principalmente por uma intrínseca.
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Realmente, se algum artífice concebeu em ordem uma
construção, ainda que essa construção nunca tenha existido nem venha a existir jamais, seu
pensamento, entretanto, é verdadeiro e é o mesmo, quer a construção exista, quer não. E, ao
contrário, se alguém disser que Pedro, por exemplo, existe, mas ignorando que exista, seu
pensamento é falso a respeito de Pedro, ou, se preferes, não é verdadeiro, ainda que Pedro
exista de fato. Nem este enunciado, que Pedro existe, é verdadeiro, a não ser em relação
àquele que conhece com certeza a existência de Pedro.
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[70] Daí se segue que há nas idéias
algo de real pelo que se distinguem das falsas as verdadeiras, o que, pois, nos resta agora
investigar a fim de ter a melhor norma da verdade (pois dissemos que devemos determinar
nossos pensamentos segundo a norma dada pela idéia verdadeira, e que o método é o
conhecimento reflexivo) e conhecer as propriedades do intelecto; nem se diga que essa
diferença nasce de que o conhecimento verdadeiro consiste em conhecer as coisas por suas
causas primeiras, no que de fato diferiria muito da falsa, como a expliquei acima: pois se diz
conhecimento verdadeiro também aquele que envolve objetivamente a essência de algum
princípio que não tem causa, conhecendo-se por si e em si.
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[71] Portanto, a forma do
conhecimento verdadeiro deve achar-se no próprio conhecimento, sem relação com outros
(conhecimentos), nem conhece o objeto como causa, mas deve depender do próprio poder e
natureza do intelecto. Com efeito, se supusermos que o intelecto percebe algum ente novo,
que nunca existiu, como alguns concebem o intelecto de Deus antes de criar as coisas
(percepção que, por certo, não poderia provir de nenhum objeto), deduzindo legitimamente
de tal percepção outras, todos esses conhecimentos seriam verdadeiros e não determinados
por nenhum objeto exterior, mas dependeriam só do poder e natureza do intelecto. Portanto, o
que constitui a forma do conhecimento verdadeiro há de procurar-se no próprio conhecimento
e deduzir-se da natureza do intelecto. [72] Ora, para que se investigue isso, ponhamos ante os
olhos alguma idéia verdadeira cujo objeto sabemos com toda certeza que depende da força de
nosso pensamento, não tendo nenhum objeto na Natureza, visto que numa idéia assim, como
já dissemos, mais facilmente poderemos investigar o que queremos. Por exemplo, para
formar o conceito de globo, finjo arbitrariamente uma causa, a saber, o semicírculo que gira
ao redor do centro, e dessa rotação como que nasce o globo. Realmente, essa idéia é
verdadeira, e, ainda que saibamos jamais ter assim surgido um globo na Natureza, esta
percepção é, contudo, verdadeira e o modo mais fácil de formar o conceito de globo. Note-se
aqui que essa percepção afirma a rotação do semicírculo, afirmação que seria falsa se não se
juntasse com o conceito de globo ou da causa que determina tal movimento, isto é, (seria
falsa) separadamente, se essa afirmação fosse isolada. De fato, então a mente tenderia apenas
a afirmar o movimento do semicírculo, o que nem estaria contido no conceito de semicírculo,
nem nasceria do conceito da causa que determina o movimento. Por isso, a falsidade só
consiste em afirmarmos algo de alguma coisa não contido no conceito que formamos da
mesma,
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como o movimento ou a imobilidade no semicírculo. Daí se segue que os simples
pensamentos não podem deixar de ser verdadeiros, como a simples idéia de semicírculo, de
movimento, de quantidade, etc.
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Tudo o que estas contêm de afirmação iguala -se ao conceito
delas, nem se estende além, pelo que nos é permitido à vontade, sem nenhum perigo de errar,
formar idéias simples. [73] Resta, portanto, apenas investigar por que poder a nossa mente as
pode formar e até onde se estende esse poder, pois que, achado isso, facilmente veremos o
maior conhecimento a que podemos chegar. É certo, contudo, que este seu poder não se
estende ao infinito, já que, quando afirmamos de alguma coisa algo que não está contido no
conceito que dela formamos, isso indica um defeito de nossa percepção, ou seja, que temos
pensamentos ou idéias como que mutiladas e truncadas. Verificamos, com efeito, que o movi-
mento do semicírculo é falso desde que se encontra isolado na mente, mas é verdadeiro se se
junta ao conceito de globo ou ao conceito de alguma causa que determina esse movimento.
De modo que, se é da natureza do ser pensante, como parece logo à primeira vista, formar