desenvolvimento das vertentes católicas e protestantes, nenhum
deles, de fato, conseguiu revelar o verdadeiro significado
antropológico subjacente ao cristianismo. Esta convicção de
Berdyaev estava ancorada no fato de que tanto esses pensadores
quanto os citados no parágrafo anterior não haviam elaborado
um conhecimento sobre o Homem que correspondesse à sua
“experiência espiritual”.
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Segundo seu entendimento,
Como imagem e semelhança do Criador, o homem também
é criador e é chamado para a cooperação criativa no trabalho
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Façamos aqui duas breves ressalvas. A primeira diz respeito à
correspondência fundamental que Berdyaev acreditava ter entre a vida e a
obra de um filósofo, relação esta central na sua epistemologia. Em seu livro
autobiográfico, Dream and reality (1962), é exatamente isso que este filósofo
russo procurou afirmar, ou seja, que toda especulação, melhor dizendo, todo
conhecimento filosófico e religioso, este principalmente, guarda íntima
relação com a própria vida, a vida espiritual, que significava, para o nosso
filósofo, a vida mais real. Em suas palavras: “as realidades espirituais, diz
ele, são reveladas na vida espiritual. [...] a vida espiritual não é o
reflexo de uma realidade qualquer, ela é a realidade mesma. [...] o
divino se mostra nela” (BERDIAEFF, 1933, p. 34-35) (grifos do autor). Aqui
se mostra a grande influência que sobre Berdyaev tiveram os místicos, tais
como Jacob Boehme, Meister Echart, Angelius Silesiu, Tauler, entre outros. Da
mesma maneira, o existencialismo e o personalismo de Berdyaev o levava a
acreditar nessa forte e inabalável vinculação entre subjetividade e filosofia,
entre vida e conhecimento. Neste ponto, muito inspirado em Kierkegaard,
mas não apenas nele, a defesa que faz Berdyaev é a da presença viva e
marcante do filósofo no decurso de toda a sua especulação. Não há
distinção, portanto, entre a vida e a obra, entre a obra e a personalidade do
filósofo. Exemplificando com os nomes de Santo Agostinho, Pascal,
Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzche, Berdyaev afirma que toda filosofia de
valor, ou melhor, “toda verdadeira filosofia leva a marca da personalidade de
seu autor” (BERDYAEV, 1960, p. 26). Assim, uma verdadeira filosofia traz
consigo o tormento do sentido da vida e do destino pessoal que persegue o
filósofo, pois que toda filosofia de cunho verídico tem o seu início na reflexão
do filósofo sobre o seu destino pessoal (Idem, p. 26). Esta seria a marca da
antropologia que perpassa a teoria do conhecimento de Berdyaev. A
faculdade de apreensão, diz ele, “é essencialmente do ego”, ou seja, do
homem como existência concreta, como uma personalidade (Idem, p. 27). O
homem concreto, é ele quem, de fato, conhece, e não o espírito universal ou
a razão universal, tampouco o sujeito impessoal. Filosofia e destino, eis a
cumplicidade à qual Berdyaev queria despertar a atenção e que procurou
elucidar, demonstrativamente, em seu livro autobiográfico. A segunda
ressalva diz respeito a Guerreiro Ramos e a sua crença nessa mesma
vinculação entre vida e obra. Pouco antes de falecer, o sociólogo, quando
comentava sobre a importância de Berdyaev em sua vida, afirmou em
entrevista que estava a escrever um livro no qual contaria a sua “história
intelectual, sem narração de fatos”, cujo título seria Teoria e destino
(GUERREIRO RAMOS, 1985, p. 6). O livro, como é sabido, não chegou a ser
escrito. Contudo, quando passamos em revista a trajetória de vida e
intelectual do sociólogo, fica patente tal vinculação.