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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Marcia Barros Valdívia
A São Paulo glamourosa
Encantos e desencantos (1949-1959)
DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Marcia Barros Valdívia
A São Paulo glamourosa
Encantos e desencantos (1949-1959)
DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do
Título de Doutor em História Social
pela
Universidade Católica de São Paulo, sob
a orientação da Profª. Doutora Yvone
Dias Avelino.
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
_______________________________
_______________________________
_______________________________
_______________________________
_______________________________
Para àquele a quem amo “O amor é paciente…
Tudo sofre, tudo crê,
tudo espera, tudo
suporta. O amor
jamais acaba…”
I Corintos 13
Agradecimentos
Seria impossível realizar este trabalho sem o auxílio de algumas pessoas que
cruzaram a trajetória de elaboração e conclusão desta tese de doutorado. Deixo aqui
registrados os meus agradecimentos.
Em primeiro lugar a Deus que através de seu filho Jesus abençoou e ofereceu todas
as condições necessárias para a realização deste trabalho. Ele também colocou em meu
caminho pessoas maravilhosas que me auxiliaram. Sou muito grata.
A Onairda Barros Valdívia que sempre me apoiou e despertou em mim a
sensibilidade e o gosto musical variado. De Chiquinha Gonzaga a Jota Quest está o seu
repertório cantarolado através dos afazeres domésticos. Obrigada mãe!
A minha “irmã” Fátima Aparecida Bulques Ferreira que foi totalmente responsável
pela digitação e digitalização do trabalho desde o início, teu ser é repleto de coragem,
força, alegria e respeito.
A José Ponzoni Ferreira e família obrigada pelo almoço, pelo café, pelo jantar, pelo
descanso e pelo bate-papo. Em especial a José Carlos Bulques Ferreira pelo computador e
pelo espaço cedido para a digitação das primeiras linhas, ainda quando essa tese era um
tímido projeto.
A Christianne e sua filha Milena pelo socorro presente e o acolhimento em seu lar, o
que permitiu que eu pudesse estudar enquanto a minha casa se tornava em um “barril de
pólvoras”! Obrigada amigas.
Aos meus irmãos na fé em especial a Maura e Ismar, Angélica e Lindberg, Beth e
Maurício agradeço as orações, a compreensão e a amizade porque em todo o tempo me
amaram como amiga e na angústia se fizeram meus irmãos.
Aos meus cães Jade, Tíbor, Vitória, Luma e Amigo, quero deixar registrado que
essas criaturas sabem dar amor e amizade com pureza e sinceridade ímpares. A beleza de
cada um deles é um presente da obra criadora de Deus em minha vida.
A minha orientadora Professora Doutora Yvone Dias Avelino que com dedicação e
paciência foi a bússola desta minha produção. Ela mostrou-me caminhos e me deu
liberdade para criar.
Aos Professores Doutores Marcelo Flório e Antonio Bonzatto pelas preciosas
contribuições na banca de qualificação. Com elas meu trabalho cresceu e aperfeiçoaram-se
rumos mais sólidos da pesquisa.
A todos os professores do Programa de Estudo Pós-Graduados em História da
PUC/SP que me ofereceram valiosas interlocuções e oportunidades. Em especial a
Professora Doutora Maria Antonieta Antonacci pelas aulas valiosas e deliciosas.
Ao CNPq pelo financiamento da pesquisa o que me permitiu uma dedicação integral
aos estudos. Isso foi fundamental!
A Betinha, nossa meiga e querida secretária do Programa, obrigada pela
compreensão, paciência e amizade.
A Maria Cristina Telles do Amaral pelo empréstimo dos livros sobre psiquiatria,
que colaborou para que eu me apossasse deles nesses quatro anos e também por me
proporcionar novos horizontes.
Aos colegas de classe em especial a Paula, Antonio Luís, Vitor, Bartô e Rosana.
Ao Danilo de Oliveira Lopes e a Maria Aparecida Blaz, porque entre todos são
especiais para mim.
A Ivana de Almeida pelo auxílio carinhoso e competente no abstract.
A Julieta Eleonora Faria de Mello Vianna pelo empréstimo dos exemplares de O
Cruzeiro.
A todos aqueles que indiretamente estiveram presentes nessa trajetória como o Sr.
Laércio, a Dª. Jacy e Irene entre outros.
E finalmente a todos que me ensinaram a viver e continuam ensinando, seja pelo
amor, pela dor ou pelo sonho.
Resumo
O presente trabalho A São Paulo glamourosa. Encantos e desencantos (1949-1959)
tem como objetivo compreender uma década do século XX que ficou conhecida como
“Anos Dourados”.
Esse clichê trouxe toda uma simbologia que esteve envolvida pela modernização e
pela industrialização das principais metrópoles como a cidade de São Paulo.
Entre os encantos visualizados nas propagandas dos produtos destinados ao
mercado consumidor, estava a bebida alcoólica.
As temáticas que envolvem os anúncios das bebidas entre outros evocam a
maximização da felicidade.
Por tudo isso se fez necessário questionar a década dourada.
Assim foi possível desvelar a outra face dos dourados anos, onde a desilusão e o
fracasso ficaram latentes, e a felicidade foi infeliz como cantou a boêmia Maysa.
Nesse universo de encantos e desencantos os discursos médicos vieram legitimar a
necessidade do tratamento e da vigilância mas nunca a cura daqueles que foram
considerados inadaptados e doentes.
Por fim a medicina veio como uma “oficina de reparos” e os pacientes vieram ora
como dependentes de vícios festivos e por muitas vezes ilícitos, ora como dependentes de
vícios medicalizados por isso lícitos.
Dessa forma a diferença entre o remédio e o veneno esteve apenas na fórmula e na
dose.
Palavra – chave: cidade – propaganda – canção – droga – boemia – medicalização
Abstract
The present paper A São Paulo glamourosa. Encantos e desencantos (1949-1959)
by Márcia Barros Valdívia , aims to understand a decade of 20
th
century that became
known as “ Golden Years “ .
This cliché brought a simbology that was surrounded by the modernization and
industrialization from main metropolis as the city of São Paulo .
Among the charms displayed in the advertisement of the products destined to the
consumer market, it was the alcoholic beverage . The thematic that envolves the beverage
ads , among others evoke the maximization of the happiness.
Because all of this it was necessary questioning the golden decade.
Thus it was possible unveiling the other golden years face where the where the
dissapointment and the failure remained dormant, and the happiness was unhappy as sang
by the bohemian Maysa.
In this universe of enchantments and disenchantments the doctors’ speeches came to
legitimize the necessity of treatment and vigilance but never the cure of those who were
considered inadequate and patients .
Finally the medicine came as a “ workshop for repairs “ and the pacients came
sometimes as dependents of festive vices and by often illegal, sometimes as dependents of
prescribed vices, therefore lawful.
This way the difference between the medicine and the poison is the prescription and
the dose .
Keywords : city – advertisement – song – drug – bohemia - medicalization
SUMÁRIO
Considerações Iniciais ________________________________________ 01
Capítulo I – São Paulo: A cidade que seduz!_______________________14
1.1
O pós-guerra. Dourados Anos?_____________________________ 16
1.2 – Sinta esse prazer! ________________________________________37
1.3 – “Gente fina, elegante e sincera” procura… ___________________63
Capítulo II – A noite inebriante: fascínios e decepções ______________91
2.1 – Um café, um cigarro e um trago ____________________________93
2.2 – “Felicidade… deves ser bem infeliz”
___________________________116
2.3 – Ardores e vícios do coração________________________________129
Capítulo III – Tristeza, glamour e alcoolização ___________________142
3.1 – A tristeza e o desamor: “Maysa confessa: Eu canto meu estado
d’alma ____________________________________________________143
3.2 – O brilho da infelicidade___________________________________166
3.3 – O álcool e o alcoolismo: O que dizem os médicos?_____________170
Considerações finais _________________________________________185
Fontes_____________________________________________________188
Bibliografia_________________________________________________192
1
Considerações Iniciais
“A verdadeira imagem do
passado perpassa veloz. O
passado só se deixa fixar como
imagem que relampeja irreversivelmente
no momento em que é reconhecido…
Articular historicamente o
passado não significa conhece-lo
como ele de fato foi. Significa
apropriar-se de uma reminiscência, tal
como ela relampeja no momento
de perigo”.
(Walter Benjamin)
Os embalos, os sons e as letras de músicas conjuntamente com a atração visual para
o que é belo e glamouroso, foram os fatores predominantes na sedução para o trabalho com
canções e imagens que trazem o clima dos “Anos Dourados”.
A primeira impressão da época ainda na minha adolescência foi formada de uma
mistura de ingenuidade e “nostalgia”, a ponto de sentir saudades de um tempo não vivido,
esses elementos somados as conversas com as pessoas que nele viveram, as imagens das
fotografias, dos filmes, as crônicas, as revistas e os jornais da época trouxeram imagens das
roupas, dos bailes, e dos romances com finais felizes.
Outros elementos importantes para visualização dos anos 50 foram as novelas e os
seriados que retrataram a década como as mini-séries apresentadas pela Rede Globo “Anos
Dourados” exibida em 1986 e “Hilda Furacão” exibida em 1998, como também a novela
“Esplendor” apresentada pela emissora em 1999, esses folhetins trouxeram registros sobre a
época evocando a beleza, o romantismo, a ternura, a moral, a elegância e o glamour.
É difícil pensar a década sem deixar se envolver e seduzir pelos padrões culturais
pré estabelecidos à ela dentro e fora do Brasil.
Os meios de comunicação se encarregaram de divulgar a imagem do período cheio
de brilho e sedução e até hoje o reproduzem como “Anos Dourados”.
2
No caso do Brasil isso se deu porque foi fixado a imagem de um país que havia
recebido a influência moderna/modernizadora e portanto “promissora” dos EUA que
apadrinhava construções e obras de infra-estrutura, modernizava os hábitos e os costumes,
Hollywood se encarregava de espalhar beleza e sedução nas áreas de influência norte-
americana através dos meios de comunicação, dessa forma os EUA expressava o ideal valor
dos “Anos de Ouro”.
Isso foi possível porque os EUA foi primeira potência pós Segunda Guerra
Mundial, possuía saldo credor dos empréstimos feitos a determinados países durante a
guerra e teve seu território praticamente intacto das invasões militares.
O estilo de vida norte-americano foi divulgado nas áreas de influência dos EUA ou
seja nos países de dependência financeira, um dos motivos para essa prática de ação
sedutora através dos meios de comunicação foram as idéias socialistas nos primeiros anos
da Guerra Fria, que segundo o domínio capitalista precisavam ser combatidas.
“Todo glamour que envolve a década de 50 a qual ficou conhecida como “Anos Dourados”,
dourados porque teria sido um tempo pleno de felicidade, otimismo, romantismo e
inocência a época dos concursos de miss e rainha, dos carros importados, dos grandes
bailes, das orquestras, das stars de hollywood
1
”.
É praticamente incalculável os efeitos psicossociais que a modernização norte-
americana causou na vida de milhares de pessoas, ainda nos anos 20 e 30, aperfeiçoando
sua sedução nos anos 40 e 50.
O automóvel, o cinema, e o rádio simbolizaram o modo de vida norte-americano e
essa simbologia atingiu a Europa, a Ásia e os outros países da América. Assim foi
disseminado o sonho americano, que com suas imagens e promessas, seduziu o coração das
principais metrópoles ocidentais embora não seja particularidade do período analisado todo
esse “turbilhão” de objetos, valores, discursos e significados expostos até aqui e que
envolvem a relação da modernidade, do moderno e da modernização.
Primeiro porque o conceito de modernidade para Berman, é um tipo de experiência
carregada de sensibilidade que é diferenciada e marcada no tempo e no espaço,
compartilhada pelos seres humanos até hoje. Esse tipo de experiência cheia de: novidade,
1
AVANCINI, Maria M. Picarelli. Nas tramas da fama. As estrelas de rádio em sua época áurea. Brasil anos
40 e 50. UNICAMP. 1996. p.57. Sobre esse assunto também confira HOBSBAWN, Eric. A Era dos
Extremos. O breve século XX. 1914-1991.São Paulo. Companhia das Letras, que dedicou um capítulo ao
período intitulado: Os Anos Dourados. pp.253 a 265.
3
poder, transformação, ambição, luta, contradição, esperança, ansiedade, angústia, entre
outros elementos é que faz o homem moderno enveredar-se por esse caminho à cinco
séculos.
O homem moderno (aquele que vive e experimenta a modernidade) precisa saber
lidar com as transformações e incertezas, ou seja, com a modernização.
“O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes descobertas
nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar que ocupamos
nele; a industrialização da produção, que transforma conhecimento cientifico em tecnologia,
cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera
novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal explosão demográfica,
que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando as pelos
caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico
crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu
desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados
indivíduos e sociedades
2
”.
A citação de Berman se faz pertinente para compreender uma parte do século que o
autor Eric Hobsbawn chamou de “Era dos extremos. O breve século XX”.
Através das reflexões de Hobsbawn, foi possível refletir sobre a própria imagem
construída sobre o século XX e todo o seu poder, como também sobre o processo do
imperialismo tão predador iniciado no século XIX e suas conseqüências, entre elas as
guerras mundiais e questionar a memória da “Era de Ouro” no pós Segunda Guerra
Mundial, em contraste com a “Era da Catástrofe” do período entre as guerras mundiais.
Quando o assunto abordado é o século XX, como também meados e finais do século
XIX, é quase impossível não se deparar com o fenômeno da indústria/industrialização que
por sua vez está atrelado a modernidade/modernização e que tem laços estreitos com as
questões que envolvem o imperialismo e as guerras que a partir de então não tiveram mais
limites.
“… a guerra moderna envolve todos os cidadãos e mobiliza a maioria… antes do século
XX, as guerras envolvendo toda a sociedade eram excepcionais
3
”.
Em tempos modernos a produção, o consumo e a morte passaram a ser em grandes
quantidades.
2
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo.
Companhia das Letras. 1988.pp.16-17.
3
HOBSBAWN. Eric. A Era dos Extremos. O breve século XX. 1914-1991. São Paulo Companhia das Letras.
1995.p.51.
4
“O breve século XX”, também tem como característica entre outras a sociedade de
massa (produto das multidões) e uma cultura também industrializada que foi cada vez mais
se desenvolvendo no decorrer dos anos.
Nas cidades industrializadas ficou visível a relação
industrialização/modernização/aglomeração que formaram várias paisagens de consumo já
visualizadas no início do século.
Até chegar na década de 50 muita coisa foi se modificando, pelo próprio
desenvolvimento, mas uma constatação se faz pertinente até hoje: a necessidade que as
sociedades industrializadas tem de consumir.
O fenômeno do consumo é abrangente e minucioso, e precisa de uma análise
cuidadosa, pois está diretamente ligado a questão da cultura de massa e da indústria
cultural. Com esses conceitos é possível analisar a questão do American way of life no
Brasil e a construção do clichê dos “Anos Dourados”.
De enorme visibilidade no período a indústria cultural e a cultura de massa
constituem um dos elementos que demarcaram as sociedades ocidentais durante o século
XX.
O conceito de indústria cultural nasceu com Horkheimer e Adorno
4
em 1947 e o que
contextualizou a elaboração desse termo foi a democracia nos EUA e o nazismo na
Alemanha, que para os autores, esses países apesar de sistemas políticos antagônicos,
tinham como forma de dominação e poder a manipulação de uma sociedade potencialmente
massiva. A análise desses autores visava corroborar o caráter industrial da cultura de massa
e consequentemente seus vínculos com as estruturas de poder econômico e político.
Dessa forma a escola de Frankfurt trouxe uma indústria que se pretendeu cultural
para desempenhar cada vez mais suas funções de dominação ideológica, todos os seus
produtos serviriam para alienação
5
das massas.
Acontece que numa sociedade onde a indústria se tornou uma grande potência, a
produção dos elementos culturais (livros, revistas jornais, etc.) também passaram a ser
4
Sobre esse assunto cf. HORKHEIMER e ADORNO in BARBERO, Jesus Martim. Dos meios as mediações,
comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro. UFRJ. 1997.
5
Segundo ARANHA, Maria Lucia de Arruda “no sentido jurídico perde-se a posse de um bem, na loucura
perde-se a ração e o louco perde o controle de si, na idolatria perde-se a autonomia, na concepção de Rosseau
o homem comum perde a compreensão do mundo em que vive… Etimologicamente a palavra alienação vem
do latim alienare alienus que significa pertencente a um outro, alienar portanto é tornar-se alheio. In
Filosofando. Introdução a Filosofia. São Paulo. Moderna. 1991. pp.59-62
5
produzidos em grandes quantidades e foram industrializados. Embasado em Edgar Morin o
termo cultura industrial ao invés de indústria cultural foi eleito para este trabalho.
Porque o conceito cultura industrial aflora o caráter industrializado de um gênero
cultural correspondente a um determinado estágio social da civilização que está preocupado
com o caráter consumista. É exatamente a abordagem do presente estudo que visa
compreender a sociedade de consumo e as questões que envolvem a subjetividade dos
indivíduos, muito mais do que trabalhar com o conceito de alienação que propõe Adorno e
os demais filósofos da escola de Frankfurt, onde suas e preocupações estavam em
denunciar o papel “perverso” desempenhado pelos meios de comunicação através da
indústria cultural.
Para esses estudiosos a indústria cultural é responsável por descaracterizar a cultura
erudita, simplificando-a ao máximo para que ela se torne acessível, ao mesmo tempo é
destruidora da cultura, induzindo as pessoas a introjetarem e aspirarem valores e modos de
vida que não são seus. Desse modo a indústria cultural situa-se fora do campo da verdadeira
cultura popular ou erudita, e está a serviço da dominação, impossibilitando a consciência
crítica das pessoas.
Mesmo não sendo descartável a reflexão dos frankifurtianos, é preferível não
generalizar sobre os efeitos nocivos e manipuladores da comunicação. É importante
esclarecer que há necessidade de contextualizar e compreender as influências das
expressões culturais, ditas de massa, tanto no que se refere a outros tipos de comunicação
que também atuam sobre os indivíduos que recebem ou recusam a partir de seus próprios
referenciais.
Dessa forma Edgar Morin destaca-se porque ele entende todo esse processo como
uma modalidade cultural muito própria do funcionamento das sociedades industrializadas
do século XX.
No começo do século XX, o poder industrial estendeu-se por todo o globo terrestre…
cinqüenta anos mais tarde um prodigioso sistema nervoso se constituiu no grande corpo
planetário: as palavras e imagens saíam aos borbotões dos teletipos, das rotativas, das
películas, das fitas magnéticas das antenas de rádio e de televisão; tudo que roda, navega,
voa, transporta jornais e revistas; não há uma molécula no ar que não vibre com as
mensagens que um aparelho ou um gesto tornam logo audíveis e visíveis… Opera-se esse
progresso interrupto da técnica, não mais unicamente votado a organização exterior, mas
penetrando no domínio interior do homem e aí derramando mercadorias culturais. Não há
6
dúvida de que já o livro, o jornal eram mercadorias, mas a cultura e a vida privada nunca
haviam entrado a tal ponto no circuito comercial e industrial
6
.
É importante colocar que Morin empregou o termo cultura industrial para designar
as características comuns da produção massiva de valores expressos através do cinema, do
rádio, da televisão, dos jornais, das revistas entre outros, seja em sistemas de economia
capitalista ou socialista. Mas o autor corrobora com o termo cultura de massa as
características da cultura industrial nos países capitalistas. É embasado nesse autor e suas
reflexões sobre a industrialização da cultura que esse trabalho está embasado conforme a
citação:
“As invenções técnicas foram necessárias para que a cultura industrial se tornasse possível:
o cinematógrafo e o telégrafo sem fio principalmente. Essas técnicas foram utilizadas com
freqüente surpresa de seus inventores: o cinematográfico aparelho destinado a registrar
movimento foi absorvido pelo espetáculo, o sonho e o lazer… O vento que assim se arrasta
em direção à cultura e o vento do lucro capitalista… Não há dúvida que sem o impulso
prodigioso do espírito capitalista essas invenções não teriam conhecido um impulso tão
radical e maciçamente orientando. Contudo, uma vez dado esse impulso o movimento
ultrapassa o capitalismo propriamente dito: nos começos do Estado Soviético Lenine e
Trotsky reconheceram a importância social do cinema
7
.
É de suma importância frisar que o funcionamento da cultura industrial (ou de
massa como entende Morin) se estabelece numa espécie de diálogo entre o sistema de
produção cultural e as necessidades daqueles que são os consumidores que podem ser
universais, mas não são idênticas e nem fixas, mesmo que sejam elas criadas e ou
divulgadas pelos discursos hegemônicos, dessa forma fica evidente uma questão
importante: a questão da subjetividade e da experiência própria de cada época.
Os elementos que remetem ao clima dos “Anos Dourados” foram construídos pela
cultura industrial/de massa
8
e divulgados pelos meios de comunicação, assim fixou-se o
clichê para fornecer um retrato histórico e sedutor da época. Segundo Meneguello:
6
MORIN, Edgar. Cultura de Massa no Século XX. O espírito do tempo. Rio de Janeiro. Forense, 1997.p.13.
7
MORIN, Edgar.op.cit.p.22.
8
Segundo Morin “A cultura de massa se desenvolveu em suas características originais a partir da década de
30, primeiramente nos EUA. Ela constituiu para si uma temática coerente depois da Segunda Guerra Mundial
no conjunto dos países ocidentais hipótese geral que se segue deve ser inevitavelmente colocada, essa
temática corresponde aos desenvolvimentos da sociedade americana, em primeiro lugar, e das sociedades
ocidentais em segundo… O termo cultura de massa como os termos sociedade industrial ou sociedade de
massa (mass-society) do qual ele é o equivalente cultural privilegia excessivamente um dos núcleos da vida
social, as sociedades modernas podem ser consideradas não só indústrias, capitalista… individualistas. A
noção de massa é a priori demasiadamente limitada … Cultura de massa, isto é produzida segundo as normas
maciças da fabricação industrial propagada pelas técnicas de difusão maciça, destinando-se a uma massa
7
(…) foi quando a comunicação de massa teve sua impulsão, firmando-se enquanto
constituidora de subjetividades e disseminando suas temáticas. No Brasil pós-guerra há a
explosão das salas de cinema, de suas matinês, de seus ambientes majestosos. A mídia
participa desse movimento de se voltar para o futuro e para o exterior, da autoconfiança
desses anos, constituindo a referência que sustenta a possibilidade da construção do clichê
9
.
A atração despertada por esse clichê entre outros fatores trouxe inspiração para
investigar o período que traz consigo expressões de sociabilidades carregadas de
simbologias
10
glamourosas e sedutoras. Outra questão que foi considerável para trabalhar
com esse recorte temporal foi a sutil lacuna encontrada na historiografia brasileira a
respeito dos anos de 1949 à 1959, a maioria dos trabalhos remete-se à períodos anteriores,
por exemplo, as décadas de 20 e ou 30, ou à períodos posteriores entre eles a década de 60.
Por tudo isso se fez necessário questionar a década dourada, entre os encantos
visualizados nas propagandas e imagens de época estava o desencanto que foi encontrado
adentro dos bastidores do fabuloso e espetacular modo de vida, onde também as canções
que narram a traição, a solidão, o desespero, a angústia e o desamor fizeram sucesso.
Então algo de contraditório acontecia naquele tempo e uma indagação surgiu, como
foi possível em uma época que emanou felicidade plena e que ficou conhecida como “Anos
Dourados” encontrar muitas pessoas com suas vidas marcadas pelo desamor? Porque
viveram à noite bebendo e chorando e cantando a falta de amor?
Assim foi possível desconstruir e refletir sobre aqueles anos através de três capítulos
que compõe a tese.
O primeiro capítulo São Paulo: A cidade que seduz, tem como objetivo elucidar a
sedução que envolveu as propagandas dos mais variados produtos a serem consumidos em
social, isto é, um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos a quem e além das estruturas internas
de sociedade (classes, família, etc.)” cf. MORIN, Edgar. Cultura de Massas no século XX. op.cit.14 e 89.
9
MENEGUELLO, Cristina. Poeira de estrelas: O cinema hollywoodiano na mídia brasileira das décadas de
40 e 50. Campinas, 1992.p.61.
10
Compreende-se por símbolo objetos, imagens, personagens que trazem consigo representações muito fortes
para o coletivo social passando a interferir, mudar ou criar comportamentos. Segundo Mircea Elíade in
Imagens e Símbolos. Ensaio sobre o Simbolismo mágico religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991. pp. 8-9
afirma “o pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do poeta ou do desequilíbrio: ela é
consubstancial ao ser humano; precede a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela certos aspectos da
realidade os mais profundos que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e
os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma
função: revelar as mais secretas modalidades do ser. Por isso, seu estudo nos permite melhor conhecer o
homem, “o homem simplesmente”, aquele que ainda não se compôs com as condições da história. Cada ser
histórico traz em si uma grande parte da humanidade anterior à História”. Os símbolos são referenciais
substitutivos e representativos exemplo: o álcool relaciona-se a alegria , o sol, a vida, a água, a purificação,
entre outros exemplos no campo das representações.
8
especial a bebida alcoólica. Os anúncios analisados foram retirados da revista O Cruzeiro, a
escolha para o trabalho com as propagandas da referida revista foi porque esse periódico
teve expressiva visibilidade no período estudado.
É importante ressaltar que a sedução foi encontrada em várias simbologias da
cultura industrial/de massa que circulavam pela cidade de São Paulo e a tornaram
envolvente e atraente como metrópole.
As reflexões sobre este capítulo foram desenvolvidas mediante as inquietações a
respeito dos estímulos culturais emitidos pelas propagandas da época, os autores Edgar
Morin, Raymond Willians, Ivan Illich, Antony Giddens, entre outros, ajudaram na
compreensão sobre esses estímulos nos quais os receptores sociais passaram a ser
consumidores de valores encontrados em objetos, bens materiais e substâncias, que
propunham o prazer imediato, tornando-os adictos, ou seja, escravos de desejos.
Na década de 50, nas metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, os estímulos ao
consumo foram embasados no American Way of life, muito bem expressos nas propagandas
da revista eleita como fonte, como também em outros meios de comunicação que ajudaram
a solidificar o clichê dos “Anos Dourados”.
A política econômica e social norte-americana baseava-se no pleno emprego e na
redução da desigualdade, na segurança social e no progresso tecnológico.
O bem-estar se tornou valor de honra pois toda a sedução estava embasada no
discurso de que nenhum homem faminto, doente e desempregado iria gastar seu pouco
dinheiro em outra coisa que não fosse alimento e remédio, por isso, esse tipo de pessoa não
interessava ao sistema capitalista, era necessário criar a imagem de cidadãos bem
alimentados, sadios e empregados para que fossem consumidores de belas moradias, belos
vestuários, belos utensílios, enfim para terem o poder da compra e da escolha para que a
dinâmica da oferta e da procura caminhasse em ritmo reto e rápido, como a velocidade da
luz, irradiando o seu brilho.
Portanto a sociedade especificamente nesses anos que sucederam o pós-guerra,
procurou fugir do desencantamento do mundo e satisfazer os anseios que foram divulgados,
explicitados e recriados dentro da cultura industrial/de massa que privilegiou o glamour.
Através das temáticas repetitivas que auxiliaram na fixação dos valores, foram
construídos os mitos que retrabalharam o mal-estar experimentado no pós-guerra, dessa
forma ficou evidente que carecia-se de beleza, saúde, juventude, alegria, vida, amizade e
9
amor, esses elementos conjuntamente com outros tentavam proporcionar felicidade e
prazer para que fosse possível suportar a realidade.
As imagens selecionadas e inclusas neste capítulo tem no primeiro momento a
função de demonstrar o quanto são atraentes e sedutoras e como que a sensualidade esteve
ligada a bebida alcoólica, não e somente no universo da revista O Cruzeiro.
No segundo momento da apresentação das propagandas foi feita análise do
significado da bebida alcoólica inserida nas normatizações sociais, não foi utilizado
diretamente para a análise o recurso das percepções das cores que compõe cada uma, isso
foi feito no terceiro momento de análise onde a maioria das imagens expressa situações
sociais afetivas com a presença do álcool.
É notório nesse grupo de imagens a predominância das cores vermelho que traduz a
energia, a coragem, a alegria e a extroversão, o amarelo que traduz a iluminação, o
conforto, a esperança, a euforia e a espontaneidade, e o azul que traduz o afeto, a paz, a
serenidade, a confiança, a amizade e o amor. O trabalho com as cores foi embasado nos
autores modesto Farina e Luciano Guimarães entre outros
11
quando necessário.
Modesto Farina e Luciano Guimarães que através de seus estudos investigativos
sobre a simbologia das cores nas sociedades ocidentais modernas, exploram a capacidade
de utilização e compreensão do significado das cores que trazem informações possíveis de
serem interpretadas através da percepção visual. Os autores utilizaram da psicodinâmica
das cores e da semiótica da cultura como base teórica de seus trabalhos.
Através da maximização da felicidade, surgiu a necessidade de desvelar as tramas e
compreender os dramas que a aparência glamourosa da própria época não conseguiu
satisfazer e com isso veio a tona a vida daqueles que apesar da época expressar uma
radiante alegria, estiveram tristes e inadaptados, entre eles a cantora e compositora Maysa
que através de sua vida e carreira artística conseguiu dizer com toda a convicção que a
“felicidade deveria ser bem infeliz”.
A escolha pela referida cantora deu-se porque ainda são raros estudos acadêmicos a
seu respeito, como também porque sua vida pessoal e artística esteve envolvida com a
cidade de São Paulo e pela admiração pessoal de sua bela figura.
11
Sobre esse assunto cf. FARINA, Modesto. Psicodinâmica das cores em comunicação. São Paulo. Blucher.
1982. Como também GUIMARÃES, Luciano. A cor como informação. São Paulo. Annablume. 2000.
10
Isso posto, segue o segundo capítulo A noite inebriante: fascínios e decepções que
tem como principal objetivo compreender o significado das drogas em especial o álcool que
foi utilizado como lenitivo contra as sensações de insegurança, medo, ansiedade, fadiga e
tristeza.
A vida e a carreira da cantora e compositora Maysa esteve envolvida com o uso e o
abuso da bebida alcoólica nos espaços boêmios paulistanos, como entre outros.
A preocupação deste capítulo está no comprometimento em divulgar o mal-estar
que também foi sentido no período e a relação com a dependência de lenitivos,
especificamente o do álcool, Maysa teve sua vida marcada pelo desamor e pelo vício.
Através da análise das narrativas das canções com o auxilio dos autores Alcir
Lenharo, Bia Borges, Maria Izilda Santos de Matos, Paulo Eduardo Lopes, Ernest
Schurmam e Luis Tatit entre outros citados na bibliografia, foi feita a análise das letras de
canções compostas e ou cantadas por Maysa.
As narrativas cancioneiras representam muitas “estórias” envolvidas com o
desgosto de um amor fracassado, elas foram referenciais para a condição emocional de
muitas pessoas inclusive da própria cantora que desde a adolescência já escrevia esse tipo
de repertório e freqüentava a boemia.
No espaço boêmio paulistano freqüentado por Maysa entre outros artistas e pessoas
foi encontrado a solidão, a busca, o encontro, o desencanto e a fuga encontrada nas drogas
entre elas o álcool, como também a música, a dança, entre outras características.
Vista pelos padrões morais da época como o submundo do perigo, da doença, do
vício e do desvio, apesar deste trabalho focar a “boca do luxo”, a boemia era muito mais
que isso, nela estavam os sujeitos que denunciaram em suas formas de sociabilidade a outra
face dos “Anos Dourados”.
Inclusive a relação das pessoas com o álcool na boemia foi totalmente diferente
daquela que foi encontrada nas propagandas, onde as pessoas aparecem usando álcool para
confraternizar, comemorar e brindar, estão juntas e felizes. No caso boêmio abusaram do
álcool porque estavam sozinhas e infelizes.
As canções emitem a imagem do amor nos anos 50 como sinônimo de sofrimento
envolvido como a dependência de relações afetivas mal resolvidas e ou idealizadas, com
isso ficou visível uma sociedade cheia de contradições onde foi divulgada a maximização
11
da felicidade, nas propagandas, e por outro lado foi cultivado o sofrimento e a dependência
do outro conforme o sucesso que fizeram as canções de “fossa” e “dor-de-cotovelo”.
Com o auxilio dos autores Antony Giddens, Guy Durandin, Ivan Illich, entre outros,
foi verificado que os relacionamentos apresentados de forma idealizada no período,
produziram a co-dependência e a fixação entre as pessoas que se tornavam inadaptadas e
carregadas de apegos a bens materiais e ou afetivos, e como elas tiveram a necessidade de
suprir suas carências que foram se tornando cada vez maiores e por muitas vezes utilizaram
do álcool entre outras drogas como amenizador do mal-estar.
Maysa foi um exemplo desse tipo de pessoa, as canções e também as imagens de
domínio público demonstram um modo muito particular de ser infeliz. È bom esclarecer
que as imagens utilizadas nesse capítulo são apenas para fins ilustrativos da vida e da
carreira da cantora.
Com isso chega-se ao terceiro capítulo. Tristeza, glamour e alcoolização que tem
como foco de análise alguns aspectos da vida e da carreira da cantora e compositora Maysa.
A tristeza, a sedução e a beleza entre outras características formaram o arquétipo de
uma vida mergulhada no vício, no desamor, no glamour e na sedução. Esses elementos
estão presentes nas narrativas das canções como nas imagens de domínio público.
As fontes de análise foram bastante significativas porque expõem os sentimentos de
Maysa como também de muitos de seus fãs.
Com o auxílio analítico para imagem de Boris Kossoy, Maria do Pilar Araújo,
Roland Barthes e Ana Maria da Costa como também Modesto Farina e Luciano Guimarães
e para análise das letras de canções Synval Beltrão Júnior, Affonso Romero de Santanna,
Valter Kraushe, Paulo Eduardo Lopes, Maria Izilda Santos de Matos, Ernest Schurman,
Luís Tatit entre outros autores devidamente citados na bibliografia, foi realizada a leitura
das fontes.
O capítulo analisa a trajetória de uma moça que se casou aos dezessete anos dentro
dos padrões morais pré-estabelecidos a década, mas que em pouco tempo já demonstrava
insatisfações pessoais visíveis nas canções de seu primeiro LP, “Convite para ouvir
Maysa”, como também nas imagens que “ilustraram” sua carreira, as cores, os gestos das
poses, o olhar, entre outros elementos como as reportagens sobre Maysa, trazem uma
mulher que foi mal amada e infeliz, apesar de sedutora e bela.
12
Maysa personificou em si mesma o referencial da solidão para um período em que
houve a dificuldade de se estabelecer relações afetivas e que também foi carregado de
representações de relações idealizadas, as quais entraram em choque por muitas vezes com
os comportamentos contrários a idealização.
Para a referida análise foram muitos significativos os autores Ivan Illich, Antony
Giddens entre outros que permitiram compreender aqueles que foram chamados de
inadaptados e doentes pelos discursos hegemônicos.
Com Maysa foi possível trazer a tona modos de vida de seres solitários e
insatisfeitos, freqüentadores da boemia e mais do que isso, observar que o álcool entre
outras drogas, serviram para a evasão da realidade, foram e ainda são lenitivos para
anestesiar os mais variados tipos de mal-estar entre eles, o mal privilegiado nesse estudo: o
desamor.
Além disso ficou evidente a relação do ser humano com inúmeras substâncias. Em
diversas temporalidades históricas percebe-se que essa relação esteve carregada de
conflitos, proibições, fascínios e seduções.
Na década de 50 o álcool teve a classificação de droga lícita, seu uso moderado foi
permitido e incentivado mas o abuso condenado, aqueles que abusaram da substância por
muitas vezes acabaram em um leito de hospital como na imagem de Maysa que abre o
referido capítulo.
Nos hospitais, clínicas e consultórios médicos, os discursos dos profissionais da
época foram unânimes em dizer que o abuso do álcool era uma doença que devia ser
controlada, normatizada, tratada, medicada, avaliada, combatida, mas nunca curada.
Inclusive a cantora e compositora Maysa foi alvo de classificações e tratamentos
médicos.
O que ficou claro nesse caso e de tantas outras pessoas foi a substituição do uso do
álcool pelo uso do remédio. Naquela sociedade o indivíduo estava preso em uma rede de
busca pelo prazer permitido, ora pela drogadição através do uso moderado de uma droga
psicotrópica lícita, vinculada a simbologias propagandísticas sedutoras, ora pela drogadição
através da farmacodependência através do uso dos remédios receitados pelos médicos.
O autor Ivan Illich foi extremamente pertinente ao auxiliar essa reflexão que chega
a conclusão que:
13
O uso e ou abuso do álcool e de outras substâncias antes de ser uma questão médica,
biológica ou jurídica é um problema cultural.
Com base no referido autor ficou notório que os discursos hegemônicos que
atuaram naquela sociedade criaram indivíduos imaturos e dependentes de remédios ou
drogas, incapazes de enfrentarem o sofrimento e amadurecerem com as adversidades
vividas.
Isso não quer dizer que foram produzidos seres alienados, muito pelo contrário, se
assim fosse não haveria a necessidade da fixação da maximização da felicidade contra o
sofrimento.
Os discursos hegemônicos da cultura industrializada/ de massa e dos médicos aqui
analisados foram muito mais sedutores do que alienantes. Porque a sedução permite ao
seduzido interagir e responder sobre seus efeitos.
A resposta foi dada através dos boêmios, dos alcoólatras, dos loucos, dos infratores,
dos inadaptados, presentes nas cidades grandes ou pequenas, nos bares públicos ou
privados, na “boca do luxo ou do lixo”, nas prisões do corpo e da alma, como expressou
Maysa através da tristeza, do glamour e da alcoolização.
14
Capítulo I – São Paulo: A cidade que seduz!
Imagem 1. Vale do Anhangabaú 1958. Fonte: Coleção Fábio de Mello in São Paulo Metrópole em Transito.
Percursos Urbanos e Culturais. São Paulo. 2004.p.129.
15
“Eu vejo um novo começo de era, de
gente fina, elegante e sincera (…).
Eu vejo a vida mais clara e farta,
repleta de toda satisfação”.
(Tempos Modernos/Lulu Santos)
Na década de 50 a cidade de São Paulo se transformava de forma ousada sobre o
Planalto Paulista.
O centro da cidade que anteriormente foi formado na região mais próxima do Vale
do Anhangabaú, nas imediações da Rua Direita, da Praça Ramos de Azevedo e do Largo
São Francisco, se expandia para o outro lado do Viaduto do Chá, cheio de novidade e
modernização.
A cidade foi marcada pela industrialização, pelas avenidas, pelos bondes, pelos
automóveis e também pela reurbanização, um fator considerável porque acentuou a
formação das periferias, das favelas e dos cortiços, enfim a metropolização se consolidava
entre o construir e o demolir assim foi feita a expansão urbana.
A década que tem como significado a cor dourada foi bem representada pela São
Paulo iluminada e elegante, onde as mulheres saiam de casa com vestidos acinturados,
sapatos de salto alto, luvas, jóias e ou semi-jóias, os homens de terno, gravata e sapatos
lustrados, ambos podiam complementar o visual com o chapéu.
A “Paulicéia engomada” ainda está presente nas crônicas, revistas, jornais e
fotografias, como também nos livros sobre o período e nas memórias nostálgicas de quem
viveu na época.
Não faltaram vitrines como da famosa loja Mappin Store localizada na Rua Xavier
de Toledo, as casas de chá, cafés e leiterias eram bonitas e aconchegantes, a Leiteria
Campo Belo localizada na Rua São Bento, tinha charme, a Confeitaria Vienense na Rua
Barão de Itapetininga tinha até apresentação de orquestra, havia também os restaurantes
como o Spadoni e o Gigetto na Avenida Ipiranga, isso tudo para aqueles que apreciavam os
passeios diurnos, vespertinos e também noturnos.
Já para os freqüentadores das altas horas da noite e das madrugadas, os chamados
boêmios, havia aproximadamente vinte e sete bares e ou boates para desfrutarem, o Paribar
na Praça Dom José Gaspar, o Brahma Bar, restaurante e boate, localizado na esquina da
16
Avenida Ipiranga com a Avenida São João, mais o Nick Bar na Rua Major Diogo foram
exemplos dos mais famosos, curtidos e renomados lugares entre outros.
A cidade contava apenas com três espaços de teatro: o Boa Vista na Rua Boa Vista,
o Santana na Rua 24 de Maio e o Municipal na Praça Ramos de Azevedo. Em compensação
havia inúmeras salas de exibição de filmes, os famosos cinemas. Numa parte da cidade
entre as Avenidas São João e Ipiranga havia a Cinelândia, ali localizava-se os cines Metro e
Marrocos onde era obrigatório o uso de vestes elegantes, como o caso do Cine Marrocos, o
homem que não estivesse de gravata era barrado na porta.
Próximo as Ruas 7de Abril, Bráulio Gomes, Marconi e 24 de Maio estavam as
redações dos jornais Diário Associados, (redatores da revista O Cruzeiro), o Estado de São
Paulo e Folha da Manhã, os estúdios das rádios Difusora, Tupi, Excelsior e Record, como
também as agências de propagandas e as editoras.
Nas revistas em especial na O Cruzeiro, as propagandas publicitárias dos produtos
que também circulavam pela cidade através dos bondes e outdoors, irradiavam a atmosfera
de dias felizes depois do término da Segunda Guerra Mundial e divulgavam valores de uma
nova vida à todos que queriam de alguma forma esquecer o conflito mundial, celebrar a paz
e também àqueles que desejavam aliviar seus conflitos internos.
No imaginário, tempos de uma nova era repleta de tanta satisfação construiu o
clichê dos “Anos Dourados”, seu brilho foi expresso pelas principais cidades entre elas a
sedutora São Paulo do pós-guerra.
1.1 O pós-guerra. Dourados Anos?
Naqueles anos, ideais de beleza, charme, sofisticação e sensualidade
12
, ao lado de
uma moral burguesa representada pelo casamento, pela família, pela virgindade feminina,
pelo trabalho, entre outros elementos, simbolizaram uma sociedade saudável, moderna e
progressista.
Esse modelo foi muito difundido no Brasil pela infiltração ideológica norte-
americana da cultura industrial/de massa, um bom exemplo foi o cinema hollywoodiano das
décadas de 40 e 50, bastante significativo para a visualização desse período conforme
12
A sensualidade está relacionada àquilo que é agradável e prazeroso aos sentidos humanos como: o olfato, o
paladar, a visão e a audição. Sobre esse assunto cf.: MIQUELIN, Maria Espíndola. A linguagem da sedução
na publicidade do cigarro. São Paulo. PUC. 1996. p. 3.
17
analisou o historiador Antonio Pedro Tota. Para o autor, este veículo de comunicação foi
uma das maiores inovações norte-americanas na área do entretenimento e o maior
divulgador do American way of life (modo americano de vida). Segundo o autor:
“O componente ideológico mais importante do americanismo é o progressivismo (…)
Associado ao racionalismo, a idéia de um mundo em abundância e capacidade criativa do
homem americano. Essa dimensão do americanismo enaltece o homem enérgico e livre,
capaz de transformar o mundo natural, graças a isso o mercado poderia oferecer em
abundância vários produtos úteis e atraentes, criando uma nova forma de prazer, o prazer de
consumir”
13
.
O período estudado tem como ponto de partida as relações íntimas da economia
brasileira com o capital norte-americano ainda no período da Segunda Guerra Mundial.
Alguns dos objetivos políticos e econômicos da grande potência durante e após o conflito,
a nível nacional e internacional, foi manter o pleno emprego, conter o avanço da ideologia
socialista e modernizar as economias consideradas atrasadas ou em declínio, agremiando
para si áreas de influência.
Para justificar suas ações intervencionistas, os EUA criaram o discurso ideário do
bem-estar social. No Brasil durante a guerra em 1941, após a criação da comissão
executiva do Plano Siderúrgico Nacional, iniciou-se em Volta Redonda, a construção da
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), sendo financiada pela Export-Import Bank dos
EUA conjuntamente com a participação de capitais nacionais, privados e estatais. Também
operou-se a construção da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) de exploração de
minérios, com a finalidade principal de aumentar a renda das exportações e obter recursos
para novos empreendimentos.
O impulso à industrialização brasileira estava associado a discursos hegemônicos
que divulgavam entre outros valores a segurança nacional e o desenvolvimento econômico,
sustentados por um Estado providente que também espalhava sua sedução paternalista
através de comícios, panfletos, jornais, entre outros meios divulgadores sobretudo o rádio,
que funcionou ao lado do cinema, como um veículo integrado ao contexto.
Foi de suma importância o papel das emissoras de rádios como circuítos culturais
formadores e modificadores do imaginário social durante e após a guerra, além de outras
13
TOTA, Antonio Pedro na obra O imperialismo sedutor. A Americanização do Brasil na época da Segunda
Guerra São Paulo. Companhia das Letras. 2000. p.19. O autor faz referencia em sua obra sobre a sedução
ideológica do capitalismo e sua influência na sociedade através dos meios de comunicação de massa.
18
utilidades, o rádio utilizou e difundiu padrões de comportamentos inspirados na ideologia
populista que visava a idéia de progresso dominante e o crescente domínio da natureza
pelo homem. Segundo esses discursos foi considerável a divulgação desses valores como
medidas para o avanço da humanidade, para que isso ocorresse era necessário demonstrar
boas relações com o progresso e com a modernização, através de obras gigantescas
inauguradas no Brasil e justificadas pelos discursos do poder.
“Ferro, carvão e petróleo (…) são os esteios da emancipação econômica de qualquer país.
Desde alguns anos, sem descontinuidade ou esmorecimento, vem o governo estudando a
forma de instalar no país a grande siderurgia (…) O problema básico da nossa economia
estará, em breve, sob novo signo. O país poderá arcar com as responsabilidades de uma
vida industrial autônoma, promovendo a suas urgentes necessidades de defesa e
aparelhamento”
14
.
Esses, entre outros fatores, fizeram com que o Brasil entrasse na Segunda Guerra
Mundial (1939 – 1945) a favor dos interesses político-ideológicos norte-americanos contra
o nazi-fascismo, ainda que nos anos 40, a política interna estadonovista de Vargas
possuísse inspiração ideológica no totalitarismo.
