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O outro fator, além da história das escritas, diz respeito a proposta de
ortografias para línguas em cuja história não se registra o advento da
escrita. Nessas propostas, percebe-se a total falta de um caminho histó-
rico, no caso, pensado pelo próprio índio. A escrita de sua língua lhe é
trazida pelo outro (o não-índio) que entende das regras de escrita, mas
nem sempre tem o cuidado de apreender a dimensão social e ideológica
desse processo. Orlandi (1990) aponta, dentre muitos aspectos, o modo
caricatural como têm sido escritas as palavras em língua indígena. Diz a
autora que "escrever as palavras como elas soam é trabalhar uma sua
imagem fora de sua história, de seu modo de existência".
Recorrer ao trabalho com um monitor (um falante nativo) nem sempre
garante a eficácia do processo. Porque, a todo tempo, estamos impondo
uma realidade - no caso, a escrita ortográfica - que não tem um elo
histórico, nem com a sua forma de sociedade, nem portanto, com a sua
identidade. Assim, ao se propor a essas sociedades um trabalho com a
escrita ortográfica é preciso se pensar de que forma se dará essa passa-
gem do mundo da oralidade ao mundo da escrita
:
.
Muitos são os aspectos que merecem ser levados em conta, a come-
çar pela própria noção de palavra. Em muitas línguas indígenas brasilei-
ras, são comuns os processos de incorporação de vocábulos, segundo
os quais um núcleo verbal ou nominal pode incorporar, no interior de seu
radical, vários outros radicais. Dessa incorporação, resultam não só alte-
rações morfonêmicas, como se apagam as fronteiras entre as palavras. A
ortografia que se propõe para as línguas indígenas segue os mesmos
princípios adotados para a ortografia das línguas ocidentais e, nestas,
não são previstas palavras decorrentes de incorporação.
O último fator que vou abordar se refere à discursividade.
A escrita de uma língua não se resume apenas a uma proposta de
ortografia para a palavra. A escrita tem que pressupor a estrutura textual,
;
Ao trabalhar com propostas de ortografias para grupos indígenas brasileiros, tenho
observado fatos interessantes que ilustram posições diferentes do índio, ao ter que
lidar tanto com a escrita do português, quanto com a escrita do seu idioma. Ao
aprenderem a escrita do português, uma escrita que já vem pronta, cristalizada, não
registro nenhum dado que possa revelar a interferência do índio no processo de
construção dessa escrita. Ao contrário do que observo, quando o que está em jogo é
a linguagem indígena. Quando estive entre os Tapirapé (índios Tupi), trabalhando na
organização de cartilhas em língua Tapirapé, me chamou a atenção a insistência de
um dos nossos monitores índios em dar à palavra ?poko 'comprido' a seguinte
representação ?po?ko?, na qual o símbolo ['.'], que traduzia na escrita o fonema
descrito como oclusão glotal, foi inserido aleatoriamente na extensão da palavra.
Essa escrita particular, em nada, do ponto de vista linguístico, traduz a relação letra/
fonema prevista para a ortografia. Entretanto, ela traduz um gesto de apropriação do
índio, pela escrita de uma língua que í sua e de cuja história, ele faz parte. Como lhe
é abstraia - a-histórica - a relação letra/fonema, ele cunha a palavra com uma relação
que é sua, particular, imprimindo à mesma a identidade indígena, histórica.