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conhecimento que se aproxima e que reconhece a sua própria ignorância. Johan
de fato de optar entre o interesse pessoal e o interesse de outrem, existe um substrato de atividade instintiva
primitivamente estabelecido pela natureza, em que o individual e o social estão quase em via de confundir-se.
A célula vive para si e também para o organismo, tanto lhe dando como recebendo vitalidade dele; ela se
sacrificará pelo todo, caso seja necessário; diria sem dúvida então, se fosse dotada de consciência, que é para
o seu próprio bem que assim age. Tal seria talvez também o estado de alta consciência de uma formiga que
refletisse sobre sua conduta. Ela sentiria que sua atividade pairava em algo de intermediário entre o bem da
formiga e o do formigueiro. Ora, a esse instinto fundamental é que relacionamos a obrigação propriamente
dita: ela implica, na origem, um estado de coisas em que o individual e o social não se distinguem um do
outro. Eis por que podemos dizer que a atitude à qual ela corresponde é à de um indivíduo e de uma sociedade
voltados para si mesmos. Individual e social simultaneamente, a alma gira aqui num círculo. Ela é fechada.
“Atitude diversa é a da alma aberta. Que é então que ela permite entrar? Se disséssemos que ela
abrange a humanidade inteira, não iríamos muito longe, não iríamos nem mesmo suficientemente longe, dado
que seu amor se estenderá aos animais, às plantas, à natureza toda. E no entanto, nada do que viesse assim a
ocupá-la bastaria para definir a atitude que ela tomou, porque a rigor ela poderia dispensar tudo isso. Sua
forma não depende de seu conteúdo. Acabamos de preenchê-la; poderíamos, agora, do mesmo modo esvaziá-
la. A caridade subsistiria naquele que a possui, mesmo quando não houvesse outro ser vivo na face da
Terra”(in: BERGSON, Henri. As Duas Fontes da Moral e da Religião, Jorge Zahar, 1978, págs. 31-32).
A dinâmica entre a alma aberta e a alma fechada se refletirá em uma atitude perante o mundo, uma
visão de mundo que se tornará ação: “Entre a alma fechada e a alma aberta há a alma que se abre. Entre a
imobilidade do homem sentado e o movimento do mesmo homem que corre, há o seu aprumo, a atitude que
ele toma quando se levanta. Em suma, entre o estático e o dinâmico observa-se em moral uma transição. Esse
estado intermediário passaria desapercebido se tomássemos, no repouso, o impulso necessário para saltar de
súbito ao movimento. Mas chama a atenção quando nos detemos nele – indício comum de uma insuficiência
de impulso. Digamos a mesma coisa sob forma diferente. Vimos que o puro estático, em moral, seria o infra-
intelectual, e o puro dinâmico, o supra-intelectual. Um foi intencionado pela natureza, o outro é contribuição
do gênio humano. Aquele caracteriza um conjunto de hábitos que correspondem simetricamente, no homem, a
certos instintos do animal; é menos que inteligência. Este é aspiração, intuição e emoção; será decomponível
em idéias que serão notações intelectuais dele e cujo pormenor se irá procurar no infinito; ele contém, pois,
como uma unidade que envolvesse e ultrapassasse uma multiplicidade incapaz de lhe equivaler, toda a
intelectualidade que se queira; é mais que inteligência. Entre os dois, há a própria inteligência. Lá, teria
permanecido a alma humana, se ela tivesse partido de um sem ir até o outro. Ela teria dominado a moral da
alma fechada; não teria ainda atingido ou antes criado a moral da alma fechada. Sua atitude, efeito de um
aprumamento, lhe teria feito o plano da intelectualidade. Em relação ao que acabasse de deixar, essa alma
praticaria a indiferença ou a insensibilidade; estaria na ‘ataraxia’ ou ‘apatia’ dos epicuristas e dos estóicos.
Em relação ao que acha de positivo nela, se seu desligamento do antigo quer ser uma ligação ao novo, sua
vida seria contemplação; ela se harmonizaria com o ideal de Platão e Aristóteles. Seja qual for o aspecto sob o
qual a consideremos, a atitude será reta, altaneira, verdadeiramente digna de admiração e reservada, de resto,
a uma nata. Filosofias surgidas de princípios muito diferentes poderão coincidir nela. A razão disso é que um
caminho apenas leva da ação confinada num círculo à ação que se desenvolve num espaço livre, da repetição
à criação, do infra-intelectual ao supra-intelectual. Quem se detenha entre os dois estará necessariamente na
região da pura contemplação, e de qualquer modo praticará naturalmente esta meia virtude que é o
desprendimento, ao não se deter num e não tendo ido até o outro” (idem, pág. 52-53).
Qualquer que seja a atitude do homem e da sua alma perante o mundo, ela terá um reflexo na
sociedade onde vive: “A sociedade fechada é aquela cujos membros se entrosam mutuamente, indiferente ao
restante dos homens, sempre prontos a atacar ou defender-se, restritos em suma a uma atitude de combate.
Assim é a sociedade humana quando sai das mãos da natureza”, enquanto “ a sociedade aberta é aquela que
abrangesse em princípio a humanidade inteira. Sonhada, vez por outra, por almas de escol, ela realiza, cada
vez, algo dela mesma nas criações, cada uma das quais, por uma transformação mais ou menos profunda do
homem, permite superar dificuldades até então insuperáveis” (ibid, págs. 221-222). Eric Voegelin utiliza esses
conceitos de Bergson na sua análise em A Nova Ciência da Política (UNB, 1992); deve-se ressaltar também
que os termos sociedade aberta e sociedade fechada, utilizados nesta dissertação, não possuem qualquer
relação com o sentido que lhes foi dado por Karl Popper em sua obra A Sociedade Aberta e Seus Inimigos
(Itatiaia, 2002).