“A boa vontade americana era, indubitavelmente acrescida pelo conhecimento de que
Vargas havia negociado ativamente com a Alemanha Nazista, a ajuda para a montagem de
uma indústria siderúrgica (…) O governo americano já se havia comprometido com a ajuda
ao desenvolvimento econômico do Brasil em 1940. Colocando à disposição empréstimos à
longo prazo do Export-Import Bank, em troca de suas bases no Brasil. O primeiro grande
compromisso foi de um empréstimo de 20 milhões de dólares para a nova Cia Siderúrgica
Nacional. Esse apoio ao investimento público na indústria básica, em um país
subdesenvolvido, refletia uma mescla de motivos, do ponto de vista norte-americano. Por
um lado de dar substância econômica a política da Boa Vizinhança. Ao mesmo tempo,
representava uma tentativa de realizar antigas ambições americanas de maior penetração
comercial na América Latina”
15
.
Com o fim da guerra e a “derrota” dos regimes totalitários, a postura que Vargas
mantinha até então, com características voltadas ao autoritarismo, individualismo e
simpatizante do totalitarismo, perdeu algumas de suas referências, já que as forças-armadas
14
VARGAS, Getúlio in IANNI, Otávio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1932 – 1970). Rio de
Janeiro. Civilização Brasileira. 1977. pp. 62-63.
15
SKIDMORE, Thomas. Brasil de Getúlio a Castelo. Paz e Terra. 1982. pp.60 – 68. Pressionado pelo
governo norte-americano o governo brasileiro rompeu as relações de amizade política econômica com os
paises do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) em agosto de 1942, quando os alemães afundaram vários navios
brasileiros. Mas somente em 1944 que os militares brasileiros foram lutar na Europa sob o comando do
Marechal Mascaranhas de Morais.
19
voltaram da guerra com o espírito ideológico “democrático” e posicionado contra o Estado
Novo.
Setores ligados ao exército e grupos de oposições, por exemplo, o grupo que
representou a opinião dos intelectuais e artistas democratas no Congresso de Escritores,
realizado em São Paulo, pediram o fim do Estado Novo e a “volta da democracia”. Assim,
Vargas foi deposto, sendo eleito um parlamento com poderes constituintes. Ocorreu a
candidatura de dois militares: o general Eurico Gaspar Dutra, ministro da guerra durante o
Estado Novo, representante da situação pela coligação PSD-PTB (Partido Social
Democrático, Partido Trabalhista Brasileiro) e o brigadeiro Eduardo Gomes, representante
da oposição pela UDN (União Democrática Nacional).
Com a vitória de Dutra (1946 – 1951), o Brasil continuou no período intitulado a da
Democracia Populista no Brasil (1945 – 1964), trazendo a herança populista
16
dos anos
anteriores.
O recorte temporal desse trabalho perpassa o período da primeira década da Guerra
Fria entre os anos de 1949 à 1959, iniciando-se com o governo Dutra (1946 – 1951)
passando pelo último governo Vargas (1951 – 1954) e finalizando com o primeiro período
do governo de Juscelino Kubitschek (1956 – 1961).
Nos anos 50, o processo de industrialização brasileiro com ênfase na idéia de
substituir a importação de produtos industrializados pela criação de indústrias nacionais e
na modernização, foi apoiado pelo capital externo. Por exemplo: o plano SALTE durante o
governo Dutra, que foi caracterizado por uma administração onde o Estado na concepção
do novo governo devia interferir nas áreas sociais fundamentais como: na saúde, na
alimentação, no transporte, na energia, desses setores elaborou-se o nome do plano formado
pelas iniciais daquelas áreas de atuação. Entre outras obras esse plano proporcionou a
pavimentação da rodovia Rio de Janeiro – São Paulo que levou o nome do presidente,
Rodovia Eurico Gaspar Dutra.
Na política externa, Dutra estreitou laços com os EUA, aliando-se contra a União
Soviética decretando a ilegalidade do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
16
Os governos populistas caracterizam-se por atrair as massas populares a participaram do processo político.
Essa participação em geral com grande visibilidade nos meios de comunicação, na verdade é submetida à
direção governamental e as reivindicações populares nem sempre são atendidas. O governo conta no entanto
com o apoio do povo para eleger ou reeleger-se conduzindo e manipulando as ambições nacionais, o
populismo substituiu a ordem oligárquica da República Velha sem dar aos trabalhadores a autonomia política.
Sobre esse assunto cf. SKIDMORE. Op.cit.
20
O mandato do General Dutra encerrou-se em 1951, foi substituído na presidência
por Getúlio Vargas que venceu as eleições realizadas em 1950.
“Ao assumir a presidência em janeiro de 1951, Getúlio se deparava com um Brasil muito
diferente do país que havia governado como presidente autoritário de 1937 a 1945. A
sociedade brasileira apresentava uma estrutura de classes mais nitidamente diferenciada do
que a do tempo do Estado Novo, especialmente nos primeiros anos. O duplo processo de
industrialização e urbanização se ampliara e fortalecera em três setores: os industriais, a
classe operária urbana e a classe média urbana (…) Durante o princípio da década de 50,
contudo, a questão do desenvolvimento econômico veio gradativamente a ocupar a atenção
dos políticos que, cedo, viram que as implicações políticas do estabelecimento das diretrizes
econômicas não poderão ser ignoradas por muito tempo (…)”
17
.
No final dos anos 40 e início dos anos 50, a industrialização do país embora
dependente do capital externo, era um fato irreversível. A expansão capitalista e urbana
aumentava a importância das classes sociais “emergentes”, eram elas: a burguesia industrial
e financeira, as camadas médias ligadas à burocracia estatal, às empresas privadas e ao
setor de serviços urbanos, como também o operariado, em sua maioria concentrado na
região Sudeste.
A construção da Petrobrás durante o último governo Vargas foi um dado que
marcou sua administração, preocupado com o desenvolvimento industrial do país que até
então era carente de infra-estrutura energética, aprovou a criação da Petrobrás, empresa
estatal que detinha o monopólio de exploração e refino de petróleo, além disso Vargas criou
o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), afim de incentivar a indústria
nacional. O nacionalismo, o intervencionismo e o paternalismo características varguistas
18
foram presentes naquele momento.
Com a morte de Getulio Vargas, o vice presidente Café Filho assumiu o poder. No
ano seguinte houve eleições para presidência e venceu Juscelino Kubitschek de Oliveira.
O projeto futurista de Juscelino Kubitschek trouxe o slogan: “50 anos em 5”,
investindo na indústria automobilística e na construção de Brasília. Seu Plano de Metas
priorizou os setores energéticos, industriais, educacionais, alimentícios e de transportes,
com isso favoreceu a entrada do capitalismo internacional no Brasil.
17
Idem. Ibdem. pp. 111. 112.
18
O nacionalismo varguista (1951-1954) tinha assim duas facetas: Era, por um lado, uma estratégia de
política econômica que não rompia inteiramente com o capital internacional e imperialista. Por outro lado,
tratava-se de uma ideologia elaborada e imposta pelos grupos que controlavam o Estado e que procuravam
associar os interesses burgueses com os interesses do “povo brasileiro”, como se todos fossem passiveis de
homogeneização. Sobre o governo Vargas entre 1951-1954. Cf. SKIDMORE. Idem.
21
O Estado burguês cada vez mais tomava forma e se estabilizava gradativamente nos
anos seguintes.
Aos poucos, grandes empresas monopolistas internacionais transferiram para o
Brasil parte de sua tecnologia, já ultrapassada nas matrizes. Os investimentos
concentravam-se principalmente nas indústrias de eletrodomésticos, aparelhos eletrônicos,
máquinas, equipamentos, comunicações e, especialmente, na indústria automobilística de
enorme visibilidade no governo JK. Volkswagen (investimento alemão), Simca
(investimento francês), Willys Overland (investimento norte-americano) são exemplos,
eram elas representantes da expansão imperialista das potências que trouxeram ao mercado
brasileiro seus produtos sedutores. O fato do nacionalismo varguista dos anos anteriores ter
apresentado divisões em seu interior, preparou o terreno para a condução do país por JK e
seus projetos.
“A conseqüência principal da crise do governo de Getúlio foi assim a adesão progressiva de
grande parte da burguesia local ao capital estrangeiro. Ou seja: a aceitação da política
desenvolvimentista, que implicava novas formas de dependência: dependência tecnológica,
pois as empresas aqui instaladas continuavam importando equipamentos e máquinas, e
financeira decorrente das remessas de lucros feitas por essas empresas, dos gastos com
importação de máquinas e equipamentos e dos empréstimos e juros a serem pagos. A
dependência econômica acentuava também a dependência política, passando os
representantes do capital externo a exercer influência crescente na política interna do
país”
19
.
As estratégias desenvolvimentistas apoiadas no capital externo tiveram enorme
visibilidade nos projetos de JK, com a abertura do mercado interno para a entrada de
diversas indústrias e com o barateamento do fornecimento de matérias-primas, iniciava-se o
seu projeto de levar o Brasil a 50 anos de progresso em 5 anos de governo.
“Prenunciado nos discursos do candidato, o clima reinante nos primeiros anos de governo
era de entusiasmo e confiança ilimitada na “aspiração social nova”. Para alcançá-la dizia JK
– todo sacrifício deve ser “encarado como uma espécie de redenção”. A industrialização era
apresentada, tal e qual nos anos 30, como chave de emancipação de todos e a conquista do
bem-estar geral. Brasília, a nova capital cuja construção JK audaciosamente iniciou,
representava o sinal “dos novos tempos”, apontando para “um novo Brasil” “uma nova
maneira de ser”
20
.
19
ALENCAR, Francisco. História da Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro. editora Ao livro técnico.
1981.p.292.
20
SKIDMORE, Thomas. Op. cit. p. 207.
22
Desenvolveu-se aos poucos durante esses três mandatos presidenciais uma
mentalidade progressista que passou a formar os discursos hegemônicos, contribuindo para
que o clichê “Anos Dourados” se solidificasse como imagem de um tempo repleto de
maravilhas.
Mas o ciclo de crescimento e desenvolvimento do Brasil na década de 50, também
teve seu outro lado, a economia brasileira marcada pela dependência do capital externo,
baseada em padrões tecnológicos do capitalismo europeu e norte-americano que
“sustentou” os novos ramos industriais (automóveis, eletrodomésticos, têxteis, sintéticos,
etc.), absorviam limitadamente a mão de obra disponível e acentuavam o caráter
concentracionista e internacionalizado da economia brasileira. Os benefícios se estendiam
para burguesia, para as camadas médias e altas (engenheiros, analistas, técnicos), já os
“soldados do desenvolvimento” como eram chamados os operários, participavam de forma
desigual das maravilhas sedutoras do capitalismo.
Dessa forma o processo do desenvolvimento econômico e social brasileiro não se
realizou de maneira uniforme. Os discursos hegemônicos da época corroboraram a
necessidade de auto-afirmação que os países chamados de subdesenvolvidos tiveram em
relação aos seus próprios processos de modernização. Porque ocorria na prática uma
defasagem entre o projeto modernizador e as condições sócios-materiais para concretiza-lo
efetivamente, devido ao processo histórico dos países que tiveram um passado colonial
como o caso do Brasil.
O que existiu de fato foi a elaboração de necessidades individuais que despertaram
desejos e alimentaram sonhos que foram acalentados pelos sujeitos sociais, mas inspirados
nos referenciais estrangeiros, especificamente no pós Segunda Guerra Mundial.
Além da dependência econômica exposta até aqui, o Brasil pareceu “esforçado”
para ser semelhante ao mundo “civilizado” de europeus e norte-americanos, revelando o
empenho de se esculpir um retrato do povo brasileiro com princípios e valores trazidos de
fora.
È bastante significativo ressaltar que o conceito de modernidade, moderno e
modernização foram produzidos primeiramente nas sociedades européias
21
.
21
O autor Marshall Berman faz uma divisão histórica a respeito do conceito de modernidade (que para ele é
um conjunto de experiências), dividindo a primeira fase do inicio do século XVI até o final do século XVIII, a
segunda fase tem início nas ondas revolucionárias de 1790 com a revolução Francesa e a terceira e última fase
inicia-se no século XX. Ao longo das fases desenvolveu-se os conceitos de moderno e modernização. Sobre
23
Esse fenômeno também tem relação com aquilo que Renato Ortiz chamou de “A
moderna tradição brasileira”, ou seja, uma sociedade que se transformou, mas que ainda
cultivava a lembrança de uma modernidade nacional com referenciais do imaginário
estrangeiro
22
.
“Desde o pós-guerra, as grandes cidades mundiais passaram por processos de redefinição
das funções urbanas de readequação da malha ocupacional do espaço visível na tendência a
desconstrução de bairros étnicos na reestrutura das relações inter e intrametropolitanas (…)
As facilidades oferecidas pelos governos brasileiros para a entrada de capital estrangeiro
aceleraram o processo exigindo apenas que os interessados se associassem aos brasileiros
ou comprassem suas empresas (…) As conseqüências avassaladoras da desnacionalização
do parque industrial eram em parte compensadas pela introdução de métodos
modernos(…)”
23
.
A ambição ao moderno e à modernidade foi aos poucos impondo os seus valores e
significados inspirados nos moldes do american dreans (sonho americano), que foi iniciado
nos tempos do entre guerras nos EUA. As indústrias cresciam de forma veloz sejam elas de
bens de consumo duráveis, automóveis, eletrodomésticos etc, quanto as de entretenimento
rádio, cinema, jornais, revistas entre outros.
Sobre a experiência da modernidade segundo Marshall Berman:
“(…) ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de
luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no
qual, como disse Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”
24
.
A industrialização e a modernização trouxeram consigo algumas características que
marcaram esses dois fenômenos como únicos, uma delas foi a concentração de pessoas nas
cidades, o fenômeno da multidão presente até hoje.
“Se nos adiantarmos cerca de um século, para tentar identificar os timbres e ritmos
peculiares da modernidade do século XIX, a primeira coisa que observaremos será a nova
paisagem, altamente desenvolvida, diferenciada e dinâmica, na qual tem lugar a experiência
moderna. Trata-se uma paisagem de engenhos a vapor, fábricas automatizadas, ferrovias,
amplas novas zonas industriais; prolíficas cidades que cresceram do dia para a noite, quase
esse assunto cf. BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. A aventura da modernidade.
São Paulo. Companhia das Letras. 1986. pp.16-17.
22
Sobre esse assunto cf. Ortiz, Renato. A moderna tradição brasileira: Cultura Brasileira e indústria
cultural. São Paulo. Brasiliense. 1994.
23
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura São Paulo no meio do século XX. Edusc.
São Paulo. 2001. p. 55.
24
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar.op.cit.p.15. O autor trás para a introdução
desta obra o título: Modernidade: Ontem, hoje e amanhã. Realizando uma riquíssima reflexão sobre
diferentes temas e inovações das fases da modernidade e modernização, incluindo as questões políticas,
tecnológicas, filosóficas e cientificas e suas conseqüências sociais em cada período.
24
sempre com aterradoras conseqüência para o ser humano; jornais diários, telégrafos,
telefones e outros instrumentos de media, que se comunicam em escala cada vez maior;
Estados nacionais cada vez mais fortes e conglomerados multinacionais de capital;
movimentos sociais de massa, que lutam contra essas modernizações de cima para baixo,
contando só com seus próprios meios de modernização de baixo para cima; um mercado
mundial que a tudo abarca, em crescente expansão, capaz de um estarrecedor desperdício e
devastação, capaz de tudo exceto solidez e estabilidade”
25
.
A ordem capitalista seguia um esquema onde a indústria localizada de preferência
na cidade, atraía pessoas que em sua maioria trabalhava na fábrica, explorava pessoas e
matérias primas, produzia produtos para serem consumidos em grande escala e gerava
competição sem limites, e aglomerava pessoas no espaço urbano.
Diante do American way of life (modo americano de vida), muito bem expresso nos
meios de comunicação foi apresentado à sociedade brasileira a necessidade do bem-estar,
expresso no consumismo de bens materiais, já que as indústrias estavam produzindo
novidades como: eletrodomésticos, automóveis, imóveis, roupas e acessórios que
marcavam a época e delineavam estilos. As pessoas foram seduzidas a ter bens materiais
para que pudessem aceitar o convite para entrar na sociedade de consumo, desde que
tivessem o passaporte principal: “o capital”.
Outra questão apresentada foi a preocupação com a reorganização do espaço
urbano, o embelezamento, o saneamento e a normatização passaram a representar a “ordem
e o progresso”, para isso, fazia-se necessária a presença de profissionais que através de seus
estudos científicos e racionais colocassem em prática esses ideais.
São Paulo como metrópole foi o grande foco iluminador, caminhando a largos
passos para a industrialização ao lado do Rio de Janeiro, capital do país. Ambas as cidades
davam a visibilidade do desenvolvimento, do progresso, da ciência, da tecnologia, da
abundância, da racionalidade, da eficiência, enfim do estado ideal de bem-estar.
“Na década de 50, alguns imaginavam até que estaríamos assistindo ao nascimento de uma
nova civilização nos trópicos que combinava a incorporação das conquistas materiais do
capitalismo”
26
.
Dessa forma, o estilo de vida norte-americano oferecia a esperança e os sonhos de
consumo, verificados principalmente nas metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro
27
,
25
BERMAN,op.cit.p.19.
26
CARDOSO, de Mello João M. NOVAES, Fernando A. “Capitalismo Tardio e Socialidade Moderna” in
NOVAES, A. SCHUARCZ, Lilia Mortiz (org). A história da vida privada no Brasil. Contrastes da
intimidade Contemporânea. São Paulo Cia das Letras. 1998.p. 56.
25
onde foi visível a euforia consumista, otimista e progressista daqueles anos. Em São Paulo,
no final dos anos 40:
“Caminhar por esta cidade nos últimos tempos, é estar constantemente em meio a
construções. A pacata Av. Ipiranga está se tornando um corredor de prédios. O chamado
edifício Esther está sendo afogado pelos vizinhos e o suntuoso edifício Itália começa a
cobrir a visibilidade de boa parte da área. Os prédios baixos vão sendo encobertos pela
altura dos novos, a ajardinada Praça da República parece um vaso em meio a tantas
edificações, e a Escola da Praça soa como lembrança de tempos remotos. (…) cinemas,
bares e restaurantes, edifícios comerciais e escritórios, lojas finas e especializadas passariam
a receber um número cada vez mais de habitantes que têm suas atividades ligadas ao centro
velho e novo”
28
.
A cidade de São Paulo nos anos 50 acompanhou muito bem o ritmo do progresso,
incorporando em si mesma o orgulho de transformar-se em modelo de metrópole. São
Paulo submeteu-se às modificações consideradas necessárias para que as diretrizes dos
planos políticos e econômicos de reurbanização se concretizassem.
Os locais descritos por Gama, conforme apontados, como cinemas, bares,
restaurantes, edifícios comerciais, escritórios, lojas finas, entre outros, passaram a
movimentar ainda mais a cidade, criando rumos de circulação de pessoas produzindo
alguns estilos de sociabilidades que marcaram a década. Por exemplo, o hábito de ir ao
cinema, passear nas ruas vendo vitrines, freqüentar bares e restaurantes, teatros e bailes, ou
“simplesmente” desfilar com o último modelo de automóvel, saído diretamente da indústria
automobilística incentivada pelo governo e mantida com o capital externo.
Para compreender o que se passou culturalmente no período é de fundamental
importância pensar a experiência e os modos de percepção de um dado período histórico
como propõe Walter Benjamin.
“A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio mas
um tempo saturado de agoras”
29
.
27
Por questões metodológicas e de acordo com o trabalho de orientação, esta pesquisa vai enfocar a cidade de
São Paulo e de acordo com as necessidades da reflexão, será abordado as interlocuções com o Rio de Janeiro
entre os anos de 1949 à 1959.
28
GAMA, Lucia Helena. Nos bares da vida. Produção Cultural e Sociabilidade 1940-1950. São Paulo.
SENAC. p. 213. A autora se refere ao centro Velho destacando as regiões da Rua Direita, Largo São
Francisco, Praça Ramos, Anhangabaú e imediações, já o centro novo corresponde a Praça da República, Rua
Barão de Itapetininga, Av. Ipiranga, Rua Dom José Gaspar, Rua Maria Antônia, Rua 7 de abril e imediações.
29
BENJAMIN, Walter. Magia Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo. Brasiliense. 1987.p.229.
26
Como a realidade para esse autor é algo descontínuo e móvel, permite pensar
historicamente as relações das transformações o universo modernizado e os diversos modos
de percepções, sensibilidades e experiências sociais através dos vestígios deixados no
tempo como imagens (fotografia, cinema, propaganda), sons (músicas e canções), poemas e
crônicas. Entre eles, um elemento chamou a atenção, a simbologia sensual em torno das
bebidas alcoólicas.
A preocupação deste trabalho está exatamente em perceber os modos de vivências
e experiências que marcaram a época através do consumo alcoólico o que não envolveu
simplesmente uma relação direta das pessoas com o álcool e sim uma complexa rede de
valores emitidos pelos discursos hegemônicos que facilitaram a relação do ser humano com
a droga.
O primeiro contato com esse tipo de consumo foi com imagens cinematográficas
hollywoodianas, já que o cinema foi bastante expressivo e freqüentado, não somente na
cidade de São Paulo.
“Mas se havia uma prática cultural mais forte ainda que a dança, a música e o esporte era
sem dúvida o cinema, que era uma soma disso tudo e muito mais (…) O cinema
hollywoodiano é uma arte complexa, um somatório de técnicas revolucionárias de
comunicação visual, como o close-up, os efeitos emocionais dos recursos de edição,
cadência, ritmo, iluminação, som, música, expressão facial, corporal, os encantos da
juventude, os movimentos coreográficos, atléticos, a maquiagem, os penteados, as roupas e
fantasias, as peças e figuras de estilo e essa força de poder tão esmagador quanto misterioso
que é o sex-appeal, tudo isso ampliado na tela colossal, irradiando seu hipnótico brilho
prateado no escuro do teatro (…) Nunca um único sistema cultural teve tanto impacto e
exerceu efeito tão profundo na mudança do comportamento e dos padrões de gosto e
consumo de populações por todo o mundo, como o cinema de Hollywood no seu apogeu”
30
.
Muitas pessoas da geração dos anos 40 à 60 já assistiram à cenas de filmes que
traduzem o clima sedutor em torno do cigarro e do álcool, contracenadas por atores da
estirpe de Rita Hayworth, Bete Davis, Joan Crawford, Elizabeth Taylor, Ava Gardner,
Marylin Monroe, Humphrey Bogart, Cary Grant, Frank Sinatra, entre outros,
personificados nos “bares da vida” hollywoodianos ao som de um piano embalando
canções.
30
SEVCENKO, Nicolau A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio in NOVAES, Fernando A.
História da vida privada no Brasil. Cia das letras. 1998. col. 3 pp. 597 – 602.
27
Imagem 2. Fonte: Montagem feita através do trabalho da autora: MENEGUELLO, Cristina. Poeira de
estrelas: O cinema hollywoodiano na mídia brasileira nas décadas de 40 e 50. Campinas, 1992.
28
Existe um forte apelo sensual em torno da bebida alcoólica a partir dos modelos
hollywoodianos. Essa sensualidade também é visível nas propagandas utilizadas como
fonte, onde o álcool aparece como sinônimo de prazer, alegria e causador de bem-estar.
O trabalho foi feito com as propagandas retiradas da revista O Cruzeiro
31
, porque
esse periódico foi de expressiva visibilidade no período estudado (1949 à 1959).
Para encontrar as propagandas de bebidas alcoólicas, alguns exemplares da revista
foram pesquisados e foi visualizado uma rica variedade de assuntos sobre o período, a nível
nacional e internacional, são fascinantes as suas páginas coloridas, as suas seções e suas
colunas
32
, a revista está carregada de sensualidade. Foi atraente, bonita e interessante ao
público leitor começando pelas suas capas, conforme demonstradas nas páginas seguintes,
levando ao prazer pelo desejo de ver, o qual Freud chamou de escopofilia
33
.
No primeiro momento da apresentação das imagens feita a seguir, ocorre a
preocupação de ilustrar como elas foram aparecendo já nas capas das revistas e foram
convites não somente ao trabalho de pesquisa analítica direcionado as propagandas das
bebidas alcoólicas, mas também a apreciação de outros detalhes imagéticos que foram
31
A revista O Cruzeiro foi fundada em 1928 por Assis Chateaubriand sem “O” inicial que lhe daria renome.
Sobre esse assunto cf. MORAIS, Fernando.Chatô - O Rei do Brasil. São Paulo. Companhia das Letras. 1994.
pp. 187-188. Nessa pesquisa é utilizado o conceito de propaganda, embora este esteja vinculado à
publicidade, mas é importante esclarecer as distinções e semelhanças entre os dois termos: A publicidade é
uma decorrência do conceito de propaganda, mas a publicidade se destina a tornar uma determinada empresa
conhecida e vender o seu produto no mercado, (termo que aparece por volta de 1925). Já a propaganda se
refere a técnicas utilizadas para promover ações individuais ou coletivas a adesão de um dado sistema
ideológico político social ou econômico, portanto divulgando a idéia. Edgar Souza Santos na dissertação de
mestrado: Elegância e Saúde “as representações da prática de fumar na propaganda” 1910 a 1940 PUC SP
2001. p. 24 a 26, discute e esclarece a questão “... o governo brasileiro desejando que o povo beba mais leite,
por motivos de saúde, manda fixar cartazes nas ruas e faz em rádio e televisão anúncios estimulando o
público “Beba mais leite”. Isto é propaganda” Ressalta-se que esta poderia se transformar em publicidade se
após a palavra leite fosse acrescentado uma determinada marca, estimulando seu consumo, concluí-se que a
publicidade se destina especificamente ao valor comercial e a propaganda a divulgação de um hábito ou idéia,
por isso optou-se pelo conceito de propaganda, pois este trabalho está preocupado com a divulgação da idéia
de consumir a bebida alcoólica independente da marca.
32
O índice da revista está organizado com as seguintes seções: Artigos, Reportagens, Seções, Humorismo,
Conto e Romance, Cinema, Figurinos, Assuntos Femininos. Algumas dessas seções eram subdivididas em
colunas, por exemplo: a seção sobre assunto feminino contava, por exemplo, com as colunas: Lar – Doce –
Lar, Da Mulher para a Mulher, Elegância E Beleza, entre outras. A seção sobre cinema contava com duas
colunas: Cinelândia e Cine Revista, a seção sobre música contava com duas colunas: Música e Música
popular. As colunas que mais chamaram a atenção foram as quais foram citadas e que possibilitaram
visualizar os aspectos sociais de época.
33
“Os teóricos dos filmes... na tentativa de compreender o apelo universal dos filmes de Hollywood,
produziam um comentário crítico, sobre o assunto, usando as noções freudianas... O prazer de olhar... libera
desejos da libido... Em termos genéricos o ato de ver, abre a questão da natureza da sensação visual”. cf.
SAMUEL, Raphael. In Revista Projeto História. História e imagem 21, novembro de 2000. pp.33 – 34.
29
tornando o trabalho muito prazeroso, embora os limites da pesquisa e da análise fez
concentrar a atenção nas fontes propagandísticas.
Imagem 3. Fonte: O Cruzeiro, 19 de outubro de 1957. Rio de Janeiro. Capa.
30
Imagem 4. Fonte: O Cruzeiro, 22 de novembro de 1958. Rio de Janeiro. capa. Amostra das capas da revista desde sua
fundação em 1928.
31
A revista O Cruzeiro, trouxe a oportunidade de tomar contato com expressões
sociais da época, e serviu como porta de entrada ao fabuloso espetáculo que este trabalho
de pesquisa tem o objetivo de desvelar. Uma das características que chamou a atenção nas
revistas foi a explícita e incontável presença de rostos femininos e a promoção dos valores
de feminilidade como observou Morin sobre as revistas da época:
“Herdeira da cultura burguesa (…) a cultura de massa dirige naturalmente para a promoção
dos valores femininos. Os temas “femininos” (amor, lar, conforto) são identificativos (…) a
afirmação da individualidade privada, o bem-estar, o amor, a felicidade (…) Esse
microcosmo é, além disso, o núcleo mais ativo da cultura de massa com sua incitação
intensiva à imitação, ao consumo, à conduta (…) Um rosto de mulher reina sobre as capas
das revistas sejam elas femininas ou não (…)”
34
.
Presente nas capas, reportagens, propagandas entre outros conteúdos das revistas, os
rostos femininos colaboravam para que a sedução fosse divulgada de forma expressiva
dentro dos valores morais da época, porque o importante era seduzir, amar e viver
confortavelmente e feliz, o modo de vida espetacular e ideal se manifestava fortemente.
“Você encontrará muitas outras reportagens e seções na presente edição. Humorismo,
cinema, moda, literatura. Em suma o espetáculo vai começar quando você adquire o
exemplar” (grifo nosso)
35
.
O espetáculo do entretenimento, como também a sedução em torno da bebida
alcoólica, não se restringia às páginas da revista O Cruzeiro. Outras revistas e até mesmo
alguns suplementos dos jornais da época traziam esse significado, entre outros recursos
utilizados no jornalismo como, por exemplo, o suplemento que acompanhou o Jornal
Correio da Manhã todas as sextas-feiras.
34
MORIN, Edgar.op.cit.p.143.144.
35
Conversando com o leitor. O Cruzeiro, 19 de maio de 1956. p. 10.
32
A partir da postura ideológica democrática que o governo tomou com o fim do
Estado Novo, a imprensa passou por reformulações trazendo novidades tanto na forma de
redação quanto na ilustração. É o caso específico da imagem acima, onde a sensualidade
associa-se ao álcool na taça segura por mãos de “femme fatale. Bons exemplos são os
suplementos e encartes de jornais. Tratavam de assuntos diversos e de interesses gerais que
abordavam desde temas femininos a artigos políticos, mas sempre com o caráter de fácil
leitura.
Na página seguinte segue um conjunto variado de propagandas que de forma
espetacular, conforme a intenção do editorial da revista, propagou a idealização dos valores
sociais da época.
36
Imagem 5. Fonte: Suplemento do jornal O Correio da Manhã in: Nosso Século. São Paulo. Abril Cultural.
1980. p. 249.
36
33
Imagem 6. Fonte: Montagem feita através de propagandas publicitárias retiradas das revistas O Cruzeiro no período
analisado por esta pesquisa.
34
Este conjunto de propagandas apresentadas na revista O Cruzeiro e focadas na
página anterior, dialoga com o universo da cultura material que estava se construindo à
época, evocando outros hábitos e sensações que foram propostos para serem desfrutados
durante o pós-guerra, época no qual o desenvolvimento industrial foi evidente.
A funcionalidade tornava-se um valor de grande importância à vida humana, dentro
e fora das indústrias, somada com a praticidade, atributos que sobressaíram às linhas de
produção e penetraram nos espaços privados, invadiram os lares e determinaram certos
valores e hábitos pessoais aqui demonstrados., da esquerda para direita, são eles: elegância,
bom gosto, atração, beleza, urbanização, metropolização, hábitos diurnos e noturnos, lazer,
liberdade, saúde, requinte, glamour, romance, feminilidade, cavalheirismo, praticidade,
rapidez, eficiência, dinamismo, novidade, durabilidade, utilidade, modernização, confiança,
e sedução.
Nos diversos anúncios publicitários existe a propagação de inúmeros temas e
adjetivações que ajudaram a construir a época dourada em “tempos modernos, repletos de
tanta satisfação”.
A presença dessas publicidades propagou sensações que vem confirmar uma
memória monumental
37
sobre o período, onde o crescimento industrial, como já foi
colocado, foi grande e o Brasil experimentava a construção da modernização acelerada.
Cyro de Barros Rezende Filho fez uma análise sobre o domínio norte-americano em
suas áreas de influência, sobre a aceleração das tecnologias e o consumismo nos primeiros
anos do pós-guerra (1949-1959). Segundo o autor:
“Nos dez anos que se seguiram o término da Segunda Guerra Mundial, que em mais de um
aspecto pode ser vista como uma tentativa de solucionar “definitivamente” os problemas
que a Grande Depressão causava ao sistema econômico capitalista, marcaram-se as bases
sobre as quais se assentaria o capitalismo (…) A emergência do estado de Guerra Fria já em
1946 (…) e a imposição Soviética do bloqueio de Berlim em março de 1948, determinariam
que a hipótese de um confronto entre os dois sistemas econômicos antagônicos (…) entrasse
na composição da estratégia mundial norte americana. Conseqüentemente a pesquisa e a
produção industrial de materiais bélicos foi incentivada continuamente em termos estatais,
permitindo que se mantivessem os níveis de emprego e produção do período da guerra nos
Estados Unidos. Se os Estados Unidos viram-se obrigados a empenharem-se na defesa dos
países capitalistas que em seu jargão político eram identificados como componentes do
mundo democrático, fizeram no destinando-lhes o que tinham acumulado no período da
37
Sobre esse assunto cf. LÊ GOFF Jaques. Monumento/Documento in História e Memória. São Paulo.
Unicamp. pp. 535 - 553. Como também BORGES, Thereza. Segundo a autora: “A imagem sempre foi motivo
de fascínio e encantamento, uma vez que tem o poder de permanecer diante dos olhos e da memória” in O
corpo ainda é pouco. II Seminário sobre contemporaneidade. 2000. p.117. p.276.
35
guerra, seus capitais e a presença de forças militares (…), o crescimento tecnológico que a
Segunda Guerra incentivou e a reconstrução…levou a um aumento brutal da produção
industrial (…) o que exigiu a restauração de sistemas de planejamento (…) e à emergência
de novas técnicas de marketing e publicidade a fim de aumentar a elasticidade da curva de
consumo (…) A esse aumento brutal da capacidade produtiva (…) correspondem a
instalação das denominadas sociedades de bem-estar social (…) a parcela do orçamento
familiar (…) hoje pode ser despendida em outras coisas que vão desde bacon até um toca
discos”
38
.
Os textos e as imagens que foram divulgados pela cidade apresentam narrativas
fabulosas do bem viver e da vida ideal, com alto poder de sedução, divulgados através de
valores sociais e sonhos idealizados a serem incorporados socialmente.
A idealização representada em toda a simbologia dos “Anos Dourados” foi
exatamente o que a sociedade ocidental no pós-guerra procurou, desejou e sentiu falta em
sua realidade, que apresentou impactos de mortes e crises violentas, representadas, por
exemplo, pelos campos de concentração nazistas e pelas bombas atômicas. Essas duas
situações trouxeram impactos a toda a humanidade.
Por isso, valorizou-se a vida de forma maravilhosa e esta se apropriou dos desejos e
anseios humanos, produzindo padrões de comportamentos a serem imitados, desejados e
consumidos por aqueles que podiam usufruir dos produtos e dos estilos de vida que
trouxeram os significados de prazer e bem-estar.
As propagandas trazem temáticas envolventes e de alto poder de convencimento,
mas os produtos não eram acessíveis ao poder de compra de toda a população. A
quantidade e a variedade de propagandas foram símbolos de uma cultura consumista a ser
desenvolvida influenciada ideologicamente pelo American way of life. Era preciso
convencer a sociedade das vantagens da vida burguesa e de seus valores, incorporados aos
poucos pelas camadas médias urbanas, mas exigido a todos
39
.
Esses exemplos aqui demonstrados são necessários para compreender a relação da
bebida alcoólica com o seu meio, dentro de uma sociedade urbana que trazia consigo um
discurso imperativo constante: a urgência do prazer imediato, para que fosse possível
extrair os significados do álcool.
38
FILHO, Cyro de Barros Rezende. História Econômica geral. São Paulo. Contexto. 1991. pp. 237 à 240.
39
Sobre esse assunto cf. SANT’ANNA, Denise B. O corpo entre antigas referências e novos desafios. “… as
sociedades contemporâneas exibem diariamente uma panóplia cada vez mais diversificada de produtos e
serviços destinados ao bem-estar e ao conforto de cada um… o homem conheceu tantas possibilidades de
escolher entre as centenas de produtos e serviços destinados a fortalecer sua saúde e seu bem-estar”. in
Cadernos de subjetividade. São Paulo. 1997. p.276.
36
A simbologia do mundo ideal traz temas envolvidos por valores como certeza,
durabilidade, beleza, juventude, vida, felicidade, entre outros. Esses elementos foram
difundidos exatamente para negarem a morte, a tragédia, a feiúra, a incerteza, a velhice, e a
tristeza.
“Ao pensar como um tempo de transformações radicais e, por isso de crise, a década de 50,
constitui uma percepção ambivalente de si mesma – glamour e decadência – em que as
novas e velhas condutas, costumes e filosofias de vida são excludentes”
40
.
Diante desses pressupostos as fontes propagandísticas foram interpretadas a partir
daquilo que o historiador Ulpiano T. Bezerra considerou:
“O sentido de leitura, pois, muito próximo, assim de seu núcleo etmológico, em que o verbo
latino lega, legere, (lectus é o particípio passado) significa reunir, colher, escolher,
reagrupar, (comparar na mesma família, como eleger, coligir, coleção, colégio, lição,
inteligência, etc…). Nessas condições trata-se do primeiro passo, apenas do primeiro que o
historiador deve tomar ao se defrontar com o documento. Mais ainda, é este o primeiro
passo que é capaz de fornecer elementos para definir estratégicas de exploração documental
e o prosseguimento da pesquisa”
41
.
Desta forma, escolhendo, elegendo e analisando, foi feita a leitura das propagandas
considerando-as como experiências históricas, já que cada uma delas expõe e ou esconde,
fala e ou silencia, são ao mesmo tempo “eloqüentes” e “reticentes”
42
.
Uma das primeiras questões pertinente a análise foi que as propagandas expressam a
sociedade através do American way of life, exalando seu glamour. A partir desses
elementos, houve a necessidade de adentrar nos “bastidores” do espetáculo, ou seja, ir além
das aparências glamourosas.
Por entre fotos e nomes, eventos e notícias, humores e conselhos, divertimentos e
reflexões, enfim, por entre seções e colunas as imagens aparecem, despertando desejos e
sensações extremamente sedutoras e envolventes, convidando a sentir o prazer
43
tão
40
AVANCINI, Maria M. Picarelli. Nas tramas da fama. As estrelas de rádio em sua época áurea. Brasil anos
40 e 50. UNICAMP. 1996. p.57.
41
MENESES. Ulpiano. T. Bezerra. História e Imagem Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em
História.. PUC. São Paulo. Educ. p. 106.
42
Sobre o trabalho com propaganda cf. SANT’ANA, Denise Bernuzzi de Propaganda e História. Antigos
Problemas Novas Questões. in Revista Projeto História. Cultura e Representações. nº. 14 Fevereiro de
1997.p. 98.
43
Prazer do latim placere. Causar Satisfação, agradar. cf. Dicionário Enciclopédia de Psicanálise. O legado
de Freud Lacan, Jorge Zahar. Rio de Janeiro. 1998.
37
incentivado naquela sociedade que o colocou como um fator cultural e sensorial obrigatório
a partir de elementos que trouxeram esse significado, entre eles o álcool.
1.2 - Sinta esse prazer!
No campo de tensão entre uma sociedade influenciada por padrões de
comportamentos norte-americanos, que traduziam um estilo de vida ideal baseados no
American way of life, e uma sociedade que demonstrava problemas sociais e individuais
comuns aos seres humanos que nela viviam, veio a necessidade de refletir sobre a
organização social daqueles tempos que dependia de “um esforço coletivo” para que o ideal
de civilização
44
moderna, inspirada na simbologia do trabalho, da família e da ordem, fosse
construída a partir de parâmetros determinados por discursos oficializados como, por
exemplo, dos políticos administradores, dos engenheiros, dos arquitetos, dos médicos, dos
publicitários, entre outros.
A cidade da “ordem e do progresso” precisou de indivíduos saudáveis que
contribuíssem com o bem-estar idealizado por esses discursos que eram responsáveis pelas
normas de bem viver.
Foi trabalhando com as propagandas de bebidas alcoólicas da revista O Cruzeiro
entre elas
45
, uma reportagem sobre o IV Centenário de São Paulo chamou a atenção sobre
as representações da modernidade, da ordem, e do progresso divulgadas naquele período.
“(…) o paulista está contente consigo mesmo, orgulhoso de sua edificação e mais do que
isso, ufano em poder ofertar a Pátria a sua melhor obra, o fruto do seu esforço e a jóia mais
cara e mais preciosa do seu diadema de maravilhosas realizações – São Paulo, a mola
propulsora do progresso nacional”
46
.
44
“A noção de “civilizar”, como sendo a absorção dos homens por uma organização social... deveria
significar mais do que isso: Expressava dois sentidos... historicamente unidos: um Estado realizado que se
podia contrastar com a barbárie, mas também agora um estado realizado de desenvolvimento que implicava
processo histórico e progresso”. WILLIANS Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro. Zahar. p. 19.
Segundo o autor os discursos dominantes nos quais ele chama de hegemônicos precisam construir a
legitimidade da dominação. Para que isso ocorra é necessário estabelecer o diálogo com os dominados para
garantir que seus feitos são interessantes, necessários e benéficos àquela situação social. Idem p. 111.
45
Folheando as revistas em busca das propagandas de bebidas alcoólicas, deparei-me com representações
sobre o álcool que aparecem em reportagens de diversos assuntos sobre a sociedade, como também em outras
propagandas que não são de bebidas alcoólicas, mas que expressaram o ato de beber.
46
Tire o chapéu à São Paulo.- IV Centenário. O Cruzeiro, 06 de fevereiro de 1954. p.19.
38
A cidade de São Paulo apresentava como significados representações
coorporificadas no bem-estar exigido aos cidadãos que quisessem desfrutar daquele
“paraíso”, onde o trabalho, o dinheiro e o consumismo causavam sensações de euforia e
prazer.
Ao lado da cidade do Rio de Janeiro, a cidade de São Paulo também foi considerada
como centro da difusão cultural, ainda mais por uma de suas particularidades, a imensa
quantidade de cinemas e de seu público freqüentador, que segundo a cuidadosa pesquisa de
Inimá Simões
47
sobre as salas de projeções de filmes, São Paulo possuía em 1950, 119
cinemas e 35 milhões de espectadores.
O aniversário de 400 anos da cidade em 25 de janeiro de 1954 o famoso IV
Centenário, com toda a sua programação de festividades com bandas civis, fogos de
artifícios, espetáculos, exposições entre outros
48
eventos se tornou um marco na construção
do imaginário sobre a cidade. A festa valorizou e corroborou os elementos urbanos como os
edifícios, os automóveis, os bondes, os monumentos, os cinemas, os teatros, os
restaurantes, os cafés, as boates, os bares, as ruas, as praças e as multidões, o evento ajudou
a compor a simbologia metropolitana paulista.
Foi rastreado aproximadamente vinte e sete bares e/ou boates
49
distribuídos pelos
chamados centros “velho e novo” da cidade de São Paulo. Em meio ao crescimento urbano
nas imediações dos bairros Santa Cecília, Santa Efigênia, Consolação, Largo do Arouche,
Praça da República, Praça Dom José Gaspar e Praça Franklin Roosevelt, foi encontrado a
47
SIMÕES, Inimá. Salas de cinema em São Paulo. São Paulo. editora SMC. 1990
48
A programação de atividades do IV Centenário seguiu muitos eventos entre eles se destacaram a Exposição
do IV Centenário (mostra sobre cultura, trabalho e indústria brasileira e internacional), a I Feira Internacional
de São Paulo (vinte países, apresentaram suas máquinas industriais), o Ballet do IV Centenário (com a
coreografia de Aurélio Millon um dos maiores coreógrafos da época, impressionou pela beleza e originalidade
do espetáculo), a Exposição de Arquitetura (mostra das obras dos mais famosos arquitetos da América,
Europa e Oriente), a Exposição de Arte Italiana (exposição com 115 telas e 119 gravuras de artistas como
Caravaggio e Tiepolo), a Exposição de Numismática (com 2.500 peças entre moedas e condecorações de
quase todos os países da América e da Europa). A Exposição do Artesanato nos EUA (organizada pelo
governo norte-americano apresentou peças de artesanato da cultura formadora dos EUA), a Exposição do
acervo do Museu de Arte Moderna (MAM Mostra do Acervo com pinturas, esculturas, gravuras e desenhos
de artistas nacionais e internacionais). A Exposição Folclore (mostra de música, dança, estória populares,
concursos culturais durante os festejos foram desenvolvidos concursos de romances, poesia, contos, teatro
entre outros). Apresentações municipais (Orquestra Sinfônica Brasileira, Orquestra Sinfônica Municipal com
regentes nacionais e internacionais). Apresentações teatrais (peças com diversas temáticas entre elas: O Inglês
Maquinista, O Diletante, A Família e Festa na Roça), apresentações esportivas (iniciou-se com a corrida São
Silvestre e continuou com competições de diversas modalidades esportivas) Todos os eventos foram
desenvolvidos durante todo o ano de 1954. Sobre esse assunto cf. Revista do Museu da cidade de São Paulo.
História e Memórias da Cidade de São Paulo no IV Centenário. Departamento Patrimônio Histórico. 1994.
49
GAMA, Lúcia Helena. Nos bares da vida. op. cit. Como também VELLOSO, Mônica. Mário Lago boemia
e política. Rio de Janeiro. Fundação Getulio Vargas. 1998.
39
maior aglomeração desses estabelecimentos que, por mais que seja importante rastreá-los,
fogem a busca, porque mudaram de nome, lugar ou simplesmente deixaram de existir nas
transformações contínuas da cidade.
A vida boêmia em São Paulo na década de 50 foi intensa e com variedade de estilos.
Havia os bares mais intelectualizados, os mais musicais, os dançantes, os mais alegres,
outros mais melancólicos, aqueles mais refinados, os que serviam bons pratos e aqueles que
só serviam bebidas e petiscos.
As boates também marcavam diferenças, por aquelas onde o luxo e a sofisticação
imperavam, com apresentação de artistas famosos e com ingressos mais caros essas fizeram
fama e estilo, enquanto outras eram freqüentadas pelas mulheres “de vida fácil” que
professavam sua missão entre trocados, cigarros e tragos. Dessa forma, nos bares e boates
não podia faltar a bebida alcoólica, uma boa canção de amor (ou melhor de desamor) e um
toque de sedução.
Outro elemento significativo ao lado dos bares, foram as próprias salas de cinema
que refletiam a grandiosidade da cidade e toda a sua modernização baseada na arquitetura
norte-americana. As salas de exibição de filmes, como também todo o conjunto
cinematográfico paulistano, seguia uma estética hollywoodiana, ou seja, o cinema passou a
ser a porta de entrada do American way of life em São Paulo. O hábito de ir ao cinema
marcou a época porque envolvia desde a arquitetura e decoração dos “palácios” assim eram
chamados os cinemas com suas colunas, espelhos, mármores, estofados, tapetes e veludos.
Até a própria sociabilidade que se desenvolveu em torno deles foi glamourosa,
expressa por exemplo, nos trajes utilizados pelas pessoas que neles trabalhavam como:
bilheteiros, porteiros vendedores de balas e guloseimas, lanterninhas e também entre
aqueles que os freqüentavam tudo envolvia beleza, elegância e etiqueta.
