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Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFCH
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS
Programa de Pós-Graduação em História Comparada - PPGHC
Jefferson Eduardo dos Santos Machado
Antônio de Lisboa/Pádua
O Martelo da Igreja Romana
A busca da hegemonia e da reforma de costumes da Igreja Romana
através da pregação dos Frades Menores no Século XIII
Rio de Janeiro
2007
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Jefferson Eduardo dos Santos Machado
Antônio de Lisboa/Pádua
O Martelo da Igreja Romana
A busca da hegemonia e da reforma de costumes da Igreja Romana
através da pregação dos Frades Menores no Século XIII
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação História Comparada, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em História Comparada.
Orientadora: Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Doutora em História Social
Rio de Janeiro
2007
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ii
Ficha Catalográfica
MACHADO, Jefferson Eduardo dos Santos Mahado.
Antônio de Lisboa/Pádua: O Martelo da Igreja Romana. A busca da hegemonia e
a reforma de costumes da Igreja Romana através da pregação dos Frades Menores no
século XIII./ Jefferson Eduardo dos Santos Machado.
Rio de Janeiro: UFRJ/
IFCS/ Programa de Pós-Graduação em História Comparada, 2007.
XI , 139f.,il.
Orientadora: Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Dissertação (mestrado) UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-
Graduação em História
Comparada, 2007.
Referências Bibliográficas: f. 152-170.
1. História Medieval. 2. História Comparada. 3. História da Igreja. 4. Franciscanos. 5.
Antônio de Lisboa/Pádua. 6. Cátaros. 7. Bestiários Medievais. I. Silva, Andréia
Cristina Lopes Frazão da. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, IFCS, Programa
de Pós-
da Igreja Romana. A busca da hegemonia e a reforma de costumes da Igreja Romana
através da pregação dos Frades Menores no século XIII.
iii
FOLHA DE APROVAÇÃO
Jefferson Eduardo dos Santos Machado
Antônio de Lisboa/Pádua
O Martelo da Igreja Romana
A busca da hegemonia e da reforma de costumes da Igreja Romana
através da pregação dos Frades Menores no Século XIII
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação História Comparada, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em História Comparada.
Aprovada em ....... de ...... de 2....
Profª Drª Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva - Orientador
Doutora em História Social - UFRJ
Profª Drª Leila Rodrigues da Silva.
Doutora em História Social – UFRJ
Prof. Sandro Roberto da Costa
Doutor em História da Igreja - ITF
iv
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho primeiro a Deus, autor da vida e responsável maior por tudo que
fazemos e acreditamos. Em segundo lugar, aos meus pais: a minha mãe, que mesmo com
dificuldades sentava-se comigo nas tardes de minha infância para me ajudar a realizar minhas
tarefas escolares. A meu pai, exemplo de dedicação aos estudos, que fez um grande sacrifício
para custear meus primeiros momentos escolares e me presenteou com a minha fonte histórica
principal.
De modo especial a minha amada esposa Rosilene, que por vezes aturou meu mau humor
quando da admissão ao PPGHC e em todo o período de construção do meu trabalho e que me
incentivou e me apoiou com suas orações para que eu conseguisse encerrar mais esta jornada.
E por fim a todo o povo negro e pobre, das periferias de nosso país, que, infelizmente, não
tiveram, tem ou terão acesso ao que alguns privilegiados, como nós, estão tendo e tiveram
durante toda a história do Brasil. Aos nossos irmãos, que são a mola mestra do processo
produtivo e cultural de nossa nação, mas estão cerceados de alçarem vôos mais altos, todo o
nosso respeito e admiração, toda a Paz e todo o Bem!.
v
AGRADECIMENTOS
Assim como dedico esta obra a Deus, gostaria de agradecê-lo por ter me guiado e protegido
durante todo este tempo de pesquisas e estudos.
A toda a família, sem exceções, que sempre tentou ajudar-me com palavras de incentivo e
apoio.
Aos amigos da graduação que me dedicaram uma música na formatura que muito
influenciou no meu próprio modo de pensar a vida. E me deu a possibilidade de imaginar que eu
era capaz de tentar alguns passos maiores na minha caminhada.
Aos irmãos da OFS, JUFRA e MINI-JUFRA, que com sua simplicidade e carinho muito
me ajudaram em toda a minha visão da e do franciscanismo, cruciais para algumas reflexões
que faço em minha pesquisa.
Ao meu amigo César Ferreira, que com seu incentivo e ajuda material foi fundamental para
que eu dinamizasse os meu estudos e armazenasse melhor os meus dados.
A todos os companheiros do PEM, que são verdadeiros guerreiros e lutam para estudar um
tempo histórico que por vezes é visto com preconceito pela academia. Saibam que vocês também
foram muito importantes neste processo.
A Professora Doutora Leila Rodrigues do Programa de Estudos Medievais, que sempre nos
incentivou e nos demonstrou estar feliz com o nosso crescimento intelectual.
vi
A minha orientadora Professora Doutora Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva. Muito
obrigado por tudo que você fez por mim desde a graduação. Saiba que você será uma pessoa
inesquecível em minha vida. Que o Senhor Jesus proteja a você minha irmã, pois você faz bem a
muitas pessoas e isto é uma dádiva. Obrigado!
Ao meu amigo Frei Sandro Roberto da Costa. Obrigado pela grande ajuda e pelo incentivo.
Apesar da distância você ainda faz parte da minha caminhada de forma direta, pois seus
conselhos e orientações ainda ecoam em minha consciência em todos os momentos de nossa
trajetória.
A todos muito obrigado e Paz e bem!
vii
EPIGRAFE
“Felizes os pobres em espírito, porque deles é
o Reino do Céu. Felizes os aflitos, porque serão
consolados. Felizes os mansos, porque possuirão a
terra. Felizes os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados. Felizes os que o
misericordiosos, porque encontrarão misericórdia.
Felizes os puros de coração, porque verão a Deus.
Felizes os que promovem a paz, porque serão
chamados filhos de Deus. Felizes os que são
perseguidos por causa da justiça, porque deles é o
Reino do Céu. Felizes vocês, se forem insultados e
perseguidos, e se disserem todo tipo de calúnia
contra vocês, por causa de mim. Fiquem alegres e
contentes, porque será grande para vocês a
recompensa no céu.”
Extraído do Evangelho de Mateus 5, 1-12.
viii
RESUMO
Antônio de Lisboa/Pádua
O Martelo da Igreja Romana
A busca da hegemonia e da reforma de costumes da Igreja Romana
através da pregação dos Frades Menores no Século XIII
Jefferson Eduardo dos Santos Machado
Orientadora: Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Resumo da Disssertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
História Comparada, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História
Comparada.
O início do século XIII foi marcado por profundas transformações sociais, políticas e
culturais. Dentro desse quadro surge a Ordem dos Frades Menores, que vai ser, com o passar do
tempo, um dos braços fortes de convencimento que a Igreja Romana utilizará, além de outros
mecanismos, para buscar a manutenção de sua hegemonia, tanto no ambiente secular como no
religioso. Dentre esses mecanismos, encontrava-se a promulgação de cânones que visavam
controlar a vida do clero, buscando orientá-los para os assuntos religiosos, dentre eles,6 os
constantes no Lateranense IV. Entre os frades menores que atuaram de maneira marcante para
introduzir no clero, os ideais papais estava Frei Antônio de Lisboa/Pádua, que se ocupou do
serviço de evangelização e conversão, junto aos membros da heresia cátara, e utilizou uma
grande quantidade de representações de animais em sua obra Sermões Dominicais e Festivos,
para o convencimento e melhor entendimento de sua pregação por parte dos fiéis. Essas
representações encontravam-se compiladas em obras, que ficaram conhecidas como Bestiários
Medievais e surgiram na Inglaterra entre os séculos XII e XIII, como compilações de várias
fontes anteriores, tendo como base principal o Physiologus. Esses textos apresentam uma série de
descrições moralizantes de animais reais ou imaginários, que buscavam dar um ensinamento
cristão apoiado geralmente em citações bíblicas. Em nosso trabalho, discutimos o uso da
simbologia dos animais por Antônio, visando o combate à heresia; a disciplina clerical; a
divulgação dos ideais papais e franciscanos e a pastoral dos fiéis leigos.
Palavras Chave: História Medieval, História da Igreja, Franciscanos, Antônio de Lisboa/Pádua,
Cátaros, Bestiários Medievais.
Rio de Janeiro
Agosto/2007
ix
ABSTRACT
Antônio de Lisboa/Pádua
O Martelo da Igreja Romana
A busca da hegemonia e da reforma de costumes da Igreja Romana
através da pregação dos Frades Menores no Século XIII
Jefferson Eduardo dos Santos Machado
Orientadora: Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Abstract da Disssertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
História Comparada, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História
Comparada.
The beginning of the eighteenth century was characterized by social, political and cultural
changes. It is in this scenario that appears the Order of Friars Minor, which, after some time,
becomes a relevant means of convincement among the several mechanisms used by the Roman
Church to maintain its hegemony both in the secular and in the religious realms. One of these
mechanisms was the promulgation of canon laws which were aimed at controlling the life of the
clergy and attempted to guide them in religious issues, including the ones in Concilium
Lateranense IV. Among the friars minor who had striking participation in the process of bringing
papal ideas into the clergy was Friar Anthony of Lisbon/Padua, who strived for the
evangelization and conversion of the Cathar heretics and used a big number of representations of
animals in his work Sunday Sermons to achieve better understanding and convincement by his
listeners. These representations were compiled in works known as Medieval Bestiaries. They first
appeared in England between the 12
th
and 13
th
centuries, as compilations of several previous
sources and based mainly on the Physiologus. These texts present a series of moralizing
descriptions of real or imaginary animals, often accompanied by biblical quotations, with the
intention of offering people proper Christian teaching. In this dissertation I will discuss
Anthony’s use of animal symbology in the fight against heresy; the clerical discipline; the
dissemination of papal and franciscan ideals and the pastoral work of laypeople.
Key Words: Medieval History of Church, Franciscans, Anthony of Lisbon/Padua, Cathars,
Medieval Bestiary
x
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 1
CAPÍTULO I: Antônio de Lisboa/Pádua e sua obra Sermões: Balanço Bibliográfico......... 16
CAPÍTULO II: Antônio e sua trajetória até Cônego Regrante.............................................. 24
CAPÍTULO III: Antônio entre os Frades Menores ................................................................. 38
CAPÍTULO IV: Os Sermões Antonianos: simples ou doutos? ............................................... 48
4.1 CARACTERÍSTICAS DOS SERMÕES ANTONIANOS..................................................... 48
4.2 OS SERMÕES DA QUARESMA ....................................................................................... 66
4.2.1 Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma ................................................................ 69
4.2.2 Sermão do Segundo Domingo da Quaresma................................................................. 71
4.2.3 Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma................................................................. 77
4.2.4 Sermão do Quarto Domingo da Quaresma................................................................... 82
4.2.5 Sermão do Quinto Domingo da Quaresma ................................................................... 85
CAPÍTULO V: A Igreja, a sociedade e os animais, segundo Antônio.................................... 91
5.1 O QUE DIZIAM OS BESTIÁRIOS .................................................................................... 91
5.1.1 Asno/Onagro .................................................................................................................... 94
5.1.2 Cão .................................................................................................................................... 95
5.1.3 A corça e o veado ............................................................................................................. 96
5.1.4 Leão................................................................................................................................... 98
5.1.5 Rinoceronte/Unicórnio .................................................................................................... 99
5.1.6 Abutre ............................................................................................................................. 101
5.1.7 Águia ............................................................................................................................... 103
5.1.8 Avestruz.......................................................................................................................... 105
5.1.9 Calhandra/Carádrio...................................................................................................... 106
5.1.10 Cisne................................................................................................................................ 107
xi
5.1.11 Falcão.............................................................................................................................. 108
5.1.12 Grou ................................................................................................................................ 109
5.1.13 Pavão............................................................................................................................... 111
5.1.14 Pelicano........................................................................................................................... 111
5.1.15 Áspide.............................................................................................................................. 113
5.1.16 Dragão............................................................................................................................. 114
5.1.17 Abelha ............................................................................................................................. 116
5.1.18 Aranha ............................................................................................................................ 117
5.1.19 Gafanhoto ....................................................................................................................... 118
5.1.20 Sanguessuga.................................................................................................................... 118
6.1.21 Lâmia .............................................................................................................................. 118
5.2 A PREGAÇÃO ANTONIANA E OS ANIMAIS ................................................................ 119
5.2.1 Condenação aos Hereges............................................................................................... 120
5.2.2 Condenação aos Religiosos Pecadores ......................................................................... 124
5.2.3 Condenação aos Fiéis Pecadores .................................................................................. 138
5.2.4 Orientação para a Confissão......................................................................................... 144
CONCLUSÃO............................................................................................................................ 149
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................... 153
1 - Textos Medievais Impressos................................................................................................... 153
2 - Obras de Caráter Teórico-metodológico............................................................................... 153
3 - Obras Gerais.......................................................................................................................... 154
4 - Obras Específicas................................................................................................................... 156
ANEXO....................................................................................................................................... 159
1
INTRODUÇÃO
Antônio de Lisboa/Pádua, o primeiro mestre de teologia franciscano, nasceu em Lisboa
entre 1190 e 1195. Em Portugal, estudou na escola episcopal da de Lisboa, no Mosteiro de
São Vicente de Fora e no maior de todos os mosteiros da região em seu período: o de Santa Cruz
de Coimbra. Tornou-se cônego regrante de Santo Agostinho e sacerdote.
Segundo Caeiro, cônego Fernando, após alguns anos de vida religiosa regrante, passou
a ter problemas em conciliar o que aprendera em seus estudos e leituras com o cotidiano da vida
religiosa, ou seja, os regrantes já não viviam tal como ordenava a sua Regra. Após alguns
contatos com os Irmãos Menores, que sempre iam mendigar no mosteiro em que vivia, acabou
podendo confrontar as duas formas de trilhar os caminhos do Evangelho.
1
Tal confrontação ficou
ainda mais latente quando passaram por Portugal os primeiros mártires franciscanos que tinham
tido como destino final o Marrocos. Como o lisboeta pôde conhecê-los antes de sua ida,
certamente ficou impactado com o retorno de seus restos mortais, que foram enterrados em Santa
Cruz, e quis imediatamente tornar-se frade menor.
Como franciscano, Antônio distinguiu-se por sua pregação contra os excessos dos
religiosos e como combatente voraz das idéias contestadoras da Igreja, principalmente as
pregadas e praticadas pelos cátaros, aos quais ele dedica boa parte de seu apostolado, com o
objetivo de convencê-los a retornar ao seio da Igreja Romana. A sua fama de bom pregador e
servidor da Santa Sé fez com que Francisco de Assis o nomeasse o primeiro mestre de teologia da
Ordem dos Frades Menores. Sua principal incumbência passou a ser a formação de um novo
2
modelo de pregador franciscano, que ao invés de utilizar-se do seu exemplo pessoal, pudesse
contar com um arcabouço intelectual que melhor o fundamentasse contra o grupo herético em
questão, que possuía membros bem instruídos e preparados para debater intelectualmente sobre
suas crenças e criar embaraços aos novos religiosos.
Dentro deste ideal de formar novos pregadores para a ordem, o frade começou a redigir
sua maior obra: os Sermões Dominicais e Festivos. Os Dominicais foram escritos entre 1227 e
1230 e os Festivos, entre o outono e o inverno europeu de 1230-1231. Esses sermões não foram
exatamente os que Antônio pregou, pois trata-se na verdade, de um manual para pregadores da
ordem e que poderia ser consultado por leigos cultos e religiosos de outras instituições. Seus
propósitos nessa obra são essencialmente religiosos e morais. Os Sermões apresentam-se, então,
como um guia prático que, ao mesmo tempo, é uma compilação teórica, doutrinária e um tratado
moral, contendo informações de um mestre experiente no ofício da pregação.
Em nossa monografia de conclusão da graduação em História, mostramos que a obra
de Antônio estava, de certa forma, direcionada pelos cânones de Lateranense IV. Em nossa
pesquisa atual, vamos mais além: queremos entender como o frade construiu um discurso contra
a heresia e a favor da correção dos religiosos e de toda cristandade, visando à implementação
prática dos cânones de tal concílio.
O franciscano utilizou em suas obras a pregação moralizante, tomando como base para
as suas alegorias e simbologias as características dos animais. Em sua obra sermonária, Antônio
citou 99 bestas diferentes,
2
em sua grande maioria com a finalidade de exercitar a exempla,
prática muito comum nos textos medievais. O que nos chama atenção é que muitas daquelas
características são humanas, muitos destes animais são de regiões longinquas da Europa e,
1
CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa: Introdução a Obra Antoniana, Lisboa: Casa da Moeda, 1968. p. 145.
2
Em anexo encontra-se uma tabela que apresenta esses animais.
3
portanto, distante da realidade do autor, e outros nem existem. Por isso, direcionamos nosso olhar
para as obras conhecidas como Bestiários Medievais, que foram de grande circulação entre
aqueles que viveram no período.
Michael Arnott e Iain Beavan definem o gênero literário chamado Bestiário como uma
coleção de descrições curtas que tratava do que se entendia como características dos animais na
Idade Média, fossem eles reais ou imaginários, incluindo dados sobre plantas e pedras,
acompanhados por uma explicação moralizante.
3
Dessa forma, segundo esses autores, tais obras
não podem ser classificados e interpretados como textos “científicos”.
Os bestiários, como são conhecidos por nós hoje, surgiram na Inglaterra nos séculos
XII e XIII, como uma compilação de várias fontes anteriores, tendo como base principal o
Physiologus. Este texto constituía-se de uma série de descrições moralizantes de animais reais ou
imaginários, que buscavam dar um ensinamento cristão apoiado geralmente, em citações bíblicas.
A finalidade da obra era a exposição das características dos animais como exempla.
4
Tais obras
tornaram-se muito populares em seu período, pois seus relatos eram divertidos e as ilustrações,
criativas, feitas para serem ferramentas didáticas a fim de auxiliar os não cultos a aprenderem as
lições de forma mais abrangente.
Todas as criaturas tiveram o mesmo tratamento nos Bestiários, fossem elas animais,
plantas ou pedras reais ou imaginárias, porque a moral da história era o que deveria ser focalizado
e apreendido pelo homem medieval. Como não havia nenhuma maneira de verificar os fatos, não
havia nenhuma razão para que o leitor duvidasse da existência das criaturas citadas, cujos nomes
e características originavam-se de fontes consagradas, como Aristóteles e Plínio.
3
ARNOTT, M., BEAVAN, I., GEDDES, J., The Aberdeen Bestiary: an Online Medieval Text. Computers & Texts, n. 11,
1996. Disponível em http://www.clues.abdn.ac.uk:8080/besttest/firstpag.html. consultado 27/07/2007.
4
The Medieval Bestiary. Disponível em http://bestiary.ca/index.html. Consultado em 27/06/2007.
4
Ao contemplarem a natureza, os homens medievais procuravam interpretações
alegóricas e simbólicas, a fim de perceber nelas uma instrução moral para conhecer a conduta
correta que os homens deveriam ter, como tudo a sua volta. Vale destacar que, para os medievais,
cada elemento da natureza era visto como um microcosmo de uma ordem maior, na qual todos se
integravam: o cosmo. Assim, acreditava-se inclusive, que os nomes das criaturas tinham
significado, tanto que as etimologias ganharam grande ênfase no medievo.
5
Antônio, como a maioria dos pregadores e intelectuais do período, lançou mão de
Bestiários ao compor sua obra Sermões. A partir dessa constatação, desejamos discutir: porque
Frei Antônio acreditava que tal modo de representação atingiria de forma mais eficaz os
religiosos, seu público alvo? Que aspectos do universo clerical de seu período são tratados nessa
obra? Será que ao tratar dos religiosos o frade faz alguma distinção? Como os hereges são
retratados? Apesar da fidelidade às diretrizes da Igreja Romana, do caráter pedagógico de sua
obra Sermões e do conjunto de livros consultados pelo autor para compô-la, porque Antônio de
Pádua/Lisboa não é considerado como um expoente da Escola Franciscana pelos especialistas?
Como deveria ser o comportamento da cristandade ocidental a fim de que seus componentes
chegassem à salvação?
Através desses questionamentos, nossos principais objetivos, ao desenvolver a
pesquisa, foram: analisar a obra de Antônio de Lisboa/Pádua a partir de uma comparação com os
Bestiários Medievais; identificar e analisar como o frade português entendia a cristandade de seu
tempo, principalmente o ambiente clerical, permeado de diferenças quanto ao modo de viver a
vida religiosa; analisar as estratégias discursivas utilizadas pelo frade para desqualificar os
hereges e aquelas que ele emprega em relação aos que via como pecadores; demonstrar que o
5
Isidoro de Sevilha, bispo que atuou no século VII no reino visigodo, foi um dos grandes marcos no desenvolvimento do
gênero. Sua obra Etymologias, foi consultada e estudada durante todo o medievo.
5
discurso Antoniano não é único e que está inserido no discurso hegemônico, moral e dogmático
da Igreja e do imaginário medieval, e compreender porque o frei Antônio é renegado como
intelectual, buscando debater o conceito de intelectual medieval e o uso dos Bestiários Medievais
no período.
Para alcançar os objetivos propostos acima, trabalhamos com três grupos de fontes
medievais distintas. No primeiro estão os Sermões Dominicais e Festivos,
6
que é uma obra
composta de duas partes distintas: Na primeira figuram os Sermões Dominicais, que somam 53
sermões e que foram escritos em Pádua durante o triênio em que frei Antônio foi Ministro
Provincial do norte da Itália (1227 1230). A esses estão agregados mais quatro sermões para as
festas marianas, colocados logo após o sermão para o décimo segundo domingo depois de
Pentecostes. A partir do fim de 1230, o frade iniciou a confecção da segunda parte, os sermões
festivos, que foram escritos a o agravamento de sua doença, que o levou a morte em 1231.
Antônio escreveu-os a partir das ordens de Rainaldo de Jenne, Cardeal de Óstia, que viria a se
tornar o papa Alessandro IV.
7
Contudo, sua saúde o permitiu escrever vinte sermões, indo até
a festa de São Paulo, que ocorre no dia 30 de junho.
Além do pedido do Cardeal, frei Antônio nos informa no Prólogo da sua obra, que esta
fora produzida “para a honra de Deus, edificação das almas e consolação, tanto dos leitores como
dos ouvintes, e que a tal fora compelido pelos rogos e caridade dos seus confrades”.
8
que
destacar que com a autorização de Francisco para o ensino de Teologia na Ordem e a criação
entre o ano de 1223 e 1224 da escola de teologia dos menores em Bolonha, Antônio passou a ser
6
REMA. Henrique Pinto. Introdução. In:___. (Gd) Santo Antônio de Lisboa. Obras Completas: Sermões Dominicais e
Festivos.. Porto: Lello & Irmão, 1987. p. XXVI.
7
Esta informação foi encontrada no site www.mensageirosdesantoantonio.com.it. Consultado em: 27/07/2007.
8
REMA. Henrique Pinto, loc. cit.
6
o protagonista de uma grande mudança no modo de atuação da Ordem dos frades menores,
9
que
deixaram de ser simples pregadores itinerantes a repetir versículos a impressionar pelo exemplo,
uma vez que andavam maltrapilhos e a mercê das intempéries, passando a ser grandes pregadores
e destacados intelectuais. Logo, era necessário produzir materiais para o estudo e consulta dos
frades a fim de fornecer apoio na elaboração das suas pregações.
Ao compor seus Sermões, Antônio segue uma determinada ordem. Primeiro expõe o
texto sagrado, normalmente extraído da liturgia da palavra,
10
obedecendo ao ciclo temporal ou à
festividade celebrada, segundo o sentido literal e as diferentes aplicações espirituais: alegórica,
moral e mística. Em seguida, apresenta o sermão propriamente dito, que se compõe do prólogo,
da exposição do tema e do epílogo, todo concebido como instrumento para expor a doutrina e
exortar aos ouvintes para aplicá-la na vida. Depois, segue o uso que se faz da Bíblia na liturgia;
comenta, em cada sermão, nada menos do que quatro argumentos, tomados da Bíblia: uma
narração do Antigo Testamento proposta pelo oficio divino, o intróito, a epístola e o Evangelho
tomados da missa dominical. Dessa maneira, no transcurso de um ano, poderia tratar de
praticamente toda a Sagrada Escritura.
11
Em seus Sermões, Antônio fala da e dos bons costumes. O frade ensina a pastoral
aos pregadores: como deveriam ensinar aos fiéis a doutrina do evangelho e administrar os
sacramentos, sobretudo a penitência e a eucaristia. Ao fazer isto, recorre à ordem, à persuasão, ao
ensinamento e também a uma forte repreensão. Com freqüência uniu o ensino à exortação.
Primeiro ensina quais deveriam ser os costumes dos sacerdotes e dos prelados e, portanto, expõe
9
HARDICK, Lothar. Santo Antônio: Vida e Doutrina. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 14.
10
De acordo com Fernando da Costa Bernardino Marques, em sua obra O Prólogo aos Sermões Dominicais de Santo
Antônio de Lisboa, a Bíblia constitui o tema no sermonário medievo. MARQUES, Bernardino Fernando da Costa. O
Prólogo aos Sermões Dominicais de Santo Antônio de Lisboa. In: AAVV. CONGRESSO INTERNACIONAL
PENSAMENTO E TESTEMUNHO. Atas.... Braga: UCP/FFP, 1996. p. 477-484.
11
CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Introdução a Obra Antoniana. Op. cit. p. 158.
7
quais eram os comportamentos cotidianos esperados. Depois questiona àqueles, que mesmo
conhecedores dos erros cometidos, continuavam a praticar tais mazelas. Dessa forma, sempre
depois da exposição dos deveres, segue à desaprovação dos vícios. Não podemos precisar se
Antônio se referia a fatos ou à pessoas isoladas, porém, o que podemos constatar é que suas
palavras são severas e precisas.
Com certa freqüência, Antônio trata de assuntos relacionados à sociedade secular e à
eclesiástica. Na sociedade secular, aponta que existe uma distinção entre as diferentes classes de
pessoas: o imperador, os reis, os militares, os burgueses ou cidadãos; os maiores e os menores, os
ricos poderosos e os pobres; os mercadores, legistas ou decretistas. Na Igreja, aparecem os
prelados e seus súditos, quer dizer, os bispos e seus fiéis; os justos, ou seja, os fiéis praticantes, os
hereges e os cismáticos; os falsos cristãos e os simoníacos. Junto aos fiéis, se encontram depois
os sarracenos e os judeus. Os clérigos são apresentados segundo sua forma de vida: eremitas,
monásticos, penitentes ou clérigos, religiosos e seculares. O franciscano formula juízos sobre
essas duas sociedades, a secular e a eclesiástica, porém sempre em relação com os costumes, e
seu juízo sobre a situação do seu tempo é de severa condenação: “os costumes são depravados!”.
12
Seu modo de escrever os Sermões é bem distinto dos escritos deixados pelo fundador
da Ordem dos Frades Menores e dos relatos daqueles que acompanharam o nascer do ideal de
vida franciscano. Quem buscar ali a ingênua expressão franciscana das origens pode ficar
desiludido. Contudo, segundo Caeiro, a natureza franciscana está presente, traduzida em termos
bíblico-patrísticos, em um latim matizado e refinado, em uma expressão lacônica, passional e de
muita imaginação.
13
Palpita dentro dos Sermões, uma grande paixão pela penitência e a
12
CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Introdução a Obra Antoniana. Op. cit. p. 158.
13
Ibidem, p. 159.
8
predileção pelos humildes, os pobres, os simples, os marginais, pela salvação daqueles a quem o
frade português se entregou completamente. Está presente o ardor pela incessante e radical
reforma da Igreja e de seus pastores, expressada em uma linguagem veemente, indignada, às
vezes candente, em outras desolado. Dentro da obra, encontra-se também um sentimento de
ternura ao Jesus menino e crucificado. No artigo Cristocentrismo no pensamento Antoniano, o
historiador português João Mário Soalheiro Costa
14
afirma que “Cristo afigura-se, com efeito,
como horizonte de compreensão e chave hermenêutica do discurso antoniano. Certamente, que
não é a única perspectiva de análise, mas é indelevelmente a que marca a inteligibilidade dos
Sermões.” Observamos ali o desejo da perfeição cristã, da separação das velhas e falsas
realidades terrenas, do amor pela Virgem da pobreza, a nostalgia pelo céu. A forma resulta então
em ampla dívida da tradição cultural da Igreja, enquanto os conteúdos estão vitalmente
impregnados de sensibilidade franciscana, aquela primavera espiritual da qual Antônio foi um
dos maiores protagonistas.
Porém, ao nos debruçarmos nos relatos sobre o movimento franciscano do primeiro
século e ao lermos os Sermões, podemos observar que graças à difusão dos estudos sagrados,
implementou-se uma profunda transformação nos menores, com conseqüências imprevisíveis e
também revolucionárias para a fraternidade e para o ideal originário do movimento seráfico.
15
De
uma corrente espontânea, caracterizada por uma absoluta sensibilidade e pobreza, os menores se
converteram, com o passar dos anos, mantendo a preocupação de não renegar as pegadas
primitivas impressas por Francisco, numa corporação de doutos, uma expressão entre as mais
importantes da “inteligência” do medievo ocidental. Nesta transformação, através de nossa
14
COSTA, João Mário Soalheiro. Cristocentrismo no pensamento antoniano. In: CONGRESSO INTERNACIONAL
PENSAMENTO E TESTEMUNHO: 8º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE SANTO ANTÔNIO. Atas... Braga:
Universidade Católica Portuguesa, 1996, p. 255.
15
Esta informação foi encontrada no site Mensageiros. de Santo Antônio. Disponível em http/
www.mensageirosdesantoantonio.com.it. Consultado em : 20/10/2005.
9
análise, desejamos demonstrar que Antônio foi o pioneiro, contribuindo com toda a riqueza da
sua formação monástica agostiniana e com a preocupação com a preparação intelectual dos
frades, o que mais tarde ficará conhecido pelos teóricos como “Escola Franciscana”.
No segundo grupo de fontes estão os Bestiários Medievais. Estes, tal como informamos
anteriormente, surgiram na Inglaterra nos culos XII e XIII, como uma compilação de várias
fontes anteriores. Apesar da grande importância de vários autores antigos, como Aristóteles
16
e
Plínio
17
, que escreveram sobre animais, o grande modelo para os Bestiários Medievais,
principalmente no século XIII, período no qual nos centraremos nesta dissertação, foi a obra
conhecida como Physiologos, onde são ressaltadas características de cerca de cinqüenta animais,
associadas à citações bíblicas, e que contém informações de outros autores. Na verdade, tal obra
tinha como base uma tipologia cristã dos animais, sua intenção era a associação de uma imagem
zoológica à idéia cristológica. Esse texto foi escrito na Grécia, provavelmente, em Alexandria
18
e
foi usado como um veículo para explicar os dogmas do cristianismo. Suas histórias m como
fonte textos muito antigos, tais como Indianos, Hebreus e Egípcios, além das obras de vários
filósofos. O Physiologus obteve tão grande circulação que foi traduzido na maioria das línguas da
Europa e da Ásia ocidental, tais como: o sírio, o armênio, o etíope, e, finalmente, o latim no
século IV. Diz-se ainda que apesar de ser um livro relativamente grande, o que dificultava o seu
transporte, foi o mais distribuído na Europa após Bíblia.
19
16
No IV século a.C. Aristóteles procurou sintetizar o conhecimento zoológico do período na sua História dos Animais,
primeira síntese conhecida sobre os conhecimentos zoológicos.
17
A obra Naturalis de Plínio, o Velho, inspirada na obra História dos Animais de Aristóteles, tinha entre seus capítulos
VIII e XI a preocupação com zoologia e é considerada a via essencial de transmissão entre Aristóteles e os Bestiários
medievais.
18
Esta informação foi encontrada no site Bestiário Aragonés , disponível em www.aragonesasi.com/bestiario. Acesso em :
15 15/03/2007.
19
Esta informação foi encontrada no site The Medieval Bestiary: Animals in the Middle Age. Disponível em
http://bestiary.ca/articles/oe_physiologus/old_english_physiologus.htm. consultado em: 25/07/2007.
10
Para a análise dos bestiários, utilizamos a obra organizada por Ignácio de
Malaxeverria, Bestiário Medieval, que é uma compilação de várias obras elaboradas no Medievo.
Outro texto que será fundamental em nossa pesquisa é a obra Bestiarie de Christ, do francês
Louis Charbonneau - Lassay, que aborda a simbologia dos animais na tradição cristã.
A terceira fonte sobre a qual iremos nos debruçar são os Decretos do IV Concílio de
Latrão, obra datada de 1215, que é de natureza jurídica e coletiva, pois se trata de um código
canônico resultante de uma assembléia universal de prelados católicos. O IV Concílio de Latrão
foi reunido em 1215 e convocado pela Bula Papal Vienan Domini Sabaoth de 10 de abril de
1213. Nele, reuniram-se tanto lideranças eclesiásticas como laicas da Sicília, Constantinopla,
Gália, Inglaterra, Hungria, Aragão, Jerusalém, e Chipre,
20
sendo realizado sob o governo de
Inocêncio III.
Segundo Andréia Frazão da Silva, os cânones de Latrão são uma legislação que resulta
do trabalho de um conjunto de juristas, que detinham um grau elevado de conhecimento do
direito canônico e romano, e foram influenciados pela política eclesiástica do papado.
21
O concílio contou com a participação de cerca de 1200 pessoas, estando ali
representadas mais de 80 províncias eclesiásticas de toda a Europa. Nos 70 cânones que foram
resultado das três sessões plenárias
22
ocorridas durante a assembléia, fica marcada a busca de um
maior controle moral, social e doutrinário por parte da instituição em relação a todos os seus
membros. Para a concretização desde plano, dentre outras iniciativas, a Igreja instituiu a
obrigatoriedade de certos sacramentos e normalizou a vida dos religiosos de modo geral,
elucidando várias obrigações que esses teriam que realizar. Tais anseios da Igreja estão
20
SAYERS, J. Innocent III. Leader of Europe 1198 - 1216. London: Longman, 1994, p.96.
21
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. O IV Concílio de Latrão: Heresia, Disciplina e Exclusão. Disponível em:
www.ifcs.ufrj.br/~pem/html/Latrao.htm. Consultado em 25/07/2007.
22
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da, loc. cit.
11
abordados em cânones que tratam de questões relacionadas às “heresias, ao governo eclesiástico,
à correção dos costumes, à formação dos clérigos, ao ministério pastoral, aos sacramentos, ao
casamento e aos excluídos – judeus e muçulmanos”.
23
que salientar que este Concílio definiu o perfil do cristão ocidental ideal para os
próximos três séculos após sua reunião e preocupou-se em se reorganizar e aprimorar o clero,
cuja doutrina e disciplina eram tradicionalmente objetos de análise em concílios. Antônio de
Pádua/Lisboa, como outros os religiosos e leigos de sua época, certamente foi influenciado pela
atmosfera e decisões que foram tomadas naquela reunião.
Quanto às técnicas de análise que foram empregadas em nossa pesquisa, os Sermões
foram observados em perspectiva sincrônica, ou seja, à luz dos Decretos do IV Concílio de
Latrão e dos Bestiários que lhes são contemporâneos. Em nossa pesquisa, discutimos como
Antônio realiza uma transposição com o objetivo de transformar a enunciação de caráter oficial e
jurídico da Cúria Romana em uma enunciação de caráter religioso e moral. Ou seja, ele faz uma
leitura dos cânones, incorpora o discurso nela presente e o reintroduz em sua própria enunciação,
empregando os materiais presentes nos bestiários.
Nossas investigações utilizaram o arcabouço teórico da Análise do Discurso, uma vez
que para nós, toda obra humana seja escrita, iconográfica ou qualquer outra produção de cunho
cultural, faz parte de um conjunto de expressões que estão inseridas em um determinado modo de
ver o mundo, que não é próprio de cada um, mas sim da sociedade, das instituições ou de
qualquer grupo ao qual seu produtor pertence.
Segundo Foucault, discurso é um conjunto de enunciados na medida em que eles
provêm da mesma formação discursiva; de um tipo de discurso; das produções verbais
específicas; de uma categoria de locutores; e de uma função da linguagem.”(1969: 53) Dessa
23
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da, loc. cit.
12
forma, em nosso trabalho, os textos em questão serão considerados parte de formas próprias do
dizer por tratar-se de uma formação discursiva que tem como nascente a predica dos religiosos da
Igreja Romana. Podemos, a partir da afirmação de Foucault, entender que determinado
personagem histórico tem um discurso que segue características de outros discursos, pois o seu
autor faz parte de grupos que possuem “produções verbais específicas”, linguagens com função
determinada e locutores que têm uma categoria específica.
Outra característica marcante do discurso é que ele é orientado não por ser
concebido em função do propósito do locutor, mas porque ele se desenvolve no tempo: é feito em
função de um fim. No caso dos Sermões, podemos constatar que se trata de uma obra que tem
como propósito o alcance dos membros da cristandade medieval, a fim de orientá-los tanto
moralmente quanto nos caminhos necessários para se chegar à salvação, fim principal, de um
modo geral, dessas duas formas de texto medieval.
Através da narração e comparação dos atributos dos animais como exempla, ou seja,
como algo para orientar o modo como os cristãos conduziriam a vida, os religiosos, em nosso
caso Antônio, buscavam ser entendidos por aqueles que iriam receber a mensagem, os fiéis.
Utilizamos aqui os pensamentos e conclusões de Eni Puccineli Orlandi, que defende que as
condições de leitura são constituídas na relação das posições histórica e socialmente
determinadas, nas quais o simbólico (lingüistico) e o imaginário (ideológico) se juntam. Saber ler
significa ler o que o texto diz e o que ele não diz, mas o constitui significativamente. Os sentidos
de um texto estão determinados pela posição que ocupam aqueles que o produzem, ou seja, os
que emitem e os que lêem.
24
24
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 4 ed. Campinas, São Paulo: Pontes, 2002. p.
30.
13
Ainda segundo Orlandi, a produção de um texto não tem como ponto de partida a
vontade do autor de expressar-se, mas que nasce de outros discursos. Para a autora todo discurso
nasce de um e aponta para outro. Por isso não se trata de um discurso e sim de um continuum,
que é resultado de processos discursivos sedimentados.
25
Mesmo assim, ela expõe que as palavras podem mudar de sentido ao passarem de uma
formação discursiva para outra, pois muda sua relação com a formação ideológica. Sendo assim,
apesar de Antônio ter sido um religioso que construiu um discurso que expressa uma certa
continuidade com o da Instituição Romana, pertencia também ao movimento franciscano e, por
isso, possuía convicções que deram um outro tom ao seu discurso. Essa forma de apropriação,
como podemos ver no caso específico do frade português, não é um fenômeno individual. Na
verdade esta ela é social. Dessa forma, existe também um discurso franciscano que faz parte de
suas experiências pessoais.
Quem produz a linguagem está reproduzido nela e acredita ser a fonte exclusiva de seu
discurso, quando o que acontece é a retomada de sentidos preexistentes, que é chamado por
Orlandi de “ilusão discursiva do sujeito”.
26
Para ela, o dizer não é domínio do locutor, pois tem a
ver com as condições em que se produz e com outras diretrizes, isto é, o dizer tem sua história.
27
Queremos, dessa forma, afirmar que o discurso de frei Antônio nasce dos objetivos da Igreja
Romana de criar um modelo de religioso, dos compromissos e ideais franciscanos e da leitura dos
bestiários, que são a ferramenta que o frade usa em alguns momentos de seu discurso para fazer
sua pregação de “reforma do clero”. Essa constatação nos a possibilidade de, assim como
Orlandi, caracterizar o discurso antoniano como continuum em relação aos discursos da
25
Ibidem, p. 35.
26
Ibidem, p. 40.
27
ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez – Editora-Unicamp, 1988. p. 54.
14
instituição a que pertencia e das obras que tratavam de elucidar as características dos animais em
pleno século XIII.
Como ponto de partida, desenvolvemos algumas hipóteses. A nossa principal fonte,
Sermões, objetivando ser um manual a serviço dos pregadores, é fruto da formação intelectual de
Antônio. Reconhecemos que suas metáforas de animais, que são utilizadas como exempla,
provêm da leitura direta dos bestiários medievais, obras produzidas e lidas pelos intelectuais da
época. Queremos mostrar, também, que estas metáforas visavam apresentar, de forma didática, os
ensinamentos morais e doutrinários que deveriam, segundo a perspectiva da Igreja, nortear a vida
de clérigos e leigos. Tais metáforas, como exempla, poderiam ser usadas, posteriormente, nas
pregações dos franciscanos estudiosos de sua obra.
Gostaríamos ainda de sublinhar que toda a radicalidade encontrada nas linhas da obra
antoniana tinha como principais fontes geradoras as suas experiências pastorais durante o
processo de expansão dos Menores, ocorridas dentro de um ambiente de profunda rivalidade
entre os Mendicantes, o clero das igrejas locais e os religiosos das antigas ordens e desses com os
cátaros.
Por fim, apontamos como última hipótese que Antônio, mesmo sem ter cursado
qualquer instituição universitária de forma regular, até porque estas ainda encontravam-se em
processo de afirmação como detentoras e produtoras do saber no início do século XIII, pode ser
considerado o primeiro grande intelectual da Ordem dos Frades Menores, já que foi o pioneiro
em preocupar-se com a fundação de escolas e em reunir o conjunto de saberes eruditos de sua
época e traduzi-los em forma de Sermões para uso dos seus irmãos mendicantes.
15
Nosso trabalho foi organizado em cinco capítulos, além da Introdução e da Conclusão,
e formatado a partir do Manual para Elaboração e Normalização de Dissertações e Teses
da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
28
No primeiro capítulo intitulado Antônio de Lisboa/Pádua e sua obra Sermões: Balanço
Bibliográfico, citaremos alguns dos principais trabalhos de antonianistas e especialistas em
franciscanismo que tratam de temas relacionados aos discutidos em nossa dissertação. O segundo
capítulo, que intitulamos como Antônio e sua Trajetória até Cônego Regrante, trataremos da vida
do frade português ainda em terras lusas, quando estudou em instituições regulares de ensino e
construiu parte de sua bagagem intelectual.
No terceiro capítulo, que chamei de Antônio Entre os Frades Menores, lançaremos um
olhar sobre sua vida depois de sua decisão de trocar os Agostinianos pelos Menores. Trataremos
de forma mais específica do período em que foi mestre de teologia e realizou seu trabalho de
pregação pelo sul da França e norte da Itália.
