Não podia haver dúvida: era ela. O olhar tinha ainda coisa do olhar de outrora. Com aqueles
destroços ele foi reconstituindo mentalmente, peça por peça, a estátua antiga. Tinha a visão
exata do passado.Representava-se uma comédia. Ritinha ria-se de tudo, de todas as frases, de
todos os gestos, de todas as jogralices dos atores com uma complacência, de espectadora mal-
educada e por isso mesmo pouco exigente.Aquelas banhas flácidas, agitadas pelo riso, tremiam
convulsivamente dentro da seda do vestido, manchado pelo suor dos sovacos.
O genro, que se conservava sério e imperturbável, lançava-lhe uns olhos repreensivos e
inquietos através dos óculos azuis. Ela não dava por isso.
- Que diabo vieram eles fazer ao Rio de Janeiro? perguntou o Flores.
- Nada... apenas passear.. . estão de passagem para a Europa.
* * *
E aí está por que o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento que não sabia
definir.Quando ele se espichou na cama estreita de solteirão, e abriu o livro que o esperava
todas as noites sobre o velador, não conseguiu ler uma página. Todo o seu passado lhe afluía à
memória.Ele e Ritinha foram companheiros de infância. Eram vizinhos, - brincaram juntos e
juntos cresceram. Tinham a mesma idade.Depois de dezessete anos, aquela afeição tomou,
nele, nela não, um caráter mais grave: transformou-se em amor.
Mas Ritinha era já uma senhora e Flores ainda um fedelho.
Como o desenvolvimento fisiológico da mulher é mais precoce que o do homem, raro é o moço
que ao desabrochar da vida não teve amores malogrados.
Foi o que sucedeu ao nosso Flores. Ritinha não esperou que ele crescesse e aparecesse:
tendo-se-lhe apresentado um magnífico partido, fez-se noiva aos dezoito anos.
O desespero do rapaz foi violento e sincero. Ele era ainda um criançola, mas tinha a idade de
Romeu, a idade em que já se ama.
Um pensamento horroroso lhe atravessou o cérebro: assassinar Ritinha e em seguida suicidar-
se.
Premeditou e preparou a cena: comprou um revólver, carregou-o com seis balas, e marcou para
o dia seguinte a perpetração do atentado.
Deitou-se, e naturalmente passou toda a noite em claro.
Ergueu-se pela manhã, vestiu-se, apalpou a algibeira e não encontrou a arma.