Os gestos, hábitos e expressões lançados pelos artistas e personagens hollywodianos
foram contribuintes na formação dos usos e costumes urbanos, indo além das telas e
permeando outras instâncias dos meios de comunicação como as revistas de
entretenimento, em especial, a revista O Cruzeiro.
“(…) a cultura de massa carrega uma infinidade de stimuli, de incitações, que desenvolvem
ou criam invejas, desejos, necessidades. O estágio no qual os temas imaginários, da cultura
de massa se prolongam em normas práticas é, precisamente, o estágio no qual se exerce a
40
pressão da indústria e do comércio para derramar os produtos de consumo. E o estágio no
qual se dá uma osmose multiforme entre a publicidade e a cultura de massa”
50
.
É importante esclarecer que a incorporação dos elementos culturais de um sistema
de valores hegemônicos só ocorre se estes fizerem sentido no conjunto geral da cultura que
os incorporam.
Nesse caso, o processo de incorporação foi feito de forma complexa, onde por
muitas vezes, ocorreu a seleção dos elementos da cultura norte-americana que foram sendo
absorvidos pela cultura brasileira que os recebeu, sendo aqueles por sua vez recriados e
reelaborados, dando sentido próprio de forma múltipla e original.
A assimilação cultural de um dado sistema de valores não é simplesmente
reprodução e repetição, mas escolha e recriação, união e distinção, pois a incorporação
nunca ocorre em uma única direção, sentido e forma.
A apropriação cultural norte-americana no Brasil deu-se na inter-relação dinâmica
que se estabeleceu entre os valores culturais que, por sua vez, produziram novos padrões
sociais.
Os padrões sócio-culturais expressos na revista dão visibilidade às representações
do modo de vida econômico da classe burguesa ou da classe média alta e média urbana,
pois eram essas as classes que compunham o público leitor da revista
51
.
O colorido das revistas, as ilustrações, as ofertas de produtos e todo o conjunto que
as constituem, possibilitam mapear os desejos de consumo daqueles que ao menos podiam
comprá-las, identificando-se com suas mensagens de bem-estar, carregadas de sedução e de
glamour.
As classes burguesa e média alta podiam gastar seu capital em outras coisas além
das necessidades básicas vitais como alimento, vestuário, moradia, transporte coletivo e
remédio. As personagens bem vestidas, bem alojadas e bem cuidadas, expressas nas
revistas, tinham o privilégio de serem cada vez mais bem vestidas, mais elegantes, mais
50
MORIN, Edgar. Cultura de Massas no século XX. O espírito do tempo. Rio de Janeiro. Forense. 1967. p.
104. Vale lembrar que para esse autor a cultura de massa se refere a cultura industrializada nos paises
capitalistas, ele ressalta muito mais a sedução exercida por essa cultura do que a questão da alienação que
propõem Adorno e Horkheimer.
51
O Instituto Brasileiro de Opinião Publica e Estatística (IBOPE) apresentou uma pesquisa sobre circulação e
estudo de Superposição de Revistas Semanais na década de 50, apresentando os seguintes resultados sobre a
leitura de “O Cruzeiro” 68% dos homens, 50% das mulheres. Quanto a sua penetração nos grupos de
diferentes faixas de renda: 29% classe A, 31% classe B, 22% classe C, 18% classe D. Fonte Arquivo Edgar
Leurenroth. Unicamp. p. 3.
41
bem alojadas, com seus imóveis decorados e equipados, cada vez mais bem cuidadas e mais
belas e saudáveis.
“Ao longo dos anos 50 uma série de fatores concorre para o interesse de empresas
estrangeiras norte-americanas, na sua maioria instalarem suas indústrias no Brasil, a
liberação da entrada de bens de capital e o crescimento substancial do mercado interno
certamente motivaram investimentos externos no país. Pelo menos metade da produção total
da indústria era gerada em São Paulo. O desenvolvimento industrial e o progresso material
impelem o mercado imobiliário que assiste a um notável crescimento. Lançamentos de
loteamentos construção de edifícios de apartamentos se sucedem em toda a cidade de São
Paulo. Cresceu o mercado interno, elevou-se o padrão de vida nos principais centros
urbanos: surge uma elite de alto poder aquisitivo, composta de industriais, comerciantes,
agricultores, profissionais liberais, técnicos, madura para o consumo dos mais variados
artigos e serviços eletrodomésticos, mobiliário, decoração, etc”
52
.
Os significados extraídos da revista O Cruzeiro são como “flashes” expressivos do
passado, mas não devem ser lidos como expressões únicas sobre a verdade real da época
em questão, mas sim como propõe Chartier, em referência a História Cultural:
“(…) tem por principal objetivo identificar como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler, uma tarefa desse tipo supõe
vários caminhos. O primeiro diz respeito a classificações divisões e categorias fundamentais
de percepção e de apresentação do real (…) As listas de representações têm tanta
importância como as listas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um
grupo impõe ou tenta impor sua concepção do mundo social, os valores que são os seus e
seu domínio (…) As representações do social (…) embora aspirem a universalidade de um
diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses do grupo que as
forjam. Daí para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos, com a
posição de quem os utiliza”
53
.
Os discursos oficiais da propaganda publicitária conjuntamente com outros
discursos hegemônicos como os da medicina
54
, trouxeram a oportunidade de reflexão sobre
a necessidade de fixação de valores saudáveis e de bem-estar que foram infiltrados
culturalmente naquele período.
52
Sobre esse assunto cf. KOSSOY, Boris. Luzes e Sombra da Metrópole. in.. ARRUDA, Lobo Alzira e
outros. In História da cidade de São Paulo. A cidade no Império 1823-1829. São Paulo. Paz e Terra. 2004.
p.149. Como também a revista O Cruzeiro edição de 21 de outubro de 1950, onde contêm reportagens sobre a
construção civil, crescimento e especulação imobiliária em São Paulo.
53
CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil.
1998. pp. 16 a 18.
54
Na análise de ILLICH, Ivan. A Expropriação da Saúde. Nêmesis da Medicina. Rio de Janeiro. Nova
Fronteira. 1975. No termo medicina, estão embutidos os elementos de substâncias químicas, equipamentos e
construções tanto quanto de opiniões, ensinamentos, curativos psicológicos e bombons caros. cf. p. 100.
Segundo o autor “… a instituição médica reforça aspectos terapêuticos de outras instituições do sistema
industrial e atribui funções higiênicas subsidiárias à escola, à polícia, à publicidade e mesmo à política”. cf.pp.
100 e 123 da mesma obra.
42
“(…) os diversos anúncios têm como característica comum o fato de que no ponto de vista
das representações que manifestam, eles são transformações uns dos outros todos na
verdade, reproduzem cada um a sua maneira, um mesmo conjunto de temas que apontam
para a idealização da vida a partir do consumo de um produto. Nesse sentido, cada
anúncio vai trabalhar um recorte da realidade de forma à sacralizá-lo do fluxo dos
acontecimentos e colocando o produto anunciado do momento eleito como sagrado”
55
(grifo nosso)
.
Essas reflexões auxiliaram na leitura sobre a representatividade do álcool para
aquela sociedade, onde fica visível que a bebida alcoólica esteve vinculada a símbolos de
uma idealização a ser atingida, expressando felicidade, bem-estar, glamour e realizações
pessoais, como demonstram as propagandas a seguir.
55
GUIMARÃES, Everardo. P. Rocha. Magia e Capitalismo: um estudo antropológico da publicidade São
Paulo. Brasiliense. 1995. p. 76.
43
Imagem 7. Fonte: O Cruzeiro, 14 de agosto de 1954. Rio de Janeiro. p.34.
44
A propaganda dos biscoitos Piraquê apesar de não ser de bebida alcoólica traz
notoriamente os seguintes significados: homens e mulheres elegantes numa reunião social
entre amigos, onde a alegria, o bem-estar, a amizade, a posição social elevada demonstrada
nas jóias das mulheres e o requinte explicitado nas taças se destacam na imagem. E para
selar essa comunhão, além do cigarro, “nada melhor” do que o álcool. Como os dizeres da
propaganda indicam:
“(…) Foi essa sua preferência que fez dos salgadinhos o companheiro obrigatório em todos
os bons momentos: no café da manhã ou com drinks... em toda parte, enfim, onde existe
alegria e hospitalidade! (…)” (grifo nosso).
Em sua obra O Capital, Karl Marx define mercadoria como um objeto que satisfaz
necessidades, como ele mesmo coloca citando Barbon, em uma nota de rodapé da mesma
obra: “desejo inclui necessidade, é o apetite do espírito e tão natural como a fome para o
corpo... a maioria (das coisas) tem seu valor derivado da satisfação do espírito
56
.
Expressando um momento do cotidiano idealizado, a propaganda além de divulgar a
publicidade, propagou estilos de vidas, modos que foram modelos do bem viver nos “Anos
Dourados”.
Os diálogos informais com pessoas que viveram o período e algumas crônicas,
informaram que as propagandas publicitárias impressas estiveram além das páginas das
revistas, elas apareciam em outdoors, nos estabelecimentos comerciais e nos bondes
circulando pela cidade, divulgaram além dos produtos, fixações simbólicas no imaginário
de como “a vida deveria ser”, exalando uma atmosfera de dias felizes, seduzindo o olhar
daqueles que passavam e passeavam pela cidade.
“No flaneur é muito evidente o prazer de olhar. Este pode concentrar-se na observação –
daqui resulta o detetive amador; ou pode estagnar no simples curioso – e então o flaneur se
transforma em badaud. As descrições sobre a grande cidade não pertencem nem a um nem a
outro daqueles tipos. Pertencem àqueles que atravessaram a cidade como que ausentes
perdidos em seus pensamentos ou preocupações”
57
.
56
Marx, Karl. O Capital. Livro I-. São Paulo. Nova Cultural, 1985. p. 45.
57
BENJAMIN, Walter. A Modernidade e os Modernos. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro. 1975. p.p. 8-9. O
autor ainda ressalta em nota de pé de página utilizando o autor FOURNEL, Victor na obra Ce qu’on voit dans
les rues de Paris. Paris, 1858. p. 263. “Não se deve confundir o flaneur com o badaud; há uma nuance a
considerar... O simples flaneur está sempre em plena posse de sua individualidade; a do badaud pelo contrário
desaparece. Fica absorvida pelo mundo circundante...; este o embriaga até o auto esquecimento. O badaud se
torna um ser extraordinário sob a influência do espetáculo que se lhe oferece; já não é mais ser humano: é
público é multidão”.
45
Aos indivíduos sociais pairava a imposição de uma sociedade em que o ser humano
passava a ser avaliado a partir do que ele tinha em seu poder, para determinar o que ele
devia ser como cidadão.
“A fase atual, em que a vida social está totalmente tomada pelos resultados acumulados da
economia, leva a um deslizamento generalizado do ter para o parecer do qual todo “ter”
efetivo deve extrair seu prestígio imediato e sua função última. Ao mesmo tempo toda a
realidade individual tornou-se social moldada por ela (…)”
58
.
A vida estava embasada na sociedade do “ter para ser”: ter um emprego, ter
dinheiro, ter bens materiais, ter saúde, ter um relacionamento amoroso feliz, ter uma
família, entre outros elementos idealizados, “garantia o lugar ao sol”, para ser um indivíduo
bem sucedido e desfrutar do happy end tão divulgado pela cultura norte-americana.
O autor Edgar Morin discute a questão do happy end presente com freqüência no
cinema como também nas “estórias” narradas em livros e revistas de domínio público desde
os anos 30 e 40, essa característica foi parte constitutiva da formação do imaginário
ocidental, onde a idéia e a sensação de felicidade foi promulgada e necessária como solução
efetiva, orientando modos de comportamento de milhares de homens e mulheres que
tinham como objetivo ser feliz.
“Ao orientar o comportamento, a cultura determina a saúde, e é somente construindo uma
cultura que o homem encontra sua saúde (…) toda cultura elabora e define um modo
particular de ser humano e ser sadio, de gozar, de sofrer e de morrer”
59
.
As reflexões do autor referem-se a crítica da cultura como sendo propriedade de
discursos sociais que se autodesignam como modelos de superioridade, detentores do saber
e da civilização que, por isso, possuem o poder de dominação
60
comparado a um casulo
“protetor”.
“Para estarmos seguros de compreender em que sentido a cultura é um casulo necessário à
sobrevivência devemos ir além de suas manifestações aparentes e nos concentrar em suas
58
DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo comentários sobre a sociedade espetáculo. Rio de Janeiro.
Contraponto.p.18.
59
ILLICH, Ivan. A Expropriação da Saúde. Nêmesis da Medicina. Op. cit. 122.
60
“... há um conceito “cultura”, que em si mesmo, através da variação e complicação incorpora não só as
questões, mas também as contradições através das quais se desenvolveu. Esse conceito funde e confunde as
experiências e tendências radicalmente diferentes de sua formação. È impossível, portanto, realizar uma
analise cultural séria sem chegarmos a uma consciência do próprio conceito, uma consciência que deve ser
histórica”. WILLIANS. Raymond. Marxismo e Literatura. Op. cit. p. 17.
46
funções. Vê se melhor então que a cultura não é um simples complexo de modelos de
comportamentos concretos tais como os costumes, usos, tradições, hábitos, mas que é
conjunto de mecanismos, de projetos codificados de regulação de planos, de regras e de
instruções. O homem sendo animal privado do determinismo genético de seus instintos tem
necessidade, em grau extremo, de uma regulação que lhe seja exterior e sem a qual não
poderia manter o equilíbrio vital em face ao fracasso. Em outros termos: toda cultura é uma
das formas possíveis da viabilidade humana (…) Ela é a forma de produção do animal
humano; determina o modo como a vida deve ser organizada, as categorias disponíveis para
dar forma às emoções”
61
.
Nas propagandas analisadas são visíveis modos de consumo que esbanjam
expressões de felicidade, esta que pode ser encontrada no próprio ato de consumir como
também nos estilos de sociabilidades que foram desenvolvidos na realização do consumo
como no caso das bebidas alcoólicas, ilustradas nas páginas seguintes.
61
ILLICH, Ivan. Op. cit. p. 122.
47
Imagem 8. Fonte: O Cruzeiro, 14 de agosto de 1954. Rio de Janeiro. p.34.
48
Do lado esquerdo da página está estampada uma propaganda de toldos em lona da
marca Sempre Viva da indústria Alpargatas. Além das características do produto a ser
vendido, a propaganda explora duas imagens. Na de maior destaque, estão pessoas em um
bar, que pode ser hotel, restaurante ou outro ambiente, onde homens e mulheres bem
trajados desfrutam do lazer, do bem-estar, da companhia e da gentileza entre si. É notório o
garçom com sua bandeja ocupada por uma garrafa representando ser de uísque, dois copos
um representando ser de cerveja e outro representando ser de coquetel, servindo a bebida a
um homem, como também um cavalheiro, servindo gentilmente um copo representando
estar cheio de cerveja a uma mulher, que de forma elegante e feminina o recebe.
O ambiente é agradável e aconchegante, cercado e decorado por um toldo e
folhagens.
Em espaço menor de destaque, aparece o toldo cobrindo um carro do modelo de
época, estacionado em frente a uma loja de departamentos com o nome Bazar da
Elegância.
Alguns símbolos da sociedade de consumo, da modernidade/ modernização
62
e do
prazer estão expressos eloqüentemente nesse anúncio, conferindo status social aos
integrantes desse universo.
Nessa mesma página, do lado direito, uma propaganda do vermouth Cinzano, onde
a própria bebida alcoólica expressa sensações de leveza, estímulo e aromatização. Entre
essas propagandas (Lona Sempre Viva e Cinzano) está a continuação de um conto
romântico intitulado “Chamas que não aquecem”, o qual o trecho narra uma “estória de
amor” onde o sentimento da angústia pela separação permeia as personagens principais do
62
O conceito de modernidade está em plena elaboração. Para Anthony Giddens As conseqüências da
modernidade. São Paulo UNESP, 1991 “refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que
emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em
sua influencia”. Para Marshall Berman Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo Companhia das Letras,
1990, é “um tipo de experiência vital – experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das
possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por homens ou mulheres. A experiência ambiental da
modernidade anula todas as fronteiras, geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e de
ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade
paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e
mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia”. O anúncio da modernização e do progresso tão
divulgados nos anos 50 através de inúmeras simbologias traduzia aquilo que deveria ser a sociedade ideal não
pode-se acatar esses e outros símbolos simplesmente como a tradução da sociedade real. Conforme propõe
refletir BENJAMIN. “Este ideal que se pode tornar uma idéia fixa, vai apoderar-se especialmente de quem
vive nas cidades gigantes na malha de inúmeras relações entrelaçadas”. Cf. A Modernidade e os Modernos.
op. cit. p. 8.
49
conto. É importante destacar que a maioria das narrativas amorosas da época estão
envolvidas com enredos que expressam o sofrimento.
Nesta única página existem vários significados, entre eles, destaca-se que para
descansar do ritmo acelerado da modernização, o leitor em seus momentos de lazer
desfrutou da revista, tomando contato com os mais diversos assuntos e com os
acontecimentos nacionais e internacionais. Ao “descansar” da leitura, o leitor se deparou
com a imagem da propaganda de lonas que através de sua temática, cores e figuras,
chamam a atenção visual, enaltecendo a vida.
A própria propaganda do Cinzano aparece insinuante, já que a propaganda expressa
o prazer de beber. E porque não experimentar o Cinzano entre outras bebidas que aparecem
“anônimas” na propaganda da Sempre Viva? Fica aqui a sugestão publicitária da marca
Cinzano, como também a propagação da alcoolização, pois a própria bebida Cinzano
oferece atributos que aparentam ser deliciosos: leveza, estímulo, aroma.
Marx, bem como Ernest Mandel, refletiram sobre a expansão das necessidades
humanas criadas na sociedade de consumo e estimuladas artificialmente, onde o ser
humano torna-se adicto
63
, ou seja, escravo de desejos. Essas vontades, muitas vezes
desumanas, mas refinadas, propõe em sua aparência efeitos prazerosos, criando a
necessidade de posse, como nas propagandas analisadas, embora esses atributos não sejam
exclusividade do período
64
.
“Isso acontece porque existe no indivíduo uma predisposição para aceitar a fantasia. Assim
a fantasia se torna quase que um sonho possível que, embora não tire o indivíduo de sua
realidade – que continua existindo – faz com que ele se sinta motivado a trabalhar com o
seu imaginário”
65
.
63
Atualmente o termo adicto ou drogadicto é utilizado para classificar o usuário (dependentes
químicos/psíquicos) de alguma substância, por exemplo, o canabista adicto da maconha (cannabis sativa),
cocaínomano adicto da cocaína (Erythoxylon coca), entre outras substâncias.
64
Lévi Strauss Claude, em Tristes Trópicos. São Paulo. Anhembi. 1957. p.32 faz referência a busca
incessante da criação de novos desejos despertos como motor da expansão comercial européia moderna
segundo o autor. “Arriscava-se outrora a vida nas Índias ou nas Américas para conquistar certos bens que hoje
nos parecem irrisórios: madeira de brasa (donde Brasil): tinta vermelha, ou pimenta, pela qual nos tempos de
Henrique IV, se tinha tal loucura que a Côrte punha os seus grãos em “bombonnières” para mastigá-los.
Esses choques visuais ou olfativos, esse alegre calor para os olhos, essa queimadura deliciosa na língua,
juntava um novo registro ao teclado sensorial duma civilização que não percebia a própria insipidez
acrescentando que as fotografias e os relatos de terras exóticas da atualidade são as “especiarias morais” que
nossa sociedade necessita para escapar ao tédio”.
65
MIQUELIN, Maria Aparecida. E. A linguagem da Sedução na publicidade do cigarro. São Paulo. PUC.
1992. p.51.
50
O ato de beber expresso nas propagandas ainda que não propriamente de bebidas
alcoólicas trazia consigo uma certa aceitação social desde que o uso estivesse subjugado às
boas maneiras, à bons hábitos e à ambientes considerados familiares, saudáveis e refinados.
Outra questão é que apesar de beber álcool, nenhuma das figuras humanas apresenta-se
embriagada. A “sobriedade” e a elegância se mantêm moralmente nas imagens, fica
reticente a demonstração da embriaguez.
“Sob todas as suas formas particulares informação ou propaganda, publicidade ou consumo
direto de divertimentos, o espetáculo, constitui o modelo atual da vida dominante na
sociedade”. E a afirmação onipresente da escolha já feita na produção e o consumo que
decorre dessa escolha”
66
.
As personagens consumidoras de bebida alcoólica representadas nas propagandas,
sem exceção, estão envolvidas em formas de sociabilidades consideradas familiares,
saudáveis e normativas, as propagandas silenciam a embriaguez
67
, todas as simbologias do
consumo alcoólico estão dentro do universo moral e são apresentadas temáticas
representativas desse meio mesmo que a propaganda não seja de bebida alcoólica, da
mesma forma esses valores estão demonstrados na análise das próprias propagandas de
bebidas alcoólicas.
Para essa primeira apresentação foi analisado o significado do álcool inserido nas
normatizações sociais, não foi utilizado o método das percepções das cores que compõe
cada uma delas, isso foi feito no segundo momento de análise onde a maioria das imagens
expressam situações sociais afetivas.
É notório nesse grupo de imagens a seguir a predominância das cores vermelho que
traduz a energia, a coragem, a alegria e a extroversão, o amarelo que traduz a iluminação, o
conforto, a esperança, a euforia e a espontaneidade, e o azul que traduz o afeto, a paz, a
serenidade, a confiança, a amizade e o amor. O trabalho com as cores foi embasado nos
autores Modesto Farina e Luciano Guimarães entre outros
68
.
66
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro.
Contraponto. 1997.p.14.
67
O sistema límbico de qualquer pessoa que faça ingestão do álcool é uma das regiões mais sensíveis aos seus
efeitos, e esse sistema, por sua vez, tem como uma de suas funções controlar o comportamento e a emoção,
caracterizando as ações de equilíbrio e sobriedade. A perturbação das funções do Sistema Nervoso Central
(SNC) pelo álcool, leva a liberação do indivíduo reduzindo a ansiedade, levando-o a experimentar sensações
que passam do relaxamento a euforia.
68
Sobre esse assunto cf. FARINA, Modesto. Psicodinâmica das cores em comunicação. São Paulo. Blucher.
1982. Como também GUIMARÃES, Luciano. A cor como informação. São Paulo. Annablume. 2000.
51
Imagem 9. Fonte: O Cruzeiro, 09 de novembro de 1957. Rio de Janeiro. p.53.
52
A propaganda do Vinho Único demonstrada na página anterior traz em primeiro
plano a imagem da bebida alcoólica servida na mesa. Embora esteja enfocando uma receita
de peixada, essa só teria o melhor sabor se acompanhada do vinho. Sugerindo que aqueles
que possuíssem bom gosto, só servissem seus pratos acompanhados da bebida alcoólica. A
imagem seduz o paladar ao apresentar o prato pronto e a mesa arrumada, despertando o
apetite. O que mais chamou a atenção foi frase do texto: “... Comece logo a tomar vinhos
puros às refeições e você, ganhará em tudo...o custam muito mais caro do que as
cervejas e uma garrafa proporciona completa satisfação até para quatro pessoas”.
Existe o apelo para o consumo da bebida, o vinho é apresentado quase como um
remédio, que faz bem à digestão, às emoções, melhora o paladar, estimula o apetite. As
pessoas, independentemente da idade, deviam tomar, pois ganhariam “em tudo”. A
propaganda demonstra somente “os benefícios” do álcool e que ele devia ser ingerido “à
vontade” dentro dos padrões sociais pré-estabelecidos moralmente, como em almoços
familiares, a propaganda deixa transparecer as propriedades medicinais do vinho.
53
Imagem 10. Fonte: O Cruzeiro, 02 de dezembro de 1950. Rio de Janeiro. P.53.
54
Já o champagne Mosele foi o convidado de honra das grandes festas como o natal,
que simboliza para o catolicismo o nascimento de Jesus Cristo, festa onde se reúne a
família e que normalmente é regada a álcool. Embora o anúncio traga um apelo ao natal,
existem outros elementos a serem analisados, por exemplo, o casal, vestido elegantemente
para uma festa de gala da época, que aprecia uma taça da bebida que pode ser visualizada
nas mãos, em maior evidência na masculina.
Os gestos revelam que ele delicadamente toca a moça e gentilmente faz-lhe um
convite, certamente para saírem e brindarem juntos. O semblante da moça é receptivo,
ambos estão alegres e belos, traduzindo o clima glamouroso dos anos 50, onde a moral
burguesa também revelou-se nos casais, mas não impediu a presença da bebida alcoólica,
convidada de honra nas festas e reuniões, fazendo parte do cotidiano das pessoas. A
propaganda faz um apelo ao consumo da bebida quando diz: “Noite de Natal, Noite de
champagne Mosele”. É como se a bebida desse o toque essencial para que o clima de
festa, de glamour e de beleza se concretizasse no ambiente.
A análise das propagandas teve como preocupação deter-se exatamente na
propagação dos benefícios do álcool, que foi um mecanismo estimulador ao consumo. O
problema da divulgação da alcoolização da sociedade não está propriamente na substância
alcoólica, apesar de ser um psicotrópico
69
, mas no abuso da substância porque nem sempre
as pessoas fizeram o uso de forma moderada, pois existiram formas de sociabilidades
como, por exemplo, a boemia onde o consumo abusivo do álcool foi freqüente.
Ao se apropriarem de situações idealizadas, as propagandas de bebidas alcoólicas
desempenhavam a função de demonstrar uma sociedade de aparências que mitologizaram
70
o ideal dos “Anos Dourados”, tentavam apaziguar e anestesiar, através do “mundo em
69
Substâncias que agem diretamente no Sistema Nervoso Central (SNC), ou seja: alteram e ou ativam os
neurotransmissores (elementos neurológicos que se localizam dentro dos neurônios) e são responsáveis pela
transmissão de mensagens sensoriais. É importante frisar que as drogas não criam neurotransmissores e sim
os alteram e ou ativam, nessa química pode haver destruição de neurônios. O álcool se encontra no grupo dos
psicotrópicos depressores, ou seja, é uma droga desinibidora e euforizante como os tranqüilizantes, os
barbitúricos, os opiáceos e inalantes. Sobre esse assunto cf. LONGENECKER, Gesina.L. Como agem as
drogas. O abuso das drogas e o Corpo Humano. São Paulo. Quark Books. 1998. O álcool de uma maneira
geral (em especial o vinho) já foi utilizado como remédio entre o final do século XIX e inicio do XX, para o
tratamento de inflamações, febres, entre outros aspectos.
70
Segundo BARTHES, Roland. In Mitologias. Rio de Janeiro. Difel. 1978.p.10 “mito é uma fala, não uma
fala qualquer, e sim uma mensagem formada por um conjunto de elementos, que tomam forma e passam a ser
representações”.
55
papel couche”
71
, as angústias, os medos e as dores que também faziam parte daqueles
tempos e isso não ocorreu somente na simbologia referente ao álcool.
A maioria das propagandas, principalmente aquelas em que aparecem pessoas,
foram feitas através de desenhos ao invés de fotografias. Isso se deve ao fato de que o
recurso fotográfico exigia uma produção mais cara e detalhada, enquanto os desenhos
podiam ser mais facilmente trabalhados tecnicamente, reproduzindo visualmente uma
sociedade de indivíduos idealizados
72
.
Esses discursos passaram a ser concebidos como sinônimos culturais que se auto-
designavam como modelos de superioridade e daquilo que o autor Ivan Illich
73
chamou de
“casulo protetor”.
Através das fontes de análise, ficou visível que o estilo de vida norte-americano
infiltrado no Brasil podia oferecer escapes fabulosos, mas não podia dar soluções concretas
para os problemas sociais e individuais dos seres humanos, dessa forma, o clichê “Anos
Dourados” também tinha um outro lado, marcado pela angústia da época em decorrência de
um clima de desilusão e insegurança absorvidos por uma geração pós-guerra que via sua
felicidade projetada no plano etéreo, talvez inatingível.
Portanto, a dor, o mal-estar e os problemas existiam como em qualquer sociedade
humana, mas tinham de ser evitados, já que o homem devia evitar a dor para ser saudável,
trabalhador, bem sucedido e feliz, enfim, normatizado na sociedade industrial capitalista.
As propagandas revelam o álcool de forma atraente e sedutora, pois a própria bebida
expressa símbolos de vitória e bem-estar, sendo usado geralmente para todo o tipo de
comemoração, como foi observado nas reportagens que trazem vencedores de corrida de
automóveis abrindo uma garrafa de champanhe, noivos bebendo um na taça do outro,
natais, anos novos, entre outras datas comemorativas, todas regadas a álcool.
Isso trouxe a seguinte reflexão que a sensação de embriaguez deu maior
competência para suportar a felicidade tão divulgada (mas nem sempre experimentada) ou
71
Essa expressão “mundo em papel couche” é do autor NETTO, Acioly que intitula com essa expressão o
segundo capítulo de seu livro: O Império de papel. Os bastidores de O Cruzeiro.Porto Alegre. 1998.
72
A revista e suas propagandas contêm um estilo editorial visual que procura projetar as expectativas sociais,
valorizando a aparência, o culto à imagem como expressões verdadeiras, divulgando valores da camada média
urbana e burguesa, revestidas pela sedutora “Aura Dourada”. “No limite, a propaganda nos traz uma
dimensão ideológica sobre o Brasil daqueles tempos que a historiografia tradicional não soube se
desvencilhar”. cf. GODOY, Alexandre P. Imagens Veladas: a sociedade carioca entre o texto e o visor. 1952-
1957. PUC. São Paulo. 2000. p.156.
73
ILLICH, Ivan. op.cit.
56
para “atingi-la” artificialmente de forma mais rápida. Dor e sofrimento aparentemente não
couberam dentro daquela temporalidade estigmatizada de dourada e representada de forma
fabulosa pelas propagandas.
O álcool foi apresentado como a própria descoberta do prazer, bem-estar e
satisfação, elementos observados na propaganda do uísque Special Monder.
É interessante notar que desde 1888 a bebida está no mercado proporcionando
prazeres e deleites. Para que todos pudessem usufruir desses “benefícios”, o anúncio traz o
endereço para contato com o distribuidor da bebida, tornando-a acessível, já que para esse
período o encontro com o prazer fez parte constitutiva da imagem dourada e espetacular
daqueles anos conforme deixa explicito a imagem a seguir.
57
Imagem 11. Fonte: O Cruzeiro, 31 de julho de 1954. Rio de Janeiro. p.20.
58
Imagem 12. Fonte: O Cruzeiro, 24 de dezembro de 1955. Rio de Janeiro. p.02.
A imagem traz uma garrafa de bebida que sugere uma sensação de frescor, esta é
oferecida numa taça que goteja e convida a ser degustada. A imagem é acompanhada de
frase e texto que complementam a sedução.
A sensação de frescor e bem-estar, que pode ser proporcionada pela bebida,
complementa a frase …essa agradável sensação de bem-estar que CINZANO oferece! o
texto faz apelo para que as pessoas experimentassem e sentissem a agradável sensação. Fica
visível o quanto a propaganda demonstra a bebida alcoólica como fonte de deleite, essa
mensagem é explícita nas frases: “Faça esta experiência com Cinzano e notará que
59
resultados surpreendentes...” “... Cinzano é leve, estimulante, aromático, oferecendo
uma agradável sensação de bem estar!”.
Percebe-se o quanto a propaganda desperta os estímulos sensoriais de prazer e
satisfação ao adjetivar a bebida como leve, estimulante e aromática. Os significados
emitidos foram de promessas de uma vida saudável e feliz que foi proporcionada aos
consumidores.
“Ao colonizar uma cultura tradicional, a civilização moderna transforma a experiência da
dor. Retira do sofrimento seu significado íntimo e pessoal e transforma a dor em problema
técnico. O sofrimento cessa então de ser aceito como contrapartida de cada êxito do homem
na sua adaptação ao meio e cada dor se torna sinal de alarma que apela para intervenção
exterior a fim de interrompê-la. Essa medicalização da dor reduz a capacidade que possui
todo o homem de se afirmar em face ao meio e de assumir a responsabilidade de sua
transformação, capacidade em que consiste precisamente a saúde (…) A civilização médica
engaja-se na redução do sofrimento aumentando a dependência”
74
.
A sociedade aqui analisada colocou ao ser humano a obrigação de ser vitorioso a
partir de elementos que traziam esses significados, como “bens” materiais, profissionais e
sensoriais, estar desprovido desses elementos significava o fracasso, cabia aos considerados
socialmente fracassados procurarem seu bem-estar através do consumismo de uma
variedade de produtos divulgados de maneira sedutora no mercado, entre eles o álcool, que
se utilizado com moderação e dentro das normas
75
, era aceito e até mesmo incentivado, por
isso lícito.
“Em uma sociedade dominada pela analgesia parece racional fugir a dor, literalmente a
qualquer preço, mais que lhe fazer frente. Parece razoável suprimir a dor, mesmo que isso
suprima a fantasia, a liberdade ou a consciência. Parece razoável se
libertar dos incômodos
impostos pela dor, mesmo que isso custe a perda da independência a medida que a analgesia
domina, o comportamento e o consumo fazem declinar toda a capacidade de enfrentar a dor,
índice de capacidade de viver. Ao mesmo tempo, decresce a dificuldade de desfrutar de
prazeres simples e estimulantes fracos. São necessários estimulantes cada vez mais
poderosos às pessoas que vivem em uma sociedade anestesiada para terem a impressão de
que estão vivas. Os barulhos, os choques, as corridas, a droga
76
, a violência e o horror
74
ILLICH, Ivan. op. cit. p. 127.
75
“A palavra latina norma significa esquadro – o esquadro do carpinteiro... nos anos de 1880 tomou na
América a significação de estado ou de condições habituais, não somente para as coisas, como para pessoas”
cf. ILLICH, Ivan. op. cit. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. p. 150.
76
“O termo droga tem origem na palavra droog do holandês antigo, significando folhas secas, isto porque, por
volta dos séculos XVI e XVIII a maioria dos medicamentos eram feitos a base de vegetais. E segundo a
Organização Mundial da Saúde ( OMS ) é toda substância que introduzida em um organismo vivo pode
modificar uma ou mais de suas funções. Na linguagem popular, droga tem um significado ruim, isto é, coisa
sem nenhuma qualidade. Já na linguagem médica droga é qualquer substância capaz de modificar a função
dos organismos vivos resultando em mudanças fisiológicas ou psíquicas. Portanto quase sinônimo de
medicamento”. cf. SANTANA, Guilherme. Caminho sem volta. São Paulo. Inter. 1998. p.03. Dessa forma o
60
continuam algumas vezes os únicos estimulantes capazes ainda de suscitar uma experiência
de si mesmo em seu paroxismo, uma sociedade analgésica aumenta a demanda de
estimulações dolorosas”
77
.
Em se tratando de saúde, um dos atributos a ser conquistado e mantido socialmente,
os discursos médicos
78
da época combatiam o abuso de bebida alcoólica, mas não
interferiam diretamente no uso como já demonstrado nas propagandas, ele foi estimulado.
Durante toda a década de 50 não existiu nenhuma interferência do ministério da
saúde nas propagandas analisadas como a frase: “Beba com moderação”, que só foi
utilizada nas propagandas publicitárias de bebidas alcoólicas décadas mais tarde.
Se esta frase estivesse contida nas propagandas da época o indício da falta de
controle ficava evidente, algo que iria contradizer a imagem fabulosa dos “Anos
Dourados”, e que em decorrência dos abusos da bebida alcoólica naqueles anos, como
também nos posteriores, foi necessária a incorporação da frase, onde o ser humano buscou
cada vez mais anestesiar seus problemas e conflitos não só no álcool, mas em outros tipos
de drogas experimentando lenitivos para atenuar o mal-estar.
No período analisado o álcool serviu como amenizador para os dramas e horrores
que foram gerados na guerra e tiveram suas repercussões no pós-guerra em todo o mundo,
isso potencializou a necessidade de afastar e de ocultar o incomodo das alterações tanto da
forma, quanto do conteúdo que a vida estava sofrendo, o que modificou as relações entre as
pessoas.
Os próprios conteúdos ideológicos
79
pelas suas formas apelativas ansiosas pela
hegemonia causavam todo esse mal-estar.
termo droga varia de significado a partir de conceitos morais, os costumes culturais são os quais determinam
o sentido lícito ou ilícito de uma substância.
77
ILLICH. op. cit. p. 140. A presente reflexão a respeito do uso de drogas, entre elas o álcool demonstram
que os adictos ou drogadictos, termos que atualmente são utilizados para classificar os dependentes químicos
e ou psíquicos, buscam na droga exatamente significados contrários a morte. “Como já disse não era um
novato no consumo da droga, mas fosse devido as minhas depressões cotidianas na cidade natal, a um círculo
mesquinho de relações ou a locais inadequados... Deitei-me na cama li um pouco e fumei... em meio a
centenas de milhares de habitantes dos quais nenhum me conhecia, eu desfrutava da absoluta certeza de
refugiar-me em meu devaneio, sem qualquer incômodo. Mas o efeito tardava... comecei a suspeitar da
qualidade da droga... Assaltou-me um pavor de morte”. cf. BENJAMIN, Walter. Haxixe. São Paulo.
Brasiliense. 1984. p.p. 19-20.
78
Para construir a presente reflexão a respeito da bebida alcoólica e sua utilização, foi necessário conhecer
parte do que os médicos pensavam sobre o assunto, dessa forma seus discursos serviram como fontes
complementares até mesmo porque os conceitos alcoólatra e alcoolismo são historicamente construídos. Eles
foram analisados neste trabalho através do referencial teórico do autor Ivan ILLICH na obra A Expropriação
da Saúde Nemêsis da. Medicina. op. cit., entre outros autores.
79
Dos conteúdos ideológicos baseados no conceito de Karl Mannhein a ideologia é um conjunto das
concepções, idéias, representações, ou legitimação, ou reprodução e manutenção da ordem estabelecida. cf.
61
A industrialização, a modernização, a urbanização, entre outros fatores, extinguiu
aos poucos formas de sociabilidades que eram fundamentais para o estabelecimento das
relações humanas como por exemplo, as cadeiras nas calçadas, o reconhecimento dos
vizinhos, as solidariedades grupais e familiares entre outras, que foram atingidas pela
competitividade distanciando as pessoas de seus convívios e das relações mais humanitárias
e simples como nos versos de Mario Quintana.
“Havia um tempo de cadeiras nas calçadas. Era um tempo em que havia mais estrelas,
tempo em que as crianças brincavam sobre a clara bóia da lua. E o cachorro de casa era um
grande personagem. E também o relógio de parede! Ele não media o tempo, simplesmente
ele meditava o tempo”
80
.
O tempo cada vez mais se transformava em dinheiro, e a época retratada pelo poeta
se tornava, já na década de 50, cada vez mais distante, as pessoas ficaram cada vez mais
individualistas e foram assumindo papéis competitivos, valorizando cada vez a necessidade
de serem elegantes, sofisticadas, glamourosas, e bem posicionadas socialmente, mas a
sensação do mal estar da solidão se tornava presente, e por isso procuravam outras formas
de sociabilidades e maneiras para serem felizes, dando votos de saudação a um tempo
repleto de novidades e insatisfações.
LOWY, Michael, Ideologias e ciências sociais – elementos para uma analise Marxista. São Paulo Cortez,
1988. pp.11. Dessa forma os conteúdos ideológicos são concebidos como um conjunto de idéias, assimiladas
e ou elaboradas em sistema que exprimem a relação dos seres humanos entre si e com o seu meio.
80
QUINTANA, Mario. 80 anos de poesia. São Paulo. Globo. 1986.p.109. Os versos do autor remetem-se aos
anos de sua adolescência.
62
Imagem 13. Fonte: O Cruzeiro, 31 de junho de 1954. Rio de Janeiro.p.71.
63
Assim é (quase) impossível resistir aos apelos de uma sedução bem construída que
convida – sempre muito gentilmente, delicadamente, ardilosamente – ao desfrute de
responder ao desafio e aceitar e estabelecer signos sem sentido e compactuar com o sedutor
os sonhos, as fantasias, e os desafios deste”
81
.
Estas reflexões da autora por si sintetizam as análises das propagandas
demonstradas especialmente na de número treze apresentada na página anterior, onde um
homem bem apresentável e feliz saúda com o cálice de bebida alcoólica a cordialidade, a
amizade, a comunhão, enfim as relações afetivas, significados que estão nítidos no texto
CINZANO é a bebida tradicional da cordialidade… entre amigos no bar, ou com a
família no lar…”.
Por isso essa autora foi pertinente diante do trabalho com imagens, porque suas
análises sobre as propagandas auxiliaram a compreender os significados sedutores
encontrados nas mercadorias, nos produtos e nos valores que expressam a maximização da
felicidade.
Estes elementos sedutores foram exatamente o que mais os indivíduos do período
careciam para preencher seus vazios derivados da dificuldade de estabelecer relações
humanas mais simples e menos competitivas, por causa disso, aquela “gente fina, elegante e
sincera” procurou fórmulas de anestesiar seu mal-estar frente aos tempos modernos,
fórmulas já (pré) determinadas pela cultura dominante. Afinal os “Anos Dourados”
precisavam irradiar sua cor, refletir o seu brilho de forma legítima, solidificando o clichê
que demarcou aqueles anos com toda a simbologia que ajudou na constituição da felicidade
idealizada.
1.3 – “Gente fina, elegante e sincera” procura…
Os símbolos da maximização da felicidade, foram expressões de maior divulgação
nos meios de comunicação do período. A maior característica que expressa os anos 50 é o
glamour, palavra carregada de sentidos, que permite identificar a época devido sua extrema
visibilidade. O glamour esteve presente nas roupas, nos acessórios e nos gestos, fazendo
brilhar com maior intensidade o dourado daqueles anos.
As expressões glamourosas dos anos 50 ajudaram a construir o imaginário que a
própria época propôs solidificar. Compreende-se por imaginário o lugar onde se fixam as
81
MIQUELIN, Maria Ap. Espíndola. op. cit. p. 32.
64
expectativas, as aspirações, os medos, os conflitos, entre outros elementos, formulados
através das vivências e experiências humanas e que passam a ficar guardadas nas mentes,
produzindo imagens e representações.
“O imaginário é o além multiforme e multidimensional de nossas vidas, no qual se banham
igualmente nossas vidas. E o infinito jogo virtual que acompanha o que é atual, isto é
singular, limitado e finito no tempo e no espaço. É a estrutura antagonista e complementar
daquilo que chamamos real, e sem a qual, sem dúvida, não haveria o real para o homem, ou
antes, não haveria realidade humana (…) Dá uma fisionomia não apenas a nossos
desejos, nossas aspirações, nossas necessidades, mas também às nossas angústias e
temores. Liberta não apenas nossos sonhos de realização e felicidade, mas também nossos
monstros interiores, que violam os tabus e a lei, trazem a destruição, a loucura ou o horror.
Não só delineia o possível e o realizável, mas cria mundos impossíveis e fantásticos.
Pode ser tímido ou audacioso, seja mal decolando do real, mal ousando transpor as
primeiras censuras, seja se atirando à embriaguez dos instintos e do sonho”
82
(grifo
nosso).
As reflexões de Edgar Morin foram pertinentes para a realização de uma análise
crítica através das aparências fabulosas divulgadas em especial pela revista O Cruzeiro que
possibilitou assim entrar nos bastidores da época.
“A cultura de massa se constitui em função das necessidades individuais que emergem. Ela
vai fornecer à vida privada as imagens e os modelos que dão forma a suas aspirações
(…) onde reinam a aventura, o movimento, a ação sem freio, a liberdade, não a liberdade no
sentido político do termo, mas a liberdade no sentido individual, afetivo, íntimo da
realização das necessidades ou instintos inibidos ou proibidos”
83
(grifo nosso).
Na fisionomia daqueles anos em que o glamour se destacou na formação de seu
conjunto, duas características chamaram a atenção: a modernização e o amor.
As temáticas divulgadas pela cultura industrializada ou de massa, como coloca
Morin para os países capitalistas, através do cinema, dos jornais, das revistas e demais
meios utilizados para a sua divulgação, correspondem depois da Segunda Guerra Mundial,
aos desenvolvimentos das sociedades ocidentais. Esses desenvolvimentos, conforme
explica Nicolau Sevcenko, foram amplamente difundidos:
“Nos períodos de prosperidade e grande diversificação de consumo como após a Segunda
Guerra, o cinema se tornou a vitrine por excelência da exibição e glamourização (…) Ele é
o irradiador dos modelos que se convertem numa ampla demanda atendida pela invasão
crescente dos plásticos, polímeros, náilon, raion, banlon, blue jeans, acrílico, acetatos, (…)
fórmicas, courvin, (…) napas, etc. Materiais, todos esses, que tinham a imensa vantagem de
ser produzidos em massa, ser baratos, resistentes, multicoloridos e democratizar o acesso a
82
MORIN. Edgar. Cultura de Massas no século XX. Op.cit. 1967.p.80.
83
MORIN, idem.ibdem. p. 90.
65
um enorme acervo de bens utilitários, eletrodomésticos, móveis, estofados, tapetes e
carpetes para grupos sociais que não teriam condições de adquirir madeiras nobres, cristais,
porcelanas, veludos, sedas, tapeçarias e tecidos finos (…) As casas passam a ser
basicamente iguais, as pessoas executam basicamente os mesmos movimentos durante as
mesmas rotinas e se parecem elas mesmas muito umas com as outras”
84
.
O cinema, a televisão e a propaganda publicitária, seja ela visual, radiofônica ou
impressa, permitiram que aos poucos se desenvolvesse modificações nos hábitos da vida
cotidiana, somadas às técnicas e a elevação das possibilidades de consumo das camadas
médias, o que resultou num exacerbado grau de individualismo e na geração da existência
do homem carregado de valores modernos.
A padronização de determinados hábitos, motivados pela revolução técnico -
cientifico e industrial que iniciou-se nos fins do século XVIII e desenvolveu-se durante o
século XIX , continuando no século seguinte, generalizou a economia de mercado que
passou a delinear as características da modernização entre elas: o espírito de cálculo, o
desencantamento do mundo, a racionalidade instrumental e a dominação burocrática.
O desenvolvimento rápido dessas características somado a urbanização, ao
aglomerado de pessoas nas multidões mais os meios de transportes e as telecomunicações,
provocaram exatamente o individualismo e o isolamento, criando muitas vezes relações
humanas efêmeras, descartáveis, frágeis, superficiais e aparentemente perfeitas. Como a
vida dos bonecos de plástico
85
, que têm tudo o que os seres humanos almejaram ter na vida
real: roupas, acessórios bonitos e da moda, carros, casa, móveis, eletrodomésticos
modernos, juventude, beleza e uma relação amorosa bem sucedida.
