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Ministério da Educação e do Desporto
Secretaria de Educação Especial
Instituto Nacional de Educação de Surdos
Departamento de Desevolvimento Humano,
Científico e Tecnológico
SEMINÁRIO
DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA
EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA
SURDOS
21 a 23 de julho de 1997
Rio de Janeiro
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CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional de Livros, RJ.
S474s
Seminário Desafios e Possibilidades na Educação Bilíngue para
Surdos (1997 Rio de Janeiro, RJ)
. Seminário Desafios e Possibilidades na Educação Bilíngue para
Surdos, 21 a 23 de julho de 1997 / (organização) INES, Divisão de
Estudos e Pesquisas - Rio de Janeiro: Ed. Líttera Maciel Ltda.
Inclui bibliografia
I. Surdos - Educação - Congressos: I. Instituto Nacional de
Educação de Surdos (Brasil). Divisão de Estudos e Pesquisas.
II. Título.
96-2048 CDD-371.912
CDU-373.33
131296 161296 002373
ANAIS DO SEMINÁRIO
DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA
EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS
Edição
Instituto Nacional de Educação de
Surdos - INES
Capa/Projeto Gráfico
Anna Maria Vodopivic
Produção Gráfica
Editora Líttera Maciel Ltda
Tiragem
1.500 exemplares
Comissão de Publicação
Cármen Sílvia Nora Dias Quintieri
Mareia Regina Gomes
Maria Inês Batista Barbosa Ramos
Vera Regina Loureiro
Wilma Favorito
Rua das Laranjeiras; 232
CEP: 22240-001
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Telefax (021) 285-7284
285-7393
Instituto Nacional de Educação de Surdos
Presidente da República
Fernando Henrique Cardoso
Ministro de Estado da Educação e do Desporto
Paulo Renato Souza
Secretária de Educação Especial do MEC
Marilene Ribeiro dos Santos
Diretora-Geral do Instituto Nacional de
Educação de Surdos
Leni de Duarte Barboza
Diretora do Departamento de Desenvolvimento
Humano, Científico e Tecnológico
Wilma Favorito
Agradecimentos
a todos os profissionais do INES
que colaboraram na organização
deste evento e, em especial, à
direção do Colégio Imaculada
Conceição
Apresentação
Esta publicação reúne os textos relativos às palestras apresentadas
por ocasião do Seminário DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA EDUCA-
ÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS promovido pelo INES de 21 a 23 de julho
de 1997.
Neste encontro, que contou com a participação de cerca de 600 pro-
fessores e técnicos de 25 estados do Brasil, as reflexões giraram em torno
das implicações sociais, culturais, linguísticas e pedagógicas inerentes a
uma proposta de educação bilíngue para surdos.
Pensar a educação de surdos ultrapassa o fato de se levar em consi
deração a coexistência de duas línguas no ambiente pedagógico. Há que
se pensar o surdo como qualquer outro sujeito bilíngue, imerso em dife-
rentes registros culturais, inscritos nas relações de poder determinadas
historicamenrte na sociedade. A comunidade de surdos compartilha ques-
tões semelhantes às comunidades linguísticas ditas minoritárias como os
índios, ou imigrantes, ou povos colonizados que precisam lutar muito
para terem afirmadas e reconhecidas sua identidade cultural e linguística
no contexto sócio-polítieo em que vivem.
Em decorrência dessas considerações, é natural supor que o indiví-
duo surdo apresente singularidades relevantes em seu processo de aqui-
sição do conhecimento. O papel da língua de sinais como primeira língua
do surdo e como língua de instrução na escola, bem como a aquisição do
português como segunda línguao algumas das particularidades a se-
rem estudadas e discutidas pelos profissionais da área da surdez.
Questões como estas, pensadas no âmbito de um projeto político
pedagógico para surdos, precisam interagir com as discussões atuais da
educação geral. Assim como as pesquisas linguísticas cada vez mais
buscam entender as características linguísticas e cognitivas dos surdos.
a educação especial precisa aproximar-se o mais possível dos grandes
debates que hoje se realizam na educação como um todo.
Respeitar a diferença em todos os seus aspectos e simultaneamente
negociar os saberes é o grande desafio da educação, e, em particular, da
educação de surdos.
Educação: Singularidade
e Solidariedade
Profª Drª Eliana Yunes (PUC-RJ)
A sociedade humana organizou-se sobre alguns eixos que, ao longo
da história da civilização, revelaram-se constantes, mas em permanente
rotação: o manejo da técnica desde o domínio do fogo; a regulação das
trocas desde a proibição do incesto; a ordenação do mundo pela nomea-
ção do verbo; o controle das massas pela tomada do poder. Entre eles,
girando igualmente ao sabor de forças intercondicionadas, o homem -
assim, grafado no singular e significando o coletivo. O homem, então.
eram os homens.
A primeira notícia que temos desta noção, delineia este ser humano,
menos como espécie e mais como gênero, sem qualquer traço de individu-
alidade que o retirasse do todo em que se perdia, anónimo. Nomes tinham
apenas os que simbolizavam este coletivo: os reis - legisladores-profe-
tas, cuja vontade e palavra determinavam as fronteiras em que se moviam
os demais, estes, que morrendo em seu nome, paradoxalmente, lhe permi-
tiam dar vida ao nome e perpetuar-se na memória.
Mesmo quando doutrinas menos monolíticas passaram a criar dissa-
bores para estas estruturas, aqui e acolá, o homem, imaginando-se como
um outro, numa história de lugares marcados, desenvolveu uma percep-
ção míope de sua condição pessoal, ao ser quando do "chamado"
divino.
Das histórias de seres imaginários e coisas anímicas às narrativas de
confissões e memórias, passam-se alguns milénios c muitos conflitos, em
que as vitórias cm campo de batalha, nem sempre significaram, para os
nomeados, êxito na manipulação das massas. Esta gente ignara, de difícil
compreensão e muita perplexidade, antes comprometia que servia, pela
ignorância, os rumos que o poder estatuía como o da história.
Desde (Santo) Agostinho até (São) Tomás de Aquino, passando em
meio a Inquisição por uma mulher destemida, (Santa) Tereza d'Avila e,
quando nenhum deles ainda, se invocava pelo título de santificação, emer-
giram personas individuais cujo perfil singular, séculos depois, tentamos
aos poucos ainda delinear.
A noção de indivíduo nos chega com o romantismo, quando o herói
o mais místico ou legendário, mas navegador ou mascate, começa a
fazer um nome, tirando do anonimato um Cristóvão Colombo, um Romeu,
um Quixote, um Rousseau. Das confissões de Rousseau podemos puxar
dois fios que, de perto, tocam o tema que nos propuseram tratar: o da
noção de individualidade e o da relevância da educação. A revolução
mercantil e marinheira, que sustentou economicamente o Renascimento c
o Absolutismo, já fortalecera as corporações de ofícios e as pequenas
escolas monacais para tornar útil a gente miúda, despreparada para ga-
rantir seu sustento c o dos reinos.
A noção de indivíduo, todavia, se circunscreve, sociologicamente
para distinguir o homem na multidão e, mesmo, quando ao cabo da revo-
lução burguesa, o nome próprio ganhou foro (enquanto se vendiam títu-
los), a educação se manteve como instrumento de domesticação e adap-
tação dos indivíduos aos papéis sociais que lhes foram reservados pelo
novo sistema.
Educar, no entanto, etimologicamente, apontava para outros proce-
dimentos. De ex-dúcere - conduzir para fora, trazer à tona, à expressão, o
que vive dentro do homem, pelo próprio étimo, solicitava estratégias di-
versas das que então se punham em marcha, no processo de escolarização
que, lentamente, se expandia. Educação presumia acompanhamento, com-
panhia, diálogo, troca de olhares e de experiências, manifestação da rela-
ção homem x mundo que a percepção colhia, ensaio de especulações.
construção de conhecimento.
Ao contrário, um rol sistemático de conteúdos e de valores, tendo
por base ideologias subliminares, desenhou o educando educável e o
homem educado que a sociedade almejava conformar. Primeiro, a
prevalência do caráter instrumental, depois o adestramento de habilida-
des; em seguida, a assimilação da tradição e do conhecimento acumula-
dos e, por fim, o treinamento técnico. E a sociedade cada vez. mais longe
dos sonhos de cidadania responsável e qualidade de vida com direitos
garantidos.
É com Kant, com sua teoria do conhecimento, que a noção de subje-
tividade aflora - há qualidades queoo propriedades dos objetos,
mas afetações dos sujeitos que as percebem: portanto, atributos que se
delineiam na mente do sujeito cognoscente. Emborao reduzisse a rea-
lidade ao sujeito pensante, Kant deu relevância às instruções e concei-
tos, "a priori", para além da possibilidade de experiência que o homem
pudesse desenvolver.
Neste binómio, sujeito que conhece / objeto observado, o mundo da
experiência dependeria, essencialmente, da estrutura da consciência hu-
mana. Para Kant a sensibilidade e o entendimentoo fontes do conheci-
mento, que combinadas, noso a experiência do real como fenómenos,
isto é, enquanto objetos que se relacionam as sujeitos. Este passo
importante, na explicitação do papel da razão e dos sentidos na constitui-
ção dos sujeitos e de sua relação com o conhecimento do mundo, ilumina
a noção de consciência. A tomada de consciência indicaria um paulatino
domínio completo da realidade experienciada pelos sujeitos.
A modernidade trouxe no seu bojo, mais que o iluminismo, o
positivismo, o empirismo - trouxe a crise do conhecimento enquanto inca-
paz de dar conta das práticas sociais e individuais que transformaram o
final do século passado em ruína e fragmentação de todas as certezas. A
celebração do saber enciclopédico excluía as diferenças, e com elas, o
"gaúche" do mundo.
É com Freud que esta noção de sujeito vai se reformular. Para além da
consciência humana, com controle sobre objetos e comportamentos,
desvendava-se no fundo do poço das memórias pessoais, o lado oculto
da mente, o inconsciente. Dele irrompiam, sob censura, desejos e recalques,
todo o reprimido por conta, justamente, das imposições da ordem do
simbólico, da ordem da lei, no plano social. Aflorando do inconsciente,
outro sujeito carecia de resgate para harmonizar-se e às suas relações.
Tem início um processo que funde, lentamente, sujeito e objeto, no pro-
cesso de conhecimento.
Por outro lado, com Marx, a análise econômica e histórica denuncia o
mecanismo de controle do social por interesses difusos, mas sistematica-
mente, organizados, sob a forma de ideologias que disseminam determi-
nadas visões de mundo, orientando, subliminarmente, as formas de ação
e as práticas políticas das sociedades.
A complexidade em torno do conceito de sujeito aumenta. Por um
lado, ele enriquece sua autonomia, pela descoberta do peso de suas emo-
ções e sentimentos, memórias e necessidades. Construindo-se a si mes-
mo, em um movimento permanente de verbalizar-se, ele se transforma em
narrador de sua história. Por outro lado, vê-se coagido por valores, prin-
cípios e ideias que antes lhe pareciamo "naturais" e os descortina,
agora, como produções discursivas, interessadas que submetem seu pró-
prio discurso.
Vê-se, então, em situações, continuamente dramáticas, que escapam
à sua compreensão, quer como parte, quer como totalidade; fragmenta-se
e corre o risco de anular-se, de dissolver-se, de novo, no anonimato das
massas.
Na educação, um discurso libertador e democrático toma corpo,
admitindo-se que o sujeito conhece e se conhece - se reconhece - ganha
identidade e se transforma permanentemente, à luz de sua historicidade,
das circunstâncias que o cercam, segundo a forma como se relaciona com
seu tempo e espaço, de como logra intervir no entorno. Conhecer deman-
da interpretar, o que significa envolver-se com o mundo.
A noção de que o sujeito interpreta o mundo com a bagagem de vida
que traz, com seu repertório cultural, pouco a pouco, alavanca a ideia de
que o conhecimento e o sentido do mundoo podem ser articulados
tora das linguagens. O caráter social desta e sua inexorável estruturação
da mente faz com que o próprio inconsciente, sendo linguagem,o se
exima da permeabilidade social, através dos traços, sinais e cenas que o
impregnam.
Com isto, o peso das comunidades interpretativas se torna decisivo
para que os sujeitos se construam. Dizendo de outro modo, a subjetivida-
de cede passo à inter subjetividade, condição para que se compreenda,
como impossível, um sujeito "puro" da razão; do mesmo modo, que inevi-
tável é a existência da diferença para que se possam produzir "verdades"
aceitáveis entre sujeitos de uma mesma comunidade, isto é, para que
possa haver acordo (ético e estético); só entre os sujeitos estaria o con-
senso inteiramente dinâmico e reajustável, segundo o processo mesmo
do conhecimento que nunca é definitivo.
Se a intersubjetividade, por um lado, coloca a premência da conside-
ração do mesmo e, do outro, se ela elimina parte da concepção conflitante
de individualidade - o homem é com os outros - a intersubjetividade corre
o risco de gerar e acomodar qual modelo, este sujeito-entre-sujeitos,
desmemorizando, invalidando quaisquer gestos queo correspondam,
digamos, ao societário em seu conjunto.
Mas,o é bem esta a saída:o é tanto pela similaridade que a
intersubjetividade se torna possível - é também pela troca, pela diferença
que ela se desaloja continuamente, permitindo que a estabilidadeo se
cristalize e alcance os patamares de consenso doutrinário, dogmático ou
ideológico. Nestes meandros, todo o processo educativo deve-se trans-
formar porque ele só pode ensinar o que, ao mesmo tempo, aprende. O
saber de ontem jáo é operativo, ele se move com a história dos sujeitos
que interagem, entre si, e com o mundo no recorte tempo - espacial em que
se inserem.
A diferença produtiva, digamos assim, no lugar da diferença
conflitante, e por isso, excluível ou excludente, se consolida no que Guattari
chamou de singularidade: a feliz articulação do entendimento comum
com a sensibilidade particular ou da sensibilidade comum com o
entendimento particular, oriundos das percepções e interações próprias
de mundo, numa combinatória que se renova incansavelmente... até que o
sujeito decida coincidir apenas consigo mesmo, estagnar e morrer.
Buscando a troca, a ampliação dos horizontes através de visões di-
versas do mundo, a prática dos homens demanda uma tolerância de
ordem ética e um compromisso com a.solidariedade: o outro, diferente de
mim é igual a mim, se me permitem o paradoxo: eu sou um outro. A possi-
bilidade de o conhecimento, o saber, alargar-se e ir em busca de formula-
ção para novas hipóteses de respostas relativas a muitas velhas ques-
tões, implica na mudança de paradigma da educação: das verticalidades
para as horizontalidades, do assertivo para o performativo, da subordina-
ção para a coordenação.
Embora, de alguma fornia isto já esteja no discurso de um pedagogo
do quilate de Paulo Freire no Brasil de 30 anos atrás, nossas práticas
continuam refratárias ao diálogo, à concomitância, à simultaneidade. Tra-
balhamos, ainda, com o jogo do desgosto - ou isto ou aquilo -quando
isto e aquilo podem ser verdadeiros, conforme o olhar desprovido de
antolhos e preconceitos que lancemos ao mundo.
Ser solidárioo é ser solitário; a vida é, e portanto demanda, mais de
um - da biologia genética às epistemologias ou teorias do conhecimento.
A interação e a reciprocidade só estranham a quem se estranha e por
conta distoo reconhece o mesmo no outro - na medida em que sua
própria singularidadeo lhe é familiar. A mesmice lhe embaraça a visão.
Contudo, nesta babel da sociedade urbana e de massa, neste arco de
solidariedades e tolerâncias de que carecemoso se dispensa o gesto
da coerência. E por ela que todo o sistema se desequilibra e reajusta,
porque se arruma e reconstitui. A coerência exige um estar em caminho
permanente, aberto ao diálogo, aoo visto nem entrevisto, sem sucum-
bir às falácias da homogeneidade e do consenso apático que subtrai à
vida sua vitalidade mesma - a perseverante busca do gozo, da harmonia,
da alegria;o de um, mas de muitos; de todos quantos se descobrem
sujeitos de suas paixões, conduzindo-se para fora, educando-se num pro-
cesso interminável de curar-se - com todo o prazer, até que... a indesejável
das gentes venha e encontre a mesa posta e cada coisa em seu lugar,
como disse Bandeira.
Educar é educar-se a si enquanto companhia de um outro. Cada dife-
rença a ser trabalhada é uma diferença eo uma desqualificação do
sujeito. Há surdos queo ouvem e surdos queo querem ouvir. Am-
bos carecem de educação. Solidária.
O Dizer do Sujeito Bilíngue:
Aportes da Sociolinguística
Profª. Dr
a
Tereza Machado Maher
(PUCCAMP/UNICAMP)
"Os direitos linguísticos formam parte integral dos
direitos humanos fundamentais. Estes direitos se re-
ferem àquelas prerrogativas que parecem atributos
naturais e evidentes a todos os membros das maiori-
as linguísticas dominantes: o direito a usar sua pró-
pria língua em qualquer contexto cotidiano e oficial,
particularmente na educação, como também o direi-
to de que as opções linguísticas do sujeito sejam res-
peitadas e que este não sofra discriminação alguma
pela língua que fala." (Hamel, 1995)
O bilinguismo tem sido visto no mundo como algo negativo, como
um problema. Embora a esmagadora maioria dos países do mundo seja
multilingue, existe o mito de que o multilingúismo c um estado de exceção
que deve, a todo custo, ser erradicado (cf. Calvet, 1987). A construção de
tal mito está documentada na História: a Torre de Babel, um dos castigos
impostos, na tradição judaico-cristã, à humanidade colocou como certe-
za: muitas línguas - o caos. O conceito de Estado-Nação, legado da
Revolução Francesa, estabeleceu como verdade o binômio "unidade =
uniformidade": a formação de um Estado pressuporia e dependeria da
existência de uma cultura, de uma língua nacional. Esteso apenas
alguns dos acontecimentos históricos que, ao longo do tempo, e ideolo-
gicamente,m imprimindo na consciência individual e coletiva a noção
de que o Homem - o Cidadão - deve ser monolíngue. E é este mesmo mito
do monolinguismo que tem impedido a disseminação de resultados de
pesquisas que poderiam contribuir para o estabelecimento de políticas e
práticas educativas mais justas e democráticas para as minorias linguísti-
cas existentes no mundo.
Muito embora minha experiência profissional e meu compromisso
político mais imediato seja com a educação da criança indígena, é meu
objetivo neste trabalho, por tudo que afirmei acima, levantar, ainda que
de maneira extremamente suscinta, algumas informações teóricas advindas
da Sociolinguística, na expectativa de que, talvez, este texto possa contri-
buir para o debate sobre a educação da criança surda.
Bilinguismo Social e Conflito Diglóssico
Eram anglo-saxões os primeiros pensadores a elegerem o
multilinguismo social como objeto de investigação (Weinreich, 1953,
Ferguson, 1959 e Fishman, 1967)'. Diglossia, ou seja, a relação entre
línguas (ou variedades linguísticas) que ocupam um mesmo espaço-
cio-geográfico, foi definida, nesta tradição de pesquisa, como sendo uma
relação de dualidade funcional estável. Dentre línguas em contato have-
ria uma cujo uso estaria sempre reservado para o âmbito do público e do
formal (língua Alta), enquanto que a outra estaria reservada para o domí-
nio privado, informal (língua Baixa). Traços distintivos como prestígio,
tradição literária, modo de aquisição, estandardização e estabilidade dis-
tinguiriam tais variedades sendo que normas rígidas regulariam a distri-
buição funcional do uso linguístico nas comunidades de fala - cada lín-
gua sendo usada exclusivamente no seu domínio, servindo sempre a uma
função específica.
A partir do início da década de 70, o conceito clássico de diglossia
começou a ser alvo de críticas, críticas estas originalmente levantadas no
interior da chamada Sociolinguística da Periferia: a sociolinguística catalã
e ocitana. Composta por investigadores "nativos", falantes de línguas
minoritárias - o que, como explicam Hamel e Sierra (op.cit.), fez com que o
fenômeno passasse a ser olhado de um outro lugar, o lugar da opressão
sócio-econômica e cultural - a Sociolinguística da Periferia fez incidir suas
críticas, principalmente, para a visão idílica de estabilidade.
homogeneidade e harmonia embutida no conceito canónico de diglossia.
Os acadêmicos anglo-saxões orientavam-se pelos preceitos do estrutura-
lismo e do funcionalismo, c, portanto, para eles, normas, regras e consen-
so eram características centrais das relações e ações sociais. Os
sociolinguístas europeus, por outro lado, concebendo o conflito como
parte constitutiva da dinâmica social, argumentavam que, em situações
diglóssicas,o existe apenas uma diferenciação funcional, aparente-
mente neutra, entre as línguas, pois o que está em jogo é que a cada
função corresponde uma valoração social diferenciada. Daí terem pro-
posto que a relação diglóssicao fosse mais pensada como uma relação
de contato estável entre uma língua alta e uma baixa, mas, sim, como uma
relação de conflito não-estável. assimétrica, entre uma língua dominante e
Kremnitz (l981) e Haminel e Sierra (1983) historicizam as diferentes
conceitualização de diglossia existentes na literatura sociolinguística.
outra dominada. Entendido desta maneira, o fenômeno diglóssico se refe-
re, em última instância, a um jogo de ocupação linguística.
2
Neste jogo a
língua dominante tenta "abocanhar" funções próprias da língua domina-
da, "enfraquecendo-a ", "empurrando-a" para usos e funções cada vez
mais restritos e/ou desprestigiados, ao ser que forças contrárias de
resistência sociolinguística sejam acionadas.
Sabemos que a política linguística no Brasil elegeu a língua portugue-
sa como "língua nacional", língua de prestígio. Historicamente, tem sido
ela a língua da escola. A literatura nela produzida tem sido incentivada e
cuidadosamente documentada. Exclusivamente dela sempre se utilizaram
o discurso legal, os meios de comunicação de massa. A língua portugue-
sa impera, portanto, no âmbito do formal, do oficial, do público e, por isso,
é ela a língua dominante no país. Desprestigiadas, às demais línguas
brasileiras restou o papel de línguas subalternas.
1
A importância de atentarmos para a existência de conflito diglóssico
reside no fato de que este, quando presente, afeta atitudes e tomadas de
decisões em todas as esferas sociais, na escola inclusive já que, como é
sabido, estao opera num vácuo social (cf. Poche, 1989 ou Maher, 1996).
Logo, o modelo de educação adotado nas escolas para crianças surdas
irá refletir o posicionamento de seus agentes educativos, frente ao con-
flito diglóssico, vivenciado por seus alunos. Sem que a Língua de Sinais
ofereça, agressivamente, resistência ao português, sem que ela tente pe-
netrar nos domínios da língua dominante, esta língua minoritáriao terá
chances de se firmar no embate diglóssico. Cabem, então, as perguntas:
qual é o lugar e o peso dado à Lingua de Sinais no currículo? Que
terrenos comunicativos/discursivos estão por ela sendo conquistados no
cotidiano da sala de aula? A escola visa promover a estandardização da
Língua de Sinais, incentivando, por exemplo, a criação de neologismos?
Que esforços estão sendo feitos no sentido de se documentar a produção
literária feita nesta língua? Estaso algumas questões com as quais
educadores comprometidos com os direitos linguísticos da criança surda
teriam, a meu ver, que se preocupar.
!
