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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
10
Outubro/Dezembro 1971
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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR:
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO:
Octávio de Faria
Manuel Diégues Júnior
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Melo Franco
Redação: Palácio da Cultura 7' andar Rio de Janeiro Brasil.
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
ANO III
OUTUBRO/DEZEMBRO - 1971
Nº 10
Sumário
CIÊNCIAS HUMANAS
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
RAUL LIMA
RAYMUNDO SOUZA DANTAS
As relações internacionais da
América Latina no século
XIX e XX 9
Cartas do Historiador Washing-
ton Luiz 39
Cultura Popular Sergipana 47
LETRAS
ANTONIO HOUAISS
AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO ..
DAVID HUNT
ANDRADE MURICY
PAULO RONAI
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FlLHO
Discurso de Posse 53
Saudação a Antonio Houaiss .. 61
Evolução do Estilo de Churchill 67
Retratos de Cruz e Souza 77
Rachel de Queiroz 85
Era Tôrno de uns versos inéditos
de Augusto Frederico Sch-
midt 93
PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO
AUGUSTO C. DA SILVA TELLES Ura monumento do Barroco Mi-
neiro 107
Ciências Humanas
AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA
LATINA NOS SÉCULOS XIX E XX
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
S
OMOS uma imensa comunidade étnica, social, cultural, que resultou
da participação de etnias europeias, africanas e americanas. Resul-
tou todo esse gigantesco trabalho de aproximação e de integração da
aventura que, a principiar do século XVI, levou espanhóis, portugueses,
franceses, ingleses, holandeses e suecos ao descobrimento de terras,
oceanos, humanidades, que eles incorporam aos conhecimentos da
Europa.
Humanidades de que tinham notícias vagas e lhes causaram, em
certos pontos, a impressão de terem encontrado os homens primitivos
que iniciavam a aurora do mundo social. Humanidades que, ora ex-
pressavam a infância da civilização, na forma tribal por que se afirma-
vam e disciplinavam para a coexistência política, ora eram já uma ad-
mirável experiência de organizações políticas imperiais, socialistas, dita-
toriais. Toda uma vasta gama de valores institucionais, de queo se
haviam dado consciência até então e lhes surgia provocando a literatura
exótica, que foi um dos fundamentos, sob novo ângulo, do que chama-
mos de Renascimento, queo pode, portanto, ser mais limitado, na
explicação do que reflete, como força estética resultante da velha siste-
mática clássica.
Terras e oceanos, de que uma geografia fantástica lhes havia ensi-
nado uma noção limitada e pontilhada pelo que poderia haver de mais
fantástico, como fruto da imaginação humana. Terras e oceanos que
inscreveram, na ciência nova que começaram a escrever, numa veloci-
dade que lhes permitiu,o apenas a elaboração de um novo e poderoso
stock de conhecimentos revolucionários, mas a adoção de novidades que
compuseram autêntico sistema revolucionário nos vários aspectos da
vivência diária: usos e costumes, alimentos, matérias-primas para o co-
mércio e para a primeira fase de uma preliminar da empresa industrial,
técnicas de trabalho que incorporaram e foram, de então em diante, es-
senciais a suas fórmulas de existência social.
Disputando os espaços que descobriam, para o exercício de suas res-
pectivas soberanias e a consequente exploração econômica dos valores
materiais que encontraram e de logo lhes surgiram como um elemento
novo para o poderio mercantil que se iniciava, aqueles europeus funda-
ram o primeiro grande império ultramarino, que começou a desmoronar
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
em meados do século XVIII, com a independência das colônias britâ-
nicas, e tem seu capítulo final na descolonização a que estamos as-
sistindo.
Na execução das políticas que tiveram de adotar, e foi, além de um
mero transplante de instituições e de sistemas europeus, uma adaptação
resultante das forças locais, representadas nos imperativos telúricos, so-
ciais e culturais, aqueles europeus entraram em conflito. Defendiam
seus interesses valendo-se de todos os recursos. Importaram mão-de-
-obra da África para as Américas. Escravizaram ou impuseram um sis-
tema social e econômico sobre as populações indígenas com que se de-
frontaram na hora dos descobrimentos, equivalenteo apenas à escra-
vidão pura e simples, mas ao regime da servidão que vigorava na
própria Europa de quinhentos a oitocentos. Decidiram dos destinos
dos espaços onde se haviam instalado e onde se realizavam como potên-
cias coloniais, ora pela sorte das armas em guerras que mobilizaram os
grupos nativos ou alienígenas, ora pela ação de seus diplomatas, que
desse modo escreviam as primeiras páginas do que poderíamos denomi-
nar de albores da história diplomática das Américas.
O primeiro capítulo dessa história em nascimento fora a partilha
de Tordesilhas quando, sob as bênçãos papais, portugueses e espanhóis
dividiram o mundo em duas grandes fatias, com o queo apenas de-
finiam suas posições sobre as terras e as águas que descobriam mas
também sobre aquelas humanidades, culturalmente adiantadas ou não,
as humanidades que faziam a vida nas Américas, na África e na Ásia
misteriosa e distante.
As guerras ocorreram entre portugueses e espanhóis, portugueses
e holandeses, portugueses e franceses, espanhóis e ingleses, espanhóis
e franceses, ingleses e franceses. Quando se atingiu a fase da maio-
ridade política e ses termo ao mundo colonial, estava definida, per-
feitamente, a área de ação política das várias unidades em que se teria
de dividir o mundo americano: o latino e o anglo-saxão.o ocorriam
mais dúvidas. Os campos estavam perfeitamente definidos. Para tal,
a diplomacia concorrera com seu quinhão, fixando situações e área de
influência.
Entre portugueses e espanhóis, três Tratados podem ser aqui re-
cordados o de Utrecht, o de Madrid e o de Santo Ildefonso. Por
eles, o Brasil foi definido na sua contextura territorial. Entre portu-
gueses e franceses, o de Utrecht encerrou, por algum tempo, as dife-
renças a propósito da fronteira nas Guianas. Entre espanhóis e fran-
ceses, os tratados de Ryswick c Aranjuez asseguraram à França o seu
domínio na ilha do Haiti. Entre ingleses e franceses, os tratados de
Utrecht e Paris garantiram aos ingleses a Acádia e o Canadá.
O famoso «Pacto de Família», negociado entre franceses e espa-
nhóis explicaria, por exemplo, a ação britânica mais violenta sobre as
Antilhas espanholas e .seria posteriormente ainda uma motivação, dis-
tante no tempo, é certo, para as operações britânicas sobre a região
As RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA LATINA
platina. Os tratados que puseram fim às alianças europeias refle-
tiam-se, naturalmente, sobre as Américas, determinando as áreas de
ação soberana que se encerrariam no episódio da independência, já no
século XIX.
As relações internacionais, no período colonial de nossa história,
foram, assim, episódio da história diplomática dos possuidores de impé-
rios eo capítulos de história que tivéssemos escrito com a nossa par-
ticipação e a nossa decisão. Foram episódios europeus sobre o mundo
americano, mas servem como explicação para muito das reservas que
ainda hoje dificultam relacionamentos mais diretos, menos distancia-
mentos entre os vários membros da grande família que tentamos elabo-
rar em termos de integração eo de alianças políticas. É que foram
promovidas, insista-se na tese, para resolver a problemática europeia na
defesa de interesses de potências europeias queo abriamo de seus
títulos de descobrimento e de conquista sobre os solos e as humanidades
americanas. Nem por isso, todavia, devem ser ignorados. Porque real-
mente nos levaram ao plano das relações internacionais. São, conse-
quentemente, uma espécie de pré-história da nossa existência no campo
das relações internacionais.
2. Alcançada a independência dos antigos territórios coloniais, ia
começar realmente a história diplomática latino-americana. Porque seria
fruto de nossa participação no contexto universal e de nossos propósitos
para a formulação de uma política que servisse aos nossos interesses
mais diretos, visando-se à formulação de um grande princípio de solida-
riedade, de harmonia e de vinculação estreita entre os integrantes da
família continental. Essa história, no entanto,o foi continuada ou
mesmo interrompida empresa política fácil de conduzir e, portanto, que
se apresentasse realizada em termos de entendimento amplo, sereno, ve-
loz. Houve tropeços vários, que principiaram pelas diferenças que o
colonialismo deixara e determinavam a existência daquelas distâncias
entre as várias nacionalidades que iniciavam sua vida soberana. Essas
distâncias eram muito vivas e aindao foram totalmente vencidas.
Ademais, os problemas da organização dos novos Estados contribuíam
para dificultar a destruição daquele estado de espírito. Tais problemas
de estruturação política interna eram graves e levaram, inclusive, a con-
flito entre os novos Estados. O quadro que temos à vista na África e
na Ásia. a propósito das novas nações que deixaram o «status» colonial,
é, a certos aspectos, o mesmo quadro que poderemos verificar na vida
americana logo após a independência.o problemas, lembra Panikar,
comuns aos países novos.
Dissemos que com a independência começava a história diplomá-
tica da América Latina. Realmente assim foi. E começava pelo esfor-
ço no sentido da obtenção do seu ingresso na vida internacional pelo
reconhecimento da sua existência, como parte do mundo soberano. Será
conveniente recordar que a independência fora uma conquista trabalho-
sa, sangrenta, na América espanhola e na América francesa, como fora
uma solução serena, tranquila, na América portuguesa, a «Terceira Amé-
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
rica», da denominação muito acatada de Nestor dos Santos Lima. E
se assim fora, ali, tambémo será desnecessário recordar que essa con-
quista estava relacionada com a trama de que participavam ingleses e
franceses, dominados pela ideia de destruição do velho império espa-
nhol. A intriga, urdida à volta dos sucessos que agitaram e ensanguen-
taram a América espanhola, vinha de longe. No decorrer do século
XVIII constituirá uma constante das preocupações das duas nações eu-
ropeias. Os ingleses, nesse particular,o haviam descançado um só
minuto. Toda uma vasta infiltração se verificara, no comércio de ideias
e de mercadorias de outra espécie, dentro daquele objetivo. Olga Pan-
taleão, em livro excelente, já nos deu uma síntese admirável da presença
britânica nos negócios do Novo Mundo, a título de penetração que leva-
ria ao desmembramento do império e, com êle, à conquista de uma po-
sição, para os negócios ingleses, então, como sempre, a valer-se de todos
os ardis para beneficiar-se no deve e haver das nações. Com a perda
de seu primeiro império, representado pelas colônias do norte do conti-
nente, a velha Britânia via na América espanhola, como posteriormente
na América portuguesa, onde também começava sutilmente a penetrar
com os seus residentes autorizados e seus barcos também autorizados,
campo onde realizar-se em nova experiência colonial, agora sob a forma
de um domínio mercantil mais vantajoso, mais lucrativo e muito menos
perigoso e dispendioso.
Os interesses de franceses e ingleses, na oportunidade, a certos
aspectos, poderiam ser, seo combinados,o hostis entre si. Daí
porque vamos encontrar franceses e ingleses no mesmo barco, ajudando,
com a exportação de ideias, de doutrinas e de ação combinada, na em-
presa da independência. Ora, se tal sucedia, se essa influência era
assim ponderável, haveremos de convir que o ingresso das novas nações
que surgiam na América espanhola teriam a cobertura dos dois países,
interessados em que se associassem a eles como mercados e como áreas
de uma atuação política, representada nas instituições que adotassem
para estruturação de sua vida nacional.
O reconhecimento da independênciao se processou, no entanto,
apesar daquele primeiro interesse britânico e francês, com rapidez. Ao
contrário, operou-se vagarosamente, acompanhando a marcha dos acon-
tecimentos militares. Esses acontecimentos militares haviam oscilado.
Ora eram os rebeldes que se viam vitoriosos, ora eram os peninsulares
que dispunham do êxito imediato. Em várias das regiões onde o in-
quérito se elaborara a solução fora rápida. No Prata, assim sucedera.
No Chile, no Peru e na Gran Colômbia, como no México, todavia, a
guerra cruenta, a «guerra a muerte», da linguagem da época, impedia
a independência fácil. Franceses e ingleses, do mesmo modo por que
ajudavam, temiam o insucesso das armas rebeldes. Reconhecer como
soberanos países onde a força dos vencedores era oscilante, vaga, indis-
tinta, pareceria perigoso. O reconhecimento foi, por isso mesmo, uma
partida jogada a longo prazo.o se processou prontamente. Ade-
mais. aquele princípio dinástico de absolutismo ainda provocava reservas.
As RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA LATINA
o se concebia em grande parte da Europa, a experiência liberal senão
como traição ao sistema que vira nascer os impérios continentais e à
sombra deles o ultramar. Os ingleses, queo o defendiam, receiavam,
porém, a perda de seus interesses comerciais na nova área do mercado.
Francisco Miranda recebera toda a ajuda necessária para realizar seus
objetivos. As demarches dos delegados dos insurgentes para que os
ingleses se decidissem imediatamente, Chaning, realístico, sem deixar
de animá-los, entendera, contudo, conveniente prosseguir no jogo po-
lítico, procurando servir aos interesses mercantis de sua pátria sem com-
promissos imediatos. Fracassara a expedição ao Prata.o estava
ali uma lição ? O panorama europeu, de outro lado, era de considerar
devidamente. A ilha, embora ilha,o devia expor-se aos perigos de
uma aventura. Soldados ingleses e marinheiros de Sua Majestade par-
ticipavam ativamente e admiravelmente das jornadas militares ao lado
dos insurgentes.o seria bastante, no momento ? Em 1825, agen-
tes consulares britânicos eram expedidos a Buenos Aires, Montevideu,
Santiago, Lima, Bogotá e México. E em 1825, negociaria tratados de
comércio com a Argentina, Colômbia e México. Chaning sustentava
o princípio de que na América Latina estava agora o equilíbrio para o
mundo. A França, no entanto, depois das mudanças que sofrera em
sua política externa, abandonara a posição de simpatia pela causa dos
insurgentes hispano-americanos.
De início, os novos países de cepa espanhola franquearam seus
portos aos navios britânicos. Era, evidentemente, uma providência in-
teligente. Desse modo pretendiam conquistar a compreensão e a cola-
boração mais estreita dos homens de negócio que pensavam nas soluções
nacionais. Depois, enviaram seus agentes à Europa, em particular à
França e à Inglaterra para disputar o reconhecimento. Ê conveniente
recordar sempre que Europa significa, com poucas exceções, à época,
mundo antiliberal, domínio da Santa Aliança, portanto, império do ab-
solutismo. Qualquer passo no sentido da aceitação, no concerto das
nações, de países que se modelavam, nas respectivas instituições, pelos
princípios negregados, heréticos, do liberalismo democrático das revo-
luções francesa, norte-americana, ou no pensamento dos filósofos ingleses
e de alguns avançados estrangeirados espanhóis, era, seguramente, acei-
tar a novidade, repelida pelas grandes potências continentais, queo
estavam dispostas a ceder na defesa,o do iluminismo do século an-
terior, mas daquelas fórmulas rígidas do poder emanado de Deus.
Perguntar-se-á, em consequência e a propósito e a posição da
Santa Sé ? Partira dela o primeiro ato referente ao exercício de sobe-
ranias nas Américas em fins do século XV. Agora, como se compor-
taria ? Sua participação nos destinos das Américas espanhola e portu-
guesa constituíra capítulo dos maiores de sua ação espiritual. Vanglo-
riava-se do que fizera. Como trataria na atual conjuntura, aqueles mes-
mos povos que ajudara a formar, na catequese do gentio, nas escolas
que mantivera, nos hospitais que abrira, no encaminhamento moral da
sociedade de que, com tanta penetração, era parte integrante ? Um
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
clero revolucionário pegara em armas, do mesmo modo por que pregara
a revolução, a mudança institucional, o fim do sistema colonial. Sa-
be-se que o jesuíta Juán Pablo Vizcardo sustentara a causa da inde-
pendência, acolhido na Inglaterra onde escrevera sua famosa «Carta
dirigida a los espanoles americanos». Os seminários haviam se con-
vertido em focos de difusão dos princípios franceses. O clero crioulo
era, grossa maioria, favorável à Revolução. No México, o cura Miguel
Hidalgo e o cura José Maria Mereles chefiavam os insurgentes desde
a primeira hora, pagando com a vida a ousadia das atitudes marciais e
liberais. A revolução começara no México aos gritos de «Viva Nossa
Senhora de Guadalupe». Seria bastante ? Valeriam esses gestos como
uma colaboração do Vaticano ? Do lado dos que se mantinham fiéis a
Madrid, no entanto, havia igualmente sacerdotes, missionários, religio-
sos de Ordens várias, como Bispos, lutando com as mesmas armas.
O Vaticano, na oportunidade, apesar de todo o esforço dos que
m analizando a posição que adotou, como sejam Guilherme Funlong,
Pedro de Leturia, Rubens Vargas Ugarte,o se declarou prontamente
a favor dos insurgentes. Ao contrário,o esqueceu suas ligações com
ae pátria desses mesmos insurgentes. Uma Encíclica, expedida a
30 de janeiro de 1816, pelo Papa Pio VII, exortou os insurgentes a
manterem-se afetos à Espanha. Já anteriormente recusara adotar
qualquer atitude favorável, como recusara também atender à solicitação
de Espanha para que condenasse frontalmente a revolução. Seguiu-lhe
as pegadas Leão XII na Encíclica de 24 de setembro de 1824, exortando
os rebeldes a abandonar o estado de coisas sangrento que marcava o
momento histórico. Com a vitória final de Ayacucho, sucedeu o inevi-
tável senão um ato público de reconhecimento das independências,
negociações diretas com os governos instalados para os assuntos ecle-
siásticos, o que significava um reconhecimento tácito da situação defi-
nida que se criara.
No particular do Brasil, a atitude do Vaticanoo foi diferente.
Negociara para evitar descontentamento com a Corte de Lisboa, que
crescera e se fizera à sombra de um entendimento franco, generoso e
permanente com a Roma dos Papas. Só a 23 de janeiro de 1826 se
faria a mudança de posição. O assunto foi magistralmente tratado por
Hildebrando Àcioly em livro memorável sobre atuação dos Núncios
Apostólicos no Brasil.
E os Estados Unidos ? No decorrer da revolução,o se haviam
manifestado com simpatia pelo movimento. Hesitavam.o deseja-
vam participar de eventos indecisos. Em 1» de setembro de 1815 emi-
tira uma declaração de neutralidade. Anteriormente, em julho, permi-
tira aos insurgentes o uso dos portos norte-americanos. Faltava aos ho-
mens públicos da nação americana a consciência do que valia a América
espanhola e o próprio Brasil para o futuro da posição norte-americana.
Jefferson e Adams e Clay constituíam exceção. Monroe seria outra
exceção. A falta de notícias a respeito das condições da América La-
tina era imensa. Além de Cuba, pelo perigo que oferecia se caísse em
As RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA LATINA
mãos dos ingleses, e do México, pela fronteira que mantinha,o havia
interesse maior pelo que ocorria ao sul do continente. As vozes que
na imprensa se faziam ouvir, favoráveis aos insurgentes,o encontra-
vam eco.
Note-se que os Estados Unidos tinham velha questão com Espanha,
a propósito da Flórida. A aquisição da Luisiania fora outro ponto a
constituir matéria-prima para o desentendimento. Talvez por isso, os
Estados Unidos desejavam agravar a situação. E nesse particular,
aceitavam as reclamações espanholas toda vez que, em portos america-
nos havia qualquer movimento visando a atender militarmente os rebel-
des. Em 1811, o Congresso já decidira, num pronunciamento que pode
ser tomado como uma decisão visando ao futuro e com o futuro aquela
famosa doutrina de Monroe, que povo e governo norte-americanos viam
com inquietação, a possibilidade da transferência de territórios do con-
tinente a mãos estranhas. Entre 1818 e 1819, no entanto, Adarns
compreendeu a gravidade da situação que se poderia oferecer com a in-
dependência, a ocorrer a qualquer momento. E sustentou a conveniên-
cia de ingleses e norte-americanos juntarem forças para uma operação
de envergadura visando a evitar que a Espanha pudesse, com a partici-
pação da Santa Aliança, tentar a recolonização.
Os ingleses que vinham acalentando as esperanças sul-americanas
de independência, mas em nenhum momento haviam dado qualquer pas-
so decisivo, recusaram a aliança pretendida, alegando que seus interesses
o coincidiam com os norte-americanos. Monroe, que acalentara a es-
perança desse entendimento com os britânicos, certo da permanência dos
novos Estados hispânicos na condição de nações soberanas,o se ar-
receou, então, a adotar uma nova e decisiva posição unilateral o
reconhecimento puro e simples E a 8 de março de 1822, dirigiu-se ao
Congresso solicitando o reconhecimento para a Argentina, Chile, Peru,
Colômbia e México. Os debates demoraram. Por fim, aprovada a so-
licitação, foram sendo nomeados representantes junto aos governos da-
queles países. Em 1824 era a vez da América Central, que se desligara
do México. Por fim, em 1824, o Brasil. Esse episódio, estudado mag-
nificamente por Hildebrando Acioly, era uma espécie de fecho da cam-
panha para considerar a América Latina na sua existência internacional.
O Brasil, é certo, teria de esperar ainda que na Europa a situação
se esclarecesse. E só em 1825 após a interferência britânica que asse-
gurara uma situação especialíssima no comércio conosco e a concessão
de empréstimo com que pagamos as dívidas de Portugal, donde a versão
de que a nossa independência constituíra operação de compra e se re-
vestira do caráter de um negócio em que os mais beneficiados na con-
juntura haviam sido os ingleses, é que fomos aceitos na ordem mundial.
O reconhecimento do Uruguai, da Venezuela, do Equador, da Bolívia,
do Haiti eo Domingos ocorria muito depois. Entre 1834 a 1866.
Em Aix-la-Chapelle, proposta defendida pela Rússia e pela França im-
portavam em solidariedade à Espanha na sua luta para a recomposição
de seu império.
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
Henry Clay tentara, no Congresso, conseguir uma definição ime-
diata de seu país com o reconhecimento da independência. Fora venci-
do. Pesavam razões de Estado sobre a impetuosidade ou a tempera-
mentalidade de Clay, acusado de usar da medida para criar-se uma
força política que lhe serviria na campanha para a presidência da
República.
Os propósitos de interferência nos negócios das novas nacionalida-
des por parte de potências européias, no entanto,o se encerravam.
Agora era a própria Inglaterra que compreendia o perigo existente e se
movimentava para evitar que ocorressem fatos que pusessem em perigo
seus interesses mercantis. Face ao que se desenhava, propôs então aos
Estados Unidos manifestação em conjunto com o objetivo de conter o
apetite europeu. Sustentava agora a tese anterior que os Estados Uni-
dos em 1819 lhe haviam proposto e ela recusara. Sabia-se que um
Congresso europeu seria convocado e no decorrer de suas deliberações,
a causa da América espanhola seria agitada para uma solução relevante.
Rush, que representava o governo norte-americano em Londres, como
primeira resposta sugeriu declaração imediata da Inglaterra reconhe-
cendo a independência das nações de cepa espanhola da América. An-
tes de ter em mãos a resposta definitiva de Washington, Caning, que
se entendera com a França, obtendo o compromisso deo intercessão
nos negócios do Novo Mundo, encerrou as negociações.
Monroe, a essa altura, tomara deliberação mais decisiva quando pre-
viamente ouvira 2 dos antigos presidentes da República e depois de longo
debate com o Gabinete, em mensagem, em 25 de dezembro de 1825, ao
Legislativo, propôs quatro tópicos de uma nova política. Tomara conhe-
cimento oficial, por comunicação do ministro russo, de que a ação euro-
péia seria realidade. Na nova política, Monroe sustentava que os Es-
tados Unidoso interfeririam nos negócios da Europa, reconheciam
como dependentes os territórios ainda sob dominação europeia,o ad-
mitiram porém, que as novas repúblicas fossem objeto de qualquer ten-
tativa de recolonização, recebendo como hostilidade aberta aos Estados
Unidos qualquer intervenção europeia nos negócios das novas naciona-
lidades criadas na América. A doutrina, como era natural, provocou
espanto no mundo europeu e apenas alguma simpatia nas nações ame-
ricanas.
3. Encerrada a fase dramática da aceitação da América Latina no
concerto das nações livres, surgia agora o problema de sua conciliação
interna, isto é, sua aproximação cordial, para uma vivência que permi-
tisse a potencialidade do continente face aos problemas que angustiavam
o mundo. Seria possível essa harmonia de todos ? A história diferente
das três Américaso importaria numa impossibilidade ?
Tem sido afirmado que todo o esforço nesse sentido está contido
inicialmente, nos propósitos e desejos de hispano-americanos, como se-
jam: Simão Bolivar, Francisco Miranda, Bernardo Monteagudo, San
Martin, Vitorio Cecílio del Valle, Bernardo 0'Higgins. Partira deles
As RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA LATINA
a ideia admirável desse concerto fraterno de interesses, decisões e atitu-
des face ao mundo e aos próprios negócios continentais das pátrias que
se haviam criado no século XIX para a vida autónoma. Certo ?
Em ensaio que escrevi, à luz de pesquisas de Heitor Lira, sobre as
«Origens Brasileiras do Panamericanismo», sustentei a tese de que em
Alexandre de Gusmão, quando defendeu o princípio da paz nas Améri-
cas, mesmo que as metrópoles europeias estivessem em guerra, lançava
os fundamentos de uma orientação que levaria fatalmente ao acordo entre
os povos que realizavam a empresa, criando-as como um mundo aberto
ao futuro. Mais tarde, ainda dentro de uma tese, em pronunciamentos
dos agentes de D. João junto aos governos platinos e posteriormente
com a manifestação do Império, na declaração de José Bonifácio, comu-
nicando ao mundo que éramos uma nação soberana e nas instruções
baixadas aos nossos representantes junto aos governos que se criavam
como consequência da independência na América espanhola, sustenta-
ra-se o princípio da vivência pacífica e da convivência harmónica entre
as novas nacionalidades. Uma ampla política do entendimento devia
ser o objetivo das relações entre elas para que o continente pudesse
constituir aquele mundo de tranquilidade e de bem-estar que fora o
sonho dos descobridores. E na oportunidade já se pensava, entre nós,
em uma sociedade das nações americanas, recordou Rodrigo Otávio.
o se pretende negar, com afirmação que fazemos, que aqueles
hispano-americanos tenham a glória de um mesmo pensamento, tanto
mais quanto êle passou a constituir uma das constantes da politica que,
desde Bolívar, foi sendo a preocupação dos povos de cepa hispânica.
Desejei apenas que se registrasse a raiz do pensamento, raiz de que de-
vemos ter a glória porque realmente ela nos pertence.
Tampouco caberá aqui em detalhes historiar o esforço que sez ou
discutir qual dos hispano-americanos será o autor primeiro, entre eles,
do projeto de uma assembleia que fortificasse os laços de solidariedade
do continente, preservando-o pela decisão de todos das tentativas cobi-
çosas das potências europeias. O que interessa é saber que uma assem-
bleia examinaria a problemática que surgia e criava obstáculos ao pro-
cesso de crescimento natural, mas veloz, das nações americanas. Todo
um vasto corpo de doutrinas e de providências objetivas deveria ser as-
sentado na grande reunião. Bolívar andava descrente de sua própria
obra política. Cedo se apercebera de que «arara no mar». Seu esforço
admirável, visando ao equilíbrio e à harmonia entre as facções que se
criavam e a uma solução tranquila para as distâncias que já marcavam
o momento entre os povos libertados, estava sendo perdido. Sem ser
o democrata que muitos imaginam, mas um gendarme necessário, domi-
nado pela ideia do governo forte, disciplinador, quase autocrático, face
às condições de cultura dos povos libertados. Bolívar queria tentar, no
Congresso do Panamá, obter o que até então parecera uma utopia.
Ao principiar o grande conflito que levaria à independência, a po-
pulação da América espanhola representava-se assim: América Central
e Antilhas 40,85% de índios, 17,76% de brancos, 17,48% de negros,
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
23,91% de mestiços; América do Sul, 30,46% de mestiços. No Brasil,
o quadro era este: 23,35% de brancos, 9,14% de índios, 49,75% de ne-
gros, 17,76% de mestiços. Compúnhamos uma população de 4 milhões
de habitantes. Entre 1821 e 1825, segundo Baron Castro, a situação na
América espanhola alterara-se para 18% de negros, 19% de brancos,
36% de índios e 27% de mestiços.
A população da América espanhola experimentara a crueldade da
guerra sem quartel. Seu status cultural e portanto políticoo era dos
mais vigorosos. O primarismo da multidão em armas, como posterior-
mente na luta cívica para a organização do novo poder, aquele que fosse
fruto das conveniências regionais sem ignorar as novidades que os tem-
pos impunham e deviam ser também uma expressão do pensamento de-
mocrático-liberal, em cujo nome se promovera a revolução, constituía
elemento negativo. Mestiços, crioulos, índioso se compunham com a
gente branca que se mantivera fiel à Espanha. Os chefes militares,
como os doutores saídos das Universidades em que a Espanha se mos-
trarao pródiga para a formação espiritual de seus súditos, de seu lado
porfiavam na disputa dos postos de governo.
Mas que governo seria esseo ambicioso ? A fórmula republicana
teria sido a solução para todos ? A experiência norte-americana seria
suficiente ? O caso especialíssimo do Brasil monárquico teria alguma
influência ? A tradição da realeza espanhola e o exemplo que permane-
cia na Europa, toda ela, mesmo quando sob fórmula constitucional, do
sistema monárquico,o provocariam pelo menos a controvérsia, a-
vida ?
A solução monárquica que o Brasil adotara com tanto sucesso e res-
ponsável pela unidade, que no império espanholo estava existindo,
foi solução que muitos imaginaram ideal para impor a ordem e a
tranquilidade que os países, saídos da guerra civil sangrenta, precisavam
experimentar para prosseguir através dos tempos. No México, recorde-
mos, Itúrbide proclamava-se Imperador. Anteriormente, no Haiti, Des-
salines fizera-se aclamar Imperador. San Martin e seus seguidores pe-
ruanos tinham acreditado na possibilidade de encontrar em casa reinante
na Europa um príncipe que viesse reinar no Peru. Rivadávia e seu
grupo sustentara a conveniência de um cabeça coroada para a região
platina. Uma delegação fora à Espanha, depois do fracasso de Carlota
Joaquina, para obter monarca que viesse fazer a felicidade de argentinos,
paraguaios e uruguaios. Bolívar fora tentado para a aceitação de um
trono que cobriria a Gran Colômbia, que êle estabelecera como República
confederada. Recusara formalmente. Pensava-se até em representante
das famílias reais indígenas, buscadas como restauração do poder que
haviam possuído e como testemunho universal de restituição aos legítimos
senhores do continente. Ao findar o século XVIII, Aranda, consciente
dos perigos que ameaçavam a estabilidade do império, lembrara a insta-
lação de pequenas monarquias, vassalos de Espanha, com príncipes es-
As RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA LATINA
panhóis à sua frente, nos vice-reinados em que se dividia o ultramar
espanhol. Ninguém lhe dera atenção. O «estrangeirado»o vira com
antecipação ?
As dúvidas eram grandes. A República como seria experimentada ?
Sob forma federal ou sob forma confederada, regime presidencialista ou
parlamentarista ? Civis e militares, exercendo o Executivo ? Caudilhos
ou Presidentes, democraticamente escolhidos, governando ? Essa a tre-
menda realidade com que se defrontavam os povos que iam experimentar
as excelências da vida soberana. Estabilidade governamental constituía,
portanto, o ponto nevrálgico da vida continental de raiz ibérica. No
Brasil,o esquecer, o Império estava consolidado. Os incidentes pos-
teriores à dissolução da Constituinteo haviam autorizado a anarquia.
A Carta de 1824, liberal, outorgada pelo Imperador depois de consulta
à nação, através das câmaras municipais, dera a segurança necessária
ao funcionamento das instituições.
Bolívar, soldado, homem de governo, diplomata, desambicioso, com-
preendera a gravidade da situação. Toda sua correspondência e suas
proclamações revelam seu estado de espírito, sangrando às perspectivas
de uma tragédia naquele mundo por que êle sacrificara fortuna, bem-
-estar, mocidade. Aturdido com a crise latente, Bolívar escreveria:
«No pudiendo nuestros pueblos suportar ni la libertad ni la esclavitud,
mil revoluciones harán necessárias mil usurpaciones». Ou então: «No
hay salida de la anarquia (la América es ingovernable para nosotros);
los patrícios dejaran paso a la multitud desenfrenada que, a su vez caerá
en manos de tiranuelos». A Conferência de Panamá resolveria ?
A Conferência foi convocada para instalar-se no istmo. A princí-
pio, os Estados Unidos e o Brasil tinham ficado à margem pela suspeita
que havia à volta de suas atitudes. O Brasil era monarquia, que os
olhos de Bolívar e de muitos próceres da emancipação representava a
Santa Aliança. Era acusado de imperialismo. O caso da ocupação do
Uruguai estava na linha das preocupações. A ocupação momentânea
de Chiquitos provocara outro mal-estar. Bolívar cedera às ponderações
de Santánder para seo envolver nas questões com o Brasil. Suspei-
tava, no entanto, de nosso procedimento.
No particular dos Estados Unidos, entendiam que era nação diver-
sificada pela formação política, étnica, religiosa. Ademais,o escon-
dia propósitos de expansão com sacrifício de territórios que haviam inte-
grado o patrimônio espanhol, de que as novas nações eram a continuação.
Apesar dessas reservas, tanto o Brasil como os Estados Unidos
foram convidados. Santánder, menos restritivo nas suas atitudes para
com os dois países e por entender que a reunião deveria incluir todas
as vozes do continente, expediu os convites. Os Estados Unidos cre-
denciaram dois delegados. O Brasil, um, queo compareceu, o con-
selheiro Biancardi, que regressou do caminho por ordem do Rio de Ja-
neiro. Corria o boato de que, na conferência, seria examinada e con-
denada a forma monárquica como solução político-institucional para as
Américas. A Inglaterra, por cuja conduta, embora indecisa, Bolívar
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
sentia tanta esperança, mesmo certo de que a aventura britânica ligava-se
ao exercício de sua presença mercantil nas Américas, numa rivalidade
que principiava com os Estados Unidos,o sendo assim uma atitude
de cordialidade sincera mas pragmática, também foi solicitada a estar
presente, na condição de observadora. Seria uma espécie de olho euro-
peu no procedimento das novas nações, face a seus problemas nacionais
e internacionais. Em consequência, poderia ser informante autorizado
para a Europa ausente.
Compareceram à Assembleia apenas os representantes da Colômbia,
México, Peru e Guatemala, esta, pela América Central. O Chile, que
se comprometera,o mandou delegado. A Argentina e o Paraguai es-
cusaram-se. A Bolívia tambémo compareceu.
A 22 de junho de 1826, na Sala Capitular do governo municipal de
Panamá, instalou-se a Assembleia que, a 15 de julho, decidiu transferir-se
para Tacubaya, no México. Que realizou de prático ? Elaborou um
tratado de União, Liga e Confederação; convenção regulando as reu-
niões posteriores da Assembleia; convenção relativa à formação dos con-
tingentes militares, que cada Estado daria, financiamento das despesas
respectivas e comando da força mobilizada. Por fim, uma decisão de
caráter secreto, relacionada com o uso daqueles contingentes. Da Con-
ferência resultava a decisão de uma defesa comum do hemisfério, solução
pacífica para as questões que surgissem entre os membros da grande fa-
mília continental, integridade territorial da mesma, abolição do tráfico de
escravos. O idealismo que adotarao se coadunava com a realidade
que se estava verificando nos excessos que se registravam a todo instante,
na má condução dos negócios públicos dos novos países, já a braços com
a incontinência de seus governantes, saídos dos quartéis ou das Univer-
sidades.
É precisoo deixar de registrar que anteriormente à Conferência
de Panamá, as novas nações continentais haviam firmado pactos entre
si: entre Peru e Colômbia (6-6-1822); Colômbia e Chile (21-10-1822);
Colômbia e Províncias Unidas do Prata (8-3-1823); Colômbia e México
(3-10-1823). Logo a seguir, 1828, um tratado de paz, entre o Brasil e
as Províncias Unidas, punha têrmo à guerra que lavrava entre as duas
nações, desse entendimento saindo como Estado soberano, por sugestão
brasileira, fique acentuado, e nunca por sugestão da missão britânica do
Ministro Pomsomby, como geralmente se afirma, o Uruguai que, desse
modo, deixava a área de dominação brasileira e argentina para gra-
duar-se como país livre, embora sob a proteção dos dois antigos liti-
gantes.
4. A vida da América espanhola, no decorrer dos anos que se
seguiram até encerrar-se o século,o assistiu à independência senão de
Cuba. Os outros territórios coloniais, existentes nas Guianas e nas An-
tilhas, continuaram sob soberania francesa, inglesa, holandesa. Santo
Domingo em 1861 cedeu a independência que proclamara para colocar-se
sob a proteção de Espanha. Constituíra a única exceção de país sobe-
rano que perdia a própria soberania por decisão que adotara, entregan-
As RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA LATINA
do-se ao antigo dominador, que aceitou a solicitação, mas rapidamente
cedeu ao desejo posterior dos nacionais dominicanos quando se decidi-
ram novamente alcançar a liberdade.
Os conflitos entre os paíser. da América amiudaram-se. Em 1822,
Haiti estabeleceu a unidade da ilha, atacando Santo Domingo e apode-
rando-se de seu território. Em 1825, o Brasil entrou em guerra com a
Argentina. Em 1848 fora a vez de guerra entre o México e os Estados
Unidos a propósito do Texas. Entre 1864 e 1870, Paraguai contra a
Brasil, Uruguai e Argentina. Em 1879 e 1883, o Chile contra a Bolívia
e o Peru. Em 1829, o Equador e o Peru haviam se atacado por litígio
de fronteiras.
Além desses incidentes graves, entre os países do continente, a
agressão europeia ocorrera com certa violência. Assim, em 1838, a
França tentara uma demonstração naval em Buenos Aires contra a Con-
federação Argentina; em 1863, fora a vez de Espanha em demonstração
naval contra o Peru e o Chile; em 1864, a França desembarcava tropas
no México e impunha a realeza de Maximiliano.
A formação de unidades de maior extensão territorial, de certo modo
valendo como uma restauração dos blocos constitutivos dos vice-reinados,
também entrou nas decisões políticas de então. Gran Colômbia seria
um ideal bolivariano restaurado. Na América Central, depois da inde-
pendência, a manutenção da unidadeo pudera ser assegurada,o
obstante o que, mais de uma vez voltara-se a ela como solução para as
angústias e as desordens que a assaltavam, inclusive uma agressão de
flibusteiros, comandados por William Walker. Peru-e-Bolívia, sob a
vontade do General Santa Cruz, haviam experimentado o sistema da
Confederação. Juan Manuel Rosas sonhara com a recomposição do
Vice-Reinado do Prata, o que explica sua ação militar e política contra
o Uruguai e o Paraguai, forçando a intervenção brasileira.
O que ocorria na América, por entre a desordem imposta pelos cau-
dilhos que sucediam e impediam o processo de desenvolvimento normal,
criara uma visão negativa na Europa. O caso brasileiro, sob a monar-
quia de Pedro II, depois da experiência liberalíssima, mas profundamente
grave para a segurança da unidade nacional, experiência verificada tom
o sistema regencial, constituía uma exceção. No continente, éramos, to-
davia, o povo que representava uma forma de imperialismo territorial,
que herdáramos dos portugueses na fase da formação de nossa base
física. Os entendimentos que se tentavam para a solução das contendas
de limites, ou antes, para a determinação definitiva do espaço sobre que
cada um deveria exercer o seu direito de soberania política, ocupando,
desenvolvendo, assegurando progresso e procedendo à política de inte-
gração, se de um lado conduziam a tratados de limites, navegação, boa
vizinhança, comércio, de outro nos haviam libertado daquela pecha.
Éramos o povo imperialista. Escrevia-se abertamente a respeito. Um
livro famoso fora «El crimen de la guerra», da autoria de Juán Batista
Alberdi, eminente pensador argentino. Na contenda com a Bolívia cir-
culava um texto sob o título «La Política Imperialista dei Brasil».
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
O tratado de Ayacucho fora conseguido sob ameaças ao Parlamento
que pretendera recusar aprovação. A política brasileira servirá par3
consolidar a posição brasileira, opondo-se à constituição de um novo
império, que seria aquele sonhado pelos estadistas platinos, em parti-
cular Juán Manuel Rosas, mas criara a desconfiança constante daqueles
povos. No Paraguai, desde a missão Pimenta Bueno, quando tomamos
a deliberação de assistir ao país mediterrâneo para assegurar-lhe a inde-
pendência, contestada pela Argentina, nossa presença decorria daquele
propósito inconfundível, mas que teimavam todos em ignorar ou falsear.
Herdáramos as diferenças entre portugueses e espanhóis na Ibéria. E a
forma de governo monárquico, num mundo de repúblicas, contribuía
para agravar as desconfianças.o encontrávamos amigos. Todos
nos olhavam com desconfianças. No Uruguai os partidos tinham por
bandeira sua simpatia ou sua antipatia aos brasileiros «blancos e co-
lorados».
Reagindo a uma interferência indébita dos Estados Unidos, que nos
queriam forçar a franquear o Amazonas à navegação internacional, pon-
do fim à política da porta fechada que adotáramos, mas ignorávamos
no particular do Rio da Prata, iniciáramos uma medrosa política amazô-
nica, que nos poria em contato com as outras cinco potências sul-ameri-
canas que dispunham de espaços no que poderemos denominar de mundo
amazônico. Possuíamos a entrada do rio, o que nos garantia o governo
das iniciativas. A tentativa de abertura, obtida pelos Estados Unidos,
naqueles países, como arma para forçar-nos a adotar uma nova orienta-
ção,o obtivera êxito. Desmanchamos rapidamente a manobra. Nos-
sa diplomacia era astuta, hábil, rápida e cheia de decisão. Seu sucesso
continuado, nos pleitos a que fora chamada, assegurava-lhe uma nomeada
apreciável.
Esses problemas de limiteso compunham, todavia, apenas uma
ocorrência que nos separasse dos países hispânicos. Tinham vez, igual-
mente, entre eles. Chile e Argentina contendiam nesse particular. Ar-
gentina e Paraguai também. Como Chile e Bolívia e Peru, Peru e
Bolívia, Peru e Equador, Colômbia e Equador, Colômbia e Peru, Colôm-
bia e Venezuela, Venezuela e Guiana Britânica. Toneladas de textos
se vinham escrevendo, comprovando os direitos, os títulos jurídicos e
históricos que se atribuíam os contendores. A documentação dos ar-
quivos era rebuscada e permitia alegações sobre alegações. O entendi-
mento pacífico entre as novas nações e ae pátria, Espanha, permitia
a utilidade dos depósitos de manuscritos, constantes de dezenas de ce-
dulários que se guardavam em Madrid e preferentemente em Sevilha, no
velho Arquivo de índias.
A anarquia e a caudilhagem, no entanto, constituíam o mais deso-
lador do quadro que se vivia na América livre. A sociologia negativa
que se começava a escrever e de que o «Facundo», de Sarmiento, como
«Conflitos e Harmonias de las Razas en América» eram espécimes
magníficos, fixava o ponto nevrálgico da história regional. A formação
politicao se lastreava no que pudesse haver de mais digno e humano
As RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA LATINA
na experiência dos quatrocentos anos já decorridos desde a implantação
da Europa com seus domínios ultramarinos. Alexis Toqueville, que
visitara o continente entre 1835 e 1840, escrevia: «Depois de vinte e
cinco anos de revoluções, de liberdade, só se pode esperar, nestes países,
a confusão e a desordem. O viver em perpétua revolução é o estado
normal da América espanhola; seus diversos povos, empenhados em de-
vorar-se as entranhas, perderam até a ideia de que é possível empregar
a vida em outros objetivos. A sociedade caiu no abismo do qual lhe
será difícil sair por seu esforço. Se por momento parecem aquietar-se,
é só por consequência da extenuação; é um curto descanso, precursor de
um novo período de furor revolucionário.»
Recordando a desordem que lavrava, Júlio Ycaza Tigerino, em «La
Sociologia de la Política Hispano-Americana», escreveu: En El Ecuador
en menos de cien anos treinta y cinco revoluciones, sin tomar en cuenta
las rebeliones y montines. En Bolivia, de 1825 a 1898, se produjeron
s de sessenta revuelfas. Durante la época hubo treinta presidentes de
los cuales seis murieron asesinados, mientras se dictaban, solo hasta
1877, diez Constituciones, y la Constitución de 1880 fué reformada seis
veces hasta 1931. La costumbre tradicional de asesinar a los Presiden-
tes no se ha perdidon en la democracia boliviana. El último de turno
fué el Presidente Villarroel, cuyo cadáver fuè arrojado en 1947 por una
ventana del Palácio Presidencial. En el Paraguay, desde 1814, solo
seis Presidentesn logrado terminar sus respectivos mandatos: três ge-
nerales y três civiles. Y desde 1870 hasta la fecha, es decir, en setenta
y ocho anos, ha habido cuarenta Presidentes, los cuales han tenido que
enfrentarse con doce revoluciones y veinte levantamientos armados y
con varias guerras con países vecinos. Chile, en su período anárquico
de dies anos antes de la llegada de Portales al Gobierno, tuvo cinco
Constituciones, y el Jefe de Estado, Freire, disolvió três Asambleas
convocadas por él mismo. En Nicarágua, en un período de solo catorce
anos, se sucedieron veintitrés Jefes de Estado, llamados entonces Di-
rectores Supremos. México tuvo veintidós Presidentes en nueve anos.»
Ora, mesmo em meio a toda essa desventura, a América espanhola
começara a compreender a necessidade de novos rumos. Produzia para
exportar. Os tratados de comércio que vinha firmando com as potên-
cias do Velho Mundo garantindo mercados, sob preços fixados lá fora,
davam a impressão imediata de que, do ponto de vista das relações
econômicas, vivia-se com certa segurança. As correntes imigratórias es-
trangeiras procuravam o Prata, o Brasil, o Peru. Eram italianos, espa-
nhóis, portugueses, alemães e chineses que viam na América um campo
para a melhoria de suas condições materiais de vida. As condições eu-
ropéias, nesse particular,o eram boas. A atração da Américao se
restringia, por isso mesmo, apenas à saxônica, alcançando a de raiz ibé-
rica. Uma legislação liberal permitia ao estrangeiro integrar-se na ex-
ploração da terra queo lhe era recusada.
Tratados de comércio entre os próprios países continentais foram
sendo firmados. Em 1856, a Argentina e o Chile negociaram, e fizeram
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
funcionar até 1868, um acordo comercial pelo qual se permitia que os
produtos de cada um deles tivessem entrada livre de gravames nacionais
e provinciais no território do outro, concedendo-se ainda aos cidadãos
de qualquer das duas nações os privilégios comerciais de que gozavam
os nacionais da outra. A experiência, conhecida pela denominação de
«cordilheira livre», produziu frutos apreciáveis, maso foi duradoura
pelo fato de o Chile haver pretendido estender os favores acordados aos
produtos que as duas nações recebessem por via marítima, o que, real-
mente, fugia ao espírito do diploma na sua forma original. Seguiram-se,
com semelhantes objetivos, acordos firmados em várias oportunidades
pelos países da América Central, que, em meio ãs discórdias que dificul-
tavam a unificação política da área, procuravam estabelecer regimes de
comércio livre recíproco. O Peru e a Bolívia, tal como a região platina,
tentaram, também, idênticos acordos com resultados passageiros.
As conferências continentais que celebraram e das quais éramos con-
tinuamente excluídos, como os Estados Unidos, atentaram fundamental-
mente para os problemas de natureza política uniões para evitar a
conquista, solidariedade, boa vizinhança, confederação, solução pacífica
para as contendas continentais, assistência mútua a integrantes dos
ajustes firmados em caso de agressão,o intervenção e pouco mais.
Foram realizadas em Lima (1847), Santiago (1856), Washington (1856),
Lima (1864), Caracas (1883). As atividades norte-americanas sobre
territórios pertencentes a antigos espaços coloniais de Espanha ao lado
de interferências europeias eram a razão maior dessas reuniões inclusive
aquela de Washington, a que os Estados Unidoso estiveram pre-
sentes. A esses tratados ou convênios, resultantes das conferências,
somavam-se os que se firmavam continuamente entre si os países his-
pânicos. Tomava corpo, evidentemente, o desejo de uma harmonia que
poderia conduzir ao sucesso daqueles princípios de que Bolívar se fizera
defensor. No campo das relações internacionais, a América Latina saía
da pré-história.
5 Os Estados Unidos, cedendo à evidência de que as re-
servas que lhe faziam estavam a criar-lhe uma posição estranha no con-
tinente, procuraram, antes de findar o século, ganhar um pouco do tempo
perdido. E provocaram a primeira Conferência Interamericana, que
teve sua sessão inaugural a 2 de outubro de 1889. A acusação que já
vinha sofrendo de que sua política de expansão territorial era contrária
e perigosa aos interesses continentais tomava corpo. A desconfiança
resultante crescia. Do mesmo modo por que nos acusavam através
daquela literatura de reservas, acusavam os Estados Unidos.
Frederico de Onis, a propósito, nos deu excelente ensaio em que
procedeu ao inventário da atitude dos escritores hispano-americanos na
controvérsia com os Estados Unidos, acentuando que, se havia a admi-
ração pelo crescimento daquele país, intensificava-se o receio, a crítica
restritiva. O esforço pelo crescimento territorial dos Estados Unidos
constituíra um episódio utilizado para propaganda negativa. Realmente,
As RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA LATINA
passando-se em revista a história dessa formação territorial, poderíamos
encontrar elementos que fortificassem a tese. Em 1803 ocorrera a aqui-
sição, mediante compra, da Luisiania; em 1819, aquisição da Flórida,
comprada à Espanha; em 1845, anexação do Texas; em 1848, compra
do Novo México e Califórnia, com retificação posterior da fronteira com
esse último país, e ao norte retificação da fronteira com o Canadá, o que
importava sempre em ampliação da área territorial e nunca em sua dimi-
nuição. Ao findar o século, pelos caminhos de Santa Fé e do Oregon,
as multidões de pioneiros escreviam um novo capítulo na história norte-
americana, incorporando, por uma ocupação permanente e útil, todo um
imenso espaço interior, sobre que se criavam os territórios federais, mais
tarde transformados em Estados da União. O pioneiro elaborava aquilo
que Turner chamaria, com muito acerto, a marcha da fronteira e assegu-
rava, com a grandeza territorial, a grandeza material, representada pela
rêde de centros urbanos, linhas férreas, caminhos terrestres, desenvolvi-
mento econômico. A conquista do Oeste compunha, aos olhos do mundo
atónito, um espetáculo realmente admirável como ação dinâmica e lição
de vontade e de decisão.
A previsão do que estava acontecendo fora por nós, no Brasil, cedo
registrada, conforme se verifica da exposição, de caráter reservado, que
o Intendente Maciel da Costa, que administrava a Guiana Francesa no
período em que a possuímos, enviara ao Marquês de Linhares e na qual
admitia a potencialidade futura dos Estados Unidos e do Brasil, que
deveriam servir de garantia à ordem no hemisfério, mas deviam evitar
o choque, que seria fatal seo se tivesse a precaução de criar um
Estado tampão entre as duas áreas em desenvolvimento.
No decorrer dos conflitos entre os países hispano-americanos e po-
tências europeias, os Estados Unidos haviam assumido atitude muito
poucos diligente. Apenas no episódio da intervenção no México, dera
uma colaboração apreciável a Juarez e aos que lutavam pela restauração
do regime republicano e pela reentrega do país aos seus legítimos se-
nhores, seus nacionais. O «destino manifesto», que se alegava para a
expansão interna, realizava-se naquela operação. Quando Espanha re-
tomara Santo Domingo, houvera um momento de grande expectativa.
Os Estados Unidos pensaram em ocupar a ilha, livrando-se da presença
espanhola, em nome da integridade do continente e desse modo digni-
ficando-se a doutrina de James Monroe.
A Conferência que se abria agora seria um caminho para desanuviar
o ambiente criando um novo estado de consciência e de relações entre
todo o mundo americano. Porque para a conferência estavam convi-
dados todos os países livres do continente. Note-se que, a essa altura,
o Brasil mudara de regime. A 15 de novembro transformara-se em Re-
pública Federativa. Incorporara-se, deste modo, ao sistema continental,
deixando de constituir aquela exceção que causara tantos distanciamentos
e incompreensões.
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
Condenou-se a guerra de conquista, recomendou-se a construção de
uma ferrovia intercontinental, sugeriu-se uma política regulatória de uso
dos rios interamericanos, fixaram-se linhas de ação para a solução dos
litígios pelo uso da arbitragem. Por fim, assentou-se a criação de um
organismo que coordenasse, de então em diante, as relações mercantis e
fosse uma oportunidade para o melhor relacionamento entre os povos
americanos. Esse organismo foi a União Pan-americana, iniciada sob
a denominação de União Internacional das Repúblicas Americanas, com
sede em Washington e mantida pelos recursos proporcionados pelos Es-
tados-Membros. Essa assembleia seria o início de uma série de outras
que com o andar dos tempos alteraria o conceito de solidariedade con-
tinental, partida para um instrumento que é hoje a Organização dos
Estados Americanos, a OEA, com poderes amplos, que incluem a inter-
venção nos Estados-Membros, a ajuda ou cooperação técnica, a ordem
continental, o incentivo ao desenvolvimento.
Encerrada a Assembléia, ia experimentar-se a primeira prova de seu
êxito: o caso de Cuba, em armas contra a dominação espanhola. Seguir-
se-ia o problema do canal de Panamá, a intervenção européia na Vene-
zuela e o conflito com a Inglaterra a propósito da fronteira entre a
Guiana Britânica e a Venezuela. Ter-se-ia bem claramente a demons-
tração de como frutificara a reunião no particular da nova orientação a
adotar nas relações entre os povos do continente e na interferência in-
débita de potências européias nos destinos das Américas.
O episódio da independência de Cuba e participação dos Estados
Unidos nessa façanha político-militar que expulsou Espanha das Amé-
ricas tem raiz ainda no século XVIII quando os ingleses tentaram apo-
derar-se da ilha para fortificar-se nas Antilhas e assegurar sua posição
nas colônias do sul do império que possuíam na América e de que saíram,
posteriormente, os Estados Unidos. Alcançada a independência norte-
americana, a ideia da anexação de Cuba continuou a perseguir os novos
ingleses que viam, na aquisição, aquele mesmo motivo de segurança que
herdavam dos colonizadores britânicos. Em livro memorável, José
Ignácio Rodrigues procedeu ao inventário minucioso de toda essa pre-
ocupação e dessa intenção imperial dos norte-americanos. Quando Es-
panha lutava, num último esforço por vencer a insurreição que Marti
planejava e por cuja causa perdeu a vida, os Estados Unidos viram o
momento azado para a intervenção. O afundamento do «Maine» valeu
como causa exterior. Com a derrota dos espanhóis,o foi possível,
no entanto, a anexação pura e simples como ocorreu com relação a Porto
Rico e Filipinas. A reação cubana e a necessidade de dar uma satis-
fação ao mundo, atónito com a proeza, impediu que se consumasse o
velho sonho. A «Emenda Platt», ao texto da Constituição da nova
República e pela qual era possível a intervenção no país para resguardo
da independência nacional e restauração da ordem interna quando essa
perigasse, pondo em risco talvez a própria segurança do hemisfério, foi
o instrumento legal conseguido contra princípios comezinhos de direito
público interno e externo.
As RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA LATINA
No particular do canal, os Estados Unidos,o desejando que o
capital europeu tivesse em seu poder as ligações entre o Atlântico e o
Pacífico para via que se tentava construir desde o período colonial,
quando surgira a ideia, procuraram obter os favores da Colômbia, em
cujo território passaria a nova via de comunicações. Frustrados em seus
propósitos, fomentaram a revolução (1904) no Panamá, reconhecendo
de imediato a República que ali se estabeleceu e lhe concedeu o direito
preferencial para a construção, que fracassara sob a orientação de Fer-
nando de Lesseps, e rasgaria o Canal de Suez.
O conflito entre a Venezuela e a Inglaterra eclodira face a veios
auríferos em território litigado pelas duas nações. Os Estados Unidos
interferiram favoravelmente à Venezuela. Em, resposta, a Inglaterra
disse que se os Estados Unidos assumiam o papel de protetores dos países
do continente, deveriam consequentemente assumir também as obrigações
que decorressem do protetorado.
A ação naval da Alemanha, Itália e Inglaterra sobre a costa ve-
nezuelana para exigência de pagamento de compromissos financeiros com
c capital que aqueles países representavam eo estavam recebendo o
tratamento que exigiam,o mereceu, de parte norte-americana apesar do
movimento de opinião pública haver se declarado rápida e intensamente
favorável aos venezuelanos, a atenção zelosa que se esperava. Ao con-
trário, foi moderadíssima, conseguindo, por meios suasórios, que os agres-
sores concordassem na arbitragem ques fim ao litígio. Um inter-
nacionalista argentino, Luiz Drago, à oportunidade, sugeriu a adoção de
uma doutrina condenatória do uso da força e da ocupação de territórios
na solução de litígios decorrentes de dívidas públicas. Os Estados
Unidos só posteriormente, em Haya, (1907) concordaram aceitando a
tese como integrante do corpo de doutrinas que conformariam um pos-
sível direito internacional americano.
O século XX iria assistir a profundas transformações na vida uni-
versal.o seríamos estranhos a essas transformações que nos con-
duziriam a uma participação mais intensa na própria convivência
mundial. Duas guerras de âmbito universal e dois conflitos na própria
Sul-América provocariam, no particular das Américas, novo status e
novo procedimento. Às alianças militares iriam seguir-se as alianças
para solução dos inquietantes problemas sociais que ideologias e estado
de consciência mais ativo despertariam ou provocariam. Um movimento
de alerta constante marcaria principalmente o segundo pós-guerra.
O quadro realístico da América Latina exigiria, no que diz respeito às
relações internacionais ou mesmo as interamericanas, um tratamento novo
queo poderia cifrar-se naquelas politicas um tanto utópicas ou mera-
mente simbólicas.
Nos primeiros momentos do século, o que haveria de mais impor-
tante no convívio continental seriam as intervenções norte-americanas
no Caribe e a luta pela conquista de mercados entre norte-americanos e
ingleses. Estes haviam sido os grandes beneficiários do pós-indepen-
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
dência. Dominavam o mercado de capitais, as inversões em serviços,
concediam empréstimos, governavam a economia de exportação dos la-
tino-americanos. Governavam serena e impavidamente.o tinham
rivais ou competidores. Alemães, italianos e franceseso possuíam o
mesmo vigor, nem a mesma dinâmica. O que representavam como tal
era muito pouco face ao interesse e à atividade britânica. Os capitais
excedentes norte-americanos iniciaram o que se admitiu denominar de
«diplomacia do dólar». E como tal, foi penetrando na América Latina,
em substituição ao capital britânico, aos poucos arredado até mais re-
centes episódios da perda total de expressão na Argentina, onde êle era
o dominador exclusivo.
As intervenções principiaram em 1905, quando a República Domi-
nicana viu sua alfândega dirigida por um funcionário norte-americano que
passou a cobrar os impostos com que pagava credores estrangeiros euro-
peus e norte-americanos do país antilhano. E de 1916 a 1924, a ocupação
por forças militares estadunidenses. Em 1915 era a vez do Haiti,
ocupado durante dezenove anos também por forças militares norte-ame-
ricanas. Na Nicarágua, o desembarque dos fuzileiros ocorreu em 1912,
só realmente procedendo-se a desocupação em 1933.
A América Central e a região antilhana, onde os interesses norte-
americanos eram mais ativos, passaram a denominar-se, na literatura
geográfica e diplomática, como «Mediterrâneo Americano». Vasta
literatura escreveu-se a respeito. A decisão norte-americana de inter-
venção, quebrando o princípio do isolacionismo e da preservação de seus
interesses queo deviam afetar os dos povos, pregado por George
Washington no momento em que deixava o poder e fazia a sua despe-
dida ao povo que libertara e conduzira com tanta prudência e dignidade,
recusando a permanência, o continuismo, para queo o pudesse apodar
de monarca disfarçado, era agora tônica dominante. A política do «des-
tino manifesto», sob o novo ângulo da necessidade, da conveniência e
até memo do imperativo da expansão para resguardo da potencialidade
que a nação alcançava, ou da paz americana, ou ainda do «big strit», que
Teodoro Roosevelt lançara, estava em marcha decididamente. Os Es-
tados Unidos acreditavam em que serviam a interesses da humanidade
nos atos que praticavam impondo ordem e resguardando os seus capitais
nas zonas onde se registravam sucessos que punham em perigo a paz e
os seus interesses financeiros.
Assistia-se a tudo isso, todavia, no restante das Américas, sem uma
palavra de contestação à orientação política, que rompia com todas as
deliberações votadas nas assembleias continentais. O Brasil tivera de
agir com decisão no episódio do Acre, evitando a guerra contra a Bo-
lívia e impedindo que o «Bolivian Syndicate», que Rio Branco conside-
rava, com muita clarividência, a aventura europeia na África e na Ásia,
mas impossível de aceitar-se nas Américas soberanas.
Os conflitos de limites eram ainda a preocupação maior nas nações
da Sul-América. Aquelas toneladas de textos, cheios de reivindicações
As RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA LATINA
c de razões de ordem jurídica e histórica que os arquivos e a dialética de
juristas bem nutridos nas fórmulas do direito que invocavam,o ces-
savam de publicar-se provocando uma literatura única no gênero em todo
o mundo, e realmente admirável como obra de inteligência de pesquisa
e de sistemática. Até mesmo nós, no Brasil,o escapamos com os
trabalhos extraordinários de Joaquim Nabuco e Rio Branco, que sucediam
aos tratadistas especializados do Império. Evitáramos conflitos com o
Peru, que em dado momento pensara em agredir-nos numa aventura
militar meio quixotesca, pois, segundo os que a haviam imaginado, os sol-
dados peruanos nos imporiam, com o reconhecimento da soberania de
seu país no alto Juruá, uma paz que seria assinada em Manaus, depois
de ocupada pelas forças vindas do Departamento de Loreto.
Peru e Chileo encontravam acordo sobre o caso de Tacna e
Arica. A Argentina continuava sua questão com a Inglaterra, a pro-
pósito das ilhas Falkland. Bolívia e Paraguai, sem acesso direto ao
mar, disputavam-se o domínio do Chaco. O Equador litigava com o
Peru e com a Colômbia. Honduraso cessava de protestar contra a
presença dos ingleses na outra Honduras, a que fora usurpada pelos
britânicos. A demarcação de fronteiras operava-se, no tocante ao Brasil
e seus vizinhos, como empresa incessante. Desejávamos ter de vez
encerrada a problemática da extensão de nossa base física quando essa
base física lindava com a de outros povos.
6 Com a primeira grande guerra, a América Latina ia começar
a participar dos destinos do mundo com sua presença um tanto medrosa
nos acontecimentos militares e diplomáticos consequentes. Acompa-
nhando os Estados Unidos na sua participação da- guerra, quase a tota-
lidade das nações latino-americanas rompeu as suas relações com as
naçõeso aliadas. Apenas o Brasil, com missão médica e contingente
naval de policiamento do Atlântico, teve presença menos débil. Na As-
sembleia que passou a constituir a Liga das Nações, primeira grande
assembleia para a disciplina dos negócios universais, por isso mesmo as
nações latino-americanas tiveram participação, revezando-se continuada-
mente, de acordo com a sistemática vigorante na Liga.
Entre a primeira e a segunda guerra, dois choques militares ensan-
guentaram o continente em sua parte sul — a guerra do Chaco, entre
Paraguai e Bolívia, e o conflito de Letícia. No primeiro, depois de um
esforço inútil dos dois contendores, queo se venciam, mas se esgo-
tavam, chegara-se a uma paz que fora êxito da interferência brasileira
pela delegação que mandáramos a Buenos Aires, chefiada pelo chanceler
José Carlos de Macedo Soares. No segundo episódio, os conflitantes
foram contidos pela intervenção da Liga das Nações, que designou uma
comissão, de que fizemos parte por intermédio do General Cândido
Rondon. Por fimo pode ser esquecido o problema de Tacna e Arica,
submetido a um pronunciamento popular entre os habitantes da região
para que decidissem a que nacionalidade desejavam pertencer.
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
Na segunda guerra, a América Latina compareceu com os contin-
gentes militares do Brasil e do México. O estado de guerra contra as
potências do Eixo exerceu-se, incluindo a Argentina, que foi a última
nação a declarar a sua posição beligerante. Os acordos de Washington,
celebrados entre os Estados Unidos e as nações latino-americanas, dis-
ciplinaram, em termos de ajuda, de financiamentos, a participação das
mesmas no abastecimento dos aliados na Europa e dos Estados Unidos
da matéria-prima necessária à fabricação de instrumental de guerra ou
à movimentação dos parques industriais, que sofriam da perda dos mer-
cados asiáticos ou mesmo europeus, fechados pela marcha das operações.
Essa, aliás, uma contribuição admirável, sobre que aindao se escre-
veram os livros que a consignem e indiquem na grandeza e na impor-
tância de que se revestiu para o sucesso das armas aliadas.
A consequência imediata de tudo que ocorria durante o conflito era
a mudança de espírito, a inovação tecnológica, as exigências das mul-
tidões, que desejavam o reconhecimento de suas angústias eo se con-
formavam mais com as soluções maneirosas do passado. Descobrira-
se, lembra esse homem maravilhoso que foi o padre Lebret, que existiam
fome e miséria no mundo. Na América Latina, essa fome e essa miséria
entravam pelos olhos da cara. Era preciso enfrentá-las com energia
e desejo de resolvê-las. As assembleias internacionaiso poderiam
mais progredir na ambição do progresso e de um bem-estar que fosse
ater-se a aspectos jurídicos da vida dos povos. Tinham de tomar co-
nhecimento dos novos aspectos da vivência universal.
Às vésperas da entrada dos Estados Unidos na guerra, ocorrera um
fato novo, grave, que poderia servir como prefácio à reação que se se-
guiria dos povos latino-americanos a nacionalização das refinarias
de petróleo no México. Ao invés de uma ação rápida e drástica como
sucedia sempre ontem, os Estados Unidos aceitaram a situação, evitando
romper a unidade que defendiam para que a guerra pudesse ser reali-
zade e ganha com a ação regular e uníssona do mundo continental.
Até um projeto de ação militar sobre a Argentina, que se recusava a
dar a sua participação ao lado das demais nações do hemisfério, e para
a qual solicitara-se a intervenção do Brasil, foi arredado. Novos tempos?
Nova consciência pan-americana? No México, em Chapultepec, assen-
tara-se a criação de um mundo em que houvesse menos desamor entre
os homens e em que se pudesse progredir na ambição do progresso e de
um bem-estar que fosse comum à espécie humana eo mais se res-
tringisse a poucos privilegiados. Como se ia cumprir essa decisão?
Wilson, professor de história, jurista e homem de Estado, ao final da
primeira guerra denunciara a existência do mundo subdesenvolvido, re-
clamando para êle um procedimento humano.o fora ouvido. Era
mesmo esquecido até bem pouco quando se começou a proceder ao in-
ventário histórico do assunto para identificar-se os que haviam sido os
precursores dessa tarefa de reposição do homem no quadro da digni-
dade humana. Só se lembravam dele para incriminá-lo pela prática im-
As RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA LATINA
penalista no Caribe, quando exercera a suprema magistratura de sua
pátria.
Na conferência de Havana, a que a América Latina compareceu,
realizada por convocação das Nações Unidas, defendemos o direito de
uma politica que viesse permitir que nos desenvolvêssemos com maior velo-
cidade e menor descompasso. A Carta de Havanao inscreveu os
nossos pensamentos.o teve, aliás, aplicação, rejeitada pelos Parla-
mentos de todos os países signatários. Ninguém ficara satisfeito. Logo
a seguir, uma assembleia convocada para Bogotá examinaria as peculiari-
dades que oferecíamos. Roberto Simonsen defendeu, então, a elabo-
ração do que êle chamava de «Plano Marshall para a América Latina», a
exempla do que se fazia para a Europa. O texto foi discutido ampla-
mente no Brasil. A delegação brasileira omitiu-se na oportunidade na
defesa do projeto que, se discutido e aprovado, seria o ponto de partida
do que hoje se denomina «Aliança para o Progresso».
Em Bogotá, no entanto, apesar dos tropeços de natureza política in-
terna, que prejudicaram o andamento dos trabalhos, venceu-se uma
etapa difícil. Deixou-se de vez a preocupação jurídica que marcava
preferentemente as conferências anteriores. A «Carta de Bogotá», que
assegurou constitucionalização ao sistema interamericano, deu forma es-
pecifica à Organização dos Estados Americanos, coordenando os órgãos
existentes e disciplinando-lhes o funcionamento.
No seu capítulo VI, relativo às «Normas Econômicas», proclamou
a cooperação entre os Estados-Membros da Organização na medida de
seus recursos e legislação, com o maior espírito de boa vizinhança, a fim
de consolidar suas respectivas estruturas econômicas, intensificar sua
agricultura e mineração, fomentar sua indústria e incrementar seu co-
mércio; no caso da economia de um Estado-Membro ser afetada por
situações graves para cuja soluçãoo dispusesse de meios satisfa-
tórios, poderia esse Estado recorrer ao Conselho Econômico e Social
para buscar, mediante consulta, a solução adequada. O Conselho era
um dos órgãos da OEA com estatuto e regimento próprio e a fina-
lidade de «promover o bem-estar econômico e social dos Estados Ameri-
canos, mediante efetiva cooperação entre eles», prestando-lhes os ser-
viços técnicos que fossem solicitados. Evidentemente era muito pouco
o que ali se concluía.
A Assembleia criou o Conselho Econômico e Social Interamericano
e, indo mais longe, votou outro diploma: um convênio econômico, que
afirmava o princípio da solidariedade e visava «à manutenção de con-
dições econômicas favoráveis ao desenvolvimento de uma economia
mundial equilibrada e expansiva e um alto nivel de comércio interna-
cional, em tal forma que contribua para o fortalecimento econômico e
ao progresso de cada Estado». A cooperação para o desenvolvimento
industrial e econômico, a segurança econômica, as garantias sociais, o
transporte marítimo, a liberdade de trânsito, a solução das controvérsias
de natureza econômica que surgissem entre os Estados Americanos, os
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
acordos bi ou multilaterais foram os pontos fixados no Convênio para
estimular o processo de desenvolvimento econômico do continente,o
como um todo isolado, mas como parte integrante do mundo.
Nessa ordem de ideias, celebraram-se convênios de união econômica
e aduaneira. Foi o caso da Grã-Colômbia, ressuscitadao na sua
forma primitiva, sonhada por Simão Bolívar, como bloco político, mas
como unidade econômica. O chamado «Convênio de Quito», firmado em
9 de agosto de 1948, deu-lhe forma. A Carta da Organização dos Esta-
dos Centro-Americanos, de 14 de outubro de 1951, estabeleceu os
vínculos de solidariedade daquela parte do continente, criando, entre
outros, o Conselho Econômico.
Outra Conferência, em Caracas, celebrada em 1964, deu mais ênfase
aos aspectos econômicos das relações internacionais. Os levantamentos
que se efetuavam ofereciam um panorama contristador do processo de
desenvolvimento continental. Havia 20 nações subdesenvolvidas e apenas
duas desenvolvidas, uma delas, os Estados Unidos, graduados agora na
condição de maior potência da terra e responsável pelos destinos do
humano; a outra, o Canadá. A presença da América Latina nas re-
lações internacionais deveria ser, no entanto, de agora em diante uma
presença ativa e dominada pela ideologia do desenvolvimento. As revo-
luções que levavam em seu bojo as exigências das populações que ambi-
cionavam melhoria de padrão de vida. Pregavam-se reformas agrárias.
Surgiram caudilhos que sustentavam novos princípios.o eram mais
os homens providenciais de ontem, mas talvez, emissários de uma nova
ordem.
Foi quando o Brasil tomou a decisão, pelo pronunciamento do Pre-
sidente Juscelino Kubitschek, de alertar os responsáveis pelo sistema
continental acerca dessa situação crepitante, explosiva, que era necessário
corrigir por meio de um programa que incluísse as reivindicações do
continente, que se agastava continuadamente com a prosperidade do
Extremo Norte e a pobreza do Sul a começar do Rio Grande. A 9 de
agosto de 1958 foi lançada a Operação Panamericana (OPA). Afir-
mava-se, no documento inicial, queo se tratava de «uma ação delimi-
tada no tempo, com objetivos a serem atingidos a prazo curto, mas uma
reorientação da política continental, com o fim de colocar a América
Latina, mediante um processo de valorização total, em condições de par-
ticipar mais eficazmente na defesa do Ocidente, através de um sentido
crescente de vitalidade e um maior desenvolvimento de suas possibili-
dades. A Operação Pan-Americanao é, assim, um simples programa,
mas toda uma política». A Operação Pan-Americana teve prossegui-
mento no programa «Aliança para o Progresso», lançado, em 1960, pelo
Presidente John Kennedy. Rompera-se a essa altura todo o sistema
que se pretendera até então fazer funcionar nas Américas, com a vitória
de Fidel Castro, em Cuba. A incompreensão norte-americana do que
essa revolução poderia valer como episódio a ser utilizado para as mu-
danças que os Estados Unidos poderiam patrocinar ou mesmo coordenar
As RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA AMÉRICA LATINA
c dirigir, coube a responsabilidade pela posição que aquela nação passou
a adotar incluindo-se na área comunista. Alterava-se, assim, o velho
equilíbrio que os próceres de um pan-americanismo utópico sustentavam.
Ao erro inicial, seguiram-se providências para uma política que mo-
bilizasse o continente, considerado em perigo de uma agressão marxista.
As reuniões de consulta e os entendimentos entre os governoso pro-
duziram, todavia, os resultados que se imaginaram. O procedimento
mais acertado seria a execução de programas que visassem, realistica-
mente, a solução dos problemas que angustiavam a América Latina e de
cuja responsabilidade aproveitavam-se agora os que negavam espírito de
solidariedade cristã aos norte-americanos para, acusando-os de um prag-
matismo excessivo e prejudicial aos interesses dos outros povos do con-
tinente, atribuir-lhes um peso maior nessa responsabilidade. As diver-
gências, mesmo nos Estados Unidos, eram grandes. A aplicação dos
recursos, decorrentes da «Aliança para o Progresso»,o se fazia de
acordo com os objetivos visados pelo Presidente Kennedy. Um vasto
inquérito, para verificar dos resultados que se vinham obtendo, a cargo
do ex-presidente Kubitschek e de Alberto Lleras Camargo, resultou na
constatação de rendimento inexpressivo face aos recursos mobilizados.
7 — A história da América Latina no campo das relações interna-
cionais foi aqui proposta sumariamente. Resumindo-a, poderemos afir-
mar que suas características principais podem ser encontradas no esforço
para a elaboração de um sistema de convivência entre os povos do Novo
Mundo, na interferência norte-americana na vida interna desses mesmos
povos, interferência que lhe alienou a confiança e a admiração a que os
Estados Unidos deveriam ter direito pela obra gigantesca que realizaram
para criar-se como potência material e espiritualmente poderosa. Mais,
na solução de problemas políticos que distanciaram durante algum tempo
vários dos integrantes da latinidade americana; nas operações de natu-
reza econômica, representadas pelos empréstimos externos, alienação de
suas riquezas naturais aos interesses dos capitais alienígenas, manutenção
de mercados no exterior através de convênios e tratados de comércio que
garantissem preços e compras para os produtos primários que expor-
tassem.
As assembleias continuadamente se realizavam, convocando o con-
tinente para os graves problemas de natureza jurídica que exigiam pronto
atendimento,o atingiam objetivos maiores. A mudança de orientação
adotada apôs a segunda guerra e face ao problema criado pelo episódio
de Cuba, levou finalmente à preocupação de um novo sistema, o da inte-
gração em termos de economias complementares e solitárias, ao tipo que a
Europa executara para vencer a crise, decorrente do fim do colonialismo
na África. O mercado comum e os acordos tarifários, o mercado comum
centro-americano e o mercado comum e os acordos tarifários, o mercado
comum centro-americano e o mercado comum sul-americano representam
a etapa e o critério mais acertado. Em Punta del Este, a estratégia pro-
clamada consubstanciou-se justamente na luta para a destruição do sub-
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
desenvolvimento e para um pan-americanismo que deixasse as preocupa-
ções meramente jurídicas para proclamar como tônica a solidariedade
econômica e cultural. Um instrumento copioso foi previsto e em muitos
casos já foi adotado para funcionamento mais veloz e rendimento mais
imediato.
No particular de outras manifestações de vitalidade como compor-
tamento nas assembléias internacionais face aos problemas universais, a
história da América Latina no campo das relações internacionais tem um
haver muito pequeno ainda. Ninguém tentou propô-la. Acreditamos
que seja esta a primeira tentativa para uma visão global do que ela ofe-
rece de expressivo ou menos desinteressante. Essa história, aqui resu-
mida, constituirá um logro, uma mistificação ou nos assegurará uma po-
sição dignificante no panorama das relações internacionais? Os homens
que am escrevendo com a sua dedicação, a sua intrepidez, o seu ci-
vismo e o seu sentimento de solidariedade humana poderão deixar de
merecer a nossa compreensão e o nosso respeito? Constroem um pedaço
de um mundo que deve crescer e multiplicar-se com a nossa participação
e a nossa decisão.
Há por toda a América Latina uma exacerbação nacionalista, que
causa alarme, receios, mas também provoca a compreensão de um setor
que começa a atuar nos Estados Unidos, o setor universitário. Ali mes-
tres e discípulos sentem que há erros que explicam as distâncias que se
criam e se fortificam incessantemente. Três nações novas acabam de
surgir na área americana Tobago, Trinidad e Guiana.oo
partes do mundo latino americano, o nosso mundo. Maso partes da
humanidade americana. A maturidade que faltava a todos começa a
chegar. Será que poderemos responder a Bolívar naquela dúvida que
o atormentava e parecia uma verdade impossível de contestar? Pode-
remos em futuroo muito distante afirmar, contrariando-o, mas
satisfazendo seu sonho de anos de lutao arou no mar!
* * *
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WILLIAM SPENCE ROBERTSON Hispanic-American Relations with the United States
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CARTAS DO HISTORIADOR WASHINGTON LUIZ
RAUL LIMA
W
ASHINGTON Luiz Pereira de Souzao somentez história, foi
personagem, mas também escreveu história.
Sua obra A Capitania de São Pauto é considerada clássica. Ca-
pistrano de Abreu, em carta do autor, a declara «um estudo sagaz,
erudito, compreeensivo, um capítulo quase definitivo da História de
o Paulo».
o admira, pois, que se correspondesse com outros historiadores.
E um deles foi Alberto Rangel, de quem se comemora este ano o
centenário de nascimento e cuja correspondência passiva se achava, em
grande parte, no Arquivo Nacional, onde podem ser consultadas mais
de cinquenta cartas e cartões escritos por Washington Luiz no curso de
mais de dez anos.
A primeira peça, em ordem cronológica, é uma «Carte Pneumatique»,
de Paris, a 15 de maio de 1925, quando ali também se encontrava o
destinatário. O ex-governador deo Paulo dizia estar habitualmente
no Hotel Vernet, de 1 às 2,30 e de 2 ãs 10,30, à disposição de Rangel
mas manifestava a intenção de procurá-lo para ter o prazer de sua
conversação.
Ainda da capital francesa acusa o recebimento de carta que lhe
deu «a impressão bem nítida de Eu, silencioso hoje, inquieto e agitado
antanho, no tempo dos Lorraine». Expressa o seu interesse por esse
período o das guerras de religião que os Valois, os Bourbon e os
Guises encheram «fazendo transbordar até na França Antártica». La-
mentao poder ir visitá-lo no Castelo, oportunidade que teria anos
depois e lhe deixaria impressão duradoura, como se verá adiante.
O Presidente da Repâblica do quatriênio 1926-1930, além de- um
cartão agradecendo a oferta do livro Papéis Pintados e de um telegrama
expedido do Palácio Rio Negro para bordo do vapor Alcina, no qual
fazia votos de boa viagem e de que «voltando ao seu povo continue
a produzir seus trabalhos úteis quanto interessantes», escreveu, naquele
período, várias cartas, umas do próprio punho, outras datilografadas.
Na primeira, de dezembro de 1926, o signatário está em lua de mel
com o poder e vê melhoras na situação do país, a começar pelo resta-
RAUL LIMA
belecimento da ordem em Goiás, Mato Grosso e alguns Estados do
Sul, e pela boa repercussão do projeto de reforma financeira.
A ambos esses aspectos voltaria a referir-se em fevereiro seguinte.
Na segunda carta nesse mês, de Petrópolis, traça um panorama nacional
animador «boas notícias para um coração brasileiro». Mas também
se ocupa de assuntos históricos, a propósito do recebimento do livro
de Tobias Monteiro, cujo títuloo menciona mas que há de ter sido
História do Império, 1º Volume, assinalando ser a época a que se refere
o da verdadeira independência, «pois que o 7 de Setembroo é senão
a desarticulação da monarquia portuguesa». Daí também o interesse
com que aguarda a 2ª edição de D. Pedro / e a Marquesa de Santos,
objeto de outra carta, em agosto, de agradecimento pela oferta de um
exemplar.
Nesse mesmo ano, de 1928, remete um volume de A Capitania
de São Paulo, juntando cópia da carta, acima citada, de Capistrano
de Abreu, e dizendo, com modéstia, que o livro vale apenas pelo do-
cumento que o acompanha.
Em 4 de junho de 1929 acusa carta recebida de Londres, de onde
Alberto Rangel lhe anuncia o preparo do Álbum de Chamberlain, idéia
que abandonaria constatando que os desenhoso eram de quem os
assinava, mas, sim, do português Joaquim Candido Guillobel, como
sustenta em seu livro Transanteontem, editado em 1943. A propósito
do projeto, há no arquivo cartas de Neville Chamberlain, que viria a
ser o ministro da capitulação da Inglaterra a Hitler, dez anos mais
tarde, enviando-lhe a fotografia do avô, parentesco que é negado por
Rubens Borba de Morais, no prefácio à edição brasileira das gravuras,
cuja autoriao pouco discute. E o Presidente comenta outros planos
do destinatário prestando-lhe informações sobre funcionário da época
pombalina, Botelho Mourão, «probo e enérgico», embora de ação apenas
reflexa, «pois tudo vinha então da Metrópole».
A última carta enquanto ainda no governo é datada de 15 de
maio do ano da deposição e do início de um longo exílio.
E como destinatário e missivista estavam iludidos. O Presidente
agradece os cumprimentos «pela feliz terminação do pleito presidencial,
o qual se feriu na mais perfeita ordem, dando com isso o nosso país
uma prova do seu adiantamento político». E concluía, eufórico: «Po-
demos todos regosijar-nos com o resultado obtido».
Até aí o homem público, o chefe do governo. Em seguida a carta
trata dos assuntos literários, o recebimento do livro Papéis Pintados,
editado em Paris, que afirmava haver lido com muito prazer, e já
espera, com ansiedade, o Fura Mundo que o confrade lhe anunciava,
porémo chegou a publicar.
A correspondência no exílio é intensa, crescendo de conteúdo
intelectual à medida que o tempo passa e que o velho estadista, ha-
CARTAS DO HISTORIADOR WASHINGTON LUIZ
vendo perdido a companheira de tantos anos, mais se dá ao estudo e
à meditação.
Em 1932, sabendo da intenção de Alberto Rangel de escrever a
biografia do Conde d'Eu, estimula-o ao estudo da organização militar
na fase marcante que se estende da Guerra do Paraguai à proclamação
da República. Observa: «Está aí nesse pequeno período a afirmação
da nossa política no exterior, a abolição da escravidão, essa revolução
política, a revolução militar, a revolução econômica. ..».
Exalta a figura do «chefe de família exemplar, príncipe consorte
irrepreensível, soldado valente e grande capitão sem ostentação, bra-
sileiro de grande patriotismo». E indica, com melancolia, a necessidade
de que a História faça justiça ao Conde d'Eu, porque, dizia, «o povo,
distraído ou esquecido, só se lembra dos que lhe fazem mal».
Ao assunto volta no ano seguinte, na correspondência trocada sobre
a ida ao «velho castelo normando que paras já vive também, guar-
dando desde algum tempo recordações inestimáveis da História do
Brasil», tendo palavras de exaltação a Isabel, a Redentora.
Convidado pelo Príncipe D. Pedro, vai com a esposa e na com-
panhia do amigo faz a sonhada visita, escrevendo depois: «O belo
momento de sol, que nesse dia nos foi dado, a excursão magnífica pela
Normandia fértil, a sua afeição, a afeição brasileira que lá sentimos e
partilhávamos, o acolhimentoo simples eo natural, na sua simpli-
cidadeo fidalgo e na sua naturalidadeo carinhoso, que o Senhor
D. Pedro nos dispensou, tudo concorreu para que tivéssemos a im-
pressão poderosa de nos acharmos de novo no nosso Brasil, nas horas
em que a gente se sente bem e digna, e dela guardaremos inesquecível
recordação».
O trecho é do homem de letras e do patriota. Aliás, nessas de-
zenas de cartas do último Presidente da velha Repúblicao se en-
contra crítica amarga, nem constante azedume, apenas ligeira crítica
a alguns fatos políticos, alusões a dificuldades criadas pela situação
cambial.
Saudades, o sofrimento da mulher, a busca constante de melhor
clima que ia buscar até na Sicília a mágoa, enfim, do exilado.
Justamente 1934 seria o ano crucial, o da morte de D. Sofia.
Ao agradecer os votos de felicidades para aquele ano, chega a dizer
que tem encontrado alguns amigos «cuja revelação consoladora me
levaria a dar graças ao infortúnio, se eles só então tivessem aparecido».
Deixa Paris em busca de melhoras para a saúde da esposa, Rangel
o conforta e êle agradece o interesse pela sua «traquilidade afetivao
rudemente ora abalada». A 12 de junho, da Clinique Bois, em Lausanne,
diz que as esperanças estão na graça de Deus. E, de fato, naquele
mesmo mês, ocorre o que chama de «suprema desgraça que pode atingir
o homem na terra». Agradece ao amigo os pêsames e concorda com
RAUL LIMA
a concisão romana das palavras que lhe sugere para exprimir o que
foi a sua «santa companheira».
Dela, mais adiante, em carta de 12 de outubro, recordaria também
a maneira como se manifestava sobre a inesquecível visita ao Castelo
d'Eu «parece-me que tornei a viver em casa de meus pais», ante o
«abandono confiante e afetuoso» com que o casal foi tratado.
Mas, já nessa mesma missiva, falando na insistência dos filhos e
dos amigos para o seu regresso, comenta o interesse pela realização
das eleições naquele ano, «período de aparente legalidade», achava
que a entrega dos Estados ao proconsulado dos interventores limitaria
tudo a um balanço de forças. E, provocado pelo correspondente cons-
tante, defende a mestiçagem «regra fatal a que nenhum povo atual-
mente escapa» e que, pergunta, «não será para mais tarde, um sintoma
de fraternidade»?
O trecho da carta deve ser de todo conhecido:
«Não é a mestiçagem, a que a sua carta faz alusão, que me im-
pressiona. A mestiçagem é a regra fatal a que nenhum povo atualmente
escapa.
s a temos em moreno, como os povos do norte da Europa a
m em louro, como a Ásia a tem em amarelo, como a África a tem
em preto. Veja, por exemplo, essa Iugoslávia, cujo rei acaba de morrer
de maneirao bruta eo execrável, que é composta de croatas, eslo-
venos e sérvios, as três principais raças confessadas, fora as menores,
desde a passagem dos Hunos, a dominação dos Turcos, etc. Mesmo,
a Germânia, que faz a política racial de Hitler, de quantas misturas
é ela constituída, desde os Slavos da Rússia oriental, dos encandinavos
árticos, dos saxões, etc. até semitas, que muitos séculos de promiscuidade
o de ter caldeado, e que, por mais violenta e exclusiva que seja,
a ditadura atual jamais expurgará. Ao menor choque, em qualquer
parte, a superfície, que parecia unida e igual, se estilhaça. Veja, ainda
neste momento, o antagonismo dos catalãs, dos Bascos em face dos
Castelhanos, Andaluzes e o resto. Há alguns meses li em Kayserling
que a mestiçagemo é um mal desde que se apurem e se conservem
as boas qualidades das raças, que se misturam.
A mestiçagemo será, para mais tarde, um sintoma da frater-
nidade?
Apesar da história feita, Pedro Alvares Cabralo descobriu o
Brasil, mas apenas Porto Seguro, que êle supôs ser a ilha de Santa
Cruz, e que como tal anunciou ao seu Rei.
A constituição territorial do país, a definição geográfica do Brasil,
mais tarde homologada pelos tratados diplomáticos, foi feita duramente
pelas bandeiras brasileiras, principalmente partidas deo Paulo, com-
postas de todas as raças, de todas as mestiçagens.
CARTAS DO HISTORIADOR WASHINGTON LUIZ
O território, cuja integridade tem resistido a todas as vicissitudes,
está formado. O povo está em formação.o poderemoss aguardar
o resultado, visto a curteza da vida humana mas outros verificarão
talvez».
Na mesma carta expressa o seu sofrimento também pela França
e volta a recordar D. Sofia a dizer, em Paris, quando sentia o fim:
«Doutor, salve-me nesta França, que tanto amo».
Cuida de construir um mausoleu para mandar parao Paulo,
onde repousa «a companheira de todos os tempos». Pretende ir a
Génova para entender-se com um escultor amigo e quer inscrever o
epitáfio sugerido na carta de Rangel, a qual se encontra, porém, em
outras malas no momento fora de seu alcance. Pede, por isso, a re-
petição da sugestão.
A existência, no arquivo, de minuta da carta de pêsames, atrás
referida, permite identificar a frase de «concisão romana» Patriae
Desiderium Man Perdidit. Conforme repara em carta posterior, a última
daquele ano de 1934, «de fato foi a saudade de sua gente e de sua
pátria que matou Sofia, saudade contida entre a tortura deo me
abandonar e assimo podendo rever os seus».
O escultor, que prometeu traduzir em mármore o conceito, cha-
mava-se Brizzolara.
Está sem notícias do Brasil onde imagina que estejam ainda
«preocupados com as despistações do pleito de 14 de outubro».
Pede notícias do Conde d'Eu, (publicado com o titulo de Gastão
de Orleans) e comenta a atividade de Afonso de Taunay, então em-
penhado em assegurar ao Padre Bartolomeu de Gusmão a prioridade,
na aerostática.
Ainda naquela carta, de Nice, já às vésperas de Natal, o histo-
riador ressurge na plena posse dos seus pendores. Longe dos seus livros
e sem os seus arquivos,o deseja escrever nada que possa sofrer
contestação. Também por isso dizo poder servir ao confrade nas
indagações sobre Cunhanbcbe, mas puxa pela memória e se estende por
várias páginas sobre o chefe tamoyo, a quem os inimigos, segundo
sua suposição teriam dado aquele nome como apelido pejorativo: em
tupi, cunha (mulher) peba ou bebe (gorda ou chata). Refere-se a
leituras, hesitando se em Hans Staden ou Anchieta, seguramente a
Capistrano, arrola outros autores sobre a época da França Antártica,
como Jean de Léry, e aos brasileiros que nela se inspiraram, o poeta
Gonçalves Dias com A Confederação dos Tamoyos, o romancista José
de Alencar com O Guarani, o músico Carlos Gomes com a ópera do
mesmo nome e a Lo Schiavo, o pintor B. Calixto e os estudiosos de
história.
Sobre a composição do Poema da Viagem, recorda que visitando
Ubatuba, onde, segundo a tradição, Anchieta o escreveu, notara que
RAUL LIMA
«as areias das praias eram grossas e dificilmente se poderia sobre elas
escrever, ao menos na época em que as vi».
Refere-se ao período em questão, durante o qual aquelas costas
do Brasil foram disputadas entre portugueses e franceses, como uma
época brilhante, tanto quanto, ressalva, «pode ser brilhante a história
de um pedaço da América desconhecida, habitada por selvagens, objeto
da cobiça traficante de povos rivais».
E,, compara o silêncio, que sobre elas caiu, desde quando ficaram
pertencendo definitivamente aos portugueses, com um estado de sítio
republicano ou um regime discricionário.
Promete, se algum dia voltar aos seus penates, mandar coisa mais
útil, mas concita Rangel a publicar o livro sem esperá-la porque, assinala
com humor, seria «esperar sapatos de defunto».
Outra vez referindo-se a Taunay, lamenta que o fecundo histo-
riador tenha abandonado a História das Bandeiras,o necessária.
No final, diz que permanece ainda em Nice, lançando esta frase
simples e curiosa, diríamos machadiana: «Nada ainda resolvi eo
resolver é ficar, o que também é uma forma de resolver».
A correspondência prossegue em 1935.
Voltando à grafia da palavra Cunhabebe e às dificuldades para
fixá-la, alude que nos primeiros tempos da descoberta a formação da
linguagem tupy dependeu mais do ouvido infiel dos civilizados do que
das vozes dos selvagens. «Só mais tarde» acrescenta com bom
gosto no dizer . «quando os jesuítas domesticaram também as pa-
lavras, foi possível fazer a gramática e o dicionário tupys e ensiná-los
aos índios, constituindo-se assim mais uma língua».
Discorre longamente como um filólogo, demonstrando memória e
erudição, levanta questões e oferece indicações, como a de procurar
o conservador da Biblioteque Nationale, em Paris, Mr. de Roncière,
organizador de uma exposição de mapas e gravuras referentes à França
Antártica ou Amérique Française.
Em maio acusa o recebimento de Gastão de Orleans e preocupa-se
com a vileza do câmbio. «A situação em nossa terra continua mais
poída e cada vez mais tensa», dizia ainda naquele mês, entre leitura
intermitente do livro do amigo e os afazeres com arrumações e revol-
vimento de velhos guardados.
As cartas seguintes entram mais fundamente na apreciação da
obra, à qual faz sóbrios mas fundamentados elogios com observações
próprias sobre o biografado e sobre o Brasil do fim do segundo reinado,
mal conhecidoo obstante ter nele vigorado e liberdade mais com-
pleta do pensamento falado ou escrito».
As restrições que teria a fazer seriam a «algumas apreciações
relativas à república, à sua propaganda e aos seus homens, pois que
CARTAS DO HISTORIADOR WASHINGTON LUIZ
de alguns fui amigo pessoal e admirador de seus talentos e virtudes».
A sustentação de seu republicanismo seria objeto de outra carta, na
qual sumariza os benefícios indestrutíveis do regime.
Naquela, apreciando as agitações populares, as incompreensões,
reflete que nenhum homem que detenha a mínima parcela de poder
público pode pensar em gratidão, embora ache que, em regra, os povos
oo injustos.
Recorda o Tietê, seu rio tutelar em que «havia dias em que as
águas passavam límpidas e tranquilas, como havia dias em que elas
eram tumultuosas e barrentas, a desbarrancar as margens, arrastando
árvores, em cheias ameaçadoras».
Assim, o rio era sempre o mesmo, como as naçõeso sempre
as mesmas, mas as águaso sempre outras, «as gentes que gritam
ou se agachamo sempre outras». Teria Washington Luiz recordado
este seu modo de ver quando, de volta do exílio, doze anos mais tarde,
teve consagradora recepção?
Das origens profundas do seu republicanismo recorda ter o pai
dado aos filhos os nomes de Washington, Lafaiete e Franklin, «mos-
trando, pelo internacionalismo da escolha, queo era só aos homens
que queria reverenciar» e sustentao ser o regime responsável pelo
que então se passava no Brasil.
Das notícias que daqui recebe, as referentes à situação cambial
o obrigam a cogitar de regresso. Mas nem isso nem a saudade dos
filhos, dos netos e dos amigos, de tudo que é seu, já por cinco anos,
«período doloroso», o trariam de volta senão restabelecido o regime
com a promulgação da Constituição pela Assembleia Constituinte.
A carta relativa ã época do Natal é cheia de melancolia e inquie-
tação, embora também de muito afeto e reconhecimento ao corres-
pondente fiel. «Os que estudam o passado vêem melhor o futuro».
E, partindo daí, levanta múltiplas especulações sobre o que se está
passando no Brasil, a começar pela hipótese, tantas vezes e ainda
hoje sustentada, da «crise de crescimento» e chegando a outras mais
gerais, de natureza universal.
Em 1936 a correspondência se rarefaz porque, durante parte desse
ano, encontram-se ambos em Paris. O Presidente acompanha os tra-
balhos de Rangel, informa sobre as constantes mudanças em busca
de clima conveniente para sua idade e comenta de passagem o que
ocorre no Brasil.
De 1938o as últimas peças da correspondência existente no
Arquivo Nacional, a primeira sobre a entrada do ano, e as melhoras
de saúde dae e do filho do destinatário lhe provocam este comen-
tário: «A velhice é moléstia, sim, mas que se acostuma à vida e a
mocidade tem recursos que a ciência ignora». Sobre as mágoas e so-
bressaltos queo faltam aos brasileiros, observa: «Verdade é que
o mundo inteiro sofre, o queo é consolo mas ensinamento».
RAUL LIMA
Dois cartões de maio daquele ano referem-se a livros. Um do
amigo, No rolar do tempo, outro, cujo títuloo menciona, «de leitura
pesada, mas bem leve em face da execução melódica e implacável que
tem dado às doutrinas que contém». Parece fora de dúvida tratar-se
do Minha Luta, de Hitler pois acrescenta: «O autor escreveu o que
lhe estava na almao tudo com o espírito odiento convencido,
mas no trono do santo império a que ascendeu, vai tudo pondo em
prática, diante do mundo avacalhado. Nada há mais que a força em
toda a sua brutalidade».
Seria o desencadear dessa brutalidade, seguido da reação de
outros líderes e seus povos, que determinaria grandes mudanças no
mundo do seu tempo, repercutindo no Brasil, o início de um processo
cujo desfecho oferecia condições psicológicas adequadas ao seu retorno
à pátria, em 1947.
Porventura o passeio através das dezenas de cartas suas propor-
cione uma contribuição ao estudo de uma personalidade marcante, vo-
luntariosa, a quem talvez haja faltado certa sensibilidade para bem
interpretar toda a exata realidade no momento histórico em que exerceu
o poder, mas a quem sobraram virtudes morais, intelectuais e cívicas.
CULTURA POPULAR SERGIPANA
RAYMUNDO SOUZA DANTAS
O
s sergipanoso uma gente de ricas tradições populares, apresen-
tando o seu folclore, por isso mesmo, aspectos bastante diversi-
ficados.o seria exagero, por exemplo, afirmar-se haver um estilo
próprio, em seu comportamento, uma maneira de ser característica.
Distingue-se a gente sergipana pela sua índole, sem ser diferente,
contudo, das demais gentes nordestinas, pelo seu espírito. Suas tradições
populares, por conseguinte,o muito próprias, sem deixar, o que é
importante, de estarem integradas no complexo folclórico da região
nordestina. Projeta-se, assim, a gente sergipana, pelos seus valores
culturais, destacando-se pela peculiaridade de alguns aspectos do seu
folclore, cuja variedade de produção, sem dúvida, coloca-o como um
daqueles mananciais mais substanciosos, para o pesquisador e o exegeta.
Uma prova disso, entre outras, está no livro deste dedicado estudioso,
que é Carvalho Déda, ao qual deu o expressivo título de «Brefaias e
Burundangas do Folclore Sergipano». Trata-se de um documentário,
valiosoo só pela qualidade do material coletado, alcançando pela
sua diversidade a frentes as mais variadas da vida sergipana, dando
assim um quadro realmente representativo de suas tradições populares.
Na base desse material, sem dúvida, têm-se condições de um estudo,
que, infelizmente, o pesquisador deixou de fazer, preocupando-se essen-
cialmente com a veracidade da coleta, assim garantindo, porém, a auten-
ticidade do coligido. Esta foi, sem dúvida, sua intenção, com o que
chama de modesta brochura, cujo valor transcende, no entanto, o de
contribuição de simples garimpeiro. Na base desse material, pois, no
qual está o mais característico do espírito e da sabedoria da gente
sergipana, minha gente bem-amada,m os estudiosos elementos funda-
mentais para análise de uma realidade viva e palpitante. Constitui-se,
essa realidade, de tradições, linguagem e costumes, que dizemo apenas
das relações sociais que se estabeleceram em meu Estado, mas também
do sincretismo cultural que resultou do processo de transculturação ali
registrado.
Sua preocupação maior, nessa pesquisa, pelo vistoo foi catar
origens, ao recolher os fatos folclóricos, mas coligi-los na forma em que
os encontrou, modificados pela elaboração que lhes deu o povo, com
RAYMUNDO SOUZA DANTAS
a sua própria maneira de ser. Interessou-se, essencialmente, pelo que
viu e pelo que viveu, em suas andanças pelo interior do Estado,o se
detendo a indagar qual a matriz, se lusitana ou ibérica, se africana ou
indígena. No conjunto do que colheu, há muita coisa, comoo podia
deixar de ser, comum a outras partes do Nordeste, mas apresentam
traços que imprimem certa diferenciação, quanto aos seus elementos
ilustrativos, dando-lhes marcante interesse. Por outro lado, existem os
fenômenos genuínos da terra sergipana, explodindo essa especificidade
através de manifestações as mais variadas, desde os contos populares,
aos provérbios, desde as danças às crendices, sem esquecer a poesia
popular, cenas, figuras e episódios.
II
, porém, um aspecto do folclore sergipano, o chamado ergoló-
gico, sem qualquer traço de presença nessa pesquisa, aspecto esse que,
a meu ver, representa o que se pode apresentar como de mais represen-
tativo. Trata-se do folclore da arte popular e das técnicas domésticas
de artesanato. A cozinha, como a cerâmica sergipana, a sua escultura
em madeira e a inimitável ourivesaria, os trabalhos em couro e os tecidos,
rendas e bordados, inclusive habitação e transporte, formam um capítulo
dos mais ricos. Haveria, ainda, a falar sobre a pirotécnica, em cuja arte
o sergipano se esmera, oferecendo verdadeiros festivais nas épocas
juninas, das quais guardo lembranças que me dão, dos mesmos, saudade.
Na verdade, o folclore em Sergipe tem veios insuficientemente explo-
rados, quer em sua forma recreativa, quer em sua forma utilitária.
Poucoso os dados conhecidos, por exemplo, sobre cozinha ou
alimentação. Um dia desses, aqui no Rio, conversando com o marido
de uma sergipana, dizia-me êle da perplexidade em que ficava, com o
consumo que sua mulher fazia da farinha de mandioca, usando-a prati-
camente em toda espécie de prato e até de sobremesa, inclusive com
frutas, misturada no leite e com pimenta e mel de engenho ou de abelha.
Falando-me sobre o assunto, aquele sulista, pois o marido de minha
conterrânea em causa é sulista, feria uma das especificidades do sergi-
pano que, pela sua importância, mereceria maior atenção dos pesquisa-
dores. Outro aspecto, que precisa de uma urgente pesquisa sistemática,
no meu Estado, é o relacionado com a cerâmica, seja ela permanente,
como pratos, potes, porrões, panelas, moringas, ou representativa de
bichos, personagens típicos, cenas domésticas e populares, seja ela
periódica, retratando fatos e festividades. Haveria, ainda, a pesquisar,
com mais profundidade, a arte da renda de bilros,o apreciada em
minha cidade natal, Estância, chamada de renda de almofada.
Ainda trago o gosto da viagem em carro de boi, pelo interior do
município de Estância, cujos tipos eram os mais diversificados, predo-
minando a carroça de boi. Infelizmente, e aqui me valho do grande
CULTURA POPULAR SERGIPANA
pesquisador sergipano Paulo de Carvalho Neto, conhecido internacional-
mente, pelos seus trabalhos realizados em diversas regiões da latino-
América, o folclórico ergológico sergipano ainda é praticamente virgem,
havendo poucos dados sobre as suas várias direções. No entanto, o
que foi difundindo, diga-se de passagem, é bastante elucidativo quanto
à sua importância.
III
Ignora-se este aspecto acima referido, pois, Carvalho Déda oferece
observações e registros, relacionados com os modismos e a ciência popular
de nossa terra, cuidando de assuntos os mais variados, típicos das zonas
estudadas. Ao lado de provérbios que se originaram de anedotas e
historietas, inspiradas em gestos, maneiras de ser, comportamentos,
reações, nas quais entram como personagens criaturas, bichos, fantasmas
e santos, destaca-se o ludismo sergipano, baseado em vozes de animais
ou gorjeio de pássaros, cujas interpretaçõesm dos tempos da escra-
vidão, em sua grande parte. Cumpre, por outro lado, mencionar também,
adivinhações e mágicas infantis, em suas inúmeras variantes daquelas
encontradiças em todo o Nordeste, que em Sergipe ganharam um sabor
novo. Capítulo à parte, sem dúvida, pela sua originalidade, é o relacio-
nado com os apelidos, individuais e coletivos, disseminados por todo o
interior. Para dar mostra de sua riqueza e variedade, poderíamos citar
alguns deles, como por exemplo o «papa-jaca», como é conhecido o
cidadão nascido na cidade de Lagarto, terra de Sílvio Romero, ou o
ceboleiro, como é chamado o natural de Itabaiana, berço de João Ribeiro,
outro grande escritor brasileiro.
No particular das crendices, duas divindades maiores, conforme o
pesquisador,o veneradas nos terreiros afro-sergipanos. Trata-se de
Xangô, que é a divindade dos negros, e Toré, que é a divindade dos
caboclos. Conta Carvalho Déda que uma lavadeira, crente de Xangô,
explicou-lhe certa vez que aquela sua divindade é mais forte do que
Toré, sendo que o primeiro desfaz o que o segundo faz, pois Xangô
é da África, ao passo que Toré é da terra, é terranço. Xangô é discreto,
ao passo que Toré e seus guiaso levianos, descobrem tudo o que
fazem e sabem. Prosseguindo no relato que colheu da preta lavadeira,
esclarece: «Enquanto os guias de Xangô trazem nomes nagôs, os de
Toréo conhecidos como Mestre Carlos, O Boiadeiro, Nana, Maestro
Antônio, Martin Pescador. Três Pauzinhos, Serra Grande. A seu ver,
Três Pauzinhos é muito perigoso, pois só trabalha bebendo cachaça com
casca de jurema, e gosta de descobrir os segredos das mulheres falsas».
No rol das crendices, alinham-se ainda as famosas rezas: da cabra
preta, que tem por objetivo conquistar moças para os seus prazeres e dos
cativos, própria para conquistar amantes.o conhecidas, pelas suas
diversas variantes, em todo o Nordeste, a Caipora, o Lobisomem, a
RAYMUNDO SOUZA DANTAS
Mula Sem Cabeça. O folclore relativo à caça, em Sergipe, é também
muito variado. Há em minha terra copioso material para estudo, princi-
palmente quanto às armadilhas e suas técnicas, que continuam sem
grandes modificações. Temos a arapuca, a arataca, o mundé, a zabumba,
o curral, a esparrela, o cacête-armado.
As funções populares, em minha terra, estão caindo de moda, mas
aindao encontradiças. Ainda me lembro da chamada Festa dos
Parafusos, de caráter eminentemente cívico, função que se realizava ao
amanhecer do dia consagrado às grandes festividades como Sete de
Setembro. Segundo Déda, a denominação originou-se da indumentária
usada pelos folgazões, que vestiam três ou quatro anáguas com bordados
vermelhos, espécie de babados em espirais, dando a aparência de um
parafuso. O bando alegre percorria as ruas, despertando a população
para as festividades do grande dia, cantando versos alusivos, com música
própria. Em outras, fala-se muito no folguedo deo Gonçalo, de
caráter campal, muito apreciado nos sertões sergipanos.
A parte dos «juramentos» é enorme. Também dos Catimbozeiros.
Da mesma forma a parte das Comparações. O mais importante, porém,
está no capítulo dos Trovadores populares. Esquecia-me na feira de
minha terra, Estância, a escutá-los. Eram grandes, originais, imagina-
tivos, lúcidos e mágicos. No livro do Carvalho Déda estão citados o
cego João Canário de Oliveira, tido como o maior trovador repentista
sergipano. Era de Itabaiana, mas percorreu todo o território de nosso
Estado querido. Tornou-se lendário. Trovador de feira, amante das
noites enluaradas, nas quais organizava o que chamava de rapadura,
nas quais cantava as «maratonas», as chamadas «muié-dama». Havia
também cantadoras. Déda cita «Sá» Martinha do Sabão, que sempre
se exibia em casamento e festas de aniversário. Trago, eu, testemunho
dos trovadores anônimos, principalmente negros, em sua maioria cegos,
que conheci em Estância e na Vila de Santa Luzia. Tenho lembrança
de sua graça e espontaneidade. Tenho mesmo algumas anotações, dos
temas de alguns deles, preferencialmente os temas de amor e políticos.
Termina Déda o seu livro com um vocabulário. É da maior impor-
tância o seu estudo. Diz êle que, muitos dos vocábulos já constam dos
dicionários, mas com sentido bem diverso do entendido pela gente simples
do sertão sergipano. Ocorre, assim, em seu livro, o exato sentido da
palavra, conforme o linguajar espontâneo de nossa gente. Salienta,
com razão, queo é fácil entender-se o significado obscuro de certas
palavras ou expressões. É preciso, acentua, conviver algum tempo com
o sertanejo, para compreender-se-lhe a linguagem.
Letras
DISCURSO DE POSSE (*)
ANTONIO HOUAISS
S
E algumas lições a vida me deu, uma é esta: em momentos assim,
é mister ser breve.
No caso, a brevidade se me impõe por muitos motivos: a riqueza
da personalidade e obra do meu antecessor; o fato de que nem tudo
posso ou devo dizer, ao ser a preço de volutas barrocas quase
enigmáticas, que, se me saírem da boca ou da escrita por vezes, terão
sido porqueo soube evitá-las; a circunstância de queo quero
agradecer-vos a atenção e presença com pagar-vos de uma digressão
que vos venha a soar enfadonha. Entre o pecado do excesso e o pecado
da carência, buscarei ficar neste, por mais leve, creio.
Com isso, quero merecer, eo desmerecer, des todos, desta
Casa, do meu antecessor e daqueles que dignificaram a cadeira que me
concedestes por bondade vossa antes que pelos meus titulos.
Homens de seu tempo, comprometidos nos seus pensamentos e
escritos, em todos os que estão enlaçados com a cadeira nº 17 acredito
ver sem sofisma alguns denominadores comuns: todos se puseram a
serviço da política de seu país; todos viram na cultura nacional a sua
razão maior de ser; todos agiram através de uma visão crítica do nosso
meio; todos advogaram uma causa em que creram sem subterfúgios.
Em Hipólito José da Costa — o patrono, constante, o pensa-
mento voltado para a sua gente, como nação já amadurecida para a
vida soberana: sua pregação nesse sentido, feita através de jornalismo
militante, é vincada pela garra de quem aspirava a ver os homens
públicos do Brasil motivados pelo desejo de construir uma cultura
própria, material e espiritual, que o singularizasse entre as nações. A
literatura se teve preocupação explícita a respeito era instrumento
dessa construção.
Sílvio Romero, o primeiro ocupante, elegendo o patrono, definia-se:
era o espírito inquiridor sistemático, a ância de coordenação mercê de
crivo inclemente, o que buscava tendências e constâncias e as nutria de
suas racionalizações, o que, enfim, queria feiçoar um universo mental
(*) Lido em sessão cia Academia Brasileira de Letras, em 27 de agosto de 1971.
ANTONIO HOUAISS
nosso, buscando um instrumental crítico coerente de nossa expressão
escrita de nossa literatura, vale dizer, para que esta fosse de fato
o verbo de uma cultura.
Em Osório Duque-Estrada pode parecer insinuar-se uma primeira
ruptura nos desígnios da cadeira. Os elementos de casticismo ou puris-
mo que informam seus critérios de ação critica podem e devem ser
aferidos na sua essencial ambiguidade: seo às vezes vezeso
raro conscientes estreitos, por se aterem a uma visão aristocratizante
dos usos da língua, enclausurados em regras que hoje já soam arbitrá-
rias,o outras vezes vezeso raro inconscientes largas, no
propugnarem uma língua comum que fosse vetora de um total interpsi-
quismo pan-brasileiro. Aspirando a uma norma, a que hoje mais do que
nunca devemos aspirar, só o traia o corpo configurado dessa norma,
ainda pensada em termos de possíveis proprietários originais da língua.
Faltou-lhe o conceito de res communis que é uma língua, que a faz ser
tanto mais minha quanto mais de todos or — o que implícita uma tal
riqueza de potencialidades, que a pertinência e competência e realização
de cada um podem exprimir-se em sua mais plena individualização.