Nos dois capítulos posteriores, faremos nossa análise da obra Sermões de forma mais
direta. Buscamos no capítulo quatro, Os Sermões Antonianos: Simples ou Doutos?, realizar uma
análise da forma como foi construída a sua obra e uma apresentação dos Sermões da Quaresma,
que foram escolhidos como objetos de nossa análise. No quinto capítulo, faremos a análise
comparativa entre os Sermões, os livros das bestas e os cânones do IV Concílio de Latrão.
28
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, SISTEMA DE BIBLIOTECAS E INFORMAÇÃO, Manual de
elaboração e Normalização de Dissertações e Teses. Série Manual de Procedimentos, N.º 5.Rio de Janeiro: UFRJ/SIBI,
2004. 102p.
16
CAPÍTULO I
Antônio de Lisboa/Pádua e sua obra Sermões:
Balanço Bibliográfico
Desde o início de nossas pesquisas, não conseguimos encontrar uma bibliografia que
tratasse especificamente da utilização dos Bestiários Medievais por Antônio de Lisboa/Pádua,
nem da análise da criação de um modelo clerical na obra antoniana. Dessa forma, neste capítulo,
apresentaremos trabalhos de alguns autores que trataram especificamente da formação e da
produção intelectual do frade português, da utilização de elementos da natureza em sua obra, da
realidade sócio-cultural em torno da existência de nosso personagem e da função assumida pelos
Frades Menores junto aos fiéis, que encontravam-se a mêrce das idéias que contestavam a
hegemonia católica, temas que discutimos nessa dissertação.
Francisco da Gama Caeiro, filósofo e historiador português que é considerado um dos
maiores estudiosos da obra antoniana, é autor da obra Santo Antônio de Lisboa: Introdução à
Obra Antoniana,
1
na qual procura, em primeiro lugar, compreender o pensamento de Antônio à
luz do momento histórico em que esse viveu. Assim, para entender a obra do frade, o autor
percorre todo o caminho da formação cultural e intelectual antoniana, fazendo uma análise dos
fundamentos filosóficos e teológicos que permearam a obra do frei. O estudioso também
preocupa-se com a estrutura e a maneira como foram escritos os Sermões.
1
CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa: Introdução a Obra Antoniana, Lisboa: Casa da Moeda, 1968.
17
Caeiro, como português, tem uma forte preocupação em transferir para sua pátria os
louros de ter preparado intelectualmente Antônio, uma vez que há uma grande disputa entre as
cidades de Pádua e de Lisboa pelo domínio do legado Antoniano. Dessa forma, o autor faz o
levantamento do possível acervo da biblioteca de São Vicente de Fora e de Santa Cruz de
Coimbra nos séculos XII e XIII, a fim de confirmar, através de comparações com os Sermões,
que a construção desse texto tem como influência principal as leituras feitas durante os anos de
estudo do frade em Portugal.
Roberto Ruiz, museólogo, professor universitário, formado pela Universidade do Rio
de Janeiro, informa, em sua obra Antônio o Santo que Falava Português, que “apesar da grande
intelectualidade, Antônio foi julgado insuficiente em seu conhecimento teológico pelos frades
que queriam mandá-lo em missão contra os cátaros”.
2
Dessa forma, ordenaram que ele
aprimorasse os seus conhecimentos em tal área, estudando um período com o abade do mosteiro
agostiniano junto à basílica de Santo André em Vercelli, Tomás Gálus. Este autor, portanto, vai
de encontro às pretensões da obra de Caeiro, que apesar de citar Tomas Gálus, informa que os
dois eram simplesmente amigos e dialogavam sobre teologia, sem afirmar que Antônio foi por
certo tempo aluno desse abade.
Lothar Hardick, em sua obra Santo Antônio: Vida e Doutrina,
3
trata da importância da
missão junto aos cátaros para a construção dos sermões e para a vida de Antônio. Essas
experiências entre os hereges e as vividas no seu apostolado, segundo o autor, fizeram parte de
um conjunto de fatores que contribuíram para a construção de sua obra. Uma vez que para a
maioria dos historiadores que trabalham esse tema, o aprendizado do frei em Portugal, suas aulas
2
RUIZ, Roberto. Antônio um Santo que falava Português. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 85.
3
HARDICK, Lothar. Santo Antônio: Vida e Doutrina. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 35.
18
com Tomás Galus e sua aptidão natural
4
foram os principais responsáveis pela pregação
implementada por ele e pela maneira como sua obra foi escrita, o livro em questão torna-se
singular, pois insere a pregação aos hereges como componente do edifício cultural do frade
menor.
Geraldo J. A. Coelho, membro da Ordem de São Bento e historiador da Universidade
do Porto, em seu artigo intitulado A Crítica da Vida Religiosa por Santo Antônio e o Elogio do
Santo por Frei Paio de Coimbra,
5
publicado nas Atas do Congresso Internacional Pensamento e
Testemunho: Centenário de Nascimento de Santo Antônio, trabalha com a idéia de que a
estada de Antônio na Gália e na Península Itálica o fez conhecer várias bibliotecas que
propiciaram o enriquecimento intelectual necessário para a produção dos Sermões. Para o teórico,
o material didático que o frade teve contato em Portugal não pode ser visto como o responsável
pelo amadurecimento necessário para a criação de tal obra.
Esse texto tem como tema central a crítica que Antônio faz aos religiosos, colocando
como fundamental a experiência que o frade adquiriu ao viver como membro dos cônegos
regrantes de Santo Agostinho. O autor expõe ainda, a título de observação, que a crítica de
Antônio aos religiosos é endereçada aos membros das ordens mais antigas, como os cistercienses,
uma vez que as instituições novas, segundo o autor, ainda “viviam um ardor inicial”, que os
levava a uma vida religiosa com maior zelo.
Luciano Bertazzo, historiador e diretor da Editora italiana Messaggero di sant’Antônio
e do Centro de Estudos Antonianos de Pádua-Itália, em seu artigo intitulado Santo Antônio nas
4
Em nossa perspectiva, esta “aptidão natural” trata-se de um juízo de valor, isto é, um certo ar de devoção presente nas
abordagens de alguns pesquisadores, principalmente os religiosos. Ao nos atermos à história da vida de Antônio, podemos
observar a sua intensa preparação intelectual, principalmente em seus contatos com Santa Cruz de Coimbra, Tomas Gálus e
com diversos intelectuais nas Universidades por onde passou.
5
DIAS, Geraldo J. A.. A Crítica da Vida Religiosa por Santo Antônio e o Elogio do Santo por Frei Paio de Coimbra. In:
CONGRESSO INTERNACIONAL PENSAMENTO E TESTEMUNHO: 8º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE
SANTO ANTÔNIO, 1996, Braga. Atas..., Braga: Universidade Católica Portuguesa, 1996, p. 447-465.
19
Fontes Franciscanas e Sua Inserção no Pauperismo Evangélico-Minorítico das Origens, que é
uma compilação das conferências apresentadas no I Congresso Antoniano Latino-Americano,
6
realiza uma abordagem histórica com o objetivo de desconstruir a imagem de taumaturgo e
milagreiro que foi elaborada pelas primeiras hagiografias do frei Antônio. Para Bertazzo, o modo
de pregação e de vida de Antônio são frutos da efervescência cultural religiosa do final do século
XII e início do XIII. O teórico faz uma biografia de Antônio a partir dos escritos do primeiro
século de história franciscana, e afirma que o frei passou a ser uma figura independente dentre os
franciscanos e que gozava de um certo privilégio na Ordem. Essa abordagem não nos remete aos
cânones do IV Concílio de Latrão, mas destaca a importância de Antônio na Ordem e na história
dos franciscanos, como criador da Escola Teológica Franciscana. Esse artigo torna-se de grande
valia, já que elabora uma reflexão sobre a interatividade de Antônio com o seu tempo.
Patrício Grandon (1996), teólogo chileno, afirma que Antônio teve pouco contato com
Francisco de Assis e que ele não pertencia ao grupo dos que viveram em fraternitas. No seu
artigo, Santo Antônio de Pádua: Espiritualidade e Pensamento,
7
defende que o frade português
ingressou no momento em que a Ordem estava se institucionalizando e que os frades estavam
deixando de ser itinerantes e passavam a viver em pequenas casas. O autor trabalha com a idéia
de que o frade passou a ser um protagonista, isto é, como ele estava distante do início do
movimento, o seu modo de pensar instituiu uma diversidade no pensamento dos franciscanos.
Para esse autor, questões como a centralidade da Bíblia, o exemplo de vida, a atividade teológica
e a preocupação com o modo de vida dos irmãos foram marcos fundamentais do pensamento
antoniano.
6
BERTAZZO, Frei Luciano. Santo Antônio nas Fontes Franciscanas e Sua Inserção no Pauperismo Evangélico-Minorítico
das Origens. In: ANTÔNIO, HOMEM EVANGÉLICO NA AMÉRICA LATINA. Santo André, 1996. Atas..., Santo
André: O Mensageiro de Santo Antônio, 1996. p. 11-31.
20
Gustavo Cantinni, em seu texto La técnica e l'indole del Sermonei medievale ed i
Sermoni di S. Antonio de Padova,
8
procurou investigar qual era a técnica e os critérios nos quais
Antônio inspirou-se para escrever sua obra. Seu texto foi dividido em duas partes: a primeira
tratava da técnica e a índole dos sermões medievais e a segunda examina a obra antoniana através
desses critérios e dos que são utilizados atualmente. Para o autor, o religioso não era um erudito,
porém foi flexível ao escrever os seu sermões, pois adotou muitas das regras que viriam a ser o
modelo dos sermões e lançou mão de muitas outras obras e conceitos, como a importância da
natureza como exempla na pregação.
o autor português Mário Martins, que escreveu um texto intitulado Os Bestiários na
nossa literatura medieval,
9
analisa a importância destas obras na literatura portuguesa e afirma
que em Santa Cruz de Coimbra havia um bestiário num códice de pergaminho, que segundo ele
foi certamente manuseados pelo então cônego agostiniano Fernando. Afirma também, que o frade
não gostava de colocar citações sobre os animais em suas obras, porém era moda e ele resignou-
se e os incluiu.
O frade Henrique Pinto Rema, no texto A Cultura Portuguesa de duzentos na obra do
Doutor Evangélico,
10
buscou relevar o conteúdo de ensino ministrado nas instituições pelas quais
o frade passou em solos portugueses. Segundo o autor, ele teve contato com mestres
renomados e as obras mais importantes do período.
7
GRANDON, Fr. Patrício. Santo Antônio de Pádua: Espiritualidade e Pensamento. In: ANTÔNIO, HOMEM
EVANGÉLICO NA AMÉRICA LATINA. Santo André, 1996. Atas..., Santo André: O Mensageiro de Santo Antônio,
1996. p. 33-43.
8
CANTINI, Gustavo. Miscellanea: LA Tecnica e l'indole del Semoni Medievale ed i Sermoni di S. Antonio de Padova.
Studi Francescani, n. VI, 1934.
9
MARTINS, Mário. Os bestiários na nossa literatura medieval. Revista Brotéria. Lisboa: v. 52, n. 5, 1951.
10
REMA, Henrique Pinto. A Cultura Portuguesa de Duzentos na Obra do Doutor Evangélico. Il Santo, Pádua, n. XXXIX,
p. 85-96, 1999.
21
Segundo Beniano Costa, que escreveu Le Fonti dei Sermones Di Sant'Antonio di
Padova,
11
as fontes que serviram de base para a construção de sua obra foram a blia, os textos
dos Padres da Igreja, os cânones do Concílio Lateranense IV, a pietas franciscana, as sentenças
dos filósofos e poetas da Antigüidade, as descrições das coisas da natureza e dos animais, a
descrição dos acontecimentos, sobretudo os de caráter sagrado, relativos às escrituras, à liturgia, à
hagiografia e às etimologias.
No texto Le Scienze Naturali in Sant'Antonio,
12
Samuele Doimi afirma que além de
citar os animais, Antônio tratava minuciosamente da natureza e dos hábitos destes. Assim como
Mário Martins, afirma que ele conheceu as obras que tratavam dos animais em Santa Cruz de
Coimbra. Para o autor, o frade não foi nenhum mestre ao tratar dos animais e nem foi um
pioneiro, porém mostrou-se um erudito em sua época no que tangia a tal assunto.
Segundo Giuseppe Nocilli, em Santo Antonio de Pádua: Mestre da Vida Consagrada.
Referências ao pensamento Agostiniano e Franciscano, o movimento franciscano das origens
proporcionava aos seus novos membros uma válida preparação espiritual, mas não garantia uma
boa educação cultural. Por isso, frei Antônio foi escolhido para ser o leitor de teologia da ordem.
O autor salienta ainda que a caridade, a humildade, a pobreza, a castidade e a obediência eram os
valores que, segundo o franciscano português, fundamentavam a Igreja, e eram a essência da vida
religiosa.
Luigi Pellegrini, em Los Cuadros y Tiempos de la Expansion de la Ordem,
13
trata das
experiências de expansão dos frades menores pela Europa em seus primeiros anos de
existênciam, bem como afirma que frei Antônio marcou profundamente a presença dos
11
COSTA, Beniano. Le Fonti dei Sermones di Sant'Antonio. Il Santo, n. XXI, 1981,p. 17-25.
12
DOIMI, M. R. Samuele. Le Scienze Naturali in Sant'Antonio. In: S. ANTÔNIO DOTTORE DE LA CHIESA. 1947,
Roma e Pádua. Atas... Cidade do Vaticano: Tipografia Poliglota Vaticana, 1947, p. 437-459.
13
PELLEGRINI, Luigi. Los Cuadros y Tiempos de la Expansion de la Ordem. In: Francisco de Asís y el primer siglo de
historia franciscana. Oñati: Editorial Franciscana Arantzazu, 1999, p. 194-205. (Coleccion Hermano Francisco, 37).
22
franciscanos na Lombardia. Para ele, o envio dos frades à região foi uma solicitação do legado
papal Hugolino de Óstia, encarregado de defender a Libertas Ecclesiae.
Para Antonio Rigon, em seu texto Hermanos Menores y sociedades locales,
14
os
franciscanos tinham certa autonomia extraterritorial por serem religiosos considerados homens de
Deus e da Igreja, que entravam em conflito com os particularismos locais. Segundo ele, o papa
Gregório IX, até então Cardeal Hugolino de Óstia, implementou um programa de renovação que
se baseava nos decretos do IV Concílio de Latrão, que inicialmente foi confiado aos Dominicanos
e aos monges Beneditinos, e que teve mais tarde o auxílio do Menores.
Apesar de não termos conhecimento de historiadores que trabalharam de forma
específica com os Sermões antonianos sobre o mesmo prisma e abordagem teórica que s
pretendemos, gostaríamos de tecer alguns comentários finais sobre as obras que escolhemos para
fazer nossa revisão bibliográfica. Tais obras são essenciais para o entendimento da vida e obra de
Antônio de Pádua/Lisboa e da atmosfera vivida pela cristandade medieval no momento da
construção de seus escritos.
Muitas dessas obras são fruto do interesse nascido, a partir da primeira metade do
século XX,
15
de estudo de Antônio e sua obra, quando o frade foi proclamado Doutor da Igreja de
Roma. Entre os mais dedicados em tal tarefa, estavam os historiadores ligados à Igreja, que
tinham como principal objetivo resgatar a figura de Antônio como o primeiro mestre da teologia
franciscana. Preocupação que resultou da visão então disseminada sobre o franciscano,
fundamentalmente devido à influência das Legendas que lhe foram dedicadas, textos em que são
exaltados os seus dons taumatúrgicos em detrimento de outras características. Como
14
RIGON, Antonio. Hermanos Menores y Sociedades Locales.In: Francisco de Asís y el primer siglo de historia
franciscana. 7. Oñati: Editorial Franciscana Arantzazu, 1999, p. 289-295. (Coleccion Hermano Francisco, 37).
15
CAEIRO, F. da Gama. CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa: Introdução a Obra Antoniana, Lisboa: Casa da
Moeda, 1968, p. 77.
23
conseqüência de tal interesse, alguns congressos foram realizados, sendo um dos mais
importantes, Pensamento e Testemunho, realizado em Portugal em 1996. Muitas obras essenciais
para o entendimento da memória antoniana foram fruto desses encontros, uma vez que, nesses
colóquios, os mais importantes estudiosos da vida e obra do frade se reuniram.
consenso entre os autores de que Antônio era um homem letrado. Contudo, os
estudiosos divergem sobre os fatores que foram influências diretas no amadurecimento do frade
para a construção de sua obra.
Dentro das divergências citadas acima, temos um primeiro grupo de historiadores que
creditam a intelectualidade do frade ao período de estudo em estabelecimentos portugueses,
buscando principalmente, como justificativa para essa idéia, a quantidade de citações de
Agostinho em sua obra. Nesse grupo, temos como principal teórico Francisco da Gama Caeiro.
Em um segundo grupo, os historiadores que afirmam que Antônio precisou de um período de
aprimoramento junto a Tomás Gálus, a fim de completar sua formação intelectual portuguesa,
vista como deficiente. Entre eles citamos Roberto Ruiz, que elucida que tal momento aconteceu
antes de sua missão junto aos cátaros. No último grupo, no qual se insere Geraldo J. A. Coelho,
trabalha-se com a hipótese de que os fatores citados acima foram importantes, mas que foi a
missão de combate ao catarismo que fez com que o frei viajasse por uma extensa região, trocando
experiências e visitando as Universidades recém-nascidas, onde ele obtinha contato com as
bibliotecas, que, com certeza, possuíam obras que foram fundamentais na confecção dos sermões.
Quanto ao uso dos bestiários por Antônio na luta contra os hereges, na disciplinação do
clero e na inserção dos franciscanos em um ambiente intelectual não trabalhos sistemáticos.
Os autores são unânimes em afirmar que ele usou os bestiários, mas não como ou por quê.
24
CAPÍTULO II
Antônio e sua trajetória até Cônego Regrante
Neste capítulo, vamos reconstruir aspectos históricos da vida de Antônio de
Lisboa/Pádua em sua trajetória em Portugal, utilizando diferentes documentos. Interessa-nos
apresentar a sua infância e juventude, sua formação intelectual e seu ingresso na vida religiosa.
Queremos encontrar o Antônio histórico, não o santo.
A devoção popular e o folclore sobre Antônio estão contidos, em grande parte, nas suas
biografias mais tardias. A sua face milagreira ganha forma paulatinamente a partir da metade do
século XIV no Líber miraculorum (Livro dos milagres).
1
Quanto maior a distância temporal entre
a vida do frade e a elaboração de uma hagiografia, maior a possibilidade de conter suposições e
lendas.
A memória histórica de Antônio está presente nas legendas. Mas vale destacar que as
legendas sobre tal personagem possuem as características de todas as hagiografias medievais:
enaltecem a santidade e os milagres e o se preocupam em situá-lo em seu contexto.
2
Dessa
forma, através de uma pesquisa em diversos tipos de documentos é que podemos preencher as
lacunas deixadas por hagiografias como a Prima, que foi escrita logo após a sua morte, mas que
deixa cerca de sete anos da trajetória de Antônio sem relato algum.
1
Livro dos milagres, Analecta franciscana III, p. 121-158; Acta sanctorum, dia 13 de junho, p. 724-740, ed. de 1798.
2
Segundo frei Ildefonso Silveira: “Tal modelo de biografia possui uma importância que remonta a Antigüidade tendo
como exemplo as Atas dos Mártires. Elas seguiam normas e possuíam um estilo, preocupações espirituais e uma
historicidade sem uma maior obrigação de aproximar-se do real.” SILVEIRA, Fr. Ildefonso. Santo Antônio de
Lisboa/Pádua – Quem foi? Quem é? Cadernos Franciscanos , n. 8, p. 17, 1995.
25
Antônio nasceu em Lisboa entre 1190 e 1195, período convencionado pela
historiografia,
3
e recebeu o nome de Fernando. Nos tempos de Fernando, não havia uma
preocupação a respeito dos sobrenomes, mas muitas de suas hagiografias afirmam que ele
descendia de Geraldo de Bulhões, chefe da primeira cruzada, o que, na verdade, segundo Lothar
Hardick,
4
vem de uma preocupação corrente nas hagiografias medievais de ligar o nome do santo
à famílias nobres. Somente na Legenda Beniguitas do século XVI aparece o nome de seu pai
como Martim, o que Ildefonso Silveira
5
aponta como fator primordial para chamarmos o Frade
Fernando de Martim ou Martins e não Fernando de Bulhões, opondo-se à posição de Roberto
Ruiz
6
e Lothar Hardick,
7
que afirmam que Fernando teve como nome de batismo o segundo, uma
vez que seu pai se chamava Martinho Bulhões e sua mãe Maria Taveira.
O frade iniciou sua preparação intelectual na escola criada junto à catedral da de
Lisboa, onde ingressou entre os anos de 1202 e 1203. Tal estabelecimento foi fundado após a
organização da Igreja lisboeta pelo seu primeiro bispo, o inglês Gilberto de Hastings. Nesse
estabelecimento, ele permaneceu por mais ou menos seis anos. Segundo Francisco da Gama
Caeiro, pouco se sabe sobre tal instituição de ensino no período que Fernando Martins a
freqüentou. Dessa forma, seguindo ainda o pensamento de Caeiro, iremos procurar uma
aproximação da sua história a partir de comparações que ele faz com outras escolas da época e
com documentos conciliares.
8
3
A data nascimento de Antônio é imprecisa, uma vez que os seus biógrafos não possuem consenso, quanto ao eu
nascimento. Alguns seguem a Frei Marcos de Lisboa, que escreveu as Crônicas da Ordem dos frades menores, e afirma
que o ano de seu nascimento foi 1195, hipótese esta baseada na informação do Livro dos Milagres (Liber miraculorum),
redigido apenas entre 1367 e 1374, no qual é registrada a morte do frade como ocorrida em 13 de junho de 1231, com 36
anos de idade. Biógrafos mais contemporâneos, como Virgílio Gamboso, afirmam, a partir de exames médico-
antropológicos dos restos mortais do religioso, realizados em 1981, que o mesmo morreu com aproximadamente 40 anos
de idade, o que traz uma nova data de nascimento: o ano de 1190.
4
HARDICK, Lothar. RUIZ, Santo Antônio: Vida e Doutrina. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 14.
5
HARDICK, Lothar. loc. cit.
6
RUIZ, Roberto. Antônio um Santo que falava Português. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 19.
7
HARDICK, Lothar. Op cit., p. 15.
8
CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Introdução a Obra Antoniana, Lisboa: Casa da Moeda, 1968, p. 134.
26
As escolas episcopais nasceram da necessidade da valorização espiritual do clero e da
preocupação da Igreja com o preparo intelectual dos religiosos a fim de atenderem às novas
exigências do mundo cristão, principalmente a partir da segunda metade do século XII. Neste
momento, entendia-se que a Igreja não podia descuidar-se da cultura dos religiosos, pois o
magistério eclesiástico dependia dessa formação. Caeiro constata em sua obra que essa
necessidade era tão grande que o Concílio Lateranense III
9
resolveu tornar obrigatória a
existência de um mestre-escola, para ensinar gratuitamente os clérigos e alunos pobres das
igrejas-catedrais.
10
Segundo a Legenda Prima ou Assídua, Fernando Martins foi instruído nas Letras
Sagradas pelos sacerdotes que lecionavam na escola catedralesca lisboeta. A legenda nada
esclarece sobre as disciplinas estudadas em tal escola.
11
As diretrizes pedagógicas desse modelo
de estabelecimento docente, principalmente na primeira metade do século XIII, provavelmente
seguiam algumas instruções de obras lógicas como Didascaliom, de Hugo de São Vitor,
Metalogicom, de João de Salisbory, e o Eptateuco, de Thierry de Chartres, que facultaram regras
para o ensino em tais escolas, oferecendo um quatro teórico, comumente aceito, que era
fundamentado no Trivium
12
e Quadrivium.
13
9
Norma constante no cânone 18 do Lateranense III e reafirmada no Lateranense IV, que em seu cânone 11 trata da
preparação intelectual do clero visando uma melhora no desempenho do ministerium sacerdotal.
10
CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Introdução a Obra Antoniana, Op. cit, p. 135.
11
Ibidem, p. 136.
12
O trivium compreendia as três matérias que primeiro se ensinavam nas escolas episcopais. A palavra latina triviun é
formada pelo prefixo tri três e a raiz latina viam que significava via, caminho. Literalmente esta palavra significava três
vias, três caminhos. O trivium consistia na preparação dos alunos através da Gramática, Dialética (Lógica) e Retórica.
Como o latim era a língua, que poderíamos hoje considerar como internacional, principalmente no mundo acadêmico, e
provavelmente, era a segunda língua de muitos povos do Ocidente Medieval, era muito importante que sua Gramática fosse
ensinada para os estudantes do período. Em cada aula destas disciplinas o aluno era direcionado para uma forma de
aprendizado: nas de Gramática os estudantes estudavam o funcionamento da língua; nas de Lógica como eram formados os
pensamentos e como se fazia para se analisar as várias situações que enfrentariam em suas vidas; nas de Retórica eles
aprendiam a usar a língua para ensinar e como instrumento de persuasão. Estas três matérias funcionavam como se fossem
uma introdução ao quadrivium. CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Introdução a Obra Antoniana. Op. cit., p.
135.
13
O quadrivium era o grupo de quatro disciplinas que eram ensinadas depois do trivium. Em latim quadrivium significava
os quatro caminhos. O quadrivium era formado pelo estudo da Aritmética, Geometria, Música e Astronomia. Estas
27
Nessa escola, portanto, certamente Fernando Martins aprendeu a ler e a escrever,
recebendo ali uma instrução religiosa bastante completa. Frei José Clemente Müller
14
afirma que
ele, assim como todo homem medieval que tinha acesso às formas iniciais de educação, aprendia
a ler nas Sagradas Escrituras, tal como se fazia no tempo do Cristo, e, paralelamente, como os
gregos, que aprendiam a ler com a Odisséia de Homero, ou os latinos, que tinham acesso ao
significado das letras com a Eneida de Virgílio. O menino Fernando teve acesso à língua latina,
através não somente do Saltério, mas, também, de alguns clássicos latinos e de obras dos Padres
da Igreja,
15
ao menos em partes pequenas ou coletâneas, que estavam ao alcance dos alunos.
Entre as disciplinas laicas, a Gramática era a primeira e fundamental disciplina,
constituindo o início do trivium, que certamente era lecionado na escola da Sé lisboeta. A Lectio,
ensino oral baseado na leitura de um texto, era elemento pedagógico fundamental e usado no
aprendizado da leitura, tarefa que era feita simultaneamente com o exercício da memorização. Tal
necessidade se dava pelo fato de ser o papel um produto escasso e por isso tudo tinha que ser
decorado. Para se dominar tal prática, eram utilizados exercícios didáticos e métodos específicos.
Entre as disciplinas já citadas até aqui, a escola da Sé de Lisboa, segundo suposição de
Caeiro e fr. Patrício Grandon,
16
ministrava a Dialética (Lógica), a Retórica e a Filosofia, que
faziam parte do trivium, assim como os rudimentos de Música, as Contas (Cômputo), a
Astronomia e a Geometria, que juntas formavam o quadrivium.
matérias continuavam o trabalho realizado através do trivium. Por sua vez, o quadrivium era considerado o método que
preparava os alunos para o estudo da Filosofia e da Teologia. O quadrivium poderia, também, ser considerado o estudo dos
números: a Arittica era baseada totalmente nos números; a Geometria era o estudo do número no espaço; a Música era a
disciplina que estudava os números no tempo; e a Astronomia estudava os números tanto no tempo como no espaço.
CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Introdução a Obra Antoniana. Op. cit.,. p. 137.
14
MÜLLER, fr. José Clemente. Santo Antônio e as Sagradas Escrituras. In: Antônio, Homem Evangélico na América
Latina. Santo André, 1996. Atas..., Santo André: O Mensageiro de Santo Antônio, 1996. p. 56.
15
Ibidem, p. 57.
16
GRANDON, fr Patrício. Santo Antônio de Pádua: Espiritualidade e Pensamento. In: ANTÔNIO, HOMEM
EVANGÉLICO NA AMÉRICA LATINA. Santo André, 1996. Atas..., Santo André: O Mensageiro de Santo Antônio,
1996., p. 34.
28
A religião era acrescida como teoria de ensino e como atividade prática nas
celebrações litúrgicas. O programa todo estava organizado de modo a facilitar uma decisão para o
estado religioso. Segundo Lothar Hardick, quem possuísse tal inclinação era encaminhado para o
sacerdócio. E foi isso o que aconteceu com Fernando.
17
Segundo a Legenda Prima, Fernando Martins saiu da escola da Sé instruído nas
Escrituras Sagradas. Caeiro, porém, informa que é complicado afirmar qual foi a influência do
ensinamento de tal instituição no edifício cultural do frade e em sua trajetória de pregador e
intelectual, porém alguns destes traços certamente perduraram em sua trajetória.
18
Para Grandon,
o ambiente da escola episcopal lisboeta e o contexto de sua existência iam dando o conteúdo e a
atmosfera bíblica para o jovem Fernando, assim como para todos os homens medievais que
freqüentavam este tipo de estabelecimento de ensino. Havia todo um clima que propiciava a
formação do homem através da Bíblia.
19
Segundo Maria Helena da Cruz Coelho,
20
além dessa formação na escola da Sé de
Lisboa, o menino Fernando certamente ganhou muita experiência de vida com o convívio
adquirido fora da igreja, quando podia estar entre os amigos, correndo e brincando no cotidiano
barulhento, confuso e até violento da cidade. Por Lisboa, passavam e se hospedavam muitos
cruzados, viviam muitos forasteiros, mouros, judeus, moçárabes, cavaleiros, mercadores e
existiam muitos mosteiros e pobres. Isto é, a Lisboa do seu tempo foi-lhe uma grande mestra,
principalmente, pela possibilidade de conhecer as diversas práticas culturais dos muitos homens
que a povoavam. Por causa dela, quer dizer, por conhecê-la muito bem, o jovem português talvez
17
HARDICK, Lothar. Santo Antônio: Vida e Doutrina. Op. cit., p. 15.
18
CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Introdução a Obra Antoniana. Op. cit., p. 14.
19
GRANDON, fr Patrício. Santo Antônio de Pádua: Espiritualidade e Pensamento. Op. cit., p. 34.
20
COELHO, Maria Helena da Cruz. Santo Antônio de Lisboa em Santa Cruz de Coimbra. In: CONGRESSO
INTERNACIONAL PENSAMENTO E TESTEMUNHO: CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE SANTO
ANTÔNIO, 1996, Braga. Atas..., Braga: Universidade Católica Portuguesa, 1996, p. 181.
29
tenha procurado o recolhimento e a paz que necessitava, para meditar sobre sua vida e se
aprofundar em seus estudos, em um mosteiro.
Pedimos aqui um pequeno aparte na trajetória do português Fernando entre as
instituições de ensino portuguesas para meditar sobre o que a historiadora Maria Helena da Cruz
Coelho explora com tanta propriedade. Sendo assim, fica a seguinte dúvida: quantas informações
e impressões este menino obteve em seu diálogos e relacionamentos pelas ruas e casas de Lisboa?
Diante desse questionamento que suas legendas não esclarecem, ficamos perplexos e
curiosos, pois sabemos que muito importante foi a vivência entre as muralhas da comuna de
Assis de outro religioso muito conhecido, chamado Francisco, que fundou o grupo no qual
Fernando ingressou posteriormente. Para o Assisense, as possibilidades de reflexão e posterior
conversão à vida religiosa estavam relacionadas ao seu cotidiano entre os habitantes de sua terra
natal, fato este muito evidente em suas hagiografias.
Sua construção intelectual, além de ter sido influenciada pelos ares lisbonenses, sofreu
a intervenção da vida em Coimbra. viveu, trabalhou entre as gentes, realizou o trabalho
pastoral entre os pobres, viu a grande diferença entre o modo de vida dos religiosos e nobres em
relação aos outros homens e mulheres.
Queremos, sem nos opor totalmente a autores como Francisco da Gama Caeiro, afirmar
que a vivência do cônego Fernando entre a população em geral, de Lisboa, de Coimbra, da Itália
e da França foi de fundamental importância para a construção do discurso antoniano. Contudo,
não excluímos as reflexões de tais autores quanto à sua formação intelectual como um dos
elementos estruturantes daquele pensamento. Para nós, muito do que ele pensou, escreveu e
pregou estava ligado ao cotidiano que vivenciou somado às demandas da Instituição Romana.
Porém, vamos voltar ao objetivo central desse capítulo, que é a vida do frei em Portugal e como
ela foi importante para a construção da figura histórica de Antônio de Lisboa/Pádua.
30
Após o período inicial de estudos, era comum que os alunos fossem freqüentar as aulas
de Artes nas Universidades. Porém, ainda não existiam tais instituições em solos portugueses. Os
mosteiros eram, então, atraentes aos jovens que buscavam a cultura e um melhor aperfeiçoamento
espiritual. Ali eles tinham como mestres muitos religiosos que haviam estudado no principal
centro do estudo da teologia do período, Paris.
Fernando Martins ingressou no Mosteiro de São Vicente de Fora, localizado nas
cercanias de Lisboa, o mais antigo de Portugal e que recebia grande proteção dos reis e isenções
papais. Provavelmente seu ingresso data entre 1210 e 1211, quando deve ter passado por uma
seleção bem rigorosa, já que Francisco da Gama Caeiro afirma que os cônegos regrantes de Santo
Agostinho, responsáveis pela instituição, eram bem cuidadosos com os assuntos espirituais.
21
No mosteiro lisbonense, Fernando teve mestres como o prior D. Pedro, Mestre em
Teologia, e D. Pedro Peres, conhecedor da Gramática, Medicina, Lógica e Teologia, que,
certamente, foram fundamentais em seu aprendizado. Na biblioteca da instituição religiosa
regrante, encontravam-se muitas obras para consulta, inclusive, muitas emprestadas por outras
instituições religiosas. O que prova uma preocupação do mosteiro em oferecer a possibilidade aos
alunos de desfrutar da leitura e consulta de outros livros, além das que possuía. Lá, o nego
Fernando pôde abarcar saberes sobre a Bíblia, os ofícios divinos, as normas monásticas, as obras
dos Padres da Igreja e teve acesso aos manuais de Medicina vindos da escola de Salermo.
22
Em o Vicente, o frade português fez sua profissão como religioso, que ocorreu após
um ano de estudos. Esse rito necessitava de um tempo de preparação, a fim de que o candidato se
tornasse apto para o ingresso oficial entre os Cônegos Regrantes. O período de formação era
marcado pelo estudo da Regra de Santo Agostinho, realizado com o intuito de aprofundar os
21
COELHO, Maria Helena da Cruz. Santo Antônio de Lisboa em Santa Cruz de Coimbra. Op. cit., p. 181.
22
Ibidem. p. 182.
31
ensinamentos espirituais e práticos para a vida no mosteiro. A Regra seguida em São Vicente era
uma versão do texto agostiniano, acrescida de comentários de Hugo de São Vitor, nos quais o
crítico afirmava que a leitura era constituída pela Lectio Divina e as observações dos Santos
Padres, além da própria Regra. Essa Regra tem como primeira e máxima exigência a cultura de
uma perfeita comunhão espiritual de bens, à maneira das primitivas comunidades cristãs de
Jerusalém, segundo o exemplo dos apóstolos. Dentre as virtudes obrigatórias para os cônegos
estavam a obediência, a humildade e a caridade. Vale destacar que a humildade desempenhará,
mais tarde, na concepção da mística especulativa antoniana, um papel essencial.
A leitura possuía uma grande importância para a Regra, sendo vista como um momento
fundamental na rotina do mosteiro, a própria Regra era lida semanalmente aos cônegos, além de
constituir objeto especial de estudo para os noviços dirigidos por um mestre, o chamado mestre
da escola dos noviços. Em sua primeira fase de estudos ocorrida em São Vicente de Fora,
Fernando Martins começou a dar importância ao espírito da Regra e à doutrina do Bispo de
Hipona.
A espiritualidade antoniana foi fortemente marcada pela teologia agostiniana dos
cônegos regrantes, e firmou-se não a partir da Regra, mas também, indiretamente, pelas
constituições do mosteiro, que nela se inspiravam. Devemos lembrar aqui que a vida religiosa
pensada por Agostinho era parecida com a dos franciscanos, que o jovem Fernando abraçaria
mais tarde. No modo de vida religioso criado por Agostinho, os irmãos viviam nos mosteiros,
dependendo de doações, e de onde saíam para atuar como sacerdotes e bispos da Igreja na África.
Nesses locais estudavam e viviam como na primeira comunidade cristã de Jerusalém, retratada no
livro de Atos dos Apóstolos, na qual todos os bens eram divididos entre os irmãos. O que os
diferenciava dos franciscanos era o fato de que os seguidores do assisense, além de dependerem
de doações e pequenos trabalhos em troca de comida, não queriam possuir nenhum tipo de
32
moradia ou mosteiro; o tinham como principal função o trabalho como sacerdotes, além de
uma aversão inicial de seu fundador à prática dos estudos, por temer o orgulho que os letrados
demonstravam na sociedade medieval.
Existem dois importantes inventários que retratam a vida intelectual do mosteiro de
São Vicente, um de meados do século XIII, que trata da canônica lisboense, o outro é uma
relação de manuscritos cedidos, talvez para serem copiados, em 1207, 1216 e 1226.
23
Ao
aproximar os dois inventários, Caeiro oferece um panorama dos materiais disponíveis para
leitura, pois revela, por um lado, o interesse pela teologia, pela patrística e espiritualidade
monásticas, pelos escritos morais e litúrgicos, e, por outro lado, por obras científicas,
nomeadamente as de medicina.
Contudo, segundo alguns autores, tais como Lothar Hardick e Caeiro, citado, após
algum tempo, a convivência em São Vicente tornou-se difícil, uma vez que sua família e pessoas
próximas realizavam-lhe muitas visitas, o que interrompia constantemente a sua busca de paz
interior através do isolamento e da meditação. Além desses fatores já mencionados, a importância
dos Cônegos Regrantes dentro do contexto religioso português tornava suas instituições peças
fundamentais da vida política do reino, o que fazia surgir por muitas vezes debates e intrigas que
tornavam o ambiente incapaz de fornecer o mínimo necessário para uma vida religiosa salutar.
Dessa forma, Fernando pediu a seus superiores que o transferissem para Santa Cruz de Coimbra,
mosteiro responsável pelo processo de fundação de São Vicente de Fora e que distava 200 Km de
Lisboa, para que pudesse alcançar um maior grau de espiritualidade.
Reconhecidamente considerado a casa mãe dos cônegos regrantes em Portugal e
fundado em 1134 por São Teotônio, Santa Cruz era, segundo Maria Helena da Cruz Coelho,
24
“o
23
COELHO, Maria Helena da Cruz. Santo Antônio de Lisboa em Santa Cruz de Coimbra. Op. cit., p. 182.
24
COELHO, Maria Helena da Cruz. Santo Antônio de Lisboa em Santa Cruz de Coimbra. Op. cit., p. 183.
33
bastião ideológico, cultural e espiritual do primeiro monarca português. Sua fundação coincide
com a data provável da transferência do centro da corte de Afonso Henriques da cidade de
Guimarães para Coimbra. Este monarca fez-lhe doação de terras, e de Igrejas, concedeu direitos,
privilégios e jurisdições como reconhecimento por trabalhos diplomáticos executados pelos
fundadores da instituição. Ali também foram enterrados D. Afonso e D. Sancho I, os primeiros
reis portugueses, o que faz de Santa Cruz o panteão real.
Em Coimbra, Fernando Martins pôde ter maior contato com a história e a presença de
grandes religiosos portugueses, porém, além dos ares de santidade, o mosteiro podia
proporcionar-lhe uma grande possibilidade de crescimento intelectual, uma vez que muitos
cônegos que ali viveram e viviam, haviam cursado a Universidade de Paris. Nesse período, Santa
Cruz ainda era considerada uma grande instituição, na qual viviam cerca de 60 cônegos. Os
mestres do mosteiro tinham a sua formação pautada, principalmente, em dois tipos de textos, as
chamadas Sumas, as glosas à Bíblia, e as Sentenças de Pedro Lombardo. O estudo das Sagradas
Escrituras era realizado a partir do método agostiniano, que tinha como base dois prismas, o da
análise literal ou histórica e a espiritual ou figurada.
Além dessa experiência dos mestres coimbrãos, Fernando foi influenciado também
pela máxima perusina,
25
de que a Bíblia seria o princípio e o fim de todos os estudos teológicos,
o que nos Sermões antonianos é traduzido para a plenitude de toda a ciência, a única que vale a
pena e que faz sábios. De mais a mais, o mosteiro possuía uma biblioteca, com material para o
estudo, e também um scriptorium. Em sua obra, Caeiro chama a atenção para o fato de que este
contava com vários escribas, que tinham como missão transcreverem aquelas obras que
chegavam para Santa Cruz através de permutas e empréstimos.
26
25
CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Introdução a Obra Antoniana. Op. cit., p..78.
26
CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Introdução a Obra Antoniana. Op. cit., p. 84.
34
Seguindo as pesquisas do historiador Francisco da Gama Caeiro, podemos afirmar que
Fernando obteve contato, na biblioteca de Coimbra, com obras de Hugo e Ricardo de São Vitor,
Agostinho, Gregório, Jerônimo, Isidoro, Pedro Comestor, Flávio Josefo, Aristóteles e Virgílio.
27
E, ao nos aprofundarmos no estudo dos escritos deixados por frei Antônio, podemos concluir que
o cônego Fernando foi capaz de tirar o máximo proveito das possibilidades de estudo oferecidas
em Santa Cruz.
Apesar do impedimento, por parte da Santa Sé, da ordenação sacerdotal de menores de
trinta anos, Fernando foi ordenado sacerdote em Coimbra, onde também atuou como clérigo até a
sua ida para a Ordem dos Frades Menores.
Contudo, o desassossego e as turbulências políticas, fatores que foram as principais
causas de sua saída de São Vicente de Fora, voltaram a atormentá-lo em Coimbra. Houve um
desentendimento entre a coroa lusitana e os bispos. os monarcas procuraram influenciar de
forma mais incisiva as igrejas paroquiais e os mosteiros. Passaram, então, a conceder privilégios
e ajuda econômica a essas instituições. Tal prática era uma tentativa de tornar o clero dependente
da realeza, o que trouxe consigo um grau de acomodação que era, de certa forma, bem agradável
aos religiosos, em prejuízo da independência gozada anteriormente por esses núcleos de
irradiação da fé católica.
28
Além destes acontecimentos e apesar da ordenação e do alto grau intelectual adquirido
em Coimbra, Fernando ficou ainda mais decepcionado, pois não podia colocar em prática todos
os ensinamentos armazenados através de seus estudos, uma vez que, para ele, Santa Cruz
encontrava-se contaminado por idéias e práticas, tais como o nicolaismo e simonia, que não se
coadunavam com a vida religiosa.
