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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
“CADA VIDA É UM CORPO A FECUNDAR”:
OS CORPOS AMADOS NA POESIA DE HELDER MACEDO
Carolina Casarin da Fonseca Hermes
2008
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“CADA VIDA É UM CORPO A FECUNDAR”:
OS CORPOS AMADOS NA POESIA DE HELDER MACEDO
Carolina Casarin da Fonseca Hermes
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como quesito para a
obtenção do Título de Mestre em Letras
Vernáculas (Literatura Portuguesa).
Orientadora: Profª. Doutora Teresa Cristina
Cerdeira.
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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“CADA VIDA É UM CORPO A FECUNDAR”:
OS CORPOS AMADOS NA POESIA DE HELDER MACEDO
Carolina Casarin da Fonseca Hermes
Orientadora: Professora Doutora Teresa Cristina Cerdeira
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do
Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa).
Examinada por:
________________________________________________________________
Presidente, Profª. Doutora Teresa Cristina Cerdeira
______________________________________________________________________
Prof. Doutor Eucanaã Ferraz – UFRJ
______________________________________________________________________
Profª. Doutora Ida Maria Santos Ferreira Alves – UFF
______________________________________________________________________
Profª. Doutora Monica do Nascimento Figueiredo – UFRJ
______________________________________________________________________
Profª. Doutora Mônica Genelhu Fagundes – UFRJ
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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FICHA CATALOGRÁFICA
HERMES, Carolina Casarin da Fonseca.
“Cada vida é um corpo a fecundar”: os corpos amados na
poesia de Helder Macedo/ Carolina Casarin da Fonseca Hermes.
– Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2008.
xi, 90 f.
Orientadora: Teresa Cristina Cerdeira
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, 2008.
Referências bibliográficas: f. 103 – 106.
1. Literatura Portuguesa. 2. Poesia Moderna. I. Cerdeira,
Teresa Cristina. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas. III. “Cada vida é um corpo a fecundar”: os corpos
amados na poesia de Helder Macedo.
5
RESUMO
“CADA VIDA É UM CORPO A FECUNDAR”:
OS CORPOS AMADOS NA POESIA DE HELDER MACEDO
Carolina Casarin da Fonseca Hermes
Orientadora: Profª. Doutora Teresa Cristina Cerdeira
Resumo da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a
obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa).
Esta dissertação propõe a leitura de O lago bloqueado, livro de poemas de Helder
Macedo, publicado em 1977. Três corpos são ali eleitos pelo sujeito lírico. O corpo da
amada, o corpo da poesia e o corpo da pátria fulguram como objetos de desejo que
permitem ao sujeito fugir das seduções narcísicas. A presença do lago dobradamente
bloqueado acentua o caráter de inalterabilidade especular e, nesse caso, intransitiva,
que o eu lírico anseia por ultrapassar na conquista de uma fecunda alteridade (amada,
pátria, poesia). A permanência do registro do bloqueio num texto publicado quatro anos
depois do 25 de Abril causa certo estranhamento, e, nesse sentido, obriga o leitor a um
esforço de contextualização que lide de modo menos eufórico e apocalíptico com os
desdobramentos do processo revolucionário. Helder Macedo chama a atenção de seu
leitor para um bloqueio remanescente e quase perigosamente invisível. O poeta anseia
por conhecer, e aprende com o corpo e no corpo. O lago bloqueado, portanto, poderia
ser definido como um livro em que a consciência dos bloqueios – naturais e artificiais
convive com o desejo incessante de desbloquear, nem que seja minimamente, o corpo
do outro, para adentrar amorosamente o desconhecido, seja este a amada, a poesia ou a
pátria.
Palavras-chave: Helder Macedo – poesia portuguesa – corpo – erotismo
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
6
ABSTRACT
“CADA VIDA É UM CORPO A FECUNDAR”:
THE BODIES BELOVED AT HELDER MACEDO’S POETRY
Carolina Casarin da Fonseca Hermes
Orientadora: Profa. Doutora Teresa Cristina Cerdeira
Abstract da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura
Portuguesa).
This thesis proposes a reading of O lago bloqueado, book of poems by Helder Macedo
published in 1977. Three bodies are there elected by the I lyrical. The body of the
beloved, of poetry and of the homeland happens on the Lago bloqueado as objects of
desire of a subject that seeks flee of the seductions of narcissism, given the presence of
a lake that is just blocked, stresses its character inalterability of speculation and, in this
case, intransitive, that the I lyrical wants to overcome in winning a fruitful otherness
(beloved, homeland, poetry). The permanence of the record of the blockade in a text
published four years after the April 25 issue certain estrangement, and compels the
reader to a necessary effort to contextualization that deals as less apocalyptic with the
development of the revolutionary process. In this sense, Helder Macedo draws the
attention of your reader to a standstill and left, almost, invisible. The poet keen to know
and learn with the body and on the body. O lago bloqueado, therefore, could be defined
as a book in which the conscience of blockades natural and artificial coexists with
the incessant desire to unlock, even if minimally, the body of another, to lovely enter
the unknown, be it the beloved, the poetry or the homeland.
Keywords: Helder Macedo – portuguese poetry – body – erotism
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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DEDICATÓRIA
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
“Resíduo”, Carlos Drummond de Andrade
À memória das minhas avós, Nilda e Mariinha.
Aos meus pais, Nino e Mayse.
Resíduos que vivem em mim.
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AGRADECIMENTOS
Muito obrigada aos meus irmãos, Carlos Eduardo e Pedro Henrique.
Amo-os desde sempre, com o espanto, a dificuldade, e a graça de ter descoberto em
vocês a diferença. Obrigada por me amarem também, e por serem uns olhinhos
admirados, meus primeiros fãs.
Obrigada minha tia Ângela: fonte de afeto e carinho interminável: memória.
Obrigada minha tia Mimiu: por ser, por querer muito, e me ensinar a desejar.
Obrigada Renata, Tatiana e Mônica: pessoas infinitamente doces e amáveis, que me
tornaram quem hoje sou. Meu amor por vocês é pleno, inesgotável.
Obrigada professora Monica: a mãe da idéia.
Obrigada Nino e Mayse, meu pai e minha mãe, por absolutamente tudo. Meu amor por
vocês é um lago que se abriu: nasci amando-os e depois aprendi a amá-los.
Muito obrigada professora Teresa Cristina Cerdeira: foi em você que tudo começou.
Este texto nasceu há quatro anos, quando você me falava de amor e eu ouvia
apaixonada. Este texto nasceu na ponta de sua língua. Obrigada.
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MEUS CORPOS
Alguns dos corpos com os quais aprendo.
Tonia: meu par de olhos azuis.
Carol Barbieri: minha amiga mais antiga, sabe meus primeiros
medos e minhas melhores risadas.
Nanda: minha pequena.
Bel: minha amiga que me ensina a ser.
Dani: minha lua, que ama.
Mariana Waldeck: minha memória.
Chico, Pita, Celme, Tessi, Tião, Hugo: meu tempo.
Nane: a mulher mais linda que eu conheço.
Alexandre: minha história.
Dani Legrazie, Roberta, Paula, Katya, Marcella, Dani Hermes.
A família do pai e a família da mãe.
E a família do sul, por inteira.
E uma certa Rosa e um certo Mateus, ambos Casarin, que um
dia vieram da Itália.
Aida, Helena e Carlota Ramos: presenças ausentes, sangue,
corpos falados.
Rosane, minha professora de português na sexta-série.
10
SUMÁRIO
1 – Introdução 12
2 – Os fundamentos 20
2.1 – A palavra poética 21
2.2 – Nomear o mundo 27
2.3 – O espelho de Narciso 36
3 – “Cada vida é um corpo a fecundar” 47
3.1 – “Cada peça de mim não me contém”:
Fingimento/ jogo/ ficção 51
3.2 – “Não posso rejeitar o que não sou”:
Espelho/ conhecimento/ amor 68
3.3 – “os lagos que os rochedos separaram”:
Erotismo/ morte/ conhecimento 82
4 – Conclusão 99
5 – Bibliografia 103
11
A melhor poesia é sempre uma pesquisa,
uma tentativa de dar forma ao desconhecido.
Helder Macedo
O amor é a vontade de cuidar, e de preservar o objeto cuidado.
Um impulso de expandir-se, ir além, alcançar o que “está lá fora”.
Amar é contribuir para o mundo.
Zygmunt Bauman
12
1 – Introdução
De amor e de poesia e de ter pátria
aqui se trata: que a ralé não passe
este limiar sagrado e não se atreva
a encher de ratos este espaço livre
onde se morre em dignidade humana
a dor de haver nascido em Portugal
sem mais remédio que trazê-lo n’alma.
Jorge de Sena
Não podemos dizer da poesia de Helder Macedo que ela seja uma poesia
engajada, ao menos naquele sentido mais óbvio a que o conceito abriu espaço depois de
criado por Sartre na fronteira tensa do existencialismo e do humanismo marxista. Não
estamos exatamente diante de uma poesia de peso político claramente exposto, que põe
a literatura a serviço de uma causa que a ela se sobrepõe como valor fundamental. Por
outro lado, diante da sua produção lírica, narrativa ou ensaística, tampouco poderíamos
colar-lhe a etiqueta displicente de autocentramento ou auto-referencialidade, como se o
mundo, os homens, seus atos, seus desejos não agissem sobre ele.
Sua poesia é, digamos, discretamente participante, parecendo guardar um
mistério profundo, um enigma que clama por ser descoberto. Estamos diante de uma
literatura consciente de sua opacidade, consciente de que a poesia como escrita em
modo de sedução não se desnuda nunca inteiramente. O texto, tecido de mil fios a
serem deslindados, “embaraçada meada”, como diria Garrett, permite que se entreveja
seu significado, mas nunca de modo claro e evidente, antes por trás da espessura textual.
A palavra poética é densa, não transparente, o que não significa que dela se ausente a
exuberância do brilho. Aquela referida opacidade aponta tão somente para a densidade
do tecido de que é feito. Enxergamos no espaço por entre os fios, ou enxergamos esse
espaço de muitos fios.
Escrever sobre os corpos amados na poesia de Helder Macedo, ou melhor, sobre
os corpos amados que emergem no conjunto de poemas O lago bloqueado, é escrever
13
sobre corpos fluidos, fictícios, construídos, e é especialmente inscrever na página em
branco o corpo do poeta, um corpo desmembrado pelo prazer doloroso de amar. De
amar o corpo feminino, de amar a poesia e de amar a pátria. Os corpos amados da
poesia de Helder Macedo são, portanto, “de amor e de poesia e de ter pátria”.
Não é coincidência, entretanto, que a tríade eleita como objeto de pesquisa desta
dissertação esteja num verso de Jorge de Sena
1
. “De amor e de poesia e de ter pátria” é
também o título de um artigo de Helder Macedo sobre a poesia de Sena. Nesse ensaio,
escrito em 1999, para um encontro que comemorava os vinte anos de morte do poeta,
Helder Macedo parte justamente do verso seniano para analisar a presença das três
instâncias amor, poesia, pátria num breve recorte da obra seniana, ao mesmo tempo
que, em jeito de homenagem saudosa, relata parte de sua experiência como amigo
próximo que foi de Jorge de Sena, lembrando alguns momentos importantes que
viveram juntos. Afinal fora justamente o poeta homenageado quem encorajara o jovem
poeta Macedo a publicar os seus primeiros escritos: “Fui amigo de Jorge de Sena.
Conheci-o antes de publicar o meu primeiro livro de poemas, tinha eu vinte anos.
Encorajou-me como poeta e, mais tarde, encorajou também a minha carreira
universitária” (MACEDO, 2006, p. 196). Mas evocar Jorge de Sena para o então crítico
Helder Macedo era sobretudo recordar que tinha sido ele quem escreveu a introdução à
sua primeira antologia de poemas, publicada em 1968, ajudando-o
a entender melhor a
sua própria escrita
2
. E seria finalmente Jorge de Sena quem escreveria igualmente a
introdução a uma nova antologia alargada publicada por Helder Macedo, dez anos
depois, acrescida então de uma essencial seqüência de poemas intitulada O lago
1
Trata-se do poema “Aviso de porta de livraria”, que se encontra no livro Exorcismos, de 1972 (SENA,
2001, p. 174).
2
Faço referência ao seguinte trecho do artigo “De amor e de poesia e de ter pátria”: “Em 1968 publiquei
uma recolha de poemas para a qual Jorge de Sena escreveu um estudo introdutório que me ajudou a
entender melhor a minha própria escrita” (MACEDO, 2006, p. 197).
14
bloqueado. O destino, porém, não permitiu que Jorge de Sena concluísse seu trabalho,
deixando, ao morrer, o texto introdutório apenas iniciado na sua máquina de escrever:
Dez anos depois, em 1978, quando esse volume ia ser reeditado com o
acrescentamento de uma nova sequência de poemas, (Sena) imediatamente
concordou em actualizar o seu estudo. Mas estava à beira da morte, não o
pôde completar. Mécia de Sena a companheira que ele mereceu ter achou
no entanto por bem mandar-me esse fragmento e autorizou que fosse
publicado. Disse-me também que foi o último texto que ele escreveu, que a
última página tinha ficado tal como a deixara na máquina de escrever
(MACEDO, 2006, p. 197).
Além do encorajamento à publicação e do texto analítico esclarecedor, Jorge de
Sena parece ter tido uma influência sutilmente importante na poesia de Helder Macedo.
Se, em dado momento do ensaio que escreve sobre o grande poeta português de uma
geração antes da sua, Helder Macedo chama a atenção sobre o “modo como [Jorge de
Sena] fala de si no que escreveu sobre mim” (MACEDO, 2006, p. 190), deixando
inferir não sem a ousadia que ele próprio confessa que havia entre os dois, com a
distância que o tempo permitia, um encontro de vozes, não será menos interessante
notar que explicitamente esse jogo de espelhos retorna, agora às avessas, no texto de
1999, e, ao falar de Jorge de Sena, Helder Macedo está também dizendo de si, falando
de suas questões, que eram próximas às dele, lançando um olhar analítico enviesado
para o seu próprio conjunto de poemas O lago bloqueado, como fica claro nas últimas
linhas do artigo:
Na carta que Mécia de Sena me mandou acompanhando o que Jorge
de Sena tinha escrito sobre O Lago Bloqueado, informou-me que na
primeira página ele tinha anotado alguns dos versos que porventura
tencionaria comentar mais pormenorizadamente. Entre os quais, os
seguintes: “Não rejeito o amor”; “Cada vida é um corpo a fecundar/
como uma pátria”; “assim de novo quase nos cumprimos”. Ouso
perguntar: amor, poesia e pátria? (MACEDO, 2006, p. 199)
15
O amor, a poesia e a pátria estão, portanto, também presentes em O lago
bloqueado, de maneira ora mais evidente ora mais sutil. Sendo o verso de Jorge de Sena
uma espécie de mote para esta dissertação pois assim intuímos que tenha sido, de
modo subliminar, à escrita de O lago bloqueado convém analisarmos minuciosamente
a frase seniana, posto que acreditamos que nela aconteça uma metonímia reduzidíssima
da estrutura poética de O lago bloqueado.
Não foi sem propósito que Jorge de Sena uniu as três palavras, amor, poesia e
pátria, enlaçando três significantes que nos remetem a múltiplas significações. O uso
inesperadamente reiterado da conjunção aditiva e (“De amor e de poesia e de ter
pátria”), para além de semanticamente guardar o sentido da adição, estabelece uma
separação tensa porque inesperada para a dicção portuguesa entre as palavras, pois
ao mesmo tempo em que as une as mantém distanciadas, provocando, inclusive, uma
prosódia pausada motivada por sua repetição. O resultado rítmico e sonoro da utilização
do conectivo amarra as palavras de tal modo que gera a sensação de se tratar de um
único vocábulo, como se amor, poesia e pátria, dispostas da maneira como Jorge de
Sena as dispôs, tivessem um único significado. Essa estratégia poética cria um
emaranhado de significações, pois a impressão de tratar-se de um vocábulo único não
anula os significados próprios de cada sintagma. Assim, as redes semânticas de cada
palavra entrecruzam-se, influenciando-se umas às outras. Não é de amor que Jorge de
Sena está falando, mas de amor e de poesia e de ter pátria.
Ao começar o verso com o amor tem-se a sensação de que esta palavra ilumina
as outras duas poesia e pátria. O sintagma “De amor” é aquele que inicia o verso, não
conjunções aditivas antepostas a ele, o amor impõe-se. O poeta ama a poesia e a
pátria. E, é claro, ama o amor. A poesia, posposta ao amor, mas não por isso menos
importante (o que se pretende estabelecer aqui não é uma ordem hierárquica), funciona
16
como se fosse a base, o esteio do verso, o modo do amor e o modo de amar. Se
pensássemos numa figura geométrica que exemplificasse este belo verso poderíamos
eleger uma pirâmide invertida, quem sabe de cristal como a do novo Louvre: a poesia na
ponta de base equilibrando as outras duas instâncias, o amor e a pátria. Não que se trate,
porém, de um equilíbrio linear, mas antes circular, como o da mítica serpente a morder a
cauda. Seria talvez oportuno lembrar uma frase de Eduardo Prado Coelho, aliás,
finíssimo leitor de Jorge de Sena e de Helder Macedo: “Ler é um infinito pessoal como
morrer e amar: é entrar num espaço onde a releitura é leitura” (COELHO, 1998, p.
139). Glosando Prado Coelho, poderíamos afirmar que também escrever é um infinito
pessoal como morrer e amar, pois toda escrita é, afinal, leitura. Fiquemos de início pelo
amar (embora a morte venha ao contexto com extrema adequação). Escrever é ato de
amor, experiência de infinito pessoal como só se equivalem o amor e a morte. O amor é,
pois, um valor precedente, gerador de uma escrita (poesia) que fala do lirismo amoroso
(amor), e do compromisso com a história (pátria).
E é mesmo a poesia aquela que possibilita o verso, pois, afinal, trata-se de um
verso dentro de um poema. É portanto de um exercício de escrita poética que estamos
falando, logo, literalmente, de poesia. Sendo assim, “e de poesia” é o aviso do poeta
não nos esqueçamos de que o título do poema é “Aviso de porta de livraria” de que a
escrita poética estará em pauta em sua poesia, assim como o amor e a pátria. Em algum
nível, refletir sobre a poesia é necessariamente refletir sobre o amor, e refletir sobre a
pátria, e no caso seniano de poeta em exílio, tal como Macedo, sobre o fato de ter pátria.
Digamos que o modo poético é o canal que o poeta utiliza, é o seu meio, a sua
linguagem. E os três sintagmas estão fatalmente imbricados, são um emaranhado de
sentimentos profundos.
17
A pátria, eu diria, é a palavra que suscita maiores contradições para o poeta. Ter
pátria significa possuí-la, e é preciso levar em consideração o caráter corporal e erótico
do verbo possuir. O homem possui a mulher, assim como possui a terra. O homem ama
a mulher, assim como ama a terra. E rejeita-as, e desconhece-as, e abandona-as, e morre
por elas, na mesma medida. Como disse Helder Macedo no artigo “De amor e de poesia
e de ter pátria”, “as nossas [dele e de Jorge de Sena] experiências existenciais
significam modos semelhantes de exercermos, mesmo se à revelia, a mesma condição
de portugueses” (MACEDO, 2006, p. 199). Trazer a pátria na alma é, citando Jorge de
Sena, irremediável. É ter no corpo a marca da terra e com corpo quero dizer alma,
olhos, pulmões, coração. Carregar, mais do que a pátria, mas a dor de haver nascido
naquela pátria, é ter responsabilidade sobre o pedaço de terra onde se nasce, pois a dor
nasce da inelutável presença da pátria no corpo do poeta exilado. E esta presença se
fundamentalmente na língua. Por isso, desejando ou não, longe ou perto, a presença da
terra dá um sentido de responsabilidade ao poeta, seja a pátria indigna, esteja ela
maltratada ou ferida, ela faz eco no poeta que a fala, a escreve e a ama, sentindo-a
indelevelmente sua.
Essa rápida excursão no sentido de um aparente curso para fora do centro
iluminado que será O lago bloqueado de Helder Macedo pareceu-me vital para o
entendimento da proposta e do corpus desta dissertação. Primeiro porque a idéia desta
proposta de trabalho, apesar de nunca antes ter sido desenvolvida, encontra-se inferida
no ensaio “De amor e de poesia e de ter pátria”. Ouso dizer que foi o próprio Helder
Macedo quem a lançou, como um corpo, esperando ser fecundado. Depois porque o
modo como as palavras amor, poesia e pátria surgem no verso de Jorge de Sena
aproxima-se imenso da maneira como as imagens eleitas aparecem em O lago
bloqueado. Também neste conjunto de poemas de Helder Macedo elas fulguram
18
emaranhadas, mutantes, metamorfoseadas umas nas outras. Uma rocha, por exemplo, é
um corpo feminino, e é também a resistência da palavra a se tornar poesia.
Tendo sido publicado em 1977, O lago bloqueado é, nas palavras de seu autor,
“a um nível não sei se ao nível mais profundo, mas certamente não o mais evidente
o meu modo de lidar com a revolução que o 25 de Abril poderia ter sido e se tinha
tornado claro que não ia ser. Daí o título: O Lago Bloqueado(MACEDO, 2006, p.
197). É, portanto, inevitável que se passeie também minimamente pelas ginas
históricas de um Portugal pós-revolucionário, fertilizado, prenhe de esperanças, mas que
“se aborta em seu tardio mênstruo” (MACEDO, 2000, p. 81).
Para finalizar esta primeira parte de um texto que apenas se anuncia, gostaria de
trazer à cena outra poeta magnífica, de uma geração que se chamou muito
conscientemente “Poesia 61”: Fiama Hasse Paes Brandão. Ouçamo-la:
Existimos sobre o anterior. O movimento da escrita e da leitura
exerce-se a partir da menor mutabilidade aparente da pedra
e da maior mutabilidade da grafia. O progresso dos textos
é epigráfico. Lápide e versão, indistintamente (BRANDÃO, 1974, p. 261)
3
.
Existir sobre o anterior significa carregá-lo consigo. Somos corpos que carregam
corpos que carregam corpos, até ao infinito de nossa história. Exercitar a escrita poética
é lançar-se radicalmente nessa espiral sem fundo que é a existência de outros textos que
revelam sempre outros mundos. Por isso a escrita poética é sensível à “menor
mutabilidade aparente da pedra” e à “maior mutabilidade da grafia”, pedra que parece
mudar pouco mas que muda quando a grafia metamorfoseante altera o próprio material
aparentemente intransitivo que a recebe. Nada afinal é intransitivo. Por isso a escrita é
sangue e cicatriz, versão e lápide. Sendo sangue e versão correlativos da metamorfose
3
O trecho destacado faz parte do poema “O texto de João Zorro”.
