com o
amadurecimento, Caetano podia “... transitar da interpretação cool de João Gilberto, para as mais
‘quentes’, gênero jovem-guarda; das inflexões de cantador nordestino para as dos intérpretes típicos
45
Entrevista concedida ao Pasquim, In. O Som do Pasquim; Rio de Janeiro, Editora Codecri, 1976, pg. 110
34
de ritmos hispano-americanos, incorporando ainda como citação, as ‘imitações’ líricas ou irônicas
de cantores da velha guarda.”
46
Em Saudosismo claramente a tentativa de desmistificação de
toda tradição musical nacional. Caetano voltava-se para a compreensão da Bossa-Nova como uma
manifestação de alta sofisticação, mas que deveria ser reatualizada esteticamente com a projeção de
novos artistas e linguagens que usassem tanto esta sofisticação bossa-novista como as linguagens
tipicamente popularescas e de mau gosto. A cantora Elis Regina, um dos baluartes da canção
tradicional, recebeu a canção Saudosismo pasmada, como a Revista Veja imprimia: “Numa das
mesas, a perplexidade de Elis Regina é desabafada numa série de palavrões - os mais próximos
entendem - e por uma interrogação: ‘ Não sei mais o que devo cantar. O que está acontecendo? Para
onde vai a música brasileira?’”
47
Elis exibia seu assombro com todo o processo inventivo dos
tropicalistas, principalmente pelo uso deliberado de uma proposta multicultural que, fazendo uso de
fragmentos sonoros, episódios históricos e pessoais, transforma eventos banais em música. Música
que traria o alicerce para inovações estruturais tecnológicas e estéticas, constituindo o primeiro
movimento musical nacional a ter consciência do movimento pop de vanguarda que se alastrava
pelo planeta na década de 1960. Elis Regina, uma das líderes da Frente Única detratora das
guitarras elétricas e que, mais tarde, cantaria os Beatles com percussão de samba
48
, se interrogava:
qual o caminho a seguir? Esta interrogação permeava os corações e mentes de toda a geração que
vivia o período e que também presumia: este caminho seria seguido de forma voluntária ou seria
imposta pela indústria ou até mesmo pela censura do regime militar?
Enquanto alguns passavam o tempo se interrogando sobre o caminho a seguir, o grupo
baiano botava “o bloco na rua”, assumindo posições estéticas e cenográficas cada vez mais radicais.
Na apresentação de Proibido Proibir um hippie – Johnny Grass – subia ao palco urrando e
pulando, numa atitude folclórico-primitiva que chocava os que assistiam aos festivais para ouvir
músicas de protesto. O uso de roupas cada vez mais exóticas e pouco usuais trazia um
estranhamento imediato aos mais “certinhos”. No derradeiro show na Boate Sucata havia uma
bandeira, criação de lio Oiticica, que dizia: “Seja marginal, seja herói” homenageando o famoso
bandido Cara de Cavalo. Realizados em outubro de 1968, os shows da Boate Sucata ficaram
consagrados como o momento de maior radicalização do Tropicalismo, culminando com a prisão
46
Campos, Augusto; Balanço da bossa, São Paulo, Perspectiva, 1968, pg. 160
47
Veja; “Com eles, briga na certa”; 16/10/1968, pg. 58
48
Canta Carry that Weight dos Beatles
35
dos músicos por, supostamente, tocar o hino nacional em ritmo iê-iê-iê.
49
Johnny Grass, o hippie de
Proibido Proibir tinha uma consciência ímpar do momento, talvez visão que faltasse aos setores
mais engajados brasileiros:
“Muita gente se sente agredida por nós, mas o que acontece com Caetano aconteceu nos Estados Unidos com
Bob Dylan. No dia em que Bob Dylan rompeu com as tradições musicais inclusive canções de protesto foi uma
grita geral. Mas Bob Dylan acabou vencendo porque é um cara sério e sabe o que quer.”
50
Comparando Caetano a Dylan, Grass tinha um insight perfeito para se compreender a poesia
e narratividade da música de Caetano, ligando-o a Dylan, mais ainda quando observava a
transformação de Dylan com a adoção da guitarra elétrica e os subsequentes protestos de seus fãs.
Momentos similares aos que os tropicalistas enfrentavam por aqui, com perseguições e
“questionamentos” por parte de seus detratores que achavam que se o Tropicalismo continuasse
como modismo “(...) mais um brochante intelectual, como tantos outros destinado a cair na roda
viva do consumo e ser transformado em produto industrial pra ser vendido nas boutiques grã-
finóides.”
51
Havia, na década de 1960, a refutação do processo de entrelaçamento da superestrutura
com a infraestrutura, quanto ao perigo da cultura se transformar em objeto de consumo ou, ainda
pior, ser um estimulante para o próprio consumo, como Jameson e outros pensadores analisam a
mercantilização da cultura.
A crise da modernidade e do conceito de superação
As discussões sobre a crise da modernidade e do universalismo iluminista têm início na
segunda metade do século XIX com Friedrich Nietzsche e a polêmica sobre decadência dos
parâmetros iluministas. Gianni Vattimo trata o pensamento de Nietzsche e Martin Heidegger como
a única forma possível de análise da pós-modernidade (contemporaneidade) dentro de parâmetros
cabíveis, pois ambos condenam uma dita “superação crítica” do pensamento europeu, “pela boa
razão de que isso (este conceito de superação) teria significado continuar prisioneiros da lógica de
49
“Chefes militares revelaram, no Rio, a alguns jornalistas de intimidade, as dificuldades que vêm enfrentando para conter as exaltações de
companheiros mais jovens, ‘face às provocações eu caracterizaria uma ameaça de desmoralização da Revolução de 31 de Março’, partida dos mais
diferentes setores, incluindo o meio artístico (...) Ontem, circularam rumores inclusive que foi necessário conter uma ação contra o cantor Caetano
Veloso, que se exibia na cidade e que cantara o HINO NACIONAL em ritmo tropicália’” SNI, 11/10/1968 Extraído de Folha de São Paulo,
02/11/1997, Suplemento Mais”; pg. 9 Tal citação demonstra a ameaça da “desmoralização da Revolução de 31 de Março”, que também é lembrada
pelos ministros de Costa e Silva na ocasião da promulgação do AI-5
50
Veja; 23/10/1968, pg. 61
51
Correio da Manhã; “Diagnóstico (ou autópsia) do Tropicalismo”, 14/03/1968
36
desenvolvimento própria desse mesmo pensamento.”
52
Dentro do modernismo o progresso se
basearia na apropriação e reapropriação dos “fundamentos”. “A noção de superação, que tanta
importância tem na filosofia moderna, concebe o curso do pensamento como um desenvolvimento
progressivo, em que o novo se identifica com o valor através da mediação da recuperação e da
apropriação do fundamento-origem.”
53
Essa colocação, posta em xeque por Nietzsche e Heidegger,
invalida qualquer tentativa de criação de um novo princípio que venha substituir (“superação
crítica”) o fundamento anterior. Notável observar que Caetano Veloso se referia à tradição musical
brasileira da mesma forma que o modernismo apreciava o progresso:
“Se temos uma tradição e queremos fazer algo novo dentro dela, não só teremos de senti-la, mas conhecê-la. E
é este conhecimento que vai nos dar a possibilidade de criar algo novo e coerente com ela.
Se a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de
criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e violão sem sétimas e nonas não resolve o problema.”
54
Ao fazer tais afirmações, Caetano Veloso discutia o papel do uso da tradição na formação de
uma linguagem nova que estava sendo gestada naquele momento e perguntava: qual o melhor
caminho a seguir? O romantismo telúrico primitivo das canções folclorizadas dos grupos
politizados ou se abrir para influências advindas dos novos meios de comunicação. A exposição de
Caetano, realizada num debate sobre os caminhos da música brasileira, tinha o desejo de defender
uma atitude mais aberta a influências externas como a música estrangeira e a adequação da canção a
determinados moldes da indústria cultural. Neste momento, 1966, os músicos tropicalistas não
haviam composto as canções mais experimentalistas que iriam caracterizar o movimento. Para ser
mais preciso, Caetano Veloso e Gilberto Gil seguiam uma fase ainda ligada à canção de protesto,
samba e Bossa-Nova. Porém a declaração deixa antever o exercício de construção estética
tropicalista, baseada na referência à tradição, unida ao experimentalismo e ao movimento pop. Um
amálgama da música pop internacional (Jimi Hendrix, Bob Dylan, Janis Joplin, Joan Baez, Beatles,
Cream, Traffic, dentre vários outros) com a tradição folclórica latina e nacional (rumba, cumbia,
embolada, samba canção, canções oficiais, música clássica). O que alguns viam como tentativa de
esvaziamento da crítica e da realidade podia ser abordado como inserção da música brasileira no
contexto pop global, com a revisão de linguagens esquecidas junto a uma nova e radical atitude
perante o sistema capitalista. A tradição que Caetano Veloso se referia era ligada a nosso folclore
musical popular, às coisas do Brasil arcaico, que contava com a reunião de mitos e rituais de
52
Vattimo, Gianni; O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna; tradução Eduardo Brandão; São Paulo Martins
Fontes,1996; pg. VI
53
Vattimo,G.; Op. Cit; pg. VI e VII
54
Revista Civilização Brasileira; “Que caminho seguir na música popular brasileira”, Rio de Janeiro, Ano, número 7, maio de 1966, pg. 378
37
culturas diversas, o candomblé baiano, os rituais religiosos católicos, a musicalidade sertaneja e do
recôncavo baiano. Reunindo variadas manifestações culturais essa suposta “tradição popular”
brasileira estaria alicerçada numa teia complexa de referências e influências, havendo uma natural
dificuldade em sua homogeneização.
Nietzsche contemplava a concepção de progresso interminável modernista e vinculava à
prática modernizante um eterno diálogo com a tradição ligando a busca da modernidade ao
aperfeiçoamento desta tradição, tanto junto à infraestrutura quanto à superestrutura. Caetano Veloso
se aproxima, com seu discurso defensor da retomada da “linha evolutiva”, do pensamento
nietzschiano que salientava a obrigação de se conhecer a tradição para poder modificá-la. Caetano
possuía uma visão abrangente de nossa história musical e achava que qualquer sonoridade deveria
ser alvo de estudos e usos. O samba, os cantores e cantoras da Rádio Nacional, o pop de língua
inglesa, a salsa, a rumba e os sons latinos, todos estes ritmos e manifestações poderiam ser
aproveitados, implícita ou explicitamente, nas criações tropicalistas. A valorização da tradição
musical e a simbiose com a música eletrônica e pop trazia à tona o intuito de se fazer um apanhado
histórico-musical contemporâneo, um encontro da alta e baixa cultura, do eruditismo instituído pela
alta cultura com o burlesco da baixa cultura. Esvaziando este apanhado de sentido cronológico e
analiticamente anômalo, o Tropicalismo tentava realizar a compreensão e a adequação aos
acontecimentos globais, caracterizados pelo individualismo crescente e a especulação financeira.
Uma realidade que o Tropicalismo abordava ao criticar a inovação tecnológica e a
industrialização desenfreada, sem espaço para a humanização do espaço do trabalho, que trazia o
consumismo descontrolado, a alienação por parte dos que consomem e marginalização dos
excluídos. Um retrato que era bem retratada por Tom em Parque Industrial: “despertai com
orações/ o avanço industrial/ vem trazer a nossa redenção/ (...) pois temos o sorriso engarrafado/
vem pronto e tabelado/ é somente requentar e usar”
Tom é o músico tropicalista com maior atuação entre as hostes do circuito alternativo
contemporâneo, após a entronização de Caetano e Gil entre os baluartes da música popular
brasileira. Fazendo um som anárquico, Tom investe contra a “globarbarização” do
“Companheiro Bush”, o machismo do pagode e a prostituição infantil gerada pelo turismo sexual
praticado por europeus, no litoral nordestino. Alcançando um público restrito, mas consciente e
politizado, ele continua veiculando sua mensagem polifônica e multicultural, de respeito, tolerância
e reconhecimento às expressões mais desconhecidas. Tom Zé, que estava esquecido num posto de
gasolina em sua terra natal, Irará, no interior da Bahia, voltou ao circuito para refletir sobre a
realidade e a música brasileiras. Graças ao processo inverso de influência visto nos anos !960, com
a descoberta dos ídolos norte-americanos pelos músicos ingleses e latino-americanos, David Byrne,
38
um dos integrantes do grupo nova-iorquino Talking Heads, trouxe de volta à música o maldito
músico brasileiro que Byrne havia escutado e, intrigado, buscou maiores informações sobre sua
produção. O interesse do primeiro mundo sobre a música de um país subdesenvolvido,
principalmente de músicos tão marginalizados por aqui, pode ser expresso como reflexo da
indústria cultural contemporânea. As manifestações culturais do Terceiro Mundo (muitas vezes
trazendo sotaque de Primeiro Mundo, como o heavy metal do Sepultura, o manguebit do Nação
Zumbi, dentre outros) passam a ser veiculadas no circuito alternativo europeu e norte-americano
tendo um papel revolucionário e inovador, contrário ao tradicional exotismo primitivo tradicional
exibido no exterior tradicionalmente.
O paradoxo pós-moderno é representado pela crença na adoção de medidas para
salvaguardar as culturas e técnicas de menor difusão visando o enriquecimento do sistema como um
todo, e, por outro lado, a pós-modernidade fomenta o crescimento das grandes corporações
transnacionais e dos interesses ligados a sociedades anônimas desvinculadas de uma idéia de bem-
estar social, defensoras do neo-liberalismo. A concepção de pós-modernidade, de tendência
pluralista, constitui uma linha de pensamento que contempla o ser humano como um ser social que
se adapta ao seu meio de acordo com suas necessidades e possibilidades.
A pluralidade seria incrementada pela indústria cultural para permitir a todos a possibilidade
de escolher os produtos e idéias (atualmente cada vez mais imbuídas da carga mercadológica) de
acordo com sua percepção. Obviamente, o pós-modernismo, ou o pós-moderno, não constitui um
movimento de idéias uniformes, que defende opiniões semelhantes e bem delimitadas. A
denominação pós-modernismo engloba a tendência contemporânea que procura compreender,
criticar ou se adequar ao mundo atual. Todos os pensadores que se debruçam sobre a compreensão
da realidade contemporânea devem estar cientes das discussões sobre a existência do chamado
fenômeno pós-moderno, até mesmo para podermos compreender as modificações ocorridas no
mundo atual.
Um pensador importante para uma abordagem pós-histórica’ é Arnold Gehlen. Ao indicar
que o progresso tornou-se uma rotina, no qual a capacidade humana de dispor das técnicas se
intensificou e a experiência da realidade se tornou uma experiência de imagens, o sentimento
flagrante da existência de uma realidade distinta da retratada e analisada pelos pensadores
predecessores, que carecem de novos enfoques e metodologias. Para Gehlen, o papel da novidade é
determinante junto à sociedade de consumo que demanda uma renovação pela pura sobrevivência
do sistema, “... a novidade nada tem de ‘revolucionário’ e perturbador, ela é o que permite que as
39
coisas prossigam do mesmo modo.”
55
O progresso se impõe como o ideal da sociedade moderna
porém, como o seu ideal é sempre vazio, sempre objetivando um novo progresso, não se cria uma
meta-teoria para balizá-lo. Apoiado pelo individualismo
56
e pelo crescimento dos ideais
consumistas, o conceito de progresso está mais ligado às inovações tecnológicas, aos produtos e ao
consumo desenfreado. Hoje se consome largamente produtos ligados a modismos e tendências
transitórias, com a música possuindo uma enorme demanda por novidades. Porém sabemos que a
avidez transforma desconhecidos em celebridades, os usa e deglute novamente, no incessante
trabalho de criação de novas estrelas e respectiva colocação no ostracismo de astros fugazes. Esta
regra vale tanto para cantores de ritmos consagrados como para gêneros musicais que sofrem com
várias idas e vindas junto ao mercado consumidor. Vejamos o caso do reggae, do forró e do choro.
Os três ritmos estão situados dentro de um determinado nicho de mercado ligado aos universitários
e jovens estudantes. Cada ritmo representa platéias que talvez não comunguem dos mesmos ideais,
mas rememoram ritmos que tiveram um tempo de grande popularidade e são redescobertos por
elementos jovens. Jovens que cultuam ídolos que não eram mais vivos quando a maior parte deles
estava nascendo. Através de imposições mercadológicas, ou devido ao interesse enciclopédico de
alguns elementos, estes ritmos m uma sobrevida de sucesso, arrebanhando espectadores por todo
o mundo.
Outro nicho consistiria nos aficionados por novidades que fazem tudo para estar up to date e
se informam nos canais alternativos a respeito de novas propostas e sonoridades. Este público
alternativo fomenta uma cena que tem pouca divulgação mas possui grande influência na criação
musical contemporânea. A criação de um mercado global fez surgir não a pasteurização de
gostos e a hiper-exposição de determinados artistas, mas também provocou o surgimento de novos
nichos e a redescoberta de outros, num processo enriquecedor que deu voz a artistas e movimentos
sem chances de veicular suas mensagens. Alguns movimentos tiveram que se adequar para angariar
um público cativo, como o rock que “embranqueceu” o blues e o rythmin’n’blues, misturando-os ao
country com Jerry Lee Lewis e Elvis Presley. Outros artistas investiram num processo de clara
marginalização voluntária com a consciência da inviabilidade em agradar um mercado consumidor
muito grande, como o rap, o acid rock, o free jazz e tantos outros que preferem abarcar um mercado
menor mas fiel, a ter que fazer concessões para obter maior vendagem.
55
Vattimo, G.; Op. Cit.; pg. XII
56
Contra essa idéia de fortalecimento do individualismo contemporâneo, Fredric Jameson rebate afirmando que, com o esmaecimento do sujeito,
característica marcante do pós-moderno, o fim do estilo único e original, das atitudes autênticas e o experimentalismo das vanguardas do alto
modernismo. Jameson observa este momento como prolixo em sentimentos que “(...) são agora auto-sustentados e impessoais...” Ver Jameson,
Frederic; Pós-modernismo: lógica cultural do capitalismo tardio, São Paulo, Ática, pg. 43
40
A dessacralização tropicalista, o niilismo e as vanguardas
Na análise quanto ao papel do niilismo no discurso de Nietzsche e Heidegger, Gianni
Vattimo discorre sobre a crise de paradigmas contemporânea e assinala esses dois autores ao
referir-se à crise teleológica enfrentada pelo indivíduo. Para Nietzsche essa crise residiria na
potencial “morte de Deus”
57
, ou a desvalorização dos valores supremos e universais; “somente onde
não há instância terminal e interruptiva, bloqueadora, do valor supremo-Deus, os valores podem
manifestar-se em sua verdadeira natureza, que é a convertibilidade, e a
transformabilidade/processualidade indefinida.”
58
Dessa forma, o ser estaria diretamente vinculado
ao processo de transformação do valor de uso em valor de troca, base da definição heideggeriana de
niilismo.
Essas vicissitudes criam terreno para a reivindicação de valores não mais universais, mas
ligados à valorização das culturas populares e marginais. o desenvolvimento de uma cultura
voltada para o questionamento do paradigma iluminista de universalização dos direitos civis e da
liberdade
59
. Nietzsche e Heidegger ressaltam o simulacro
60
e a virtual fantasia contemporânea
levada a cabo em virtude do enfraquecimento das teleologias e da tentativa de ‘refundação’ da
existência. “O mundo verdadeiro tornou-se fábula” como escreve Nietzsche em um dos capítulos de
Crepúsculo dos Ídolos.
O Tropicalismo estaria imbuído de traços niilistas como a dessacralização e a iconoclastia
com a crítica dos mitos internacionais e nacionais. A exposição desses mitos em suas obras era uma
das principais formas de contestação da ordem estabelecida, de uma atitude anti-establishment
característica da geração sescentista. Os tropicalistas não respeitavam nenhuma convenção ou
movimento cultural e, como os niilistas russos, questionavam todo universalismo e movimentos
bem estabelecidos. Negavam a vivência dentro do sistema consumista e possuíam a praxis do
combate e a descrença na ordem estabelecida como principal motor de sua luta e expressão estética.
Porém, diferente da idéia que as atitudes niilistas teriam como principal característica a falta de
perspectiva e a depressão criativa, a descrença em relação às instituições e o questionamento do
57
Vattimo, Gianni; O fim da modernidade; São Paulo, Martins Fontes, 1996, pg. 5
58
Vattimo, G.; Op. Cit.; pg. 6
59
Liberdade questionada por Robert Kurz: “(...) ao efetivarem sua liberdade e igualdade na esfera da circulação, as pessoas não fazem nada mais que
efetuar a ‘automediação’ do capital, ou seja, fazem com que a mais valia produzida ou o lucro deixe a forma mercadoria e se transforme de novo em
forma dinheiro. Por isso a liberdade e a igualdade da circulação não são nada mais que uma engrenagem para o fim da realização do capital.” Folha
de São Paulo; suplemento Mais, 16/01/2005
60
Simulacro: ação simulada para exercício ou experiência; cópia ou reprodução imperfeita ou grosseira. Novo Dicionário Aurélio, Aurélio Buarque
de Holanda, Nova Fronteira
O simulacro, entendido como uma das características da pós-modernidade, teria um papel determinante junto ao mundo do mass media, constituindo
a reprodução de uma realidade inexistente. O mito da caverna platônico é um dos melhores exemplos do simulacro
41
poder renderam ótimas manifestações críticas ao sistema capitalista, como a música pop dos anos
1960, conhecida pela sua rebeldia e consciência estética.
O termo niilismo é utilizado muitas vezes no sentido pejorativo, na intenção de criticar
partidários da autogestão ou o fim do sistema representativo de poder, como foi usado contra
Bakunin e outros anarquistas. No caso da obra tropicalista nos soa uma comparação válida se
pensarmos nos eventos de 1968 e a tomada de consciência mais radical dos movimentos juvenis da
época. O niilismo estaria representado por uma geração altamente crítica incapaz de aceitar idéias
unívocas ou filosofias universalistas. A negação pura e simples tinha um espaço maior graças à
repressão violenta e a criação de novos valores éticos e morais. O movimento tropicalista pode ter
dialogado com práticas niilistas de descrença absoluta na ordem social vigente, como é traduzido o
termo niilismo, mas também esteve embebedido da atitude radicalmente refundadora voltada para a
construção de uma nova estética cultural, sem parâmetros com estéticas anteriores.
61
A palavra teria
surgido no romance Pais e Filhos de Turgueniev e foi usada correntemente pelos revolucionários
russos, em 1860/70, que buscavam a destruição de tudo e a reconstrução a partir do nihil (nada).
Apesar do caráter referencial e paródico tropicalista, o que poderia parecer contraditório junto ao
pensamento niilista, o desejo de criar uma linguagem desmistificadora, ligada ao inconformismo e
oposição à ordem estabelecida, em muito se assemelhava ao espírito destruidor niilista, à busca de
novos conceitos e parâmetros estéticos.
Com a combativa oposição à “caretice”, o Tropicalismo inseria uma linguagem violenta e
catártica na arte nacional, redundando em uma obra complexa e fragmentária, um quebra-cabeça
voltado para a compreensão da história de nossa cultura nos quadros pintados nas músicas
tropicalistas ou nas sonoridades dos penetráveis de Hélio Oiticica. A sinestesia é um dos sintomas
mais pungentes nas obras da década de 1960, imbuídos da linguagem lisérgica e do uso de drogas
alucinógenas que geravam tal reação. Caetano, que colocava o dadaísmo como uma de suas
principais influências artísticas, era fascinado por seu irracionalismo e escárnio que pretendiam
abolir a cultura e a arte tradicionais, projetando o reencontro com a realidade autêntica. Os
dadaístas, influenciados pelas teses de Sigmund Freud, buscavam as manifestações do
subconsciente como fonte de criação artística. A correlação entre o dadaísmo e o Tropicalismo não
é gratuita pois Caetano Veloso relata que em Tropicália, na estrofe “Viva a banda da-da/ Carmem
Miranda da-da-da-da”
62
, clara referência ao movimento e sua mensagem subconsciente ligada
tanto ao próprio dadaísmo, com suas propostas de uma arte autêntica e iconoclasta, como à
cangaceira Dada, companheira de Corisco. Percebe-se que a proposta de reunir a realidade
61
Dicionário Michaelis/UOL
62
Gilberto Gil e Caetano Veloso criam a música Dada para o disco “Tropicália II” de 1993 onde não faz menção direta e explícita ao dadaísmo
42
nacional e seus arcaísmos com movimentos artísticos contrários à racionalidade iluminista. O
Tropicalismo criava uma arte sem fronteiras, que não se limitasse espacialmente, e patrocinava a
tomada de consciência perante a realidade circundante.
“Claro que a frase mais famosa do Rei Roberto, seguida da Banda de Chico e do nome de Carmem Miranda
(cuja última sílaba repetida evocava o movimento dada e, para mim, misturava seu nome ao de Dada, a famosa
companheira de Corisco, estes dois últimos personagens reais e figuras centrais de Deus e o Diabo na Terra do Sol),
dava, de forma elítptica mas imediatamente perceptível por qualquer brasileiro que ouvisse canções (nunca foram
poucos), uma reestudada geral na tradição e no significado da música popular brasileira.”
63
O pensamento de Nietzsche e Heidegger auxilia a apreensão dos fundamentos que levaram
ao questionamento da modernidade, desde um período anterior a seu apogeu dentro da academia.
Apogeu que se dá no século XX, principalmente após a 2ª Guerra, e seria o foco da revolta
contemporânea contra os parâmetros modernistas e seus dogmas universais, herdados do
iluminismo. Para essa pesquisa é deveras relevante a abordagem de Vattimo sobre a crise da
modernidade e o enfoque no niilismo como uma das formas de compreensão da
contemporaneidade. O niilismo e a virtual descrença nas teleologias é um dos pontos principais do
debate quanto ao esmaecimento das meta-narrativas e a conseqüente descrença nas utopias. O
ceticismo quanto à ordem vigente, a vontade de se iniciar do zero, como era a visão dadaísta e
niilista, é coerente com o desejo da juventude da década de 1960 de uma “rejeição total”
64
da
sociedade, expressão do inconformismo visceral da geração. Nietzsche e Heidegger observavam
a aproximação das manifestações culturais marginalizadas com a cultura de massas, obra que
atualmente é realizada pelo mass media. Uma passagem de Caetano Veloso pode ser a melhor
forma de explicitar o questionamento do ultrapassamento modernista:
“Apesar de (...) Augusto dizer que ‘o antigo que foi novo é tão novo quanto o mais novo novo’, como que a
indicar apenas que ele se filia a uma milenar linhagem de vanguardistas, sempre senti que, subjacente ao critério de
avanço, está a visão sincrônica. Isto não é nenhuma descoberta: em textos tão claros e tão entusiasmados quanto os que
apontam para uma estética do ‘novo’ os concretistas (sobretudo Haroldo) defenderam uma crítica de mirada sincrônica,
trans-histórica. O que eu quero dizer é que esse aspecto do aparato teórico deles me atraiu mais e me pareceu mais
profundo neles mesmos do que a paixão da novidade. É como se a campanha do novo não fosse senão uma estratégia de
manutenção da altura do nível de exigência. As rupturas modernistas podem ser explicadas de diversos ângulos, mas é
inegável o caráter de revitalização do acervo amado embutido em muitas atitudes aparentemente destrutivas.”
65
Caetano tinha clara consciência quanto ao papel do passado, da tradição como referência
para novas criações e experiências. O modernismo, com sua capacidade revitalizadora das
narrativas tradicionais e suas atitudes mais iconoclastas, seria o pano de fundo na manutenção da
tradição, muitas vezes objetivando sustentar a universalidade discursiva. Há no discurso de Caetano
63
Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg.186
64
Roszak, Theodore; A Contracultura, Petrópolis, Vozes, 1972, pg. 56
65
Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 228
43
um questionamento quanto ao papel das vanguardas na legitimação do processo de infindável
progresso e superação modernistas, aludindo, concomitante, à tradição. Caetano, ao discorrer sobre
as atitudes aparentemente destrutivas que, na verdade, refundam a tradição, exemplifica
praticamente seu procedimento criativo, criando um elo entre a inventividade concretista e a
profusão de referências tropicalistas.
Eduardo Subiratis, estudioso da realidade contemporânea e do esmaecimento das
vanguardas, comenta uma afirmação de Roberto Schwarz
66
sobre a crise das vanguardas em nosso
tempo e a vinculação de seu radicalismo a um processo cultural de signo regressivo. Este tipo de
pensamento, problematizador do conceito de vanguarda, é usual no que concerne ao movimento
pós-moderno e suas conseqüências. Para Subiratis haveria a conversão de um movimento atrelado à
ruptura, à emancipação e aos mais altos valores sociais utópicos numa tendência integrada às
formas de poder que anteriormente atacava. Existiria uma vinculação das vanguardas com um
“princípio de racionalidade formal, a partir do cubismo, e uma função racionalizadora da cultura,
patente nas correntes de De Stijl ou de Bahaus, completamente identificados com o
desenvolvimento tecnológico e industrial.”
67
Subiratis defende a tese que a “utopia social e cultural
das vanguardas, de signo revolucionário e emancipador, carregava implícitos os momentos de sua
integração a um processo regressivo de colonização tecnológica da vida e racionalização coercitiva
da sociedade e da cultura.”
68
Os elementos formais do pós-moderno são uma reiteração dos
componentes estilísticos das vanguardas previamente despojadas de suas dimensões simbólicas e
críticas. A pós-modernidade, dentro desta linha de pensamento, seria a última conseqüência
regressiva acarretada pelo espírito das vanguardas e por falta de espírito de seus epígonos. Ou seja,
as vanguardas atuais seriam simulacros de manifestações inconformistas e questionadoras, que
teriam função esvaziadora de sentido da indignação e da revolta críticas das vanguardas passadas.
Surge, dentro das vanguardas, a tendência valorizadora da ruptura com a história anterior,
ambiciosa pela criação de uma nova era onde predominaria a “...concepção racionalista da história
como triunfo absoluto da razão no tempo e no espaço e, com ela, das idéias de justiça social e de
paz; e, por último, a em um progresso indefinido fundado no desenvolvimento cumulativo e
linear da indústria, da tecnologia e dos conhecimentos científicos.”
69
Atualmente, ao contrário dos
pioneiros da vanguarda que fundiam o progresso industrial e a ordem racional da cultura com a
66
“Sabe-se que progresso científico e conteúdo social reacionário podem andar juntos. Esta combinação, que é uma das marcas do nosso tempo, em
economia, ciência e arte, torna ambígua a noção de progresso. Também a noção próxima, de vanguarda presta-se à confusão. O vanguardismo está na
ponta de qual corrida?” “Nota sobre vanguarda e conformismo” (1967); In. O Pai de Família..; Rio de Janeiro, 1978, pg. 43
67
Subiratis, Eduardo; Da vanguarda ao pós-moderno; tradução Luís Carlos Daher, Adélia Bezerra de Menezes e Beatriz Canabrava; 4 ed. São
Paulo, Nobel, 1991, pg. 1 e 2
68
Subiratis, E.; Op. Cit.; pg. 2
69
Subiratis, E.; Op. Cit.; pg. 12 e 13
44
liberdade individual e a paz social, relaciona-se como conseqüência do avanço industrial a angústia,
a insegurança e o sentimento opressor de vigilância. Para Subiratis havia a aproximação da
concepção de civilização imperialista desenvolvida por Spengler, Antonin Artaud e Paul Gauguin
que associavam “sua expansão (da civilização imperialista) destrutiva junto a seu esvaziamento
vital, com sua racionalização, sua separação da história e seu progresso tecnológico.”
70
Através de
visão parecida, os tropicalistas buscavam compreender e criticar a sociedade industrial moderna, a
revolução tecnológica e todo seu aparato ideológico. Músicas como Nova Era, Cibernética,
Futurível e Acrílico, dentre outras, faziam críticas mordazes contra a racionalização e a
mecanização propalada pela modernidade.
“Um astronauta risonho/ como um boneco falante/ numa pequena vitrine/ de plástico transparente/ uma
pequena vitrine/ a escotilha da cabine
Mundo do lado de fora/ a ilha/ a Terra distante/ pequena esfera rolante/ a Terra bola azulada/ numa vitrine
gigante
O cosmonauta, a vitrine/ no cosmos de tudo e nada/ de éter de eternidade/ de qualquer forma vitrine/ tudo que
seja ou que esteja/ dentro e fora da cabine/ éter-cosmo-nave-nauta/ acoplados no infinito/ uma vitrine gigante/
plataforma de vitrines”
71
O progresso e as inovações tecnológicas eram questionados ao estarem coadunados com
práticas imperialistas e ao racionalismo burguês iluminista. Em Vitrines Gil demonstra a sua
impressão sobre a corrida espacial em paralelo à mercantilização da cultura e dos meios de
comunicação. Gil escreveu a música no período que esteve na Espanha fazendo o show da Rhodia
“Momento 68” e, atualmente, se surpreende com a lucidez ao abordar tais temas:
“É engraçado hoje em dia eu me debruçar sobre essas coisas que eu não imaginava que pudessem ter o valor
que a gente resgata agora, e que pra mim eram somente impulsos, assomos, e ver que de fato eram manifestações de
alma poética, poesia já, reveladoras de um espírito de época, e das quais tudo o que eu vim a fazer depois parece
carbono, cópia melhorada, desdobramento.”
72
Assim Gilberto Gil exibe a essência do projeto tropicalista que seria balizado pelas
influências infantis do folclore nordestino junto à compreensão da dinâmica global e seus
desdobramentos. Processo produtivo que é repetido até hoje por seus elementos e justifica a
abordagem de suas carreiras de forma abrangente, não se restringindo ao período tropicalista.
70
Subiratis, E.; Op. Cit.; pg. 13
71
Vitrines, Gilberto Gil, 1969
72
Rennó, Carlos (org.) Gilberto Gil: Todas as Letras; São Paulo, Companhia das Letras; 1996, pg. 104
45
Prenúncios do pós-moderno na explosão estudantil da década de 1960
A juventude de 1960 questionava o processo modernizador desmedido e formou os
primeiros movimentos ecológicos com preocupações preservacionistas e reivindicatórias de uma
nova apreensão do processo modernizador. Neste momento na China a revolução cultural revia os
conceitos de hierarquia e privilégios sociais, influenciando marcantemente os movimentos sociais
em todo mundo. É elucidativo deparar-se com visão de Edgar Morin quanto aos acontecimentos do
maio de 1968 parisiense. No julgamento de Morin, os estudantes de Paris agiam em consonância
com outros movimentos estudantis que questionavam o progresso da sociedade capitalista:
“Não se deve idealizar 68 nem o responsabilizar pelo que está fora do seu alcance. Maio foi o revelador de
uma crise de civilização. A opinião sociológica dominante na época pensava que a sociedade industrial, na qual
vivíamos, progredia com base em alicerces sólidos; achava-se que era a menos pior das sociedades. Maio revelou que o
subsolo da sociedade estava minado. A juventude, elo mais frágil da sociedade, quando não se é mais criança, mas
ainda não se tem um lugar na vida adulta, sentiu o mal-estar no tempo.
