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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR:
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO:
Clarival do Prado Valladares
Manuel Díégues Júnior
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Mello Franco
Sedação: Palácio da Cultura — 7.º andar Rio
de Janeiro — Brasil
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
ANO I
JULHO/SETEMBRO 1969
N.° 1
Sumário
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS Apresentação
ARTES
LEANDRO TOCANTINS
ROBERTO BURLE MARX CLARIVAL
DO PRADO VALLADARES OCTÁVIO
DE FARIA
- Landi Um italiano luso-tro-picalizado
13
- Jardim e Ecologia 29
- A Iconologia Africana no Brasil 37
- Cinemas Novo e Cinema Brasileiro 49
MOZART DE ARAÚJO
Sigismund Neukomm 61
CIÊNCIAS HUMANAS
GILBERTO FREYRE
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
Importância dos E s t u d o s
Transnacionais
Mauá e a Segurança Nacional 93
Os Estudos Antropológicos no
Brasil 105
LETRAS
CASSIANO RICARDO Sabiá e Sintaxe 127
Luís DA CÂMARA CASCUDO Locuções Tradicionais 143
WILSON MARTINS Um Romance Inacabado de
Alencar 161
77
Apresentação
As revistas, no Brasil, como em toda parte, foram sempre
instrumentos efetivos de ilustração. Divulgaram, ensinaram, formaram
opinião, comandaram iniciativas, serviram à coletividade como forças de
opinião e de incentivo cultural.
Na história do pensamento no Brasil, as revistas possuem lugar
privilegiado. Como publicações periódicas, num momento em que o livro
era de edição difícil, escassa, rara, foram as revistas que divulgaram o
escritor que começava, o ensaísta, o poeta, o romancista, o panfletário
político, o homem que tinha alguma ideia a promover no campo da
aventura do espirito. Na América espanhola, na fase colonial, as revistas
eram órgãos autorizados pelo Poder Público, para o registro do que se
apurava como característica do meio físico ou da própria sociedade em
elaboração e a caminho da independência. Nesse particular, os periódicos
hispano-americanos tiveram um papel ponderável. Criaram a consciência
nacional, servindo ao interesse coletivo na empresa da autonomia política.
Completaram o que se deve às "Sociedades dos Amigos do País",
imaginadas e instaladas inicialmente em Espanha e posteriormente levadas
à Hispano-América, onde se converteram em centros ativíssimos de
preparação ideológica das novas nacionalidades. Não ocorreu o mesmo em
nossa Pátria. As sociedades literárias não tiveram na revista o meio de
divulgação do muito que produziram estudando o Brasil nascente.
As publicações periódicas que serviram às organizações privadas, que
são hoje os órgãos da indústria e da agricultura, como o "Auxiliador da
Indústria Nacional", nesse campo específico foram, porém, após a
independência, forças atuantes na explicação do que era o Brasil, na
explicação devida aos próprios brasileiros no momento em que
ingressávamos no mundo soberano e devíamos conhecer-nos
melhor para a nossa presença na ordem internacional. Como atua-ram,
intensamente, na formulação da consciência nacional pelo que publicaram
e servia para a divulgação do que de mais útil, ao progresso nacional, se
fazia necessário editar, divulgar e expor claramente. O processo de
desenvolvimento principiava. Era necessário o aparelhamento prático,
objetivo, para enfrentar o futuro.
Revistas como a "Revista Brasileira", de José Veríssimo, "Ame-
ricana", "Terra de Sol", "Boletim de Ariel", "Revista do Brasil", "Revista
Brasiliense", "Mundo Literário", "Revista Brasileira" em nova fase, agora
a de Otávio Tarquinio de Souza, marcaram momentos estelares na vida
cultural do País. Como as revistas regionais. do tipo da "Revista
Amazônica", de José Veríssimo, a do "Partenom Literário", de Porto
Alegre e "Revista Acadêmica", de Pernambuco, para referir apenas
algumas realmente de tal importância que transpuseram os limites das
Províncias, tanto mais quanto exerciam copiosa e poderosa influência no
aceleramento e no enriquecimento das áreas onde circulavam.
"Cultura", que foi órgão credenciado da inteligência brasileira. edição
do Ministério da Educação e Cultura, direção esclarecida e dinâmica de
Simeão Leal, valeu como um dos mais autênticos instrumentos que
serviram à divulgação e a uma coordenação eficiente de quanto esforço se
realizava, dispersamente, num aven-tureirismo que precisava findar e
também para que tomasse velocidade e se processasse em termos de
presença efetiva a ação do Poder Público, que não se preocupara, até então,
diretamente ou mais decisivamente, com os ângulos da área que se
denominava cultura na competência de uma de suas Secretarias de Estado.
Essa ação, diga-se de logo, não importando em cerceamento das liberdades
essenciais para a criação espiritual, através de uma
interferência vexatória e indiscriminada do que esse Poder criador ousasse
realmente produzir.
"Cultura", que permaneceu quando da organização positiva do
Conselho Federal de Cultura, não se reeditou naquelas fórmulas
construtivas da publicação anterior. Limitou-se ao campo da divulgação do
que o Conselho realizava, na fidelidade irrecusável aos objetivos de seu
funcionamento legal, com o que se cumpria dispositivo regimental. Era
insuficiente. O impulsionamento do processo de elaboração e de
dinamização da cultura brasileira precisava, urgentemente, de outro
veículo de divulgação .Revista do Livro" e as revistas dos organismos de
cultura especializada do Ministério da Educação e Cultura seriam
suficientes?
A REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA que ora inicia sua vida, pros-
seguindo na orientação, agora mais avançada e mais aprofundada, do que
a primitiva "Cultura" efetivou com tanta dignidade e tanto êxito, pretende
atender a outro ângulo da competência do Conselho. E, através de suas
páginas, abertas à inteligência dos brasileiros, juntamente com as coleções
que o Conselho criou e começam a ser lançadas, imagina ser um novo
instrumento de promoção do que, no campo da Cultura, estamos criando,
visando não apenas à atualidade que vivemos, mas ao futuro potente que o
Brasil alcançará pela decisão, pela energia e pelo vigor dos brasileiros, no
seu propósito de aceitar o desafio que pretensos organismos estrangeiros
fantasiaram com relação ao Brasil no ano 2.000.
Artes
Landi — Um Italiano Luso-tropicalizado
LEANDRO TOCANTINS
Antônio Giuseppe Landi, dizemos bem: um italiano luso-tropi-
calizado. Um artista italiano que na metade do século XVIII abandona sua
terra natal, a cidade de Bolonha, seus amigos, uma carreira de arquiteto
que já se prenunciava vitoriosa, para tentar nova vida nos trópicos. Uma
aventura tropical no império português na América do Sul. Mais
propriamente: no Brasil, colônia de Portugal, a esse tempo dividido, para
efeito de administração, em dois Estados: o Estado do Brasil e o Estado do
Maranhão e do Grão Pará, este último incluindo a vastíssima área que hoje
denominamos de Amazônia.
Antonio Giuseppe Landi traz para a Amazônia sua experiência
cultural europeia ao mesmo tempo que se luso-tropicaliza, isto é, torna-se
homem do trópico, assimila valores portugueses e indígenas. vive nos
trópicos amazônicos, colonizado e dominado pelos portugueses, sem
desprezar, entretanto, a herança espiritual que traz da Europa. E assim êle
vai ser responsável pelo desencadeamento no Estado do Grão Pará — em
sua capital, a cidade de Belém — de uma pequenina Renascença tropical.
Melhor: uma Renascença luso-tro-pical.
Não há melhor designativo para caracterizar a vida e a ação de
Antônio Landi na Amazônia do que a expressão sociológica "luso--
tropical", criada pelo Professor Gilberto Freyre com o objetivo de
sistematização de estudos científico-sociais que possam revelar todos os
aspectos da civilização portuguesa nas áreas tropicais, onde o luso tão bem
se aclimatou, soube aproximar-se biologicamente da mulher tropical,
assimilar ou mesclar valores tropicais. Daí o português ser vitorioso em
seu esforço de europeização na Ásia, na Africa e, principalmente, no
Brasil.
Os lusos não só redimiram os trópicos daquele conceito depreciativo,
negativo, que entendia serem essas regiões impossíveis à vida
LEANDRO TOCANTINS
do homem, ao desenvolvimento da civilização, por ser agreste em
demasia, com um sol a queimar a pele, e até a causar chagas nas brancuras
delicadas do homem de civilizações boreais. Os lusos também provaram
que é possível uma civilização tropical, a que o Brasil hoje pertence e
revela ao mundo sua vitalidade, seu ímpeto de criação no campo do
pensamento humano, na empresa de humanização do espaço físico.
O sociólogo Gilberto Freyre diz muito bem que não se "pode falar em
tropicalismo moderno sem se destacar a ação do português como pioneiro
de modernas civilizações tropicais: aquelas em que aos valores e sangues
tropicais juntam-se, em novas combinações, valores e sangues europeus".
Ao que Gilberto Freyre proclama como "vitória de formas e de processos
portugueses de constituição e desenvolvimento de sociedades e culturas —
formas predominantemente europeias e cristãs, mas a seu modo plurais,
isto é, com aproveitamento de valores nativos".
Vamos nos valer, ainda, da palavra animada de Gilberto Freyre, para
fixar com a força do próprio criador da teoria do luso-tropicalismo, o que,
em síntese sociológica, é ser luso-tropical: "o português soube em tempo
extra-europeizar-se e tropicalizar-se êle próprio. Europeizou e latinizou, e
não apenas cristianizou, povos tropicais. Êle próprio, em vez de
rigidamente europeu ou imperialmente ibérico, extra-europeizou-se e
tropicalou-se desde o início de suas aventuras ultramarinas, amorenando-se
sob o céu dos trópicos, ou sob a ação ou regime da mestiçagem tropical.
Confraternizou com os povos de côr em vez de procurar dominá-los (...)
Assimilou desses povos valores que salpicaram de orientalismos, ame-
canismos, africanismos o próprio Portugal. (...) Criou um mundo de
valores aparentemente contraditórios mas na verdade harmônicos. Um
mundo novo, uma civilização nova, uma cultura nova a que por
antecipação pertenceram portugueses dos séculos XVI a XVIII, para os
quais nos voltamos hoje como para pioneiros do que pode ou deve chamar-
se civilização ou cultura luso-tropical".
Nessa civilização ou cultura luso-tropical integrou-se o italiano de
Bolonha Antonio Giuseppe Landi, de modo a tornar-se um dos maiores
arquitetos do Brasil, durante o século XVIII. Mas uma integração,
insistamos, que jamais representou o abandono dos valores culturais que
faziam parte de sua personalidade de homem europeu e, especialmente, de
italiano. Ao contrário, sua presença no Brasil — e no Brasil mais tropical,
que é a Amazônia — significou a introdução de formas e concepções
técnicas e artísticas novas para o Brasil daquela época, e a feliz
convergência de estilos em voga na Itália e em Portugal, sem esquecer a
íntima correlação entre a arquítetura e o meio, fenômeno que Antônio
Landi teve a sensibilidade de perceber. O que lhe proporcionou a vantagem
de construir prédios, palácios e igrejas mais ou menos adaptados ãs
condições climáticas da Amazô-
LANDI UM ITALIANO LUSO-TROPICAUZADO
nia, e nunca a transposição integral dos modelos europeus para os trópicos
amazônicos. Neste ponto, Antônio Landi absorveu as constantes culturais
portuguesas nas áreas tropicais.
E ainda foi além o italiano de Bolonha: adotou uma vida totalmente
luso-tropical nos hábitos, nas preferências sociais, no modo de morar em
casa lusitana, em ser lusitanamente membro da Ordem Terceira de São
Francisco da Penitência, em apreciar as viagens fluviais de exploração
científica, no prazer de confraternizar com as populações nativas, na
associação franciscana com a natureza e na curiosidade de investigá-la, na
propensão de fazer ciência experimentalista, dentro das tradições lusas e
franciscanas do "saber de experiência feito". E, por fim, na constituição da
família, escolhendo para mulher uma senhora luso-brasileira, descendente
do sólido tronco português dos Souza Azevedo.
Não deixa de ser estranho que um italiano, já no começo de uma
carreira promissora, na civilizadíssima cidade de Bolonha, onde atingira
posição de relevo entre os artistas de seu tempo, viesse a desprezar o futuro
de glória, que se mostrava claramente em seu horizonte, para inverter todo
o talento — a sua vida integral, enfim — numa experiência incerta e
perigosa nos trópicos da América do Sul. O que terá levado Landi a esse
procedimento singular, precedendo de um século a outro artista famoso,
Gauguin, na atitude de rebeldia contra os padrões de sua civilização para
viver tropicalmente a aventura que, afinal, deu a ambos a oportunidade de
expressar a plenitude de seus talentos?
Os próprios compatriotas não sabem como explicar a partida súbita de
Landi. E só atribuem a um "pensamento de aventuras", conforme está
consignado no 1.° volume dos verbais da Academia Clementina de
Bolonha, quando se fazia o elogio de Landi, na sessão de 25 de fevereiro
de 1792. Isto porque o homem que havia desaparecido na longínqua
Amazônia, com a idade de 78 anos, era possuidor do título honroso de
membro da Academia Clementina, eleito em 16 de fevereiro de 1743. Esse
elogio fúnebre oferece-nos a verdadeira dimensão de seu espírito e de sua
cultura. Em certo momento, disse Domenico Pio, secretário da Academia:
"Muito cedo seu talento o conduziu com rápido sucesso a um notável
conhecimento, seja histórico ou prático da carreira de arquiteto, que ainda
muito jovem, seu mestre Fernando Galli de Bibiena o julgou merecedor de
ser promovido ao grau de ilustre, e digno de figurar entre os membros da
Academia Clementina".
Só mesmo um acentuado espírito de aventura, de curiosidade por
valores exóticos e pela natureza colorida dos trópicos, levaria o jovem
Landi a abandonar Bolonha, os amigos, o ambiente artístico tão propício a
desenvolver suas extraordinárias aptidões. Bolonha, nos Setecentos, era
um dos centros culturais mais importantes da Europa. A velha
Universidade, a Academia Clementina, o Insti-
LEANDRO TOCANTINS
tuto de Ciências e Artes, a famosa Escola de Cenografia dos Bibiena,
tornavam-na cidade ideal para as atividades criadoras. O próprio Landi
fora aluno distinto de Fernando Galli de Bibiena, que o tinha como
discípulo predileto, e chegou a ser professor de Arquítetura no Instituto de
Ciências e Artes.
O êxito de sua carreira estava assegurado em Bolonha. Zanotti, em sua
Storia deliAccademia Clementina, volume segundo, registra a presença de
Landi nessa ilustre Casa, onde êle era considerado "dileto". Zanotti
acrescenta que êle "egregiamente disigna" — desenha excelentemente. E a
prova é que vamos encontrar na Biblioteca Comunalle dell'Archigimnasio
de Bolonha a obra em manuscrito de Marcello Oretti, Acadêmico de honra
do Instituto de Ciências de Bolonha, as melhores referências sobre os
trabalhos de Landi a quem empresta o atributo de "valoroso desenhista de
Arquítetura que aprendeu com Ferdinando de Bibiena, premiado pelo
Instituto nos anos de 1731 e 1734, gravou em cobre um livro com o título
Coleção de Algumas Fachadas de Palácios e Pátios de vários notáveis de
Bolonha. Oretti também faz referência a outras gravações em cobre de
Landi: a Igreja metropolitana e o Museu Arquiepiscopal, em Ravena, a
Igreja de Jesus Maria, a Igreja de São Pedro, a Igreja de São Jorge, a Igreja
de São João no Monte, a Igreja de São Paulo, e outros templos católicos
em Bolonha.
Realmente, na Blibioteca Comunale dell'Archigimnasio de Bolonha
encontramos belíssimo álbum de desenhos de Landi: Racolta Di Alcune
Facciate di Palazzi e Cortile de Piú Riguardevoli di Bologne, dedicado ao
"nobilíssimo signor Senatore Conte Guido Ascanio Orsi", composta de 30
estampas e mais uma no frontispício. Acha-se também, na Biblioteca
Comunalle, um segundo álbum de Landi dedicado "Al Prestantissimo, e
Pontifício Architetto il signor Cavalieri Gianfrancesco Buonamici,
Accademico Clementino d'onore". Está assinado por "Giuseppe Antonio
Landi, Accademico Clementino", e contém 14 estampas do próprio Landi
(principalmente portas e janelas criadas pelo autor) e 37 estampas
reproduzindo trabalhos de outros arquitetos na paisagem urbana de
Bolonha. Possuímos microfilmes desses trabalhos que serão reproduzidos
no livro em preparo: Landi: Arquiteto do Grão Pará.
Era o sucesso na carreira artística e social que já se prenunciava na
vida de Antônio Landi em sua cidade natal. Sem conhecer estes detalhes
que acabamos de revelar — e somente avaliando a obra extraordinária que
Landi realizou no Brasil —, o Professor Robert Smith, da Universidade de
Pensilvânia, assegura que a permanência de Landi em Bolonha lhe teria
assegurado um papel de primeiro plano nas artes de sua pátria. Robert
Smith é de opinião que êle teria sido uma "figura comparável a Luis
Vanvitelli, a Fernando Fuga, ou ao seu compatriota de Bolonha, Cário
Dotti".
LANDI UM ITALIANO LUSO-TROPICALIZADO
Antonio Giuseppe Landi é o quarto filho de uma prole de nove, todos
homens, do casal Antonio Landi, médico, e D. Antónia Mana Teresa
Gughliel. Nasceu a 30 de outubro de 1713 e foi batizado no dia seguinte
na Igreja de São Pedro, Catedral de Bolonha. Estivemos, no dia 30 de
setembro de 1963, na Igreja de São Pedro, em Bolonha, para
conseguirmos a certidão de batismo de Landi e assim ficar escla recido de
vez a data do nascimento do arquiteto, que até então se desconhecia.
Robert Smith e alguns historiadores brasileiros citavam vagamente o ano
de 1708, sem precisar o dia e o mês. Dom Mario Guhedini, pároco da
Igreja de São Pedro, forneceu-nos certidão de seu próprio punho e a cópia
fotográfica dos assentamentos no livro do Battistero Parocchiale.
Mas os homens são ãs vezes conduzidos a caminhos imprevisíveis.
Basta que eles se submetam àquilo que nós latinos costumamos chamar de
"capricho do destino", à falta de explicação racional do que é
essencialmente inexplicável. Acontece que o Rei de Portugal encarregou
ao Padre Carmelita João Alvares de Gusmão de contratar nas cidades
italianas "sujeitos práticos nos estudos de geografia e astronomia", para
"fazerem observações astronómicas e formarem cartas geográficas do
Brasil". Portugal e Espanha acabavam de assinar o Tratado de Madri
(1750), e o Governo português desejava esses técnicos para trabalharem
na comissão de limites que iria estabelecer os marcos de fronteira nas
possessões coloniais dos dois reinos na América do Sul. E ainda mais.
Pretendia o soberano de Portugal: que esses homens contratados fossem
"versados na filosofia experimental", e "práticos de Medicina, e
especialmente de Botânica" e "que sejam suficientes desenhadores para
tirarem vistas dos lugares mais notáveis, e debuxarem as plantas, animais
e outras coisas desconhecidas e dignas de notícia". Tudo isso fazia parte
das instruções do Secretário de Estado português, Marco de Azevedo
Coutinho, em nome de D. João V.
Em documento guardado no Arquivo Histórico Ultramarino, em
Lisboa, há uma referência expressa de Marco de Azevedo Coutinho, a
Universidade de Bolonha, "que é a parte da Itália", segundo êle "em que
têm florescido os estudos matemáticos". Aí deveriam ser procurados
professores de Matemática e "outros homens inteligentes".
O Padre João Alvares de Gusmão, que também ia a Bolonha assistir ao
Capítulo Geral de sua Ordem, descobre Antônio Landi e logo o contrata
para os serviços de Sua Majestade o Rei de Portuga). Ainda faltam
documentos que expliquem e esclareçam esse contato entre o Padre João
Alvares e Antônio Landi. Sabe-se, porém, que dois notáveis bolonheses
concordaram em trabalhar para a coroa portuguesa em sua colônia na
América do Sul: o próprio Landi e o atronomo João Angelo Brunelli, que
era ao mesmo tempo desenhista ? pintor de alto padrão artístico. Ambos
deixaram Bolonha em fins
LEANDRO TOCANTINS
de 1750 ou princípios de 1751, tomando um barco em Gênova, com
destino a Lisboa.
Já havia em Portugal tradição de presença de artistas italianos que
muito contribuiriam para o desenvolvimento da arquítetura, da pintura, da
ourivesaria portuguesas. Desde o século V são assinalados nomes de
notáveis artífices que as Cidades-Estados da Itália mandavam a Portugal.
Uns chamados pelos portugueses, como Fillippo Terzi, arquiteto bolonhês,
construtor da Igreja de São Vicente de Fora, da Igreja de São Roque, em
Lisboa, como o toscano Niccolo Nazonni, autor da Igreja e da Torre dos
Clérigos, da Igreja da Misericórdia, e do Belo Palácio do Freixo, todos no
Porto. Outros, vindos a Portugal no desejo de abrir novos caminhos de
vida artística.
Há um livro de Emilio Lavagnino, L'Opera del Gênio Italiano all'
Estero, com o subtítulo: Gli artisti in Portugallo, que nos revela uma
infinidade de nomes italianos emprestando o seu talento para a criação
artística em Portugal. Landi, ao chegar a Lisboa, podia apreciar o
magnífico Palácio Luz, por exemplo, obra do arquiteto Fran-cesco Saveiro
Fabri — quase uma reprodução de palazzo italiano do fim do
Renascimento. Se tivesse ido, como é bem possível, a Coimbra, lá
apreciaria o Seminário, que obedece ao risco do bolonhês Giovan
Francesco, dos irmãos Iamozzi e de Giacono Azzolini.
O certo é que Landi permaneceu em Portugal durante dois anos. D.
João V morrera, e o novo rei D. José I, auxiliado pelo primeiro Ministro
Pombal, revia os projetos de seu antecessor quanto à política a executar
nas possessões lusitanas da América do Sul, em consequência da
assinatura do recente Tratado de Madri. Enquanto as autoridades reais
preparavam os planos de ação para as comissões técnicas encarregadas da
demarcação dos limites nas terras sul-americanas, Landi estudou e
observou o meio português e seus valores culturais, assimilando princípios
e estilos de arquítetura em voga no país. Por outro lado, o italiano Landi
recebia, constantemente, o impacto psicológico do Novo Mundo através
das caravelas que entravam e saíam do Tejo, como a estimular o seu desejo
de aventura tropical.
A 2 de junho de 1753 Landi parte de Lisboa com os outros membros
da comissão técnica, entre os quais estava o matemático Bolonhês João
Angelo Brunelli. Em Belém, capital do Estado do Grão Fará, a comissão
permaneceu mais de ano, antes de seguir para a zona de operações: o alto
rio Negro, onde os comissários portugueses e espanhóis deveriam
encontrar-se e empreender conjuntamente os trabalhos de demarcação.
O Governador e capitão general de Estado do Grão Pará, Francisco
Xavier de Mendonça, irmão do Marquês de Pombal, chefiava o grupo de
técnicos e cientistas que foi acampar em Mariuá, nas margens do rio
Negro — aldeia de índios já civilizados pelos
LANDI UM ITALIANO LUSO-TROPICALIZADO
missionários carmelitas. O lugar, preparado para servir de centro principal
aos trabalhos de demarcação, recebeu oficialmente o nome de Barcelos,
que expressava a lembrança sentimental da outra Barcelos, na Metrópole
portuguesa.
Antônio Landi permanece em Barcelos cerca de seis anos. A sua
convivência com o Capitão-general Mendonça Furtado transforma-se em
sólida estima que se manifesta em atos e palavras do irmão do poderoso
Marquês. Mendonça Furtado encontra em Landi não só o auxiliar
prestimoso e competente mas a companhia agradável para o diálogo de
inteligência. São inúmeras as referências elogiosas a Landi da parte do
Capitão-general em suas cartas a Pombal, prova do prestígio alcançado
pelo arquiteto bolonhês.
Os anos que Landi passou em Barcelos, embora marcados por uma
vida difícil, dura, representam o consórcio definitivo do italiano com os
trópicos. Um consórcio em que houve conveniência e amor. E depois,
mais amor que conveniência. Nos primeiros tempos êle só pensava em
ganhar dinheiro. É o que diz o Governador Mendonça Furtado em carta ao
irmão Pombal: "Landi é sumamente curioso de lavouras, bastante esperto e
ativo, e em sumo grau ambicioso e amigo de juntar dinheiro". De certo,
ganhar dinheiro para regressar vitorioso a Bolonha. Mas a ideia
essencialmente utilitária vai cedendo lugar a uma atitude de
confraternização com a paisagem, as sensações, os odores e as formas de
vida no trópico amazônico.
É no rio Negro que Landi começa a se tornar um luso-tropicalista: na
curiosidade e simpatia pelos valores regionais, na sua integração total a
um sistema de vida que o português criou, em mesclagem de constantes
culturais suas com as dos indígenas soberanos naquelas verdes e exóticas
regiões. Luso-tropicalista no "saber de experiência feito", porque Landi
também provou a sua vocação franciscana, isto é, aquela aproximação do
homem com a natureza, aquele desejo de ver, analisar, experimentar
praticamente, aquela inquietação de descobrir, de unir o utilitário ao
sentimento sublime da construção espi-- qualidades que se revelam na
filosofia do franciscanismo surgido com tanta força e influência na aurora
dos tempos modernos.
Quando o Capitão General Mendonça Furtado pensa em explorar o rio
Marié, afluente da margem esquerda do rio Negro, é Landi o escolhido
para chefiar a empresa, que resultaria em fracasso sob o ponto de vista de
trazer à civilização os indígenas, mas, por outro lado, alcançava outros
objetivos importantes: a informação geográfica, etnográfica, o
conhecimento da flora e da fauna. Landi enfrenta ataques de índios,
incidentes com o seu próprio pessoal, enquanto, nas poucas horas de folga,
lê o 6.° livro da tona de Salomão, sem esquecer o recolhimento de espécies
da flora e fauna para o estudo das ciências naturais, a que êle se consagra
com ardor franciscano.
LEANDRO TOCANTINS
Essas múltiplas atividades de explorador, de naturalista e de
desenhista, não o impediram de manifestar sua vocação mestra: o do
artista inquieto, criador de formas, que pouco mais tarde revelaria
plenamente na cidade de Belém do Grão Pará. Em Barcelos, desenhou um
túmulo na igreja de Sant'Ana, em forma de templo de ordem dórica, e deu
aulas a um soldado que tinha pendores artísticos, ensinando-o a pintar
afrescos em perspectiva.
Landi adquire no rio Negro experiência de vida que o vai tornar, até
os fins de seus dias, um italiano luso-tropicalizado. Nos trópicos
amazônicos, onde o gênio colonizador do português procurava novas
oportunidades para dar expansão às suas energias, esse europeu de
Bolonha, refinado na inteligência e na cultura, vai encontrar — coisa
estranha para um homem de sua condição social
um meio hábil de expressar-se artisticamente. E essa expressão é
misto de arte e de ciência: Landi escreve uma História Natural
do Pará, conservada inédita, em que o texto do erudito — e mais do
experimentalista, na acepção da filosofia franciscana — é comple
tado pelo desenho do homem de arte que êle essencialmente era.
O manuscrito intitula-se "Descrizioni de varie Piante, Frutti, Ani-
male, etc, delia Capitania del Gran-Pará". É um volume de 187
páginas em que o autor descreve 154 espécies. A obra é dedicada a
"Sua Exclz.
a
il Sigre. Luiggi Pinto de Souza, Cavaglier di Malta, e
Governatore del Matto Grosso, il quale con soma fatica e diligenza
investigo moltisse cose appartenenti alia storía naturale, e delle qualli si
potra formare un grosso volume in vantaggio delia Republica Letteraria".