A fecunda atividade desenvolvida por Edgard Roquette Pinto pode
induzir a uma aparente separação de fins:o é, porém, difícil com-
preender que seu espírito atiladíssimo e seu saber exemplar se puseram,
sem equívocos, a serviço da cultura nacional, que nele teve um dos seus
maiores forjadores, com patrocinar sempre pioneiramente a implantação
dos meios instrumentais de cultura e com realizar levantamentos dos
materiais de culturas pretéritas brasileiras: olhando paia trás e para
frente, dando-se todo inteiro à ação e à pensação, dando-se como exemplo
vivo, Roquette Pinto cristalizou uma das facetas relevantes desta cadeira
nº 17.
Omitindo por um instante ainda a Álvaro Lins, pergunto-me que
singular inspiração terá guiado o que ora vos fala ao chamar a um dos
seus trabalhos Sugestões para uma política da língua. Seria uma como
que tentativa prematura de ver-se inserido, anarmônico embora, neste
posto que lhe destes?
Álvaro de Barros Lins desde cedo definiu sua verdadeira vocação:
nascido em 1912, seu primeiro escrito publicado autonomamente tinha o
título Universidade como escola de homens públicos grifo homens
públicos, isso em 1933; então com vinte anos, já era nele aquilo que
com êle morreria, o homem público, quer dizer, o servidor da comunida-
de, o político.o ignoremos que todos somos animais políticos — e
a asserção,o desmentida, tem dois mil e quinhentos anos de verdade.
Tendo-os, tem também dois mil e quinhentos anos de mentira. Pois
que nesse lapso de tempo, o poder tem sido sempre exercido por uma
minoria de políticos, a que quase sempre tem animado espírito inverso:
em lugar de servirem a comunidade, servem-se da comunidade. Álvaro
Lins, no que pôde entre-mostrar como político, ter-se-ia sacrificado, com
DISCURSO DE POSSE
vistas a servir, jamais servir-se. Se as contingências do poder costumam
nutrir nos homens do poder veleidades de matar em certos homens
públicos sua vocação de servir a coletividade, criando figuras, ditas jurí-
dicas, que remontam ao ostracismo, suas coerções só atingem seus fins
com a morte física: até ela, acendram a vocação. Com isso — e remon-
tando a 1937 refiro-me a uma constância de nossa vida histórica: o
golpe de Estado que nos brindou com o revelho Estado Novo afastou
da arena política a Álvaro Lins.
A alternativa que se lhe ensejou então foi o jornalismo essa
militância didático-política que permite, sem vinculações mandatárias
institucionalizadas, o exercício da política em outros níveis, mas para
iguais fins. E se, como jornalista, lhe foi por vezes defeso praticar essa
didática política, teve a segunda alternativa, que lhe dava a oportunidade
de ser fiel a si mesmo: fêz-se crítico literário. Mas o crítico literário
foi nele a maneira possível de ser político: todas as instâncias que a vida
lhe propiciou para engajar-se na política cultural, administrativa ou
internacional, preferiu-as a tudo o mais. É queo se traía, numa
que noutra situação: em ambas, punha-se a serviço de uma política da
cultura. Em política como em cultura via duas realidades iguais, totali-
zantes, cuja expressão maior estava, talvez, no queo amorosamente
chamava literatura.
Reiteradamente, ao longo dos muitos anos de seu exercício crítico, a
conceituação de literatura lhe revém: e a palavra com que mais se conge-
mina seu espírito para defini-la é a de gnose. Já aí se vê quão alto
punha essa forma de perquirição do homem sobre si mesmo, seu destino
e a natureza, física e moral.
Quase quatro décadas, de uma vida que se cifrou a pouco mais
que cinco, Álvaro Lins dedicou à literatura. E a esta, como gnose, en-
tendeu-a como expressão de uma cultura, instrumento de cultura, cons-
trução de cultura, espelho de cultura, motivação de cultura noutros
termos, o ideário com que uma sociedade se insere no cosmos e se
afirma, situando-se. Exigindo das obras literárias isso que hoje costu-
ma ser dito literariedade, concebia-a por antecipação como a unidade
harmônica de palavras e pensamentos, pois que estes só atingem a
plenitude de eficácia interpsíquica quando vazados de tal modo em
verbo que um e outroo a dupla imagem de uma essência comum.
Alçava, desse modo, a literatura a uma forma de gnose artística
conhecer e fazer que se complementam, nenhum dos dois autonomi-
zável, senão pelo exercício da própria análise crítica ou conceptual.
Dessa unidade profunda tirava o timão com que navegava pelos riscos
dos julgamentos de valor. E a tal propósitoo refugiu o rótulo, às
vezes contra êle brandido como labéu, de que era um crítico impressio-
nista, subjetivo.
Com efeito, a releitura de sua extensa produção crítica revela-nos
0 homem identificado com os roteiros espirituais de um Sainte-Beuve,
ANTONIO HOUAISS
de um Croce, desses altos espíritos que se debruçam sobre a literatura
sem se sentirem para tanto obrigados a análises técnicas das estruturas
literárias, no que estas têm, concomitantemente, de sons, fonemas, síla-
bas, vocábulos, ritmos, cadências, semas, sememas, paradigmas, sintag-
mas, ideias, conceitos, noções, denotações, conotações, proposições,
ilações, raciocínio, conclusões, realidades, idealizações, utopias, progra-
mas, projetos, dejetos, injetos. Nenhuma teoria de níveis, nenhuma
busca de funções específicas. Senhor de inteligência agílima, dono de
memória singular, leitor perspicaz, antena de correntes filosóficas e esté-
ticas de seu tempo, usava de todos os dados disponíveis para a militância
de sua crítica, que ia direto ao julgamento, correndo assim todos os
riscos. É que, acima de tudo, punha-se ao dispor da sua passionalidade,
forma de dar-se todo inteiro. Árbitro por vezes imotivado, arrazoava
com extremos de lucidez, transformando em evidência opiniões que pode-
riam demandar esforços de prova e contraprova. É que, como poucos
entre nós, soube intuir as marés montantes, as obras emergentes, as
direções tendenciais, deixando-nos assim, um legado que perdurará,
ainda que marcado pelas circunstâncias ocasionais de seus humores.
Estas explicam certos pronunciamentos amargos ou injustos. Mas
quem, dentre nós,o lhe reconhecerá pelo menos a coragem de, fazen-
do-os, arrostar com suas consequências?
Consciente de que sua era a função de critico literário em mais de
um passo de sua obra aplicou-se a distinguir o que seria crítica literária
e ciência da literatura. A esta,o apenas admitia, senão que louvava,
com a condição de que fosse o instrumental com que aquela pudesse,
acaso, exercer sua soberania, seu julgamento de valor. Que esse
gênero de preocupação lhe assediava o espírito, vê-se de um sem-número
de passagens de sua obra. Num plano mais geral, refiro esta nota
do seu Literatura e vida literária diário e confissões. Cito:
Como podemos distinguir ciência e arte, desde que ambas
visam a um conhecimento do homem e da natureza? Distin-
guem-se pela maneira de operar no ato de conhecer e pela
forma de revelar o conhecimento. Uma se exprime em concei-
tos, a outra em imagens. Foi Croce, sem dúvida, o filósofo
que, na sua Estética, definiu com maior exatidão esta dupla
finalidade:
O conhecimento tem duas formas. Êle é, ou conhecimen-
to intuitivo, ou conhecimento lógico, conhecimento pela fanta-
sia, ou conhecimento pela inteligência, conhecimento do indi-
vidual, ou conhecimento do universal, ou das coisas particulares,
ou das suas relações. Em síntese, ou é produtor de imagens,
ou produtor de conceitos.
É a citação. Eo vale como ocorrência incidente, confissão oca-
sional no dia a dia de um diário. Vale, dentro de sua obra, como um
critério que lhe esteia o pensamento, senão ao longo todo de sua mili-
DISCURSO DE POSSE
tância crítica, ao menos num lapso de tempo predominante. Mas, a
aceitar a oposição crociana, e a aceitar os conceitos complementares de
crítica literária e de ciência da literatura, como situar cada um destes
dentro daquela generalização? Se a ciência literária, como ciência, é
produtora de conceitos, produziria 'a crítica literária imagens? Ou, ao
contrário, ambas produziriam conceitos, esboroando-se assim ou a opo-
sição crociana ou a distinção que Álvaro Lins se propunha e nos pro-
punha?
A realidade é que esse dilema ou essa contradiçãoo se propôs
ao espírito de Álvaro Lins pela forma que enunciei.
Na sequência de ensaios que constituem o capítulo 30 «Crítica
e estilo» do seu O Relógio e o quadrante,o se há de ver apenas
uma petição pro domo sua. Há aí uma honesta busca de definição,
justificação, coonestação e necessitação da crítica literária tal como a
exerceu, É com suas palavras mesmas que isso se esclarece melhor.
Cito-as, escusando-me da extensão:
A necessidade do espírito de análise e de crítica está,
portanto, presente em nós, que formamos as gerações de uma
«época» e que temos uma missão a cumprir e a realizar. Esta
crítica que se exerce como uma tarefa e como um destino nada
tem de destruidora e de negativa. Ela forma alicerces e levan-
ta muros para futuras construções. Exerce-se num domínio
realístico, e, ao mesmo tempo, objetivo. Conformista, porém,
é que elao pode ser. O ato de tudo aceitar, como o ato
de tudo negar,o é um ato de crítica. É um ato de positiva
ou negativa apologia, e. O ato da crítica é aquele que
completa, que retifica, que amplia. O que abre perspectivas,
o que desdobra situações. O crítico que se cinge ao círculo
do que êle critica está esterilizado pelo seu próprio assunto e
o merece esse nome. Quando se exige de um crítico que
seja também um criador, esta exigênciao significa que lhe
estejam a pedir que componha poemas e romances. Dentro
da mais pura e mais estrita atividade crítica existe uma função
criadora. A criação do crítico lhe vem da possibilidade de
levantar, ao lado ou além das obras dos outros, ideias novas,
direções insuspeitadas, novos elementos literários e estéticos,
sugestões de bom gosto, sistematizações, esquematizações,
quadros de valores. Crítica num tríplice aspecto: interpreta-
ção, sugestão, julgamento.
Contudo, os erros mais graves que a crítico cometeuo
foram os de Sainte-Beuve mas os de alguns daqueles que o
substituíram, exatamente aqueles que disputavam a sua heran-
ça de «regente da literatura». Entre todos, Taine e Brune-
tière. Ambos, com finalidades diferentes, fizeram a crítica
científica, isto é: a crítica que se subordina a leis, regras e
ANTONIO HOUAISS
normas. Ambos, consequentemente, anulavam na crítica o que
ela poderia dar como gênero criador, isto é: o seu elemento de
aventura da personalidade, de desdobramento pessoal, de livre
caminho em extensão e profundidade.
Como julgar, porém, uma obra de arte dentro de deter-
minados métodos, dentro de regras formuladas aprioristica-
mente quando ela pode, em qualquer momento, ultrapassá-
los ou fugir deles?
Citei. E a pergunta final me parece a resposta básica que Álvaro
Lins daria, em qualquer circunstância, ainda que sob modos ou módulos
diferentes, ao dilema ou contradição que se lhe apontasse entre a voca-
ção conceptualista da ciência e a imagística da arte, se aplicadas à
crítica literária nos seus diversos aspectos, desde os mais tecnificados
aos mais libertos ou aos mais dirigidos doutrinária, ideológica ou filoso-
ficamente.
A realidade parece-me estar no fato de que a crítica, como discer-
nimento, dentro do universo que é a literatura, tem todas as potenciali-
dades de se desdobrar ou multiplicar em campos setoriais de conheci-
mento, como a ciência ante a natureza ou o homem ou a sociedade. E
em ambos os casos, dessa setorialização emerge, pendularmente, a cada
época, a necessidade das sínteses, das generalizações, das filosofias.
Formas de conhecimento, literatura, crítica e cultura se tangenciam,
constituindo uma como que a ponte entre as outras duas, mas sendo as
três, globalmente, a mediação da natureza pensante sobre si mesma, em
cujas contradições e antagonismos se insere, como inelutável em socie-
dades divididas ou cindidas ou antagonísticas, entre si ou dentro de si,
sua outra face, positiva ou negativa, da antiliteratura, da anticrítica, da
anticultura ou contracultura, gestadas como necessidade,o raro fe-
cunda senão que sempre fecunda, para a construção do homem futuro.
Tive pequeno convívio pessoal com Álvaro Lins, na maioria dos
casos ao sabor de nossas solicitações e urgências cotidianas. Uma feita,
porém, conversamos sobre esses assuntos, para coroarmos nosso enten-
dimento com uma proposição algo estranha, que retiro a mero título de
exemplo: a obra de Machado de Assis revela um uso extremamente
eficaz do estilo indireto livre ou aparente; em contrapartida, perde ela
em riqueza de diálogo direto. Que motivação profunda, que motivação
superficial, que motivação, em suma, teria levado o bruxo a esse tipo
de estruturação de um sem número de passagens, nos seus romances,
contos, crónicas? Alguns elementos parecem convergir para a solução
desse pequeno problema: de um lado, o comentário metalingúístico,o
machadiano, que se esbarraria ante a alternância de discursos diretos; de
outro lado, a correção normativa das intervenções coloquiais, curtíssimas
por isso mesmo, pois ante a norma preconizada ao seu tempo rara seria
personagem sua que sustentaria uma extensa intervenção direta psicolõ-
DISCURSO DE POSSE
gicamente fiel sem os chamados erros gramaticais e Machadoo
ousou a fratura que só se consagraria como recurso estilístico realista
e regionalista muitos anos depois. O microcosmo do purismo atuava,
assim, de uma forma despistada, na obtenção de uma das facetas estilis-
ticamente maiores do criador. Com essa concordância de pormenor,
insignificante, concordávamos ambos em que, a haver uma ciência da
literatura e uma crítica literária, ambas se complementariam,o apenas
da gramática ou gramatiquice para com o estilo, a pensação, a cosmo-
visão, senão que do quer que fosse, mínimo, para o que quer que fosse,
máximo. O incidente, para mim, é revelador e situador. Revela-me
o Álvaro Lins aberto a todas as manifestações da análise, situa-o como
o buscador de sínteses. Seo foi tudo isso a um só tempo, foi porque
ninguém o pode ser.
O que buscou ser, porém, na sua crítica, foi o militante da sua
verdade. E dessa militância teve nítida consciência trágica.o cres-
centemente trágica, que num dado momento o de seus últimos anos
se ilhou na impotência de apegar-se a qualquer valor circulável, o
que o levou ao mutismo compulsório de quem, a dizer, diria o que os
donos de outras verdadeso permitiriam dissesse.
Ante esse Álvaro Lins final, sofrido e irresignado, curvo-me reve-
rente, com o sentimento de que algo se frustrou para nós, no ápice da
maturação. Inseridos na violência, ostensiva ou larvar, os homens de
hojeo sabemos como abrir-nos para os amanhãs que poderão ser
cantantes.
O fato é que o nosso legado ãs gerações emergentes é triste, e
feio, e mau. Com a agravante de que quiséramos que fosse alegre, e
belo, e bom. Perdoai-me, pois, se me vem a nota amarga, num ato
que se propõe festivo. Em verdade, ante a memória de Álvaro Lins,
o posso furtar-me a esse sentimento de perda precoce, a esse sentido
de carência, poiso vacilo em crer que, fosse sua desventura menor,
muito mais teríamos dele sobre oo pouco que nos deixou. Cedo
tido por muitos como o maior dos nossos críticos literários, a mim pouco
me preocupa essa exclusiva: acendra-me a certeza de que na história da
crítica literária brasileira sua obra fica como ponto de referência neces-
sário para que possamos saber como nos víamos as mesmos ao
tempo de Álvaro Lins, já que seus escritos, vincados por extremo perso-
nalismo,o concomitantemente um espelho de nossas dúvidas, de
nossos acertos, de nossas esperanças, de nossos erros e de nossas
desesperanças.
Álvaro Lins teve o privilégio de ser o anunciador da presença no
Brasil, e da permanência, de um dos nossos mais lúcidos espíritos: Otto
Maria Carpeaux. Sobre este, teve êle palavras que creio, em legiti-
midade, poder trinta anos depois usar para com o próprio Álvaro Lins:
A certeza da inanidade da lutao significa nem desis-
tência nem covardia. A luta, apesar de tudo, permanece como
ANTONIO HOUAISS
uma atitude, como uma afirmação, como um testemunho. A
luta de um homem dentro do mundo independe do seu êxito
ou da sua utilidade. Mesmo quando tudo estiver perdido,
ficará como um exemplo, como uma semente, como um pro-
testo .
Perdoai-me agora se vos roubo ainda dois minutos de atenção.
Dois minutos aparentemente odiosos, porque sobre mim mesmo.
E falar de mim mesmo é, em mim, ainda um modo de falar de
outrem. Por exemplo, do meu, do nosso Poeta Maior. Se êle,o
grande, se julga assim:
Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.
E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tuo me enganas, mundo, eo te engano a ti.
Esses monstros atuais,o os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.
o deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.
De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho,
se êle,o grande repito, se julga assim, que diria ou julgaria
eu de mim mesmo? Sei só que a gama de minhas devoções é larga
o que me descaracteriza, pois de minhas relações cada setor me supõe
um. Tartufo, que eu saiba,o sou. Nem uno, nem múltiplo. Um
homem de seu povo, esse em que nasci e a que pertenço e quero servir,
sem envaidecer-me de minha ascendência nem cultivar orgulho algum do
que quer que seja. Salvo um: o de achar que esta vida humana devia
ser digna de ser vivida por todos, sem discriminações. Com este pensa-
mento constante, que alguém se aplique ao mais insignificante objeto,
ainda assim poderá ser humano, desde que posto a serviço do homem.
Quisera agradecer a cada amigo em particular o apoio ou o desa-
poio de ver-me nesta Casa, para a qual entro com a esperança de
poder ser útil, sem extremações maniqueístas. E, seo faço referên-
cias personalizadas, é por temor da omissão.
Fico-vos muito obrigado por vossa paciência.
SAUDAÇÃO A ANTONIO HOUAISS (*)
AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO
A
ACADEMIA ao sufragar, sem oposição, o vosso nome, incorporou
ao seu quadro uma das mais lúcidas inteligências do Brasil contem-
porâneo, infatigável operário da cultura nacional.
Sois um brasileiro representativo: nascestes no Rio de Janeiro, a
mais brasileira das metrópoles, como filho de pais imigrantes, o que
representa a outra face do vosso autêntico brasileirismo. Os descen-
dentes dos velhos troncos coloniais, como alguns colegas que diviso
desta tribuna,o historicamente brasileiros, mas aqueles que, como vós,
o trazem nas veias nenhuma gota do sangue dos fundadores,o
brasileiros sociologicamente. E se a obra dos fundadores tornou
possível a união nacional, a integração dos imigrantes é que faz, em
grande parte, o desenvolvimento do país. De resto nós, os descendentes
dos lusos, espanhóis, flamengos ou franceses da pátria velha, que somos,
senão originários de imigrações mais antigas?
No Brasil, as instituições sociais sempre foram mais democráticas
que as instituições políticas. O povo demonstrou, através de toda a
nossa história, um sentimento mais fraterno de amparo e convivência
que os governantes.
As oposições sociais só se exacerbam até à crueldade, entre nós,
quando adquirem conotação política. E, entre as instituições sociais
mais genuínas do Brasil, está esta, de o povoo dar nenhuma importân-
cia à desinência de um apelido ou àr de uma tez.
Sempre repito que o problema racial no Brasil, embora seja sensível,
é extremamente benigno, em comparação com outros países, ditos civi-
lizados. A civilizaçãoo se confunde com progresso. Digamos que
a civilização é o progresso interno, eo externo, do homem.
No Brasil, o racismo existe em certos grupos reduzidos de falsa
elite, muitos deleso brancos, nem cristãos velhos, maso existe no
povo, ao contrário de outras nações, onde, desgraçadamente, o racismo
está mais no povo do que nas elites.
(*) Discurso de recepção a Antônio Houaiss, lido na Academia Brasileira de
Letras, em 27 de agosto de 1971.
AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO
Conservemo-nos, pois, fiéis depositários da memória do primeiro
Rio Branco, neste ano do centenário da sua gloriosa lei.
Vossa formação, Senhor Antônio Houaiss, foi também represen-
tativamente brasileira, quero dizer, carioca e popular. Toda a vossa
instrução foi feita neste Estado, único onde todos os brasileiros se
sentem como no seu próprio Estado. Cumpristes o vosso primário na
escola pública; o curso de contador em instituto oficial da cidade-Estado;
e o superior na antiga Universidade do Distrito Federal e, em seguida,
na Universidade do Brasil.
Nascido em meio sociologicamente integrado, e na cidade nacional
por excelência, vosso forte aparelho cultural se aprimorou com as opor-
tunidades oferecidas pelo poder público. Essa formação, tanto quanto
possível desligada de influências privatistas, contribuiu para serdes um
brasileiro representativo, um espírito cultivado fora de pressões setoriais,
portanto propenso ao objetivismo e à liberdade.
Cumpreo esquecer que a liberdade é, também, florão e destino
cariocas. O Rioo é apenas cidade, no sentido urbano, mas também
a civitas, a polis, ou seja, a condensação da consciência cívica, que, como
nas cidades-Estados helênicas, existe porque é livre. Toda a nossa
história política mostra que, no Rio, a liberdade nunca se curvou à
tirania. Tem sido suprimida, mas nunca conformada.
O fator pessoal interveio na vossa formação, graças ao primoroso
engenho com que Deus vos favoreceu. Desde muito jovem, adolescente
quase, tivestes o ensejo de seguir a melhor escola do aprendizado, que
é o ensino. Todos nós, professores, sabemos que a única forma verda-
deira de aprender é ensinar. O mestre queo aprende, continuamente,
vai deixando progressivamente de ensinar. A alegria dos velhos profes-
sores é sentirem-se mais estudiosos, mais curiosos intelectualmente, que
os estudantes. A parada, na capacidade de absorver ensinamentos, é o
início fatal do declínio, na capacidade de transmiti-los.
s aprendestes sempre, até hoje, porque ensinastes, mestre
Antônio Houaiss, pela voz ou pelo escrito. Antes dos 20 anos, já
vossos estudos de línguas e letras eram feitos em comum com os vossos
alunos de colégios particulares. Conheço meninos de então, hoje homens
feitos, que nunca esqueceram as lições exatas, conscienciosas, abundan-
tes, daquele mestre pouco mais idoso do que eles.
Professor, por concurso, do ensino secundário oficial, aos 23 anos,
ensinastes até os 30, e, também, como professor visitante em Monte-
videu. Foi nesse ambiente de professor-aluno, no ano preciso do vosso
licenciamento em letras clássicas, que vos juntastes a Ruth, vossa
dedicada esposa e companheira, que disfarçava então, sob a graça de
moça baiana, a sisudez da professora de latim.
Abandonastes o magistério para ingressar no corpo diplomático,
em cujas funções tive oportunidade de conhecer-vos e de chefiar-vos,
SAUDAÇÃO A ANTONIO HOUAISS
durante a minha missão nas Nações Unidas. Meu depoimento sobre
vossa atuação é simplesmente o de que nunca encontrei, no exercício
das funções, colaborador mais competente, mais devotado e mais dedi-
cado aos interesses do Brasil e do nosso povo. Ali, também, vossos
informes e relatórios eram lições.
Vossa folha de serviços, e vossos trabalhos, encontram-se nos
arquivos do Itamarati, para comprovarem o que venho de afirmar.
A súbita aposentadoria no serviço público restituiu-vos à exclusiva
atividade intelectual da vossa juventude, e foi um bem para a cultura
brasileira. É provável que, dedicado ao serviço público como éreis, só
muito mais tarde vos sobrasse tempo para os esforços absorventes, a
que hoje vos entregais. Eo sei se, entre uma carreira e um destino,
o ganhastes, e, convosco, o Brasil.
Sois, essencialmente, o homem do livro. Talvezo exista, na atual
geração, ninguém mais ligado a êle do que vós, porque viveis para o
livro, tanto na sua forma, como no seu conteúdo. A forma perfeita do
livroo se limita ao primor da edição, ao material escolhido, ao gosto
apurado da composição gráfica e iconográfica. A forma do livro diz
respeito, também, à ordenação técnica do texto. Sobre todos estes
complexos provimentos de ciência editorial é que escrevestes o vosso
temível Elementos de Bibliologia, em dois volumes, apurado ensaio
científico sobre a ecdótica. Para os que, ignorantes como eu, se espan-
tarem com esta enigmática palavra, ajuntarei que ecdótica quer dizer
a ciência e arte de editar.
Ainda na mesma linha de realizações, fizestes a consolidação das
14.000 instruções de serviço do Ministério das Relações Exteriores,
ajustando-as no Manual que ainda hoje prevalece, e fostes orientador
da publicação dos 83 volumes de documentos da presidência Kubitschek.
Quanto à substância e à essência dos livros, vossa especialização,
é, por igual, primorosa. Inaugurastes vossos trabalhos, nesse gênero,
com o nosso companheiro Francisco de Assis Barbosa e o saudoso
Cavalcanti Proença, ao fazerdes a edição crítica das obras de Lima
Barreto, com estudo sobre a linguagem do grande e desditoso escritor.
Trabalhos semelhantes, todos de alta categoria, dedicastes à poesia
de Silva Alvarenga, Gonçalves Dias e Augusto dos Anjos, e ao Brás
Cubas de Machado de Assis. Gostando de percorrer os píncaros,
estudastes agudamente a poesia de Drummond e empreendestes, com
laborioso êxito, a aventura de traduzir Ulysses, de James Joyce.
Mas as dificuldades da tarefa, quando aumentam,o paras
desafios eo obstáculos. Construístes um dicionário das línguas
portuguesa e inglesa, em dois volumes, que vos coloca em paridade com
nossos grandes dicionaristas, tais Antenor Nascentes, Aurélio Buarque
de Holanda e Luís da Câmara Cascudo. E, de algum tempo a esta
parte, vindes-vos especializando nesta surpreendente profissão, que é
a de coordenar enciclopédias.
AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO
A última forma da Delta-Larousse, que dirigistes, honra a nossa
geração, pela sua aparência e categoria. Seus senões, existentes em
todas as obras do tipo,o ressaltados por aqueles queo querem
confessar as suas qualidades. Na verdade, é o mais vasto e o melhor
repositório existente sobre o Brasil e os brasileiros.
Depois da Delta-Larousse, lançastes-vos em nova construção monu-
mental, a obra temática que planejastes, em português, para a Enciclo-
pédia Britânica, na qual tantos des nos honramos em colaborar.
Pelo método inovador de sua confecção, que vos é devido; pelas
intenções com que foi planejada e pelos trabalhos em curso, é certo que,
quando pronta, esta obra coletiva da presente geração se projetará no
futuro, fornecendo às classes dirigentes uma visão global e profunda
da nossa realidade, dentro da realidade mundial, visão que facilitará
a tarefa de repensar o Brasil, preliminar inafastável para o nosso desen-
volvimento em liberdade.
Mas, além de urbanista, sois também arquiteto da inteligência.
Além das enciclopédias, cidades da cultura que planejais, também
projetais e construís livros, ensaios, estudos, que saem de vossas mãos
como pequenos ou grandes edifícios. O dicionário português-inglês, e
os dois tomos de bibliologiao os de maior repercussão, até agora,
mas outros podem e devem ser lembrados, especialmente os de crítica
literária e linguística, as duas preocupações especiais do vosso espírito,
desde a mocidade.
Os modismos e a pronúncia do português carioca provocaram-vos
estudo que passou a ser utilizado em outras áreaso especializadas.
As reflexões sobre uma política da língua nacional mereceram acolhida
do Instituto Nacional do Livro, que também publicou vosso plano do
dicionário de Machado de Assis. A estes trabalhos, podem-se acres-
centar vosso admirável prefácio à tradução de Joyce, vossa profunda
introdução crítico-científica à poesia reunida de Carlos Drummond de
Andrade e o vosso forte ensaio de filosofia literária, a respeito de
crítica e estruturalismo.
Toda essa obra, aparentemente vária e diversa, revela, quando
observada mais meditadamente, uma constante coerência interna. A
crítica é o elemento de coesão substancial de vossa obra de escritor,
dicionarista e enciclopedista. Quando digo crítica,o desejo referir-me,
aqui, à atividade valorativa e julgadora, que certos escritores exercem
com vistas às obras alheias, tal como fazia o vosso ilustre antecessor
nesta Casa. Desejo referir-me à crítica, como meio de aquisição do
conhecimento. A consciência crítica, já a dizia Descartes, é que unifica,
para o conhecimento, a infinita variedade do mundo exterior ao eu.
o existe saber sem crítica. O julgamento crítico funciona, sobe-
ranamente, no processo de ordenação e seleção dos dados apreendidos
pela experiência imediata da consciência. A presença constante do
SAUDAÇÃO A ANTONIO HOUAISS
elemento racional é que transforma em saber orientado o que seria, sem
êle, uma acumulação incoerente de noções.
Mas em vós, a crítica se acentua e revigora com o estudo da
linguagem. Sem uma percepção adequada do valor significativo das
palavras e, em conjunto, das regras do seu manejo, que formam as
línguas, o pensamento criadoro teria veículos e a própria razão
humanao subsistiria. Por isto é que um certo estudo da linguagem
transcende da ciência filológica.
Certo é que as explorações do subconsciente, e a importância dos
seus resultados para o conhecimento do homem, abalaram profunda-
mente a inamovibilidade dos valores lógicos da linguagem. Freud
mostrou que a luz da consciência fulge na superfície de vasta e fecunda
escuridão. Desde o surrealismo, a literatura apossou-se dos territórios
do subconsciente, para a criação de mundos de estranha beleza. A
poesia moderna, linguagem desdenhosa, revela por iluminações, mas
o descreve nem raciocina, e nos arrasta, mesmo assim, ou por isto
mesmo, no seu flexível mistério. No Brasil, a própria prosa — e
Guimarães Rosa é o grande exemplo disto criou mundos de ura
realismo irreal, mais por causa da língua do que da imaginação.
Mas a verdade é que toda essa ausência de lógica e, até, de
pensamento, que do surrealismo veio ao hermetismo poético, da prosa
sistematicamente antivernácula ao abstracionismo da pintura, só se
tornam significativos através de um processo de racionalização crítica.
O pensamento acaba sempre sendo o banho químico, que revela as
formas obscuras recolhidas nas películas do inconsciente.
Todas as voltas ao mundo das sombras tendem a servir de matéria-
prima, a ser fundida em uma nova realidade inteligível. É sempre a
razão crítica que identifica e recolhe o que existe de positivo, em tais
negativos da razão. Um loucoo faria os poemas de Aragon, nem
os contos finais de Guimarães Rosa. A pintura dos loucos é, via de
regra, tristemente racional.
Por tudo isto é que, para mim, vossa obra de investigação e
pesquisa, na literatura e na filologia, junta-se harmoniosamente, pela
crítica, em uma espécie de síntese, que se vai definindo melhor, à medida
que os diversos trabalhos se sucedem. Objetiva e livremente, a vossa
obra, abrangendo sempre temas estranhos a vossa pessoa, vai revelando,
no entanto, a vossa personalidade.
Vossa obra representa, toda ela, uma ascensão contínua da inteli-
gência para o saber, da experiência para o conhecimento.
Vossa personalidade corresponde aos fatores evolutivos de vossa
formação.
Creio que foi Epícteto quem disse que a espiga cheia de grãos
inclina-se, enquanto a vazia ergue-se no ar. Assim a modéstia do
sabedor, diante da leve empáfia do insciente.
AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO
Como quem muito sabe, sois modesto, mas livre, a meu ver talvez
demasiadamente livre, pois confiais excessivamente na chave da razão,
para abrir as portas do mistério. A verdade é que tal chave só pode
encontrar o nada, atrás daquela porta, e o nadao é resposta a coisa
nenhuma. Responder com o nada é contraditório para a própria razão
e, assim, o melhor é que ela passe a chave a outrem, à fé talvez, ou,
quem sabe, à esperança. Este é o meu antigo ponto de dúvida para com
a vossa modéstia. Sejamos modestos eo confiantes, como pareceis
ser, diante da porta fechada.
Senhor Antonio Houaiss, encontrai-vos inteiramente em família
nesta Casa, no ambiente que sempre vos foi familiar, de escritores, de
livros e de ideias. Aqui vos recebemos fraternalmente.
EVOLUÇÃO DO ESTILO DE CHURCHILL (*)
DAVID HUNT
H
ISTORIADORES e escritores que comentam os assuntos atuais cos-
tumam estabelecer comparações entre os homens de ação e homens
de palavras. Trata-se de contraste fascinante, mas, quase sempre, falso.
César e Napoleão foram ambos oradores ilustres e César, pelo menos,
escrevia bem. Cícero admirava-lhe imensamente o estilo. Além disso,
aquelas pessoas que se dizem simples e diretas, dando valor predomi-
nante às ações, de preferência às palavras, amiúde esquecem a natureza
essencial da ação. A poesia, disse Rimbaud,o é feita com ideias, mas
com palavras; e o mesmo acontece com a ação. O mundo é governado
por palavras e é com palavras que o general ganha suas batalhas.
* * *
O tema de minha palestra é um estadista cujos atos produziram
talvez a mais profunda impressão na História deste século. É agra-
dável descobrir quantas pessoas neste país o reverenciam como o homem
que salvou o mundo de uma tirania moderna na sua aparência, mas,
em verdade, esencialmente bárbara. Frequentemente ouvi, com muita
satisfação, esta mesma opinião expressada por sócios desta Sociedade,
onde está reunido o que de melhor existe na intelectualidade brasileira.
Sinto-me especialmente grato ao nosso Presidente, por me ter enviado
um seu ensaio, desenvolvendo uma homenagem extremamente engenhosa
a Churchill, o que muito me ajudou na preparação desta palestra.
Minha intenção, agora,o é falar do herói, mas do escritor do homem
que, em 1953, ganhou o Prémio Nobel de Literatura. A citação que
acompanhava a láurea dizia que fora concedido «pelos seus magistrais
trabalhos históricos e biográficos e por sua fulgurante oratória». E
o as fontes deste estilo oratório que me proponho examinar.
(*) Conferência inédita proferida no Pen Clube do Brasil, em 16 de junho de
1970. Na ocasião, Sir David Hunt recebeu o título de sócio correspondente da
instituição, inclusive pela publicação de seu .livro "Um professor na guerra", e
por seus estudos de arqueologia. O autor, que foi secretário particular de Churchill
e, exerce, ainda agora, a crônica literária.
DAVID HUNT
AS PRIMEIRAS FONTES
A maioria das pessoas, diz Platão, aprende por imitação. E é nas
primeiras leituras de Churchill que devemos buscar as origens do seu
estilo maduro. É claro, para começar, que, desde seus primeiros anos,
êle revelou interesse pela literatura. Na idade de nove anos e meio,
dizia que o seu «maior prazer era a leitura». Um rapaz com tais incli-
nações jamais poderia ser ignorante, desde que tivesse de seus mestres
um mínimo de auxílio. Em Harrow, desenvolveu ainda mais o seu gosto
pela literatura. A lenda de ter sido medíocre em Harrow foi êle mesmo
quem inventou. Talvez, como sugere seu filho Randolph Churchill na
biografia que escreveu do pai, a êle agradasse exagerar as profundidades
da ignorância da qual se erguera, da mesma forma que seu amigo,
F. E. Smith, mais tarde enobrecido com o título de Lord Birkenhead,
costumava exagerar a pobreza da sua mocidade. O exagero é ainda hoje
motivo de ressentimento em Harrow, que conserva numerosos trabalhos
escolares escritos por Churchill garoto, como prova de sua futura
habilidade no uso da palavra. É fato também comprovado que, já na
idade de 14 anos, ganhou o prêmio de História em concorrência com
todos os seus condiscípulos. A lenda sem dúvida encorajou hábitos de
indolência em muitas gerações de outros escolares e consolou os seus
desapontados pais.
Lord Randolph Churchill, embora tratasse Winston com a maior
crueldade e indiferença, teve toda a admiração do rapaz. Winston
estava resolvido a imitá-lo tanto quanto possível, pois sempre tencionou
seguir-lhe as pegadas na vida política. Começou copiando-lhe o gosto na
leitura. A Bíblia, Gibbon e «Jorrocks», êle recordava que o pai os
conhecia quase de cor. Lord Randolph escreveu certa vez à esposa:
«Quando me sinto muito aborrecido e irritado leio Gibbon, cuja pro-
funda filosofia e estilo fácil, embora majestoso, logo depois me acalmam
e uma hora depois sinto-me em paz com o mundo. Quando me sinto
muito deprimido e desanimado, leio Horácio.» Winston lamentava pro-
fundamente queo tivesse levado suficientemente longe o estudo do
latim, para desfrutar Horácio. Resolveu, no entanto, descobrir o que
seu pai encontrara em Gibbon.
Mas, somente depois de ter ingressado no Exército, como oficial de
cavalaria, encontrou Churchill tempo suficiente para dedicar-se ao
estudo da literatura. Isto talvez pareça um paradoxo. Para começar,
o motivo por que ingressou na carreira militar é que seu paio o
julgava suficientemente inteligente para outra profissão. O Exército
o tinha grande reputação em fins do século XIX, e a Cavalaria ficava
em último lugar, no que tocava à inteligência. Ainda hoje se conta a
história de um oficialo pouco inteligente que até mesmo seus colegas
começaram a notar. Logo depois de receber a patente, ainda em
Aldershot, Churchill disse à suae que ia ler «Decadência e Queda
EVOLUÇÃO DO ESTILO DE CHURCHILL
do Império Romano», de Gibbon, e a «História da Moral Européia»,
de Lecky. Foi, em seguida, designado para a índia e passou numerosos
meses em monótonos deveres de quartel. Em Bangalores, no sul da
índia, dedicou todos os momentos vagos das obrigações regimentais
relativamente leves, e dos prazeres do polo, ao cultivo da mente. Os
livros que leu repetidas vezes foram de autoria de Gibbon e Macaulay,
talvez os dois maiores historiadores ingleses.
Falando diante de plateiao culta,o me sinto, naturalmente,
na obrigação de estender-me longamente sobre esses dois grandes nomes
da literatura inglesa. Edward Gibbon, aluno de Oxford, e também
membro do mesmo colégio que frequentei, o Magdalen, viveu de 1737
a 1794. A sua história da «Decadência e Queda do Império Romano»
abrange o período dos Antoninos até a queda de Constantinopla. Seu
outro trabalho publicado é uma autobiografia. Lord Macaulay, que
viveu de 1800 a 1859, publicou alguns poemas de que falarei depois,
alguns ensaios merecidamente famosos e uma História da Inglaterra,
abrangendo o período de 1688 a 1702. Tratarei das idéias de ambos
sobre a História; ideias que influenciaram as do próprio Churchill. Mas,
no momento, interessa-me comentar seus estilos. Ambos foram buscar
a força de seus escritos nas tradições do século XVIII, o período em
que a língua inglesa, pelo menos no que interessava aos prosadores,
atingiu a sua máxima florescência. Isto é uma afirmação dogmática de
que algumas pessoas podem discordar; poderia defendê-la, maso o
farei aqui, preferindo alinhar algumas observações sobre a natureza e
os requisitos da prosa inglesa.
Um dos seus elementos básicos pode ser apreciado, examinando-se
um dicionário Inglês-Frances e Francês-Inglês ou qualquer dicionário
duplo. O volume Inglês-Francês é sempre mais volumoso. Há muito
mais palavras em inglês do que em qualquer outra língua moderna. O
motivo é que o inglês é uma língua formada de duas ou, talvez, três
fontes principais. Em primeiro lugar, temos a fonte da qual deriva o
nome, a língua dos invasores anglosaxônios, que completaram a ocupação
da Inglaterra mais ou menos em meados do sétimo século; este é o
elemento germânico. A segunda fonte é o francês, que dominou durante
três ou quatro séculos, após a invasão normanda. A terceira é a inun-
dação de palavras, diretamente de origem latina ou tomadas de emprés-
timo do francês moderno, absorvida pela língua a partir do século XVII.
As duas últimas fontes são, naturalmente, similares em suas origens
últimas e a grande diferença é aquela entre os elementos germânicos
e latinos. Em consequência, há quase sempre duas diferentes palavras
em inglês significando a mesma coisa e, amiúde, até três. E elaso
o sinónimos exatos; cada uma possui suas próprias nuanças. Este,
por conseguinte, é o instrumento com que nasce o orador inglês e êle
demonstra sua habilidade pela mistura inteligente dos matizes apropria-
dos às duas fontes principais. No caso de esta exposição teórica parecer
excessivamente esquemática, permitam-me que lhes dê um exemplo
DAVID HUNT
imediato dos dois matizes ou formas de composição nas próprias palavras
de Churchill.
Em 1906, na qualidade de jovem membro do Gabinete, estava êle
sendo forçado a reconhecer, na Câmara dos Comuns, que o Partido
Liberal errara em alegar, na campanha eleitoral recém-concluida, que
os trabalhadores chineses nas minas de ouro do Transval eram mantidos
em estado de escravidão. E êle oz nestas palavras, referindo-se
àquele regime de trabalho: «Não pode, na opinião do Governo de Sua
Majestade, ser classificado como escravidão, no sentido extremo da
palavra, sem certo risco de inexatidão terminológica». Este famoso
exemplo de humor polissilábico foi recebido com um grande clamor de
mofa pelos membros da Oposição. Realmente a intençãoo era
denunciar o equivalente a «uma mentira», mas foi assim interpretada
e a frase passou a ser usada nesse sentido.
Ao chegar o momento de prestar homenagem, em 1940, às façanhas
da Real Força Aérea na Batalha da Grã-Bretanha, êle escolheu, como
era natural, o outro estilo, a outra fonte da língua, quando disse:
«Nunca, na história dos conflitos humanos, tantos deveram tanto ao
poucos». E talvez eu deva recontar uma anedota que aindao foi
completamente consagrada pela História, mas que ouvi numerosas vezes
de amigos, membros da Câmara dos Comuns, em 1940. No dia 4 de
junho Churchillz um discurso na Câmara, com a seguinte peroração:
«Defenderemos a nossa ilha, qualquer que seja o custo; lutaremos nas
praias, lutaremos nos aeroportos, lutaremos nos campos e nas ruas,
lutaremos nas colinas. Jamais nos renderemos». Enquanto explodia a
tempestade de aplausos, ouviram-no murmurar: «Es lhes quebraremos
as cabeças com garrafas, porque é mais ou menos isto tudo o que temos
para lutar». A última fraseo foi incluída na transcrição oficial...
ENTRE DOIS ESTILOS: GIBBON E MACAULAY
Esse, portanto, é o contraste entre os dois estilos; o estilo romano
com a sua gravidade satírica e antíteses equilibradas, algumas vezes
prestando-se aos chistes burlescos, e o estilo inglês, direto, simples,
sóbrio. A habilidade reside em misturá-los. O estilo da prosa no século
XVIII é as vezes acusado de pomposidade e dependência excessiva dos
modelos clássicos.o é uma crítica justa. É inegável que os autores
do século XVIII nas obras formais e sérias se apoiavam fortemente na
tradição clássica. Mas eram igualmente mestres de um estilo fácil e
coloquial cujas vantagens podiam também explorar. O Dr. Johson,o
amiúde considerado o mais formal dos escritores daquela época, jamais
deixou passar uma oportunidade de explorar o contraste. Disse, a
propósito de uma comédia: «Não possui graça bastante para mantê-la
doce»; e imediatamente continuou com esta variação: «Não possui
virtude suficiente para preservá-la da putrefação». Gibbon e Macaulay
eram mestres desse jogo de contrastes.
EVOLUÇÃO DO ESTILO DE CHURCHILL
Churchill admirava especialmente em Gibbon o emprego de antí-
teses para fins de ênfase. Darei um exemplo de um dos seus discursos
da época da guerra, referindo-se a Mussolini: «Este surrado chacal
que, para salvar a própria pele, transformou a Itália em Estado vassalo
do império de Hitler, está cabriolando de alegria ao flanco do tigre
alemão uivando,o apenas de fome o que se poderia compreender
mas até mesmo de triunfo». Isto em seu estilo gibboniano. Atingiu,
porém, uma nota de maior sublimidade, em linguagem mais simples,
arranjada da mesma forma, em outro discursos no mesmo ano: «Não
falemos em dias mais sombrios; falemos antes em dias mais rigorosos;
estes diasoo sombrios;o grandes dias os maiores que nossa
pátria jamais viveu».
Havia outros elementos em Gibbon que Churchill admirava, além
da sua ironia. Encantava-o, no mestre, a maneira de encarar a História
como um processo. Êle acreditava, como Gibbon, que a História era
escrita por homens, fortes e fracos, bons e maus, eo por forças
impessoais. Macaulay tinha também a mesma opinião e Churchill consi-
derava a História da Inglaterra, que êle escreveu, como o que a História
deveria ser. Seguiu o modelo na sua própria História dos Povos da
Língua Inglesa. É fato que êle frequentemente discordava das inter-
pretações de Macaulay. Isto, principalmente, por motivos pessoais:
Macaulay atacara o seu grande ancestral, o primeiro Duque de Marlbo-
rough.o obstante, tinham ideias muito parecidas sobre a história
política. Esta similaridade e esta fiel intuição da natureza da política
que compartilhavam baseava-se principalmente no fato de ambos terem
sido políticos ativos. A influência de Macaulay era, na verdade, quase
inevitável sobre alguém que se dedicava à literatura, na época em que
Churchill o fêz. O jornalismo em especial, com o qual começou Churchill,
estava ainda sob a influência desse estilo. Deteriorava-se, às vezes, em
insípidos ornamentos. Isto Churchill jamais tolerou e a prosa dos seus
primeiros dias já mostra todo o vigor, mas pouco do rebuscamento do
modelo.
Os primeiros dois livros de Churchill trataram de história militar.
Um deles, a história da Força Expedicionária de Malakand, publicado
em março de 1898, descreve uma campanha desenvolvida na fronteira
noroeste da índia. O outro, «A Guerra Fluvial», publicado em outubro
de 1899, relatou a reconquista do Sudão. Ambos foram escritos em alta
velocidade, a despeito de sua extensão. Ambos merecem ser conside-
rados obras históricas sérias. «A Guerra Fluvial», principalmente,
começa com uma magistral exposição da história antiga do Sudão,
preparando o leitor para a narrativa da campanha, em que tomou parte
como oficial da cavalaria. Uma época como a nossa, queo mais espera
testemunhar campanhas desse tipo, notará, com apreço, a magnanimi-
dade e compaixão com que Churchill se refere aos inimigos de seu país.
Permitam-me citar a nobre frase com que êle conclui o seu preito à
bravura dos sudaneses na batalha de Omdurman: «Tenho esperança de
DAVID HUNT
que se dias sombrios se abaterem sobre o nosso país, e o último exército
que um império decadente possa dispor entre Londres e o invasor esteja
se dissolvendo em debandada e ruína, que haja alguns ainda mesmo
nestes dias de hoje que se recusem a acostumar-se à nova ordem
das coisas e a humildemente sobreviver ao desastre».
A TÉCNICA DO HISTORIADOR
Em 1906, publicou a biografia de seu pai, Lord Randolph Churchill:
0 seu mais trabalhado ensaio de história política. Foi um trabalho
excepcionalmente hábil, já que êle escrevia o que era rigorosamente
História contemporânea, numa ocasião de controvérsia política muito
aguda. E era mais complicada a situação pelo fato de que êle deixara
recentemente o Partido Conservador do qual seu pai fora um dos
líderes mais brilhantes e ingressara no Partido Liberal. Mas, um
relato da política passada, em país estrangeiro,o é maneira de distrair
os membros do Pen Club e eu me contentarei em dizer que nesse livro,
que o Times situou «entre as duas ou três mais interessantes biografias
políticas da língua», o estilo de Churchill alcançou pleno desenvolvimento.
O seu sistema de trabalho,o o seu estilo, mostrou progresso,
como se poderá ver na grande obra seguinte, que foi a «História da
I Guerra Mundial», publicada em 1923 sob o título de «The World
Crisis». Neste trabalho, Churchill desenvolveu o seu método caracte-
rístico de escrever História, que continuaria nos seus outros trabalhos
também de cunho histórico. Estava agora em condições de escrever com
pleno conhecimento próprio acerca dos assuntos de que se ocupava, por
ter exercido importantes cargos políticos. Iniciou também o costume de
incluir nas narrativas documentos originais, de longa transcrição. Êle,
aliás, sempre afirmou queo acreditava em sumariar documentos, pois
forçosamente seria infiel ao assunto. E, além disso, apreciava o sabor
de autenticidade, transmitido pelos documentos.
O fato de a História ser para êle, até certo ponto, autobiografia,
emprestava, sem dúvida, vivacidade aos seus escritos. Devo mencionar
aqui, já que coincide com a sua obra sobre a I Guerra Mundial, outra
influência literária: a de Daniel Defoe, conhecida em todo o mundo pela
estória de «Robinson Crusoe», mas, pelos historiadores da prosa inglesa,
sobretudo como o autor que influenciou sua evolução no sentido da
sobriedade e simplicidade, após um período em que os ornamentos
artificiais eram os preferidos. Churchill admirava o estilo artesanal e
simples de Defoe e o imitou nos trechos narrativos, embora transcendesse
a êle quando abordava assuntos que lhe aguçavam o interesse. Julgava,
também, que na sua mistura de autobiografia e história seguia o exemplo
dado por Defoe em «Memoirs of a Cavalier», trabalho de que êle
frequentemente dizia gostar muito.
O costume de inserir o texto integral de documentos em narrativas
históricas parece ter-se iniciado com os primeiros historiadores cristãos.
EVOLUÇÃO DO ESTILO DE CHURCHILL
Eusébio constitui um exemplo evidente. Até então, o costume habitual
era o de parafrasear e sumariar. Acredito que a maioria dos leitores
aprecia a praxe adotada por Churchill. Ocasionalmente, passam apenas
os olhos pelos documentos, mas, pelo menos, eles lheso o prazer de
verificar que ali estão e, destarte, revestem-se naturalmente de alto
valor para os historiadores.
«A Vida de Marlborough» é a sua principal obra da década de
trinta. Os quatro volumes foram completados em agosto de 1938.
Pessoalmente, prefiro-a a qualquer outra de suas obras. O estilo é mais
sóbrio do que no Lord Randolph Churchill, que ponho em segundo lugar
na minha ordem de preferência, e é empregado num tema mais respei-
tável. Êle cita numerosas cartas de Marlborough, embora as julgasse
bastante monótonas, mas pela sua simpática intuição psicológica, o herói
do livro é transformado em uma das mais interessantes figuras da
História. Além disso, é na verdade admirável, do ponto-de-vista do
historiador, que as suas conclusões históricaso tenham sido refutadas
nos quarenta anos decorridos desde sua publicação.
Mas, sem dúvida, o livro pelo qual é mais conhecido no mundo é
«A História da II Guerra Mundial». Penso que me desculparão por
me referir longamente a essa obra,o conhecida que é. Apresenta
ela as mesmas duas características que já mencionei: a combinação de
autobiografia e história e o emprego assíduo de documentos. Este
último costume foi ocasionalmente levado a excessos eo raras pessoas
queixam-se de que, enquanto Churchill transcreveu numerosas de suas
minutas e cartas,o incluiu as respostas a elas. O estilo, especialmente
no primeiro volume, é mais oratório do que nos escritos históricos habi-
tuais e, as vezes, um tanto exagerado. Nele existem, contudo, nume-
rosos trechos, sem os quais a história contemporânea seria empobrecida.
Evidentemente, êle continuou a ser um
GRANDE LEITOR OS CLÁSSICOS NA MEMÓRIA
Leu principalmente, e na maior parte para seu uso, sobre história
e política. Admirava os romances políticos de Trollope. Sabemos tam-
bém, por suas reminiscências da época da guerra, que também os sensi-
bilizavam os romances navais do C. S. Forrester. Certa ocasião, enviou
uma mensagem aos Chefes do Estado-Maior, do seu avião, no qual
estava viajando do Cairo até Casablanca, dizendo como lhe agradava
Hornblower. A referência era feita ao herói fictício de Forrester, mas
o Ministério da Guerra passou algum tempo revisando suas listas de
nomes-códigos, porque houve ali quem supusesse que era de alguma
operação projetada, a que o Primeiro-Ministro dava sua aprovação.
No tocante aos romances em tôrno de caçadas de raposa, de auto-
ria de Surtees, que, como disse, seu pai admirava tanto, êle os conhecia
e admirava também, dado o seu amor pelos cavalos. Lembro-me de
tê-lo ouvido dizer, como conselho a pessoas de má saúde, que a melhor
DAVID HUNT
coisa para a parte interna do homem era uma saída na parte externa
do cavalo.
Lamentava profundamente jamais ter frequentado Oxford e, sa-
bendo que o currículo mais admirado dessa universidade se baseava nos
clássicos, procurou lê-los exaustivamente, em traduções inglesas espe-
cialmente, durante sua estada na índia. Tinha uma memória formidá-
vel. Disse-me, certa ocasião, quando preparava um discurso parlamen-
tar: «Pode conseguir-me as palavras exatas desta citação de Aristó-
fanes: «As qualidades necessárias para escrever tragédia e comédia
o as mesmas e o gênio trágico deve ser também um gênio cómico».
Fiquei atónito com essas palavras, surgidas a respeitoo sei de quê,
e perguntei: «O senhor tem a certeza de queo se refere a Aristó-
teles?» Sim, êle tinha certeza de queo se referia a Aristóteles, admi-
tindo, no entanto, que talvez estivesse pensando em Platão. Há uma
coletânea completa de obras de Platão na Sala do Gabinete do nº 10,
onde conversávamos e eu tive uma súbita inspiração, como deve já ter
ocorrido a muitos desta plateia. Procurei o volume contendo o Simpó-
sio, onde, na parte final, Sócrates diz precisamente aquelas palavras a
Aristófanes, como personagens no diálogo fictício de Platão. «E qual
foi a última vez», perguntei-lhe, «que o senhor leu o Simpósio?» Êle
achava que havia cinquenta anos mais ou menos, pouco antes ou depois
da guerra sul-africana.
Leu extensamente poesia e teve a sorte de frequentar a escola numa
época em que os rapazes eram obrigados a aprender de cor longos tre-
chos. Este excelente costume foi agora abandonado, redundando em
empobrecimento de nossa literatura. O seu gosto em poesia encami-
nhava-se mais para o épico e o retórico do que para o lírico. Apreciava
muito os poemas de Lord Macaulay sobre temas romanos, que conhecia
de memória e que tantas e tantas vezes citava; mas eu ficava sempre
surpreso com a variedade de autores, muitas vezes obscuros, que lia e
admirava. Eu jamais teria esperado, por exemplo, que êle conhecesse a
obra de William Morris e poderia citar outros autores ainda mais obs-
curos. Êle podia recitar centenas de versos de Shakespeare, eo ape-
nas os trechos patrióticos mais claros e conhecidos.
A sua memória era realmente extraordinária, mesmo na velhice.
Podia repetir trechos inteiros em prosa. Talvez a plateia me permita
outra reminiscência. Nos fins de semana em Chartwell, sua casa de
campo, eram habitualmente passados filmes no cinema particular. De
modo geral, o gosto de Churchill em matéria de cinema erao mau
como era bom em literatura. Certo dia tivemos uma versão extrema-
mente longa e de mau gosto de Quo Vadis, de Sienkiewicz. Houve um
intervalo muito necessário, após uma cena chocante da arena. Levan-
tando-se quando se acenderam as luzes, Churchill declamou com abso-
luta exatidão e expressão solene quase uma página do Livro I da His-
tória de Gibbon. A primeira frase servirá para dar uma impressão:
«Enquanto o grande corpo ataçalhado pela violência declarada, ou
minado pela lenta decadência, uma religião pura e humilde insinuou-se
EVOLUÇÃO 00 ESTILO DE CHURCHILL
na mente dos homens, cresceu no silêncio e na obscuridade, ganhou
novas forças com a oposição e finalmente içou a bandeira triunfante
da Cruz sobre as ruínas do Capitólio».
-O-O-O-O-O-
Até agora tratei de conceitos impessoais como inspiração e influ-
ência literárias. Permitam-me que, concluindo, fale de seus
MÉTODOS DE TRABALHO
Começarei pelos do historiador. Lord Moran, médico de Churchill,
escreveu um livro que foi um grande sucesso de livraria, embora des-
proporcional, na opinião de muitos, aos seus méritos. Nele insinuou que
as várias obras históricas de Churchill foram realmente escritas para
êle por outras pessoas e que «não era a mesma coisa como se êle tivesse
redigido pessoalmente o trabalho». Trata-se de uma falsa acusação.
Há provas no testemunho do Dr. Maurice Ashley, um ilustre historia-
dor e especialista do século XVII, que na juventude foi contratado por
Churchill como assistente de pesquisa para a maior de suas obras,
A Vida de Marlborough. Êleo deixa pairar dúvida de que, qualquer
que fosse a ajuda que êle recebesse na exumação dos fatos, Churchill
escreveu pessoalmente cada palavra.
Êle sempre ditava. Possuía grande fluência e modelava tudo em
seu próprio estilo. Em seguida, a página datilografada era exaustiva-
mente revista, o que, no entanto,o lhe bastava. Gostava de ver as
suas palavras cm letra de forma e exigia provas tipográficas, que eram
submetidas a quatro, cinco ou seis revisões. Isto constituía um método
excepcionalmente dispendioso de produzir um livro, mesmo numa época
em que os salários dos tipógrafoso eramo altos como agora, mas
Churchill insistia nisso, no interesse da exatidão. Êle era, naturalmente,
homem de energia prodigiosa. Trabalhava até alta noite e dormia muito
pouco. Devorava livros e jamais esquecia o que lia. Vi frequentemente
suas provas, marcadas por um número enorme de correções, em cores
diferentes, algumas para produzir maior precisão e outras para acres-
centar um sabor churchilliano mais rico.
Os seus discursos eram preparados da mesma maneira. Em certo
sentido, embora isto possa parecer altamente paradoxal, êleo era
um orador de improviso.o exibia a facilidade, por exemplo, de Ma-
caulay, que podia falar sem notas e ser um modelo perfeito de eloquên-
cia. Escrevia, antecipadamente tudo o que ia dizer e, quando se levan-
tava para falar,o eram notas o que tinha diante de si, mas o texto
completo. Perguntei-lhe, certa vez, se êle tentara algumas vezes depen-
der da memória. Respondeu-me que, em 1905, havia decorado, segundo
pensava, um discurso especialmente bom, mas que, ao aproximar-se do
fim, a memória o abandonou. Ficou confuso, sentou-se bruscamente,
cobriu o rosto com as mãos e murmurou: «Agradeço aos ilustres depu-
tados por me terem escutado». Daí em diante, jamais tentou fazer a
meama coisa novamente.
DAVID HUNT
Estive muitas vezes presente, nas ocasiões em que compunha seus
discursos. Na verdade, êle gostava de ter consigo o Secretário Parti-
cular, pela possibilidade de querer subitamente a confirmação de um
fato. Do outro lado da mesa, sentava-se um estenógrafo. Provavel-
mente, êle começaria às 11,30 da noite, fumando charuto e bebericando
uísque e soda. Inicialmente, projetava uma frase, murmurando-a para
si mesmo. Em seguida, ditava-a. Às vezes, pronunciava duas ou três
sentenças de cada vez. Normalmente, compunha todo o discurso em uma
única sessão. Ocasionalmente, consultava, com rapidez, uma minuta mi-
nisterial e acrescentava alguns dos seus argumentos, mas sempre os
vazava na sua própria linguagem. Demorava bastante tempo refrase-
ando as sentenças. A primeira cópia datilografada era profundamente
revisada. A versão final era datilografada em pequenas folhas de
papel, com as sentenças fracionadas em frases retóricas. Isto era co-
nhecido pelos secretários como a «forma de salmos», pois parecia uma
lista de salmos, prontos para serem cantados. E era com essas extensas
notas na mão, ou depositadas sobre a caixa de despachos à sua frente,
que êle enfrentava a Câmara dos Comuns.
Evidentemente, êle era um grande orador. Ao ouvi-lo, podia-se
compreender porque os homens da Idade Média exaltavam a retórica e
porque Dante a chamava de «soavissima di tútte le altre Scienze». Di-
fere das outras artes porque visa a um fim prático. O historiador, por
exemplo, escreve para registrar o que aconteceu, o romancista a fim de
produzir certa impressão na mente dos leitores, proporcionar-lhes uma
visão interior da natureza da vida humana, pintar um quadro que, como
o trabalho do artista, é sua própria justificação. Ambos podem, natu-
ralmente, desejar extrair uma lição moral, mas, como artistas, o êxito de-
pende do valor em si do trabalho produzido. O orador fala com o obje-
tivo direto de levar os ouvintes a fazer algo; votar contra ou a favor
de uma proposta; declarar guerra, como ocorreu com as Filípicas de
Demóstenes, ou celebrar a paz, como no caso de alguns dos melhores
discursos de Burke. A menos que as palavras sejam traduzidas em ação.
êle falha no seu propósito. Churchill falhou eventualmente quando.
discursando como simples deputado, instou com a Câmara dos Comuns
para queo aceitasse a abdicação do Rei Eduardo VIII. Mas, ao
tornar-se Primeiro-Ministro, em épocao sombria, as suas palavras,
escolhidas por uma habilidade que praticara durante anos, inspiraram
todo o país. Os senhores me podem ter julgado paradoxal, quando
disse, no início, que um general ganha batalhas com palavras; mas con-
siderem que, há muitos séculos, nenhum general influencia a conduta
de uma batalha por façanhas de coragem pessoal, e sim com suas ordens.
isto é, com suas palavras. Da mesma maneira o orador, graças à perícia
com que sabe motivar a plateia, levando-a a executar sua vontade.
Como disse inicialmente, palavraso atos. E foi o vigor com que
êle expressou a sua nobre natureza e transmitiu aos seus ouvintes a
urgência e o sentido do dever, que inspirou o seu país e o mundo.
76
RETRATOS DE CRUZ E SOUSA
ANDRADE MURICY
O
imenso poema em prosa «Emparedado», de Cruz e Sousa, inspirou
a imagem plástica que dá relevo dramático ao seu túmulo. Empa-
redado, sentia-se êle no seu próprio sangue, no que hoje se chama «ne-
gritude», o grande drama da África, presente agudamente na sua alma
e na sua carne de filho de escravos. São, as vozes lancinantes do «Em-
paredado», visão apocalíptica, levando para o plano ontológico, e para
além do social, a tragédia das «Vozes d'África», e a mais o ressaibo de
uma amarga decepção: a Abolição, que tanto propagou, aindao supri-
mira o preconceito, que o esmagava. «Poeta Negro», «Diamante Ne-
gro», «Cisne Negro», chamavam-no amigos admiráveis e admiradores
exaltados, que os teve tantos e exemplares.o foi, porém, a êle pró-
prio que quis aludir quando, no «Emparedado», em termos de futuro,
auguralmente cantou: «A África virgem, inviolada no sentimento, ava-
lanche humana amassada com argilas funestas e secretas para fundir a
Epopeia suprema da Dor do Futuro, para fecundar talvez os grandes
tercetos tremendos de algum novo e majestoso Dante Negro!»
Foi a figura física do autor do «Emparedado» que tentei evocar,
naquele 24 de novembro de 1961, data do Centenário do seu nascimento,
em conferência no Centro Catarinense, por meio de aproximações suces-
sivas de depoimentos de seus contemporâneos, numa como experiência
de sua presença, de cada vez diversamente interpretada.
o faltam fotografias do poeta. Estiveram da «Exposição Cruz
e Sousa», da Biblioteca Nacional (14 de novembro a 14 de dezembro
de 1961) algumas dentre elas: um retrato tirado aos 21 anos (março
de 1833); outro, aos 24 anos; um exemplar empalidecido do seu retrato
mais conhecido e difundido, e que foi reproduzido na edição de Obras
Completas, de 1923; um retrato, de corpo inteiro, ao lado do seu amigo
Oscar Rosas, tirado aos 26 anos. Existe ainda outro, que foi reprodu-
zido na Edição Aguilar da Obra Completa, tirado, de, entre os seus
amigos Virgílio Várzea e Horácio de Carvalho. Do pintor e poeta, seu
amigo, Maurício Jubim, existem os seguintes retratos desenhados: no
número especial da Cidade do Rio (20-3-1898) : «Cruz e Sousa morto»
e outro retrato, na edição princeps de Evocações (1898); retrato na
revista Rosa-Cruz (junho, 1901); outro na edição princeps de Últimos
Sonetos (1905). Há um retrato, por Artur Lucas, em Cruz e Sousa,
ANDRADE MURICY
monografia de Nestor Vítor (1899); um de Silveira Neto, o poeta ilus-
tre do Luar de Hinverno, no número especial de Club Curitibano (abril,
1898) e outro em Cruz e Sousa, Rio, 1924; um de Izaltino Barbosa
(ATribuna, 19-3-1900); um, de Teodoro Braga (A Tarde, 20-3-1899);
um de Kalixto (O Rio de Janeiro do Meu Tempo, de Luiz Edmundo,
Rio, 1938) . Existe outro na Revista Ilustrada, célebre periódico de Ân-
gelo Agostini, e um de Raul Pederneiras. Todoso de artistas contem-
porâneos do poeta. Esses documentos iconográficos, preciosos,o
dariam, entretanto, para constituir um volume como os da conhecida
coleção «Visages d'Hommes Célebres» (Rimbaud, Verlaine, Mallarmé,
entre outros), editada, em Genebra, por Pierre Cailler.
Ocorreu-me apelar para documentário de outra ordem, numeroso
e mesmo de surpreendente interesse.
Depoimentos relativos a encontros pessoais com Cruz e Sousa, da
autoria, com exceção de um, também de contemporâneos seus .
Virgílio Várzea (1862-1941), em cuja companhiaz Cruz e Sousa
todo o percurso juvenil de sua vida literária, seu colaborador em Tropos
e Fantasias,o o acompanhou, entretanto, na tendência revolucionária
que desencadeou o Simbolismo no Brasil. Várzea manteve-se natura-
lista, sem os excessos da escola, antes arejado por ampla poesia mari-
nha. O «Loti brasileiro» nunca esqueceu o seu amigo João da Cruz.
Pouco tempo antes de morrer, longamente deste me falou, com o fervor
de um amor fidelíssimo. Algo do que me disse encontro expresso nestes
termos, de um artigo seu (Correio da Manhã, 10-3-1907):
«Era um crioulo de compleição magra e estatura meã. Não
obstante, tinha o rosto cheio e oval, de traços delicados e de
um conjunto atraente, simpático. Nos seus olhos grandes e
bonitos, havia um forte brilho intelectual e uma vaga expres-
são de tristeza e humildade...» «De um talhe espiégle e ele-
gante, Cruz, como os pais não precisassem de seu auxílio para
viver, gastava tudo o que ganhava nas lições particulares que
tinha, em trajes variados, finos e bem feitos, pelo que andava
sempre muito asseado e bem vestido, despertando ainda, por
esse lado, maiores odiosidades e inveja. «Tinha uns dentes
belíssimos e alvos, fazendo, quando sorria, uma pequena meia-
lua de opalas na sua boca negro-escarlate, onde bailava uma
ironia casquilhante e perene. Sempre inspirado e feliz, carica-
turista endiabrado e perfeito no verso pilhérico e trocista, trazia
a «Velha Escola» acossada, flagelada e coberta de imenso
ridículo».
O poeta F. Moreira de Vasconcelos (1859-1900), diretor-empre-
sário da Companhia Dramática «Julieta dos Santos», quis arrancar Cruz
e Sousa do ambiente social hostil, cruel, em que o jovem se debatia.
Para isso, fê-lo percorrer o Brasil de Norte a Sul, dando ao poeta opor-
tunidades de contato com os intelectuais novos, o que preparou a pene-
tração imediata de Broquéis em todo o país, bem como permitindo-lhe
RETRATOS DE CRUZ E SOUSA
realizar intensa propaganda abolicionista. Na Bahia conheceu-o Cons-
tâncio Alves, o admirável cronista do Jornal do Comércio, excessiva-
mente esquecido, e que, disse Joaquim Nabuco, tinha mel no seu estilo.
Escreveu Constâncio Alves (Jornal do Comércio, 21-8-1913), lembrando
a figura do poeta:
«... rapaz miúdo, meio curvado, de feições menineiras e deli'
cadas, uma face pensativa, esculpida em onix».
O Dr. Gama Rosa (1852-1918) foi presidir a Província de Santa
Catarina. Espírito avançado, precursor dos estudos sociológicos no
Brasil, tendo mesmo sido distinguido por autores europeus, inclusive
Herbert Spencer, um dos seus livros foi publicado em França, traduzido
por Max Nordau rodeou-se, no Desterro, dos jovens intelectuais,
tomando a Virgílio Várzea para ser oficial de gabinete. Teve um gesto
de audácia: nomeou Cruz e Sousa Promotor de Laguna, cargo no qual,
de imediato, os políticos lhe impediram de empossar-se. Escreveu o
Dr. Gama Rosa (Sociologia e Estética, Rio de Janeiro, 1914):
«Cruz e Sousa era um negro de pequena estatura, com feições
e organismo delicados, vibrando incessantemente ao sopro de
infinitas agitações»... «A sua elocução era fácil e exaltada,
em palavras ríspidas e sibilantes».. .
O engenheiro Artur de Miranda Ribeiro (1869-1950) chamava-se
em literatura Artur de Miranda. Dirigiu, por longo tempo, a Revista
Ilustrada, de Ângelo Agostini, e lá acolheu cordialmente Emiliano Per-
neta, e depois Cruz e Sousa. Foi dos primeiros a escreverem sobre o
aparecimento de Missal (março de 1893) . Em depoimento que lhe soli-
citei, inseriu traços breves referentes à poesia de Cruz e Sousa (1949):
«Baixo, calmo, falando concisamente...»
Um jovem veio do Paraná e foi levado a Cruz e Sousa por Nestor
Vítor: Silveira Neto (1872-1942), cujos poemas vinham sendo escritos
desde 1894 e seriam enfeixados no importante livro simbolista Luar de
Hinverno, em 1900. Escreveu um estudo fundamentado: O Paraná e o
Simbolismo e uma conferência: Cruz e Sousa. A meu pedido, infor-
mou (1930):
«Baixo, mediano de estatura, proporcionado, bem preto. Olhos
bonitos e acesos».
Carlos Dias Fernandes, o D. Fernandes (1875-1942), um D'Artag-
nan do Simbolismo, agitado, sarcástico, profundamente apaixonado por
Cruz e Sousa, e fiel a este até à morte. Escreveu dois poemas: «Cruz
e Sousa» e «Ante o cadáver de Cruz e Sousa». Evocou a este, seus
amigos, e o ambiente em que o poeta vivia, com real interesse, no romance
Fretana (1936). Descreveu assim o Poeta Negro (Fretana):
«.Era um homem de estatura mediana, mais frágil que fornido de
corpo, com uma face típica da sua raça negra, na qual cintilavam dois
ANDRADE MURICY
pequenos olhos vivos, de olhar arguto profundo. A boca, de lábios regu-
lares, sem prognatismo algum, dava a ideia de um guagiru sazonado,
abrindo-se sob sedosos, fartos bigodes, que deixavam entrever dentes
ótimos, pequeninos, de marfim puríssimo, ainda mais alvos pelo con-
traste da pele. Era um tímido, apesar de suas audácias estéticas, prin-
cipalmente diante de pessoas que não conhecia.»
O Dr. Antônio Austregésilo (1876-1960) foi, no Simbolismo, An-
tônio Zilo, e escreveu Noivado de Dona Alva, Manchas e Novas Man-
chas, prosa poética. Pronunciou na Academia Brasileira de Letras várias
conferências sobre Cruz e Sousa, o Simbolismo e os Simbolistas. Depõe
(Conferência na A.B.I., in Jornal do Comércio, 24-10-1948):
«Cruz e Sousa era meão de altura, franzino, de fisionomia
simpática, bigode regular, palavra pouco elevada em tonali-
dade: percebia-se na expressão fisionómica o sentimento que
o dominava, o deus interior que o fazia amante das letras, «a
arte pela arte, a beleza pela beleza», dominado pelo En Theos
dos helenos, com a onda de orgulho que encontramos nos
lábios de D. Carlos da peça de Schitler Die Sonne gent in
mein Staat nicht unter, apesar da aparência de retraimento e
modéstia.»
Gustavo Santiago (1872-?) foi das personalidades mais típicas do
movimento decadentista, com as suas esteticistas saladas de violetas pre-
rafaelitas e o célebre «oceano de erisipela», do Cavaleiro do Luar. Con-
tista e cronista, foi dos polemistas do movimento. Assim se refere a Cruz
e Sousa (Cidade do Rio, 20-4-1899):
«.Conheci-o pessoalmente, cheguei a conversá-lo algumas vezes.
Era homem negro, de estatura regular, olhos cismadores, fei-
ções doces. Atitudes francas e intimoratas, levantar de cabeça
desempenado, decidido e gracioso, voz timbrada sobre o forte,
palavra fácil, quente, vibratil.»
Gonzaga Duque (1863-1911), excelente romancista de Mocidade
Morta, notável crítico de arte (o primeiro que tivemos digno dessa qua-
lificação), em artigo sobretudo de valorização da poesia de Cruz e
Sousa, fixou-lhe, em 1909, o retrato, assim reproduzido em Careta
(30-1-1960):
«Assim, de quando em quando, êle me aparecia nervoso,
todo trejeitos na figurinha franzina: o duro queixo rapado em
arremesso carniceiro de destruir; a boca, sob o bigode lanígero,
em repuxado de ódio e aflição; largas narinas palpitas no afi-
lado mestiço (?!) do nariz; os olhinhos fulgurantes a queixar-
se que fugira da Repartição porque o chefe, que era mulato,
o perseguia e hostilizava.
Ê que eu lhe recordo a origem dizia-me tenho
talvez a côr da mãe. . . e êle, que quer ser moreno à força,
RETRATOS DE CRUZ E SOUSA
esbarra-se comigo, vê-me como a afirmação tremenda do seu
passado, sou o espectro recordativo da mucamba que o des-
pejou no mundo!
... Era devido a isso que o seu tipo tomou o feitio retraído,
melhor caracterizando-o esconso, que lhe dava à exteriori-
dade o que quer que fosse de arisco e agressivo ao mesmo
tempo, pondo-lhe fulgores de sátira nos olhozinhos rebusca-
dores e arrepanhando-lhe a comissura dos lábios, à direita, num
vinco de motejo em permanente ameaça. Esse exterior pre-
judicou-lhe muitas vezes. Os que para êle iam, conduzidos
pelos elogios dos seus amigos, e recalcavam por delicadeza as
prevenções que, porventura, houvessem contra a sua escola
literária ou, tolamente, contra a côr da sua epiderme lhe sen-
tiam o ar desafiante, a atitude provocadora, o modo inconciliá-
vel; quando lhes faltava espírito para se dominarem o con-
flito era cerro, estalava. Um grande jornalista meu amigo,
que era mulato, voltando da Europa e encontrando-o na reda-
ção do seu jornal, recebeu tão forte emoção que, perturbado,
agarrando o meu braço, me segredava: «Mas, seu Duque, esse
homem é o diabo!» depois de alguns anos foi que eu e
outros, particularmente Oscar Rosas, conseguimos transformar
essa impressão em aceitação favorável. O grande jorna-
lista tinha o coração na medida do seu imenso talento, que era
genial. Modificou o seu juízo e veio a ser, nos últimos peno-
sos dias do poeta, um dos seus melhores amigos, ao lado da
dedicação incomparável de Nestor Vítor e Maurício Jubim.»
«... Cruz e Sousa, que foi um boémio sem estroinice, ini-
migo do ruído e do escândalo...»
Esses retratos citadoso quase sempre desprovidos de intuição mais
profunda da grandeza interior do poeta. Os que se seguem apresentam
indicações iniludíveis nesse sentido. Antônio Austregésilo acrescenta,
aos traços antes transcritos (loco cit.):
«Sangue de puro líbio, sem miscigenação étnica, aqui apareceu
como um príncipe a reclamar um trono. Trouxe na sacola de
viagem o orgulho e a humildade; no fundo alforje estava o
espantoso talento. ..
Henrique Castriciano (1874-1947), irmão da poetisa de pureza e
santidade, que foi Auta de Sousa, era poeta, e espírito de requinte e
afável convivio. Fixou este instantâneo,o cheio de significado suges-
tivo {Terra de Sol, setembro-outubro, 1924):
«E Cruz e Sousa tinha o ar de quem viera de outro mundo,
onde vencera e dominara...»
Gilberto Amado (1887)o pôde conhecer Cruz e Sousa pessoal-
mente (tinha 10 para 11 anos quando este morreu). Deve ter recebido
ANDRADE MURICY
de coetâneos do poeta os elementos para esta pintura (A Dança sobre
o Abismo, Ariel, Rio de Janeiro, 1933):.
«Era um negro pretíssimo, esguio, delicadíssimo de maneiras,
solitário, austero de costumes, puro, casto, sem nenhum dos
defeitos em geral emprestados ao africano, isto é, a denguice,
a doçura excessiva de ânimo raiando pela passividade, a índole
fácil e aberta, sensualidade imediata e grosseira.»
Temos aí um reforço das assertivas de Gonzaga Duque; porémo
está aí presente o homem de gênio que Castriciano e Austregésilo nele
detectaram.o vemos aí o «Dante Negro», de retorno do inferno da
escravidão («Pandemonium», «Consciência tranquila»), das profundas
conversões cósmicas e de alma («Emparedado», «Luar de Lágrimas»,
«Ébrios e Cegos», «Os Monges»), das «Imortais Promessas» («Sorriso
Interior», «Renascimento», «Supremo Verbo») .
Ei-lo, em retrato mais aprofundado, e na companhia de Nestor
Vítor (que merece esta evocação), de autoria de Frota Pessoa (1875-
1951), que foi dos críticos mais atentos ao fenômeno decadentista entre
nós. Assim (Gazeta de Passos, Sul de Minas, 18-6 e 18-7-1899):
«Encontrava-o (a Nestor Vítor) frequentemente em compa-
nhia de Cruz e Sousa, de quem era íntimo tipos verdadei-
ros de irmãos intelectuais. Um era o comentário vivo do outro,
era o parêntesis explicativo, a oração complementar do outro.
Na face pálida de Nestor, na sua boca irônica e chasqueadora
(v. «Canção Negra», de Faróis, de Cruz e Sousa, retrato ideal
do seu amigo), Cruz e Sousa revia-se nas suas revoltas, seus
insofridos ímpetos e Nestor na mordacidade, na feroz negação
do grande Negro é que ia buscar a complementação de seus
juízos e de suas sentenças... Eles dois eram o centro de um
círculo de artistas, amadores e esnobes, que à tarde rondavam,
vagarosos e paradores, por pontos prediletos, certos cafés,
certas redações, certas esquinas, discutindo arte, os dois ponti-
ficando de comum acordo, na mais completa harmonia e os mais
abeberando-se e arriscando de quando em quando uns apartes
complementares. Cruz e Sousa, meio corcunda, com uma estu-
dada serenidade na face de ébano, a mover os olhos vivos,
dizendo as coisas com uma loquacidade nervosa, truncando as
frases, dizendo-as aos borbotões. grifando~as, comentando-as
com a expressão inteligente de olhar, com a gesticulação vivaz
e uns sorrisos amargos e baços; e Nestor Vítor, lívido e forte,
pairando com estridor, às grandes gargalhadas sonoras, cabeça
desjeitosamente inclinada, seu piscar d'olhos, um trejeito gra-
cioso e cómico nos lábios finos, a criar frases ferinas, contra
os burgueses e os medíocres, imagens grotescas e ridículas...»
Um pouco portrait-charge, talvez, mas, para quem conheceu Nestor
Vítor, de flagrante verdade. O pequeno instantâneo de Cruz e Sousa,
esse é de expressão singularmente nova e diferente.
RETRATOS DE CRUZ E SOUSA
O amigo por excelência, e o apóstolo de um apostolado de 40 anos,
aquele Nestor Vítor, disse-me do abalo emotivo que sofreu ao reunir
os subsídios e informes, e depois redigir com eles a insubstituível Intro-
dução (1ª biografia do poeta) para a edição de Obras Completas, de
1923, comemorativa do 25° aniversário da morte do Cisne Negro. Tra-
ça-lhe este retrato numeroso, dum extraordinário dinamismo e flexibi-
lidade psicológica (Obras Completas de Cruz e Sousa. Edição do
Anuário do Brasil. Rio de Janeiro. 1923. Introdução):
«Contam que ainda adolescente Cruz e Sousa tinha às vezes
na província, em horas de abstração e sem dúvida de pres-
sentimento de seu valor, andando sozinho, um ar em que havia
qualquer cousa de solene, de principesco, já como depois aqui
no Rio tantos ainda hoje se lembram tê-lo visto caminhando,
sem pensar, sem querer.» «Cruz e Sousa deu-me a impressão
de um preto estrangeiro, moço, chegado recentemente de gran-
des viagens, bem posto, com uma pontazinha de insolência,
que achei, contudo, antes simpática do que irritante, por vir-nos
não sei que prestigioso fluido, não sei que vaga eletricidade
de todo o seu ser. Havia nele talvez um nervosismo secreto
ao ver-se naquele vertiginoso ambiente, nervosismo que o le-
vava, por contradição, a esse desembaraço quase protetorial.
Mas, pois que tal atitude implicitamente criava ali um paradoxo
vivo, visto sua côr de ébano, era por isso mesmo um fenômeno
interessante aos olhos de quem gostasse do inédito, do impre-
visto e fosse generoso.»
Entretanto, a vida provava o poeta terrivelmente. Poeta de densi-
dade e intensidade como nenhum outro no Brasil. Cruz e Sousa gastou-
se até à estafa, e até à tuberculose galopante, em cinco anos de criação
em supratensão de todo o seu ser. Cinco anos somente, e que deram
ao Brasil, à América Latina, ao Simbolismo em geral, uma epopeia da
vida trágica, fragmentária, mas em fragmentos duma incomparável vibra-
tibilidade, embebidos até o fundo de dor e de humanidade.
O retrato do negro de feições delicadas e gestos secretamente ele-
gantes, de olhar líquido, que se foi formando à leitura desses depoi-
mentos que aí ficam, eis que cede o lugar a uma visão dramática no
depoimento do historiógrafo e polígrafo Escragnole Dória (In. Félix
Pacheco, Discurso de recepção, na Academia, seguido da resposta do
Sr. Sousa Bandeira. Artigos e referências. Rio de Janeiro. 1913):
«Enquanto celebrava Cruz e Sousa, no meu canto evocava a
primeira, única e última vez que vi o autor dos Últimos Sonetos.
Detinha-se num consultório médico, ôco de tísica, carcomido
de injustiça, ao lado da mulher, modesta criatura, resignada e
meiga. Esquálido, escaveirado antes do esqueleto próximo,
Cruz e Sousa esperava mudo e fatalizado a sentença dos clí-
nicos. . . Hora cruel e obscura da qual um desconhecido hauriu
a amargura.»
ANDRADE MURICY
Narra D. Fernandes, em Fretaria, que Cruz e Sousa, ao ler, ao
revelar «Emparedado» aos seus mais íntimos amigos, percebeu que dois
deles estavam distraídos, ocupados em corresponder aos gestos brejeiros
de duas mocinhas, que viam da janela. Cruz e Sousa cessou imediata-
mente a leitura e retirou-se com os amigos. De repente, já na rua,
chorou convulsivamente, de decepção e amargura: aquilo, para êle,
suscetível e cônscio da importância da hora em que apresentava o seu
verdadeiro testamento espiritual, era como «um desabar de tudo»...
Depois do impressionante retrato de Escragnole Dória, seria de
se transcrever aqui a inigualável constelação desses cristais negros e
radiantes de sofrimento e de antevisão da morte: os sonetos «Vida obs-
cura» . «Consolo amargo», «No seio da Terra», «A Morte», «Triunfo
supremo», até alcançar, na sua companhia, as «portas de ouro» que
apoteòticamente para êle se abrem no empirio da transcendência, chegar
a este esplendor de conformidadeo diferente doo estoicismo
("Assim seja»):
Fecha os olhos e morre calmamente!
Morre sereno do Dever cumprido!
Nem o mais leve, nem um só gemido
Traia, sequer, o teu sentir latente.
Morre com alma leal, clarividente,
da crença errando no vergel florido
e o Pensamento pelos céus brandido
como um gládio soberbo e refulgente.
Vai abrindo sacrário por sacrário
do teu Sonho no templo imaginário
na hora glacial da negra Morte imensa...
Morre com o teu Dever! Na alta confiança
de quem triunfou e sabe que descansa,
desdenhando de toda a Recompensa!
É esse um seu retrato, também já posto na sua atitude final e defi-
nitiva; e dessa vez o pintor foi a desgraça e foi a morte, mas transfigu-
ra-o a grandeza moral e a obscura confiança na eternidade do espírito
(«Caminho da glória», «Supremo Verbo», «O Assinalado», «Clamor
supremo») e que lhe dá aquela heróica, inaudita «alta confiança»...
E então, este derradeiro «instantâneo», extraído do ensaio Cruz
e Sousa, primeiro trabalho publicado (em plaquette) por Nestor Vitor,
e que Cruz e Sousa tinha em mãos, ainda inédito, quando faleceu:
«... tudo isso é que lhe traz descarnado o físico, dando-lhe aquela
feição de beduíno espiritual, dando-lhe aqueles olhos consultativos e
tristes de quem sente no fundo d'alma o melancólico pressentimento
de infinito deserto numa intérmina viagem.» Obra Crítica, vol. I.
Rio, 1969, p. 5. (Escrito em 1896; publicado em 1899.)
RACHEL DE QUEIROZ OU A COMPLEXA
NATURALIDADE
PAULO RÓNAI
"Nós todos, que temos de falar gracioso porque esse é nosso meio de
vida, que temos de dizer de modo gentil o que os outros pensam mal ou
dizem mal (e é isso o estilo), quanto haverá de originalidade no nosso
estilo, ou simples repetição nas fórmulas que supomos inventar?"
RACHEL DE QUEIROZ
A
proveitei a oportunidade da reedição para submeter as 100
Crônicas Escolhidas
1
de Rachel de Queiroz a um teste de relei-
tura, do qual saíram elas perfeitas, sem um arranhão. Cem obras da
fantasia criadora, com a extensão média de 2,3 páginas, que exercem
perfeitamente a sua função, a de interessar, provocar, comover
noutras palavras, fazer pensar e sentir, isto é, ajudar a viver. Prazer
verificar que aí estão, reunidas, tantas páginas que há quinze, vinte
ou vinte e cinco anos deitaram semente em meu coração e nele se en-
raizaram. Agora sei que só me deixarão com a sensibilidade e a cons-
ciência .
A designação de crônica, elástica, encobre contos, perfeitos em
sua estrutura concisa; perfis de tipos esquisitos e de indivíduos sin-
gulares, vistos com sátira ou ternura igualmente contagiosas; divertidos
flagrantes cariocas, reveladores da graça sutil e do espírito galhofeiro
da cidade que a escritora adotou; exatas imagens do Ceará, sua terra
natal, legítimos documentos de ecologia, de folclore, de psicologia
regional; meditações sob forma de conversa leve, em que a moralista,
sem ilusões e sem, mas conservando o amor das criaturas, lhes ensina
a difícil arte de viver e a, mais difícil ainda, de morrer. Nenhuma delas
escrita para tirar uma moralidade, todas com uma mensagem a trans-
mitir .
Tarefa tentadora a de esboçar o mapa-mundi das gentes e das
ideias de Rachel, tal como a empreendeu com aguda compreensão,
1. Rachel de Queiroz, 100 Crônicas Escolhidas, 2ª edição, Coleção Sagarana,
Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1970.
PAULO RONAI
para outra coletânea
2
, o escritor Herman Lima, seu conterrâneo e
amigo.
Mas, agora, a nossa abordagem é outra.
Um volume como este, diga-se de passagem, parece resolver de
vez a pendência sobre se a crônica se inclui ouo na literatura.
Como excluir dela uma fórmula que permitiu, e garantiu, semelhante
eclosão de talento criador? Nem outro foi o pensamento do saudoso
Gilberto Amado a quem os editores em boa hora pediram emprestado,
para prefácio, um precioso artigo, escrito sobre O Caçador de Tatu,
mas válido para toda a arte de Rachel. Mestre Gilberto insiste ex-
pressis verbis na importância da crónica como gênero literário entre
nós, acrescentando que «alguns dos nossos cronistaso os nossos
maiores fornecedores de obras-primas literárias».
Note-se, porém, como curiosidade semântica: no mesmo estudo
declara Gilberto Amado admirar a nossa cronista poro fazer lite-
ratura. «Nada de literatura com Rachel. Beleza, sim, muitas vezes,
mas sem enfeites, sem chique, sem requififes». Entende-se que desta
vez a palavra «literatura», ao contrário da conotação elogiosa conferida
há pouco a «literário», é usada em sentido pejorativo; no sentido
o do gosto precisamente dos literatos, de rebuscamento, lucubração,
requinte calculado.
Sem dúvida, as crónicas de Rachelo a impressão de algo total-
mente desprovido de artifícios. Literaturao elas, mas no bom sentido
da palavra, sem qualquer literatice.
Toda arte, porém, até a menos artificial, é um conjunto de pro-
cessos verdade é que nem sempre fáceis de surpreender. Diverti-me
em distinguir e catalogar alguns dos que se identificam neste volume.
A sua identificabilidade, é claro, de modo algum diminui a admirável
espontaneidade de um estilo do qual se pode dizer que é o homem
mesmo isto é, a mulher mesma.
Num trecho posto em relevo com toda a justiça por Herman Lima,
a própria escritora entremostra um dos segredos da sua espantosa co-
municabilidade: criou uma linguagem literária «que se aproxime o mais
possível da linguagem oral, naturalmente no que a linguagem oral tem
de original e espontâneo, e rico e expressivo».
Como que reforçando essa oralidade, a crónica dirige-se a inter-
locutores de presença ora explícita ora implícita. Aqueleso corres-
pondentes que lhe escrevem: «Desculpe, Aspásia, estou tentando lhe
[alar com o coração nas mãos.» (pág. 34); «Em primeiro lugar, moça,
deveria dirigir-se à minha ilustre colega do consultório sentimental.»
(pág. 41); «Com gosto atendo ao seu pedido, rapaz.» (pág. 51);o
2. Rachel de Queiroz, O Caçador de Tatu. Crônicas selecionadas e apresen-
tadas por Herman Lima, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1967.
RACHEL DE QUEIROZ OU A COMPLEXA NATURALIDADE
os leitores em geral: «Quem quiser mandar recados e lembranças, apro-
veite que estou às ordens.» (pág. 85); «Direis que isso não passa de
simples vaidade.» (pág. 84); é um leitor indeterminado: «Converse
com aquele senhor idoso... Escute duas pessoas verazes e honestas
contando uma discussão que tiveram entre si... Ouça a descrição de
um desastre... Olhe esse magro funcionário lendo o seu jornal.»
(págs. 83-84); é qualquer homem: «Não, não te apiades de quem
morre. .. Ora, deixa em paz o morto! (pág. 67); é a própria escritora
dialogando consigo mesma: «Deanna Durbin fracassou por quê? Porque
o público gostava da menina Deanna Durbin, magrinha e adolescen-
te,. ..» (pág. 118); é o indefinido e inatingível destinatário de tanta
pergunta irrespondível: «Como viverão atualmente as mulheres da Eu-
ropa? Quem zelará pelo moral das donzelas? Quem lhes vigiará os na-
moros, as conversas noturnas, os beijos furtivos?» (pág. 10).
Poder-se-ia escrever, aliás, toda uma tese sobre o uso que Rackel
faz do ponto de interrogação, desde a interrogação retórica até a per-
gunta afirmativa e agressiva, desde a displicente pergunta coloquial até
a grave questão existencial. Às vezes começa a crônica por interro-
gaçãoo dirigida especificamente a ninguém, mas que dá a entender
a existência de algum segredo cuja solução nos interessa: «Por que
mistério, sendo a Praia do Flamengo a residência mais «bem» do Rio,
não é o banho do Flamengo igualmente bem?» (pág. 166); outras vezes,
terminando-a por pergunta «Pois, diga-se o que se disser, este
Brasil é grande, não é mesmo?» (pág. 114) dá-nos vontade de res-
pondermos em voz alta. Ou então, começando-se a crónica por uma
resposta: «Sim, o gato se chama Bogun.» (pág. 124) subentende-se
uma pergunta e, portanto, a presença de um perguntador.
Outras vezes, ainda, a sugestão está em se começar a crónica
entrando in medias res: «Ora este caso de hoje se deu no ano da sêca,
de 1915.» (pág. 38); «Esta noite sonhei com Portugal.» (pág. 68);
«Foi agora, no Carnaval.» (pág. 126); «Ora afinal, o coitadinho teve
sua festa.» (pág. 43) quando sentimos formar-se como que uma
roda invisível em torno da narradora. Às vezes basta um modismo
saboroso «Esqueci de falar...», «Fosse eu homem e andasse em
começo de vida...», «Outro dia escutei pelo rádio. . .», «Mas qual. . .»,
«Quem sabe o Brasil tomaria outro jeito. ..», etc. para convencer
o leitor de ser um ouvinte, mais do que isso, um interlocutor.
Quantas outras formas ainda para estabelecer contato! Por exemplo
a surrada palavra «você com sutil valor de pronome indefinido; gra-
maticalmente se refere a quem, logicamente a quem escreve, e envolve
os dois na mesma situação: «Pode ser uma leviana viagem de turismo;
você parte rogando pragas por causa da ineficiência disto e daquilo,
as moscas no aeroporto; a safadeza do táxi que lhe cobrou trezentos
cruzeiros, as transferências do horário do avião...» (pág. 114). Ou
então a autora entra em comunicação com o leitor chamando à baila
uma de suas personagens «Horácio, diziam os mais velhos que não
PAULO RÓNAI
sabias viver; mas bem soubeste morrer.'» (pág. 4) recurso rotulado
de Apóstrofe pela velha Retórica.
Que é que pode haver em comum entre as classificações da Re-
tórica e essa prosa transparente que brota do puro manancial da língua
viva? Pois bem, ela é um verdadeiro armazém dos enfeites do discurso
outrora denominados e ensinados como Figuras de Retórica.
Chamou-me a atenção para o fenômeno a crônica «Metonímia,
ou a vingança do enganado», em que Rachel de Queiroz recorda a
crítica severa que lhe valeu a expressão «com o peíto entreaberto na
blusa», usada em O Quinze, e a sua resposta contundente depois de
ser informada pelo seu professor de Latim de que, sem saber, recor-
rera a uma Metonímia. Pois desde então vem se servindo, provavel-
mente sem dar por isso, desse e de outros flósculos tanto mais coloridos
e viçosos quanto coincidem com os modismos mais pitorescos da fala
popular.
Notam-se, antes de mais nada, aquelas queo decorrência de
uma penetração da linguagem coloquial no discurso escrito e nas quais
as palavraso guardam entre si a devida coerência sintática, com-
pensando a irregularidade pelo impacto da expressão. A mais comum,
o Anacoluto, floresce em espécimes especialmente vistosos: «O homem
daqui, seu conceito de felicidade é muito mais subjetivo.» (pág. 195);
«Pobre, tão pobre, não tinha a favor de si nada do que os homens dão
valor.» (pág. 3); «De repente, no dobrar de uma esquina (você estava
longe de pensar que a embaixada era ali) de repente lhe salta aos
olhos, penduradinha no seu mastro diplomático, a bandeira nacional.
Que lhe dá então? Lhe uma dor no peito. Sim, apátrida, renegado,
exilado voluntário, enjoado da bagunça nacional, você lhe dói o peito
de saudade...» (pág. 115).
o menos irregular nem menos gostosa quando bem utilizada
_é a Silepse, em que a concordância decorre mais da Lógica do que
da Gramática: «Entra criança de peito, aliás são as melhores...»
(pág. 7); «E se a gente se juntasse todos. ..» (pág. 115).
A modificação afetiva da ordem convencional dos termos da ora-
ção produz, segundo os tratadistas, o Hipérbato: «A luz sei que vem
de Deus.» (pág. 112); «O caso quem me contou foi José Olympio.»
(pág. 231).
Em sentido retórico, o Parêntese é mais um desses enfeites: «E o
dono da viagem do carro de passeio respondeu com autoridade que,
claro, o papel era chegar à cidade mais próxima. . .» (pág. 155).
Também a Alusão, em acepção estilística, é figura; exige que o
leitor, valendo-se de seu cabedal de reminiscências de leitura, inteire
o sentido do enunciado: «E de repente me apercebi de que não tenho
saudade de nada. . . Saudade de nada. Nem da infância querida, nem
das borboletas azuis, Casimiro.» (pág. 93); «Basta que se diga que
RACHEL DE QUEIROZ OU A COMPLEXA NATURALIDADE
eles se amaram de amor proibido, como Tristão e Isolda, como Paolo
e Francesca.» (pág. 182).
A Hipérbole, expediente ao mesmo tempo literário e popular,
surge com toda a naturalidade em qualquer relato enfático: «Conhecem
o sertão inteiro como a palma da mão.» (pág. 99); «Bogun, bravo
como um lobo; belo, como um dia de sol; orgulhoso como Satanás.»
(pág. 125).
Outro recurso comum ao povo e aos oradores é o Eufemismo:
«Ela afinal descansou da sua longa passagem pelo mundo.» (pág. 148).
o falta a Litotes, que nos leva a afirmar por enunciado negativo:
«Mas com isto não estou querendo dizer que tenha Lindomar nada de
monja.» (pág. 78).
O Clímax, intensificação que se efetua em graus simétricos, en-
carna-se assim: «A cada ano, a cada dia, a cada hora e minuto você
tem menos vida dentro de si.» (pág. 187) e assim: «Como é difícil,
meu Deus, como é raro produzir já não digo uma andorinha inteira,
mas um simples riscar de asa no céu, uma cantiga de ave, um atrevi'
mento de vôo!» (pág. 154)
A Antítese,o do gosto dos românticos, tampouco está ausente
do arsenal da nossa autora: «Aquilo que você queria saísse gracioso e
saiu canhoto, e o que desejava poético e saiu apenas enfático, e o que
pretendia escorreito e claro e saiu amontoado, confuso, fatigante,
chato...» (pág. 153).
O exemplo é particularmente curioso, por servir também como
amostra de Paralelismo, de Sinonímia e de Repetição.
Esta última, como sabemos, admite uma multidão de variantes
que os tratadistas se compraziam em classificar e em subdividir inde-
finidamente e que, em nossas crônicas, encontram ilustração abundante.
Lembremos a Anáfora, repetição enfática de uma palavra no
inicio de cada membro do período: «O sargento era simpático, era
musculoso, era jovem, era formidavelmente marcial.» (pág. 182); Jamais
se cansar da presença dele mesmo quando êle é chato; jamais lhe
enjoar a voz, as anedotas repetidas, os gestos, os cacoetes; jamais ficar
farta dos seus carinhos; jamais, oh jamais, recordar nada nem ninguém
nem rememorar o passado ou evocar o futuro se acaso êle não fôr per-
sonagem desse passado ou candidato a esse futuro isso é que é
amor.» (pág. 42); «Ainda não é homem, ainda não é nem mesmo
gente, mas também não é mais anjo, participa da condição humana,
chora, já sofre dor, tem medo, deseja as coisas, possui cria-
turas e objetos, já tem preferências e antipatias...» (pág. 96).
Recordemos a Simploce, repetição da mesma palavra no fim de
várias orações ou membros de uma oração: «Por detrás de uma mu-
ralha, sempre haverá outra muralha...» (pág. 148); «A pátria dele
PAULO RÓNAI
ê o dinheiro, a língua o dinheiro, a comunhão a do dinheiro. . .» (pág.
150).
Acrescentemos, com perdão da má palavra, a Anadiplose, requinte
que faz Virgílio e a nossa Rachel começarem uma oração pela palavra
final da anterior: «Se nasce nu, nu deveria morrer..» (pág. 32).
Por poucoo esquecemos a Epanadiplose, em que a sentença
acaba com a mesma palavra pela qual começou: «O frio conforme a
roupa, a roupa conforme o frio.» (pág. 45),
e a Epizeuxe, repetição enfática de uma palavra: .Vida a gente
tem que viver sozinha, sozinha.» (pág. 142); «Não, não te apiades
de quem morre.» (pág. 67),
sem falar na Epanalepse (sic!), repetição da mesma sentença, com
outras intercaladas: «E pois, se você ainda tem olhos para enxergar
feiuras no seu suposto amado, se tem cabeça para lhe descobrir defeitos
é porque não ama. Se êle não lhe parece belo, irresistível, único, é
porque não ama. Se por amor dele não está disposta a perder tudo,
nome, fama, amor próprio, corpo, sangue, alma e divindade então
não ama.» (págs. 41-42)
Nem falta a Paronomásia, aproximação de palavras semelhantes:
«Precisa vir a luz do sol para trazer a humilhação e a humildade. . .»
(pág. 153).
Encontra-se ainda o Homoteleuto, acumulação, na prosa, de pa-
lavras com a mesma terminação, que só a intencionalidade distingue
da rima involuntária: «E assim, vinte e cinco anos naquela freguesia
viveu o meu padrezinho, celebrando, casando, batizando, comungando,
levando extrema-unção aos moribundos.» (pág. 174), ou, noutro
exemplo: «Sua mentira não é nem jocosa, nem oficiosa, nem pernicio-
sa. ..» (pág. 37).
O Polissindeto, repetição empolgada da conjunção, quando bem
usado, é de muito efeito: «E assim bela e assim vestida e assim pintada
e formosa começou a lhe pesar o marido enfermiço.» (pág. 181); às
vezes, como no exemplo seguinte, ajuda a recriar o tom bíblico: «E
quando essas mil cabeças clamarem e pedirem caridade e misericórdia,
então talvez os ouvidos moucos ouçam, e os corações de pedra abran-
dem, e o sangue não seja mais derramado, e cresça o milho e cresça o
trigo onde antes se guerreava, e nos cemitérios se plantem menos homens
e mais flores.» (pág. 64)
O Pleonasmo, acessório sugestivo da fala popular, surge em es-
pécimes bem característicos: «Mas a verdade, a verdade verdadeira
que eu falar não posso. . (pág. 91); «E imagine agora se essa his-
tória a contasse um mentiroso!» (pág. 83), e este, deveras delicioso,
aliás já citado noutra conexão: «Ora este caso de hoje deu-se no ano
da seca de 1915.» (pág. 38)
RACHEL DE QUEIROZ OU A COMPLEXA NATURALIDADE
No extremo oposto, a Elipse pode sero menos expressiva: «A
toda a hora, da madrugada ãs dez da noite, é menino, mulher e homem
chamando por êle: Mimiro, ó Mimiirooôô E Mimiro longe.» (pág. 25);
«Se o distinto público acha ruim, paciência!» (pág. 120); «Foi a uma
sessão para nunca mais.» (pág. 139); «A recordação mais antiga que
lhe guardo é pequenino, pretinho e seminu.» (pág. 3).
Num estudo metódico, teríamos dividido esses ornamentos em
Figuras de Construção, Figuras de Palavras ou Tropos, e Figuras de
Pensamento. Mas neste esboço rápido, sem maiores pretensões, con-
tentamo-nos em anotar ao acaso da leitura as amostras já alinhadas,
como também estes exemplos de Metáfora, escolhidos entre muitos:
«Vínhamos nós comendo légua e paisagem desde Juiz de Fora...»
(pág. 53); «Deixou nesses enlevos, mormente num piquenique em
Paquetá, algumas pétalas de sua inocência, mas afinal não todas, nem
as essenciais.» (pág. 78)
Há também a Catacrese, que se define como Metáfora exagerada:
«Talvez na sua caixa do peito só reste um fole vazio.» (pág. 188),
e a Sinédoque, substituição do todo pela parte: «Quero per se
ainda encontro algum sinal das mãos que se foram dali.» (pág. 86),
e, naturalmente, a famosa Metonímia, que motivou estas elucubra-
ções e que, além de exemplos clássicos como «Cada um bebe o seu
cálice» (pág. Hl), se encarna em fraseso vivas,o modernas, como
estas: «O táxi que lhe cobrou trezentos cruzeiros...» (pág. 114);
«Que, aliás, sou Vasco, com muita honra!» (pág. 119).
Talvez surpreenda a cronista ao informá-la de que pratica com
virtuosismo a nobre Prosopopéia, a que «antropomorfiza ficticiamente
animais e coisas inanimadas» e cujos exemplos normalmente vamos
buscar em Camões.
Vejamos: «Tem que se pensar no dia de amanhã, embora uma
coisa obscura nos diga teimosamente lá dentro que o dia de amanhã,
se a gente o deixasse em paz, se cuidaria sozinho, tal como o de ontem
se cuidou.» (pág. 93).
Tampouco lhe repugna a Antonomásia, emprego de um nome comum
por um nome próprio: «Na sua carta fala Vossa Alteza do 13 de Maio
e dos desastres que acarretou, e diz que eu talvez estranhe ouvir tais
conceitos de um neto da Redentora.» (pág. 174) .
A moral da história? Talvez seja esta: que o estilo mais cristalino,
mais coloquial, mais direto,o é nada simples, mas o resultado de
fórmulas e de processos complexos e variados, algunso antigos como
a própria linguagem; e que o maior elogio que se possa fazer a este
volume de Rachel de Queiroz, e a todos os demais, é oferecerem-nos
tantos motivos de encanto apesar de poderem alimentar com quantos
exemplosr preciso o mais minucioso dos tratados de Retórica.
EM TORNO DE UNS VERSOS INÉDITOS
DE AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
N
ÃO sei de muitos que tenham tido, com tanta pureza, o sentimento
da amizade, como o nosso Manuel Bandeira. Desde que êle se
foi, naquele outubro de 1968, cada viagem ao Rio me faz meditaro só
no vazio que êle deixou, como no segredo que esse poeta nada derramado,
antes homem sem inúteis efusões, possuía para prender a gente para
toda a vida.o raro a amizade nascia de um equívoco ou de uma
desinteligência em torno de determinado assunto literário. Este foi, por
exemplo, o caso de meu irmão João Alphonsus. O próprio Manuel
Bandeira, ao editar as cartas que lhe escreveu Mário de Andrade (Car-
ias de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, Organização Simões Edi-
tora, Rio, 1958), expôs em nota ao pé da pág. 160: «No segundo número
da Revista do Brasil (30 de setembro de 1926) fiz uma nota crítica
sobre o livro Juiz de Fora de Austen Amaro, e essa nota, apesar de
muito simpática ao poeta, irritou profundamente a João Alphonsus, o
qual escreveu contra mim pelo suplemento mineiro da Manhã de 26 de
outubro. A minha resposta foi uma «Carta aberta a João Alphonsus»
publicada no nº 4 da Revista do Brasil. Carta mansa, em que eu aca-
bava dizendo: «Me queira bem, João Alphonsus». Alphonsus, queo
me conhecia pessoalmente, caiu em si e viu que fora injusto comigo.
Depois nos encontramos em Belo Horizonte e ficamos amigos para
sempre».
Ao preparar para a Livraria José Olympio Editora, em 1966. Ando-
rinha, Andorinha, livro que reuniu textos de prosa de Manuel Bandeira
que ainda se encontravam esparsos em publicações várias, Carlos Drum-
mond de Andrade, com o escrúpulo e a segurança habituais, houve por
bem reproduzir, sob o título «Um livro e duas cartas», a crítica de Ma-
nuel Bandeira ao poema «Juiz de Fora», de Austen Amaro, o artigo de
João Alphonsus «Juiz de Fora: poema lírico», datado de 24-X-1926, a
«Carta aberta a João Alphonsus», datada de 30-X-1926 (Manuel Ban-
deira, como se viu, fala em setembro,o outubro) e por fim a «Resposta
a Manuel Bandeira», de João Alphonsus, datada de 8-XI-1926, e assim
concluída: «Mais cedo do que esperava me arrependi de ter escrito
aquele medonho artigo. Eu disse que você me machucou mas foram
machucões bemfazejos. Machucões benditos. Infelizmente é assim que
a gente aprende a viver e a gostar daqueles que merecem ser amados
ALPHONSUS DE GUIUMARAENS FILHO
além de admirados. Disponha do meu coração.» (Os trabalhos citados
ocupam, em Andorinha, Andorinha, um espaço que vai da pág. 189
a 197.)
Ficamos amigos para sempre... Manuel Bandeira incluiu, na edi-
ção de sua Poesia e Prosa, Editora José Aguilar Ltda., Rio de Janeiro,
1958, algumas cartas que escreveu a João Alphonsus. E ao morrer este,
em 23 de maio de 1944, publicou em «A Manhã», do Rio, uma crônica
em que se voltou ainda uma vez para o caso do poema de Austen Amaro,
para dizer que «toda vez que João Alphonsus vinha ao Rio, procura-
va-me.» Lembra-me que numa dessas vezes acompanhei João Alphon-
sus. Manuel Bandeira morava então no pequeno apartamento da rua
Morais e Vale, na Lapa.
Nesse apartamento eu o conheci, em julho de 1940, levado por-
rio de Andrade, que residia na Ladeira de Santa Teresa. Lá chegaria
depois, carregado de livros destinados a Manuel, outro poeta, este ex-
pansivo e agitado: Augusto Frederico Schmidt. Três décadas se foram
e dos quatro que se reuniram em bons momentos, àquele dia, resta ape-
nas o mais moço, que emo se debruça agora sobre o papel noo e
meio amaro intento de fixar, nem êle sabe como, um pouco do que se
foi deixando apenas o rastro da amizade e. .. da poesia.
Somente se falou em poesia, ou quase. Eu me limitava a ouvir.
Do que me lembro bem foi da sensação que experimentei no primeiro
contacto com Manuel Bandeira, a mesma que experimentara conhecendo
Mário de Andrade. Aprendi com êle, desde o primeiro instante, a mais
nobre e pura lição de inalterável e afetuosa simplicidade.
De Augusto Frederico Schmidt me ficou a lembrança, que depois
ainda melhor se afirmaria, de alguém extrovertidamente triste e nostál-
gico. Nada mais enganador que a sua gargalhada ruidosa. Se êle es-
creveu um dia, num poema de Estrela Solitária,
Quero gelar a minha gargalhada
No silêncio estelar,
fê-lo com a dramaticidade e com o patético que havia na sua sensibili-
dade e ao mesmo tempo nos deu uma visão do que era êle como homem
e poeta: alguém preso à terra, fascinado pelo efêmero, mas também
voltado para os grandes e claros céus, empolgado pelas distâncias sem
termo, ávido de se encontrar num mundo atónito e atormentado.
Manuel Bandeira foi dos que reconheceram cedo a pureza e a au-
tenticidade da poesia schmiditiana. Saudou-o em crônica recolhida ao
livro Crônicas da Província do Brasil (Rio de Janeiro, Civilização Bra-
sileira, 1937), afirmando logo de início: «Já estava tardando um poeta
que reagisse contra os processos e o estado de espírito da geração mo-
dernista. Alguém para quebrar os clichês gastos. É verdade que havia
os continuadores de parnasianos e simbolistas. Esses, porém,o rea-
giam: repetiam apenas. Era preciso um poeta que tivesse passado pela
experiência moderna, que a tivesse assimilado e, portanto, embora dife-
EM TORNO DE UNS VERSOS INÉDITOS DE AUGUSTO F. SCHMIDT
renciando-se dela, afastando-se dela, soubesse aproveitar-lhe as lições.
É o que entres se dá pela primeira vez com a afirmação poética de
Augusto Frederico Schmidt.» (Poesia e Prosa de Manuel Bandeira,
Editora José Aguilar, Rio de Janeiro, 1958, pág. 179.)
Com efeito, de todos é conhecido o papel que Augusto Frederico
Schmidt, temperamento romântico por excelência, desempenhou na reação
ao que Manuel Bandeira chamou de estado de espírito da geração mo-
dernista. Nele, nos seus versos longos, nos seus ritmos paralelisticos,
havia uma voz nova, uma angústia queo se disfarçava ou recorria a
meios outros como por exemplo o poema-piada, antes mantinha, pode-se
dizer que invariavelmente, a mesma atitude solene, grave, numa lingua-
gemo de todo isenta de influências de poetas do passado mas sem
dúvida notavelmente pessoal nos seus acentos e no seu estranho poder
de sugestão.