Maio foi também o coroamento da autonomia jovem começada nos anos 50. Houve o encontro das aspirações
de liberdade, de poesia e de comunidade com a mensagem revolucionária de grupos anarquistas, trotskistas,
maoístas.”
73
O leitor deve estar se inquirindo: onde o movimento pós-moderno encontra o Tropicalismo?
Por quê estes questionamentos quanto ao papel da história, das utopias e convicções universais
devem ser estudados para que possamos ter uma nova visão do fenômeno tropicalista? A tarefa
desta pesquisa consiste na observação da música tropicalista em um contexto de variadas
modificações e questionamentos vividos pelo mundo na década de 60, entendida como um período
de adaptação ao acelerado processo de modernização tecnológica e imposição de novos valores.
Década marcada pela consolidação da indústria da mídia e seus tentáculos por todo o mundo,
culminando com a penetração da cultura por todas as esferas da vida contemporânea.
O pós-modernismo irrompeu como a concretização de uma sociedade marcada pela
culturalização da mercadoria, como exposto por Jameson, ou pela imagem que transpõe o sentido
do real dentro de uma hipervisualização e do simulacro, seguindo Jean Baudrillard e Guy Debórd.
Levando-se em conta tal visão fatalista, o pós-modernismo estaria vinculado ao capital e ao
empresariado ávido pela liberdade de mercado para capitalizar mais riquezas e poder nas mãos do
sistema capitalista corporativo. Os monopólios e trustes atuais, quando a concentração da riqueza e
de poder se faz presente com toda a sua robustez, são a melhor imagem da pós-modernidade
criticada por estes autores.
73
Silva, Juremir Machado da; entrevistando Edgar Morin; “O elo mais frágil”; Folha de São Paulo, suplemento “Mais”, 10/05/1998
46
Paralelamente ao virtual pessimismo das críticas habituais ao pós-modernismo, brotam
manifestações que clamam pela descentralização do pensamento ocidental e trazem bons agouros
para os países que não fazem parte do eixo do desenvolvimento europeu e norte-americano. Por
conseguinte, o aparecimento e divulgação de cenas culturais marginalizadas pelo etnocentrismo,
abrindo caminho para o surgimento do reggae jamaicano, nos fins da década de 60, da música
indiana e para sonoridades vindas de recantos mais inóspitos como a música africana e, até mesmo,
o Tropicalismo, que foi ouvido pelos Rolling Stones na vinda ao Brasil em 1968.
74
Estas culturas
marginalizadas vêem o interesse da mídia crescer enormemente. O motivo é flagrante na
valorização da diversidade e negação da centralidade cultural, advindo um processo de rápida
adaptação da indústria aos novos mercados consumidores e à difusão desses produtos alternativos
(no caso da música e da cultura também chamados de étnicos).
O termo pós-modernismo e sua história
Em 1916, antes de ser um termo corrente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, o espanhol
Ortega y Gasset assinava um ensaio Nada moderno y muy siglo XX, no qual sustentava que a
Idade Moderna fizesse parte do passado, pois teria se iniciado com a descoberta da América e
terminaria em 1900. Portanto, o século XX seria uma nova era, ainda não denominada. Ortega y
Gasset estudou o poder destrutivo do consenso popular que poderia levar a uma virtual
mediocrização cultural encorajando a formação de Estados totalitários.
No mundo hispânico, o termo “post-modernismo” tem o primeiro registro na década de 30.
Frederico de Onís empregou-o para tratar de um refluxo do modernismo, “a busca de um refúgio
contra o seu formidável desafio lírico num perfeccionismo do detalhe e do humor irônico, em
surdina, cuja principal característica foi a nova expressão autêntica que concedeu às mulheres.”
75
Por outro lado, haveria um “ultramodernismo” que provocou o radicalismo modernista, um inédito
impulso similar ao das vanguardas que criavam uma “poesia rigorosamente contemporânea” de
alcance universal.
76
Os principais representantes destas vanguardas - Jorge Luís Borges, Pablo
74
Engraçado notar que os Rolling Stones foram a cultos afro-brasileiros e levaram fitas dos Mutantes para a Inglaterra, quando aqui estiveram na
década de 1960. Exigiram que Rita Lee abrisse seu primeiro show no Brasil, mas erroneamente intitulam a música Sympathy for the Devil como um
samba
75
Anderson, Perry; As origens do pós-modernismo, tradução de Marcus Penchel, Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 1999, pg. 10
76
Frederico de Onís, Antologia de la poesia española e hispanoamericana (1882-1932), Madri, 1934, p. xiii, xxiv É interessante perceber que este
“ultramodernismo” vem a reboque de uma tradição vanguardista espanhola que remonta ao ultraísmo, que se baseava na “...refundição das
vanguardas de todo o mundo, a supressão da rima e da pontuação, o valor visual-tipográfico do poema, o culto da imagem indireta e dupla, à maneira
cubista, a permuta de sensações na metáfora – e, generalizante, a reação contra o século XIX, contra o sentimentalismo e contra o tragicismo (culto do
humor)”.Frontín, José Luis Giménez; Movimentos Literários de Vanguarda, Rio de Janeiro, Biblioteca Salvat, 1979, pg. 123 Com as homenagens
a Góngora, há o nascimento da chamada “geração de 27”, que retomavam as vanguardas literárias, trazendo a influência surrealista e a expressão em
prosa. O ultraísmo é assim intitulado após a criação do manifesto Ultra” ,em 1918, por Rafael Cansinos-Assens. Extraído de Anderson, Perry; As
Origens da Pós-modernidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999
47
Neruda, Frederico Garcia Llorca e César Vallejo - teriam suas obras publicadas numa antologia de
poetas de língua espanhola em 1934.
No Brasil, Bezerra de Freitas escreve Forma e expressão no romance brasileiro - Do
período colonial à época postmodernista, publicado em 1947, onde localiza a gênese do
modernismo brasileiro na Semana de Arte Moderna de 1922, caracterizada pelo futurismo e a
ruptura operada por Mário de Andrade. O pós-modernismo seria inaugurado com uma reação
indigenista nos anos 30.
Bem mais tarde, em 1973, Gilberto Freyre, um dos primeiros a usar o termo Tropicalismo
77
,
utiliza a expressão pós-moderno para designar uma realidade nacional e global, no livro Além do
apenas moderno:
“Este livro reúne um grupo de ensaios em que são abordados uns tantos aspectos de possíveis futuros
humanos, em geral, brasileiros em particular. Aspectos os mais diversos. Todos tendo, porém, a ligá-los entre si o serem
principalmente pós-modernos, ora em continuação a tendências apenas modernas, ora em oposição a essas tendências.
E quase sempre contendo, além de sobrevivências, constantes. Por vezes, atualizando arcaísmos.”
78
A citação de Gilberto Freyre é elucidativa quanto ao conceito de pós-modernidade no Brasil,
num período pouco posterior à eclosão do movimento tropicalista. Há a ambivalência em se
trabalhar sob o ponto de vista moderno, junto ao arcaísmo marcante da realidade brasileira. Sob
outro ângulo, há o pós-modernismo que se assemelha, em alguns aspectos, ao modernismo ou nega-
o veementemente, exibindo sua atávica contradição. Contradição usada repetitivamente pelos
tropicalistas dentro de sua proposta de criação ambivalente, com destaque ao processo de
modernização e às reminiscências do arcaísmo. Gilberto Freyre defendia a imagem do Brasil como
um paraíso para todas as raças, local onde a miscigenação gerou uma cultura única da tolerância e
do sincretismo. Os tropicalistas vão utilizar a idéia de uma cultura originalmente miscigenada com
a prática da antropofagia oswaldiana
79
, onde se deglutia as informações provenientes do exterior e
as digeria na criação de uma linguagem única e paradigmática. A aproximação entre Tropicalismo e
antropofagia é justificável pois os tropicalistas utilizaram os elementos antropofágicos como: a
busca de um primitivismo telúrico, próximo ao herói Macunaíma; a aposta na união de influências
77
Gilberto Freyre, buscava ressaltar a vocação brasileira para o estético e exuberante, características da influência dos trópicos sobre o homem e a
sociedade como o próprio Caetano Veloso exibe em seu livro Verdade Tropical; Tropicalismo, me soava conhecida e gasta, a tinha ouvido
significando algo diferente, talvez ligado ao sociólogo Gilberto Freyre (o que mais tarde se comprovou), de todo modo algo que parecia excluir
alguns dos elementos que mais nos interessava ressaltar, sobretudo aqueles internacionalizantes, antinacionalistas, de identificação com toda a cultura
urbana do Ocidente.”( Veloso, Caetano; Verdade Tropical; São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 192) ; sem deixar de citar o Tropicalismo
visto nas artes plásticas que também era conhecido como neo-concretismo, com Hélio Oiticica; também havia o teatro de José Celso Martinez Corrêa
com seu “Rei da Vela”, “Roda Viva”, dentre outras, que se inseriam nessa linguagem Tropicalista, ou até mesmo a obra de Glauber Rocha, com
destaque para Terra em Transe, mesmo sem o reconhecimento de Glauber quanto a existência da estética Tropicalista em sua obra. Sob outro ponto
de vista o Tropicalismo, ou Tropicalista, seria a pessoa que “trata de assuntos concernentes às regiões tropicais; médico que se ocupa especialmente
de doenças peculiares dessas regiões”. In. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, Francisco Fernandes, Celso Pedro Luft, F. Marques
Guimarães. 30
a
edição, São Paulo, Globo, 1993
78
Freyre, Gilberto; Além do apenas moderno
79
Prática de caráter marcadamente modernista.
48
diversas na formação de uma estética original e a observação de outras manifestações culturais:
“Segundo uma visão pau-brasil, com ‘olhos livres’, primitivos (na verdade civilizadíssimos)
apropriaram-se de materiais e formas de cultura, inventariados no tratamento artístico em que se
associam uma matriz dadaísta e uma prática construtivista.”
80
Porém, o Tropicalismo diferia da
antropofagia oswaldiana devido a seu processo criativo e contexto histórico. Os tropicalistas
operavam a deslegitimização de estéticas predecessoras sendo que Celso Favaretto sublinha o
distanciamento da antropofagia modernista do Tropicalismo. Favaretto apresentava a diferenciação
histórica entre os dois movimentos artísticos, frisando que a antropofagia buscava fundir a
originalidade nativa e a técnica, na assimilação da cultura nativa, da cultura internacional e da
tecnologia. De outra maneira, o Tropicalismo tratava das antíteses arquetípicas do Brasil, das
vicissitudes nacionais expondo o arcaico e o moderno, realçando as “indeterminações históricas, os
recalques sociais e o sincretismo cultural, montando uma cena fantasmagórica toda feita de
cacos.”
81
O Tropicalismo não mais se atinha ao papel original da cultura nativa e na reação ao modelo
cultural imposto pelos europeus, como era hábito entre os modernistas, mas buscava participar dos
debates relativos ao papel da indústria cultural que opunham a busca de influência em outras
culturas à manutenção de uma música brasileira livre do contágio de outras formas comerciais.
Exibida de forma fragmentária, amalgamando variadas linguagens numa colagem que sobrepunha
Catulo da Paixão Cearense (“o luar do sertão”) e José de Alencar (Iracema) a Louis Malle (Viva
Maria) e Brasília (“monumento no planalto central do Brasil”
82
, “Brasília, sem ser nomeada, seria o
centro da canção monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso
ridículo.”
83
).
O Tropicalismo apropria-se de outras expressões artísticas, investindo na intertextualidade
84
e sobreposição de sonoridades e letras. A fragmentação é uma das armas da composição tropicalista
justapondo palavras, sons e ritmos. A justaposição de sons e sílabas é patente em Irene (ir, rir,
Irene), não se restringe a sílabas e alcança as palavras com uma “técnica de fragmentação do texto
(que) tem um efeito de simultaneidade cubista para aprender as diversas faces de uma imagem: o
sol se reparte em crimes/ espaçonaves guerrilhas/ em cardinales bonitas/ eu vou’
85
, unidas à
80
Favaretto, Celso; “Tropicalismo e Antropofagia”; In. Tropicália: alegoria, alegria; 2
a
edição, São Paulo, Ateliê Editorial, 1996; pg. 48
81
Favaretto, Celso; Ibidem; Op. Cit.; pg. 52
82
Letra de Tropicália
83
Veloso, Caetano; Verdade Tropical; São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 185
84
Intertextualidade compreendida como a inserção de expressões e narrativas variadas na tessitura de uma estética heterogênea, onde há a
explicitação da construção do discurso. Como Umberto Eco, ao comentar seu livro O Nome da Rosa: “(...) os livros sempre falam sobre outros
livros, e toda estória conta uma estória que foi contada.” Eco, Umberto; Postscript to The Name of the Rose; 1983/1984; extraído de Linda
Hutcheon; Poética do pós-modernismo; Rio de Janeiro, Imago, 1991, pg. 167
85
Sant’anna; Affonso Romano de; Música popular e moderna poesia brasileira; Petrópolis, Vozes, 1977, pg.107-108
49
justaposição de estrofes, ritmos e canções heterogêneas, quando a utilização da intertextualidade
e da reunião de variadas estéticas poético-musicais nas canções tropicalistas. As referências partem
do iê-iê-iê e do folclore nacional, indo até a música serial ou indiana, exibindo uma percepção
estética cada vez mais voltada para a compreensão contextual dos acontecimentos mundiais. Uma
arte que pressupõe a interação entre os diversos âmbitos culturais no afã de construir uma
linguagem moldada pela juventude global.
86
Jean Baudrillard e a economia política do signo
Jean Baudrillard analisa o domínio da televisão atualmente com a imposição de novas
estéticas e a conseqüente renovação mental e ética preconizada pela simulação e massificação
cultural: “...todas estas teorias são impensáveis sem o impacto da televisão como um aparato de
simulação que integra os fluxos de significação e informação com os de mercadorias, e que faz
escoar o real para fora da ordem das mercadorias e dos acontecimentos, reduzindo-os a várias
imagens que se referem apenas a outras imagens.”
87
O signo adquire o papel primordial nesta sociedade com o que Baudrillard chama de
economia política do signo, onde a esfera de significação é idêntica à esfera da troca, ou seja, os
objetos não são mais valorizados de acordo com sua utilidade ou seu poder de encantamento.
Atualmente, o valor do objeto é determinado pela sua significação dentro de uma cadeia de
referentes que dependem cada vez mais do consenso de variados elementos como: os meios de
comunicação, os anseios de determinada classe social e o uso de técnicas rebuscadas ou inovadoras
em sua criação. O capitalismo contemporâneo simularia o real num lugar onde a “realidade” não
existiria.
Huyssen, observando suas implicações políticas e sociais, afirma que a teoria sobre mídia de
Baudrillard não passava de uma teoria sobre a percepção de imagens. Baudrillard exibe um mundo
simulacional baseado na “suposição de que o desenvolvimento da produção de mercadorias, aliado
à tecnologia da informação, levou ao ‘triunfo da cultura da representação’ que inverte a direção do
determinismo, de modo que as relações sociais ficam saturadas de signos culturais em mutação, a
ponto de não mais podermos falar em classes sociais ou normatividade e nos depararmos com o
86
“Uma dimensão gigantesca desse legado foi esquecida, que foi precisamente a dimensão cultural. De um lado, a ambição de fundir as artes. De
outro, uma visão abrangente da natureza(...)” Paglia, Camille; entrevista para Folha de São Paulo, “Mais”, 10/09/2005 Texto onde Paglia critica o
esquecimento de determinados pressupostos da cultura sescentista como a interculturalidade e a relação harmoniosa com a natureza
87
Huyssen, Andreas; Memórias do modernismo, tradução Patrícia Farias, Rio de Janeiro, ed. UFRJ, 1997, pg. 83
50
‘fim do social’.”
88
Featherstone mostra que Baudrillard usava uma abordagem determinista ao
defender a simulação como manifestação onipresente na esfera cultural, social e econômica
contemporâneas, o que seria contraditório na abordagem da realidade heterogênea, ambivalente e
paradoxal. Baudrillard imaginava uma consciência moldada pelo mass media e seu poder
simulacional, o que poderíamos ver como uma visão universalista e modernista do fenômeno pós-
moderno o que seria a antítese da pluralidade propagandeada pelos teóricos pós-modernos. Ao
observar a sociedade contemporânea, Baudrillard tinha maior atenção aos fenômenos ocorridos na
indústria cultural e na massificação normatizadora propagada por ela, semelhante aos estudos de
Jameson que também tratava a cultura como a principal esfera social e econômica contemporânea.
outra linha de abordagem dos acontecimentos pós-modernos que fazem referência ao
pluralismo, ao enriquecimento cultural e à crise da universalidade iluminista. A derrocada do
etnocentrismo civilizatório iluminista e a primazia da compreensão de novas identidades
permitiram o fomento de expressões marginalizadas que adquiriram espaço nos canais de
comunicação para seus discursos, considerado por alguns como o descentramento do discurso. A
construção das letras tropicalistas, de cunho auto-referencial, tinham semelhança na linguagem não-
ficcional difundida pelo New Journalism norte-americano, que clamava por uma literatura feita de
impressões, geralmente reais, do autor usando linguagem coloquial que transportava o leitor para o
mundo do autor/jornalista.
89
Alguns imaginam que o pós-modernismo seria apenas mais uma permanência modernista;
outros o vêem como uma ruptura, um movimento que não mais apostaria no eterno
desenvolvimento e evolução modernista. Este problema está colocado no centro das discussões
quanto à real postura contemporânea, apesar de poucos se debruçarem com afinco capaz de elucidar
questões cruciais decorridas do debate: a representação do pós-moderno simbolizaria uma ruptura
ou a conservação das práticas modernistas? Sempre influente, com o peso da tradição e
estratificação acadêmicas, os conceitos modernistas continuam largamente utilizados atualmente,
porém a concepção mais cara ao modernismo, a racionalidade iluminista e a noção universalizante,
são questionadas com a invocação do multiculturalismo e do relativismo cultural e científico.
As formas e práticas pós-modernas são, muitas vezes, de difícil percepção entre os teóricos
contemporâneos, até mesmo porque, como Steve Connor nos chama a atenção:
88
Featherstone, Mike; Cultura de Consumo e Pós-modernismo, Livraria Nobel, São Paulo, 1995
89
Tom Wolfe, Truman Capote e Jimmy Breslin tem maior destaque no New Journalism. Também há o desenvolvimento do chamado jornalismo
gonzo, onde o autor deve necessariamente passar pelas experiências dos entrevistados, para poder compreender de forma mais abrangente o foco de
seu trabalho. Com características semelhantes a literatura beatnik irrompia com sua coloquialidade e aversão à ordem estabelecida
51
“Na cultura popular, como em outros campos, a condição pós-moderna não é um conjunto de sintomas
simplesmente presentes num corpo de evidência sociológica e textual, mas um complexo efeito do relacionamento entre
prática social e teoria que organiza, interpreta e legitima suas manifestações.”
90
Connor chama a atenção para o peso que a influência contextual possui sobre a criação
cultural. Com o prestígio da cultura áudio-visual houve uma modificação na percepção estética e
variados elementos passaram a consistir ricas fontes para a criação cultural. Neste momento a
cultura se transformou num dos principais meios de veiculação e consolidação de uma nova
sociedade, agora baseada na imagem e no consumo, que, por um lado, propagam o capitalismo e,
por outro, exibem novas linguagens que possibilitam o enriquecimento e a pluralidade cultural.
Connor frisa a heterogeneidade do pós-moderno com suas variadas e contraditórias manifestações,
não consistindo, desta forma, num movimento teoricamente estruturado.
No Brasil, atualmente uma crítica aos chamados fenômenos pós-modernos,
principalmente devido a seu caráter neo-liberal e a anunciação do fim das utopias. Nicolau
Sevcenko se refere ao que Ernest Mandel intitula o terceiro estágio do capitalismo, como o terceiro
estágio da montanha russa:
"...a síncope final e definitiva, o climax da aceleração precipitada, sob cuja intensidade extrema relaxamos
nosso impulso de reagir, entregando os pontos entorpecidos, aceitando resignadamente ser conduzidos até o fim pelo
maquinismo titânico. Essa etapa representaria o atual período, assinalado por um novo surto dramático de
transformações, a Revolução da Microeletrônica"
91
Sevcenko pinta um futuro sombrio com a alienação do indivíduo e a total imprevisibilidade
de se entender o mundo contemporâneo. É interessante comparar essa perspectiva com o
pensamento de Hayden White, voltado à valorização do descentramento e da pluralização cultural
nas narrativas contemporâneas. White reflete sobre a criação de novos paradigmas, que a vida "será
mais bem vivida se não tiver um sentido único, mas muitos sentidos diferentes.” Nós “(...)
precisamos de uma história que nos eduque para a descontinuidade de um modo como nunca se fez
antes; pois a descontinuidade, a ruptura e o caos são o nosso destino."
92
A história não mais é
escrita por historiadores, mas por todos que, por algum motivo, tenham público para consumi-la. A
interdisciplinariedade e a relativização da história tradicional nos trazem uma narrativa mais solta,
muitas vezes romanceada e apta à absorção de um público mais amplo.
Há a standarização de algumas esferas da vida contemporânea, no mundo industrial e muitas
vezes junto aos canais de comunicação. Na cultura, na criação de produtos e no debate ideológico
90
Connor, Steve; Cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo; Ed. Loyola, São Paulo, pg. 149
91
Sevcenko, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pg.16
92
White, Hayden. “The burden of History”, History and Theory. 1966; extraído da internet Marcos Antunes de Lima “Pós-modernidade e teoria da
história.”
52
vive-se uma grande produção transmitindo a sensação de multiplicidade cultural e ideológica. a
valorização de pensamentos minoritários e a eclosão de movimentos reivindicatórios de indígenas,
GLS, curdos, albaneses, enfim, o reconhecimento da alteridade e a relativização do etnocentrismo.
Toda narrativa adquire valor dentro da tessitura da história, que se acomoda junto ao seu nicho
cultural. Há a multiplicação de temas ligados à história, abarcando desde a história de gênero até a
história material no sentido mais restrito, como a história da moda, do vinho dentre outras. Essa
virtual dispersão temática não deve ser mal vista, pois, apesar da profusão de estímulos que
vivenciamos e da inconstância do conhecimento filosófico e científico atual (“Tudo que é sólido se
desmancha no ar” como dizia Karl Marx), espaço para a divulgação e estudo de temas pouco
caros à historiografia tradicional. Cresce a intertextualização e o historicismo
93
na narrativa
ficcional com o sentimento que a história é uma construção narrativa que interage com a história
real, edificando em nosso imaginário uma história balizada, muitas vezes, em ficções. Haja visto
muitos possuírem uma percepção da Revolução Francesa ou de outros eventos históricos
estabelecida pela indústria cultural: televisão, cinema, edições ou seminários. O
espectador/consumidor atualmente tende a basear sua visão de mundo num sistema que privilegia
os sentidos auditivos e visuais, herança trazida da década de 1960 e das inovações no mundo da
comunicação ocorridas no período.
O Tropicalismo insere a poesia de sua música, com cunho claramente fragmentário e
multicultural, numa linguagem pós-moderna. Com letras inspiradas em histórias em quadrinhos e
nos meios de comunicação, o movimento reúne a defesa do kitsch na sua cenografia e costumes, da
Jovem Guarda e de uma revolução estética nos cânones modernistas nacionais e internacionais. A
busca do questionamento do establishment, praticado pela juventude de todo o mundo, é fincada
como bandeira primordial dos tropicalistas, que também questionavam a esquerda revolucionária
nacional e o policiamento ideológico. O relato de Gilberto Gil é esclarecedor: “Música pop é a
música que consegue se comunicar de maneira tão simples como um cartaz de rua, um outdoor, um
sinal de trânsito, uma história em quadrinhos.”
94
A música representaria um meio de grande
facilidade de propagação de suas mensagens, introdutora de elementos provenientes de outros
meios de comunicação em sua criação, influenciando e sendo influenciada pela indústria cultural.
93
Fredric Jameson discute a questão do novo historicismo arquitetônico:
“(...) os produtores culturais não podem mais se voltar para lugar nenhum a não ser o passado: a imitação de estilos mortos, a fala através de todas as
máscaras estocadas no museu imaginário de uma cultura que agora se tornou global
Evidentemente, essa situação determina o que os historiadores da arquitetura chamaram de ‘historicismo’, a saber, a canibalização aleatória de todos
os estilos do passado, o jogo aleatório de alusões estilísticas, e, de modo geral, aquilo que Henri Lefebvre chamou de primazia crescente do ‘neo’.”
Jameson, F.; Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio; São Paulo, Ática, 1996, pg. 45
Jameson se referia principalmente ao pastiche, quando divaga sobre o historicismo, mas demonstra que atualmente há o hábito em utilizar estilos
pretéritos na confecção de idéias, algumas originais e outras nem tanto
94
Gilberto Gil, fascículo quinzenal “História da música popular brasileira”, Ed. Abril, São Paulo, 1971, pg. 10
53
CAPÍTULO 2
A discussão sobre o conceito de progresso no Tropicalismo
Gilberto Gil, um artista questionador que trabalha numa linguagem auto-referencial e
abrangente, possui uma visão única da música nacional e mundial e tem um papel determinante na
“evolução” da música brasileira. Investindo em temas contemporâneos, Gil profere interrogações
que são correntes, de uma forma geral, em toda sociedade. As músicas Cibernética, Era Nova e O
Fim da História exibem com maestria sua visão crítica do desenvolvimento tecnológico, a
contestação do sentido de ultrapassamento infinito inerente ao desenvolvimento calcado nos
padrões modernos. Gil dialoga com a tradição cultural primitiva brasileira e produz uma música
antenada aos acontecimentos coetâneos. Em Era Nova, Gilberto Gil critica a superação inerente ao
modernismo e à sua ideologia histórica (o iluminismo racionalista), também analisada por
Nietzsche.
95
Gil canta:
“Falam tanto numa nova era/ Quase esquecem do eterno é/ você poder me ouvir agora/ significa que
pé/ Novo tempo sempre se inaugura/ A cada instante que você viver/ O que foi era, e não era/ Por mais nova que
possa trazer de volta”
Para Gil, a música Era Nova trataria da imperceptibilidade da passagem do tempo, “da
ambigüidade eternamente presente em nós de termos em relação ao tempo uma percepção e uma
não-percepção: a de que ele passa quando pensamos e a de que ele não passa quando não pensamos
– isto é: sem que você possa perceber”
96
Preocupado com a percepção do novo e do tempo passado,
Gil se volta para compreender o futuro e as modificações que irão suceder. Em Futurível, de forma
irônica e otimista, Gil antevia que o futuro seria norteado pelas novas tecnologias, “o novo estágio
de humanóide se inicia” e que nosso “corpo será mais brilhante/ a mente mais inteligente/ tudo em
superdimensão/ o mutante é mais feliz/ feliz porque/ na nova mutação/ a felicidade é feita de
metal”. Gil reagia ao tema das atribuições da tecnologia no mundo contemporâneo e nossa iminente
dependência dessas inovações. Em Cibernética haveria a correlação entre o desenvolvimento
tecnológico e a libertação do homem. Muito influenciado pelo psicodelismo, que propunha uma
conscientização do indivíduo através do auto-conhecimento, do uso de drogas e da implantação de
um novo sistema econômico, escrevia Gil em Cibernética:
95
Ver página. 18 deste capítulo
96
Rennó, Carlos (org.); Gilberto Gil, Todas as Letras, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pg. 190
54
“Mas será quando a ciência/ Estiver livre no poder/ A consciência, livre do saber/ E a paciência, morta de
esperar/ então tudo todo o tempo/ Será dedicado a Deus/ E a César dar adeus às armas caberá/ Que a luta pela
acumulação de bens materiais/ Já não será preciso continuar”
Dialogando com o cristianismo primitivo e o comunitarismo inato, com o avanço da ciência
e seu poder de equalizar os problemas materiais Gil propala o que poderíamos chamar do sonho
modernista, a solução universal da desigualdade social e dos eternos enigmas estudados pela
ciência. Numa letra escrita em tom crítico quanto ao progresso científico, observa-se uma
preocupação do autor, correlata a seus contemporâneos quanto ao caminho que a racionalidade
iluminista deveria seguir. Questionava os reais anseios dos cientistas: estudar para dominar a
natureza e seus mistérios e que o conhecimento seja democratizado ou para transformá-lo em mais
um mbolo de poder e consumo? Questões que permeavam as cabeças pensantes da época, que
acreditavam que a ciência e a tecnologia seriam os fatores mais marcantes do século XX.
Em Cibernética há a discussão quanto à temporalidade, semelhante a Jeca Total que
também se concentrava nas questões da modernização simultânea ao arcaísmo e à discussão sobre a
temporalidade tão presente nas obras tropicalistas. Em Jeca Total Gilberto Gil discutia: “(...) as
interseções entre os mundos rural e urbano e no encantamento evolutivo dos vários Brasis no
sentido campo-cidade...”
97
, remontando aos temas do período tropicalista. Dentro da discussão
sobre a temporalidade, o Jeca Tatu, com as “mudanças técnicas e sócio-culturais recentes no país”
98
(a composição é de 1975), transfiguraria-se no Jeca Total, dentro de “um tempo perdido/
interessante a maneira do tempo/ ter perdição/ quer dizer, se perder no correr/ decorrer da história/
Glória, decadência, memória/ Era de Aquarius/ ou mera ilusão.” Retomava-se o movimento da
história como tema, dialético ou sobrenatural, seguindo parâmetros característicos do imaginário
das décadas de 1960/70.
Superbacana, Eles de Caetano Veloso e Parque Industrial de Tom são ótimas
amostras de um conceito de futuro, por vezes positivo, como Superbacana, ou críticos quanto à
modernização e industrialização nacional, no caso de Parque Industrial e Eles onde Caetano
explicita a aversão à sociedade capitalista e suas imposições. Em Superbacana, Caetano se referia
ao processo modernizador, desde o desenvolvimento tecnológico e social até a invasão de histórias
estrangeiras em nossa mitologia, principalmente através da linguagem das histórias em quadrinhos
imbuídas de caráter fantasioso e hiperbólico. Caetano busca transmitir com clareza, através da
sensibilidade poética, as mudanças tecnológicas com a utilização do superlativo. O realce do
prefixo super, no sentido de demonstrar uma linguagem contemporânea era um recurso utilizado em
demasia pelos tropicalistas. Na canção Superbacana o autor se consagra como o super bacana e
97
Rennó, Carlos (org.) Gilberto Gil: Todas as Letras; São Paulo, Companhia das Letras; 1996, pg.171
98
Ibidem
55
canta a música conclamando à fragmentação e ao multiculturalismo quando: “O mundo explode
longe muito longe/ O sol responde e o tempo esconde/ E o vento espalha e as migalhas caem sobre
Copacabana”.
Numa ode ao universalismo, a explosão longínqua vem a ter suas migalhas encontradas em
Copacabana, bairro que serve não como rima para Superbacana mas também como referência da
cidade e do cosmopolitismo brasileiro. Citar Copacabana, bairro símbolo da modernidade nacional
com seu cosmopolitismo e provincianismo, simbolizava um pretexto para exibir a contradição
visceral da modernização nacional, de uma nova imagem nacional com a urbanização concomitante
ao arcaísmo interiorano. “Me engana esconde o superamendoim/ E o espinafre biotônico/ No
comando do avião supersônico/ Do parque eletrônico e do poder atômico/ Do avanço econômico”,
Caetano exibe os símbolos do avanço tecnológico e de criação de uma sociedade baseada em novos
paradigmas com suas novas percepções e práticas sociais. Caetano dizia que a canção consistia
numa lista de nomes de produtos industriais, “(...) uma arenga a um tempo amarga e divertida por
vivermos num país periférico...”
99
; uma música que seria uma “sátira-colagem do folclore
urbano”
100
, exibindo, através de jogos amagramáticos (“Superbacana” e “Copacabana”) e cadeias
de rimas e assonâncias, a vida citadina e as inovações trazidas pelo progresso e modernização
global.
A linguagem coloquial utilizada na canção Alegria, Alegria, (lema utilizado por Wilson
Simonal e usurpado por Chacrinha, uma das personalidades tropicalistas, em seu programa de TV)
simbolizou a coesão da música com o contexto vivido pelo letrista, numa composição estilo
“manchetes em bancas de revistas”, a melhor síntese da profusão de notícias observadas na década
de 1960 com a massificação da televisão através da multiplicação de estações repetidoras e do
lançamento de satélites de transmissão. A adequação à linguagem cotidiana possibilitava aos
tropicalistas uma maior penetração no mercado fonográfico, porém a construção da estética
tropicalista e a referência a movimentos amaldiçoados pelo público politizado traziam embaraço e
problemas de aceitação. A linguagem rebuscada e intelectualizada os afastava do grande público,
enquanto o uso de instrumentos eletrônicos, o experimentalismo e a defesa da Jovem Guarda
incompatibilizava a relação dos tropicalistas com os setores da música de protesto. O principal
motivo da repulsa parecia ser a inserção de sonoridades iê-iê-iê similares ao que seria, na visão dos
tradicionalistas, o pior tipo de submúsica, voltada para o consumo fácil, que utilizava as artimanhas
da indústria fonográfica para ser a campeã de vendagem. Situação que trazia o questionamento,
muito bem colocado por Capinam:
99
Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 189
100
Campos, Augusto (org.) Balanço da Bossa: antologia crítica da moderna música popular brasileira, São Paulo, 1968, pg. 159
56
“Qual a arte que se espera ter em nosso mundo mais facilidade de venda? Aquela que é o resultado da
alienação propiciada por este contexto ou aquela que tem a lucidez de criticá-lo ao mesmo tempo em que pretende ser
vendido por este contexto organizado em mercado?”