Convémo nos esquecermos de que, qualquer que seja o nosso posicionamento
sobre o que constitui o fenômeno diglóssico, a maneira como a questão é definida é
sempre metonímica, uma vez que as línguas como taiso podem participar de
"jogo" algum. Seus usuários, estes sim, enquanto membros de grupos sociais é que, a
depender do enfoque teórico, estariam em contato ou em conflito (cf. Hamel, 1988)
' Nunca é demais lembrar queo faladas no país, hoje, por cidadãos brasileiros
natos, cerca de 203 línguas, a saber: pelo menos 170 línguas indígenas, 30 línguas de
imigrantes, 2 línguas de sinais (Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS - e Língua de
Sinais dos Urubu-Kaapor), e evidentemente, a língua portuguesa.
Bilinguismo Individual e um Universo Discursivo Diferenciado
Se deixarmos de lado a macro-análise do bilinguismo c nos debruçar-
mos sobre o fenômeno ao nível do indivíduo, iremos, novamente, nos
deparar com a existência de mitos. Vejamos apenas duas das definições
de bilinguismo compiladas por Baetens Beardmore (1982), definições es-
tas muito semelhantes àquelas ditadas pelo "senso comum":
"Bilinguismo é o controle de duas línguas
equivalente ao controle do falante nativo
destas línguas." Bloomfield, 1933.(grifo meu)
"O sujeito bilíngue é aquele que funciona
em duas línguas em todos os domínios, sem
apresentar interferência de uma língua na
outra " Halliday, 1984. (grifos meus)
Qualquer indivíduo que esteja em contato efetivo com comunidades
bilíngues, ou que seja, ele mesmo, um de seus membros, ao contrapor as
práticas comunicativas que testemunha ou vivência com as definições
acima irá perceber os equívocos contidos nestas últimas. Em primeiro
lugar, há que se considerar que tais definições pressupõem a possibilida-
de de existência de "bilíngues equilibrados", ou seja, de falantes com
idêntica competência comunicativa cm ambas as línguas de seu repertó-
rio. Ora, a noção, inicialmente utilizada pelos sociolinguistas, de bilinguismo
equilibrado, teve que ser posta de lado à medida que observações da
realidade comprovaram ser este conceito apenas uma idealização. O
bilíngue, nos dizem os dados empíricos, é sempre capaz de desempenhar-
se melhor numa língua do que na outra a depender do gênero/tipo de
discurso e do seu estado emocional no momento da comunicação. Sabe-
mos, ademais, que questões que envolvem a necessidade ou o desejo de
reafirmação de identidade étnica ou social, frequentemente, afetam o grau
de competência exibida pelo bilíngue. O surdo, por exemplo, querendo, ou
precisando, marcar-se ouo se marcar, discursivamente, como "surdo"
tenderá a exibir uma competência ora mais, ora menos, distante da compe-
tência comumente exibida por sujeitos monolíngues em língua de sinais
ou em língua portuguesa. As competências do sujeito bilíngueo são,
portanto, fixas, estáveis como sugerem as definições sob análise.
Um segundo problema embutido nestas definições refere-se à nega-
ção de um comportamento discursivo no qual haveria uma suposta "con-
laminação perniciosa" entre as línguas utilizadas pelos falantes. Ora, o
funcionamento discursivo do sujeito bilíngue prevê a utilização de mu-
dança de código (code-switching) e empréstimos linguísticos
(borrowings) em sua gramática.
4
Um bom bilíngue transita de uma língua
para outra justamente porque, diferente do monolíngue, tem competência
para tanto. A mudança de código e os empréstimos linguísticoso
recursos comunicativos poderosos dos quais ele lançao com frequên-
cia, para, pragmaticamente, atribuir sentidos vários aos seus enunciados:
para expressar afetividade, relações de poder, mudanças de tópico, iden-
tidade social/étnica, etc...o se trata, portanto, de um deficit, mas, sim,
é preciso insistir, de um recurso estrategicamente utilizado. Sendo assim,
todo o cuidado deve ser tomado para que a escolao "problematize'
aspectos do desempenho da criança bilíngue que, na verdade,o
constitutivos do seu discurso,o uma de suas riquezas, uma de suas
especificidades.
Além das considerações acima, creio que nossas ações educativas
serão mais justas se nos convencermos de que o sujeito bilíngue funcio-
na num universo discursivo próprio, específico, queo é nem o univer-
so discursivo do falante monolíngiie em L1, nem o do falante monolíngue
em L2. O sujeito bilíngueo é produto da somatória de competências
equivalentes às competências dos sujeitos monolíngues e, portanto,o
deve ser assim avaliado. Sua competência comunicativa só pode e deve
ser totalmente avaliada com referênciaa ambas as línguas de seu repertó-
rio e em termos das funções exercidas por cada língua no interior da
comunidade de fala. Em suma, é preciso, abandonando idealizações, ado-
tarmos uma visão sócio-funcional de bilinguismo (cf. Grosjean, 1982,
Romaine, 1989).
Por último, é preciso atentarmos para a alta possibilidade de ocorrên-
cia de conflitos escolares devido à existência de culturas interacionais
5
incongruentes na sala de aula bilíngue/' Uma vez que falantes de línguas
diferentes utilizamo apenas "códigos", sistemas linguísticos diferen-
tes, mas, também, observam padrões interacionais diferenciados, padrões
estes culturalmente determinados, é de se supor a possibilidade de que
Ver a este respeito. Zentella, 1981. Baker. 1993, Romaine, 1995.
5
Empresto a expressão "cultura internacional" de Leavitt e Stairs, 1988.
Cf. Maher, 1994.
professores ouvintes e alunos surdos estejam, cm suas interações
transculturais, guiando-se por regras de apropriabilidadc e etiquetas
conversacionais antagônicas. Cabe, então, a pergunta aos especialistas
da área: que esforços estão sendo feitos para a compreensão da cultura
interacional do surdo?
Espero que as reflexões contidas neste texto possam, ainda que mini-
mamente, contribuir para que as crianças surdas tenham a educação
específica e de alta qualidade a quem direito enquanto membros de uma
das minorias linguísticas brasileiras, de modo que elas, exercendo ampla-
mente sua cidadania, tenham condições de, em contrapartida, também
contribuir para a melhoria deste país.
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Norwood, N.J. Ahlex, 1981:109-131.
Língua e Escrita:
uma questão de história
Profª. Drª. Tânia Conceição Clemente de Souza
(Universidade Federal Fluminense)
Nosso objetivo é recuperar que o desenvolvimento da escrita pelo
homem se deu de forma diferenciada nas diferentes sociedades. Por ou-
tro lado, apontar que nas sociedades, ondeo se atesta o advento da
escrita, a materialidade da língua, traz em si, a sua especificidade de língua
de oralidade, dado fundamental na constituição da relação homem/cultu-
ra/mundo e na constituição da identidade do povo.
Em sua maioria, as sociedades buscam uma relação simbólica e abs-
traía entre língua e escrita, quando se criam símbolos convencionais para
o registro da oralidade.
Algumas outras sociedades buscam essa mesma relação, trabalhan-
do, porém, com outras formas de escrita, melhor dizendo, formas de escri-
tura, nas quais se apreende uma dimensão analógica no registro da
oralidade. Ou seja, a escritura se constitui numa relação direta com a
imagem do real ou do abstrato, base de construção do arquivo da história
das sociedades de oralidade.
A relação língua e escrita é, pois, uma relação histórica, construída
em lugar e épocas determinadas. Quando se procura recuperar de que
forma se deu o desenvolvimento das sociedades, descobrem-se duas
formas de Arquivo dessa história: uma através da escrita, no caso, a que
trabalha com símbolos convencionais e abstratos; outra através de ou-
tras formas de escritura, em que se apreende que o Arquivo de uma soci-
edade pode ser guardado em imagens, em coreografias, cantos, no artesa-
nato
1
, etc.
Para falar um pouco mais explicitamente dessa relação eu vou focali-
zar aqui três fatores: a história da escrita de sociedades como a nossa e a
história de outras formas de escritura; a proposta de ortografias despro-
vidas de historicidade e a questão da materialidade discursiva.
Vamos começar pela questão: O que é a escrita?
'Em Souza, 1997 (no prelo), discute-se como a imagem, entendida, no caso, como
forma de escritura, é peça fundamental na preservação da história e da cultura das
sociedades de oralidade, tendo, por uma questão de história, preponderância sobre
outras formas de escrita.
Trata-se de um objeto cultural e simbólico, elaborado historicamente
por alguns povos, cujo fim é registrar fatos de oralidade.
Segundo algumas vertentes teóricas como no âmbito da Linguística,
por exemplo, a primeira expressão de escrita pelo homem teria ocorrido em
forma de desenho. O desenho, a princípio, teria a função de relatar, de
nomear as coisas numa fornia direta e "literal". Mais tarde, o desenho,
gradativamente, torna-se abstrato, e passa a corresponder à expressão de
conceitos, ideias e, com isso, é definido como um ideograma. Em outro
momento, inventam-se símbolos que, convencionalmente, passam a ser
associados às sílabas, dando lugar à escrita silábica, ou aos sons indivi-
dualmente, dando lugar à escrita alfabética.
Hoje em dia, percebe-se que muitas sociedades se destacam entre si
pelo tipo de escrita desenvolvido., entretanto, sociedades em cuja
históriao se desenvolveu a escrita;o as chamadas sociedades de
oralidade.
Pressupor, do ponto de vista evolucionista, o desenho, a imagem,
como uma forma primeira de escrita é um fato passível de discussão.
Pesquisas arqueológicasm revelado a existência de sociedades con-
temporâneas entre si que apresentavam, cada uma individualmente, tanto
a imagem quanto o ideograma, como formas de escrita. Logo, é um equí-
voco pensar na evolução do desenho para o ideograma, já que ambos
coexisliram numa mesma época. Ou seja, o desenhoo deu origem à
escrita, como se diz.
Um outro dado que contribui para ao associação do desenho à
evolução da escrita se fundamenta nas diferenças existentes entre as
duas expressões da linguagem: a verbal e não-verbal. Diferenças que
o só colocam as duas dimensões da linguagem em planos diametralmente
opostos, como aniquilam qualquer perspectiva de evolução entre ambas.
Linguagem verbal/escrita X Linguagem não-verbal/formas de escritura
ideograma mitograma
sílaba imagem
albabelo
não-linearidade (depende do olhar)
multidirecionalidade
não-segmentação (quando se
destaca
um elemento da imagem, cria-se uma
outra imagem; um outro texto)
linearidade
direcionalidade
segmentação: palavra
sílaba
fonema
sintagma
O outro fator, além da história das escritas, diz respeito a proposta de
ortografias para línguas em cuja históriao se registra o advento da
escrita. Nessas propostas, percebe-se a total falta de um caminho histó-
rico, no caso, pensado pelo próprio índio. A escrita de sua língua lhe é
trazida pelo outro (o não-índio) que entende das regras de escrita, mas
nem sempre tem o cuidado de apreender a dimensão social e ideológica
desse processo. Orlandi (1990) aponta, dentre muitos aspectos, o modo
caricatural comom sido escritas as palavras em língua indígena. Diz a
autora que "escrever as palavras como elas soam é trabalhar uma sua
imagem fora de sua história, de seu modo de existência".
Recorrer ao trabalho com um monitor (um falante nativo) nem sempre
garante a eficácia do processo. Porque, a todo tempo, estamos impondo
uma realidade - no caso, a escrita ortográfica - queo tem um elo
histórico, nem com a sua forma de sociedade, nem portanto, com a sua
identidade. Assim, ao se propor a essas sociedades um trabalho com a
escrita ortográfica é preciso se pensar de que forma se dará essa passa-
gem do mundo da oralidade ao mundo da escrita
:
.
Muitoso os aspectos que merecem ser levados em conta, a come-
çar pela própria noção de palavra. Em muitas línguas indígenas brasilei-
ras,o comuns os processos de incorporação de vocábulos, segundo
os quais um núcleo verbal ou nominal pode incorporar, no interior de seu
radical, vários outros radicais. Dessa incorporação, resultamo só alte-
rações morfonêmicas, como se apagam as fronteiras entre as palavras. A
ortografia que se propõe para as línguas indígenas segue os mesmos
princípios adotados para a ortografia das línguas ocidentais e, nestas,
oo previstas palavras decorrentes de incorporação.
O último fator que vou abordar se refere à discursividade.
A escrita de uma línguao se resume apenas a uma proposta de
ortografia para a palavra. A escrita tem que pressupor a estrutura textual,
;
Ao trabalhar com propostas de ortografias para grupos indígenas brasileiros, tenho
observado fatos interessantes que ilustram posições diferentes do índio, ao ter que
lidar tanto com a escrita do português, quanto com a escrita do seu idioma. Ao
aprenderem a escrita do português, uma escrita que já vem pronta, cristalizada,o
registro nenhum dado que possa revelar a interferência do índio no processo de
construção dessa escrita. Ao contrário do que observo, quando o que está em jogo é
a linguagem indígena. Quando estive entre os Tapirapé (índios Tupi), trabalhando na
organização de cartilhas em língua Tapirapé, me chamou a atenção a insistência de
um dos nossos monitores índios em dar à palavra ?poko 'comprido' a seguinte
representação ?po?ko?, na qual o símbolo ['.'], que traduzia na escrita o fonema
descrito como oclusão glotal, foi inserido aleatoriamente na extensão da palavra.
Essa escrita particular, em nada, do ponto de vista linguístico, traduz a relação letra/
fonema prevista para a ortografia. Entretanto, ela traduz um gesto de apropriação do
índio, pela escrita de uma língua que í sua e de cuja história, ele faz parte. Como lhe
é abstraia - a-histórica - a relação letra/fonema, ele cunha a palavra com uma relação
que é sua, particular, imprimindo à mesma a identidade indígena, histórica.
a materialidade discursiva da língua, muitas vez.es, só dominada pelo fa-
lante nativo, já que essa quase sempre escapa ao linguista preocupado
em aprisionar a língua indígena dentro de um sistema, e despreocupado
com a textualidade, a dimensão discursiva da língua, lugar onde se cons-
titui uma relação mútua, tanto a identidade da língua, quanto a do seu
falante.
No caso das línguas indígenas, esse problema se torna mais comple-
xo, pois, em termos discursivos a estrutura dessas línguas é muito dife-
rente da nossa. E a nossa tendência é simplificar essa estrutura num
trabalho de disciplinação dessas línguas. O resultado é que o material
que é produzido em língua indígena acaba ilustrando textos com a mesma
estrutura do português, mas ditos em língua indígena. Textos sem
historicidade, sem materialidade discursiva.
Inúmeroso os exemplos que eu poderia arrolar aqui no intuito de
ilustrar como o material para alfabetização indígena, quase sempre elabo-
rado com critérios pertinentes e com a ajuda de monitores indígenas,
frustra os nossos objetivos - a alfabetização - quando ganha inserção na
realidade do grupo. (Cf.: Leite et allii, 1987 e Souza, 1993)
Destacarei apenas, à guisa de ilustração, a impossibilidade (nossa ou
do índio?) de utilizar uma frase como 'A Mangaba madura se espalha no
chão' numa cartilha Tapirapé. Diante da dificuldade de nosso monitor
traduzir uma frase - aparentemente simples paras - para a sua língua
materna, passei a indagar a diversas pessoas, na Aldeia, a versão da
mesma, em Tapirapé. A reação era uma: estranhamento, confusão e,
por fim, a resposta 'não sei'. Até que uma índia - considerada por mim
como linguista nata - depois de dar boas risadas, retrucou:
"Tori (não-índio) é burro mesmo, hein. Tapirapéo diz desse jeito
porque se a mangaba está no chão é porque ela já está madura."
Como se pode ver, assim como as palavraso escritas independen-
tes do seu modo de existência, a língua nas cartilhas (e em outros materi-
ais) parece desprovida da materialidade que a constitui como espaço de
representação e de identificação. É a representação da identidade própria
da língua que se perde, que é apagada. É a representação própria do índio
que também se apaga, e o seu estranhamento diante do que lhe é apresen-
tado como escrita (?), escritura (?) de sua língua nada mais é do que o
reflexo dessa falta de reconhecimento do índio, na e pela língua, agora
com uma forma escrita. Ou seja, apaga-se a língua, o discurso, o índio e,
por consequência, a singularidade.
Uma singularidade que se revela na estrutura textual, discursiva. E
que estrutura discursiva, textual é essa? É a mesma queo permite que
um texto como 'A mangaba madura se espalha no chão' (e tantos outros)
seja intraduzível para o Tapirapé, já queo descreve a sua dimensão de
mundo. É a mesma queo permite textos ditos com palavras do índio,
mas que sua estrutura espelha a língua do outro: falta a incorporação,
falta a sintaxe que, quase sempre, está distante da relação sujeito/
predicado
3
.
Para concluir, eu diria que o problema principal num projeto de educa-
ção bilíngue, reside: o excesso de preocupação com aspectos formais
e de conteúdo, e o pouco cuidado com o cultural, o social, o discurso,
enfim, com a diferença. E a diferença é uma questão de história.
Bibliografia
LEITE, Y. et alii. "O papel do aluno na alfabetização de grupos indíge-
nas: a realidade psicológica das descrições linguísticas", Boletim do
Museu Nacional, 53,1985.
ORLANDI, E. Terra à Vista - Discurso do Confronto: velho e novo
mundo,o Paulo. Cortez, 1990.
SOUZA, T.C.C. de. "A questão discursiva e a elaboração de cartilhas
em línguas indígenas" in: Seki, L. (Org.) Linguística Indígenae Educação
na América Latina", Campinas, Editora UNICAMP, 1993.
. "'Gestos de Leitura em Sociedades de Oralidade",
in: Orlandi, E. (Org.) Que é leitor?o Paulo, Pontes, (no prelo)
' Confiram-se, por exemplo, a sintaxe das línguas ergalivas ou das línguas de tópico-
comentario.
A Educação para os Surdos
entre a Pedagogia Especial
e as Políticas para as Diferenças
Prof. Dr. Carlos Skliar (UFRGS)
Trajetórias Ideológicas e Pedagógicas
atuais na Educação dos Surdos.
Nos últimos tempos, houve uma significativa transformação, tanto
no que se refere a concepções ideológicas, como na vida escolar cotidia-
na na educação dos surdos. Das múltiplas contribuições para essa mu-
dança, os aspectos mais relevantes se constituem na difusão dos mode-
los denominados bilíngues/biculturais e o aprofundamento nas concep-
ções sociais, culturais e antropológicas da surdez. Sem dúvida, o abando-
no progressivo da ideologia clínica dominante no último século e a apro-
ximação a paradigmas sócio-culturaiso podem ser considerados, total-
mente suficientes, para se poder afirmar a existência de um novo olhar
educacional. Existem muitas dificuldades na organização dos projetos-
político educacionais específicos e muitaso as limitações que, ainda
hoje, dominam a prática pedagógica cotidiana nas escolas. Hoje em dia,
ainda se percebe a necessidade de uma transformação radical, nas atitu-
des, nos estereótipos e nos imaginários sociais que constituem o poder e
o saber clínico/terapêutico: uma transformação que implica numa análise
profunda sobre as grandes metas-narrativas e os contrastes binários (por
exemplo. Bauman 1991: Silva 1995) enraizados na educação dos surdos;
uma trajetória que deveria implicar, também, numa revisão sobre a ques-
o das identidades, das línguas, e das culturas dos surdos. Neste senti-
do é possível definira existência, ou melhor, a potencialidade da existên-
cia de dois movimentos educacionais, movimentos que estão surgindo,
explícita ou implicitamente, dentro ou fora das escolas para surdos. Por
um lado, é possível definir um movimento de tensão e de ruptura, entre a
educação de surdos e a educação especial: por outro lado, eo sempre,
como consequência do fato anterior, também pode-se falar de um movi-
mento de aproximação da educação dos surdos às discussões, aos dis-
cursos e às práticas educacionais próprias de outras linhas de estudo, em
educação (Skliar, 1997 a)
O primeiro movimento se justifica por 3 razões, aparentemente inde-
pendentes entre si:
Coloca-se cm julgamento que a educação especial seja o contexto
obrigatório e apropriado para um debate significativo sobre a educação
dos surdos, pelo menos, nos termos e nas concepções habitualmente
simplificadas que ela promove.
> Discute-se a funcionalidade daquela linha contínua de sujeitos de-
ficientes, dentro da qual, os surdos estão forçados a existir, na educação
especial (Skliar, 1997 b): um anacronismo que consiste em situar os sur-
dos, os deficientes mentais, os cegos, etc. em uma continuidade que, na
verdade, é descontínua, isto é, grupos de indivíduos juntos, mas também
separados entre eles, e separados de outros sujeitos. Por outro lado,
devido a esta segunda razão, fica exposta com clareza, a oposição
conceituai, entre indivíduo deficiente auditivo - na educação especial - e
comunidade surda - na definição dos modelos sócio-antropológicos.
> Adverte-se queoo reconhecidos os diferentes e múltiplos
recortes de identidade, linguagem, raça, cognição, gênero, idade, comuni-
dade, culturas, etc. dos surdos. Neste contexto, os surdos, tanto como os
outros grupos,o definidos só a partir de seus supostos traços negati-
vos, percebidos como um desvio da normalidade. A construção das iden-
tidadeso depende da maior ou da menor limitação biológica e sim de
complexas relações linguísticas, históricas, sociais e culturais. Neste
sentido,o haveria nada em comum, por exemplo, entre um surdo c um
deficiente mental, que separe esse surdo ou esse deficiente mental - de
um menino de rua, de uma indígena ou de um trabalhador rural.
E evidente, mesmo queo seja o tema desse trabalho, que o conjun-
to de razões aqui expostas constituem, além disso, um olhar crítico, em
direção às antigas e novas políticas de integração dos surdos, na escola
comum, que entre outros fatos, nega aos surdos, o encontro com sua
identidade, com sua língua, com sua comunidade e sua cultura (Skliar,
1997 c)
O movimento de aproximação da educação dos surdos a outras li-
nhas de estudos em educação possibilita uma discussão dentro de um
contexto ideológico, teórico e discursivo mais apropriado e profundo. O
fato de que os surdos também possam ser considerados pela diferença
1
o supõe igualá-los a outros grupos, para posteriormente, normalizar o
contexto histórico e cultural da sua origem.o se trata, então, de dizer
que os surdos padecem dos mesmos problemas que todos os demais
grupos minoritários, excluídos, marginalizados e dominados. Pelo contrá-
possível que ao falar das diferenças, elas sejam consideradas como totalidades
fixas ou estáticas. Mas neste trabalho, utilizo o termo diferença como um produto
social, histórico e culturalmente relacionado de forma variável com outras diferen-
ças.
rio, compreender a surdez, como uma diferença significa, como para toda
diferença, um reconhecimento político (McLaren. 1995).
As consequências educacionais possíveis para a educação dos sur-
dos, a partir dos movimentos educativos, antes descritos, seriam múlti-
plas: entre essas consequências, destaco as seguintes:
> Um maior aprofundamento nas análises dos mecanismos de poder
e de saber da ideologia dominante na educação dos surdos - o oralismo -
desde suas origens, sua atualidade e seu futuro.
> Uma redefinição dos problemas que governam a educação para os
surdos, ou melhor, um olhar completamente novo para o que é realmente
determinante e/ou variável nela.
> Um consenso sobre as potencialidades educacionais dos surdos,
descentralizando-se dos imperativos curriculares dos ouvintes - quer dizer,
do oral, do escutar, do ler e do escrever e centrando-se nas especificidades
linguísticas, cognitivas, comunitárias, culturais, de identidade e de
participação educativa dos surdos.
> Uma ampliação do sentido e do significado sobre o papel que cabe
à escola de surdos na educação de surdos, a partir de uma definição mais
extensa e crítica de um campo para a educação de surdos, que compreen-
da as diferentes relações existentes,o só dentro da escola como tam-
bém, fora dela.