No pequeno apartamento da rua Morais e Vale, recordo-me agora
de Augusto Frederico Schmidt abraçando-me e dizendo risonhamente a
Mário de Andrade: «Nós, os condores ...» É que Mário de Andrade
se ocupara há pouco de Estrela Solitária, de Schmidt, e do meu livro de
estréia, dando ao seu estudo um título bem significativo: «A volta do
condor». Esse estudo veio a fazer parte do seu livro Aspectos da Lite-
ratura Brasileira, Rio de Janeiro, Americ-Edit., Col. Joaquim Nabuco,
Rio de Janeiro, 1943.
Manuel Bandeira falaria mais tarde de Augusto Frederico Schmidt
nos versos de circunstância de Mafuá do Malungo (Barcelona, 1948; 2»
edição. Rio de Janeiro, Livrariao José, 1954):
O poeta Augusto Frederico
Schmidt, de quem dizem que está rico,
Foi homem pobre, certifico,
Mas o poeta sempre foi rico.
Esses versos podem ser lidos na pág. 477 do lº volume de Poesia
e Prosa, como nas págs. 563 e 564 do mesmo volume estão uns curio-
síssimos versos feitos «à maneira de . .. Augusto Frederico Schmidt».
Há aí a liberdade brincalhona do amigo. O poema se divide em duas
partes: a primeira, dedica-a Manuel Bandeira a divertir-se com o poeta
de Canto da Noite, pondo-lhe na boca estas palavras:
Daqui a trezentos anos
Não existirei mais.
E porqueo existisse mais daqui a trezentos anos, era precisor
também na boca de Augusto Frederico Schmidt versos que representas-
sem gostosa e cordial paródia do seu jeito de ser, da sua poesia la-
mentosa :
Outros amarão e serão amados,
Outros terão livrarias católicas,
Outros escreverão no suplemento de domingo dos jornais:
Eu não existirei mais.
ALPHONSUS DE GUIUMARAENS FILHO
Seja, não importa. Senhor!
Sou um pobre gordo.
Mas sei que eles também não serão felizes.
Eu, sim, o serei então.
Quando debaixo da terra, magro, magro, ossos,
Não existir mais.
A segunda parte é como que um poema schmidtiano, se desses ver-
sos excluirmos a parte bandeiriana da ironia, como no comentário às
soluções que falharam: «O amor, os seguros, a água, a borracha.»:
muito o meu coração está seco.
muito a tristeza do abandono,
A desolação das coisas práticas
Entrou em mim, me diminuindo.
Porém de repente será talvez a contemplação
De um céu noturno como mais belo não vi,
Com estrelas de um brilho incrível,
De uma pureza incalculável e incrível.
A poesia voltará de novo ao meu coração
Como a chuva caindo na terra queimada,
Como o sol clareando a tristeza das cidades,
Das ruas, dos quintais, dos tristes e dos doentes.
A poesia voltará de novo, única solução para mim,
Única solução para o peso dos meus desenganos,
Depois de todas as soluções terem falhado:
O amor, os seguros, a água, a borracha.
A poesia voltará de novo, consoladora e boa,
Com uma frescura de mãos santas de virgem,
Com uma bondade de heroísmos terríveis,
Com uma violência de convicções inabaláveis.
Verei fugir todas as minhas amargas queixas de repente,
Tudo me parecerá de novo exato, sólido, reto,
A poesia restabelecerá em mim o equilíbrio perdido.
A poesia cairá em mim como um raio.
Eo é: na pág. 302 do mesmo citado 1" volume deparamos
com um «Soneto em louvor de Augusto Frederico Schmidt», datado de
10-9-1940, soneto que se poderia dizer feito igualmente à maneira
schmidtiana, em versos irregulares e sem rimas. Logo na página se-
guinte temos um «Soneto plagiado de Augusto Frederico Schmidt». Que
teria levado Manuel Bandeira a colocar num soneto em decassílabos
muito seu, dotado da perfeição técnica de quanto realizava, as imagens
de outro, inteiramente irregular, (é preciso frisar que às vezes Schmidt
compunha sonetos em decassílabos que podem ser considerados regula-
res, maso os rimando nunca), em que o poeta de Mar Desconhecido
EM TORNO DE UNS VERSOS INÉDITOS DE AUGUSTO F. SCHMIDT
nos transmite uma emoção verdadeira, pungentemente verdadeira ? Tal-
vez, digamos admitindo a hipótese, para ver tais imagens em versos
regulares, num soneto à feição daqueles que lhe agradavam. Porque,
como me escreveu em carta datada de 19 de outubro de 1941, «a ver-
dade (...) é que soneto é poema em decassílabos, como o miraculoso
«Heureux ceux qui comine Ulysse a fait un beau voyage» de Du Bel-
lay. Mas ... só ultimamente é que fiz uns dois ou três bons sonetos,
porque me pus na escola de Quental, que é a escola de Camões, que
é a escola de Petrarca, que é a escola de Dante . .. e paremos aí que es-
tamos no sétimo céu. É, a «Renúncia» foi o meu melhor sonetinho até
1929 ou 1930, quando traduzi os três sonetos de Browning e peguei o
jeito. Saiu melhorzinho porque o fiz num subdelírio da minha tuber-
culose (41° graus de febre)». Aduzia: «Gosto de conversar sobre esses
problemas de técnica com poetas 100% (...) Chamo poeta 100% o
que é artista também, isto é, artesão também, o poeta que sabe nadar
em todas as águas: no oceano em perpétuo movimento do verso-livre
e.. . nos blocos congelados da forma fixa. Os poetas queom o
verso medido nas ouças, mesmo quando da força extraordinária de um
Schmidt ou de um X, me causam certo mal-estar nas minhas ideias sobre
poesia. Como de resto o poeta-medidor que se perde no verso-livre que
nem João mais Maria sem milho para marcar o caminho na floresta».
Hipótese ou conjectura, temos de convir que Manuel Bandeira trans-
formou o soneto irregular de Augusto Frederico Schmidt numa obra-
-prima. Ambos, cada qual à sua maneira,o belos. Mas vale a pena
transcrevê-los, para que o leitor possa ver até onde foi o trabalho de
recriação de Manuel Bandeira e como neste a emoção ou expressãoo
peculiares a Schmidt se tornaram bandeirianas na forma precisa, enxuta,
exata. Nada melhor para documentar a posição de dois autênticos poe-
tas diante da técnica da sua arte.
O de Augusto Frederico Schmidt apareceu nas suas Poesias Esco-
lhidas (Americ-Edit., 19-16, pág. 262), com o título de «Exercício»:
E agora de repente no coração incompreendido
Este sofrimento, esta mágoa, esta agonia.
E agora nos olhos secos esta fonte nascida.
Esta fonte inesperada e irreprimível.
No espírito deserto esta presença misteriosa,
Na inteligência distraída, esta súbita atenção,
Este sentido das cousas, esta claridade,
Esta consciência nítida de pecados e merecimentos.
Até pouco o olhar fitava o escuro apenas,
Mas neste instante eu O vejo ao meu lado.
E os ouvidos apagados O estão sentindo.
Seu rosto ê o meu próprio rosto de certo,
Mas o seu olhar ê o de alguém tocado pela graça,
E vem dele uma pureza que não tenho, que perdi.
97
ALPHONSUS DE GUIUMARAENS FILHO
O de Manuel Bandeira figura na sua Lira dos Cinquent'Anos, livro
que surgiu pela primeira vez nas Poesias Completas do poeta (Americ
-Edit., Rio, 1944, pág. 295). com o título, a que já nos referimos, de
«Soneto plagiado de Augusto Frederico Schmidt»:
E de súbito n'alma incompreendida
Esta mágoa, esta pena, esta agonia;
Nos olhos ressequidos a sombria
Fonte de pranto, quente e irreprimida.
No espírito deserto a impressentida
Misteriosa presença que não via;
A consciência do mal que não sabia,
Aparecida, desaparecida ...
Até bem pouco, era uma imagem baça.
Agora, neste instante de certeza,
Surgindo claro, como nunca o vi!
E nesse olhar tocado pela graça
Do céu, não sei que angélica pureza.
Pureza que não tenho, que perdi.
Lendo esses versos, Augusto Frederico Schmidt terá meditado no
seu ideal, tantas vezes confessado, de alcançar uma poesia ordenada,
harmoniosa, clássica. No entanto, a mim me parece que a sua poesia
tanta vez escoachante, incontrolável, devia exprimir-se, como se exprimiu,
através dos ritmos que lheo peculiares. Manuel Bandeira falou em
«cadências bíblicas», ao iniciar o soneto feito em louvor de Schmidt:
com isso, deu-nos a exata posição da poesia do autor de Canto da Noite
o só dentro dos quadros da nossa poesia moderna como na verdade
de toda a poesia nacional. Disse mais que êle soube recolher «os sons
das coisas mais efémeras», mas que sua «glória maior é ser aquele / Que
soube falar a Deus nos ritmos de sua palavra.» Como querê-lo dife-
rente do que foi? Muita vez buscou conter-se, conter a corrente fluvial
que o empolgava, fazê-la correr entre os muros até mesmo da forma
fixa, como no caso de seus sonetos em decassílabos, entre os quais há
obras-primas. Mas a poesia o arrastava nas suas águas estranhas e
poderosas e o verdadeiro Schmidt irrompia, por maiores que fossem
suas deficiências técnicas, em imagens e metáforas queo propriedade
sua, numa linguagem que desde logo se distinguiu entre as demais. E
isso porque a sua vocação e intuição poéticas eram realmente extraordi-
nárias, capazes de suprir possíveis falhas de forma. Torno a dizer que
Augusto Frederico Schmidt se realizou, a meu ver, em grande parte dos
seus poemas. Outros, é verdade, apresentam quedas que lhes prejudi-
cam a unidade. Talvez tenha vindo daí o vezo de atacar o poeta (e
poucos foramo atacados em vida quanto êle) e de lhe atribuir apenas
deméritos, esquecendo propositadamente os seus momentos mais altos.
Daí porque um amigo me disse, quando de sua morte, que infelizmente
Schmidto soubera «administrar» a sua poesia . ..
98
EM TORNO DE UNS VERSOS INÉDITOS DE AUGUSTO F. SCHMIDT
A referência à sua incapacidade de administrar a sua poesia levaria
implícita a outra de que soubera, isto sim, administrar a sua vida. Cabe
lembrar esse aspecto da personalidade schmidtiana, um dos mais atingi-
dos pelos seus críticos:o se pode deixar de lado tal fonte de sofri-
mentos agudos para o poeta. Que êle, é claro,o podia passar sem
amargura sobre tantas frases cáusticas e violentas. No fundo, nega-
va-se no homem Schmidt os atributos de um poeta. Para que se tenha
uma idéia do que significou tal campanha, leia-se a página que Lúcio
Cardoso incluiu no seu Diário Completo (Livraria José Olympio Edi-
tora, em convênio com o Instituto Nacional do Livro, Rio, 1970, pág. 4.)
Os sentimentos aí expressos refletem, realmente, o julgamento da época,
embora Lúcio Cardoso, grande escritor que era, logo de saída fale no
«alto poeta de Canto da Noite», colocando-se assim em situação muito
diversa dos que negavam o poeta, contra toda a evidência, mas confes-
sando «que, ao vê-lo falar sobre o Brasil em termoso eloquentes, e
que parecem repassados de uma féo sincera, gostaria queo pos-
suísse nada, que fosse pobre como um de nós, a fim de que nenhuma
suspeita viesse perturbar a nitidez de sua voz». No dia seguinte, anota
Lúcio no seu diário: «Um artigo contra Schmidt, em termoso gros-
seiros, que me faz ficar um pouco envergonhado de tudo o que ontem
escrevi neste caderno». Ainda a respeito do homem Schmidt, gostaria
de lembrar uma crônica de Manuel Bandeira, inserta em Andorinha,
Andorinha (págs. 287 e 288). Basta citar-lhe o título: «Schmidt, poeta
e economista». Divide-se em duas partes: a primeira é de exaltação ao
poeta: «Fui dos primeiros a pressentir no balbuciar do adolescente Au-
gusto Frederico Schmidt a força de sua futura poesia. (...) Schmidt
é hoje um mestre e toda uma corrente da nossa poesia deriva dessa fonte
extraordinária de inspiração que adquiriu o seu maior volume no Canto
da Noite e na Estrela Solitária. Continuo a reclamar alguma vigilância
no paralelismo e nos refrões. Maso será mesquinha chicana ? Fa-
la-se muito hoje em roman-fleuve: há também os poetas-rio. Há que
aceitá-los com a sua massa, às vezes um pouco turva, de sentimentos,
ideias e imagens. É uma torrente avassaladora que tem peraus e re-
mansos, onde desabam a espaços, catastròficamente, trechos de ribancei-
ras com as suas lavouras e criações, e mais longe se debruçam galhas
tranquilas de ingazeiras e se refletem as nuvens da manhã. Façamos
todos como a folha que cai na torrente e se deixa levar: essa torrente
conduz a Deus». O artigo, que compõe a primeira parte, traz a data
de fevereiro de 1941. Já o segundo, ou a segunda parte, é de 14 de
dezembro de 1958. Aí Manuel Bandeira manifesta de novo seu apreço
pelo grande lírico. Mas há um tom irónico em todo o artigo, do prin-
cipio ao fim: «A minha admiração pelo conceituado poeta de nossa praça,
Augusto Frederico Schmidt. é bem conhecida e está definitivamente in-
corporada à edição Aguilar de minhas obras completas sob a forma de
três sonetos, dois «à maneira de» e uma quadra onomástica. Isso em
verso. Em prosa, na Apresentação da Poesia Brasileira, analisei os
seus dons de grande poeta, ferte tanto pela quantidade como pela quali-
dade. Se algum dia Schmidt condescender em disputar uma vaga na
99
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Academia, terá o meu voto, dado de grand cotar. Dito isto, sinto-me
à vontade para confessar que Schmidt homem de negócios e economista
o me suscitava igual admiração, ainda que frequentemente o tenha
defendido da acusação de confundir os interesses do Brasil com os seus
próprios interesses. Compreenda-se: para Schmidt o problema nacional
e o problema pessoal sempre foram o mesmo o enriquecimento. Êle
vê o enriquecimento do Brasil na grande industrialização e, coerente-
mente, logo que pôde tomar pé no mundo dos negócios, trabalhou na
grande indústria, advogando para ela, consequentemente para si, o fo-
mento oficial. Está certo. O queo está certo é Schmidt gabar-se
de nunca ter exercido nem pretendido emprego público, como se fosse
parasitismo ser funcionário público e como se assim procedesse por vir-
tude eo pelo motivo atrás apresentado, isto é, o do problema nacional
e pessoal, o do enriquecimento. Schmidto se enriqueceria nem en-
riqueceria o Brasil na qualidade de funcionário público. Pela mesma
razão só negociou com madeiras, cachaça e livros enquantoo penetrou
nos fechados consórcios dos metais raros». O artigo termina com uma
brincadeira, muito bandeiriana, a respeito de Schmidt como economista
e sua atuação na política internacional do tempo.
A tais críticas parece responder, sempre no seu tom grave e lamen-
toso, o nosso Augusto Frederico Schmidt, à pág. 186 de As Florestas
{páginas de memórias), Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro,
1959: «Estou sozinho. Dentro em breve serei um sonho para os que
me conheceram, uma lembrança, uma imagem estranha. Dirão: era poe-
ta, industrial, envolveu-se numa infinidade de coisas, inclusive em política.
Foi acusado, morto, sepultado. / Sinto que sou um sonho. Estou ater-
rado de me encontraro. Canta ao longe uma voz. Estranho, se
nunca aprendi a cantar. Mas quem canta sou eu. A luz de minha
lâmpada se apaga. Debato-me no silêncio e no escuro. Ao da
morte apalpa o meu rosto, afaga os meus cabelos. Ê o meu último
amor !» Temos aí quase um pequeno poema de Schmidt. Outras fra-
ses suas, no mesmo livro de memórias, ajudam a evocá-lo melhor, tal
como era, meio patético e romântico. A pág. 258: «Renovo o voto de
silenciar e de ausentar-me, que tantas vezes me fiz.o escreverei
mais,o agirei mais senão nos limites de minha vida privada.o
me preocuparei, de agora em diante, senão com os meus problemas de
todo dia, os que realmente importam à minha existência...o guar-
darei mágoa poro ter exercido nenhum papel efetivo na vida de meu
país; lembro-me que poderia ter sido mau se eu tivesse exercido qualquer
função pública, mau para mim e inútil talvez para o país. Quero forçar
o tempo, queimar etapas de um processo evolutivo que tem de caminhar
lentamente.» A pág. 283: «Somos todos uns pobres seres, uma infeliz
família de perseguidos que se perseguem, de eternos devorados que se
entredevoram. O que nos enaltece, o que nos eleva, o que nos dignifica
é apenas o sabermos que seremos algum dia, mais cedo ou mais tarde,
arrancados do mundo em que vivemos.» A pág. 287: «Mergulho os
olhos na água do poço e descanso o espírito atribulado. Nunca me
sentio só neste mundo eo resignado e mesmo satisfeito em estar.
EM TORNO DE UNS VERSOS INÉDITOS DE AUGUSTO F. SCHMIDT
Desejo que na hora da morte me assista este amor pela solidão,o
raro em mim, e que experimento surpreendido, neste momento. (...)
Estou realmente desligado de tudo. Mesmo do que há de mais doce,
de melhor, de mais puro nas minhas lembranças. Recebo a noite nos
olhos e sinto uma espécie de carícia interior. Os ruídos do mundo ces-
saram por encanto.o amo,o odeio,o desejo mais nada,o
pretendo mais nada. Se me viessem presentear com um reino, se a gló-
ria maior se oferecesse a mim, eu receberia tudo isso como alguém que,
na certeza da morte próxima, recebesse o projeto de um passeio no
campo no verão próximo, quandoo existirá mais para êle o mundo
sequer... (...)o penso em ninguém. Estou.o lamento a
minha serena descrença.o sofro eo me agito. Sou igual à água
do poço; minha alma se assemelha, neste instante, ao líquido escuro que
dorme, que pousa, que apenas reflete a noite porosa, impassível e feliz.
Sei que amanhã tudo mudará, que virá o vento e me perturbará de novo.
Que voltarei a crer e descrer, a desejar e entediar-me, a achar-me e
perder-mc. Que conhecerei o medo da morte e ao mesmo tempo a am-
bição de mergulhar a cabeça no mistério temido e suspirado. (...)
Amanhã tornarei a ser o que sempre fui desde que tenho consciência
de mim mesmo. Mas, neste instante, repouso; sinto-me como uma flor
lacustre adormecida numa superfície líquida parada.o há nenhum
vento a agitar-me. Sou uma alma adormecida na noite que antecedeu à
criação». A pág. 296, este desabafo: «Felizmente existe a morte I Co-
meço a me sentir cansado!o encontro mais alegria em quase nada.»
Por fim, à pág. 300: «Num artigo sobre O Galo Branco, B.G. fala nos
meus numerosos sucessos, nos triunfos que eu tenho alcançado na vida.
Dou-me conta então dessa coisa inesperada: passo, aos olhos alheios,
como um vencedor. Será, então, apenas isto que eu sou, este homem
de curtas alegrias, de entusiasmos fulgurantes e de longas tristezas, de
abatimentos profundos,o devorado pelo tédio e possuído pela noção
contínua de ser um fracasso ? .. . Será isto este ser exausto, em que
toco e sou eu mesmo — o que o mundo considera um triunfador, um
homem bafejado pelo sucesso ? Ainda bem que me vêem alguns olhos
como se eu fosse glorioso e feliz — e embora tenha outro eu escrito o
que venho escrevendo durante tantos anos, com tanta insistência, com
umao completa continuidade, apesar dessa persistência em confes-
sar-me um triste, é espantoso que os críticos e espectadores da minha
vida aindao tenham contemplado o meu desmoronamento, a minha
desesperança e a sensação, que revelo seguidamente, de que julgo ter
falhado, de queo atingi o que desejava, de queo fui nada do que
ambicionei ser.o vi, em verdade, satisfeitos alguns dos meus mo-
destos desejos, muito embora tenha de fato percorrido um caminho ines-
perado, tornando-me uma espécie de alvo das maiores incompreensões,
de ataques imerecidos, porque me atribuem uma importância que, na
realidade,o me é devida.»
Schmidt menciona ai O Gaio Branco, livro que a Livraria José
Olympio publicou em 1948. Também nessa obra o poeta se abre, se
confessa; ronda-o, implacável, a obsessão da morte. A pág. 31: «De
-101
-
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
novo ferido pela ideia da morte súbita, da morte inesperada, da morte.
Nada me distrai, nada me afasta dessa obsessão.» A morte povoa a
sua poesia de imagens perturbadoras; para ela se volta o poeta, aflito
e desamparado, confundindo-a com a vida, que sua presença escurece
ou impregna de angústia e agonia. Em O Galo Branco, à pág. 37,
liga-a à vida verdadeira, a que está acima deste rude e atribulado mun-
do: «De uma coisa sei: que é preciso morrer para viver. A semente,
a ideia, o sentimentom de morrer para que nasça algo, para que a
vida misteriosamente floresça. Como poeta, sei que a poesia tem de
morrer para dar fruto no nosso espírito. A poesia queo morre
emso vive no tempo,o a configuramos jamais. O próprio
Cristo teve de morrer, de atravessar as portas da morte natural. A
morte é bela. ou pelo menos bela nos parece ela às vezes, quando o
nosso espírito se dispõe a aceitar na morte escura apenas uma tran-
sição para a vida verdadeira c para a luz.» Sempre, o seu consolo
está na poesia, como se lê à pág. 61: «Poesia é realidade, pois poesia
é iluminação e penetração no impenetrável. O ato poético é um ato de
reconhecimento. Há um momento em que surpreendemos a relação de
uma coisa e de outra; há um momento em que podemos colher a reali-
dade como o homem do campo colhe o fruto que amadureceu. O olhar
que muitas vezes passeava distraidamente numa paisagem, vê enfim o
que antes olhava sem possuir nem conhecer. A esse olhar final, a esse
olhar que foi penetrado pela realidade, a esse olhar que encontrou o
que no objeto estava invisível mas presente, a esse olhar iluminado pela
revelação e pelo reconhecimento, é que podemos chamar de poesia.» O
que vale, sem dúvida, como uma espécie de ars poética. A pág. 92,
voltará a lamentar-se da injustiça e mesmo da calúnia, do mau juízo
apressado a seu respeito. Sonha com poder refugiar-se em si mesmo
para poder alcançar a tranquilidade. E indaga: «Mas como atingirei
esse isolamento, essa vitória, se a minha naturezao me ajuda nisso,
se sou prisioneiro de mim mesmo e por mim mesmo constantemente traí-
do ?» Prisioneiro... A mesma ideia lhe voltará à pág. 178: «Sinto
a necessidade de um milagre para salvar-me dessa prisão e deste deses-
pero! Sinto que só um milagre poderia me transformar, realizando cm
mim a mudança absoluta de que tanto necessito para poder viver. Mas
o milagreo virá, Serei eu mesmo até o fim. Prisioneiro de mim
mesmo até o fim. Vítima da minha própria natureza até a hora do
silêncio e do responso.»
Augusto Frederico Schmidt: lê-lo é tê-lo, é ainda uma vez acom-
panhar essa alma dramática e dilacerada na sua passagem pelo mundo.
Lê-lo é atormentar-se com seus tormentos, é vê-lo pássaro cego e navio
perdido, símboloso seus e tambémo definidores do que foi essa
complexa e estranha natureza.
Muitas vezes nos encontramos e de cada encontro guardo uma
recordação particular: prepondera, porém, a presença do ser inquieto
e aflito, sequioso de apreender a essência mesma do mistério e todavia
radicado no quotidiano, fascinado pelo efémero, escravo das paixões
mais fortes e desencontradas. Hoje, ao abrir o seu Canto da Noite, na
102
EM TORNO DB UNS VERSOS INÉDITOS DE AUGUSTO F. SCHMIDT
bela edição de 1934 da Companhia Editora Nacional, livro que lhe as-
segurou, que lhe asseguraria sozinho, a permanência entre os grandes
poetas modernos, deparei com algumas páginas com a letra do poeta.
Eram dois poemas que me deu num desses encontros, um deles intitu-
lado «Poema do desespêro do Rei», datado de 13 de setembro de 1956
e assinado por êle, outro sem título e sem assinatura.o sei se
Augusto Frederico Schmidt guardou porventura cópia desses poemas.
Tenho que não, porque mos deu como tendo sido acabados de compor
e para que eu os guardasse como uma lembrança sua. A leitura dos
poemas me levou a recordar o amigo e o poeta e a trazer os inéditos
para aqui, já que tais poemaso me pertencem, mas a todos os seus
admiradores. Vamos a eles.
POEMA DO DESESPERO DO REI
O Rei grita o seu tédio.
Escorrem pelas suas barbas longas
Lágrimas sagradas.
Pelas janelas largas abertas entram os cheiros da tarde,
A luz do outono e as canções do Sul.
O Rei se agita mas em vao
Pois sua hora chegou, a hora de partir
De afastar-se ainda mais
Do seu Reino, situado à beira do mar enfermo.
O Rei sapateia o seu tédio e grita.
A paisagem esguia e pobre oferece aos olhos reais
Algumas árvores humildes e quase nuas.
O Rei esconde o rosto entre as barbas
A noite desce.
Dos olhos da Favorita morta
Foge um leve sorriso liberto.
(13-9-1956)
* * *
A dança se renova
Abre'Se o girassol
Nascem no úmido chão
As úmidas estrelas.
Quem quer fugir com o Rei ?
Indagam as máscaras armadas.
103
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Ninguém acode ao apelo.
Nua e dolente a lua se balança
No céu [rio.
O Rei treme; o vento agita as cerejeiras,
As úmidas barbas reais são apenas lembrança.
E o que fora senhor e dono deste mundo,
Vai caminhando pela estrada a passo lento.
O pássaro bisnau canta subitamente.
Patrimônio Histórico e Artístico
UM MONUMENTO DO BARROCO MINEIRO:
A IGREJA DE SANTO ANTÔNIO DE TIRADENTES
AUGUSTO C. DA SILVA TELLES
A
PESQUISA documental nos arquivos públicos, eclesiásticos e parti-
culares é atividade fundamental e necessária ao estudo, ao conhe-
cimento e à análise do acervo de arte antiga brasileira. Tal evidência
esteve presente desde os primeiros dias de vida da Diretoria (então
Serviço) do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Seu fundador,
orientador e chefe, por trinta e um anos, Rodrigo Mello Franco de
Andrade, de quem todos estamos sentindo, cada dia mais, a perda
irreparável, organizou e promoveu, por meio de diversos colaboradores,
a pesquisa sistemática nos arquivos espalhados por todo o Brasil. Os
resultados dessas pesquisas estão reunidos na Diretoria do Patrimônio
Hitórico e Artístico Nacional. Em seu arquivo estão centenas de
fichas e de títulos de artistas, de artesãos, de construtores que proje-
taram, executaram e construíram os monumentos integrantes do pre-
cioso acervo artístico legado por nossos maiores. Estes elementos estão
à disposição de todas as pessoas realmente interessadas em servido a
número considerável de brasileiros e estrangeiros que estudam a história
da arte no Brasil e, sobre a mesma,m publicado trabalhos.
Apesar de tudo o que já foi feito, ainda há muito a pesquisar.
Vêm-se realizando lentamente estes serviços, e sem grande continuidade,
pois que os recursos e o pessoal disponíveis são, permanentemente,
deficitários. Por estas razões, surgem, de vez em quando, elementos
novos que ampliam o conhecimento que temos sobre determinado monu-
mento ou obra de arte, quandoo alteram a cronologia ou filiação
que se havia estabelecido entre elementos do acervo artístico. Tal foi
o que ocorreu com o resultado das pesquisas realizadas nos livros e
documentos da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja de Santo
Antônio, Matriz de Tiradentes, há poucos anos, pelo benemérito Diretor
do Museu Regional deo João del Rei, Monsenhor José Maria
Fernandes.
Quando Germain Bazin recolheu material de documentação no
arquivo da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional para
AUGUSTO C. DA SILVA TELLES
a elaboração de L'Architecture Religieuse Batoque au Brêsil, (*)
nenhuma notícia existia sobre esta Igreja de Santo Antônio; constava,
mesmo, na época, que os livros de escrita da irmandade responsável
pela edificação haviam-se perdido. Bazin informa tal fato em seu livro.
Toda a análise do monumento, quanto à arquítetura e quanto às obras
de talha, resultou, somente, de exame crítico comparativo com outras
igrejas do acervo mineiro, do Brasil e de Portugal. (
2
)
O importante conjunto de talhas do altar e capela-mor, do arco-
cruzeiro e do coro foram apresentados como da década de 1760,
posterior à chegada a Minas do entalhador da Igreja deo Francisco
da Penitência do Rio, Francisco Xavier de Brito.
A excepcionalidade desta Igreja de Santo Antônio foi sentida
por quantos dela tomaram conhecimento. Viajantes e naturalistas
estrangeiros que vieram ao Brasil no século passado, ao passarem
pela antigao José del Rei, referiram-se à Matriz, com exclamações
de entusiasmo. Disseram Spix e Martius: «a mais bela de Minas
Gerais»; (
8
) Aires de Casais, em sua Corografia Brasílica impressa
em 1817 (
4
) informava: «a mais magnífica Matriz de toda a província»;
semelhantemente, o Reverendo R. Walsh que a conheceu pelos anos
de 1828, 29, disse ser «a mais bela da província». (5) A estes louvores,
o naturalista João Emanuel Pohl acrescentava: «a maior e a mais bela
igreja do Brasil». (
6
) Recentemente, tanto Bazin, na obra já citada
ou Mário Barata, em 1964 em relatório à Escola de Belas Artes, (
7
)
quanto Del Negro, (
8
) falam da importância desta igreja e, principal-
mente, da sua exuberante obra de talha, no acervo barroco mineiro.
Tal importância fica acrescida, agora, com o conhecimento dos elemen-
tos descobertos no arquivo da Irmandade local do Santíssimo Sacra-
mento, pelo Monsenhor José Maria Fernandes. (9) Verifica-se que
(1) Germain Bazin L'Architecture Religieuse Baroque au Brésil 2 vols.
o Paulo Paris 1956-1958.
(2) Idem ibidem vol. I p. 317/8 e vol. II p. 115/6.
(3) Spix e Martius Viagem pelo Brasil vol. I p. 210—2ª edição
o Paulo s/data.
(4) Aires de Casais Corografia Brasílica vol. II p. 378 2ª edição
Rio 1945.
(5) Rev. R. Walsh Notices of Brazil in 1828 and 1829 vol. II
p. 89 London 1830.
(6) João Emanuel Pohl Viagens ao Interior do Brasil vol. I p. 203/5
Rio 1951.
(7) Mário A. Barata relatório apresentado, em março de 1964 à Escola
de Belas Artes da U.F.R.J. cópia no arquivo do autor .
(8) Carlos Del Negro Escultura Ornamental Barroca no Brasil vol .1
p. 173 e segs. Belo Horizonte 1967.
(9) Os elementos mais importantes destas pesquisas já foram publicados por
Del Negro no livro citado em (8) .
108 ~
UM MONUMENTO DO BARROCO MINEIRO
a parte mais notável e mais extensa das obras de talha e de pintura
foram executadas entre os anos de 1738 até 41 muito antes, portanto,
da chegada a Minas, em 1746, do citado entalhador da Igreja da Peni-
tência do Rio, Francisco Xavier de Brito, bem como da atividade
conhecida dos entalhadores que, segundo o Vereador José Joaquim da
Silva, (
10
) renovaram a talha e a escultura nas Gerais.
Aparecem nos livros da Irmandade, a partir do ano de 1739,
pagamentos sucessivos ao entalhador João Ferreira deo Payo (Sam-
paio), para as obras do arco-do-cruzeiro, das ilhargas da capela-mor
e do coro com citação nominal da execução dos balaústres e festões
sustentados por meio de aros de ferro do referido coro. Tudo leva a
crer que o retábulo do altar-mor seja de mesma feitura, já que todo
o conjunto pertence à mesma familia, e deveria o retábulo ter sido
concluído nos anos imediatamente anteriores ao em que principia o livro
encontrado que é o 2', e teve início poucos meses antes do ano de 1739.
Além disto, consta no mesmo livro de gastos, com data 1738/9,
o pagamento ao «Pintor João Bautista» da elaboração de «os três
painéis dous dos lados, e hum da boca da Tribuna». Os dois painéis
dos lados, de formato oval, representando as Bodas de Cana e a Última
Ceia ainda se encontram nas ilhargas da capela-mor. O outro, o da
boca da tribuna, à maneira do que existe na Catedral de Mariana,o
se encontra mais, mas teria sido feito para o retábulo do altar-mor,
que já existia, portanto, em 1739. Tal painel foi visto por Richard Burton
em 1868. (11) Este viajante que de tudo reclamava, que tudo achava
medíocre e feio no Brasil, entrando na Matriz deo José del Rei, que
achou sem elegância, descreveu a capela-mor como sendo «uma massa
de dourado» e disse que o «retábulo, sob seu dossel de madeira traba-
lhada representa Santo Antônio, sustentando a custódia, fazendo o
milagre dos animais». Esta, certamente, era a descrição do painel
pintado da boca da tribuna do altar-mor. Também Pohl, em seu livro
de viagem, refere-se a esta pintura, dizendo queo pôde «fazer juízo
sobre o retábulo do altar-mor, que, no país, é considerado uma obra-
prima, porque na ocasião se celebrava serviço religioso e durante toda
a missa cantada, a que assisti, as nuvens de incenso subiam para o
quadro, encobrindo-o» (o grifo é nosso). Estará irremediavelmente
perdido este painel, ou ainda poder-se-á encontrá-lo, encostado em
algum depósito, ou desencaminhado em alguma coleção particular?
(10) Do texto do Vereador José Joaquim da Silva conhecemos a parte que
foi incluída nos Traços Biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa
distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho de autoria
de Rodrigo José Ferreira Brêtas publicado pela primeira vez no Correio Oficial
dz Minas, ns. 169 e 170, 1858, e com anotações, na publicação n' 15 da Diretoria
d,i Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Antônio Francisco Lisboa O Aleija-
dinho Rio 1951.
(11) Richard F. Burton Viagem aos Planaltos do Brasil 1868 vol. I
p. 233/5o Paulo 1941.
AUGUSTO C. DA SILVA TELLES
O exuberante retábulo da capela-mor, extremamente dinâmico, com
formas de volutas e concheoides douradas muitos robustas, aparenta-se,
flagrantemente, com talhas joaninas da região do Porto. No seu todo,
lembra as talhas das capelas-mores da Sé do Porto, da Sé de Viseu,
deo Miguel de Bustelo, entre outras. (
12
)
Alguns elementos, no entanto, apresentam formas pouco comuns,
como, por exemplo, as colunas com fustes recobertos por decoração
vegetal em forma de escamas angulosas; as figuras de velhos atlantes
que suportam as misulas sob as colunas, e que lembram os atlantes
lisboetas de Nossa Senhora da Pena; os anjos tocheiros que, em
balcões curvos, projetados para a frente, ladeiam o trono. Acompanham
a exuberância e a força deste retábulo, completando o espaço arquite-
tônico barroco da capela-mor, as talhas que revestem suas ilhargas,
onde estão os grandes painéis ovais pintados a que já nos referimos,
ao passo que o teto, em abóbada de arestas, apresenta pinturas em tons
castanhos, representando uma teia de volutas, à feição das do teto da
capela-mor da Sé de Viseu, em Portugal. O arco-do-cruzeiro e, princi-
palmente, o seu coroamentom o mesmo sentido de robustez.
O elegante coro, apesar de pertencer à mesma família de talhas,
aparenta certo aspecto insólito, mundano, de balcão de teatro. Tal
sensação é marcada pelo aparecimento de pilastras com fustes em forma
de tronco de pirâmide afilada para a base; de guirlandas, de folhagens
pendentes, assim como do desenho da borda do coro em ondulados
sucessivos, com guarda-corpo de balaústres torneados, onde aparecem
figuras humanas agachadas.
Pode-se desde logo verificar, e os livros da Irmandade documentam,
que certos elementos existentes na nave da igreja, obras certamente da
fase rococó, foram realizadas no final do século, de 1786 até 1788; (
13
)
por exemplo, o excepcional órgão e o pequeno coro em que o mesmo
se assenta, bem como as pinturas a têmpera sob o coro.
A existência deste conjunto notável de talhas joaninas filiadas à
escola do Porto, que se enquadram no 3' período de talhas, segundo
a classificação de Lúcio Costa, (
14
) executadas de 1738 até 41,
demonstram, uma vez mais, como as inovações em arte eram transpostas
quase imediatamente de Portugal para o Brasil e, no caso, para as então
longínquas paragens das Minas Gerais. As talhas portuguesas da área
(12) Ver a documentação fotográfica a p. 75/8 de A Talha cm Portugal de
Robert C. Smith Lisboa 1962.
(13) Documentos avulsos em livro de recibos da Irmandade do Sacramento,
doc. 37, 49, 50, 51/58 pasta de documentação da Igreja de Santo Antônio
Tiradentes Minas Gerais Arquivo da Diretoria do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional.
(14) Lúcio Costa A Arquítetura dos Jesuítas no Brasil vol. V da Revista
do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional p. 43/47 Rio 1941.
UM MONUMENTO DO BARROCO MINEIRO
do Porto, inspiradoras das que estamos analisando em Tiradentes, foram
realizadas a partir de 1730. Passados oito anos ou pouco menos, João
Ferreira de Sampaio principiava a capela-mor deo José del Rei.
Seria este entalhador natural do Porto ou do norte de Portugal?.
o conhecemos nenhuma atividade sua, nem antes de ter realizado
este excepcional conjunto de talhas, nem o que terá feito após este
período. É um dos muitos assuntos que, por falta de maior documen-
tação, está desafiando os estudiosos. Haverá, também, alguma relação
mais íntima, de filiação ou de origem comum, entre estas talhas de
Tiradentes e as da Igreja de Santo Antônio de Ouro Branco? Apre-
sentam os dois conjuntos algumas características semelhantes e aparen-
tam-se, ambas, com a escola do Porto. Desta Igreja de Ouro Branco,
o único dado que conhecemos é ter sido um dos altares colaterais
dourado em 1745.
O conjunto de talhas da Matriz de Tiradentes é, pelo que vimos,
das manifestações mais antigas da talha joanina em Minas Gerais.
Representa, outrossim, um dos mais notáveis, elegantes e exuberantes
conjuntos de interior barroco do acervo de Minas Gerais e, mesmo,
do Brasil.
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
11
Janeiro / Março
1972
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO
Octávio de Faria
Manuel Diégues Júnior
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Mello Franco
Redação: Palácio da Cultura 7* andar
Rio de Janeiro Brasil
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
ANO IV
JANEIRO/MARÇO - 1972
N.o 11
Sumário
ARTES
CARLOS CAVALCANTI
As Artes Brasileiras no Século
do Descobrimento
CIÊNCIA HUMANAS
LETRAS
ADONIAS FILHO
EURYALO CANNABRAVA
Quatro Mitos Literários
R. MAGALHÃES JÚNIOR ,
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
MARCOS ALMIR MADEIRA
Cassiano Ricardo e os Sobre-
viventes
Juventude de Machado de Assis
Acerca do Movimento Moder-
nista em Minas
Numa Outra Academia
79
89
119
127
135
CARLOS ALBERTO MEDINA
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
GARRIDO TORRES
TEIXEIRA SOARES
Uma Festa Ideológica: O Car-
naval 25
A Igreja na América Latina . . 37
Uma Politica Brasileira em Re-
lação a Portugal 45
Mário de Andrade Renova-
dor Prodigioso 65
Artes
As Artes Brasileiras no Século
do Descobrimento
CARLOS CAVALCANTI
N
os primeiros trinta anos depois do Descobrimento, Portugalo
se interessou pelo Brasil. Estava era empolgado com a explo-
ração ainda lucrativa das riquezas da índia. Naquela época,
ninguém em Portugal gostava do Brasil ou queria vir para estas terras.
Tudo na imaginação de todos ainda era o Oriente, tanto que os «Lu-
síadas» de Luís de Camões, publicado muitos anos depois (1572), so-
mente fala da África e da índia e só uma vez fala no Brasil.
A diminuição dos lucros da índia e a presença, cada vez mais insis-
tente e numerosa, em nossas águas, de navios de outros nacionalidades,
principalmente franceses, obrigaram a corte de Lisboa a se voltar para
as novas terras e procurar assegurar sua posse ameaçada.
OS FRANCESES ERAM OS DONOS DA TERRA
Embora faltem provas históricas, muitos acham provável que mesmo
no ano da descoberta os franceses já andassem por aqui, nos seus pe-
quenos e rápidos navios bem artilhados.
A partir de 1503 ou 1504, sabe-seo terem parado de navegar,
por mais de um século, desde o Maranhão ao Rio de Janeiro, extremos
do litoral onde fundaram feitorias, guerrearam portugueses e fizeram
CARLOS CAVALCANTI
malogradas tentativas de colonização. Eram maneirosos com os in-
dígenas, ao contrário dos portugueses, queo tardaram a aplicar, nesta
parte do mundo, os mesmos métodos violentos de conquista, que em-
pregaram na Índia. Apareciam tantos nas nossas costas, atacando
navios lusos e traficando com os nativos, que na Europa se perguntava
a quem realmente o Brasil pertencia, se a franceses ou a portugueses.
Durante anos, pareceram os verdadeiros donos da terra. Uma rainha
francesa, a florentina Catarina de Medíeis, chegou mesmo a nomear,
passados tempos, um Vice-Rei para o Brasil.
Um dos nossos primeiros povoadores, Diogo Álvares, o Caramuru,
que viveu e morreu patriarca na Bahia, falava francês. Convivia e ne-
gociava mais com franceses do que com portugueses, que o ignoraram
por muito tempo. Sabe-se de um documento quem sabe é a seriedade
do padre Serafim Leite, autor da História da Companhia de Jesus no
Brasil pelo qual documento, vejam, Caramuru seria francês. Em
1526, esteve na França. Receberam-no entre deferências e em St. Maio
batizaram sua mulher índia, sob o nome cristão de Catarina, homenagem
à esposa de Jacques Cartier, navegante e explorador depois famoso pela
incorporação do Canadá ao império francês. Por quatro vezes,o
quis voltar a Portugal. Sua viagem à França é indiscutível, inclusive
por se ter achado na cidade de Dieppe o papel de batismo de sua índia
e também porque era comum o francês levar a seu pais gente das novas
terras, cobri-la de agrados, devolvê-la sã e salva, para efeitos promo-
cionais de suas traficâncias.
Quando se instalou na Bahia, o primeiro governador geral do Brasil,
Tomé de Sousa, foi sempre frio com ele, embora seu prestígio entre os
selvagens e os bons serviços que lhe prestou, é verdade que a pedido
do rei D. João III. Talvez o suspeitasse agente de traficantes fran-
ceses, que contrabandeavam pau-brasil para tingir panos, acaju e jaca-
randá para móveis finos, como historiadores ponderados hoje admitem
sob fundadas razões.
Em 1552 Tomé de Sousa concedia sesmaria na baía de Todos os
Santos, ao longo da costa, em terras duma «aldeia dos Franceses», de-
nominação já naqueles tempos tradicional, reveladora da nacionalidade
dos primeiros ou mais antigos ocupantes do lugar. Os portugueses
realmente descobriram a baía de Todos os Santos, mas seus primeiros
povoadores e senhores, por muitos anos, foram franceses.
Assim, diante dos fatos da história, podemos dizer sem exagero
que ainda éramos apenas ondas quebrando bonito nas praias, quando a
França começou a influir, direta ou indiretamente, mas sempre de modo
irresistível e decisivo, no nosso sentir e pensar de brasileiros.
AS ARTES BRASILEIRAS NO SÉCULO DO DESCOBRIMENTO
O ABANDONO SE JUSTIFICA
O abandono por trinta anos de nossa terra se justifica.
Com uma população em 1527 de pouco mais de um milhão, Por-
tugal atravessava dificuldades enormes, apesar dos desperdícios da corte
e da movimentação do porto de Lisboa como estreposto mercantil. A
população masculina válida era mais do que insuficiente às empresas
marítimas, à produção da riqueza, à máquina do Estado, à própria defesa
nacional. Os campos se despovoavam. Um flamengo, Nicolas Cley-
naerts, em 1537 percorreu o país de ponta a ponta. Notou entre outras
coisas, além do pauperismo agudo, as consequências funestas da escra-
vidão, negra e mourisca, no trabalho, na economia, nos costumes.
Multidões de homens estavam nos navios. Os naufrágios matavam
mais do que as guerras. Ao mesmo tempo, grandes ou pequenas, co-
muns no século XVI, as pestes matavam mais do que naufrágios e guer-
ras. De 1502 a 1602, a bubônica matou em Lisboa oitenta mil habi-
tantes .
Às dívidas do tesouro real, somados os juros vencidos, eram a perder
de vista nos bancos vorazes de Flandres.o é de admirar, portanto,
que, tendo-se longamente flamenguizado as finanças, com inevitáveis re-
percussões sociais, também na época se flamenguizasse a pintura, como
vemos nos chamados primitivos portugueses, dentre os quais se destacam
Nuno Gonçalves e o Grão Vasco, versões da escola dos Van Eyck, que
chegou a prolongar reflexos seiscentistas no Brasil.
O DOMÍNIO ESPANHOL
Quando em 1580 o país caiu durante sessenta anos sob o domínio
espanhol, empobrecendo-se ainda mais, houve crescente emigração para
a Espanha, em geral da gente mais capaz e ambiciosa. Madri e Se-
vilha fervilhavam de portugueses. Um dos maiores da pintura espa-
nhola, o sevilhano Diego Valázquez, carregava ascendência lusa.
As primeiras notícias, por exemplo, que sem de notável escultor
português do século XVIII, Manuel Pereira (Porto, 1588 Madri,
1683),m diretas da Espanha. Estabeleceu-se com atelier em Madri
e jamais voltou. Embora executasse obras em Portugal, as suas prin-
cipais estão na Espanha, como umo Bernardo, de mármore, para a
fachada do mosteiro das bernardas, em Alcalá de Henares. Foi ca-
valeiro de Santiago e familiar do Santo Ofício, pois era o escultor pre-
dileto do rei espanhol Felipe IV. Durante o domínio espanhol, con-
tavam-se em Portugal numerosos santeiros,o propriamente escultores.
A maioria deles procurava Madri, a capital do reino, onde estavam o
rei e o dinheiro.
CARLOS CAVALCANTI
O PRIMITIVISMO DO BRASIL
Em virtude do primitivismo dos habitantes nativos, os portugueses
o encontraram no Brasil produtos manufaturados, exigidos pela eco-
nomia mercantilista da época. Encontraram apenas matérias-primas,
que precisavam ser manufaturadas, coisa de que por seu despreparo
o seriam capazes.
Eis porque a atividade mais lucrativa naqueles primeiros tempos
o açúcar viria logo em seguida foi a extração do pau-brasil, utilizado
na tinturaria, principalmente pela indústria de tecidos de Flandres. A
derrubada e embarque da valiosa madeira, cujo comércio era monopólio
real, se faziam nas feitorias, que se foram instalando pelo litoral.
AS FEITORIAS
As feitorias — a primeira das quais teria sido estabelecida por
Gonçalo Coelho na Bahia em 1503 eram instalações rústicas e provi-
sórias, levantadas precariamente nas praias convenientes pela facilidade
de abrigo e presença do pau-brasil, queo dava em toda a costa, como
se supunha.
o passavam as feitorias de verdadeiros galpões ou barracões,
espécie de depósitos, cobertos de folhas de palmeiras, feitos de madeira
pelos carpinteiros de bordo ajudados pelos indígenas, em relações ainda
geralmente harmoniosas com os portugueses, antes da conquista da terra.
Estavam protegidas por cercas de estacas, providas de uma torre para
permitir ver quem se aproximasse por mar ou por terra. Essas torres
também se chamavam fortins. Na época, nos seus domínios americanos,
os espanhóis faziam a mesma coisa as suas «casas fuertes».
Algumas construídas pelos franceses, as feitorias foram nossa pri-
meira arquítetura, se assim podemos considerá-las. Mas, na verdade,
nem de arquítetura ainda se poderia falar.
O TRABALHO NAS FEITORIAS
Todo o trabalho na feitoria, que ocupava uma ou duas dezenas de
europeus, se limitava a derrubar as árvores de pau de tinta, arrastá-las
às praias, embarcá-las nas ocasiões propícias ou combinadas.o havia
sequer comércio com o nativo. O índio ajudava. Pagava-se sua ajuda
ou produtos com quinquilharias e miçangas. Tambémo havia pro-
priamente agricultura, senão pequenas roças para alimentar os diminutos
grupos europeus, que se constituíam de homens jovens, aventureiros,
dispostos a tudo e se davam por felizes «com terem quatro índias por
mancebas e comerem do mantimento da terra».
AS ARTES BRASILEIRAS NO SÉCULO DO DESCOBRIMENTO
COMEÇA A MESTIÇAGEM
As praias, em especial as dos franceses, estavam-se pintalgando de
molequinhos e molequinhas sararás, isto é, mamelucos arruivados ou
mesmo alvos e louros, olhos claros, como ainda nos nossos dias vemos
nos sertões nordestinos, restos também de holandeses.
O navegador Pêro Lopes de Sousa, no seu Diário de Navegação
(1531) e o historiador Gabriel Soares de Sousa, no seu Tratado Des-
critivo do Brasil (1587), elogiam a beleza e alvura dos descendentes
mestiços de franceses. Pêro Lopes ficou impressionado com a beleza
e mesmo a brancura de mestiças franco-baianas, a cor de telha velha
da pele clareada pela limpidez do sangue normando.
O PAPAGAIO FOI RIQUEZA
Além da madeira, portugueses e estrangeiros levavam algodão sil-
vestre, redes tecidas pelas indias, peles de animais, macacos, periquitos
e papagaios, outros exotismos tropicais, que a Europa civilizada apreciava
e pagava bem.
Especialmente papagaios ensinados a falar francês, bom negócio.
Erao bom negócio que a bordo da «La Pellerine», nau francesa apre-
sada nas costas de Pernambuco por Pêro Lopes de Sousa, ao lado de
pau-brasil e de miudezas, foram encontrados seiscentos papagaios.
OS PRIMEIROS POVOADORES
Nessa fase das feitorias, causas de constantes lutas entre franceses
e portugueses,o se poderia falar a rigor de povoamento, muito menos
de colonização, quanto mais de artes.
Os brancos encontrados nas praias eram na maioria náufragos, de-
sertores. tripulantes expulsos pelos capitães, porque degredados sabi-
damente só os deixados pelo descobridor Pedro Álvares Cabral. Mo-
ravam em choças que os índios amigos construíam com materiais e téc-
nicas rudimentares.
Na extensão assustadora do litoral desconhecido, havia apenas duas
povoações maiores e permanentes- a do Caramuru, numa das extre-
midades da ampla enseada de Todos os Santos, na Bahia; e a de João
Ramalho, emo Vicente, litoral deo Paulo. Ambas ficaram co-
nhecidas por descrições de estrangeiros, porque receosa de perdê-la a
coroa portuguesa a princípio procurou esconder inutilmente a nova terra
ao conhecimento das cortes europeias. Nesses e noutros tempos, com
o Brasil os portugueses adotaram a política do silêncio.
CARLOS CAVALCANTI
CARAMURU
A história do Caramuru ainda hoje tem obscuridades. Como sa-
bemos, porque se tem escrito, Caramuru pertence ao lendário de nossa
história.
Detrás de muitas lendas em muitos lugares e tempos, como também
sabemos, está o fato histórico, transfigurado pela imaginação popular.
Seria lamentávelo tivéssemos também tecido de fantasia algumas pas-
sagens de nossa história, porque pareceríamos ao mundo um povo sem
poesia.
As primeiras versões, mesmo de historiadores, apresentam-nos Diogo
Álvares como jovem nobre português, natural de Viana, animado roman-
ticamente da ambição de conhecer terras e gentes novas. Embarcou
com um tio numa nau, que velejou parao Vicente no Brasil ou para
a índia, mas naufragou na Bahia, onde se acredita que náufrago dum
navio provavelmente francês, tenha chegado entre 1509 e 1511. O sim-
pático episódio do tiro de bacamarte, que derrubou um pássaro e im-
pressionou os selvagens, muitos historiadoreso o querem mais levar
a sério. Ignorado dos portugueses por muitos anos, como dissemos,
supõe-se tivesse servido de intermediário de indígenas e franceses, que
foram os primeiros europeus a se estabelecerem na Bahia.
Sabe-se que em 1535, com a esposa índia oficial e a respectiva fi-
lharada mameluca, vivia num típico aldeiamento tupinambá, berço da
futura Cidade do Salvador. Contavam-se cerca de trezentas cabanas,
próximas umas das outras, habitadas por centenas de pessoas, na maioria
índias. As moradias dos poucos europeus deveriam ser mais apuradas,
na construção e na planta paredes de pau-a-pique e barro, cobertas
de folhas de palmeiras, divididas internamente em dependências, como
pediam os hábitos de segregação conjugal dos civilizados, ao contrário
dos selvagens, que viviam na promiscuidade da grande maloca comum
e se escondiam para o amor.
A aldeia ficava nos terrenos baixos à direita da entrada da barra,
distante menos de um quilómetro da baía de Todos os Santos. Caramuru
levantou sua casa, pequena fortificação, mais tarde a capelinha ou ora-
tório da Graça, a primeira igreja na Bahia, sob a invocação de Nossa
Senhora, onde se balizaram e casaram seus filhos reconhecidos.
JOÃO RAMALHO
A povoação deo Vicente era menor, segundo informa um cosmó-
grafo espanhol. Numa das ilhas habitadas, «dez ou doze casas, uma
feita de pedra com seus telhados e uma torre, para defesa contra os
índios em tempo de necessidade». Pensam estudiosos que essa torre
AS ARTES BRASILEIRAS NO SÉCULO DO DESCOBRIMENTO
o passaria do simples jirau de madeira nosso conhecido, igual aos
que os holandeses levantaram depois em Pernambuco, também para vi-
gilância, enquanto outros a admitem de pedra.
Emo Vicente, surge João Ramalho. É outra figura legendária
de nossa história. Aindao se sabe direito como veio parar no Brasil.
Como Caramuru, também querido, respeitado e obedecido pelos bárbaros.
Era grande e forte, uma saúde de ferro, uma coragem de aço, patriarca
duro e cioso de sua autoridade. Segundo dizem, viveu perto de cem
anos, entre dezenas ou quase uma centena de filhos com muitas índias,
para santo horror dos primeiros e pudicos jesuítas. Está entre os pio-
neiros ou fundadores das vilas de Santo André da Borda do Campo e
deo Paulo, no planalto longe da praia.
MARTIM AFONSO DE SOUSA
Nisto se resumia o nosso Brasil, nos primeiros trinta anos de sua
existência no mundo civilizado núcleos esparsos de povoadores, praias
infestadas de franceses e de outros europeus, que traficavam ou pira-
teavam, índios ainda cordiais.
Em face da decadência na exploração do Oriente, da audácia cada
vez maior de corsários estrangeiros e da esperança de possuir o Brasil,
como as colônias espanholas, metais e pedras preciosos, a coroa portu-
guesa finalmente despertou para as ameaças à posse das longas praias,
quase todas sob efetivo domínio dos franceses.
Mandou em 1530 a expedição de Martim Afonso de Sousa, com
a incumbência de policiar, povoar e explorar. O capitão tinha por obje-
tivos principais repelir os franceses da costa e descobrir os caminhos
das lendárias minas de ouro e de prata, através dos rios da Prata e
Maranon. Além de iniciar o povoamento oficial, fez obra de colonização
no litoral e no planalto paulista.o conhecidas suas atividades e ini-
ciativas, que o destacam em nossa história. Tomou medidas adminis-
trativas e econômicas nomeou funcionários do governo, construiu
igreja melhor emo Vicente, distribuiu terras, incentivou a lavoura,
ergueu obras de defesa.
Na Guanabara, estendeu um arraial com «uma casa forte com cerca
em derredor», montou ferraria e estaleiro, tudo protegido pela estacada
indispensável à segurança e defesa.
AS CAPITANIAS E O GOVERNO GERAL
Mais tarde (1534), sempre para garantia da posse e agora também
para efetiva colonização dos novos domínios, sem contar a esperança
de minas de prata iguais às peruanas, pois se dizia que o sertão do Brasil
CARLOS CAVALCANTI
era uma continuação do Peru, D. João III instituiu o regime de capitanias
donatárias, que fora adotado com resultados nas ilhas da Madeira e
dos Açores.
No entanto, tirando a de Pernambuco, que prosperava com a explo-
ração do açúcar e da pecuária, as demais capitanias fracassaram. Foram
revertendo ao patrimônio da coroa, mediante indenização aos donatários
ou às suas famílias, exceção provisória da pernambucana.
Nesta altura dos acontecimentos, fracassadas as capitanias, estran-
geiros ainda mais atrevidos no litoral indefeso, índios cada vez mais
inimigos dos portugueses e mais amigos dos franceses, foi que D. João
III resolveu instalar no Brasil um governo geral, com sede na Bahia,
providência considerada capaz de remediar esses e outros males.
Como sabemos, o primeiro governador geral foi Tomé de Sousa.
Era filho de padre e neto de moura, algo de poético na sua figura triste
de homem sisudo, porém capaz. Chegara a fidalgo da casa real por
merecimento e serviços ao rei na África e na Ásia. Com forte esquadra,
gente numerosa, apetrechos e materiais diversificados, saiu de Lisboa e
aportou à Bahia em março de 1549, depois de cinquenta e seis dias de
viagem. Ancorou diante da Vila Velha, assim mais tarde chamada a
povoação que o infeliz donatário, Francisco Pereira Coutinho, havia
construído em terrenos da praia e estava em ruínas.
Desembarcou depois de se avistar com o Caramuru, que antes re-
cebera carta do rei, pedindo-lhe o assistisse, sobretudo em mantimentos.
COMEÇAM AS ARTES NO BRASIL
O fidalgo trazia o que então se chamava um Regimento- quarenta
e um artigos de ordens, instruções e recomendações do próprio rei, am-
plas, precisas e minuciosas sobre como agir em todos os casos, que
o seriam poucos como se pode avaliar.
Pelo Regimento, deveria «fazer uma fortaleza e povoação grande
e forte em lugar conveniente, para daí se dar favor e ajuda a outras
povoações». Na esquadra, além de seis jesuítas, chefiados pelo padre
Manuel da Nóbrega, incumbidos de converter os índios ao catolicismo,
funcionários e colonos, vinham o arquiteto Luís Dias, seu sobrinho Diogo
Peres, mestre-pedreiro ou mestre-de-obras, quatorze oficiais-pedreiros e
operários, especialmente de construção, para os trabalhos de edificação
da povoação, «grande e forte», que se ia fundar.
Com Tomé de Sousa e na Bahia, começa verdadeiramente a História
das Artes no Brasil, porque consideramos as manifestações artísticas de
nossos índios ou a chamada arte pré-cabralina de interesse maior para
antropólogos e etnólogos ou para especialistas em artes primitivas.
AS ARTES BRASILEIRAS NO SÉCULO DO DESCOBRIMENTO
O URBANISMO COLONIAL LUSO
Tomé de Sousa e sua gente numerosa se acomodaram como puderam
nas habitações do aldeiamento do Caramuru e da povoação próxima,
depois chamada Vila Velha, Vila ou Povoação do Pereira, em lembrança
do mal sucedido donatário da capitania.
Sem demora, o governador saiu à escolha do local da futura cidade,
denominada Cidade do Salvador pelo próprio rei, sede do governo geral.
Seria edificada naquelas paragens «consideradas o lugar mais conveniente
da costa .. . assim pela disposição do porto e rios que nela desaguam,
como pela bondade, e abundância e saúde da terra. »o lhe pareceram
apropriados, à beira da praia, em terrenos baixos, expostos aos perigos
vindos do mar e da terra, os locais do aldeamento do Caramuru e da
povoação fundada pelo donatário.
Na localização e planejamento da futura cidade, logo se definem
as linhas mestras do urbanismo colonial luso, ainda sob tradição e inspi-
ração medieval ou árabe. As necessidades de segurança e de defesa
se impuseram na escolha do local. O mesmo havia feito em 1535 o do-
natário Duarte Coelho, na capitania de Pernambuco. Ao fundar Olinda
sua capital, também a situara no alto de uma colina, sobranceira ao mar.
O mesmo fará mais tarde Estácio de Sá ao mudar a cidade do Rio de
Janeiro do primitivo local para o alto do morro do Castelo, para maior
vigilância da entrada da baía e melhor defesa contra franceses e tamoios.
O local preferido pelo governador na Bahia foi um terreno plano
irregular, no alto de uma colina, verdadeira escarpa, que do lado mar
caía perpendicularmente da altura de cem metros sobre a praia. Do
lado da terra, suas vertentes davam para o vale do rio das Tripas, ver-
dadeiro pântano, que se constituía em defesa natural. Da esplanada
no alto, via-se todo o mar.
A cidade ficaria suficientemente defendida do lado da terra, pelo
vale lodacento do rio das Tripas; do lado do mar, pela escarpa. Em
pontos estratégicos, em baixo e em cima, baluartes artilhados. O acesso
ao alto pela escarpa era dificílimo. Diz um historiador antigo que seria
«quase impraticável a um gato subir sem que se precipite».
DUAS CIDADES NUMA Só
A cidade dividiu-se assim em cidade baixa e cidade alta, que se
ligavam por três íngremes ladeiras. Na cidade alta, iam ficar os edi-
fícios públicos, as igrejas, os conventos, as moradias dos ricos, situadas
em várias ruas e duas praças, que o mestre Luis Dias traçara. Nas
ladeiras, as habitações dos remediados e dos pobres. Na cidade baixa,
o cais, o comércio, a alfândega, os armazéns, os estaleiros. «O porto
diz Edson Carneiro tinha apenas uma rua, encostada ao paredão da
CARLOS CAVALCANTI
montanha, onde, com o tempo, foram surgindo casas de comerciantes
atacadistas.»
As comunicações entre as duas cidades, a alta e a baixa, eram real-
mente penosas, tanto que uma das soluções depois encontradas foi o
sistema de guindaste ou balança, para levar ao alto cargas pesadas. O
primeiro guindaste parece ter sido instalado, no correr dos tempos, pelos
jesuítas, que cobravam vinte vinténs pela elevação à cidade alta de uma
pipa de vinho, segundo informa um francês em 1610. Os frades car-
melitas e beneditinos, por sua vez, instalaram outros guindastes. Usou-se
também, mais tarde, o cavalo de aluguel para levar gente pelas ladeiras,
meia pataca a subida e quatro vinténs a descida.
A DEFESA PELA ALTURA
«Em seus quase duzentos e quinze anos, de 1549 a 1763, durante
os quais gozou o privilégio de ser a primeira metrópole lusitana no novo
mundo escreveu Robert C. Smith, estudioso norte-americano de nossa
arte colonial tornou-se a Bahia uma réplica fidelíssima de Lisboa e
do Porto, as duas maiores cidades de Portugal.» E acrescentou: «Nada
inventaram os portugueses no planejamento de cidades em países novos.
Ao contrário dos espanhóis, que eram instruídos por lei a executar um
gradeado de ruas que se entrecruzam em torno de uma praça central,
os portugueseso mantinham regras, exceto a antiga de defesa através
da altura.»
Realmente assim acontecia. Em matéria de urbanismo, como em
outras matérias, os portugueses se conservavam medievais, em pleno-
culo da Renascença.o adotavam o plano quadriculado vindo da
Grécia antiga, ruas que se cortam retilíneas, na época o moderno entre
os demais povos europeus. O mesmo historiador norte-americano diz
que os dois grandes povos colonizadores da América, os ingleses e os
espanhóis, situavam suas cidades em lugares planos, para permitir-lhes
se desenvolvessem de modo ilimitado e ordenado. Nos Sete Povos das
Missões, por exemplo, os espanhóis foram para o tempo urbanistas mo-
dernos. As habitações dos índios estavam dispostas racionalmente, em
torno da praça fronteira à igreja, as ruas traçadas com regularidade.
O TRAÇADO DAS RUAS
O traçado das ruas e praças coloniaiso obedecia a plano pre-
estabelecido. Ruas corretamente alinhadas desde o começoo exis-
tiram, as mais importantes eram estreitas, as comuns, estreitíssimas.
Comentando as cartas que o professor de grego Luís dos Santos Vilhena
escreveu nos fins do século XVIII sobre a Bahia, onde residiu, o his-
toriador brasileiro Brás do Amaral diz: «Abrindo o transeunte os braços,
AS ARTES BRASILEIRAS NO SÉCULO DO DESCOBRIMENTO
toca com as mãos nas fachadas das casas fronteiras. As vias públicas
o ruelas em que, de momento a momento, se topa com paredes salientes
de um edifício que parece levantado de propósito para obstruir o caminho,
formando um labirinto de becos, travessas e cantos estreitos e escuros.»
Por amor à verdade, diga-se terem sido frequentes as recomendações
da metrópole, em sucessivas cartas régias, para que se adotasse traçado
mais regular nas povoações. Essas recomendações poucas vezes foram
atendidas. Ficavam no papel. As hostilidades do meio, a pobreza e
o atraso, a lei soberana do menor esforço, o interesse dos poderosos, a
corrução verdadeira praga da administração colonial e, sobretudo, o
sentimento de provisoriedade,o de permanência, no imigrante luso, es-
perando enriquecer para voltar, tudo isso começou logo a falar mais alto.
O plano da Bahia, cidade baixa e cidade alta, comunicando-se com
dificuldades, ficará como padrão do urbanismo colonial luso especialmente
no litoral.
APARECE A CIDADE
A construção de nossa primeira cidade, sob a direção de arquiteto
que se distinguira no reino, deve merecer atenção.
Escolhido o local no alto da colina escarpada, expulso o gentio, limpo
o terreno, o governador mandou fazer forte estacada de paus, para se-
gurança e defesa dos trabalhadores contra possíveis ataques dos índios.
O arquiteto Luís Dias riscou os planos da cidade, amostras ou traças,
como então se chamavam. Entregou-os ao governador, que os remeteu
à metrópole para serem aprovados pelo rei.
O REI APROVAVA OU MODIFICAVA
Esse costume desde logo adotado de enviar à metrópole para apro-
vação real as amostras, traças prospectos ou projetos das obras em geral
do governo, quandoo vinham de lá prontos para execução, se manteve
invariável na colônia.
As modificações introduzidas nos projetos enviados sempre visavam
ao mais baixo custo porque foi preocupação constante da metrópole in-
vestir o mínimo e lucrar o máximo na colônia. Alguns desses projetos
se encontram em arquivos portugueses e brasileiros, muitos outros desa-
pareceram, ainda outros embora perdidos puderam ser substituídos. Foi
o que aconteceu com os da Cidade do Salvador. Perderam-se no nau-
frágio do galeãoo João Batista, mas foram substituídos sem que as
obras sofressem interrupção.
CARLOS CAVALCANTI
A PRIMEIRA GRANDE CONSTRUÇÃO MILITAR
A cerca de pauso aprovou. Foi logo substituída, certamente
durante sua construção, por muro de taipa, feito de empreitada, com 16
a 18 palmos de altura (o palmo tem 22 cm), alto portanto de três a três
e meio metros, com a espessura julgada conveniente.
As obras foram dirigidas por Luís Dias, que as considerou mal feitas,
pois escreveu ao reino: «Eu com um dardo que trazia nao as desman-
chava .» Escreveu ainda que forte chuvarada destruíra parcialmente o
muro, cujo exato traçado se tornaria em nossos dias motivo de contro-
vérsias entre historiadores baianos. Nos tempos do terceiro governador
geral, Mem de Sá (1558-1572) estavam desaparecendo os vestígios dessa
primeira construção militar em nossa terra.
O TRAÇADO GERAL DA CIDADE
Fizeram-se as demarcações gerais as praças, as ruas, a loca-
lização dos primeiros edifícios civis e religiosos, tudo conforme as traças
e amostras. Nos primeiros dias, alojados na Vila Velha, em baixo na
praia, soldados e trabalhadores deveriam subir manhã cedo para o tra-
balho e descer ao cair da tarde, pelas íngremes ladeiras — a da Con-
ceição, por exemplo, começou a ser aberta de empreitada em 1550, pelo
pardo Jorge Dias, criado do fidalgo Diogo Muniz.
Funcionário zeloso, o governador acompanhava de perto os trabalhos,
Às vezes pernoitava no seu camarote da nau Conceição, que o trouxera
e deveria ter sido, na falta de melhores acomodações de emergência, a
sede do governo geral nos primeiros dias ou mês.
O GOVERNADOR FAZIA DE OPERÁRIO
O antigo historiador frei Vicente do Salvador contou que o gover-
nador ajudava na construção da cidade.
Carregava caibros pesados e socava a terra nos taipais, para exemplo
ou estímulo dos trabalhadores. Essa informação tem sido bastante re-
petida. Na sua A Cidade do Salvador (1954), escrita com bom senso,
Edson Carneiro achou-a exagerada e improvável,o só porque o go-
vernador, notabilizado pela sisudez, estava absorvido por outros afazeres,
como ainda pelo preconceito de fidalgo contra o trabalho manual.
Enquanto se adiantavam em cima as obras da cidade, a praia em
baixo recebia novos europeus e nativos, atraídos das vizinhanças. Le-
vantou-se uma rancharia para alojamentos, ao lado uma capela ou ermida,
paredes de barro e cobertura de folhas de palmeira, para cujo altar se
transferiu a imagem de Nossa Senhora da Conceição, que viera na nau
AS ARTES BRASILEIRAS NO SÉCULO DO DESCOBRIMENTO
do governador. Esta ficou sendo a segunda e rústica igreja no porto
da futura cidade a primeira fora a de Nossa Senhora da Graça, es-
pécie de oratório, também paredes de barro e teto de palha, construída
em 1535 por Caramuru.
No novo e pequeno templo, o jesuíta Manuel da Nóbrega pregava
e celebrava. Nas duas primeiras décadas do século XVIII, vemo-lo
transformar-se na igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, um
dos altaneiros monumentos coloniais baianos.
CASAS A MODA DOS ÍNDIOS
As primeiras construções de casas para moradias e repartições do
governo, assim como as igrejas, nas cidades alta e baixa, foram «cobertas
de palha ao modo da terra, para as quais logo que foi possível, transferiu
(o governador) os mancebos e soldados, que aí se agasalharam».
Cem casas continua informando Teodoro Sampaio foram cons-
truídas em quatro meses, verdadeira cidade de palha como uma aldeia
de índios, que ajudavam nos trabalhos. A partir de abril do ano de
sua chegada, passou o governador a residir na nova cidade. A Casa
do Governo, a Cadeia e o Senado da Câmara, a Casa dos Contos, que
fazia de repartição do Ministério da Fazenda, a Alfândega, os armazéns
em baixo, assim como as igrejas que se iam levantando, tudo era coberto
de palha, paredes de pau-a-pique ou de taipa.
Nas relações de pagamento do pessoal vindo com Tome de Sousa,
figuravam pedreiros, ferreiros, serradores, serralheiros, telheiros, carvo-
eiros, caieiros, oleiros para as telhas e tijolos. Muitos desses operários,
concluídas as obras em meado de 1551, voltaram ao reino.
A cidade despontava com a população de 1.000 pessoas, gente bas-
tante para a época. Cresceu depressa porque logo o açúcar e a pecuária
começam a dar na Bahia, em Pernambuco, emo Vicente. A riqueza
do açúcar e do gado, o engenho e o curral amanhece com o Brasil.
Planta da Cidade do Salvador da Bahia de
Todos os Santos com indicação dos muros
e circunvalações primitivas da fundação de
Tomé de Souza em 1549. Do livro de
Teodoro Sampaio, sobre a fundação
da Cidade do Salvador
A torre construída na Bahia pelo donatário
Francisco Pereira Coutinho. Desenho do livro
de Teodoro Sampaio sobre a fundação
da Cidade do Salvador.
Ciências Humanas
Uma Festa Ideológica: O Carnaval
C. A. DE MEDINA
T
ODO ano, em determinada época, em todos os jornais, alguém diz
algumas palavras sobre o Carnaval. Relembram-se os folguedos
do passado, discute-se sua etimologia, fala-se no primeiro samba,
na primeira marcha-rancho, no «Zé Pereira». Outros discutem-na como
festa pagã, retratam mitos, elaboram explicações que perduram adorme-
cidas até o ano seguinte.
Vamos propor uma outra abordagem. Tentaremos descrever o
fenômeno dentro do contexto da sociedade em que se insere; procura-
remos encontrar certas constantes em sua história para descobri-lo como
é e o que significa. Faremos tal trabalho utilizando o mesmo material
disponível, coletado aqui e ali em autores que sobre ele escreveram sem
qualquer preocupação analítica.
Evidentemente tal fenômeno tem uma história, ocorre no tempo,
e a preocupação com suas origens é, exatamente, uma maneira deo
entendê-lo, por julgar linear aquilo que é bem mais complexo. Mas
esta história nos coloca duas questões fundamentais: a primeira, se
o Carnaval hoje é, efetivamente, uma continuação do que ocorria no
passado; a segunda, se ainda estão presentes no fenômeno atual os
elementos que deram razão de ser à manifestação anterior.
É na busca de respostas a estas duas perguntas que elaboramos
este texto, tentativa inicial de uma abordagem sociológica desta festa.
C. A. DE MEDINA
ENTRUDO E CARNAVAL
Para começarmos podemos dizer que os dados sobre o assunto nos
falam de «entrudo» e de «Carnaval». Colocam o primeiro como início
do segundo, algo que repentinamente ocorreu e que evoluiu para a forma
atual. Na verdade,o nos diz nada sobre a razão da transformação
que ocorreu nem toca na explicação do surgimento do primeiro. Os
autores escapam a esta questão discutindo o nome da festa. Uns dirão
que se origina dos «carrus navalis» das festas dionisíacas da Antiguidade,
quando a imagem de Dionísio era transportada em carros e desfilava
pelas localidades. Outros dirão que se origina de «carnem levare» ou
«carne levarium», isto é, o «eliminar a carne» como indicativo da última
festividade antes da abstinência de carne nos dias da Quaresma. Desta
discussão verbal, passam a falar no entrudo como ocorrência inicial, no
Brasil, do atual Carnaval.
Debret, em 1830, ilustrava o entrudo e o descrevia em seu livro
de viagens: «O Carnaval no Rio e em todas as províncias do Brasil
o lembra em geral nem os bailes, nem os cordões barulhentos de
mascarados que, na Europa, comparecem a pé ou de carro nas ruas
mais frequentadas... Os únicos preparativos do Carvanal brasileiro
consistem na fabricação de limões-de-cheiro.. . único objeto de diver-
são. . . Para o brasileiro, portanto, o Carnaval se reduz aos três dias
gordos, que se iniciam no domingo às 5 horas da manhã, entre as alegres
manifestações dos negros já espalhados nas ruas.. . Vemo-los, cheios
de alegria e de saúde.. . satisfazerem sua loucura inocente com a água
gratuita e o polvilho barato.. . Mas os prazeres do Carnavaloo
menos vivos entre um terço, pelo menos, da população branca brasileira;
quero referir-me à geração de meia idade, ansiosa por abusar alegremente,
nessas circunstâncias, das suas forças e de sua habilidade, consumindo
a enorme quantidade de limões-de-cheiro disponíveis.. . durante mais
de 3 horas, vê-se grande quantidade desses projéteis hidróferos cruzando-
se de todos os lados nas ruas da cidade e estourando contra um rosto,
um olho, ou um colo».
É curioso o fato de que Gilberto Freyre, analisando a documentação
da época, retrata-nos uma situação que completa a observação de Debret.
Chama a atenção, no 2" capitulo do seu «Sobrados e Mucambos», para
o fato de que na primeira metade do século XIX havia uma visão social
negativa da rua, sendo, inclusive, negada às mulheres, exceto nas
atividades religiosas.
Mas é na rua que o Carnaval irá implantar-se como festa urbana
que é. E, por ser na rua, vai expressar uma dinâmica de participação,
que, como nos descreve Debret, será «de todos». Torna-se assim uma
festividade que rompe barreiras sociais marcantes, embora cada um
mantenha as distâncias sociais pré-estabelecidas.
UMA FESTA IDEOLÓGICA: O CARNAVAL
A popularidade que a festa irá tomar será resultante deste fato
que encobre a divisão marcante da sociedade e que, no decorrer do
período em questão, irá progressivamente assumindo características de
festa popular.
Entretanto, um outro aspecto vai se impor em nossa descrição. Se
no início, ocorrendo na rua, permitia esta socialização da festa, imedia-
tamente foram surgindo formas diferentes de festejá-la. Ao mesmo tempo
em que se permitia à população participar do entrudo, começavam a
surgir as festas fechadas, os bailes de máscaras nos clubes, teatros,
hotéis e agremiações que iam sendo criados. O primeiro baile de que
se tem notícia ocorre em 1840 no antigo hotel Itália, no Rio, promovido
por uma atriz italiana, Del Mastro. Em 1846, o português Praxedes,
nacionaliza o tradicional ritmo de Portugal, o «Zé Pereira», com suas
barulhentas passeatas pelas ruas do centro da cidade, no Rio, com a
cantoria acompanhada de instrumentos de percussão.
O CARNAVAL DE RUA
Iniciava-se assim a separação entre o Carnaval fechado e o Carnaval
de rua, este ainda na forma de entrudo. E as duas maneiras de efetivar
a festa também seguiam direções diversas. Nos bailes predominavam
as músicas europeias, enquanto nas ruas intensificava-se o antigo costume:
«tão bárbaro tornou-se o entrudo, que bacias e bisnagas dágua eram
utilizadas além dos limões» (como nos diz Melo Morais). A descrição
da época aponta o fato de que a festa de rua, inicialmente controlada,
foi assumindo um caráter de agressividade crescente, na medida em que
todos dela participavam, o que indicava uma ruptura momentânea do
código das relações sociais vigentes. Tal situação parece-nos indicar um
processo que irá ocorrer daí em diante. É que, à medida em que a festa
assumia esta característica de «liberdade» face aos comportamentos
usuais, ela iria começar a ser incômoda, exigindo um retorno a uma
situação de controle das atividades.
Isto se fará a partir do grupoo popular, numa linha de ostentação
e de modificação da forma de realizá-la. Surgem as Sociedades Carna-
valescas, que até então se divertiam apenas de portas fechadas e que
«resolveram nos dias consagrados a Momo trazer para a rua a sua alegria,
organizando passeatas com guarda de honra e carros enfeitados». Eram
os préstitos, que em 1855 desfilaram frente ao Paço da Cidade, sob
às vistas de D. Pedro II.
Em 1860, no «Alcazar Lyrique», instituía-se «um valioso prêmio
para a modista que fizesse a fantasia mais bonita e original», como
nos diz Gastão Cruls, em seu livro «Aparências do Rio de Janeiro».
Tais fatoso criar uma nova dicotomia nos participantes. A divisão
entre Carnaval de rua e Carnaval de bailes se mantém, porém este
C. A. DE MEDINA
invadirá aquele, com uma tendência à demonstração de seus recursos
e uma ostentação de suas capacidades. Romperá a característica da festa,
separando os participantes em ativos e passivos. O Carnaval como
festa coletiva passa a se organizar de outra forma, dificultando as mani-
festações individuais que o entrudo permitia e começando a criar ativi-
dades dirigidas em determinados dias, dentro de limites precisos. Grande
parte da população participante se transformava em meros espectadores.
A festa começava a se localizar e para tais locais é que a população
se dirigia. A ocupação da rua, que era de todos, começou a sofrer a
invasão dos mais aquinhoados. Em 1885 introduziu-se o lança-perfume
metálico e em 1904 o entrudo foi declarado ilegal pelo então Prefeito
do Rio, Pereira Passos. Em 1908 inaugura-se o «High Life», em cujos
bailes dançavam-se valsas, tangos e quadrilhas.
Este aspecto da música é que vai permitir uma nova abertura na
festa. Como vimos, o uso de fantasias e o tipo de músicas eram um
reflexo do que ocorria na Europa. Arlequins, palhaços, pierrots e outras
fantasias eram importadas, pouco tinham a ver com a nossa realidade.
Mas nos blocos e cordões já existentes, nas batalhas de confete em
locais conhecidos, uma alegria distinta se expressava. E,o sendo mais
o entrudo o motor da festividade, ficava faltando algo.
Em 1899, Chiquinha Gonzaga compõe para o cordão «Rosa de
Ouro» o famoso «O' Abre Alas». Começa a surgir nas ruas e nos
préstitos a tendência a cantar paródias de canções de sucesso, comen-
tários dos acontecimentos da época. Eram aproveitadas as polcas, as
«schottischs» tipo de canção de então para serem cantadas com
palavras de crítica social, como o que aconteceu em 1903 com a polca
«Vem, mulata», cuja paródia criticava o novo imposto do selo.
A escravidão terminada, a ocorrência da guerra de Canudos trouxera
para o Rio uma migração de ex-escravos e pretos baianos que se reuniam
para seus batuques. É daí que irá surgir o samba e o uso intenso dos
instrumentos de percussão e seu ritmo na música carnavalesca.
Até aqui descrevemos um período carnavalesco bem definido, que é
chamado de «entrudo» e que termina em 1904. Para melhor entendermos
esta descrição, tentemos analisá-la de modo mais teórico.
O CARNAVAL E O NÂO-CARNAVAL
Consideremos o Carnaval e o que se opõe a ele, o não-carnaval.
No passado teríamos para o primeiro a característica de «liberdade».
O não-carnaval seria a falta de «liberdade», o controle social visível,
tendo como seu limite máximo a escravidão.
Considerada como festa de rua, «festa de escravos», como nos diz
Debret, era uma ocorrência onde podiam aqueles satisfazer «sua loucura
inocente». Debret refere-se também à «geração de meia idade», isto é,
UMA FESTA IDEOLÓGICA: O CARNAVAL
àqueles mais presos aos controles sociais do como se comportar publi-
camente .
Podemos a partir daí supor dois encaminhamentos. Um, em que
a dimensão de controle se estenderia por toda a festa, e outro, em que
a dimensão de «liberdade» se ampliaria. É nossa interpretação que
ambos estão presentes e se interpenetram.
À tendência ao controle, organização delimitada das atividades, se
contrapõe o excesso de «liberdade», exatamente por ter presente o
controle em curso.o apenas o controle do que se faz e de quem
o faz, mas também o controle do como se faz.
Assim pela falta de «liberdade» crescente (no caso a de poder dispor
de meios de participação, a falta de recursos) surge o excesso na forma
de participar daquilo que ainda existe de «liberdade». Esta, setor em
processo de redução progressiva, tornando-se cada vez mais agressiva
em sua manifestação.
Podemos ainda inferir outros argumentos. Como vimos é o contexto
social vigente que define as áreas de «liberdade» e «não-liberdade» dos
participantes. Enquanto predomina na sociedade a dimensão dominadora,
mais significativa será a ocorrência de um período em que todos serão
considerados «livres». E é no uso desta «liberdade» que se desenvolverão
as tensões presentes. Mas à medida em que se ampliam «liberdades»
no contexto, aquele período verá perder-se parte das razões que o
fundamentaram.
o podemos assim falar de uma evolução do Carnaval, do entrudo
até os dias de hoje.o as modificações da sociedade, no decorrer de
sua história, que articulam as alterações da festa; porém, convém ressal-
tarmos que os processos que ocorrem ao nível da sociedadeoo
correspondentes aos que ocorrem no contexto específico da festa. Neste,
perduram recordações distanciadas num ano, os participantes repetindo
o que ocorrera no ano anterior. Eo sintomas de renovação ocorridos
anteriormente, de modo isolado, que irão assumir predominância em anos
posteriores, donde a oposição: «liberdade» x «não-liberdade» perdurar
por mais tempo dentro da festa, enquanto ela se modifica, ou não, no
plano da sociedade.
Desde as suas características de oposição liberdade x escravidão
a festa apresentava uma situação de direito adquirido de manifestação
«livre» que é mantida e retomada nos anos sucessivos, nos períodos
posteriores. É a certeza de que esse direito está em jogo, o que exacerba
a maneira de se manifestar, trazendo assim, para fora do período carna-
valesco, a preocupação sobre o que nela poderia vir a suceder. Donde
as proibições, os controles, se estabelecerem previamente, como um aviso
anterior de suas consequências.
Na medida em que a festa anterior se expressava como sendo mais
controlada, certas ocorrências com significação de «liberdade» iriam
C. A. DE MEDINA
canalizar a busca de permanência dos direitos já adquiridos. Mas a
dimensão de ostentação rompia o quadro, gerando participantes ativos
e participantes passivos. A «liberdade» de fazer se reduziria a uma
«liberdade» de ver. Alguns fariam o Carnaval e muitos veriam o que
aqueles faziam.
No plano da sociedade, a dimensão do comportamento sem freios
que a festa apresentava, foi se tornando mais um problema, do que algo
aceito socialmente.
Entretanto, a busca de uma participaçãoo se restringia. Se o
entrudo desaparecera, surgiram novos meios e um desses foi a música
popular cantada e a manifestação coletivo-indivualizada de música
dançada.
À medida que o Carnaval se caracterizava como bailes à fantasia,
como desfile de préstitos e mais tarde como desfile de carros enfeitados
(o corso), outra linha de participação de atividades na rua se desenvolvia.
Os blocos e cordões populares faziam suas canções e se apresentavam
à população, surgiam grupos de samba, com canções escritas especialmente
para o período carnavalesco. Em 1917 publicou-se o primeiro samba,
«Pelo telefone», de Donga. Embora predominassem as marchas e polcas,
a música adequada para as manifestações individuais era de outro tipo.
]á em 1908, no Recife, referia-se um jornal local sobre o frevo, anotando
que «de início o povo se mexia pouco», ainda acostumado a uma posição
passiva de assistente; mas era uma música queo podia ser cantada,
pois o passista tinha de se absorver em sua coreografia variada e exte
nuante. Também o samba permitia esta exibição individual, que rompia,
de imediato, com a posição passiva de mero espectador.
Este Carnaval de rua, rítmico e exibicionista, dispersava o caráter
de ostentação que a festa possuía, e se expande progressivamente pelas
ruas da cidade.
Em 1928 cria-se a primeira Escola de Samba. Em 1929 há o primeiro
desfile, e em 1930 o primeiro concurso de músicas carnavalescas. É já
a época do corso de automóveis, do rádio que vulgarizava as músicas
preparadas para a festa, da Praça Onze onde desfilavam blocos, cordões
e ranchos. Em 1934 constituiu-se a «União das Escolas de Samba»,
entidade criada para sua defesa, absorvida em 1951 pela «Confederação
das Escolas de Samba». Em 1932, lei do Prefeito Pedro Ernesto tratava
sobre música carnavalesca, batalhas de confete e corso de automóveis,
e em 1937 oficializou-se o desfile dos préstitos.
NOVO TIPO DE CARNAVAL
Podemos dizer que este período, entre 1920 e 1940, expressa um
novo tipo de Carnaval. Delimitam-se as áreas de «liberdade», conso-
lidam-se os tipos de manifestação e seus locais, dá-se uma organização
UMA FESTA IDEOLÓGICA: O CARNAVAL
à festa. Na verdade, individualizasse a participação, cada um podendo
exibir suas qualidades rítmicas, vocais e de inventiva. É a época dos
fantasiados na rua, a invasão dos elementos «burlescos» que até então
participavam das procissões das irmandades e confrarias (o que fora
proibido pela Igreja Católica):o os diabos, os morcegos, a morte, os
bobos e os palhaços, anexados aos trajes dos desfiles militares do século
passado, com espadas, plumas, capacetes: lanceiros e soldados. A osten-
tação e inventiva que era de alguns, desceu às ruas e decorou a festa
de cores e ruídos.
É quando se coloca o Carnavalo mais em oposição à falta de
«liberdade», mas em oposição à seriedade dos costumes: a festa começa
a expressar-se como ligada à carne, à licenciosidade. Exemplo desta
forma de expressão é a descrição que Manuel Bandeira faz da festa
em seu poema «Sonho de uma terça-feira gorda», do livro Carnaval:
«Passavam préstitos apoteóticos.
Eram alegorias ingénuas, ao gosto popular, em cores cruas.
Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,
De peitos enormes Venus para caixeiros
Figuravam deusas deusa disto, deusa daquilo, já tontas e
seminuas.
A turba, ávida de promiscuidade,
Acotovelava-se com algazarra,
Aclamava-as com alarido
E aqui e ali, virgens atiravam-lhes flores».
E em outro de seus livros, este de 1925, «Libertinagem», escreve
em seu poema «Não sei dansar»:
«Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí porque vim assistir a este baile de terça-feira gorda.
Ninguém se lembra de política. . .
Nem dos oito mil quilómetros de costa. . .
O algodão do Seridó é o melhor do mundo? Que me importa?
o há malária nem doença de Chagas nem ancilóstomos.
A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.
Eu tomo alegria.»
É o carnaval «ingênuo» e individual. Cada um procurando divertir-
se, cada um buscando atender suas carências pessoais. Cada um soltando
livremente sua individualidade. É a época do «Você me conhece?, do
encontro dos desconhecidos livres das exigências da etiqueta e das con-
venções cotidianas. «Liberdade» aqui expressando deixar de ser «cai-
xeiro» para ser «imperador», deixar de ser prostituta para ser deusa
C. A. DE MEDINA
do Olimpo. É o que nos diz Gastão Cruls sobre os préstitos: «templos
gregos e pagodes chineses, divindades olímpicas e sereias, rosas que se
abriam para mostrar borboletas de peito farto e coxas roliças. Para
todas essas criaturas, tiradas quase sempre do meretrício barato, esse
dia do desfile era um dia de glória, o dia da consagração definitiva.
E havia razão para isto. Ao Zé-povinho que se extasiava à beira das
calçadas, dando-lhes palmas em troca de beijos que elas distribuíam
para um lado e outro, todas se afiguravam beldades alucinantes ou hurís
de um paraíso inacessível».
No plano da sociedade, entretanto, algo se modificava. Podemos
dizer que a festa ocorria num período determinado, no qual as pessoas
deixavam suas atividades de trabalho para dispor de alguns dias de
lazer. Esta situação anualmente repetida, se fosse impedida de ocorrer,
seria a causa de intensas reclamações.
É um período de lazer imposto pela tradição eo pela lei. Esta
já determina que cada pessoa que trabalha tem direito a férias. Desta
forma, expressa uma situação de igualdade perante a lei que, de certo
modo, oculta diferenças de lazer disponível entre os habitantes de uma
sociedade.
O Carnaval vai representar uma adição de lazer para todos, mas,
ao nível da sociedade este lazer adicional já lhe é contrário, tem impli-
cações de ordem econômica, é contabilizado e os valores em curso já
começam a ver, no período de realização da festa, um excesso de
tempo livre.
A impressão que temos hoje é a de que os habitantes jáo
opõem a festa a uma situação de falta de «liberdade» no plano social.
Ao trabalho opõe-se hoje o lazer legal, as férias. Ao controle coletivo
opõe-se a «liberdade» individual. Ao participar ativamente opõe-se o
poder ver à distância, em sua própria casa, como o permitem os meios
de comunicação de massa.
Assim, muitos hojeo referir-se à decadência do Carnaval, à perda
da alegria ingénua e espontânea do carnaval de rua. Outros reclamam
da perda de autenticidade , da precariedade das músicas, da transformação
da festa em show organizado.
Chico Buarqueo deixa de comentar tal fato em «Quem te viu,
quem te vê», quando declara: «Faz de conta que é turista», aquele que
vem para ver eo para participar.
A divisão dos carnavalescos entre ativos e passivos se ampliou, ao
mesmo tempo em que aumentou o controle sobre os primeiros. Uma
metrópole tem de ser vigiada, sua população tem de agir de modo or-
gânico, determinado, embora a populaçãoo aja assim porque se sinta
obrigada, ela já internalizou que assim deve ser, porque só assim as
coisas andam como devem andar.
UMA FESTA IDEOLÓGICA: O CARNAVAL
Mas como dissemos anteriormente, ao controle crescente vincula-se
uma ampliação da «liberdade» noutra direção. Se ao nível do entrudo
foi a intensificação da violência, se ao nível do Carnaval ingênuo foi
a descoberta da possibilidade de poder cantar e dançar, no carnaval
institucionalizado de hoje, para onde se dirige tal ampliação?
INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CARNAVAL
Quando falamos em carnaval institucionalizado já definimos o qua-
dro de nossa possível resposta. Dentro das instituições qualquer pessoa,
dentro dos limites estipulados por aquela, será livre para fazer como
desejar: assim os que desfilam fantasias no Baile do Municipal, assim
os passistas nas escolas de samba e o participante do bloco Cacique
de Ramos.o se nega a «liberdade» individual de se divertir, nem
se impede que se dance ou se cante. Somente que fazer istoo é
diverso do que ocorre nas instituiçõeso propriamente carnavalescas,
como os clubes, por exemplo.
Se as instituiçõeso tidas hoje como fator de controle do conteúdo
de «liberdade» que a festa possuía, será contra elas que se dirigirá a
ampliação de «liberdade» desejada. Creio ser indicativo disto o insucesso
da tentativa de recuperar a importância que a música carnavalesca teve
no período do carnaval ingênuo. Inclusive nos bailes atuais,o as
músicas de então as queo ainda cantadas.
Na direção que percebemos possível, o indivíduo isoladamente nada
pode fazer. Se o fizer será facilmente controlado, considerado infrator
ou louco. Aliás, tal tipo de contestação das instituições já está presente
na sociedade no decorrer do ano,o tendo qualquer sentido no período
de carnaval.
Só podemos, assim, compreender uma inovação possível num tipo de
ação que se expresse em termos de grupos organizados. Serão estes
que poderão contestar a perda da «liberdade» carnavalesca para as
instituições oficialmente reconhecidas.
Na medida em que o Estado oficializa as atividades, as festividades
do sábado, domingo, segunda e terça de carnaval, na medida em que
pensa em transformá-las em atração turística, grupos espontâneos se
formam e se organizam para se opor a tais soluções, para readquirir
a dimensão perdida. Já alguns casosm se verificando. O mais
explícito e justificado a seus próprios olhos é o do bloco de quarta-feira
de cinzas: ele sai à rua em diao permitido por lei. Expressa e
demonstra que podem fazê-lo apesar de toda a pressão e controle policial.
Outros casoso mais integrados ao sistema vigente. Constituem-se
publicamente e saem às ruas antes do período carnavalesco.o as
bandas, hoje várias, mas há alguns anos apenas uma, a de Ipanema.
C. A. DE MEDINA
Neste grupo de fácil tendência à oficialização, o que lhe retiraria a
espontaneidade nota-se o fato de se utilizarem de um dia de lazer
para seu desfile, dondeo contestarem a dimensão de trabalho presente
na sociedade.
O Carnaval tende a deixar de ser a festa de um determinado
período, cuja manutenção se prende apenas a uma tradição que o opunha
ao trabalho servil, para tornar-se um tipo, uma maneira, uma forma de
se realizar um baile ou uma festa. Sendo assim poderá realizar-se no
decorrer de todo o ano. Nesta direção já temos a festa de ano-novo,
o sábado de Aleluia, os bailes pré-carnavalescos e a transformação de
bailes normais em carnaval, à medida em que «vai chegando a hora»
de terminar. Restaria a «liberdade» do habitante em escolher o tipo
de festa que desejaria.
Esta ampliação da «liberdade» de «fazer Carnaval» em nada
expressará uma busca de direitos perdidos, de recuperação da tradição.
Será apenas a oposição ao tipo de festa (música, dança) não-brasileira
predominante. Perderá qualquer sentido de oposição global para perdurar
como uma busca de manutenção de brasilidade face à crescente interna-
cionalização de nossos costumes urbanos.
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35
A Igreja na América Latina
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
C
OMECEMOS por caracterizar o que, na geografia política e cultural,
entendemos que seja a América Latina. A expressãoo tem
um sentido realista exato. Vem sendo, no entanto, aceita para
efeito didático, facilitando a compreensão geográfica que se pretende.
Assim, integram essa América, que se antepõe, ainda geograficamente
ou culturalmente, à outra América, a de origem britânica, as Américas
ibéricas, de raiz portuguesa e espanhola, e a América francesa, isto é
aquela onde houve uma presença francesa ou há uma presença francesa
que a explica nas suas origens históricas ou mesmo na sua atualidade.
Assim, toda a América do Sul, a América Central, nesta incluído o
México e parte das Antilhas, compõem a América Latina, com uma
população que orça pelos 300 milhões de habitantes que falam português,
espanhol e francês.
Essa América Latina, nas suas raízes espirituais foi uma realização
do cristianismo romano, por obra e graça de Missões, de clero secular
e de decisão de Estado.
No particular da América ibérica, será conveniente começar regis-
trando o fato de que tanto Portugal como Espanha constituíam, no
momento em que desencadeiam suas operações de ocupação dos espaços
americanos onde fundarão seus respectivos impérios ultramarinos, de
gigantesca extensão territorial, nações profundamente ligadas a Roma,
sendo de notar que haviam mesmo iniciado o expurgo violento de todos
os elementos que se mostrassem infiéis ou inclinados à adoção de outros
sentimentos religiosos. Os judeus eram expulsos e os reformistas sofriam
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
o rigor de uma ação do Estado, que lhes impedia de assumir qualquer
posição de relevo na vida dos dois países. Terras conquistadas, no
medievo, pelo Islam, as que formavam a base fraca dos dois países,
a restauração cristã efetivara-se nelas no decorrer de um violento esforço
de guerra, que gerara as indisposições, reservas e uma espécie de auto-
defesa face a perigos, que pudessem representar os elementos hostis ou
distanciados dos princípios sustentados pelo cristianismo.
Os reis de Portugal, mantinham, desde a fundação da Monarquia,
vassalagem e obediência a Roma. Os de Espanha, que realizava a sua
unificação política, também se haviam consagrado ao serviço da cris-
tandade.
Quando principiou a aventura do estabelecimento dos domínios
políticos que exerceram na América, os dois países de logo cuidaram
de incorporá-la à comunhão romana, para o que lograram a contribuição
do Papado através de atos firmes e disposições que refletiam a intenção
de fazer, das novas terras, uma área de ação dirigida do catolicismo. As
populações, encontradas na fase dos descobrimentos e dos primeiros
contactos, eram populações, ora de muito baixo teor cultural, ora de
avançado estado de realizações materiais e espirituais, que as situavam
no mesmo plano de povos os mais adiantados. Dispunham, algumas
delas, de um sistema institucional e de uma organização espiritual que
mereceria o exame de religiosos e de agentes do poder europeu que
se instalava para fazer funcionar o regime colonial, todos a constatar,
senão superioridade, pelo menos uma admirável realidade no tocante
aos valores que as caracterizavam.
Por interferência do Papa Alexandre VI, um possível conflito entre
portugueses e espanhóis, a propósito de seus direitos sobre os mares e
as terras em descobrimento e posse, fora contornado. Um tratado, o de
Tordesilhas, consumara a decisão, evitando-se disputa perigosa aos
interesses da Igreja, dado que, no momento, explodia com consequências
imprevisíveis o movimento da Reforma. Um direito de Padroado, pelo
qual os monarcas das duas pátrias deveriam prover a atuação da Igreja
em seus novos domínios nas Américas, já lhes fora concedido, habili-
tando-os a uma política de preservação e de expansão do catolicismo,
que deveria ser executada no decorrer da conquista do espaço em questão
e da conversão das humanidades estranhas, que se estavam encontrando
e nele viviam.
A expansão territorial teve fundamentos materiais inequívocos, o
queo significa, no entanto, que os aspectos ou fundamentos espirituais
tenham sido ignorados ou ultrapassados ou ainda inferiorizados. Se
houve aquele objetivo real da formação da riqueza material imediata,
tanto mais quanto ela fora descoberta na própria América e provocara
o interesse de muitos que vieram fazer a aventura do ganho e de um
heroísmo de novo tipo, ao lado dele ocorreu a manifestação admirável
de espiritualidade, representada no trabalho dos religiosos que, para isso,
A IGREJA NA AMERICA LATINA
tiveram de enfrentar indisposições, naturais na sociedade que se elaborava
em meio a uma turbulência, decorrente dos fatos da conquista, e o
rigorismo de um meio físico e cultural queo era fácil vencer.
A conquista que os espanhóis iniciaram teve, assim, um sentido
político e material, do mesmo por que houve também o que cha-
mamos de «conquista espiritual». Durante mais de trezentos anos, clero
regular e secular operaram prodígios. Converteram e ensinaram, com
a verdade do Cristianismo, ao gentio com que se defrontaram e à
sociedade de cepa espanhola que orientaram, a lição dos livroso
sagrados, nas escolas de ler e escrever, de ensino médio, ensino técnico,
formando artesãos, e ensino universitário, ao mesmo tempo que aprendiam
a experiência dos nativos e o que eles ofereciam como fruto de suas
condições culturais peculiares.
Logo em 1493, um ano portanto após o descobrimento de Colombo,
começou a tarefa de cristianização com a remessa de 13 (treze) reli-
giosos que desembarcaram na Hispaniola (Santo Domingo), tentando
a efetivação de seus desígnios evangélicos. Em 1508 já havia três
Bispados nas Antilhas e em 1547 a diocese deo Domingos era erigida
em Arcebispado. Essas Dioceses eram sufragâneos da de Sevilha, até
1546. A essas seguiram-se outras, à medida que avançava o domínio
e se fazia necessário dar segurança e disciplina religiosa aos novos
domínios. Um século decorrido, havia seis Arcebispados, trinta e dois
Bispados e duas Abadias. Ao encerrar-se o período colonial, criavam-se
os três últimos Bispados, o de Mainas, Salta e Chilapa, respectivamente
no Peru, Argentina e México.
No particular da ação missionária, os Jerónimos foram os primeiros
a chegar. Vieram depois os Franciscanos, os Agustinianos, os Domi-
nicanos, os Mercedáríos, os Capuchinhos e os Jesuítas. Estes foram
os mais diligentes e, por isso mesmo, os que tiveram de arcar com as
desafeições, as rivalidades e incompreensões que acabariam pela extinção
da Ordem, antecedida de sua retirada da América.o devemos es-
quecer que a Companhia de Jesus era idealização e criação de um
espanhol, Inacio de Loyola. A atuação evangelizadora dessas Ordens
fez-se sentir da Califórnia à Patagonia. As mais famosas missões
foram: as dos Franciscanos que as encerraram como faina, na Cali-
fórnia, salientando-se ali Junipero Serpa como a figura central na
obra de fundação de núcleos, e as dos Jesuítas que, no México, no
Orenoco, em Minas, em Moxos e Chiquitos (Bolívia), e no Paraguay,
estabeleceram as famosas reduções, onde fixaram milhares de indígenas
dos mais variados grupos culturais, incorporando-os a uma nova siste-
mática de vida. As reduções contrastavam com os povoados de
«civilizados» pela prosperidade, pela disciplina, que as singularizavam
e onde os catecúmenos aprenderam ofícios e compuseram um tipo de
sociedade progressista que permitiu a conclusão, apressada, de que nelas
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
funcionava uma experiência de natureza comunista. Os próprios indí-
genas dirigiam, orientados pelos missionários, constituindo inclusive
pequenos conselhos municipais, selecionados pela escolha deles próprios.
Na ação missionária, os Religiosos usaram vários instrumentos para
a persuasão e para a conversão e a mudança de técnicas de vida
orientação oral, escrita e plástica: falando nas próprias línguas nativas,
que aprenderam, ensinando o uso da escrita e pela forma teatral e das
festas religiosas e cívicas, adornos, construções monumentais de con-
ventos, igrejas, simples capelas, residências do clero ou dos mesmos
indígenas, conseguiram êxitos extraordinários. Na luta contra a idolatria
ou contra as religiões anteriores, também lograram sucesso. No contacto
com as sociedades de origem espanhola, tiveram de oferecer séria resis-
tência defendendo a liberdade das populações nativas, uma vez que os
colonoso possuíam o sentimento de fraternidade e de convivência
humana para com essas populações, que eles entendiam inferiores e
portanto sem o direito ao uso da liberdade. Bulas Papais, expedidas
a começar de 1537, haviam exaltado e dignificado o gentio, condenando
a escravidão e proclamando-o homem com alma e espírito como os
outros homens que pretendiam superá-los. Frei Bartolomeu de las Casas,
Jerónimo, investindo violentamente contra o procedimento dos colonos,
desse modo prosseguindo na campanha que os Jerónimos haviam iniciado
nas Antilhas, logrou a decretação de medidas legais que garantiam os
direitos do gentio.
Essa ação humanitária, com relação aos nativos da América espa-
nhola, teve correspondência, no particular dos grupos negros importados
da África para os trabalhos na mineração e nas fainas agrícolas, na
ação de Pedro Claver, que se fez o apóstolo deles.
A América portuguesa, representada pelo Brasil,o oferece história
diferente. O primeiro ato de sentido religioso ocorreu no momento
da descoberta missa celebrada no ilhéu da Coroa Vermelha, a 26 de
abril de 1500, por Frei Henrique de Coimbra, que chefiava o grupo
de franciscanos que se dirigia à índia na frota de Pedro Álvares.
Iniciada a colonização, foram ainda frades franciscanos que primeiro
cuidaram do Evangelho a ser ministrado aos indígenas locais. Em
1549 chegaram os Jesuítas, dirigidos por Manoel da Nóbrega. Outras
Ordens foram os Franciscanos de Santo Antonio, Beneditinos, Carme-
litas, Oratorianos e Mercedários. A todos sobrelevou a Companhia de
Jesus, que exerceu uma ação imensamente grande abarcando, pratica-
mente, todo o extenso território sobre que os portugueses foram aos
poucos exercendo domínio político. Suas aldeias conheceram os mesmos
êxitos que as dos Jesuítas a serviço de Espanha. Como aqueles, sofreram
também os rigores do meio físico e social, as restrições e negações
de colonos e autoridades queo aceitavam a interferência que preten-
deram exercer para evitar a escravização do gentio e a irregularidade
de certos costumes que feriam os princípios da moral cristã. Montaram
A IGREJA NA AMÉRICA LATINA
escolas de primeiras letras, orfanatos, internatos, colégios de preparação
aos cursos eclesiásticos e universitários, hospitais, bibliotecas. As igrejas
que erigiam tiveram aspecto monumental, ao chamado estilo jesuítico.
Nas missões, ensinaram também um novo estilo de vida aos catecúmenos.
Sob o Consulado do Marquês de Pombal, à acusação de que preparavam
a separação da colônia através de uma série de atos contrários aos
interesses da Coroa portuguesa,o cedendo às imposições do Ministro,
da corrente iluminista que começava a situar-se no poder na Europa,
foram mandados sair do Brasil.
No particular do clero regular, o Primeiro Bispado foi o da Bahia,
criado em 1554. Até então a Igreja no Brasil era sufragânea do Bispado
do Funchal. Seminários montados no Pará, no Maranhão, em Olinda,
em Salvador, no Rio de Janeiro, em Mariana, formavam o clero neces-
sário à vida religiosa. Os Bispados, ao encerrar-se o período colonial,
erami em número de sete: Pará, Maranhão, Olinda, Rio de Janeiro,o
Paulo, Mariana e Cuiabá eram Prelazia. O Bispado da Bahia fora
elevado, em 1676, a Arcebispado. Subordinadas, funcionavam, nas áreas
de menor importância, Vigararias Gerais.
Nas colônias francesas, constantes deo Domingos (Haiti), Gua-
dalupe, Martinica, Santa Lucia, Desirade e Guiana, o processo de
atuação missionária foi menos intenso. É que a multidão indígena local
cedo desaparecera, substituída pelos trabalhadores africanos, importados
para as tarefas da agricultura tropical. Os esforços dos Missionários
tiveram ali, consequentemente, um campo muito menor. Apenas na
Guiana houve empresa de maior expressão. Os Jesuítas procuraram
converter grupos indígenas que se deslocavam para o interior , de certo
modo fugindo ao contato com o conquistador. As preocupações ma-
teriais da vida que se erigiu,o deram a oportunidade aos Religiosos
para os êxitos que alcançaram nas Américas portuguesa e espanhola.
Ao encerrar-se o período colonial, a Igreja Católica atingira posi-
ção de muito relevo. É certo que as ideias liberais, que começavam
a interferir nos planos governamentais, prejudicavam o poderio que
ela possuía. Embora, o clero secular e regular, nas horas difíceis das
guerras pela independência, no caso das colônias hispano-americanas,
ou nos entendimentos que levaram à soberania alcançada sem o estado
de guerra pelo Brasil, os Religiosos tiveram atuação permanente. Eram
vozes que combatiam ou defendiam a novidade revolucionária. Como
seriam também vozes que, nos organismos políticos dos Estados nas-
centes, estariam presentes com a experiência e o saber que possuíam
e lhes assegurava a condição de autêntica elite, indispensável na fase
delicada da organização institucional dos novos países.
No decorrer da luta pela independência, o Papado sentiu algumas
dificuldades.o podia declarar-se abertamente pelos insurgentes
hispano-americanos, dada suas ligações com Espanha.o podia, porém,
abandoná-los, de vez que eram membros da grande família católica que
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
se criara no período colonial. O clero nativo era partidário da revolução.
O clero espanhol mantinha-se fiel àe pátria. Pio VI e Leão XII
haviam exortado os prelados a se manterem obedientes à Espanha e com
eles os que lhes eram sujeitos. As tentativas de negociações dos insur-
gentes para a obtenção de uma palavra de compreensãoo encontravam
repercussão em Roma. Um período crítico, por isso mesmo, começou
a ser experimentado nas relações entre os novos Estados hispânicos
e a Santa. O clero espanhol foi expulso. Foi abolida a Inquisição.
O direito de Padroado, defendido como herança espanhola. O ensino
laico começou a ser adotado. Muitos bens eclesiásticos foram confis-
cados. A Igreja Católica como Religião de Estado, deixou de existir
efetivamente, conquanto antes de 1853o tivesse sido baixado qualquer
ato expresso. Em 1823, Leão XII tentou a pacificação, enviando o
prelado Mazzi para sagrar novos Bispos e dar titulares às sedes vagas.
E em 1827, conseguiu restaurar as relações. A difusão das ideias
anticatólicas européias provocou a decretação de medidas de rigor com
relação ao que se afirmava que eram privilégios inaceitáveis. Os atos
do culto estavam autorizados mas, nem por isso, sentia-se que houvesse
um estado de segurança absoluta para com o funcionamento do catolicismo
em termos de expansão como o que ocorrera na fase colonial. As Ordens
Religiosas foram secularizadas. A catequese do gentio, que ainda cons-
tituía, quantitativamente, um elemento demográfico a considerar, deixou
de ser tarefa a cargo de Missionários. As boas relações com a Santa
Sé só muito vagarosamente foram sendo restauradas. Assinaram-se
Concordatas regulando o culto. O chamado clero indígenao cresceu
numericamente, o que causou prejuízos consideráveis ao Catolicismo.
No Brasil, o regalismo tomou alento. As relações com a Santa Sé
só haviam sido restabelecidas depois do reconhecimento da independência.
A Religião era oficial. Embora, e conquanto a presença de elementos
do clero em todas as manifestações da vida nacional fosse imensa, o
governoo cedia no que ele entendia que lhe competia promover
uma intervenção direta nos negócios eclesiásticos através do Ministério
do Império, que interferia inclusive no funcionamento dos Seminários
pela fixação do regime escolar a ser obedecido e pela indicação dos
livros em que deveriam estudar os seminaristas.
Sério incidente perturbou as relações com a Igreja, provocando
quase que o afastamento do Brasil da comunhão romana a questão
dos Bispos de Olinda e Pará, que foram submetidos a julgamento,
condenados e presos, sob a acusação de desrespeito ao poder civil. Em
1889, com a doção do regime republicano, decretou-se a separação da
Igreja do Estado. Reunidos, os Bispos divulgaram documento aceitando
a nova ordem que lhes garantiria, de então em diante, as mãos livres
para crescer e multiplicar-se.
Na América espanhola, o grande momento da restauração do poder
da Igreja Católica ocorreu no Equador, na administração de Garcia
A IGREJA NA AMÉRICA LATINA
Moreno, que colocou o país sob a proteção de Maria Santíssima, convocou
a Companhia de Jesus, restituindo-lhe o prestígio anterior. Pagou, porém,
com a vida, essa fidelidade ao seu catolicismo.
Na América Francesa, o Haiti em particular, o clero francês fugira,
receioso da violência revolucionária. As relações com a Santa, apesar
de pronunciamento de governantes e desejos recíprocos de recomposição,
custaram a estreitar-se instituindo-se o clero local. Uma Concordata,
assinada em 1860, assegurou ao Catolicismo como religião da maioria
dos haitianos a proteção do Estado, o que de pronto permitiu a nomeação
de um Arcebispo, para a Diocese da capital.
