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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
José Renato Salatiel
Sobre o Conceito de Acaso na Filosofia de Charles S. Peirce
Doutorado em Filosofia
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
José Renato Salatiel
Sobre o Conceito de Acaso na Filosofia de Charles S. Peirce
Doutorado em Filosofia
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Doutor em Filosofia sob a
orientação do Professor Doutor Ivo Assad
Ibri.
SÃO PAULO
2008
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Banca examinadora:
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AGRADECIMENTOS
O presente trabalho não seria possível sem o apoio financeiro da CAPES
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Sou grato também ao meu orientador, professor Dr. Ivo Assad Ibri, que acreditou no
projeto desde o início, incentivou e forneceu subsídios intelectuais, tanto em suas aulas
como em sua obra, para que, sob a firmeza e competência de sua orientação, a tese
pudesse ser preparada.
Agradeço ao professor Dr. Cassiano Terra Rodrigues, pelas minuciosas leituras da
tese e correções, apoio nas traduções e empréstimos de livros (incluindo os manuscritos
de Peirce) e ao professor Dr. Edélcio Gonçalves de Souza, pela leitura e correções
sugeridas.
Aos colegas do Centro de Estudos do Pragmatismo, que forneceram um ambiente
afetivo para debates, aprendizado e amizades, expresso minha dívida, em especial ao Dr.
Josué Cândido da Silva e Dr. Daniel G. Campos, à Dra. Eluiza Bortolotto Guizzi, Manúcia
Passos de Lima e Tiago da Costa e Silva. A todos colegas que têm partilhado comigo os
Encontros Internacionais sobre Pragmatismo, meu muito obrigado.
O apoio incondicional de minha família, incluindo meus pais, foi imprescindível
nestes quatro anos dedicados ao doutorado. Os estudos que resultaram nesta tese foram
iniciados em 2004, coincidindo com o nascimento de meu filho Lucas, a quem tanto amo.
Foi um período de muitas dificuldades em que a paciência e estímulo devotados dia-a-dia
por minha mulher, Franci Martins, foram preponderantes. Sem ela, minha vida seria puro
caos.
Abraço a todos com ternura.
RESUMO
O tema desta tese é o conceito de Acaso na filosofia do pensador norte-americano
Charles Sanders Peirce (1839-1914), associado à doutrina que ele denomina Tiquismo.
Propomo-nos, neste trabalho, interpretar sentidos diferentes da noção de acaso
encontráveis na obra do autor, buscando relê-los à luz de seu sistema filosófico.
Defendemos, também, a hipótese de que o Acaso, um dos principais conceitos da filosofia
peirciana, deve ser interpretado sob uma perspectiva sistêmica de sua obra e à luz das
modernas teorias da complexidade. Supomos, como justificativa da presente pesquisa,
trazer uma contribuição que venha subsidiar o entendimento de aspectos da metafísica
peirciana, a par da consideração de que o conceito de Acaso, tão presente na literatura
cientifica contemporânea, ser trabalhado de forma inovadora e, pode-se dizer, pioneira,
pelo autor. No desenvolvimento do trabalho, adotamos, sempre, o critério de remissão à
obra original de Peirce, recorrendo também à literatura de comentários afeita ao tema em
pauta.
Palavras-chave: Acaso. Indeterminismo. Metafísica. Epistemologia. Lógica.
ABSTRACT
The theme of this thesis is the concept of Chance in the philosophy of the American
thinker Charles Sanders Peirce (1839-1914), a concept associated with the doctrine that
he called Tychism. In this work, I propose to interpret different senses of the concept of
chance that can be found in the work of the author, seeking to read them again in light of
his philosophical system. I advocate, too, the hypothesis that Chance, one of the main
concepts of peircean philosophy, must be interpreted from the systemic perspective of his
work and in light of modern theories of complexity. I proposed, as a justification for this
research, to make a contribution that will support an understanding of various aspects of
peircean metaphysics, given the consideration that the concept of Chance, so present in
contemporary scientific literature, is worked in an innovative and, we can say, pioneering
way by the author. In the development of this work, I adopted, always, the criterion of
reference to Peirce’s original work, also referring to the scholarly literature concerning the
theme in question.
Key-words: Chance. Indeterminism. Metaphysic. Epistemology. Logic.
LISTA DE ABREVIATURAS DAS OBRAS DE PEIRCE
CP, seguido dos números do volume e parágrafo: Collected Papers of Charles Sanders
Peirce. Charles Hartshorne, Paul Weiss (col. 1-6) e Arthur Burks (vol. 7-8) (eds.).
Cambridge, MA: Harvard University Press, 1931-58.
EP, seguido dos números do volume e da página: The Essential Peirce: Selected
Philosophical Writings. Nathan Houser e Christian Kloesel (vol. 1) e “Peirce Edition
Project” (vol. 2) (eds.). Bloomington: Indiana University Press, 1992-98.
MS, seguido do número do manuscrito e página (manuscritos inéditos): Annotated
Catalogue of the Papers of Charles S. Peirce. Richard S. Robin (org.). Amherst, MA:
University of Massachusetts Press, 1967.
NEM, seguido dos números do volume e da página: The New Elements of Mathematics.
Carolyn Eisele (eds.). Haia; Paris: Mouton Publishers; Atlantic Highlands, NJ: Humanities
Press, 1976. 4 v.
RLT, seguido do mero da página: Reasoning and the Logic of Things: The Cambridge
conference lectures of 1898. Kenneth Laine Ketner (ed.). Cambridge, MA; London:
Harvard University Press, 1992.
SS, seguido do número da página: Semiotics and Significs: The correspondence between
Charles S. Peirce and Victoria lady Welby. Charles S. Hardwick (ed.). Bloomington:
Indiana University Press, 1977.
W, seguido dos números do volume e da página: Writings of Charles Sanders Peirce: A
Chronological Edition. “The Peirce Edition Project” (ed.). Bloomington; Indianapolis:
Indiana University Press, 1982-2000. 6 v.
Sumário
INTRODUÇÃO.........................................................................................10
PARTE I – TEORIA DAS CATEGORIAS DE C.S.PEIRCE
1.Descoberta das categorias na lógica e na fenomenologia..................17
1.1.Teses da redutibilidade e da irredutibilidade dos processos triádicos
..............................................................................................................22
1.2. Fenomenologia e matemática.......................................................25
2.Potencialidades reais nas categorias peircianas................................ 29
PARTE II – FUNDAMENTOS LÓGICO-EPISTEMOLÓGICOS DO ACASO
3.Interpretação indutiva dos juízos sintéticos..........................................38
4.Teoria das Probabilidades e Lei dos Grandes Números......................47
5.Falibilismo.............................................................................................57
6.Lógica da Vagueza................................................................................64
PARTE III – ACASO NA METAFÍSICA PEIRCIANA
7.Argumentos contra o determinismo......................................................75
8.Aristóteles e as fontes gregas do tiquismo...........................................88
9.Duas definições de acaso em Peirce....................................................94
10.Clinamem, milagres e a fratura na ordem........................................101
PARTE IV – ACASO NA COSMOLOGIA PEIRCIANA
11.Relevância do acaso na evolução....................................................108
12.Continuum de potencialidades na origem do cosmos......................116
13.Acaso como fonte de organização...................................................125
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................134
BIBLIOGRAFIA. ...................................................................................138
APÊNDICES
A – Os argumentos “inconclusivos” segundo V. Cosculluela................154
B – Redundância e incompatibilidade: a crítica de Andrew Reynolds...161
C – Aspectos da lógica trivalorativa de Peirce.......................................169
10
Introdução
A doutrina do acaso absoluto, o tiquismo
1
, ocupa um lugar central na
metafísica do filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), apesar
de ser uma de suas teses de mais difícil compreensão. O motivo é que, a par de sua
originalidade em conferir um tratamento ontológico ao conceito de acaso, Peirce
nem sempre foi claro em suas definições ou cabal em seus argumentos validativos,
o que provocou críticas e problemas levantados pelos comentadores.
É necessário, antes de iniciar esta pesquisa, contextualizar as investigações
de Peirce a respeito do acaso. Elas ocorrem em um momento de descobertas na
ciência do século XIX, que levou à limitação das teorias newtonianas e à
conseqüente derrocada da concepção de um universo harmonioso e completamente
ordenado. Entre as fontes do tiquismo estão duas das principais teorias que
mudaram o panorama científico na época: a física estatística e a teoria da evolução
de Charles Darwin (1809-1882). Em ambas, têm-se o emprego de métodos que
suscitaram discussões sobre graus de indeterminismo nos mundos físico e biológico.
Peirce, que era um cientista, foi um dos primeiros filósofos a chamar atenção
para as especulações decorrentes do indeterminismo na Física e do evolucionismo,
concebendo uma metafísica de caráter científico, solidamente baseada em uma
moderna lógica-matemática e que comportaria uma doutrina do acaso poucas vezes
vista em Filosofia.
Esta originalidade foi reconhecida posteriormente por filósofos da ciência
como Karl Popper (1902-1994), que classificou Peirce como um dos raros
dissidentes a questionar o determinismo físico no século XIX:
1
Por tiquismo - derivado do grego týchē (τύχη) - Peirce nomeia uma doutrina que entende o acaso ser um
elemento ontológico, real, não meramente produto da ignorância humana.
11
Até onde sei, Peirce foi o primeiro físico e filósofo post-newtoniano
[sic.] que ousou adotar assim a concepção de que, até certo grau,
todas as nuvens são nuvens; ou, em outras palavras, que existem
nuvens, embora nuvens de graus muito diferentes de anuviamento.
(1975: 1999).
Por “nuvem”, Popper entende sistemas físicos altamente irregulares,
desordenados e mais ou menos imprevisíveis, como gases e fluídos, em oposição
aos “relógios”, que representam sistemas físicos regulares e de comportamento
altamente previsível. O determinismo, contestado por Peirce (cap. 7), defende que
todas as nuvens são relógios. Segundo Popper, a filosofia peirciana, ao sustentar
hipótese contrária, antecipou o indeterminismo físico que se consagraria com a física
quântica nos anos vinte.
O caráter inovativo e precursor do sistema peirciano, em relação à ciência
contemporânea, também foi observado pelo químico belga Ilya Prigogine
(1917-2003), cujas reflexões sobre fenômenos aleatórios, provocadas pelos seus
trabalhos com sistemas termodinâmicos afastados do equilíbrio, se aproximam de
questões levantadas por Peirce no século anterior (PRIGOGINE, 1984 e 1999)
2
.
Ao lado de um background científico, pode-se dizer que Peirce foi o primeiro
filósofo a retomar, sistematicamente e com amparo lógico, o debate a respeito do
acaso na Natureza, baseado principalmente na filosofia grega – Aristóteles e Epicuro
são referência explícitas (caps. 2, 8 e 10) - e no idealismo e romantismo alemão
3
.
2
As passagens são as seguintes: “A metafísica peirciana foi considerada como mais um exemplo de filosofia
alienada da realidade. Mas, na verdade, atualmente a obra de Peirce parece como pioneira ao dar um passo
além no entendimento do pluralismo envolvido nas leis físicas.” [Peirce's metaphysics was considered as one
more example of a philosophy alienated from reality. But, in fact, today Peirce's work appears to be a
pioneering step toward the understanding of the pluralism involved in physical laws.] (1984: 303); e “(...)
basta lembrar o exemplo de Charles S. Peirce, que muito justamente se perguntava como podia conceber-se
um reino evolutivo vivo no mundo estático e determinista que a ciência oficial descrevia.” (1999: 35).
3
A influência dos românticos na obra de Peirce é reveladora, principalmente na metafísica do autor. Peirce
estudou a obra de Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854), o maior representante entre os
filósofos do romantismo, a ponto de afirmar “(...) sou um schellinguiano de certa estirpe” (CP 6.605, 189; cf.
CP 6.101, 1892). O idealismo objetivo peirciano é uma influência direta de Schelling - conforme o cap. 2 da
tese de IBRI (1994), “Idealidade e Realidade: Peirce e Schelling”-, bem como a conseqüente recusa da
concepção mecanista da Natureza por parte de Peirce. Segundo Ibri, “Ao recusar a causalidade estrita como
método exclusivo de investigação, Schelling, embora não tivesse vivido os ares do indeterminismo que aflora
no início do culo vinte, prenuncia, com suas idéias de liberdade e organicidade sistêmica dos produtos da
Natureza, uma ciência que lida com a indeterminação parcial dos objetos, ao modo do que preconiza a
própria filosofia de Peirce.” (1994: 71). Outro romântico que Peirce leu, ainda jovem, foi Johann Christoph
Friedrich von Schiller (1759-1805), na obra “Cartas Sobre a Educação Estética do Homem”, em 1855 (W1:
02), que serviu de inspiração para a noção de categorias e o conceito de play of musement (jogo do devaneio).
12
Entre seus contemporâneos, destarte o clima de debates intensos provocados
pelas idéias de Darwin, a mecânica estatística, a termodinâmica, o
eletromagnetismo e o surgimento de geometrias não-euclidianas, a metafísica
peirciana passou quase despercebida, tanto entre a comunidade científica quanto
entre os filósofos. Em parte, devido ao isolamento do autor nos últimos anos de sua
vida, dada sua conturbada biografia (cf. BRENT, 1998). O principal interlocutor e
crítico das teses do tiquismo foi o ex-editor da revista “The Monist”, Paul Carus
(1852-1919), que refutou os argumentos do acaso em uma rie de artigos, com
réplica de Peirce
4
.
Com a publicação de parte dos manuscritos de Peirce e a reunião de artigos
publicados, a partir de 1931, os primeiros comentadores viram, em sua metafísica,
uma coleção de textos obscuros e de difícil compreensão (cf. IBRI, 1992). Em
especial o tiquismo, que ainda hoje é pouco estudado. O filósofo Ian Hacking, por
exemplo, que reconhece em Peirce não um precursor, mas um cientista que anteviu
as conseqüências da teoria das probabilidades para a ciência, considerou os textos
peircianos sobre o acaso “falsos e muito deles obscuros” (1990: 201), além de
“esotéricos” (ibid.: 215), no sentido de serem pouco claros. Mais especificamente, a
respeito da crítica de Peirce ao determinismo, Hacking afirma que o filósofo foi
“superficial”, principalmente por não ter encontrado, à época, antagonistas à altura
para apontar falhas e imprecisões em seus argumentos, na leitura de Hacking, “uma
seqüência de lugares-comuns”, que o autor “conclui, mas não explica” (ibid.: 203).
Atualmente, um dos scholars do tiquismo, Andrew Reynolds (Apêndice B),
reconhece as dificuldades em compreender a doutrina como motivadas pela
vagueza com que o pensador tratou seus conceitos e argumentos, tornando o acaso
absoluto uma de suas mais difíceis teses (REYNOLDS, 1997: 704).
Apesar da importância do idealismo alemão na metafísica peirciana, entende-se que seria necessária outra
tese para construir as relações pertinentes entre acaso e romantismo alemão. Por considerar mais
proeminente e explícita as referências aos filósofos gregos na conceituação de acaso absoluto, a tese conferiu
preferência a estes estudos específicos.
4
Os artigos de P. Carus são “Mr. Charles S. Peirce on Necessity”, The Monist 2 (1892); “Mr. Charles S. Peirce
Onslaught on the Doctrine of Necessity”, (ibid.); “The Idea of Necessity, its Basis and its Scope”, op.cit. 3
(1893); “The Founder of Tychism, his Methods, Philosophy and Criticisms: in reply to Mr. Charles Sanders
Peirce”, (ibid.); a réplica de Peirce, o artigo “Reply to the Necessitarians”, The Monist 3 (1893) (CP
6.588-615).
13
Entre os principais problemas, que a presente tese objetiva posicionar na obra
e apresentar possíveis soluções, estão aqueles de ordem:
i. Conceitual: um consenso entre comentadores e exposto pelo próprio
filósofo – é a definição de acaso em dois conceitos distintos: acaso absoluto e
matemático (cap. 9), muitas vezes não especificando quando estava usando
um ou outro termo na obra, deixando as concepções vagas.
ii. Semântica: apesar de explicitar acaso absoluto como uma propriedade real,
ontológica, de mundo, as fronteiras entre o sentido “forte” e “fraco de acaso
nem sempre são precisas, levando comentadores como J. Van Brakel (1994)
a interpretar a doutrina como sendo uma crença “limitada” no acaso, dando
uma clara preferência à segunda concepção, mais moderada
5
.
iii. Validativa: uma das principais críticas diz respeito aos argumentos usados por
Peirce para comprovar a realidade do acaso, que seriam incompletos e não
apresentariam uma “prova” conclusiva.
iv. Lógica: o tiquismo, tomado como peça exclusiva de textos metafísicos
publicados na primeira série para “The Monist”, teria incongruências de ordem
lógica, ao abarcar teorias e hipóteses divergentes entre si.
A hipótese defendida na presente tese é que tais problemas poderiam ser
solucionados sob dois aspectos: (i) sob uma perspectiva sistêmica da obra
peirciana. Neste sentido, Ibri (1992) apontou a possibilidade de uma reconstrução
5
Em um dos primeiros textos com comentários a respeito do tiquismo, HAMBLIN (1945), também sugere
uma interpretação para a doutrina (em suas palavras, apesar de fascinante, “confusa” e ambígua”)
subsumindo o acaso ao escopo da terceira categoria peirciana, que congrega a necessidade da lei. Diz: “Em
outras palavras, Peirce realmente atribui ao acaso (tal como ele é empregado em sua teoria do Tiquismo) um
caráter de Terceiridade. Quando consideramos a existência de irregularidades ou eventos esporádicos,
constatamos que, embora cada um e em si mesmo sejam inexplicáveis, a variedade total de irregularidades
exibe uma certa porção de regularidade, a partir do conhecimento das quais certas predições podem ser
feitas." (1945:382 e 383) [In other words, Peirce actually attributes to chance (as it is used in his theory of
Tychism) a character of Thirdness. When we consider the existence of irregularities or sporadic events, we
find that, although each one by itself is inexplicable, nevertheless the whole range of irregularities exhibits a
certain amount of regularity, from a knowledge of which certain predictions could be made.]. Ao contrário,
sugere-se no presente estudo que geral e potencial são duas instâncias da realidade que acordam-se na
doutrina do tiquismo, mas o acaso absoluto preserva sua condição de elemento contrário à lei, de
Primeiridade.
14
do conceito de acaso na metafísica e na idéia de continuidade, como forma de
dissipar a névoa de mal entendidos e confusão que envolvem a doutrina; e (ii) com
uma interpretação de pontos específicos sobre o papel no acaso na cosmologia, em
sua relação com a termodinâmica e leis probabilísticas, com base em uma
linguagem de teorias da complexidade, às quais, argumenta-se, Peirce apresentaria
um conjunto coerente de idéias.
Propõe-se, como problemática, a possibilidade reconstruir uma teoria do
acaso objetivo em Peirce, que chamaríamos de acaso organizador (cap. 13), o que
daria maior coesão a um conjunto de textos em que o autor tratou do
indeterminismo. A metodologia empregada é o estudo dos escritos peircianos e
comentadores, em um esforço de articular teorias que, desconectadas, parecem dar
uma ar exótico e mesmo contraditório a algumas passagens sobre o tiquismo.
Para tanto, a tese divide-se em quatro partes:
i. Teoria das Categorias de C.S. Peirce: apresentam-se as categorias
peircianas, derivadas da lógica-matemática e da fenomenologia, como base
do sistema filosófico de Peirce (cap. 1), e o realismo do autor sustentando a
concepção de potencialidades reais na categoria da Primeiridade,
possibilitando a afirmação do acaso real (cap. 2).
ii. Fundamentos lógico-epistemológicos do acaso: nesta parte são expostas as
bases epistemológicas do acaso na teoria das inferências (cap. 3), teoria das
probabilidades, Lei dos Grandes Números e teoria da indução como processo
autocorretivo (cap. 4), falibilismo (cap. 5) e lógica da vagueza em sua
dimensão semântica e ontológica (cap. 6).
iii. Acaso na metafísica peirciana: analisa-se, nesta terceira parte da tese, as
conseqüências metafísicas do indeterminismo, com a crítica de Peirce ao
determinismo e os argumentos em favor do acaso (cap. 7), as influências de
Aristóteles na terminologia empregada por Peirce (cap. 8), a dupla
articulação conceitual de acaso (cap. 9) e a discussão sobre a doutrina do
15
clinamen e aproximações com o conceito de milagres (cap. 10).
iv. Acaso na cosmologia peirciana: a última parte propõe expor a cosmologia de
Peirce em em seus vetores da evolução (cap. 11) e na matemática do
contínuo (cap. 12) e uma possível sistematização das doutrinas em uma
teoria do acaso objetivo como fonte de organização no cosmos (cap. 13).
Os apêndices da tese trazem análises dos problemas colocados pela
interpretação do tiquismo, em duas das mais relevantes críticas feitas por Victor
Cosculluela (Apêndice A) e Andrew Reynolds (Apêndice B), além de uma breve
exposição da lógica trivalorativa de Peirce (Apêndice C), que auxilia no
entendimento da ação do acaso na cosmologia peirciana.
Esperamos, com a presente tese, não somente elucidar alguns pontos de
uma das mais discutíveis e ainda escassamente abordada doutrina peirciana, como
também sugerir seu vigor heurístico para a Filosofia e a ciência contemporânea.
16
I
Teoria das Categorias de C.S. Peirce
17
1. Descoberta das categorias na lógica e na fenomenologia
É totalmente exato que a tarefa da ciência, e mais precisamente da
filosofia em geral, consiste em conhecer a necessidade oculta sob a
aparência da contingência; mas isso não se pode entender como se o
contingente pertencesse simplesmente à nossa representação
subjetiva, e por causa disso tivesse de ser afastado absolutamente para
alcançar a verdade. Esforços científicos, que se desenvolvem
unilateralmente nessa direção, não escapam à censura justificada de
serem uma brincadeira vazia, ou um pedantismo afetado. [Enciclopédia
das Ciências Filosóficas em Compêndio, v. I: Ciência da Lógica (1830),
§ 145, Adendo].
G.W.F. HEGEL
Os fundamentos da filosofia peirciana são dados nas categorias, que devem
ser colocadas de antemão ao estudo proposto sobre o conceito de acaso. O
objetivo, neste capítulo introdutório, longe de esgotar as implicações a respeito das
categorias peircianas, é apenas definir termos que serão importantes para a
reconstrução dos argumentos do filósofo nos capítulos subseqüentes da tese
6
.
Categorias são conceitos abstratos, ao mesmo tempo elementares, no
sentido de serem uma composição primária que reúne em formas lógicas a
diversidade do mundo, e universais, isto é, válidos para toda experiência. A doutrina
das categorias, que remonta ao tratamento dado ao problema do conhecimento
(que, em parte, pode ser formulado da seguinte maneira: “Como é possível obter
conhecimento necessário de um mundo de contingência?”) por Platão, Aristóteles e
Hegel, é retomada por Peirce, sob influência maior de Kant, para conferir não
somente base conceitual como coerência ao seu sistema filosófico.
Em Kant, as categorias são conceitos a priori, ou seja, que antecedem a
experiência, pelos quais é possível reduzir um múltiplo de sensações desordenadas
da experiência a uma unidade conceitual inteligível, possibilitando assim o
conhecimento (CRP B 143). Por esta razão, tais conceitos não podem ser
encontrados na experiência, mas em funções lógicas do pensamento, constituindo
6
Para uma visão mais abrangente das categorias peircianas, consultar cap. 1 “A Fenomenologia: As Categorias
da Experiência” de IBRI (1992), FREEMAN (1934), MURPHEY (1993) e ROSENTHAL (2001).
18
mesmo condições de toda experiência
7
.
Peirce define categorias como concepções elementares e universais (CP
1.550, 1867), não opondo diferenças substanciais na conceituação do termo em
relação às doutrinas de Aristóteles, Kant e Hegel
8
. No entanto, apresenta diferenças
essenciais com em sua constituição, derivação e aplicação, principalmente no que
concerne a Kant, cuja filosofia constitui a maior referência nos textos da juventude
de Peirce, em que aparecem pela primeira vez as categorias. Basta, por enquanto,
enfatizar a função essencial da experiência para a sustentação da teoria peirciana
das categorias, em sua fenomenologia, que repudia o apriorismo, realocando a
metafísica de seu “centro gravitacional” no sujeito para a linguagem, ou signos,
permitindo a composição de uma cosmologia evolucionária
9
.
Entre os principais problemas epistemológicos e metafísicos para se
estabelecer uma lista, ao mesmo tempo completa, abstrata e geral, encontram-se os
seguintes:
1. Sobre sua gênese: qual a origem e o fundamento de tais conceitos,
pela exigência de serem universais e necessários, não sujeitos à contingência
dos fatos?
2. Sobre sua composição: quais são as garantias do número limitado de
categorias (dez em Aristóteles, doze em Kant, três em Hegel e três também
na short list de Peirce), ou seja, qual a justificativa para que a lista não seja
em número maior ou menor?
3. Sobre sua aplicação: qual seria a estrutura lógica que permitiria a
aplicação de conceitos à realidade, visando sua prova ontológica e
legitimação objetiva?
7
Para mais detalhes da teoria do conhecimento em Kant, cf. cap. 3 desta tese.
8
“Um exercício muito moderado desta terceira faculdade [faculdade de abstração matemática da
fenomenologia, como veremos mais adiante] é suficiente para mostrar-nos que a palavra Categoria possui
substancialmente o mesmo sentido para todos filósofos. Para Aristóteles, Kant e Hegel, a categoria é um
elemento dos fenômeno da primeira classe de generalidade.” [A very moderate exercise of this third faculty
suffices to show us that the word Category bears substantially the same meaning with all philosophers. For
Aristotle, for Kant, and for Hegel, a category is an element of phenomena of the first rank of generality.] (CP
5.43, 1903). Note-se que nesta citação aparece a natureza fenomenológica das categorias peircianas,
analisadas neste capítulo: elemento de primeira classe de generalidade dos fenômenos é o elemento mais
geral encontrável em todo e qualquer fenômeno, em toda e qualquer aparência.
9
Para uma análise comparativa das categorias de Peirce e Kant, cf. SALATIEL (2000).
19
O presente capítulo não pretende exaurir a problemática, mas estabelecer
critérios que fornecerão fundamentos conceituais para a investigação.
Peirce reduz a apenas três a sua lista de categorias Primeiridade,
Segundidade e Terceiridade e sobre esta classificação seu sistema filosófico se
ordena, por uma espécie de auto-similaridade categorial. Em Peirce as categorias
são fundadas na lógica, a priori, e na fenomenologia, a posteriori, mas esta distinção
kantiana não é correta, pois sua doutrina do pragmatismo estranha qualquer
distinção entre razão teórica e prática, além de trabalhar, como veremos adiante,
uma lógica de relações.
A lista de categorias de Peirce sofreu alterações em método de descoberta e
terminologia ao longo de sua obra, conforme é possível verificar no seguinte quadro:
1867 Lógica predicativa
(sujeito-objeto)
Qualidade
Relação
Representaçã
o
Método dedutivo-
matemático
Método empírico-
indutivo
1870 Lógica das relações Mônada
Díada
Tríada
1890 Metafísica Acaso
Existência
Lei
1904 Fenomenologia Primeiridade
Segundidade
Terceiridade
Quadro 1: referencial terminológico e metodológico das categorias de Peirce.
Inicialmente, Peirce observou problemas na tábua das categorias de Kant, em
que as categorias de relação (Substância, Causalidade e Comunidade), por
exemplo, seriam modos diferentes de Necessidade, que é uma categoria da
modalidade (CP 1.563, 1898). Isso o levou a rever a gênese categorial kantiana,
concluindo que em sua tábua dos juízos Kant foi “(...) precipitado, superficial, trivial e
até frívolo”, simplesmente por ignorar a lógica escolástica (CP 1.560, 1905).
Os pontos importantes desse exame feito por Peirce são dois. Em primeiro
20
lugar, Peirce concorda com Kant que toda cognição envolve uma inferência, mas
nega que esta se reduza à figura silogística de Bárbara. Uma das idéias centrais de
sua filosofia são três modos distintos de raciocínio: dedução, abdução e indução,
sendo as duas últimas inferências prováveis
10
. Isso impede uma dedução categorial
baseada apenas em juízos afirmativos e universais e de forma independente da
observação da experiência empírica.
Outro problema nos silogismos da tábua kantiana é que, segundo Peirce, não
diferença formal entre juízos categórico (S é P), hipotético (Se S, então P) e
disjuntivo (S ou P). Com isso, as categorias correspondentes deixam de ser
irredutíveis e ainda, havendo erros na classificação dos juízos de Kant, a dedução
metafísica
11
não pode ser correta: a homologia juízos/categorias torna-se impossível.
O objetivo do artigo “On a New List of Categories” (CP 1.545-559), de 1867, é
corrigir essas falhas na lógica kantiana e apresentar uma nova lista de categorias. É
um dos textos mais importantes do autor em que, não obstante a presença ainda de
uma terminologia kantiana, marca um primeiro avanço em direção a uma filosofia
original.
Em “New List”, Peirce mantém a extração das categorias do exame da lógica
proposicional clássica: “A unidade a qual o entendimento reduz impressões é a
unidade de uma proposição. Esta unidade consiste na conexão de um predicado
com o sujeito (...)” (CP 1.548) [The unity to which the understanding reduces
impressions is the unity of a proposition. This unity consists in the connection of the
predicate with the subject (...)]. A originalidade de Peirce é que proposições, assim
como inferências, são signos. Essa é uma mudança essencial do paradigma do
sujeito transcendental para o paradigma das relações semióticas. Como
conseqüência, a linguagem, não o sujeito, torna-se depositária da universalidade em
um novo sistema realista e evolutivo.
Mas o que orienta “New List” ainda é a problemática nominalista de Kant:
10
Ver detalhes no cap. 3.
11
Kant emprega dois métodos na descoberta e validação das categorias. Pela dedução metafísica, ele deriva as
categorias dos juízos, que são formas lógicas do entendimento cujas funções são dadas pelos conceitos (CRP
B 102 a 105; P§ 39); pela dedução transcendental, as categorias, como conceitos a priori, contêm as
condições de possibilidade da experiência (CRP B 125). Ver comentários em PATON (1936).
21
unificar em conceitos a multiplicidade de particulares que compõem a realidade. O
objetivo último é a fundamentação do conhecimento. Na tarefa de extrair as
categorias da unidade proposicional, Peirce estabelece o conceito de Substância (ou
“presente em geral”) como o mais próximo do múltiplo das sensações, que
representa o poder denotativo da mente de se referir imediatamente ao objeto (CP
1.547). Pelo fato de não conotar nada, ainda não é uma unidade, mas o
reconhecimento dessas impressões – desse isto (it).
Em seguida, conceitua Ser como a cópula que faz a conexão entre sujeito e
predicado (____ é ____) sendo, portanto, a própria unidade de uma proposição que
completa a função de um conceito. Substância e Ser são, respectivamente, “(...) o
começo e o fim de todo conceito” (CP 1.548). Entre ambos haverá uma gradação de
níveis de abstração que correspondem a três categorias intermediárias (note-se que
no artigo em questão as categorias peircianas são puramente mentais).
Para encontrá-las Peirce emprega o método chamado prescission (no sentido
de prescindir) ou abstração “prescindente”, que consiste em atentar para uma
determinada propriedade do percepto (aquilo que é percebido) deixando as demais
imprecisas, de acordo com uma regra que sugere hierarquia (CP 1.549, 1867; ver
também CP 2.428, 1893 e CP 4.235, 1902). No exemplo dado por Peirce, posso
prescindir espaço de cor, mas não cor de espaço; em outros termos, posso
prescindir A de B mas não B de A. Segundo De Tienne (1989), o método é aplicado
com a formulação de hipóteses seguindo uma ordem retroativa do Ser à Substância
(ou do conceito mais imediato ao mais mediato).
Aqui tem-se outra diferença em relação a Kant: não se trata de meramente
deduzir a lista de categorias de uma classificação de proposições, mas encontrá-las
na análise da estrutura proposicional usando um método hipotético.
A primeira categoria intermediária é encontrada da seguinte maneira:
A concepção de ser surge da formação de uma proposição. Uma
proposição sempre tem, ao lado de um termo para expressar a
substância, outro para expressar a qualidade dessa substância; e a
função da concepção de ser é unir a qualidade à substância.
Qualidade, portanto, é em seu mais amplo sentido, a primeira
concepção em ordem da passagem do ser à substância. (CP 1.551,
22
1867)
12
.
Substância é o sujeito de uma proposição, Ser é a cópula e Qualidade, o
predicado. O predicado, por sua vez, é determinado em relação a um correlato
(objeto). Relação é a segunda categoria. Representação é a mediação entre relato e
correlato, portanto, a terceira categoria (cf. MICHAEL, 1980 e MURPHEY, 1993:
73-74). Deste modo, têm-se:
Ser
Qualidade
Relação
Representação
Substância
Quadro 2: categorias em “On a New List...”
Cada categoria mais imediata (da experiência) não pode prescindir da
sucessora: nisto consiste o método. Por exemplo, Relação não pode prescindir de
Qualidade, mas Qualidade pode prescindir de Relação.
1.1. Teses da redutibilidade e da irredutibilidade dos processos triádicos
A partir de 1870, Peirce aprofunda-se nos estudos de lógica algébrica do
matemático inglês George Boole (1814-1864) e inicia sua revisão na lista. A maior
contribuição deste período é o desenvolvimento da lógica dos relativos, pela qual as
categorias o classificadas como elementos relacionais de uma proposição em
12
“The conception of being arises upon the formation of a proposition. A proposition always has, besides a
term to express the substance, another to express the quality of that substance; and the function of the
conception of being is to unite the quality to the substance. Quality, therefore, in its very widest sense, is the
first conception in order in passing from being to substance.”
23
mônada, díada e tríada
13
. Diferente da lógica tradicional, aqui os predicados
requerem mais de um termo na proposição e a cópula é um elemento relacional.
Assim: “A é branco”, é uma mônada não relativa; “A é irmão de B” é de caráter
diádico, expressa relação entre duas coisas; “A dá B para C”, é uma relação triádica,
primitiva e necessária para um sistema lógico coeso.
Com base nas tríadas Peirce sustenta a tese da redutibilidade categorial, isto
é, de que políadas podem ser construídas a partir de tríadas - 3 (tríada) e 1
(mônada) gera relação de 4; 2 (díada) e 3 (tríada) gera uma relação de 5, e assim
por diante e a tese da irredutibilidade categorial, em que uma mônada não
representa uma relação diádica e uma relação diádica, não pode expressar uma
triádica:
Um estudo completo da lógica dos relativos confirma as conclusões
que havia obtido antes. Mostra que os termosgicos são mônadas,
díadas ou políadas, e estas últimas não introduzem quaisquer
elementos radicalmente diferentes daqueles que são encontrados
nas tríadas. Portanto, divido todos objetos dentro de mônadas,
díadas ou tríadas (…) (CP 1.293, 1894)
14
.
Ou seja, prova-se que as três categorias são elementares, irredutíveis e a
lista, portanto, é completa. Essa é a principal prova da origem e composição das
categorias peircianas desenvolvida a partir da idéia original de “New List” -
baseada na lógica formal e marca um considerável avanço em relação à Kant
(MURPHEY, 1993: 298-299).
A tese pode ser visualizada de acordo com a notação dos grafos existenciais,
sistema de geometrização da lógica criado por Peirce, onde mônada ( a ) é
representada por um traço; díada ( b ), dois traços em relação e a tríada ( c )
formando um design de bifurcação que oferece modelo para construção de sistemas
13
Peirce se inspira no modelo conceitual da química do século XIX (ele era químico de formação) para
classificar as categorias mônada, díada e tríada de acordo com sua valência (valência 1, 2 e 3, incluindo
medad, que corresponde à valência 0). Em química, valência é o número de ligações que um átomo pode
estabelecer para gerar compostos; na lógica de Peirce, referem-se a elementos relacionais de uma proposição
(CP 1.288, 1904).
14
“A thorough study of the logic of relatives confirms the conclusions which I had reached before going far in
that study. It shows that logical terms are either monads, dyads, or polyads, and that these last do not
introduce any radically different elements from those that are found in triads. I therefore divide all objects
into monads, dyads, and triads (...)”
24
poliádicos (CP 1.347, 1903):
(a)
Mônada:
─ x
(b)
Díada:
─ R ─
(c)
Tríada:
Quadro 3: representação de categorias em grafos, segundo Peirce.
Esta relação triádica é denominada de Signo, definido como um primeiro
correlato, o Representamen, que representa um segundo correlato, seu Objeto, para
um terceiro, seu Interpretante (CP 2.274, 1902), que origina outra relação, em um
crescimento infinito que caracteriza o processo, chamado semiose
15
. O grafo
triádico, portanto, traz em sua própria morfologia uma idéia de irreversibilidade
temporal e continuidade.
Por isso, a primeira conclusão do estudo da lógica dos relativos é a
identificação de Terceiridade e continuidade: “Continuidade representa Terceiridade
em sua quase perfeição” (CP 1.337, 1875)
16
. A segunda é a revisão da Segundidade
de acordo com a teoria dos quantificadores, identificando o segundo elemento com
existentes individuais e contribuindo para o aprimoramento do realismo peirciano
(MURPHEY, 1993 e PARKER, 1998). Em resumo, implicações metafísicas
pertinentes no estudo das categorias.
Os resultados destes estudos são apresentados em “One, Two, Three:
Fundamental Categories of Thought and of Nature” (W5: 242-247), de 1885, em que
as categorias de “New List” são retomadas não como concepções mas relações ou
processos lógicos elementares e universais. Nas palavras de Peirce:
15
Definimos a semiótica peirciana no cap. 1.2.
16
Sobre continuidade, cf. cap. 12.
25
(...) achamos necessário reconhecer em lógica três tipos de
caracteres, três tipos de fatos. Primeiro, existem caracteres
singulares que são predicáveis de objetos singulares, como quando
dizemos que algo é branco, grande, etc. Segundo, existem
caracteres duais que se referem a pares de objetos; estes são
implicados por todos termos relativos como “amante”, “similar”,
“outro”, etc. Terceiro, existem caracteres plurais, que podem ser
todos reduzidos a caracteres triplos mas não a caracteres duais.
(W5: 243)
17
.
A tríade categórica retorna em “One, Two, Three” com a força de um modelo
formal para investigações realizadas na fenomenologia, o passo subseqüente para a
validação objetiva da doutrina das categorias de Peirce.
1.2. Fenomenologia e Matemática
Nos anos de 1890 Peirce inicia a elaboração de sua fenomenologia visando
uma prova indutiva de suas categorias lógicas. Por fenomenologia (ou faneroscopia)
Peirce entende o método de descrição do phaneron, definido como qualquer coisa
presente à mente tenha ou não correspondência com a realidade externa (CP 1.284,
1905), de caráter observacional e empírico, despido que qualquer pretensão
ontológica ou epistemológica. O método fenomenológico consiste na observação
direta dos fenômenos da experiência, generalização e descrição das suas
propriedades segundo a tríade categorial (CP 1.286, ibidem) de modo a validar
provisoriamente (CP 1.301, 1894) a universalidade e a aplicabilidade as três
categorias.
No entanto, na classificação das ciências de Peirce organizada segundo
graus de abstração - a Fenomenologia é o primeiro ramo da Filosofia que precede e
fundamenta a Lógica como ciência normativa, sendo antecedida pela Matemática.
Conforme mostra o seguinte quadro
18
:
17
“(...) we find it necessary to recognize in logic three kinds of characters, three kinds of facts. First, there are
singular characters which are predicable of single objects, as when we say that anything is white, large, etc.
Secondly, there are dual characters which appertain to pairs of objects; these are implied by all relative terms
as 'lover', 'similar', 'other', etc. Thirdly, there are plural characters, which can all be reduced to triple
characters but not dual characters.”
18
O quadro está incompleto e tem somente o objetivo de demonstrar, por meio do diagrama, o local da
26
1. MATEMÁTICA
1.2 FILOSOFIA
1.2.1. FENOMENOLOGIA
1.2.2. CIÊNCIAS NORMATIVAS
1.2.2.1. LOGÍCA (SEMIÓTICA)
1.2.3. METAFÍSICA
Quadro 4: Matemática, Fenomenologia e Lógica na classificação das ciências em Peirce.