19
viva que é o processo constante da escrita e da re-leitura, e cicatriz e lápide as marcas da
tradição, o seu peso e a sua incisão.
Torna-se ousada, por isso mesmo, a aventura crítica diante de material tão
sedutoramente transmutável. Daí que, como numa invocação, peço agora ajuda ao
equilíbrio entre a sedução do texto e o rigor da sua leitura. Que eu carregue comigo,
nessa minha própria aventura que é escrever um texto sobre poesia, o olhar atento e
minucioso que Jorge de Sena, Helder Macedo, e Fiama Hasse Paes Brandão souberam
lançar com amor sobre a poesia e sobre a pátria. Que a poesia esteja sempre, não ao meu
lado, mas à minha frente, para poder olhá-la amorosamente; e dentro de mim, como um
lago rodeado de terra por todos os lados, que esconde, no fundo, o mistério da areia.
Seremos assim, na escrita, nas muitas escritas, como corpos que se tocam e que existem
ao tocar-se, num desejo que se converte em palavras, e que escuta amorosamente a
palavra do outro.
20
2 – Os fundamentos
O próprio acto de cognição é um acto apaixonado.
António Ramos Rosa
muitas maneiras diferentes de se estruturar uma dissertação de mestrado.
Para a minha, optei por apresentar a teoria que será utilizada como suporte da análise
literária e, no capítulo seguinte, trabalhar o texto propriamente dito. Não que a teoria
tenha precedido a leitura, o que seria contrário às bases de reflexão que eu própria elegi;
mas porque, por paradoxal que seja, uma introdução teórica, mesmo que inserida no
início de um ensaio literário, para apontar as vias do trabalho intelectual, é passível
de expor claramente seus princípios porque foi amadurecida a partir da leitura do corpus
textual.
Um capítulo, no entanto, intitulado Pressupostos teóricos, não diria de maneira
exata o que este quer ser. Justamente porque os pressupostos desta dissertação estão
além, e aquém, da teoria, preferi chamá-lo, simplesmente: Os fundamentos. Suponho
que esta palavra consiga abranger melhor tanto os fundamentos teóricos que sustentam
minhas leituras, quanto os fundamentos históricos em que o texto foi gerado e, se posso
me exprimir assim, entremeados neles também os fundamentos emocionais.
O fundamento deste trabalho é, portanto, este: se vou em busca de conhecer os
corpos amados na poesia de Helder Macedo parto de dois princípios: o primeiro é que o
sujeito que fala é um sujeito amoroso, e assim fica evidente minha filiação teórica à
obra de Roland Barthes; e em segundo lugar eu, enquanto leitora que se propõe a
conhecer e a penetrar a camada tangível do texto, também o faço amorosamente no
duplo sentido de amar a poesia e de me deixar amar por ela, como a seguir a formulação
poética de António Ramos Rosa, que de maneira não anódina apus em epígrafe. Sou
também, de certo modo, um dos corpos amados-amantes da poesia de Helder Macedo,
pois é através dos meus olhos que os poemas se materializam, e nesse sentido amo-os e
21
sou amada por eles. Minha linguagem, ao modo barthesiano, “é uma pele: fricciono
minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou
dedos na ponta de minhas palavras. Minha linguagem treme de desejo” (BARTHES,
2003, p. 99).
2.1 – A palavra poética
Acredito, como Ramos Rosa, que o conhecimento é fruto de uma paixão.
Conhecemos somente aquilo que nos amarra, que nos toca em nosso pathos. E,
obviamente, quando nos propomos a escrever sobre determinado tema, ou texto, ou
livro, ou poema, propomo-nos, de modo fundamental, a conhecê-lo. E esse ato é
assumir a paixão que se tem pelo objeto. Conhecer pressupõe tocar, apalpar, sentir o
calor que emana do corpo alheio. Foi assim, por exemplo, que José Saramago imaginou
Jesus conhecendo o amor através do corpo de Maria de Magdala:
Maria se deitou ao lado dele, e, tomando-lhe as mãos, puxando-as para si, as
fez passar, lentamente, por todo o seu corpo, os cabelos e o rosto, o pescoço, os
ombros, os seios, que docemente comprimiu, o ventre, o umbigo, o púbis, onde
se demorou, a enredar e a desenredar os dedos, o redondo das coxas macias, e,
enquanto isto fazia, ia dizendo em voz baixa, quase num sussurro, Aprende,
aprende o meu corpo (SARAMAGO, 2006, p. 234).
Conhecer é, enfim, reconhecer a fisicalidade daquilo que nos propomos a
aprender. A teoria do texto, ao valorizar no discurso literário o cruzamento de
possibilidades infinitas de significação que a superfície do significante eleito abriga,
entende-o não como uma transparência que facilite a múltipla descodificação, mas como
espessura, densidade, tecido composto de fios oferecido ao prazer da leitura. A palavra,
ou melhor, a palavra dentro da poesia, a palavra poética, é, assim, um corpo físico, e,
para que se possa conhecê-la, é preciso enxergá-la na plenitude de sua corporeidade,
22
enredando e desenredando os dedos nas suas teias de significação. Escrever sobre
poesia é assumir essa materialidade do discurso, lançando-se à paixão que se tem por
aquele corpo verbal. Indo mais além, como afirma Rosa Maria Martelo, explorar a
fisicalidade da palavra é sugerir que o discurso ocupa o espaço como qualquer corpo
físico, e assim resiste a um ordem social inscrita na ordem imposta pela língua”
(MARTELO, 2004, p. 147). Ordem imposta nos remete, evidentemente, ao poder: poder
e língua: binômio para o qual Roland Barthes encontra uma formulação magistral em
sua aula inaugural para a cadeira de Semiologia Literária do Collège de France. Em seu
desejo de baldar o poder, ele mostra por que este “parasita” (BARTHES, s/d, p. 12) está
“emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte de um lugar fora do
poder” (BARTHES, s/d, p. 10): o poder habita a linguagem, a língua, e não vemos o
poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e
que toda classificação é opressiva” (BARTHES, s/d, p. 12). A literatura seria então para
ele o único lugar de onde é possível se ter um discurso desgarrado do poder, pois a
literatura é uma “trapaça salutar, uma esquiva, um logro magnífico que permite ouvir a
língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem”
(BARTHES, s/d, p. 16).
Lançar-se ao conhecimento da poesia é, portanto, reconhecer a sua
materialidade, sua corporeidade, o que significa enxergar o corpo poético como
capacidade de resistência ao poder que reside na língua. Resistir, aqui, é tocar de
maneira incessante aquilo a que se resiste. Transformando o processo em metáfora,
poderia lembrar um pequeno trecho do conto “As águas do mundo”, de Clarice
Lispector, numa cena modelar: são seis horas da manhã e a mulher entra no mar; no
encontro do corpo da mulher com a água do mar é inevitável a resistência que o corpo
feminino e a água se fazem simultaneamente. Isto é contato: “A mulher é agora uma
23
compacta e uma leve e uma aguda e abre caminho na gelidez que, líquida, se e a
ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido”
(LISPECTOR, 1998, p. 145). A relação entre a língua e a linguagem poética aproximar-
se-ia da relação que se estabelece entre esta mulher e o mar: assim como o mar é,
impondo-se à mulher, a língua é; e se a poesia irrompe necessariamente na ngua, ela
necessita, para que seja poesia, ir além da língua, precisa ultrapassá-la, explodi-la,
afirmar-se como um outro na língua, em outras palavras, precisa enganar a língua, jogar
– para utilizar um termo absolutamente barthesiano – com a língua.
Diz-nos Octavio Paz que “a poesia, de um lado, faz regressar seu material [isto é,
a linguagem] ao que é, e assim se nega ao mundo da utilidade; de outro, transforma-se
em imagens e desse modo se converte numa forma peculiar de comunicação” (PAZ,
1982, p. 27). A relação que a poesia estabelece com a língua é, portanto, dialética.
Numa face a poesia devolve à palavra sua originalidade
4
, recuperando o que nela da
força, se quisermos, mítica da sua origem, afastando-a da sua função meramente
utilitária; noutra, a poesia extrapola as possibilidades de investimento limitado da
linguagem no mundo, através das imagens que ousa, a partir dela, construir. O regresso
à materialidade da linguagem (ao que ela era na origem, como lembra Octavio Paz)
significa o afastamento do mundo da utilidade; e a extrapolação desta mesma
linguagem, através de qualquer coisa tão inusitada quanto planejada como é, justamente,
a imagem, permite que no poema a palavra ganhe em autenticidade se atrelamos este
atributo à recuperação da sua materialidade –, de tal modo que o que ali se é muito
4
É necessário que se faça uma pequena observação. Apesar de ter optado por usar a palavra
originalidade, sei da possibilidade de entendê-la como ligada ao que é novo, à novidade. Contudo, o
sentido que lhe quero atribuir aqui atrela-a, antes, ao que é originário, isto é, à origem, estando, desse
modo, relacionada à materialidade. Cito o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, em que este
sentido aparece nas primeiras acepções da palavra “original”: “1. Relativo a origem. 2. Que provém da
origem; inicial, primordial, primitivo, originário”.
24
mais que um simples conjunto de palavras desejando informar, apontar, identificar,
significar.
O diálogo entre poesia e linguagem, ou entre literatura e língua, é também
discutido por Roland Barthes na Aula. É ali que ele afirma que a literatura é, ao mesmo
tempo, e sem contradição, realista e irrealista. Realista porque, em sua força de
mathesis, a literatura “assume muitos saberes” (BARTHES, s/d, p. 18), como uma
enciclopédia construída por saberes em revolução, nos “interstícios”, dirá Barthes, do
saber científico, sendo, nesse sentido, “o próprio fulgor do real” (BARTHES, s/d, p.
18). Ao mesmo tempo, porém, que a literatura (ou a poesia) é a incandescência do real,
que ela transforma os saberes utilitários em sabores, ela deseja, em sua força mimesis,
quer dizer, dentro da perspectiva mimética, representar o real, o que, lembra Roland
Barthes, é uma evidente utopia, pois o real é irrepresentável. Mas se a língua cede a esta
evidente impossibilidade, a literatura usa de todos os artifícios para superar o abismo
entre a linguagem e o mundo, como a negar em delírio esta absoluta inadequação. “A
palavra é uma ponte através da qual o homem tenta superar a distância que o separa da
realidade exterior. Mas essa distância faz parte da natureza humana” (PAZ, 1982, p. 43),
afirma Octavio Paz. O homem, inconformado diante da inadequação da linguagem ao
real, produzirá, como diz Barthes, “numa faina incessante, a literatura”, pois “é
precisamente a essa impossibilidade que a literatura não quer, nunca quer render-se”
(BARTHES, s/d, p. 22). Sendo assim, é a sua obstinação em afirmar seu desejo de
aproximação ao real que a coloca, justamente, no lugar da improbabilidade e, logo, da
irrealidade. E Roland Barthes confirma a aporia:
Eu dizia há pouco, a respeito do saber, que a literatura é categoricamente
realista, na medida em que ela sempre tem o real por objeto de desejo; e direi
agora, sem me contradizer, porque emprego a palavra em sua acepção familiar,
que ela é também obstinadamente: irrealista; ela acredita sensato o desejo do
impossível (BARTHES, s/d, p. 23).
25
Acreditando ser sensato o desejo do impossível (definindo este impossível como
a representação do real pela linguagem) a poesia anseia pela realidade, “aspira sempre a
suprimir as distâncias, conforme vemos no desejo por excelência o impulso amoroso”
(PAZ, 1982, p. 80). O desejo da poesia pela realidade, contudo, não é e nem nunca
poderá ser realizado. Foi Helder Macedo quem afirmou que “no fim de toda demanda
talvez nada mais haja para encontrar” (MACEDO, 1998, p. 394). A demanda da poesia
pelo real é, conseqüentemente, infinita, ela nunca cessa de desejá-lo, e ele, por sua vez,
nunca deixa de ser desejável. O real, com sua amplitude interminável, é a matéria da
poesia. “Cada coisa ordinária é um elemento de estima”, diz uma poesia de Manoel de
Barros. E é cada uma dessas coisas insignificantes que a poesia deseja, ama, menos para
repetir que para extrapolar: “O que se encontra em ninho de joão-ferreira:/ caco de
vidro, grampos,/ retratos de formatura,/ servem demais para poesia” (BARROS, 2001,
p. 12).
O mundo, portanto, é passível de ser nomeado, mas não representado: “o real
não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por
palavras que uma história da literatura. O real é apenas demonstrável” (BARTHES,
s/d, p. 22). Por ser capaz de demonstração, de nomeação, de apresentação, a poesia é
livre, libertária. Ordenadas de determinado modo, produzindo um determinado ritmo,
rechaçando tantas vezes as expectativas da sintaxe, a linguagem poética é nova,
inusitada. Ela ocupa não mais os limites das probabilidades, mas as dimensões muito
mais amplas das possibilidades.
O lago bloqueado seria um bom exemplo, até certo ponto, da definição de poesia
moderna cunhada por Roland Barthes em O grau zero da escrita. Segundo Barthes, o
26
que caracterizava a poesia chamada por ele de clássica
5
, com as relações ainda
previsíveis entre as palavras, desapareceu na poesia moderna, dando lugar àquilo que
ele chamou de “explosão de palavras” (BARTHES, 2004, p. 42), o que implica
fundamentalmente a explosão das relações entre as palavras. Nessa “explosão”, as
palavras assumem radicalmente a infinidade de seus significados: “por trás de cada
Palavra da poesia moderna subjaz uma espécie de geologia existencial, onde se reúne o
conteúdo total do Nome, e não mais o seu conteúdo eletivo como na prosa e na poesia
clássicas” (BARTHES, 2004, p. 43).
A expressão “geologia existencial” é justamente bem significativa,
principalmente quando se considera a palavra poética como um corpo, e se leva em
conta o trabalho de escavação que compete ao leitor, que ela pressupõe e exige. As
relações e os significados não estão dados a priori, não contentam o leitor com a sua
previsibilidade; eles precisam ser descobertos, e o gesto de escavar significa descarnar o
objeto sobre o qual se está debruçado. Quase involuntariamente lembro de um poema de
Carlos Drummond de Andrade, “Mineração do outro”: “O corpo em si, mistério: o nu,
cortina/ de outro corpo, jamais apreendido,/ assim como a palavra esconde outra/ voz,
prima e vera, ausente de sentido” (ANDRADE, 2003, p. 476). O corpo e a palavra
lembrando que a proposta desta leitura é investigar os corpos da poesia de Helder
Macedo mantêm entre si uma relação de analogia tanto como cá. Minerar o outro
é não encontrar respostas perante o encanto e o espanto que causa o corpo alheio. A
palavra, também corpo, e especialmente a palavra da poesia moderna, mergulha na
engrenagem da palavra que esconde outra, que esconde outra, até à radicalidade da
palavra desmembrada no corpo do poema: “prima e vera, ausente de sentido”.
5
Em O grau zero da escrita Roland Barthes chama de clássico tudo aquilo produzido desde 1789
(Revolução Francesa) até meados do século XIX. Moderna, por sua vez, é a literatura de Rimbaud até a
data de publicação do livro, isto é, 1953.
27
2.2 – Nomear o mundo
A missão do poeta não é salvar o homem,
mas salvar o mundo: nomeá-lo.
Octavio Paz
Nomear o mundo significa conservá-lo, preservá-lo, livrá-lo da ruína total. Há,
entretanto, de se ter cuidado para que não se faça uma leitura romântica da missão do
poeta proposta por Paz. Como poeta moderno além de crítico e consciente dos
limites e dos poderes da palavra poética, ele afirma que a única e imensa incumbência
do poeta é salvar o mundo no sentido de reinventá-lo em palavra. A poesia tem a missão
de preservar o mundo para além de uma cópia imperfeita, o que significa dizer, de outro
modo, que ela quer fundar uma história pela ultrapassagem da História, fundar uma
história para além do puro espelhamento impossível. Portanto, a poesia tem também
uma função histórica.
No nosso caso, para o projeto de leitura de O lago bloqueado, saber que este
conjunto de poemas de Helder Macedo foi publicado em 1977 pressupõe não ignorar,
mais do que a surpresa, o espanto que a permanência do adjetivo “bloqueado” causa
entre os incautos. O adjetivo teria como que o peso de um contra-senso, pois, afinal, três
anos antes da publicação desses poemas uma revolução perfumada a cravos livrara o
país de uma ditadura de mais de cinqüenta anos. A importância quase paradoxal do
adjetivo de tom inesperado não pode por isso mesmo ser recusada ou elidida. Quero
dizer, com isso, que concordo com Antonio Candido quando afirma: “só podemos
entender a obra fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra”
(CANDIDO, 2006, p. 13). Nomear o mundo, salvando-o, é resgatá-lo do esquecimento.
E não é pela pretensão do retrato, como foi dito, que se dá esse resgate. Ao contrário,
é a força da literatura contra o poder que lhe o estatuto de memória. O poder sabe
destruir a memória, sabe desgastá-la, reduzi-la a pó. Mas quando a memória é literatura,
28
ou obra de arte, ela dificilmente pode ser destruída, pois é reinventada a cada geração, a
cada par de olhos que a lêem, e a fazem redizer-se.
É interessante o modo como Theodor Adorno inicia um texto que se intitula
“Palestra sobre rica e sociedade” (ADORNO, 2003). O crítico chama a atenção para o
possível estranhamento que uma interpretação social da lírica causaria nos amantes e
conhecedores de poesia. Pois, afinal, é quase do senso comum que a poesia é algo
absolutamente individual e subjetivo, que estabelece suas bases no resguardo das
engrenagens da sociedade. Logo, uma leitura sociológica correria o risco grande risco
de fugir daquilo que verdadeiramente interessa: o texto. Adorno procura contornar
esse problema afirmando que quando a referência ao social revela nas composições
líricas algo de essencial, do fundamento de sua qualidade, ela “não deve levar para fora
da obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela” (ADORNO, 2003, p. 66).
Julgo, portanto, que não será contraditório, depois de me ter lançado numa teoria
da textualidade, propor uma leitura dos poemas de O lago bloqueado que leve em
consideração aspectos históricos e sociais do Portugal de meados da década de 70. É
necessária, entretanto, uma pequena explicação. Helder Macedo, autor de O lago
bloqueado, é português, mas sobretudo assume-se como tal
6
. Nasceu na África do Sul,
por mera contingência do destino, em 1935, e viveu a infância em Moçambique, quando
este país, hoje independente, era colônia portuguesa. Cedo foi, no entanto, para Lisboa,
onde permaneceu dos doze até os vinte e três anos. Em fins dos anos 50, depois de
breve passagem pela África, exila-se Londres, onde mora até hoje. Apesar da grande
6
Em entrevista a Vilma Arêas e Haquira Oskabe, Helder Macedo afirma, ao ser indagado sobre as marcas
da longa convivência do autor com a cultura inglesa: “Eu acho que sou profundamente português e,
literariamente, profundamente lusófono (palavra horrenda!), um escritor que só poderia escrever em
língua portuguesa. Mas, paradoxalmente, isso talvez tenha alguma coisa a ver com o facto de ter sido
forçado a viver num país de outra língua, de viver rodeado de inglês por todos os lados. O uso da minha
língua tornou-se num modo de preservar a minha identidade como parte das minhas circunstâncias e,
enquanto foi necessário, independentemente das circunstâncias do meu país. E até do facto de a minha
portugalidade nem sempre se manifestar nos modos mais imediatamente reconhecíveis pelos meus
compatriotas. Mas isso sempre foi assim”, in: “Parte de si e dos outros” (CERDEIRA, 2002, p. 339).
29
diversidade espacial que marcou a sua vida, pátria para este poeta será sempre Portugal,
conceito que se sustenta não pela referência física à terra em que nasceu (que nem
sequer foi Moçambique onde realmente viveu com os pais parte da vida), nem pelo
dado quantitativo que tornaria fácil identificar o país em que residiu a maior parte de
sua vida (Inglaterra), mas sim pela imagem de pátria que construiu para si: o espaço de
referência privilegiada das memórias, da cultura, da língua com que diz, e da literatura
que escreve e que o diz. Para além dessas considerações extrínsecas à obra, O lago
bloqueado é um texto de literatura portuguesa, pela língua em que foi redigido, pela
dicção portuguesa que nos poemas, pelas referências intertextuais com a literatura
portuguesa, pelas referências à pátria e à sua história.
Como já terá sido dito, em 1977 Portugal estava temporalmente muito próximo
do 25 de Abril de 1974, da Revolução dos Cravos, levada a cabo pelo Movimento das
Forças Armadas (MFA) – composto, em sua maioria, por capitães do exército português
pondo por terra a ditadura fascista que se arrastava meio século em Portugal. Para
além de devolver a Portugal um regime democrático, livrando-o do regime ditatorial
imposto desde 1926, a Revolução de Abril tem entre seus propósitos fundamentais pôr
fim à guerra colonial, iniciada em 1961. A Revolução dos Cravos guarda, no entanto,
como todas as festas revolucionárias, inúmeras contradições. Em primeiro lugar, o
estopim da Revolução de Abril não foi apenas um movimento ideológico, nem
essencialmente político; o que a gera é o cansaço de corpos fatigados e mal pagos
que não conseguiam ver, no absurdo que é qualquer guerra, mas sobretudo naquela
guerra colonial que eram obrigados a sustentar, um mínimo de sentido que justificasse a
luta contra aquilo que o ficcionista Helder Macedo apontou como os “injustificados
inimigos de causas que deveriam partilhar” (MACEDO, 1998, p. 96). Utilizando o
“método das passagens paralelas” (COMPAGNON, 2003, p. 68) exposto por Antoine
30
Compagnon, evoco um recorte do segundo romance de Helder Macedo, Pedro e Paula
publicado em 1998 –, em que o autor caracteriza de modo ambíguo o momento da
revolução. A estratégia teórica será a de partir de uma ficção do autor de O lago
bloqueado para, na sua ótica, repensar também as crises pós-revolucionárias:
Pois foi quando o que viria a ser o Movimento das Forças Armadas começou
gradualmente a tomar forma entre aqueles militares cuja experiência de uma
guerra em que se começaram a sentir como os injustificados inimigos de causas
que deveriam partilhar os forçou a pensarem impensáveis recusas no modo
afirmativo que transformasse a sua profissão de morte numa afirmação de vida,
a guerra em paz, a opressão em liberdade, o fim do império num novo
recomeço. Porque essas teriam sido de facto as paradoxais intenções da
revolução que em breve fariam. E mais não se pode exigir a quem a fez para
que outros pudessem executar a utopia (MACEDO, 1998, p. 96).