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Comunidade Luso-Brasileira, ou Lusíada, como a prefiro de-
nominar, é concepção que vai aos poucos penetrando a cons-
ciência nacional, pelo muito que promete ao Brasil para a
colimação de seu grande destino no mundo. Recentemente, têm-se re-
gistrado avanços mais sensíveis nas relações entre os dois países, o
que confere crescente importância e atualidade à política de reaproxi-
mação entre eles. Trata-se de concepção a da Comunidade
frequentemente exaltada em ambos os lados do Atlântico, com
grandiloqüência, de modo algo platônico, como bela figura de retórica.
Por outro lado, nosso comportamento pendular em relação a Portugal,
inconstante, de marchas e contra-marchas, prejudicado por preconceitos
ideológicos, por «slogans» de política internacional queo se identi-
ficam com nossos interesses, muitom contribuído para impedir a
postura realista que devemos adotar frente ao problema. Tem havido
flagrante ausência de sentido pragmático no trato do mesmo.
Entretanto, a construção da Comunidadeo há como negá-lo
é obra que requer verdadeiro estadismo, pelo alcance transcendental
de que se reveste para a família de nações de língua portuguesa, onde
existe uma cultura sob ameaça, embora esteja em processo uma civili-
(*) Conferência proferida no Clube Militar, em 22 de setembro de 1970.
GARRIDO TORRES
zação que mestre Gilberto Freyre cognominou de luso-tropical. Abrange
sociedades multirraciais que o lusitano plantou na cinta tropical do
globo, as quais poderiam constituir um sistema que afirmasse e defen-
desse valores comuns a todas elas, pois herdaram-nos da Pátria Mãe. Tra-
ta-se de esquema geo-político fundado no imperativo moderno da
interdependência.
Entre o Brasil, Portugal e Províncias ultramarinas, existe uma iden-
tidade natural, que nos une e que resulta de sermos essencialmente a
mesma gente, cujas variantes, na verdade, só confirmam a unidade
básica. Por isso, é possível dizer que a Comunidade é uma realidade
no plano da super-estrutura graças aos elos da língua, do credo, do
sangue e da cultura, historicamente derivados da epopéia das desco-
bertas e de fecunda ação colonizadora pluri-continental exercida desde
então.
Mas, se assim é, falta,o obstante, além da consciência clara da
política que convém a essas sociedades no mundo contemporâneo, uma
infra-estrutura econômica que sirva de base operativa a tal política.
Tudo que me proponho fazer nesta ocasião é abordar alguns aspectos
que me parecem fundamentais para a implantação da referida Comu-
nidade. Esses aspectos a condicionam e estou convencido de que é
preciso atentar para eles com extrema seriedade, sob prisma eminente-
mente dinâmico, se é que desejamos continuar a ser, como até agora,
protagonistas de uma grandiosa obra histórica. Esses fundamentos
podem ser decompostos, a meu ver
;
em quatro grandes grupos, a saber:
o político, o da segurança, o econômico e o psico-social.
FUNDAMENTO POLÍTICO
Percebe-se do que já disse, que é política a concepção da Comu-
nidade Lusíada. Portugalo conta mais com a sua aliada multisse-
cular, a Inglaterra, outrora senhora dos mares, para ajudá-lo a preservar
sua soberania no espaço por eles tradicionalmente ocupado ao mundo.
Busca, por isso, o apoio do Brasil, dele descendente, seu primogênito,
em ascensão no cenário internacional, destinado a desempenhar im-
portante papel marítimo, herdeiro da tradição que remonta a Sagres.
Se a aspiração lusitana é, por isso, perfeitamente natural, consulta ela,
de resto, o próprio interesse do Brasil.
É que nosso país pode mais facilmente projetar-se na esfera in-
ternacional, se o fizer somando o seu ao espaço português, nos quatro
cantos da terra. Em troca do respaldo que poderemos dar crescente-
mente a Portugal, estará o Brasil firmando-se mais rapidamente como
grande potência, pois poderá erguer sua grandeza sobre as bases que
o português plantou no planeta, a custa de golpes de audácia, de sa-
crifício, de, de sangue e de ingente labor.
UMA POLITICA BRASILEIRA EM RELAÇÃO A PORTUGAL
É lamentável que haja quem se mostre insensível aos laços vitais
que nos ligam indissoluvelmente ao mundo lusíada (que é o nosso),
em que nos inserimos consciente ou inconscientemente, do que, aliás,
só temos motivos de legítimo orgulho, pois descendemos de uma grei
em tudo e por tudo extraordinária, cujos feitosoo ultrapassados
por nenhuma outra. E mais lamentável foi tal atitude quando nos
levou a faltar a Portugal com o nosso apoio, pois esse comporta-
mento só revela incompreensão ou mal concebido interesse nacional.
Portugal tem sido tradicionalmente objeto da cobiça alheia, fértil
em conceber e propagar doutrinas cujo efeito prático resulta em detri-
mento de seu patrimônio ultramarino. O fenômeno se repete no pre-
sente, e desde algum tempo, já agora também em função da luta ideológica
que hoje avassala o mundo e volta a contrapor o Oriente ao Ocidente.
Vê-se Portugal apertado entre duas pontas de uma pinça, das quais
uma representa os «trusts» do Ocidente, de olhos cúpidos nas riquezas
z'além mar, e a outra assume a forma de guerrilha comunista, insuflada,
municiada e orientada de fora, sobretudo do Oriente, tendo na China
Vermelha a principal mola propulsora ou instigadora. Tais interesses
são, naturalmente, camuflados por acusações de «colonialismo» ou (se
quiserem) de «neo-colonialismo», que geram uma atitude bastante di-
fundida, embora injusta, a qual repercute na Assembleia das Nações
Unidas, a grande caixa de ressonância para a qual convergem os dois
tipos de ação apontados. A distorção de sua imagem perante o mundo
civilizado, a campanha de difamação de que tem sido vítima, melhor
do que nunca pode ser entendida por nós, brasileiros, que também
estamos sendo atingidos depois de arrancarmos o país das garras do
comunismo que queria chinificá-lo e dominar a América do Sul.
Portugal tem dado ao mundo, contudo, um exemplo de virilidade e de
energia sem par, comensurável com a sua grandeza histórica, um exem-
plo que, aliás, se impõe à nossa emulação. Sua resistência impávida
vai, aos poucos, abrindo os olhos dos queo instrumentos inocentes da
propaganda que contra ele se desencadeou, tentando encurralá-lo.
É melancólico, por isso mesmo, o espetáculo proporcionado por
brasileiros, que promovem lá fora ou que aqui fazem eco a essa pro-
paganda, evidenciando um comportamento, o qual, além do mais, nos
atinge no dever de solidariedade que nos corresponde, porquanto esse
é um comportamento de renegados ou de alienados. Muito ao contrário
dos vai-e-vens da nossa politica portuguesa, das marchas e contra-mar-
chas responsáveis por um sentimento de insegurança e de incerteza que
paralisa nossos irmãos lusitanos, que lhes causa perplexidade pela
inconstância demonstrada, deveríamos, no meu entender, discernir com
clareza e de forma consciente que o Brasil a maior obra do gênio
português infenso ao colonialismo,o pode senão representar um
fator de equilíbrio, de compreensão e de paz na África, o grande in-
GARRIDO TORRFS
térprete da missão histórica de Portugal, o maior avalista de sua obra
colonizadora perante o mundo civilizado, o mais eficaz mediador dentro
das Nações Unidas e junto às jovens nações negras e asiáticas, com-
ponentes do Terceiro Mundo, principais promotoras da atoarda anti-
lusitana. Afinal de contas, que é o Brasil? O Brasil é quase um
continente, mantido uno, graças ao espírito que animou a ação coloni-
zadora de Portugal, o que o tornou possível como nação em franco pro-
gresso, no rumo dos seus grandes destinos, a maior democracia racial
de que há exemplo.
Com efeito, desde que assim se o deseje,o é difícil defender
Portugal,o só à base do que o Brasil representa, como pela repe-
tição, sobretudo na África Portuguesa, da obra que nele realizou, onde
existem também sociedades hoje em franco desenvolvimento, evoluindo
numa trajetória semelhante à nossa. Quem disto duvidar, que procure
informar-se em fontes verazes ou que vá ver, com seus próprios olhos,
a realidade dos fatos, a qual, é facilmente confirmada, aliás, com o
exemplo da obra ciclópica de Cabora-Bassa, a maior hidroelétrica do
Ocidente, situada em Moçambique, no Vale do Zambeze, a qual sofre
o bombardeio de interesses que invocam o biombo ideológico para
mascarar o efeito negativo sobre esses interesses políticos e econômicos.
Será essa obra um monumento à hidráulica vanguardeira de Portugal,
a qual, quando completa, terá absorvido trezentos milhões de dólares.
o gigantesco empreendimentoo foi projetado exclusivamente em
benefício do progresso da província moçambicana (o que já seria adian-
tar muito contra os que acusam Portugal de colonialista), mas também
em benefício de povos vizinhos, alguns dos quais sem até mostrado
hostis a Lisboa. Por outro lado, estão as Províncias portuguesas
maduras para a independência? Por quanto tempo, sem serem absor-
vidas na órbita de outras potências? Ou o seu interesse é melhor
consultado por um calendário de self-government, que assegure bene-
fícios para todas e cada uma das partes integradas em uma Common-
wealth
t
vantagens de outro modo mais difíceis ou impossíveis de
alcançar?
A Comunidade deve estar imune aos acidentes históricos de Brasil
e de Portugal. Cumpre, portanto, admitir que se caracterize, como
recomendou Franco Nogueira, ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros,
por três condições fundamentais: a) deve ser apolítica em relação aos
regimes internos existentes nos dois países; b) deve ser autônoma no
que concerne a interesses de terceiros; c) deve ser globalmente soli-
dária perante interesses alheios.
o nos esqueçamos de que a África sempre foi considerada pelos
grandes estadistas europeus com o apêndice econômico da Europa.
Nem tenhamos ilusões quanto ao verdadeiro significado da liberalidade
com que colônias em regime tribal (algumas sem condições de via-
bilidade como países autônomos), foram brindadas com a indepen-
UMA POLÍTICA BRASILEIRA EM RELAÇÃO A PORTUGAL
dência. Em que pese a influência da consciência universal, essa inde-
pendência significa menos do que aparenta e foi eminentemente nominal.
As demais metrópoles (que jamais rivalizaram com Portugal em
termos de permanência e de identificação, nem com a África se con-
fundiram, cultural ou racialmente), continuam a controlar a produção
e o comércio das antigas colônias, por meio de seus nacionais ou de
suas empresas, já agora sem as dores de cabeça e os ônus da ocupação
que lhes pesavam. Para melhor desfrutarem esse estado de coisas,
criaram um sistema de preferências, queo só representa séria dis-
criminação contra países como o Brasil, exportadores de produtos tropi-
cais para os mercados mundiais, inclusive os do Ocidente Europeu (e
isto a despeito de condições de custo de produção existentes em África,
que tornam a concorrência extremamente difícil de enfrentar), mas que
ainda exigem a contrapartida, também sob a forma de preferência,
concedidas pelos mercados africanos à produção das referidas antigas
metrópoles.
Diante deste quadro, fácil é perceber a hipocrisia dos que acusam
Portugal de praticar um «colonialismo retrógrado». Todavia, as escamas
o caindo dos olhos de muitos e faz-se justiça crescente a Portugal,
inclusive nos próprios centros onde antes a condenação parecia unânime.
Em nosso país, porém, grupelhos alienados ideologicamente, incorrigível-
mente românticos ou simplesmente ignorantes, batem palmas à propa-
ganda antiportuguesa, para vergonha nossa. Tem-se cortejado, por
vezes, o voto das delegações africanas e de outras do chamado Terceiro
Mundo, em favor de nossa representação em órgãos internacionais. Mas
nem isto merece maior atenção, pois a política de suporte a Portugal,
quando firmemente desempenhada pelo Brasil,o tem eliminado o
apoio dessas delegações. Na realidade, se o partido ou partidos comu-
nistas brasileiros condenam, nas resoluções de seus congressos, nossa
aproximação com Portugal, nem por isso deixam as nações comunistas,
ou soi-disant socialistas, de com ele transacionar sempre que isto lhes
interessa.
Tenhamos presente que o Brasilo é uma nação qualquer e que
a Divina Providência, ao nos confiaro grande patrimônio, nos impôs
a imensa responsabilidade de nos mostrarmos dignos e à altura dos
destinos que nos foram por ela reservados. A posição aqui defendida
para o Brasil, a de uma ponte entre a América Latina, a Europa e a
África, é única. Uma composição com Portugal bem pode vir a consti-
tuir, um dia, o núcleo do mundo latino, núcleo ao qual se poderão
talvez, aglutinar a Espanha e outras nações latinas da Europa, bem
como os países hispano-americanos.o nos deixemos intimidar pela
grandeza do desígnio, pela generosidade da concepção, nem pela incre-
dulidade dos céticos ou eternos derrotistas. Como Churchill afirmou,
o há grandes realidades do presente queo tenham começado como
sonhos generosos do passado.
GARRIDO TORRES
Teve razão Franco Nogueira, ao declarar que se impõe «reconhe-
cer que as relações entre Portugal e Brasilo essencialmente políticas
e que temos de ter em conta essa base política para as levar até às
últimas e naturais consequências».o subestima êle os resultados
culturais ou os econômicos e comerciais. Mas, com justa ênfase, advoga
que «passos decisivos», conducentes a «uma política de projeção mundial,
haverão de assentar numa base política». Para maior clareza, assim
explicitou seu pensamento: «No que nos diz respeito, entendemos que
a defesa e manutenção do conjunto da Nação Portuguesa, na Metró-
pole e no Ultramar, representam o aspecto básico, fundamental, ver-
dadeiramente crucial da política nacional portuguesa; quanto a este
ponto, compreender-se-á que sejamos claros, sem dúvidas ou hesitações.
Tem também o Brasil, muito naturalmente, a sua política, os seus in-
teresses, os seus vínculos. Estas realidades constituem a moldura
sobre que repousará a construção da Comunidade. Mas por boa
fortuna,o se vê qualquer incompatibilidade entre os interesses fun-
damentais de uns e outros, eo julgamos que, numa tal política, haja
de ser sacrificado nada de verdadeiramente importante e significativo.
Julgo que, neste ponto como noutros, poderemos concordar, os nossos
amigos brasileiros e nós. E ambos sabemos assim o caminho que temos
a percorrer, se o quisermos; mas se o quisermos, esse caminho poderá
ser percorrido!»
FUNDAMENTOS DA SEGURANÇA
É evidente que a moldura política da Comunidade há de ter na
sua base a segurança das partes componentes, a qual será fortalecida
pela conjugação de posições e forças que a articularão e pela grande
estratégia que é imperioso estabelecer.
No que toca ao interesse brasileiro, salta aos olhos a transcen-
dente importância para nossa segurança, como nação independente,
do continente africano e do grande caminho marítimo do Atlântico Sul.
Disto nos apercebemos quando nos damos conta da latitude de Angola
e do Arquipélago de Cabo Verde. Daí a relevância de uma geo-
política que,o só seja facilitada por meio de entendimento com
Portugal, como por via de nossa mediação a favor do último, junto
às jovens nações africanas, mediação que as faça compreender a sem-
razão de sua atitude hostil e até irracional contra um povo e um país
sem nenhum preconceito racial, que realizam pesados investimentos
em suas Províncias para promover o desenvolvimento destas e cuja
associação com elas, que data de muitos séculos, já as integrou no
espaço português para seu próprio bem, a despeito da descontinuidade
territorial. Repito: a presença brasileira em África deveria contribuir
UMA POLITICA BRASILEIRA EM RELAÇÃO A PORTUGAL
para tornar esse fato reconhecido e influir no sentido da concórdia e
da paz no continente.
Estas considerações nos levam à convicção de que, a rigor, as
fronteiras orientais brasileiras, «the ramparts we must watch», se situam,
no presente, do lado de lá do Atlântico Sul, ondeo é possível admi-
tirmos o eventual aparecimento de plataformas hostis de mísseis (con-
dição de que já estivemos ameaçados), como tampouco poderemos
consentir que as hordas comunistas ou os movimentos terroristas, orien-
tados e acionados principalmente pela China Vermelha, venham a
dominar a Guiné Portuguesa e o Arquipélago de Cabo Verde, o que
equivaleria a tornar vulnerável o Brasil à espada inimiga ou a esta-
belecer um trampolim para a conquista da América Latina.
Estas hipóteses, em nada absurdas, só por si já serviriam para
acordar aqueles que, até hoje,o se aperceberam do papel que está
reservado ao Brasil na estratégia democrática do mundo, nem parecem
compreender, tampouco, a circunstância de que o oceano que banha
os litorais africano e brasileiroo pode senão ser um autêntico lago
luso-brasileiro, um verdadeiro mare-nostrum, cumprindo, ao mesmo
tempo, seu destino histórico e contribuindo decisivamente para fortalecer
o Ocidente. Vou mais longe. Julgo do direto interesse das nações
atlânticas do hemisfério norte o apoio à ação luso-brasileira para tal
fim, pela importância estratégica de que se reveste e pela afinidade
que estabelece com os objetivos do Pacto do Atlântico. A Comuni-
dade Atlântica pressupõe a Comunidade Lusíada.
Nesta altura, vem a pelo a referência a uma das recomendações
do II Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa. Reconhe-
ceu-se nela que «tanto o Brasil, como Angola e Moçambique possuem
extensas áreas despovoadas e inexploradas que constituem grave desafio
para seus povos e Governos e, naturalmente, despertam a cobiça de
nações onde a explosão demográfica constitui grave problema.»
Por ver-se claro esse perigo e «como se trata de áreas que, bem
aproveitadas, muito poderiam contribuir para afastar o espectro da
fome que ronda o mundo e se acentuará em futuro próximo», procla-
mou-se que «a formação e o desenvolvimento da Comunidade fortalecerá
a posição dos dois países,o só no desenvolviemnto dessas áreas,
como também na defesa das soberanias respectivas nesses territórios».
Por outro lado, entendeu-se que a existência da Comunidade aumentaria
as possibilidades de obter, em escala adequada e sob seu comando, a
cooperação financeira e técnica de fontes internacionais, para o máximo
desenvolvimento dos recursos naturais existentes nessas regiões». Essa
cooperação se assemelhava possível, desde que os dois países, em
contrapartida, se propusessem a absorver excedentes populacionais e
produzir alimentos.
GARRIDO TORRES
Mas, o problema da segurançao abrange apenas a preservação
de áreas geográficas em nosso poder ou no de nações amigas para
evitar flancos expostos de nosso território. Reveste-se também de
aspectos que envolvem o acesso a materiais estratégicos de que carece-
mos. Bastaria citar aqui o problema do petróleo, encarado sob esse
ângulo, que dizo de perto à segurança de uma nação que oo possua
em quantidade ou em qualidade adequadas e que, para obtê-lo, fique
sujeita, como está a nossa, a ir buscá-lo em áreas conturbadas, sempre
arriscada a ter-lhe o acesso cortado ou a desvios que alongam a tra-
jetória do transporte, além de encarecerem o produto.
Temos, assim, que nosso abastecimento se faz em condições precá-
rias (como tem sido demonstrado em relação ao Canal de Suez, por
motivo de conflito árabe-israelense) .
Ora, o interesse nacional brasileiro aconselha que fortaleçamos
nossa posição, indo abastecer-nos por via de mares mais seguros e em
fontes mais acessíveis, como parece ser o caso de Angola, com o que,
diga-se de passagem, estaremos também estabelecendo poderoso elo
em favor da Comunidade, a qual demonstra-se, assim, de real valia
para a segurança nacional.
FUNDAMENTO ECONÔMICO
Assume este aspecto especial relevo, tornando-se mesmo impres-
cindível à implantação e existência da Comunidade, pois consiste no
seu embasamento físico. Aqui se situa, talvez, o ponto mais vulnerável
da Comunidade, dada a desatualização evidenciada em ambos os lados
do Atlântico quanto às oportunidades de comércio e de investimentos
hoje disponíveis, como resultado da diferenciação ocorrida nas estruturas
das economias do Brasil, de Portugal metropolitano e das Províncias
do Ultramar.
Desde que voltei, em novembro de 1965, da viagem que fiz a
Portugal metropolitano e a Angola e Moçambique,o me tenho poupado
ao esforço em favor do reconhecimento do imperativo da base econômica
de uma comunidade que abrangesse essas áreas. Propuz na época um
programa tríplice de reativação das relações luso-brasileiras, envolvendo
o somente a atualização dos acordos, como um estudo em profun-
didade das estruturas econômicas em confronto (a fim de identificar
pontos de complementariedade e descobrir dificuldades a contornar) e
uma ação psico-social em todos os campos da atividade humana para
revelar um país ao outro, como ponto de partida para a almejada
reaproximação.
Seguindo uma linha de pensamento eminentemente pragmática e
projetada no tempo, advoguei a denúncia, pura e simples, dos acordos
UMA POLÍTICA BRASILEIRA EM RELAÇÃO A PORTUGAL
comerciais então ainda vigentes, verdadeiras camisas-de-força que re-
duziam os níveis do intercâmbio a cifras inexpressivas. Eram acordos
bilaterais ultrapassados, fundados em listas de produtos, pagáveis em
moeda inconversível, cujo maior pecado era o de refletirem uma rea-
lidade de há muito inexistente.
Tais acordoso facilitavam um comércio, fruto de estruturas eco-
nômicas profundamente modificadas. Ressentiam-se, ao invés, da preo-
cupação generalizada na Europa, no imediato após-guerra, com o balanço
de pagamentos. Partiam, ademais, do pressuposto da competitividade
entre a produção primária do Brasil a das Províncias portuguesas, bem
como do caráter não-essencial das exportações de Portugal metro-
politano. Trinta ou mais anos de alheiamento recíproco obscureceram
os resultados proporcionados pela revolução industrial lá e.
Que revela, entretanto, a geografia econômica do triângulo Brasil-
Portugal-Províncias Ultramarinas? Sobretudo, que a industrialização
ocorrida dentro desses territórios alterou a composição do possível co-
mércio, podendo emprestar-lhe nova e ambiciosa dimensão, além de impor
o reexame de situações ultrapassadas, o que levará à conclusão de que
onde ainda hoje ocorre a competição, poderá amanhã haver a coopera-
ção, como na hipótese de possíveis acordos de complementação indus-
dustrial ou comercial.
Esta é uma razão, já por si suficientemente forte, para que o Brasil
volte a abrir seus portos desta vez a Portugal procurando atrair
novamente o imigrante lusitano e deixando entrar livremente os tradicio-
nais produtos da agricultura portuguesa, que aqui sempre contaram com
procura ativa e que poderiam constituir um mercado de qualidade, como
ficou patenteado pelas importações desses produtos em 1967 e 1968,
cujos totais se multiplicaram por 7 em relação ao nível anterior ao
Acordo Comercial e antes que fossem sobretaxados em 100%. Creio
que se trata de preço que deveríamos pagar gostosamente, indo mesmo
ao ponto de promover a exportação de nossos produtos concorrentes, se
necessário.o se pode atingiro grande objetivo como o da
Comunidade com espírito de barganha.
Esse estado de coisas foi compreendido e, como resultado das ne-
gociações, foram firmados, a 7 de setembro de 1966, em Lisboa, entre
outros, dois acordos, um comercial e outro de cooperação econômica
e técnica, cuja ratificação infelizmente, só foi objeto de troca de notas
decorridos quase dois anos eo obstante a unânime e maciça aprovação
pelos dois parlamentos.
Os novos tratados foram feitos com imaginação, audácia e forte
dose de pragmatismo (este refletido na Comissão Econômica e, já agora,
também no Centro Empresarial), representando passo agigantado no
rumo de algo de mais orgânico no futuro, desde queo surjam impe-
cilhos irremovíveis, oriundos de novos e maiores compromissos regionais
GARRIDO TORRES
que precedam um entendimento bilateral. Assim, na ordem das inova-
ções, previram os novos tratados a figura dos «acordos de complemen-
tação». Estes crescerão de significação pela interpenetração acionária
(como no caso de recente ligação bancária) e pelo investimento misto
que podem ensejar.
Em primeiro lugar, desejo destacar a possibilidade que tais acordos
podem criar,o só de promover a exportação de produtos desmontados
ou inacabados, reciprocamente para o consumo de Portugal e do Brasil,
mas também no sentido da reexportação, seja para os mercados da
EFTA, seja para os da ALALC. Na medida em que Portugal comple-
mente produtos originários do Brasil, cujo insumo importadoo exceda,
em média, a 50% do valor da mercadoria reexportada, poderá ele acrescer
a suas divisas, com o queo só adquirirá maior volume de meios de
pagamento (parte dos quais porventura necessários a saldar compro-
missos com o Brasil), como estará ampliando, indiretamente, a exporta-
ção da indústria brasileira para mercados da Europa que discriminam
contra nós. Cumpreo esquecer que este objetivo é favorecido pela
posição de Portugal na EFTA, a qualo é paritária e favorece a po-
lítica aqui preconizada. A dúvida que tem ocorrido é a pertinente ao
desaparecimento provável da EFTA. Tudo parece indicar, porém, que
EFTA e Mercado Comum Europeu evoluirão para uma simbiose que
levará a uma terceira modalidade organizacional de mercado, além de
que a posição singular de Portugalo lhe permitirá a participação no
novo esquema em pé de igualdade com os demais parceiros.
Mas, oportunidade igualmente importante é a que esses acordos
de complementação poderiam abrir ao investimento misto de capitais por-
tugueses e brasileiros. Tais investimentos mistos seriam eficientes ferra-
mentas de promoção da Comunidade, pelo que representam de orgânico
para a integração das economias e deveriam, por isso, contar com o
apoio financeiro das instituições bancárias comerciais e de «banques
d'affaires» que, para tanto, se fundassem em ambos os países.
Ocorrências de complementariedade surgirão, sem dúvida, sobre-
tudo se se proceder ao estudo, em profundidade, das economias em
presença no triângulo, como venho sugerindo desde 1965, o que também
vale para a cooperação tecnológica.
Vemos, portanto, que o futuro quadro do intercâmbio com Portu-
gal há de ser o de relações dinâmicas com perspectivas amplas, que
terá pouco ou nada em comum com o presente quadro estático e com
o tipo de comércio muito limitado e pouco diferenciado que prevaleceu
até agora. Por outro lado,o se propõe aqui que Portugal se dissocie
do esquema da EFTA ou de outro que a substitua, nem que o Brasil
se desvincule do esforço de integração a estabelecer na América Latina.
Tudo o que se deseja é que o Brasil e Portugal mantenham portas aber-
tas para os dois sistemas regionais em seu mútuo proveito.
UMA POLÍTICA BRASILEIRA EM RELAÇÃO A PORTUGAL
Se esse é o quadro no que respeita à Metrópole, também no tocante
às relações comerciais e de investimentos do Brasil com as Províncias
do Ultramar há perspectivas de extraordinário interesse.
Cumpre assinalar, desde logo, o que representa para o Brasil abrir
portas para a sua expansão como grande nação marítima e comercial,
à qual está fadado, inclusive por sua condição de herdeiro da tradição
portuguesa. Se a projeção mundial do Brasil certamente se processará,
isto poderá ser de muito facilitado e apressado na medida em que o
futuro regime comercial com Portugal o propicie e seu território europeu
e ultramarino lhe sirvam de ponto de apoio. Daí a importância das
zonas francas que nosm sido oferecidas, em portos bem aparelhados.
Em Macau, teríamos um entreposto para o Extremo Oriente, em Timor
para a Autralásia e na África essas zonaso só funcionariam para
atender aos fornecimentos dos mercados do espaço português no con-
tinente e ilhas, mas ainda para de seus portos, abrir um leque à ex-
portação de produtos brasileiros, acabados ou por acabar, na Metrópole
ou no próprio território das províncias, para mercados vizinhos. Esse
esforço de penetração comercial poderia ter como veículos as excelentes
estradas de ferro existentes. Bastaria citar a possibilidade de acesso ao
importante mercado sul-africano, para atingir o qual ter-se-ia em Lou-
renço Marques um porto ideal.
Como pagariam essas províncias o que elas próprias consumissem
do Brasil e o que poderiam consumir é bastante em matéria de ma-
nufaturas, tendo em vista que apenas ensaiam os primeiros passos na
senda da industrialização? Na realidade, podem obter esses meios de
pagamentos em medida talvez bem maior do que hoje se imagina. To-
memos o caso de Angola, por exemplo. É sabido, como já aludi, que
possui petróleo, o qual, ao contrário do brasileiro, parece incluir o de
baixo teor parafínico, prestando-se, portanto, ao refino para gasolina.
Ao que se informa, as reservas localizadas na plataforma submarina de
Cabindaoo abundantes que rivalizam com as do Oriente Próximo.
Quem está informado de quanto pesa em nossa balança comercial o
óleo importado, quase todo cru (em torno de 200 milhões de dólares
por ano),o ignora o que isso poderia representar como meio de pa-
gamento para Angola. Acresce a circunstância, como já se referiu, de
que estaríamos trazendo petróleo em zona protegida do Atlântico Sul
(e a fretes reduzidos pela menor distância), ao invés de transportá-lo
de regiões mais longínquas, que pouco ou nada nos compram. Mas
Angolao tem somente petróleo. Parece rica também em bens pri-
mários que o Brasil pode utilizar com vantagem.
o faz muito tempo, tentamos produzir petróleo na Bolívia e, a
despeito da comoção nacional havida em torno do direito de pesquisa,
estamos ainda à espera desse petróleo, que julgávamos certo. Pois bem,
certeza existe em relação a Angola e, como o capital brasileiro será
GARRIDO TORRES
benvindo (inclusive o público), poderemos obter o queo logramos no
país vizinho. Tudo isto feito sem desconfianças de predomínio, mas
no interesse recíproco ou triangular do Brasil, de Portugal e de Angola,
como cumpre, graças ao espírito comunitário, sob a forma de investi-
mentos mistos, com respaldo de agências financeiras do Brasil e de
Portugal, ou luso-brasileiras, as quais poderão ainda acolher recursos de
terceiros países interessados nas oportunidades que se apresentarão,
parao mencionar igualmente o concurso de fontes internacionais.
Por outro lado,o há porque exagerar os problemas criados pela
produção primária similar, nem sempre suficiente, aliás, para cobrir o
consumo português. O que nos cumpre é equacionar os interesses comer-
ciais em jogo e atendê-los da melhor forma, com a coordenação das
políticas comerciais dos dois países.
A presença do Brasil na África Portuguesa só pode assumir a
feição de um país irmão empenhado em contribuir para o desenvolvi-
mento desta, ajudando-o, inclusive, com a técnica aperfeiçoada pela
experiência adquirida no trato de problemas semelhantes e benefician-
do-se, igualmente, das conquistas da pesquisa e da tecnologia utilizadas
em função da produção em meio ecológico semelhante.
No II Congresso promovido pela União das Comunidads de Cultura
Portuguesa, foram todas estas ideias abrangidas pelas recomendações
votadas, o que representa expressivo aporte da iniciativa privada. Cabe,
agora, à Comissão Econômica Luso-Brasileira a definição das «regras do
jogo», e através do Centro Empresarial, aos empresários brasileiros e
portugueses, de preferência de mãos dadas, tomar progresivamente a
liderança para darem vida aos acordos firmados pelos dois governos,
aproveitando assim, em proveito de seus povos, as vantagens econô-
micas apontadas e, com base nestas, as de ordem política, cultural, etc.
que podem e devem ensejar.
Relativamente ao Brasil, já luta o país, por força do grau de indus-
trialização atingido, com os problemas de comércio exterior típicos
dessa condição. Precisa conquistar mercados para suas manufaturas
e obter matérias primas que lhe faltam, em quantidade suficiente ou
qualidade adequada. Além do petróleo, outro significativo exemplo é
o dos metais não-ferrosos, que constituem, até o presente, o «calcanhar
de Aquiles» de nossa indústria metalúrgica.
Infelizmente, todo este quadro ainda constitui uma hipótese, uma
esperança, mesmo que pareça fundada e viável. É que, embora o valor
em dólares do intercâmbio luso-brasileiro tenha crescido substancial-
mente, os totais continuam ainda assim modestos e a composição tradi-
cionalo se modificou. A sobretaxação imposta pelo Brasil amesqui-
nhou o valor das importações provenientes de Portugal e a exportação
brasileira para Angola e Moçambique tem sido unilateral e insignificante,
embora já figurem na pauta alguns bens industriais.
UMA POLÍTICA BRASILEIRA EM RELAÇÃO A PORTUGAL
FUNDAMENTO PSICO-SOC1AL
Embora veja na existência de uma infra-estrutura econômica a
condição indispensável ao funcionamento do esquema da Comunidade,
a base operativa que lhe falta,o sofre do mal do economismo e, por
isso, considero ainda mais indispensável o ânimo, em ambos os lados,
de levar a ideia avante, pois sem esse ânimo a Comunidade continuará
é certo — a consequência inevitável da história, porém configurada
como um fenômeno de super-estrutura; dando motivo a discursos al-
tissonantes, líricos, vazios de conteúdo.
A vontade de transformar o ideal em realidade, o que é, essencial-
mente, uma obra de estadismo e de sabedoria política,o surgirá sem
uma ação psico-social inteligente, esclarecida, deliberada, de olhos postos
no futuro mediato. Por outro lado, e por mais importante que seja, a
materialização da Comunidadeo depende exclusivamente dos governos
e dos empresários; ela depende também — e de modo decisivo do
comportamento da opinião pública no Brasil, em Portugal e nas Pro-
víncias, isto é, da compreensão do problema que essa opinião demons-
trar, já que da sensibilidade que evidenciar quanto à política a seguir
dependerá o grau de urgência e de prioridade com que os governos e
parlamentares se disporão a agir. Ora seja qual for o regime político
por que se governe uma sociedade, há sempre preocupação, por parte
das autoridades, com o que pensa e sente o homem da rua. Daí tor-
nar-se imperioso, além de motivar as autoridades e os empresários,
aliciar a opinião pública por todos os meios legítimos ao alcance dos
cidadãos válidos que acreditam na ideia, para que as coisas aconteçam.
Há muitas associações, congressos e jornadas que periodicamente se
realizam. Sem dúvida,o se pode descontar sua importância. Os
resultadoso lentos, entretanto, e sustento que o tempo milita contra
a concretização da Comunidade. Urge articular um tipo de ação que,
no plano psico-social, dramatize o problema, acabe com a modorra e
provoque consequências mais imediatas, inspiradas em um sentimento
eminentemente pragmático.
É preciso ter a coragem de dizer; de público, alto e bom tom, o
que muitos pensam maso ousam declarar. Talvez como filho e neto
de portugueses, havendo inclusive vivido quatro anos de minha vida
em Portugal, desejando ardentemente uma união, união natural, que só
pode beneficiar a cada uma e o conjunto de suas futuras partes inte-
grantes, julgo-me suficientemente isento para tentar identificar os obstá-
culos a essa união. Se bastasse resumi-los, diria que, na base do
problema está o grande desconhecimento de um lado em relação ao
outro, fruto de um alheiamento que muito se prolongou. Esse desco-
nhecimento leva a atitudes erradas e injustas. Do lado brasileiro, pare-
ce-me que, em última análise, a questão consiste em corrigir noções
ultrapassadas. O que se faz imperioso é que Portugal se imponha ao
GARRIDO TORRES
respeito do Brasil. Do lado português, é preciso que se conheça a
famosa e decantada realidade brasileira, para bem compreenderem as
razões de nossa recente inconstância. Somos ainda uma nação que
forceja por encontrar suas próprias maneiras de ser e de organizar-se,
para o que, aliás, muito adiantaria que tivessemos ideias mais claras a
respeito de nossas origens.
País subdesenvolvido, povo ainda lamentavelmente iletrado em per-
centagem incômoda, falho de quadros dirigentes identificados com o meio
e, por isso mesmo, fascinados por terceiras civilizações que lhes geram
um pendor mimético, de tudo isso tem resultado o esforço de trans-
plantar para o corpo político do Brasil instituições que noso estranhas
e que respondem pela sucessão de crises que temos atravessado, sobre-
tudo durante a República. Alvo de incessante propaganda proveniente
das nações vanguardeiras, pouco conhecedor do processo de nossa
própria formação,o deve causar grande surpresa que, no Brasil, Por-
tugalo tenha o prestígio que merece.
A imagem que prevalece ainda é, infelizmente, aquela que se ins-
pirou no imigrante chucro e analfabeto do passado, que aqui aportava
em busca da «árvore das patacas»... O Brasilo está em dia com
Portugal moderno, com a verdadeira Renascença que lá se operou nestes
últimos 40 anos, nem Portugal esforçou-se, durante esse período, por
tornar-se mais conhecido e respeitado. O Brasil subestima, conse-
quentemente, a ciência, a técnica, o desenvolvimento havido em todos os
sentidos em terras portuguesas d'aquém e d'além mar. Ou seja, cabe
agora ao Brasil descobrir Portugal, coisa que, aos poucos se vai veri-
ficando, felizmente, maso com a rapidez necessária.
Pertenço a uma geração — a que hoje governa o Brasil em
cuja adolescência Portugal era símbolo de atraso. Para muitos essa
ainda é a situação. Por isso, de Portugal se fazia, e talvez haja ainda
quem dele faça, o «bode expiatório» do nosso próprio subdesenvolvimento,
com raízes históricas na colônia. Aborrecia-nos a lembrança da desco-
berta e da colonização por Portugal. A fase conturbada então vivida
por Portugal contribuía para firmar em nosso espírito que outra seria
a nossa situação se fossemos o resultado da obra da Inglaterra, da
França, da Holanda. Para a distorção da imagem, que ainda hoje
prevalece em certos meios, muito concorreram, aliás, os próprios portu-
gueses, sobretudo seus melhores escritores do fim do século XIX, prati-
camente todos os «Vencidos da Vida». Queme em dúvida a po-
pularidade dea de Queiroz e a sua crítica à sociedade portuguesa
sua contemporânea e quem ignora que tenha ele sido mais lido e mais
popular no Brasil do que em sua própria Pátria? Quem leu a «Ilustre
Casa de Ramires» eo se lembra do descrédito e da descrença com
que se referia à capacidade dos portugueses enfrentarem seus compro-
UMA POLÍTICA BRASILEIRA EM RELAÇÃO A PORTUGAL
missos em África, ao falar nos «elementos alegres» com que se queria
conquistar aquele continente?
Entretanto, decorrido menos de meio século, que diferença se
operou na Metrópole! E que esplêndida realidade é a África Portu-
guesa do presente, com suas cidades modernas de 50 anos, com seus
portos bem aparelhados, com seus eficientes meios de transporte (uti-
lizados no seu e em proveito das repúblicas vizinhas), com suas novas
indústrias, com suas sociedades multirraciais, em suma, com os frutos
de uma antiga experiência civilizadora que nada apresenta em comum
com o resto do continente.
Que disparidade de comportamento entre os portugueses e os
demais europeus diante do fenômeno do terrorismo! Enquanto as po-
pulações luso-africanas, unidas na defesa, resistiam valentemente, ata-
cadas de surpresa e com extrema ferocidade, com armas inadequadas
e sem qualquer apoio de tropas regulares, que fizeram outros ocupantes
europeus em territórios contíguos? «Davam às de vila Diogo», es-
pavoridos.
Urge que nos demos conta de que só temos motivos de orgulho por
descendermos de tal gente. Quem fez mais do que eles na História,
enquanto fazer história era obra de imaginação, de audácia, de espirito
de aventura e de sacrifícios, de sentimento missionário? Ultimamente,
entretanto, começa-se a fazer justiça a Portugal. Melancólico é reco-
nhecê-lo: menos no Brasil do que alhures. A despeito do preconceito,
do antagonismo ideológico ou do manto de silêncio que pesa entre nós,
sobre o noticiário português, de algo tomamos conhecimento, sob a
forma de testemunho de visitantes qualificados, mas isto por via dos
jornais portugueses que se publicam em nosso país.
É o que tem sucedido, por exemplo, com interessantes depoimentos
do deputado inglês Biggs-Davidson, em declarações à imprensa de seu
país, nas quais diz: «São inacreditáveis as acusações de racismo ouvidas
contra Portugal nas Naçes Unidas. Na Guiné, Angola e Moçambique,
misturei-me com gente de todos os credos e de todas as cores, nas
igrejas, no cinema e nos clubes.o há segregação racial nas
escolas, nem nas piscinas. Nas forças armadas, todas as raças se
misturam, nas casernas e nas messes. Vi brancos comandados por
negros».
Por tudo o que aqui fica consignado, acredito profundamente na
conveniência de uma autêntica parceria com Potrugal, a qual redundará
em seu proveito, no do Brasil e no das Províncias e em proporção
mais do que comensurável com a contribuição feita por cada qual. Em
verdade, às vezes me interrogo se nossos irmãos portugueseso se
perguntarão se, afinal, nós, brasileiros, sabemos das soluções que nos
convêm. ..
GARRIDO TORRES
Acordemos, portanto, para a realidade de nossos dias e inquie-
temo-nos construtivamente com o que está por vir. Neste particular
ainda dormimos em «berço esplêndido», dando escandalosa demonstra-
ção de indiferença quanto a nossos melhores interesses no planeta e ao
destino que nos está reservado. Brasileiros e portugueses, plantemos
núcleos conscientes e militantes nas esquinas do universo luso-brasileiro».
Eis um desafio para os Elos Clubes. Voltemo-nos para o futuro! Como
tenho repetido: basta de lustrar os ossos, já de si ilustres, dos nossos
antepassados! Inspiremo-nos, antes, nas lições de heroísmo, de gran-
deza, de audácia, de visão para a missão de prosseguir na gloriosa obra
cuja continuidade nos legaram. Os desafios do presenteo exigem
capacidade inferior à que nossos ancestrais demonstraram. Nada há de
mais acabrunhador do que a mediocridade que nos domina.
Ao abrir o II Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa,
já aludido, ponderava Adriano Moreira, em Lourenço Marques, quanto
ao imperativo de os poderes políticos, o português e o brasileiro, «que
o responsáveis pela preservação do patrimônio lusíada no mundo»
despertarem para as «responsabilidades que lhes cabem nesta época
de planetização de todos os fenômenos humanos», promovendo a «de-
finição, estrutura e consolidação da Comunidade». Ao mesmo tempo
em que declarava encerrado o ciclo de Vasco da Gama, advertia que «o
futuro bate à porta de todos os povos, mas é necessário estar preparado
para a resposta. É certo que tudo exige tempo, mas há uma coisa
que sempre está ao nosso alcance fazer com ele: éo o perder. Ora,
uma das maneiras deo perder tempo é, dentro do pendor da nossa
época para a internacionalização da vida privada, definir e estruturar
e executar, sempre que esteja ao alcance do nosso poder individual ou
das nossas instituições, todas as formas de colaboração queo exijam
nem o consentimento, nem a colaboração dos poderes públicos». Inci-
tando os particulares à ação, urgia pela necessidade de «definir e exe-
cutar as formas de colaboração privada que possam decorrer dos
instrumentos públicos já aprovados e em vigor. Em suma, andar
sempre que seja possível, preferindo dar o exemplo a esperar que o
exemplo venha de cima ou do lado. Em resumo,o deixar de fazer
o que estiver ao nosso alcance;o deixar de sugerir e propor o
que estiver ao alcance dos outros».
Brasileiros e portugueses, de todas as procedências, matizes, credos,
unidos pela mesma cultura, devem ser convocados para esta obra gi-
gantesca, na escala que lhe é própria e queo é exclusivamente para
ser realizada no próprio interesse, porque é, essencialmente, uma obra
ecumênica a favor da paz, do bem-estar e do entendimento entre os
povos. Tal é o exemplo que podemos dar. Tal sempre foi a vocação
de nossa gente!
o poderia terminar sem citar alguém que tanto identificou Brasil
e Portugal, que desaprendeu a separá-los. Refiro-me a Carlos Ma-
UMA POLÍTICA BRASILEIRA EM RELAÇÃO A PORTUGAL
lheiros Dias. Prestes a morrer, enunciava as seguintes palavras, as
quais, queira Deus, se provem proféticas: «Acredito que, antes talvez
de findar o século XX, as condições geográficas em que se enfrentam
parte dos litorais atlântico-brasileiros e os litorais luso-africanos, e bem
assim a localização dos arquipélagos de Fernando Noronha, Cabo
Verde, Açores e Madeira, criarão uma aliança e uma nova política
luso-brasileira! Acredito que, possivelmente devido a essa grande cultura
e a esses providencias imperativos geográficos, o Atlântico Sul (que
primeiro foi sulcado pelos navegadores portugueses) se converterá no
gigantesco palco da ação triunfante da raça luso-brasileira, fixada e
expandida na Europa, na África e na América. Acredito que essa
portentosa aliança de interesses e de sentimentos encerrará uma rea-
lidade. Creio, também, que soará a hora em que se implantará na
consciência brasileira e na política internacional do Brasil a concepção
de Portugal de modo a que seja considerado na sua expressão geo-
gráfica integral.»
Esta é uma profissão de fé que faço minha e pela qual também
ergo minha prece.
Letras
Mário de Andrade Renovador
Prodigioso
TEIXEIRA SOARES
«Todo artista brasileiro que no momento atual
fizer arte brasileira é um ser eficiente com valor
humano».
(Mário de Andrade, Ensaio sobre a
Música Brasileira»).
A
nalisando-se a obra de MÁRIO DE ANDRADE, se verificará que houve
no desenvolvimento dela um pensamento criador e orientador: a
diversidade na unidade problemática. Este aspecto global demons-
tra o mérito da obra de Mário de Andrade, sua estruturação como
esforço cultural voluntário e persistente. A diversidade abarcou um
mapa imenso de rios navegáveis ouo navegáveis, mas sempre rios. A
diversidade empolgou a gente da minha geração. Mário de Andrade
o desapareceu. Está cada vez mais vivo.
Mário de Andrade renovou correntes culturais da mentalidade
brasileira por meio de uma ação lógica, esclarecida e concentrada. Daí,
pois, o emprego do conceito unidade problemática, que poderá ser estra-
TEIXEIRA SOARES
nhável para muitos, posto para mim quadre bem a este ensaio despre-
tencioso. É muito bem que certas ideias expositivas fiquem bem escla-
recidas, de entrada. A palavra foi dada ao homem para ele se enten-
der, etc, modismo antigo.
Tanto tem crescido o mérito da obra de criação e de interpretação
da sensibilidade brasileira realizada por Mário de Andrade que se torna
difícil fazer-se uma pergunta fácil: Mário de Andrade foi maior como
poeta, novelista, folclorista, crítico musical, ensaísta,
musicólogo? Mário de Andrade foi complexidade. Assim de barato,
complexidade atrapalha muito. E atrapalha muito mais quando essa
complexidade se chama Mário de Andrade.
Mas, onde (para começo de conversa) estão os mananciais dessa
obra extraordinária de criação e de interpretação da nossa sensibilidade?
Esses mananciais nos parecem misteriosos. E por que motivo? Por
causa da sua difícil detectação. Por mais que pretendamos investigar
a essencialidade desses mananciais, ficaremos diante da mesma perple-
xidade que sentimos, bem ou mal comparando, em relação a
Machado de Assis. Que eu saiba, Mário de Andradeo foi paulista
quatrocentão, da primeira fila, isto é, da Capitania deo Vicente,
daqueles primeiros dos primeiros, nascido de colher de prata na boca,
com brazão d'armas bem quartelado e pergaminhos vistosos e cheios
de selos, estampilhas e carimbadas. Por conseguinte, é regra da vida,
origens modestaso de molde a fazer personalidades modestas, a
menos que nessas origens, nesse mistério inicial, nesse mundo em for-
mação, já se encontre escondido o levedo criador de uma personalidade
nova dentro da crisálida inicial. Mário de Andrade era uma dessas
sensibilidades de escol, vibração muito especial, vastos remígios impe-
lidos por uma tenacidade, uma ideação creativa muito acima da menta-
lidade comum.
É claro que Mário de Andrade era uma personalidade. É claro que
Mario de Andrade enriqueceu sua personalidade com uma curiosidade
intelectual queo conheceu fronteiras. Por isso mesmo, o tempo vai-se
encarregando de enriquecer a vida e a obra de Mario de Andrade com
novos atributos ideativos ou com novas revelações decorrentes de uma
análise crítica aprofundada.
Por mais que procuremos enquadrar a figura e a obra de Mario
de Andrade nos limites de um território cultural perfeitamente delimi-
tado, como se fosse um pequeno país, sentimos que tudo escapa
à nossa faculdade de indagar, de fixar, de pesquisar. A personalidade
de Mario de Andrade é demasiado rica. Ademais, personalidade dotada
de antenas sutilíssimas.
De ano para ano, justamente por isso, vai aumentando o número
dos que estudam sua ação e sua obra, procurando dimensionalizar uma
personalidade que atuou e continua a atuar, e cada vez mais fortemente,
MÁRIO DE ANDRADE: RENOVADOR PRODIGIOSO
em nossa literatura. Particularmente emo Paulo, pesquisadores
jovens trabalham com afinco nos papéis inéditos do renovador infati-
gável. Ademais, devido à ação benemérita da Livraria Martins Editora,
deo Paulo, a obra de Mário de Andrade se encontra reunida em
20 volumes.
Diferentemente da maior parte dos nossos escritores, Mario de
Andrade foi a imagem do método, da tenacidade, do amor ao trabalho,
dando no entanto a aparência de boêmio ou fantasista. A personalidade
desse renovador prodigioso fascina e continua a fascinar. Isto porque
a obra de Mario de Andrade é um território cheio de surpresas. É o
território de um humanista que foi poeta, folclorista, novelista, musico-
logo, crítico de arte, coletor de material inédito do nosso populário
mágico, folclórico ou musical, um prodígio de curiosidade indagativa
e de força criadora. Por isso mesmo, quando se pensa que Mário de
Andrade nos deixou em 26 de fevereiro de 1945, entristecido por uma
série de injustiças, será fácil chegar à conclusão de haver ele, além
da sua ação pessoal de renovador, de debatedor de ideias, de aglutina-
dor de movimentos literários, realizado uma obra notável quer em
extensão, quer em profundidade, que, no fundo, é uma fluvial imagem
de Esperança, uma Arrancada luminosa para a criação de um Brasil
cantante de entusiasmo e de bravura na busca de sua autêntica persona-
lidade. É o que espanta. É o que emociona.
Pensemos nas distâncias que separam, através da estepe do tempo,
os trabalhos de ficção do «Primeiro Andar-» e da «Escrava que não é
Isaura», enfim das «Danças dramáticas do Brasil», que maravilhoso
caminho percorrido, que mágicas latitudes e longitudes da obra de Mario
de Andrade!
2
Mas, como foi que conheci Mario de Andrade? É sempre agradável
evocar momentos gratos que muito disseram à nossa curiosidade espi-
ritual. Conheci-o numa das suas viagens ao Rio de Janeiro, encontrando-
o em casa de Ronald de Carvalho, então na rua Humaitá, nº 64. Essa
casa, que tinha um calor especial, o calor de Leilá e de Ronald,o
existe mais. Agora, lá se encontra um banalíssimo edifício de aparta-
mentos. A rua Humaitá, que noutros tempos cabia num poema intimista
de Mario Pederneiras, homem de Botafogo, hoje é barulhenta, feia,
passagem obrigatória de gentes ocupadíssimas que pensam em terríveis
problemas derivados do encarecimento da vida e da complicação do
trânsito. Nessa noite, aí por volta das 9 horas, ou pouco depois, se a
memóriao me atraiçoa, lá encontrei Renato Almeida, Peregrino Júnior
e um camarada desempenado, dentuço, dando umas risadas gostosas
de vez em quanto, o próprio em carne e osso. Esse encontro foi em fins
TEIXEIRA SOARES
do ano de 1922, ou talvez pela altura das comemorações do Centenário
da Independência.
Ronald era o humanista agudo, sorridente e liberto do post-parna-
sianismo de «Poemas e Sonetos» (1919) para transitar para os «Epi-
gramas irônicos e sentimentais (1922) . Peregrino Júnior, que se trans-
formará num soberbo novelista da Amazônia, naquele tempo distante já
era o mesmo de hoje, a mesma trepidação, a mesma dose irônica e
sentimental, o mesmo amor imenso à cultura e à Realidade mágica deste
Império, que é o Brasil. Renato, meu fraternal Renato, publicara em
abril de 1922 o seu notável «Fausto».
Bem, nessa noite conversou-se muito; e como eu fosse o mais jovem
do grupo, senti certo enleio diante de Mario de Andrade que parecia
concentrar (e concentrava) as atenções dos demais. Claro que a con-
versa se fazia numa escala de vibração muito cordial, porque naquele
tempo encontrávamos tempo para nos reunirmos em casa de um ou de
outro e gastarmos o nosso melhor tesouro, o do coração aberto.
Eu já sabia da ruidosa celebridade adquirida por Mario de Andrade.
Por isso mesmo, procurei gravar na memória aquela noite em casa de
Ronald de Carvalho.
Dias depois,o sei como (não sei se veio pelo correio ou se foi
Guilherme de Almeida quem trouxe o livro numa das suas vindas ao
Rio de Janeiro), recebi a «Paulicea desvairada» com a seguinte dedica-
tória que reproduzo (guardo esse livro como um dos tesouros da minha
modestíssima bilbioteca):
«Teixeira Soares:
«Mas em vinte anos se abrirão as searas...» Errei a data.
Nem 4 anos se completaram e já vieram os «fevereiros do
café-cereja».
Teixeira Soares = Café-cereja.
Dou-lhe este abraço de camarada.
Quer aceitá-lo?
MÁRIO DE ANDRADE. Paulicea, 3/V/920».
Ora, Mário de Andrade se enganara na data, porque «Paulicea
Desvairada» fora publicada em julho de 1922 pela «Casa Mayença»,
deo Paulo.
Era o livro revolucionário. Tanto como forma, como temática. Livro
surpreendente, polêmico, irregular, fantasioso e com alguma vulgari-
dade; mas combate de linha de vanguarda. Esse livro acarretaria a Ma-
rio de Andrade alguns dissabores, provocados pelas «classes conserva-
Macio de Andrade
(Foto Benedito }. Duarte, 1930)
MÁRIO DE ANDRADE: RENOVADOR PRODIGIOSO
doras» (trocadilho de Mário) e pelos ataques de jornais, em particular
do «Jornal do Comércio», deo Paulo, dirigido então por Mario Guas-
tini. Evidente que Mario de Andrade foi «malhado» em diferentes
setores. O conservatorismo acomodadoo poderia toleraro espan-
tosa rebeldia.
Qualquer outro teria desanimado, ou pelo menos teria ficado dodói.
Não, Mário de Andrade. Porque Mario queria briga, polêmica, alarido,
barulhada, celeuma, assumindo uma posição de combate e também de
comando, será necessário dizê-lo -—, mas acabando por se impor à admi-
ração de muitos. E sempre discutindo, pelejando, estudando. Estu-
dando: traço raro. Raro, porque em geral no Brasil pouca gente gosta
de estudar a sério, e a fundo. O sujeito quer ser doutor de anel no
dedo sem frequentar universidades, e universidadeso nos faltam; quer
ser cantor, sem estudar canto; quer ser compositor, sem estudar teoria;
quer ser cientista, sem frequentar laboratórios; quer ser economista, sem
conhecer matemática superior.o as tais pressas para alcançar premios
em festivais de falsa erudição ou em competições atléticas de garganteio
barulhento. Ora, quem se der ao trabalho de analisar a obra de Mario
de Andrade verificará sem demora, primeiro, que além da sua exten-
são, apresenta extraordinária diversidade e impressionante profundidade,
E segundo, porque essa obra pode ser comparada, sei, a um tesouro
que surpreende por sua riqueza. «Macunaima», obra prima, de 1928,
o foi compreendido no seu tempo. Ainda hoje muita gente crescida
existe que até agorao entendeu o romance eo se certificou da
imensa riqueza da sua linguagem saborosa, engraçada, plebéia, desa-
busada, folclórica.
Mário de Andrade era um campeão do método. A biblioteca, que
ele organizou, representou o investimento de tudo quanto ganhou como
professor do Conservatório deo Paulo. Ademais, soube extrair o
mel dessa biblioteca por meio da organização de um fichário admirável.
Pois bem, estudando como um monge, Mário de Andrade encon-
trou tempo para escrever milhares de cartas, numerosos artigos e estudos
sérios, trabalhos vários da sua predileção, viajar pelo Nordeste e pela
Amazônia, colecionar importante documentação folclórica, publicar sua
obra, e exercer uma ação de renovação persuasiva. Ação de comando.
O renovador malazartesco sabia muito bem o que renovava. Seu
arado abria sulcos para a intensa sementeira que ele fazia com amor e
perseverança, acreditando no mérito da sua contribuição à interpreta-
ção da sensibilidade brasileira. Sua dedicação à cultura, sua impreg-
nação da problemática brasileira no sentido educacional amplo, autenti-
camente paideico, no sentido autenticamente estético, folclórico e cul-
tural, tudo isso empolga a nossa imaginação. Esse homem nervoso,
dinâmico e inquieto amava a Realidade brasileira, acreditava no Brasil.
Ele sabia renovar, porque sabia muito bem o que fazia. Por isso, muitos
e muitos o respeitavam e admiravam, posto muitas vezes dele houvessem
TEIXEIRA SOARES
dissentido publicamente como aconteceu comigo num bate-boca polémico
suscitado por um artigo meu publicado no «O Globo», «Modernismo
e Modernistas»/A Mario de Andrade», de 25 de janeiro de 1926.
Mário de Andrade foi o chefe de fila, foi o sistemático em seus
planos de ação. Por isso, ele criou com espantosa tenacidade e coragem
(não dissera Churchill que «the name of every virtue at its apex is cou-
rage»?), pedra a pedra, tijolo a tijolo, uma obra que só cresce à medida
que o tempo vai passando. Obra que se aceita com entusiasmo, e se
estuda com alegria; e digo: que se estuda com alegria, porqueo vem
contaminada por um pessimismo doentio e tampouco impregnada de
ufanismo. «Macunaima , «Amar, verbo intransitivo» e outras obras de
Mario de Andrade (como o estupendo «Noturno de Belo Horizonte»
ou a «Serra do Rola-Moça») distanciaram-se do seu tempo como pro-
jeções de um temperamento irônico, desabusado, engraçado, humorístico
e sentimental, obras muito diferentes de tanta coisa grave como o «Re-
trato do Brasil», de Paulo Prado. Mario de Andrade, se representava
o resultado de uma profunda e vasta cultura adquirida pelo estudo, era
também uma força expansiva da natureza impelida por fortes surtos de
entusiasmo criador.
3
No seu «The Poets Corner», Max Beerbohm tem aquela famosa
caricatura na qual a figura esguia e comprida de W. B. Yeats está
apresentando o lourinho e rechonchudo George Moore à Rainha das
Fadas. É uma caricatura notável, que fez época, pretendendo o seu
autor que era, ademais, um fino humorista, divertir-se à custa da magia
gaélica, mesmo que estivesse em jogo a figura de um grande poeta como
Yeats, ou estivesse na berlinda a personalidade de um romancista e
estilista como George Moore.
A magia irlandesa tem sua razão de ser. Contudo, distanciados
como estamos de 1922, ano da Semana de Arte Moderna, sentimos que
um elemento mágico anda pervagando agora através das causas e das
figuras que participaram daquela semana histórica (semana de três dias
apenas...), existindo certa preocupação crítica de se dar mais quilate
à obra de Fulano que à obra de Sicrano. Nesse ano de 1922, o Brasil
era um país agro-pastoril. O eixo econômico coincidia com o eixo cultural,
esse eixo era Rio-São Paulo. Sendo a capital do país, o Rio de
Janeiro criara um tropicalismo eloquente que predispunha a um comércio
cultural intenso com Vargas Vila, Abel Botelho, Hugo Wast, José
Ingenieros, Pitigrilli e outros gênios.
Ledo Ivo, no seu fino ensaio crítico, «Modernismo e Modernidade»,
publicado este ano pela Livrariao José, sustentou que o modernismo
MÁRIO DE ANDRADE: RENOVADOR PRODIGIOSO
de 1922 está morto; que depois veio o romance de 1930; e maia tarde
a geração de 1945. E diz Ledo Ivo:
«Como no romantismo, no parnasianismo, no realismo ou
no simbolismo, o Brasil, semaforicamente fiel à condição ociden-
tal de sua cultura, procurava atualizar-se e vivificar-se em
contato com as vanguardas europeias. Apesar das reiteradas
propugnações dos protagonistas ou comparsas da Semana de
Arte Moderna, de que em 1922 esse esforço de atualização
se fez de forma simultânea coincidindo o novo doméstico
e o nouveau de Paris, Roma ou Berlim as datas da erupção
do futurismo e do cubismo aí estão para acusar o atraso dos
vapores...»
Bem dito, atraso dos vapores. E veremos que existe verdade nessa
afirmação. Whitman levou 30 anos a chegar ao Brasil... Contudo,
o se pense que tivesse havido imobilismo cultural. A onda simbolista
trouxera Gonzaga Duque, Mario Pederneiras, Eduardo Guimarãens,
Álvaro Moreyra, Filipe d'Oliveira, Alphonsus de Guimarãens, Emiliano
Perneta e o grande Cruz e Souza.
A guerra de 1914-18 sacudira o mundo e suscitara várias teorias
estéticas. O mundo iria modificar-se de maneira surpreendente, tanto
sob o aspecto político, como econômico e cultural. A prédica e a cam-
panha de uns tantos precursores conseguira estabelecer uma ação reno-
vadora de profundidade, e esses precursores, a partir da fundação do
«Salão dos Independentes», de Paris, em 1884, seriam Renoir, Cezanne,
Gaugain, Van Gogh, Rodin; e na literatura Whitman, Yeats, Joyce. A
existência de um estado de «consciência infeliz» inaugurara tendências
estéticas como o futurismo, o cubismo, o dadaismo, o fauvismo, o
surrealismo. E depois vem a obra de Kafka. A agitação de ideias é
empolgante. A produção literária e filosófica é imensa em Paris, Londres,
Berlim, Roma e Nova York, queo as capitais do mundo através das
quais circulam as grandes correntes da liberdade de pensamento. Captar
a vida nas suas cenas rápidas e dar-lhes um verniz irônico ou humorístico,
para mostrar a importância do aparentemente insignificante, foi o pen-
samento de um T. S. Eliot. Um grande poeta norte-americano como
E. E. Cummings fez piadas nos seus poemas, para desespero de outro
grande poeta, mas totalmente diferente, como Robert Frost. Assinale-se
pois que muito rápido episódio efémero, muita anotação humorística
e fugidia na obra poética de um Mario de Andrade, de um Manuel
Bandeira e de um Carlos Drummond de Andrade poderiam ser definidos
como a importância do insignificante existente numa piada, desde que
captada com agudeza criacionista.
Nesse quadro desencontrado e tumultuoso, a partir de 1922 e à
medida que vai crescendo o prestígio de chefia e doutrinação de Mario
de Andrade, chegou este ao ponto de pretender criar uma língua brasi-
TEIXEIRA SOARES
leira. A prova disto se encontra na prosa saborosa, taquicárdica, folcló-
rica, populesca de «Macunaima». uma rapsódia de humorismo numa
linguagem maravilhosa. Mario de Andrade quis levar à balisa extrema
a desarticulação da língua portuguesa falada no Brasil, investindo duro
contra a gramática. Mas, conforme contou Cassiano Ricardo, no seu
livro «Viagem no Tempo e no Espaço», foi a influência portuguesa
de Manuel Bandeira e de Sousa da Silveira o fator que levou Mario
de Andrade a recuar de um propósito audacioso, mas artificial, como
seria o de se criar uma chamada língua brasileira.
O esforço voluntário de reformar e «popularizar», digamos assim,
a nossa línguao deve ser confundido com a anarquia gramatical, a
burrice do analfabeto ou com o barbarismo solecismista.
Mario de Andrade pretendia aprofundar suas perquisas (porque,
como todo o estudioso bem organizado, suas atividades culturais obede-
ciam a um planejamento de pesquisas). Aprofundando essas pesquisas,
Mario de Andrade pretendia criar por certo uma «maneira de escrever»
(apenas isto, eo uma língua original ou coisa parecida) que mais
se aproximasse do linguajar populesco eo se perdesse nos meandros
eruditos de uma gramaticação absorvente e infecunda.
Uma língua é organismo vivo. Organismo que se renova, se
dinamiza na criação de novas formas de dizer e de escrever. Nessa
renovação está, pois, sua verdadeira riqueza e está também sua vitalidade.
Mas, justamente por ser organismo vivo uma línguao pode renegar
suas fontes de ancestralidade. Mal comparando, uma língua é aquele
rio do aforismo de Heraclito. Por conseguinte, os verdadeiros escritores
o aqueles que trazem um «temperamento» na sua maneira de escrever
e de pensar, o que afinal vem a ser a velha noção de estilo com outra
roupagem.
Contudo, o que Mario de Andrade procurava implantar e sobre o
que doutrinava com bravura, eloquência e entusiasmo era que nos liber-
tássemos da imitação estrangeira (claro que da imitação francesa),
que nos dera uma quantidade enorme de maus romances urbanos; que
nos dera toneladas de poemas frios vazados numa linguagem castiça
mas quinhentista; ou composições musicais, imitando este ou aquele
compositor em voga em Paris, mas destituídas de qualquer parcela do
populário brasileiro.
Então, Mario de Andrade, que sempre fora contra a «arte desin-
teressada», se transformou no desbravador de um mundo de ideias
novas ou pelo menos pouco debatidas no Brasil; no tracejador de uma
quantidade de planos admiráveis; e no pesquisador de filões do nosso
folclore. Tudo isso tendia à criação de um nacionalismo literário, musical
e cultural. Este foi, por certo, um dos aspectos mais vivos da sua
campanha. Mas, se os poetas modernistas se insurgiram principalmente
contra a gramática, querendo negar-lhe direitos de existência (o que
se encontra na «Escrava que não é Isaura»), as preocupações de Mario
MÁRIO DE ANDRADE: RENOVADOR PRODIGIOSO
de Andradeo se limitarão ao relativismo de um campo dialético muito
precário, qual seja o da existência ou inexistência da gramática da língua,
ou de controvertida rentabilidade cultural. Mário de Andrade, em sua
escalada cultural, se transformará num extraordinário crítico musical,
ademais de maravilhoso intérprete do nosso folclore e da nossa música.
4
«Banjo, guitarra, maracá, violão, torocaná, quena, marimba
soam debaixo das tuas cajazeiras, dos teus coqueirais, dos
teus palteros, dos teus laranjais, das tuas cerejeiras, dos teus
magueyes, América!»
(Ronald de Carvalho, «Toda a América»)
É o que vai ser encontrado em vários livros, cada qual mais interes-
sante, mas em particular nesse soberbo «Ensaio sobre a Música Brasi-
leira», livro capitalo apenas na obra de conjunto do escritor, livro-
chave por assim dizer; mas também fundamental na nossa literatura
que represente realmente enriquecimento de pensamento crítico. Na
verdade, o «Ensaio», é desses livros criadores por excelência, porque
cada página é inovação, renovação, interpretação em conceituação nova.
Mario de Andrade devassou, desbravou um terreno pouco conhecido,
fazendo obra que suscitou, em Portugal, a do crítico musical e folclórico
inglês, Rodney Gallop, «Cantares do Povo Português.»
Mario de Andrade foi rijo ao coração das dificuldades e das
obscurezas geradas pela ignorância: «a música brasileira o que carece
em principal é do estudo e do amor dos seus músicos», •— uma das
afirmações corajosas de um livro que está repleto delas, porque a
preocupação básica do autor foi fazero apenas um processo de
enriquecimento cultural, estudando o que outroso estudaram, ou o
queo havia sido estudado; mas assinalar defeitos oriundos da falta
de cultura ou da ação da contra-cultura dos que sabem pouco ou nada
sabem, contra o esforço dos que criaram.
A história da música brasileira está na música popular. «O popu-
lário musical brasileiro é desconhecido até des mesmos»; «os
artistas duma raça indecisa se tornaram indecisos que nem ela»; «nós,
modernos, manifestamos dois defeitos grandes: bastante ignorância e
leviandade sistemática»; conceitos de Mario de Andrade.
Música brasileira, conceito jogado a esmo sem prevenção alguma,
pode vir a ser assunto fácil, mas pode também se transformar em coisa
muito difícil. E isto porque, desde logo, se procura fazer uma distinção
entre música erudita, e música popular. A música erudita brasileira foi
européia durante largo tempo, isto é, desde a época colonial até ao
começo deste século. E a música popular, coitadinha, por maltratada,
TEIXEIRA SOARES
desprezada e ignorada pela sofisticação de uns tantos, ficou à margem
como filha pobre e desprezada.
A conceituação racional do problema consistirá, pois, em descobrir
o que foi nativo, nacional ou nacionalista na música erudita, porque na
música popular a margem de falsificação é relativamente estreita, se por
acaso se procurar chegar às nascentes que possam explicar a música
popular. Então, será necessário assinalar o fenômeno muito curioso de
que o lundu, nascido do batuque africano, tenha saído do submundo
dos escravos para se transformar em canto ou canção e depois em
música de salão durante todo o Segundo Reinado da Monarquia.
Diferente foi o destino da modinha, que continuou marginalizada
pela ignorância de muitos, considerando-a plebeia num mundo de aris-
tocratas ou falsos aristocratas. Antônio Arroio, em suas «Notas sobre
Portugal»; afirmou com exatidão que «para mim, de todas as expressões
de uma nacionalidade qualquer, a canção é a que mais se prende à terra
e às condições naturais do meio físico, onde ela aparece, e do qual
procede imediatamente o seu caráter estrutural e expressivo». E ainda
há pouco, Bruno Kiefer, no número 7 desta revista, citava o conceito de
Mozart de Araújo vertido a respeito da Modinha: «Dizem que a
modinha morreu.. Elao morrerá porque jáo é mais uma canção,
mas um estado de alma. Ela está na própria essência emotiva da
nacionalidade».
Ora, Mario de Andrade resolveu reagir contra o peso do lugar-
comum e da afirmação fácil, tudo isso resultante da incultura quanto à
essencialidade da problemática brasileira.
O homemo era fácil; o homem era batalhador.
Que o diga o «Ensaio», onde sua severidade críticao está por
meias medidas, e onde o pesquisador entra em grutas misteriosas para
delas arrancar o precioso minério folclórico. Contudo, Mario de Andrade,
no seu desabusamento de linguagem, queo escandaliza, antes diverte,
comete algumas injustiças com certos nomes. Mas, por amor à verdade
Mário de Andrade assume atitudes corajosas como a contida nos con-
ceitos extraídos do «Ensaio»:
«Outro perigo tamanho como o exclusivismo é a unilate-
ralidade. Já escutei de artista nacional que a nossa música
tem de ser tirada dos indios. Outros embirrando com guarani
afirmam que a verdadeira música nacional é . . . a africana.
O mais engraçado é que o maior número manifesta antipatia
por Portugal. Na verdade a música portuguesa é ignorada
aqui. Conhecemos um atilho de pecinhas assim-assim e conhe-
cemos por demais o fado gelatinento de Coimbra. Nada a
gente sabe de Marcos Portugal, pouquíssimo de Rui Coelho
e nada do populário portuga, no entanto bem puro e bom.
MÁRIO DE ANDRADE: RENOVADOR PRODIGIOSO
Mas por ignorância ou não, qualquer reação contra Por-
tugal me parece perfeitamente boba.so temos que reagir
contra Portugal, temos é deo nos importarmos com ele.
o tem o mínimo desrespeito nesta frase minha. É uma
verificação de ordem estética. Se a manifestação brasileira
diverge da portuguesa muito que bem, se coincide, se é influên-
cia, a gente deve aceitar a coincidência e reconhecer a influên-
cia. A qual é eo podia deixar de ser enorme. E reagir
contra isso endeusando boróro ou bantu é cair num unilatera-
lismoo antibrasileiro como a lírica de Glauco Velasquez.
E aliás é pela ponte lusitana que a nossa musicalidade se
tradicionaliza e justifica na cultura europeia. Isso é um bem
vasto. É o que evita que a música brasileira se resuma à
curiosidade esporádica e exótica do tamelang javanês, do canto
axanti, e outros atrativos deliciosos mas passageiros de expo-
sição universal».
Lição oportuna, corajosa e reveladora de uma liberdade absoluta
quanto a rumos estéticos, existente na personalidade de Mário de
Andrade.
Aindao se escreveu o suficiente a respeito das conquistas e dos
fracassos do Movimento modernista de 1922. No entanto, é assunto
que valeria a pena ser estudado com objetividade e sinceridade. O
estudo revelaria muita coisa desconsertante. Assim, hojeo se discute
mais que do grupo deo Paulo, como aparelhamento intelectual ou
melhor cultural, Mário de Andrade, Cassiano Ricardo e Sérgio Milliet
houvessem sido aqueles que mais estivessem à la page com as correntes
modernistas da França, Inglaterra, Itália e Estado Unidos. Opinião
pessoal minha que talvez esteja pecando por omissão de outros nomes.
Como quer que seja, opinião pessoal.
Mas, também revelaria que de todos os integrantes do grupo de
o Paulo foi Mário de Andrade o que pesquisou abundantemente no
populário, fazendo ademais viagens ao Nordeste e à Amazônia, cole-
tando documentação original, e estabelecendo um estudo admirável a
respeito da problemática fundamental, as relações existentes entre
a música popular e a nossa língua falada, antes que escrita.
O que Mário de Andrade escavou, pesquisou, descobriu é de uma
riqueza incalculável. Através da «brumosa anarquia cultural em que
vivemos» (conceito de Mário de Andrade), eleo desanimou,o
se doeu com certas críticas injustas e muito pessoais e, quando afinal
diretor do Departamento de Cultura do Estado deo Paulo, trans-
formou em prática um plano derivado dos estudos que fizera com
paciência a respeito das relações íntimas entre a linguagem cantada e
a linguagem falada, lançando um Congresso da Língua Nacional Can-
tada, que no tempo despertou enorme interesse.
TEIXEIRA SOARES
Do excepcional José Maurício ao grande Vila-Lobos e através de
altos e baixos de uma intensa imitação italiana e francesa, Mário de
Andrade, no seu «Ensaio», abre caminhos novos na investigação do que
é música popular brasileira, anotando riquezas, assinalando variedades
formais, chamando a atenção para a diversidade de formas estróficas
com ou sem refrão do canto nacional.
Então, através das páginas desse livro vamos de surpresa em
surpresa, de riqueza em riqueza, de achado em achado, aprendendo,
vibrando, emocionando-nos. Particularmente sérios e objetivos os con-
ceitos que apresentou Mário de Andrade para defender a ideia de que
os nossos compositores deveriam insistir no coral «por causa do valor
social que ele pode ter». Repitamos conceitos de Mário de Andrade:
«A músicao adoça os caracteres, porém o coro gene-
raliza os sentimentos. A mesma doçura molenga, a mesma
garganta, a mesma malinconia, a mesma ferocia, a mesma
sexualidade peguenta, o mesmo choro de amor rege a criação
da música nacional de norte a sul. Carece que os sergipanos
se espantem na doçura de topar com um verso deles numa
toada gaúcha. Carece que a espanholada do baiano se confra-
ternize com a mesma baianada do goiano. E se a rapaziada
que feriram o assento no pastoreio perceberem que na Ronda
gaúcha, na toada de Mato Grosso, no aboio do Ceará, na
moda paulista, no desafio do Piauí, no coco norte-riograndense,
numa chula do Rio Branco, e até no maxixe carioca, e até
numa dança dramática do rio Madeira, lugar de mato e rio,
lugar queo tem gado, persiste a mesma obsessão nacional
pelo boi, pesiste o rito do gado fazendo do boi o bicho nacional
por excelência. .. É possível a gente sonhar que o canto em
comum pelo menos conforte uma verdade ques estamoso
enxergando pelo prazer amargoso de nos estragarmos pro
mundo».
Como explicar a ação extraordinária de pesquisador e ao mesmo
tempo de criador que Mário de Andrade desenvolveu a respeito da
interpretação do que é música brasileira? Ele mesmo, às páginas finais
do seu «Ensaio», nos dá uma explicação motivada:
«A nossa ignorância nos regionaliza ao bairro em que
vivemos. Nossa preguiça impede a formação de espíritos nacio-
nalmente cultos. Nossa paciência faz a gente aceitar esses
regionalismos e esses individualismos curtos. Nossa vaidade
impede a normalização de processos, formas, orientações. E
estamos embebedados pela cultura europeia, em vez de es-
clarecidos .
Máscara mortua-ia de Mário de Andrade
.«Esta é a Rua Lopes Chaves, 546,
outrora 108»
(Carlos Drummond de Andrade)
MÁRIO DE ANDRADE: RENOVADOR PRODIGIOSO
Os nossos defeitos por enquantoo maiores que as nossas
qualidades. Estou convencido de que o brasileiro é uma raça
admirável. Povo de imaginação fértil, inteligência razoável; de
muita suavidade e permanência no sentimento; povo alegre no
geral, amulegado pela malinconia tropical; gente boa humana,
gente do quarto-de-hóspede (Bertoni, «Anales Científicos Para-
guayos», serie III, nº 2, 4º de Antropologia, ed. «Ex Silvis»,
Puerto Bertoni, 1924); livro que devia ser cartiha pra brasileiro,
e de muita matutação quando fala na fusão das raças aqui;
povo dotado duma resistência prodigiosa que aguenta a terra
dura, o sol, os climas detestáveis que lhe couberam na fatali-
dade. Mas os defeitos da nossa gente, rapazes, alguns facil-
mente extirpáveis pela cultura e por uma reação de caráter que
o pode tardar mais, nossos defeitos impedem que as nossas
qualidades se manifestem com eficiência. Por isso que o Brasi-
leiro é por enquanto um povo de qualidades episódicas e de
defeitos permanentes».
Esta análise severa, de 1928, ainda está de?o conseguimos
realizar alguma coisa que nos tenha libertado do analfabetismo, da
ignorância, da superstiçãoo apenas das macumbas e dos bruxedos
variados tanto dos campos como das cidades, mas da superstição pelos
lugares-comuns, pelas chamadas opiniões consagradas nas famosas
trocas de ideias, da tirania imposta pelas fórmulas fáceis da preguiça
intelectual? A análise de Mário de Andrade escancara aos nossos olhos
a imensidade da tarefa queo apenas o Governo Federal do Brasil tem
de fazer no campo da educação primária, secundária e superior; mas da
parcela ativa que cabe aos educadores, professores, escritores, compo-
sitores, artistas e de quaisquer obreiros intelectuais mesmo de nível
modesto, mas animados pelo entusiasmo de estabelecerem a verdadeira
independência cultural do Brasil. Mario de Andrade foi homem de
ação. Ele mesmo o disse: «Todos os meus trabalhos jamaiso foram
vistos com visão exata porque toda a gente se esforça em ver em mim
um artista.o sou. A minha obra desde «Paulicea Desvairada» é uma
obra interessada, uma obra de ação. Certos problemas que discuto aqui
me foram sugeridos por artistas que debatiam-se neles» («Ensaio», às
págs. 73) .
Mas, que imensa, valiosa e admirável contribuição desinteressada
o prestou Mário de Andrade com sua ação renovadora? Sua vida foi
uma das vidas mais belas que possam existir em nossa Terra, vida de
heroísmo, de trabalho, de sacrifício sorridente. Quando a casa da rua
Lopes Chaves nº 546 perdeu o calor humano, a presença estelar de
Mário de Andrade transferiu-se à vida intelectual do Brasil inteiro.
Kafka escrevera certa vez: «Kierkegaard e eu pertencemos à mesma
metade do mundo». Também a essa metade do mundo pertenceu Mário
de Andrade. Mas, que sua mensagem alente, entusiasme, exalte a gente
jovem do Brasil a seguir os caminhos traçados e abertos por ele, alar-
gando-os com novas pesquisas, novas investigações, novos estudos para
que tenhamos música popular perfeitamente valorizada e para que a
nossa Cultura (no dia em que de fato a tivermos) nos dê a liberdade
espiritual que tanto desejamos e que seja afirmação de espírito sobera-
neizado diante dos países mais cultos do mundo. O que ficamos devendo
a Mário de Andrade já começou a ser inventariado, mas a dívida
continuará imensa.
4 Mitos Literários
ADONIAS FILHO
E
a partir da fase vernacular que a ficção em prosa se afirma em
torno da estruturação nacional. William Boyd já observara, ao
estudar a educação humanista, que surge uma literatura, em arti-
culação com o sentimento nacional, nas línguas admitidas como vulgares
e incapazes de uso literário. A valorização dessas línguas, com o sacri-
fício do latim, foi a primeira resultante do condicionamento da ficção à
estruturação nacional. Nele incorporando as determinantes culturais
gerais — o imenso lastro que, e desde Homero, prossegue na tragédia
grega, no teatro latino, no drama litúrgico medieval com repercussão na
movimentação poética, no pensamento filosófico, no comportamento reli-
gioso, aceitando as novas fixações literárias decorrentes dessa incor-
poração, a ficção emerge com o caráter nacional: é italiana, é francesa,
é inglesa. E por isso mesmoo há uma nação, no sentido moderno,
queo a apresente. E quando a estruturação nacional se consolida, com
os produtos culturais definidos, a ficção também se nacionaliza.,
naturalmente, e consequência da aculturação queo altera a perso-
nalidade nacional, ciclos de influência.
o será difícil verificar esses ciclos de influência, em plena gra-
vitação, através da literatura comparada. Destacar-se-á, dentre esses
ciclos, em um período queo podia sequer se pressentir a ficção russa
e a ficção nórdica, o espanhol como o de maior difusão. E há uma
excelente explicação para isso.
As determinantes culturais, que se incorporam à configuração do
caráter nacional,o realmente excepcionais. E, da ocupação romana
79
ADONIAS FILHO
à invasão árabe, os elementos que se integramo decisivos para con-
formar o ciclo. Catapulta intelectual, a área espanhola permitirá, através
dos árabes, a recuperação da tradição filosófica grega. As combinações
das mais opostas determinantes culturais fenícias e cartaginesas,
gregas e romanas, góticas e árabes, engendrando novas fixações
culturais com o mais importante reflexo na língua literária, possibilitam
o clima ficcional que se manifesta ainda na Idade Média.
O fundo histórico favorece a ficção. A matéria ficcional, conse-
quência desse fundo histórico, atua a fermentar as constantes e, prin-
cipalmente, os mitos literários. E tanto esta a verdade que, no passado
recente prenhe de guerras, a memória e a imaginação populares conser-
vam e recriam os heróis e suas aventuras. A canção de gesta, ao surgir,
o pode evitar as matrizes culturais e, se a Chanson de Roland pertence
a determinantes culturais que nascem do espírito cruzado, o Poema de
Mio Cid emerge dos produtos culturais que compõem a alma espanhola.
Obsevemos o longo processo que percorre :
a) a lenda que se transporta da crônima animada para
a canção de gesta;
b) da canção de gesta para os romances velhos;
c) dos romances velhos para a forma literária erudita.
O herói medieval, convertido em figura literária que reflete os pro-
dutos culturais de uma nação, consolidará o ciclo de influência da ficção
espanhola. Abre-se com ele o sub-ciclo da cavalaria que se esgotava,
afirma Sainte-Beuve, no Don Quipote, de Cervantes. E com ele, enquan-
to prepara a novelística picaresca e o drama do «siglo de oro», força a
influência através do nascimento, com Corneille, da própria tragédia clás-
sica francesa. Corneille, porém, é uma consequência. O teatro francês
aindao descera ao povo. Alexandre Hardy, ao criar esse teatro de
fundo popular e René Doumic observa importa a literatura dramá-
tica espanhola. E Corneille, dentre as peças, prefere o Cid, de Guillen
de Castro. O texto espanhol renascerá em língua francesa, em novo
tratamento, preso a uma concepção de tragédia que o próprio Corneille
justificará, mas, quando sai do Théatre de Marais para impor-se como
a primeira peça de arte clássica francesa, o queo se pode ocultar é a
presença dos produtos culturais espanhóis.
O ciclo de influência espanhola, porém,o se restringiria ao teatro.
Atingiria sobretudo a novelística. É espanhol o primeiro romance euro-
peu, La Celestina, de Fernando de Rojas. Antecedendo de três séculos
o romance inglês do século XV o romance de Fernando de Rojas e
do século XVIII os romances de Daniel Defoe e de Samuel Richardson
, antecede Rabelais em mais de meio século. Servirá de tema, quando
os Interludes e as traduções das peças de Sêneca, no século XVI, fer-
mentam o clima que engendrará a tragédia elizabetana, a um dos pre-
cursores: Henry Midwall, sua peça adotando como título os próprios
nomes das personagens de Fernando de Rojas.
4 MITOS LITERÁRIOS
E convém que lembremos, com oportunidade, que o primeiro trágico
elizabetano Thomas Ky, e cuja influência sobre Shakespeare já
o pode ser contestada, denominou a sua principal peça de The Spanish
Tragedy. O romance espanhol, pois que encontra em Cervantes o
ponto alto, e destinado a enriquecero apenas a ficção com os «libros
de caballeria», tinha nos produtos culturais a razão mesma de ser de
sua expansão, irardiação e influência. Extravazam-se, esses produtos
culturais que estabelecem o caráter nacional e geram a matéria ficcional,
extravazam-se através dos três sub-ciclos novelísticos
de cavalaria
picaresco
pastoral
Para, entrosados no teatro que emerge do gênio nativo com Lope
de Vega, Tirso de Molina, Calderón de la Barca, interferirem na
ficção européia, impondo traços que se convertem em constantes literárias
gerais absorvidas pelo mundo ocidental. E, precisamente porque extraem
a temática das crônicas nativas e dos «romances», os ficcionistas expres-
sam em mitos aquelas constantes literárias. Três desses mitoso podem
sofrer controvérsias:
Cid
Don Quijote
Don Juan
É dessa argamassa que a ficção ocidental se aproveitará para en-
riquecer-se e tamanha a penetração que, ao reestruturar-se o romance no
século XVIII quando adquire o comportamento técnico que prevale-
cerá até o começo do nosso século, utiliza o chão espanhol como
alicerce. O arquétipo desse novo romance, que caracterizará a novelística
posterior (a partir de Goethe, na Alemanha; de Manzoni, na Itália; de
Richardson, na Inglaterra; de Puchkin, na Rússia; de Camilo Castelo
Branco, em Portugal) é Gil Blas, de Le Sage. O romance picaresco,
que Le Sage disciplina eliminando o grotesto e anulando a desordem no
processo narrativo,o perde em Gil Blas os elementos de origem. O
gênio de Le Sage, que ainda sustenta o clima espanhol em suas peças
para o Théatre de la Foire, adapta o pícaro ao complexo cultural francês.
Mas, apesar da adaptação que provoca todos os desencontros, já expos-
tos por Jean Cassou, incontestável é a presença da base espanhola no
romance ocidental dos séculos XVIII e XIX.
O ciclo espanhol de influência ficiconal, como vimos, identifica-se
às manifestações resultantes do caráter nacional. Os produtos culturais
se projetam no território poético com o gongorismo; na vocação mística
com Santa Teresa de Ávila,o João da Cruz e Santo Inácio de Loiola;
na pintura com Velasquez, Murilo e Goia. Os traços culturais decorren-
ADONIAS FILHO
tes, transformando-se em determinantes no sentido da influência sobre
os produtos culturais de outras nações,o aceitos inclusive pela
ficção portuguesa. O contato, nas aproximações e nas relações entre
espanhóis e portugueses, esclarece como é poderosa a característica na-
cional na criação literária.
A manifestação literária, sobretudo a ficção em prosa com base na
novelística e na dramaturgia, resulta dessa configuração nacional através
dos valores culturais. E, por isso mesmo, os grandes Impérios, a partir
de Carlos Magno,o conseguiram criar uma literatura.o houve,
por exemplo, uma ficção bizantina. O Império de Carlos Vo pôde
eliminar ou superar a ficção nacional em pleno desenvolvimento.o
houve também, em outro exemplo, uma literatura napoleônica. Prova-se,
em consequência, a impossibilidade de qualquer surto literário, sobretudo
ficcional, fora da caracterização nacional através dos produtos culturais.
Torna-se indispensável observar, pois, que coincide com a estrutura-
ção das nacionalidades, o advento da novelística. As primeiras reali-
zações ficcionaism as raízes imediatas nos valores nacionais definidos.
E vale observar também como a tragédia clássica, reflexo dos produtos
culturais gregos, reaparece apenas quando as nações européias estão
juridicamente organizadas. O Estado medieval, com base no feudalis-
mo, e porqueo dispunha de condições que assegurassem o caráter
nacional,o pôde revivê-la. Foi a personalidade nacional, na compo-
sição dos produtos culturais território, religião, língua, história, povo,
religião, costumes, folclore que impôs, além das instituições políticas,
também as características para a ficção.
Um bom exemplo, a demonstrar o condicionamento da ficção à per-
sonalidade nacional,s o temos no monobloco cultural ibérico. A in-
tegração luso-espanhola, a começar com os portugueses que escrevem
em castelhano, é indiscutível. Mas, no fundo do intercâmbio, que se
abranda e desfaz à proporção em que os produtos culturais adquirem
resistência e impõe a autonomia nacional, os traços ibéricos se projetam
de modo inconfundível. A duração do intercâmbio, do século XII ao
século XVII, esclarece flagrantemente a unidade cultural. Teófilo Braga
a levanta em alguns aspectos: o Amadis de Gaula e a Diana, de Jorge
de Montemor. Dar-se-á no círculo ficcional uma espécie de transfusão
literária.
Mas, se o Cid corresponde a uma saga espanhola, o Amadis cor-
responde a uma saga portuguesa. Perceber-se-á a força da transfusão,
porém, no originalmente castelhano Palmeirim de Inglaterra. Somados
os elementos que os integram o Cid, o Amadis e o Palmeirimo
será difícil apreender os produtos culturais ibéricos. Esses três caminhos
finalmente se fundem com maior rigor literário e maior caracterização
espanhola no Quijote, de Cervantes. O sangue é de tal modo o mesmo
que o romance pastoral, nascendo do português Montemor que escreve
4 MITOS LITERÁRIOS
Diana em castelhano, se converte em uma das determinantes espanholas
que influem na ficção. É no teatro, porém, dentro do círculo ficcional,
que a transfusão literária se amplia.
A novelísticao tarda em isolar-se e, tangida pelos produtos cul-
turais, definitivamente se caracteriza portuguesa ou espanhola. No-
culo XIX esse isolamento já é completo e extrema a caracterização: in-
confundíveis os traços espanhóis, por exemplo, em Juan Valear, como
no português Camilo Castelo Branco. Mas, se a novelística pôde fun-
dir-se na origem como resultante do comportamento ibérico, o teatro a
acompanha em transfusão muito mais intensiva. Aceitando o auto me-
dieval, transforma-o ao transmitir certa ossatura dramática e enorme
tessitura lírica. É nessa forma que Juan del Ensina o apanha e, revi-
gorando-o com a egloga latina, configura-o como um drama lírico. É
uma típica determinante espanhola quando Gil Vicente o aceita e o
transfigura no auto vicentino de característica definidamente portuguesa.
Transfigurando-o, porém, e à proporção em que abandona a língua
espanhola para o escrever em português, nele incorporados os produtos
culturais do seu país, Gil Vicente o devolve como matriz que ins-
pirando inclusive Camões vai interferir no teatro espanhol através de
Lope de Vega e Calderon. A verdade é que, criada a matriz ibérica,
que se opõe à comédia clássica estabelecida por Sá de Miranda, essa
documenta a transfusão à sombra dos continuadores de Gil Vicente que
o indistintamente portugueses e espanhóis: Tirso de Molina e Ri-
beiro Chiado, Guevara e Jerônimo Ribeiro.
o se pode discutir, em consequência, que vem de suas fundações
literárias, engendradas pelos produtos culturais que respondem pelo com-
plexo cultural nacional, a universalização da própria humanidade espa-
nhola. E nada melhor a define que os mitos os mitos literários,
em verdade símbolos vivos e caracterizados do homem na condição eterna
das grandes paixões.
II
A matriz poderosa, que é a Espanha,o teria produzido esses
mitos os mitos literários sem aquela base ficcionalo rigorosamen-
te articulada dentro do complexo cultural ibérico. A expansão da temá-
tica espanhola, se a quisermos compreender, encontrará aí a decifração.
Essa temática, origem imediata dos mitos, e porque reprojeta o comple-
xo cultural na ficção através do poder inventivo, situa a literatura es-
panhola como uma das fontes da novelística e da dramaturgia no círculo
ocidental. O ciclo de influência, historicamente comprovado, como
vimos, é decisivo.
Mas, se a base ficcional permite que os produtos culturais impregnem
o romance espanhol de cavalaria, picaresco, pastoral — e trasladem
as constantes temáticas para o teatro inglês elizabetano e a dramaturgia
ADONIAS FILHO
clássica francesa,o pode subsistir dúvida que nela os mitos encon-
tram a semente, o solo e o adubo. A realidade, observa John Lawlor,
melhor se revela através dos mitos e dos símbolos. É o que prova a base
ficcional espanhola, sua espantosa efervescência, as crônicas nativas e
os «romances velhos» levando os ficcionistas a mitos que se universali-
zaram porque neles se prenderam valores humanos absolutos como a
coragem, o amor e o sonho. Eo precisamente os três mitos queo
sofrerão controvérsias.
Cid
Don Quijote
Don Juan Tenório.
O fundo coletivo escora o Cid, herói medieval espanhol, a aparição
humana superando sua própria aventura. Abrindo o ciclo da cavalaria,
que Don Quijote fechará, surge do cancioneiro popular, oral e anónimo
no desdobramento de uma epopeia que se inicia no século XI. O con-
teúdo simbólico éo poderoso - a coragem e a lealdade encarnadas
na personagem de destinação teatral que, adquirindo conformação
poemática e se convertendo em «romance viejo»,o interrompe a car-
reira na tragédia clássica de Corneille. Permanece hoje, com o cinema,
após nove séculos, sem perder a significação humana, apesar de todas
as mudanças sociais. Em sua caracterização, que Menendez Pidal ergueu
à sombra da memória e da imaginação populares autêntico «folkepic»
anónimo, o que se vincula é a alma espanhola aos valores permanen-
tes do homem.
E precisamente por isso, ao atingir a literatura erudita, já no drama
de Guillen de Castro, e como se preparasse a novelística picaresca e a
dramaturgia do «siglo de oro», o mito se irradia de maneira definitiva.
o importa, agora como personagem de Corneille, certa deformação.
Importa o que reflete, a carga simbólica sempre atual, a duração perma-
nente enquanto nele o Cid reencontramos o ideal para a nossa
coragem.
Mas, se o Cid representa o primeiro grande mito espanhol ainda
na saga medieval, consequência do ciclo da cavalaria, Don Quijoteo
o ultrapassa porque se individualiza em área própria. Embaixo, con-
formando-o psicologicamente, está a Espanha. É o passado inteiro, com
um povo em sua complexidade histórica, que explica em Cervantes a
criação do mito. Saindo do livro que funde o gênio cervantino com
o «genius» espanhol, magro e enxuto para todos os tempos, Don
Quijote perde a condição de personagem porque adquire configuração
extrema e ilimitada.
O lado espanhol, que Gerald Brenan define parcialmente como
visionário, agressivo e fanático, se obscurece ao refletir a realidade hu-
mana em seus valores interiores. O personagem aciona o mito, pode
marcar criaturas e a humanidade, o estado de loucura como chave para
4 MITOS LITERÁRIOS
um dos mistérios do homem no mundo. Seria fatal que se ampliasse,
ganhando espaço, convertendo-se em imagem de cada homem em todas
as idades.
A contribuição espanhola, porém,o estaria completa sem que
outro mito,o poderoso quanto Cid e Don Quijote, se animasse cul-
turalmente a determinar um dos mais definitivos e eternos sentimentos
do homem: o amor. As raízes estão nos trovadores medievais, na ficção
sensibilista com exemplo em Carcel de Amor, de Diego de San Pedro,
inundando a literatura espanhola como a esperar o grande intérprete.
O mito já é popular quando Tirso de Molina responsável como Lope
de Vega pela criação da dramaturgia espanhola o configura litera-
riamente em El Burlador de Sevilha. Esse herói hipertrofiar-se-ia de tal
maneira que será impossível admitir um Don Juan exclusivo. Seu caráter,
embora transparente na matriz espanhola, altera-se pela idealização dos
ficcionistas que o tomam como extraordinária matéria humana. É um,
por exemplo, em Molina. Outro em Moliére que, na estrutura psicológi-
ca, condiciona-o a comportamento menos rígido. E ainda outro, agora
com expressão romântica, em Zorilla. O mito, porém, é o mesmo e,
porque uma resultante das determinantes culturais espanholas,o po-
deroso quanto Cid e Don Quijote.
O interesse crítico e a pesquisa erudita, no ensaismo filosófico e
psicológico, respondem pela expansão desses três mitos de Espanha que
interferem em todas as literaturas. Em sua irradiação, porém, con-
vertidos em símboloso permanentes que dispõem de duração históri-
ca, temos que registrar os veículos responsáveis pela configuração e a
presença. Nascidos do povo espanhol, gerados pelas determinantes cul-
turais,o conseguiriam o estado de mitos sem a ficção na epopeia,
no romance de cavalaria, no drama teatral que acabou por criá-los
como figuras acima dos tempos e dos espaços.
III
Mas, se os três mitos literários espanhóis refletem valores humanos
eternos de realidades sociais ultrapassadas, concretizando mesmo deter-
minantes culturais históricas c todas com raízes medievais, o grande
mito literário moderno resultaria da sociedade industrial e urbana con-
temporânea .o há outro mito moderno, e por isso mesmo que o
supere em irradiação. Americano, agorao universal quanto os espa-
nhóis, eis o
mito de Tarzan.
Nascido da novelística de aventura, como personagem bastando
para imortalizar Edgard Rice Burroughs, sua expansão se explica em
relação à sociedade contemporânea. É no extremo a consequência ime-
diata de uma civilização como a nossa. Dir-se-ia que os grandes adver-
sários da cidade de David Henry Thoreau a Antoine de Saint-Exupe-
ry se concentraram na base de todos os argumentos e teses para, em
ADONIAS FILHO
perspectiva psicológica exata, erguer o herói da selva. Reagindo a essa
civilização, que alterou a vida humana em seu próprio comportamento,
o mito de Tarzan se afirma como uma imposição das leis da natureza.
E por isso mesmo sempre estranhei que, estudando a nossa «urbanized
society», os sociólogos e os psicólogos como um Lewis Mumford, um
Elmer Peterson, um R. D. McKenzie o ignorassem eo o vissem
como um protesto dos mais orgânicos valores humanos.
Um mito que universalmente repercute na sensibilidade infantil ou
adolescente, que o impôs a veículos modernos como o cinema e a te-
levisão, sempre estranhei ainda que o desprezassem os psicólogos sociais
e os pedagogos. Mas, em sua identificação com as reações infantis
comprovada pela aceitação universal que denuncia sua importância edu-
cacional, sua significação social e sua penetração humana, ao tempo
em que se mostrava com uma força incontida que irrompia violentamen-
te, refletia um lado inteiro da moderna organização social. Era como
se viesse para proclamar que, fosse possível uma organização social
perfeita, e as cidades, ao invés de humildes jardins, teriam seus espaços
de selva.
o é improvável que esteja na falta de mato a aspereza que ca-
racteriza a vida moderna e a prudência que se aproxima da covardia.
É possível que venha daí a grande pobreza de humanidade no homem.
A insensibilidade do cimento atinge os seus nervos e o asfalto penetra no
sangue. Quase um ser miserável esse queo quebrou arbustos com as
mãos eo sentiu a terra nua nos pés. O maior crime da cidade, dentre
tantos que se fez responsável, é o de negar à criança o ambiente que
sua natureza exige. O mito de Tarzan, sua assombrosa expansão, talvez
seja uma consequência desse crime. A criança poderá ver na selva, em
verdade, o paraíso perdido.
Inevitável, pois, e como decorrência da civilização urbana, o mito
do herói da selva. Saindo dos livros que o configuraram como perso-
nagem de ficção, e transfigurando-se nas imaginações de milhões de
crianças enclausuradas entre edifícios de vidro e ferro, Tarzan conver-
teu-se em figura mitológica que supera o próprio herói literário à sombra
dos valores necessários.o estará distante dele, mesmo como reproje-
ção romântica, aquele rousseaunianismo que revela a bondade como traço
natural do homem. Em seus componentes, a serem extraídos na tessitu-
ra episódica e na ação novelística, as linhas marcanteso decisivas. É
ingênuo, é forte, é leal. E, em um tempo em que os homenso mais
cruéis que as feras, é o único a provar que as feraso menos animais
que os homens. A vida que leva, sendo ele próprio uma parte da natu-
reza bravia, retira a criança da mais triste das realidades: a cidade, pre-
cisamente a cidade que, ao contrário da selva,o nasceu dentre as mãos
de Deus, mas foi construída pelo homem.
No milagre que submerge em si mesma, nesse poder de reinventar
as coisas e alterar a ordem da vida e a lógica do mundo, a criançao
4 MITOS LITERÁRIOS
conseguiu adaptar-se à cidade. E, se seus músculos repelem a disciplina
do trânsito, apagam-se seus olhos na ausência de paisagens.o será
por outro motivo que, apesar de tantos esforços,o pôde vingar se
nasceu — o herói infantil da cidade. O pequeno prisioneiro, em sua
reivindicação de liberdade,o encontraria o mito entre os fantasmas
urbanos. E isso porque o mito, capaz de participar do seu sangue e de
sua alma, exige a falta de caminhos, precisamente a selva a oferecer
nos perigos a oportunidade da coragem, da força e da luta. Tarzan é o
mito, na base desse instinto que repele a sociedade urbanizada, porque
nele se encarna a liberdade queo depende de códigos para a vigên-
cia do respeito em comum.
Escolhendo-o, a esse herói que tem muito de Robinson Crusoé em
sua solidão, as criançaso se deixaram seduzir tão-somente pela aven-
tura. A aventura, afinal,o falta aos heróis infantis urbanos. Nessa
aventura, porém, o que falta é a ambiência que Edgard Rice Burroughs
foi buscar na selva como traduzindo toda uma filosofia existencial: a
lição de Thoreau, se a estudarmos nas últimas consequências, subsiste
como ilustração ao mito de Tarzan. Todas suas qualidades positivas
como a coragem a serviço da justiça e a força a serviço dos fracos
seriam eliminadas fora da selva, corrompendo-se irremediavelmente
no herói os maiores valores humanos do mito.
Mas, nesse mito que revaloriza a natureza numa espécie de di-
mensão edênica, o que espanta é ter nascido como uma consequência da
própria sociedade urbanizada. Mais que um protesto a denunciar que a
civilização tecnológica vai matando a humanidade no homem, é um aviso
certo para uma vida certa. Um paradoxo inteiro, em verdade, ganha
corpo em sua presença: o mito gerado pela sociedade urbanizada, ao
invés de exaltá-la como aquele Cid medieval encarnando os valores do
seu tempo ou aquele Quijote possuindo todas as virtudes de sua época,
é um mito que a ela se opõe em tudo que representa como reprojeção
humana. Adotando-o, forçada a adotá-lo pela pressão da sensibilidade
de suas crianças, pôde a sociedade urbanizada reconhecer que a vida au-
têntica e naturalo se encontra dentro de suas portas. Tarzan a con-
traria, polegada a polegada, em sua completa configuração psicológica.
O único mito da sociedade urbanizada existe, pois, para denunciá-la
e agredi-la numa espécie de autopunição. O grande herói de suas crian-
ças, apesar de todos os progressos, ainda é um selvagem. E isso, con-
venhamos, é muito grave. Mas, se a verdade subsiste no próprio pa-
radoxo, a gravidadeo decorre da opção entre Tarzan e a cidade.
Resulta da censura que nele se reflete ao acusar a sociedade urbana
como túmulo das raízes da vida. Aceitando o mito, ampliando-o pela
imaginação, é contra esse cemitério que a criança reage. Seu corpo in-
teiro nervos e instintos, mãos e ossos protesta contra o exílio e o
enclausuramento nas ruas., nesse encontro com Tarzan, muito mais
que a simples necessidade da natureza porque é a liberdade sempre
ADONIAS FILHO
nascida com o homem que nele as crianças descobrem como a melhor
parte dele próprio. E, para as crianças, forte e leal, Tarzan é o homem
livre.
O mito, como se verifica, é poderoso. E tanto mais poderoso quan-
to, correspondendo às exigências da criança, se perpetua na mudança
das gerações. Ele reflete o que falta, o lado bom e selvagem da vida
que a cidade foi incapaz de manter. Talvezo seja por acaso que
Tarzan, sendo um mito americano e por isso mesmo um mito jovem
, se tornou universal pela infância e a adolescência que, situando-o
como o mais recente dos mitos literários,o ignorou os elementos moços
que o caracterizam.
Os elementos jovens que o caracterizam, quer a origem americana
ou quer o herói em sua figura atlética, congregam-se na valorização
mesma da mocidade. E tudo o mais que se possa dizer é que a aventu-
ra, o perigo e a força de um lado e do outro a justiça, a lealdade e a
bondade provam que, no encontro da adolescência com o seu mito, há
esperança para o mundo.
Cassiano Ricardo e os Sobreviventes
EURYALO CANNABRAVA
E
M Os Sobreviventes predomina o metalirismo comprimido em
palavras-átomos que atuam como estilhaços dispersos antes
de atingir o alvo. O poeta apreende a palavra desintegrada
de seu contexto normal, encaixa-a no linossigno a golpes de martelo,
fluidifica-a e imanta-a nos circuitos do poema como sangue nas veias.
Depois entrega-se a manipulações lúcidas, com os vocábulos, distenden-
do-os para comprovar a sua elasticidade.
Afina-os até o ponto da ruptura no contexto verbal, imprimindo-
lhes tensão conotativa que exprime adestramento para a tarefa de sa-
turação do texto poético com ingredientes rítmicos de pulsações sinco-
padas. As palavraso comprimidas, espichadas, sofrendo toda sorte
de rupturas internas e de desvios semânticos. Essas rupturas e desvios
o comandadas por um operador que os ordena de acordo com uma
«escala de poeticidade». O outro operador, construído como algoritmo
de decisão determina, em cada linossigno, o coeficiente de efetividade
poética que ele contém.
Cada linossigno explicita uma unidade estrutural que integra pa-
lavras como sub-unidades expressivas, galvanizadas pelo ostinato ri-
gore. A escala de poeticidade portanto constrói-se, no contexto uni-
tário do linossigno, pela impregnação das sub-unidades vocabulares
por um coeficiente efetivo de expressividade estética. Esta expressi-
vidade resulta da galvanização, no linossigno, da estrutura formal pela
arquitetônica estilística.
EURYALO CANNABRAVA
A galvanização do texto poético pelo estido resulta em escala de
modulações rítmicas, forjadas pelo agoritmo de decisão que determina
o surto de estruturas na base de regularidades do efeito poético. As re-
gularidades, poeticamente expressivas,o captadas pela análise que
as transforma em regras estilísticas de composição. O regular, por-
tanto, na estilística poética, resolve-se nas posições anormais e impre-
vistas das palavras no texto do linossigno. A observação das regu-
laridades nos linossignos de Os Sobreviventes arma a suspeita de que
o seu caráter reiterativo tenha qualquer coisa de estruturalmente inva-
riante .
Esta invariância estrutural do linossigno, emborao formal-
mente necessária, projeta-se no domínio das modulações rítmicas. No
último livro de Cassiano, os poemas se acrisolam no texto de mensa-
gens codificadas, com entropia-variedade levada até o ponto de satu-
ração metalírica. O metalirismo em Cassiano diversifica-se na «enu-
meração caótica», nos traços duros do real cotidiano, no fato simples,
na ocorrência do dia-a-dia, transfigurados pela carga energética das
imagens.
As imagens, impregnadas de sensorialidade, de inspecção sensí-
vel, de nexos ideativos, de apelos patéticos, embora serenos como su-
mários de culpa, em que os crimes e as fraudeso registrados em tom
implacável de relatório vivo. Cassiano escalpela, cirurgião metalí-
rico, a Idade Megatecnológica,e a descoberto os circuitos eletróni-
cos, os Capacitores, as válvulas termo-iônicas, os sistemas cibernéticos.
os códigos herméticos, os cérebros transistorizados, as ciências futuroló-
gicas.
Os linossignos de Cassiano, com antenas vibráteis como nervos
tensos, captam ondas hertzianas, raios cósmicos no impacto com a atmos-
fera, gerando a bola de fogo. Mas o que interessa ao criador meta-
líricoo Os Sobreviventes, os que carregam nos ombros o peso dos
direitos do homem, trazendo no rosto o estigma dos que nascem escra-
vos. Os linossignos fotografam a realidade crua, transformada em
dialeto metalírico, em evasão no contraponto verbal, na polifonia das
associações vocabulares, moduladas pela expansão da forma, interioriza-
da em ritmo. As palavraso dissociadas em sub-unidades, em par-
tículas sub-atômicas, em fragmentos crispantes de carne viva, exposta
à poeira e ao sol:
"Mulheres, cães,
crianças,
homens cuja roupa
é o sol, a chuva,
o interrogados
um
por
um
em crucial jejum."
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
Reparem a geometrização do espaço poético, distribuído em unida-
des comunicativas, codificadas em estruturas simbólicas, onde se inte-
gra a posição das palavras. As palavras, emborao sejam dicio-
narizadas, dada a sua irredutível margem de indeterminação, cons-
troem, no espaço poético, níveis de estruturas que projetam escalas de
expressividade metalírica.
A expressividade metalírica, que se converte em escala de poeti-
cidade, estabelece relação funcional entre as expressões da linguagem
poética e as estruturas correspondentes à posição anormal das pala-
vras. A estrutura formal do linossigno, nos poemas de Os Sobrevi-
ventes explicita certas regras de composição que torna regulares e
previsíveis as interpolações das palavras nos textos metalíricos. A
essas interpolações, que lembram o teorema de Craig no espaço abs-
trato das sequências matemáticas, corresponde um conceito de valor
na escala de poeticidade. O problema coloca-se da maneira seguinte:
os linossignos na poética metalírica distribuem-se na página em branco
de acordo com o sistema de preferências, subtendido por certo algoritmo
de decisão. Este algoritmo de decisão mobiliza todos os recursos da
linguagem poética, submetendo-a a critérios seletivos diante do con-
junto de alternativas ocorrentes.
O que se verifica, nos poemas de Os Sobreviventes, reduz-se à
transformação gradativa do algoritmo de decisão em agoritmo heurís-
tico que passa a atuar no domínio da criatividade pura. É o que se
observa nos arraiais da matemática abstraía, em que soluções algorít-
micas, baseadas nos métodos do Cálculo, foram postergadas em virtude
da indecidibilidade de sistemas e teorias matemáticas relevantes.
Esta situação implantou, no centro e cerne dos fundamentos ma-
temáticos, o Algoritmo de Decisão Heurística que capta processos de
criatividade pura. Evolução paralela, guardadas as devidas propor-
ções, se verificou na estimativa dos graus de esteticidade, convertidos
sem deixar resíduos em escala de valores para a técnica dos juízos
críticos.
A decisão heurística, ao contrário da decisão puramente algorít-
mica, mantém contato interno com os processos da criação artística,
filosófica ou científica.o pode haver dúvida de que os modelos da
atividade criadora servem à interpretação dos contramodelos da ativi-
dade estética. Atividade estética e atividade criadora se equiparam
através dos princípios tecnológicos, a que ambas se submetem, de con-
trole relativo e de rigor informal. Daí as conexões, através de nexos
ideativos, entre o clima intuicionista da criatividade pura em metama-
temática e os valores das escalas metalíricas, organizadas na base dos
graus estéticos de poeticidade. Os graus estéticos de poeticidade. em
Os Sobreviventes, obedecem à decisão heurística de obter efeitos de
manipulações intervocabulares ou intersilábicas que denunciam a pre-
sença de estruturas invariantes no complexo intrincado dos linossignos.
EURYALO CANNABRAVA
Essas estruturas invariantes, colhidas ao vivo, através de interações
vacabulares, pressupõem afinidades eletivas entre as palavras que so-
mente a competência poética se torna capaz de discernir no domínio
neutro da linguagem.
A competência poética em Cassiano permite-lhe detectar, no con-
junto de mensagens codificadas pelas estruturas simbólicas das pala-
vras, aquelas que através de distorções afins ou topológicas conservam
intactas as unidades comunicativas, veiculadas pelo verbo metalirico.
Essas unidades comunicativas, queo podem ser traduzidas por pa-
lavras, provêm do impacto sobre a sua sensibilidade de mensagens
codificadas no repertório das imagens.