Tivemos oportunidade de examinar e de fotografar essa obra na
Biblioteca Municipal do Porto. As estampas coloridas, de um colorido tão
tropical, e por isso vivo, luminoso, ardente, acompanham notícia científica
escrita em italiano. A arte de Landi recria flores, frutos, árvores, arbustos,
folhas. E muitos bichos: jacarés, cobras, tartarugas, tracajas, tatus, lagartos,
corujas, antas, pacas, capivaras, mucuras, caetetus, onças, macacos,
preguiças, tamanduás. Coisas que naturalmente lhe atraiam a curiosidade
pelo exotismo com que a vida animal e vegetal se revela na Amazônia.
Esse notável trabalho de Landi, que será divulgado no livro que
preparamos sobre sua vida e ação luso-tropicais na Amazônia, é uma
espécie de diploma de vivência tropical que êle adquiriu na dura e rude
vida nas solidões amazônicas, "vendo, tratando, pelejando" como diria o
épico dos Lusíadas, também este fascinado pelos trópicos
os orientais. Camões inicia um "novo estilo, tanto de conveniência
humana como de identificação do homem com a natureza", na inter
pretação de Gilberto Freyre, destacando neste fato as raízes do
luso-tropicalismo "que teve por precursor o infante D. Henrique".
O italiano Antonio Giuseppe Landi viria a ser um seguidor até
voluptuoso dessas formas de vida caracterizada por um toque for-
LANDI — UM ITALIANO LUSO-TROPICALIZADO
temente agreste, mais própria, por motivos históricos e étnico-cultu-rais,
ao português das aventuras em mares e terras "nunca dantes navegados",
do que a italianos de espírito renascentista, que possuíam o senso da
beleza tranquila, o sentimento pessoal da respeitabilidade, o afã do lucro
para alcançar uma vida estável. Era ainda o espírito do Renascimento que
dominava a Itália dos setecentos, dentro das constantes das chamadas
virtudes burguesas, agora mais fortalecidas com a progressiva ascenção de
uma classe média.
Renzo Renzi, em sua obra Bologna, una cittá, classifica o
"Settecento" bolonhês de período de certa decadência nos estudos
humanísticos, por causa do excesso de leitores burgueses protegidos do
Senado Comunal e da crescente ingerência pontifícia. Renzo explica: "mas
aqui concorre ainda a situação geral italiana, quando aumentava a barreira
entre os Estados por causa do processo em andamento da formação dos
Estados Nacionais. Na realidade, o ensino bolonhês não é inferior ãs
outras Universidades italianas. Manifes-tam-se, todavia, sinais de revolta
com o nascer de instituições e o desenvolvimento do ensino fora do
círculo fechado da Universidade". O Archigimnasio tornara-se "il palazzo
nuovo delle escuole". O Instituto Marsiliano delle Scienze é inaugurado
em 1714, fora da Universidade, para o estudo da Astronomia, da
Mecânica, da Física Experimental, da História Natural e da Química.
Bolonha, em 1753, ano em que Antonio Landi deixa a cidade, os
amigos, as raízes de sua vida, devia representar muito para um espírito
sequioso de conhecimentos e de criação. Abandonar, de súbito, o convívio
ameno com a Universidade, a Academia Clementina, o Instituto de
Ciências, o Arquigimnasio, a Escola de Cenografia de Fernando Galli
Bibiena, a mais famosa e importante da Europa, o diálogo com artistas, a
intimidade com os tesouros de arte do extraordinário Museu que é toda a
Itália — abandonar tudo isso significa forte empenho de aventura tropical,
pois Landi sabia que seu destino era o Brasil mais acentuadamente
tropical. Landi, como os portugueses, tinha gulodice pelos trópicos. Êle
mesmo deve ter escolhido para onde ir. Havia duas comissões, em Lisboa.
Uma des-tinava-se a atuar no sul do Brasil, de clima temperado, a outra,
no norte equatorial. É no grupo da Amazônia, que o artista italiano prefere
engajar-se. Por que? Não existe documento, pelo menos conhecido até
agora, que explique essa preferência. Tudo leva a crer na fixação da
imagem exótica dos trópicos, da paixão por uma vida de acontecimentos, e
até quem sabe, no predomínio masoquista da ideia de regime bruto que
marca a presença do homem nas solidões de infindáveis florestas com o
seu perpétuo crepúsculo verde.
Landi revelou-se um tropicalista. Como o foram, a seu modo, o
português Fernão Mendes Pinto, o poeta Luiz de Camões, que encon-
traram nos trópicos orientais os meios de realização plena de vida e
LEANDRO TOCANTINS
espírito. Enriqueceram-se de experiências novas, satisfizeram sua
necessidade intima de seduzir ou deixar-se seduzir por paisagens novas:
como se essas paisagens tropicais fossem mouras encantadas e eles
querendo possuí-las com todo o vigor do sexo, inebriados por suas cores,
suas formas, seus perfumes.
Landi, também um grande artista, assemelha-se a esses lusos que entre
a aventura e a rotina escolheram a aventura. Que não deram ouvidos aos
conselhos de prudência daquele velho do Restelo, conservador e
imobilista, em quem Luiz de Camões simbolizou a antítese do pensamento
novo, dos arrojos marítimos, da fascinação pelos trópicos, que dominavam
a geração portuguesa dos descobrimentos. Assim é que se deve tentar
reconstituir no aspecto histórico — e mais, no aspecto histórico-social, e
quanto possível, no sociológico — a figura de Landi, tal como ela se
projetou no meio amazônico. Como agente do desenvolvimento social e
cultural, modificando e introduzindo padrões, técnicas e estéticas,
enriquecendo a paisagem nova de valores tradicionalmente cultivados nos
grandes centros de cultura europeia.
O Bispo do Pará, Frei João de São José Queiroz — é o que nos conta
em suas Memórias — foi encontrar o italiano num instante de
encantamento, apreciando espécimens da flora silvestre, muitas das quais
aparecem reproduzidas em cores na História Natural do Grão Pará. O
Bispo fala em "folhas vermelhas como sangue e degenerando a côr para os
lados em perfeito amarelo", de frutos pequeninos envolvidos por "uma
película tão azul ou mais que a safira", e tantas "flores bem fragrantes". Era
um verdadeiro esplendor de vida tropical, explosão colorida e multiforme
da Natureza, que enternecia a Landi, homem de estética e também humano,
franciscanamente humano. Frei João de São José escreve, por fim, estas
palavras: "O insigne desenhador José Antônio Landi tem uma coleção das
flores e frutas deste Estado, diz êle que para oferecer à sua Universidade de
Bolonha, e entre tantas raridades esta será bem célebre".
No regresso de Landi a Belém do Pará, depois de passar cerca de um
lustro no rio Negro, é que êle vai aplicar o seu gênio na paisagem da
cidade onde se radicaria definitivamente. Belém passa a ser para êle uma
Bolonha tropical, em que suas idealizações estéticas transporiam a etapa
inicial das plantas, dos desenhos, dos cálculos e vinham a ter permanência
material, um fim, uma significação. A arquítetura de Landi, que hoje se
pode apreciar nas ruas de Belém, é formada e exteriorizada por outra arte:
a escultura. Sobretudo nas Igrejas em que há essa feliz harmonização de
princípios orgânicos, esse encontro de artes que passa a ser elemento
dominador no conjunto da obra.
Porque as Igrejas maravilhosas que êle construiu podem ser vistas
imaginativamente como esculturas monumentais. É que Antonio Giuseppe
Landi possuía a capacidade de apresentar variações
LANDI UM ITALIANO LUSO-TROPICALIZADO
formais, de nos surpreender com soluções inusitadas em sua técnica de
comunicação. Pode-se aplicar à arte europeia mas luso-tropicali-zada de
Landi o conceito emitido por Herbert Read, na obra As origens da Forma
na Arte: "mas o que surge é uma forma e o que emerge tem forma em
virtude do sentimento, de unidade e cordialidade, sua relação íntima, sua
harmonia". Landi exprime essa constelação de sentimentos, esse poder de
emergir e de realizar, de revelar algo que, se não estava oculto, pelo
menos precisou de um estímulo mais forte: a paisagem dos trópicos, o
complexo de cultura manifestado nas terras quentes e úmidas da
Amazônia, do qual o grande agente foi o português de parceria com o
índio.
Que aparência material tinha Belém do Grão Pará no início da
segunda metade do século XVIII? Era uma pequena cidade sem palácios,
sem solares. As casas baixas, de beirais salientes, caiadas de branco,
imitavam as construções mais modestas e tradicionais de Portugal. Na
arquítetura religiosa só havia um grande monumento dos jesuítas: a Igreja
barroca de Santo Alexandre e o Colégio ao seu lado, dentro dos princípios
da arquítetura da Igreja de São Roque, em Lisboa. O Convento dos
Franciscanos da Província de Santo Antônio acabava de ser erguido, e,
também, o Convento de São José, dos religiosos da Piedade. Ambos
revelando estilo barroco austero, comum aos mosteiros portugueses do
século XVII.
Os outros templos, exceto a Igreja da Sé, em início de obras,
apresentavam estrutura precária, que vinha do século anterior — o século
da fundação de Belém — ou de sucessivas reformas. Esteios de madeira,
cobertura de palha, paredes de taipa. Um cronista descreveu o estado de
um deles: "pobríssimo, apenas sustentando uns poucos esteios, além de
velhos, desmantelados, é o lugar mais próprio de um estábulo do que de
um templo". Este retrato pode ser generalizado para dar ideia das
construções religiosas de Belém nos primeiros cinquenta anos do século
XVIII, com as exceções acima apontadas. Os Governadores e Capitães
Generais moravam em modestos sobrados — casas de aluguel.
Antônio José Landi começa, então, a interferir na fisionomia material
de Belém. Desenha e constrói a Igreja de Nossa Senhora do Monte do
Carmo e a capela anexa da Ordem Terceira do Carmo. Modifica os planos
da fachada superior da Igreja da Sé e desenha seus altares e retábulos.
Desenha e constrói a Igreja de Sant'Anna, a Capela de São João Batista, a
Igreja de Nossa Senhora das Mercês, a Igreja Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos, a Capela de Nossa Senhora da Conceição, no
Engenho Murutucu, hoje em ruínas, o Palácio dos Governadores, e
inúmeras residências particulares, infelizmente desaparecidas.
O traço característico de Landi é o neo-clássico em combinação com
elementos do barroco. O Professor Robert Smith, do Colégio de Arte da
Universidade de Pensilvânia acha que Landi "logrou implan-
LEANDRO TOCANTINS
tar em Belém um gosto de efeitos italianos que continuou no pleno neo-
classicismo do século XIX". E destaca este traço singular: "o italianismo
de Landi foi um fenômeno no Brasil desse período" (segunda metade do
século XVIII).
Cultor do estilo classicizante representado na Itália de sua época pelo
movimento do neo-paladianismo, Antônio José Landi soube fazer
concessões ao gosto luso-brasileiro de então e às suas próprias tendências
de aluno dos Bibiena, isto é, ao barroco e ao rococó. Mas um barroco
moderado, um rococó depurado. Estilo que fosse assim uma espécie de
moderato cantabile, se for possível usar linguagem musical.
Em todos os templos religiosos de Belém, em que houve intervenção
de Landi, estão presentes as formas neo-clássicas e uma discreta
ornamentação barroca. O belo e ondulante frontão da Igreja da Sé, e, de
cada lado, os severos obeliscos "de sabor neo-clássico desconhecido
naquele tempo, no Brasil", segundo Robert Smith. A admirável fachada da
Igreja do Carmo, "que deriva da maneira de Francisco Borromini" — na
apreciação de Smith. A Capela de São João Batista, que Germain Bazin
classifica de "uma jóia de arquítetura, uma graciosa Capela", com seus
pares de colunas dóricas, nos dois lados, e ornatos barrocos no frontão da
porta e das aberturas. A bela Igreja das Mercês, com a frontaria em perfil
convexo e ornamentação rococó suave. A serena e formosa Igreja do
Rosário, cujas frontarias são inteiramente dominadas por austera
apresentação neo-clássica.
A Igreja de Sant'Ana é a criação mais italiana de Landi. Tão italiana
que Robert Smith nela observou uma "reprodução extraordinariamente fiel
de uma igreja setecentista veneziana, ou um desses interiores que Luís
Vanvitelli fabricou entre 1730 e 1740 na Umbria e na zona chamada das
Marcas Orientais". A planta da Igreja, em forma de cruz grega,
apresentando cúpula com lanternas circulares, foge totalmente das
tradições luso-brasileiras. É uma solução sem precedentes na América
Latina, frisa Robert Smith. Conquanto seja um edifício onde as formas
transpiram ritual paladiano, há delicadas composições barrocas nos ornatos
internos.
O Palácio dos Governadores foi, no Brasil, a construção civil mais
ambiciosa de seu tempo. Landi deve ter ficado orgulhoso quando o
Governador e Capitão-General Pereira Caldas o inaugurou em 1772. Hoje
o Palácio está um tanto desfigurado pelas reformas que sofreu com
ausência de sensibilidade pelos valores tradicionais criados pelo seu
idealizador. Mas é possível admirá-lo e compreendê-lo nos desenhos
originais de Landi guardados na Biblioteca Nacional de Lisboa. O
frontispício lembra residências lusas de dois andares e sótão central. A
fachada posterior, que dava para um jardim interno, era a parte mais
italiana do edifício, apresentando o aspecto de um casino di giardino. Por
isso, Robert Smith comparou-o ao Palácio do Té, de Júlio Romano, em
Mântua.
Igreja de Sant' Ana desenhada e construída por Antônio Landi.. Nota-se que as duas torres laterais não
existiam na construção original; foram acrescidas posteriormente, no século XIX.
(Arquivo do S.P.H.A.N.)
Reprodução da página 247 do Libro dei Battezzati", existente no "Battistero Parroccliale" ta
Igreja de São Pedro , em Bolonha, em que está registrado o batizado de Antônio Landi, com a
declaração da data de seu nascimento: 30 de outubro de 1713.
LANDI UM ITALIANO LUSO-TROPICALIZADO
Robert Smith analisa esse trabalho de Landi, considerando-o versão
portuguesa de temas neo-paladianos da Itália e do rococó francês. Reflete,
segundo o mesmo autor, "com extraordinária fidelidade o gosto dos
arquitetos paladianos de Lisboa durante o terceiro quartel do século XVIII,
sob o reinado de D. José I".
De fato, se examinarmos o panorama artístico brasileiro nesse
período, veremos que só no Estado do Grão Para verificou-se renovação
na arquítetura civil e religiosa. No Nordeste, no Sul, no Centro da Colônia
portuguesa estavam em pleno apogeu as formas barrocas, enquanto que no
Norte, graças a Antônio Landi, apareceram novos elementos através do
neo-classicismo e de outras expressões plásticas desconhecidas no
contexto artístico brasileiro daquela época.
A presença de Antônio Landi em Belém do Pará adquire importância
histórica e artística semelhante a do Aleijadinho em Minas Gerais, a de
Grandjean de Montigny, no Rio de Janeiro, a de Luís Vauthier, no Recife,
mestres de arquítetura que marcaram sua presença com um movimento
criativo que os torna figuras ímpares de seu tempo. Landi e Aleijadinho
viveram e trabalharam na mesma época. Mas com diferença total de estilo:
enquanto Aleijadinho enchia Minas Gerais de magníficos templos de um
barrocó intenso, brilhante, chargé, Landi criava no Pará igrejas e palácios
neo-paladianos, introduzindo, assim, a novidade para a colônia portuguesa
do estilo neo-clássico, que só alcançou o Rio de Janeiro nos primeiros anos
do século XIX. E alcançou timidamente, desde que só se desenvolveria
com todo o vigor a partir da presença de Grandjean de Montigny, arquiteto
da Missão Francesa de 1816, e criador do chamado estilo Império
Brasileiro — belo, harmonioso e ecologicamente brasileiro, porque soube
conciliar princípios do estilo Império Francês, da época de Napoleão
Bonaparte, com os fatores climáticos brasileiros, as possibilidades
econômicas do Império Brasileiro. Disso resultou uma arquítetura mista:
formas greco-romanas e alguns valores encontrados tradicionalmente nas
velhas casas rurais do Brasil, construídas pelos portugueses.
Na Biblioteca Nacional e no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista,
no Rio de Janeiro, existem numerosos desenhos de Landi: fachadas, cortes
transversais, plantas de igrejas, armazéns, guarda--ventos, retábulos, etc,
provando grande atividade criadora do arquiteto. Recentemente, o
arquiteto Donato Mello Júnior divulgou na revista Arquítetura esse
importante documentário, que fêz parte do Catálogo da Exposição de
História do Brasil, em 1881.
Alguns desses projetos de Landi não chegaram, porém, a ser
executados, como também aconteceu com um outro, arquivado na
Biblioteca Nacional de Lisboa, que é o grandioso Arco Triunfal a D. José
I, planejado para ser erguido no Largo do Palácio, em Belém do Pará.
Talvez a obra mais barroca de Landi, em que o aspecto bolo-
LEANDRO TOCANTINS
nhês, de visíveis efeitos teatrais, recorda a influência da Escola dos
Bibiena, sem entretanto apresentar ornamentação pesada. Ao contrário,
repete-se o estilo rococó, leve e elegante, típico de Landi.
A respeito do Arco Triunfal a D. José I, Robert Smith é de parecer que
êle pertence "como os projetos teatrais da família Bibiena, ao reino da
fantasia", e Landi "deve tê-lo produzido com um sentido de reminiscência
do mundo grande e opulento que havia deixado atrás de si, colocando-o
em justaposição com o mundo de sua existência brasileira, desde que
através das aberturas do Arco Triunfal podemos ver parte da fachada do
Palácio dos Governadores do Pará".
Se não existisse Antônio Landi em Belém do Pará, a História das
Artes Plásticas brasileiras perderia um capítulo interessantíssimo. É que a
cidade apresentaria, de certo, um conjunto de prédios históricos mas sem a
riqueza de formas e de intenções inovadoras da arte desse italiano
renascentista, sensível à transposição dos valores culturais da metrópole
portuguesa adaptáveis ao meio amazônico. É possível que na ausência de
Landi Belém do Pará ficasse entregue aos homens da Escola de
Arquítetura Militar de Portugal, criada por D. João V para os estudos da
arte de fortificar praças. E o que resultaria se pode prever: uma arquítetura
igual, sólida e funcional, mas desprovida de inquietações plásticas, de
condições emocionais, de efeitos simbólicos.
Landi, Acadêmico Clementino, Professor Público de Arquítetura e
Perspectiva do Instituto de Ciências de Bolonha, Arquiteto Pensio-nário de
Sua Majestade Fidelíssima, não demonstrou nenhum empenho em
regressar ao seu país nativo. Por sua própria obra e graça luso-tropicalizou-
se. Ainda mais: amazonizou-se. Um deraciné consciente e seguro de sua
nova condição de vida: pediu e obteve do Rei de Portugal licença para
residir definitivamente no Grão Pará, o que equivale a uma naturalização
amazono-tropical. A família Landi residia numa via pública de Belém que
o povo denominou "rua do Landi", tal o prestígio que êle desfrutava na
sociedade regional.
Se Antônio Landi quizesse ganhar boa posição na capital portuguesa,
como arquiteto e desenhista do Governo, teria sido muito fácil para êle,
dadas as suas excelentes relações com o Governador Mendonça Furtado,
que deixou o Governo do Grão Pará e foi para Lisboa ocupar a Secretaria
de Estado para os Negócios de Ultramar. Quando o Governador e Capitão-
General escrevia a Landi sempre o tratava com a máxima consideração e
estima. Em carta de 15 de maio de 1757, por exemplo, Mendonça Furtado
se dirigia a Landi com estas palavras iniciais: "Ainda que sem um instante
de meu na ocasião em que me acho de expedir uma embarcação para
Lisboa, furto as obrigações de ofício o pouco tempo que basta para segurar
a Vossa Mercê o quanto o estimo que se lhe conserve uma perfeitíssima
saúde". Pouco antes, a 25 de abril de 1757, o Governador escrevia ao
arquiteto italiano lamentando não ter assistido ao seu
LANDI — UM ITALIANO LUSO-TROPICALIZADO
casamento: "já que não tive o gosto de o presenciar me convido daqui para
o batizado do primeiro filho para contrairmos parentesco mais conjunto
que o da presença do matrimônio, cujo padrinho nao passa de uma
testemunha". Bem portuguêsmente, o Governador e o Arquiteto seriam
compadres e a um compadre ainda bem portuguêsmente é costume
dispensar-se favores e atenções especiais. Nao será, pois, simples
conjectura afirmar-se que Landi teve todas as facilidades para regressar a
Europa — a Lisboa ou a Bolonha — mas não quiz, preferiu continuar na
sua vida luso-tropical.
No ano de 1784, Antônio Landi volta ao Rio Negro, integrando nova
comissão portuguesa de limites para cumprimento das disposições do
Tratado de Santo Ildefonso, entre Portugal e Espanha. É a sua permanente
vocação luso-tropicalista que o faz retornar ãs longínquas paragens do
interior amazônico, onde 30 anos antes iniciara sua grande experiência de
vida. Nessa segunda viagem ao Rio Negro adoece gravemente e regressa a
Belém. Pouco tempo de vida lhe restaria.
Quando Antônio Landi morre, a notícia chega a Bolonha sete meses
depois. Em nossas pesquisas na Academia Clementina de Bolonha,
auxiliados pelo Professor Rezio Buscarolle, titular da Cátedra da História
da Arte, encontramos no 1.° volume dos verbais da Academia, Capítulo
132, o registro da morte de Landi e o seu elogio feito pelo Secretário
Domenico Pió, em sessão de 25 de fevereiro de 1792. Ficamos sabendo,
por essa comunicação, que Landi faleceu em Belém no mês de julho de
1791, fato que retifica as notícias de autores brasileiros que citam o ano de
1790. O Secretário da Academia Clementina, ao terminar o elogio fúnebre
de seu compatriota, chamado de tão longe por um pensamento de aventura
nos trópicos, expressa o orgulho da Academia de ter Antonio Giuseppe
Landi "como consócio que a honrou nas regiões mais longínquas".
Os restos mortais do italiano luso-tropicalizado encontram-se
depositados em uma das igrejas que êle criou em Belém do Pará: a Igreja
de Sant'Anna, justamente a Santa de sua devoção de católico praticante.
De Nossa Senhora de Sant'Anna êle costumava dizer: Mi gloriai di servire
questa venerata prottetrice. Na glória de servir a sua venerável Protetora e
à sua terra de adoção, ou na glória de repousar na nave da Igreja, na glória
da sua obra de arte e de luso--tropicalista, é que Antônio José Landi ganha
dimensões históricas para tornar-se uma expressão do gênio italiano aliado
ao espírito universalista e experimentalista do português.
Jardim e Ecologia
ROBERTO BURLE MARX
Criacionistas e não criacionistas, quaisquer que sejam as suas
diferenças filosóficas, concordam plenamente em que a criação ou o
surgimento da vida não se processou num ato único e sim por etapas
sucessivas. O Genesis desce a pormenores dos atos da criação: primeiro, a
terra, depois a separação das águas, criam-se plantas, os animais e o
homem. Por outro lado, a Ciência tem demonstrado que a planta através da
fotos-sintese, cria as condições para o prosseguimento do processo
evolutivo, modifica a composição da atmosfera da terra, realiza o sonho de
Prometeu, capturando a energia da luz solar e permitindo todo o
aparecimento dos insetos, das aves, dos mamíferos, do homem e das
próprias plantas superiores com sua riqueza de formas, de colorido e de
estrutura. É nelas que a transmissão da vida, o fenômeno reprodutor,
conduz o espetáculo da riqueza de soluções até a floração. Nunca é demais
acentuar que a atmosfera da terra, com 21% de oxigénio, é uma condição
de vida mantida e equilibrada pela atividade das plantas, sobretudo, as
algas marinhas.
A planta é o nosso objeto. E como considerar a planta? De um lado
ela é um ser vivo que obedece a um determinismo condicionado pelas leis
do crescimento, da fisiologia, da biofísica e da bioquímica. Por outro lado,
qualquer planta é o resultado de um longo processo histórico em que ela
incorpora em seu estado atual, em sua presença, todas as experiências de
uma longa linha de ascendentes que se vai perder na identificação dos
primeiros seres. E, todo esse aperfeiçoamento de formas, de côr, de ritmo,
de estrutura, faz com que participe de um outro plano categorial, o plano
dos seres estéticos cuja existência é, ao mesmo tempo, um mistério para o
homem. A planta goza, no mais alto grau, da propriedade de ser instável.
Ela é viva enquanto se altera. Ela sofre uma mutação constante, um
desequilíbrio cuja finalidade é a própria busca do equilíbrio. À medida
que
ROBERTO BURLE MARX
nos aprofundamos no conhecimento das plantas ampliamos, quase numa
razão logarítmica, a área do desconhecido. O conhecimento desvenda
maiores mistérios. Quanto mais respondemos, mais "porquês" e "para
quês" acumulamos. Apenas, como exemplo, poderia lembrar um
espetáculo a que assisti em plena "caatinga", no nordeste do Brasil, onde, a
certa hora da noite, e, numa larga área, todos os Cereus jamacaru, numa
sequência metronômica, abriam ritmicamente as suas grandes flores alvas.
Sob a luz do luar, as corolas multipétalas se abriam expondo as suas
gargantas para onde multidões de insetos eram atraídas. Ao vê-los,
recordei-me do movimento das anêmonas do mar e não pude deixar de
considerar as razões inatingíveis dessas estranhas convergências,
entretanto, a planta, como a côr, se enriquece de signifcado quando em
contraposição à outra côr ou à outra planta. Na Natureza as associações
não se fazem ao acaso, pois, obedecem a compatibilidades que dependem
do jogo complexo dos fatores do clima, do solo e da própria interação
entre plantas e animais e de plantas entre si. Os ecólogos denominam a
esses grupamentos definidos, associações.
O fenômeno da associação está intimamente ligado a um dos mais
fascinantes fenómenos biológicos que é o da adaptação. Não seria possível
abordar tema tão vasto e tão profundo como o da adaptação. Contudo,
admito que possamos, pelo menos, falar resumidamente da adaptação
mútua, tão do gosto dos modernos biólogos e estudiosos da evolução,
mostrando o aperfeiçoamento simultâneo e associado das flores e dos
insetos polinizadores. No começo, na era mesozóica, as primeiras plantas
com flores eram polinizadas por insetos lentos, desastrados, do tipo dos
Coleopteros. A evolução da flor desse estado cíclico para o estado bilateral
(como nas Orquídeas) ou assimétrico (como nas canas) se faz acompanhar
do aparecimento de insetos mais perfeitos, mais ágeis (borboletas e
Himenop-teros). Isto sem falar na entrada em cena desse alto requinte que
é a polinização pelos beija-flôres.
Na superfície da terra nenhuma região é mais rica em associações
vegetais do que o cinturão intertropical. Esse espetáculo é mais forte e
impressionante para os habitantes dos países temperados em seu primeiro
contacto com os trópicos. O assombro por esse mundo tumultuante de
atividade, de calor e de vida, marcou toda a existência de vários
naturalistas, no período das grandes revelações como Martius, Banks,
Saint-Hilaire, o príncipe Wied-Newied, Gard-ner e outros. Mesmo hoje, é
tal a riqueza florística das zonas tropicais que, por experiência própria,
posso dizer que jamais fiz uma excursão em que deixasse de ter encontrado
ou colhido plantas para mim desconhecidas e, das quais, algumas para a
Ciência. Em consequência, torna-se claro que o jardim assenta numa base
ecológica sobretudo num país como o Brasil, de condições
extraordinariamente variadas. Para aquele que vem se ocupar de simples
problema da
JARDIM E ECOLOGIA
introdução e do cultivo, da domesticação de plantas selvagens, há ao
seu dispor um campo pouco trabalhado, ou mesmo virgem, em muitos
de seus aspectos. ' .