A boneca Barbie e seu companheiro Ken foram símbolos glamourosos da
modernização e dos romances, que compõe a face dos dourados anos, quase esquecendo
que eles são de plástico, e não humanos.
Os dois aspectos que chamaram a atenção (a modernização e o amor) estão também
presentes nas propagandas analisadas, nas quais as pessoas procuravam fugir do
desencantamento do mundo e satisfazer seus anseios, divulgados, explicitados e recriados
84
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio.op.cit.pp.602-603.
85
NICOLAU. Sevcenko. Na obra História da vida privada no Brasil. op.cit.p.510, se refere a boneca Barbie
“que passou a ser símbolo da euforia do consumo de massa e o advento, após a Segunda Guerra Mundial, de
uma cultura plástica em todos os sentidos da expressão” e o autor ainda na página 609 da mesma obra
comenta “… o grosso da publicidade e as diferentes formas de ficção que circulam na cultura massificada. É
assim com os brinquedos também, ao menos se observarmos pelo viés da campeã mundial e indisputável de
vendas a boneca Barbie. Um dos slogans de promoção da célebre criatura é “Eu quero ser como a Barbie, ela
tem tudo”.
66
dentro da cultura industrializada. As propagandas, especificamente as de bebidas
alcoólicas, não fogem à regra da estética
86
glamourosa, moderna e romântica da época, elas
revelam a maneira como aquela sociedade procurou resolver ou recusou reconhecer
francamente as questões que a incomodavam.
Através da embriaguez dos instintos e do sonho
87
, procurou-se modos de vida que
foram divulgados pelas revistas, pelo cinema, entre outros veículos de comunicação. Dessa
forma, foi se construindo o imaginário popular da época, privilegiando a glamourização
através de temas tão explícitos na década de 50.
As propagandas publicitárias e os assuntos encontrados nos exemplares da revista
O Cruzeiro, visaram satisfazer os interesses de seu público de forma a obter o máximo de
consumo dos produtos anunciados como também da própria revista, embora a pesquisa do
IBOPE
88
demonstre que a maioria do público leitor foi o de classe média alta, a revista
como outras do período também se dirigiu as outras classes sociais através de temas que
fossem interessantes, procurando homogenizar os padrões sociais pré-estabelecidos apesar
da heterogeneidade e subjetividade do público. Edgar Morin chamou essa tentativa de
homogeneização de sincretismo.
“Sincretismo é a palavra mais apta para traduzir a tendência a homogeneizar sob um
denominador comum a diversidade de conteúdos. O cinema a partir do reinado da longa
metragem, tende ao sincretismo. A maioria dos filmes sincretiza temas múltiplos no seio
dos grandes gêneros: assim num filme de aventura haverá amor e comicidade, num filme
de amor haverá aventura. Ao mesmo tempo, porém, uma linguagem homogeneizada (ainda
que uma infinidade de formas fosse possível) exprime esses temas. O rádio ao sincretismo
variando a série de canções e programas, mas o conjunto é homogeneizado no estilo da
apresentação dita radiofônica. A grande imprensa e a revista ilustrada tendem ao
sincretismo se esforçando por satisfazer toda a gama de interesses, mas por meio de uma
retórica permanente”
89
.
86
Segundo Morin “A cultura de massa é, sem dúvida, a primeira cultura da história mundial a ser tamm
plenamente estética… eu não defino a estética como a qualidade própria das obras de arte, mas como um tipo
de relação humana muito mais ampla e fundamental… Produzida industrialmente, distribuída no mercado de
consumo, registrando-se principalmente no lazer moderno, a cultura de massa se apresenta sob diversas
formas de espetáculo. É através dos espetáculos que seus conteúdos imaginários se manifestam. Em outras
palavras, é por meio do estético que se estabelece a relação de consumo imaginário”. cf. Morin, op.cit.pp.77-
78.
87
MORIN, Edgar. op. cit.
88
O Instituto Brasileiro de Opinião Publica e Estatística (IBOPE) apresentou uma pesquisa sobre circulação e
estudo de Superposição de Revistas Semanais na década de 50, apresentando os seguintes resultados sobre a
leitura de “O Cruzeiro” 68% dos homens, 50% das mulheres. Quanto a sua penetração nos grupos de
diferentes faixas de renda: 29% classe A, 31% classe B, 22% classe C, 18% classe D. Fonte Arquivo Edgar
Leurenroth. Unicamp. p. 3 op. cit. cf. citação 51.
89
MORIN, Edgar. op.cit.p.36.
67
É exatamente por causa da heterogeneização social, que a cultura industrial/de
massa trouxe e ainda traz consigo a tendência de ser sincrética, eclética e homogenizadora,
e foi desenvolvida no meio do mercado mundial. Uma questão pertinente a análise é que
elementos do campo fílmico hollywoodiano estão presentes na constituição das
propagandas, não somente nas de bebidas alcoólicas com a intenção de homogenizar
valores e atitudes.
Entre os elementos do campo fílmico estão o glamour e o close-up, somados as
expressões faciais estigmatizadas de artistas hollywoodianos, como também é visível seus
próprios rostos estampados nas propagandas. Por exemplo, a propaganda publicitária dos
sabonetes Lever, ilustrada na imagem.
68
Imagem 14. Fonte: O Cruzeiro, 25 de agosto de 1957. Contra capa.
69
Nesta propaganda de forma espetacular o rosto da Elizabeth Taylor é um elemento
que chama a atenção, as palavras também são atraentes, pois representam o conselho da
atriz e parece soar como a voz da verdade sobre o sabonete e seus efeitos. “Seja mais
adorável esta noite diz Elizabeth Taylor”, como diz também nove entre dez estrelas de
cinema. O sabonete que é um produto de higiene passou a ser também um produto de
beleza e sedução como diz a frase ao lado do casal: “Você poderá cativa-lo com uma cútis
suave e deliciosamente perfumada”. Siga as estrelas: “use Lever e seja mais adorável esta
noite”.
Mas a propaganda não se esqueceu dos elementos necessários a uma sociedade que
estava se modernizando, o anúncio mostra o sabonete como uma novidade no mercado,
além dos elementos sedutores (ser romântico, inebriante, fino e com luxuoso perfume), ele
não deixa de ter uma embalagem prática e uma espuma rápida e econômica.
“Os canais midiáticos organizam e simultaneamente criam elementos na medida em que os
signos do âmbito cinematográfico, circulando por outros campos que não os dos filmes,
produzem o que seriam “ideais de vida”. Ao dizer que organizam não se infere que os
elementos estão desorganizados e necessitam receber uma “forma”, mas que tipificam, ou
seja, sedimentam tipos quando os apresentam (…)”
90
.
A análise das propagandas centrou-se nas simbologias das imagens como
divulgadoras de soluções fáceis e agradáveis para as dificuldades humanas. Embora seja
importante frisar que não é desconsiderável a heterogeneidade do público que visualizou as
propagandas de bebidas alcoólicas entre outras, como também sua capacidade de
assimilação daquilo que foi propagado de forma extremamente sedutora para atingir o
maior número possível de pessoas que deveriam compor a massa humana.
Segundo Martin Barbero em diálogo com Gustave Le Bon:
“Mas que é uma massa? E um fenômeno psicológico pelo quais os indivíduos por mais
diferentes que seja seu modo de vida, suas ocupações ou seu caráter estão dotados de uma
alma coletiva que lhes faz comportar-se de maneira completamente distintas de como o
faria cada individuo isoladamente”
91
.
Mas é pertinente a observação de Walter Benjamin ao afirmar que não é possível
entender o que se passa com as massas, sem considerarmos suas experiências distintas.
90
MENEGUELLO, Cristina. Poesia de Estrelas. op. cit. p. 35.
91
BARBERO. Op.cit.p.
70
“Dentro de grandes espaços históricos de tempo se modificam, junto com toda a experiência
das coletividades, o modo e a maneira de sua percepção sensorial; busca se então manifestar
as transformações sociais que acharam expressões nessas mudanças da sensibilidade. E que
mudanças concretamente estudou Benjamin? As que vem produzidas pela dinâmica
convergente das novas gerações da massa e as novas tecnologias de reprodução … Aí está
tudo: a nova sensibilidade das massas e a da aproximação, isso que para Adorno era o signo
nefasto de sua necessidade de devoração e rancor resulta para Benjamin um signo sim, mas
não de uma consciência acritica, senão de uma longa transformação social, a da conquista
do sentido para o idêntico mundo. E é esse sentido, esse novo sensorium é o que se expressa
e se materializa nas técnicas … antes para a maioria dos homens, as coisas e não só as de
artes, por próxima que estivessem, ficavam sempre longe, porque um modo de relação
social lhes fazia parecer distantes. Agora, as massas sentem próximas com a ajuda das
técnicas, até as coisas mais longínquas e mais sagradas”
92
.
Envolvidas pela sensualidade, as propagandas possuem um alto poder que foi
gerador de gestos, necessidades e opiniões dentro daquela sociedade carregada de conflitos
e tensões, onde as pessoas procuravam referenciais para suas vidas apegando-se a mitologia
divulgada no período. As revistas conviviam com outras instâncias de produção de
subjetividade e com a divulgação de temas repetitivos para a fixação de valores.
Os efeitos do poder, que é divulgador de gostos, necessidades e opiniões, não
podem ser vistos apenas do ponto de vista negativo com suas características excludentes,
repressoras e manipuladores, mas também deve-se considerar que o poder faz parte da
produção da realidade e da constituição das formas sobre a verdade, sejam elas explícitas
ou sutis Como entende Michel Foucault:
“(…) ás práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente
fazem aparecer novos objetos, novos conceito, novas técnicas, mas também fazem nascer
formas totalmente novas de sujeitos (…) O próprio sujeito (…) tem uma história, a relação
do sujeito com o objeto ou mais claramente, a própria verdade tem uma história (…) Um
dia alguém teve a idéia bastante curiosa de utilizar um certo número de propriedades
rítmicas ou musicais da linguagem para falar, para impor suas palavras, para estabelecer
através de suas palavras uma certa relação de poder sobre os outros. Também a poesia foi
inventada ou fabricada (…) Foi por obscuras relações de poder que a poesia foi inventada
(…) O historiador não deve temer as mesquinharias, pois foi de mesquinharia em
mesquinharia, de pequena em pequena coisas, que finalmente as grandes coisas se
formaram”
93
.
Portanto ao veicularem símbolos, as propagandas através da revista O Cruzeiro,
produziram verdades potencializadas em forma de mitos.
92
BARBERO. Op.cit.pp.73-74.
93
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro. Editora Departamento de Letras.
PUC-RJ. 1996. pp. 8-16.
71
“Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos
tempos, Todos nós precisamos contar nossa história. Todos nós precisamos compreender
(…) Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o eterno, compreender o
misterioso, descobrir o que somos (…) Mitos são pistas para as potencialidades da vida
humana”
94
.
As verdades construídas naquele tempo trouxeram consigo a confiança em um ideal
que foi procurado por aqueles que precisavam de referenciais que aliviassem o mal-estar
experimentado no pós-guerra, sobre tudo em metrópoles como São Paulo. A falta de
horizontes, os grandes impactos de mortes, a violência e os traumas, foram assim
retrabalhados pela mitologia, expressa e impressa pela cultura industrial/de massa.
Conforme esclarece Morin:
“(…) seu funcionamento segundo uma dialética entre o sistema de produção cultural e as
necessidades culturais dos consumidores, ou seja, ela se adequa tanto aos imperativos
industriais quanto ao mercado (as necessidades e expectativas dos consumidores) (…) A
cultura de massa constitui um corpo de símbolos, mitos e imagens concernentes a vida
prática e à vida imaginária, um sistema de projeções e identificações específicas, que
desempenham um papel consolador e regulador da vida. Essas características comuns a toda
e qualquer formação cultural, ganham um formato específico ao serem adaptados a estrutura
industrial que rege o século vinte”
95
.
As propagandas de bebidas alcoólicas apresentam valores que caracterizam a época
através de cores e gestos e demonstram o que se procurou encontrar como forma de vida
ideal.
Primeiro é importante ressaltar que lidar com as cores
96
é uma tarefa que pede
delicadeza, atenção e sensibilidade, apesar de prazeroso é um trabalho bastante exigente e
não muito fácil, porque apesar de serem passíveis de leitura e interpretação os fatores
ligados as cores estão intimamente relacionados às questões biológicas e sobretudo
culturais.
“Elegemos a Semiótica da Cultura como o espaço para tal realização, quando nos
propusemos a conciliar o estudo das cores com as informações dos três tipos de códigos da
comunicação apresentados pelo semioticista tcheco Ivan Bystrina. Como facetas da
construção da comunicação, os três tipos de códigos participam na construção da
informação cromática, em níveis diferentes. Dos códigos primários, fundamentamos a base
94
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo. Palas Athenas. 1993. p. 140.
95
MORIN, Edgar. Cultura de Massa no século XX. op. cit. pp. 47-51.
96
“A palavra cor expressa uma sensação visual que nos oferece a natureza através dos raios de luz irradiados
em nosso planeta, as cores não são somente elementos decorativos elas tem relação com valores sensuais e
espirituais”. Sobre esse assunto cf. FARINA, Modesto. Psicodinâmica das cores em comunicação.São
Paulo.E.Blucher. 1982.
72
uniforme para a predisposição humana à leitura das cores. Da construção físico – química
dos estímulos à percepção e cognição da informação cromática extraímos padrões
universais e os códigos e sistemas de regras hereditariamente determinados. A percepção da
cor, como um complexo de regras, no que se refere aos códigos primários, é praticamente
invariável. A partir da descrição e da análise dessas invariantes e das suas
particularidades… da linguagem das cores, dos códigos secundários, é estabelecida
tomando-se por base essas características dos códigos primários, que, embora se originem
das mesmas raízes, podem ser determinadas por sistemas de regras diferentes. Apesar da
mesma base, a organização é arbitrária e permite o surgimento de variáveis que é
cultural”
97
.
Os códigos de comunicação primários estão relacionados ao aspecto biofísico, já os
códigos de comunicação secundários estão relacionados a percepção da cor e os códigos de
comunicação terciários estão relacionados ao significado sócio cultural da cor e que os
códigos de comunicação primários, secundários e terciários interferem dinamicamente entre
si como por exemplo: os primários interferem nos secundários, os primários interferem nos
terciários, e os secundários nos primários, os secundários nos terciários, os terciários nos
primários, os terciários nos secundários
98
estabelecendo uma dialética.
A preocuparão deste trabalho está centrada no aspecto cultural da informação
passada pelas cores em um determinado tipo de sociedade, capitalista e ocidental, somada a
um sistema de ideais socialmente compartilhados em um determinado período, é importante
esclarecer essa questão porque a análise das cores é passível de polissemia, ou seja, de
muitas interpretações.
“Sabemos, por exemplo, que o preto é cor do luto e da tristeza na maioria das culturas
ocidentais, enquanto que na China o luto se representa em branco. Nesse caso a noção de
cor é a mesma, o preto como cor negativa e o branco como positiva, o que modifica seu uso
é a percepção da morte naquela cultura, entendida como elevação espiritual, e do
nascimento quase um castigo”
99
.
As primeiras percepções e noções que o ser humano possui das cores estão
relacionados aos primeiros contatos com a natureza e o mundo que o cerca, assim ele vai
realizando associações com aquilo que os elementos naturais representam culturalmente.
“A cor sempre fez parte da vida do homem: sempre houve azul do céu, o verde das árvores,
o vermelho do por do sol (…) O homem se adapta à natureza circundante e sente as cores
que o seu cérebro acata e que chegaram a ele numa determinada dimensão de onda desde o
seu nascimento. Essa dimensão de onda deixa sempre seu vestígio impresso em cada ser
97
GUIMARÃES, Luciano. A cor como informação. São Paulo. Anablume.2000.pp.107 a 112.
98
Idem. Ibdem.
99
Idem.p.100.
73
animal, vegetal ou mineral. As cores constituem estímulos psicológicos para sensibilidade
humana, influindo no indivíduo para gostar ou não de algo, para negar ou afirmar para se
abster ou agir… As cores fazem parte da vida do homem porque são vibrações do cosmo
que penetram em seu cérebro, para continuar vibrando e impressionando sua psique
(…)”
100
.
Na revista o Cruzeiro do período analisado, as cores foram marcantes possibilitando
esse trabalho, a leitura aqui realizada retirou as mensagens mais significativas que
expressavam os valores sensoriais que pareciam urgentes de propagação no período, com
uma enorme variedade de propagandas nas revistas, os valores que envolviam a novidade, a
conquista, a saúde, a beleza, a alegria, a juventude, a elegância, o encanto, a sedução, o
prazer, a amizade, entre outros foram aparecendo e em sua maioria todas as propagandas
não somente as de bebidas alcoólicas deram ênfase às relações sociais onde as temáticas
ressaltam a necessidade de se estabelecer vínculos de afetividade. Dessa forma aquela
“gente fina, elegante e sincera procurou…”.
100
FARINA, Modesto.op.cit.p.112.
74
Imagem 15. Fonte: O Cruzeiro, 24 de setembro de 1955. Rio de Janeiro. p.91.
75
A cena desta propaganda tem como tema o baile onde os casais dançam de forma
harmoniosa, os pares conversam, sorriem e trocam afetos. O ambiente é marcado pelo céu
em azul pontuado de estrelas que indica que é noite.
O cenário envolve as personagens através da cor azul (céu) e da cor verde (folhas)
que significa que o ambiente é amistoso, pacífico e propício às relações afetivas.
A vestimenta dos homens que dançam em sua maioria é marcada pela cor preta que
neste caso tem a conotação de elegância e sobriedade, três homens aparecem usando a
tonalidade verde e verde azulado que aqui pode ter como significado persistência,
esperança, firmeza, desejo e coragem como o caso dos rapazes que conversam com a moça
de vestido cor de rosa, a imagem representa um “clima” de paquera onde o olhar da moça
está voltado ao rapaz de verde-azulado onde a mistura das cores verde com azul favorece o
desencadeamento das paixões
101
.
As mulheres possuem vestes de várias cores, é notável as tonalidades da cor amarela
com listras na cor vermelha no vestido da moça que dança do lado esquerdo da imagem,
como também uma das moças com um vestido vermelho-alaranjado, essas cores traduzem
o significado de gozo, espontaneidade, euforia e desejo.
O verde além de representar o desencadeamento das paixões (inclusive no vestido
da moça que dança de rosto colado com o seu par), nas vestes da moça que dança sorrindo
expressa o bem-estar e a esperança.
A cor rosa além de feminilidade simboliza a possibilidade do encontro e da
aproximação.
O vermelho além de ser a cor do batom e do esmalte representando à conquista, a
paixão, a alegria, também é a cor da primeira letra (u) do “slogan” da propaganda como
também da própria bebida servida nos cálices. O álcool aqui vem como um elemento que
facilita a aproximação entre as pessoas e a conquista e rompe a timidez, significados que
também envolvem a primeira letra da frase.
Inclusive os dizeres “Uma agradável apresentação pede um brinde com Cinzano”
está sobre a cor amarela e tem como significado a expectativa, a euforia, a esperança e a
espontaneidade, como também traz o significado da luz que ilumina o que está oculto e
desconhecido. Aqui a moça é apresentada à alguém que não conhece, mas que a partir do
101
Sobre esse assunto cf.FARINA, Modesto. Psicodinâmica das cores.op.cit.p.114.
76
encontro aquele que era distante e desconhecido passa a ser próximo e conhecido, portanto
um primeiro vinculo é estabelecido e por isso merece ser brindado.
Na mesma propaganda temos o rosto de um garçom que apresenta a bebida em uma
garrafa com o rótulo onde predomina o vermelho aqui simbolizando a alegria, a conquista,
a energia, a intensidade e a vida. Ao lado da garrafa duas taças, que significa que o ato de
beber está vinculado ao relacionamento entre as pessoas, as duas taças indicam que no
mínimo duas pessoas estão compartilhando da bebida, tipifica também a comunhão entre as
pessoas que comemoram ou concordam com algo, demonstrando a necessidade de se
relacionar, inclusive nos dizeres “Nos momentos mais felizes… é a bebida da
cordialidade. Nas festas, em sua casa, no encontro com os amigos…
102
.
Imagem 16. Fonte: O Cruzeiro, 02 de dezembro de 1955. Rio de Janeiro. p.02.
102
A análise das cores nas propagandas não foi feita sobre o viés da publicidade e da marca do produto, por
exemplo: a marca Cinzano da Indústria de Bebidas Cinzano S.A com a logomarca escrito em branco sobre as
cores azul e vermelho e sim sobre o estímulo dado ao consumidor em relação a bebida. Como já foi dito a
análise se preocupou com os estímulos dados ao ato de consumir a bebida alcoólica e os seus significados,
independente da marca.
77
A propaganda da página anterior tem como tema central o natal, festa familiar e
amistosa. Já de início traz uma receita de ponche onde a bebida é utilizada como
ingrediente, além disso, ela é uma sugestão para presentear amigos e familiares.
As cores predominantes são o vermelho, associado ao amarelo e ao verde que juntas
traduzem a alegria, a extroversão, a esperança, o conforto, o bem-estar, a paz e a
abundância, sensações que devem ser encontradas no clima natalino entre amigos e
parentes.
A bebida está e é servida sobre recipientes prateados. A prata (metal refinado pelo
fogo) traz a idéia de requinte social, como também pureza e redenção, na simbologia
judaico-cristã o sacrifício de Jesus é identificado com a prata, como também a sua justiça
103
.
Para o catolicismo o natal é o nascimento de Jesus e para o cristianismo Ele é aquele que
nasceu para cumprir o projeto redentor da humanidade.
Percebe-se que as unhas femininas estão esmaltadas de vermelho, que é também a
cor dos frutos na imagem, que além de representar a aproximação entre as pessoas, também
representa a vida que nesta festa é comemorada. A imagem com os dizeres dá a idéia de
que a bebida é servida pela anfitriã a um homem e a uma mulher, o clima de
confraternização e comunhão é transmitido na propaganda.
103
Sobre essa simbologia cf. Bíblia de Estudo Almeida. São Paulo. Sociedade Bíblica do Brasil.
78
Imagem 17. Fonte: O Cruzeiro, 30 de junho de 1956. Rio de Janeiro. p.50.
79
Na propaganda visualizada na página anterior a alegria e o prazer de um encontro é
fixado, estimulado e até mesmo melhorado com a presença da bebida.
A imagem traz o casal que com alegria brinda o encontro, a intimidade, nota-se que
o par está sozinho, não têm outras pessoas na cena, o ambiente não é um bar ou uma boate.
Ela vestida de verde, saudável, tranqüila e feliz, ele com vestes em tons da cor
marrom, vermelho e branco que traduz vigor, masculinidade, estabilidade e alegria.
O ambiente na tonalidade do amarelo traduz a expectativa do encontro, da
possibilidade do romance, da espontaneidade e do prazer.
A bebida novamente vem na tonalidade do vermelho propicio à conquista, o azul da
frase “Nos bons momentos da vida” traduz a amizade, o amor, a confiança, a fidelidade,
exposta sobre o branco-azulado da toalha de mesa.
Novamente duas taças são apresentadas na bandeja, indicando que o ato de beber e
as sensações de leveza e estímulo proporcionadas pela bebida devem ser compartilhadas no
mínimo à dois.
A frase “Nos bons momentos da vida” indica que a bebida demarca aquele tempo
como inesquecível, mediante as sensações de leveza, estímulo, alegria e prazer que foram
oferecidos ao casal.
80
Imagem 18 Fonte: O Cruzeiro, 21 de dezembro de 1957. Rio de Janeiro. p.89.
81
Esta propaganda na página anterior de vinhos traz a bebida como sinônimo de vida,
prazer e saúde, qualidades observadas na frase “Um copo de vida com gosto de uva”, do
lado direito da imagem, como também nos dizeres que estão sobre a cor verde que neste
caso representa a saúde, o bem estar, o descanso e o equilíbrio, confirmado por um
especialista em vinhos.
A mulher como esposa e dona de casa teve como papel manter o lar com harmonia e
aconchego, ela foi responsável por agradar o marido que foi o seu provedor e chegava
cansado do trabalho, era dessa forma que devia recebe-lo com agrados e “mimos” e por isso
ela teve em troca o afeto, como demonstra de forma idealizada a relação do casal ao lado
esquerdo da imagem.
Já a figura central da propaganda apresenta uma dona de casa bela e feminina as
tonalidades da cor vermelha, branco e preto traduzem ao mesmo tempo a sedução ao lado
da dignidade e seriedade que moralmente era imposto a mulher. Apesar desses valores
morais a mulher na imagem expressa a necessidade de conquistar o homem mantendo-se
jovem e bela e surpreendendo-o com “pequenos gestos” os quais fariam a diferença no
casamento. Ela o espera com a mesa arrumada com a toalha na tonalidade do amarelo-
esverdeado expressando conforto, tranqüilidade e descanso.
Nas mãos segura dois cálices representando novamente que o ato de beber deve ser
compartilhado com outra pessoa, de preferência alguém especial.
82
Imagem 19. Fonte: O Cruzeiro, 09 de outubro de 1954. Rio de Janeiro. p.19.
83
Na imagem dezenove as bebidas Cinzano e Gin são apresentadas como sinônimo
de prazer, apesar de ter um único cálice oferecido pela moça de vestes esverdeadas que traz
o sinônimo de bem-estar, a cor também é visualizada na garrafa de Cinzano, já a tonalidade
do amarelo esverdeado da garrafa de Gin traz o sinônimo de gozo e tranqüilidade, os
dizeres: “Para realçar os encantos de uma reunião familiar ou para selar um encontro
entre amigos” mostram novamente que a bebida alcoólica estava vinculada aos
relacionamentos sociais dentro de padrões morais pré-estabelecidos, como também é
notável na imagem seguinte.
Imagem 20. Fonte: O Cruzeiro, 19 de outubro de 1957. Rio de Janeiro. p.23.
84
O vermelho domina o cenário central da imagem número vinte onde a bebida está
exposta sobre a mesa ao lado dos bombons e do pudim.
Além do vermelho as cores do amarelo, verde e do azul representam a alegria, a
vida, o bem-estar, a saúde, a amizade, o afeto e a comunhão entre as pessoas.
Imagem 21. Fonte: O Cruzeiro, 02 de junho de 1956. Rio de Janeiro. p.26.
85
O tema da propaganda número vinte e um é uma festa de aniversário que por si
mesma comemora a vida. Interessante notar que as vestes dos convidados estão todas nas
cores verde e azul, simbolizando a saúde, a paz, a abundância, a coragem, o afeto, a
amizade e a fidelidade, desejos e sentimentos que foram trazidos a aniversariante que a
ilustração demonstra ser a moça de vermelho que está ao lado esquerdo da imagem. Em
vermelho também estão as velas do bolo, as flores, a bebida e os cálices que representam a
alegria, a emoção, a extroversão e a própria vida, celebrados pela festa, estimulados e
revigorados pelo álcool.
Imagem 22. O Cruzeiro, 27 de fevereiro de 1954. Rio de Janeiro. p.19.
86
É interessante notar que na propaganda número vinte e dois há a ausência de
representações humanas explícitas como nas anteriores. Mas os dizeres: “Quando você
chegar para o almoço ou jantar… quando quiser surpreender agradavelmente sua visita…
quando quiser dar ao seu lar às suas recepções, às festas um toque de vida moderna e
elegante… é simples! Faça um dos 1001 drinques com Ron Merino!”. Isso somado as cores
do vermelho e do amarelo predominantes na imagem expressam o conforto, o gozo, a
juventude, a euforia, a comunicação e extroversão. Na privacidade do lar também foi
possível compartilhar do prazer, da cumplicidade, da descontração e da alegria presentes
nos bares, basta ter a bebida e os amigos que o bar se completa nos lares, apesar dos limites
morais aqui representados pelo equilíbrio do copo na mão do palhaço, a presença dessa
personagem também pode ser lida como uma festa familiar com a presença de crianças.
Imagem 23. Fonte: O Cruzeiro, 19 de dezembro de 1957. Rio de Janeiro. P.111.
87
A única imagem que foi encontrada de forma monocromática e com a fotografia (e
não desenho) de uma pessoa bebendo foi a de número vinte e três. A cor marrom que é
predominante simboliza nesse caso a sensualidade, o vigor e a resistência contra o
desconforto, à doença, o pesar e a melancolia dos tempos da guerra. De forma sedutora e
sóbria o homem gestualmente oferece o vinho que inaugura uma nova era, época das
novidades, mas ao mesmo tempo preserva os valores tradicionais expressos na frase. “Este
famoso vinho nobre, que durante tantos anos freqüentou as mais aristocráticas casas
do Brasil, volta a ser encontrado a vontade…”. Sobriedade, requinte e sofisticação
marcaram a época.
Imagem 24. Fonte: O Cruzeiro, 16 de março de 1957. Rio de Janeiro. Contra Capa.
88
Aqui na imagem vinte e quatro novamente o álcool está associado as relações
sociais, a afetividade e ao prazer. O cenário é uma praia, mas a temática é o turismo. A
paisagem vem representada por cores da própria natureza azul e branco para o céu e para o
mar, verde para vegetação. O sol com seus raios dão a tonalidade vermelho-alaranjado para
as rochas, areia e coqueiros, a vida é celebrada, a paz e o descanso são propícios.
Em uma mesa azul a moça de vermelho, feminina, alegre e comunicativa conversa
com dois homens um de vestes preto e branco e o outro de vestes esverdeadas, os três na
mesa representam o equilíbrio, a sobriedade, a elegância, a alegria, a comunhão e a
amizade.
O álcool funciona como um equalizador entre as pessoas, é um motivo a mais de
alegria e prazer, como na mensagem do texto o que está bom fica melhor ainda. As
propagandas de bebida alcoólica, independente da marca aqui analisadas trouxeram
mensagens correlacionadas à vínculos de afetividades entre as pessoas, a solidão não foi
encontrada nas propagandas.
Michel de Certau
104
alerta para o uso que as pessoas fazem das coisas que são
predispostas ao consumo, o autor adverte que a propaganda se adapta ao estilo de vida e
reflete em parte o cotidiano, ou seja, as propagandas analisadas não fixaram os aspectos
negativos da sociedade dentro da qual foram criadas e para a qual se dirigiam. A cor nesse
caso funcionou como auxilio ao conteúdo emocional expresso, e facilitou a assimilação de
uma mensagem de valores idealizados em contraste com outros tipos de sociabilidade onde
o álcool esteve presente como na boemia.
Nas propagandas analisadas foi eloqüente a expressão de valores relacionados a
vínculos afetivos ao lado da modernização social. Mas, muito mais do que isso, foi a
necessidade de se estabelecer relações.
As temáticas que foram apresentadas àquela sociedade, onde os símbolos
desembocaram no happy end, favoreceram a vida onírica, isso se deu quando as pessoas
procuravam o encantamento contra o desencanto e lhes foram apresentados: beleza, saúde,
juventude, alegria, vida, companheirismo, amizade, amor, enfim, felicidade e prazer de
forma fabulosa para que pudessem suportar os obstáculos apresentados pela vida real do
tempo presente daquele momento.
104
CERTAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis. Vozes. 1986.
89
A própria revista O Cruzeiro que esteve voltada intensamente para o
entretenimento, trouxe também os desajustes da época, são várias as reportagens com
fotografias sobre o cotidiano nacional e internacional com temas que falam do decorrer das
duas grandes guerras, suas conseqüências e sobre os dramas sociais que muitos viveram.
Nas páginas da revista encontram-se os escândalos, as tragédias e o sofrimento de
celebridades com reportagens que detalham os conflitos pessoais que se tornavam públicos,
como o caso da reportagem sobre Marlyn Monroe e outros artistas de Hollywood.
“A amargura e o nervosismo das filmagens logo foram esquecidos graças a força da
película. O filme estreou em dezembro de 1958, e a platéia riu do inicio ao fim. Enquanto
isso Marlyn perdia seu bebê em Nova York. Quanto mais quente melhor foi um imenso
sucesso e rendeu muito dinheiro para o estúdio. Por sua vez, a estrela, a grande vedete, esta
sozinha, perdendo mais uma vez o filho tão desejado, enquanto todos divertem com seu
trabalho… ou Marlyn parecia abusar dos barbitúricos, pois sofria muito. Sentia uma dor
constante nos rins, John Hurton abusava do cassino e perdia dinheiro todos os dias,
Montgomery Clift abusava do álcool, Clark Gable abusava do álcool e do cigarros… eram
esses atores que participavam do filme Os Desajustados”
105
.
É notório a insatisfação, o abuso alcoólico e de outras drogas na reportagem em
contraste com as sociabilidades expressas nas propagandas de bebidas alcoólicas.
Ao fugirem da dor
106
causada pelo mal-estar frente as sociedades normatizadas,
esses artistas passaram a ser conscientes de suas fragilidades e procuraram suas
sobrevivências no “bem- estar” dos lenitivos, entre eles o álcool esteve presente e foi
utilizado de forma diferenciada dos usos apresentados nas propagandas.
Dessa forma também foi encontrado nas reportagens outros artistas nacionais e
internacionais entre eles a cantora Maysa que em uma reportagem afirmou: “Eu canto meu
estado d’alma
107
.
Através das letras de canções
108
de Maysa é possível encontrar narrativas de uma
sociabilidade em contraste
com a sociedade normatizada.
105
Fragmentos da reportagem sobre a vida dos astros e estrelas de Hollywood encontrada na revista O
Cruzeiro. 06 de abril de 1958.
106
Segundo o autor Ivan Illich na obra A Expropriação da Saúde. Nemêsis da Medicina. op. cit. p. 134.
informa: “Quando experimento uma dor estou sempre consciente do fato de que se coloca um problema... A
dor é experimentada como sinal de uma carência de motivo, de perspectiva, de referencia, de presença. O que
não anda bem?, Por quanto tempo ainda?, Porque é preciso... porque devo eu…?
107
O Cruzeiro, 08 de janeiro de 1958.
108
Canção do latim cantione. 1 SF Designação comum a diversos tipos de composição musical popular ou
erudita, para ser cantada. 2 Composição escrita para musicais, um poema ou trecho literário em prosa,
destinada ao canto, com ou sem acompanhamento. Dicionário Aurélio. In LOPES, Eduardo Paulo. A
desinvenção do som. Leituras dialógicas do Tropicalismo. São Paulo. Ampoll Pontes Editora. 1999. p. 85.
90
Com seus estilos alternativos a normatização do uso da bebida alcoólica os
freqüentadores dos redutos boêmios estavam na busca do alívio do mal-estar através das
experiências etílicas, pois foi considerável a representatividade do álcool como expressão
do bem-estar presente no cotidiano da época, dentro e fora da boemia.
“A experiência clínica e a vida cotidiana mostra que diante da falta estrutural para
compensar a perda do objeto, o sujeito pode escolher o matrimônio com a garrafa ou
selecionar uma droga específica para o seu gozo a cocaína, a maconha, o crack, o haxixe,
objetos procurados para compensar a falta e transportar a angústia
109
”.
Dessa forma, foram desveladas as aparências fabulosas e maravilhosas que
caracterizaram os anos de 1949 à 1959, entre fascínios e decepções da década.
Foi encontrada na noite, nos bares, através das canções, a eterna procura da
felicidade que de tão idealizada e etérea, se mostrou inatingível, como cantou Maysa nos
versos de Felicidade Infeliz
110
. Com as canções e com a própria vida da cantora foi possível
entrar nos bastidores da década, atrás da cortina do fabuloso e maravilhoso espetáculo
dourado, através da noite inebriante.
109
WILSON, Mariana. O Brilho da Infelicidade. Rio de Janeiro. Escola Brasileira de Psicanálise. Kalimeros.
1998. p. 109. Esta citação é pertinente para o foco de análise que se debruça nas dores e insatisfações dos
relacionamentos afetivos na década de 50; porque as drogas também podem ser usadas para outras finalidades
como por exemplo, o LSD sigla do Ácido Lisérgico de Dietilamida nos anos 60 que foi utilizado para
expansão da mente nos movimentos de contracultura.
110
Felicidade, deves ser bem infeliz/andas sempre tão sozinha/nunca perto de ninguém… Felicidade infeliz.
Composição Maysa. Gravação Maysa. 1957.
91
Capítulo II – A noite inebriante: fascínios e decepções
Imagem 25. Maysa na boate Oásis com André Matarazzo e amigos nos anos 50. Fonte
Acervo da família Matarazzo in NETO, Lira Maysa só numa multidão de amores.
Caderno de imagens. p.7.
“Ao lado da 7 de abril há
muitos bares e cafés, onde
também o pessoal toma
caipirinha, batidas…”
Perseu Abrano
(Jornalista)
As altas horas da noite e as madrugadas paulistanas estiveram envolvidas por
sentimentos e sensações muito particulares ao período, bares e boates por muitas vezes de
ambientes esfumaçados eram freqüentados por pessoas que além do copo e do cigarro
carregavam consigo decepções e esperanças.
Muitos fizeram carreira artística como os cantores e instrumentistas, outros foram
fascinados por eles, naqueles encontros noturnos muitos músicos e cantores deram seus
primeiros passos na profissão.
92
As vozes masculinas e femininas cantavam as dores de amor, “estórias” que
derramavam lágrimas e reproduziam a vida amorosa de muitos freqüentadores da noite.
No inverno pelas madrugadas homens e mulheres usavam capas de gabardine
“idênticas” aos de Rick e Isa, representados por Humphney Bogart e Ingrid Bergman no
filme Casablanca, fascínios e decepções foram embalados ao som de “As time goes by
tema musical do filme.
A boate Oásis foi uma das primeiras casas sofisticadas e luxuosas da noite
paulistana, situada em um porão na Rua 7 de Abril, próxima a Praça da República, quando
desciam as escadas os freqüentadores encontravam um amplo salão com uma decoração
requintada e uma pista de dança, abria as vinte e uma horas e quando as atrações se
prolongavam fechava as dez horas da manhã.
Um outro lugar de requinte foi o bar Michel da Rua Major Sertório, por lá
passaram grandes nomes da música nacional e internacional, era freqüentado por
jornalistas, intelectuais e empresários, o compositor Antonio Maria, o jornalista Edgar
Muniz era um deles e a cantora Dolores Duran fez sua única apresentação na noite
paulistana nesse bar, além da apresentação da cantora Maysa, outros nomes de famosos
estiveram por lá. O bar era aconchegante com vários sofás.
Nessa época Paulo Vanzolini teve inspiração para compor a letra de Ronda,
gravada pela primeira vez em 1953.
“De noite eu rondo a cidade, a te procurar sem te encontrar…
Volto pra casa abatida, desencantada da vida…
Porém com perfeita paciência volto a te buscar…
Bebendo com outras mulheres, rodando dadinho, jogando bilhar
E nesse dia então vai dar na primeira edição cena de sangue num bar da Avenida
São João
111
”.
Nas proximidades da Avenida São João com a Avenida Ipiranga estavam o Bar
Brahma, o Capitain’s Bar, o Ok, o Cubadança e o Maravilhoso que antes foi um cabaré
chamado Wonder Bar e a luxuosa Baiúca antes localizada na Rua Major Sertório e depois
mudou-se para a Rua Cesário Mota, esses eram os preferidos lugares das rondas boêmias.
111
Ronda. Composição Paulo Vanzolini. Gravação Inezita Barroso. 1953.
93
A noite foi cúmplice de muitos de seus freqüentadores, as canções entoadas
denunciavam que a felicidade estava perdida no passado ou ainda seria encontrada.
As vozes dos sujeitos das canções em especial de Maysa, demonstram o
desencantamento e a procura de refúgio nesse tipo de sociabilidade dos bares, onde foi
possível desenvolver e compartilhar experiências e devaneios entre um café, um cigarro e
um trago.
2.1 – Um café, um cigarro e um trago
A preocupação em compreender o significado das drogas, em especial o álcool,
utilizadas contra as sensações desagradáveis tão próprias da vida moderna como: a
insegurança, o medo, a ansiedade, a fadiga e a tristeza usando como exemplo a vida da
cantora Maysa é o foco deste capítulo.
Muitas pessoas remetem o uso de drogas aos anos 60, quando elas funcionavam
como uma marca dos movimentos juvenis de contracultura
112
, estigmatizando o período.
Acontece que elas acompanham as experiências e vivências humanas, estão
presentes em diferentes “povos, tribos e nações” com diversos significados, até mesmo
religiosos. No caso desse estudo sobre o uso de drogas um aspecto foi relevante: a aliança
que o ser humano faz com elas em busca de satisfação e prazer negados ou minimizados
pela realidade da vida.
“Quando provei cocaína pela primeira vez, estava num ligeiro estado de depressão
provocado pela fadiga. Alguns minutos depois de a ter provado, senti uma alegria repentina
acompanhada de uma sensação de bem-estar. Tem-se a impressão de adquirir maior auto
domínio, mais vitalidade e de poder trabalhar melhor
113
”.
Nos escritos de Freud de 1884, pode-se ver que muito antes dos anos 1960, a
cocaína já era sinônimo de felicidade e extroversão. Cerca de vinte e um anos antes da
experiência de Freud, em 1863, Ângelo Mariani, um comerciante italiano, lançou um vinho
112
Segundo PEREIRA, Carlos Alberto M. Pereira “O termo contracultura foi inventado pela imprensa norte-
americana nos anos 60, para designar um conjunto de manifestações culturais novas que floresceram não só
nos EUA, como em vários outros países, especialmente na Europa… na verdade, é um termo adequado
porque uma das características básicas do fenômeno é o fato de se opor, de diferentes maneiras à cultura
vigente e oficializada pelas principais instituições das sociedades do Ocidente”. In O que é contracultura. São
Paulo. Brasiliense. 1996. p.13.
113
FREUD, Sigmund. In. CONNOR, Stevem. Cultura pós-moderna. São Paulo. Moderna. 1989. p.76.
94
à base de cocaína que levou seu sobrenome no rótulo. Cada litro continha algo como
setenta miligramas de cocaína, equivalente a uma “carreira” da droga
114
.
Dados históricos revelam que esse vinho começou a ter “status” de remédio, o
escritor Júlio Verne, o inventor Thomas Edson, a rainha Vitória, entre outros famosos,
provavam e aprovaram a bebida, eles todos foram unânimes em dizer que o vinho era um
extrato liquido de prazer
115
.
Nos anos 20 em São Paulo, a cocaína era vendida nas pharmácias do centro da
cidade, Mário de Andrade era consumidor do pó, dizia que usava para sentir-se mais à
vontade, enfim, os inteligentes, bem sucedidos como também outros anônimos
contemporâneos à época do escritor também usavam para sentirem-se menos deprimidos,
menos perdidos, mais alegres e seguros diante da modernização na “Paulicéia
Desvairada”
116
.
“A corrida para o consumo frívolo a busca do prazer na abundância dos bens materiais o
“consumismo” desenfreado de nossos dias e naquele que se chamava então “as
preciosidades da vida, pelas quais todo gentil – homem aspirava tornar-se um engenhoso
para ser um delicioso (…) ”. O hedonismo de massa aparecia pela primeira vez até o ar da
cidade mudava”
117
.
Esse autor ao analisar as transformações sociais expressas no convívio entre as
pessoas, traz reflexões importantes a respeito da sociedade de consumo e de seus prazeres
obtidos nas substâncias que se fizeram necessárias e expressivas.
Essa forma de viver também foi encontrada nos espaços boêmios mais refinados da
cidade de São Paulo nos anos 50, apesar das particularidades da década no aspecto musical
e na drogadição, São Paulo manteve relações com a boemia carioca, e ambas foram
freqüentadas por diversos e famosos cantores e compositores entre eles Maysa.
“Marca registrada de uma época, a boemia mantinha-se sectária e restringia-se ao consumo
de bebidas alcoólicas: o uso de drogas não era tão difundido, não chegando a fazer parte dos
114
Dose de cocaína em pó esticada em uma superfície para ser aspirada pelo usuário. Sobre esse assunto
cf.ROBSON, Philhip. Que droga e essa? A verdade sobre as drogas e seus efeitos, porque que as pessoas
usam e o que sentem. São Paulo. Editora 34. 2003. p.17.
115
Sobre esse assunto cf. CONNOR, Stevem. Cultura pós-moderna. São Paulo. Moderna. 1989. op. cit.
116
Em 1922 Mário de Andrade escreveu Paulicéia Desvairada usando a cidade de São Paulo como inspiração.
As obras do modernismo tinham como objetivo abolir regras, fugir dos eruditismos dos academicismos e
encontrar uma forma de expressão que refletisse quem era o povo brasileiro sob o olhar dos modernistas. cf.
Paulicéia Desvairada. in. Poesias completas. São Paulo. Edusp. 1987.
117
CAMPORESI, Piero. Hedonismo e Exotismo. A arte de viver na época das luzes. São Paulo. UNESP.
1996. p.33.
95
hábitos das rodinhas de boêmios (…) a cocaína circulava moderadamente nessa época,
costumava-se presentear com pequenos vidros de cocaína trazidos do estrangeiro produzida
em laboratórios, naqueles tempos a exceção ficou para Custódio Mesquita, que consumia
cocaína irrestritamente”. Custódio tinha pupilas dilatadas, usava óculos escuros, dormia de
dia para escapar ao sol e poder assim usufruir a noite (…) Na década de 50, Wilson ficou
dependente da maconha, hábito do qual não mais se livrou, e lhe trouxe prejuízos artísticos
e financeiros. Mas isso foi no final da década de 50 quando o High-society colocou na moda
o consumo de drogas formando-se uma rede de distribuição através das boates (…)”
118
.
Diversos trabalhos que debruçaram o olhar sobre o mundo boêmio preocuparam-se
em analisar a relação entre ócio e trabalho, muitos deles trazem a boemia caracterizada pela
malandragem e apresentada como sociabilidade da pobreza, em contraposição ao mundo do
trabalho e da ordem, trazendo representações
119
que muitas vezes reforçam os discursos
hegemônicos sobre a normatização da época.
O estigma que permeia as relações nos ambientes boêmios traz o protótipo do
vadio, do vagabundo, das mulheres fáceis de vida difícil, enfim, da vadiagem. Reforça-se o
arquétipo cristalizado do malandro de chapéu panamá, terno de linho, camisa de seda e
sapato branco, de preferência dando o “ar da graça” em um botequim carioca, fazendo
samba em meio ao rebolados e “gargalhadas mentirosas” das mulheres da vida.
Outro lado do universo focado nesses estudos, é o dos bares e boates cariocas:
Arpége, Baccarat, Bottles Bar, Cangaceiro, Cervantes, Litte Club Manhattan, Marrocos,
Vogue, entre outros, em alguns deles houve glamourosas apresentações de nomes
consagrados das canções de “dor-de-cotovelo” como Dolores Duran, Cauby Peixoto e
Lupicínio Rodrigues.