27
Ibidem, p. 85.
28
HARDICK, Lothar. Santo Antônio: Vida e Doutrina. Op. cit., p. 19.
35
Caeiro cita os teóricos Alexandre Herculano, Carlos Giroud e Antônio Vasconcelos
para confirmar que as riquezas doadas ao mosteiro pelos monarcas portugueses desvirtuaram o
modo de vida dos agostinianos.
29
Roberto Ruiz
30
relata, baseado no historiador Jorge Ameal, que
ao serem privilegiados por benesses reais e presenteados por muitos burgueses ricos, os cônegos
regrantes passaram a dar mais valor às “coisas terrenas” que às “virtudes cristãs”. Sem contar que
o próprio prior de Santa Cruz estava entre aqueles que se beneficiavam dos bens da Igreja, sendo
acusado de não possuir o zelo espiritual que a tradição e a fama do mosteiro exigia dos religiosos
que o dirigiam. Essa situação impossibilitava qualquer tentativa de mudança em relação às
atitudes dos cônegos que cometessem faltas desta espécie.
31
Para Lothar Hardick, Fernando era
um dos que faziam oposição ao modo como vinha sendo conduzida a direção da instituição.
32
Contemporaneamente a essa desilusão de Fernando, em 1219, Francisco de Assis
decidiu enviar um grupo de frades para uma experiência missionária entre os sarracenos. Antes
de iniciarem a missão em terras marroquinas, foram a Portugal os frades Bernardo, Pedro, Oto,
Adjunto e Acúrsio, primeiros mártires franciscanos. Segundo Caeiro, desde a chegada dos
primeiros Menores em Portugal, os frades, que foram apadrinhados pela Rainha Dona Urraca,
muitas vezes iam maltrapilhos até Santa Cruz para conseguir esmolas.
33
Essa presença em terras
lusitanas causou forte impressão entre toda a gente, principalmente pela radicalidade na
observância do Evangelho e a simplicidade como se apresentavam, defendendo a paz entre todos
os homens e tratando igualmente a todos. Esses eram religiosos diferentes, pois não se
destacavam pelo seu saber teológico ou profano e nem por pregações pautadas nos ensinos da
Retórica. Porém, o que possivelmente causou em Fernando um certo espanto, foi que tal pobreza
29
HARDICK, Lothar., loc. cit.
30
RUIZ, Roberto. Antônio um Santo que falava Português. Op. cit., p. 27.
31
HARDICK, Lothar. Santo Antônio: Vida e Doutrina. Op. cit., p. 20.
32
HARDICK, Lothar., loc. cit.
33
CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Introdução a Obra Antoniana. Op. cit., p. 73.
36
contrastava com a riqueza dos cônegos que estavam se distanciando cada vez mais da regra que
professavam, enquanto os frades representavam, aos seus olhos, uma renovação da vida religiosa.
Tal contraste foi, certamente, responsável por uma profunda reflexão. A oposição
entre a mensagem da Regra de Santo Agostinho, o Evangelho e os textos lidos entre os regrantes,
com a forma de vida de praticamente todos os cônegos, face à observância da maneira como os
franciscanos viviam a cristã foi fundamental para a criação de um grande ponto de
interrogação em sua aspirações.
O cônego português, após o pequeno convívio com os primeiros mártires franciscanos,
defrontou-se, posteriormente, com os seus restos mortais, que voltaram para serem enterrados na
Catedral de Santa Cruz. Ele, provavelmente, ficou maravilhado com o novo modo de vida
oferecido pela Ordem dos Frades Menores e pela possibilidade de pregar aos sarracenos e ser
martirizado. A ida ao Marrocos foi, para Fernando, a principal motivação para a sua saída da
ordem dos Cônegos Regrantes de Santo Agostinho e sua entrada para os franciscanos, momento
em que adotou o nome de Antônio.
Francisco da Gama Caeiro,
34
grande estudioso da vida e da obra de Antônio, escreve
que este foi influenciado por três principais aspectos da vida dos frades menores. Primeiro, o
estilo de vida, que era totalmente voltado para a pobreza evangélica procurando imitar o Cristo
nu. Segundo, o modo de pregação, que tinha como principal característica a ida ao encontro das
almas, modo diferente do apostolado da ordem dos Cônegos Agostinianos, que ocupavam
paróquias determinadas. Por último, a pregação aos muçulmanos que, indiretamente, poderia
ocasionar o martírio.
Para finalizar essa nossa reflexão sobre a trajetória de Antônio em Portugal, queríamos
sublinhar que, apesar de não olharmos a sua vida em seu reino natal como a única e principal
37
influência na sua obra e na sua forma de pregar, assinalamos que em terras portuguesas o frade
foi iniciado e apresentado à doutrina e católica, às Sagradas Escrituras e às obras de Teologia,
e principalmente, ao mundo no qual ele deveria exercer seu apostolado. Em Lisboa e em
Coimbra, o mais tarde frei Antônio adquiriu as bases que o sustentaram na realização das tarefas
que lhe foram delegadas tanto pela Igreja, quanto por Francisco de Assis.
34
Ibidem, p. 102.
38
CAPÍTULO III
Antônio entre os Frades Menores
Após a sua decisão crucial, de ingressar na fraternitas franciscanas os frades trocaram
o nome de Fernando para fr. Antônio e ele tomou o hábito franciscano, em cerimônia que
aconteceu no próprio mosteiro de Santa Cruz, entre abril e agosto de 1220.
1
Sua profissão foi
feita de forma simples, uma vez que a obrigação de ingresso na Ordem pelo noviciado só ocorreu
após a bula do Papa Honório III, de 22 de setembro de 1220.
Antônio passou alguns meses no eremitério de Santo Antão dos Olivais, onde foi
iniciado no modo de vida franciscana e aguardava a partida para a missão junto aos infiéis no
Marrocos, condição colocada, por ele próprio, para sua mudança de ordem. Contudo, sua busca
pelo martírio em terras sarracenas não foi bem sucedida devido a uma doença, que o fez ficar
alguns meses em convalescência.
Vale a pena salientar que a pregação aos infiéis é uma característica tão marcante no
ideário franciscano, principalmente nas origens, que foi citada no capítulo XVI da Regra Não-
Bulada.
2
“Eis que vos envio como ovelhas ao meio dos lobos; sede pois prudentes como
serpentes e simples como pombas" (Mt 10,16). Se pois houver Irmãos que
1
REMA, Henrique Pinto (org.). Introdução. In: Santo Antônio de Lisboa: Doutor Evangélico. Obras Completas: Sermões
Dominicais e Festivos. Op. cit., p. XXII.
2
Regra não Bulada por se tratar de um documento que não foi reconhecido pela Igreja através da Chancela Papal, isto é,
não foi oficializado através de uma Bula Papal.
39
quiserem ir para entre os sarracenos e outros infiéis, que vá com a licença de seu
ministro e servo.
3
Este documento ficou pronto em 1221, e é um misto de Regra e “diretório espiritual”,
pois contém muitas orientações de cunho espiritual e não jurídico, e foi apresentada aos irmãos
no Capítulo de Pentecostes
4
de 1221.
5
Apesar de não possuir validade jurídica, pois não foi
aprovada pelo papa, retrata a visão do movimento sobre os outros nos primórdios do movimento.
Não se sabe se por fruto do acaso ou se propositalmente, o frade chegou a Assis para
participar do Capítulo das Esteiras de 1221. pôde conhecer, mesmo que de forma indireta, fr.
Francisco, o fundador, e outros frades, posteriormente considerados notáveis pela fontes do
período.
6
Ali ele foi designado para ser o sacerdote responsável pelas missas e o ajudante de
cozinha no eremitério de Montepaolo. Frei Graciano Bagnacavallo pediu a frei Elias, então
vigário da ordem, para que ele o seguisse com o intuito de iniciá-lo no modus vivendi da
fraternidade, visto que Antônio ainda não estava suficientemente a par de como deveria ser a vida
de um frade menor.
7
Esse período em Montepaolo, cerca de quinze meses, não ficou registrado em suas
hagiografias. Porém, em setembro de 1222, durante uma ordenação conjunta dos Frades Menores
e Pregadores em Forli, sua trajetória ganhou uma outra direção. Isso porque, durante a missa de
ordenação, o superior solicitou que Antônio pregasse. Ele não declinou do pedido e proferiu um
sermão que, segundo as fontes, surpreendeu a todos. Após esse acontecimento, o frade
3
SILVEIRA, I. REIS, O. (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: FFB/Vozes, 2004, p. 176.
4
Segundo a o Capítulo 18 da Compilação de Assis, neste Capítulo Geral, que é uma espécie de reunião religiosa, ocorrido
em Santa Maria da Porciúncula, estiveram presentes cinco mil irmãos, muitos sábios e doutos na ciência...”. SILVEIRA,
I. REIS, O. (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Op. cit., p. 176.
5
SILVEIRA, I. REIS, O. (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Op. cit., p. 19.
6
Segundo o Espelho da Perfeição, “muitos frades sábios e de ciência”. Mesma afirmação encontramos na Compilação de
Assis o autor também afirma “(...) muitos sábios e doutos na ciência (...)”. Daí atestamos que os frades de maior expressão
entre os menores encontravam-se ali. SILVEIRA, I. REIS, O. (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Op. cit., p. 176.
7
SOUZA, José Antônio de Camargo R. Pensamento Social de Santo Antônio. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 130.
40
lisbonense foi encarregado da missão de pregar por toda a província, sob o aval de frei Elias.
Depois de um ano de trabalho missionário recebeu o seguinte bilhete, enviado por frei Francisco:
A frei Antônio, meu bispo, saúda frei Francisco e augura saúde. Apraz-me que
ensine teologia aos nossos frades, sob a condição, porém que por causa de tal
estudo, não se extinga neles o espírito da santa oração e devoção, como é
prescrito na Regra. Passa bem.
8
Como podemos observar, o fundador chamou Antônio de bispo, exortando-o a ensinar
teologia aos frades na escola da Ordem em Bolonha. Segundo José Antônio, um equívoco
quando se afirma que o frade foi autorizado, por Francisco para se tornar o mestre de teologia da
Ordem.
9
Mas, para Luigi Pellegrini, no texto Los cuadros y tiempos de la expansion de la Ordem,
a carta de Francisco a Antônio é um consentimento oficial de Francisco a primeira casa de
estudos organizada no seio da Ordem.
10
Na verdade, segundo Souza, o fundador não era mais
ministro geral e, portanto, não poderia ter dado tal autorização. Tal ofício, o da pregação
dogmática, era uma função reservada unicamente aos bispos e, em alguns casos, também a
determinados sacerdotes, desde que estivessem devidamente preparados e autorizados pelos
prelados.
11
Para José Antônio, a Regra de 1223, aprovada por Honório III em 29 de novembro de
1223 mediante a bula solet annuere, no capítulo IX esclarece a respeito de tal questão. A
concessão da licença para que alguém pudesse ensinar teologia e pregar, numa determinada
diocese, era uma responsabilidade exclusiva do bispo local. Assim, na ocasião em que foi escrito
o bilhete, a prerrogativa pertencia ao prelado de Bolonha.
Após o recebimento desse bilhete, faz-se importante, para a compreensão do papel que
Antônio passou a ocupar dentro da estrutura da ordem, a lembrança de que ele não pertencia ao
8
SILVEIRA, I. REIS, O. (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Op. cit., p. 107.
9
SOUZA, José Antônio de Camargo R. Pensamento Social de Santo Antônio. Op. cit., p. 130.
10
PELLEGRINI, Luigi. Los Cuadros y Tiempos de la Expansion de la Ordem. In: Francisco de Asís y el primer siglo de
historia franciscana. Op. cit., p. 201.
41
grupo mais próximo a Francisco. Porém, mesmo dessa forma, foi lembrado no capítulo 48 da
Vida I de Tomás de Celano, que foi o primeiro biógrafo de Francisco, em obra redigida em 1228
por ordem do Papa Gregório IX, como aquele que, “o Senhor abrira a inteligência para
compreender as escrituras, e que falava do Senhor a todo o povo com palavras mais doces que o
mel e o favo”. Mesmo sem ser um dos fundadores, nos parece que a legenda queria mostrar que o
frade português contava com total aprovação de Francisco para implementar as mudanças que
estavam sendo feitas na área do ensino e da preparação intelectual da ordem.
A região da Lombardia, onde fica Bolonha, era uma área onde pessoas de várias
regiões da Europa iam aprender o Direito, além de outras disciplinas. Sobretudo nesta cidade,
mas também em Pádua e Vercelli,
12
estavam sendo consolidados estruturas e organismos de
ensino universitário. Não é casual que, em 1220, a primeira construção estável para o ensino dos
irmãos franciscanos, que causou indignação em Francisco, ficasse em Bolonha. E que depois, no
mesmo local, fosse criada a primeira instalação de ensino franciscana.
Antônio iniciou, então, sua atividade de professor em Bolonha no final de 1223,
13
depois foi enviado a Languedoque em 1224, para exercer a mesma função e pregar, buscando a
conversão dos membros da heresia cátara.
14
Em seu ministério teológico, Antônio conjugou vários elementos que lhe dotaram de
um toque particular: sua formação teológica de cunho agostiniano; seu método de ensinamento
calcado no estudo, na meditação e na contemplação da Sagrada Escritura, segundo a tradição dos
11
SOUZA, José Antônio de Camargo R. Pensamento Social de Santo Antônio. Op. cit. p. 136.
12
PELLEGRINI, Luigi. Los Cuadros y Tiempos de la Expansion de la Ordem. In: Francisco de Asís y el primer siglo de
historia franciscana. Op. cit., p. 203.
13
Segundo Henrique Pinto Rema, o período de magistério de Antônio em Bolonha foi breve. Ele afirma que: “o seu
leitoradoem Bolonha dificilmente terá durado um ano”. In: REMA, Henrique Pinto. Op. cit., p. XXVI.
14
RAPP, F. A resposta de Santo Antônio as expectativas de seu tempo. Itinerarium, Braga, n. 42, p. 5-36, 1996. Neste
artigo, Rapp afirma que “no verão de 1224 foi enviado para o sul de languedoque(...). A heresia não estava extirpada. A
ordem dos Irmãos Pregadores aí se encontrava (...). os Frades Menores tinham vindo em seu socorro. Desde 1220 fixaram-
se em Mirepoix e Montpellier e em 1222 em Tolosa. Tanto como os seus confrades da Lombardia, tinham grande
42
Santos Padres, e a idéia de junção da ciência com a unção contemplativa, conforme a orientação
de Francisco de Assis.
O frade lusitano foi enviado, autorizado por fr. Elias de Cortona, então o ministro-geral
da ordem, para ser mestre em escolas conventuais de Toulouse e Montpellier,
15
cidades da
França, durante os anos de 1225, 1226 e 1227.
16
Seu período de docência foi marcado por períodos de aulas intensivas, em diversos
conventos, mas que não duravam muito. Esse seu ofício, somado às experiências de pregação e o
pedido dos confrades, o encorajaram a produzir sua obra sermonária.
Seus Sermões Dominicais e festivos não são exatamente os que Antônio pregou, sendo,
na verdade, um manual para pregadores da ordem e que poderia ser consultado por leigos cultos e
religiosos de outras instituições. Seus propósitos, nessa obra, são essencialmente religiosos ou
morais, são uma tentativa de pôr à disposição dos frades um elemento de trabalho apostólico.
Consistem, então, em um guia prático que, ao mesmo tempo, é uma compilação teórica e
doutrinária, contendo dicas de um mestre experiente no ofício da pregação. Caeiro constata, ao
analisar os Sermões, que Antônio possuía uma cultura marcante e uma formação teológica sólida
e que para ele a verdadeira ciência era a Sagrada Escritura, donde extrai grande parte de sua
doutrina.
Depois de ter atuado, por um pequeno período de tempo, como mestre em Toulouse,
Antônio foi nomeado guardião do convento de Puy-em-Velay, no Capítulo Provincial de São
Miguel em 1225, ocorrido em 29 de setembro. Passados alguns meses foi convidado pelo
necessidade de formação teológica para enfrentar os Albigenses e poder vencê-los. Antônio dirigiu-se imediatamente a
Montpellier, depois de ter participado do capítulo de Arles”.
15
Vale salientar que Montpellier, neste momento, era um importante centro universitário e ponto forte da ortodoxia
católica, na qual dominicanos e franciscanos recebiam adequada formação pastoral e intelectual a fim de pregarem contra a
heresia cátara que se espalhava nos territórios adjacentes.
43
arcebispo de Bourges,
17
Simão de Sully, a fazer um sermão aos prelados reunidos em Sínodo, no
qual os condenou por sua conduta pouco condizente com a missão pastoral que
desempenhavam.
18
Com a morte de Francisco de Assis em 3 de outubro de 1226, acentuou-se cada vez
mais a pressão da Santa sobre os frades para que se engajassem mais intensamente nos
projetos pastorais que a mesma tinha para a Igreja/Cristandade. O Cardeal Hugolino, agora o
Papa Gregório IX, cobrava ajuda de seus protegidos a fim de efetivar os projetos de reforma
preconizados pelo Concílio de Latrão IV. Havia, desde o final da primeira década do século XIII,
religiosos franciscanos letrados que desejavam servir de forma mais eficaz a Cristo, aos próximos
e ao Papado. Porém, o governo do Ministro Geral frei Elias desencadeou uma crise interna. Ele
era acusado de ser arbitrário, levar uma vida mundana e de não convocar regularmente os
Capítulos. Diante disso, os frades se reuniram em capítulo no dia 6 de junho de 1227, Domingo
de Pentecostes, e elegeram o provincial das Espanhas, Frei João Parenti, o novo Ministro Geral.
19
Durante o período do governo de Parenti, a Ordem continuou a vivenciar turbulências,
pois existiam ainda dois problemas oriundos do tempo de fr. Elias que não deixavam a situação
se acalmar. O primeiro era que Elias, por ser leigo, nomeara muitos irmãos nessa mesma
16
REMA, Henrique Pinto. Introdução. In: Santo Antônio de Lisboa: Doutor Evangélico. Obras Completas: Sermões
Dominicais e Festivos. Op. cit., p. XXVII.
17
Ibidem, p. XXVIII.
18
PILONETTO . A. G.. Santo Antônio de Pádua e Lisboa: aspectos biográficos. Cadernos da ESTEF, 14, 1995. “Os
hereges constituíam, naturalmente, um dos temas centrais do sínodo. Antônio afrontou o problema, não analisando os
efeitos ou falando de sua periculosidade, mas apontando suas causas mais importantes: entre elas a infidelidade dos
pastores. Denunciou os prelados infiéis e mercenários e não poupou o arcebispo Simão de Sully(...). Começou a incriminar
a conduta do arcebispo, interessado mais nos benefícios de seu feudo do que na evangelização do rebanho. E este,
vencido pela acusação, reconheceu seus erros e pediu em prantos para que Antônio ouvisse sua confissão e rezasse por
ele”.
19
FALBEL, Nachman. Os Espirituais Franciscanos. São Paulo: EDUSP / Pioneira, 1995, p. 32-33. “Em 6 de junho de
1227, reunia-se em Assis um Capítulo Geral, com a presença do Papa Gregório IX, eleito em 19 de março do mesmo
ano(...). Nesse capítulo, João Parenti, provincial da Espanha, foi eleito ministro-geral da Ordem, o que indica que a
permanência de Elias na função de vigário-geral foi de curto tempo. Ainda que toda a questão não esteja nitidamente
esclarecida, e que uma boa parte dos autores se incline, apoiados nos textos que citamos, a aceitar que o Capítulo Geral de
1227 elegeu João PArenti como ministro-geral, supomos que Eccleston, em sua narrativa, deve ter se baseado em
44
condição, que acabaram sendo seus partidários após sua deposição e começaram a causar
problemas nas províncias, exigindo a deposição de João Parenti.
20
O outro era a construção da
Basílica e da tumba de Francisco de Assis, incumbência atribuída a fr, Elias, dada pelo Papa
Gregório IX logo após a canonização do fundador em 16 de julho de 1228, que envolveu o
esforço de muitos frades que saiam a esmolar para alcançar tal objetivo. Em 22 meses a obra
ganhou proporções gigantescas.
21
Um grupo liderado por frei Leão e outros religiosos viu nesses atos uma violação da
Regra e, ainda, julgava que o Testamento de Francisco tinha de ter a letra observada como norma,
tanto quanto a Regra. Esse movimento tinha em suas fileiras alguns dos primeiros companheiros
do Poverello, que, por isso, eram zelosos defensores do carisma e dos ideais primitivos,
nomeadamente a vivência em simplicidade, isolamento, humildade e pobreza, dos valores
evangélicos.
Posteriormente, no Capítulo Provincial de 1226, Antônio tornou-se custódio do
convento de Limoges, mas sua estada na Ocitânia também não foi longa, pois durante o Capítulo
Geral de Pentecostes, ocorrido em 6 de junho de 1227, ele foi eleito Ministro da Província
Franciscana da Emilia e Lombardia. Esta província era muito extensa e demandava muito
trabalho. O frei português realizava visitas aos conventos a fim de corrigir os desvios e estimular
a perseverança na vocação que havia sido abraçada pelos menores locais.
22
Esse trabalho proporcionou ao frade o conhecimento da situação social e religiosa da
região, principalmente dos paduanos, que se mantinham afastados das idéias contestadoras dos
informações dos frades que participaram dos Capítulos mencionados (...). Porém tudo leva a crer que Elias não agradou à
Ordem e logo foi obrigado a demitir-se, sendo em seguida eleito João Parenti”.
20
SOUZA, José Antônio de Camargo R. Pensamento Social de Santo Antônio. Op. cit., p. 145.
21
Ibidem, p. 145.
22
CANTINI, Gustavo. Vita apostolica e azione sociale di S. Antonio. In: SETTIMANE ANTONIANE ROMA E
PADOVA NEL 1946. Atti...Vaticano: Poliglota Vaticana, 1947, p-236.
45
cátaros.
23
Seu trabalho resultou na multiplicação de residências franciscanas, no reforço e
reorganização da presença da Ordem na região, tendo como maior resultado a divisão desta
província em três.
No Capítulo Geral de Pentecostes, que se reuniu em 25 de maio de 1230, a Ordem
ainda encontrava-se intranqüila. Estava em pleno curso uma disputa entre os partidários de frei
Elias e de João Parenti, que continuou como Geral. Dessa forma, a divisão entre os menores
aumentou ainda mais e acirrou-se a disputa em torno da utilização do Testamento como
documento oficial dos franciscanos, principalmente no que concernia a questão do verdadeiro
sentido que se devia atribuir à idéia de pobreza e ao voto correspondente.
24
Nesse momento de confusão e discórdia entre os menores, a participação de fr. Antônio
foi fundamental, uma vez que, defendeu firmemente a João Parenti e não revestiu de força legal o
Testamento deixado pelo fundador.
25
Diante desses impasses, os frades enviaram uma comissão à Cúria Papal, a fim de
resolver as questões que tanto criavam problemas entre eles. Além de João Parenti e de alguns
partidários de fr. Elias, a comissão que foi ter com o papa Gregório IX foi formada por Antônio
de Lisboa/Pádua, Aimo de Favershan, Gerardo de Rossignol, Leão de Perego, Gerardo de
Módena e fr. Pedro de Brixia.
26
23
RIGAUD, I. Vita Beati Antonii de Ordini Frati Minori. Padova: Ed. F. Conconi / Lib. Editrice Antoniana, 1930, p. 19.
“Tu viste os soldados e as nobres matronas a correr nas trevas da noite, com tochas acesas na mão, e aquelas que estavam
acostumadas a despender boa parte do dia ficando a rescaldar o próprio corpo em leitos macios, ora corriam atentas a ouvir
o pregador, sem reportar nenhum dano, como me foi referido. Vinham os velhos, corriam os jovens, homens e mulheres,
juntos, de toda a idade e de toda condição. E todos deixando de lado a procura das roupas vistosas, vestiam um hábito que
eu ousaria chamar religioso. Enfim, o próprio bispo de Pádua juntamente com o seu clero vinha ouvir a prédica do Servo
de Deus, Antônio, e dando admirável exemplo ao seu rebanho, exortava a escutar atentamente o pregador, também como se
fosse um exercício de humildade”.
24
SOUZA, José Antônio de Camargo R. Pensamento Social de Santo Antônio. Op. cit., p. 146
25
RAPP, F. Op. cit. p. 26. “a sua experiência de cônego o tinha incitado a considerar que era inútil e por vezes, prejudicial
reforçar as prescrições (...); não era a letra que contava mas o espírito. Se os irmãos não o respeitavam não seria um
documento legislativo a mais que os mudaria”.
26
BERTAZZO, Luciano. Vite e Vita di Antonio di Padova. In: CONVEGNOINTERNAZIONALE SULLA
AGIOGRAGIA ANTONIANA. Atti... Padova: Centro de Studi Antoniani. 1997. p. 217. “Antonio fa parte della ristreta
commissione che il capitolo generale ínvia a Gregório IX, perché sai data soluzione allá sofferta questione della
46
Como resultado destas reuniões o papa manteve João Parenti como Geral, dando razão
ao lusitano e seus companheiros. Antônio, depois desses encontros, continuou a pregar na Cúria
até setembro de 1230. Quanto ao valor normativo do Testamento, a decisão do papa foi
anunciada em 28 de setembro de 1230, através da bula Quo elongati, que determinava a falta de
caráter legal de tal documento, o que retirava qualquer obrigação de sua observação.
27
A edição desse documento, juntamente com a adoção de casas de estudo para a
formação dos pregadores, fazem parte de uma virada histórica da Ordem. Essa bula ratificou
oficialmente o processo de mudança pelo qual já passava o modo de vida franciscano das origens,
praticado principalmente na Úmbria e em suas vizinhanças. Agora, segundo José Antônio, era o
Menoritismo clericalizado e eclesializado da Itália Setentrional que passava liderar a instituição
franciscana.
28
Após vários anos de trabalho pastoral e missionário ininterrupto, o religioso
olisiponense, já perto dos quarenta anos de idade, adoeceu e ficou sem força física para continuar
como responsável pelos frades. Assim, o Capítulo Geral de Pentecostes de 1230 lhe concedeu a
carta geral de pregador e o liberou do ofício de Provincial.
29
Com o entendimento do modo de pregação e do magistério de Antônio, podemos
reconhecê-lo como mestre franciscano, pois, através das narrações feitas sobre sua vida pastoral e
palavra, sua doutrina e escritos e sua espiritualidade , ele revestiu de ciência e oratória a pregação
simples e popular de Francisco. Como precursor da Escola Franciscana, ele tornou-se um elo de
‘legalitá’del Testamento di Francesco. È inviato assieme al ministro generale, Giovanni Parenti, al , al penitenziere
apostólico Gerardo Rossignol, al teólogo (e futuro ministro generale Aimone da Faversham (...), Leone de Perego, poi
arcivescovo de Milano, Gerardo da Modena e Pietro de Brescia. Sono tutti esponenti – come rileva Rigon – di una línea de
minoritismo internazionale e padano cresciuto per lo più lontano dall’Umbria e da Francesco (...) maturato nell’attivitá
apostólica in stretto collegamento com la cúria romana’(...).
27
SOUZA, José Antônio de Camargo R Pensamento Social de Santo Antônio. Op. cit., p. 149-150.
28
Ibidem, p. 153-154.
29
Lemos na Legenda Assídua 11, 2: “Tempore nanque capituli generalis [...], solutus ab administrarione fratrum, servus
Dei Antonius generalem paraedicationis libertatem a ministro generali suscepit.”
47
ligação entre a velha tradição agostiniana e tal Escola. Antônio influenciou, através de suas
obras, pregações e aulas, as gerações de franciscanos subseqüentes, como pode ser comprovado
pelas obras de Boaventura, Bernardino de Sena, Jaime da Marca e Scoto.
Ao finalizar esse capítulo, podemos chegar a algumas conclusões que nos dão idéia do
papel de Antônio para o desenvolvimento dos primórdios do franciscanismo. Primeiro, ele trouxe
para o seio da ordem toda uma bagagem intelectual baseada no conteúdo dogmático e moral dos
escritos dos Padres da Igreja. Conhecimento que tinha sua base central no pensamento de
Agostinho. Ele também foi um dos agentes da tranformação estrutural desenvolvida no seio da
Ordem a partir da bula quo elongati, mesmo que tenha mantido o espírito de oração e
devoção”, não se afastando da veia principal do ideário do fundador.
30
Essa transformação cultural trazida ao seio da Ordem pelo ministério teológico de
Antônio e sua participação nos acontecimentos apresentados neste capítulo, foram importantes
para a libertação dos franciscanos do modelo místico implementado em seu momento inicial, a
fraternitas, uma vez que dentro do tipo de civilização que estava se afirmando no mundo, a
Ordem ter-se-ia encontrado fora do jogo e talvez inútil”.
31
30
SOUZA, José Antônio de Camargo R. Pensamento Social de Santo Antônio. Op. cit. p. 160.
31
ZAVALLONI, Roberto. Pedagogia Franciscana: Desenvolvimentos e Perspectivas. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 202.
48
CAPÍTULO IV
Os Sermões Antonianos: simples ou doutos?
vimos até aqui toda a trajetória de Antônio de Lisboa/Pádua. A partir de agora
começaremos a analisar de forma mais sistemática a sua obra sermonária. Para tal, estaremos
contextualizando e explicando a escolha dos sermões que analisamos.
Em um primeiro momento, vamos discutir em que grupo de pregadores encontra-se
Antônio, procurando entender se estava entre aqueles, que a partir de seus textos, são
considerados pregadores simples ou entre os doutos. Diante de sua pregação, poderíamos
enquadrá-lo como homem letrado medieval? Se que os homens dessa categoria levar-se-iam
pelos elementos fantásticos contidas nos bestiários medievais? As respostas a essas questões, que
podem parecer simples numa primeira passadela pelas linhas de sua obra, serão trabalhadas nesse
capítulo, no qual buscaremos mostrar ainda como a obra antoniana é dividida e quais foram as
principais preocupações do franciscano português ao compô-la.
Continuando o capítulo faremos uma apresentação dos sermões escolhidos para a nossa
análise, para compreendermos as temáticas e os propósitos do frade ao compor a sua obra.
4.1 CARACTERÍSTICAS DOS SERMÕES ANTONIANOS
Ao escrever seus Sermões Dominicais, que foram elaborados entre 1227 e 1230, e os
Festivos, compostos entre o outono e o inverno europeu de 1230-1231, é provável que Frei
49
Antônio de Lisboa/Pádua vivesse uma grande inquietação em relação à sociedade que lhe era
coetânea.
Como assinalado na introdução, Os Sermões Dominicais e Festivos são uma obra
composta de duas partes distintas. A primeira, somam 53 sermões e foram escritos em Pádua
durante o triênio em que frei Antônio foi Ministro Provincial do norte da Itália (1227 1230). A
esses estão agregados mais quatro sermões para as festas marianas, que estão colocados logo após
o sermão para o décimo segundo domingo depois de Pentecostes. A partir do fim de 1230, o frade
iniciou a confecção dos sermões festivos, que foram redigidos até o agravamento de sua doença,
que levou ao encerramento de sua vida em 1231. Antônio escreveu esses sermões a partir das
ordens de Rainaldo de Jenne, Cardeal de Óstia, que viria a se tornar o papa Alessandro IV.
Contudo, sua saúde o permitiu escrever vinte sermões, indo até a festa de São Paulo, que
ocorre no dia 30 de junho.
Em trechos de sua obra, como no Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma,
podemos observar um incômodo profundo em relação à vivência da e aos costumes praticados
pelos membros do clero contemporâneo. Nesse sermão o frade afirma que:
Efetivamente, há alguns que durante a oração e ao fazer genuflexões e dar
suspiros querem ser vistos. Outros desejam ser ouvidos quando cantam no coro,
quando procuram imitar a cítara com a garganta. outros ainda que ao
pregarem, ao lançarem voz trovejante, ao multiplicarem as citações e as
glossarem a seu modo, e ao girarem em volta de si, querem-se fazer aplaudir.
1
1
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Porto: Lello & Irmão, 1987, p. 115.
50
Observa-se em sua produção um engajamento ao projeto institucional da Santa Sé, que
buscava dar continuidade à Reforma Gregoriana e dava prevalência aos seus ensinamentos
morais, visando à disciplinização, à normalização, e à moralização do clero.
2
Os Sermões antonianos não foram escritos exatamente da maneira como eram
proferidos à população.
3
Na verdade, esses sermões eram a continuidade das aulas que o frade
ministrava aos novos frades pregadores para torná-los oradores sacros mais eficientes em sua
missão, tratando-se também, segundo Francisco da Gama Caeiro, em alguns casos, de resumos
de pregações efetivamente feitas aos fiéis.
4
Em nossa perspectiva, apesar dos seus escritos servirem como uma espécie de manual
aos franciscanos que participavam das missões de pregação junto aos cátaros, não podemos
considerá-lo um estudioso ou teórico da arte de construir sermões. Tal afirmação está baseada no
fato de não nos ser apresentada, em sua obra, nenhuma orientação teórica sobre cnicas ou
formas de organização dos escritos que formariam um sermão.
Além de ter como público alvo os franciscanos, que poderiam se inspirar na obra para
preparar seus próprios sermões, o texto antoniano buscava algo maior, isto é, ele tentou afirmar a
Ordem dos Frades Menores como modelo a ser seguido pelo clero tradicional, composto pelas
ordens mais antigas, como os agostinianos e beneditinos, e o clero secular. Pois, para ele, a
heresia era fruto dos desleixos morais e espirituais desse grupo. A produção antoniana tem uma
grande e acentuada preocupação didático-catequética. Com isso, seu autor propunha aos
2
PELLEGRINI, Luigi.Los Cuadros y Tiempos de la Expansion de la Ordem. In: Francisco de Asís y el primer siglo de
historia franciscana. Oñati: Editorial Franciscana Arantzazu, 1999, p. 194-205. (Coleccion Hermano Francisco, 37)., p.
195.
3
CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Introdução a Obra Antoniana. Op. cit., p.137.
4
Ibidem, p. 138.
51
eclesiásticos e aos leigos, a cada um e a todos os cristãos, um programa de mudança de
comportamento.
Outro aspecto de destaque em seu texto é o fato de que o frade menor trata tanto de
situações que vivera anteriormente como das contemporâneas à sua produção. Ele escreve
inspirado em textos bíblicos que são interpretados a partir de saberes filosóficos, teológicos,
profanos e científicos da época, como é expresso literalmente no texto:
O diabo teceu a teia como a aranha, da qual se diz assim no Livro de Ciências
Naturais: A aranha estende primeiramente os fios da sua urdidura de um extremo
a outro; em seguida tece no meio, entre estas extremidades, e coloca ali a textura
suficiente e prepara lugar conveniente para a caçada. (...) Também o diabo,
quando quer prender o homem, primeiro estende fios de pensamentos subtis, e
põe-nos nas extremidades, isto é, nos sentidos de corpo, através dos quais
subtilmente pode conhecer a que vício o homem é mais sensível.
5
Essa característica, por si só, torna os escritos antonianos uma fonte de idéias, que
apresenta diversas possibilidades de investigação.
O sermão, nos tempos de Antônio, era um gênero literário bastante usado. Inclui-se
nesse gênero o castigatio clericorum, as severas proibições dirigidas ao clero, e que são muito
freqüentes na obra de Antônio. No sermão escrito, a castigatio tinha como fim pastoral tanto a
formação do clero, para que os candidatos a eclesiásticos escapassem dos vícios, como a correção
dos clérigos em idade madura, que os Sermões, por serem material de estudo, provavelmente
circularam pelas mãos de qualquer categoria de clérigos, desde os de funções mais humildes até
os de maior responsabilidade, ou seja, os prelados.
6
Quanto aos aspectos literários dos Sermões, destacam-se as exposições doutrinais, os
comentários escriturais, as anedotas, as orações conclusivas, o discurso direto com o leitor, as
5
Antônio de Lisboa/Pádua. Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma. Op. cit., p. 180.
6
MARQUES, Bernardino Fernando da Costa. O Prólogo aos Sermões Dominicais de Santo Antônio de Lisboa. In:
CONGRESSO INTERNACIONAL PENSAMENTO E TESTEMUNHO. Braga, 1996. Atas... Braga: UCP/FFP, 1996. p.
477-484.
52
fórmulas introdutórias e o uso da língua latina.
7
O próprio frade demonstra ser um grande
conhecedor dos elementos literários de uma pregação, quando desaprova a conduta dos
melindrosos, que mesmo lendo muito, jamais chegam à verdadeira ciência, pois esses, estavam
mais preocupados em demonstrar sua erudição, através da citação de vários autores, do que
deterem-se de forma mais sistemática nos ensinamentos bíblicos, que eram considerados, então,
como o caminho maior na busca da verdadeira sabedoria. Antônio diz que: “retira de um livro o
que lhe faz falta e coloca-o na colméia de tua memória”.
8
Segundo Gustavo Cantini,
9
os escritores mais conhecidos na arte da pregação
anteriores a Antônio foram: Guilberto de Nogent,
10
Pedro Cantor,
11
Alano de Lille
12
e Tiago de
7
MARQUES, Bernardino Fernando da Costa. O Prólogo aos Sermões Dominicais de Santo Antônio de Lisboa, p. 479.
8
Antônio de Lisboa/Pádua. Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas Op. cit., p. 183.
9
CANTINI, P. Gustavo. Miscellanea. La Técnica e I’ndole del Sermoni Medievale e di Sermoni di S. Antonio de Padova.
Op. cit., p. 62.
10
Guiberto de Nogent Quo ordine sermo fieri debeat, PL 156. Guilbert era teólogo, abade beneditino do mosteiro de Notre-
dame e viveu entre os anos de 1055 e 1125. Segundo o Prof. Gian Carlo Alessio, “Guilbert Scrive i Gesta Dei per Francos
senza gli elementi eccessivamente miracolistici che caratterizzano alter fonti. Egli scrive anche un De pignoribus
sanctorum, nel quale mette in guardia dall'eccessiva credulità nelle reliquie (e dalla Terrasanta ne erano arrivate tante!), che
necessitano viceversa di certificazioni autorevoli e severe. Talevena critica si rivela anche nel De vita sua, una delle rare
autobiografie medievali (insieme a quella di Otlone di Sant'Emmerano e a poche altre). Guiberto riesce a darci interessanti
spaccati della sua vita privata (soprattutto l'affetto per la mamma, che ha dato luogo a stravaganti interpretazioni
psicanalitiche; e poi l'entusiasmo per gli studi, la devozione alla Vergine, ecc.), ma anche importanti notizie sulla vita
ecclesiastica della Francia della fine del secolo XI. ALESSIO, Gian Carlo. La cultura nell’età delle cattedrali (secc. XI-
XII). Informações retiradas do site: Civiltà e letteratura latina medievale. Disponível em: www.unive.it/media/allegato/
alessio_giancarlo/a.a.% 202005-2006/CIV_LETT_LAT_MEDIEV_parteII.pdf. Consultado em: 13/07/2007.
11
Pedro Cantor († 1197), Verbum abbreviatum, PL 205. Segundo o site symploke.trujaman, Pedro Cantor foi “Maestro de
teología de Nuestra Señora de París. Estudió con Alberico de Reims, discípulo de Anselmo de Laón y desarrolló la teología
en el sentido de Guillermo de Champeaux, frente a la tendencia de los maestros de teología anteriores a Cantor (por
ejemplo Pedro de Poitiers) que trataron la teología diálectica (tal y como había sido propuesta por Pedro Abelardo y Pedro
Lombardo)”.Disponível em: http://symploke.trujaman.org/ index.php?title=Pedro_Cantor. Consultado em: 13/07/2007.
12
Allano de Lille († 1203), Summa de arte praedicatoria. Segundo o site filosófico.net, “Alano da Lille (Alain de Lille) era
nato a Lille (in Francia) nel 1125 circa. Formatosi alla scuola di Chartres, egli insegnò a Parigi e a Montpellier. Negli
ultimi anni della sua vita si fece monaco cistercense nell'abbazia di Cîteaux, ove morì nel 1203. Fu teologo, importante per
l'aver rivendicato alla teologia una dignità pari a quella delle altre scienze. Opere letterario- filosofiche sono Pianto della
natura (De planctu naturae) in prosa e versi, e Anti Claudianus (Anticlaudianus) in versi, in cui concepisce la natura
secondo i modi neoplatonisti della scuola di Chartres, e la raffigura allegoricamente come portatrice di armonia e
dell'ordine stabiliti dal creatore, ma continuamente violati dagli uomini che cedono ai vizi. I suoi modelli letterari sono
desunti da Boezio (La consolazione della filosofia) e Platone (Timeo), ma anche dalla mistica ebraica (in particolare
l'allegoria del carro, nell'Anti Claudianus). Della vita di Alano di Lille (anche noto come Alanus ab Insulis) si sa in realtà
ben poco. Probabilmente prese parte al Concilio Laterano nel 1179; in seguito stabilì la sua residenza a Montpellier
(talvolta viene chiamato Alanus de Montepessulano), visse per qualche tempo al di fuori delle mura di ogni monastero ed
infine si ritirò a Citeaux, dove morì nel 1202. Egli conobbe una fama assai diffusa durante la sua vita e la sua conoscenza,
più diversificata che profonda, gli guadagnò il soprannome di Doctor universalis. Tra le sue numerose opere, due poemi lo
53
Vitry,
13
entre outros. Esses autores preocupam-se, em suas obras, em abordar, principalmente, as
qualidades intelectuais e morais fundamentais para os pregadores e fornecem um conjunto de
temas para pregação.
Segundo frei Henrique Pinto Rema, ao nos debruçarmos sobre os sermões compostos
por estes autores, podemos observar que
A série ininterrupta das citações bíblicas, com preferência para a interpretação
moral e alegórica, as concordâncias (um tanto arbitrárias em muitos casos), o
simbolismo, as comparações, as definições, as etimologias e outros processos
destinados a capitar a benevolência do leitor ou do ouvinte da Idade Média
acabam por enfastiar quem não estiver prevenido.
14
Os textos de Antônio se assemelham aos desses autores. Como nos autores citados,
também não encontramos em suas obras orientações técnicas sobre a construção de sermões. E
como o próprio franciscano português nos informa,
Em nosso tempo, a estulta sabedoria dos leitores e dos ouvintes degradou-se a tal
ponto, que se não encontram e não ouvem palavras elegantes, rebuscadas e
altissonantes de novidade, enfastiam-se da leitura e recusam-se a ouvir. E, por
isso, para que a palavra de Deus, com dano das almas, não lhes merecesse
desprezo e enfado, no príncipio de cada Evangelho pusemos um Prólogo
correspondente ao mesmo Evangelho, e inserimos no mesmo trabalho uma
exposição moral sobre a natureza de coisas e de animais e etimologias de
vocábulos.