O paisagista no Brasil goza da liberdade de construir jardins baseados
numa realidade de riqueza transbordante. Respeitando as exigências da
compatibilidade ecológica e estética êle pode criar associações artificiais
de uma expressividade enorme. Fazer paisagem artificial não é negar nem
imitar servilmente a Natureza. E saber transpor e saber associar com base
num critério seletivo, pessoal, os resultados de uma observação morosa,
intensa e prolongada. De minha experiência pessoal posso lembrar agora
todo o aprendizado através do convívio com botânicos cuja colaboração
reputo indispensável a todo aquele que queira se dedicar ao mister de fazer
paisagismo consciente e aprofundado, aproveitando esse imenso pa-
trimônio, tão mal compreendido pelos paisagistas e pelos amantes de
jardins, que é a exuberante flora brasileira. Embora possamos dispor de um
contingente de aproximadamente 5.000 espécies arbóreas dentro de um
conjunto florístico avaliado em 50.000 espécies diferentes, nossos jardins
apresentam, sobretudo, a flora domesticada, cosmopolita e em nossas ruas
a arborização é muitas vezes feita com espécies exóticas como plátanos,
ligustros, etc. Repudio esse conceito de paisagismo e tenho lutado contra
certas maneiras de urbanização em que a paisagem natural é totalmente
destruída para, em seguida, ser feita uma composição vegetal com plantas
divorciadas da realidade paisagística local. O que se destrói é a obra-prima
que representa o estado final, o estado de equilíbrio da atividade
multimilenária do jogo das forças atuantes na Natureza. As nossas
concepções e experiências se derivam de um longo trabalho de
interpretação e de compreensão das associações naturais. Dessas poderia
citar minhas observações sobre a flora da Canga, um conglomerado de
material ferruginoso que forma os solos de extensas áreas do Brasil central.
Ascendendo ãs montanhas depois de percorrer campos graminosos, deparei
com u'a mancha acinzentada de rochas e, à medida em que me colocava
mais perto, deparei com um mundo completamente novo para mim, essa
extraordinária associação de plantas que parecem criadas para se
comporem umas com as outras, fortes tons de amarelo cadmium dos
liquenes e das Laelia flava contrapostos aos violetas graves das
quaresmeiras se harmonizando com o vermelho veneza cio lado dorsal das
folhas da Mimosa calodendron, planta que se faz notável pelos
movimentos de defesa de suas folhas. Toda essa policromia fica assentada
sobre um plano de fundo onde forma, ritmo e côr se coadunam realçando
em cada estação o caráter de uma determinada floração. Essa instabilidade
é justamente um dos grandes segredos da Natureza que nunca nos fadiga e
que se renova constantemente pelo efeito da luz, do vento, da chuva, das
sombras que modelam novas formas e de suas mutações. E, que dizer da
flora do
ROBERTO BURLE MARX
calcáreo cujas rochas se apresentam com marcada estratificação e em cujos
fendilhamentos se acumula um rico sedimento biógeno onde as raízes vão
mergulhar ávidas dos nutrientes aí concentrados. O espetáculo é marcado
por grupos ou comunidades de palmeiras (Acrocomias) e pelos ficus
calcícolas com suas raízes entrelaçadas e sua capacidade especial de
envolver e dominar os variados suportes como sejam rochas, árvores e
palmeiras. Visitei regiões de uma estranha beleza como o vale do Pancas
que há 30 anos passados ainda abrigava tribos indígenas. A região é um
vale fechado por montanhas de formas cónicas dispostas num arranjo de
cenário em cujas escarpas vegeta uma flora inteiramente "sui generis" com
Vellozias, Bombax, Orquídeas, Mereianias, Mandevillas, Allamandas, etc.
De seus altos se vislumbra o curso sinuoso dos rios alimentados pela
descarga das vertentes. É pena que essas formações primárias não gozem
da proteção que se dedica a um sacrário e vão pouco a pouco sendo
destruídas pelas mãos da gente da terra, sem a compreensão de tais
tesouros, e, do imigrante europeu, transplantado mas não adaptado, para o
qual os padrões de beleza são ainda apenas os que conheceu em sua terra
natal. Por fim, quero trazer o meu depoimento sobre uma das mais
impressionantes formações vegetais da América tropical — o buritizal. O
buriti — Mauritia vinifera — é a maior das palmeiras da flora brasileira
cujo estipe pode alcançar uma altura de 50 m. Aparecem comunidades de
centenas ou milhares de indivíduos acantonados nas depressões úmidas ou
alagadas. Poucos exemplos haverá de um esforço de perpetuação tão
violento como representam os imensos cachos ou regimes de alguns
metros e suportando milhares de bagas couraçadas de escamas e de
colorido cúpreo. Aqui e acolá, um casal de araras com seu colorido
vistoso, colorido em flor, atravessa a paisagem procurando um pouso em
suas folhas. A forma de propagação dessa palmeira cujos frutos são leva-
dos pelas águas, fá-la crescer em renques por vezes retilíneos, acom-
panhando o curso dos rios. Completando a imagem do buritizal aparecem
de permeio vegetais meio delicados como a buritirana — uma palmeira
que é uma delicada miniatura do buriti e as Urospatha, araceas de folhas
sagitadas e inflorescências de um movimento helicoidal que mais parece
um ornato barroco.
A planta vive em ressonância com o meio e há uma correspondência
entre as condições da estação que ela ocupa e de suas exigências para
nascer, crescer e reproduzir-se.
A vida vegetal é uma atividade cíclica cujas pausas são marcadas pela
morte e pela germinação, fato de uma nitidez cristalina nas plantas anuais
e nas plantas monocárpicas como a belíssima Corypha tagliera que espera
quarenta ou cinquenta anos por uma floração espetacular.
Afora a ação geral sobre a região, o clima subdivide-se e diver-sifica-
se numa série de microclimas decorrentes de fatores variados,
JARDIM E ECOLOGIA
topográficos, edáficos, altitudinais, etc, que do ponto de vista do jardim
podem ter a maior importância.
Em verdade, fazer jardins é, muitas vezes, realizar microclimas,
harmonizá-los, mantendo sempre viva a concepção de que, nessas
associações, as plantas se colocam lado a lado, quase que uma relação de
necessidade.
O valor da planta na composição, como o valor da côr na pintura, é
sempre relativo. A planta vale pelo contraste ou pela harmonia com outras
plantas com que se confronta.
Em relação ao problema dos microclimas, lembro-me de uma região
onde pude fazer observações valiosas para a minha compren-são. Refiro-
me à serra do Cipó, a uns 100 km de Belo Horizonte, em Minas Gerais,
onde a flora é principalmente determinada pelos solos de natureza
quartzítica e arenitica.
Fazer essa viagem é caminhar de microclima em microclima, e de
surpresa em surpresa. Nessas condições há plantas que se modificam de tal
maneira sob a ação de forças ambientais comuns, de modo que,
representantes de famílias extremamente distanciadas na série filogenética
se apresentam com acentuada semelhança no aspecto exterior. É o caso da
Sipolisia (composta) com aspecto de Vellozia, dos Eryngium
bromeliformes e das Lychnophora também veloziformes. Aí, como em
outras partes do Brasil (a região de Cabo Frio, marcada por um vento
intenso e de direção constante) pode-se apreciar o efeito modelador do
vento nas plantas. Nas depressões abrigadas, as árvores se realizam em sua
plenitude e nesse microclima a acumulação de detritos biógenos e u'a
maior retenção de umidade abrigam um mundo inesperado de orquídeas,
líquenes e outras epífitas que, embora dependentes da umidade não a
exageram em suas raízes. Nos pontos mais altos se depara com uma
comunidade peculiar de plantas, a flora nebular marcada por árvores
baixas, engalhadas, de folhas pequenas com uma riqueza inaudita de epífi-
tas, sobretudo, líquenes corticolas de coloridos intensos em harmonia com
rubras flores como as Sophronites. As Tilandsia usneoides formam cordões
oscilantes. É uma paisagem fantasmagórica. Ora as plantas se diluem e
desaparecem na bruma, ora aparecem em toda a sua plenitude, quando a
luz realça os diversos planos onde as florações se sucedem.
Por essas paragens, a mesma viagem que fiz com um dileto amigo, já
falecido, o botânico Mello Barreto, passaram com a mesma admiração,
vultos ilustres como Saint Hilaire que deixou tão erudita documentação
com a diferença das dificuldades maiores de então.
De um ponto de vista antrocêntrico, podemos dizer que a planta como
que foi criada para o homem. É a mesma concepção já constante da Bíblia.
No mundo europeu, com uma flora altamente domesticada, guardava o
homem um relativo equilíbrio em relação à árvore e à floresta. Ao
conquistar o Novo Mundo, a floresta, sobre-
ROBERTO BURLE MARX
tudo a floresta tropical, o encheu de pavores. Ela era o refúgio do índio e
dos seres agressivos: a onça, a serpente, a aranha, o jacaré e o mosquito.
Então, criou-se na mente do habitante a necessidade de abrir clareiras
estratégicas e o complexo de derrubar, de destruir. A necessidade de abrir
pastos e terras de cultura exigiu extensas derrubadas. O civilizado perfilou
a coivara que o índio fazia com uma técnica de agricultura nómade. E a
coivara se ampliou, se fortaleceu e hoje é feita com intensidade nunca
antes alcançada porque os meios de destruição, as máquinas, os "bull-
dozers" adquirem cada vez maior tonelagem. Um desses monstros
mecânicos pode destruir numa hora o trabalho de milênios de evolução. É
o quadro melancólico que as pessoas esclarecidas assistem, impotentes
contra a violência maior das influências morais, econômicas, sociais e
psicológicas do mundo contemporâneo. Não obstante tudo isso, existe
ainda um mundo de formas vegetais a preservar, mundo êsse que até os
nossos dias, pela falta de técnicos e especialistas suficientes, permanece
desconhecido. As implicações mercantilistas de nosso modo de viver
fazem com que se torne pouco compensadora a nobre tarefa de cultivar,
preservar e disseminar o tesouro representado pelas plantas da flora
tropical. O aumento desordenado das populações aumenta problemas de
extrema gravidade, inclusive um "deficit" de cultura que faz deteriorar a
atitude coletiva das populações frente às questões de conservação da
Natureza, de respeito à árvore e de comportamento no jardim. Em relação
ao binômio homem-planta, a dependência é tão estreita que não obstante as
incompreensões todas, permanece um sentimento, um desejo de sua
presença. Troca-se, muitas vezes, a realidade por aparências ou mesmo por
rotina seguida quase inconscientemente. É o caso das plantas e flores de
matéria plástica que invadem e infestam os mercados dos nossos dias. Na
América do Norte, pude ver em Miami, o jardim de inverno de um grande
hotel de classe internacional, sem uma planta viva e todo êle formado de
modelos plásticos. Um grande horticultor deste país encerrou as atividades
de sua modelar chácara por não suportar a concorrência dos fabricantes de
pseudo-plantas. São milhões de seres humanos cuja percepção falha em
compreender que a planta é algo mutável, cíclico e cuja vida importa numa
série de modificações que fazem o seu encanto, inexistente no modelo
plástico, extático e inexpressivo.
Insistindo no tema da devastação, mais grave nos países tropicais que
nos temperados, temos que salientar que um dos seus principais efeitos
reside nas alterações climáticas, microclimáticas e na destruição do capital
social representado pela fertilidade do solo. Sobre isso se instaura a
extinção da fauna e a desertificação de extensas áreas, dificilmente
recuperáveis. É um atentado da humanidade contra as fontes da vida e uma
forma de destruição das gerações futuras.
JARDIM E ECOLOGIA
A missão social do paisagista tem esse lado pedagógico de fazer
comunicar às multidões o sentimento de apreço e compreensão dos
valores da Natureza através do contacto com o jardim e com o parque. No
Brasil onde há em parte esse desamor pelo que é plantado, a lição da
experiência me ensinou que é preciso insistir muitas vezes para que, pelo
choque entre as duas posições, trazer o entendimento da importância de
nossa ação e contribuição para provocar uma mudança de mentalidade.
Também a nossa atitude tem um sentido projetivo, em relação ao futuro,
para mostrar que houve alguém preocupado em deixar um legado valioso
em estética e utilidade para os pósteros.
As condições reinantes no momento, no Brasil e possivelmente nos
restantes países tropicais, permitem delinear uma politica de preservação
do que ainda existe, pela criação, com recursos particulares, públicos e
internacionais, de uma série de reservas com a finalidade principal de
manter para o presente e conservar para o futuro amostras da Natureza em
seu estado primitivo, ou mesmo alterado.
Considerada a diversificação da flora, essas reservas, verdadeiros
jardins naturais, deveriam distribuir-se pelas diferentes províncias
botânicas preservando ora as comunidades mais típicas, ora os ende-
mismos mais preciosos. Disporiam, assim, os paisagistas, de meios de
expressão mais amplos e representados pelo que é para eles como um
vocabulário com que escrevem as suas composições. Dispondo desse
material mais farto e expressivo, dever-se-ia garantir possibilidades de,
aplicando as leis de composição estética, por exemplo, a lei do contraste, a
da harmonia, a da proporção, que realizam em paisagismo as grandes
obras de que foi e é capaz a mente criadora do homem. A ideia imprime a
forma à matéria, porém, para isso, é preciso que exista matéria capaz de
corporificar a ideia.
Terminando, afirmamos que paisagismo é arte, porém, uma arte
altamente elaborada que resulta de uma trama de concepções e de
conhecimento cujo entrelaçamento se faz através da evolução da própria
vida do artista com suas experiências, suas dúvidas, suas angústias, seus
anseios, erros e acertos.
A Iconologia Africana no Brasil
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
Quando se investiga as origens dos rituais africanos no Brasil,
surpreende o fato de não se encontrar ícones esculpidos em madeira
conforme os protótipos tribais das diversas áreas africanas suprido-ras de
escravos e ainda vigentes nos mesmos cultos daquele Continente.
Algo houve capaz de interromper a continuidade das normas tra-
dicionais dos cultos africanos anulando por completo a elaboração dos
objetos dependentes de desenvolvimento artesanal e de tempo ocioso para
a feitura Os raros exemplares de imagens esculpidas e instrumentos de
ritual procedentes da Africa restam sem continuidade nos acervos
brasileiros.
Em nossa opinião teriam vindo em maior número e dimensões no
curso do século XIX, especialmente da área nigeriana de língua iorubá,
através o tráfico entre o porto da Bahia e a cidade de Daho-mey. Não nos
parece possível a importação, ou mesmo a posse declarada de utensílios e
símbolos litúrgicos nos séculos XVI e XVII quando as restrições do clero
católico, diretamente ligado à administração colonialista, vigiavam e não
permitiam a prática religiosa dos africanos.
Além da perseguição religiosa propriamente dita, o escravo africano
não se tinha ainda afirmado em comunidades transcultu-radas --
(irmandades e confrarias católicas exclusivas dos homens de côr) — nem
se realizado em nível econômico bastante para se impor, a ponto de
praticar abertamente sua religiosidade.
O surgimento dos candomblés com posse de terra na periferia das
cidades e com agremiação de crentes e prática de calendário verifica-se
incidentalmente em documentos e crónicas a partir do século XVIII. -
Considera-se difícil para qualquer historiador descobrir documentos
do período anterior diretamente relacionados à prática permitida, ou
subrepticia, de rituais africanos. A própria igreja
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
católica admitia o segregacionismo social e racial. Diogo de Vasconcellos
3
comenta com muito acerto: "A sociedade estava profundamente dividida
em classes e até em cores; pelo que se fizeram diversos santuários para
que à vontade orassem os fiéis de cada agrupamento".
Talvez o documento mais remoto denunciador da prática de um ritual
africano remanescente em suas características, seja aquele da autoria do
primeiro Bispo Visitador de Minas Gerais, D. Frei Antonio de Guadelupe,
datado de 1726 e divulgado nos Mandamentos ou Capítulos de Visita. 4
Na interpretação do historiador o documento decorreu da necessidade
de advertência do Bispo aos vigários contra o truque dos senhores de terras
batizar seus africanos em paróquias diferentes da sua, ainda não
convenientemente catolicizados. D. Frei Antonio de Guadelupe em
determinado trecho faz uma narração quase completa de um dos mais
importantes rituais do candomblé ainda hoje praticado, denominado Culto
dos Eguns: "Achamos que alguns escravos, principalmente da Costa da
Mina, retêm algumas relíquias da sua gentilidade, fazendo ajuntamento de
noite com vozes e instrumentos em sufrágios de seus falecidos, ajuntando-
se em algumas vendas, onde compram várias bebidas e comidas, e depois
de comerem lançam os restos nas sepulturas..."
Vários outros bispos sucessores firmaram cartas pastorais advertindo
os vigários contra os festejos profanos e fetichistas, misturados às festas
religiosas, mencionando o exagero de folguedos, comidas, bebidas e
danças, especificamente de batuque que corresponde ao instrumental de
percussão necessário ao ritmo da música africana.
II
O tempo necessário para o africano atingir integração social na família
brasileira variou de acordo com a fertilidade das terras e a estabilidade
econômica das regiões. Isto é, dependeu do tempo necessário para permitir
ao escravo menos trabalho na lavoura ou na mineração e maior
participação nos afazeres domésticos da casa dos seus senhores. Nas
recomendações do Bispo Visitador de Minas Gerais, em 1726, adverte-se
contra os senhores que permitiam e davam acolhida à prática fetichista.
Poderíamos afirmar, a grosso modo, que o sincretismo religioso
africano-católico no Brasil tem a idade correspondente do surgimento dos
primeiros mestiços. A mulher negra foi o instrumento principal no
caminho da integração social do escravo. Não conseguiu fazê-lo pela
atração somente do seu corpo, porém muito mais por sua inteligência,
criando atrações sensoriais de múltiplos apelos como, por exemplo, a
grande habilidade no enriquecimento da culinária, a aprendizagem rápida
das prendas da mulher branca no tratamento
A ICONOLOGIA AFRICANA NO BRASIL
dos objetos e serviços caseiros, na capacidade de aprender e participar das
obrigações do culto católico através do cantarejo das orações, da
decoração das capelas e da pantomima litúrgica.
Muito cedo o filho da escrava, preto ou mulato, era o companheiro do
filho do seu senhor, desde a amamentação até a data do negro voltar ao
eito e do branco seguir para educar-se nas metrópoles.
Tais aspectos da formação e da história natural da família brasileira,
prodigamente estudados por nossos sociólogos, formam o quadro de um
período de cerca de dois séculos em que a iconografia africana se
sincretiza à iconologia católica.
A amplitude da mestiçagem das três raças no Brasil fazem uma escala
de valores e atributos, manifestados também nas artes eruditas e populares,
que poderíamos identificar como caráter brasileiro.
Nesta conceituação é necessário não se confundir a genuinidade com a
autonomia cultural em termos absolutos. A não ser nas artes indígenas, que
são expressões de um comportamento neolítico, todos os demais
acontecimentos, desde a colônia, são nitidamente processos de
transculturação.
III
Tais processos ocupam longos períodos, regiões e agrupamentos
sociais. Fecundam as artes populares mediante o sincretismo das culturas
importadas e também se manifestam, em termos de motivações, nos níveis
sofisticados das artes de elite.
O exemplo mais próximo encontra-se no romantismo brasileiro,
reflexo natural e defasado do romantismo europeu que aqui se naturalizou
nas formas do ináianismo, do nativismo, do inconfiden-cialismo, do verde-
amarelismo, do próprio tão falado modernismo brasileiro, referente à
semana de 1922 em São Paulo, e de suas decorrências (movimentos
intelectuais ansiosos de estilismo particular, v. g. Pau Brasil, antropofagia,
regionalismo, romance do Nordeste, etc.) Não é de se estranhar que muitas
de nossas pesquisas em Ciências Sociais, apareçam revestidas daquela
motivação romântica, isto é, daquele sentido nacionalista dos que anseiam
autodeterminação e quebra da defasagem perante os centros de hegemonia
da civilização.
Quase toda obra do sociólogo Gilberto Freyre, do humanista Mário de
Andrade e dos numerosos seguidores se identificam nessas direções.
Não se pode vê-las defeituosas por seus compromissos subjetivos e
líricos. Para os que pretendem a análise científica depurada, rigorosamente
desidratada do teor poético, quase não restam caminhos. O subsídio dos
românticos, de motivação mais participante, soube enriquecer a
compreensão do processo da formação brasileira de dados e informações
decisivas.
— 39 —
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
Noutras palavras, o legado daqueles intérpretes livres torna-se
ponderável no entendimento do fenômeno quando em confronto aos dos
coletores de dados técnicos. A verdade é que os primeiros não deixaram de
ser valiosos por serem sensíveis e líricos, enquanto os segundos vão se
tornando em informantes menos consequentes. Quando Gilberto Freyre
elabora o estudo das receitas culinárias no capítulo de interesse
particularizado ao emprego do açúcar,
5
atinge uma das faces sutis da
compreensão da transculturação, exercida através da presença da mulher
negra ao lado da mulher branca ao elaborar as sobremesas e doces.
Trabalhavam ambas com as receitas de origem europeia, que por sua vez
reencontram vinculações africanas através das origens mouras. O Brasil
representa neste caso o laboratório de reformulação de conhecimentos
atávicos, de um lado favorecidos pela necessidade de ascenção da mulher
negra e, de outro lado, pela curiosidade da mulher branca.
O assunto da culinária africana no Brasil é de tal importância em
nossas pesquisas que reservamos um capítulo para o seu adequado estudo
e informação.
6
IV
Insistimos na especulação da iconologia africana no Brasil através da
remanescência e formas sincretizadas. Poucas vezes veri-fica-se esculturas
originais africanas em uso nos cultos do candomblé. Mais raro tem sido o
encontro de esculturas já realizadas no Brasil, reconhecíveis pela
diferenciação da madeira, nas características e no teor de habilitação
artesanal, da imaginária religiosa africana. A suposição da total
impossibilidade de manufatura de ídolos e objetos para o ritual, por
proibição da Igreja Católica e por incapacidade do escravo em aprender o
artesanato e dispor do tempo livre para exercê-lo, pelo menos nos dois
primeiros séculos da colonização e nas áreas geográficas mais
consumidoras do seu trabalho braçal, convence-nos de outra fatalidade que
foi a substituição do ícone original pelas formas substitutivas simbólicas
em materiais e atos permitidos. Dessa maneira formaram-se três diferentes
percursos em áreas permissíveis: o sincretismo iconológico entre as divin-
dades da mitologia africana com a hagiologia católica; o sincretismo da
simbologia litúrgica africana com objetos do culto católico e até mesmo
com objetos profanos; o fenômeno de transculturação, e o de aculturação,
utilizados pelos escravos africanos no convívio com a família do branco
mediante o fascínio da culinária, da prática feti-chista, da mistificação com
o sobre-natural e da atração sexual pela raça negra. Confirma-se em quase
todos os trabalhos de sociólogos, com maior relevância na obra de Gilberto
Freyre, a atração sexual como fator principal da mestiçagem e da ascenção
do negro na família e na sociedade branca.
A ICONOLOGIA AFRICANA NO BRASIL
Num estudo aprofundado, por ventura mais corajoso, deveria se
ampliar o entendimento de atração sexual para a globalidade do fenômeno,
incluindo-se no contexto da patologia sexual. A coabitação do homem
branco com a mulher preta, ou a aventura amorosa da mulher branca com
homem mestiço ou negro, são parcelas da normalidade sexual. Não se
poderá entretanto omitir nem minimizar, na apreciação dos fatores
subsequentes, a prática da homossexualidade. obviamente, por ser do
território patológico evitado pela pudicícia dos historiadores, restam
apenas sinais indiretos e simples indícios para a percepção deste fator
como condição ponderável de uma sociedade.
Na vasta obra do cronista-historiador José Vieira Fazenda
7
sur-
preende-se uma crónica referente a um cantor do coral da Capela Imperial,
de origem napolitana e com voz de soprano por ser castrado, que viveu
longo tempo com dois escravos africanos de sua profunda afeição, para os
quais legou em testamento bens de herança.
Vez por outra verifica-se em testamentos valores destinados para a
alforria de escravos precedida de expressões de relevante afetividade.
Alguns dos processos da inquisição nos relatos do Santo Ofício
exercidos no Brasil, no princípio do século XVIII, incluem confissões de
homossexuais, até mesmo clérigos, com seus escravos.
Nas célebres denúncias contra os jesuítas relatadas pelo padre Cepeda,
dissidente da Ordem, ratificadas pelo Bispo D. Antonio do Desterro, ao
tempo do Marquês de Pombal, mencionam-se atos de sodomia entre padres
e escravos em colégios e seminários do Rio, Espírito Santo e Bahia.
Em nossas pesquisas da epigrafia tumularia, anotamos um jazigo
perpétuo de cripta de igreja, de elevado custo, adquirido no meado do
século XIX, muito antes da abolição, para um fâmulo privilegiado.
Em cemitérios secularizados há estranhas lápides indicando a
determinação de se juntar no mesmo túmulo o amo e o servo.
Doutro modo não se desconhece a surpreendente flexilibilidade ética
do comportamento arcaico tribal africano que admite no homossexual uma
posse de uma divindade do sexo oposto, ou bi-sexual.
Há plena evidência nas comunidades dos candomblés da aceitação do
homossexual como incorporação do mito.
Uma das razões que poderão explicar a forte atração que ainda hoje os
candomblés exercem sobre indivíduos da elite branca, reside na aceitação e
no tratamento normativo da homossexualidade. Esta se expressa desde o
indivíduo de personalidade patológica, muito cedo marcada em seu próprio
ambiente, até a franquia que se permite para os bi-sexuais de família
constituída e que obtém favores e ajuda econômica dos homossexuais
da elite branca visitante.
— 41 —
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
Reconsiderando-se as vias da ascenção do escravo — o sincretismo
religioso a transculturação e o fascínio sexual — poderia se dizer que o
percurso foi difícil, porém facilitado.
V
Bem mais difícil teriam sido os artifícios de ordens religiosas
católicas, especialmente dos jesuítas, para conquistar por catequese a
mansidão dos africanos.
Determinados fatos isolados ajudam-nos a entender aspectos deste
problema complexo. Mencionamos como exemplo a verificação do técnico
em conservação, Fernando Barreto, que restaurando a pintura da Igreja de
N. Sra. do Rosário dos Pretos, em Recife — Pernambuco, encontrou três
camadas superpostas. A mais recente, datada de 1860, era de um modelo
de uma Senhora branca, italiani-zada; na segunda, do começo dos
Oitocentos, a figura também correspondia à raça branca; entretanto, na
pintura mais remota e original, datada da segunda década dos Setecentos, a
Senhora e o Menino correspondem à raça negra. Transcrevemos aqui o
comentário de um trabalho anterior sobre o mesmo assunto: "Seria erróneo
pensar-se em maior autoridade social do negro no início do século XVIII,
maior era a permissão da aculturação católica, como recurso político de
integração e submissão. Uma vez superada a primeira fase de acomodação
do processo social, a Senhora e o Menino foram revertendo à raça branca
de acordo com o esquema hierárquico em que o negro admitiu o amo no
protótipo oposto. Assim entende-se a padroeira dos homens pretos ser uma
Senhora branca, pouco antes da abolição, provavelmente pintada por artista
mulato ou negro".
s
Podemos generalizar o exemplo de N. Sra. do Rosário dos Pretos, de
Recife, à toda imaginária, pintada ou esculpida, denominada de santos
pretos, mesmo na representação de santos brancos: Sto. Antonio, Sta.
Bárbara, Sta. Luzia, S. Cosme e S. Damião, a Virgem de várias invocações
e até o Arcanjo S. Miguel.
Foram todas imagens condicionadas à prototipia negroide enquanto
funcionavam como atrativos de catequese e transitoriedade de sincretismo.
Era uma das preocupações da política jesuítica do século XVI ao
século XVIII, a universalização do cristianismo englobando todas as raças,
na alegoria dos Continentes caracterizados em figuras étnicas, conforme
vê-se no grande afresco do padre Andrea Pozzo para a Igreja de Sto.