O Rio de Janeiro tornou-se a face da alegria, a “raiz” da boemia, em contraposição
a São Paulo, que tinha o estigma da terra do trabalho, solidificando uma imagem mais séria,
realista e idealizada da ordem e do progresso
120
. Esses elementos foram rememorados e
118
LENHARO, Alcir. Cantores do Rádio: trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart no meio artístico de seu
tempo. Campinas. Unicamp. 1995. p. 21.
119
Sobre esse assunto cf. Dulce Santos. “A noção de representação está baseada na idéia de que as
representações traduzem à sociedade como eles pensam que ela é ou como gostariam que ela fosse. Assim
cada sociedade cria suas representações do mundo pois percebe nessas imagens as estratégias que determinam
as posições dos grupos sociais e suas relações na trama da sociedade”. In SOLLER, Maria Angélica e Matos,
Maria Izilda Santos. O Imaginário em debate. São Paulo. Olho d’água. 1998. p.11.
120
“O mito do bandeirantismo serviu de alicerce para a construção do imaginário sobre São Paulo no período
e ainda em nossos dias, pode-se citar como exemplo o que ocorreu durante o governo de Mario Covas,
quando na ocasião foram realizadas reformas nas linhas de trem onde os vagões com características “novas e
modernas” formaram o trem que foi batizado de trem bandeirante…” Sobre esse assunto cf. CISCATI,
Márcia Regina. Malandros da Terra do Trabalho. Fragmentos e Memórias da Malandragem e Boemia na
Cidade de São Paulo. (1930-1959). UNESP. Assis. 1996. Ou ainda em meados dos anos 40. “Quando São
Paulo comemora mais um ano de sua fundação, não podemos esquecer a bravura da gente bandeirante que
96
comemorados nas festividades do IV Centenário da cidade e imprimiu no imaginário social
o arquétipo do trabalhador triunfante, somado à vontade dos empreendimentos
progressistas.
“(…) Ao longo das décadas de quarenta e cinqüenta e acompanhando os caminhos das
mudanças sociais provocadas por uma nova elite que se instalava no poder os novos
empresários da industrialização, a cidade foi sendo redesenhada sob a marca do “progresso”
e da “modernização”. Esse novo risco de cidade tinha como resultado mais perceptível o
alargamento e a abertura de novas ruas, bem como as novas formas de utilização e
apropriação dos espaços públicos”
121
.
No Rio de Janeiro, os estudos sobre o imaginário
122
da cidade evocam o lazer, a
sensualidade, a beleza e o prazer, mais que um espaço geográfico, a cidade se constitui
numa paisagem de gestos, ritmos e cores exuberantes, em contraste com São Paulo, “terra
do trabalho”. Por esses e outros fatores a cidade de São Paulo foi apresentada no primeiro
capítulo deste trabalho porque também foi sedutora e envolvente, além disso, possuiu uma
vida boêmia intensa e não menos interessante que a do Rio de Janeiro, apesar de suas
particularidades.
alargou a fronteira da Pátria vencendo empecilhos e fazendo a terra se curvar humilde sob suas botas de sete
léguas, São Paulo é o mais notável exemplo de tenacidade que conhecemos e o seu povo obreiro e digno
caminha a passos largos para a industrialização moderna, colocando sua cidade entre as mais importantes do
mundo". Revista São Paulo Ilustrado. nº. 11. 15 de janeiro de 1946. Capa.
121
DIÊGOLI, Leila Regina. Desenhos e Riscos de São Paulo: A estética dos espaços públicos do centro da
capital paulista entre os anos de 40 e 60 do século XX. São Paulo. PUC-SP. 2001. p.02.
122
Sobre esse assunto cf. MEDEIROS, Bianca Freire. O Rio de Janeiro que Hollywood inventou. Rio de
Janeiro. Jorge Zahar. 2005. Como também CISCATI, Márcia Regina: Malandros da Terra do Trabalho.
Fragmentos e Memórias da Malandragem e boemia na cidade São Paulo. (1930 – 1950). Assis. UNESP.
1996.
97
Mapa 1 Fonte: Castro Ruy. op.cit. O Mapa apresenta os principais lugares onde desenvolveu-se as
experiências e vivências boêmias em São Paulo no período estudado.
98
A cidade que seduziu e exaltou prazer está presente em poemas, crônicas,
livros e canções, como também nas propagandas que coloriam a metrópole paulistana nos
bondes, outdoors, jornais e revistas, como já foi demonstrado, especialmente nas de bebidas
alcoólicas.
Embora o álcool nas propagandas fosse apresentado em ambientes considerados
familiares, requintados e normatizados, criou-se outros hábitos e também despertou-se
desejos que envolviam a bebida alcoólica de forma diferenciada dos anúncios.
“A propaganda e a publicidade tem a função de influenciar as pessoas e os grupos a que se
dirigem (…) Ora, nossas decisões e condutas são determinadas por dois tipos de fatores: de
um lado, nossos desejos, de outro, as informações de que dispomos quanto aos meios de
realizar esses desejos”
123
.
Dentro de um esquema entre o desejo, as informações e a conduta, formas de
sociabilidades foram se constituindo nas relações humanas, onde o álcool foi bastante
representativo, indo além dos recônditos familiares.
O universo boêmio apesar de evocar a noite, não esteve descolado do dia, onde as
tramas da vida se entrelaçaram, as incertezas submergiram e os dramas foram formados,
inclusive nos anos após a Segunda Guerra Mundial que foram traumáticos, o mundo viu-se
chocado e mudado “para sempre”, desenrolava-se a “era das incertezas” no Ocidente:
“A humanidade sobreviveu. Contudo, o grande edifício da civilização do século XX
desmoronou nas chamas da guerra mundial, quando suas colunas ruíram. Não há como
compreender o breve século XX sem ela. Ele foi marcado pela guerra. Viveu e pensou em
termos de guerra mundial, mesmo quando os canhões se calavam e as bombas não
explodiam… A Segunda Guerra Mundial ampliou a guerra maciça em guerra total. Suas
perdas são literalmente incalculáveis… (ao contrário da Primeira Guerra Mundial) matou
tão prontamente civis quanto pessoas de uniforme, e grande parte da pior matança se deu
em regiões, ou momentos, em que não havia ninguém a postos para contar ou se
importar”
124
.
A modernidade e a modernização trouxeram a ciência, a rapidez, a tecnologia, a
mecanização. A presunção de que as formas tradicionais, as idéias convencionais e a
história poderiam dar sentido e continuidade a vida humana parecia romper-se com o
avançar do tempo.
123
DURANDIN, Guy. As mentiras na Propaganda e na Publicidade. São Paulo. JSN editora. 1997. p.24.
124
HOBSBAWN, Eric. op.cit.p.17.
99
Os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial geraram um sentido de história
(experiências e vivências) de forma descontínua. Cada ato, emoção e movimento, foi visto
como único e efêmero, a modernização levou o homem às condições de ser anônimo,
individualista e sozinho ao mesmo tempo.
“O atual habitante urbano teria assim um horizonte geográfico maior, interesses intelectuais
mais numerosos e complicados (…) o que exige um superior esforço do sistema nervoso,
um maior consumo da matéria (…) a fadiga se manifestava”
125
.
Naqueles tempos a dificuldade que as pessoas tiveram de enfrentar as perdas e as
inseguranças, levaram-nas a anestesiar a angústia, que veio das incertezas, junto com o
descontentamento.
No universo das “boemias”
126
do tempo noturno, certos elementos foram, e ainda
são presentes: a solidão, a busca, o encontro, o desencanto, a fuga, encontrada nas drogas
como o álcool, a música, o prazer e a dor, todos esses elementos se misturam.
Enquanto a cidade “dormia”, outros personagens acordavam ou permaneciam
acordados, entre um café à “tardinha”, um cigarro na multidão e um trago de bebida. Assim
ia caindo a noite em São Paulo, onde o dourado da luz solar ia sendo substituído pela luz da
lua ou pelas luzes de néon dos bares e boates da vida noturna, como relata Marcos Rey:
“A noite é realmente um capítulo à parte na vida da cidade, se de dia quase tudo por aqui
parece transpirar política e a embalada fala radiofônica traz a polida comunicação familiar,
este horário está carregado do picante jogo masculino de força, poder, informação e disputa.
Esses indivíduos movendo-se na cidade obedecendo a uma série de impulsos
inconscientes de hábitos, de desejos descontrolados, porém transmitidos de pai para filho
desde (…) a bem pouco tempo, alguns deles saboreavam pipocas com as moças ginasianas
na sessão da tarde do Cine Odeon, e continuam partilhando com seus pares os bailes de
orquestra dos clubes da cidade. Mas o empenho “romântico” das grandes conquistas leva-os
a atravessar as fronteiras urbanas e buscar as profissionais da dança sob o moderno brilho
das luzes coloridas e do taxímetro do prazer”
127
(grifo nosso).
A noite paulistana foi composta de diversos personagens, identificados no mundo
boêmio como: os cantores da noite, os freqüentadores das mesas de bares e boates, os
125
Idem.
126
Conforme já analisou a autora Maria Izilda Santos Matos, o ser boêmio e a própria boemia trazem consigo
multiplicidades de manifestações e vivências sendo um universo heterogêneo e complexo. Cf. Matos, Maria
Izilda e Faria, Fernando. A melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues. O feminino e o masculino e suas
relações. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil. 1996.
127
REY, Marcos. in Nos bares da vida. op.cit.p.138.
100
jornalistas, os escritores, os filósofos, os literatos, os políticos, os compositores, os poetas,
as prostitutas, os gigolôs, os solitários e tristes.
Entre eles Maysa já iniciava suas experiências boêmias na adolescência, nas
noitadas particulares promovidas pelo seu pai Alcebíades Monjardim no apartamento
numero três da Rua Joaquim Antunes, 110 no Bairro Pinheiros em São Paulo, e depois na
Rua Rego Freitas, 501 Centro da cidade. Nesse endereço e nas imediações estavam
restaurantes, casas noturnas, vitrines, salões de chá, edifícios de grande porte e categoria e
ateliês de modistas. Todos estabelecimentos carregados de requinte, beleza e sofisticação.
As mulheres usavam visom, roupas de alta costura e jóias, os homens usavam
ternos escuros, colarinhos engomados e abotoaduras nas mangas das camisas e prendedores
dourados nas gravatas.
Naquela época em São Paulo as famílias se reuniam aos domingos, caminhavam do
Centro até ao bairro do Pacaembu, que ainda era um bairro com pouquíssimas construções
e nas relvas faziam piqueniques.
As lojas comerciais mais famosas eram: a Galeria Paulista de Modas, a Casa
Kosmos, a Casa Bonilha, o Mappin Store ou Casa Anglo Brasileira. A Casa Fasanello era a
lotérica mais famosa, e os cursos de datilografia, muito importantes para uma boa
colocação no mercado de trabalho, eram feitos na Escola Underwood em Perdizes e pelas
ruas e avenidas da cidade os bondes da Light marcavam o cartão postal da cidade.
No apartamento dos pais de Maysa havia reuniões noturnas quase que diariamente,
rodas de violão acompanhadas de champanhe, uísque e outras bebidas, jogatinas de pife-
pafe e outros jogos de “azar”.
Maysa adorava participar desde adolescente dessas reuniões, costumava ouvir e
decorar as canções de Frank Sinatra, Dean Martin, Julie London, Dick Farney, Nora Ney,
Dorival Caymmi, Linda Batista, Isaura Garcia, Lúcio Alves, Dalva de Oliveira entre outros.
A noite elaborava uma seleção de canções e cantava para os visitantes no apartamento,
nessa época ela já fumava e bebia Dry Martini e freqüentava boates e bares acompanhada
de seus pais.
Alcebíades era boêmio e íntimo do mundo artístico paulista e carioca, em sua
residência eram promovidas festas regadas à álcool e muita música com a presença de
cantores como: Silvio Caldas e Elizeth Cardoso, inclusive Maysa aprendeu a tocar os seus
101
primeiros acordes de violão com Silvio Caldas, instrumento que na época era associado a
marginalidade e a boemia decadente, o que não era o caso do reduto da família de Maysa.
Imagem 26. A cantora Ângela Maria e os pais de Maysa Inah e Alcebíades na boate Cave em
São Paulo. Fonte: NETO, Lira.op.cit.Caderno de imagens.p.4.
Imagem 27. Maysa com o sogro Andréa
Matarazzo em uma festa particular nos anos
50. Fonte: NETO, Lira.op.cit.caderno de
imagem.p.7.
102
Com a vida de Maysa é possível extrair os sentidos e as sensações que aquelas
pessoas boêmias anônimas ou não, vivenciaram e partilharam na “boca do luxo”.
“A boemia (…) é dançante, musical, alegre, sensual, mas não deixa também de esconder as
fases da violência, da doença, da dor, do esquecimento, da derrota”
128
.
O próprio mundo da boemia tem ligação com imagens que evocam o submundo da
doença, do perigo, da violência e do desvio que permeiam o imaginário sobre esse tipo de
sociabilidade. É necessário ir além dessas características porque além da dança da música,
da alegria, da sensualidade, da violência, da doença, da dor, do esquecimento e da derrota
como coloca Lenharo, ali também estavam pessoas inadaptadas e infelizes com a sociedade
em que viviam.
Entre os aspectos que caracterizam a boemia, foram eleitas para a análise as
questões que envolvem a frustração amorosa e a embriaguez dos sentidos, onde o álcool
também aparece de forma sensual nesse ambiente, na vida da cantora e de outros boêmios.
“Beberam as bebidas da moda, trocaram passos no ritmo das músicas do rádio e das
orquestras, namoravam na rua, freqüentaram boates, bares, bibliotecas, cinemas, etc (…)
Enfim foram “incluídos”, tiveram acesso ao que a cidade podia oferecer”
129
.
O percurso dos boêmios mais elitizados não se limitava apenas aos bares e boates à
procura do prazer somente proporcionado pelos vícios e conquistas amorosas, eles também
caminhavam pelas ruas, freqüentavam bibliotecas, cafeterias, restaurantes, leiterias, casas
de chá, entre outros estabelecimentos, onde era permitido uma boa conversa e trocas de
experiências entre xícaras de café, tragos de bebidas alcoólicas e fumaças de cigarro,
estavam a procura de companhia, amizade, divertimento e troca de conhecimento.
Segundo alguns estudos sobre a boemia em São Paulo, consultados durante a
realização deste trabalho, a noite iniciava-se no cinema ao cair da tarde, passava pelos
restaurantes, cafés, leiterias, teatros e terminava nos bares e boates.
A ronda dos boêmios na “boca do luxo” na década de 50 ficava nos arredores da
Avenida Ipiranga e da Avenida São João, das Ruas Maria Antonia, Major Sertório, como
128
LENHARO, Alcir, Cantores do Rádio. Trajetória de Dora Ney e Jorge Goular no meio artístico de seu
tempo. Campinas. Unicamp. 1995. p. 21.
129
GAMA, Lucia Helena. Nos bares da vida.op.cit.p.27.
103
também na Praça Roosevelt e na Praça da Republica, como é caso da boate Oásis,
localizada na Rua 7 de abril e da boate Baiúca, uma casa luxuosa, primeiramente localizada
na Rua Major Sertório, perto da Rua Cezário Mota, e depois foi para a Praça Roosevelt.
Naquele endereço também encontrava-se a boate Farneys que depois passou a ser chamada
de Djalmas. Nessas duas boates apresentaram-se vários artistas intérpretes da “dor de
cotovelo” dentre eles Maysa.
Na Rua Major Diogo localizava-se o Nick bar, pequeno, com mesas laterais à
esquerda do palco para apresentações de artistas, ficou famoso por ser lugar de encontro de
atores, cantores, pianistas e intelectuais.
Já sobre a “boca do lixo”, os dados encontrados em revistas, jornais e crônicas da
época informam que até 1953 estava concentrada em algumas ruas do bairro do Bom
Retiro, nas Ruas Itaboca, Aimorés e suas travessas.
Com o controle sanitarista do governo municipal e estadual, ocorreu o
desalojamento dos “inferninhos” e “hotéis de viração”, as “meninas da vida” se espalharam
pelo centro da cidade, pelas Ruas Mauá, dos Protestantes, dos Andradas, Santa Efigênia,
dos Gusmões e nas travessas e imediações. A prostituição de luxo ficava nas ruas da Vila
Buarque e da Consolação.
“É final de tarde (…) Estico pelos bares da redondeza, para ver o que há de novo. Paro no
Barbazul, na São Luís, e encontro na maior prosa Rey e Frederico. A conversa já vinha
tomando o rumo da noite, e os dois se deliciam com as façanhas de Frederico. Bons
companheiros para essas caminhadas noturnas, nunca faltam, diz ele freqüentemente deixo
o Estado na Major Quedinho, nas primeiras horas da madrugada, com, o velho amigo
Cleonte de Oliveira conversando, sem levar em conta de distância, cruzamos os viadutos e
subimos a Brigadeiro Luís Antônio, dobrando lá no topo a Paulista e descendo a Pamplona
até o Benfica, escala final e obrigatória de reabastecimento de secos e molhados (…) E a
caminhada noturna por ruas e avenidas da cidade que dorme (…) é sempre um prazer para
quem aprendeu a reconhecer e apreciar os odores diferentes e os sutis sons noturnos”
130
.
O relato deixado nesse trecho do cronista remete a um universo urbano repleto de
fascínio e encantamento onde os odores da noite inebriaram o ar com o perfume das
mulheres, a fumaça dos cigarros, os aromas das bebidas. Isso somado aos sons dos passos
nas ruas, dos pianos nas boates, do burburinho dos bares, do lamento das canções, foram
elementos significativos para demonstrar a sensualidade que também existiu na noite.
130
BRANCO, Frederico.in.Gama, Lucia Helena.op.cit.p.p.296 -297.
104
“Meu grupo costuma ir ao Brahma, restaurante e boate na São João esquina com a Ipiranga
(…) do mezanino, espécie de boate, sobem os que querem mais conforto e sons que não os
da rua”
131
.
A busca contra o mal-estar também foi evidente nas veredas noturnas, pois como já
foi demonstrado, havia o discurso imperativo da busca do prazer que os próprios meios de
comunicação foram responsáveis por divulgar através da fixação de valores felizes. Essa
busca moveu as atividades psíquicas desembocados nos desejos, visando fugir das
sensações de mal-estar, a própria civilização moderna produziu sociabilidades que
buscavam escapes e que serviram para descarregar a excitação cotidiana de vida moderna.
“De momento, já verificamos que os símbolos noturnos não chegam constitucionalmente a
liberar-se das expressões diurnas a valorização da noite faz se muitas vezes em termos de
iluminação”
132
.
São Paulo na década de 50 foi uma cidade eufórica, mas também fadigada, em
metamorfose, buscou a ostentação do significado do moderno, da ordem e do progresso. Os
“tempos modernos” foram formadores de seres estereotipados e automatizados, nos quais a
personalidade humana encontrou dificuldades para adaptar-se aos bens da civilização
“moderna” por causa disso carregaram sensações insuportáveis, onde o mal-estar individual
tornou-se coletivo.
“Vida de metrópole, cosmopolita, terra de todos e de ninguém, de homens sem face. Da
dispersão, ausência de vínculos, presença constante de estímulos visuais, sonoros,
olfativos, presença de futuro. Que nega o passado e faz do presente mera circunstância
fortuita, remetendo-nos constantemente ao progresso daquilo que somos em estado estende
e seremos,. germinando em nossas entranhas. Algo que absorvemos do cotidiano urbano
e metabolizamos como forma de vida, devolvendo ao cotidiano, aos verbos, as relações
humanas, algo sem compromisso, sem ética, sem dignidade e verdades”
133
(grifo nosso).
Os escritos da autora sobre São Paulo foram muito significativos, pois expressam
valores e desvalores que foram encontrados naqueles tempos. Havia o medo de ser
131
Rey, Marcos. Memória da madrugada. in. GAMA, Lucia Helena.op.cit.p.297. Existiram boêmios que não
bebiam bebida alcoólica, como por exemplo Edgar Muniz, colunista do correio Paulistano, mas como ele
muitos desfrutaram de outros prazeres da noite. Sobre esse assunto confira. BRANDÃO, Ignácio de Loyola.
Mudaram os bares, mudei eu. Editora Shopping NEWS. 1993.
132
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Introdução à arquetipologia geral. São
Paulo. Martins Fontes. 1997.p.p.219 – 220.
133
GAMA, Lucia. Helena.op.cit.p.49.
105
infeliz
134
. Por isso, nas ruas, bares e lugares, existiu a eterna procura da felicidade que ficou
no passado ou seria encontrada no futuro, enquanto esperava-se por ela, embriagavam-se os
sentidos.
As letras de canções de Maysa que apareceram no cenário musical da época de
forma significativa trazem narrativas sobre a vida noturna, sobre seus sentidos e sensações.
Compondo e cantando, ela conseguiu captar e expressar as experiências sociais vividas e
produzidas naquele meio, as narrativas das canções levam ao conhecimento do universo da
noite, onde o encanto e o desencanto, o prazer e a dor misturam-se como nos versos da
canção Adeus.
“Adeus, palavra tão corriqueira
Que se diz a semana inteira
A alguém que se conhece
Adeus, logo mais eu telefono
Eu agora estou com sono
Vou dormir pois amanhece”
135
Em 1948 com doze anos de idade Maysa compôs esses versos que viriam a ser
gravados em 1956 e fez parte do LP Convite para ouvir Maysa.
Este trabalho tem o comprometimento de divulgar o mal-estar que foi sentido no
período e a sua relação com os vícios, especificamente o do álcool, embora nem todas as
canções relatem explicitamente o uso ou o abuso da droga. As narrativas das canções
penetram nos ambientes onde a presença do álcool foi constante, não se esquecendo que
Maysa teve sua vida marcada pelo desamor e pelo vício
136
.
134
A respeito dos traumas coletivos experimentados no período pós-guerra os estudos da psiquiatria chamam
a atenção ao colocar que a guerra provoca (antes, durante e depois) condições adversas para as pessoas de
todos os tipos. O período oferece condições para estudar as emoções, e os sentimentos emergentes que
levaram a sintomas como o medo que da mesma forma que a dor (guardado em devidas proporções), trouxe a
consciência do conflito e do desconforto e indicou que algo não andava bem e foi observado nas sensações de
angústia, amargura, desespero, tédio, tristeza e melancolia que deviam ser anestesiadas, derivadas do medo de
experimentar algo real que não podia ser evitado. Sobre esse assunto cf. HENRY, e BERNARD, Bresset.
Manual de Psiquiatria. Rio de Janeiro. Atheneu. 1980.
135
Adeus. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1956.
136
Maysa teve sua vida pessoal como também sua carreira ligada ao abuso do álcool assunto divulgado pela
mídia da época, Maysa carregou consigo o estigma de alcoólatra embora não se pode realmente afirmar a sua
dependência química pela substância o que segundo a literatura alcoolista a definiria como tal.
106
Maysa tinha o hábito de escrever diários como era o costume das moças do período
em um deles registrou:
“Minha vida está se preenchendo de um vazio profundo… cada dia útil, mais inútil me
torno… Estou com vontade de sair gritando, como uma louca por aí… estou tentando fazer
uma música para aquele pensamento meu “Se algum dia na vida/ te for dado escolher/ entre
um amor sem certeza/ ou um possível viver/ não te ponhas na dúvida/ fuja de ambos talvez
consigo, mas a falta de métrica é grande, de forma que é meio difícil. Este pensamento é meu
e não sei a que eu o devo… Parece que estou desiludida não é? Quem és tu voz misteriosa,
que me chama e me empurra ao caos da boemia”
137
?
Imagem 28. Maysa escrevendo o seu diário “Há gritos dentro de mim que me povoam da mais
imensa solidão”, década de 50. Fonte NETO,Lira.op.cit.Caderno de imagens p.16.
137
Maysa in NETO, Lira. Maysa. Só numa multidão de amores. São Paulo. Globo. 2007.p.54.
107
A “outra vida”, marcada pelo mal-estar vivido nos “Anos Dourados”, contradiz a
memória monumental que se fixou culturalmente sobre o período, este trouxe também
consigo a necessidade da embriaguez dos sentidos.
Até mesmo Maysa chamou a sociabilidade boêmia de caos, vista como o
submundo do perigo, da doença, dos vícios e do desvio, era muito mais que isso, nela
estavam os sujeitos que denunciaram em suas formas de vida a outra face daqueles anos,
onde foi possível rimar sem medo de errar amor, sorriso e dor, trazer a tristeza de forma
bela e poética.
A carreira de Maysa na década de 50, esteve entre as cidades de São Paulo e Rio de
Janeiro onde fez suas primeiras apresentações como cantora profissional.
Descendente de uma tradicional família do Espírito Santo, estudou piano e compôs
sua primeira música o samba-canção Adeus aos doze anos.
Maysa foi aluna interna no colégio Sacré Coeur de Marie, dele saiu com quinze
anos e iniciou seu namoro com André Matarazzo, sobrinho do conde Francisco Matarazzo e
vinte anos mais velho que ela, no dia vinte e quatro de janeiro de 1954 às dezessete e trinta
na Catedral da Sé em São Paulo se casaram.
A família Matarazzo tinha laços de amizade com os pais de Maysa e foi assim que
iniciou-se o relacionamento entre Maysa e André Matarazzo, no reduto boêmio da própria
casa da cantora.
“Em conseqüência, André passou a freqüentar naturalmente a residência dos Monjardim,
que depois de residirem por algum tempo em um sobrado no número 4 da Rua Osório
Duque Estrada, no atual Jardim Paulistano, logo estariam morando em uma cobertura na
Rego Freitas, 501, próximo a igreja da Nossa Senhora da Consolação, na Vila Buarque,
região central de São Paulo. No Natal, André deu de presente a Maysa uma caríssima
boneca importada…
Maysa cresceu vendo André sentado na mesa da sala, nas noites em que Monja abria as
portas a convidados especiais para as habituais rodadas de uísque e baralho. O primo
capixaba Sérgio Sarkis, que certa vez foi a São Paulo e ficou hospedado na casa dos tios,
recordaria o dia em que Maysa o chamou de lado e, discretamente, apontando para André,
cochichou-lhe: Sabe quem é aquele? É um Matarazzo”
138
.
Qualquer fato em torno da família Matarazzo era motivo de notícia na imprensa e
envolvia poder, glamour e dinheiro. No ano de 1953 o compromisso de noivado foi
estabelecido e o casal foi visto junto na boate Oásis, subsolo do Edifício Esther, como
mostra a imagem que abre o presente capítulo, o edifício foi uns dos primeiros prédios de
138
NETO, Lira. Maysa. Só numa multidão de amores. Op.cit.p.51.
108
arquitetura modernista na época, localizado na Rua Sete de Abril, próxima ao apartamento
dos Monjardim, local da noite elegante de São Paulo.
Nos seus diários Maysa registrou que iniciou seu flerte com André Matarazzo
quando tinha quinze anos de idade. Deixou várias vezes escrito que se ocupava basicamente
de três únicas atividades: ir ao cinema, escrever poemas e esperar as visitas de André, além
de freqüentar as boates. Não tinha vocação para os estudos, e depois de passar por vários
colégios e reprovações abandonou de vez a escola sem conseguir concluir o ginásio e nesse
período já demonstrava insatisfação com a vida amorosa conforme registrou em seu diário.
“Estivemos hoje na Oásis depois do cinema… Na Oásis eu e o André discutimos muito.
Francamente, o André já esta me enchendo é um egoísmo muito grande. Ta louco!!!”
139
.
A cerimônia de casamento de André e Maysa esteve envolvida de luxo, requinte e
glamour, a viajem de lua de mel seguia o roteiro entre Buenos Aires e um tour por países
da Europa como: Espanha, França, Itália, Portugal e Suíça.
Ao chegar da lua de mel o casal foi morar na mansão dos Matarazzo na Avenida
Paulista, um ano depois mudou para a Rua Traipu no bairro Pacaembu. Nesse endereço
recebia os amigos para beber, conversar e cantar, em 1956 o produtor musical Roberto
Corte Real, que aceitou o convite do pai de Maysa para ir a uma dessas reuniões festivas se
encantou com a voz e com a figura de Maysa.
A família Matarazzo não impediu que Maysa cantasse desde que fosse somente
para as festas particulares da elite paulistana, ou seja, entre parentes e amigos.
139
Idem. P.55.
109
Imagem 29. Maysa tocando violão em seu quarto, década de 50. Fonte NETO,Lira.op.cit. Caderno de
Imagens p.4.
110
Imagem 30. Maysa e André Matarazzo em sua residência particular localizada na Rua Traipu no bairro do
Pacaembu entre os anos de 1954 a 1955. Fonte LOGULLO.op,cit. Caderno de imagens.p.4.
111
Nesses encontros, Maysa já demonstrava seu potencial enquanto cantora: cabelos
cheios e louros, rosto belíssimo, boca sensual e par de olhos verdes-azulados, moldurados
por sobrancelhas grossas, tinha uma voz rouca e profunda. Carregava sempre nas mãos um
cigarro e um copo com uísque, mesmo grávida, bebia e fumava, esse era seu estilo.
Cantava como se ela mesma tivesse vivido todo aquele sofrimento, apesar da pouca idade.
Em menos de um ano de casada, Maysa demonstrava insatisfação constante e
passou a escrever canções como forma de desabafo, que depois fizeram parte do seu
primeiro LP “Convite para ouvir Maysa” como os versos da canção Tarde Triste.
“… Tarde Triste…
Noite vem,
Já esta descendo,
E eu sozinha sofrendo… ”
140
Imagem 31. Maysa e Jordão de Magalhães na Boate Cave localizada na Rua Consolação, na década de 50.
Fonte Acervo Milton Faria in LOGULLO.op.cit.Caderno de imagens.p.4.
140
Tarde Triste. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1956.
112
Antes de gravar seu primeiro disco, Maysa queria ter o seu primeiro e único filho,
enquanto isso tentava convencer o marido e a família que a deixassem gravar e a fazer
apresentações públicas como na boate Cave na Rua da Consolação, próxima a Avenida
Paulista.
A família Matarazzo concordou com a gravação, desde que a renda da venda dos
discos fosse doada para a campanha contra o câncer.
Mas foi pela RGE, com o diretor José Scatena sócio de Roberto Corte Real na
gravadora, que Maysa gravou o seu primeiro disco: “Convite para ouvir Maysa”, com oito
canções compostas por ela. Foi um sucesso total nas rádios. A partir daí Maysa foi
contratada pela Record para comandar um programa semanal.
Imagem 32. Maysa com sua mãe Inah no lançamento do seu primeiro disco em 20 de novembro de 1956 na
livraria Jaraguá localizada na Rua Marconi, Centro, São Paulo. Fonte Acervo Milton Faria in LOGULLO,
Eduardo. Meu mundo caiu. A bossa e a fossa de Maysa. Caderno de imagens.p.5.
113
Vigiada por André Matarazzo, para evitar que ela cometesse gafes revelando o
fracasso de seu casamento, Maysa iniciou sua carreira já revelando seu estilo. Ao final de
cada programa, ela convidava toda a equipe de televisão para a sua casa, promovendo
“alegres reuniões”, tentava manter o mínimo de sobriedade diante do marido, bebia às
escondidas e logo perdia o controle.
Através da mídia Maysa foi apresentada como personagem que teve sua vida
envolvida com vícios como o cigarro e o álcool. Segundo Maysa.
“No começo a bebida funcionava para mim como uma espécie de muleta! Eu bebericava um
pouquinho para criar coragem de entrar no palco”
141
.
Essa cantora que fez fama nos anos 50, trouxe a sensação da ansiedade coletiva em
amenizar a tristeza e o mal-estar em contraste ao bem-estar e a alegria que foram
características divulgadas daqueles anos. Essa sensação de insatisfação e busca foi
canalizada através das letras de suas canções.
“A madame e a cozinheira, o doutor e o oficie-boy, o rico e o pobre, o homem educado e o
corinthiano- todos sofrem do mal do amor com a mesma intensidade. E, portanto todos
ouvem Maysa com o mesmo enlevo e interesse”
142
.
Os discursos emitidos por Maysa expressaram as necessidades de homens e
mulheres infelizes que também procuravam anestesiar suas dores.
Em suas interpretações ela disse o que pensava sobre o amor e não teve receio de
admitir publicamente que sofreu e usou lenitivos em nome desse sentimento.
As letras de canções, as imagens e reportagens sobre a cantora nos diversos jornais
e revistas revelam seu perfil de mulher mal-amada e infeliz, principalmente nas crises
conjugais que desembocaram no fim do casamento.
“Maysa Matarazzo, brasileira, branca, 22 anos, residente na Rua Inhangá, 45, apartamento
704. Etilismo agudo, excitação psicomotora e escoriações na região do pulso esquerdo em
conseqüência de tentativa de suicídio”
143
.
141
O Cruzeiro. Maysa confessa. Eu canto meu estado d’alma. 08 de janeiro de 1958.
142
Diário da Noite. in NETO, Lira. op.cit.p.100.
143
NETO, Lira. op.cit.p.15.
114
Embora tenha negado a tentativa de suicídio, a justificativa de Maysa alegava que
jamais quis se matar, mas não foi convincente, esse episódio tinha entre tantos outros
motivos, envolvimentos com o desgosto e com o álcool, mas em uma entrevista vinte anos
depois Maysa confessou ao ator e diretor de teatro Clovis Levi que tentou suicídio várias
vezes e segundo suas palavras quando o entrevistador disse:
“Mas é evidente que uma pessoa que vive tentando se suicidar não esta mesmo a fim de
morrer… Ela disse – Também acho. Eu sei que não quero morrer. Mas acontece que tudo
isso é uma espécie de apelo, um pedido de proteção. A gente de repente, se vê só, se sente
rejeitado. E a gente sabe que uma tentativa de suicídio traz de novo para perto de nós, as
pessoas de quem a gente gosta”
144
.
Na sociedade do século XX, ficou visível nas manifestações coletivas a presença
dos mitos como personalidades que os meios de comunicação transformam em imagens
exemplares: artistas, políticos, esportistas, entre outros, que passam a representar anseios de
sucesso, poder, liderança, beleza, sexualidade, elementos passíveis de serem atingidos pela
identificação das pessoas com seus símbolos e suas simbologias
145
.
O mito divulgado pelos meios de comunicação acaba desenvolvendo o processo de
apreensão e representação da realidade, ao mesmo tempo, potencializa aquilo que Morin
chamou de projeção-identificação.
Foi o que se deu com Maysa, ela foi uma das porta-vozes da infelicidade amorosa
sentida naqueles anos.
As letras de canções analisadas dentro do recorte temporal (1949-1959) são bons
exemplos onde a narradora falou de si mesma e de sua relação amorosa mal-resolvida com
o outro, relações estas que também poderiam ter sido de seus interlocutores.
“Ouça vá viver a sua vida com outro bem
Hoje eu já cansei de pra você não ser ninguém
O passado não foi o bastante
Pra lhe convencer
Que o futuro seria bem grande
144
Revista Ele e Ela in LOGULLO, Eduardo. Meu mundo caiu. A bossa e a fossa de Maysa. São Paulo. Novo
Século. 2007.p.170.
145
Os símbolos remetem-se a objetos, imagens, personagens que trazem consigo representações muito fortes
para o coletivo passando a interferir, mudar ou criar comportamentos. op.cit. ELÍADE, Mircea. Imagem e
símbolos.op.cit.
115
Só eu e você
Quando a lembrança com você for morar
E bem baixinho de saudade você chorar
Vai lembrar que um dias existiu
Um alguém que só carinho pediu
E você fez questão de não dar
Fez questão de negar”
146
Nessa narrativa, existe o apelo para que o outro ao menos ouça o lamento de alguém
que ama e não é correspondido, o cansaço da tentativa amorosa fica evidente na frase “Hoje
eu já cansei de pra você não ser ninguém”.
Mesmo diante da frustração amorosa, ainda existe a esperança de que o ser amado
lembre e valorize o amor que foi desprezado e isso talvez reste como consolo para o amor
que foi negado.
A letra da canção Ouça como revelou Maysa em uma entrevista radiofônica ao
jornalista Aramis Millarch, foi escrita no momento de desavenças do casamento com André
Matarazzo, a noticia se espalhou pelos bares e boates do Rio de Janeiro e de São Paulo
como também nas colunas jornalísticas.
“Vocês viram como Maysa cantou Ouça no seu último programa? Fazendo pique,
extravasando uma insatisfação intima quando dizia: Já cansei de pra você não ser ninguém.
Podem crer ai vem coisa. A compositora agora vai trabalhar com mais intensidade tamm
podem crer. E o publico é que vai ouvir”
147
.
A cidade, o progresso, a ordem causaram em muitos indivíduos a desordem e o
caos interno. Foram muitas as construções, os brilhos das luzes de néon, os sons, as
imagens, as cobranças, as competições, os encantos, foram muitas as pessoas que produziu-
se multidões, andando em ritmos velozes, foi o momento propício para se perder até o
amor, foi possível explicitar o desamor e a felicidade parecia infeliz.
146
Ouça.Composição Maysa.Gravação Maysa.1957.
147
MILLARCH, Aramis. Noticias de Hoje. São Paulo. 1956.
116
2.2 – “Felicidade… deves ser bem infeliz”
*
Foi entre as expressões da maximização da felicidade, tão próprias à época, que a
tristeza apareceu como expressão das dores sociais do período. Entre elas, a dor de amor
tão bem expressa nas canções de Maysa foi escolhida para análise.
O álcool e a música foram peculiares na vida da cantora que foi consagrada como
intérprete das canções de fossa e dor de cotovelo
148
. Ela foi um referencial,
inconfundivelmente importante dentro de seu estilo trágico amargurado e sofrido de cantar
o amor.
Ao analisar os componentes da cultura industrial/ de massa entre eles os artistas,
Edgar Morin remete-se a discussão sobre projeção e identificação.
Com certeza muitas pessoas já se depararam com situações em que um artista
através de sua interpretação verbal, gestual, corporal ou musical, chamou tanto a atenção
que é pago o preço de um evento para vê-lo. “Hipnotizadas” pela mensagem produzida e ou
emitida por ele, ficam cada vez mais atraídas por sua pessoa; se for um cantor e ou
compositor, compram sua música; se for um ator, o “perseguem” nas novelas ou peças de
teatro; se for um bailarino, acompanham sua performance, seu corpo. Isso é possível porque
as pessoas vêem suas vidas projetadas por esses seres da arte, e se tornam únicos com eles.
Edgar Morin discute sobre essa questão da projeção artística e da identificação do público:
“(…) Um dos caracteres fundamentais da cultura de massa é o sincretismo entre o
imaginário e a realidade, desta forma busca o máximo do consumo. O real e a fantasia se
misturam e tornam a realidade um sonho e transforma o sonho em realidade”
149
.
*
Os versos da canção Felicidade infeliz. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1957, foi escolhido como
subtítulo do capítulo por causa da necessidade de demonstrar os bastidores da época através das letras das
canções. Foi pela porta de entrada da maximização da felicidade através das expressões da cultura de massa
que divulgou o happy end que pode-se enxergar o reverso das expressões de absoluto bem-estar social que
caracterizam o período, assim também é possível compreender porque as canções de desamor fizeram tanto
sucesso na época.
148
As canções de “dor-de-cotovelo” e “fossa” são aquelas cujas as temáticas estão envolvidas por elementos
como: amores mal resolvidos, desilusões, fracassos, esperas, ciúmes, traição, abandono, medo, culpa e mágoa
entre outros ressentimentos amorosos. Vale ressaltar que a expressão “dor de cotovelo” se refere a relação
afetiva mal resolvida, enquanto que “fossa” se refere a trajetórias amorosas que encontraram muitas barreiras
gerando um sentimento de impossibilidade de realização, ambas as expressões “dor-de-cotovelo” e “fossa” se
relacionam a amores mal resolvidos ou até mesmo impossíveis.
149
MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX. O espírito do tempo. Neurose. Rio de Janeiro. 1997.
p.37.
117
Dessa forma, as canções escolhidas projetam representações da relação existente
entre elementos como: o desamor, a angústia, o medo, a solidão somados a necessidade de
anestesiar essas sensações geradoras de mal-estar.
As narrativas das canções representam muitas “estórias” de vidas envolvidas nesse
universo, muitos daqueles que foram ou são fãs de Maysa se reconheceram naquele
perfil,
150
ocorrendo a identificação. A cantora e compositora passou a ser referencial da
boemia, da alcoolização e do desamor, gerando uma relação de empatia com seus
admiradores.
Ela esteve em evidência nos meios de comunicação (rádio, televisão, jornais,
revistas, etc) e por isso foi possível ocorrer a identificação por parte daqueles “simples
mortais” que viram suas “estórias” de vida traduzidas nas canções, ocorrendo o que Morin
chamou de identificação, como também para alguns serviu como modelo de projeção
idealizada sobre o desamor.
As canções entram nos ambientes noctívagos carregados de saudades e desilusões,
onde foi possível resgatar a face problemática e destrutiva que também envolveu o período,
expressa nas sociabilidades noturnas.
“Tarde triste,
Me recorda
Outros tempos,
Que saudade, que saudade,
Vivo só num turbilhão de pensamentos
De saudade, de saudade,
Onde estará quem amei?
Será que também vive assim
Sofrendo como só eu sei
Pensando um pouquinho em mim
Tarde triste,
Noite vem
150
Compreende-se por perfil um contorno, um traço, como também a representação de um objeto que é visto
de um só lado. cf. Mini dicionário Aurélio Buarque de Holanda… Abril Cultural. 1983. P.382. É pertinente
essa definição sobre perfil e foi utilizada porque diante das potencialidades de representações existentes na
cantora e compositora optou-se por trabalhar com a temática mais evidente em torno dela: a desilusão
amorosa e abuso alcoólico.
118
Já está descendo
E eu sozinha, sofrendo”
151
A narrativa evoca a tarde como um momento de introspecção que se aproxima da
noite. A personagem tem na lembrança um amor que ficou no passado, e que não sabe se ao
menos se lembra dela.
De maneira sofrida, a canção expressa a falta de paz e a inquietude diante da
separação que tem como conseqüência a solidão. A proximidade do anoitecer e as
lembranças de um amor que ficou no passado trás a angústia.
Esta canção é uma forma de desabafo, um alívio a dor que é infinita. A noite para a
personagem não foi o momento de descanso e sim de perturbação, agitação, e conflito
como nos versos de Noite de Paz.
“Dai-me Senhor
Uma noite sem pensar
Dai-me Senhor
Uma noite bem comum
Uma só noite em que eu possa descansar
Sem esperança e sem sonho nenhum…
Uma noite de paz pra não lembrar
O que eu não devia esperar e ainda espero”
152
A narrativa da canção suplica a Deus a paz, que não é encontrada na noite. A
insônia, a solidão, e o desespero marcam a trajetória da personagem que ama e não é
correspondida, ficar em casa sem companhia parece insuportável, pois os pensamentos
estão perturbados por lembranças de um amor mal resolvido, mas inesquecível.
A maioria das letras de canções na década de 50 são como códigos culturais
estimulados pela dor, funcionaram como uma denúncia dos problemas e das sensibilidades
sociais daquele tempo, não somente nas composições e interpretações de Maysa.
151
Tarde Triste. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1956.
152
Noite de Paz. Composição Dolores Duran. Gravação Maysa. 1959.
119
Os cantores e compositores na década estiveram envoltos nesse clima doloroso
conforme os discursos encontrados nos meios de comunicação sobre o período, e
desabafaram as angústias em suas composições e interpretações, alguns deles como o caso
de Maysa anestesiaram com o álcool o mal-estar próprio que sentiam.
Utilizaram o desamor
153
como argumento para recorrer ao uso da bebida alcoólica.
Os cantores que foram influentes na década de 50, saíram de meios completamente
diferentes para se “encontrarem” na noite, nos bares, nas dores de amor. Segundo Rui
Castro:
“Sofreram por amor mais do que deviam, beberam como se a reserva alcoólica do planeta
fosse acabar no dia seguinte”
154
.
Como foi colocado, a sociedade impunha a necessidade urgente do bem-estar. Cabia
ao indivíduo ser bem sucedido em suas relações sociais (financeira, profissional, afetiva).
Grande parte dos filmes da época também trazem a temática do amor envolto numa
relação amorosa bem sucedida, o par romântico geralmente se beija em um final feliz, antes
do The End aparecer na tela
155
. Ser feliz no amor também era uma imposição da norma e
essa imposição criou a necessidade que deixou muitas pessoas infelizes e na eterna procura
de um amor idealizado como foi observado nas canções.
As canções trazem o desabafo de histórias de vida daqueles que sofreram, amaram,
esperaram, desiludiram e, por isso, cantaram e amenizaram a dor com o álcool. Inclusive a
própria cantora e compositora eleita para essa pesquisa que constituiu-se em mito
156
do
desamor.
“Quando se torna modelo para a vida dos outros a pessoa se move para uma esfera que se
torna passível de ser mitologizada”
157
.
Houve naquele tempo a necessidade de referenciais que fossem representantes das
sensações, dos sentidos, dos sentimentos e dos sonhos, muitas vezes inconfessados, de
153
Classifica-se como desamor experiências amorosas envolvidas com a traição, a perda, o esquecimento, a
frustração e a idealização platônica.
154
CASTRO, Rui. Chega de saudade. A história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo. Cia das Letras.
1990 p.105.
155
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos do Rio. in NOVAES, Fernando A. Historia da
vida privada no Brasil. Cia das letras. 1998. col.3 pp.597-619.
156
Op.cit. os mitos por si próprios expressam mensagens que através de seus significados fixados no
imaginário tornam-se referenciais para a construção de realidade vivida. Sobre esse assunto cf. CAMPBELL,
Joseph. O poder do mito. São Paulo. Athena. P. 140.
157
Idem Ibdem.
120
milhares de pessoas que se sentiam infelizes em meio à tantas expressões vibrantes de
felicidade. Essas expressões emitiram discursos sobre a “verdade” e foram formadoras de
mitos potencializados, como já foram trabalhados no primeiro capítulo.
Nesse capítulo apresenta-se os bastidores do fabuloso espetáculo dourado, aquilo
que esteve por trás da cortina
158
e que também teve a necessidade de apegar-se aos seus
mitos.
“(…) os artistas funcionam como antenas sensíveis de seu tempo, captam as ansiedades
coletivas, através deles a sociedade se vê e revê, se pensa”
159
.
Dentro do universo boêmio, vivido e experimentado pela artista que funcionou
como porta voz daqueles que se identificaram com seus enredos sofridos, é visível a eterna
procura da felicidade, uma sensação valorizada, procurada, idealizada, mas longe de ser
vivida, sentida, experimentada.