15
As abordagens que viriam a tratar do que podemos chamar hoje de teoria para
construção do sermão culto, surgiram logo após o franciscano ter escrito sua obra. Alguns
escritores posteriores passaram a se preocupar com a forma estrutural dos sermões, isto é,
elevano ad un posto di rilievo tra gli autori della letteratura latina medievale. Alano di Lille è stato spesso confuso con altri
"Alano", in particolare con Alano l’arcivescovo di Auxerre, Alano l’abate di Tewkesbury, Alano di Podio, ecc. Gli sono
stati attribuiti alcuni avvenimenti delle loro vite, così come alcune delle loro opere: per questo motivo la Vita di San
Bernardo dovrebbe essere attribuita a Alano di Auxerre e il Commentario su Merlino ad Alano di Tewkesbury. Il filosofo
di Lille non è neanche l’autore di un Memoriale rerum difficilium, pubblicato sotto il suo nome; e vi sono inoltre fortissimi
dubbi sul fatto che il Dicta Alani de lapide philosophico sia frutto della sua penna. D’altro canto, sembra ora essere
praticamente dimostrato che Alano di Lille sia l’autore dell’ Ars catholicae fidei e del tratto Contra haereticos. Disponível
em: http://www.filosofico.net/alanodilille.htm. Consultado em 13/03/2007.
13
Tiago de Vitry (1180-1240), Sermones in epistolas et evangelia dominicalia totius anni.
14
REMA, Henrique Pinto. Introdução. In: Santo Antônio: Obras Completas. Porto: Lello & Irmão, 1987, p. LV.
15
Santo Antônio. Prólogo. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras Completas. Op. cit., p. 6.
54
elaboraram orientações de como deveriam ser construídas as obras sermonárias. Como até o
século XIII, para se aprender a elaborar um sermão partia-se de um modelo, a criação e
divulgação desses aos clérigos era de fundamental importância.
16
Apesar de serem escassos e sem preocupações teóricas, quando o frade escreveu sua
obra, os manuais para pregadores eram fundamentais, principalmente para que fosse mantida a
diferença entre os dois tipos de pregadores existentes então, os populares e os universitários. Para
entender a importância dessa diferença, torna-se fundamental observarmos que o sermão e a
conferência faziam parte do ensinamento universitário. Um dos ofícios do magister era pregar e
para ter como encerrado um período de estudos se fazia necessário conhecer e provar o domínio
da arte da pregação.
17
A maior diferença entre os sermões dos simples face aos dos doutos residia na
enunciação do tema. No sermão construído pelos iletrados, o tema não era fixo e nem tinha como
ponto de partida trechos da Bíblia, sendo constituído por exortações e edificações. Se o sermão
fosse escrito por um letrado, o tema era, obrigatoriamente, formado por comparações de
autoridades e de frases completas das Escrituras e dos Santos Padres.
Segundo Henrique Pinto Rema,
18
habitualmente o tema era o começo do Evangelho de
domingo. Porém, já no primeiro sermão de sua coletânea, o do domingo da septuagésima,
Antônio foge à regra. Talvez por tratar-se do início de sua obra, usa o primeiro versículo da
Bíblia: “No princípio criou Deus o céu e a terra”.(Gen. 1:1)
Os tratadistas do sermão medieval informam de maneira incisiva que para a construção
de um sermão ordenado, o mesmo deveria iniciar-se a partir da autoridade da Escritura. Porém,
16
REMA, Henrique Pinto. Introdução. In: Santo Antônio: Obras Completas. Op. cit., p. LV.
17
CANTINI, P. Gustavo. Miscellanea. La Técnica e I’ndole del Sermoni Medievale e di Sermoni di S. Antonio de Padova.
Op. cit., p. 62.
18
REMA, Henrique Pinto. Introdução. In: Santo Antônio: Obras Completas. Op. cit., p. LIX.
55
esta enunciação não conferia o status a um orador de estar proferindo um sermão douto. Para que
fosse assim considerado, o tema deveria ser definido das seguintes formas: com os versos
direcionados por qualquer Sentença do Evangelho, ao modo dos universitários; com os versos
desdobrados, versículo por versículo, ao modo dos Santos Padres; ou com os versos divididos em
cláusulas ou partículas, assim como era feito por Antônio, como podemos ver abaixo:
(...) E para que a vastidão do assunto e a variedade das concordâncias não
gerassem a confusão e o esquecimento no espírito do leitor, dividimos os
Evangelhos em cláusulas, conforme Deus nos inspirou, e com cada uma delas
fizemos concordar as partes do fato histórico e as da Epístola.
19
Para a ligação e distribuição dos versículos bíblicos o pregador português utilizou o
método da concordância. O uso deste método estava vinculado a um profundo conhecimento do
Antigo e do Novo Testamento, pois visava mostrar a unidade existente entre os dois a partir dos
temas propostos pelo Novo Testamento. Vale salientar que essa concordância não era feita,
simplesmente, por palavras e sim como ele mesmo diz entre os fatos que aconteciam e a Bíblia. O
próprio franciscano em seu prólogo afirmou que ele usou a concordância para combinar as idéias
ou os assuntos que abordou:
20
“(...) Coligi estas matérias e concordei entre si, segundo o que me
concedeu a graça divina e consentiu a frágil veia da minha ciência pequenina e pobrezinha ...”
21
Também, podemos observar neste trecho que o frade utiliza uma forma de retórica convencional
conhecida como topos da falsa modéstia.
22
Acreditava-se que para convencer a alguém através da
retórica era necessário modéstia por parte de quem argumentava.
Quando o franciscano assumia que o dogma apresentado não provinha dele e sim de
Deus, ele transferia para a divindade a autoridade de seu texto. Segundo Gérman Vargas Guillém,
“por su naturaleza, argumentar impone el reconocimiento del otro; este proceso sólo es eficaz en
19
Santo Antônio. Prólogo. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras Completas. Op. cit., p. 5.
20
SOUZA, José Antônio de Camargo R.. O Pensamento Social de Santo Antônio. Op. cit., p. 84.
21
Santo Antônio, loc. cit.
56
la medida en que se opera la mentada inclusión”.
23
Dessa forma, Antônio deixou claro sua
preocupação com o ouvinte ou leitor ao não querer apresentar a verdade como sua, mas sim
proveniente da boca de Deus. Sabia, pois, que tal autoridade traria legitimação para seu discurso.
Voltando às características do tema, este, no período de Antônio, estava acrescido do
protema, que não havia sido usado até o final do século XII e aparece nos sermões sobre os
evangelhos de Jacques de Vitry.
24
Antônio usou o protema como prólogo, como era comumente
empregado nos sermões universitários. Para sua utilização era fundamental certa afinidade com o
tema. Normalmente o protema tinha como preocupações principais tratar da figura do pregador,
ou da pregação, dos ouvintes, ou de sua obrigação de escutar a Bíblia, porque isto abriria a
estrada da oração ou invocação da ajuda divina, que se devia clamar sempre antes de se iniciar
um sermão. Podemos citar como exemplo o sermão da sexagésima, que tem como tema : “Saiu o
semeador a semear”
25
Na primeira cláusula Antônio informa que este seria “um sermão para os
pregadores a respeito do pregador sumo”
26
.
Na verdade o protema era um exórdio pouco elaborado destinado, antes de tudo, a
cativar a atenção e afeição dos ouvintes. Quando o leitor o encontrava nos sermões medievais
deveria estar atento, pois o protema parecia não ter familiaridade alguma com o tema, sendo que
após o seu desenvolvimento retornava-se ao tema, em geral quando tratava de proposições.
Os sermões medievais possuíam como principal destino a explicação da Escritura, com
o propósito de iluminar o intelecto e de inflamar o desejo do ouvinte pela salvação da alma. Para
22
MACEDO, JoRivair. Tempo, providência e apocalipse na “História francorun” de Gregório de Tours. Disponível
em: http://www.abrem.org.br/tempoprovidencia.pdf. Consultado em: 13/07/2007.
23
GUILLÉM Gérman Vargas. DE LA LÓGICA A LA RETÓRICA–La argumentación como estructura epistemológica de
las ciencias sociales. Disponível em: http://www.pedagogica.edu.co/storage/folios /articulos/fol16_04arti.pdf. Consultado
em 13/07/2007.
24
CANTINI, P. Gustavo. Op. cit., Miscellanea. La Técnica e I’ndole del Sermoni Medievale e di Sermoni di S. Antonio de
Padova. Op. cit., p. 67.
25
Lucas 8, 15.
26
Santo Antônio. Sermão da Sexagésima. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras Completas. Op. cit., p. 37.
57
os pregadores medievais a Escritura era a verdade da fé, era a fonte da virtude cristã. Geralmente
nos sermões só se tratava do texto bíblico que delimitava o tema.
O texto bíblico têm papel preponderante na estruturação do sermão antoniano e isto ele
deixa claro ao afirmar que:
Está escrito em nesis: Na terra de Hevilat nasce ouro e o ouro daquela região
é óptimo. Hevilat interpreta-se parturiente e significa a Sagrada Escritura (..)
Na terra de Hevilat nasce, portanto, ouro óptimo, pois que do texto das páginas
divinas emana a ciência sagrada; e como o ouro está acima de todos os metais,
assim a ciência sagrada sobressai a toda a ciência: Não conhece as letras quem
ignora a Escritura Sagrada.
27
Para Antônio, a Bíblia era a produtora da “verdadeira ciência”, que é comentada nos
sermões tendo como ferramenta principal os escritos dos Santos Padres. Além de ser a base para
a construção do discurso antoniano, as Sagradas Escrituras foram a fonte de inspiração do teólogo
para a criação de alegorias que elucidam a necessidade da prática das virtudes, que se
constituíam, para ele, de suma importância para o fortalecimento da Igreja e da salvação.
Com a incidência e a maneira que o frade utiliza as passagens bíblicas, ao vermos a
estrutura dos Sermões concordamos com Zavalloni,
28
quando afirma que a linguagem
acentuadamente bíblica de Antônio obedecia à recomendação de Francisco da necessidade de
manter vivo nos discípulos o espírito de oração e de devoção.
Para a utilização da blia em sua obra, o frade tinha como ponto de partida a liturgia,
com seus temas e exortações, como assinalado. O próprio frei Antônio no Prólogo de sua obra
afirma que os versículos bíblicos foram utilizados numa espécie de quadriga.
29
Sendo assim,
expõe que como este veículo, que possuía quatro rodas, seus sermões versavam sobre “quatro
27
Santo Antônio. Prólogo. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras Completas. Op. cit., p. 2.
28
ZAVALLONI, Roberto. Pedagogia Franciscana: Desenvolvimentos e Perspectivas. Op. cit., p. 95.
29
Antigo carro de corrida puxado por quatro cavalos.
58
matérias, a saber, os Evangelhos dos domingos, fatos históricos do Velho Testamento, tais quais
se lêem na Igreja, os Intróitos e as Epístolas da missa dominical”.
30
No Medievo, os textos bíblicos eram explicados a partir de quatro sentidos ou pontos
de vista: literal, alegórico, moral ou tropológico, que era o mais utilizado no período, e
anagógico. O sentido literal trata do fato histórico como tal. O sentido alegórico aborda o que se
deve esperar: os fatos do Antigo Testamento, nesse caso, são figuras e imagens do que se verifica
no Novo Testamento. O sentido moral ou tropológico versa sobre o que se deve fazer: o que
ocorreu com Jesus é válido também para os fiéis. O sentido anagógico significa o que se deve
esperar: nesse caso, olhando para a prática de Jesus como uma antecipação do que acontecerá na
vida eterna.
Logicamente as características de cada sermão dependiam do conceito que cada
pregador tinha em seu tempo das Sagradas Escrituras e de seu papel para a vida, seja prática ou
interior, do cristão. Temos que observar que o modo como foram apreendidas as idéias contidas
nos sermões dependia dos hábitos mentais dos fiéis.
Para Gilberto Abade a eficácia do pregador dependeria de seu exemplo, isto é, ele
deveria praticar as virtudes e fugir dos vícios.
31
Era fundamental que o religioso que construísse
um sermão fosse além de uma simples citação das virtudes em comparação com a Escritura.
Fazia-se necessário uma análise tropológica ou moral que fundamentasse os argumentos do texto.
Esse tipo de análise pode ser observado no Sermão do Segundo Domingo da Quaresma, no qual
está escrito o seguinte:
O monte,
32
por causa da suas altitude, significa a excelência da vida santa, em
que o pregador, deixado o vale dos bens temporais, deve subir a escada do amor
30
Santo Antônio. Prólogo. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras Completas. Op. cit, p. 4.
31
CANTINI, P. Gustavo. Op. cit., Miscellanea. La Técnica e I’ndole del Sermoni Medievale e di Sermoni di S. Antonio de
Padova. Op. cit., p. 67.
32
O monte ao qual o frade português se refere é o da Transfiguração, que é citado no Livro do Êxodo 24,12.
59
divino, e encontrará o Senhor, pois que o Senhor se encontra na excelência da
vida Santa.
33
Frei Antônio, em sua obra, estava à procura do sentido espiritual dos textos bíblicos,
mais do que erudito. Queria que o cristão sentisse a voz de Jesus que falava à sua alma, para
ensinar a caminhar na vida de penitência da fé, humildade e caridade. Ele buscava o espírito, não
a letra, e entre os rios sentidos que separam o espiritual do material, ele buscava
preferencialmente o tropológico ou moral.
Para G. Cantini, o frade não era o único praticante desse tipo de abordagem. Segundo o
autor, a maneira como fazia várias tropologias e interpretações morais não era singular. Na
verdade, tais representações foram retiradas de mestres como Inocêncio III e, principalmente,
Bernardo, como podemos ver a seguir:
Também a avareza corrói o coração do avarento, ao pretender sempre mais. Mas
o infeliz, quanto mais possui, mais fome tem. Donde a palavra de S. Bernardo: o
coração do homem não se sacia de ouro, como o seu corpo não se sacia de ar.
Além da Bíblia, outros textos serviam como autoridades para legitimar o discurso do
autor e confirmar a sua reflexão. Eram uma demonstração do quanto o pregador estava preso ao
tema e como cada citação servia para reafirmá-lo. Normalmente, a primeira citada era a Bíblia e,
em seguida, os Santos Padres e as Glosas, tanto ordinárias com a interlinear.
34
As duas últimas
eram expressamente citadas e, em muitos casos, copiadas integralmente como citação, como
podemos ver no Sermão do Segundo Domingo da Quaresma, na qual frade escreveu que:
33
Santo Antônio, Sermão do Segundo Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 118.
34
A Glossa era um comentário continuo de toda a Bíblia, era um filtro do que melhor haviam falado os antigos
comentaristas, isto é os Padres da Igreja. Estas eram anotações feitas diretamente no texto. Existiam dois tipos de glosas.
As ordinárias, às margens do texto, e as interlineares, entre as linhas. Estas eram independentes, mas a primeira era mais
extensa e mais rica em informações.
60
Como refere Santo Agostinho, o médico bebe primeiro a poção amarga, para que
o doente não tenha medo de a beber. Por meio de uma porção amarga, diz São
Gregório, se chega ao gozo de saúde.
35
Outra grande característica do sermão medieval, fundamental para nossa pesquisa, é o
uso de etimologias e do simbolismo dos animais, das plantas, das coisas naturais em geral.
Aristóteles, Plínio, C. G. Solino, Isidoro de Sevilha e outros descreveram os costumes dos bichos
longínquos da “Índia exuberante” e da “África misteriosa”. Era um misto de lendas e ciência
exata que tomavam conhecimento por observação direta ou por haverem ouvido falar.
A partir, principalmente do século XII, muitos teólogos e contemplativos passaram a
considerar o mundo como algo simbólico. Principalmente porque a utilização dos elementos da
natureza, a fim de tratar das coisas da fé, transformava a pregação em algo atrativo e
compreensível, conferindo ao orador grande prestígio. Para Antônio o uso dessa simbologia tinha
como objetivo tornar a comunicação mais ampla, ao não utilizar somente os ouvidos dos ouvintes
como veículo receptor da mensagem, mas também os olhos, através de imagens que faziam parte
do cotidiano, ou da imaginação, que também podia criar imagens que tornariam a percepção do
que estava sendo falado mais inteligível.
Para Samuel Doimi:
36
Cada animal, cada planta, cada pedra preciosa, é para ele símbolo de uma
virtude, de um vício, de um dogma; é imagem de um estado de alma, de uma
fase de espiritualidade, da pena eterna, da glória eterna, da bem-aventurada
Virgem Maria, de Cristo, do Espírito Santo, ou também do espírito maligno. E
não as plantas, animais e pedras em geral, mas as partes, propriedades ou
hábitos destes dizem algo à fervorosa fantasia e à inteligência aguda de Antônio.
Essa aplicação das coisas naturais como instrumento alegórico ou simbólico para a
conversão é uma forma de efetivar o ideal franciscano, isto é, através de tudo que foi criado
busca-se alcançar ao Criador.
35
Santo Antônio. Sermão do Segundo Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 124.
61
No caso dos bestiários, que tratavam de esclarecer e organizar o simbolismo dos
animais, encontramos considerável produção literária por toda a Idade Média. Entre os autores
conhecidos deste gênero, no período medieval, estão Solino, Hugo
37
e Ricardo de São Vitor.
38
No caso dos Sermões, apesar do autor se utilizar de algumas citações de Hugo para
referir-se às bestas, como o elafante, o basilísco e animais marinhos, Solino lhe foi fundamental.
No sermão do domingo na oitava da Páscoa, frei Antônio descreve assim a característica do
elefante:
Procedem como os elefantes, dos quais escreve Solino: As fêmeas não
conhecem o amor antes dos dez anos, os machos antes dos cinco; coabitam
durante dois anos, apenas cinco dias no ano, e não voltam à manada antes de se
lavarem em águas correntes.
36
DOIMI, Samuel. Le Scienze Naturali in Sant'Antonio. In: S. ANTÔNIO DOTTORE DE LA CHIESA. 1947, Roma e
Pádua. Atas... Cidade do Vaticano: Tipografia Poliglota Vaticana, 1947, p. 452.
37 Hugo de São tor compôs a obra bestiis et aliis rebus libri quatuor, na qual, em seu primeiros três capítulos, trata dos
pássaros e dos animais terrestres e selvagens. Segundo o site accio.com.br, Hugo de S. Vítor nasceu no ano de 1096 na
Alemanha, que na época chamava-se Sacro Império Romano Gernico. Ainda jovem, sentindo-se chamado para a vida
religiosa, foi aconselhado por seu tio que era bispo a mudar-se para Paris e ingressar no Mosteiro de São Vitor, pertencente
à congregação recentemente fundada dos Cônegos Regulares de São Vitor, que hoje não existe mais. Junto ao mosteiro de
São Vítor havia uma escola de Teologia. Com o tempo, Hugo de S. Vítor tornou-se professor nesta escola e mais tarde
também o seu diretor e principal organizador. Ali veio a falecer no ano de 1141. Em suas obras Hugo de S. Vitor mostrou
como o estudo da ciência sagrada pode ser utilizado como instrumento para o desenvolvimento das virtudes e da vida
espiritual. Deixou uma obra conhecida como Os Mistérios da Fé Cristã que foi o primeiro texto da Igreja Latina em que se
tentou fazer uma síntese abrangente de toda a doutrina cristã; Os Mistérios da Cristã foi, de fato, a primeira de todas as
Summas Teológicas que começaram a aparecer em seguida, desta maneira preparando o caminho para o surgimento da
importantíssima Summa Teologica de Santo Tomás de Aquino duzentos anos mais tarde. Hugo de São Vítor tinha um amor
imenso pelo estudo das Sagradas Escrituras, tendo deixado de alguns dos livros da Bíblia comentários de raríssima beleza.
Em um opúsculo intitulado Sobre o modo de Aprender e de Meditar Hugo de S. Vitor deixou definições notáveis sobre a
contemplação, as quais desenvolveu, estendendo as concepções fundamentais do Tratado sobre a Santíssima Trindade de
Santo Agostinho, no Sétimo Livro do Didascalicon, também conhecido como o Tratado dos Três Dias, do qual existe uma
tradução portuguesa. A obra de Hugo de S. Vitor é bastante extensa, o que torna impossível comentá-la toda no pequeno
espaço destas páginas. Disponível em: http://www.accio.com.br/Nazare/1946/teol-imp.htm. Consultado em: 13/07/07.
38
Ricardo de São Vítor nasceu na Escócia e, atraído pela fama do Mosteiro de São Vitor, em que na época ensinava Hugo,
ainda jovem mudou-se para Paris onde foi admitido entre os vitorinos. Foi, assim, aluno de Hugo de S. Vitor, a quem
admirava profundamente. Anos mais tarde, quando Hugo faleceu, Ricardo continuou sua obra com tanta fidelidade que o
conjunto de ambas, a de Hugo e a de Ricardo, constituem na verdade como que uma só obra. Na Divina Comédia, quando
descreve o Céu, Dante Alighieri cita Ricardo de S. Vitor e diz que, quando falou sobre a contemplação, Ricardo de S. Vitor
foi "mais do que humano, verdadeiramente sobre humano". A obra de Ricardo de São Vítor é, em extensão,
aproximadamente um terço da de Hugo, mas é tão notável em perfeição quanto a do mestre. Entre seus livros cita-se um
tratado de uma beleza indescritível Sobre a Santíssima Trindade, que é, de certa forma, um aprofundamento do Tratado
dos Três Dias de Hugo. Ricardo escreveu também um livro, conhecido como Benjamim Menor, em que faz um comentário
alegórico à vida dos filhos de Jacó tal como é narrada pelas Sagradas Escrituras no livro de Gênesis, no qual descreve o
crescimento das virtudes como preparação à vida contemplativa, e sua continuação, o Benjamim Maior, outro comentário
alegórico à descrição contida no livro de Êxodo sobre o modo como deveria ser construída a Arca da Aliança, em que nos
mostra seis estágios no desenvolvimento da vida contemplativa. Ricardo de S. Vitor deixou também aquele que talvez seja
o mais belo comentário ao Apocalipse escrito pela tradição cristã. Disponível em:
http://www.accio.com.br/Nazare/1946/teol-imp.htm. Consultado em: 13/07/07.
62
Ricardo de São Vítor é usado, principalmente, nos Sermões Festivos, quer seja nas
descrições quer seja nas aplicações simbólicas dos animais. Porém, entre Antônio e ele ocorrem
algumas discordâncias como, por exemplo, no significado simbólico do tigre, que para o frade
simbolizava a luxúria, e para o monge representava a piedade materna.
Vale salientar que o uso dos bestiários na obra do frade português tem como objetivo
colher ensinamentos morais que são expostos de forma sistemática. Esta forma de utilização, nos
Sermões Dominicais e festivos, é realizada a partir de uma linguagem dura e incisiva.
Apesar de não ser um universitário ou magister formado, o frade foi escolhido para ser
o primeiro orientador de Teologia da Ordem dos Frades Menores. Essa escolha estava vinculada
não à indicação de Francisco de Assis. Temos que entender que, para a Igreja, que neste
momento encontrava-se influenciada, principalmente, pelos decretos Lateranenses, o controle e a
vigilância sobre os mestres e estudantes medievais eram fundamentais. Principalmente no que
tange a problemática da expansão das idéias heréticas. Se o frade fora aceito, inclusive, pelos
bispos das dioceses por onde passou, foi reconhecido legitimamente como magister, sem
nenhuma restrição, pela Santa Sé. Não podemos, somente a partir destes aspectos, entendermos
frei Antônio como letrado, intelectual ou iletrado. Temos que ser mais cautelosos ao usarmos a
“matricula”, ou “inscrição” do religioso em instituição universitária reconhecida pela Sé Romana,
como única forma de caracterizar sua condição sócio-educacional.
É muito provável que o frade, mesmo não tendo chegado a obter um título
universitário, em suas passagens por cidades que possuíam universidades, tais como Bolonha e
Paris, possa ter assistido pregações dos candidatos a magister ou teve acesso às técnicas, que
ficariam mais tarde conhecidas como as que determinariam o modo de escrita do sermão
medieval.
63
Ao destacarmos que o frade conhecia e foi fiel às técnicas de escrita do sermão
medieval e ao que a maioria dos teóricos do assunto entendiam como pregação douta, temos que,
pelo menos, qualificá-lo como um homem letrado e de formação bem próxima da acadêmica.
Para Roberto Zavalloni,
39
Antônio era um mestre da Escolástica e contribuiu para o crescimento
de tal ciência. O teórico justifica essa afirmação assegurando que os Sermões, em alguns trechos,
seguem o método positivo especulativo de Pedro Lombardo, considerado mestre da primeira fase
da Escolástica. Porém, o que constatamos, é que Antônio não faz parte do grupo dos grandes
luminares dessa escola, porém, ele é um dos preparadores deste período através do ensino do
método que viria a ser o dominante na teologia medieval. Assim, Zavalloni e Caeiro afirmam que
os Sermões possuem dois aspectos, o escolástico e o pastoral.
Assim como os dois autores citados, entendemos que a obra antoniana possui este viés
escolástico, que refletia o método usado no ensino e na formação dos frades, ensino este
baseado no mistério dos sacramentos e na pregação que depois seus alunos exerceriam entre os
fiéis. Pastoral, porque exigia uma pregação próxima aos fiéis, isto é nas ruas e praças, em todos
os lugares e não somente dentro das Igrejas e Catedrais.
Sendo assim, mesmo sem podermos definir, precisamente, seu grau de formação, ainda
que contrariando alguns teóricos até aqui citados, afirmamos que frei Antônio foi um teólogo
culto. Não podemos deixar de salientar que, como mestre, ele procurou instruir quanto à
construção de um sermão a fim de orientar seus alunos e todos aqueles que tomassem
conhecimento de sua obra. Pois como dominava a leitura, o religioso pôde ter acesso aos livros
presentes nas bibliotecas ligadas aos diversos centros escolares, pois como aponta Andréia
Frazão,
39
ZAVALLONI, Roberto. Pedagogia Franciscana: Desenvolvimentos e Perspectivas. Op. cit., p. 210.
64
(...) além das escolas urbanas catedralescas e universidades que se
especializavam no estudo do Direito, da Gramática e Filosofia, os mosteiros e as
escolas paroquiais, com seu ensino elementar e tradicional, mantinham-se ativas.
Logo, a grande maioria dos clérigos poderia ter acesso a um centro escolar,
ainda que não aos mesmos conhecimentos.
40
O frade, como é possível inferir por sua obra, utilizou praticamente todos os ítens e
orientações deixadas nos manuais para pregadores, que, com certeza, foram debatidos e copiados
em sua época, nas instituições universitárias de ensino as quais teve acesso. Ele também se
preocupou, como afirma no prólogo,
41
com aqueles que iriam ler sua obra e, por alguns serem
intelectuais, precisavam ver alguns aspectos fundamentais para qualificá-la como agradável.
Além disso, ele utilizou a blia, os Santos Padres e textos de ciência Antiga e Medieval como
base para suas pregações, como era fundamental para um sermão ser aceito como douto.
Não podemos deixar de olhar sua obra como um texto escrito por um “homem de
saber”,
42
que, além de tudo, fugia da informalidade natural aos franciscanos de seu período,
quando se tratava dessa matéria. Por isso, talvez tenha sido autorizado, como afirma José
Antônio, pelo bispo de Bolonha a ser o magister franciscano em sua diocese.
O historiador Jacques Verger, em sua obra Homens e Saber na Idade Média, cita
algumas características desses homens de saber. Primeiro estes personagens eram homens da
cidade, pois lá viviam, estudavam e exerciam suas funções.
43
Assim, ao analisarmos a vida de frei
Antônio, podemos rapidamente vê-lo dessa forma, um homem que desde seu nascimento esteve
ligado ao urbano. E viveu, principalmente quando atuou como mestre e pregador ligado aos
centros urbanos, franceses e italianos.
40
SILVA, Andréia C. L. F. Reflexões sobre a educação no reino de Castela durante o medievo. Pluris-Humanidades, ano 2,
n. 1, 2001, p. 27-45.
41
Santo Antônio. Prólogo. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras Completas. Op. cit., p. 2.
42
Para Jacques Verger, o termo “homens de saber”, “recorre em nosso espírito, dois elementos: primeiramente, o domínio
de um certo nível de conhecimento; em seguida, a revindicação, geralmente admitida pela sociedade circundante, de certas
competências práticas fundadas precisamente sobre os saberes previamente adquiridos”. In: Verger, Jacques. Homens e
Saber na Idade Média. Bauru: EDUSC, 1999.
43
Verger, Jacques. Homens e Saber na Idade Média. Bauru: EDUSC, 1999, p. 260.
65
Segundo Verger, uma segunda característica marcante destes homens era a sua
“profissionalização”, pois eles viam uma forte ligação entre sua “competência intelectual (...) e o
exercício de suas funções sociais”. Aqueles que trabalhavam para a Igreja passavam a ser
“protegidos pelo caráter sagrado da instituição, sendo defendidos contra qualquer golpe”.
44
Para
nós o frade também se encaixa nessa situação, uma vez que os franciscanos passaram a ter
autorização papal para ir de cidade em cidade, combatendo qualquer tipo de contestação às suas
práticas e dogmas. Vemos, por vezes, em seus escritos e em suas hagiografias, que frei Antônio
criticava de forma até rude, para os padrões atuais, aos bispos e autoridades temporais, o que para
nós é um reflexo desta proteção da instituição.
Para o teórico francês, uma outra característica seria a politização” desses homens.
Segundo o autor, a maioria desses serviam às autoridades, fossem elas temporais ou eclesiásticas.
Eles teriam, seja conscientemente ou não, promovido através de seu trabalho o estabelecimento
de “uma ordem fundamentada no estado de direito”.
45
Essa característica, também fica
claramente explicitada no capítulo que trata da vida de Antônio como franciscano. Ele se colocou
claramente a serviço da Igreja Romana no que tange a busca da hegemonia da instituição através
da luta pela manutenção do status quo.
Por último, Verger cita que tais homens buscavam a “especificidade”, pois suas
práticas eram marcadas por um “aspecto trabalhoso, técnico, profissional”. Seu trabalho tinha
como finalidade a “aquisição e aplicação de conhecimentos socialmente úteis e dirigidos para
finalidades concretas, mais freqüentemente políticas”.
46
Vemos então, no Prólogo dos Sermões, o
frade criticar aqueles que, ao escreverem, buscavam somente impressionar o público, pois
44
Verger, Jacques. Homens e Saber na Idade Média. Op. cit., p. 261.
45
Ibidem, 263.
46
Ibidem, 264.
66
certamente ele via seu ofício como algo que tinha um objetivo: a pregação àqueles que deveriam
conhecer a “verdade da Igreja”.
Dessa forma, podemos concluir, não somente pelas características de sua produção
intelectual, mas também pelos elementos sócio-culturais apontados por Verger, que o frade
pertencia ao grupo dos “homens de saber”. Nesse sentido, a obra antoniana marca a entrada da
Ordem dos Frades Menores em uma nova fase, pois ao lê-la, os frades , além de serem formados
como religiosos, tinham um modelo de como se fazia uma pregação douta. Passavam a ter
contato com autores que poderiam modificar a sua forma de pregar, que era informal, passando a
ser formal ou douta. Além disso, muitos frades optaram por uma vida de “homens de saber”, que
de certa forma os distanciava do ideal primitivo dos frades menores, que era viver em
fraternidade e humildemente, que a individualidade e a busca de títulos e de diplomas eram
características marcantes deste grupo de cultos.
47
4.2 OS SERMÕES DA QUARESMA
Como vimos acima, o frade menor português utilizava a liturgia da Igreja Romana
como ponto de partida da construção de sua obra. Porém, a data litúrgica que inicia a construção
de seu texto não é a mesma que principiava o calendário litúrgico da Igreja. O calendário da
instituição foi organizado a partir de um sistema de divisão do tempo, que se baseava nas fases
lunares que se completavam em 28 dias. Essa forma de organização do tempo era usada desde o
século IX e hoje ainda é empregada pela Igreja Católica Apostólica Romana. O sistema em
questão tem como marco inicial o primeiro domingo do advento, festa que varia entre os dias 22
e 24 de novembro, conforme a data que caí no domingo da páscoa.
47
Verger, Jacques. Homens e Saber na Idade Média. Op. cit., p. 265.
67
Ao invés de utilizar o calendário da Igreja, Antônio optou por escrever sua obra
correlacionando-a com as leituras do Antigo Testamento, que eram feitas de acordo com a
recitação do Ofício Divino, a oração oficial da Igreja Romana. Dessa forma, o primeiro sermão
referia-se ao antigo domingo da septuagésima em cuja época do ano as leituras eram tiradas do
primeiro livro da Bíblia, o Gênesis. O último sermão estava relacionado ao terceiro domingo
depois da oitava da epifania.
48
Sendo assim, o primeiro grupo de sermões que nos são apresentados na obra antoniana
são os da Quaresma, que foram escolhidos para a análise proposta em nossa dissertação,
principalmente pela tarefa complexa, que seria analisar toda a obra de uma única vez, devido sua
grande extensão.
Para a Igreja Católica Apostólica Romana, a Quaresma é o período de quarenta dias
que antecede a Páscoa Cristã. Para os cristãos, essa seria a festa da ressurreição de Cristo. Tal
evento aconteceu depois de uma seqüência de fatos que definiu o começo da crença dos
seguidores de Jesus. Porém, a origem de tal momento litúrgico confunde-se com os costumes da
religião judaica. Isto porque a Paixão de Cristo ocorreu durante o Pessach, palavra hebraica que
significa passagem e se refere à libertação do povo hebreu que era cativo no Egito. São oito dias
de celebração que formam um dos maiores feriados religiosos do judaísmo. Essa festa era
antecedida de 40 dias de resguardo do corpo em relação aos excessos, para rememorar os 40 anos
passados no deserto.
O número quarenta (40) pode simbolizar espera, preparação, provação ou castigo e
marca a história da salvação. Este número é utilizado, também, para assinalar o final de um ciclo,
48
Segundo José Reis Chaves, “A palavra epifania (do Grego epiphaneia: apresentação, aparição) é empregada pelo
calendário litúrgico da Igreja, para designar a apresentação de Jesus Cristo aos povos. Isso se deu com o conhecido
episódio da visita dos Reis Magos ao Menino Jesus. E, com a reforma do citado calendário em 1999, após o Concílio
Vaticano 2º, a Igreja transferiu essa festa litúrgica para o domingo depois do Natal”. CHAVES, José Reis. Epifania.
Disponível em:
http://www.portaldoespirito.com.br/portal/artigos/jose-chaves/epifania.html. Consultado em: 13/07/2007.
68
o período de uma mudança radical que produzirá uma outra ordem de ação e vida. Os exemplos
constantes na Bíblia são muitos: os quarenta dias do dilúvio, que são transição purificadora entre
a antiga e a nova aliança figurada pela arca; a própria quaresma, que prepara a ressurreição pascal
e dura quarenta dias; a pregação de Jesus durante quarenta meses; sua ressurreição depois de
passar quarenta horas no sepulcro; e sua permanência entre seus discípulos, durante os quarenta
dias que precederam sua ascensão.
49
Frei Antônio dedicou oito sermões aos domingos que compõe a Quaresma. Não que
todos fossem para ser usados, pois alguns sermões foram divididos em dois, como é o caso do
primeiro e do terceiro, ou foram escritos em duas versões diferentes, como referentes ao segundo
domingo da Quaresma.
Para fundamentar seus sermões para o período da quaresma, o frade utilizou obras
como o Breviarium Romanum, Naturalia, Concilium Lateranense IV, Glossa, Missale Romanum,
Versos e Vitis Mystica, além de nada mais nada menos que 44 autores diferentes.
50
Outro fator importante para nossas pesquisas foi descobrir que somente nesse grupo de
sermões foram citadas 33 bestas diferentes, sendo que algumas em até mais de um sermão. Tema
sobre o qual nos concentraremos na análise.
A seguir vamos apresentar os pontos centrais de cada um dos sermões da quaresma,
que terão relevância dentro da análise que estamos propondo.
49
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympo,1992, p. 757.
50
Os autores citados, direta ou indiretamente são: Achard de São Vitor, Santo Agostinho, Alano de Lille, Alexandre
Neckan, Ambrósio, Aristóteles, Bernardo de Claraval, Boécio, Cícero, Eliano, Escribonio Largo, Francisco de Assis,
Fulgêncio de Ruspas, Godofredo de Auxerre, Graciano, Grgório de Nissa, Guerrico de S. Thierry, Horácio, Hugo de
Folieto, Inocêncio III, Isidoro de Sevilha, Jerônimo, João Damasceno, Juvenal, Lactâncio, Lucano, Ovídio, Papias, Pedro
de Blois, Pedro Cantor, Pedro Comestor, Pedro Damião, Pedro Lombardo, Pedro de Poitiers, Plínio, Ricardo de São Vítor,
Ricardo de Vitry, Roberto de Courson, Ruperto, Sêneca, Solino, Tomás de Chobam e Varrão.
69
4.2.1 Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma
Para a missa do primeiro domingo da Quaresma, o frade compôs um sermão que foi
apresentado em um único temário, mas que se divide em dois: um sermão alegórico e outro
moral. Dessa forma, podemos afirmar que eles poderiam até ser proferidos de maneira separada,
o que facultaria ao pregador a abordagem total ou parcial do temário que compunha a obra.
O primeiro sermão, que é o alegórico, foi dividido em duas partes: Deserto de Engadi e
A tríplice tentação de Adão e de Jesus.
51
Nestas pregações o frade apresenta como pontos
fundamentais, para a ação do que ele chama de diabo, os pecados da gula, da soberba e da
avareza.
Na primeira parte do texto, ele chama os pecados de tríplice deserto e os compara aos
momentos em que Jesus ficou extremamente isolado: durante a gestação, no ventre de Maria; na
sua estada de quarenta dias e quarenta noites no deserto de Engadi, local onde sofreu as tentações
descritas no Evangelho de Mateus, capítulo quatro; e na crucificação, momento de extrema
solidão, narrado em Lucas capítulo vinte e três.
Na segunda parte do exórdio, frei Antônio utiliza a passagem bíblica do segundo livro
de Reis, no seu capítulo dezoito. A partir da citação, “Tomou Joab três lanças e transpassou com
elas o coração de Absalão”, o frade diz que Joab representa o diabo, inimigo do gênero humano,
que dispara suas três lanças, ou seja, a gula, a vanglória e a avareza bem no coração do homem.
Acerta assim o órgão que é sua fonte de calor e de vida. Para o lisboense, o homem fica, assim,
inteiramente, privado de sua vida.
51
Mais adiante notaremos que frei Antônio utiliza de maneira extensiva o mero três ou tríades para explicar e discorrer
sobre suas conclusões e propostas. Segundo o Dicionário de Símbolos de Chevalier-Gueerbrant, “o três é um número
fundamental universalmente. Exprime uma ordem intelectual e espiritual em Deus, no cosmo ou no homem. Sintetiza a
triunidade do ser vivo ou resulta da conjunção 1 e de 2, produzido, neste caso, da união do céu e da terra”. Porém a maior
referência em relação a utilização do número três por algum texto cristão é a Trindade, que significa a presença de um só
Deus em três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Outro fator importante para a utilização do número três é o
70
O sermão moral foi dividido em nove cláusulas e escrito como se fosse um sermão
isolado, independente do anterior. Uma parte é dedicada aos que o frade chama de claustrais,
palavra que designa aqueles que vivem no claustro. A utilização desse termo nos leva a afirmar
que nesse ponto de sua obra, o franciscano dirige-se aos membros das antigas ordens religiosas
que viviam sob as regras beneditina e agostiniana.
Como tema, ele usa o livro do Apocalipse, no qual está escrito em seu capítulo doze:
“foram dadas à mulher duas asas de uma grande águia a fim de voar para o deserto”.
52
Segundo o
religioso, a mulher representa a alma do penitente que procura a confissão, pois possui duas asas:
o amor e o temor de Deus.
No trecho intitulado O coração contrito, o autor dirige-se aos seculares, que segundo
ele, são “arrastados através do mar deste século pela vela da concuspiciência carnal e pelo vento
da vanglória, com o fim de explorar o gozo da prosperidade mundana”.
53
No sermão, o frade ainda faz um tratado sobre o sacramento da confissão, no qual ele
orienta tanto aos fiéis quanto aos sacerdotes e demais membros da Igreja sobre como deveriam
proceder diante de momento tão especial e imprescindível, para aqueles que, segundo ele,
abraçavam verdadeiramente a vida cristã.
Neste primeiro sermão quaresmal o frade faz um itinerário sobre tal sacramento
afirmando que “Nota que assim como na cítara se estendem as cordas, assim na confissão se
devem expor as circunstâncias dos pecados,a saber: quem, o quê, onde, por quem, quantas vezes,
porque, de que modo, quando”.
54
simbolismo do triângulo. Segundo a mesma obra, “o triângulo eqüilátero simboliza a divindade, a harmonia, a proporção”.
In: CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympo,1992, p. 273.
52
Santo Antônio, Sermão do Segundo Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 87.
53
Ibidem, p. 89.
54
Ibidem., p. 95.
71
Nesse sermão, ele cita oito bestas que são: a águia e o falcão, que são usados como
símbolo dos claustrais; e o dragão, o avestruz, o asno, o touro, o peludo, a lâmia e o ouriço, que
simbolizam as sete espécies de pecado que devem ser revelados na prática do sacramento da
confissão.
Nessa parte da obra, o franciscano trata, ainda, dos sacerdotes, dos confidentes, do
jejum quaresmal e sobre o que ele chama de maldito ternário a gula, a soberba e a avareza, que já
tratamos quando falamos do sermão alegórico.
4.2.2 Sermão do Segundo Domingo da Quaresma
para o segundo domingo da quaresma, o olisiponense compõe dois sermões
separados. No primeiro, ele utiliza o ordo da cúria papal, que previa como leitura para o sábado o
evangelho da Transfiguração.
55
São oito cláusulas, mais o protema ou exórdio, no qual ele cita
duas bestas: o cabrito e o pelicano.
No exórdio, um sermão aos pregadores, o franciscano lisbonense utilizou como ponto
de partida um texto do Êxodo, que descreve a subida de Moisés para receber de Deus a tábua dos
Dez Mandamentos.
56
Antônio afirma neste trecho que “Moisés interpreta-se aquático, e significa
o pregador que rega os espíritos dos fiéis com a água da doutrina que salta para a vida eterna”.