Inácio, de Roma. Diversas igrejas brasileiras usaram, em soluções
simplificadas, da mesma temática ecuménica como, por exemplo, a de S.
Francisco de Olinda, Pernambuco, e a de S. Francisco da Bahia e de modo
mais nítido nos grandes painéis do pintor José Joaquim da Rocha, (segunda
metade do século XVIII) das Igrejas da Conceição da Praia e de N. Sra. da
Palma em Salvador, Bahia. Tais exemplificações já não pertencem aos
recursos de
A ICONOLOGIA AFRICANA, NO BRASIL
catequese sobre os africanos no Brasil figurando santos brancos em
tipos de raça negra. Caracterizam-se no paralelo de se conceder ao
negro o sentimento de integração na sociedade terrena e celestial
representando-o como participante de um mesmo reino e merecedor
das graças divinas. . .
Parece-nos indispensável lembrar que a produção da Pintura.
escultura e decoração das igrejas no período setecentista, e por toda
primeira metade dos Oitocentos, teve a predominância numérica ae
artesões pretos e mulatos.
Esta afirmação implica consequentemente na compreensão ao
seguinte fato: os artistas africanos sacrificados no primeiro período
colonial, reaparecem até como autores consagrados nos trabalhos dos
templos religiosos setecentistas. São eles ainda escravos, muitos trazendo
sobrenome do seu amo, muitos como peças adquiridas ou doadas ãs
ordens religiosas e vários outros mestiços que tiveram aprendizagem de
seus pais portugueses.
Todavia a iconologia genuína africana não desapareceu apesar da
poderosa aculturação católica do escravo e do seu descendente. Mina
Rodrigues, pioneiro dos estudos da etnologia no Brasil, menciona o
encontro de imagens originais africanas e de outras manufa-turadas no
Brasil, utilizadas como ídolos do fetichismo local no fim do século
passado.
No número de Agosto de 1904 da revista Kosmos, publica-se
importante reportagem sobre produção de escultura religiosa africana no
Brasil com documentação fotográfica.
A partir da segunda década do presente século verificou-se
recrudescência da perseguição de caráter policial, punitivo e destruidor
que se prolongou nos Estados do Norte até a quarta década. Perseguição à
base de forças armadas, geralmente cavalaria, com demasiada
agressividade apesar da diminuta resistência, ou desinteresse de luta, por
parte dos candomblés. Esta circunstância explica serem raras as peças
remanescentes do culto afro-brasileiro. Na Bahia, o Estado que concentra
o maior número e índice de religiosidade afro-brasileira, a perseguição e
destruição perduraram até quase 1930. Do nosso conhecimento podemos
apenas indicar alguns objetos do ritual conservados no Museu do Instituto
Feminino da Bahia e obtidos por solicitação dos depósitos da Polícia;
instrumentos musicais de percussão (atabaques), originais da nação Reto e
pertencentes ao candomblé do Alaketo da Bahia, foram encontrados e
devolvidos aos seus herdeiros em 1956.
Arthur Ramos inclui em sua monografia "Arte Negra no Brasil
(Cultura, MEC, Nº 2) expressiva documentação de escultura
e objetos de culto
Incidentalmente podem ser descobertas imagens , objetos de
liturgia e instrumentos musicais entre colecionadores . A data de
secessão da perseguição policial é do ano de 1934, quando o psiquiatra
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
Ulysses Pernambucano e o sociólogo Gilberto Freyre e outros homens de
ciência influenciaram decisivamente os governos regionais e federal,
chegando a realizar o I Congresso Afro-Brasileiro em Recife, com a
finalidade principal de conferir reconhecimento e relevo à cultura africana
no Brasil e o seu direito de manifestar-se em cultos religiosos.
VI
Tínhamos, entretanto, informação através de um artigo de Abelardo
Duarte, da existência nos depósitos do Instituto Histórico de Alagoas de
surpreendente quantidade de ícones, objetos litúrgicos, instrumentos
musicais e trajes de ritual, apreendidos nos anos de 1910 a 1912 e
recolhidos pelo então delegado de Polícia.
9,10,11 e 12
Em 1968 fomos a Maceió proceder a pesquisa e a documentação
fotográfica desse acervo. Em nossa opinião trata-se da fonte mais
importante para qualquer estudo que se queira fazer no Brasil em relação
ao sincretismo, além do relevante interesse que provoca por sua inerência
estética. O acervo iconológico alagoano pode dividir-se nos seguintes
conjuntos:
1) Imagens todas esculpidas em madeira entre os séculos XIX e XX, de
dimensões variáveis de 52 a 22 cm, representativas de divindades africanas
sincretizadas à imaginária católica. Muitos desses ícones correspondem à
figura feminina de N. Senhora com o Menino ao colo e em traje dos
modelos católicos. Algumas trazem olhos de vidro, idênticos aos usados
naquela época pelos santeiros do artesanato de imagens católicas. Os
caracteres da genuinidade africana permanecem na configuração do
símbolo de Xangô sobre a cabeça (machado bi-facial), ou do Oguê
(configuração bi-córnea). Estas imagens em frontalidade correspondem à
composição tradicional das figuras de N. Senhora do Rosário carregando o
Filho. Algumas se assemelham à N. Senhora do Amparo ou do Parto com a
figura do Menino deitado sobre os dois braços e poucas se identificam com
imagens de Santo Antonio. Foram todas inspiradas em modelos de uma
época barroca entretanto solucionadas em atitude hierática, imobilidade e
síntese de acordo com a iconografia arcaica tribal. Destaca-se o importante
detalhe de quase todas carregarem às costas uma gamela com objetos-
símbolos (chifres, pedras, vasos e figuras biomórficas). O acabamento é de
madeira encerada, em uma nota-se pintura de pontilhado branco por todo
corpo; duas ainda conservam trajes de panos bordados em contas e búzios
imitando as vestes clericais da cerimônia da missa católica. Havia uma
figura recoberta de traje que retirado mostrou a representação de um corpo
feminino em atitude de coito. Uma única vez encontramos escultura de
inquestionável procedência africana, facilmente diagnosticável pela
qualidade da madeira, destreza artesanal
A ICONOLOGIA AFRICANA NO BRASIL
e prototípia dos Ícones representativos dos Ibêgis (divindades gêmeas,
iorubás).
A nudez é evidência de iconologia original africana enquanto a figura
vestida indica sincretização com a imaginana católica A ausência de
planejamento barroco movimentado, nas .esculturas dos candomblés não é
devida à incapacidade de execução Repre senta uma opção por outra
expressividade mais identificada ao comportamento arcaico, do escravo.
Assim se poderá entender o sincretismo afro-brasileiro em nivel do
arcaico e do barroco; do primeiro mantendo a atitude hierática das figuras,
a nudez, a simbologia da fecundidade e a expressão de soberania mítica.
Em muitas peças da imaginária católica ainda hoje produzidas nos
agrupamentos sociais do sertão brasileiro, culturalmente identificáveis ao
comportamento arcaico, verificam-se essas características vindas do tribal
africano demonstrando a transitoriedade sincré-tica inversa.
2) Conjunto de objetos da liturgia afro-brasileira: o Instituto Histórico
de Alagoas possui no mesmo acervo numerosas coroas, oxês (cetros),
capacetes e armaduras, braceletes, abebês (folhas de metal recortadas),
xaxarás (cetros de Omolu) e oguês de Oxose (chifres revestidos de panos
bordados com búzios). Muitos desses objetos são de folha de metal,
fragmentos de tubos e de peças e utensílios variados. Destaca-se uma
coroa de 42 cm de metal amarelo no formato imitativo da coroa do
imperador brasileiro, todavia encimada pelos símbolos do oguê e do oxê de
Xangô. Da mesma procedência e colheita são os elmos e armaduras
construídas com búzios importados da Africa conforme modelos originais.
O que nos permite atribuir confecção brasileira é o encontro de pequenos
espelhos emoldurados incluídos entre os búzios de uma armadura,
destinados ao uso pro-fano e importados da Europa. Um dos capacetes se
constitui de moedas de inscrições islâmicas unidas por fio de arame
estanhado. Neste acervo nota-se curiosa diferenciação dos abebês que na
área baiana não possuem base e por isso se integram como objetos do traje,
enquanto os de Alagoas são fixados a uma sólida base dan-do- lhes a
aparência de ostensórios. Todos são de desenho vasado (folha de metal
recortado) em soluções de rígida simetria. Nos objetos simbólicos de
Oxumaré (arco e flecha em ferro malhado) e nos símbolos de Ossanhe
(forqueaduras fitomórficas), pode-se avaliar o domínio artesanal de ferreiro
exercido pelos africanos e descen-dentes. Juntamente com outros objetos
de materiais diversos se constata a habilidade profissional do uso da forja,
de soldagem de laminação, de polimento e da capacidade decorativa.
Todos esses achados sao provenientes de uma área geográfica pobre de
processos industriais, historicamente dedicada ao plantio de cana de açúcar.
Os trabalhos com metais eram limitados à pequena escala da ferra-
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
ria necessária à mecânica dos engenhos e do transporte primário. Algumas peças
de lâmina de metal recortado (abêbês) são de aproveitamentos de embalagens de
mercadorias importadas. Em um único exemplo verificamos sincretismo com a
arte tumularia católica. Trata-se de um abêbê com desenho vasado de um túmulo
cercado de ornato funéreo e da inscrição EKUM OXUM. A primeira palavra
EKUM é variante fonética de EGUM, referência do morto; OXUM é a divindade
feminina sincretizada à N. Senhora das Candeias, uma das mulheres de Oxalá na
mitologia iorubá. Parece tratar-se de objeto de consagração funérea de uma mãe
de santo.
VII
O sedimento histórico da iconografia africana no Brasil tende a desaparecer,
substituindo-se pelos protótipos da comunicação visual que a civilização ocorrente
impõe. A prática do culto permanecerá com o crescimento das grandes cidades,
travestido em recursos de nova simbologia e em variantes do primitivo candomblé.
Macumba corresponde à transitoriedade do candomblé na adaptação à metrópole,
com o ingresso de uma expressão mítica representada na figura do cabôco, o
autóctone brasileiro. Umbanda é a sincretiza-ção de rituais africanos ao
kardecismo. Candomblé de Cabôco identifica com precisão o abrasileiramento do
culto africano. Para todas essas derivações elaborou-se uma iconografia
substitutiva de objetos produzidos industrialmente. Em quase todas cidades encon-
tram-se casas comerciais especializadas em artigos para Umbanda ou para
Macumba com exuberante variedade de imagens de cerâmica fabricada em moldes
prensados, adereços, amuletos, defumações e infindável sortimento de ervas e
infusões para o receituário dos males do corpo e para cura das ansiedades.
Surpreende verificar-se que a conspícua demonologia dos tempos passados,
representada no Exú dos africanos ou no Satanás medieval, agora procede dos
protótipos femininos do cinema de Hollywood, carregados de sex--appeal sob a
denominação local de Pomba-Gira. Até o próprio cabôco, autêntico em sua
origem, acha-se convertido na figura cinematográfica do pele-vermelha norte-
americano. Estatuetas de gesso de Vênus de Milo, figuras leoninas, S. Jorge, N.
Senhora Aparecida bustos e várias outras modelagens participam hoje da
imaginária da macumba urbana. N. Senhora das Graças, N. Senhora de Fátima e
de Lourdes, assim como Sta. Terezinha são bases de sincretização para a primitiva
divindade de Iemanjá, a rainha das águas.
O crescimento demográfico corresponde à maior intensidade de cultos
primitivos toda vez que a civilização acarreta desequilíbrios e sentimento de
insegurança. Os sinais da autenticidade se dissolvem e desaparecem enquanto
permanecem as razões das atitudes primárias.
A ICONOLOGIA AFRICANA NO BRASIL
Lembrar a noite do dia 31 de dezembro de cada ano no que ocorre
ao longo do litoral do Estado do Rio e da Guanabara, quando
as praias se desenham de velas acesas e se enchem de oferendas votívas à
Iemanjá, é a maneira mais simples de se demonstrar a remanescência e a
recrudescência de uma primitiva iconografia, se a genuinidade
desapareceu nos seus aspectos particulares, doutro modo resultou na
imensa cartografia de uma região pontilhada de velas acesas da devoção a
Iemaijá, que se pratica cada noite nas favelas e nos apartamentos de
Copacabana, e em milhas da linha do mar na última noite de cada ano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) v. Pierre Vrger Fl u x ei reflux de la traite des negres entre le golfe'
de Bènin et Bahia de Todos os Santos du dixseptieme ou diz neuvieme siècle', Mouton
& Co. Paris - La Haye 1968
0 A. esquematizou os lugares de origem dos escravos para a Bahia nas seguin-
1 —Ciclo de Guiné, durante a segunda metade do século XVI
2 — Ciclo de Angola e Congo, no século XVIII
3 — Ciclo da Costa da Mina, nos três primeiros quartos do século XVIII
4 — Ciclo da baia de Benin entre 1770 e 1850, inclusive o período do tráfico clandestino.
Quanto aos procedentes de Dahoniey (Gegeg) vieram "os dois últimos períodos
e os de Iorubá (Nagos) correspondem mais às últimas décadas.
Dessa referencias e regiões deve-se proceder o confronto da iconologia nativa
e da transcultura
Recente trabalho (no prelo) de Deoscorides M. Santos coteja os rituais (processos
e objetivos) afro- brasileiros com os remanescentes africanos da Nigéria, Lagos e Gana.
(2) v. Edson Carneiro — "Candomblés da Bahia", Ed. Conquista, Rio, 1961.
O A. explica o étimo candomblé como designação do "lunar em que os negros
da Bahia realizam suas festas religiosas", sinônimo de terreiro, roça ou aldeia estes
últimos de influência ameríndia.
V.. também Etoger Bastido, "Candomblés da Bahia", (R i t o Nagô), Ed. Nacional, São Paulo,
L961, Col. Brasiliana, vol. 313, tradução do original francos "Le Can-blé de Bahia"
(Rite Nagô), ed Mouton & Co., Paris, Have, 1958.
(3) Diogo de Vasconcellos, "História do Bispado de Mariana", BH 1935, p. 28. (4) ld,
ibid., cap. III, p. 31.
(5) Gilberto Freyre, "Açúcar", (Em torno da Etnografia, da História e da
Sociologia do doce no Nordeste Canavieiro do Brasil), Col. Canavieira n.° 2 segunda
edição 1969-IAA, Rio
(6) Clarival do Prado Valadares - O atributo iconologico na culinária
afro-brasileira . Suplemento Literário do Estado de S. Paulo, 11-11-1965
(7) Jose Vieira Fazenda - Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro
Rev. Inst. Hist. Geog. Brasileiro, vol 143 pp. 145-147,1924
(
8) Clarival do Prado Valladares — "O Negro Brasileiro nas Artes Plástica," —Cadernos Brasileiros,
n.° 47, 1968, pp. 97-109.
(9) Rev, Inst. Hist. de Alagoas, vol. XXVI, 1948-1952 Relatório do Secre-
tário Pen´pétuo Dr Abelardo Duarte, referencia ao ano de-1950. pp. 209-216 Regis-
tra a incorporação "das antigas coleções de objetos afro-brasileiros que pertence
ram ao extinto museu do Sindicato dos Empregados do Comércio e passaram ao
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
patrimônio do Instituto com a denominação do "Coleção Perseverança", como lembrança da
velha Sociedade Perseverança e Auxílio dos Empregados no Comércio.
É uma coleção importante e valiosa, já se tem dito que seja talvez das mais preciosas existentes no
nosso país. Estão nela representadas as mais interessantes divindades da cosmologia fetichista afro-
brasileira". Informa Abelardo Duarte que a identificação dos objetos foi feita por êle, pelo Dr. Théo
Brandão e Prof. René Eibeiro. Sobre o acervo incorporado menciona constituir-s e de oxês (Vultos das
divindades), orixás (imagens dos "santos"), mais do cinquenta pulseiras de latão, entre essas unia de
fios de cobre trançados formando uma serpente (ver nota 10). (10) Abelardo Duarte — "Sobrevivências
do Culto da Serpente (Dãnh-gbi) nas Alagoas" — Rev. IHA, vol. XXVI, pp. 60-67.
O autor investiga sinais remanescentes do culto Vodun, daomeiano, dos negros gêges no Brasil,
(Bahia e Recife) no correr do século XVII, na área de Alagoas, b.>seando-se no encontro de objetos de
apresentação da serpente Dã naqueles da Coleção Perseverança, incorporados ao Instituto, confirmando
indicações de Nina Rodrigues. Afirma, neste texto, que "o material da Coleção Perseverança" é antigo,
datando talvez de mais de um século. Pertenceu aos terreiros de Tia Marcelina e de outros dispersados.
Além da pulseira de fios de cobre trançado documenta uma "peça de ferro (22 cms) constituída de
lanças e duas foices enlaçadas por uma serpente, na extremidade inferior". Considera, entretanto,
possível sincretismo de símbolos Gêges e Kagôs, do ídolo Ogun (lança, foice).
(12) Abelardo Duarte — "Sobre o Panteão Afro-Brasileiro" (Divindades Africanas nas Alagoas)
Rev. Inst. Hist, Alagoas, vol. XXVI, 1952, pp. 68-79.
Destaca-se o seguinte trecho referente ao acervo iconológico da "Coleção Perseverança": "Nas
Alagoas, os cultos afro-brasileiros ainda mantinham, nos começos deste século, a julgar pela tradição
oral e pelo material etnográfico que se salvou, alguma coisa do culto puro, de vez que a assimilação ao
catolicismo já era patente (há na Coleção Perseverança vários objetos como a Cruz e até uma imagem
de Santo católico).
(12) René Ribeiro — "Significado dos Estudos Afro-brasileiros". Rev. Inst. Hist. Alagoas, vol.
XXVI, 1952, pp. 7-16.
Texto de uma conferência lida no Instituto na ocasião em que o Prof. René Ribeiro foi solicitado
para a identificação dos objetos da coleção Perseverança.
Nota: o autor agradece a Manoel Diégues Júnior e Luis Savio de Almeida a possibilidade de
realizar pesquisa e documentação no Instituto Histórico de Alagoas.
A grafia utilizada para os termos de origem africana conferem com o "Vocabulário de termos
usados nos Candomblés da Bahia", de Edson Carneiro (op. cit. pp. 175-189).
A ICONOLOGIA AFRICANA NO BRASIL
Documentação fotográfica realizada pelo
autor na Seção de Etnografia do Instituto
Histórico de Alagoas em julho de 1968
para a DPHAN
Fig. 1 — Imagem do Ritual Xangô. 37
em madeira braços articulados, olhos
de vidro, trajo de seda vermelha, com
contas brancas formando letras, adereço
(corrente) de metal amarelo,
Fig. 2 _ Imagem do Ritual Xangô.
Madeira pintada. Traje de seda bordada
com búzios da Costa (cowries).
Sincretismo com as vestes católicas (pa-
ramento de missa). Oxê: com as pintas de.
Oxum.
Fig. 3 — Imagem do Ritual Xangô.
Monobloco de madeira, 36 cm. Sincre-
tismo de Xangô com a iconografia de N.
Sra, do Amparo,
Fig. 4 — Imagem do Ritual Xangô.
Madeira, 40 cm, olhos de vidro, símbolos
cefálicos de Oguès de Ogum, ou Oxossi
Sincretismo com a iconografia de N. Sra,
do Rosário,
Fig 5 — Dorso da imagem da figura n.°
3, mostrando símbolo africano de escudo
com representação fitomórfica
(obi)
Fig. 6 — Dorso da figura n." 4 mos-
trando escudo com Oguê (figura cornea.
símbolo de Ogum e Oxossi).
Fig. 7 — Imagem do Ritual Xangô.
Madeira, olhos de vidro, 45 cm. Sincre
tismo com a iconografia de N. Sra. do
Rosário.
Fig. 8 — Dorso da figura n.° 7, mos-
trando escudo com Oguê.
Fig. 9 — Imagem do Ritual Xangô.
Madeira pintada, 40 cm. Símbolos cefá-
licos e braço articulado.
Fig 10 — Dorso da imagem da figura n.°
9. Escudo com Ogué e pintas-bran-
cas de Oxum .
Fig, 11 — Imagem do Ritual Xangô.
Madeira, 23 cm. Símbolo de fecundidade.
Fig. 12 — Imagem do Ritual Xangô.
Madeira, 55 cm. Símbolos cefálicos re-
movidos. Sincretismo iconográfico com
Santo Antônio (Ogum )
Fig. 13 — Oxé de Xangô, encimado pela figura
córnea (Oguê), Ferro batido, 36 cm.
Fig. 14 — Figura hierática simbólica de Ôgum
. Metal, 27 cm. Fragmentos soldados de peças
aproveitadas: base de bronze de uma
sineta, haste de ferro
retorcido e Capitel de ferro b a l i d o
simbolizando ferramentas agrárias de Ogum .
Fig. 1.) — Figura simbólica biomór fica. Ferro
batido o soldado, 36,5 cm.
Fig. JG — Figura simbólica biomór-fica em
ferro batido, soldado e vazado. 24 cm.
(provável símbolo de Ossanhe Osanuin ).
Fig. 17 — Objeto do Ritual Xangô. Perro
batido e soldado, base de fragmento
aproveitado. Trifurcado biomór-
tico, provável símbolo de Oxumaré ou de
Ossanhe.
Fig. 18 — Objeto do Ritual Xangô,
incompleto. Construído com fragmentos
aproveitados de objetos domesticos. Base de
antimônio, liaste de Latão e folha de metal
amarelo recortada. Provável símbolo do Ogum
.
Fig. 19 — Objeto hierático do Ritual Xangô.
Folha de metal amarelo recortado, 27 cm.
Símbolo (Ogue) de Ogum , ou Oxossi.
Fig, 20 — Objeto hierático do R i t u a l -
Xangô. Folha de embalagem industrial
recortada. Símbolo de Xangô (Oxe) e
Oxum 23 cm. Base soldada.
Fig. 21 — Objeto hierático do Ritual
Xangô. Folha de cobre recortada, haste de
metal amarelo, base de ferro soldada.
Abébé, 39 cm.
Fig. 22 — Objeto hierático do Ritual
Xangô. Folha de metal recortada, haste de
latão e base de ferro soldada, símbolos de
Xangô (Oxês) e cruz católica. Ábêbê, 30
cm.
Fig. 23 - Objeto hierática do Ritual
Xangô. Folha de meta] recortado, haste e
base de objeto doméstico aproveitado.
Pingentes com símbolos (oguês). Cruz
católic a , esplendor estilizado; provável
objeto de cerimonial funerário nagô
(Axexe) 34 cm .
Fig. 24 — Objeto hierático do Ritual
Xangô. Folha de cobre recortada com
desenhos e inscrição incisados. Pingentes
em "coração". Has te e base ,),. fragmentos
de latão aproveitados. Lê-se OXUM
EKUM . Provável objeto do cerimonial
funerário nagô. (Âxêxê) 29 cm
Fig 25 — Objeto hierático do Ritual
Xangô. Folha de metal amarelo pintada.
Haste e base soldadas. Abébé de
Iemanja (provável) — 28 cm .
Fig. 20 — Objeto do Ritual Xangô. Xaxará de
Omolu, Cetro confeccionado com feixe de
talas de folha do dendê, punho bordado
com búzios (cowries) da Costa. 47 cm.
Fig. 27 — Objeto do Ritual Xangô.
Cetro de talas de folhas de dende reves-
tido do contas multicores, sementes e
búzios (cowries) da Costa. 47 cm.
Fig. 28 — Objeto (de traje) do Ri-tual -
Xangô. Armadura de peito bordada de
búzios da Costa, contas e pequenos
espelhos. 40 x 28 cm.
Fig. 29 — Objeto (de traje) do Ritual Xangô.
Coroa de metal amarelo,
recortado, repuxado e soldado, encimada com
símbolos de Xangô. Nítida influên cia do
modelo da coroa do Imperador Brasileiro, 42
em.
Fig. 30 — Objeto (de t r a j e ) do R i t u a l
Xangô, Capacete revestido de búzios da
Costa (co wries) e contas brancas de provável
procedência africana. 40 em.
Fig. 31 — Objeto (de t r a j e i do Ritual
Xangô. Capacete revestido de búzios da
Costa (cowries), de provável procedên
cia africana. 19 cm.
Fig. 32 —Objeto (de t r a j e i do Ritual
Xangô. Capacete de Oxalá, confeccionado com
moedas islâmicas, arame estan h ad o e
pendentes. 22 cm.
Cinema Novo e Cinema Brasileiro
OCTÁVIO DE FARIA
"... a busca da verdade..."
"... uma ideia na cabeça e a
câmera nos ombros... "
("slogans" básicos do cinema novo) <
l
>
O primeiro decénio de existência do cinema novo caminha para seu
fim e já é tempo que se faça uma avaliação serena — tanto quanto
possível isenta de paixões doutrinárias ou políticas — da contribuição que
trouxe para o nosso cinema. E, antecipando, digamos logo: a nossos olhos,
trata-se de um resultado altamente favorável ao cinema novo.
Isso não quer dizer, é claro, que, quando lançamos cuidadosamente o
olhar para trás e medimos tudo na balança exata da justiça e da
honestidade crítica, não deparemos com uma grande parte de inegável
"bagaço" cinematográfico. Seria, aliás, quase impossível que assim não
sucedesse e só os louvaminheiros sistemáticos teriam a desfaçatez de
querer negar a possibilidade de uma eventualidade dessas. De qualquer
modo, o que sobra de qualquer das operações de "limpeza", de aferimento
da balança crítica, é tão positivo, tão vultoso mesmo, que nem o exagero
inconsequente dos mais extremados endeusadores, nem a demolição
sistemática dos detratores (e são muitos numerosos, uns e outros), jamais
poderiam fazê-los desaparecer.
É que os fatos são, por si só, incontestáveis. Pouco há a registrar no
nosso cinema até o término da década 50. É quando surgem justamente as
primeiras manifestações do cinema novo. Ora, no fim
OCTÁVIO DE FARIA
da década que vivemos (registrando o início e o pleno desenvolvimento do
cinema novo), vamos encontrar, transformado, vivificado, um verdadeiro
cinema nacional, comparável a muitos dos melhores cinemas mundiais. O
fato é palpável — a contribuição do cinema novo foi inegável, decisiva.
Estamos, agora, diante de uma realidade cinematográfica diferente, de
indiscutível importância.
Certo, ao longo desses anos, outras forças cinematográficas se fizeram
sentir, alguns inequívocos valores se revelaram que nada têm ou tiveram a
ver com o cinema novo. (
2)
E que, até mesmo, contra sua orientação se
mostraram. Mas, se considerarmos globalmente o acervo que se constituiu
no Brasil, nesses quase dez anos, verificaremos que, se não é constituído,
unicamente, de nomes que podemos incluir nos quadros, ortodoxos ou não,
do chamado cinema novo, êle o é predominantemente. Ou, pelo menos
que, entre os valores mais brilhantes, mais expressivos, e que melhores
possibilidades de futuro nos oferecem, são os do cinema novo os mais
abundantes.
De modo que não nos resta senão concluir: independentemente do
bagaço — que não podia deixar de existir, e que, fica para trás, sem
interesse, sem significação para o desenvolvimento do nosso cinema em
geral —, houve uma grande contribuição de bons filmes (indo desde o
nível dos bons, passando pelo dos muito bons e atingido, mesmo, o dos
excepcionais) e a maioria dessas produções traz a marca — ou, pelo
menos, a inspiração — do cinema novo. Crescimento de produção
considerável, digno do nosso maior entusiasmo, sobretudo porque o
acréscimo quantitativo foi acompanhado pelo qualitativo. Se passamos de
mais ou menos 20 filmes anuais (vizinhanças de 1960) para 80
(proximidades de 1970), só um cego ou um adversário de má fé não verá
que também foi qualitativo o aumento de nossa produção. Há bem poucos
filmes bons a destacar nos anos que se estendem de 20 a 60. São de depois
de 60 quase todos os nossos grandes êxitos, inclusive os sucessos
internacionais — e, quase todos, se inscrevem nos quadros de produção do
cinema novo, ortodoxo ou não.