> Uma ampliação e uma multiplicação dos espaços conquistados pe-
los surdos, dentro de sua educação, em oposição às típicas concessões
fragmentadas e descontínuas que propõem, tradicionalmente os ouvin-
tes.
Proponho-me nas páginas seguintes, analisar, detalhadamente, so-
mente algumas destas questões.
O oralismo como ideologia dominante
O oralismo foi e continua sendo hoje, em boa parte do mundo, a
ideologia dominante dentro da educação dos surdos. A concepção de
indivíduo surdo refere-se, unicamente, a uma dimensão clínica - a surdez
como deficiência, os surdos como doentes - dentro de uma perspectiva
terapêutica, os surdos devem ser reeducados e/ou curados. A conjunção
de ideias clínicas e terapêuticas levou a uma transformação progressiva e
sistemática do contexto escolar e de suas discussões e enunciados peda-
gógicos, em mecanismos de natureza médico -hospitalar (Lane, 1993).
É uma tradição, criticar o oralismo, considerando-o, somente, como
um poder vertical, absoluto, onipresente; tal simplificação deriva, entre
outras questões, de uma leitura legalista de suas estratégias negativas
mais explicitas - por exemplo a proibição do uso da língua de sinais, o
controle, a disciplina c o castigo corporal, etc. Sem dúvida, a questão do
oralismo, como ideologia dominante, excede por completo à instituição
escolar e requer uma análise mais detalhada do sentido comum e dos
estereótipos difundidos, em vários níveis, das sociedades que legitimam
a ideia de que os surdosm que aprender a falar. Neste sentido o oralismo
o deve ser compreendido somente como um poder exercido, através de
leis e seria uma ingenuidade pensar que surgiu, simplesmente, graças a
um decreto, em um momento preciso da história.
2
Como ideologia dominante, o oralismo gerou determinados efeitos,
pois contou -seguindo o raciocínio de Moreira e Silva ( 1994)- com a
cumplicidade da medicina e dos médicos, dos profissionais para-médicos,
dos pais e familiares dos surdos, dos professores ouvintes c inclusive, de
alguns surdos, aqueles que representavam, naquele momento, e repre-
sentam agora, os progressos inevitáveis da terapêutica (o surdo que fala)
e da tecnologia (o surdo que escuta). E o oralismoo pode ser definido,
somente, como um conjunto de ideias e práticas institucionais coerentes
e homogéneas, desenvolvidas exclusivamente para que os surdos falem,
porque convivem junto a essas ideias e essas práticas algumas concep-
ções filosóficas, religiosas e políticas já dominantes no século XIX (Skliar,
Massone e Veimberg, 1995)
Por último, a ideologia dominanteo é hegemônica e gera interpreta-
ções diferentes. Entre essas interpretações aparecem algumas formas de
resistência que, no caso dos surdos, se expressam de múltiplas maneiras.
A criação de associações de surdos é so um exemplo disso, c todas elas
surgiram, curiosamente, depois da imposição.da oralidade nas escolas. E
resulta, ainda que paradoxalmente, que se continue considerando-as
guetos eo como seria razoável, espaços liberados do controle da defi-
ciência. Na atualidade, as lutas pelos direitos humanos e pelo direito
específico da aquisição da língua de sinais, constituem, somente o retrato
formal dessa resistência. Talvez os casamentos entre surdos, as produ-
ções artísticas, culturalmente diferenciadas, o refúgio das crianças sur-
Mesmo que seja uma tradição mencionai' seu caráter decisivo, o Congresso de Milão
de 1880 -onde os diretores das escolas para surdos, mais famosas da Europa propuse-
ram acabar com o gestualismo e dar lugar à palavra viva, a palavra falada -o foi a
primeira, nem a última oportunidade, em que se decidiram políticas similares. Essa
decisão já havia sido escrita anteriormente, e era aceita em grande parte do mundo.
Apesar de algumas oposições individuais e isoladas, o Congresso constituiu,o o
começo da ideologia oralista dominante mas sim, sua legitimação oficial (Skliar.
1997 d).
das nos banheiros das escolas oralistas, para comunicarem-se, sejam ex-
pressões mais genuínas desse processo.
Redefinir ou criar um novo olhar na educação dos surdos
Uma análise limitada da ideologia dominante pode originar, também,
uma resumida explicação sobre os problemas cruciais que caracterizam a
educação dos surdos. Assim, as causas e as consequências do fracasso
parecem inverter-se. O fracasso na educação dos surdos, com seus múl-
tiplos e variados sintomas, foram eo hoje, motivo para dois tipos de
justificativas, igualmente inapropriados; por um lado, que os surdoso
os responsáveis diretos desse fracasso-fracasso então, da surdez, dos
dons biológicos naturais - e por outro lado, que o fracasso obedece a um
certo tipo de dificuldade metodológica, o que reforça a necessidade de
purificar e sistematizar, ainda mais os métodos. Nos dois tipos de justifi-
cativas mencionadas, quis-se evitar toda denuncia sobre o fracasso da
escola e/ou das políticas educacionais e/ou do estado (Arroyo, 1991).
A educação dos surdos se encontra, portanto,o à frente de um
único problema e sim, à frente de duas formas independentes de
problematizar sua própria realidade. A primeira delas, poderia ser defini-
da, como o problema dos poderes e saberes dos ouvintes, ao redor das
modalidades de comunicação e de linguagem adequada para os surdos.
Ainda que, aparentemente incluam posições antagónicas, todas elas
conservam e reproduzem um círculo de baixas expectativas pedagógicas.
A segunda, por outro lado, poderia ser entendida como a existência de
múltiplas variáveis que, efetivamente, intervêm na construção de uma
educação significativa para os surdos; variáveis que estão atravessadas
por fatores históricos, políticos regionais e culturais específicos, relati-
vos a cada uma das situações pedagógicas concretas e que portanto,o
permitem reduzir a educação dos surdos a uma simples questão de ordem
metodológica.
A proposta atual para a análise das construções educacionais possí-
veis para os surdos poderia estar determinada por um conjunto das
variáveis interdependentes (Skliar, 1996 a e b): o reconhecimento do
fracasso educativo, nas suas raízes e em suas consequências pessoais,
sociais, cognitivas, linguísticas, comunicativas, de cidadania, de formação
acadêmica e de trabalho; a natureza e tipo das atitudes, os estereótipos,
as representações c o imaginário social sobre os surdos e a surdez, pre-
sentes dentro e fora da escola; as políticas e a situação linguística concreta
da comunidade educativa; a participação da comunidade de surdos no
debate linguístico e pedagógico e sua participação efetiva no projeto
escolar, as bases ideológicas e arquitetônicas para a estruturação e a
sequência de objetivos pedagógicos: a continuidade institucional do pro-
jeto educativo; e, por último, as pressões geradas pelas políticas de
integração social e escolar.
As grandes narrativas e os contrastes binários na educação dos surdos
No processo de aproximação a outras linhas de estudo em educação
é possível que seja importante que a educação de surdos abandone e
critique suas grandes metas-narrativas, quer dizer, o oralismo, a comuni-
cação total, e o bilinguismo - e, também, seus típicos contrastes e oposi-
ções binárias: normalidade/anormalidade, ouvinle/surdo, maioria/ouvinte)/
minoria (surda), oralidade/gestualidadc, etc. Tais oposições sugerem sem-
pre o privilégio do primeiro termo da oposição, termo que define o signi-
ficado da norma cultural. O termo secundário, nesta dependência hierár-
quicao existe fora do primeiro e sim dentro dele. Assim se estabelece
um exercício de poder e uma divisão do mundo que organiza e pontualiza
o ideal, deixando no outro mundo, tudo aquilo que e incontrolável e/ou
ambivalente.
A oposição ouvinte/surdo
O fato de que os surdoso possam, nem queiram em sua maioria, ser
ouvintes ou ser como os ouvinteso parece constituir um obstáculo
para as ideias dominantes na educação dos surdos. Os únicos modelos
ou os modelos fundamentais nas escolas para surdoso os ouvintes; o
tempo de interação e de identificação, entre alunos surdos de diferentes
idades, é suficientemente escasso, como que para evitar que existam "con-
tágios gestuais entre os alunos" - quer dizer que as crianças se conhe-
çam, entre outros surdos, e que adquiram a linguagem de sinais, através
de uma transmissão comunitária e cultural. Quando se programa a presen-
ça de adultos surdos, em geralo como comunidade, mas sim, como
indivíduos isolados, ela se limita a encontros reduzidos e para tarefas
determinadas; muitas das crianças' surdas, ainda passam seu escasso
tempo livre entre hospitais, clínicas e consultórios; por último, permane-
cem o resto do dia dentro de um ambiente familiar, que desconhece ou
nega a potencialidade da identidade linguística e cultural dos surdos, o
que gera um mecanismo de controle familiar sobre a criança.
A intenção de que as crianças surdas fossem em um hipotético futuro
adultos ouvintes, originou um doloroso jogo de ficção de identidades.
Neste jogo, os surdos levam a pior parte, porque acabam sofrendo e
sentindo-se forasteiros, porqueo catalogados,o só como
não-ouvinles, mas também, como autistas, psicóticos, deficientes men-
tais, afásicos e esquizofrênicos. Estes estereótiposoo inocentes
nem ingénuos, c seguindo a concepção de Stam e Shohat (1995), revelam
formas opressivas que, somente em um começo, podem parecer inócuas,
o uma forma de controle social e determinam, justamente, uma devasta-
ção psíquica causada por retratos, sistematicamente negativos, destes
grupos.
Sem dúvida, esta c somente uma parte da análise da oposição binária
ouvinte/surdo. A outra questão nos leva a uma tripla interrogação: o que
é, de quem é, e onde está o mundo dos ouvintes? Ser ouvinte é, certamen-
te, uma totalidade maso parece ser um recorte significativo para uma
descrição do mundo, se nele cabem por exemplo, o presidente de uma
república europeia, uma mulher tecelã do Cáucaso, um índio do Amazo-
nas, um mexicano e uma criança do Nepal. Está claro, que neste caso, o
papel de ser ouvinte significa uma forma de dominação e um fazer com
que os surdos sejam subalternos na educação. A configuração de ser
ouvinte pode começar como uma referência a uma hipotética normalidade
auditiva mas se associa, na prática e no discurso, a toda uma sequência
de traços de outra ordem. Ser ouvinte, então, é ser falante mas é também
ser branco, ser homem, profissional, saudável, normal, letrado, civilizado,
etc. Ser surdo, portanto, é estigmatizar a deficiência auditiva peloo
falar,o ser homem, ser analfabeto, anormal, desempregado, perigoso,
etc.
Foi Lane (1988) quem revelou, com maior precisão, como e quanto
o idênticas a visão paternalista do colonialismo europeu, em relação
aos nativos africanos, e a dos profissionais ouvintes em relação aos sur-
dos.o é casual essa descoberta nas duas visões se adverte o que
McLaren (1995 ob. cit.) chama de multiculturalismo conservador e
corporativo: entre outras práticas, se deslegitimam as línguas estrangei-
ras e os dialetos regionais e étnicos se é proclamadamente monolíngúe
em consequência se destroem os cimentos da proposta de uma educação
bilíngue e se utiliza a palavra diversidade para encobrir uma ideologia de
assimilação que está na base dessa posição.
A oposição maioria (ouvinte) / minoria (surda)
É habitual, definir a comunidade de surdos, como uma minoria lin-
guística. Essa descrição está baseada no fato de que a língua de sinais é
utilizada por um grupo restrito de pessoas as quais em uma definição
tradicional deveriam viver uma situação de desvantagem social, de desi-
gualdade e participar de uma forma limitada na vida da sociedade majori-
tária. E curiosa a coincidência desta definição com algumas das ideias
dominantes na educação dos surdos especificamente aquelas que insis-
tem, em que, o uso da língua de sinais constitui, sempre, um fator de
exclusão da sociedade majoritária (Anderson. 1989).o é esse o espaço
para se discutir as determinações estatísticas que consideram os surdos
e outros grupos como minorias linguísticas, ou raciais, étnicas, sociais,
etc. No entanto, me parece útil, introduzir alguns dados significativos.
Jones e Pullen ( 1992) estimam, que na Inglaterra existam 50.000 sur-
dos que usam língua de sinais britânica - ou a BSL - quase a mesma
quantidade de quem usa o idioma GALES como primeira língua. Deveriam
ser compreendidas, então, como duas minorias iguais: mas as formas de
organização políticas e educativas em torno delas,o bem diferentes: e
essa diferença imposta entre minorias demonstra que as minoriasoo
todas minorias que existem, de fato, minorias melhores e piores que se
qualifica eo se quantifica aquilo que é minoritário.
Sabe-se por outro lado, que a língua de sinais americana - ASL - é a
terceira língua de maior uso nos Estados Unidos. Porém, terá essa língua
O mesmo status social acadêmico e linguístico que o espanhol, o chinês
ou o francês? Será que o que é, linguisticamente, mais utilizado em um
determinado país, também é o politicamente, mais reconhecidos? Eo
faltam exemplos, em que a oposição maioria (ouvinte) / minoria (surda)
fica desvirtuada. Sacks (1989) entre outros descreve que na ilha Martha's
Vineyard de Massachusetts, todos, surdos e ouvintes, usavam até pouco
tempo atrás, a língua de sinais, mesmo quando, a proporção de surdos
era, infinitamente, menor.
Todos esses exemplos deveriam servir para demonstrar, que mesmo
querendo estabelecer critérios quantitativos, para uma política educativa,
estes se tornam necessariamente qualitativos e respondem a uma hierar-
quia e a uma assimetria de poder: maso do poder de uma maioria, mas
sim, de uma minoria.
1
A oposição oralidade/ gestualidade
Os surdos criaram, desenvolveram e transmitiram, de geração em ge-
ração, uma língua, a língua das sinais, cuja modalidade de recepção e
produção é viso-gestual. Muitos supõem que essa criação linguística
deriva do fato de que a deficiência auditiva impede aos surdos um acesso
à oralidade. Assim as línguas de sinais, parecem um prémio de consolo
para os surdos, e não, um processo e um produto construído, histórica e
socialmente, por lais comunidades.
'Note-se que nas escolas de surdos, existem, justamente, mais surdos que ouvintes. E
o fato de que as decisões linguísticas e pedagógicas respondam somente ao poder e ao
saber dos ouvintes,o se reduz simplesmente a uma questão de oposição maioria/
minoria: é o uso da língua de sinais o que sublinha um conjunto de relações de poder
assimétricas e põe, em evidência, aquilo que a minoria/maioria ouvinte das escolas
quer exilar, quer dizer. a surdez.
Os trabalhos da linguística pós-estruturalista avaliaram o estatuto
linguístico da língua de sinais, como língua natural e como sistemas dife-
renciados das línguas orais: o uso do espaço, com valor sintático e topo-
gráfico, e a simultaneidade dos aspectos gramaticaiso algumas das
restrições impostas pelo tipo de modalidade viso-espacial e determinam
sua diferença estrutural em relação às línguas auditivo-orais.
A linguagem, então, deveria ser definida independentemente, da mo-
dalidade em que se expressa ou pelo meio através do qual, é percebida:
possui uma estrutura subjacente, independente da modalidade de expres-
são, seja esta auditivo-oral ou viso-geslual. Desse modo, a língua oral e a
língua de sinaiso constituem uma oposição, e sim, a presença de dois
canais diferentes c, igualmente eficientes, para a transmissão e a recepção
da capacidade da linguagem.
Mesmo quando numerosas investigações demonstram que as lín-
guas de sinais cumprem com todas as funções descritas para as línguas
naturais - como por exemplo, as conversações cotidianas, a ironia, a poe-
sia, etc. avança-se na sua desvalorização, julgando-a como uma mescla
de pantomima e de sinais icônicos universais ou considerando-a, um
pidgin primitivo.
Sem dúvida,o se deve pensar que a oposição mencionada, é so-
mente, uma questão de mitos c crenças que pertencem, somente, ao cam-
po da linguística, pois ao mesmo tempo, vive, dolorosa e problematica-
mente, dentro das escolas, trata-se, por um lado, de que essa modalidade
de comunicação - a viso/gestual - e essa língua dos surdos - a língua dos
sinaiso é a língua dos professores ouvintes. E, trata-se também, do
contrário: essa modalidade de comunicação - a auditiva/oral - c essa lín-
gua dos professores - a língua oralo é a língua dos alunos surdos. O
fato de que. alunos e professoreso compartilham, nem as modalidades
nem as línguas é uma das ambiguidades mais notórias na educação dos
surdos. E a ambiguidade gera na maioria das vezes, um inquestionável
poder linguístico dos professores ouvintes c um processo de
des-linguagem e de des-educação, nos alunos surdos.
As políticas de educação bilíngue e bicultural para surdos - ou deve-
riam ser chamadas políticas de educação multilingue e multicultural? -
teriam que arrojar uma luz sobre esses fatos e,o simplesmente definir o
uso das duas línguas dentro da educação dos surdos. Essa aceitação das
línguaso supõe necessariamente uma reconversão do problema. É que
ainda existindo as duas línguas, cada uma poderia continuar
correspondendo a dois grupos de pessoas diferentes e a duas ou mais
imagens do mundo. Assim, o sistema educacional, para os surdos perma-
necerá comunicativa e linguisticamente, sempre em paralelo.
cognitiva dos professores e a modalidade cognitiva dos alunos.
A potencialidade de inclusão em uma vida comunitária e em um
processo de compreensão e produção de fatos culturais diferencia-
dos.o parece possível compreender o conceito de cultura surda, se
o for através de uma leitura de multiculturalismo, quer dizer, a partir
de uma compreensão de cada cultura na sua própria lógica, na sua
própria historicidade. Por ele, a cultura surdao c uma imagem velada
de uma hipotética cultura ouvinte.o é o seu contrário.o é uma
cultura patológica. Para muitos ouvintes que trabalham com surdo, a
existência de uma cultura surda constitui tanto um problema de crenças
pessoais, como de oportunidades de experiências. De crenças porque,
justamente,o existe nada fora do seu normal, sua própria e
auto-referencial cultura; nesse plano, a cultura surda seria somente um
desvio, uma anomalia. E é um problema de experiência porque ao traba-
lhar com crianças surdas - em uma perspectiva clínica, se desconhece
os processos e os produtos que geram, por exemplo, a nível de teatro,
poesia, artes visuais, ciência didática, etc, determinados segmentos da
comunidade adulta dos surdos.
A potencialidade de participação no debate linguístico, escolar, de
cidadania, etc, através de um processo singular de reconstrução his-
tórica de uma nova visão sobre a própria educação.o muitos os
depoimentos de surdos que, ao fazer referência ao seu passado
educativo, invocam a imagem de ser estrangeiros, forasteiros, exilados.
o estão fazendo referência ao fato literal de terem vindo de outras
cidades, longe de suas casas em busca de um serviço educativo. Men-
cionam o ser c o sentir-se estrangeiros, o ser e o sentir-sc forasteiros, o
ser e o sentir-se exilados mesmo dentro das próprias escolas para sur-
dos, dentro das escolas com ouvintes c cm seus próprios lares. Esses
depoimentos poderiam valer como uma oposição à frágil memória
institucional das escolas de surdos - cujas lembranças chegam, geral-
mente, só até a adolescência dos alunos - e constituir-se cm uma
contra-memória e uma crítica da ideologia dominante, tal como sugere
King (1995) nos chamados Estudos Negros.
A educação bilíngue para surdos como meta-narrativa
metodológica, linguística, psicolingúística e/ou pedagógica.
A proposta genérica de bilinguismo para surdos poderia correr o
risco de constituir-se também como outra grande meta-narrativa na edu-
cação dos surdos. Estabeleceu-se uma convenção em torno dela, tanto
no que diz respeito a terminologia, como em relação a algumas das práti-
cas institucionais, denominadas bilíngues. Como toda convenção a edu-
cação bilíngue apresenta duas características relevantes: possui, ao mes-
mo tempo, um alto grau de ambiguidade e um caráter relativo de verdade.
Ambiguidade, porque sua própria definição é objeto de várias interpreta-
ções, inclusive diferentes entre si e a reflexão, mesmo dentro do mesmo
campo terminológico se revela antagônica. E apresenta um caráter de
verdade, porque inclusive em sua mínima expressão - duas línguas na
educação dos surdos - já supõe e constitui uma supuração em relação a
ideologia dominante c um avanço objetivo na concepção educativa para
os surdos.
Definindo a educação bilíngue para surdos, como uma grande narra-
tiva é possível delimitar quatro vertentes diferenteso sempre integra-
das ou relacionadas em suas interfaces respectivas, c habitualmente defi-
nidas, de uma forma estática: existem, neste sentido, narrativas bilíngues
queo ênfase ao metodológico e/ou linguístico e/ou ao psicolingúístico
e/ou em menor medida, à narrativa pedagógica. Cada uma delas, separa-
damente, poderia referir-se a um tipo diferente de educação bilíngue para
surdos.
No primeiro caso, a educação bilíngue está sendo narrada e atuada
como um sistema escolar que, simplesmente, vem substituir o seu
antecessor - a comunicação total - e opor-se ao oralismo. As ideias peda-
gógicas do século XX em relação aos surdos, atravessaram várias fases
diferenciadas queo podem ser compreendidas, somente, em termos de
uma lineariedade em que as ideias antigaso naturalmente substituídas
pelas novidades
4
.
O surgimento
5
da comunicação total, nos fins da década de 60 e co-
meço da década de 70 - cujos mentores recalcam, inclusive hoje, de que se
trata de uma filosofia co de um método" - estabeleceu uma nova ordem
nas escolas, deteriorando as férreas barreiras do logocentrismo na educa-
ção dos surdos e privilegiando a comunicação, qualquer forma de comu-
nicação, acima de qualquer outro objetivo.
4
Lembra-se que já nos fins do séc. XVIII existiam na Fiança propostas bilíngues para
a educação de surdos baseadas no acesso dos surdos à língua de sinais e à língua escrita
(veja sobre isso Lane, 1984).
s
Refiro-me ao surgimento da comunicação total, como narrativa atual, na educação
de surdos. Experiências similares já haviam sido desenvolvidas no Instituto Nacional
de Paris, pelo abade L'Epée, nos finais do séc. XVIII, que criou signos melódicos, na
língua de sinais francesa, para ensinar a estrutura gramatical da francês escrito.
''A oposição filosofia-método, e que sustenta a comunicação total é discutível e
precisaria de um amplo espaço de debate, inapropriado para este trabalho. Nas margens
das intenções da comunicação total por distanciar-se dos métodos, é sua própria
prática, ou sua prática parcial, ou sua prática mal entendida, o que indicaria o contrá-
rio. Toda vez que numa transmissão de informação, ou em uma simples conversação.
predomine e seja sistemático o objetivo de fazer visualizar a estrutura do idioma
falado - maso a informação nem a conversação em si mesma - eo se use e se
modifique a língua dos surdos, estamos frente a um sistema de recursos organizados,
física e temporalmente. Essas características respondem por completo à descrição de
um método eo de uma filosofia. Por outro lado, o uso do termo filosofia na
educação dos surdos deveria responder Questões de outra transcendência, como por
exemplo, a imagem do Homem Cultural eo exclusivamente a do Homem Comuni-
cativo presente no projeto escolar.
situações. A aplicação do termo bilinguismo na área da educação dos
surdos, deveria aludir a sua aceitação pedagógica, quer dizer, à ideia de
educação bilíngue ao direito dos sujeitos que possuem uma língua
minoritária a ser educados nesta língua. Uma declaração da UNESCO
(1954) afirma que: "É um axioma afirmar que a língua materna - língua
natural - constitui a forma ideal para ensinar a uma criança. Obrigar a um
grupo a utilizar uma língua diferente da sua, mais que assegurar a unidade
nacional, contribui para que esse grupo vítima de uma proibição, se se-
gregue cada vez mais da vida nacional."