O problema que se coloca diante da classificação é o seguinte: se as
categorias derivadas da fenomenologia são mais primitivas a tríade lógica não
poderia preceder as observações empíricas e método classificatório. E ainda, como
Lógica é apenas uma entre as ciências normativas e a divisão triádica orienta a
própria classificação das ciências, a “dedução metafísica” peirciana se tornaria um
paradoxo.
A solução está no fato de Peirce subdividir também a Lógica, inserindo seu
aspecto formal como parte da Matemática, ciência do possível, distinto das
atribuições da lógica normativa ou semiótica, ciência geral dos signos.
Em Kant a lógica possui uma dupla condição: como lógica geral é uma ciência
das regras puras e necessárias do entendimento para se pensar o objeto, em que se
abstraem as condições empíricas, observando-se a razão em seu uso formal; como
lógica transcendental (e essa é a inovação kantiana) é uma ciência de regras a priori
para construir o objeto, no qual o conteúdo empírico é dado pela sensibilidade (CRP
B 77-82).
Matemática, da Fenomenologia e da Lógica na classificação das ciências em Peirce, como suporte para as
argumentações posteriores. Para uma discussão mais detalhada do conceito de ciência e sobre a classificação
das ciências em Peirce, cf. RODRIGUES (2005). Neste mesmo trabalho de Rodrigues, foi de grande
inspiração para a composição deste capítulo o cap. 9 “Matemática como Ciência mais Geral: forma da
experiência e categorias” (Ibidem).
27
A tarefa da lógica transcendental é organizar a matéria do conhecimento,
legislar sobre a natureza, enquanto que a lógica geral faz deduções de conceitos
dados.
Peirce opõe duas objeções: o pensamento não se restringe a inferências
necessárias, mas também prováveis (CP 2.620, 1878), sujeitas à verificação
experimental, e sua unidade não está no “Eu penso” da apercepção originária
transcendental, mas no signo.
Com isso, desloca-se o foco de interesse das regras e formas do pensamento
para as regras e formas da linguagem, e autoriza Peirce a conceber a lógica, em seu
sentido estrito, como matemática e, em seu sentido amplo, como semiótica (CP
2.227, 1897; CP 1.444, 1896 e CP 1.191, 1903), que inclui, além de mbolos, signos
potenciais, os ícones, e existenciais, os índices (CP 4.9, 1906 e SS 118, 1909). Esta
é a mais importante contribuição de Peirce à teoria da lógica, especificamente em
relação à lógica moderna, a qual Peirce contrasta com o logicismo de Boole, Frege e
Russel, que conceituaram lógica como um ramo da matemática (MARCUS, 1998)
19
.
Deste modo, fenomenologia e lógica possuem funções diferentes e a primeira
possui precedência:
Fenomenologia apura e estuda os tipos de elementos universalmente
presentes no fenômeno (...) Ciência normativa distingue o que deve
ser do que não deve ser e suscita várias outras divisões e arranjos
subservientes a essa distinção dualística primária (...) Ciência
normativa repousa amplamente sobre a fenomenologia e sobre a
matemática (...) (CP 1.186, ibidem)
20
.
Como a fenomenologia depende da matemática, Peirce pode empregar a
lógica formal mais especificamente a lógica dos relativos - para a classificação
fenomenológica. Por esta razão a matemática fornece aparato lógico ao método
fenomenológico, ficando a cargo das ciências normativas, e mais especificamente
da semiótica como lógica normativa, explorar a força heurística da divisão categorial
peirciana. Em outras palavras, a investigação fenomenológica visa fornecer um
19
Para mais detalhes da teoria semiótica peirciana, cf. SANTAELLA (1995).
20
“Phenomenology ascertains and studies the kinds of elements universally present in the phenomenon (...)
Normative science distinguishes what ought to be from what ought not to be, and makes many other divisions
and arrangements subservient to its primary dualistic distinction (...) Normative science rests largely on
phenomenology and on mathematics (...)”
28
levantamento de experiências que irão compor uma espécie de conteúdo empírico
das formas relacionais deduzidas pela matemática.
A fenomenologia, porém, possui um interessante aspecto ativo e retroativo
sobre a lógica formal que evidencia o caráter evolutivo e não-apriorístico da filosofia
de Peirce: o lado formal das categorias não é definitivo porque deve submeter-se
continuamente ao crivo da experiência futura, em que Rosenthal (2001) identifica,
dado o duplo aspecto empírico e racional das categorias, como sendo o elemento
pragmático da fenomenologia. A lista das categorias, apesar de completa, não pode
ser definitiva, ainda mais vista sob a ótica da doutrina do falibilismo
21
; ao contrário, a
hipótese da irredutibilidade categorial deve se submeter aos testes indutivos e
autocorretivos que caracterizam a ciência e a metafísica peircianas.
21
Sobre falibilismo, cf. cap. 5 desta tese.
29
2. Potencialidades reais nas categorias peircianas
(...) Babilonia no es otra cosa que un infinito juego de azares.
JORGE LUIS BORGES
22
O próximo passo na consolidação da teoria das categorias peirciana,
seguindo a ordem da classificação das ciências, é a metafísica, em que são
estudados aspectos gerais da realidade (CP 6.6, c.1903, CP 1.186, 1903). A análise
deve ser precedida, para melhor compreensão, de uma breve explanação sobre o
realismo do filósofo. O objetivo principal deste capítulo é a definição de possibilidade
real, um conceito-chave na teoria do acaso objetivo em Peirce.
O realismo surge da retomada de uma antiga questão dos universais em
Filosofia. Entidades universais são predicados de muitos, como os conceitos de
“homem”, “cavalo”, vermelho” etc., e se opõem às entidades singulares, que se
predica a um único ser. Não dúvida a respeito do termo universal, de que um
termo significa ou se refere a muitas coisas. A querela diz respeito aos universais
serem encontrados somente em idéias (para Abelardo
23
, por exemplo, são somente
palavras) ou serem também reais, ou seja, reais independente da razão humana
24
.
Para os nominalistas, universais são elementos da cognição, meras
convenções humanas, enquanto para os realistas, se afirmam como modos de ser
(CP 4.1, 1898). Não que os nominalistas neguem a existência do mundo externo,
mas afirmam que a realidade se compõe de particulares e as classes gerais são
atributos da mente. Isto é, as leis são abstrações do sujeito, a Natureza é o reino do
contingente.
25
22
“(...) Babilônia não é outra coisa senão um infinito jogo de acasos”, em “A Loteria em Babilônia” (BORGES,
1999: 510).
23
Pedro Abelardo (1079-1142), teólogo e filósofo francês.
24
Cf. NASCIMENTO (1981).
25
A crítica peirciana em relação às metafísicas tem como alvo os nominalistas, identificados tanto em filósofos
racionalistas e idealistas (Descartes, Leibniz, Berkeley e Kant), quanto nos empiristas ingleses (Okham,
30
Mas isso seria admitir, por exemplo, que a força gravitacional não agiria na
Terra antes do aparecimento do homem. Peirce era um cientista que absorveu os
avanços e descobertas do século XIX que tornaram, ao menos, desconfortável a
supremacia do sujeito na Filosofia. Descobertas geológicas e astronômicas
comprovaram que o homem é uma criatura muito recente e o cosmo, muito velho, e
que organização é uma das condições da vida, não uma característica exclusiva do
ser humano.
Peirce, portanto, adota uma posição ideal-realista, ou, em suas palavras,
idealista objetiva (CP 6.24, 1891; CP 6.101, 1903), em que o real é entendido não
como independente do pensamento em geral, mas do pensamento de um
individual. aqui duas definições
26
. Na primeira, real é aquilo que permanece
independe do que possa ser pensado a respeito dele. Por exemplo, posso pensar o
que quiser a respeito de alguma coisa, o que não a torna um objeto
necessariamente real. Pode ser apenas um sonho ou uma ficção. Objeto real é
aquele que vai resistir ao que o indivíduo pense de sua existência.
Na segunda definição, real é uma opinião final que se sustenta ao final do
curso de investigações sobre o objeto. Uma comunidade de investigadores (dado o
ser humano possuir a capacidade de adivinhar as leis) é portadora de uma
tendência para atingir uma verdade a respeito desse real verdade sempre
aproximativa e provisória no curso de testes e confirmações empíricas
27
.
Realidade, portanto, é algo que independe do pensamento de um indivíduo, mas
Hobbes, Locke e Hume). Um dos maiores embaraços desses sistemas, ao parir uma teoria da cognição em
que o sujeito é afetado por objetos externos, via impressões sensórias, e organiza os fatos na unidade do
conceito, é resultar no paradoxo do resíduo incognoscível de mundo, em Kant, e o ceticismo humeano. Em
ambos casos, cai-se no que Peirce considera ser o maior pecado em Filosofia e ciência: bloquear o caminho
da investigação (CP 1.135, 1899).
26
A primeira sistematização do realismo peirciano aparece, muito sugestivamente, na resenha das obras
completas de Berkeley - Frasers Edition of The Works of George Berkeley, CP 8.7-38, 1871). As
reformulações do realismo peirciano são analisadas, entre outros, por FISCH (1986: 184-220), para quem o
filósofo evolui de um pensamento nominalista para um realista, e HOUSER (1998), que identifica um Peirce
“quase-nominalista”.
27
“Existe portanto, para toda questão, uma resposta verdadeira, uma conclusão final, para a qual a opinião de
todo homem constantemente tende. Por algum tempo ele poderá perdê-la de vista, mas dê-lhe mais
experiência e tempo de estudo e ele finalmente de atingí-la. O indivíduo pode não viver o bastante para
chegar à verdade; existe um resíduo de erro na opinião de todo indivíduo. Não importa; mesmo assim
permanece o fato de que há uma opinião definida para a qual tende a mente do homem, no conjunto e a longo
prazo.” (CP 8.12, 1871). Trad. José Teixeira Coelho (PEIRCE, 1977).
31
possui um componente geral, uma mesma matriz conforme a lei compartilhada pela
Natureza e pelo homem. De outra forma, como seria possível conhecer algo de
natureza diversa?
Para Peirce, tal realidade possui três atributos, identificados como três
categorias que correspondem a formas lógicas (mônada, díada e tríada),
experiências fenomênicas (qualidade, alteridade e pensamento) e modos de ser
(possível, atual e geral): Primeiridade, Segundidade e Terceiridade; conforme
representado no quadro a seguir:
CATEGORIAS FORMAS
LÓGICAS
FENÔMENOS MODOS DE SER
PRIMEIRIDADE
SEGUNDIDADE
TERCEIRIDADE
Mônada
Díada
Tríada
Qualidade
Alteridade
Pensamento
Possível (acaso)
Atual (existência)
Necessário (lei)
Quadro 5: categorias peircianas.
Segundidade
28
é tudo que envolve reação, força bruta e irracional, dada na
relação entre um eu e um não-eu. Fato é tudo que opõe resistência (CP 1.431,
1896). Trata-se, portanto, de um primeiro atributo da realidade, do objeto externo
que resiste (às representações) e que é independente do que eu, você ou um grupo
de pessoas possa dele pensar (CP 5.405, 1878 e CP 8.12, 1871). O modo de ser da
Segundidade é a existência individual, independente de qualquer regularidade,
experienciada como oposição:
Existência é aquele modo de ser que reside em oposição a outro.
28
Adota-se aqui a ordem de exposição das categorias a começar pela Segundidade -seguindo a proposta de
IBRI (1992: cap. 2), de modo a facilitar o entendimento de duas formas de generalização, cuja compreensão
será importante em argumentações posteriores da tese, na Terceiridade e na Primeiridade (expostas também
nesta ordem de modo a dar ênfase à Primeiridade, foco do trabalho).
32
Dizer que uma mesa existe é dizer que ela é dura, pesada, opaca,
ressoante, ou seja, produz efeitos imediatos sobre os sentidos e,
também, que produz puros efeitos puramente físicos, atrai a terra
(isto é, é pesada), dinamicamente reage contra outras coisas (isto é,
tem inércia), resiste à pressão (isto é, é elástica), tem uma definida
capacidade para o calor, etc. Dizer que existe uma mesa fantasma a
partir de sua incapacidade de afetar quaisquer sentidos ou de
produzir quaisquer efeitos físicos que sejam, é falar de uma mesa
imaginária. Uma coisa sem oposições ipso facto não existe. (CP
1.457, 1896).
29
Existente possui determinadas qualidades que geram determinados efeitos e
que são experienciados. Mas, para possuir realidade, necessita de um segundo
predicado, dado pela terceira categoria, pois, conforme dito, real é aquilo que
independe do pensamento de um particular (caso contrário, poderia ser ficção), mas
não do pensamento em conformidade geral. Trata-se de um acordo final de opiniões
atingidas ao cabo de uma investigação científica, resultado de inferência abdutivas e
indutivas
30
, em que surge uma coerência entre crença e experiência que irá
corresponder ao conceito de verdade em Peirce
31
:
A opinião que será, afinal, sustentada por todos os que investigam é
o que entendemos por verdade, e o objeto que nesta opinião se
representa é o real. Desta maneira eu explicaria a realidade. (CP
5.407, 1878).
32
Realidade é o processo de desnudar-se do objeto em uma série infinita de
representações, sujeitas a erros, portanto, falível.
E como deveria ser a realidade para que a linguagem se torne possível em
sua função de representá-la? Caso fosse uma coleção de particulares sem conexão,
sem permanência e regularidade no tempo, impediria qualquer tipo de predição do
futuro, anulando qualquer pretensão de saber teórico. A própria sobrevivência da
espécie humana prova o contrário: estamos vivos porque nossas representações
traduzem um objeto real que se comporta, dentro de certos parâmetros
probabilísticos, de acordo com nossos modelos cognitivos. A posição realista
consiste na afirmação de que a Terceiridade é real; seu modo de ser, a lei, opera na
29
Trad. IBRI (1992: 28).
30
Sobre a teoria das inferências em Peirce, cf. cap. 3 desta tese.
31
Os conceitos de realidade e verdade, deste modo, estão relacionados na filosofia peirciana, conforme
demonstra o trabalho de BACHA (2003).
32
“The opinion which is fated to be ultimately agreed to by all who investigate, is what we mean by the truth,
and the object represented in this opinion is the real. That is the way I would explain reality.
33
Natureza e, por isso, o conhecimento é possível.
Por outro lado, o domínio da Terceiridade pressupõe um universo
absolutamente ordenado, determinista, que funciona como um relógio, onde todas
as possibilidades estão definidas e previstas. Deve haver, segundo Peirce, um
segundo continuum
33
de generalidade real agindo no universo. Este pertence ao
indeterminado, ao domínio das qualidades, que têm seu modo de ser na
possibilidade real.
O elemento geral do realismo peirciano possui duas formas: uma negativa,
dada pela mera potencialidade (can be), e uma positiva, dada pela necessidade
condicional (would be), que são duas formas de indeterminação, vagueza e
generalidade
34
(CP 1.427, 1896). O diferencial do pensamento realista peirciano, ao
qual pode-se, deste modo, conferir o predicado extremo, é o reconhecimento das
possibilidades reais, ou a realidade da primeira categoria.
35
A definição aristotélica de possibilidade ontológica é assumida por Peirce
entre 1896 e 1897 (CP 3.527, CP 8.308)
36
, quando revê sua conceituação anterior
de possibilidade como proposição da qual o se pode afirmar a verdade ou
falsidade. A razão foi ele ter considerado esta primeira definição um anacoluto:
existem coisas que sabemos que podem ocorrer, outras não; sabemos que certas
coisas não são verdadeiras porque impossíveis. O teorema “X é possível” dado que
“não se pode afirmar se X é verdadeiro ou falso”, determina condições epistêmicas
de possibilidade, ou seja, o atributo é subjetivo – relativo à ignorância dos valores de
verdade ou falsidade da proposição e ainda, nominalista. Na inversão, a condição
epistêmica é determinada pelo estatuto modal: “não se sabe se X é ou não
verdadeiro”, dado que “X é possível” (NOBLE, 1989:164).
Peirce considerou a primeira conceituação de possível um anacoluto, isto é,
sem seqüencialidade lógica, porque a definição de possível (“não como afirmar a
validade ou falsidade de X”) deve vir antes de sua conseqüência (“Portanto, X é
possível”).
Ele havia assumido uma posição realista em teoria das probabilidades, e
33
Cf. cap. 12.
34
Cf. cap. 6.
35
Cf. TIERCELIN (1992: 65), NOBLE (1989: 163) e FISCH (1986: 194).
36
Em carta a William James (CP 8.308), Peirce revela que o que o levou a rever o conceito foram os estudos
em multitude (cf. cap. 12 desta tese).
34
em 1896 encontra-se uma passagem interessante a respeito de possibilidades reais,
dada pela inversão do teorema subjetivista:
Quando dizemos que, de todos lances possíveis de um par de
dados, um trinta e seis avos exibirão um par de seis, a coleção dos
lances possíveis que ainda não foram efetivados é uma coleção na
qual as unidades individuais não têm identidade distinta. É
impossível, assim, designar um daqueles possíveis lances que não
foram jogados, porquanto a designação será aplicável a um definido
lance possível; e esta impossibilidade não resulta de qualquer
incapacidade nossa, mas do fato de que, em sua própria natureza,
aqueles lances não são individualmente distintos. O possível é
necessariamente geral; e nenhuma quantidade de especificação
geral pode reduzir uma classe geral das possibilidades a um caso
individual. É somente a atualidade, a força da existência, que rompe
a fluidez do geral e produz uma unidade discreta. Desde Kant, a idéia
de que o tempo e o espaço introduzem a continuidade na natureza
tem sido bastante difundida. Mas isto é um anacoluthon. Tempo e o
espaço são contínuos porque incorporam condições de possibilidade,
e o possível é geral, e continuidade e generalidade são dois nomes
para a mesma ausência da distinção dos individuais. (CP 4.172;
grifos nossos).
37
A possibilidade real é rompida pela força da Segundidade, que define,
individualiza um lance jogado. Insere, no jogo de puras potências, a existência. A
antecedência ontológica do possível inverte a lógica kantiana: as condições de
possibilidade, da existência e das leis, não são dadas pelo aparato cognitivo humano
em sua dupla função de sensibilidade e entendimento, conforme Kant, mas ao
contrário, pelo fato do possível ser in re ipsa que o conhecimento científico é
possível (em provas indutivas a longo prazo).
Possibilidade ontológica em Peirce é a definição aristotélica para potência
38
:
Algo é em potência se o traduzir-se em ato daquilo de que se diz ser
ele em potência não implica nenhuma impossibilidade. Dou um
exemplo: se alguém tem potência para sentar-se e pode sentar-se,
não terá nenhuma impossibilidade de fazê-lo quando tiver de se
sentar. E de modo semelhante quando se tratar da potência de ser
movido ou de se mover, de estar parado ou de parar, de ser ou de vir
a ser, de não ser ou de não advir. (Met., Θ, 3,1047ª 25).
Para Aristóteles, potência é o princípio que leva o ser a tornar-se ato, isto é,
existir (Met., Θ, 1, 1046ª 10 e 3, 1047b). Algo é em potência quando a ele segue-se o
37
Trad. IBRI (1992: 66).
38
Sobre a similaridade conceitual de potencialidade em Peirce e Aristóteles, ver análise de SFENDONI-
MENTZOU (1997).
35
ato; algo pode ser caso seja possível que esse algo exista de alguma forma
39
. A
diferença entre os conceitos é explicitada na seguinte passagem de Metafísica:
E o ato está para a potência como, por exemplo, quem constrói está
para quem pode construir, quem está desperto para quem está
dormindo, quem para quem está de olhos fechados mas tem a
visão, e o que é extraído da matéria para a matéria e o que é
elaborado para o que não é elaborado. Ao primeiro membro dessas
diferentes relações atribui-se a qualificação de ato e ao segundo a de
potência. (Met., Θ, 6, 1048b).
A relação potência-ato traduz-se, em Peirce, na relação entre geral-particular
e retorno ao ponto de passagem do não-existir para o existir, que constitui o cerne
do pragmatismo peirciano. Em sua reformulação com o nome de pragmaticismo
40
,
trata-se de um método em que o significado de um conceito (símbolo) é dado na
conduta racional concebível que ele proporciona, em seus efeitos experienciáveis.
Em outras palavras, um primeiro, indeterminado, pura potencialidade, deve definir-se
enquanto atual, existir como fenômeno, para ser generalizado, ou seja, interpretado
numa malha teórica e assim adquirir contornos de outra indeterminação (CP 5.412 e
CP 5.438, 1905). Por isso, Peirce afirma que o pragmatismo requer a realidade dos
três modos de ser, incluindo o modo de ser potencial:
Outra doutrina implicada pelo Pragmaticismo como sua
conseqüência essencial (...) é a doutrina escolástica do realismo. Ela
é comumente definida como a opinião de que objetos reais que
são gerais, dentre os quais estão os modos de determinação dos
singulares existentes, se, com efeito, estes não forem os únicos
objetos deste tipo. Mas esta crença dificilmente pode escapar de ser
acompanhada pela admissão de que existe, além disso, vagos reais
e, principalmente, possibilidades reais. Dado que possibilidade é a
negação da necessidade, que é um tipo de generalidade, é vaga
como qualquer outra contradição de um geral. Na verdade, o que o
pragmaticismo mais insiste é sobre a realidade de algumas
potencialidades. (CP 5.453, 1905)
41
.
O que o pragmatismo peirciano afirma é a realidade de determinadas
39
Para detalhes a respeito da relação ato-potência em Aristóteles, cf. AUBENQUE (1991).
40
Para diferenciar do uso que se tornou comum - e pouco rigoroso - de “pragmatismo” (CP 5.414, 1905).
41
“Another doctrine which is involved in Pragmaticism as an essential consequence of it (...) is the scholastic
doctrine of realism. This is usually defined as the opinion that there are real objects that are general, among
the numbers being the modes of determination of existent singulars, if, indeed, these be not the only such
objects. But the belief in this can hardly escape being accompanied by the acknowledgment that there are,
besides, real vagues, and especially real possibilities. For possibilities being the denial of a necessity, which
is a kind of generality, is vague like any other contradiction of a general. Indeed, it is the reality of some
possibilities that pragmaticism is most concerned to insist upon.”
36
proposições gerais condicionais, isto é, a realidade lógico-ontológica de
determinados would bes e can be’s (CP 8.216-217, 1910). No exemplo clássico
dado por Peirce do diamante (CP 5.453, 1905; cf. 5.403, 1878), dizer que o diamante
é duro significa que Se o diamante fosse submetidos a testes de dureza, ele
resistiria à pressão de outros objetos”, quer dizer, o significado da proposição “O
diamante é duro” é o fato de que esta seria a conclusão lógica, caso o objeto fosse
submetido a testes futuros. “X é possível”, logo, posso afirmar a verdade ou
falsidade de X
42
.
Potencialidade e possibilidade, portanto, são modos objetivos de ser,
modalidades ontológicas que Peirce retoma de Aristóteles em suas categorias
Primeiridade e Terceiridade.
42
Cf. MAGALHÃES, 2006.
37
II
Fundamentos Lógico-epistemológicos do Acaso
38
3. Interpretação indutiva dos juízos sintéticos
Tudo na natureza, tanto no mundo animado quanto no mundo inanimado,
acontece segundo regras, muito embora nem sempre conheçamos essas
regras. A água cai segundo leis da gravidade e, entre os animais, a
locomoção também ocorre segundo regras. O peixe na água, o pássaro no
ar movem-se segundo regras. A natureza inteira em geral nada mais é, na
verdade, do que uma conexão de fenômenos segundo regras; e em
nenhuma parte irregularidade alguma. Se pensamos encontrar tal coisa,
poderemos dizer neste caso o seguinte: que as regras nos são
desconhecidas. (L A1/Ak11).
KANT
A validade objetiva do conhecimento, tanto para Peirce como para Kant, é o
principal problema a ser colocado pela Filosofia. O cleo da Crítica da Razão Pura
assenta sobre a questão “como os juízos sintéticos a priori são possíveis?”, que
Peirce reformula para a possibilidade de qualquer raciocínio sintético, isto é,
raciocínio sobre a experiência (CP 5.348, 1869); ou melhor, a possibilidade de
proposições universais relativas à experiência (CP 4.92, 1893). Este capítulo vai
tratar de como a justificação de juízos sintéticos a priori em Kant se torna o problema
da validade da indução em Peirce e fornecer subsídios para as discussões
subseqüentes em teoria do conhecimento.
Kant divide os juízos em analíticos, ou de elucidação, e sintéticos ou
ampliativos, sendo que no primeiro o predicado está contido no sujeito e no
segundo, o predicado é acrescentado ao sujeito (CRP B 11). Os juízos sintéticos são
os que interessam à ciência, pois acrescentam predicação ao sujeito por meio da
experiência e, deste modo, geram conhecimento em sua interface com o objeto. Os
juízos analíticos expressam relações de identidade e sua prova é dada no princípio
de não-contradição (CRP B 12; P §2). O problema para Kant está na fundamentação
de juízos sintéticos a priori, que deve ser suposta não na contingência dos fatos,
mas na necessidade e universalidade da razão. Ou seja, como posso prever com
segurança que, dado um evento A, ocorra um evento B - independente de A - no
39
curso dos fatos?
Hume argumenta que não como inferir leis causais da Natureza sem o
recurso da experiência e esta é destituída de necessidade lógica. Não se pode
prever a conseqüência de um evento A sem uma observação empírica, e toda e
qualquer inferência a priori será sempre arbitrária, pois nada garante o
comportamento regular dos objetos (HUME, 1980: §25). O princípio que valida a
causalidade, em Hume, é o hábito (ou costume), implantado por sucessivas
experiências anteriores (1980: §36).
Kant pretende solucionar o ceticismo humiano afirmando que o sujeito possui
as condições de possibilidade de toda experiência a priori em faculdades que lhe
são imanentes (CRP B 197)
43
. Portanto, para Kant o sujeito possui as leis que a
natureza deve obedecer: o conhecimento é possível porque os objetos se moldam
às formas (lógicas) a priori do sujeito e que, por causa disso, é chamada
transcendental (condição de possibilidade). Por outro lado, o conhecimento se limita
aos objetos dados à intuição sensível enquanto fenômenos, que perfazem a esfera
da experiência possível. Fora destes limites a realidade inacessível, a coisa-em-
si, que não pode ser conhecida, não obstante possa ser pensada desde que esse
pensamento não se contradiga.
44
Uma das contribuições mais originais de Peirce em sua crítica à lógica
kantiana - e que está no núcleo da resposta peirciana ao problema do conhecimento
- se refere à teoria das inferências. Peirce concorda com Kant que todo juízo resulta
de uma inferência, mas não que esta inferência se resuma à figura de Bárbara, que
43
Essa resposta envolve a definição de termos essenciais da teoria da cognição kantiana, como conceito,
intuição, esquema e unidade originária de apercepção, o que não tem interesse específico aos objetivos da
presente tese. Cf. “Hume e a Astúcia de Kant” (LEBRUN, 2001).
44
Na Analítica Transcendental Kant afirma que a significação dos conceitos é dada somente em sua relação
com os objetos da experiência por meio da intuição sensível, isto é, a forma dos fenômenos. As categorias do
entendimento têm, portanto, um uso puramente empírico. O que não é objeto da intuição sensível constitui o
noumena (CRP B 307) e não pode ser objeto de conhecimento - trata-se da realidade em-si e o sujeito
pode dar forma à realidade que se torna objeto fenomênico (para uma discussão do conceito da coisa-em-si
ver “A Aporética da Coisa Em Si”, LEBRUN, 2001). O pragmatismo peirciano, por outro lado, declara que o
significado de um conceito é dado por suas conseqüências práticas concebíveis e o incognoscível não é
matéria de experiência, por isso não tem sentido algum (CP 5.310 e CP 5.255, 1868). Peirce não esconde sua
antipatia pelo termo kantiano, se referindo à coisa-em-si como “invenção metafísica” (CP 5.312, 1868) e
“heresia nominalista” (CP 6.492, 1896) (para uma análise da crítica peirciana do incognoscível, cf. IBRI,
2003b).
40
tipifica apenas o raciocínio dedutivo. Em sua Lógica Crítica ou Formal, Peirce
classifica as inferências (ou, em sua terminologia, os argumentos) em três tipos:
abdução (ou retrodução), dedução e indução
45
. Essa divisão, considerada a “chave
da Lógica” (CP 2.98, 1902), além de constituir três tipos de raciocínios, compõe os
três estágios, respectivamente, do método de investigação científica (CP 6.469,
1908, e CP 7.672, 1903).
Inferências podem ser necessárias (dedução) ou prováveis (abdução e
indução) (CP 2.623 e 680, 1878, CP 2.774, 1902, e CP 5.145, 1903), mas todas
estão sujeitas à observação e à experiência, interna ou externa, e não existe, em
Peirce, fundamento a priori no sentido kantiano de verdade ou certeza
transcendentais. A experiência é imaginária quando é produto da observação de um
diagrama ou ícone
46
na mente (inferência necessária) e real quando produto de
dados sensíveis (inferência provável), portanto, sujeita a contingências (CP 3.516,
1896). Além disso, o raciocínio dedutivo pode ser provável, quando se refere a
probabilidades, o que limita o alcance da classificação sugerida.
A análise peirciana do argumento dedutivo com base na lógica dos relativos e
grafos existenciais também tornou problemática a divisão de proposições analíticas
e sintéticas (CP 4.52, 85 e 86, 1893; NEM: IV, 58, 1902 e CP 3.634 e 641, 1911).
Primeiro, e mais óbvio, é que a distinção kantiana se baseia na gica proposicional
da forma sujeito-predicado (analítico contém o predicado no sujeito e sintético
acrescenta o predicado ao sujeito), enquanto na lógica dos relativos são
empregadas valências de relações. Em segundo lugar, uma das descobertas mais
relevantes na lógica formal foi a distinção de dois modos de dedução necessária:
corolarial e teoremática:
45
Essa classificação foi mantida desde suas primeiras formulações, em 1867, em “On a New List of
Categories” (CP 1.545-567) e “On the Natural Classification of Arguments” (CP 2.461-516), conforme
PARKER: “Ao longo de sua carreira ele [Peirce] manteve a opinião de que todo argumento pertence a uma
destas três formas ou é um argumento misto que reúne mais de uma destas formas.” (1998: 169) [Throughout
his career he mantained the view that any argument belongs to one of these three forms, or is a mixed
argument incorporating more than one form]”; mas passou por modificações no decorrer do
desenvolvimento da lógica-matemática de Peirce.
46
Sobre o signo icônico, cf. Apontamentos para a Questão do Ícone: a dimensão do concreto”, in
SANTAELLA,1996.
41
Dedução corolarial é onde é necessário somente imaginar qualquer
caso em que as premissas são verdadeiras como condição para
perceber imediatamente que a conclusão é válida naquele caso.
Todos silogismos ordinários e algumas deduções na lógica dos
relativos pertencem a esta classe. Dedução teoremática é a dedução
na qual é necessário experimentar sobre a imagem das premissas na
imaginação, como condição para, partindo do resultado de tal
experimento, fazer deduções corolariais para a verdade da
conclusão. (NEM IV: 38, 1902).
47
Ou seja, o raciocínio não deduz meramente o que estava implícito na
premissa maior, mas faz uma experimentação mental com um diagrama, um ícone,
e a partir dele testa (não empiricamente) e seleciona hipóteses. Dedução, ao
contrário de Kant, “(...) é matéria de percepção e de experimentação, exatamente
como as inferências indutivas e hipotéticas o são (...)” (CP 6.595, 1893) [Deduction
is really matter of perception and of experimentation, just induction and hypothetic
inference are (...)], estando, por esta razão, também sujeita ao erro
48
. A diferença é
que a experimentação dedutiva é imaginária (ou icônica) enquanto nos outros dois
tipos de argumento ela é real. Por isso, a matemática em Peirce tem dois atributos
essenciais: é necessária em sua estrutura lógica e criativa em sua atividade
processual (NEM IV: 47 e 314, 1902)
49
.
Mas o cerne da teoria das inferências em Peirce é: qual a origem da premissa
maior da dedução? Segundo o autor, somente por meio da abdução são formuladas
hipóteses teóricas e originadas idéias (CP 2.96 e 2.777 1902, e CP 5.145, 1903) e,
assim, inicia-se o processo de investigação científica. O que é mais interessante
nesta tese de Peirce é que as premissas primitivas não advêm do pensamento
crítico, deliberado e autocontrolado, mas de uma faculdade de adivinhar as leis da
Natureza (mas não somente elas) denominada juízos perceptivos (CP 5.157 e 5.181,
1903).
47
Corollarial deduction is where it is only necessary to imagine any case in which the premisses are true in
order to perceive immediately that the conclusion holds in that case. All ordinary syllogisms and some
deductions in the logic of relatives belong to this class. Theorematic deduction is deduction in which it is
necessary to experiment in the imagination upon the image of the premises in order from the result of such
experiment to make corollarial deductions to the truth of the conclusion.”
48
Cf. cap. 5.
49
Em CAMPOS (2007) tem-se uma defesa da criação poética como elemento essencial na formulação de
hipóteses no raciocínio matemático em Peirce, confirmando a dupla acepção da matemática para o filósofo.
Segundo HINTIKKA (1983), este componente icônico que contradita a tradição da lógica matemática
(essencialmente dedutiva e simbólica) possibilitou a divisão corolarial-teoremática de Peirce.
42
Estes juízos, que se impõem a partir de dados sensoriais, fornecem apenas
hipóteses falíveis, pois os sentidos podem ser afetados por alucinações ou ilusões.
Para ser validado, o objeto imediato
50
do juízo perceptivo “a cadeira é verde” deve
corresponder ao objeto dinâmico do percepto a cadeira real. Por esta razão,
oposto às idéias inatas de Descartes e do juízo a priori em Kant, essas crenças
naturais admitidas pelo pragmatismo peirciano, apesar de indubitáveis, são vagas,
imprecisas e devem se submeter ao confronto com a experiência
51
. No entanto,
possuem alta freqüência de acertos, comprovada pelo sucesso na sobrevivência da
espécie. São por isso, segundo Peirce, “(...) a coisa mais maravilhosa de nossa
constituição.” (CP 5.173, 1903, e também CP 5.191, CP 1.630, 1898, e CP 7.220,
1901), e dependem de uma capacidade de adivinhação que, por uma ação
evolutiva, afinou a mente do homem com a mente da Natureza: “(...) a menos que o
homem tenha uma tendência natural de acordo com a da natureza, ele não tem
nenhuma chance de entender a natureza.” (CP 6.477, 1908; ver também CP 6.417 e
418, 1878) [(...) unless man have a natural bent in accordance with natures, he has
no chance of understanding nature at all].
E como a abdução pode ser, ao mesmo tempo, uma inferência lógica e uma
atividade pré-cognitiva? Para Peirce, os juízos perceptivos são “(...) um caso
extremo das inferências abdutivas, das quais diferem por estarem absolutamente
além da crítica.” (CP 5. 181, 1903) [as a extreme case of abductive inferences, from
which they differ in being absolutely beyond criticism]. Isto é, enquanto os primeiros
são indubitáveis (não se pode duvidar do instinto de sobrevivência, apenas acatá-lo),
as segundas são oriundas de um estado contemplativo, de insight, de onde provêm
hipóteses cuja veracidade deve ser posta em questão. Abdução tem sua forma como
raciocínio lógico, sujeito, portanto, à crítica, mas cujo funcionamento ou conteúdo
50
O objeto de um signo, na semiótica peirciana, divide-se em objeto dinâmico e objeto imediato. O objeto
dinâmico é o objeto real, exterior ao signo e que origem ao processo de semiose; objeto imediato, reúne
um conjunto de propriedades do objeto dinâmico que são representadas no interior do signo. Ou seja, o
primeiro objeto é dinâmico por sua condição de permanente mudança; ele é aquilo a que o signo se refere – o
início da semiose e será a verdade última a ser encontrada o final da semiose. O segundo, imediato, é o
objeto dinâmico interiorizado no signo, em algum aspecto. Cf. THIBAUD, 1991.
51
Crenças do senso-comum e juízo perceptivo possuem uma diferença de grau: enquanto os juízos perceptivos
predicam um sujeito a partir de um dado sensório (“esta cadeira é verde”), as crenças naturais fornecem
juízos morais (a proibição do incesto, por exemplo) e teorias gerais como a natureza do espaço-tempo
(HOOKWAY, 1992: 229-230).
43
empírico tem raiz no instinto
52
.
Todo conhecimento empírico está atrelado, por um lado, a faculdades pré-
críticas, ou nas palavras de Peirce, “(...) todo conhecimento humano, até os mais
altos vôos da ciência, é apenas o desenvolvimento de nossos instintos animais
inatos.” (CP 2.754, 1883) [(...) all human knowledge, up to the highest flights of
science, is but the development of our inborn animal instincts]; mas é necessário
observar o comportamento do objeto para verificar o poder de predição da teoria:
caso não haja coerência entre signo e objeto, as hipóteses devem ser descartadas
ou o método revisado.
Por esta razão, hipóteses levantadas pelo raciocínio abdutivo e selecionadas
pela lógica dedutiva, por meio de experimentação mental em um ícone, devem ser
submetidas ao teste empírico da indução. Dedução extrai conseqüências de
hipóteses e indução as aplica, visando dar consistência a um conhecimento positivo.
Pode-se agora, no rigor da lógica crítica, entender a reformulação do
problema de Kant. Em sua essência, a questão de Hume é nominalista: pressupõe
uma realidade constituída de particulares que não se sustenta no realismo peirciano
nem em sua semiótica. Mas o problema da indução é bem situado na questão da
validade dos juízos sintéticos em geral, afirma Peirce, que diz respeito a responder
como, a partir da observação de um caso particular, pode-se inferir uma regra geral.
Por exemplo, tiro um punhado de feijões de um saco que são pretos e infiro que
todos os feijões do saco são pretos, com base naquela amostra. O problema do
conhecimento objetivo obtido a partir da observação de particulares, ou aquilo que
diz respeito às condições da experiência em Kant, em Peirce se refere à validade
das inferência indutivas (CP 5.223 n.4, 1868, e CP 2.691, 1878; cf. também análise
de APEL,1995: 48-49).
Na busca desta resposta, encontra-se a primeira exposição de um dos
argumentos centrais da teoria do acaso objetivo de Peirce em “Grounds of Validity of
the Laws of Logic: Further Consequences of Four Incapacities” (CP 5.318-57, W2
52
Para uma análise mais detalhada ver IBRI (1994, cap. 4: “Juízo Perceptivo, Abdução e Potência Heurística
dos Diagramas”).
44
242-72 e EP 1, 56-82), de 1868, na seguinte passagem:
A resposta usual é a de que a natureza é regular por toda parte;
como as coisas foram, assim elas serão; como é uma parte da
natureza, assim é toda outra. Mas essa explicação não servirá. A
natureza não é regular. Nenhuma desordem seria menos ordenada
do que o arranjo existente. É verdadeiro que as leis e regularidades
especiais são inumeráveis; mas ninguém pensa nas irregularidades,
que são infinitamente mais freqüentes. Cada fato verdadeiro de
alguma coisa no universo está relacionado com cada fato verdadeiro
de cada outra [coisa]. Mas a imensa maioria dessas relações são
fortuitas e irregulares. Um homem na China compra uma vaca três
dias e cinco minutos depois que um groenlandês espirrou. Essa
circunstância abstrata está ligada com alguma regularidade
qualquer? E não são relações assim infinitamente mais freqüentes do
que aquelas que são regulares? (CP 5.342)
53
.
Às perguntas “como posso fazer um juízo universal a partir de um fato
particular?” ou “como posso prever um comportamento futuro a partir de um estado
de coisas no passado?”, ou ainda, “como posso conhecer aquilo de que não tive
experiência?”, Peirce não aceita, baseado em observações, a suposição de que os
fatos são regulares, que a Natureza é regida por leis deterministas. Essa é a solução
para a indução apresentada por J.S. Mill (“Lógica”, livro 3, cap. 3, seção 1), a quem
Peirce critica (CP 5.345, 1868; ver também CP 6.410, 1878; CP 2. 749, 1883; CP
1.92, 1896; CP 6.384, 1901; CP 6.99, 1903; CP 8.192, 1904; e CP 2.761, 1905).
Para Mill, o conhecimento depende de uma constituição particular do universo. Para
Peirce, basta que este seja um universo cognoscível, e nenhuma evidência prova
que seja absolutamente regular.
