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Na verdade, o que Peirce salienta é que não é possível pensar o acaso
mantendo-se a doutrina do determinismo. Neste ponto, ele introduz o acaso absoluto
e, contrário a Boltzmann, que voltou atrás em suas conclusões para não desafiar a
mecânica clássica, Peirce deu um passo além em sua cosmologia. Este passo foi
postular o acaso como fonte de organização, isto é, não como desordem, mas como
princípio que dá origem à Terceiridade no universo. Sua teoria do acaso consiste,
pois, em uma dupla ação do processo evolutivo: i) acaso matemático e lei do hábito
levando o universo de um macroestado de maior uniformidade; e ii) acaso absoluto,
criando localmente instâncias de quebra de leis causais, produzindo diversidade e
vida. É patente o esforço com que o autor, em pleno século XIX, buscava termos
adequados para expressar a complexidade:
Na medida em que a evolução segue uma lei, a lei do hábito, em vez
de ser um movimento da homogeneidade para a heterogeneidade,
cresce da disformidade para a uniformidade. Mas divergências
causais da lei estão perpetuamente agindo para aumentar a
variedade do mundo, e são conferidas por uma espécie de seleção
natural, ou de outro modo qualquer (para o escritor não pensar que o
princípio seletivo é suficiente); assim, o resultado final pode ser
descrito como uma “heterogeneidade organizada”, ou melhor,
variedade racionalizada. (CP 6.101, 1903; grifos nossos
172
).
“Heterogeneidade organizada” e “variedade racionalizada”, argumenta-se, é o
que hoje pode-se chamar de um crescimento em direção à complexidade, que só é
possível porque acaso absoluto, em Peirce, é fonte de organização
173
, ou seja, age
and that by the principles of probabilities there must occasionally happen to be concentrations of heat in the
gases contrary to the second law of termodynamics, and these concentrations, ocurring in the explosive
mixtures, must sometimes have tremendous effects. Here, then, is in substance the very situation supposed;
yet no phenomena ever have resulted which we are forced to attribute to such chance concentration of heat,
or which anybody, wise or foolish, has ever dreamed of accounting for that manner.”
172
“In so far as evolution follows a law, the law of habit, instead of being a movement from homogeneity to
heterogeneity, is growth from disformity to uniformity. But the chance divergences from law are perpetually
acting to increase the variety of the world and are checked by a sort of natural selection and otherwise (for
the writer does not think the selective principle sufficient), so that the general result may be described as
'organized heterogeneity', or better, rationalized variety.”
173
Nestes termos, Peirce antecipou resultados semelhantes ao de teorias como a da ordem a partir do ruído
(Heinz von Foerster, John von Neumann, Willian Ross Ashby, Henri Atlan, a segunda Cibernética, teorias
cognitivas e Teoria Geral de Sistemas), a ordem a partir de flutuações (termodinâmica não-linear de sistemas
abertos longe do equilíbrio, de Ilya Prigogine, Paul Glansdorff e Gregorie Nicolis), padrões a partir do caos
(teoria do Caos Determinista e sistemas dinâmicos não-lineares, de Edward N. Lorenz, David Ruelle, Robert
May, James York, Robert S. Shaw, James Crutchifield, Doyne Farmer, Norman Packard e Mitchell
Feigenbaun) e teorias das bifurcações (Poincaré), entre outros, apesar de que em nenhum destes casos, com
exceção, talvez, em Prigogine, possa-se falar de acaso ontológico (para uma análise do acaso em Peirce e
Prigogine, cf. SALATIEL, 2005).