Definida desse modo, a educação bilíngue para surdos c um ponto de
partida - e talvez, também, um ponto de chegada - que requer uma ideolo-
gia e uma arquítetura educativas a seu serviço. Em outras palavras: a
educação bilíngue é um reflexo coerente - talvez, o primeiro na história da
educação dos surdos - de uma situação e uma condição sociolinguística
dos próprios surdos.
Sem dúvida, uma parte significativa dos surdoso parece apoiar
essa proposta no seu sentido mais escolar, ou na ideia de um percentual
e/ou um equilíbrio obsessivo, entre a língua oral e a língua de sinais - por
exemplo, língua oral de manhã e língua de sinais à tarde ou vice-versa - e
muito menos, se entende e see em prática como um imperativo determi-
nado de fora pelos ouvintes - sobretudo no que se refere a qual tem que
ser a modalidade da segunda língua, como ensiná-la e em que movimento
isso deve ocorrer.
As comunidades de surdos
1
' que estão refletindo c debatem sobre
este tema defendem a proposta do bilinguismo em primeiro lugar, com o
objetivo de que se reconheça o direito à aquisição e ao uso da língua de
sinais e, consequentemente, para que possam participar no debate
educativo, cultural, legal, de cidadania, etc. desta época, em igualdade de
condições e oportunidades, mas sempre, respeitando e aprofundando
sua singularidade e especificidade.
É, pelo menos, curioso que muitos educadores e teóricos definam e
encerrem o problema do bilinguismo, somente, tomando algumas deci-
sões linguísticas referentes geralmente à exata proporção entre a língua
oral e a língua de sinais - ou entre a língua de sinais e a língua escrita - e
com a inclusão física dos adultos surdos na escola. Sem dúvida, depois
de alguns anos de experiência,o poucos os que querem admitir e reco-
nhecer que, em realidade, a problemática da escola para surdos, recente-
" No Xll Congresso Internacional da Federação Mundial de Surdos, a Comissão sobre
Língua de Sinais e Pedagogia concluiu suas sessões, afirmando que "A Comissão de
Pedagogia sustenta que a polémica oralismo versus língua de sinais, jáo é uma
questão contemporânea. "Nós transcendemos esta controvérsia e, para abordar o
próximo século, deixamos o Congresso de Milão de 1880 no passado. As tendências
de 1995 são: o reconhecimento e o respeito pela língua de sinais como língua da
comunidade surda, e o reconhecimento da educação bilíngue." (WFD News, 1995).
mente, começou a vislumbrar-se, a descobrir-se, na sua natureza mais
interna.
Em primeiro lugar, definir uma situação educativa como bilíngueo
habilita, de forma simultânea, a definir a natureza interna dessa experiên-
cia, mesmo que seja ao contrário. Em segundo lugar e como consequência
do ponto anterior, surge a sensação de que o termo bilinguismo diz tudo,
mas na verdadeo diz nada sobre a educação de surdos. Ele diz tudo,
porque propõe, e tende à construção de um ponto de partida irrenunciável:
afirma a existência de duas línguas na vida dos surdos; mas,o diz nada,
porque, por trás dessas línguas, existem culturas, instrumentos cognitivos,
modalidades de organização comunitárias, formas de ver o mundo, e con-
teúdos culturais que, geralmente,o omitidos ouoo reconhecidos,
como tais, pelos ouvintes.
Portanto, a educação bilíngue deveria propor a questão das identida-
des dos surdos como um eixo fundamental para a construção de um mo-
delo pedagógico significativo, criar as condições linguísticas e educativas
apropriadas para o desenvolvimento bilíngue e multicultural dos surdos;
gerar uma mudança de status e de valores no conhecimento e uso das
línguas implicadas na educação; promover o uso da primeira língua - a
língua de sinais - em todos os níveis escolares; definir e dar significado ao
papel da(s) scgunda(s) língua(s) na educação dos surdos; difundir a língua
de sinais, a comunidade e a cultura dos surdos além das fronteiras da
escola; estabelecer os conteúdos c os temas culturais que especifiquem e
garantam o acesso à informação, por parte dos surdos; gerar um processo
de participação plena, dos surdos como cidadãos; desenvolver ações
para o acesso e a compreensão dos surdos à profissionalização ao trabalho
e ao mundo - eo ao mercado - de trabalho.
Por todas as razões expostas, a educação dos surdos na atualidade,
jáo pode ser descrita somente através de grandes metas-narrativas,
nem como um produto de antagonismos fragmentários e oposições biná-
rias. Os temas que estão surgindo, hoje, transcendem ambos estilos e
ideologias dessa descrição e seguem múltiplas trajetórias de análise. Como
um exemplo disso no último Congresso da Federação Mundial de Surdos
(1995. ob. cit.) surgem com particular clareza questões como: a situação
das mulheres surdas, dos surdos desempregados, dos surdos negros,
dos imigrantes surdos, o efeito das duplas discriminações - surdo/negro;
surda/mulher, etc - da violência e o abuso em relação às crianças surdas,
etc. Essas temáticas transcendem totalmente o paradigma atual na educa-
ção especial e precisam ser discutidas, dentro de um contexto, mais amplo
em educação. Um contexto que inclua, entre outras questões, tais como o
multiculturalismo. o processo de construção das múltiplas identidades,
os mecanismos de poder e de saber dos ouvintes e surdos, a reconstru-
ção que os surdos desenvolvem sobre sua própria educação e as políti-
cas, em relação às diferenças.
A Escrita nas Diferenças
Regina Maria de Souza
1
Rosicler C.C. Velasquez
Renata Siqueira
O presente trabalho tem como objetivo discutir e analisar aspectos
do processo de aquisição da escrita por adultos surdos matriculados,
atualmente, no Programa de Alfabetização de Adultos do Centro de Estu-
dos e Pesquisas em Reabilitação (CEPRE) da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Este programa teve origem em 1992 e é mantido
em parceria com a Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de
Campinas.
Desde o começo de nosso trabalho no programa sabíamos que, ao
menos de acordo com a literatura, poderíamos ter uma série de problemas
pela frente. Nossos alunos eram sujeitos queo haviam tido a oportuni-
dade de construir certos conhecimentos cruciais, como aqueles
linguísticos, no período considerado otimal do ponto de vista neurológi-
co (cf. Rodrigues, 1993). De fato, a maioria deles quando chegava atés
apenas se valia de sinais caseiros. Além disso, todos pertenciam a famílias
muito pobre cujos membroso possuíam escolaridade e, quando muito,
apresentavam conhecimentos rudimentares sobre a escrita. Em suas ca-
sas, os atos de ler e de escrever eram raros e sempre ligados ao atendi-
mento de funções restritas (lista de compras e pequenos avisos). Dito de
outro modo, a pobreza parecia ser o problema mais grave que enfrenta-
vam. Muito mais grave que a surdez ou o analfabetismo.
Deste modo, o processo de construção do objeto escrito requeria ser
significado pelo professor, e entendido pelo aluno, como constituindo
uma importante via para reflexão e transformação de sua própria realida-
de. Nesse sentido, nossos atos de ensino eram também atos políticos.
Nosso grupo contava, e ainda conta, com quatro professores, dois
surdos e dois ouvintes. Para funcionar como uma equipe, fez-se necessá-
rio a elaboração de um programa de capacitação dos profissionais envol-
vidos (planejamento de seminários e discussões teóricas coletivas bem
como o preparo didático dos profissionais surdos envolvidos. Um pouco
1
Regina é doutora em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem (UNICAMP).
É docente e pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação da
UNICAMP. Rosicler e Renatao pedagogas especializadas em surdez, ambas contra-
tadas pela Prefeitura Municipal de Campinas.
deste trabalho inicial pode ser lido em Souza e Góes, 1996).
Ao mesmo tempo em que se organizava, o programa também ia se
constituindo dialeticamente com e na própria relação com os alunos.
Como contávamos com os professores surdos, um de nossos primeiros
passos foi propiciar a aquisição da língua de sinais por eles. A escrita lhes
foi apresentada, igualmente, desde o início: estava presente nas revistas,
nos jornais e nos livros que compunham a biblioteca de classe. Procurá-
vamos adquirir os periódicos que mais chamavam a atenção dos alunos
quando se punham a observar e a folhear matérias comercializados em
bancas de jornais.
Em classe, nos interjogos linguísticos tecidos em língua de sinais, os
professores conferiam significados aos textos escritos. Dito de outro
modo, interpretavam a escrita com e para os alunos.
Do ponto de vista teórico, optamos por tecer nossas relações de
ensino e fundamentar nossas análises inspirando-nos no enfoque
sociointeracionista sobre Iingua(gem). A seguir, e antes de passarmos à
análise das produções dos alunos, discutiremos brevemente a base teóri-
ca que organizou, e vem alimentando, nossa praxis pedagógica.
Concepção de língua assumida
Alguns autoresm ocupado papel de destaque na discussão de
nossos estudos, entre eles, Bakhtin, Franchi e Geraldi, sendo suas refle-
xões sobre lingua(gem), em muitos pontos, conciliatórias e complementa-
res.
De acordo com Franchi (1977) e Geraldi (1993), a língua compõe uma
sistematização abertao podendo ser concebida como um código de
regras sintáticas, semânticas e pragmáticas sempre estáveis e imutáveis.
Partindo desta premissa, e se enveredando pelas reflexões iniciadas por
Bakhtin (1992 a, 1992b), Geraldi (1993) enfatiza o movimento dialético de
(re)construção permanente do objeto linguístico a partir do trabalho trans-
formador de sujeitos, historicamente inscritos, com e sobre ela. Sujeitos
que constroem sentidos sempre novos a partir dos recursos expressivos
oferecidos pela língua. Recursos que se renovam em significação, que
ganham sentidos irrepetíveis em cada novo momento enunciativo ou que
se multiplicam pelo trabalho dos próprios sujeitos. Trabalho este que, ao
longo da história, cria tanto constrições (regras) que regulam as possibi-
lidades de novas criações expressivas como determinam modos, pelos
discursos produzidos, de se dizer e ler o mundo.
Bakhtin (1992 a,b) centra a génese da língua na dialogia, quer dizer, no
trabalho que os sujeitos realizam com a língua em interações verbais (não
necessariamente orais) concretas. Para ele, os elementos principais de
qualquer interação são: presença de um locutor, de um interlocutor (real,
suposto ou virtual), uma situação social dada, um contexto historicamen-
te determinado, o objeto de discurso e o desejo pela palavra. Como esses
elementos variam sempre, na totalidade ou em parte, cada ato enunciativo
é um ato único de transformação das formas da linguagem; e o processo
de significação inscreve-se na interindividualidade.
O sujeito bakhtiniano é ativo e responsivo e todo enunciado é conce-
bido como uma resposta ou réplica ao enunciado alheio. Esse assunto é
abordado mais especificamente por ele em Estética da Criação Verbal
(1992b).
"De fato, o ouvinte [leia-se sujeito] que recebe e compreende a
significação (linguística) de um discurso adota simultaneamen-
te, para com este discurso, uma atitude responsiva ativa: ele
concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adap-
ta, apronta-se para executar, etc, e esta atitude [...] está em ela-
boração constante [...] desde o início do discurso, às vezes, já nas
primeiras palavras emitidas pelo locutor. " ( pg 290).
Por seu turno, a compreensão do enunciado alheio, pelo interlocutor,
o é senão o momento inicial de sua resposta:
"O locutor postula esta compreensão responsiva ativa: o que ele
espera, não é uma compreensão passiva, que por assim dizer,
apenas duplicaria seu pensamento no espírito do outro, o que
espera é uma resposta, uma concordância, uma adesão, uma
objeção, uma execução, etc. (...) O desejo de tornar seu discurso
inteligível é apenas um elemento abstrato da intenção discursiva
em seu todo. O próprio locutor como tal é, em certo grau, um
respondente pois não é o primeiro locutor, que rompe pela pri-
meira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não
a existência da língua que utiliza, mas também a existência de
enunciados anteriores - emanentes dele mesmo ou do outro - aos
quais seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de
relação (fundamenta-se neles, polemiza com eles), pura e sim-
plesmente ele já os supõe conhecidos do ouvinte. Cada enuncia-
do é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados"
(pg291).
Por esse caráter dinâmico é que é impossível tomar a significação
como um elemento à parte do signo, independente da situação particular
e do trabalho de cada personagem que tece o discurso. Imerso no fluxo
comunicativo, locutor e interlocutor não tratam a língua como sistema
imutável. Para eles,o se trata de agir de acordo com uma norma externa
e coercitiva mas em produzir e compreender as novas significações que
uma mesma forma adquire em distintos contextos.
Todas estas ideias podem ser transferidas também para a compreen-
o da lingua(gem) escrita. Na perspectiva assumida por nós, à alfabetiza-
ção subjaz um processo extremamente complexoo passível de ser
reduzido a atos de codificação e decodificação. Ao contrário, concebe-
mos a leitura e a escrita como atos dialógicos por excelência; atos que
pressupõem a interação à distância de dois sujeitos no mínimo: a do
autor com o leitor, seja real ou virtual, e vice-versa.
A leitura, por exemplo, aproxima dialogicamente sujeitos que, muitas
vezes, jamais se encontrarão face a face. Isto implica que, em seu trabalho
de criação, o autor deve construir e deixar pistas que tornem possível a
compreensão de seu enunciado pelo leitor. E estas pistaso
linguisticamente recuperadas, possíveis graças à historicidade da própria
língua que cristalizou recursos e regras linguísticas.o interpretáveis
porque o leitor mobiliza os sistemas de referência sobre o mundo que já
possui. Sistemas estes que, no entanto, estão em contínuo movimento de
transformação, dado que o sujeito participa continuamente de diferentes
jogos de linguagem nas mais diferentes esferas da vida social (na escola,
em casa, no trabalho etc). Porqueo móveis, ao menos do ponto de vista
dos diferentes momentos da história do sujeito, estes sistemas, que
orientam determinadas interpretações sobre os fatos do inundo, nem
sempreo compatíveis com aqueles postulados pelo autor que elegeu
para ler. Dito de outro modo, autor e leitor podem divergir em pontos de
vista. É por isso que dissemos que o autor, ao construir seu trabalho,
provoca no leitor sempre uma resposta: seja de adesão ou de réplica.
Embora o autor possa ter antevisto prováveis contra-argumcnta-
ções por um certo grupo de leitores e tecido seu texto no sentido de evitá-
las, certamenteo pode ter previsto e considerado todas as possibilida-
des de réplica. Ao sujeito leitor caberá tecer endosso ou produzir contra-
palavra. Leituras queo provoquem estas respostaso tarefas sem
função tanto para o aluno como para o professor.
Acreditamos que, na escola, caiba ao professor resgatar a historicidade
do autor, enquanto princípio organizador de discursos de uma determina-
da época, classe ou grupo social. Seria seu papel fazer emergir as diferen-
tes interpretações dos alunos sobre o tema abordado promovendo, as-
sim, exercícios de reflexão crítica sobre o material lido. Da mesma forma,
caberia ao mestre resgatar, cm parceria com os alunos, as operações lin-
guísticas realizadas pelo autor em seu trabalho de tecedura textual. Neste
percurso, reflexões metalingúísticas poderiam ser provocadas pelo pro-
fessor em situações efetivas de exercício sobre e com a língua.
Com o intuito de ilustrar o que dissemos até aqui, considere, como
exemplo, um possível caminho de leitura do título da seguinte palestra
hipotética:
"A função reabilitadora da língua de sinais no ensino do deficiente
auditivo"
O leitor deve se valer das pistas formais, deixadas no texto pelo autor,
para poder identificar o lugar ideológico no qual o palestrante está inscri-
to. Entendamos como o raciocínio de um leitor imaginário poderia se com-
por.
Em primeiro lugar, ele poderia se ater ao termo "função". Poderia
supor, a partir de seus conhecimentos acadêmicos, que a escolha do item
"função" pelo autor confere aos sinais um papel instrumental em relação
ao pensamento, o papel de um mero coadjuvante. Em segundo lugar, a
palavra "reabilitação" inscreve a educação no interior do paradigma clíni-
co. Em terceiro lugar, a expressão "deficiente auditivo" é fortemente
marcada em termos ideológicos: explicita a imagem da pessoa surda como
sensorialmente inferior aos ouvintes, clinicamente deficiente. Todavia,
com uma deficiência que pode ser "corrigida" por reabilitação.
Seguindo um percurso de hipóteses similar, qualquer um des che-
garia à conclusão que o palestrante é um oralista. O uso por ele da expres-
o "língua de sinais" pode ter vários motivos: ou denota desconheci-
mento epistemológico profundo (não sabe do que está falando), ou é um
recurso para apanhar de surpresa os incautos e indecisos ou, ainda, é a
marca da apropriação, por um oralista, de palavras de extrema relevância,
do ponto de vista ideológico, para o bilinguismo (tentativa de se imiscuir
no paradigma).
Um bom leitor realiza rotineiramente exercícios linguísticos como es-
tes. Tornam-se, muitas vezes,o rápidos que o sujeito acaba poro se
dar conta. De qualquer modo, o que deve ser enfatizado é que a leitura vai
além da decodificação, ou reconhecimento, dos significados isolados de
palavras.
Em relação a díade fala/escrita, cabe lembrar que, há mais de 60 anos
atrás, os experimentos de Vygotsky (1984) colocaram sob forte suspeição
a crença, ainda comum, de que a escrita seja apenas uma recaptulaçâo da
oralidade. Para ele, a escrita deveria ser considerada como uma atividade
linguística distinta da fala tanto em estrutura como em função. Vejamos
porque.
Em primeiro lugar, como já assinalado anteriormente, a escrita consti-
tui um discurso sem interlocutor presente, isto é, dirige-se a alguém au-
sente, a um ser imaginário ou atende às necessidades do próprio escritor
(o redigir lembretes a si mesmo ou o prazer pessoal de escrever, por exem-
plo). Ou seja, difere da relação direta, em geral face a face, entre locutor e
interlocutor, que caracteriza o discurso oral.
Em segundo lugar, os motivos para escrevero mais abstratos no
sentido de que se distanciam das necessidades imediatas do aqui e agora.
Por conseguinte, as situações precisam ser recriadas e, principalmente, o
alo de escrita exigeanálise deliberada sobre a estrutura da linguagem em
seus aspectos formais.
Em terceiro lugar, ao contrário do que se poderia pensar, a escritao
é a mera tradução do discurso interior, cuja sintaxe se diferencia tanto da
fala como da escrita por ser predicativa e condensada. Ao contrário, du-
rante a escrita o autor deve explicitar o que quer expressar para que possa
ser compreensível a outrem. Estas características da escrita explicariam,
ao menos em parte, as discrepâncias que podem ser encontradas entre ela
e a fala cotidiana (Vygotsky, 1984).
Para o psicólogo russo a escrita é uma atividade cultural complexa e,
portanto, deve adquirir, na escola, relevância social para o aluno. Caso
contrário se reduziria a um mero automatismo motor. Em outros termos, o
processo escolar de letramento, sob sua perspectiva, seria inócuo se
alicerçado em associações mecânicas entre fonemas e grafemas.
No caso da pessoa surda sinalizadora a questão que se coloca atual-
mente é como possibilitar ao aluno condições para atos de escrita exitosos.
Com base nos pressupostos teóricos anteriormente explicitados, iremos
discutir alguns aspectos da produção escrita de estudantes surdos em
língua portuguesa.o pretendemos esgotar a discussão mas iniciar uma
reflexão sobre certos elementos que parecem compor o processo de aqui-
sição da escrita. Com este objetivo, selecionamos amostras da escrita de
dois estudantes surdos: Armando e Paulo. Amboso haviam sido
oralizados na infância; eram pobres, do ponto de vista econômico, surdos
profundos e congénitos. Possuíam, respectivamente, 24 e 17 anos. Ar-
mandoo havia tido escolaridade prévia e Paulo frequentara, durante 4
meses, uma classe de alfabetização de adultos. Acabou retirando-se da
escola porqueo acompanhava a turma:o entendia as pessoas eo
era entendido por elas.
Constituindo-se autor: a escrita e o processo que evidencia
Fragmento do percurso de Armando
2
A escrita produzida por Armando teve um contexto: foi provocada
por Patrícia, professora surda, após o contar de um chiste. A piada,
:
A análise feita da produção de Armando foi realizada em conjunto com a lingiiísta
Dra. Maria Cristina da Cunha Pereira, tendo sido parte de um estudo apresentado no
5 th International Congress Of The International Society Of Apllied Psycholin-
guistics, na cidade do Porto em Portugal (25 a 27/06/97).
relatada em sinais mais ou menos como a seguir, se referia a uma pessoa
de um outro país, nomeado aqui como sendo "x", que teria vindo traba-
lhar no Brasil. Esta pessoa, do sexo masculino, admirou-se com as novi-
dades e com a beleza das mulheres. Um dia, passeando pela praia, parou
em frente a um lugar onde se vendia sorvetes. Entrou e perguntou o que
era, apontando as caixas. A moça respondeu que era um doce gostoso
que se chamava "sorvete". A pessoa experimentou um picolé e ficou
maravilhada com o sabor. Pediu à moça que embrulhasse um,s o sorve-
te no bolso explicando a vendedora que iria levar para a esposa (que
havia ficado em seu país). Quando chegou em "x",s ao no bolso e
só encontrou o palito. Exclamou: "Droga! Alguém me roubou!"
Patrícia era fluente em língua de sinais e possuía conhecimento
razoável da gramática do português. Enquanto contava a piada, Patrícia
escreveu na lousa a palavra sorveteria.
Quando Patrícia acabou de contar a piada, todos os alunos riram, o
que contraria a afirmação de que surdoso incapazes de entender piada.
Um dos alunos, Armando, perguntou a Patrícia o que era "sorveteria",
apontando a palavra escrita na lousa. Patrícia foi à lousa, dividiu-a com
um risco vertical de modo que em uma das áreas ficasse apenas a palavra
"sorveteria". No outro campo da lousa escreveu: sapataria, padaria e
pastelaria. Explicou em sinais cada uma delas. Apontou a palavra escrita
"sapataria", traduzindo-a como SAPATO-CASA e explicando L-O-J-A
COMPRAR SAPATO. Em seguida, apontou a palavra "padaria" sinali-
zando: PÃO-CASA, L-O-J-A COMPRAR PÃO. Faz o mesmo com "paste-
laria".
Feito isto, Patrícia passou o dedo logo abaixo da palavra "sorveteria"
e perguntou a Armando: O QUE ? Armandoo respondeu de pronto.
Patrícia, então, encobriu com ao o sufixo "ria" e sinalizou SORVETE.
Passou o dedo cm seguida nesse mesmo sufixo em "sapataria" repetindo
a mesma explicação que havia dado anteriormente (L-O-J-A COMPRAR
SAPATO). Armando, antecipando-se, a interrompe, caminhou até a lousa
e, sublinhando com o dedo a palavra escrita "sorveteria", sinaliza: L-O-J-A
COMPRAR SORVETE.
Nesse interjogo dialógico com o aluno, Patrícia abriu a Armando a
possibilidade de construir hipóteses sobre um determinado aspecto da
língua, a saber, o da derivação por sufixação. E ela quem lhe chamou a
atenção para o sufixo e lhe atribui significado, usando a datilologia (L-O-
J-A), a língua de sinais (CASA COMPRAR), ocultando ora o sufixo ora o
nome, atribuindo ao sufixo digitado R-I-A o significado de L-O-J-A
COMPRAR. Realiza estes movimentos valendo-se dos sinais para inter-
pretar signos escritos os quais, para Armando,o se associam de modo
algum à oralidade.o objetos materiais que só se tornam signos pelos
atos interpretadores do adulto, neste caso, um surdo.