É importante dizer que as recusas afirmativas que geraram a Revolução de 74
tiveram a sua importância e o seu lugar. O fim da ditadura e a esperança de
implementação de um governo do povo, o final da guerra colonial, a liberação da
sexualidade reprimida por ortodoxas imposições religiosas efetivamente aconteceram.
As conseqüências de tais modificações, contudo, não se desenrolaram como muitos
haviam desejado e esperado. Ao fato, por exemplo, de Portugal ter perdido, com o fim
da guerra colonial, suas últimas colônias, isto é, de ter chegado ao fim o império
português, não foi dada a devida importância, nem econômica e menos ainda
psicológica dentro de um efetivo imaginário português. Eduardo Lourenço, autor do
brilhante ensaio “Psicanálise mítica do destino português”
7
, escrito coincidentemente
entre 1977 e 1978, aponta a descolonização “a mais rápida descolonização de que
7
Eduardo Lourenço analisa psicanaliticamente com todo o cuidado que esta formulação exige a
história de Portugal, sublinhando a insistente recusa portuguesa de auto avaliar-se, de fazer um exame
crítico e verdadeiro de sua situação histórica. As raízes deste comportamento, o historiador aponta, estão
no nascimento da nação e m sendo confirmadas ao longo do percurso de Portugal na história. Por
exemplo, quando, em 1580, os portugueses criam para si o mito do Sebastianismo, recusam-se, na
verdade, a enfrentar o presente, e desobrigam-se de encarar o fato concreto da perda da nacionalidade. E
acrescenta Lourenço: “descontentes com o presente, mortos como existência nacional imediata, nós
começamos a sonhar simultaneamente o futuro e o passado” (LOURENÇO, 1991, p. 21 – 22).
31
memória” (LOURENÇO, 1991, p. 44) como um acontecimento que, se encarado sem
mascaramentos, teria necessariamente que ser sentido como um traumatismo sem
precedentes. Será mais que redundante ressaltar que está bem longe do pensamento de
Lourenço e do meu próprio a apologia à política colonial e imperialista. O que o
pensador português quer destacar é o risco de se encarar uma perda simbólica dessas
proporções – para um país que desde o século XV fundara de modo justo ou ficcional a
sua glória na expansão colonial sem a reflexão necessária que a deveria acompanhar.
Naquele momento não restava outra saída a Portugal senão encarar sua exígua
fisicalidade, renegada ou obliterada por virtude das conquistas ultramarinas e da
manutenção a custos impensáveis e incríveis do império colonial português. Nesse
sentido, pode-se também pensar O lago bloqueado como um retorno, necessário e
salutar, à fisicalidade da pátria portuguesa. Os “estreitos e morenos muros da casa
portuguesa” (LOURENÇO, 1991, p. 38) são as margens, agora irredutíveis, do lago
bloqueado, o que abre uma brecha de positividade para uma das possíveis leituras do
adjetivo bloqueado, posto que este é agora, como o próprio Helder Macedo afirmou, a
possibilidade mesma do “novo recomeço” (MACEDO, 1998, p. 96).
No entanto, apesar da oportunidade de experimentar o novo que os portugueses
tiveram em 25 de abril de 1974, o desenrolar político da Revolução dos Cravos não foi
capaz de sustentar as pretensões utópicas da grande festa revolucionária. Mais uma vez
trazendo uma passagem de Pedro e Paula, lembro um capítulo aliás absolutamente
machadiano – em que Helder Macedo tenta dar conta da imagem contraditória da
Revolução através do não dito nas reticências a que se segue uma ainda assim redentora
conjunção adversativa. Reproduzo a estrutura do capítulo:
...............................................................................................................................
...............................................................................................................................
32
...............................................................................................................................
...............................................................................................................................
...............................................................................................................................
............................................... Mas festa é festa, e essa já ninguém nos tira
(MACEDO, 1998, p. 103 – 104).
Se o “Mas” não elide a necessidade da crítica vislumbrada na elipse das reticências, que
torna deslocada e inconseqüente uma eufórica visão dos resultados da Revolução,
também será verdade que o 25 de abril não deixa de ser “festa”, incapaz de ser roubada
a quem esperou por ela, por quem a fez, por quem pôde gozar o que de bom ela
produziu como efeito e garantia de liberdade. Daí que Helder Macedo, ao falar de um
“lago bloqueado”, esteja possivelmente referindo esse clima de fim da euforia da
Revolução, momento em que todos percebem que é necessário introduzir a adversativa
para que se fale francamente sobre o 25 de abril. O bloqueio que se quisera rompido
para sempre permanece sinuosamente sob outros modos de poder.
Quando evoco o tema do bloqueio torna-se necessário fazer uma rápida
digressão – voluntária, e não casual – ao poema “Notícias do bloqueio”, de Egito
Gonçalves. Talvez, no imaginário poético ou na biblioteca poética de Helder Macedo,
“Notícias do bloqueio” seja uma forte presença, de tal modo que o adjetivo bloqueado
não parece impunemente eleito. Ao longo do poema de Egito Gonçalves
8
em tempos
difíceis da ditadura portuguesa o eu lírico envia notícias de um espaço bloqueado, de
“dias que embranquecem os cabelos”, em que o silêncio, “duro e violento”, é dado
como alimento àqueles cerceados pelo bloqueio:
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
8
Egito Gonçalves (1920) é poeta, editor e tradutor. Participou na fundação e na direção de diversas
revistas literárias, como A Serpente (1951), Árvore (1952-54), Notícias do Bloqueio (1957-61), Plano
(1965-68), Limiar (1992). O poema "Notícias do Bloqueio" (1952) e é certamente o mais emblemático de
sua trajetória poética tendo-se tornado um símbolo da militância política em tempos da ditadura e gerando
o nome da revista que ele dirigiu entre 1957 e 1961.
33
silêncio, nadamos e morremos
feridos do silêncio duro e violento
9
9
“Notícias do bloqueio
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval,
a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.
Tu lhes dirás do coração o que sofremos
os dias que embranquecem os cabelos…
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.
Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
– único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.
Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima…
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.
Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.
Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.
Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva
34
Não poderia passar impune, portanto, a utilização da palavra bloqueio como
modo de definição do espaço português. Porém, num texto pós-1974, isto é,
supostamente desbloqueado, ela pode causar algum espanto e leva à indagação sobre
quais e que tipo de bloqueios ainda insistem em permanecer. Helder Macedo constrói
um “lago bloqueado”, e, pela própria inscrição no tempo, seus bloqueios serão, ao lado
dos políticos, também os metafísicos, que concentram a angústia do fechamento e do
bloqueio na própria experiência existencial da vida entre mortes.
Por estarmos falando da pátria do poeta, seria interessante abrir novamente
espaço para a evocação de mais uma cena do romance Pedro e Paula. A cena que
interessa neste momento retoma os personagens principais Gabriel e Paula
conversando justamente sobre os desdobramentos políticos da Revolução. Gabriel, que
tivera uma experiência na Assembléia Constituinte no momento em que se elaborava a
nova Constituição, lembra de uma jovem deputada que se havia oposto, na época, aos
dois primeiros artigos do novo documento, a que o escritor assim se refere:
os que falavam na transformação de Portugal numa sociedade sem classes e no
objectivo do Estado em “assegurar a transição para o socialismo mediante a
criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes
trabalhadoras” (MACEDO, 1998, p. 157).
Longe de ser contra os dois primeiros artigos aliás, como ressalta o personagem
Gabriel, naquele momento ninguém o era em voz alta a deputada chamava a atenção
para o caráter excessivamente afirmativo de tais formulações, que, segundo ela,
“desmentiam o espírito democrático que visavam servir por afirmarem demais”
(MACEDO, 1998, p. 158). A jovem mulher, personagem do romance de Macedo,
acrescentava ainda que a obrigação dos legisladores, naquele momento, “era terem a
e a esperança reproduz-se” (GONÇALVES, 2004, p. 22).
35
consciência histórica do passado. isso. O futuro tomaria conta de si próprio, e tanto
melhor seria quanto menos fosse predeterminado por lei” (MACEDO, 1998, p. 158).
Obviamente, no contexto do romance, Gabriel comenta que a sua opinião foi
desconsiderada pela maioria masculina da Assembléia Constituinte, e a jovem deputada
acaba sendo ridicularizada (o que expõe, aliás, outros modos não menos perversos do
jogo do poder). Mas o fato vale por si como uma espécie de metáfora e deixa ficar
evidente que, ideologicamente, o próprio narrador a elege como porta-voz por seu
pensamento lúcido e objetivo. O que ela dizia era tão simples quanto isto: nenhuma
nação se torna socialista porque é assim que a lei manda. As nações mudam e se
transformam a partir do trabalho do povo, da sua memória, da sua, justamente,
consciência histórica. Acredito que o romance não difere afinal do modo como o eu
lírico de O lago bloqueado se situa diante da imagem pós-revolucionária de sua pátria,
enfrentando a consciência quem sabe mais difícil do que em tempos de ditadura em
que o sim e o não pareciam facilmente discerníveis, como lembra o autor em muitas de
suas entrevistas – de ela se estar a tornar num lago de outro modo bloqueado.
Quando o poeta Helder Macedo fala do bloqueio do tempo transferindo-o para a
espacialidade metafórica do seu “lago”, faz como que uma aposta utópica num mundo
que recusasse a relação de dominação que pode subsistir a despeito do projeto de
democratização. Tal cuidado vale certamente para as relações amorosas e para a
invenção poética, que exigem o desmantelamento das relações de poder para não
calarem ou temerem o novo, o diverso, o que pode tantas vezes ser contrário à lei. O eu
lírico procura, assim, genuinamente uma poesia em liberdade, um relacionamento
amoroso em que se deseja a diferença, uma pátria aberta ao movimento de
aprendizagem.
36
2.3 – O lago de Narciso
É que Narciso acha feio
o que não é espelho
e a mente apavora
o que ainda não é mesmo velho
Caetano Veloso
O registro do bloqueio em O lago bloqueado está inscrito nos corpos, o que
significa dizer: por mais que sejam corpos nus, livres, libertados, em festa e em gozo,
nunca se deixam desbloquear completamente, havendo apenas uma suspensão
momentânea do bloqueio. Em O lago bloqueado, num processo de construção que,
consciente ou inconscientemente, parece se repetir no poeta
10
, o adjetivo bloqueado
determina o lago, sendo a consciência de que o bloqueio aquilo que define o lago. A
presença do adjetivo remete, portanto, a uma espécie de fatalidade à qual estão todos
condenados, o que pode referir o confronto com o limite do próprio corpo e com o
limite do corpo do outro. Mais do que ser a metáfora da fatalidade que impera sobre os
outros corpos privilegiados pelo poeta o corpo da amada, da pátria e da poesia o
lago bloqueado é igualmente imagem de seu próprio corpo, do corpo do próprio sujeito
lírico: ele está também sujeito ao destino inevitável do lago bloqueado.
Nesse sentindo, tendo a perspectiva de que O lago bloqueado é metáfora que
serve também ao eu lírico, um lago bloqueado pode ser como disse Jorge de Sena no
mencionado ensaio sobre a poesia de Helder Macedo, deixado inacabado, pois o
grande ensaísta, poeta e intelectual português foi tolhido pela morte um lago
bloqueado, repito, pode ser uma “aparente absurdidade lógica que, por definição, um
lago é ‘bloqueado’ de terra por todos os lados, tal como reciprocamente as ilhas o são de
10
Para Teresa Cristina Cerdeira, no livro de poemas de Helder Macedo publicado em 1994, Viagem de
inverno, “há mesmo como que uma precedência semântica da locução adjetiva de inverno sobre o
substantivo que sintaticamente a rege viagem. (...) É, em outras palavras, a consciência do inverno que
determina a viagem” (CERDEIRA, 2002, p. 245).
37
água” (CERDEIRA, 2002, p. 231)
11
. Assim, lago bloqueado seria um sintagma
redundante, tautológico, sendo duplamente bloqueado, por natureza e por artifício.
Bloqueado estaria relacionado, deste modo, aos contornos deste lago, preso em si,
fascinado por si.
Falar de lago e de fascinação implica falar, claramente, de espelho e Narciso,
principalmente se se trata de um lago bloqueado, pois o adjetivo acentua o caráter
especular deste lago, como se ele estivesse condenado ao fechamento, devolvendo ao
sujeito o próprio sujeito e nunca o mundo ou o outro que ele busca. É que Narciso,
rejeitando o que não é espelho, dirá mais tarde o também poeta Caetano Veloso, teme o
outro, a alteridade, o novo. Porém o pressuposto básico do amor e do conhecimento do
outro é o abandono da fascinação causada pela própria imagem refletida no espelho ou
nas águas de um lago bloqueado.
Psicanaliticamente, o ato de olhar-se no espelho inaugura, para o ser, a cisão
entre a imagem perfeita que refletida e o corpo fragmentado que sente. Esta cisão,
por sua vez, início ao movimento de tentar corresponder àquela imagem do espelho.
Nas palavras de Maria Rita Kehl, “integrando o revelado (de fora) com o vivido (de
dentro)” (KEHL, 2003, p. 412). Do nosso primeiro reflexo no espelho carregamos a
herança que nos constitui: ao mesmo tempo em que se olhar no espelho é diferenciar-se
do mundo, ser um outro em relação ao mundo interno que experimentamos, é também a
tentativa perpétua, fatal, de correspondência à perfeição narcisista que nos é dado mirar.
A ultrapassagem do narcisismo é um tema muito presente neste conjunto de
poemas e em toda a obra poética de Helder Macedo. O espelho é metáfora sempre
presente, muitas vezes surgindo como o objeto propriamente dito, figurando em outro
momento como um lago bloqueado, ou até mesmo, no conjunto de poemas intitulado Os
11
“Prefácio à poesia de Helder Macedo (1957 1968), Post-scriptum à colectânea: Poesia 1957 1977”,
Jorge de Sena.
38
espelhos (1966), aparecendo como o amigo João Rodrigues, no belíssimo poema de
enviesada homenagem
12
em que Helder Macedo afirma: “Foste um espelho do meu
crescimento/ num tempo que contenho ainda em mim” (MACEDO, 2000, p. 129). O
sujeito lírico de O lago bloqueado, entretanto, sabe que para haver encontro amoroso é
necessário vencer o bloqueio deste lago obsedado por si, risco o da fascinação pela
própria imagem que todos corremos, ao contemplar no espelho o reflexo de um corpo
tão inacreditavelmente perfeito, em ordem, diferente da experiência interna de
fragmentação e desorganização. Daí que, por exemplo, construir seja verbo constante
no vocabulário de O lago bloqueado, bem como construção, fingir, forjar, todas elas
palavras que se relacionam com este exercício de ficcionalização de algo interno
sentido verdadeiramente como despedaçamento que corresponda à visão simétrica e
organizada que se dá no espelho. Num poema de 1966 de O sete já se lia:
Eu já tomei alguns riscos
no passado
e por vezes quase me perdi
porque não era fácil distinguir
entre medo que prende
e medo que liberta
e tive de aventurar-me pelos dois
até ter decomposto peça a peça
a inocência fabricada do que eu era (MACEDO, 2000, p. 115).
12
Helder Macedo presta uma homenagem enviesada ao amigo pois João Rodrigues suicidou-se e, para
Macedo, a morte escolhida é sempre recusada. Por isso diz o poema:
“Não posso lamentar a tua morte
pois decerto que a ti próprio o não faria.
Suspeito que nem mesmo penso em ti,
não é em ti que penso
quando, muitas vezes, te recordo
porque não posso pensar no que não há.
Foste um espelho do meu crescimento
num tempo que contenho ainda em mim.
Eu fui do teu
mas tu nada conténs porque estás morto.
Não tenho nada mais para dizer-te:
estou vivo e tu estás morto.
Mas se alguém como tu prefere matar-se
não sobra muito para aqueles que vivem”.
39
O exercício de decomposição – “peça a peça” é um esforço doloroso de recusa
daquele reconhecimento ilusório de si a que ele chama “a inocência fabricada do que eu
era”. E num processo similar que se destruir, em relação ao outro, tudo aquilo que
abole nele a diferença de mim, a sua função de espelho irrisório de quem o ama:
e levou-me tempo para descobrir
a minha solidão
mas descobri com ela a liberdade
e o amor
e percebi então que tinha usado o amor
para não amar
que tinha querido aprisionar
o que só mutável pode ser
e sem partilha
e a quem me queria amar
eu queria surdamente devorar
recusando o esplendor oferecido
de outra vida
paralela à minha (MACEDO, 2000, p. 116).
Para escapar ao autofascínio da imagem que se mergulhar no lago,
estilhaçando a imagem do espelho. O movimento, proposto por Octavio Paz
13
, de queda
e ressurreição contido na ação de mirar-se nos espelhos e em suas réplicas (no lago, por
exemplo), sintetiza o percurso que o eu lírico se propõe em O lago bloqueado.
Como afirma Teresa Cerdeira sobre Viagem de inverno, também em O lago
bloqueado “Helder Macedo não escapou, na verdade, ao fascínio bem português de uma
ficção poética de viagens, cujo fio estrutural é tenuamente narrativo” (CERDEIRA,
2002, p. 247). Entretanto a viagem do livro de 1977 é por dentro do lago, isto é, por
dentro do outro. O eu lírico assume os riscos de lançar-se à imprevisibilidade da
alteridade e mergulha nas águas especulares, estilhaçando a possibilidade do
ensimesmamento. O último poema do livro, aliás, anuncia textualmente o final de seu
13
“Ver-se nessas águas, nelas cair e voltar à superfície é voltar a nascer” (PAZ, 1995, p. 33).
40
percurso (final temporário, é verdade), acentuando a estrutura cíclica que confirma o
teor narrativo de O lago bloqueado:
Suponho ter chegado
onde comecei.
(...)
Suponho ter chegado
onde terminei.
(...)
meu amor e meu nome e meu silêncio
que me chama
sempre
das rochas livres para o lago morto
onde de novo chego
e donde recomeço
sem mim
mas só comigo (MACEDO, 2000, p. 87).
Para o poeta, pressupor ter chegado onde começou é o mesmo que ter chegado
onde terminou, pois o movimento de mergulho no lago – é importante ressaltar que esse
mergulhar no lago é, sobretudo, o ato de escrevê-lo – é incessante. Radicalizando, posso
dizer que para o eu lírico de O lago bloqueado cada instante de vida é um mergulho, um
desprendimento da imagem refletida, tanto sua como a do outro, um atirar-se ao
imprevisível, ao desconhecido. É por isso que o amor, o nome e o silêncio o chamam
sempre, instigando-o ao movimento, para que, ao retornar ao lago, dele se possa libertar
outra vez. A ação de retorno ao lago é imprescindível e fundamental. Sem ela não
haveria o caminho para o outro, pois é tão somente a consciência de que é necessário
que se quebre o espelho que atira o poeta em direção ao que não é espelho, à alteridade.
Interessante a construção do verso “meu amor e meu nome e meu silêncio” numa
estrutura tripartida, em que amor, nome e silêncio, são de algum modo igualados pelo
poder apelativo que toca o eu lírico. Ele se sabe narcísico todos o somos e sabe da
sedução que lhe causa a própria imagem. Deseja, contudo, por uma questão de
sobrevivência, e neste sentido é emblemático o fato de Narciso ter morrido nas águas
que o refletiam o outro, deseja abandonar-se em direção ao outro, pois é deste modo
41
que o sujeito construirá algo que passe por ele e, concomitantemente, o ultrapasse. Só
assim o sujeito, que também é um lago bloqueado, libertar-se-á de si. Na série Os
espelhos, de 1966 ele dizia:
Porque nasci entre espelhos
tenho pressa
de encontrar-me face a face
e a minha imagem mudou
quando te amei
porque nasci
e fui nascendo sempre
por amar-te (MACEDO, 2000, p. 121).
O poeta é bastante consciente da força atrativa de sua imagem espelhada neste
lago neste espelho e sabe das seduções e dos riscos que corre ao mirar-se
narcisicamente nas águas de um lago bloqueado. Bem como em 1977, também em Os
espelhos o eu lírico é igualmente consciente do movimento interminável de sedução e
ultrapassagem dos espelhos, o que atribui um caráter cíclico aos poemas do autor.
Enfim, ao lado da idéia de que bloqueado alude a uma qualidade inerente aos
corpos, O lago bloqueado é também um texto de referência à morte, pois diz do limite
imposto pela morte vivida como experiência não apenas final, mas constante. É certo
que, como ficará mais evidente na leitura dos poemas, a morte é também, nos textos de
Helder Macedo, um modo de afirmação de vida, não como elogio fúnebre, mas, nas
palavras de Octavio Paz, como “o espaço aberto, que permite o passo para diante”
(PAZ, 1982, p. 182). O lago é bloqueado e isto é fatalidade inelutável, reflexão que
herda um pensamento de afirmação da vida como enfrentamento da morte: “todos nós
estamos sob pena de morte”, afirma Clarice Lispector, num livro que justamente se
chama Um sopro de vida (LISPECTOR, 1978, p. 24). Destino inevitável, como disse
Paz,
42
a morte é inseparável de nós. Não está fora: a morte é nós. Viver é morrer. E
precisamente porque não é algo exterior, ao contrário, está incluída na vida, de
modo que todo viver é também morrer, a morte não é algo negativo. A morte
não é uma falta da vida humana; ao contrário, ela a completa. Viver é ir para
diante, avançar para o desconhecido e esse avançar é um ir ao encontro de nós
mesmos. Portanto, viver é enfrentar a morte. Nada mais afirmativo que esse dar
de cara com a morte, esse contínuo sair de nós ao encontro do desconhecido. A
morte é o vazio, O viver consiste em termos sido jogados para o morrer, mas
esse morrer só se cumpre no viver e pelo viver (PAZ, 1982, p. 182).
Trazer, portanto, a morte ao poema pode significar, por paradoxal que seja, um
canto de vida, uma afirmação da busca pelo desconhecido, uma vontade absoluta de
viver que, inevitavelmente, abriga a morte, pois esta é em última instância o desejo
pelo que não possui forma conhecida nem linguagem, desejo pelo que ainda está por
vir. E a morte, enquanto ainda podemos dela falar, ainda não veio, está sempre por vir.