A descodificação dessas mensagens exige da competência poética
de Cassiano certa virtuosidade técnica no manuseio de palavras como
átomos, embora dissociáveis em partículas sub-atômicas. A desinte-
gração das palavras no linossigno, os vocábulos superpostos em cascata,
o rompimento brusco das estruturas gramaticais, os desvios semânticos,
as violações sintáticas tudo isso, encadeado, deflagra em desenca-
deamento e liberação de energias metalíricas acumuladas. Eis aqui
"A concha, ao ouvido
de quem a perscruta,
repete, longínqua,
a música bruta ,
mas dolorosa
do mar."
O que configura o diagnóstico ambicioso sobre a estrutura equívoca
e multifacetada do linossigno que traceja o espaço poético, como o espa-
ço pictórico dos desenhos rupestres do homem paleolítico, na rocha
viva de sua experiência subjetiva, tonalizada emocionalmente.
A tonalização emocional, associada ao sarcasmo pungente, ao deli-
berado intuito de espostejar na carne as veias gotejantes de sangue
tudo isso irrompe, sem obstruções ou paliativos, no contexto dos poe-
mas O Supervivo e o Velório.
Em O Supervivo
"a chave da manhã
no bolso.
Hermann Kahn
o futurólogo
Q. I. 150:
140 Kilos
de corpo"
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
6 vitimado pela sátira impiedosa, com leve traço de melancolia, de
desencanto, de apaziguamento no desdém, amenizado pela leveza de
tom do gracejo incidente. Eis o retrato vivo do homem dado a futu-
rologias, suplementadas por predições catastróficas ou anúncios róseos
de fecilidades paradisíacas.
E a requisitória poética conclui
"Hermann Kahn,
r romã
a tua pré-ciência,
,
o vale o til
que uma jaçanã
com seu gorjeio
e na palavra
manhã
do amanhã."
o se trata, leitor imprevidente ou sutil, nem de futurólogos,
nem de profecias obscuras ou luminosas. O que interessa no poema
se reduz ao manuseio das palavras nos linossignos, à construção, pelo
ostinato rigore, de uma estrutura formal que integra, em plano intensivo,
os graus de poeticidade.
A escala de poeticidade arma-se em processos de decisão heurís-
tica, em que cada estrutura vocabular, prenhe de modulações rítmicas, se
cristaliza, na textura do poema, como autêntica descoberta.
Ouçam a terceira estrofe
«,140 kilos,r romã
eu te pergunto:
quando um sol total
te obrigará a ler
o grito
embora mudo
que está escrito
dentro da pedra?»
É evidente que a exegese prosaica deste trecho, encadeado de subin-
tenções dissimuladas ou ostensivas, redundaria em rotundo contra-
senso. O que ressalta na estrofe acima, como mensagem se converte
em uma espécie de vaia cósmica, em que os elementos se congregam
para irromper de dentro do envoltório verbal com setas aceradas na
busca do volumoso alvo.
Em Velório, o protesto do poeta assemelha-se a uma marretada,
de ambas as mãos, do gigante Briareu na bigorna candente da "hurna-
EURYALO CANNABRAVA
nal natureza", descrita pelo cronista Gil Eanes Zurara
expõe à luz
"O cadáver do devedor
e a mosca
da correção monetária
zumbindo
na flor
do caixão.
Aumentando seu débito
fiscal depois do óbito
(de minuto a minuto)"
com a inocência adquirida do autor de um relatório que simplesmente
relata as consequências da dívida no cadáver do devedor. O poder
referencial das palavras, interpretadas lexicograficamente, como sím-
bolos heterotélicos, nunca fará justiça ao repertório imagístico que ir-
rompe destes linossignos como abelhas africanas.
A força revulsiva da imagem
"e a mosca
da correção monetária"
concentra-se em
«umbindo
na flor
do caixão»
Ninguém diria, convivendo com Cassiano, que seu temperamento
poético, inteiramente avesso às aventuras da posição revolucionária
pudesss armazenar, emo poucas linhas, tal coeficiente de tensão
explosiva que se converte em rictus, em contração, em vinco dos lábios
na boca.
O achado metalírico
"e a mosca
da correção monetária"
amplifica-se nos linossignos seguintes
"Cresce-lhe a barba.
Crescem-lhe
as dívidas nas faces
(lívidas)
depois de morto."
surpreendendo, ao vivo, no morto o entumescimento do rosto pela in-
solvência, a absorção no cadáver do débito em partidas dobradas. O
tom elegíaco de Velórioo disfarça, no repertório imagístico subja-
O poeta
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
cente, as conotações derivadas do contacto interno, de fundo inter-
sensorial, com a realidade bruta, indisfarçável e obstrutiva. O que
se manifesta nestas estrofes
"Silêncioo tenso e
insólito
que se faz audível.
Que o ouvimos brotar
em nós. Como um caule
na sala.
Até a flor do caixão
ficar fruto
no chão"
evidentemente vai muito além do que as palavras, nelas insertas, veicu-
lam como mensagem significativa.
A exegese de tais linossignos, circunscritos aos seus graus de
poeticidade, isto é, à sua impregnação de coeficiente estilístico pelo
ostinato rigore, ultrapassa os cânones da crítica pedestre. A sua in-
terpretação exige que as estruturas semânticas associadas a
"Silêncioo tenso e
insólito
que se faz audível.
Que o ouvimos brotar
em nós. Como um caule
na sala".
sejam violentadas nas suas estruturações descritivas. Nada se descreve
nestes linossignos abruptos e singulares, nada se patenteia através de
seus ritmos selvagens, ao ser a força do real transfigurado em espa-
ço poético, em imagens colhidas na expressão subjetiva e interiorizada
das emoções.
O que ressalta em tudo isso, como no que se segue
«Manhã.
Suor frio no vidro.
O cadáver exposto.
A mosca
da correção monetária
agora pousada em seu
rosto
já crescida.
E acrescida
com os juros
da noite"
EURYALO CANNABRAVA
converte-se em realidade transfigurada pela emoção objetiva na sua
subjetividade dilacerante. É o que Proust, em divagações sobre o esti-
lo, afirma a propósito da estrutura binária das imagens (o romancista
usa a expressão inadequada: metáforas) . As palavras, no poema
em debate,o esgotam o poder comunicativo através do seu sentido
lexicográfico ou dicionarizável. O que elas transmitem sobre o compor-
tamento de a «mosca da correção monetária» representa em linguagem
proustiana a eliminação da aparência para surpreender o real palpi-
tante e estável.
A relação entre a "mosca" e a "correção monetária"o pode
ser visualizada através das acepções dessas palavras no registro im-
parcial dos dicionários. Trata-se, na realidade, de nexo ideativo, de
base intersensorial, resultante da inspecção sensível da «mosca» sobre o
cadáver do devedor, e da "correção monetária" invadindo seu sangue,
exaurindo-o de sua substância, irredutível à força mecânica do crédito.
É certo que a «mosca» pousa sobre o corpo morto, aderindo à sua pele
queo sente mais o contacto repugnante. A "correção monetária",
por sua vez, cresce no enleio viscoso dos juros que adquirem, no
cadáver do devedor, as dimensões infinitas da morte.
Nada do que acabo de escrever, entretanto, poderá jamais substi-
tuir, em matéria de expressividade, galvanizada pelo rigor estilístico,
a carga energética da imagem
"A mosca
da correção monetária
agora pousada em seu
rosto."
I I
Há uma revolta interior, sopitada nos longos anos de convívio com
a miséria da "humanai natureza", em todos os poemas de Os Sobre-
viventes. E mais ainda: há tentativas de fuga ao robot tecnológico,
à invasão dos artefatos de uma civilização supermecânica, com a Me-
galópolis devoradora dos campos agrestes e do gorjeio matinal dos
regatos.
Mas nada disso seria significativo se Cassiano Ricardo, em vários
de seus poemas, como acentuadamente se verifica em Velório,o
erigisse, através de decisões heurísticas, uma escala graduada de poe-
ticidade. Vejam, por exemplo, os linossignos
"O cadáver do devedor
e a mosca
da correção monetária
zumbindo
na flor
do caixão"
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
que sc encadeiam em uma estrutura descritiva, munida de seis subestru-
turas constituídas por palavras-átomos. Estamos diante da presença
física de
"O cadáver do devedor"
a que se acrescenta
"e a mosca
da correção monetária"
sendo que o primeiro linossigno "e a mosca" se complementa pelo
segundo
"da correção monetária".
Trata-se evidentemente de mosca, com todos os característicos do
inseto díptero, inclusive o de se manifestar
"zumbindo
na flor
do caixão."
o pode haver dúvida que a imagem de
"O cadáver do devedor"
associa-oe à mosca zumbidora através de complexos intersensoriais que
geram a imagem audiovisual da «mosca doméstica» na sua faina de so-
breviver. As imagens condensam-se através do condicionamento in-
tersensorial, psicodinamizado interiormente, que se integra no contexto
da escala de poeticidade.
O que os linossignos, agrupados ao redor da imagem central
"A mosca
da correção monetária
agora pousada em seu
rosto"
comunicam, através de estruturações descritivas, adquirem os carac-
terísticos de uma só estrutura binária em que os dois primeiros
"A mosca
da correção monetária"
figuram, na escala de poeticidade, como dois valores expressivos e rigo-
rosos na sua arquitetônica estilística. O primeiro linossigno é estrutu-
ralmente galvanizado pelo segundo através de certo qualificativo, tona-
Jizado emocionalmente pela conjuntura inflacionária.o se trata de
uma simples mosca que pousa no rosto do cadáver. É o inseto propa-
gador
"da correção monetária"
flagelo mais destruidor e minaz do que a peste ou a guerra. As garras
do monstro flagelador reduzem-se às proporções mínimas, embora adqui-
EURYALO CANNABRAVA
ram em potencial poético tudo aquilo que exprimem em matéria de con-
tingência da "humanai natureza" neste mundo sublunar.
A escala de poeticidade, portanto, se constrói através de sub-uni-
dudes vocabulares que, conjugadas ao redor de certa unidade cen-
tral, representada em Velório por
"A mosca/da correção monetária"
deflagra energeticamente o potencial gráfico e galvanizador da imagem.
É, portanto, a unidade intersensorial da imagem, cujos ingredienteso
psicodinamizados através de nexos ideativos, que integram a escala de
poeticidade, saturando-a pelas modulações da forma expressiva, galva-
nizada pelo ostinato rigore a que se referia Leonardo Da Vinci.
É evidente que, neste ponto, se pode falar de uma escala graduada
de acordo com a intensidade do controle plástico exercido sobre as
palavras átomos, dissociadas em subpartículas, desintegradas com libe-
ração de carga energética. Há um crescendo wagneriano (e por que
o de Bachianas Brasileiras no estilo de Villa-Lobos?) em toda a estru-
tura poemática de Diavirá, passando por Subsolo, Sobremesa, Os sub-
vivos, até o poema final que repete o titulo da sequência metalírica.
A escala de rigor arquitetônico e estilístico, a que corresponde outra
escala de poeticidade, inicia-se com os linossignos de Subsolo. A gra-
duação é flagrante, mesmo no contexto da primeira estrofe
"Este o subsolo
onde moram
os subvivos, os
sublocatários."
Reparem a força expressiva, de primeiro grau, do linossigno
"Este o subsolo"
a que se acrescenta, em segundo grau,
"onde moram
os subvivos, os"
criando a expectativa de transição para
"sublocatários."
o hesitaria, na construção da escala de rigor refletido em pro-
cessos de arquiietônica estilística, a que corresponde, paripassu, a escala
de poeticidade, em atribuir o primeiro grau a
"subsolo"
o segundo grau a
"subvivos"
e o terceiro grau a
"sublocatários".
A graduação flagrante de intensidade no controle e no rigor, con-
dições tecnológicas, se convertem naturalmente em escala de esteticidade,
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
cujos valores se agrupam ao redor do eixo central do linossigno: a
imagem, cerne e núcleo da expressividade temática, galvanizada pelo
estilo. A galvanização estilística gera, na obra de arte, a expansão da
forma modulada pelo ritmo.
É a expansão da forma, em quarto grau, estágio de intensificação
plástico-verbal que se projeta em
"Submundo
dos dicionários
policiais."
A forma poemática estende-se, através de tentáculos da Hidra Poética
como a cognominou Paul Valéry, pelos estágios impregnados de su-
bintenções veladas
"Subsolo
subvivos
sublocatários
Submundo»
em que a última palavra absorve "subsolo", "subvivos" e "subloca-
tários" em uma estrutura totalizadora de configuração semântica. É
claro que
"Submundo"
está tonalizado emocionalmente, até o ponto de saturação, de rigor
arquitetônico como traço marcante da competência poética. Segue-se
"Subterfúgio
do sujeito
que aí é on-
de se esconde."
O encadeamento rítmico dos subs com
"Subterfúgio"
já em quarto grau e com reforço em três linossignos suplementares
se projeta, em sexto grau, na imagem drástica
"Na dura orques-
tra
dos subvivos"
em que dura associada à orquestra, evoca o drama de existências lace-
radas na rocha viva. Porém,
«Na dura orques-
tra
dos subvivos"
EURYALO CANNABRAVA
há o refinamento sutil que vincula o contraponto musical, refeito em
dureza, ao sub-destino dos subvivos. Mas
"lá embaixo
alguém ainda
canta
um subsolo»
. em sétimo grau de poeticidade no agrupamento final, com reforço
metalirico de subvivos e subsolo, na síntese do primeiro poema de cons-
trução subterrânea.
No segundo poema Sobremesa há transição dos sub para os sobres
"Já sobre o solo
a manga-rosa, a
mesa lauta.
a sobremesa:"
em que os quatro linossignos, encadeados por encaixe sintagmático,
desencadeiam, em primeiro grau, e sequência integrante da escala
de poeticidade
"os sobretudos
as sobretaxas
mais os sobrados
tudo o que sobra
de sobrepeso,
de sobrecarga,
sobre
os subvivos
do subsolo."
o nove graus, em sintagmas recorrentes, constituindo por si só toda
a gama de poeticidade, diluída em subcargas, tensas de conteúdo ex-
pressivo, em cascata, de queda em queda, com lampejos de água clara
na pedra.
Segue-se a segunda estrofe
"Ouo chega
ao subsolo"
em que todos os subs e os sobres, outros tantos círculos do inferno
dantesco, se estadeiam sobre ou povoado de mitos. Ainda em
seguida
"Os que vivem
sobre
o descem ao
sub,
por insalubre"
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
em que os nove graus anteriores, na escala de poeticidade, guindam-se
a quatorze graus por acréscimo de cinco.
Vejam bem:
"Os que vivem
sobre
o descem ao
sub"
onde, por circunstância relevante, o entrechoque vocálico-consonantal
de sobre com sub gera, com reforço de estruturas dissilábicas contras-
tantes com o vivem e descem, graduações intensas na escala de poe-
ticidade.o se esqueçam de que o círculo se fecha no quadrissilabo
"insalubre"
O fecho de sobre e sub em insalubre adquire ressonância que se
detém, no último termo, como se ele fosse uma espécie de alicerce ver-
bal, sustentando colunas. Mas o repertório imagístico de sobre e de
sub deflagra energeticamente nos linossignos seguintes
"Senão em busca
do abrigo
antiaéreo"
em que o tom peremptório de Senão, associado à busca, a abrigo e a
antiaéreo mantêm singular conexão ressonante com insalubre. E, atra-
s de uma arquitetônica estilística, repercutida em síncopes bruscas em
alternâncias, em desintegrações ou detidas nos pontos extremos da ten-
o verbal, Cassiano envereda pelos caminhos do Algoritmo da Decisão
Heurística. A decisão heurística, no poeta rejuvenescido pela alegria
da descoberta, neste explorador de minérios, assume todos os carac-
terísticos de quem manipula os agentes fluidos que cristalizam e con-
centram os minerais.
A descoberta em Cassiano transmuda-se em técnica de prospecção
e sondagem nos veios túmidos da linguagem poética. E prossegue
o poema na terceira estrofe, em que os quatorze graus, somados com
os três graus anteriores e acrescidos de mais cinco, perfazem o total
fascinante de 22 graus na escala de poeticidade.
"Só os fascina
o ouro
do subsolo.
Só o petróleo
do subsolo"
cujos linossignos explicitam, em termos restritivos, o confinamento do
poema aos limites traçados pela exploração do subsolo. É o subsolo
onde se esconde o ouro e o petróleo, que constitui a palavra-chave, ao
EURYALO CANNABRAVA
redor da qual circulam, como servomecanismos, os agentes da estrutu-
ra formal do poema. O final de Sobremesa acrescenta mais três graus,
reduzidos a linossignos unitários, que perfazem vinte e cinco graus.
A mesma técnica de decisão heurística, aplicada a Os Sobrevivos
e a Diavirá, deve alcançar idênticos resultados. O que ressalta, porém,
nos poemas de Os Sobreviventes é a versatilidade do poeta que, embora
recorra sempre à estrutura descritiva dos linossignos, está vivamente
empenhado em flexibilizar as gradações e os matizes da sua escala de
poeticidade.
Em O Teatro dos 4, a técnica dos linossignos sofre uma espécie
de adelgaçamento, de fuga ao espaço em branco, de constrição das pa-
lavras ao mínimo, no plano discursivo, de economia no jogo intersilá-
bico. de renúncia e de uma espécie de omissão.o palavras famintas,
em que o estômago, como acontece com certas populações acicatadas
pela miséria, chega até a proximidade da boca.
A máscara da fome, em O Teatro dos 4, percorre a terra, assumindo
as proporções da lua. E
"O cavalo verde
de Cardinaux
te empurra, "entra"
E preciso notar que a exegese da configuração exterior dos linossignos,
na base lexicográfica da consulta ao dicionário, pouco esclarece a res-
peito da estrutura latente do poema. A configuração exterior dos linos-
signos se manifesta pelo sentido das palavras. É o que elas referem
como símbolos, sujeitos à fácil descodificação. A estrutura latente de
"O cavalo verde"
com a especial referência ao possessivo
"de Cardinaux"
suplementado pela advertência
"te empurra, "entra"
reduz-se ao conjunto de potencialidades indeterminadas. O poema,
o como substrato simbólico e sim como repertório imagístico, nada
informa, embora tudo comunique. É o crítico que informa o poema:
define-lhe, em primeiro lugar, como o diretor de teatro explica a forma
cénica da peça, a sua forma estética.
Em segundo lugar, o crítico visualiza em «O cavalo verde» precisa-
mente sem qualquer hesitação, a imagem que o linossigno acima apresenta
intersensorialmente, sem evocá-la ou sugeri-la. O possessivo «De Car-
dinaux» restringe o âmbito do representante da espécie equina. O que
ressalta, porém, em tudo isso, se converte, na exegese crítica, em con-
tato interno dos sentidos com «O cavalo verde» que, como toda imagem
visual ou auditiva, táctil ou muscular, constitui a nossa única via de
acesso à realidade. Eis por que "O cavalo verde»o tem sentido, como
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
referencial simbólico, embora projete a sua existênciao no que indica
ou assinala, mas no que representa como presença viva.
O poetae diante des o singular espécime, em carne e osso,
com nitridos agudos, patas, cauda e focinho. Além disso, a cor verde
imprime ao espécime certo suplemento ou aura circense que aumenta a
credibilidade da sua ostensiva e inexorável presença. A função do
equino é introduzir-nos no teatro, pois êle
«te empurra, «entra»».
O «entra», entre aspas, transmite a sensação direta e imediata de
estar por dentro. O recurso das aspas, neste ponto, revelao o ato
de entrar, mas a circunstância ou o fato de alguém que, empurrado, já
se encontra na situação descrita. E, agora, na circunstância de «en-
trado» I
«Tudo te recebe,
uma flor
por
disfarce,
por dentro o inimigo
braço em ângulo,
como se
te esbofeteasse.»
Ora, o estranho poder do poema, o único veículo idóneo da poesia, como
afirma Cassiano, estáo em descrever, mas em transformar o que des-
creve em vivências.
O leitoro entra impunemente no Teatro dos 4. A sua experiência
subjetiva, dimensão estrutural da personalidade, entra em contato interno
com imagens. Estas imagens afetam o eu profundo: despertam arquéti-
pos, falam a linguagem do convivio direto com as camadas interiores.
Irradiam certa problemática como a da Fome, em O Teatro dos 4, que
nada tem de comum com o estado fisiológico no comportamento do orga-
nismo.o é a Fome, como problema social,o é a Fome como cancro
da comunidade, como índice da ineficiência das instituições políticas.
É a Fome instalada no estômago, agitando as vísceras, provocando
espasmos e convulsões
«E regressarás à rua
onde a Fome
no mundo
ossos à mostra,
nua,
ri
da
Lua
e dos 4 .»
EURYALO CANNABRAVA
A Fome reingressa em A Máscara que ri (Nº 1, 2, 3, 4),o através
de reivindicações do poeta, mas sob a forma muda do protesto. O
protesto do poetao é contra a Fome como condição humana, mas
contra a Fome como instituição social, como arma e como instrumento
de subjugação e de técnica do medo. A técnica do medo usa a Fome
o como presença mas sim como ameaça. Os quem fome já se
habituaram, mas os que nunca a tiveram se apavoram com sua possível
incidência abrupta e dominadora. O poetao a descreve, nem a
combate: simplesmente a visualiza com máscara ou
«Máscara
da fome. No coro
das máscaras
A face
ossuda, angulaguda,
o é preciso perguntar
se «você me conhece»
O poeta verifica
«A fome ri.,
A fome esculpe, cinzela
as suas criaturas
(ou caricaturas?)»
Vejam bem: o poeta constata que
«A fome ri.
A fome esculpe, cinzela»
Eo basta isto para instaurar o sumário de culpa da Fome? Ela é ines-
crupulosa: atinge as crianças nos berços, privadas do leite materno.
Cai sobre os velhos e os destroça. É onipresente, como o câncer em
qualquer parte do organismo. Mas o poeta espia os olhos da Fome:
e vê a máscara. Elao é o que é, mas o que representa ser. Reparem
ainda:o há nada de artificial na poesia. Ela é poiesis: manufatura,
arquitetônica, construção. O poeta constrói máscaras As Máscaras
(em Desfile) e mais adiante Superpostas Máscaras mas o que res-
salta em tudo isso é que as suas máscaraso mais vivas do que os
rostos que elas cobrem. Pela primeira vez, os linossignos nos dizem de
que materialo feitas as máscaras: de carne e de sangue,o de pape-
o ou de matéria plástica. O que pretende dizer se resume na afirma-
tiva de que a escala de poeticidade é construída grau a grau, com a
inevitável «humanai natureza» de Zurara, eo com metáforas ou arti-
fícios retóricos.
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
III
No poema A Máscara de Cristo, observa-se a técnica de decisão heu-
rística, ao por diante de nós, a
«Única máscara
de homem
fiel a um rosto
ainda com gosto
de fel
e origem».
Notem que a descoberta está em oferecero a superposta máscara, mas
a original, a máscara das máscaras, a
«Única máscara
de homem»
isto é aquela que, sendo
«fiel a um rosto»
permaneceu estereotipada em todas as outras faces como marca indelével
que o tempoo apagará. Mas o
«ainda com gosto
de fel
e origem»
ultrapassa o plano dos linossignos anteriores para se adentrar na união
de fel e origem.
A origem da Máscara de Cristo somente pode ser o fel, bebido no
Monte das Oliveiras, transfigurado em paixão e morte. O poeta nada
descreve ou indica: simplesmente expõe com decisão heurística a essência
da realidade em
«.Vera eikon.
Esta, de Cristo
pelo sangue
vivo
que lhe escorre
da fronte».
Reparem bem: a técnica do Algoritmo Heurístico está em introduzir o
operador tecnológico de controle relativo e de rigor informal, subjacente
à competência poética. A competência poética, aqui, diversifica-se, assume
feitio de reprodução fidedigna, de daguerreótipo, de encontro face a face,
de flagrante no momento mesmo da ocorrência verídica.
EURYALO CANNABRAVA
A competência poética usa processos equívocos, transposições, meca-
nismos de suprimento metalírico, técnicas de retorno, evasivas e subter-
fúgios para atingir o cerne arquitetônico da estilística
«Sangue ainda
quente
imposto
da ressurreição
pago na fonte.»
Atingido o cerne e o núcleo, a competência poética epiloga em termos
exortativos
«O vos omnia
olhai
e vede».
O poema Máscara de Cristo representa o máximo de tensão cono-
tativa entre o poder referencial do substrato simbólico nas palavras e a
carga psicodinâmica do repertório imagístico de natureza intervocabular.
Esta tensão intersensorial, de efeito energético, atua sobre a escala de
poeticidade de forma indireta.o é a Máscara de Cristo, a circular
pelos linossignos como sangue pelas veias. É o próprio Cristo galvani-
zado pela força poética, estilisticamente imantado, que comparece no
texto, com toda corte celeste, no mistério da ressurreição metalírica
«O vos omnia
olhai
e vede»
Reparem a advertência:
«Olhai
e vede»
isto é, visualizem a barba hirsuta na face gotejante de lágrimas endu-
recidas pela dor. Apreendam «Vera eikon» o ícone sangrento que se
transformou em máscara, feita rosto e espelho do próprio homem na
solitude do abandono. Este é o segredo da comunicação metalírica:
nada de evocações ou de sortilégios, trata-se da simples presença física
através de imagens visuais ou auditivas que atuam como vias de acesso
às fontes do real, à própria existência colhida nas suas formas puras.
Em Desconversa para adormecer Eurídice, o poeta adota o mesmo
tom envolvente de outros poemas, a mesma técnica de desintegração
vocabular, em que subvivos e supervivos se acotovelam na unanimidade
e coesão da «humanai natureza». E
«Os subvivos
se transformam em super-
vivos no rol das
categorias transitáveis.
Tomando parte
na algazarra da noite»
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
Vejam bem, os subvivoso permanecem fixos nem estáveis, eles se
«transformam em super-
vivos no rol das
categorias transitáveis»
em que o achado metalírico «categorias transitáveis» se incorpora à onto-
logia poética como um do seus termos relevantes. As expressões poéti-
cas nos linossignos nada denotam e tudo conotam no domínio da
experiência subjetiva. É a experiência subjetiva das «categorias tran-
sitáveis» que permite ao poeta surpreender, ao vivo, o que informa a
galeria dos subvivos daquela substância, geradora de metamorfoses e de
transmutações. E é pela experiência subjetiva, que o poeta se instala
no próprio curso do tempo, em pleno devir, no contínuo indiferenciado
da evolução cósmica.
E o poema Estatística e Cinerama, esculpido a golpes incisivos na
pedra, enfileira unidades desintegradas e fragmentárias da vida real,
do cotidiano sangrento dos desastres de avião. Tudo isto traduz o que
a fotocópia registra, a fotografia fixa nas chapas sensibilizadas pelas
reações físico-químicas, o que a fotogravura grava fotoquimicamente,
em relevo, sobre a folha de zinco.
«Há fogo a bordo, nós...
e um Caravelle já
sem voz, cai
no Mediterrâneo.
96 mortos.»
Ora, tudo isso, acumulado em cifras delirantes, reproduz numericamente
na linguagem fria e dramática das estatísticas o que as notíciaso
transmitem: o contacto interno dos sentidos com «as categorias transi-
táveis» das existências dramatizadas pela morte
«Chuva cronológica de
aviões, um
após outro
tocando ems
com a ponta da asa
como num cinerama)»
E as estatísticas de mortes alternam-se, em ritmo de quedas e de
ascensões.
«A chuva cronológica de
aviões»
em dois linossignos explicita o vínculo que prende os aparelhos
às gotas de chuva no tempo pelo enxameamento e pela queda em linha
oblíqua no solo. Reparem bem: Cassiano arregimenta palavras que
nunca se encontraram ligadas, fugindo assim ao vaticínio funesto de
EURYALO CANNABRAVA
Valle Inclán «Maldito seja aquele que nunca reuniu duas palavras
que jamais estiveram juntas!» Ora, a decisão heurística do poeta con-
siste precisamente em descobrir as afinidades electivas que estabelecem
circuitos de contato e de aproximação entre palavras aparentemente
desprovidas de elos semanticamente dicionarizáveis.
IV
Em o Bloco dos Suicidas o poeta enfrenta um grave problema teo-
lógico que assume todos os característicos do fato inelutável: se todos
os homens se suicidassem, isto significaria o suicídio de Deus?o se
trata no poema de solucionar a questão aberta, mas sim de apresentá-la,
em bloco, como se fosse uma imagem viva, refletida no espelho do des-
tino. O que interessa ressaltar em tudo isso é o grave dilema
«Seja qual for,
haverá,
senão outra, uma
só solução para
todos.»
Estão aqui as premissas do argumento metalírico, sendo a conclusão
«A de morrermos
todos, e Deus
morrer
conosco»
devido à circunstância inevitável
«Porque unidos
num só suicídio
em bloco.»
Na verdadeo se trata nem de dilema, nem de argumento, porém de
imagem drástica que identifica o destino do homem com o destino de
Deus. A unificação da trilha humana com a estrada divina pode soar
como heresia. Mas, como imagem, transcende as operações do raciocí-
nio teológico, para ingressar em pleno domínio da contemplação e do
êxtase. Poiso se trata de um Deus conceptual ou especulativo e
«Não, Deus fruto
do deserto ab-
soluto .
Mas Deus, nosso
fruto.»
A transição do Bloco de Suicidas para a Gramática Visual de Cristo
se realiza sem óbices nem entraves. É evidente que a gramática visual
traduz a génese do poema in concreto, eo a sua realização in abstrato.
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
A gramática visual reflete, como o espelho, a realidade mesma,
apreendida intersensorialmente. É através do jogo sensível, agindo como
operador condicionante, motivando a psicodinâmica da visualização di-
reta, configuradora das linhas e dos contornos dos objetos e das situa-
ções, que a gramática visual traduz pela expressividade tudo aquilo que
o sensório veicula pelos excitantes. O que a gramática visualiza, em
Cristo, representa a sua essência no drama e na paixão, na contingência
de ser humano e na necessidade de ser divino
«Cristo, terá sido
emo teu sacri-
fício?
, o sangue escorre,
acre, no massacre
das ruas»
surpreende-se aqui, na primeira estrofe do poema em debate, a sua
arquitetônica estilística, pouco tendo de comum com a construção sin-
tética ou as regras de correspondência semântica. É claro que existem
regras de composição dos versos, desaparecidos nestes poemas para
ceder lugar aos seus sobreviventes: os linossignos. As regras de com-
posição dos linossignos surgem, por contraste e oposição às regras-
tricas de composição dos versos. Os linossignos obedecem ao ritmo livre:
o regras eurítmicas de modulação e de cadência sincopada.o regras
de contra-regras, de economia de espaço, com nexos ideativos subja-
centes, de valorização das alíneas incidentes pela tensão conotativa da
palavra através de seu poder simbólico referencial, coartado nas pró-
prias fontes pelo repertório imagístico.
Na primeira estrofe, em tela de debate, «Cristo»
«o sangue escorre,
acre, no massacre
das ruas»
tornando «vão» seu «sacrifício». O circuito metalírico faz circular
nos linossignos acima, a corrente eletrônica através de sangue, escorre,
acre, massacre, ruas. O efeito dessa imantação de carga energética,
através da polarização magnética de unidades intersilábicas, intervocá-
licas e interconsonantais, sobreleva toda e qualquer preocupação com o
sentido das palavras atómicas no texto metalírico. O sentido léxico e
dicionarizável, permanece submergido sob a massa dos efeitos audio-
visuais, dos processos de modulação rítmica, da técnica de decisões heu-
rísticas na escolha das palavras. O que sobressai, em tudo isso, é o
EURYALO CANNABRAVA
contraponto verbal na orquestração da forma estilística, amplificada
pelo ritmo dos linossignos
«Cristo espalmou a
o
cobrindo os olhos
horizontalmente
prao ver
a destruição
do ser»
Na Gramática Visual, os linossignos, criando certa técnica de deci-
o heurística que permite visualizar, ao vivo, as cenas e contracenas,
suscitadas pela força verbal, responsabilizam-se pelo tom de presença
viva, de ação desenrolada, de vivência carnal atuante, fixada pelo olhos
e pelos ouvidos.o há regras de correspondência semântica, nem
modelos ou contramodelos, mas sim fatos e ocorrências presentes, exa-
cerbadas pela inspeção sensível.
Seguem-se várias estrofes, em que destaco os linossignos
«Gramática visual
a de Cristo;
«Não ver
éo ser visto» »
e na estrofe final
«Nisto, Cristo
parou de falar.
Vedando o rosto
e a barba
já hirsuta
braço em ângulo
agudo
sobre o olhar
verde.
Já fora do ar.»
o se trata, neste poema, da invisibilidade de Cristo, nem de sua
nudez, veiculadas através da mensagem metalírica. O que está em jogo
nada evoca ou sugere: mas apresenta a encarnação da divindade no
invisível e no silêncio, isto é, na palavra inaudível e na mensagem surda.
Em Cristo,
«Vedando o rosto
e a barba
já hirsuta
braço em ângulo
agudo
sobre o olhar
verde»
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
os linossignos, acumulando distância, separam o divino de «olhar verde»
do humano de «olhar» fatigado pela busca. Ainda uma vez esta interpre-
taçãoo é semântica, pois suscita imagens, como documentário me-
tafórico, como forma de presença na ausência.
V
A Gramática Visual está presente em todos os poemas de Os Sobre-
viventes; a decisão do crítico deve selecionar aqueles que, pela força
expressiva e pela drasticidade imagística, explicitar a estrutura formal,
graduada metaliricamente. Mas o crítico somente em certas oportunidades
poderá reproduzir o poema inteiro. Na maior parte das vezes, será
forçado a satisfazer-se com fragmentos que dificilmente captam as pro-
priedades do todo poemático. Eis por que deverá restringir a sua liber-
dade de escolha às amostras que, por serem estilisticamente galvanizadas,
reproduzem estruturas invariantes no texto metalírico.
É assim que, em Rose Tattoo, a técnica repetitivas tu), pelo
tom obsedante e pela virtuosidade rítmica, lembra o Bolero de Ravel,
no desenvolvimento da recapitulação através de estruturas reversíveis.
O efeito dos linossignos, quanto aos esquemas formais, neste poema
polirítmico se concretiza em um crescendo alucinante que no final se
estanca na barreira intransponível das últimas linhas
«mas «és tu»
sem começo
nem fim».
Em A Tentação (réplica ao Bloco dos Suicidas), a temática do
deicídio retorna através da forma herética de que o homem, ao se matar,
assassina em si mesmo, o Deus imanente. A imanência da divindade
no homem, por ter sido feito à sua imagem, revela no poeta aquele
senso do concreto, de participação da criatura no Criador. O suicida,
imagem de Deus, extingue, nele próprio, a sua génese por ter provindo
do seio da divindade. Reparem bem:o é uma tese teológica, mas
um simples processo de identificação, reunindo o imanente e o trans-
cedente no mesmo crisol, na mesma efígie, no mesmo destino.
E é assim, de acordo com o sistema de preferências do crítico que,
entre tantas alternativas metalíricas, ele escolhe, não, talvez, a mais
expressiva, mas certamente a mais condizente aos processos ostensivos
ou ocultos de criatividade pura. O que interessa ao crítico examinar
detidamente é a processualística metalírica: a técnica de despojamento
que permite ao poeta eliminar da sentença ou da frase os seus comple-
mentos e ornatos, tudo que nela se mostra parasitário ou acidental.
O poeta procura isolar a palavra, saturada de indeterminação, com
efeito centrípeto sobre as outras unidades vocabulares.
EURYALO CANNABRAVA
E na Simbiose, a técnica de despojamento do enunciado verba]
atinge o máximo de condensação e de retorno sobre si mesma. Trata-
se de uma técnica regressiva, de efeito reversível, que atua através dos
processos de eliminação, de economia verbal ou discursiva, até o ponto
de interpor, na trama inconsútil das afinidades eletivas e das interações
vocabulares, o signo marcante da poeticidade metalírica. Este signo,
diversificado pela análise autocrítica, assume formas concentradas ou
diluídas
«O mecanismo da ciência
e o do nosso organismo.
A natureza unindo os 2
reinos num só.»
Porém a técnica de despojamento começa aqui
«Lirismo animal e lirismo
da máquina
irmãos»
em que os três linossignos unificam-se,o através de estruturações se-
mânticas, mas através de transferências intersensoriais da imagem do
animal para a imagem da máquina, unificadas fraternalmente pelo lirismo.
O lirismo, neste ponto, atua poeticamente como vínculo inquebrantável,
como elo ou processo de transfiguração do animal em máquina. É no
domínio sensível das imagens que essa transfiguração metalírica de dois
lirismos objetos se realiza no texto discursivo. Na outra estrofe
«No caos que é esse amor
à fábula e ao mundo vivo
a um só tempo
mais repetido mais-
pido
Que todos os repentes»
a técnica de despojamento assume aquela forma interiorizada, aludida
anteriormente, que galvaniza, através de interações vocabulares. Caos
e amor, fábula e mundo vivo, rápido e repentes. O efeito prolonga-se
através de
«Flor
homens e bichos roboti-
zados
num só destino
ferozmente bíblico
e futuro»
em que «Flor» comanda «homens e bichos robotizados» através de
metamorfoses, botânicas ou zoológicas cujo término os identifica
«num só destino». Mais uma vez: a regra acima,o fazendo conces-
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
soes às superestruturas semânticas, procura por a descoberto as raízes
simbólicas da subestrutura intersensorial. Esta subestrutura metamor-
foseia, na escala evolutiva, homens em bichos robotizados, sob o comando
de «Flor». A evolução é de homem para bicho e de bicho para bicho
robotizado: reunidos sob o signo de Flor
«num só destino».
o quatro imagens que se unificam sob o sortilégio vegetal de planta
fanerogâmica. Tudo isso complementado pelo
«ferozmente bíblico
e futuro
refúgio
subterfúgio
sinónimos
em alternativa
ou
o vazio absoluto.»
Os linossignos põem em tela de debate as conexões entre «ferozmente
bíblico» e «futuro refúgio». Essas conexões levam â convicção de que
o poder de fascinação, mística ou poética, exercido pela Bíblia,o
está no substrato simbólico de seus enunciados, mas sim nas imagens,
de fundo arcaizante que brotam do livro sagrado como fonte de eter-
nidade. Os símbolos, de poder referencial, na Bíblia,o convencionais,
condicionados pela época, mas as imagenso espontâneas, brotam das
sensações vivas, participam da existência no plano do cotidiano, bafe-
jado pelo sopro da divindade. Porém a Bíblia é feroz como os animais
do deserto, embora a sua selvageria, em certos trechos, seja compen-
sada pelo teor de poeticidade.
O que Cassiano entremostra, no linossigno citado, é a fusão entre
o ferozmente bíblico e futuro refúgio. O futuro refúgio será ferozmente
bíblico,o no sentido simbólico ou profético, mas sob o signo
de suas imagens tecnológicas, como a conquista do espaço inter-
planetário, sob a dimensão cósmica eo apenas telúrica.
Os Iinossignos, que se seguem ao futuro refúgio, ordenam-se em
«subterfúgio
sinónimos
em alternativa
o vazio absoluto».
Reparem a palavra alternativa, seguida, em linossigno independente, pelo
conectivo de alternação ou para introduzir
«o vazio absoluto».
EURYALO CANNABRAVA
imagem drástica (eo conceito simbolicamente abstrato!), tradu-
zida em termos subjetivos que suscitam vivências de vacuidade, asso-
ciadas à noção de ausência completa das sensações de plenitude.
VI
No poema Os Futuricidas ocorre a mesma temática obsessiva de que
o homem, sendo imagem de Deus, então o seu desaparecimento pelo
suicídio, determina com a supressão da causa, a supressão do efeito.
Esta seria a exegese do poema nas paráfrases prosaicas; o problema em
jogo, entretanto, coloca o Ser Divino na situação de pre-imagem que
forja a sua própria imagem na criatura. Há certo primitivismo anímico,
sujeito a metempsicoses e a rituais bárbaros, que estabelece entre Deus
e o homem vínculos queo muito mais humanos do que divinos. A
tese nietzscheana do superhomem, reduzida a tema caricaturesco nas
estórias de quadrinhos, representou tentativa de divinizar o homem até
os limites do sobrenatural e da onipotência. Mas, em Cassiano, a obses-
o imagística de que o suicídio contém, dentro do seu ritual e da sua
processualística, os elementos ou fatores ativos do deicídio, foi trans-
posta para o domínio concreto da identificação efetiva. Daí
«Sois o Bloco dos Suicidas.
Paradoxo pensar que todo suicídio
Será a morte de Deus
em nós»
Vejam bem: a imagem da morte de Deus na morte voluntária do homem
o atua como produto elaborado de um simbolismo abstrato. Antes,
pelo contrário, atua como fato ou acontecimento, preciso e datado, que
ocorre fatalmente na hora exata e no instante marcado. Mais adiante
«Nós O queremos vivo e salvo
mesmo escanhoado de
qualquer ornamento, pluma ou
liturgia. Calvo.»
Reparem o despojamento da ideia de Deus até reduzi-la ao mínimo de
atributos formais, e ao máximo de contingência e de condição humana.
o há desrespeito, nem atitude antiteológica, e sim exacerbamento da
inspeção sensível, na necessidade metalírica de transpor o abstrato nos
termos palpáveis do concreto.
É esta necessidade do concreto na visualização, na sondagem, na
perspectiva, na análise, no espostejamento do real em subreal e da
partícula em subpartícula que constitui o fundo do dialeto metalírico.
E, na quarta estrofe, em linha ascendente na escala de poeticidade
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
«Matar Deus que está ems sui-
cidando-nos
será irmos muito além do nos-
so alvo
já que Ele só existe ems
por nossa culpa.
Criado pelo Homem que o nutre
a suor e sangue.»
Está ai, explicitada, a mensagem dos futuricidas: a meta-existência de
Deus desce do sobrenatural para se encarnar na existência natural.
É a ascensão, por outro lado, da natureza humana para a essência
divina, sem artifícios ou tergiversações.
O poeta, através da experiência subjetiva, reconhece
«já que Ele só existe ems
por nossa culpa
Criado pelo Homem que o nutre
a suor e sangue.»
elevando-se, pela intensificação de suas vivências, até o ponto de fuga,
em estruturas projetivas para o infinito. A técnica de decisão heurística,
em Cassiano, depurou-se através de aturada pesquisa no domínio da
linguagem, de recurso constante ao Algoritmo de Decisão que arma e
erige a escala de poeticidade. Cassiano é um pesquisador atento aos
matizes, aos entretons, às flutuações e aos enredos da expressividade
metalírica. O crítico, desarmado da técnica moderna de exploração dos
veios da mina poética, perde-se neste labirinto de invenções e de desco-
bertas. Cassiano é um inventivo, o artífice, o artesão. O crítico defronta
Os Sobreviventes mediante renúncia à escala de valores, aos critérios
puramente axiológicos. Substitui a teoria dos valores pela teoria da
informação e a teoria da informação pela teoria da expressividade
temática, galvanizada pelo ostinato rigore. As estruturas poéticaso
parasitárias; elas surgem de manipulações linguísticas que suscitam
imagens audio-visuais, no cortejo de lembranças revividas pelo toque da
memória recriadora.
Há uma frase de Goethe quee a descoberto a função da arqui-
teiônica estilística na gênese da obra de arte. As intercomunicações
entre expressividade, estrutura formal, rigor, controle, ritmo, modulação
resultam primariamente do estilo. Daí a frase goethiana: «Estilo é um
princípio dinâmico de composição, em que a forma interior da temática
se manifesta.» Eis aí o princípio básico da estilística, considerada como
adequação entre a forma do conteúdo temático e a forma da expressão
artística ou literária.
EURYALO CANNABRAVA
O estilo poético de Os Sobreviventes destoa de toda obra anterior
de Cassiano Ricardo. Ele atinge, aqui, o mais alto grau de condensação
pela análise, de despojamento pela técnica de composição. A sua técnica
de composição estilística foi programada como objeto de pesquisa, os
poemaso escritos como experiências no laboratório metalírico, sendo
que a contensão, aliada à sobriedade, adquire neste livro o teor de rígida
disciplina poética. O regime de poupança foi imposto a si mesmo, pelo
poeta, a fim de que pudesse atingir objetivos pré-fixados. A poesia
ricardiana é programada na base da investigação, dos ensaios e erros,
das tentativas e dos processos heurísticos de aproximação pelo rigor
e pelo controle.
O último poema de uma série, intitulada O novo Apocalipse, Soem
as tubas retoma a temática do deicídio, explorada sob os mais variados
aspectos anteriormente. Os linossignos iniciais
«O eco sacuda
a juba
e suba com
sua tuba
ao céu»
anunciam, em tom profético, a grande nova
«e todas
as estações
de rádio e
comunicação
anunciam aos
peixes, ãs
aves,
aos países
(Cuba ou
não-Cuba)
a salvação
de Deus
pelo homem»
mesmo por que
«Deus que só
existe
porque o homem
existe».
As citações anteriores, apesar de fragmentárias, transmitem o clima do
poema que se assemelha, no ritmo e no elance cadenciado dos linossignos,
a batidas rápidas de tambor, acompanhadas pela vibração dos clarins.
CASSIANO RICARDO E OS SOBREVIVENTES
Nada disso poderá ser interpretado pela configuração exterior do poema
que se reduz a seu sentido dicionarizável. O que ressalta, nas estruturas
metalíricas, é em Soem as Tubas comandado mais pelas escrituras sonoras
do que propriamente pelo conteúdo temático.
No último ciclo intitulado «Pequena Saudação ao Ano 2000», a
temática da morte de Deus e de sua existência passa a sofrer considerável
recesso. Vejam bem: a existência divina, como resultante da existência
humana,o é problema filosófico em Os Sobreviventes, e sim problema
ontológico de ser e deo ser, de vínculo ôntico entre a criatura e o
Criador, no sentido de que a criatura cria o seu Criador. Mas o ato
da criação corporifica-se, nos linossignos, através de imagens: o poeta
parte da sensação de existência concreta no homem para fazer com
que dependa dela a aceitação da imagem divina como atuante e como
presente.
o é uma posição materialista ou espiritualista: mas a de quem
interroga
«Deuso
nos salva?»
o que representao a ideia mas o ato vivo e presente da salvação.
E o poeta mesmo responde
«pela primeira
vez
no mundo,
ao invés
de Deus
nos salvar
s os sobre-
viventes
é que o
salvaremos».
A salvação de Deus está na salvação daqueles que sobrevivem, como
sua imagem. Ora, a imagem é coisa concreta, com raízes sensoriais
condicionadas neuro-fisiologicamente. É possível que os fanáticos, isto
é, todos aqueles que, no dizer de Santayana, redobram de esforço
quando perdem o seu objetivo, acusem o poeta de ateísmo. A poesia,
porém, está além do ateísmo: atitude daqueles que fazem ideiao
elevada de Deus queo podem admitir a sua existência.
O poetao é ateu, como Baudelaire nunca o foi, embora jamais se
satisfaça com a distância entre a criatura e o Criador, exigindo, portanto,
a participação e o convívio de ambos. Este convivio, aberto e itinerante,
com o universo traduz necessidade poética fundamental. Mas o poeta
EURYALO CANNABRAVA
convive sob todas as dimensões, em todos os quadrantes, inspecionando
sensivelmente os contornos para poder atingir a essência do real sem
desfigurá-lo. A lição de Os Sobreviventes, como se observa no último
ciclo, em Poema Lunáutico, resulta em impulso ativo no homem de
ultrapassar todos os limites, rasgando horizontes fechados dentro do
espaço interplanetário. E é o poeta que abre perspectivas de criatividade
pura, descobrindo em si próprio uma nova experiência. É como se,
adentrado pelos anos, tivesse ele revelação da proximidade de uma nova
aurora.
É possível que os críticos descubram em Os Sobreviventes mensa-
gens que este trabalhoo conseguiu descodificar. A exegese dos
périplos desta aventura metalírica, entretanto, deve ser sóbria em matéria
de conclusões, restringindo-se apenas a indicar ou sugerir potencialidades
indeterminadas que a estrutura latente destes poemas reserva para os
futuros representantes da crítica, exercida como atividade criadora.
A Juventude de Machado de Assis
R. MAGALHÃES JÚNIOR
O
livro de 700 páginas em que foram transformados os dois volumes
da tese de doutoramento de Jean-Michel Massa, La Jeunesse de
Machado de Assis, representa antes de tudo um monumental es-
forço de investigação, tanto mais comovente por partir de um estran-
geiro, desligado do nosso meio literário e integrado no meio universitário
europeu mas, a despeito desse distanciamento, apaixonado, ao extremo,
por esse singularíssimo fenômeno literário que foi o autor do Quincas
Borba e das Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Precisamente por ter sido tremendo o seu esforço, que exigiu buscas
demoradas em muitos arquivos, além de viagens a Portugal e ao Brasil,
o se pode minimizar os resultados por ele obtidos, sob muitos aspectos,
sendo que os principais, a nosso ver,o o definitivo estabelecimento
da autoria de duas obras traduzidas do francês por Machado de Assis:
uma a comédia-provérbio Hoje avental, amanhã luva, mais uma adapta-
ção do que mesmo em tradução de Chasse au Lion, de Gustave Vattier
e Emile de Najac (na Marmota, Machado declarara tratar-se de trabalho
«imitado o francês» revelando, já em 1859, sua familiaridade com essa
língua) e o folheto Queda que as mulheres têm pelos tolos, que Lúcia
Miguel Pereira e Afrânio Peixoto supunham ser obra original, mas José
Galante de Sousa descobrira que nos anúncios de Paula Brito, em
A Marmota, era apresentada como tradução. Jean-Michel Massa
revelou tratar-se de obra de um belga, Victor Hénaux, com base num
texto do século XVIII, e publicada anonimamente sob o título de
L'Amour des Femmes Pour les Sots.
R. MAGALHÃES JÚNIOR
A par desses e de outros méritos, o livro de Jean-Michel Massa tem
igualmente falhas que, sem menospreço por seu gigantesco labor, devem
ser apontadas, com vistas a melhorar a valiosa obra, em edições futuras.
Em primeiro lugar, deve-se dizer queooo severas como a editora
Civilização Brasileira pretende, nemo rigorosas as «exigências da
pesquisa, da metodologia e da análise crítica», a que teria obedecido o
ardente machadiano. Ora, parece-nos ele extremamente digressivo, ora
um tanto ingênuo nas ilações ou conclusões que pretende tirar. É que
lhe falta a vivência brasileira, um conhecimento mais profundo da nossa
história e de nosso ambiente social, intelectual e político. Daí ter
procurado ver uma contradição entre a convicção monarquista, de
Machado de Assis, por mim sustentada à vista de suas numerosas
manifestações nesse sentido, em prosa e verso, e a interpretação que
del à poesia Os Arlequins, mostrando que esta continha um protesto
contra a estátua de D. Pedro I. Para Massa,o se podia ser monar-
quista, no Brasil, sem ser a favor de D. Pedro I... Que dizer então
do Duque de Caxias, que foi o esteio da monarquia e, como seu pai,
que seria um dos membros da Regência, participou do movimento de
7 de abril de 1831, que forçou o primeiro imperador a abdicar? E Pedro
Luís Pereira de Sousa, que escreveu a mais violenta poesia contra a
estátua, chamando-a «a mentira de bronze que a Corte alevantou»,
seria acaso republicano? Se era, como é que, em vez de assinar o ma-
nifesto de 1870, foi presidente de províncias, além de Ministro dos Es-
trangeiros e da Agricultura? Ser, na década de 1860, contra Pedro I
o era ser antimonarquista: era apenas afinar com o sentimento liberal
da época.
Em certos casos, o nosso ensaísta, em vez de avançar hipóteses,
assume tom oracular. Tendo eu, em Ao Redor de Machado de Assis,
dito que este escrevera duas poesias por ocasião do casamento das
princesas imperiais, em 1864, uma para a cantata do Maestro Besanzoni,
executada no Teatro Lírico Provisório, em honra de D. Isabel e do
Conde d'Eu, e outra, com a assinatura «Y.», — a mesma com que
assinara um trecho de Potira no Jornal do Comércio publicando-a
com o título de Estâncias Nupciais na Semana Ilustrada, Jean-Michel
Massa simplesmente declara: «É impossível que tenha escrito duas
poesias sobre o mesmo acontecimento» (página 436, in fine) .o é
improvável: é impossível. Impossvel por quê? Porque Estâncias Nup-
ciais é «insípida». E diz isto: «Machado de Assis, poeta medíocre, é
indigno destas estrofes particularmente convencionais». Com certeza,
o professor de Rennes quis dizer: «Estas estrofes particularmente
convencionaisoo dignas mesmo de um poeta medíocre como
Machado de Assis». A forma portuguesa apresentada em seu livro
o é mancada do tradutor, mas a tradução literal do que foi escrito
em francês.
Mas deixemos isso de parte.o nos atenhamos à contradição
do enunciado, segundo o qual um «poeta medíocre»o pode escrever
A JUVENTUDE DE MACHADO DE ASSIS
«estrofes insípidas» ou «particularmente convencionais», mesmo em se
tratando de simples versalhada de circunstância, meramente gratulatória.
Vamos à afirmação de que «il est impossible qu'il ait écrit sur le même
événement deux poésies» (cito do original, para confirmação) . Ora,
é o próprio Machado de Assis quem desmente a sentença oracular de
Jeen-Michel Massa! Como? Com uma terceira poesia sobre o mesmo
assunto, igualmente convencional e, talvez, «insípida», para o gosto do
machadólogo francês. Vejamos o que ela diz:
Cubram embora as últimas montanhas
Nuvens de tempestade;
E vergue um dia os ânimos do povo
Dura calamidade;
Não morrerá da pátria o gênio altivo
Na imensa aluvião;
Contra o mal tem ainda ignota [orça
A alma da nação.
Do seio do futuro um sol de fogo,
Raio de vida e luz
Derrama sobre ti, formosa infante,
Terra de Santa Cruz!
A vida das nações, como a dos homens
Tecem o bem e o mal;
Vem, depois de uma hora de bonança,
Hora de temporal.
Mas o sol, mas o rei dos astros puros,
Como eterno senhor,
Rompe através das nuvens, revestido
De esplêndido fulgor.
Surge, e da tempestade os negros corvos
Batendo as asas vão;
Ri o céu, ri a terra, e enfim se expande
A paz no coração.
A assinatura desses versos é Machado d'Assis.o foram assina-
lados na Bibliografia de Machado de Assis, trabalho pioneiro de José
Galante de Sousa, mas foram divulgados no livro de Josué Montello,
O Presidente Machado de Assis.o contêm tais versos nomes de
pessoas, nem falam em altezas, ou em dinastias. Mas a motivação é o
casamento das duas princesas. Observa Montello que, logo ao fim dos
festejos destinados a celebrar o enlace de D. Isabel com o Conde d'Eu
ocorreu «tremenda tempestade no Rio de Janeiro». Houve, assim, uma
calamidade pública, entre os dois casamentos.
A alusão ao duplo enlace é feita no desenho alegórico de Henrique
Fleiuss, também reproduzido por Josué Montello em seu livro. Em três
R. MAGALHÃES JÚNIOR
medalhões, no lado esquerdo do desenho, aparecem, ao alto, a Princesa
Isabel e o Conde d'Eu e, embaixo, D. Pedro II. Em três outros
medalhões, do lado direito, aparecem em cima a Princesa Leopoldina
e o Duque de Saxe e, embaixo, D. Teresa Cristina. Ao centro da
alegoria, o Brasil aparece, vestido de índio, entre os símbolos do
progresso, tendo à esquerda o Amazonas, representado por um ancião
parecido com Netuno, e à direita o Prata, representado por uma figura
de jovem mulher.
Só anos depois de publicado Ao Redor de Machado de Assis vim
a conhecer, através de Josué Montello, o desenho e os versos que o
acompanham, impressos numa folha solta, que a Biblioteca Nacional
o fizera encadernar com o número da Semana Ilustrada correspon-
dente a 10 de novembro de 1864. Era mais uma contribuição da pequena
revista para as festas esponsalícias, que se celebraram a 15 de outubro
(casamento de D. Isabel) e a 15 de dezembro (casamento de D. Leo-
poldina) . Jean-Michel Massao pode impugnar essa poesia de circuns-
tância, ainda que «particularmente convencional» ou «insípida», para o
seu gosto.o é das melhores coisas rimadas por Machado.
Os dois versos «Vem, depois de uma hora de bonança, Hora de
temporal»o o suprassumo do lugar-comum. Mas quando se recolhe
a obra esparsa de um escritor, para documentação de suas atitudes
políticas, ou de sua evolução literária, deve-se suspender os julgamentos
de valor que possam perturbar a tarefa.
Medíocre ou insípida, convencional ou entremeada de lugares-co-
muns, lá está a assinatura de Machado. Mesmo concedendo que ele
o fosse o autor das «Estâncias Nupciais», como fica a orocular
sentença de Massa, segundo a qual "é impossível que tenha escrito
sobre o mesma acontecimento duas poesias?
Enorme e inútil todo o esforço feito por Massa para retirar ao
maranhense Joaquim Serra a participação na polêmica sobre os cegos,
em A Marmota. Para ele, trata-se de "um enigma". Em tal polêmica,
iniciada em março de 1858, um dos contendores, Machado de Assis,
assinara M-as, ou simplesmente As. José Galante de Souza em sua
Bibliografia de Machado de Assis, referiu-se a outro deles, dizendo:
"Jq. Sr.,o resta dúvida, é Joaquim Serra. Nenhum de seus biógra-
fos, entretanto, se refere ao fato de ter estado ele aqui, no Rio, nessa
ocasião. Pelo contrário, afirmam que permaneceu na sua província
natal até 1868, quando então se transferiu para o Rio. Temos, porém,
provas de que aqui esteve, ao menos no período de dezembro de 1856 a
abril de 1858, pois nesse espaço de tempo aparece em A Marmota cola-
boração de /. M. Serra, com a particularidade se tratar sempre de
poesia." Diz, adiante, que «a colaboração de Joaquim Serra em A
Marmota cessa em abril de 1858, sendo provável que tenha então deixa-
do o Rio». A essa altura, estava encerrada a polêmica. Terminara a
26 de março, com visível vantagem para Machado de Assis.
A JUVENTUDE DE MACHADO DE ASSIS
Trata-se de atribuição honesta e documentada, tanto quanto pos-
sível, por meios indiretos. O próprio Jean-Michel Massa retifica, em
parte, José Galante de Souza para dizer que a colaboração do precoce
J. Maria Serra começara antes: seu primeiro poema em A Marmota era
de janeiro de 1854, quando teria 15 anos e meio de idade. Reconhece
que tal colaboração faz referências ao Maranhão, concluindo que «desta
forma existe um J. Maria Serra, originário do Maranhão, que viveu
na capital brasileira antes e durante a polêmica." Mas daí parte para
as mais disparatadas conclusões: 1) Se se tratasse de Joaquim Maria
Serra, seria improvável que Machado de Assis não o conhecesse du-
rante esse período; 2) Haveria, por conseguinte, uma homonímia; 3)
Em todo caso, isto não nos esclarece a verdadeira identidade de Jq. Sr.,
porquanto nada prova que haja uma vinculação entre Jq. Sr. e os dois
(sic) Serra! 4) Parece-nos mais verossímil que Jq. Sr. esconda outra
pessoa.. .
A exclamação, os grifos e reticênciaso meus. Tudo isso se lê à
página 192 de A Juventude de Machado de Assis. Será um bom exem-
plo de «metodologia e análise crítica»? Ou de meros palpites? Se quisés-
semos, poderíamos inverter os argumentos de Jean-Michel Massa para
òíirmar: 1 ) Se se tratasse de Joaquim Maria Serra, como «não resta
dúvida» na frase de José Galante de Sousa daío decorre neces-
sariamente que devesse ele manter relações pessoais ou diretas com Ma-
chado de Assis, seu adversário na polêmica; 2)o haveria, por conse-
guinte, uma homonímia; 3) Nada prova que tenha existido na época,
no Rio de Janeiro, outro Joaquim Serra, originário do Maranhão, sendo
natural ligar o futuro grande jornalista e deputado liberal à assinatura
Jq. Sr. usada em A Marmota; 4) Parece-nos de todo inverossímil que
Jq. Sr. esconda outra pessoa.
Mas o que fortifica a hipótese de Galante é o fato de que, antes
de dedicar-se ao jornalismo, no Publicador Maranhense, deo Luís,
em 1859, Joaquim Maria Serra Sobrinho viveu no Rio de Janeiro, para
onde veio a fim de ingressar na Escola Militar. Onde se lê tal coisa?
Na Gazeta de Notícias, de que foi folhetinista, em seu necrológio
(1ª página, 30 de outubro de 1888: "Em 1868, mudou-se para esta
capital, onde já estivera várias vezes, uma das quais para matricular se
na Escola Militar, plano em queo prosseguiu" Na Escola Militaro
se matriculavam homens maduros, mas jovens, mal saídos da adoles-
cência. Com isso, como se, desaba toda a laboriosa construção pro-
lixamente elaborada para negar a justa conclusão de José Galante de
Sousa. O que há de espantoso nessa construção é o fato de ter sido
Machado de Assis capaz de "aos dezenove anos" revelar que "manipu-
lava ideias e conceitos» e Joaquim Serra, poeta precoce e um dos maio-
res jornalistas do seu tempo nas palavras que o próprio Machado
escreveu depois de sua morte precisar de um sósia ou homónimo,
R. MAGALHÃES JÚNIOR
para manter uma polêmica sobre a cegueira, embora sendo onze meses
mais velho que o seu contendor. . .
Observações dessa espécie diminuem bastante o valor de seu livro,
que, repito, sem embargo de seus senões, é uma contribuição valiosa aos
estudos machadianos. Por isso mesmo, cabem aqui alguns reparos, que
o autor, seo padecer de excessivo orgulho intelectual, poderá acolher
e guardar para que saia melhorada a obra, numa nova edição. Nem
sempre os textos por ele citados se apresentam de forma correta. Quan-
do seu trabalho foi publicado em francês, as gralhas eram tantas que
colocou dentro de cada um exemplar, que teve a bondade de enviar-
me, folhas avulsas, contendo numerosas "erratas". Muitas, contudo,
lhe escaparam e foram repetidas na edição em português. Devo dizer
que alguns desses errosm de mais longe, porque já aparecem nos
Dispersos, de Machado de Assim, que o Instituto Nacional do Livro
publicou, sem criteriosa apuração dos textos e a fidedignidade que de-
vem ter as publicações oficiais, principalmente quando levam em sua
capa o nome do Ministério da Educação e Cultura.
o me parece estar Jean-Michel Massa suficientemente familia-
rizado com a língua portuguesa, ou ter bom ouvido para a leitura de
versos metrificados. Por isso, há deturpações em alguns textos apre-
sentados nos Dispersos e repetidos em A Juventude de Machado de
Assis. listão nesse caso os versos citados à página 244 da poesia
Um Nome, escrita no álbum da cantora Luisa Amat:
Sou bem moço, e talvez uma esperança
Pudesse ainda me despedir do lodo;
E ao sol ardente de um porvir de glórias
Engrandecer, purificar-me todo.»
O segundo verso dessa quadra tem onze sílabas, ao contrário dos
outros, quem dez, faltando-lhe a acentuação tónica que marca a ca-
dência do, 3° e 4º versos. Erro de revisão? Não. É que Jean-
Michel Massa transcreveu fielmente a si mesmo, isto é, um texto infiel
que apresentara em Dispersos. Em O Espelho. n° 13, de 27 de no-
vembro de 1859, o que saiu foi:
Pudesse ainda me despir do lodo.
Despir eo despedir. Mas esseo é o único senão dessa poesia
juvenil, que faz o leitor supor Machado de Assis bem pior poeta do que
na verdade foi. . . Nos Dispersos, Jean-Michel Massa assim apresentou
outra quadra, a quarta, que se segue àquela:
Talvez, mas esta sede era tamanha!
E agora o desespero entrou-me n'alma;
A brisa do verão queimou-me passando
A jovem rama da nascente palma!
Suplemento da Semana Ilustrada que circulou
a 10 de novembro de 1864, com a poesia
ignorada de Machado de Assis {Fotografado
por Eduardo de los Rios no Museu Histórico
Nacional)
A JUVENTUDE DE MACHADO DE ASSIS
Desta vez é o terceiro verso que tem 11 sílabas, nenhuma cadência
e nem mesmo nexo. O que Machado de Assis verdadeiramente escre-
veu foi:
A brisa do verão queimou passando
A jovem rama da nascente palma!
Houve uma "correção" incorreta, a introdução de um pronome, de
uma sílaba estranha no verso. É perdoável a gralha tipográfica, como
a que suprimiu duas síladas num verso alexandrino em francês de Ma-
chado, que ficou reduzido a um decassílabo:
Qui te parle dans ton ciel odorant
em vez de:
Qui te parle penché dans ton ciel odorant
Porque, neste caso, tinha Massa dado a versão correta nos Dis-
persos. Mas é sem dúvida menos aceitável ver a peça de César de
Lacerda, Mistérios Sociais, convertida tanto no original em francês como
na tradução brasileira em Ministérios Sociais. Dou razão a Massa,
quando ele levanta a hipótese de que seriam, antes, de Moreira de Aze-
vedo do que de Machado de Assis dois textos recolhidos de O Espelho,
o passando de simples resumo de duas lendas que Hoffmann escreveu.
Mas por que aparecem esses textos com os títulos de «Le Chasseur de
Harz e o Marin Batave»?o os escreveu Hoffmann em francês e,
no Brasil, foram publicados sob o título de Os Imortais e os subtítulos
O Caçador de Harz e o O Marinheiro Batavo. Haveria ainda outras
observações a fazer, maso queremos alongar ainda mais a extensão
desta nota, feita com espírito construtivo, de leitor atento. É através
de discordâncias e retificações, oportunas e cabidas, que os machadólogos
o os machadólatras poderão um dia completar o retrato do
verdadeiro Machado de Assis.
Acerca do Movimento Modernista
de Minas
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
P
ara quem queira conhecer com os devidos pormenores e as
indicações bibliográficas de maior interesse o que, em essên-
cia, foi o movimento modernista em Minas Gerais, gostaría-
mos de apontar dois estudos recentes: 'História de Revistas e Jornais
Literários», do bibliógrafo competentíssimo que é Plínio Doyle, inserto
no número 37, de 1969, da Revista do Livro, do Instituto Nacional do
Livro, e '"Nas Vertentes da Semana de 22: o Grupo Mineiro e A Re~
vista", do esplêndido ensaísta que é Afonso Ávila, publicado no volume
LXVI, janeiro-fev. 1972, ano 66, n" 1, da Revista de Cultura Vozes.
bem esquecer depomientos de participantes do movimento modernista
em Minas, tais como Carlos Drummond de Andrade e João Alphonsus,
e o livro que contém trabalho meticuloso, e como sempre brilhante, do
professor Fernando Correia Dias: O Movimento Modernista em Minas,
Uma Interpretação Sociológica, Editora de Brasília S. A., 1971.
Plínio Doyle se ocupa exaustivamente de A Revista, dando ao
leitor o fac-símile da capa do seu primeiro número, datado de Belo
Horizonte, julho de 1925.o se trata apenas de um registro de
bibliógrato: na verdade, estamos também diante de um ensaio do me-
lhor gosto, mesmo porque o autor chega até a ofertar-nos, para o que
obteve a inapreciável colaboração pessoal de Carlos Drummond de An-
drade, trechos de cartas dirigidas por Mário de Andrade e Ronald de
Carvalho ao grande poeta mineiro, de Ribeiro Couto a Martins de
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Almeida, de Manuel Bandeira a Drummond, esta inserta na Obra Com-
pleta de Bandeira, além de comentários críticos sobre a publicação fei-
tos por críticos da ordem de Tristão de Ataíde e Agripino Grieco. Sem
talar na oposição ao que a revista representava e que partiu de João
Coto, imitação de Jean Cocteau, pseudônimo de Eduardo Freire, que
no "Avante", de Belo Horizonte, de 20 de agosto de 1925, desancou
a revista em termos violentos, no artigo "Brotoeja literária". Plínio
Doyle se detém de tal forma no exame dos três números de A Re-
vista a publicaçãoo ultrapassou, infelizmente, os clássicos três
primeiros que fornece ao leitor, ao final, um sumário, por autor,
de toda a matéria neles contida. E informa: «Aí está a história
de A Revista, contada com o precioso arquivo de Carlos Drummond
de Andrade, que nos forneceu para essas notas todas as cartas men-
cionadas, em original, e também todos os artigos em primeira publi-
cação. E a ele também pertence a coleção de A Revista, preciosa
raridade (não conseguimos conhecer outros exemplares), e mais pre-
ciosa ainda porque nela estão indicados, com a letra característica
do autor, todos os autores dos artigos sem assinatura ou com pseu-
dónimos, como anotamos no sumário organizado. Essa história,
ques aqui contamos a nosso modo, já foi contada, nas suas passa-
gens mais importantes, pelo próprio diretor e fundador da revista, Car-
los Drummond de Andrade, em dois artigos com o título de "Aqueles
rapazes", no Correio da Manhã de 28-6 e 12-7-1952, infelizmenteo
incluídos em livro. Há trechos desses artigos queo podem deixar
de ser aqui transcritos.» Bastam essas informações para que se con-
clua desde logo que o trabalho de Plínio Doyle passou a representar
excelente contribuição para melhor conhecimento do que foi o movi-
mento modernista em Minas.
Já no seu trabalho Afonso Ávila começa por assinalar que "o
transcurso do cinquentenário da Semana de Arte Moderna é ensejo,
mais que oportuno, para uma reflexãoo só sobre o seu significado
abrangente de revolução estética e conscientização ideológica, de revi-
o crítica do fato nacional e de sintonização com as linhas renovado-
ras do pensamento universal, mas também para algumas ilações de
ordem mais pessoal, capazes no entanto de iluminar, com a obviedade
de determinadas constatações, a grande síntese de interpretação do
modernismo que ainda está por escrever-se. Uma dessas ilações con-
sistiria, a nosso ver, na consideração do evento paulista de 1922 como
um dos passos cíclicos fundamentais da nossa evolução estética, dentro
de perspectiva sincrônica que conduzisse a uma ideia totalizadora do
processo criativo brasileiro." Dirá que "os primeiros sinais de uma
revolução literária de sentido modernista em Minaso devem ser
sumariamente entendidos como uma consequência imediata da Semana
de Arte Moderna, de 1922» e, depois de se ocupar desse tema, afirmará
mais adiante que «é a partir de 1924, ano de memorável visita a Minas
ACERCA DO MOVIMENTO MODERNISTA DE MINAS
de uma caravana de modernistas deo Paulo, integrada por Oswald,
Mário, Tarsila, dentre outros, e a companhia sobre todos ilustre do
escritor francês Blaise Cendrars, que se concretiza o entrosamento de
mineiros e paulistas, num processo de interação no qual caberia a estes,
evidentemente, papel teórico e perceptivo, estímulo a que os moços de
Belo Horizonte responderiam com a parcela, quase sempre de ento-
nação subjetiva, de seu entusiasmo crítico e criador." Afonso Ávila
ilustra seu ensaio com a reprodução fac-similar das três capas de
A Revista.
Em Movimento Modernista em Minas, Uma Interpretação Socio-
lógica, embora essa "interpretação sociológica" tenha a intenção de
delimitar os objetivos da sua investigação, Fernando Correia Dias
abastece o leitor de material abundantíssimo sobre o que foi, literaria-
mente, a repercussão e implantação do modernismo na serena Minas
de então. Na verdade uma interpretação sociológica, tal como a rea-
lizou Fernando Correia Dias, abrange aspectos por assim dizer totais.
Diz ele: "Delimitemos mais precisamente o tema. Trata-se de aná-
lise do contexto social em que se insere o escritor. Noutras palavras,
do status do escritor: sua posição na estrutura social. Trata-se de
aplicar a um caso concreto as teorias que já sem desenvolvidoo
apenas relativamente aos grupos sociais, mas também ao fato literário
enquanto fato social, embora, conforme se tem salientado, a abordagem
sociológicao esgote esse fato literário" (pág. 12). Na página
seguinte: "O ângulo de análise adotado é, portanto, o da Sociologia.
Constituiráo somente enquadramento necessário a essa análise o
apelo a fatos históricos.o conduzirá à abordagem historiográfica.
Da mesma forma, nada tem a ver o trabalho, fundamentalmente, com
critica literária. Valores estéticos serão, de modo episódico, utilizados
como pontos de referência e como critério informativo em particular
os valores estéticos condicionados socialmente." E logo a seguir:
"A hipótese fundamental da monografia é a de que o grupo mineiro
construiu, durante poucos anos, um grupo social bem definido, com
estrutura efetiva, eo apenas virtual, distinguindo-se de um simples
agregado ou de uma categoria social." Por fim, que vem à pág. 19:
"E pena que a limitação que nos impusemos de analisar o fenômeno
modernista preferentemente pelos aspectos da vida social e literária
tenha afastado, pelo menos por ora, o empenho pela compreensão dos
aspectos intrínsecos de obras literáriaso importantes como as de Carlos
Drummond de Andrade, Ciro dos Anjos, Aníbal Machado, Abgar
Renault e outros. Quanto à de João Alphonsus, de tal modo nos fasci-
nou que a perscrutamos anteriormente em todos os sentidos. (Um
parêntese, nosso: através de João Alphonsus: Tempo e Modo, livro
publicado pelo Centro de Estudos Mineiros em 1965.) Há muita ri-
queza humana e validade estética a sondar no que escreveram os moder-
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
nistas de Minas. Mas deixemos a tarefa aos legítimos focalizadores
desse mundo imaginário: os críticos e os historiadores literários."
Está mais que óbvio queo nos incluímos em nenhum dos dois
grupos. Nosso propósito é falar do movimento modernista mineiro,
em geral, e sobretudo das duas publicações que conhecemos melhor,
A Revista, de Belo Horizonte, e Verde, de Cataguazes.
João Alphonsus, depondo no Testamento de Uma Geração, de
Edgar Cavalheiro (Livraria do Globo, 1944), deixou escrito, à pág. 147
do volume: "Você já ouviu falar no movimento Verde, de Cataguazes,
uma cidade do interior de Minas? Um grupo de rapazinhos, na maioria
ginasianos, fundou naquela cidade uma revista literária: Verde. A
partir de setembro de 1927, deram 7 números, irregularmente, um re-
corde, ao que parece, só ultrapassado pela Revista do Brasil, na sua
fase modernista sob a direção de Rodrigo M. F. de Andrade. O que
nos interessa é a surpresa e em seguida o acolhimento que a Verde
provocou entre os maiorais do modernismo, cartas, cartões, artigos,
poemas alusivos, e os meninos cataguazenses impando de justo orgulho!
Nenhuma ironia ou malícia nos aplausos, tempos sadios:" E na página
seguinte: "Aqui em Belo Horizonte, Emílio Moura, Carlos Drummond
de Andrade, Martins de Almeida fundaram A Revista, com a minha
colaboração, de Pedro Nava, outros (entre os novos). Deram três
números, em julho, agosto de 1925 e. .. janeiro de 1926." E à pág. 156:
"bui dos que entusiasticamente imitaram o linguajar de Mário de An-
drade, na época do seu maior exagero.o me arrependo disso,
emborao republicasse hoje muitos dos artigos ingenuamente refor-
madores que então publiquei aqui em Belo Horizonte, nas colunas do
provecto Diário de Minas. Era o órgão do Partido Republicano Minei-
ro, mas, por uma dessas destinações absurdas existentes na vida dos
jornais como dos homens, aconteceu que veio a ser o seu redator Carlos
Drummond de Andrade e se tornou então o órgão do mais revolucio-
nário movimento literário que já abalou (se é que abalou) as mon-
tanhas de Minas. Isso, aliás, me convence de que as minhas bombas-
artigos podiam ter alguma repercussão. O "homo politicus" mineiro,
por esse interior afora, lia o Diário para orientar a discussão política
na porta da farmácia ou no salão do clube. E aqueles artigos, em
o respeitável jornal, distribuído de graça por ordem do governo,
deviam causar certa impressão, ou quando menos certa desconfiança
favorável às reformas propostas para as letras e artes.. ." Do austero
Diário de Minas diria Carlos Drummond de Andrade que "esse jornal
entrou para a história literária de Minas Gerais com chamar a si, num
Estado conservador, a responsabilidade da campanha modernista em
Minas. Digo «responsabilidade» porque se tratava do sisudo Partido
Republicano Mineiro, que era por sua vez o próprio governo de Minas.
Tão identificados se achavam jornal, partido e governo que a redação
ACERCA DO MOVIMENTO MODERNISTA DE MINAS
daquele órgão podia a justo título ser considerada uma honesta reparti-
ção pública." {Obra Completa, Editora Aguilar, 1964).
Em entrevista a Milton Pedrosa, no número de 13 de julho de
1939 da revista Vamos Ler!, do Rio de Janeiro, João Alphonsus falou
do "grupo literário revolucionário, mais demolidor do que construtor,
mas de efeitos benéficos nas nossas letras até hoje, onde todo poeta e
escritor que conseguiu relativo renome é pai, filho ou neto do Modernis-
mo: mesmo aqueles que repudiam o pai ou o avô e querem fazer crer
que surgiram por geração espontânea..."
Essas palavras me inclinam à tentativa de fixar a ressonância,
no menino que eu era então, do movimento modernista. Tal resso-
nância veio mais através das publicações que João Alphonsus recebia.
Muito mais moço que ele, mas já contaminado, e como, do bacilo lite-
rário, com leituras diárias na Biblioteca Pública Municipal ou na biblio-
teca do Ginásio Mineiro, conhecendo mais os escritores do passado,
lia ou apenas passava os olhos pelas revistas e livros que meu irmão
recebia. E uma das minhas incumbências, a partir de certo tempo,
era levar a crítica literária semanal que ele escrevia para o Estado de
Minas. Era impossível, com tal diferença de idade, um diálogo dos
irmãos sobre literatura, e ainda mais sobre o modernismo. Mas me
recordo de que li, espantado, a Paulicéia Desvairada, e ainda hoje
conservo nítida a sensação que me deixaram versoso opostos ao que
até então já lera, eu que, de início, mergulhei fundo nos românticos, e
confundi-os no mesmo apreço com parnasianos, bem mais do que com
os simbolistas. Recordo por igual a sensação (bem sei que tudo isso
só tem importância para mim mesmo, mas me desculpem a insistência)
que tive quando João Alphonsus se chegou para mim e me entregou
Brás, Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcântara Machado, indi-
cando-me um conto que eu devia ler e que tratava de uma partida
de futebol entre o Coríntians e Palestra Itália. Posso ter estranhado
o estilo sincopado, ágil, vibrante, mas guardo a impressão de ter gosta-
do do conto. Embora me deva ter surpreendido bastante, a mim
ledor constante das colunas esportivas, ver um escritor voltar-se para
o futebol. . . Sei que Antônio de Alcântara Machado ficou como
uma das minhas admirações e o interesse pela sua obra, que vim a ter
depois, deve ter sido despertado por esse primeiro contato.
Ao organizar, em 1946, uma Antologia da Poesia Mineira, Fase
Modernista, tive dificuldades para reunir material. Eo poucas.
Tendo de destinar um capítulo ao movimento da revista Verde, contei
com a boa vontade até meio temerária de Francisco Inácio Peixoto:
enviou-me ele, por via postal, a coleção da revista, que voltou incólume,
também por via postal. .. De A Revistao tive em mãos os três
números. Já convivia com aqueles que haviam participado da pri-
meira hora do modernismo em Minas maso me ocorreu pedir a
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
João Dornas Filho ou Guilhermino César (este já residindo no Rio
Grande do Sul) um exemplar que fosse da revista Leire Criolo dirigida,
além dos escritores citados, pelo capichaba Aquiles Vivaqua, morto
muito cedo em Belo Horizonte, onde se editava a publicação.
Tenho comigo o primeiro número de Verde. Seu diretor, Henrique
de Resende, seus redatores, Martins Mendes e Rosário Fusco. A apre-
sentação é sucinta: «Remy de Gourmont costumava dizer que se as
discussões literárias interessassem ao povo, haveria tantas guerras mor-
tíferas entre intelectuais, quanto as guerras civis e religiosas. In-
teressante,o acha você? Pois é. A princípio parece paradoxo. Mas
o é paradoxo coisa nenhuma. É, simplesmente, uma verdade. Sim,
senhor, uma grande verdade! Esse negócio ocorreu-nos à memória
a propósito do aparecimento deste primeiro número da nossa revista,
VERDE. "Aparecemos para um público queo existe." Vamos ser
incopreendidos e criticados. É certo. Mas, que esse público ainda
virá a existir, é certo também. É certo e é um consolo. .. Portanto,
conversar muito é bobagem. Somos novos. E viemos pregar as idéias-
rovas da Nova-Arte. E. E está acabado. Eo precisa mais.
Abrasileirar o Brasil é o nosso risco. Pra isso é que VERDE nasceu.
Por isso é que VERDE vai viver. E por isso, ainda, é que VERDE,
vai morrer. Ponto. Leitor camarada: muita honra e muito prazer
em conhecê-lo. Disponha."
Do texto constam colaborações de Emílio Moura e Carlos Drum-
mond de Andrade, o que demonstra que Verde já nascia ligada ao
grupo modernista de Belo Horizonte. Como se ligaria depois aos
grupos do Rio eo Paulo. Alcançando repercussão tal que a levou
a figurar na história do nosso modernismo, a revista Verde revelou
alguns escritores da força de um Ascânio Lopes (poeta morto quase
adolescente e que legou alguns poemas dignos de serem incluídos
entre o que de melhor se fez no tempo), de um Guilhermino César, de
um Francisco Inácio Peixoto (que nunca sairia de Cataguazes), de um
Rosário Fusco.
Já o 2' número de A Revista (como todos os três, na verdade)
apresenta colaboração de renovadores e conservadores, numa camara-
dagem que, se torna a publicação menos definidamente moderna, refle-
te o que era, em 1925, quando apareceu, o ambiente cultural em Belo
Horizonte. A apresentação, sob o título "Para os espíritos criadores",
que vem no 2' número, é, segundo informa Plínio Doyle, no trabalho
pors já referido, de autoria de Martins de Almeida. "Na verdade
(diz Martins de Almeida) um dos nossos fins principais é solidificar
ACERCA DO MOVIMENTO MODERNISTA DE MINAS
o fio das nossas tradições. Somos tradicionalistas no bom sentido.
Opomo-nos a qualquer desbarato da nossa pequena herança intelectual.
Se adotamos a reforma estética, é justamente para multiplicar e valo-
rizar o diminuto capital artístico que nos legaram as gerações passadas.
Dissemos que éramos um órgão político. Nas relações internas, a nossa
orientação está definida no sentido da centralização do poder. Tanto
na política como nas letras, ameaçam-nos perigosíssimos elementos de
dissolução. Anda por, em explosões isoladas, um nefasto espírito
de revolta sem organização nem idealismo, que tenta enfraquecer o
nosso organismo social." No texto, colaboração de modernos como
Emílio Moura, Carlos Drummond de Andrade, João Alphonsus, entre
outros, e de professores ilustres como Carlos Góes e Magalhães Drurn-
mond, que eu fui encontrar, na década de 30, no Ginásio Mineiro, o
primeiro já ao final de sua permanência naquele educandário oficial.
A Revista teve boa acolhida. Tanto que neste 2º número se lê
uma nota de agradecimento a essa acolhida, destacando "as cálidas
e honrosas palavras de Agripino Grieco, o penetrante crítico literário
de A Gazeta, que, em seu folhetim "À margem dos livros", foi inexce-
dível de gentileza para conosco."
Falei da curiosa convivência, nas páginas de A Revista, de renova-
dores e conservadores, e me acode que nada mais natural, pois que,
segundo Carlos Drummond de Andrade, tal como transcreve Plínio
Doyle no seu excelente trabalho, "a composição era feita no Diário
de Minas, e a impressão nas oficinas do governo, mas tudo pago com
tostões difíceis.» E, em estudo sobre João Alphonsus, em Passeios
na Ilha (pág. 687 da sua Obra Completa), dirá ainda Drummond,
significativamente: «O modernismo cresce irregularmente à sombra da
displicência governamental, que a todos os jovens, adeptos ouo
da nova escrita literária, distribui cargos de praticante de secretaria ou
quejandos.» A Revista reflete tal situação: paga com tostões difíceis,
talvez se tornasse inviável se fosse declaradamente uma publicação
integralmente modernista, seo atraísse para as suas páginas mestres
e escritores de tendências as mais diversas, alguns que nos parece nunca
entenderiam ou chegariam a entender moços inquietos em busca de
uma renovação total e desintegradora, contra todos os cânones rigida-
mente estabelecidos.
Modernismo em Minas, e suas revistas precárias mas influentes,
quer dizer antes de tudo Carlos Drummond de Andrade, João Alphon-
sus. Emílio Moura, Abgar Renault, Aníbal M. Machado, Afonso Ari-
nos de Melo Franco, Milton Campos, João Dornas Filho, Ciro dos
Anjos, a boa turma de Cataguazes, fora as omissões inevitáveis, e de
que me penitencio desde logo.
133
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Passados os tempos de agitação, pode-se ver hoje, à distância,
os benefícios que o movimento trouxe ao país na construção de bases
para uma literatura que tem permitido desde então as mais variadas
experiências sem cair na melancolia de um retrocesso, felizmente im-
possível. Movimento que permanece vivo, forte, mutável, influindo
mesmo naqueles que João Alphonsus chamou de filhos ou netos do
modernismo e que,o raro, renegam o pai ou o avô. . . Mas queo
poucos; se é que ainda existem nestes nossos dias.
Numa Outra Academia
MARCOS ALMIR MADEIRA
E
M meio à diferença das coisas e das criaturas, quando tudo é
alegria, venho trazer-vos, na gratidão do eleito, a palavra
de Machado de Assis: o «coração do companheiro». Mas vossa
bondade, escolhendo-me por voto unânime, esgota-me a capacidade de
agradecer. Senhores Acadêmicos.
Em toda a verdade, estou feliz: prezo a Casa e a Cadeira. Uma
Academia é sempre amável. Bem poderão confirmá-lo oso raros,
no Brasil ou não, que um dia a maldisseram ou desdenharam e uma
bela noite foram vistos de casaca dourada e espada à cinta, a pro-
ferir o elogio do antecessor. Se dedicada então à Arte o núcleo se
enriquece: é duas vezes academia. Esta, a que me trouxestes,
presidida por um nobre esteta de alma vernácula, ostenta a virtude de
sua própria posição. É a Arte no que tem de mais abrangente e de
mais acolhedora a sua filosofia.
Sois a fraternidade que se fez estatuto. No vosso espaço intelec-
tual, cruzam-se a pintura e a escultura, a arquítetura e a música, o
teatro e outras literárias. Sois a singularidade do plural e respon-
deis com um gracioso atraso, àquela carta em que Flaubert armava a
sua proposição conceituosa, mas implicante: "Du temps de Boileau
et de La Harpe on était grammairien, du temps de Saint-Beuve et de
Discurso de posse na Academia Brasileira de Arte, em 23-9-70. Salão Nobre da
Escola Nacional de Belas Artes, Rio.
MARCOS ALMIR MADEIRA
Taine on est historien. Quand sera-t-on artiste, rien qu'artiste, mais
bien artiste?"
A pergunta vindicatória de Flauherto envelheceu para os nos-
sos dias, bem apesar das aparências. A sensibilidade do artista ao
seu clima social e a rapidez com que insufla na sua obra as motivações
do grupo, em termos de realidades ostensivas,o abrem conflito com
o propósito estético, esse expediente insuprível e afinal eterno de
fazer as coisas bem feitas. O trabalho acurado é uma categoria do
amor, como toda ânsia de perfeição. Recordo-me de Humberto de
Campos a identificar em Oliveira Viana, escritor, o zelo de cavalheiro
que já sai de casa escovado, sem necessidade de voltar para qualquer
reparo.
Ainda recentemente, a mim mesmo me ocorreu lembrar que Wins-
ton Churchill, estadista de frase bem composta, dera à Inglaterrao
apenas eficiência, mas uma «eficiência bonita». Só a obra em que se
e limpeza é a que «fica, eleva e consola», como a glória definida pela
concisão machadiana. O insuspeito José Américo de Almeida dos
primeiros a levar o povo miúdo para o romance abriu a «Bagaceira»
com uma advertência que pode ser averbada de recado à demagogia
literária: «Brasileirismoo é solecismo nem corruptela. A plebe fala
errado. Mas escrever é construir.»
Escolher uma técnica de elaboração e cumpri-la às direitas é crité-
rio queo se confunde com a posição bizantina, ou com os rigores
do esteticismo imobilista e hermético. No trabalho de arte, necessa-
riamenteo se inclui a arte trabalhada em excesso; mas nenhuma
criação deixa de traduzir uma busca, uma conquista do equilíbrio vital,
que é a linha de dignidade pessoal do artista, expressa na sua aventura;
e está nisso a ética da sua estética — o seu brio. A bem pensar toda
a arte é compromisso interior. Seja assim cu não, o essencial de
nossa vida precária é perseguir e achar a beleza. Agora como nunca.
O avanço tecnológico, gerando a grande burocracia, ou a «nova
classe», produziu, por isso mesmo, como que um outro mundo semân-
tico. Assiste a sociedade industrial dos nossos dias, à maior crise de
sua própria fabricação: a crise do verbo. As palavras estão sofrendo,
vitimadas paradoxalmente pelo neo-verbalismo que vem da técnica. Já
o quero aludir à invasão da sigla, a brotoeja verbal da nossa época;
limito-me a observar que uma onda de fealdade agressiva ameaça var-
rer as últimas construções do gosto e da graça. A tal ponto e num
sentido tal, queo raros governos, contaminados pelo neobacharelismo
dos tecnocratas em concílio e delírio,o fazendo da vida política e
administrativa um mero jogo de nomenclatura; opera-se o progresso
pela mudança de nomes.o mais que isso. E surge uma espécie
de demagogia austera, creio até esquemática, a substituir a clareza do
lider tradicional pelos «standards» e maquinações vocabulares do espe-
cialista politicamente deseducado, estadista estabelecido em escritório
particular. E os grupos dirigentes passam a nutrir-se de «slogans».
NUMA OUTRA ACADEMIA
Por outro lado, a propaganda política, engenhada pelos burocratas da
grande indústria, vai absorvendo as técnicas e os centros de motivação
da propaganda comercial. E amesquinha-se. Os governos acabam
ilustrando a tirada pitoresca de Raul Pompeia, quando dizia do diretor
do Ateneu, o Barão, que «todo ele era um anúncio». Mas a fealdade
do anúncioo está apenas na vulgaridade, senão ainda no inevitável
processo tautológico, na monotonia da repetição, na repetição do truque,
no truque como técnica do Estado, no Estado «camelot», no cabotinismo
estatal, na estatização da filáucia. Nada menos artístico do que os re-
gimes de propaganda, contrapostos aos regimes de opinião;o os agen-
tes naturais da corrupção do gosto pela subversão da palavra.
Decididamente, esta que vivemos,o será uma bela época. Belo
será talvez, o perigo de viver. E cabe uma indagação: estaremos reas-
similando, por pressão dos acontecimentos, a filosofia do belo sinistro
o mesmo que nos tem levado à apologia das catástrofes, no louvor
tragicômico dos incêndios? Se a resposta vier positiva, restará à Aca-
demia definir-se por um brado: «Queremos D'Annunzio». Seria um
retrocesso, mas seria também uma forma mediterrânea de tentar a con-
testação do século ou pelo menos deste trecho de civilização contraditó-
ria, em que a inchação, jáo direi da técnica, mas da tecnocracia,
fruto do gigantismo febril e das formas paquidérmicas da produção em
massa, vai fazendo do Estado um gerador de feiuras, a começar por
uma demagogia queo tem sequer a desculpa do bom arranjo, mas
se esgalha pelo território político queo consegue conquistar,
«pomar alheio» em queo dá frutos, ao contrário do que acontecia
com aquele cajueiro do poeta de Raul de Leoni. ..
De toda maneira, somos uma sociedade afeiada pelos cacoetes so-
ciais que a tecnocracia vai produzindo. A propaganda, seu suporte,
banalizando indivíduos e instituições é a opressão das inteligências
desguarnecidas talvez a maior agressão sofrida pelo homem moder-
no, com a sua reatividade já reduzida, senão anulada pelos tóxicos
e narcóticos do Estado que se fez cartaz, anúncio, cliché, placar. Ei-lo
ai, o Estado berarnte, anunciante, amofinante Estado cénico de
Mussolini, o grande cartazista que,o contente da própria força, se
fez o químico da própria farsa. Atormentados pela malícia da suges-
o tautológica e pela pletora dos símbolos materiais, num mundo cada
dia mais audio-visual, assistimos à congestão da palavra, do som, da
cor, e dos ritmos. Nesta altura, uma Academia como a vossa é mais
que refúgio: é resposta.
Faltaria a mim mesmo, Senhores Acadêmicos, seo vos confes-
sasse que vejo, apesar de tudo, no horizonte intelectual dos nossos dias,
um tom de esmeralda, uma fímbria de esperança no destino do homem
novo.
É que a mesma civilização mecânica que agora atormenta, oprime
e descristianiza civilização atónita, supersônica, eletrônica, há de ser
MARCOS ALMIR MADEIRA
também a boa irónica: dará ao intelectual do futuro posição de prima-
do, missão e dignidade e de arbitragem social. O homem de espírito,
trabalhador das ideias, será o operário da redescoberta, uma vez que
a máquina já então lhe terá dado tudo, esgotando-se em si mesma.
A criatura, triunfando sobre os dados da vida ofegante,o terá senão
que operar com a inteligência recomposta; bem pouco com as mãos
somente para ligar as máquinas. A dinâmica da vida será a vida
do pensamento. E surgirá uma nova arte de conviver e recrear. Ou-
tras luzes brilharão na curva da História.
Sob este consolo ou esta esperança, pressentimento que a arte
e a sua filosofia pluralista serão o império do mundo que há de vir,
venho sentar-me na cadeira que me destes.o é uma cadeira: é
uma riqueza. Sua história faz-se com João Ribeiro, o padrinho, com
Roquette Pinto, o fundador e primeiro ocupante ,e com Múcio Leão,
a quem a bondade geral imagina venha eu substituir. E imaginar é
um direito individual que ainda hoje pela manhã, vigorava...
Ao insigne João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes, o esteta
cientista, seria de aplicar um daqueles registros com que Afranio Peixoto
definia levemente pessoas: «Homem que sabia coisas». Era bem isso o
sergipano de 1860: um homem de saber, de variadas notícias sobre muitas
coisas, uma criatura a par. Exerceu a crítica literária, frequentou a
linguística e a história, cavou no folclore e no jornal, esteve na ficção.
Vejo-o no entanto, em seu universo de curioso erudito, à luz da vocação
mater: a do professor votado à pesquisa. Na verdade, ensinou muito
e sempre. Em sua compleição intelectual, os traços mais fortes terão
sido a inteligência descobridora e o gosto de transmitir, de transferir
experiência, curiosidades, achados, ideias.o foi um douto na
torre, mas, ao contrário, uma alma difusora, pronta a abrir-se em pro-
digalidades para clero, nobreza e povo. Isso explicará, evidentemente
sua assiduidade ao jornal.
No jornal, aliás consolidou a sua posição de crítico e no «Jornal
do Brasil» precisamente, ali deixando uma espécie de cátedra vitalícia
de analista literário, que Múcio Leão honraria mais tarde, por uma
sucessão afetuosa, fiel e brilhante.
Mas Paulo Setúbal notou o ceticismo com que o mestre via o exer-
cício da crítica entre nós. E essa reserva acentua-se, de fato, em
«Páginas de Estética», um dos seus livros mais lidos e que primeiro li.
Creio que terá contribuído para as suas restrições à eficácia da pró-
pria lida, a condição de crítico ante o clima intelectual da sua época;
o tanto o gênero em si mesmo. A agressividade na crítica, como
nos concursos para o magistério superior, era um tique mental das
elites literárias daquele tempo. Ia por moda a polêmica desabrida,
feita de linguagem atirada e despida. O desaforo literário era elegante
como forma de brilhar em público, e as plateias vibravam ardiam. O
NUMA OUTRA ACADEMIA
próprio João Ribeiro, para dar um só exemplo, brigou brilhantemente
com Laet.o quero esquecer-me de um pormenor que tem força ou,
ao menos, seu poder de sugestão: os heróis da polêmica técnicos da
descompostura literária eram também sergipanos: Silvio Romero e
Tobias.
Mas o desbravador da «Floresta de exemplos» era, em essência,
uma alma doce. E quandoo o era, terá sido mais irónico do que
mordaz. Seu bom humor talvez seja a hora de consignaro
o vejo comentado com a frequência e extensão merecidas. Lamente-se;
porque o certo é que, nesse plano, aparecia muito claro o João de
maior interesse acadêmico: o esteta espontâneo, o homem de gosto.
Na própria obra folclórica, esse João já contava pontos. E foi tam-
m nela que se abalizou. Nada mais natural: tinha ele o zelo de
certas coisas ou valores que vem do fundo do tempo e o folclore é
sempre uma «estratificação do passado».
Mas o esteta de corte clássico expandiu-se ainda no poeta, que
o foi, embora intermitente.o lhe faltou a inspiração helénica e
mesmo de amores helénicos, com um tanto de sensualidade e outro
tanto de lirismo contemplativo, o que me parece perfazer um quadro
de subjetivismo deveras expressivo, fixação em certo estilo de amor
ou em certos detalhes da sedução feminina. Ei-lo na exaltação de
Fúlvia:
Entras no banho, Fúlvia, e a linfa mansa
Onde teu pé mnergulha, estaca e mira..,
Tudo se espelha n'água sonorosa
Que de vaidades cálida borbulha
Ante o misto de mármore e de rosa!
o sei se será de bom gosto inculcar analogias. Por sim e por
não, rogo à Academia que me absolva do cotejo. O trecho do soneto
barroco, que acabo de ler-vos, dá-me de volta Martins Fontes. E
já agora, neste outro, a evocar os sons gloriosos de Pompeia, é Alberto
de Oliveira que estou vendo no alto do seu parnasianismo:
Repara bem. . . Escuta os címbalo hiantes,
Mais a cítara, e o plectro, e as trompas sonorosas
E, das doces e imortais avenas soluçantes,
Os sons que andam no ar cheirando como rosas.
João Ribeiro, como homem de ação literária, fez muito ou quase
tudo e tudo o que fez veio bem feito, muito principalmente se consi-
derarmos a consonância da sua produção com os padrões estilísticos do
seu momento histórico.
MARCOS ALMIR MADEIRA
Só o vi duas vezes. Da primeira, cheguei a falar-lhe. Era eu
estudante e fui-lhe apresentado na confusão da Praça Mauá (a coin-
cidência é excelente) por Múcio Leão, seu carinhoso e lúcido testa-
menteiro intelectual.
Já o sempre lúcido Edgard Roquete Pinto, um antropólogo que
viveu poesia, vi-o muitas vezes. Houve época em que o frequentei.
Era uma organização mental de objetivista, ou de afirmativo, e de ro-
mântico. E assim foi a sua obra, a incrustar no mesmo ouro brilhantes
diferentes.
Por definição vocacional e profissional foi um coletor de realida-
des físicas, psico-físicas, antropossociológicas, político-sociais .econô-
micas, educacionais, mas foi também capaz do sonho. Havia nele
um pragmatismo muito mais deduzido dos esquemas do homem de
ciência do que vivido pela criatura propriamente. O idealista deu as
mãos ao pesquisador do fato puro, como o patriota exigente e crítico
fez aliança com o nativo apaixonado, a vibrar pelo seu ub, pelo seu
distrito, pela sua cidade, pelo seu Brasil. Antes de mais, por seu
Brasil povo, nação, gente. Foi uma sensibilidade de interesse nacio-
nal, uma inteligência de utilidade pública, um romântico com oss
na terra, debruçado euclideanamente sobre a traição da floresta e a
restinga, vendo o homem, a árvore, o rio e os bichos, as pedras e as
flores do Brasil. Seu sentido poéticoo foi uma concessão do antro-
pólogo brasiliano, mas um excelente derivado da sua própria presença
no campo da antropologia, que lhe deu as chaves da compreensão, desde
logo humana, do processo cultural endógeno. Além disso, como antro-
pólogo, etnólogo, sociólogo e muito apesar de pensador denso,o
começou pelas teorizações, mas pela chamada observação participante,
perquirindo, vendo com os próprios olhos o material da realidade poé-
tica, a poesia viva. E esse material, massa de manobra intelectual
fascinante, bem o sabeis, foi a natureza soberana, foi a beleza, foi o
mistério, foi a complexidade dos elementos telúricos.
Sua escavação, suas coletas, seus «work fields», seus inquéritos,
seus contatos procuravam atingir certos alvos em que a poesia,o
dos homens, mas da vida nua e pura era, é e será uma categoria
dos valores imanentes.
A obra de Roquette é assim poética ou de poesia em latência.
Como seo bastasse, o escritor, que ele o foi, soube plasmá-la em
estilo de harmonias e suavidades.
Estimava a amenidade. Impugnou, no discurso de posse na Aca-
demia Brasileira, a palavra copiosa. Estariam, já, nesse sinal de
delicadeza interior e de gosto, um certo gosto de poeta e a tendência
para um certo tipo de poesia? Creio que sim, a julgar pela tessitura do
poema de encantadora leveza, que só em 1957 foi publicado, graças
à teimosia benéfica do jornalista Francisco de Assis Barbosa.
NUMA OUTRA ACADEMIA
AVE MARIA
Vejo daqui o sino — é a igreja da glória,
batendo a Ave Maria. . .
Desta minha janela, bem na beira do mar,
vejo morrer o sol. As montanhas parecem
polvilhadas de ouro;
e as velas dos barcoso como gaivotas
enormes
descansando no azul das águas sossegadas.
Na folhagem das árvores da praia
ouço a algazarra infrene dos pardais,
enquanto a lua sobe
hóstia solene e imensa«
no altar do infinito. . .
Ave Maria!
É a hora do lar das crianças felizes. . .
Um ruído de passos... uma porta...
Era ela!
Era Ela que o sino anunciava. . .
Era Ela que trazia ao meu teto a esperança!
trazia no sorriso o sol da minha vida.. .
Ave Maria!
É a hora mais triste do meu dia. ..
o é apenas um sentimento de ternura que percorre os poemas
do médico indianista.o apenas a ternura vaga, mas uma bondade
expedita que emborao ocultando a nota melancólica, como que se
envolve e carrega uma dupla esperança de viver para assistir e ser
assistido, docemente acompanhado. Esse estado d'alma ele nos comu-
nicou em francês, quando compôs «Chanson pour la bien aimée», quase
uma balada.
Tu seras ma tendresse...
Et le jour et la nuit.
pendant mes heures moroses,
pendant mes heures benies. ..
Tu serás ma tendresse
Tout le long du chemin
qui monte vers 1'azur
serpentant sur les cotes
ou des pierres hostiles
blessant nos pas si vieux. ..
MARCOS ALMIR MADEIRA
Tu serás ma tendresse
de tout mon avenir...
Ainda uma vez, a expressão de melancolia sem amargura é nítida
e bela talvez mais bela ainda em
PROFISSÃO DE FE
Tenho pena infinita desses todos
que se arrastam na vida, miseráveis,
porque buscam curar um desengano
procurando enganar-se. ..
Nada adianta
Ser desonesto assim consigo mesmo.
Ser homem
o é criar fantasmas de alegria
para dormir nos braços da ilusão!
É olhar o mundo
Fitando as dores, como o gavião
e os olhos no sol. ..
É sustentar a vida
queimando a fogo lento o coração
na chama da esperança. ..
Parece-me que dentre as suas realizações poéticas, esta é a mais
roquetiana. Porque a fé no destino do homem — e era o homem
brasileiro visivelmente vem a ser a substância moral e superiormente
política do poema.
Em qualquer hipótese esse, em versos, é o Roquete que a grande
maioriao conhece, mas vem a ser, por excelência, em gênero e
substância, o sócio desta Casa da Arte. Convémo esquecer que
foi ele próprio quem disse da Rondônia: «A poesia daquelas terras
infiltrou-me o pensamento». A Academia me fará a justiça de reco-
nhecer que a observação, de há pouco, sobre a imanência do sentido
poético na obra viril de Roquette, encontra no seu auto-depoimento
uma auto-definição: a poesia infiltrou-o (o verbo é consistente, defi-
nitivo) .
Mas por que comprovar o espírito artístico do fundador da minha
Cadeira, recorrendo a certas especulações que se alongam, se posso
mudar de tecla, recordando o pianista? Mais que isso: poderei lem-
brar que era ele também compositor e que a sua «Ave Maria»z época.
Já antes havia musicado o Soneto XXIX, de Camões, e o poema que
mais admirou em Vicente de Carvalho: «Folhas soltas». Eo é
: o cantor realizou-se no barítono, sempre aplaudido em plateias
secretas.
MARCOS ALMIR MADEIRA
A Villa-Lobos prestou um alto serviço, trazendo-lhe, para as admi-
ráveis harmonizações de sempre, material da tribo dos Parecis.
Um outro registro significativo: tinha em casa uma pequena ofi-
cina, onde o seu trabalho exprimia a coerência de quem entendia como
Augusto Comte, que «o trabalho manual é a salvação do pensador».
Foi ali, naquele apartamento da Avenida Beira Mar, que o criador
do rádio e do cinema educativos trabalhou, tanto quanto no Museu Na-
cional, na sala de aula e nas viagens de estudos, «pela cultura dos que
vivem em nossa terra». E deixou, ao compor o seu belo «Credo», esta
advertência digna de sua clarividência e do seu patriotismo de brasiliano
civilizado: «No estado de inquietação do mundo moderno, só há um
meio de manter a ordem material: é garantir a mais ampla, absoluta
e definitiva liberdade espiritual».
Roquctte Pinto teve um sem número de admiradores entusiastas.
Um desses tantos, como várias vezes pude sentir, e por uma coincidência
de todo em todo feliz, foi o meu caro e festejado antecessor nesta cadei-
ra de professores, como diria o sempre lembrado Álvaro Lins.
Confrontando com João Ribeiro e Roquette, Mucio Leão, escritor-
jornalista, e um antônimo perfeito de barroco, foi o de atividade docente
menos contínua ou de caracterização menos ostensiva. Ensinou na
antiga Faculdade Nacional de Filosofia, para o inquieto Curso de
Jornalismo. E esse registro é de muito interesse.
Por certos dispositivos essenciais de temperamento e pelo que tinha
de mais inerente o seu estilo, o inesquecível e lúcido empresário de
«Autores e livros» era um escritor-jornalista. Toda sua lufa-lufa acaba
em jornal ou no jornal se firma. Com 21 anos, o esbelto pernambu-
cano, tio bem louvado pelo Sr. Barbosa Lima no discurso da saudade,
chega ao Rio avidamente. Foi isso em 1919. De saída, redator do
«Correio da Manhã».
Mais tarde, indicado por João Ribeiro (vede como é tecida de
coincidências esta Cadeira) ei-lo redator do «Jornal do Brasil». A
sua coluna era sempre a literária. O primeiro livro «Ensaios Con-
temporâneos» reúne estudos publicados exatamente na imprensa,
a começar pela do Recife.
Essa fixação no jornalismo na função repórter inclusive
explica-se, como vos ia dizendo, pela soma dos fatores de base: a
índole da criatura e seu tipo de gosto.
Era um grande curioso. E curioso inquiridor. Indagava de
tudo a todos. Sua própria conversa na sala dos professores da nossa
Faculdade ou na beira da calçada, dava-me a impressão de que eleo
palestrava: entrevistava. O colega de magistério e o ilustre acadêmico
desapareceriam no repórter. A arte da sua construção literária de
jornalista estava noutra: na de saber jogar com os pequenos fatos, cujo
valor foi sempre exímio em descobrir e comentar.
NUMA OUTRA ACADEMIA
Disse-lhe uma vez que ele sabia engordar o cotidiano. Respon-
deu-me que, por isso mesmo, estava emagrecendo. . . Essas agilida-
des, peripécias a que ele se lançava naturalmente, sem qualquer afe-
tação, era uma outra explicação convincente para suas boas relações com
o jornalista. E louvemos o principal: a comunicabilidade em função
da clareza a simpatia verbal, exigência primeira do bom estilo jorna-
lístico. O seu período era liso e límpido. Reto, discreto, correto.
Tudo simples, sem ornatos. Nada janota.o vinha no trinque;
vinha simples. Frase chibante nunca lhe soube. Seu paladar artístico
vetava o estrepitoso, o enfunado, o farfalhante. Nenhuma dificuldade
em ser fácil. Tinha a coragem de ser simples. Ia além do que pedia
Nabuco:o escrevia apenas para o seu leitor, mas todos os leitores.
A arte do seu processo expositivo estava na boa circulação do argu-
mento central. Além disso, na distribuição dos conceitos laterais como
quem aproveita e combina matizes, dimensões e ritmos, no jogo dos
complementos que põem a brilhar ou a perder o arranjo do traje, no
homem como na mulher. Múcio, a meu ver, tinha isto de bem seu:
sabia jogar também com os accessórios.
Mas o seu sentido de dosagem< e nesse ponto a virtude é de
jornalista e de acadêmico revela-se, de mais a mais, na perícia com
que escolhia meios tons e sobretudo na capacidade de redução. A
síntese entrava na composição do seu mérito.o a síntese que es-
trangula o temao telegrama literário, a literatura esprimida; mas
um jato de agudeza e de espírito seletivo sobre o coração do assunto,
nervo da ideia ou do problema. Era a ligeireza com espírito •—o o
espirito da pressa pela pressa, mas a rapidez artística ou arte da
simplicidade que fica, antônimo de barroco.
Servido por essas qualidades que perfaziam a sua comunicabili-
dade, teria de ser, além de comentarista literário, o cronista propria-
mente considerado.
O ficcionista brilhou fora da barra. Deu-lhe um prêmio o Insti-
tuto de Cooperação Intelectual de Genebra: seu romance «Promessa
inútil» foi ali proclamado, na época, o melhor livro do ano, no gênero.
Mas o prémio que lhe terá sido mais caro, se posso conjeturar, foi
o das palavras de Humberto de Campos, quando apontou as «afini-
dades de técnica e de pensamento» entre os seus «Ensaios» e o «Memo-
rial de Ayres», de Machado de Assis.
A mesma simplicidade pessoal e artística levou-a Múcio Leão
para a poesia. Medite-se no conselho que ele rimou e metrificou nestes
dois tercetos:
Entrai à porta menos nobre.
Bebei do mais humilde vinho
Que der a mais humilde mão.
MARCOS ALMIR MADEIRA
Lenibrai-vos, sempre, que o caminho
Quer mais árido e mais pobre
É que conduz à perfeição.
Às vezes empluma oo no rumo do épico, interrompendo a cria-
ção coloquial e de maior simplicidade na mensagem. Vem mais ambi-
cioso na forma e na temática; ainda assim,o há nele o problema da
distância poética. Ao contrário: dá-se logo a transfusão sentimental.
O artista penetra o leitor, confunde-se com ele, mistura-se com toda
gente, que nele encontra o seu poeta. Eis o toque de universalidade
da sua eloquência moça, nesta estrofe do «Tesouro Recôndito».
É noite. Os céus fulguram, silenciosos.
Novas constelações desabrocharam
Como jardins ardentes, num tremor.
Eu sonho, sob os astros generosos,
Como um dia, há milenios, já sonharam
Meus primeiros avós na terra em flor».
Múcio Leão amava o oficio de escritor.o fazia apenas
pensava e vivia literatura. «Não sou senão escritor e sinto que o serei
a vida toda» disse e escreveu. Tinha, por isso, o sentido da corpo-
ração, que será o da lógica profissional. E foi com essa lógica que
abriu seu discurso de posse na Academia Brasileira: «Se há em meu
país, uma instituição que congregue os escritores, a ela devo e quero
pertencer». E sua filosofia das aspirações acadêmicas, lá está tam-
bém, com a arte veterana da sua clareza, no átrio da oração de posse:
«Todo aquele que ambiciona uma cadeira de Academia comete um
ato de humildade espiritual. O gênio é, por sua natureza, áspero e so-
litário. Ele caminha isolado, e em si mesmo encontra a sua força e o
seu calor.s outros, aqueles que sabemos medir o nosso limitado
horizonte,s é que sonhamos com o grupo e a companhia. As
águias voam solitárias; as andorinhas é que voam em bando».