A escrita enquanto sistema, também aberto, c arbitrária e pode ser
significada sem qualquer vinculação com a oralidade. Portanto, atraves-
sando um percurso lingúístico-cognitivo diferente daquele percorrido por
ouvintes, i.é, pode se vincular simbolicamente aos sinais eo ser, como
poderia se supor, ao menos em um primeiro momento, estranhos a eles.
Interessante notar que Patrícia deixa para Armando a tarefa de dedu-
zir a regra e aplicá-la à palavra "sorveteria", ou seja, a imagem que tem do
aluno é de alguém capaz de entender os mecanismos da língua mas sem
excluir, todavia, sua participação como co-autora das construções dele.
O passo seguinte que deu foi solicitar a cada um dos alunos que
escrevessem como quisessem a piada. A de Armando foi a que segue:
"A piada da sorvete
foi trabalhei o comprar vender tem x lajas comprar levor, sor-
vete, Brasil mulheres vi bonita comprar sorvete levos derrete".
Embora a amostra seja passível de uma extensa análise linguística,
nosso objetivo é apontar aqui alguns indícios da importância da língua de
sinais no processo de letramento de Armando.
Primeiramente, a ordem dos vocábulos nas frases parece seguir a
sequência usada por Patrícia ao contar a piada. A expressão "lajas com-
prar" é uma colagem, ainda que imprecisa, do enunciado sinalizado L-O-
J-A COMPRAR de Patrícia, marca inequívoca da presença da "voz" alheia.
Um segundo ponto a ser comentado é que há indícios de que Arman-
do esteja construindo a noção de temporalidade no português, o que
pode ser constatado pelos diferentes usos que faz da flexão verbal ( veja
nos usos que faz em: foi, trabalhei, vi ao se referir ao passado, e tem e
derrete em flexões que remetem ao presente). A língua de sinais atraves-
sa esta construção (cf. falta de flexão em comprar e vender), evidencian-
do a mútua afetação entre as línguas. A primazia do passado evidencia,
provavelmente, a construção de uma outra hipótese sobre o funciona-
mento da língua: a de que o passado é a forma verbal típica da narração.
Finalmente, mas sem termos a intenção de estarmos esgotando nos-
sa análise, há indicativos de que o papel de escritor está também subme-
tido a movimentos de construção: ora ele se diferencia do sujeito do
enunciado (foi), ora se confunde com ele, assumindo nestes casos, e ao
mesmo tempo, o papel de sujeito da enunciação e do enunciado (traba-
lhei, vi).
Paulo e momentos de seu processo de aquisição do objeto escrito
As três produções apresentadas a seguir foram obtidas de distintas
situações de avaliação. A primeira, por ora foco de nossa atenção, trata-
se de um material produzido por ele no início de 1995 por ocasião de seu
ingresso no programa. O objetivo era obtermos dados sobre as hipóteses
que Paulo já havia construído sobre a escrita em sua história anterior. A
professora lhe ofereceu uma folha de sulfite onde havia a foto, retirada de
jornal, de um garoto andando de bicicleta em um parque. Logo abaixo da
gravura havia linhas sobre as quais deveria escrever os nomes dos obje-
tos que compunham a figura. A "escrita" de Paulo foi a seguinte:
Don ro faús lodcrs scens usp pas dno rdo ruiedne so fomgu
lanpedxs ecrd ncs samxousnds
Chama a atenção alguns aspectos constitutivos de seu trabalho. Em
primeiro lugar, Pauloo esboçou uma lista de palavras; ao contrário, o
lay out de. sua produção lembra a de um texto, iniciando-o, inclusive, com
letra maiúscula. Em segundo lugar, há a presença de segmentos, compos-
tos por letras, de diferentes extensões, que produzem, no leitor, a impres-
o de ter diante de si "palavras" de "diferentes categorias gramaticais".
Cabe-nos perguntar como Paulo pode ter chegado a este ponto. Res-
gatando sua história, tivemos a informação que o aluno havia realizado
cópias durante os seus 4 meses de permanência na escola. Apesar de
inúteis, o trabalho de Pauloo parece ter sido destituído de alguma
reflexão sobre o que fazia: a professora lhe chamava, muito provavelmen-
te, a atenção para alguns aspectos mais evidentes da escrita como, por
exemplo, que a primeira letra do texto deve ser maior do que as outras.
Além disso, Paulo parece ter realizado algumas "constatações" como, por
exemplo, que cada segmento que compõe um textoo possui o mesmo
tamanho e queo há homogeneidade entre eles (escreve "palavras"
com e sem acento). Entretanto, estas suas descobertas careciam de signi-
ficação, apenas possível se existisse uma língua comum entre ele e os
demais personagens em cena na classe (na maioria ouvintes). Língua que,
pela ação do outro, interpretasse tanto o signo escrito como as particula-
ridades e o funcionamento da escrita. Todavia, suas hipóteses eram, de
algum modo, o reflexo do que havia podido compor na relação com um
professor que pouco conseguia interagir linguisticamente com ele. O con-
tato com a língua de sinais iria se iniciar a partir deste momento. Seria a
nossa meta educacional primeira, naquele ano, possibilitar-lhe situações
de intercâmbio linguístico efetivo.
o por acaso o texto realizado no ano seguinte mostra um notável
progresso. Numa folha onde havia uma foto de duas equipes de futebol
jogando, a professora lhe solicitou que escrevesse sobre a foto. Nesta
altura, Paulo já conseguia manter conversação em sinais sobre assuntos
do dia a dia. Seus sinais caseiros estavam, pouco a pouco, perdendo
terreno para a LIBRAS. Seu texto foi o seguinte:
homem Ele joga você futebol muita vê camigo pessoas rir jogo
na futebol bola.
Nesta sua produção já parece haver atos deliberados e mais conscien-
tes de escrita:o palavras que escreve, ainda que nem sempre precisas,
eo amontoados de letras. É um texto que tenta redigir eo uma lista de
palavras sem sentido. Ao mesmo tempoo é uma frase estereotipada
que produz ( do tipo: "O homem joga". Ou: "O jogador é bonito"; etc).
Ao contrário, faz tentativas de se inscrever, e ao outro, no texto ("vê
camigo" e o uso que faz de "você"). Interessante observar a presença do
pronome "ele", como elemento anafórico do item "homem" ("homem Ele
joga") ou a presença de porções textuais compreensíveis e aceitáveis
como: "pessoas rir jogo na futebol". De fato, se trocarmos o conectivo
"na" por "de", acrescentarmos "no" antes de "jogo" e flexionarmos o
verbo "rir", teremos uma frase sem qualquer problema gramatical (ficaria
assim: "pessoas riem no jogo de futebol").o por acaso Pauloo tece
sua frase deste modo. Sua produção reflete o efeito constritor da língua
de sinais sobre sua escrita, já que, em sinais,o há conectivos e nem
flexões verbais. Deste modo, sua escrita anuncia um certo momento do
processo de constituição do objeto escrito por ele: um momento no qual
sinais e escrita se constituem num mesmo território, em vias, todavia, de
distinção, uma vez que a escritao se organiza e se estrutura do mesmo
modo que os sinais (ou que a'fala, para quem ouve).
O último texto selecionado pors foi feito por Paulo este ano numa
situação de avaliação coletiva no final do primeiro semestre. A professora
havia pedido a cada aluno que redigisse um texto tendo o índio como
tema. Ora, em várias aulas anteriores um dos assuntos mais abordados
havia sido a crueldde da morte do índio Galdino por um grupo de adoles-
centes. A notícia havia sido manchete de revistas e de jornais que foram,
aliás, avidamente explorados por todos os alunos em classe. Além disso,
o assunto foi motivo de reflexões nas aulas de língua de sinais e de
estudos sociais.
Explicitadas as condições prévias de produção, vejamos como Paulo
organizou seu texto.
índio
notícia morreu Pessoas muita foi madolesndo queimado mor-
reu chorar vida assuta notícia converssaria com cinco quando
cidade Brasília homem Passeira ando carro queimado Galdino
Polícia País santos índio por que vida anos notícia Pataxó fi-
cou casa fazem chorar grupo família vida.
Embora sua produção mereça uma análise mais aprofundada, chama-
remos a atenção para alguns aspectos mais relevantes para nossa discus-
o atual. Nota-se, claramente, que este texto faz ecoar as discussões
realizadas em classe sobre o índio Galdino. Neste sentido, faz emergir
fragmentos dos enunciados dos sujeitos que dialogaram com Paulo nas
várias aulas das quais participou e nas quais o assunto foi discutido.
Enunciados que se mantêm vivos no aluno e queo retomados por ele
em seu ato de tecedura textual, evidenciando, de um lado, a natureza
social e coletiva da autoria e, de outro, a polifonia constitutiva do texto.
Do mesmo modo, é interessante observar que, ainda que haja falta de
elementos coesivos, as palavras utilizadas por ele evocam o episódio de
modo inequívoco ( morreu...queimado... cidade Brasília...Galdino... ín-
dio... Pataxó).
Estamos trabalhando com a hipótese de que as falhas de coesão, e
mesmo de coerência, parecem sugerir que Paulo apenas inicia o percurso
da construção dos conhecimentos linguísticos necessários para que possa
articular, ou orquestrar, as diferentes vozes que afloram em sua escrita. De
fato, no momento, as palavras parecem emergir de modo simultâneo e
desordenado. Entretanto, mais do que evidenciar "erro" este fato sugere
que maestro e músicos aindao se diferenciam. E em direção a esta
diferenciação e orquestração que nossas provocações, possíveis através
de interjogos dialógicos com o aluno (materializados em perguntas, em
solicitações de maior explicitude, nas demandas para uma melhor ordena-
ção do escrever etc) estarão voltadas daqui para frente. Esperamos con-
verter a análise deste processo em objeto de estudo de nossos futuros
trabalhos.
Considerações finais
O acompanhamento do percurso de nossos alunos nos tem evi-
denciado que:
1. Em relação a sujeitos queo expostos simultaneamente à escrita
e aos sinais é provável que o solo psicolingúístico de constituição dos
dois objetos seja. inicialmente, o mesmo. Observações nos tem sugerido
que a diferenciação se dá em concomitância com um maior conhecimento
linguístico do aluno, i.´´e o momento em que operações metal ingúísticas
começam a ser demandadas pelo professor e se voltar tanto aos sinais
como à escrita.
2. A escrita é um objeto que demanda interpretação do outro uma vez
que, sendo lingua(gem), tem na opacidade uma de suas características
constitutivas. Mais do que se perseguir na escola a ampliação e
memorização de vocabulário, a escrita e a leitura demandam a construção
de um espaço dialógico de inserção. Só adquire significado se elo inte-
grante da cadeia de enunciados nos quais o sujeito também se constitui.
3. A escrita pode indiciar momentos constitutivos do processo de
aquisição da linguagem de um modo geral, como nos sugere a polifonia
que jorrou incontidamente no último texto de Paulo. Melhor colocando:
os papéis de autor e de leitor estão indistintos neste momento e se con-
fundem com o próprio ato de escrita do sujeito. Indistinção esta queo
permite a Paulo, ainda, conceber o leitor como "não eu", como alguém
para o qual tenha que construir uma certa compreensão do texto. E daí
porque a sua aparente falta de coesão pode estar revelandoo só um
momento particular do processo de aquisição de linguagem, mas também,
e por conta disto, uma das facetas de constituição de sua própria subjeti-
vidade.
Bibliografia
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Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 6 ed.o Paulo:
Ed Hucilec (original russo de 1929).
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Livraria Martins Fontes Editora Ltda (original escrito entre 1959 -
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•BAKHTIN, M. (1992b) Os Gêneros do discurso. In: Bakhtin, M. - Estética
da Criação Verbal. Tradução do francês por Maria Ermantina Galvão
Gomes Pereira (revisão: Marina Appenzeller); 1 edição,o Paulo:
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•FRANCHI, C. (1977) Linguagem - atividade constitutiva. Almanaque -
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•GERALDI, J. W. (1993) Portos de Passagem. 2 ed.,o Paulo: Livraria
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•RODRIGUES, N. (1993) Organização neural da linguagem, la: Moura,
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do Surdo. Série de Neuropsicologia, vol.3.o Paulo: Tec Art.
•SOUZA, R.M.; Góes. M.C. (1996) O instrutor surdo e o seu objeto de
trabalho construções discursivas no interjogo surdo-ouvinte. Para
Além do Silêncio, n° 5-6, ps. 4-8.
•VYGOTSKY, L.S. (1984) Formação social da mente.São Paulo: Martins
Fontes
Dinamização de Leitura dentro
de uma Prática Bilíngue nas
Bibliotecas do INES
Regina Celeste
(INES)
Na prática bilíngue do
ato de ler,
a língua de sinais e a
língua portuguesa
o amantes. As
palavras incendeiam
bocas e mãos
e fazem do corpo um
coração aberto às
chamas.
Assim, experimentamos
as nossas histórias e nos
construímos no
conhecimento do outro.
De um jeito natural, nos
lemos,
e nos lendo, nos
descobrimos;
e nos descobrindo, nos
transformamos.
Na qualidade de professora especializada em Literatura Infantil e
Juvenil, inserida numa equipe de trabalho, com seis professores
dinamizadores de leitura e três monitores surdos, também dinamizadores
de leitura, abordarei o tema proposto, em meu nome e no dos meus parcei-
ros de Bibliotecas.
Agradecemos aos idealízadores e organizadores deste seminário por
nos terem convidado para dele participar.
Realizamos o nosso trabalho nas bibliotecas designadas Biblioteca
Infantil e Biblioteca Juvenil - atendendo os alunos do Jardim de Infância
ate a 8
a
série. Nesse trabalho,o contamos com a colaboração de bibliote-
cários voltados para a prática do ato de ler. Contudo, sabemos da impor-
tância deste profissional no espaço que atuamos - Biblioteca.
Somos educadores preocupados com a produção e promoção da lei-
tura e acreditamos que as bibliotecas precisam ser um desafio educacio-
nal dentro de qualquer realidade escolar.
Por que esta reflexão introdutória?! Pelo fato de defendermos a uni-
dade BIBLIOTECÁRIOS / DINAMIZADORES-PROFESSORES / PRO-
FESSORES DE SALA DE AULA / MONITORES SURDOS / ALUNOS.
Afinal, nossa filosofia está calcada no dualismo BIBLIOTECA / PRÁTI-
CA DE LEITURA.
Como diz Drummond em um dos seus versos: "Ouo se salva, e é o
mesmo. Há solução, há bálsamos para cada hora e dor..." . Comoo
aceitamos a política do "Ai meu Deus o que vamos fazer", buscamos
soluções e as bibliotecas acontecem a todo vapor e, com certeza, os
nossos alunosoo mais os mesmos. O bálsamo do nosso trabalho
insere os surdos num universo cultural repleto de significados e envolve-
os numa relação substantiva de experiências reais.
Destacamos uma passagem de Dom Casmurro, de Machado de As-
sis, que nos obriga a uma revisão do conceito de história e do reconheci-
mento do surdo como sujeito em um sistema de ensino especial:
"Uma ideia, uma ideia sem língua. Que se deixou ficar quieta e muda,
tal como daí a pouco outras ideias... É isto... Ideia! ideia sem pernas!
Ideia! Ideia sem braços!" Cada vez que aprofundamos esta leitura
machadiana e a relacionamos ao trabalho de bibliotecas, percebemos que
no silêncio do surdo existe um universo de significados por explorar.
Compreendemos que a subjetividade do texto literário deve ser íntima da
subjetividade da língua de sinais. Desta forma, tornamos mais fácil o
conhecimento do que significa o significante nas relações textuais inter-
nas. Na nossa prática bilíngue, a língua de sinais é a protagonista que dá
rosto a esse silêncio e "mãos às ideias". Ainda em Dom Casmurro, no
diálogo do personagem-narrador com o leitor, Machado de Assis nos
presenteia com uma belíssima passagem: "A alma é cheia de mistérios...
A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida,
inquieta, alguma vez tímida c amiga de empacar, as mais delas capaz de
engolir campanhas e campanhas, correndo... Neste particular, a minha
imaginação era uma grande égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro,
que saía logo cavalo de Alexandre..." Neste momento, vocêso os
nossos leitores c com certeza as leituras estão sendo diversas, pois cada
um é um. Mas se nessa diversidade, interpretamos o surdo como um ser
pensante c com todas as possibilidades de criação a partir do imagina-
rio... aí sim, podemos acordar Machado de Assis e pedir que ele cochi-
che com Homero, Aristóteles, Varrão, Virgílio, Plínio e Columela, segredos
de éguas iberas de uma nova era, fecundadas no chão das diferenças.
Na biblioteca, as produções literáriaso apresentadas em momen-
tos de profunda troca. O enlace entre os elementos contextuais e os
textuais acontece em língua de sinais e em língua portuguesa. Assim, o
aluno extravasa o EU numa explosão de sentimentos e experiências
vivenciadas. A língua de sinais passa a ser uma necessidade pedagógi-
ca,o apenas como um recurso auxiliar, mas como uma língua inscrita no
universo cultural do surdo. Por intermédio da aprendizagem bilíngue, o
aluno exercita a leitura do mundo e a estas leituras muitas outras leituras
acontecem. Ressaltamos que essas leituras precisam ser partilhadas com
as leituras do monitor surdo e com as leituras do professor dinamizador -
Só assim atingimos a unidade e garantimos a trama das semelhanças e
dessemelhanças.
A nossa prática representa uma luta Institucional e afirma a educação
especial para o surdo. Acreditamos que muitos entre vocês, participan-
tes deste seminário, também necessitam beber do mesmo vinho. Espera-
mos que as nossas lutas sejam as lutas e as conquistas futuras de cada
pessoa que aqui desejar. Mas, para isso, é preciso estarmos conscientes
do trabalho que realizamos com o aluno surdo. E isso significa ato de ler.
Acordaremos algumas leituras para reflexão: Somos capazes de ler os
fatos e as relações intimamente contidas na realidade do nosso aluno
surdo? Refletimos ou levantamos questionamentos sobre o momento da
história social e política que os nossos alunos estão vivendo? Qual a
nossa contribuição para transformar esse:; comportamentos da socieda-
de? Todas essas indagaçõeso muito bem aprofundadas por Ezequiel
Theodoro da Silva: "Consciência é um atributo estritamente humano, que
possibilita ao homem descobrir e alargar as suas representações do mun-
do". Como ensinar o surdo a ler e escrever sem antes termos a consciên-
cia do que é Leitura / Liberdade e Leitura / Transformação?
Para aprofundar e tornar mais significativa esta discussão, pedimos
ao surdo Alexandre Luiz que apresente o conto "Ninguém", de Luiz Vilela.
Pedimos ao intérprete queo faça a tradução.
"A rua estava fria. Era sábado ao anoitecer mas eu estava chegando
eo saindo. Passei no bar e comprei um maço de cigarros. Vinte cigar-
ros. Eram os vinte cigarros que iam passar a noite comigo.
A porta se fechou como uma despedida para a rua. Mas a porta
sempre se fechava assim. Ela se fechou com um som abafado e rouco.
Mas era sempre assim que ela se fechava. Um som que parecia o adeus de
um condenado. Mas a porta simplesmente se fechara e ela sempre se
fechava assim.
Acender o fogo, esquentar o arroz, fritar um ovo. A gordura estala e
espirra ferindo minhas mãos. A comida estava boa. Estava realmente
boa, embora tenha ficado quase metade no prato. Havia uma casquinha
de ovo e pensei em pedir-me desculpas por isso. Sorri com esse pensa-
mento. Acho que sorri. Devo ter sorrido. Era só uma casquinha.
Busquei no silêncio da copa algum inseto mas eles já haviam todos
adormecido para a manhã de domingo. Então eu falei em voz alta. Foi só
uma frase banal. Se houvesse alguém perto diria que eu estava ficando
doido. Eu sorriria. Maso havia ninguém. Eu podia rolar no chão, ficar
nu, arrancar os cabelos, gemer, chorar, soluçar, perder a fala,o havia
ninguém. Eu podia até morrer.
De manhã o padeiro me perguntou se estava tudo bom. Eu sorri e
disse que estava. Na rua o vizinho me perguntou se estava tudo certo. Eu
disse que sim e sorri. Também meu patrão me perguntou e eu sorrindo
disse que sim. Veio a tarde e meu primo me perguntou se estava tudo em
paz e eu sorri dizendo que estava. Depois uma conhecida me perguntou
se estava tudo azul e eu sorri e disse que sim, estava, tudo azul."
O título e as descrições ambientais deste conto sugerem sentimentos
de abandono c solidão. - Como o surdo sente a realidade e como essas
sensações acontecem em cada um de nós? - Fechar... fechar... fechar
repete-se várias vezes e simboliza a falta de comunicação e o
enclausuramento do homem. - Somos curiosos o suficiente para romper
com as portas que continuam a se fechar nas nossas relações? - As
perguntas iguais e repetitivas mostram o ritmo monótono da vida- das
pessoas. - O que fazemos para escapar da monotonia das aulas sem iden-
tidade?
Aprofundando ainda a subjetividade deste texto à expressão "CORE-
OGRAFIA DE BOCAS", do surdo Alexandre Luiz, acrescentamos CORE-
OGRAFIA DE MÃOS E DE BOCAS. Só que na educação bilíngue, essas
coreografias, num silêncio revelador, transgridem o visível e fantastica-
mente mexem com a imaginação e a realidade, onde cada um des é co-
autor de descobertas.o basta apenas coreografar, é preciso bailar nas
experiências reais.
A primeira leitura do conto, aquela feita em língua de sinais, deve ter
causado uma sensação de exílio em cada uma das pessoas queo domi-
nam essa língua ou que dominam pouco. Creiam, amigos, essa ruptura é
o real na cotidianeidade dos surdos. Quantas sensações veladas alimen-
tamos,o é mesmo?! No entanto, se concebemos a leitura do surdo
como leitura da história social feita de alma e corpo, revelamos a
essencialidade e o essencial é o ser diferente.
Associando nossas ideias às de Antonio Faundez, destacamos: "Penso
que, para que nosso contexto se enriqueça ainda mais, em nossa mente,
em nosso corpo, em nossas emoções, necessita de um contexto outro...
para nos descobrir precisamos nos mirar no Outro, compreender o Outro
para nos compreender, entrar no outro..."
A ideia de que uma mensagem é passada através de um código, leva-
nos a aprofundar ainda mais este conceito em relação ao ensino especial
voltado para alunos surdos. Um código precisa ser comum tanto para
quem emite, quanto para quem recebe e as ideias podem ser transmitidas
através de códigos não-verbais. Compreendemos que a língua de sinais
é uma língua com códigoso verbais, que deve ser comum ao emissor e
ao receptor: monitores e alunos. Nessa igualdade de comunicação, o aluno
surdo sente-se capaz, valorizado, estimulado e a língua portuguesa deixa
de ser um mito. Passam a usar o código verbal com mais intimidade, no
pilar das vivências e experiências do dia-a-dia. Assim, os códigos
inlertextualizados revelam semelhanças e diferenças sussurradas com as
crónicas, as poesias, os contos, os romances, os filmes e tantas outras
possibilidades de leituras. Começam a brincar com as palavras
polissêmicas, familiarizam-se com as figuras de sintaxe, descobrem as
formas de expressão de ideias, desenvolvem o potencial criativo, mergu-
lham nas metáforas, nas prosopopéias, nas catacreses. nas, nas e nas...