57
Segundo o menorita, o monte onde Moisés subiu significa “a excelência da vida santa
em que o pregador, deixa o vale dos bens temporais”. Defendemos que o religioso desejava
chamar atenção para o que ele, seguindo as diretrizes da Igreja, acreditava ser a missão do clero e
aqui, especificamente, dos pregadores. Ele pensava que os membros da Igreja estavam em
55
Cf. Evangelho de Mateus capítulo 17.
56
Cf. Êxodo 24, 12.
57
Santo Antônio, Sermão do Segundo Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 118.
72
direção contraria à missão colocada pela Bíblia, por isso precisavam ser mais espirituais que
terrenos.
No tema da primeira cláusula, que foi intitulada “Um sermão aos penitentes ou aos
religiosos”, o frade português, com o intuito de concordar o Novo ao Velho Testamento, cita o
Primeiro Livro de Reis em seu capítulo 10: “ao chegares ao carvalho de Tabor, encontrar-te-ão
três varões, que vão adorar a Deus em Betel, levando um três cabritos e outro três tortas de pão e
outro um barril de vinho”.
58
Ele concorda nesse trecho com a da Transfiguração, no qual o evangelista diz “Jesus
tomou contigo Pedro Tiago e João,
59
afirmando que os varões do Antigo testamento eram os
três Apóstolos. Ele orienta aos religiosos seguir o que Santo Agostinho e São Bernardo afirmam
ser essencial para o clero, que é primeiro a busca da vitória sobre o pecado, para depois conduzir
os fiéis na busca da salvação. É interessante destacar que os ensinamentos de Francisco não são
sublinhados. Discutiremos essa questão posteriormente.
na segunda cláusula, que o frade intitula de “Um sermão para o Natal do Senhor ou
para uma festa de Maria Santíssima, ele utiliza como ponto de partida o trecho da Bíblia que
diz: viu Jacó em sonhos uma escada. Ele afirma que a escada é Cristo e que ela é composta de
dois banzos e seis degraus. Os dois banzos seriam as naturezas humana e divina e os seis degraus
as seguintes virtudes de Jesus: a humildade, a pobreza, a sabedoria, a misericórdia, a paciência e
a obediência. Nessa passagem, ele convida aos prelados da Igreja e aos fiéis a subirem por esta
escada, que segundo ele é o único caminho válido para a “salvação eterna”.
Na terceira cláusula, o franciscano trata do que ele chamou de infiéis da Igreja, e faz
um sermão dedicado a eles. Nesse trecho, ele fala dos três sentidos espirituais a vista da fé, o
58
Santo Antônio, Sermão do Segundo Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 120.
73
olfato da discrição e o gosto da contemplação. Para o frade, todos os membros da Igreja,
inclusive os fiéis, deveriam olhar todas as coisas com os olhos da fé. Segundo ele, todos os
batizados “vêem, isto é, crêem, e devem ver, isto é crer no Deus de Israel”.
60
Ele afirma, ainda,
que a Igreja iria “durar até ao fim dos séculos”;
61
que ela dividia-se em quatro ordens, formadas
pelos apóstolos, mártires, confessores e virgens e sublinha que cada fiel deveria ver e crer com a
visão da fé. Segundo Antônio, o olfato da descrição era o sentido que ajudaria ao batizado a
discernir entre o que era vício e virtude e ajudá-lo a antever o que poderia fazê-lo desviar de seu
caminho. Quanto ao gosto da contemplação, o religioso português afirma que “vomita o mel
quem, não contente com a graça que lhe foi dada gratuitamente, deseja indagar com a razão
humana a doçura da contemplação”.
62
Ou seja, segundo ele, a busca da através da razão
humana não era possível, e que somente a contemplação era capaz de fazer o homem entender as
coisas de Deus. O menorita ratificou esse pensamento afirmando que “ninguém chega pela razão
humana aonde S. Paulo foi arrebatado”.
63
O frade menor escreveu mais quatro cláusulas nesse sermão que tratam da descrição,
da contemplação, da conversão, e uma oitava festiva destinada à “dedicação de igreja ou a
festividade de Mártir confessor.
64
Na sexta cláusula, porém, ele fez um pequeno sermão aos
prelados, no qual os exorta, citando o texto de Mateus capítulo 28 versículo 3, a terem o aspecto
de raio para que as mulheres não se aproximassem deles por temor do seu olhar e de sua vida
santa. Deveriam saber corrigir aos seus fiéis firmemente, como se fossem pais, chamando-os a ser
penitentes e a buscarem a salvação.
59
cf. Mt 17,1.
60
Santo Antônio, Sermão do Segundo Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 125.
61
Ibidem, p. 126.
62
Ibidem, p. 128.
63
Ibidem, p. 130.
64
Ibidem. p. 115.
74
Já no segundo sermão, dedicado ao segundo domingo da quaresma, ele utiliza o
evangelho da cananéia,
65
que segundo o ordo servia para o Domingo. Este sermão apresenta
cinco cláusulas mais um exórdio destinado aos pregadores e cita quatro bestas: o cão, a
calhandra, a sanguessuga e o gafanhoto.
No exórdio, o frade conclama aos pregadores que vão ao encontro dos pecadores,
utilizando para isso o texto bíblico do primeiro livro de Reis, capítulo quatro,
66
afirmando que
Israel representava a “semente de Deus”, “que significa o pregador ou a sua pregação”.
67
Antônio
queria que os pregadores buscassem, assim como Israel, encontrar-se com os pecadores, ou seja,
os filisteus, que segundo ele eram o símbolo daqueles que se envergavam para a soberba e se
afastavam de Cristo. Consideramos que nesse trecho o autor faz um chamamento aos pregadores
para que estes procurassem se colocar a serviço da Igreja. Mas para isto deveriam estar
debruçados em Jesus, “pedra do socorro”. Podemos observar que estes contestadores,
simbolizados pelos filisteus, que buscavam pelejar contra a Igreja, estavam incomodando ao
frade que afirmou que os pregadores deveriam, além se utilizar do seu entendimento, também
lançar mão da “pedra do socorro, Jesus Cristo, a fim de nela repousar e nela e por ela vencer os
demônios”.
68
65
Cf. Evangelho de Mateus, capítulo 15.
66
Israel saiu ao encontro dos Filisteus para os combater e acampou junto a pedra do socorro.(1R, 4, 1).
67
Santo Antônio, Sermão do Segundo Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 140.
68
Santo Antônio, loc. cit.
75
Antônio viu ou queria ver tal luta como algo espiritual e diz que esta deveria ser
realizada em nome de Jesus Cristo e contra o “demônio, a fim de poder, nessa pregação, libertar
de suas mãos o pecador cativo do pecado, confiando na graça daquele que saiu a salvar o seu
povo”.
69
Na primeira cláusula, o lisboês trata do abandono das coisas do mundo a partir do livro
de Gênesis, capítulo 28. Neste ponto da obra, ele afirma que a cobiça era uma das armas do diabo
para levar as almas dos pecadores, assegurando que ela era a “raiz de todos os males”.
70
Nessa
cláusula, ele explica que os religiosos precisavam “ser puros pela castidade, quentes pela caridade
e luminosos pela pobreza”.
71
E alega que a cobiça atrapalhava a religião e impedia a
contemplação, que para o frade, como nós vimos em outras partes de nosso trabalho, eram
fundamentais àqueles que quisessem seguir ao Cristo. Certamente, a sua afirmação partiu das
suas experiências entre os clérigos e religiosos, preocupados demasiadamente com assuntos
econômicos, judiciais e comerciais. Por isso, chamou-os a atenção para que se dedicassem às suas
missões, as quais ele chamou de “caminho da perfeição”
72
.
Ele deixou claro que até o Evangelho estava sendo colocado em segundo plano,
quando afirma
Se Algum bispo ou prelado da Igreja proceder contra uma decretal de Alexandre
ou de Inocêncio ou de outro Papa, é imediatamente acusado, convocado,
convencido, deposto. Se, porém, cometer algum pecado mortal contra o
Evangelho de Jesus Cristo, o que principalmente está obrigado a guardar, não
ninguém que o acuse, ninguém que o corrija.
O franciscano português utilizou a cobiça como ponto de partida para a segunda
cláusula, que trata dos penitentes. Segundo o autor, o “penitente, conseguintemente tendo saído
69
Santo Antônio, Santo Antônio, Sermão do Segundo Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio:
Obras Completas. Op. cit., p. 140.
70
Ibidem, p. 141.
71
Ibidem, p. 142.
72
Ibidem. p. 144.
76
da cobiça do mundo retira-se (...) da angústia”.
73
Para o religioso, o penitente era aquele que se
alimentava da angústia da contrição pelos pecados que cometeu, das contínuas vigílias, da
abundância de lágrimas e da freqüência dos jejuns. O que os atormentava a alma, segundo o
frade, era a “cobiça do mundo, a visão dura e a tentação da carne”.
74
Aqui ele garantiu,
novamente, que a Igreja estava sendo derrotada pela cobiça, afirmando que essa “devorou tudo
que havia de belo no deserto, os prelados e os ministros da Igreja”.
75
Para falar da “visão dura” utilizou textos de Jeremias, Santo Agostinho e São Gregório.
Para o lisbonense os olhos são a porta de entrada da luxúria e precisam ser controlados. Quanto à
“tentação da carne”, era trazida pela visão, e precisava ser controlada através da “contemplação
dos bens celestes”.
76
Para Antônio, o verdadeiro penitente era aquele que sofria com as tentações,
que ficava angustiado, isto é, que tinha “vida amarga”,
77
pois para “subir a plenitude da vida
eterna”
78
havia que se passar por todas estas provas.
O frade citou a mesma passagem do primeiro Sermão do Segundo Domingo da
Quaresma, mas fez uma analogia diferente. Ele afirma que a escada que o penitente precisava
subir tinha dois banzos e seis degraus: os banzos eram a confissão e a contrição. Os degraus são
as “virtudes da mortificação da vontade própria, o rigor da disciplina, a virtude da abstinência, a
consideração da própria fraqueza, o exercício da vida ativa, a contemplação da glória celeste”.
79
73
Santo Antônio, Sermão do Segundo Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 146.
74
Ibidem, p. 147.
75
Ibidem, p. 148.
76
Ibidem, p. 149.
77
Ibidem, p. 151.
78
Ibidem, p. 152.
79
Santo Antônio. loc. cit.
77
4.2.3 Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma
Esse sermão foi dividido por Antônio de Lisboa/Pádua em um exórdio e cinco grandes
cláusulas que fora sub-divididas em outros pequenos sermões. A quinta cláusula foi escrita como
um sermão único, intitulado Sermão em Louvor a Maria Santíssima, fazendo com que nós
tivéssemos dois sermões para o domingo em questão. Nesses dois sermões são citadas doze
bestas: corça, égua, leão, rinoceronte, urso, vaca selvagem, veado, cisne, calhandra, abelha,
aranha, mosca e verme.
O primeiro sermão tem como exórdio a utilidade da pregação, que tem com ponto de
partida para sua construção o versículo 14 do capítulo 11 do livro de Lucas
80
e o verso 23 do
capítulo 16 do primeiro livro de Samuel
81
. Nesse texto, o frade expressa a importância da
pregação como arma contra o pecado e para afugentar o “demônio”, conclusão retirada de uma
analogia com a cítara, tocada por Davi, para afugentar o espírito maligno de Saul.
Na primeira cláusula, que assim como as outras foi subdividida em três outras, temos
um sermão aos penitentes e aos claustrais, um sermão sobre a cegueira do pecador e um sermão
sobre a paixão de Cristo. Nesse grupo de pequenos sermões, o religioso franciscano chama
atenção dos fiéis para a importância do reconhecimento, do arrependimento e da confissão dos
pecados, pois com esse sofrimento os fiéis estariam imitando Cristo, “obedecendo aos
preceitos da verdade”.
82
Na segunda cláusula, que tem a mesma divisão da primeira, o minorita constrói três
pequenos sermões, um ao pregador, outro sobre “a armadura do diabo e a luta do mesmo e o
80
“(…) estava Jesus expulsando um demônio, o qual era mudo. E depois de ter expulsado demônio, o mudo falou e as
multidões ficaram maravilhadas.”
81
“Todas as vezes que o espírito maligno, enviado pelo Senhor, se apoderava de Saul, David tomava a cítara e tocava-a
com a mão; e Saul sentia alívio e achava-se melhor. E o espírito maligno se retirava dele.”
82
Santo Antônio, Santo Antônio, Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio:
Obras Completas. Op. cit., p. 175.
78
último sobre a “armadura de Cristo e a sua vitória”. O lisboeta afirmou nesse ponto do seu texto
que o pregador tem como missão principal “aumentar a Igreja com a sua pregação”.
83
O autor
citou S. Bernardo, afirmando que haveria a necessidade das obras para que a pregação surtisse
efeito, isto é, não eram as palavras que convenceriam os fiéis e sim como uma soma às
atitudes e às realizações do pregador.
Para falar do diabo, o frei utilizou o capítulo 17 do primeiro livro de Samuel.
84
Nesse
existe a narração de como era Golias, o gigante filisteu, que foi derrotado por Davi em uma
batalha entre os israelitas e os filisteus. A partir dos atributos físicos do gigante, o autor foi
montando e citando como se apresentava o diabo na terra.
As armas do diabo, segundo o frade, são as pessoas que o defendem. O que nos a
possibilidade de afirmar que esses partidários do mal eram poderosos. Os ossos do diabo são
aqueles que davam sustentação ao mal. Suas escarcelas são as desculpas dos luxuriosos. E por
último, o escudo são aqueles que não tomavam para si as palavras da pregação. Porém, para
combatê-lo, o frade pregador utilizou o versículo 22 do capítulo 11 do livro de Lucas,
85
e expôs
que Jesus é o mais forte e usou o livro de Isaías, em seu capítulo 59 no verso 17,
86
listando as
características da fortaleza do Cristo.
Na terceira cláusula, o frade tratou dos soberbos, da humildade e dos religiosos. Para
ele, da “soberba do coração procede todo o mal”.
87
O pecado é representado pelos cornos de
vários animais, que possuem formatos diferentes, buscando esclarecer as diversas maneiras dos
83
Santo Antônio, Santo Antônio, Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio:
Obras Completas. Op. cit., p. 176.
84
“Saiu do campo dos filisteus um homem bastardo, chamado Golias, de Get, que tinha seis côvados e um palmo de altura.
E trazia na cabeça um capacete de bronze, e estava vestido duma couraça de ponta curva. E tinha nas pernas escarcelas de
bronze; e um escudo de bronze cobria os seus ombros. A haste de sua lança era como o órgão dum tear.
85
“Mas se, sobrevindo outro mais valente do que ele, o vencer, tirar-lhe-á todas as armas em que confiava, e repartirá os
seus despojos.”
86
“Vestiu-se da justiça como de uma couraça, e pôs sobre a cabeça o capacete da salvação; revestiu-se da vingança como
dum vestido, e cobriu-se de zelo como dum manto.”
79
fiéis e religiosos tornarem-se soberbos. Segundo Antônio, a única forma de combater a soberba
era praticando a humildade. Podemos afirmar que apesar de ser um conceito cristão, tal
característica foi tratada aqui tal como era pelos primeiros frades menores, pois o frade português
afirma que a humildade é “como um verme, chamado intestino da terra, que se contrai para não
se estender”.
88
E, ao tratar dos religiosos, cita o livro de Isaías,
89
afirmando que assim como
algumas cidades egípcias falariam a língua de Canaã, isto é, mudariam o seu idioma, quando os
religiosos se tornassem humildes, passariam a ser simples, puros, ponderados e piedosos,
falariam a verdade e praticariam boas obras.
A quarta cláusula apresenta uma grande diferença face às anteriores, pois foi dividida
em outros cinco pequenos sermões inseridos na parte maior. Antônio trata nessa cláusula da
“solidão do espírito e da doçura da contemplação, do hospício do diabo, dos penitentes e
religiosos, da tríplice limpeza, contra os tíbios e aos penitentes”,
90
novamente.
Segundo o frei, somente os fiéis que vivessem em contemplação seriam felizes, pois o
homem não poderia existir de forma plena distante de Deus. Para ele, se os cristãos se
preocupassem em se deleitar somente com os bens temporais, transformariam o que poderia ser
um “jardim das delícias” em “solidão desértica”.
91
A visão que estes tinham era das costas de
Deus e não de sua face.
92
Ele também criticou neste trecho aqueles que procuravam o prazer carnal através de
bebedeiras e festas, pois segundo ele estes se deleitavam “nas coisas visíveis, olhadas através da
87
Santo Antônio, Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 189.
88
Ibidem, p. 190.
89
“Naquele dia haverá cinco cidades na terra do Egito, que falarão a língua de Canaã. Uma delas será chamada cidade do
Sol.”(Is 19,18).
90
Santo Antônio. Santo Antônio, Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio:
Obras Completas. Op. cit., p. 193.
91
Ibidem, p. 193.
92
Ibidem, p. 194.
80
carne”.
93
E para justificar esse pensamento cita S. Bernardo, dizendo que a visão destes
podiam ver através da carne e, por isso, não podiam pensar coisas boas”,
94
não podendo, assim,
realizar boas obras.
Quando o frade começa a discorrer sobre o “hospício do Diabo”,
95
ele cita S. Gregório
para dizer que quando o diabo foi criado por Deus era “limpo, puro e bom”.
96
Porém, mudou de
atitudes por deixar-se tornar soberbo. Aqui, ele informa que a avareza e a cobiça eram sinais da
soberba, pois aqueles que as praticavam eram notados pelos bens exteriores e não possuíam os
interiores.
97
Para o autor os “bens temporais, levam ao esquecimento de Deus”
98
e, dessa forma, à
morte eterna. Para aqueles que caíssem nesta falha, só restava, segundo ele, uma saída: orar ao
Senhor, fazer penitência, suplicar-lhe e rogar-lhe, pois só com a oração, a contrição e a
humilhação, Jesus iria ouvir a voz do pecador, reconduzindo-o à sua Jerusalém.
99
Em outra subdivisão da quarta cláusula, o frade orienta que, para que os homens não se
desviassem da contemplação, deveriam buscar três virtudes que iluminariam o entendimento
deles quanto a ela. Essas virtudes eram a pobreza, a castidade e a abstinência. Para Antônio o
homem precisava estar liberto dos bens materiais, ser casto, isto é, não estar pautado pela busca
dos prazeres carnais e abster-se de comida e bebida, para afastar-se da gula. Praticando estas
virtudes eles alcançariam a verdadeira contemplação.
100
93
Santo Antônio. Santo Antônio, Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio:
Obras Completas. Op. cit., p. 194.
94
Santo Antônio. loc. cit.
95
Santo Antônio. loc. cit.
96
Ibidem. p. 195.
97
Ibidem. p. 196.
98
Santo Antônio. loc. cit..
99
Ibidem, p. 197.
100
Ibidem, p. 198.
81
Devemos lembrar que esse trecho da cláusula é dedicado aos penitentes e aos
religiosos. E que, mais uma vez, o frade preocupou-se em corrigir a postura daqueles que
deveriam realizar o trabalho de convencimento dos fiéis, quanto à importância da Igreja no
caminho que estes tinham que trilhar até a salvação. Neste espaço ele afirma que os justos eram
aqueles que praticavam a caridade, eram contritos, oravam, e não deixavam o pecado invadir as
suas vidas. Em um outro segmento da mesma cláusula, o frade tratou do que ele nomeou “tríplice
limpeza”, que era composta pela “contrição, a confissão e a satisfação”.
101
Seguindo na quarta clausula, o religioso utiliza novamente S. Bernardo para afirmar
que o ócio era o ponto de partida de “todas as tentações e pensamentos maus e inúteis”.
102
Para
Antônio aqueles que procuravam trabalhar, ou seja ocupar-se, não davam espaço para a entrada
de pensamentos maus em suas vidas. Desta forma, ele usou o exemplo dos penitentes que,
segundo ele, eram laboriosos e sempre buscavam algo para fazer, ocupando o seu tempo com
oração e boas obras.
103
No último trecho da mesma cláusula, o menorita mais uma vez critica os religiosos ao
afirmar que esses preocupavam-se somente com o status atribuído pelas suas vestimentas. Porém,
esqueciam-se de se ornar interiormente, isto é, de entregar-se à sua missão de pastores.
104
Neste
trecho, ele chama a atenção para a importância do cultivo dos sete dons do espírito, que são a
sabedoria, o entendimento, o conselho, a fortaleza, a ciência, a piedade e o temor do Senhor. Para
ele, a prática desses dons traria para os fiéis e, principalmente, os religiosos muita felicidade e
abundância espiritual.
105
101
Santo Antônio. Santo Antônio, Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio:
Obras Completas, Op. cit., p. 201.
102
Santo Antônio. loc. cit.
103
Ibidem, p. 203.
104
Ibidem, p. 204.
105
Ibidem. p. 205.
82
Em algumas edições da obra sermonária antoniana esse segundo Sermão do Terceiro
Domingo da quaresma figura como uma quinta cláusula e não como um sermão separado. Porém
seguiremos a edição de Henrique Pinto Rema e dividiremos o texto em dois sermões distintos.
106
O frei português inicia o sermão em louvor à Santíssima Virgem com o verso 27 do
capítulo 11 do livro de Lucas.
107
Temos que ler este sermão como um tratado sobre as bem-
aventuranças de Maria e seu exemplo de vida para os cristãos.
108
Pois, para que os fiéis fossem
salvos, segundo Antônio, precisavam ser humildes, pobres e crentes como a mãe do Cristo.
4.2.4 Sermão do Quarto Domingo da Quaresma
Neste sermão, a leitura principal é o Evangelho de João em seu capítulo 6, nos
versículos do 1 ao 15. Nesse trecho, é narrado o milagre da multiplicação dos cinco pães e dois
peixes. O autor divide esse sermão em um exórdio e três cláusulas e não trabalha nenhuma
simbologia que estivesse ligada diretamente à interpretação das qualidades ou defeitos das bestas.
Esse exórdio tem como tema “lança o teu pão” e é destinado aos pregadores. Ele inicia
este sermão dizendo que “com cinco pães e dois peixes saciou o Senhor cinco mil homens”.
109
Utiliza, também o livro de Eclesiastes
110
para incentivá-los a continuar em seu ofício. Pois se
fazia necessário pregar, que como o próprio religioso afirma: “as águas que passam são os
povos a correr para a morte”.
111
Citando o Eclesiastes, Antônio promete aos pregadores que
seriam premiados no dia do juízo, pois (...) “dado o pão; depois de muito tempo, acha-lo-ás”.
112
106
Na obra: Sermoni antoniani e libri liturgici, in actas, p. 131, Francesco Costa não acha necessário fazer um segundo
sermão. Na edição de Locatelli, este Sermão era considerado como a quinta cláusula do Terceiro Domingo da Quaresma.
107
“Naquele tempo, levantando a voz uma mulher do meio da multidão, disse-lhe: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e
os peitos a que foste amamentado.”
108
Neste sermão Antônio afirma que: “Maria não deve ser louvada por ter trazido no ventre o Verbo de Deus, mas também
é bem-aventurada porque realmente guardou os preceitos de Deus.”
109
Breviário Romano, antífona de tércia do quarto domingo da quaresma.
110
“Lança o teu pão sobre as águas que passam, e depois de muito tempo o acharás.” (Ecle. 11, 1)
111
Santo Antônio, Sermão do Quarto Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 217.
112
Ibidem, p. 218.
83
Em sua primeira cláusula, o religioso cita que os cinco pães eram as cinco refeições da
alma, que estão no Pentateuco e que são: a contrição; a confissão; a satisfação (pela humilhação);
a pregação; e a contemplação.
113
Para o franciscano, o fiel precisava se afastar do pecado;
confessá-lo ao sacerdote; cumprir a penitência humilhando-se diante de Deus; ser contemplativo;
usar a pregação como arma para atacar de frente todos os pecados que atrapalhassem o caminho.
Na segunda cláusula, o frade começa com uma citação de Solino,
114
que fala da mirra,
uma árvore natural da Arábia. Arábia, que segundo Solino e Isidoro de Sevilha,
115
interpreta-se
sagrada.
116
Para o frade Arábia, vai significar Igreja, no sentido de ser um local sagrado no qual a
“mirra da penitência”
117
alça o homem das coisas terrenas cinco côvados, que é o tamanho da
árvore. Esses cinco côvados são como os cinco pães evangélicos e simbolizam, também, os cinco
irmãos de Judá que são Rubem, vidente; Simeão, audição; Levi, ajuntado; Issacar, recompensa;
Zabulão, casa de fotaleza. O que o frade quer dizer é que a contrição precisava ser acompanhada
da percepção de tudo que envolvia o passado, o futuro, os resultados, os obstáculos na
caminhada, a importância da contemplação, a necessidade de se abandonar as coisas terrenas e
uma análise interior para buscar melhorar. a confissão era a busca do perdão de Deus para os
pecados. A satisfação era a junção entre a contrição e a confissão. Para ele, o religioso precisava
buscar a recompensa da vida eterna através de um grande zelo pelas almas e tinha a
contemplação como companheira, para que pudesse tomar gosto pelas coisas terrestres.
113
Segundo o Dicionário de simbolos o número cinco é “o centro da harmonia e do equilíbrio,(...)representa os cinco
sentidos e as cinco formas sensíveis da matéria”.
114
Cf. Solino, Polyhistor, 46.
115
Cf. Isidoro de Sevilha, XIV, 3, 15.
116
Santo Antônio. Sermão do Quarto Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 221.
117
Santo Antônio, loc. cit.
84
Nesta pregação, os dois peixes representam a inteligência e a memória, que deveriam
ser de grande importância para o entendimento e a constante lembrança do que se aprendia sobre
“os cinco livros de Moisés”, no qual estão depositados os “cinco alimentos da alma”.
A partir da Epístola escrita por Paulo aos Gálatas,
118
que era uma das leituras da missa
do quarto domingo da quaresma, ele afirma que os filhos da sinagoga, isto é, os judeus, eram
vistos como os filhos da escrava Agar e que os filhos da Igreja, aos que chama de povo dos
crentes”,
119
são os filhos da mulher livre, Sara.
Para o frade e para Paulo, Sara era superior a Agar, isto é, os cristãos eram superiores
aos judeus. Antônio afirma que Sara é a parte superior da razão, que deve comandar, como a
senhora manda na escrava”.
120
Agar, por sua vez, era a sensualidade que só via os desejos carnais
e perseguia o filho de Sara. Sendo assim, quando Agar, a sensualidade, dominava o fiel, ele
tornava-se insensato e o raciocinava, passando a realizar más obras e a cultivar maus hábitos.
Mas, segundo ele, para que Sara dominasse Agar precisava utilizar os cinco alimentos da Alma e
os dois peixes citados acima.
Na última cláusula, o professor franciscano afirma que “para o número cinco mil
homens há cinco reuniões”.
121
A primeira no céu onde “o primeiro anjo, antes monge branco,
depois monge negro, porque primeiro Lúcifer, depois tenebrífero, semeou a discórdia nas fileiras
118
Gálatas 4, 21-31 “Vocês que querem ficar submetidos à Lei, me digam uma coisa: será que não ouvem o que diz a Lei?
De fato, está escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava e outro da mulher livre. O filho da escrava nasceu de
modo natural, enquanto o filho da mulher livre nasceupor causa da promessa. Simbolicamene isso quer dizer o seguinte: as
duas mulheres representam as duas alianças. Uma, a do Monte Sinai, gera para a escravidão e é representada por Agar
(pois o monte Sinai está na Arábia, que é o país de Agar). E Agar corresponde a Jerusalém atual, que estava junto com seus
filhos. Mas, a Jerusalém do alto é livre, e ela é a nossa mãe.(...)Vocês, irmãos, são filos da promessa, como Isaac. Acontece
como acontecia naquele tempo: o que nasceu de modo natural persegue aquele que nasceu segundo o Espírito. Mas, o que é
que diz a Escritura? Expulse a escrava e o filho dela, porque o filho da escrava não receberá a herança junto com o filho da
mulher livre. Portanto irmãos nós não somo filhos da escrava, mas da mulher livre.”
119
Santo Antônio, Sermão do Quarto Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit, p. 223.
120
Santo Antônio, loc. cit..
121
Ibidem, p. 224.
85
dois seus irmãos”.
122
O lisboeta critica, mais uma vez, a soberba colocando-a como responsável
pela queda do diabo. Escreveu, então, sobre a segunda reunião que ocorreu no paraíso e foi onde
nasceu a desobediência, que culminou com a saída do homem do Jardim do Éden. Quanto à
terceira, é onde aparece claramente que o texto tinha como intenção o ataque aos religiosos. Pois,
ela aconteceu no monte das Oliveiras, onde Judas entregou Jesus por algumas moedas, nascendo
assim a simonia, que ele define como a compra ou venda do espiritual ou o que era anexo a ele.
Essa prática estava sendo combatida pela Sé Romana através, por exemplo, dos cânone de
Lateranense IV.
123
Na quarta reunião, acontecida em Jerusalém, a “pobreza foi desonrada”.
124
Ele
buscou aqui exortar aos que abraçavam a “santa pobreza”
125
, nos parecendo aqui um aviso direto
aos menores, que não podiam fazer como Ananias e Sara,
126
que venderam seu terreno para
doarem o fruto da venda à comunidade cristã, mas esconderam parte do dinheiro. E quando se
apresentaram a Pedro, oferecendo o que diziam ser toda a quantia arrecadada, morreram. E,
finalmente, na última reunião em Corinto,
127
foi lesada a castidade. Para Antônio, era preciso
evitar estas práticas dentro da Igreja, que ele chamou como Jerusalém Celeste. No final deste
sermão ele conclamou aos membros da instituição a se reunirem cinco vezes para banir, do seu
seio, as faltas citadas acima.
4.2.5 Sermão do Quinto Domingo da Quaresma
Encerrando a série de sermões que foram escritos para as reflexões dominicais durante
a quaresma, iremos apresentar agora o que Antônio de Lisboa/Pádua escreveu para a missa do
quinto domingo da quaresma que tem como leitura principal o Evangelho de João em seu
122
Santo Antônio, Sermão do Quarto Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit, p. 225.
123
Santo Antônio. loc. cit.
124
Santo Antônio. loc. cit.
125
Ibidem, p. 226.
126
Atos dos Apóstolos 1, 18.
86
capítulo 8, do versículo 39 ao 47. Esse sermão foi estruturado em um exórdio e sete cláusulas e
foram utilizadas três bestas: cão, abutre e grou.
No exórdio, o franciscano faz um sermão aos prelados e pregadores, conclamando-os a
fortalecerem a dos fiéis para que estes buscassem a reconciliação com a Igreja. Ele afirmou
que no centro da instituição estava a caridade, que deveria prevalecer e se estender a todos,
mesmo que fossem inimigos. E por fim, exortou-os ainda a pregar a Paixão de Cristo, pois estava
próxima.
Na primeira cláusula, dedicada à Paixão de Cristo, explanou que antes da vinda de
Jesus o ser humano “era pobre e espoliado dos dons gratuitos (...) estava sem recurso e sem o
auxílio de ninguém”.
128
Quando ele chegou, prestou assistência, ajudou e perdoou os pecados dos
homens. Obedecendo a Deus, morreu na cruz para reconciliar o gênero humano. Com ele,
estabeleceu-se uma ponte entre a “mortalidade e a imortalidade”, que eram divididas pelo “rio
das nossas iniqüidades e misérias”.
129
A segunda cláusula é dedicada “àqueles que ouvem e contra os que não querem ouvir a
Palavra do Senhor”.
130
Antônio alegou que os crentes temerosos a Deus ouviam as suas palavras.
O que podemos entender como um convite para que os cristãos fossem à missa, local onde se
tinha contato com as Sagradas Escrituras. Tanto que logo depois ele afirma, em alusão ao livro de
Jeremias,
131
capítulo 18, verso 2, que aquele que havia praticado o mau deveria ir até à casa do
oleiro, que entendemos ser a Igreja, para ouvir “aí as palavras do Senhor”.
132
127
Primeira Carta de Paulo aos Coríntios 5, 1-5.
128
Santo Antônio, Sermão do Quinto Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 230.
129
Ibidem. p. 231.
130
Ibidem. p. 232.
131
“Levanta-te e desce à casa do oleiro, e aí ouvirás as minhas palavras.”
132
Santo Antônio, Sermão do Quinto Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 233.
87
Para o autor não adiantaria nada o fiel orar se não praticava a caridade, principalmente
quanto à confissão. Nestes sermões da quaresma, podemos observar que a todo tempo Antônio
convida os fiéis a se confessarem, porém aqui ele salienta que esta deveria ser praticada com
caridade, para que ela realmente libertasse o crente do pecado. Ele vai mais profundo ainda:
nenhuma obra ou atitude religiosa, feita para se buscar a salvação que não fosse feita com
caridade, não iria surtir resultado.
Diferentemente das anteriores, a terceira cláusula foi dividida em dois temas. O
primeiro tratava da “guarda de Cristo a nosso respeito e sobre a sua paciência no meio das
blasfêmias dos judeus e o outro sobre a glória e a ruína do primeiro pai”.
133
O religioso lusitano assegura, ao citar o livro de Jeremias,
134
capítulo 1, versos 11 e 12,
que Cristo era imune ao pecado, praticou a justiça inflexível, vigiou sobre a palavra de Deus e a
realizou. Por isso o menorita declara aos pregadores que vigiava a palavra quem praticasse o
que pregava. Esta afirmação também é muito corrente na obra antoniana, pois, segundo o autor,
não haveria pregação sem a vivência do que se pregava.
Nesta cláusula o escritor volta a maldizer aos judeus, comparando-os aos cães,
utilizando Isidoro de Sevilha para afirmar que eles tinham “corações diversos”, isto é,
praticavam a discórdia, ladravam e contradiziam-se todo o tempo.
E, encerrando a cláusula, mostra aos doutos e intelectuais como deveriam lidar com os
elogios, a adulação e os aplausos. Ele exige que estes deveriam expressar que não tinham
sabedoria, pois esta vinha de Deus, a qual todos deviam honrar, louvar e dar graças. E citando a
Bernardo, diz que quem deve ser glorificado é o Senhor e que qualquer louvor dado aos
homens é vanglória.
133
Santo Antônio, Sermão do Quinto Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit, p. 234.
88
Continuando a terceira cláusula o autor explica que a palavra morte derivava da
palavra mordedura. Para ele a mordida que Adão deu no fruto “da árvore proibida incorreu na
morte”.
135
E a principal causa desse fato foi porque ele não guardou a palavra de Deus. O padre
franciscano admoesta aos fiéis a não imitar Adão, pois este acreditou nas promessas do diabo e
não guardou a palavra do “Pai”, deixando-se acender o fogo da vanglória e da avareza.
Ao iniciar a quarta cláusula, o discípulo de Francisco de Assis utiliza o livro de
Gênesis, capítulo 25, versos de 7 ao 9,
136
para tratar da mortificação do justo. Para exemplificar o
justo, que deve ser imitado por todos os fiéis, ele utilizou a figura de Abraão, que qualificou
como aquele que abandonou o amor mundano e morreu para o pecado e teve muitos dias de vida
estando sempre reunido ao seu povo.
Aqui, mais uma vez, vemos uma mensagem aos agentes da Igreja, que precisavam
abandonar as preocupações com os bens materiais, a sensualidade, a vanglória, a soberba e tudo
mais a fim de matar o pecado buscando estar reunido com o povo para levá-lo no caminho da
salvação. Frei Antônio segue afirmando que a alegria de conseguir os “bens celestes” e a escuta
das palavras do “Pai” levam o justo a isolar-se do mundo e da vida ativa e desenvolver a
contemplação para que não fossem criticados pelos que procuram a discórdia.
Continuando seu sermão, em sua quinta cláusula, o frade explanou sobre “Cristo
glorificado”. Nesse segmento, o autor criou um embate com os cátaros, uma vez que trata
abertamenta da teoria maniqueista, que foi renovada
137
por esse movimento religioso medieval,
ao escrever que ao contrário do que eles afirmavam, a Lei dada a Moisés não foi escrita por um
134
“Que vês tu, Jeremias? E ele disse: uma vara vigilante.”
135
Santo Antônio. Sermão do Quinto Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 239.
136
“Foram os dias de Abraão cento e setenta e cinco anos; e faltando-lhe as forças, morreu numa ditosa velhice e em
avançada idade e cheio de dias; e foi unir-se ao povo. E Isaac e Ismael, seus filhos, sepultaram-no na dupla caverna.”
137
“Para os taros o Antigo Testamento foi escrito por um principio mal, o qual ainda governava o mundo. Enquanto o
novo testamento foi obra do Deus bom.”
89
deus das trevas, mas sim pelo mesmo Deus que é Pai de Jesus.
138
E seguiu na discussão dizendo
que eles não poderiam afirmar que conheciam Deus, pois serviam aos “bens terrenos”. Para ele,
os cátaros não deviam falar de Deus, pois não tinham intimidade com ele, pois não guardavam
sua palavra.
A sexta cláusula, assim como a terceira, foi subdividida em duas. Na primeira trata do
“Natal do Senhor” e afirma que o nascimento de Cristo foi um alivio ao sofrimento dos homens.
Fala sobre a Paixão de Jesus, que serviu como instrumento para que ele suportasse as dores de
todos sobre seu corpo, condenasse o diabo e libertasse os seres humanos de suas mãos. E da sua
Ressurreição serviu para ressuscitar a todos.
Na segunda parte da sexta cláusula, ele fala sobre os “quatro dotes do corpo glorioso”,
que são a imortalidade, a sutileza, a agilidade e a claridade. Antônio critica os falsos cristãos que,
para ele, violaram “o pacto feito no batismo”,
139
ao pecarem matando a que tinham em Jesus
Cristo, colocando-se o grupo dos degenerados: “Nós porém, filhos degenerados (...) deixamos
morrer de fome nosso Pai”.
140
E para encerrar o sermão, na sétima cláusula ele critica os “ingratos”, fazendo um
apelo aos fiéis para não abandonarem a Deus, a fim de que não fossem ingratos. Ele defende que
a humanidade precisava enfrentar até a morte por Jesus, a fim de restaurar o mundo com boas
obras. Antônio apresenta uma visão negativa e pessimista do seu mundo, fundamentando-se na
idéia de que todos os fiéis, clérigos e leigos, afastavam-se de Deus.
138
Santo Antônio, Sermão do Quinto Domingo da Quaresma. In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 243.
139
Ibidem, p. 246.
140
Santo Antônio, loc. cit.
90
Ele encerra o sermão com uma oração pedindo a Deus que não abandonasse o coração
dos homens e os possibilitassem serem salvos, através da escuta da palavra de Deus e da
paciência.
Como podemos ver, esses sermões são muito significativos no que tange à
possibilidade de uma análise histórica. Eles tratam da situação religiosa, da situação política e da
cultura medieval, abordando de forma abrangente o modo de vida dos habitantes dos locais por
onde o pregador itinerante franciscano passou.
No próximo capítulo, faremos uma análise comparada do discurso antoniano, a fim de
buscar entender historicamente o que ele desejava ao escrever a sua obra.
Não podemos perder de vista que estaremos analisando a obra de um autor que
consideramos erudito, que produziu sua obra sermonária de uma maneira, e diante das evidências
colocadas, até aqui, pode ser tratada como douta, para os padrões definidos na época em que
viveu. Há que sublinhar que seus sermões foram concebidos para serem um modelo aos
pregadores franciscanos, tanto no que tangia à criação de novos sermões quanto à utilização de
suas idéias para a pregação em lugares públicos. Por isso temos que entender que o frade sabia,
que sua voz, teria eco no corpo social e por isso tenta de todas as formas possíveis implementar,
através das palavras, a sua missão de renovação da sociedade e da Igreja.
91
CAPÍTULO V
A Igreja, a sociedade e os animais, segundo Antônio
Após detalharmos as intenções pretendidas com a construção desta dissertação, trilhar
os caminhos da vida do nosso protagonista, buscaremos agora fazer a comparação e a análise
histórica dos trechos nos quais o frade menor cita as características das bestas medievais,
procurando entender os objetivos e os motivos que o levaram a fazer tais analogias.
5.1 O QUE DIZIAM OS BESTIÁRIOS
Para a análise histórica de nossas fontes, devemos entender que os Bestiários ou Livro
das Bestas possuíam um caráter único na literatura da Idade Média. Neles, foram relacionadas
várias espécies de animais que realmente existiam ou que faziam parte do imaginário do período.
Obrigatoriamente, essas narrativas eram enxertadas com interpretações de caráter simbólico e
alegórico. Dessa forma, nota-se uma organização interna na qual havia descrições de animais
com intuito moral e didático. As narrações dos animais eram compostas por duas partes distintas:
uma descritiva e a sua moralização e interpretação teológica de sentido simbólico-alegórico.
Essas obras foram importantes em toda a Idade Média, quando influenciaram todos os
tipos de textos e a arte de forma geral. Através delas, podemos constatar que os homens antigos e
medievais preocupavam-se com a natureza ao seu redor e a imprimiam de múltiplos significados.
Os Bestiários não possuíam a mesma forma dos Tratados de História Natural e das
obras que se aproximavam do seu estilo, os herbários e os lapidários, estes últimos fornecendo,
92
respectivamente, uma descrição detalhada de plantas e pedras, não com propósitos didáticos e
moralistas, mas com o objetivo de veicular a sua utilidade prática para fins medicinais. O que
nelas se procurava transmitir, pelo contrário, era uma verdade espiritual de ordem cristã. Esta
característica estava ligada ao fato de terem sido os mosteiros os principais pontos de sua
produção, e ter como destino um público religioso para o qual funcionava como manual de
estudo.
Segundo Mário Martins,
1
no Mosteiro dos agostinianos em Coimbra havia uma destas
obras em um códice de pergaminho. Para o autor frei Antônio, deve ter sido um dos leitores que
o manuseavam com maior assiduidade. Para ele, as descrições de alguns animais, nos sermões do
franciscano, são formadas por palavras idênticas as de obras de referência, como o De bestiis et
alies rebus de Hugo de São tor. Além dos nomes dos animais, Antônio se refere
prolongadamente e minuciosamente à natureza e aos seus hábitos.
Antonio deixa claro na introdução de sua obra que não queria inserir citações como as
que ele usou dos animais. Porém, era algo que estava sendo usado pelos sermonistas do período
em que construiu sua obra e por isso ele nos informa que se rendeu ao costume literário, como
podemos ver abaixo:
Em nosso tempo, a estulta sabedoria dos leitores e dos ouvintes degradou-se a
tal ponto, que, se não encontram e não ouvem palavras elegantes, rebuscadas e
altissonantes de novidade, enfastiam-se da leitura e recusam-se a ouvir. E, por
isso, para a palavra de Deus, com dano das suas almas, não lhes merecesse
desprezo e enfado, no príncipio de cada Evangelho pusemos um Prólogo
correspondente ao mesmo Evangelho, e inserimos no mesmo trabalho uma
exposição moral sobre a natureza das coisas e de animais e etimologias de
vocábulos.