Temos assim que, qualitativa e quantativamente, o cinema novo
reformulou grandemente o nosso cinema. Que se trate de um movimento
organizado, com programa estabelecido, regras definidas, ou, apenas, de
um congregado de valores com ideias pouco sistematizadas, ainda que com
seus tabus arrolados e suas obsessões inarredáveis, importa pouco, creio
eu. Pois, o fato é que, escola ou agrupamento, sistema organizado ou quase
anarquia, conseguiram os homens do
(2) Pois não há como negar a existência de valores de indiscutível significação — e, entre eles,
destaquemos logo um Lima Barreto, um Walter Hugo Khoury, um Flávio Tambellini. um Rubem
Riáfora, um Anselmo Duarte, um Gerson Tavares, um Luís Sérgio Person, um Oswaldo Candeias, um
José Mojica Marins e outros.
CINEMA NOVO E CINEMA BRASILEIRO
cinema novo, independentemente de uma bastante grande desigual-dade
(que, é claro, não é possível deixar de existir entre tontos e tão diversos
valores), conseguiram eles uma "extensão e uma_ altura portanto um
"terreno próprio", que não pode ser negado e: cuja importância artística,
para o nosso cinema, e para a nossa
:
cultura é muito grande. O que
lograram "afirmar" - seja embora isso pura improvisação, ou invenção,
evidentemente "dia a dia de uma pratica cinematográfica intensa e mais
ou menos desordenada e por si suficiente para justificar o uso de qualquer
bandeira e o direito a qualquer rótulo: movimento ou escola, neo...
ismo
qualquer
Prova mais convincente do que acabamos de afirmar não pode ser
dada, do que rememorar aqui, em rápidas referências, o ativo do cinema
nacional até o período do desencadeamento das manifestações do cinema
novo. Se excetuarmos a malograda tentativa da Vera Cruz e a contribuição
permanente e pertinaz de Humberto Mauro, realmente um pioneiro e um
desbravador de caminhos ainda selvagens — notável tão bem no terreno
da ficção cinematográfica quanto no do documentário de não importa que
espécie —, podemos dizer que encontramos apenas obras isoladas,
verdadeiros marcos perdidos ao longo de anos e anos de quase absoluto
vazio.
Alguns desses marcos são de inegável qualidade, sobressaindo, entre
todos, "Limite" (1930), obra única (ainda máxima) de Mário Peixoto.
(Excessão, produto "sui generis" — cinematogràficamente genial).
Também a destacar o esforço de Ademar Gonzaga, Paulo Vanderlei e
Pedro Lima, concretizado em "Barro Humano" (1929), e algumas vagas
tentativas de vencer a comercialização e a "chanchada", como "Moleque
Tião" (1943), de José Carlos Burle; "O Saci" (1953), de Rodolfo Nanni;
"Cara de Fogo" (1958), de Galileu Garcia; "O Grande Momento" (1958),
de Roberto Santos; "Ravina" (1959), de Rubem Biáfora e os primeiros
filmes de Walter Hugo Khoury.
Quanto à tentativa da Vera Cruz — um malogro indiscutível em seu
conjunto —, não resta dúvida de que foi um grande plano que por pouco
não se concretizou. Certo a Vera Cruz e seus responsáveis. sonhando São
Bernardo dos Campos e suas magnificências, sonharam "grande demais"
para o Brasil de então. Mas, sobretudo, foram infelizes, tremendamente
infelizes, na realização prática desse sonho, rodeando-se de diretores
ineficientes e técnicos competentes (mas que, em sua maioria,
desconheciam as nossas realidades) e abisman-do-se em despesas que o
nosso meio cinematográfico ainda não estava em condições de suportar.
De qualquer modo, parece-me até ponto injusto o extremo rigor com que
tantos julgam o empreendimento paulista que nem a colaboração
esclarecida de Alberto
OCTÁVIO DE FARIA
Cavalcanti conseguiu salvar da ruína, depois de alguns anos de existência
(1949-54). E não há, também, como não lhe creditar, além de alguns
filmes de relativo interesse como, por exemplo, "Caiçara" (1950), de
Adolfo Celli e Alberto Cavalcanti, "Angela" (1951) e "Sinhá Moça"
(1953), ambos de Tom Payne, e o surpreendente "O Cangaceiro" (1953),
de Lima Barreto, uma contribuição bastante grande para a melhoria do
nível técnico de nossos filmes. Representou, apesar de tudo, uma abertura
de horizontes, encaminhando o cinema brasileiro para uma realidade mais
autêntica e, como bem diz o insuspeito e autorizado Alex Viany,
"precipitando", mesmo "com todas as suas falhas de estrutura, programa e
administração", a "industrialização do cinema no Brasil". <3>
Em contraposição a esse "cinema rico" da Vera Cruz e de suas
sucedâneas (Multifilmes, Maristela, Kinofilmes), surgiu, no Rio, uma
espécie de "cinema pobre" que muitos preferem chamar de "realismo
carioca" e que foi como que o caminho encoberto que levou o nosso
cinema ao "cinema novo" do início da década de 60. Basta lembrar que os
seus dois grandes marcos foram "Rio 40 Graus" (1955) e "Rio Zona Norte"
(1957), ambos de Nelson Pereira dos Santos que, como se sabe, iria ser um
dos maiores nomes do cinema novo e seu quase declarado mentor.
Também nesse caminho de quase precursores diretos: "Agulha No
Palheiro" (1953), de de Alex Viany e "Amei Um Bicheiro", de Jorge Ilely
e Paulo Vanderlei (1952-3).
* * *
Todos esses pontos de referência naturalmente se perdem quando
vemos o impulso com que o cinema novo irrompe e logo desabrocha e se
desenvolve em sua força incomum, quase mesmo poderíamos dizer:
irreprimível, revolucionária, não obstante não traga em sua bagagem
muitas ideias próprias, e, sim, apenas três ou quatro "slogans" no gênero de
"busca da verdade", "uma ideia na cabeça e a câmera nos ombros", etc.
Mas, na verdade, seus propugnadores eram dotados de uma tal coragem, de
uma tão grande convicção de que detinham a verdade consigo, que não
tardou que fizessem tábua raza de todos os erros e valores falsos que
entulhavam o nosso cinema clássico. Assim, hoje, passados alguns anos e
constatada uma indiscutível vitória, não há como não acreditar que se
tratava de um verdadeiro movimento, de uma autêntica escola
cinematográfica no melhor sentido da palavra.
E não há quem, com prática de cinema, possa não se impressionar com
o simples alinhar de um cartel de mais de trinta nomes, e da envergadura
de: Glauber Rocha — Nelson Pereira dos Santos — Roberto Santos —
Paulo César Saraceni — Joaquim Pedro de
(3) v. Alex Viany — ''Introdução Ao Cinema Brasileiro" — p. 131.
CINEMA Novo E CINEMA BRASILEIRO
Andrade — Carlos Diegues — Rui Guerra — Roberto Farias — Roberto
Pires — Alex Viany — Leon Hirzsman — Arnaldo Jabor — Walter Lima
Júnior — Domingos de Oliveira — Júlio Bressane — Paulo Gil Soares —
Mário Fiorani — Antônio Carlos Fontoura — Gustavo Dahl — Fernando
Coni Campos — Maurice Capovilla — Wilson Silva — Maurício Gomes
Leite — Sílvio Bach — David Neves — Iberê Cavalcanti — Roberto
Sganzerla — Eduardo Coutinho — Miguel Borges — Marcos Farias. É um
quadro que impressiona fundamente, mesmo que a um ou a outro desses
diretores não se conceda um crédito especial. A massa fala por si,
caracterizando evidentemente um "movimento" — uma qualquer coisa que
não cabe mais negar, nem mesmo subestimar.
Realmente, a muitos, à grande maioria desses nomes não se poderá
mais recusar uma qualidade extra que já agora é reconhecida pelos
melhores críticos de cinema estrangeiros <
4
> e que foi consagrada,
inclusive em Festivais Internacionais da maior importância, como Cannes,
Veneza, Karlovy Var, Berlim, Moscou, Pesaro, etc. Como Portinari ou
Villa Lobos, Segai ou Burle Marx, Jorge Amado ou Chico Buarque de
Holanda, são valores que só as mentalidades mais tacanhas ou de xenófilos
mais inveterados insistem em negar.
Refiro-me, acima de todos, ao vulto excepcional de Glauber Rocha.
Talvez não seja o que geralmente se costuma chamar de um "chefe de
escola" — e esse título convenha muito mais, no que diz respeito ao
cinema novo, à figura do precursor, veterano e, até certo ponto, seu mentor,
Nelson Pereira dos Santos. Mas, foi sem dúvida Glauber Rocha que, no
âmbito do nosso novo cinema, levou mais longe e mais alto a expressão
pessoal, o talento narrativo próprio. Ninguém, evidentemente, é mais rico
em promessas, ninguém, a cada filme que realiza, evidencia tanto quanto
êle ter mais, muito mais para dizer do que já disse até aquele momento. De
"Barravento" para "Deus E O Diabo Na Terra Do Sol", deste para "Terra
Em Transe", e deste para "O Dragão Da Maldade Contra O Santo Guer-
reiro", é uma evolução e uma renovação que nos deixam entusiasmados e
cheios de esperança, por mais que o resultado imediato em um desses
filmes, tenha nos agradado, satisfeito amplamente. Em nenhum deles
sentimos Glauber Rocha esgotado ou a caminho de se repetir. Pelo
contrário, adivinhamos, constatamos (inclusive em "O Dragão Da
Maldade", tão próximo e tão "distante" de "Deus E O Diabo", cujo
ambiente retoma), que tudo o que nos disse ou diz é apenas problema
colocado, planteado em termos de cinema, mas que vai provavelmente ser
retomado mais tarde, de outro modo, sob ângulos diversos e sempre novos.
Se em "Deus E O Diabo" nos deixa
(4) v. "Cahiers Du Cinema" e "Positif". Em especial, v. o n.° 214 (jul-agôsto, 1969), de "Cahiers
Du Cinema", onde se pode ler uma importante entrevista com Glauber Eoclia.
OCTÁVIO DE FARIA
frente a uma série de interrogações que "O Dragão Da Maldade" retoma e
refunde, esse mesmo "Dragão da Maldade" finda à beira de novos abismos
de dúvida e inquirição, em angustiosos problemas que, é quase certo,
ressurgirão adiante, no transcorrer futuro de sua obra de autêntico'
cineasta. É um mundo próprio, pois, o que Glauber Rocha trouxe para o
nosso cinema, não obstante todas as influências que inegavelmente reflete
— mundo glauberiano, incontido, tumultuoso, caótico, nitidamente
dionisíaco, aqui e ali primitivo, fechado, às vezes enclausurado na
limitação de alguns preconceitos quase primários, mas, já adiante,
banhado pelo sopro do mais belo lirismo e da epopeia mais genuína, com
laivos de inequívoca genialidade cinematográfica.
Muito menos pessoal, quase sempre contido, visando muito mais a
perfeição artística do que a criação propriamente dita ("apolíneo" em
contraposição ao "dionisíaco" de Glauber Rocha), mais cineasta do que
poeta, mais técnico do que "autor", Nelson Pereira dos Santos não
apresenta em sua "obra" (e é, ao lado de Humberto Mauro, dos poucos
cineastas brasileiros que já possuem "obra", qualitativa e quantitativa...) a
mesma unidade de criação da de um Glauber Rocha. Dos dois filmes que
marcaram o "realismo carioca": "Rio Quarenta Graus" e "Rio Zona Norte
(de concepção cinematográfica bastante próxima) para "Vidas Secas", a
diferença é enorme. E há abismos de distância do formalismo cru e
orgânico, tantas vezes admirável de "Vidas Secas" para o realismo quase
naturalista e, até certo ponto, desinteressante, de "Boca De Ouro" ou para o
diletantismo de "El Justiceiro". E, todas essas "variações", evidentemente,
não nos levam senão com muita dificuldade à complexidade, já agora
próxima de uma certa inspiração dionisiaca de seu esplêndido "Fome De
Amor" que nada em sua obra fazia prever e que se erigiu numa das mais
gratas surpresas de sua carreira tão cheia de surpresas. E quem pode prever
em que paragens irá aportar no seu próximo filme, "O Alienista"?...
Também sem grande unidade em sua obra — ainda que mal se possa
falar em "obra" a seu respeito —, Roberto Santos continua a ser para o
nosso cinema, essencialmente, o grande realizador de "A Hora E A Vez De
Augusto Matraga" (baseado no conhecido conto de Guimarães Rosa) sem
dúvida uma das três ou quatro melhores consecuções do cinema novo. Sua
estreia, há anos atrás (com "O Grande Momento" — espécie de obra-ímpar
de um hipotético "realismo paulista") prometia muito. "Augusto Matraga",
porém, ampliou de tal modo essas possibilidades que seus trabalhos
posteriores não confirmaram essa extraordinária esperança, pois nenhum
deles (nem mesmo o 3.° espisódio de "As Cariocas", muito feliz em sua
consecução) marcou nenhum passo à frente nem nos deu de seu realizador
uma imagem nova ou mais ampla. De fato, há em "O Homem Nu" e no
referido episódio de "As Cariocas", muita coisa
CINEMA NOVO E CINEMA BRASILEIRO
boa, mas, neles, é evidentemente nas redondezas bastante limitadas de "O
Grande Momento" que estamos evoluindo — jamais naquela grande área
privilegiada a que nos habituaram as cenas — chave de "A Hora E A Vez
De Augusto Matraga".
Em contraste, já a caminho de uma "obra", Paulo César Sara-ceni
oferece um equilíbrio em suas diversas produções — tão diferentes entre
si, no entanto — a que raros diretores do cinema novo poderão pretender.
Quer em seus documentários (e, sobretudo, no Ótimo "Arraial Do Cabo")
como em suas longa-metragens, tanto no passional "Porto Das Caixas",
quanto no político "O Desafio" ou no histórico "Capitu", encontramos um
senso cinematográfico, uma adequação à mais correta expressão emotiva,
que o vemos como uma das maiores possibilidades do nosso jovem
cinema. Certo, ainda não é um autor plenamente realizado e suas
"hesitações" ideológicas ainda inquietam e perturbam muitos dos fanáticos
do cinema "comprometido". Mas, como acontece com Glauber Rocha
(entre outros), cada um de seus filmes, por mais que agrade e convença,
representa sempre um mundo de promessas, de problemas, de perguntas
que sugerem a existência de novos filmes que tudo indica que se trans-
formarão em novos sucessos e em renovadas inquirições.
Exatamente como Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro ae Andrade é
uma promessa que se renova, mais forte sempre, a cada novo filme que
produz. E digamos que o que sucedeu com seus esplêndidos
documentários, está sucedendo, agora, com suas longa-metragens. Pois se
"Garrincha, Alegria Do Povo" confirmava e até excedia em muito as
previsões que "Couro De Gato" e "O Poeta Do Castelo" permitiam fazer,
também "Macunaima" confirmou e excedeu em muito tudo o que "O Padre
E A Moça" prometia. E não nos furtemos a essa constatação: ninguém, no
cinema novo, demonstrou, até agora, tão grande progresso de um filme
para outro (a não ser, o Glauber Rocha de "Deus E O Diabo" em relação ao
Glauber Rocha de "Barravento") quanto o Joaquim Pedro de "Macunaima"
em relação ao Joaquim Pedro de "O Padre E A Moça".
Outro inequívoco grande valor do nosso novo cinema é Carlos
Diegues. Como quase todos os demais "cinemanovistas", firma Die-gues
suas origens no filme documentário. Seu "short": "Escola De Samba,
Alegria De Viver", foi um dos pontos altos de "Cinco Vezes Favela" que
marcou, não obstante suas numerosas falhas, os primeiros combates
decisivos do jovem movimento. Em seguida, "Ganga Zumba, Rei Dos
Palmares" e, sobretudo, "A Grande Cidade", vieram ampliar enormemente
as esperanças que haviam sido depositadas no cineasta. E, ao que tudo
indica, essas previsões só fizeram se confirmar, e amplamente até, com a
recente realização de "Os Herdeiros" que, junto com "Macunaima", tão
bem representou o Brasil no recente Festival de Veneza.
OCTÁVIO DE FARIA
Se Rui Guerra não está tão intimamente ligado aos famosos
"documentários" do movimento (ficaram inacabados os seus "Orós" e "O
Cavalo De Oxumaré"), por outro lado ninguém está mais profundamente
envolvido nas lutas originais do cinema novo quanto o discutido diretor de
"Os Cafajestes" — filme-"batalha de Hernâni" das primeiras refregas
cinematográficas da década de 60. Pode-se mesmo falar, a seu respeito,
numa espécie de "porta-bandeira" do cinema novo, pois nenhum filme
centralizou mais do que êle a luta que se travou entre a "velha guarda",
disposta a todas as resistências, e os "novos" que pretendiam tudo destruir,
para poder renovar. Talvez não fossem tão vastas as pretensões de Rui
Guerra, e sobretudo, o filme em si, visto com imparcialidade, não
merecesse a desvairada polêmica que em torno dele se travou. Mas, o fato
é que, tanto quanto a "Cinco Vezes Favela", foi graças a "Os Cafajestes"
que a nova tendência do cinema nacional sensibilizou os nossos meios
intelectuais e artísticos. Proclamaram-lhe uns o imediato óbito
(5)
; outros, o
imperecível triunfo. Tolices, leviandades, prejulgados de todas as espécies.
Mas, o inegável foi que o "cinema novo", que eles denegriam ou
enalteciam com exagero e boa ou má fé, logrou em pouco tempo clima
propício para se desenvolver e frutificar. Anos depois, seria um fato
incontestável, como estamos fartos de verificar nos dias em que vivemos.
Nesses primeiros tempos, associaram-se aos seus sucessos e
insucessos vários esforços colaterais, como os de Roberto Farias ("O
Assalto Ao Trem Pagador", "Selva Trágica") e Roberto Pires ("A Grande
Feira", "Tocaia No Asfalto", "Crime No Sacopã"), cujos responsáveis
iriam, mais adiante, se distanciar totalmente do movimento, integrando-se
mais ou menos na linha da produção comercial comum. De qualquer
modo, somando-se, inclusive, ao sucesso internacional de "O Pagador De
Promessas", de Anselmo Duarte, iriam contribuir bastante, à revelia ou
não, para o renome cinematográfico mundial do cinema novo.
Entre os colaboradores da primeira hora convém destacar ainda, Alex
Viany e Leon Hirszman. E, no mais visceral do espírito do movimento —
porque o mais "documentarista" de todos eles — Arnaldo Jabor. Grandes
documentaristas foram quase todos os melhores "astros" do cinema novo,
Glauber Rocha como Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de
Andrade como Paulo César Saraceni, Lin-duarte Noronha como Sérgio
Ricardo, Mário Carneiro como David
(5) v. Cláudio Mello e Sousa "Cinema Novo E Agonia", em "Jornal do Brasil" — 4-10-62. A
lembrar, também, o êxito internacional do segundo filme de Rui Guerra: "Os Fuzis" que, entre nós,
passou quase despercebido e que, na Europa, principalmente em França (tanto junto aos "Cahiers Du
Cinema" como junto a "Positif"), fêz quase tanto pelo cinema novo quanto a obra de Glauber Bocha.
CINEMA NOVO E CINEMA BRASILEIRO
Neves
6
mas talvez nenhum o tenha sido tanto, e tão essencialmente,
quanto Arnaldo Jabor, autor de "O Circo" e de "A Opinião Pública",
verdadeiros ápices do documentarismo do cinema novo, talvez os mais
"autênticos" e perduráveis dos nossos documentários — ao lado dos de
Humberto Mauro, naturalmente.
Em época já adiantada do movimento, surgem, com bastante brilho:
Walter Lima Júnior, transpondo com fina sensibilidade o "Menino De
Engenho" de José Lins do Rêgo, e Domingos de Oliveira, com suas
comédias dramáticas de bastante sucesso público e razoável conceituação
técnica: "Todas As Mulheres Do Mundo" e "Edu Coração De Ouro".
Interessantes, vivas, sensíveis, mas quase "sangrentas", as estreias de Júlio
Bressane com "Cara A Cara", e Paulo Gil Soares, com "Proezas de Satanás
Na Vila Do Leva-E-Trás". Também promissora, a de Mário Fiorani, com
"A Derrota" (tão fracamente continuada com "O Engano"), e a de Antônio
Carlos Fontoura, com "Copabacana Me Engana". Ou a de Gustavo Dahl,
com "O Bravo Guerreiro"; a de Fernando Coni Campos, com "Viagem Ao
Fim do Mundo"; a de Maurice Capovilla, com "Bebei, Garota Propa-
ganda"; a de Wilson Silva, com "Cristo De Lama", vida do Aleijadinho; a
de Maurício Gomes Leite, com "A Provisória"; a de Sílvio Back, com
"Lance Maior"; a de David Neves, com "Memória De Helena"; a de Iberê
Cavalcanti, com "A Virgem Prometida"; a de Rogério Sganzerla, com "O
Bandido Da Luz Vermelha"; a de Eduardo Coutinho, com "O Homem Que
Comprou O Mundo". Sem falar de dois velhos participantes das lutas do
tempo de "Cinco Vezes Favela": Miguel Borges (episódio: "Zé Da
Cachorra") e Marcos Farias (episódio: "Um Favelado"). Ou do isolado,
limítrofe, Trigueirinho Neto, com "Baía De Todos os Santos".
7
(6) É enorme a lista dos documentaristas do cinema novo, quase todos eles a caminho da
longa-metragem, se não já integrados em seus quadros. Como lembrar a todos, aqui? De passagem,
alinharemos, além dos já citados: Alberto Salva, Álvaro Guimarães ("Moleques Da Bua", 1960),
Geraldo Sarno ("Viramundo", 1965), Gilberto Macedo ("Heleno De Freitas", 1967), Luis Carlos
Lacerda De Freitas ("O Enfeitiçado", 1968), Miguel de Faria, Pedro Sovai ("Djanira E Parati", 1966),
Benato Neuman ("Lapa 67" e "Burle Marx", 1969), Sérgio Bernardes, Sérgio Sanz ("Alcântara", 1968),
Bucker Vieira, Eduardo Buegg ("Bugendas"), David Waisman, George Santeiro, José Alberto Lopes,
Bodolfo Neder, Flávio M. Costa, Vladimir Carvalho e outros.
(7) A propósito dos realizadores citados, e seguindo a ordem em que os citamos, eis o que
podemos chamar de uma filmografia essencial do cinema nôvo; Glauber Bocha: "Pátio" e "Cruz Na
Praça", curta-metragens de 1958 e 59); "Barravento" (1961); "Deus E O Diabo Na Terra Do Sol"
(1963); "Terra Em Transe" (1966); "O Dragão Da Maldade Contra o Santo Guerreiro" (1968)
Nelson Pereira Dos Santos: "Bio Quarenta Graus" (1955); Bio Zona Norte" (1957); "O Bôca De Ouro"
(1960); Mandacaru Vermelho" (1961); "Vidas Secas" (1963); "Fala, Brasília" (doc. — 1965); "El
Justiceiro" (1966); "Fome De Amor" (1968); "O Alienista" (1969) — Roberto Santos: "O Grande
Momento" (1968); "A Hora E A Vez De Augusto Matraga" (1965); "As Cariocas" (3.° episódio
— 1965) ;
OCTÁVIO DE FARIA
Nascido, como o neo-realismo italiano, da necessidade de vencer os
obstáculos materiais que os realizadores encontravam para fazer os filmes
que ideavam — à sombra da famosa fórmula: uma ideia na cabeça e a
câmera nos ombros —, o cinema novo, passada quase uma década de uma
batalha que podemos, sem exagero, chamar de "campal" (e o seu grande
"manager", fotógrafo e produtor, Luís Carlos Barreto que o diga!...),
encontra-se hoje diante de novas realidades econômicas. Certo, a maioria
dos componentes de seus novos quadros luta terrivelmente para descobrir
quem financie convenientemente suas produções. Mas, já é a mesma,
certamente, a
"O Homem Nu" (1967) — Paulo César Saraceni: "Caminhos" (sh. — 1959) ; "Ar-raial Do Cabo"
(19G0 — doc); "Porto Das Caixas" (1961); "Integração Racial" (doe. — 1964) ; "O Poeta do Castelo"
(Manuel Bandeira) (doe. — 1959) ; "Couro De Gato" (epis. em "Cinco Vezes Favela" — 1961);
"Garrincha, Alegria do Povo" (doc. — 1963); "O Padre E A Moça" (1965); "Cinema Novo (doc. —
1966); "Brasília, Cidade Das Contradições" (doe. — 1966); "Macunaíma" (1968) — Carlos Diegues:
"Escola De Samba, Alegria De Viver" (epis. em "Cinco Vezes Favela"
— 1961); "Ganga Zumba, Bei Dos Palmares" (1963); "A Grande Cidade'-' (1965); "Oito
Universitários" (doe. — 1966); "Os Herdeiros" (1968) — Rui Guerra: "Orós" (doc. inac. — 1960); "O
Cavalo De Oxumaré" (doc. inac. — 1961) ; "Os Cafajestes" (1962); "Os Fuzis" (1963) — Roberto
Farias: "Cidade Ameaçada" (1960); "O Assalto ao Trem Pagador" (1962); "Selva Trágica" (1963);
"Toda Donzela Tem Um Pai Que É Uma Fera" (1965) — Roberto Pires: "A Grande Feira" (1960);
"Tocaia No Asfalto" (1962); "Crime No Sacopã" (1963); — Alex Viany: "Agulha No Palheiro" (1953);
"Rua Sem Sol" (1954); "Sol Sobre A Lama" (1963) — Leon Eirszman: "Pedreira De S. Diego" (epis.
de "Cinco Vezes Favela" — 1961); "Maioria Absoluta" (doe. — 1963); "A Falecida" (1965); "Garota
De Ipanema" (1965) — Arnaldo Jabor: "O Circo" (1965); "A Opinião Pública" (1966)Walter Lima
Júnior: "Menino Do Engenho" (1965); "Brasil Ano 2.000" (1968) — Domingos de Oliveira: "Todas as
Mulheres Do Mundo" (1966); "Edu Coração De Ouro" (1967) — Júlio Bresasane; "Lima Barreto"
(doc. — 1966) ; "Betânia Bem De Perto" (doe. — 1966) ; "Cara A Cara" (1967) — Paulo Gil Soares:
"Memórias Do Cangaço" (doc. — 1965); "Proezas De Satanás Na Vila Do Leva--E Traz" (1967) —
Mário Fiorani: "A Derrota" (1966); "O Engano" (1967) — Antônio Carlos Fontoura: "Ver E Ouvir"
(sh. — 1966); Heitor Dos Prazeres" (doc.
1966); Copacabana Me Engana" (1968) — Gustavo Dahl: "E
m
Busca do Ouro" (doe. — 1965); "z
Bravo Guerreiro" (1968) — Fernando Coni Campos: "A Morte Em Três Tempos" (1963); "Brasília,
Planejamento Urbano" (doe. — 1964); "Viagem Ao Fim Do Mundo" (1967); "Tarsila" (doc. — 1969)
Maurice Capovilla: 'Meninos Do Tietê" (doc. — 1962); "Subterrâneos Do Futebol" (doc. —
1964);
•"Bebei, Garota Propaganda" (1967)Wilson Silva: "Nordeste Sangrento" (1963); "Cristo De Lama"
(1968) — Maurício Gomes Leite: "A Vida Provisória" (1968) — Sílvio Bach: "Lance Maior" (1968)
David Neves: "Humberto Mauro" (doe. — 1966); "Colagens" (sh. — 1967); "Vinícius De Moraes"
(doc. — 1969); "Memória De Helena" (1969) — Iberê Cavalcanti: "A Virgem Prometida" (1967) —
Rogério Sganzerlas "O Bandido Da Luz Vermelha" (1968) — Eduardo Coutinho: "O Homem Que
Comprou o Mundo" (1968) — Miguel Borges: "Zé Da Cachorra" (epis. de "Cinco Vezes Favela"
1961); "Canalha Em Crise" (1963); "Perpétuo Contra O Esquadrão Do Crime" (1966); Maria Bonita,
Rainha Do Congaço" (1967) — Marcos Farias: "Um Favelado" (epis. de "Cinco Vezes Favela'
-
1961) ; "Sexto Páreo" (doc. — 1969) — Trigueirinho Neto: "Apelo" (doe. — 1961); "Baía de Todos
Os Santos" (1961.