Nosso objetivo, como todo objetivo, visa o comportamento humano.
ou seja, aquilo que queremos que é próprio da ação do homem. Se o
nosso objetivo é levar o aluno surdo a ler e escrever autonomamente,o
podemos esquecer que esses alunos possuem desejos próprios e ideais
específicos. Afinal, eles também possuem exigências humanas.o
devemos perder a noção de que o processo de ler é identidade do proces-
so de viver.
Nesse sentido, as bibliotecas bilíngues provocam o encontro do lei-
tor surdo com o livro. De posse deste encontro, o domínio do texto, do
melatexto e do transtexto acontecem nos sótãos das emoções.,
Dentro do trabalho bilíngue de leitura, muitas outras temáticaso de
extrema importância e devem ser aprofundadas. Mas em duas horaso
é possível trocarmos tudo. Contudo, destacaremos alguns tópicos para
reflexão: Qual a função social da leitura? O que significa o ato complemen-
tar de leitura e escrita? O que é leitura alem do espaço de bibliotecas? O
que significa leitura e ludismo? Como selecionar bons livros? Como con-
sideramos a Literatura Infantil e Juvenil enquanto arte literária? Como se
reconhece um livro de qualidade? A Literatura Infantil e Juvenil deve ser
encarada como instrumento pedagógico? Como combater o vício do
didatismo? Como inserir a Literatura em projetos interdisciplinares sem
descaracterizar sua função básica, que será sempre despertar o prazer? O
bom dinamizador é 6 bom leitor?... dentre tantos outros questionamentos
que precisam ser acordados dentro do sistema educacional de ensino.
Para finalizar nossa fala, escolhemos uma expressão da aluna Renata
Celino, da turma 803, de um texto criado por ela. Em É A MINHA VIDA,
assim intitulado, Renata nos emocionou quando escreveu: "E verdade, as
nossas mãoso iguais e falam". Essas palavras mergulharam em nós,
particularmente em mim, levando-nos a repassar Paulo Freire: "O corpo
humano, velho ou moço, gordo ou magro,o importa de que cor, o
corpo consciente, que olha as estrelas, é o corpo que escreve, é o corpo
que fala, é o corpo que luta, é o corpo que ama, que odeia, é o corpo que
vive!"
Esperamos que as palavras da aluna Renata se ramifiquem. Emara-
nhando-se aqui, ali, lá... num menstruo de instantes detidos, e que as
nossas leituras, nossos olhares c nossas mãos sejam as nossas histórias
recontadas e libertadas.
O TRABALHO NAS BIBLIOTECAS INFANTIL
E JUVENIL DO INES
Atendemos aos alunos do Jardim da Infância ate a 8
a
série do 1° grau.
Nosso atendimento consiste num trabalho bilíngue de leitura, realizado
semanalmente em dois tempos de aula, dentro da grade curricular.
INTERESSE POR LIVROS DE LITERATURA...
As atividades da BIBLIOTECA servem para criar o interesse e o
prazer pela leitura, motivando a presença dos alunos neste espaço.
ATIVIDADES...
Jogos diversos
Dramatizações
Pantomimas
Contação de histórias
Criação de histórias em língua de sinais
Re-contação de histórias lidas e sinalizadas
COMO ACONTECE O APROFUNDAMENTO LITERÁRIO...
Aprofundamento, através de perguntas, dos textos lidos em língua
portuguesa.
A leitura é trabalhada como co-produção.
A abordagem literária é realizada em termos de compreensão das relações.
O exercício da leitura é lúdico com a preocupação de conduzir ao prazer.
O trabalho com o texto é distinto das matérias de aprendizagem curricular.
o utilizamos a Literatura como pretexto.
o realizadas produções alternativas
Criação, recriação de histórias a partir do que foi lido ou contado.
OUTRAS ATIVIDADES REALIZADAS NA BIBLIOTECA:
Empréstimo de livros
Concursos (prosa, poesia, quadrinhos, etc.)
Visitas à outras Bibliotecas
Exposições
Confecção de jornais
Montagem de peças teatrais
PROFESSORES DINAMIZADORES/ MONITORES DINAMIZADORES:
Levantam o assunto e o lema antes de dar o livro. Apresentam duas
ou três obras para que os alunos elejam a leitura comum.
Estão sempre se atualizando em relação à LITERATURA.
m a preocupação de levai' o aluno à compreensão e interpretação
do que foi lido ou contado.
Preocupam-se com o ensino / aprendizagem de leitura, aprofundando:
NIVEL DE USO
NÍVEL DE SIGNIFICADO
NÍVEL DE SIGNIFICAÇÃO
AVALIAÇÃO
A avaliação da leitura é indireta.o utilizamos provas, testes,
questionários prontos, ou quaisquer tipos de averiguações que levem a
notas ou conceitos.
Equipe das Bibliotecas:
Professores:
Ana Maria Vargas
Beatriz Alda Schmidt
Eliane Silva Souza Martins
Elizabeth Vaz Machado
Regina Celeste
Zaida Ramos de Oliveira
Monitores surdos
Alexandre Luiz
Leandro Elis Rodrigues
Nelson Pimenta
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos Plausíveis RJ: José Olímpio
Editora, 1985.
ASSIS, Machado.Dom Casmurro. SP: Editora Scipione, 1984.
FREIRE, Paulo & FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta.
RJ: Paz e Terra, 1985.
MACEDO, Maria Carolina & OLIVEIRA, Mareia L. C. de. Seleção de
Livros. Sim? Não? Por quê? Como? RJ: UFRJ, 1992.
PONDE, Glória & YUNES, Eliana. A Arte de Fazer Artes. RJ: Editorial
Nórdica LTDA, 1985.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. Leitura na Escola e na Biblioteca. SP:
Papirus, 1993.
VILELA, Luiz. Tremor de Terra. SP; Ática, 1977.
YUNES, Eliana. Por uma Política Nacionalde Leitura. Cadernos de
Educação Básica. Série Institucional.
PALESTRA
1
DO MONITOR SURDO ALEXANDRE LUIZ
É preciso que os ouvintes sintam o que nós, surdos, sentimos. Quan-
do eu apresentei o conto "ninguém", vocês sentiram o mesmo que os
surdos sentem durante as aulas. Como vamos ensinar aos nossos alunos
surdos, se eleso entendem o que vocês falam? Há uma barreira entre o
professor e o aluno.
Os professores poderiam ganhar tempo com o surdo. Com um surdo
como monitor, o professor ouvinte pode transmitir o ensino eo filtrá-lo,
como faz a maioria dos professores, provocando um ensino fraco, impos-
sibilitando o aluno surdo de fazer outras atividades fora.
Tenho certeza e posso provar que foi um alívio, um sonho realizado
para os alunos do INES, quando a Instituição resolveu colocar um surdo
monitor junto com o professor, na biblioteca. Eles falam e pedem que
outras matérias adotem a mesma prática.
A Língua de Sinaiso éo fácil. Ela é muito bem estruturada. Um
professor que sabe pouco a Língua de Sinais, já é alguma coisa, mas
precisa aperfeiçoar cada vez mais. Um simples erro, ou uma troca de
sinais, pode provocar um desentendimento entre professor x matéria x
aluno.
'Este texto corresponde á versão em português da palestra proferida em LIBRAS
pelo monitor surdo Alexandre Luiz.
Por exemplo: Uma pessoa ouvinte estava conversando em língua de
sinais com uma surda. Essa pessoa diz à surda que ela era muito doce. A
surda ficou furiosa c saiu. A pessoa ouvinte ficou sem saber o que tinha
acontecido e, mais tarde, soube que havia feito o sinal errado, em vez do
sinal "doce", fez o sinal de "piranha": "Você é muito "piranha", ao invés
de você é muito "doce".
Por isso, é importante um surdo monitor junto com o professor. Além
de ajudar nas aulas, podem corrigir os erros de estrutura da Língua de
Sinais feita pelo professor.
O surdo monitor é muito bom para os alunos surdos! Poder trocar, tirar
suas dúvidas, entender mais rápido, sentir-se mais livre para perguntar,
aprofundar perguntas e despertar curiosidades. Claro, temos a mesma
afinidade, sabemos de nossa cultura e nossos costumes, o jeito de usar a
Língua de Sinais, o sentimento de liberdade e a leveza de usá-la.
O ideal seria formar os surdos, desde pequenos, no conhecimento das
outras línguas, no caso da língua portuguesa, para que eles, futuramente,
possam trabalhar como professores c em outras atividades profissionais.
E óbvio que a Língua de Sinais é a primeira língua que deve ser ensinada
para depois poder compreender e entender outras línguas diferentes dela.
A tarefa do monitoro é apenas para ajudar e sim enriquecer o traba-
lho dos professores. Assim, eles aprenderão a conhecer mais o nosso
"mundo", com a língua de sinais e vice-versa. Assim, como monitor
surdo, na troca, enriquecerei mais o meu currículo e a minha capacidade
de mostrar aos surdos todas as possibilidades. Desta forma o trabalho
produtivo com as pessoas ouvintes e surdas torna-se mais pleno.
Para trabalhar com o monitor,o éo fácil, exige muita paciência.
Como diz o provérbio: "Uma andorinha sóo faz o verão".
Aquisição de L1 e L2: O
Contexto da Pessoa Surda
Ronice Múller de Quadros'
AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM
Ao longo da história da educação de surdos no Brasil sempre houve
uma preocupação exacerbada com o desenvolvimento da linguagem. As
propostas pedagógicas sempre foram calcadas na questão da linguagem.
Essa preocupação com a questão da linguagem,o menos importante
que quaisquer outras na área da educação, tornou-se quase que exclusi-
va, perdendo-se de vista o processo educacional integral da criança sur-
da.
Há várias razões para tal fato, dentre elas, o fato das crianças serem
surdas tornava fundamental a discussão sobre o processo de aquisição
da linguagem, tendo em vista que tal processo era traduzido por línguas
orais-audilivas. As crianças surdas dotadas das capacidades mentais
precisavam recuperar o desenvolvimento da linguagem e por essa razão,
até os dias de hoje, há pesquisas que procuram um meio de garantir o
desenvolvimento da linguagem em crianças surdas através de métodos
de oralização. "Fazer o surdo falar e ler os lábios permitirá o acesso a
linguagem", frase repetida ao longo da história c que tem garantido o
desenvolvimento de técnicas e metodologia que favoreçam esse proces-
so, há muitos anos, com alguns avanços.
Entretanto, apesar de lodo esse empenho, os resultados que advêm
de tal esforçoo drásticos. A maior parte dos adultos surdos brasileiros
demonstram o fracasso das inúmeras tentativas de se garantir linguagem
através da língua oral-auditiva do país, a língua portuguesa. Todos os
profissionais envolvidos na educação de surdos que conhecem surdos
adultos admitem o fracasso do ensino da língua portuguesa,o somente
enquanto língua usada para a expressão escrita, mas, principalmente, en-
quanto língua que permite o desenvolvimento da linguagem.
Muitos desses adultos surdos buscam inconscientemente "salvar" o
seu processo de aquisição da linguagem através da língua brasileira de
sinais - LIBRAS. A raça humana privilegia tanto a questão da linguagem,
1
Doutoranda do Departamento de Pós-Graduação em Letras da PUCRS - área de
concentração: Linguística Aplicada - com o suporte financeiro da CAPES - Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
isto é, a linguagem co essencial para o ser humano que, apesar de lodos
os empecilhos que possam surgir para o estabelecimento de relações
através dela, os seres humanos buscam formas de satisfazer tal natureza.
Os adolescentes, os adultos surdos, logo quando se tornam mais inde-
pendentes da escola e da família, buscam relações com outros surdos
através da língua de sinais. No Brasil, as associações de surdos brasilei-
ras foram sendo criadas e tornando-se espaço de "bate-papo" e lazer em
sinais para os surdos, enquanto as escolas especiais "oralizavam" ou as
escolas "integravam" crianças surdas nas escolas regulares de ensino.
Percebe-se, aqui, um movimento de resistência natural por parte dos sur-
dos a um processo social, político e linguístico que privilegiou o parâmetro
do normal.
As pesquisas sobre a aquisição da linguagem avançaram muito a
partir dos anos 60. Os estudos envolvendo a análise do processo de
aquisição de várias crianças começaram a indicar a universalidade desse
processo (Fletcher&Garman, 1986; Ingram, 1989;Slobin, 1986). O estudo
da Língua de Sinais Americana - ASL - começou exatamente neste mesmo
período através de uma descrição realizada por Willian Stokoe, publicada
em 1965 pela primeira vez (Stokoe et alli, 1976). Esse trabalho representou
uma revolução social e linguística. A partir dessa obra, várias outras
pesquisas foram publicadas apresentando perspectivas completamente
diferentes do estatuto das línguas de sinais (Bcllugi & Klima, 1972; Siple,
1978; Lillo-Martin, 1986) culminando no seu reconhecimento linguístico
nas investigações da Teoria da Gramática com Chomsky (1995:434, nota
4) ao observar que o termo "articulatório"o se restringe a modalidade
das línguas faladas, mas expressa uma forma geral da linguagem ser repre-
sentada no nível de interface articulatório-perceplual incluindo, portanto,
as línguas sinalizadas.
Quase que em paralelo a esses estudos, iniciaram-se as pesquisas
sobre o processo de aquisição da linguagem em crianças surdas filhas de
pais surdos (Meier, 1980; Loew, 1984; Lillo-Martin, 1986; Petitto, 1987).
Essas crianças apresentam o privilégio de terem acesso a uma língua de
sinais em iguais condições ao acesso que as crianças ouvintesm a uma
língua oral-auditiva
1
. No Brasil, a LIBRAS começou a ser investigada na
década de 80 (Ferreira-Brilo, 1986) e a aquisição da LIBRAS nos anos 90
(Karnopp, 1994; Quadros. I995)
2
.
' Privilégio porque representam apenas 5% das crianças surdas, ou seja, 95% das
criança surdaso filhas de pais ouvintes e que, portanto, na maioria dos casos,o
dominam uma língua de sinais.
2
Para mais detalhes sobre a aquisição da linguagem por crianças surdas através da
ASL e da LIBRAS ver Quadros (1997).
Todos esses estudos concluíram que o processo das crianças surdas
adquirindo língua de sinais ocorre em período análogo à aquisição da
linguagem em crianças adquirindo uma língua oral-auditiva. Assim sen-
do, mais uma vez, os estudos de aquisição da linguagem indicam univer-
sais linguísticos. O lato do processo ser concretizado através de línguas
visuais-espaciais, garantindo que a faculdade da linguagem se desenvol-
va em crianças surdas, exige uma mudança nas formas como esse proces-
so vem sendo tratado na educação de surdos.
A aquisição da linguagem em crianças surdas deve ser garantida
através de uma língua visual-espacial. No caso do Brasil, através da
LIBRAS. Isso independe de propostas pedagógicas (desenvolvimento
da cidadania, alfabetização, aquisição do português, aquisição de conhe-
cimentos, etc), pois é algo que deve ser pressuposto. Diante do fato das
crianças surdas virem para a escola sem adquirirem uma língua, a escola
precisa estar atenta a programas que garantam o acesso à LIBRAS. O
processo educacional ocorre mediante interação linguística e deve ocor-
rer, portanto, na LIBRAS. Se a criança chega na escola sem linguagem, é
fundamental que o trabalho seja direcionado para a retomada do proces-
so de aquisição da linguagem através de uma língua visual-espacial
3
. A
aquisição da LIBRAS por crianças surdas brasileiras é algo inquestionável.
No entanto, a educação de surdos continua apresentando inúmeros pro-
blemas mesmo quando as criançasm acesso à língua de sinais. No
Brasil, essa constatação é comparável à situação das crianças.ouvintes
queo para escola com a aquisição da linguagem garantida através do
português e, no entanto, os índices de repetência c evasão escolaro
dos mais altos do mundo. As propostas pedagógicas devem ir além das
línguas envolvidas no processo educacional.
A tradição na educação de surdos de se pensar somente na lingua-
gem todo o tempo precisa acabar. A escola deve se constituiro em
função das línguas que permeiam a vida escolar dos surdos, mas para
muito além disso, ou seja, cumprir com seu papel enquanto instituição
educacional.
' Neste caso, poder-se-ia redefinir o papel do fonoaudiólogo nas instituições que
atendem surdos.o mais como àquele que tem a função de trabalhar com a oralização,
mas como àquele que trabalhará cem a linguagem e seus distúrbios gerados pelo fato
das crianças terem acesso a LIBRAS tardiamente e , também, com os distúrbios de
linguagem comuns às crianças que adquirem uma língua falada so que em sinais (na
linha da linguística clínica, mas com uma língua visual-espacial).
Partindo das questões abordadas até o presente, quando se reflete
sobre a língua que a criança surda usa, a LIBRAS, c o contexto escolar,
imediatamente pensa-se em alfabetização.
ALFABETIZAÇÃO
O processo de alfabetização é essencialmente natural. As crianças
passam pelos diferentes níveis desse processo mediante interação com a
escrita construindo hipóteses c estabelecendo relações de significação
que parecem ser comuns a todas as crianças.
Obviamente esse mesmo processo deve acontecer com as crianças
surdas. Entretanto, as crianças surdas devem estabelecer visualmente
relações de significação com a escrita. Assim sendo, toda a energia dos
alfabetizadores de surdos é canalizada para a autonomia da escrita, mas
nos níveis propostos por Ferreiro e Teberosky (1985), ou seja, níveis
propostos com base em sistemas escritos alfabéticos. Interessantemente,
tais níveis estão descritos como pré-silábico, silábico, silábico-alfabé-
ticoe.alfabético (com suas respectivas subdivisões). Inquestionavelmente,
esse trabalho representa um avanço nos estudos sobre a alfabetização.
No caso específico da alfabetização de surdos, vários professores tenta-
ram visualizar esse mesmo processo
4
. Apesar de todos esses esforços
parece haver um "buraco-negro" no processo de alfabetização de crian-
ças surdas. Os professores fazem alguns relatos: "As crianças chegam
em um determinado nível e trancam ", "As crianças não conseguem sair
da representação da palavra", "Não consigo fazer com que eles escre-
vam um texto', "Eles conseguem escrever somente as palavras traba-
lhadas em aula ", e assim por diante.
Ferreiro & Teberosky (1985) usaram a nomenclatura mencionada aci-
ma para idenlificar o processo de alfabetização alfabético em que as crian-
ças estabelecem relação de significação entre o que é dito e o que é
escrito, embora haja autonomia da escrita. O nível silábico envolve a
compreensão da criança de que as diferenças das representações escritas
estão relacionadas com as diferenças nas representações sonoras. Sono-
ras que para os surdos devem ser visuais. Apela-se então para a leitura
labial que, ocuparia o lugar das representações sonoras. No entanto,
apresenta-se a seguinte constatação:
Pesquisas desenvolvidas nos Estados Unidos (Duffy, Í987)
constataram que, apesar do investimento de anos da vida de
uma criança surda na sua oralização, ela somente é capaz de
4
o raros os registros dessas tentativas, alguns registros constam nos Anais do II
Encontro de Alfabetizadores de Deficientes Auditivos - INES - MEC - Rio de Janeiro,
(1989).
captar, através da leitura labial, cerca de 20% da mensagem
e, além disso, sua produção oral, normalmente, não é com-
preendida por pessoas que não convivem com ela (pessoas
que não estão habituadas a escutar a pessoa surda). (Qua-
dros, 1997:23)
O primeiro problema que deve ser reconhecido é que a escrita alfabé-
tica da língua portuguesa no Brasilo serve para representar significa-
ção com conceitos elaborados na LIBRAS, uma língua visual espacial.
Um grafema, uma sílaba, uma palavra escrita no portuguêso apresenta
nenhuma analogia com um fonema, uma sílaba e uma palavra na LIBRAS,
mas sim com o português falado. A língua portuguesao é a língua
natural da criança surda. Já foi abordado no presente trabalho que a
língua em que o processo de aquisição da linguagem ocorre naturalmente
em crianças surdas brasileiras é a LIBRAS.
As línguas de sinais apresentam uma escrita que foi desenvolvida
para representar formas e movimentos num espaço definido. No Brasil,
esse sistema escrito está sendo aplicado a LIBRAS e usado por alguns
surdos a partir de um projeto de pesquisa que está sendo desenvolvido
na PUCRS
5
.
Da mesma forma que há alguns anos, os estudos das línguas de
sinais revolucionaram a visão quanto à aquisição da linguagem por crian-
ças surdas, o reconhecimento de que as línguas de sinaisoo línguas
agrafas transforma a visão do processo de alfabetização dessas crianças.
Todos os níveis do processo de alfabetização devem aparecer em
crianças surdas alfabetizando-se mediante interação com a escrita da
língua de sinais, ou seja, com grafemas, com sílabas e com palavras que
representam diretamente a LIBRAS.
Para que seja melhor visualizada essa representação escrita da língua
de sinais, será escrito um parágrafo em sinais com a tradução para o
português logo a seguir.
s
Prof. Dr. Antônio Carlos Rocha da Costa - Instituto de Informática da PUCRS -
junto com uma equipe que inclui surdos universitários c pesquisadores da área de
informática, linguística e educação, estão buscando divulgar a existência deste sistema
c sua possível utilização como meio de registro da LIBRAS. Para uma visualização
desse sistema ver na Internet: www.signwriting.org
dois grupos, aqueles que aprendem a falar e aqueles que
aprendem a língua de sinais. Esses últimos desenvolvem a
habilidade espacial no cérebro de forma mais sofisticada do
que o outro. A possibilidade de ler um desenvolvimento mais
natural do espaço pode favorecer o processo educacional da
criança surda. A escrita da língua de sinais é uma forma de
aproveitar o potencial dos surdos. A representação da lín-
gua de sinais através da escrita permite um processo de apren-
dizagem da leitura e escrita natural. As crianças estabelecem
relações diretas da língua de sinais para a escrita. Por que é
tão complicada a alfabetização das crianças surdas? Até o
presente, as crianças surdas só tiveram contato com a escrita
do português. Essa forma escrita está relacionada com a lín-
gua oral auditiva e não com uma língua visual espacial.
Um estudo sobre o desenvolvimento da escrita em crianças israelen-
ses pré-escolares (Tolchinsky & Levin, 1987) constatou que a produção
escrita das crianças apresenta uma ordem que parece corresponder a uma
sequência evolutiva, válida para diferentes formas escritas e culturas. As
autoras desse trabalho consideraram as análises de Ferreiro & Teberosky
para chegar a essa conclusão. O sistema escrito do hebraico apresenta
algumas características peculiares que o diferencia de sistemas alfabéti-
cos. Tal sistema conecta unidades que aparecem em cadeias curtas (não
mais que cinco unidadeso usadas para formar unia palavra) e sua dire-
ção é da direita para a esquerda.
Da mesma forma que com o hebraico escrito, Apresentam-se a hipótese
de que o processo de alfabetização em crianças surdas através do sistema
escrito da língua de sinais ocorre em uma sequência evolutiva. A escrita
da língua de sinais é formada por unidades que correspondem às configu-
rações de mão, os movimentos e as expressões faciais gramaticais em
diferentes pontos de articulação que formam palavras mediante algumas
combinações. Apesar de ser um sistema escrito diferente e refletir um
sistema linguístico espacial, a sequencia evolutiva de sua aquisição deve
ocorrer da mesma forma''.
Um trabalho realizado por 0'Grady, vanHoek e Bellugi (1990) sobre a
interseção entre a escrita, os sinais e o alfabeto manual verificou que a
escrita das crianças surdas, por volta dos três anos, apresentava a forma
do sinal correspondente na ASL. As respostas evidenciaram que crian-
"As pesquisas sobre o processo de alfabetização de crianças surdas sendo alfabelizadas
na escrita da língua de sinaiso urgentes para que se traga evidências desse processo
e se ofereça subsídios para que isso seja reconhecido e executado em todo país.