2
1
MARTINS, Mário. Os bestiários na nossa literatura medieval. Revista Brotéria. Lisboa: v. 52, n. 5, 1951, p. 550.
2
Santo Antônio, Prólogo. . In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras Completas. Porto: Lello & Irmão, 1987, p.
6.
93
Apesar de Aristóteles ter sido um dos maiores teóricos de ciências naturais, o
franciscano não dependeu diretamente dele nesta matéria, ainda mais que a obra aristotélica que
tratava dos animais não era tão difundida e nem podia ser lida facilmente nas escolas monásticas.
Um dos autores mais usados pelo lisboês e que tratava intensamente sobre a natureza
dos animais foi Solino, que escreveu suas obras a partir da metade do século III depois de Cristo.
Solino não citou quais foram as sua fontes mas segundo Samuele Doimi três quartos de sua obra
foram tirados dos livros III, XIII e XXXVII da História Natural de Plinio.
3
Temos que ter sempre em mente, quanto tratamos tal viés da obra antoniana , como foi
aplicada a ciência natural em sua obra, da qual o frade não era um mestre e nem um precursor,
todavia podemos considerar como um homem de elevada erudição para a sua época.
4
No trecho da obra escolhido por nós para a análise historiográfica temos referências a
trinta e três (33) animais, que trataremos separadamente, relatando o que os bestiários diziam
sobre eles e qual a sua importância dentro dos elementos simbólicos do cristianismo.
Entre essas bestas, apesar de nossas pesquisas, não conseguimos encontrar as
características atribuídas aos seguintes animais nos Livros das Bestas: mosca, pulga, cabrito,
égua, lebre, ouriço, rato, urso, onocentauro, peludo e vástia.
Faz-se necessário outra importante observação. Ao percorrer as descrições dos animais
que retiramos dos Livros das Bestas, o leitor pode achar desproporcional o tamanho de cada
narrativa aqui exposta. Porém, em nossas pesquisas, observamos que alguns animais foram
bastante explorados pelos autores medievais e outros nem tanto, ou os textos que os abordavam
não chegaram até nós, fatos estes que utilizamos como justificativa para essa
desproporcionalidade existente em nosso texto.
3
DOIMI, M. R. Samuele. Le Scienze Naturali in Sant'Antonio. In: S. ANTÔNIO DOTTORE DE LA CHIESA. 1947,
Roma e Pádua. Atas... Cidade do Vaticano: Tipografia Poliglota Vaticana, 1947, p. 437-459.
94
5.1.1 Asno/Onagro
Os bestiários medievais trazem uma diferença sutil entre o burro e seu espécime
selvagem, o asno. O primeiro, apesar de ser classificado como teimoso e lento, era visto como
possuidor uma grande docilidade e o asno selvagem recebia como principal carga simbólica
características que eram consideradas diabólicas.
5
Segundo o Physiologus, o macho desta espécie, que é o líder da manada, quando
emprenhava uma fêmea que paria um macho, cortava-lhe os testículos para que estes não
pudessem procriar.
6
Outra versão sobre a castração era que, por terem partos muito dolorosos, as
próprias fêmeas arrancavam os testículos do macho com os dentes, para que não pudessem
emprenhá-las mais.
7
Para os autores medievais os asnos eram animais, não bestas ferozes, porém movidos
por uma enorme coragem, pois eram capazes de arrastar coisas muito pesadas e são descritos na
Pérsia como que tivessem chifres de boi e corpos poderosos”.
8
em outros bestiários, o asno
era apresentado como uma besta, que era preguiçosa e disforme, tendo uma forma horrível de
gritar.
9
Desta forma, para o Physiologus, estes animais eram comparados aos homens que eram
preguiçosos para pensar no bem, para falar do bem e para fazer qualquer tipo de boa obra, eram
disformes por não se parecerem com seu Criador, que, segundo os bestiários, os havia feito a sua
imagem e semelhança.
10
4
DOIMI, M. R. Samuele. Le Scienze Naturali in Sant'Antonio. Op. cit., p. 454.
5
F. M
ORETTI
, Specchio del mondo. I ‘Bestiari fantastici’ delle cattedrali. La cattedrale di Bitonto, pref. di F. Cardini, ed.
Schena, Fasano 1995.
6
Physiologus. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio (Gd). Bestiário Medieval. Madrid: Edições Siruela, 1986, p.153.
7
Nuzhat. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio (Gd). Bestiário Medieval. Op. cit., p.154.
8
Informações disponíveis no site: www.mondimedievali.net/Immaginario/Cardini/asino.htm. Consultado em 25/07/2007.
9
Philippe Thaün. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio (Gd). Bestiário Medieval. Op.cit., p. 153-154.
10
Bestiaris I. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio (Gd). Bestiário Medieval. Op. cit., p.155.
95
O asno também era visto como um burro que servia de sinal, pois ao passarem-se 25
dias do mês de março, quando começava o Equinócio, ele berrava vinte e quatro vezes. Ao tomar
tal atitude ele avisava que a noite (o paganismo) e o dia (o cristianismo) teriam a mesma duração,
o que para ele era um incômodo, que preferia a noite ao dia, sendo, por isso, considerado
símbolo do diabo.
11
Esse burro selvagem não tinha por hábito cantar, porém, segundo o Bestiário de
Cambrai, se estivesse com grande apetite cantava tão alto que explodia tudo em volta se não
encontrasse alimento.
12
Para outros autores de bestiários medievais, o onagro, quando saciado,
descansava na serenidade da solidão, o que o fazia passar a representar as pessoas que achavam a
paz para suas almas na satisfação do Evangelho.
13
Quando soltava seu grito por estar com fome, o asno se assemelhava aos homens que
berravam e eram faladores e que agiam e falavam de forma horripilante, diferentemente de
qualquer homem classificado por tais obras como bom. Estes homens, quando tinham algum
assunto a tratar na corte ou em outros lugares, gritavam e falavam tanto e com tanta fúria que
todos se afastavam deles.
14
5.1.2 Cão
Segundo os bestiários, o cão era muito fiel, sobretudo com seu dono e com as pessoas
próximas a ele; contudo não gostava de pessoas que não o eram familiares.
Conforme os livros das bestas, todos os homens deveriam imitar a este animal, pois
tinham que ser fiéis ao seu Senhor, quer dizer a Deus, e aos conhecidos e amigos.
11
Philippe Thaun. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio (Gd). Bestiário Medieval. Op. cit., p. 154.
12
Cambrai. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio (Gd). Bestiário Medieval. Op. cit., p. 154.
13
M. Schneider, La simbologia dell’asino, in «Conoscenza religiosa», 2 (1980), pp. 129-148.
14
Bestiaris I. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio (Gd). Bestiário Medieval. Op. cit., p. 154.
96
Outra característica do cão, segundo os bestiários, era que ele comia novamente o que
havia vomitado. Segundo tais obras, esta atitude era análoga a dos homens que confessavam, isto
é, vomitavam os seus pecados por meio da penitência, e depois imediatamente voltavam a comê-
los, quer dizer, reincidiam uma e outra vez no mesmo pecado.
5.1.3 A corça e o veado
Como o veado e a corça são macho e fêmea respectivamente, suas características são
basicamente as mesmas. Por isso os apresentamos aqui no mesmo trecho de nossa análise.
O cervo era um dos animais simbólicos que, desde os primeiros tempos cristãos,
tornou-se imagem alegórica de Cristo. Além disso o veado em fuga era a imagem da alma que se
subtraia ao diabo, o pecado, a serpente tentadora.
Os antigos poetas e naturalistas gregos e latinos, Plinio, Teofrasto, Eliano, Marzialle,
Lucrécio, deram o rótulo ao cervo de inimigo implacável das serpentes. Acreditava-se que com o
sopro de seu nariz, tal animal retirava os répteis de sua casa subterrânea e os devorava,
reconquistando de tal forma uma nova juventude.
Assim, desde o IV século da nossa era, escritores eclesiásticos como Agostinho,
Bernardo e Boaventura, interpretaram esta atitude como uma metáfora da vitória do Cristo sobre
as forças do mal. O Physiologus partindo de Davi, isto é do salmo 42 (como a corça deseja as
margens da água, assim a minha alma a Ti deseja, o meu Deus), recorda que o cervo é inimigo do
dragão.
15
A caça ao dragão, executada pelo cervo, acontecia assim: se o dragão saísse do interior
do solo pelas suas rachaduras, o cervo ia até uma fonte e bebia uma quantidade de água para
vomitá-la pelos sulcos da terra, forçando o dragão a subir para depois derrotá-lo e matá-lo:
15
Cambridge In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio (Gd). Bestiário Medieval. Op. cit., p. 181
97
Assim conta o Physiologus que o Senhor nosso matou o grande dragão por
meio da água celeste da virtuosa sabedoria... o Senhor surgiu para caçar o grande
dragão: agora o demônio nasce na parte mais profunda da terra, e o Senhor verte
do próprio peito o sangue e a água, e liberta do dragão mediante o banho da
regeneração, e destrói em nós a influência diabólica que se encontra
escondida”.
16
O Bestiário de Cambridge do século XII interpreta as características dessa besta de
outro modo. O cervo se tornava invulnerável aos golpes de uma flecha por haver comido um
certo tipo de planta que ele chama díctamo. Quando se sentia doente, se aproximava da toca das
serpentes e lhes capturava aspirando água com o nariz. Segundo o bestiário o veneno não era
nocivo ao veado, que se alimentava da serpente para recuperar a saúde.
Depois de ter comido as serpentes, o cervo corria até a fonte mais próxima e bebia das
suas águas a fim de recuperar sua juventude. Porque a serpente era o símbolo do demônio, o autor
do Bestiário de Cambridge interpretava tal fato imaginário como uma alegoria referente a
confissão: pois ao comer a serpente, isto é, depois de haver pecado, o cervo (o pecador) se
embebedava da água da penitência e assim fazendo tornava-se limpo da sua culpa.
Outra informação sobre tal besta era que ela baixava a testa, quando não agüentava
mais carregar o seu grande chifre. Então, ela atraia com o nariz as serpentes e as engolia; se
houvesse sintoma de envenenamento, corria para a fonte, bebia e regenerava-se, renovando o
chifre e o pêlo das costas. Desta forma tais obras afirmavam que assim como o veado, os
pecadores não podiam alçar os olhos ao céu enquanto pesassem os grandes chifres ramificados
dos seus pecados. Destarte, para se livrarem do veneno das serpentes, o demônio restava o
apelo ao Cristo, fonte de Água viva.
16
MORETTI, Felice. Disponível em: www.mondimedievali.net/Immaginario/Cardini/drago.htm. Consultado em
25/07/2007.
98
5.1.4 Leão
Segundo os bestiários, o leão possuía quatro propriedades principais. Na primeira eles
narravam que ao descer de um local alto para o vale, se o animal notasse a presença de um
caçador, limpava suas próprias pegadas com o seu rabo, para que o caçador não descobrisse onde
vivia.
17
Os autores dos bestiários comparavam esta natureza com a vinda de Deus a terra,
através da figura de Cristo gerado no seio da Virgem Maria, que também escondeu suas pegadas
para que o demônio não soubesse de sua chegada e de sua morada.
18
Essa característica tanto do
animal como de Jesus deveria servir para mostrar ao homem como viver para que o caçador, isto
é, o diabo não seguisse as pegadas deste até sua morada, que deveria ser a eterna glória.
19
A segunda propriedade apresentada nos bestiários era que este animal nascia morto e
assim ficava por três dias até que o seu pai rugisse fortemente em sua boca, o trazendo a vida,
quando adquiria os cinco sentidos.
20
Desta forma, o leão representava a Jesus Cristo, que havia
permanecido por três dias no Sepulcro e depois, pela virtude de Deus, seu pai, ressuscitou ao
terceiro dia.
21
Isto era um exemplo aos fiéis que, adormecidos pelos pecados, deveriam ressuscitar
dos vícios, para que o próprio Cristo os ressuscitasse do mundo da maldade para a eterna morada
no paraíso. Nesse caso, o leão representa a Deus que não adormecia em tempo algum, e sempre
vigiava com os olhos abertos.
22
A terceira propriedade do leão era que quando queria caçar algum animal, fazia um
círculo em volta do bosque e depois entrava nele para caçar o que queria, pois os animais não
17
Philippe Thaün. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio (Gd). Bestiário Medieval. Op. cit., p. 23.
18
MORETTI, Felice. Imaginario Medievale. Disponível em: www.mondimedievali.net/Immaginario/ leone.htm .
Consultado em 26/07/2007.
19
Isidore of Seville.Disponível em http://bestiary.ca/beasts/beast78.htm. Consultado em 26/07/2007.
20
MORETTI, Felice. Imaginario Medievale. Disponível em: www.mondimedievali.net/Immaginario/ leone.htm .
Consultado em 26/07/2007.
21
Disponível em http://bestiary.ca/beasts/beast78.htm.. Consultado em 26/07/2007.
99
ousavam sair, uma vez que encontravam pegadas de leão por todas as partes.
23
Nessa
propriedade, o leão representava o diabo, que rodeava os lugares que eram freqüentados pelos
pecadores e os amarrava com ataduras tão fortes que eles não conseguiam abandonar o pecado,
entregando-se a ele e separando-se de Deus, pois não invocavam a Jesus Cristo.
24
5.1.5 Rinoceronte/Unicórnio
Natural da China e Índia ou talvez no Egito, esse animal fantástico, descrito como
feroz, tornava-se dócil na primavera. Provavelmente de origem oriental, as lendas sobre o
unicórnio nasceram entre a China e a Pérsia entre os séculos finais do primeiro milênio antes de
Cristo e o inicio do primeiro milênio d. C.
25
As obras dos autores da antiguidade estão repletas delas e que também são
minuciosamente descritas nos Bestiários medievais. O Physiologus informava que a besta tinha o
tamanho do cabrito, mas era ferocíssima; nenhum caçador podia aproximar-se por causa de sua
força extraordinária; possuía um chifre no meio da fronte. Segundo a obra: “o Unicórnio é a
imagem do Salvador: porém “tem aparecido um chifre na casa de Davi pai nosso”(Lucas, 1.69), e
é chamado por nós corno da salvação. Não pode haver domínio sem Ele, os anjos e as potências,
mas ficou no ventre da verdadeira e imaculada Virgem Maria, “o Verbo se fez carne e habitou
entre nós”(jo.1,14)
26
O unicórnio simbolizava a imagem do único filho de Deus, o Cristo, que era
o unicórnio espiritual que se encarnou no seio da Virgem. Em outra narração fantástica, conta-se
que os animais da floresta se reuniram em torno de uma fonte de água envenenada por um
dragão. Para beber, os animais esperavam que o unicórnio entrasse naquela água, fizesse um sinal
22
Isidore of Seville. Disponível em http://bestiary.ca/beasts/beast78.htm. Consultado em 26/07/2007.
23
Philippe Thaün In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio (Gd). Bestiário Medieval. Op. cit., p. 25.
24
Pliny the Elder. Disponível em http://bestiary.ca/beasts/beast78.htm. Consultado em 26/07/2007.
25
MORETTI, Felice. Imaginario Medievale. Disponível em: www.mondimedievali.net/Immaginario.htm . Consultado em
26/07/2007.
26
MORETTI, loc. cit..
100
da cruz com o seu chifre e purificasse a água. O chifre simbolizava a cruz de Cristo. Como o
unicórnio salvava aos animais purificando a água envenenada, assim o Cristo Redentor dava aos
pecadores a salvação eterna com seu sacrifício na cruz.
27
Plinio havia falado de “um boi com a testa de cervo”. Solino, que tomou conhecimento
de sua existência com o nome de monoceronte, a partir dos relatos da obra pliniana, os descreveu
com corpo de cavalo, testa de cervo dotada de um único chifre esplêndido, pata de elefante e
cauda de porco.
28
Ulisses Aldovrandi, médico e naturalista, no seu De quadrupedis solidipedicus se
ocupou também do unicórnio. Ele viajou a cavalo entre os 600 e os 700, inventariando e
registrando lendas populares e interpretações que o mundo cristão havia elaborado em torno desta
besta; recolheu uma bagagem inexaurível de relatos. Na China, por exemplo, a aparição do
unicórnio significava o nascimento de um sábio iluminado. Século após século, a condição de
amuleto, continuou.
29
Para o bestiário de Philippe Thaun
30
o unicórnio era um animal terrível e forte que
tinha um corno na fronte com o qual derrubava as árvores, e os demais animais da terra.
O único chifre do animal foi interpretado por Hugo de São Vitor, em sua obra De
bestis et aliis rebus, como Jesus Cristo, que fala no Evangelho de João que “O Pai e eu Somos
Um só”. Segundo a maioria dos bestiários, esse animal não podia ser caçado a não ser com
doçura e com a ajuda de uma imagem da Virgem. Quando os caçadores queriam capturá-lo
levavam para o monte onde se encontrava uma imagem da Virgem e então o unicórnio achegava-
27
RESTELLI, Marco. Il ciclo dell'unicorno Miti d'oriente e d'occidente. Veneza: Marsílio, 1992. p-177.
28
RESTELLI,
loc. cit..
29
MORETTI, F. Imaginario Medievale. Op. cit.
30
Segundo Ignácio de Malexecheverria “El bestiario de Philipe Thaun (PT) es el mas antiguo de los franceses, y sigue com
bastante fidelidade l texto latino del Physiologus. El autor, anglonormando, dedica sua obra a Aelis de Lovaina, segunda
esposa de Enrique I de Inglaterra, em el manuscrito conservado em Londres; em outro ejemplar, que se guarda em Oxford,
la dedicatória va a Alianor, esposa de Enrique II: la fecha de composición puede variar de 1121 a 1152”.
101
se, pondo sua cabeça no colo da Virgem. Nesse momento, os caçadores o atavam com correias e,
seguindo a Virgem, o conduzia até a cidade.
31
Para os bestiários o unicórnio assemelhava-se ao diabo, posto que era tão terrível e
malvado que não podia ser destruído a não ser pela virgindade, isto é pelas boas obras e virtude.
Esta caçada representava também a necessidade da intercessão de Maria, a mãe de Jesus, para a
salvação das almas.
5.1.6 Abutre
Segundo o Physiologus, esta ave fazia seus ninhos em lugares altos e os construía nas
rochas em grutas nas montanhas.
32
Quando ela queria dar cria, voava até a Índia para buscar a
pedra do parto. Tal pedra era do tamanho de uma noz. Ao sacudí-la se via em seu interior outra
pedra, que se movia e ressoava. Quando a fêmea do abutre recorria à pedra, se colocava sobre ela
e dava a luz sem dificuldade.
33
Para essa obra, o homem deveria fazer como a ave e sentar-se
sobre a pedra, que dizia ser Jesus Cristo, que tinha dentro de si outra pedra que era o Espírito
Santo. Caso a fêmea tivesse algum problema que a impedisse de dar a luz, imediatamente o
macho ia até o Oriente e recolhia tal pedra para que o parto acontecesse. Logo após a ave dar a
luz, o macho levava-a de volta para o local de onde a havia retirado.
34
Segundo o Physiologus o abutre era a mais voraz de todas as aves. Ele jejuava durante
quarenta dias e depois comia quarenta medidas de comida preparando-se para outro jejum de
quarenta dias. Para tal bestiário, o homem prudente faria como a ave, jejuando quarenta dias
31
Isidore of Seville. Disponível em: http://bestiary.ca/beasts/beast140.htm. Consultado em 26/07/2007.
32
Physyologus. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio (Gd). Bestiário Medieval. Op. cit., p. 34-36.
33
Physyologus, loc. cit..
34
.Physyologus. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio (Gd). Bestiário Medieval. Op. cit., p. 34-36.
102
antes da Páscoa. Essa ainda propunha que o leitor deveria, além de jejuar, renunciar à embriaguez
para realizar um jejum de quaresma perfeito.
35
Quando o abutre necessitava de alimento, colocava-se sobre uma rocha olhando ao seu
redor em busca de comida. E sempre que havia algum animal caído nas proximidades, a sua garra
direita mudava de cor, fazendo-o saber de imediato que existia uma carniça próxima. Então a ave
voava até o mais alto possível e de seus olhos saiam raios que lhe mostravam o caminho até tal
alimento.
36
Segundo o Bestiário de Cambridge
37
o nome abutre foi dado por causa de seu vôo
lento. Essa característica se devia ao seu tamanho. Os abutres não copulavam e não se uniam
conjugalmente por meio de uma relação nupcial. As fêmeas concebiam sem a participação dos
machos. Por isso, suas crias viviam até uma idade muito avançada, chegando aos cem anos.
38
Tal
obra criticava aqueles que não acreditavam na possibilidade dessa ave ter cria sem uma cópula,
comparando esse ato à dúvida de alguns quanto à concepção de Jesus sem a participação de um
homem.
39
Outra característica marcante era que os abutres tinham o dom de profetizar a morte
dos homens. Pois todas as vezes que se formavam linhas de batalha, eles mostravam, ao revoar
um trecho das colunas formadas para as guerras, quantos soldados morreriam na peleja.
40
Para esses bestiários, ao agir assim, as aves eram como o diabo, que sabia quais eram
os homens que iriam cometer pecados e maldades. Dessa forma, agia como essas aves, que
35
Physiologus, loc. cit..
36
Physiologus, loc. cit..
37
Physiologus, loc. cit..
38
Cambridge. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio (Gd). Bestiário Medieval. Op. cit., p. 36-37.
39
Cambridge, loc. cit..
40
Libellus de Natura Animalium. Disponível em: http://www.bivir.com/DOCS/NORM/bestiario.html. consultado em
26/07/2007.
103
tinham um olfato apurado podendo encontrar carniça a quilômetros de distância. Pois o diabo
conseguia avistar, desde o inferno, os homens mortos e corrompidos pelo pecado mortal.
Outra forma de comparação é que assim como o abutre ia atrás das tropas, que estavam
prestes a oferecer-lhes alimento saboroso, alguns fiéis iam entusiasmados à busca dos homens
mais prudentes, nos quais residia a verdadeira sabedoria, pois esta é que nutria a alma e o corpo
do homem.
5.1.7 Águia
Segundo os bestiários,
41
a águia possuía três naturezas fundamentais, que
simbolizavam três virtudes espirituais. A primeira era que ela se rejuvenescia quando ficava
velha. Aí ela procurava uma fonte de água que sempre minava abundantemente e que tivesse uma
correnteza forte. Depois subia até ao alto, desde a fonte até a luz do sol que incendiava e
queimava suas asas com o seu calor. Depois mergulhava na fonte conseguindo tornar-se jovem
novamente, assim como era quando saiu do ninho.
Alguns fatores são importantes em nossa análise: primeiro entender que a águia foi
muitas vezes associada à figura de Cristo e em seu vôo em direção ao céu deveria se ver o vôo de
Cristo ressuscitado saindo da morte. Ela seria a representação de Jesus que após abandonar um
corpo corruptível, saiu do céu. a fonte que a rejuvenescia significava, segundo os bestiários e
principalmente o Physiologus, a pia batismal, da qual o cristão saía purificado”.
42
Segundo tais obras, os cristãos deveriam imitar esta natureza da águia quando estavam
carregados de alguma culpa corporal. Deveriam, em primeiro lugar, buscar onde estava a fonte, e
41
Physiologus. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. Op. cit., p. 73-78.
42
Physiologus, loc. cit..
104
dizer em que obras estaria Deus, que é a fonte viva; e depois obrigatoriamente subir às alturas,
quer dizer, elevar suas mentes à Deus.
43
Os fiéis deveriam subir até a luz e chegar ao sol, isto é, chegar à Deus através da luz,
ou seja, da penitência; e então incendiar as suas plumas. Pois através da penitência os fiéis teriam
os seus pecados perdoados. Posteriormente deveria, então, mergulhar na fonte, ou seja, o batismo,
quando se faria um homem novo.
44
A segunda propriedade ou natureza da águia era que quando o seu bico ficava tão torto
que não conseguia mais comer, então ela buscava uma pedra, e golpeava a pedra com ele tão
fortemente que o amolava e o polia; e uma vez amolado podia comer e engolir a comida como
fazia anteriormente.
45
Segundo a obra, aqueles que se encontravam agoniados pela torpeza da culpa deveriam
adotar a pedra, quer dizer, Cristo. Deveriam golpeá-la com o próprio rosto, ou seja, assumir a
penitência pelas ações cometidas. Pois, se não se despojassem das culpas, não poderiam comer,
quer dizer, receber o corpo de Cristo, posto que Cristo e os pecados são contrários e os contrários
não podem dar-se ao mesmo tempo.
A terceira natureza da águia era que olhava o sol mais fixamente que qualquer animal;
e quando tinha os seus filhotes, comprovava se conseguiam olhar o sol diretamente, pois se
algum não o olhasse, rapidamente o matava. Essa propriedade deveria ser imitada pelos fiéis com
todas as suas forças, posto que deveriam olhar o sol, isto é Deus, com o olhar reto, quer dizer,
pelo caminho reto. Os homens deveriam provar os seus filhos, ou seja, as suas obras; pois se
43
Libellus de Natura Animalium. Disponível em: http://www.bivir.com/DOCS/NORM/bestiario.html. consultado em
26/07/2007.
44
Libellus de Natura Animalium, loc. cit..
45
Libellus de Natura Animalium, loc. cit..
105
alguma obra não fosse direcionada a Deus, deveriam corrigir e eliminar esta ação, para que não
fosse impedida a visão do Altíssimo Deus.
46
5.1.8 Avestruz
Para os bestiários medievais, o avestruz era uma ave que não havia sido criada para
voar. Apesar de possuir asas, ela não alçava vôo. Quando queria colocar seus ovos, cavava
buracos no solo, os depositava ali e tapava com areia, abandonando-os. Por isso, ela os colocava
no verão, de forma que o sol ardente pudesse os aquecer, tarefa que deveria ser sua. Quando
punha seus ovos não podia olhar para nenhuma outra direção que não fosse o céu, pois se assim
fizesse os ovos tornavam-se estéreis.
47
Segundo o Physiologus ela era uma ave muito forte conhecida na Índia e em outros
lugares como ave elefante, porque costumava arrancar os filhotes do elefante, ainda bem
pequenos, do lado das mães, colocando-os sobre suas costas, voando até o deserto onde morava e
devorá-os.
48
Para caçá-la, os homens amarravam seus bois com correias duras, amarram-nas a uma
carreta e a enchiam de grandes pedras. Quando tentava roubar um dos bois, cravava-lhe as garras
na cabeça como não conseguia tirá-las, era capturada e morta.
O bestiário de Philippe Thaün informa que tal ave possuía pata de camelo e a pena
semelhante a da garça e do gavião. Porém, apesar de tal plumagem, a avestruz não podia voar
como elas que eram, segundo a obra, as que possuíam maior rapidez no vôo. Comparava a ave
aos hipócritas que simulavam viver como os justos, colocando-se como convertidos, o que não se
traduzia em suas atitudes. Tinham penas que aparentemente possibilitavam o vôo, porém estavam
46
Libellus de Natura Animalium. Disponível em: http://www.bivir.com/DOCS/NORM/bestiario.html. Consultado em
26/07/2007.
47
Physiologus. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. Op. cit., p. 106-108.
106
carregados pelo peso das preocupações mundanas. Por isso, jamais poderiam voar sobre a terra.
49
Para tal obra, quando Jesus reprovava aos fariseus por sua hipocrisia, esses eram como se fossem
as penas da ave que se mostravam uma coisa por sua cor e outra pela sua capacidade de alçar
vôo.
50
Tal obra continua a comparação entre a avestruz e as duas outras aves informando que
as duas possuíam o corpo pequeno e as penas densas que as possibilitavam voar rápido. Por sua
vez a avestruz tinha poucas plumas e um corpo muito grande. A dupla de aves representava para
o autor os eleitos, que não possuíam muitas culpas e por isso, eram leves, podendo se elevar ao
céu. Porém, as avestruzes ou os hipócritas faziam poucas coisas que poderia levá-los ao céu e
muitas que os enchiam de culpas e por isso os tornava pesados.
51
5.1.9 Calhandra/Carádrio
Essa ave também é citada em vários bestiários. Para o Physiologus ela era branca e
sem nenhuma mancha. Suas fezes tinham poder taumatúrgico, já que curavam os olhos ofuscados
e nas cortes reais elas eram figuras obrigatórias. Se ela fosse levada diante de uma pessoa
enferma e não a olhasse, significava que essa estava destinada à morte. Porém, se a ave olhasse
fixamente o doente, era porque calhandra absorveria a sua enfermidade, enfiando o bico em sua
boca e a queimando ao voar ao encontro do sol, salvando-se e salvando o enfermo. Ela
representava, então, Cristo, que segundo os autores medievais, não possuía mancha alguma e
tomou para si as culpas da humanidade, curando suas doenças quando foi crucificado.
48
Physiologus, loc. cit..
49
Philippe Thaün. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. Op. cit. p.108.
50
Philippe Thaün, loc. cit..
51
Informações disponíveis no site www.bluedragon.it/bestiario/caradrio.htm. Consultado em 25/07/2007.
107
A unção com a medula do seu osso da coxa, que segundo os bestiários era enorme,
curava os cegos. Assim a calhandra ainda era o mbolo do Messias cristão que era o ungido que
devolvia a visão aos cristãos que estavam cegos.
Ela também simbolizava o confessor sábio, que ao escutar a confissão rapidamente
ficava ciente, através de certos sinais, se o pecador iria salvar-se ou não. Pois quando via o fiel
confessar de maneira ordenada com coração contrito, com o propósito de abandonar todos os
seus pecados, de pagar por suas culpas, de pedir humildemente perdão, ficava evidente qual era a
real intenção da confissão.
5.1.10 Cisne
Segundo os autores dos bestiários, o cisne era chamado pelos gregos de Cygnus, pois
produzia uma música muito melodiosa. Segundo tais obras, esse canto se fazia tão
melodiosamente devido à garganta larga e curva que o pássaro possuía.
52
Com as características do seu canto, o cisne agia como um homem bom, que praticava
o bem, estudava, adorava e elogiava a Deus e quando escutava um bom pregador fazia bom
proveito de seu sermão, espalhando para os outros o que ouviu de bom, podendo com as suas
palavras levar a salvação aos outros fiéis.
53
O cisne, conforme informam os medievais, cantava melhor ainda no ano que iria
morrer, o que significava a alma que não desanimava diante das tribulações. Também
simbolizava aqueles que sabiam da morte pela gravidade de uma enfermidade, mas que
elogiavam a Deus e despojavam-se de todas as obras mundanas, fugazes e caducas, gozando da
glória celestial.
54
52
Cambridge. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. Op. cit., p. 58-59.
53
Bestiaris I. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. Op. cit., p. 61-62.
54
PB: Cahier III. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. Op. cit., p. 59-60.
108
O cisne possuía as penas todas brancas e a carne negra. Freqüentava os rios e nadava
sempre com a cabeça erguida e jamais a introduziam na água, por isso os marinheiros diziam que
o encontro com ele era um bom augúrio.
55
Ao narrar as características dessa ave, os bestiários citam sempre o cisne branco e não
o negro. Por isso diziam que o cisne era como os homens bons que estavam cheios de virtudes e
graças, e são brancos pela pureza de sua consciência e por suas boas obras.
56
5.1.11 Falcão
Para os Livros das Bestas o falcão, assim como a águia, possuía três propriedades
principais e alimentavam-se de moscas e lagostas e era chamado de coroado.
Essa ave era, segundo tais obras, como homens vis que buscavam sempre caçar seu
alimento, que simbolizava para os escritores as s obras. Agiam sempre como os ladrões e
bandidos, que eram desprezadas pelos homens sábios e honestos
57
devido às suas ações.
A segunda propriedade do falcão era que ele primeiramente caçava perdizes e patos; no
segundo ano, aves pequenas, e no terceiro, ratos e rãs, o que queria dizer que ele rebaixava-se até
a morte.
58
A ave era comparada aos homens que quando jovens buscavam a Deus e quando
adultos afastavam-se do bem e passavam a praticar o mal, transformando-se em pessoas ruins.
59
A terceira propriedade estava relacionada à crença de que o falcão, em um primeiro
ano caçava patos, no segundo, grous, e depois aves menores. A essas características
assemelhavam-se e comparavam-se no primeiro ano aos homens jovens que costumavam praticar
o bem, no segundo por estarem mais maduros faziam obras melhores ainda. E no terceiro ano,
55
Brunetto. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. Op. cit., p. 60.
56
Bestiaris I. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. loc. cit..
57
Libellus de Natura Animalium. Op. cit..
58
Libellus de Natura Animalium, loc. cit..
59
Libellus de Natura Animalium, loc. cit..
109
na velhice, atuavam de forma memorável, pois eram bem mais prudentes e estavam cheios de
amor, pois não cometiam o pecado mortal nem pecavam inoportunamente. Eles não ficavam
nervosos diante das adversidades da vida e nem cometiam excessos diante da prosperidade, pois
suas esperanças estavam colocadas em Deus.
60
5.1.12 Grou
Segundo os livros das bestas, o nome grou vem da peculiaridade de seu canto, pois é
semelhante a um grito (grus).
61
Esse animal possuía pescoço muito largo e antes que os alimentos
passassem para seu ventre percorria três curvas em seu pescoço, pela grande longitude que
possui.
62
O homem deveria seguir esse exemplo, pois utilizaria a sabedoria que Deus havia lhe
dado: antes de falar qualquer coisa, assim como a ave recorria as três curvas no pescoço,
necessitava pensar interiormente no que iria dizer, se preocupando sempre em falar a verdade e
não discursar em vão, para que não fosse tido como idiota e sem domínio próprio.
63
Para os autores dessas obras, tal ave era muito organizada, pois viajava juntamente das
outras em uma formação que lembrava uma tropa militar. Se durante seu vôo ocorresse um vento
muito forte que a impedisse de voar retamente, ela comia grãos de areia e recorria a pequenas
pedras para dar lastro. Alçavam vôo rapidamente com o objetivo de poder ver o território que era
seu destino. A formação dessas aves avançava rapidamente, porém sempre seguindo um guia que
voava à frente do grupo. Em pleno vôo, ela orientava as que estavam atrasadas e controlava a
coluna com sua voz. Quando ficava rouca outro guia ocupava seu lugar.
60
Libellus de Natura Animalium, loc. cit..
61
Cambridge. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. Op. cit., p. 85.
62
Bestiaris II. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. Op. cit., p. 89.
63
Bestiaris II. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval, loc. cit..
110
Todos os grous sabiam o que fazer com as aves cansadas que começavam a cair.
Formavam filas em torno delas e as sustentavam, até que elas descansassem.
64
Durante a noite, essas aves estabeleciam uma atenta vigilância. Enquanto umas
dormiam, outras ficavam de sentinela caminhando em torno do local onde estavam, afim de
proteger o grupo de ataques que pudessem vir a acontecer. Diante das emergências, elas davam o
alarme através de um grito.
65
Para que esta vigilância acontecesse de modo efetivo, pois não queriam dormir
enquanto estivessem de sentinela, essas aves usavam pedras sob suas patas, como utensílio para
que não adormecessem.
66
Quando terminava seu horário de guarda, dormia depois de haver dado um forte
granido para que a próxima sentinela acordasse. As aves que deveriam render as sentinelas
aceitavam a tarefa de bom grado diferentemente dos seres humanos. Levantavam-se rapidamente
e não abandonavam sua obrigações.
Segundo os escritores desses textos, o grou que velava pelos demais era a prudência,
que devia guardar a todas as demais virtudes da alma. Suas patas representavam a vontade. As
pedras que a ave amarrava em suas patas serviam para lhe tirar a tranqüilidade para que ela não
dormisse, por isso os homens deveriam amarrar bem curta sua vontade para que os outros
sentidos desconfiassem de estarem sendo enganados. Dessa forma, aqueles que queriam ser
precavidos como o grou deveriam velar para que não fossem enganados pelo demônio.
Os homens deviam proteger-se melhor que o grou, pois as coisas da terra foram feitas
por Deus para servir-lhes, sendo então muito justo que eles servissem a Deus. Para isto deveriam
64
Cambridge. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval, loc. cit..
65
Cambridge. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval, op.cit., p. 86.
66
Libellus de Natura Animalium. Op. cit..
111
afastar-se dos pecados e sempre procurar fazer o bem. Sendo assim, deveriam velar pelas boas
obras, assim como o grou velava pelos seus companheiros.
5.1.13 Pavão
O pavão era visto pelos escritores dos livros das bestas como uma ave de rara beleza
que desejava voar, mas quando via seu pé feioso se entristecia e não conseguia alçar vôo ficando,
às vezes, doente por isso.
Para os medievais, muitos dos homens tinham esta natureza, pois orgulhavam-se tanto
da beleza do seu corpo que desejavam voar, isto é, tornavam-se soberbos, porém, quando
observavam a maldade da carne, não conseguiam levantar vôo.
67
Tal ave possuía em sua cauda muitos olhos, característica que era vista como símbolo
da grande previsão que os fiéis deveriam ter ao fazer qualquer coisa, pois a cauda representava o
objetivo final dos planos humanos.
5.1.14 Pelicano
O pelicano era um pássaro raro e por isto simbolizava o espírito de uma pessoa que
possuía a pureza de pensamento, como Cristo, que era representado por ele.
O pelicano, que na simbologia cristã significava Cristo, era aquele animal que os
antigos gregos chamavam Pelekos, o machado, porque a abertura de seu bico gigantesco
assemelhava-se a um leque. Pelos próprios gregos foi chamado de Onocrotalo, porque o seu
estranho grito, Krotos, era similar ao do asno. Vivia na Europa oriental, na Ásia e na África e,
segundo Plinio, no mar do Norte.
68
Nos bestiários, lê-se que o pelicano abria o seu peito com o
67
Libellus de Natura Animalium. Op. cit..
68
MORETTI, Felice. Immaginario medievale. Op. cit..
112
bico para nutrir os seus filhotes famintos, assim como Jesus na Cruz havia dado o seu sangue
para redimir a humanidade.
O Physiologus diz que o pelicano amava muitíssimo os seus filhos: quando gerava-os,
esses não apenas eram grandes, como golpeavam a seus pais, que então batiam-nos e os
matavam. Os pais passavam então a afligir-se por seus filhos e depois de lamentarem-se durante
três dias sobre os filhotes que mataram, a mãe, no fim do terceiro dia, abria o seu lado e deixava
cair seu sangue sobre os corpos mortos dos pequenos e os ressuscitava.
Os teólogos medievais identificavam o Pelicano com o Cristo na Cruz, e com o Deus
Pai que ama a tal ponto a humanidade que enviou seu único filho, que ressuscitou da morte ao
terceiro dia.
69
O pelicano era usado como imagem de Cristo, que se abandonava na cruz e dava
seu sangue para redimir a humanidade, ou como imagem de Deus Pai, que sacrificava seu Filho e
o ressuscitava da morte após três dias.
Os pelicanos instalavam seus ninhos em locais pedregosos e construíam uma vala em
torno dele para afastar a serpente. Então a serpente observava a direção do vento e soprava seu
veneno, que era levado ao ninho e matava aos filhotes. Aí o pelicano agindo como anteriormente
descrito ressuscitava-os.
70
Para o Physiologus, o pelicano representava Deus e os filhotes, Adão e Eva e sua
descendência. A serpente era considerada o diabo e o ninho, o paraíso. Adão e Eva teriam sido
mortos pelo sopro do diabo morrendo devido ao seus pecados. Mas Deus foi pregado na cruz
devido a seu amor pelos homens.
Para um dos bestiários, o Libellus, o homem tem como filhos o corpo e a alma, que
mata com o pecado mortal e inícuo, porém, assim como o pelicano ressuscitava seus filhos com o
69
MORETTI, Felice. Immaginario medievale, loc. cit..
113
seu sangue, o homem poderia dar vida a sua alma e ao seu corpo, assumindo e sofrendo a
penitência por seus pecados, e mortificando a sua carne.
71
5.1.15 Áspide
Áspide era um pequeno dragão, que às vezes era representado como quadrúpede outras
como bípede. Desse ptil se contava que era muito sensível à música. Por evitar a suas
irresistíveis tentações ele ficava surdo encostando uma orelha na terra e bloqueando a outra com a
ponta da calda. O único meio de capturar um áspide era o canto, porém o animal era muito
cuidadoso ao ponto de fazer-se surdo para evitar os mágicos encantos que tendem a tirar-lhe a
coroa.
72
Os teólogos medievais, viram na áspide o pecador que tapa as orelhas à palavra da
vida; era a imagem daqueles que se recusavam a praticar e escutar a palavra de Deus. Esse réptil
é uma variedade do dragão que saiu das antigas culturas orientais para povoar o imaginário do
Ocidente medieval. Sob a forma de serpente se apresentou a Eva, considerada a primeira
pecadora. Daí o famoso verso bíblico: “Tu te arrastarás sobre teu ventre e comerás todos os
dias de tua vida. (Gen. 3, 14). Com este texto de gênesis se explicava no medievo que a partir dali
ela perdeu as patas, e se transformou de dragão em serpente: variação muito antiga, retratada seja
nas tradições hebraicas ou nas gregas.
73
70
MORETTI, Felice. Immaginario medievale. Disponível em http://www.mondimedievali.net/Immaginario/ pellicano.htm.
Consultado em 25/07/2007.
71
Libellus de Natura Animalium. Disponível em: http://www.bivir.com/DOCS/NORM/bestiario.html. Consultado em
26/07/2007.
72
MORETTI, Felice. Immaginario medievale. Disponível em http://www.mondimedievali.net/ Immaginario/aspide.htm.
Consultado em 26/07/2007.
73
. MORETTI, loc. cit..
114
5.1.16 Dragão
O dragão era considerado a maior de todas as serpentes, na verdade de todos os seres
vivos que para os medievais existiam. Os gregos o chamavam draconta, e este foi traduzido para
o latim com o nome de draco
74
Quando o dragão saia da cova, ou mesmo voava, o ar ao seu redor ficava quente. Tinha
crista, boca pequena e um estreito lábio através do qual todo o alimento vai para a língua. Apesar
disso, sua força não estava nos dentes, e sim na cauda, e fazia mais danos com seus golpes que
com suas bicadas. Assim, era inofensivo no que tange ao veneno. Porém, diziam que necessitava
do veneno para matar, que, se ele se enroscava em torno de alguém, o matava. Nem mesmo o
elefante se via protegido contra o tamanho de seu corpo, pois o dragão, que ficava de espreita
junto aos caminhos por onde passavam os elefantes, enlaçava suas patas com um nó, graças à sua
cauda, e os matava por asfixia.