CINEMA NOVO E CINEMA BRASILEIRO
situação dos cineastas já reconhecidos, respeitados, com aceitação mais ou
menos assegurada.
Ora, se isso por um lado representa uma insofismável vantagem, não
há dúvida que, por outro lado, oferece perigos sérios, quais sobretudo, o da
fácil comercialização de um produto que, desde o início, encontrou sua
maior força na expressão individual, na espontaneidade criadora. E não são
raros os casos de realizadores que, tendo algum tempo navegado, braçada a
braçada, junto à onda incerta do cinema novo, resolvem aderir
gritantemente à sedução do produto estandartizado, amplamente comercial,
e quase vizinho da terrível e jamais esquecida "chanchada"...
São casos raros, felizmente. E a fidelidade parece ser a dominante
nesse movimento que, no entanto, sempre fugiu a arregimen-tações
sistemáticas, a manifesto e programas definidos. Um entendimento como
que secreto, uma corrente afetiva subterrânea e não revelada, talvez
estejam na base dessa tão persistente unidade de ação e orientação.
E talvez também daí provenha grande parte do perigo que ainda corre
o nosso cinema novo. Inconformista por natureza, anti-mítico, em nada
místico, quase iconoclasta, aqui e ali revolucionário, não raro com
tendências francamente esquerdistas, insistiu sempre em manter um
agressivo estado de espírito de grupo, quase de casta, que
(8) Não a título de uma Bibliografia completa sobre o cinema novo. que seria bem vasta e nos
levaria muito longe nesse rápido estudo, alinhemos alguns livros, estudos ou artigos de jornal que
poderão lançar luzes informativas sobre a matéria (ordem alfabética): Almeida Salles (F .L .)
"Estado de São Paulo", 26-3-1966 (Artigo: "Transcendência Da Revista") — Azeredo(Ely) — "Filme
Cultura" (Art. dos n.° 1, 3 e 7 — 1966-67) — Bernardet,(Jean-Claude) — "Brasil Em. Tempo De
Cinema" (Ed. Civilização Brasileira — 1917) — Cavalcanti(Alberto) — "Filme E Realidade" (L.
Martins Editora — 2.
a
Edição. 1953) — Cavalcanti De Faiva(Salviano) — "Filme Cultura" (Art. do n
2, 1966 — Art. diversos em "Correio Da Manhã" — DahlGustavo (e outros) — "Vitória Do Cinema
Novo" (em Revista Civilização Ed. — n.° 2 — maio, 1966) — Faria(Oc1avio De) — "Pequena
Introdução À História Do Cinema" (Edições De Ouro — 2.
a
Edição, 1968) — "Cadernos Brasileiros"
(Art. em n.° 2 do ano V, 1963) — "Filme Cultura" (Art. no n.° 8, 1968) — "Situação E Tendências Do
Cinema Brasileiro Depois De 1950" (comunicação à UNESCO, 1968) — Grunewald(José Lino) —
"Filme Cultura" (Art. do nº 2, 1967) — Lima(Pedro) — "O Cruzeiro" (Art. do n.° de 3-2-1951, e
seguintes) — Mello E Sonza(Claudio) — "Cinema Novo E Agonia" (Art. em "Jornal Do Brasil", 4-10-
62) — Moniz Viana(Antônio) — "Filme Cultura" (Art. do n.° 2, 1966 — Art. div. em "Correio Da
Manhã") — Moraes(Yinicius De) — "A Cigarra" (Entr. do n.° de agosto de 1953) — Neves(David)
"Cinema Novo No Brasil" (Ed. Vozes, Petrópolis, 1966) — Ortiz (Cariou) — "Romance Do Gato
Negro" (L. Ed. Casa Do Estudante do Brasil, 1952) — Mocha (Glauber) — "Revisão Crítica Do
Cinema Brasileiro" (Ed. Civilização Brasileira, 1963) — Entrevista em "Les Du Cinema", n.° 214
jul.-agôsto, 1969) — Shatovsky (Alberto) — "Filme Cultura" (Art. do n.° 3, 1967)
Tambellini(Flávio) — "Filme Cultura" (Art. do n.° 3, 1967) — Viany (Alex) — "Introdução Ao Cinema
Brasileiro" (Instituto Nacional Do Livro —MEC
1959) — "Senhor" (Art.: "Cinema Novo — Ano I" — n.° de 1962).
OCTÁVIO DE FARIA
afastou dele muitas das possibilidades de desenvolvimento que se lhe
ofereceram. Talvez com certas vantagens, sob o ângulo da independência,
do espírito de iniciativa, da liberdade de opinião e exposição, mas,
também, segregando, limitando, não raro circunscrevendo seus esforços
dentro do apertado de alguns tabus e preconceitos de escola,
absolutamente secundários.
Seja como fôr, e ao contrário do parecer de alguns apressados que não
raro voltam a proclamar sua morte (pelo menos como "movimento", como
unidade de combate), o cinema novo me parece mais vivo, mais
importante, do que nunca, agora que o vemos atingir quase sua primeira
década de existência. Reconhecendo suas inevitáveis pequenas limitações,
lamentando não podermos acompanhá-lo em algumas de suas mais
constantes reivindicações políticas ou doutrinárias e, também, em algumas
de suas inexplicáveis obstinações técnicas, beirando algumas delas a franca
região dos "cacoetes" cinematográficos bunuelescos ou godardizantes,
concordemos e proclamemos bem alto o grande passo, decisivo mesmo,
que fêz dar ao nosso cinema. Quaisquer que tenham sido suas falhas, essa
contribuição foi amplamente positiva, concretiza-se no equilíbrio de
grandes cineastas, em filmes plenamente realizados, em prestígio
internacional inegavelmente conseguido. É um fato consumado, cuja
importância não pode ser reduzida, quaisquer que sejam, no futuro, seus
novos passos.
Sigismund Neukomm Um
músico austríaco no Brasil
MOZART DE ARAÚJO
Não pretendo que a atividade musical de Sigismund Neukomm no Rio
de Janeiro, onde permaneceu de 1816 a 1821, dê margem a um novo
capítulo da história da música brasileira.
A verdade histórica, no entanto, está a exigir o resgate de uma dívida
que temos para com esse músico ilustre que foi o discípulo dileto de
Haydn e cujo nome, omisso na literatura musical do Brasil, ocupou lugar
destacado nas principais obras musicais da Europa, da primeira metade do
século XIX.
Os bons dicionários de música dedicam-lhe longos artigos que não se
cingem somente à sua vasta produção musical, mas também aos seus dotes
excepcionais de organista.
Pelas referências que lhe fazem Grove, Riemann, Lavignac, Fetis e
outros autores, ficamos sabendo que, ao longo de sua vida de músico-
itinerante, Neukomm era afeiçoado à companhia de personalidades da
aristocracia dos países por onde ia passando. A rigor, Neukomm foi um
músico de corte, como o fora o seu paternal preceptor Joseph Haydn, e
como tal tornou-se figura central de acontecimentos memoráveis,
ocorridos no mundo da música europeia da primeira metade de oitocentos.
Nascido em Salsburgo em 1778, numa casa vis-à-vis àquela em que,
vinte e dois anos antes, nascera Mozart, logo na primeira idade Neukomm
tornou-se aluno de Michel Haydn, mestre de capela e organista da
catedral. Não tardou que Michel Haydn confiasse a Neukomm parte das
funções de organista que exercia na catedral, assim como em outras
igrejas da cidade.
Aos 16 anos, munido de uma recomendação de Michel para seu irmão
Joseph Haydn, Neukomm transfere-se para Viena, a fim de completar seus
estudos com o grande mestre.
MOZART DE ARAÚJO
Com o pai da sinfonia Neukomm estuda sete anos consecutivos, durante os
quais as relações de professor e aluno se transformam numa afeição recíproca de
pai e filho, o que levou Haydn a declarar certa vez que dos seus alunos o maior era
Beethoven, porém o pre-dileto era Neukomm.
Ao deixar Viena em 1804, Neukomm leva consigo uma carta de Haydn,
dirigida à Imperatriz da Rússia, Maria Fedorowna, que havia sido sua aluna em
Viena, quando ainda grã-duquesa. Em São Petersburgo, a Imperatriz fê-lo nomear
Mestre de Capela. Neukomm tinha apenas 26 anos e compõe sua primeira e talvez
única ópera — "Alexander am Indus" — levada à cena no dia da coroação do
Imperador Alexandre da Rússia.
Embora desfrutando de situação invejável na corte, Neukomm deixa a Rússia,
passando por Berlim, então ocupada pelos franceses, e retorna a Viena onde visita
diariamente seu velho mestre Haydn, já então com 77 anos.
Rememorando os seus últimos contatos com Haydn, Neukomm deixou nos
seus apontamentos biográficos a seguinte nota:
... "Haydn estava então bastante debilitado. Apesar de essa
debilidade física durar já há algum tempo, êle conservava todavia a sua
memória e a sua afabilidade. O fogo anacreônico, porém, que tinha
vivificado toda a sua obra, sobretudo suas últimas produções
instrumentais, (...) esse fogo tinha se apagado e se havia transformado
numa sensibilidade tal, que a menor emoção o fazia derramar-se em
lágrimas; e três meses depois, quando eu já havia deixado Viena, êle
sucumbiu sob o peso da tristeza que lhe causou a desgraça que havia
atingido seu país e seu soberano." (1)
Foi durante esses derradeiros contatos que Neukomm recebeu do velho
mestre a incumbência de ultimar algumas de suas obras inéditas.
Dois anos depois, Neukomm encontra-se em Paris, onde passa a ocupar a
função de músico da casa do Príncipe de Talleyrand.
Graças ao prestígio que lhe deu a proteção desse príncipe, foi Neukomm
escolhido para reger, na igreja de Notre Dame, em presença de toda a família real,
um Te Deum de sua autoria, por ocasião da entrada solene de Luiz XVIII em Paris.
Em 1814, reis, imperadores, príncipes e nobres de todos os países europeus
reunem-se em Viena para estabelecer e fixar a nova geografia da Europa, já livre
da dominação napoleônica.
O programa musical das comemorações do Congresso de Viena ficou a cargo
de Neukomm. Mereceu destaque especial a execução, por motivo da morte do rei
Luiz XVI, do Grande Requiem em dó menor, de sua autoria, na igreja de Santo
Estevam, com mais de
SIGISMUND NEUKOMM
trezentos cantores, divididos em dois coros regidos por Salieri. Por essa
ocasião, Luiz XVIII fê-lo nomear Cavaleiro da Legião de Honra
Regressando a Paris com o Príncipe de Talleyrand, Neukomm aceita o
convite do Duque de Luxemburgo para que o acompanne ao Rio de
Janeiro. O Duque, como Embaixador Extraordinário do rei Luiz XVIII de
França, vinha ao Rio de Janeiro com a missão de felicitar D. João VI por
sua ascensão ao trono, vago desde a morte de sua sua mãe, a rainha D.
Maria I.
Ausente durante seis anos dos centros mundiais de irradiação da
música, a permanência de Neukomm na capital brasileira nao arrefeceu o
prestigio que desfrutava na Europa.
De regresso ao velho continente em 1821, Neukomm é agraciado em
Lisboa por D. João VI com a Ordem de Cristo. Logo depois, em Paris,
recebe do mesmo soberano a Ordem da Conceição, sendo reintegrado nas
funções de músico da casa do Príncipe de Talleyrand.
Por ocasião da inauguração do monumento a Guttemberg em
Mayence, é incumbido de compor um Te Deum que foi levado solene-
mente, com 1.200 vozes, quando foram utilizados todos os instrumentistas,
assim como os alunos de todas as escolas da cidade.
A partir de então, Neukomm inicia uma série de transcrições para
órgão expressivo e para piano-forte, de obras de Beethoven, Bach, Haydn,
Haendel, obras que foram publicadas por casas editoras da categoria de
Schott e Breitkopf & Hartel, de Leipzig, Richault, de Paris, Tranquilo
Mollo e Artaria & Cia., de Viena.
Em 1842 retorna à sua cidade natal, Salsburgo, como convidado
especial da cidade para proferir o discurso de inauguração da estátua de
Mozart. Como nota pitoresca, menciono a observação de Neukomm, de
haver-se encarregado pessoalmente de fazer o plano e fiscalizar a
construção do estrado onde, sob sua direção, se realizaram então quatro
grandes concertos sinfónicos.
Eu não desejaria me estender na enumeração de fatos e ocorrências
marcantes que refletem a consideração e o alto conceito que nos meios
musicais do velho mundo desfrutava o nosso ilustre visitante de 1816,
mesmo porque os eventos aqui relembrados constam, em sua maioria, dos
verbetes e das notícias que os livros mencionam.
Apenas, de passagem, aduzirei que Neukomm, além das relações de
amizade que cultivou com personalidades políticas eminentes da época, foi
um amigo dedicado de poetas, escritores e músicos dos maiores do seu
tempo, citando-se, entre outros, os nomes de Walter Scott, de Mendelsohn,
o qual esboçou numa frase o retrato psicológico de Neukomm: "É um
homem calmo, fino e sincero. É um verdadeiro e consciencioso amigo." A
Cherubini, Neukomm dedicou um Cânone, em cujo original escreveu esta
nota: "Compus este Cânone para o álbum do meu amigo Cherubini e
escolhi estas palavras que fazem alusão à ingratidão dos nossos
contemporâneos que não sabem apreciar suficientemente o mérito deste
grande compositor."
MOZART DE ARAUJO
A Chopin, dedicou em 1849 uma "Elegie Harmonique", com a seguinte
dedicatória: "Une fleur sur la tombe de notre ami Chopin."
NEUKOMM NO RIO DE JANEIRO
É estranho que o nome de Sigismund Neukomm, que figurava
frequentemente em programas de concertos nas principais cidades europeias —
Paris, Londres, Berlim, São Petersburgo, Roma, Viena — ao lado de Beethoven,
Hummel, Haydn, Mozart e Haendel, haja sido esquecido de tal modo que os
próprios historiadores da música no Brasil, ao fazerem menção ao seu nome,
limitam-se a referências tão escassas e resumidas que não dão, em absoluto, ideia
do valor e da projeção que êle teve na música da primeira metade do século pas-
sado, tanto na Europa como no Brasil.
É certo que os historiadores da Missão Artística de 1816, chefiada por Le
Breton, abrem páginas ao nome de Neukomm, mencionando-o como o músico da
Missão.
Apesar do esforço desses historiadores no sentido de esclarecerem a atividade
de cada um dos membros da Missão Francesa no Brasil, a verdade é que o nome de
Sigismund Neukomm está cercado senão de mistério, pelo menos de dúvidas e até
mesmo de divergências e contradições que devemos atribuir à ausência de fontes
seguras de informação a seu respeito. E a primeira dúvida a esclarecer, diante dos
novos elementos informativos que colhi em bibliotecas de Berlim e Munique e
sobretudo na Biblioteca do Conservatório de Paris, é que Neukomm não fêz parte
do grupo comandado por Le Breton. A sua condição de austríaco, alheio ãs
mesquinhas injunções políticas que determinaram o afastamento da França dos
integrantes da Missão e a ausência de sua participação posterior na organização do
ensino musical no novo reino americano, indicam que a vinda de Sigismund
Neukomm foi antes fruto exclusivo do seu desejo permanente de realizar mais uma
das inúmeras viagens que empreendeu, ao longo de sua vida de músico-errante,
sempre curioso de conhecer países exóticos e terras estranhas.
A Doutora Gisela Pellegrini, de Salsburgo, publicou em 1936 uma biografia
do compositor — Sigismund Ritter von Neukomm, Ein vergessener Salzburg
Musiker — na qual não existe a menor alusão à participação de Neukomm como
membro da Missão.
Adolfo Morales de los Rios Filho menciona o nome de Neukomm como
integrante efetivo da Missão, em cujo seio teria figurado como "músico,
compositor e organista." (2) Contraditoriamente, afirma logo depois: "Da Missão
Artística Francesa não fizeram parte Sigismund Neukomm, nem Marc e Zephirin
Ferrez", (3) acrescentando, por fim, que: "Dos professores franceses, membros da
Missão ou diretamente ligados à mesma, sabe-se que Lebreton, Augusto Taunay,
Grandjean de Montigny, Bonrepos, Ovide, Marc Ferrez, Zephirin
Sigismund Ritter von Neukamm. Lithographie von Ch. Meder
nacli dem Gemalde von E. Kietz.
SlGISMUND NEUKOMM
e Dillon morreram no Brasil. N. Taunay, Debret e Pradier
voltaram para a França. Não é conhecido até hoje o destino dos
demais." (4)
Do mesmo modo, o insigne Afonso d'Escragnolle Taunay, depois de
afirmar que a Missão Le Breton e com ela Sigismund Neukomm se
transportou ao Brasil a bordo do pequeno brigue "Calpe , de três mastros,
de bandeira norte-americana, que zarpara do Havre a 22 de janeiro de
1816, divisando a 25 de março a barra do Rio de Janeiro, (5) páginas
adiante informa, contraditoriamente, que ' um pouco mais tarde (isto é,
depois de 25 de março) chegaram os irmãos Ferrez e Sigismund
Neukomm, vindo em companhia do embaixador francês, Duque de
Luxemburgo, enviado em missão especial ao Rio de Janeiro para reatar as
relações entre a França e Portugal, rotas desde a revolução." (6)
No seu "Esquisse Biographique", Neukomm desfaz a dúvida, de-
clarando que o Duque de Luxemburgo, de cuja comitiva fazia parte,
juntamente com o sábio Saint'Hilaire, partiu do porto de Brest a 2 de abril
de 1816, a bordo da fragata "L'Hermione", aportando ao Rio de Janeiro a
30 de maio do mesmo ano. (7)
No Brasil, Neukomm permaneceu até 15 de abril de 1821, data em
que regressou à Europa, na fragata "Mathilde".
Na capital brasileira, contou desde logo com a acolhida do Conde da
Barca que, quando do regresso do Duque de Luxemburgo, propôs a
Neukomm permanecer no Brasil, dando-lhe mesa e alojamento em seu
próprio palácio, situado à Rua do Passeio, próximo à Rua das Marrecas,
então chamada das Belas Noites.
Recebido na corte, Neukomm tornou-se professor do Príncipe Real D.
Pedro, de sua esposa D. Leopoldina, Arquiduquesa d'Austria e da infanta
D. Isabel Maria, sendo admitido ainda para fazer música com os príncipes
e para exercitá-los na língua francesa. Logo depois Neukomm inclui entre
os seus alunos a esposa do Cônsul Geral da Rússia e "uma jovem de 16
anos que possui disposições extraordinárias e uma aplicação pouco
comum." E também aquele que seria o futuro autor do Hino Nacional
Brasileiro — Francisco Manuel da Silva.
Por encomenda da futura imperatriz D. Leopoldina, Neukomm
compõe, além de outras, a "Grande Missa de S. Francisco", oferecida ao
Imperador da Áustria, Francisco I.
Do Rio, escreve, a partir de 1819, para o jornal Allgemeine
Musikalische Zeitung, de Viena, uma série de artigos, nos quais comenta
episódios importantes da vida musical da capital brasileira, citando, entre
outros, a primeira audição da "Criação" de Haydn e a primeira audição do
"Requiem" de Mozart, regidos ambos pelo Padre José Maurício Nunes
Garcia, cujos méritos de diretor de orquestra, de mestre de música, de
organista, de compositor e de improvisador Neukomm foi o primeiro a
divulgar na Europa
MOZART DE ARAÚJO
Ao completar o "Requiem" de Mozart, em 1821, no Rio de Janeiro,
Neukomm deixou na partitura a seguinte nota: "Le Libera, qui dans le rite de
l'Eglise Romaine termine la messe pour les morts, manque au "Requiem" de
Mozart."
Segundo Eduardo Prado, Neukomm forneceu a Le Breton os subsídios para a
primeira obra de literatura musical que é também a primeira biografia de músico
célebre, escrita e impressa no Brasil:
"Notícia Histórica/da Vida e das Obras/de/José Haydn/Dou-tor em
Música/Membro Associado do Instituto de França/e de muitas
academias./Lida na Sessão Pública de 6 de outubro de 1810/por/Joaquim
Le Breton/Secretário Perpétuo da Classe de Bellas-Artes/Membro da de
História e Literatura Antiga/e da Legião de Honra./Traduzida em
portuguez/por hum amador/e dedicada ao Senhor/Segismundo
Neukomm/Cavalleiro da Legião de Honra, Membro da Sociedade/Real
de Musica da Suécia, da Sociedade Imperial/Philarmonia de S.
Petersbur-go, da Academia/Real das Sciencias de Paris, etc/Rio de
Janeiro, na Impressão Regia/MDCCCXX/".
O CATÁLOGO TEMÁTICO DE NEUKOMM
Os documentos de Neukomm que venho revelando ao Brasil desde 1951 —
principalmente o Catálogo Temático de suas obras — são do maior interesse para
a nossa história musical. O Catálogo é um documento curioso: enumera os
primeiros compassos de cada obra, em ordem absolutamente cronológica e
menciona o local, o ano e a data em que a obra foi terminada. Por êle sabemos que
a produção de Neukomm no Brasil atingiu a quarenta e cinco peças, cuja relação
publiquei no Correio da Manhã de 19 de janeiro de 1957. Entre as primeiras obras
compostas em 1816, figura uma "Fantasia a Grande Orquestra sobre uma pequena
valsa de S.A.R. o Príncipe D. Pedro". Logo a seguir, o Catálogo registra um
arranjo para orquestra, de seis valsas do mesmo príncipe.
A notícia dessas composições traz revelações que considero importantes sob
vários aspetos: 1.° — a Valsa não chegou ao Brasil em 1837, como afirma o
historiador Renato Almeida, pois que D. Pedro já as compusera em 1816; 2.° —
durante mais de século as únicas obras conhecidas do príncipe que proclamou a
nossa independência foram: o "Hino Constitucional" ou "Hino da Carta", que foi o
"Hino Nacional Português", e o "Hino da Independência" que também se chamou
"Hino Imperial", o qual foi até 1831 o "Hino Nacional" do Brasil.
Em 1819, Neukomm incluiu no seu Catálogo, sob o título "L'Amoureux",
uma "Fantasia para Piano Forte e Flauta". (8)
A Fantasia é dedicada aos seus amigos Madame e Monsieur Langsdorf que
era Cônsul Geral da Rússia no Brasil e em cuja chá-
SlGISMUND NEUKOMM
cara de Botafogo, então arrabalde do Rio de Janeiro, costumava reunir, em
serões musicais, os melhores músicos da época e em cujo cravo o Padre
José Maurício dava expansão aos seus raros dotes de improvisador, ao
mesmo tempo que lia, com Neukomm, as últimas novidades musicais
chegadas da Europa.
Tenho motivos para supor que a Fantasia haja sido escrita para ser
executada na flauta pelo príncipe D. Pedro, já que todas as dificuldades
técnicas da obra ficam a cargo do piano. Daí ser ela composta para piano e
flauta e não para flauta e piano, como é de uso.
Após uma pequena introdução, em forma de recitativo, há sobre a
pauta do original da Fantasia a seguinte indicação de Neukomm:
"La Melancolie, modinha por Joaquim Manoel da Câmera".
Esse Joaquim Manoel, como veremos adiante, foi, depois de
Domingos Caldas Barbosa, o mais famoso modinheiro do Brasil-Co-lônia.
A seguir, encontramos no Catálogo o registro de um "Capricho para
piano forte, sobre um lundu brasileiro". O capricho traz o nome de "O
Amor Brasileiro" e é dedicado a D. Maria Joana de Almeida.
Nesta peça, como na anterior, Neukomm compõe sobre temática
brasileira. Na peça para piano e flauta, sobre melodia de autor declarado:
Joaquim Manoel da Câmera; n'0 Amor Brasileiro, sobre um lundu
tradicional.
Não tenho a intenção de insinuar que, ao escrever essas obras aqui
mencionadas, tivesse Neukomm o propósito pioneiro de fazer
nacionalismo musical. Ê preciso não esquecer que em 1819, ano em que as
peças foram compostas, Chopin tinha nove anos e Liszt apenas oito.
Neukomm foi pioneiro na utilização de temas brasileiros e não na
mudança de rumos estéticos que a música tomaria logo depois com Glinka,
Chopin, Liszt, Pedrell, Smetana e outros precursores do movimento que se
consolidou com o aparecimento do Grupo dos Cinco, na Rússia.
Dentro da produção de Neukomm, essas composições, vasa-das
no mais puro estilo clássico, soam como peças amáveis, escritas com uma
certa gratuidade, isto é, com a preocupação única, talvez, de explorar o
pitoresco. No repertório exclusivamente europeu da época, teria sido
curiosa, certamente, a audição de peças construídas sobre motivos rítmicos
e melódicos do Brasil, provindos de fontes populares ou anónimas.
É lícito, ainda, supor que elas sejam fruto de uma imposição... da
moda. Da moda, sim, porque ecoava, no Brasil de 1816, o sucesso de
Domingos Caldas Barbosa, cantando nos palácios reais e nos salões
fidalgos de Lisboa, ao som da sua viola de arame, as suas modinhas
sentimentais e os seus lundus magoados.
MOZART DE ARAÚJO
Um desses lundus tem por assunto "o amor brasileiro". Perdeu-se a
música do lundu, mas salvaram-se os versos do poema, publicados no
"Viola de Lereno". Quem poderá afirmar que a melodia desse lundu do
padre modinheiro não seja aquela utilizada por Neukomm no seu
Capricho? A coincidência do tema — o amor brasileiro — e mais do que
isso, a adequação da letra à música, autorizam a suposição.
Mas o que importa, no caso, não é tanto a origem dos temas nem
mesmo o valor musical apreciável dessas obras que trazem a assinatura do
discípulo favorito de Haydn. O que cumpre assinalar é a originalidade de
serem construídas sobre temas nativos do Brasil, fato que pela primeira
vez ocorre na história da nossa música erudita.
Seria escusado tentar ocultar a significação histórica e o valor
documental dessas peças que encontrei na Biblioteca do Conservatório de
Paris, em 1951, peças que dão irrecusavelmente a Neukomm a primazia do
emprego de temas do populário brasileiro em obras musicais para
concerto.
Conquanto essa primazia venha sendo atribuída ao nosso conterrâneo
Brazilio Itiberê, a verdade é que somente cinquenta anos depois, isto é, em
1869, o compositor paranaense retomaria o processo utilizado por
Neukomm, empregando na fantasia característica para piano "A
Sertaneja", o tema popular do "Balaio, meu bem, Balaio".
Voltemos, porém, ao Catálogo de Neukomm para uma observação que
vem confirmar o juízo que dele fêz Mendelshon, de ser um amigo fiel e
verdadeiro: antes de deixar a Europa em 1816, Neukomm escreveu em
Paris a peça "Les adieux de Neukomm à ses amis, lors de son depart pour
le Brésil". Ao deixar o Brasil em 1821, Neukomm se despede dos amigos
com a peça "Les adieux de Neukomm à ses amis à Rio de Janeiro".
AS MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL
O Catálogo de Neukomm, porém, não menciona as harmonizações —
talvez por serem simples harmonizações — que fêz em Paris, em 1824, de
vinte modinhas do músico popular brasileiro Joaquim Manoel.