ças surdas conectam a língua escrita com sua língua nativa, a ASL. Fok,
vanHoek, Klima & Bellugi (1991) apresentam um exemplo dessa relação
com os sinais através da figura (1).
FIGURA 1: Representação escrita das crianças
com base nos princípios da ASL
(Fok, vanHoek, Klima & Bellugi, 1991:140)
O sinal para PATO é o mesmo na LIBRAS. A representação escrita
respectiva é a seguinte:
(a) PATO
As primeiras tentativas das crianças que adquiriram a ASL foi de
representar através de símbolos as palavras na ASL. Ao observar-se o
sistema escrito da ASL, percebe-se que há aspectos relacionados a ASL.
Isso é claramente observado cm (a) onde o sinal ao lado da produção
escrita é semelhante a sua representação escrita (neste exemplo, há uma
relação com a configuração dao usada no sinal para PATO).
Outros exemplos de conexão entre os sinais e a representação escrita
de crianças surdas estão diretamente relacionados com a configuração de
o usada nos sinais queo também letras do alfabeto manual. Fok,
vanHoek, Klima & Bellugi observaram que as crianças explicavam que a
palavra INDIAN iniciava com F porque o sinal para INDIAN na ASL usa
a configuração deo F (do alfabeto manual da ASL). É interessante
observar que essas criançaso tiveram acesso ao sistema escrito da
ASL.
Quando assessorava uma escola de surdos no interior do RS, tive a
oportunidade de observar que uma criança representava a letra V usan-
do o seguinte símbolo:
(b)
Essa criança está fazendo uma relação direta com a configuração de
o R. A representação escrita dessa configuração na LIBRAS é a se-
guinte:
(e)
o somente no nivel da palavra, mas também no nível da estrutura
da língua acontece a relação entre a língua de sinais e a sua escrita. Fok,
vanHoek, Klima & Bellugi observaram exemplos da produção escrita de
crianças surdas chinesas que indicam a estruturação da língua de sinais
chinesa. A figura (2a) apresenta a figura de uma 'porta' e (2b) a figura de
uma 'menina abrindo uma porta'. Uma criança surda escreveu correta-
mente a palavra 'porta' no chinês, no entanto na segunda figura associou
o radical para pessoa do chinês a palavra 'porta', produzindo uma forma
composta usada na língua de sinais. Na figura (3) aparecem alguns exem-
plos em que as crianças chinesas inventaram uma forma escrita para cada
desenho apresentado. As representações escritas refletem os princípios
de formação das palavras das línguas de sinais, por exemplo, uso da
forma, tamanho e quantidade para formação da palavra.
"quatro" "quadrado" "forma" "quatro" "longo" "forma" "redondo" "fornia"
(Fok, vanHock, Klima & Bellugi, 1991:141)
A escrita da língua de sinais capta as relações que a criança estabe-
lece naturalmente com a língua de sinais. Sc as crianças tivessem aces-
so a essa forma escrita para construir suas hipóteses a respeito da
escrita, a alfabetização seria uma consequência do processo.
Considera-se aqui que a alfabetização e a aquisição de uma segunda
língua envolvam processos diferentes, principalmente quando se trata de
línguas de modalidades diferentes. Qualquer estudo sobre a aquisição da
leitura e escrita em uma L2 pressupõe que os alunos estejam alfabetiza-
dos na fornia escrita da LI. Portanto, somente após as crianças surdas
estarem alfabetizadas na escrita da LIBRAS, sugere-se iniciar a aquisição
formal da língua portuguesa, nesse caso, a segunda língua das crianças.
AQUISIÇÃO DE L2
Até o momento a aquisição do português escrito por crianças surdas
foi baseada no ensino do português para crianças ouvintes que adquirem
o português falado naturalmente. Esse fato fica claro, quando se percebe
que o que de fato ocorre é que a criança surda é colocada cm contato com
a escrita do português para ser alfabetizada em português. Várias tentati-
vas de alfabetizar a criança surda através do português já foram realiza-
das, desde a utilização de métodos artificiais de estruturação de lingua-
gem até o uso do português sinalizado
7
. Apesar de todas essas tentati-
7
No Brasil, os métodos artificiais de estruturação de linguagem mais difundidoso a
Chave de Fitzgerald e o de Perdoncini. Português sinalizado é um sistema artificial
adotado por escolas especiais para surdos. Tal sistema toma sinais da LIBRAS e joga-
os na estrutura do português. Há vários problemas com esse sistema no processo
educacional de surdos, pois além de desconsiderar a complexidade linguística da
LIBRAS, é utilizado como um meio de ensino do português Para mais detalhes ver
Quadros (1997)
vas, evideneia-se o fracasso da aquisição do português por alunos sur-
dos
11
.
A partir dos vários estudos sobre o estatuto de diferentes línguas de
sinais e seu processo de aquisição, muitos autores passaram a investigar
o processo de aquisição por alunos surdos de uma língua escrita que
representa a modalidade oral-auditiva (Andersson, 1994; Ahlgren, 1994;
Ferreira-Brito, 1993; Berent, 1996; Quadros, 1997; entre outros). A aquisi-
ção do sueco, do inglês, do espanhol, do português por alunos surdos é
analisada como a aquisição de uma segunda língua. Esses educadores e
pesquisadores pressupõem a aquisição da língua de sinais como aquisi-
ção da LI e propõem a aquisição da escrita da língua oral-auditiva como
aquisição de uma L2.
Desconhecendo ou ignorando a representação escrita das línguas de
sinais, os precursores dessa discussão acenaram a possibilidade de alfa-
betizar surdos na escrita da língua oral-auditiva considerando tal sistema
suficientemente autónomo para tornar possível a alfabetização visual
(Ferreira-Brito, 1993). No entanto, observa-se que esse processoo está
acontecendo naturalmente. Alfabetizadores percebem que quando a
criança surda atinge o nível silábico de sua produção escrita, ela se apoia
na leitura labial da palavra. Esse processo acontece até a criança precisar
passar do nível da palavra para o nível textual, nível em que os problemas
com o português escrito permanecem lendo cm vista a limitação da leitura
labial. Fato esse constado por Nobre (1996): os alunos surdoso apre-
sentam maiores problemas ortográficos. Parece que a criança surdao
ultrapassa a interface do léxico com a sintaxe no português, isto é, do
nível da palavra para o nível da estrutura dessa língua.
O processo de aquisição de L2 pressupõe a natureza da faculdade
humana para a linguagem. As pesquisas de Berenl (1996) apresentam
alguns mecanismos de aquisição do inglês queo acionados por alunos
surdos no seu processo de aprendizagem. Tais mecanismos refletem os
princípios da Gramática Universal (Chomsky, 1995). Partindo disso, ao se
pensar especificamente sobre a aquisição da L2 por alunos surdos apre-
sentam-se alguns aspectos fundamentais: (a) o processamento cognitivo
espacial especializado dos surdos; (b) o potencial das relações visuais
estabelecidas pelos surdos; (c) a possibilidade de transferência da LI-
BRAS para o português; (d) as diferenças nas modalidades das línguas
no processo educacional; (e) as diferenças dos papéis sociais e acadêmi-
cos cumpridos por cada língua, (f) as diferenças entre as relações que a
comunidade surda estabelece com a escrita tendo em vista sua cultura;
* Para mais detalhes sobre a produção escrita do português de alunos surdos ver
Fernandes (1990) e Gões (1996)
(g) um sistema de escrita alfabética diferente do sistema de escrita das
línguas de sinais; e (h) a existência do alfabeto manual que representa
uma relação visual com as letras usadas na escrita do português.
Além desses aspectos, os estudos sobre a aquisição de L2 apresen-
tam questões externas que devem ser consideradas, pois podem determi-
nar o processo de ensino de línguas,o elas: o ambiente, o tipo de
interação (input, output e feedback), a idade, as estratégias e estilos de
aprendizagem, os fatores emocionais, os fatores sociais e o interesse
(motivação) dos alunos.
O ambiente do ensino da língua portuguesa - L2 - para surdos, por
envolver o ambiente escolar e o ensino de língua, caracteriza um ambiente
o natural de língua. Pensando na realidade dos surdos brasileiros, Po-
der-se-ia supor que o ambiente fosse caracterizado como natural, pois
quase todas as pessoas com quem eles convivem usam a língua portu-
guesa, isto é, os surdos estão "imersos" no ambiente em que a língua é
"falada". No entanto, a condição física das pessoas surdaso lhes per-
mite o acesso à língua portuguesa de forma natural. Na verdade, nestes
casoso há "imersão", no sentido em que o termo é empregado nas
propostas de aquisição de L2 com base no enfoque natural (programas de
imersão). Portanto, o ambiente de aquisição/ aprendizagem da L2 para os
surdos éo natural
9
.
Quanto ao tipo de interação, oferecer ao aluno surdo um input quali-
tativamente compreensível, autêntico c diversificado do português é um
desafio para os professores. Um input compreensível, mas ao mesmo
tempo complexo o suficiente para desafiar o aluno a desenvolver seu
processo de aquisição, exige que discussões prévias sobre o assunto
abordado em língua de sinais sejam promovidas. Além de ser compreen-
sível, o input deve ser autêntico e diversificado, ou seja, os alunos preci-
sam estar diante de verdadeiros textos (muitos profissionais simplificam
textos tomando-oso autênticos) e com tipologia diferenciadas.
A ordem natural de aquisição deve ser um dos critérios a ser observa-
dos ao ser oferecido o input ao aluno. Como a aquisição de L2 também
reflete a capacidade para linguagem específica do ser humano, há uma
certa ordem no seu processo de aquisição. Outro aspecto abordado so-
bre o input é a quantidade em que ele é oferecido ao aluno. Considerando
que o input da L2 é basicamente visual para os surdos, é imprescindível
ampliar o tempo depreendido para o contato com a L2. O aluno deve ter
"Aquisição/aprendizagem está relacionado com o equilíbrio entre conhecimento im-
plícito e explícito no processo de ensino de línguas (para mais detalhes ver Ellis,
1993; Quadros. 1997).
oportunidade de interagir com o português escrito de várias formas e em
todos os momentos em que for propício. Os textos, as palavras, as estóri-
as escritas em português devem ser oferecidas visualmente desde o prin-
cípio da escolarização, mesmoo sendo alvo da alfabetização. Assim, a
criança tem um input natural do português escrito.
Ainda quanto ao tipo de interação, o professor deve estar atento às
oportunidades que o aluno dispõe para expressar sua L2 (output). No
caso específico de alunos surdos, oportunizar a eles a expressão escrita é
fundamental para que o aluno avalie o seu desenvolvimento e o professor
interfira no processo de aquisição através de meios cabíveis (análise de
"erros", análise da interferência da LIBRAS, análise da estrutura do por-
tuguês). Ao analisar as produções de alunos surdos, parece ser possível
inferir que o processo de alfabetização das pessoas surdas independe do
processo de ensino do português. O output (produção) escrito dos alu-
nos expressa ideias que apresentam uma relação direta com a LIBRAS. O
processo de ensino do português ocorrerá em uma etapa seguinte. A
intervenção do professor representa o feedback para o aluno surdo pos-
sibilitando a reflexão sobre as hipóteses que criou na sua produção
(output).
A idade dos alunos vai implicar o uso de procedimentos diferentes
no processo de ensino de L2. As crianças precisam de atividades que
atendam aos seus interesses imediatos de forma mais natural possível. A
língua escrita, por si, apresenta características que se distanciam de
relações comunicativas imediatas. Cabe aos profissionais tornarem esse
processo interessante à criança inserindo-o em uma prática social. Nor-
malmente, o ensino de L2 para crianças enfatiza a aquisição do vocabulá-
rio e a compreensão da L2. Os adultos, diferentemente das crianças, apre-
sentam-se motivados conscientemente para o processo de aquisição da
L2, assim se dispõem a falsear ambientes naturais de língua. Já com as
crianças, o processo exige do professor habilidade para tornar a aquisi-
ção o mais autêntica possível e para criar motivação suficiente para des-
pertar o interesse do aluno.
Quanto aos estilos e às estratégias de aprendizagem (Nunan, 1991;
Ellis, 1993), sugere-se que o professor faça o levantamento das ten-
dências e das preferências dos alunos. As classes de crianças surdas
normalmenteo formadas por grupos em número reduzido (5 a 10 alunos);
dessa forma, torna-se possível traçar um perfil. Conhecer os estilos e
estratégias de cada aluno certamente repercutirá na qualidade da inter-
venção do professor no processo de ensino de L2.
Os fatores afetivos podem influenciar no desenvolvimento do aluno
diante da L2. As crianças, por estarem formando sua auto-imagem, podem
se sentir inibidas e os adultos, por serem críticos, podem bloquear o
processo. Com os alunos surdoso é diferente; entretanto, além desses
fatores, há outros que podem dificultar ainda mais a aquisição de L2. As
crianças surdas podem estar sofrendo toda a pressão emocional familiar
cm função da surdez e os adultos podem manifestar resistências em rela-
ção a L2 decorrentes de constantes fracassos e frustrações gerados por
um ensino inadequado. Os profissionais devem atentar a essas questões
e procurar resolvê-las, pois estas afetam o processo. Tendo em vista a
relação afetiva entre os pais e a criança, o trabalho com os pais, paralelo e
conjuntamente com as atividades das crianças, deve fazer parte dos pro-
gramas escolares. Já o trabalho com os adultos envolve um processo
mais consciente; desta forma, os alunos e os profissionais devem refletir
sobre o passado escolar para que se reavalie o processo e se construa
uma nova caminhada em termos educacionais.
Quanto aos aspectos culturais que envolvem o processo de ensino
de L2, sugere-se que o profissional os explicite para o aluno surdo. Tais
aspectos, que subjazem o texto, interferem no seu significado e passam
desapercebidos pelo aluno de L2. A reflexão sobre as culturas em que os
sistemas linguísticos estão imersos contribui para a conscientização das
diferenças que se refletem, muitas vezes, em idiossincrasias do léxico.
Para finalizar, torna-se relevante alertar aos profissionais que o pro-
cesso de aquisição/aprendizagem do português por surdos deve estar
inserido em uma proposta educacional mais abrangente. Quanto ao espa-
ço atribuído ao ensino do português, a escola deve se preocupar em ter
profissionais altamente especializados no ensino de L2. Esse profissional
deve conhecer os mecanismos de aquisição da linguagem para compre-
ender as hipóteses dos alunos quanto ao português - sua L2 - para, a
partir disso, interferir no processo de forma adequada. Vale destacar que
qualquer processo educacional se concretiza mediante a interação efetiva
do professor com o aluno. Se o professoro se comunicar com o seu
aluno utilizando a língua de sinais, o processo estará completamente com-
prometido. Uma proposta educacional para surdos deve ser reconstruída
permanentemente para que venha atender aos interesses dos alunos e
extrapolar a questão das línguas.
Neste artigo, objetivou-se diferenciar três processos relacionados
com as línguas no contexto educacional dos surdos:
1. a aquisição da linguagem que deve ser garantida através de uma
língua espaço-visual, isto é, uma língua de sinais (no caso do Bra-
sil, a LIBRAS);
2. a alfabetização que deve acontecer naturalmente através da escrita
das línguas de sinais;
3. a aquisição/aprendizagem do português que envolve um processo
de aquisição de L2.
Tais processos apresentam uma questão em comum: a faculdade da
linguagem. No entanto, cada processo é, de certa forma, independente
um do outro. A aquisição da linguagem é essencial ao ser humano, por-
tanto as crianças surdas precisam entrar em contato com uma língua es-
pacial-visual para ler garantida essa essência da linguagem. Quanto à
alfabetização, parece que as crianças surdas alfabetizam-se naturalmente
quando em contato com o sistema escrito das línguas de sinais. Por outro
lado, o processo de aquisição/aprendizagem do portuguêso é es-
sencial, mas é necessário na sociedade brasileira; assim sendo, os alunos
surdos precisam adquirir o português escrito.
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Uma Experiência
Fonoaudiológica na
Abordagem Bilíngue
Profa. Dra. Cristina B. F. de Lacerda
(UNIMEP)
A questão da educação dos surdos é polemica e atual. Quando recor-
remos à literatura disponível sobre o assunto, verificamos que desde o
século XVIII há uma busca ativa do melhor modelo de educação para as
pessoas surdas. Comentam-se os fracassos e insucessos, prós e contras
tanto do ensino especial, exclusivamente voltado para o atendimento da
pessoa surda; como da inserção destes sujeitos no ensino regular. Esta
discussão, geralmente, precede outrao menos importante que aponta
para a dificuldade que os surdos têm, após anos de escolarização, em
lerem e escreverem de forma satisfatória, qualquer que seja o modelo
educacional escolhido (educação especial/ensino regular). Assim sendo,
os surdoso escolarizados, mas parece que esta escolarização produz
poucos resultados realmente eletivos.
Paralelamente à evolução de propostas e discussões envolvendo a
questão educacional dá-se o desenvolvimento de técnicas e conheci-
mentos médicos que compreendem o surdo como um "deficiente auditi-
vo" que precisa ser tratado e reabilitado. Neste contexto, surge também a
figura do fonoaudiólogo, ao qual é reservada a tarefa de trabalhar com o
surdo de forma a fazê-lo ouvir e falar, ou seja, de torná-lo ouvinte.
Para desenvolver" seu trabalho, a fonoaudiologia desenvolveu ao lon-
go dos anos um conjunto de técnicas que visam levar o sujeito surdo a
aprender a falar e a aproveitar seus "restos' auditivos, já que estas 'fun-
ções'o se desenvolvem naturalmente nestes sujeitos. A habilidade de
falar é alcançada, via de regra, através de exercícios e técnicas artificiais,
onde a linguagem é pouco considerada e o enfoque está voltado para a
articulação. Em geral,o terapias longas, laboriosas em que o sucesso é
bastante discutível.
Já em 1926, Vygoslky (1986) apontava para o modo com a língua
falada era ensinada aos surdos argumentando que tal como era realizado,
tomava muito tempo da criança, em geral,o ensinando-lhe a construir
logicamente uma frase. O trabalho (naquela época e contemporaneamente)
era dirigido para uma 'recitação' eo para a aquisição de uma linguagem
propriamente, resultando em um vocabulário limitado e, muitas vezes,
sem sentido, configurando uma situação extremamente difícil e confusa.
Vygotsky, então, comentava que a problemática do surdo aparece bri-
lhantemente resolvida nas teorias, mas que, na prática,o se observam
os resultados desejados.
Esta discussão mantém-se atual. Práticas de educação e/ou terapêu-
ticas que visam a uma produção articulatória que faz pouco ou nenhum
sentido para o surdo c que o faz despender horas importantes em treinos
queo levam à aprendizagem de linguagem propriamente. O verdadeiro
problema parece estar no fato de que a linguagem oral precisa ser ensina-
da; o que ocorre normalmente com os ouvintes é que ela é adquirida, sem
que para isto haja qualquer procedimento 'especial'.
Este trabalho de oralizaçãoo pode aparecer separado da estimulação
auditiva, os 'restos auditivos' devem ser aproveitados e desenvolvidos,
como máxima, pois eles podem levar o indivíduo a 'ouvir' e este é o
grande objetivo.
Os casos bem sucedidos infelizmenteo poucos. Alguns chegam a
falar bastante bem e a desenvolver estratégias para uma convivência
satisfatória no inundo ouvinte, contudo trata-se da minoria. A maioria
desenvolve uma fala pouco inteligível,o chegando a um desenvolvi-
mento consistente de linguagem, sentindo dificuldades para a inserção
no mundo ouvinte, e desadaptados do mundo das pessoas surdas.
O fonoaudiólogo que deveria trabalhar com as questões da lingua-
gem possibilitando o desenvolvimento deste indivíduo como um todo,
acaba atendo-se a um trabalho perceptual-articulatório que pouco contri-
bui para a constituição dessa pessoa enquanto sujeito.
Neste contexto, configura-se uma insatisfação com esta 'tarefa' tera-
pêutica e publicações e discussões sobre experiências com as línguas de
sinais, fazem surgir uma perspectiva de trabalho que contemple uma lín-
gua/linguagem para o surdo. Uma língua estruturada, natural, que pudes-
se levá-lo a um desenvolvimento pleno, e a sua constituição enquanto
sujeito, acenando com uma saída justa c honesta para o trabalho com as
pessoas surdas.
Antes de explicitar este modo de trabalho se faz necessário definir a
concepção de linguagem aqui assumida.
"Ressaltamos a linguagem como (inter)ação humana e ativida-
de constitutiva destacando uma característica fundamental que
é a reflexividade, isto é a propriedade/possibilidade que a lin-
guagem apresenta de remeter a si mesma. Ou seja, fala-se da
linguagem com e pela linguagem. Ainda, o homem fala de si,
(re)conhece-se, volta-se sobre si mesmo pela linguagem a qual
pode falar de seu próprio acontecimento.[...] usamos a língua/
linguagem para configurar, estudar, conhecer, analisar a pró-
pria atividade na qual estamos imersos, da qual não nos pode-
mos desprender e que circunscrevemos conto objeto de estudo.
Se é possível um certo distanciamento, se a reflexividade é possí-
vel, não podemos nunca nos situar "fora" da linguagem. Mais
do que objeto e meio/modo de abordagem, a linguagem é
constitutiva dos processos cognitivos e do próprio conhecimen-
to, uma vez que a apropriação social da linguagem é condição
fundamental do desenvolvimento mental. Isso permite conceber
a linguagem como condição de cognição, e leva-nos a indagar
sobre a linguagem como lugar de origem da conduta simbólica "
(Smolka, 1995:41-42).
Assumida deste ponto de vista a linguagem traz consigo o saber, os
valores, as normas de conduta, as experiências organizadas pelos ante-
passados. participando desde o nascimento, no processo de formação do
psiquismo.
"Ao nomear os objetos, explicitar suas funções, estabelecer rela-
ções e associações, o adulto cria na criança, formas de reflexão
sobre a realidade. Está-se destacando a intercomunicação como
fator fundamental não apenas na apreensão do conteúdo, mas,
igualmente, na constituição do afetivo, do emocional e da
cognição" (Palangana, 1995:23).
Os indivíduos de uma mesma cultura partilham um certo sistema de
signos (língua, que permite que eles interajam entre si de modo bastante
satisfatório). Tais signos - palavras -m um significado mais ou menos
comum para os membros dessa comunidade; entretanto, podem ter senti-
dos bastante diversos de uma pessoa para outra. É pela linguagem que se
torna possível organizar/agrupar ocorrências, criando categorias
conceituais. Neste sentido a linguagem instrumentaliza o pensamento
fornecendo conceitos e formas de organização do real que constituem a
mediação entre o sujeito e os objetos do conhecimento, envolvendo sig-
nificados e sentidos.
É pela linguagem e na linguagem que se podem construir conheci-
mentos. E aquilo que é dito, comentado, pensado pelo indivíduo c pelo
outro, nas diferentes situações, que faz com que conceitos sejam genera-
lizados, sejam relacionados, gerando um processo de construção de con-
ceitos queo interferir de maneira contundente nas novas experiências
que este indivíduo venha a ler. Ele se transforma através desses conheci-
mentos construídos, transforma seu modo de lidar com o mundo e com a
cultura e essas experiências geram outras num 'continum' de transforma-
ções e desenvolvimento.
A mediação semiótica é que permite também a incorporação do indi-
víduo ao meio social e, como consequência, a apropriação deste. Os si-
nais provenientes do meio socialo captadas por canais (órgãos
perceptuais) dos indivíduos. No caso do surdo, ele deve se apropriar da
cultura da comunidade em que está inserido, através do mediador semiótico
usado por excelência que é a linguagem oral. Os surdos constituem um
grupo minoritário que tem dificuldades de acesso a esse mediador. Con-
tudo, eles se apropriam da cultura, mas isso parece ser feito com muitos
problemas.