É minha, também, a filosofia do herdeiro espiritual de João Ri-
beiro. Só a ilustre palavra do meu paraninfo, o poeta Alfredo Cum-
plido de Sant'Anna, poderá talvez investir-me em certas ilusões. Vou
ouvi-lo com o gosto, e esta noite, Senhor Presidente, com a alegria da
própria emoção. Depois, minhas senhoras, vou ver-me a mim mesmo,
como aconselharia o romancista-mor: «claro e quieto». E me verei
todo. Logo voltarei, senhores, à realidade própria, caindo em mim na
cadeira que me destes. É que já então, calando-se o padrinho, terá
sido feito, nesta Casa da boa medida, o desconto da saborosa bondade
brasileira.
DEPARTAMENTO DE IMPRENSA NACIONAL
1972
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
12
Abril/Junho 1972
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO
Octávio de Faria
Manuel Diégues Júnior
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Mello Franco
Redação: Palácio da Cultura 7° andar
Rio de Janeiro Brasil
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
ANO IV - ABRIL/JUNHO - 1972 N.° 12
Sumário
ARTES
RENATO MENDONÇA A Gravura instrumento de co-
municação: de Durer a Ru-
gendas 9
VICENTE SALLES Editoras de Música no Pará .. 17
LEANDRO TOCANTINS Brasil, Trópico Cinema .... 37
CIÊNCIAS HUMANAS
PESSOA DE MORAIS Reparo Crítico a um Geógrafo
Francês 49
EDILBERTO COUTINHO Rondon e a Política Indigenista
Brasileira no Século XX. 61
TEIXEIRA SOARES O Drama da Missão Saraiva... 69
LETRAS
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
OCTÁVIO DE FARIA
ADONIAS FILHO
R. MAGALHÃES JÚNIOR
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO ..
Camões Roteiro de uma vida
e de uma obra 89
Discurso de Posse 103
Recepção a Octávio de Faria . . 117
Um Dom Casmurro Trágico
nas Relações de Machado
de Assis 125
Manuel Bandeira, o Escritor e
o Amigo 133
artes
A Gravura Instrumento de Comunicação:
de Dúrer a Rugendas
RENATO MENDONÇA
A
gravura foi o instrumento de comunicação mais antigo e fiel de
que dispôs o homem para a mútua compreensão.
É merecedor de citação o termo de sua origem, pois, segundo
o velho provérbio, nada existe melhor neste pobre e devastado planeta
que dar aos bois o seu próprio nome. . .
E com efeito, segundo a etimologia, duas origens foram propostas
para o vocábulo: a primeira hipótese o fez derivar do grego graphein,
o que quer dizer escrever; a segunda, mais aceita entre os «connaisseurs",
atribui-lhe como berço o vetusto vocábulo do alto alemão grabau
(graben), o que significa esburacar, cavar... Na verdade, desde os
tempos primitivos, para combater a solidão contra a qual até hoje o
homem moderno se debate malgrado a companhia soi-disant instru-
tiva dos programas de televisão, o homem das épocas aurinaciana
e magdaleniana matava o seu tédio através de desenhos insculpidos na
pedra, depois no osso e finalmente no metal.
Dessa forma, a humanidade, em busca da luz e das verdades eternas
do conhecimento, muito sofreu e padeceu até encontrar as formas crista-
linas, que se traduziram em peças esplêndidas, tais as estampas de
Albrecht Durer ou de Rembrandt.
Vem-nos a tentação de comparar essa transformação das matérias
primas com aquela magia técnica que fez virar as areias de Tiro e Sidon
RENATO MENDONÇA
em delicadas e frágeis mostras de vidros, até chegar à perfeição do
«baccarat e dos cristais da Boémia. . .
Na verdade, em sua ânsia pela expressão e pela libertação de seu
pensamento, nenhuma arte humana traduz mais visualmente que a arte
da gravura essa batalha travada durante milénios; desde as manifestações
do gravador da idade da pedra, do pintor das covas de Altamira, do
do muralista dos palácios de Knossos que nos deixou o famoso afresco
da «Parisienne» até atingir o suprassumo da placa de cobre de Durer
e seus contemporâneos ou uma água-forte de Rembrandt e seus imita-
dores.
Quantos milénioso careceu entretanto aquele artista «amateur»
e rupestre da Europa pré-histórica para evoluir darwinescamente até o
artista e entalhador máximo do gótico germânico ou do bucolismo
neerlandês? Deixa-nos à imaginação a resposta devida, assegurando
desde já que apresenta uma gama das mais variadas.
* * *
A vastidão da matéria ou seja a gravura como meio de comu-
nicação nos levaria a divagações infinitas. Vou assim recordar velho
ditado muito apreciado pelo meu saudoso mestre e eminente latinista
o Professor Rozendo Martins (da antiga Escola Militar do Realengo
e sabatinador dos frades eruditos do Mosteiro deo Bento) . Dizia
o mestre: «os Deuses tiravam a razão àqueles que queriam perder»...
Hoje diríamos teleguiados que somos sem roteiro certoo
chegaremos as metas...
O nosso itinerário começa portanto em Dürer e seus coevos, ou
seja o apogeu da gravura em metal e madeira do século XVI na Alema-
nha gótica de Nüremberg. Faremos no futuro, em outra ocasião, uma
excursão pelo Reijskmuseum de Amsterdam e pelo Boymans Museum de
Rotterdam, onde se entesouram as maravilhas do século XVü holandês
nas águas-fortes de Rembrandt e Lucas van Leyden. E como estamos
nos 150 anos da Independência, damos um salto para colher outro
alemão de gênio menor maso menos fidedigno no seu labor ou
seja João Maurício Rugendas, autor da famosa «Viagem ao Brasil» e
decorador obrigatório da paisagem brasileira no primeiro quartel do
século XIX.
o deixarei passar em silêncio e me apraz imenso render um
tributo todo especial à escola francesa do século XVIü, que nos daria
depois Debret e Lebreton. De fato naquela época viveu uma das flores
da cultura feminina, grande protetora das letras e da arte de gravar:
Jeanne Antoinette Poisson, Madame d'Etoiles, Marquesa de Pompadour
(1722-64), favorita amante de Luís XV e da qual François Boucher
traçou um romântico e famoso retrato a óleo em 1758, hoje em poder
da felizarda Albion («Victoria and Albert Museum»).
A GRAVURA INSTRUMENTO DE COMUNICAÇÃO: DE DURER A RUGENDAS
Aqui consignamos o nosso preito e homenagem à célebre Dama.
que forçou a Nobreza da França a aprender a gravar, se pretendessem
galgar a escala do favor real pelo caminho mais seguro e certo. ..
* * *
A invenção de Guttenberg trouxe novos horizontes para o homem
comum. Pois a cultura então privilégio de poucos pôde chegar à massa,
sem perda de substância ou qualidade. No campo da gravura, houve
um despertar acelerado, em busca do tempo perdido,o só pela
disseminação das ideias e das palavras, como através de gravados
impressos.
A gravura iluminou o caminho da literatura e tornou-se a fonte de
informação para o iletrado. Na Alemanha, o artista que representou o
papel de estrela maior foi Albrecht Dürer, porque, além de ser um dos
maiores pintores alemães de seu tempo, suas gravuras tiveram uma
influência considerável em toda a Europa.
Nascido em Nüremberg e filho de um ourives, Dürer foi aprendiz
no estúdio de Michael Wolgemut, depois de haver assimilado o metier
paterno. Segundo afirma John Lewis, em seu prodigioso livro «The
Anatomy of Printing» (Londres, Faber and Faber Limited, 1970),
Wolgemut como muitos pintores daquela parte da Alemanha, exercia
também a profissão de ilustrador, como desenhista e pintor de assuntos
religiosos (pág. 64). Então os burgueses ricos e as casas de negócios
encomendavam essas estampas religiosas que até hoje decoram os muros
das paredes dos mercados populares, seja na Europa ou no Oriente,
•em que os industriosos comerciantes indianos espalhados desde Singa-
pura até o Zanzibar, se identificam pela sua adesão mítica às imagens
de Brahma, Shiva ou Vishnu.
É curioso notar que os clientes de Wolgemut tinham um «pendant»
mórbido por estampas com cenas de martírio e tortura, o que se compen-
sava aliás com o fino traço no tratamento das vestimentas e na paisagem
repousante de fundo. Dürer encontrou-se desta formao só praticando
o difícil comércio da pintura, como colaborando na produção de xilo-
gravuras destinadas a ilustrações de livros, produzidos em larga escala
pelo atelier de Wolgemut.
Em 1490, Dúrer terminou seu aprendizado. E com o objetivo de
conhecer a técnica da gravura «intaglio», deslocou-se em 1492 para
Colmar, onde estagiou com os irmãos do célebre artista Martin Schon-
gauer, a quem a ceifa da morteo lhe permitiu conhecer em vida, por
questão de alguns meses.
Os irmãos Schongauer trabalhavam na melhor tradição germano-
flamenga, de que Dürer logo se apossou e transformou em seu próprio
e inconfundível estilo pessoal de gravar.
RENATO MENDONÇA
O dedo do gigante fazia-se sentir. Apenas Dürer começava a
desenhar num bloco de madeira, ou pegava de um buril, o manto da
tradição gótica pousava em seus ombros, com o peso dos séculos vividos.
E parecia aderir à obra lavrada, como outrora a túnica de Nessus fizera
o tormento de Hércules. ..
Dois anos mais tarde, ele fará sua peregrinação à Itália recebendo
da obra de Mantegna e de Giovanni Bellini uma profunda e duradoura
impressão. Dessa viagem à Itália, datam suas maravilhosas aquarelas
das paisagens dos vales alpinos que formam um contraste violento com
as estampas posteriores da série dos «Cavalheiros do Apocalipse» e da
jamais igualada gravura da «MELANCOLIA», com seu quadrado
mágico.
Ao retornar a Nüremberg, resolve casar-se e abrir seu próprio
atelier, revelando-se então já senhor de todo o aperfeiçoamento que um
artista do Norte poderia adquirir no sul da Europa. Assinala o Professor
E. H. Gombrich, em sua clássica obra «The Story of Art» (Phaidon,
Londres, 1970) com muita propriedade: «He soon showed that he had
more than were technical knowledge of his difficult craft, that he
possessed that intense feelling and imagination which alone make the
great artist» (pág. 251).
Um dos seus primeiros trabalhos de vulto foi a série de grandes
xilogravuras ilustrando a Revelação deo João. O Mundo da Idade
Média, que agonizava então, tremeu em seus alicerces ao contemplar
aquelas visões aterradoras de pesadelos, que jamais haviam sido pintados
com tanta imaginação, força e poder. . .
Aproximava-se o Dies Illa, solvet saeculum in favilla. Dürer profe-
tizava as transformações da Igreja, que gerara descontentamento geral
na Alemanha de então. Dürer antecipava-se a Martinho Lutero e à
Reforma, tanto alcança o gênio profético do artista .
Vejamos só uma daquelas terríficas evocações da série da Revo-
lução. «São Miguel lutando contra o Dragão». Maso é oo Miguel
convencional des no chão ou o Seráfico espadachim. Não, é oo
Miguel com cara de lutador, digladiador de Circo Romano, pois ele usa
ambas as mãos para enterrar na goela do Dragão a sua lança avantajada,
fazendo um esforço homérico, tal o Homem lutando no Espaço contra
o vácuo e o Desconhecido. A inspiração vem da letra do Evangelho
deo João, Cap., versículo 7:
«E havia guerra nos céus: Miguel e seus anjos combateram contra
c Dragão; e o Dragão combateu e seus anjos, eo dominou; e nem
encontrou mais o seu lugar no céu.»
Em meio porém à angústia do combate, transparece a presença
serena do artista; enquanto se desenvolve a luta mortal no firmamento,
vislumbra-se no fundo do quadro a doçura bucólica de uma paisagem
da Renânia. . .
A GRAVURA INSTRUMENTO DE COMUNICAÇÃO: DE DURER A RUGENDAS
Os «Quatro Cavalheiros do Apocalipse», que saiu entre os 16
desenhos ilustrando a edição do «Apocalipse» em 1498, a xilogravura
atinge o apogeu da perfeição enquanto o flagelo se abate sobre a
Humanidade, semelhando o Hiroshima da época.
Um grande conservador do «British Museum»., Sidney Colvin
comentou meio século atrás o poder de evocação desta série: «The
northern mind had long dwelt with eagerness on these phantasmagoric
mysteries of things to come... Dúrer conceived a set of designs in
which the qualities of the German late Gothic style, its rugged strenght
and restless vehemence, its love of gnarled forms, writhing action and
agitated lines, are fused into sormething of the power he had seen iu
Mantegna's worlks.» (apud John Lewis, op. cit. pág. 64).
Esses gravados esplêndidos representam a quinta-essência da
Cultura Gótica e sua influência iria perdurar na Alemanha longo tempo
depois da Renascença clássica haver dominado a arte da ilustração do
livro em outros países.
o resisto à tentação de evocar a prolongada viagem de Dürer
à Veneza, em 1505, onde permaneceu 18 meses. Fora em busca de
novos mercados para suas pinturas e gravados, além de atender a um
chamado da comunidade alemã em Veneza, que lhe pedira decorar a
Igreja deo Bartolomeu. Aí pintou ele a «Madona com a grinalda
de rosas», peça do altar-mor, enquanto Ticiano e Giorgione trabalhavam
nos afrescos da mesma igreja.
Volvidos cerca de cinco séculos e meio, podemos conjecturar o que
o seria o diálogo e comercio espiritual entre esse Tríptico excepcional.
Também os gênioso vítimas da centelha da inveja. Ê de Veneza
que Dürer escreveu várias célebres cartas ao seu maior amigo e grande
humanista de Nuremberg, Willibald Pirckheimer, de quem deixou
um retrato fiel. E é de lá que descreve a inveja que suscitou sua presença
entre os artistas menores italianos. A alta posição que atingiu entre
os Venezianos e sua amizade íntima com os dois irmãos Bellinio lhe
foi perdoada.
Entre 1507 e 1520, já com reputação europeia, Dürer leva uma
vida cheia de glórias e relativa felicidade, malgrado uma esposa rabu-
genta. Sua viagem aos Países Baixos em 1520 para assistir à coroação
de Carlos V permitiu-lhe descer o Reno até Antuérpia e constatar a
fama e o renome de sua obra. Teve então uma recepção à altura na
Corte e fez amigos célebres, convivendo longo tempo com Erasmus de
Rotterdam e Lucas van Leiden.
Seu livro «Geometria e Proporção» apareceu em 1525 e foi publi-
cado em Nuremberg. Aí expôs suas famosas teorias sobre geometria,
perspectiva, proporções humanas, letras de forma e até fortificações. O
RENATO MENDONÇA
livro sobre perspectiva surgiu em 1527. A «Proporção Humana» foi
obra póstuma.
Ao saber da morte de Dürer em 6 de abril de 1528, escreveu
Martinho Lutero: «uma afeição sincera me enluta por alguém que foi
o melhor dos homens» e acrescenta que ele teve um final de vida muito
bom, pois «Cristo o tirou do meio deste tempo de agitação e de maiores
agitações em estoque.» Merecia ele pois o descanso e a paz entre seus
antepassados, cujo mundo e tradição ele recriou através de uma obra
comparável a uma Catedral ensolarada, seja em Chartres, em Sala-
manca, ou Constantinopla. Onde tocaram os dedos mágicos de Albrecht
Dürer parece que o Criador lhe transferiu esse poder divino e invisível
da poesia, que ilumina a pobre existência dos comuns mortais.
* * *
Agora nos toca insistir no ponto básico de nossa pesquisa: a gravura
instrumento de comunicação. Representou ela um papel fundamental
para a fama de Dürer que se deveu em larga escala à difusão conside-
rável de seus gravados e xilogravuras. A pena é mais poderosa que a
espada disto já se lembrava Júlio César ao narrar ele próprio in De
Bello Gallico as proezas do soldado. O buril, entretanto, é algumas
vezes mais poderoso que a pena do escritor.
Quando as duas se aliam a pena e o buril — à prensa de imprimir,
forja-se uma formidável arma comparável aos modernos mísseis dos
submarinos «Polaris». Por isso, Germain Bazin descreveu como «o
conflito entre o Panteísmo germânico e o Idealismo da Renascença» o
amálgama criado pela obra de Dürer, que mostrou como os artistas
alemães tinham horizontes e objetivos completamente diferentes daqueles
dos humanistas florentinos.
Os livros impressos alemães dos séculos XV e XVI estão cheios
de ilustrações de gravados, enquanto poucos antigos livros italianos
eram ilustrados. De fato, os humanistas da Renascença consideravam
o diálogo impresso como suficiente, enquanto os alemãeso prescin-
diam das imagens góticas reveladas por artistas do calibre de Dürer e
Hoibein, imagens que consideravamo importantes como a palavra
impressa. Realmente o Mundo gótico alimentava-se dessas imagenso
só na cidade medieval de Nürernberg, onde pontificam as pinturas e
gravados de Dürer como também da obra de outros artistas geniais
como Burgkwair em Augsburg, Altdorfer em Regensburg e Lucas
Cravach em Wittenberg.
Como lembra John Lewis, os Holbeins, Burkmair e Cravach levaram
grande parte de sua existência a gravarem e ilustrarem livros. O próprio
Dürer trabalhou junto com Burgkmair em fazer gravados para o Impe-
A GRAVURA INSTRUMENTO DE COMUNICAÇÃO: DE DÜRER A RUGENDAS
rador Maximiliano I, depois impressos em Augsburg por Johan Schóns-
perger, o Velho.
As famosas impressoras de Basel na Suíça atraíram os Holbeins
para a colmeia de seus célebres ilustradores de livros. Seus editores
mais em destaque eram as gráficas Petrus, Wolff e Froben. O primeiro
encargo de Holbein foi ilustrar o Moriae Encomium de Erasmus de
Rotterdam. Suas ilustrações incluíram também as celebérrimas xilo-
gravuras, 41 ao todo, conhecidas como a «Dança da Morte», repre-
sentando episódios do Evangelho da «Bíblia» de Lutero e que eram
verdadeiros cartões satíricos sobre a ruidosa questão da venda das
indulgências.
É preciso lembrar que essa macabra missão da morte foi concebida
na França de 1485, com a Danse Macabre de Guyot. O temao
poderia ser mais arrepiante: três homens mortos e em putrefação dançam
com suas imagens vivas. ..
D medo da morte era na Idade Média o mais forte e as pragas
reincidentes justificavam o pavor permanente.
A xilogravura prosseguia desta forma sua tarefa de meio de ilustra-
ção na Alemanha, embora a gravura sobre o metal para a ilustração
do livro estivesse em uso nos Países Baixos e na Itália muito antes do
fim do século XVI.
Para concluir, quero reportar-me ao trabalho do Dr. F. Anze-
lewsky, «L'Allemagne au temps de la Reforme» (1450-1550), inserido
na magnífica publicação do «Palais des Beaux-Arts» de Bruxelas,
«Dürer et son temps» (1964).
Afirma o referido Professor: «1'invention de Iimprimerie par
Johannes Grensfleisch, dit Gutemberg, 1'orfèvre de Nayence, peut être
considerée comme 1'événement le plus important de l'histoire d'Allemagne
au XV
o
siécle. II né s'agit point cependant d'un fait isolé, mais qui
doit être mis en concordance avec deux autres inventions techniques
de la même époque: la gravure sur bois et la gravure sur cuívre au
service de Illustration».
Com efeito, foi a extensão desses novos processos da publicação
através da Europa inteira que, em algumas décadas, comprova a sede
de conhecimentos em todos os países.
Fica assim demonstrado que a gravura foi e continua sendo meio
fundamental de comunicação e instrução para a massa da Humanidade.
Comprova isso a floração da arte dos «affiches» que fizeram tanto pela
glória de Toulouse-Lautrec como desse gênio do século XX, que é
Picasso.
Entretenimento de pobres e ricos, de jovens e velhos, desde a
imagem popular até as sofisticadas estampas abstratas, a gravura forma
um mundo à parte, de sonho, fantasia e deslumbramento.
Editoras de Música no Pará
VICENTE SALLES
1
N
ÃO se tem levado muito em conta, no Brasil, o papel que as editoras
de música desempenham na difusão da obra dos compositores.
Em consequência,o se tem valorizado aquela função, que lhe é
inerente, de fornecedoras do material que tanto interessa ao artista — o
intérprete - como ao historiador, musicólogo ou musicógrafo: a obra
dos compositores, tornada acessível a um grande número de pessoas
graças precisamente à difusão impressa. Esta função, apesar do avanço
da tecnologia sobre as formas tradicionais de comunicação, aindao
perdeu sua validade. Portanto ainda pode ser avaliada através do
tempo, como o deveria aliás ser na medida em que a indústria e o
comércio se desenvolvem, i. é, no momento de sua expansão, associada
aos demais elementos propulsores da criação artística.
Há certamente referências esparsas. Estas ressaltam muitas vezes
o aspecto negativo, ou o menos louvável, da empresa aquele polvo
insaciável que tudo devora visando unicamente a fins pecuniários
em se tratando da vida de certos artistas. Quaseo se pode fugir
daquela tendência irresistível à individualização.
o nos interessa aqui focalizar a natureza e os aspectos morais
dessa atividade ancilar e necessária do complexo cultural. Achamos que
o ramo editorial merece estudo particular pelo que produz material-
mente. Como empresa, pode ser isolado do sistema a que se vinculou,
onde, além de lucros e perdas, criou relações com o sistema de produção
VICENTE SALLES
artística, no caso produção de músicas impressas. Devemos reconhecer
contudo que em nossos dias de expansão do boom capitalista o sistema
é muito sofisticado e complexo.o há vez para atividades que o tempo
e a tecnologia tornaram menos lucrativas. O editor de música está
cada vez mais subordinado aos interesses do mercado; do contrário,
o sobrevive. Na era do disco e das fitas magnetofônicas, esse inte-
resse ganhou novas dimensões enquanto, por outro lado, a música
impressa destina-se a um mercado consumidor cada vez mais limitado
a indústria e o comércio subordinam-se aos meios de massificação
da cultura, que visam criar condições permanentes de consumo num
mercado em expansão. Em toda parte estão desaparecendo editoras e
lojas de instrumentos ou de músicas impressas, substituídas pelas de
discos e aparelhos eletrofônicos. Daí terem-se esgotado, aparentemente,
aquelas reservas de produção artística local, suplantadas pela concor-
rência maciça dos aparelhos sonoros importantes veículos da preco-
nizada homogeneização da cultura.
Na era da rotogravura e do «offset», a litografia é uma arte supe-
rada. Aqueles que ainda se dedicam a essa técnica reservam-se uma
espécie de trabalho artesanal, hoje talvez menos frequente que a xilo-
gravura. Mas, no passado, muito contribuiu para a impressão de estam-
pas, desenhos caricatos etc. e muito serviu para edições musicais, de
acordo com o processo inventado por Senefelder (1796) e que consistia
em desenhar num bloco calcário de grãos muito finos as imagens que
se desejava imprimir. Os desenhos eram traçados diretamente na pedra
calcária preparada com um corpo gorduroso e deles oodiam-se tirar
cópias a tinta.
As primeiras ilustrações impressas no Pará já vinham prontas da
Europa ou da América e se utilizavam sobretudo na propaganda comer-
cial: artigos estrangeiros; paquetes dos anúncios de companhais de nave-
gação; calungas que ilustravam anúncios de negros fugidos, compra e
venda de escravos etc. As primeiras músicas impressas tinham, por-
tanto, que ser remetidas para a Europa. De lá vinham prontas para
a distribuição no mercado, pelas livrarias, tabacarias e até mesmo pelas
casas de «secos e molhados».
Como a sociedade localo pôde desenvolver sua incipiente indús-
tria editorial, nem conquistar a tecnologia complexa de nosso tempo
eo podemos explicar ou siquer compreender o fenômeno reduzindo-o
às limitações locais todas as iniciativas no ramo se estiolaram. A
crise que se abateu sobre os meios artísticoso reflete apenas o desâni-
mo generalizado pelo débâcle da borracha que fora o grande suporte
da economia local mas também, como em toda parte, reflete o atraso
tecnológico da sociedade voltada apenas para o consumo. Este traba-
lho vai se referir, portanto, a coisas do passado. Embora recente, passado
talvez irremediavelmente perdido.
EDITORAS DE MÚSICA NO PARA
2
No Pará, como em toda parte, as editoras de música surgiram e
se desenvolveram tendo em vista a existência de bom mercado consu-
midor; em consequência pois do progresso do ramo comercial de ins-
trumentos e de músicas impressas. Esse mercado havia-se expandido,
a partir dos meados do século XIX,o como um «fenômeno» local,
como pode parecer à primeira vista relacionando-o ao surto de desen-
volvimento econômico desencadeado pelo monopólio da produção da
borracha relacionamento necessário ao estudo de sua base econô-
mica, mas em consonância também com um fenômeno de dimensões
muito amplas: as primeiras ondas da massificação da cultura, vamos
admitir, que, naquele tempo, partindo do centro reitor a Europa
começavam a empolgar todos os países do novo mundo ou tendo mesmo
dimensão universal. A Europao apenas exportava óperas. Produ-
tos «menores» vinham-nos aos montões polcas, mazurcas, valsas,
schottischs, habaneras.. . e eram recebidos com tanto entusiasmo
que logo se incorporavam aos nossos costumes, ambientando-se, nacio-
nalizando-se, fundindo-se aos produtos locais de cada país quase
todos potencialmente assimiladores e podiam retornar às suas origens
como produto «novo». Tal era, por exemplo, a valsa, a polca, o chótis,
a quadrilha dos países americanos. E para comprová-lo, basta talvez
o significativo exemplo da valsa do mexicano Juventino Rosas Sobre
las o/as que percorreu o mundo inteiro, confundida com a valsa vie-
nense, mas carregando consigo algo mais que o estilo vienense da
dança de compasso ternário simples a própria sensibilidade do povo
mexicano.
Esses países tinham acabado de sacudir o jugo colonial e todos
pretendiam afirmar-se nacionalmente. Em todos eles fazia-se a subs-
tituição dos valores do passado. Havia um estado de espírito queo
era mais o dos dias anteriores e a inquietação social se refletia nas artes
e na literatura. Mas todos ainda se inspiravam nos modelos europeus.
Portanto, a indústria e o comércio de músicas em Belém, Recife,
Salvador, Rio de Janeiro,o Paulo e Porto Alegre para citar apenas
os centros mais ativos liga-se incontestavelmente àquele fenômeno
universal. Podemos todavia estudá-lo através de suas partes, como ten-
taremos aqui, relativamente ao Pará, baseados no recenseamento de edi-
toras locais e no vasto material que já dispomos.
A crescente capitalização da Amazônia com os recursos proveni-
entes da exportação da borracha estimulou ou permitiu pelo impulso
que daria iniciativas locais da maior importância. Até a Amazônia
chegaria aquele gosto coletivo ou o fenômeno social da música do século
XIX, com abundante importação de óperas e música impressa, peças de
salão reduzidas ao piano e que os chefes de orquestra locais tratavam
VICENTE SALLES
de instrumentar, quando jáo vinham prontas as partituras com as
respectivas «partes cavadas». Isso se refletiria na criação local. Rapi-
damente se formam, em nosso próprio meio ou os mais afortunados
o adquirir status artístico na Europa, sucessivas gerações de músi-
cos executantes e compositores. Combinam-se todos os fatores neces-
sários à criação e difusão da música, que então se expande.
Os primeiros estabelecimentos a se dedicarem ao ramoo eram
especializados, ou melhor,o se dedicavam exclusivamente a ele: eram
«magazines», «bazares», «armazéns» ou até mesmo casas de «secos e
molhados» que vendiam do pirarucu e da farinha às cordas de viola
importadas. Por volta de 1850 apareciam na imprensa de Belém anún-
cios curiosos, como o que segue:
«Na loja de miudezas, na rua Santo Antônio, defronte do
Armazém do Sr. Joaquim Pereira Sobral & Cia., vende-se
superiores cordas para violões, bordões de tripa a 240 réis e
primas a 160, artes para aprender música a 1.400» (Pnblica-
dor Paraense, Belém, AnoIII, n° 127, 8 de abril de 1851,
pág. 4).
Pouco a pouco porém o comércio se desenvolve, até que surge a
primeira casa «especializada» em artigos musicais, a firma M.J. da
Costa e Silva, cuja data de fundaçãoo conseguimos apurar, mas
que, em 1883, já estampava anúncios dizendo-se o maior entreposto
para todo o norte do Brasil dos grandes estabelecimentos Schott, de
Mayence, Lucca e Ricordi, de Milão, Sassetti, de Lisboa e Narciso &
A. Napoleão, do Rio de Janeiro. Do comércio de música e instrumentos
musicais, a casa passa naturalmente a editar composições dos autores
locais, mandando-as imprimir, em especial, na estamparia Schott, de
Mayence:o peças de Henrique Eulálio Gurjão, M.J. Viana Prata,
Roberto de Barros, José Domingues Brandão, Teodoro Orestes, Cle-
mente Ferreira Júnior, Enrico Bernardi e outros compositores. Como
era costume entre os editores europeus a casa M.J. da Costa e Silva
adota o sistema de numeração em ordem crescente das chapas corres-
pondentes a cada música. Temos dessa editora 6 peças em nossa cole-
ção, total queo permite levantar o catálogo, cujas edições começaram
efetivamente duas décadas antes da proclamação da República, maso
ultrapassaram o primeiro decénio republicano. Entre as chapas, encon-
tramos a de número 28 pelo que concluímoso ter sido muito intensa
a atividade editorial desta casa.
Algumas músicas de autores paraenses foram impressas antes da
instalação desta editora. As mais antigas salvo enganoo a valsa
para piano Uma lagrima sobre o tumuto do doutor Marcello L. de
Castro, de Gentil Nobre, impressa na década de 1870, mas sem qualquer
indicação do editor, e a polca brilhante A Cidade do Pará, também
ESTAMPA 1
M. I. da Costa e Silva foi o primeiro editor
regularmente estabelecido em Belém e lançou
várias peças do compositor paraense Henrique
Gurjão (1834-1885), entre elas o galope
Hilaridade (chapa «da C. & S. 10») impressa
por volta de 1881, conforme anúncios de
jornais. Não indicação da estamparia.
(Col. Vicente Salles).
ESTAMPA 2
Carlos Wiegandt, litografo alemão, instalou
no Pará, em 1871, o primeiro estabelecimento
litográfico. Além de impressor de músicas,
deu grande impulso à imprensa ilustrada, em
especial a caricata. (Col. Vicente Salles)
EDITORAS DE MUSICA MO PARÁ
para piano, de Adolfo José Kaulfuss (')> que deve ter sido impressa
na década de 1860, em Paris, no estabelecimento gráfico de Thierry
Frères. Temos a primeira em nossa coleção. A segunda encontramos
na coleção Mozart de Araújo. Trabalhos gráficos muito modestos,
ambasm capa ilustrada: a primeira com desenho de um túmulo e a
segunda com desenho do palácio pombalino, sede do governo provincial,
destacando-se as primitivas linhas de sua arquítetura.
M. J. da Costa e Silva lançou porém edições de excelente aspecto
gráfico [estampa 1 ]. E agora podemos tentar o confronto entre as
centenas de peças que serão editadas no Pará e outras de igual gênero,
ao tempo editadas na corte e alhures. A mercadoria cá de casao
se apequenava em qualidade diante da que vinha de fora. Está claro
queo se deve dar muito realce às atividades comerciais e editoriais
de antanho. Maso há dúvida de que, até os albores da República,
algumas dessas editoras de modo algum envergonhavam a Província,
cujo adiantamento cultural àquela altura, e bem avaliando as circuns-
tâncias de meio e época, chega a surpreender os menos avisados, cha-
mando a atenção o fato de possuirmos artistas de bom quilate, litografias
bem equipadas, desenhistas e gravadores de apreciável talento, capazes
de riscar excelentes capas.
Embora já dispuséssemos de litografias os jornais ilustrados,
caricatos especialmente, começaram a aparecer na década de 1870 a
produção local de música impressa nunca foi abundante. As editoras
mandavam imprimir em Leipzig, Hamburgo, Mayence, Milão, Paris,
Lisboa, Rio de Janeiro. Entre os estabelecimentos litográficos, o primeiro
e o que se tornou logo mais importante, foi sem dúvida o de Carlos
Wiegandt, (
2
) [estampa 2], instalado em 1871 e do qual temos um
(1) Polonês, natural de Kiev, já residia em Belém em 1862 quando D. Antô-
nio de Macedo Cosia, desejando restaurar o antigo esplendor da música na Catedral
e no Seminário de Belém, contratou seus serviços. Músico erudito, compositor,
regente, radicou-se definitivamente no Pará.
Gentil Nobre, flautista e compositor, era natural de Belém, onde sempre residiu.
Nasceu em 1838 e morreu em 1888. Tronco de ilustre família de musicistas.
A locução «autores paraenses» engloba pois compositores nascidos no Pará e
todos aqueles que se integraram definitivametne no meio artístico local.
(2) Alemão que se estabeleceu no Pará por volta de 1870. Declarou ele a
Inácio Moura que começou com uma pedrinha litográfica, abrindo as gravuras com
agulha de costura e lâminas de canivete. Imprimia com um rolo de ferro e um pano
de borracha. A tinta era de tipografia engrossada com resina depois de passado
algum tempo. Mais tarde adquiriu um prelo e mais três pedrinhas e assim pôde
abrir ao público sua pequena oficina litográfica no ano de 1871. Em 1895 o estace-
lecimento já era um complexo gráfico-industrial e ele também trabalhava em
marmoraria, estando em condições de concorrer com quaisquer outros estabeleci-
mentos congéneres, artística e tecnicamente (Cf. Ignácio Moura, A Exposição
Artística e Industrial do Lyceu Benjamin Constant e os expositores em 1895. Belém,
Typ. de Diário Oficial, 1895, pag. 145-147).
VICENTE SALLES
belo exemplar: a Valsa Clara, de José Joaquim de Oliveira Vianna
talvez um de seus primeiros trabalhos. A esse tempo, impressas no
Pará, temos ainda outras músicas sem qualquer identificação do editor
e da oficina impressora, como o exemplar da mazurca Ricocdanza, de
Vicente Ruiz, um dos mais ilustres cantores e compositores paraenses no
século XIX.
Carlos Wiegandt, introdutor da litografia no Pará,o foi pro-
priamente editor de música. Aparece como litografo e impressor. E
oo poucos os exemplares que conhecemos saídos do seu estabeleci-
mento. Merece pois referência especial pelo pioneirismo e pelo nivel
técnico e estético de seus trabalhos. Um dos mais bonitos é o da polca
Si eu te dissesse, de Raimundo Olegário da Costa, que encontramos na
coleção Mozart de Araújo. Cabe-lhe o papel de haver inaugurado no
Pará a arte da litogravura e os trabalhos gerais de litografia. Seu atelier
estava aparelhado com máquinas de quilgochoar e um pautógrafo gra-
vador do sistema mais aperfeiçoado, onde trabalhavam 5 litógrafos, em
1895, sendo um nacional e 4 estrangeiros. O sistema conhecido pela
designação calcografia gravura sobre chapa metálica, principalmente
cobre e os mais modernos, como imagens ou dizeres em relevo, obtidos
por estereotipia o chamado cliché também foram introduzidos no
Pará por Carlos Wiegandt. Depois de viver mais de 40 anos em Belém,
ai faleceu, com avançada idade, em 1909.
O estabelecimento de Carlos Wiegandt foi incontestavelmente o
de maior porte e o que deixou maior soma de trabalhos. Durante muito
tempo, contou com apenas um concorrente sério, o atelier de A. Camp-
bell, que começou a imprimir por volta de 1888 e do qual temos um
exemplar da habanera para piano intitulada La Rosa del Peru, assinada
pelo mais fecundo e inspirado compositor de peças ligeiras no Pará. o
pianista Clemente Ferreira Júnior. (
3
) Trata-se de excelente trabalho
litográfico, cuja capa está assinada pelo desenhista e litografo R. Lima,
também conhecido caricaturista [estampa 3].
Outro impressor de músicas, ainda no período da monarquia, foi
Francisco da Costa Júnior, estabelecido com tipografia musical na Tra-
vessa 7 de Setembro canto da Rua Nova de Sant'Anna (hoje Manuel
Barata) . Alguns trabalhos dessa tipografia trazem o nome do tipógrafo
João Monteiro da Costa. Utilizava tipos móveis, sistemao muito
vulgar no Brasil de antanho.
(3) Nascido em Belém a 9-10-1864, ai faleceu a 9-10-1917. Estudou em Por-
tugal e frequentou o Conservatório de Leipzig. Em Paris, tomou aulas com Frien-
denihal e Marmontel, graças ao barac de SantAna Nery. Em 1883 retornou ao
Pará. Foi professor do Instituto Carlos Gomes desde sua instalação em 1895.
Vindo em 1912 para o Rio de Janeiro, lecionou na Escola Normal. Compositor
fecundo, fez sucesso como autor de valsas e schottischs. Representa a música paraense
do seu tempo, como Ernesto Nazareth representa a carioca.
EDITORAS DE MUSICA NO PARA
A tipografia musical de Francisco da Costa Júnioro teve muita
chance de progredir, com a tendência, a esse tempo já acentuada, de
os editores mandarem fazer a impressão nos estabelecimentos europeus.
Os tipos devem ter passado sucessivamente a vários proprietários, pois
o reconhecíveis em edições posteriores da Casa Mendes Leite, da
tipografia da Livraria Escolar e tipografia da Livraria Gillet.
Já no período republicano, surgiu o Atelier de Arthur Caccavoni,
italiano, instalado em Belém pouco antes de 1900 e que possuía então
as mais modernas instalações e maquinarias. Desse estabelecimento
o conhecemos nenhum trabalho na espécie.
Mais tarde, como impressor eventual de músicas, encontramos a
litografia de M. F. Aguiar, que estampou a canção patriótica A Brazi-
leiva («Canção à Bandeira»), letra e música de Manuel Luiz de Pai-
va (
4
), publicada, ao que parece, em 1917. Da mesma épocao
algumas raras edições da Empresa Gráfica Amazônia, então apare-
lhada com as melhores instalações litográficas, e que imprimiu, entre
outras, o Hino à Bandeira Nacional, letra de Augusto Meira e-
sica de José Domingues Brandão (
5
) . Embora se tenha tornado o
mais importante estabelecimento gráfico no Pará, durante várias déca-
das, e encampado, ao que parece, as instalações e maquinarias de Carlos
Wiegandt, Arthur Caccavoni e A. Campbell, bem como empregado o
operariado dos antigos estabelecimentos mão-de-obra altamente espe-
cializada em litografia, calcografia, tipografia, rotogravura etc. a
Empresa Gráfica Amazôniao ingressou decididamente no ramo, cer-
tamente poro lhe oferecer este perspectivas econômicas compensa-
doras .
Restaria falar, para concluir a informação sobre impressores locais,
das gráficas que imprimiram músicas mediante cliché. Foram bastante
numerosas, maso se caracterizaram como «editoras de música». Ser-
viram eventualmente às vezes até com muita frequência para enri-
quecer o material do colecionador de peças realmente produzidas no
Pará. De resultados gráficos muito deficientes, eram contudo mais aces-
síveis à maioria dos compositores, já que se constituíra norma quase
universal dispendiarem, eles próprios, as edições, na falta de um patro-
cinador a quem a música era dedicada.
(4) Nascido em Belém a 10-8-1888, ai faleceu a 7-12-1920. Aluno do Instituto
Carlos Gomes, de Belém, aí fez toda a sua formação artística. Compositor fecundo.
teve atuação destacada em seu tempo, produzindo música sacra, hinos cívicos e
escolares, partituras de revistas e burletas, etc.
(5) Nasceu a 16-5-1865 em Portugal e veio menino para Belém, cidade onde
faleceu a 27-11-1941. Fez no Pará sua formação artística. Compositor fecundo,
produziu obra sinfónica e muitas peças curtas que, pelo caráter e sentido, se ligam
à música nacional que então se fazia, tendo como suporte o folclore regional. For-
neceu a Mário de Andrade vários documentos folclóricos do Pará.
VICENTE SALLES
3
Em 1886 inaugurava-se na antiga Rua da Imperatriz, depois, na
República, Rua 15 de Novembro, no número 18, o estabelecimento de
José Mendes Leite [estampa 4]. Começou modestamente, como ilus-
tra a fachada do edifício no ano de sua inauguração, mas o comércio de
músicas e instrumentos prosperou rapidamente e a Casa Mendes Leite
teve grande expansão. Nos primeiros anos da República já estampava
anúncios dizendo-se grande depósito de músicas e mediante módica
comissão encarregava-se de mandar vir da Europa músicas de qualquer
editor. Iniciou as atividades editoriais por volta de 1895, tornando-as
logo muito ativas. As chapas numeradas, em nossa coleção, atingem
o total de 184 exemplares. Temos ainda mais de 30 exemplareso
numerados. As edições Mendes Leite ultrapassaram portanto a se-
gunda centena.
A gravura da primitiva fachada do estabelecimento aparece na capa
da valsa Amável, de Raimundo Donizetti Gondim Filho, compositor
popular cearense que gozava então de grande prestígio no Pará (*). É
a chapa número 2 (M.L. &C2) da casa e foi estampada em Leipzig
por CG. Roder. A propaganda da contracapa informa que «o mais
importante depósito de instrumentos de música em toda a República
dos Estados-Unidos do Brasil é a casa de José Mendes Leite», dizendo
mais «importadores diretos dos fabricantes» e ainda que só vendia
a dinheiro.o tinha filiais em Belém, mas atendia igualmente a praça
de Manaus, até onde estendera seus negócios. Possuia também grande
depósito de músicas para piano e estoque de instrumentos para banda
militar e orquestra. Era revendedora autorizada de afamadas marcas
de piano.
As propagandas de contracapam grande importânciao só
para o levantamento de catálogos, alguns até com exemplos musicais
dos primeiros compassos das músicas editadas, como informações sobre
instrumentos. De particular interesseo as ilustrações dos instru-
mentos de cordas mais populares, como violões, bandurras, cavaquinhos,
bandolins. Numa dessas encontramos modelos de violas e violões feitos
no Maranhão e no Pará, documentando pois a arte da luteria bastante
desenvolvida naqueles Estados do extremo Norte (estampa 5). Mendes
Leite chegava ao requinte de divulgar, nas contracapas, os instrumentos
necessários à formação de bandas de música e orquestras sinfónicas.
Tendo duplo interesse, comercial e informativo, as capas e contracapas
funcionavam, muitas vezes, como o «jornal» do editor.
(61 Os irmãos João, José, Mozart e Raimundo Donizetti Gondim, todos ori-
undos do Ceará, apareceram com grande destaque na crônica musical de Belém e
Manaus nos primeiros anos deste século. Eram todos sobralenses, hábeis músicos «
compositores, filhos do mestre de banda Zacarias Tomás da Costa Gondim (1851-1907)
As editoras paraenses lançaram dezenas de músicas desses compositores. O próprio
João Donizetti Gondim (1883-1958) estabeleceu-se depois em Manaus como editor.
EDITORAS DE MÚSICA NO PARÁ
Por volta de 1900 já temos ilustrações da casa Mendes Leite intei-
ramente remodelada e do seu vasto sortimento. Vêmo-la na contracapa
do schottisch Pancadinhas de amor (chapa J.M.L. 41), de Clemente
Ferreira Júnior já referido como o mais prolífico e inspirado com-
positor de valsas e chótis no Pará editado em 1902.o há
qualquer indicação da estamparia, nem se identifica o local da impressão.
O exemplar se assemelha porém àqueles impressos na Alemanha. A
fotomontagem está assinada por P. (Pietro) Campofiorito, artista pin-
tor, desenhista, caricaturista, decorador, cenógrafo e fotógrafo italiano
radicado no Pará. No medalhão do centro, cercado pelas fotografias,
vê-st o retrato do editor.
As capas impressas nessa época jáo requintadíssimas. Muitas
delas coloridas e bem desenhadas. Além do pintor Campofiorito, desta-
caram-se, como capistas, R. Lima litografo do Atelier Campbell,
bom desenhista e também caricaturista — e o pintor paraense Henrique
Domont, cujos trabalhosm particular interesse por documentarem
tipos populares e até mesmo aspectos de alguns folguedos folclóricos,
a exemplo das capas das quadrilhas de Manuel Castello Branco (
7
)
outro prolífico compositor popular paraense, inspiradas em motivos
dos cantos populares do boi-bumbá, estampadas a cores por CG. Ro-
der, de Leipzig [estampas 6 e 7]. O art nouveau alcançava, também
no Pará, contaminado pelo espírito da belle-époque, seu apogeu. As
atividades editoriais aceleraram-se ao ponto de podermos destacar, nes
primeiros anos do século, mais de uma dezena de lojas de instrumentos
musicais e/ou casas editoras, todas elas mandando imprimir nos grandes
centros europeus.
Dos últimos anos da monarquia vinha também a casa Alberto Frend
& Cia., que se dedicava à importação de instrumentos e músicas, bem
como à edição de peças do repertório internacional, conforme vemos
no catálogo da contracapa da valsa Te volvi a ver! (chapa n° 268), do
espanhol, radicado no Pará, Manuel Estrada. Alberto Frend & Cia.
foi casa acreditada no seu tempo e também lançou várias composições
de autores paraenses: vemos, no citado catálogo, entre outras peças
do repertório internacional, músicas de J. P. Panario (
8
), Cadiz, qua-
(7) Compositor e regente, nasceu em Belém a 22-2-1867 e aí faleceu a 6-2-1926.
Estudou violoncelo e piano no Conservatório de Leipzig. Como Clemente Ferrreira
Júnior,o se distinguiu como compositor erudito. Foi como autor de peças populares
valsas, chótis, quadrilhas etc. orquestrador e arranjador habilissimo de melodias
europeias em voga, que apareceu como músico criador. Foi também um dos mais
aplaudidos regentes de orquestras populares, de baile e cinema.
(8) João Pedro Panário, italiano que chegou ao Pará com uma companhia
lírica e aí se radicou definitivamente. Nascido em Genova, a 15-3-1850, morreu em
Belém a 18-4-1927.
VICENTE SALLES
drilha da Assembleia Paraense; de Alípio Cézar (
9
), Esmeralda, valsa;
e de Cincinato F. de Souza (
,0
) Beatriz, valsa. Em 1898 foi sucedida
pela firma F. Hühn & Cia., organizada por um alemão conhecido
afinador de pianos e o estabelecimento, denominado «Mina Musical,
teve vários endereços: situado na Praça Visconde do Rio Branco, mu-
dou-se depois para a Travessao Mateus (hoje Padre Eutíquio)
n' 45 e, por fim, para a Rua Nova de Sant'Ana (hoje Manuel Ba-
rata) n° 62. A «Mina Musical» ficou com as representações de afa-
madas marcas de piano agenciadas por Alberto Frend, assim como de
outros instrumentos, vendendo música e ingressando no ramo editorial
com a publicação da polca-maxixe intitulada Mais tarde. . ., assinada
por J. Cleferson (talvez pseudônimo), cujo exemplar chapa M. M. 1P.
encontramos na coleção Mozart de Araújo.
Embora fundada em 1868, a Livraria Universal, de Tavares Car-
doso & Comp., só ingressou no ramo editorial de músicas nos primei-
ros anos deste século, lançando várias peças de Clemente Ferreira Júnior
e, depois, de outros compositores. Tavares Cardoso guardou a tradição
de amigo dos intelectuais, editando-lhe os livros e transformando o
estabelecimento num «ponto» onde eles se reuniam habitualmente, tal
como a livraria de Paula Brito, no Rio de Janeiro. A casa prosperou
muito e na época da remodelação urbana de Belém foi construído novo
e grande edifício, de quatro pavimentos e um dos primeiros, em Belém,
a ser dotado de elevador. Inaugurado em 1908, ainda hoje é um dos
mais belos exemplares da arquítetura belemense da belle-époque. A
livraria desapareceu no sorvedouro da crise econômica. O edifício foi
ocupado durante muitos anos pela firma do dinamarquês W. Andersen.
Em nossos dias. funciona nele um banco.
Com bem sortida seção de papelaria e outra de músicas, a Livraria
Universal mandava imprimir em Leipzig. As chapas eram numeradas
entre as iniciais L e U.
4
Ao tempo em que a Livraria Universal se lançava no mercado de
edição de músicas, despontaram vários outros estabelecimentos: Belém
Musical, de M. Bastos & Cia.; Paquete das Novidades, magazine e
artigos musicais, de M. Mendes Leite, localizado na Rua Conselheiro
(9) Alipio César Pinto da Silva, nascido em Cametá, Pará, a 14-5-1971 e falecido
em Belém a 25-5-1925, foi um dos mais ilustres compositores paraenses. Começou
estudando flauta. Em 1892 matriculou-se no Conservatório de Milão, realizando todo
o curso. Regressou em 1903. Em 1915 concorreu para a fundação do Centro Musical
Paraense.
(10) Cincinato Ferreira de Sousa era maranhense, nascido a 29-3-1868. Con-
tava 22 anos de idade quando se fixou em Belém, aí exercendo o magistério e ganhando
notoriedade como mestre de banda. Em 1929 foi um dos reorganizadores do Instituto
Carlos Gomes, com Ettore Bosio, José C. Brandão e J. Pereira de Castro. Autor da
partitura da revista «O Tacaca» de Euclides Faria. Morreu em Belém quase centenário.
EDITORAS DE MUSICA NO PARA
João Alfredo; Pará Chic, livraria e tabacaria; Bazar Ideal, de L. San-
tos & Cia., na Rua Conselheiro João Alfredo n° 79; Livraria Gillet,
na mesma rua n' 52 e a Livraria Bittencourt, de R.L. Bittencourt, loca-
lizada na Rua 15 de Novembro n° 15. Desse grupo, temos também
apreciável coleção de peças editadas e que eram geralmente impressas
na Europa, notadamente nas estamparias de CG. Roder, Breitkopf &
Hartel e Oscar Brandstetter, em Leipzig; M. Dreissig, de Hamburg;
Crevel Fes., Paris; Arthur Napoleão e Vieira Machado, Rio de Janeiro,
depois da eclosão da primeira guerra mundial Campassi &
Camin,o Paulo. Vale salientar que muitos compositores foram edi-
tados diretamente na Europa, em especial na Itália. Quase toda a obra
dos eruditosm chancela de R. Fantuzzi, E. Nagas, Ricordi ou Mi-
chele Bernardi, de Milão. Esses compositores, formados na Europa,
desligaram-se praticamente do meio até mesmo na questão de publica-
ção de suas obras. As editoras locais serviam pois a uma clientela
especial, aquela que se realizava através do piano e se contentava em
produzir valsas, chótis, polcas, tangos, maxixes etc. numa quantidade
surpreendente. O piano, produto daquela expansão da música européia
do século XIX, foi o grande veículo dessa produção, no Pará, como
em Recife, Salvador, Porto Alegre, Rio de Janeiro eo Paulo. Como
suas congéneres do Sul, as lojas tinham sob contrato pianistas para
demonstração da mercadoria ao gosto do freguês. Valdemar Godi-
nho (
u
), excelente pianista, era da Livraria Bittencourt e Teófilo de
Magalhães (
12
), conhecido em várias cidades do litoral brasileiro, muito
viajado tocou nos navios da Costeira, trabalhou na loja Belém
Musical, de Manuel Bastos.
A Livraria Bittencourt, já vimos, iniciou as atividades editoriais de
música nos primeiros anos da República, lançando peças de Clemente
Ferreira Júnior. Prosperou rapidamente e a casa também gozou da
simpatia de artistas e intelectuais. Durante muito tempo mandou estam-
par no Rio de Janeiro, no estabelecimento de Vieira Machado, e sobre-
tudo em Leipzig, na estamparia de CG. Roder, um dos estabeleci-
mentos europeus mais procurados pelos editores paraenses. Vemos na
capa da valsa Matintapêrêra, de Clemente Ferreira Júnior (chapa
R.L.B. 3, impressa por volta de 1900), uma das primeiras peças edi-
tadas por R.L. Bittencourt e que mostra, além disso, um dos mais
sugestivos temas do folclore paraense. Compositor fecundo, como já
aludimos. Clemente Ferreira Júnior produziu obras caracteristicamente
regionais, usando frequentemente temas folclóricos: nesta valsa, por
(11) Nasceu em Belém a 31-8-1901 e aí faleceu em 23-4-1967. Considerado
geralmente o melhor pianista acompanhador do Pará, também compositor popular.
(12) Fecundo compositor popular, nasceu em Belém a 24-7-1885 e ai faleceu
a 25-6-1968.
VICENTE SALLES
exemplo, encontramos o curioso canto da «matintaperera», a velha de
cabelos de fogo, que sai pela noite escura espalhando pavor. Ao canto,
muito vulgar em toda a Amazônia, já se referia Veríssimo, em 1878:
Matintapereira
Papa-terra já morreu
Quem te governa sou eu (
13
) .
Por volta de 1903 já temos um dos catálogos da Livraria Bitten-
court, impresso em contracapa de músicas e que mostra o rápido desen-
volvimento das atividades editoriais. Tal como o catálogo da Casa
Mendes Leite, que aludimos, o de R.L. Bittencourt inclui exclusivamente
músicas de compositores paraenses e outros domiciliados no Pará.
Com a primeira guerra mundial, as encomendas a CG. Poder
foram suspensas e o editor passou a encaminhá-las ao estabelecimento
gráfico de Campassi e Camin, deo Paulo.
Essa editora conseguiu sobreviver à crise econômica que se abateu
sobre a Amazônia no começo da segunda década deste século. Ultra-
passou assim o prestígio da Casa Mendes Leite. Sob a rubrica R.L.B .
foram impressas dezenas de chapas. Um número considerável de edi-
ções circulou porém sem a rubrica depois modificada para B.L.B..
iniciais de Bernardino Leite Bittencourt - e podemos estimar, sem exa-
gerar muito, que a Livraria Bittencourt triplicou o total de chapas nume-
radas. O período de maior atividade ocorreu logo no início, cerca de
1900 até 1910. Outro período muito ativo assinalou a década de 1920
e se estendeu até pouco antes de 1940.
Pelo total de peças publicadas, a Livraria Bittencourt colocou-se
incontestavelmente em primeiro lugar. É impossível fazer o levantamento
do que produziu pela inexistência de um catálogo geral, irregularidade
na numeração das chapas há músicas diferentes contendo o mesmo
número — e o volume das queo foram numeradas. A firma foi liqui-
dada por Bernardino Leite Bittencourt, filho do fundador, residente
hoje na Guanabara.
A Casa Mendes Leite, que tanta influência produziu no comércio
de música, instrumentos e nas atividades editoriais do Pará, foi sucedida
pelo Empório Musical, de Abílio Antônio da Fonseca, de quem fala-
remos adiante. Por enquanto, devemos assinalar a intromissão no mer-
cado editorial de várias gráficas impressoras de música mediante clicheria,
como a Livraria Escolar, a Livraria Contemporânea, Livraria Clássica,
Livraria Globo e as gráficas Guajarina e Vitória. A gráfica da Livraria
Gillel utilizou, como já referimos, tipos móveis, talvez os mesmos da
antiga tipografia de Francisco da Costa Júnior.
(13) Cf. José Veríssimo, «Tradições, crenças e superstições amazônicas».
in Revista Amazônica. Belém, 1883.
ESTAMPA 3
Música de Clemente Ferreira Júnior, editada
em 1891, e estampada em Belém na litografia
de A. Campbell. O autor da capa, R. Lima,
assina também caricaturas em diversas publi-
cações ilustradas da época. (Col. Vicente
Salles)
ESTAMPA 4
José Mendes Leite numa de suas últimas fotos
(Col. do autor; doada por seu neto Hernâni
Leite Fonseca).
ESTAMPA 5
No sortimento da Casa Mendes Leite havia,
entre os instrumentos de cordas, guitarras,
violas (modelos do Maranhão, Pará e
Portugal), cavaquinhos e bandolins.
ESTAMPA 6
Vários compositores paraenses inspiraram-se
em temas folclóricos (Clemente Ferreira Júnior,
Ettore Bosio, José Domingos Brandão, Me-
neleu Campos, etc.) . Manuel Castello Branco
publicou duas quadrilhas, entre elas O Boi
Bumba (cerca de 1905), uma «compilação de
cantos populares». Capa ilustrada pelo pintor
paraense Henrique Domont. Edição José
Mendes Leite, estampada a cores por C. G.
Ròder de Leipzig. (Col, Vicente Salles)
ESTAMPA 7
Outra quadrilha de Manuel Castello Branco
inspirada nos cantos populares de Boi-Bumbá
paraense. Capa desenhada por Henrique
Domont e estampada a cores, em Leipzig,
por CG. Róder, por volta de 1907. Edição
José Mendes Leite. (Co/. Vicente Salles)
ESTAMPA 8
Abílio Antônio da Fonseca (1879-1934),
fundador do Empório Musical (foto Col.
Vicente Salles).
EDITORAS DE MÚSICA NO PARÁ
Igualmente importante foi a atividade da loja Belém Musical, casa
editora de Manuel Bastos, situada na Travessa 7 de Setembro n' 17,
especialista em músicas e instrumentos. Manuel Bastos começou como
«lutier», fazendo toda espécie de instrumentos de cordas e em especial
violões e cavaquinhos. Depois passou para o comércio de músicas e
instrumentos, mantendo uma das mais sortidas lojas de Belém. Além
dessas atividades, foi hábil violonista e compositor.
O Bazar Ideal, localizado na Travessao Mateus (hoje Padre
Eutíquio) n° 4-A, com variado sortimento de artigos para presentes,
chapeus, pianos, etc, editou cerca de uma centena de peças de compo-
sitores locais, a maioria impressa na Alemanha, na estamparia de C. G.
Röder.
Também «lutier», e trabalhando para a Casa Mendes Leite, começou
o português Abílio Antônio da Fonseca. Acabou casando com uma
das filhas de Mendes Leite, associando-se a ele. Com a morte de José
Mendes Leite, constituiu a firma Abílio da Fonseca & Cia. e denominou
o estabelecimento de Empório Musical. A luteria ainda se manteve
durante algum tempo, a cargo de vários artesãos empregados da firma,
e os instrumentos da marca «Da Fonseca» alcançaram notoriedade, inclu-
sive no estrangeiro, já que parte da produção era exportada. Em seu
Diccicmario de guitarristas (
14
), na parte em que se refere a luteria,
Domingo Prat afirma que «las guitarras Da Fonseca por su alta
calidad, puden compararse a las mejores».
Abilio da Fonseca [estampa 8] também desenvolveu outras ati-
vidades paralelas, fez parte da diretoria do Centro Musical Paraense,
além de ter sido um dos mais ativos editores no seu tempo. Compositor
êle próprio, editou várias peças em diversos gêneros e promoveu a publi-
cação de centenas de músicas de autores paraenses. Faleceu em
1934, (
15
), mas a loja que fundou ainda existe, hoje dirigida por seu
filho Hernâni Leite da Fonseca. Para sobreviver, o Empório Musical
também se dedicou ao comércio de discos. É o único estabelecimento
dedicado ao comércio de instrumentos, acessórios e os mais diversos
artigos, além de músicas, que resistiu ao tempo. Como prolongamento
da casa fundada em 1886 por José Mendes Leite, afirma-se certamente
como um dos mais antigos no país, embora sem ostentar o esplendor
de outrora.
Na nossa coleção de músicas de autores paraenses surge um único
exemplar editado por C. Abreu. Tanto a peça em si, como a apresenta-
(14) Domingo Pratt, Diccionario de guitaristas, Buenos Aires, 1947, pág. 364.
(15) Nasceu na cidade do Porto, Portugal, a 4-4-1879 e morreu em Belém a
1-10-1934. Contava apenas 14 anos de idade quando veio para Belém. Publicou
várias polcas, chótis, valsas, tangos etc.
VICENTE SALLES
ção gráfica, com bonita capa impressa na Alemanha na estamparia
de CG. Röder, de Leipzig,o uma das edições mais interessantes
da literatura musical paraense. Trata-se da polca Pau e corda, de Cin-
cinato Ferreira de Souza, famoso mestre de banda e compositor, já refe-
rido. É a chapa número 1 do editor C. Abreu. Maso é a única.
Encontramos na coleção Mozart de Araújo outra polca do mesmo
compositor, intitulada Abigail (opus 6), também editada pelo citado
C. Abreu e estampada em Leipzig por CG. Röder. Essas edições
o trazem quaisquer referências à casa editora, como endereço e outras
pistas identificadoras. Parece, pois, ser nome fictício arranjado pelo
próprio compositor que, além das atividades musicais muito intensas,
dedicava-se ao comércio de vidraçaria, estampas e quadros.
Ao aludirmos a capa da polca Pau e corda de CF. de Souza, acha-
mos oportuno informar que essa era a denominação popular do conjunto
musical boêmio e seresteiro que também animava os bailes muito
era voga em Belém no último quartel do século passado e ainda nas
três primeiras décadas deste. O desenho da capa mostra um dos con-
juntos, estando os músicos fantasiados. No medalhão, vê-se o compo-
sitor. Ilustração mais interessante do tradicional conjunto, porque autên-
tica, encontramos na capa do samba Grupo Pau e Corda, de J. Romão,
editada em 1908 pelo Bazar Ideal (chapa «Bazar 39 Ideal») . Retrata o
conjunto do mestre Antônio Vicente, um dos mais populares. Belém
teve notáveis organizadores de conjuntos de pau-e-corda, entre eles o
compositor Ernesto Antônio Dias, autor da uma valsa famosa Minha
Esperançao popular que mereceu as honras do anonimato, além
de várias edições no Pará, Recife e Rio de Janeiro (
16
) . Em 1883 orga-
nizou o conjunto denominado «Companheiros do Luar», de caráter seres-
teiro e que fez época. Essas orquestras populares reuniam instrumentos
de cordas e de madeira, mais ou menos como os grupos chorões cariocas.
A formação tradicional, ou mais comum, agrupava 2 violinos, 1 violon-
celo, 1 contrabaixo, 2 clarinetas, 2 flautas, 2 violões e 1 cavaquinho,
como vemos na fotografia do conjunto de mestre Antônio Vicente.
(16) Ernesto Antônio Dias, flautista, compositor e regente, filho do músico
e ator Lourenço Dias, nasceu em Belém a 2 de janeiro de 1857. Estudou em Milão,
maso ocmpletou o curso do conservatório por haver esgotado os recursos finan-
ceiros. Voltou ao Pará, lecionou no Conservatório de Belém. Amigo de Carlos
Gomes assistiu-lhe a morte (com o pianista Clemente Ferreira Júnior aparece entre
as personalidades que figuram na famosa tela «A Morte de Carlos Gomes», de
Domenicr De Angelis e Giovanni Capranesi, existentne no palácio da Prefeitura de
Belém) . Compositor de peças ligeiras, a valsa Minha Esperança celebrizou-se em
todo o Brasil. A casa Préalle, do Recife, lançou nada menos de 7 edições. No Rio
de Janeiro foi editada pela Casa Arthur Napoleão e ainda aparece no catálogo da
Casa Buschmann & Guimarães. Já em 1911 ganhou o anonimato no livro de D. Júlia
Brito Mendes, Canções Populares do Brasil, as pp. 56-57. Mais tarde, a mesma
melodia aparece como de autoria de Catulo da Paixão Cearense... Ernesto Dias
morreu em Belém em 1908.
EDITORAS DE MÚSICA NO PARÁ
Depois de 1920 apenas a Livraria Bittencourt e o Empório Musical
continuaram editando normalmente, conforme o padrão tradicional, man-
dando imprimir sobretudo na estamparia de Campassi & Camin, deo
Paulo. Ao lado dessas porém qualquer tipografia local, mediante cliché
e composição tipográfica dos dizeres da capa e também às vezes
farta propaganda comercial na contracapa podia lançar peças dos
nossos compositores. O rebaixamento da qualidade gráfica é chocante
e denota o princípio da deterioração do mercado local, cada vez mais
precário. Chegamos à fase atual completamente estéril, queo pode
oferecer aos compositores jovens a oportunidade da divulgação impressa,
isolados do complexo dos meios de comunicação, já que, entre nós, ainda
o chegou o disco como possível tábua de salvação. Alguns mais
afoitos se lançaram na aventura carioca ou paulista.
5
O quadro anexo resume as pesquisas que realizamos neste setor.
Mostra a sua importância relativamente a um mercadoo limitado,
como é o de qualquer província. O documentário que lhe serve de suporte
é a nossa coleção de mais de 800 músicas impressas de autores para-
enses, das quais foram destacadas as editadas no Pará — e aqui se
incluem autores de outros Estados e vários estrangeiros radicados na-
quele Estado. Nossa pesquisa se estendeu porém a outros arquivos
públicos e particulares: coleção Mozart de Araújo, Museu da Imagem
e do Som, da Guanabara Arquivo de Almirante e seção de música
da Biblioteca Nacional. Reunindo todos os exemplares destas quatro
coleções, teremos seguramente mais de 2 mil peças de autores paraenses
publicadas em diferentes épocas, das quais um terço, pelo menos, se
deve as editoras locais. Alguma coisa encontramos certamente na biblio-
teca da Escola Nacional de Música, e na do Instituto Carlos Gomes,
de Belém. No Pará ainda existe uma importante coleção, queo pes-
quisamos, a do pianista e compositor José Pontes Nepomuceno, este com
quase toda a obra impressa de Clemente Ferreira Júnior.
As ilustrações aqui reproduzidas oferecem alguns dos documentos
mais significativos das diferentes épocas e das várias editoras, além
de mostrarem a importância da música impressa no estudo de diferentes
aspectos da vida social de um povo.
EDITORAS DE MÚSICA NO PARÁ
Nota: Os 16 primeiros nomes da relação foram realmente editoras de músicas, embora muitas delas se dedicassem a outras atividades, como livraria, papelaria,
artigos para presentes. Incluem-se 3 bazares: Bazar Ideal, Paquete das Novidades e Pará Chie. As 4 litografias citadas deram pequena contribuição, tendo em vista estar
voltado para a Europa (e eventualmente Recife, Rio de Janeiro eo Paulo) o interesse dos editores. Por fim, relacionamos as tipografias mais ativas, aquelas que lan-
çaram maís de uma peça estampadas invariavelmente sobre cliché (apenas a Livraria Gillet usou tipos, provavelmente oriundos da antiga tipografia de Francisco Costa
Júnior/. Em resumo, temos :
16 editoras
4 litografias
15 tipografias
o nos foi possível marcar a data de fundação de todas as editoras e, durante a pesquisa, encontramos alguma resistência de informantes ou mesmo desco-
nhecimento das próprias atividades no setor. Finalmente, todo o material usado nesta pesquisa é de nossa coleção, que totaliza atualmente cerca de 800 peças. Há uma
única exceção: a polca brilhante A Cidade do Pará, de Adolfo José Kaulfuss, da coleção Mozart de Araújo. Foram porém consultadas as coleções da Biblioteca Nacional
do Museu da Imagem e do Som da Guanabara (Coleção Almirante) e ainda a coleção particular do musicólogo Mozart de Araújo. Fica consignado aqui meu agrade-
cimento pela colaboração.
Brasil, Trópico & Cinema(*)
LEANDRO TOCANTINS
B
RASIL, natureza verdecomposta, onipresença de verde em que se
derramam variadíssimas cores, como tintas de um pintor impressio-
nista que às vezes chega a ser surrealista. Formas da natureza
redondas, opulentas, refletidas no horizonte deu azul. E a própria
imagem barroca, de um imenso cenário descrito em tom maior por Pero
Vaz de Caminha: «Neste mesmo dia, a horas de véspera, homens visto
de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e
redondo, e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com
grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitãos o nome de O Monte
Pascoal e à A Terra de Vera Cruz !»
Foi o batismo do Brasil-barroco, em preponderânciaso só na
geografia física, mas persistente, de certo modo, no espírito brasileiro.
Encontramo-lo nas manifestações do povo, na arte de viver, no modo
de falar, na maneira de ser brasileiro.
E quem diz natureza barroca diz trópico. Hoje a afirmação é feita
sem complexos, sem dúvidas, sem mais nada. Houve tempos em que
trópico significava inferioridade, atraso, região insalubre. A conspira-
ção feita à base de uma falsa ciência estigmatizara as áreas tropicais.
Descria-se da capacidade do homem tropical.
(*) Palestra pronunciada no Palácio Foz, em Lisboa, abrindo a I Retrospectiva
do Cinema Brasileiro (7-5-1972)
LEANDRO TOCANTINS
E mais, ainda: passara-se atestado de negação às populações mes-
tiças, incapazes de criar uma civilização que se pudesse medir com a dos
países temperados.
A lenda tomou foros de verdade. A velha crença medieval de que
o sol dos trópicos doía como fogo nos olhos dos homens, de que o ex-
cesso e desequilíbrio da natureza tropical perturbavam o metabolismo
humano, era cuidadosamente mantida e estimulada.
Thomas Buckle, esquecendo a sua própria condição de autor de
uma notável «História de Civilização da Inglaterra», e de que o seu
país devia a fase de brilho, riqueza e grandeza a Grande Bretanha, o
Império Britânico à paciente e tenaz ação inglesa em áreas tropicais,
escreveu páginas amargas sobre o destino do homem nessas regiões
malsinadas. E chega a parafrasear Dante, avisando aos incautos que
se dirigissem a países tropicais: «Deixassem ficar, como na porta do
inferno, a esperança, aqueles que nele entrassem.»
Huntington, o geógrafo norte-americano, vai a uma espécie de
«gozação» (comos brasileiros costumamos dizer), um tanto imprópria
para homem de ciência. Quando fala sobre a agricultura tropical é só
isto o que ele imaginou: «Essa agricultura consiste primeiramente no
plantio de algumas palmeiras, bananeiras e outras árvores frutíferas.
Depois disso, o nativo nada mais tem que fazer senão vadiar debaixo
dessas árvores e esperar que os frutos lhe caiam na boca.»
O quadroo deixa de ter certo sabor e de expressar alguma ver-
dade: a opulência da terra, o alimento fácil, a vida paradisíaca. Embora
o fosse este o intuito de Huntington, que, dentro de seu rígido deter-
minismo, quis menosprezar os trópicos.
Ninguém se apercebeu, ou desejou aperceber-se, de que havia um
esforço bem sucedido, desde o século XVI, para a valorização das áreas
tropicais. O esforço pioneiro dos portugueses.o houve outro povo,
nesse passado, que os excedesse no afã de se integrarem nos trópicos.
o apenas para explorar economicamente, mantendo-se esquivos ao
contato com a terra e com a gente, como certos povos europeus. Mas
numa aproximação telúrica e humana que se classificaria de dionisíaca.
Erguendo fortes (desejo de permanência) fundando cidades, vilas e la-
vouras (desejo de civilização), amando mulheres de cor (desejo de
mestiçagem) .
Desdenhosos, os portugueses, das falsas teorias do amolecimento
de energias físicas e morais do homem em áreas quentes. Terras asiáticas,
terras africanas, terras americanas, pertencem ao vasto acervo de expe-
riências bem sucedidas, porque havia da parte deles vocação ou predis-
posição. A ciência moderna, à luz dos estudos e pesquisas baseados em
tais experiências, reabilitou as regiões tropicais.
Estudos que foram evidentemennte animados pelo êxito do pro-
cesso de civilização nas áreas quentes. Sobretudo no Brasil, hoje con-
BRASIL, TRÓPICO & CINEMA
siderado a maior civilização dos trópicos. Aquilo que a falsa ciência
antes apregoou foi desmentido pelos brasileiros.
Até o admirável Arnold Toynbee merece contestação no pontoem
que afirma que o optimun de área climática na América do Sul, sob o
ponto de vista da resposta humana ao desafio físico, começava a partir
do paralelo 20, sul. A apreciação de Toynbee praticamente excluía
o Brasil e emprestava à Argentina destino de civilização superior.
O que se constata, hoje, é o oposto da previsão do historiador inglês.
O Brasil é a maior potência industrial da América do Sul.o Paulo
e Rio de Janeiro, as maiores e mais progressistas metrópoles do conti-
nente sul-americano. Mesmo nas áreas acentuadamente tropicais como
o Nordeste, ou equatoriais, como a Amazônia, o mito desfaz-se. As duas
regiões, com a aplicação da técnica, o esforço intensivo da educação,
principiam a responder, nas condições que Toynbee previa para áreas
privilegiadas, ao desafio do meio.
Afinal, chegamos à grande verdade dos trópicos: tudo depende
das habilidades humanas em venoer ou remover obstáculos. E para haver
habilidades humanas é necessário mudar o status cultural. E para mudar
o status cultural, promova-se a educação, estimule-se a pesquisa científica,
garanta-se a eficácia da técnica. Um autêntico ôvo de Colombo.
Ora, o cinema, como expressão de Arte, de técnica, integra-se nesse
complexo cultural. Se o Brasil alcançou posição de relevo no campo
da cinematografia universal é porque o país já apresenta condições de
desenvolvimento material e espiritual capazes de proporcionar um pro-
cesso de criatividade amplo e vitorioso.
Sendo a criatividade «o processo de mudança, de desenvolvimento,
de evolução, na organização da vida subjetivas», esse processo tem de
manipular «símbolos e objetos externos para produzir um evento inco-
mum paras ou para o nosso meio». E manipular símbolos e objetos
externos significa dispor de uma infra-estrutura que permita associar o
poder criador à realização prática.
O Brasil está alcançando níveis de desenvolvimento favoráveis ao
processo de criatividade. À Literatura e às Artes Plásticas, que a partir
de 1922, encontraram na Semana da Arte Moderna o estuário amplo da
Modernidade, a expressão brasileira autêntica, junta-se, a partir do fim
da década de cinquenta, o Cinema, também chamado Sétima Arte.
Como houve uma revolução nas Letras e nas Artes, feita pelos
modernistas de 1922, ocorreu outra no Cinema, a partir de 1956, quando
Nelson Pereira dos Santos dirigiu «Rio Quarenta Graus», sob a influ-
ência do neo-realismo italiano, ou, como sugeriu Georges Sadoul, do
filme «Domenica d'Agosto», de Luciano Emmer. Mas o valor de «Rio
40 graus» é bem maior do que o do modelo italiano, acrescenta Sadoul.
De fato, Nelson Pereira dos Santos, hoje um dos grandes diretores
de cinema no Brasil, veio abrir caminhos novos. E até se costuma dizer
LEANDRO TOCANTINS
que cm ele nasce o «Cinema Novo», expressão usada para servir de
divisor de águas entre o passado e o futuro que se definia com a pro-
dução surpreendente de «Rio 40 graus» vasto painel de um domingo
no Rio de Janeiro, onde a câmara inteligente, móvel, plástica, passa dos
bairros pobres para os bairros ricos, capta intrigas, fixa tipos e paisagens
urbanas de um modo até então inusitado no cinema brasileiro.
O importante é assinalar que mesmo sob inspiração no neo-realismo
italiano, o filme de Nelson Pereira dos Santos mergulha nas matrizes
brasileiras,o resvala pela imitação, é autêntico, autónomo. Daí poder-
se falar em estilo brasileiro, que, é de notar, já se esboçava em produções
anteriores. Inclusive nas chanchadas, cujos aspectos medíocres e de mau
gostoo impedem o reconhecimento de alguns valores positivos, como,
por exemplo, a incorporação de uma linguagem simples, natural, coloquial,
fácil de ser apreend'da pelo povo. Ao contrário do que se fazia em filmes
sotisficados, que se distanciavam do público pela matéria dialógica, arti-
ficial e pretensiosa. Portanto, experiências nada desprezíveis para o
estudo da evolução do cinema brasileiro.
Talvez o público que me escutao compreenda bem o verdadeiro
significado do brasileirismo «chanchada», palavra que se incorporou
definitivamente à nossa linguagem. A chanchada é um espetáculo de
teatro ou de cinema sem valor artístico, apenas produtor de gargalhadas.
E nem sempre gargalhadas, porque há graças sem nenhuma graça.
Mas se a chanchada teve o mérito de democratizar a linguagem
cinematográfica, permitindo comunicação cultural fácil com o povo,
divulgando o linguajar cotidiano, os tipos populares das grandes cidades,
por outro lado ela dá mostras de um certo temperamento brasileiro: o do
bacharel verboso, pomposo, construtor de frases sonoras mas sem con-
teúdo. Essa linguagem verbalística dominou por algum tempo os filmes
brasileiros. Herança das correntes literárias que foram superadas pelo
viço da renovação modernista, ou melhor, dos que promoveram a Se-
mnaa da Arte Moderna, lançando os fundamentos da atual Literatura
brasileira.
Até nisto o chamado Cinema Novo esquematizou uma situação ade-
quada ao momento brasileiro: o abandono do verbalismo bacharelesco,
na verdade declinante e até ridicularizado pelas novas gerações. Nin-
guém deseja ser demodé, e mesmoo se aceita mais o estilo empolado.
vazio, sobretudo na política, parao falar na Literatura, de onde foi
há muito varrido. Na política, sim. eis que, a partir de 1964, houve uma
renovação nos métodos da vida pública brasileira, afastando-se esses e
outros arcaísmos que tanto prejudicavam a evolução do país, a favor de
uma dinâmica de realização e de uma filosofia de princípios adequados
à época em que vivemos.
o assim positivos alguns dos valores que a chanchada ofereceu
ao Cinema. Bem ou mal ela condicionou o próprio Cinema Novo, inclu-
BRASIL, TRÓPICO & CINEMA
sive é a responsável pela formação de técnicos experimentados. Para
destacar um outro elemento significativo, colhido dessas fabricações
cinematográficas comerciais, é bastante referir o caso de Cármen Mi-
randa. Quem vê desarquivado das cinematecas, o filme «Alô, Alô, Car-
naval!», e outros desse tempo em que se esboça o período áureo da
chanchada com a participação de Cármen logo admite que qual-
quer coisa iria acontecer diante da aparição magnética daquela mulher,
de olhos verdes e buliçosos, de gestos muito seus, de roupas agressiva-
mente tropicais (fase a partir de «O que é que a baiana tem») . Roupa-
gens fantásticas, coloridas, vibrantes como a personalidade da atriz.
que se confundia com a própria natureza do trópico brasileiro. Cármen
deu personalidades própria à arte cénica brasileira, lançando-a, com grande
sucesso, na América do Norte e na Europa.
Neste ponto a atriz e cantora-fantasiada, rara figura humana que
era, teve a genial intuição de exprimir a sua arte dentro de constantes
brasileiras absorvidas por um temperamento expressionista, e sobretudo
surrealista. A sua baiana estilizada, aquela variedade de frutas, de
colares, de balangandãs, que ornavam a fantasia conhecida no mundo
inteiro, é bem o retrato de um Brasil barroco, multicor, meio índio, meio
negro, produto de alquimia social dos portugueses. De um Brasil que
ainda lembra a «carta a El Rey», de Pêro Vaz de Caminha, ou as
páginas do «Diálogo das grandezas do Brasil» do cristão novo-portu-
guês Ambrósio Fernandes Brandão. É o Brasil em suas fontes originais.
catando o seu fundo atávico, procurando a sua dialética telúrica.
O tropicalismo na arte cénica nasce com Cármen Miranda. O
Cinema brasileiro moderno o incorporou. A música popularz dele
tema de sucesso. Quemo aprecia o delicioso samba de Jorge Bem,
«País Tropical»: Moro/Num país torpical/ abençoado por Deus/ E
bonito por Natureza/ Em Fevereiro/ Em Fevereiro/ Tem Carnaval/
Tem Carnaval/ Tenho um fusca e um violão/ Sou Flamengo/ E tenho
uma negra chamada Teresa/
Ora, nesta música estão bem caracterizados o sentido edenico do
trópico, o barroco da natureza, o mestiçamento, a alegria dionisíaca do
povo em sua festa predileta, única no mundo em originalidade, colorido,
brilhante ballet popular nas ruas do Rio de Janeiro. Bem o retrato do
Brasil tropical. Como expressou o sociólogo francês Roger Bastide, o
país tem consciência de sua originalidade estética, a alma brasileira revela
qualquer coisa de única, no mundo, «só uma dupla influência: sexual,
dos trópicos, e cultural das misturas das raças e das civilizações indiana,
africana, portuguesa, formando um todo poderoso».
O Cinema Novo, ou o Cinema Brasileiro modernoo se afasto
dessas constantes. Parece-me que a sua originalidade que críticos
europeus e norte-americanos, apregoam está nesse aspecto peculiar de
ser brasileiro, de procurar soluções brasileiras para situações cinemato-
LEANDRO TOCANTINS
gráficas, de adquirir personalidade própria. Sem, é claro afastar-se de
verdades universais.
Gosto da definição de Carlos Diegues, realizador de «A Grande
Cidade» e de «Os Herdeiros»: «O cinema brasileiro deixou de ser um
pasticho, e passou a adotar uma visão antropológica do homem brasi-
leiro»^ afirma convictamente: «Eu acho de fato que o Cinema Novo
o se integra na cultura brasileira; eu acho que neste momento o Cinema
Novo é como que o espírito universal da cultura brasileira, é aquele
instrumento cultural que detém hoje o maior índice de representatividade
de uma antropologia brasileira.»
Parece-me que os brasileiros possuem tudo para fazer bom cinema.
O país é fabuloso em sugestões cinematográficas; a inventiva e até as
improvisações brasileiraso resultados surpreendentes. E sobretudo
nota-se que os cineastas brasileiros livraram-se de preconceitos, de esti-
los, de dogmas, de princípios que aqui na Europa condicionam os seus
colegas. O cineasta brasileiro vai à procura das qualidades do cinema
clássico, sem resvalar pelo academicismo, ou seja, pela linguagem fal-
seada pelo academicismo.»
Ora, esse processo criativo que mergulha nas raízes brasileiras, já
era reclamado pelos modernistas de 1922. Pelo menos, Mário de An-
drade, figura de proa do movimento, punha diálogo elucidativo em seu
romance-poema, ou rapsódia brasileira, de nome «Macunaima». Falava-
se na ida à Europa de muitos pintores e até à personagem Macunaima
ser nomeado para essa missão. Mas o herói logo reagiu falando para
os manos Jiguê e Maanape: «Paciência manos, não!o vou na Europa
não. Sou americano e meu lugar é na América. A civilização europeia
na certa esculhamba a inteireza de nosso caráter.»
É bem verdade que parte do público como aconteceu em Lisboa
no recente Festival do Cinema brasileiro ainda o recebe com certa
perplexidade. O cinema, made in Hollywood, evidentemente preparou
algumas gerações para aceitar a sua mercadoria: estórias sentimentais,
lineares, ou montagens grandiosas de episódios bíblicos. Tudo muito
fácil e pronto para atingir o interesse das massas. Isto sem desmerecer as
notáveis exceções que tanto dignificam o cinema norte-americano. A
máquina publicitária e comercial de Hollywood, agora em vias de extin-
guir-se, influenciou muito mais a favor do cinema medíocre do que a
favor do bom cinema.
Testemunhei em Lisboa o impacto que causaram filmes como «Os
Deuses e os Mortos», de Rui Guerra, e «Macunaima», de Joaquim
Pedro de Andrade e «Os Herdeiros», de Carlos Diegues* Confessou-me
um ilustrado cidadão lisboeta que nunca imaginara coisa igual, nem
assistira nas telas portuguesas tanta ousadia plástica: nas cores, nas
luzes, na encenação, nas situações brasileiras no barroquismo plástico.
É queo temos receio em nos mostrar em toda a crueza de aspectos.
BRASIL, TRÓPICO & CINEMA
Vamos alcançando o amadurecimento cultural necessário parao nos
envergonharmos de nossos defeitos, nem de nos ufanarmos de nossas
virtudes. Uns e outros fazem parte do grande complexo brasileiro, e se
procuramos corrigir os defeitos é porqueo somos indulgentes com
eles...
Se fôssemos apenas repetir fórmulas consagradas, fazer cinema em
moldes europeus ou norte-americanos,o estaríamos acrescentando
coisa nenhuma aos nossos experimentos artísticos. Ê claro que em «Os
Deuses e os Mortos» (para citar um dos filmes exibidos em Lisboa)
há surrealismo, há violência (violência quase sempre poética) exagerada
para dimensionar o clima social, há um certo hermetismo nas sequências.
«Um poema trágico à secura, à fome, à violênca», como disse um crítico
de Lisboa. E adianta um outro: «pulsação nova no cinema (....)
cinema da magia e do mistério, cinema da exploração e da conquista
da liberdade». Mas tudo isso (aliás inteligentemente compreendido
pela melhor crítica de Lisboa) parte inerente do pais tropical, em pro-
cesso de acelerado desenvolvimento, mas que ainda apresenta grandes
falhas em sua estrutura social. (Note-se que a estória de os «Deuses
e os Mortos» transcorre na Bahia de 1930) .
Reafirmou-se em termos brasileiros o pensamento do crítico norte-
ameriacno John Loward Lawson: de que a essência e a estrutura de um
filme, seja como ficção, ação, acontecimento,o podem ser definidas
como expressões de leis dramáticas, tradicionais. Assim é que o impacto
emocional do Cinema Novo traduz uma nova relação com a realidade,
uma nova maneira de ver e de sentir.
Ocorreu a gestação de personagens que expressam realidades sociais
brasileiras em determinados aspectos. A problemática de nosso país,
numa tentativa de apresentá-la artisticamente, em formas novas, em lin-
guagem moderna, em planos ousados.
Naturalmente tinha de acontecer o consórcio entre Literatura e Ci-
nema . Os realizadores foram à busca dos escritores que transfiguram
pela arte da palavra o drama da vida brasileira, o chamamento místico
da terra. O homem em constâncias de amor e, às vezes, de desacerto
com a terra. Amor quando ela lhe dá os frutos da vida, desacertos
quando ela lhe inferniza a vida, como acontece durante as secas do
Nordeste. Também separação de instituições arcaicas. Esperança de
renovação, horizontes que surgem da dor e da morte. Para que nasça
a aurora. Ou o simples vazio das criaturas, a vida sem nexo, a descrença.
E tudo o mais inerente ao homem desde que é homem vivendo no vasto
mundo de sua humanidade. Filmes como «Deus e Diabo na Terra do
Sol», de Glauber Rocha, «A hora e a vez de Augusto Matraga», de
Roberto Santos, extraído de um conto de Guimarães Rosa. «Vidas
Secas», de Nelson Pereira dos Santos, baseado no romance de Graciliano
Ramos, «O Cangaceiro» de Lima Barreto, que se inspirou no famoso
LEANDRO TOCANTINS
livro «Os Sertões» de Euclides da Cunha, «O Pagador de promessas».
de Anselmo Duarte, Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962,
«Menino de Engenho», de Walter Lima Júnior, fundamentado no romance
de José Lins do Rêgo, refletem típicas situações brasileiras, de ontem
ou de hoje, transfiguradas pelos engenhos e artes da cinematografia.
Um rol, que acabo de citar, do melhor quilate da produção brasileira,
instrumento artístico sem deixar de ser depoimento sociológico, todos
eles em consórcio com a Literatura.
Desde que se fala com insistência em Cinema Novo, acho impor-
tante um esclarecimento' sobre suas origens, hoje históricas, e o papel
que desempenhou no progresso da cinematografia de meu país. Propo-
sitadamente,refiro-me a ele com verbos no pretérito. Porque, na reali-
dade, o Cinema Novo foi um notável movimento de jovens cineastas,
mais preocupados com ideias, do que com formas, surgindo no Rio de
Janeiro a partir de 1958. Câmara nos ombros e uma idéia na cabeça,
teria sido o lema desses jovens pioneiros: Glauber Rocha, Nelson Pereira
dos Santos, Paulo Cézar Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Leron
Hirszman, Carlos Diegues, "Walter Lima Júnior, Gerson Tavares, Mar-
cos Faria, David Neves, Arnaldo Jabour, Gustavo Dahl.
Nelson Pereira dos Santos, para mim o mais completo cineasta
brasileiro, amadurecido, dono de um artesanato perfeito, quando surge
com «Rio Quarenta Graus», rompe a barreira de uma mentalidade ainda
dependente de Holywood e de outros centros mundiais de cinemato-
grafia. Por isso, 1955 data da produção desse filme, torna-se um marco
na história da sétima arte brasileira, e Nelson passa a ser uma espécie
de «papa» do movimento.
Daí por diante impõe-se uma nova missão do cineasta, antes margi-
nalizado no processo cultural do país. O cineasta integra-se nesse pro-
cesso, vive o intenso drama da civilização brasileira, porque o Cinema
Novoo está como o antecessor, divorciado das atividades mais altas
do espírito, mas se afirma como parte essencial de uma cultura.
Para que este processo se tornasse vitorioso foi preciso uma tomada
de consciência de nossa realidade histórica, social, telúrica, procurásse-
mos uma visão tanto quanto possível cósmica, dramática e até lírica dos
múltiplos aspectos brasileiros. A defesa de nosso patrimônio moral, ético,
histórico e econômico, dentro daquela consciência de nacionalismo que
principiou nos últimos anos do Governo Getúlio Vargas, constituiu ambi-
ente propício para a deflagração do Cinema Novo.
Há uma frase de Glauber Rocha a propósito da oportunidade do
surgimento do Cinema Novo, questão de caldo de cultura, de época.
Parece-me justa a opinião de Glauber: de que se o Cinema Novo apa-
receu em certa e determinada hora,o foi ele obra do acaso e sim
de todo um processo de ascensão cultural e política.
BRASIL, TRÓPICO & CINEMA
o resta dúvida, esse movimento representa sinal de maturidade,
a resposta hábil às tentativas de criar no Brasil indústria tipo Holywood,
tentativas aliás fracassadas, como a da «Vera Cruz», emo Paulo.
Esse movimento é o encontro e a humanização do idealismo dos autores
com a realidade brasileira.
E por haver retirado o cineasta da marginalidade cultural, o Cinema
Novo, na apreciação do crítico Alex Viany «é realmente a primeira cor-
rente intelectualizada e conscientizada que o cinema brasileiro tem. O
cineasta, hoje, jáo se envergonha de dizer que é homem de cinema,
hoje éo aceito como um poeta, um arquiteto».
Mas é preciso termos em conta que o processo de vida brasileiro
é essencialmente dinâmico. O que se fazia ontem jáo se faz hoje.
Exemplo ilustrativo é a carta que me escreveu o cineasta Carlos Diegues
quando, em abril do ano passado, regressou ao Brasil, depois de per-
manecer dois anos na França. Confessa-me Diegues a sua surpresa
diante da realidade de um país que crescera, se modificara em vários
aspectos culturais, inclusive no cinema. «O que fazíamos três anos
antes, hojeo é mais válido. Preciso adaptar-me ao novo ritmo, às
novas técnicas brasileiras de fazer cinema», dizia-me a carta do cineasta.
Hoje o Cinema Novo insere-se no contexto de um fato histórico,
e, como a Semana de Arte Moderna de 1922, marcará sua presença na
cinematografia como um dos processos mais significaitvos da criativi-
dade brasileira nos domínios da Sétima Arte. E podemos chegar â
afirmação de que as lições, a experiência do «Cinema Novo» condicio-
narão por muito tempo a cinematografia de meu pais, do mesmo modo
que o Modernismo na Literatura, nas Artes Plásticas, na Arquítetura,
decorrente da Semana da Arte Moderna, continua presente na Inteli-
gência brasileira.
o deve, porem, ser esquecido o fato de que as primícias moder-
nistas do cinema brasileiro, na década dos vinte, prenunciaram algo de
insólito acontecendo nessa arte, desenvolvida por um Humberto Mauro,
que é hoje vivo. com a graça de Deus, e considerado o pai do nosso
cinema. Na pequena cidade de Cataguazes, Estado de Minas Gerais,
êle opera uma Pathé-Baby e fabrica novidade, e boa novidade, ao mesmo
tempo que o grupo dos modernistas deo Paulo e os Regionalistas
do Recife promovem sua revolução nas Letras, nas Artes, nas Ciências
Humanas.
Em Cataguazes, por sinal sede do «Grupo Verde» escritores
e poetas de valor, com a chama do Modernismo — o cineasta Humberto
Mauro usara sua arte com técnica essencialmente brasileira: no tema,
nas intenções plásticas, no cenário, na luz, e até no vago e um tanto
romântico desejo de industrialização.
Georges Sadoul, assistindo no Brasil aos filmes de Humberto Mauro,
ficou impressionado com o seu talento criador, e o incluiu entre os cem
LEANDRO TOCANTINS
maiores cineastas do mundo. «Ganga Bruta», produzido e dirigido por
Mauro, em 1933, vai abrir a I Retrospectiva do Cinema Brasileiro em
Portugal, é uma das películas importante desse ciclo, e a maior surpresa
é nela encontrar soluções de luzes, de planos, de travellings, de espaços
fílmicos, e cenários naturais (quando a época era do cenário artificial),
verdadeiramente inusitados no Brasil, e mesmo na maioria dos países
ditos civilizados. Soluções que hoje adotam um Visconti, um Antonioni,
um Joseph Losey. «Obra-prima» considerou Georges Sadoul, a «Ganga
Bruta», no qual qualifica «sequências surpreendentes», «utilização admi-
rável» de paisagens, e excelentes «efeitos de montagem». Acrescente-se
que Humberto Mauro parece querer, no filme, um depoimento de ante-
cipação social e econômica: é só notar as cenas admiravelmente focadas
num centro industrial em construção, como que a impor a imagem do
espírito que animaria o país depois da Revolução de 1930, para desaguar
neste vasto processo que hoje fundamenta e empresta grandeza à vida
nacional.
Antes de «Ganga Bruta». Humberto Mauro produzira «Brasa
Dormida» (1928) «maravilhosamente filmado por Edgar Brasil, que se
afirmou como o maior cinematografista do seu tempo». A opinião é
de Georges Sadoul, que conclui: «Brasa Dormida» fascina pela verdade
dos pormenores, por um sentido raro e muito especial de plástica, da
paisagem, da montagem e do espaço fílmico.
Em 1929, Mário Peixoto produz e dirige «Limite», a que Georges
Sadoul se refere como «obra prima do cinema brasileiro, no fim da era
muda». A fotografia de Edgar Brasil, é inexcedível. «Limite» atravessa
o Atlântico: exibe-se em clubes de cinemas europeus, elogiado por Eisen-
tein c Orson Welles.
Ademar Gonzaga, a portuguesa abrasileirada Cármen Santos, rea-
lizam algumas notáveis películas no Rio de Janeiro, atraindo Humberto
Mauro para o pioneirismo carioca na Sétima Arte, e produzindo filmes
em que estão presentes como valores perduráveis: «Sangue Mineiro»,
«Lábios sem Beijo», «Barro Humano».
Muito embora o otimismo com que procuramos novos caminhos
para o cinema, no Brasil,o nos passa desapercebido o fato de que a
Sétima Arte atravessa, no momento, uma grande crise,o tanto em
termos de economia e sim em seu aspecto artístico. Uma crise que o
escritor brasileiro, Octávio de Faria, competente estudioso do assunto,
classifica de internacionalismo, ou de desnacionalização. Fenômeno mais
agudo nos grandes cinemas, isto é, nos países de tradicional produção
cinematográfica,o deixa também de preocupar o Brasil, que começa
a figurar, destacadamente, entre os de menor produção, ao lado, ou
mesmo acima dos cinemas espanhol, tcheco, iuguslavo, húngaro, polones
e nas Américas, o maior, depois dos Estados Unidos e do Canadá.
BRASIL, TRÓPICO & CINEMA
O regime de co-produção, essencialmente comercializado, é tido como
um dos fatores de declínio daquilo que se considera «grandes gêneros»
do cinema. É o caso do Wesfern, da comédia de costumes,o sacri-
ficados ultimamente pela safra abundante pré-fabricada em cenários
falsos, ou de um mau gosto irritante. É um perigo que também ronda
o cinema brasileiro, cuja integral personalidade é a característica maior
a preservar. Mesmo porque e já temos o exemplo de «Cabeças Cor-
tadas», de Glauber Rocha, rodado na Espanha a fonte de inspiração,
a força telúrica, o poder criativo de um diretor só funcionam integral-
mente se o roteiro, a paisagem, os personagens estiverem mergulhados
no ambiente ecológico de queo partes.
Nisto reside uma das forças do cinema brasileiro. E suponho que
o haverá motivos para descrer dessa inata sensibilidade da inteligência
criadora em meu país, que vem dando mostras de justa percepção dos
fenômenos que condicionam a produção artística.
Chegam do Brasil notícias do elevado padrão de películas como
«Crónica da Casa Assassinada», com argumento extraído do romance
do mesmo nome, de autoria de Lúcio Cardoso,, e de «São Bernardo»,
baseada no romance de Graciliano Ramos. E também de «Como era
bom o meu francês», filme de Nelson Pereira dos Santos, que tive opor-
tunidade de ver e de aplaudir em exibição privada, durante minha
recente viagem ao Rio de Janeiro já agora em circuito comercial, com
grande sucesso de crítica e de bilheteria.
E se anuncia para o próximos de abril o início das filmagens.
no Amazonas de «A Selva», adaptado do romance de Ferreira de Castro.
Posso adiantar, porque estou ligado intimamente ao projeto, que o pro-
dutor Luis de Miranda Corrêa deddiu realizar um filme de alto padrão
artístico. O ator português Rui Gomes fará o papel de Alberto, o estu-
dante de Lisboa que é obrigado a deixar o país, em demanda da Ama-
zônia, depois de participar da fracassada revolta monarquista de Mon-
santo. Podemos esperar uma fiel reconstituição de época, nos próprios
cenários onde transcorre a estória. A marca do talento e da sensibilidade
brasileiros certamente dará a necessária dimensão ecológica e artística
ao filme.
Muito embora a comercialização esteja em primeiro plano nas preo-
cupações dos produtores, desde que o Cinema tende a tornar-se no Brasil
uma indústria bastante promissora, existe a preocupação de jamais des-
prezar os resultados com que o «Cinema Novo» enriqueceu a nossa
Cultura, sem esquecer os valores anteriormente criados por Humberto
Mauro, Ademar Gonzaga, Mário Peixoto. E, realmente,o perdere-
mos de vista a fascinante perspectiva: de que possuímos uma vitoriosa
afirmação cultural nesse campo, creditada à magia da natureza física
e humana do Brasil, à inventiva e à sensibilidade de seu povo.
Reparo Crítico a um Geógrafo Francês
PESSOA DE MORAIS
A
PESAR do exagero de autores como Huntington, Frederico Ratzel,
E. G. Dexter, Moore, Beveridge, Legoyt, Morselli, De Guerry,
Ferri, Von Mayr, Tarde, Demolins, Witbeck etc. (*),o se
pode negar a influência dos elementos geográficos e ecológicos sobre a
conduta social. A natureza específica de tais elementos confere, na
verdade, a uma dada região ou área, um conjunto de aspectos que podem
condicionar em grande parte traços decisivos de sua experiência.
Na verdade, as características de clima, de acidentes geográficos,
de relevo, de altitude ou latitude, de continentalidade ou aproximação
marítima; de solo ou de subsolo; de riquezas ou limitações; de regimes
de águas; de precipitações pluviométricas; de potencial hidroelétrico; de
recursos minerais, de fauna e de flora, sua natureza, distribuição, inter-
relação e equilíbrio, tudo isso é sem dúvida elemento da maior valia no
estudo das sociedades.
A peculiaridade de tais elementos chega até a traçar limites ou
mesmo impor diretrizes, em determinadas condições, a certos aspectos
da vida social.
Uma reflexão elementar todavia se impõe:o há uma geografia
determinista, representada por características climáticas, de solo, subsolo,
relevo ou quaisquer outras, das quais se possa partir para a análise das
sociedades humanas.
o existe assim, como se sabe hoje, esse fator rígido, ao qual uma
sociedade considerada reage, num momento dado, diante de tais ou quais
condições.
PESSOA DE MORAIS
O que existe, é uma geografia inserida na trama complexa dos
elementos socioculturais, inclusive econômicos. Nestas condições, tal
geografia ou melhor, tais aspectos geográficos,o podem deixar de
refletir a inter-relação dessas conexões. Ou para sermos mais claros:
o complexo geográfico e ecológico de uma sociedade determinada se
inter-relaciona, de um lado, a uma série de tendências ligadas, digamos,
a influências internacionais, a que se vinculem o estilo de economia, de
ciência e de técnica adotado pelo país analisado; depois, tem importância
ainda específica o estágio de desenvolvimento dessa economia ou dessa
técnica, como país produtor ou consumidor de matérias-primas, por
exemplo; mais industrializado ou menos industrializado; de tal ou qual
região, área, círculo de cultura etc.
A influência dos elementos geográficos e ecológicos, depende, pois,
de condições socioculturais objetivas, inclusive materiais. Por outro lado,
há exemplos concretos de como certas situações, determinadas caracterís-
ticas geográficas, muitas vezesm afetado, de modo bem visível e
ponderável, processos e fenômenos sociais.
Assim, vários movimentos migratórios de significaçãoo explicados
por Alfred Weber tomando como ponto de partida alterações climáticas:
os movimentos no sentido do norte europeu, quando o norte da Europa
era muito menos gelado do que atualmente, o que fazia com que esses
movimentos seguissem o roteiro da fauna e da flora. Já na Ásia, a
dessecação secular do centro do continente, ao lado do empobrecimento
gradativo das populações do norte (fator econômico), explicariam, pros-
segue o autor, o nomadismo asiático dos criadores nórdicos de gado
cavalar e dos criadores centrais de gado vacum, desde o ano 4.000
aproximadamente.
Do mesmo modo, explica ele, a primeira e a segunda modificação
para pior do clima do norte da Europa favoreceram outras tantas ondas
migratórias. Estes movimentos procedentes do norte, acrescenta, às
vezes se cruzavam com outros que provinham do leste europeu, que
também experimentou, na época, um processo paralelo de piora das
condições climáticas. Tal fenômeno elucidaria o avanço dos godos,
procedentes do norte, bem como a invasão dos bárbaros, pela irrupção
dos hunos, que vinham do leste. Igualmente, mostra como outros movi-
mentos migratórios se verificaram em direção do Mediterrâneo, quando
o clima do norte da Europa foi se tornando cada vez mais frio, mais
úmido e coberto de bosques.
Tal modificação fez com que os povos indo-germânicos, conhece-
dores da agricultura, que antes haviam habitado estepes quentes e secas,
estabelecendo a cultura chamada megalítica, por volta do ano 3.000
a 2.500, se deslocassem em relação ao Mediterrâneo, onde cedo desabro-
chou a cultura egeu-cretense e a troiana. Estes fatos teriam influído
muito sobre a história da Antiguidade Greco-Romana. (
2
) Da mesma
maneira seria a ressecação, desde o fim da época glaciar, que teria sido
REPARO CRÍTICO A UM GEÓGRAFO FRANCÊS
elemento básico para a compreensão do nomadismo árabe, transformação
que possivelmente se deu através de milénios. (
3
)
Todavia, evidenciando sempre que essa influência geográfica está
na dependência de uma multiplicidade de condições socioculturais, sabe-se
por exemplo, que os Helenos, como acentua Spengler, em contraposição
à primitiva época miceniana, abandonaram a edificação com pedra num
país riquíssimo em materiais pétreos e voltaram a empregar a madeira,
circunstância que explica a ausência de restos arquitetônicos entre 1.200
a 1.600. Também, os gregos que viveram na época dórica, apesar do
exemplo de Micenas e do Egito, tornaram a edificar com madeira e
barro, numa região em que abundavam os melhores materiais de
pedra. (
4
)
Sabe-se também que o aproveitamento dos recursos naturais está
na dependência do estágio de desenvolvimento econômico, pois na época
imediatamente pré-Colombiana, por exemplo, o clima da Américao
apresentou mudanças sensíveis. Apesar disso, desabrocharam nos últimos
séculos em terras americanas civilizações peculiares e mudanças enormes
de conduta social e costumes.
Alguns casos ilustram ainda melhor essa relativa independência
entre a cultura e geografia: o Japão experimentou, logo após a segunda
metade do século XIX, uma apreciável mudança no sentido da assimilação
da técnica e da cultura material do Ocidente, alterando, em relação a este
aspecto, a configuração de sua vida social, dentro das mesmíssimas
condições geográficas; a Rússia e ultimamente a China alteraram pro-
fundamente sua fisionomia social num processo de mudança praticamente
imediato e brusco, independentemente de qualquer mudança geográfica.
Condições geográficas, todavia, podem condicionar, em certos casos,
processos sociais ou socioculturais. Ou melhor: tais condições, podem
ao lado de outras, em algumas circunstâncias, favorecer tais processos.
A carta régia, por exemplo, de 10 de dezembro de 1572 intituiu no
Brasil colonial dois governos: o do Estado do Brasil e do Estado do
Maranhão. O primeiro compreendendo todas as capitanias, desde o Rio
Grande do Norte até S. Vicente ao sul; o segundo, indo do Ceará até
o extremo norte. Pois bem, o elemento geográfico da enorme extensão
territorial do Brasil teria concorrido para essa separação, como acentua
Oliveira Viana. Influência que teria determinado inclusive que, nas
causas cíveis e crimes do Estado do Maranhão, os recursos fossem
interpostos para a Casa da Suplicação em Lisboa eo para a Relação
da Baía, alegando expressamente o governo a maior facilidade de comu-
nicações com o reino do que com o chamado Estado do Brasil. (
5
)
Mostra ainda, o autor aludido, como o próprio Estado do Maranhão
só com grandes vicissitudes pôde manter a unidade do seu governo geral,
por século e meio, isto é, até 1760. O desenvolvimento porém dos centros
de colonização da Amazônia, e as facilidades fluviais de sua irradiação,
ao lado da presença dos franceses nas regiões próximas das Guianas,
PESSOA DE MORAIS
tudo teria concorrido, prossegue o autor, para tornar difícil e precária
a supervisão administrativa e militar do governo geral, sediado no
Maranhão. (
6
)
É muito relativa portanto, essa relação entre características geográ-
ficas e processos sociais ou socioculturais. Sobre a própria conduta, as
condições meteorológicas afetam ou podem afetar, como vimos, a excita-
bilidade nervosa: a transformação do oxigênio em ozona, ou do hidro-
gênio em izona, sabe-se hoje influir no estado psíquico. Sabe-se também,
por exemplo, que certas populações onde, no meio, carências de
cálcio, tendem a apresentar tipos antropológicos de estatura diminuta
e praticamente anã. (
7
)
Os elementos geográficos ou por ele condicionados podem também
afetar o tamanho e o caráter dos traços físicos. O próprio funcionamento
endócrino está vinculado a certos elementos químicos ligados ao ambiente:
o iodo evita a deterioração da glândula tiróide e sua carência ou abun-
dânciam efeito sobre o crescimento. Como a distribuição deste
elemento pode se relacionar a certas áreas marítimas ou continentais,
onde sua presença seja maior ou menor, por aí se constata a vinculação
de certos ingredientes químicos do ambiente com o tipo físico.
Igualmente, o próprio cálcio também interfere no crescimento, tudo
podendo depender do tipo de alimentação condicionada por um dado
ambiente geográfico ou ecológico. Além disso, certos aspectos emocio-
nais da reprodução, sabe-se hoje afetados pela falta de manganês. (
8
)
A própria voz tornar-se-á mais estridente e áspera nos climas quentes,
enquanto que sob a maior ou menor influência da pressão atmosférica
do ar menos ou mais seco, alterar-se-iam no homem, acentua Gilberto
Freyre, estudando codições tropicais brasileiras, a temperatura, a cir-
culação e a disseminação dos carbónico. (
9
)
Todavia, as condições geográficas estão sempre na dependência
da cultura. Ou seja,o sóo condicionadas em grande parte pelos
valores, crenças, ideias, símbolos e representações mentais da sociedade
considerada, como pela própria estrutura material, caracterizada pelo
estágio específico da técnica e pelo desenvolvimento concreto da
economia. J
A própria utilização dos alimentos animais ou vegetais, ligados às
condições ecológicas e geográficas, se relaciona aos valores objetiva-
mente cultivados. Sabe-se que determinadas sociedades interditam
certos alimentos por motivos religiosos ou de preconceito.
Do mesmo modo, o tipo de alimentação de que se serve uma dada
sociedade pode vir de fora, em grande parte, quando dadas condições
a isso favoreçam. Inclusive o fato está ligado a vários fatores, como
atraso da sociedade em questão, de um lado, ou a grande facilidade
de intercâmbio ou comunicação com outras sociedades, do outro. Fenó-
menos dessa natureza se ligam evidentemente a um complexo de
REPARO CRÍTICO A UM GEÓGRAFO FRANCÊS
características socioculturais, inclusive econômicas, das sociedades em
questão.
Como a utilização de dados elementos químicos constantes da dieta
alimentar interfere diretamente sobre o tipo físico, o vigor e as condições
de saúde da população, essa interferência é condicionada, assim, pela
cultura inclusive material da sociedade de que se trata.
Do mesmo modo, a própria utilização dos recursos naturais de
qualquer espécie depende também do grau ou estágio de atraso ou
desenvolvimento da respectiva sociedade. Igualmente, o domínio cres-
cente sobre a natureza física, transformando a fisionomia da natureza
e recuperando até áreas desérticas ou inaproveitadas, é elemento que
se liga diretamente às condições da cultura sobretudo material de uma
determinada sociedade.
Sobre o aspecto considerado, o caso do Vale do Tennessee, nos
Estados Unidos, é típico: trata-se, na verdade, de um admirável exemplo
de aproveitamento de uma área de terra praticamente árida, que foi
com notável esforço científico e técnico integrada completamente nos
empreendimentos agrícolas norte-americanos.
Também em relação à União Soviética, extensas áreas antes
inaproveitadas na Ásia Central serão irrigadas pelas águas dos rios
siberianos Obi e Ienissei, à proporção que passem a correr nos seus
novos cursos, abertos por explosões atómicas. Tais rios ao invés de
correrem originariamente em direção ao sudeste europeu do país, onde
as terraso secas e necessitadas de água, bem como para regiões
subtropicais da Ásia Central, se dirigiam em seu curso normal para as
terras geladas do extremo norte, no Oceano Glacial Ártico. Pois bem,
o esforço científico e técnico está concorrendo para o aproveitamento
dessa larga área geográfica, alterada assim em suas características de
improdutividade e aridez.
Ainda na União Soviética há um esforço no sentido de aproveitar
integralmente uma enorme área de 35.000.000 de hectares de terra
ao norte do Estado-federado de Kazakistan.
Em Israel, inclusive através de processos de irrigação, foi possível
transformar inteiramente a aridez de sua paisagem: o aproveitamento
dos três rios de Israel o Jordão, o Yarkov e o Kishon, além das
fontes naturais e lençóis subterrâneos é um exemplo marcante de
como as condições da chamada cultura material, através da técnica,
modificam as condições geográficas.
Foi tal modificação que permitiu a Israel exportar num só ano
mais de 8.000.000 de caixas de laranjas para a Europa. (
10
)
O que está acontecendo na índia em relação ao assunto é também
característico, pois no aludido país há vastas áreas de terras estéreis
chamadas «usar», queo sendo progressivamente incluídas aos poucos
PESSOA DE MORAIS
como áreas de produtividade. É interessante salientar que só em Uttar
Pradesh existiam 3.000.000 de alqueires que nada produziam, ao
ser capim na estação das chuvas. Usando tratores bem como métodos
biológicos e agronómicos, pôde tal zona de aridez ser recuperada em
área de fertilidade e riqueza. Basta dizer que já em fins da década dos
50, durante um ano, a Organização Central de Tratores da índia
(CTO) recuperou 39.000 alqueires de terras «usar» e 3.000 alqueires
de floresta, além do trabalho de nivelamento e terraplenagem de mais
de 4.000 alqueires, tendo a recuperação do solo atingido a 1.667
milhões de alqueires.
Por outro lado, os métodos biológicos de recuperação de áreas
estéreis foram empregados com sucesso em Banthra pelo Jardim Botâ-
nico Nacional. Nesta região, perto de Lucknow-Kanpur, 150 alqueires
de terras «usar» foram compradas pelo governo em 1956 a fim de
iniciar planejamento de sementeiras para plantas medicinais e outras
culturas de indiscutível produtividade econômica. Houve, inclusive,
experiências de semeamentos de arroz, com resultados grandemente
encorajadores. (
n
)
No Egito, da mesma maneira, a barragem de Assauan é obra de
grande envergadura científica e técnica destinada à recuperação de lar-
gas áreas inaproveitadas e estéreis.
As condições científicas ligadas ao estágio de desenvolvimento
material da respectiva sociedade, possuem, assim, a faculdade como
estamos vendo, de alterar a feição original da paisagem geográfica e
suas características. Essa alteração, contudo, tem limites eo chega
de modo algum como é óbvio, a ponto de desfigurar ou descaracterizar
inteiramente o ambiente geográfico ou ecológico de uma determinada
área.
Todavia, sem falar nas plantas nativas que medram espontânea e
naturalmente numa determinada área, a própria inspecção das tendên-
cias do solo é matéria que exige, por sua vez, adiantamento técnico
e científico.o só a inspecção. Mais ainda: as técnicas meticulosas
de aproveitamento do solo dentro de suas características químicas
requerem um índice científico e técnico evoluído, que se liga, por sua
vez, ao estágio de desenvolvimento econômico da respectiva sociedade.
