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Cage lançou moedas de I Ching para definir as
extensões dos três movimentos de sua música; Duchamp
recortou suas três réguas a partir de fios lançados ao chão,
também três movimentos. Além disso, a response ability de
Cage está ligada à famosa idéia duchampiana de que o artista
divide a criação com o espectador, sendo desse último o
papel de “determinar o peso do trabalho na escala estética”
31
,
o que implica tomar o espectador como agente produtivo e
autônomo, ou pelo menos imprevisível, em sua “re-ação” ao
trabalho de arte
32
. Convertida à música, essa idéia se
desdobra no que seria um dos principais legados de Cage
para a geração de Morris: a total independência entre
composição e performance – de certo modo, seguindo a
mesma idéia duchampiana, pois a performance também é
uma recepção produtiva da composição. Sua definição da
música como “escrita, por um lado, e som, por outro lado”
33
foi importante para a disseminação de uma arte baseada em
scores, tarefas e instruções, que perpassa, como vimos, tanto
a produção dos happenings e eventos Fluxus, quanto a
produção da dança do final dos anos 50 e início dos anos 60.
31
DUCHAMP, Marcel. “The Creative Act”. In: The Writings of Marcel
Duchamp. New York: Da Capo Press, 1989, p. 140.
32
Seria possível, é claro, relacionar a response ability de Cage a vertentes
da teoria literária que, nos anos 60, propuseram a leitura como atividade
produtiva. Mas seguiremos a sugestão de Liz Kotz de que fazê-lo seria
incorrer numa espécie de circularidade, já que, segundo a autora, a nova
textualidade então proposta teria entre seus reconhecidos precedentes a
música pós-serial, produto da recepção européia das estratégias de
indeterminação de Cage. Kotz dá exemplos que, em todo caso, merecem
menção. A poética da “obra aberta” de Umberto Eco foi explicitamente
baseada nos experimentos com “forma aberta” de Luciano Berio, Henri
Pousseur e outros compositores europeus do segundo pós-guerra,
enquanto Roland Barthes afirmou em From Work to Text: “Sabemos hoje
que a música pós-serial alterou radicalmente o papel do intérprete, que é
chamado a ser um co-autor da partitura, completando-a mais do que
dando-lhe ‘expressão’. O Texto é algo próximo a esse novo tipo de
partitura: ele pede ao leitor uma colaboração prática.” Citado em: KOTZ,
Liz. “Post-Cagean Aesthetics and the ‘Event’ Score”, op. cit., p. 56. Mais
um motivo, nos parece, para privilegiarmos a “arte-como-recepção” de
Duchamp, de quem Cage esteve muito próximo desde o início dos anos
40, quando se instalou em Nova York.
33
PEPPER, Ian. “From the ‘Aesthetics of Indifference’ to ‘Negative
Aesthetics’...”, op. cit., p. 34.
O comentário de Pepper remete a esta frase de Cage, em que aparecem as
três dimensões da música: “Composição é uma coisa, performance é
outra, audição uma terceira coisa. O que elas podem ter a ver uma com a
outra?” (CAGE, Jonh. “Experimental music: doctrine”. In: Silence, op.
cit., p.15). O exemplo clássico é ainda 4’33’’, com sua partitura-texto,
escrita à maneira de instruções, sua performance aberta, já que a partitura
indica a possibilidade de quaisquer instrumentos e número de músicos, e
sua audição “incidental”.
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