“Felicidade, deves ser bem infeliz
Andas sempre tão sozinha
Nunca perto de ninguém
Felicidade, vamos fazer um trato
Manda ao menos seu retrato
Pra que eu veja como és…”
160
A narrativa dialoga com a felicidade chamando-a de infeliz porque vive sozinha,
“nunca perto de ninguém”. A solidão é uma sensação que produz mal-estar, propõe-se
então um trato em que a felicidade mande um retrato, para ver ao menos uma representação
daquilo que seria o sentimento.
Pelas narrativas das canções na década de 50 foi comum viver de lembranças do
passado, apegando-se a cartas, fotografias, bilhetes, frascos de perfume e entre outros
158
A canção Vida de bailarina. Composição Chocolate e Américo Seixas. Gravação Ângela Maria. 1952, foi
bastante expressiva para retratar à época quando relata nos versos. “Quem descerrar a cortina. Da vida da
bailarina. Há de ver cheio de horror. Que no fundo do seu peito. Existe um sonho desfeito, ou a desgraça de
um amor… vive uma vida de louca, com um sorriso na boca e uma lágrima no olhar”. Percebe-se que as
canções da época, além daquelas utilizadas na tese trazem temáticas envolvidas com tragédias sentimentais.
159
LENHARO, Alcir. Cantores do Rádio: A Trajetória de Nora Ney e João Goulart e o meio artístico de seu
tempo. Campinas. 1995. p.10.
160
Felicidade infeliz. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1957.
121
objetos que re(a)presentassem sensações que foram vividas, envoltas pela nostalgia e pela
idealização que foram produzidas e representadas pelos cantores e cantoras das canções de
“fossas” e “dor-de-cotovelo”, por isso fizeram sucesso naquele momento. Segundo
Avancini:
“Quando nos referimos aos sambas-canções falamos de uma variação mais lenta e melódica
do samba que, entre final dos anos 40 e início dos 50, aproxima-se do bolero e da canção
romântica norte-americana. Geralmente eram composições de autores brasileiros, porém
com marcada influência dos gêneros estrangeiros, tanto no que diz respeito ao ritmo quanto
a temática das letras (…)”
161
.
Embora este trabalho fique apenas com a produção de Maysa na década de 50,
quando se fala em samba-canção pensa-se também em: Orestes Barbosa, Guilherme de
Brito, Nelson Cavaquinho, Cartola, Carlos Cachaça, Ataulfo Alves, Adoniram Barbosa,
Adelino Moreira, Ângela Maria, Antônio Maria, Ari Barroso, Herivelto Martins, Nelson
Gonçalves, Silvia Telles, Elisete Cardoso, entre outros que trouxeram temáticas envolvidas
com rimas entre as palavras amor e dor, que por sua vez, também rimavam com desamor,
rancor, pavor, horror, temor, bebedor e sofredor.
O universo retratado nessa pesquisa abrange a vertente do samba-canção que
se aproxima do bolero, tanto pela temática das letras quanto pelo ritmo e interpretação
exacerbada do sentimentalismo
162
.
“(…) cantar a dor é uma forma de se ver livre dela, mas viver constantemente a canta-la
pode ser uma maneira de cultiva-la. O sofrimento pode ser exorcizado através do lamento,
principalmente através do lamento público (…) a dependência amorosa em alto grau, aquela
que causa sofrimento, é a única maneira de encerrar o amor, que assim necessariamente, se
vincula a dor (…)”
163
.
Nas canções de Maysa existem protótipos de desajustes, de uma alma atormentada.
Ela cantava o que lhe doía no coração, agrupou na carreira e na vida decepções amorosas,
escândalos, abusos alcoólicos, tentativas de suicídio e frustrações, elementos que foram
decorrentes da felicidade não alcançada, expressando um certo cansaço na procura de ser
161
AVANCINI, Picarelli Marta. M. Nas tramas da Fama. As estrelas do rádio em sua época áurea. Brasil.
Anos 40 e 50. SP. P. 104.
162
A outra vertente do samba-canção corresponde a sofisticada interpretação de Dick Farney e Lúcio Alves,
inspirada no Jazz dos conjuntos norte americanos. As temáticas das letras das canções são mais leves, sem a
presença marcante do desamor.
163
BORGES, Bia. Samba-canção fratura e paixão. Rio de Janeiro. Codecri. 1982.p.95.
122
feliz. As narrativas demonstram o cultivo e a anestesia da tristeza conforme os versos da
canção:
“Bom dia tristeza
Que tarde tristeza
Você veio hoje me ver
Já estava ficando
Até meio triste
De estar tanto tempo
Longe de você
Se chegue tristeza
Se sente comigo
Aqui nesta mesa de bar
Beba do meu copo
Me dê o seu ombro
Que é para eu chorar
Chorar de tristeza
Tristeza de amar”
164
Nesta canção ela cumprimenta o sentimento que a invade, e por estar acostumada a
sofrer por amor, a tristeza a acompanha e ela sente sua falta.
Já pela manhã, está no bar, entende-se que passou a noite nesse ambiente. Ao
amanhecer, se dá conta que está sozinha, abandonada e busca na bebida alcoólica a “cura”
para o desamor. Implicitamente, também pode-se extrair desses versos que a bebida
alcoólica anestesiou a dor e, passado o efeito da embriaguez, ela percebe a ausência da
tristeza enquanto estava sob o efeito da bebida, mas ao voltar a sobriedade, sente a presença
do sentimento, o saúda e o convida para compartilhar mais uma vez de sua fossa. Serve-se
do álcool para amenizá-la.
Convivendo entre a sobriedade acompanhada da tristeza e a embriaguez
acompanhada do “bem-estar”, a personagem da narrativa torna público seus sentimentos
164
Bom dia tristeza. Composição Adoniram Barbosa e Vinícius de Morais. Gravação Maysa. 1957.
123
mais íntimos, que também eram de várias pessoas que participaram cotidianamente desse
tipo de sociabilidade.
“A canção dotada de som e palavra como também de uma racionalidade técnica, pode ser
pensada enquanto um campo de forças. E neste ponto, seu testemunho torna se significativo
e desafiante para o historiador, pois participa das elaborações de concepções, atitudes,
visões de mundo, percepções sociais e comportamentos (…)”
165
.
Aquilo que foi simbolizado e imaginado como perfil e arquétipo dos mal amados
se relacionou às práticas culturais, experiências e vivências dos boêmios que se
identificaram com Maysa. De acordo com Raymond Willians:
“As mentes dos homens são formadas pela sua inteira experiência e não é possível
comunicar qualquer coisa, ainda quando as técnicas mais avançadas sejam utilizadas se o
que se quer comunicar não tiver a conformação daquela experiência”
166
.
As canções são como testemunhos vivos de uma época e a cantora e compositora
veio como porta-voz de experiências
167
de uma vida atormentada e projetou nas canções sua
vivência, narrada por ela como intérprete de sua dor.
“Separada, Maysa buscava encontrar a felicidade. Mas, ao contrario, enfrentou crises
seguidas de depressão, que resultaram em pelo menos dois graves problemas simultâneos e,
de certa forma complementares: Passou a comer avidamente e a beber de forma desregrada.
Voltou a engordar horrores e a dar pequenos vexames em público, trocando o dia pela noite
“comecei a viver a noite e, durante o dia, vegetava dentro de casa” revelaria Maysa…
Comprei um terreno, “construí uma casa e alimentava ali a minha solidão e a minha falta de
perspectivas. Quando era preciso cumprir algum compromisso, bastava aliviar a tensão com
alguns drinques”
168
.
Os bares representaram o espaço do abrigo, do aconchego, da cumplicidade, da
fuga da cidade, esta representou o espaço normatizado e previsível, mas também
insuportável.
165
HONÓRIO, Filho Wolney. Sertão nos embalos da música rural. 1920-1950. PUC. SP. 1992. p.202.
166
WILLIANS, Raymond. Cultura e Sociedade. São Paulo. Editora Nacional. 1950. p.328.
167
Não existe uma definição pura e simples do significado da palavra experiência, atualmente os historiadores
têm procurado concentualiza-la como uma categoria analítica que vai além da esfera política/econômica
agremiando elementos culturais que permeiam as relações pessoais, os sentimentos e as sensações. Sobre esse
assunto confira Thompson, E.P. O termo ausente experiência in. A miséria da teoria. Rio de Janeiro. Zalrar.
1981. pp.180-201.
168
NETO, Lira. Maysa. Só numa multidão de amores. Op. cit.p.93.
124
Os bares, boates e cabarés como espaços do divertimento adulto tornaram
permissíveis as práticas do prazer envolvido por um tipo específico de musicalidade que
cantava os desencantos e promovia a possibilidade de encontros amorosos.
A boemia foi desenvolvida em um ambiente totalmente cultivador da música e da
dança. Quando dançavam, os pares entrelaçavam as mãos, tocavam os rostos, aproximavam
os corpos, trocavam olhares, sentiam o cheiro um do outro, geralmente perfumado.
A noite foi repleta de sensações e sentimentos que foram além do desamor e do
álcool, apesar desses dois elementos praticamente marcarem o estilo de vida boêmio. A
reportagem de Afrânio Brasil Soares na revista O Cruzeiro comentou sobre a freqüência de
Maysa nos bares inclusive em Paris.Segundo Lira Neto:
“Maysa queixa-se de uma saudade que a acompanha a cada momento, saudade de alguma
coisa que ela não sabe o que é. Não compreende como ame tanto a solidão e ache tão
insuportável viver sozinha” diria a reportagem. “O futuro para Maysa é a dose seguinte de
uísque e o passado a anterior. Ela mede os dias pelas doses: Há dias com 23 doses, outros
com 27, alguns de 36, embora nunca se tenha dado o trabalho de contá-las” Acha que há
poucas coisas boas em Paris, como encostar-se num poste de esquina”… enquanto o Brasil
inteiro ficava chocado com as revelações da reportagem, Maysa continuava a vida nômade
pelas madrugadas de Paris… em pouco tempo torrou todo o dinheiro que havia levado para
Paris em diárias de hotel e nas noitadas sem-fim. Chegou a garatujar quadros e vende-los na
rua, para ganhar algum dinheiro. Pelo mesmo motivo, cantou em uma casa noturna de Paris,
a La Louisianne, local que passou a ser sua furna como ela própria definiu. Todas as noites
lá estava ela sentada a uma mesa em um canto mais escuro por trás da garrafa (…)”
169
.
As canções de Maysa cumpriram a função social de comunicar sua condição
emocional, esse gênero musical trouxe a visão negativa, pessimista e sintetizou o
questionamento da idealização da sociedade em questão, as visões amorosas inseridas nas
canções estão envoltas numa mistura de glamour e sofrimento. Essa mistura forma uma
máscara social, dando um aspecto nostálgico e melancólico à época que a emoldura de
forma belíssima, até mesmo o sofrimento foi glamourizado.
“As histórias de amor, a união, a separação, os momentos de felicidade e infelicidade
cantados por vozes empoladas criam territórios que são colocados como referências
amorosas para outrem, promovem o amor, as emoções que representam os conflitos
amorosos, (…) a colocar sua própria experiência amorosa em relação as que estão sendo
cantadas”
170
.
169
Idem. pp.119 e 120.
170
HONÓRIO, Filho Wolney. No ar amores amáveis. Um estudo sobre a promoção do amor na música
brasileira. 1951-1958. PUC. São Paulo. 1998.
125
Pelos circuitos culturais da época, rádio, cinema, jornais e revistas, além das
canções, circulavam temáticas amorosas do sofrimento, mas que buscavam prospecção no
passado ou projetava no futuro, modelos de felicidade.
O cinema dos anos 40 e 50 também divulgou a relação entre desamor, infelicidade
e o álcool. Nas cenas de Farrapo Humano, filme de Billy Wilder, por exemplo, retrata-se as
mazelas de um homem que vê na bebida a fuga para o mal-estar, o filme entende o
alcoolismo como uma forma de denunciar a exclusão social, o personagem principal, um
escritor falido, acaba canalizando para a droga suas frustrações.
“O que a bebida faz à minha mente? Elimina os sacos de areia e o balão flutua. Fico fora de
série, extremamente competente. Ando numa corda sobre as quedas de Niágara. Sou um dos
grandes. Sou Michelangelo moldando a barba de Moisés. Sou Van Gogh pintando a luz
solar: Horowitz tocando o concerto do imperador: John Barrymore antes de ir para o
cinema. Sou Jesse James e seus dois irmãos, os três juntos. Sou William Shakespeare”
171
.
A relação que existiu entre o vazio deixado pelas frustrações amorosas e a busca
em preenchê-lo com bebidas alcoólicas, mostra o álcool como a “solução” para o amor mal
resolvido, agiu como um anestésico para a angústia, para o medo, para a solidão,
sentimentos que se tornaram insuportáveis dentro de uma sociedade divulgadora de
discursos que propõem a eliminação da dor e do sofrimento.
“A realidade de qualquer hegemonia, no sentido político e cultural ampliado, é de que,
embora por definição seja sempre dominante, jamais será total ou exclusiva. A qualquer
momento, formas de política e cultura alternativas, ou diretamente opostas, existem como
elementos significativos na sociedade. (…) qualquer processo hegemônico deve ser
especialmente alerta e sensível às alternativas e oposição que lhe questionam ou ameaçam o
domínio a realidade do processo cultural deve, portanto, incluir sempre os esforços e
contribuições daqueles que estão de uma forma ou de outra, fora ou nas margens dos termos
da hegemonia específica”
172
.
171
Don Birnam (Ray Milland) – Farrapo humano. Hollywood. Paramount, 1945. in FLORIO, Marcelo.
Fragmentos de um discurso imagético. PUC-SP.2005.p.156.
172
WILLIANS, Raymond. Marxismo e Literatura. op.cit.p.119. “Pode-se argumentar de maneira persuasiva
que todas, ou quase todas, as iniciativas e contribuição, mesmo quando adquirem formas manifestamente
alternativas ou oposicionais, estão na prática ligadas ao hegemônico: isto é, que a cultura dominante produz e
limita, ao mesmo tempo, suas próprias formas de contracultura”. WILLIANS, Raymond. op. cit. p. 119. No
caso da boemia aqui analisada, elementos da sociedade normatizada são visíveis como: o glamour, a
elegância, a cordialidade, a amizade e entre esses a busca pelo encontro de uma relação amorosa bem
resolvida.
126
A boemia foi um “espaço alternativo” aos incômodos, nela desenvolveu-se a
“automedicação”, a busca pelo bem-estar tão estimulado socialmente, ali estava o prazer, a
sensualidade em volta dos corpos na dança, na música e na poesia.
As letras das canções e reportagens sobre a vida da cantora trazem uma íntima
relação entre prazer e dor, sentimentos vivenciados por indivíduos que buscavam no
universo noturno a amenização dos conflitos individuais. Portanto, existe uma riqueza
muito grande nos elementos que compõe as imagens noturnas, entre eles, destaca-se o
desamor, presente nas letras de canções que invadiram o imaginário através da cultura
industrial/ de massa.
“A música de maneira geral, pode ser considerada como uma dessas matérias primas
estimuladoras do apetite imaginário do indivíduo”
173
.
A noite, as luzes deram visibilidade às representações do prazer, que existiu em
função de um desprazer, alcançado num trago de bebida ao som de canções sob a luz do
luar.
“Novalis percebeu bem, como os mais modernos psicanalistas, que a noite é símbolo do
inconsciente e permite às recordações perdidas “subir ao coração” semelhantes às nevoas da
noite”
174
.
Os impulsos sensoriais dos indivíduos como a ansiedade, a angústia, a excitação, o
prazer e a dor, somados à suas fantasias, sonhos e sentimentos, formam uma química
geradora de uma cultura específica, alimentada por “artifícios” do imaginário com
arquétipos
175
que reproduzem e marcam períodos históricos.
A partir do século XX, principalmente com o advento do rádio
176
e do disco, o
“casamento” entre música (melodia) e canção (letra) se tornou um dado considerável. A
173
GAY, Peter op.cit.p.97.
174
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Introdução a arquetipologia geral. São
Paulo. Martins Fontes. 1997. p.220.
175
A palavra arquétipo tem sentido na teoria psicanalítica de Jung. Segundo o autor “disposições hereditárias
que fazem parte do inconsciente coletivo” e que se exprimem sob a forma de imagens ou mitos. Por exemplo,
os mitos da criação, a idéia de uma virgem mãe a serpente fatal etc… in JUNG, C.G. Os arquétipos e o
inconsciente coletivo. Voluma I, Vozes. Rio de Janeiro. 2000.p.94-96.
176
O rádio tornou-se com a sua evolução entre os anos 40 e 50 uma “antena metafórica” para capitar os
dramas sociais pelo olhar da modernidade e do cotidiano, a música (letra/melodia) circulava em espaços
sociais que davam lhes significado e portanto onde tinham pessoas que a consumia. Sobre esse assunto ver
127
performance letra/melodia ocupou, e ainda ocupa um lugar importante nas relações
simbólicas e funcionam como um forte testemunho histórico.
“A música passa a ser simultaneamente um tapete e um espelho para o público consumidor.
Tapete na sua forma de terreno “base”, por onde pisam muitos na mesma referência
discursiva sentimental. Espelho como possibilidade do leitor/ouvinte se reconhecer e se
utilizar da música romântica para seu próprio interesse”
177
.
O repertório de Maysa trouxe encantos e desencantos e foi inspirador para relatar
de forma explícita a procura do amor bem sucedido e pela dificuldade de encontrá-lo
passou a ser sinônimo de infelicidade e isso também foi explicitado em outras letras de
sambas-canções que marcaram a época.
O samba-canção nasceu entre moradores da periferia, nos subúrbios e nos morros.
“É em meio a dois copos de bebida com a caixinha de fósforo que acende o cigarro que está
se fumando com o companheiro de mesa que vão se criando as músicas”
178
.
Esse cenário de bares, cigarros e sambas-canções teve início por volta dos anos
30, devido as muitas transformações decorrentes da concentração populacional nas grandes
cidades, isso gerou a falta de espaço no meio urbano e acentuou a desigualdade social.
Os trabalhadores e os desempregados se deslocaram para os subúrbios,
construindo nesse espaço seus casebres e barracos. Quanto menor a casa ou quarto, maior o
número de moradores e maior a necessidade de viver fora desse espaço por insatisfação.
Dessa forma, os moradores se concentraram muito mais nas ruas do que dentro de
casa, por vários motivos, entre eles a falta de espaço. Foi nesse meio que surgiu o bar da
esquina, onde as pessoas passaram a reunir-se, beber, conversar e a produzir letras e
melodias que deram origem ao samba-canção
179
.
Mas o samba-canção desceu do morro e subiu no palco, muitos de seus cantores e
compositores ficaram famosos, e, se não fizeram muitas apresentações, suas canções foram
interpretadas por cantores famosos e cantadas no meio das elites.
Tota, Antonio Pedro. A locomotiva no ar: rádio e modernidade em São Paulo. 1924-1934. Secretaria do
Estado da Cultura. 1990.p.13.
177
FILHO, Honório Wolney. No ar …amores amáveis.op.cit.p.110.
178
BORGES, Bia. op.cit. p.31. Embora a temática esteja envolvida com os ambientes glamourosos da boemia,
é importante registrar esse breve histórico.
179
Essa relação entre produção do samba-canção e o espaço em que ele foi produzido fica clara quando é
observado as experiências e vivências dos primeiros compositores desse etilo. Cf. BORGES. Bia. Idem.
128
“Para as boas famílias dos anos 50, cantar e tocar violão eram coisas associadas a boemia
decadente da Lapa, às brigas de navalhas entre malandros em botequins imundos, à cachaça,
à pobreza, à prostituição (…) Mas para outras famílias, que não tomavam conhecimento
desses ambientes, cantar e tocar violão eram uma prática remanescente dos antigos saraus
180
elegantes, nos quais parentes, amigos reuniam-se em casa e cercados de muros, ao redor de
licores e quitutes e de uma filha especialmente prendada, que os entretinha com suas
próprias canções e uma coisinhas em francês ou inglês – como Maysa. E para outras
famílias ainda, cantar ou tocar violão, quando era pago para isto poderia seu uma forma de
escapar a pobreza como aconteceu com Dolores Duran”
181
.
Os bares e boates elitizados dos anos 50 em São Paulo e no Rio de Janeiro tiveram
um grande papel sociabilizador, foram espaços de vivências amplas, de estímulos sensoriais
como também o local do cultivo da intelectualidade. O publico freqüentador era
heterogêneo, estudantes, professores, escritores, intelectuais, artistas, cantores,
dramaturgos, entre outros, tinham em comum o gosto pela bebida e pela música.
“As músicas (os relatos das letras) indicam uma imagem desta sociedade, que tem por
experiência pode se dizer, falar extensivamente e intensivamente sobre seus sentimentos. É
preciso perseguir também os elementos sociais que dão corpo a estes símbolos neste
sentido, a relação entre as imagens do amor e a sociedade em questão não se dão como
simples casualidade”
182
.
As narrativas de amores e desamores com seus sentimentos exacerbados foram
visíveis não somente nas letras e interpretações das canções de amor na década de 50. Mas
também em outros circuitos culturais da época como: radionovelas, revistas, suplementos
jornalísticos, poemas e romances que vieram como encartes na imprensa escrita
183
e também
ajudaram a compor o imaginário sentimental do período.
Esses relatos apaixonantes ajudaram a sentir as sensações da época, e permitiu
entrar no campo dos sentimentos.
180
Os saraus foram festas noturnas literárias realizadas em residência particular, com caráter intimista.
Segundo Sérgio Estephan “no final do século XIX, o violão passa a ocupar um lugar de destaque na música
brasileira. De instrumento marginalizado e acompanhador de modinhas e lundus, adentra as principais salas
de concerto do país como instrumento solista, tanto na música popular quanto erudita”. Cf. ESTEPHAN,
Sérgio. Produção Musical em São Paulo. O violão de Américo Jacomino, o Canhoto. 1912-1928. in Cultura
crítica. Música brasileira. São Paulo. Apropuc. P.86.
181
CASTRO, Rui. Chega de Saudade. A história e as histórias da Bossa Nova. Cia das Letras. SP. 1990.
P.105.
182
HONÓRIO, Wolney. No ar… amores amáveis.op.cit.p.71.
183
Além da revista O Cruzeiro, a Revista do Rádio, Radiolandia, Cinderela, Fon-Fon, Grande Hotel, Jornal
das Moças, Manchete, Mundo Ilustrado, Revista da Semana entre outras, que traziam “estórias” românticas,
cheia de conflitos, desilusões, e idealizações, como a própria vida amorosa de artistas e cantores. Sobre esse
assunto confira. HONÓRIO, Wolney.op.cit.
129
As letras das canções ressentidas, amarguradas e sofridas, indicaram reflexões
sobre o cenário doloroso e serviram como parâmetro somadas a outros vestígios para
compreender a problemática social da dor pelo viés das relações amorosas, dos vícios e dos
ardores do coração.
2.3 – Ardores e vícios do coração
Enganoso é o coração. Mais do que todas as coisas
184
.
Morada dos sentimentos, órgão responsável pelo bombeamento do sangue que dá
vida ao corpo humano, seu funcionamento físico e emocional é vital e imprescindível. Mas,
em se tratando de sentimento, o coração é tendencioso a enganar-se e a sofrer, como já
dizia o texto belíssimo do profeta Jeremias mais de 600 anos antes de Cristo.
As mesmas sensações de engano e sofrimento são encontradas nas narrativas das
canções que foram analisadas.
O trabalho com letras de canções permite observar que a maioria das que narram
“estórias” amorosas, demonstram exatamente o desamor e isso não foi somente uma
especificidade das letras de sambas-canções da década de 50
185
.
Os versos de “Meu primeiro amor” interpretado por Cascatinha e Nhana já diziam.
“Saudade palavra triste
Quando se perde
Um grande amor”
186
Como também as músicas “sertanejas atuais”
187
, entre outras, que trazem a temática
amorosa ligada a representações que envolvem elementos como a dor, o sofrimento, a
184
Confira livro do Profeta Jeremias capítulo 17 versículo 9.in ALMEIDA, João Ferreira de Sociedade
Bíblica do Brasil. São Paulo. 1999. O profeta de acordo com os ensinamentos da fé judaica alerta o povo de
Israel a confiar somente em um único Deus, pois adimite que os relacionamentos humanos são passiveis de
enganos e decepções, enquanto que o relacionamento com Deus é perfeito.
185
Segundo a historiadora Maria Izilda Santos de Matos “Nos Anos 50, amar era sinônimo de sofrer, cantado
num estilo musical em voga-o samba canção… Era o tempo de uma alegria melancólica, olhos marejados e
um sentir nunca satisfeito.in Dolores Duran. Experiências Boêmias em Copacabana nos anos 50.pp.79-80.
186
Meu primeiro amor. S/D.
187
Inicialmente chamada de moda de viola, e iniciada com Cornélio Pires nos anos 20, a música sertaneja teve
uma trajetória de produção no meio urbano industrial, visando a promoção dos cantores/compositores com
130
mentira, os amores impossíveis, as paixões proibidas, as infidelidades que
conseqüentemente trazem a desilusão e a infelicidade.
As imagens das relações amorosas expressas nas canções de amor, trazem esse
sentimento de forma inatingível ou etérea.
Apesar de muitos estudiosos da Música Popular Brasileira considerarem a Bossa
Nova como um “divisor de águas” entre o samba-canção (carregado de sofrimento) e as
bossas como canções de amor mais leves e alegres (embora seja a melodia bossa-novista),
as letras continuaram expressando a tristeza, a saudade e a melancolia, como na letra de
Chega de Saudade.
“Vai minha tristeza e diz pra ela que
Sem ela não pode ser
Diz-se numa prece
Que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade
A realidade é que sem ela, não há paz, não há beleza
É só tristeza e melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim
Não sai…”
188
Marisa Monte lançou um cd single em 2001
189
interpretando duas canções. “A sua”,
composta em tempos contemporâneos, e “Ontem ao luar”, retratando muito bem a histórica
letras que trazem temáticas que perpassam a relação campo-cidade, além das narrativas amorosas, onde até
mesmo recebeu influência de gêneros da musicalidade estrangeira como da guarânia paraguaia exemplo: Meu
primeiro amor, do bolero mexicano exemplo: Boneca Cobiçada, interpretado por Palmeira o Brás em 1956,
entre outros gêneros. Enquanto que a música caipira restringe o seu universo temático (segundo os estudiosos)
ao meio rural com forte influência folclórica mística preservando geralmente o anonimato dos compositores e
a divulgação da canção apenas na comunidade, não visando a indústria cultural cf.Caldas,Waldenir. O que é
música sertaneja. São Paulo. Brasiliense. 1987. E segundo a historiadora Geni Rosa Duarte “os termos caipira
e sertanejo(a) assumiram significados diferentes no tempo, especialmente quando adjetivavam o substantivo
música ainda hoje usa-se a expressão música sertaneja para identificar determinados cantores que cantam
geralmente em dupla, e cujas vestimentas fazem alguma referência ao mundo rural – estilização do cowboy
ou fazendeiro norte-americano. Chega-se a usar a expressão sertanejo pop, uma vez que suas gravações
incorporam guitarras e sonoridades mais “globalizadas” com letras passionais”.in Múltiplas vozes no ar: O
rádio em São Paulo nos anos 30 e 40. p.226. Aquilo que foi chamado de “sertanejas atuais” podem ser
enquadradas nessa ultima definição da autora como as duplas Zé Di Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo,
Bruno e Marrone Rio Negro e Solimões.
188
Chega de saudade. Composição Vinicius de Moraes e João Gilberto. Gravação:João Gilberto.1958.
131
relação da MPB amorosa com o desamor, algo que vai além dos limites das canções dos
anos 50.
Em se tratando dos sentimentos o profeta Jeremias tinha “razão”, o coração
humano parece estar viciado
190
em enganos amorosos e por isso expressa ardentemente a
dor, que deve ser anestesiada.
São inúmeras as “estórias (des) amorosas” retratadas nas canções, nelas há imagens
de relações de desafetos demonstrados através das personagens “doentes” de amor,
envolvidas no ciclo vicioso da vida boêmia. Amor, desamor, álcool e música se misturaram
de forma explosiva e com isso desenvolveu-se um tipo de sociabilidade cuja fisionomia
aparenta a alegria, a sensualidade e o prazer conjuntamente com a violência, a doença, a
dor, o esquecimento e a derrota. Conforme retrata Maysa em uma reportagem na revista O
Cruzeiro onde o entrevistador Afrânio Brasil Soares perguntou:
-“Você é uma pessoa feliz? Sem piscar, ela fechou a cara e disse que não.
- Então é por isso que recorre a bebida? Maysa fez que não ouviu e disse:
- Esta revolta íntima contra tudo, esta insatisfação, esta fuga de mim e, ao mesmo tempo
esta eterna procura de meu eu é o que me torna infelicíssima.
- Infeliz assim Maysa?
- Sim, uma infelicidade que é tanto mais infeliz porque não é constante. O tédio, o cansaço
prematuro de viver, o fastio de todas as coisas se alternam, as vezes, com momentos de
euforia. O uísque, você sabe…
- E se ele acabasse?
- Não graceja, seria uma tragédia maior ainda.
No fim da noite, o repórter lhe lançou a última pergunta.
Pediu para que ela imaginasse que a mesma questão lhe seria feita no exato instante de sua
morte:
- Que fizeste da vida Maysa?
- Chorei todos os dias. Sofri muito e nunca aprendi a amar…”
191
189
Apesar da distância temporal entre as duas canções A sua composição. Marisa Monte. Gravação Marisa
Monte. 2001. e Ontem ao luar. Composição Casulo da Paixão Cearense e Pedro Alcântara. S/D. interpretada
por Marisa Monte. A temática é a mesma como no versos da primeira citada “tô com sintomas de saudade, tô
pensando em você, como eu te quero bem,… como o tempo vai e o vento vem”, enquanto a segunda citada.
“Ontem, ao luar, nós dois em plena solidão, tu me perguntaste o que era a dor de uma paixão, nada respondi!
Calmo assim fiquei… Ambas demonstram que apesar de existir o ser amado os personagens se encontram
sozinhos sentindo saudade.
190
Existe uma relação entre hábito e vício, embora sejam conceitos diferenciados. Por hábito compreende-se a
repetição freqüente de um ato, um costume. Ocorre que o vício pode ser compreendido como um hábito
nocivo. Segundo o Doutor Flávio GIKOVATE Médico e psicoterapeuta. “Podemos dizer que existe hábito
quando o fato de abandonar aquela prática ou aquele ritual nos entristece um pouco, mas não ao ponto de nos
deixar pensando no assunto o dia inteiro”.cf. Drogas opção de perdedor. São Paulo. Moderna. 1998. p. 19. Já
segundo o historiador Henrique Carneiro “assim como na droga” o conceito de “vício” deve ser investigado
tanto na sua polissemia contemporânea como na sua constituição histórica. De um conceito moral abstrato,
oposto à virtude, para uma noção de comportamento excessivo… A noção de um hábito ou de um costume,
assim como os termos técnicos… usados para designar quadros de comportamentos compulsivos ou
obsessivos, abrange, costumes, esferas muito amplas da atividade humana.in Álcool e drogas e a história do
Brasil. Alameda. São Paulo.2005.p.19.
132
Antony Giddens conceituou que o vício é “uma incapacidade de administrar o
futuro
192
, nesse descontrole afetivo e desenvolvido em um relacionamento com a bebida
fora das normas e padrões vigentes, Maysa trouxe um dos aspectos do mundo boêmio,
aquele que demonstra as mazelas do ser humano. Embora em muitas canções não apareça a
utilização da bebida alcoólica e a embriaguez, mas a vida pessoal da cantora esteve
envolvida com o aspecto do desregramento.
“O que que eu estou procurando
No vago aflita olhando
De canto em canto buscando
O que?
De noite a lua assiste
Que eu fico ainda mais triste
E saio pra rua andando
Procurando mas o que”?
193
Entre os versos marcados por uma agonia intensa e por uma busca interminável,
como nos versos da canção O que, é notório uma forma de amar muito próxima da
dependência psíquica, ou seja do laço afetivo que se estabelece entre o dependente e a
droga e nesse caso entre o ser que ama daquele que é amado.
Essa forma de amar sofrendo está entre os limites da paixão e da co-dependência, o
autor Antony Giddens foi pertinente para a compreensão desse tipo de sentimento,
expresso, por exemplo, na canção Apelo:
“Ah! Meu amor, não vás embora
Vê a vida como chora
Vê que triste é esta canção”
194
191
Entrevista realizada em um bar em Paris por Afrânio Brasil Soares descrita na revista O Cruzeiro 28 de
janeiro de 1959. pp.32 a 34.
192
Sobre esse assunto cf.GIDDENS,Antony. As transformações da intimidade. São Paulo. Edunesp.1993.
193
O que. Composição Maysa.Gravação Maysa. 1957.
194
Apelo.Composição Baden Powel e Vinicius de Moraes.Gravação. Esta canção foi gravada por Nelson
Gonçalves e também por Maysa na década de 50.
133
Em um levantamento das canções estudadas, ficou evidente que todas elas
denunciam a dependência no ser que ama do ser que é amado assim definiu-se essa
dependência como expressões românticas da época. Segundo Giddens:
“O amor romântico que começou a marcar a sua presença do final do século XVIII, utilizou
tais ideais
195
e incorporou elementos do amor paixão, embora tenha-se tornado distinto
deste. O amor romântico introduziu a idéia de uma narrativa uma vida individual – fórmula
que se estendeu radicalmente a reflexividade do amor sublime. Contar uma história é um
dos sentidos do “romance”, mas esta história tornava-se agora individualizada, inserindo o
eu e o outro em uma narrativa pessoal, sem ligação particular com os processos sociais mais
amplos”
196
.
A canção que tem como título o apelo mostra a dependência de alguém que não
pode viver sem o “outro”, a vida não faz mais sentido. Nas narrativas das canções que
apesar das brigas, traições, decepções, vexames, sofrimento, existe ainda o apego à pessoa
amada que foi projetada de uma forma idealizada. Essa imagem ficou fixada nas
impressões “da primeira vista”, as sensações sentidas pela sensualidade exalada,
sobressaem e mascaram a realidade através da aparência que passa a ser desvelada com a
convivência e traz o desgosto.
“A gente briga, diz tanta coisa que não quer dizer
Briga pensando que não vai sofrer
Que não faz mal se tudo terminar
Um belo dia a gente entende que ficou sozinho
Vem a vontade de chorar baixinho
Vem o desejo triste de voltar…
Se eu soubesse
Naquele dia o que eu sei agora
Eu não seria esta mulher que chora
Eu não teria perdido você”
197
195
O autor se refere a idealização temporária que se tem do “outro” que tipifica o amor apaixonando, quando
ainda não houve decepções, considerando que o amor romântico implica atração instantânea (amor a primeira
vista) e passava a fixar-se no inconsciente coletivo da época. Sobre esse assunto.cf. GIDDENS.op.cit.p.51.
196
GIDDENS.op.cit.p.50.
197
Castigo. Composição. Dolores Duran. Gravação Maysa. 1958.
134
Na letra de Castigo existe um conflito entre a realidade da convivência do casal
permeada por brigas e a idealização. Soma-se a isso sensação insuportável da solidão e da
rejeição que por sua vez produzem a frustração. Esses sujeitos mutuamente dependentes
foram produtos do próprio meio social em que viveram. Conforme discutiu Ivan Illich
sobre a modernização:
“Vivemos numa época em que o aprender é programado, o habitar urbanizado, os
deslocamentos motorizados, as comunicações canalizadas (…) Numa sociedade super-
indústrializada a esse ponto, as pessoas são condicionadas a obter as coisas e não a fazê-las.
O que querem é ser educadas, transportadas, cuidadas ou guiadas, ao contrário de
aprenderem (…) e encontrarem seu próprio caminho”
198
.
Assim, percebe-se como foram culturalmente criados símbolos que favoreceram a
dependência do ser humano, criando sujeitos incapazes de auto-administrarem suas
próprias vidas, de lidarem com a dor, com a doença, com a morte e, sobretudo, com a
perda. Segundo o historiador Henrique Carneiro:
“Toda a relação com os produtos da cultura material é transformada em vício, programada
em laboratórios de técnicas psicológicas e veiculadas pela publicidade com apelos de
consumo compulsivo (…) O traço espetacular do capitalismo contemporâneo (…) é a
prevalência de uma cultura do simulacro, onde a produção de imagens preenche todas as
telas e os cartazes com fetiches
199
consumistas explorados por meio de técnicas publicitárias
como a grande compulsão hodierna, o vício máximo do consumo, a dependência das
mercadorias como objeto que escravizam as pessoas”
200
.
As imagens do amor e da paixão produzidas nos anos 50 estiveram envolvidas com
a dependência das relações afetivas mal resolvidas e ou idealizadas, nas quais as
personagens de uma boa “estória” romântica demonstravam estar compulsivamente
dependentes um do outro.
Para Antony Giddens os relacionamentos amorosos que demonstram desequilíbrio
como: mulheres que amam demais sem serem amadas, homens traídos e excessivamente
ciumentos, pessoas sempre envolvidas com relacionamentos amorosos frustrados como se
não conseguissem se libertar desse ciclo vicioso, podem ser chamados de co-dependentes.
198
ILLICH, Ivan. A Expropriação da Saúde. op.cit.p.78.
199
A palavra fetiche vem da mesma raiz da palavra feitiço, que do ponto de vista místico e religioso tem o
significado de um artefato com forças estranhas, capaz de exercer poder sobre os seus adoradores despertando
neles sensações múltiplas.
200
CARNEIRO.Henrique. Álcool e drogas na historia do Brasil. Op.cit.p.22.
135
É necessário ter muita cautela para utilizar esse termo, que de forma generalizada
ou equivocada, traz como resultado os relacionamentos entre pessoas que dão apoio e
guarda à usuários de drogas, por exemplo do álcool, e passam a se acostumar com os
problemas das vivências e experiência do vício do parceiro.
“Finalmente, no entanto ficou claro que os alcoólatras tem poucas chances de se manter
sóbrios se retornam a relacionamentos ou a famílias em que tudo o mais permanece o
mesmo, em geral, todos estes relacionamentos giram em torno do vício do alcoólatra”
201
.
Giddens explica que a co-dependência está muito além desse conceito de
relacionamento com usuários de drogas, liga-se também a um tipo de personalidade
desenvolvida na vida moderna.
“Uma pessoa co-dependente é alguém que, para manter uma sensação de segurança
ontológica, requer outro indivíduo ou um conjunto de indivíduos, para definir as suas
carências; ela ou ele não pode sentir autoconfiança sem estar dedicado as necessidades dos
outros. Um relacionamento co-dependente é aquele em que um indivíduo está ligado
psicologicamente a um parceiro cujas as atividades são dirigidas por algum tipo de
compulsividade. Chamarei de relacionamento fixado
202
, aquele em que o próprio
relacionamento é o objeto do vício
203
(grifo nosso).
Maysa mitologizou o que pode-se chamar de relacionamentos co-
dependentes/fixados. São relacionamentos co-dependentes porque culturalmente o período
caracterizou-se como um universo repleto de necessidades a serem satisfeitas, como foi
explicado no primeiro capítulo. A maioria das pessoas viveram a procura de: novidade,
conquista, vitória, poder, saúde, beleza, alegria, juventude, elegância, encanto, prazer e
romance. Careciam desses elementos muitas vezes expressos em valores culturalmente
divulgados como, por exemplo, no consumismo. E são fixados porque entre as
necessidades das carências humanas, a afetiva era essencial e para muitos havia a obsessão
em satisfazê-la.
A maioria das simbologias que visualizam o período trazem consigo expressões de
relacionamentos amorosos, bem sucedidos ou não, dessa forma, compreende-se o porque
do sucesso das canções de “fossa” e “dor de cotovelo”:
201
GIDDENS.op.cit.p.100.
202
Nos relacionamentos fixados, os indivíduos não constroem suas vidas em torno dos vícios que já existem
em outras pessoas e sim na necessidade de encontrarem no outro a sensação de segurança e bem-estar.
203
GIDDENS.op.cit.p.102.
136
“O mito permite a percepção imediata de determinados tipos de relações constantes,
destacando-os do emaranhado das aparências cotidianas”
204
.
Apesar da dor, do conflito, do medo e da insegurança, o período mostra a enorme
necessidade de relacionar-se afetivamente.
“Tem gente que ama/Que vive brigando
E depois que briga/Acaba voltando
Tem gente que canta/Por que está amando
Quem não tem amor/Leva a vida esperando
Uns amam pra frente/E nunca se esquecem
Mas são tão pouquinhos/Que nem aparecem
Tem uns que são fracos/E dão pra beber
Outros fazem samba/E adoram sofrer
Tem apaixonado/Que faz serenata
Tem amor de raça/E amor vira-lata
Amor com champanhe/Amor com cachaça
Amor nos iates/Nos bancos da praça
Tem homem que briga/Pela bem-amada
Tem mulher maluca/Que atura porrada
Tem quem ama tanto/Que até enlouquece
Tem quem dê a vida/Por quem não merece
Amores à vista/Amores a prazo
Amor ciumento/Que só cria caso
Tem gente que jura/Que não volta mais
Mas jura sabendo/Que não é capaz
Tem gente que escreve/Até poesia
E rima saudade/com hipocrisia
Tem assunto à beca/Pra gente falar
Mas não interessa/O negócio é amar”
205
204
ROUGEMONI, Denis. O amor e o Ocidente.in FILHO, Wolney. No ar: amores, amáveis.op.cit.p.146.
205
O negócio é amar. Composição Dolores Duran e Carlos Lyra. S/D.
137
As canções trouxeram expressões constantes do fracasso amoroso, contrastando
com as expressões idealizadas das relações afetivas expressas nas propagandas que
“amenizaram” os conflitos da época, onde havia a necessidade do amor, as canções
corporificam o mal-estar que as pessoas mal-amadas sentiam e deixam claro elementos de
introspecção e de subjetivismo mergulhados no sentimentalismo exacerbado.
Mesmo retratando temas tão carregados de negatividade, essas canções trazem
consigo uma sedução que envolveu seus interlocutores, seja pela melodia, seja pela voz dos
seus intérpretes ou até mesmo por retratarem “estórias” de vidas amorosas mal-resolvidas,
daqueles que viveram buscando o amor entre desamores. O que era dor transformava-se em
prazer através do consumo cultural do gênero da “fossa” e da “dor de cotovelo”.
“O consumo ávido de novelas e histórias românticas não era em qualquer sentido um
testemunho de passividade. O indivíduo buscava no êxtase o que lhe era negado no
mundo comum. Vista deste ângulo, a realidade das histórias românticas era uma
expressão de fraqueza, uma incapacidade de se chegar a um acordo com a auto-
identidade frustrada na vida social real”
206
(grifo nosso).
Nesse sentido, amor/paixão
207
, vício, doença, dor e prazer formaram uma rede de
significados muito estreitos entre si.
Com esse trabalho foi possível desvelar a relação entre dor e prazer no
comportamento daqueles que foram chamados de inadaptados e desregrados em uma
sociedade de aparência encantadora mais envolvida com os vícios.
“Originalmente, o conceito de vício estava vinculado em sua quase totalidade à dependência
química, ao álcool ou as drogas de vários tipos. Uma vez incorporada pela medicina, a idéia
foi definida como uma patologia física (…) Tal conceito, no entanto, esconde o fato de que
o vício está expresso no comportamento compulsivo (…). A compulsão é uma forma de
comportamento que um indivíduo acha muito difícil, ou impossível, parar apenas pelo
poder da vontade (…) as compulsões em geral assumem a forma de rituais pessoais
estereotipados (…) o comportamento compulsivo está associado a uma sensação de
perda de controle sobre o eu”
208
(grifo nosso).
206
GIDDENS,op.cit.p.55.
207
O conceito da palavra amor está permeado de representações que o envolvem como um sentimento nobre
de: doação, aceitação, compreensão e perdão conforme define o apóstolo Paulo em sua carta a cidade de
Corintos na Grécia …o amor tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.cf. ICorintos.capítulo 13.
Versículos 1 ao 13. in ALMEIDA, João Ferreira de. Sociedade de Bíblica do Brasil.op.cit. Esse conceito é
pertinente para a compreensão desse sentimento ao lado do conceito de paixão que a própria palavra traz em
sua raiz passion o significado de: sofrimento, martírio, sentimento, gosto ou amor intenso a ponto de ofuscar a
razão, hábito ou vício dominador. cf. DICIONÁRO HOUAISS. Instituto Antônio Houaiss.Rio de
Janeiro.objetiva 2004.
208
GIDDENS,op.cit.pp.83-84.
138
As narrativas das canções expressam sensações que foram vividas tanto pelos
ouvintes e fãs que viram suas “estórias” de vida representadas, como também, pelos
próprios compositores e ou intérpretes que narravam a letra composta geralmente na
primeira pessoa do singular ou do plural, com pronomes possessivos equivalentes.
“Ah! Se eu te pudesse fazer entender
Sem teu amor não posso viver
Que sem nós dois o que resta sou eu
Eu assim tão
E eu preciso aprender a ser só
Poder dormir sem sentir teu calor
E ver que foi só um sonho e passou
Ah! O amor
Quando é demais ao findar leva a paz
Me entreguei, sem pensar
Que a saudade existe, se vem é tão triste
Vem, meus olhos choram a falta dos teus
E estes teus olhos que foram tão meus
Por Deus entenda que assim eu não vivo
Eu morro pensando no nosso amor”
209
Nessa narrativa fica bastante visível a presença dos pronomes eu, nós, teu, meus,
teus e nosso, trazendo a evidente dependência que existe do outro e a incapacidade de
quebrar o elo e desfazer o apego. Sem o ser amado tudo se transforma em dor, desespero e
morte, sensações próprias dos relacionamentos co-dependentes/fixados. Segundo Giddens:
“Tais relacionamentos são muito mais turbulentos quando as pessoas em questão estão
vinculadas por formas de antagonismo mútuo das quais são incapazes de se libertar”
210
.
Esses sujeitos sociais foram prisioneiros da busca pelo prazer, assim como são
todos aqueles que de forma compulsiva e obsessiva o buscaram. Sujeitos próprios da
209
Eu preciso aprender a ser só. Composição Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle. Gravação Maysa.1954.
210
GIDDENS.op.cit.p.102.
139
modernidade/modernização que induziu os seres humanos a uma busca incessante de bens e
valores materiais ou sentimentais e produziu seres que carregaram dentro de si uma
insatisfação constante. No caso dos relacionamentos amorosos, segundo Susan Forward.
“O cinema, a televisão, a propaganda, as canções populares, tudo conspira para nos
persuadir de que o amor não é verdadeiro a menos que nos consuma por inteiro”
211
.