Em O sete, onze anos antes do conjunto de O lago bloqueado, lemos uma reflexão
poética sobre esta argumentação, que se não tem nada de utópica também está longe de
resvalar no niilismo, mas vive antes da convivência oscilante dos contrários: “Mas
quem ama a vida como eu amo a vida / acabará por entender que ela é a morte / na sua
única forma conhecível” (MACEDO, 2000, p. 106), encaminhando ainda e mais uma
vez a possibilidade de conhecimento do que é a vida e do que é a morte para o único
elemento congregador e vital que é o amor. E prossegue:
porque eu amo para sempre
cada amor que já amei
nem que fosse por um instante só
tão breve
quase imperceptível
como se eu fosse um deus a segurar o infinito
não querendo mais em troca
do que a bênção matinal dum corpo quente
e o pulsar comovido de outra vida
comovidamente solitária
e próxima da minha
nesta aventura comum em que partimos
para assaltar a morte
43
roubar-lhe a eternidade
brincar com ela como se fosse nossa
e esquecê-la depois
entre os lençóis (MACEDO, 2000, p. 108)
.
A maneira que os seres humanos têm de domar a morte é escrevê-la; a maneira
que têm de brincar com ela, é amando, experimentando o erotismo e a sexualidade.
Roubar a eternidade da morte é experimentá-la “entre os lençóis”, no momento do gozo,
quando a dissolução do ser atinge o limite da morte em vida. A apropriação que o poeta
faz da morte – “brincar com ela como se fosse nossa” – só é possível através da
experiência erótica, pois “o erotismo é a aprovação da vida até na própria morte”
(BATAILLE, 1988, p. 11), no sentido de que é um desafio, afirma Georges Bataille,
“por indiferença, à morte” (BATAILLE, 1988, p. 21).
O que nos resta como verdade, como experiência, não é nem vida, nem morte,
mas existência amorosa, conceito que ultrapassa a versão romântica da paixão
desmesurada para funcionar, ao lado do gozo, como modo de conhecimento. É
obrigatório retomar a frase de Helder Macedo que abre e norteia esta dissertação – frase,
aliás, escrita num livro intitulado justamente Viagem iniciática, em que o ensaísta
Macedo se lança à poesia camoniana mostrando como Luís de Camões buscou conhecer
através do amor –: “A melhor poesia é sempre uma pesquisa, uma tentativa de dar
forma ao desconhecido” (MACEDO, 1980, p. 09). O fundamento da poesia de Helder
Macedo poderia ser a de um amor que, entendido como o mais ousado e completo
encontro com o outro com o desconhecido, por excelência –, fosse capaz de gerar o
desejo de aprender o mundo a partir dos corpos amados, pois é com o corpo e no corpo
que se aprende. É isso, aliás, que ele dirá tantas vezes em diferentes poemas: “Não
mistério/ corpos, [...] corpos que se encontram/ e se sondam/ até que os corpos
parem de morrer” (MACEDO, 2000, p. 69 – 70).
44
Nos poemas de Helder Macedo mais que uma escrita sobre o amor: trata-se
de obsessivamente voltar ao amor como modo de conhecimento, “tentativa de dar forma
ao desconhecido”, como ele observou teoricamente sobre a poesia de Camões e que não
é outra coisa senão um modo de também ler a sua própria poesia, se ousarmos dizer que
igualmente os textos críticos podem ser autocríticos. Ao escrever o amor o poeta
forma poética ao corpo da amada, inscrevendo, na página em branco, a vertigem da
experiência erótica, em que a abertura do ser pressupõe, necessariamente, a sensação de
dissolução do seu corpo descontínuo numa precária entrega à momentânea
continuidade. Nesse sentido, a poesia de Helder Macedo é antes de tudo um desejo de
conhecer-se e de conhecer o mundo, desejo impossível, certamente, mas que não teme a
aposta de manter-se desejante investindo numa viagem anti-narcísica por excelência,
porque feita para dentro do outro, o que significa dizer, por dentro da morte e do amor.
E é a existência amorosa aberta à aventura do conhecer que importa ao eu lírico de O
lago bloqueado. A existência enquanto experiência amorosa, momento em que se pode
viver em demasia. Ou morrer aos poucos. Pequena morte, assim chamou Georges
Bataille àquela morte prazerosa, que a quem está esplendorosamente vivo é dado
experimentar.
∗∗∗
“Os fundamentos desta dissertação lidaram com uma teoria do poético,
evocando Roland Barthes e Octavio Paz, numa linha teórica que privilegia a poesia
enquanto materialidade, sendo ao mesmo tempo corpo e retorno àquilo que nos joga na
originalidade da palavra. A estratégia buscada para “Os fundamentos” alça como ponto
de referência a própria escrita poética do autor, além de suas obras ensaísticas e
ficcionais. Foram os versos de O lago bloqueado que me levaram a procurar uma teoria
45
que enxergasse a poesia no esplendor de sua fisicalidade. Não é de outro assunto que
fala, afinal, o poema “Abri os olhos sobre o nada”, do conjunto Orfeu (1968): “e vejo o
meu silêncio/ no silêncio da morte/ minha estátua esculpida de palavras” (MACEDO,
2000, p. 95). A única possibilidade que o poeta tem de falar da morte é esculpindo-a em
palavras, isto é, transformando a morte em palavra e a palavra em corpo. Vencer o
silêncio do vazio da morte é, lentamente não nos esquivemos do trabalho próprio do
escultor, que lentamente forma ao conjunto informe de massa que se coloca à sua
frente –, transformar o nada que é a morte em matéria, em linguagem e, sendo assim,
corporificá-la. Procurei, assim, seguir o fundamento teórico que procede por dedução,
indo do poema ao poético.
O ato de leitura de um poema, assim como o de lançar-se ao conhecimento de
um corpo, pressupõe uma dificuldade fundamental que é a de apreender o corpo alheio
– incluindo aí o corpo poético – como alteridade, diferença radical cuja completa
aproximação nunca é alcançada. A missão, gozosa, é fadada ao fracasso, pois é
justamente na tentativa de aproximar-se do outro que experimentamos o limite de
nossos próprios corpos, irremediavelmente descontínuos, inexoravelmente solitários. O
que importa, então, não é o resultado da procura, mas a busca em si. O corpo guarda
sempre um segredo, e mantém sempre em O lago bloqueado uma constante busca pela
aprendizagem, mesmo que ela esteja fadada ao nada. Num movimento que ecoa as
lições camonianas do conhecimento através do amor, o sujeito lírico de O lago
bloqueado deseja aprender através do amor, isto é, através do corpo do outro (seja este
outro a mulher, a poesia ou a pátria). E é deste modo que também eu desejei construir
meus “fundamentos” a partir do corpo poético que se mostrou aos meus olhos.
46
3 – Cada vida é um corpo a fecundar
Não é ansiando por coisas prontas, completas e
concluídas que o amor encontra o seu
significado, mas no estímulo a participar da
gênese dessas coisas. O amor é afim à
transcendência; não é senão outro nome para o
impulso criativo e como tal carregado de riscos,
pois o fim de uma criação nunca é certo.
Zygmunt Bauman
O “impulso criativo” proposto por Zygmunt Bauman é o movimento de lançar-
se ao que não se conhece, assumindo o desconhecimento, podendo conhecer, e,
conseqüentemente, criar. “Cada vida é um corpo a fecundar” (MACEDO, 2000, p. 79),
afirma Helder Macedo, pois cada corpo é possibilidade de amor. E amor, como nos
propõe Bauman, de invenção, de criação. Fecundar um corpo, fecundá-lo de vida, talvez
seja um dos modos de definir o amor. O amor, o erotismo e a sexualidade, aliados na
busca do conhecimento, estão sempre presentes em toda a extensão da criação poética
de Helder Macedo. Paralelamente a este tema, o narcisismo e a ultrapassagem dos
espelhos. E como base ontológica de sua escrita, a relação do amor com a morte e a
visão da morte como uma consumação da vida. Todos esses assuntos perpassam O lago
bloqueado, e é assim que, neste capítulo, proponho uma leitura dos poemas na
perspectiva dos temas obsessivo do autor – aos quais Roland Barthes chamou “os
grandes temas verbais da existência” (BARTHES, 2004, p. 10): amor/ morte/
conhecimento/ espelho.
Para evitar demasiadas redundâncias, uma vez que as formas dos corpos (da
amada, da poesia e da pátria) muito frequentemente se sobrepõem, optei por percorrer
três linhas temáticas: 1. fingimento/ jogo/ ficção, 2. espelho/ conhecimento/ amor e,
finalmente, 3. erotismo/ morte/ conhecimento. Dentro dessas três linhas temáticas
eleitas os corpos aparecem como peças do jogo poético estabelecido pelo eu na procura
do conhecimento do mundo e de si mesmo. Mas também são uma opção que se coloca
47
como fuga ao narcisismo sufocante e traiçoeiro que o mito tão bem ilustra. E igualmente
fulguram como o espaço ou o caminho do erotismo que leva ao conhecimento,
novamente, de si e do mundo.
Nesse sentido, poderíamos aventar a possibilidade de a presença dos corpos
traçar um percurso cíclico que se coloca frente ao sujeito lírico de O lago bloqueado. A
assunção da subjetividade estilhaçada – “cada peça de mim não me contém” é o
primeiro verso do livro demonstra um primeiro movimento de tentativa de
conhecimento da subjetividade. Ao longo do texto, entretanto, também o corpo do outro
ganha lugar privilegiado na busca de uma aprendizagem que devolve, de certo modo, o
eu lírico ao lugar de onde começou – a busca de conhecimento –, mas nunca exatamente
da mesma maneira, pois a convivência com os corpos – do outro, da pátria e da poesia –
imprime, na subjetividade do poeta, as marcas de uma experiência partilhada. Conhecer,
afinal, é sobretudo mover-se. E, nesse caso, mover-se em direção ao outro, de certo
modo infringindo as leis impostas pelo bloqueio.
Dividir o texto, no seu sentido mais literal analisá-lo, mostra-se, porém,
estratégia arriscada, que acena com o perigo da falácia. Até porque, no caso desse
conjunto de poemas de O Lago bloqueado, os temas estão absolutamente
interpenetrados, e cada poema, dizendo do amor e da morte, do espelho e do
conhecimento, alude à amada, à poesia e à pátria de modo concomitante. Os três corpos
se materializam muitas vezes de modo similar, ou numa mesma sintonia. As três
imagens fulcrais não são assim tão bem discerníveis ou analisáveis, elas aparecem na
verdade imbricadas, todas ao mesmo tempo, relacionando-se, metamorfoseando-se
umas nas outras. É o que podemos perceber no poema “Não há mistério” (MACEDO,
2000, p. 69), em que o corpo metafórico pode referir-se tanto ao corpo da amada como
48
ao corpo poético:
Não há mistério
há corpos
com saídas e entradas
que se encontram
e articulam o serem divididos
não há não há mistério
e só assim conheço a minha imagem
onde mais me desconheço
no teu corpo
minha imagem verdadeira
como quis sempre não saber
A desmistificação dos corpos é o primeiro passo para a ultrapassagem da
imagem idealizada do reflexo no espelho e para a conquista do encontro físico dos
corpos divididos. Os seres são, sim, irremediavelmente divididos, mas esta constatação,
tão material, paradoxalmente liberta o poeta, pois os corpos, apesar de descontínuos,
possuem “saídas e entradas” passíveis de serem percorridas. Aliás, a divisão dos corpos
é aquilo mesmo que propicia o encontro, pois afinal se os corpos não fossem separados
não haveria meios de encontro, nem possibilidade de articulação da divisão. Seriam tão
simplesmente o mesmo corpo. A repetição da negação do mistério “Não mistério”,
verso 01; “não não mistério” verso 06 nos faz intuir uma espécie de renegação
da falta de mistério, atitude que será ratificada no verso “como quis sempre não saber”.
Segundo Maria Rita Kehl, “Renegar é: saber e não querer saber. Saber e ignorar.
Perceber e esquecer o percebido. Um processo ativo – ignorar, simplesmente, é passivo”
(KEHL, 2003, p. 415). Partindo, portanto, da constatação dolorosa, pois o poeta
duplamente sabe sabe que não mistérios e sabe que não quer saber isto o poeta,
repito, pode, enfim, conhecer sua verdadeira imagem, que se mostra não no reflexo
misterioso do espelho, mas na materialidade do corpo do outro. O desconhecimento é
49
pressuposto ao verdadeiro conhecimento de si, mas esse processo guarda o medo do
imprevisível, do que não pode ser controlado.
Ora, o processo de escrita assemelha-se àquele do erotismo dos corpos.
Entregar-se à escrita também pode ser confiar-se a algo completamente desconhecido.
Na terminologia batailliana, a perturbação nascida da ameaça de destituição do ser,
por meio de sua despossessão que está implicada no amor e no erotismo surge de
igual modo no momento da escrita. Afinal, desmistificar o instante poético é também
necessário, retirando a auréola de inspiração que acompanha o processo da escrita
poética e trazendo-o para a materialidade, para a concretude da experiência. A palavra
deixa-se possuir e o poeta a toma para si, abusando dela no poema. Na relação poética
também deve haver saídas e entradas, para que o poeta possa entrar ou,
drummondianamente
14
, penetrar nas palavras. As palavras, assim como os corpos,
também se encontram. Quando intermediadas pelo poeta, elas também se engatam. E é
na imagem, surgida a partir do processo de investimento subjetivo na escrita poética,
que o eu lírico perscrutará sua possível imagem.
Vê-se, portanto, que o modo de construção de O lago bloqueado é
interpenetrado, isto é, os temas, as camadas de significações se entretecem, sobrepondo-
se umas às outras. Assim, baseando-me no referido texto de Teresa Cerdeira sobre a
14
Faço aqui uma evidente referência ao poema “Procura da poesia”, de Carlos Drummond de Andrade,
inserido no livro A rosa do povo. Reproduzo alguns versos:
“Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço” (ANDRADE, 2003, p. 118).
50
poesia de Helder Macedo Viagem de inverno: paisagem com bailada e realejo ao
fundo” – criei, baseada nos poemas de O lago bloqueado, as três linhas temáticas que se
relacionam, mas, ao mesmo tempo, podem ser identificadas. A primeira delas
fingimento/ jogo/ ficção versa sobre a construção da subjetividade do poeta, processo
que joga com a ficcionalização do eu gerada pelo distanciamento entre a percepção
exterior de um corpo inteiro e o sentimento interno de um corpo estilhaçado. Espelho/
conhecimento/ amor é a linha temática que diz respeito à ultrapassagem dos espelhos,
movimento que gera o conhecimento do outro e, portanto, é também gerador da
experiência amorosa. Por fim, em erotismo/ morte/ conhecimento é priorizado o
caminho do erotismo passando pela experiência de morte nele imbricada como
modo de acesso ao conhecimento.
3.1 – “Cada peça de mim não me contém”: Fingimento/ jogo/ ficção
Pergunto aqui se sou louca
Que quem saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu
Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida
Ana Cristina Cesar
Em O lago bloqueado o limite entre fingimento e realidade se mostra muitas
vezes atenuado, e o verbo fingir adquire por isso mesmo diversos significados. Pode ser
a imagem sedutora do reflexo do eu lírico nas águas espelhadas do lago bloqueado, mas
também pode ser a ficcionalização do eu lírico, que se sabe um sujeito despedaçado, e
com isso produz a consciência de uma inteireza fingida, ou teatralizada. Por outro lado,
fingimento significa ainda a construção de um corpo outro como abertura de caminho
para a interlocução, para o encontro com a diferença.
51
Ultrapassada, contudo, a sedução da imagem narcísica do lago, resta ao poeta a
construção do seu próprio corpo, necessária a quem chegou à constatação do corpo
estilhaçado, verdadeiro, “como quis sempre não saber” (MACEDO, 2000, p. 69). Dessa
maneira coloca-se a necessidade da elaboração subjetiva antes mesmo do encontro com
o corpo alheio, modo de conjugar a imagem de uma inteireza que ele sabe ficcional
afinal o lago será penetrado em busca do outro, e não de si mesmo e a experiência
interna do estilhaçamento.
O primeiro poema de O lago bloqueado tem a estrutura de um quebra-cabeça.
Composto por dezesseis versos, todos decassílabos, arranjados em oito estrofes, o
poema “Cada peça de mim não me contém” (MACEDO, 2000, p. 65) apresenta, nas
duas primeiras estrofes, todas as palavras que serão utilizadas ao longo dos seus versos.
Cada/ peça/ contém/ nada/ apenas/ memória/ finge/ todo/ tudo/ sentido/ faz, as
preposições e os pronomes oblíquos e pessoais, bem como o advérbio de negação
“não”, se repetem ao longo do poema, tendo simplesmente suas posições modificadas,
para que também o sentido se altere. Trata-se de um jogo poético matemático, um
poema interminável, infinito, pois pode ser reescrito tantas vezes quantas forem as
possibilidades dessas vinte e nove palavras se recombinarem. O uso da conjunção
condicional “se” como introdução dos versos quatro, oito, doze e dezesseis, por
exemplo, a aparência de texto argumentativo à estrutura do poema, posto que no
processo de argumentação o “se” está embutido na formulação de hipóteses a serem
confirmadas ou rejeitadas (ao modo socrático). A argumentação, contudo, em “Cada
peça de mim não me contém”, é sempre falhada, que o poeta apresenta sentidos
diversos, infinitamente multiplicáveis. Seu objetivo não é convencer o leitor, mas antes
mostrar-lhe que todo convencimento é passível de ser refutado.
Nesse sentido, “Cada peça de mim não me contém” é uma espécie de arte
52
poética de O lago bloqueado, pois, reduzido a um instrumental aparentemente
bloqueado, em que as palavras têm que se repetir, faz explodir os sentidos de seus
significantes, sendo, assim, um exercício de criação a partir do bloqueio. Os
instrumentos que constroem os sentidos estão, portanto, também bloqueados, posto que
o poeta lida sempre com as mesmas palavras. A forma do poema, desse modo, é um
reflexo refletido num lago bloqueado? do seu sentido. O significado dos versos
emerge até a superfície da forma, e assim como cada peça é parte de um todo que existe
apenas enquanto memória, cada verso é parte do poema que existe apenas enquanto
leitura.
A memória do poeta é também invenção, criação, mas é a partir da memória, que
é o conhecimento de uma ausência, que o poeta pode escrever o seu poema, pois a
memória “finge”, forja o todo, que é o poema. Apenas a leitura do poema finge um
todo, mas este todo nunca é sentido em plenitude, pois é um todo que deixa visíveis as
suas peças. A reunião das peças em conjunto formaria uma unidade, mas suas posições
são intercambiáveis, mudam de posição incessantemente. Por exemplo, a palavra
“peça”, que muda de posição oito vezes ao longo do texto, repetindo-se,
invariavelmente, duas vezes nas estrofes de três versos (“peça” não aparece nas estrofes
quatro, oito, doze e dezesseis, aquelas formadas por um único verso, como um refrão
com variantes). Assim, a “peça” de “Cada peça de mim não me contém” (verso um),
que pode significar pedaço, é diferente daquela que aparece em “cada eu que de mim
me finge peças” (verso onze), em que, para além de igualmente também aqui poder
significar parte de um todo, relaciona-se ao sentido teatral de “peças”, pois o eu lírico
encena, a ele mesmo, a possibilidade de ser peças.
No plano denso do significante, a ausência de vírgulas nos versos faz extrapolar
a significação de cada palavra. Nesse sentido, como Roland Barthes afirmou, cada
53
uma delas “cumpre então um estado que é possível no dicionário ou na poesia, ali
onde o nome pode viver privado de seu artigo, reduzido a uma espécie de grau zero,
prenhe ao mesmo tempo de todas as especificações passadas e futuras” (BARTHES,
2004, p. 43). Essa gestação das palavras a que se refere Barthes provoca o caráter de
infinidade presente neste poema. Grávidas, as palavras geram significados vários, todos
os possíveis, num jogo textual em que as relações entre as palavras desobedecem à
sistematização ordeira da língua e seguem o caminho da liberdade que a escritura
oferece.
Desse modo, no quinto verso (“Um todo me contém cada e a memória”), a palavra
“cada” exerce a função de adjetivo, visto que a única maneira de ser do poeta é sendo
ele mesmo cada. “Um todo me contém cada”, portanto, significa que o modo de o todo
conter o poeta é contendo cada, sem que este cada reunido perca a sua marca de
identidade de estilhaçamento. A pausa estabelecida no final do verso – apesar de,
claramente, o poeta ter utilizado o recurso do enjambement ("e a memória/ não finge
peças pois apenas sou”) à oração iniciada pela conjunção e” o sentido de adição
da memória ao todo que contém partes “cada” do poeta. Isto é, um todo o contém
cada e mais a memória. A memória, portanto, que anteriormente “fingiu um todo”,
forjando a unidade num eu que se sabe peças, não é mais capaz, agora, de forjar o todo,
pois mais forte do que essa construção ficcional é o fato de o eu lírico saber-se,
verdadeiramente, peças: “a memória/ não finge peças pois apenas sou”.
Apesar de “peça” claramente significar uma “parte autônoma de um todo, ou
objeto com existência individual”
15
, o poeta joga com a pluralidade de sentidos da
palavra, podendo esta também remeter ao significado de peça que diz respeito à obra
teatral, o que não nega, pelo contrário, contribui para a leitura proposta do poema, pois
15
Segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa, esses são dois significados possíveis para a palavra
peça.
54
permanece no campo semântico da ficção, do fingimento, do jogo. Assim, as “peças” de
que é feito o eu lírico são entidades autônomas, e o todo formado a partir da reunião das
peças mostra-se ficcionalizado (tal como numa peça), forjado, fingido, representado.
O eu lírico possui a consciência radical, que não o abandona, de que ele é
“peças”: pedaços, teatro. As peças constituem um todo que apenas existe enquanto
memória, e o verso “apenas a memória finge um todo” marca a distância entre a
experiência interna do poeta (em que o dilaceramento seria supostamente ultrapassado
pelo "fingimento" ou teatralidade) e sua sensação externa da totalidade. Ora, enquanto
internamente o sujeito experimenta a desordem e o caos, a confusão incessante do
desejo e a variabilidade infinita dos sentimentos, externamente, diante de sua imagem
no espelho qualquer que seja o espelho ele vê um corpo surpreendentemente inteiro,
milagrosamente não estilhaçado ("Finge peças de mim pois sou-me um todo"). Nesse
sentido, o todo o corpo refletido é fingimento, construção, pois difere de maneira
essencial daquilo que é o estilhaçamento verdadeiramente experimentado.
O poeta é, portanto, “peças”, palavra que reúne, como foi dito, a experiência
da fragmentação e a necessidade da representação. O todo, por sua vez, é construção,
mas, curiosamente mesmo sendo o “todo” fingimento – ele não deixa de ser, também,
um todo. O eu lírico é, pois, ao mesmo tempo, “peças” e “um todo” ficcionalizado,
como se o todo não fosse mais que uma outra peça. É interessante notar que o
desdobramento do poeta, sua vivência do estilhaçamento, lhe possibilita falar de si
como se estivesse se vendo de fora, enxergando seu reflexo num lago bloqueado.