Em “The Order of Nature” (CP 6.395-427 e W3: 306-22), de 1878, a questão é
retomada e examinada de modo mais acurado por Peirce, no início de suas
investigações em cosmologia. Se o mundo é ordenado e qual a origem desta
ordenação é algo que pode ser explicado pela teologia, por força de um Ser
superior, ou pela lógica, a cabo de uma investigação científica
54
.
Em um mundo de puro acaso, sem regularidades, não haveria possibilidade
53
Trad. RODRIGUES (2005: 159).
54
“(...) é um problema fundamental na teoria do raciocínio.” [(…) is a fundamental problem in the theory of
reasoning.] (CP 6.397).
45
de predição, teoria ou conhecimento, pois os eventos seguiriam uma marcha
absolutamente aleatória, as pedras poderiam cair em um momento, flutuar em outro;
além disso, em um mundo assim, não haveria memória, ética ou responsabilidade,
mesmo estímulos para agir e pensar (CP 6.406; ver também CP 2.684, 1878; CP
1.175, 1897 e CP 5.431, 1905), não haveria muito menos sociedade. Seria um
universo de singulares (Hume).
Por outro lado, também não seria uma completa ordem, pois, mais uma vez,
as observações contradizem: “Quando olhamos para o céu à noite, prontamente
percebemos que as estrelas não são simplesmente salpicadas sobre a abóbada
celestial; mas tampouco parece haver qualquer sistema preciso em seu arranjo.” (CP
6.399, 1878) [When we look up at the heavens at night, we readily perceive that the
stars are not simply splashed onto the celestial vault; but there does not seem to be
any precise system in their arrangement either.].
Como deve ser esse fino equilíbrio no mundo? Em “Variety and Uniformity”
(CP 6.88-101), de 1903, uma gradação entre diferentes hipóteses sobre a
constituição do universo, representadas pelas letras do alfabeto, de A a E, crescendo
da menor arbitrariedade para a maior. De A a C, Peirce descreve três formas de
determinismo
55
(CP 6.90):
A) Todo fato se conforma à lei;
B) todo fato se conforma à lei, mas alguns fatos são acidentais e
C) a lei é exata, mas se restringe a uma certa classe de fenômenos.
A letra D, no esquema, representaria a posição assumida pelo autor, que
afirma a universalidade não ser exata e a variedade, crescente no universo; ou seja,
é inexata porque o é imutável, se encontra em evolução. É desta argumentação
que surge uma teoria do acaso, pois se as leis não são absolutas, porque estão em
evolução, as irregularidades devem ser frutos de um acaso real, conforme Peirce
55
O conceito de determinismo em Peirce é analisado no cap. 7 desta tese.
46
conclui no artigo em questão
56
.
Retornando ao tema deste capítulo, a validade do conhecimento indutivo não
pode justificar-se pela presunção metafísica de uma regularidade absoluta de fatos,
como em Mill. Parte da solução de Peirce é a substituição de uma filosofia
nominalista, que vê os gerais somente na linguagem e não no mundo, constituído de
particulares, por uma filosofia realista:
(...) a validade da indução depende simplesmente do fato de que as
partes formem e constituam o todo. Isto, por sua vez, depende
simplesmente de que haja um estado de coisas tal que qualquer
termos gerais sejam possíveis. Mas como pode ser demonstrado que
ser algo é ser em geral? E assim, esta parte da validade da indução
depende meramente de existir alguma realidade. (CP 5.349, 1869)
57
.
É sustentando a realidade das duas formas de generalidades, nas categorias
de Primeiridade e Terceiridade, que juízos sintéticos ou inferências indutivas podem,
parcialmente, serem legitimados na lógica e na metafísica. Em segundo lugar, por
conta de seu caráter sempre aproximado e provisório, em que somente pode-se ter
uma esperança de atingir uma verdade a longo prazo (CP 5.350, 1869), há um papel
importante reservado à investigação científica e à validação da indução em termos
de probabilidades, objetos de estudo do próximo capítulo.
56
Discutem-se as implicações metafísicas e cosmológicas sobre este assunto nas parte III e IV da presente tese.
57
“(…) the validity of induction depends simply upon the fact that the parts make up and constitute the whole.
This in its turn depends simply upon there being such a state of things that any general terms are possible.
But it has been shown in that being at all is being in general? And thus this part of the validity of induction
depends merely on there being any reality.
47
4. Teoria das Probabilidades e Lei dos Grandes Números
Though there be no such thing as Chance in the world; our ignorance of the
real cause of any event has the same influence on the understanding, and
begets a like species of belief or opinion (An Enquiry Concerning Human
Understanding, VI:46
58
).
D. HUME
Entre os séculos XVIII e XIX, a teoria dos sistemas dinâmicos, que descrevia
uma realidade regida por leis absolutamente deterministas, mostrou-se limitada para
teorizar processos mais complexos como a energia calorífera e o movimento de um
gás, por exemplo. O motivo era que estes fenômenos envolviam um comportamento
aleatório, o que levou ao desenvolvimento de teorias do cálculo de probabilidades.
Nos sistemas dinâmicos, dados os valores das propriedades iniciais como
posição e velocidade de um determinado sistema em um instante inicial, pode-se
determinar sua trajetória (em direção ao passado ou futuro, uma vez que a
reversibilidade temporal é característica da lei) com precisão. Em sistemas de
comportamento aleatório, por outro lado, é possível prever uma média estatística
da ocorrência de um evento. Neste caso, é empregado o cálculo de probabilidades.
Por exemplo, a probabilidade da ocorrência do número 6 em um lançamento de
dados é de 1/6 em um único lance. No caso de uma moeda a probabilidade é de
50%.
O ponto-chave, no entanto, não é a matemática em si (o cálculo de
probabilidades), mas, como será visto adiante, uma determinada interpretação da
teoria de probabilidades por Peirce como possibilidade de uma prova da inferência
indutiva e de um vetor lógico para sua cosmologia.
58
“Se bem não exista no mundo algo como o acaso, nossa ignorância da real causa de um evento tem mesmo
influência sobre o entendimento e engendra uma espécie semelhante de crença ou opinião”. Cf. trad. Leonel
Vallandro (HUME, 1980: 157).
48
Conforme visto nos capítulos anteriores, o problema da lógica geral em Peirce
é entender como, a partir da observação de fatos particulares, pode-se inferir uma
teoria geral que explique fatos possíveis. Probabilidade objetiva determinar a média
estatística da ocorrência de um evento no futuro por meio da observação da amostra
de um estado específico de fatos. Por isso, probabilidades para Peirce é “(...) a
ciência da lógica tratada quantitativamente [isto é, matematicamente]” (CP 2.647,
1878)
e visa obter uma validação rigorosa para a teoria do conhecimento. A
interpretação que o filósofo faz da teoria das probabilidades é analisada, no escopo
da tese, objetivando evidenciar o plano sistêmico de validação de sua teoria do
conhecimento, bem como suas teses cosmológicas amparadas por uma noção de
acaso matemático.
Carnap (1951: 24), seguindo os princípios propostos por Nagel, classificou as
diversas interpretações do termo probabilidade em três concepções, com seus
principais expoentes:
i. Clássica: em que probabilidade é definida como a proporção de um
número de casos favoráveis em relação ao número de todos os casos
possíveis (Jacob Berboulli e Laplace).
ii. Lógica ou analítica: em que probabilidade é definida como uma relação
lógica entre proposições (Keynes e Jeffreys).
iii. Empírica ou freqüentista: em que probabilidade é definida como uma
freqüência relativa (John Venn, Hans Reichenbach e Richard Von Mises).
Os três grupos, por sua vez, resumem dois sentidos distintos do conceito:
i. Probabilidade (1): grau de confirmação de uma hipótese h com relação
a uma evidência e (evidência lógica, não factual) por meio da análise de
proposições. Se a afirmação do conceito for verdadeira será L-verdadeira, ou
seja, logicamente (não factualmente) verdadeira.
ii. Probabilidade (2): freqüência relativa dada a longo prazo que se aplica
49
a propriedades de eventos baseada em procedimento empírico. Ambos os
sentidos, segundo Carnap (1951: 48) são objetivos, apesar do primeiro ser
tradicionalmente entendido como subjetivo por tratar da confirmação de uma
crença.
Peirce criticou a teoria clássica - probabilidade (1) - de Laplace e outros
matemáticos e adotou a concepção freqüentista - probabilidade (2) - elaborada por
Venn em 1866. Ao longo de sua carreira, Peirce faz correções em sua teoria das
probabilidades em harmonia com seu realismo e a lógica dos relativos, mantendo a
interpretação empírica.
Ele faz duas objeções à concepção clássica de probabilidade, que ele chama
conceitualista, em oposição à materialista ou empírica: a primeira diz respeito ao fato
da versão conceitualista se referir à probabilidade de um evento particular, enquanto
a materialista, à freqüência de eventos de uma espécie em relação ao gênero ao
qual pertence
59
(CP 2.674, 1878); a segunda crítica refere-se à interpretação
“subjetiva” de probabilidade como graus de crença por parte dos conceitualistas.
Para os materialistas, ao contrário, probabilidade expressa um fato determinado com
base em evidências empíricas (CP 2.677, 1878). Esta aceitação da probabilidade (2)
por parte de Peirce é coerente com o caráter realista de seu pensamento, em
especial seu pragmatismo. Isso fica expresso em dois conceitos centrais de sua
teoria: o conceito de would be (“seria”) e o conceito de in the long run (“a longo
prazo”), que constam da formulação madura de Peirce. Com respeito ao primeiro
conceito Peirce afirma:
Estou, portanto, definindo o significado da declaração de
probabilidade de modo que, se um dado for lançado de uma caixa de
dados, ele dará um número dividido por três, um terço. A declaração
quer dizer que o dado tem um certo “would-be”; e dizer que ele tem
um “would-be” é dizer que ele tem uma propriedade completamente
análoga a qualquer hábito que um homem possa ter. Apenas esse
59
Deste modo, tem-se dois termos ao invés de um: na teoria clássica é dada uma classe de eventos, por
exemplo, em um lance de dados prob= A/B onde A é o número de casos favoráveis (1) e B o número de todos
lances possíveis (6), então prob= 0.16; na freqüência relativa são dadas duas propriedades de eventos k, os
lances do dado e M, a propriedade de um lance específico; sendo que probM, com respeito a k, é 1/6, onde
em uma série suficientemente longa de n lances, a freqüência relativa de um certo lance será de 1/6
(CARNAP: 1951:27).
50
“would-be” do dado é presumivelmente muito mais simples e mais
definido que o hábito humano porque a composição homogênea e
forma cúbica do dado são mais simples que a natureza do sistema
nervoso e o espírito do homem; e assim como seria necessário para
definir um hábito do homem descrever como este o conduziria a
comportar-se e em que tipo de ocasião embora esta declaração de
modo algum implique que o hábito consiste em tal ação do mesmo
modo para definir o “would-be” do dado é necessário dizer como ele
conduziria o dado a comportar-se em uma ocasião em que o would-
be” seria levado às suas últimas conseqüências; e esta declaração
não implica em si mesma que o “would-be” do dado consiste em tal
comportamento. (CP 2.664, 1910).
60
Esta passagem é de extrema importância. Primeiro porque nela estão
implícitos o idealismo objetivo e a metafísica que Peirce, na data do texto, havia
consolidado, e que o permite afirmar que a Natureza possui hábitos, análogos ao
homem, ou seja, que a Natureza também é dotada de propósito, de “would be”. E,
mais importante no contexto da discussão, que esses hábitos ou “would be’s” do
mundo material podem ser descritos por parâmetros estatísticos por meio do cálculo
de probabilidades
61
. Finalmente, revela outro sentido dado à probabilidade chamado
teoria da propensão (propensity theory) que, segundo a formulação de Popper
(1959), trata-se de uma tendência ou disposição de objetos manifesta pela
freqüência relativa
62
.
A citação enfatiza que o “would be” nunca pode ser esgotado por particulares:
ele é da natureza de um geral, isto é, contínuo
63
. E conhecer o objeto é conhecer,
por meio de modelos probabilísticos, seu “would be”, prever seu comportamento
60
“I am, then, to define the meanings of the statement that the probability, that if a die be thrown from a dice
box it will turn up a number divisible by three, is one-third. The statement means that a die has a certain
“would-be”; and to say that a die has a “would-be” is to say that it has a property, quite analogous, to only
habit that man might have. Only the “would-be” of the die is presumably as much simpler and more definite
than the man’s habit as the die’s homogeneous composition and cubical shape is simples than nature of the
man’s nervous system and soul; and just as it would be necessary, in order to define a man’s habit, to describe
how it would lead him to behave and upon what sort of occasion albeit this statement would by no means
imply that the habit consists in that action - so to define the die’s “would-be”, it is necessary to say it would
lead the die to behave on an occasion that would bring out the full consequence of the “would-be”; and this
statement will not of itself imply that the “would-be” of the die consists in such behavior.”
61
Observe-se a coincidência com conclusões da teoria do caos determinista, desenvolvida por um grupo
interdisciplinar de cientistas nos anos 70, em que a análise de longas seqüências de eventos aleatórios,
aplicando-se técnicas estatísticas, revelou hábitos (chamados “atratores estranhos”) em sistemas complexos
(GLEICK, 1990; MOREIRA, 1992; PIRES e COSTA, 1992; RUELLE, 1993; LORENZ, 1996). A teoria do
caos desenvolveu técnicas empregadas no século XIX por contemporâneos de Peirce que, à época, não
dispunham de tecnologia (computadores) e instrumental matemático adequado para “quantificar o acaso”.
62
Ver também CP 8.225, 1910, e comentários de FETZER (1993).
63
Ver cap. 11.
51
futuro. Isto é teoria. Mas para isso é necessário observar tal comportamento a longo
prazo (“in the long run”) em uma seqüência infinita de experimentos. Conforme a
seguinte passagem:
Agora você pode me perguntar como você define probabilidade?”.
Eu defino com um exemplo concreto. Supondo que eu diga “eu tenho
um dado e, por ele ser um tanto mal feito, ao invés da probabilidade
dele dar seis para qualquer lance único ser 1/6 ou 0.162/3, como
deveria ser, a probabilidade deste evento é somente 0.16”. Agora
você me pergunta o que eu quero dizer com isso. Eu quero dizer que
(o resultado de qualquer lance único não tendo qualquer efeito ou
conseqüência para o resultado de qualquer outro lance) os lances
que dêem seis serão 0.16 de todos os lances “a longo prazo”. Se
você me perguntar o que eu quero dizer por “longo prazo” (...) eu
respondo que “eu quero dizer uma sucessão infinita de lances na
ordem que eles sejam lançados”. (NEM III: 173, 1911).
64
A freqüência relativa 0.16 é dada no limite de uma convergência a longo
prazo, isto é, numa uma sucessão infinita de ocorrências do evento. Logo,
probabilidade não se aplica a casos singulares, somente a experimentos repetidos
indefinidamente (CP 2.652, 1878 e CP 2.664, 1910). Em uma seqüência finita de
lances, a freqüência relativa é o número de ocorrências favoráveis dividido pelo
número de todos os lances. Mas, como o “would be” é um futuro possível, esse
quociente não pode ser determinado, ele pode ser infinito. Então, numa
seqüência infinita de lances, a freqüência relativa é o limite em que a proporção da
amostra irá se aproximar a longo prazo da população total. Este teorema que
descreve o comportamento probabilístico em um limite dado a longo prazo é
chamado Lei dos Grandes Números (LGN), que valida, parcialmente, a teoria da
indução peirciana.
Indução é classificada por Peirce em três tipos: indução rudimentar (crude
induction), qualitativa e quantitativa (CP 7.208-217, 1901, CP 2.756-760, 1905, CP
6.472, 1908 e NEM III: 183 e 184, 1911).
64
“Now you will ask me 'How do you define probability?' I will define it in a concrete example. Suppose I say
'I have a die and owing to its being somewhat ill made, instead of the probability of its turning up six at any
one throw being 1/6, or 0.162/3, as it should be, the probability of that event is only 0.16'. Now you ask what
I mean by that. I mean that (the result of any one throw not having any effect or consequence as to the result
of any other throw) the throws in which six is turned up will be 0.16 of all the throws 'in the long run'. If you
ask me what I mean by the 'long run', (…) I reply that 'I mean an endless succession of throws in the order in
which they are throw'.”
52
Indução rudimentar (rudimentar por ser o tipo mais fraco) é a inferência
baseada na experiência comum, como sugere o argumento de Hume: se o Sol
nasce todos os dias, então ele também nascerá amanhã. Ela é baseada em casos
experienciados e sua validade consiste na simples enumeração de casos
sucessivos, bastando que um fato excepcional ocorra (como o Sol não nascer um
dia), ao longo de uma série simples, para invalidar a hipótese.
As outras duas espécies de indução envolvem teorias de probabilidade.
Indução qualitativa procede do teste - não quantitativo ou mensurável - de uma
hipótese que demonstre que as mesmas qualidades de A são encontradas em B. É
quando o cientista faz a experiência mental de uma hipótese a partir de fatos
observados, testando sua força heurística no curso dos eventos.
A quantitativa, a que mais interessa a Peirce, é dada por uma freqüência
relativa por meio do exame de uma amostra aleatória em experimentos repetidos
sucessivamente. O princípio condutor (leading principle) que valida a inferência
estatística poderia, desta forma, ser calculado com base na LGN?
Princípio condutor é a regra que conecta, em uma inferência, a premissa à
sua conclusão, fornecendo validade. Se a conclusão e o princípio condutor forem
verdadeiros, a inferência também o será (CP 2.462-464, 1867). O princípio condutor
pode ser lógico ou formal, quando a verdade está implicada nas premissas
(dedução) ou factual ou material, quando a verdade não está implicada nas
premissas (abdução e indução) (CP 2.589, 1901). No primeiro tipo, ele conduz das
premissas às conclusões verdadeiras em todos os casos; no segundo, na maioria
dos casos.
Na abdução, a regra de validade é dada pela possibilidade de teste empírico
das hipóteses fornecidas pelos juízos do senso comum. Na dedução necessária, se
as premissas forem verdadeiras, a conclusão também o será necessariamente.
Segundo Peirce, a teoria das probabilidades fornece regras para a validade
de inferências dedutivas do tipo estatístico e inferências indutivas porque ambas são
53
raciocínios feitos com base em uma amostra aleatória, porém de modos diferentes.
Este é o ponto da discussão. Explicando, a dedução estatística tem a seguinte forma
silogística:
A proporção r de M’s são P’s;
S’, S’, S’’, etc. formam um conjunto tomado
aleatoriamente dentre os M’s;
Logo, provavelmente ou aproximadamente, a proporção r
dos S’s são P’s (CP 2.700, 1883).
E a indução, a seguinte forma:
S’, S’’, S’’’, etc. formam um conjunto numérico tomado
aleatoriamente dentre os M’s;
S’, S’’, S’’, etc. são encontrados – a proporção r deles – em
P’s;
Logo, provavelmente e aproximadamente, a mesma
proporção r de M’s são P’s (CP 2.702 e 720, 1883).
A LGN determina que, dada a população M, a sua amostra aleatória S terá
aproximadamente o mesmo valor r de P encontrado na amostra de M, ou a diferença
será um valor pequeno. Então, a LGN justifica a dedução estatística cujo cálculo
determina o valor de uma inferência que parte da população para a amostra (ou
geral para o particular). Justificaria a indução, cujo cálculo que determina o valor de
uma inferência que parte da amostra para a população? Na análise de Cheng
(1966), as fórmulas da dedução estatística e da indução expressam a mesma
54
relação de desigualdade e, portanto, têm o mesmo sentido (1966: 103)
65
:
Dedução estatística: p – e < r < p + e
Indução (quantitativa): r – e < p < r + e
Sendo p o valor da amostra da população, r o valor da amostra analisada e e
o valor pequeno da diferença de r para p. Portanto, o mesmo cálculo probabilístico
que valida a dedução estatística validaria a indução: trata-se formalmente do mesmo
tipo de inferência (CHENG, 1966: 104; cf. MISAK, 1991: 107 e SKAGESTAD, 1981:
168-176). Pinkham afirma que, no caso da fórmula da dedução estatística, os limites
p e r o constantes, isto é, de valores definidos, e permitem calcular o valor da
probabilidade de r em relação à p por meio da LGN. Na fórmula da indução, ao
contrário, os limites o variáveis, isto é, de valores indefinidos, não permitindo
determinar o valor da probabilidade na conclusão (PINKHAM, 1967: 101-103).
Peirce acentuou a diferença de justificativa matemática em CP 2.703 (1883):
Estas duas formas de inferência, dedução estatística e indução,
claramente dependem do mesmo princípio de igualdade de
proporções, assim sua validade é a mesma. Contudo, a natureza da
probabilidade nos dois casos é muito diferente.
E explica:
Na dedução estatística sabemos que entre o conjunto total de M’s a
proporção de P’s é {r}; dizemos, então, que os S’s sendo amostras
tiradas de M’s são provavelmente P’s em relação à mesma
proporção e embora isto não possa ocorrer assim, de qualquer
modo, prosseguindo a retirada [de amostras] suficientemente, nossa
predição da proporção será finalmente justificada. Por outro lado, em
indução dizemos que a proporção {r} da amostra de P’s
provavelmente tenha a mesma proporção do lote total ou, ao menos,
se isto não acontece assim, então prosseguindo a retirada [de
amostras] a inferência será, não justificada como no outro caso, mas
modificada de modo que se torne verdadeira. A dedução, então, é
provável neste sentido. Embora sua conclusão possa, num caso
65
Em “A Theory of Probable Inference” (CP 2.694-754), de 1883, Peirce justifica a indução como inferência
provável obtendo a indução da “inversão apagógica” da dedução estatística, que consiste em negar o
antecedente de uma inferência pela negação de seu conseqüente. Com isso, a indução é válida ao resultar da
“inversão apagógica” da dedução estatística. Cheng afirma que esse resultado não é necessário e o problema
de seu artigo consiste em como validar a indução pela LGN e assim não recorrer à “prova apagógica”. Cf.
PINKHAM (1967).
55
particular, ser falsificada, ainda assim conclusões similares (com a
mesma proporção {r}) comumente provariam ser aproximadamente
verdadeiras; enquanto que a indução é provável neste sentido,
embora nela possa ocorrer uma conclusão falsa. Porém, na maioria
dos casos em que o mesmo preceito de inferência foi seguido, uma
diferente e aproximadamente inferência verdadeira (com o mesmo
valor de {r}) seria tirada
66
.
A validação da indução depende da sucessão de testes amostrais que
aproximem gradualmente os valores de p e r, o que não é dado dedutivamente. A
dedução probabilística ou estatística difere da necessária por não ser universal
(conduzir à verdade em todos os casos), ou seja, por ser uma dedução que parte de
uma amostra (produz conclusões verdadeiras na maioria dos casos). a dedução
estatística difere da indução pelo fato da primeira ser formal ou necessária enquanto
a indução é sujeita a contingências dos testes empíricos. Portanto, a indução requer
em Peirce uma segunda legitimação, fornecida pelo conceito de autocorretividade.
O que o argumento de Peirce indica é que o valor da amostra (particular)
pode ser corrigido gradualmente para que se aproxime do limite da população
(geral). O que justifica esse percurso gradativo e correcional? Segundo Peirce, a
tese de que a indução possui uma propriedade autocorretiva (CP 2.729, 1883; CP
6.41, 1892; CP 5.576, 1898; RTL, 165, 1898; CP 5.145, 1903 e CP 2.769, 1905).
Assim, dado o conjunto S de amostras aleatórias da população M e dada uma
propriedade r da amostra S, pergunta-se qual a proporção r de S para M? Ela será,
aproximada e provisoriamente, a longo prazo, a mesma de M. Para isso, procede-se
por sucessões infinitas de testes amostrais e cálculos de freqüência relativa. Quanto
mais amostras e testes, mais robusta a teoria em relação às suas conclusões.
Peirce enfatiza que os resultados serão experimentais, isto é, relativo a evidências
66
“These two forms of inference, statistical deduction and induction, plainly depend upon the same principle of
equality of ratios, so that their validity is the same. Yet the nature of the probability in the two cases is very
different, in the statistical deduction, we know that among the whole body of Ms the proportion of Ps is {r};
we say, then, that the Ss being random drawings of Ms are probably Ps in the same proportion – and though
this may happen not to be so, yet at any rate, on continuing the drawing sufficiently, our prediction of the
ratio will be vindicated at last. On the other hand, in induction we say that the proportion {r} of the sample
being Ps, probably there is the same proportion in the whole lot; or at least, if this happens not to be so, then
on continuing the drawings the inference will be, not vindicated as in the other case, but modified so as to
become true. The deduction, then, is probable in this sense, that though its conclusion may in a particular
case be falsified, yet similar conclusions (with the same ratio {r}) would generally prove approximately true;
while the induction is probable in this sense, that though it may happen to give a false conclusion, yet in most
cases in which the same precept of inference was followed, a different and approximately true inference
(with the right value of {r}) would be drawn.”
56
empíricas, e provisórios, quer dizer, sujeitos a modificações à luz de experiências
futuras (CP 6.40, 1892). Por esta razão, a natureza autocorretiva da indução possui
um lastro no pragmatismo, no falibilismo e na teoria da verdade de Peirce
67
, que
fornecem subsídios para a sustentação da tese do autor.
A legitimação do conhecimento indutivo depende ainda, por um lado, do
homem adivinhar corretamente as leis da natureza e da aceitação de juízos pré-
críticos, e por outro, da afirmação de um termo geral pelas teorias do realismo e
continuidade (CP 5.349, 1868). Mas a principal conclusão de Peirce a respeito do
problema do conhecimento, que enfatiza-se nesta tese, é sua doutrina do
falibilismo, que corresponde a um reverso epistêmico do acaso ontológico.
67
Sobre a teoria da verdade em Peirce, cf. IBRI, 1999 e BACHA, 2003.
57
5. Falibilismo
In short, I never yet encountered the mere mathematician who could be
trusted out of equal roots, or one who did not clandestinely hold it as a point
of his faith that x2 + px was absolutely and unconditionally equal to q. Say to
one of these gentlemen, by way of experiment, if you please, that you
believe occasions may occur where x2 + px is not altogether equal to q, and,
having made him understand what you mean, get out of his reach as
speedily as convenient, for, beyond doubt, he will endeavor to knock you
down. (The Purloined Letter, POE, 1984: 693)
68
.
E.A.POE
Dado que todo conhecimento positivo procede de inferências prováveis, ou
seja, de proposições elaboradas a partir do exame de uma amostra aleatória tomada
de um todo, cujo valor é expresso em termos probabilísticos, fica evidente a Peirce a
impossibilidade de se obter um conhecimento completo e absoluto (contudo,
assintótico), mas somente provisório e parcial. Por isso, o falibilismo peirciano
69
afirma que, por meio do raciocínio, não se pode nunca obter certeza, exatidão e
universalidade absolutas (CP 1.141, c.1897), pois sempre se faz inferências a partir
de uma face do objeto, isto é, de uma amostra da realidade.
O falibilismo de Peirce é, em primeiro lugar, uma posição científica honesta
adotada pelo filósofo auto-intitulado “falibilista contrito”
70
(CP 1.14, c.1897)- e, em
68
“Em suma, nunca encontrei um simples matemático em que pudesse ter confiado, fora das raízes quadradas,
nem um que, clandestinamente, não mantivesse, como ponto de fé, que x2 + px era absoluta e
incondicionalmente igual a q. Diga a algum desses cavalheiros, para experimentar, se lhe aprouver, que
você acredita que possam ocorrer ocasiões em que x2 + px não seja igual a q, e, tendo feito com que ele
compreenda o que você quer dizer, coloque-se fora de seu alcance, com toda a rapidez conveniente, pois, sem
dúvida, ele tentará atirá-lo ao chão”. Trad. José Paulo Paes (POE, 1989: 32-33).
69
O texto básico de Peirce na formulação do falibilismo é Falibilism, Continuity, and Evolution” (CP
1.141-175, c.1897), que constitui a principal referência neste capítulo. Outras referências explícitas ou não
ao falibilismo aparecem ao longo da obra de Peirce em seu pensamento maduro.
70
A este respeito, HOUSER (2005) comenta: “Talvez isto seja basicamente um apelo à humildade intelectual e
o reconhecimento de que as sementes do conhecimento não podem mais se enraizarem em mentes que se
tornaram insensíveis e inóspitas a novas idéias.” [Perhaps this is mainly a call for intellectual humility and
the recognition that seeds of knowledge cannot any longer take root in minds that have become hardened and
inhospitable to new ideas.]. Isto é, o infalibilismo, para Peirce, é um empecilho à investigação científica (e
filosófica), porque pressupõe que não há mais nada para se inquirir sobre determinadas questões.
58
segundo lugar, uma das teses centrais de sua teoria do conhecimento, que possui
dois argumentos principais:
i. Argumento metafísico: expresso no silogismo “a experiência é
governada pelo postulado histórico das três formas de evolucionismo”
71
; “a
base de todo juízo verdadeiro é a experiência”; logo, não existem verdades
fixas e imutáveis, pois o referente está, ele próprio, em evolução”.
ii. Argumento epistemológico: declara que todo conhecimento é:
a) Falível: ou seja, que todo juízo é potencialmente errôneo ou não verdadeiro
devido (1) à metodologia: responsável por erros oriundos da observação,
medição, aferição e testes empíricos; (2) à natureza cognitiva do homem:
afeita a imprecisões inerentes à constituição semiótica e hipotético-indutiva do
pensamento e das limitações do aparelho sensório-perceptivo humano e (3) a
disfunções sensório-cognitivas: eventualmente provocadas por doenças
mentais, alucinações ou lesões cerebrais.
b) Provisório: porque todo juízo de A sobre B está sujeito a correções à luz de
experiências futuras, ou seja, que a investigação científica possui uma
propriedade autocorretiva em que crenças errôneas são corrigidas em um
espaço finito de tempo e a verdade é um ideal convergente em um espaço
infinito de tempo
72
.
A seguir, analisaremos as duas classes de argumentos do falibilismo,
começando pelo primeiro.
O argumento metafísico do falibilismo é tecido nas malhas da cosmologia de
Peirce, mais especificamente, do tiquismo, contexto da prova argumentativa do
71
Cf. cap. 11 desta tese.
72
Neste ponto, o falibilismo se relaciona diretamente com a teoria convergente da verdade de Peirce, em que
verdade corresponde a uma concordância entre proposição e limite ideal dado ao final do curso de uma
investigação, por meio de correções de crenças erradas feitas por uma comunidade de investigadores.
KOLENDA (1979), ALMEDER (1982) e MARGOLIS (1998) apontam uma contradição entre o sentido
convergente de verdade e o critério fornecido pelo falibilismo, que tornaria paradoxal o ideal regulativo de
verdade, uma vez que o falibilismo afirma que todo conhecimento está sujeito a correções futuras.
59
falibilismo nas idéias de continuidade e evolução, pontos fulcrais da metafísica
peirciana.
A noção de infalibilismo sugere que as coisas são fixas e, portanto, existem
leis e verdades imutáveis que podem ser descobertas pelo homem com absoluta
certeza e precisão. Este é o espírito do determinismo científico e do dogmatismo
filosófico, que obstam o caminho da investigação. Peirce afirma, com base na
observação, que a Natureza é plena de diversidade. E como se explica esta
diversidade?
Segundo o autor, se as leis sempre foram como o são no presente, então elas
não explicam a heterogeneidade verificada na Natureza, pois lei gera somente
repetição e redundância por um princípio de causalidade lógica. Deve haver,
portanto, uma espontaneidade anterior à formação das leis no universo e ainda
operativa. Não sendo, portanto, absolutas, leis estão em evolução e continuidade.
Conclui-se que verdades e certezas não podem ser absolutas. O mesmo
preceito da Natureza opera na semiose humana e todo conhecimento é provisório,
porque tudo está em constante evolução. Por este motivo, o falibilismo fornece uma
explicação mais plausível que o infalibilismo. Nas palavras de Peirce:
Uma vez que você aceite o princípio de continuidade, nenhuma
espécie de explicação das coisas irá satisfazê-lo exceto o de que
elas crescem. O infalibilista naturalmente pensa que tudo sempre foi
substancialmente como é hoje. Leis (...) sendo absolutas não poderia
crescer (...). Isso faz das leis da natureza absolutamente cegas e
inexplicáveis. Seu porquê e seu motivo não podem ser questionados.
Isso absolutamente bloqueia o caminho da investigação. O falibilista
não quer isto. Ele pergunta se essas forças da natureza não podem
ser de algum modo agradáveis à razão. Elas não têm crescido
naturalmente? De qualquer modo, não razão para pensar que
são absolutas. Se todas as coisas são contínuas, o universo deve
estar seguindo um crescimento contínuo da não-existência para a
existência (...) (CP 1.175).
73
73
“Once you have embraced the principle of continuity no kind of explanation of things will satisfy you except
that they grew. The infallibilist naturally thinks that everything always was substantially as it is now. Laws
(…) being absolute could not grow (...). This makes the laws of nature absolutely blind and inexplicable.
Their why and wherefore can’t be asked. This absolutely blocks the road of inquiry. The fallibilist won’t do
this. He asks may these forces of nature not be somehow amenable to reason? May they not have naturally
grown up? After all, there is no reason to think they are absolute. If all things are continuous, the universe
60
A passagem anterior conecta a epistemologia de Peirce -incluindo a
semiótica, teoria da cognição, lógica e teoria da investigação científica- à sua
metafísica pelo conceito de acaso. Conforme afirma Ibri (2000), o conhecimento está
sujeito não somente à falibilidade humana de nossas representações do Objeto, mas
também ao caráter aleatório da Natureza, atestado pelo princípio ontológico do
acaso:
Nosso conhecimento do mundo é, por esta razão, revestido de uma
incerteza composta por duas instâncias de erraticidade, quais sejam,
a da representação e a do objeto representado. Tal erraticidade não
irá, todavia, impedir o crescimento e o aperfeiçoamento de nosso
humano conhecer. (IBRI, 2000: 100).
O corolário do falibilismo é:
Em geral, pois, não podemos de nenhum modo atingir certeza nem
exatitude perfeitas. Não podemos estar absolutamente certos de
nada, nem podemos com alguma probabilidade determinar o valor
exato de qualquer medida ou proporção geral. (CP 1.147; ver
também RTL: 173, 1898)
74
.
É uma afirmação radical, cujas conseqüências repercutiram em diversos
autores posteriores que se denominaram, em maior ou menor grau, falibilistas
75
.
Com sua doutrina do falibilismo, Peirce se opõe à teoria das “idéias claras e
distintas” de Descartes, que recorre a Deus como justificativa para o conhecimento,
e apresenta uma alternativa tanto ao dogmatismo cartesiano que afirma existirem
certezas indubitáveis quanto ao ceticismo, que declara não ser possível obter um
conhecimento seguro e objetivo (cf. HAACK, 1979).
Pela primeira oposição, a crítica pode, e deve, ser estendida a toda forma de
apriorismo em Filosofia (CP 5.381-383, 1877 e CP 5.391-392, 1878), pois para
Peirce os únicos juízos informativos que antecedem a experiência são os do senso-
comum, que são pré-críticos (não obstante iniciarem o processo inferencial). Todos
must be undergoing a continuous growth from non-existence to existence (...)”
74
“... On the whole, then, we cannot in any way reach perfect certitude nor exactitude. We never can be
absolutely sure of anything, nor can we with any probability ascertain the exact value of any measure or
general ratio.”
75
Notadamente, Karl Popper em sua declarada influência (POPPER, 1975) e também Dewey, Lakatos, Quine,
Habermas e outros.
61
os demais estão sujeitos à contingência dos fatos.
Pela segunda, falibilismo não implica irracionalismo, ao contrário, Peirce não
quer dizer que um determinado valor de verdade de uma proposição não pode ser
alcançado de nenhum modo pelo método científico. O que ele afirma é que não
podemos ter certeza de que estamos de posse de uma verdade última sobre uma
determinada questão. Isto é, sei que A é verdadeiro, mas não posso ter certeza de
que sei que “sei que A é verdadeiro” é verdadeiro. Em outras palavras, é possível
que a ciência tenha atingido pleno conhecimento sobre determinadas questões,
como por exemplo, uma suposta incompatibilidade real e insuperável entre as
descrições da realidade física dadas pela mecânica quântica e pela teoria da
relatividade, mas não é possível, assumindo-se a posição falibilista, ter certeza de
que tal saber foi atingido (CP 4.63, 1893; cf. BENNETT, 1982).
Posto que não pode haver de modo algum um saber conclusivo a partir de
inferências prováveis, haveria infalibilidade em se tratando de proposições
matemáticas do tipo 2 + 2= 4? Para Susan Haack, sobre este ponto Peirce é
ambíguo: ora admitindo uma restrição do falibilismo em relação à matemática pura,
ora afirmando a possibilidade de juízos matemáticos serem falsos. A razão da
relutância do filósofo, segundo a autora, é a incompatibilidade, para Peirce, entre
falibilismo e necessidade, que para Haack pode ser formalmente suplantada
(HAACK, 1979).
Hookway, por outro lado, afirma que a matemática, por ocupar o lugar de
ciência primária na classificação peirciana
76
, possui um status epistemológico distinto
das demais ciências, isto é, ela não se submete aos ditames críticos da Filosofia,
sendo por essa razão “praticamente infalível” (HOOKWAY, 1992:203). Adota-se a
seguir essa interpretação de Hookway, com explicações a respeito do predicado
“praticamente infalível” aplicado à matemática.
Peirce define o conceito de matemática em dois sentidos complementares: i)
ciência que tira conclusões necessárias (CP 4.229, 1902); e ii) ciência do que é
76
Para uma discussão a respeito deste tópico, ver cap. 9 de RODRIGUES, 2005, “Matemática como ciência
mais geral: forma da experiência e categorias”.
62
verdadeiro a respeito de um estado de coisas hipotético (CP 4.233, 1902). Em suma,
a matemática faz inferências dedutivas sobre mundos possíveis, não sobre fatos
empíricos (apesar de ter aplicabilidade prática na Física, por exemplo). Com isso
Peirce quer dizer que a matemática é essencialmente icônica, que ela constrói seu
próprio objeto no pensamento
77
. Logo, não possui um valor de verdade aplicável a
um referente e, por este motivo, conforme afirma Hookway, possui outro status
epistemológico. Peirce é claro a esse respeito:
Em favor da matemática pura devemos, de fato, fazer uma exceção.
É verdade que não podemos atingir certeza com exatidão
matemática. Mas também os teoremas da matemática pura (...) são
sem dúvida exata e certamente verdadeiros para todos os propósitos
exceto para a teoria lógica. Matemática pura, de qualquer modo, não
é uma ciência de coisas existentes. É uma mera ciência de
hipóteses. Ela é consistente consigo mesma; e se não existe nada
mais que ela professe para se conformar, é perfeitamente realizada
sua promessa e seu propósito. (RTL, 284, 1898).
78
Pode-se concluir que uma certeza lógica (no sentido de necessidade)
inerente ao argumento dedutivo 2 + 2= 4 que, no entanto, não se conforma a uma
certeza epistemológica: o que o falibilismo afirma é a impossibilidade de uma
axiomática em se tratando de questões de fato (CP 1.149), mas a matemática é a
priori e não afirma nada de verdadeiro a não ser a respeito de coisas hipotéticas.
No entanto, é praticamente não totalmente infalível. Peirce também é
claro neste ponto: “Teoricamente, admito, não possibilidade de erro em raciocínio
necessário (...) Na prática e de fato, a matemática não está isenta da obrigação ao
erro que afeta tudo que o homem faz.” (RTL: 167, 1898) [Theoretically, I grant you,
there is no possibility of error in necessary reasoning (...) In practice and in fact,
77
Ícone é um signo que expressa determinadas qualidades de um objeto, quer esse objeto exista ou não. A
matemática, ao construir seu objeto no pensamento, emprega diagramas uma equação algébrica ou
representação geométricaque são ícones (CP 3.362-363, 1885; CP 7.467, 1893; CP 7.635, 1903; CP 4.447,
c. 1903; NEM IV: 316. c. 1906). Dessa forma, a matemática tece relações puramente hipotéticas, sem
qualquer compromisso com objetos reais. Peirce afirma que todo raciocínio matemático é diagramático
(NEM IV: 47-48, 1902; CP 5.148, 1903; NEM IV: 314, c. 1906), o que equivale dizer, com HOOKWAY, que
“De acordo com Peirce, teorias matemáticas são ícones.” (1985: 187).