101
Para Capinam a música de protesto deveria se adequar às necessidades do mercado cultural
e não se perder no romantismo primitivo, sublinhando que não seria necessário a música brasileira
se alienar diante da realidade nacional para fazer uma música boa e comercializável. A bronca de
Capinam se justificava pela total inadequação da realidade do produtor em relação ao tema de suas
obras, pelo distanciamento entre o artista e seu suposto público alvo. Chama-se atenção para o fato
de jovens universitários brancos de classe média desejarem conscientizar o povo humilde e sem
educação formal, através de obras politizadas voltadas para esse público. A inviabilidade de tal
estética havia sido colocada por Bertold Brecht em crítica ao realismo político e sua linguagem
tosca e ingênua, na afirmação de uma arte para o povo. A dificuldade de realizar uma arte
conscientizadora e esteticamente aceitável era colocado por Maurice Capovilla, em artigo de junho
de 1962, discorrendo sobre a missão do cinema novo de se integrar à “(...) realidade social de país
subdesenvolvido e dessa forma espelhando seus problemas e não mistificando ou idealizando,
rechaçando portanto a imitação dos cânones estrangeiros, e com eles as formas importadas de
narcose, ilusão e opressão do povo.”
102
Pena que o discurso intelectualizado distanciava os artistas
engajados da realidade nacional e dos seus prováveis seguidores, os operários e camponeses. Com
uma retórica que abarcava um pequeno público, também ligado à classe média, a cultura de protesto
não alcançava o intento de conscientizar as massas proletárias em prol da revolução social.
Apresentavam-se para platéias conscientizadas, que assistiam tais manifestações no afã de
corroborar suas opiniões.
O questionamento sobre o fim da história e o multiculturalismo
Os teóricos apregoam como as principais características do pós-modernismo: o fim das
meta-narrativas, o que para alguns soa como o fim da história; o simulacro; o questionamento da
temporalidade ocidental; o nivelamento de hierarquias e o apagamento das fronteiras geográficas,
raciais e sociais. Gil dialoga com essas características em sua produção musical, inserindo novos
elementos nesta discussão e popularizando suas idéias com a veiculação maciça de sua produção
pelos meios de comunicação, possível a veículos ligados à indústria cultural. A música tem
101
Revista Civilização Brasileira; “Que caminho seguir na música brasileira”; pg. 381
102
Capovilla, Maurice; “Cinema Novo”; Revista Brasiliense; São Paulo, nº 42, pg. 135-138; jul/ago 1962. Extraído de Ridenti, Marcelo; Em busca
do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV, Rio de Janeiro, Record, 2000
57
maior peso nessa veiculação devido a sua reprodutibilidade, infinitamente maior que qualquer outra
obra artística, como o cinema ou a fotografia, tratados no conhecido trabalho de Walter
Benjamin
103
. A música é reproduzida em variados meios e contextos, servindo desde a audição
concentrada e solitária caseira ao som ambiente dentro de bares, restaurantes ou elevadores. Em sua
reprodução a difusão da música nas rádios que divulgam a mesma canção em locais os mais
distantes do planeta, milhares de vezes por dia, alcançando inumeráveis ouvintes. Enfim, a música
possui uma importância gigantesca no imaginário contemporâneo, atravessando variadas
apreensões e propagando sua mensagem para um público que pode não ter um conhecimento
profundo das problemáticas contemporâneas, mas se sensibiliza através de canções que relatam seu
cotidiano. A música possui o poder de tratar poeticamente esta realidade e abordar temas
pertinentes a outras áreas culturais como o cinema, as artes plásticas e a literatura, por exemplo.
Duas passagens do livro de Zuenir Ventura são elucidativas quanto à importância da linguagem
escrita para a geração de 1960:
“Na verdade, a geração de 68 teve com a linguagem escrita uma cumplicidade que a televisão não permitiria
depois. O boom editorial do ano indica um tipo de demanda que passava por algumas inevitáveis futilidades, mas se
detinha de maneira especial em livros de densas idéias e em refinadas obras de ficção.” Ou “Um passeio pelas livrarias
do país em 68, tal como fizera Caetano em Alegria, alegria, reforça essa impressão que nossa revolução sexual não
começou na cama, mas nas prateleiras; na teoria, antes da prática.”
104
Em outra diretiva via-se que a linguagem escrita se coadunava à poesia falada tanto em
saraus e recitais, que voltam à moda com os beatniks, como na música:
“Parecia-me que eu estava realizando aquele progresso de ser poeta por outras vias que não as do poema
impresso. Aliás, não estava longe de confirmar essa ilusão Augusto (de Campos, defensor de primeira hora do grupo
Tropicalista) ao dizer que o que havia de interessante na poesia brasileira- a ‘informação nova’- tinha migrado das
páginas dos livros para as vozes da canção popular.”
105
O Tropicalismo realizava a ligação entre as variadas discussões contemporâneas que
marcavam fortemente seus adeptos. Gilberto Gil, em 1991, escreve O Fim da História criticando
Francis Fukuyama que proclamava o fim da história devido à crise do socialismo na URSS e o fim
das utopias, com potencial predominância do capitalismo neoliberal: “Não creio que o tempo/
Venha comprovar/ Nem negar que a História/ Possa acabar” O tempo, o conceito de progresso a
metafísica continuam sendo tema tropicalista.
O modernismo reivindicava a universalização de um pensamento filosófico, baseado na
liberdade e igualdade, na convicção da criação de uma meta-teoria civilizatória que todos os povos
103
Benjamin, Walter; A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução (1936)
104
Ventura, Zuenir; 1968: O Ano que Não Terminou, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, pg. 54 e pg. 32-33
105
Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 229
58
deveriam seguir
106
. A pós-modernidade remete à compreensão da particularidade e da pluralidade
cultural, junto ao esmaecimento das meta-teorias, tão caras ao modernismo. O modernismo, no que
concerne à ciência, busca a universalização de conceitos, no propósito de formalizar uma teoria
geral explicadora das transformações, enquanto os pós-modernistas suspeitam do progresso e da
ciência, criando o que alguns chamam de neo-ludismo
107
. As meta-narrativas típicas do
modernismo vivem seu ocaso com a pluralização teórica, étnica e cultual.
Outras peculiaridades importantes do pós-moderno são a virtual formação da chamada
aldeia global ocorrida com a redefinição das fronteiras e identidade do Estado-nação, com graves
repercussões como guerras tribais e étnicas que, ironicamente, nos remetem ao primitivismo pré
Estado moderno. Existe a dificuldade da aceitação do outro, a difusão de imagens e mercadorias
sem limites fronteiriços ou culturais, uma vil padronização dos gostos e estímulos perpassando a
sociedade atual. O leitor irá se perguntar: afinal o pós-modernismo seria a defesa da pluralidade e
do respeito à diferença identitária ou a radicalização e remissão de antigas lutas de defesa de
identidades marginalizadas e colocadas no limbo por gerações? A resposta que este estudo pode
conceder estaria baseada numa das principais e sempre sublinhadas características do chamado pós-
moderno: a contraditoriedade e a paradoxalidade. Na referência à pluralidade uma virtual e
perigosa relativização das diferenças e idiossincrasias identitárias culminando na inexplicabilidade
da realidade contemporânea. O pós-moderno, ao questionar a universalização e as meta-teorias,
nega a si próprio como uma ideologia fixa e traz à tona a dificuldade e impossibilidade em
compreender a contemporaneidade com parâmetros modernistas universais. Sob um ângulo otimista
(esquecendo o corporativismo neo-liberal pasteurizador contemporâneo), o nascimento de um
fenômeno que não é mais concebido do centro para a periferia, mas da periferia para o centro. Os
mercados em desenvolvimento o os dos países localizados anteriormente na periferia do
capitalismo: China, Brasil e México. Obviamente, graças ao esgotamento dos mercados
tradicionalmente consolidados e, principalmente, à força do multiculturalismo observado nestes
locais, coadunado à abertura a influências vindas do exterior, cresce a procura da indústria cultural
por produtos exclusivos, com sofisticações e especializações de acordo com o variado gosto do
mercado consumidor. Essa abertura exige uma adaptação dos países tradicionalmente considerados
pólos culturais para o diálogo com estéticas ligadas aos países subdesenvolvidos. O diálogo se
através dos interesses mercadológicos e de processos migratórios que enriquecem e pluralizam as
discussões no campo cultural.
106
O uso do tempo passado pode ser considerado errôneo, pois a imposição de modos de vida e de “civilização” ainda hoje é observada, desde a
guerra contra o terrorismo e a adequação de todo o mundo à democracia representativa, até os conflitos entre as mais diversas nacionalidades e etnias
107
Site internet The Po-Mo Page Postmodern, Postmodernism, Postmodernity.htm
59
A Inglaterra é um exemplo vivo do processo de enriquecimento cultural. A chamada
swinging London”, dos anos 1960/70 foi palco de uma revolução na cultura e de costumes, graças
à população fortemente miscigenada incluindo a presença de indianos, paquistaneses, jamaicanos,
africanos, latino-americanos e norte-americanos que acorriam à capital cultural mundial. Jimi
Hendrix, por exemplo, encontrou lugar para suas estripulias em Londres onde havia uma platéia
aberta às experimentações estéticas. Obviamente nos referimos a Londres pois ali frutificou um
movimento pop de grande criatividade e ressonância mas sobretudo por ter sido a cidade que
Caetano Veloso e Gilberto Gil passaram seu exílio após o AI-5. Os tropicalistas encontraram ali
lugar para a troca e o enriquecimento cultural. Local onde Gilberto Gil travou contato com músicos
do pop inglês e pôde aprender muito sobre as novas concepções musicais em voga na época. Para se
ter uma idéia da interação, Gilberto Gil tocou com Jim Capaldi, baterista da banda Traffic, uma das
mais renomadas do rock inglês, foi ao Festival da Ilha de Wight, um dos últimos da era dos grandes
festivais de música,
108
assistindo a shows e eventos alternativos, e consumiu o melhor e mais
sofisticado da arte produzida no período. Experiências que geraram o aperfeiçoamento de Gil com a
guitarra e a língua inglesa e também motivaram canções pouco conhecidas, de grande approach
jovem sobressaindo o psicodelismo e o alternativismo. Canções como Crazy pop rock, escrita em
parceria com o “maldito” Jorge Mautner, que entoava: From the city runs eletricity in my brains/
from the cars runs gasoline up in my veins/ my blood intoxicated by twenty-seven trips/ my eyes
hallucinated by the Holy Ghost I met”. Gil compôs uma canção de cunho claramente psicodélico,
que se referia às ‘viagens’ propiciadas pelo LSD, droga da moda na década. Na música ressaltava a
correlação da sinestesia e os efeitos da droga que simbolizava uma porta imprescindível para o
auto-conhecimento e reflexão individual. Em The Three Mushrooms Gil novamente utilizava a
linguagem psicodélica e narrava em detalhes sua experiência com cogumelos alucinógenos: The
first mushroom/ makes room for my mind/ to get inside the magic room/ of Dionysus house”.
Outra canção que retrataria esta fase mística e psicodélica de Gil seria O sonho acabou.
Inspirado na frase de John Lennon, The dream is over, Gil faz o apanhado de uma geração que
propagou o movimento hippie com seus ideais comunitários e a dificuldade em manter este sonho
vivo. O sonho de um mundo mais justo onde a solidariedade, própria dos movimentos libertários, se
encontrava num beco sem saída com a manutenção do sistema capitalista, a potencial adaptação e
adequação da estética contestatória. A canção O sonho acabou dizia: “Quem não dormiu no
108
A década de 1960 ficou conhecida como a Era dos grandes festivais de música pop que teve como embrião o bem sucedido festival de Monterey,
realizado em 1967 na Califórnia, contando com a presença dos mais renomados astros da música pop. Monterey surge como exemplo para a
realização de outros festivas, onde invariavelmente a juventude exibia sua filosofia alternativa e inconformista. Em 1969, é realizado o festival de
Woodstock, que para muitos significou a exposição explícita dos novos valores juvenis e a normatização do movimento de contestação dos jovens.
Festival que, para muitos, foi o apogeu e ocaso do pop contestador, sendo rapidamente substituído por propostas mais claramente comerciais.
Festivais que seriam a base para o formato dos grandes shows e eventos posteriores, com s platéias cada vez maiores, atrações de grande poder junto à
mídia, eventos que passam a ter um formato mercantil cada vez mais explícito, avesso às propostas dos festivais anteriores
60
sleeping bag nem sequer sonhou/ (...) o sonho acabou/ foi pesado o sono pra quem não sonhou”, em
clara referência ao festival de Glastonbury caracterizado pelo misticismo e pelas experiências
lisérgicas de seus participantes. Gil reproduzia não o fim do festival mas, principalmente, o
começo do fim de um pensamento que propunha a reunião da sociedade civil na transformação
global na sua essência. O sonho acabou constituía uma música exemplar da dificuldade de
manutenção das utopias, principalmente após o recrudescimento do liberalismo econômico e
conservadorismo político, coadunado à apropriação dos valores contestatórios pela indústria
cultural.
Em Londres, Gilberto Gil encontrou espaço para refletir sobre o que havia lhe trazido até ali,
recordando os momentos passados e travando conhecimento de uma realidade nova e única. Essa
reflexão, junto à saudade do Brasil, propiciou a construção de canções primordiais para a moderna
MPB. Expresso 222 e Back in Bahia são frutos dessa reflexão. Em Expresso 222 Gil remonta à
sua infância, aos trens baianos e às viagens pelo interior, enquanto que Back in Bahia, escrita no
primeiro verão após o retorno ao Brasil, baseada em ritmos nordestinos, o cordel e as emboladas,
expressava toda a felicidade em estar de volta à terra natal, falando sobre as diferenças entre as
vivências londrinas e baianas. O retorno ao Brasil possibilitou uma renovação criativa e a
oxigenação necessária para a retomada do “processo evolutivo” da MPB, com a indicação de novos
caminhos e a valorização da raiz folclórica nacional, conforme é citado na última estrofe da canção:
“como se ter ido fosse necessário para voltar”.Back in Bahia, de levada contagiante, representava a
musicalidade universalista de Gil e sua paixão pelas coisas da Bahia. Essas canções, escritas num
processo de grande fecundidade, demonstravam a percepção da intertextualidade tropicalista, sua
percepção da história como um processo interminável de referências ao passado, a idéias e
discursos consagrados na edificação de uma estética transformadora.
109
Referências que iam de
ritmos nordestinos, improviso, embolada, galope, martelo, a poesia concreta.
110
O uso do piano no
estilo rhythm´n´blues era outra homenagem a Londres e às experiências ali vividas, “onde não sei se
por sorte ou por castigo dei de parar”. Londres fervilhava neste momento e norteava o
109
Devemos chamar a atenção para o que chamamos de obras Tropicalistas como todo o processo criador do grupo Tropicalista, o se restringindo
apenas ao período comumente ligado ao movimento (1967-1969). A contiuuidade do projeto experimental proposto pelo Tropicalismo, a inserção de
elementos estrangeiros (pop, o rock, as guitarras distorcidas, o movimento jovem e os hippies) junto à musicalidade tradicional brasileira. Exemplos
não faltam, como a concepção do disco Tropicália II de 1993 propõe. Discos como a trilogia Re de Gilberto Gil (“Refavela”, “Refazenda” e
“Realce”) que traziam o “choque/ entre a favela-inferno e o céu/ Baby-blue-rock/ sobre a cabeça/ de um povo chocolate-e-mel”, como demonstra Gil
na música Refavela, ou quando clama por velejar no infomar que aproveite a.vazante da infomaré/ que leve um oriki do meu velho orixá/ ao porto
de um disquete de um micro em Taipe” mesclando a revolução informática à religião afro-brasileira. O encontro do grupo Tropicalista em 1976 no
lendário grupo “Doces Bárbaros” representou a união de seus elementos e o prosseguimento do “processo evolutivo” da MPB. O grupo Tropicalista
se reunia num momento onde começa a se discutir uma distenção política, quando Gil e Caetano, especificamente, tinham seus trabalhos aclamados e
reconhecidos. Tendo a estética hippie como tônica, tanto nas vestimentas, como nos temas das músicas continuavam a buscar, como diz Gil, sobre a
música Chuck Berry Fields Forever, “uma visão dinástica do sincretismo religioso e cultural das Américas resultante da junção das culturas da
Europa e África, utilizando música popular como fio condutor do processo e como um dos modos de apreende-lo.” Rennó, Carlos (org.) Gilberto
Gil: Todas as Letras; São Paulo, Companhia das Letras; 1996, pg. 178. O mesmo “Doces Bárbaros” que compunha o João Xangô Menino, que
se referia às matas de Oxossi e as fogueiras de São João. Para melhor compreender a correlação do Tropicalismo e sua carreira posterior ver o relato
de Gilberto Gil. Nota 49 na página 27 deste capítulo
110
Rennó, Carlos (org.) Gilberto Gil: Todas as Letras; São Paulo, Companhia das Letras; 1996, pg.130
61
caleidoscópio sonoro erigido por Gil em Back in Bahia. A referência à sua terra natal possuía um
cheiro tropical como o calor, a cor, o sol e o sal brasileiros como mesmo a saudade por Cely
Campelo era capaz de traduzir. Cely Campelo, que servia como referência ao iê-iê-iê e ao rock
brasileiro da década de 1950, estereotipado e fortemente americanizado, era a forma de Gil manter
a cadência de uma obra permeada pelo regionalismo universal ou por um universalismo regional.
Gil reinseria a questão dos padrões de comportamento e bom-gosto citando o rock da década de
1950 como um dos pilares da abertura da música brasileira, o que para alguns consistia um gosto
questionável. A mesma Cely Campelo que seria citada literalmente em Retiros Espirituais do
disco “Refazenda” era a fonte para questionar os cânones da MPB: “Eu diria, o problema se reduz/
Aos espirituais sinais desta canção/ Retirar tudo que eu disse/ Reticenciar que eu juro/ Censurar
ninguém se atreve/ É tão bom sonhar contigo, ó/ Luar tão cândido”
Esta pesquisa objetivará apreender o pós-modernismo como uma nova percepção da
realidade, um enfoque cada vez mais descentralizado, tendo a complexidade e a pluralidade dos
discursos contemporâneos como umas de suas principais propriedades. Apesar da dificuldade de
compreensão das manifestações pós-modernas, com ataques de lados distintos, a unanimidade de
classificar tais manifestações como sintomas da multiplicidade de enfoques teóricos e das
contradições contemporâneas. Sintomas que podem ser observados positivamente graças à criação de
novos meios de difusão de idéias e culturas antes relegadas ao segundo plano. Com um papel bio,
o pós-modernismo mexe com o sentido de universalidade discursiva e inclui novos discursos num
conjunto heterogêneo e enriquecedor.
Há, com o pós-modernismo, o questionamento da realidade imposta pelas meta-teorias,
através de uma análise da produção e propagação das narrativas, um exame detalhado e plural de seus
agentes e suas intenções. Ao perceber a discursividade como uma construção conscientemente
determinada pelos indivíduos de acordo com o contexto vivido por eles e suas intenções, a teoria pós-
moderna pode abarcar variadas expressões sócio-culturais e empreender o estudo particular das
manifestações contemporâneas. A abordagem plural pós-moderna auxilia o estudo do Tropicalismo.
Uma estética fragmentária e heterogênea, semelhante ao Tropicalismo, deve ser analisada através de
uma metodologia que busque compreender os fenômenos culturais como reflexo de seu momento
histórico. Sintetizando, o Tropicalismo e suas características - a paródia, a intertextualidade, a
fragmentação, a referência cruzada, o experimentalismo - são peculiares da nova ordem mundial onde
as velhas premissas não bastam para a explicação das particularidades das variadas expressões
contemporâneas. Neste contexto de mútuas influências, a música produzida no Brasil seguia as
mesmas tendências mundiais. Com a formação de um ciclo de influências gerador de movimentos
que seguiam tendências semelhantes, apesar de suas particularidades, inicia-se uma nova cena global
62
com forte participação jovem, em consonância à cena pop internacional. As inclinações estéticas e
expedientes similares fundam uma nova expressão alternativa, de tendência contestatória, jovem e
planetária, que será a base para a experimentação tropicalista e suas experiências intertextuais.
63
CAPÍTULO 3
Movimento de contestação estudantil e a criação artística
Atualmente, a década de 1960 é foco de numerosos estudos que versam principalmente sobre a
influência dos eventos da década na formação do mundo contemporâneo e, mais especificamente,
quanto ao crescimento da chamada indústria cultural e sua avassaladora influência sobre o mundo
simbólico. Alguns autores, como Jean Baudrillard, tematizam o período sob a ótica da consolidação da
sociedade do simulacro. É engraçado dizer que a pós-modernidade seria resultante de uma virtual crise
das utopias e das meta-narrativas, quando entendemos a década de 60 como o momento de
consolidação da indústria cultural, ou mass media, da radicalização política e filosófica que será o
mote para uma revolução nos costumes jamais vista, ocorrências que remetem às utopias comuns ao
modernismo. Porém ao relativizar o conceito de utopia os diversos movimentos sociais que surgiram
no período vieram a esvaziar a idéia de um conceito universal de sociedade ideal.
Esta pesquisa buscará tematizar a cultura como uma esfera que permeia tanto a infraestrutura
quanto a superestrutura sócio-cultural. Sinal de uma globalização exacerbada, do crescimento das
trocas econômicas e culturais, a pós-modernidade irromperia com a formação de uma juventude
questionadora, fruto do acesso à informação e da revolução comportamental. Geração que tem como
referenciais as viagens à Lua, a colonização do espaço, o crescimento das desigualdades sociais e da
exploração do homem, a revolução científico-tecnológica e o uso maciço de drogas expansoras da
consciência. A juventude do período se conscientizava através da praxis, da vivência cotidiana, com
ênfase na percepção instintiva e telúrica.
É primordial a problematização do papel da juventude dos anos 1960, o mito de ser uma geração
utópica, questionadora e crítica acima de tudo, em detrimento da juventude contemporânea consumista
e sem utopias. O fenômeno da crise das utopias nasce quando há o recrudescimento do sistema
capitalista e suas formas de persuasão e domínio ideológico. Após o fracasso dos movimentos utópicos
da década de 1960 e o afastamento de seus maiores baluartes, o sonho de “uma nova consciência e
juventude”
111
estava enterrado. De várias formas foi colocado esse fracasso das utopias: o
neoliberalismo e o movimento yuppie, a apropriação da contra-cultura e da cultura de protesto por
parte da indústria.
Para o fenômeno pós-moderno, a conscientização da juventude teve um papel de destaque com o
nascimento de uma outra instância de poder constituída pelos estudantes. Graças à sua força de
111
Como escreveu Belchior em Como nossos pais: “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos/ ainda somos os mesmos e
vivemos como nossos pais”, onde traduz a desilusão e a crise dos preceitos mais nobres da geração juvenil da década de 60 e a acomodação da
geração de 1970: (a canção é de 1976) “Quem nos deu a idéia de uma nova consciência e juventude/ tá em casa/ guardado por Deus/ contando o vil
metal”
64
polarização, os estudantes levavam a reboque reivindicações de outros movimentos sociais servindo de
propagadores de uma “nova consciência” política, vinculada às lutas civis em prol de grupos
tradicionalmente sem representatividade. A mudança nos hábitos fica patente quando percebemos a
revolução sexual e de costumes, com uma sensível mudança nos padrões de comportamento de toda a
sociedade. Obviamente não se deve obliterar que a pílula anticoncepcional favoreceu a revolução
sexual, bem como a entrada maciça das mulheres no mundo do trabalho decorrente das Grandes
Guerras. Havia uma atmosfera de indignação levando ao reconhecimento do capitalismo como um
sistema excludente por parte do Concílio do Vaticano.
112
O contexto auxiliava a luta por maiores
direitos às minorias e ao questionamento do capitalismo e de sua ideologia motriz: o iluminismo. Os
estudantes eram a parte atuante e manifestante da sociedade que via ansiosa, maravilhada e espantada
as transformações nos costumes. A revista Manchete, uma das mais lidas do Brasil, falava
abertamente sobre as manifestações estudantis e sua repressão. Referindo-se aos estudantes norte-
americanos, Manchete contava que os universitários questionavam não o sistema educacional e
algumas injustiças, mas a sociedade como um todo:
“Educados sob o impacto dos meios de comunicação de massa e sujeitos a serem chamados a qualquer momento
para a guerra, eles se aplicam, em muitos casos, a paixão pela militância política. Na opinião dos conservadores, esse
estado de espírito os leva a aceitar irrefletidamente palavras de ordem radicais.”
113
A juventude se interrogava sobre seu papel no mundo contemporâneo caracterizado pela
desumanização e fortalecimento das grandes corporações capitalistas que transformavam o poder
numa atividade impessoal e desvinculada da realidade, onde a procura por índices e estatísticas
positivas se sobrepõe ao bem estar social. Por outro lado, cresciam movimentos de contestação da
ordem estabelecida, com a difusão do pensamento de filósofos e artistas de linha mais radical. as
universidades, apesar de sua pequena representatividade proporcional na população, possuíam grande
influência na formação da mentalidade da época. Numa sociedade de base racional, o especialista
adquiria um papel decisório em várias instâncias. As universidades que formavam os especialistas, que
protagonizavam discussões e descobertas científicas em seu ambiente, não conseguiam apaziguar a
massa de estudantes, a maioria de classe média remediada, e transformá-los em especialistas a serviço
do mercado. Os estudantes queriam melhores condições de estudo, aulas que tivessem a criatividade
como base para a construção do conhecimento, alojamentos unisex e o fim da rigidez do ensino
tradicional. Porém as reivindicações não paravam por aí: desejavam que o poder fosse exercido pela
sociedade civil, que tivesse moldes populares e autogestionários, sem qualquer tipo de preconceito
112
Ver Góes, Maria da Conceição Pinto de, Os caminhos e descaminhos da América Latina, mimeo, março de 2004
113
Revista Manchete; Nº 849, 27/07/1968, pg. 92
65
sexual ou racial, enfim almejavam reestruturar a sociedade capitalista e socialista. Os estudantes
desejavam injetar o amor e a solidariedade nos corações e mentes de todos no mundo. Desejo este um
pouco megalômano mas com a cara da juventude da década de 1960, imperativa, hiperativa,
sonhadora, ambiciosa e empreendedora. Uma juventude que teve o mundo em suas mãos: por um mês
parou uma das principais economias do mundo (França), provocou graves feridas na sociedade norte-
americana, deixou o Brasil de pernas para o ar no ano de 1968, quase impediu a realização da
Olimpíada do México e lutou frontalmente contra a polícia, muitas vezes sobrepujando-a (zengakuren
japoneses que combatiam contra o uso de bases militares no solo japonês e contra a Guerra do Vietnã,
com bastões, escudos e capacetes; e possuíam uma grande disciplina de luta, ou os estudantes de
Varsóvia, Bonn, Bélgica e Uruguai). Uma juventude nascida para deixar a sua marca indelével, uma
marca que até hoje é usada como inspiração para movimentos estudantis e artísticos e ainda influencia
e molda costumes.
A pesquisa considera de grande importância a análise mais aprofundada do movimento
estudantil e da música tropicalista devido à polêmica suscitada pelas experimentações tropicalistas e
também pela sua vivência no ambiente universitário brasileiro. Os tropicalistas, com suas alusões às
modificações da vida urbana e à juventude mundial, encontravam-se claramente conectados aos
acontecimentos contemporâneos e investiam na parodização e no descentramento para tematizar a
realidade.
Deve-se compreender o Brasil, até mesmo pela sua grandeza e pluralidade cultural, como
possuidor de uma cultura aberta a influências regionais e estrangeiras. É notável a facilidade com que a
indústria cultural cria demandas, as comercializa e depois exaure os produtos, sejam eles obras de arte,
músicas ou vestuário. Também é interessante observar o poder do mercado ao abarcar diversos nichos
e instâncias consumidoras. Com a comunicação via-satélite, que debutava nas décadas de 1950/60,
houve uma abrangência cada vez maior dessa indústria cultural e sua avidez por novos consumidores.
A juventude, por sua ingenuidade, passa a ser considerada o mais cobiçado mercado pela propaganda
áudio-visual, com a música tendo papel fundamental na propagação da ideologia jovem. O
Tropicalismo é ligado ao nascimento de uma nova ótica sobre a realidade ao dessacralizá-la e expor
suas atávicas incongruências. Utilizava a televisão e uma linguagem kitsch, ciente do poder da imagem
no mundo dominado pela mídia. Enquanto apresentava a realidade nacional, o Tropicalismo, além de
propagar a pluriculturalidade e a idéia de valorização de manifestações marginais, fundia vários ritmos
e sonoridades em sua música, efetuando a pesquisa de musicalidades exóticas e tradicionais, realizada
em harmonia com os integrantes do pop mundial.
Parte da juventude da década de 1960 que deseja “alcançar o poder”, como era dito na época,
observava a revolução tecnológica com a expectativa que ela melhoraria a vida do homem, com a
66
diminuição dos afazeres domésticos e laborais, liberando-o para o crescimento intelectual e o lazer.
Com as modificações tecnológicas e a diminuição da jornada de trabalho, um redirecionamento dos
capitais abrindo-se campo para uma das indústrias mais fortes atualmente: a indústria do
entretenimento, um dos pilares da transposição de um mundo real e concreto para uma realidade
onírica e simulacional. Indústria cultural que apresenta o maior crescimento atualmente e que abarca
desde roteiros intelectuais de turismo histórico ou literário até o comércio de games eletrônicos e
parques temáticos, sempre utilizando o hedonismo e a fantasia como principais veículos de propagação
e fomento.
o aumento, sem comparações anteriores, do tempo ocioso dos trabalhadores e estudantes.
Esse tempo é voltado para a obtenção de cultura e informação e daí nasce uma geração ligada aos
acontecimentos planetários, que toma partido e luta por suas reivindicações. Nessa conjuntura, parecia
que a juventude mundial voltava-se para as mesmas idéias e a música popular era um terreno fértil
para a contestação da ordem estabelecida. Os festivais, graças a sua popularidade e visibilidade, eram
ótimos canais para a veiculação das mensagens dos músicos, como bem coloca Zuza Homem de
Mello:
“Entre as 24 músicas selecionadas para a fase paulista do FIC, algumas tinham tudo a ver com o que ocorria. Basta
ver os títulos: ‘É Proibido Proibir’ (Caetano Veloso), ‘Canção do Amor Armado’ (Sérgio Ricardo), ‘Questão de Ordem’
(Gilberto Gil), ‘América, América’ (César Roldão Vieira) e ‘Para Não Dizer que Não Falei de Flores’ (Geraldo Vandré).
Até em sicas com títulos despretensiosos como ‘Flor e Pedra’ (Carlos Castilho e Vitor Martins), na qual um sujeito
alienado, vendo a juventude protestar com pedras e bombas, decide ter a mesma conduta, o tema vinha à tona.”
114
O ano de 1968 foi um momento místico para a história contemporânea. Um ano ligado às
revoltas estudantis e ao crescimento do poder jovem. Um período de preparação para a Era de
Aquário. No Brasil e em vários outros países havia uma clara tendência à universalização da política
contestatória ao poder instituído. Multiplicavam-se as manifestações populares exigindo liberdade de
expressão nos países socialistas e as lutas nos países de Primeiro Mundo, virtualmente democráticos,
exigindo uma radical modificação social. Os músicos tropicalistas, antenados como uma parabólica,
uma Parabolicamará, que deglute a urbanidade e sua massa informacional, tinham acesso à
informação e a utilizavam na construção de sua estética, dialogando com o movimento juvenil global.
Sempre produzindo no hiato entre uma música dedicada aos temas contemporâneos (como a revolução
comportamental propagada pela juventude mundial) e uma tradição atávica à sua formação cultural, os
tropicalistas se referiam aos acontecimentos com uma consciência rara entre seus companheiros
114
Mello, Zuza Homem de; A era dos festivais, São Paulo, Ed. 34, 2003, pg.273
67
músicos. Apesar da tendência em utilizar temas folclóricos ou políticos nas canções produzidas na
década de 60, o grupo tropicalista buscava empreender a síntese de uma nova ordem cultural: a
revolução jovem, que exercia forte influência sobre eles e os colocava irremediavelmente indispostos
perante aqueles setores que imaginavam ser impossível existir um “som universal”. Descrente da
existência de uma música que pudesse abarcar temas globais, numa estética de roupagem fragmentária
e plural, os tradicionalistas requisitavam a produção de canções que emitissem uma mensagem
engajada e demagógica, ingênua muitas vezes. Havia a tendência em mitificar o poder revolucionário
do povo, havendo uma verdadeira “fetichização do povo como entidade histórica.”
115
Os tropicalistas se inspiravam nos movimentos estudantis que possuíam bandeiras universais e se
reuniam em protestos globais contra a guerra do Vietnã, o capitalismo e o autoritarismo. Em
sucessivas manifestações que ocorriam em variados países do mundo - Itália, Espanha, Colômbia,
Iugoslávia, Polônia, Thecoslováquia, Inglaterra, Alemanha, Venezuela, Argentina, Uruguai, Bélgica,
Japão, México e Brasil - havia um sentimento comum na luta contra a opressão da sociedade desigual
baseada na propriedade dos meios de produção por parte da classe burguesa. A burguesia torna-se a
classe impositora de sua visão de mundo a toda sociedade com a consagração da democracia
representativa. Em todos os continentes surgiram movimentos armados ou pacifistas que buscavam
modificações sistêmicas na vida econômica, política e cultural.
A letra de Soy loco por ti América exprime o valor que se dava na época aos movimentos
guerrilheiros, com Cuba como destaque. A letra de Capinam diz “Que su nombre sea Martí”, em
alusão a José Martí, poeta e um dos líderes da luta de libertação de Cuba do jugo colonial espanhol;
“El nombre del hombre muerto/ ya no se puede decirlo, quién sabe?/ (...) antes que a definitiva noite se
espalhe em Latinoamérica/ (...) el nombre del hombre es pueblo”; contando a história da perseguição
aos opositores do imperialismo norte-americano. Obviamente vem à lembrança a figura de Che
Guevara que havia sido assassinado na Bolívia em outubro de 1967, ano da composição,
principalmente se observamos que: “um poema ainda existe/ com palmeiras, com trincheiras, canções
de guerra, quem sabe canções do mar”; lembrando o momento de combate iminente vivido no Brasil,
com o início das ações de guerrilha urbana e rural. O poema seria o anunciante da revolução. O lirismo
da poesia foi a chave para a criação de uma música de alto grau de sofisticação, ciente da formação de
um público mais seleto e intelectualizado que passa a se interessar pela música popular mas que não
com receio a apropriação da cumbia e outros ritmos caribenhos na melodia. A adequação do
115
Netto, José Paulo; Realismo e anti-realismo na literatura brasileira; vários autores, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1974 Extraído de
Vasconcellos, Gilberto; Música Popular: de olho na fresta, Rio de Janeiro, 1977, pg. 42
68
Tropicalismo à poesia foi, direta ou indiretamente, uma influência de Bob Dylan
116
. Caetano dizia
sobre Dylan:
“No momento em que os ingleses dominavam o jogo com sua versão do rock´n´roll do lado de do Atlântico, do
lado de cá Dylan já apresentava o espessamento desse caldo em que os Beatles e Rolling Stones beberam, mostrando onde
está a nascente de onde jorra a energia.”