A ficcionalização do eu é, portanto, viabilizada metaforicamente no poema
através da imagem do “lago bloqueado”, do lago especular, pois é através de seu reflexo
que o poeta se vê e se enxerga como uma ficção. É um eu ficcionalizado, que se olha de
fora, um eu que se sabe ficção. A imagem do poeta refletida no lago é, nesse sentido, a
55
peça todo, isto é, como o “todo” é também uma peça, o seu reflexo, que nada mais é do
que o corpo visto como algo inteiro, é aquela peça, ou aquela representação, que diz
respeito ao todo.
“Cada peça de mim o me contém” é poema inteiramente construído em
decassílabos, absolutamente ritmado, apesar de não possuir rimas. As sílabas tônicas
para além das quase invariáveis sextas e décimas espalham-se ao longo do poema,
sendo a escansão muitas vezes facilitada pela rara utilização das elisões. O texto é quase
inteiramente construído em cima de decassílabos heróicos, tendo cinco versos na forma
de decassílabos sáficos, o que resultaria numa ordem previsível não fosse a intrusão de
um verso de ritmo inadequadamente surpreendente, que desmonta a ilusão do todo
perfeito. No meio de um ritmo ao qual o poeta ordena, organiza um todo, ele quebra em
peças, inclusive foneticamente, os versos. Trata-se justamente do verso “um/ to/do/ me/
con/tém/ ca/da e a/ me/mó/ria”, em que o eu lírico desarruma o verso, acentuando as
sílabas dois, seis, sete e dez, fragmentando foneticamente o verso.
É inevitável que se lembre aqui, ao falar sobre o primeiro poema de O lago
bloqueado uma arte poética que expõe a ficcionalização como modo de existência do
poeta –, alguns versos de Fernando Pessoa. Especialmente aqueles que fazem eco ao
jogo ontológico àquilo que Octavio Paz chama de “nossa tendência mais profunda e
natural: a de ser um imitador profissional” (PAZ, 1982, p. 80) registrado, não apenas
em “Cada peça de mim não me contém”, mas em todo O lago bloqueado. É certo que
posso dizer, sobre a poesia de Helder Macedo, que nela se evidencia a consciência de
que a inteireza do eu, o todo, se apenas como fingimento, ficção, especialmente no
poema “Cada peça de mim não me contém”, pois nele o poeta é peças, sendo o todo
56
mais uma peça entre as peças que o fingem e o não contém. E, assim como em Pessoa
16
,
também em Macedo o estilhaçamento do sujeito é irrevogável, sem possibilidade de
retorno, havendo diversos “eus” geradores de variadas peças, que por sua vez produzem
outros “eus”, num movimento incessante de multiplicação do fingimento, fingindo
fingir que finge, fingindo ser fingido: “Contenho e sou pois nada não contém/ cada eu
que de mim me finge peças”. É interessante notar aqui como o “nada pode atuar
ambiguamente, pois se por um lado esse “nada” não é capaz de conter o fingimento, por
outro é aquilo que possibilita sua multiplicação, que é o mesmo “nada” que exerce a
função de não conter os movimentos das peças.
As palavras apresentadas no primeiro poema reaparecem, fulguram ao longo do
conjunto de poemas, o que confirma o papel de arte poética de “Cada peça de mim não
me contém”. De acordo com Jorge de Sena, “O lago bloqueado é uma seqüência per se
e não uma selecção de poemas que o poeta haja entretanto recolhido do que escreveu
nos últimos anos” (CERDEIRA, org., 2002, p. 229). Assim, o estilhaçamento de “Cada
peça”, espalhado em todo o livro, ajuda a construir o fio “tenuamente narrativo”
(CERDEIRA, 2002, p. 247), já anteriormente apontado, de O lago bloqueado.
Da mesma maneira como cada peça do eu lírico não o contém por inteiro, cada
poema não fecha, em si, seu significado. Ao modo do “Resíduo” drummondiano, em
que “De tudo ficou um pouco. (...)/ Fica um pouco de teu queixo/ no queixo de tua
filha” (ANDRADE, 2003, p. 158), é possível encontrar resíduos nesses corpos poéticos,
como se eles guardassem a memória dos poemas anteriores. Mas, afinal, é um corpo
aquele que os redige, estilhaçado em doze corpos poéticos espalhados ao longo do livro.
As peças de que fala o sujeito lírico na arte poética de O lago bloqueado são também os
poemas, que não o contém por inteiro, mas cada um o “contém cada”. E assim ocorre
16
No texto “A aventura suicida da modernidade”, Teresa Cristina Cerdeira afirma que Fernando Pessoa
marca, em Portugal, a “chegada do tempo em que o sujeito perde definitivamente a utopia do centramento
e da inteireza do eu” (CERDEIRA, 2000, p. 68).
57
também com os corpos poéticos, isto é, com cada poema, pois sucessivamente os corpos
guardam os resíduos das experiências, refletindo ficcionalmente o corpo do poeta, e
cada escrita é uma experiência de aprendizagem que ecoará o que foi apr(e)endido.
Mais uma vez é essa “outra coisa ainda” de Pessoa, construção vertiginosa do mise en
abîme.
O adjetivo frio aparece, por exemplo, em “Líquido amor”
17
, “há esta raiva fria
18
/
que prevê”, e “Não mistério”, “meu excesso frio de paixão”. A imagem da rocha,
imagem esta que faz parte do mito de Narciso, pois o castigo da ninfa Eco foi ter-se
transformado em rocha, fulgura em mais da metade dos textos, nos poemas “Líquido
amor”, “O que a palavra abriu”, “O lago está vazio e não sei”, “Saber é mais difícil”,
“Firme”, “A noite sobra sobre as rochas brancas” e “Suponho ter chegado”,
respectivamente nos versos “os lagos que os rochedos separaram”, “Mas o eco
dispersou nas rochas o meu corpo.”, “ausência em que fiquei petrificado”, “rocha
branca da morte”, “sobre os narcisos da sedenta rocha”, “A noite sobra sobre as rochas
brancas” e “das rochas livres para o lago morto”. O verbo sondar está presente nos
poemas “Não há mistério” e “O lago está vazio e não sei”: “há os corpos que se
encontram/ e se sondam/ até que os corpos parem de morrer”, e “que sondei, defini e
transmutei/ em nada”. O verbo sobrar surge no verso treze do poema “O lago está vazio
e não sei” “no corpo de silêncio em que me sobro–, e no primeiro verso do
17
Para este parágrafo, cito os primeiros versos e as respectivas páginas dos poemas de O lago bloqueado
(MACEDO, 2000):
“Cada peça de mim não me contém”, p. 65.
“Líquido amor”, p. 67.
“Não há mistério”, p. 69.
“O que a palavra abriu”, p. 71.
“Procurei impor amor à minha vida”, p. 73.
“O lago está vazio e já não sei”, p. 75.
“Saber é mais difícil”, p. 77.
“Não por amor nem por dever”, p. 79.
“Firme”, p. 81.
“A noite sobra sobre as rochas brancas”, p. 83.
“Já não sou”, p. 85.
“Suponho ter chegado”, p. 87.
18
Os grifos em itálico são todos meus.
58
referido poema “A noite sobra sobre as rochas brancas”. Bem como cumprir, que
aparece no poema “O que a palavra abriu” e no último verso de “A noite sobra sobre as
rochas brancas”: “Como cumprir assim a profecia?// Como cumprir/ se de quem não
sou pude forjar o reencontro”, e “Assim de novo quase nos cumprimos”.
A abundância de construções adversativas, marcas textuais de um livro que tem
como mote o bloqueio, é mais um exemplo dos resíduos que perpassam os poemas,
ligando as partes fragmentadas desse corpo, sem que isso signifique a ocultação do
despedaçamento. Assim, em “Líquido amor”, o verso mas nem lagos há” (MACEDO,
2000, p. 67) desconstrói a metáfora do “líquido amor lago de narciso” (MACEDO,
2000, p. 67) em que haveria a possibilidade de um corpo líquido que pudesse
amalgamar-se ao corpo do eu lírico, para constatar a concretude bloqueada dos corpos
que refletem a sua bloqueada comunhão” (MACEDO, 2000, p. 68). No poema “O que
a palavra abriu” há igualmente a presença de conjunções adversativas, nos versos
embora seja igual a fria ausência” (MACEDO, 2000, p. 71), Mas o eco dispersou nas
rochas o meu corpo” (MACEDO, 2000, p. 71) e “a faca absurda/ que não corta/ mas
reúne/ a chave que não abre mas desmembra” (MACEDO, 2000, p. 72). Também nos
poemas “Procurei impor amor à minha vida”, “Não por amor nem por dever”, e “Já não
sou” reaparece a estrutura opositiva, respectivamente nos versos “mas o nome que
tenho” (MACEDO, 2000, p. 73), “mas pela germinal fúria obscura” (MAEDO, 2000, p.
79) e “mas o que não sou/ existe” (MACEDO, 2000, p. 85). E, finalmente, os dois
últimos versos de O lago bloqueado, que desse jeito termina: “sem mim/ mas só
comigo” (MACEDO, 2000, p. 88).
No oitavo poema de O lago bloqueado a barreira entre imagem e realidade
mostra-se por completo desvanecida. Não porque o eu lírico tenha perdido inteiramente
59
a noção do limite entre uma e outra, antes ao contrário, porque tem a consciência de que
há necessidade de construção, o que se revela então de modo pungente:
Não por amor nem por dever
me obrigo
mas pela germinal fúria obscura
de só querer-me igual
à vida construída à imagem que não sou
e não serei.
Cada vida é um corpo a fecundar
como uma pátria,
um lago bloqueado
que em suas margens faz prever
o rio
e o seu mar.
Sem outra pátria perto me construo
ausente
e me reúno no perdido influxo
onde me encontro só
um rio seco
do lago apodrecido (MACEDO, 2000, p. 79)
.
Apesar da consciência de que o sujeito lírico não é a sua própria imagem a
distinção entre imagem e ser é evidente no poema (“à vida construída à imagem que não
sou/ e não serei”) aqui a “germinal fúria obscura” que o move em direção àquela
construção. A desejosa busca interminável lança o poeta continuamente no processo de
vida. Enquanto o eu lírico é caracterizado por ser aquele possuidor da fúria germinal,
isto é, da fúria que cria, o mundo que o cerca “cada vida”, cada corpo é marcado
pela possibilidade da fecundação. Fecundar é o verbo que gera a ação, isto é, que torna
fecundo, torna capaz de produzir, de conceber ou gerar, estando nele embutido o ato da
criação. Necessariamente, portanto, no ato de fecundação humana está implícita a
presença de, pelo menos, dois corpos, pois se fecundar é tornar um corpo capaz de criar,
sem alguém que o fecunde este mesmo corpo não é capaz de produzir. Se “Cada vida é
um corpo a fecundar”, para que haja fecundação é necessário haver um corpo a ser
60
fecundado e outro corpo, que o germine. Logo, quando diz “Cada vida é um corpo a
fecundar” é também da sua vida e do seu corpo que o poeta fala, e a aproximação
semântica entre germinal e fecundar estando germinal relacionado ao processo vital
de ficcionalização da subjetividade – mostra o quanto o corpo do outro além do nosso
também é invenção, criação, corpo que começa a existir quando fecundado com as
presenças e suas projeções.
O corpo explicitado neste poema, é sobretudo o corpo da pátria, construção em
linguagem – diferente da construção de linguagem que é a poesia. A pátria, na verdade,
é um conceito que, poderíamos dizer, existe apenas enquanto linguagem. Ao falar sobre
o poema “Em Creta com o Minotauro”, de Jorge de Sena, no ensaio anteriormente
mencionado, “De amor e de poesia e de ter pátria”, Helder Macedo afirma: “a língua
portuguesa é também aqui caracterizada como o único modo de ter pátria, fundindo no
mesmo conceito ‘poesia’ e ‘pátria’” (MACEDO, 2006, p. 191). Assim, o corpo da pátria
pode ser, portanto, a própria língua, atributo que a torna quase sinônimo de construção.
A pátria necessita do sujeito para existir, pois o sujeito diz a pátria em linguagem,
elabora esse conceito basicamente afetivo e político, de tal modo que dizê-la é torná-
la existente, inventá-la.
A pátria construída neste poema, contudo, é “um lago bloqueado” o centro do
poema, nono verso de um texto composto por dezoito versos. É, contudo, importante
lembrar e isso corrobora o encaminhamento ideológico do sujeito lírico em relação
aos seus afetos que este não é um lago definitivamente bloqueado, posto que vem
acompanhado sintaticamente da oração restritiva, que, neste caso, restringe justamente
os limites do bloqueio já que intui “que em suas margens faz prever/ o rio/ e o seu mar”.
Há, assim, um rio previsto que transformasse a água parada e bloqueada do lago em
movimento viável, e um mar ainda possível para o desaguar deste rio que movimentasse
61
o lago bloqueado. E, do mesmo modo como não é de qualquer lago que fala o eu lírico,
mas de um lago bloqueado, igualmente o rio é um lago em movimento e o mar está
marcado pela singularidade de ser “o seu mar” possível, isto é, o mar destino possível
do lago não o mar re-visto da pátria do passado, mas o mar pré-visto do futuro
possível de uma pátria onde o bloqueio tivesse deixado de existir. Atentemos, então,
para a singularidade do “mar” lisboeta: rio fingindo ser mar, “mar mediterrâneo”, como
imaginara Garrett nas viagens pela sua terra.
A possibilidade de fecundação está guardada na pátria, no lago bloqueado, pois é
em seu próprio corpo, “em suas margens” – quem sabe no que há ainda nela de
fecundação marginal, fora do centro, fora do poder, e, para continuar a jogar com
Garrett, no “povo povo” –, que se pressupõe “o rio/ e o seu mar”, símbolos de vida, de
movimentação, de desbloqueio. E se no poema anterior o sujeito lírico afirma que
“Saber é mais difícil/ que prever/ ou recordar” (MACEDO, 2000, p. 77), no momento
ele se sabe “Sem outra pátria perto”, construindo-se em ausência num difícil presente,
enquanto a fecundação da pátria fica mantida como possibilidade, num futuro
profetizado ou, antes, desejado.
O outro, para o eu lírico de O lago bloqueado, manifesta-se de três formas
fundamentais: a amada, a poesia e a pátria. Contudo, como afirma Zygmunt Bauman a
respeito das relações amorosas, “onde dois não certeza. E quando o outro é
reconhecido como um ‘segundo’ plenamente independente, soberano, a incerteza é
reconhecida e aceita. Ser duplo significa consentir em indeterminar o futuro”
(BAUMAN, 2004, p. 35). A indeterminação referida por Bauman torna incompletas,
muitas vezes, as imagens dos corpos amados de O lago bloqueado, isto é, o outro
muitas vezes presentifica-se ali através de sua ausência. Ou melhor: são presenças
fugazes que não dão garantias de permanência. “Líquido amor” (MACEDO, 2000, p.
62
67) metaforiza esta presença ausente, pois ao mesmo tempo que o amor está presente,
ele é líquido, escorre, não é possível aprisioná-lo, é uma imagem fluida. Outro exemplo
são os versos “Firme/ apenas nesta voz sem testemunho” (MACEDO, 2000, p. 81), em
que a voz, apesar de ser enunciada e existir enquanto voz, é “sem testemunho”,
esvaziada, ausente. E a recorrência de frases construídas a partir de uma estrutura
condicional, como “se tu existes” (MACEDO, 2000, p. 67), revelando a presença do
outro como possibilidade. O outro está presente exatamente na mesma medida em que
está ausente, de tal modo que nem a presença nem a ausência estão asseguradas.
Acrescento também, como materialização textual das presenças ausentes
19
, a
quantidade de vezes em que a própria palavra ausência ou sua variante ausente
aparece no texto poético, muitas vezes qualificando o outro ausente e outras tantas
referindo-se ao eu rico que, afinal, possui um todo ausente: “fria ausência”
(MACEDO, 2000, p. 71), “em ti ausente” (MACEDO, 2000, p. 71), “verbo ausente”
(MACEDO, 2000, p. 72), “canto ausente” (MACEDO, 2000, p. 75), “ausência em que
fiquei petrificado” (MACEDO, 2000, p. 75), Sem outratria perto me construo/
ausente” (MACEDO, 2000, p. 79), etc. É esse o movimento de que é feito o livro: o
sujeito poético tem consciência do enfeitiçamento narcísico e deseja ultrapassá-lo para
encontrar o outro, o ser amado; o outro, por sua vez, mostra-se como ausência, como
figura a ser buscada incessantemente. E nessa busca o eu lírico estilhaçado equilibra-se
na tensão provocada pelo amor, sendo justamente esse equilíbrio tenso que o impulsiona
e garante a vaga utopia de uma possível união.
Portanto, os poemas de O lago bloqueado são como que unidades estilhaçadas
que, por sua vez, formam outra unidade estilhaçada o livro que, por sua vez, advém
de uma outra unidade estilhaçada o sujeito. E como “apenas a memória finge um
19
Título, aliás, de uma dedicatória amorosa à pintora e grande amiga Menez, que Helder Macedo escreve
meses depois da sua morte. Este texto está publicado no volume Trinta leituras (MACEDO, 2006, p. 254
– 255).
63
todo” (MACEDO, 2000, p. 65), apenas a leitura finge um todo. O leitor é, pois, aqui, a
memória desse poeta, isto é, aquele que põe em ação o seu texto. Em O grão da voz, em
entrevista concedida a Claude Jannoud, em 1974, Roland Barthes dizia:
ler é reencontrar – no nível do corpo, e não no da consciência – como aquilo foi
escrito: é colocar-se na produção, não no produto; pode-se encetar esse
movimento de coincidência, quer de maneira bastante clássica, revivendo com
prazer a obra poética, quer de maneira mais moderna, retirando de si toda
espécie de censura e deixando ir o texto em todos os seus transbordamentos
semânticos e simbólicos; nesse ponto, ler é verdadeiramente escrever: escrevo
ou reescrevo o texto que leio, melhor e mais adiante do que o seu autor o
fez (BARTHES, 2004, p. 269)
.
Toda a movimentação interior ultrapassagem do espelho, estilhaçamento;
tensão que une, mas que não faz retornar à unidade anterior; encontro com o outro
enquanto alteridade que se mostra ausente; fixação dessas ausências na escrita do poema
se resolve no discurso, está contida em cada palavra, em cada ritmo. Ela é
absolutamente vertiginosa. E a metamorfose que isso impõe às três imagens
fundamentais a amada, a poesia e a pátria faz aumentar a vertigem do poeta, e a
do leitor. Portanto, quando fala da amada, o sujeito lírico também está dizendo da
poesia, e concomitantemente da pátria. Por exemplo, no último poema de O lago
bloqueado, o eu lírico afirma:
Saio de ti
húmido da morte
que em ti depositei
no teu corpo construído
para dar corpo à minha ausência
de mim
luz opaca da minha escuridão
meu silêncio e meu nome
meu amor
meu amor e meu nome e meu silêncio
que me chama
sempre
das rochas livres para o lago morto
onde de novo chego
64
e donde recomeço
sem mim
mas só comigo (MACEDO, 2000, p. 87)
.
O interlocutor ao qual o poeta se dirige, dono do “corpo construído” que, desse
modo, corporifica a ausência do próprio eu lírico, é referido como silêncio, nome e
amor. Uma identificação direta com o amor, a poesia e a pátria poderia ser feita. Sendo
a correlação do amor a mais óbvia, da poesia o silêncio o silêncio das metáforas, o
silêncio das pausas da poesia e do nome a pátria afinal, é em linguagem que se
responde à pátria que se tem. Mas, por que também não identificar a pátria ao silêncio,
que ao optar por viver fora de Portugal, num país de língua estrangeira, o autor
silencia, de certo modo, sua pátria dentro de si, posto que deixa de falar a sua língua? E
por que não relacionar a poesia ao nome, pois, como disse anteriormente, apoiada na
teoria de Octavio Paz, o poeta tem como função nomear o mundo? O fato é que, em se
tratando de corpos construídos, é muito difícil estabelecer relações metafóricas diretas,
porquanto, justamente por serem corpos construídos em palavra, o que importa não é
saber se o silêncio se refere à poesia ou à pátria, mas saber e o verbo saber possui a
memória do verso “Saber é mais difícil/ que prever/ ou recordar” (MACEDO, 2000, p.
77) – que os corpos possuem “saídas e entradas” (MACEDO, 2000, p. 69), e a pátria é o
silêncio do poeta, e o seu nome, e o seu amor. Assim como a poesia também o é. Assim
como o próprio amor, motivador de suas experiências.
A construção do corpo amado expõe, por um lado, a ausência de si sentida pelo
eu lírico: “para dar corpo à minha ausência/ de mim” (MACEDO, 2000, p. 87); e, de
outra forma, torna concreta a ausência desses mesmos corpos amados, pois a
ficcionalização do corpo do outro é possível se ele estiver ausente. Helder Macedo
não busca obliterar a angustiada lacuna do corpo amado, ou a sua possessão precária e
65
fugaz, e antes coloca-a em discurso, encenando a ausência do outro. Sobre o discurso da
ausência, Roland Barthes afirma:
Historicamente, o discurso da ausência é sustentado pela Mulher: a Mulher é
sedentária, o Homem é caçador, viajante; a Mulher é fiel (ela espera), o homem
é inconstante (ele navega, corre atrás de rabos-de-saia). É a Mulher que
forma à ausência, elabora-lhe a ficção, pois tem tempo para isso; ela tece e ela
canta; as Fiandeiras, as Canções de fiar dizem ao mesmo tempo a imobilidade
(pelo ronrom da Roca) e a ausência (ao longe, ritmos de viagem, vagas
marinhas, cavalgadas). Segue-se que, em todo homem que diz a ausência do
outro, o feminino se declara: este homem que espera e sofre com isso é
miraculosamente feminizado. Um homem não é feminizado porque é invertido,
mas porque está enamorado. (Mito e utopia: a origem pertenceu, o futuro
pertencerá aos sujeitos em quem o feminino está presente.) (BARTHES, 2003,
p. 36).
Ao colocar em ação a ausência, o sujeito exercita poeticamente o jogo entre realidade e
ficção, construindo liricamente os corpos ausentes, exercendo a sua própria
possibilidade de vivenciar o feminino. A verdade é que o ato da escrita é absolutamente
solitário, e escrever a alteridade é registrá-la, sobretudo, fiando-se numa memória que,
como anunciada pelo eu lírico, “finge um todo” (MACEDO, 2000, p. 65).
