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mãe brigando com os policiais, que ela e Godiva choravam muito e os policiais não
respeitaram seu irmão doente com sarampo em cima da cama. Viraram o colchão com o
irmão e tudo. Não deixaram seu pai colocar roupa, levaram-no do jeito que ele estava.
Lembra-se também que os policiais iam direto nos livros de capa vermelha. Seu pai
tinha o Capital de Karl Marx e a Bíblia na mesma biblioteca montada com caixote de
cebola. Solano foi preso e ficou incomunicável. Conta que sua mãe circulou por várias
prisões com os três filhos atrás do pai e por fim chegou à Rua da Relação e lá o
delegado afirmou que ele não estava. Raquel conta que sua mãe retrucou afirmando que
ele só poderia estar ali, que já havia passado por todas as delegacias O delegado
continuou negando que Solano estivesse preso naquele local. Sua mãe então decidiu
acampar na delegacia com os três filhos prometendo só sair dali quando visse o marido,
ainda garantiu que estava com uma bolsa cheia de alimentos pra ficar dias acampada.
Raquel conta que a mãe ainda contou com a solidariedade de um policial que perguntou
as características de seu pai, e depois afirmou que ele estava ali, mas pediu sigilo.
Depois de algum tempo, vencido pelo cansaço, o delegado permitiu que ela visse
Solano por dez minutos.
Para Raquel o melhor período de sua vida foi a infância em Duque de Caxias,
quando estudava na Escola Regional de Meriti
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, em baixo dos pés de ipês, e afirma
que assistia aulas de arte, pomar, apicultura culinária e museu . Ressalta que a melhor
herança recebida dos pais foi a arte, de onde ela, filhos e netos retiram a sobrevivência.
Seu filho mais velho vive na Alemanha trabalhando com cultura popular; sua filha já foi
ao consulado do Brasil na Itália dar palestras sobre religiões afro-brasileiras, seu neto já
foi para Paris, Milão e agora vai para a China mostrar o seu trabalho.
Raquel casou oito vezes, teve três filhos e hoje vive com seus netos, participa
ativamente do jogo político da cidade, ela nos contou alguns conflitos enfrentados com
o atual prefeito, um candidato que ela apoiou. Os conflitos estão relacionados à
construção do Teatro Popular Solano Trindade, onde a tentativa do prefeito foi de
despejá-la do terreno que de fato não lhe pertence e sim ao teatro, porém é um lugar
onde ela mora há muitos anos, Raquel aqui apresenta uma relação entre a memória e o
poder. Le Goff
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nos fala da importância que ganha a memória coletiva nas lutas das
forças sociais, tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes
preocupações das classes, dos grupos e dos indivíduos que dominaram e dominam as
sociedades históricas. Ela nos relatou também que diante do primeiro fracasso o mesmo
Prefeito tentou retirar o nome de Solano de diferentes espaços, o que não foi aceito
pelos moradores e artistas mais antigos da região. Neste contexto a memória de Solano,
ganha o caráter de uma memória subterrânea
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, o prefeito buscou imprimir uma outra
marca na cidade e mudar a correlação de forças, já que Raquel afirma que ao se
aproximar as eleições o prefeito agora novamente está buscando reaproximar-se. Raquel
teima em manter vivas simbólica e materialmente, a lembrança do pai, através daquilo
que considerava emblemático, a arte. Raquel ainda pretende significar o novo espaço
do teatro com aquilo que foi o Teatro Popular Brasileiro: Ao palco ela quer dar o nome
de Margarida Trindade, a biblioteca vai se chamar Manoel Querino, e um outro espaço
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Uma escola dirigida por Armanda Álvaro Alberto do PCB, que refletia as proposta da Escola Nova. A
escola também conhecida por Mate com Angu por servir este cardápio na merenda escolar.
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LE GOFF, Jacques. Memória . In: Romano, Ruggiero(dir.). Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 1984.v.1
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POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos.3, 1989.