117
A música buscava abordar, sob o prisma da esquerda revolucionária, a América Latina e suas
problemáticas. Soy loco por ti América apostava na reunião de variados ritmos latinos, numa letra em
espanhol e português, que retratasse a união do povo latino americano contra a exploração norte-
americana e a valorização da diversidade e riqueza cultural latinas. Augusto de Campos, ao comentar
as críticas feitas ao hibridismo da música, lembra:
“Quanto aos pseudopuristas que fingem horrorizar-se com o hibridismo da composição, seja-me permitido recordar-
lhes O samba e o tango, de Amado Regis, com Carmem Miranda (Odeon, abril de 1937), onde o samba ‘faz convite ao
tango para parceiro’ e eles se dão as mãos em ritmo e letra: Hombre yo no porque te quiero/ y te tengo amor sincero/
diz muchacha do Prata/ pero, no Brasil é diferente/ yo te quiero simplesmente/ teu amor me desacata.”
118
Os movimentos estudantis e culturais se fortaleceram e passaram a ter preponderância sobre os
outros movimentos sociais graças à virtual liberdade dentro do ambiente estudantil e à repressão mais
rude dos movimentos de trabalhadores. Por ter maior liberdade de ação e reflexão, a juventude
adquiriu um papel importante junto às reivindicações sociais e na busca da manutenção das utopias,
com o caso mais flagrante de maio de 1968 na França. Utopias que representavam uma problemática,
pois esses mesmos estudantes, que buscavam lhes manter vivas, questionavam, de forma niilista, a
existência de uma ordem universal capaz de nortear as meta-narrativas e os movimentos políticos. Os
estudantes exigiam que o sonho fosse colocado em prática, contestavam a legitimidade de uma
universalização ideológica e propagandeavam as várias utopias, que todo homem tivesse o direito de
viver intensamente sua própria visão de utopia. Abrindo o leque de opções, teleológicas ou não, a
criação de espaço para variadas ideologias e culturas que estavam soterradas diante do manto da
universalidade e das contingências da unanimidade.
Roberto Schwarz, um dos críticos do Tropicalismo, reafirma o processo de mediação entre as
manifestações e reivindicações estudantis globais:
116
“Um aspecto importante da obra de Bob Dylan é que ele representa, melhor do que ninguém, uma nova direção da poesia do mundo: a do poema
cantado. E não é à toa que os festivais de canções se venham tornando tão populares. Acho, por isso, que a obra de Bob Dylan e as dos poetas-
cantores de nosso tempo devem ser estudadas como o início de um novo caminho e de uma arte em mudança.” Antônio Olinto; O Globo, 08/03/1969
117
Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 272
118
Campos, Augusto; “Viva a Bahia-ia-ia”; In. Balanço da Bossa; São Paulo; Perspectiva, 1968, pg. 159
69
“Em 1968 a efervescência política no Brasil havia aumentado e passara ao enfrentamento direto com a ditadura. Era
este o contexto em que a oposição lia o noticiário internacional e também o da França. É claro que algo das palavras de
ordem francesas passou para as nossas ocupações de universidades e de fábricas, aos enfrentamentos de rua, etc, dando a
estas uma vibração, por assim dizer, atualizada e planetária, além de enriquecer o repertório das nossas aspirações
assumidas.”
119
Apesar de propagar-se rapidamente e ter um caráter universal, o movimento estudantil nunca
possuiu uma homogeneidade ideológica, sendo impossível reconhecer uma ideologia universal
estudantil. No caso de Paris, havia inumeráveis tendências combatendo juntas nas barricadas,
superando divergências no intuito de derrubar o poder da burguesia francesa.
Schwarz criticava o Tropicalismo por seu caráter exclusivista pois, ao adotar uma linguagem
sofisticada e imprimir uma roupagem contraditória a suas composições, afastava-se do grande público,
sendo atacado mesmo não sendo o responsável direto pelo “imperialismo e sociedade de classes.”
120
Porém, por suas características elitistas, contribuiria para a “consolidação do privilégio”.
121
Schwarz
sublinha que o “país estava irreconhecivelmente inteligente”, porém a “inteligência” brasileira se
circunscrevia a um público ainda pequeno, se comparado à grande massa da população. A música
tropicalista, que pretendia confundir e tirar o ouvinte da sua pasmaceira, tinha um conteúdo mais
trabalhado, limitando seu público aos que buscavam novas experiências e possuíam um nível
intelectual mais elevado. Obviamente, as canções de maior exposição como Alegria, Alegria tinham
entrada em variados níveis sociais
122
mas sua reflexão sobre o processo urbanizador modernizante era
percebida por poucos.
Para haver a entendimento da mensagem tropicalista mais sofisticada, como Alfomega, era
necessário compreender a união de sons e palavras, para poder dar sentido à canção, à massa sonora do
baixo e guitarra elétricos, aos grunhidos e ao improviso semelhante ao free jazz ou fusion tocado na
época. Cônscios do que estava acontecendo de mais novo, os tropicalistas rendiam-se a Jimi Hendrix,
guitarrista ícone do pop mundial, e ao trompetista Miles Davis, o jazzista de carreira mais brilhante e
inventiva de todo o século. Em 1969, ano do lançamento do “disco branco” de Caetano Veloso e
também de “Eletric Ladyland” de Hendrix, “Abbey Road” dos Beatles e “Bitches Brew” de Miles
Davis, havia uma clara feição experimental nos trabalhos artísticos mais atualizados. O que chamava
119
Folha de São Paulo, suplemento “Mais”, 10/05/1998, pg. 10
120
Schwarz, Roberto; “Cultura e Política nos anos 60”; O pai de família e outros estudos; Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1979, pg. 92
121
Ibidem
122
“Caetano Veloso, como havíamos previsto em nossa seção, tornou-se, quase num abrir e fechar de olhos, um ídolo de nossa música popular,
conquistando principalmente o público jovem que no Festival da Record o aplaudiu de pé. Apesar da onda de protestos e de incompreensões, sua
Alegria, Alegria é um passo, bem dado, na tentativa de conseguir, para nossa música popular, uma linguagem mais universal.” Lima, Marisa
Alvarez; Marginália: na idade da pedrada; Salamandra, Rio de Janeiro, 1996, pg. 77 Editado inicialmente em 1967, no periódico A Cigarra
70
atenção era o incessante diálogo entre os vários ramos da música, um potencial fim das fronteiras entre
os gêneros. Miles Davis comentava sobre Jimi Hendrix e o processo de criação musical:
He had a natural ear for hearing music... it was great. He influenced me and I influenced him and that´s the way
great music is always made. Everybody´s showing somebody else something and then moving on from there...
123
Miles reconhece o poder da influência e a riqueza do contato com novas sonoridades para a
produção musical. Um fator que esta pesquisa busca tratar é o clima, propício à reunião e ao diálogo,
vivido na segunda metade da década de 1960. O questionamento dos alicerces da tradição cultural e da
política constitui o pólo agregador de variadas manifestações que criavam espaço para o surgimento de
experiências únicas na história da música. A diversidade de sonoridades e a dificuldade do público em
rotular as produções experimentais levaram a críticas agressivas aos tropicalistas e a todos os que
enveredavam por essa vertente. Jimi Hendrix era acusado de popularizar o blues às custas da
incorporação de elementos do rock e do country brancos e Miles Davis de subverter o jazz, fazendo
uma música comercial ligada ao pop e seus instrumentos elétricos. O próprio Miles Davis, em 1970,
ano da morte de Jimi Hendrix, grava o LP “Live Evil” no qual o percussionista brasileiro Aírto
Moreira, que tocou várias vezes com Miles e Hermeto Pascoal, faz sua participação demonstrando um
faro aguçado para caça de novas sonoridades. Miles Davis passa a usar uma sonoridade pop, com a
improvisação alcançando seus níveis mais radicais. Num momento que Miles flertava com o rock -
coloca o pedal wha-wha (comumente utilizado por guitarristas para a distorção das notas) em seu
trompete e institui o free jazz e o fusion como tendência ele vem buscar a base para sua “cozinha”
124
sonora no Brasil. O jazz no Brasil era taxado como música de classe média alienada e imperializada.
Diante da experiência fusion, mesmo entre seus mais fervorosos defensores, Miles encontrou
resistência e críticas que o acusavam de usurpar a tradição do jazz ao incluir guitarra e baixo elétricos
em sua banda. Hendrix, que também investia na criação de uma música sem fronteiras, denominada
por ele de música interestrelar, também afirmava a necessidade de romper qualquer fronteira cultural.
Em relação a Jimi Hendrix Caetano colocava prontamente:
Eu me impressionava com a modernidade de Hendrix, seu canto falado, sempre meio escondido atrás dos sons dos
instrumentos, sua guitarra meio blues meio Stockhausen, sua figura marginal, tudo fazia dele um emblema da época, tudo
levava a pensar que nele os temas fundamentais se radicalizavam.”
125
Curiosamente, o jazz norte-americano, uma música realizada predominantemente por músicos
negros que utilizavam instrumentos eruditos como o clarinete e o saxofone para improvisações pouco
123
Taylor, Derek; texto de introdução do CD “Eletric Ladyland”
124
No jargão brasileiro, seção de acompanhamento dos grupos de música popular, geralmente formado por piano, guitarra, baixo, bateria e
percussão.” Autran Dourado, Henrique; Dicionário de termos e expressões da música, São Paulo: Ed. 34; 2004
125
Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 270
71
usuais junto aos músicos clássicos, tinha como seus principais admiradores o público europeu, que
ajudou a reerguê-lo, dando uma concepção cult e sofisticada diferente da imagem de músicos malditos
e drogados, construída nos EUA. Fazendo a mediação da cultura erudita com a cultura negra, uma
hibridação entre os dois ramos culturais numa relação de troca e enriquecimento de ambos, o jazz
presenciou uma das manifestações de maior sucesso na realização da união de sonoridades distintas. O
blues eletrificado era admitido com ressalvas pelos puristas do delta do Mississipi, assim como a bossa
nova entre os sambistas de raiz. Os problemas do embate da tradição, da cultura dividida em eruditos e
populares, alta cultura e baixa cultura, são uma constante no período, suscitando a renovação musical
vivenciada atualmente.
Para os que defendem a música “genuinamente” nacional, ligada às origens folclóricas, é
relevante frisar que, semelhante ao jazz, a modinha surge no Brasil no século XVII, entre brancos que
tocavam modas portuguesas e mestiços ligados aos lundus. Depois de ser difundida no século XVIII
para Portugal, através de Domingos Caldas Barbosa que a tocava nos salões da corte portuguesa. A
modinha proveniente do Brasil seria reciclada em Portugal adquirindo elementos europeus ligados à
valsa vienense e também influenciando o fado (canção urbana portuguesa que teria fortes ligações com
a música brasileira e os lundus levados após a volta de D. João VI a Portugal). Assim cairia por terra o
mito da origem genuína e totalmente original da música brasileira. Por ser uma nação miscigenada e
heterogênea, é notável “a coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições cujas
bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas, etc.”
126
Até mesmo o crítico musical e historiador José Ramos Tinhorão remete à eterna interação entre a
cultura brasileira, a cultura européia e a norte-americana, ao observar a influência da música norte-
americana no período pós-primeira guerra mundial. Para Tinhorão havia uma clara influência das
bandas de ragtime e outros ritmos ligados à música negra norte-americana nas gafieiras cariocas. “Essa
influência era tão poderosa que, em 1929, o musicólogo Cruz Cordeiro, escrevendo sobre discos na
sua revista “Phono Arte”, acusava Pixinguinha de transplantar recursos da sica norte-americana
para a música brasileira.”
127
Tinhorão criticava essa influência norte-americana mas é obrigado a
retratar a dificuldade em localizar uma sonoridade eminentemente nacional, que, para ele, estaria
representada pelo samba de morro feito apenas com instrumentos de percussão. Referindo-se à entrada
de elementos pop na MPB, Caetano dizia: “A própria atração pela cena pop norte-americana (e o culto
que lhe renderam os ingleses criadores do neo-rock dos anos 60) era apenas um dos elementos que,
126
Velho, Gilberto; Projeto, emoção e orientação em sociedades complexas” In. Individualismo e cultura; Rio de Janeiro, Zahar, 1981, pg. 16;
extraído de Vianna, Hermano; O mistério do samba; Rio de Janeiro, Jorge Zahar 1995, pg. 41
127
Tinhorão, José Ramos, Música Popular: um tema em debate, Rio de Janeiro, Editora Saga, 1966, pg.36
72
nessa viragem tropicalista, tínhamos deixado de desprezar como ‘vulgares’ para cultuarmos como
‘saudáveis’”
128
“O analfomegabetismo/ somatopsicopneumático/ que também significa/ que eu não sei de nada sobre a morte/ que
também significa/ tanto faz no sul como no norte/ que também significa/ Deus é quem decide a minha sorte
Utilizando o procedimento concretista de reunir palavras e criar neologismos compostos, Gil
alude à espiritualidade e à filosofia, com claro enfoque na existência humana. Gil diz que o
“analfomegabetismo o analfabeto cósmico, a nossa profunda ignorância acerca do universo aberto,
vasto e vago do esoterismo”
129
, agindo em contraposição à valorização de raízes unívocas primitivistas
A composição de palavras, através da justaposição, reforçava o estranhamento e a criação de
neologismos aproximava o Tropicalismo da construção poética concretista. Com a aplicação desses
neologismos e a criação de um estranhamento ao ouvinte de menor percepção, os tropicalistas se
distanciavam do grande público que consumia canções de amor com referência ao cotidiano urbano e
suas novas vicissitudes. A música tropicalista, talvez pela autoreferencialidade e crítica bem
formulada, continua atual até hoje com claros reflexos em vários grupos. Destaque para o movimento
Mangue Beat pernambucano que propunha a refundação do maracatu, com abertura para sonoridades
eletrônicas e sons aleatórios. Chico Science e Nação Zumbi, como o Tropicalismo, provocou uma
revolução dos cânones do folclore pernambucano, levando o guardião do folclore local, Ariano
Suassuna, a adverti-los quanto ao perigo da intromissão de estilos externos na musicalidade
pernambucana.
A contracultura norte americana e a revolta estudantil
Graças à conjuntura cultural mundial não faltavam artifícios para a criação tropicalista. Um dos
principais pólos de irradiação do poder jovem era os EUA onde os movimentos de contestação
obtinham grande repercussão. Havia uma contracultura bem sedimentada e para ajudar em sua
polarização, o governo norte-americano patrocinava uma das guerras mais insanas da história
contemporânea: a Guerra do Vietnã. Uma guerra onde a nação mais poderosa econômica e
belicamente do mundo lutava contra um país agrário, possuidor de um exército constituído por
camponeses, sem maiores arroubos tecnológicos e militares. O radicalismo cresce no território norte-
americano com manifestações violentas contra a guerra e a formação, incompreendida por muitos,
128
Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg.198
129
Rennó, Carlos (org.) Gilberto Gil: Todas as Letras; São Paulo, Companhia das Letras; 1996, pg. 109
73
de uma juventude politizada ligada a ações contestatórias sob a égide das idéias de Herbert Marcuse e
sua filosofia baseada na crítica à sociedade unidimensional.
Alguns acontecimentos marcaram a história do período como a repressão às manifestações na
universidade americana de Kent State, em Ohio, que ocasionou quatro mortes, sendo motivo de
manifestações de repúdio à violência nos campus universitários de todo mundo. O ocorrido em Kent
inspirou uma das canções mais pungentes da história da música popular norte-americana, Ohio de Neil
Young. A letra exibe a contradição da sociedade americana, no plano externo da guerra fria, com o
envio insano de jovens soldados para o Vietnã e, no plano interno, a repressão aos opositores da
política beligerante.A música interpretada por Neil Young conta:
“Tin soldiers and Nixon coming/ We´re finally on our own/ This summer I hear a drumming/ Four dead in Ohio”
Os acontecimentos de Ohio, junto à sedimentação da cultura de protesto norte-americana com
Crosby, Sills, Nash &Young, Joan Baez e Bob Dylan
130
influenciavam a música nacional. Utilizando
um discurso diverso do pop, a música folk norte-americana se assemelhava à nossa canção de protesto
quando se observa a atávica ligação com o folclore local e a preocupação dogmática de conscientizar o
público através da canção. Os músicos de protesto, tanto do Brasil como dos EUA, faziam referência a
temas regionais e à população comum, sendo a música responsável por explicitar o papel da arte como
meio de propagação de mensagens políticas. As letras de Crosby, Stills, Nash &Young, num estilo
country-hippie, se assemelhavam às canções de protesto brasileiras e sua pungente mensagem política,
conclamavam a ação direta, o solidarismo, a tomada de uma nova consciência. A diferença se dava em
relação ao contexto dos movimentos sociais norte-americanos e ao poder de penetração da música
popular em todos os EUA, enquanto a música de protesto brasileira negava cegamente a participação
junto ao mercado fonográfico. Outra diferença estava no que concerne à mensagem de solidarismo
comunitário, típico do movimento hippie, que não tinha muitos adeptos no Brasil nesta época.
131
Porém, ambos movimentos contavam com o mesmo público: a classe média urbana universitária e
intelectualizada, não alcançando uma platéia mais popular.
Outros eventos que marcaram a geração norte-americana foram as marchas de Washington em
1967 e 1969 e a manifestação popular em Chicago na ocasião da reunião do Partido Democrata em
1968. A Convenção Democrata de Chicago também foi tema de uma música composta por Graham
130
Caetano comenta a influência de Bob Dylan em sua música: “Agora, o Tropicalismo estabelecido, eu ouvia e reouvia maravilhado “Bringin it all
back home”, que (Antônio) Peticov me recomendara.” Falando mais :Embora os Beatles fossem obviamente mais ingênuos, Dylan parecia atrelado
a uma concepção romântica do poeta, sem as incursões (explícitas) pela metalinguagem, pelo atonalismo e pelo concretismo que os Beatles
apresentavam.” In. Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 271-272
131
Um dos motivos dos ataques aos tropicalistas era o uso de costumes e atitudes hippies em suas apresentações, ataques estes vindos dos setores
mais conservadores como também dos universitários e intelectuais
74
Nash, que congrega todo o sonho libertário e comunitário de transformação do mundo e a crença nas
utopias, traduzindo o ideal de parte da juventude mundial:
“Though your brother bound and gagged/ And they´ve chained him to a chair/ Won´t you please come to Chicago/
Just to sing/ In a land that´s known as freedom/ How can such a thing be fair/ (...) We can change the world/ Re-arrange the
world/ It´s dying to get better/ Politicians sit yourself down/ There´s nothing for you here/ (...) It´s dying - if you believe in
justice/ It´s dying - if you believe in freedom/ It´s dying - let a man live his own life/ It´s dying - rules and regulations, who
needs them” Chicago
Havia uma luta objetiva contra a guerra do Vietnã e os EUA viviam um momento único em sua
história. A massificação dos meios de comunicação, o crescimento de uma geração crítica voltada para
o auto-conhecimento e sistematicamente anti-establishment, o crescimento da população urbana e a
inadaptação ao mercado de trabalho surgiam como conseqüência da modificação cultural e tecnológica
vivida na época. Várias determinantes levaram a um movimento de integração social único na história
da república norte-americana. O “lar dos bravos e terra da liberdade” possuía uma mocidade
questionadora que se organizava em movimentos caracteristicamente anti-sistema: partido yippie,
SDS- Students for Democratic Societ, (a chamada Nova Esquerda), movimentos ligados a filosofias
alternativas e marginais como hippies, hells angels, beatniks, enfim numerosos grupos voltados para
questionar e transformar o sistema em sua medula.
A “Nova Esquerda” tinha a concepção de praxis política desvinculada da corrida parlamentar,
negando o processo eleitoral e institucional, dando primazia aos movimentos sociais e à ação direta.
Subseqüentemente, ocorre a progressiva mitificação de modelos rebeldes e libertários. Heróis que
demonstravam a inadequação ao american way of life, como Marlon Brando e James Dean, ou os que
propunham ideais de solidariedade e pacifismo como Gandhi e Che Guevara.
132
Dentro dos
movimentos de contestação, havia espaço manifestantes anti-sistema mais radicais como os Weather
Men,
133
que partiram para a franca luta armada e realizavam suas ações sob efeito de LSD.
Influenciados por Carlos Marighella, através da leitura de seu manual da luta armada urbana
134
, os
Weather Men uniram-se aos Black Panthers para resgatar da prisão o psicólogo e defensor do uso do
LSD, Timothy Leary. A agressividade e a combatividade tomavam de assalto o contexto cultural e
132
Ernesto Guevara foi transformado em mito após a vitória da guerrilha castrista cubana e seu alistamento incondicional à proposta da revolução
socialista global. Che lutou na Guatemala, onde conheceu Fidel Castro, em Cuba, Angola, Bolívia. Hoje além do mito revolucionário incondicional,
Che é utilizado em t-shirts, biquínis e estampas variadas tendo significados tão distintos quanto o seu uso
133
Entre seus integrantes destacavam-se Jerry Rubin, Abbie Hoffman, John Sinclair (que é inspiração para a música com seu nome, composta por
John Lennon e gravada no LP“Some time in New York City” onde Lennon diz: “If he´d been a soldier man, shooting gooks in Vietnam, If he was the
CIA, selling dope and making hay, He´d be free, they´d let him be
134
Mariguela, Carlos; Manual do guerrilheiro urbano e outros escritos, 2ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim; 1974
75
político. Jimi Hendrix tocava sua guitarra com sons distorcidos lembrando gemidos e gritos,
metralhadoras atirando e helicópteros voando na clássica Machine Gun, Hendrix buscava dar uma
ambiência militar, transportando o ouvinte, em seu som psicodélico, para a selva vietnamita. Hendrix,
na introdução de Machine Gun, durante o ano novo de 1970 no legendário Fillmore East, dedicava a
todos os que combatiam noVietnã contra o regime comunista vietcong e aos estudantes que lutavam
contra a mesma guerra no campus universitário de Berkeley.
No Brasil, os estudantes se ligavam cada vez mais nas canções de protesto, com um enfoque
claramente anti-americano. Os músicos brasileiros que buscavam criar dentro de uma proposta mais
próxima da música norte-americana, com influências no jazz, blues ou country, seriam classificados
como americanizados e bregas. O Tropicalismo inseria elementos da musicalidade norte-americana
com uma roupagem tanto ligada ao chamado “mau-gosto” do iê-iê-iê como ao improviso dos músicos
do rock psicodélico, ou acid rock, que estourava nos EUA e na Europa. Estas atitudes eram reprovadas
veementemente pela platéia universitária que clamava por temas regionais, ligados ao protesto e
oposição ao regime militar..
O Black Power e os Black Panthers formavam grupos voltados para uma dura crítica ao sistema
capitalista e realizavam ações paramilitares e guerrilheiras. Reivindicavam a devolução de tudo que foi
roubado dos negros em anos de exploração; uma educação que ensinasse a verdadeira história e o
papel do negro na sociedade atual. Os Black Panthers propunham que os negros fossem julgados por
um júri das comunidades negras e seu principal objetivo político era um plebiscito, supervisionado
pela ONU, em toda colônia negra e com a participação dos súditos das colônias africanas. A idéia de
um poder negro independente e a luta radical contra o preconceito trouxe reflexos no Brasil com a
maior conscientização, principalmente do público das periferias das grandes cidades que passaram a
escutar soul music com toques norte-americanos (Black Rio, Bebeto, Tim Maia, Toni Tornado -
vencedor do V Festival Internacional da Canção com BR-3 - e Erlon Chaves faziam a chamada música
black nacional). É curioso observar que Jorge Ben no IV Festival da TV Record, em novembro de
1968, foi o mais vaiado pela platéia quando fez o gesto do poder negro, com o punho cerrado e o braço
erguido, após defender Queremos Guerra
135
. Jorge Ben repetia o gesto dos atletas norte-americanos
Tommie Smith e John Carlos, primeiro e terceiro colocados nos cem metros rasos, que cerraram seus
punhos no pódio olímpico no instante da execução do hino dos Estados Unidos e, por esse motivo,
tiveram suas medalhas caçadas, gesto típico do movimento Black Panthers.
136
A mesma platéia, que
135
Mello, Zuza Homem de; A era dos festivais: uma parábola; São Paulo, Ed. 34, 2003; pg.320
136
Para ter uma visão mais clara da mentalidade dominante nos órgãos de repressão, com toda a sua dificuldade de compreensão da sociedade
brasileira: “O Festival Internacional da Canção, que obtém repercussão internacional, tem sido uma fonte de mensagens, que quando não trata da
subversão (caso de Geraldo Vandré), aborda sempre temas que podem afetar a nossa juventude. Homenagens já foram prestadas a Jane Joplin (sic) e
ao guitarrista Hendrix. È fator público e notório que ambos morreram por causa de excesso de tóxicos. Agora, o sr. Augusto Marzagão, prepara uma
76
exigia consciência política dos músicos, vaiava o gesto de Jorge Ben, talvez por entender que não
havia preconceito racial por aqui ou por temer que movimentos de gênero descentralizassem a
oposição ao regime militar brasileiro. Para termos uma breve visão do que acontecia no Brasil, com
medo que o movimento negro tomasse as mesmas proporções alcançadas nos EUA, o gesto do punho
cerrado estava proibido de ser exibido no VII Festival Internacional da Canção de 1972. Caso este
gesto fosse realizado, a rede Globo de televisão, patrocinadora do festival, teria o sinal tirado do ar.
Dentro do contexto da conscientização racial, o movimento tropicalista não explicitou a solidariedade
ao movimento negro mas, ao realizar o apanhado das características do Brasil, buscou tematizar a
riqueza racial e cultural nacional. O Tropicalismo questionou a ordem estética valorizando
criticamente a brasilidade:
“Eu brasileiro confesso/ minha culpa meu pecado/ meu sonho desesperado/ meu bem guardado segredo/ minha
aflição/ eu brasileiro confesso/ minha culpa, meu degredo/ pão seco de cada dia/ tropical melancolia/ negra solidão”
Marginalia II
137
Estaria incutida na nacionalidade brasileira uma culpa visceral, uma aflição existencial, em sua
maioria, cria de uma relação entre culturas européias e africanas. Povos que tinham aculturado e
dizimado as populações autóctones. O sentimento de degredo, o banzo, sempre esteve presente no
pensamento colonial brasileiro, que sempre macaqueou” o estrangeiro na eterna referência à
ilustração erudita contra o primitivismo selvagem indígena. O fato de estar longe das matrizes culturais
traria a sensação de exílio, de distanciamento do que ocorria nos grandes pólos irradiadores de cultura.
A sensação de exílio também era emitida no sentido de distanciamento em relação à realidade
nacional, no sentimento saudosista de uma nação idealizada. Tom Jobim e Chico Buarque
compartilhariam de sentimento parecido quando compuseram a canção Sabiá. “Vou voltar, sei que
ainda/ Vou voltar para o meu lugar/ Foi e ainda é Que eu hei de ouvir cantar um sabiá” Durante
séculos a cultura nacional, o “bom-gosto” erudito, esteve atrelado ao que ocorria na Europa, em Paris
especialmente. A sensação de melancolia tropical era dividida com os escritores árcades da
Inconfidência, os realistas, os parnasianos, os futuristas, enfim, toda a tradição cultural brasileira e a
eterna referência a movimentos internacionais. O que a música Marginalia II criticava era a relação de
dependência cultural, de total subserviência intelectual aos modismos estrangeiros. A música, de
homenagem ao Poder Negro americano. Pretende trazer um grupo atuante do “Black Power” para se exibir no FIC. É desnecessário falar nos
inúmeros problemas criados pelo referido grupo para as autoridades americanas. Por outro lado a atuação deste grupo poderá criar uma situação
desagradável que felizmente não existe entre nós, que é a discriminação racial.(À D.O. para conhecer e em seguida à D. I. )” Informe 359 de
26/07/1971 Secreto (DOPS-GB); pasta 90, folha 17, Arquivo Público Estadual. FIC que ficou conhecido pela desistência de um grupo considerável
de músicos (Sérgio Ricardo, Chico Buarque, Tom Jobim, Edu Lobo, Paulinho da Viola) que protestavam contra a censura que podava suas obras
137
Marginalia II de Torquato Neto, gravada por Gilberto Gil em 1968
77
Torquato Neto e Gilberto Gil, tinha claras influências modernistas antropofágicas, com a utilização do
deboche e a paródia a grandes autores de literatura:
“Minha terra tem palmeiras/ onde sopra o vento forte/ da fome com medo muito/ principalmente da morte/ o lê lê
A bomba explode lá fora/ agora o que vou temer/ oh yes nós temos banana/ até para dar e vender/ o lê lê lê lá lá”
Parodiava Gonçalves Dias e, por tabela, Oswald de Andrade e Murilo Mendes, assumindo a
feitura de uma estética fragmentária, aglutinadora de várias referências. Os integrantes do
Tropicalismo eram, como toda a sua geração, muito ligados à literatura e usavam com hábito a alusão
a histórias e passagens poéticas. O uso destas artimanhas referenciais esteve no centro da prática
artística tropicalista, tanto em relação aos músicos como os eventos teatrais e cinematográficos (Terra
em Transe de Glauber Rocha e Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade no cinema; Rei da Vela e
Roda Viva no teatro, os melhores exemplares de obras tropicalistas fora da área musical). No caso de
Marginalia II, a menção a Gonçalves Dias e a “Canção do Exílio” tem uma forte carga crítica ao
regime militar representado como o vento forte da fome, que trazia o medo da morte, responsável
pelas bombas que explodiam lá fora para afugentar a oposição. O regime que desejava frisar a
modernização avançada, mas que acabava corroborando nosso atraso e arcaísmo, era satirizado:
“Aqui é o terceiro mundo/ pede a benção vai dormir/ entre cascatas palmeiras/ araçás e bananeiras/ ao canto do
juriti/ aqui meu pano de glória/ aqui meu laço e cadeia”
O modernismo antropofágico, uma das referências tropicalistas, prenunciava uma nova atitude
perante as manifestações culturais estrangeiras: pretendia deglutir elementos internacionais na
formação de uma linguagem própria, ao mesmo tempo cosmopolita e interiorana. A valorização da
linguagem coloquial, a tomada de consciência quanto à realidade brasileira e suas idiossincrasias,
obviamente utilizava o conhecimento erudito adquirido através de viagens ao continente europeu. Os
antropófagos, no Manifesto Antropofágico de 1922, conclamavam a retomada da sociedade matriarcal
primitiva: “A luta entre os que se chamaria de Incriado e a Criatura-ilustrada pela contradição
permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia.
Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem.” Devedores de créditos aos antropófagos
modernistas os tropicalistas utilizaram a deglutição para gerar uma estética intertextual, pluricultural e
multinacional, mas dentro de uma dinâmica original que utilizava a antropofagia dentre outras formas
de expressão. Atualmente os tropicalistas são venerados na Europa e nos Estados Unidos, onde
existem admiradores tropicalistas entusiasmados por sua pluralidade.
78
As barricadas estudantis do maio de 1968: elementos para a composição
estética tropicalista
Na Alemanha e em outros países europeus os protestos também tinham como pano de fundo a
recusa às estruturas sociais vigentes, a preocupação com a adaptação ao mundo do trabalho após a
formatura na universidade e, obviamente, o movimento anti-guerra do Vietnã. Eram manifestações de
caráter nitidamente autogestionárias e autônomas, como afirmava o líder alemão Rudi Dutschke:
“Em toda parte surgem espontaneamente grupos de vanguarda, dotados de autonomia perfeita. Não estão de forma
alguma submetidos às decisões de uma instância central, isto é, manipuladora; pelo contrário, empreenderam uma luta sem
tréguas contra a manipulação e a repressão das capacidades criadoras dos homens. (...) Devemos igualmente ultrapassar
pela crítica os conceitos antigos do socialismo, sem destruí-los nem conservá-los artificialmente.”
138
Observa-se esta passagem, que poderia ser escrita por qualquer manifestante jovem europeu,
pois há uma clara tendência em questionar o stalinismo e os partidos comunistas europeus após os
acontecimentos em Praga (1968) e a denúncia durante o XX Congresso do Partido Comunista
Soviético, por parte de Nikita Kruchev, dos crimes praticados por Stálin. Uma conseqüência da criação
de uma ideologia jovem era defesa da criatividade e liberdade contra as imposições éticas. A busca de
saída para o stalinismo, o burocrativismo soviético, a guerra fria, o capitalismo, a participação real dos
cidadãos na vida política e a implantação de conselhos autogestionários nas fábricas e nas
universidades são temas pungentes para os movimentos estudantis. Constituíam reivindicações
partilhadas pelos estudantes de Paris, Nanterre, Varsóvia, Praga, Roma, Pisa,Berlim, Berkeley, Cidade
do México e Tóquio. Gilberto Gil, ciente da importância dos acontecimentos globais, cantava em
Questão de Ordem
139
: “Se eu ficar em casa/ fico preparando/ palavras de ordem/ para os
companheiros/ que esperam nas ruas/ pelo mundo inteiro/ em nome do amor”, com um fundo de
guitarra distorcida e gritos e sussurros em sua apresentação. É visível a consonância da letra com os
protestos estudantis, a preparação das idéias para serem expostas nas ruas pela juventude que lutava,
acima de tudo, em nome do amor e da paz. Gretchen Dutschke, ex-esposa de Rudi Dutschke,
demonstra a planetarização da ideologia estudantil libertária quando relata a grande influência cultural
e política norte-americana nos movimentos estudantis europeus:
138
Dutschke - “É preciso ultrapassar os conceitos antigos do socialismo” In. Revista Civilização Brasileira 19/20; maio/agosto 1968, pg. 100
139
Canção apresentada no IV Festival da Record de 1968, onde foram lançadas Proibido Proibir, 2001 e Dom Quixote
79
“As primeiras manifestações críticas aconteceram no fim dos anos 50 com os beatniks nos Estados Unidos e os
existencialistas na Europa. Eles nos influenciaram muito. A Guerra do Vietnã também foi, naturalmente, um acontecimento
importante, não só nos Estados Unidos, mas também na Alemanha.”