A estrutura do poema “Já não sou” teatraliza a oposição do eu lírico, em
constante mutação, ao lago bloqueado representado pela rã, feminino de sapo:
Já não sou
vou já não ser
ronca ronca ronca a rã
sempre fui
o que não sou
ronca ronca ronca a rã
pareço ser
porque sou
ronca ronca ronca a rã
igual a mais
quem não é
66
ronca ronca ronca a rã
mas o que não sou
existe
ronca ronca ronca a rã
no que me chama
e não é
ronca ronca ronca a rã
sou o mesmo
que não fui
ronca ronca ronca a rã
o mesmo
que não serei
ronca ronca ronca a rã
o mesmo
que ninguém é
ronca ronca ronca a rã
sou já sempre
e já não sou
ronca ronca ronca a rã
vero deus
reencarnado
ronca ronca ronca a rã (MACEDO, 2000, p. 85)
.
Neste texto, mais uma vez o poeta utiliza a repetição como recurso expressivo, na
utilização do refrão, que amarra as estrofes, dando ao poema uma estrutura bloqueada; e
na insistência do som vibrante /r/, o que, inclusive sonoramente visto que o som
vibrante caracteriza-se por brevíssimas interrupções na passagem do ar – interrompe sua
continuidade. Contrapondo-se à multiplicação bloqueadora do “ronca ronca ronca a rã”,
que parece fulgurar como um vigilante do lago bloqueado, a lacuna do próprio eu
lírico. O verbo ser, que surge quinze vezes no poema, sendo a maior parte em primeira
67
pessoa, está em nove versos precedido pela negação, o que significa dizer que se trata
de um eu lírico que é, na verdade, um não ser.
A negatividade da abundância do advérbio “não” pode ser revertida quando vista
pelo prisma da possibilidade de movimentação do eu lírico. Ao afirmar tantas vezes que
não é, o poeta tira o caráter de definição congelada atribuída ao ser, lançando-o na
concepção de vida como processo, e não como resultado. O “deus reencarnado” poderia
ser, aqui, o deus da perpétua mudança da vida, exemplificada numa imagem do último
poema do livro: “um lago seco/ pelo sol/ que o aqueceu” (MACEDO, 2000, p. 87). O
sol consumiu o lago, foi este processo que o fez secar. Ser o que não é significa estar
sempre em busca daquilo que se é, sabendo que o que ele é se define, justamente, pela
busca. Mais uma vez trata-se de ouvir o apelo daqueles corpos que chamam pelo eu
lírico, pois aquilo que o atrai, e não é, para além de ser a projeção de uma imagem do
próprio poeta, é também a conquista de uma fecunda alteridade, que o retira do risco
narcísico do ensimesmado e o lança em direção ao desconhecido, à construção de uma
vida outra, diferente daquela refletida nas águas do lago bloqueado.
3.2 – “Não posso rejeitar o que não sou”: Espelho/ conhecimento/ amor
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.
Carlos Drummond de Andrade
No percurso pelo qual caminha o eu lírico de O lago bloqueado a sedução do
espelho de Narciso está constantemente presente. Perigo, afinal, acentuado pelo fato de
o propósito do livro ser o encontro com os corpos amados do poeta, pois amar
pressupõe o gozo e, também, a destruição. “Destruição” é, inclusive, o título do soneto
de onde retirei o trecho que serve de epígrafe a esta seção do meu texto. Se na
68
confrontação dos corpos a sustentação do desejo pelo outro torna-se demasiadamente
difícil, o eu lírico corre o risco de refugiar-se na imagem conhecida e apaziguada de seu
reflexo nas águas especulares do lago bloqueado, obliterando a presença do outro,
fechando-se à abertura ao encontro, transformando, finalmente, “o amador na cousa
amada”
20
. O poeta consegue, contudo, desvincular-se de sua imagem, desejando
verdadeiramente o outro, o que não significa que em seu caminho em direção à
diferença não tenha havido o registro de uma inclinação ao espelho de Narciso, marcas
poéticas de “um lago bloqueado” que, no entanto, se disse, “em suas margens faz
prever/ o rio/ e o seu mar” (MACEDO, 2000, p. 79). Assim como Teresa Cerdeira
afirmou sobre a geração de Orpheu, à qual ela sugere como identificação especular
menos o espelho de Narciso do que o espelho de Alice, também na poesia macediana o
espelho acaba por tornar-se o impulso “para a ultrapassagem do reflexo em busca da
vivência do prodígio” (CERDEIRA, 2000, p. 71).
O lago bloqueado sugere, portanto, já no título, que é com uma subjetividade em
luta contra a sedução narcísica que o leitor vai-se defrontar. Consciente desse
narcisismo, sem dúvida, mas, ainda assim, narcísica. E a luta pela ultrapassagem dessa
fascinação é certamente também um tema central ao conjunto da obra do autor Helder
Macedo, o que inclui, para além de sua poesia, sua obra ficcional e ensaística, em que
esse tema volta constantemente na leitura de seus autores de eleição. Como disse Teresa
Cristina Cerdeira,
quanto aos espelhos, seria espantoso não reencontrá-los aqui [em Viagem de
inverno], que são metáfora obsessiva ao longo de toda a obra poética do
autor: espelhos narcísicos (...), espelhos modelares, de imagens construídas e
por isso mesmo falsas, que são para o sujeito a terrível ameaça da
20
Cf. o conhecidíssimo soneto camoniano “Transforma-se o amador na cousa amada” (CAMÕES, 1980,
V. II, p. 265) a que, aliás, o ensaísta Helder Macedo deu uma leitura absolutamente inovadora. Ver, a esse
respeito, Camões e a viagem iniciática (MACEDO, 1980, p. 16).
69
impossibilidade de conhecer-se (...), espelhos esvaziados de sentido em que o
próprio canto se arrisca a acabar-se reduzido (CERDEIRA, 2002, p. 269).
Posso lembrar aqui, por exemplo, o canônico estudo de Helder Macedo sobre a
poesia de Luís de Camões, em que o ensaísta revela que o salto do grande poeta foi
conseguir olhar o outro e admirá-lo, mais ainda, amá-lo em sua alteridade. A viagem
apontada por Helder Macedo na obra camoniana é aquela que se dá em direção ao outro,
ao desconhecido. E ir em direção ao outro nada mais é do que deslocar-se de si. Um
movimento similar a esse havia sido experimentado por Camões no século XVI, num
tempo em que os europeus tentavam moldar a África e a América à imagem da única
verdade que conheciam: a sua, o centro iluminado da Europa. Luís de Camões, no
entanto, descobria a riqueza da diferença de uma Bárbara escrava por quem a própria
neve “jura que trocara a cor”
21
para não deixar de servir como metáfora da sua beleza. E
festejava a Ilha dos Amores, ilha em que somos todos amantes, em que finalmente se
reconciliam os humanos com a natureza, os humanos com a sua natureza primitiva
(originária) de amantes, os humanos com os deuses, e até Baco grande opositor dos
heróis portugueses rende-se ao amor, pois a Ilha dos Amores é tão somente e com
muito orgulho também uma bacanal
22
. É importante ressaltar que a insistência na
evocação das leituras ensaísticas de Helder Macedo sobre a poesia de Luís de Camões
não é aleatória. Parto do princípio de que a escrita, qualquer que seja – inclusive, talvez,
a mais mascarada delas, a ensaística –, é autobiográfica, no sentido de que é feita com o
corpo de um sujeito que seleciona, elege, lê.
O lago bloqueado é antes de tudo, portanto, um espelho, um terrível espelho. É
preciso que o poeta quebre este espelho, que o estilhace, para que consiga sobre-viver.
Pois a assunção do narcisismo significaria a morte do poeta. Não somente porque
21
Cf. o poema “Aquela cativa” (CAMÕES, 1980, V. I, p. 246).
22
A esse respeito ver GIL, Fernando & MACEDO, Helder. Viagens do olhar retrospecção, visão e
profecia no renascimento português. Porto: Campo das Letras, 1998.
70
Narciso morre afogado nas águas, mas sim porque o outro é necessário à existência.
existe O lago bloqueado porque o sujeito poético tem consciência de que há sempre um
lago a ser ultrapassado para que se chegue ao outro. Se não houvesse essa consciência, o
livro, provavelmente, seria um discurso ensimesmado, claustrofóbico. Da afirmação
de que sem o estilhaçamento não haveria sequer a possibilidade da procura do outro.
Estaria o sujeito placidamente contido e bloqueado, sem ousar o salto na diferença.
Do mesmo modo também a pátria permaneceria bloqueada se não soubesse
aprender a repudiar a cristalização de sua própria imagem. A esse respeito, o texto
citado de Eduardo Lourenço “Psicanálise tica do destino português” pode ser de
grande auxílio para uma reflexão sociológica de um Portugal que viveu das máscaras
que construiu para si como modo de encobrimento para evitar a confrontação com o
mundo. Espelho falsificador da verdade, mas nem por isso menos sedutor, como o de
Narciso.
A procura do outro é também um modo de vertigem. Não maneira de se
lançar ao outro que não seja a de lançar-se ao desconhecido. E nessa vertigem o poeta
sente de forma aguda o seu estilhaçamento. “Cada peça de mim não me contém/ e eu
não contenho nada pois sou peças/ que apenas a memória finge um todo” (MACEDO,
2000, p. 65), retomo o que diz o poeta. A subjetividade que ultrapassou seu narcisismo
mostra-se absolutamente estilhaçada. A vertigem nos poemas de O lago bloqueado é
sentida quando o poeta ousa mergulhar no lago em busca da diferença. Afinal não é
fácil romper com a própria imagem. Após a queda, após o mergulho, não há mais
possibilidade de retorno e o poeta tem que aprender a lidar com os seus próprios limites.
A vertigem provocada pela ultrapassagem de si na busca pelo outro abandona o
poeta nessa sensação frenética de despedaçamento, que pode ser sentida na camada
significante dos poemas. Daí, por exemplo, a ausência quase total de pontuação,
71
fazendo com que as palavras sejam verticalidades radicais, “contendo, simultaneamente,
todas as acepções” (BARTHES, 2004, p. 43), como na reflexão barthesiana sobre a
convivência de múltiplos sentidos num mesmo signo.
Quando se trata de amor, que nada mais é do que um dos modos de encontro
com o outro, a abertura ao ser amado não é experiência simples, e gera tensão a partir
do momento em que se deslocar de si é entregar-se a zonas desconhecidas que guardam
surpresas e perigos inesperados. O que move esse sujeito e, portanto, esse poeta e essas
palavras, é a tensão que o coloca entre o permanecer em si e o entregar-se
completamente, já que este ato é igualmente desintegrar-se, desmembrar-se, fragmentar-
se, tangenciar a morte. Parece que muito camonianamente Helder Macedo refazia o
caminho do poeta do século XVI: “não canse o cego Amor de me guiar/ a parte donde
não saiba tornar-me”
23
. Por isso, o que ainda permanece como elo entre as partes
estilhaçadas do poeta, quer dizer, o que ainda o mantém vivo, mesmo estilhaçado e sem
possibilidade de inteireza, mesmo arriscado aos limites da morte, é justamente a
experiência tensa que apenas o sentimento amoroso provoca, entre permanecer coeso e
despedaçar-se para sempre.
Porém, se há tensão, risco da tentativa em direção ao outro estar fadada ao
fracasso. E no percurso de O lago bloqueado o eu lírico mostra-se por vezes mais ou
menos vulnerável ao insucesso. No poema “Procurei impor amor à minha vida” o
sujeito vagueia entre o permanecer no lugar infértil da manutenção do ensimesmado,
rejeitando, assim, o desconhecido, e o movimento de busca do novo e,
conseqüentemente, do conhecimento:
Procurei impor amor à minha vida
para tapar com pensos emprestados
a ferida que pariram
23
Conforme o soneto “Pois meus olhos não cansam de chorar” (CAMÕES, 1980, V. II, p. 161).
72
o lago que nasci
e que serei até que o sangue seque.
Procurei dar meu nome ao meu amor
e tomar o amor para meu nome
mas o nome que tenho
e dou
e peço
só existe sem mim
que só existo se o conseguir negar
na espada
de o servir
e nada serve nada
e nada o nega.
Houve um tempo
talvez
em que a paixão
me faria capaz de me forjar
no próprio impulso para me perder.
Procurei conhecer-me
e assim amei
a quem reconheci
por não ser eu.
Não rejeito o amor
nem me rejeito.
Não posso rejeitar o que não sou (MACEDO, 2000, p. 73)
.
Os verbos tapar e impor destoam da atitude amorosa que pressupõe a liberdade e
a espontaneidade do sentimento. Verifica-se que ao tentar “impor amor”, o poeta
reafirma a atitude do bloqueio, pois a finalidade da imposição é tapar, isto é, manter
bloqueado, escondido, falseado. Para além, inclusive, de tapar as feridas, utilitariamente
calando a dor, o modo de fazê-lo é duplamente falso, porque tapa-se a ferida com
“pensos emprestados”, com curativos de outro, o que significa não curar a dor como a
presença do significante pensos poderia sugerir mas antes recalcá-la, reprimindo-a.
Pode-se, contudo, dizer que tapar e impor fazem parte de um certo discurso amoroso
que obedece à “mórbida inclinação do amor”, referida por Zygmunt Bauman:
Todo amor empenha-se em subjugar, mas quando triunfa encontra a derradeira
derrota. Todo amor luta para enterrar as fontes de sua precariedade e incerteza,
mas, se obtém êxito, logo começa a se enfraquecer e definhar. (...) Não
73
instrução ou expedientes autodidáticos que possam libertá-lo de sua mórbida
suicida – inclinação (BAUMAN, 2004, p. 22)
.
Quando o amor se encerra no ciclo da subjugação, em que o encontro amoroso
torna-se demasiadamente difícil para aquele que busca no outro a precariedade de uma
segurança tão “emprestada” como os pensos, a fim de tapar a ferida que outros
impuseram ou “pariram”, e para tapar a dor “do lago que nasci”, o sentimento torna-se
infecundo, infeliz. Este é afinal um poema em que o amor não resulta positivamente
para o sujeito metaforicamente imerso no lago bloqueado. Se o movimento inicial foi de
uma imposição amorosa, uma emoção que não era própria nem espontânea ao poeta,
conseqüentemente a solução mal arranjada deverá menos atenuar do que agravar o
problema. Nada é capaz de esconder a sua ferida, muito menos os “pensos” que não lhe
pertencem. Dizer “o lago que nasci” não é o mesmo que dizer o lago em que nasci,
porque o lago não é espaço onde tenha nascido o eu lírico, mas a identificação que
ocorre é mais profunda, mais essencial: “o lago que nasci” significa o lago que eu sou.
Ele é o lago, não apenas nasceu no lago, o lago, sentimento de fechamento e bloqueio,
nasceu junto com ele e é dele que precisa escapar. dentro do eu lírico a memória, ou
a reminiscência, de ser também um lago, de estar, de certa forma condenado
tragicamente a essa condição de lago. Novamente a consciência do limite da morte
aparece como eco sempre retornado dos poemas, mas aqui, especialmente reiterando a
tragicidade do sujeito: nasceu lago e assim será “até que o sangue seque”, verso que
pode remeter a outro: “até que os corpos parem de morrer” (MACEDO, 2000, p. 70).
Em “Procurei impor amor à minha vida” os tempos, passado e presente, definem
as diferentes atitudes do poeta em épocas distintas. No passado o eu lírico “procurou”
artificialmente o verbo “impor” e o adjetivo “emprestados” o mostram claramente
defender a exposição de sua ferida. Ademais, o uso do “nome” como doação ao amor, e,
74
por outro lado, a possessão do amor pelo nome, resultam estratégias falsas e marcam a
obliteração da presença do outro por parte do poeta, pois a postura radical de dar o
nome ao amor significa apropriar-se do amor, sem que sobre espaço à diferença onde
possa emergir um outro nome, e não somente o nome de quem doa. Imediatamente,
contudo, a conjunção adversativa “mas” (segunda estrofe, verso três) insere a
contraposição a essa atitude, introduzindo uma seqüência de versos com verbos no
presente, nos quais o poeta constata a precariedade dos projetos anteriores e a negação
do nome como caminho à existência.
Na terceira estrofe, contudo, o poeta parece retornar ao tempo em que se movia
por entre os enganos de um falso conhecimento de si e do mundo. Amar aquilo que ele
reconheceu por não ser ele é, em suma, “reconhecer o desconhecido” (MACEDO, 1990,
p. 100). No ato de reconhecer está guardada a ação de “conhecer de novo, identificar”
24
.
Mas como identificar algo que era desconhecido? Nesse sentido, “procurei conhecer-
me/ e assim amei/ a quem reconheci/ por não ser eu significa não se abrir ao
conhecimento daquilo que verdadeiramente se mostra e insistir na posição de agarrar-se
às imagens principalmente à imagem de si, o reflexo no espelho de Narciso
domadas e domesticadas, livres de todas as surpresas e dos possíveis percalços dos
novos encontros, dos novos corpos que o poeta poderia encontrar. “Reconhecer o
desconhecido” é, aliás, título de um ensaio de Helder Macedo, em que o autor aponta a
contradição básica de uma expressão que o senso comum poderia julgar atitude de
generosidade e benevolência e que, no entanto, o ensaísta aponta como máscara de
poder sobre o outro:
Reconhecer o desconhecido pressupõe um paradoxo: pois como reconhecer o
que se desconhece? Os pioneiros da aventura imperial portuguesa
reconheceram o que não conheciam, projectando nas coisas e nos povos que
24
Cf. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa.
75
foram encontrando os seus próprios desejos, medos, ideais, fantasmas,
superstições – em suma, o seu imaginário (MACEDO, 1998, p. 203)
.
Os três últimos versos do poema, todavia, afirmam (com verbos no presente:
“rejeito” e “posso”), positivando as negativas em que os versos são construídos, uma
atitude de inclusão em que a não rejeição do amor e a não rejeição de si são clamadas
como metáforas do desejo do eu lírico pelo novo, pela possibilidade em aberto.
O lago espelho de Narciso está correlacionado ao canto no poema “O lago
está vazio e já não sei”: “O lago está vazio e já não sei/ que outra voz que me seja hei-de
encontrar/ nas bocas ocas do meu canto ausente/ que sondei, defini e transmutei/ em
nada” (MACEDO, 2000, p. 75). Estando exatamente no meio do percurso de O lago
bloqueado é o sexto poema de um conjunto de doze este texto aponta um evidente
niilismo do eu lírico, cujo resultado material, naquilo que seria a corporeidade da
linguagem, seu corpo significante, se evidencia no fato de as quatro estrofes do texto
terminarem, literalmente, por um verso que funciona como uma rejeição de
enjambement, pondo em evidência sempre as mesmas palavras em eco/ refrão: “em
nada”. Não será difícil admitir que esta estratégia de construção equivale
semanticamente à constatação do esvaziamento do lago e, concomitantemente, de seu
canto. O lago estar vazio, assim como seu canto estar ausente, não é, contudo, um fato
que inesperadamente aconteceu ao poeta, mas sim uma ação senão desejada ao
menos causada pelo sujeito, que não apenas esvaziou o lago e o canto, mas sondou,
definiu e os transmutou em nada. Ao sondar e definir, verbos que pressupõem a ação
voluntarista do sujeito em busca de conhecer, o eu lírico se apossa das vozes que o
possam servir em seu canto. Transmutando-o em nada, contudo, o poeta penetra num
tempo de catábase, mergulhando na solidão que o afasta até mesmo de si enquanto
aquela “outra voz” que utopicamente o seria (MACEDO, 2000, p. 75) mas que não pode
76
sê-lo porque já não há canto, não poesia, apenas bocas ocas de seu canto, agora
ausente, posto que transmutado em nada.
“O lago está vazio e já não sei” encena a ausência de um canto que um dia serviu
ao poeta e que, no presente, mostra-se estéril, pois o eu lírico já não encontra eco as
estrofes terminam “em nada” – neste canto passado que fez evaporar seu corpo. O canto
era, afinal, um engodo, pois neutralizava o tempo. Mas o poeta de O lago bloqueado é
demasiadamente consciente da morte portanto da passagem do tempo para que se
deixe abandonar a um canto que romanticamente o iluda. O sujeito lírico se descobre
em luta diante do espelho que lhe devolve uma imagem em que se assinalam as marcas
do envelhecimento. Luta, aliás, formalmente construída através da hipálage “face
envelhecida deste espelho”: afinal não é o espelho que está envelhecendo, mas a face no
espelho.
O corpo é revelado num movimento “corpo a corpo” (MACEDO, 2000, p. 75), o
que significa dizer que é na presença de outro corpo que o próprio corpo se revela. A
revelação, contudo, mostra metonimicamente as “fendas fundas” (MACEDO, 2000, p.
75) de um rosto (parte do corpo) marcado pela ausência: é a ausência de água no lago,
de canto nas bocas, de tempo no corpo que já se sabe envelhecido. As “fendas fundas” –
e a imagem das fendas deixadas na areia de um lago esvaziado não poderia ser mais
perfeita do eu lírico de O lago bloqueado lembram a pele gravada da mineração de
Carlos Drummond de Andrade, em que a presença do outro marca o corpo daquele que
se propõe a amar: “Um toque, e eis que a blandícia erra em tormento,/ e cada abraço
tece além do braço/ a teia de problemas que existir/ na pele do existente vai gravando”
(ANDRADE, 2003, p. 476). É precisamente nestes espaços, nas fendas fundas”, que o
corpo se revela, mostrando-se no resultado da experiência, marcado na pele.
77
O saldo do percurso não é, evidentemente, o mais positivo. Se o fosse o poeta
não teria insistido na reiteração do “nada” como modo de fechamento de suas estrofes.
Por ser, entretanto, o meio do caminho, a consciência salutar da necessidade de
transmutação de um pré-conhecimento “em nada”, para que possa haver outras
aprendizagens. Nesse sentido, o poeta aprende a desaprender, movimento que fica claro
nos versos “Já soube muito mais do que sabia/ e agora sei somente o que não sou”
(MACEDO, 2000, p. 75).
É no amor que o eu lírico encontra a possibilidade de salvamento do vazio em
que se encontra ao mirar o “espelho esvaziado do [seu] canto” (MACEDO, 2000, p. 75).