A modinha, como sabemos, vinha do século XVIII e trazia, como ária
de corte que era, a melódica ornamentada da ária setecentista italiana e
alemã, que lhe serviam de modelo. Na primitiva modinha, é facilmente
identificável a influência e até mesmo a presença de Paisiello, Gluck,
Haydn, Mozart. Nelas, só a língua era vernácula.
Bem cedo, porém, escritores e viajantes chamaram a atenção para o
fato curioso de a moda ou modinha portuguesa conservar o caráter
aristocrático de ária de salão, ao passo que no Brasil a modinha adquiria,
desde logo, um conteúdo social pronunciado, pela participação crescente
do povo na produção modínheira.
SlGISMUND NEUKOMM
Ninguém ignora o enorme papel socializante que a música de-
sempenhou no Brasil, atuando como agente de aproximação de classes e
fator de aproximação entre escravos e senhores: o lundu dos negros,
sorrateiro e malicioso, galgando as escadas dos palácios e penetrando nos
salões de gente branca, onde é tocado e dançado, segundo depoimento de
Martius, pelas sinhás-moças e até mesmo pelo príncipe herdeiro da coroa,
que o executava ao piano e ao cravo; e a modinha, em sentido oposto,
descendo da sua esfera aristocrática, para se popularizar e adquirir, com o
tempo, foros de legítima canção popular brasileira.
Neukomm documentou esse fenômeno, dando revestimento erudito ao
lundu que vinha das senzalas, e harmonizando, com singeleza e sem
rebuscamento, as modinhas que começavam a repontar nas esferas
populares da capital brasileira.
Quanto ao autor dessas modinhas — Joaquim Manoel — era um
músico sem instrução. Não conhecia uma só nota de música; mas o seu
talento se exteriorizava com tanta espontaneidade e com tal refinamento
que Louis de Freycinet, viajante francês, capitão de navio, que foi hóspede
do Rio de Janeiro em 1817 e 1820, não hesitou em escrever no seu
raríssimo "Voyage autour du monde", o seguinte:
"Citavam-se ainda (no Rio de Janeiro) alguns compositores, entre os quais
um mulato, o Padre José Maurício, de valor. Mas, quanto à execução, nada
me pareceu mais espantoso do que o raro talento na guitarra de um outro
mestiço do Rio de Janeiro, chamado Joaquim Manoel. Sob os seus dedos o
instrumento tinha um encanto inexprimível, que nunca mais encontrei entre
os nossos guitarristas europeus, os mais notáveis. Esse músico é também o
autor de várias "modinhas", gênero de romanças muito agradáveis, das
quais M. Neucum (sic) publicou em Paris uma coletânea." (10)
Mais adiante Freycinet acrescenta que: "Excelente na prática, diz-se
que Joaquim Manoel não é capaz de ler ou escrever uma linha de música;
mas executa os trechos mais difíceis e os varia de mil maneiras, bastando
para isso, que sejam executados uma só vez para êle." (11)
Um outro autor, Adrien Balbi, no seu igualmente raro "Essai
Statistique sur le Royaume de Portugal et d'Algarve" depõe também sobre
Joaquim Manoel, dizendo que era dotado de um excepcional talento para a
música e afamado, sobretudo, por tocar com perfeição uma pequena viola
francesa de sua invenção, chamada "cavaquinho." É autor — arremata
Balbi — de belas modinhas. (12)
Atribuindo erroneamente a Joaquim Manoel a invenção do pequeno
instrumento originário da Ilha da Madeira, Balbi endossa o depoimento de
Freycinet quanto ao talento extraordinário desse músico instintivo que teria
permanecido no olvido, não fosse o interesse que por êle demonstrou
Neukomm, registrando no pentagrama
MOZART DE ARAÚJO
e levando para a pauta impressa, em Paris, peças populares do período
colonial, nas quais o caráter nacional brasileiro está perfeitamente
caracterizado.
Apesar de não figurarem no Catálogo de Neukomm, não foram
poucas as tentativas e buscas que empreendi, para localizar as famosas
modinhas de Joaquim Manoel.
Quando em 1951 descobri na Biblioteca do Conservatório de Paris,
inventariados mas ainda não catalogados, o Catálogo Temático e os 93
volumes que compõem a obra autografa de Neukomm, ali depositada por
seus parentes em 1899, não logrei localizar as modinhas, já por não
figurarem no Catálogo, já porque a minha atenção se concentrou em
levantar a produção de Neukomm no Brasil.
Desse precioso achado dei conta a Luiz Heitor que, residente em Paris,
deparou tempos depois com um volume contendo o rascunho das
modinhas de Joaquim Manoel (Mss 7694), muitas com harmonização
acabada, outras com harmonização incompleta, umas sem as estrofes dos
poemas e algumas escritas em três pautas, com as duas pautas do piano em
branco, apenas esboçada a melodia.
Ao retornar a Paris em 1966, procurei ver esses originais, depositados,
já agora, no Departamento de Música da Biblioteca Nacional. Com
surpresa verifiquei que além do volume contendo os rascunhos
encontrados por Luiz Heitor, havia lá um outro, devidamente catalogado,
com a coleção completa das modinhas. O volume (Mss 7699/36)), cuja
publicação em ortografia atualizada tenho em preparo, contém o seguinte
título:
"20 Modinhas Portuguezas/por Joaquim Manoel/da Câme-
ra/notées et arrangés avec/acct. de Pft./par S. Neukomm/.
O autor recopiou as peças dos rascunhos com todo o cuidado, sem
rasuras, completando os poemas e fazendo, em cinco peças, transposição
de tonalidades, de modo a adaptá-las melhor à tessitura de soprano.
Esta coleção, que traz à margem superior da folha de rosto a palavra
"grave", apresenta todos os indícios de ser a versão publicada em Paris, de
que fala Freycinet e cuja venda foi anunciada na Gazeta de Lisboa em
1824, nos armazéns de música de J. B. Walt-mann e Francisco Antonio
Driesel.
Em Lisboa, Joaquim Manoel não era, aliás, um desconhecido. No
início do século, duas, pelo menos, de suas modinhas, não incluídas no
Álbum de Neukomm, foram cantadas em teatro na capital portuguesa. As
duas peças constam de um álbum de 12 modinhas — "Collecção de
Modinhas Porthuguezas" (sic), existente na Seção de Manuscritos da
Biblioteca Nacional de Madrid, onde as examinei. São as seguintes:
SIGISMUND NEUKOMM
"2. Fol. 5. Modinha cantada por Claudina Rosa no Teatro do
Salitre de Joaq.
m
Manoel Brazileiro: Quem quer comprar qu'eu
vendo. Partitura para violines, viola voz y bajo". "6. Foi. 25.
Modinha Brazileira de Joaq.
m
Manoel: O meu manso gado.
Partitura de violines, viola, voz e bajo". (Mss 2261 —
Procedência: Biblioteca de Osuna) (13)
Os arranjos instrumentais são, provavelmente, da autoria do músico
espanhol José Palomino, que de 1775 até 1808 residiu em Lisboa, onde
compôs para a Capela Real e para teatro.
Neukomm não tentou dramatizar a modinha. Teve, ao invés, o bom
gosto de harmonizá-las com sobriedade, demonstrando o propósito de
ressaltar com simplicidade a beleza da linha melódica e o denso e
apaixonado lirismo dos poemas que lhe servem de texto, escritos, em sua
maioria, em metro de redondilha maior e ao gosto arcádico de usar o
mesmo verso como fecho de cada estrofe.
Exemplo disso é a modinha "A Melancolia", que tem na Coleção o n.°
9, e cuja melodia Neukomm já usara no Brasil, como tema da fantasia para
piano e flauta "L'Amoureux":
Desde o dia em que eu nasci
Naquele funesto dia, Veio
bafejar-me o berço, A cruel
melancolia.
Fui crescendo e nunca pude, Ver
a face da alegria, Foi sempre a
minha herança, A cruel
melancolia.
Protestou seguir meus passos, Té
levar-me à campa fria, Macerou
minha existência, A cruel
melancolia.
Não me sinto em condições de oferecer aqui argumentos conclusivos a
respeito da autoria das letras das modinhas de Joaquim Manoel. Nos
manuscritos de Neukomm nenhuma referência existe sobre o assunto, a
não ser a indicação geral, no título da coleção: "Modinhas por Joaquim
Manoel da Câmera." Essa Indicação não autoriza a conclusão de serem as
poesias escritas pelo próprio Joaquim Manoel. É praxe universal indicar a
autoria das peças para canto apenas pelo nome do autor da música. Além
do mais, Joaquim Manoel era, como já vimos, homem de poucas letras.
Por outro lado, certa diversidade de estilo dos poemas afasta a
hipótese de serem assinados por um único autor.
71
MOZART DE ARAÚJO
Não obstante, em sua maioria os poemas sugerem a lírica de
Domingos Caldas Barbosa.
Ao tempo de Joaquim Manoel, sucediam-se as reedições do "Viola de
Lereno", como ressonância do imenso sucesso do autor nas seratas reais de
Sintra, Bemposta e Queluz e nas assembléias musicais dos solares nobres
de Lisboa, para onde levara, nos fins de setecentos, o lundum e a modinha.
Entre 1798, ano em que sai do prelo a edição princeps do famoso
livro, e 1820, quando ainda vivia no Rio de Janeiro Joaquim Manoel nada
menos de quatro edições do "Viola de Lereno" vieram a lume.
Joaquim Manoel não ficaria indiferente, não direi ao sucesso literário,
mas ao sucesso popular das poesias do triste Lereno. Como observa Sílvio
Romero, "o poeta teve a consagração da popularidade. Não falo dessa que
adquiriu em Lisboa, assistindo a festas e improvisando na viola. Refiro-me
a uma popularidade mais vasta e mais justa."
"Quase todas as cantigas de Lereno correm de boca em boca nas
classes plebeias, truncadas ou ampliadas."
"Formam um material de que o povo se apoderou, modelando-o a seu
sabor. Tenho desse fato uma prova direta."
"Quando em algumas províncias do Norte coligi grande cópia de
canções populares, repetidas vezes colhi cantigas de Caldas Barbosa, como
anónimas, repetidas por analfabetos."
"Foi depois preciso compulsar as obras do poeta para expungir da
coleção anónima os versos que lhe pertenciam." (14)
Se Joaquim Manoel não musicou versões originais dos poemas de
Caldas Barbosa, é certo que utilizou-os nas adaptações populares de que
fala Sílvio Romero.
Enquanto Caldas Barbosa diz:
Logo ao dia de eu nascer, Nesse
mesmo infausto dia, Veio
bafejar-me o berço, A mortal
melancolia. (15)
Joaquim Manoel canta:
Desde o dia em que eu nasci,
Naquele funesto dia, Veio
bafejar-me o berço, A cruel
melancolia.
A coincidência, que não é única, não basta, porém, para uma
conclusão categórica acerca da paternidade dos poemas musicados por
Joaquim Manoel, já que o esclarecimento definitivo do problema
SlGISMUND NEUKOMM
requer o cotejo com os originais do poeta ou até mesmo o confronto entre
esses originais e os textos utilizados por Joaquim Manoel.
* *
Escritores e historiadores dos fins do século XVIII e começos do
século XIX sublinham com certa ênfase a distinção que, desde então, se
manifestou entre a moda portuguesa e a modinha brasileira: aquela,
conservando um acentuado caráter de ária de salão, enquanto que a
brasileira revelava um certo "quê" de meiguice, de ternura e de langor,
atributos esses que vieram a se transformar, com o tempo, nos caracteres
psicológicos essenciais da famosa canção brasileira.
Pouquíssimas peças do gênero, até bem pouco tempo, integravam o
nosso repertório colonial. Hoje, podemos incorporar à documentação do
nosso quase inexistente período clássico da música essas peças singelas
mas de penetrante beleza que Sigismund Neu-komm preservou para a
posteridade, trazendo para a curiosidade dos nossos ouvidos e para o nosso
tão minguado acervo histórico, essa pequena amostra da música que se
fazia no Brasil, no tempo do Rei.
Eu não daria ideia do ambiente musical do Rio de Janeiro da segunda
década de 1800, se não mencionasse o nome do primeiro músico célebre
que pisou terras da América. Chamava-se Marcos Antonio da Fonseca
Portugal.
Marcos Portugal não quis acompanhar a Corte no seu exílio para o
Brasil. Preferiu servir os invasores franceses, regendo no Teatro S. Carlos
de Lisboa os concertos comemorativos da ocupação de Portugal por Junot.
Só em 1811, por interferência de D. Carlota Joaquina, Marcos
Portugal resolve se transferir para o Rio de Janeiro, trazendo na bagagem,
com os seus punhos e bofes de renda, com os seus sapatos de fivela de
prata e suas perucas empoadas, a sua ambição e a sua vaidade.
Marcos Portugal era realmente um músico célebre, sobretudo como
autor melodramático. Suas óperas eram levadas nos principais teatros da
Europa. Por isso D. Carlota Joaquina fê-lo nomear Diretor de todas as
funções públicas de teatro e de igreja da Corte. Nas grandes datas, eram as
suas óperas que figuravam nos espetáculos do Real Teatro de S. João,
espetáculos nos quais êle não se dignava de ocupar o estrado destinado ao
maestro. Regia do camarote de boca, marcando com palmas o compasso da
música.
Neukomm não era homem dessas exterioridades e não desempenhava
qualquer função pública. Provindo da escola de Viena, era um músico
voltado para a sinfonia, para a sonata, para a música de câmera, para as
estruturas mais sólidas da composição musical. Daí ser pouco
compreendido no acanhado meio musical do Rio de Janeiro de 1816, como
assinala Martius.
MOZART DE ARAÚJO
Não há negar que sobre Neukomm pesa o silêncio dos seus próprios
patrícios, que reconhecendo nele a autoridade de quem usava, nas músicas
que editava, o título de "Doutor em Música", não encontraram, todavia, nas
suas composições, aquela originalidade que distingue os que criam música,
dos que apenas jazem ou escrevem música. Possuo, aliás, o comentário de
um crítico austríaco, que -escreveu esta frase dúbia, que tanto pode
encerrar um elogio, como significar uma sentença condenatória: "A música
de Neukomm podia ser assinada por Haydn".
Para nós, brasileiros, porém, esse excelente músico representa algo
mais que um simples compositor.
Na terra jovem que o acolheu, Neukomm teve uma atividade versátil e
eclética, atuando por igual nos domínios da composição, do ensino, da
interpretação musical e da musicografia, tornando-se ainda, sem querer,
personagem da nossa história musical, já que do seu punho sairam as
primeiras obras de concerto, inspiradas em temas que brotaram da
sensibilidade musical do povo brasileiro.
OBRAS CITADAS
1 — Sigismond Neukomm, Esqttisse Biographiqur dr. Écrite par lui même, Typogra-
phie Charles de Mourgues Frères, Paris, 1859, p. 91. o — in Anais do Terceiro Congresso
de História Nacional, boletim do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Imprensa Nacional, Bio de Janeiro, 1942,
p. 17.
3 — Ibid., p. 35.
4 — Ibid., pp. 36/37.
5 — Affonso d'Eseragnolle Taunay, A Missão Artística de 1816, edição do Insti-
tuto Histórico e Geográfico Brasileiro. Typ. Jornal do Commercio, Rodrigues & Cia., Bio
de Janeiro, 1912, pp. 105/7.
6 — Ibid., p. 108.
7 — Sigismund Neukomm, op. cit., p. 11.
8 — Sigismund Neukomm, L'Amouréux, Fantaisie pour piano forte et flute, dediée
a ses amis Monsieur et Madame de Langsdorff, par le Chevalier, Oeuv. 39, Chez Breitkopf &
Hartel à Leipsic.
9 — Sigismund Neukomm, O Amor Brazilciro (L'Amour Brésilien), Caprice pour le
piano forte sur un londú brésilien, dedió à Mademoiselle Donna Maria Joana de Almeida, par
le Chevalier, Oeuv. 45, Chez Breitkopt & Hartel à Leipsic.
10 — M. Louis de Freycinet, Voyage autour du monde, Pillet ainé, imprimeur, Li-
braire, Paris, 1827, tome I, p. 216.
11 — Ibid., tome 111, p. 1352.
12 — Adrien Balbi, Essai Statistigue sur le Itoyaume de Portugal et d'Algarve,
Chez Rey et Gravier, libraires, Paris, 1822, tome second, p. ccxiii.
13 — Higino Anglés y José Subirá, Catálogo Musical de la Biblioteca Nacional de
Madrid. I — Manuscritos, Barcelona, 1946, p. 420.
14 — Silvio Romero, História da Literatura Brasileira, Livraria José Olímpio Editora,
Rio de Janeiro, 1949, 4.
a
edição, tomo segundo, p. 147. 15 — Domingos Caldas Barbosa, Viola de
Loreno, Collecção de suas cantigas, offe-recidas aos seus amigos, Typografia Rollandiaua,
Lisboa, 1819, folheto V, p. 19.
Ciências Humanas
Importância de Estudos Transnacionais para a
Compreensão do Complexo Americano, em Geral, e
em Particular, do Americano-Tropical,
de Sociedade e de Cultura
GILBERTO FREYRE
São arbitrárias — ninguém o ignora — muitas das separações de
assuntos pelo simples critério político-nacional ou estatal nacional. Dai o
empenho de vários de nós, estudantes de Ciências Sociais no sentido de
encaminhar o estudo de vários assuntos aparentemente só brasileiros ou só
peruanos ou apenas argentinos ou chilenos ou colombianos, para
correlações que os integram em complexo supranacional ou transregional
ou transnacional. O complexo americano, por exemplo. É assunto que
procurei já versar: em conferência lida em 1951 na Universidade de San
Marcos, em Lima. É, assim, possível que a presente conferência, em mais
de um ponto, contenha repetição daquela.
Da ideia de se traçar a história das Américas em conjunto — o conjunto
continental — sem prejuízo da história por nações — ideia a que nos
Estados Unidos deu relevo o Professor Bolton, há pouco comentado pelo
seu compatriota, o Professor Lewis Hanke — historiadores e sociólogos
latino-americanos dos mais notáveis se aproximaram desde os começos
deste século em tentativas de síntese ou generalização transnacional, quer
pan-americana, quer apenas latino-americana. Entre eles, o peruano F.
Garcia Calderon, o mexicano Carlos Pereyra, o brasileiro Oliveira Lima.
intimamente, é nesse esforço de síntese que vem se empenhando, de modo
notável, o Professor Silvio Zavala, do México, sendo também esse o
critério que orienta o Seminário, na Universidade de Colúmbia, dedicado à
América Latina, até há pouco sob a sábia direção do Professor Frank
Tannenbaum.
GILBERTO FREYRE
Tentou pioneiramente aquele mestre brasileiro — Oliveira Lima
um estudo comparativo, rico de sugestões do que chamou, um
tanto à maneira de sua época, ainda marcada fortemente de darwi
nismo, a evolução da América Latina, comparada com a da inglesa.
E chegou a sugerir, tanto quanto F. Garcia Calderon com relação à
América Latina, que várias ocorrências tidas por exclusivamente
nacionais, foram animadas, na América inteira, e não apenas na
latina, por um sentido que hoje chamaríamos trans — ou supra
nacional: sentido comum que poderíamos denominar de america-
nidade.
Sabemos hoje, apoiados em estudos mais extensos e mais profundos
de história social das Américas — que os produzidos principalmente neste
último meio século, avultando os orientados pelo Professor Silvio Zavala
— que se houve contrastes entre as duas expansões de civilização europeia
na América — a anglo-saxônica e a latina: principalmente a hispânica —
houve semelhanças de comportamento da parte de anglo-saxões e latinos
— ou hispanos
em face de estímulos ou provocações comuns. Estímulos e
provocações de meio americano capazes de enfraquecer diferenças
de herança de cultura ou civilização europeia, do mesmo modo que
influências de meios americanos aproximaram social e culturalmente
subgrupos americanos de origem européia diversa, estabelecendo
parentescos sociológicos superiores aos étnicos e estabelecendo tais
parentescos quase à revelia de fronteiras ou de separações apenas
políticas entre os subgrupos.
Foi sob esse critério de aproximações sociais e de cultura, um tanto à
revelia de fronteiras convencionalmente políticas, que, em 1941, em
conferência lida em Montevideu, lembrei que parecia já chegado o
momento de tentarmos, na América, estudos não por nações mas por áreas,
de fenómenos transnacionais em sua configuração sociológica e nas suas
características ecológicas. O gaucho, por exemplo, ou, menos
pitorescamente, a estância, apresenta em sua forma sociológica e em
algumas das suas características ecológicas, embora não em suas
substâncias econômicas ou etnográficas, a mesma realidade no Brasil, na
Argentina, no Uruguai e, embora com alterações significativas, noutras
sub-áreas americanas — o próprio Texas — de intensa atividade pastoril,
em que a sobrevi-vências árabes do hispano, domador de cavalos e de bois,
juntaram-se naquelas áreas hispano-ameríndias, não só usos indígenas
como o do mate e o do pito, como principalmente o conhecimento íntimo
da terra e dos ventos pelo homem nascido de ventre indígena ou nutrido de
leite de peito indígena. A estância — dizia eu em 1941 em Montevideu e
repito hoje — está entre os fenómenos transnacionalmente americanos que
mais parecem pedir estudo, ao mesmo tempo amplo e concentrado.
Concentração quanto ao estudo sociológico da forma, ou das formas, e do
processo, ou dos processos, de organização social
IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS TRANSNACIONAIS
em torno de fato aparentemente só econômico, mas na verdade
complexamente socio-cultural. Amplitude quanto à área física e o espaço
social caracterizados por essas formas, à revelia de fronteira? nacionais e
de vizinhanças geográficas, embora sem desprezo por diferenças de
conteúdo ou de substância geológica, étnica, econômica, cultural, que
dêem côr ou sabor nacional, subnacional ou local ao complexo
transnacionalmente americano. E o que sucede com a estância sucedeu
com a grande plantação latifundiária, monocultora, «quase sempre
escravocrática: a do algodão, a do cacau, a do açúcar, com a mineração
também escravocrática e tão influente no passado do Peru, da Bolívia, do
México, do Brasil.
Já em conferência anterior, esta lida na Universidade de Londres em
1937, sugerira eu o mesmo critério transnacionalmente sociológico de
estudo, para o engenho patriarcal e quase feudal ao mesmo tempo que
capitalista e para o negro e o judeu associados intimamente a essa
indústria, na América, e ora em solidariedades com o dominador ibérico da
maior parte do continente, ora com franceses, holandeses, ingleses, que
perturbaram esse domínio. Uma economia e duas figuras — o negro e o
judeu — cuja mobilidade mais de uma vez antes uniu que desuniu nações
ou subnações, estabelecendo contactos significativos não só entre áreas
diversas do continente como entre a América e a África, a América e a
Europa, a América e a Ásia. A própria expansão do idioma português em
áreas de fala espanhola, na Africa e no mundo e do idioma espanhol no
Brasil e noutras partes do mundo teve no judeu internacional e às vezes
fugido ou perseguido, no negro vendido ou fugido e na transferência de
engenhos de açúcar de uns países para outros, instrumentos ou agentes
nada desprezíveis, antes de uma rara potência.
Repito ter voltado ao assunto, em 1951, ao ter a honra de me dirigir a
ilustre auditório universitário peruano — na Universidade de San Marcos,
quando comemorou seu 4
o
centenário — e ao lembrar-me de que um
insigne pensador, também peruano, F. Garcia Calderon — um dos mestres
de minha adolescência a quem continua fiel minha admiração — se
encontram sugestões preciosas para ainda outro estudo transnacionalmente
sociológico de fenômeno que, tendo ocorrido no Peru, ocorreu também no
Brasil, na Argentina e no Chile, no Uruguai e no Paraguai; e que, havendo
em cada um desses países se manifestado cultural e politicamente de modo
diverso, teve muito de comum em sua forma sociológica de acontecer.
Fenômeno que só em conjunto e, portanto, só na sua trans-nacionalidade
de fenômeno americano, pode ser bem estudado e bem interpretado no seu
aspecto ou no seu sentido sociológico. Fenômeno à margem de processo ao
mesmo tempo de descolonização e de recolonização que caracterizaram a
emancipação politica desses países, colônias da Espanha, várias, e uma, de
Portugal.
— 79 —
GILBERTO FREYRE
Refiro-me à influência inglesa, nessas áreas da América chamada
latina mas na verdade indo-latina e, principalmente, indo-ibérica ou indo-
hispânica em suas principais características gerais e às vezes, mais do que
indo-ibérica, indo-afro-ibérica: influência, a inglesa sobre este complexo
continental de que magistralmente se ocupou, sob o quase exclusivo
critério da repercussão intelectual de autores britânicos sobre reformadores
hispano-americanos das letras e da cultura política e jurídica, Francisco
Garcia Calderon, ao recordar que a Inglaterra contribuiu para a libertação
da América tanto em Montevideu como em Colômbia; e, paradoxalmente,
tanto com seu "ouro" como com seu "radicalismo filosófico". Influência
estudada de modo particular com relação ao Brasil e com atenção
particular aos aspectos político-econômicos ou eco-nômico-financeiros das
pressões inglesas sobre esta parte da América, pelo Professor A.
Manchester, agora no Recife.
Foi um radicalismo filosófico — note-se de passagem daquele
considerado por F. Garcia Calderon — mais construtivo que o
enciclopedismo francês seu predecessor. O enciclopedismo foi mais
brilhante na sua irradiação intelectual porém não mais profundo em
influência, de caráter político-social, neutralizado que foi, em vários meios
latinos da América, e em diversos pontos, pelo próprio anti-
revolucionarismo a que o gênio de Augusto Comte deu a sistemática
"Positivista" e ao qual devem alguns países da América Latina — o Brasil,
o Chile e o México, principalmente — decisiva ação renovadora de sua
cultura sobre bases de ordenação ou de disciplina intelectual equivalente da
ordenação autoritária estabelecida entre eles pela Igreja e comprometida
pela influência dos Voltaire e dos Rousseau. A renovação Positivista, tendo
alcançado modos de pensar, alcançou também os de fazer política; e a
todos num sentido construtivo só igualado pela influência de Spencer,
ainda maior que a de Stuart Mill e a de Bentham, sobre hispano-
americanos, — inclusive brasileiros — de responsabilidade intelectual e de
importância política.
Vários foram os pensadores da América chamada latina que, como
salienta em página já antiga mas ainda atual o já citado F. Garcia Calderon,
libertaram-se da escola peripatética — e também do autoritarismo Católico
Romano — sob a influência de filósofos escoceses: Ventura Martin e José
Joaquim de Mora; Alcosta; Andrés Bello. Bello, tendo sofrido a influência
não só dos escoceses como de John Stuart Mill, foi mais do que nenhum
outro pensador hispano-americano de sua época, expressão do processo que
chamei ao mesmo tempo de descolonização e de recolonização da América
chamada latina — ou apenas hispânica ou ibérica — em face de uma
Espanha e de um Portugal que, de metrópoles criadoras, haviam passado a
parasitárias; recolonização da mesma América por uma Grã-Bretanha na
flor do viço criadoramente
IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS TRANSNACIONAIS
imperial e que, tendo favorecido a emancipação política das colônias
americanas da Espanha e de Portugal, como quem libertasse moças em
idade de casar, de pais excessivamente autoritários, atraiu as novas nações
para seu sistema ao mesmo tempo intelectual e econômico de poder,
recolonizando-as a seu modo através de pressões financeiras, influências
econômicas e penetrações outras de caráter sócio-cultural, desde as
literárias às esportivas. Esse processo de atração ou sedução cultural — e
não apenas econômica, como pretendeu Lord Bryce — constitui um dos
fatos mais interessantes do século XIX, pelo que representou para a jovem
cultura hispano-americana nos seus aspectos menos basicamente
econômicos de "queima o que adoraste e adora o que queimaste". De
substituição do sagrado pelo herético.
