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fatores” (Sartre, J.-P., 1992, p. 59.), Retornaremos a este ponto –capital à teoria sartriana do
“Para–Outro” ao examinarmos com maior atenção a questão do trágico no teatro de Sartre.
Se o homem é não só agente – pois meus atos são os “modos de ser de meu próprio
nada” (O Ser e o Nada, apud Bornheim, G., ibid., p. 112), é pelo fazer que eu me faço, me
invento a mim mesmo sob o pano de fundo da nadificação–, mas também ator, o é, em
grande medida, porque esta ação, na vida cotidiana, é apanhada por uma malha de
representações, de scripts “teatrais”, cuja natureza fictícia tende a ser mais ou menos
apagada da consciência reflexiva, incrustrando–se como “segunda natureza” útil não só às
performances sociais como também como medida adicional de proteção contra os perigos –
tão vividamente descritos por Sartre no romance A Náusea (cf. Sartre, J.-P., 1986) – de
dissolução da descoberta da contingência e do absurdo
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Sobre o contexto moderno da crise do "Ser" e da expansão da teatralidade como dado mais ou menos
consciente, mas sempre decisivo, na política e sociabilidade cotidiana, veja–se a reflexão de Renato Janine
Ribeiro, na coletânea "Prêt–à–Porter 1, 2. 3. 4. 5" [2004].
A teatralidade, erigida por Sartre em aspecto fundamental da própria condição humana, quando transposta aos
palcos acaba por confluir nesta tendência mais geral do drama moderno, designada por Lionel Abel, em
estudo clássico de 1963, como metateatro, a peça dentro da peça, forma que teria nascido com o Hamlet de
Shakespeare, sendo prolongada por um leque de autores que abarca de Calderón (A Vida é um Sonho) a
Beckett, de Genet a Brecht. O metateatro implicaria uma espécie de conscientização pelos personagens
quanto ao teor de ficcionalidade que há neles próprios e nas "histórias" que vivem (cf. Abel, L., 1968, p. 141).
Sem que possamos aqui aprofundar este problema em todas as nuances, vale atentar para o encaminhamento
que Sabato Magaldi permite à elucidação da “metateatralidade” sartriana – no seu parentesco com a de Luigi
Pirandello. Diz Magaldi que o "homem de Pirandello se supõe um, mas é diferente para os vários
interlocutores. A imagem que projeta para cada indivíduo não contradiz a sua essência, como se se traísse, ao
revelar–se. Essa diversidade tem o papel de, pela união das numerosas figuras separadas, formar o homem
total – que é aquilo que ele pensa, acrescido de tudo o que ele é para os outros. (...) As reações das
personagens refletem, como em vários espelhos, um homem equivalente àquele desdobrado na narrativa do
romance". Assim também, prossegue Magaldi, os personagens sartrianos vêem–se apanhados em jogos de
espelhos nos quais sua identidade, mais que "caráteres" dados que cumpriria apenas manifestar por sugestão
externa, são, sim, constructos em vias de se fazer, relativos, momentâneos, dependentes das escolhas pessoais
mas também das imagens do eu que são fixadas pelos outros. "Ele [o indivíduo] é essa imagem. Porque a
projeção exterior é o que o marca, irremediavelmente" (Magaldi, S., 1999, p. 307). Fundado na "luta de
morte" hegeliana entre as consciências, esse jogo de espelhos repercute num senso aguçado dessas
personagens, seja como mal–estar difuso ou explicitado verbalmente, de que suas vidas se guiam segundo
"papéis" e scripts pré–estabelecidos, distantes de uma suposta "alma", ou verdade interior, ou "self" para além
das máscaras. As situações–limite, por exemplo, o inferno de Entre Quatro Paredes, o aposento dos maquis
prisioneiros em Mortos sem Sepultura, o cenário de guerra civil de O Diabo e o Bom Deus, são
particularmente propícias ao processo de perda de aderência das "máscaras" habituais e de conversão desse
próprio descompasso em tema do drama.
Apenas à guisa de exemplificação, colhemos algumas passagens e de O Diabo e o Bom Deus nas
quais se evidencia a autoreflexividade cênica das personagens sartrianas enquanto seres que "dramatizam-se"
a si mesmos ou uns aos outros (Abel, L., 1968, p. 75–6).