Talvez nessa altura do caminho que leva o lago bloqueado à precária possibilidade de
um desbloqueio, o poeta tenha refletido sobre o que o move em seu viver. E refletir não
é verbo inocente quando se trata de um texto cuja imagem do espelho é sempre
presente. O “canto ausente” (MACEDO, 2000, p. 75) reflete o “lago esvaziado”
(MACEDO, 2000, p. 75), que por sua vez é refletido no “espelho esvaziado”
(MACEDO, 2000, p. 75), e todos são imagens do “corpo de silêncio” (MACEDO, 2000,
p. 75) que resta ao poeta. E as “fendas fundas” refletem na pele do eu lírico a ausência
assumida e presentificada através das metáforas do lago e do canto. E os versos “em
nada” são o reflexo formal do “canto ausente”, pois quebram a seqüência dos quatro
primeiros versos decassílabos de cada estrofe, tendo os finais das estrofes um verso
de apenas duas sílabas métricas, que na verdade compõem um alexandrino falseado.
Assumir que um dia soube mais do que sabe é, de certo modo, colocar de lado a
máscara da arrogância dos ainda jovens que acreditam saber mais do que
verdadeiramente sabem. “A morte poemas para jovens” (MACEDO, 2000, p. 39),
afirma Helder Macedo em Viagem de inverno, livro publicado dezessete anos após O
lago bloqueado. Em “O lago está vazio e não sei”, entretanto, é do risco da morte em
78
vida de permanecer petrificado que se fala. O eu lírico parece ter chegado a um
tempo de impasse, em que as então primeiras fendas de seu rosto apontam para a
mudança de atitude necessária à continuação do percurso. Seria possivelmente mais
fácil deixar-se estar perdido “em outros(MACEDO, 2000, p. 75), o que, apesar de
significar um estilhaçamento de seu corpo, pelo menos permitiria identificar-se em
algum outro corpo. O espelho, contudo, revela um duplo esvaziamento: de si próprio ou
da sua imagem, e do canto do poeta. Reflete a ausência do eu lírico, perdido de si; e
também o vazio do canto, esvaziado posto que enunciado por um mesquinho “corpo de
silêncio” (MACEDO, 2000, p. 75) que sobra ao sujeito de O lago bloqueado.
O nada reiterado neste poema serve ao eu lírico como constatação dolorosa da
ausência sentida em seu corpo. Mas é também um modo de aprendizagem deste sujeito
que acredita na poesia não como engano, mas como “uma tentativa de dar forma
inteligível ao desconhecido” (MACEDO, 1980, p. 09), como observaria poucos anos
depois em discurso ensaístico sobre a poesia de Luís de Camões. O poeta encontra-se
em meio ao redemoinho da “vida, sempre indecifrada, exigente de uma caminhada, de
escolhas, de destinos” (CERDEIRA, 2002, p. 251).
O belo poema “Saber é mais difícil” (MACEDO, 2000, p. 77) retoma a
dificuldade da imprevisibilidade do presente, tempo por excelência do encontro e,
consequentemente, do amor, mas também da solidão absoluta de quem sabe a morte:
“Perdemos ambos/ e ambos morreremos/ como é fácil prever/ e recordar”. Sendo saber
o presente, prever o futuro e recordar o passado, o presente mostra-se mais custoso do
que a construção fictícia da memória ou a miragem do possível futuro, posto que o
“saber” está relacionado ao lidar com o não controlado, o imprevisto. Na verdade o
amor não é apenas difícil porque tem que existir diante da morte prevista (imaginada)
ou recordada (na morte do outro, que não se pode recordar a própria morte). O amor
79
é difícil diante do tempo presente, que não é o tempo de prever nem de recordar, mas de
saber, saber o caos, diz o poeta, o caos latente, a ordem precária, o reencontrar-se na
morte diária do mirar-se em “espelhos mútuos” (MACEDO, 2000, p. 77).
É interessante notar a oposição entre imprevisto e prever, pois no poema o
tempo do saber, que é o presente, e que é marcado como o tempo do inesperado, diz
respeito ao súbito, àquilo que não se prevê. O “pensamento”, colocado de modo a
funcionar como sinônimo do “prever” e do “recordar”, constrói uma fictícia ordem.
Entretanto, esta ordem fingida do pensamento não é capaz de obliterar a verdade da
experiência da vida “desencontro/ da ordem/ com o caos” (MACEDO, 2000, p. 77),
sentida e dolorosamente constatada nos corpos “com saídas e entradas/ que se
encontram/ e articulam o serem divididos” (MACEDO, 2000, p. 69). A vida é, assim,
desordem, e a dificuldade em saber reside justamente em suportar o caos da
imprevisibilidade do desconhecido, da alteridade absoluta.
A segunda estrofe do poema anuncia textualmente uma transição na postura do
eu lírico:
Primeiro amei-te por amar o amor.
Agora ou já não sei
ou se há amor
é só porque te amo
ainda.
Perdemos ambos
e ambos morreremos
como é fácil prever
e recordar (MACEDO, 2000, p. 77)
.
Num primeiro momento a paixão parecia ser não pelo outro, mas pelo amor, numa
atitude que lembra um certo Caetano de “O quereres”
25
. O viés da vida, contudo, que eu
25
A música “O quereres” está no CD Velô, de 1984. Refiro-me ao seguinte trecho, especificamente:
“Eu queria querer-te e amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
E encontrar a mais justa adequação
80
poderia chamar de viés do desejo, salutarmente trai o poeta, e se antes há a afirmação
categórica do amor pelo amor, agora o eu lírico encontra-se na dificuldade
implicitamente incluída os versos “como é fácil prever/ e recordar” retomam os três
primeiros versos do poema, deixando oculto, dessa vez, o “saber” de saber o seu
amor, perdendo todas as seguranças e garantias. Formalmente, inclusive, o pronome
oblíquo “te”, no primeiro verso da estrofe, está depois do verbo, enfatizando-o, porém
aparece, posteriormente, antes de amar, denotando materialmente, na inscrição da
página, a trajetória percorrida pelo poeta entre amar o amor e amar o outro.
Transposto o risco do bloqueio o risco de viver emparedado num sentimento
ensimesmado de amor pelo amor, sem a possibilidade de encontro com a alteridade –,
trazer o encontro para o presente, apesar das dificuldades que sobrevêm, torna-o real,
dá-lhe o peso necessário da experiência transformada em conhecimento
26
. Enquanto
existente como memória, ou previsão, a experiência amorosa e mesmo a morte estão
amparadas pela segurança do acontecido em corpo alheio ou do projetado para um
além tempo, ambos longe do trabalho e do esforço do presente, em que o desejo do
encontro torna-se o desejo pelo reencontro: “O difícil é amar-te/ assim/ reencontrados
sempre” (MACEDO, 2000, p. 77). O amor vê-se obrigado a sobreviver na “ordem
precária do caos latente” (MACEDO, 2000, p. 77), que é, enfim, a própria vida. O
difícil que agora fulgura explicitamente é amar na contingência do reencontro,
palavra que pressupõe a reafirmação do encontro, sempre, e até da difícil cotidianidade.
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor bruta flor”.
26
“Quebrar espelhos talvez tenha sido a grande tarefa perseguida pelo sujeito em prol do seu
autoconhecimento”, afirma, sobre a poesia de Helder Macedo, Teresa Cristina Cerdeira (CERDEIRA,
2002, p. 271).
81
3.3 – “os lagos que os rochedos separaram”: Erotismo/ morte/ conhecimento
Usnelli parara de remar; continuava com a respiração suspensa.
Para ele, estar apaixonado por Delia sempre havia sido assim,
como no espelho dessa gruta:
ter entrado em um mundo para além da palavra.
Italo Calvino
Estar apaixonado, como mostra Italo Calvino em “A aventura de um poeta”, um
de seus Amores difíceis, é entrar num mundo para além da palavra. O que significa
dizer: no mundo do desconhecido por excelência. Estamos além das palavras quando
amamos. Ou quando morremos. Sustentada por uma vertente de filosofia da linguagem,
Teresa Cerdeira discute as relações entre morte e linguagem a respeito de Viagem de
inverno, último livro de poemas de Helder Macedo: “enquanto fatalidade última, a
morte é o que está fora da linguagem. Falamos da morte dos outros, mas a nossa
pertence necessariamente ao campo do inefável(CERDEIRA, 2002, p. 250). Tanto no
amor como na morte a experiência é vivida além da linguagem, ultrapassando-a, na
linha blanchotiana de que só o silêncio – imagem utópica da plenitude – dá conta do que
está fora dos limites. E se no amor a palavra fica aquém da ilimitada experiência, que é
ela própria metonimicamente a morte uma morte da qual se volta –, sendo a morte a
experiência última e radical, a linguagem está também, necessariamente, excluída de
seu campo: já não podemos dizer, pois estamos mortos.
Contudo, se “a melhor poesia é sempre uma pesquisa, uma tentativa de dar
forma ao desconhecido”, como o agora ensaísta Helder Macedo afirmou no referido
livro Camões e a viagem iniciática, nos poemas de O lago bloqueado percebe-se um
esforço do poeta em nomear justamente essas experiências que lidam com a
ultrapassagem das fronteiras, arriscando a poesia na busca do desconhecido e
devolvendo à palavra um lugar precário que seja nesse esforço de conhecimento em
que, qual Sísifo feliz, não abdica de recomeçar. E se a experiência do apaixonamento
82
está além da palavra, tentar atravessá-la em poesia significa ousar adentrar a zona do
desconhecido, transitando no mistério do transcendente, isto é, do não humano, da não
história, do mito.
Por esse “contínuo projetar-se do homem para o que não é ele mesmo” (PAZ,
1982, p. 165), a que Octavio Paz nomeou desejo, estar presente não apenas no livro de
1977, mas igualmente ao longo de toda a poesia de Helder Macedo, elegi “Não é
bastante”, do livro Orfeu, de 1968, como exemplo de inscrição poética da busca do eu
lírico pela diferença:
Não é bastante
que eu reconheça a minha solidão
e a queira como início dum caminho.
Não é bastante
ser livremente tudo quanto sei
e estar aberto a tudo o que serei.
Tudo o que fui e o que sou e o que serei
já são iguais
no tempo do meu todo ignorado.
Quero abrir o que as palavras não descrevem
para já não responder ao sim e ao não
do meu espelho conhecível.
Já não me basta apenas dar um nome
à morte que me cabe enquanto vivo
porque morrer é ter perdido a morte
para sempre
tornando sem sentido o sim e o não
com que me circundei e defini-me.
Conheço-me as fronteiras.
Quero o resto (MACEDO, 2000, p. 91)
.
A ação de descrever, atribuída, no poema, às palavras, diz respeito ao limite do
conhecido, ou passível de ser reconhecido pela palavra moeda de troca do cotidiano.
Essa é a palavra do poder que, ao descrever (um objeto, um ambiente, uma pessoa),
transforma o mundo em palavra, apreende-o em linguagem, domesticando-o.
Entretanto, esse presumível poder da linguagem não basta ao poeta, como não basta a
83
Orfeu uma Eurídice “diurna”, cotidiana” e “visível”, tal como a Maurice Blanchot
ao traduzir o mito em instrumento de reflexão sobre a linguagem:
Mas não se voltar para Eurídice não seria menor traição, infidelidade à força
sem medida e sem prudência do seu movimento, que não quer Eurídice em sua
verdade diurna e em seu acordo cotidiano, que a quer em sua obscuridade
noturna, em seu distanciamento, com seu corpo fechado e seu rosto velado, que
quer vê-la, não quando ela está visível mas quando ela está invisível, e não
como a intimidade de uma vida familiar mas como a estranheza do que exclui
toda a intimidade, não para fazê-la viver mas ter viva nela a plenitude de sua
morte (BLANCHOT, 1987, p. 172)
.
Blanchot oferece uma leitura do mito que põe em xeque o final trágico de Orfeu
ao ver sua amada de volta ao mundo das sombras. Aponta que perder Eurídice não é
uma fatalidade, mas uma urgência; perdê-la é permitir que ela esteja para além desse
terreno da palavra transparente, no trânsito do cotidiano. Perdê-la é, como diz Helder
Macedo, transferindo agora a metáfora de Eurídice para a poesia, saber que já não basta,
não é bastante ler o que as palavras descrevem. É preciso ir mais longe e desejar abrir o
que elas não descrevem, significando querer sair da zona conhecida na qual o sujeito se
encontra, da zona abrangida pelo campo de visão do seu “espelho conhecível”. Em
suma, ir além da cotidianidade de Eurídice, como ir além da visibilidade da palavra.
Helder Macedo usa a palavra para além do que ela descreve e igualmente quer
do mundo mais do que ela descreve. Expressões como “Não é bastante”, repetida nos
versos um e quatro, além de “Já não me basta” (verso treze) e a já referida “Quero abrir”
(verso dez) são as marcas textuais do desejo deste eu lírico que busca desconstruir as
fronteiras conhecidas do outro amado, do mundo, da poesia para ousar o
desconhecido, para querer conhecer: “Conheço-me as fronteiras./ Quero o resto”.
Neste poema de 1968, justamente do conjunto Orfeu, o que está em pauta é a
busca do outro, que se manifesta como sendo aquilo radicalmente diferente ao poeta. O
poeta não está somente aberto à vida, como modo de conduta ontológica em que se
84
desvencilha de pré-conceitos que têm como papel definir e identificar o que é que lhe
possa vir ao viver. Esse é um passo dado na caminhada do eu lírico. Agora, como o
primeiro verso do poema aponta – “Não é bastante” –, o poeta deseja aquilo que foge ao
campo conhecido do seu “todo ignorado”, verso que aparentemente seria um
paradoxo, pois se assenta numa argumentação muito lúcida de que a vida é limitada
antes e depois pela morte, pelo vazio, e enquanto é vida é mutável e desconhecida.
Parece, ao poeta-Orfeu de “Não é bastante”, que a consciência da morte o impulsiona
em direção ao encontro do outro, ultrapassando o conhecimento, que ele possui, de
suas fronteiras, que o faz de certo modo ousar a descida aos infernos. não importa
mais ao poeta quem ele tenha sido ou até mesmo virá a ser, pois diante da igualdade
atemorizante da morte “o sim e o nãocom que ele se definiu perdem o sentido: “Tudo
o que fui e o que sou e o que serei / são iguais / no tempo do meu todo ignorado”.
Ele quer ir além das suas fronteiras, quer abarcar a vida do outro, como se dependesse
do outro – limite do corpo – para que se realize enquanto experiência.
“Abrir o que as palavras não descrevem” é participar de outra vida, impossível
de ser descrita, certamente, que do outro, com absoluta propriedade, nunca estamos
aptos a falar, mas passível de ser compartilhada. “Não é bastante/ ser livremente tudo
quanto sei/ e estar aberto a tudo o que serei”, enuncia, através da rima semântica sei/
serei, o ponto de partida da caminhada de conhecimento deste sujeito que alia o saber
ao ser. Esse movimento, porém, em que o poeta busca saber a partir do que é “Não é
bastante”. Como Orfeu sem Eurídice o sujeito lírico aponta para a insatisfação dessa
vida solitária, em que o reconhecimento da solidão – válido enquanto início dum
caminho – tem que ser ultrapassado pelo desejo do outro: Orfeu tem que partir em busca
de Eurídice nem que seja para depois arriscar-se a perdê-la.
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Se no texto de Orfeu o poeta quer abrir “o que as palavras não descrevem”,
inaugurando a possibilidade de não responder às demandas exclusivas de um eu que
se conhece naquilo que a vida lhe concede, em “Líquido amor”, de O lago bloqueado, o
eu lírico é agora encarnado na figura de Narciso, ou melhor, de um anti-Narciso que
mergulha no lago em que se espelha para poder assim encontrar o que não seja ele:
Líquido amor
meu lago de narciso
onde pra ver-me não posso penetrar
e onde penetro sempre
porque na minha imagem
destruída
talvez te encontre a ti
se tu existes (MACEDO, 2000, p. 67)
O uso do verbo “penetrar” corporifica o “lago de narciso”, tornando-o corpo
passível de ser penetrado. A ação não é de quebra do espelho, como usualmente
poderíamos esperar, mas o que esse sujeito parece desejar como construção de um
caminho em direção à alteridade é o erotismo. A ultrapassagem guarda a ação fálica da
penetração, o que significa dizer que é com o erotismo que o poeta vence a sedução
narcísica da sua imagem e parte para o encontro com o outro amoroso. Helder Macedo,
fino e dos mais inteligentes leitor de Camões, herda do poeta quinhentista a concepção
de que existe uma “necessária sexualidade inerente ao amor” (MACEDO, 1980, p. 14),
conjugando assim o amor carnal e o amor espiritual:
Assim, “homem de carne e osso”, é a reconciliação do espírito com a carne
ou, porventura, a consagração do espírito na carne que Camões finalmente
propõe na Canção III
27
, parecendo trazer uma nova dimensão valorativa à
escala platónica do amor (MACEDO, 1980, p. 15).
27
A Canção III, de Luís de Camões, inicia-se com o verso a roxa manhã clara”. Os versos aos quais
Helder Macedo especificamente se refere na citação acima são:
“Que se viver não posso
– um homem sou só, de carne e osso –,
esta vida que perco, Amor ma deu;
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A experiência erótica, contudo, guarda em si a sensação de dissolução do ser,
eco da experiência de morte que está por trás do erotismo. Novamente amor e morte
aproximam-se, unidos de modo indelével pelo que, segundo Georges Bataille, está no
fundo de toda ação erótica: a projeção do retorno à continuidade de onde viemos e para
onde iremos, o que implica a extinção do ser descontínuo que somos. A reflexão crítica
de Georges Bataille parte da afirmação de que todos nós, seres humanos conscientes,
somos seres descontínuos, corpos apartados pelo abismo que os separa e os faz serem
únicos. Por isso, por mais que nos esforcemos, a comunicação nunca é completa, porque
a experiência de cada um nunca é vivida pelo outro, porque cada um experimenta ao seu
modo a angústia, o amor, a dor, a morte.
Carregamos dentro de nós, porém, a marca de uma continuidade perdida. Essa
marca está presente desde o momento da concepção, quando dois seres também
descontínuos, óvulo e espermatozóide, se unem e, juntos, iniciam um novo ser. Nessa
união, nesse fundir dos dois seres, capaz de gerar um outro ser, há morte, porque os dois
seres primordiais deixaram de existir para que o outro pudesse começar a viver. É no
momento da morte, da dissolução, que há, portanto, continuidade.
O contínuo é uma integração que implica a perda daquilo que constitui o ser
como descontínuo, a perda das diferenças que fazem com que os seres difiram uns dos
outros. No período da gestação, quando o ser se encontra ainda no ventre materno, ele
vive um período de continuidade, porque está dentro do corpo da mãe, e é totalmente
dependente dele. No momento do nascimento essa continuidade é literalmente cindida
através do corte do cordão umbilical. Mais do que uma simbologia, a ruptura do cordão
que une mãe e filho é o ingresso desse novo ser num mundo fundado na
que não sou meu: se mouro, o dano é vosso” (CAMÕES, 1980, V. III, p. 36).
87
descontinuidade. No conjunto de poemas de Helder Macedo – “Os trabalhos de Maria e
o lamento de José” “Natividade” constitui uma excelente foprmulação poética do
dilaceramento causado por esta perda
28
.
Bataille lembra que, entretanto passamos por experiências ao longo da vida que
nos permitem contemplar, por poucos instantes, a continuidade perdida no momento do
nascimento, sem que para isso precisemos literalmente morrer. Essas experimentações
se dão no momento do gozo erótico, quando novamente dois seres são apenas um,
quando a aproximação e a conjugação parecem ser completas e totais. A esse lampejo
de continuidade Bataille o nome de “pequena morte”. A continuidade é sentida em
meio à vida descontínua que mantemos e, como forma de preservação, procuramos
prolongar. O corpo é, então, ser dividido entre o desejo do gozo, uma sensação
momentânea de vislumbre de continuidade, e o temor que essa sensação causa, pois,
diante da continuidade, estamos também diante da morte, e a maior violência que um
ser pode sofrer é aquela que o retira do estado de descontinuidade em que vive.
Assim, “o erotismo é a aprovação da vida até na própria morte” (BATAILLE,
1988, p. 11) porque no momento do gozo, quando nos deparamos com a possibilidade
de resgate da continuidade, fascinados diante do abismo que nos comove, encaramos a
28
Reproduzo trechos do poema:
“Latejar intervalado de orgasmo já em ferida.
Rotura. Espanto. Irreversível dor.
Um ventre inchado golfa a expectativa de si próprio
(...)
Um grito rouco. Um ventre rasgado de dentro.
Viscoso, um novo corpo
tomba
e limita a eternidade.
Fiquei então sozinha
no corpo que era meu
para que o desse.
E dei-o
e mo romperam
com amor” (MACEDO, 2000, p. 135).
88
morte porque este é um momento de, acima de tudo, abertura à continuidade em vida.
Enfrentamo-la para que possamos nos deliciar com esse instante de completude, de
prazer indiscriminado. Como afirma Roland Barthes nos Fragmentos de um discurso
amoroso, “a fascinação não é, em suma, senão a extremidade do distanciamento”
(BARTHES, 2003, p. 94). Ao mesmo tempo que fascina o abismo orgástico da
indiscriminação e da indiferenciação semelhantes à continuidade da morte, o sujeito
vive em contrapartida o extremo do distanciamento da morte, pois Eros afirma o desejo
de manutenção da vida, e é somente em vida que se pode intuir e tocar a experiência da
morte. Nesse sentido, e sem grande contradição, o prazer da continuidade oblitera o
temor da morte. O orgasmo é a experiência ambígua de estar ao mesmo tempo o mais
próximo e o mais distante da morte, por ser vida no seu limite, por ser morte em vida, e
não a morte literal, absoluta e irrevogável. Próximo porque a continuidade está ao
alcance do corpo, distante porque o gozo que esse limite extremo proporciona mantém a
vida apartada da fatalidade da morte sem retorno. Para além da experimentação da
“pequena morte”, o gozo erótico é a prova cabal de que a vida atrai mais do que a
morte, pois é somente em vida que se pode experimentar por instantes a fascinação
da morte, e dela retornar, para transformá-la em experiência de linguagem.