Como sempre ecologia e cultura, inclusive material, se interpenetram,
e os próprios índices de produtividade estão na dependência dessa inter-
relação essencial.
À proporção mesmo que os níveis de subdesenvolvimento forem
sendo sobrepujados, muitas dessas supostas limitações serão, sem
dúvida, ultrapassadas.
O conhecido geógrafo francês Pierre Gourou partiu de um estudo
concernente aos ingredientes químicos dos solos tropicais e suas possí-
veis desvantagens em relação ao solo das regiões temperadas. Aliando
REPARO CRITICO A UM GEÓGRAFO FRANCÊS
a esse argumento o fenômeno das doenças endêmicas do trópico, como
malária, disenteria amebiana e bacilar, bilariose, filariose, febre amarela,
doença do sono etc, concluiu responsabilizando o retardamento das
civilizações tropicais como ligadas, de maneira inexorável, de um modo
geral, à pobreza do solo e às doenças endémicas que infestam várias
áreas. (
12
)
É verdade que, dentro de certos limites, tais solos, com raras
exceções,o pobres em fósforo, em bases assimiláveis e em húmus;
se tambémo há dúvida de que, em largas áreas do trópico, a forte
densidade pluviométrica de tais regiões quentes e chuvosas faz com
que os produtos solúveis do solo como base e nitratos, sejam rapida-
mente carregados pelas águas de infiltração; se por outro lado, a alta
temperatura, a presença de ácido carbónico, ácido azótico e inúmeras
bactérias, facilitam esse trabalho; se é verdade também, que a ação
química e bioquímica é muitas vezeso forte que os silicatoso
decompostos e o silício é dissolvido e carregado pelas águas; se é
verdade, que as baseso lavadas com frequência por águas aciduladas,
de maneira ao serem retidas pelo chamado complexo absorvente,
que garantiriam uma rica proporção de matérias orgânicas; se ainda,
por cima, o calor, como acentua Gourou, faz crescer o número e ativi-
dade dos micro-organismos que atacam o húmus; se o azoto orgânico
se transforma em nitrato, que é dissolvido pela água e perdido para
sempre; se a própria elevação da temperatura, favorece a perda de
azoto; e se, finalmente, a destruição da floresta, significa a perda das
matérias orgânicas para a produção do húmus, e o desnudamento do
solo, sua sujeição a maior temperatura, com destruição do húmus e
do azoto.
Além disso, como mostra ainda Gourou, o solo dessas áreas des-
cobertas é submetido a alterações de secura e umidade e então a
penetração alternada do ar e da água é muito desfavorável; a água
apreende o anidrido carbónico (C02), e depois se retira para ser
substituída pelo ar, fazendo-se uma renovação contínua de oxigénio,
que auxilia a combustão do húmus nas horas quentes, ajudado pelo
trabalho das bactérias. Isso sem falar na erosão que pode assumir
aspectos violentos em tais áreas, desnudando o solo e favorecendo a
erosão pelo vento na estação quente e pela chuva na estação
invernosa. (
13
)
Todavia,o levou em conta o geógrafo francês as possibilidades
enormes de aproveitamento das próprias condições específicas da ecolo-
gia vegetal do trópico, que ele revela desconhecer de modo estarrecedor.
Os fenómenos elementares de adaptação das plantas tropicais às
inclemências da aridez da paisagem dessas áreas, é matéria de que ele
nem sequer cogita, por falta de uma melhor informação sobre esses
assuntos hoje pacíficos.
Argumenta Gourou com uma possível baixa de produtividade dos
solos tropicais, tomando em consideração os rendimentos médios de
PESSOA DE MORAIS
arroz e milho por hectare em países temperados e tropicais, nestes
últimos incluindo o Brasil.
De início, salta logo à vista que o trópico num país imenso como
o nosso, apresenta sem dúvida variações múltiplas de solo, de clima,
de regime pluviométrico etc. Depois, as condições técnicas, ligadas ao
estágio de desenvolvimento, podem evidentemente mudar, provocando
na verdade diferenças de produtividade. Da mesma forma, desconsi-
dera inteiramente o autor francês, o problema hoje considerado elemen-
tar da vocação dos solos, assunto pelo qual passa por alto.
Assim, uma dada cultura está na dependência da eleição de áreas
apropriadas. Há toda uma série de plantas tipicamente da área tropical
do Nordeste como o algodão, as plantas oleaginosas do tipo de mamona,
da oiticica, do babassu, do amendoim, da favela etc; das fibras, como
o agave, o caroá, o sisal etc. Além de frutas variadas, da maior
aceitação como o abacaxi, a manga, a jaca, o caju, a fruta-pão, o
abacate, o coco, a banana, a mangaba, a goiaba (exportada em forma
de doce), o milho etc.
Plantas, como a mandioca,o também exportáveis, inclusive para
os Estados Unidos. Esqueceu o geógrafo francês., ao fazer considera-
ções inadequadas entre culturas de clima temperado com culturas de
climas tropicais, inclusive cometendo o erro elementar como foi visto
deo levar em conta a diversidade ecológica do trópico, que, da
parte desses próprios climas temperados, uma indiscutível demanda de
produtos tropicais.
Sabe-se também, hoje, que se pode obter até qualidades diferentes
de um mesmo produto, sob a influência de dadas condições geográficas.
Além disso, é assunto pacífico, o fato de que a metodização dos serviços
e das técnicas concorre para a melhoria da produtividade.
O que se dá com as plantas xerófitas do Nordeste, de alto valor
em certos casos até industrial, é típico. Tais plantas, ajustam-se signifi-
cativamente, em sua ecologia vegetal, a toda uma série de condições
aparentemente desfavoráveis. As importantes pesquisas científicas do
botânico L. Von Luetzelburg mostraram que as plantas nordestinas,
no seu esforço para se adaptarem às inclemências da aridez e da seca,
elaboram todo um complexo mecanismo de defesa. Tais plantas arma-
zenam em suas raízes tuberculadas, nas batatas e xilopódios, um verda-
deiro manancial de reservas alimentícias para enfrentar a soalheira das
estiagens e dos verões prolongados.
Dentro das raízes dessas plantas, tais estudos revelaram a existên-
cia de importantes reservas alimentares em forma de água, amidos,
gomas resinosas, gomas mucilaginosas, açucares, pentosas, albuminas,
ácidos orgânicos, ao lado de hidrocelulose, linina, etc. Além disso, o
aparecimento de espinhos, o engrossamento da cutícula, o revestimento
de cera, a redução da superfície da folha, naturalmente todos esses
elementos concorrem para a defesa da planta, inclusive para diminuir
REPARO CRÍTICO A UM GEÓGRAFO FRANCÊS
consideravelmente a evaporação da água, irregular e escassa em tais
áreas. (
14
)
O curioso, é que plantas introduzidas na região seca, adquiriram
tais tubérculos nas raízes, como aconteceu com a mucunã. Sabe-se
também que esses tubérculos em forma de batatas, conforme as pesquisas
já aludidas, contêm água em larga escala (o umbuzeiro apresenta até
96% de água), e são, além disso, protegidas por uma camada suberosa,
rica em gorduras, cutina e cera. É precisamente esta cera, apresentada
em forma de bastões finíssimos na casca exterior dessas formações, que
impede a transudação da água. (
15
)
Daí a razão pela qual solos como o da caatinga do Nordeste,
sílico-argilosos, secos, rasos, quase sem húmus, pedregosos, de baixo
teor de azoto e com regular teor de cálcio e potássio, se prestamo
bem a plantas como o algodoeiro e o caroá. (
16
)
Também o seridó, com solo de gneiss, granito, micaxisto, sujeito
a muita erosão e por cima, arenoso e seco produz faveleiro, umbuzeiro,
maniçoba e sobretudo o algodão mocó, de fibra longa e qualidade
comprovadamente superior. Em tal área, fortemente sujeita à erosão,
há ainda a produção de batata doce, milho, arroz etc. (
17
)
O próprio sertão, a região mais quente do Nordeste, de solo
pedregoso, duro, com formações graníticas, de gneiss e sienito aflorando
até na superfície, apresenta em certas áreas, oiticicas, carnaúbas, plantas
leguminosas, forrageiros, faveleiros, maniçobas, além de milho, feijão,
arroz, banana, etc. Aliás, a inclemência dos raios solares, atuando sobre
certos solos ricos em azoto e carbonato de potássio, faz das áreas serta-
nejas um habitat ideal para a bananeira, por exemplo. (
18
)
O algodão mocó, a carnaubeira, a oiticica, o agave, o caroá, a
maniçoba, o umbuzeiro, o faveleiro e o sisalo plantas típicas da
região seca e árida. O faveleiro e o umbuzeiro,o principalmente em
altos secos e pedregosos. O algodão mocó é também planta xerófita
característica de tais áreas. (
19
)
Muitas dessas culturas apresentam valor econômico e industrial
indiscutível, e a possibilidade de aproveitamento dessas culturas e de
outras cresce à medida que o Nordeste transpõe o seu estágio de
subdesenvolvimento.
Uma região como a nordestina, que recebe em média 3.000 horas
de sol por ano, (
20
) semelhante a outras como a de Israel, pode também
inclusive com a irrigação, transformar inteiramente a aridez de sua
paisagem a exemplo do que se deu no país mencionado.
Quanto ao problema das doenças tropicais de caráter endêmico,
aludidas por Gourou, o alevantamento dos níveis econômicos, a educa-
ção do povo e as técnicas apropriadas de combate a tais males,m
concorrido e concorrem para a erradicação de tais endemias. Basta
PESSOA DE MORAIS
salientar, que o Aedes Aegipti, responsável pela forma urbana da
febre amarela foi erradicado da Bolívia, Brasil, Equador, Guiana Fran-
cesa, Nicarágua, Panamá, Paraguai e Peru, ou seja de áreas tipica-
mente tropicais. (
21
)
Aliás, à proporção em que os níveis de subdesenvolvimento foram
caindo e a educação do povo for melhorando, tais enfermidades conti-
nuarão a ser debeladas no trópico.
Tudo isso demonstra, cabalmente, que afirmações como a de
Gourou, contendo implicitamente a ideia de uma inexorabilidade de
atrazo das civilizações tropicais por condições geográfico-ecológicas,
o procedem, e precisam ser imediatamente revistas. Inclusive, levando-
se em consideração, o que é da maior importância, o complexo das
condições socioculturais, econômicas ou sócio-econômicas.
Pois bem, as áreas tropicais refletem sem dúvida o estágio da
economia dos chamados países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
Ou seja, tais áreas, longe de serem mosaicos isolados e esparsos, se
inter-relacionam com um complexo de condições econômicas de caráter
internacional, indispensável à compreensão desse suposto retardamento.
o, assim, a ideia de um trópico isolado e à mercê apenas de
supostas influências geográficas, de natureza determinista, cujas próprias
características ecológicas Gourou desconhece, como vimos. O que,
pelo contrário, é um trópico numa paisagem sócio-econômica determi-
nada, num estágio dado de desenvolvimento de suas possibilidades.
É verdade que a influência da cultura material, representada pela
ciência ou pela técnica, pode esbarrar em dificuldades, pelo menos atual-
mente, enormes. Os solos lateríticos que cobrem grande área de Mada-
gáscar e tornam, numa superfície de 580.000 km. da ilha, somente
80.000 km. cultiváveis, como acentua o próprio Pierre Gourou, repre-
sentam a esse respeito, um exemplo característico. (
22
)
Tais solos, constituídos em sua composição química de hidróxido de
ferro e de alumínio,o possuem nenhum elemento assimilável pelas
plantas; nenhum produto solúvel: nem cal, nem potassa, nem azoto, nem
ácido fosfórico, nem húmus. (
23
) Por sua contextura compacta de imper-
meabilidade, esses soloso hostis à vegetação e praticamente inúteis.
A tal ponto chega a infertilidade desses elementos integrantes do solo
laterítico, que casas construídas em lateriteo imunes a qualquer vege-
tação: nem musgos, nem cogumelos, nem vegetação superior aí conse-
guem medrar. (
24
)
Quer dizer, certas condições geográficas podem impor restrições
bem severas à interferência da cultura inclusive material, pelo menos
dentro de nossas limitações científicas e técnicas de hoje.
Todavia, tudo que foi visto antes, mostra ressalvadas naturalmente
certas limitações, a interdependência mais ou menos profunda que existe
REPARO CRÍTICO A UM GEÓGRAFO FRANCÊS
sempre entre condições ecológicas e geográficas, de um lado, e cultura,
inclusive material do outro.
Até os valores, sobretudo ligados às crenças professadas numa dada
sociedade, podem conferir à simples paisagem geográfica ou ecológica
como é sabido em Sociologia da Religião, uma outra feição inteiramente
diferente em seus significados e representações mentais. (
25
)
Aqui uma montanha, ou um rioo simples acidentes geográficos;
uma planta ou um animal, meros seres vivos em suas vinculações com o
homem. Ali, porém, a montanha sem deixar de ser montanha, a planta
sem deixar de ser planta, o rio deixar de ser rio, ou o animal, de
ser animal, se revestem de outras características. Assumem muitas vezes,
em determinadas condições socioculturais, a feição de objetos sagrados,
e portanto de realidades de outra espécie e natureza.
Jáoo simplesmente montanha, rio, animal ou planta. Porém
todo um mundo de representações mentais, de associações místicas de
significado inteiramente diversos. Quer dizer, os próprios valores confe-
ridos a esses objetos pela cultura, acrescentaram à substância física desses
elementos uma nova esfera de realidade. Tal esfera, múltipla e diversi-
ficada para diferentes povos e sociedades, termina adicionando evidente-
mente elementos novos com os quaiso se pode deixar de raciocinar,
na consideração desses elementos aparentemente apenas geográficos.
A interdição de alimentos, vegetais e animais, quando tais alimentos
se associam a valores de natureza religiosa como totem ou não, na
sociedade considerada; o próprio modo de se relacionar com outras
plantas ou com acidentes geográficos assume, assim, feição própria ao
contato desse acervo especifico de valores de uma dada realidade
Sociocultural.
Do que foi dito, se pode concluir que as condições geográficas e
ecológicas apesar de possuírem pois, sua influência incontestável na vida
social ou Sociocultural, se inter-relacionam, aos demais elementos da
cultura. Tais elementos, ouo de caráter material, representados pelo
estágio de economia ou de técnica do país considerado, ou de caráter
espiritual, ligados aos símbolos, ideias, crenças, representações mentais
e valores de toda ordem, socialmente cultivados. Só a inter-relação desses
elementos com as características geográficas e ecológicas explicam satis-
fatoriamente a influência dessas características sem dúvida importantes.
(1) Sorokin, Pitirim, A Sociological Contemporary Theories, Nova York,
1928, p. 99-193.
(2) Weber, Alfred Kulturgecchichte Ais Kultursoziologie, Munchen, 1950,
p. 121-122.
PESSOA DE MORAIS
(3) Weber, Alfred Op. Cit. p. 106-207.
(4) Spengler, Oswald Der Untergang Des Abendlandes, Munchen, 1923,
V. 1, p. 15-172.
(5) Oliveira Viana, Francisco José de Evolução do Povo Brasileiro, 4 ed.,
Rio de Janeiro, 1956, p .201-202.
(6) Oliveira Viana Op. Cit., p. 202.
(7) Boy, William C. Gênétique et Races Humaines. Ed. Francesa parle
dr. F. Bourlière e dr. J. Sutter, Payot, Paris, 1952, p. 170 Passim.
(8) Ogburn, W. F. & Nincoff, Meyer, F.- Sociologia, Madrid, Aguilar,
1955, p. 115-116.
(9) Freyre, Gilberto Casa Grande 6 Senzala, 10 ed., Rio de Janeiro, 1958,
t. 2, p. 446.
(10) Agradecemos aqui os dados gentilmente fornecidos pela Embaixada de
Israel, nos informando inclusive sobre a palestra pronunciada pelo Professor Luiz
Guimarães Júnior, Diretor Geral da Administração do Ministério da Agricultura e Chefe
da Delegação Brasilera ao Congresso Internacional Agrícola, realizado em abril de
1959 em Israel, Passim. Sobre Israel, vejam-se também outros estudos que nos
foram enviados, como El Kibutz, colônia comunal agrícola em Israel e Itzhar Korn,
Thuat Hamoshavim, julho de 1957, Passim.
(11) Todos esses dados nos foram gentilmente enviados para colaborar com os
nossos estudos, pela Embaixada da Índia, no Rio de Janeiro, a cuja solicitude penho-
radamente agradecemos.
(12) Gourou, Pierre Les Pays Tropicaux, Paris, 1958, Passim.
(13) Gourou, Pierre Op. Cit., p. 15-22.
(14) Veja-se sobre o assunto o significativo trabalho do agrónomo José Guima-
rães, Duque, Solo e Agua no Polígono das Secas, Fortaleza, 1963, p. 32 e segs.
(15) Duque, José Guimarães Op. Gt. 36. Sobre o problema da água no
Nordeste, veja-se Albert Rabaux, Recursos de Agua no Desenvolvimento da Minera-
ção do Nordeste.
(16) Duque, José Guimarães Op. Cit., p. 34.
(17) Duque, José Guimarães Op. Cit., p. 44-47.
(18) Duque, José Guimarães Op. Cit., p. 40-82.
(19) Duque, José Guimarães Op. Cit., p. 101.
(20) Stretta Etienne J. P. O Problema da Agua no Desenvolvimento da
Mineração do Nordeste, Op. cit., p. 2.
(21) Organização Mundial da Saúde A Saúde na América e a Organização
Pan-Americana de Saúde, 1960, p. 26-28.
Rodrigues, Bichat de Almeida Considerações sobre erradicação e controle
de doenças transmissíveis. Revista do Serviço Especial de Saúde Pública,
11 (2): 415-426, Rio de Janeiro, 1961.
Athayde, Aramis Conferências pronunciada em 1956. Rio de Janeiro ....
Sev. de Documentação.
(22) Gourou, Pierre Op. Cit., p. 24.
(23) Gourou, Pierre Op. Cit., p. 23.
(24) Gourou, Pierre Op. Cit., p. 23.
(25) Vejam-se entre outros os trabalhos de Durkheim, Frazer, Bouglé, Ross,
Kidd, Max Weber, Gabriel le Bras, Roger Bastide etc, sobre Sociologia da Religião.
Rondon e a Política Indigenista
Brasileira no Século XX
EDILBERTO COUTINHO
O
nome de CÂNDIDO MARIANO DA SILVA RONDON é conhecido e cele-
brado em quase todos os países do mundo. Mas foi nos Estados
Estados Unidos da América do Norte que sua obra obteve maior
repercussão. Partiu de instituições americanas a iniciativa de postular
o nome do grande explorador brasileiro, duas vezes, ao Prémio Nobel
da Paz.
Em 1957, as principais instituições culturais brasileiras, apoiando
a proposta do Explorer's Clube, de Nova York, enviaram documento ao
Comité de Seleção do Prémio Nobel justificando a postulação de Ron-
don, pelos serviços humanitários realizados no interior do Brasil; por
suas descobertas geográficas; pela construção de um sistema de comu-
nicações; pela contribuição aos estudos de História Natural, e pela
conquista pacífica de nações indígenas.
Já em 1953 várias instituições do mundo inteiro indicaram o nome
de Rondon para o Prémio, mas faltou coordenação à campanha. Nin-
guém tomou a iniciativa da inscrição, na esperança de que outros o tives-
sem feito. O Comité Nobel recebeu diversas cartas de apoio, mas
nenhum pedido formal de inscrição da candidatura.
Apoiando a iniciativa do Explorer's Club, em 1957, o documento
assinado pelos presidentes das Academias brasileiras lembrava que, no
enorme território do Brasil, as descobertas feitas pelas expedições de
Rondon eramo extensas que, olhando-se cuidadosamente um mapa
EDILBERTO COUTINHO
da América do Sul poder-se-ia dizer, de imediato, se fora feito antes
ou depois da era rondoniana. Os dez países limítrofes do Brasil foram
visitados por Cândido Rondon, a fim de fixar as fronteiras exatas.
Nesse trabalho, sempre incluiu, entre seus colaboradores, trabalhado-
res estrangeiros geralmente hispano-americanos e índios brasilei-
ros, dando-lhes total igualdade de tratamento. Isto fazia com que a
chegada a cada fronteira fosse uma ocasião de encontro fraternal.
Durante as expedições de Rondon, cerca de 40 mil quilómetros de iti-
nerários foram percorridos, novas estradas abertas e descobertos cami-
nhos através dos rios da Amazônia. Mais de seis mil quilómetros de
fios telegráficos foram estendidos, completando a ligação do Brasil.
Uma enorme coleção de material de História Natural foi obtida em
áreas pouco conhecidas, como em outras nunca antes exploradas, numa
contribuiçãoo rica que, ao ser oferecida de graça ao Museu Nacio-
nal, no Rio de Janeiro, o Diretor dessa instituição Alípio Ribeiro
disse que, se tivesse que escolher entre tudo que o Museu obtivera em
um século e o material trazido de uma só vez pela Comissão Rondon,
o teria hesitado em preferir a coleta dos exploradores. A abundância
de material raro tornou possível ao Museu Nacional do Brasil atender
a pedidos de outros museus, em diversos países, e realizar trocas de
interesse para o conhecimento dos estudiosos brasileiros. Cerca de duzen-
tas publicações, ilustradas com desenhos e mapas, resultaram das con-
tribuições de Rondon nesse campo. Rondon, pessoalmente, coordenou
os trabalhos de levantamento topográfico de seu meio século de inter-
namento voluntário nas selvas do Brasil, e à medida que interpretava
geograficamente suas descobertas, conseguiu atualizar duzentos anos
de cartografia.
O trabalho de Rondon no interior do Brasilo foi apenas o de
um chefe de um departamento técnico, construindo uma imensa rede
de comunicação telegráfica e dirigindo pesquisas importantes para a
História Natural e a Etnologia em regiões selvagens.
Como pacificador entre tribus indígenas em estado de guerra com
os brancos e/ou com outras tribos, assinalou sua maior contribuição.
Ao criar o Serviço Nacional de Proteção aos índios, em 1910, estava
dando dimensão oficial ao seu trabalho, aplaudido pelo Congresso Uni-
versal das Raças, reunido em Londres em 1914, que apontou o modelo
brasileiro, como exemplo a ser seguido para honra da Civilização, nos
países onde houvesse populações indígenas.
Rondon poderia ter ocupado os postos importantes, no Brasil
poderia ter sido Ministro de Estado e até Presidente da República, que
ajudou a estabelecer pois a sua popularidade foi inigualada à época
da extraordinária atividade que desenvolveu. Mas ele sempre disse que
a melhor recompensa eram as alegrias da dedicação. E dedicou-se
principalmnete à defesa de seus irmãos menos privilegiados, os índios,
RONDON E A POLÍTICA INDIGENISTA BRASILEIRA...
que eram perseguidos e caçados nas próprias terras como animais
selvagens.
Eles eram cerca de dois milhões, quando os portugueses desem-
barcaram no Brasil, em 1500. Tinham aspecto selvagem, muitos prati-
cavam o canibalismo, mas assim mesmo eram gente, possuíam sua cul-
tura, suas divindades e certos conhecimentos que lhes permitiam sobre-
viver a despeito da falta de contato com a Civilização.
Dos navios portugueses, desembarcaram soldados acostumados à
vitória fácil, e padres jesuítas que vieram conquistar almas do pecado,
embora os índioso tivessem a menor ideia do que fosse pecado.
Ensinar aos índios as regras dos civilizados, passou a ser a palavra
de ordem, e assim procuraram suprimir a sua cultura, forçando-os pra-
ticamente a renunciar às tradições, e provendo-os de uma série de neces-
sidades para as quaiso estavam como alguns aindao estão
preparados para enfrentar.
Hoje a Civilização conta uma grande vitória. Os índios brasileiros
foram reduzidos a, no máximo, cem mil. Como no Maracanã, do Rio,
duzentas mil pessoas podem assistir a uma partida de futebol, isto
equivale a dizer que se toda a população indígena do Brasil fosse aí
colocada só ocuparia a metade dos lugares.
Alguns anos atrás, várias práticas criminosas contra os índios cau-
saram verdadeiro dano à reputação internacional do Brasil. A matança
impiedosa de grupos indígenas ocorria em contradição com a política
adotada pelo Brasil após o estabelec mento da República, em 1889, e à
época em que o nosso representante nas Nações Unidas, Carlos Calero'
Rodrigues, rejeitava o racismo existente na África do Sul, afirmando:
«O Brasilo pratica,o entende eo aceita a discriminação ou segre-
gação racial.» E, nesse contexto, o diplomata brasileiro lembrava que a
Declaração dos Direitos Humanos, pela defesa dos quais as Nações
Unidas eram responsáveis, com a participação brasileira, incluíam a
defesa das populações indígenas, queo deveriam receber tratamento
diferente dessas leis. Observou, a propósito: «Se eu dissesse a um
brasileiro comum que as crianças brancas e as pretas devem frequentar
diferentes escolas, ser tratadas em diferentes hospitais e que uma pessoa
o pode viver em determinada vizinhança porque seus avós nasceram
na África, esse brasileiro comum me olharia com espanto e acharia que
minhas faculdades mentais e de raciocínio estariam falhando.»
Comentando esses acontecimentos, o professor Arthur Cézar Fer-
reira Reis, presidente do Conselho Federal de Cultura do Brasil, decla-
rou: «Se agimos de determinada forma do Conselho de Relações Inter-
nacionais, como poderemos agir de forma diferente quando temos que
enfrentar esses tristes, degradantes e desumanos acontecimentos que
provocam condenação nacional e internacional? Estaremos, no Brasil,
violando os direitos humanos, cujos princípios aprovamos e que estão
EDILBERTO COUTINHO
incluídos no livro Os Direitos do Homem, publicação da ONU, que
reproduz depoimentos de vários brasileiros, inclusive um de José Boni-
fácio, o grande patriota da época da Independência, em defesa dos
índios?»
O artigo 186 da Constituição do Brasil assegura aos nativos a posse
permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao uso
exclusivo dos recursos naturais dessas terras.
Diversas instituições culturais seguiram o exemplo do Conselho
Federal de Cultura, protestando contra a situação denunciada publica-
mente, e foram mobilizados os recursos da FUNAI (Fundação Na-
cional de Assistência ao índio), a fim de que o preceito constitucional
assegurando os direitos dos silvícolas fosse observado na prática.
Sabemos que os europeus, quando desembarcaram na América, cha-
maram de índios aos habitantes da terra, porque pensaram que haviam
chegado .à India. Mesmo depois que as explorações demonstraram esse
erro, e ficaram sabendo que a América era um continente diverso da
Ásia, os habitantes do Novo Mundo continuaram a ser chamados de
índios.
A necessidade de definir o índio mais precisamente estava ligada
como ainda hoje a problemas de ordem prática. A Espanha e
Portugal tiveram uma vasta legislação relacionada com o índio, nos
tempos coloniais. Em nossos «dias, além da legislação específica, há
organizações destinadas à ajuda aos povos nativos como a FUNAI,
do Brasil, já mencionada que estabelecem critérios necessários para
determinar de maneira mais ou menos precisa as pessoas que tem direito
a essa ajuda.
Nos Estados Unidos, a definição oficial de índio é a seguinte:
«Uma pessoa tendo uma quarta parte de sangue nativo e que está legal-
mente inscrita nas listas do Governo é um índio.»
Com base na resolução do Segundo Congresso Inter-Americano
de Povos Indígenas, realizado em Cusco, Peru, em 1949, o Brasil adotou
um critério, chamado de auto-identificação étnica que aponta a popula-
ção indígena como aquela que apresenta problemas de inadaptabilidade
com a sociedade brasileira por motivos de usos e costumes ou mera leal-
dade à tradição pré-colombiana. Ou, mais precisamente, qualquer pessoa
reconhecda, como membro, por uma comunidade de hábitos pré-colom-
bianos e etnicamente diferente da comunidade nacional, é um índio,
assim considerado pela sociedade brasileira com a qual está em contato.
De acordo com esse critério, o que decide se um grupo de pessoas
pode ser considerado indígenao importando qual a sua compo-
sição racial e em que grau cultivem suas tradições pré-colombianas
é o fato de essas pessoas se considerarem índios, e de serem assim con-
sideradas pelas populações vizinhas.
RONDON E A POLITICA INDIGENISTA BRASILEIRA...
Usando tal conceito como base, a população indígena do Brasil
está atualmente calculada entre setenta e cem mil pessoas. Devido à
falta de dados precisos sobre um grande número de tribos, um mínimo
e um máximo sobre cada tribo foram estimados. A soma dos mínimos
dá sessenta e oito mil, e a dos máximos, noventa e nove mil.
A população indígena do Brasil decresceu rapidamente desde o
começo da conquista europeia, e continua a decrescer. Basta dizer que
havia duzentas e trinta tribos em 1900, enquanto em 1957 eram apenas
cento e quarenta e sete. Assim, em apenas 50 anos, desapareceram 83
grupos indígenas no país.
O Major Cândido Mariano da Silva Rondon, Engenheiro Militar,
tinha apenas trinta e cinco anos quando foi nomeado chefe da Comissão
de Construção das Linhas Telegráficas, em 1900, com a missão princi-
pal de estender a comunicação à selva amazônica. Nascido a 5 de maio
de 1865, Rondon tinha o sangue de dois avós índios. Muito cedo
perdeu os pais, numa epidemia de varíola, ao tempo da invasão do
Brasil pelo ditador paraguaio Solano Lopez. Aprendeu a ler com um
ex-sargento da guerra com o Paraguai e, entre a idade de sete e oito
anos, foi viver com um tio, completando a educação secundária aos 16
anos, em Cuiabá, Mato Grosso. Recusou, então, um lugar de professor,
preferindo alistar-se como soldado no Terceiro Regimento de Artilharia
a Cavalo, no Rio. Como soldado e estudante, preparou-se para o curso
da Academia Militar.
Em 1886 era cadete e republicano, muito influenciado por Benjamin
Constant, lider da juventude militar do Brasil e principal articulador da
queda da Monarquia. Rondon tomou parte ativa em dois movimentos
cívicos que logicamente se vinculam: a Abolição da Escravatura e a
Proclamação da República.
Theodore Roosevelt, que acompanhou a Expedição Científica da
Comissão Rondon à Amazônia, em 1913-14, observou, cerca de 25 anos
após a mudança do regime no Brasil: «Este país teve melhor sorte que
a da maioria dos seus irmãos hispano-americanos. Foi capaz de tornar-
se uma República através de uma evolução, em vez de revolução. Os
outros tiveram uma aventura de governo democrático, do povo e pelo
povo, depo's de enfrentarem durante três séculos a atrofia de todas as
qualidades de império, sob a pior e mais inepta administração colonial
que já existiu, tanto sob o aspecto religioso como civil. É maravilhoso
que alguns foram capazes de se desenvolverem de maneira admirável,
enquanto outros fracassaram. O Brasil, por outro lado, quando procla-
mou a sua Independência, teve a princípio uma Monarquia absolutista,
seguida por uma liberal. Quando veio a República, o povo estava razoa-
velmente preparado para a mudança. O grande progresso do Brasil
e tem sido um progresso espetacular - se manifestou durante o
regime republicano. Eu poderia citar inúmeros exemplos desse pro-
EDILBERTO COUTINHO
gresso, como a transformação do Rio de Janeiro de um pitoresco refúgio
de epidemias numa cidade de singular beleza, limpeza e salubridade»
Theodore Roosevelt escreveu estas palavras em 1914, em seu livro
Through the Brazilian Wilderness, e demonstrava sua admiração pelos
esforços do prefeito Pereira Passos e do higienista Oswaldo Cruz, que
para ele justificavam ter o Rio o título de Cidade Maravilhosa, «com
a eficiência» escreveu o ex-presidente dos Estados Unidos «dos
grandes centros urbanos.» E Roosevelt concluiu: «O outro exemplo
que desejo citar é o trabalho da Comissão das Linhas Telegráficas, sob
o comando de Rondon. »
Ao aceitar a missão do Governo, em 1900, Rondon decidiu que,
além da importante tarefa de estabelecer a comunicação telegráfica por
todo o Brasil, seria capaz de ampliar o quadro de suas atividades,
incluindo pesquisas científicas, com o estudo da geografia e da topo-
grafia da Amazônia e áreas vizinhas, da flora e da fauna, de minerais
e da geologia, do clima e da etnologia, tentanto ao mesmo tempo paci-
ficar os habitantes das selvas, observando-lhes os costumes e estudando-
lhes as línguas. Decidiu tentar, também, modificar os hábitos guerreiros
de seus soldados, persuadindo-os a olhar com simpatia os indígenas.
Rondon instituiu entre seus subordinados o tema do risco de vida
em troca da fraternidade.o permitia o tratamento desumano, no
contato com os índios, lembrando sempre as palavras de José Bonifácio,
que considerava os civilizados como usurpadores daqueles territórios,
cujos legítimos donos eram os selvagens.
Rondon participara de sua primeira missão na selva, como assistente
do General Gomes Carneiro, a quem o historiador Pedro Calmon deno-
minou Consolidador da República, pela participação na Revolução Fe-
deral que garantiu o segundo governo da República. Gomes Carneiro
lhe ensinara como conquistar os índios sem hostilizá-los, respeitando
seus direitos e oferecendo-lhes garantias, inclusive a posse das terras
tomadas por homens brancos. Um dia, quando os machados abriam
caminhos na mataria, após terem passado a terra dos Parecis, já pacifi-
cados, RONDON e seus homens foram atacados pelos Nhambiquaras, que
despejaram sobre eles uma nuvem de flechas envenenadas. Era o dia
2 de outubro de 1907, e Rondon escapou por pouco de morrer na ponta
de uma das flechas, que se encontra catalogada no Museu Nacional
do Rio de Janeiro.
O ferimento do comandante poderia ter determinado uma chacina,
se os soldados, bem armados, respondessem ao ataque. Mas RONDON,
proibindo a represália, lembrou o lema adotado ao invadirem o território
indígena: «Morrer, se preciso for; matar, nunca.» Jogou seu rifle ao
chão, e ordenou aos soldados que fizessem o mesmo, a fim de demons-
trarem a intenção pacífica da missão. Os índios entenderam o gesto.
Os civilizados se retiraram, deixando presentes, e foi o começo de uma
RONDON E A POLÍTICA INDIGENISTA BRASILEIRA...
série de contatos que, em pouco tempo, determinariam a completa paci-
ficação dos Nhambiquaras. Os indios venciam e a expedição se retirava.
Mas os soldados voltavam com presentes, e os homens de RONDONo
se consideravam vencidos mas, também, vencedores, porqueo haviam
matado.
O internamento voluntário de RONDON nas selvas do Brasil durou
meio século. Suas monumentais explorações podem, na verdade, ser
consideradas como uma espécie de segunda descoberta do Brasil, colo-
cando no mapa uma imensa região que antes figurava como DESCO-
NHECIDA . RONDON deu ao Brasil um territórioo grande quanto o da
França, no qual estendeu quilómetros e quilómetros de linhas telegráficas,
numa distância que poderia ligar Lisboa a Varsóvia. E é possível que
tenha sido o único explorador de terras selvagens, em qualquer época
e lugar, a sair de sua missão sem uma mancha de sangue no uniforme
que tanto honrou. Um de seus assistentes, o General Jaguaribe Gomes
de Matos, disse que Rondon tinha na sola doss o mais longo cami-
nho jamais percorrido por um homem, acrescentando: «E quantas reali-
zações, em cada passo dessa longa marcha!»
RONDON, embora modesto, fez o papel de um príncipe da Renas-
cença, ao viajar acompanhado de geologistas, antropologistas e botâni-
cos que iam realizando o levantamento científico do Brasil. Foi, na
verdade, como Civilizador que empreendeu a conquista da Amazônia,
e com uma qualidade única, nessas viagens de descoberta e engrande-
cimento do Brasil: o humanitarismo. No mundo violento de hoje, é bom
que um país possa lembrar a figura do homem que abriu suas fronteiras
respeitando a vida que encontrou nas terras devassadas. Na verdade,
entre as mil florestas que deu ao Brasil, RONDON deixou as cruzes de
muitos dos seus assistentes e dos seus soldados, mortos em ataques
dos índios, maso deixou um só índio morto. Foi assim que formou
suas expedições com homens de elite, dos simples soldados aos mais
qualificados especialistas, quando teria sido fácil formá-las com
assassinos.
Em 1957, o Jornal do Brasil do Rio de Janeiro me deu a tarefa
de fazer uma pesquisa sobre a vida e o trabalho de RONDON, entrevis-
tando alguns dos sobreviventes das expedições e ao próprio RONDON,
que nos últimos dez anoso concedera nenhuma entrevista.
Nosso herói de noventa e do
:
s anos era então candidato ao Prémio
Nobel da Paz, pela obra em favor dos índios e como árbitro em questões
de fronteiras na América do Sul. Albert Shweitzer, o apóstolo das
selvas africanas, recebera o Prémio em 1955. Em muitos aspectos o
trabalho de Shweitzer lembra o de Rondon, embora suas realizações
sejam menos numerosas. Theodore Roosevelt também foi premiado com
o Nobel, pelo trabalho de mediador na guerra Russo-Japonesa, missão
semelhante à de Rondon, resolvendo a querela de Letícia, entre o Peru
e a Colômbia.
EDILBERTO COUTINHO
Nas primeiras visitas, apenas foi permitido ao fotógrafo fazer algu-
mas fotos, mas consegui conversar com RONDON, e passei a escrever
uma série de reportagens que o jornal publicou durante ums e meio.
A última entrevista com o Marechal das Regiões Desconhecidas foi
a 5 de maio de 1957, quando ele completou 92 anos. Naquele dia,
um chefe indígena também o visitou. Disse-lhe o índio que Rondon
deveria voltar a selva para morrer, alegando que, se morresse no Rio,
seria enterrado às pressas e sem cerimônia, e logo os civilizados o
esqueceriam.
Mas istoo aconteceu. Poucos meses depois, a 19 de fevereiro
de 1958, Rondon era enterrado com todas as honras concedidas aos
Ministros de Estado. E quando um preto corneteiro empertigou-se e
começou o toque de silêncio, entre a multidão que o acompanhara ao
cemitério, estavam o Presidente da República e as principais autoridades
do país.
A última entrevista com RONDON foi curta, devido à sua avançada
idade e às recomendações do médico. Ele preferiu conduzi-la para
reminiscências do passado. Embora incapaz de lembrar fatos recentes
da vida nacional que talvezo desejasse comentar falou com
extraordinária lucidez sobre sua experiência na selva, lembrando até o
nome de um cachorro, Cahi, que o acompanhara na primeira expedição.
RONDON morreu antes de ser conhecida a decisão do Comité do
Prémio Nobel, que como se sabeo atribui a láurea a pessoas mortas.
Inúmeros tributos de respeito, no entanto, lhe foram feitos em vida. Em
Paris, os seus 89 anos de idade foram comemorados com uma sessão
na Sorbonne, à qual compareceram as personalidades mais ilustres da
França. Seu trabalho em favor da paz interna, como da externa, só é
comparável em grandeza à sua colaboração para o conhecimento do
ecúmeno (o queo deixa de ser, também, um trabalho de Paz), tendo
por isto a Sociedade de Geografia de Nova York inscrito o seu nome
em letras de ouro, num livro aberto à curiosidade dos visitantes, como
um dos cinco maiores exploradores do mundo. Theodore Roosevelt
declarou: «A América pode apresentar ao mundo as suas realizações
ciclópicas: ao Norte, a abertura do Canal do Panamá; ao Sul, o traba-
lho científco, prático e humanitário de RONDON.»
A obra de RONDON permanece na ordem do dia, no Brasil. Seu
nomeo foi esquecido, e sobretudo tem sido lembrado pelos esforços
pioneiros para a integração definitiva da região amazônica e reabilitação
do homem brasileiro, principalmente o mestiço, considerado por alguns
como «inferior» quando era apenas «atrasado», e chamado de «incapaz»,
quando era apenas «ignorante.» E ignorado.
Nunca esquecido de sua origem humilde, foi para os brasileiros
mais humildes que RONDON teve voltados seu pensamento e sua ação,
sendo por isto lembrado por todos com gratidão.
Randon, aos noventa e dois anos, concede a
última entrevista, ao jornalista Edilberto
Coutinho. {Foto Hélio Pontes do
«Jornal do Brasil»)
O Drama da Missão Saraiva
TEIXEIRA SOARES
N
o dia 15 de abril de 1863, Venâncio Flores, chefe do partido colo-
rado no Uruguai, deixou Buenos Aires, havendo desembarcado a
19 no Rincón de las Gallinas, em território uruguaio, acompanhado
do Coronel Caraballo e dos tenentes Faria e Cáceres. O amigo e aliado
de Mitre, Presidente da República Argentina, seguiu para o norte, inter-
nando-se no território pátrio numa campeada gigantesca de juntar gente,
cavalhada e armamentos. Flores era a imagem do caudilho gaúcho.
O adversário de Flores, Presidente da República desde l° de março de
1860, chamava-se Bernardo Berro, chefe do partido blanco, austero e
impopular, excelente gestor da coisa pública, e mal olhado pelos colo-
rados em exílio em Buenos Aires, onde haviam ajudado Mitre em sua
luta pelas armas contra Urquiza, Diretor da Confederação Argentina,
e antigo aliado do Império do Brasil. Vitorioso, Mitre trasladara o eixo
político da cidade de Paraná (Entre-Rios) para Buenos Aires e se
dedicara à construção da Nueva Argentina. Grande historiador e jor-
nalista, Mitre era a negação do caudilho e do caudilhismo; mas era um
organizador realista e calculista. Se sabia jogar com ideias, sabia jogar
também com pessoas.
Flores levantara os colorados contra o governo de Berro.
A verdade é que os povos, que se acostumam à embriaguez das
guerras civis, odeiam os governos austeros e disciplinados. Se, de um
modo geral, as cidades prezavam a estabilidade administrativa, a gente
do campo, totalmente colorada,o ocultava sua admiração pela singular
TEIXEIRA SOARES
figura gauchesca de Flores, que regressara do seu exílio em Buenos
Aires, homem de assomos violentos e afeito a comandar tropa montada.
Os motins, os quartelaços e as rebeliões ào armada, desde a assinatura
no Rio de Janeiro, em 27 de agosto de 1828, da Convenção Preliminar
de Paz entre o Império e a Confederação das Províncias Unidas do Rio
da Prata, criaram no Uruguai um ambiente de instabilidade política c
de enfraquecimento da autoridade constituída. Mais uma vez iria a socie-
dade uruguaia pagar duro tributo à guerra civil.
A Fronteira Aberta. A fronteira, entre o Império e o Uruguai,
fronteira aberta e de 1.003 kms. de extensão, fora demarcada de 1853
a 1862 pelos altos Comissários do Império, o Marechal Barão de Caça-
pava (Soares de Andreia), falecido durante a demarcação em 1858 em
o José do Norte, na Província deo Pedro do Rio Grande, e con-
cluída pelo brigadeiro Pedro de Alcântara Bellegarde. Da Ilha Brasi-
leira, na boca do rio Quaraí, à barra do Chuí, a fronteira aberta, ondu-
lada ou seca, irrigada aqui e ali por modestos cursos d'água, se trans-
formara em couto e homísio de quanto aventureiro estivesse em maus
lençóis com as autoridades de um ou outro país. Fronteira de turbu-
lência, de correrias, de califórnias, atraía aventureiros e contrabandistas
que a prezavam como estância de congregação de esforços contra as
autoridades de um e outro lado. As antigas sesmarias d'El-Rey adqui-
riram, no século XVIü e começo do XIX, as características de latifúndios
imensos, «desertos de gente que tanto impressionariam o governador
Soares de Andreia», como assinalou Moysés Vellinho em sua «Capi-
tania d'El-Rey» (Porto Alegre, 1970, pág. 186). Os vazios geográ-
ficos atraíam gente aventurosa que levava seus lares nas carretas gaú-
chas em busca de pouso seguro, que raramente encontravam. Por isso,
as terras da fronteira eram mágicas, como se tivessem salamancas (furnas)
cheias de tesouros. Nessas terras a vida seria mais fácil, mais sorridente,
mais abundante que nas cidades brancas do Continente deo Pedro,
e este Continente deo Pedro fora maravilhosa invenção da política
colonizadora de Dom João V.
A guerra civil estalou no Uruguai como uma fogueira imensa. As
tropas legalistas, sob o comando do general Lucas Medina, e contando
mais de 4.000 homens, enfrentaram as hostes de Flores que teriam uns
6.000 homens. Nos primeiros embates, Floreso conseguiu derrotar
Berro. A sanha, o encarniçamento, a selvageria dos combates contri-
buíram para cavar ainda mais os ódios entre blancos e colorados. A po-
pulação brasileira, residente em sua mor parte nos departamentos da
fronteira, sofreu os maiores vexames e ultrajes por parte dos blancos.
(É preciso dizer que os blancos sempre foram inimigos do Império) .
Mas, esse desrespeito era antigo e motivara uma série de reclamações
diplomáticas que o governo de Montevideu prometera resolver, mas ficara
sempre na promessa.
O DRAMA DA MISSÃO SARAIVA
Pressentimentos de Andrés Lamas. Andrés Lamas, uma das
maiores figuras do Prata, iniciara sua vida no famoso cerco de Monte-
videu, de 1835 a 1851, a chamada Guerra Grande, imposto pelos
blancos, cerco que deu à capital do Uruguai o aspecto de uma nouvelle
Trote, como disse Alexandre Dumas, porque a cidade resistira ano pos
ano aos ataques do exército blanco, comandado por Manuel de Oübe,
auxiliado pelas tropas de Juan Manuel de Rosas, o ditador de Buenos
Aires. Depois, com pouco mais de 30 anos de idade, Lamas seria despa-
chado à Corte do Rio de Janeiro como Ministro do Uruguai. Lamas
faria uma missão diplomática notável, tornando-se respeitado pelos esta-
distas do Império, mas acusado pelos colorados de haver vendido sua
alma aos interesses do Brasil. No entanto, em 1863 Lamas era um
ambassador-at-large do Presidente Berro, cuidando de assuntos uruguaios
em Buenos Aires junto ao Presidente Mitre e a Rufino de Elizalde,
ministro das Relações Exteriores e casado com uma filha de Filipe losé
Pereira Leal, Ministro do Império na capital argentina. Em carta de
28 de maio de 1863, enviada a Elizalde, Lamas dizia:
«Nosso pensamento fundamental consiste em acabar uma
vez por todas com a funestíssima aliança entre os partidos
orientais e argentinos Devemos considerar-nos perpe-
tuamente aliados para a defesa dos grandes interesses ameri-
canos, queo comuns no Rio da Prata. Quanto ao mais,
em tudo que disser respeito à vida interna de ambas as nações,
cada qual em sua casa.o o esqueça o Governo argentino»
(Ver L. A. de HERRERA «La diplomacia oriental en el Pa-
raguay», vol. I, pág. 45, Montevideu, 1908).
Em suas negociações com Mitre, Elizalde, Mármol e outros, Lamas
procurou dissipar suspicácias, desanuviar o horizonte diplomático, con-
ciliar desavindos e evitar se trilhassem os caminhos perigosos, que já
se desenhavam no mapa diplomático, e que iriam levar à Guerra da Trí-
plice Aliança. Através desses acontecimentos Lamas procedeu com apru-
mo e sagacidade; mas nem por isso granjeou o reconhecimento de gre-
gos e troianos. A verdade é que Lamas encostou à parede muito aventu-
reiro metido a estadista, desmascarando-lhe o jogo miserável. Lamas
sentiu a Guerra da Tríplice Aliança que se aproximava; procurou escla-
recer espíritos apaixonados; fez uma prédica de bom senso. Em vão.
Mediação de Mauá. Mauá foi outra voz isolada, como Lamas,
nesse jogo paroxístico entre blancos e colorados. Mauá sabia que a
guerra civil só iria enfraquecer a economia uruguaia. Ora, a economia
do Uruguai recebera alento novo a partir de 1857 com a consolidação
da dívida interna do Uruguai realizada por Mauá num verdadeiro
golpe de gênio e com os numerosos empreendimentos comerciais e indus-
triais que o organizador brasileiro lançara no território oriental. Quando,
numa das suas viagens, Mauá chegou em 1863 a Montevideu, encontrou
TEIXEIRA SOARES
um grupo de uruguaios interessados em promover uma conciliação geral
e deter a guerra civil. Esses uruguaios eram Pedro Ramírez, jornalista
e político; Juan Quevedo, jurista e politico; Samuel Lafone, também
político e jurista; o coronel Mundell, que será depois um lugar-tenente
de Flores. Esses homens pediram a Mauá que encabeçasse um movi-
mento de mediação tendente a por termo à guerra civil e propiciar O'
estabelecimnto da conciliação geral e definitiva entre os partidos uru-
guaios. Alimentando ilusões de que seu prestígio pudesse colher resul-
tados positivos, Mauá aceitou o encargo. Aureliano Berro, com sua.
autoridade de profundo conhecedor da história da presidência Bernardo
Berro, dirá estas nobres palavras:
«Pêro el iniciador y gestor principal de esta tentativa de
negociación de paz fué el Barón de Mauá, banquero brasileno,
fundador y proprietário del gran establecimiento que se hallaba
fuertemente ligado al gobierno y a diversas empresas de aliento
para el progreso del país. Nadies capacitado para gestión
semejante por su vinculación con la situación combatida y la
nacionalidad de que era miembro selecto, ya inclinada enton-
ces,s ó menos ostensiblemente, a la causa revolucionária».
Esses conceitos do historiador uruguaio encontram-se em sua obra
«De 1860 a 1864», Montevideu, 1921, pág. 214. Aureliano Berro reco-
nhece, pois o papel importante desempenhado por Mauá; mas comete
um erro ao afirmar que o Brasil já estivesse mais ou menos ostensiva-
mente inclinado à causa revolucionária no Uruguai. A verdade é que
os estadistas do Império, conhecedores do feitio versátil de Flores, evi-
tavam qualquer compromisso com o caudilho uruguaio. Berro era o
governo. O Império mantinha boas relações com o governo de Berro,
governo que Mármol, em sua polêmica de 1869 com Rufino de Elizalde,
considerou «el mejor de los gobiernos que ha tenido la República Ori-
ental». Nada, por conseguinte, poderia justificar que a Corte do Rio
de Janeiro fosse pactuar com Flores, cuja vitória lhe parecia incerta,
porquanto as operações militares provavam que o Presidente Berro resis-
tia com êxito.
Claro que Mauá se valeu dos seus numerosos amigos existentes
em Montevideu; mas foi de decepção em decepção. E quem mais o decep-
cionou foi Juan José de Herrera, figura de prestígio nas fileiras do par-
tido blanco. ministro da Justiça e depois das Relações Exteriores de Berro,
como ministro das relações exteriores do sucessor de Berro. Mauá tinha
no governo de Berro o pagamento pontual da dívida assumida por gover-
nos anteriores para com seu banco emissor, o Banco Mauá. Austero
e impopular. Berro era exato cumpridor de compromissos financeiros.
Por isso, Mauá respeitava a personalidade de Berro. Mais tarde, mal
subido ao poder, Flores se transformará em encarniçado perseguidor do'
Banco Mauá, bem como em pagador impontual.o poderia haver
O DRAMA DA MISSÃO SARAIVA
maior ironia da sorte, porque muitos brasileiros acreditaram a sério na
aliança de Flores durante a Guerra da Triplice Aliança. Mas, o destino
preparou suas cartas e as jogou de tal maneira que Juan Carlos Gómez,
o jornalista uruguaio, escreveu, no seu artigo de 10 de dezembro de
1869, na polêmica mantida com Mitre:
«Y sea por esta causa, sea por la que fuere, nuestro gene-
ralato fracasó en derrota. Nuestros generales se retiraron
quebrados y cabizbajos de Curupaity: el uno vino a reasumir
su presidencia en Buenos Aires, el otro, su dictadura en
Montevideo».
Outra ironia da sorte: como mostramos em nosso livro «O Drama
da Tríplice Aliança» (Rio, 1956, pág. 216 e segs), Flores e Berro foram
assassinados no mesmo dia, a 19 de fevereiro de 1868, uma Quarta-
Feira de Cinzas. Flores foi assassinado por blancos na Calle Rincón;
e Berro foi assassinado numa enxovia do «Fuerte», isto é, da Casa do
Governo, na Plaza Zabala, por colorados, em Montevideu.
Da sotéia do seu escritório em Calle Piedras, em Montevideu,
Mauá esquadrinhava o horizonte da vida uruguaia, conversando, argu-
mentando, reunindo gente e carteando-se com Herrera na esperança de
ter êxito em sua tentativa de mediação. Herrera, que promete, despista,
despromete, contribui para o malogro da mediação de Mauá. Contudo,
Flores, devidamente sondado por Mauá e concorde com a suspensão
das hostilidades, cruza o rio Santa Lúcia, marchando com suas tropas
sobre a capital, e rompendo assim o prometido. A guerra civil continuaria.
2
A Atração do Abismo. Parecia que iria configurar-se a situação
militar da «Guerra Grande», de 1835 a 1851, quando Montevideu, reduto
colorado, resistira durante largos anos às tropas de Juan Manuel de Rosas
e Manuel de Oribe. Desta vez, a partir de setembro de 1863, Monte-
videu seria um reduto blanco contra todo o restante território da Repú-
blica, em poder dos colorados.
Berro ia de dificuldade em dificuldade, porque tivera questões com
a Argentina, motivadas pelos vapores Salto (de bandeira argentina) e
Artigas (de bandeira uruguaia) . Andrés Lamas, sempreo atacado
pelos colorados como instrumento do Brasil, foi chamado às pressas pelo
governo de Montevideu para negociar com Elizalde em Buenos Aires.
Lamas desobr
;
gou-se brilhantemente da missão, assinando com Elizalde
o Protocolo de 20 de outubro de 1863. O art.III desse Protocolo rezava
o seguinte: «Las ulteriores divergências que ocurriesen entre ambos
gobiernos se deferirán à la decisión de Su Majestad don Pedro ü,
TEIXEIRA SOARES
Emperador del Brasil». Contudo,o diminuíram as áreas de atrito
entre a gente de Berro e a gente de Mitre.
Mantinha-se o Império distante, neutro em suma, em face das lutas
entre blancos e colorados. Se em 1861 o Governo imperial apresentara
novas reclamações a Montevideu por violências, pilhagens e assassinatos
praticados contra pessoas e propriedades brasileiras no território da Re-
pública, nem por isso as autoridades imperiais saíram da sua posição
de neutralidade. Isto porque o Império se convencera de que a chamada
«política de intervenção» no Uruguai só lhe trouxera dissabores, jamais
gratidão. E como assinalou com agudeza o Conselheiro Paulino José
Soares de Souza (Visconde de Uruguai), a «intervençãoo foi nunca
uma política originariamente brasileira; teve sua concepção entre os par-
tidos e os estadistas do Uruguai; foi sempre pedida com insistência
pelos seus governos de ambos os partidos», conceitos extraídos do
discurso do estadista brasileiro pronunciado no Senado imperial em 20
de setembro de 1853.
Antonio de Las Carreras e Octávio Lapido, políticos blancos, tra-
balharão com afinco e malícia junto a Francisco Solano López. O pri-
meiro, fundador do jornal «La Pátria»,o sairá do Paraguai e será
fuzilado por ordem de Francisco Solano López. Por que motivo? Porque
induziu López a graves erros de apreciação. O segundo, representante
de Berro em Assunção, trabalhou ativamente junto ao ditador paraguaio
para que a cláusula Iü do Protocolo Elizalde-Lamas fosse combatida
por López. A singular perfídia de Lapido deu resultado: o nome de
Dom Pedro ü foi rejeitado por Francisco Solano López. Esses eram
os blancos, juntamente com Juan José de Herrera e Vázquez Sagastume,
que teciam a intriga diplomática contra o Império em Assunção.
A crise exigia diplomatas de nervos frios, eo políticos primários
e apaixonados.
Violências incríveis eram cometidas, na campina uruguaia, contra
os brasileiros residentes no Uruguai. Numa carta de 27 de outubro de
1863, Mauá se abria com Lamas para sugerir que a Argentina e o Brasil
intimassem (é a palavra usada por Mauá) Flores à cessação das
hostilidades contra a ordem legal da República. Nessa altura dos acon-
tecimentos, Mitre era a incógnita que a diplomacia brasileira procurava
decifrar. Os manejos de Mitre subiam de tom e sutileza. E isto porque
surgiram dificuldades entre o Paraguai e a Argentina, desconfianças,
desentendimentos, cartas de Francisco Solano López a Mitre. O Para-
guai jamais concordara com o Convénio de Oruro (de 7 de dezembro
de 1858), celebrado entre a Argentina e a Bolívia, em virtude do qual
os dois países se comprometeram a resolver o problema da soberania no
Chaco. O Paraguai queria ser ouvido, queria ser parte, queria ter
interesse direto no assunto. Francisco Solano López era diferente de
Carlos Antonio López. Se o primeiro, mal subido ao poder, se mostrava
disposto a fazer uma política de afirmações fortes, este último procedera
O DRAMA DA MISSÃO SARAIVA
com prudência, preferindo deslindar assuntos difíceis de limites com a
pena, eo com a espada. Juan José de Herrera, ministro das Relações
Exteriores, dizia então a Loureiro (depois Barão de Javari), ministro
do Império em Montevideu:
«La República Oriental ve en la guerra que le ha traído
don Venâncio Flores una amenaza argentina contra su auto-
nomia, una amenaza que ya se traduce claramente y que
adelanta en los médios prácticos de hacerse efectiva.»
Juan José de Herrera modificará sua política e sua linguagem em
relação ao Império, acusando-o de haver permitido que gente de Flores
se tivesse armado no seu território. A situação complicava-se de dia para
dia. Por isso, em carta de 29 de outubro de 1863, dirigida a Andrés
Lamas, Mauá se referia aos «Pilotos inábeis no meio deo medonha
tempestade. . .» Quando Herrera se irritou com Mármol, então ministro
da Argentina em Montevideu, e chegou ao ponto de ameaçá-lo com a
expedição de passaportes, foi Mauá quem desfez a tempestade, defen-
dendo o diplomata argentino.
A Tormenta no Rio de Janeiro. As violências cometidas contra
os brasileiros no Uruguai bem como a indefinição do governo de Monte-
videu quanto às reclamações diplomáticas formuladas pelo Império
suscitaram protestos na Câmara dos Deputados no Rio de Janeiro.
Em 1860 Jacinto de Mendonça interpela duramente o governo.
Sinimbu, Ministro dos Negócios Estrangeiros, responde numa linguagem
conciliadora. Em 12 de julho de 1861 Amaro da Silveira acusa o
Governo imperial de desídia, o que motivou uma resposta firme do
Conselheiro Benevenuto Taques, Ministro dos Negócios Estrangeiros.
Em julho de 1862, Amaro da Silveira volta à carga, chegando mesmo
a acenar com a possibilidade de uma guerra. Tavares Bastos, logo a
seguir, afirma: «No Rio da Pratao pode ser mais consternadora a
nossa situação. O Paraguai passa a fronteira e invade Dourados; Monte-
videu, além de outros fatos, trata com a Inglaterra e França do ajuste
das reclamações e pretere o direito muito melhor do Brasil. Na Confe-
deração Argentina até as folhas de Buenos Aires nem publicam notícias
do Império; comparem-se os triunfos de 1851 com a consideração de
hoje...» Como afirmou NABUCO, naquele tempo, no Uruguai, exceto
Lamas, o Impérioo tinha um só amigo verdadeiro, porque o Império
era suspeito a todos, blancos ou colorados. No entanto, diversos
governoso se cansaram de pedir os famosos subsídios em patacões
ou onças-ouro do Império para poderem subsistir. . . No Relatório do
Ministério dos Negócios Estrangeiros, referente a 1862, se dizia:
«As violências e vexames que sofrem os súditos do Império,
estabelecidos ou residentes nos departamentos da República
Oriental, próximos da fronteira brasileira,m despertado a
TEIXEIRA SOARES
mais séria atenção do Governo imperial e exigem as mais
enérgicas providências da autoridade superior, comoo
cessam de reclamar os agentes do Império a bem dos direitos
e legítimos interesses dos nossos nacionais.»
A situação se agravará com a grande agitação liberal que começa
em 1862 (logo após a queda do ministério Caxias) e se apoderará do
Parlamento. A Fala do Trono, lida em 1.° de janeiro de 1864, dizia:
«Lavra desgraçadamente a guerra civil na República
Oriental do Uruguai e ficam estremecidas as relações de paz
entre ela e a Confederação Argentina. O Governo brasileiro,
continuando a permanecer na mais estrita neutralidade, fará
respeitar os compromissos internacionais relativos à indepen-
dência daquela primeira República, bem como os direitos e
legítimos interesses dos brasileiros nos Estados do Prata.»
Note-se que a Fala do Trono era bem clara num ponto: O Governo
brasileiro faria respeitar os compromissos internacionais relativos à
independência do Uruguai.
A 17 de março de 1864 chegou à Corte o General Souza Netto,
porta-voz das reclamações dos estancieiros da fronteira e dos estancieiros
brasileiros residentes em território uruguaio. Explodem violentos pro-
testos contra o Gabinete liberal de Zacarias, no poder desde 15 de
janeiro de 64. Em 5 de abril o deputado Ferreira da Veiga, que já fazia
cerrada oposição ao Gabinete, o interpela: por que motivo o Governe
imperialo defende os 40.000 brasileiros que vivem no Uruguai? Por
que motivo 2.000 brasileiros, residentes no Uruguai, empunharam armas
para participarem ativamente da guerra civil e defenderem suas famílias
e seus bens dos ultrajes cometidos a ferro e fogo por blancos? E deu a
explicação:
«Eles foram arrastados a tomaro audaz e arriscada
deliberação, porque cem razão pouco ou nada deviam esperar
das reclamações feitas por intermédio dos agentes diplomáticos,
as quaism sido de nenhum efeito até hoje e, pois, resolveiam
apelar para o campo de batalha, preferindo morrer aí a serem
assassinados em suas próprias casas, depois de roubados,
depois de profanada a honra de suas famílias E o
Gabinete deo Cristóvão se conserva surdo a esse clamor,
despreza as reclamações do nosso valente Netto, sofre calado
os insultos da imprensa montevideana, tolera a emissão de
decretos que manifestamente violam os tratados existentes.
E o Gabinete deo Cristóvão se conserva mudo e quedo
ante a desgraça de tantos mil brasileiros,o compreende ou
o quer compreender a nobre missão que Deus deu ao Brasil,
fadando-o para ser a primeira potência da América do Sul.»
Pormenor da talha e do painel das Bodas de Cana, da parede lateral esquerda da capela-mór
da Igreja de Santo Antônio de Tiradentes.
O coro e o órgão da Igreja de Santo Antônio de Tiradentes.
Inferior da nave da Igreja de Santo Antônio de Tiradentes, com as talhas da capela-mór,
do arco-do-cruzeiro e dos altares colaterais.
Igreja Santo António Tiradentes. Altar-mór detalhe dos atlantes
PROCESSO E JULGAMENTO
DE
JOSÉ CARDOSO .VIEIRA.DE CASTRO
TRIBUNAL DO 3.° DISTRICTO CRIMINAL DE LISBOA
PELA ACCUSAÇÃO
DO CRIME DE HOMICÍDIO VOLUNTÁRIO NA PESSOA DE SUA MULHER
D. CLAUDINA ADELAIDE GUIMARÃES VIEIRA DE CASTRO
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1870
Frontispício do livro que historia o crime.
Dele existe um exemplar na Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro.
A bela brasileira, a Capitu do Dom Casmurro
português. Gravura do livro Processo e
Julgamento de José Cardoso Vieira
de Castro.
O Dom Casmurro lusitano, trágico e impe*
tuoso, que vaticinou uma carreira politica
a Machado de Assis.
O DRAMA DA MISSÃO SARAIVA
Dias Vieira, com muita cautela, relatou acontecimentos desde 1851
para mostrar que os brasileiros residentes na Banda Oriental (conforme
qualificou o político maranhense)o gozavam «em toda a plenitude
dos direitos que a própria Constituição da República confere a todos
os estrangeiros». Em 1851 o Governo imperial tomara a decisão de
intervir no Uruguai «para salvar a independência e a integridade do
Estado Oriental do Uruguai; e havendo a esse faltado o auxílio pecuniá-
rio da França, tomou a si esse encargo». E depois informou o que serve
para iluminar a personalidade de Flores:
«Em 1854, três anos depois, ainda o Governo imperial,
levado pelas mesmas considerações, teve de celebrar um acordo
com o general Flores, então presidente da República Oriental.
As promessas solenemente feitas nesse acordo no sentido de
tornar eficaz a proteção aos direitos dos brasileiros ali resi-
dentes, mais uma vez foram iludidos; tudo continuou do mesmo
modo.»
Quer dizer que Flores, que muita gente mal informada pensou que
sempre houvesse sido amigo do Brasil, nada fez... A partir de então,
porque tudo continuasse na mesma no Uruguai, continuou Dias Vieira,
o Governo imperial julgou conveniente adotar a «política de abstenção
completa nos negócios internos da República vizinha». Várias vezes
de Montevideu saíram apelos ao Governo imperial para que interviesse
nos negócios internos do Uruguai. Prudentemente o Governo imperial
se absteve de intervir, porque se interviesse, seria ademais acusado de
'«.imperialista» nos países vizinhos. O resultado dessa política de
abstenção foram as reclamações feitas por via diplomática, queo
cessaram de crescer; mas tais reclamações diplomáticaso tiveram
atendimento algum por parte do governo de Montevideu. Se o Governo
imperial se sentia enfadado de apelar em vão, nem por isso deixaria de
fazer o «último apelo» ao governo de Montevideu, porque «não está
disposto a tolerar que sob o pretexto (isto é, que brasileiros intervenham
nas lutas e dissensões intestinas da República) se pratiquem violências
e atrocidades, e fiquem sem proteção e sem garantia a vida, a honra e
a propriedade dos súditos brasileiros ali residentes». Apesar do tom
cauteloso, as palavras de Dias Vieira, então à testa dos Negócios Estran-
geiros do Império, impressionaram. Mas, a Câmara, o Senado e a
imprensa agitaram o assunto, super-aquecendo-o com a paixão política
e a paixão patriótica. No Senado imperial, na sessão de 20 de fevereiro
Pimenta Bueno informara:
«Ora, de muito tempo os rio-grandenses dizem: no Estado
Orientalo se fuzila inglês nem francês, nem mesmo italiano,
embora se achem colocados em circunstâncias idênticas aos
brasileiros; mas fuzilam-se brasileiros; ora, se o Estado Oriental
tem meios de impedir que os chefes de suas guerrilhas ou de
TEIXEIRA SOARES
suas forças fuzilem esses estrangeiros, por queo terá de
impedir que se fuzilem os brasileiros? Será por que esses outros
estrangeiroso mais protegidos pelos seus Governos do que
s pelo nosso?»
Câmara, Senado e imprensa inclinam-se à intervenção. Mas, antes
que a intervenção entrasse em jogo, era preciso encontrar alguém que
fosse em Missão especial a Montevideu. Quem seria esse alguém?
Saraiva Escolhido. Bernardo Berro terminara seu período
constitucional. A 1.° de março de 1864 assumiu a Presidência Atanazio
Cruz Aguirre, blanco medíocre, que morrerá totalmente esquecido em
1875. Mas, a situação geral no Prata era melindrosa. Vejamos por que
motivos: 1.°) Porque os blancos, cientes do apoio dado por Mitre aos
colorados, procuraram induzir Francisco Solano López a transformar-se
em protetor da Bacia do Prata e em aliado do governo blanco de
Montevideu. Surgiu assim a primeira missão diplomática que foi confiada
a Juan José de Herrera em 1862 por Enrique de Arrascaeta, ministro
das Relações Exteriores, missão exploratória de possibilidades de
aliança e de apoio externo. Em sua obra, «La Tierra Charrua» (repu-
blicada em Montevideu em 1968), Luis Alberto de Herrera afirmou:
«La alianza buscada con el mariscai López no revestia ningún carácter
odioso. Ella no iba contra el general Flores, ella se dirigia contra el
Brasil, contra el tradicional y coniún enemigo» (ver pág. 203). A obra
de Juan José de Herrera será aprofundada por Octávio Lapido, Antonio
de Las Carreras e Vázques Sagastume. 2.°) Porque Aguirre subira ao
poder numa hora dramática, in articulo mortis, só contando para sobre-
viver como governo com um auxílio direto e urgente de López para
enfrentar Flores, e esse auxílio teria de ser militar. 3.°) Porque o Impé-
rio iria engajar-se e sair da sua neutralidade.
Nessa situação melindrosa para os interesses do Brasil, havia um
barómetro excelente, Mauá. Como disse ALBERTO DE FARIA em seu
belo livro a respeito desse grande brasileiro, «Mauá, marchando de
acordo com a política imperial até esse dia (isto é, dizemos nós, até ao
dia da partida de Saraiva para Montevideu), estivera ao lado do governo
legal de Bernardo Berro, substituído semanas antes e continuado, em
Sua política, pelo de Aguirre» (ver «Mauá», 1» edição, pág. 432) . No
dia 20 de abril Saraiva recebera as instruções finais de Dias Vieira.
No dia 22 de abril, o «Jornal do Comércio» publicou a famosa carta-
aberta de Mauá dirigida a Saraiva, na véspera da partida deste para o
Prata, carta que deveria ter colocado, no entender de Alberto de
Faria, o emissário brasileiro a caminho do teatro diplomático das opera-
ções, numa situação de verdadeiro drama íntimo. Porque nessa carta-
aberta Mauá, adotando uma posição pessoal, alertava o Governo
imperial das possíveis consequências que pudesse vir a ter a Missão
O DRAMA DA MISSÃO SARAIVA
Saraiva.o sendo um diplomata de carreira, Mauá era contudo um
sharp shooter diplomático.
Por que motivo o Gabinete deo Cristóvão escolhera o Deputado
José Antônio Saraiva para o desempenho deo delicada missão, quando
dispunha de Paranhos, Pimenta Bueno, Abaete e talvez alguns outros?
Nascido em Santo Amaro (Bahia) em 1823, Saraiva era a imagem do
homem de honra. Este traço fundamental da sua personalidade aliava-se
a um conjunto de qualidades. Calógeras definiu-o como a «personifi-
cação da honra, da moderação, do espírito de justiça e do amor aos
meios suasórios». Esse o homem que iria lidar com os arrebatamentos
de Aguirre e com os excessos verbais ou escritos de Juan José de
Herrera. Ademais, iria conhecer a «pequena corte» de Aguirre, na qual
só prevaleciam os exaltados.
Tratava-se da primeira missão diplomática de Saraiva no estran-
geiro. Missão a cumprir-se num ambiente particularmente movediço e:
perigoso.
O Brasil recordava-se da mediação isolada de Yancey, ministro*
dos Estados Unidos da América, na contenda pelas armas entre os
governos de Buenos Aires e Paraná, isto é, entre Mitre e Urquiza em
1859. No entanto Urquiza era aliado do Império. A propósito deste
assunto, existe uma carta de singular doblez, de Alberdi a Urquiza que
convém reproduzir:
«El Brasil hace hoy grandes esfuerzos en estas cortes.
para que le den su confianza y le hagan como el organo de
inteligência, a titulo de poder americano, entre la Francia e
Inglaterra respecto de los países del Plata. Yo creo que eso
seria tan feliz para el Brasil, como peligroso para nosotros, y
creo que debemos evitado a todo trance, inculcando siempre
en que nosotros debemos atribuir constantemente al Brasil
miras ambiciosas e interesadas» (Citado por Ramón CÁRCANO,
«Del sitio de Buenos Aires», pág. 690).
A política de Alberdi, tanto ostensiva como às furtadelas, era
seguida por falsos estadistas na Bacia do Prata contra o Império, que
o lhes fazia sombra nem contribuía para o engrandecimento ou o
enfraquecimento da glória desses falsos estadistas. Por isso, no conflito'
entre Urquiza e Mitre, o Império foi desdenhado; e quem conseguiu
a vitória da mediação foi Francisco Solano López, mediador em noine
do seu pai, o ditador Carlos Antonio López. Francisco Solano López
conseguiu mediar, ajustar os interesses em jogo, mas evidentemente em
proveito de Mitre contra o caudilho de Entre-Rios. Ademais, no Prata
era o Império suspeitado de «imperialista», de conquistador de terras,
de corruptor. Entretecia-se a intriga diplomática entre os blancos de
Montevideu e Francisco Solano López. Surgia a questão do Chaco.
TEIXEIRA SOARES
A Argentinao tinha limites com o Paraguai, só os terá em conse-
quência dos tratados Irigoyen-Machain, assinados na Paz de Buenos
Aires (3 de fevereiro de 1876), bem como do laudo arbitral do Presi-
dente Rutherford Hayes, de 12 de novembro de 1878, que deu ao
Paraguai o território situado entre o rio Verde e o braço principal do
Pilcomayo, inclusive Villa Occidental (depois Villa Hayes). Finalmente,
em 1862-63 o Império arcara com a Questão Christie, motivada por um
inglês destituído de estilo diplomático.
Mal chegado a Montevideu, Saraiva sentiu que o governo de
Aguirre se condenara a irremediável colapso. Inteiramente desarvorado,
o governo blanco jáo sabia lidar com a situação, esperando um mila-
gre: que tropas paraguaias descessem ao longo do rio Uruguai e
chegassem o mais depressa possível a Montevideu. Saraiva apresentou
credenciais a 12 de maio. A 16, Saraiva recebeu nota de Juan José de
Herrera, redigida num estilo forte, na qual o ministro uruguaio declarou
que «em qualquer circunstância, a passagemo consentida de tropas
brasileiras pelo território oriental seria considerada como um ultraje à
soberania e independência da República». No dia 18, Saraiva respondeu
por meio de uma extensa e bem argumentada nota na qual fez o histórico
das relações diplomáticas entre o Império e a República e na qual parti-
cularizou as providências, em número de quatro, que o Governo imperial
julgava necessário fossem cumpridas pelo Uruguai para que cessassem
as violências cometidas contra os brasileiros na República.
A essa nota, Herrera respondeu por outra nota, de 24 de maio,
muito longa, com acentos por vezes dramáticos, redigida numa lingua-
gem ora altiva, ora violenta. Nessa nota Herrera afirmou que a
lamentável situação da República tivera sua origem na invasão dos
revolucionários, «meditada, organizada e armada em territórios argen-
tino e brasileiro», sem que as autoridades desses territórios houvessem
posto paradeiro a tal estado de coisas. Saraiva respondeu por nota de
4 de junho à nota dramática, apaixonada e por vezes destemperada de
Herrera. Saraiva argumentou, citando notas anteriores de Herrera de
louvores às autoridades civis e militares do Brasil na fronteira; e infor-
mando que Jacuí, Canavarro e Netto eram chefes do Exército brasileiro
e se achavam acima de «quaisquer acusações injuriosas».
Saraiva apressou-se em comunicar suas impressões ao Rio de
Janeiro. Essas impressões suscitaram uma sensação de estupor nos
círculos governamentais. Atropelaram-se os acontecimentos, quando a
imprensa tomou conta do assunto. Possibilidades de composição de
interesses entre o Império e a República desvaneceram-se num sopro.
Os acontecimentos agravaram-se de tal maneira que Thornton, ministro
de S. M. B., Saraiva e Rufino de Elizalde, ministro das Relações Exte-
riores de Mitre e em missão especial a Montevideu, procuraram o
Presidente Aguirre, com o qual tiveram três conferências muito impor-
tantes. Os três mediadores porfiaram em abrir um caminho através
O DRAMA DA MISSÃO SARAIVA
do tumulto passional que era o governo de Aguirre. Afinal, em 10 de
junho Herrera passou nota a Elizalde, Saraiva e Thornton, encami-
nhando-lhes o texto do decreto daquela mesma data, baixado por
Aguirre, por intermédio do Ministério da Guerra, em cujo preâmbulo
se faziam referências à ação dos três mediadores. Constante de seis
artigos, o decreto concedia anistia geral e irrestrita a todos os que se
achassem em armas contra a autoridade constituída ou estivessem
comprometidos por atos políticos, dentro ou fora do país, contra o mesmo
governo; os cidadãos que depusessem as armas, seriam restuídos aos
postos que haviam adquirido no serviço da República; efetuado o desar-
mamento, o governo tomaria as mais eficazes medidas para garantir
a todos os cidadãos, sem exceção alguma, o pleno gozo dos direitos
civis e políticos; o Governo comprometia-se a proceder as eleições do
poder legislativo; finalmente, o decreto estabelecia um armistício nos
campos de batalha.
Andrés Lamas e Florentino Castellanos foram encarregados por
Aguirre de levar ao caudilho Flores o texto do decreto. Chegados a
Punta del Rosário, o novo quartel-general dos colorados, entraram em
fala com Flores. A 18 de junho, Flores aceitou as condições de paz
dos mediadores num documento que, redigido por Lamas e Castellanos,
foi assinado por Flores, Saraiva, Elizalde, Thornton, Lamas e Cas-
tellanos. Na mesma data (18 de junho), Flores redigiu uma «carta
reservada» a Aguirre, na qual instou pela organização de um novo
ministério. No dia 23 de junho, o governo de Aguirre aceitou o projeto
dos mediadores com ligeiras modificações. Foi o chamado Acordo,
baixado por intermédio do Ministério do Governo, acordo que em sua
parte final consignou o seguinte:
«O Presidente da República, em conselho de ministros,
resolve aceder por sua parte às bases da proposta feita por
SS.EE. os Srs. Ministros da Inglaterra, do Brasil e da
República Argentina, nos termos que forem ajustados para a
nota, que a este respeito tem de ser-lhes dirigida, devendo-se
expedir pelos ministérios respectivos as ordens necessárias
para o cumprimento da presente resolução, que se comunicará
também aos Srs. D. Andrés Lamas e D. Florentino Castella-
nos, agradecendo-se-lhes os serviços que nesta ocasião presta-
ram ao governo.»
No mesmo dia 23, Herrera passou nota a Saraiva, dando-lhe
ciência do ocorrido e dizendo: «As razões que induziram o governe a
adotar a referida resolução, resolução que teve a fortuna de ser bem
apreciada, encontram-se nas bases de pacificação apresentada por
V. Ex» e os Srs. Ministros Dr. Elizalde e D. Eduardo Thornton, se
bem que com alguma alteração quanto aos meios de conseguir-se o fim
TEIXEIRA SOARES
•desejado.» Saraiva respondeu a essa nota no dia 25, manifestando sua
disposição de ocupar-se, com a maior brevidade possível, dos novos
ajustes. A alegria de Saraiva justificava-se plenamente; mas iria durar
pouco. E por que motivo iria durar pouco? Porque Aguirre, pressionado
pela intransigência de correligionários, pelos comícios de Vázquez
Sagastume em Montevideu e também pela esperança de uma intervenção
do Paraguai, que a República Oriental havia muito solicitava (ver
TASSO FRAGOSO, «Hist. da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Para-
guai», vol. I, pág. 120), resolveu deixar de cumprir o pactuado; e a
mudança do ministérioo poderia ser cumprida, porque faltava ânimo
a Aguirre para fazê-lo.
Verdadeira bomba estourara no campo dos mediadores.o pode-
riam estes acreditar que, depois de tanto formalismo solene, a mediação
fosse desmoralizada de raso pela inconsequência de Aguirre. Como
informou NABUCO {«Um estadista do Império», vol.II, pág. 173),
Saraiva chegou a oferecer-se a Aguirre para sustentá-lo, «se ele orga-
nizasse logo um ministério superior às facções». A atitude de Saraiva
contogiou Elizalde e Thornton. Andrés Lamas e Florentino Castellanos,
elementos desinteressados e competentes, chocaram-se com exaltados
como Vázquez Sagastume. Daí comunicar Saraiva à Chancelaria
imperial: «Esta necessidade de tomar conselhos com homens presos
ã situação por suas malversações ou cego espírito de partido é o que
faz do Sr. Aguirre o homem mais indeciso e fraco que a desgraça desta
Repúblico colocou sobre a cadeira da Presidência.»
Em 4 de julho, Herrera passou nota aos mediadores para explicar
confusamente o proceder do Governo. Nessa nota Herrerao foi
elegante para com os mediadores. No dia 5, Herrera passou nota a
Saraiva para lhe perguntar se, à vista de uma comunicação que tivera
no dia 4 do próprio chefe da rebelião de que os mediadores haviam
considerado rotas as negociações, o Enviado especial do Imperador
poderia dar alguma explicação ao Presidente da República por inter-
médio dele, Herrera. . .o havia nada a explicar, porque no dia 4
de julho o general Lucas Moreno, chefe das forças legalistas, recebera
comunicação assinada por Flores na qual lhe anunciava o reatamento
das hostilidades para as 10,30 horas do dia 6. Lucas Moreno apressou-se
em enviar essa comunicação ao brigadeiro Diego Lamas, Ministro da
Guerra. No dia 7, Saraiva respondeu à nota de Herrera do dia 5,
lamentando que o Presidente da República houvesse mudado de parecer,
.mesmo depois de haver concordado com todas as diligências dos
mediadores.
Flores recompôs seu exército, recrutou gente nova e chegou às
portas de Montevideu. Contudo, os blancos do general Lucas Moreno
continuavam em porfiada resistência.
O DRAMA DA MISSÃO SARAIVA
A imprensa no Rio de Janeiro trombeteou o fracasso de Saraiva.
Dias Vieira, em despacho de 21 de julho enviado a Saraiva, que se
trasladara a Buenos Aires, reconheceu o malogro dos esforços emprega-
dos em bem da paz. Contudo, o Governo imperialo poderia tolerar
mais os vexames e perseguições contra seus súditos residentes no
Uruguai; e, para tanto, julgava conveniente que o Barão de Tamandaré
tomasse desde já posição no Uruguai para obter de Montevideu o
respeito devido aos nacionais brasileiros. Situação dramática para os
interessados diretos nos assuntos do Prata, mas queo desalentou
Saraiva e Elizalde, já unidos para uma ação futura. Saraiva continuava
na espreita de qualquer brecha que pudesse vir a ser um clarão de. luz.
Os blancos, imaginando tivessem obtido assinalada vitória sobre os
mediadores e que os houvessem achatado com o ridículo, tornaram-se
mais intransigentes, porque a escumalha de Montevideu fazia pressão
sobre o Governo Aguirre. Afinal, a 4 de agosto Saraiva passou a nota
a Herrera que continha a grave deliberação do Governo imperial. A
nota de Saraiva era uma verdadeira chapa de raios-X de uma situação
política existente no Uruguai e que se deteriorara até à baliza extrema.
Depois de enumerar as sete exigências feitas pelo Império à República,
Saraiva deu o prazo de seis dias para que o Governo de Montevideu
atendesse às exigências apresentadas. Por nota de 9 de agosto Herrera
alongou-se em explicações, mas concluiu devolvendo por inaceitável a
nota de Saraiva queo poderia figurar nos arquivos orientais. A 10
de agosto, Saraiva respondeu à última nota de Herrera, fazendo consi-
derações a respeito da inabilidade com que o governo de Aguirre
encarara a situação, deixando de cumprir o que aprovara com os media-
dores, mas devolvendo a Herrera a nota rejeitada por este. No mesmo
dia, Saraiva passou nota-circular aos ministros d'Espanha e Itália e aos
Encarregados de negócios de Portugal, França, Inglaterra e Prússia
para lhes dar ciência da nota de 4 de agosto e das consequências que
essa nota pudesse vir a ter. No dia 30 de agosto Herrera passou nota
ao Ministro Loureiro, mandando-lhe os passaportes e pedindo-lhe que
se retirasse do território nacional em 24 horas. Loureiro respondeu com
dignidade e energia a essa nota, retirando-se para bordo da corveta
Niterói.
Depois do seu aparente fracasso em Montevideu, Saraiva passou
a exercer sua ação diplomática em Buenos Aires, onde firmou as bases
de um entendimento duradouro entre Buenos Aires e o Rio de Janeiro,
em face dos graves acontecimentos que iam surgindo. Em seu notável
trabalho, «La diplomacia del Império en el Rio de La Plata» (Monte-
videu, 1903), ONETO Y VIANA reconheceu que, em relação ao Uruguai,
«Saraiva, con su mirada de áquila, dominó de inmediato la situación.»
Da mesma forma procedeu na Argentina. Mitre reconheceu que tinha
diante de si um diplomata conciliador, previdente e de nervos tranquilos.
Saraiva, Mitre, Elizalde, Lamas, Pereira Leal e depois o grande Para-
TEIXEIRA SOARES
ühos irão demonstrar que diplomacia é cultura e previsão, sagacidade
e firmeza. Como disse NABUCO, pode-se dizer que foi graças a Saraiva
que a nova combinação de forças no Rio da Prata se fez em torno do
Império eo contra ele, «e que veio a haver uma Tríplice Aliança
brasileira, eo hostil ao Brasil». Jamais se vira o Brasil a braços com
uma criseo dramática como a de 1864-65. Na sessão de 14 de julho
de 1864 Cristiano Ottoni afirmara na Câmara dos Deputados que, nessa
data, o Impérioo tinha um só soldado de tropa de linha na fronteira
com o Uruguai! Assim, o Império iria à tout hasard entrar numa aventura
terrível, cujo horizonte se enegrecia de tremendas ameaças. Depois,
para enfrentar o inimigo que o atacara sem declaração de guerra, o
Império, disposto a atalhar todos os perigos, mobilizará 134.000 homens
durante o conflito armado. Mas, a obra diplomática já estava feita por
Saraiva e concluída por Paranhos. Paranhos sofreu a vilania cometida
por Furtado que o destituiu da missão diplomática em plena vitória. As
palavras de Paranhos, do seu discurso de 5 de junho de 1865 no Se-
nado imperial, marcaram uma posição ante inimigos: «Nunca del nem
darei a ninguém o direito de tratar-me como a um lacaio. . . De sorte
que posso hoje dizer com desvanecimento que a demissão que recebi
dos senhores ex-ministros foi para mim muito mais honrosa do que a
sua nomeação.»
Informação final, o depoimento de Saraiva em 1894 (ele morrerá
cm 1895): a propósito de um trabalho do Barão do Rio-Branco estam-
pado no «Jornal do Comércio» sobre as origens da Guerra da Tríplice
Aliança, Vázquez Sagastume, ministro do Uruguai no Rio de Janeiro,
teve a infeliz ideia de afirmar numa carta publicada em «O País»,
também do Rio, que a crise de 1864 se devera à vaidade de Saraiva.
Vázquez Sagastume teria imaginado que Saraiva já houvesse falecido.
Da Bahia, Saraiva estabeleceu uma polêmica com Vázquez Sagastume
em artigos estampados no «Jornal do Comércio» e no «Diário da Bahia»
subordinados ao título, «Resposta que em vários artigos deu ao
Sr. Dr. Vázquez Sagastume, Enviado extraordinário e ministro pleni-
potenciário do Estado Oriental junto ao governo do Brasil, sobre os
prolegómenos históricos da guerra do Paraguai.» Conta Saraiva: cm
1880 era ele Presidente do Conselho de Ministros, quando recebeu a
visita de Vázquez Sagastume, já então ministro do Uruguai na Corte
do Rio de Janeiro. Antes de sentar-se, Vázquez Sagastume disse-lhe
pomposamente: «Sr. Ministro! Tem V. Ex
9
diante de si o homem, que
foi em 1864 o maior inimigo do Brasil, e que hoje é o seu mais sincero
e dedicado amigo!» Num dos artigos Saraiva disse a Vázquez Sagas-
tume:
«Resigne-se, portanto, V. Ex
9
a carregar sozinho com a
responsabilidade que assumiu, indo ao Paraguai em 1864, como
enviado do presidente Aguirre, intrigar o Brasil com López
O DRAMA DA MISSÃO SARAIVA
e convencê-lo da existência de um tratado secreto do Império
com a Confederação Argentina.o é, porém, essa a menor
falta do Sr. Sagastume, como chefe da facção mais exaltada
do partido «blanco». Os meetings numerosos, que lhe valeram
a dominação temporária da cidade de Montevideu e constran-
geram o Sr. Presidente Aguirre a romper o acordo com Flores,
constituem a sua maior responsabilidade para com a sua pátria,
para com o seu partido e para com o Brasil, de cujas intenções,
então como hoje,o podia duvidar» (Ver «Rev. do Instituto
Histórico e Geográfico», t. 59, 1896, às págs. 292 e segs.).
Cento e tantos anos transcorridos sobre a grave crise de 1864-55
demonstraram o seguinte: seus acontecimentos defluíram através de
canais emocionais. A paixão política e a paixão patriótica comandaram
esses acontecimentos. Saraiva e Paranhos confiaram numa ação diplo-
mática verdadeiramente intensa que buscasse conciliar interesses,
desbloquear episódios funestos, apagar rivalidades e congraçar perso-
nalidades em torno de uma causa comum. Ambos souberam quão difícil
era lidar com as rajadas do imprevisto, da desonestidade diplomática,
do quebrantamento das promessas feitas e da invenção de propósitos
expansionistas. Por isso, foram objetivos e tiveram a alça de mira posta
muito além dos acontecimentos do presente, procurando entrever os
acontecimentos do futuro.o se esqueceram daquela lição básica de
Relações internacionais que o Presidente Kennedy condensou admiravel-
mente em 1963: «However fixed our likes and dislikes may seem, the
tide o[ time and events will often bring surpeising changes in the relations
between nations and neighbors.» Foi nesse elemento mutável e fluído
que Saraiva e Paranhos acreditaram e jogaram. Por isso, venceram.
letras
Camões - Roteiro de uma Vida e de
uma Obra
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
O
Renascimento em Portugal, se possui os mesmos fundamentos
por que ele ocorre nos demais países da Europa, preocupado
em encontrar, nas matrizes e valores greco-romanos, os modelos
e a explicação para a beleza e a concepção realística do mundo, na
exaltação do homem acima da natureza, possui, porém, a particularidade
de ter trazido, com a sua experiência bem vivida, nos sete mares, na
empresa em que foi pioneiro, empresa através da qual deu ao mundo
novas partículas desse mundo, ter trazido, com essas partículas, o
essencial para que se encontrasse nova motivação ao renascimento da
vida.
Nesse particular, o que se verifica em Portugalo tem simile no
momento por que se torna realidade, simile que outros povos procuram
adotar no comportamento que seguiram, buscando, na experiência portu-
guesa, a lição que ele ensinava e de que colhia os resultados mais
ef etivos.
Portugal, naquele momento histórico, já era uma nação perfeita-
mente definida em sua história institucional, na configuração de sua
sociedade, na decisão de seus governantes e homens de negócios, a
burguesia portuária, decisão para empreendimentos mais arrojados que
assegurassem riquezas, bem-estar material e tirassem o país das limitações
econômicas que sua vida rural rotineira e sem perspectivas maiores
possibilitava. (*) Uma religião de Estado disciplinava os espíritos,
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
confundindo-se com a sistemática da própria vida social vigente. (
3
)
Estava consolidado o domínio do espaço e sobre ele elaboravam-se,
com a consciência cívica, uma unidade nacional, queo era o exemplo
dos grupos vizinhos que lutavam na estruturação de uma Espanha,
livre das diferenças, obstáculos, forças negativas que impediam o Estado
nacional. Em Portugal, havia um só Portugal. A história da formação
desse estado de consciência foi escrita, em grandes linhas, por Torquato
de Souza Soares, em «Formação do Espírito Nacional Português». (
3
)
Sua explicaçãoo parece fácil, comoo é fácil, também, a explicação
para a unidade brasileira em espaço de tanta diversidade, diversidade
de toda espécie. O que devemos considerar aqui, pois, o que, no
momento, interessa, é o reconhecimento de que a unidade nacional
constituía um fato positivo. Ademais, sobre a terra, havia uma ocupação
permanente, continuada, que se expressava, demograficamente, no cresci-
mento da população e sua integração naquela tarefa política. Falava-se
uma língua autónoma, perfeitamente autónoma,o mais um mero
dialeto latino, indeciso nas suas formas, à procura da segurança que a
tornasse idioma capaz de resistir às pressões das linguagens dos vizinhos,
e constituindo,, arma sólida, capaz de manter em comunhão perfeita
o povo que a criara e através dela realizava a comunicação e promovia
a execução dos atos de natureza política. A língua estava viva, diciona-
rizada e disciplinada no sistema gramatical que dois homens de espírito,
Fernão de Oliveira e João de Barros, haviam divulgado em textos
severos. (
4
) Já se lhe fazia o louvor, a revelar o orgulho dos que a
falavam e a defendiam como aquela força nacional a que nos refe-
rimos atrás.
Os Estudos Gerais, raiz da Universidade, fundada por D. Diniz
em 1290, mobilizavam as inteligências, levando-as à energia criadora.
Outras instituições de cultura, como o Colégio de Santo Antão, dos
Jesuítas, a Universidade de Évora, também dessa mesma Congregação,
o Colégio de Santa Cruz, além das escolas conventuais em pleno funcio-
namento, compunham o aparelhamento educacional que, se o Estado
o mantinha, diretamente, assistia, encorajava, de certo modo fazia
funcionar. As bolsas de estudos a estudantes que frequentavam, em
Paris, em Bolonha, principalmente, as aulas daqueles centros mais ativos
c mais progressistas, concediam-se continuadamente. Haveria,, então,
uma política do espírito, comandada, exercida pelo Poder Público?
Recentemente, José Sebastião da Silva Dias, em ensaio acerca da
«Política Cultural da Época de D. João Iü», sustentava a existência
dessa preocupação governamental, o que importava no reconhecimento
da existência de uma política de Estado, voltada para os problemas
do espírito, política de Estado em conflito com os desejos e manifes-
tações da nobreza, seo de todo indiferente, pelo menos menosprezante
das atividades culturais. Mas Portugal, então, também se afirmava
pelo seu teatro, pela sua poesia, pela sua novela, pela crônica dos que
CAMÕES ROTEIRO DE UMA VIDA E DE UMA OBRA
se voltavam para o passado, buscando, nele, os lances que haviam
definido a Pátria. Fernão Lopes, vendo no povo português a raiz de
tudo, iniciara a galeria dos que escreveram a história elaborada material-
mente, no dia a dia, pelos outros, os mais antigos, mas gente humilde,
povo, enfim. Sá de Miranda, Bernardin Ribeiro e Gil Vicente eram a-
figuras mais expressivas desse quadro da inteligência criadora. Valiam
como outro exemplo daquela paisagem espiritual que positivava a
existência de uma Nação, certa de sua destinação e na posse dos valores
de toda sorte que condicionam a formação e a permanência dos povos.
A essa altura, no entanto, Portugal começava a tomar a dianteira
da Europa na iniciativa, que ninguém lhe pode contestar, do empreendi-
mento marítimo. Vencendo o desconhecido dos mares distantes, oceanos
misteriosos, terras e humanidades totalmente ignoradas ou apenas suspei-
tadas no que diz respeito à existência delas, promovia o surgimento de
novo capítulo da história mundial, aquele de ampliação do ecumeno
pelo relacionamento dos povos exóticos com os povos do velho mundo.
Era, realmente, uma autêntica revolução, que vinha tirar a Europa de
seu condicionamento, antes, de sua limitação geográfica, no confina-
mento continental, para abrir-lhe a perspectiva de sua projeção e da
ampliação de seu domínio político, social, econômico, espiritual e cultural.
A contribuição que se deve a Portugal, na conjuntura, nesse particular,
o se ignore o fato, foi, realmente, uma contribuição admirável, de
que decorreu o aumento do conhecimento científico que as naturezas e
as humanidades descobertas proporcionaram ou provocaram.
Jayme Cortesão, examinando o que essa contribuição valeu ao
enriquecimento da civilização europeia, escreveu: «Les grandes décou-
vertes maritimes ont contribué à la création de 1'esprit de la Renaissance,
autant ou plus encore que la connaissance directe des auteurs anciens.
Lélargissement soudain de la vie humaine et l'immense trésor des faits
nouveaux accumulés ont eu comme résultat la revision des anciennes
idées, et. par conséquent, la rénovation de la philosophie. La valeur
de l'expérience et de 1'observation directe dans le domaine de la physi-
que, 1'écroulement des colonnes qui soutenaient 1'édifice étroit de la
science médiévale, le ferment de doute méthodique créé par cette catas'
trophe salutaire, le sentiment de la grandeur de l'homme et de la nature
que 1'épopée des navigations avait éveillé, ont eu une puissant influence
dans la création de 1'hummanisme et des systèmes philosophiques d un
bruno et d'un Descartes. D'un autre côté, en découvrant les océans et
la science qui permettait de les traverser, les Portugais ne se sont pas
bornes à donner à la civilisation européenne les plus puissant instrument
de son hégémonie sur le globe: ils ouvrirent aussi le chemin pour
ruuification de 1'Humanité. Jusqu'alors, les continents ne communi-
quaient pas entre eux: il y avait sur ces continents quatre humanités,
ou plus encore, qui ne se connaissaient pas. Avec le périple du monde,
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
le premier pas était fait vers la formation d'une civilisation univei-
selle.» (
5
)
Embora real o quadro que apresentamos, nem por isso as reservas
e as contestações deixaram de existir. E por mais estranho que possa
parecer, reservas e contestações partindo do próprio Portugal, insa-
tisfeito, imaginando-se pouco informado acerca do desenvolvimento
científico que se registrava lá fora eo se efetuava, igualmente, no
Reino. A própria Espanha vizinha parecia mais atuante ou mais em
dia com as conquistas da ciência nova ou em renovação. Vozes, como
as de André de Rezende, Francisco de Holanda e Sá de Miranda,
lembrou Ernani Cidade, erguiam-se para lamentar a pequena curiosi-
dade científica dos portugueses,o se apercebendo que a nova ciência,
a experimental, fruto do contacto com as novas naturezas e humanidades
eo resultante das locubrações de gabinete, era a que se elaborava
por consequência daquele achamento de naturezas e de humanidades
diferentes, portanto, caminho da revolução científica, a cuja frente,
com a matéria prima que oferecia, colhida na aventura dos descobri-
mentos, estava Portugal. (
6
) Garcia da Orta que, nos «Colóquios dos
Simples e das Drogas», inventariou a esplêndida contribuição do Oriente
no particular da especiaria para a medicina e para a farmacopeia e
contribuição revelada e utilizada por Portugal, inscreveu-se entre os
que negaram,o se dando conta, assim, do que valia, como empresa
científica ou para a ciência no experimentalismo que começava a
marcá-la, aquele acervo constante, inclusive, e principalmente, do seu
livro, resultante do contacto com o mundo novo que ele próprio se
encarregava de propor num de seus aspectos mais curiosos e úteis.
Portugal, o mais velho Estado da Europa, pois nascera em 1139, com
o ato enérgico de Afonso Henrique, era, também, a grande força atuante
para o crescimento de uma Europa no transbordamento cultural que
levaria aos mundos exóticos. O Renascimento em Portugal, insistamos,
possuía uma cor, uma tonalidade, um vigor próprios.
2
Luiz Vaz de Camões, ou simplesmente Luiz de Camões, vem ao
mundo justamente nesse período histórico de sua pátria. Onde nasceu?
Ouem foram os seus pais? Onde estudou, para formar o pensamento
que irradiaria em «Os Lusíadas»? Como se comportou no decorrer de
sua juventude e à época memorável da elaboração da epopeia? Que foi,
afinal, sua vida, nos altos e baixos de todas as vidas humanas? Aubrey
Bell, nas suas andanças pela inteligência portuguesa, tentando interpretar
Camões, resumiu-lhe a passagem pelo mundo: «Amou, cantou, sofreu.»
E repetindo Pedro de Mariz: «viveo miseravelmente e morreo quasi
ao desamparo». Certo? Exato?
CAMÕES ROTEIRO DE UMA VIDA E DE UMA OBRA
Manoel Severin de Faria, Manoel de Faria e Souza e Pedro de
Mariz foram os mais antigos biógrafos do poeta. Wilhiem Storck,
Teófilo Braga, Aubrey Bell, Ernani Cidade, Georges Le Gentil, Aquilino
Ribeiro e Jorge de Senao mais próximos e nem por isso conseguiram
dirimir dúvidas e apresentar um Camões na minúcia e autenticidade
biográfica, liberta das falhas, dúvidas, pontos em branco. As lacunas
continuam. O desconhecimento da vida de Camões, à falta de documen-
tação válida, permanece. E com hipóteses,o se escreve história.
Como no caso de Colombo, várias cidades disputam a glória de
haver sido berço de Camões Santarém, Alenquer, Lisboa, Coimbra.
Falta a comprovação suficiente que leve à segurança da conclusão.
Sendo a família, de Coimbra, poderá admitir-se a hipótese, simples
hipótese, de o poeta ter ali nascido. A familia, ao quem apurando os
biógrafos, tinha suas origens na Galícia, mas já se estabelecera em
Portugal «-havia mais de século e meio». Seu pai foi Simão Vaz de
Camões, cavaleiro-fidalgo; sua mãe, Ana de Macedo. Simão Vaz
comandava navio na navegação para a índia. Teria morrido em Goa.
Em que dia,s e ano Camões teria nascido? A resposta é igual-
mente indecisa 1517, 1523, 1524, 1525. Faria e Souza diz que a
data 1525 é certa e ele a apurou em registro da Casa da índia. A tese
parece a mais acertada. Vem depois o problema de sua vida. Parece
que, em Coimbra, estudara, aprendendo o que lhe assegurou o
conhecimento de humanidades, aproveitadas eruditamente em «Os Lu-
síadas». (
7
) Ainda há pouco, Georges Le Gentil chamava atenção
para a profundidade desses conhecimentos, queo poderiam ser os
de um autodidata, mas seriam os de quem tivesse frequentado Universi-
dade e nela convivido com o saber enciclopédico dos Mestres que a
dignificavam e em nada, na época, eram inferiores a seus colegas de
outros centros culturais da Europa. Afirma o historiador francês: «Foi
verosimilmente no decurso dos seus estudos universitários que ele leu
Platão nas traduções de Marsílio Ficino, que se iniciou no sistema de
Ptolomeu através do Tratado da Esfera, de Pedro Nunes, e que o
petrarquismo lhe foi revelado sob a influência predominante de Sá de
Miranda, introdutor dos métodos italianos. A sua epopeia, assim como
todos os poemas com que se exercitava nos novos gêneros, atestam um
saber enciclopédico e métodos que nadam de comum com a improvi-
sação de um autodidata, mesmo superiormente dotado.»
Em Lisboa, teria frequentado a Corte, pois, lembremos, seus maiores
eram de linhagem fidalga. Ali compareceria, ademais, porque já fazia
versos e essa atividade abria as portas do Paço para as jornadas do
espírito, mesmo naquela fase, a de D. João, que, preocupado com
as reformas culturais, o incentivou as letras, a renovação da inteligência
portuguesa, pondo-a em contacto mais íntimo, como já vimos atrás, com
a inteligência europeia da época, nem por isso permitia o ousio dos
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
criadores da beleza, na forma musical do verso, ousio no louvor à
mulher, e impunha, por isso, certos rigores éticos à atmosfera palaciana.
Camões, expressão humana, terrena, ter-se-ia, então, apaixonado.
Mas quem seria a mulher que o encantava? As dúvidas surgem nova-
mente. Catarina de Ataíde da Gama, Catarina de Ataide de Sousa,
Catarina de Ataíde de Lima e por fim, a infanta D. Maria, filha do
próprio Monarca? José Maria Rodrigues, o mestre eminente que, prati-
camente, dedicou sua atividade no magistério universitário, ao estudo
da vida e da obra do poeta, sustentava que a paixão seria a Infanta.
Escreveu livro a respeito, «Camões e a Infanta D. Maria». (
s
) Ainda
hoje discute-se a matéria. Qual teria sido a mulher eleita?
Seu afastamento da Corte, nessa fase de sua vidao atribulada,
mais um problema para seus biógrafos, seria, como lembramos, conse-
quência daqueles amores por D. Maria ou por outra dama, D. Catarina
de Ataíde? Outros de seus biógrafos pretendem porém, que, como
decorrência da apresentação do «Auto del Rei Seleuco» que teria, então,
provocado, senão a ira do Monarca, pelo menos malestar, é que sofreria
a punição de um desterro. S. Majestade ou os áulicos teriam percebido,
no Auto, uma referência a episódio amoroso de D. João IIIcom a
madrasta, D. Leonor de Áustria,e da Infanta D. Maria. Distante
da Corte, durante três anos, viveria no Ribatejo, ondeo se deixou
vencer pelo desânimo. Produziu com certa intensidade. Foi o lírico de
sempre. À volta a Lisboa, cumprida a pena, encontrou ambiente
estranho. A austeridade de costumes, imposta pela vontade régia,o
permitiria os ensaios poéticos do passado recente. A solução foi a ida
à África, ao norte da África, ondeo se deixaria vencer pela hostilidade
do meio físico social, continuando fiel à sua vocação espiritual na elabo-
ração de uma poética lírica, em que já se afirmara e já lhe valera a
rivalidade e a inveja de outros, de muito menos vôo, de expressão
inferior, entre eles Pedro de Andrade Caminha.
Em Ceuta, perderia um dos olhos, o direito. A experiência no meio
rude, como soldado, valeria? Ceuta constituía uma das áreas difíceis
do Império Ultramarino.o fora possível dominar-lhe as populações.
O estado de guerra era permanente. Camões, em meio àquele estado
de coisas, como se teria comportado? Foi herói? Esteve longe do campo
de batalha? Voltando a Lisboa, como iria proceder?
Em sua nova passagem pela capital do Reino, enfrentou as normas
da existência disciplinada vigorante.o se comportou de acordo com
aquelas normas. Excedeu-se? Fez vida de moço livre.o era um
religioso, nem varão místico. Teria os defeitos e as virtudes da mocidade
em flor. Excedeu-se? Louvou, sem temores, as que andavam erradas, as
«damas de aluguer». Como louvou também as que se mostravam fiéis
aos preceitos morais mais ponderantes. Se hoje o tivéssemos conosco,
em carne e osso, seguramente seria um play-boy,o acham?
CAMÕES ROTEIRO DE UMA VIDA E DE UMA OBRA
Num incidente de rua, feriu servidor do Paço. Preso, à intervenção
de amigo, obteve soltura. O Monarca concedeu-lhe perdão: «ha hum
mancebo e pobre». Realmente, moço, pobre, sem perspectivas imediatas.
A solução seria o Oriente, para onde convergia a atenção geral. A
África e o Brasilo constituíam refúgio de perseguidos, fracassados
ou mesmo dos sedentos de glória e de bem-estar material. A índia era,
à época, o paraíso desejado. Para, Camões se dirigiu. O pai lá
morrera. Por quê, naquele mundo exótico, que tanta fortuna proporcio-
nava e tanta nomeada promovia,o tentar a fortuna que lhe negavam
no Reino, onde tudo conspirava, até então, para tirar-lhe a ventura e
as aspirações? Se até nos amores falhara!
A 26 de março de 1553, na nau S. Bento, partiu para a conquista
do Oriente distante. Viajava como soldado, a serviço de S. Majestade.
Ia engajado por três anos. A empresa da índia era áspera. Missionários,.
soldados, mercadores, funcionários do Estado, colonos, todos ávidos,
todos sedentos da grandeza terrena,o realizavam uma empresa
tranquila, em suave convívio com as gentes da terra, de cultura secular,
atividade criadora impressionante, força espiritual queo cedia às.
pressões e solicitações do Ocidente. Como no norte da África, ocorria
o conflito permanente.o se conquistara o povo eo se dominara
efetivamente a terra. Os costumeso se alteravam para aceitar as
linhas do figurino europeu. Camões, na sociedade em permanente
ebulição com que se defrontava,o se tornou um arredio. Ao contrário,
dela participou no que a distinguia. Batalhou ao lado dos seus, portu-
gueses, nos entreveres contra os que teimavam emo aceitar a soberania
de Portugal. Como em Lisboa, participou de aventura amorosa, que
era uma das mil facetas da empresa sócio-política. (
a
) De Goa passou
a Macau, onde exerceu a Provedoria-mor dos Defuntos e Ausentes.
As peripécias de sua estada aio estão esclarecidas. Aventa-se a
hipótese, sempre as hipóteses, de ter estado nas Molucas, em Malaca.
Afirma-se que seu regresso a Goa ocorrera em consequência do conflito
com colonos ou com um Capitão de navio, certamente envolvido em
negócios, os famosos negócios que enriqueciam a muitos e constituíram
o prato de resistência das denúncias que Diogo do Couto faria, mais.
tarde, em seu livro famoso «Diálogo do Soldado Prático». (
10
)
Naufragando, conseguiu salvar-se vivendo entre budistas, no Cambodja.
Em Goa, mais uma vez preso, talvez à falta de recursos para pagar
dividas que contraíra, sua pobreza continuava. Seu prestígio, porém,
ora subia, ora descia junto aos que governavam o Império de Portugal.
O Vice-Rei Conde de Redondo foi um de seus poucos amigos. Em
1567, à generosidade de Pedro Barreto Rolim, embarcou para Moçam-
bique, ali permanecendo em estado de miséria até 1569 quando, pelos.
favores do historiador Diogo do Couto e de amigos deste, que regres-
savam a Portugal, pôde embarcar de volta à Pátria.
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
À chegada a Lisboa, a cidade vivia uma hora difícil, sob a ferida
de uma epidemia que ceifava vidas às centenas. Camões jáo ia
encontrar velhos amigos, desaparecidos, mortos. . .
D. Sebastião preparava-se, então, para a empresa no norte da
África. Houve tempo, todavia, antes da partida para a jornada trágica,
de agraciar o poeta, pelos serviços que teria prestado no Oriente,
representados, fundamentalmente, pelo «livro que fez das cousas da
índia». (
n
) Concedeu-lhe, o Rei, a 12 de março de 1572, tença de
15$000. Era muito pouco. Para quem, até aquele momento, se vira
desassistido da fortuna, seria uma nova situação, menos cruel. O que
lhe deu a magnificência real importava, realmente, em muito pouco como
expressão material. Valeria, isso sim, como um gesto simbólico. O
desastre de Alcácer Kibir, levando â perda da independência do país,
tocou-lhe o coração.
Pouco tempo decorrido, 10 de junho de 1580, à peste que envolveu
novamente a capital, falecia em Lisboa. Pobre, quase ignorado, tinha
no pensamento, constantemente, a Pátria. Em carta a D. Francisco de
Almeida, pouco antes, escrevera «em fim acabarei a vida e verão
todos que fuio afeiçoado à minha pátria queo só me contentei
de morrer nella mas com ella.» (
J2
)
3
Camões, em sua trajetóriao marcada por altos e baixos, na
desventura que experimentou continuadamente, nos vários episódios de
que foi parte e nos quais essa participaçãoo lhe garantiu um momento
maior de felicidade, a ele que, na hora trágica que anteviu no desastre
de D. Sebastião, vibrara cheio de civismo, morrendo com a Pátria,
perdida momentaneamente, Camões, em meio a tudo e por tudo isso,
foi o poeta de seu povo e de sua terra.
Com aquela ciência bem consumida que adquirira em Coimbra,
e com o espírito criador que o distinguia, cedo despertara para a
aventura do espírito. É possível pensar que toda aquela atribulação de
vida o levasse para os devaneios da inteligência, como um refúgio ante
os dissabores e desventuras que enfrentava. Sabemos que nos encontros
da Corte, versejara. Em outras oportunidades é ainda no verso, lírico,
que revela aquela força criadora que o irá imortalizar. Seria a sua
vingança às desatenções que recebia, às críticas que o feriam?
Suas andanças pelo Império, na África e no Oriente, onde Portugal
o construía com seus soldados, missionários, colonos e mercadores,
cheios de cobiça, seguramente lhe haveriam de ter proporcionado um
vasto manancial que saberia utilizar para definir o ímpeto descobridor
c a empresa de conquista e de domínio que sua Pátria promovia. E na
CAMÕES ROTEIRO DE UMA VIDA E DE UMA OBRA
poesia, em que se afirmava sem rival na Europa portuguesa, poderia
exaltar todo aquele presente admirável, que constatava diretamente. «Os
Lusíadas», que principiara a escrever, possivelmente antes de sua ida
à África e concluíra depois da aventura no Oriente ou no decorrer de
sua presença ali, foram o canto lírico e também épico, em que riscou
a história que Portugal escrevia naquele momento glorioso da aventura
europeia.
Seria suficiente, no entanto, a veia poética estuante e a motivação
farta com que se defrontou, para uma decisão e uma realização daquele
porte? O poeta disporia da formação humanística, de seu tempo,
a humanística sobre que conflitavam os espíritos, defendendo-a ou
negando-a, e procurando, ao negã-la, confundi-la com a heresia da
«Reforma», que já penetrava no Reino?
