Dias de chuva
CAI a chuva lá fora. Plac! plac! ouço-a cantando em goteiras e cornijas, no cimento molhado da
rua e nas vidraças embaçadas do meu quarto. Não sei por que, vendo o borraceiro descer, o
espírito embebe-se-me em doce e longínqua rêverie.
Vejo, através duma tela úmida as paisagens distantes de meu torrão natal, e afaz-se-me a
que ando viajando, como antigamente, por esses sertões, sentindo sob o pala de viagem a água
cirandar forte, cabriolando e verdascando sobre os serros longes, as saraivadas, ou peneirando
grosso, em meio o rendilhado sombrio da floresta por onde vou.
Assim, anos lá vão, cavalgava eu por essas estradas ermas da minha terra remota, um
macho perrengue de aluguer, ou o lépido alazão Dourado, em férias, rumo do sítio. Dia em
meio, casais de araras e bandos de papagaios despregavam dum jenipapeiro qualquer de tapera o
seu vôo balofo, e passavam alto, em gritaria álacre de contentados; cracarás corriam
escrutadores e solertes pelos campos, em surtos rasteiros de carnívoros. O verde das campinas,
das orlas de mato longe, quando ganhava a chapada, tinha deslumbramentos intensos de seiva
robusta e viva.
E – plac! plac! – arremedando como agora a chuva das goteiras, segue o alazão caminho
afora, pelo alagado trilho de argila vermelha, deixando atrás, vincado, o molde de seus cascos
ferrados, chapinhando pelo rego das enxurradas, crinas pendidas, cabeça baixa, a resfolegar...
E o aguaceiro molinhando, desce manso e manso, como se uma grande e fantástica mó
andasse remoendo cristais pelo céu de cinábrio, e sobre a extensão imensamente esmeralda
daqueles desertos rincões. E chupitando a fumaça de minha cigarrilha de palha, sob o pala
quente de viageiro, sigo eu, cabeça baixa, desengonçado na sela, num grande descaso da
borrasca, ruminando planos futuros.
Às vezes, cantavam galos perto, cacarejavam galinhas-d'angola – cocás, – cães latiam dos
currais e porteiras, quando não vinham, esganiçadores e embolados, esfalfar-se até os jarretes do
Dourado, em matinadas hostis. Olhava: era um sítio, um morador, por onde passava ao largo. E
calculando, pensava: Aí ficam já os Peludos, duas léguas ainda a andar. E agitando as rédeas em
abandono no arção, prosseguia, acelerando a andadura do animal.
Dentro em pouco, ficava para trás, escondida nas sombras, no nevoeiro, na folhagem, a
silhueta pardacenta dos telhados. A chuvarada continuava aberta, naquele seu grande choro de
desconforto, ensopando os campos. Encachoeiravam-se longe, ao fundo, nos plainos baixos, em
cujas bordas carreiras viçosas de buritis contornavam capões, as águas marulhentas de regatos
perenes. Gaviões, entanguidos, quedavam-se sonolentos e marasmáticos a olhar do cimo
desnudo dos galhos secos das encruzilhadas. Nas várzeas umentes de jaraguá, um e outro
mestiço zebu passeia pachorrento e indiferente, ao borrifo.
Em torno, silêncio absoluto; muricizeiros abriam-se em flor, nessas primeiras chuvas de
outubro, e, com eles, paineiras esgalgadas e pequizeiros copudos dos cerrados.
Numa baixada, transposto o córrego, o caminho internava-se novamente na mata bruta.
Aí, a rama superior, densamente fechada, afogava, nulificando-a, o ruído da chuva; apenas um
ou outro grosso pingo, escapulindo-se por uma ligeira aberta rasgada no folhedo pelo vento,
tombava – poc! poc! – na camada espessa de folhas podres que atapetavam, abafando os passos,
o carreiro calmoso. E, indiferente e esquecido do mundo, seguia eu cabisbaixo, numa grande
paz e conforto da alma, sob o pala de viagem, ruminando saudades...
Nas beiradas de mato dos barrancos – onde o carreiro se cavava fundo pelo trânsito
continuado – marmeladas-de-cachorro ofereciam os seus negros e brilhantes frutos maduros;
ingazeiros encapotavam-se no alto; saputás polposos, à beira dos córregos, pendiam, num tom
berrante de cores escarlatemente retintas, de frutas sazonadas; e perfumes intensos de baunilha e
flores silvestres evolavam-se da mata densa, ao misterioso e secreto entreabrir das corolas
medrosas... Um grande ramo pendia às vezes, tomando o passo, emperolado de orvalhada; e o
alazão, acaçapando-se, metia a cabeça, atravessando-o a escorrer. E a floresta prosseguia,
interminável e profunda, no silêncio eterno da sua solidão.
E, no silêncio eterno da minha solidão, prosseguia, sob o pala, ruminando saudades...