O gozo erótico, ainda segundo Bataille, “dá-nos um sentimento que ultrapassa
tudo, de tal forma que as sombrias perspectivas ligadas à situação do ser descontínuo
caem no esquecimento” (BATAILLE, 1988, p. 21). Estas “sombrias perspectivas” de
que nos fala o filósofo francês estão relacionadas à condição fundamental de todo e
qualquer ser: a solidão. A solidão é fruto da descontinuidade em que estamos
fundamentados, dela não podemos fugir. Daí que Helder Macedo afirme, em “Líquido
amor”: “porque sei demais que esta procura/ é o seu próprio fim” (MACEDO, 2000,
p. 67). A procura, aqui, a procura pelo outro, por um possível “Líquido amor”, é aquilo
89
que verdadeiramente importa no caminho do sujeito lírico, pois ele tem a consciência de
que encontrar o que procura é desejo duplamente impossível: impossível porque o ser
humano está abandonado à sua própria solidão, e esta é, em última instância,
irrevogável; e impossível porque mesmo tendo encontrado um outro que nele desperte o
amor com todos os seus correlatos, o desejo paradoxal do apaixonado consiste na
desesperada vontade de união e ao mesmo tempo na não menos desesperada vontade de
que aquele corpo permaneça, continue, sobreviva ao amor, mantendo assim
possibilidade da procura. Desse modo, nas palavras do próprio Macedo, “no fim de toda
a demanda talvez nada mais haja para encontrar” (MACEDO, 1998, p. 394). Como na
Ítaca
29
de Konstantinos Kaváfis, em que, chegado ao seu destino, o viajante não tem
29
Refiro-me ao poema “Ítaca” de Konstantinos Kaváfis:
“Quando começares a tua viagem a Ítaca
faz votos que o caminho seja largo,
cheio de aventuras, cheio de experiências.
Não tema aos lestrigões nem aos ciclopes,
nem ao colérico Possêidon,
tais seres jamais acharás em teu caminho,
se teu pensar for elevado, se seleta
for a emoção que toca teu espírito e teu corpo.
Nem aos lestrigões nem aos ciclopes
nem ao selvagem Possêidon encontrarás
se não os levares dentro de tua alma,
se não os ergue tua alma diante de ti.
Pede que o caminho seja largo.
Que sejam muitas as manhãs de verão
em que chegues – com que prazer e alegria! –
a portos antes nunca vistos.
Detém-te nos empórios de Fenícia
e mostra-te com belas mercadorias,
nácar e coral, âmbar e ébano
e toda sorte de perfumes voluptuosos,
quanto mais abundantes perfumes voluptuosos possas.
Veja muitas cidades egípcias
a aprender, a aprender de seus sábios.
Tenha sempre Ítaca em teu pensamento.
Tua chegada ali é teu destino.
Mas não apresses nunca a viagem.
Melhor que dure muitos anos
e atracar, velho já, na ilha,
enriquecido de quanto ganhaste no caminho
sem esperar que Ítaca te enriqueça.
Ítaca te ofereceu tão bonita viagem.
Sem ela não haverias começado o caminho.
Mas já não tem nada a dar-te.
Ainda que as ache pobre, Ítaca não te enganou.
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nada a receber, pois o interessante não é o ponto de chegada, mas o caminho traçado até
lá. Assim, diz Kaváfis, “sábio como te tornaste, com tanta experiência,/ entenderás o
que significam as Ítacas”. A Ítaca de Helder Macedo parece ser o corpo do outro, ou
melhor, o abraço total com o corpo do outro, desde sempre impossível, mas não menos
desejado.
Uma vez, contudo, penetrado o lago é este afinal o caminho que deve ser
percorrido – o eu lírico se depara com a materialidade do corpo do outro, com a
evidência de um corpo tangível que se coloca à sua frente:
mas nem lagos há
onde
me olhando
eu veja a tua imagem
há o meu corpo
há o teu corpo
há esta raiva fria
que prevê
e além da roupa e do perfume
em que fingimos nossos corpos
não temos nada mais que ossos e sangue
os lagos que os rochedos separaram
pra que não possam mais que reflectir
a sua bloqueada comunhão (MACEDO, 2000, p. 67 – 68)
.
O lago, imagem do espelho, que foi ultrapassado, seria um modo de fuga, pois
enquanto o sujeito lírico faz parte do “espelho conhecível” (MACEDO, 2000, p. 91) não
precisa confrontar-se com a constatação de que os corpos se mantêm invariavelmente
separados. É interessante a construção dos versos “há o meu corpo/ o teu corpo”,
pois sublinha a distância entre os corpos. O que há não são os nossos corpos, mas o meu
e o teu: corpos diferentes e apartados. A “raiva fria” parece prever aqui o instante de
aproximação total sentido no momento do gozo erótico, e o adjetivo fria” lhe imprime
a dupla função de ser aquela que esfria o calor dos corpos no momento da plenitude e,
Assim, sábio como te tornaste, com tanta experiência,
entenderás já o que significam as Ítacas”.
91
concomitantemente, aquela frieza racional que age mesmo quando o corpo está
absolutamente entregue, lembrando-lhe que, passado o torpor de que está tomado, ele
será de novo um corpo sozinho separado do objeto da paixão.
A “roupa e o perfume” são assim subterfúgios em que os amantes fingem seus
corpos, em que os corpos fingem serem outros, que não os próprios, escondendo e,
literalmente, perfumando aquilo que o outro quer ardentemente conhecer, num
movimento que retoma a fronteira entre ficção e realidade, radicalizada no poema
“Cada peça de mim não me contém” (MACEDO, 2000, p. 65). Assim “e além da roupa
e do perfume/ em que fingimos nossos corpos” significa ao mesmo tempo fingir com os
corpos, e enganar os corpos. É com o corpo que se finge ser outro, mais perfumado e
interessante, e é igualmente com o corpo que se engana a si e ao outro, pois a verdade
cruel que a roupa e o perfume escondem é a de que os corpos não têm “nada mais que
ossos e sangue” a oferecer.
Mais do que nus, os corpos de “Líquido amor” estão visceralmente
transparentes, revelados numa precariedade de ossos e sangue a ponto de poderem
refletir a tragicidade da experiência amorosa bloqueada. O “Líquido amor”, corpo fluido
em que o outro pudesse amalgamar-se, tornando-se, desse modo, um corpo, afinal
não existe. E o que o eu lírico constata é a comunhão bloqueada de corpos duros,
concretos, opostos ao (im)possível corpo líquido. O modo como a constatação deste
bloqueio aparece no poema, entretanto, imprime alguma cumplicidade nessa separação
dos amantes. Um oxímoro parece dar conta dessa tensão entre ser descontínuo e querer
experimentar a continuidade: “a sua bloqueada comunhão”. Ao dizê-lo o poeta utiliza
um único pronome “sua” (quer dizer deles, dos corpos, dos lagos separados pelo
rochedo) para demonstrar como se dá esse paradoxal bloqueio ou essa paradoxal
92
comunhão. É interessante assinalar que é nesse momento, no momento mesmo em que
anuncia o bloqueio, que o eu lírico finalmente une os corpos amantes em um só verso.
Os amantes comungam isto é, têm em comum a marca ontológica de serem
seres divididos. E é essa divisão ontológica, ou a fatalidade dessa divisão, que
ironicamente os une, que a separação que implica o bloqueio é justamente aquilo
que os amantes compartilham, é aquilo que os corpos têm em comum. A “bloqueada
comunhão” fala, pois, de um projeto falido de continuidade amorosa, um trágico
mergulho num lago que não há.
Em “Não é bastante” Helder Macedo busca experimentar “o que as palavras não
descrevem” (MACEDO, 2000, p. 91), indo além das demandas colocadas ao sujeito
enquanto ser solitário e consciente da morte, buscando ultrapassar a fronteira de seu
corpo em direção a outros corpos. “Conheço-me as fronteiras./ Quero o resto”
(MACEDO, 2000, p. 91), lembremos, são os dois últimos versos do poema de Orfeu,
que é também um poema que aponta outras demandas colocadas, desta maneira, à
palavra enquanto instrumentalidade, de modo a permitir ao sujeito do conhecimento
chegar à fronteira do poético.
“Líquido amor”, poema publicado nove anos mais tarde, coloca, ainda uma
vez, uma variante da metáfora da ultrapassagem do espelho como movimento inicial na
busca pelo outro. O que outrora era uma espécie de desobediência ao reflexo no espelho
“para já não responder ao sim e ao não/ do meu espelho conhecível” (MACEDO,
2000, p. 91) agora mostra-se como ato que guardaria certo prazer, se pudesse ter sido
concretizado, que é penetrando no “lago de narciso” e com isso destruindo a própria
imagem refletida no lago espelho, que o poeta anti-narciso encontraria o outro, se
ele existisse.
93
A suspensão do “tu”, que acontece no último verso da primeira estrofe do poema
“se tu existes” (MACEDO, 2000, p. 67) –, abre a possibilidade ao eu lírico de refletir
sobre a construção poética de um corpo desejado e procurado. Ocorre, porém, que o
poeta não acredita em corpos tecidos poeticamente, apesar de dizê-lo tecendo um
outro corpo, que é justamente o poema. O fato é – e talvez aí resida a ironia apontada no
décimo verso que o corpo procurado também é motivo para que exista um corpo
inventado, e a procura que em função da possibilidade de haver lagos porém “Mas
nem lagos há” (MACEDO, 2000, p. 67) – é também construção de um corpo poético em
que os corpos físicos vivem em palavras uma comunhão bloqueada onde nem sequer o
mergulho desejado é possível. “Se tivesse havido luz que eu pudesse ter perdido”
(MACEDO, 2000, p. 67) é um modo condicional de falar do encontro frustrado pela
inadequação da metáfora: mergulhar no lago que não há, experiência que só pode
acontecer ao serem esses corpos ditos, escritos, falados, enfim, inscritos na página em
branco.
Tendo aprendido, no poema de 1968, que é preciso, mais do que reconhecer os
próprios limites, desejar buscar o que está além da fronteira de seu corpo, o poeta se
encontra quase dez anos depois e de 1968 a 1977 em Portugal a História
inegavelmente aconteceu numa outra experiência de bloqueio, num, agora, lago
bloqueado que lhe revela ainda uma vez o impasse entre a necessidade de partir ao
encontro do corpo do outro e o bloqueio imposto a essa viagem, para além das
fronteiras, quando o mergulho no líquido amor é tornado impossível por um lago que
não há. A viagem que ele percebe então fadada ao fracasso terá como resultado o
próprio percurso em letra, a construção de um corpo poético, tecido na página, em que o
poeta tivesse podido aprender a experiência amorosa.
94
Mesmo tratando-se de um Lago bloqueado ou até mesmo por causa disso
nesse conjunto de poemas a presença constante de imagens de movimento, de
mutabilidade. Em contraposição ao bloqueio em que se encontra, e de que, como modo
de sobrevivência, procura fugir, assistimos à movimentação de todos os processos pelos
quais este sujeito se propõe passar, entre os quais: a busca pela imagem do outro,
penetrando sua imagem no espelho, de modo a estilhaçá-la; o encontro com este corpo
outro, que pressupõe a imprevisibilidade da convivência com a diferença; e até mesmo a
consciência constante da morte, presença forte nos poemas de O lago bloqueado, às
vezes representada metaforicamente como movimento, processo de consumação, às
vezes associada à paixão e ao amor, portanto, ao encontro amoroso dos corpos. A
imagem da morte está de certo modo necessariamente em diálogo com a movimentação
vital. Por exemplo, no verso “até que os corpos parem de morrer” (MACEDO, 2000, p.
70), último do poema Não mistério”, a morte é encarada como o modo fatal de
“parar de morrer”, confirmando a visão da morte como algo “inseparável de nós” (PAZ,
1982, p. 182), o que reverte de algum modo a fatalidade da morte, ao lhe dar o caráter
de movimento contínuo, de sucessão de estados e mudanças, próprios da contingência
da vida.
O poeta enxerga a vida como processo, e, conseqüentemente, a morte como o
outro lado da moeda deste mesmo processo. Como da morte radical e definitiva não
podemos falar, não nos é dada a possibilidade de conhecê-la, centrando-se
possivelmente a recusa fundamental da morte, pelo fato mesmo de ela ser o
desconhecido e ele ser um poeta em busca do conhecimento. Estrategicamente ele a
transforma então em movimento, em mutação constante.
É certo que essa visão da morte, ou da vida, não é inaugurada pela poesia
macediana. Ela vai na linha da filosofia heraclítica, que foi resgatada por Heidegger no
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século XX. Mas este é um campo no qual não me atreverei a entrar. O que importa,
neste caso, é que em O lago bloqueado o poeta reverte a negatividade a morte, sem tirar
seu peso e sua importância, transformando-a em vida (ou processo), pois viver torna-se
a única experiência capaz de transmudar a morte em parte da experiência, em gozo, sua
única forma conhecível: “Enquanto a dor e o absurdo podem ser transformados em
linguagem, é que a morte foi mais uma vez postergada. Morre-se muitas vezes antes de
se deixar de poder falar dela” (CERDEIRA, 2002, p. 278).
O encontro com o outro serve, também, como constatação da morte sentida nos
corpos ao serem divididos, bloqueados. Os corpos amados do poeta são o sol que o
aquece, e que o consome, mas é nessa relação que se encontra a única possibilidade de
vida ao poeta, pois “ter nascido é começar/ a morte/ que com a morte finda/ como um
lago seco/ pelo sol/ que o aqueceu” (MACEDO, 2000, p. 87). Segundo Zygmunt
Bauman, “o amor pode ser, e freqüentemente é, tão atemorizante quanto a morte. Só que
ele encobre essa verdade com a comoção do desejo e do excitamento” (BAUMAN,
2004, p. 23).
O espanto com o corpo do outro está, aliás, belamente anunciado nos versos do
poema “Estou a ver que não tenho outro remédio”, do livro O sete, de 1966: “mas posso
agora confessar sem medo/ o grande e belo medo que me fazes/ porque tu existires/
durante a minha vida/ é o milagre maior da temporada” (MACEDO, 2000, p. 111). A
convivência com o outro tem a aparência de milagre a este jovem poeta, tamanha é a
estupefação frente à surpresa e à alegria do encontro com o corpo amado. O poeta não
esconde o “grande e belo medo” perante a grandiosidade e a imprevisibilidade do
encontro amoroso, mas pode “confessar sem medo” este medo genuíno diante das
inseguranças do amor.
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No poema “O que a palavra abriu” a morte e a paixão são igualadas através da
equivalência, apontada pelo poeta, da distância que o separa de ambas:
O que a palavra abriu
foi a paixão
não foi a morte
embora seja igual a fria ausência
que de ambas me separa (MACEDO, 2000, p. 71)
.
A palavra detém o poder fálico de abrir como “abrir o que as palavras não
descrevem” (MACEDO, 2000, p. 91) era a intenção do poeta de Orfeu, em 1968 a
paixão, imagem que corporifica a palavra poética. E, paradoxalmente, enquanto é a
palavra que exerce a função de abrir, a paixão, o corpo do outro é assumidamente
construído “letra a letra” (MACEDO, 2000, p. 71), integração perfeita entre a letra
poética e o o ato amoroso. “O lago do teu corpo” (MACEDO, 2000, p. 71) é construção
poética, pois nele o eu lírico pode morrer, para depois retornar e deixar em palavra, ou
com a palavra, a experiência do mergulho na morte encontrada no corpo do outro por
ele construído.
Mais do que reverter, contudo, a negatividade da morte, dando-lhe da
positividade da vida encarada como infinito devir, parece que algo nesse poeta que
precisa realmente morrer, como se tem procurado mostrar ao longo da leitura proposta
para O lago bloqueado. Lembre-se que o primeiro e decisivo passo do sujeito rico ao
longo desse conjunto de poemas é o abandono da segurança de sua imagem refletida no
espelho, em direção ao encontro com o outro, o desconhecido. “E recusei a paixão pra
conhecê-la/ e recusei morrer para ir morrendo/ e recusei-me para me encontrar/ num
caminho de espelhos/ sábios e vazios” (MACEDO, 2000, p. 71), diz o eu lírico no
mesmo poema acima citado. As recusas transformam-se em afirmações pelo modo
como o poeta as enuncia. Ele recusa uma paixão pré-concebida, para conhecê-la em sua
97
novidade; ele recusa a morte como experiência última e fatal, para ir morrendo aos
poucos, no gerúndio (o que denota a idéia de movimento), gozando o processo de
interminável mutabilidade que caracteriza a vida; ele se recusa e penetra no lago
bloqueado para se encontrar, num caminho de espelhos sábios, porque vazios. O
espelho finalmente pode ser sábio porque está esvaziado de toda e qualquer imagem.
Sábio, aqui, como a possibilidade de tão simplesmente de vir a conhecer, e não como
um acúmulo de conhecimentos já adquiridos.
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4 – Conclusão
mas os momentos felizes não estão escondidos
nem no passado nem no futuro.
Antonio Cícero
Talvez a tarefa mais difícil de um percurso analítico sobre poesia seja,
justamente, terminá-lo. Porque a poesia nunca deixa de dizer, e há sempre outras
possibilidades, outros caminhos que poderiam ter sido seguidos. Em se tratando de um
texto acadêmico, entretanto, que se estabelecer, de início, as direções que a análise
vai tomar. O que, se de um lado restringe (restrição obviamente necessária) a leitura que
se possa vir a fazer, por outro anuncia o recorte do olhar lançado sobre o texto.
“De amor e de poesia e de ter pátria” foi o mote para a escrita desta dissertação.
Os corpos amados na poesia de Helder Macedo metaforizam-se, ao longo de O lago
bloqueado, nos corpos da amada, no corpo poético e no corpo pátrio. O caminho que o
eu lírico percorre até o encontro com esses corpos e a relação propriamente dita entre os
corpos amados e o corpo do poeta foram os temas principais aos quais esse mote um
verso de Jorge de Sena – me levou.
Para chegar aos corpos amados o eu lírico tem de lidar, fundamentalmente, com
duas questões: a ultrapassagem do narcisismo e a ficcionalização de sua subjetividade.
O espelho, sendo imagem recorrente na poesia macediana, aparece também em O lago
bloqueado, tanto no caráter especular do topos lago, miticamente relacionado ao
espelho, como na metáfora que transforma o corpo do outro em espelho: “líquido amor/
meu lago de narciso” (MACEDO, 2000, p. 67). Para este eu lírico há o risco da paralisia
fatalmente sedutora diante da imagem refletida no Lago bloqueado, e a consciência
deste risco. Por isso o reflexo no espelho – literal e metafórico é recorrente nos
poemas, pois se o sujeito sabe da sedução a que Narciso cedeu, sabe também que o seu
desejo o impele para além do espelho, em direção à alteridade.
99
Ultrapassar o narcisismo, porém, custa ao poeta a fragmentação de sua
subjetividade. A experiência do contraste entre a visualização de seu corpo inteiro e
perfeito no espelho sedutor, e o sentimento de angústia e dilaceramento internos faz
com que o poeta forje “um todo” (MACEDO, 2000, p. 65) em que haja “mais pedaços
do que havia loiça no vaso” (PESSOA, 2001, p. 378). Ir em direção ao outro, o que
significa ir em direção ao amor, ao corpo do amado, não dá nenhuma garantia de
sucesso ou plenitude. O poeta sai da zona de conforto, que era mirar seu reflexo nas
águas do lago, e busca o inesperado, o desconhecido, porque nessa procura, nesse
trajeto, ele aprende. E aprender é o desejo primeiro deste sujeito lírico, cuja voz
histórica, como foi assinalado, afirmou em texto ensaístico que “a melhor poesia é
sempre uma pesquisa, uma tentativa de dar forma ao desconhecido” (MACEDO, 1980,
p. 09). Portanto, escapar conscientemente ao narcisismo, deparar-se com a necessidade
de ficcionalização de uma subjetividade estilhaçada, e desejar o outro como modo de
aprendizagem são fases de um movimento que tem como pano de fundo o sentimento
amoroso: é o amor que move este poeta.
Feita a opção pela diferença, pela radicalização da diferença, que é o amor, o eu
lírico encontra-se diante de seus corpos eleitos: o corpo feminino, a poesia e a pátria. E
os corpos não fulguram delimitados, mas permutáveis, metamorfoseando-se uns nos
outros. O encontro com os corpos, por sua vez, coloca a questão da descontinuidade, da
solidão dos seres, condenados a articularem o fato de “serem divididos” (MACEDO,
2000, p. 69). Dentro da indissolubilidade da divisão, há, contudo, a precária comunhão
dos corpos que vivenciam a morte na experiência do erotismo, como modo de afirmação
do desejo de permanecerem vivos nem que seja para que possam, ainda uma vez,
experimentarem “a sua bloqueada comunhão” (MACEDO, 2000, p. 68).
100
Ouso dizer que o eu lírico de O lago bloqueado aprende, ao final de seu trajeto,
a saber. “Saber é mais difícil/ que prever/ ou recordar” (MACEDO, 2000, p. 77). Saber
é difícil pois diz do presente, do que verdadeiramente acontece, do que o corpo sente.
Saber é difícil pois é imprevisível, não domesticado, não passível de ser forjado ou
ficcionalizado. Saber é, finalmente, difícil, pois em relação ao outro sabe-se muito
pouco, ou quase nada. “Amar significa abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as
condições humanas, em que o medo se funde ao regozijo num amálgama irreversível”
(BAUMAN, 2004, p. 21), afirma Zygmunt Bauman.
Amar: medo e desejo. Na busca pelo outro o poeta encontra-se lançado ao
turbilhão do desconhecimento radical o corpo do outro em que “cada abraço tece
além do braço/ a teia de problemas que existir/ na pele do existente vai gravando”
(ANDRADE, 2003, p. 475). Mas existir, mesmo sendo fonte de uma “teia de
problemas”, é opção primordial em O lago bloqueado, cujo sujeito lírico desde o início
penetra o lago, mergulhando nas águas desconhecidas, lançando-se àquilo que anseia
por aprender.
Interessante ver como o existir drummondiano aproxima-se do saber macediano.
Tanto o existir como o saber que na verdade, dentro de seus contextos, funcionam
semanticamente quase como sinônimos pressupõem o tempo presente, o instante em
que se dá o acontecimento. É, portanto, em cada ato que o poeta – Helder Macedo – tece
a possibilidade do desbloqueio. Desbloqueios precários que o eu lírico vai conquistando
sem românticas utopias ausentes do peso da realidade. Por isso mesmo eles são
precários, momentâneos e custosos: saber é difícil e existir pressupõe uma teia de
problemas.
Mas o gozo da busca de realização do (im)possível desbloqueio, que é, afinal, o
encontro com o corpo do outro, é aquilo que o poeta mais deseja. O lago bloqueado está
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longe de ser um livro fácil, ou otimista, ou, como afirmei, romântico. Ele talvez
permita ao leitor quando muito alentos camonianamente desesperados. É antes um
livro que encena liricamente a busca de um sujeito pelo outro e pela aprendizagem. É,
assim, um livro que deixa espaço onde se pode aprender com o bloqueio. Afinal, os
momentos felizes não estão escondidos/ nem no passado nem no futuro. Eles estão no
presente: resta sabê-lo e desbloqueá-los .
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