78
“In favor of pure mathematics we must, indeed, make an exception. It is true that even that does not reach
certainty with mathematical exactitude. But then the theorems of pure mathematics (…) are without doubt
exactly and certainly true, for all purposes except that of logical theory. Pure mathematics, however, is no
science of existing things. It is mere science of hypotheses. It is consistent with itself; and if there is nothing
else to which it professes to conform, it perfectly fulfills its promise and purpose.”
63
mathematics is not exempt from that liability to error that affects everything that man
does.].
Como isso ocorre? A dedução teoremática requer uma experimentação
abstrata sobre a observação de um diagrama e, portanto, admite a possibilidade de
uma falibilidade de natureza cognitiva ou metodológica. Não que isso implique erros
no caso 2 + 2= 4 (apesar de Peirce considerar que, rigorosamente, esta proposição
não é isenta de erros) mas, em se tratando de sentenças matemáticas mais
elaboradas, poder-se-ia deduzir conclusões ilegítimas das premissas
79
. Neste caso,
poder-se-ia falar em falibilismo, contudo observando-se a singular condição
epistemológica da matemática de não haver um referente ao qual se possa declarar
“A é falso em relação a B”. Assim, conclui Peirce que “Investigação dedutiva, então,
tem seus erros; e também os corrige.” (Ibidem) [Deductive inquiry, then, has its
errors: and it corrects them, too.].
Verifica-se, a seguir, as bases lógicas não-dedutivistas desta filosofia
indeterminista na tese peirciana da semiótica da vagueza.
79
Ou, em termos semióticos, nas palavras de Hookway, “A atividade matemática poderia induzir ao erro se
nosso diagrama não for uma réplica representativa de seu mbolo ou se o símbolo não for um caso
representativo da forma da relação que ele denota.” (1992: 206) [Mathematical activity could lead to error if
our diagram was either not a representative replica of its symbol, or if that symbol was not a representative
instance of the form of relation which it denotes.].
64
6. Lógica da vagueza
une élévation ordinaire verse l'absence
(...)
inférieur clapotis quelconque comme pour disperser l'acte vide
abruptement qui sinon
par son mensonge
eût fondé
la perdition
dans ces parages
du vague
en quoi toute réalité se dissout
MALLARMÉ (“Un Coup De Dés”)
80
.
A compreensão da lógica como semiótica provoca mudanças fundamentais
na tradição semântica na qual Peirce se insere. Entre elas destacam-se a análise
semiótica da proposição e o projeto de uma lógica da vagueza. Ambos estudos
estão relacionados e adquirem relevância na presente tese por serem base para
uma indeterminação lógica com conseqüências epistemológicas e ontológicas na
obra de Peirce. A seguir veremos os principais pontos destes dois temas.
Uma das conseqüências do pragmatismo peirciano é que o símbolo possui
significado em seu uso empírico, seja numa proposição ou numa asserção (CP 4.56,
1893; CP 2.341, 1895, e CP 4.583, 1906). Isso quer dizer que o signo adquire
propósito em um contexto social e dialógico de comunicação, sob o crivo da
experiência. Para entender esta afirmação, é preciso ver a distinção que Peirce faz
entre proposição, asserção e juízo (cf. HILPINEN, 1992) e como ocorrem os
processos de referência e da significação na estrutura proposicional.
De acordo com a semiótica peirciana, por proposição entende-se um
dicissigno, isto é, um símbolo informativo conectado a um objeto ou classes de
80
“uma elevação ordinária verte a ausência (...) inferior marulho qualquer como para dispersar o ato vazio/
abruptamente que senão/ por sua mentira/ teria fundado/ a perdição (...) nessas paragens/ do vago/ onde toda
realidade se dissolve.”.Trad. Haroldo de Campos (CAMPOS et al., 1991: 171).
65
objetos (CP 2.95 e 320, 1902; CP 2.262, 1903, e CP 8.337, 1904) - podendo o objeto
ser um existente, no caso de proposições factuais, ou meramente possível, no caso
de proposições matemáticas - que tem por função compelir o interpretante a um fato
determinado. Para isso, deve conter um ícone como predicado (“____ é mortal”), e
um índice ou um conjunto de índices como seu sujeito (”Todo homem”) (CP 2.312 e
316, 1902), que somente se completam na unidade simbólica da proposição. Por
exemplo, na sentença “Choveu hoje”, “choveu” é um ícone que evoca a imagem de
todos dias chuvosos experienciados, enquanto “hoje”, é um índice que denota o dia
chuvoso específico.
O ato de aceitar mental e deliberadamente uma proposição como umbito,
torna a proposição um juízo (CP 2.309, 1902). Quando este ato é externado para um
ouvinte ou intérprete, a proposição passa a ser uma asserção. Segundo Thibaud
(THIBAUD, 1997: 273), o dizer da proposição se torna um ato na asserção, ou seja,
a asserção envolve um elemento volitivo ético e social - que não estava presente
na proposição. Conforme explicitado na seguinte passagem de Peirce:
Uma proposição pode ser dita sem ser asseverada. Eu posso
declará-la a mim mesmo e me preocupar com que eu possa admiti-la
ou rejeitá-la, não ficando satisfeito com a idéia de fazer uma coisa ou
outra. Nesse caso, eu duvido da proposição. Eu posso declarar a
proposição para você e me esforçar para estimulá-lo a me
aconselhar a aceitá-la ou rejeitá-la: no que eu a coloco
interrogativamente. Eu posso declará-la a mim mesmo e ficar
deliberadamente satisfeito para fundamentar minha ação quando
quer que uma ocasião possa surgir: em qualquer caso eu a julgo. Eu
posso declará-la para você: e assumir a responsabilidade por ela: em
tal caso eu a assevero. Eu posso impor a responsabilidade dela
consentir com a verdade a você: em tal caso eu a ordeno. Todos
estes são diferentes modos pelos quais a mesma proposição pode
ser enunciada. (NEM IV: 39, 1902).
81
Asserção consiste no ato de um elocutor fornecer a um ouvinte, por meio de
uma proposição, uma evidência da qual ele terá responsabilidade por sua validade
81
“A proposition may be stated without being asserted. I may state it to myself and worry as to whether I shall
embrace it or reject it, being dissatisfied with the idea of doing either. In that case, I doubt the proposition. I
may state the proposition to you and endeavor to stimulate you to advise me whether to accept or reject it: in
which I put it interrogatively. I may state it to myself; and be deliberately satisfied to base my action on it
whenever occasion may arise: in which case I judge it. I may state to you: and assume a responsibility for it:
in which case I assert it. I may impose the responsibility of its agreeing with the truth upon you: in which
case I command it. All of these are different moods in which that same proposition may be stated.”
66
(CP 2.335, 1895; CP 3.433, 1896; CP 2.315, 1902 e NEM IV: 249, 1904). Esta
evidência é uma crença que o elocutor determina na mente do intérprete; por crença
entende-se uma regra de conduta que será levado adiante caso a proposição seja
verdadeira (CP 3.160, 1880 e CP 4.53, 1893). aqui um componente ético
indissociável da lógica peirciana, na medida em que o elocutor assume a
responsabilidade por sua ação e sofre as penalidades no caso da proposição ser
falsa (CP 5.543 e 546, 1905).
A comunicação pressupõe, portanto, que ambos os pólos elocutor e ouvinte
compartilhem da mesma experiência. Por isso uma asserção, em sua função
referencial, deve dispor de ícones que expressem aspectos qualitativos do objeto,
provocando uma imagem mental no intérprete (CP 2.278, 1895) e índices, que
apontem para este objeto. Tal é a importância dos signos indiciais na proposição: “É
impossível expressar aquilo a que uma asserção refere exceto por meio de um
índice.” (CP 2.287 n1, 1902; ver também CP 2.295 e 4.56, 1893) [It is impossible to
express what an assertion refers to except by means of an index.].
Índices podem ser pronomes demonstrativos e relativos que chamam a
atenção, apontam o objeto e dizem “aqui!” (CP 3.361, 1885 e CP 2.283, 1902), mas
também, num sentido mais amplo, signos extra-lingüísticos como gestos,
entonações ou o “ambiente comum dos interlocutores” (CP 2.318, 1902) [common
environment of the interlocutors]. Sua função é identificar o universo - real ou fictício
- do discurso, apontar os objetos dos quais se fala, individualizar ou particularizar o
geral (THIBAUD, 1997: 278 n27).
Este expediente, no entanto, não elimina a imprecisão própria da semiose.
Nada é absolutamente determinado ou indeterminado, há um misto de caos e ordem
intrínseca às coisas e ao pensamento, onde “Nenhuma cognição e nenhum signo é
absolutamente preciso, nem mesmo um percepto (...)” (CP 4.543, 1906) [No
cognition and no Sign is absolutely precise, not even a Percept (…)]. Mesmo um
índice pode ser indefinido, não denotando o objeto, apenas fornecendo ao intérprete
meios para que ele ou ambos obtenham o índice de um individual. A este signo de
67
caráter provisório Peirce denomina precepto (CP 2.330, 1902)
82
. Signos sem
preceptos são destituídos de significados, pois não possuem qualquer âncora na
experiência. Por esse motivo, segundo Hilpinen (HILPINEN, 2004), os preceptos
desempenham papel vital na teoria do significado, do conhecimento, do
pragmatismo e da investigação científica (cf. HILPINEN,1983).
O sujeito lógico da proposição pode ser um índice determinado e, neste caso,
ele é um objeto singular um nome próprio, “Sócrates é mortal”, por exemplo isto
é, um signo individual e definido; ou um índice indeterminado, e neste caso ele é um
precepto e possui dois modos de indeterminação: vagueza (ou indefinição) e
generalidade, que são termos respectivamente não definidos e não individuais.
Para Peirce, vagueza e generalidade são “de um ponto de vista formal, vistas
como pares.” (CP 5.506, 1905, Cf. CP 5.505, 1902) [(...) from a formal point of view,
seen to be on a pair]. A diferença é que na vagueza o princípio de contradição não
se aplica, do contrário tenho um termo definido S em que “S é P” e “S é não-P”, não
podendo ambos serem verdadeiros (por exemplo, “Alguns paulistas gostam de café
expresso” e “Alguns paulistas não gostam de café expresso” são ambas proposições
verdadeiras e, portanto, vagas); enquanto que, na generalidade, o princípio do
terceiro excluído não se aplica, do contrário tenho um termo individual S em que “S é
P” ou “S éo-P” é verdadeiro (por exemplo, “Todos os paulistas são paulistanos” e
“Todos os paulistas são não paulistanos” são ambas proposições falsas e, portanto,
gerais) (CP 5.448 e 505, 1902; cf. LANE, 1999).
Numa proposição, a vagueza pode ser indicada pelo quantificador existencial
(ou particular) que expressa uma possibilidade assertiva (“S pode ser P”, por
exemplo) e a generalidade, pelo quantificador universal que expressa uma
necessidade assertiva (“S deve ser P”, por exemplo)
83
. No primeiro caso, o elocutor
82
Não confundir com o termo percepto. Percepto, na teoria da percepção peirciana, designa elementos da
realidade percebidos como objeto dinâmico, isto é, tudo aquilo que é percebido e constitui matéria para uma
cognição ulterior (CP 7.619-622, 1903; cf. SANTAELLA, 1998). o precepto é um índice indeterminado
que prescreve regras de conduta que possibilitem o conhecimento perceptual do objeto.
83
Quantificadores universais são termos como “qualquer”, “cada”, “todos”, “nenhum”, “nem um”, “qualquer
que”, “quem quer que”, “cada qual”, “qualquer um” e “ninguém”. Quantificadores existenciais são termos
como “algum”, “algo”, “alguém”, “uma”, “uma certa”, “este ou aquele”, “o adequado” e “um” (CP 2.289,
1893).
68
assume a tarefa de selecionar o objeto ao qual se dirige e no segundo, ele transfere
para o ouvinte a tarefa de escolher o índice da asserção. No exemplo dado por
Peirce:
Um signo é objetivamente geral de modo que, deixando sua
interpretação eficaz indeterminada, ele entrega para o intérprete o
privilégio de completar sua determinação por si próprio. “Homem é
moral”. “Que homem?”. “Qualquer homem que você queira”. Um
signo é objetivamente vago de modo que, deixando sua interpretação
mais ou menos indeterminada, ele reserva para algum outro possível
signo ou experiência a função de completar a determinação. “Este
mês”, diz o almanaque-oráculo, “um grande evento vai acontecer”.
“Que evento?”. “Oh, nós o veremos”. O almanaque não nos fala
dele.” (CP 5.505, ver também, CP 5.447).
84
Ou seja, em sua generalidade objetiva, o elocutor transfere ao intérprete a
tarefa de individualizar o objeto dentro da classe de juízos universais ao qual é
atribuído o predicado; em sua vagueza objetiva, deixa a definição do objeto a ser
feita por outra proposição, resguardando para ele a predicação do sujeito. Dessa
forma, não é possível ao signo ser vago e geral ao mesmo tempo porque enquanto
vago, ele se confina ao elocutor e geral, ao intérprete (CP 5.506, 1902).
Na tentativa de tornar precisa a asserção, o elocutor emprega índices mais ou
menos definidos e transfere ao intérprete a tarefa de completar a determinação.
Neste, o vago se torna geral, assumindo uma nova forma de indeterminação.
Portanto, a imprecisão é inerente ao símbolo e fica patente em qualquer contexto
comunicacional, a despeito dos esforços dos envolvidos determinarem a prática
assertiva
85
.
Segundo Peirce, a vagueza não pode ser eliminada, pois: “Nenhuma
comunicação de uma pessoa para outra pode ser totalmente definida, isto é, não
vaga.” (CP 5.506, 1905) [No communication of one person to another can be entirely
definite, i.e., non-vague] devidoo somente a imperfeições da linguagem ordinária,
84
“A sign is objectively general, in so far as, leaving its effective interpretation indeterminate, it surrenders to
the interpreter the right of completing the determination for himself. 'Man is mortal.' 'What man?' 'Any man
you like.' A sign is objectively vague, in so far as, leaving its interpretation more or less indeterminate, it
reserves for some other possible sign or experience the function of completing the determination. 'This
month,' says the almanac-oracle, 'a great event is to happen.' 'What event?' 'Oh, we shall see. The almanac
doesn’t tell that.'”
85
Com referência a este tópico, cf. BROCK (1983), HILPINEN (1983) e SILVEIRA (2001).
69
mas, e esta é a originalidade de Peirce, às condições pragmáticas do discurso, ao
status dialógico e semiótico do pensamento, e ainda “(....) onde quer que um grau ou
qualquer outra possibilidade de variação contínua subsista, a precisão absoluta é
impossível.” (Ibidem) [wherever degree or any other possibility of continuous
variation subsists, absolute precision is impossible], o que se sustenta pela vagueza
em nível de predicado (ou significação).
Peirce foi um dos pioneiros do estudo de uma lógica da vagueza que,
segundo ele, foi sistematicamente negligenciada pelos lógicos de sua época (CP
5.505 e CP 5.446, 1905) e, diferentemente dos posteriores, tratou o conceito de
vagueza não em seu viés meramente epistemológico, lingüístico ou semântico, mas
como um princípio ou atributo real e irredutível da realidade
86
. Em Peirce, vago ou
indefinido assume duas funções lógicas:
i. referência (nível do sujeito) que denota objetos ou classes de objetos
predicáveis e
ii. sentido (nível do predicado) que conota propriedades que podem ser
predicadas a certos indivíduos
87
.
São funções inversamente proporcionais em que, aumentando a extensão,
diminui-se a compreensão e vice-versa: por exemplo, a palavra “homem” representa
todo gênero humano, mas se adiciono o predicado “negro”, aumento o conteúdo
semântico e restrinjo a esfera referencial para uma parcela de homens não-brancos
(W1: 460, 1866). Por este motivo nenhuma informação pode ser absolutamente
completa ou determinada e prevalecem sempre níveis de indeterminação, seja no
pólo do objeto (sujeito) ou interpretante (predicado).
O significado de uma proposição, ocorrendo em um processo semiótico que
86
Para uma análise comparativa entre o projeto peirciano e o posterior desenvolvimento de lógicas do vago
consultar NADIN (1983) e TIERCELIN (2005).
87
Peirce emprega os termos largura (breadth) ou extensão (i) e profundidade (depth) ou compreensão (ii) em
sentidos diversos de Sir William Hamilton para tratar de um estado de informação potencial dos símbolos,
consistindo para o autor termos lógicos relevantes, conforme vemos em “Lowell Lecture VII” (W1: 454-471,
1866), “Upon Logical Comprehension and Extension” (W2: 70-86, 1867), “On Logical Breadth and Depth”
(W3: 98-102) e também em CP 2.407-417 (1867), W1: 272-289 (1866) e 340-343 (1865).
70
pressupõe uma cadeia infinita de interpretantes, nunca pode ser completamente
determinado. A comunicação, sendo substancialmente da ordem da generalidade,
preserva um certo grau de imprecisão informacional que adquire fins positivos para o
processo de conhecimento, conforme afirma Tiercelin:
(...) o indeterminado não pode ser considerado (...) como um
obstáculo à comunicação, à verdade. Ao contrário, ele é um
elemento essencial (...) Como conseqüência, definir, especificar, não
quer dizer necessariamente precisar, em suma, suprimir toda forma
de indeterminação: é exatamente o inverso (...) Se um termo é
completamente preciso, completamente especificado, ele não
permite mais formular questões interessantes, em suma, fazer
progredir a informação. (TIERCELIN: 1993: 323).
88
Na vagueza do predicado, essa imprecisão ocorre objetivamente tanto pela
formação de nossas crenças ou hábitos quanto pela propriedade contínua da
realidade (THIBAUD, 1997 e TIERCELIN, 1992, 1993 e 2005), conforme a definição
de vago dada por Peirce no Dicionário Baldwin, de 1902:
Indeterminado em intenção. Uma proposição é vaga quando existem
estados de coisas possíveis relativos aos quais ela é intrinsecamente
incerta se, tendo eles sido examinados por um elocutor, ele os teria
considerado como excluídos ou permitidos pela proposição. Por
intrinsecamente incerto não queremos dizer incerto por causa de
alguma ignorância do intérprete, mas porque os hábitos de
linguagem do elocutor eram indeterminados; assim, se naquele dia
ele consideraria proposição como excluída, em outro aceitaria
aqueles estados de coisas. Contudo, isto deve ser compreendido
como tendo referência ao que pode ser deduzido de um
conhecimento perfeito deste estado da mente; pois é precisamente
porque estas questões jamais foram, ou raramente foram
apresentadas, que este hábito permanece indeterminado. (vol. 2,
p.966; apud TIERCELIN, 1992: 81; ver também CP 4.344, 1905).
89
88
“(…) l’indéterminé ne doit pas être considéré (...) comme um obstacle à la communication, à la connaissance,
à la vérité. Au contraire, c’en est un élément essentiel (...) Em conséquence, définir, spécifier, ce n’est pas
nécessairement préciser, bref supprimer tout forme d’indétermination: c’est même exactament l’inverse (...)
Si um terme est complètement précis, complètement spécifié, il ne permet plus de poser des questions
interessantes, bref de faire progresser l’information.”
89
“Indeterminate in intention. A proposition is vague when there are possible states of things concerning which
it is intrinsically uncertain whether, had they been contemplated by the speaker, he would have regarded them
as excluded or allowed by the proposition. By intrinsically uncertain, we mean not uncertain in consequence
of any ignorance of the interpreter, but because the speakers habits of language were indeterminate; so that
one day he would regard the proposition as excluding, another admitting those states of things. Yet this must
be understood to have reference to what might be deduced from a perfect knowledge of this state of mind; for
it is precisely because these questions never did, or did not frequently present themselves, that this habit
remained indeterminate.”
71
Esta passagem pode ser explicada, em um primeiro ponto, pelos hábitos de
linguagem do elocutor. Qual seria o elemento de indeterminação destes hábitos? A
partir de 1900, Peirce elabora sua doutrina do senso comum crítico, onde afirma que
existem proposições e inferências indubitáveis, da natureza do instinto natural ou
animal (CP 5.439-452 e CP 5.497-499 e 523-525, 1905). Indubitáveis porque não
são passíveis de crítica, isto é, não são condutas deliberadas e inspecionadas pelo
autocontrole, ao contrário, são instintivas, adquiridas no curso da evolução da
espécie. Por exemplo, proposições como “Fogo queima” (CP 5.498, 1905) não
podem ser passíveis de dúvidas em situações que ameacem a sobrevivência. O fato
de serem indubitáveis, no entanto, não significa que as crenças do senso comum
não sejam falíveis. Segundo Peirce, sua principal característica é a de serem vagas
(CP 5.446 e 5.505, 1905) em “fogo queima” não indicação de qual tipo de fogo,
como, por que e quem queima, somente que queima.
ainda um sentido mais específico em relação à vagueza predicativa que
pode verificado nos seguintes exemplos: vejo uma mulher com cabelos em tons
castanhos-avermelhados. Posso afirmar que ela é ruiva? Ou vejo um homem com
poucos cabelos acima da testa. Posso afirmar que é calvo? A questão é como
determinar os limites de uma precisão nestes casos
90
.
Em segundo lugar, em nível predicativo, há uma predominância da
indeterminação atribuída à generalidade e à necessidade e, por esta razão, a lógica
da vagueza se incorpora às doutrinas metafísicas de Peirce: o realismo, o
sinequismo e tiquismo. Isso significa que o vago assume proporções ontológicas na
medida em que pode-ser afirmar que representações da realidade não são precisas
90
Peirce discute o problema na passagem CP 5.448, n.1: “Suponha que a conversa de nossa dupla de ingleses
tenha recaído sobre a cor de cabelo de Charles II. Agora, que as cores são vistas de modo muito diferente por
diferentes retinas é fato conhecido. Que o senso cromático é muito mais variado do que positivamente se sabe
ser é muito provável. É muito pouco provável que um ou outro dos viajantes seja treinado em observar cores
ou que domine sua nomenclatura. Mas se algum deles diz que Charles II tinha cabelo castanho avermelhado
escuro, o outro irá entendê-lo de modo suficientemente preciso para todos os propósitos deles possíveis, e
isto será uma predição determinada.” [Suppose the chat of our pair of Englishmen had fallen upon the color
of Charles II’s hair. Now that colors are seen quite differently by different retinas is known. That the
chromatic sense is much more varied than it is positively known to be is quite likely. It is very unlikely that
either of the travelers is trained to observe colors or is a master of their nomenclature. But if one says that
Charles II had dark auburn hair, the other will understand him quite precisely enough for all their possible
purposes; and it will be a determinate predication].
72
(no sentido de serem totalmente definidas e particularizadas), porque a realidade é
em si mesma contínua, sujeita a mudanças, variações e imperfeições. Por este
motivo a vagueza, para Peirce, não é um defeito cognitivo (CP 4.344, 1905) - o
objeto dinâmico também é, de um certo modo, vago.
O alcance do projeto de uma semiótica da vagueza ultrapassa os limites da
lógica tradicional. Para Peirce não há, em lógica investigativa, asserções que sejam
absolutas, nunca demonstráveis, inexplicáveis ou que representem verdades últimas
e definitivas (CP 1.135-140). Essa posição é contrária ao método axiomático
elaborado na geometria euclidiana que consiste em aceitar certo número de
postulados como verdades auto-evidentes e, a partir deles, gerar demonstrações e
teoremas dedutivamente válidos
91
. A lógica como ciência normativa comporta
apenas ideais regulativos, diverso da tradição Frege-Russell, o que permite Peirce
dizer:
Os lógicos não asseveram nada, como os geômetras o fazem; mas
existem certas verdades aceitas que eles desejam, confiam nelas, se
cercam delas, de um modo completamente alheio aos matemáticos.
Lógica nos ensina a esperar algum resíduo de sonho no mundo, e
até mesmo autocontradições; mas nós não esperamos ser colocados
face a face com nenhum destes fenômenos, e de maneira alguma
somos forçados a correr este risco. As suposições da lógica diferem
das da geometria, não simplesmente por não serem válidas
assertoricamente, mas também por serem muito menos definidas.
(CP 4.79, 1893).
92
91
Peirce distingue a natureza hipotética dos postulados da exatidão dos axiomas: “As últimas premissas da
geometria são chamadas pelos atuais geômetras ‘hipóteses’, porque os matemáticos, como tais, não aceitam
qualquer responsabilidade por sua verdade. Elas [as hipóteses] são de três tipos: definições, axiomas e
postulados. Os axiomas são, na minha opinião, todos falsos, caso alguém insista em sua rígida exatidão, em
todos casos. Os ‘postulados’ foram originalmente compreendidos sendo premissas expressando que certas
linhas puderam ser inferidas, embora todos saibam que elas não puderam ser exatamente. (NEM III: 171,
1911; Cf. CP 1.137) [The ultimate premisses of geometry are calleed by present day geometers
“hypotheses”, because the mathematicians, as such, do not accept any responsability for their truth. They
are of three kinds, definitions, axioms and postulates. The axioms are, in my opinion, all false, if one insists
on their rigid accuracy, in all cases. The “postulates” were originally understood to be premises expressing
that certain lines could be drawn, though everybody knew they could not, exactly]. É relevante lembrar que à
época de Peirce emergiram geometrias incompatíveis com postulados euclidianos, em trabalhos de Gauss,
Bolyai, Lobachewski e Riemann, que o filósofo conheceu.
92
“The logician does not assert anything, as the geometrician does; but there are certain assumed truths which
he hopes for, relies upon, banks upon, in a way quite foreign to the arithmetician. Logic teaches us to expect
some residue of dreaminess in the world, and even self contradictions; but we do not expect to be brought
face to face with any such phenomenon, and at any rate are forced to run the risk of it. The assumptions of
logic differ from those of geometry, not merely in not being assertorically held, but also in being much less
definite.”
73
As verdades aceitas que a lógica aceita sem questionar a que Peirce se
refere são proposições do senso-comum (“O fogo queima”). Diferem de assunções
da geometria que dizem respeito a resultados de demonstrações necessárias.
Têm-se agora os requisitos para responder a uma última pergunta sobre este
assunto: por que uma semiótica da vagueza? Para dar conta deste resíduo de
realidade deixado pelo método axiomático e, de modo geral, pela ciência
determinista que desprezou o acaso de suas variáveis. Para abrir caminho para uma
lógica evolutiva que reconheça um universo de soluções poéticas, não dedutivistas,
conforme passamos a discutir a seguir.
74
III
Acaso na Metafísica Peirciana
75
7. Argumentos contra o determinismo
Em verdade, é um abençoar, e não um amaldiçoar, quando eu ensino:
“Sobre todas as coisas está o céu Acaso, o céu Inocência, o céu
Eventualidade, o céu Desenvoltura’”(...) “Por eventualidade” esta é a mais
antiga nobreza do mundo, que eu restituí a todas as coisas; eu as redimi da
servidão dos fins. (Za/ZA XLVIII Antes do Nascer do Sol)
93
.
F. NIETZSCHE
Os princípios do tiquismo são expostos no texto “The Doctrine of Necessity
Examined” (CP, 6.35-65; EP 298-311), publicado em abril de 1892, segundo de cinco
artigos escritos para a revista The Monist
94
. O texto não é o primeiro a referenciar a
doutrina e, talvez, nem o mais esclarecedor e mais completo a seu respeito. Porém,
demarca o indeterminismo peirciano em oposição ao determinismo (ou, como é
chamado no artigo, necessitarinismo
95
) e enumera argumentos fenomenológicos e
ontológicos do acaso que o autor sustenta ao longo de sua obra. Argumentos estes
que só poderão ser compreendidos com o exame do sistema peirciano.
Por determinismo, ou necessidade universal, Peirce entende “(...) a crença
comum de que cada fato único no universo é determinado precisamente por lei.” (CP
6.36) [(...) the common belief that every single fact in the universe is precisely
determined by law]. O que se coloca em questão é uma doutrina decorrente, em
parte, da generalização da noção de causalidade mecânica que afirma que, dado A,
93
NIETZSCHE, 1978: 245-246.
94
Os artigos que compõem a chamada “The Monist Methaphysical Series” são: “The Arquitecture of Theories”
(1891), “The Doctrine of Necessity Examined”, “The Law of Mind” e “The Man’s Glassy Essence” (1892), e
“Evolutionary Love” (1893).
95
O termo determinismo, com seu significado de causalidade mecânica, tornou-se corrente em Filosofia
somente no século XX, principalmente em Filosofia da Ciência, apesar de ser registrado em obras desde o
século XVIII. A palavra determinismo aparece na filosofia alemã (Determinismus) em 1789, na obra Über
Determinismus und Moralische Freiheit (“Sobre Determinismo e Liberdade Moral”), de Christian Wilhelm
Snell (cf. HACKING, 1990: cap. 18) e em Kant, em Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen
Vernunft (“A Religião dentro dos Limites da Simples Razão”), de 1793, como abreviação de
praedeterminismus (pré-determinismo), no sentido de escolhas humanas pré-determinadas. Por doutrina da
necessidade, Peirce estaria empregando o conceito em uso na literatura da época, no significado que mais se
aproxima hoje de determinismo físico ou laplaceano, como por exemplo, no trabalho do químico inglês
Joseph Priestley “The Doctrine of Philosophical Necessity” (1777).
76
segue-se, necessariamente, B (cf. CP 6.592, 1893). Este axioma, que acompanha a
história do pensamento desde os atomistas, Aristóteles e estóicos, tornou-se
sinônimo de ciência a partir das descobertas do universo matemático de Galileu,
Kepler e Newton e seus seguidores, que aperfeiçoaram a teoria de sistemas
dinâmicos. Como afirma Peirce:
(...) as grandes descobertas em mecânica inspiraram a esperança de
que os princípios mecânicos poderiam ser suficientes para explicar o
universo; e, apesar de sem uma justificação lógica, esta esperança
vem sendo continuamente estimulada por subseqüentes avanços em
física. (....) a doutrina da necessidade nunca esteve tão em voga
quanto atualmente. (CP, 6.36, 1892)
96
.
É para esta crença que Peirce vai propor um exame à luz da lógica. Deve-se
distinguir dois pontos diferentes, mas relacionados, que são objetos da crítica do
autor: i) determinismo do universo: que se trata da crença de que todo evento é
determinado precisamente por lei; ii) leis deterministas: são leis da mecânica
decorrente de modelos matemáticos; não se coloca em questão o fato de serem
deterministas, mas sim que possam explicar todo tipo de fenômeno no universo, daí
a relação com o ponto (i).
Em referência ao conceito de determinismo do universo, Peirce inclui uma
concepção mais ampla que inclui o determinismo estóico nos assuntos de natureza
humana, amparado pelo materialismo (predomínio da matéria sobre a mente), a que
Peirce chama “filosofia mecânica”:
Qualquer um que sustente que todo ato de vontade, assim como
toda idéia de mente, esteja sob a gida governância de uma
necessidade, coordenada com aquela do mundo físico, será
logicamente levado à proposição de que mentes fazem parte do
mundo físico, no sentido de que as leis da mecânica determinam
tudo o que aconteça segundo atrações e repulsões imutáveis. Neste
caso, aquele estado de coisas instantâneo, do qual todo outro estado
de coisas é calculável, consiste nas posições e velocidades de todas
as partículas num instante qualquer. Então, a forma comum e mais
lógica de necessitarinismo, é chamada filosofia mecânica. (CP 6.38,
ibid.)
97
.
96
“(...) the great discoveries in mechanics inspired the hope that mechanical principles might suffice to explain
the universe; and, though without logical justification, this hope has since been continually stimulated by
subsequent advances in physics (…) the doctrine of necessity has never been in so great vogue as now.”
97
“Whoever holds that every act of the will, as well as every Idea of the mind is under the rigid governance of a
77
Note-se que, além da referência explícita ao sistema newtoniano (“atrações e
repulsões” e “posições e velocidades de todas as partículas em qualquer instante”),
também pode ser incluídos, na crítica à chamada filosofia mecânica, Laplace e o
emprego de teorias probabilistas nas ciências sociais e psicológicas para explicar o
comportamento humano em termos de ações causais ou determinadas. É
importante salientar também que Peirce em momento algum sua obra contestou a
mecânica newtoniana; pelo contrário, ele apenas apontou seus limites na descrição
de fenômenos não-conservativos. A crítica, reforcemos, é especifica.
Para verificar quais sãos estes limites das leis, que tornariam improvável uma
concepção determinista da Natureza, é preciso antes verificar a definição de lei dada
pelo filósofo. Segundo ele, existem duas características comuns do que pode ser
entendido por leis da Natureza. A primeira característica afirma que:
(...) toda lei é uma generalização de uma seleção de observações; o
princípio de seleção tendo referência a suas condições externas, sob
as quais as observações são feitas, e nenhum destes resultados são
tidos como temas de generalização. Ou seja, nós não selecionamos
aquelas observações que mostram qualquer peculiaridade e, em
seguida, chamamos de "lei da natureza" aquelas que mostram a
própria peculiaridade daquelas selecionadas para apresentação.
(MS: 872, pp. 32-33, 1901)
98
.
E a segunda:
(...) uma lei da natureza não é nem uma simples coincidência entre
as observações sobre as quais se baseia, nem é uma generalização
subjetiva; mas é de tal natureza que dela possa ser tirada uma série
infinita de profecias (ou predições) com respeito outras outras
observações, não aquelas sobre as quais a lei se baseia; e
experimentos devem verificar estas profecias, embora talvez não
absolutamente (o que seria o ideal de uma leia da natureza), ainda
necessity, coordinated with that of the physical world, will logically be carried to the proposition that minds
are part of the physical world, in such sense that the laws of mechanics determine anything that happens
according to immutable attractions and repulsions. In that case, that instantaneous state of things, from which
every other state of things is calculable, consists in the positions and velocities of all the particles at any
instant. This, the usual and most logical form of necessitarianism, is called the mechanical philosophy.
98
“(...) every such law is a generalization from a selection of observations; the principle of the selection having
reference to his outward conditions under whith the observations were made, and not to those results of them
which are taken as the subject of generalization. That is to say, we do not cull those observations which show
any peculiarity, and then call it a 'law of nature' that they show the very peculiarity which they were selected
for showing.”
78
que em princípio. (MS: 872, p. 33, ibid.)
99
.
Nestes termos, uma lei, para Peirce, é o que pode ser generalizado a partir de
observações do objeto, mas feitas por meio de uma sucessão de experimentos, que
permitam, não em suas peculiaridades mas em seu caráter sucessivo de testes
empíricos, extrair uma rie de predições, de teorias. É, em suma, o resultado da
aplicação de método científico. No entanto, dado o falibilismo e o acaso objetivo,
estas generalizações não podem ser absolutas, o que inviabiliza a crença no
determinismo, pelas razões que passa-se a discutir.
Em primeiro lugar, a doutrina do determinismo é entendida como um
postulado científico (CP, 6.39), o que significa que é considerada como uma hipótese
científica, e que, como tal, deve ser submetida à análise inferencial e ao confronto
com a experiência. Porém, mais do que postulado racional, deve-se notar as
implicações metafísicas do determinismo em filósofos como Descartes, Leibniz,
Hobbes, Espinosa, Kant e Mill, a quem Peirce também não poupou críticas,
alinhavando-os ao grupo de nominalistas. Por esta razão, o indeterminismo de
Peirce é um traço marcante em sua metafísica, distinta em suas bases realista,
evolucionista e no senso-comum crítico, o que torna a crítica ao determinismo uma
das chaves interpretativas da filosofia peirciana.
O postulado que se pretende examinar pode ser formulado, segundo Peirce,
da seguinte forma: um estado de coisas, existindo em qualquer tempo e sob leis
imutáveis, determina completamente estados de coisas futuros; ou seja, uma crença
oriunda de uma formalidade de leis mecânicas em que se afirma que, dado o estado
de um sistema A em um instante t qualquer, tendo-se o valor das variáveis posição
(p) e velocidade (v), pode-se calcular, com precisão, a conduta deste mesmo
sistema em outro instante, no passado ou no futuro. Determinismo, conforme
formulado, inclui:
99
“(...) a law of nature is neither a mere chance coincidence among the observations on which it has been
based, nor is it a subjective generalization; but is of such a nature that from it can be drawn and endless series
of prophecies (or predictions), respecting other observations not among those upon which the law is based;
and experiment shall verify those prophecies, though perhaps not absolutely (which would be ideal of a law
of nature) yet in the main.”
79
a) relação de causalidade mecânica (A determina B);
b) necessidade (dado A, segue-se, necessariamente, B);
c) leis absolutas e imutáveis regendo sistemas;
d) dedutivismo lógico, considerando-se premissa (dado A) e conseqüência
(segue-se B) e
e) exatidão e universalidades absolutas das leis matemáticas que regem os
fenômenos.
Peirce começa sua crítica pelo viés epistemológico da proposição, afirmando
que todo conhecimento positivo provém da experiência ou, ao menos, requer sua
posterior validação. Desta forma, não nada que comprove a universalidade das
leis e sua absoluta determinação, logo, o determinismo não pode ser considerado
um postulado científico.
Considerando, ademais, que as conclusões da ciência não
pretendem ser mais do que prováveis, e considerando que a
inferência provável pode, quando muito, somente supor que algo
seja, no máximo, freqüentemente ou, de outro modo,
aproximadamente verdadeiro, mas nunca precisamente verdadeiro
sem exceção no universo inteiro, vemos o quão distante esta
proposição está de ser postulada dessa maneira. (CP 6.39)
100
.
O que se afirma é que toda hipótese deve ser submetida ao exame da
experiência por meio de um método indutivo, que procede a partir de uma amostra
e, portanto, também é sempre provisória e aproximativa da verdade expressa pela
proposição. Este argumento é baseado na doutrina do falibilismo e na teoria da
indução de Peirce. A proposição em exame, no entanto, propõe que existe o
conhecimento absoluto, universal e necessário de todas as coisas no universo,
justamente o que é vetado enquanto postulado, isto é, a proposição afirma que
P→Q, quando a regra da inquirição é ┐(P→Q).
100
“Considering, too, that the conclusions of science make no pretense to being more than probable, and
considering that a probable inference can at most only suppose something to be most frequently, or otherwise
approximately, true, but never that anything is precisely true without exception throughout the universe, we
see how far this proposition in truth is from being so postulated.”
80
Logo, conclui-se que o princípio de necessidade universal não pode ser
definido como um postulado do raciocínio científico válido (CP 6.43). O determinismo
das leis, retifica-se, não está em questão, mas o fato destas leis darem origem a
uma crença de que todos os fenômenos do universo possam ser descritos de forma
absoluta, em que o acaso seja apenas o desconhecimento de causas, resultado da
ignorância humana, não pode ser sustentado pela experiência.
Dada a primeira classe de argumentos lógicos e epistemológicos, Peirce
apresenta uma segunda classe, de ordem ontológica, na defesa da doutrina do
acaso. Para isso, pergunta-se: existem evidências empíricas que possam sustentar
a causa advogada pelo necessitarinismo?
Segundo o autor, “(...) a essência da posição necessitarista é a de que certas
quantidades contínuas têm certos valores exatos.” (CP 6.44) [(...) the essence of the
necessitarian position is that certain continuous quantities have certain exact
values.]. Quer dizer, a condição é a de que os valores das variáveis (posição e
aceleração, por exemplo) possam ser aferidos com precisão, de outro modo, haveria
uma quebra na causalidade. Mas é justamente esta precisão infinitesimal que não é
possível de ser verificada empiricamente, ou mesmo matematicamente. Esta é, para
Peirce, uma suposição ridícula (CP 6.44). Um sistema pode ser imprevisível, caótico,
em razão de uma condição de dependência sensível de suas condições iniciais,
provocando comportamento instável, e mesmo assim ser descrito por leis
mecânicas. Ainda que não afete a previsibilidade, não é possível eliminar os erros, e
quanto mais precisas forem as medições, mais os erros tornam-se evidentes. Não
pode-se estar livre de erros de observação, de conduta e prática científica, de
enganos no aparato teórico e falhas no instrumental técnico, nem mesmo de
interferências de ordem política, ideológica ou religiosa. Enfim, apesar de Peirce não
listar estes elementos que podem levar ao erro, eles são em número considerável
para serem levados em conta. No entanto e aqui temos o ponto central do texto
não podemos atribuir o acaso somente à esfera subjetiva. Conclui-se:
Essas observações que são geralmente aduzidas em favor da
causação mecânica simplesmente provam que existe um elemento
81
de regularidade na natureza, e não temos qualquer apoio com
respeito à questão de que tal regularidade é ou não exata e
universal. Quiçá, considerando esta exatitude, toda observação é
diretamente oposta a isto; e o máximo que pode ser dito é que boa
parte das observações podem ser explicadas
101
. Tente verificar
qualquer lei da natureza e você descobrirá que quanto mais precisas
suas observações, mais certamente elas evidenciarão afastamentos
irregulares da lei. Estamos acostumados a atribuí-los, não digo
erradamente, a erros de observação; não obstante, não podemos
usualmente dar conta de tais erros por qualquer viés
antecedentemente provável. Rastreie suficientemente suas causas e
será forçado a admitir que elas se devem sempre à determinação
arbitrária ou acaso. (CP 6.36)
102
.