Fica evidente nesses casos o descontrole que pode ser anestesiado por um tipo de
droga, nesse estudo a utilização do álcool cumpriu o papel amenizador das frustrações e foi
explicitamente divulgado no período.
As pessoas que foram envolvidas com experiências amorosas frustradas,
anestesiadas com as bebidas alcoólicas, não suportaram as barreiras que impediram seus
prazeres e foram intolerantes às frustrações. Não conseguiram se libertar dos
relacionamentos co-dependentes/fixados, como também do álcool, do cigarro e outras
drogas. Os próprios relacionamentos, somados às substâncias, caracterizam os maiores
vícios da época.
“Quantos estão pelas mesas, bebendo tristezas, querendo ocultar
Um que se afoga no copo, renasce na alma, desponta no olhar
Garçon se o telefone bater e se for pra mim
Garçon repita pra ele, que eu sou mais feliz assim
Você sabe bem que é mentira
Mentira noturna de bar
Bar, tristonho sindicato de sócios da mesma dor
Bar que é o refúgio barato dos fracassados do amor”
212
Nessa narrativa o bar é apresentado como o lugar do refúgio e do isolamento, mas
também é o lugar onde se partilham as dores e desenganos amorosos.
A bebida alcoólica por excelência representou o antídoto contra a dor, a porção que
“levou ao prazer em si mesmo”.
211
FORWARD, Susan e BUCK Craig. Amores Obsessivos. Quando a paixão o faz prisioneiro.Rio de Janeiro.
Rocco.1993.p.16.
212
Bar da noite. Composição Haroldo Barbosa e Bidu Reis. Gravação Maysa.1953.
140
Os recônditos das drogas foram a “saída” e permanece “sendo” para muitos que
sofreram conflitos amorosos, foram a medida paliativa que restava para se apoiar, em meio
a uma cultura carregada de apegos, como os anos 50.
“Quando Freud em O mal-estar da civilização 1930, afirma que o sofrimento é uma
experiência mais comum do que a felicidade, e aponta que das três fontes de sofrimento
213
a relação com o próximo é a mais difícil de ser suportada, ele nos indica que devemos
buscar aí a expressão de um gozo, em si mesmo ignorado (…) gozo que ronda
inexoravelmente o mundo capitalista enraizado na utopia da universalização da felicidade
mesmo diante desse estado de coisas, é possível apostar no risco da relação com o próximo.
Mas também decidir pelo brilho das medidas paliativas. É nesse segundo caminho que
situamos a toxicomania”
214
.
O individualismo próprio do período, gerou cada vez mais a sensação de solidão,
essa foi a desencadeadora principal dos diversos mal-estares como a angústia, a melancolia,
a insegurança, entre outros.
Esse estilo de vida próprio dos tempos modernos facilitou a busca de um tipo de
prazer também individualista, nele podia-se descartar o outro, embora ocorresse a sua falta
também existia o medo de sofrer, principalmente nas relações humanas. Segundo Freud,
são esses os sofrimentos mais penosos de suportar e os mais urgentes a atenuar.
“Há vários métodos para evitar o sofrimento, contudo os métodos mais interessantes são os
que procuram influenciar nosso próprio organismo. O mais eficaz é a intoxicação. O serviço
prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é
tão altamente apreciado como um benefício, que tantos indivíduos quanto povos lhes
concederam um lugar permanente na economia da libido com o auxílio desses
amortecedores de preocupações, é possível em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da
realidade e encontrar refúgio num mundo próprio”
215
.
A necessidade do prazer é tão intensa nos seres humanos que existem substâncias,
como o álcool e o cigarro, que são aceitos socialmente como objetos de gozo. A
justificativa mais evidente para utilizar-se deles é a busca pela amenização dos conflitos,
inevitáveis na sociedade capitalista. No período o uso do álcool serviu como um lenitivo
para o sofrimento demonstrado no comportamento boêmio de Maysa e outros cantores.
213
Segundo Freud existem três fontes de sofrimento humano: o nosso próprio corpo, condenado a decadência
do envelhecimento e vulnerável a doença e a morte, a nossa relação com o mundo exterior e a nossa relação
com os outros seres humanos. Todos esses itens são produtores de conflitos angústia e
sofrimento.cf.FREUD.Sigmund. O mal-estar na civilização. 1930 in BENTES.Lenita. O brilho da
infelicidade.op.cit.p.100.
214
BENTES,Lenita.op.cit.p.63. O conceito de toxicomania abrange a utilização de substâncias lícitas e ou
ilícitas de forma descontrolada, mas esse conceito não deve ser confundido como o conceito de tóxicofilia.
215
FREUD. O mal estar na civilização. In BENTES,Lenita.op.cit.p.100.
141
As drogas, especificamente as lícitas, trazem o “prazer” ao alcance de todos, as
substâncias passam a representar o encontro com um elixir que contém a fórmula para
“maquiar a infelicidade”.
“Percebemos algo que aponta para além de uma mera fuga da realidade, tratando se mais
exatamente de uma solução encontrada por esses sujeitos (…) Em Freud, as drogas seriam
uma solução para o mal-estar na cultura (…) Assim, o fenômeno das toxicomanias se
apresenta como uma “promessa” do encontro com o objeto perdido, promessa tanto radical
quanto enganosa (…)”
216
.
Com esta pesquisa ficou evidente neste trabalho que o mal estar sócio cultural
encontrava-se nos próprios discursos hegemônicos da época, entre eles destaca-se os
discursos dos meios de comunicação como as propagandas que apresentaram toda a
positividade e estimulo ao consumo do álcool. Já as canções demonstraram o desconforto
social historicamente datado devido a todo o processo de industrialização, expansão urbana
e individualismo que caracterizou um novo tempo e uma alteração paradigmática nos
moldes de vida.
Nos discursos das fontes utilizadas ficaram nítidas as dificuldades de se estabelecer
reais relações afetivas, porque as propagandas as colocam de forma bem resolvida e
idealizada, enquanto que as canções denunciam o contrário, o que houve em comum entre
esses dois tipos de documentos foi a presença do álcool, ora como um elemento essencial
para corroborar a felicidade, ora como um lenitivo para a infelicidade. Outro fator
importante incomum entre a documentação foi a idealização e sublimação da felicidade nas
propagandas e do sofrimento nas canções.
Por sua vez os discursos médicos vieram catalogar e dar maior visibilidade aqueles
que foram chamados de inadaptados ao sistema e que denunciaram em seus hábitos a
insatisfação em uma sociedade de imagens glamourosas e felizes, onde o álcool esteve
ligado as imagens de sociabilidades carregadas de sedução como aquelas apresentadas nas
propagandas, já o abuso do álcool esteve vinculado aos aspectos da negatividade social
como a doença, o fracasso, entre outros como, por exemplo, o desamor que ficou visível na
carreira e na vida da cantora e compositora Maysa.
216
BENTES,Lenita.op.cit.p.174.
142
Capítulo III – Tristeza, glamour e alcoolização
Imagem 33. Maysa no leito do hospital Nossa Senhora do Carmo. São Paulo 1959. Fonte: NETO,
Lira.op,cit.Caderno de imagens.p.12.
“Ninguém pode calar dentro em
mim
Essa chama que não vai passar
É mais forte que eu
E não quero dela me afastar…
E se alguém não quiser entender
E falar pois que fale
Eu não vou me importar com a
maldade de quem nada sabe”
Maysa Resposta 1956
143
No final da década de 50, desquitada e repleta de decepções, Maysa encontrava-se
no leito do hospital Nossa Senhora do Carmo localizado na Rua Martiniano de Carvalho no
bairro Bela Vista em São Paulo. Seu quadro clínico apresentava crises de pressão baixa,
provocada pela ingestão combinada de várias doses de uísque e comprimidos contra
insônia.
Os boletins médicos informaram que ela permaneceu um mês inteiro internada no
hospital e foi submetida a tratamento psicoterápico a base de antidepressivos e também de
uma rigorosa desintoxicação alcoólica conjuntamente ao tratamento de sonoterapia, isto é,
indução artificial ao sono por longo tempo mediante o uso de remédios, uma técnica que na
época era indicada para casos de psicoses agudas, depressões melancólicas, crises de
ansiedade e síndromes psicossomáticas com risco de suicídio
217
.
Aos 23 anos de idade após ter negado várias vezes, Maysa confirmou em uma
reportagem para a revista O Cruzeiro
218
que tinha tentado suicídio depois de ter se olhado
no espelho do banheiro e ter se deparado com a imagem de uma mulher em ruínas cada vez
mais devastada pela vida submergida em tristeza, glamour e alcoolização.
3.1 – A tristeza e o desamor: “Maysa confessa: Eu canto meu estado d’alma”
A carreira de Maysa no período estudado esteve envolvida por simbologias que
evocaram o mal-estar próprio a época. A revista O Cruzeiro de Janeiro de 1958 expunha a
cantora na capa com o título “Maysa confessa: Eu canto meu estado d’alma”.
“Ela tinha consciência que a causa de seu êxito estrondoso como artista – além da voz
indiscutivelmente singular, meio rouca, meio aveludada – residia também na imagem
pública que construíra como musa imbatível e sofisticada do desencanto e da melancolia.
Era uma espécie de Edith Piaf dos trópicos, (…) recém desquitada, em um tempo em que as
mulheres separadas eram estigmatizadas como prostitutas, Maysa mandara para os ares o
casamento (…) e para duplo escândalo da alta sociedade de São Paulo, abraçara a vida
igualmente duvidosa de cantora de rádio. Para os meios mais ilustrados era considerada uma
espécie de diva existencialista (…) “Há gritos incríveis dentro de mim que me povoam da
mais imensa solidão”
219
.
217
Os estudos dos doutores Pacheco e Silva, Pedro Pernambuco Filho entre outros discutiram as técnicas de
tratamento citadas contra o abuso alcoólico. Sobre esse assunto cf. FILHO, Pedro Pernambuco. Alcoolismo
problema de saúde pública. Como também SILVA, Pacheco. A luta antialcoólica in Revista de Higiene e
Saúde Pública. P.35 e Palavra de Psiquiatria. P. 455. Faculdade de Saúde Pública. São Paulo. 1950 e 1954.
218
Sobre esse assunto cf. NETO, Lira. Maysa só numa multidão de amores. Op. cit. p. 126.
219
O Cruzeiro, 08 de janeiro de 1958.
144
Foi através de reportagens e imagens publicadas em jornais, revistas, sites e livros,
como também nas próprias letras de canções compostas ou interpretadas pela artista que
ficaram visíveis as características que marcaram a carreira e a vida da cantora.
Maysa passou a ser ídolo
220
através de sua linguagem verbal, corporal e musical. Foi
na relação de empatia com sua figura, em evidência na mídia que a identificação do público
aconteceu. Para Campbell:
“quando se torna modelo para a vida dos outros a pessoa se move para uma esfera que se
torna passível de ser mitologizada”
221
.
Triste, sedutora e bela, Maysa teve sua vida mergulhada em vícios, desamores,
glamoures e seduções e seu arquétipo
222
trouxe as marcas do período o que possibilitou a
leitura a contrapelo, feita através do brilho da felicidade dos “Anos Dourados” que para
muitos foi tão infeliz, sem deixar de ser glamourosa e sedutora. A carreira da cantora
cruzou-se com esses anos suntuosos, mitificando-a naquele contexto.
“A sedução ocorre quase que sem exceção no plano espiritual, nunca no físico, mas no
plano das idéias, das emoções, das crenças, justamente porque ela, a sedução, se alimenta
desse seara fértil que é onde estão o “sentir”, o desejo. Dessa forma ao se discutir a sedução
não se está relacionando-a erotismo que busca mais a recompensa física, o toque, até
mesmo o lascivo”
223
.
Assim, deu-se o canal de comunicação (projeção-identificação) que levou Maysa a
ser representante da infelicidade, da nostalgia, da sedução e do desamor. As letras das
canções, falam explicitamente sobre as relações de homens e mulheres estigmatizados
socialmente no período como seres sozinhos.
Com o auxílio dos autores citados no rool bibliográfico como: Synval Beltrão
Junior, Affonso Romero de Santanna, Valter Krausche, Paulo Eduardo Lopes, Maria Izilda
220
Ídolo – adoração do símbolo ( objeto, imagem ou personagem ) ligado a idolatria, envolvendo o místico
que está relacionado com a magia, ou seja, sedução. Compreende-se por magia o fascínio e o encantamento
que levam ao envolvimento não racional, extremamente atraente. A definição comum sobre magia se refere a
arte ou ciência oculta com que se pretende produzir efeitos e fenômenos contrários a natureza. Cf.LELAND,
Charles G.. Magia Cigana. São Paulo. Bertrand Brasil. 1993.
221
CAMPBELL.op.cit.p.136.
222
A palavra arquétipo tem sentido na teoria psicanalítica de Jung. Segundo o autor “os arquétipos são
disposições hereditárias que fazem parte do inconsciente coletivo e que se exprimem sob a forma de imagens
ou mitos” cf. Jung. C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo.Volume I. Rio de Janeiro. Vozes. 200.pp.94-
96.
223
MIQUELIN, op.cit.p.23.
145
Santos de Matos, Ernest Schurmam, Luis Tatit, entre outros, foi feita a análise das letras
das canções que trazem narrações sobre os relacionamentos infelizes.
“a música sempre teve participação ativa no social, como reflexo de costumes e como
crítica dos mesmos. E um dos temas mais desenvolvidos na música popular é a mulher, seja
como o ser amado, ou ser criticado, ou ser desprezado, ou ser desejado”
224
.
A imagem da mulher nas canções populares brasileiras apareceu marcada pelo
discurso masculino e machista, decorrente da herança cultural patriarcal brasileira que tem
suas raízes fincadas nas culturas greco-romanas e judaico-cristãs. No caso das letras de
canções analisadas neste trabalho a voz de uma mulher que foi compositora e cantora foi
bastante significativa porque expôs seus sentimentos em uma época em que a maioria dos
compositores e cantores foram homens.
Embora fosse apreciável à época a presença das artistas como Nora Ney, Helena de
Lima, Elizeth Cardoso, Sylvinha Telles, Dolores Duran, Aracy de Almeida e Linda Batista
entre outras catalogadas pelo jornalista Arley Pereira de “vozes noturnas”
225
nas revistas da
época.
As “estórias” que foram cantadas e vividas nas rodas boêmias paulistanas e cariocas
espalharam-se através das ondas das rádios e faixas dos Lps pelas “boemias”, a nível
nacional e internacional.
“a canção promove a remotivação constante dos componentes próprios do discurso
oral...Durante essa operação, a relação sujeito / objeto vai sendo reproduzida na letra, na
melodia, e demais recursos musicais, ora através do contato de uma dimensão extensa, ora
através do contato de elementos vizinhos, mas sempre em função do estreitamento dos laços
entre expressão e contato”
226
.
Para muitos críticos Maysa foi considerada uma mulher de vanguarda que enfrentou
os preconceitos e normas de seu tempo, época em que apresentar-se em bares e boates era
uma atividade predominantemente masculina ou para mulheres rotuladas como “da vida”,
“avançadas”, “despudoradas”, “liberais” mas no seu íntimo Maysa estava à procura de um
amor que pudesse livra-la da “couraça” da tristeza, não era uma “Cinderela às avessas” só
pelo fato de romper um casamento com um membro da tradicional família Matarazzo, era
224
JUNIOR, Synval Beltrão. A musa mulher na canção brasileira. São Paulo. Estação liberdade. 1993.p.13.
225
Sobre esse assunto cf. LOGULLO, Eduardo. Meu Mundo Caiu. Op. cit. p. 82.
226
TATIT, Luis. Semiótica da canção, melodia e letra escrita. 2 ed. 1999. p. 45.
146
sim uma mulher belíssima em busca de um amor que não lhe trouxesse desencantos. As
fontes analisadas e os autores consultados dão condições de interpretar as narrativas
cancioneiras a partir desse enfoque.
Pelas canções e imagens, os perfis de Maysa trazem arquétipos que ao mesmo
tempo se contradizem e se complementam.
Ela foi vista como mulher à frente de seu tempo liberada e de muitos amores mas no
íntimo era frágil, feminina e esperava viver um grande amor.
Ao viver o mundo boêmio procurou incansavelmente o amor, quando não o
encontrou ou perdeu, permitiu experimentar os prazeres da noite em função do desprazer do
desamor.
“Quando as primeiras estrelas
No céu aparecem a piscar
Sei que estão rindo de mim
Por ainda esperar o amor
Que a noite levou para longe de mim”
227
Ou
“Se chegue tristeza
Se sente comigo
Aqui nesta mesa de bar
Beba do meu copo
Me dê o seu ombro
Que é para eu chorar
Chorar de tristeza
Tristeza de amar”
228
Com o auxilio analítico de Boris Kossoy, Maria do Pilar Araújo, Roland Barthes e
Ana Maria Costa de Oliveira como também Modesto Farina e Luciano Guimarães entre
outros autores citados na bibliografia, foi feita a leitura visual de algumas imagens de
227
Rindo de mim. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1956.
228
Bom dia Tristeza. Composição Adoniran Barbosa e Vinicius de Moraes. Gravação Maysa. 1956.
147
domínio público da cantora Maysa na década de 50, encontradas em revistas, capas de
discos, sites, e no arquivo particular de Thais Matarazzo Cantero.
Os olhares, os gestos, enfim as expressões dizem muito sobre a nostalgia, a
infelicidade e o desamor, carregados de glamour e sedução, arquétipos que foram
constituídos visualmente através das imagens da cantora.
“Um arquétipo é uma forma de pensamento ou de comportamento, um símbolo das
experiências humanas básicas, que são as mesmas para qualquer indivíduo, em qualquer
época em qualquer lugar. Sendo resultado de uma experiência que foi repetida durante
muitas e muitas gerações, os arquétipos estão carregados de uma forte emoção, que Jung
chama de “energia”. Essa energia lhes dá o poder de interferir no comportamento do
indivíduo e da coletividade”
229
.
A afirmação é pertinente para encaminhar a análise das imagens e das canções que
trazem a energia da sedução e do desamor elementos que envolveram a vida pessoal e
artística de Maysa.
229
JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. in. MENDES, Mariza.T.B. Em busca dos contos perdidos. O
significado das funções femininas nos contos de Pernault. São Paulo. Unesp. 200.p.35.
148
Imagem: 34. Fonte: LIRA, Neto. Op. cit. Caderno de imagens. P. 5. Maysa Casamento 1954.
149
Na imagem em preto e branco Maysa posou para as lentes dos fotógrafos, uma
recordação particular do seu álbum de casamento, essa foto também foi utilizada como
imagem de domínio público, encontrada em revistas e jornais do período.
Aos dezessete anos se casou com todo o glamour e pompa que uma moça devia
desejar na época. As poses e o estilo fotográfico retratam toda a feminilidade, beleza e
decoro dentro dos padrões morais pré-estabelecidos.
Ao se casar de vestido branco de cetim, véu, grinalda de cinco metros e bouquet
de orquídeas na Igreja Católica, Maysa cumpriu o destino desejável à todas as moças de
boa família da época.
“(…) às 17h30 do dia 24 de janeiro de 1954, Maysa Monjardim e André Matarazzo
ajoelharam-se aos pés do suntuoso altar da Catedral da Sé, em São Paulo, igreja que após
quatro décadas de reforma havia sido inaugurada no ano anterior, para as comemorações do
IV Centenário da capital paulista. O cardeal Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta,
arcebispo de São Paulo e responsável pela celebração da cerimônia, leu uma mensagem aos
noivos enviada de Roma com assinatura do papa Pio XII (…) formando condigna moldura à
juventude e à formosura da noiva, o templo mostrava-se todo ele largamente ornamentado
de angélicas entretecidas de alvos antúrios (…) Por entre os delicados renques e molhos de
flores, a noiva, conduzida por seu pai, encaminhou-se para o altar, enfeixando nas mãos
orquídeas nacaradas de rara beleza. De cetim italiano branco, com vagos reflexos cinzas, era
o seu vestido nupcial, que aliava ao brilho natural a fulguração macia e constante de pérolas
e lantejoulas, diziam ainda os jornais, que registraram a presença de convidados ilustres, a
exemplo do governados do Estado, Lucas Nogueira Garcez, e, é claro, de toda a família
Matarazzo, além de outros sobrenomes quatrocentôes que compõe a fina flor da alta
sociedade paulistana”
230
.
A cerimônia foi realizada na Catedral da Sé, o maior templo Católico da cidade de
São Paulo que seria reinaugurado no dia seguinte em vinte e cinco de janeiro de 1954, data
do IV Centenário da cidade. As núpcias de Maysa e André Matarazzo anteciparam, como
foi permitido à vontade dos poderosos Matarazzos, a oficialidade do evento do aniversário
da cidade. Após a cerimônia religiosa, no luxuoso Buffet Copacabana localizado na Rua
Cônego Eugênio Leite, 317, os convidados aguardaram o casal, no cardápio além de água e
finas bebidas, champanhe e caviar foram servidos.
230
NETO, Lira. Maysa só numa multidão de amores. Op. cit. p. 58.
150
Imagem: 35. Fonte: Capa LP Convite para ouvir Maysa. 1956. Acervo particular da pesquisadora Thais
Matarazzo Canteiro.
151
Em contraste com a imagem anterior de uma noiva feliz a capa do primeiro disco
da cantora gravado dois anos após seu casamento com André Matarazzo traz um arranjo de
orquídeas na tonalidade rosa mesclada de vermelho e amarelo, orvalhadas sobre o fundo
azul, junto a ele há uma espécie de cartão de visita com o titulo “Convite para ouvir
Maysa”, os títulos das canções que compõe o LP demonstram uma mulher marcada pelo
sofrimento são eles: Marcada, Não vou querer, Agonia, Quando vem a saudade, Tarde
triste, Resposta, Rindo de mim e Adeus.
O azul traz a afetividade e o amor profundo associado ao verde das folhas. O rosa
expressa a feminilidade que somado ao amarelo e ao vermelho traz o significado de um
estado emocional ansioso, sonhador e apaixonado.
Nesta época Maysa já demonstrava insatisfações com o seu casamento, a letra da
música “Marcada” o abre alas” do seu primeiro disco expressa aquilo que Maysa estava
sentindo e que se oficializou com o desquite em 1958.
"… Sofrendo calada
Chorando sozinha
Trazendo comigo
A dor que é só minha
Procuro em vão na fantasia
Um pouquinho só de alegria…”
231
231
Marcada. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1956.
152
Imagem: 36.Fonte: Acervo do Jornal Última Hora. 1956. in LOGULLO, Eduardo.op.cit.Caderno de
Imagens.p.6.
153
Na época no jornal Ultima Hora saiu uma foto da cantora ouvindo o seu próprio
disco na viola hi-fi, o seu semblante expressa tristeza e insatisfação.
Todo o repertório das canções do primeiro disco como dos outros que seguiram a
carreira de Maysa trazem a temática do sofrimento, da saudade e do desamor.
“Vou vivendo esta vida
Curtindo essa dor
Eu só quero que um dia
Tu possas saber
O que é o amor”
232
As canções e as imagens de domínio público passaram a compor o arquétipo da
mulher que foi mal amada e infeliz, apesar de ter sido bela e sedutora.
Em sua figura é possível encontrar tristeza, beleza e glamour como na imagem
seguinte.
232
Quando vem a saudade. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1956.
154
Imagem 37. Fonte: Acervo particular da pesquisadora Thais Matarazzo Cantero. Maysa 1957.
155
Novamente as cores azul e vermelho são destaques na imagem que demarcam o
amor, a paixão e feminilidade. A expressão da cantora é ao mesmo tempo sedutora e infeliz
demarcada pelos olhos expressivos, pela face e pelos lábios que traduzem o semblante
sofrido. Manuel Bandeira escreveu:
“Meu Deus como os olhos de Maysa podem ser sérios e como a boca de Maysa pode ser
amarga”
233
.
Com os olhos bem delineados pela maquiagem o olhar expressa ao mesmo tempo
a tristeza e a sedução. Os olhos da cantora despertou até mesmo a atenção do poeta Manuel
Bandeira que disse: Os olhos de Maysa são dois oceanos não pacíficos
234
. Eles se tornaram
uma logomarca da cantora como na capa do disco “Convite para ouvir Maysa número
três”,demonstrada na página seguinte.
233
BANDEIRA, Manuel. In LIRA. op. cit. p. 53.
234
Idem, ibdem.
156
Imagem 38. Fonte: Capa LP Convite para ouvir Maysa nº 3. 1958. Discoteca Centro Cultural Vergueiro. São
Paulo.
157
A cor negra é predominante na imagem da página anterior que somada aos títulos
das canções como: Mundo vazio, Saudade de mim, Candidata a triste, É preciso dizer
adeus, Eu não existo sem você, Pedaços de saudade, Fala baixo, Suas mãos, As praias
desertas, Maria que é triste, Bom é querer bem, e Conselho, traduzem explicitamente a
tristeza, a dor, a melancolia, a angústia, enfim a carência e o desamor. Mas apesar desses
elementos existe a presença da beleza e da sedução expressas no olhar da cantora o que
marcou o seu perfil e permitiu que os “outros” entrassem em sua alma.
Foram os olhos de Maysa janelas e portas de entrada para a intimidade dos
sentimentos. Segundo Beatriz Sarlo sobre a linguagem do olhar:
“A expressividade do olhar empresta uma dimensão ambígua à mensagem, na medida em
que, ao ser expressivo, o olhar alude a um mundo de sentimentos, desejos e paixões que não
estão nos próprios olhos, mas num mais além, num dentro”
235
.
Assim os olhos de Maysa foram comparados a beleza do azul oceânico pelo poeta
Manuel Bandeira, embora o olhar em nada fosse pacífico, aos olhos de Maysa a vida tinha
um certo sabor de desgosto como nos versos de Meu Mundo Caiu.
“Meu mundo caiu
e me fez ficar assim
Você conseguiu e agora diz
que tem pena de mim…”
236
235
SARLO, Beatriz. A trivialidade da beleza. In LOGULLO, Eduardo. Meu Mundo Caiu. Op. cit. p. 33.
236
Meu Mundo Caiu. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1958.
158
Imagem: 39. Fonte: Capa LP Convite para ouvir Maysa nº 2. 1958. Discoteca Centro Cultural Vergueiro. São
Paulo.
159
Imagem 40. Fonte: Capa LP Convite para ouvir Maysa nº 4. 1959. Acervo particular da pesquisadora Thais
Matarazzo Cantero.
160
As capas dos discos número dois e número quatro expostas nas páginas anteriores
trazem respectivamente em evidência o preto e o amarelo que juntos expressam a espera e a
tristeza como no LP “Convite para ouvir Maysa” número dois, já o azul e o amarelo no LP
“Convite para ouvir Maysa” número quatro traduzem o amor e a espera.
O vermelho demarca no primeiro caso os lábios e no segundo caso a roupa da
cantora expressando feminilidade e paixão.
Em ambas as imagens a fisionomia de Maysa é triste e marcada por uma
melancolia profunda que aparece em sua voz e na melodia das canções como no LP número
três que traz os seguintes títulos: Meu mundo caiu, No meio da noite, Bronzes e cristais,
Por causa de você, Bom dia tristeza. Já no número quatro Maysa cantou: Você, Pelos
caminhos da vida, Amargura, Tema da meia noite, Noite de paz, Deserto de nós dois, Toda
tua, Outra vez e Ouça.
Na primeira fase da carreira Maysa deu como título aos seus LPs “Convite para
ouvir Maysa” apelando para que sua voz amargurada fosse ouvida, era quase um clamor em
meio ao desespero.
Todas as canções desta fase como outras possuem temas de amarga tristeza que
ela cantava com sua voz rouca e sedutora.
161
Imagem 41. Fonte: Capa revista Manchete. 12 de maio de 1957.
162
Na capa da revista Manchete
237
exposta na página anterior o close no rosto de
Maysa apresenta a cantora de forma bela e sedutora, bem maquiada e com jóias, mas
glamourosamente triste.
O título da reportagem do lado esquerdo da imagem traz “Maysa Matarazzo:
multimilionária vira cantora popular”. A chamada da reportagem era um enfoque
chamativo sobre a questão de uma mulher rica que enveredou para a carreira artística, e
esteve no auge da fama nesta década após o término de um casamento infeliz em agosto de
1957, desquitando-se oficialmente em 1958.
O jornalista Oswaldo Miranda chamou atenção para as letras de canções
compostas e ou cantadas por Maysa. Segundo ele sobre os sambas-canções:
“Todos encerram uma tristeza, todos dizem de um amor frustrado, todos são sambas feitos
assim em estilo dor-de-cotovelo”
238
.
Três meses após a reportagem da revista Manchete a imprensa declarou
oficialmente o fim do casamento de Maysa.
“E a arte venceu, Maysa preferiu o desquite. Morre um romance. Nasce um artista”
239
.
O conjunto das fotografias da época traz Maysa como mito que personificou a
solidão e o desamor. As imagens demonstram o perfil que a tornou uma “deusa”
240
do
universo da busca pela felicidade através do amor e que, ao mesmo tempo, demonstrou um
modo muito próprio de ser infeliz, carregado de nostalgia, beleza e sedução, revelando-se
um referencial para o mal de amor.
Uma das definições de mito remete-nos a idéia de uma narrativa que serve de
modelo conforme afirma Roland Barthes:
“Mito é uma fala, não uma fala qualquer, e sim uma mensagem formada por um conjunto de
elementos que tornaram forma e passam a ser representações”
241
.
237
Revista Manchete, 12 de maio de 1957.
238
Jornal Folha da Tarde, 19 de agosto de 1957.
239
Jornal Ultima Hora, 01 de setembro de 1957.
240
“Um deus é a personificação de um poder motivador ou de um sistema de valores que funcionam para a
vida humana e para o universo”. In CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo. Palas Athena, 1993. p.
140.
241
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro. Difel. 1978.p.124.
163
Portanto, o mito Maysa trouxe consigo a confiança em um ideal procurado, para
homens e mulheres que precisavam de um referencial que representasse a busca pelo amor
através de um encontro e que tiveram um casamento e um romance fracassado. Eles
puderam encontrar a referência em Maysa, através da sedução que permeou sua bela figura
artística pelas imagens e pelas canções que produziram uma mensagem que relacionava
mito e sedução.
“A linguagem da sedução ritualiza o seu próprio modo de ser e acontecer. É o mito falando
e principalmente, ordenando e direcionando o desejo. É a conquista que não visa a simples
concretização do desejo, mas reverencia o seu próprio valor de ser capaz de seduzir”
242
.
É bastante pertinente a colocação da autora ao relacionar sedução e mito, pois, se o
mito é uma fala que transmite uma mensagem marcante ele permite que as pessoas
encontrarem nele elementos que representem suas sensações e sentimentos.
Por isso, a narrativa mitológica precisa ser atraente e provocar sensações que
possibilitam a identificação entre a realidade e o significado que se busca.
“No caso da sedução, o espelho que a sedução nos oferece é também muito mais que um
objeto que reflete, ele também proporciona como que uma porta de entrada a nosso mundo
interior ao mundo proibido do inconsciente onde escondemos de nós mesmos desejos que
conscientemente desaprovamos. O espelho usado pela sedução, é, portanto o mito no qual
queremos nos espelhar”
243
.
Maysa personificou em si mesma a referência da solidão para um período em que
houve a dificuldade de se estabelecer relações afetivas.
“É eterna a minha espera
Se perdem tanto em tantas buscas…
Num cansaço de lutar pelo amor…
Eu vou ficar na vida a tua espera…”
244
Nos versos está expressa a espera. O ser amado foi embora, não está declarado o
motivo, mas ela o espera eternamente.
242
MIQUELIN, Maria Aparecida Espíndola. A linguagem da Sedução na publicidade do cigarro.op.cit.p.13.
243
MIQUELIN, op.cit.p.34.
244
Bravo. Composição Maysa. Gravação Maysa. S/D.
164
A imagem da mulher boêmia a frente do seu tempo vai dando lugar ao perfil da
mulher que demonstrou carência afetiva.
“…Se todos fossem iguais a você
Que maravilha viver
Uma canção pelo ar
Uma mulher a cantar
Uma cidade a cantar
A sorrir, a cantar, a pedir
A beleza do amor
Como a flor, como o sol, como a luz
Amar sem mentir, sem sofrer
Existiria a verdade
Verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo iguais a você”
245
De forma idealizada, o amor e o ser que representa esse sentimento, estão descritos
na narrativa. Ao encontrar o verdadeiro amor no ser amado, a letra da canção assemelha-se
às fábulas, onde a vida é maravilhosa e bela, e até mesmo os elementos da natureza trazem
significados extraordinários.
Mas esse amor verdadeiro, que supõe-se encontrar, é algo que ninguém vê, pois está
na idealização e na dependência do outro, conforme aquilo que Giddens
246
chamou de
relacionamento co-dependente/fixado já explicado no segundo capítulo.
Enquanto o ser idealizado não vem, restava-lhe o sofrimento, a tristeza, a saudade, a
espera e a procura, pois somente ele era capaz de salva-la das sensações do aprisionamento
sentimental que a ausência do amado pode causar. Segundo a canção:
“Tarde triste me recorda outros tempos
Que saudade, que saudade
Vivo só num turbilhão de pensamentos
245
Se todos fossem iguais a você. Composição Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim. Gravação
Maysa.1959.
246
GIDDENS, Antony. Op. cit.
165
De saudades, de saudades
Tarde triste, noite vem já descendo
Eu sozinha, sofrendo
247
(grifo nosso)
Como foi observado nas imagens e nas canções analisadas, Maysa, apesar de
sedutora e bela, também demonstrou a tristeza e a espera. Ao contrário das figuras
femininas das propagandas explicitamente retratadas sempre acompanhadas em festas,
restaurantes, passeios ou em situações onde a presença masculina foi evidente, a figura da
mulher nas canções está sempre reclamando da solidão. Em seu diário pessoal Maysa
escreveu:
“Há gritos incríveis dentro de mim que me povoam da mais imensa solidão”
248
.
Maysa vive um drama dizia a reportagem da própria revista Manchete
249
, e também
que ela foi alvo de tratamento psicoterápico a base de antidepressivos e de uma rigorosa
desintoxicação alcoólica. Era uma inadaptada, precisava por isso segundo os médicos ser
submetida ao tratamento, pois até mesmo várias tentativas de suicídio a imprensa
registrava.
“Naquele mês, a Ùltima Hora trouxe um pretenso perfil psicológico de Maysa, assinado
pelo médico que o jornal apresentava aos leitores como sendo um notável psiquiatra. O
texto fazia um arremedo de teoria freudiana para concluir que Maysa era um caso clinico.
Uma mulher contra o mundo, foi o diagnostico do Dr. T., que analisou a cantora tomando
por base a forma como ela se apresentava diante das câmaras de televisão. A gravidade da
voz e o tipo de canção preferido por Maysa dizem do traço melancólico, marcante, de sua
personalidade. A parte nasal, com o abrir e fechar das narinas em inspiração profunda revela
idêntico sintoma. A expressão dos lábios, com o movimento para baixo, exime comissuras
reveladoras de desdém. O psiquiatra sugeria que a tristeza de Maysa era patológica e que a
moça estava necessitando, imediatamente, de tratamento profissional adequado. Em
resumo, era uma criatura perturbada”
250
.
O arquétipo de Maysa como um ser solitário serviu de molde estrutural para o
comportamento de homens e mulheres inadaptados nos anos 50.
247
Tarde triste. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1957.
248
NETO, Lira.op. cit. p. 112.
249
Idem.
250
Idem. Ibdem.
166
Maysa foi modelo que aproximou-se da realidade amorosa vivida por muitos
boêmios e procurou nos prazeres da noite, nas rondas, nos bares, um alguém para amar e
um trago para esquecer um grande amor.
As canções externalizam que o significado de amar nos anos 50 esteve ligado ao
sofrimento. Assim esse sentimento foi encontrado, não somente nas letras da cantora e
compositora eleita para análise, mas também em outros intérpretes como: Dolores Duran,
Lupicínio Rodrigues, Nora Ney, Silvia Telles, Antonio Maria, Elizete Cardoso, Agostinho
dos Santos, Ângela Maria, entre outros. Esses sujeitos viveram pelos bares, passaram as
noites em claro, conheceram gostos e desgostos raros, provaram da fama e por fim
expressaram o brilho da infelicidade.
3.2 – O brilho da infelicidade
Ao realizar este trabalho as aparências fabulosas, os estilos glamourosos, o brilho da
época dourada foi radiante, envolvente e sedutor.
Por outro lado foi encontrado naquele momento sujeitos frustrados no amor com
discursos que desabafaram a angústia, o medo, a solidão e a falta de amor. A infelicidade se
tornou tão nítida e chegou a brilhar.
Esse brilho não foi exclusividade da época, artistas de períodos anteriores e também
posteriores tiveram suas vidas pessoais e artísticas envolvidas com as drogas, incluindo
remédios e álcool.
“Com relação a outros tipos de drogas, como a morfina, ou o éter, seu uso também parece
pontual até a década de 1950 (…) A morfina por exemplo, era destilada do elixir
paregórico. Os Meira serviam os artistas e envolveram Orlando Silva na fase áurea de sua
carreira, no início dos anos 40. Orlando decaiu logo depois, e segundo os estudiosos, nunca
mais alcançou o rendimento artístico dos primeiros anos”
251
.
Estudos sobre o cantor afirmaram que Silvio Caldas foi parceiro de Orlando Silva
também no consumo de morfina, álcool e outras drogas.
As narrativas das canções que foram analisadas não expressam o uso de drogas
ilícitas, divulgando apenas o uso do álcool, mas sabe-se que outros tipos de substâncias
foram encontradas nos bares boêmios em diferentes épocas.
251
LENHARO, Alcir. Cantores do rádio. Trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio artístico de seu
tempo.op.cit.p.21.Vale ressaltar que os irmãos Meira eram os produtores e traficantes do meio artístico.
167
Nos anos 40 e 50 a vida pessoal dos artistas confundia-se com suas carreiras, os
escândalos amorosos e as tragédias que envolveram seus nomes, pareciam dar inspiração
para seus próprios desabafos. O que era íntimo e pessoal tornava-se público nas canções,
como também nas imagens perfiladas através da cultura industrial/de massa que
reproduziram as “estórias de amor” dos outros.
“Sozinho quem canta, supera sua solidão, ainda pode escutar, fruindo duplamente, com o
aparelho fonador e o auditivo, aqui e agora. Mas é bem provável que alguém cante para o
outro ouvir, seja apenas um ou numeroso público atingido pela vocalização, quem escuta
também sente prazer: emissores e receptores, de formas diferentes, no canto acabam se
encontrando, e tal ato de comunicação às vezes vira comunhão”
252
.
Na relação de projeção e identificação que a autora definiu como comunhão, os
cantores que narraram sobre o desamor na sociabilidade boêmia fizeram fama e brilharam
com suas cantorias infelizes, mas amorosas.
“Garçom, apague essa luz…
Garçom, me deixe comigo, que a mágoa
que eu tenho é minha, quantos
estão pelas mesas, bebendo tristeza,
querendo ocultar
O que se afoga no copo, renasce na alma, desponta no olhar…
Bar, tristonho sindicato de sócios da mesma dor
Bar que é o refúgio barato dos fracassados do amor”
253
A própria narrativa reproduz o discurso de muitos que estiveram na mesma
condição da personagem e que compartilharam de suas experiências no bar, “sindicato de
sócios de mesma dor”. As canções serviram como divulgadoras desse tipo de vivência.
Ao comunicar uma mensagem, as canções expressaram uma condição emocional e
produziram sensações naqueles que as receberam e que por isso, identificaram-se a elas
naquele tempo. Embora os discursos emitidos por essas narrativas ultrapassem a
temporalidade na qual foram produzidos.
252
ROSSI, Mirian. Deise. O amor na canção uma leitura semiótico-psicanalitica. São Paulo. Educ. p.9.
253
Bar da Noite. Composição Ataroldo Barbosa e Bidu Reis. Gravação Nora Ney. 1953.
168
“A música de sucesso não emerge do nada, (…) As músicas (os relatos das letras) indicam
uma imagem desta sociedade, que tem por experiência pode-se dizer falar extensiva e
intensivamente sobre seus sentimentos. É preciso perseguir também os elementos sociais
que dão corpo a estes símbolos. Neste sentido, a relação entre a imagem do amor e a
sociedade em questão não se dão como simples casualidade”
254
.
Como mitos, os artistas, de modo geral, são modelos fixadores e instigadores de
modos e comportamentos. Vejamos um exemplo daquela época sobre Nora Ney:
“Nora sempre percebeu que um público cativo tem acompanhado sua carreira com mais
carinho e intensidade: São grupos de estigmatizados sociais: prostitutas, homossexuais,
presidiários que buscam conforto psicológico na experiência de vida da cantora e em suas
gravações musicais (…) a arte da cantora provocava fortes ressonâncias… com certeza
sintonizados com a experiência de vida da cantora”
255
.
Os grupos apresentados acima certamente foram, e ainda são demarcados por
“estórias” de amor sofridas e carregadas de passionalidade, solidão, desilusão e saudade,
necessitando de refúgios para acomodarem a agitação provocada pelo desamor.
“Refúgio em bares e boates discretamente iluminados (…) poesias e sambas-canções
arrebatados de paixão, tudo isso dito e cantado em sussurros, regados a wisky e cocaína e a
celebração de amor impossível e da fatalidade da solidão”
256
.
Ao realizar esse estudo, foi possível observar que em várias temporalidades o uso
das drogas esteve presente dentro e fora do espaço da boemia, serviram de lenitivos para a
dor.
“Quando não há amor há vinho, quando não há vinho há o fumo; e quando não há o amor,
nem o vinho, nem o fumo, há o “spleen”
257
.
O que seria o “spleen”? Outra droga? O escape? O devaneio? Compreende-se que
era algo que irradiava brilho, satisfazia anseios, fazia ficar suportável a realidade, essa que
carregou pelo tempo a analgesia, a euforia, a anestesia, o prazer e sobre tudo a dor.
“Depender de alguma coisa para ser feliz é talvez o mais sofisticado pretexto que se
conhece para mergulhar no pior sofrimento que o homem inventou para si mesmo.
Descobrir o significado de uma dependência psicológica, olhar para dentro e perceber o que
está se processando na própria mente, pode ser a contrapartida do pesadelo em que milhares
estão mergulhados. Como em toda crise humana, no inferno da dependência está escondido,
254
LENHARO.op.cit.p.108.
255
Idem.
256
LENHARO.op.cit.p.109.
257
FONSECA, Guido. O submundo dos tóxicos.op.cit.p.31.
169
sob a angústia, a depressão, o medo e o desespero, a porta que leva à realidade, e que dá
acesso antes à fonte da dor e do medo, ao começo de um aprendizado que não termina
jamais”
258
.
Ao estudar a relação entre doença, prazer e dor ficou nítido que sempre faltava algo
para os seres humanos, por isso, o destino humano estava delineado pela insatisfação que
por sua vez proporcionava a busca.
A psicanálise, retomando Freud, diz que uma das aspirações humanas que jamais
vai ser realizada por completo é a felicidade absoluta, que os humanos podem encontrá-la
fragmentada, em pedaços, flashes e momentos, instigando os a buscá-la cada vez mais.
Os usuários de qualquer tipo de droga, dependentes químicos ou não, da mesma
forma estão nessa busca e o “prazer” imediato encontrado nas substâncias evidencia o
quanto os drogados não são felizes, pelo simples fato de acreditarem e sentirem que o
álcool, a cocaína, a maconha, o éter entre outras, são poções, fórmulas mágicas para sentir-
se bem. Ao sentirem-se bem , continuam usando, abusando, alucinando o seu próprio ser.
“Com ares de gentleman de
traje aprimorado, destacam-se…O
álcool lhes exacerbou o ânimo,
o organismo, o sistema nervoso
vibram intensamente. Mas não basta.
É preciso que experimentem maiores
e mais fortes sensações: a vida do
delírio! Venha a coca!
Sim a coca que anima!
Que ilumina o espírito!
Que acirra desejos.
O sonho”
259
258
SOUZA, Percival. Society Cocaína. São Paulo. 1981.p.1.
259
Anônimo, escritos deixados no Clube da Morte na década de 20. Em São Paulo entre 1914 a 1921 o vício
da cocaína alastrou-se tanto que os usuários se reuniam em bares e cafés para utilizarem a droga, considerado
pelo grupo de usuários como um vício elegante tendo até clubes onde os associados se reuniam, entre eles o
famoso Clube da Morte localizado no centro da cidade e freqüentado por pessoas da elite paulistana.
Finalizada a Segunda Guerra Mundial o uso dessa droga novamente caiu no gosto dos freqüentadores da
boemia. Interessante que foi exatamente no entre guerras, final da primeira guerra (1914-1918) e da segunda
170
No poema escrito na década de 20 também encontra-se os representantes da vida
boêmia, foi dessa forma que foram encontrados tantos outros, antes e depois de Maysa, que
acreditaram em um modo de obterem o brilho de uma felicidade tão infeliz.
Entre usos e abusos do álcool um outro discurso se fez pertinente: o que diziam os
médicos a respeito, em uma época de rígida moral como nos anos 50.
3.3 – O álcool e o alcoolismo: o que dizem os médicos?
Na realização desse estudo ficou extremamente evidente a relação do ser humano
com os mais variados tipos de substâncias utilizadas de diversas formas, em diversos
lugares e temporalidades, a relação homem – drogas se estabeleceu ora de forma
conflituosa, ora “pacífica”.
“O homem quis pois criar o paraíso graças à farmácia , as bebidas fermentadas, tal como um
maníaco que substituísse móveis sólidos e jardins verdadeiros por cenários pintados em tela
e montados em armações”
260
.
A citação mostra que a vida dos seres humanos depende da relação de apropriação
das dádivas da natureza com o objetivo de transformar seus elementos químicos em algo
benéfico. A flora por muitas vezes serviu para aliviar o desconforto do corpo, da mente e da
alma.
Os estudos realizados pelo historiador Henrique Carneiro, afirmam que um dos
primeiros aprendizados culturais empíricos que o homem adquiriu, foi o de saber manipular
as substâncias moleculares das plantas para serem utilizadas como agentes modificadores
do processo químico produzido pelo cérebro humano em sua atividade funcional
neurotransmissora
261
.
guerra (1939-1945) o período propício para o gozo cocaínômano, exatamente o momento das crises e
rupturas.
260
BAUDELAIRE, Charles. In BENJAMIN, Walter. Haxixe. São Paulo. Brasiliense. 1987. p. 24.