140
Tais relatos possibilitam traçar uma linha entre os diversos movimentos culturais e políticos da
época que possuíam uma raiz semelhante: o inconformismo, a valorização de manifestações antes
marginalizadas e a luta pela construção de uma realidade cosmopolita rica de influências. Num
ambiente propício ao questionamento da tradição, o nascimento do Tropicalismo - com a utilização de
uma cultura fragmentária, que fazia uso da paródia e da referência esvaziada do seu sentido autêntico -
seria fruto do deslocamento das meta-narrativas e do esmaecimento do indivíduo singular e original.
Sintomas típicos de uma ordem mental que prima pela pluralidade e valorização da particularidade, da
mesma forma que, paradoxalmente, uniformiza o indivíduo e investe em mercados novos e pontuais,
transnacionalizando o capital na busca de maiores lucros ou vantagens tarifárias.
A ideologia libertário–anarquista permeava parte do movimento estudantil europeu e ajudava a
instituir um clima festivo e iconoclasta às manifestações que marcaram uma geração, sendo lembrada
como um dos mbolos de um período emblemático e utópico.
141
Laurent Joffrin observa as jornadas
de maio de 1968 em Paris afirmando que “nos fatos em si não uma ideologia, mas uma tendência
fortemente anarquista. Não havia cálculo, e tudo se resumia num pensamento contra a autoridade.”
142
O caráter festivo de maio de 1968 na França, também frisado como iconoclasta, a desforra dos
silenciosos e a proliferação do imaginário, seria típico de um momento de vazio de poder institucional,
onde a festa e a violência tomam conta das ruas. Este vazio de poder, ou questionamento do poder
instituído, era realizado mais fortemente nas universidades, junto aos artistas e a intelectualidade
burguesa e também contava com a participação de sindicatos libertários que tomavam a ação direta
como palavra de ordem. Em todo mundo, os acontecimentos colocavam a necessidade de uma
reformulação política e social, deixando de lado a lógica moderna iluminista e a prerrogativa da
universalidade. Os princípios do modernismo começavam a ser refutados. Após ser canonizado dentro
das instituições sociais e políticas, o modernismo passava a sofrer com a proposição da padronização
de seu modelo e as decorrências deste fato.
140
Dutschke, Gretchen; Folha de São Paulo; caderno Mais; 10/05/1998, pg. 14
141
Um filme que retrata a geração de maio de 1968 é Os Sonhadores de Bernardo Bertolluci., onde critica a irresponsabilidade e ingenuidade da
geração da década de 1960
142
Paulo Roberto Pires; “O legado possível da primavera parisiense”; O Globo; “Maio de 68”; Caderno Especial, 09/05/1998
80
Os movimentos de libertação dos povos coloniais
143
, os movimentos estudantis e pelos direitos
civis consistiam em manifestações plurais, que chamavam atenção do mundo para lugares distantes e,
muitas vezes desconhecidos, como Biafra e Camboja. A imprensa realizava a verdadeira integração
planetária através dos meios de comunicação e o desejo de informação e conhecimento
contemporâneos. Em conseqüência do crescimento da imprensa mundial e da veiculação maciça de
notícias por todo o planeta, surge a imprensa como uma espécie de “quarto poder” institucional ou a
voz da sociedade civil organizada. A imprensa possuiu um papel determinante durante a Guerra do
Vietnã, realizando a cobertura do front.no que inicialmente deveria consistir num triunfo retumbante
das forças da “liberdade e da democracia”, e acabou chocando o mundo e a sociedade americana ao
exibir, durante a hora do jantar, soldados ianques morrendo.
No Brasil, mesmo dentro de um contexto de repressão mais profunda, com a caça da liberdade
de imprensa e repressão, foi feita uma cobertura jornalística, até certo ponto, isenta da repressão às
manifestações estudantis no Brasil e na Europa. A linha editorial era pautada por um debate de idéias
impensável num país vivendo no autoritarismo. Em 1968, mais precisamente no dia 13 de dezembro,
foi promulgado o Ato Institucional mero 5 (AI-5). Após sua promulgação, os jornais passaram a ser
lidos anteriormente por censores para terem permissão de circular. Os direitos civis foram suprimidos
(o cidadão podia ter seu direito de exercer sua profissão suspenso, como o jornalista Antonio Calado;
ter seus bens confiscados; ser preso sem direito a habeas-corpus ou acusação formal) e um regime de
exceção passou a vigorar no país. Obviamente o contexto favorecia tal repressão: no campo cultural
fervilhavam idéias vanguardistas; no mundo político, apesar das perseguições, o setor estudantil se via
cada vez mais fortalecido; na economia havia a imposição de uma tecnocracia estatal, enfim, não
faltavam justificativas para a promulgação do Ato Institucional 5. Este Ato colocou o Brasil no
período de maior repressão do regime militar contra a cultura e grupos de esquerda que ousassem se
opor ao regime.
O episódio, que serviu para o recrudescimento da ditadura de Costa e Silva, foi gerado pelos
comentários do deputado federal Márcio Moreira Alves condenando a invasão da Universidade de
Brasília por parte da polícia. O deputado veio à tribuna do Congresso questionando-o: “Quando o
exército não será um valhacouto de torturadores?”, chegou a propor o boicote à parada de 7 de
setembro e que: “Esse boicote pode passar também [...] às moças, às namoradas, àquelas que dançam
143
Ainda em 1980 Stevie Wonder cantava um reggae para celebrar a tardia libertação colonial dos povos africanos e afirmar a pluralidade cultural:
They want us to join their fighting/ But our answer today/ Is to let all our worries / Like the breeze through our fingers slip away/ Peace has come to
Zimbabwe/ Third World’s right on the one/ Now’s the time for celebration/’Cause we´ve only just began (...) You ask me am I happy/ Well as a matter
of fact/ I can say that I´m ecstatic/ ‘Cause we all just made a pact/ We’ve agreed to get togheter/ Joined as children in Jah/ When you’re moving in
the positive/ Your destination is the brightest star Master Blaster extraído do disco “Hotter Than July”
81
com os cadetes e freqüentam os jovens oficiais.”
144
A recusa do Congresso Nacional em punir o
deputado trouxe um grande mal-estar entre os poderes executivo e legislativo. No calor dos debates
quanto à cassação de Márcio Moreira Alves, o deputado da ARENA e presidente da comissão
parlamentar de Constituição e Justiça, Djalma Marinho, discursou no plenário. Inspirado por Calderón
de La Barca, Djalma proferiu a seguinte frase, depois transformada em palavra de ordem de outros
parlamentares: “Ao rei tudo, menos a honra.” E terminava seu discurso dizendo: “Pode este episódio
abater-se sobre o parlamento como um inconfundível epitáfio de submissão, mas também pode se
transmudar na revelação que somos uma instituição viva.“ O acontecimento serviu de justificativa para
fechar o Congresso e o regime militar endurecer, numa repressão sangrenta que levou à polarização
maior no campo político e à radicalização dos movimentos de oposição, que conviviam com as
experiências da luta armada, o desbunde ou o exílio.
Na reunião de promulgação do polêmico AI-5 o ministro da economia Delfim Neto discursou:
“Eu creio que a revolução (sic) não veio apenas para restaurar a moralidade administrativa neste país mas
principalmente para criar condições que permitissem a modificação de estruturas que facilitassem o desenvolvimento
econômico. Esse é realmente o objetivo básico. Mais do que isso, creio que institucionalizando-se tão cedo, possibilitou
toda sorte de contestação que terminou agora com esse episódio a que acabamos de assistir. Realmente esse episódio é o
sinal mais marcante da contestação global do processo revolucionário.”
145
Ironias à parte, Delfim usou a alegação de que a “contestação global do processo revolucionário”
deveria ser reprimida para auxiliar o processo de mudanças estruturais exigidas pela modernidade.
Fica clara nesta afirmação a proposta de modernização nacional calcada na tecnocracia e estatismo,
ligada à repressão aos movimentos de contestação internos e externos.
146
O que mais chama atenção na
fala de Delfim Neto, e tem grande valor para a compreensão da crítica política realizada pelo
Tropicalismo, é o fato de citar um movimento universal contestatório que abarcaria a sociedade civil
mundial.
Em consonância ao medo da eclosão de uma revolta, o regime inicia a perseguição aos
opositores ligados ao setor cultural. Anteriormente, as perseguições políticas oficiais se davam nos
âmbitos sindicais e políticos, sendo brandas em relação à imprensa e aos setores culturais e estudantis.
Com a instituição do AI-5 promove-se uma peneira mais fina, se atendo aos movimentos culturais,
inicialmente aos que tinham claras tendências de oposição e protesto mas, com a sofisticação da
144
Discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves de setembro de 1968, extraído de Gaspari, Elio; A ditadura envergonhada; São Paulo;
Companhia das Letras; 2002, pg. 316
145
Delfim Neto durante a reunião de promulgação do AI-5
146
A Operação Condor da década de 1970, baseada na proteção das ditaduras da América Latina contra o inimigo comunista é um bom exemplo
82
repressão, acaba perseguindo os artistas que alegorizavam e parodiavam a realidade nacional de forma
velada. Desta forma, os tropicalistas acabam sendo alvo de investigações e sendo presos após o
tumultuado show de outubro de 1968, na boate Sucata. O jornal, no dia seguinte ao show, colocava:
“O show de Caetano, Gil e Mutantes estava no auge quando a moça se levantou e interveio aos gritos: ‘Pára, pára!’
Veloso & Cia. não poderiam perder a deixa e o espetáculo foi num crescendo à loucura, até terminar o ‘happening’,
Caetano estirado no chão, a música trepidante, o frenesi”
147
A reação da moça da platéia era uma reação enérgica de parte da população que começava a ver
o experimentalismo e o happening tropicalista com ressalvas. O experimentalismo que, da mesma
forma que a música de protesto, causava urticária à direita radical, tinha o poder de questionar a função
do músico no palco e sua inserção na indústria cultural trazendo forte resistência por parte dos grupos
politizados de esquerda e da direita mais inteligente que compreendiam a parodização feita pela
Tropicália como uma afronta à moralidade nacional. O happening, o teatro de agressão de José Celso
Martinez e o cinema de Glauber Rocha passavam a ser obras de grande perigo para a ditadura militar,
pois pretendiam conscientizar o espectador através da constatação da própria passividade perante os
acontecimentos. “O objetivo é abrir uma série de Vietnãs no campo da cultura, uma guerra contra a
cultura oficial, de consumo fácil.”
148
O regime militar, cioso da atuação dos artistas, prende os
principais representantes da oposição cultural e inicia uma fase onde a música deixa de utilizar a
alegoria e a paródia como base criadora e passa a se ocupar em encobrir com metáforas e aforismas a
realidade nacional. O Brasil entra no período de Julinho de Adelaide, de “afaste de mim esse cálice” e
“apesar de você amanhã de ser outro dia”, criando novas formas de driblar a censura e a
perseguição política, quando a “matéria política se encontra suspensa ou recalcada.”
149
O setor cultural no Brasil frente à conjuntura social
No Brasil, o caráter libertário das manifestações estudantis e populares era colocado em segundo
plano. Havia a primazia das correntes ligadas ao marxismo-leninismo, em sua maioria, além dos
movimentos maoístas, trotskistas e católicos. Exprimindo essa preponderância, a música realizada
pelos quadros vinculados à juventude estudantil também deveria contar com forte cunho social e
revolucionário, caindo, muitas vezes, no puro dogmatismo. A cultura possuía um papel revolucionário
e a música uma relevância ainda maior graças a seu poder de difusão e inculcação de mensagens
147
Última Hora, 11/10/1968
148
Ventura, Zuenir; 1968: O Ano que Não Terminou, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, pg. 87
149
Santiago, Silviano; “Fazendo perguntas com o martelo”; In. Vasconcellos, Gilberto; Música Popular: de olho na fresta, Rio de Janeiro, 1977,
pg. 10
83
políticas. Através de um discurso participante e nacionalista, os músicos deveriam propiciar o
desenvolvimento da politização das massas mas esqueciam a dimensão estética da arte com a
realização de obras toscas e propostas estéticas ingênuas e ultrapassadas. Muitas canções foram
elaboradas com temas recorrentes como o cangaceiro, o sertanejo ou os jangadeiros (no III Festival da
TV Record de 1967 nada menos que 62 músicas tinham jangadeiros como tema), buscando um
vínculo, muitas vezes artificial, com as classes populares. Como coloca Walnice Galvão, a música de
protesto seria o reflexo de um momento onde o conformismo estaria travestido por letras engajadas
que propunham a interferência na realidade e a conscientização do público, enquanto tolhia a ação do
espectador ao exibir dois “seres imaginários” presentes nas canções: o “dia que virá” (“Vim de longe/
vou mais longe; quem tem fé vai me esperar; escrevendo numa conta/ pra junto a gente cobrar/ no dia
que vem vindo...” em Aroeira, de Geraldo Vandré ou, numa fase ligada à música de protesto, Gilberto
Gil e Caetano Veloso compõem Batucada “O samba vai vencer/ quando o povo perceber que é o dono
da jogada”) e o culto à canção como objeto fetiche (“Qualquer canção/ quase nada/ vai fazer o sol
levantar/ vai fazer o dia nascer” em Avarandado de Caetano Veloso em seu disco “Domingo”).
Geraldo Vandré imaginava que toda música tinha uma forte carga de protesto, quando o artista criava a
sua obra estaria traçando sua visão da realidade, tendo como objetivo a conscientização da platéia
quanto aos problemas sociais e a realidade brasileira. A música de protesto possuía grande penetração
junto à classe média urbana, que, contraditoriamente, constituía seu maior público consumidor. Luís
Carlos Maciel sublinhava o protesto como uma operação de catarse, utilizada desde a Grécia antiga:
“O ódio reprimido envenena o organismo. Acumula, acaba por explodir em violência cega. A catarse
artística efetua uma descarga de emoções, desmobiliza-a.”
150
Sérgio Ricardo colocava a impossibilidade da música resolver a situação política nacional: A
música não pode resolver coisa alguma, e eu apenas me coloco como participante do quadro nacional,
de onde transmito a minha notícia, cantando ou filmando, que é o que sei fazer.”
151
Os músicos da
estética do protesto e da conscientização popular propagavam a imagem do Brasil prestes a estar na
vanguarda do anti-imperialismo. Porém, a mensagem veiculada pela canção não condizia com a futura
realidade de recrudescimento da ditadura, nas perseguições aos “subversivos” e na constituição de uma
oposição baseada nos grupos estudantis e artísticos como únicos representantes da oposição. Carlos
Lyra e Chico de Assis compõem Subdesenvolvido, em 1963, para o Centro Popular de Cultura da
União Nacional dos Estudantes, o famoso CPC da UNE. Na música, há uma óbvia aversão aos Estados
Unidos e ao imperialismo:
150
Eles dizem ‘não’, mas todo mundo aplaude”; Veja, 27/11/1968 Interessante pesquisa para os interessados na história da música de protesto
151
Eles dizem ‘não’, mas todo mundo aplaude”; Veja, 27/11/1968
84
“(...) nos mandaram o que sobrou de lá: matéria plástica, que entusiástica, que coisa elástica, que coisa drástica.
Rock balada, filme de mocinho, ar refrigerado e chiclete de bola e coca-cola. O povo brasileiro tem personalidade. Não se
deixa influenciar com facilidade. Embora pense como americano: I am going to kill that indian before he kills me. O povo
brasileiro embora pense, dance, cante como americano, não come como americano, não bebe como americano/ vive menos,
sofre mais/ Isso é muito importante, muito mais que importante/ pois difere os brasileiros dos demais/ Personalidade,
Personalidade, Personalidade/ Sem igual; porém/ Subdesenvolvida, Subdesenvolvida/ Essa é que é a vida nacional ”
Os Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes consistiram num dos
movimentos que trouxeram a oxigenação na cultura nacional e a divulgação de nossa música.
Percorriam fábricas e bairros populares divulgando a arte popular, ligada intrinsecamente à
conscientização política e social. O anteprojeto do manifesto do CPC da UNE de 1962 propunha uma
arte não mais “... incomunicável e independente dos processos materiais.”
152
O artista deveria levar em
conta a vida cotidiana e material para construir sua obra. Obviamente, os tropicalistas, que não se
colocavam à distância dos problemas nacionais, resolveram trabalhar junto a propostas estéticas que
aliam esta vida material e cotidiana nacional aos acontecimentos globais, na busca de uma imagem
intertextual da realidade nacional e mundial. A fragmentação do discurso residia a principal opção pela
desconstrução da imagem do Brasil estereotipado ou ambiciosamente moderno.
A imagem do Brasil tropicalista seria gestada concomitante à enorme multiplicidade cultural e às
várias mediações realizadas em nossa cultura. Mediações que vem ocorrendo desde as modinhas de
carnaval de Chiquinha Gonzaga e as transposições da cultura popular para a cultura erudita realizadas
por Ernesto Nazareth, Guerra Peixe e, o mais célebre, Villa-Lobos, que seriam os pais da interseção
entre o erudito e o popular em nossa música, haveria a predominância de um estilo visceralmente
miscigenado na música brasileira. Resultante desta miscigenação, há a formação de uma música que se
adapta ao seu contexto de veiculação e exibição. A adequação ao público consumidor sempre foi uma
das principais preocupações dos músicos brasileiros, gerando contrastes entre suas vidas públicas, as
vivências cotidianas e a imagem que buscavam reproduzir frente à platéia erudita, como o caso de
Luciano Gallet que tocava piano em cinemas onde se dirigiam “mulheres da rua do Núncio,
marinheiros, a mais linda esfera da sociedade”
153
, como o próprio relatava com ironia.
152
Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, redigido em março de 1962, “Arte popular revolucionária”, extraído de Impressões de
Viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70, de Heloísa Buarque de Hollanda, Rio de Janeiro, Rocco, 1992
153
Travassos, Elizabeth; Modernismo e música brasileira; Rio de Janeiro, Jorge Zahar, Ed. 2000, pg. 13
85
A ilusão do iminente governo popular
Na década de 1960, vivia-se o que Daniel Aarão Reis
154
chama de utopia do impasse, a crença
de que o governo militar não possuía condições políticas e históricas para se manter por muito tempo
no poder. A sociedade civil se revoltaria contra a política de desenvolvimento econômico com
repressão à oposição, patrocinada pelo regime ditatorial, unindo-se ou simpatizando com a luta, às
vezes armada, contra a ditadura. Antes do golpe alguns achavam que era chegado o momento da
constituição de um governo popular no Brasil. Observamos a declaração de Luís Carlos Prestes para a
TV em março de 1964: “Não estamos no governo, mas estamos no poder.”
155
Mesmo após a
consumação do golpe militar e da perseguição política em 1964, ainda em 1968, os estudantes e
manifestantes de oposição continuavam achando que a queda do regime militar era uma questão de
tempo. O fim do golpe se propagaria através da revolta estudantil e trabalhista gestada nas passeatas e
embates com os órgãos de repressão. Luís Travassos, um dos líderes estudantis da época, colocava
peremptoriamente: “Na verdade o que se discutia então era qual a estratégia para terminar com o
capitalismo no Brasil.”
156
Os setores da música popular brasileira (MPB) ligados à canção de protesto não viam com bons
olhos a tendência subversora e dessacralizadora dos tropicalistas, lutando contra a inserção de
instrumentos elétricos e a popularização da Jovem Guarda e protestando com manifestações ruidosas,
por vezes violentas. A famosa e polêmica passeata organizada pela chamada Frente Única, que
clamava pelo reconhecimento da música genuinamente nacional contra o avassalador iê-iê-iê, constitui
um ótimo exemplo destas manifestações. Nela figuravam com destaque: Elis Regina, Edu Lobo,
Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Zé Kéti, os componentes do MPB-4 e, pasmem, Gilberto Gil, que
passava pelo dilema entre assumir uma postura mais radical e anti-sistema adotando uma música
“universal” ou ficar ao lado de seus companheiros defensores da música tradicional. Na passeata era
cantado o hino da Frente Popular: “Moçada querida/ cantar é a pedida/ cantando a canção/ da pátria
querida/ cantando o que é nosso/ com o coração”.
Nada mais sintomático vindo de um grupo que via com pavor a inclusão de uma linguagem
estética estrangeira como o iê-iê-iê na MPB, também acusada de ser popularesca e apontada como
responsável pelo esvaziamento da música tradicional brasileira. Mais tarde, Gil colocava
explicitamente que alguns músicos temiam perseguições ideológicas da velha guarda da MPB e que
154
Reis, Daniel Aarão; Ditadura militar, esquerdas e sociedade- Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 2000, pg. 52
155
Extraído de Cultura e participação nos anos 60, Buarque de Hollanda, Heloísa e Gonçalves, Marcos A.; São Paulo, Brasiliense, 1982, pg. 12.
156
Ventura, Zuenir; 1968: O Ano que Não Terminou, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, pg. 61
86
suas carreiras fossem estigmatizadas se adotassem uma estética pop ou experimental. Capinam não
concordava com a negação do mercado realizada pela esquerda cultural, ressaltando: “(...) o
comportamento pré-capitalista da esquerda brasileira que resiste à industrialização e o mercado
como grande sacrifício de sua arte.”
157
Como sabemos, a cultura representava o último bastião da oposição ao regime militar e deveria
representar toda a sociedade na luta pela liberdade e democracia. Havia uma efervescência cultural
expressa por Paulo Emílio Salles Gomes como “parte de uma corrente mais larga e profunda que se
exprimiu igualmente através da música, do teatro, das Ciências Sociais e da literatura.”
158
Outra visão
sobre o fortalecimento da oposição intelectual é exposto por Michael Löwy que tinha os intelectuais
como uma categoria social definida: “eles são os produtores diretos da esfera ideológica, os criadores
de produtos ideológicos culturais”
159
que seriam gerados pelo “traumatismo ético-cultural e político
moral”, fruto da reificação do trabalho intelectual e cultural. Daí o fomento da crítica ao sistema
capitalista e à ordem social estabelecida, por parte dos movimentos alternativos e de uma
intelectualidade desvinculada do pensamento das grandes corporações. No Brasil, Carlos Nelson
Coutinho, em entrevista concedida a Marcelo Ridenti, reafirmava o papel da intelectualidade após o
fechamento dos canais de representação política de oposição:
“(...) as pessoas que tinham forte interesse pela política terminavam levando esse interesse para a área da cultura.
Isso teve um lado positivo. Claramente a cultura tem uma dimensão política. Mas, às vezes, também tem um lado negativo,
no sentido de que se politizaram excessivamente disputas que na verdade são mais culturais que partidariamente políticas.
(...) A esquerda era forte na cultura e em mais nada. É uma coisa muito estranha. Os sindicatos reprimidos, a imprensa
operária completamente ausente. E onde a esquerda era forte? Na cultura.”
160
Correlata à crença no poder da cultura como propagador da luta contra a ditadura e a
desigualdade social, o setor estudantil vivia grande efervescência, mesmo vivendo dentro da luta diária
contra a repressão nos conflitos de rua. Em 1968, o Brasil viveu momentos de pura adrenalina com as
ocupações de universidades como o campus da Praia Vermelha da UFRJ (Universidade Federal do Rio
de Janeiro) ou o campus da UNB (Universidade Nacional de Brasília)
161
; os combates que resultaram
157
Revista Civilização Brasileira; “ Que caminho seguir na música brasileira; pg. 379
158
Salles Gomes, Paulo Emílio Cinema: trajetória no subdesenvolvimento; Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, pg. 82
159
Löwy, Michael; Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários; São Paulo: Ciências Humanas, 1979, pg. 1 In.: Ridenti, Marcelo; Em
busca do povo brasileiro; Rio de Janeiro, Record, 2000 pg. 53
160
Ridenti, Marcelo; Em busca do povo brasileiro; Rio de Janeiro, Record, 2000 pg. 55
161
O filme Barra 68: sem perder a ternura (produção de 2000) trata da invasão da polícia à universidade ocorrida em 29/08/1968
87
na morte de Édson Luís em março; a intensificação e maior agressividade das manifestações
estudantis
162
, em junho com a famosa “sexta-feira sangrenta” e a passeata dos 100 mil; com a prisão de
1.240 estudantes no congresso da UNE em Ibiúna
163
em outubro; a expansão da guerrilha e a
radicalização política. Momento de radicalização da oposição e paralelamente da ditadura militar, o
ano passou a ter um caráter mítico no Brasil graças a estes acontecimentos e por consistir no último
ano da “ditadura envergonhada.”
164
A ditadura também toma atitudes de força e aumentam as
perseguições políticas, o uso da tortura e o desaparecimento de presos políticos.
“Atenção/ ao dobrar a esquina/ uma alegria / atenção menina/ você vem?/ quantos anos você tem?/ Atenção/ Precisa
ter olhos firmes/ pra este sol/ para esta escuridão/ Atenção/ tudo é perigoso/ tudo é divino, maravilhoso/ Atenção para o
refrão:/ É preciso estar atento e forte/ não temos tempo de temer a morte.”
O sol, que para ser enfrentado precisa ter olhos firmes, firmeza de caráter e posições bem
definidas, enquanto a escuridão representaria o obscurantismo e violência da repressão à oposição. Ao
mencionarem o temor e a atenção, característicos da época, havia a informação de uma realidade de
perseguição política e o clamor pela tomada de consciência quanto a esta realidade. A tensão
aumentava e os tropicalistas reinventavam a música de protesto com Gal Costa apresentando a canção
Divino Maravilhoso de forma agressiva “(...)rompendo com o que tinha sido (a sua carreira anterior)
passando a seguir a estética tropicalista, buscando uma maneira extrovertida de se comunicar.”
165
Com
essa mudança de atitude, um rebuscamento do desempenho vocal com claras influências de cantoras
de blues como Janis Joplin e seguindo a tendência de Rita Lee dos Mutantes, Gal Costa passa a utilizar
glissandos, uivos e gritos em suas músicas. Sons guturais, acompanhados de longos solos de guitarra,
em jam sessions intermináveis, como as vividas pelos blueseiros norte-americanos. Os Mutantes, com
sua facilidade decompor rocks, geraram músicas épicas, que faziam clara referência ao rock
162
Assim retrata Elio Gaspari “Édson Luís morrera na quarta-feira e fora sepultado na sexta, 29 de março. Passariam sábado e o domingo, mas os
estudantes e a tropa tinham um encontro marcado em todo país para a segunda-feira, de abril, aniversário da ‘Revolução Redentora de 31 de
Março’. Ao anoitecer, o centro do Rio viu uma pancadaria sem paralelo desde agosto de 1961, quando polícia e defensores da legalidade
constitucional se enfrentaram por quase uma semana. Morreram mais um estudante e um marítimo. O balanço de dois hospitais mostrava que uma
liderança então desconhecida organizava pelotões de jovens dispostos a brigar: dos 56 feridos listados, trinta eram policiais. Poucas vezes a polícia
apanhou tanto,’ registrou Zuenir Ventura, elegante e minucioso cronista de 1968- O ano que não terminou .(pgs. 110 e seguintes) “O governo
retomou o controle da situação quando 1200 soldados do Batalhão de Infantaria Blindada desceram pela avenida Presidente Vargas e ocuparam a
Cinelândia.” Gaspari, Elio; A ditadura envergonhada; São Paulo- Companhia das Letras, 2002, pg. 282
163
É engraçado observar os comentários de lucidez atordoante de Josef Mengele sobre o setor estudantil e os métodos utilizados pela polícia para
reprimi-lo. Em carta de abril de 1964, enviada a Wolfgang Gerhard, Mengele comentava: “Com facilidade, agentes pagos poderiam se disfarçar como
estudantes profissionais em todos os países e desmascarar os cabeças dos bandos. Assim, pôde ser desmontado por aqui [no Brasil] um congresso de
líderes estudantis que se reuniram (e pernoitaram) secretamente numa fazenda...”
164
Ver Gaspari, Elio; A ditadura envergonhada; São Paulo, Companhia das Letras, 2002
165
Mello, Zuza Homem de; A era dos festivais: uma parábola; São Paulo, Ed. 34; 2003
88
internacional e brasileiro. Ao gravarem Mágica, com o mesmo riff
166
de Satisfaction dos Rolling
Stones, apresentavam a linguagem pop ao público nacional. Os Mutantes também regravaram rocks
nacionais de sucesso como Rua Augusta de Ronnie Cord. A polarização política e estética aumentava,
enquanto os músicos tropicalistas tinham como referência o movimento de contestação global
presenciado pela juventude. De forma distinta do rock juvenil da década de 1950 ou da Jovem Guarda,
os tropicalistas adequavam a linguagem pop à musicalidade nacional interrogando e criticando a
própria juventude e suas principais premissas: “É essa a juventude que quer tomar o poder?”
167
,
questionava Caetano Veloso. Ao buscar novos parâmetros para a recepção e concepção da obra de
arte, os tropicalistas entendiam ser necessário o uso de novos meios de propagação cultural e a inter-
relação entre estes diversos meios. Através da nova estética haveria a disseminação de obras de arte
atreladas tanto a seu conteúdo estético como também voltadas para a compreensão e crítica da tradição
artística anterior. Eram possuidoras de sentimento de renovação cultural ligado a concepções niilistas e
dadaístas que reuniam o sentido de uma arte nova e original com o folclore nacional e a cultura
primitiva brasileira, que viesse representar o ano zero da nova estética,.
Lindonéia é outra música que traduz a tensão do momento político. Inspirada na obra de Rubens
Gerchman, Caetano Veloso fala de uma empregada doméstica suburbana que, através da leitura de
folhetins e dos programas de televisão, trava contato com a realidade “linda/feia”. A obra de
Gerchman foi percebida após Nara Leão chamar a atenção para um quadro que, “por ser uma
espécie de crônica melancólica da solidão anônima feita em tom pop e metalinguístico, tinha
parentesco direto com o Tropicalismo musical...”
168
em sua letra uma alusão cifrada à repressão e
aos virtuais párias da sociedade: “despedaçados atropelados/ cachorros mortos nas ruas/ policiais
vigiando/ o sol batendo nas frutas/ sangrando.”
Assim ocorria uma polarização crescente em torno dos temas expressos pelos artistas. A música,
de forma mais específica, sofreu grande pressão da sociedade civil para que representasse o
descontentamento com o regime. Outro fator que possuiu grande peso na construção da moderna MPB
consistiu na solidificação das redes de TV nacionais, que tinham como carro chefe os programas
musicais “O Fino da Bossa”, “Primeira Audição”, “Esta Noite se Improvisa”, “Jovem Guarda” e,
obviamente, os Festivais da Canção.
A televisão brasileira, que buscava se consolidar nesse período, adotou a MPB como principal
meio de divulgação com a veiculação de programas gerados ao vivo pelas emissoras, numa época em
166
Termo originário do jazz que é amplamente empregado na música popular de vários países, em geral com referência a um padrão rítmico-
melódico recorrente, às vezes modulando harmonicamente e atingindo por progressão tonalidades vizinhas ou estranhas.” Autran Dourado, Henrique;
Dicionário de termos e expressões da música, São Paulo: Ed. 34; 2004
167
Passagem do discurso de Caetano durante a apresentação de É Proibido Proibir em 15 de setembro de 1968 no TUCA durante a final paulista do
III Festival Internacional da Canção
168
Veloso, Caetano; Verdade Tropical; São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 274
89
que não era comum o uso do chamado videoteipe. A obrigatoriedade de fazer os programas ao vivo
marcou a MPB, pois era necessário que a TV colocasse uma programação que obtivesse audiência e
buscasse driblar as limitações técnicas. Ao transmitir programas como o “O Fino da Bossa” ou “Jovem
Guarda”, a limitação técnica era patente. Mas essa precariedade seria contraditória no tocante às
problemáticas suscitadas por ela, que acabariam desencadeando o nascimento de um estilo criativo
próprio, como conta Renato Ortiz: “Nessa fase de pioneirismo, onde as coisas ainda estão por
construir, a iniciativa individual é fundamental, ela é parte integrante das estruturas que funcionam
mal’. A improvisação é nesse sentido uma exigência da época.”
169
O tema da criatividade ressurge na
análise de José Miguel Wisnick quanto à formação de um sistema aberto na música “que passa por
verdadeiros saltos produtivos, verdadeiras sínteses críticas, verdadeiras reciclagens: são momentos em
que alguns autores, isto é, alguns artistas, individualmente e em grupo, repensam a economia do
sistema.”
170
Uma das expressões de reavaliação seria encabeçada pela bossa nova e pelo Tropicalismo,
que remeteriam a cultura nacional a um questionamento das estruturas solidificadas na música popular
brasileira.
As novas estéticas de “subversão”
Uma canção despretensiosa, que provocou uma das maiores polêmicas já observadas na MPB,
foi exibida no III Festival Internacional da Canção em 1968. A apresentação de É Proibido Proibir
constituiu um claro divisor de águas dentro da futura criação estética musical brasileira. Tal
acontecimento apresentava antecedentes na rivalidade clara entre os defensores da música mais
tradicional ou mais engajada contra os partidários de novas sonoridades (influência estrangeira e
utilização de instrumentos elétricos). Para termos uma vaga idéia, as platéias entravam em confronto,
muitas vezes físico, em defesa de seus ídolos. Alguns fãs ficaram famosos pelas loucuras cometidas
para favorecer seus cantores preferidos. Por exemplo, a torcida de O Combatente - apresentada no III
Festival da TV Record em 1967 por Jair Rodrigues, Quarteto Novo e Walter Santos que dizia “Tem
liberdade me esperando, eu vou/ Tem esperança me acenando, eu vou/ Tem verdade me levando, eu
vou” - chegou a realizar passeatas que terminaram na redação do jornal Última Hora. Os defensores de
169
Renato Ortiz; A moderna tradição brasileira, São Paulo, ed. Brasiliense, 1
o
reimpressão, 1995,pg. 97
170
José Miguel Wisnick; “O Minuto e o Milênio ou Por Favor, Professor, uma Década de Cada Vez”, In Anos 70-Música Popular, Rio de Janeiro,
Europa, 1980, pg. 15
90
O Combatente constituíam um grupo bem organizado, com idéias articuladas e opositor do regime
militar, militando junto aos artistas do Teatro de Arena.
171
A platéia, que fazia uso da vaia para
demonstrar sua repulsa, vai se radicalizando, chegando a constituir um grupo de pressão junto aos
jurados dos festivais.
