O contrato
O homem, não sendo sociável por natureza, o será por artifício, por
pacto. É o medo e o desejo de paz que o levam a fundar um estado social e
a autoridade política, abdicando dos seus direitos em favor do soberano,
que por sua vez terá um poder absoluto, A transmissão do poder deve ser
tolal, caso contrário, se se conservar um pouco que seja da liberdade natural
do homem, instaura-se de novo a guerra. Esse poder se exerce ainda pela
força, pois só a iminência do castigo pode atemorizar os homens. "Os pactos
sem a espada [sword] não são mais que palavras [words]." Cabe ao sobe-
rano julgar sobre o bem e o mal, sobre o justo e o injusto; ninguém pode
discordar, pois tudo o que o soberano faz é resultado do investimento da
autoridade consentida peio súdito.
Hobbes usa a figura bíblica de um monstro, o Leviatâ. que representa
um animal monstruoso e cruel, mas que de certa forma defende os peixes
menores de serem engolidos pelos mais fortes. E essa figura que representa
o Estado, um gigante cuja carne é a mesma de todos os que a ele delegaram
o cuidado de os defender.
Investido de poder, o soberano não pode ser destituído, punido ou
morto. Tem o poder de prescrever as leis, de julgar, de fazer a guerra c a
paz, de recompensar e punir, de escolher os conselheiros. Hobbes preconiza
ainda a censura, já que o soberano é juiz das opiniões c doutrinas contrárias
à paz. E quando, afinal, pergunta se não é muito miserável a condição de
súdito diante de tantas restrições, conclui que nada se compara às misérias
que acompanham a guerra civil ou ã condição dissoluta de homens sem
senhor.
Características burguesas do pensamento hobbesiano
E inadequado e simplista opor Hobbes a Locke (que veremos a seguir),
considerando-os representantes, respectivamente, da teoria absolutista e do
liberalismo. Embora, o pensamento hobbesiano seja realmente autoritário,
permeiam-no elementos que denotam interesses burgueses. Assim, por exem-
plo, a doutrina do direito natural do homem é uma arma apropriada para
ser utilizada contra os direitos tradicionais da classe dominante, ou seja, a
nobreza. Além disso, o Estado surge de um contrato, o que revela o Caráter
mercantil, comercial, das relações sociais burguesas. Esse contrato surge a
partir de uma visão individualista do homem, pois o. indivíduo preexiste ao
Estado (se não cronológica, pelo menos logicamente), e o pacto visa garantir
os interesses dos indivíduos, sua conservação e sua propriedade. Se no estado
de natureza "não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu
e o leu", no Estado de soberania perfeita a liberdade dos súditos está na-
quelas coisa:, que o soberano permitiu, "como a liberdade de comprar e
vender, ou de outro modo realizar contratos mútuos; de cada um escolher
sua residência, sua alimentação, sua profissão, e instruir seus filhos conforme
achar melhor, e coisas semelhantes". Portanto, o Estado se reduz à garantia
do conjunto dos interesses particulares.
O contrato também surge como decorrência da atribuição de uma qua-
lidade possessiva ao homem, o qual, por natureza, tem medo da morte,
anseia pelo viver confortável e pela segurança e é movido pelo instinto de
posse e desejo de acumulação.
Segundo Macpherson, a qualidade possessiva do individualismo do
século XVII "se encontra na sua concepção do indivíduo como sendo essen-
cialmente o proprietário de sua própria pessoa e de suas próprias capacida-
des, nada devendo à sociedade por elas. O indivíduo não era visto nem
como um todo moral, nem como parte de um lodo social mais amplo, mas
como proprietário de si mesmo. A relação de propriedade, havendo-se tor-
nado para um número cada vez maior de pessoas a relação fundamental-
mente importante, que lhes determinava a liberdade real e a perspectiva real
de realizarem suas plenas potencialidades, era vista na natureza do indi-
víduo. Achava-se que o indivíduo é livre na medida cm que e proprietário
de sua pessoa e de suas capacidades. A essência humana é ser livre da depen-
dência das vontades alheias, e a liberdade existe como exercício da posse.
A sociedade torna-se uma porção de indivíduos livres c iguais, relacionados
entre si como proprietários de suas próprias capacidades e do que adquiri-
ram mediante a prática dessas capacidades. A sociedade consiste de relações