Peirce não nega que existam regularidades, caso contrário o mundo seria
puro caos; o que ele nega é que as regularidades sejam absolutas. Seu realismo se
destaca não somente por afirmar que as leis - a generalidade dos fatos - são reais,
mas também por afirmar que o possível também o é.
Deve existir um princípio de acaso operando no universo, que responde pelo
correlato de comportamentos estocásticos na natureza, verificados pela física
estatística (CP 6.47), que não podem ser atribuídos somente a circunstâncias
subjetivas, a erros de observação ou desconhecimento de causas. Existindo o acaso
ontológico, ele deve ser observado em fenômenos. Onde ele se manifesta? Nos
sentimentos, internamente, e na diversidade e complexidade observadas da
Natureza, externamente, sob a categoria da Primeiridade (CP 6.53 e 54). Ambos não
podem ser explicados pela razão determinista (CP 6.34).
De outra forma, poderia a relação de necessidade eximir de incerteza um
lance de dados e, dado um lance, este figurando algo concreto, existente
(Segundidade), poderia ainda assim abolir o acaso de outras cinco possibilidades?
Como se explica, então, a absoluta singularidade de um pôr-do-sol, de uma
impressão digital, de uma galáxia ou folha de árvore? Como a causalidade mecânica
explica a vida, sentimentos de intolerância ou amor ou a poesia?
101
“Those observations which are generally adduced in favor of mechanical causation simply prove that there is
an element of regularity in nature, and have no bearing whatever upon the question of whether such
regularity is exact and universal or not. Nay, in regard to this exactitude, all observation is directly opposed to
it; and the most that can be said is that a good deal of this observation can be explained away.”
102
Trad. IBRI (1992: 46).
82
Leis podem gerar regularidades estritas, segundo o determinismo. Sendo
absolutas, não explicam a espontaneidade da vida ou a aleatoriedade de um lance
de dados. Acaso, sem seu sentido “forte”, não significa, segundo Peirce, uma
causalidade oculta, mas sim, ausência de causas, quebra de lei, espaços vazios na
gramaticalidade do cosmos, ruídos na cadeia redundante dos fenômenos.
De acordo com o mecanicismo, o número de átomos do universo é o mesmo
desde sua criação. A variável complexidade de um sistema permanece inalterável, e
seus valores devem permanecer imutáveis para permitir sua descrição com precisão
absoluta (CP 6.56). Isso vale para sistemas conservativos ou idealmente isolados,
conforme descritos pela termodinâmica linear. Mas não explicam a maioria dos
fenômenos conhecidos como sistemas abertos, cujas propriedades permitem
ganhos de organização, conforme descritos por Peirce:
Examine qualquer ciência que lida com o curso do tempo. Considere
a vida individual de um animal, de uma planta ou de uma mente.
Considere a história dos estados, das instituições, da linguagem, das
idéias. Examine a sucessão de formas evidenciadas pela
paleontologia, a história de nosso planeta narrada pela geologia e o
que o astrônomo é capaz de dizer no que concerne às mudanças no
sistema solar. Por toda parte o fato primordial é o crescimento e a
crescente complexidade
103
. Morte e corrupção são meros acidentes
ou fenômenos secundários. Entre alguns dos organismos mais
rudimentares, é um ponto discutível entre biólogos se existe algo que
possa ser chamado morte. Raças, de qualquer modo, não acabam,
exceto sob circunstâncias desfavoráveis. Destes amplos e ubíquos
fatos podemos inferir facilmente, pela mais regrada lógica, que existe
provavelmente na natureza alguma atividade pela qual a
complexidade e diversidade das coisas podem aumentar; e que
conseqüentemente a regra da necessidade mecânica encontra de
algum modo interferência. (CP 6.58)
104
.
E também:
Por este modo, admitindo a pura espontaneidade ou vida como um
caráter do universo, agindo sempre e em toda parte, embora contido
103
Trad. IBRI (1992: 46).
104
“Death and corruptions are mere accidents or secondary phenomena. Among some of the lower organisms, it
is a moot point with biologists whether there be anything which ought to be called death. Races, at any rate,
do not die out except under unfavorable circumstances. From these broad and ubiquitous facts we may fairly
infer, by the most unexceptionable logic, that there is probably in nature some agency by which the
complexity and diversity of things can be increase; and that consequently the rule of mechanical necessity
meets in some way with interference.”
83
em estreitas fronteiras pela lei, produzindo desvios infinitesimais da
lei continuamente e grandes desvios com infinita infreqüência,
explico toda a variedade e diversidade do universo, no único sentido
no qual se pode dizer que o verdadeiramente sui generis o novo
pode ser explicado. A visão comum deve admitir a inexaurível e
múltipla variedade do mundo, deve admitir que sua lei mecânica não
pode totalmente dar conta disso, que a variedade pode nascer
somente por espontaneidade, e ainda assim, nega sem qualquer
evidência ou razão a existência dessa espontaneidade, ou então a
empurra de volta ao início do tempo e a supõe morta desde então. À
lógica superior da minha concepção, não me parece facilmente
controvertido. (CP 6.59)
105
.
Destas passagens chamamos atenção para a tese mais ousada e o ponto
crucial da ontologia tiquista peirciana: a hipótese de que o acaso é fonte de
organização, de complexidade, em um universo em evolução. Em outras palavras,
Peirce não pretende explicar que as coisas ocorrem “por acaso”, mas, ao contrário,
que o acaso é que explica a origem da organização em sistemas, o fenômeno
universal da diversidade do cosmos “Eu faço uso do acaso principalmente para dar
lugar ao princípio de generalização, tendência de formar hábitos, que afirmo ter
produzido todas regularidades.” (CP 6.63) [I make use of chance chiefly to make
room for a principle of generalization, or tendency to form habits, which I hold has
produced all regularities.].
É na recusa da possibilidade do determinismo como postulado lógico que
Peirce compõe a positividade dos argumentos da doutrina do acaso absoluto, ou
seja:
Determinismo não explica o comportamento regular do cosmos porque leis
naturais não podem ser exatas, conforme a doutrina prediz.
Leis naturais não são exatas porque são resultado de um processo de
evolucionário.
105
“By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe, acting always and everywhere
though restrained within narrow bounds by law, producing infinitesimal departures from law continually, and
great ones with infinite infrequency, I account for all the variety and diversity of the universe, in the only
sense in which the really sui generis and new can be said to be accounted for. The ordinary view has to admit
the inexhaustible multitudinous variety of the world, has to admit that is mechanical law cannot account for
this in the least, that variety can spring only from spontaneity, and yet denies without any evidence or reason
the existence of this spontaneity, or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever
since. The superior logic of my view appears to me not easily controverted.”
84
Se estão em evolução evolução essa que segue um curso em direção a
maior complexidade, segundo Peirce -, supõe-se que tiveram início em um
princípio de não-lei ou acaso (acaso este que pode ser observado em
fenômenos como a variedade no universo);
logo,
acaso ser real é uma hipótese válida para explicar a origem das regularidades
no universo.
Em “The Doctrine...”, a hipótese do determinismo é substituída pela hipótese
do acaso, a doutrina do tiquismo (que envolve também a tendência de aquisição de
hábitos), e a crítica ao determinismo gera uma argumentação que objetiva uma
validação lógica para o tiquismo. São cinco argumentos, quatro deles retomados em
“Reply to the Necessitarians” (CP 6.588-618), de 1893:
1. Argumento da evolução ou do crescimento.
Evidências geológicas, biológicas e astrofísicas demonstram que o universo
evolui. A crença no determinismo postula a universalidade do princípio de
conservação de energia, dedutível das leis da mecânica, e da condição de
reversibilidade temporal (indiscriminação de ordem no tempo), uma
característica matemáticas destas mesmas leis, mas tal doutrina não explica
a maioria dos fenômenos naturais, não-conservativos, como “nascimento,
crescimento e vida” (CP 6.72, 1898). Deve haver um princípio de
espontaneidade que viole a necessidade da lei, do contrário, a vida não seria
possível. Peirce encontra esse principio no acaso (CP 6.58-60, 1892, e 6.613,
1893), empregando métodos semelhantes ao da física estatística e da teoria
da evolução darwiniana, com a diferença de que seu acaso é objetivo.
Eu não faço mais, portanto, que seguir o método usual dos
físicos, convocando o acaso para explicar a evidente
violação da lei da energia introduzido pelo fenômeno de
crescimento: que, ao invés do acaso, como eles o
85
entendem, eu o chamo de acaso absoluto. (CP 6.613,
1893)
106
.
A passagem acima requer um comentário. O argumento da evolução,
conforme bem aponta Reynolds (2002: 144-145) trata, na verdade, de um
acaso matemático, que Peirce iria diferenciar de um acaso absoluto: ambos
são objetivos, mas geram ações opostas e guardam propriedades semânticas
diversas (cf. cap. 9). De qualquer modo, em Peirce, somente pelo acaso ou
por uma propriedade aleatória das leis naturais pode-se explicar o
crescimento e a irreversibilidade temporal.
2. Argumento da variedade.
Em 1897, a primeira crítica ao determinismo é assim afirmada:
A variedade infinita no mundo não foi criada por lei. Não é da
natureza da uniformidade originar a variação, nem da lei gerar
a circunstância. Quando contemplamos a multivariedade da
natureza, estamos olhando direto na face de uma
espontaneidade viva. (CP 6.553)
107
.
A diversidade ou variedade na natureza não pode ter um caráter regular, pois
expressa diferenças, não semelhanças. O amanhecer possui uma
regularidade, ou seja, sucede-se dia após dia, mas o pôr do sol é diferente a
cada manhã, em seus matizes de cores e composição. As folhas e as
impressões digitais possuem uma estrutura que é regular, característica que
permitem classificá-las em uma ordem, mas diferenças fazem de cada uma,
singular. Não sendo essa variedade uma propriedade geral da Terceiridade,
devem ser produto da Primeiridade e um continuum de qualidades (CP 6.58,
1892; cf. cap. 11).
3. Argumento da consciência e sentimentos.
106
“I do no more, then, than follow the usual method of the physicists, in calling in chance to explain the
apparent violation of the law of energy which is presented by the phenomena of growth: only instead of
chance, as they understand it, I call in absolute chance.”
107
“The endless variety in the world has not been created by law. It is not the nature of uniformity to originate
variation, nor of law to beget circumstance. When we gaze upon the multifariousness of nature we are
looking straight unto the face of a living spontaneity.”
86
Se a lei é universal, implica-se: (i) materialismo em que mente é
conseqüência da matéria; e (ii) um pensamento é decorrente de ações ou
estados anteriores e, deste modo, podem ser calculados seus estados futuros
(CP 6.61). De qualquer modo, sendo coagido por um causalismo externo ou
interno, o livre-arbítrio seria ilusão. Para Peirce, a única alternativa,
descartando teorias da cognição que apelem para um dualismo cartesiano,
que separa em esferas distintas mente e matéria, ou transcendentalismo
kantiano, que faz do sujeito o ordenador do mundo, seria o idealismo objetivo,
pelo qual concebe-se uma única lei da mente. Assim, o acaso que impede o
predomínio das regularidades no universo é um lado externo dos
sentimentos: “Onde quer que a espontaneidade do acaso seja encontrada,
existe sentimento na mesma proporção. De fato, acaso nada é senão aspecto
externo daquilo que internamente em si mesmo é sentimento.” (CP 6.265,
1892)
108
. E como sentimentos operam no processo cognitivo? A lei da mente é
uma lei de aquisição de hábitos, que se formam mediante uma excitação
(uma dúvida, no caso da inquirição) que viole hábitos adquiridos (CP 6.613,
1893; ver também CP 5.372-373, 1877). Conforme afirmou em sua teoria do
protoplasma (CP 6.246-267 e CP 6.133, 1892), o estímulo e a conseqüente
quebra de hábitos vêm acompanhados de sentimento. Sentimento é
primordial à razão da mesma forma que o acaso é em relação à lei, e o
aspectos do homem e do cosmos que impedem uma determinação completa
de suas ações.
4. Argumento da origem das leis.
Peirce afirma: “(...) lei em si requer explicação. Mas como pode ser explicada
se é fundamentalmente original e absoluta, como constantemente se supõe?
Porém, se ela não é absoluta, existe um fenômeno de acaso absoluto.” (CP
6.613, 1893) [(...) law itself calls for explanation. But how is it to be explained if
it is as fundamentally original and absolute as it is commonly supposed to be?
Yet if it is not so absolute, there is such a phenomenon as absolute chance.].
108
Trad. IBRI (1992: 82).
87
Lei gera somente lei (A→A) e não pode explicar nada a não ser por
tautologia; mas se lei se origina de não-lei (Ā→A) então tem-se uma
explicação. Acaso é não-lei e, como possível, indefinido, não requer
explicação, logo, é princípio original.
5. Argumento empírico.
Este é o último argumento, não desenvolvido por Peirce, o que foi alvo de
críticas e interpretações dos comentadores. Nele, o filósofo afirma que é
possível provar matematicamente o tiquismo, porém, não fornece detalhes. “A
hipótese do acaso-espontaneidade é tal que suas inevitáveis conseqüências
podem ser traçadas com precisão matemática em detalhes consideráveis.”
(CP 6.62) [The hyphotesis of chance-spontaneity is one whose inevitable
consequences are capable of being traced out with mathematical precision
into considerable detail.], cuja tarefa será deixada para “futuros especuladores
matemáticos”, que receberão esta hipótese como uma “verdadeira mina de
ouro”. Acreditamos que Peirce estaria se referindo aqui ao desenvolvimento
do cálculo de probabilidades e aos desenvolvimentos de técnicas estatísticas,
além de, sem o saber, estar fazendo um prognóstico de um dos caminhos da
Física e matemática do século vinte
109
. Na presente tese, estes
desenvolvimentos matemáticos contemporâneos do acaso não serão
avaliados.
Sustenta-se que os argumentos apresentados por Peirce em “The Doctrine...”
são mais complexos do que aparentam, em seu modo de apresentação no artigo, e
uma teoria do acaso peirciana somente adquire coerência quando posta sob
perspectiva de suas especulações lógicas, epistemológicas, ontológicas e
metafísicas, tratadas neste trabalho.
109
Em CP 6.101, 1903, Peirce também afirma que a hipótese do acaso pode ser testada experimentalmente,
novamente sem dar detalhes. SFENDONI-MENTZOU (1993: 246) aponta a mecânica quântica como
desenvolvimento das especulações sobre o acaso em Peirce, a sua “mina de ouro”. DEARMONT (1995)
realiza o cálculo de probabilidades de um jogo de azar em uma simulação de computador (proposto no texto
de Peirce “Design and Chance”), como evidência empírica, mas sem chegar a ser conclusivo a respeito das
conseqüências metafísicas do acaso (Cf. REYNOLDS, 1997).
88
8. Aristóteles e as fontes gregas do tiquismo
Dizei-me isto, Musas que tendes o palácio olímpio.
Dês o começo e quem dentre eles primeiro nasceu.
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado (...)
110
HESÍODO
A especulação sobre a origem, constituição e destino final do universo
remonta ao início da filosofia com os gregos, muito antes de ser desvinculada da
phýsis como ciência empírica que, com o auxílio de tecnologias avançadas, buscou
evidências para especulações metafísicas. Enquanto os antigos pensadores tinham
diante de si um limitado horizonte de observação, ao mesmo tempo vasto e
desconhecido, a moderna cosmologia dispõe de material técnico e teórico que
permite reconstruir uma hipotética gênese do cosmos em um universo expandido em
escalas macro e microscópicas. Apesar disso, é reservada à metafísica as respostas
às questões fundamentais a respeito do Ser.
A cosmologia de Peirce, desenvolvida em sua fase madura como pensador,
revela o mesmo espírito escrutinador e atento dos primeiros filósofos que
questionaram qual deve ser a natureza do universo para que se possa conhecê-lo.
Traz, portanto, o frescor de uma filosofia genética, ousada e desafiadora que, não
obstante, se revela afinada com a alguns modelos da moderna astrofísica (cf. IBRI:
1996). A influência dos pensadores gregos, sobretudo nesta fase de seu
pensamento, foi decisiva na formulação do tiquismo
111
.
A concepção de acaso objetivo e, principalmente, potencialidades reais em
Aristóteles, são fundamentais para Peirce. Na obra “Física”, Aristóteles afirma que as
110
“Teogonia: a origem dos deuses”. Trad. Jaa Torrano (HESÍODO, 1995: 111).
111
Como assinala Max Fisch (FISCH, 1986: 227-248), é o período mais produtivo de Peirce (que compreende,
segundo o autor, de 1887 até a morte do filósofo, em 1914), em que Peirce revisa seu sistema ao mesmo
tempo em que se aprofunda nas leituras dos filósofos gregos.
89
substâncias se manifestam por quatro causas (Física II, 3, 194b): material (aquilo de
que algo é feito), formal (o que define algo), eficiente (princípio de mudança) e final
(designa o propósito da coisa); além disso, que na natureza as causas também
podem ocorrer por acidente, que são causas indeterminadas.
As causas que ocorrem por acidente são de dois tipos: týchē e autómaton
(Física II, 5, 196b10 a 25). Týchē (τύχη) designa uma das divindades gregas, que
exercia grande influência sobre os destinos dos homens e à qual os romanos
identificavam como sua deusa Fortuna. O termo pode ser traduzido, parcialmente,
como acaso ou sorte. Autómaton (αύτόματου), por outro lado, é de uso mais profano
e significa, aproximadamente, o que é casual ou espontâneo na natureza.
Segundo o filósofo grego, algumas coisas ocorrem por necessidade, ou em
todos os casos (causa eficiente), outras na maioria dos casos (causa final) e, ainda,
outras ocorrem por causas acidentais. “Coisas deste tipo, então, quando acontecem
por acidente, dizemos que são ‘por acaso’”
112
(Física II, 5, 196b25). Acaso e
espontaneidade são causas acidentais: “Acaso e também espontaneidade são
contadas entre as causas: muitas coisas são e ocorrem com base em acaso e
espontaneidade.” (Física II, 4, 195b30).
Aristóteles afirma, contra pensadores como Demócrito e Leucipo, para quem
tudo ocorre por necessidade, a existência do acaso real como causa indeterminada.
Do mesmo modo que rejeita o determinismo dos atomistas, ele não acredita que o
universo seja produto de mera casualidade eficiente (Física II, 4, 196a e 196b) ou
que o acaso seja uma causa de origem divina (e, por isso, inacessível à razão
humana). Em resumo, declara o acaso como causa(s) indeterminada(s) ou não
necessária:
Em primeiro lugar, observamos que algumas coisas sempre
acontecem do mesmo modo e outras em sua maior parte. É evidente
que em nenhuma destas diz-se que o acaso é causa, nem pode o
112
Utilizamos as traduções da obra para o inglês de R.P.Hardie and R.K.Gaye (ARISTÓTELES, 1994-2000) e
para o espanhol de Guillermo R. de Echandía (ibid., 1998). Na tradução inglesa (que seguimos), týchē =
chance e autómaton = spontaneity (ressaltado-se, conforme detalharemos neste capítulo, que em Peirce não
distinção formal entre acaso e espontaneidade); na espanhola, os termos são traduzidos, respectivamente,
como sorte e casualidade.
90
“efeito do acaso” ser identificado como qualquer das coisas que
acontecem por necessidade e sempre ou na maioria dos casos. Mas
existe uma terceira classe de eventos além destas duas que dizemos
que são “por acaso” é evidente que existe tal coisa como acaso e
espontaneidade; pois sabemos que coisas deste tipo são devido a
acaso e coisas devido ao caso são deste tipo. (Física II, 5, 196b10 e
15)
113
.
E qual é a diferença entre causa por acaso e por espontaneidade, ou seja,
entre týchē e autómaton? Aristóteles diz que tudo o que se deve ao acaso se deve à
espontaneidade, mas nem tudo o que se deve à espontaneidade se deve ao acaso
(Física II, 15, 197a35). Acaso refere-se à esfera de decisões morais, de escolhas
que concernem ao homem (Física II, 5, 197b) e, portanto, nada diz a respeito de
coisas inanimadas, animais e crianças, a quem não se diz que possuem boa ou
sorte (Física II, 5, 197b5). É o que chamaríamos liberdade. Espontaneidade, por sua
vez, diz respeito a objetos físicos e animais, a coisas que ocorrem na natureza
(Física II, 5, 197b20), como o fato de uma pedra cair (Física II, 5, 197b30).
No exemplo fornecido pelo filósofo, quando sei que alguém que me deve
dinheiro vai a um determinado local, e indo até este local com esta intenção recebo
a quantia - sempre ou na maioria dos casos -, uma causalidade determinada. Ao
contrário, se vou até o local sem saber que a pessoa vai estar lá, a encontro e
recebo o dinheiro devido, então falamos de uma causa acidental, de algo imprevisto.
Em outro exemplo: o arquiteto é a causa de uma casa, o fato dele ser também
músico é acidente.
Por acidente (συμβεβηχός) Aristóteles quer dizer uma causa contrária à
necessidade: “Acidente significa o que pertence a uma coisa e pode ser afirmado
com verdade da coisa, mas não sempre nem na maior parte dos casos.” (Met.,Δ 30,
1025a 15); por exemplo, se alguém cava um buraco e encontra um tesouro, este
último fato é um acidente, pois não é sempre aliás, muito raro que se encontre
um tesouro enterrado. Trata-se de um atributo predicado, qualidade que se
associa a um sujeito em ocasiões e lugares específicos, por uma causa
indeterminada (Met.,Δ 30, 1025a 25). Por exemplo, na proposição “A folha é verde”,
o predicado é acidental, pois a folha pode ser amarela, vermelha ou marrom,
113
Cf. Met., Z 7, 1032a15: “Tudo o que se gera gera-se ou por natureza, ou por arte ou por acaso.”
91
dependendo do tipo de planta ou da estação do ano
114
.
Acaso e espontaneidade, em Aristóteles, são reais - o primeiro em se tratando
de ações humanas e o segundo, da natureza – e causas indeterminadas, acidentais,
imprevistas ou irregulares. Mas, sendo causa algo relativo à substância, ao sujeito, e
acidente, relativo ao predicado, há uma precedência lógica:
Espontaneidade e acaso, portanto, são posteriores à inteligência e
natureza. Conseqüentemente, por mais que possa ser verdade que a
causa dos céus é devido à espontaneidade, ainda assim será
verdade que inteligência e natureza são causas anteriores a Tudo e
de várias coisas além. (Física II, 6,198a 5 e 10).
Na cosmologia peirciana, ao contrário, não precedência lógica, uma vez
que a lógica dos relativos não trata mais da relação sujeito-predicado, conforme a
lógica aristotélica, nem uma noção de substância em sua metafísica. O acaso em
Peirce pode ser definido como real e, diferente de Aristóteles, como uma quebra de
causalidade, que origina novas relações causais, e não como séries causais
fortuitas.
Outra consideração a ser feita com respeito à influência de Aristóteles é o fato
de Peirce chamar sua doutrina do acaso absoluto de tiquismo, termo oriundo de
týchē, que corresponde à liberdade humana. Ora, acreditamos que o emprego do
conceito ao invés de autómaton se deve primeiro à tradução em inglês de
chance (acaso) e sua ligação com a teoria de probabilidades (também chamada de
doctrine of chances); e em segundo lugar, a teoria de Peirce, entendida com base
em seu idealismo objetivo, congrega tanto o acaso real na natureza, manifesta em
sua diversidade, o autómaton aristotélico, quando o reino interior do livre-arbítrio das
coisas humanas, manifesto em sentimentos a týchē aristotélica. Peirce, além
disso, não fez distinção entre acaso, espontaneidade e liberdade (CP, 6.200-202,
1898).
A primeira citação de acaso absoluto publicada por Peirce traz uma referência
114
Mas acidente também pode ser, nas palavras de Aristóteles, eternos, no caso da soma dos ângulos de um
triângulo. “São acidentes todos os atributos que pertencem a cada coisa por si mesma, mas que não entram na
substância da coisa.” (Met.,Δ 1025a 30).
92
a Aristóteles em “Design and Chance” (1883/1884), porém, revela uma interpretação
polêmica dos textos aristotélicos. “Em resumo,o poderia ser o acaso, no sentido
aristotélico, simples ausência de causa, admitido como tendo um pequeno lugar no
universo [?] (W4: 547; grifos nossos) [In short, may not be that chance, in Aristotelian
sense, mere absence of cause, has to be admitted as having some slight place in the
universe.].
Como afirma Hwang (1993), Aristóteles não define acaso como ausência de
causas, mas como causas acidentais, uma vez que, havendo causa, haverá um
efeito (cf. Retórica, 2.24.1400a28-31, e Analíticos Posteriores, 2.16.98a36-38).
Segundo Hwang, ao mesmo tempo em que rejeitou o determinismo mecânico ou
lógico, Aristóteles manteve o determinismo causal, em que todos os eventos são
suscetíveis de análises em termos de relações causais (HWANG, 1993: 263,
273-274). De acordo com ele, acaso em Aristóteles envolve:
i. eventos que não ocorrem sempre, nem normalmente, nem por
necessidade e nem por regularidade;
ii. causa eficiente sem agente intencional;
iii. causa eficiente que envolve causa final incidental (Ibid.: 267e 273).
Por esta razão, Peirce teria interpretado erroneamente o acaso aristotélico
como ausência de causas. Como afirma Hwang:
Peirce falha em ver que o acaso ou espontaneidade aristotélica
não denota ausência de causa, mas antes ausência de intenção.
Ele não consegue ver que, em eventos atribuídos ao acaso, uma
ocorrência acidental pode produzir um efeito desejado. Ele não
consegue ver que de fato existem eventos que “aconteceram
conforme você teria querido, sem que os tivesse planejado”. Em
resumo, não consegue ver que eventos acidentais não são “auto-
determinados”. (1993: 273).
115
115
“Peirce fails to see that Aristotle's chance or spontaneity does not denot the absence of cause, but rather the
absence of intention. He fails to see that, in the events atributed to chance, an accidental occurrence may
produce a desired effect. He fails to see that there are in fact events that 'have happened as you could have
wished, without your contriving it'. In short, he fails to see that chance events are not 'self-determined'
events'.”
93
Na verdade, a passagem acima descrita de Peirce, em “Design and Chance”,
é formulada como uma pergunta, não uma afirmação. O que ele queria dizer, seria:
“Será que aquilo que Aristóteles dizia ser 'causa acidental' não poderia ser entendido
como ausência de causa?”. Nestes termos, seria mais correto, talvez, dizer uma
sugestão errônea, não uma interpretação equivocada, conforme o problema
apontado por Hwang. Outro problema em relação à interpretação de textos gregos
surge em outra importante influência na conceituação de acaso absoluto ou acaso
como ausência de causas nos textos epicuristas (cap. 10). Mas antes, parte-se
para uma definição do que o filósofo quer dizer com acaso.
94
9. Duas definições de acaso em Peirce
It is incorrect, then, to say that any phenomenon is produced by chance; but
we may say that two or more phenomena are conjoined by chance, that they
co-exist or succeed one another only by chance; meaning that they are in no
way related through causation; that they are neither cause and effect, nor
effect of the same cause, nor effects of causes between which there
subsists any law of co-existence, nor even effects of the same collocation of
primeval causes. (Logic, book III, cap. XVII, § 2)
116
.
J.S. MILL
Sob o conceito de acaso, Peirce definiu ao menos dois sentidos diferentes
mas, argumenta-se na tese, complementares; ou, a julgar pelos comentadores,
pode-se distinguir até três concepções de acaso na evolução de sua obra. Em todas
formulações, acaso surge vinculado ao modo de ser da Primeiridade, sendo
sinônimos: espontaneidade, originalidade, liberdade, variação fortuita (sporting),
diversidade, variedade, heterogeneidade, indeterminação e irregularidade.
Peter Turley (1969) identifica três concepções de acaso, sendo as duas
primeiras abandonadas por Peirce no desenvolvimento de sua doutrina:
i. acaso como matéria da ignorância humana, que se sustenta na obra até
1890;
ii. realidade do acaso ou acaso como diversidade que lugar às leis, ao invés
das leis serem violadas (ação passiva ou invés de ativa). Nesta segunda
concepção, que não teria sido elaborada, Turley vê uma correspondência com
a noção aristotélica de intersecção de redes causais independentes
117
(1969:
246).
116
incorreto, então, dizer que qualquer fenômeno é produzido por acaso; mas podemos dizer que dois ou
mais fenômenos são unidos por acaso, que eles co-existem ou sucedem-se mutuamente apenas por acaso; o
que significa que eles não estão de forma alguma relacionados por meio de causalidade; que eles não são nem
causa nem efeito, nem os efeitos da mesma causa, nem efeitos de causas entre o que subsiste em qualquer lei
de co-existência, nem tampouco efeitos da mesma junção de causas primevas."
117
Conceito de espontaneidade como causas indeterminadas, não quebra de relações causais na Natureza. Cf.
cap. anterior.
95
iii. acaso como violação das leis da Natureza acaso absoluto. Os dois
conceitos anteriores, segundo Turley, eram inadequados ao indeterminismo
peirciano. A influência neste conceito seria a doutrina epicurista do “desvio”
dos átomos.
Fisch (1986) faz semelhante distinção, entre (i) acaso na teoria da
probabilidade e indução, que, apesar de objetivo, ainda não é real
118
(de 1870 até
1880); (ii) acaso epicurista como violação da lei (de 1880 até 1890); e (iii) acaso
aristotélico como potencialidade real. Nota-se a diferença, em relação a Turley, por
Fisch salientar, no realismo peirciano e no pragmatismo, a importância da
possibilidade em Aristóteles.
Pode-se, porém, sintetizar dois entendimentos de acaso que, apesar de
distintos, desempenham funções importantes e não excludentes na metafísica
peirciana. São dois sentidos que Peirce, apesar nem sempre identificá-los
precisamente em seus escritos, expressamente diferenciou. De 1870 a 1880, o
acaso matemático ou probabilístico tem um sentido mais fraco de acaso, que Peirce
vai chamar de acaso relativo, usual ou quase-acaso, em contraposição ao acaso
absoluto, que origina sua doutrina do tiquismo.
Em “Design and Chance” (W: 4, 544-554), de 1883/1884, acaso absoluto é
definido como violação de leis da natureza, em contraposição a acaso usual
(matemático):
Suponho que em ocasiões excessivamente raras e esporádicas, a lei
da natureza é violada em algum grau infinitesimal; o que podemos
chamar de acaso absoluto; mas acaso usual é meramente relativo às
causas que temos em conta. (W:4, 549)
119
.
No exemplo fornecido por Peirce, num lance de dados o antecedente
determina o caráter geral do conseqüente, isto é, determina que ao lance seguirá um
118
O conceito de acaso presente nas teorias das probabilidades e da indução em Peirce é objetivo no sentido de
se referir a dados empíricos, não somente a um grau de crença humana, e por tratar de casos gerais, não
particulares (ver caps. 3 e 4 desta tese). No entanto, são teorias de cunho epistemológico que nada dizem a
respeito da constituição da realidade e, deste modo, de uma fundamentação ontológica, real, do acaso.
119
“I suppose that on excessively rare sporadic occasions a law of nature is violated in some infinitesimal
degree; that may be called absolute chance; but ordinary chance is merely relative to the causes that are taken
into account.”
96
número. um componente de conformidade à lei, de determinação causal. Mas,
por outro lado, não como determinar o caráter específico, ou seja, que número
sairá dentro das possibilidades. , em um nível menor, um componente de acaso
intrínseco ao lance de dados. Este é o acaso absoluto. o acaso usual ou relativo,
como o chama Peirce, pode-se calcular, por meio de matemática das probabilidades,
uma tendência a que os lances sairão em uma seqüência, no seu limite. No acaso
absoluto não temos uma tendência, apenas a esperança de que o universo seja
explicável, ainda que não de forma universal e necessária (W: 4, 549).
Por acaso matemático, entende-se:
i. acaso objetivo referente a probabilidades e LGN (Lei dos Grandes Números);
ii. propriedade convergente;
iii. “aparente” violação das leis da Natureza;
iv. complexidade de relações causais e causas desconhecidas (relativas à
ignorância humana).
É o que encontra-se em passagens como:
Probabilidade e acaso sem dúvida pertencem principalmente às
conseqüências, e são relativas às premissas; mas podemos, não
obstante, falar do acaso de um evento absolutamente, querendo com
isso significar a chance [o acaso] da combinação de todos
argumentos em relação a ele [o evento] que existem para nós dado
nosso estado de conhecimento. Neste sentido, é incontestável que a
probabilidade de um evento tem uma íntima relação com o grau de
nossa crença nele (...) (CP 2. 676, 1878)
120
.
Esta é uma concepção formulada com base nos estudos de mecânica
estatística, teoria das probabilidades e LGN, que fornecem um vetor teleológico à
metafísica peirciana, dado seu aspecto convergente na lógica dos eventos. É,
porém, um sentido mais “fraco”, por comportar um elemento epistemológico
120
“Probability and chance undoubtedly belong primarily to consequences, and are relative to premisses; but we
may, nevertheless, speak of the chance of an event absolutely, meaning by that the chance of the combination
of all arguments in reference to it which exist for us in the given state of our knowledge. Taken in this sense it
is incontestable that the chance of an event has an intimate connection with the degree of our belief in it (...)”
97
referente ao desconhecimento de cadeias causais e por manter intacto o princípio de
causalidade: há apenas uma “aparente” violação das leis, pois uma causa dá origem
a efeitos diversos (dir-se-ia, contemporaneamente, não-lineares).
A partir de 1890, Peirce adota uma concepção extrema, definida como acaso
absoluto, que significa:
i. um atributo real, ontológico, de mundo;
ii. ausência de lei;
iii. uma ação espontânea que viola as leis da natureza para dar origem a uma
tendência de aquisição de hábitos.
O acaso comum ou relativo, baseado em teoria das probabilidades, apesar de
objetivo, possui traços de subjetivismo que contrastam com o realismo peirciano. É
este corte que o autor pretende salientar quando, em “Reply to the Nessecitarians”
(CP 6.588-618), último artigo para a série “The Monist”, escrito em 1893, Peirce faz
uma defesa do acaso ontológico (contra interpretações subjetivistas de Paul Carus,
John Venn e Stuart Mill, entre outros). Ele afirma:
Por muito tempo, eu mesmo lutei para fazer o acaso ser essa
diversidade no universo, para a qual as leis deixam espaço, ao invés
de uma violação de lei ou falta de lei. Isso foi acreditar
verdadeiramente no acaso que não era absoluto. Foi reconhecer que
o acaso tem um papel no mundo real, à parte do que possamos
saber ou ignorar dele. Mas foi uma crença de transição que
ultrapassei (...) (CP 6.602).
121
“Reply...” é um dos artigos mais esclarecedores a respeito do acaso peirciano,
em razão do autor ter se esforçado para tentar explicar os equívocos de
interpretação de suas idéias e também responder às críticas do editor da revista
“The Monist”, Paul Carus. Mais do que se esforçar para eliminar quaisquer vestígios
de subjetivismo de seu conceito de acaso ele afirma: “(...) acaso, quer seja
121
“For a long time, I myself strove to make that diversity in the universe which laws leave room for, instead of
a violation of law, or lawlessness. That was truly believing in chance that was not absolute chance. It was
recognizing that chance does play a part in the real world, apart from what we may know or be ignorant of.
But it was a transitional believe which I have passed throught (...)”
98
absoluto ou não, não é mera criação de nossa ignorância. É aquela diversidade e
variedade das coisas e eventos que a lei não previne.” (CP 6.612) [(....) chance,
whether it be absolute or not, is not the mere creature of our ignorance. It is that
diversity and variety of things and events which law does not prevent.] - a principal
diferença demarcada na formulação do acaso absoluto é que não se trata mais de
causalidade acidental, mas de violação das leis da causalidade, para que o universo
não seja um argumento dedutivo.
Acaso absoluto como pura espontaneidade, que não exige explicação
racional (CP 6.631, 1892), foi a resposta encontrada pelo filósofo para recompor a
gênese da regularidade no universo e que, por sua ação de ruptura, pode continuar
evoluindo como Primeiridade e assim impedir o predomínio de um cosmos
determinado estritamente pela lei.
Sendo assim, afirmamos que o motivo da passagem do acaso relativo ao
absoluto é a especulação cosmológica, de caráter científico, a que Peirce dedica-se
a partir de 1890. O sentido forte ou extremo de acaso visa fornecer uma hipótese
genética para sua metafísica evolucionária:
Devemos, portanto, supor um elemento de acaso absoluto, variação
fortuita, espontaneidade, originalidade, liberdade, na natureza.
Devemos, além disso, supor que este elemento em eras passadas
era indefinidamente mais proeminente que hoje, e que a quase exata
conformidade da natureza com a lei, atualmente, é algo que vem
sendo gradualmente adquirido. Devemos supor que quando olhamos
para trás, para o passado indefinido, estamos olhando através de
tempos, quando o elemento da lei desempenhava uma indefinida e
pequena parte no universo. (EP 1, 243, 1886);
122
Enquanto que o acaso matemático, em parte, responde por uma ação
teleológica.
Reynolds (2002), por sua vez, destaca um paradoxo na definição de acaso
como violação de leis da natureza. Haveria, segundo ele, duas interpretações desta
122
“We must therefore suppose an element of absolute chance, sporting, spontaneity, originality, freedom, in
nature. We must further suppose that this element in the ages of the past was indefinitely more prominent
than now, and that the present almost exact conformity of nature to law is something that has been gradually
brought about. We have to suppose that in looking back into the indefinite past we are looking back toward
times when the element of law played an indefinitely small part in the universe.”
99
definição: (i) sentido ativo: de violação, ruptura “real” nas leis; e (ii) sentido passivo:
em que leis não determinam completamente os eventos porque as causas geram
uma multiplicidade de efeitos. O autor argumenta que, ao insistir que leis, de algum
modo, são violadas pela ação do acaso, Peirce estaria contradizendo sua própria
metafísica evolucionária, pressupondo que leis podem ser exatas e, por um motivo
obscuro, sofreriam uma “interrupção misteriosa” (2002: 148).
Ocorre que o acaso, interpretado como ação passiva, a ordem causal seria
mantida, restringindo o acaso à sua esfera epistêmica como desconhecimento de
eventos e deixando válida uma leitura determinista, que Peirce veementemente
repudiou. O universo seria uma equação precisa, exata, e, afinal, não teríamos o
domínio matemático para decifrá-lo em sua complexidade.
Visto de outro modo, a ação ativa significa que o continuum da Terceiridade
não é absoluto porque é constantemente atravessado por um continuum de
possibilidades
123
, o que impede arranjos precisos na composição da Natureza. É um
conceito não somente coerente com a cosmologia peirciana, como também
expressa sua originalidade no tratamento ontológico do acaso.
Em resumo, o conceito de acaso em Peirce reúne duas concepções
diferentes, conforme o quadro abaixo:
CONCEITO DEFINIÇÕES
Acaso Matemático ou
Probabilístico
Aparente violação das leis;
causas desconhecidas/ complexidade de relações
causais;
distribuição aleatória;
leis estatísticas.
Acaso Absoluto Violação das leis;
ausência de leis (causais);
diversidade/ variedade;
contingência/ liberdade;
espontaneidade.
Quadro 6: variedades do conceito de acaso objetivo em Peirce.
123
Ver cap. 12.
100
Nos capítulos subseqüentes, discute-se a problemática da influência
epicurista na definição de acaso absoluto, sua relação com milagres e o caráter
evolucionário do acaso matemático.
101
10. Climanen, milagres e a fratura na ordem
(...)To me every hour of the light and dark is a miracle,
Every cubic inch of space is a miracle,
Every square yard of the surface of the earth is spread with the same,
Every foot of the interior swarms with the same.
To me the sea is a continual miracle,
The fishes that swim--the rocks--the motion of the waves--
the ships with men in them,
What stranger miracles are there?