75
O demônio, que era o maior de todos os répteis, era como esse dragão. Saía abaixado
de sua toca e lançava-se ao espaço, e o ar em torno a ele se inflamava, pois o demônio, ao elevar-
se das regiões inferiores, se convertia em um anjo de luz e enganava os nécios com falsas
esperanças de glória e gozo terreno. Se dizia que tinha uma crista ou coroa, porque era o rei da
soberba, e sua força não estava nos dentes, e sim na sua cauda, porque enganava aos que atraia
com artimanhas, destruindo sua fortaleza. Deitava escondido junto aos caminhos por onde
passavam, porque seu caminho para o paraíso estava obstaculizado pelos seus pecados, e os
74
MORETTI, Felice. Immaginario medievale. Disponível em: http://www.mondimedievali.net/ Immaginario/drago.htm.
Consultado em 26/07/2007.
75
MORETTI, Felice. Immaginario medievale. Disponível em: http://www.mondimedievali.net/ Immaginario/drago.htm.
Consultado em 26/07/2007.
115
estrangulava até matá-los. Pois se alguém cai preso nas redes do crime, morre, e vai sem dúvida
para o inferno.
76
O dragão não matava homem algum, senão que o devorava lambendo-o com a sua
língua.
77
O dragão era um animal de corpo enorme, de aspecto terrível, com uma boca grande e
muitos dentes, olhos flamejantes e de grande comprimento. No começo era uma serpente, e com
o passar do tempo se transformou em dragão e trocou de forma; sobre esse assunto, falava-se que:
“Quando a serpente encontrava oportunidade, virava dragão”. Quando a serpente alcançava trinta
metros de comprimento e aos cem anos de idade, a chamavam dragão; e seguia crescendo
gradualmente, até que se convertia de tal forma que os outros animais se aterrorizavam ao vê-la.
Segundo os medievais, Deus todo Poderoso a lançava ao mar; e também no oceano
aumentava o seu tamanho, de forma que excedia dez mil metros; e nasciam duas pequenas asas
como a um pé, e seus movimentos causavam as ondas do mar. E quando o dano que faziam
resultava em manifestação no mar, Deus Todo Poderoso o enviava à morte, e um vento a lançava
a terra. Comer o coração do dragão aumentava a valentia; quem o comia vencia os animais. Se
amarrasse seu couro a um enamorado, este ficaria apaixonado. O estado de qualquer lugar que se
enterrasse sua cabeça se tornaria agradável.
78
Quando o dragão tinha sede, ia direto em busca de um formoso manancial de água
pura, limpa e saudável; porém antes, na verdade, vomitava em uma vala. Quando estava limpo e
purificado do veneno, poderia então beber com toda segurança. Os fiéis deveriam imitar aos
dragões: quando iam à igreja escutar a palavra de Deus: não deveriam levar nenhuma cobiça ou
76
Cambridge. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. Op. cit., p. 180-181.
77
Cambrai. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. Op. cit., p. 181.
78
Nuzhat. In: MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. Op. cit., p. 181-182.
116
avareza; deveriam purgar-se de todo vício, mediante à confissão. Então poderiam entrar no
templo a orar e escutar a palavra de Deus.
79
Importados da Índia não só de Plinio, mas, também de Solino, esses animais no
balanço entre o real e o fabuloso, cruzaram-se nos mosteiros europeus de Cluny, Fulda,
Reichenau, San Gallo, Montecassino, S. Vicente com outros monstros, diabos e dragões nascidos
das penas de ganso de monges solitários, dando origem a uma fauna mais fantástica e monstruosa
na qual real existência acabaram por crer.
5.1.17 Abelha
Para o homem medieval, as abelhas tinham como matriz de sua gestação as carcaças de
bois em estado de putrefação.
80
Na tradição bíblica, mais especificamente no livro de Juízes no
capítulo 14, as abelhas vão surgir da carcaça de um leão morto por Sansão, que também retira
mel da carcaça que virou uma colméia. Para Isidoro de Sevilha, no capítulo 4 do livro 11 de sua
obra Etimologias, que é considerada fonte para muitos Bestiários Medievais, as abelhas nascem
das carnes em decomposição dos bois, afirmação correta segundo ele, pois, o zangão vinha das
mulas, e as vespas dos burros.
Esses insetos eram descritos como criaturas pequenas e de aparência simples, que
produziam um fruto maravilhoso que é o mel. Ela adorava pousar nas flores, e extrair seu pólen; e
por isto realizava seu trabalho, revestida de muitas cores e de uma grande doçura, por isso os
autores comparavam o mel ao maná caído do céu. Os bestiários afirmavam que não havia
nenhuma outra besta que produzia um maná tão doce, quanto este pequeno “animal”. Esse inseto
79
MORETTI, Felice. Immaginario medievale. Disponível em: http://www.mondimedievali.net/ Immaginario/drago.htm.
Consultado em 26/07/2007.
80
Disponível em http://www.sistemamuseale.provincia.ancona.it/ musei%20news/bestiarimedievali/scheda1.htm.
Consultado em 26/07/2007.
117
era elogiado todo o tempo, por sua eficácia na produção do mel e da cera, que beneficiavam
bastante os homens medievais.
81
Para os autores dos bestiários, a abelha possuía uma sabedoria inata, pois quando se
afastava da colméia para escolher as flores das quais retiraria o pólen, para produzir o mel,
fechava a sua pequena célula, de modo que a cera e o mel produzidos a partir do pólen não
fossem perdidos.
Como as abelhas viviam em comunidade, acreditava-se que elas escolhiam a mais nobre para
ser o rei e, além disso, mantinham guerras. Suas leis eram baseadas no costume, mas o rei não
reforçava a lei. As abelhas eram receosas do fumo e sentiam-se excitadas pelo ruído. Cada uma
tinha sua própria função: guardando a fonte de alimento, prestando atenção à chuva, coletando o
pólen para fazer o mel, e fazendo a cera das flores.
As abelhas desapareciam durante três meses, pois não saiam da colméia no período do
inverno, o que as tornaram um símbolo cristão, ao serem comparadas ao corpo de Cristo, que
ficou três dias enterrado antes de reaparecer ressuscitado.
E como as abelhas têm milhares de filhotes "de nascimentos virgens" e o mel por sua
doçura significava Cristo, ela tornou-se símbolo de Maria. Acreditava-se que as abelhas nasciam
de partenogênese, e assim elas transformaram-se em símbolos da castidade, da pureza moral e da
virgindade, assim como a Mãe de Jesus.
5.1.18 Aranha
Segundo as obras medievais, a Aranha tinha a propriedade de fazer uma teia para
capturar moscas e outros insetos, que lhe serviriam de alimento. Elas eram consideradas hábeis e
81
Disponível em http://www.sistemamuseale.provincia.ancona.it/ musei%20news/bestiarimedievali/scheda1.htm.
118
a linha, que era matéria prima de sua teia, era produzida pelo próprio corpo. A fêmea era a
responsável por tecer e o macho pela caça. Quando notavam que os rios inundariam as áreas
próximas a sua teia, procuravam construir outras em lugares mais altos.
82
Para Isidoro de Sevilha, elas eram lagartas do ar que possuíam uma linha longa dentro
de seu corpo e nunca paravam de trabalhar, vivendo sempre penduradas em suas teias.
83
Ela simbolizava o demônio que armava sua teia ou suas redes de distintas tentações,
para caçar os pecadores que são capturados pela sua soberba, pela inveja, pela ira e todos os
outros pecados.
5.1.19 Gafanhoto
Nos bestiários, o gafanhoto simbolizava a imagem dos heresiarcas, os propagadores do
erro, da discórdia, do espírito de indisciplina, do desejo. Esses insetos, que na bíblia por exemplo,
foram usados por Deus para devastar as plantações do Egito, eram vistos como símbolo daqueles
que devastavam os campos semeados com boas sementes pelo “Semeador Divino”.
84
5.1.20 Sanguessuga
Segundo os bestiários, a sanguessuga simboliza Satã, que sugava a vitalidade e comia o
sangue dos homens. Dessa forma, tornava-se símbolo de todos aqueles que inspirados pelo
espírito do mal, viviam injustamente dependendo dos outros e extorquindo os bens materiais.
6.1.21 Lâmia
Segundo o imaginário fantástico medieval, a Lâmia era um vampiro que roubava
crianças pequenas para beber seu sangue. Era retratada como uma serpente, porém com cabeça e
Consultado em 26/07/2007.
82
Pliny the Elder. Disponível em: http://bestiary.ca/beasts/beast551.htm. Consultado em 30/04/2007.
119
os seios de uma linda mulher. Geralmente fêmea, mas tratado às vezes como um homem ou um
ser hermafrodita.
De acordo com a legenda, Lâmia era uma rainha da Líbia (ou princesa) que se
apaixonou por Zeus. Hera, a esposa do maior deus do Olimpo, ficou enciumada e transformou-a
em um monstro e assassinou os seus filhos. A partir deste momento, fez com que Lâmia fosse
incapaz de fechar os olhos, de modo que não pudesse encontrar nenhum descanso da imagem
obcecada de suas crianças mortas. Quando Zeus viu o que Hera fez a Lâmia, sentiu piedade dela
e deu a sua amante um presente: poderia retirar os seus olhos, e então coloca-los outra vez. Desta
maneira, embora sem sono, poderia descansar de seu infortúnio. A Lâmia, com inveja das outras
mães, praticava sua vingança roubando suas crianças e devorando-as.
5.2 A PREGAÇÃO ANTONIANA E OS ANIMAIS
No capítulo anterior, já discorremos sobre os sermões dedicados à quaresma,
procurando elucidar os assuntos e preocupações abordadas pelo frei Antônio de Lisboa/Pádua. A
partir daqui, estaremos tratando das analogias que fez entre os elementos da sociedade européia
ocidental na Idade Média no período que lhe é contemporâneo, os animais dos livros das bestas.
Antônio usou as bestas da mesma forma que muitos outros autores, ou seja, para ele
deveriam simbolizar as práticas, sejam elas virtuosas ou não, dos homens medievais e representar
elementos espirituais, da doutrina católica ou bíblicos, entre eles a própria representação do
mistério cristão da Santíssima Trindade.
Poderíamos dizer, então, que para o frade, o mundo seria uma grande floresta, banhada
por alguns rios e lagoas, e que tinha acesso ao mar. Pois nela existiam vários animais terrestres
83
Isidore of Seville. Disponível em: http://bestiary.ca/beasts/beast551.htm. Consultado em 30/04/2007.
84
Libellus de Natura Animalium. Op. cit..
120
aquáticos ou alados, que juntamente com alguns animais imaginários através de suas
características e propriedades lembravam aquilo que deveria ou não ser praticado pelos cristãos.
A partir daqui, iremos discutir alguns assuntos abordados pelo frade através da
simbologia dos animais e que também são pertinentes para entendermos as práticas, e discursos
daqueles que lhe eram contemporâneos.
5.2.1 Condenação aos Hereges
Aqui trataremos de um ponto fundamental da história do frade menor Antônio. Como
vimos anteriormente, o religioso esteve na linha de frente da missão evangelizadora da Igreja
Romana que buscava combater o avanço dos cátaros e fortalecer o poderio da instituição junto
aos fiéis. Então seria esperado que em seus sermões da quaresma ele tecesse críticas aos inimigos
da fé católica.
O religioso afirma, no primeiro sermão da quaresma, que “a mente ou a consciência do
pecador é covil de dragões pelo veneno do ódio e da detração”,
85
indicando que muitos ouvintes
acabavam convencidos pelos pecadores, que nós identificamos como uma referência aos hereges.
Os fiéis ficavam “inebriados e intoxicados” pelo que ele chama de “fel de dragões”. Dessa forma,
procura sublinhar que, a pregação, a murmuração e a maledicência daqueles que se rebelavam
contra a autoridade da Igreja, faziam com que as populações dos locais por onde o pregador
passava ficassem envenenadas contra a instituição.
O dragão era considerado, como já apontamos na primeira parte desse capítulo, a maior
das serpentes, por isso era visto como experiente e que sabia muito bem enganar suas presas. Ao
falar de detração, Antônio também faz referência à característica dessa besta de matar os homens
somente pela língua. Assim, utilizando a simbologia do drao, Antônio busca demonstrar que os
hereges eram o diabo e matavam os fiéis quando os convencia através de seu discurso.
85
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit, p. 96.
121
Antônio usa palavras duras para despertar em seu público um sentimento de temor face
aos hereges, estimulando uma reforma dos hábitos do clero e a uma conversão ao catolicismo.
Outro trecho desse primeiro sermão que trata dos hereges é:
A lâmia é um animal de rosto humano, mas de cauda de besta. Significa os
hereges, que, para mais facilmente enganarem, apresentam rosto de humanidade
e palavras suaves. Por isso, diz deles Jeremias: As lâmias descobriram a teta,
deram leite às suas crias. Os hereges descobrem a teta quando pregam a sua
seita, e dão leite às suas crias quando alimentam naquela perfídia os pérfidos que
neles acreditam; estes dizem-se com razão crias e não filhos, porque nada mais
sabem senão ladrar contra a Igreja e dizer mal dos católicos, como se foram
rústicos, alfaiates, curtidores de peles.
86
Aqui, de forma mais explícita, podemos notar que Antônio possuia uma preocupação
com os contestadores da ortodoxia romana, o que podemos classificar como um eco da apreensão
da Igreja, que convocou o Lateranense IV, dentre outros objetivos, para tratar das heresias. Nesse
sentido, os cânones de 1 a 3 tratam do tema e informam a cristandade que,
Condenamos a todos os hereges sob qualquer denominação com que se
apresentem; embora seus rostos sejam diferentes, estes se encontram atados por
uma cola, pois a vaidade os une. (...) Se algum bispo for negligente (...) quanto a
expurgar de sua diocese o fermento da depravação herética, o que ficará
evidente por intermédio de certos indícios, seja, então, deposto do ofício
episcopal e venha a ser substituído por um outro idôneo, que queira e possa
confundir a maldade herética.
87
Apesar de nenhum cânone falar especificamente da heresia cátara, sabemos que esse
era um dos grupos que contestava a Ortodoxia Romana e deveria ser combatido. O cânone 3
88
foi
redigido para orientar sobre que procedimentos as autoridades eclesiásticas deveriam realizar
para um combate eficaz aos movimentos heréticos, particularmente quando entre os acusados
estivessem clérigos. Conclama, ainda, aos potentados seculares a agir, pautados nas leis
temporais, contra os contestadores. No cânone, é estabelecida a obrigação da denúncia dos
86
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 99.
87
FOREVILLE, R. Cânone 3. In: Lateranense IV. Vitória: Eset, 1973, p. 34.
88
FOREVILLE, R, loc. cit..
122
hereges e as penas de prisão, negação dos sacramentos e o sepultamento cristão, tanto para os
acusados, quando para aqueles que os ajudasse de qualquer maneira.
89
Nesse sermão, o frade não cita os cátaros de forma explícita, porém como a única
heresia citada nominalmente em sua obra foi essa e como sua vida está profundamente ligada ao
seu combate, acreditamos que é sobre esse grupo que ele trata aqui.
Podemos observar que para identificar esses contestadores, Antônio lançou mão
somente dos dotes físicos da lâmia. Porém, ao analisarmos a narração do mito, podemos observar
que o frade pretendia mais que isso. Como, estes seres faziam parte das crenças do cotidiano dos
medievais, quando o franciscano nomeou àqueles que criticavam a Igreja de lâmias, queria
aproveitar toda a potencialidade do termo.
Essa besta pode ter sido usada por ser representada por uma mulher bonita que tinha a
metade do corpo de serpente. Provavelmente, o religioso português queria realçar que apesar de
parecerem bonitos no modo de falar e agir, os cátaros eram verdadeiras serpentes que, por inveja,
estavam matando os filhos da Igreja e sugando todo o seu sangue.
Outra afirmação que consideramos importante em seu texto, é a de que os hereges
tinham sua visão da cega e não enxergavam os fatores que, segundo Antônio, faziam da Igreja
detentora e curadora da espiritualidade e religiosidade cristã. Para ele, assim como a lâmia tirava
89
Segundo Andréia Frazão: “Os três primeiros cânones tratam da heresia. No cânone 1, após uma exposição dos pontos
básicos da católica, os hereges são apresentados como os que devem ser combatidos pois suas doutrinais são insensatas,
fruto de uma cegueira provocada pelo pai da mentira. Segundo o cânone 3, toda a heresia está dirigida contra a santa,
católica e ortodoxa, sendo um perigo para a unidade da fé da cristandade. Os diversos grupos hereges são vistos como um
bloco único e coeso. (...)Assim como o diabo e os demônios, criados por Deus naturalmente bons, pela vaidade foram
expulsos do paraíso, também por causa da vaidade os hereges devem ser expulsos do convívio social. O IV Concílio de
Latrão prevê que os condenados por heresia devem ser entregues às autoridades seculares para serem castigados. No caso
de clérigos, deverão ser desligados de suas Ordens. Quanto aos bens, serão confiscados. Os que recebiam, ajudavam e
defendiam hereges, ainda que clérigos, seriam excomungados. Como estes, não poderiam exercer cargos públicos, receber
os sacramentos, sepultura cristã ou heranças. Suas esmolas e ofertas seriam rechaçadas. Por outro lado, os que "...
armarem-se para dar caça aos hereges, gozarão da indulgência e do santo privilégio concedidos aos que vão, em ajuda, à
Terra Santa ". Segundo as resoluções do concílio, cabia às autoridades eclesiásticas zelar pelo não desenvolvimento da
heresia em suas províncias, visitando-as, investigando, buscando e condenando hereges. Caso o bispo seja negligente nesta
função, "... será destituído do cargo episcopal e será substituído por uma pessoa idônea, disposta a confundir a heresia".
123
seus olhos para esquecer seu passado, os hereges eram cegos pela ação do diabo e não
conseguiam enxergar a importância da Instituição Romana.
Segundo o frade, os cátaros ensinavam principalmente aos “rústicos, alfaiates,
curtidores de peles”.
90
O que nos mostra, mais uma vez, que ele transportava para os seus
sermões o discurso da Sé Romana. Podemos concluir dessa forma, pois outro grande elemento
do projeto da Igreja era responder os anseios de espiritualidade dos leigos, especialmente dos que
viviam nos ambientes urbanos em que novas práticas socioculturais, econômicas e políticas
estavam surgindo.
91
Ao relacionar os hereges aos rústicos, Antônio quer demonstrar que esses
contestadores eram pessoas iletradas e sem condições de discutir as coisas da fé. Mas, por outro
lado, ele mostra explicitamente que os religiosos tentavam desqualificar esses homens, o que
deixa claro que nem todos os homens simples estavam encontrando na Igreja Romana, as
respostas para seus anseios espirituais nem que todos os hereges eram incultos.
Ao citar o abutre e o grou, no Sermão do Quinto Domingo da Quaresma, o frade
denuncia os
(...) falsos cristãos, filhos estranhos, filhos do diabo, que mentiram ao Senhor,
violando o pacto feito no Baptismo, apedrejam todos os dias, quando deles
depende, com as duras pedras dos seus pecados, o seu pai e Senhor Jesus Cristo,
do qual tiraram o nome de cristãos, e se esforçam por matá-la, por matar a
nele. Assemelham-se aos filhos do abutre, que deixam o pai morrer de fome.
Não são como os filhos do grou, que se expõem à morte pelo pai, quando o
abutre lhes persegue o pai; já envelhecido, alimentam-no, por já não poder caçar.
O nosso pai, como pai faminto, bate à porta, para que lha abramos e lhe demos,
se não uma ceia, ao menos um bocado de pão.(...) Nós, porém, filhos
degenerados, como os do abutre, deixamos morrer de fome o nosso pai..
92
.
90
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 99.
91
GARCÍA Y GARCÍA, A. La reforma de la Iglesia en tiempos de San Antonio de Lisboa. Actas do Congresso
Internacional Pensamento e Testemunho, 8º Centenário do Nascimento de Santo António. Braga: UCP/Família Franciscana
Portuguesa, 1996, V. II, p. 726.
92
Santo Antônio. Sermão do Quinto Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras Completas.
Op. cit. , p. 246.
124
Para nós, os abutres são associados aos cátaros, que renunciavam à católica,
rompendo, assim com o vínculo do Batismo, ou aqueles que não a defendiam diante dos
contestadores, ou seja, que “deixam morrer de fome o nosso pai”. O grou seriam aqueles que
estavam dispostos a ser martirizados pela fé. Para o franciscano ajudar a Igreja nessa empreitada
seria dar atenção ao próprio Cristo que “batia à porta”. Ou seja, Antônio reforça o caráter divino
da Igreja, identificando-a ao próprio Pai, associando à verdadeira fé. os hereges são vistos
como mentirosos e por extensão, como um perigo para a Igreja, pois possuíam um discurso
diferente e que questionava a organização dos ritos da ecclesia romana
5.2.2 Condenação aos Religiosos Pecadores
Em seu trabalho de pregador e mestre de teologia, frei Antônio, como poderemos notar
abaixo, sempre foi preocupado com a postura e o modo de vida do clero, pois sabia que eram eles
os principais atores para que a Igreja pudesse convencer aos fiéis sobre a importância da
instituição e do evangelho em seus cotidianos.
De acordo com essa lógica, no exórdio do segundo sermão dedicado ao primeiro
domingo da quaresma, intitulado “Sermão aos claustrais ou a cerca da alma dos penitentes”, o
frade cita a águia e o falcão para elucidar como deveria ser a vida daqueles que viviam
enclausurados e dos que queriam ser penitentes afirmando que,
A esta mulher
93
o dadas duas asas de águia. A águia assim chamada pela
agudeza da vista ou do bico, por causa da demasiada velhice, começa a
engrossar, a aguça-o contra uma pedra e desta forma rejuvenesce. Assim o
homem justo, com a agudeza da contemplação fita o esplendor do verdadeiro
sol, e se alguma vez o seu bico, isto é, o afeto do entendimento, começa a
engrossar com qualquer pecado, de modo a não poder apanhar o costumado
93
Antônio utiliza a figura de uma mulher citada no livro do Apocalipse capítulo 12, versículo 14, que recebeu “duas asas
de uma grande águia, a fim de voar para o deserto”.
125
alimento da doçura interior, imediatamente o aguça na pedra da confissão, e
desta maneira rejuvenesce com a juventude da graça.
94
Ao atribuir tal característica aos claustrais
95,
o frade acreditava que somente aqueles
que estivessem vivendo uma vida religiosa de acordo com as normas estabelecidas, poderia ser
salvo, ou seja, assim como a águia poderia olhar o sol, que era associado a Deus, o bom claustral
chegaria à vida eterna no paraíso.
Frei Antônio tenta mostrar aos religiosos que teriam contato com a sua obra, que havia
a necessidade do homem buscar a Deus através da contemplação e da oração, assim como a águia
buscava o rejuvenescimento indo ao encontro do sol, “pois assim o homem justo, com a agudeza
da contemplação fita o esplendor do verdadeiro sol”.
96
Além disso, a águia simbolizava Cristo,
que, segundo os bestiários, foi aquele que após a ressurreição voou em direção ao céu saindo da
morte. Sendo assim, os membros da Igreja precisavam morrer para a temporalidade buscando
elevar sua mente à Deus para alcançar a conversão. Vale destacar que, apesar dos franciscanos
terem ficados associados sobretudo a pregação, a contemplação também fazia parte do ideário de
Francisco de Assis.
Para Antônio, um dos maiores problemas do clero era a hipocrisia, que foi simbolizada
pela avestruz que, segundo o autor,
(...) tem penas, mas não pode voar por causa da grandeza de seu corpo, significa
o hipócrita. Carregado com o amor dos bens terrenos e sob a pena da religião
falsa pretende mostrar-se falcão no vôo contemplativo.(...) no espírito do falso
religioso, portanto, pastagem de avestruz. Vê quão propriamente diz
pastagem, pois o hipócrita, enquanto se louva da pena de falcão, apascenta-se de
seu próprio louvor. De fato, procede como o pavão, que, ao ser louvado pelas
crianças mostra o esplendor das suas penas, e quando faz rodar a cauda descobre
torpemente os traseiros. Assim o hipócrita, ao louvar-se, mostra as penas da
94 Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 87-88.
95 Vale salientar que estes pertenciam ao Ordo Clericorum que era composto pelos membros das oredns regulares. Os
monges e religiosos viviam em mosteiros e conventos ou claustros, normalmente localizados em áreas rurais, não
possuindo uma característica urbana. Excetuando-se neste caso as canônicas regulares, das quais o próprio antônio havia
feito parte em Portugal.
96
Santo Antônio, Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit, p. 87.
126
santidade que julga ter e faz a roda da sua vida. Diz ele: Fiz isto e aquilo; assim
comecei e assim perseverei. E enquanto roda desta maneira, demonstra a
fealdade da sua torpeza. Com efeito, o insensato colhe desagrado donde julga
agradar.
97
Segundo o frei, as características das duas aves citadas acima, a avestruz e o pavão,
representam a hipocrisia dos religiosos do seu tempo. Para ele, os hipócritas eram perigosos por
quererem aparentar ser o que não eram. Ele começa pela avestruz descrevendo o corpo da ave e
comparando-a ao religioso que considera falso. Apesar de ter penas como as da garça e do
gavião, a avestruz não conseguia voar e mesmo que batesse suas asas jamais era capaz de
sustentar-se no ar. Para o bestiário e o próprio frade, que utilizou as penas do falcão como
exemplo, a ave apanhava somente as presas que voavam, assim eram os hipócritas que,
simulavam viver como justos, imitando ter se convertido, pois não não praticavam boas ações
como influenciavam os outros. Tinham plumas para voar, mas se arrastavam pelo chão.
Carregados com o peso das preocupações desse mundo, jamais conseguiam voar.
Além disso, tal ave lembrava aos fariseus que eram criticados por Cristo, pois
cumpriam todos os rituais religiosos, viviam segundo as leis judaicas, porém não podiam chegar
até Deus devido as suas preocupações terrestres. Para frei Antônio, os religiosos hipócritas eram
como eles, pois praticavam uma religião ritual e não espiritual, pois não conseguiam alçar vôo em
direção ao céu como o falcão.
Podemos entender tais afirmações como uma denúncia do frade em relação aos
religiosos e clérigos que havia encontrado durante toda a sua vida religiosa. Para ele, esses não
viviam realmente uma vida cristã, pelo menos segundo as diretrizes exigidas pela Igreja Romana.
Podemos constatar aqui uma tentativa de mostrar aos religiosos, que tomassem contato com a sua
obra, que precisavam realmente buscar uma vida diferente, baseada no Evangelho.
97
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 96.
127
Quanto a Igreja, ela havia chamado a atenção para na questão moral e religiosa do
clero em vários cânones do Concílio Lateranense IV. Principalmente no que tangia à castidade,
ao abuso na ingestão de bebidas alcóolicas, à participação em caçadas, ao exercício de cargos
públicos e à administração de assuntos temporais, à participação tanto ativamente quanto
passivamente em espetáculos teatrais, à jogatina, à participação no oficio divino, à pratica da
simonia e outros.
98
Antônio certamente conhecia as normas disciplinares impostas pela Igreja e
compactuava com elas. Em seus sermões, ele utiliza o simbolismo dos bestiários para traduzir
essas normas para uma enunciação de caráter pastoral.
Importante também era a visão de que, assim como a mãe avestruz, os religiosos
hipócritas largavam seus fiéis a mercê dos predadores, da fome e do tempo, ou seja do pecado.
Para o frade, estes precisavam estar mais atentos a seus rebanhos. Parece-nos aqui, que o frade
acreditava ser esse um dos grandes motivos da debandada de fiéis católicos para as fileiras dos
cátaros e do grande relaxamento doutrinário que ele denuncia em sua obra.
98
Para Andréia Frazão em seu texto O IV Concílio de Latrão: Heresia, Discipliona e Exclusão: “Os cânones 6, 9,12,13, do
23 ao 41, 57, 58 e 60 tratam dos concílios provinciais, dos capítulos gerais das ordens regulares, das eleições eclesiais, da
justiça e das rendas eclesiásticas. Todos estes cânones buscavam a organização institucional da Igreja, numa perspectiva de
universalidade da jurisdição eclesiástica. O objetivo papal era normatizar e submeter todo o clero ao seu governo. Esta
preocupação com as questões internas da Igreja é reforçada nos cânones que tratam das relações entre clérigos e laicos. O
papado, em pleno século XIII, continua a sua luta contra a intromissão secular em questões eclesiásticas, principalmente no
tocante as rendas e à justiça. Os problemas de caráter moral clerical são um outro ponto de destaque nesta legislação.
Dedicam-se a esta questão os cânones 7, 8, do 14 ao 18 e do 63 a 66. Há uma preocupação com a correção dos costumes. O
concílio atribui aos bispos "... o dever de corrigir com prudência e zelo os excessos de seus subordinados... do contrário,
terão de dar conta de seu sangue ". Que comportamento a Igreja espera de seus membros ? Viver em continência e
castidade, servir a Deus com um coração puro , abster-se do abuso na bebida, não caçar, não exercer cargos seculares nem
administrar negócios temporais, não participar ou assistir apresentações teatrais, não jogar, participar das celebrações do
ofício divino, não praticar a simonia, dentre muitos outros cuidados. O zelo do papado quanto ao comportamento moral do
clero pode ser explicado por alguns fatores, tais como: responder aos anseios e críticas dos leigos e hereges; eliminar a
influência secular junto a hierarquia; lutar pela preservação do patrimônio eclesiástico; ampliar a presença da Igreja
Romana no seio da sociedade. A atenção para com o comportamento moral e a formação intelectual do clero, presente no
cânone 11, demonstram a preocupação por parte da Igreja de preparar os seus quadros para melhor instruírem e dar apoio
pastoral aos fiéis, alvos de grupos heréticos. A inserção da Igreja romana no mundo, visando a catolicalização da
população, pode ser atestada nos cânones 10 e 11, de 19 a 22, de 47 a 52 e o 63. Verifica-se uma preocupação com o que o
cânone 10 denomina de "saúde do povo cristão". Para tanto, revaloriza-se a pregação, que deve ser de responsabilidade de
"... pessoas capacitadas, ricas em obras e palavras". Regulamentou-se a excomunhão e deu-se grande importância aos
128
O lisboeta afirma ainda, que alguns eram como o pavão, que segundo os bestiários se
sentiam tão bem com sua beleza, mas que se envergonhava de seus pés que eram feios. Para os
bestiários muitos eclesiásticos eram assim: orgulhavam-se de sua aparência piedosa, mas ao
vangloriar-se acabavam mostrando “os traseiros”, ou seja, seu verdadeiro comportamento. Aqui
temos como em outras partes dos escritos de Antônio, uma possibilidade de duas interpretações.
A primeira quanto às vestimentas bonitas dos clérigos que ofuscavam suas falhas no
oficio eclesiástico. Assim como Antônio, os decretos do Concílio de Latrão, em seu cânone 16,
chamam a atenção para as vestes clericais quanto às cores, ficando vedadas as verdes e
vermelhas, e qualquer acessório bordado ou feito de ouro ou outros materiais considerados
supérfluos, nem anéis que não os indicados à sua posição na hierarquia eclesial.
Outra interpretação plausível, era que os clérigos pavões eram os que se colocavam
como homens santos e ativos nas comunidades, porém, não conseguiam esconder as suas
mazelas. A instituição teria então entre seus membros muitos hipócritas, o que facilitava o
trabalho dos hereges. Essa situação muito incomodava Antônio, que usava palavras fortes para
essa crítica à hipocrisia dos religiosos.
Voltando ao texto dedicado ao primeiro domingo da quaresma, observamos o religioso
expressar que:
O asno na verdade , é estólido, preguiçoso e tímido. Assim o luxurioso é
estólido, por ter perdido a verdadeira sabedoria, cujo sabor torna o homem sábio
e sóbrio(...) é ainda preguiçoso, é ainda tímido como o asno. Diz-se o livro de
ciências naturais que o animal de coração grande é tímido e o que o tem pequeno
é mais audaz. E a causa por que é tímido encontra-se no pouco calor do seu
coração e não pode enchê-lo, porque o pouco calor se debilita nos corações
grandes, e o seu sangue, por isso mesmo, torna-se mais frio.(...) O mesmo
acontece no libertino, que tem coração grande para cogitar e cometer grande
sacramentos, como a confissão, a comunhão e o casamento. Disponível no site www.ifcs.ufrj.br/~pem/html/Latrao.htm.
Consultado em 25/07/2007.
129
iniqüidade e grande devassidão, mas tem pouco ou nenhum calor, é tímido e
inconstante em todos os seus caminhos.
99
Nos parece que Antônio queria ver os cristãos mais ativos e apaixonados, mais
intrépidos e audazes. Para ele, assim como os asnos, principalmente os religiosos eram
preguiçosos, apesar da grande força que tinham para transportar cargas pesadas. Mesmo sendo
donos destes dotes, eles não estavam dispostos a utilizá-los e ficavam frios e inertes diante da
situação que se apresentava aos seus olhos. Não atendiam ao chamado feito pela divindade e não
assumiam as suas responsabilidades como pastores. É interessante o jogo retórico que ele faz
baseado nos bestiários e obras de ciências naturais: os grandes, são frios; os pequenos, audazes.
Certamente ele considera que os grandes eram os membros do alto clero e os pequenos os irmãos
menores e clérigos simples. Ele também associa à frieza à libertinagem, iniqüidade e devassidão.
No Decreto de mero 14
100
do Concílio Lateranense IV, podemos observar que a
Igreja proibia o casamento dos clérigos, abrindo uma exceção para os religiosos em que o local
de origem tinha como costume o casamento dos sacerdotes. Eles, contudo, deviam manter-se fiéis
a este matrimônio. Podemos observar então que, para o frade, a continência e a castidade, assim
como para o Concílio, eram importantíssimas para assumir suas tarefas religiosas.
101
99
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 97.
100
SOUZA, José Antônio de Camargo R. de. Este “cânon (...) espécie de exortação relativa à observância do celibato,
declarando o seguinte: 'A fim de que os costumes e o comportamento dos clérigos sejam reformados da melhor maneira,
todos eles, especialmente aqueles que receberam as ordens sagradas, apliquem-se em viver casta e continentemente'.”
101
SOUZA, José Antônio de Camargo R. Op. cit. p.169. “O IV Concílio de Latrão, convocado por Inocêncio III através da
bula Vineam Domini Sabaoth, de 10 de abril de 1213, endereçada à hierarquia eclesiástica, aos abades e superiores
religiosos, bem como a todos os potentados seculares, tinha dois objetivos mais relevantes “promover a reconquista da
Terra Santa e a reforma da Igreja Universal” (...), especialmente este último, e simultaneamente que passasse a haver um
clero bem-formado, sob os aspectos doutrinal e moral, e que fosse dada uma continuidade ao processo de centralização de
poder eclesiástico, tanto no que concerne a ação governamental e judiciária, quanto normativa do bispo de Roma, Vicarius
Christi e detrentor da plenitudo potestatis, sobre a Igreja Universal. Segundo Andréia Frazão, no texto O IV Concílio de
Latrão: Heresia, Disciplina e Exclusão: “Ao convocar o concílio, o papado visava fazer frente aos problemas internos da
Igreja, através de um novo projeto de organização jurídico - canônico, além de restabelecer a sua hegemonia frente aos
leigos, legislando sobre questões civis e elaborando novas formas de controle social”. Disponível no site
www.ifcs.ufrj.br/~pem/html/Latrao.htm. Consultado em 25/07/2007.
130
Para os conciliares, segundo o mesmo cânone, os transgressores deveriam ser
penalizados, conforme o determinado no direito cânonico, e os reincidentes teriam penas
seculares. Aqueles que fossem suspensos de suas tarefas ministeriais perderiam o direito de
administrar os sacramentos para sempre, enquanto os bispos que fossem coniventes por dinheiro
ou por qualquer outra benesse material, também seriam penalizados.
Assim, podemos sublinhar em nossa análise, que o frade estava agindo não como
um cristão convicto, mas repetia ou transmitia o que a Instituição a que pertencia tinha como
discurso principal neste momento. Para ele, os hereges não eram bons cristãos, assim como
estava descrito no cânone 3 do Concílio Lateranense IV.
Dessa forma, ele tenta incentivar, de modo explícito, uma reforma de postura no clero
da Instituição Romana. Nesses sermões da quaresma, além de convidar toda a cristandade a
modificar o modo como vivenciavam a fé, o autor fixou-se no tema da reforma de costumes do
clero. Parece, a nosso modo de pensar, que para ele essa mudança de atitude tornou-se ponto
crucial para que a Instituição voltasse a ter credibilidade e cumprisse o papel que ele acreditava
ser dela. Papel esse, o de levar o rebanho a salvação. Ou seja, assim como Francisco de Assis,
Antônio nunca questionou a Igreja Romana, com seu caráter universal e apostólico. Ele volta-se
para criticar os eclesiásticos, sobretudo “os grandes”, cujo comportamento recrimina.
Porém, no Sermão do Segundo Domingo da Quaresma, frei Antônio afirma que:
O prelado deve ser como o pelicano, o qual, segundo se conta, mata os seus
filhos, mas depois extrai o sangue do próprio corpo e o derrama sobre os filhos
mortos e desta forma os faz reviver. Assim o prelado deve chamar os seus filhos,
isto é, os seus súditos, os quais corrige com o flagelo da disciplina e mata com a
espada da áspera reprimenda. Deve chamá-los, repito, á penitência, que é vida da
alma, com o seu sangue, ou seja, com espírito compungido e com derramamento
de lágrimas, sangue da alma, no dizer de S. Agostinho.
102
102
Santo Antônio. Sermão do Segundo Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 135.
131
No caso do pelicano ele afirma de forma categórica a importância do papel dos
representantes da Igreja na salvação das almas dos fiéis. Quando cita a característica do pelicano
de matar e depois ressuscitar os seus filhotes, o autor chama a atenção das autoridades da
instituição romana. Eles não poderiam cumprir o seu papel de instrumento de ação salvadora sem
sacrifícios. Os seus filhos, ou fiéis que eram sua responsabilidade, precisavam ser banhados com
o suor de seu esforço e não simplesmente participar de rituais e escutar pregações.
Os prelados precisavam imitar ao Cristo que, segundo a doutrina cristã, banhou a
humanidade com seu sangue para salvação de todos. Cada fiel era chamado a isto, porém, a
missão do clero era mais profunda. Os eclesiásticos tinham que levar a população a refletir e a
buscar a penitência. Os religiosos precisavam entender que cabia a eles a tarefa de correção e
orientação dos fiéis e que eles tinham que fazer de tudo que fosse possível para que os católicos
fossem salvos.
Essa também era uma preocupação do Lateranense IV, nos seus cânones que iam do 14
ao 22, que tratam da implementação e concretização de uma reforma dos costumes do clero
secular e regular e suas obrigações pastorais. Assim como faz Antônio em seu sermão, os
cânones lateranenses colocam os prelados, ou seja, os bispos, com os responsáveis pela ligação
entre Roma e as dioceses e pela saúde espiritual dos religiosos seculares, regulares e fiéis de seu
bispado.
Para Antônio, os pastores deveriam ter destreza no trato com os fiéis. Segundo José
Antônio,
103
eles deveriam agir como “médicos sábios, pacientes e devotados” que soubessem
medicar apropriadamente os pacientes, a fim de propiciar uma cura adequada às doenças. O
melhor medicamento seria, então, o sacramento da penitência, por se tratar do melhor momento
103
SOUZA, José Antônio C. R. de. Pensamento Social de Santo Antônio. Op. cit., p. 295.
132
para que ocorresse uma orientação e instrução correta da doutrina e do caminho a ser seguido
pelos fiéis.
Entre os séculos XII e XIII, uma das grandes expressões religiosas que surgiram foram
os mendicantes. Estes buscavam a vivência do Evangelho de maneira radical, pois o desprezo
pelos bens materiais era uma das bandeiras de tais movimentos. Para o frade, que era franciscano
e por isso representante destes movimentos pauperísticos, a riqueza e o prazer eram os principais
caminhos para a vitória do que ele chama de “diabo” sobre as almas dos fiéis. Por isso ele afirma
que:
A sanguessuga é o diabo, sequioso do sangue das nossas almas, que deseja
sugar. Tem duas filhas, as riquezas e as delícias, que não cessam de dizer: traze,
traze, e nunca: basta.
104
Antônio segue aqui, fielmente, as características narradas pelos bestiários sobre essa
besta, que simbolizava o diabo, que queria sugar todo o sangue do homem. Mas que
principalmente, como podemos ver, representava aqueles que cobiçavam os bens materiais.
Dessa forma, ele diz que:
A devastação vinda do deserto é a cobiça, que vem de banda do deserto, isto é,
do mundo, cheio de feras, e deseja devastar as riquezas da pobreza no varão
santo penitente e contrito
105
Para o frade, a ganância fazia com que os homens abandonassem Deus, principalmente
por trazer conforto e prazeres que fazem o homem não querer buscar as coisas do alto. Assim,
utilizando de forma positiva a imagem do gafanhoto, um animal pequeno e frágil, ensina:
Os gafanhotos, por causa do salto que dão, significam todos os religiosos, que,
juntos os dois pés da pobreza e da obediência, devem saltar para a sublimidade
da vida eterna.
106
104
Santo Antônio. Sermão do Segundo Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 142.
105
Ibidem, p. 148.
106
Ibidem, p. 143.
133
Segundo Antônio, os homens da Igreja deveriam usar a pobreza e a obediência como
molas propulsoras de suas atividades pastorais, porém
(...) Hoje o se fazem feiras, não se celebram reuniões seculares ou
eclesiásticas em que não encontres monges e religiosos. Compram e voltam a
vender, edificam e destroem, e mudam as coisas quadradas em redondas. Em
causas judiciais, provocam partidos, litigam diante de juízes, contratam
decretistas e legistas, convocam testemunhas, prontos a jurar com elas a favor de
assunto transitório, frívolo e vão.
107
Assuntos judiciais e econômicos passaram a ser, segundo o autor, a maior preocupação
dos religiosos. Em vez de estarem cuidando de suas igrejas e preparando-se espiritualmente para
orientar e conduzir os seus fiéis, esses participavam de festas, disputas, feiras e outras atividades
que não deviam ser sua prioridade. Além disso, em muitas dessas situações, os religiosos
poderiam agir contra os interesses de Roma, sobretudo no tocante aos bens eclesiásticos e ao
direito canônico.
Para a Igreja do culo XIII, segundo o cânone 16 do Lateranense IV, os clérigos não
deveriam exercer,
(...)ocupações seculares, nem se dediquem ao comércio, principalmente de
coisas desonestas, nem tampouco assistam a jograis; evitem frequentar tabernas,
salvo em caso de necessidade, quando estiverem viajando; não joguem dados,
nem espreitem tais tipos de jogos.
