34
A partir do exposto por Valls, a saber, que a música deve ser considerada mais que
reflexo do processo social, mas reflexão ativa sobre esse processo,
93
pode-se depreender o
motivo das proposições adornianas. Adorno elege a arte de vanguarda na medida em que
sua estética materialista se caracteriza pelo argumento de que o valor da música não reside
na sua intenção política, de modo que encontra uma convergência estrutural entre a lógica
musical interna e uma compreensão crítica marxista da realidade da sociedade
contemporânea.
94
Mas ainda que renegasse rebaixar a arte ao engajamento, o que Adorno
espera da arte não deixa de ser a revelação das condições sociais. Para tanto, a arte deveria
representar uma forma de comunicação, mesmo que ela comunique apenas a sua
incomunicabilidade, o que justifica, por exemplo, que Adorno afirme que, “em termos
musicais, o jazz contém erros ortográficos, gramaticais e sintáticos”,
95
quando deveria
compreender que, contra a norma, o jazz representa o desvio.
96
A capacidade de apresentar
as contradições sociais que Adorno atribui a uma determinada música em detrimento de
outra, a alienada, apresenta, no entanto, a sua própria contradição. Afinal, se, por um lado, a
música apresenta as contradições da sociedade, por outro, a relação música-sociedade é a
alienação. A alienação, inclusive, é a categoria fundamental dos seus ensaios dos anos 30, o
problema central diagnosticado na produção, reprodução e recepção da música. A aplicação
de categorias originadas no campo da economia certamente se justifica na medida em que a
música equivale à mercadoria,
97
pois, desde que prevalece o seu valor de troca, a música se
93
VALLS, 2002, p. 102-3.
94
BUCK-MORSS, Susan. Origen de la dialéctica negativa: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin y el
Instituto de Frankfurt, México: Siglo XXI, 1981, p. 63.
95
ADORNO, 1936 apud VALLS, 2002, p. 115.
96
Ao tratar a percepção estética, o formalista russo Vitor Chklovski inaugura preceitos que integram as
preocupações da Escola de Frankfurt. Chklovski atribui as leis do discurso prosaico (linguagem cotidiana) a
um processo de automatização que enfraquece a percepção do objeto. Na medida em que compreende que o
objetivo da arte consiste em devolver a sensação do objeto, Chklovski postula o procedimento da arte como
processo de singularização do objeto que, por meio do estranhamento produzido pela linguagem da arte,
libera-o do automatismo perceptivo. CHKLOVSKI, Victor. A arte como procedimento. In: TOLEDO,
Dionísio de (org.).
Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973.
97
Susan Buck-Morss identifica os sentidos com os quais Adorno ressignifica os conceitos marxistas: “En los
artículos sobre música de Adorno de los años treinta, ‘fuerzas productivas’ no hacía referencia a la industria
musical, ni a la producción de la música como empresa económica, sino a las técnicas de composición y al
material musical tal como se desarrollaba historicamente; y ‘relaciones de producción’ no significaba la
relación entre capitalista y obrero, ni entre director e músico (no hay mención de algo tan mundano como un
sindicato de músicos), sino la relación entre el compositor ( o el director, músico o auditorio) y la propia
música. Los artículos de Adorno se referían a la ‘producción’ musical en el sentido de la interpretación del
músico y el director, y ‘consumo’ en el sentido de la acogida del auditorio”. Cf. BUCK-MORSS, 1981, p. 86.