WALT WHITMAN (“Leaves of Grass”)
124
Se de Aristóteles Peirce retira a concepção de acaso e potencialidades reais,
a noção de acaso como violação de leis, central em sua cosmologia, teria como
referência Epicuro e seus discípulos, mais especificamente, a teoria do clinamen (CP
6.201, 1898, e CP 6.101, 1903; cf. CP 1.403, c. 1890; CP 6.13, 1891; CP 6.36, 1892;
CP 1.132, c. 1893; CP 1.156, c. 1897).
Tito Lucrécio Caro expõe a doutrina em “Da Natureza” (De Rerum Natura).
Ele contesta a teoria atômica determinista, que não espaço para a criação na
Natureza e, conseqüentemente, para a liberdade humana. Para Lucrécio, os átomos
(entendido como corpúsculos) teriam dois movimentos, sendo que, pelo primeiro,
cairiam de modo retilíneo, de cima para baixo, por força de seu peso; o segundo
movimento seria gerado pelo choque entre os átomos. O problema está em que, na
queda de cima para baixo dos átomos, haveria uma sucessão mecânica que não
explicaria a origem da vida e a vontade manifesta nos homens:
(...) se todo movimento é solidário de outro e sempre um novo sai de
um antigo, segundo uma ordem determinada, se os elementos não
fazem, pela sua declinação, qualquer princípio de movimento que
quebre as leis do destino, de modo a que as causas são se sigam
124
“Cada momento de luz ou de treva é para mim um milagre,/ milagre cada polegada cúbica do espaço,/ cada
metro quadrado da superfície da terra/ por milagre se estende, cada pé/ do interior está apinhado de milagres/
O mar é para mim um milagre sem fim:/ os peixes nadando, as pedras,/ o movimento das ondas,/ os navios
que vão com homens dentro/ - existirão milagres mais estranhos?” . Trad. Geir Campos (WHITMAN, 1989:
120-121).
102
perpetuamente às causas, donde vem esta liberdade que têm os
seres vivos, donde vem este poder solto dos fados, por intermédio do
qual vamos aonde a vontade nos leva e mudamos o nosso
movimento, não em tempo determinado e em determinada região,
mas quando o espírito deseja? É sem dúvida na vontade que reside
o princípio de todos estes atos; daqui o movimento se dirige a todos
os membros. (“Da Natureza”, Livro II, 255-260).
Por esta razão, a hipótese do clinamen embora fosse alvo de críticas por
não encontrar subsídios em observações do sentido, única fonte de conhecimento
para a doutrina epicurista tornou-se necessária tanto para a sua cosmologia
quanto para sua ética, frente ao universo determinista dos atomistas gregos. Por
esta hipótese, os átomos deveriam sofrer uma declinação em sua trajetória, mesmo
que ínfima, para que possam reivindicar um movimento além dos externos de queda
e choque e, assim, permitir que haja um componente não previsto na lei e manifeste
sua vontade livre. Nas palavras de Lucrécio:
(...) quando os corpos são levados em linha reta através do vazio e
de cima para baixo pelo seu próprio peso, afastam-se um pouco da
sua trajetória, em altura incerta e em incerto lugar, e tão somente o
necessário para que se possa dizer que se mudou o movimento. Se
não pudessem desviar-se, todos eles, como gotas de chuva, cairiam
pelo profundo espaço sempre de cima para baixo e não haveria para
os elementos nenhuma possibilidade de colisão ou choque; se assim
fosse, jamais a natureza teria criado coisa alguma. (Ibidem, 220).
É essa idéia da doutrina de clinamen que, segundo interpretações de Turley
(1969) e Fisch (1986), se faz presente na formulação do acaso ontológico. Há, pelo
menos, dois problemas em associar a doutrina epicurista com o acaso ontológico.
Primeiro, Peirce, não obstante o registro das citações aos filósofos epicuristas
ocorrerem no período pós-1890, portanto, no período do emprego do sentido “forte”
de acaso em sua obra, não referência explícita ou uma interpretação clara dos
textos gregos por meio das quais Peirce relacione a doutrina epicurista com seu
conceito de acaso absoluto.
A segunda oposição, mais contundente, se refere ao fato de que a doutrina do
clinamen ser mais próxima do sentido de acaso matemático, como feixe de cadeias
causais não-lineares ou desconhecidas. É o que decorre da interpretação de
Deleuze (1994), para quem clinamen não é sinônimo de indeterminação ou
103
contingência. O que se afirma, contra os estóicos, é a impossibilidade de conferir
unidade a uma pluralidade de séries causais, independentes entre si. Ou seja, tanto
epicuristas como estóicos mantém a ordem causal, com a diferença que os estóicos
a associam a um destino, ou síntese das relações causais. Segundo Deleuze:
Os Epicuristas (...) afirmam a independência ou a pluralidade das
séries causais materiais, em virtude de uma declinação que afeta
cada uma; é somente nesse sentido objetivo que o clinamen pode
ser dito acaso. (1994: 277, grifos nossos).
Clinamem, sendo assim, não é um movimento aleatório que, por força do
acaso, perturba a ordem; ao contrário, ele seria uma espécie de ordem adjacente
que seria desconhecida pelos homens, dada sua complexidade, do mesmo modo
que Aristóteles. Caso seja possível estabelecer uma conexão com a teoria peirciana,
esta seria feita com o acaso matemático, não com o absoluto
125
.
Não havendo qualquer noção de acaso absoluto na doutrina epicurista, Peirce
teria interpretado de forma errônea o clinamen ou, no caso de seus comentadores
terem se equivocado, seria preciso buscar outras fontes, que não os epicuristas,
para o tiquismo. Uma aproximação evidente encontra-se no conceito de milagre.
O sentido de acaso como violação das leis da natureza guarda semelhanças
com o conceito de milagres, conforme definido no texto clássico de Hume
126
: “um
milagre é uma violação das leis da natureza” (1980: 182)
127
, portanto, como violação
da experiência uniforme, da regularidade, da cadeia de causalidades. Guardaria este
sentido também homologias epistêmicas e metafísicas com o tiquismo peirciano?
Segundo Hume, milagres são baseados no testemunho de pessoas que os
presenciaram, e esta é a única prova de que de fato ocorreram. Como avaliar a
validade de acordo com a teoria das probabilidades e indução é o problema
colocado pelo filósofo. A questão, segundo o autor, é considerar o que é mais
provável: testemunhos de eventos que contrariam a experiência ou a uniformidade
125
Neste sentido, e sob a perspectiva de leituras contemporâneas como a de Deleuze, é reforçada a tese de
HWANG (1993) de que Peirce teria interpretado mal Aristóteles (Cf. cap. 8 e CP 6.36, 1892).
126
"Of Miracles", cap. X de “Inquiries Concerning Human Understanding” (1748).
127
E também: “Pode-se definir com exatidão um milagre como uma transgressão da lei natural por uma
volição particular da Divindade ou pela intervenção de algum agente invisível.” (HUME, 1980: 182-183).
104
da Natureza?
Por que é mais do que provável que todos os homens deverão
morrer; que o chumbo, por si mesmo, não pode ficar suspenso no ar;
que o fogo consome a madeira e é apagado pela água a não ser
porque sabemos que esses fatos são consentâneos com as leis da
natureza e que é preciso uma violação dessas leis, ou, em outras
palavras, um milagre para impedi-los? (1980: 182).
É mais provável que os testemunhos sejam errôneos ou enganosos do que a
ordem das coisas única fonte de provas científicas - tenha sido subvertida. Na
verdade, a validade de um milagre é um paradoxo: como provar um evento que
contraria a experiência se a própria experiência sensível é a única autorizada a
outorgar sua validade? Hume conclui que milagres não podem existir porque
nenhum testemunho se configura como prova cabal contra os fatos observáveis.
(...) nenhum testemunho em favor de qualquer espécie de milagre
jamais alcançou o nível de uma probabilidade, muito menos de uma
prova; e, ainda que equivalesse a uma prova, a ele se oporia outra
prova, derivada da própria natureza do fato que pretende
estabelecer. a experiência autoridade ao testemunho humano;
e essa é a mesma experiência que nos garante as leis da natureza.
(1980: 188).
Peirce critica o argumento humiano em “Hume On Miracles” (CP 6.522-547),
de 1901, mais especificamente, a concepção subjetiva de probabilidade (cf. HUME,
1980: 157-158; e crítica em CP 6.512, c. 1906). Conforme Peirce observa, Hume
retoma o conceito de milagres dos escolásticos: Tomás de Aquino concebia como
interrupção da ordem na natureza, mas no sentido de ordem real na natureza (ordo
naturae), oposto à concepção dada por Hume, de leis relativas ao conhecimento
humano (lex naturae) (CP 6.542, 1901; WIENER, PEIRCE & LANGLEY, 1947:
206-207).
A retomada do conceito escolástico é essencial para Peirce reformular
milagres como fatos ou eventos sui generis, como obras de gênios da arte e ciência
(CP 6.514, c.1906). O ponto é que, na condição de fatos isolados, milagres não
podem ser considerados probabilisticamente, não podem perfazer amostras para
testes repetidos no procedimento indutivo, e esta é a diferença em relação à teoria
105
das probabilidades de cunho subjetivo de Hume. Em outras palavras, milagres não
são e não podem ser objetos de conhecimento científico: Peirce assume uma
posição agnóstica em que não se pode provar que existam nem o contrário
128
(CP
2.750, 1883; CP 1.90, 1896).
Supostamente, sendo obra de uma intervenção divina, podem ter, como
conseqüência, a violação das leis da natureza, conforme a definição de Hume (que
deixa de ter implicações epistemológicas na análise peirciana). No texto que trata
dos milagres em Hume, Peirce não fala em acaso, mas em outra passagem, faz a
aproximação dos conceitos:
Milagres são para eles [escolásticos] simplesmente o que nenhum
homem pode fazer sem o auxílio específico superior ou o que, ao
menos, são signos de alguma autoridade específica, sem ser, na
realidade, desvios das uniformidades regulares do mundo. De
qualquer modo, minha própria doutrina do Tiquismo (...) deve ter, na
medida que ela é admitida, modificado um pouco essa visão. (CP
6.511, c. 1906)
129
.
Milagres e acaso ontológico teriam o mesmo significado metafísico de quebra,
interrupção, violação de regularidades, na liberdade que escapa ao regime
determinista. Mas uma diferença lógica: milagres, na definição dada por Peirce
de fatos isolados, são eventos singulares, ou seja, absolutamente determinados no
tempo e espaço - e na condição de singular não pode ser objeto de teorização, de
caráter geral - enquanto acaso seria da ordem da possibilidade, possível de
determinação (portanto, geral)
130
. Esta confusão lógica aparece nos exames da
128
Para um exame da crítica de Peirce a Hume e interpretação dos milagres na obra do filósofo norte-americano,
ver AYERS (1980).
129
“Miracles are for them simply what no man can do without special aid from on high, or which at least are
signs of some special authority, without being in reality deviations from the regular uniformities of the world.
However, my own doctrine of Tychism (…) must, in so far as it is accepted, somewhat weaken that view.”
130
Neste contexto, é interessante citar a seguinte passagem de “Variety and Uniformity” (1903): “Muito mais
filosófica e logicamente menos censurável é a noção de Santo Agostinho e outros (que se aproxima da
opinião de Aristóteles) de que o único tipo fundamental de causação é a ação de causas finais, e que a
causação eficiente é, em todos os casos, secundária. Assim, quando ocorre um milagre, ele não é violação do
real cursus naturae, mas somente do curso aparente das coisas.” (CP 6. 101) [Much more philosophical and
less logically objectionable is the notion of St. Augustine and others (it is near to the opinion of Aristotle)
that the only fundamental kind of causation is the action of final causes, and that efficient causation is, in all
cases, secondary. Accordingly, when a miracle occurs there is no violation of the real cursus naturae, but
only of the apparent course of things.]. O que, no entender da presente tese, ratifica a leitura de milagres
como eventos singulares, em nível de causação eficiente, não eventos gerais, em nível de causação final.
Para uma definição de ações causais em Peirce, cf .SANTAELLA, 1992: 77-81.
106
lógica trivalorativa, elaborada por Peirce, feitos pelos comentadores, ao
interpretarem como uma tentativa de construção de tabelas que incluam o acaso,
quando o mais provável, sabe-se hoje, é que seja uma tentativa de acomodar o
singular (ver Apêndice C).
Não compartilhando a mesma natureza “lógica”, como ambos podem ter o
mesmo sentido de iniciarem algo novo? Porque equivalem, metafisicamente, ao
conceito de liberdade que assume, em Peirce, uma forma objetiva no mundo para
explicar a variedade, a heterogeneidade na natureza
131
.
131
É interessante como Hannah Arendt retoma, nos anos 50, a discussão sobre os milagres em seu ensaio sobre
liberdade (ARENDT, 1979) definindo milagres como eventos que interrompem processos automáticos, seja
na Natureza por exemplo, na formação da Terra, no surgimento da vida orgânica e o desenvolvimento da
espécie, marcados por fatores estatísticos, ou milagres - ou na história, neste último sentido, entendidos como
ação livre de homens que assumem seu compromisso político e histórico.
107
IV
Acaso na Cosmologia Peirciana
108
11. Relevância do acaso na evolução
Até onde podemos distinguir, o universo teve início num estado desprovido
de traços característicos. Com o tempo, emergiram a riqueza e a variedade
dos sistemas físicos que vemos hoje. A história do universo é portanto a
história do crescimento da complexidade organizada.
132
PAUL DAVIES
Se o acaso absoluto é formulado para explicar como, no seio da Terceiridade,
surge a espontaneidade e a diversidade, o acaso matemático ou probabilístico, ou
uma concepção “fraca”, fornece uma explicação parcial para a evolução do universo
na cosmologia peirciana. Aqui sugere-se uma complementaridade entre as duas
concepções de acaso na metafísica de Peirce.
Na teoria das probabilidades em sua interpretação frequentista, dada pela
LGN (Lei dos Grandes Números), o acaso move as coisas, a longo prazo, de um
estado homogêneo para heterogêneo. Em parte, este acaso matemático é resultado
do desenvolvimento de técnicas estatísticas e de cálculo de probabilidades iniciadas
no século XVII com Pascal, Fermat e Huygens, na racionalização de jogos de azar e
censo populacional, e que consolidou-se na passagem do século XVIII para o XIX
com Laplace e o emprego em estudos antropológicos, político-econômicos, sociais e
psicológicos com Quetelet, Condorcet, Malpertius e Galton, na França; e com a
Termodinâmica, Teoria Cinética dos Gases e dos Fluídos, na segunda metade do
século XIX, com contemporâneos de Peirce: Boltzmann, Maxwell, Gibbs e
Boussinesf, entre outros. O desenvolvimento destas técnicas estatísticas teve seu
ápice a partir de 1900, com a mecânica quântica que, ao que tudo indica, Peirce não
chegou a conhecer.
Outro componente teórico é facultado com a publicação de “Origin of Species”
(1859) de Charles Darwin, na tese de que a evolução da vida na Terra era explicada,
132
DAVIES, 1994: 106.
109
parcialmente, por um elemento de variação fortuita na seleção natural das espécies.
As idéias de Darwin tiveram forte repercussão entre a comunidade científica de
Harvard na época, suscitando debates em moral, religião, filosofia e ciência. O
impacto no círculo intelectual de Peirce foi relevante a ponto dele afirmar que “(...)
minha opinião é somente o darwinismo analisado, generalizado e conduzido dentro
do domínio da Ontologia.” (W4: 552, 1883/1884) [(...) my opinion is only Darwinism
analysed, generalized and brought into the realm of Ontology.]. A filosofia
evolucionista de Herbert Spencer (W4: 548 e 552) e William Kingdon Clifford (W4:
547)
133
podem ser consideradas fontes secundárias, na medida em que são
aplicações da hipótese evolucionista de Darwin em Filosofia e diálogos que Peirce
estabelece.
O que Peirce apontou de fundamental em ambos modelos estatísticos, um
descrevendo o mundo de objetos ocupando espaço e tempo, outro tratando de seres
orgânicos, foi a possibilidade do universo ser governado por padrões estatísticos,
matematizados pela LGN
134
.
Em “Design and Chance”, e depois em “A Guess At The Riddle” (EP 1,
245-279), 1890, encontram-se as primeiras pistas que permitem compor um quadro
coerente de uma teoria do acaso objetivo em Peirce à luz das teorias da evolução,
em que o acaso matemático possui uma função central. O filósofo parte do princípio
(empregando um exemplo de Gauss) de que não temos nenhuma razão para
acreditar que a soma de três ângulos de um triângulo seja exatamente igual a dois
ângulos retos, podemos apenas dizer que a soma não pode ser muito maior ou
133
De H. Spencer, a filosofia evolucionista exposta em “First Principles” (1862); de William Kingdon Clifford, a
doutrina do “monismo idealista” em “Cosmic Emotion”, publicado em “Lectures and Essays” (1879).
134
A relação é explicitada na seguinte passagem: “A controvérsia a propósito da teoria de Darwin é, em grande
parte, um problema de lógica. Darwin propôs-se a aplicar o método estatístico à biologia. O mesmo se fez
com relação a um muito diferente ramo da ciência, a teoria dos gases. Embora incapazes de antecipar quais
seriam, de acordo com certa hipótese relativa à constituição dessa classe de corpos, os movimentos de uma
partícula de molécula de gás, Clausius e Maxwell tinham, entretanto, oito anos antes da publicação da imortal
obra de Darwin, meio de predizer, pela aplicação da doutrina das probabilidades, que, a longo alcance, tal e
tal proporção de moléculas atingiria, sob certas condições, tais e tais velocidades; que ocorreria, a cada
segundo, tal e tal número relativo de colisões, etc.; e, a partir dessas proposições, tinham como deduzir certas
propriedades dos gases, especialmente no que diz respeito a suas relações-calor. Analogamente, Darwin,
embora incapaz de apontar, frente a um caso individual, qual a operação de mutação e seleção natural a ter
lugar, demonstra que, a longo prazo, essas operações adaptarão ou adaptariam o animal ao respectivo
ambiente.” (CP, 5.364, 1878; ver também CP, 7.66, 1902). Trad. Octanny Silveira da Mota e Leonidas
Hegenberg (PEIRCE, 1972: 73).
110
menor que este resultado (EP 1, 273, 1890, e também W4: 544, 1883/1884, EP 1,
243, 1886, CP 6.29-30, 1891). Não sendo exatos os axiomas da geometria
euclidiana, o que dizer de metafísicas baseadas em verdades a priori de axiomas
geométricos, como os sistemas de Descartes, Kant, Leibniz e Espinosa
135
? Afirma
Peirce:
A exatidão absoluta dos axiomas geométricos foi detonada; e a
crença correspondente nos axiomas metafísicos, considerando-se a
dependência da metafísica da geometria, deve certamente seguí-la
para o túmulo dos credos extintos. (EP 1, 273)
136
.
O alvo da crítica, no entanto, é mais específico, como mostra a seqüência da
citação:
O primeiro a ir deve ser a proposição de que todo evento no universo
é precisamente determinado por causas de acordo com uma lei
inviolável. Não temos nenhuma razão para pensar que isto seja
absolutamente exato. A experiência mostra que é assim um grau
maravilhoso de aproximação, e isso é tudo (...) Sabemos que quando
tentamos verificar qualquer lei da natureza por um experimento,
sempre encontramos discrepâncias entre as observações e a teoria.
Estas, corretamente atribuímos a erros de observação; mas por que
não pode haver aberrações similares devido à obediência imperfeita
dos fatos à lei? (EP 1, 273-274)
137
.
Será que os erros de observação, experimentais, em ciência não teriam um
correspondente real na Natureza? A explicação para as regularidades requer um fato
externo, posto que lei somente pode gerar lei e ainda, não conta da diversidade
presente na natureza nem de eventos de natureza estatística.
135
Essa ligação entre Geometria e Matemática com a Filosofia, que remonta a Pitágoras e Platão, fica explícita
na famosa afirmação de Galileu na obra “Il Saggiatore” (O Ensaiador): “A filosofia encontra-se escrita neste
grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode
compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito
em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos
meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro
labirinto.” (GALILEU, 1996: 46).
136
“The absolute exactitude of the geometrical axioms is exploded; and corresponding belief in the metaphysical
axioms, considering the dependence of metaphysics on geometry, must surely follow it to the tomb of extinct
creeds.”
137
“The first to go must be the proposition that every event in the universe is precisely determined by causes
according to inviolable law. We have no reason to think that this is absolutely exact. Experience shows that it
is so to a wonderful degree of approximation, and that is all (…) We know that when we try to verify any law
of nature by experiment, we always find discrepancies between the observations and the theory. These we
rightly refer to errors of observation; but why may there not be similar aberrations due to the imperfect
obedience of the facts to law?”
111
O postulado da evolução fornece uma explicação cientifica e pressupõe, por
outro lado, que as leis não são perfeitas ou absolutas (CP 6.13, 1891, CP 6.91,
1898). Retornando-se, por meio da análise de vestígios pela ciência, verificam-se
leis menos definidas, mais vagas, em um passado remoto e que devem seguir em
direção a uma ordem maior. Desta linha de raciocínio, chega-se ao vetor
cosmológico da homogeneidade para a heterogeneidade, cujo momento atual, que
permite a existência da vida, é de equilíbrio entre caos e ordem ou de
“uniformidades estatísticas” (CP 6.97, 1903). A seguinte passagem de Spencer,
poderia ter sido escrita por Peirce:
Ao mesmo tempo em que evolução é uma mudança da
homogeneidade para a heterogeneidade, é uma mudança do
indefinido para o definido. Junto com o avanço da simplicidade para
a complexidade, existe um avanço da confusão para a ordem do
arranjo indeterminado para o arranjo determinado. (FP, §129)
138
.
E, agora, Peirce:
(...) todo processo evolucionário que conhecemos parte do vago para
o definido. O futuro indeterminado torna-se passado irretocável. Na
expressão de Spencer, o indiferenciado diferencia-se a si próprio. O
homogêneo leva à heterogeneidade. (CP 6.191, 1898)
139
.
Não obstante, Peirce critica Spencer por explicar a evolução por princípios
mecânicos, isto é, não aplicar o elemento de indeterminação como origem das leis e,
portanto, não explicar as leis (CP 6.14, 1891 e NEM: IV,141). Segundo Peirce,
Indeterminação é realmente o caráter do primeiro. Mas não a
indeterminação da homogeneidade. O primeiro está cheio de vida e
variedade. Todavia, essa variedade é apenas potencial, não está ali
presente definitivamente. Mesmo assim, a noção de explicar a
variedade do mundo, que era aquilo com que eles [os filósofos
gregos] principalmente se preocupavam, pela não variedade, era
completamente absurda. Como é que a variedade pode surgir do
útero da homogeneidade? Somente por um princípio da
espontaneidade, que é exatamente aquela variedade virtual do que é
138
“At the same time that Evolution is change from homogeneous to the heterogeneous, it is a change from the
indefinite to the definite. Along with an advance from simplicity to complexity, there is an advance from
confusion to order – from undetermined arrangement to determined arrangement.”
139
“(…) all the evolution we know of proceeds from vague to the definite. The indeterminate future becomes the
irrevocable past. In Spencers phrase the undifferentiated differentiates itself. The homogeneous puts on
heterogeneity.”
112
o primeiro. (EP, 1 257, 1890)
140
.
Delineia-se, assim, um início de variedade potencial e vagueza e um
crescimento em direção à conformação de leis e uniformidades, que pode ser
disparada e continuar evoluindo por força de um elemento que viole as leis - “Agora,
afirmar que as verdades gerais são objetivamente reais, mas negar que elas são
estritamente universais, exatas e certas, é abraçar a doutrina do acaso absoluto.”
(CP 6.610) [Now, to assert that general truths are objectively real, but to deny that
they are strictly universal, exact, and certain, is to embrace the doctrine of absolute
chance.] e explicada por uma lógica de convergência para um limite central, dado
a longo prazo, fornecido pela LGN. Tal fundamentação lógica envolve:
i. a hipótese evolucionista de Darwin;
ii. uma teoria dos erros de observação;
iii. LGN e teorias freqüentistas de probabilidades;
iv. teoria da indução.
Reynolds (2002) reforça a importância da LGN, de Bernoulli, para a
cosmologia peirciana:
(...) Peirce faz do teorema da convergência da lei dos grandes
números um princípio fundamental em sua lógica objetiva dos
eventos, garantindo a evolução coerente da lei natural sobre uma
série de eventos a longo prazo (...) Um dos mais centrais fios
condutores através do qual se a cosmologia é a lei dos grandes
números; ela representa para Peirce uma justificativa do método
indutivo de inquirição e da lógica evolucionária do desenvolvimento
do universo, bem como a possibilidade de explicar a ampla escala de
regularidades estáveis como resultado do efeito cumulativo de uma
variedade de elementos independentes (acaso). (REYNOLDS, 2002:
161)
141
.
140
Trad. José Teixeira Coelho Neto (PEIRCE, 1977:12).
141
“(...) Peirce made of the law of large numbers convergence theorem a fundamental principle of his objective
logic of events, guaranteeing the coherent evolution of natural law over the long-run series of events (...) One
os the most central strands running throughout cosmology has been the law of large numbers; it represents
for Peirce a justification of both the inductive method of inquiry and the evolutionary logic of the universe's
development, as well as the possibility of explaining large-scale stable regularities as the result of the
accumulative (chance) effect of multitudinous independent elements.”
113
Porém, somente o acaso matemático não é suficiente para dar conta do
processo evolutivo. O tiquismo envolve não somente a hipótese do acaso como a
tendência para aquisição de hábitos (CP 6.297 e 298, 1892; RTL, 241, 1898; CP
6.97, 1903; cf. HOOKWAY, 1997: 02), que são dois modos distintos de
indeterminação. A tendência para aquisição de hábito é o princípio pelo qual toda
regularidade do universo é formada. Se o acaso matemático, em seu aspecto
convergente, define uma sedimentação espaço/temporal a partir da colisão arbitrária
de trilhões de partículas, é pela força do hábito que se tem uma racionalização do
processo, numa síntese de tramas costuradas pelo acaso.
Sob a égide do idealismo objetivo peirciano, segundo o qual tudo é ideal
(mente), acaso e hábitos são momentos conexos na evolução smica. Matéria são
hábitos cristalizados, tornados “duros” em um estágio final de desenvolvimento, em
que está ausente todo sentimento, toda aleatoriedade; mente, ao contrário, deve
toda sua plasticidade ao predomínio de qualidades, potencialidades vivas (W4: 553,
1883/1884; CP 6.25, 1891; CP 6. 158, 1892; CP 6. 148, 1892; CP 6. 277, c.1893) . A
sina do universo é domesticar o acaso em resoluções semióticas.
Após a formulação do tiquismo, Peirce insere um terceiro princípio que
objetiva sintetizar acaso e hábitos na evolução. No texto “Evolutionary Love” (CP
6.287-317), de 1893, último artigo da série sobre cosmologia para o The Monist”, é
ágape, ou amor criativo, que reúne razão (hábito) e afetividade (acaso) na geração
de propósito que resulta em um cosmos de essência estética. No texto, são
descritas três forças evolucionárias atuantes: variação fortuita, necessidade
mecânica e amor criativo
142
(CP 6.302), sendo que as duas primeiras são formas
degeneradas da terceira (CP 6.303), o que quer dizer que acaso e causalidade são
formas rudimentares e incompletas do ágape. É então o ágape, instância da
Terceiridade, que vai fornecer a síntese que falta ao acaso, elemento bruto e cego
da experiência, de pura espontaneidade, para orientar a tendência para aquisição de
hábitos. Com base na leitura de Silveira (1985), pode-se distinguir três
características que fazem do ágape a força evolutiva do cosmos:
142
Na conceituação de Peirce, respectivamente, evolução ticástica (tiquismo), anancástica (anancismo) e
agapástica (agapismo).
114
i. Ágape como síntese da racionalidade cósmica.
Por ser uma força de afetividade, que reúne semelhanças (hábitos) e
diferenças (acaso) por afeto ou amabilidade, o amor criativo confere uma
totalidade ao processo evolutivo cósmico, unindo dois contínuos: da
Primeiridade e da Terceiridade. “O movimento do amor é circular, num único e
mesmo impulso projetando criações na independência e levando-as à
harmonia.” (CP 6.288).
ii. Ágape como propósito/ télos.
O amor criativo, em sua busca incessante pela perfeição e harmonia, em sua
entrega ao todo, justifica e fornece um propósito que falta ao movimento de
aquisição de hábitos, que é uma tendência natural do cosmos. É o que Peirce
atribui ao significado de “sacrificar sua perfeição pela perfeição do próximo”
(CP 6. 288) e, desta forma, agir em direção a um objetivo.
iii. Ágape como princípio de desenvolvimento da mente/cosmos.
Sendo uma síntese de afeto e razão e conferindo propósito ao processo
evolucionário, o ágape é, assim, o princípio de desenvolvimento da mente e
do cosmos.
Todos podem ver que o enunciado de São João é a fórmula de uma
filosofia evolucionária, que ensina que o crescimento vem apenas do
amor, não direi do auto-sacrifício, mas da aspiração ardente de
realizar as aspirações mais altas do outro. Suponha, por exemplo,
que eu tenha uma idéia que me interessa. É minha criação (...) Eu a
a amo e me empenharia em aperfeiçoá-la (...) A filosofia que
extraímos do Evangelho de São João é a de que é desta forma que a
mente se desenvolve. De igual modo, o cosmos também é capaz de
continuar evoluindo, na medida mesma em que também é mente, e
como tal, é dotado de vida. O amor, ao reconhecer os germes da
amorosidade no que é odioso, gradualmente o aquece para a vida,
tornando-o amável. (CP 6. 289)
143
.
Ibri (2005) faz uma leitura original da doutrina do amor evolutivo em Peirce, ao
destacar o dual atributo semântico da palavra affect, como afetar e afeiçoar-se, na
143
Trad. Basílio João Sá R. Antônio (ANTÔNIO, 2006).
115
passagem do ensaio “The Law of Mind”:
A análise lógica aplicada aos fenômenos mentais mostra que
apenas uma lei da mente, a saber, que as idéias tendem a se
propagar continuamente e afetar outras que estão para elas numa
relação peculiar de afetibilidade. Nessa propagação, elas perdem a
intensidade e, especialmente, o poder afetante, mas ganham
generalidade e vinculam-se com outras idéias. (CP 6. 104, 1992)
144
.
Por afetar, quer-se dizer que as idéias evoluem por uma interação ou
oposição lógica, em que um elemento afeta outro, sugerindo um domínio da
Segundidade, ou evolução por necessidade, que por sua vez, irão unir-se por
afetividade, obra do ágape. E é desta forma que novas idéias podem se originar,
desvelando o vigor heurístico do agapismo, de acordo com a análise de Ibri
145
, e
oferecendo vestígios de uma realização última do cosmos de intensa criação de
ordem estética, pouco afeita a equações exatas ou engrenagens de uma máquina
determinista.
Em resumo, evolução, segundo Peirce, congrega teorias complexas,
envolvendo:
i. A dupla articulação do tiquismo em: (a) acaso e (b) hábitos, sendo o acaso
compreendido em dois conceitos distintos, um deles o matemático, dado pela
LGN que justifica o vetor cosmológico e que emerge de propriedades
randômicas.
ii. Agapismo.
Mas como uma homogeneidade primordial pode ser variedade potencial?
Como as leis surgem de um estado de pura indeterminação? E como o universo se
torna mais complexo e diverso e, ao mesmo tempo, mais definido?
144
Trad. Ivo Assad Ibri (IBRI, 2005: 188-189), grifos do tradutor.
145
“O agapismo (...) constitui uma explicação a respeito da estrutura do universo que tem correlação com a
heurística de Peirce. Tal heurística não apenas perpassa nossas formas de conjecturar, de encontrar
representações verdadeiras, mas também, o seu plano mais geral, a saber, a formação e o crescimento da
terceiridade como um todo, como uma tendência do Universo.” (IBRI, 2005: 198).
116
12. Continuum de potencialidades na origem do cosmos
Le flux et reflux de cette eau, son bruit continu mais renflé par intervalles
frappant sans relâche mon oreille et mes yeux, suppléaient aux
mouvements internes que la rêverie éteignait en moi et suffisaient pour me
faire sentir avec plaisir mon existence sans prendre la peine de penser. De
temps à autre naissait quelque faible et courte réflexion sur l'instabilité des
choses de ce monde dont la surface des eaux m'offrait l'image : mais bientôt
ces impressions légères s'effaçaient dans l'uniformité du mouvement
continu qui me berçait, et qui sans aucun concours actif de mon âme ne
laissait pas de m'attacher au point qu'appelé par l'heure et par le signal
convenu je ne pouvais m'arracher de là sans effort.
146
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
Pode-se dizer que a moeda da cosmologia peirciana tem, numa das faces, a
doutrina do tiquismo, e na outra, a doutrina do sinequismo, pólos distintos de
indeterminações no jogo entre potencialidade e atualidade que sintetiza sua
filosofia
147
. Sinequismo, segundo Peirce, é “(...) aquela tendência de pensamento
filosófico que insiste na idéia de continuidade como de importância vital em filosofia.”
(CP 6.169, 1902; ver também CP 6.103, 1892; CP 7.565-578, 1892; CP 1.172 1897;
CP 6.173, 1902; CP 5.4, 1902; CP 8.257, 1902; CP 8.244, 1904; CP 4.584, 1906)
[(...)that tendency of philosophical thought which insists upon the Idea of continuity
as of prime importance in philosophy.].
Continuidade é um conceito tradicional em matemática que o filósofo
empregou com originalidade em filosofia, e que se tornou uma espécie de centro
146
“O fluxo e o refluxo dessa água, seu ruído contínuo mas crescente por intervalos, atingindo sem repouso
meus ouvidos e meus olhos, supriam os movimentos internos que o devaneio extinguia em mim e bastavam
para me fazer sentir com prazer minha existência sem ter o trabalho de pensar. De tempos em tempos, nascia
alguma fraca e curta reflexão sobre a instabilidade das coisas deste mundo do qual a superfície das águas me
oferecia a imagem: mas, em breve, essas impressões leves se apagavam na uniformidade do movimento
contínuo que me embalava, e que, sem nenhuma ajuda ativa de minha alma, não deixava de me fixar, a tal
ponto que, chamado pela hora e pelo sinal combinado, não podia arrancar-me de sem esforço.”. Trad.
Fúlvia Maria Luiza Moretto (ROUSSEAU, 1995: 75).
147
A metáfora se restringe a fins explicativos da cosmologia peirciana, uma vez que o filósofo considerou o
tiquismo como um corolário ou parte de sua doutrina sinequista (CP 8.252, 1897), esta sim, por ele
considerada, em seu pensamento maduro, como a grande síntese de seu sistema filosófico (CP 6.202, 1898).
117
lógico no qual gravitam suas doutrinas, em especial o pragmatismo
148
. Nos limites da
tese, empregaremos o termo no estudo da cosmologia em função da teoria do
acaso.
A noção de continuidade em Peirce passou por reformulações ao longo de
seus estudos em lógica
149
, até chegar a uma confluência das acepções dadas por
Aristóteles, de algo cujas partes possuem limites comuns
150
, e de Kant, de infinita
divisibilidade (entre quaisquer dois pontos existe um terceiro)
151
, ou seja, o
continuum peirciano é algo divisível infinitamente e cujas partes têm limites comuns.
Mas, para que seja divisível infinitamente, os pontos da linha não podem ser
definidos, porque isso quebraria a continuidade. Este é o ponto importante para a
compreensão da doutrina da continuidade. Portanto:
Um continuum real é algo cujas possibilidades de determinação
nenhuma multitude de individuais pode exaurir. Assim, nenhuma
coleção de pontos colocados sobre uma linha contínua real pode
preencher a linha, de modo a não deixar espaço para outros, se bem
que a coleção possui um ponto para cada valor, nos quais números,
infinitamente continuados dentro de casas decimais, poderiam se
aproximar; nem se ela incluir um ponto para cada possível
permutação de todos estes valores. (CP 6.170, 1902; ver também CP
4. 219, 1897; RLT: 160, 1898)
152
.
148
Para um estudo sobre a continuidade na filosofia peirciana ver PARKER (1998).
149
Segundo POTTER, S.J. & SHIELDS (1977), Peirce trabalhou o conceito de 1880 a 1911, até atingir precisão
e sofisticação satisfatórias para seu sistema. As mudanças de definições, para os autores, podem ser divididas
em três períodos: i) Pré-cantoriano (até 1884); ii) Cantoriano (1884-1894); iii) Kanticidade (1895-1908); e
iv) Pós-cantoriano (1908-1911).
150
“Contínuo é certo tipo de contigüidade. E fala-se de contínuo quando os termos com os quais as coisas se
tocam e se mantém unidas tornam-se um único termo: portanto, é evidente que o contínuo ocorre nas coisas
que por via de contato podem produzir uma unidade natural.” (Met., Κ, 12, 1069a 5). “O contínuo é uma
subdivisão do contíguo; assim, por exemplo, digo que uma coisa é contínua com outra quando seus limites
tocam entre si, chegando a ser um e o mesmo, e, como indica a palavra, se 'contém' entre si (...)” (Física, V 3,
227a10-15; ver também ibid. 226B25-30; opus cit. VI 1, 231b15; ibid. 231a -232a20).
151
“A propriedade das quantidades segundo a qual nenhuma parte é nelas menor possível (nenhuma parte é
simples) chama-se continuidade das quantidades.” (CRP B 211) e também “Ora, essa é a lei da continuidade
de todas as mudanças, cujo fundamento é o seguinte: nem o tempo nem tampouco o fenômeno no tempo
consiste de partes que sejam as menores possíveis, e não obstante em sua mudança, o estado da coisa passa
por todas estas partes enquanto elementos a um segundo estado. Não nenhuma diferença do real no
fenômeno, assim como nenhuma diferença na quantidade dos tempos, que seja a menor possível. Desse
modo, o novo estado da realidade emerge a partir do primeiro, em que não era, através de todos os graus
infinitos dela, cujas diferenças entre si são todas menores do que a diferença entre zero e A.” (CRP B 254).
152
“A true continuum is something whose possibilities of determination no multitude of individuals can exhaust.
Thus, no collection of points placed upon a truly continuous line can fill the line so as to leave no room for
others, although that collection had a point for every value towards which numbers, endlessly continued into
the decimal places, could approximate; nor if it contained a point for every possible permutation of all such
values.”
118
É condição necessária para um contínuo ser constituído de partes indefinidas;
definir é quebrar o contínuo, inserir uma descontinuidade na linha. Portanto,
diferente de Kant, a linha não possui pontos, a não ser potenciais, até que a
continuidade seja rompida. Conforme na representação abaixo:
Quadro 7: exemplo de contínuo/ descontínuo.
Por multitude, Peirce entende uma característica que torna uma coleção
maior que algumas coleções e menor que outras, em relação com o todo (CP 4.175,
1897)
153
. Assim, dado um conjunto A com membros que estão em relação {r} com o
conjunto B, esse conjunto A contém uma coleção que varia de graus, ou multitudes,
que Peirce classifica em três tipos (CP 7.209, 1901):
i. enumerável: em que os membros da coleção A possuem multitude
menor que os números finitos de B;
ii. denumerável: em que os membros da coleção A estão em
correspondência de um-para-um com a totalidade de B (CP 4.639, 1908 e CP
4.182, 1901); e
153
Nesta passagem, lê-se: “Empregarei a palavra multitude para denotar esse caráter de uma coleção em virtude
da qual é maior do que algumas coleções e menor que outras, desde que a coleção seja discreta, isto é, desde
que as unidades constituintes da coleção sejam ou possam ser distintas. Mas quando as unidades perdem sua
identidade individual, pelo fato da coleção exceder cada existência positiva do universo, a palavra multitude
cessa de ser aplicável.” [I shall use the word multitude to denote that character of a collection by virtue of
which it is greater than some collections and less than others, provided the collection is discrete, that is,
provided the constituent units of the collection are or may be distinct. But when the units lose their individual
identity because the collection exceeds every positive existence of the universe, the word multitude ceases to
be applicable.].
119
iii. abnumerável: em que os membros da coleção A possuem multitude
maior que os números finitos de B (CP 4.639-640, 1908).