Um trabalho fonoaudiológico que realmente pretenda trabalhar com a
linguagem do outro precisa contemplar as questões aqui apontadas. Pre-
cisa estar atento aos problemas de linguagem dos sujeitos surdos e a sua
dificuldade de acesso à cultura do grupo ao qual pertence. Contudo, o
trabalho de oralização e audibilização, tradicionalmente desenvolvido
pelos fonoaudiólogos, em geral,o permite uma ação que assuma a
linguagem em toda sua amplitude. Reduzindo a 'linguagem' do surdo à
sua produção articulatória ele fica privado de um desenvolvimento pleno.
Nesse contexto, a proposta de educação bilíngue, na qual o surdo
deve ser exposto o mais precocemente possível a uma língua de sinais,
identificada com uma língua passível de ser adquirida por ele sem que
sejam necessárias condições especiais de 'aprendizagem', surge como
uma proposta de trabalho com língua que permite o desenvolvimento
rico e pleno de linguagem e que possibilita ao surdo um desenvolvimento
integral. A proposta de educação bilíngue preconiza, ainda, que também
seja ensinada ao surdo a língua da comunidade ouvinte na qual está
inserido, cm sua modalidade oral e/ou escrita, sendo que esta será ensina-
da com base nos conhecimentos adquiridos através da língua de sinais.
O fonoaudiólogo, que pretenda trabalhar com a linguagem, eo
apenas com um segmento dela, precisa, então, incorporar a abordagem
bilíngue, transformando sua prática na busca de torná-la mais adequada
no que se refere ao atendimento integral da pessoa surda.
Mas as mudançaso se fazem de maneira fácil. É preciso descobrir
um novo modo de agir,o descrito, ainda por construir, que contemple
as necessidades ora expostas. Baseado nos conhecimentos teóricos de-
senvolvidos, o cotidiano do trabalho fonoaudiológico pode gerar situa-
ções que favoreçam a elaboração de novos conhecimentos.
Desta maneira, focalizar um caso clínico, sua evolução e desafios
poderá suscitar alternativas de intervenção que nos abram novas frentes.
Com tais pressupostos passarei a narrar de forma breve a evolução
de um caso de uma criança surda que procurou o consultório
fonoaudiológico para tratamento.
Fui procurada pelos pais da criança que buscavam um fonoaudiólogo
que pudesse ensinar seu filho a falar. Era uma criança de 6 anos que, aos
3 anos teve um quadro de meningite aguda, e que ao final do processo
agudo da doença estava irremediavelmente surda(surdez profunda bila-
teral). No primeiro ano após a meningite, todo o trabalho desenvolvido
objetivou fazer a criança voltar a andar e a refazer seu desenvolvimento
motor. Até o momento em que fui procurada, todo o trabalho realizado
orientava-se nesta linha. A queixa principal dos pais era a precariedade de
sua comunicação com o próprio filho. Queriam saber como agir e o que
fazer para que o filho pudesse falar com eles.
Já no primeiro encontro, expus as diferentes abordagens educacio-
nais e terapêuticas que se apresentavam para o trabalho com os surdos.
Julguei importante contextualizar historicamente a questão dos surdos e
o papel ocupado pelas línguas de sinais ao longo da história. Os pais me
ouviram atentamente e ao final da sessão o pai me disse: "Não espero que
meu filho deixe de ser surdo, espero que ele seja feliz!"
Parti para a avaliação da criança que me pareceu saudável, inteligen-
te, intrigante e um tanto "incomunicável'. Ele conhecia uns poucos ges-
tos domésticos, e utilizava-se de vocalizações apenas para chamar a aten-
ção de seu interlocutor. Seu desempenho em jogos e atividades, porém,
deixam ver que era bastante inteligente e que era capaz de elaborar alguns
conteúdos relativamente complexos (regras básicas de jogos, etc).
Propus à família então que a criança fosse 'imersa' em linguagem, em
uma linguagem que fosse verdadeiramente acessível para ela, conside-
rando que seu desenvolvimento de linguagem era fundamental para seu
desenvolvimento enquanto sujeito.
Foram propostas aulas de línguas de sinais para os pais e irmãos, e
terapias em sinais para a criança. A terapia foi proposta com o objetivo de
estimulá-lo o máximo possível em sinais, de uma forma terapeuticamente
organizada. Ele poderia ser 'diagnosticado' como um sujeito com atraso
de desenvolvimento de linguagem e este atraso poderia ser trabalhado
cm um espaço especialmente voltado para isso. Paralelamente, os pais
estariam se capacitando no uso de sinais e aos poucos estes passariam a
fazer parte de sua rotina, fazendo com que o papel da estimulação tera-
pêutica de linguagem fosse revisto com o passar do tempo.
Eu, naquele momento, tinha um domínio precário de sinais eo me
sentia como um interlocutor suficientemente adequado para 'ingressá-lo'
na língua de sinais; contudo julgava que meus conhecimentos sobre
linguagem e desenvolvimento poderiam ser úteis para aquela criança.
Convidei, então, uma intérprete em LIBRAS para trabalhar nas sessões
juntamente comigo de modo a oferecer à criança a língua de sinais de uma
forma mais estruturada c fluente.
Esta mesma intérprete tornou-se responsável pelas aulas de língua
de sinais para a família.
Inicialmente, a criança tinha pouca ou nenhuma atenção para os si-
nais,o demonstrava interesse ou curiosidade pelos nossos movimen-
tos. Os poucos sinais que fazia eram disformes, mal feitos e elao acei-
tava correções ou interferências. Ela parecia acreditar que nós, adultos,
poderíamos adivinhar seus pensamentos e realizar seus desejos sem que
ela tivesse que expressá-los. Foram três anos de silêncio, e ausência de
uma linguagem estruturada até que esta criança entrasse em contato com
os sinais. De que modo ela se comunicou até então? Parece que em certa
medida ela teve seus desejos satisfeitoso precisando, ou julgandoo
precisar expressar-se melhor para alcançar seus objetivos.
Há um exemplo que ilustra muito bem esta situação: Jogávamos, em
uma sessão terapêutica, um jogo em que cada um sorteava uma figura, a
olhava e sinalizava para os outros de modo que soubessem de que figura
se tratava, sem vê-la. Então, todos deveriam procurar numa grande carteia
a tal figura em meio a muitas outras. Ele jogava o jogo de forma adequada
até que chegou sua vez de sortear uma figura cujo sinalo conhecia. Ele
olhou para a figura e olhou paras esperando que localizássemos a
figura correspondente na carteia sem que ele tivesse dado qualquer pista.
Quando foi solicitado que sinalizasse algo, ele olhava para a figura c
esperava que reagíssemos, parecia de fato acreditar que pudéssemos
saber qual era a figura em questão, assim como ele o sabia.
A questão central era com a elaboração/construção de conceitos. Ele
aprendia facilmente novos sinais-lexicais e os usava adequadamente, mas
em alguns momentos defrontavamo-nos com problemas insolúveis, es-
pecialmente quando envolviam conceitos mais amplos, tópicos queo
podiam ser meramente mostrados ou desenhados.
Após ums de trabalho com Guilherme, chegou a data de seu ani-
versário e suae trouxe, para a sessão, fotos de sua festa. Ao vê-las
comentamos sobre o bolo, sobre os convidados c sobre sua idade. Ao
sinalizarmos /6/, que era a idade que estava completando, ele se enfure-
ceu, olhava para o sinal/6/ e reagia agressivamente fazendo o sinal l\l
com o indicador levantado. Procuramos compreender o que ele queria
dizer. Ele desenhou um bolo de aniversário com uma vela cm cima e apon-
tava para a vela exaustivamente como que indicando que só havia uma
vela. Eu compreendi que ele se referia à vela es a sua idade, mas como
fazê-lo chegar a compreender esta questão? Desenhei também um bolo,
mas com uma vela com formato de número seis, mas istoo trouxe qual-
quer esclarecimento à questão. Passei, então, a mostrar minha idade, es-
crevendo-a, a idade da intérprete, a idade de um bebê e etc, maso
conseguimos sair do impasse. Solicitei à mãe, no final da sessão, que
trouxesse fotos de seus aniversários anteriores e procuramos em sessões
subsequentes resgatar o 'conceito' idade, mas nada pareceu fazer qual-
quer sentido para ele. A vela sobre o bolo sempre prevaleceu...
Neste período, Guilherme frequentava duas escolas. Pela manhã, uma
escola especial para surdos e à tarde, uma pré-escola para ouvintes. Esta
'opção' de escolarização foi feita pelos pais, buscando oferecer a ele
educação especializada e oportunidade de integração social.o pensei
em propor qualquer alteração naquela fase inicial de atendimento, a ques-
o do envolvimento com a língua de sinais já me parecia uma grande
tarefa e até o momento Guilhermeo parecia ter problemas com suas
atividades acadêmicas.
A escola especial que frequentava tinha preferencialmente uma abor-
dagem oralista, contudo eu havia sido informada que algumas professo-
ras desenvolviam um trabalho de Comunicação Total. Visitando a escola,
pude perceber que Guilherme tinha uma professora que usava muitos
gestos em sala de aula, numa prática bimodal, e que seus companheiros
sinalizavam/usavam gestos intensamente. Foi intrigante notar que Gui-
lherme fazia pouco uso de sinais também neste contexto, e que apresenta-
va dificuldades em comunicar-se com seus pares e professora.
Tal ponto revela-se importante para salientar o papel do fonoaudiólogo
neste caso. A exposição a um ambiente de Comunicação Totalo mos-
trou-se suficiente para estimular/desvendar para Guilherme o mundo da
linguagem, ele mantinha-se reticente c com muitas dificuldades de interagir
com o grupo. O trabalho fonoaudiológico, tinha, então, um papel ainda
mais importante de despertá-lo para a linguagem e para seus efeitos na
constituição de Guilherme enquanto sujeito social.
Na escola regular, Guilherme era descrito pela professora como um
aluno queo apresentava problemas, ele compreendia bem as ativida-
des e se relacionava satisfatoriamente com os companheiros. Parecia res-
ponder às atividades guiando-se por pistas do próprio ambiente, olhando
o que faziam outras crianças, etc, eo dava sinais de problemas. Contu-
do, tratava-se de um contexto escolar que prioritariamente favorecia o
'brincar' sem pretensão de ensinar conteúdos de forma mais estruturada.
Os 'trabalhinhos', quando propostos, envolviam atividades de coorde-
nação motora fina, percepção visual e outros que Guilhermeo tinha
problemas em resolver.
No contexto terapêutico, ele foi evoluindo bastante bem, ampliando
seu conhecimento cm sinais, ampliando suas possibilidades de compre-
ender e fazer-se compreender. Ao final de um semestre de trabalho, podi-
am-se observar algumas mudanças significativas c a família comentava
sobre os progressos na convivência doméstica.
Alguns trabalhos foram dirigidos propositadamente para gerar co-
nhecimentos em áreas que pareciam especialmente difíceis para Guilher-
me compreender. Foi proposta a confecção de um calendário semanal.
com desenhos e fotos das atividades realizadas diariamente, seguido de
símbolos (logotipos das escolas, por exemplo) e escrita. Este calendário
logo pode ser ampliado para atividades mensais e atualmente ele foi dis-
pensado porque Guilherme pode guiar-se pelos calendários comuns loca-
lizando-se em relação a eventos escolares e familiares (aniversários, fes-
tas, passeios, etc) sem maiores problemas.
Ao final do ano letivo, veio à tona a necessidade de decidir sobre
qual seria a melhor opção escolar para Guilherme. Fiz então uma visita à
escola especial que informou que no próximo ano Guilherme frequentaria
uma classe de pré, onde começariam a ser discutidos aspectos da alfabe-
tização, mas que esta só seria concluída após três anos de escolaridade.
Professores da escola informaram que a partir de sua experiência com
outras crianças surdas, três anos seria o prazo mínimo para que estas
pudessem se alfabetizar. Saí de lá com um questionamento: porque levar
três anos para alfabetização? Por que prever para todos os alunos surdos
esse 'mínimo' de tempo? Quais as dificuldades efetivas apresentadas por
Guilherme justificavam esse prazo pré-eslabelecido? Ou tralava-se de uma
questão da escola, queo dispunha de uma metodologia adequada para
alfabetizar sujeitos surdos e propunha um prazo dilatado?
Em seguida fui visitar a escola regular que Guilherme frequentava
todas as tardes. Perguntei, inicialmente, qual tinha sido seu desempenho
ao longo do ano. A professora informou que Guilherme desenvolveu-se
muito bem e que acompanhou o restante da classe sem problemas. Per-
guntei, então, sobre seu ingresso no pré, que naquela escola c orientado
para a alfabetização. A professora disse entender que Guilhermeo po-
deria ir para o pré, porque era surdo e alfabetizar-se para ele seria muito
difícil e que ele deveria permanecer no jardim. Levantei questões sobre
seu aproveitamento e indaguei se a professora julgava que ele pudesse
aprender mais permanecendo no jardim. Ela pareceu confusa e respondeu
negativamente. Ele havia seguido bem os conteúdos do jardim, mas al-
fabetizar-se parecia descabido para um surdo. Além disso, a escola alfa-
betizava as crianças dentro de uma perspectiva analítico-sintética, valori-
zando a separação silábica e a oralização, o que sem dúvida seria uma
dificuldade adicional para alguém queo fala, eo ouve.
Estava diante de um problema. As alternativas de escolarização mos-
travam-se pré-conceituadas cm relação ao desempenho que Guilherme
pudesse apresentar diante da tarefa de alfabetizar-se. Passei, então, jun-
tamente com a família, a discutir as dificuldades de inserção escolar de
uma criança como Guilherme e a refletir com eles quais as possíveis saí-
das. Eu acreditava que ele era suficientemente inteligente para alfabetizar-
se, e para aprender quaisquer outros conteúdos, em prazos compatíveis
com aqueles gastos pelas crianças ouvintes, desde que estivesse em um
ambiente que permitisse/possibilitasse sua aprendizagem. Discutimos
sobre abordagens educacionais e sobre metodologias mais ou menos
adequadas, e surgiu no contexto de uma discussão a proposta de buscar
uma boa escola regular que pudesse receber Guilherme juntamente com
uma intérprete de língua de sinais. A ideia era oferecer a ele um espaço
educacional preocupado com a questão dos conteúdos a serem
construídos, queo 'facilitasse' só porque Guilherme era surdo mas
que, ao mesmo tempo, oferecesse tais conteúdos na língua em que ele
tinha maior domínio, ou seja, na língua de sinais, c isso só seria possível
com a presença de um intérprete.
Inicialmente, fiz contato com três escolas próximas à residência de
Guilherme (três escolas particulares, de abordagem construtivista) c ex-
pus a situação propondo sua inserção juntamente com um intéprete. Em
todos os casos foram colocadas barreiras, foi manifesta uma certa des-
confiança sobre a real possibilidade dessa criança inserir-se e aprender.
Os argumentos que foram apresentados deixavam entrever preconceito e
descrença nas possibilidades de desenvolvimento de uma criança surda.
Assim sendo, parti em busca de uma outra escola regular, que já
tivesse tido experiências com 'casos especiais' e que pudesse compreen-
der diferentemente o desafio que estava sendo proposto. Encontramos
uma escola que mostrou-se aberta para acolher Guilherme, mas perplexa
em relação à proposta da presença de um intérprete em sala de aula: "Nós
o vamos poder nos comunicar diretamente com ele? Este intérprete
ficará por um breve período até que nos adaptemos,o é? Como ele vai
se relacionar com as crianças? O que é a Língua de Sinais?" As indaga-
ções da escola apontavam para sua compreensão da realidade da criança
surda, c mostravam que um longo caminho teria que ser construído para
tornar proveitosa a experiência sugerida.
Assim, já com 6 anos e meio, Guilherme passou a frequentar, nessa
escola, uma classe de ouvintes acompanhado de uma intérprete de LI-
BRAS. Ela é professora de surdos, tem um domínio razoável da língua de
sinais e sentiu-se desafiada pela proposta, pois também nunca havia vivi-
do algo semelhante.
Os primeiros meses foram de intensas negociações. A professora,
inicialmente, tomou para si a tarefa de comunicar-se com Guilherme (por
que elao deveria?) e espontaneamente começou a desenvolver uma
prática de 'comunicação total' cm sua sala de aula, falando e sinalizando
com os alunos simultaneamente. Tal prática perdurou apenas por um bre-
ve período, pois pudemos ir apontando a precariedade dos sinais utiliza-
dos pela professora, a confusão causada pela bimodalidade para a com-
preensão dos alunos ouvintes, a incompletude de seus enunciados ora
em sinais, ora em português o que a levou a desistir desta prática. A partir
daí, a professora cedeu, verdadeiramente, espaço para o trabalho da intér-
prete, solicitando-a, valendo-se de sua ajuda e a incluindo nas situações
que envolviam Guilherme.
As crianças ouvintes desta sala de aula mostraram-se encantadas
com os sinais, em poucas semanas todos dominavam o alfabeto digital e
um conjunto mínimo de sinais, usando-os entre si e com Guilherme. A
atitude geral das crianças fazia crer que elaso viam qualquer problema
naquela situação de interlocução c solicitavam a intérprete sempre que
necessitavam de algum esclarecimento.
Guilherme também passou por adaptações importantes. Ele, inicial-
mente, parecia dar pouco valor à presença da intérprete na sala de aula,
ela precisava chamar sua atenção para que a olhasse c tinha que rever
constantemente seu posicionamento em sala, porque ele deslocava-se
sem levar em conta as dificuldades que isto poderia gerar para o trabalho
da intérprete. Contudo, após alguns meses pode-se observá-lo buscando
posições para melhor visualizar a interprete e a valorizar seu trabalho. A
própria interpretação foi sendo construída na relação de Guilherme com a
intérprete, ele foi aos poucos reconhecendo seu valor e sua necessidade.
No início, ele parecia acreditar que era capaz de compreender 'tudo' sim-
plesmente por estar presente nas situações.
O papel do fonoaudiólogo nesta inserção foi de grande importância,
pois centralizava as discussões com pais, professor e intérprete procu-
rando traçar metas comuns que pudessem ser partilhadas por todos aque-
les envolvidos no trabalho com Guilherme.
Após seis meses de trabalho nesta escola, c um ano de trabalho
terapêutico Guilherme completou 7 anos e então buscamos conversar
com ele sobre seu aniversário. Eu, propositalmente, perguntei a ele se
tinha feito sete anos e como se sentia. Ele respondeu (naturalmente) que
sim, que tinha sete, e foi dizendo a idade de outras crianças de sua classe
mostrando que ele estava mais velho. Era maravilhoso poder observar
que o conceito de idade estava ali, presente e estruturado, indicando que
os caminhos percorridos estavam dando seus frutos.
No início deste ano, ele ingressou na primeira série. Em sala de aula
Guilherme participa ativamente das dinâmicas que se configuram, sendo
crítico e capaz de negociar com seus pares interesses e desejos. A classe
toda ao ler ou elaborar novas escritas, recorre à datilologia como forma de
esclarecer pontos para ele, ou mesmo para esclarecer-se (afinal os sinais
configuram-se como um recurso de língua também para os ouvintes). Tais
'trocas' colaboram para que Guilherme aperfeiçoe seus sinais, fique aten-
to aos sinais dos outros, etc, valorizando-se e sentindo-se valorizado.
Ele está se desenvolvendo, no que se refere à alfabetização, de forma
compatível com as outras crianças da sala de aula. Assumir em classe as
suas diferenças, recolhecer a necessidade de ter um intérprete, reconhe-
cer o uso de uma outra língua em sala tem favorecido que em meio as
diferenças Guilherme possa desenvolver-se 'igual aos demais', aprovei-
tando do contato social e acadêmico de maneira semelhante às outras
crianças. A educação só pode ser igual para todos se as diferenças de
cada um forem consideradas.
As atividades festivas na escola ilustram de maneira especial sua
inserção. Para festa do dia das mães ou Natal foram preparadas músicas
cantadas em vozes e sinais por todas as crianças, contemplando-se ambas
as línguas. A comunidade ouvinte encantou-se com o desempenho das
crianças e Guilherme pode participar das atividades integralmente'.
A terapia fonoaudiológica tem agora dirigido-se, também, para o de-
senvolvimento de sua oralização. Com base na escrita, nas letras e nas
palavras que pode ler e reconhecer, temos tentado construir sua oralização
de modo a ler sentido e poder ser compreendida por ele. E fato que ele
demonstra pouco interesse por estas atividades, contudo, o trabalho está
apenas no início eo se pode precisar que rumos irá tomar. Paralelamen-
te ao trabalho com a oralização, segue o trabalho com a linguagem, afinal
foram anos de silêncio numa idade em que a linguagem desenvolve-se de
forma vertiginosa. Buscamos agora contar histórias, trabalhar com narra-
tivas mais complexas, trabalhar com os implícitos da língua, com os jogos
de palavra/sinais, com a ironia, objetivando propiciar um domínio cada
vez mais amplo de linguagem.
Anteriormente, Guilherme frequentava uma escola especial para sur-
dos, mas seu contato com lais criançaso se mostrou suficiente para
seu desenvolvimento em LIBRAS. Hoje porém, ele encontra-se distan-
ciado da comunidade surda o que, seguramente, constitui um problema e
um desafio, no sentido de buscar grupos de surdos de diferentes idades
com os quais ele possa conviver e dialogar. E na comunidade surda que
ele terá acesso à língua de sinais cm toda a sua plenitude e poderá desen-
volver-se de maneira completa. O trabalho feito até aqui foi pensado para
solucionai", diante das condições sócio-culturais impostas, os problemas
mais urgentes de interação c linguagem desta criança. Daqui para frente
deverá ser pensada sua inserção na comunidade surda de forma mais
ampla.
Para finalizar gostaria de fazer algumas considerações. Alguns países
m desenvolvendo programas de educação bilíngue, mais ou menos
estruturados, apontando para sucessos e dificuldades de implantação
dos mesmos. Contudo, a proposta bilíngue mostra-se como aquela capaz
de dar às pessoas surdas uma possibilidade de acesso à linguagem, de
forma ampla. Tal acesso mostra-se fundamental para a constituição de
sujeitos plenos e seguros.
A experiência aqui relatadao foi premeditada, mas construída no
cotidiano do desenvolvimento desta criança, partindo de suas possibili-
dades materiais, afetivo-emocionais, familiares e sociais, buscando na
comunidade recursos que pudessem oferecer vivências mais ricas e pro-
veitosas para ela.
Contudo, trata-se de uma experiência que pode apontar para novos
caminhos no trabalho com as crianças surdas. O surdo merece ser respei-
tado em sua condição linguística; na medida em que tal condição é respei-
tada, ele pode desenvolver-se, construir novos conhecimentos de manei-
ra adequada e satisfatória. Mas, para que isso ocorra, é preciso que se
gerem algumas condições especiais, respeitando sua linguagem. E preci-
so que os profissionais envolvidos no trabalho com as pessoas surdas
reconheçam isso. A fonoaudiologia precisa rever-se, buscar novos mo-
dos de atuar. A pedagogia precisa rever-se também, afinalo tantos
anos de tentativas infrutíferas que necessitam ser alteradas.
A questão da educação bilíngue é ainda controvertida, gera polémi-
cas, mas cada vez mais, tem-se configurado como uma solução viável
para o atendimento às pessoas surdas. E nossa tarefa seguir procurando
novas formas de implementá-la, buscando soluções para esta problemáti-
cao intrigante.
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