Aubrey Bell, o eminente historiador inglês das letras portuguesas,
escreveu, a propósito, em seu livro clássico sobre «Luiz de Camões»:
«O profundo conhecimento da história, da literatura e dos clássicos
revelado nas suas obraso poderia ter sido adquirido durante a agitada
vida posterior mas com mais facilidade durante a juventude naquela a
que Nicolau Clenardo (1542) chamou a segunda Atenas, a Universi-
dade de Coimbra.
Camões tinha um profundo conhecimento de latim, escreveu em
castelhano com facilidade (27), lia italiano e talvez grego. Juromenha
(I, 22), seguido por Ramalho Ortigão, pensa que ele deve ter conhecido
Chaucer e a literatura inglesa por intermédio de Jorge Buchanan,
professor em Coimbra. Todavia a poesia camonianao dá indício
algum de conhecimentos do inglês. A semelhança de situações no
Filodemo e na Winter's Tale é interessante porque já foi também notada
a semelhança entre esta e a Comédia de Rubena de Gil Vicente, e por
isso alguma fonte comum os inspirou.» (
13
)
Outros que adiante referiremos, examinando-lhe a obra funda-
mental, concordou na conclusão de que «Os Lusíadas» refletem a espan-
tosa soma de conhecimentos que Camões possuía. E por isso mesmo,
em «Os Lusíadas», toda essa vasta soma de saber está contida, apresen-
tada na hora e no local apropriados.
o se escrevera, em Portugal, ao ser na prosa dos cronistas,
a história que se elaborava na empresa científica e política dos descobri-
mentos. Camões, um eterno apaixonado da Pátria, teria sentido o vazio
e a conveniência cívica e espiritual dessa obra de interpretação e de
emoção. Nos «Lusíadas», por isso mesmo, temos o Camões culto,
o poeta máximo, mas há no poema, fundamentalmente, a exaltação das
gentes, nas figuras que propôs como expressões nítidas daquele
momento., nos «Lusíadas», consequentemente, a página cívica, que
vale como alimento permanente, alimento sem o qual nenhum povo
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
permanece fiel às suas raízes e ao seu destino, nele encontrando o
fundamento para a sua imperecibilidade.
Cabe referir agora que, pronto «Os Lusíadas», e de acordo com
sistemática da época, devia a obra ser submetida ao exame da censura,
que verificaria se nelao havia o desconserto,o da linguagem, na
sua forma literária e gramatical, mas o desconserto perigoso ao pensa-
mento ético, religioso e político em vigor.o se permitia, à época, a
impressão e muito menos a circulação de obra que ferisse aqueles prin-
cípios. A censura inquisitorial era, nesse particular, implacável. No caso
de «Os Lusíadas», o Censor, Frei Bartolomeu Ferreira,o encontrou,
conforme sua própria confissão, qualquer desrespeito que pudesse ser
considerado como em conflito com o regime naqueles aspectos referidos.
Disse o Censor: «Vi por mandado da santa & geral inquisição estes
dez Cantos dos Lusíadas de Luis de Camões, dos valerosos feitos em
armas que os Portugueses fizerão em Ásia & Europa, &o achey nellas
cousa algua escandalosa, nem contraria à fe &s costumes, somente
me pareceo que era necessário aduertir os Lectores que o Autor pêra
encarecer a dificuldade da nauegação & entrada dos Portugueses na
índia, vsa dea fição dos Deoses dos Gentios. E ainda que sancto
Augustinho nas suas Retractações se retracte de ter chamado nos livros
que compôs de Ordine, aas Musas Deosas. Toda via como isto he
Poesia & fingimento, & o Autor como poeta,o pretenda mais que
ornar o estilo Poéticoo tiuemos por inconueniente yr esta fabula dos
Deoses na obra, conhecendoa por tal, & ficando sempre salua a verdade
a de nossa sancta fe, que todos os Deoses dos Gêtios sam Demónios.
E por isso me pareceo o livro digno de se imprimir, & o Autor mostra
nelle muito engenho & muita erudição nas sciencias humanas. Em fe
do qual assiney aqui. Frey Bertholameu Ferreira.»
D. Sebastião, face à liberação, concedeu a licença para que ocorresse
a impressão: «Eu (Ev) El (el) Rey faço saber a quantos este Alvará
virem que eu ey por bem e (&) me praz dar licença a Luis de Camões
(Camões) para (pêra) que possa fazer impremir (imprimir) nesta
cidade de Lisboa hua obra em outava (Octava) rima chamada os (Os)
Lusíadas que contem dez cantos perfeitos, na qual por ordem poética
em versos se declarão os principaes feitos dos Portuguezes (Portugueses)
nas partes da índia depois que se descobrio a navegação (nauegação)
para (pêra) ellas por mandado (mãdado) d'El-Rey (del Rey)
D. (Dom) Manoel meu visavo (visauo)... e se o dito Luis de Camões
tiver (tiuer) acrescentados (acrecentados) mais alguns (algus) Cantos
(cantos) também se imprimirão avendo (auendo) para (pêra) isso
licença do santo officio... em Lisboa a XXIü (XXüü) de setembro
(Setembro) de MDLXXI.» As palavras entre colchetes mostram onde
o original difere da cópia tirada por Juromenha.
CAMÕES ROTEIRO DE UMA VIDA E DE UMA OBRA
4
A primeira edição tem a data 1572, sendo impressor Antônio
Gonçalves. Ocorre, no entanto, o fato de que com essa data, aparecem
duas edições, que se distinguem porque uma apresenta pelicano com
a cabeça voltada para a esquerda do espectador, começando o verso sete,
do primeiro canto, pelas palavras, «E entre», enquanto a outra apresenta
o pelicano com a cabeça voltada para a direita e a primeira palavra da
citada passagem apenas «Entre» eo «E entre».
O assunto provocou exame minucioso. Haveria uma edição clandes-
tina, uma segunda edição imediata, ou, apenas, no momento da correção,
no decorrer da tiragem, verificara-se o erro ou omissão. O exame
minucioso a que foram submetidas as duas edições levou à conclusão
de que o autentico, o que teria mesmo sido o original do autor, é o que
começa aquele trecho do poema por «E entre». (
14
)
5
Lançado à circulação o poema, seu efeitoo se verificou pronta-
mente. A críticao se pronunciou, como hoje ocorreria, louvando ou
negando, na análise que faria do conteúdo, da intenção e do acaba-
mento da obra. Os conceitos que se emitiram foram parcos. E houve
mesmo quemo gostasse. O poeta a eles se referiu: «algum zoilo que
ladrasse». (
15
) Já em 1631, popularizada a obra, dela se faziam 12
edições. O livro falara ao coração dos portugueses. E com o sucesso,
no entanto, provocou imitadores, que tentaram a exaltação dos feitos
portugueses, como foi o caso de Jerônymo Corte Real, Luis Pereira
Brandão, Francisco de Andrade. No século XVIü, na Amazónia,
Henrique João Wilkens escrevia a «Muraida», poema do tipo dos
«Lusíadas», em que o autor cantava os feitos dos portugueses e os dos
índios Muras, que durante mais de um século haviam mantido conflito
entre si.
A obra do poeta, pela importância de que se reveste, pelo que repre-
sentou, pelo que expressa come obra de arte, fruto de uma inteligência
criadora que se sobrepunha sobre todos os seus contemporâneos, em
dado momento da vida portuguesa, satisfez as aspirações nacionais,
servindo de arma poderosa para retemperar o ânimo popular na hora
difícil e hesitante do domínio de Espanha e da perda momentânea da
soberania.
O que Ernani Cidade chamou, muito apropriadamente, de «Lite-
ratura Autonomista», referindo-se ao que se escreveu e divulgou com
aquela intenção cívica, vale para bem entender-se o estado de espírito
da gente portuguesa, queo se rendia aos novos senhores do Estado
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
e se alimentava, nos seus sentimentos patrióticos, na leitura daqueles
escritos, que então se elaboravam. «Os Lusíadas», como era natural,
constituiram um desses alimentos, fonte, inclusive, de muito do que se
afirmava nos novos textos poéticos dos novos autores, imbuídos dos
ideais da restauração nacional, que se alcançaram em 1640. Aquelas
edições, que se fizeram incessantemente, comprovam o que significavam
«Os Lusíadas», na quadra tormentosa.
Fora de Portugal, registrava-se também o sucesso. Escreveu
Aubrey Bell: (
lc
) «Em Espanha Camões alcançou depressa admiradores
e tiveram o bom gosto, como o recorda Faria e Sousa (
16
), de preferir
as poesias líricas ao poema, pois embora para um português ele seja
sempre o autor de «Os Lusíadas», para um apaixonado da poesia é antes
de mais nada um grande poeta lírico. Em Castela em Alcalá e
Salamanca apareceram, no ano da morte de Camões, duas traduções
castelhanas dos Lusíadas. Cervantes falou de el excelentíssimo Ca-
mões. Lope de Vega chamou-lhe «divino». Calderón, Tirso de
Molina e Herrera apreciaram-lhe a obra, Gracián refere-se-lhe como
«imortal». Na Itália Torcato Tasso, mais novo vinte anos que ele, em
um soneto a Vasco da Gama fala de Camões como o «buon e dotto
Luigi». Em Inglaterra só nos meados do séc. XVü foi traduzido,
mas no séc. XVIü, que devia esperar-se fosse hostil a um gênioo
lírico, parece ter sido objeto de um estudo considerável tanto em Franca
como na Inglaterra. Voltaire criticou e louvou os Lusíadas, e Montes-
quieu, em um passo de L'Esprit des Lois, declarou que o poema «fait
sentir quelque chose des charmes de 1'Odyssée et de la magnificence
de 1'Énéide.»
6
Veio, posteriormente, o interesseo mais cívico pela obra, mas
o dos exegetas, que procuram interpretar e compreender a obra. Criou-se
a disciplina, Camões, na Universidade. Toda uma literatura se foi
escrevendo, nessa análise profunda, nessa preocupação do bem conhecer
o que Camões elaborara com o seu gênio e o seu civismo. Os dois
fascículos ora editados, em que se registra o que consta das exposições
que se realizam na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e no Gabinete
Português de Leitura, valem como inventários preciosos, como já suce-
dera com o «Catálogo» da mesma Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
publicado em 1880, à passagem do Centenário de Camões, inventários
preciosos do que já se redigiu com aquele objetivo cultural. Vejamos
alguns desses estudos: José Maria Rodrigues, por exemplo, deu-nos,
além da edição facsimilada de «Os Lusíadas», em 1904 o livro funda-
mental «Fontes dos Lusíadas»; Conde de Ficalho, a «Flora dos
Lusíadas»; Eduardo Siqueira, a «Fauna dos Lusíadas»; Luciano Pereira
CAMÕES ROTEIRO DE UMA VIDA E DE UMA OBRA
da Silva, «A Astronomia dos Lusíadas»; Cândido de Figueiredo, «Lin-
guagem de Camões»; Borges de Figueiredo, «A Geografia dos Lusía-
das»; Tito de Noronha, «A Primeira edição dos Lusíadas»; Correia
da Silva, «Ensaio sobre os latinismos de «Os Lusíadas».
Aqui no Brasil, um interesse exegético pelos «Lusíadas» também
ocorreu. Joaquim Nabuco, nosso primeiro Embaixador nos Estados
Unidos, em Universidades daquele país, realizou conferências divulgando
e interpretando «Os Lusíadas». Afrânio Peixoto, Pedro Calmon, Braz
da Silva, Júlio Nogueira, Tiers Martins Moreira, Miguel de Lemos,
Soares Amora, Capistrano de Abreu, Afonso Taunay, Sílvio de Almeida,
Clóvis Monteiro, Serafim da Silva Neto, Said Ali, Souza da Silveira.
Pedro Pinto, além de outros vários, e dos quais a Comissão Brasileira
do 4.° Centenário de «Os Lusíadas» vai divulgar, em três volumes, uma
Antologia Camoneana, trouxeram lúcidas contribuições ao estudo e ao
conhecimento do «Os Lusíadas» que, poema da língua comum,o
poderia deixar de provocar esse interesseo vivo,o intenso e, porque
o afirmai,o natural.
7
Os «Lusíadas»o o poema da aventura dos portugueses no desco-
brimento do mundo. Em nenhum outro idioma, cantaram-se as glórias
da Pátria como Camões o fez, ao louvar os feitos admiráveis de sua
gente, e esses feitos, representados fundamentalmente no que ocorria
no Oriente. Africa e Brasil,o representavam ainda o mundo exótico
em que Portugal, por fim, se iria afirmar. O mundo português no
ultramar era o Oriente. Nos «Lusíadas», encontramos a vida heróica
que ali se viveu. Camões, registrando aquela aventura admirável,
elaborou, no fim de contas, uma síntese também de sua vida. Porque
ali amou-se, cantou-se e sofreu-se.
(1) Sobre a elaboração do Estado português e a função de seu povo na for-
mação da nacionalidade, além de Gama Barros, em «História da Administração Politica
em Portugal», José H. Saraiva, «Formação do Espaço português», Lisboa, 1963;
Amorim Guão, «Condições geográficas e históricas da autonomia política de Portu-
gal»^ Coimbra, 1931; Teófilo Braga, «A Pátria Portuguesa», Porto, 1894; Mendes
Corrêa, «Raízes de Portugal», Lisboa, 1938; Damião Peres, «Como nasceu Portugal»,
Barcelos, 1938; Torquato Soares de Souza, «Feflexões sobre a Origem e a Formação
de Portugal», Coimbra, 1962; Ricardo Severo, «Origens da Nacionalidade Portu-
guesa», Coimbra, 1924; Eduardo de Oliveira França, «O Poder Real em Portugal
e as Origens do Absolutismo», S. Paulo, 1946; A. Souza Gomes, «As influências
étnicas na civilização portuguesa», Lisboa, 1933.
(2) Cf. Fortunato de Almeida, «História da Igreja em Portugal», Coimbra,
1910-24; Miguel de Oliveira, «História Eclesiástica de Portugal», Lisboa, 1940, Ber-
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
nardo Xavier Cantinho, «Ação do Papado na fundação e independência de Portugal»,
Porto, 1940; Cari Erdman, «O Papado e Portugal no primeiro século da história
portuguesa», Coimbra, 1935.
(3) Coimbra, 1949.
(4) A primeira edição da Gramática de Fernão de Oliveira é de 1536; a de João
de Barros, de 1540. O louvor é da mesma época e foi publicado na «Gramática»,
de João de Barros.
(5) «L'Expansion des portugais dans 1'histoire de la civilisation», Lisboa, 1930.
(6) Esse, um aspecto a considerar sempre na compreensão do periodo e da con-
tribuição portuguesa. Ernani Cidade, nas «Lições de Cultura e Literatura Portu-
guesas», l° vol. da 3ª edição, Coimbra, 1951, examina muito bem o problema. Sobre
a tese da inferioridade da contribuição dos portugueses e espanhóis no campo cienti-
fico, há interessante estudo de Santana Dionísio, «Ao cooperação da inteligência
ibérica na criação da ciência», Lisboa, 1941.
(7) Cf. «Camões», Lisboa, 1969, pg. 18.
(8) Coimbra, 1910.
(9) A formação da sociedade luso-indiana tem sido objeto de estudos especia-
lizados que explicam os aspectos imediatistas das relações amorosas de portugueses
com as mulheres indianas. O ensaio de maiores proporções a respeito é a «História
da Civilização Portuguesa na Índia», de Germano Correia, Lisboa, 1948-1958.
(10) O livro de Diogo do Couto é uma crítica severa ao procedimento de
governantes portugueses no Oriente, que ele acusa de desservirem à Pátria com o
comportamento pouco ético que realizavam.
(11) O ato régio teria esta redação: «Eu El Rey faço saber aos que este aluará
virem que avendo respeito ao seruiço que Luis de Camões caualleiro fidalgo de minha
casa me tem feyto nas partes da índia por muitos annos e aos que espero que ao diante
me fará e a informaçam que tenho de seu engenho e habilidade, e a suficiência que
mostrou no livro que fez das cousas da índia ey por bem e me praz de lhe fazer
mercê de quinze mil reis de tença em cada hum anno por tempo de três anoos somente
que começaram de doze dias de março deste anno presente de mil quinhentos setenta
e dous... com certidão... de como elle Luis de Camões reside em minha corte...
Simão Boralho a fez em Lisboa a XXVIII de Julho de 1572.»
(12) Trecho de carta que teria escrito a D. Francisco de Almeida, Capitão-
General de Lamego.
(13) Tradução do inglês por António Álvaro Dória. Lisboa, 1936, pg. 9.
(14) A matéria foi objeto de estudo profundo de Tito de Noronha, «A Pri-
meira Edição d'Os Lusíadas», Porto, 1880.
(15) Consta o período da ode que escreveu para o livro de Magalhães Gandavo
sobre o Brasil.
(16) Transcrito da pg. 67 da citada obra de A. Bell.
Discurso de Posse (*)
OCTÁVIO DE FARIA
P
ERDOAI perdoai-me, seo me mostroo comovido,o
intimidado quanto deveria estar, aqui, neste momento, diante de
s queo generosamente me honrastes com a vossa escolha,
o dignificante,o acima de meus possíveis méritos. Peço, porém, que
o vos escandalizeis, é queo me sinto ante possíveis juízes, é que
o me encontro em país estranho, em região desconhecida. É queo
me é nem estranha nem desconhecida a vossa Casa essa Casa de
Exceção que me honra com a sua acolhida. Seo receasse parecer
pretensioso aos vossos ouvidos ainda que os saiba indulgentes,
diria mesmo que, ao aqui penetrar e contemplar a imponência de vossos
fardões e de vossas condecorações, sinto-meo só entre amigos, mas
ousarei dizê-lo? como alguém que, depois de longa viagem pelos
difíceis caminhos do mundo, retornasse à própria casa pelo menos,
à casa de sua infância, de sua primeira mocidade.
Quase menino ainda eu era e já me sentava nas cadeiras de vosso
salão, ouvindo vossos conferencistas, especialmente aqueles vindos de
França que tanto deslumbraram meus primeiros contatos com a litera-
tura e ao acaso relembrarei: Dumas, Lanson, Hazard, Garric. . .
Menino eu era nem moço, talvez e já a sombra do vosso prestígio
povoava minhas primeiras inquietações intelectuais: em casa, nas con-
versas que ouvia, era de vós, de vossos problemas, de vossos debates,
das escolhas mais ou menos felizes a que acaso chegáveis em vossas
(*) Lido em 6 de junho de 1972, na Academia Brasileira de Letras.
OCTÁVIO DE FARIA
eleições, que cogitavam os que me eram próximos. Conhecia os nomes
e os títulos de vossos pares de então, seguia-lhes os passos mais rumo-
rosos. No ar que respirava, respirava-se o vosso ar; eram harmônicos
os ambientes em que vivíamos.
Acode-me mesmo a lembrança de, nessa fase de fim de infância,
ter assistido, por detrás da porta do salão de visitas limite máximo
de tolerância permitido ao exíguo de minha idade certa recepção de
domingo em que uma declamadora de renome recitava poemas de Vitor
Hugo, na presença de um poeta francês famoso, ali trazido pelao
amiga de um de vossos mais célebres acadêmicos. O poeta, digamo-lo
logo, pois «a tout seigneur tout honneur», era o grande, o extraordinário
Paul Claudel, então Ministro de França no Brasil .O acadêmico: Graça
Aranha, parente de nossa família. A casa era a de meu pai, Alberto
de Faria, que mais tarde viria a pertencer a esta instituição. Na sala,
bem presentes, meu cunhado, Afrânio Peixoto, já então membro desta
Casa, e meu futuro cunhado, Alceu Amoroso Lima, que a integraria
anos adiante.
Por detrás da porta, espantado, o menino olhava embevecido,
eletrizado, talvez sem compreender muito bem, mas já seduzido, já
«comprado» pelo vosso mundo, pelo mundo do Espírito. Como renegar
algum dia, essa raizo profunda,o infantil? Como atirar pedras
contra uma Instituiçãoo arraigada no meu eu, em minhas mais velhas
lembranças, nos meus «últimos longes», como diria Joaquim Nabuco
esse mesmo Joaquim Nabuco que me oferece a chave mestra dessa
evocação de infância, quando registra, no incio do capítulo célebre de
recordação de Massangana: «O traço todo da vida é para muitos um
desenho de criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre
que se cingir sem o saber»?...
Foi nesse ambiente de secreto namoro da Academia, entre esses
homens marcados pela sua atração, que cresci e aprendi. E aprendi
muito, podeis crer. Com Afrânio Peixoto, quase tudo o que sei 0
pouco que consegui guardar. Mostrou-se ele, à sombra de sua enciclo-
pédica cultura, tudo o que eu então ansiava por saber: o mundo e suas
particularidades regionais, ou e seus segredos que um telescópio
emprestado por Manoel Amoroso Costa revelava à minha curiosidade
maravilhada (as grandes estrelas duplas, os planetas rodeados de anéis
e satélites. . . amostras do espaço então ainda desconhecido), as novas
descobertas da ciência, os mais recentes caminhos da arte, especialmente
a espantosa jovem descoberta: o cinema, meu encanto, minha paixão de
mocidade. À sombra de Alceu Amoroso Lima, dos rumos que sua
divinatória crítica literária estabeleceu, descobriria eu os caminhos do
meu próprio espírito, de meus mais íntimos problemas, primeiros lite-
rários, mais tarde espirituais: Proust, Gide, Pascal, Leon Bloy ... A
meu pai, Alberto de Faria, devo, acima de tudo, o exemplo de dignidade
DISCURSO DE POSSE
que sua vida foi para mim e queo quero esquecer aqui, nesse momento
de rememoração e de agradecimento público.
Mais do que ninguém, foi ele quem me ensinou a vos respeitar
nessa época da vida em que ninguém respeita ninguém, a vos admi-
rar, a compreender o que significais como Instituição, como equilíbrio
de todas as forças que condicionam o mundo do espírito. E, coinci-
dência feliz, foi em sua biblioteca que travei conhecimento com os
volumes, lidos, relidos, anotados, de «Um Estadista Do Império», a
obra mestra de Joaquim Nabuco de Joaquim Nabuco fundador desta
cadeira que ora me é dado o privilégio e a inexcedível honra de ocupar.
E, fato curioso, os mesmos volumes em que meu pai estudava as sínteses
que iriam constituir alguns dos pontos maiores de sua biografia de
Mauá, assistiram, quase na mesma época, ao entusiasmo da leitura
apaixonada do adolescente delirantemente monarquista que eu era
então. . . e que,o vos esconderei,o deixei muito de ser até hoje.
Fato e coincidência mais estranhos ainda, testemunho mais positivo,
sem dúvida, da admiração incondicional em que Nabuco era tido entre
os meus: anos depois, quando meu pai foi convidado pelo então Presi-
dente da República, Arthur Bernardes, para o elevado e por muitos
ambicionado posto de Embaixador do Brasil em Washington, alegou
ele, para declinar da honrosa designação, entre outros motivos, o indis-
farçável receio deo estar à altura do fulgor com que Nabuco ilumi-
nara, na Capital americana, o extinguir de sua carreira diplomática
fulgor tal que ainda permanecia vivo na lembraça de todos.
Perguntareis, provavelmente, senhores acadêmicos, seo deveria
ter, também eu, a mesma modéstia,o ousando me candidatar à cadeira
deo ilustre fundador e que foi,o vejo como escondê-lo aqui, o
maior entusiasmo por vulto nacional despertado em minha adolescência.
Mas, ai de nós!, como os tempos mudaram e como, apesar de tudo, é
diferente a nossa velhice da velhice de nossos pais!o é só a mocidade
de hoje, com seus longos cabelos e sua irreverência sem limites, que é
outra, vária, atordoante. Tambéms o somos, com a nossa incons-
ciência, a nossa pretensão de ocupar as posições deixadas vagas pelas
gerações que nos precederam: as grandes gerações dos Gonçalves Dias
e dos Castro Alves, dos Alencar e dos Machado de Assis, dos Nabuco
e dos Euclides da Cunha, dos Coelho Netto e dos Rui Barbosa, dos
Mário de Andrade e dos Graciliano Ramos, dos José Lins do Rego e
dos Guimarães Rosa, dos Augusto Frederico Schmidt e dos Manuel
Bandeira, dos Cornélio Penna e dos Lúcio Cardoso! Como os tempos
mudaram, senhores acadêmicos, maso foi apenas lá fora, no mundo
dos átomos e dos hippies, e, sim, ems mesmos, na comparação com
a nossa infância, com os nossos sonhos, na aceitação de nossas desilu-
sões e do mundo desfeito com o qual tivemos de nos conformar!
Inútil discutir, no entanto. Os fatos aí estão e, no que me diz
respeito, se aqui me apresento, é porque condescendestes em me acolher
OCTÁVIO DE FARIA
eo posso questionar a vossa generosidade. Resta-me corresponder,.
na medida de minhas possibilidades, à tarefa que me prescrevestes. E
direi que o faço com o maior orgulho e o maior amor porque, com essa
cadeira e seus antigos ocupantes,o obstante a diferença qualitativa,.
sinto a mais viva afinidade.
* * *
Seguindo a trilha com que Adonias Filho identificou sua cadeira,
a 21, com a preocupação essencial da defesa da Liberdade, identifico
a minha, a 27, com a da fidelidade ao Espírito. Caracterizaram-se, de
fato, seus ocupantes sem que essa circunstância, é claro, implique
qualquer ideia de exclusividade pela coragem, pela intrepidez com
que, a qualquer momento de suas vidas, colocaram, acima de tudo, o
serviço do Espírito, a afirmação da verdade íntima em que acreditavam,
como verdadeiros Cavaleiros do ideal pelo qual lutavam. Vede Nabuco
em sua fé abolicionista que nada faz esmorecer, transformando-o no
«Cruzado» que Graça Aranha evocou em página célebre, destruindo
«os muros da escravidão», e, mais tarde, depois do triunfo da Lei Áurea,
em sua fidelidade quase quixotesca à Redentora, à Dinastia que havia
proclamado a Abolição. Vede Dantas Barreto, seu sucessor imediato,
defendendo sem vacilação, ao longo de uma existência inteira, seu ideal
militar. Vede Gregório Fonseca, fiel até a morte ao culto do belo, da
arte, que ela sabe provocar «o ciúme dos deuses», e que desde rapazinho
veio afrontando sem temor ou respeito humano. Vede, enfim, Levi
Carneiro que, na esteira de seu grande mestre, Rui Barbosa, dedicou
toda a sua longa e produtiva vida à defesa da justiça, da lei, do bem
comum, da liberdade.o idealistas, são, essencialmente, servidores do
Espírito.
o homens queo vacilam quando ante eles se apresenta a
injunção do Espírito, a exigência, o dever de afirmação pessoal, a
coragem da escolha, ainda que contra todos e contra tudo. E ninguém
mais do que Joaquim Nabuco nos empolga nesse desafio do eu-próprio
ao meio exterior que o procura tolher. Por duas vezes, nos momentos
talvez máximos de sua vida, ele como que arremessa tudo fora, arris-
cando tudo perder, por simples fidelidade ao Espírito.o atestados de
independência como raras vezes é dado ver; primeiro quando, em pleno
sucesso social, procurado, mimado por uma aristocracia escravocrata,
lança-se perdidamente na propaganda abolicionista, contrariando os
interesses dos seus, de sua própria classe. Depois, quando, vitorioso,
no auge da glória que lhe traz o triunfo de 88, recusa-se a servir a
jovem República por gratidão à Dinastia de Pedro ü e de Isabel a
Redentora.
Contra ele se ergue, em ambas as ocasiões, a matilha dos fanáticos,
desses fantáticos de todas as épocas, incapazes de aceitar ou respeitar
DISCURSO DE POSSE
a liberdade de opinião, o direito de seguir os ditames da própria cons-
ciência. Lutando contra a escravidão, torna-se logo o «traidor», o
«trânsfuga», o «estouvado» que abandonou a causa dos seus, de sua
gente, de sua classe social, para lutar por um ideal adverso aos seus
interesses e aos dos seus. Sobre ele convergem, então,o só o rancor,
mas, como bem o observa sua filha e grande biógrafa, Carolina Nabuco,
o «ódio ativo» de todos os futuros prejudicados. Mais adiante, monar-
quista por gratidão, apodam-no de sentimental, de romântico atrasado,
cego aos interesses da Nação por considerações pessoais de reconheci-
mento, de devoção dinástica. Eo será poupado, nem mesmo quando,
bem mais tarde, instado, insistentemente instado para colaborar no
grande empreendimento da defesa de nossos limites territoriais e, mais
adiante, da visão pan-americanista de Rio Branco, reconhece a verdade
maior de sua vida política, essa espécie de testamento ideológico que
nos legou: para o serviço do País,o há forma de governo que possa
ser erigida em absoluto. O absoluto é o serviço da Nação, a obra
de patriotismo consciente. E Nabuco acaba aceitando «servir» a Repú-
blica . Então, contra ele, novamente se ergue a grita dos fanáticos
dessa vez, os saudosistas do partido monarquista, inconformados com
o afastamento do poder.
De todos esses detratores, triunfa Nabuco em sua integridade de
espírito, em sua fidelidade a si mesmo. E aí está ele, ainda hoje
e hoje mais do que nunca na sua figura de corpo inteiro, talvez a
maior que tenhamos pelo seu conjunto, de pensador e de político, de
homem de ação e de escritor, de memorialista e de diplomata, de
estilista que manejou a palavra com mais arte — e lembro, apenas, a
evocação de Massangana e com mais força persuasiva basta reler
seus discursos da campanha abolicionista, de pessoa cuja finura e
cuja culturao nos esqueçamos de que representou a quarta geração
dos Nabuco no Parlamento marcou um dos pontos mais elevados a
que chegamos neste país, personificando aos olhos de Alceu Amoroso
Lima «a imagem mais fulgurante do humanismo brasileiro em sua encar-
nação pessoal . . . solitário, único, inconfundível», eo bem sintetizado
por Luiz Vianna Filho, no encadeamento de quatro adjetivos exatos,
precisos: «vivo, ágil, impetuoso, idealista».
É ante ele que se curva aqui, respeitoso, comovido, um de seus
mais permanentes entusiastas. É, na verdade, o «desenho de criança
esquecido pelo homem» que se reaviva e toma feições definitivas, confir-
mando apenas o ardor do colegial que há meio século atrás (então
aluno dos extraordinários padres Barnabita-s, a quem tanto deve em
sua formação, e de público, aqui o quer reconhecer, agradecido), lia
«Um Estadista Do Império» e «Minha Formação» quase com o mesmo
interesse com que devorava os romances de Vitor Hugo, de Alexandre
Dumas e de Jules Verne.
* * *
OCTÁVIO DE FARIA
Para patrono desta cadeira, Joaquim Nabuco escolheu Maciel
Monteiro escolha que,o resta dúvida, causou surpresa a muitos.
Enquanto Machado de Assis se fixava em José de Alencar; Coelho
Netto em Álvares de Azevedo; Olavo Bilac em Gonçalves Dias, o lance
de Nabuco surpreendia, parecendo a todos modesto demais umo
a meia altura, ao lado de umo de águias. Sua explicação: pernam-
bucano homenageando pernambucano,o nos dá a chave total do
problema. Cremos antes, ou também, que Joaquim Aurélio Barreto
Nabuco de Araújo via em Antônio Peregrino Maciel Monteiro, acima
de tudo, um ser a si próprio semelhante, um parente muito próximo pelo
espírito: o elegante, o fino, o diplomata, o parlamentar muito prendado,
o aristocrata de ótima aparência e de sucessos brilhantes, inclusive
femininos. Quem sabe. Senhores, «Quincas o Belo» estaria reverenciando
o «Dr. Cheiroso»? Ou talvez insinuo eu na minha relembrança de
menino romântico entusiasmado por belas sonâncias, que ainda hoje
permanecem vivas quem sabe, Nabuco pensou e demorou por alguns
instantes, apaixonado, na extraordinária harmonia desses versos de
Maciel que todos aqui conhecem, mas que nunca é demais relembrar
era momento de euforia acadêmica:
«Mulher celeste, ó anjo de primores
Quem pode ver-te sem deixar de amar-te,
Quem pode amar-te sem morrer de amores?»
* * *
A Joaquim Nabuco, a esse espírito ao mesmo tempo fundamental-
mente nacional e arejadamente universal (inglês, francês, europeu;
americano do Norte, latino-americano, mundial), a esse cultor dos mais
variados matizes das opiniões mais requintadas, feliz emigrado das
influências do super-espiritual Renan para o retorno tranquilo à simples
e irretorquível fé católica de seus antepassados e de sua infância de
«coroinha» da capela deo Mateus, em Massangana, sucedeu nessa
Casa de contrastes permanentes, um tipo de espírito radicalmente dife-
rente: Dantas Barreto. Apesar de intelectual, romancista, dramaturgo,
era Emigdio Dantas Barreto, essencialmente, um homem da lei, da
ordem, do dever, da obediência: um soldado, na melhor acepção do
termo.
E eis que esse contraste nos leva a encarar a nossa cadeira à luz
de um novo ângulo: o da oposição entre a arte e a lei, entre o belo e o
real, entre a ficção e a ciência, enfim, entre o espírito grego e o espírito
romano. Dantas Barreto, no seu esclarecido culto da lei e da ordem
que tanto amamos, que jamais subestimaremos, na firmeza e na
pujança de suas descrições precisas, na honestidade de sua narração da
luta e do esfacelamento de Canudos, nas suas diversas anotações de
problemas políticos e militares, nos seus magníficos retratos de Pinheiro
DISCURSO DE POSSE
Machado, de Campos Salles, de Rui Barbosa, tem tons nitidamente
romanos, quase direi cesarianos, enquanto Nabuco, em sua vida dramá-
tica e polêmica, lembra, à sombra protetora de Demóstenes, figuras
gregas, notadamente Alcebíades como, aliás, se comprazia em
chamá-lo, na mocidade, o seu velho mestre, Barão de Tautpheus, que
por certoo deveria prever, então, o interesse que iria inspirar ao seu
discípulo querido o grande enigmático da enigmada Grécia: Alcebíades,
o Belo.
Nesta cadeira, se Dantas Barreto, militar e políitco, é o romano em
oposição ao grego e não-político Joaquim Nabuco, já seu sucessor,
Gregório Fonseca, é o grego que irá anteceder ao romano Levi Carneiro.
De um lado, predominando, a arte, a inspiração, a preocupação literária
a arte como ideal; de outro, o respeito da lei, do dever, a hegemonia
do imperativo moral o culto da ideia. Entre a literatura e a filosofia,
a arte e a cogitação ética, situam-se, na variante de suas individualida-
des, os que, nesta cadeira, me acolhem, clareando o caminho a seguir.
* * *
E ninguém cultuou mais a arte, como ideal, do que Gregório
Fonseca, o sucessor de Dantas Barreto. A ela destinado como um
sacerdote de antigo culto, por ela viveu, por ela sofreu, e outra coisa
o fez em sua vida senão glorificá-la. Rapazola ainda, bem o sabeis,
perde seu primeiro emprego porque o patrão, velho e bem nutrido
comerciante do fim do século passado, encontra-o lendo (ainda que
em hora de descanso) um livro de «poesias». Crime imperdoável:
condenação imediata. Mas,o se amofina muito ou com a desdita:
o poeta em que estava mergulhado,- era Olavo Bilac. . . e Olavo Bilac
ele o continuará a ler a vida inteira, embevecido.
Pois esse militar de carreira (é verdade que cedo abandonada, em
virtude de injusta preterição)o é um «crente», um romano, como
Dantas Barreto. O sangue que lhe corre nas veias, é o grego, e, ao
endeusamento da Grécia, de seus ideais, de seu culto à beleza, apolínea
ou dionisíaca, consagrará sua obra literária pelo menos, o melhor
dela, suas duas conferências famosas: «O Ciúme Dos Deuses» e «Esté-
tica Das Batalhas». Acima da ciência, a arte; acima da lei, o belo.
A arte é imortal, a poesia é a lei suprema. E Gregório Fonseca esque-
matiza sua visão do mundo: «Ser artista: produzir uma obra-prima;
criar com o belo existente o belo queo existe; fixar para sempre um
aspeto novo da beleza que seo repetirá; avançar do seu tempo, do
seu século, abrindo largas estradas ao pensamento futuro: para os
gregos, era divino-, é heróico, na expressão de Carlyle. Pelo infinito
desconhecido que idealiza, a arte pode ser também uma religião. Atenas
sonhou agrupar em torno à sua beleza, simples e serena, o planeta
escravizado; venceu-a fatalidade do progresso humano — o frio e
austero direito de Roma».
* * *
OCTÁVIO DE FARIA
Do «austero direito de Roma», foi Levi Carneiro, sucessor de
Gregório Fonseca nesta Casa e meu antecessor imediato meu mestre
e meu amigo, o mais completo, o mais brilhante, o mais perfeito dos
representantes que até hoje tivemos, desde o desaparecimento de Rui
Barbosa. Sua folha de serviços ao País e à causa da Justiça e da
Liberdade, é inestimável, como enorme foi o renome internacional que
alcançou. Acompanhou-o sempre o mais vivo sucesso, colocando-o entre
os mais notáveis no meio daqueles que, neste país, tinham a possibilidade
de aspirar ao importa que posição, por mais destacada fosse ela.
No entanto, ouçamo-lo falar, ouçamo-lo testemunhar sobre sua
vida, sobre o ideal que a norteava, e logo a surpresa nos acomete,
decisiva.o grita, apenas murmura: «Advogado, simples advogado,
sem aptidão para mais, eu me consolo de me sentir destituído de aspi-
rações maiores, amando a minha profissão na sua beleza, na sua força,
na sua humildade, nas suas aflições, no que comporta de abnegação,
de lealdade, de desinteresse; no que exige de desassombro, de probidade
e de vibratilidade; no que proporciona de independência, no que ensina
de tolerância».
o vos peço, de pronto, que atenteis na modéstia dessas palavras
modéstia evidente, por demais evidente. Apenas, para o que esconde:
a fidelidade ao espírito. Pois, que significam, essencialmente, essas
declarações desse homem que foi tudo, quase tudo, em nosso país? E
eu levaria muito tempo, minutos incontáveis talvez, se enumerasse aqui,
com rigor, todos os títulos que conquistou, todas as posições que ocupou,
todas as medalhas que recebeu — e todos os postos que soube recusar
, tudo, enfim, o que retrata a trajetória desse filho da simpática e
modesta Niterói, a quem, no fim da existência, Presidentes da República
encomendavam projetos de Constituição, na mesma medida que ante
ele se haviam aberto os portais da Corte Internacional de Justiça da Haia
ou os da Conferência Pan-Americana de Lima sem falar de suas
responsabilidades como Constituinte, em 34, como Consultor Geral da
República, como fundador e primeiro Presidente da Ordem dos Advo-
gados, até sua consagração literária como membro e como Presidente
desta Casa.
Julgo inútil, porém. Todoss sabeis que o «advogado, simples
advogado, sem aptidão para mais», se foi um grande advogado, o
advogado padrão de sua classe que todo o paíso se fartou de saudar
e respeitar, foi além disso, mais do que isso, um grande jurisconsulto
um extraordinário cultor do Direito e dos problemas jurídicos que
Luiz Gallotti proclamou «um dos maiores de sua classe» e, também,
um seguro homem de letras, dominado pela «paixão da obra puramente
literária» (na feliz conceituação de Josué Monteio) que, por toda a
vida, só fez justificar e confirmar seu justo ingresso nesta Casa e o
exercício de sua Presidência. E tudo isso, servido por uma das mais
DISCURSO DE POSSE
admiráveis qualidades que conheço: a capacidade de admirar,o rara
nesta nossa época de demolidores e desmitificadores.
De fato, Levi Carneiro foi, a todo instante de sua vida, um homem
de admirações, de grandes admirações, de verdadeiros «cultos» que seu
sentido de lealdade obrigava ao esconder, ao «regatear» a
proclamar gritantemente. Mais do que a todos, admirou Rui Barbosa,
seu mestre das primeiras lutas forenses, seu mestre das derradeiras inspi-
rações jurídicas. Admirou, cultuou Rui, maso foi só a ele que celebrou.
Também a Nabuco e Rio Branco, Mauá e Campos Salles, Tamandaré,
Oliveira Vianna, Pedro Lessa, Afrânio Peixoto, Edmundo Lins, Gilberto
Amado, Fernando de Azevedo, Cassiano Ricardo, Gilberto Freyre,
esses e muitos outros, nacionais, e estrangeiros, como San Martin,
Mitre, Bolívar, Rivadávia, tantos, tantos e sempre o mesmo entu-
siasmo, sempre aquela mesma capacidade de compreensão e inteligente
fervor com que também acompanhava todas as manifestações literárias,.
sobretudo as poéticas, das mais velhas às mais jovens gerações.
Atentemos pois, agora, e de um modo todo particular, naquela
intencional carta de apresentação: «Advogado, simples advogado...»
E, a um exame mais refletido, à luz de toda a experiência profunda de
seu viver,o será difícil descobrir o que há de mais essencial em Levi
Carneiro: a fidelidade a si próprio, ao ideal que se propôs defender, à
preservação dos valores do Espírito; «a irredutibilidade em seu amor e-
em sua veneração pela Lei, pelo Direito, pela Liberdade, pela Justiça,.
pela Ordem, pela Nação. A sua absoluta fidelidade ao Espírito.
Se muitas vezes vos entusiasmastes pelo jurisconsulto; se vos
irmanastes ao defensor de liberdades, públicas e privadas; se aplaudis-
tes, em tempos pretéritos, o apologista do federalismo, de cuja excelên-
cia se embebera na leitura de Rui e de Nabuco; se acompanhastes as;
angústias do municipalista, do defensor dos direitos da infância e da
concessão de voto aos analfabetos, do sistemático adversário do júri;
se vos orgulhastes do continuador dos sucessos de Rui Barbosa na
Corte de Justiça de Haia; atentai no «advogado, simples advogado»
e abismai o vosso interesse e o vosso cuidado nas páginas singelas e
verdadeiras simples, humanas e quão inesquecíveis! de «O
Livro de Um Advogado». Nelas encontrareis Levi Carneiro todo ele,
Levi Carneiro de corpo inteiro, Levi Carneiro em sua imensa capacidade
de admirar e de servir, Levi Carneiro «advogado, simples advogado»,
tal como ideou que devia ser, e o foi, a vida inteira.
A esse «advogado», na verdade, melhor poderíamos chamar: um
servidor do espírito, um «sacerdote», usando a expressão,o adequada,
do nosso Ivan Lins. Em teoria, concebe esse sacerdócio, tal como o
vimos há pouco, quando fixa,o modestamente, os limites de sua
existência e, mais adiante, acrescenta: «advogado. . . nenhum advogado
o é verdadeiramente, nem logra o prestígio e a estima de seus próprios-
colegas seo tem uma consciência inflamada pela justiça, o empe-
OCTÁVIO DE FARIA
nho constante da verdade, a preocupação ininterrupta da moralidade
seo é, em suma, um perfeito homem de bem».
Na prática, os exemplos aí estão para mostrar como esse homem
de bem esse «perfeito homem de bem» na vida pública e na vida
privada, no desempenho das funções que exerceu tanto quanto na
constituição de uma família cuja integridade a todos nos honra
justificou plenamente seus conceitos teóricos, suas exigências morais.
Poiso é ele o advogado que, certa feita, até nas grades da Casa de
Detenção vai parar por uma noite que seja na defesa dos direitos
de determinados comerciantes, seus contribuintes? Poiso é ele o
advogado que, um dia é obrigado a deixar sua filha, ainda muito
pequena, no leito de agonia, para atender à ineludível necessidade de
comparecer à assembleia geral de uma simples sociedade anónima?
Poiso é ele o advogado que recusa o cargo de Procurador-Geral da
República, alegando que, apesar da sedução do posto, «em bandeja»
oferecido pelo próprio Presidente da República, Getúlio Vargas: «...
Logo reconheci que precisamente os meus hábitos inveterados de advo-
gado, que escolhe os clientes,o me permitiriam ser bom advogado
de um cliente, e de um de tantos,o diversos, por vezeso difíceis
casos, como tem de ser a União Federal»?
A honestidade do advogado, a integridade do jurista — a honesti-
dade do indivíduo, a integridade de seu espírito eis, sem dúvida,
os limites dentro dos quais transcorreu a problemática desse «perfeito
homem de bem» de que me foi dada a ventura de ter sido amigo e
constante devedor pelo apreço com que tantas vezes nos distinguiu, a
mim e aos de minha família, e de quem me é concedida, agora, a subida
honra de ocupar a vaga, na substituição de outros homens que, como
ele próprio disse, ao aqui receber Gregório Fonseca, sempre tiveram,
na preocupação pelo «bem público», o seu «principal objetivo».
* * *
Este, senhores acadêmicos, o quadro de valores que pesam sobre
meus ombros e que, pela segunda vez, deveriam acabrunhar minha vã
pretensão de aceitar um lugar à sombra de vossos galardões de servi-
dores do Espírito. Mas, como poderia eu resistir a essa tentação, se,
no pequeno horizonte de minha visão pessoal, outro idealo tive, em
toda a minha já hoje longa vida, senão esse de viver sem trair o Espirito,
de manter sempre acesa essa fidelidade que aprendi no berço e que
meus mestres, os de meninice como os de maturidade, os de vida
ensinada como os de vida vivida, sempre me fizeram colocar acima de
tudo, glórias como posições, recompensas como triunfos literários?
Minha geração perdoai que ainda hoje fale em «geração»:
«slogan» do primeiro livro que publiquei, já lá seo mais de quarenta
DISCURSO DE POSSE
anos! foi uma geração que lutou, que sofreu, que sangrou, que se
consumiu nessa batalha em torno da fidelidade ao Espírito. E, se muitos
erros cometeu, se se deixou levar a posições extremadas, quase inumanas
às vezes, frequentemente fronteiriças dos piores abismos os que
ladeavam a direita e os que ladeavam a esquerdao duvideis, um
só instante, de que somente uma preocupação a norteava: essa obsessão
intimorata na defesa do Espírito.
Esquecemos tudo - até mesmo, por alguns momentos, o sangue
cristão que corria em nossas veias, porque nos sentimos apavorados
com a ideia de que o Espírito estava em perigo, de que forças demo-
níacas avançavam para destruí-lo à sombra da avalanche revolucionária
que começava a solapar o Ocidente, fazendo desmoronar a Burguesia
que já havia traído o Espírito desde o século XIX. Nossa febre subiu,
incontida, irreprimível. Nossa angústiao teve limite, incontrolável.
Pronunciamos palavras loucas, muitos des pelo menos. Mas, com-
preendei queo era a ninguém em particular que nossa violência
visava apenas a obsessão de preservar o Espírito guiava a nossa
«santa ira». Vivíamos eriçados, de arma em riste, verdadeiros don-qui-
xotes desse Espírito de que nos havíamos investido Cavaleiros.
Quixotismo vão, o nosso, ó meu caro Jorge Amado, ó meu caro
Adonias Filho, ó minha muito cara Rachel de Queiroz, que sofremos
perseguição e tivemos o nosso nome «pichado» em paredes de jorna-
lecos murais o Espíritoo estava em perigo, o Espíritoo arris-
cava ser destruído por legião alguma, de direita ou de esquerda, porque
o Espíritoo podia ser destruído porque o Espírito jamais poderá
ser destruído.
Foi um dos meus dois grandes mestres de romance, Cornélio Penna
o outro mestre, era Lúcio Cardoso que, vivo fosse, aqui deveria estar,
em meu lugar, ele o maior de nossos romancistas -—, foi Cornélio Penna
quem me abriu os olhos um dia para a verdade encerrada num dos
maiores momentos do Evangelho, e que considero a chave de meu
reencontro comigo mesmo, com o meu sangue cristão que os devaneios
nietzscheanos haviam arrastado quase à incredulidade. Abriu-me ele
docemente os Evangelhos e eu pude ler: na sombra do Jardim das
Oliveiras, Jesus acaba de ser entregue aos homens dos sacerdotes, e à
sua volta, tudo é medo e desordem é noite, tudo é prenúncio de.
renegação e sacrifício. Eo Marcos relata: «Então, desamparando-o,
todos os seus discípulos fugiram. Ia-o porém seguindo um mancebo,
coberto com um lençol, sobre o corpo nu; e o prenderam. Mas ele,
largando o lençol, lhes escapou, nu».
Por que temíamos tanto, por que temermos tanto pelo Espírito,
pergunto eu — ó meu caro Jorge Amado, ó meu caro Adonias Filho,
ó minha muito cara Rachel de Queiroz, se o Espírito é como esse
inexplicável mancebo do Evangelho? Quem o poderá reter, quem o
poderá algemar que força, que poder, que massa de varapaus, que
OCTÁVIO DE FARIA
legião romana, que super-organização, que manuseio de armas secretas?
O «mancebo» escapará sempre, deixando o lençol, nu.
Nu é o Espírito. Ninguém mais nu do que ele em toda a variação
dos tempos. Nu estava Sócrates ao beber a cicuta, nu estava Jesus
Cristo no Madeiro Sagrado, nu estavao Francisco quando falava
aos pássaros da Umbria. Nu está sempre o Espírito. Mas, atentai,
atentai bem: nesse mancebo que larga o lençol e sai, nu, pelo vazio
atroz do Jardim da Traição, seo estou querendo apontar, seo
estou querendo insinuar, de modo algum, o nosso moço de hoje, despido
de tudo, cabelos crescidos e desgrenhados, barba ao vento,o é pos-
sível também deixar de concordar que, no hippie do mundo em que
vivemos, o que predomina, o que transcende todas as pequenas revoltas
(pueris ou não) contra os erros dos pais, (culpados ouo ) e das
gerações que os antecederam (responsáveis ou não), é o medo, o pavor
pelo destino do Espírito que eles julgam atraiçoado pelos que os prece-
deram. Os perigos que denunciam, ameaças absurdas, inaceitáveis:
a guerra, a mecanização total, o Deus-consumo, a bomba exterminadora
,o são, em essência, perigos em si. São, fundamentalmente, a
negação do Espírito, a traição à vida, aos seus valores inalienáveis.
Mesmo que oo saiba eo suspeite, é contra isso que essa geração
se contorce, grita, urra, e, numa reação de desespero, elege o abismo
que ameaça tragá-la.
* * *
Espanta, pois, que contra o espírito acadêmico, contra as Acade-
mias, esteja voltado todo esse fermento novo que revolve e faz estre-
mecer o mundo? Espanta que também a vossa, a nossa Academia, seja
alvo dessa desconfiança, dessa onda de contestação?
Absurdo seria que assimo fosse, no mundo em que vivemos.
Mundo dilacerado, mundo congestionado que perdeu suas bases, que
sofre em seu equilíbrio essencial, mundo que luta contra todos os mitos,
queo tem mais eixo nem apoio, ideal nem segurança, mundo perdido
no labirinto das negações sistemáticas mundo sem Deus que tenta
inventar numa figura de Jesus Cristo humanizado, desdivinizado, quase
caricato, um «ersatz» para o desespero que o envolve.
Mundo, entretanto, que continua a existir, ancorado em suas bases
eternas, em tudo o que resiste ao tempo e às mudanças, aos modismos
e aos ímpetos de destruição, ao vaivém das ondas de revolta e de
negação. Mundo que encontra nas Academias, no espírito das Aca-
demias, um de seus mais firmes sustentáculos, mundo de que sois
seguramente, senhores membros da Academia Brasileira de Letras, no
âmbito de vossa esfera de ação, o mais seguro dos esteios.
Porque sois os representantes do Espírito e ele é eterno eo sofre
variações e limites de condicionamento.o conhece o tempo eo
DISCURSO DE POSSE
respeita as contingências econômicas. É como o gênio.o distingue
nobres de plebeus,o se curva ante os potentados e tambémo
bajula a populaça. Ignora a mocidade, os ímpetos arrasadores das
gerações que pensam que destruir é criar, como faz pouco do olimpismo
dos mestres que, fugindo à velha lição nietzscheana de Zaratustra, só
querem ensinar, ter discípulos, e sonham estancar as fontes novas que
jorram desordenadamente, ao sabor da inspiração, da renovação. O
gênio, manifestação suprema do Espírito,o tem idade. Genial é o
menino Rimbaud, aniquilador de todos os equilíbrios de sua época,
como genial é o velho Goethe, revivendo, condensando, agrupando em
torno de si, do seu eu octogenário, tudo o que décadas e décadas de
incessante experiência pessoal trouxeram à sua extraordinária capaci-
dade de compreensão e apreensão do mundo que viveu como homem
algum jamais viveu o seu mundo.o duvideis: o gênio é como o
Espírito:o conhece países, raças, idades,o respeita lugares, privi-
légios, dons de talento ou educação, decoro, virtude pessoais, vontade,
esforço, nada e deleo é preciso ter «ciúmes», comoo bem
percebeu Joaquim Nabuco quando disse: «o gênio há de revelar-se de
qualquer modo: ele faz sua própria lei, cria o seu próprio berço, esconde
o seu nascimento como Júpiter infante, no meio de seus coribantes».
Pois o gênio, como o Espírito, bem o sabeis, «sopra onde quer», como
o João o atesta: «Spiritus ubi vult spirat».
Sopra onde quer, nas academias e nos bares, nas catedrais e nas
prisões, nas praças de esporte e no laboratório dos cientistas, na privi-
legiada pena dos protegidos dos reis ou nas anotações em rasgados
de papéis atirados nas sarjetas. Para os perseguidos como para os
ricos, os fartos, a lei é a mesma: a escolha imprevisível, o mistério, o
milagre da eleição divina. E nem mesmo o sofrimento essa suprema
prerrogativa dos Bloy, dos Dostoievsky, dos Soljenitzine pode
obscurecer o chamado divino que também eterniza os Miguel Ângelo,
os Racine, os Proust.o há lei,o há condicionamento para o
Espírito.
Sopra onde quer,o tenho dúvida sobre isso — eo o podeis
ter, vós, senhores membros desta Academia onde tantas vezes ele já
soprou e onde ainda soprará outras muitas vezes. Se tendes um recinto,
lugar regulamentado, as vossas portas estão abertas, sempre abertas
para o Espirito, para a sua penetração, tanto sob as formas extremas
da revolta dos Rimbauds —tivestes, ainda há pouco tempo, Graça
Aranha quanto do olimpismo goethiano tivestes, também, Coelho
Netto. Sois asíntese, o equilíbrio, a terra matriz e ubérrima, o celeiro,
a Casa que tudo abriga.
* * *
E permiti que, para terminar, vos relembre a parábola de um velho
e grande mestre francês, que muito amei na mocidade e ainda hoje
OCTÁVIO DE FARIA
venero, como sei que muitos des o venerastes e venerais ainda:
Maurice Barres. Coloca ele, no final de sua admirável «La Colline
Inspirée», o diálogo de duas forças: a planície e a colina; a planície,
onde sopram todos os ventos e a colina onde se construiu uma capela,
símbolo de tudo o que fica e resiste ao tempo e ao ímpeto das inovações:
«Eu sou, diz a planície, o espírito da terra e dos mais longínquos
ancestrais, a liberdade, a inspiração». E a capela responde: «Eu
sou a regra, a autoridade, o elo de ligação. Sou um corpo de pensa-
mentos fixos e a ordenada cidade das almas». «Eu agitarei tua
alma, prossegue a campina. Aqueles quem respirar meu ar, põem-se
a formular perguntas»... Mas a capela objeta: «Visitante da pla-
nície, traze-me teus sonhos para que eu os purifique; teus impulsos, para
que eu os oriente. É a mim que procuras, que desejas, ainda que sem
o saber... Quem quer que sejas, nada do que há em ti de melhor, te
impede a aceitação do meu socorro. . . Fomos preparados, eu e tu, por
nossos pais. Encarno-os, como tu mesmo os encarnas. Sou a pedra que
dura, a experiência dos séculos, o depósito do tesouro da raça. Casa
de tua infância e de teus pais, assemelho-me às tuas tendências pro-
fundas, àquelas mesmo que ignoras, e é aqui que encontrarás, preparado
para cada uma das circunstâncias de tua vida, o verbo misterioso,
elaborado para teu uso quando aindao existias».
E o próprio Barres comenta por nós: «Eterno diálogo desses
dois poderes, a qual deles obedecer? E será preciso escolher entre eles?
Ah, muito antes, que possam essas duas forças antagónicas se defrontar
eternamente, sem nunca uma vencer a outra! O que poderá representar
um entusiasmo que consista numa simples fantasia individual? E uma
ordem queo esteja mais animada por um entusiasmo qualquer? A
capela nasce da plenície e dela se nutre perpetuamente para a
nossa salvação».
Senhores acadêmicos, bem o sabeis, vois sois do Espírito, vosso é
o reino da «pedra que dura, da experiência dos séculos, do depósito do
tesouro da raça». E eu vos peço permissão para lembrar:o tendes
porque temer.o morrereis com o tempo, com o suceder das gerações.
O vento da planície, o anseio e a grita dos jovens de hoje e de amanhã
o vos destruirão. Serão, pelo contrário, com a impulsão de sua força
intocada, com o destemor de sua mocidade, a vossa nutrição, o alimento,
o sangue de vossa Eternidade. Permanecei sendo o que sois: «a pedra
que dura, a experiência dos séculos, o depósito do tesouro da raça».
Recepção a Octávio de Faria (*)
ADONIAS FILHO
M
UITO moço ainda quando vistes Alberto de Faria chegar, nesta
Academia, para ocupar o lugar certo e justo. E também vistes
quando chegaram dois outros escritores da vossa Casa, Afrânio
Peixoto e Alceu Amoroso Lima, aqui trazidos pela contribuição à lite-
ratura e a presença na inteligência brasileira. A Academia, pois,o
será uma expectativa para quem a conhece, e por assim dizer na
intimidade, desde a adolescência. Mas, se três escritores de vossa Casa
conquistaram uma tradição para a vossa família, nesta Academia, é
certo que a Academia, por sua vez e por isso mesmo,o perdeu um
só dos vossos trabalhos como escritor de ensaios, dramaturgia e
romances. Foi daí, dessa observação ininterrupta que começa com a
publicação de «Maquiavel e o Brasil» até «O Indigno», que sobreveio
a certeza de que éreiso digno desta Academia quanto o foram os
outros escritores da vossa Casa. O nosso orgulho de vós, pois, começou
antes de vossa própria eleição.
E vos asseguro que desse orgulho participou o melhor dos compa-
nheiros Levi Carneiro sempre a exigir como reivindicação vosso
direito a esta Academia. Maior seria o orgulho pudesse ter ouvido, em
vosso elogio, a humana configuração de todas as suas virtudes. E maior
ainda o orgulho fosse possível vos ver, agora, na cadeira 27, a cadeira
de Joaquim Nabuco que ele ocupou durante trinta e seis anos. O destino
(*) Discurso lido na Academia Brasileira de Letras, na noite de 6 de junho
de 1972.
ADONIAS FILHO
quis e decidiu que Levi Carneiro, um dos maiores dos vossos admira-
dores, tivesse as como o substituto.
O destino, que é uma das motivações de vossa sondagem intelectual
para o reconhecimento da criatura, esse destino fez com que nos encon-
trássemos e precisamente em 1936 no ano mesmo da eleição de
Levi Carneiro. Trinta e seis anos de amizade e convivência e diálogo
que, agora nos pondo um face ao outro, obriga-nos a lembrar os que,
o fosse a morte, aqui estariam para vos aplaudir. Sei e juro que,
embora tomados pela morte, Cornélio Pena e Lúcio Cardoso os de
cada dia e todos os anoso devem estar distantes. Mas, se há os
que se dispersaram pela morte, há os que mais se uniram à sombra
desse longo tempo.
Grandes e várioso os valores humanos.s que os trabalhamos
como romancistas, conhecemos a todos. Autoridade temos, em conse-
quência, para dizer que nenhum outro superará o único capaz de explicar
e justificar a contemporaneidade: a amizade, precisamente a amizade,
essa amizade que se estabeleceu e consolidou em torno das ideias e da
literatura. Difícil ou quase impossível reerguer os debates, as teses
e as colocações, tudo o que foi durante tantos anos a matéria do nosso
diálogo.
E diálogoo vosso quanto de Cornélio Pena,o de Lúcio Cardoso
quanto de Rachel de Queiroz que espero ver dentro de pouco tempo,
aqui, eleita como vós, membro desta Academia, o diálogo do nosso
pequeno grupo que apenas a morte conseguiu desfazer.
o é hora, porém, de recordar.
Esse lado exterior, histórico e biográfico,o deve interessar ao
autêntico escritor que tem na obra a verdadeira vida. A exegese dessa
obra em busca da contribuição e irradiação, o exame verticalmente
crítico que possa atingir a consciência da criação, isso é o que realmente
importa. E sobretudo importa para que confirme que a literatura é hoje
um veículo de reconhecimento do homem e do mundo mais importante
que as ciências e a filosofia. E vós, senhor Octávio de Faria, sois o
exemplo do escritor de obra assim indispensável para a compreensão
do homem como um ser da condição e da sociedade. Interessado numa
concepção em bloco, espécie de reino que o velho Julien Benda situaria
como o da rebelião da vida contra as ideias, tamanho o fundo esca-
fândrico queo a conformaremos sem a visão total de vossa obra.
o será difícil perceber, em consequência, porque o ensaísta
antecede o ficcionista na inquirição de problemas e teses. O escritor
que estreia com «Maquiavel e o Brasil» em 1931 e há quarenta e
um anos a trabalhar sem temer as mudanças e ferir a coerência, já
denunciava pelo universalismo da catolicidade os compromissos brasi-
leiros de romancista. A preocupação social que densamente se reflete
no «Destino do Socialismo», ao invés de anular, revigora e amplia
RECEPÇÃO A OCTÁVIO DE FARIA
aquela catolicidade.o tardaria, porém, e com o estudo crítico de
«Dois Poetas» Augusto Frederico Schmidt e Vinícius de Morais,
a prova da vocação literária nesse ensaísta nascido para a análise das
ideias e dos acontecimentos sociais. E essa vocação tudo ultrapassa e
de tal modo que, no ano decisivo para a obra que é 1937, o ensaísta de
<Cristo e César» se integra no romancista de «Mundos Mortos».
O momento, efetivamente, é decisivo.
O teorista Octávio de Faria, como logo depois Mário de Andrade
o chamará,o fugirá das ideias sociais e a vocação mesmao permi-
tirá qualquer escapismo. O que, ao lado da transferência dos
problemas para a ficção, e a partir de «Mundos Mortos», é a pluralidade
da dimensão temática, quando os episódios imediatos se articulam com
a visão intemporal do homem, da vida e do mundo. A confissão está
em «Cristo e César» e inequívoca é a exclamação: «Sinto-me cristão,
católico mesmo, até às entranhas e no sangue que me corre nas veias!»
A preparação intelectual já se fizera no ensaísta, a posição já fora
tomada, estabelecera-se mesmo uma cobertura artística. O crítico de
poesia já neste momento se identificava com um dos fundadores do
«Chaplin Club» e queo tinha como evitar o relacionamento da nove-
lística com o cinema. Ostensivas, efetivamente, as relações da ficção
com o cinema. E o autor de «Significação do Far-West» e de «Pequena
Introdução à História do Cinema» sabia que, servindo-se da imaginação
novelística como de uma matéria prima, favorecendo ao romance a
conquista de um imenso espaço fora de si mesmo, o cinemao apenas
necessitava como aprendia com o ficcionista. O processo de contar,
a técnica narrativa, a atmosfera, o episódio, a personagem caracterizada,
a montagem, o «flashback» e o próprio «screenplay» foram elementos
da ficção que o cinema incorporou ã sua linguagem e seu artesanato.
«Os ficcionistas do passado observa John Gassner tiveram
extraordinário senso cinematográfico.» E o grande exemplo, se tosse
pedido, seria Tolstoi.
A vossa preparação intelectual, senhor Octávio de Faria, inclusive
com a correlação artística entre a novelística, a poesia e o cinema,
estava completa quanto tivemos o romance «Mundos Mortos». E,
nessa formação, a parte religiosa que será uma constante e o agente
imediato da problemática inteira. O compromisso cristão, em uma
palavra, que submerge na procura extrema das mais graves questões do
homem. O biógrafo e divulgador de Leon Bloy autor desse livro
justo e compreensivo que é «Fronteiras da Santidade» chegará ao
romance e ao teatro fiel ao compromisso com o Cristo. A vossa única
peça de teatro, «Três Tragédias à Sombra da Cruz», muito esclarece
esse compromisso que, tangido pela inquietação religiosa, articula em
vossas próprias palavras «as forças de vida e as forças de pensa-
mento». É o encontro, à sombra da Cruz e dos vossos autores preferidos
ADONIAS FILHO
Pascal e Dostoievski, Kierkegaard e Leon Bloy, mas o encontro
com a trágica e obscura zona existencial.
Inevitável, pois, seria inevitável que esse encontro ao qual se
somaria a vossa vocação socialmente participante vos levasse ao
processo da «tragédia burguesa». O romancista que abre o ciclo com.
« Mundos Mortos» há trinta e cinco anos a fixar o processo da
burguesia brasileira em saga de crise e danação, e em consequência
dessa reprojeção cristã na devassa social, logo se integrava no grupo
de vértice dos ficcionistas católicos. As aproximações justificam as
afinidades e o vosso entrosamento, quandoo com o romance católico,
pelo menos com a catolicidade.o me interessa agora, e aqui, o debate
.sempre aberto se há ouo um «romance católico». Interessa-me é o
vosso encontro e quero repetir o vosso encontro com a ficção
existencialmente inquiridora e contemporânea de Mauriac, Bernanos,
Malégue, Chesterton, Graham Greene e Mario Pomílio.
Perdoai-me a tentativa de análise, senhor Octávio de Faria, mas
a conclusão é ques e os outros romancistas cristãos como Dos-
toievski escolheram o mais nu de todos os palcos.o há cenários
em quaisquer dos lados. É mesmo o espaço bíblico que mostra a criatura
na condição de sofrimento, entregue à sua própria liberdade para a
salvação, herdeira de pecados e solidão e angústia. O exame do compor-
tamento, nas reações, percepções e sensações, se torna, pois, uma
captaçãoo psicológica quanto interiorizante. E, como resultado
imediato, surge a absoluta falta de gratuidade dessa escavação que a
contingência social mais dramatiza.
o há concessões. E, em consequência, nenhum artifício que possa
sacrificar o reconhecimento daquela criatura que na palavra de Camus
sobre Kafka em si mesma congrega a vida cotidiana e a inquietação
sobrenatural. A busca, e porque socrática no sentido de um só pensa-
mento em todas as posições conflitantes, a busca é dialética. E quanto
mais que, nu o palco e nele a criatura de Deus na violência interior das
crises e dos conflitos, é a consciência a nossa humana consciência
que se converte em matéria de ficção. As linhas maiores, apesar da
ação episódica que subsista do lado de fora, estão no plano da cons-
ciência. Eo será por outro motivo que, em consequência desse plano,
pesado sempre de expectativas e aflições, alguns dos vossos principais
personagenso sacerdotes católicos. As duas órbitas do caráter trágico,
e como diria Charles Osborne McDonald — o analista excepcional da
retórica da tragédia, precisamente a das afeições normais e a das
paixões ilógicas, conformam a individualidade dos vossos queo como
os heróis trágicos da Renascença.
O romancista, que irá descer à consciência para existencialmente
atingir o ser na destinação e na liberdade, iniciava o ciclo esse
extraordinário ciclo da «Tragédia Burguesa» com um desses perso-
RECEPÇÃO A OCTÁVIO DE FARIA
nagens, o padre Luís. O ciclo, senhoras e senhores, e como acabamos
de verificar, já se abriu. Um tempo literário novo que impôs a tragédia
precisamente porque a figura superou o cenário e o problema superou
c episódio. O grande romancista, que sois vós, acaba de tomar nas
mãos as leis da existência para, através do processo de uma classe
social, invadir os maiores problemas do homem.
Dar-se-á a abertura através do romance «Mundos Mortos», porta
de entrada de um universo dramático e vivo, matriz de todos os caminhos
posteriores que configuram o ciclo- a «Tragédia Burguesa», hoje
uma das bases mais importantes da ficção em língua portuguesa. Frente
aos adolescentes, heróis comuns que sempre retornam nos doze romances
publicados e já as denunciavam como um extraordinário criador de
homens, o impacto do lançamentoo pode ser ignorado. O romance
surgia quebrando a rotina novelística porque, se por um lado mantinha
a tradição imediata, subordinando a inquirição social à descoberta dos
valores humanos, pelo outro transmitia à nossa ficção um conteúdo
metafísico ao descer na consciência e no sangue para animar as questões
religiosas em termos de pecado e salvação, de culpa e castigo, na transpo-
sição da vida em representação de tragédia. Tornou-se impossível para
muitos, e então, alcançá-lo em sua própria efervescência temática.
o tardaria a provar-se, entretanto, que o romance «Mundos
Mortos» mesmo em sua antonomia, fora do ciclo, isolado em sua
própria órbitao fora escrito para um tempo certo. Demonstra-o,
agora, sua duração. Essa resistência talvez se explique como uma conse-
quência da apreensão existencial através da vivência episódia. Fazendo-o
mover em uma atmosfera complexa e densa, com o foco direto nos
problemas da adolescência da sociedade carioca do nosso século, o
romancista superava a linha novelística comum ao estabelecer o exame
por dentro sem perder os contatos sociais. A tragédia burguesa, na
fixação literária, em uma palavra, começa em suas páginas.
Nele, sempre um romance de crise em consequência de sua vincula-
ção com a adolescência, abrem-se como caminhos os eixos maiores do
ciclo ficcional. O ciclo, em consequência,o poderia dispensá-lo. As
criaturas queo andar, eo crescer em sofrimentos e paixões, estão
nascidas nos conflitos dos seus capítulos. Acionando-as, personagens
em seus próprios roteiros, sujeitas ao bem e ao mal, o romancistao
as abandona sem explicá-las na interferência que se fará clássica
em sua obra como um participante em compromisso com certos valores
da vida. E talvez por isso é que o romance «Mundos Mortos»o
perdeu sua dimensão excepcional. Sem esmorecer na responsabilidade
de abertura do ciclo, a esse ciclo continua a manter como o ponto de
partida.
O ciclo, agora, já é um universo. Vertical, trepidante, violento, mas
um universo que, a levantar a fisionomia da sociedade burguesa carioca
ADONIAS FILHO
deste século, amplia-se de tal modo queo tem como evitar o encontro
com os maiores problemas do mundo e da vida.o me importam as
relações, aproximações ou correlações com autores como Balzac, Proust
e Galsworthy. Tudo o que importa nesse painel ainda incompleto
no qual será possível perceber o solo tolstoiano tudo o que realmente
importa é o grupo de destinos que reflete um tempo de crises quando
os nervos se rasgam para a mesma tragédia de miséria e nobreza, pecado
e inocência, crime e castigo, instinto e liberdade, fé e loucura, Deus e
demónio, os poios entre a Sombra da Cruz e o Senhor do Mundo. E
no centro dessa rotação, que é a da vida em todos os abismos, em três
chaves se firma o edifício novelístico: a sociológica, a psicológica e a
metafísica.
Três zonas distintas a fixação de uma classe social, a inquirição
nas raízes do coração humano, a imersão existencial na procura do
próprio sentido de Deus, três zonas distintas, porém, que se inter-
penetram para, no conjunto,o ser possível acrescentar coisa alguma.
Mas o que surpreende, na continuidade temática, na representação
móvel, é a técnica narrativa como se fosse a bússola do processo inteiro.
O romancistao permite que a ação se transporte objetivamente,
realizando-se, dominada pela realidade que acontece. Condiciona-a à
movimentação mental, sobretudo o solilóquo e o monólogo, que sempre
e a personagem em discussão interior antecedendo a cena. Divide-se
a ação de modo flagrante. O primeiro plano é interno, traduzido na
descoberta do acontecimento, a prova introspectiva, o «plano do argu-
mento». O segundo é externo, o quadro vivendo em duração visual, o
«plano do episódio». Situada a ação entre o argumento e o episódio,
nela se escoram os três movimentos fundamentais sociológico, psico-
lógico, metafísico do ciclo ficcional.
E, através desse processo, que tritura a mesma carne em todo o
ciclo da «Tragédia Burguesa»,o permite a leitura calma. A densidade
especulativa, principalmente em um livro excepcional como «O Senhor
do Mundo», essa análise dialética que escava a figura e o problema
na linha invariável do pessimismo cristão,o sacrifica o tempo social
brasileiro. E, se por um lado força as portas estreitas a ferir o «nosso
ser todo inteiro», como diria Charles du Bos, pelo outro provoca o debate
social com a nossa participação e o vosso testemunho. É uma atmosfera
em convulsão o que realmente se move.
E melhor se completará a vossa presença literária, senhor Octávio
de Faria, quando unimos à desesperação da «Tragédia Burguesa»
porque nela, efetivamente, a condenação original de todos a deses-
peração das «Novelas da Masmorra». A paisagem exterior, aqui,
tambémo subsiste. O compromisso cristão, esse da auscultação inte-
riorizante no reconhecimento existencial do ser, mais se torna denso no
intimismo fechado de «Memórias de umo danado» e «O Outro».
RECEPÇÃO A OCTÁVIO DE FARIA
Já o disse, escrevendo sobre as vossas novelas, que, e a exemplo
do ciclo da «Tragédia Burguesa», já o disse queo se permanecerá
em condição de leitor porque a vossa personagem, assim cheia de huma-
nidade e do mistério que envolve a criatura, de tal modo nos obriga à
participação que a vemos como parte des mesmos. O romancista
o volta, pois, e através dessas novelas, para retomar o tema e o
processo como se houvesse necessidade de revisão. Não, eleo volta.
E aí está, senhor Octávio de Faria, porque esta Academia, agora,
vos acolhe e aclama. Escritor sois de vocação e ofício e, por isso mesmo,
o fizeste outra coisa em uma vida inteira senão escrever, ainda
escrever, sempre escrever. E o que importa, sobretudo o que mais
importa, é saber que na fé e testemunho de todos os vossos livros
o há apenas uma contribuição decisiva à literatura brasileira. E,
se concorrestes para tornar maior o espaço da ficção de língua portu-
guesa, foi precisamente porqueo traístes o grande inquiridor cristão
que viera para o exame e o reconhecimento da criatura.
Esta Academia, e como uma instituição do pais e do povo que há
muito tempo vos esperava, sente e sabe que cumpriu o dever. Sois o
escritor, em verdade, que confirma o nosso respeito pelos melhores.
Um "Dom Casmurro" Trágico
nas relações de Machado de Assis
R. MAGALHÃES JÚNIOR
N
o livro Ao Redor de Machado de Assis, incluí um capítulo referente
ao escritor brasileiro e os clássicos do idioma, no qual relacionei
alguns de seus numerosos amigos portugueses. É sabido que Ma-
chado de Assis, filho de uma portuguesa e casado com portuguesa, os
teve, e muitos, desde a mocidade à velhice. Entre os da primeira fase
de sua vida intelectual estão Francisco Gonçalves Braga, Emílio Augusto
Zaluar, Francisco Ramos Paz, Faustino Xavier de Novais, Artur Napo-
leão e Ernesto Cibrão. Na fase intermediária, aproximou-se de Furtado
Coelho e do ator Tasso. Mais tarde conviveu com Manoel de Melo,
Henrique Chaves e outros. Confesso, no entanto, que só muito mais
tarde, aprofundando as minhas pesquisas nessa direção, vim a conhecer
as ligações de Machado de Assis com o politico português José Car-
doso Vieira de Castro, espécie de «Dom Casmurro» trágico, casado com
uma Capitu brasileira. Os dois estiveram estreitamente ligados por
ocasião do encerramento das atividades do grande escritor à frente
do Diário do Rio de Janeiro.
Com fama de orador, José Cardoso Vieira de Castro chegara ao Brasil
em 1866, ocasião em que exercia o mandato de Deputado em Portugal.
Era um liberal, de tendências quase republicanas, caracterizando-se por
intensa combatividade e por um oposicionismo veemente. Devia sua
R. MAGALHÃES JÚNIOR
carreira pública a um incidente que o celebrizara. Prestes a formar-se
em leis, tiveram um atrito com a congregação da Universidade de Coim-
bra, criticando-a em violento discurso. Suspenso por dois anos, mobi-
lizou a opinião e os meios cultos a seu favor. Voltou e formou-se,
sendo eleito deputado logo depois. Antes, escrevera uma biografia de
Camilo Castelo Branco, que se tornou seu amigo e foi um de seus
defensores. Um ano mais velho que Machado de Assis, era natural
do Porto, tal como Faustino Xavier de Novais. E deve ter sido este
quem o aproximou de Machado, seu amigo desde os tempos em que
colaborara em O Futuro. O jovem político português naturalmente dese-
java obter publicidade em nossa imprensa. Sobretudo porque trou-
xera as malas cheias de panfletos políticos e de separatas de seus
discursos, alguns deles condenando a pena de morte, para vendê-los
às figuras mais destacadas da colônia lusa no Brasil. Machado de
Assis abriu-lhe as colunas do Diário do Rio de Janeiro, onde era então
um espécie de faz-tudo. Os dois se tornaram muito amigos. Nas seçòas
de «a-pedidos» de outros jornais cariocas, Vieira de Castro era, entre-
tanto, atacado por alguns de seus compatriotas, em verrinas anônimas.
Diziam estas que ele era um simples aventureiro, um cavador, um picareta
que, num país estrangeiro, vinha malsinar sua pátria e seu governo,
em conferências e panfletos.
Mas Vieira de Castro era, incontestavelmente, simpático, insinuante
e habilidoso. Recebido nos melhores meios sociais do Rio de Janeiro,
descobriu, nas Laranjeiras, uma moça de 17 anos, bonita e rica, com
quem resolveu casar-se. Era Claudina Adelaide Guimarães, filha de
um grande proprietário, Antônio Gonçalves Guimarães, e de D. Ana
Maria Guimarães.o há dúvida alguma quanto à condição de caçador
de dotes do jovem político português, pois ele mesmo escreveu, do Brasil,
a D. Ana Plácido, amante de Camilo Castelo Branco, uma carta em
que dizia: «Vou pedir uma criança que tem 400 contos». Recomen-
dava: «Segredo profundo! A ninguém o digo. Ela é uma criança, para
educar». A moça resistiu ao assédio, mas os pais a induziram a casar-se
com o jovem deputado. Obedeceu, embora contrariada. E a 28 de feve-
reiro de 1867 passava a ser senhora Vieira de Castro. O deputado
português recebeu do pai da esposa, além das jóias desta, uma boa
soma em dinheiro, correspondente à herança a que ela teria direito.
Machado de Assis parece ter sido influenciado, no início de 1867,
por Vieira de Castro. Este, num folheto A República, que trouxe para
distribuir no Brasil e de que tirou segunda edição em 1869, em Por-
tugal, assim expunha as suas ideias:
«Em Portugal,om por ora que temer-se os monar-
quistas dos republicanos. Existirá aí apenas em raros corações
de poetas um republicanismo platónico. E, se houvesse repu-
blicanos, esses seriam por orao monarquistas como os outros,
UM «DOM CASMURRO» TRÁGICO...
seo pelos afetos do coração que Deus fez e criou para as
verdades sem sombra, ao menos pelos juízos do espírito que
sentenciariam pelo Rei e pela monarquia em favor da ordem
e da pátria».
Da época em que Vieira de Castro esteve no Brasil,o as Cartas
Fluminenses, que Machado de Assis escreveu no Diário do Rio de Ja-
neiro, sob o pseudônimo de Job. Em uma delas, é visível a influência
do deputado português, que diziao ter importância o regime de um
pais, mas sim o modo de praticá-lo. Argumentava Vieira de Castro
que «a República do Paraguai é uma mentira», ao passo que a monar-
quia da INGLATERRA, baseada no sistema representativo, erao democrá-
tica quanto a melhor das repúblicas.
Machado de Assis, por seu lado, dizia, a 5 de março de 1867, na
carta à Opinião Pública:
«Quanto às minhas opiniões políticas, tenho duas, uma
impossível, outra realizada. A impossível é a república de
Platão. A realizada é o sistema representativo. É sobretudo'
como brasileiro que me agrada esta última opinião, e eu peço
aos deuses (também creio nos deuses) que afastem do Brasil
o sistema republicano porque esse dia seria o do nascimento
da mais insolente aristocracia que o sol jamais alumiou...
o frequento o paço, mas gosto do imperador. Tem as duas
qualidades essenciais ao chefe de uma nação: é esclarecido e
honesto. Ama o seu país e acha que ele merece todos os sacri-
fícios» .
O seu juízo, em meio à guerra com o Paraguai, sentenciava também
pelo Rei e pela monarquia, em favor da ordem e da pátria, tal como
seu amigo português. Um mes e pouco depois do casamento de Vieira
de Castro, publicava o Diário do Rio de Janeiro, na segunda página
da edição de 8 de abril de 1867:
PARTIDA Parte brevemente para a Europa, por via
dos Estados Unidos, o Sr. deputado português Vieira de Cas-
tro./ S. Ex. deixa indeléveis recordações no Brasil,o
somente entre os que tiveram o gosto de praticar com S. Ex.,
mas em todos quantos apreciaram os seus brilhantes talentos
oratórios./Conhecíamos S. Ex. de nome; S. Ex. deu-nos o
gosto de conhecê-lo de perto, isto é, de conhecê-lo melhor;
porquanto, se a imprensa nos trouxe já as provas incontestá-
veis dos seus raros merecimentos, foi só pela prática pessoal
que os brasileiros puderam apreciar as maneiras cavalheirescas,
os sentimentos de boa amizade que distinguem o eminente
orador português./Os deveres políticos chamam o Sr. Dr. Vi
R. MAGALHÃES JÚNIOR
eira de Castro à Europa. Se por um lado estimamos vê-lo
ir continuar uma carreira que S. Ex. ilustra, por outro lado
sentimos queo cedo se aparte des o cavalheiro e o ora-
dor./Estamos certos de que S. Ex. leva do Brasil iguais
recordações e a saudade que honram os seus sentimentos de
gratidão».
Vieira de Castro, sensibilizado com o tom amistoso dessa nota,
imediatamente escreveu a Machado de Assis, transmütndo-lhe os seus
agradecimentos e suas despedidas. Eis os termos de sua carta, estam-
pada no dia seguinte na segunda página do Diário do Rio de Janeiro:
«Meu querido poeta e amigo Sr. Machado de Assis.
Deixe-me trocar hoje a minha modestíssima tribuna de orador
pela suao galharda eo elegante tribuna de jornalista.
Nela falaram ontem as suas saudades pela minha próxima
partida; consinta que no mesmo lugar venham as minhas dizer
adeus a tantos corações afetuosos, e a tantos espíritos emi-
nentes que eu vou deixar nesta terra meus eternos credo-
res./Levo daqui, meu querido amigo, a memória das melhores
impressões da minha alma, e a saudade dos melhores enlevos
do meu espírito./Creia, meu querido poeta, na profunda sin-
ceridade destas minhas palavras; e à alma do cantor delica-
díssimo das Crisálidas posso eu abrir-me em cheio, confiando-
lhe que neste momento estou sentindo necessidade de dizer
ao coração que hei de voltar aqui, para poder convencê-lo a
partir. /De brasileiros, de portugueses, de todos os estrangei-
ros, de quantas criaturas, enfim, repartiram comigo nesta terra
um quinhão de sua benevolência e do seu afeto, de todos pre-
cisava em despodir-me e a todos devia eu deixar o meu último
abraço. É o que faço agora. Digo o meu adeus do alto da
sua tribuna, que foi a maior que eu conheci na imprensa da
América; deixo o meu abraço no seu peito, que foi o mais
generoso e o mais forte que eu senti bater ao lado do meu
sempre que entres se discutia, ou meditava, uma ideia supe-
rior, ou uma deliberação generosa./ Háo sei quantos dias,
meu querido amigo, que um pulso covarde e anónimo, insinua
nas mofinas de alguns jornais desta terra as mais pérfidas
aleivosias e calúnias contra mim. Pois creia meu querido
amigo, que nunca um só minuto logram essas ascorosas dia-
tribes, nem empanar-me a vista para a contemplação das
maravilhas opulentas deste mundo original, nem escurecer-me
com uma levíssima sombra as mil gratidões devidas a todos
quantos aqui conheci, e que serão imorredouras na minha
memória, como eu creio que há de ser ainda imorredouro o
afeto no espírito fidalgo dos verdadeiros amigos, como sei que
UM «DOM CASMURRO» TRÁGICO...
há de ser também imorredoura a inveja, a imbecilidade, e a
covardia, nos corpos apodrecidos que trouxeram a este mundo
essas três coisas sós; um pecado mortal por dote, uma impo-
tência por qualidade e uma sessão de raiva por aspecto./Adeus,
meu querido amigo. Fecho estas linhas, mal escritas nos sobres-
saltos da minha saudade, repetindo-lhe o que mil vezes lhe
hei dito, que é uma esperança consoladora para o meu espí-
rito a que eu tenho de voltar ainda a esta terra daqui a alguns
anos, e encontrar, então, ao lado da tribuna de onde sairam
as estrofes a Corina, uma outra, de onde sairão promiscua-
mente com outros cantos, lições e discursos de moral política,
e doutrinas sociais, que o seu brilhante talento e a sua privi-
legiada inspiraçãom já no futuro o duplo encargo de pro-
ferir e ensinar. É isso o mesmo o que lá estão fazendo, a esta
hora, na minha pátria, os seus irmãos Mendes Leal e Tomás
Ribeiro. /Adeus, meu primorosíssimo poeta e excelente ami-
go./Rio de Janeiro, 8 de abril de 1867. José Cardoso
Vieira de Castro».
A parte final dessa carta é importantíssima para a compreensão
do estado de espírito de Machado de Assis nessa época. Devia estar
ele convencido de que podeira fazer carreira política, como Domingos
José Gonçalves de Magalhães, Francisco Otaviano, José de Alencar e
tantos outros poetas e prosadores do seu tempo. Em 1866 seu nome
andara falado para deputado em A Opinião Liberal e sua caricatura
aparecera na capa da revista O Pandokeu, juntamente com as de Quin-
tino Bocaiuva e Henrique César Múzzio como um dos possíveis can-
didatos do Partido Liberal em Minas Gerais. Redator-principal de um
jornal político, Machado de Assis devia ter feito confidência ao depu-
tado liberal português, que, por isso mesmo, quis colocá-lo no plano de
Mendes Leal e de Tomás Ribeiro, poetas que foram,o apenas parla-
mentares, mas ainda ministros de Estado. Acontece, porém, que no
mesmo dia e na mesma página em que publicara a carta de despedida de
Vieira de Castro, o Diário do Rio de Janeiro noticiava também o desliga-
mento de Machado de Assis do velho jornal, após sete anos de continuada
e brilhante atuação, por ter sido nomeado «auxiliar do Diário Oficial».
Aos azares da política, preferira Machado o aconchego burocrático.
Vieira de Castro partiu para a Bahia e, de, após uma curta
permanência, para os Estados Unidos, de onde regressou a Lisboa, indo
instalar-se principescamente no segundo andar da Rua das Flores n° 109.
A 11 de dezembro de 1868, escreveu ele a Machado de Assis, apre-
sentando um médico luso que vinha visitar o nosso país. Dizia a carta:
«Meu querido Machado de Assis. Como vai você,
meu adorável poeta? Aí lhe apresento o Dr. Silva Ferreira,
R. MAGALHÃES JÚNIOR
notável professor da U. de Coimbra, talento elevado e clínico
peritíssimo. Proteja-o nesse país com o seu grande talento,
e faça-lhe as honras da imprensa, sim? Eu mando um milhão
de abraços e de profundíssimas saudades ao meu querido Ma-
chado d'Assis. O sempre Vieira de Castro» (
x
)
O local de onde foi escrita a carta tem um nome composto de duas
palavras, a primeira quase ilegível parece a abreviatura de Moreira e a
segunda Tonto. Provavelmente uma quinta, Moreira Tonto, longe de
Lisboa. Mas a data está muito clara. Pertence essa carta ao arquivo
da Academia Brasileira de Letras, a que foi entregue juntamente com
outros papéis pela herdeira única de Machado de Assis, D. Sara Leitão
de Carvalho, sobrinha de D. Carolina Augusta de Novais Machado
de Assis.
Ano e meio depois dessa carta, Vieira de Castro se tornava a figura
central de impressionante tragédia. No dia 10 de maio de 1870, às 11
horas da manhã, comparecia ele espontaneamente ao Comissariado Geral
da Policia Civil de Lisboa, declarando ao comissário geral Luís
Waddington e ao escrivão Júlio Estêvão Franco que, em sua residência,
havia um cadáver, o de sua mulher, Claudina Adelaide Guimarães Vieira
de Castro, e que fora ele próprio quem a matara, na madrugada do dia
9, por tê-la encontrado, algum tempo antes, em crime de adultério. Foram
chamadas três testemunhas, para que as suas declarações pudessem ser
legalmente reduzidas a termo.
Instaurado o processo, nele interveio ae da vítima, que foi a
Lisboa e contratou advogado para acusar o genro. Tentou ela provar
que Vieira de Castro fizera um casamento de interesse, tendo recebido
logo depois e algum tempo mais tarde, por morte de seu marido, em
1869, quantias e jóias que se elevavam a quase 100 contos de réis. E
que, depois de locupletar-se com os seus bens, deliberara desembaraçar-
se da esposa, com premeditação e aleivosia, tentando cloroformizá-la
e, como a mulher acordasse e gritasse, agarrando-a e vasando-lhe no
nariz o resto do clorofórmio e, por fim, estrangulando-a, até morrer
por sufocação.
A principal prova de Vieira de Castro contra a esposa brasileira
era uma carta desta, que ele interceptou e que foi lida durante o julga-
mento. Nessa carta, ela escreveu a Almeida Garret coisas deste teor:
«Sonhei que me tinhas mandado o raminho que trazias
ao peito, foi apenas sonho!o tiveste a meiguice de mo
mandares,o te devias esquecer para que tua filhinha ficasse
(1) Essa carta já foi divulgada por Josué Montello num dos capítulos de seu
excelente livro «O Presidente Machado de Assis», no capítulo em que comenta a
prestimosidade com que o escritor brasileiro acolhia os portugueses que vinham para
o Brasil.
UM «DOM CASMURRO» TRÁGICO...
muito alegre; assim estou triste. Por estas coisas é queo
acredito no que me dizem de ti. Preciso, quero convencer-me
que tu hoje só me amas a mim, e que nunca me disseste
uma palavra queo fosse verdadeira, sofro atrozmente quando
penso que tu me poderias ter enganado!»
Outro trecho:
«Queria que viesses amanhã à noite, conheço que é pouco
agradável passar as noites aqui, mas como é por pouco tempo,
faz este sacrifício, porques a maior alegria à tua filhinha.
Vai hoje ao camarote quando eleo estiver, para ver se
podemos falar. Que sensaboria estar uma noite toda ao pé
de ti sem nunca poder dizer uma só palavra».
Entre as testemunhas arroladas estavam o famoso escritor Ramalho
Ortigão e sua mulher, D. Emília, que se tornara amiga íntima da vítima.
O colaborador dea de Queirós em As Farpas e no Mistério de
Estrada de Sintra, então com 32 anos, disse ter sido chamado, no dia
9 de maio, às 5 horas da manhã, à casa de Vieira de Castro, por um
criado deste que lhe dissera que seu patrão precisava falar-lbe urgen-
temente. Acedera ao convite e ouvira, então, de Vieira de Castro:
Tenho um serviço supremo, e talvez derradeiro, que pedir à sua
amizade. É forçosamente preciso que hoje mesmo, antes da noite, me
bata em duelo de morte com José Maria de Almeida Garrett. Torno-o
cúmplice de um homicídio seo obtiver que o combate se realize como
eu desejo. No caso negativo, procuro Almeida Garrett e mato-o onde
o vir.
Como Vieira de Castro achava que só a intervenção de Ramalho
Ortigão poderia revestir o encontro das formalidades legais, fora ele
à casa de Almeida Garrett, tido como amante de Claudina Adelaide.
O sobrinho do autor das Viagens na Minha Terra prontamente respon-
deu que aceitava «com prazer esta ocasião de receber a bala, que pedia
ao seu destino», e autorizou Ramalho Ortigão a entender-se com sua
testemunha, que seria o Conde de Resende. Com este, combinou Rama-
lho Ortigão que o duelo se realizaria nas condições desejadas por Vieira
de Castro. Mais tarde, nesse mesmo dia, houve uma reunião na casa
de Ramalho Ortigão, com a presença do Conde de Resende e de Antônio
Rodrigues Sampaio, testemunha de Vieira de Castro, tendo então Al-
meida Garrett mudado de atitude, dizendo:
É minha deliberação irrevogávelo me bater com Vieira de
Castro. Reconheço que lhe fiz a suprema afronta e que a minha vida
lhe pertence. O queo posso é disputar-lha. Sei que perante a socie-
R. MAGALHÃES JÚNIOR
dade fico infamado por este fato. Por esse motivo, abandono para sem-
pre a sociedade, a cujos preceitos desobedeço, e entro num convento
para nunca mais sair dele.
Ramalho Ortigão foi, com Antônio Rodrigues Sampaio, à presença
de Vieira de Castro, levando a este, por escrito, a decisão de Almeida
Garrett. Disse-lhes então Vieira de Castro:
Posta de lado esta parte da minha vingança, tenho a revelar-lhes
a outra parte dela: minha mulher está morta. Eu mesmo vou comunicar
isso ao comissariado.. .
Dando a entender que já conhecia o caminho, declarou que fora
lá chamado, três semanas antes, tendo o comissário lhe dito que, como
amigo, queria preveni-lo de que Almeida Garret tencionava raptar-lhe
a esposa. Verificara, porém, que a denúncia do projetado raptoo
tinha fundamento. A mulher de Ramalho Ortigão, D. Emília, em seu
depoimento disse ter censurado à amiga a leviandade com que recebia
Almeida Garrett em sua própria casa, durante as ausências do marido.
Apesar de tudo, o adultérioo ficou suficientemente provado nos autos.
Mas Almeida Garrett, parecendo ter a consciência pesada, embarcou para
a Espanha, onde professou. Vieira de Castro foi submetido a júri, sendo
defendido pelo advogado Jaime Moniz. Os jurados reconheceram as
circunstâncias atenuantes alegadas pelo defensor. E, por isso, o crime
de homicídio premeditado, punível com a pena de reclusão perpétua com
trabalhos forçados, valeu-lhe apenas 10 anos de degredo na África,
em possessões de primeira classe, ou cinco anos de prisão celular. O
julgamento se iniciara a 28 de novembro de 1870 e a sentença foi profe-
rida a 30 pelo juiz João Rodrigues da Cunha Aragão Mascarenhas,
que recomendou aou que se resignasse. Vieira de Castro optou pelo
degredo, indo instalar-se em Loanda, cidade de Angola, à épocao
insalubre que, antes do fim de 1872, ali morria de febre perniciosa.
Selou-se, assim, o trágico destino desse «Dom Casmurro» português,
que matou em Lisboa uma Capitu brasileira, rica, mimada, caprichosa e
leviana, talvez dona, também, de uns «olhos de ressaca»...
Manuel Bandeira, o Escritor e o Amigo
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
M
INHA estreia nas letras, em 1940, se outro benefícioo me trou-
xesse, trouxe um que considero dos mais gratos da minha vida:
o contato e, daí, a amizade com alguém que nunca me faltou com
o seu afeto e estímulo: o nosso grande, inesquecível Manuel Bandeira.
Vim ao Rio em julho desse ano, devidamente estreado. Mário de An-
drade, que então residia no Rio e que eu já conhecia desde 1938, num
rápido convívio em Belo Horizonte, levou-me ao apartamento de Ma-
nuel Bandeira na rua Morais e Vale, na Lapa. Ali o poeta me acolheu
na sua «limpa solidão». Aparentemente seco, era alguém capaz da
maior ternura. Pude sentir isso vida afora, já que o procurava toda
vez que vinha ao Rio e, nos grandes intervalos em queo o via,
tinha a sua presença através de uma constante e cordial correspondência.
As cartas que trocamoso a várias dezenas. Ao organizar, em
1958, a sua obra completa, em prosa e verso, para a Editora Aguilar,
Manuel Bandeira me telefonou: queria saber se eu guardava ainda as
cartas que me escrevera quando eu morava em Belo Horizonte. Apesar
das minhas andanças (e eu iria depois para Brasília, onde, durante
quase dez anos, recebi regularmente novas cartas suas) sempre cuidei
de manter, de preservar a correspondência com escritores da categoria
de Manuel Bandeira. Naquele ano, ai de mim seo tivesse nenhuma
carta... Ele teria toda razão para desgostar-se com o amigo ingrato.
del-lhe as cartas, e o nosso poeta aproveitou cerca de trinta no «Epis-
tolário» que se pode ler na citada edição completa. Mesmo assim,
numerosas outraso inéditas e estão aqui junto de mim. A elas vou
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
recordar para falar um pouco de Manuel Bandeira, neste ano em que
a Semana de Arte Moderna fica cinquentona.
Quero registrar sobretudo aquelas passagens em que Manuel Ban-
deira fala de si mesmo, dos seus problemas, das suas doenças. Nesta
carta de 9 de fevereiro de 1941, por exemplo, escrita de Petrópolis, do
Hotel Orleans, diz êle: «Descendo ao Rio no dia 23 dos passado,
recebi sua carta do dia 21.o lhe pude responder, porque no dia
seguinte caí de cama com uma gripe de todos os diabos. Quinze dias
de molho. Só ante-ontem pude fugir ao forno do Rio. Naturalmente
a fraqueza em que fiquei me impediu de providenciar sobre o assunto
da sua carta. Mas é fácil a você obter todas as informações com Múcio
Leão.» Em 12 de março de 1947 me escrevia êle: «Em Petrópolis desovei
uns três ou quatro poemas. Um intitulado «Neologismo», bagatela de
amor, sairá na granfiníssima «Sombra»; dois outros pertencem à coleção
dos sequestrados muito indiscretos; mando-lhe o mais importante.
porqueo sei se poderei nunca publicá-lo: há nele um detalhe muito
cru, embora da mais perfeita inocência. Essas coisaso o diabo. E
neste meu casoo há jeito de atenuar: sem a expressãoo pão, queijo
queijo, ficaria malicioso, o que seria peor.» Viria depois a publicar o
o poema: trata-se de «Infância», incluído por êle no seu livro Belo Belo.
A carta prossegue: «Por aqui só se fala em Castro Alves. Os jornalis-
tas caem em cima da gente pelo telefone, pedindo «umas linhas». Expli-
ca-se: celebrava-se então o centenário de nascimento do poeta de «O
navio negreiro».
Em 1953, ao preparar a 2ª edição das «Poesias» de Alphonsus de
Guimaraens, que Antônio Simões dos Reis publicaria em 1955, escrevi-lhe
sobre algumas dúvidas que tinha.o tardou a responder, de Petró-
polis, em 12 de fevereiro: «Acuso alegre recebimento de sua carta de
Guarapari.o posso responder convenientemente porque estou fora
dos meus livros. (...) Dos quatro sonetos remetidos o que me parece
mais interessante é o dos «Olhos meigos da Esperança», pela novidade
e beleza das rimas toantes. No quarto verso deve haver um erro de
cópia.o pode ser «E ou vequem aspirasse a violeta de Parma», o
queo faz sentido, e sim «E houve quem aspirasse...», confirmado
pelo verso seguinte «Houve, pois...» No soneto LVI o verso «Qual
seja o espaço por onde voa, eu sei»o está na medida, a menos que se
faça uma elisão violentíssima, de queo há exemplo em toda a obra
de seu pai. Acho que o verso devia ser «Qual seja o espaço por onde
ela voa, eu sei» (ela, a nossa alma) . A repetição de «sempiterno»o
me parece defeito, pois está claro que foi intencional. Quanto ao soneto
XXIX, o «pobre máscara avulso»o me incomoda. Você deve incluir
a nota «Corrigiram-se os lapsos, etc.» Como João Alphonsus ao orga-
nizar a 1* edição das «Poesias», muito me vali da experiência e sobre-
tudo da ternura que Manuel Bandeira tinha por Alphonsus de Guima-
«Minha fotografia mais recente, tomada no
Jardim das Laranjeiras perto da casa onde
residi dos 10 aos 16 anos. M". (Fotografia
do poeta feita em dezembro de 1965).
MANUEL BANDEIRA, O ESCRITOR E O AMIGO
raens ao prepararo só a 2ª edição como a Obra Completa para a
Editora Aguilar.
Agora, numa breve carta de 15 de agosto de 1952: «Respondo
rápido sua boa carta de 24.7. (Não há mais tempo para nada neste
Rio de Janeiro senão para prestar atenção ao tráfego parao morrer
atropelado!o sei como os outros se arranjam para comer, dormir,
amar, corresponder-se com os amigos... Euo me arranjo. Estou
começando a considerar o Rio uma cidade inabitável.)» Em outra, de
22 de dezembro de 1947, dizia por queo lhe fora possível estar
presente ao Congresso Nacional de Escritores, em Belo Horizonte:
«Afinalo pude ir ao Congresso. Pois dois motivos, um dos quais uma
bruta desidrose eczematosa, que me deixou as mãos arrebentadas. Fiquei
quase ums assim. Agora já estou bem. Já entrei em férias na Facul-
dade, mas sempre aparece uma caceteação e aindao pude repousar
de veras. Só mesmo em Petrópolis, para onde seguirei estes dias e onde
passarei os meses de janeiro e fevereiro. Ficarei naquele mesmo Hotel
D. Pedro, onde escrevi o soneto para você.» Vinham outras notícias:
«A nova edição das Completas, feita pela Livraria da Casa dos Estu-
dantes, está na bica. Contava tê-la para o Natal. Houve um atraso.
Espero que você possa recebê-la como presente de Ano Bom.» «Breve
você receberá também um exemplar do Mafuá do Malungo, título sob
o qual reuni os Jogos Onomásticos, a Lira do Brigadeiro e outros poemas
de circunstância. A edição, limitada a cem exemplares, só para os ami-
gos, está sendo feita pelo João Cabral de Melo Neto em Barcelona,
onde êle é vice-cônsul. Ele comprou todo o material para fazer ele pró-
prio pequenas edições de luxo e vai abrir a série com meus versos.
Estou muito curioso da tentativa.» Tanto a edição das Poesias Com-
pletas como do Mafuá do Malungo sairam como Bandeira anunciava;
esta última, hoje uma raridade, foi feita com esmero por João Cabral.
Do Hotel Pedro II Praça D. PedroII, 26, Petrópolis, me escrevia
êle em 25 de janeiro de 1948 (faço questão de citar suas cartas sem
uma ordem cronológica, pegando aqui e acolá), para dizer-me, como
sempre: «O calor está tremendo no Rio, mas aqui é aquela frescura
das manhãs e das noites. Estou no mesmo hotel, no mesmo quarto em
que há quatro anos (como o tempo corre!) escrevi o soneto para você.
Desta vez já escrevi este poeminha.» O «poeminha» é «O rio», oito
versos de uma grave beleza:
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
o temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvenso água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.
135
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Poema que figuraria em Belo Belo.
Dizia ainda: «Já saiu a nova edição das minhas completas. Quando
descer de novo ao Rio vou tratar de lhe mandar alguns exemplares
um para você e alguns outros para os amigos daí, o Emílio, o Mar-
tins, etc. Estou trabalhando aqui uma biografia de Gonçalves Dias para
o IPÉ deo Paulo. Será um livro sem nada de novo, baseadoo
somente nas biografias de Antônio Henrique Leal e da Lúcia Miguel
Pereira, poiso tenho tempo para fazer pesquisas.»
Esta carta aqui é de 2 de agosto de 1950, datada do Rio. Nela
informará o nosso poeta: «É verdade que fiquei bom da gripe mas
em consequência dela fiquei quase completamente surdo. A princípio
parecia tratar-se apenas de catarro nas trompas do ouvido, mas não:
era uma nevrite, e as destas espécieo regridem. Naturalmente fiquei
abafadíssimo. Tinha esperança num desses aparelhos otofônicos. De
fato eles ajudam a gente em muita coisa, maso substitui completa-
mente o ouvido que Deus nos dá... e às vezes tira. Enfim, pior é ser
cego ou paralítico... ou sei lá o quê.» Prosseguia: «Não espere muito
do meu Itinerário de Passárgada. Comecei a escrevê-lo muito instado
pelo Fernando Sabino,o simpático. Acho extremamente difícil escrever
memórias, porque, é engraçado, já me referi a isso numa crônica, tudo
o que passou se apresenta aos meus olhos como que no mesmo plano,
sem nenhuma perspectiva. E confundo as épocas, jáo me lembro
quando li este ou aquele poeta, um Verlaine ou um Rimbaud, por exem-
plo.» Agora, numa carta datada do Rio, 8 de dezembro de 1948: «Estou
em grande falta com você, pois até hojeo respondi às suas cartas de
28 de agosto e 3 de novembro. É que este ano foi cheio de trabalhos
e maçadas para mim. Às vezes ficoo infernizado que me dá vontade
de fugir para um lugarzinho do litoral ou do interior ondeo haja
telefone nem repórteres nem embaixadas nem Institutos disto e daquilo!
Que tempo se perde com os cacetes!» «Só agora, relendo a sua carta de
novembro, verifico que del aos Pongetti o seu endereço antigo para
eles lhe enviarem um exemplar das Rimas do José Albano. Você terá
recebido? Providencie no antigo apartamento da Av. B as Fortes ou nos
Correios. Faço questão que você tenha o livro e escreva sobre o poeta.
Muita genteo aprecia o Albano. Quanto a mim, tenho um fraco
por êle: aquela simplicidade e doçura cristãs, aquele pudor de senti-
mento e de linguagem me encantam, me lavam o peito.» A seguir uma
indagação sobre um poeta que foi sempre uma das maiores adnrrações
de Bandeira e minhas: «Gostou do livro de Dante Milano? Que grande
poeta, não?» «Meu velho, está desabando um daqueles temporais de
verão do Rio, em que parece que tudo vem abaixo. Aliás era preciso.
O calor está começando a ficar intolerável. Nos primeiros dias de janeiro
devo subir para Petrópolis. Mandar-lhe-ei de lá o meu endereço.»
Em 7 de junho de 1948: «Peço agradecer à Academia Mineira
de Letras o convite para ir a Belo Horizonte fazer uma conferência.
- 136
MANUEL BANDEIRA, O ESCRITOR E O AMIGO
Agradecer e desculpar-me deo poder atender ao convite. É com
pesar que tenho de desapontá-lo, meu caro Alphonsus.» «O Mafuà
aindao chegou. Deve estar a caminho. Tenho uma boa notícia: breve
a Continental lançará em dois discos de 12 polegadas «15 poemas de
M.B. ditos por êle próprio», com capa de Santa Rosa. A gravação
deu-me muito trabalho só a «Evocação do Recife» tive de repetir 4
vezes. Mas os técnicos ficaram satisfeitos com o trabalho e dizem que
é a minha voz 100%. Como ninguém sabe a voz que tem, sou suspeito
para dizer queo reconheci lá muito. Mas fiquei mais ou menos
contente com o resultado. O único poema queo me parece bem dito
é o da «Andorinha». Como aquilo é difícil de dizer senão mentalmente!
Os outros 14 são: Evocação, Profundamente, Piscina, O Rio, Vou-me
embora pra Pasárgada, A morte absoluta, Canção da Parada de Lucas,
Estrela da Manhã, Momento num café, Último poema, Última canção
do beco, Tema e Voltas, Pneumotórax e Canção do vento e da
minha vida.»
Em 5 de dezembro de 1946 outra queixa: «Tenho andado afoba-
díssimo. E apesar de já estar em férias da Faculdade,o consigo
descansar neste Rio das filas e dos filantes do tempo da gente. Também
estou preparando as malas para me refugiar em Petrópolis, sem deixar
rastro!» Em 21 de fevereiro de 1954, escrevia do Rio: «Estas férias
eu estava me preparando para fazer uns estudos sobre Juana Inês de la
Cruz, mas cadê que pude? Gastei-as todas em corrigir provas de novas
edições de meus livros: Noções de História das Literaturas, Guia de
Ouro Preto, Apresentação da Poesia Brasileira, Opus 10 e um folheto
na série dos Cadernos de Cultura (De poetas e de poesia) . As Noções
me deram um trabalho danado:o há nada mais trabalhoso e cacete
do que atualizar um livro. (...) E os índices? índice onomástico é
uma beleza, mas que chato que é fazê-lo! Além do que, fizeram-me uma
ursada imprimindo o 1' vol. (agorao 2 volumes) sem me mandarem
provas! Resultado: erros sem conta e como consequência uma errata
monumental de várias páginas! É de amargar.»
Agora me detenho em algumas cartas recebidas quando eu morava
em Brasília. Esta é de 7 de dezembro de 1961 e diz: «Fiquei muito
contente com a notícia de que V. está escrevendo uma Vida de João
Alphonsus. Infelizmenteo possuo o artigo dele que provocou a minha
carta. Deve ter saído (tenho quase certeza) na Manhã do Mário
Rodrigues. Veja se em Brasília.. . Não, em Brasíliao há nada senão
um bom clima, que já dizia o João da Ega é a coisa mais reles
deste mundo. Aqui na Biblioteca Nacional poderá ser encontrado o
número da Manhã em que o artigo saiu. Mas euo tenho no momento
tempo nem força para essa expedição.» «Recebi a encomenda de
traduzir Mireille. Em verso. Mas vou por de lado as rimas para ficar
mais fiel ao sentido do original. Conservarei a estrofe e os metros: já
é música bastante para esse poema cujo defeito para mim está precisa-
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
mente na sua excessiva musicalidade, ou melhor, melodiosidade. O'
esquema é aabcccb; acho esses ccc cacetes. O l° verso do poema é
«Canto uno chato de Provenço». (Canto uma moça da Provença.)
«Moça» em provençal é «chato». Que língua! Quase desisti da tradu-
ção!» Em 31 de março de 1965: «Dia 21 houve o lançamento do álbum
Preparação para a morte. A edição ficou linda e você a verá quando
vier ao Rio. Infelizmente saiu caríssima coisa para milionários
bibliófilos (ainda bem que os há!): 200 contos o exemplar (a edição
foi de 100 apenas).» Em 3 de junho de 1962: «De vez em quando
noticiam que eu vou chegar a Brasília. Há pouco o Pompeu de Souza
acreditou e foi para o aeroporto esperar-me.o me vendo, telefo-
nou-me.» Em 1963, os jornais deram uma notícia: Manuel Bandeira
deixara crescer o bigode. Escrevi-lhe qualquer coisa, a que ele respon-
deu nestes versos:
Mui, mui sensibilizado,
A Alphonsus e toda a família
O velho bardo destroçado,
Já de novo desbigodado,
Manda o seu mais terno obrigado!
(Desculpe tanta rima em «ado»,
Queo raras rimas em «ília».)
Em carta de 31 de maio de 1966 chegou a notícia dos primeiros
sintomas da doença que o levaria: «Fiquei muito sensibilizado com os
sonetos em honra dos meus oitenta. Você deve ter sabido que tudo
correu bem, apesar das consabidas maçadas (...) Aguentei firme,
mas dois dias depois um almocinho besta em que comi pouco, ingeri
uma linguiça que me causou a peor gastrite que tive na minha vida.
Tive que passar 5 dias numa casa de saúde, onde padeci muito e gastei
meio milhão (sem honorários de médicos, que eram todos amigos) . O
sofrimento foi duro mas cedeu depressa e eu vim convalescer em rigorosa
dieta de leite e mingau (...) Agora já estou de volta ao meu regimen
quase normal, recuperei três quilos do peso perdido.» Em 25 de maio
de 1967: «Afinal fiz a radiografia do estômago e do duodeno, a qual
o revelou nada de grave. Vou um pouco melhor agora, comendo
mais e com apetite coisas dentro do regimen habitual. Inclusive o
feijão.»
Daí para a frente foi o declínio até a morte em outubro de 1968.
Visitei-o durante a doença: via-se que ele tentava reagir, conservar,
como todo doente, uma ilusão de cura. Agora, suas cartaso ainda
um pouco da sua presença. Nesses trechos transcritos eu o vejo tal
como foi, amigo afetuoso e solícito, homem de letras para quem a arte
MANUEL BANDEIRA, O ESCRITOR E O AMIGO
representou a bem dizer tudo, homem e escritor, em suma, dos mais
autênticos e nobres que tivemos. Se a poesia assegura a sua permanência
na memória destas gerações e das que vierem, suas cartas, como tantas
das suas páginas em prosa, como que o reproduzem de corpo inteiro,
fiel ã sua vocação e aos amigos, todo ele, como os homens a que alude
no doloroso poema que é «Momento num café», voltado para a vida,
absurto na vida, confiante na vida.
DEPARTAMENTO DE IMPRENSA NACIONAL
1973
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