Platéia capaz de ser ‘conservadoramente revolucionária’, como afirmava Caetano Veloso, no
lendário discurso no Teatro da Universidade Católica de São Paulo:
“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma
música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado. São (sic) a mesma juventude que
vão sempre, sempre matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem. (...) Que juventude é essa? Vocês jamais vencerão
ninguém (...) vocês são iguais sabe a quem? Vocês são iguais sabe a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e
espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles.(...) Vocês estão querendo policiar a música brasileira, mas é
americana, mas eu e Gil já abrimos o caminho, o que vocês querem?”
O discurso traz um breve detalhamento da delicada situação que a música brasileira passava,
com grandes disputas ideológicas e estéticas. Durante esse período a cultura havia alcançado uma
posição singular, sendo que mesmo com a instituição da censura, não havia sofrido diretamente com
perseguições mais violentas de seus elementos, ao contrário dos sindicatos e partidos políticos.
Caetano Veloso não tinha grandes expectativas em relação a É Proibido Proibir. Ele afirmava
que a música fora baseada em uma fotografia dos acontecimentos de maio de 1968 em Paris com o
grafite “É proibido proibir”, frase que Buñuel afirma ser surrealista,
172
publicada na revista Manchete e
vista por Guilherme Araújo, produtor dos tropicalistas. É Proibido Proibir foi criada diante da
insistência de Guilherme Araújo sobre o que seria um bom mote para uma nova composição, apesar da
crença de Caetano que “(...) uma natureza de choque efêmero desses ditos: se reprisados, eles revelam
uma ingenuidade que trabalha com os próprios impulsos que os inspiraram.”.
173
Além disso, Caetano
pensava que poderia haver certa confusão entre o que acontecia aqui e as manifestações de Paris.
É Proibido Proibir discorre sobre um momento capital da história contemporânea. O maio
parisiense de 1968, com a negação às convenções pequeno-burguesas (o movimento se inicia em
Nanterre graças à revolta dos estudantes locais pela separação em alojamentos masculinos e
femininos) e aos esquemas políticos estabelecidos (com a profusão de grupos políticos anarquistas,
trotskistas e maoístas, concomitante à crítica ao stalinismo e aos movimentos sociais e sindicais
tradicionais) é, até hoje, um dos marcos da década de 1960. A espontaneidade juvenil e o alcance do
171
Mello, Zuza Homem de; A Era dos Festivais; uma parábola; São Paulo; Ed. 34; 2003, pg.193
172
Ver Verdade Tropical, Caetano Veloso, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 297
173
Ibidem
91
movimento estudantil, que paralisou a França durante uma semana com greves de várias categorias,
foram determinantes na formação do imaginário contemporâneo. Sempre que se alude aos eventos
estudantis vem a recordação do maio parisiense e sua característica libertária, representada pela
pichação “É Proibido Proibir: lei de 10 de maio de 1968” dentre outras como Bientôt de charmantes
ruines” (Breve, charmosas ruínas).
174
Em Paris emanava um forte sentimento libertário, onde os muros da cidade adquiriram
importância junto à veiculação de mensagens e idéias. A inscrição de mensagens nos muros (grafite ou
pichação) obteve a aura de veículo de comunicação sem intermediários. Baudrillard ao comentar o
grafite observava:
“Estamos face a um novo tipo de intervenção da cidade, não mais como lugar do poder econômico e político, mas
sim como espaço/tempo do poder terrorista dos mídia, dos signos e da cultura dominante”. Os grafites: “...provêm da
categoria de território. Eles territorializam o espaço urbano decodificando-o – esta rua, aquele muro, tal quarteirão assume
vida através deles, tornando-se território coletivo. E eles não se circunscrevem ao gueto, eles exportam o gueto para todas
as artérias da cidade, eles invadem a cidade branca e revelam que ela é o verdadeiro gueto do mundo ocidental.”
175
A pluralidade cultural consiste a base da pintura mural e do grafite. Nos Estados Unidos a
politização do grafite. Em 1967, na cidade de Chicago, o Black Power inaugurou uma pintura mural
coletiva reunindo 21 artistas, intitulada Wall of Respect, dando fôlego para um movimento comunitário
de tomada dos muros urbanos. Em Paris, no ano de 1968, através do silk screen e da serigrafia, os
Ateliês de Arte Popular cobriram a cidade com cartazes que defendiam reformas sociais, utilizando o
código verbal ou visual, de forma conjunta ou isolada.
176
É Proibido Proibir teria como mote um grafite e a vontade tropicalista de sacudir as estruturas
da música nacional e, mesmo com o temor de provocar reações desmesuradas, Caetano e os Mutantes
efetivaram o cisma na MPB ao criar uma música que exprimia, de forma exuberante, o contexto global
da época. A massificação do grafite gera um fenômeno urbano que democratiza a veiculação de
mensagens e idéias, que não mais viriam acondicionadas em livros ou programas de televisão. O
grafite era um meio que dava voz aos excluídos do ciclo de formação de opinião e que aquire grande
peso na periferia intelectual, principalmente entre os jovens. Caetano frisava o happening e a busca por
novas formas de expressão de sua poesia e o grafite lhe assessorava com farto material na
representação de uma arte que não obedecia fronteiras culturais ou geográficas. A intermediação entre
174
Ver Olgária C. F. Mattos; Paris 1968: as barricadas do desejo, São Paulo, Brasiliense, 1989
175
Baudrillard, Jean; L´Echange Symbolique et la Mort, Gallimard, 1976 apud. Matos, Olgaria C. F.; Paris 1968 as barricadas do desejo, São
Paulo, Ed. Brasiliense, pg. 63
176
Knauss, Paulo; Grafite urbano contemporâneo; mimeo Encontro da ABEA/2000
92
a linguagem dos guetos, o discurso político e as manifestações populares expressa nos muros tinha
caráter totalmente avesso a limitações estéticas, concepções de autoria ou ideológicas. O Tropicalismo
utilizava esse tipo de linguagem para colocar de forma visível, no sentido literal, o discurso atrelado às
modificações culturais de seu tempo. As canções tropicalistas sempre faziam referência à TV, às
histórias em quadrinhos, aos outdoors e ao cinema, utilizando o que podemos chamar de visualização
da letra. A visualização da letra representava uma técnica onde o uso de imagens consagradas no
imaginário popular projetava, como um filme, a realidade nacional. Para fixar a letra e dar uma maior
visibilidade é utilizado o recurso de mencionar imagens claras repetidas várias vezes (“o sorvete é
morango/ é vermelho”). Assim garantia uma aproximação do que Augusto de Campos denominou
como a montagem einsensteniana de Domingo no Parque, com seus closes e fusões.
177
A execução de “É Proibido Proibir”
Explorando novas tendências musicais surgem citações claras à música de Jimi Hendrix e sua
guitarra distorcida em É Proibido Proibir, uma voz gutural e primitiva de fundo, arfando e dando a
impressão estranha e imprecisa à introdução da música, prática pouco comum até a introdução de uma
linguagem psicodélica no rock´n´roll do final da década de 60 também reafirmava o universalismo
tropicalista. Unidos a um piano fazendo escalas, os ruídos passam a ser acompanhados por uma bateria
e um baixo, com um ritmo próximo ao chamado iê-iê-iê. Após a introdução, o início da letra da
música: “A mãe da virgem diz que não/ E o anúncio da televisão estava escrito no portão/ E o maestro
ergueu o dedo e além da porta/ ao porteiro, sim/ E eu digo não/ E eu digo não ao não/ Eu digo é
proibido proibir...” Na opinião de Luiz Carlos Maciel, Caetano verificava com a música:
“(...) a afirmação repressiva dos valores estabelecidos pela estrutura social vigente. Essa verificação vai das
restrições sexuais familiares (´A mãe da virgem diz que não´), à manipulação das consciências por exigência da economia
capitalista de consumo (´E o anúncio da televisão´), à codificação da ideologia dominante numa superestrutura jurídica e
formal Estava escrito no portão´), ao cerceamento da liberdade artística através da estética tradicional (´E o maestro
ergueu o dedo´) e, finalmente, ao policiamento organizado dos interesses da classe dominante (´E além da porta o
porteiro´).”
178
É Proibido Proibir, escrita em compasso ternário, deveria soar como uma marchinha,
intercalada por frases de cunho anarquista. Após sua feitura, Caetano não pensava nela como uma
música de festival, mas novamente Guilherme Araújo o persuade a inscrevê-la no III Festival
177
Campos, Augusto; Balanço da Bossa; Ed. Perspectiva, São Paulo, 1968, pg. 141
178
Maciel, Luiz Carlos; Correio da Man, 11/10/1968
93
Internacional da Canção de 1968, patrocinado pela emergente TV Globo e sediado no Maracanãzinho.
Caetano, em seu livro de memórias, define bem a sua repulsa ao festival e a antevisão da forte
oposição do público:
“Minha recusa foi resistente. Até que, relacionando essa insistência de Guilherme com a que ele mostrou para me
convencer a escrever o ‘É Proibido Proibir’, pensei, primeiro em tom de brincadeira, depois antevendo o que poderia
fazer, em inscrever exatamente essa canção no tal festival. Eu dizia a ele, quase em tom de ameaça, que poria a música no
certame como mero pretexto para fazer da minha apresentação ali um happening.”
179
Dentro do festival o que se viu foi um grande movimento de aversão à música, com fortes
ataques da chamada esquerda estudantil para o fato dos tropicalistas não assumirem explicitamente
posição contra o regime militar, principalmente após a apresentação de uma música com um caráter
crítico avassalador. A cenografia tropicalista mais radical, a capa de plástico verde e colete prateado
usados por Caetano dando-lhe caráter andrógino, vestimentas alusivas ao movimento hippie
(abominado pela esquerda estudantil por ser considerado um movimento alienado politicamente ou, na
gíria da época, desbundado) foram apresentados pela primeira vez no Festival Internacional da Canção
(FIC) de 1968, tendo grande peso na formação de uma imagem alienada do movimento. A participação
de um estrangeiro, Johnny Grass,
180
que uivava e pulava no palco, serviu como gota d’água para os
protestos mais violentos. Os jurados do festival se empenhavam, enquanto isso, em fazer com que a
representação não interferisse no julgamento. Porém, com o desenrolar da apresentação, o
descontentamento e a vaia da platéia à música, em contraponto ao lendário discurso de Caetano
181
onde procurava sintetizar a proposta tropicalista e o momento que o mundo vivia, provocaram o
abandono do festival por Caetano que passa a renegar a estrutura dos festivais. É sintomática a ocasião
da cisão de Caetano com a estrutura televisiva. No mesmo período da apresentação de É Proibido
Proibir o primeiro, e talvez o único, programa tropicalista da TV nacional, “Divino Maravilhoso”,
quando os tropicalistas resolveram radicalizar as propostas pop e utilizar uma linguagem e uma
estética cada vez mais agressivas. Enquanto a indústria cultural absorvia a guinada pop proposta pelo
Tropicalismo, Torquato Neto, Gilberto Gil, Caetano Veloso e o grupo tropicalista extremavam suas
experiências estéticas. No programa Caetano cantava plantando bananeira e parodiava canções
natalinas com o fundo de paredes pichadas e cobertas de colagens. “Divino Maravilhoso” foi
considerado por alguns como o programa mais anárquico feito até os dias de hoje na televisão
179
Veloso, Caetano; Verdade Tropical; pg. 298-299
180
“O ‘hippy’ proibido dos Tropicalistas”; Veja; 23/10/1968, pg. 61
181
Ver página 30 e parte do discurso de Caetano Veloso
94
brasileira, principalmente levando-se em conta a ditadura militar. Realizando banquetes dentro de
jaulas, deglutindo e parodiando a influência hippie, os tropicalistas propunham a atualização dos
parâmetros culturais nacionais. Através da utilização do happening e de uma proposta cênica ligada ao
chamado “teatro de agressão”, o programa propunha que a arte abarcasse múltiplas manifestações. O
programa “Divino Maravilhoso” era quase idêntico ao show realizado na boate Sucata, com longos
improvisos musicais e o mesmo espírito iconoclasta. Fernando Faro, diretor musical da TV Tupi,
comentava antes da estréia do programa:
“Acredito no “Divino Maravilhoso” porque se os artistas Tropicalistas foram discutidos, isto é um sinal de
popularidade. Se foram agredidos, é porque se comunicaram com mais força. Se eles irritam, causam perplexidade, é
porque essa comunicação foi feita fora dos códigos.”
182
Iniciava-se, com a radicalização das propostas tropicalistas apresentadas no FIC e no programa
televisivo “Divino Maravilhoso”, uma nova era para o movimento tropicalista e para a vida de seus
integrantes. Após as polêmicas apresentações na boate Sucata, onde supostamente o hino nacional foi
tocado em ritmo “tropicália”
183
, Gilberto Gil e Caetano Veloso são presos e interrogados por militares,
sendo, posteriormente, exilados. O mais importante é perceber que os militares não distinguiam
claramente as manifestações culturais do período classificando-as, de forma genérica, como
esquerdistas e subversivas.
184
Com uma proposta inovadora e original, o mal entendido em relação ao
Tropicalismo era geral. O Tropicalismo investiu na crítica da modernidade acelerada que dividia o país
junto ao arcaísmo. A hibridação de diferentes períodos e a contextualização marcaram a música
tropicalista em conjunção a práticas globais adotadas por diversos artistas e movimentos estéticos.
Dentro da discussão quanto ao papel do Tropicalismo junto à afirmação de uma estética pós-moderna,
nota-se que a década de 60 seria virtualmente o campo de provas, o germinadouro desta nova estética:
“(...) eles (os anos 60) de fato forneceram o background, embora não a definição, para o pós-moderno,
pois foram decisivos no desenvolvimento de um conceito diferente sobre a possível função da
arte...”
185
É irônico quando se percebe que o movimento tropicalista teria inscrito no FIC as canções É
Proibido Proibir e Questão de Ordem, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, respectivamente, para
182
Calado, Carlos; Tropicália: a história de uma revolução musical, São Paulo, editora 34, 1997, 234
183
Ver nota 48, página 33 desta dissertação
184
“De há muito, o chamado Grupo Baiano’ da Música Popular Brasileira, que vem atuando principalmente nas Emissoras Unidas (Televisão
Record Canal 7 e Rádio Pan-Americana, Jovem Pan), vêm cantando ‘músicas de protesto’, subliminarmente atacando o regime vigente e exaltando
os regimes socialistas” SS/Deops, 04/03/1968. Extraído de Folha de São Paulo, 02/11/1997, Suplemento “Mais”; pg. 9
185
Hutcheon, Linda; Poética do pós-modernismo; Rio de Janeiro, Imago, 1991 pg. 25
95
desestabilizar a polarização estética e propor uma nova visão da música popular brasileira, buscando
sua essência na tradição folclórica paralelamente à adequação ao pop. Na proposta tropicalista seria
determinante o esvaziamento da tradição imutável e arcaica, com o questionamento da modernidade
nacional, comandada de cima para baixo, um processo de modernização liderado por uma tecnocracia
aliada ao exército. O Tropicalismo buscava a construção estética de um movimento embebido da
cultura brasileira que, desde seus primórdios, se caracterizou pelo pluralismo cultural e racial.
Seguindo esta argumentação, a tendência em trabalhar o Tropicalismo dentro de uma linguagem
intertextual, questionadora dos cânones modernistas, voltada para a paródia e indeterminação. Uma
estética preocupada com o esmaecimento do sujeito e a massificação industrial, correlacionado à
conseqüente desindividualização e a construção de uma personalidade esquizofrênica dos seres
humanos contemporâneos.
O movimento tropicalista, como toda uma geração inspirada pela revolta estudantil, pela
contracultura e o questionamento do sistema, poderia ser sintetizado existencialmente no poema Let´s
play that de Torquato Neto:
“Quando eu nasci/ um anjo louco muito louco/ veio ler a minha mão/ não era um anjo barroco/ era um anjo muito
louco, torto/ com asas de avião/ eis que esse anjo me disse/ apertando minha mão/ com um sorriso entre os dentes/ - vai
bicho, desafinar/ o coro dos descontentes.”
186
Uma cada marcada pela forte indignação ligada ao sentimento inexorável de revolta perante a
geração antecessora. Revolta que traduzia o desprezo pelos valores, pelo modo de vida e pela
sociedade baseada na acumulação de capital. Geração que negava de forma veemente o capitalismo,
que possuiu em Torquato um de seus maiores ícones, tradutores de seus anseios e ideais. Os que
permaneceram no país, após o exílio provocado pelo AI-5, produziram uma arte escapista e maldita,
sem meios de manifestar seu pensamento A geração pós AI-5 conviveu com o desaparecimento e
amordaçamento de seus ídolos, criando uma arte marginal que terá como principais meios de
divulgação textos mimeografados, revistas (Navilouca), filmes e eventos multimídia.
186
Extraído de Castelo Branco, Edwar de Alencar; “O anjo torto da Tropicália”, In. Nossa História; Ano 2, número 14, dezembro de 2004
96
CAPÍTULO 4
“Look what´s happen out in the streets,
Got a revolution, got a revolution”
Volunteers, Jefferson Airplane, 1968
O momento da ruptura tropicalista
O III Festival Internacional da Canção da TV Globo de 1968 consagrou a canção, Sabiá, como
vencedora, fruto da união de Tom Jobim e Chico Buarque; aclamou Geraldo Vandré e Para não dizer
que não falei das flores que teve sua vitória proibida pelos militares
187
por seu conteúdo político e
repudiou veementemente Caetano Veloso e Gilberto Gil com suas experiências tropicalistas como as
improvisações e os arranjos pop
188
de Questão de Ordem e É Proibido Proibir. As canções de
Caetano e Gil sintonizavam-se com a tomada de consciência sobre o papel da arte e da estética na
construção de uma nova concepção artística, em que interessava mais o processo de concepção da obra
do que a obra em si, próximo ao que alguns teóricos, influenciados pelo estruturalismo, chamam de
“arte aberta”.
189
Obra aberta que Umberto Eco diz ser uma obra de arte ambígua, dotada de uma
pluralidade de significados e ao mesmo com um único significado. Uma obra que, de acordo com o
espectador, adquire um novo enfoque com o significado sendo transmutado de acordo com os
187
Mello, Zuza Homem; A Era dos Festivais; São Paulo, Ed. 34, 2003, pg. 286 Também podemos perceber a polêmica suscitada por Pra não dizer
que não falei de flores na declaração do Secretário de Segurança da Guanabara, General Luís de França Oliveira: Essa música é atentatória à
soberania nacional do País, um achincalhe às Forças Armadas e não deveria nem mesmo ser inscrita.” Veja, 09/10/1968, pg. 54
188
A cultura pop representa a mediação entre a cultura popular e os símbolos de consumo com a cultura erudita e seus veículos de propagação. Na
música, o pop, simboliza a popularização e edificação de uma consistente indústria fonográfica e cultural, tendo como principais suportes o
rock’n’roll e a necessidade de comunicação com um público cada vez maior. Dentro da especificidade dos anos 1960, o pop rock utilizado por
Caetano e Gil se assemelhava à música realizada pelos músicos ingleses e norte-americanos, com guitarras destorcidas e o uso do happening
(“Happening: Manifestação artística das décadas de 1960/70, que misturava elementos próprios de diversas artes em atuações mais ou menos
improvisadas, nas quais o público devia também interferir e que constitui uma importante etapa no desenvolvimento da pop art.” Extraído de
Marcondes, Luiz Fernando; Dicionário de Termos Artísticos; Rio de Janeiro, Pinakotheke, 1998, pg. 148
189
Eco, Umberto; Obra Aberta, São Paulo, Perspectiva, 1968 No fundo da rebelião dos jovens parece haver um poderoso e irreversível impulso
no sentido de colocar a problemática social, econômica e política em contato com a riqueza da moderna capacidade criativa e imaginativa, com o
objetivo de efetuar a reestruturação dessa problemática em termos de ‘obra aberta’. A arte moderna, contestando os valores ‘clássicos’ de ‘acabado’ e
‘definido’, propões uma obra indefinida e plural, aberta, verdadeira rosa de resultados possíveis, regida e governada pelas leis que regem e governam
o mundo físico no qual estamos inseridos.” , Cutolo, Giovanni; “A abertura de Obra Aberta”, Obra Aberta, pg. 11-12 Curioso ver as características
da obra aberta serem resultantes do modernismo e a obra de arte ser regida pela ordem que governa o mundo físico, antítese do pensamento
Tropicalista e da pós-modernidade que não se limita à ordem física e material, investindo no subconsciente e no inconsciente através de shows e
happenings que unem diversas formas de percepção: audiovisuais, sensoriais e expansores artificiais da consciência (como o uso de drogas,
principalmente psicodélicas). Talvez o conceito de obra aberta tenha influenciado decisivamente o Tropicalismo quando vemos a idéia de uma obra
de arte que adquire variados sentidos, dependendo da percepção e sensibilidade do espectador da obra. Antes de Umberto Eco escrever seu livro,
Haroldo de Campos, um dos expoentes do movimento concreto nacional e defensor do Tropicalismo, publicou um artigo intitulado “A Obra de Arte
Aberta” onde discutia as novas formulações estéticas e as novas formas de expressão e comunicação da obra de arte atual. In. Agora na Teoria da
Poesia Concreta, São Paulo, edições Invenção, 1965, pg, 28-31 Apud. “A Abertura de Obra Aberta”, Giovanni Cutolo; Eco, Umberto; Obra Aberta,
São Paulo, Perspectiva, 1968, pg. 9. Livros de Umberto Eco que marcou a geração da década de 1960 como Zuenir Ventura gosta de frisar: A obra
aberta, de Umberto Eco, fornecia um excelente álibi para que se fizesse da leitura um ato tão intencional quanto a escritura. A recepção ganhava uma
absoluta autonomia em relação à emissão. A leitura de um livro, um filme, ou um quadro eram capazes de descobrir sentidos, significados, e
sobretudo, mensagens, nem sempre vislumbradas pelo próprio autor.” Ventura, Zuenir; 1968: O Ano que Não Terminou, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1988, pg. 55
97
conceitos e preconceitos deste espectador. Alguns trabalhos, mesmo possuindo um caráter bem
definido conceitualmente podem ser reconhecidos como “abertos” pois possuiriam variadas
interpretações, conforme o espectador. Eco diz: “Cada fruidor é, assim, uma ‘interpretação’ e uma
‘execução’, pois em cada fruição a obra revive numa perspectiva original.”
190
Através de várias atitudes, o Tropicalismo demonstra claramente o intuito de balançar as
estruturas do “mesa bem posta” do banquete da MPB, sendo o discurso após a vaia a É Proibido
Proibir a atitude mais pungente e lendária. Com o lançamento do LP conceitual “Panis et Circensis” e
os discos solo de Caetano Veloso e Gilberto Gil os happenings começaram a fazer parte, cada vez
mais, das apresentações tropicalistas. Questão de Ordem e É Proibido Proibir eram canções de claro
intuito provocativo, demonstrativos da continuidade do grupo baiano como mantenedor da proposta
multicultural e de pluralidade estética. O LP surgiu como um marco do movimento que criticava os
guardiões da cultura popular e seu reacionarismo purista. Ao reunir as experiências de desconstrução
poética da realidade nacional à sonoridades modernas, o som universal tropicalista passou a ter um
caráter polêmico, polarizando a briga quanto à validade da inserção de novas linguagens e
sonoridades, chamadas de imperialistas, em nossa cultura. As músicas Questão de Ordem e É
Proibido Proibir foram inscritas no festival com o intuito de criar polêmica e chocar a platéia ligada à
música de protesto. A fecundidade de Caetano na criação de músicas e letras com temas baseados na
sua rotina de jovem artista migrante e na vida urbana exibia a sede por informação de sua geração,
facilitada pela massificação dos meios de comunicação e da TV. Esta massificação surge como um dos
sintomas pós-modernos pois através da indústria cultural a formação de uma nova organização do
capital e da cultura contemporâneos, diretamente ligados ao capital simulacional e representacional,
criados e manipulados pela indústria cultural.
O despontar de uma geração que “lê tanta notícia”, que tem acesso à informação como nenhuma
geração havia tido na história da humanidade, ajudava a modificar a visão de mundo de toda
população. Surgia, naquele momento, uma geração que jornal diariamente, tendo preocupações as
mais variadas. A televisão era o meio de comunicação que mais se desenvolvia e transformava toda a
esfera da produção material e cultural: “Ela nem sabe até pensei em cantar na televisão”.A TV exercia
um poderoso atrativo sobre a música que também vivia uma revolução graças à popularização de seus
ídolos. Os programas de televisão eram o principal meio de divulgação dos cantores. Tanto os músicos
ligados à música de protesto, como os tropicalistas usavam o palco dos festivais transmitidos pelas
TVs para propagar suas mensagens e alavancar suas carreiras artísticas.
190
Eco, Umberto; Obra Aberta, São Paulo, Perspectiva, 1968, pg. 40
98
É importante ter em mente que a arte, neste momento, estava cingida aos acontecimentos
planetários e, de forma mais específica, às manifestações de oposição à ordem instituída. Estas
manifestações eram o pano de fundo para a criação de estéticas que não se limitavam a
questionamentos quanto aos conceitos tradicionais, mas criticavam as vanguardas, suas inovações e
sua dificuldade de popularização. No Tropicalismo havia uma interseção entre a música erudita e a
música popular gerada por músicos de vanguarda como John Cage, Pierre Boulez e Karlheinz
Stockhausen que investiam na música atonal e aleatória. Rogério Duprat, maestro tropicalista, Júlio
Medaglia, Sandino Haohagen, Damiano Cozzella e o engenheiro sonoro Manoel Barenbein faziam a
interseção entre a música experimental e o regional brasileiro compondo arranjos para as músicas
tropicalistas. Representantes do grupo “Música Nova” se relacionaram com os músicos experimentais,
aprendendo com Boulez e Sockhausen, além de estudarem na Alemanha no mesmo período que Frank
Zappa, guitarrista experimental norte-americano. O grupo “Música Nova” teve um profícuo contato
com o grupo baiano sendo o responsável pelos arranjos e orquestrações dos discos tropicalistas de
Gilberto Gil e Caetano Veloso. Rogério Duprat e o grupo experimental deram um tom ímpar aos
arranjos, aproximando-os da música pop mundial, em conjunto com um toque tropical e arcaico de
canções clássicas de nosso folclore. A mistura de pop e música brasileira, exemplificada pelo disco
Transa de Caetano Veloso, gravado no exílio em Londres, mostra o melhor do folclore nacional,
capoeira, samba misturado com reggae e pop, expondo toda a verve experimental e referencial do
grupo. Um disco que sobrepujava a idéia de adequação de Caetano Veloso ao pop e a negação da
música brasileira propalada por seus antípodas. Dentro de um contexto diferente, onde se iniciava um
balanço do Tropicalismo, a questão da nacionalidade e das raízes brasileiras se faz presente. Sem
obliterar sua metodologia fragmentária, Caetano reunia “Portobelo Road” a “Triste Bahia”, Gregório
de Matos a Monsueto Menezes sempre utilizando a poesia e a prosa na construção do inventário
tropicalista da realidade mundial. Obviamente, o principal foco deste contexto era o Brasil e seu
folclore, como Caetano vinha fazendo desde seu primeiro disco londrino ao incluir Asa Branca de
Luís Gonzaga e Humberto Teixeira. O mesmo Humberto Teixeira foi revisitado por Gilberto Gil no
seu disco de despedida do Brasil em direção ao exílio. Neste disco Gil toca 17 Légua e meia, um
baião de Humberto Teixeira em ritmo pop e com os improvisos de guitarra sendo que ao cantar
fazendo referência à frase “eu viajei sem parar” repetidas vezes, frisava o cosmopolitismo do “som
universal”. No mesmo disco, Gil cantava Aquele Abraço, música que se transformou num hino para a
cidade do Rio de Janeiro, reunindo de forma detalhista, com riqueza impressionante, tanto rítmica
quanto poeticamente, o cotidiano carioca. Um samba que traduzia a forte influência do Brasil e da sua
musicalidade no som tropicalista. Dentro de um momento de reflexão sobre a prisão e o Tropicalismo,
o disco “Gilberto Gil” tinha a tônica do questionamento quanto ao papel do homem perante a inovação
99
tecnológica e o uso de referências cada vez mais brasileiras. Gil explana sobre as motivações da feitura
do disco e, mais especificamente, da canção Aquele Abraço: “Finalmente eu ia poder ir embora do
país e tinha eu dizer bye bye; sumarizar o episódio todo que estava vivendo, e o que ele representava,
numa catarse.
191
Uma catarse que rendeu a ele dois meses em primeiro lugar nas paradas de sucesso.
Numa vendagem recorde para os padrões tropicalistas havia a pergunta: o compacto Aquele Abraço
representaria a adaptação de Gil ao samba e à música brasileira ou os consumidores buscavam na
música uma alternativa para compreender os acontecimentos? A ditadura militar recrudescia e a
população via com saudosismo seus artistas partirem. Com a promulgação do AI-5 uma
conscientização maior da população quanto ao autoritarismo do regime militar encadeando uma
oposição maciça à ditadura. A mesma catarse de Gilberto Gil era vivenciada por toda a população que
se via exilada em sua própria nação, exilada de seus direitos políticos e cerceada em seu pensamento e
expressão cultural. Gilberto Gil cantava aquele abraço com dor no peito de deixar o Rio de Janeiro,
mas, acima de tudo, de sair num momento de perseguição violenta aos opositores do autoritarismo
militar.
Havia na cena cultural a discussão sobre o papel da arte junto aos acontecimentos políticos, com
a vertente mais ruidosa propondo uma abordagem mais realista e popular. Os elementos sintonizados
com as vanguardas estéticas se degladiavam contra os setores tradicionais e questionavam a própria
forma de exibição e a passividade da audiência. O questionamento vinha imbuído do uso de objetos e
temas corriqueiros, além da máxima da anti-arte de que “qualquer um pode fazê-lo”. A anti-arte
representaria uma manifestação cultural que não seguia as tendências tradicionais, buscando acabar
com a contradição entre obra de arte erudita e o objeto de uso cotidiano. Seria um termo ligado ao
dadaísmo e retomado pelos happenings da década de 1960. O movimento de vanguarda Fluxus,
comandado por George Maciunas abrangia várias manifestações artísticas e tinha o happening como
principal forma de promoção, propondo a qualidade não preciosa, reproduzível, como base da arte
contemporânea. Preocupados com as discussões quanto ao papel da arte e do artista contemporâneo, os
brasileiros passam a produzir no sentido de viabilizar uma arte que pudesse fruir junto aos anseios do
público. Hélio Oiticica cria seus penetráveis e parangolés, Lygia Clark inova com suas obras
interativas questionando o papel da obra de arte veiculado nas grandes galerias. Lygia e Oiticica, a
exemplo dos tropicalistas estavam voltados para os estímulos cotidianos: Lygia com o uso de suas
obras com seus pacientes
192
e Hélio com seu contato com as comunidades carentes e amizade com o
191
Rennó, Carlos (org.); Gilberto Gil, Todas as Letras, São Paulo, Companhia das Letras, 1996
192
Lygia conclamava : “Interaja com a arte. Torne-se objeto de suas próprias sensações. Um homem imerso no mito não pode ser um homem livre.”
Panfleto da exposição Lygia Clark realizada no Paço Imperial em 1998
100
famoso bandido Cara de Cavalo. Lygia pretendia que seus bichos fossem transformados em
mercadorias de camelôs, evitando, desta forma, que fossem expostos em museu. Tal atitude demonstra
claramente a oposição à arte tradicional e seus meios de propagação. Na década de 60, com o auge da
aceitação do modernismo dentro da academia e do ideal iluminista de racionalidade, o crescimento
de uma resistência aos ideais de progresso infinito e a racionalidade matemática desumana. A arte, que
não poderia ser impermeável à rapidez da propagação das notícias, é um dos principais canais para
essa resistência, que surge junto ao rock, a participação e conscientização juvenil e a filosofia oriental,
trazida pelo movimento beatnik e hippie. Como Augusto de Campos que, em 1967, fortemente
influenciado pela teoria de McLuhan e a música tropicalista, ponderava:
“Como disse naquela oportunidade, os novos meios de comunicação de massa, os jornais e revistas, rádio e
televisão, têm suas grandes matrizes nas metrópoles, de cujas ‘centrais’ se irradiam as informações para milhares de
pessoas de regiões cada vez mais numerosas. A intercomunicabilidade universal é cada vez mais intensa e mais difícil de
conter, de tal sorte que é literalmente impossível a qualquer pessoa viver a sua vida diária sem se defrontar a cada passo
com o Vietnã, os Beatles, as greves, 007, a Lua, Mao ou o Papa.”
193
Numa obra que deve ponderar sobre a “organização original da desordem”
194
, Caetano buscava,
através de cacos de citações construir uma estética voltada para o entendimento do mundo
contemporâneo diante as vicissitudes do Brasil agrário e arcaico. “Por entre fotos e nomes/ sem livros
e sem fuzil”, Caetano examina a imprensa sob o foco do noticiário global e trata desde a guerrilha, na
alusão ao fuzil e às “espaçonaves guerrilhas” e ídolos cinematográficos (Brigitte Bardot), aos hábitos e
símbolos de consumo como tomar uma coca-cola ou cantar na televisão. Em canções alusórias ao
contexto circundante, os tropicalistas se colocavam no bojo da discussão quanto ao papel da arte
dentro da pretensa reunião de variadas manifestações artísticas, da improbabilidade de se fazer da arte
uma expressão isolada e circunscrita à sua especificidade, como dizia José Ramos Tinhorão: deve-se
preservar o analfabetismo para assim preservar a cultura popular de inovações. Em referência à união
dos vários ramos artísticos, Caetano comentava “(...) o mais importante no momento é a criação de
uma organicidade de cultura brasileira, uma estruturação que possibilite o trabalho em conjunto, inter-
relacionando as artes e os ramos intelectuais.”
195
A formação da ideologia jovem
193
Campos, Augusto (org.) Balanço da Bossa: antologia crítica da moderna música popular brasileira, São Paulo, 1968, pg. 130
194
Eco, Umberto; Obra Aberta, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1967, pg. 127
195
Revista Civilização Brasileira; “Que caminho seguir na música popular brasileira”, Rio de Janeiro, Ano, número 7, maio de 1966, pg. 378
101
Nos Estados Unidos e na Europa vivia-se o questionamento quanto o papel das inovações
tecnológicas e o mundo do trabalho, se a unidimensionalidade e o racionalismo iriam levar a
humanidade para o caminho do obscurantismo ou para o desenvolvimento infindável. As idéias
questionadoras corriam o mundo com uma impressionante velocidade. Para isso auxiliavam o
desenvolvimento tecnológico com a comunicação via-satélite e a TV, mas também a proliferação do
ensino universitário em todo o mundo. O ensino universitário facilitava a propagação de informações
entre um público jovem de tendência renovadora.