108
Segundo os conciliares, a participação dos clérigos em festas noturnas onde acreditava-
se, eram estabelecidos diálogos torpes e frívolos, fazia com que esses não tivessem condições de
dedicar-se às suas obrigações eclesiásticas.
Para um franciscano como Antônio, essa preocupação com disputas judiciais e
econômicas deveria incomodar muito. Para os frades, o dinheiro não podia nunca ser prioritário.
A prática dos ensinamentos do Evangelho e a vida de contemplação e oração deveriam vir em
107
Santo Antônio. Sermão do Segundo Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 142.
108
FOREVILLE, R. Cânone XVI. In: Lateranense IV. Vitória: Eset, 1973.
134
primeiro lugar. Para ele, faltava austeridade e espiritualidade nos religiosos. Então, desafia o
clero afirmando que:
Dizei-me, ó fátuos religiosos, se nos Profetas ou nos Evangelhos de Cristo, ou
nas Epístolas de S. Paulo, na Regra de S. Bento ou de S. Agostinho encontrastes
estes litígios e divagações e se lestes ali clamores e protestos de causas judiciais,
por assunto transitório e perecedouro. Muito pelo contrário, diz o Senhor aos
Apóstolos, aos monges e a todos os religiosos, não aconselhando mas
mandando, porque escolheram o caminho da perfeição: Digo-vos, -se no
Evangelho de S. Lucas: Amai os vossos inimigos, fazei bem àqueles que vos
odeiam; abençoai os que vos amaldiçoam, orai pelos que vos caluniam. E a
quem te ferir numa face, oferece-lhe também outra. E a quem te tirar a capa, não
o impeças de levar também a túnica. E a todo aquele que te pede; e quem
quiser o que é teu, não lho torne a pedir. E o que quereis que vos façam os
homens, fazei-o vós igualmente a eles. Se vós amais os que vos amam, que
mérito tendes? Porque os pecadores também amam quem os ama. E se fizerdes o
bem aos que vos faz o bem, que mérito tendes? Na verdade os pecadores
também fazem isto.
109
Antônio utiliza a autoridade do Evangelho para condenar os religiosos que se
ocupavam de questões judiciais. Para ele, aqueles não cumpriam o que Cristo queria, que era
propagar o amor, mas se alimentavam das discussões. Outra grande sinalização nesse texto é que
os clérigos deveriam cuidar das coisas eternas e não das passageiras, ou seja, terrenas, seculares.
Porém, ao terminar esta sua exposição sobre a soberba o frade expõe que
ainda animais de cornos virados para cima, como o veado. Significam a
soberba de alguns, que provém da religião, e é perigosíssima. (...) É tolerável
que os seculares apeteçam as coisas sublimes; mas vós, religiosos, que vedes
muito, que vos aconteceu para apetecer também as coisas sublimes?
110
Podemos aí então reafirmar que o discurso sobre a soberba foi todo construído com um
objetivo definido: atingir os religiosos. Aqui, evidencia-se uma disputa e uma discordância entre
a Igreja medieval que podemos chamar de renovada, da qual faziam parte os mendicantes de um
modo geral, e a Igreja medieval “arcaica”, da qual faziam parte os bispos e padres seculares e os
religiosos e os diversos grupos das ordens Beneditinas e Agostinianas.
109
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 144-145.
110
Ibidem, p.189.
135
Frei Antônio chama os “arcaicos” de soberbos, mais precisamente por não aceitarem a
presença dos frades em suas dioceses ou nas regiões onde estavam estabelecidos os seus
mosteiros. Por não aceitarem as ordens dos superiores, por não acatarem o conselho de outros
religiosos que já haviam recebido as ordens do papa e por tratarem mal e às vezes até expulsarem
os pregadores menores itinerantes de seus domínios.
E para tratar dos religiosos humildes, que deixa transparecer que se trata dos franciscanos,
ele afirma que “é característica dos eleitos sentir menos de si do que são na realidade”,
111
e diz
ainda que:
Com efeito, o humilde é como um verme, chamado intestino da terra, que se
contrai para mais se estender. Assim o humilde contrai-se e abrevia-se, a fim de
se estender a se abreviar-se, a fim de se estender a apanhar os bens celestes.
112
Antônio considerava, assim como Francisco de Assis, a humildade como ponto
fundamental para que o cristão alcançasse a salvação. O frade quer chamar a atenção dos
religiosos para o tema da soberba, tentando passar-lhes um reprimenda, a fim de que eles
buscassem a humildade, assim como os Frades Menores, modelo que quer assinalar como o ideal
a ser seguido para que houvesse uma verdadeira transformação da Igreja.
Certamente o sonho que o Papa Inocêncio III teve antes de encontrar com Francisco na
Basílica de Latrão, segundo o hagiógrafo Tomás de Celano, no qual havia um homem pobre e
humilde segurando a tal igreja que ameaçava cair, era uma realidade presente na mente dos
frades, que encamparam a missão de restituir a Libertas Eclesiae, sobretudo, nas regiões com
presença de cátaros.
113
111
Santo Antônio. Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 190.
112
Santo Antônio, loc. cit..
113
Tomás de Celano. Segunda Vida de São Francisco. In: Fontes Franciscanas e Clariana. Petrópolis: Vozes/FFB, 2004, p.
313.
136
Com certeza, esse Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma tinha um alvo certo.
Antônio de Lisboa/Pádua queria discutir de forma abrangente os problemas dos religiosos de sua
época. Porém, na sua opinião, eles não estavam simplesmente ligados à coisas práticas, mas sim
advinham da espiritualidade. Para que os religiosos melhorassem a sua conduta, ele exorta que:
De fato, os santos devem proceder como as abelhas. Estas, segundo consta,
põem-se a olhar por sobre os orifícios dos alvéolos, e se porventura entrar algo
estranho por aqueles orifícios, não consentem tê-lo no seu meio, mas
perseguem-no até o porém fora dos alvéolos. Chamam-se abelhas, por se
ligarem com as patas ou por nascerem sem patas. O vocábulo latino apes deriva
de a, prefixo de exclusão, e pés, pata.
114
(...) As abelhas significam os justos, que
se ligam com os pés, Isto é, com os afetos da caridade, que não com os da
natureza.(...) Os seus alvéolos são os corpos, cujos orifícios são os cinco
sentidos e, no sentido espiritual, os olhos. Sobre eles devem colocar-se e atender
diligentemente a que não entre algo diabólico.
115
As abelhas são usadas pelo frei como um exemplo de como deveria ser a vida dos
religiosos da Igreja. Para os pensadores medievais que sistematizaram o pensamento sobre a
natureza dos animais, esse inseto deveria servir de modelo para os cristãos e, principalmente, aos
seus pastores, devido ao fruto maravilhoso que produziam: o mel. Porém, eles deveriam seguí-las
em outras características, como, por exemplo, na vigilância para que o pecado não entrasse em
seus corpos através dos seus sentidos. Continuando a tratar sobre as abelhas, frei Antônio informa
aos leitores que,
Diz-se em ciências naturais que as abelhas pequenas são as mais laboriosas. Têm
asas finíssimas, cor negra, como se fossem queimadas. Porém, as abelhas
ornadas pertencem ao número das que nada fazem. As abelhas pequenas figuram
aos penitentes, pequenos aos próprios olhos. São muito laboriosos, porque fazem
sempre alguma coisa, a fim de que o diabo não encontre a sua casa vazia e
ociosa. Possuem asas finíssimas, que são o desprezo do mundo e o amor do
reino celeste. Com elas se elevam dos bens terrenos para os do céu,
contemplando sutilmente a glória de Deus.
116
114
Santo Antônio. Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 190.
115
Ibidem. p. 200.
116
Ibidem. p.202-203.
137
Para Antônio, as abelhas pequenas, isto é, os minoritas é que eram trabalhadores, pois
aqueles que andavam com belas roupas, enfeitados, ou seja, os religiosos tradicionais, nada
faziam. Por isso, apesar de serem desprezados pelo seu modo de vestir, os menoritas alcançariam
a salvação. Além do mais, como não ficavam na ociosidade e ocupavam o tempo com as coisas
de Deus, eles não eram presa para o “diabo”.
Outro ponto a ser mencionado, é que ao falar dos frades, ele busca realçar a humildade
considerado por ele o primeiro passo para que se pratique as demais virtudes, como a castidade e
a obediência. Para o frade, os fiéis, de maneira geral, não cometeriam tantos pecados se
cultivassem a humildade.
Outra besta citada pelo religioso português é a corça, que, para ele, simbolizava a
Virgem Maria. Sendo assim, aponta:
Nota que a corça, como se diz em ciências naturais, dá a luz em caminho
trilhado, sabendo que o lobo evita o caminho trilhado por causa dos homens. A
corça caríssima é Maria Santíssima , que em caminho trilhado, isto é, numa
estalagem, deu a luz um veado cheio de graça, porque nos deu gratuitamente, e
em tempo agradável um filhinho.
117
Aqui o frade segue firmemente o ideário dos Livros das Bestas ao tratar Jesus como
um veado. A mãe de Jesus ou a corça é apresentada como o exemplo para os religiosos: eles
precisavam ser mais humildes e doar-se gratuitamente, para que o Cristo nascesse no coração dos
fiéis. Além disso, se o clero católico optasse por uma vida com práticas que estivessem dentro do
estipulado pelo modelo de religioso narrado por ele em sua obra, que na verdade era um eco do
discurso da e também adotado pelos franciscanos, não seria amolado pelo “lobo”, ou seja o
diabo, que se afastaria de seu caminho.
117
Santo Antônio. Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 210.
138
Antônio com seus sermões busca, por um lado, divulgar, em tom pastoral as diretrizes
disciplinares para os eclesiásticos presentes nos cânones lateranenses; por outro, realça o ideal
religiosos franciscano, que era visto com desconfiança pelas ordens tradicionais e pelo alto clero,
pois ainda tratava-se de uma novidade. Para Antônio, o sucesso das heresias estava diretamente
ligado ao comportamento dos clérigos, que faziam com que a Igreja fosse criticada. Ao elaborar
suas críticas e promover o ideal franciscano, utiliza-se dos bestiários medievais, conhecidos pelos
doutos, a fim de enunciar seu discurso, em harmonioa com o de Roma, de forma contundente.
5.2.3 Condenação aos Fiéis Pecadores
Antônio também busca, através desses sermões da quaresma, fazer a Igreja como um
todo refletir sobre seu papel no desenvolvimento da e na salvação das comunidades. Ele tenta
convencer os que estão descontentes, mudar as práticas das lideranças e converter os fiéis que
estão com suas vidas em desacordo com a ética moral cristã pregada pela Igreja.
Por isso, sobre o falcão o frade escreve que “(...) falcão faz duas coisas: apanha com a
pata e apanha a ave a voar; assim o justo apanha com o do afeto e só apanha o bem quando
voa, não cuidando dos bens terrenos. O falcão, pela sabedoria de Deus, cobre-se de penas. As
penas do falcão são os pensamentos puros do justo.
118
Para o franciscano, os fiéis que quisessem seguir Jesus deveriam concentrar-se somente
na busca do que vem do alto. Podemos ainda, entender essa afirmação do autor, como uma leitura
da cristandade no momento em que viveu. Em um período de crescimento comercial e a
possibilidade de enriquecimento e de melhora da qualidade de vida, através da troca de
mercadorias e negócios dos mais variados, talvez os cristãos não se preocupavam tanto com o
espiritual e buscassem o consolo para as suas dificuldades na busca dos bens materiais, que
139
substituiam assim a divindade.
119
Por outro lado, sobretudo nas cidades, surgiram novas
demandas espirituais que nem sempre eram supridas pela Igreja.
que lembrar que as penas de aves como o falcão, a garça e o gavião eram
consideradas pelos bestiários as responsáveis pela a rapidez e facilidade com que elas alçavam
vôo. Por isso Antônio as chama de sabedoria de Deus, pois, para o menorita, elas eram
fundamentais para que as almas dos fiéis fossem salvas
Se o falcão era o símbolo do justo, outro animal simbolizava os pecadores:
O asno na verdade , é estólido, preguiçoso e tímido. Assim o luxurioso é
estólido, por ter perdido a verdadeira sabedoria, cujo sabor torna o homem sábio
e sóbrio(...) é ainda preguiçoso, é ainda tímido como o asno.
120
A castidade seria um outro ponto fundamental para a vida cristã e segundo os bestiários
o asno era um animal visto ora como casto ou como castrado pela mea. Por isso, ao falar da
luxúria, talvez ele tenha sido escolhido para ilustrar o ensinamento. O frade apresenta à
cristandade uma proposta de continência sexual, o cristão não pode ser libertino. Precisava ter
seus instintos sexuais refreados, para que não deixasse sua vida ser invadida por outros pecados
como a preguiça, por exemplo.
Diz-se o livro de ciências naturais que o animal de coração grande é tímido e o
que o tem pequeno é mais audaz. E a causa por que é tímido encontra-se no
pouco calor do seu coração e não pode enchê-lo, porque o pouco calor se
debilita nos corações grandes, e o seu sangue, por isso mesmo, torna-se mais
frio.(...) O mesmo acontece no libertino, que tem coração grande para cogitar e
118
Ibidem, p. 88.
119
RAPP, F. “Desde o ano mil, a população não tinha deixado de aumentar; para a alimentar os baldios passaram a ser
cultivados e novas técnicas aumentavam a produção. O comércio se beneficiava dos progressos realizados pela agricultura
(...), as permutas eram cada vez mais numerosas; os horizontes dos comerciantes cada vez mais vastos. As grandes viagens
exigiam investimentos que não estavam ao alcance dum homem de negócios. Formavam-se sociedades, e os seus
parceiros preocupavam-se, antes de tudo, com a rentabilidade do seu investimento. O capitalismo (...) prosperou
rapidamente. Quer se tratasse do usurário que adiantava alguma quantia aos pobres ou do financeiro que investia somas
consideráveis em grandes empresas, o que possuía dinheiro é que se considerava bafejado pela sorte. De forma discreta, ou
escancarada, a força do dinheiro impunha sua lei, criando entre os homens novas relações”. In: RAPP, F. A resposta de
Santo Antônio as expectativas de seu tempo. Itinerarium, Braga, n. 42, p. 8, 1996
120
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 97.
140
cometer grande iniqüidade e grande devassidão, mas tem pouco ou nenhum
calor, é tímido e inconstante em todos os seus caminhos.
121
Ao citar o coração, frei Antônio toca em um ponto fundamental de seus escritos. Para
ele, o coração além de ser o primeiro órgão a surgir no corpo humano,
122
é a fonte do princípio
vital e de todos os movimentos. Nele originam-se todas as sensações, sejam elas agradáveis ou
não, virtudes ou vícios, quer dizer, todos os sentimentos.
123
Segundo o menorita, os católicos que buscavam a luxúria não eram sábios. Eram frios,
principalmente em relação à religião. Certamente, além de falar dos fiéis, de modo geral, o frade
trata nesse trecho dos membros do clero como assinalamos no item anterior. Ele os chama de
preguiçosos, tímidos e estólidos. Pois a distância deles das coisas de Deus, os faziam esfriar. A
opulência dos bens temporais os fazia serem soberbos:
Os peludos são os avarentos e usurários, que acertadamente se chamam peludos,
isto é, amantes da pecúnia. A avareza reclama a usura, e a usura reclama a
avareza; aquela convida esta, e esta aquela. Infelizmente, o grito destes peludos
já encheu o mundo inteiro!
124
Para o franciscano, os usurários não permitiam que neles se desenvolvessem as virtudes
divinas, pois eram sempre muito preocupados e ocupados com seus negócios e a bolar como
ganhariam mais. Além de usurários, eles eram vistos como avarentos, pois para Antônio estes
pecadores eram companheiros inseparáveis. Temos que atentar também para uma características
121
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 97.
122
Santo Antônio, loc. cit..
123
Segundo Andréia Frazão: “O Ocidente medieval herdou algumas noções da Medicina Clássica. Neste sentido,
circulavam nos primeiros séculos medievais alguns textos de Hipócrates e Galeno, além de tratados de medicina latinos.
Além disso, sobreviveram práticas médicas populares, tais como o uso de ervas medicinais, que foram transmitidas,
sobretudo, oralmente. Estas prescrições médicas provenientes da antigüidade foram identificadas com o paganismo pelos
pensadores eclesiásticos, sendo progressivamente afastadas e/ou reprimidas. Forjou-se uma perspectiva religiosa e
moralizante sobre as enfermidades, em que a doença passou a ser concebida como fruto do pecado ou resultado de uma
possessão demoníaca, que exigia, mais do que cuidados médicos, orações, arrependimento e intervenções sobrenaturais.
Estabeleceu-se, desta forma, um forte vínculo entre espiritualidade e saúde: a doença passou a ser considerada um mal que
deveria suportado, mais do que superado; os principais centros médicos tornaram-se os mosteiros ou as igrejas; a moral
cristã exigia que os enfermos deveriam ser atendidos; os santos se tornaram os principais protetores do corpo contra as
dores e enfermidades”. In: SILVA, Andréia C.L.F. Hildegarda de Bingen e as sutilezas da natureza de diversas criaturas.
Disponível no site www.ifcs.ufrj.br/~frazao/Bingen.htm. Consultado em 23/07/2007.
141
marcante, presente em outros autores medievais, que Antônio também adota em sua obra. Para
ele, a prática de um pecado levava a outros, por isso, o combate a qualquer prática que seja
considerada um desvio é essencial.
Na seqüência, frei Antônio passa a tratar novamente dos pecados que podem levar o
homem à condenação eterna. Para falar do que pode acontecer ele faz uma metáfora entre a
aranha e o diabo afirmando que:
O diabo teceu sua teia como a aranha (...) A aranha estende primeiramente os
fios de sua urdidura de um extremo a outro; em seguida tece no meio, entre estas
extremidades, e coloca ali a textura suficiente e prepara lugar conveniente para a
caçada. E ela vem para o meio, à espera de algum animalejo. E se alguma
mosca ou qualquer coisa parecida ali cair, de repente mover-se-á a aranha, sairá
do esconderijo e começará a ligá-la e envolvê-la com o tecido, até inabilitar a
presa. Depois leva-a para o lugar em que guarda tudo quanto prende; e quando
está com fome, suga-lhe a humidade. E a vida da aranha está naquela
umidade.
Também o diabo, quando quer prender o homem, primeiro estende fios de
pensamentos sutis, e põe-nos nas extremidades, isto é, nos sentidos do corpo,
através dos quais sutilmente pode conhecer a que vício o homem é mais
sensível. Em seguida, tece no meio, isto é, no coração, e coloca ali textura
suficiente, isto é, tentação maior, e nela prepara lugar conveniente à caçada. E
então ele vem para o meio à espera de algum animalejo. O diabo, em todo o
corpo do homem, o encontra nenhum membro tão conveniente para ser
caçado, para espiar, para enganar, como o coração, porque dele procede a
vida.
125
Para ele, na verdade o que fazia o homem errar eram os sentidos do corpo, através dos
quais o mal poderia entrar no indivíduo. Essa era também uma visão de vários homens do saber
do período, provavelmente sob os influxos das idéias aristotélicas e dos livros de medicina
muçulmanos que passavam a circular no ocidente. Porém o golpe do diabo seria fatal se ele
atingisse o coração.
E se vir cair alguma mosca, quer dizer algum carnal, que de verdade se deve
chamar mosca, na textura da sua sugestão, através do consentimento do espírito,
imediatamente começa a ligá-lo com tentações diversas e envolvê-lo de trevas,
até inabilitá-lo, ou seja até efeminá-lo no espírito; assim leva a mosca, ou seja, o
124
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 98.
125
Ibidem, p. 180-181.
142
pecador, para o lugar em que guarda tudo quanto prende. O lugar próprio do
diabo é a perpetração de más obras, em que depõe o que prende com a textura da
sugestão sutil, e desta forma suga a sua umidade, isto é, a compunção da alma.
126
Compara, então, o pecador à mosca, que ao cair na teia, isto é, ao pecar, não consegue mais
se controlar e comete erros ainda maiores. Por isso, os pecadores podiam dar como fruto as
más obras, pois assim como as aranhas, que levam tudo o que é preso em sua teia para um lugar
definido, também o faz o diabo.
Para o frade a soberba é um dos grandes males a serem combatidos. Para ele,
(...) O carneiro cornudo, isto é, o espírito da soberba cornuda, portanto, marra
contra o ocidente, enquanto conculca os pobres e os menores; e contra o aquilão,
porque desprezas iguais; e contra o meio-dia, porque insulta e escarnece dos
maiores. (...) Ó cornuda soberba, quem das tuas mãos poderá livrar-se, quando
elevaste aos píncaros de tamanha exaltação a Lúcifer, que é o teu sinete (...).
127
Aqui ele passa a tratar do chifre, mais que dos animais, pois ele simboliza, segundo o frade,
a soberba que também leva à perda da alma. O soberbo não respeita a ninguém. Podemos
entender que nesse momento, segundo Antônio, os homens soberbos da cristandade faziam mal
aos pobres e àqueles que na sociedade tinham posição inferior à deles, aos iguais e até aos
superiores, Antônio os condena ao inferno, ao associá-los à Lúcifer.
Fica difícil saber de quem o frade trata ao citar tais características. Os franciscanos, em seu
tempo, pertenciam à classe dos pobres e dos menores, por isso podemos imaginar que nesse
trecho o frade fala dos bispos que não os aceitam em suas dioceses e que “insultam e
escarnecem” do papa por dar-lhes autorização para o trabalho pastoral de combate às idéias
contestadoras.
Seguindo ainda pelas mesmas proposições, o lisboeta afirma que
Note-se, porém, que alguns animais têm os cornos recurvados para trás.
Significam eles a soberba de alguns, quebrada pela luxúria. A luxúria da carne
abate-lhes o pensamento enfatuado. (...) De fato costuma suceder ao que não
126
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 181.
127
Ibidem, p. 186-187.
143
reconhece a soberba oculta, dela se envergonhe quando conhecida por meio do
vício da luxúria.
128
Utilizando ainda o simbolismo dos chifres dos animais, destaca que alguns são como os
animais que tem os chifres virados para trás: são abatidos pela luxúria que os afasta do caminho
de Deus. Vale salientar que o frei une a soberba à luxúria. Para ele, por trás da luxúria ficava a
soberba escondida.
Segue afirmando que:
Há também alguns animais que têm cornos virados para a frente, como os
unicórnios. Por eles se significa a soberba dos hipócritas, que disfarçam a
própria soberba na simulação beata. (...) É objeto precioso a humildade. Com ela
deseja a soberba encobrir-se, para não se tornar desprezível.
129
Aqui, o frade é mais direto e fala daqueles que disfarçam sua soberba na religião.
Segundo ele, muitos são aqueles que se fazem de humildes somente para esconder a soberba.
Porém, tal atitude, segundo Antônio, é imperdoável. Ele continua então a falar sobre a soberba
escrevendo que: “alguns animais, ainda, m os cornos revirados para si, como a vaca selvagem.
Por ela significa-se a soberba de alguns, que dentro de si se desfaz”.
130
Os cristãos que são
soberbos dessa forma, são aqueles que não a expõe nem a disfarçam mas, simplesmente, são
soberbos porque estão voltados só para si.
Aí ele aconselha para que os fiéis fossem
(...) como os filhos do grou, a fim de que, se for necessário, afrontemos a morte
pelo nosso pai, isto é, pela do nosso pai, e restauremos, com boas obras, este
mundo, já envelhecido e que depressa cairá na ruína.
131
Não nos parece surpreendente que o frade convide os cristãos ao martírio se fosse
preciso, pois o próprio colocou como condição para a mudança do hábito dos agostinianos para o
dos franciscanos, a ida ao Marrocos em busca de uma morte heróica. Outra influência
128
Ibidem, p. 188.
129
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit. p. 188.
130
Santo Antônio, loc. cit..
144
fundamental foi o convívio com os primeiros mártires franciscanos, quando passaram e voltaram
mortos ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Convida a cristandade a defender a cristã
através de boas atitudes, pois segundo ele, esa seria a única saída para que o mundo fosse
restaurado. É possível perceber nos sermões de Antônio um certo pessimismo. Naqueles
elementos que muitos viam crescimento, ele enxergava soberba, usura, luxúria, etc. ... Não os
clérigos, mas os fiéis em geral, estavam vivendo uma religião de aparência, sem consciência de
seus erros. É uma consciência de pecado que Antônio deseja criar em seu público, como veremos
no próximo ítem.
5.2.4 Orientação para a Confissão
Utilizando ainda a narração das características da águia, o frade trata, no Sermão do
Primeiro Domingo da Quaresma, do sacramento de confissão. Segundo ele, para aliviar-se e
sentir-se bem e em condições de aproveitar ao máximo o que a divindade tinha a lhe oferecer, os
fiéis precisavam amolar seu bico na confissão. Nesse momento, o religioso segue a gica das
obras que narram as características dos animais, pois para que o fiel pudesse comungar deveria
confessar, pois a águia, para voltar a alimentar-se adequadamente, deveria amolar o bico.
Vale salientar, que no momento em que a obra Sermões foi escrita, tal sacramento
ganhava uma relevância muito grande para a Igreja Romana. Os fiéis deveriam buscar os
sacerdotes para confessarem-se ao menos uma vez ao ano. Assim, esta passaria a ser uma atitude
essencial para a salvação da alma. Através dos documentos da Igreja da primeira metade do
século XIII, podemos constatar que Antônio foi um eco da instituição ao pregar a revalorização
do sacramento da confissão, como podemos atestar no cânone 21 do Concilio Lateranense IV.
131
Ibidem, p. 247.
145
Nesse cânone, além de determinar a obrigatoriedade de se relatar todos os pecados ao
sacerdote e comungar pelo menos uma vez ao ano, os conciliares orientam aos padres de como
deve se proceder a confissão e que os segredos relatados pelos fiéis não poderiam ser revelados
sob pena de perda do ministério sacerdotal. Pois o presbítero
(...) que ousar revelar um pecado que lhe foi confessado no julgamento
penitencial, não ordenamos que venha a ser destituído do ministério
sacerdotal, mas também determinamos que venha fazer um penitência árdua e
perpétua num mosteiro.
132
O ex-agostiniano, no segundo Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma, trata da
confissão por ser a quaresma um momento dedicado à penitência entre os fiéis da Igreja Romana.
Para ele, nesse sacramento, o pecador deveria confessar todos os pecados. Esses foram
relacionados a alguns animais:
Nota que nesta sentença citam-se sete espécies de bestas: o dragão, o avestruz,
os onocentauros, isto é, o asno e o touro, o peludo, a lâmia e o ouriço.(...) no
dragão nota-se a malícia venenosa do ódio e da detração; no avestruz, a mentira
da hipocrisia; no asno, a luxúria; no touro a soberba, nos peludos a avareza e a
usura, na lâmia perfídia herética; no ouriço, a escusa matreira do pecador.
133
Segundo frei Antônio, existiam diversos motivos para a situação que a Igreja
enfrentava. Um deles era uma certa “tranqüilidade” diante dos pecados. Para ele, somente através
da penitência e da consciência de que o pecado era um mal que a Cristandade conseguiria se
reconciliar com Deus. Por isso, ele preocupou-se em combater algumas modalidades desse mal.
Para o religioso português, existiam rios tipos de pecadores. Mas um, em particular, o
preocupa.
(...) o ouriço é todo coberto de espinhos. Se alguém pretender apanhá-lo,
esconde-se todo dentro de si e torna-se como esfera na mão de quem o segura;
tem a cabeça e a boca na parte inferior, e na boca possuí cinco dentes. O ouriço é
o pecador obstinado. Rodeado por toda a parte pelos espinhos dos pecados. Se
pretenderes argüi-lo de pecado perpetrado, recolhe-se inteiramente dentro de si e
esconde-se, escusando a culpa cometida. E assim tem a cabeça e a boca na parte
132
133
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 95.
146
inferior. A cabeça designa o entendimento; a boca, a fala. O pecador, ao escusar-
se da iniqüidade perpetrada, que faz senão inclinar o entendimento; e as palavras
para a parte inferior, para as coisas terrenas? Por isso, diz-se também ter cinco
dentes na boca. Os cinco dentes na boca do ouriço o os cinco modos de
escusas na boca do obstinado. De fato, ao ser argüido, ou se escusa de
ignorância, ou de má sorte, ou de sugestão do demônio, ou de fragilidade da sua
carne, ou de que o próximo foi a ocasião.
134
Antônio trata, ao citar essa besta, dos fiéis que fugiam da confissão, por preferirem
praticar o que era condenado pela doutrina da instituição romana. Sendo que, quando se
confessavam, sempre colocavam a culpa de seus erros em fatores externos e nas suas fraquezas.
Para Antônio, isto era simplesmente uma desculpa e não justificava suas atitudes. Ou seja, era
necessário criar uma consciência de pecado pessoal, na qual cada um, individualmente,
reconhecia-se responsável pelos seus atos. Antônio, em harmonia com a Igreja, foi um
personagem importante na construção da idéia de indivíduo no Ocidente.
Segundo o autor,
(...) o rugido do leão é a confissão do penitente, de que fala o Profeta: O gemido
do meu coração arranca-me rugidos, porque do gemido do coração deve sair o
rugido da confissão. Ao ouvi-lo, os espíritos malignos, aterrados, não presumem
proceder a tentações.
135
Pois ele mesmo afirma que “Ao rugido do leão todas as bestas sustêm o passo”,
dizendo que esse sacramento não poderia ser praticado com superficialidade. Tal arrependimento
de atos cometidos anteriormente deveria ser verdadeiro e ter a força de espantar “os espíritos
malignos”, que tentavam aos irmãos.
Segundo os bestiários, o rugido do leão era capaz de ressuscitar seu filhote no terceiro
dia após sua morte. Assim, ao utilizar a figura do rugido do leão, o frade estavam defendendo que
, a confissão faria Cristo renascer no coração dos fiéis da Igreja, fazendo com que ela ganhasse
134
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p. 99-100.
135
Ibidem, p. 105.
147
força novamente diante da crise que ele denunciava. Era necessário que toda a cristandade
buscasse tal sacramento, e como leão, não adormecessem nunca e estivessem sempre a vigiar.
No Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma o frade afirmou que,
Conta-se que existe uma ave
136
que, se olhar fixamente o rosto do enfermo, este
curar-se-á por completo; se porém, desviar do rosto do enfermo a vista ou olhar
em oblíquo, é sinal de morte. Também o pecador, se levantar os olhos em linha
reta e vir e conhecer os seus pecados, crê-me que viverá e não morrerá, se porém
olhar em obliquo, ou confessar os seus pecados fingidamente, ou desculpando-
os, é sinal e indício de condenação eterna.
137
Essa ave era a calhandra ou carádrio por que tinha como uma de suas características
principiais a taumaturgia. Mas, ao citá-la, Antônio quer mostrar como deve proceder um fiel que
vai confessar os seus pecados ao sacerdote católico. Como a Igreja vivia um momento litúrgico
propício para a prática de tal sacramento, ele queria ensinar aos fiéis. Pois, uma confissão fingida
em vez de curar, iria matar o fiel, isto é, em vez de salvar a sua alma, iria condená-lo
eternamente.
Diz-se em ciências naturais que as éguas não se doem quando dão a luz e
abortam com o fumo de torcida mal apagada. Assim se comportam alguns
pecadores, que ao confessarem os pecados, dizem-nos sem trabalho e sem dor.
Mas a mulher quando a luz está em tristeza, diz o Senhor. E quando em tais
indivíduos está mal apagada a torcida da graça, enfumarando a concuspiciência,
abortam, isto é, dão à luz o pecado.
138
Uma confissão feita friamente não era verdadeira segundo o religioso. Para ele, os que
assim se comportavam eram como as éguas que não sentia as dores do que está saindo de dentro
dela. Eles precisavam envergonhar-se e penitenciar-se, pois o arrependimento do pecado era algo
doloroso. E quando confessavam sem arrependerem-se, era como se abortassem sua confissão,
continuando a pecar.
136
No sumário do Sermão o frade a nomeia calhandra.
137
Santo Antônio. Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma In: REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras
Completas. Op. cit., p 168.
138
Ibidem, p. 169.
148
Continuando, frei Antônio utiliza outra ave para exemplificar como deveria ser
praticada a confissão. Segundo ele,
Devemos então proceder como o cisne, que morre a cantar. E dizem que isto
acontece por causa duma pena que tem na garganta. E contudo, aquele canto é-
lhe doloroso. O cisne branco é o pecador convertido à penitência, tornado mais
alvo que a neve. Este, em artigo de morte, deve cantar devotamente, isto é,
repensar os próprios pecados na amargura da sua alma. A pena na garganta do
cisne é o conhecimento do pecado e da confissão na boca do justo. Dela deve
proceder um canto doloroso, porque então é repleto de fruto.
139
O franciscano insiste que esse deve ser um momento de dor. Pois o fiel deve relembrar
suas faltas, resignando-se delas e buscando a conversão para ficar tão alvo como o cisne branco,
isto é, sem nenhuma mácula. Sua confissão deve ressoar como o canto da ave ao saber que vai
morrer, pois ao conhecer seu pecado e confessá-lo, sabe que encontrará sua salvação.
Em seus sermões da quaresma, Antônio busca tratar dos pecadores, mas, sobretudo, da
importância de confessar os erros. Mas essa confissão não deveria, na perspectiva do franciscano,
ser um ato mecânico. Esse ato deveria ser acompanhado de diversos sentimentos, como
contrição, tristeza, vergonha, etc. ... Assim, em tom pastoral, busca conscientizar os fiéis, leigos
ou eclesiásticos, não do que eram para a Igreja, pecados, mas que era fundamental confessá-
los para a Igreja, reforçando assim o seu papel na salvação.
139
Ibidem, p. 172.
149
CONCLUSÃO
Após a análise da vida e da obra de Antônio de Lisboa/Pádua em comparação com os
Decretos do IV Concílio de Latrão e com os Bestiários Medievais, procuramos pontuar e elucidar
de forma efetiva os questionamentos propostos em nossa introdução.
Primeiramente pudemos atestar que o discurso antoniano trata-se de um conjugado de
enunciados, assim como nos informam os teóricos da Análise do Discurso, que partem de um
grupo específico de locutores e nasce de outros discursos configurando-se em um continuum.
Essa conclusão começa a ser construída ao entendermos que sua vida em Portugal, isto é,
nas ruas de Lisboa e Coimbra, na escola catedralesca e nos mosteiros agostinianos de São
Vicente de Fora e Santa Cruz de Coimbra, principalmente no que tange ao ambiente sócio-
cultural, as disciplinas e a religiosidade, foram fundamentais para a construção de sua obra.
Podemos notar que o autor faz em seus sermões, principalmente, uma crítica ao modo de
vida dos religiosos das antigas ordens, ou seja, aos beneditinos e aos agostinianos, dos quais foi
confrade. Cita a preocupação com os bens materiais, com os assuntos temporais e a prática de
relações sexuais consideradas promíscuas pela Igreja.
Como franciscano, ele se utiliza, em sua obra, da pobreza e da humildade, como pontos
fundamentais de seu ideário. Isto mostra o quanto estava alinhado ao pensamento implementado
pelo fundador do Menores, que tinha nessas características o caminho principal a ser percorrido
para que se chegasse a salvação.
150
A Igreja ao chamá-lo ao trabalho missionário junto às populações que seguiam ao apelo dos
cátaros, o influenciou fortemente. Na verdade, ele aderiu ao plano da Sé de modificação do perfil
pastoral e moral que os fiéis e os membros da hierarquia eclesiástica apresentavam no início do
século XIII. Dessa forma, ele empregou, como uma das ferramentas principais de sua pregação,
as resoluções tomadas a partir das decisões conciliares do Lateranense IV. Porém, temos que
salientar, como pôde ser atestado em nosso texto, que em vez de tratar dessas questões em tom da
parte penal, que se baseava no direito cânonico e na justiça temporal, ele parte para uma pregação
espiritual que instituía como pena castigos que fossem condenar o homem eternamente.
Vemos ainda que o frade utilizou todo um arcabouço técnico e estilístico a fim de construir
sua obra. Esse era, sem dúvida, parte de um discurso universitário sobre o sermão. Talvez por não
ser um tratadista da teologia, por praticar uma forma de escrita baseada na “máxima perusina” o
frade foi excluído do rol dos grandes mestres da Teologia Franciscana. Porém, podemos notar em
sua obra a utilização do discurso dos Padres da Igreja e da ciência medieval, o que nos possibilita
inserí-lo no grupo dos homens de saber medievais, tal como os caracteriza Verger.
Outro discurso presente em sua obra é o dos Bestiários Medievais, que vão impregnar não
os sermões antonianos, mas todo o tipo de obras literárias e artísticas do período, fazendo com
que possamos mais ainda afirmar nossas proposições sobre o caráter douto da obra e do
pensamento antoniano. Os animais são usados como verdadeiros exemplos para que os cristãos
modificassem suas práticas. Ou seja, até os elementos presentes no imaginário, serviram de
modelo para a conversão.
Até aqui, podemos dizer que o frade possuía um discurso no qual estavam reunidos
elementos discursivos nos diversos grupos aos quais fez parte, afirmando ainda que ele era o que
poderíamos chamar de intelectual, por ter uma grande erudição e estar inserido dentro dos
padrões de produção intelectual da época.
151
Precisamos, também, olhar para seus textos como fruto de uma análise do que estava sendo
vivido, tanto pela estrutura eclesiástica, como pelos fiéis, isto é por toda a Cristandade. Tal
período pode ser definido como um momento de transição: a Igreja buscava implantar um
modelo de sociedade na qual leigos e eclesiásticos deveriam seguir padrões de comportamento
específicos. E frei Antônio fazia parte desse processo. Para ele, o homem não colocava mais
Deus em primeiro lugar. Podemos dizer que este momento histórico contribuiu para o
nascimento, memos que de forma tímida, de uma visão “antropocêntrica” nos fiéis, que passavam
a preocupar-se, em larga escala, com sua melhoria de vida material, em detrimento da espiritual.
Para o frade, se a sociedade não buscasse primeiro reformar o espírito, de nada serviria ter
bens. O que importava era a salvação. Porém, ele acreditava que nem para os clérigos esse era um
valor primordial.
Por isso, apresentava um tom pessimista, por vezes ácido, quando fala das práticas morais
da cristandade. Sendo assim, deixa claro que muitos são os religiosos que vão para o inferno.
Como ele adotara o ideário franciscano, não conseguia entender a posição adotada por eles.
Teceu suas críticas, apoiando-se na certeza de que os contestadores, ou seja, os hereges, tinham
certa razão ao criticar a Igreja. Ele denuncia os abusos dos eclesiásticos e chama a atenção para a
dificuldade do trabalho missionário dos grupos reformadores. Reclama que os membros do clero
tradicional resistiam à abordagem feita pelos frades e por vezes os humilhavam, causavam
dificuldades e os ameaçavam, principalmente por serem apadrinhados pelo papado.
Antônio, sem dúvida, foi um homem medieval. Sua cabeça não estava voltada para o
passado e nem para o futuro. Ele buscava reformar o presente. Muito o incomodava as coisas que
excluiam, a importância do Evangelho no cotidiano das pessoas. Por isso, além de Sermões
Dominicais e Festivos ser um manual de pregação, podemos concluir, afirmando que os seus
textos foram um apelo angustiado para que a cristandade não se deixasse desviar, do que para ele
152
era o caminho da salvação. Para isto, ele condena os hereges, que questionavam a Igreja, e os
clérigos e leigos pecadores, que a detratavam. Alça o ideário franciscano como modelo ideal de
ação na conversão dos desviantes e destaca a importância da confissão reforçando assim, o papel
da Igreja na salvação de cada crente.
153
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EDIPUCRS, 2001.
159
ANEXO
Encontram-se nesta tabela todos os animais e bestas citadas por Frei Antônio em sua obra,
assim como, respectivamente, todas as ginas onde podem ser encontradas estas citações na
versão dos Sermões utilizada em nossa dissertação.
Animais Páginas
Asno
97, 536, 515
Baleia 392
Bode 339
Burro 397
Cabra
318, 937
Cabrito
120, 635
Cão 91, 153, 237
Carneiro 186
Camelo 412, 858
Castor
107
Cavalo
243
Coelho
661
Corça 169, 210, 624
Delfim 392
Doninha 690
Égua 169
Elefante
314, 324, 653, 656, 658, 910, 721
Gato 926
Gazela 318, 686
Hiena 735
Jumento
260, 59
Leão
49, 105, 190, 604, 768, 841, 635, 949
Lebre 97
Leopardo
180
Lobo
354, 356, 680, 767
Macaco 651, 654
Morcego
609, 428
Ónagro
446, 723
Ouriço-cacheiro 95, 99
Ovelha 361, 583, 918
Pantera
608, 729
Porco
837
Raposa
783
Rato 97, 910
Rinoceronte 187(unicórnio), 339
160
Simias
750
Tigre
724
Toupeira
332, 428
Urso 190, 624, 774
Vaca 367
Vaca selvagem 188
Veado
97, 189, 885, 753, 807, 960, 964
Aves
392, 758
Abutre
246, 774, 134
Águia
58, 87, 774, 72, 464, 667, 877
Andorinha
57, 62, 675, 752
Ave de rapina
337, 374,
Ave doméstica
374
Avestruz
95, 252, 832, 740
Calhandra
163, 168, 902
Capão 783
Cavões(nóctuas,
corujas)
832
Cegonha 440
Cisne 172
Corvo 388
Falcão 88, 96, 454, 807
Grou 246, 608
Milhano
374
Mocho
882
Pardal
276
Pavão 96, 651, 654
Pelicano
135, 685
Perdiz 423
Pomba
807, 946, 422, 570, 749, 751
Rola
419, 552, 936, 381, 750
Áspide
96, 83
Basilísco 690, 911
Camaleão
332, 886
Cobra (serpente)
280, 320, 658, 690, 346, 453, 721, 749
Crocodilo
658, 749
Dragão 95, 658, 831
Salamandra
275, 332
Serpente
410, 149, 910
Víbora 83
Peixes 392, 909
Abelha
199, 202, 282, 579, 826, 856, 862, 760,
764, 964
Alec 332
Aranha
180, 472, 826, 217
Conchas
828
Escaravelho
640, 794
Escorpião
913
161
Estelião
333
Gafanhoto
143, 560, 852
Mosca
180, 286, 388, 766
Mirmeleão 626
Pulga 91
471
Sanguessuga 142
Traça
803, 930
Verme (bichinho)
604
Verme(intestino da
terra)
190
Verme
190, 918, 217, 756, 786, 791, 793
Íncubo 832
Lâmia 95, 98
Onocentauro 95
Panas 832
Peludo (sátiro)
95, 98, 832
Sereia 832
Vástia 95, 378
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