No primeiro caso, as partes são menores que o todo, enquanto no segundo,
expressa uma relação isomórfica de números inteiros com classes finitas e, nestes
termos, cada marca de uma linha corresponde a um número real, formando um
contínuo de pontos distintos. Já a multitude abnumerável se refere a classes infinitas
não-denumeráveis em que os membros não podem ser distinguidos dos demais por
marcas, isto é, perdem sua definibilidade, tornam-se possíveis de atualização,
atendendo à definição de contínuo verdadeiro de Peirce
154
:
Bastará, portanto, definir um multitude abnumerável como um
multitude maior do que aquela de todos números inteiros finitos. Se
houver um lugar em uma linha para qualquer multitude de pontos,
não importa de que tamanho, uma continuidade genuína implica,
então, que o agregado dos pontos em uma linha é demasiado grande
para formar uma coleção: os pontos perdem sua identidade; ou
melhor, nunca tiveram qualquer identidade numérica, pela razão de
que são somente possibilidades, e são, portanto, essencialmente
gerais. Tornam-se individuais somente quando são separadamente
marcados na linha; e, por mais que sejam separadamente marcados,
lugar para marcar mais em qualquer multitude. (CP 7.209,
1901)
155
.
São conjuntos de multitudes abnumeráveis, que não se limitam a nenhuma
multitude de indivíduos distintos. Por exemplo, uma coleção de todos números
inteiros {0, 1, 2, 3, 4.... n} é indeterminada, infinita, mas determinável, por exemplo,
no conjunto {0, 1, 2, 3}.
Multitudes abnumeráveis têm multitude maior que qualquer outra de
indivíduos distintos porque são meras potencialidades, passíveis de se tornarem
atos, de serem definidas:
154
Esse é o ponto da crítica de Peirce ao matemático Georg Cantor (1845-1918), cujo teorema determina a
possibilidade de gerar-se uma série infinita não-denumerável de números cardinais, ou seja, construir um
contínuo de membros individuais. Cf. CP 6.121, 1892; CP NEM: IV, 342, 1898; NEM: IV, 7, 1901; NEM: IV,
325 e 330, c. 1906.
155
“It will, therefore, suffice to define an abnumerable multitude as a multitude greater than that of all the finite
whole numbers. If there is room on a line for any multitude of points, however great, a genuine continuity
implies, then, that the aggregate of points on a line is too great to form a collection: the points lose their
identity; or rather, they never had any numerical identity, for the reason that they are only possibilities, and
therefore are essentially general. They only become individual when they are separately marked on the line;
and however many be separately marked, there is room to mark more in any multitude.”
120
Aquilo que é possível é, deste modo, geral, e, enquanto geral, deixa
de ser individual. Assim, recordando que a palavra “potencial”
significa indeterminado mas passível de determinação em qualquer
caso específico, pode haver um agregado potencial de todas as
possibilidades que são coerentes com certas condições gerais; e isto
pode ser tal que, dada uma coleção qualquer de indivíduos distintos,
uma coleção de maior multitude que a coleção dada pode ser
atualizada a partir desse agregado potencial. Portanto, o agregado
potencial é, com exatidão mais estrita, maior em multitude do que
qualquer multitude possível de indivíduos. Mas, visto ser apenas um
agregado potencial, não contém qualquer número de indivíduos. Ele
apenas contém condições gerais que permitem a determinação de
indivíduos. (CP 6.185, 1898)
156
.
Note-se que esta é a chave para a compreensão do pragmatismo peirciano,
em que o significado de uma proposição é dado em suas condições possíveis de
determinação, ou seja, em sua generalidade, não em sua atualidade. E esta também
será essencial para a compreensão da cosmogênese.
A cosmologia peirciana, do mesmo modo que a metafísica, é construída em
base lógica, em especial na noção de continuidade. Em Peirce, o universo se inicia
em um germe de potencialidades sem dimensões - completamente vagas,
indefinidas, ilimitadas e indeterminadas - um flash ou um estado de nada absoluto
(6.214, 1898; EP 1, 278, 1886). O nada do início pré-material não é negativo, porque
negação envolve negação de algo, portanto, dualidade, esfera da Segundidade;
trata-se, portanto, de uma positividade, uma nada germinal
157
.
De acordo com a lógica dedutiva, nada poderia advir deste estado de pura
possibilidade; por esta razão o universo de Hegel é racional, dedutivo
158
. Mas o
156
“That which is possible is in so far general and, as general, it ceases to be individual. Hence, remembering
that the word ‘potential’ means indeterminate yet capable of determination in any special case, there may be
a potential aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions; and this may
be such that given any collection of distinct individuals whatsoever, out of that aggregate there may be
actualized a more multitudinous collection than given collection. Thus the potential aggregate is, with the
strictest exactitude, greater in multitude than any possible multitude of individuals. But being a potential
aggregate only, it does not contain any individuals at all. It only contains general conditions which permit the
determination of individuals.”
157
A reconstrução da cosmologia peirciana foi realizada, com precisão e originalidade, em IBRI: 1992, no cap.
5, “A Cosmologia: o fundamento ontológico das categorias”, ao qual confere-se os préstimos da orientação
deste capítulo da tese.
158
Essa é a principal crítica de Peirce a Hegel. “Ele [Hegel] diz, se existe qualquer sentido em filosofia, de
qualquer modo, por menor que seja, é racional, e foi forçado a ser o que é pela lógica dos eventos; assim não
existe nenhum princípio de ação no universo, mas razão. Mas eu respondo que esta linha de pensamento,
embora tenha começado correta, não é exata (...) pois agica da evolução e da vida não precisa supor que
121
silogismo aqui é o hipotético: “Algo é possível; x é algo; logo, x é possível” (CP
6.220, 1898). Deste modo, do zero absoluto salta-se para a unidade potencial,
algum possível, na forma de um contínuo unidimensional de qualidades, foro da
Primeiridade.
Entra em jogo uma distinção sutil de potencialidades: uma primeira ilimitada,
espécie de Zeroidade, um caos primordial, dando lugar a uma potencialidade mais
limitada mas não definida, apenas possível de determinação da ordem da
heterogeneidade.
É a construção de um continuum cósmico, em que o primeiro antecedente é
um ponto zero, e o último, em termos semióticos, a realidade desvelada, o
interpretante final
159
. Entre um ponto e outro do contínuo, um misto de caos e ordem
em que a vida é possível. Esse contínuo explica passagem do zero para o 1:
O último antecedente é um zero sem extensão; o último conseqüente
é a vasta multiplicidade. Conseqüentemente, o continuum de
possível qualidade em N dimensões deve estar em uma seqüência
começando de um ponto e expandindo para o limite final de N -1
dimensão. Lógica radia como luz. Em direção ao final da seqüência,
portanto, todas as qualidades vêm juntas em um zero. Mas elas são
separadas uma das outras como se separam do zero. Isto você
percebe descrevendo a relação de intensidade variada. Um verde
com zero luminosidade é o mesmo que um vermelho de zero
luminosidade, ou um som de zero sonoridade. Isto tudo é um zero.
(NEM: IV, 128)
160
.
seja deste gênero inflexível, que força absolutamente a dada conclusão. A lógica pode ser aquela da
inferência indutiva ou hipotética (...). O efeito do equívoco de Hegel é que ele é forçado a negar o caráter
fundamental de dois elementos da experiência, os quais não podem resultar da lógica dedutiva.” [He says, if
there is any sense in philosophy at all, the whole universe and every feature of it, however minute, is rational,
and was constrained to be as it is by the logic of events, so that there is no principle of action in the universe
but reason. But I reply, this line of thought, though it begins rightly, is not exact (…) for the logic of
evolution and of life need not be supposed to be of that wooden kind that absolutely constrains a given
conclusion. The logic may be that of the inductive or hypothetic inference (…). The effect of this error of
Hegel is that he is forced to deny the fundamental character of two elements of experience which cannot
result from deductive logic] (CP 6.218, 1898; cf. CP 1.524, 1903; CP 5.436, 1904 e NEM IV: 30- 31).
159
Interpretante final é um dos conceitos mais discutidos na teoria dos interpretantes de Peirce. Ele corresponde
a um limite ideal para o qual converge a semiose, a ação do signo. Para uma análise da teoria dos
interpretantes no contexto da semiótica peirciana, cf. SANTAELLA: 1995.
160
“The ultimate antecedent is a zero without extension; the ultimate consequent is a vast manifold. Hence, the
continuum of possible quality in N dimensions must be in a sequence starting from a point and expanding to
a final limit of N 1 dimensions. Logic radiates like light. At one end of the sequence then all the qualities
come together in a zero. But they are separable from one another as they separate from zero. This you
perceive describes the relation of varying intensity. A green with zero luminosity is the same as a red of zero
luminosity, or a sound of zero loudness. It is all one zero.”
122
Ou seja, do zero de qualidades indistintas, seguindo a tendência de
diferenciação, passamos para um contínuo unidimensional de qualidades. Isso
ocorre porque o zero se auto-anularia, como uma potencialidade não realizada, não
existindo qualquer espécie de universo. Cada qualidade estabelece uma dimensão
no contínuo. Mas, quando se torna um contínuo unidimensional de qualidades,
passa do zero ao 1, surge uma impossibilidade lógica: a dimensão quebra contínuo.
De um conjunto abnumerável de n dimensões, passa-se a uma dimensão menor n
1, determinada:
Todo complexo de qualidades é uma qualidade, e como tal,
considerada por si mesmo, é tudo que é em e para si mesma. Não
somente todo complexo de qualidades, mas toda generalização de
tais complexos, é uma qualidade possível. Toda essa qualidade
perfaz uma dimensão no continuum de qualidade. Mas deste modo,
as dimensões do continuum de qualidade deveria exceder toda
multitude discreta. Em resumo, elas deveriam formar um continuum;
mas não existe tal coisa como um continuum de dimensões. Isto é
impossível. Conseqüentemente, estas dimensões da qualidade
complexa são somente abstratamente possíveis. Elas não podem ter
existência simultânea em um mundo de potencialidades. O que
requer então a lógica dos eventos? O que ela requer, como um
resultado hipotético objetivo, é que uma seleção arbitrária delas
deveria aglomerar-se fora das outras. Esta é existência, arbitrária e
cega reação contra todas outras de combinações acidentais de
qualidades. (NEM: IV, 135)
161
.
Da impossibilidade da constituição de um contínuo de dimensão N -1, as
qualidades diferenciam-se em reações acidentais, por acaso, e, ao diferenciarem-se,
reagem umas contra as outras, fazendo surgir singularidades, existência,
individualidade. Explica-se a passagem da Primeiridade para a Segundidade, no
surgimento da istidade [thisness]:
A verdadeira característica da istidade é dualidade; e é somente
quando um membro de um par é considerado exclusivamente que
161
“Every complexus of qualities is a quality, and as such, considered by itself, is all that is in and for itself. Nor
only every complex of qualities but every generalization of such complexes is a possible quality. Every such
quality makes a dimension of the continuum of quality. But in this way, the dimension of the continuum of
quality ought to exceed every discrete multitude. In short, they should form a continuum. But there is no such
thing as a continuum of dimensions. It is impossible. Hence, these dimensions of complex quality are only
abstractly possible. They cannot have simultaneous being in the world of potentialities. What then does the
logic of events require? What is required, as an objectively hypothetic result, is that an arbitrary selection of
them should crowd out the others. This is existence, the arbitrary, blind, reaction against all others of
accidental combinations of qualities.”
123
ele aparece como individualidade (...) Istidade, em resumo, é reação.
O que quer que reaja contra alguma coisa diversa é um isto; e todo
isto, deste modo, reage. Reação é dualidade. Toda dualidade é
reação no mundo no qual subsiste dualidade. Se a dualidade é
meramente mental minha própria paridade arbitrária de coisas
então uma única idéia reage sobre a outra em meu pensamento
arbitrário. Mas se a reação pertence a um sistema arbitrário de
pares, que insiste em serem emparelhados e cujos sistemas de
conjuntos em si mesmo são um enfático segundo para o mundo de
possibilidade - então dizemos que isto é uma reação real. (NEM: IV,
136)
162
.
Peirce emprega o conceito de haecceitas (istidade) do escolástico John Duns
Scotus (c. 1265-1308), na reformulação do realismo do autor norte-americano nos
escritos maduros. Haecceitas, em Scotus, é um princípio de individuação do ente.
Segundo o Scotus, a essência é comum (geral) e para se definir como existente, ou
para ser individualizada, precisa de algo que lhe é exterior, obtendo características
que tornem o ente único e distinga dos demais
163
.
Em Peirce, istidade surge com as reações arbitrárias de qualidades. Reações
requerem um outro contra quem se reage, portanto, é dual, quebra a unidade e
interrompe a continuidade, estabelecendo um elemento discreto. Sendo individual, é
anti-geral.
Mas o vago que se define, se particulariza, por obra do acaso, constitui
singularidades que adquirem permanência no tempo e, deste modo, formam um
segundo continuum, um continuum de necessidade. Dois contínuos que são duas
formas distintas de gerais, um possível e outro necessário. É a tendência de formar
hábitos que justifica o universo cognoscível. Ele se conforma em três momentos,
parindo do Nada, sendo um elemento de liberdade e acaso, de meras qualidades
(Primeiridade), que lugar a reações aleatórias, gerando eventos particulares
(Segundidade); estes, adquirindo permanência por hábito, geram regularidades
162
“The true characteristic of thisness is duality; and it is only when one member of the pair is considered
exclusively that it appears as individuality (…) Thisness, in short, is reaction. Whatever reacts against
something else is a this; and every this so reacts. Reaction is duality. All duality is like reaction in the world
in which the duality subsists If the duality is merely mental, - my own arbitrary paring of things, - then the
one idea reacts upon the other in my arbitrary thought. But if the reaction belongs to an arbitrary system of
pairs, which insist upon being paired, - and which system sets itself off an emphatic second to the world of
possibility, then we say it is real reaction.”
163
Cf. CP 1.405, c. 1890; CP 3.434, 1896; BOLER, 1963, cap. II “The Realism of John Duns Scotus”; BOLER,
2005; IBRI, 1992, cap. 2 “Realismo e Concepção Categorial de Mundo”.
124
(Terceiridade).
O universo possui uma lógica, que pode ser compreendida em uma
filosofia hiperbólica (CP 6.582-585, 1905) em que a evolução percorre um caminho
das premissas à sua conclusão, com dois extremos do contínuo:
O estado das coisas no passado infinito é caos, o tohu bohu [sem
forma e vazio], cuja nadidade consiste na ausência total de
regularidade. O estado das coisas no futuro infinito é a morte, cuja
nadidade consiste no triunfo completo da lei e na ausência de toda
espontaneidade. Entre estes, temos ao nosso lado um estado das
coisas em que há alguma espontaneidade absoluta contrária a toda a
lei, e algum grau de conformidade à lei, que está constantemente
aumentando devido ao crescimento do hábito. (CP 8.317, 1891)
164
.
O que leva o cosmos de um ponto ao outro, segundo Peirce, é o princípio de
aquisição de hábitos (CP 6.262, 1892). O último estágio é entendido como a
materialização completa da mente na forma de hábitos rígidos. O limite extremo da
série infinita de representações, que podemos chamar semiose cósmica
165
, é a
realidade desvelada, a verdade última, da qual podemos ter esperança de atingir,
ou seja, é um princípio regulativo, não constituinte
166
.
Conseqüentemente, o processo evolutivo macrocósmico teria um caráter
lógico-semiótico, em que as representações tendem a se corrigir até o limite ideal.
Deste modo, no tiquismo, acaso absoluto e lógico-matemático são concepções
complementares na teorização de um universo em equilíbrio entre caos e ordem. O
que impede que o universo se conforme a uma natureza dedutivista, desenhada
pela lei de aquisição de hábitos, é a evolução do acaso, o fato do cosmos também
realizar abduções. É o que se sustenta, em detalhes, no capítulo final desta tese.
164
“The state of things in the infinite past is chaos, tohu bohu, the nothingness of which consists in the total
absence of regularity. The state of things in the infinite future is death, the nothingness of which consists in
the complete triumph of law and absence of all spontaneity. Between these, we have on our side a state of
things in which there is some absolute spontaneity counter to all law, and some degree of conformity to law,
which is constantly on the increase owing to the growth of habit.”
165
Por semiose cósmica entendemos a ação do signo operando na Natureza.
166
Em Kant, o princípio constitutivo se pelo uso apodítico da razão, ou raciocínio dedutivo, em que o
universal é tomado como certo e o particular ocorre por necessidade (lembrando que o raciocínio dedutivo é,
par excellence, a razão em Kant), enquanto que, no princípio regulativo, tem-se o uso hipotético da razão,
isto é, em que “o universal é admitido problematicamente” (CRP B 674-675); é o reino do falível, do
possível, que possui propriedade normativa para a conduta humana. Josué Cândido da Silva (SILVA: 2007)
discute em sua tese a possibilidade de uma fundamentação transcendental da semiótica, com base na
interpretação de Karl-Otto Apel, ratificando o caráter eminentemente regulativo da lógica peirciana.
125
13. Acaso como fonte de organização
A termodinâmica dos processos irreversíveis descobriu que os fluxos que
atravessam certos sistemas físico-químicos e os afastam do equilíbrio
podem nutrir fenômeno de auto-organização espontânea, ruptura de
simetria, evoluções no sentido de uma complexidade e diversidade
crescentes. No ponto onde se detêm as leis gerais da termodinâmica pode-
se revelar o papel construtivo da irreversibilidade; é o domínio onde as
coisas nascem e morrem ou se transformam numa história singular tecida
pelo acaso das flutuações e a necessidade das leis.
ILYA PRIGOGINE
167
um paradoxo na tese da irreversibilidade temporal que não foi tratado
diretamente por Peirce, mas que é relevante por trazer elementos para um resultado
do tiquismo que antecipa trabalhos posteriores em ciência. O paradoxo está no fato
de, enquanto a teoria de Darwin enfatiza um crescimento em direção à diversidade
da Natureza, em que os seres vivos evoluem por ganhos de complexidade, a
segunda lei da termodinâmica indica um crescimento em direção à homogeneidade,
à entropia.
De um lado, na termodinâmica clássica, a segunda lei aponta para uma
tendência de indiferenciação térmica de sistemas adiabáticos, a saber, a um estado
entrópico. Por outro, a termodinâmica estatística indica que os sistemas adiabáticos
tendem a um aumento da desordem, que se traduz numa indiferenciação entre seus
elementos. Sistemas fechados, assim, em ambos os casos tendem à desordem no
sentido de indiferença energética ou sistêmica.
O tiquismo contraria a lei da conservação de energia e afirma a tese da
irreversibilidade temporal. Antes de analisarmos a solução peirciana para o
paradoxo, definiremos alguns princípios da termodinâmica.
O princípio de conservação de energia, conhecido como a primeira lei da
167
PRIGOGINE, 1997: 207.
126
termodinâmica, foi matematizada pelo médico alemão Julius Robert Mayer
(1814-1878), em 1842. A primeira lei diz que a energia interna de um sistema (dv) é
o trabalho realizado (dw) mais o calor transferido (dq) para o sistema ou:
dv= dw + dq
O que significa que, em um sistema idealmente isolado, a energia se
conserva e se transforma (energia térmica em mecânica), passando por sucessivos
estágios de equilíbrio.
Anteriormente, o físico francês Sadi Carnot (1796-1832) havia observado
que uma quantidade desta energia é dissipada de modo irreversível, a qual o
alemão Rudolf Clausius (1822-1888) chamou, em 1865, de função de estado S, ou
entropia.
A segunda lei da termodinâmica assevera que em um sistema idealmente
isolado a entropia tende, espontaneamente, a aumentar ou permanecer estável (dS
0). Isso quer dizer que todo sistema isolado evolui, inexoravelmente, em uma
única direção, de aumento e dissipação de energia.
O físico austríaco Ludwig Boltzmann (1844-1906) interpretou a segunda lei da
entropia, que em Clausius descrevia estados macroscópicos, em cálculos de
probabilidade, introduzindo, junto com o inglês James Clerk Maxwell (1831-1879), na
teoria cinética dos gases, o método estatístico em física para explicar o
comportamento de objetos físicos em escalas microscópicas.
A equação de Boltzmann, S= K log W, onde S é a entropia total do sistema, K
a constante numérica 3.2983.10 cal./°C, e W o número probabilístico de estados
microscópicos, fornece uma medida de homogeneidade molecular, cujo estado de
equilíbrio térmico microscópico realiza, estatisticamente, o mesmo estado
macroscópico. Em um sistema idealmente isolado, a colisão de partículas produz
velocidades distintas de moléculas até que, a longo prazo, a direção de velocidades
se torna igualmente provável, atingindo um estado de equilíbrio espontâneo.
127
Nota-se que, tanto em Boltzmann quanto em Darwin, tem-se o acaso
matemático ou probabilístico que explica condições do conjunto: em Darwin, o
estudo das populações mostra que variações individuais, a longo prazo, produzem
mudanças na espécie; em Boltzmann, a colisão aleatória de moléculas, em um
sistema fechado, progridem para um estado de eqüiprobabilidade. Há, porém, uma
contradição no modelo Boltzmann-Darwin: o acaso probabilístico em Boltzmann
conduz uma evolução em direção à homogeneidade estatística, mais próximo do
acaso matemático peirciano, enquanto que, em Darwin, o acaso produz quebra de
hábitos e conseqüente aumento de complexidade na biosfera, mais próximo ao
acaso metafísico peirciano, origem de diversidade, quebra de leis, e que evolui no
universo. Haveria uma contradição na teoria do acaso peirciano baseada nas teorias
Boltzmann-Darwin?
Quadro 8: paradoxo da evolução.
A cosmologia de Peirce descreve um estágio final em que mente é
cristalizada na forma de matéria, que corresponde ao estado de morte térmica do
PARADOXO
ENTROPIA/
MENTE MORTA
ACASO MATEMÁTICO
TERMODINÂMICA CSSICA
DIVERSIDADE/
COMPLEXIDADE
ACASO ABSOLUTO
TEORIA EVOLUCÃO DARWIN
128
universo descrita pela segunda lei da termodinâmica, em que toda diversidade e
aleatoriedade são controladas. O motor dessa evolução é dado, parcialmente, pela
LGN (Lei dos Grandes Números), representada pelo conceito de acaso matemático
ou probabilístico em Peirce.
Por outro lado, a teoria de Darwin descreve ganhos de complexidade pelos
organismos vivos, em que, em parte, as variações fortuitas, ou o acaso,
desempenharia um papel importante no processo. Em Peirce, o acaso absoluto
rompe as leis da natureza para criar, a todo instante, turbulentas marés de
instabilidades no cosmos, resultando em ganhos de complexidade. Como resolver
este paradoxo?
A termodinâmica prevê, em suas experiências, um sistema idealmente
fechado, isto é, que não troca matéria, energia e informação com o meio ambiente.
Assim, a entropia é uma medida de probabilidade de um sistema fechado que tende
para um estado de distribuição mais provável.
Ocorre que sistemas fechados, conforme descritos pela termodinâmica
clássica, são conservativos e reversíveis. Foi por este motivo que Boltzmann,
confrontado pelo chamado “Paradoxo da Reversibilidade” de Loschmidt, recuou de
suas conclusões a respeito da irreversibilidade temporal, que contradiziam a
mecânica newtoniana
168
. Organismos vivos, ao contrário, são não-conservativos e
irreversíveis, vivendo em ciclos de nascimento e morte, realimentações e trocas de
energia, matéria e informação com o meio ambiente, isto é, são sistemas abertos
169
.
A solução, apresentada pela termodinâmica de sistemas abertos longe do equilíbrio,
é que, globalmente, o sistema tende a dissipar energia em direção à morte térmica;
localmente, no entanto, o acaso age de forma a criar “ilhas” de complexidade, onde,
somente aí, a vida é possível. O acaso produz, incessantemente, organização local
em todo ponto do cosmos que, em macroescala, progride em direção à
homogeneidade estatística.
Peirce não tratou desta questão de forma explícita, mas seus textos de
168
Para uma discussão sobre a quebra da simetria temporal em Boltzmann, ver PEREIRA JR. (1997).
169
Para uma teoria dos sistemas abertos, ver BERTALANFFY (1975).
129
cosmologia trazem uma reflexão sobre a irreversibilidade temporal em física. Em
algumas passagens, o filósofo parecia buscar por uma resolução para o paradoxo
boltzmaniano, como ao sugerir que o acaso teria um efeito contrário à entropia:
Você ouviu falar em dissipação de energia. Descobriu-se que em
todas transformações de energia uma parte é convertida em calor e
calor sempre tende a equilibrar sua temperatura. A conseqüência é
que a energia do universo tende, em virtude de suas leis
necessárias, em direção à morte do universo, na qual não haverá
nenhuma força, mas calor e a mesma temperatura em toda parte.
Este é realmente um resultado surpreendente, e o mais materialista e
anti-teológico concebível. Podemos dizer que conhecemos
suficientemente as forças em operação no universo para saber que
não existe nenhuma que possa neutralizar esta tendência para
qualquer final definido que não seja a morte. Mas, apesar de
nenhuma força poder neutralizar esta tendência, o acaso pode e irá
exercer uma influência oposta. Força é, ao longo prazo, dissipativa;
acaso é, a longo prazo, concentrativo. A dissipação de energia pelas
leis regulares da natureza é, por estas mesmas leis, acompanhada
por circunstâncias mais e mais favoráveis à sua reconcentração pelo
acaso. Deve haver, portanto, um ponto no qual as duas tendências
sejam balanceadas e esta é, sem dúvida, a condição atual em todo o
universo no tempo presente. (W 4: 551, 1883/1884; grifos nossos)
170
.
E, oito anos depois, ele parece afirmar o contrário, negando que o acaso teria
efeito oposto à mecânica newtoniana:
(...) físicos sustentam que partículas de gases movimentam-se
irregularmente, substancialmente como que por acaso real, e que,
conforme os princípios de probabilidade, devem ocasionalmente
ocorrer concentrações de calor nos gases contrárias à segunda lei da
termodinâmica, e estas concentrações, ocorrendo em misturas
explosivas, devem às vezes produzir tremendos efeitos. Aqui, então,
tem-se em essência a mesma situação suposta; não obstante nunca
tenha ocorrido um fenômeno que tenhamos sido obrigados a atribuir
a tal concentração de calor ao acaso, qualquer um, sábio ou tolo,
nunca sonhou explicar desta maneira. (CP 6.47, 1892)
171
.
170
“You have all heard of the dissipation of energy. It is found that in all transformations of energy a part is
converted into heat and heat is always tending to equalize its temperature. The consequence is that the energy
of the universe is tending by virtue of its necessary laws toward a death of the universe in which there shall
be no force but heat and the temperature everywhere the same. This is a truly astounding result, and the most
materialistic the most anti-teleological conceivable. We may say that we know enough of the forces at work
in the universe to know that there is none that can counteract this tendency away from every definite end but
death. But although no force can counteract this tendency, chance may and will have the opposite influence.
Force is in the long run dissipative; chance is in the long run concentrative. The dissipation of energy by the
regular laws of nature is by those very laws accompanied by circumstances more and more favorable to its
reconcentration by chance. There must therefore be a point at which the two tendencies are balanced and that
is no doubt the actual condition of the whole universe at the present time.”
171
“(..) physicists hold that the particles of gases are moving about irregularity, substantially as if by real chance,
130
Na verdade, o que Peirce salienta é que não é possível pensar o acaso
mantendo-se a doutrina do determinismo. Neste ponto, ele introduz o acaso absoluto
e, contrário a Boltzmann, que voltou atrás em suas conclusões para não desafiar a
mecânica clássica, Peirce deu um passo além em sua cosmologia. Este passo foi
postular o acaso como fonte de organização, isto é, não como desordem, mas como
princípio que origem à Terceiridade no universo. Sua teoria do acaso consiste,
pois, em uma dupla ação do processo evolutivo: i) acaso matemático e lei do hábito
levando o universo de um macroestado de maior uniformidade; e ii) acaso absoluto,
criando localmente instâncias de quebra de leis causais, produzindo diversidade e
vida. É patente o esforço com que o autor, em pleno século XIX, buscava termos
adequados para expressar a complexidade:
Na medida em que a evolução segue uma lei, a lei do hábito, em vez
de ser um movimento da homogeneidade para a heterogeneidade,
cresce da disformidade para a uniformidade. Mas divergências
causais da lei estão perpetuamente agindo para aumentar a
variedade do mundo, e são conferidas por uma espécie de seleção
natural, ou de outro modo qualquer (para o escritor não pensar que o
princípio seletivo é suficiente); assim, o resultado final pode ser
descrito como uma heterogeneidade organizada”, ou melhor,
variedade racionalizada. (CP 6.101, 1903; grifos nossos
172
).
“Heterogeneidade organizada” e “variedade racionalizada”, argumenta-se, é o
que hoje pode-se chamar de um crescimento em direção à complexidade, que é
possível porque acaso absoluto, em Peirce, é fonte de organização
173
, ou seja, age
and that by the principles of probabilities there must occasionally happen to be concentrations of heat in the
gases contrary to the second law of termodynamics, and these concentrations, ocurring in the explosive
mixtures, must sometimes have tremendous effects. Here, then, is in substance the very situation supposed;
yet no phenomena ever have resulted which we are forced to attribute to such chance concentration of heat,
or which anybody, wise or foolish, has ever dreamed of accounting for that manner.”
172
“In so far as evolution follows a law, the law of habit, instead of being a movement from homogeneity to
heterogeneity, is growth from disformity to uniformity. But the chance divergences from law are perpetually
acting to increase the variety of the world and are checked by a sort of natural selection and otherwise (for
the writer does not think the selective principle sufficient), so that the general result may be described as
'organized heterogeneity', or better, rationalized variety.”
173
Nestes termos, Peirce antecipou resultados semelhantes ao de teorias como a da ordem a partir do ruído
(Heinz von Foerster, John von Neumann, Willian Ross Ashby, Henri Atlan, a segunda Cibernética, teorias
cognitivas e Teoria Geral de Sistemas), a ordem a partir de flutuações (termodinâmica não-linear de sistemas
abertos longe do equilíbrio, de Ilya Prigogine, Paul Glansdorff e Gregorie Nicolis), padrões a partir do caos
(teoria do Caos Determinista e sistemas dinâmicos não-lineares, de Edward N. Lorenz, David Ruelle, Robert
May, James York, Robert S. Shaw, James Crutchifield, Doyne Farmer, Norman Packard e Mitchell
Feigenbaun) e teorias das bifurcações (Poincaré), entre outros, apesar de que em nenhum destes casos, com
exceção, talvez, em Prigogine, possa-se falar de acaso ontológico (para uma análise do acaso em Peirce e
Prigogine, cf. SALATIEL, 2005).
131
constantemente objetivando obstar a ordenação absoluta. É porque o objeto não se
deixa revelar por completo que tem-se uma série infinita de interpretantes, criando
pólos distintos de indeterminação e contínuos.
Quadro 9: acaso “organizador” na semiose cósmica.
No quadro acima, representa-se a dupla ação do acaso na cosmologia
peirciana como propriedade de organização do cosmos. O universo que começa
com um “nada” germinal, lugar a um continuum de qualidades (Primeiridade), em
que reações acidentais (Segundidade) definem algo, que existe; o que existe,
singularmente, adquire permanência no tempo e espaço, formando um segundo
contínuo, de necessidade, de regularidade e lei (Terceiridade). Primeiridade, no
entanto, também evolui, e o acaso absoluto age impedindo a exatitude na
gramaticalidade do cosmos, abrindo novas bifurcações; não se trata, porém, de um
movimento circular, mas assintótico e hiperbólico, dado pela ação do acaso
matemático, pela tendência à aquisição de hábitos e ágape, buscando um ideal de
razoabilidade, perfectibilidade. É neste processo, então, que ganhos de
complexidade.
E o que Peirce quer dizer com complexidade? Primeiridade (acaso) e
nada
existente
continuum de
necessidade
continuum de
qualidades
acaso
matetico/
bitos/ ágape
acaso
absoluto
132
Terceiridade (lei) crescem no cosmos, em razão de serem dois aspectos, conforme
dissemos (cap. 6), logicamente diferentes de indeterminação. Mas isso ocorre dentro
de um processo evolucionário em que as coisas tendem a se tornar mais definidas,
até que o acaso seja “domado” e o universo, em um “futuro infinitamente distante”,
torne-se um sistema “(...) absolutamente perfeito, racional e simétrico” (CP 6. 33,
1891), e a mente rigidificada na forma de matéria. O propósito do universo confunde-
se com o propósito do signo na filosofia idealista objetiva de Peirce: determinar um
interpretante mais fidedigno, mais próximo da perfeição, de modo que representação
do real e real confundam-se no interpretante final, que seria a Verdade absoluta, o
universo Real (NEM IV, 239, 1904). No entanto, este interpretante final só poderia ter
um caráter normativo. Ele seria, como afirma James J. Liszka, “nada mais do que
uma regra de tradução entre signo e objeto” (LISZKA, 1990: 52, grifo nosso; cf.
SANTAELLA, 2004); em outras palavras, funcionaria como ideal regulativo de
conduta, uma vez que a semiótica da vagueza impede a determinação semântica e
ontológica completa.
Esta seria a condição final de um mundo em que, fisicamente, a entropia teria
atingido sua escala máxima no universo, mas que metafisicamente, a conclusão não
seria um argumento meramente dedutivista, ao modo da filosofia hegeliana. O ponto
mais interessante em Peirce é que a lógica evolucionária de um cosmos de acaso
(de diversidades e diferenças) e uniformidades ou racionalidade encontra uma
solução poética, muito mais afeita a Schelling do que Hegel (IBRI: 1994).
Segundo Peirce, “(...) o universo é um vasto representamen [isto é, signo], um
grande símbolo do propósito de Deus, terminando suas conclusões em realidades
vivas”, o que significa que o universo é um argumento, um silogismo, mas que, “(...)
enquanto argumento, é necessariamente uma grande obra de arte, um grande
poema pois todo bom argumento é um poema e uma sinfonia do mesmo modo
que cada verdadeiro poema é um argumento profundo.” (CP 5.119, 1903) [(...) the
universe is a vast representamen, a great symbol of God's purpose, working out its
conclusions in living realities (...) as an argument is necessarily a great work of art, a
great poem - for every fine argument is a poem and a symphony - just as every true
133
poem is a sound argument.].
A vida, de qualquer modo, é possível neste delicado equilíbrio entre acaso
e lei, caos e ordem, de natureza poética
174
.
174
O fundamento poético da metafísica peirciana foi estudado por IBRI (2003 e 2009): “No entanto, parece-nos
que esta unidade é da maior importância no sistema peirciano. Por um lado, seu conceito é axial para sua
teoria da abdução. Por outro lado, é uma espécie de fulcro para a Cosmologia do autor. Além destes aspectos,
é poético por natureza.” (ibid., 2003:10) [However, it seems to us that this unity is of the utmost importance
in Peirce’s system. On the one hand, his concept is axial for his theory of abduction. On the other hand, it is
a kind of fulcrum for the authors Cosmology. Aside from these aspects, it is poetic by nature.]. E
correspondido por textos de SILVEIRA (1987), como na seguinte passagem: “Quanto mais o objeto for geral,
mais se exigirá do método que ele adote um caráter eminentemente conjectural, tomando por base uma forma
poética a ser desdobrada rigorosamente, segundo as exigências lógicas, nas relações conceituais nela
implicadas.” (ibid.: 11).
134
Considerações Finais
atrasos do acaso
cuidados
que não quero mais
o que era pra vir
veio tarde
e essa tarde não sabe
do que o acaso é capaz
P. LEMINSKI
175
A doutrina do acaso absoluto ou tiquismo é uma das contribuições mais
originais de Charles Sanders Peirce, não somente para a filosofia contemporânea,
sobretudo em seu diálogo com ciências que lidam com o fenômeno da
complexidade, como também para a filosofia da ciência
176
. Formulada na fase
madura do pensador norte-americano, nos anos de 1890, a concepção de acaso,
conforme demonstramos, vinha sendo anunciada em textos da juventude e, no
decorrer de seus trabalhos, foi sendo refinada em seu realismo e metafísica
evolucionária.
O mérito de Peirce foi: (i) conferir status de realidade do acaso, em oposição
a maioria dos teóricos de sua época (em um contexto científico onde predominava o
paradigma newtoniano de ciência), que eram deterministas e tratavam o acaso como
ignorância de causas subjacentes aos fenômenos; (ii) trabalhar para dar um
tratamento rigorosamente lógico e metafísico ao termo, o que não havia sido feito
175
LEMINSKI, 2000: 28.
176
Neste sentido, corrobora a seguinte passagem de IBRI (1992:122): “Atrevemo-nos a dizer que a obra de
Peirce vem resgatar um espaço perdido pela Filosofia: o espaço de pensar o mundo na sua realidade, e de um
modo que promova, novamente, a aproximação com o universo das ciências, numa integração que se anuncia
das mais profícuas. Não nos parece que a Metafísica peirciana conflite com a ciência contemporânea. Muito
pelo contrário, de um lado ela antecipa, em plena vigência da Mecânica de Newton no século XIX, o
reconhecimento atual de um princípio de acaso presente nos fenômenos afeitos à estrutura da matéria e, de
outro, teoriza sobre um universo pré-material cuja evolução em nada aparenta contraditar as cosmologias de
que hoje temos conhecimento. Um detalhado entretecimento entre a moderna Física e uma Metafísica, tal
qual tomamos conhecimento na obra peirciana, é um ponto para uma instigante pesquisa futura.”. Ver
também SILVEIRA, 1993.
135
desde Aristóteles; (iii) propor a hipótese do acaso como fonte de organização e
correlações sistêmicas, como origem das leis em um princípio de liberdade na
Natureza e, desta forma, explicar o paradoxo evolucionário que contrapôs lei da
entropia, na termodinâmica, e complexidade, em biologia; e (iv) apresentar uma
solução elegante, em sua ontologia sinequista, para o dilema entre ordem e caos em
Filosofia.
Retomando os propósitos da tese, verificamos que uma visão do conjunto da
obra foi imprescindível para tentar resolver os paradoxos do tiquismo e, onde as
peças do puzzle faltaram, optou-se por interpretar as teses peircianas, de modo a
completar o quadro, com conceitos contemporâneos oriundos da teoria de sistemas
(cap. 13). Assim, pôde-se apresentar as seguintes soluções aos problemas
levantados na introdução da tese:
i. Conceitual: são duas noções de acaso, absoluto e matemático, e ambas se
completam em suas funções na cosmologia peirciana, o acaso absoluto
agindo de maneira criativa, impedindo a rigidez das leis e gerando
diversidade, e o matemático, objetivando explicar a evolução de leis
estatísticas;
ii. Semântica: a afirmação de um acaso real operando no universo é clara nos
textos a respeito de cosmologia, e referendadas, ainda, pelo realismo do
autor, que afirma a realidade de potencialidades, e pela lógica da vagueza.
Além disso, mesmo as concepções matemáticas e epistemológicas conferem
um tratamento objetivo ao conceito.
iii. Validativa: são quatro argumentos contra o determinismo que também
fundamentam a positividade do tiquismo e um argumento empírico não
formulado. Porém, a validação do acaso ontológico é dada em uma
perspectiva de sua classificação das ciências, em que a matemática do
contínuo e a LGN (Matemática), a categoria da Primeiridade (Fenomenologia)
e depois, a semiótica da vagueza e a teoria das inferências (Lógica) tornam-
se base para a Metafísica. Ou seja, o que Peirce fez foi expandir em sua
136
cosmologia, por meio do idealismo objetivo, uma lógica objetiva e
evolucionária, profundamente marcada, em todas suas formulações, pelo
indeterminismo. Nas categorias peircianas, em que o acaso é Primeiridade,
pôde ser inventariado, pela Fenomenologia, indícios internos e externos de
um acaso real, que seriam explorados em sua ontologia tiquista. Toda esta
arquitetura de matiz científico, é preciso frisar, tem como principal
característica o falibilismo de suas conclusões.
iv. Lógica: para dar conta das principais contradições encontradas na hipótese
do acaso do autor, foi necessário inserir a teoria do acaso no contexto de
modernas teorias de sistemas (cap. 13 e Apêndice B), de modo a demonstrar
que coerência no tiquismo, desde que se abandonem visões simplistas e
se adote a complexidade que, acreditamos, a filosofia de Peirce é uma das
poucas cientificamente aptas a dar conta.