No mesmo período, Leslie Fiedler fala sobre o nascimento de uma nova sensibilidade junto à
juventude norte-americana, caracterizada por sua “exclusão da história”
196
, cujos novos valores, entre
eles o desinteresse e desligamento da realidade circundante, encontravam espaço junto a uma nova
literatura pós-moderna, produzindo uma mistura de gêneros e classes sociais que negava os
formalismos modernos, buscando uma volta ao sentimentalismo e ao burlesco da literatura popular. A
veemente utilização da linguagem popular junto a novas estéticas simboliza a negação da cultura
erudita, a valorização da linguagem coloquial e da arte voltada para a gosto da maioria, como a
oposição aos valores vigentes, a busca pelo reconhecimento de uma cultura marginalizada e relegada a
segundo plano.
Dentro do ambiente universitário brasileiro suscitaram movimentos ideologicamente díspares,
com as reuniões estudantis constituindo palco de lutas encarniçadas pela representação estudantil
197
.
Em Salvador a cena universitária não era muito diferente. Havia grande efervescência no campus,
principalmente graças ao reitor da Universidade Federal da Bahia, Edgard Santos, que criou cursos de
teatro, música e dança, arregimentando para a universidade profissionais ligados a práticas
experimentalistas. Ciente da influência das transformações ocorridas com a gestão de Santos, Caetano
comentava:
“Essa escola (Seminários Livres de Música liderada por Hans Joachim Koellreutter), como todas as escolas de arte
fundadas por aquele reitor, trouxera para Salvador as informações da vanguarda internacional – o que, como já contei, nos
modelou a todos os membros da geração.”
198
Era intenso o trânsito entre o setor cultural e o setor universitário. Sempre houve uma
aproximação da boemia intelectual com a universidade, mas nesse período há a evidência da discussão
acadêmica como canal de oposição e compreensão da sociedade contemporânea. Os músicos baianos
partilham da construtiva vivência junto ao meio universitário. Este convívio, tanto na Bahia quanto no
196
“Cross the Border, Close the Gap”, Playboy, dezembro de 1969, p. 151, 230, 252-258; reimpresso em Collected Papers, vol. 2, p. 461-85
197
Com destaque para os congressos da UNE e outras representações estudantis, e no campo cultural os Centros Populares de Cultura
198
Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg 276
102
Rio e em São Paulo, fez com que os baianos adquirissem uma personalidade cosmopolita e plural,
reunindo a compreensão da cidade grande, sob a visão do homem do interior. Visão indispensável para
a formação de músicas que pintam de forma cubista imagens do Brasil, com sua modernidade
subjetiva e atípica, convivendo junto à pobreza e arcaísmo dos rincões tradicionais. Os tropicalistas
tendiam para a irracionalidade, questionando o conceito de modernidade e sua eterna busca de
superação do antigo.
Os baianos teriam vindo para o Sudeste tentar a sorte no mundo musical graças a eventos ligados
à estética do protesto, como o teatro Opinião”. Maria Bethânia havia sido chamada para cantar com o
grupo “Opinião” e forçado a ida de seu irmão Caetano Veloso para acompanhá-la no Rio de Janeiro.
Gilberto Gil, empregado de uma grande empresa de cosméticos, segue para São Paulo, onde irá acabar
seguindo a carreira musical.
199
O grupo, inicialmente, fazia músicas inspiradas no cancioneiro
folclórico tradicional
200
ou na canção de protesto
201
, caso de Gil, ou na bossa nova, caso de Caetano
202
.
Com o passar do tempo, o Tropicalismo se abre para a música pop, com citações de música estrangeira
junto à Jovem Guarda e a paródia de canções tradicionais.
203
Gilberto Gil colocava a questão: “Nossa
intenção era puramente estética. Eu sempre soube que um artista não muda as bases de uma sociedade.
Tanto pensava assim que o Tropicalismo, em certa medida, era contra uma visão muito difundida na
música popular brasileira que a arte é uma arma de luta política.”
204
O uso da música como
instrumento de propaganda política e conscientização era a bandeira do setor nacionalista que
pretendia instaurar a hegemonia da arte política. Gil os atacava após Caetano ser vaiado com É
Proibido Proibir: “Não temos culpa se eles não querem ser jovens. É isso mesmo, querem que a gente
199
Gilberto Gil já fazia jingles desde 1962, ainda na Bahia, quando foi lançado um compacto simples da Petrobrás com Gil cantando “Coça,coça,
lacerdinha”, jingles que seriam criadas também durante a década de 1970 quando promovia, junto a Jorge Ben, a Jurubeba Leão do Norte. O próprio
Gil diz: “Meu trabalho é freqüentemente permeado por uma tendência a se aproximar das idéias do slogan e do jingle, que foi por onde eu comecei
basicamente a fazer música.: depois de compor algumas canções em casa eu fui logo trabalhar para uma agência de publicidade em Salvador, fazendo
jingles.” Rennó, Carlos (org.); Gilberto Gil, Todas as Letras, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pg. 158
200
“Existem composições de Caetano Veloso e de Gilberto Gil que são transcrições quase literais de uma ou outra cantiga de rua, enriquecidas por
uma harmonia mais erudita ou uma complementação pessoal.” Soares Regis, Flávio Eduardo de Macedo; “A nova geração do samba”, In. Revista
Civilização Brasileira, Ano I, número 7, maio de 1966, pg. 370
201
Como exemplo de músicas ligadas à estética do protesto: Retirante quando canta; eu tenho que voltar/ tenho que ver ainda o meu sertão/ que
um dia deixei por lá” ou em Roda típica canção de protesto que clama; “quem tem dinheiro no mundo/ quanto mais tem, quer ganhar/ e a gente que
não tem nada/ fica pior do que está/ seu moço, tenha vergonha/ acabe a descaração/ deixe o dinheiro do pobre/ e roube de outro ladrão”.
202
Ver o LP Domingo e as canções “Avarandado” ou “Coração Vagabundo” onde Caetano exprime toda sua influência bossa novista
203
Chão de Estrelas de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas ou Coração Materno de Vicente Celestino
204
Manchete; 18/10/1975
103
cante sambinhas. Mas não tenho raiva deles não, eles estão embotados pela burrice que uma coisa
chamada Partido Comunista resolveu pôr na cabeça deles.”
205
Até mesmo a bossa nova passa a ser alvo dos tropicalistas. Acusavam-na de servir a um projeto
estético ultrapassado que necessariamente deveria seguir a linha evolutiva na música brasileira, linha
que trazia a exposição de uma realidade mais crua e agressiva que a proposta pela Bossa-Nova. Porém,
os tropicalistas não criticavam levianamente os bossa-novistas. Tinham uma verdadeira paixão por ela,
principalmente por João Gilberto e seu disco Chega de Saudade, que representou uma verdadeira
revolução na MPB, com a riqueza harmônica e o “caráter coloquial da narrativa musical”.
206
Os
tropicalistas criticavam, de forma iconoclasta, todas as formas consagradas de se fazer música no
Brasil, e assim Caetano cantava em Saudosismo: Eu, você, nós dois/ Já temos um passado meu amor/
Um violão guardado, aquela flor/ E outras mumunhas mais/ Eu, você, João/ Girando na vitrola sem
parar/ E o mundo dissonante que nós dois tentamos inventar (...) Lobo, lobo bobo/ Lobo, lobo bobo/
(...) Chega de saudade, chega de saudade”
Há, de forma contraditória, a saudade como colocava João Gilberto em Chega de Saudade, o
desejo de reconfortar a pessoa que não tem seu amor retribuído cantada com uma voz baixa, um violão
com notas e melodias difíceis, características da Bossa-Nova, entremeada a guitarras elétricas
distorcidas exibindo a tendência pop e simbolizando o fim de uma era na MPB. Uma era que havia
sido de importância capital para toda a música nacional, mas principalmente para o grupo tropicalista.
“A bossa nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias para a minha
inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio cultural que nos
levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo e – o que é mais importante as nossas possibilidades.”
207
necessidade de reformular a estética bossa-novista, que é grande influenciadora dos músicos de
protesto e dos tropicalistas, na busca da inserção de elementos pop em sua música. Porém, o
questionamento da Bossa Nova é feito seguindo o respeito à obra, ao processo criativo que, como frisa
Caetano, estava vinculado à quebra de barreiras da música brasileira.
A Bossa-Nova, que havia buscado recursos junto ao cool jazz, com o uso de improvisos
longos e bem trabalhados, terá um papel de grande relevância na consolidação do bebop norte-
americano, com os famosos shows de Stan Getz com Tom Jobim e na pesquisa dos músicos de jazz
das sonoridades brasileiras desde os anos 1950. Podemos citar Miles Davis, que toca com Airto
Moreira na sua melhor fase fusion, Dizzy Gillespie, que tem Paulinho da Costa na percussão em
205
Jornal da Tarde
206
Campos, Augusto (org.) Balanço da Bossa: antologia crítica da moderna música popular brasileira, São Paulo, 1968, pg. 63
207
Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 35
104
meados dos anos 1970 e Carlos Santana, que grava Dorival Caymmi – Promise of a fisherman - com
acompanhamento dos onipresentes Airto Moreira e Flora Purim, também em meados da década de
1970. A reunião de diversos fatores foi responsável pela mudança de comportamento em relação à
música estrangeira e a possível mediação entre as diversas sonoridades. Abre-se uma via de mão
dupla, um diálogo enriquecedor da música brasileira com os norte-americanos. Passa a existir um
grande interesse por parte dos estrangeiros em conhecer culturas “primitivas” e a sonoridade brasileira,
principalmente a procurada pelos estrangeiros como samba e música regional, mantendo-se vínculo
com sonoridades que também eram utilizadas pelos tropicalistas, mas com enfoque diferente quanto à
interpretação.
Surge mercado para os produtos periféricos, havendo o fortalecimento da troca entre Brasil e
EUA. Os músicos brasileiros obtêm sucesso nos EUA, sem serem conhecidos no seu país: Airto
Moreira e Sérgio Mendes, dentre vários outros. A música mais tocada em todo o mundo é a célebre
Garota de Ipanema, estando à frente dos Beatles. Não se deve ter uma falsa idéia, muito difundida na
década de 1960, que a utilização de elementos estranhos às tradições nacionais destruiria as
manifestações populares e instauraria o monopólio da arte feita para o consumo fácil e universal,
propagado pela indústria cultural. O que ocorreu, além do enriquecimento de nossa música, foi a maior
difusão, preservação de festas e expressões culturais populares por parte da população, e a divulgação
no exterior dessas manifestações.
208
A Bossa-Nova, desta forma, popularizou a MPB
internacionalmente e foi de grande valia para a consolidação do samba de morro carioca como a
música nacional. Caetano comenta:
“É óbvio para mim que também essa elasticidade do mercado, que passou a estender seus tentáculos na direção de
formas brutas de manifestação musical não apenas os sambas de rua do Rio e as novíssimas formas de samba de rua da
Bahia (que surgiram depois de formado o hábito de se gravar e radiodifundir esse tipo de coisa), mas toda uma variada
gama de estilos abordados de modo mais documental -, se deve, em última análise, à bossa nova.”
209
Caetano ressalta as preocupações da indústria cultural em manipular um mercado consumidor
mais diversificado, onde surge a necessidade de veiculação de produtos da cultura popular em seus
programas, da mesma forma que há uma adaptação das manifestações populares aos anseios da
indústria e do mercado. Hoje o temor que as manifestações de cultura popular venham perder suas
208
O maracatu, que vivia momentos de ocaso é um ótimo exemplo de revitalização após ser citado como uma das principais influências do grupo
“Chico Science e Nação Zumbi”
209
Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg 39
105
características elementares para poderem melhor servir ao mercado.
210
Mas, como é bem lembrado por
Hermano Vianna
211
, o samba, desde fins da década de 1920, estava se impondo como a música
nacional e assim se mantém até hoje.
Não se pode deixar de mencionar que as interconexões e mediações entre a música popular
nacional e as influências estrangeiras sempre foram uma constante em nossa música, sendo defendido
que o samba, música eminentemente nacional como foi dito anteriormente, nasceu de uma mistura dos
lundus, maxixes, polcas, cateretês e outros ritmos regionais e exportados. Havia uma interação entre a
aristocracia e as manifestações populares desde Domingos Caldas Barbosa, que fazia enorme sucesso
na corte portuguesa em 1775, a Catulo da Paixão Cearense. O viajante inglês narra uma festa em
Salvador no ano de 1802:
(..) em algumas casas de gente mais fina ocorriam reuniões elegantes, concertos familiares, bailes e jogos de cartas.
Durante os banquetes e depois da mesa bebia-se vinho de modo fora do comum, e nas festas maiores apareciam guitarras e
violinos, começando a cantoria. Mas pouco durava a música dos brancos, deixando lugar à sedutora dança dos negros,
misto de coreografia africana e fandangos espanhóis e portugueses.”
212
A própria música erudita tupiniquim nasce da união dos ritmos populares com o eruditismo
europeu. Muitos músicos que ajudaram a formar nossa tradição musical foram músicos de bares e
tabernas, enquanto estudavam os eruditos. Luciano Gallet, como citado anteriormente, tinha essa dupla
jornada trabalhando num cinema no Largo do Rossio, onde meretrizes e seus clientes eram os
principais freqüentadores, e como professor da Escola Nacional de Música. A mediação entre a cultura
popular nacional e a cultura erudita sempre foi flagrante em todas as áreas culturais onde houve o
transplante da linguagem erudita européia para realidade nacional, como nas modinhas e maxixes
brasileiros.
210
O samba é uma manifestação que sofreu modificações profundas após a popularização dos desfiles de escolas de samba e a concorrência entre
elas. Os figurinos, os carros alegóricos, as mega-alas contribuem para o caráter espetacular das escolas de samba atuais
211
Vianna, Hermano; O mistério do samba; Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995
212
Vianna, Hermano; O mistério do samba; Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995; citado por Wanderley Pinho; 1959 Salões e damas do Segundo
Reinado, 3ª edição, São Paulo, Martins; pg. 37
106
“Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades
técnicas”
213
Os tropicalistas norteavam suas performances por atitudes agressivas e libertárias, provocando a
platéia, acusando-a pela passividade e permanência do tradicionalismo. O teatro de agressão
214
,
idealizado por José Celso Martinez e o grupo Oficina, era uma clara alusão à tomada de consciência
do espectador através de estímulos a reações, muitas vezes de repulsa, tendo influências diretas de
Antonin Artaud e sua intuitividade. O grupo Oficina levava ao limite a frase de Frantz Fanon “Todo
espectador é covarde ou traidor”. O Oficina queria sacudir o público pela medula, buscando retratar
todos seus recalques e privilégios, num questionamento da própria personalidade do espectador. José
Celso clamava:
“É preciso provocar o espectador, agredi-lo intelectualmente, formalmente, sexualmente, politicamente, chamá-lo de
burro, recalcado e reacionário. O objetivo é abrir uma série de Vietnans no campo de cultura, uma guerra contra a cultura
oficial de consumo fácil. O sentido da eficácia do teatro hoje é o sentido da guerrilha teatral a ser travada com as armas do
teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura e a apatia que vivemos.”
215
Não é gratuita a ligação do projeto tropicalista do teatro Oficina com a música do grupo baiano.
Caetano, que havia assistido Os pequenos burgueses de Gorki em 1965, foi à encenação de O rei
da vela e dali saiu desnorteado.“Eu tinha escrito Tropicália havia pouco tempo quando ‘O rei da vela’
estreou. Assistir a essa peça representou para mim a revelação de que havia de fato um movimento
acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia a música popular.”
216
José Celso causou um grande rebuliço no meio teatral falando a língua universal do movimento
pop mundial. Exibindo a crítica aos heróis populares criados pela televisão (Roda Viva) e à sociedade
burguesa paulista (Rei da Vela) sempre de forma polêmica e agressiva, José Celso é acusado de
213
Veloso, Caetano; entrevista concedida a Manchete, citada em Verdade Tropical do próprio Caetano Veloso, pg. 207
214
Teatro de agressão pode ser entendido como “... uma relação de luta, uma luta entre os atores e o público. (...) a peça o agride intelectualmente,
formalmente, sexualmente, politicamente. Quer dizer que ela qualifica o espectador de cretino, reprimido e reacionário. (...) O teatro tem necessidade
hoje de desmistificar, de colocar este público em seu estado original, frente a frente com a sua grande miséria, a miséria do pequeno privilégio obtido
em troca de tantas concessões, tantos oportunismos, tantas castrações, tantos recalques, em troca de toda a miséria de um povo.” Extraído de
entrevista em Partisans n. 47 (Paris, Maspero) In. O pai de família..., de Roberto Schwarz, pg. 85 Schwarz diz que o Oficina (grupo teatral liderado
por José Celso Martinez Corrêa) ergue-se a partir da experiência da desagregação da burguesia nacional após 1964 e que esta desagregação se repete
no palco, agora ritualmente em forma de ofensa. Luís Carlos Maciel, o responsável pela introdução do termo teatro de agressão” mostra que esta
linguagem propõe confrontar o espectador para finalmente arrancá-lo de sua passividade habitual. Maciel, L. C.; Geração em transe: memória do
tempo do Tropicalismo, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, pg.169 Elio Gaspari coloca que José Celso pretendia lançar o “teatro da porrada”,
numa atitude onde: “É preciso provocar o espectador, chamá-lo de burro, recalcado, reacionário.” Gaspari, Elio; A ditadura envergonhada; São
Paulo, Companha das Letras, 2002. pg. 299
215
Veja, 04/12/1968, pg. 56
216
Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg 244
107
imoral. Em Rei da Vela a antropofagia de Oswald de Andrade subverte a platéia que é conclamada a
seguir um “conceito sério de violência, porque o público está cheio de preconceitos e não vibra. É
preciso revê-lo, chocá-lo, provocá-lo.”
217
Diretamente inspirado no Living Theater, o Oficina buscava
o que havia de mais atual no exterior, mas também influenciava grupos estrangeiros realizando turnê
internacional, passando Paris em maio de 1968. Ali o grupo Oficina vê, da sacada do hotel, as
manifestações estudantis, chegando a ter alguns de seus integrantes feridos por uma bomba de gás
lançada dentro do quarto.
218
O cinema, muitas vezes citado por Caetano Veloso como fonte de inspiração, era um sonho para
o jovem músico que almejava dirigir um filme. Caetano escreveu artigos sobre o tema na Bahia, no
início da década de 1960. Para muitos o cinema era o meio de expressão artística mais adequado para
retratar o mundo contemporâneo e sua magia pela linguagem áudio-visual. O Tropicalismo se
destacava por sua composição poético-visual e letras com clara alusão ao cinema e sua linguagem.
Fruto de contatos com Glauber Rocha e seu espírito efervescente desde a Bahia, os tropicalistas
seguiam discussões referentes ao papel da arte e sua estetização. Assistentes de Federico Fellini e da
nouvelle vague francesa, os tropicalistas buscavam sintetizar uma linguagem burlesca e popular,
adicionando um apurado senso estético à roupagem tupiniquim de sua música. Uma obra de arte aberta
à influência, um fragmento do processo artístico humano. A priorização da construção de letras
fragmentárias, de acordo com um público bem informado e espectador assíduo de cinema, aludia à
indústria cultural e a implantação de novas apreensões de mundo. O cinema era o grande programa dos
tropicalistas, fonte inesgotável de influências e vivências que ajudaram a construção do imaginário
daquela geração. Caetano, que convivia com Glauber Rocha nos cineclubes baianos, exibe o papel
capital que Glauber teve na tomada de consciência sobre a realidade ímpar brasileira, que deveria ser
esmiuçada, regurgitada, deglutida e cuspida em forma de crítica:
“(...) temos então de considerar como deflagrador do movimento (o Tropicalismo) o impacto que teve sobre mim o
filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-7. Meu coração disparou na cena de
abertura, quando, ao som do mesmo cântico de candomblé que estava na trilha sonora de Barravento o primeiro
longa-metragem de Glauber -, se vê, numa tomada aérea do mar, aproximar-se a costa brasileira.
219
Essa passagem fica ainda mais interessante quando vemos a declaração de José Celso: “Fui
violentamente influenciado pelo filme Terra em Transe, de Glauber Rocha. Agora Caetano se diz
217
Folha de São Paulo, 04/10/1967
218
O leitor que tiver assistido ao filme Sonhadores de Bernardo Bertolucci, notará a semelhança entre a realidade e o cinema.
219
Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 99
108
influenciado pelo meu espetáculo. Tenho certeza de que nossa geração vai começar algo de novo.”
220
Essa atávica consciência de José Celso com relação às influências mútuas é impressionante pois havia
uma clara correlação entre teatro, cinema e música, num processo de influências e diálogos entre as
várias artes. Essas expressões artísticas viviam momentos de grande renovação, sendo que o ambiente
teatral e cinematográfico era, de forma geral, mais aberto às inovações estéticas que a música. Gilberto
Gil também foi atingido pelas inovações teatrais quando foi assistir à montagem de A cantora careca
de Eugène Ionesco, dirigida por Líbero Ripoli Filho, onde cortavam pedaços do texto intercalado com
seqüências de comerciais de televisão, o que ajudou a estar informado sobre a nova narrativa que
estava sendo concebida na época.
A conjuntura favorecia o aparecimento de novas abordagens, ligadas tanto ao âmbito local
quanto aos acontecimentos mundiais. As artes aproveitam e constituem a estética mais apropriada para
a propagação de uma crítica ao establishment. Apesar de haver uma clara aproximação entre o
Tropicalismo musical e a obra de Hélio Oiticica, Tropicália exibida na exposição Nova Objetividade
Brasileira, realizada em 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, observa-se que o teatro e
o cinema tiveram um peso preponderante no movimento mundial que extrapolava as fronteiras da
música ou do cinema. Como analisava Caetano em 1975: “Na verdade, a gente nunca teve convicção
de nada. Nós não carregávamos o mundo nas costas. Pode ser simplesmente que a gente naquela época
estivesse na vanguarda das mudanças do comportamento que se delineavam no mundo.”
221
Hélio Oiticica aviltava as tentativas de coerção e aburguesamento da estética tropicalista criando
uma estética voltada para a imagem e a percepção sensorial. No catálogo da exposição londrina na
Whitechapel Gallery, em 1969, Oiticica exibia sua proposta para a experiência vivida pelo visitante ao
penetrar na obra de arte “Tropicália” e aproximava-se da canção homônima de Caetano Veloso:
“Tropicália é um tipo de labirinto fechado, sem caminhos alternativos para a saída. Quando você entra nele não
teto, nos espaços que o espectador circula elementos táteis. Na medida em que você vai avançando, os sons que você
ouve vindos de fora (vozes e todos tipos de som) se revelam como tendo sua origem num receptor de televisão que está
colocado ali perto. É extraordinária a percepção das imagens que se tem: quando você se senta numa banqueta, as imagens
da televisão chegam como se estivessem sentadas à sua volta. Eu quis, neste penetrável, fazer um exercício de imagens em
todas as suas formas: as estruturas geométricas fixas (se parece com uma casa japonesa-mondrianesca), as imagens táteis, a
sensação de caminhada em terreno difícil (no chão três tipos de coisas: sacos com areia, areia, cascalho e tapetes na
parte escura, numa sucessão de uma parte a outra) e a imagem televisiva. (...) Eu criei um tipo de cena tropical, com
plantas, areias, cascalhos. O problema da imagem é colocado aqui objetivamente – mas desde que é um problema
universal, eu também propus este problema num contexto que é tipicamente nacional, tropical, brasileiro. Eu quis acentuar
a nova linguagem com elementos brasileiros, numa tentativa extremamente ambiciosa em criar uma linguagem que poderia
220
Bar, Décio; “Antropofagia”; In. “História do Rock Brasileiro”, volume 1; Super Interessante, Ed; Abril,. 2004, pg. 56-57, texto publicado
originalmente na Revista Realidade, 12/1968
221
Manchete; 18/10/1975
109
ser nossa, característica nossa, na qual poderíamos nos colocar contra uma imagética internacional da pop e op art, na qual
uma boa parte dos nossos artistas tem sucumbido.”
222
Oiticica criticava a adequação simplória ao pop e op art, propondo a organização de uma estética
única e original de face tropical e nacional. Os tropicalistas passam a expressar o desejo e o gosto de
uma geração mais sofisticada intelectualmente, cansada das mensagens panfletárias dos engajados ou
da arte pronta para o consumo. Esse grupo se envolve na criação de uma arte de difícil compreensão,
que abusa do intertexto, da paródia e da referência aos hábitos contemporâneos. Como os dadaístas, os
tropicalistas buscavam criar uma nova linguagem, um regresso ao espontaneísmo infantil, que
destruísse toda a tradição estética introduzindo a anti-arte e utilizando instrumentos de uso cotidiano
nas obras de arte. Rogério Duprat segurar um pinico como uma xícara na capa de Panis et Circensis
ou as letras tropicalistas produzidas como as colagens de Hans Arp
223
, embaralhadas ao acaso, dando
ao interlocutor diversas visões da mensagem do autor, comporiam claros indícios da cultura geral do
grupo.
O “som universal” tropicalista era imbuído de uma concepção pluralista e de uma linguagem
planetária, utilizando o pop e o kitsch em suas composições. Outros músicos achavam que este “som
universal” seria responsável pela padronização da música e adequação do músico ao mercado e à
indústria fonográfica. Vemos Sidney Miller comentar: “Universalização (da música popular brasileira)
responde a um processo de estagnação do mercado interno (novas demandas não atendidas) e a um
‘mecanismo empresarial’ que reflete uma iniciativa internacional no sentido da universalização do
gosto popular.”
224
O cinema reafirmava a possibilidade de construir uma estética nova e adequada à sua época.
Enquanto se exibia o cinema novo, os músicos passaram a criar letras alusórias a imagens, típicas da
arte cinematográfica. Com Glauber Rocha alavancando o interesse pela cultura nacional no exterior, o
Tropicalismo negava-se a retratar a realidade nacional ligada à pobreza e à fome, como era sucesso no
exterior. Através da estética da fome, Glauber rompe com a busca do primitivismo condicionado pelo
colonialismo, “somente com uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se
222
Extraído de Marcos Napolitano, Seguindo a canção: Engajamento Político e Indústria Cultural na Trajetória da Música Popular
Brasileira (1959-1969), tese de doutorado apresentada em novembro de 1998, junto ao Programa de História Social da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, pg. 212
223
Jean Hans Arp; escultor, pintor e poeta francês contemporâneo
224
Sidney Miller, “O universalismo e a Música Popular Brasileira” In. Revista Civilização Brasileira, 21/22, set/dez. 1968, pg. 207-221. Extraído
de Marcos Napolitano, Seguindo a canção: Engajamento Político e Indústria Cultural na Trajetória da sica Popular Brasileira (1959-
1969), tese de doutorado apresentada em novembro de 1998, junto ao Programa de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, pg. 212
110
qualitativamente: e a mais nobre manifestação da fome é a violência.”
225
Glauber pensava que, ao
revelar as entranhas do Brasil, do Brasil miserável e atingido pela modernização e urbanização, como
era realizado pelo Cinema Novo, iríamos sobrepujar o pensamento terceiro mundista e a pobreza
material, conscientizando o público “de sua própria miséria”
226
. Ao colocar a violência como um dos
elementos principais da tomada de consciência da América Latina em relação à exploração histórica,
Glauber se unia ao Tropicalismo musical na agressividade das letras e a exposição de uma situação
complexa nacional., bem como as concepções teatrais de José Celso Martinez que buscavam agredir a
platéia, tirá-la de sua passividade e conscientizá-la. Os tropicalistas não se limitavam a expor a miséria
unindo a criança que estende a mão ao monumento bem moderno do planalto central.
As letras de Domingo no Parque e Alegria, Alegria possuem características cinematográficas:
“Como lembrou Décio Pignatari, enquanto a letra de Gil lembra as montagens eisenstenianas, com
seus closes e suas ‘fusões’, a de Caetano Veloso é uma ‘letra-câmara-na-mão’, mais ao modo informal
e aberto de um Godard, colhendo a realidade casual ‘por entre fotos e nomes.’”
227
Com a
intertextualidade servindo como norteador das propostas tropicalistas, o cinema e seu clima de fantasia
eram notáveis colaboradores da nova estética e sua notável percepção do presente inter-relacionado
com a tradição e o passado.
Gil conta que Domingo no Parque tinha como principal preocupação discutir a riqueza de
contradições do ser humano, afirmando a dificuldade da limitação de fronteiras e o fim do
nacionalismo:
“Não se poderia, entendendo, em nome de um nacionalismo, adotar posição ufanista bem parecida com a
mentalidade nazista que deveria obrigar as pessoas de determinada nação a simplesmente ignorar qualquer tipo de
influência que a cultura e os costumes de outros povos pudessem exercer sobre ela.”
228
Gil se referia a críticos como Sérgio Cabral, Carlos de Assis e José Ramos Tinhorão que
vituperavam os “frescos”
229
que buscavam inspiração no exterior. Imaginavam que a decisão dos
Beatles de “(...) se internarem na Índia foi conseqüência exclusivamente de um vazio da realidade
musical da velha e desgastada Inglaterra, onde nada havia para oferecer ao conjunto.”
230
Os Beatles
225
Rocha, Glauber; “Uma estética da fome”; Revista Civilização Brasileira; Ano I, Número 3, julho de 1965, pg. 168
226
Ibidem
227
Campos, Augusto; Balanço de Bossa...; São Paulo, Perspectiva, 1968, pg. 141
228
Folha de São Paulo; 06/10/1967
229
Cabral, Sérgio; “Interdependência ou a frescura instalada e nossa música popular”; In. Pasquim, julho de 1969, num. 3
230
Ibidem
111
constituíam o principal parâmetro para os músicos do iê-iê-iê, e, após a gravação de “Revolver”, mais
notavelmente da gravação de Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band”, foram a maior inspiração
dos músicos ligados à cultura pop nos anos 1960.
231
Sérgio Cabral clamava pela valorização das
sonoridades brasileiras tão pouco exploradas, entendia que os artistas deveriam estar intrinsecamente
ligados à realidade nacional e condenava: “Decidiram decretar a falência da música popular brasileira
porque com o Intelsat e os meios de comunicação não mais fronteiras.”
232
Consciente das
transformações vividas em seu tempo, Sérgio Cabral observava de forma pessimista a chamada
revolução tecnológica, temendo o enfraquecimento da cultura popular brasileira, inserindo elementos
estrangeiros em doses maciças através dos canais de comunicação. Assim via com escárnio os
comentários de Rita Lee, vocalista dos Mutantes que não gostava de samba, considerando-os como
uma atitude fascista da classe média esculhambar a cultura popular.
233
Inserção ou questionamento da indústria cultural
Domingo no Parque e Alegria, Alegria podem ser consideradas as primeiras canções ligadas ao
“som universal” tropicalista. Apresentadas em 1967, traziam em sua proposta estética uma forte carga
inovadora e intertextual, enfatizando ou fatos da realidade contemporânea, caso de Alegria, Alegria,
ou através de uma parábola sobre o amor e a traição, escrita de forma simples e pungente como a
canção Domingo no Parque, ao examinar o lazer e desavenças de trabalhadores urbanos. Os
tropicalistas investiam numa linguagem fragmentária, onde a referência à contemporaneidade era
realizada com a sobreposição do primitivismo arcaico brasileiro à modernidade latente nos meios de
comunicação e na industrialização, quando “um poeta desfolha a bandeira/ e eu me sinto melhor
colorido/ pego um jato, viajo, arrebento/ com o roteiro do sexto sentido.”
Havia um claro elo entre as várias artes, simbolizado pela indústria de comunicação ou de
entretenimento. As diferentes expressões constroem seus mercados e públicos através da veiculação de
suas obras nos canais de comunicação. Há uma nova forma de financiamento do trabalho artístico, não
mais restrito às galerias, museus ou grandes distribuidoras. A publicidade se desenvolve voltada,
231
Falando sobre Alegria, alegria Caetano Veloso divagava sobre os Beatlles e a nova criação musical, distinta da bossa nova. “Em flagrante e
intencional contraste com o procedimento da bossa nova, que consistia em criar peças redondas em que as vozes internas dos acordes alterados se
movessem com natural fluência, aqui opta-se pela justaposição de acordes perfeitos maiores em relações insólitas. Isso tem muito a ver com o modo
como ouvíamos os Beatles (...) A lição que, desde o início, Gil quisera aprender dos Beatles era a de transformar alquimicamente lixo comercial em
criação inspirada e livre, reforçando assim a autonomia dos criadores e dos consumidores.” Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo,
Companhia das Letras, 1997, pg. 169-170
232
Ibidem
233
Cabral, Sérgio; Pasquim, agosto 1969, num. 8
112
principalmente, para o público jovem. Mutantes, Caetano Veloso e Gilberto Gil realizam trabalhos
publicitários e criam jingles, com destaque para a campanha da gigante química Rhodia, em 1968,
quando os Mutantes apresentavam a Moda Mutante. O mundo da publicidade, o poder da imagem
dentro da propaganda, com a popularização da impressão colorida e, muito mais importante, o
surgimento da TV e sua massificação, ajudaram a fomentar o grafismo e o desenho industrial. O
fortalecimento do mercado publicitário e o maior acesso aos meios de comunicação ajudaram na
criação de novas linguagens iconográficas, sendo marcante a introdução de uma linguagem colorida e
abstrata junto a esses meios de comunicação e publicidade.
Na década de 60, com a ênfase no mercado consumidor juvenil, surgiu uma brecha para o
desenvolvimento de uma linguagem visual conhecida como psicodélica. O psicodelismo das artes
gráficas era acompanhado pela música, cinema, moda, enfim, por quase todos os canais de divulgação
de mensagens para o público jovem. É interessante perceber que Antônio Peticov, após observar as
capas de dos LPs Fifth Dimension do Byrds, e Disraeli Gears do Cream, passa a criar pôsteres com a
linguagem psicodélica, popularizando a arte pop por vários meios culturais e sendo um dos precursores
do psicodelismo no Brasil.