261
Os neurotransmissores são os elementos neurológicos que se localizam dentro dos neurônios e são
responsáveis pela transmissão de mensagens sensoriais. Segundo o autor Henrique Carneiro muitas espécies
de plantas produzem substâncias molecularmente semelhantes aquelas produzidas pelos neurotransmissores
no cérebro humano. Sabe-se que essa afirmação ainda é uma questão a ser discutida e estudada com maior
rigor e ainda está sem respostas definitivas. Cf. CARNEIRO, Henrique. Op. cit. P.13. Outra questão
importante é que as drogas alteram ou ativam as funções neurotransmissoras, essa alteração química pode
171
“Existem, atualmente conhecidas cerca de 500 a 700 mil espécies de plantas. Todas têm
uma estrutura química peculiar. Cada uma é um verdadeiro laboratório natural a produzir
substâncias específicas (…) Porque as moléculas bioquímicas que dão a base para o
funcionamento cerebral humano é uma questão ainda sem respostas definitivas (…) Em
momentos indetermináveis dessas fases pré-histórias
262
a humanidade foi selecionando
dentre os vegetais aqueles que eram psicoquímicos”
263
.
A ação química dos psicotrópicos é capaz de alterar ou ativar os
neurotransmissores, essas substâncias são classificadas em: Sedativas ou depressoras: o
álcool, os inalantes e os narcóticos (opiáceos); estimulantes: a cocaína, o crack, a merla, as
anfetaminas, a cafeína, e a nicotina; os alucinógenos ou modificadores de humor e
percepção: a maconha, os cogumelos, o LSD.
Dentre essas substâncias, entre outras já não tão naturais, como o LSD e o ecstasy, o
álcool foi eleito para a realização deste trabalho pelas razões já expostas anteriormente e
elucidadas na citação seguinte:
“A história da humanidade nos mostra o prazer constante e geral do homem pelo álcool
(…) As bebidas alcoólicas sempre tiveram preferência sobre as outras (leite e água,
principalmente) devido ao seu efeito tônico e euforizante, ao alívio que elas trazem para a
angustia, paralelamente, a liberação dos recalques (valor dionísio do álcool) desta forma, o
gênio do homem se esmerou no preparo de preciosas beberagem destinadas à própria
exaltação. Também historicamente o álcool é associado estreitamente aos ritos religiosos
(…) podemos constatar sua transmissão até nossos dias através de sua participação
tradicional em pequenos ritos privados atuais (cerimônias familiares e públicas (…),
brindes). No atual de nossos costumes é inegável que o ato de “beber em conjunto” cria
uma solidariedade entre os homens e não seria exagero afirmar que não há festividade que
esteja completa sem bebida”
264
.
A citação expõe dois aspectos bastante significativos a respeito do álcool: O seu
valor hedônico e seu prestígio místico. Embora exista um universo de preocupações, de
questões e de estudos a serem discutidos sobre a bebida alcoólica nenhum deles foi bastante
influente para torná-lo como droga ilícita, apesar dos dados contemporâneos abaixo:
causar a destruição dos neurônios. Sobre esse assunto cf. LONGENNECKER, Gesina. Como agem as drogas.
O abuso das drogas e o corpo humano. São Paulo. Quark Books. 1998.
262
Segundo Brian Inglis baseado na obra de Sigerest, enumera algumas substâncias já utilizadas na pré
história da humanidade como: o ópio, a coca, a quina, a efdrina, a cafeína, a cáscara sagrada, a digitalina, a
ipecacuanha, o podofilo, e a escila, próprios da medicina popular/primitiva. Mais tarde descobriu-se a
rawolfia (planta que produziu os primeiros tranqüilizantes) e também a penicilina, primeiramente feita de
cataplasma de mofo cf. INGLIS, Brian Alerginógens e cultura. Fundo de cultura econômica. México. 1980. in
CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e triacas. Xamá. São Paulo. 1994.
263
CARNEIRO, Henrique.op.cit.p.13. O conceito de psicoquímica equivale ao conceito de psicotrópico, já
trabalhado no primeiro capítulo deste trabalho.
264
BRISSET e BERNARD. Manual de Psiquiatria. Atheneu. S/D.p.407.
172
“As bebidas alcoólicas liberam dopaminas e analgésicos naturais do organismo. Ao ser
metabolizado o álcool transforma-se em acetaldeído, que tem forte ação sobre os
neurotransmissores, prejudica o aproveitamento das proteínas e interfere no DNA, material
genético das células. Mas não para aí compromete ainda, a coordenação motora e libera
emoções reprimidas, ao derrubar o superego nossa censura interna. Surge a dependência
quando o organismo se adapta ao consumo e as células só funcionam bem na presença do
álcool. O uso prolongado pode causar a fatal miocardiopatia (enfraquecimento e disfunção
dos músculos cardíacos) e atrofiar o cérebro, provocando a demência senil ou prejuízos na
memória e na cognição. O fígado, o órgão encarregado de metabolizar o álcool, fica sujeito
a danos irreversíveis (cirrose). Em pequenas doses, no entanto, o álcool pode fornecer o
bom colesterol, o HDL, que além de não ameaçar as artérias, estimula os antagonistas do
GABA, capazes de limitar a absorção da substância. O efeito sobre o cérebro são
proporcionais a sua concentração no sangue”
265
.
A palavra álcool é de origem árabe e traz como significado o sentido de algo fino e
sutil, ao mesmo tempo enganador, como explica a citação abaixo:
“O encontro com o álcool implica a presença de um sujeito a existência de uma
subjetividade, no sentido em que este carrega a eleição de um objeto o álcool e não outro
qualquer (…) No encontro com esse objeto, a embriaguez tampa o lugar da falha (…) O
álcool faliciza o sujeito, indicando, portando, que houve uma perda. Sob seu efeito, porém,
o sujeito pode sustentar momentaneamente a inexistência dessa perda, rompendo com a
divisão que o estrutura”
266
.
A história do consumo do álcool e os seus significados sócio-culturais não são
lineares e nem únicos, mas o olhar dos médicos e o discurso produzido por eles são
significativos para compreender o lugar que as drogas, especificamente o álcool, ocuparam
na década de 50, como também a interferência da medicina na criação de denominações
que trouxeram o álcool como droga e o alcoolismo como doença.
Os trabalhos dos historiadores apresentados no rol bibliográfico como Andréa Lisly
Gonçalves, Carlos Magno Guimarães, Henrique Carneiro, Maria Izilda Matos, Marco
Antonio de Oliveira, Renato Venâncio e Virginia Valadares entre outros, já assinalaram as
origens do termo alcoolismo e o ato de beber como uma questão de saúde pública. Segundo
esses estudos, o termo alcoolismo foi utilizado pela primeira vez pelo Doutor Magnus Huss
em 1849
267
, seus estudos classificam como alcoolismo o ato descontrolado de ingerir
265
TIBA, Içami. Anjos Caídos. São Paulo. Editora Gente.p.51. A medicina, psicologia e a psiquiatria afirmam
que: o Sistema Nervoso Central (SNC) é construído por 100 bilhões de neurônios, células especiais que
veiculam as informações entre o cérebro e as outras partes do corpo, através dos mensageiros químicos os
neurotransmissores.
266
BENTES, Lenita. O brilho da infelicidade.op.cit.
267
Sobre esse assunto cf. HARRIS, R. Assassinato e loucura: Medicina, leis e sociedade no fim de siécle. Rio
de Janeiro. Rocco. 1993.
173
bebidas alcoólicas, como também as conseqüências biopsíquicas geradas pela substância no
corpo do usuário que passou a ser classificado como alcoólatra.
Esses estudos foram primeiramente desenvolvidos em países europeus e aos poucos
incorporados no pensamento dos médicos brasileiros que embasavam suas pesquisas
naqueles autores, entre meados do século XIX e início do XX.
As cidades metropolitanas nesse período, como São Paulo e Rio de Janeiro
passaram a ser alvos de discursos políticos que visavam por em prática idéias de ordem, de
progresso e de civilização e apoiavam as atitudes normativas nos discursos científicos dos
médicos, dos engenheiros, dos juristas, dos políticos, entre outros.
“Detentores do monopólio do conhecimento racional e científico, os médicos se incumbem
de indicar como e quando agir, interceder e sanar. A intercessão médica foi concreta e
contínua, tendo no higienismo uma das bases de sua doutrina, criando todo um conjunto de
prescrições que deveriam orientar e ordenar a vida. Regras de higiene na cidade, no
trabalho, no comércio de alimentos, no domicílio, na família e nos corpos, prazeres
permitidos e interditos, atividades artísticas, culturais, o trabalho, a sexualidade, tudo isso
deveria seguir um parâmetro o médico”
268
.
Nesse período os olhares disciplinares recaíram sobre as camadas sociais menos
favorecidas, as quais eram chamadas de “classes perigosas”, e que segundo o historiador
Marco Antônio de Oliveira.
“Classificar os tipos que compunham esse grupo tornou-se então uma necessidade social.
Apesar das classes fornecerem o maior contingente dos indivíduos que viviam a compor as
estatísticas sobre o alcoolismo em São Paulo, alcoólatras eram encontrados também nas
classes mais abastecidas, nesse caso, fossem menos visíveis socialmente”
269
.
Com a fala do autor fica visível que os mais abastados foram mais protegidos do
estigma de alcoólatra, porque era necessário dar visibilidade negativa àqueles que não
foram produtores dos discursos hegemônicos.
A preocupação deste trabalho é exatamente dar visibilidade aos bastidores da
década dourada, o enfoque não está nas classes perigosas, nos trabalhadores, nos favelados,
268
MATOS, Maria Izilda. Meu lar é o botequim. São Paulo Nacional. 200.p.27.
269
OLIVEIRA, Marco Antônio. O demônio da humanidade. PUC. São Paulo. 2001. p.32. A
institucionalização da medicina no Brasil foi dificultada até aproximadamente os meados do século XX, por
uma tradição de auto medicação realizadas por práticas que estavam muito enraizadas no cotidiano como a
ação dos curandeiros, benzedeiros e “cirurgiões barbeiros”.
174
nos corticeiros e nos freqüentadores de botequins e sim no high society, nos freqüentadores
das boates badaladas, nos consumidores em potencial das novidades urbano industriais.
Apesar das especificidades da época em relação às décadas anteriores, os discursos
médicos produzidos e aplicados nos anos 50 foram contundentes e segregativos.
“A nova medicina desempenhava um importante papel no sentido de preservar as forças dos
corpos e das mentes para o mercado de trabalho assalariado que estava em formação e que
exigia jornadas diárias extenuantes aos trabalhadores. A questão central era o difícil
equilíbrio entre uso e abuso de bebidas alcoólicas”
270
.
Dentro das particularidades dos discursos médicos da década de 50, a análise foi
feita segundo o referencial teórico de Ivan Illich
271
.
É importante ressaltar que nos discursos médicos da década de 50, em autores como
os doutores: José Roberto de Albuquerque Fortes, Pedro Pernambuco Filho, Pacheco e
Silva e Décio Parreiras
272
, encontra-se distinções explicativas entre a dependência física e
química de uma substância, inclusive sobre o álcool. Segundo Pedro Pernambuco Filho:
“Admite que haja no verdadeiro alcoolista, uma alteração particular (…) devido a um fator
“X”, que lhe é peculiar, provavelmente de natureza fisiopatológica”
273
.
A partir desses estudos ficou evidente que utilizar o termo alcoolismo para designar
todos os sintomas físicos e psíquicos conseqüentes do uso e do abuso do álcool, nos
remete-se ao século XIX e início do XX, quando Magnus Huns o declarou. Alguns
discursos conservadores e moralistas do senso comum utilizam-se do termo alcoolismo
para todo e qualquer tipo de abuso alcoólico, mas os próprios discursos médicos da década
de 50 já afirmaram:
“A realidade não é, porém, tão simples; não há um bebedor tipo, mas bebedores”
274
.
270
SANTOS, Fernando Sérgio Dumas dos. Alcoolismo. A invenção de uma doença… p.25.34.
271
ILLICH, Ivan. Op.cit.
272
É importante esclarecer que a escolha por esses quatro nomes da medicina da época, deu-se devido ao fato
de que durante a realização da pesquisa nos arquivos da Faculdade de Medicina, como também no Museu da
Saúde e da biblioteca no Hospital das Clinicas no setor de psiquiatria, localizados na cidade de São Paulo foi
encontrado inúmeros artigos, revistas e manuais assinados pelos doutores José Roberto de Albuquerque
Fortes, Pedro Pernambuco Filho, Pacheco e Silva e Décio Parreiras ao lado de Arthur Ramos, Ernani Lopes e
Virginia Leone Lopes todos em ótimo estado de conservação, seus textos também são legíveis e de fácil
compreensão. Pela quantidade de textos encontrados ficou visível que esses médicos entre outros tiveram suas
carreiras envolvidas por grande prestigio.
273
FILHO, Pedro Pernambuco. Revista de Higiene e Saúde Pública. Rio de Janeiro/dezembro.1954.p.45.
274
FILHO, Pedro Pernambuco. Idem.p.41.
175
É importante esclarecer a respeito do conceito de tóxicofilia
275
ou seja a
predisposição fisiológica para se tornar dependente químico de uma substância.
Muitas pessoas no senso comum entendiam na década de 50 e entendem até hoje
que o conceito de vício corresponde somente a dependência química de uma droga ou
abuso de uma substância.
No primeiro caso só seria viciado no álcool (alcoólatra) por exemplo, a pessoa que
acordasse trêmula, suando frio e que sentisse uma angústia brutal com a falta da bebida,
segundo os especialistas em alcoolização, esses seriam os sinais mais evidentes da falta do
álcool que o organismo estaria sentindo, onde as células carentes da substância produziriam
a reação química em forma de crise de abstinência.
No segundo caso seria qualquer usuário que abusasse da bebida alcoólica ou de
outra droga dentre dos padrões estabelecidos socialmente.
Mas é considerável esclarecer alguns pontos no caso do álcool. Primeiro, além da
dependência química, ou seja, predisposição genética (toxicofilia) para se tornar um
alcoólatra, existe a dependência psíquica que define-se como um “laço afetivo” entre a
pessoa, o meio de uso, a substância e a todos os “rituais” associados à droga. Por exemplo,
o bar, o “tim-tim”, o copo de gelo, aquela marca especial de bebida, os companheiros de
copo, entre outros elementos que podem levar à dependência química de acordo com a
toxicofilia ou seja predisposição fisiológica e individual para se tornar um dependente
químico, que pode não ser encontrada em todo bebedor independente se ele usa e ou abusa
do álcool.
A literatura médica atual classifica como alcoólatra o dependente químico do álcool,
já aqueles que possuem apenas a dependência psíquica são classificados em dois grupos: o
grupo dos bebedores problemas, ou seja, pessoas que justificam o uso do álcool para
anestesiar algum problema como o desemprego, o desamor, a doença, a morte, entre outros
,e o grupo dos bebedores contumazes, ou seja, aqueles que bebem constantemente e ou em
275
O conceito de tóxicofilia também chamado na década de 50 como fator psicogenético não é novidade para
os estudo médicos atuais como também não foi para os estudos da década de 50, porque eles já demonstravam
que “o individuo não é doente porque bebe, e sim bebe porque é doente”, conforme discutiu o doutor Décio
Parreiras na obra O álcool não é a causa do alcoolismo. Capitália. Rio de Janeiro. 1953. Outros autores de
discursos médicos da época como, por exemplo, os doutores José Roberto de Albuquerque Fortes, Pedro
Pernambuco Filho, Pacheco e Silva, entre outros já distinguiam de forma explicativa as diferenças entre a
dependência química e a psíquica de uma substância inclusive do álcool.
176
grande quantidade, nos finais de semana, nos fins de tarde, nas reuniões com amigos ou
sozinhos para relaxar, entre outras ocasiões.
Independentemente das classificações, existem diferenças que não devem ser
julgadas como falta de caráter e falta de vergonha. A questão do uso e do abuso do álcool
deve ser analisada com cuidado com as especificidades culturais de cada época e região,
mas livre de estigmas negativos, porém a reflexões desse trabalho chegou a concluir que
alcoólatra é o bebedor que possui além da dependência psíquica também a dependência
química, embora ocorra relações intimas entre a dependência química e a psíquica mas
ambas não devem ser confundidas, portanto nem todo bebedor que usa e ou abusa do álcool
é alcoólatra, os médicos do período estudado já faziam esse tipo de destinação embora de
forma sutil.
A relação entre uso e abuso, dependência física e psíquica, deve levar em
consideração os caracteres psíquicos, biológicos e culturais. Os médicos do período já
observavam e consideravam esses fatores:
“Os peritos encarregados de estudar esse problema sobre o prisma internacional, tem
deparado com inúmeras dificuldades decorrentes em particular dos costumes, hábitos
sociais, tipos de bebidas alcoólicas, preconceitos relativos aos seus efeitos, tipos de bebidas
mais utilizadas e níveis diferentes de consumação alcoólica admitidas como normais em
determinada região”
276
(grifo nosso).
Através do discurso médico do Dr. Pacheco e Silva, o álcool foi aceito socialmente
quando usado com moderação. Para o alcoolismo ocorrer fez-se necessário o consumo
regular e abusivo do álcool e não o consumo social e festivo, permitido pela medicina à
sociedade normatizada. O problema não se apresentou à substância e sim ao uso
considerado doentio.
Dessa forma, aquilo que foi considerado como doença ou saúde foi determinado por
discursos que pretendiam oficializar a normatização do indivíduo perante a sociedade.
Nesse caso é considerável analisar o que diziam os médicos na década de 50.
“O alcoolismo grave problema médico-social é uma toxicomania. Assim conceituado,
definamos o que seja toxicomania ou farmacodependência, terminologia recentemente
276
PACHECO e SILVA, Desajustes PsicoSociais. USP.1950.p.37. Os conceitos bebedor problema e bebedor
contumaz, referentes à dependência psíquica não foram encontrados nos estudos médicos da época, mas no
decorrer dos anos esses conceitos vieram a ser utilizados marcando o trabalho de James R.Milan e Katherine
Ketcham nos anos 80.
177
proposta pela Organização Mundial de Saúde cujo conceito é o seguinte: um estado
psíquico e algumas vezes também sico, resultante da interação entre um organismo vivo e
uma substância, caracterizada por um comportamento outras reações que incluem sempre
compulsão para ingerir a droga de forma contínua ou periódica”
277
(grifo nosso).
Nesse discurso do Doutor José Roberto Fortes existem algumas preocupações que
devem ser ressaltadas. Já no início ele conceitua a dependência de uma substância como
toxicomania e refere-se a esse conceito como um problema médico e social.
Deixa bem definido que a dependência tem dois estados: psíquico e físico
(químico), demonstrando a separação entre os dois tipos.
Preocupa-se também com a definição do conceito de droga e com os objetivos do
usuário quando afirma:
“De qualquer forma, trata-se de uma tendência a introduzir no organismo substâncias
sintéticas ou obtidas do meio natural através de diferentes vias que levam,
passageiramente a estados de bem-estar, euforia, desligamento da realidade”
278
(grifo
nosso).
Ressalta o desejo fixo (obsessão) do usuário em obter as sensações emitidas pelos
efeitos psíquicos e em compensar a falta química quando já ocorreu esse tipo de
dependência.
“a finalidade de experimentar seus efeitos psíquicos e às vezes evitar o desconforto de
sua abstinência”
279
(grifo nosso).
É interessante que este mesmo autor considerou ser relevante o aspecto sócio-
cultural e a sua relação com as drogas, especialmente com o álcool.
“O que se entende por comportamento aceitável frente ao consumo de álcool, varia de
povo para povo: entre nós, de uma geração para outra, muitas famílias substituíram o
tradicional “cafezinho” oferecido às visitas por aperitivos, geralmente uísques. De outro
lado, em certas coletividades, firmaram-se certas práticas, tais como as comemorações com
“chopadas” dos estudantes ou reuniões de fins de ano de certas empresas, ocasiões em que
todos, mesmo quando constrangidos, devem ingerir álcool”
280
(grifo nosso).
Nesse discurso a preocupação médica esteve em torno do comportamento
descontrolado do uso da bebida portanto, naquilo que foi enquadrado como abuso e
277
FORTES, José Roberto de Albuquerque. Alcoolismo. São Paulo Savieri. 1957.p.3.
278
FORTES, José Roberto de Albuquerque. Idem.ibdem.
279
Idem, ibdem.
280
FORTES, José Roberto. Idem. p.4.
178
confirmado no prosseguimento do discurso. O doutor José Roberto definiu categoricamente
o que vem a ser o conceito de alcoolismo e de alcoólatra segundo a Organização Mundial
de Saúde (OMS).
“Alcoolismo é uma doença de natureza complexa, na qual o álcool atua como fator
determinante sobre causas psicossomáticas preexistentes no indivíduo e para cujo
tratamento é preciso recorrer a processos profiláticos e terapêuticos de grande amplitude.
Alcoólatras são bebedores excessivos, cuja dependência do álcool chega a ponto de
acarretar-lhe perturbações mentais evidentes, manifestações afetando a saúde física e
mental, suas reações individuais, seu comportamento socioeconômico ou pródromos de
perturbações desse gênero e que, por isso, necessitam de tratamento”
281
(grifo nosso).
Ele ressalta atributos relevantes para a dependência química do álcool, como a
preexistência de fatores individuais que levaram o indivíduo a se tornar um alcoólatra (o
que mais tarde foi definido como toxicofilia), o discurso é categórico em afirmar que o
doente precisa ser submetido ao tratamento, e ao controle, e que devia ser feito por
prescrição de medicamentos.
Com a análise de outros discursos, um fator chamou a atenção, todos eles, sem
exceção, apontam o problema como doença que devia ser controlada, normatizada, tratada,
medicada, avaliada, assistida, combatida, mas nunca curada.
“O termo curado é rejeitado pelo sub-comitê, achando ele que quando um indivíduo se torna
um alcoólatra inveterado, a cura, no sentido estrito da palavra é impossível. Se o
tratamento consegue parar a evolução da doença alcoolismo, o indivíduo deve permanecer
sempre abstinente e, neste caso, em vez de curado, devemos falar em caso estabilizado”
282
(grifo nosso).
Fica claro a substituição do uso do álcool pelo uso do remédio classificado como
tratamento, apelando para a manutenção através do controle pela abstinência, esses dados
permite avaliar o quanto o indivíduo passou a ser prisioneiro, ora da drogadição, ora da
farmacodependência.
“Discute-se muito, agora, entre os especialistas, os efeitos de um novo produto antialcoólico
– o antabus – cuja ação em numerosos casos tem se revelado extraordinariamente eficaz.
Trata-se de derivado de sulfureto de carbono e da dietilamina, que torna o indivíduo que o
absorve sobremodo sensível a menor ingestão de álcool. Esse medicamento, lançado na
Dinamarca por Jacobsen e Larsen, de Copenhague, logo se difundiu por vários países e está
281
Idem, ibdem. p.5.
282
FILHO, Pedro Pernambuco. Alcoolismo, problema de saúde. pública. Revista de Higiene e saúde publica.
Sociedade brasileira de higiene. Rio de Janeiro. Janeiro a dezembro de 1954.p.39.
179
sendo muito usado aqui na Suíça, nos Estados Unidos e no Canadá. É muito interessante a
sua ação conforme a pessoa que dele faz uso. Assim, se um homem normal, que for
totalmente abstêmio, ingerir uma dose de 3 grs., nada sentirá de anormal. Entretanto, se essa
mesma pessoa usar apenas a dose correspondente a 1gr. e logo a seguir tomar certa
proporção de álcool, não tardará a sentir fenômenos extremamente desagradáveis: o rosto e
o pescoço tornar-se-ão logo vultuosos, a pele tomará cor púrpura em conseqüência a intensa
vasodilatação observada na periferia. A seguir, outros sintomas surgirão: as pálpebras
ficarão edemaciadas, o pulso acelerar-se-á, o indivíduo experimentará intensa e penosa
sensação de angústia, com falta de ar, o coração acelerar-se-á, sobrevindo estado nauseoso e
vômitos subseqüentes. Todos esses sintomas são por tal forma desagradáveis que geram
fobia irresistível contra as bebidas alcoólicas, cuja ingestão não é mais tolerada, tal a
violência com que se desencadeiam aquelas reações, obrigando o alcoólatra a abandonar o
vício”
283
.
È também interessante notar que nos grupos dos alcoólicos anônimos existem doze
passos a serem seguidos, sendo que o primeiro é reconhecer-se como doente, o segundo
submeter-se ao tratamento. As partes abordadas nos três discursos proferidos pelos
doutores: Pacheco e Silva (1957), Pedro Pernambuco Filho (1954) e José Roberto Fortes
(1957), deram a visibilidade de que a dependência das substâncias foi socialmente
construída, estimulada e mantida pelos próprios discursos hegemônicos.
Para o doutor José Roberto Fortes, os bebedores excessivos deveriam ser
controlados separando a relação do uso e do abuso do álcool. O uso devia ser permitido e
incentivado, o abuso controlado. O discurso tem íntima relação com a preocupação da
imagem do indivíduo saudável, inserido ao progresso e a ordem, que ajudaram a construir o
imaginário do período.
Já o doutor Pedro Pernambuco Filho afirmou que não havia cura, seus discursos
estão envolvidos por palavras como manutenção, controle, abstinência, medicação,
substituindo claramente a drogadição pela farmacodependência, concordando com o doutor
Pacheco e Silva que substituiu com toda franqueza a droga (álcool) pelo remédio (o
antabus), e se valeu da reação química desagradável de uma outra droga para “resolver” o
problema do prazer encontrado no álcool.
283
SILVA e PACHECO, Palavras de Psiquiatria. A luta antialcoólica artigo publicado em O Estado de São
Paulo. São Paulo. 27 de outubro de 1949. Lira Neto em sua obra Maysa. Só numa multidão de amores,
descreve que a cantora submeteu-se ao tratamento com Antabus. Segundo o autor “Maysa sabia exatamente o
que isso significava, se insistisse em beber a partir dali, mesmo em pequenas doses, passaria a sofrer graves
conseqüências físicas que podiam ir da sensação de calor na face, dores de cabeça latejantes, náuseas, vômito,
falta de ar, palpitações e confusões mentais até depressão respiratória, arritmia cardíaca e convulsões. Em
alguns casos, o uso de álcool durante o tratamento com Antabus pode levar a morte”. cf. op. cit. p. 323.
180
Os discursos médicos trazem consigo a autoridade sobre os indivíduos considerados
doentes. Para Ivan Illich
284
, que auxiliou na análise dos discursos, os especialistas
interferem na criação das doenças criando indivíduos imaturos e dependentes de remédios
ou drogas, incapazes de enfrentarem o sofrimento. Seus estudos se basearam no conceito
de iatrogênese que da raiz grega Iatros-médico, Gênesis-origem, defende a idéia de que a
medicina como poder apropriou-se da responsabilidade de medicalizar legalmente a
sociedade segundo seus interesses.
Ao manter o paciente à espera de cuidados, a análise do autor critica a sociedade
industrial na América e considera que a medicina “coisifica” o indivíduo pela
medicalização, reduzindo a sua capacidade de reação e amadurecimento frente aos conflitos
pessoais, sociais e existenciais.
A medicina, segundo Illich, apresenta um arsenal de remédios para o bem-estar e
não propriamente a cura, considera que a organização médica e seus discursos compõe uma
oficina de reparos ou de manutenção, destinada a manter o seu próprio funcionamento
dessa forma o saber médico dá sentido a dor, a doença e a morte, segundo o autor:
“Uma sociedade superindustrializada é mórbida na medida em que os homens não
conseguem se adaptar a ela. Realmente, os homens deixariam de tolera-la se o diagnóstico
médico não identificasse sua incapacidade de acomodar-se à perturbação de sua saúde. O
diagnóstico está ali para explicar que se eles não a suportam não é por causa do meio
ambiente desumano, mas porque seu organismo está falhando”
285
.
Os discursos médicos não atuaram sozinhos, a engrenagem cultural como já foi
colocada anteriormente, contribui para legitimação dos discursos hegemônicos.
“A instituição médica é uma empresa profissional, tem para a matriz a idéia que o bem estar
exige a eliminação da dor, a correção de todas as anomalias, o desaparecimento das doenças
e a luta contra a morte. Reforça os aspectos terapêuticos das outras instituições do sistema
industrial”
286
.
Ao se referir as outras instituições do sistema industrial como a educação, a política,
a cultura industrial/de massa, entre outras, o autor avalia a iatrogêneses em três níveis.
Nesse trabalho se faz pertinente a iatrogênese estrutural de nível mais abrangente
onde há discursos para o alívio da dor através da divulgação de prazeres constantes. Illich
284
ILLICH, Ivan. Op. cit.
285
ILLICH, Ivan. Idem. p.154.
286
ILLICH, Ivan. Idem, Ibdem. op.cit.p.123.
181
discute também a iatrogênese social, que produz indivíduos incapazes e dependentes dos
poderes e discursos hegemônicos, e a iatrogênese clinica, que discute abertamente a
ineficácia médica que propõe o objetivo da cura, mas realiza a manutenção da doença.
As iatrogêneses intercaladas, foram muito pertinentes para entender a relação que
existe entre a dependência medicalizada ou controlada pelos padrões sociais normativos, e
a dependência festiva ou doentia fora dos padrões considerados normais e em espaços
como os da boemia.
Para o doutor Arthur Ramos:
“Nunca o homem precisou tanto de higiene mental como nos dias atribulados da
civilização contemporânea em que a angústia de individual se tornou coletiva,
precipitando os homens, as sociedades, as nações, uns contra os outros (…) A higiene
mental é uma técnica de ajuntamento da personalidade humana desviada das suas
finalidades sociais, e que procura adquirir ou recuperar o equilíbrio e a tranqüilidade”
287
(grifo nosso).
Percebe-se o desespero que caracterizou o período, marcado pela angústia, no qual o
equilíbrio estava no passado ou no futuro, pois no presente era necessário normatizar,
ajustar e controlar aquilo que já parecia estar sem controle.
“O alcoolismo sempre foi apontado como um dos maiores flagelos da humanidade. Contudo
esse problema agravou-se sobremaneira na atual civilização, constituindo séria preocupação
dos médicos, psicólogos, sociólogos, sanitaristas, trabalhadores sociais e homens públicos.
Entre nós, registrou-se também, ultimamente, um aumento apreciável do numero de
alcoólatras, sobretudo nos grandes centros, causando muitas apreensões aos que se ocupam
do assunto, sobretudo, as autoridades encarregadas de zelar pela saúde pública. A
Organização Mundial de Saúde, reconhecendo a necessidade imperiosa e urgente, de cuidar
atentamente desse grave problema, convocou alguns destacados peritos internacionais,
especialistas em saúde mental e toxicomanias, para coligir dados estatísticos, indagar das
causas predisponentes e determinantes do alcoolismo, das suas diferentes formas, para
finamente, propor medidas de caráter profilático, no intuito de combater a sua difusão e
atenuar as suas conseqüências. O alcoolismo precisa e deve, sem a menor dúvida, ser
combatido pelos serviços de saúde pública. Contudo, é necessário reconhecer a existência
de uma série de fatores que contribuem para dificultar a ação dos sanitaristas e higienistas
mentais. Cite-se, a guisa de exemplos o fato de o público não estar ainda suficientemente
educado e capacitado da amplitude e da gravidade do problema, não revelando por ele
maior preocupação e interesse no sentido de coibir-lhe a expansão”
288
.
Os discursos são repetitivos, é desnecessário expô-los de forma exaustiva, todos
abordam temáticas que giram em torno de classificações e rótulos legitimando a analgesia e
a anestesia social que se fez necessária, desde que normatizada.
287
RAMOS, Arthur. Saúde do Espírito Higiene Mental. Rio de Janeiro. São Paulo. Coleção Azul. 1955.p.1.
288
SILVA e PACHECO, Desajustes Psicossociais. Universidade de São Paulo.1959.p33.
182
“A dor e sua eliminação por conta institucional adquirem lugar central na angústia de nosso
tempo. O progresso da civilização se torna sinônimo da redução do volume fatal do
sofrimento. A nova sensibilidade se preocupa do mundo como é não porque está cheio de
pecados, porque lhe falta luz, porque está ameaçado pela barbárie exaspera-se porque o
mundo está repleto de dores sob a pressão dessa nova sensibilidade para com a dor, a
política tende a ser concebida menos como empresa destinada a maximizar a felicidade do
que a minimizar o sofrimento”
289
.
Toda a simbologia que expressou a analgesia das dores, sejam elas físicas, morais
ou afetivas, extrapolaram os discursos da medicina e apresentaram como significado o
enfraquecimento dos objetivos a serem desenvolvidos na vida real. Os discursos do poder
propunham soluções aos efeitos catastróficos, construíram penitenciárias, hospitais,
hospícios, etc…, se “esqueceram” das causas que geraram os ocupantes dessas instituições.
Com esses valores, a vontade de viver parecia esmorecer. A angústia, a morte
tornaram-se insuportáveis, ao mesmo tempo, tornaram-se estímulos a produções de novas
mercadorias e mercados, mesmo que para isso fosse necessário colocar o indivíduo num
ciclo vicioso em busca da própria vida.
A simbologia encontrada tanto nas propagandas quanto nos textos médicos e nas
canções expressam o quão sedutor foram esses discursos para aquela sociedade e como
denunciaram que o homem moderno viveu, e ainda vive numa sociedade mórbida.
“A origem social das entidades mórbidas está na necessidade de as populações
industrializadas de isentar de culpa suas instituições. Quanto mais as pessoas passam ter
necessidade de serem curadas, menos se revoltam contra o crescimento industrial”
290
.
O problema da sociedade naquele instante histórico é que ela esteve fundamentada
no desejo e na ambição do individuo, e isso foi cada vez mais reforçado e emitido pelos
discursos hegemônicos, por isso acabou por criar pessoas inadaptadas que se apegavam a
lenitivos divulgados pelo próprio sistema, como o caso do álcool nas propagandas.
“Nas primeiras doses, sentia-me animado mas passado o efeito veio a depressão. Para
reanimar-se de novo venha mais álcool
291
.
289
ILLICH, Ivan.op.cit.p.139.
290
ILLICH,Ivan. Idem. cit.p.154.
291
COUTINHO, Galeão. O pacto com o demônio. São Paulo. 1949.p31.
183
Os indivíduos que abusaram da substância foram considerados doentes pelos
próprios discursos normatizadores e foram portanto alvo de intervenções legítimas por
parte dos representantes do sistema, como o caso dos médicos aliados a expansão do
consumo medicamentoso.
Esses fatores entre outros geraram fracassos de ordem pessoal e subjetiva como foi
observado no discurso das canções onde aparece o ser inadaptado.
Essa sociedade buscou incansavelmente a vida, em meio a elementos que a
sugaram e a deformaram de maneira desesperadora, como no caso dos desafetos, aqueles
que foram atingidos por este mal-estar buscaram uma terapêutica perigosa, mas coerente
com o período através do abuso alcoólico.
Apesar das especificidades do período pós-guerra, mais precisamente anos de 1949
à 1959 a humanidade sentiu que se consolidava cada vez mais um período conturbado,
angustiante, incerto, desgastante, sofrido e frustrante.
“A angústia é o afeto que aparece em face de situações de perigo. Falamos de medo, quando
a angústia se refere a uma situação adequada para ser temida, como por exemplo o medo
pela ameaça real de ataque de uma bomba, de uma arma (…) ainda em se tratando de
angústia (…) em certos casos a pessoa é sujeita a sentir medo sem saber porque, vendo se
aflita, insegura, apreensiva, à espera de maus acontecimentos (…) Nesses casos, é evidente
que a pessoa se sinta ameaçada por perigos que se originam dentro dela própria, em
conseqüência de tensão por afetos não descarregados por impedimentos externos ou
internos (…) Expressar amor é uma necessidade tão grande quanto a de receber, podendo
causar angústia uma e outra forma de frustração amorosa
292
.
O texto de época reflete de forma pontual as necessidades e carências do período
“onde os homens parecem-se mais com o seu tempo que com os seus pais
293
.
Dessa forma, as revistas, o cinema, as canções, os discursos médicos e os folhetins,
legitimaram, deram sentido e forma aos sentimentos secretos, escondidos e inconfessados
dos indivíduos que viveram aparentemente os seus sonhos dourados como também
daqueles que foram representados por símbolos que demonstraram que as pessoas estavam
sofrendo.
Muitos viviam uma espécie de felicidade artificial ilustrada pela maximização do
prazer e do bem-estar que compôs toda a simbologia dos “Anos Dourados” que quando
292
BICUDO, Virginia Leone. A angústia, o sentimento de culpa. In Nosso mundo mental. São Paulo. USP.
1956.
293
Provérbio árabe citado por Jacques de Golff in A nova história. Portugal. Almedina. 1978.p.262.
184
desvelada, apresentou nitidamente as mazelas de um tempo marcado pelo glamour e pela
insatisfação como a vida de Maysa Matarazzo.
A vida da cantora serviu de identificação para tantos outros que tiveram suas vidas
envolvidas pelo glamour e pela dor, elementos que marcaram muitas experiências e
vivências nas cidades grandes como São Paulo na década de 50, uma cidade de encantos e
desencantos.
185
Considerações Finais
“Tudo é dor
E toda dor
Vem do desejo
De não sentirmos dor…”.
(Quando o sol bater na janela
do seu quarto/Renato Russo)
É difícil concluir um trabalho, uma pesquisa, um raciocínio. Porque há sempre
questionamentos e idéias que vez por outra ou quase sempre entram em conflitos e fazem
surgir novas formas de pensar e avaliar as vivências e experiências de uma vida, de uma
década, de um século.
Por isso esta tese de doutorado vai ficar como uma audaciosa tentativa de tentar
compreender parte do século que Éric Hobsbawn chamou de “Era dos Extremos”. O breve
século XX. Que esse trabalho seja inspirador e útil a outros, que seja debatido, consultado,
lido e estudado.
Porque ele tem o comprometimento de trazer a tona os relacionamentos entre as
pessoas, as coisas e os valores, nos quais o diálogo foi interrompido e ou calado, porque o
álcool ou qualquer outra substância lícita ou não, falou mais alto, aliás, gritou!
A parte do século que Hobsbawn classificou como breve, e que foi analisada nessa
pesquisa a década de 50, será chamada da “Era dos desejos”, assim como foi
compreendida durante toda a análise.
A ambição pela modernização aos poucos impôs seus valores e significados a ponto
de surgir a necessidade de elaborar discursos que inaugurassem uma década da cor do ouro,
elemento mineral de valor e brilho intenso.
Era pertinente ao período do pós-guerra o surgimento de uma nova era repleta de
toda satisfação, porque havia o desejo de aliviar a atmosfera conflituosa, aparentemente
“ninguém mais” queria saber de bombas, rifles e combates, “principalmente os EUA” que
saiu cheio de privilégios após a guerra.
186
Na década de 50, a “Era dos desejos” foi produzido o audacioso projeto de divulgar
a felicidade, mesmo que esta fosse artificial através do consumismo de bens materiais
sejam eles quais fossem, pois o próprio ato de consumir já levava ao prazer.
O estímulo ao desejo do consumo era impulsionado pelas propagandas, apostava na
sedução e não levou em conta que desejos insatisfeitos geram o sofrimento, sentimento
contrário à felicidade.
Buscou-se uma aparente saída cheia de aparências fabulosas, com promessas
milagrosas, o que produzia mais sofrimentos. A solução era anestesiá-los.
Nas grandes metrópoles como São Paulo foi muito visível a presença de sujeitos
sozinhos, enquanto as aparências mostravam imagens de sociabilidades variadas onde as
personagens conversavam, amavam e brindavam.
As aparências mostravam pessoas com status e posição social, enquanto a realidade
não favorecia a muitos migrantes, imigrantes, desempregados, favelados, corticeiros e
“inadaptados”.
Mas o desejo estava lá, sempre para ser despertado, havia o diálogo entre os
dominantes e os dominados o mediador entre eles, a sedução, porque os discursos da
hegemonia precisavam construir a legitimidade de dominação, e para isso era necessário
estabelecer o diálogo com aqueles que deviam ser convencidos de que os efeitos do
domínio eram interessantes e benéficos àquela situação social.
O desejo insatisfeito produziu o sofrimento, a inadaptação. A maximização da
felicidade gerou a maximização da tristeza. Maysa confessou nas letras de suas canções que
“a felicidade era infeliz” o sentimento vivia sozinho “nunca perto de ninguém”.
Foi necessário idealizar o sofrimento, pois ele não podia aparecer como resposta e
ofuscar o brilho da década. Assim este sentimento nos anos 50 também tinha glamour e
referências, quantos foram os intérpretes, os compositores, os cantores do estilo “dor-de-
cotovelo”. Muitos!
Nesta década o glamour e a idealização oscilou entre a felicidade e o prazer e entre
a infelicidade e a dor.
O período se consolidava carregado de conturbações, angústias, incertezas,
desgastes, sofrimento e frustrações.
Essa pesquisa não teve a pretensão de dar conta de pontuar e esclarecer todas as
questões necessárias, ao trabalhar com as propagandas que despertavam desejos e evocaram
187
satisfações, assim como também com as canções que denunciaram um modo muito próprio
de ser infeliz sem deixar de lado, é claro, o requinte e o glamour, somadas ainda as
interpretações realizadas com os discursos da medicina que trouxeram em si a
potencialidade do cientificismo da época analisada. Uma coisa entre tantas ficou nítida,
esses discursos foram mantenedores de uma sociedade que viveu intensamente ora pelo
prazer ora pela dor, sensações que foram permeadas por manutenções e reparos dos
próprios discursos.
Valeu a pena conseguir enxergar historicamente a felicidade de forma artificial e ou
infeliz em uma cultura carregada de apegos, onde a maior necessidade desejada por ela era
a do afeto, que não podia ser substituído e nem atingido por muitas vezes.
Existem coisas que o dinheiro não pode comprar e nem pode mandar buscar. Maysa
a Senhora Matarazzo podia dizer se estivesse viva, mas a sua memória revivida através da
representação das letras das suas tristes e dolorosas canções, falam e indicam com uma
exemplificação concreta os encantos e desencantos de uma São Paulo estilista e
glamourosa.
A variedade das fontes consultadas, das imagens de um passado que entre
lembranças, reminiscências e idéias trouxeram o relampejar de um precioso momento
histórico da sociedade brasileira.
Outros olhares devem se fixar neste foco iluminador de uma época que aqui foi
apresentada dentro de uma direção e que outros à este se juntem e novas interpretações
permitam o nascimento de brilhantes e importantes leituras sobre esta temática.
Chegou-se a conclusão que os boêmios, alcoólatras, loucos, infratores, inadaptados
neste ambiente hollywoodiano, nesta urbi do pós-guerra merecem ser reapresentados e o
foram nesta tese sob a ótica atenta do historiador.
188
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Imagem 38 Capa do LP “Convite para ouvir Maysa” número 3.1958. Acervo da discoteca
do Centro Cultural Vergueiro. São Paulo.
Imagem 39 Capa do LP “Convite para ouvir Maysa” número 2.1958. Acervo da discoteca
do Centro Cultural Vergueiro. São Paulo.
Imagem 40 Capa do LP “Convite para ouvir Maysa” número 4.1959. Acervo particular da
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Imagem 24. O Cruzeiro. Rio de Janeiro: Diários Associados, 16 de março de 1957. contra-
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Imagem 25. NETO, Lira. Maysa. Só numa multidão de amores. São Paulo: Globo, 2007.
Caderno de Imagens. p.7.
Imagem 26. NETO, Lira. Maysa. Só numa multidão de amores. São Paulo: Globo, 2007.
Caderno de Imagens. p.4.
Imagem 27. NETO, Lira. Maysa. Só numa multidão de amores. São Paulo: Globo, 2007.
Caderno de Imagens. p.7.
Imagem 28. NETO, Lira. Maysa. Só numa multidão de amores. São Paulo: Globo, 2007.
Caderno de Imagens. p.16.
Imagem 29. NETO, Lira. Maysa. Só numa multidão de amores. São Paulo: Globo, 2007.
Caderno de Imagens. p.4.
Imagem 30. LOGULLO,Eduardo. Meu Mundo caiu A bossa e a fossa de Maysa. São
Paulo: Novo Século, 2007. Caderno de Imagens. p.4.
Imagem 31. LOGULLO,Eduardo. Meu Mundo caiu A bossa e a fossa de Maysa. São
Paulo: Novo Século, 2007. Caderno de Imagens. p.4.
Imagem 32. LOGULLO,Eduardo. Meu Mundo caiu A bossa e a fossa de Maysa. São
Paulo: Novo Século, 2007. Caderno de Imagens. p.5.
Imagem 33. Neto, Lira. Maysa. Só numa multidão de amores. São Paulo: Globo, 2007.
Caderno de imagens. p.12.
191
Imagem 34. Neto, Lira. Maysa. Só numa multidão de amores. São Paulo: Globo, 2007.
Caderno de imagens. p. 5.
Imagem 35. Capa do LP “Convite para ouvir Maysa”. 1956. Acervo particular da
pesquisadora Thaís Matarazzo Cantero.
C – Musicais
Letras de canções retiradas da discografia que compõe a carreira de Maysa na década de 50
e outras do repertório do cancioneiro brasileiro utilizadas para melhor complementar a
análise. Arquivo Centro Cultural Vergueiro. São Paulo.
Adeus. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1956.
Apelo. Composição Baden Powel e Vinícius de Moraes. Gravação Maysa. S/D.
Bar da Noite. Composição Haroldo Barbosa e Bidu Reis. Gravação Maysa. 1953.
Bom dia Tristeza. Composição Adoniram Barbosa e Vinícius de Moraes. Gravação Maysa.
1956.
Bravo. Composição Dolores Duran. Gravação Maysa. 1958.
Chega de Saudade. Composição Vinícius de Moraes e Antonio Carlos Jobim. Gravação
João Gilberto. 1958.
Eu preciso aprender a ser só. Composição Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle. Gravação
Maysa. 1954.
Felicidade infeliz. Composição Maysa. Gravação Maysa 1957.
Marcada. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1956.
Meu mundo caiu. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1958.
Meu primeiro amor. S/D. Gravação Cascatinha e Nhana.
Noite de Paz. Composição Dolores Duran. Gravação Maysa. 1959.
Ouça. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1957.
O negócio é amar. Composição Dolores Duran e Carlos Lyra S/D.
O que. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1957.
Quando vem a saudade: Composição Maysa. Gravação Maysa. 1956.
Resposta. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1956.
Rindo de Mim. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1956.
Ronda. Composição Paulo Vanzolini. Gravação Inezita Barroso. 1953.
192
Se Todos fossem, iguais a você. Composição Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim.
Gravação Maysa. 1959.
Tarde Triste. Composição Maysa. Gravação Maysa. 1957.
Vida de bailarina. Composição Chocolate e Américo Seixas. Gravação Ângela Maria.
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Médicas
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