Em resumo, a metafísica científica de Peirce é um diálogo entre ciência e
Filosofia. De um lado, não rejeita a cientificidade “determinista” da tradição de
Kepler, Galileu e Newton, pelo contrário. O que se questiona é a crença de que fatos
podem ser enunciados de forma absolutamente universal e necessária. O que se
rejeita é o dogmatismo determinista, em que sistemas são governados unicamente
por causalidade biunívoca (causa eficiente), sendo que, sabe-se hoje, estes
respondem por uma parcela pequena em um universo de sistemas de
comportamentos irreversíveis, não-conservativos e estocásticos. Em tais sistemas,
verificam-se tanto relações causais complexas, com pluralidades de causas e
efeitos, cujos hábitos (would-be) manifestam-se em uma longa série temporal,
quanto acaso absoluto, que rompe cadeias causais (contrariando a física
aristotélica) de forma criativa, possibilitando auto-organização (organização por
espontaneidade) e aprendizagem.
Determinação e casualidade, ou necessidade e contingência, não se excluem.
Como disse Mallarmé, um lance de dados não abolirá o acaso. Sistemas sígnicos
evoluem de maneira causal, parcialmente causal e acausal e, na composição de sua
história, transformam-se qualitativamente. É assim que o acaso sempre intervém,
137
estimulando e apontando novos caminhos, novas aventuras, em sua condição de
verdades provisórias (angustiante?), pois somente neste estado de potencialidade
pode o novo insurgir, em ações e conhecimento. Segundo Peirce, em um sentido
mais amplo, aprender é o destino de sistemas, sejam eles homens ou estrelas.
Por outro lado, em Filosofia, o tiquismo e falibilismo peirciano solapam
qualquer fundamento em que se queira erigir arquiteturas de verdades inatas,
apriorismos e transcendentalismos. Tendo a lógica que sustenta a metafísica os
atributos de vaga, icônica e evolucionária, a ontologia que daí se compõe não
poderia ser outra a não ser uma ontologia da indeterminação, da multiplicidade, da
transitoriedade, diríamos, da complexidade. Somos seres contingentes em um
universo também contingente, poético talvez, com alguns arquipélagos de
necessidade e lei que surgem aqui, ali, sempre na esperança de que algum desses
castelos de areias resistam à força da maré. O acaso é uma lição de vida.
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153
APÊNDICES
154
A. Os argumentos “inconclusivos” segundo V. Cosculluela
Para Victor Coculluela (1992), argumentos contra o determinismo expostos
principalmente em “The Doctrine...” e em “Reply...”, apesar de apontarem
corretamente para as fragilidades da hipótese do determinismo, seriam
inconclusivos a favor do tiquismo, isto é, não comporiam provas válidas suficientes
para atestar a realidade ontológica do acaso. Examinaremos as críticas feitas a cada
um destes argumentos.
No argumento da mente (consciência e sentimentos), Cosculluela distingue,
corretamente, dois argumentos que levam a uma mesma conclusão silogística, a
saber, “o determinismo é falso, logo, o tiquismo é verdadeiro”. São eles:
(i) o determinismo não pode ser verdadeiro porque implica um causalismo na lei
da mente e descarta agentes humanos como causas produtivas. Tudo é
resultado de eventos mecânicos. Para Cosculluela, o argumento não ilegitima
cabalmente a hipótese do determinismo, apenas afirma que, se o
determinismo não é uma hipótese legitima, então agentes humanos são
causas produtivas de suas ações (1992: 746) (além do fato de que, segundo
o autor, o próprio tiquismo não teria respostas para questões morais
envolvidas no livre-arbítrio).
(ii) determinismo é falso porque implica em epifenomenalismo, em que mente é
resultado da matéria (epifenômeno), ou: “(1) Se o determinismo é verdadeiro,
o mundo físico é um sistema fechado e causal, então (2) mente é
epifenômeno; mas, (3) se epifenomenalismo é falso, logo, (4) determinismo é
falso” (ibid.: 747). Cosculella sustenta que a premissa (1) é falsa, uma vez
que pode-se manter determinismo e dualismo mente e matéria cartesiano,
preservando a autonomia metafísica da alma diante da materialidade do
mundo físico; e também a premissa (2), pois pode-se conceber uma teoria da
155
mente em que estados mentais são estados físicos, adotando-se uma
espécie de monismo materialista.
Às objeções do autor, pode-se responder que o argumento da mente deve ser
lido na perspectiva de uma teoria da cognição baseada na semiótica, proposta por
Peirce (em oposição, principalmente, ao cartesianismo), em que mente é analisada
dentro da teoria do contínuo, criando os pólos de indeterminação que configuram a
vagueza semântica e ontológica e o falibilismo epistemológico.
De toda forma, observando-se as implicações dos comentários, criam-se
problemas de ordem metafísica: no argumento (i), é mantida uma dualidade entre
matéria e livre-arbítrio, ficando o primeiro circunscrito ao cosmos e o segundo às
ações humanas, dando vazão a uma teoria subjetivista como a de Kant, por
exemplo, que contrasta com a metafísica evolucionista peirciana; pelo argumento
(ii), ou opta-se por um dualismo e compromete-se mais uma vez o conhecimento, ou
então um monismo que também não irá responder ao surgimento da consciência ou
dos sentimentos, por maiores que sejam os avanços na área de neurociência. O que
descarta o determinismo, no argumento da mente, é o idealismo objetivo e o
realismo do autor, que sustenta-se, em parte, com a admissão de um acaso objetivo
e potencialidades reais.
O argumento do crescimento e aumento de complexidade é interpretado por
Cosculluela da seguinte forma: (1) Se o determinismo é verdadeiro, todo processo é
governado por por leis mecânicas; (2) se todo processo é governado por leis
mecânicas, então eles são reversíveis (no tempo); alguns processos, como o
crescimento, são irreversíveis; logo, o determinismo é falso. Segundo o autor, a
premissa (1) é analítica: para Peirce determinismo seria sinônimo de mecanicismo
(além do fato tratado que o dualismo cartesiano comportaria processos que não
seriam governados por leis mecânicas a alma). Sendo a primeira premissa
analítica – Se p, então p – a segunda (2) poderia ser expressa por “se determinismo,
então processos reversíveis”, gerando uma dubiedade nos argumentos: ou um ou
outro (ibid.: 749-748).
156
Deve-se observar, no entanto, que o determinismo é parcialmente uma
conseqüência da crença no sistema newtoniano, em que o universo é conservativo,
reversível e regulado por leis mecânicas e causais. O que Peirce quer dizer é que a
maioria dos processos são irreversíveis, o que significa uma quebra de simetria
temporal, incompatível com as leis mecânicas. O argumento mais forte sugerido pelo
filósofo norte-americano é que leis, de acordo com o determinismo, seriam
universais, exatas e homogêneas; evolução, por outro lado, pressupõe coisas que
crescem e, portanto, são imperfeitas, irregulares, e que buscam algum tipo de
aperfeiçoamento, tornando o determinismo incoerente com boa parte dos
fenômenos naturais aos quais Peirce se refere. Descartando-se metafísicas
dogmáticas que apelem a uma ordem divina, como Descartes, seria válida uma
hipótese do acaso. Deste modo, o argumento deixaria de ser analítico.
O terceiro argumento discutido por Cosculluela é o argumento da variedade,
pelo qual o determinismo é incompatível com a variedade existente no mundo. Para
o comentador, ele não é suficiente para descartar o determinismo. Para fundamentar
sua crítica, Cosculluela usa o seguinte exemplo: considerem-se três fileiras de
dominós em que cada pedra possui tal propriedade química e que, cada pedra
sendo submetida a um determinado líquido, muda de cor. Assim, em contato com o
líquido A, adquire coloração azul; pelo líquido B, rosa; e líquido C, púrpura. Dadas as
seqüências:
fileira1: /////// líquido A /////// líquido B /////// líquido C;
fileira2://///// líquido A /////// líquido A /////// líquido B;
fileira 3: /////// líquido A /////// líquido A ///////líquido A;
seria, para ele, um teste suficiente para explicar o aumento de variedade sem
recorrer ao acaso, uma vez que teríamos três fileiras com dominós de cores
(qualidades) variadas ao final da experiência (ibid.:750).
O exemplo dado por Coculluela, porém, é falacioso: ele afirma que, em dado
sistema idealmente isolado, sem influência externa, numa seqüência causalmente
157
determinista e sujeita a ações programadas, certos objetos irão adquirir certas
propriedades. Porém, variedade não pode ser determinada. São domínios opostos:
o que é pura espontaneidade e jogo de diferenciação não pode ser generalidade e
constituir relações de semelhanças. Outro ponto é que, excluindo-se um Ser
Superior ou um Demônio de Laplace, a seqüência estaria sujeita a intervenções de
ordem probabilística e erros infinitesimais na distribuição de líquidos e cores.
Admitindo-se uma freqüência relativa, admite-se, ao menos, um acaso objetivo.
Finalmente, no argumento da lei, e Cosculluela afirma que tiquismo é
necessário para explicar as leis da natureza segundo o seguinte argumento: (1) leis
da natureza requerem uma explicação; (2) se requerem uma explicação, devem ser
produtos da evolução; (3) se são produtos da evolução, não são absolutas; (4)o
sendo absolutas, existe acaso.
Em seu artigo, Cosculluela comenta as premissas (1), (3) e (4)
177
. Ele defende
que, pela premissa (1), é pressuposto que “existem leis, antes de fatos brutos”, o
que não é uma verdade auto-evidente.”Não é auto-evidentemente falso que ao
menos algumas leis da natureza sejam fatos brutos.” (ibid.: 751) [It is not self-
evidently false that at least some laws of nature are brute facts.]. Além disso, haveria
uma falsa dicotomia ao se declarar que “existe explicação para leis ou leis são fatos
brutos”, uma vez que, para o autor, nada nos impediria de suspender a hipótese de
que “existe uma explicação para o fato de existirem leis”.
A premissa (3), que assevera que leis, sendo produto da evolução, não são
precisas, Cosculluela concorda com o fato de terem sido menos precisas no
passado, mas que não validade para a afirmação de que o violadas no
presente com base de o terem sido no passado.
Por fim, a premissa (4), que diz “se não são precisas (as leis), existe o acaso”,
o autor contrapõe duas definições diferentes de acaso, sem detalhar exatamente
quais são e deixando a entender que se trata de acaso absoluto e acaso
probabilístico, para apontar uma possível fragilidade no argumento peirciano. Neste
177
Para o autor, a premissa (2) não é incontestável, mas talvez a mais plausível.
158
caso, Cosculluela sustenta que o acaso absoluto não se justifica, podendo existirem
causas desconhecidas, de uma ordem divina por exemplo, não necessariamente
requerendo uma intervenção do acaso ou eventos não-causais para dar conta de
leis que não são precisas ou que, de alguma maneira, são violadas.
Pontuada a crítica ao argumento da lei de Peirce, pode-se, a guisa de manter
a discussão, sustentar que, em sua refutação da premissa (1), Cosculluela é
obrigado a admitir alguma forma de nominalismo, que implica numa realidade
formada por particulares, fatos brutos, ou que leis (sendo racionais) poderiam não
ser objetos de representações, ficando um descompasso com o sistema peirciano.
Os argumentos contra a premissa (3), podem ser rebatidos da mesma forma: ele
concorda que, num processo evolutivo, leis seriam menos precisas no passado, o
que não pressupõe que o sejam no presente. O fato é que, caso sejam precisas
hoje, não haveria lugar para erros de observação, novidade ou “espontaneidades
vivas”, como diz Peirce. Seria um universo em que tudo já está dado. E mesmo que
houvéssemos atingido algumas certezas finais, o falibilismo impediria a certeza
disto, preservando um acaso de ordem epistemológica.
Sob a crítica da premissa (4), apesar da falta de precisão na conceituação de
acaso, Cosculluela tem razão ao dizer que não evidências de que não existam
seqüências de causas complexas e desconhecidas, o que poderia validar uma
versão ”fraca” de acaso, muito mais comum entre filósofos e cientistas. Acaso
matemático, no entanto, mantém um postulado determinista referente à causalidade,
que não pode ser harmonizado com uma filosofia radicalmente indeterminista como
a peirciana.
Cosculluela não discute se o tiquismo é verdadeiro ou falso, mas conclui que
os argumentos do filósofo são inconclusivos para demonstrar a validade ou falsidade
da doutrina. Afirma-se, nesta tese, que são inconclusivos se vistos de forma
fragmentada em relação ao conjunto da obra peirciana, em que o indeterminismo
ocupa lugar central no plano da filosofia de Peirce. Seria correto dizer que filósofo
deixou de detalhar seus argumentos empíricos, ficando estes argumentos limitados
a estudos de probabilidades que forneceriam base para um acaso matemático, mas
159
isto descredenciaria uma investigação metafísica em que vestígios do acaso
absoluto são compilados em fenômenos como o enigma da vida e a diversidade do
cosmos, além do caráter poético das conclusões lógicas do autor.
Podemos, no entanto, propor o que seria um sexto argumento, que
chamaríamos argumento pragmatista, em favor do acaso. A partir de 1903, quando
Peirce retoma seu pragmatismo e o vincula expressamente ao realismo, de modo a
distanciar-se das vertentes nominalistas de William James e Ferdinand Schiller, o
método se fundamenta na realidade de termos gerais e potenciais (would be's e can
be's), em que o significado de uma proposição é dado por uma mudança de conduta
ou disposição para agir de acordo com as possibilidades experienciais que ela traz.
Em outras palavras, o significado reside nas conseqüências de certas proposições
condicionais ou hipotéticas:
Pragmaticismo faz do propósito intelectual último de o que quer que
você queira consistir em resoluções condicionais concebíveis ou sua
substância e, portanto, as proposições condicionais com seus
antecedentes hipotéticos, nos quais tais resoluções consistem; sendo
que a natureza última de um significado dever ser capaz de ser
verdadeiro, isto é, expressar o que quer que seja tal como a
proposição manifeste, independentemente de ser pensado, para ser
assim em qualquer juízo; ou ser representada para ser assim em
qualquer outro símbolo para qualquer homem ou homens. Mas isso
equivale a dizer que possibilidade, por vezes, é de um tipo real. (CP
5. 453, 1905)
178
.
Quer dizer, o que tem significado é o que afeta a conduta de uma mente de
forma que provoque, nesta mente, conseqüências de uma conduta deliberada,
autocontrolada e racional, e que seja de natureza de uma possibilidade real. Dizer
que “o diamante é duro” significa que “se submetido a testes empíricos, ele resistiria
em contato com outros materiais”. No caso de uma previsão de chuva, por exemplo,
sairei de casa de guarda-chuva porque se chover, não irei me molhar”, e agirei
desta forma não por mero desconhecimento de causas ou acaso de ordem
178
“Pragmaticism makes the ultimate intellectual purpot of what you please to consist in conceived conditional
resolutions, or their substance; and, therefore, the conditional propositions, with their hypothetical
antecedentes, in which such resolutions consist, being of the ultimate nature of meaning, must be capable of
being true, that is, of expressing whatever there be which is such as the proposition expresses, indepedently
of being though to be so in any judgement, or being represented to be so in any other symbol of any man or
men. But that amounts to sayng that possibility is sometimes of a real kind.”
160
epistemológica, mas porque a possibilidade é real e poderei me molhar caso saia
sem um guarda-chuva. A ação condiciona-se não somente a uma determinada faixa
de erros na observação de fenômenos, na falibilidade de procedimentos científicos,
como também em uma aleatoriedade inerente ao objeto.
O que o pragmatismo implica, na presente abordagem, é que aceita-se a
realidade de um acaso ontológico ao agirmos na realidade: o acaso afeta nossos
hábitos, de alguma forma, portanto deve ser real, ou somente sendo real pode ter
algum significado pragmático. Tem-se aqui uma possível prova do tiquismo nas
ciências normativas em Peirce, cujo estudo mais apurado é sugerido para trabalhos
futuros.
161
B. Redundância e incompatibilidade: a crítica de Andrew Reynolds
Conforme dito anteriormente, a falta de clareza na definição de termos e
precisão no emprego de teorias faz do tiquismo uma das doutrinas mais difíceis de
Peirce, não obstante a originalidade do autor. Entre os problemas a serem
enfrentados estão o da redundância e incompatibilidade, formulados por Andrew
Reynolds no artigo “The Incongruity of Peirce's Tychism” (1997) e na obra “Peirce's
Scientific Metaphysics” (2002), que analisaremos a seguir.
O problema da redundância, segundo o autor, trata do fato de que, ao fazer
da lei do hábito um princípio que descreve o processo evolutivo no universo em
termos de irreversibilidade temporal, Peirce faria do acaso matemático, ou da
mecânica estatística, redundante como princípio (2002: 161-162). A lei do hábito/
ágape é inserida na cosmologia peirciana porque somente a Terceiridade pode
fornecer um propósito ao cosmos, concedendo uma razão explicativa que está
ausente quando se trata de leis probabilísticas do acaso (lembrando que, na
Primeiridade, inexiste o propósito racional). Precede em objetivo, portanto, o
princípio de acaso. Mas dessa forma, de acordo com Reynolds, além de tornar
redundante e, com base nesta análise, desnecessária a teoria das probabilidades na
evolução, a lei do hábito ainda solaparia um dos mais importantes suportes da
metafísica peirciana. Este problema da redundância é ampliado no problema da
incompatibilidade, que requer uma análise das diferentes noções de acaso em
Peirce.
Reynolds (1997) distingue três conceitos diferentes de acaso em Peirce
envolvidos nos argumentos a favor do tiquismo expostos em “The Doctrine...”:
i. acaso matemático: cuja principal característica é a independência de fatos ou
eventos prescrita pela teoria das probabilidades;
162
ii. acaso absoluto: responde pela variedade e diversidade do mundo, originadas
por um princípio de espontaneidade e novidade que viola as leis da natureza
e uma condição de dependência (causalidade);
iii. acaso criativo: se o acaso absoluto viola uma lei pré-existente, e se as leis
nascem de um acaso original, então deve haver uma função criativa que
opere antes da existência de leis.
Segundo Reynolds, Peirce não é claro
179
, mas emprega noções distintas em
seus argumentos em favor do tiquismo, que podem ser explicados de forma
separada, conforme demonstrado no quadro abaixo:
ARGUMENTOS CONCEITO DE ACASO
Crescimento Matemático
Variedade Absoluto/ criativo
Lei Absoluto/ criativo
Sentimentos Matemático
Quadro 10: diferentes noções de acaso nos argumentos peircianos.
O acaso matemático e, mais especificamente, a LGN (Lei dos Grandes
Números), validaria o processo de crescimento e irreversibilidade, assim como a
mente e os sentimentos, geridos pela lei do hábito. A diversidade e a origem das leis
seriam obras de um acaso absoluto/ criativo.
Segundo o autor, em comum, todas as noções de acaso compartilham o fato
de serem objetivas, não obstante o acaso matemático ser uma versão “fraca”.
Acaso criativo teria semelhanças com acaso absoluto (no seu sentido ativo,
de violação real das leis), sendo, para Reynolds, o segundo (absoluto) uma
179
“Além disso, sustento que Peirce foi muitas vezes obscuro a respeito do que quis dizer a respeito de sua tese
do acaso absoluto, e que às vezes não foi explícito o suficiente sobre as diferenças entre a noção matemática
de acaso ou probabilidade e a noção metafísica de acaso absoluto.” (1997: 704) [Moreover, I will argue that
Peirce himself was often unclear about what his thesis of absolute chance was supposed to be, and that at
times he was not explicit enough about the differences between the notion of mathematical chance or
probability and the metaphysical notion of absolute chance.].
163
modalidade do primeiro (criativo), tornando ambos compatíveis na cosmologia
peirciana: leis se originam por obra de um acaso criativo diríamos, por uma força
estética do cosmos e, movidas pela tendência de aquisição de hábitos, tornam-se
mais regulares, mais precisas, no entanto, sujeitas a intervenções do acaso
absoluto, que quebra simetrias para dar origem a diferenças e variedades,
impedindo a determinação completa da Terceiridade.
O problema surge na tentativa de reconciliar acaso absoluto e matemático.
Ambos são atuantes em desenvolvimento de diversificação e regularização no
universo, ou seja, têm os mesmos efeitos, porém requerem condições lógicas
divergente e até contraditórias:
acaso absoluto→ condição de dependência dos eventos.
acaso matemático → condição de independência dos eventos.
O acaso absoluto age na lei do hábito ou lei da associação, que determina
uma correlação entre evento A e B, numa seqüência causal em que não podem
haver “vazios”. A lei da mente, do mesmo modo que uma interpretação realista da
mecânica estatística, estabelece uma condição de assimetria temporal:
Um dos aspectos mais marcantes da lei da mente é o fato dela fazer
do tempo uma direção definida de fluxo do passado para o futuro (...)
Isto constitui um dos maiores contrastes entre a lei da mente e a lei
da força física, em que não mais distinção entre as duas direções
opostas do tempo do que [a diferença] entre mover-se ao norte e ao
sul. (CP 6.127, 1892)
180
.
Porém, para que uma idéia suceda a outra no pensamento, é necessário que
haja uma continuidade: “(...) uma idéia somente pode ser afetada por outra havendo
uma contínua conexão entre elas.” (CP 6.158, 1892) [(...) an idea can only be
affected by an idea in continuous connection with it.].
E isto é contrário às prerrogativas lógicas da LGN, conforme o teorema de
180
“One of the most marked features about the law of mind is that it makes time to have a definite direction of
flow from past to future (...) This makes one of the great contrasts between the law of mind and the law of
physical force, where there is no more disctinction between the two opposite directions in time than between
moving northword and moving southword.”
164
Bernoulli, de independência e distribuição idêntica. Num lance de dados, a
probabilidade será dada para o resultado qualquer de um lance único, isto é, de um
lance que não tenha influência sobre o seguinte, ou que o lance A não tenha poder
de afetar, de alguma forma, o lance B, caso contrário teríamos um dado viciado; e
também, será um resultado para uma rie infinita, a longo prazo, com distribuição
eqüitativa de lances.
A questão é como conciliar dois sentidos logicamente opostos de acaso, um
deles, metafísico, operando sob a lei da mente, e outro, probabilístico, a LGN.
Reynolds propõe três soluções possível, nenhuma delas declaradamente
encontradas nos escritos de Peirce (2002: 172):
i. conceber dois tipos de legalidade da natureza, uma lei dinâmica (lei do hábito)
e uma lei estatística. Reynolds não deixa claro, mas a lei dinâmica a que se
refere não seria exatamente a mecânica newtoniana, por ser reversível e
conservativa, logo, contrária à lei do hábito. Seriam como duas forças
logicamente díspares agindo na natureza, refletindo, por exemplo,
incompatibilidades semelhantes às encontradas em estados macrofísicos e
microfísicos explicados, respectivamente, pela teoria geral da relatividade e a
mecânica quântica;
ii. conceituar desenvolvimento e evolução, o primeiro termo tratando de
processos ocorrendo em vel individual, e o segundo, em nível populacional,
sendo a lei do hábito explicando o comportamento uniforme de indivíduos
(sejam átomos, moléculas, etc), e a LGN o comportamento coerente
propriedade de conjunto que emergiria, a longo prazo, de ações ocorridas
entre indivíduos, como a colisão de moléculas em um gás aquecido;
iii. trabalhar a moderna teoria das probabilidades, como variantes de cadeias de
Markov, que sejam compatíveis com estados dependentes.
Em resumo, trata-se, na verdade, de pontuar uma mesma discordância lógica
na cosmologia que gera, por um lado, um problema de redundância e, por outro, de
165
incompatibilidade. Apesar das tentativas de sistematizar as idéias de Peirce
expressas na cosmologia do filósofo, Reynolds conclui que o tiquismo não é
totalmente coerente (1997: 715).
Sugere-se, de outro modo, uma análise com terminologia apurada de uma
teoria geral de sistemas abertos (cf. BUNGE, 1977; BERTALANFFY, 1975; ATLAN,
1992; VIEIRA, 1994; GELL-MANN, 1996), objetivando harmonizar as noções e
ações do acaso na metafísica peirciana. Justifica-se tal estudo pelo conjunto de
similitudes entre os resultados das idéias do pensador norte-americano e
especulações sobre o conceito de acaso na moderna teoria de sistemas, reservadas
diferenças e particularidades metodológicas e o fato de Peirce, não obstante
dificuldades encontradas em sua obra, oferecer uma filosofia do acaso
absolutamente inovadora.
Admita-se a hipótese do universo ser composto de sistemas abertos e, de
acordo com Peirce, sígnicos
181
que sofrem perturbações em sua interação com o
meio ambiente e comportam, em graus variados, níveis de instabilidades, flutuações
e atividade espontânea (Primeiridade) em sua evolução. As influências externas
sofridas são percebidas como eventos (Segundidade) que, adquirindo permanência
no tempo/espaço, geram processos (Terceiridade). O que vai caracterizar estes
sistemas sígnicos abertos é o fato de assimilarem eventos aleatórios em processos,
adquirindo assim, em sua trajetória, maiores níveis de organização e complexidade,
por uma prerrogativa de sobrevivência; é uma noção de inteligência científica, capaz
de aprender com a experiência. Esta seria, por exemplo, a função dos erros na
aprendizagem, que levam a uma revisão de teorias e estratégias que, de outra
forma, criariam condições de estabilidade que não favoreceria o acúmulo e produção
de conhecimento
182
. A questão é: como a teoria do acaso objetivo em Peirce
representaria diferentes estados de aleatoriedade em sistemas complexos?
Considere-se, agora, quatro sistemas. No primeiro, um sistema S, composto
181
Ou seja, sistemas que fazem intercâmbio de signos.
182
Um exemplo do funcionamento desses sistemas é dado por Peirce no ciclo de crescimento do protoplasma
(substância do interior da célula) (CP 6.264, 1892), em que um estímulo continuado produz afastamento do
equilíbrio e quebra de hábitos. Esta condição de instabilidade química do protoplasma, para Peirce, seria
manifestação de sentimentos (lado interno do acaso).
166
pela seguinte seqüência:
S1= {A, A,A,A,A,A,A,A...}
tem-se um estado de homogeneidade estatística, de semelhanças absolutas
ou um sistema de entropia máxima, que seria um estágio final da cosmologia
peirciana, em que tudo estaria determinado e nada de novo poderia surgir.
E um segundo, dado S2, composto pelo conjunto de elementos distintos entre
si
S2= {A, Y, K, M, D, P...}
tem-se um estado de ruído, ou de total diferenciação, em que o acaso é
absoluto, fonte de variedade e novidade no universo sígnico. Tais eventos são
descritos como um processo aleatório, de distribuição eqüiprovável.
Considere-se um terceiro sistema
S3= {A,A,B,B,A,Y,A,A,B,B...}
em que elementos, dados aleatoriamente, comportam uma ordem hierárquica
em que o processo é regido por uma distribuição probabilística, de modo a formar,
ao longo da trajetória, um certo padrão. Este processo pode ser chamado
estocástico, definido como uma coleção de variáveis aleatórias em que, para cada t
Є T, X(t) é uma variável aleatória (VIEIRA, 1994: 37), onde T é um conjunto inicial do
processo e X(t), o estado no tempo t:
X = {X(t0), X1(t1), X2(t2), X3(t3)...Xn(tn)}.
No caso de ser um espaço de estados discreto (T ser um conjunto contável),
tem-se uma cadeia de Markov, em que qualquer estado presente e futuro é
independente do estado passado e dependente somente do estado presente. Note-
se que é descrito um sentido objetivo de acaso, que opera ao longo de sucessões
temporais, representado matematicamente ou probabilisticamente: de todo modo,
167
mantem-se uma determinada ordem em meio ao puro caos.
Por último, considere-se o sistema
S4= {A,B,C,D,E,F,G...etc}
composto pelas letras do alfabeto, em que o estado anterior determina o
posterior, mas cuja sintaxe gera diferenças, quer dizer, permite que arranjos sejam
feitos, dentro de determinadas regras (as próprias línguas naturais evoluem,
demonstrando extrema plasticidade). No âmago da ordem, alguns arranjos permitem
a expressão de puros sentimentos, como na poesia.
Tem-se um processo comportando noções de memória, correlações e
gramática (sintaxe), muito mais afeitas à doutrina da lei da mente em Peirce, que,
por uma condição de vagueza, de poeticidade do cosmos, o acaso perpetuamente
quebra a previsibilidade do código, inserindo níveis maiores de aleatoriedade e
dando origem a processos estocásticos, equilibrando a pura aleatoriedade e a
homogeneidade entrópica em sistemas, conforme detalhado no quadro abaixo
183
:
183
Poderia-se questionar como acaso pode agir, uma vez que, para isso, seria preciso um segundo termo, saindo
da condição de Primeiridade para Segundidade. A ação do acaso como quebra do contínuo da lei seria da
ordem de uma singularidade, ou seja, fato bruto de Segundidade, ou ação externa sobre o sistema. Mas esta
ação é introduzida em um contínuo de potencialidades, que permite a marcação de elementos discretos em
um contínuo. Após a ação externa sobre o sistema o acaso agiria internamente no sistema, de forma criativa,
de modo a fazer com que este sistema busque soluções para enfrentar a crise e continue crescendo.
SANTAELLA (1992: 145-146), comenta: “Na primeiridade, não ação. A generalidade da primeira
categoria é muito vaga e indefinida. Não como quantificá-la. Isso não quer dizer que o universo do
primeiro (acaso, indeterminação, frescor, originalidade, liberdade etc.) não se faça sentir tanto no universo
físico quanto no psíquico. O século XX, aliás, tem se caracterizado pela irrupção dessa dimensão nas
ciências.”
168
PROCESSOS ESTADOS AÇÕES DO ACASO
Homogeneidade
Ausência de acaso. Estágio final do universo de
definição completa.
Gramaticalidade (Lei do
hábito)
Maior legalidade
(racionalidade) com graus de
aleatoriedade (sentimentos).
Acaso absoluto insere níveis
de aleatoriedade, rompendo
cadeias causais e produzindo
diferenças e heterogeneidade.
Estocacidade (Lei dos
Grandes Números)
Parcialmente aleatório, com
alguma legalidade.
Acaso matemático define, a
longo prazo, uma frequência
relativa de estados
probabilísticos, ou seja,
padrões (instáveis).
Aleatoriedade
Ausência de lei. Acaso absoluto tem ação
criativa, genética, origem de
regularidades em um universo
de puro nada.
Quadro 11: diferentes processos e estados na relação acaso e lei na cosmologia de Peirce.
O resultado é a produção incessante de complexidade. As forças do acaso e
lei, ou os contínuos de Primeiridade e Terceiridade, não se excluem na metafísica de
Peirce, mas se nivelam, se graduam, em equilíbrios homeostáticos, em uma
organização que comporta a lei e o acaso e em que as correlações, a memória e
simetria emergem espontaneamente de processos estocásticos e aleatórios. Lei do
hábito e LGN descrevem fases diferentes de leis evolutivas, diferentes processos
envolvendo sistemas abertos que compõe o cosmos e evoluem, em última instância,
por força do ágape.
169
C. Aspectos da Lógica Trivalorativa de Peirce
Introdução
Em 1909, Peirce desenvolveu o sistema matricial de uma lógica trivalorativa
que atualmente é reconhecido como o primeiro do gênero, antecipando em mais de
dez anos os trabalhos de lógicas polivalentes de Jan Lukasiewicz (1920) e Emil Post
(1921). Os manuscritos de Peirce sobre lógica triádica, reunidos em seu “Logic
Notebook”, permaneceram inéditos até serem publicados e estudados dos por Max
Fisch e Atwell Turquette na segunda metade dos anos 60 (FISCH &
TURQUETTE,1966, e TURQUETTE,1967 e 1969).
O escasso material deixado por Peirce a respeito das motivações filosóficas
envolvendo a Lógica Trivalorativa (LT), levou os comentadores a creditarem ao valor-
L a expressão de possibilidades reais (FISCH & TURQUETTE, 1966: 79; cf.
PARKER, 1998: 72-73), o que a tornaria a LT peça fundamental do tiquismo
peirciano. Análise mais recente de Robert Lane (LANE, 1999), no entanto,
demonstra que proposições-L não se referem à lógica modal, mas a objetos
singulares que rompem o continuum.
1. Considerações filosóficas sobre a LT
Oposto às lógicas bivalentes tradicionais, Peirce acrescenta, entre os valores
de verdade (V) e falsidade (F), um terceiro valor definido como limite (L) que
corresponde a uma proposição de valor indeterminado, entre as determinações “S é
P” e “S é não-P”.
Sendo proposições vagas, o Princípio de Contradição (PC) não se aplica; ao
170
contrário, sendo proposições gerais, o Princípio do Terceiro Excluído (PTE) não se
aplica.
Assim, dado o PC, se S é um termo definido (não-vago), então “S é P” e “S é
não-P”, não são ambos verdadeiros. De outro modo, proposições vagas como
”Alguns paulistas gostam de café” e “Alguns paulistas o gostam de café” são
ambas verdadeiras.
Dado o PTE, se S é um termo individual (não-geral), ou dele pode-se dizer,
em relação ao termo, que “é P” ou “é não-P” é verdadeiro, não o podendo ser dito de
ambos serem verdadeiros ou falsos. Já proposições gerais como “Todos os paulistas
são paulistanos” e “Todos os paulistas são não-paulistanos”, são ambas falsas.
Ou, segundo o PC, S e sua negação interna não são ambas verdadeiras para
qualquer proposição definida (não-vaga) e que não expresse possibilidade e,
segundo o PTE, S ou sua negação interna é verdadeira para qualquer proposição
individual (não-geral), que não expresse necessidade (LANE, 1999: 289-290).
Conclui-se que, tanto proposições vagas/ possíveis, às quais não se aplica o
PC, quanto gerais/ necessárias, às quais não se aplica o PTE, o princípio de
bivalência, pelo qual pode-se dizer de uma proposição ser verdadeira (V) ou falsa
(F) é mantido e, sendo assim, não podem ser proposições-L, que rejeitam a
bivalência ao inserir um terceiro valor.
não se aplica a VAGAS/ POSSÍVEIS
PC
se aplica a DEFINIDAS
não se aplica a GERAIS/ NECESSÁRIAS
PTE
se aplica INDIVIDUAIS
Agora, considere-se o seguinte exemplo de uma folha branca com uma
171
mancha preta em seu centro:
Cada ponto da folha é preto ou não-preto (ou branco ou não-branco), mas
um limite, uma área de fronteira entre o não determinadamente preto e o não
determinadamente não-preto, que representa um limite (L) entre predicações, entre
o que se possa afirmar verdadeiro (V) ou falso (F).
Deste modo, não se pode afirmar “L é preto” nem “L é não-preto”, pois L situa-
se entre ambos predicados. Não podendo serem ditos ambos verdadeiros, PC se
aplica. Conseqüentemente, as proposições não expressam possibilidade, mas
termos definidos.
Por outro lado, pode-se afirmar que “L é preto” ou “L é não-preto”, portanto,
PTE se aplica - conseqüentemente, não expressam necessidade, mas termos
individuais -, com a diferença de ser FALSO em relação à proposição (porque a
ambigüidade impede que se decida entre ambos predicados).
Proposições-L são, em resumo, atuais (não-modais nem necessárias, nem
possíveis) e singulares, ou seja definidas (não-vagas) e individuais (não-gerais)
(ibid.: 294).
São ainda, como afirma Lane, elementos discretos nos contínuos de
possibilidade e necessidade, quebras ou brechas na continuidade matemática e
temporal, que teriam motivado Peirce a elaborar a LT. Em outras palavras, tais
proposições expressariam um elemento de ação bruta, reativa, de Segundidade, que
seria um extrato proto-semiótico de mundo, prenhe de significação (pois, em Peirce,
172
tudo pode potencialmente funcionar como signo). Como no conto “Uma Rosa
Amarela”, de J.L. Borges (BORGES, 1984), o termo seria “a” rosa amarela, em sua
absoluta singularidade, vista pelo poeta moribundo de sua janela, e que estava além
do caráter racional de significações:
Marino viu a rosa, como Adão pôde vê-la no Paraíso, e sentiu que ela
estava em sua eternidade e não em suas palavras, e que podemos
mencionar ou aludir, mas não expressar, e que os altos e soberbos
volumes que, num ângulo da sala, formavam uma penumbra de ouro,
não eram (como sua vaidade sonhara) um espelho do mundo, mas
uma coisa mais agregada ao mundo. (ibid.: 28-29).
2. Tabelas e operadores
Ao elaborar sua lógica triádica, Peirce tinha em mente uma limitação da lógica
bivalente para o tratamento de proposições de valores limites entre determinações
de verdadeiro e falso. Tinha em mente também, conforme visto, uma formalização
do conceito de singularidade lógico-semântica, apesar de não deixar isso explícito
nos manuscritos.
Em seus experimentos Peirce introduz seis operadores lógicos trivalorativos
ordenados em pares:
{Φ, Θ}
{Ψ, Ζ}
{Ω,Υ}
Estes operadores correspondem às seguintes tabelas:
Φ V L F
V V V V
L V L F
F V F F
173
Θ V L F
V V V V
L V L L
F V L F
Ψ V L F
V V V F
L V L F
F F F F
Ζ V L F
V V L F
L L L F
F F F F
Ω V L F
V V L F
L L L L
F F L F
Υ V L F
V V L V
L L L L
F V L F
As matrizes são ordenadas pela seguinte regra: i) os membros de cada
conjunto formam pares duais relativos a um tipo particular de negação e ii) cada
pares de conjuntos é dual a outros pares de conjuntos relativos a um certo tipo de
negação (TURQUETTE, 1967: 67). Peirce define negação total (´) como a que
transforma todos os valores de verdade e negação parcial ( ˉ ) a que transforma
alguns valores de verdade (ibidem). Assim, dada a tabela de negações parciais N1,
N2 e N3:
174
P N1P N2P N3P
V V F L
L F L V
F L V F
Por definição (1), um operador O é dual de um operador O* relativo a uma
negação N se e somente se POQ tem o mesmo valor que N (NPO*NQ), de modo a
obterem-se as seguintes relações de dualidade entre os seis operadores triádicos:
i) os operadores do conjunto {Φ, Θ}são duais relativos a N1;
ii) os operadores do conjunto {Ψ,Ζ} são duais relativos a N3 e
iii) os operadores do conjunto {Ω,Υ} são duais relativos a N2.
Validamos o experimento pelos seguintes cálculos:
P Q PΦQ N1P N1Q N1PΘN1Q N1(N1PΘN1Q)
V V V V V V V
V L V V F V V
V F V V L V V
L V V F V V V
L L L F F L L
L F F F L L F
F V V L V V V
F L F L F L F
F F F L L F F
175
P Q PΨQ N3P N3Q N3PΖN3Q N3(N3PΖN3Q)
V V V L L V V
V L V L V L V
V F F L V F F
L V V V L L V
L L L V V L L
L F F V F F F
F V F F L F F
F L F F V F F
F F F F F F F
P Q PΩQ N2P N2Q N2PΥN2Q N2(N2PΥN2Q)
V V V F F V V
V L L F L L L
V F F F V V F
L V L L F L L
L L L L L L L
L F L L V L L
F V F V F V F
F L L V L L L
F F F V V F F
Por definição (2) dois conjuntos S e S* podem ser chamados duais relativos à
negação N se e somente se os elementos de S são duais relativos a N dos
elementos de S*. Assim tem-se:
i) os conjuntos {Φ, Θ} e {Ψ, Ζ} são duais relativos a N2;
ii) os conjuntos {Φ, Θ} e{Ω, Υ} são duais relativos a N3 e
iii) os conjuntos {Ψ, Ζ} e {Υ, Ω} são duais relativos a N1.
Com isso, as matrizes relacionam-se por conectivos de negações, formando
um sistema simétrico por dualidades. Para Peirce, as tabelas de operadores e
176
negações são requisitos para uma lógica funcionalmente completa (TURQUETTE,
1969).
Conclusões
A LT de Peirce encontraria aplicações práticas em áreas como a mecânica
quântica e programação de computadores, em que lógicas bivalentes têm eficácia
limitada dada a complexidade dos problemas envolvidos. Por este motivo, futuros
estudos que busquem elucidar aspectos formais desta lógica adquirem relevância
para a ciência. Com relação à Filosofia, conclui-se que não relação direta com o
tiquismo, uma vez que proposições-L, conforme demonstrado por Lane (1999), não
expressam possibilidades reais, mas singularidades, que quebram o contínuo. Não
se referem, assim, à Primeiridade, mas à Segundidade. Porém, auxiliam a explicar
como o acaso absoluto, acionado por reações acidentais dadas exteriormente ao
sistema, quebram cadeias causais no cosmos.
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