234
Peticov abriu, na época, uma loja de pôsteres com numa linguagem
psicodélica na Rua Augusta. As capas dos discos de Caetano Veloso, Tropicália de autoria do artista
gráfico Rogério Duarte, o disco coletivo A Banda Tropicalista do Duprat, Jardim Elétrico dos
Mutantes e Gal Costa de 1968 seguiam a tendência psicodélica em suas capas. Num momento onde a
visualidade alcançava papel dominante na veiculação de mensagens, o “mosaico informativo” onde a
“mídia era a mensagem”, parodiando McLuhan, os tropicalistas se uniam ao movimento jovem
mundial, utilizando as mesmas formas de expressão que a juventude fazia uso. A introdução da cultura
jovem como principal mercado consumidor e sua propagação através dos quadrinhos, das artes
plásticas, da música, da literatura e do cinema transformaram a sensibilidade artística da época. Com o
psicodelismo a afirmação da cultura jovem como um dos principais mercados consumidores. O
pop, maior veículo do psicodelismo, consistiu num meio de consolidação da cultura de massas e de
assimilação de obras com referências eruditas que dialogavam com a cultura popular.
235
O desenho industrial tomava corpo junto às modificações ocorridas no mundo industrial e
cultural, aproveitando-se da primazia concedida à linguagem visual e ao grafismo, que faziam uma
verdadeira revolução estética. Rogério Duarte, um dos principais desenhistas da época, produzia capas
234
Antônio Peticov, que apresentou o LSD aos Mutantes, foi preso em 1970, na cidade de São Paulo, mais especificamente no pavilhão 7 do
Carandiru, por porte de LSD. Após fugir para Londres, viveu com a ajuda de Gilberto Gil e outros amigos que constituíam uma comunidade
brasileira na Inglaterra
235
Jeff Beck e Rod Stewart tocam Greensleeves, retomando a tradição clássica num disco de rocks e blues, ou Gilberto Gil que se questiona quanto
ao papel da civilização em Cultura e Civilização
113
de discos e cartazes de filmes, sendo seu maior ícone o cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol
onde retém a alma do filme e o transforma na imagem mais poderosa do cinema novo.
Concomitantemente, Duarte exibe a hiper modernidade de traços circulares formando um sol simples
com pitadas psicodélicas, junto à figura de um herói primitivo, herança do Brasil arcaico e sertanejo,
rústico e violento:o cangaceiro Corisco, protagonizado por Othon Bastos.
O emprego de uma linguagem visual também se fazia presente no meio politizado estudantil.
Zuenir Ventura chama a atenção para a criação de cartazes de maior criatividade visual e a atenção
voltada para o tema, quando Fernando Gabeira se reunia com os estudantes de Desenho Industrial
objetivando “elevar o nível estético das mensagens.”
236
Dentro de um contexto mais amplo de criação e veiculação de seus trabalhos, a arte vivia um
momento de questionamento de suas atribuições: adotar uma arte com clara preponderância de temas
políticos?
237
A arte simbolizaria a cultura erudita e o consumo por um público seleto e elitizado ou
deveria adquirir um caráter plural com a exposição de valores ligados tanto à cultura popular como à
cultura de elite? Os tropicalistas enveredavam pela exibição da pluralidade, do uso de símbolos
populares e eruditos na formulação fragmentária do Brasil, contrapondo com situações contraditórias
para exibir a realidade mundial. Seguiam tendências ligadas à cultura do mass media, reunindo
linguagens distintas no intuito de criar uma cultura adequada aos valores modernos da
reprodutibilidade da obra de arte e a popularização dos bens artísticos através do mundo da
informação. Mesmo com a veiculação do programa Divino Maravilhoso ou com a polêmica
provocada por seu trabalho, o grupo tropicalista não teve uma significante vendagem de LPs. Graças à
sua atitude inovadora e agressiva, os tropicalistas sempre foram chamados para trabalhos publicitários,
estrelando comerciais
238
de fábricas têxteis, Rhodia
239
, ou os Mutantes divulgando os combustíveis
Shell.
Apesar da grande aversão ao Tropicalismo, os festivais posteriores adotam uma linguagem
próxima aos tropicalistas com cartazes exibindo uma tipografia psicodélica (cartaz do IV Festival da
236
Ventura, Zuenir; 1968: O Ano que Não Terminou, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, pg. 53
237
Geraldo Vandré afirmava em 1967 “... a música popular deve ser comprometida com a realidade nacional em termos culturais, focalizar os
anseios, necessidades e frustrações do povo. Não deve, porém ser apenas ‘notícia dessa realidade’, pois precisa dizer coisas ao povoe dirigir-se a esse
povo.” Folha de São Paulo, 25/11/1967 “Vandré: Música deve representar o povo”
238
Ver página 10
239
... assinaram com a Rhodia, associando suas propostas musicais ao lançamento dos novos padrões de tecido, propositadamente denominados
Tropicália e difundidos, por exemplo, nos camisolões ostentados por Gal e Gil na foto da capa do disco coletivo. A coleção seria promovida no show
Momento 68, estrelado por Gil, Caetano, Eliana Pittman, Raul Cortez e Walmor Chagas, com direção de Régis Duprat e coreografia de Lennie Dale.
A mais nova edição do conhecido esquema de ‘música e moda’, ou ‘show e desfile’, de Livio Rangan deveria percorrer o Brasil e atingir o exterior,
repetindo-se o processo que vinha se atrelando às novidades dos festivais desde 1965.” Mello, Zuza Homem de; A era dos festivais, São Paulo, Ed.
34, 2003, pg. 307 Sobre o programa da Rhodia ver pg. 13 deste capítulo
114
Record de 1968) e as guitarras passam a ser cada vez mais tocadas. Em contrapartida, numa reação do
grupo ligado à defesa da tradição nacional contra a inserção de instrumentos elétricos, há a proibição
do uso da guitarra no V Festival da Record de 1969, onde o cartaz dizia claramente: “Queremos ver os
Beatles pelas costas”; num festival que teria apenas frevo, samba e marcha “que são nossas coisas,
coisas nossas”. Novamente os Beatles representando o imperialismo e a entrada de elementos
alienígenas em nossa música. Obviamente, essa acusação se baseava na crítica à Jovem Guarda e ao
experimentalismo dos tropicalistas que reconheciam a influência do grupo inglês em sua música,
principalmente após a aproximação com Rogério Duprat e o rculo da música experimental.
Evidenciando a consciência de seu papel dentro da indústria cultural e a proposta de sincretismo da
cultura pop e ritmos regionais, lembramos a passagem de Verdade Tropical:
“Ele (Rogério Duprat) dizia que nós não podíamos seguir na defensiva, nem ignorar o caráter de indústria do
negócio em que nos tínhamos metido. Não podíamos ignorar suas características da cultura de massas cujo mecanismo
poderíamos entender se o penetrássemos. Dizia-se apaixonado por uma gravação dos Beatles chamada ‘Strawberry fields
forever’, que, a seu ver sugeria o que devíamos estar fazendo e parecia-se com a ‘Pipoca Moderna’ da Banda de
Pífanos.”
240
A adequação à indústria fonográfica, o uso de uma linguagem coloquial e o contato com elementos
de variados contextos artísticos enriquecem intelectualmente os tropicalistas oferecendo-lhes subsídios
para exercerem a crítica à MPB e às injustiças e mazelas mundiais. Augusto de Campos defende o
Tropicalismo, compreendendo seu papel determinante no rompimento com o arraigado tradicionalismo
da MPB:
“É o momento que o artista, consciente de sua responsabilidade frente ao povo, aproveita para elevá-lo em seu
gosto, oferecendo-lhe algo mais elaborado que o force a participar com mais inteligência na sua apreciação. Uma
gravação altamente inventiva como Sgt. Peppers jamais seria aceita pela massa se não fosse imposta pela personalidade
dos Beatles
Essa consciência tiveram Caetano e Gil, que souberam sentir o momento exato em que a própria massa espera que o
artista não se repita. Essa consciência faltou a Vandré, por exemplo, a quem escapou este paralelo com sua própria estória:
assim como o boiadeiro troca o cavalo pelo caminhão, o violeiro também acaba seduzido a trocar a viola pela guitarra
elétrica.”
241
Muitas vezes o Tropicalismo é acusado de se coadunar à indústria fonográfica no intuito, puro e
simples, de fazer sucesso e aumentar as vendagens de discos. Porém eles mesmos tinham consciência
que a realização de novas experiências musicais estaria diretamente vinculada à exposição nos
veículos de comunicação. Induzidos por Guilherme Araújo, um astuto produtor, os tropicalistas se
ligaram nas inovações cênicas e de figurino e investem em atitudes e opiniões polêmicas. Roupas de
240
Veloso, Caetano; Verdade Tropical; São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 131
241
Mendes, Gilberto; “De como a MPB perdeu a direção e continuou na vanguarda”; In. Campos, Augusto; Balanço de Bossa...; São Paulo,
Perspectiva, 1968, pg 123
115
plástico, postura agressiva no palco, androginia: atitudes que revelavam o inconformismo embebido
pelo dadaísmo, onde a polêmica era utilizada para chocar o espectador causando uma sensação de
estranhamento ao questionar o papel da obra de arte e o mundo contemporâneo. Ciente do poder dos
veículos de comunicação, Caetano, em entrevista a Augusto de Campos, afirmava:
“Acredito que a necessidade de comunicação com as grandes massas seja responsável, ela mesma, por inovações
musicais. O rádio, a TV, o disco criaram, sem dúvida, uma nova música: impondo-se como novos meios técnicos para a
produção de música, nascidos por e para um processo novo de comunicação, exigiram/possibilitaram novas
expressões.”
242
A massificação e a reprodução da obra de arte são outras características marcantes da cultura
contemporânea. um peso ainda maior junto à indústria fonográfica: os discos de 78 rotações
aposentados e substituídos por LP’s com gravação superior a 60 minutos, enquanto os antigos
gravavam menos de 10 minutos em cada lado. Atualmente, há uma vaga idéia de que isso representou
a popularização da música em todos os estratos sociais. Desde o primeiro reprodutor sonoro até os
anos 60 com toca-discos estereofônicos, houve uma corrida às lojas de discos com a popularização
das vitrolas. A audição solitária passou a ser uma realidade, moldando gostos por todo o mundo. A
partir do momento que a música saiu dos salões da nobreza e passou a ser executada em grandes
teatros, onde a burguesia podia participar, a reprodução do som surgiu como uma avassaladora
revolução. A popularização da música alcançou níveis intangíveis anteriormente. Os astros pop são
seguidos por milhares de fãs que buscam repetir suas atitudes e filosofias de vida. A atitude dos fãs,
aterrorizadora muitas vezes, passa a ser típica de uma sociedade voltada para a estetização e
mitificação de celebridades e para a padronização de valores. Atitudes que eram explicitadas pelos fãs
das canções de protesto e pelos partidários da “música universal” tropicalista em nível nacional, ou
pelos admiradores dos Beatles ou dos Rolling Stones, em nível externo, que defendiam os valores
propalados por seus ídolos.
A atitude de compreensão da indústria cultural, feita de forma crítica pelo Tropicalismo, é usada
de maneira oportunista por Dom e Ravel, compositores da famosa Eu te amo, meu Brasil, que
diziam: “Pode colocar que é fabricada mesmo. Para uma música fazer sucesso, nós estudamos o
mercado com todos os detalhes. Temos um trabalho planificado, pastas com paradas de sucesso,
épocas do ano, faixas de público...”
243
Os músicos brasileiros começavam a compreender e se
242
Campos, Augusto; Balanço de Bossa...; São Paulo, Perspectiva, 1968, pg. 187/188
243
Mello, Zuza Homem de; A era dos festivais, São Paulo, Ed. 34, 2003, pg. 391 Extraído de entrevista concedida à revista Veja, em fevereiro de
1971
116
adequar aos anseios do mercado e às imposições da indústria fonográfica. Vigora a concepção de uma
obra de arte voltada diretamente para os anseios do mercado e totalmente adequada à fruição entre o
público consumidor. As canções são escritas segundo as necessidades do nicho mercadológico para o
qual o produtor está voltado, vinculando a produção artística ao gosto da maioria. De maneira crítica
o Tropicalismo buscou driblar a imposição pasteurizadora da indústria cultural com a
intertextualidade e a paródia sendo sua principal arma contra as imposições do mass media. Ao reunir
o folclore e a cultura popular, com o cinema nouvelle vague e o modernismo antropofágico, os
tropicalistas aspiravam enfocar a realidade vivida por eles, sem olvidar o processo modernizador
dominante.
117
CONCLUSÃO
Esta pesquisa procurou trabalhar um fenômeno cultural que teve papel de destaque durante a
década de 1960 e que ainda é fruto de polêmicas e estudos. Pensamos que o enfoque deste estudo,
baseado na interação da música popular brasileira com a indústria fonográfica paralela à revolta
estudantil e às transformações ocorridas na esfera cultural, é pouco observado nas demais pesquisas
sobre a música popular brasileira contemporânea. O tema pós-modernidade surge quase que
naturalmente no estudo da estética tropicalista. A temática intertextual, a fragmentariedade do
discurso, a anomia do metadiscurso, o questionamento das teleologias e da civilização etnocêntrica e a
construção de uma análise da sociedade contemporânea através das lentes de músicos jovens e
intelectualizados são elementos que expressam a clivagem cultural, racial e religiosa presente na
cultura brasileira desde seus primórdios.
A aceitação do outro e a inserção das particularidades através da universalização do catolicismo
pela Igreja Católica, muitas vezes são responsáveis por colocar o Brasil como uma nação de cunho
plural e intercultural. Geralmente, nos locais que possuem uma maior variedade cultural, as mediações
culturais ocorrem com maior freqüência. O Brasil construiu canais de negociação e assimilação entre
as culturas, dando margem ao sincretismo. A tradição cultural indígena é indispensável para a
compreensão da própria terra e a imposição de alguns hábitos europeus não tem espaço por aqui. O
banho diário, o uso de roupas leves, a consciência e a percepção ambiental mais aguçada são até hoje
preservados pela população. A originalidade de nossa colonização traz a criação de uma cultura
impregnada de diversos matizes, somando à cultura portuguesa, temperos africanos, germânicos,
holandeses, franceses, italianos, japoneses, enfim, de culturas que convivem cristalizando uma cultura
heterogênea e plural em seu gérmen.
Com a afirmação da multiculturalidade, o Tropicalismo objetivou tratar o quadro nacional
(ditadura militar, radicalização dos movimentos sociais, polarização na área cultural) dentro de um
âmbito global (movimentos de contestação à ordem vigente, tanto capitalista quanto socialista;
acelerado desenvolvimento industrial e tecnológico e a formação de uma ideologia juvenil
inconformista). Sem sobrepujar a realidade nacional em detrimento do contexto externo, ou vice-versa,
o Tropicalismo tendeu à revisão crítica de toda a tradição cultural mundial. Investiam na criação de
uma linguagem intertextual, carregada de símbolos eruditos e burlescos, típica de uma nova linguagem
estética. Uma linguagem em consonância com as modificações ocorridas em todas as esferas da
realidade contemporânea. O Tropicalismo retratava o avanço industrial
244
, pegava um jato e
244
Parque Industrial, Tom Zé, 1968, do LP “Tropicália ou Panis et Circensis”
118
arrebentava com o roteiro do sexto sentido
245
e via a formação de um segundo estágio de humanóide
246
se aproximando de uma nova ordem social, econômica e, principalmente, pós-moderna que tomava
corpo na década de 1960.
Deve-se entender o nascimento do pós-moderno como um processo de questionamento dos
cânones modernistas, diretamente vinculado à descoberta de uma nova percepção estética e afirmação
de novos valores como a valorização do orientalismo, das culturas indígenas americanas e das culturas
marginalizadas. Enfim, o processo de florescimento de uma contra-cultura que para alguns acabará
sendo cooptada pela indústria cultural com sua sede pela exploração de novas estéticas e criação de
mercados consumidores. Os críticos contemporâneos do pós-modernismo relacionam-no à
perplexidade e alienação individual, à normatização e ao crescimento do poder das grandes
corporações transnacionais. Porém, sob outro viés, a pós-modernidade cria movimentos de revolta e
inconformismo dentro de si, gerando uma cultura pluralista e libertária valorizadora do
desenvolvimento científico-tecnológico e que também se questiona sobre seu papel na sociedade
contemporânea, abrindo espaço para o experimentalismo mais radical.
A cultura na pós-modernidade adquire um papel determinante e ajuda a formar tanto um
mercado consumidor (palavra muito utilizada nesta época) para a própria cultura como, graças ao
caráter simulacional do mundo atual, vender produtos os mais variados: de sabão em a telefone
celular. Há a culturalização da mercadoria tendo como consequência a compra e o consumo de
determinados produtos, seguindo a publicidade e o imaginário criado em torno da mercadoria.
Na música, observam-se conseqüências claras da valorização do pluriculturalismo com a
inclusão de sonoridades variadas que redundam numa nova concepção musical com o uso do sampler
e referência clara a outras obras (com destaque para os rappers que abusam no uso de trechos de
outras melodias e canções). A música alternativa tem um crescimento enorme com a consolidação de
gravadoras independentes, que investem em sonoridades miméticas com referência a variados matizes
culturais. O Tropicalismo teve papel determinante na criação de espaço para o surgimento de uma cena
alternativa e underground brasileira, fazendo o intermédio entre a realidade nacional e mundial. O
movimento esteve fortemente vinculado aos questionamentos que a contra-cultura fazia na época, que
conduziram à criação de uma nova percepção, rotulada de pós-modernidade cultural.
A pesquisa objetivou se concentrar na incidência das modificações estruturais no mundo
contemporâneo. Modificações que serviam de inspiração para a criação artística tropicalista. A década
de 1960 teve como marca o inconformismo de sua juventude, o questionamento das meta-narrativas, a
luta pelos direitos das minorias, a mercantilização da cultura e a culturalização da mercadoria, a
245
Geléia Geral, Torquato Neto e Gilberto Gil; 1968, do LP “Tropicália ou Panis et Circensis”
246
Futurível, de Gilberto Gil, 1969
119
pasteurização por um lado e a multiplicação de opções por outro. Enfim, a década de 60 teve um
caráter transformador muito pungente e serviu como marco para as gerações posteriores. Toda a
produção cultural da década teve forte tendência rebelde demonstrando a nova percepção que abarcava
todas as esferas da vida contemporânea, uma realidade analisada sob um novo ângulo. Um período
onde as certezas universais viveriam seu ocaso e a contestação do modernismo acadêmico alcançou
sua maior força. Houve a valorização da imagem e do áudio-visual, com a necessidade da retratação
em “carne e osso” do acontecimento, a preponderância do imediatismo e da tendência simulacional.
O simulacro, uma das características mais marcantes da pós-modernidade descrita por Jean
Baudrillard, estaria presente na estética tropicalista com sua tendência desconstrutivista e a
caracterização de uma realidade de fragmentos dessemelhantes em sua essência. Platão, um dos
pioneiros na conceituação do termo simulacro, retratou o mito da caverna: o homem preso na caverna,
contemplando apenas sombras que, ao ser libertado e enxergar a realidade, não se contenta e crê nas
sombras contra a realidade. O mito da caverna seria o primeiro relato de uma realidade simulada,
realidade que se enevoada, contraditória, confusa, passível de variadas interpretações. Transparece,
paralelamente a uma certa falsidade, fantasia e onirismo, a sensação da realidade simulada simbolizar
a verdade. O caráter simulacional da cultura contemporânea é quase consenso entre os estudiosos da
indústria cultural e da história atual. O papel primordial da televisão atualmente, e do cinema no início
do século XX, a música pop se transformando em porta-voz de uma nova percepção e mentalidade,
enfim, a capacidade de presenciar fatos ocorridos a grande distância e que repercutiam decisivamente
no mundo imprimem um padrão diferente ao cotidiano contemporâneo.
O sonho da rebeldia juvenil, inspiração para a criação caleidoscópica tropicalista, com suas
propostas utópico-revolucionárias, foi alvo de análise por parte dos membros do Tropicalismo. A
incorporação de elementos dissociados da realidade local, a ambiência cenográfica revolucionária e a
sensibilidade voltada para a reflexão sobre as transfigurações da contemporaneidade são métodos
compartilhados pelo Tropicalismo e pela pós-modernidade. Através da dubiedade e contradição,
ambos se adaptam ao simulacro e à preponderância da cultura em todas as esferas da sociedade
contemporânea. A simulação seria mais um dos elementos utilizados pelo Tropicalismo na crítica à
situação social, cultural e política da década. As letras, com clara alusão cinematográfica e áudio-
visual, a cultura psicodélica e os happenings transmitiam evidências da nova apreensão estética
realizada pelos tropicalistas embasada explicitamente na simulação de uma “realidade que nunca
existiu”
247
, de uma realidade brasileira que ocorreu apenas na música tropicalista e na mescla cultural
realizada por eles.
247
Favaretto, Celso; Tropicália: alegoria, alegria, São Paulo, Ateliê Editorial, 1996, pg. 55
120
O método da análise de discurso auxiliou bastante esta pesquisa graças à visão contextual e
abrangente do tema e do objeto desta investigação. Ao realizar a abordagem baseada na análise de
discurso, pode-se fazer um amplo levantamento dos acontecimentos e da ideologia contemporâneos ao
Tropicalismo, sem olvidar a teoria nascida posteriormente ao movimento e seus desmembramentos. O
movimento tropicalista carece de um exame que não fique restrito ao pensamento de seus membros,
mas que conte com variados relatos que sejam correlacionados com os fatos determinantes da década
de 1960. Almejando realizar uma pesquisa com base na música tropicalista, vicejou-se um estudo
sobre a pavimentação do caminho para a pós-modernidade e suas conseqüências atuais.
Esta dissertação objetivou comprovar a força da cultura pop mundial no Brasil, principalmente
junto ao Tropicalismo, que, de forma crítica com relação ao capitalismo e sua pasteurização cultural,
propunha renovar a cultura nacional com o transculturalismo
248
e a busca de referências na cultura
popular. Os tropicalistas propunham criar uma arte desvinculada dos interesses da indústria cultural
mas o próprio pop termina sendo absorvido e se transforma em mercadoria pronta para o consumo
desta indústria.
249
Numa proposta intertextual e paródica, o Tropicalismo trouxe novas tendências para a música
popular brasileira criando espaço para a discussão sobre o pluralismo da nossa cultura. Ao introduzir
elementos estrangeiros em sua música, o Tropicalismo buscou reatualizar a tradição cultural nacional.
A salada sonora criada visava exibir a riqueza da música regional com suas várias feições e utilidades.
Sob a visão global, as guitarras distorcidas deveriam buscar a ligação da tendência experimental e
internacional com os arcaísmos de nossa cultura. Arcaísmos, chamados de “macumba para turista” por
Oswald de Andrade, no caso tropicalista tinham outra avaliação: seriam os catalisadores de uma nova
concepção artística, a mistura da “estética da fome” glauberiana com o transculturalismo pop, com
primazia à intertextualidade e compreensão do contexto.
O Tropicalismo questionava o projeto civilizatório modernizador processado pela ditadura
militar. Eram patentes na época os excessos, as imposições políticas e desvios financeiros, a repressão
à oposição e a estruturação da indústria cultural. Esta situação constituía farto estoque de referências
para os músicos tropicalistas e artistas pop da década de 1960. Investindo numa postura ambígua e
contraditória, sofisticadíssima para os padrões da época, houve dificuldade no reconhecimento das
criações tropicalistas pelo público e pela crítica. Talvez a objeção tivesse sido gerada pela
fragmentariedade de seu discurso e pela tessitura plural, fruto de variadas influências. Citando
Saudosismo, uma canção que, como foi exposto na dissertação, provocou grande discussão no
248
Movimento no qual há uma interligação e apropriação cultural tão grandes que não há mais o discernimento das referências culturais. Não há uma
clara fronteira entre as variadas tendências culturais citadas na produção cultural
249
Sobre a inclusão dos movimentos de contestação no seara de produtos mercantilizáveis pela indústria cultural ver a obra de David Graeber
121
momento de seu lançamento, Caetano Veloso cantava no LP “Transa”, intercalado por Gal Costa:
“You don’t know me/ you don’t know me at all/ eu você nós dois/ nós temos um passado meu amor/
um violão guardado, aquela flor/ e outras mumunhas mais”
250
. Em seu disco londrino Caetano
mandava um recado para os que não o haviam compreendido. Para os que achavam que o
Tropicalismo se restringia a um movimento aculturado e mercantilizado, Caetano reafirmava a
continuidade de seu projeto de retomar a “linha evolutiva” da MPB e a ligação atávica do som
produzido pelos tropicalistas com os processos modernizadores da música nacional e o
experimentalismo internacional.
Um campo que ainda rende muitos e preciosos estudos é o vínculo da arte pop, principalmente o
pop rock de língua inglesa da década de 1960, com o Tropicalismo. A forte influência destes músicos
na estética tropicalista deve-se ao papel da música como tradutora da ideologia jovem mundial. Os
festivais e eventos onde os músicos pop se apresentavam, eram logo tomados por uma atmosfera
libertária, com o uso de drogas, o amor livre e a conscientização da necessidade da transformação
ideológica e sensorial como normas. Os tropicalistas, maravilhados com as notícias sobre a rebeldia
mundial juvenil e suas manifestações, intercediam em nossa cena cultural se referindo à nova
mentalidade jovem que tomava de assalto os estudantes de todo o mundo. Com todo o peso da tradição
folclórica nacional sobre seus ombros, os tropicalistas ousaram misturar: ritmos caribenhos, guerrilha
urbana e libertação latino-americana; Vicente Celestino e a música serial que, posteriormente, foram
referências claras na criação de movimentos como o mangue beat, que revisitou a Tropicália com
Maracatu Atômico de Gilberto Gil e Jorge Mautner. Maracatu Atômico representou a transposição
realizada por Chico Science e Nação Zumbi, que uniram maracatu com a guitarra distorcida
denominado por eles de “maracatu psicodélico”, sempre se referiram aos tropicalistas como ídolos,
gravando com Gilberto Gil e Jorge Ben após seu reconhecimento na mídia
251
.
A introdução do pop no Brasil deve ser compreendida como a gênese das mudanças ocasionadas
pela imposição de novos valores culturais e mercadológicos e alterações impostas pela realidade pós-
moderna. O BRock, como é conhecido o movimento de bandas da década de 1980 no Brasil, tem
como referência a linguagem descompromissada e irônica do pop americano (punk, surf-music, ska,
reggae, hardcore), mas deve ao Tropicalismo a abertura para o consumo de novas sonoridades,
embebidas do cosmopolitismo e das tendências internacionais (muitas vezes imposições da indústria
cultural de valor artístico discutível). O BRock, na verdade, descendia diretamente do rock nacional da
250
Letra da canção Nine of ten
251
Jorge Ben canta com o Nação Zumbi em Malungo em homenagem póstuma a Chico Science e Gilberto Gil toca algumas vezes com o grupo e
Chico Science em shows e no CD “Afrociberdelia’ na música Maço. No encarte do CD “Da Lama ao Caos” eles escrevem: “Em meados de 91
começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade (Recife) um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo é engendrar um
‘circuito energético’ capaz de conectar as boas vibrações do mangue com a rede mundial de circulação de conceitos pop, imagem símbolo: uma
antena parabólica enfiada na lama.”
122
década de 1970, de Rita Lee que, com os LP’s “Fruto Proibido” e “Entradas e Bandeiras”, se firmou
como a principal figura que melhor incorporava o espírito rocker na cena musical nacional. A
“garotinha tropicalista” brigou com seus parceiros dos Mutantes e partiu para uma redefinição de suas
diretrizes. Sua atitude rendeu a consolidação do rock e das guitarras elétricas com a criação das letras
em português, expondo a nova atitude pop e a estética hippie como a mentalidade juvenil dominante
no mundo. Rita Lee expunha sua posição musical contrapondo a problemática da criação cultural de
entretenimento à criação consciente e politizada e o experimentalismo realizado pelos Mutantes.
Querendo colocar sua carreira em uma nova dinâmica, Rita, como Raul Seixas e os tropicalistas,
desejava “trocar de toca”
252
, ser “uma metamorfose ambulante”
253
, ver “tornarem-se os ancestrais, os
pais do rock and roll”
254
. Ela dizia:
“Troco de idéia/ quando você me toca/ sempre tive vontade/ de trocar minha toca/ E quem me vai saber/ que
estou por aí/ tocando pra você se divertir com a minha cara”
255
O rock brasileiro da década de 1970 é uma área onde ainda podem frutificar grandes trabalhos
relacionados ao papel associador da indústria fonográfica em relação aos rebeldes músicos da década e
o respaldo que as gravadoras lhes granjeava. A publicidade alcançada por estes astros e a atitude
contestadora consistiam peças importantes para a compreensão da música pop do período. Entendido
como um dos pilares da indústria da música contemporânea, o pop ainda deve ser foco de estudos que
possam desvendar suas reentrâncias, conhecendo de forma consistente a indústria cultural e seu papel
determinante na formação da cultura de massas contemporânea, a principal esfera do mundo pós-
moderno.
Objetivou-se colocar, de forma sucinta, a afinidade do movimento tropicalista com a realidade
circundante. As passeatas estudantis, no Brasil e no resto do mundo, formaram uma geração de forte
consciência política, crente nas utopias socialistas, libertárias ou liberais. Tais manifestações surgiram
como foco de questionamentos quanto ao desenvolvimento tecnológico propagado pelo modernismo
iluminista, à criação de empregos para uma geração inconformista dotada de formação acadêmica, ao
esgotamento das riquezas naturais e ao processo interminável de progresso e modernização. Este
contexto veio influir na estética criada para representar o “som universal”, uma arte que exprimisse o
momento que o mundo passava com “o Sol
256
nas bancas de revistas/ espaçonaves, guerrilhas e
Cardinales bonitas”, uma estética auto-referencial que abusa do intertexto e da alusão para criar uma
252
Troca toca; do disco “Entradas e Bandeiras” de 1976
253
Metamorfose Ambulante; Raul Seixas, 1973
254
Chuck Berry Fields Forever; Gilberto Gil, 1976. Para melhor compreender o paralelo entre estas canções e esta pesquisa ver: Rennó, Carlos
(org.) Gilberto Gil: Todas as Letras; São Paulo, Companhia das Letras; 1996, pg.179
255
Troca toca; do disco “Entradas e Bandeiras” de 1976
256
Suplemento do Jornal dos Sports carioca, publicado na década de 1960
123
cena irreal e hiperbólica. Uma realidade que ajudasse a inventariar todas as contradições de nosso país
com sua riqueza e originalidade cultural.
Concluindo, esta pesquisa abordou o Tropicalismo através da ótica pós-moderna graças à sua
preocupação com o processo transformador observado em todo o planeta, principalmente a ligação do
mundo do capital e da mercadoria com a cultura. Pensa-se que o Tropicalismo não foi um movimento
solitário na crítica e observação da realidade contemporânea co-existindo com variadas expressões
culturais que também buscavam a compreensão do contexto mundial. Surgindo num momento de
questionamento dos metadiscursos e da ideologia modernista, o Tropicalismo se uniu a variadas
tendências que buscavam imprimir uma nova concepção artística contra a tradição cristalizada nas
instituições modernas. Com um raro tino crítico, os tropicalistas colocaram a cultura do Brasil em
papel de destaque frente à cultura global. Ao utilizarem a linguagem pop, a referência aos
movimentos de contestação globais junto à exposição da tradição folclórica e cultural nacional, os
tropicalistas revolucionaram a música brasileira e recolhem dividendos até os dias atuais quando são
citados por músicos da vanguarda do pop mundial como Kurt Cobain e Sean Lennon. Beck, músico
californiano, chegou a fazer uma canção com o título Tropicália, demonstrando o papel determinante
da estética tropicalista nas criações musicais posteriores. Hoje, quando, de forma geral, questiona-se o
conceito de nacionalidade, o papel original da cultura nacional e seu valor frente a outras culturas,
surgem artistas voltados para o conhecimento do movimento Tropicalista e da cultura brasileira.
Esta dissertação tentou delimitar o caráter transcultural da cultura brasileira que, desde a
colonização, observou a convivência de povos e culturas os mais diversos transformando o Brasil
numa sociedade multi-racial, com matizes culturais que remetem à colonização européia, à imigração
asiática, ao escravismo africano e, obviamente, às várias nações indígenas que aqui habitam. Nosso
país, em especial, e o continente americano, de maneira geral, detiveram a particularidade de
amalgamar culturas diversas na formação de uma cultura original e aberta, advindo daí criações
artísticas riquíssimas e de rara percepção como o movimento Tropicalista.
124
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Golpe de marketing, Caderno Mais; Folha de São Paulo, 10/05/1998 escrito por Contardo Calligaris
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A geração beat chega em livros ao Brasil, JB, 06/02/1984
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O outro João, JB, 04/06/1999
68: O ano radical, JB, Caderno B especial, 03/05/1998
As ilusões do pós-modernismo, Terry Eagleton, Caderno Idéias, JB, 20/06/1998
Tropicologia ou a ciência de uma civilização quente, JB, 22/02/1969
Um delírio tropicalista, JB, 15/10/1968
Tropicalismo! Tropicalismo! Abre as asas sobre nós, JB, 02/03/1968
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Entrevista com Gilberto Gil, Ano IX, Edição 52, 1999
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A revolta das letras no julgamento do século, O Globo, 14/07/1996
O sobrevivente da santíssima trindade beatnik, O Globo, 27/04/1997
Gozos da memória, O Globo, 26/10/1997
Página plena de força rítmica, O Globo, 22/11/1997
A geléia renovada, O Globo, 07/09/1997
Lembranças de maio de 68: 30 anos, O Globo, 09/05/1998
“O legado possível da primavera parisiense”; Paulo Roberto Pires; 09/05/1998
“O cinema é política”; 23/08/2005
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Interdependência ou a frescura instalada e nossa música popular; julho de 1969, n.III
O samba saiu de moda; julho de 1969, n. IV
A música jovem na realidade; agosto de 1969, n. VI
A invasão do paraíso; 28 de agosto de 1969; n. X
Caetano, aquele abraço; 28 de agosto de 1969, n. X
Meu prezado Sigmund; 18 de setembro de 1969, n. XIII
Caetano, meu santo; 18 de setembro de 1969, n. XIII
Grash, bitubitum, troim, grahst, trilex, arechguebim, 2 de outubro de 1969, n. XV
Caetano; 30 de outubro de 1969, n. XIX
Cultura e civilização; 19 de novembro de 1969, n. XXI
Os festivais já encheram o saco; 17 de dezembro de 1969, n. XXV
O Som do Pasquim; Rio de Janeiro, Editora Codecri, 1976
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