A Grã-Bretanha, tomando menos ostensiva que efetivamente, com
relação à América hispânica, o papel metropolitano ou interessadamente
protetor, exercido durante séculos sobre a mesma América por Portugal e
pela Espanha, e, com menor intensidade, em certas áreas ou sub-áreas, pela
França e pela Holanda, como que compensou-se nessa atividade protetora
mas não, é claro, desinteressada, antes a seu modo donjuanesca, em face de
nações novas e débeis, da perda daquela outra parte da América que fora
sua ostensiva, e não apenas efetiva, criação, tanto quanto o conjunto de
colônias ibéricas fora criação ao mesmo tempo ostensiva e efetiva da
Espanha e de Portugal. É uma situação — diga-se de passagem — a que se
assemelha a atual atitude dos Estados Unidos com relação ao Oriente e à
Africa onde se encontram áreas marcadas de várias maneiras pela presença
europeia. A atitude norte- americana nessas partes do mundo é,
aparentemente, de intransigente e absoluto anti-colonialismo como foi a
britânica nos começos do século XIX, na América hispânica ou ibérica:
anti-colonialismo com relação a um Portugal e a uma Espanha que
mantinham suas possessões americanas como áreas de privilégio não só
político como econômico para as metrópoles, dificultando assim a
expansão dos produtos ingleses.
A expansão da influência imperial britânica na América chamada
Latina, após a descolonização dessa América com relação à Espanha e a
Portugal, para realizar-se bem, teria de importar, como importou, em
substituição de estilos de vida e de maneiras de pensar político-sociais na
América Ibérica: a substituição das janelas de madeira pelas de vidro, por
exemplo; a moderação do poder da Igreja, ligado ao monárquico-patriarcal
ibérico, pela influência do liberalismo maçônico chamado francês mas na
verdade inglês, principalmente dentro da própria Igreja; a substituição do
trabalho escravo pelo aparentemente livre, à maneira inglesa. A própria
influência de pensadores internacionais mais recentes
GILBERTO FREYRE
como Dewey e Mumford no Oriente e na própria Africa acentua a
semelhança aqui observada.
A essa compensação corresponderam outras compensações todas
concorrendo para dar equilíbrio à paisagem cultural das Américas
separadas em "latina" e inglesa". Com a Independência, a América
chamada inglesa passou a sofrer um processo de des-anglo-saxonização e
outro de latinização. Em sentido sociológico, reco-lonização ao lado da
descolonização. A des-anglo-saxonização, em virtude da natural resistência
de colonos de repente livres da metrópole inglesa a quanto fosse
instituição, costume ou traço de cultura que parecesse importar em
subordinação de homens ou de povos livres a jugo metropolitano. A
latinização ou romanização em virtude dos contactos de cultura intelectual
que o movimento político de Independência acentuou, dos Estados Unidos
com a França. Acentuou-se também, com a Independência, o progresso, na
nova República, da Igreja Católica de Roma, força, então, tremendamente
latinizante e a seu modo imperial e colonizadora. E não tardaram massas
consideráveis de imigrantes — ou colonos — da Europa — quer da Europa
Latina, quer da apenas Católico-romana — a juntarem-se a populações
francesas, espanholas e mexicanas incorporadas por compra ou por
absorção imperial de terras ao conjunto anglo-americano. Agiram todas
sobre a população básica no sentido de sua latinização. Por conseguinte, no
de sua recolonização pela Europa: desta vez a latina, a Católica-romana, a
papista.
Por outro lado, de tal modo se acentuou a preponderância, ao mesmo
tempo intelectual e técnica, da Grã-Bretanha na vida e na paisagem da
América chamada Latina desde os primeiros anos do século XIX, que em
1826, ao esboçar-se um conflito entre Buenos Aires e o Brasil, deu-se este
fato surpreendente: a Grã-Bretanha apressou-se em evitar o conflito por
vários motivos de conveniência britânica: um deles, ter a luta se esboçado
como guerra principalmente naval; e nesse caso, ameaçado tornar-se
verdadeira guerra civil entre ingleses e não apenas entre ibero-americanos.
Pois só a marinha brasileira, assegura-nos o Professor Alan K. Manchester
á página 155 de estudo especializado sobre o assunto — British
Preeminence in Brazil — que tinha então no seu serviço 1200 ingleses;
Buenos Aires, ao que parece, tinha quase esse número. E os comandos
navais tanto de Buenos Aires como do Brasil eram ingleses. Assim, e por
um paradoxo, o excesso de influência técnica e comercial da Grã-Bretanha
sobre grupos ibero-americanos, pelo fato mesmo de ser excesso, tornou-se
um elemento de paz e de conciliação entre irmãos separados ou
desentendidos como, mais de uma vez, argentinos e brasileiros.
Correspondência, há pouco publicada, de um típico negociante inglês
estabelecido em Santos em 1808 com ingleses de Buenos Aires e de outras
praças
IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS TRANSNACIONAIS
hispano-americanas, mostra como estava quase sempre no interesse de tais
ingleses a paz ou o bom entendimento entre as novas nações da América.
Na verdade o que se verificou entre argentinos e brasileiros na sua fase
ainda turbulentamente infantil de povos recém-indepen-dentes, parece ter
acontecido entre outros povos da América Latina, sobre os quais o poder
imperial de uma Grã-Bretanha, já no outono da sabedoria política, agindo
sempre no seu próprio interesse, como age todo poder imperial, agiu
também, sem parecer agir, nesse sentido — o imperial — sem querer
parecer querer, ou procurar, esse poder, antes fazendo, além de
humanitarismo ou pacifismo, imperialismo, como Mr. Jourdain fazia
prosa. Daí ter atuado, até, entre hispano-americanos, no sentido de
aproximar irmãos separados por aquelas explosões de rivalidade
balcânicamente econômica ou de ódio balcânicamente político que, por
vezes, rebentaram entre os mais imaturos daqueles hispano ou ibero-
americanos. Para essa aproximação, a técnica, sob a forma da máquina, do
motor, da locomotiva, do barco, do engenho de origem ou fabrico inglês e
operado por maquinista técnico, engenheiro, operário inglês — isto é,
britânico — concorreu poderosamente em quase toda a América chamada
Latina. Como no caso, que acaba de ser referido, do conflito naval entre
Buenos Aires e o Brasil — evitado porque seria de certo modo uma guerra
civil entre ingleses — outros conflitos, entre as nações hispano ou ibero-
americanas, foram evitados ou prejudicados porque seriam a seu modo
guerras civis entre ingleses.
Mas não foi somente sob a forma de máquina, de vapor, de
locomotiva que a técnica britânica agiu sobre a América Latina no sentido
de aproximar culturalmente subgrupos distanciados por anos de
diferenciação social e cultural, dentro da comum herança ibérica de cultura
e de sangue. Agiu também aquela técnica noutros planos: no plano da
técnica de governo parlamentar, por exemplo; no plano da técnica
pedagógica; no plano da técnica cirúrgica ou médica. E nesses planos, a
influência técnica se verificou quase sempre na vizinhança da influência
intelectual manifestada no vigor com que ensaístas da eminência de
Bentham, de Stuart Mill e, por último, de Spencer, passaram a competir
com os mestres latinos e neo-latinos — principalmente franceses — de
filosofia e de teologia na formação do pensamento latino ou íbero-
americano.
A gramática de Andrés Bello — aplicação inteligente, talvez até
genial, de métodos britânicos de análise psicológica dos fenómenos de
linguagem ao estudo da língua espanhola — é expressiva da força de
penetração intelectual, e não apenas técnica, dos ingleses na vida da
América chamada Latina. E como Andrés Bello foi um pensador de
influência transnacional, alcançando sua ação
GILBERTO FREYRE
intelectual de mestre e de renovador a inteira América espanhola, e até
vindo a repercutir na portuguesa, também êle foi um caso de irradiação
intelectual inglesa sobre a América hispânica, no sentido de aproximar
povos da mesma origem hispânica e da mesma língua espanhola divididos
por pequenas rivalidades de vizinhança. E, em alguns casos, divididos pelo
próprio fato de rivalidades na pronúncia e de diferenças no trato da língua
materna ou comum: diferenças que métodos britânicos de análise
psicológica e histórica dos fenômenos de língua e de literatura, adaptados
por Bello às condições hispano-americanas de convivência e de
desenvolvimento social, vieram esclarecer; e como que psicanaliticamente
libertar de complexos de inferioridade e de superioridade o que resultava
de diferenças regionais de meio e de estilos de vida. Sem a obra gramatical
de Bello — obra de inspiração inglesa — talvez tivessem se acentuado
entre povos hispano-americanos diferenças e rivalidades de caráter
linguístico que constituem muitas vezes, sob a forma de desenvolvimento
de ordem semântica, matéria inflamável para os conflitos internacionais do
mesmo modo que matéria, igualmente inflamável, para as contendas entre
intelectuais da mesma nação e não apenas da mesma língua.
Um dos fatos lamentáveis na história da cultura brasileira — no seu
desenvolvimento de raízes europeias — é ter a influência inglesa em nosso
país — influência que chegou a ser talvez maior que noutra qualquer área
da América chamada Latina — deixado de inspirar, nos primeiros anos da
Independência, a um brasileiro do gênio de Bello, a elaboração de uma
gramática orientada por métodos psicológicos e históricos de análise da
língua portuguesa. Custou-nos a ausência, em fase tão decisiva da vida
brasileira, de uma gramática assim esclarecedora, o desvio de muita
energia intelectual para as esterilidades bizantinas da gramatiquice. Qual-
quer discussão de assunto sério ou prático — teologia, política, finanças,
direito, medicina, engenharia, mecânica — durante anos degenerou quase
de início, no Brasil, em discussão de gramática. Falta de um Bello que em
tempo tivesse iluminado os brasileiros sobre a matéria, com seu saber
nutrido de sólida ciência ou metodologia inglesa: metodologia ao serviço
de uma cultura autonomamente hispano-americana e não ancilar desta ou
daquela cultura imperial. Ao serviço de uma cultura americana
basicamente latina sem prejuízo do que essa cultura pudesse então — e
possa hoje — absorver, em seu próprio benefício, de elementos
saudàvelmente extra-latinos, e não apenas extra-ibéricos, fossem esses
elementos estranhos — ou sejam hoje — anglo-saxônicos ou germânicos,
japoneses ou israelistas, sírios ou neo-africanos, eslavos ou chineses.
Muito se aproveitaram os ingleses da América chamada Latina, para
cuja independência política concorreram — é claro que de olhos fitos nas
possibilidades e vantagens de novo e vasto mer-
IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS TRANSNACIONAIS
cado de caráter colonial para suas produções de povo imperial. Era
inevitável. Mas tanto à sombra da ação britânica a favor da independência
política dos povos ibero-americanos como da ação britânica no sentido de
utilizar-se a Grã-Bretanha de modo especial, privilegiado e até exagerado,
da economia das jovens nações, recolonizando a seu modo - um modo
antes brando do que violento — a área que, também a seu modo,
concorrera para descolonizar, isto é, libertar da opressão espanhola e do
parasitismo lusitano, ocorreram absorções de valores britânicos pela gente
hispano-americana, cuja cultura nacional — e dentro dela, o próprio
espírito nacional — enriqueceu-se com essas absorções sem
descaracterizar-se em sua latinidade essencial.
Pois contentando-se em retirar da América chamada Latina, com
garras de leão, vantagens principalmente econômicas, os britânicos nunca
se tornaram aos olhos dos latino ou ibero- americanos, problema sério de
expansionismo descaracterizador, do ponto de vista de culturas nacionais
em desenvolvimento, da área economicamente explorada. Nunca se falou,
entre os povos latino ou ibero-americanos, de um "perigo britânico" igual a
um "perigo alemão" ou a um "perigo japonês" ou a um "perigo ianque",
embora nunca pelo povo britânico em conjunto tenha se desenvolvido
entre latino ou ibero-americanos o mesmo afeto dedicado pela América
Latina quase inteira ao povo francês. Nunca: nem mesmo nos dias de
entusiasmo em meios literários, como nos brasileiros do século XIX, por
poetas ingleses da flama de Byron e romancistas escoceses do encanto de
Walter Scott, que chegaram a ser decorados e recitados por meninos e
adolescentes até em colégios de padres. Nos próprios redutos da latinidade
absoluta e pouco tolerante de extra-latinismos, ou de anti-latinismos,
mesmo miúdos.
Quando Bryce visitou nos começos do século XX a América chamada
Latina, notou esse quase nenhum afeto dos hispano ou ibero-americanos
pela gente inglesa, cujas modas, entretanto, eram seguidas nas corridas de
cavalo e noutros campos elegantes de sport; cujo sistema político era
admirado e estudado pelos homens públicos mais sérios e fora até seguido
pelo Brasil monárquico; cuja técnica naval era a mais seguida e estimada;
cujo pensamento e cuja arte não eram inteiramente ignorados ou
desprezados. Mas sem que os portadores desses valores — indivíduos
geralmente chamados "gringos" — fossem uma gente simpatizada pelo
público, embora não chegasse a haver contra ela rancor ou antipatia.
Não podia haver antipatia contra um povo que se impusera ao respeito
dos hispano ou ibero-americanos através de três, pelo menos, de suas
constantes éticas, em contraste com os modos de outros europeus
negociar, tratar e conviver com hispano ou com hispano-americanos:
"palavra de inglês", "hora de inglês", "asseio
GILBERTO FREYRE
de inglês". Essas três constantes britânicas bastariam, talvez, para
contrabalançar o mau efeito de outros traços que o hispano ou ibero-
americano do século XIX, homem em geral romântico, cama-radesco e
cordial ao primeiro contacto, embora excessivamente grave no seu modo
de considerar-se adulto, não soube nunca perdoar no inglês: sua reserva,
sua arrogância, seu mercantilismo — que brasileiro romântico poderia
fazer de Cochrane um herói sabendo do furor com que êle cobrou em
dinheiro seus serviços de lobo do mar à causa da Independência? — sua
indisposição para aprender a falar com elementar decência de pronúncia e
de sintaxe a língua da terra, espanhola ou portuguesa, por êle, inglês, quase
sempre estropiada, maltratada, caricaturada, mesmo depois de anos de
residência em cidade brasileira ou da América espanhola, como se o
animasse um empenho sistemático de mostrar desprezo pelos idiomas dos
nativos. E também seu "infantilismo", manifestado no amor excessivo a
jogos e esportes que só lentamente o ibero-americano, perdendo seu
adultismo também exagerado, passaria a imitar do anglo-saxão: a princípio
do inglês, depois, também do anglo-americano.
É interessante observar-se que hoje, com o declínio da influência
britânica na economia hispano-americana, a recordação dos traços ingleses
ou britânicos considerados geralmente maus ou antipáticos pelo latino-
americano de outrora, está sendo superada pela recordação dos traços
geralmente considerados bons ou simpáticos. Está o Brasil, e, segundo
informações idóneas que nos vêm de outros países da chamada América
Latina, está também a América espanhola, atravessando uma fase de
saudade ou de nostalgia do inglês. Dentro dessa nostalgia, a arrogância
inglesa, a ganância inglesa, a grosseria inglesa quase não são lembradas,
para serem vivamente recordadas a pontualidade inglesa, a honestidade
inglesa, a excelência do quase desaparecido colégio inglês, da quase
desaparecida governante inglesa, da quase desaparecida companhia inglesa
de transporte e de luz, da quase desaparecida ferramenta ou máquina
inglesa, do quase desaparecido engenheiro inglês.
Sempre houve — mas hoje são mais numerosos e mais enfáticos do
que outrora — hispano ou ibero-americanos a jurarem por todos os santos,
uns com exagero espanhol, outros com suficiência portuguesa, que uísque
bom só o inglês, cachorro bom só o inglês, cachimbo bom só o inglês,
bicicleta, só inglesa, biscoito, só inglês, banco, só inglês, motor, só inglês,
navio, só inglês, lã, só inglesa, gravata, só inglesa, governo, só o inglês,
parlamento, só o inglês, pronúncia da língua inglesa, só a inglesa, cinema,
só o inglês, justiça, só a inglesa, polícia, só a inglesa, poesia, só a inglesa,
romance, só o inglês, ensaio, só o inglês, drama, só o inglês. Não deve ser
esquecido o fato de que nos últimos anos, cresceu de modo
IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS TRANSNACIONAIS
considerável o número de hispano ou ibero-americanos, que por
influencia anglo-americana, lêem a língua inglesa e esse conhecimento da
língua vem favorecendo um conhecimento da literatura que inclui autores
secundários e não apenas os de primeira grandeza Aliás é curioso notar-se
que, ao lado de Walter Scott, um dos romancistas chamados ingleses que
primeiro foram lidos com entusiasmo não só na América espanhola como
no Brasil, foi, em tradução, certa Ana Radicliffe. Mais lida que Cervantes,
notou um viajante inglês que esteve na América espanhola nos começos
cio século XIX. O que parece indicar que em literatura a moeda boa é ãs
vezes expelida pela má.
É sinal, a nostalgia do inglês hoje alastrada por grande parte da
América chamada Latina, de que, a despeito de nunca o hispano-
americano ter sido, nas relações com o britânico — nem mesmo com o
irlandês, preferido ao escocês, por sua vez preferido ao inglês
propriamente dito — um entusiasta da nação ou um amoroso da gente
britânica, — e nessa atitude houve evidentemente defesa ou resguardo da
panela de barro contra a de ferro — soube sempre estimá-la e prezá-la
através de alguns dos seus valores técnicos, morais e intelectuais de que
agora experimenta saudade ou nostalgia. Mas nostalgia em que não deixa
de haver alguma simpatia e até algum afeto pelos produtores ou
portadores, outrora nada simpatizados, de tais valores.
O Professor Cyril Falis, quando catedrático de História da
Guerra, de Oxford, teve o gosto de ouvir de um paulista ilustre, em
viagem pela Europa, a confissão dessa como que saudade
brasileira de figuras e de produtos ingleses hoje raros no Brasil — ou
superados por artigos e técnicos inferiores de outras origens - com a
encampação, pelo governo da União, de estradas de ferro inglesas, com a
diminuição — ou o desaparecimento ? — de atividades no Brasil de
companhias inglesas de telégrafo, transporte, gaz, luz, saneamento, com
o desaparecimento de colégios ingleses, hotéis ingleses, governantes
inglesas, engenheiros ingleses, ships-chandlers, fumo inglês para
cachimbo, uísque escocês, biscoito inglês para o chá. Como o paulista
antevisse nova e intensa fase de desenvolvimento brasileiro nos
próximos anos, lamentava a ausência do inglês — capital do
inglês e do inglês técnico — essas atividades com a consequência de
passar toda a participação de energia anglo-saxônica no progresso
brasileiro para o anglo-americano. O que lhe parecia lamentável, dado o
fato de haver já um inglês tradicionalmente afeito ao trato com os
brasileiros, dentro do ambiente de cordialidade em que no Brasil se
realizam os negócios mais áridos: cordialidade que vai ao ponto — acres-
cente-se aos reparos do brasileiro conhecido pelo Professor Falis de
negociantes enviarem aos fregueses cartões, cromos e até pequenos
brindes de Boas Festas e de Ano Bom. Cordialidade —
GILBERTO FREYRE
acrescente-se, ainda a tais reparos -- não só brasileira, em particular, como,
até certo ponto, hispânica, em geral, à qual é justo que se diga ter, melhor
ainda que o inglês ou que o francês ou o italiano ou o suíço negociante, se
adaptado, na América hispânica, ou no trópico hispânico, o alemão.
A nostalgia do inglês que hoje se observa no Brasil como noutros
países latinos da América, parece indicar que os ingleses, com toda sua
reserva, com toda sua tendência de homens às vezes secarrões para viver à
parte, estabelecendo, sempre que puderam, capelas ou igrejas
exclusivamente inglesas para suas devoções, clubes exclusivamente
ingleses para suas recreações, cemitérios exclusivamente ingleses para o
sepultamento dos seus mortos, souberam, como negociantes, médicos,
engenheiros, professores encontrar zonas de confraternização sentimental e
intelectual com os hispanos da América, em geral, da tropical, em
particular. E nesses hispano-tropicais, deixaram dos dias de preponderância
econômica da Grã-Bretanha nesta parte da América, recordação viva.
Recordação mais viva dos traços simpáticos do que dos traços antipáticos
— estes tão caricaturados nas revistas, tão ridicularizados nas anedotas, tão
celebrados pelo próprio folclore. Mas por baixo da caricatura defensiva e
da anedota protetora da dignidade hispano-americana contra a arrogância
anglo-saxónica, conservou-se um irredutível lastro de compreensão e de
simpatia entre os dois, hispano da América e anglo-saxão da Europa. Entre
o próprio inglês caladão e o próprio hispano-americano falastrão: os
extremos como que caricaturais dos dois tipos. Compreensão que hoje,
mais rara a figura do inglês nos meios hispano-americanos, vem à tona em
expressões de saudade e de nostalgia que são também expressões do desejo
de que o inglês volte a ser uma figura atuante e importante na economia, na
vida e na paisagem hispânica da América: inclusive da América tropical.
Mais uma vez se prova que só à distância — distância no tempo ou
distância no espaço — se apura até onde vai o afeto, às vezes dissimulado,
que liga não só uma pessoa a outra como um grupo nacional ou
multinacional a outro.
Do inglês, na América hispânica, se saliente que, com toda a sua
aparência de constante desdém de europeu superior por gente inferior ou
por meio inferior — meio do qual um branco fino devesse conservar-se
profilaticamente resguardado — mais de uma vez se revelou capaz de
adaptação aos grupos e estilos hispano ou íbero-americanos de vida
aparentemente menos capazes de seduzi-lo ou envolvê-lo. O meio gaúcho,
por exemplo, de uma rudeza às vezes bravia e até sádica; e com costumes
como que inventados de propósito para arrastar, repugnado, de convívio
tão sádico e promíscuo, o inglês particularista e cheio de pudores contra
touradas, pela exibição de sangue e de feridas, aos seus olhos, quase
obscenas; e quase tão fanático como um muçulmano em assuntos de
higiene pessoal.
IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS TRANSNACIONAIS
Muito inglês na Argentina, no Uruguai e no extremo sul e no centro sul do
Brasil, tornando-se estancieiro, agauchou-se de tal modo ao ponto de só
saber sair a cavalo, de poncho e faca de ponta; e de regalar-se com o mate
promiscuamente sugado por várias bocas de bombilla comum. É verdade
que não deixou de comunicar ao meio gaúcho uns tantos anglicismos. Um
deles, como lembram especialistas no assunto, a alteração de passo de
corrida de cavalo, à antiga moda gaúcha — que talvez fosse moda de
origem árabe — para o galope chamado longo, característico do turf
inglês. Um beneficio talvez para o cavalo, que na América hispânica,
como noutras áreas, teve sempre no inglês um aliado e, quase sempre, um
protetor que animou de novas cores e de novas formas a paisagem do
continente — Southdown, Leicester, Lincoln, Shrospshire, Shorthorn.
"Cavalo de inglês", "cachorro de inglês", "papagaio de inglês" — e não
apenas o "carneiro inglês" ou o "gado inglês" — tornaram-se animais
famosos em meios hispano-americanos. O "papagaio de inglês" deve sua
fama principalmente ao fato de ter se especializado em praguejar em
língua inglesa: arte aprendida com marinheiros ou marítimos, talvez os
mestres mais eminentes da matéria.
Sem afastar-me do propósito de sugerir — apenas sugerir — o papel
desempenhado pelo inglês, tanto quanto pelo francês, e em menor escala,
pelo italiano e pelo alemão, na vida, na cultura e na paisagem da América
colonizada principalmente pelo espanhol e pelo português com o auxílio
do indígena e, por vezes, do negro africano — papel, o daqueles
perturbadores da cultura ibérica, ao mesmo tempo de unificador e de
modificador dessa paisagem e dessa cultura como foram, aliás, em sentido
contrário ao multinacional, o judeu e o negro, e, em plano evidentemente
inferior, o cavalo e o boi, o açúcar e o café, e que deram todos traços
comuns a paisagens arbitrariamente separadas em paisagens nacionais
dentro do complexo hispânico ou ibérico, entre as instituições
transnacionalmente Hispano-Católicas, a Inquisição, o Jesuíta, o
Franciscano, recorde-se que também as semelhanças entre a formação
peruana e a formação brasileira, em particular, foram acentuadas pela
presença, numa e noutra formação, de figuras de ingleses transmissores a
peruanos e brasileiros dos mesmos usos, valores e estilos britânicos ou
ingleses de vida, à sombra de interesses econômicos idênticos: os criados
ou despertados no europeu, principalmente depois de independente a
América hispânica da Espanha e de Portugal, pela produção colo-nial de
açúcar e pela existência, no sub-solo peruano como no do Brasil
mediterrâneo, de metais preciosos. Assinale-se a este respeito o fato da
palavra charque, isto é, carne seca, ter se universalizado através da
expressão inglesa jerked (beef), ora considerada perua-nismo, ora
brasileirismo.
Como o europeu da época por excelência capitalista e técnica, produtor
de máquinas que passaram a ser designadas pela gente
GILBERTO FREYRE
brasileira por ingresias, e senhor dos segredos da aplicação de novas
técnicas a velhas indústrias como a do açúcar e a do ouro, o inglês fixou
sua melhor atenção em sub-áreas hispano-americanas como as brasileiras e
peruanas de cana de açúcar e de ouro. E a essas sub-áreas comunicaram-se
numerosos anglicismos que as aproximam como as aproximam numerosos
hebraismos e africanismos; e em fase mais recente, italianismos,
germanismos, neo-arabismos e niponismos úteis. Pois judeus e negros da
África foram atraídos, em número ainda mais considerável que ingleses,
àquelas sub-áreas ou nelas introduzidos, uns como escravos, outros como
intermediários no comércio de açúcar e de metais preciosos.
A consequência dessas atrações ou introduções de adventícios
valiosos, favorecidas por semelhanças de clima e de condições de solo, está
em semelhanças sociais entre o Peru e o Brasil que pedem estudo especial,
do mesmo modo que o pedem as semelhanças entre o Brasil, o Peru e as
Antilhas, e estendendo-se a área entre esse conjunto e a sub-área de grande
plantação, também a seu modo feudal e monocultura patriarcal e
aristocrática que foi o Sul dos Estados Unidos da América chamada
inglesa. Estudo sob critério sociológico que apresente e procure classificar
tais semelhanças como expressões das mesmas influências de forma de
produção econômica e de forma de organização social — a monocultura, a
família patriarcal, o senhor, o escravo, o capitalista e o intermediário
necessários então à articulação da produção feudal, colonial e quase-
colonial de açúcar e de metais preciosos com os mercados mundiais. A
Inquisição terá sido, talvez, às vezes, necessária, do ponto de vista
Católico-hispânico, para conter excessos internacio-nalizantes da parte
desses capitalistas e intermediários nem sempre hispânicos ou cristãos.
Essas influências superaram diferenças de substância étnica, religiosa,
cultural, etnográfica; e essa força de superação toma-as particularmente
interessantes para quem procure estudar o passado americano com olhos de
sociólogo.
Para tais estudos transnacionais sob critério sociológico de área as
Américas começam a apresentar-se maduras. Libertos de um estreito
nacionalismo ou de um exagerado etnocentrismo, já podem hoje os
americanos das duas — ou se quiserem três ou quatro Américas — estudar
com sentido continental as diferentes paisagens sociais aqui formadas e
desenvolvidas sob influências que, exercendo-se à revelia de fronteiras
apenas políticas, alastram-se no continente como manchas que podem ser
classificadas como antes sociológicas que políticas. Ou de acordo,
principalmente, com os seus climas e as suas produções e os elementos que
esses climas e essas produções valorizadas pela Europa de então atraíram,
como a área por nós há pouco destacada atraiu (depois de nela instalado o
espanhol ou o português, o francês ou o inglês, e de plantado ou
desenvolvido em seu solo com possibilidades de sucesso, o tabaco
IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS TRANSNACIONAIS
ou a cana de açúcar, o algodão ou o arroz ou encontrado no subsolo metal
precioso) o escravo africano, o intermediário judeu, o inglês, produtor de
máquinas, o holandês, como competidor retardado esse e de outros
europeus como o francês e, esporadicamente, o italiano, também presente
no descobrimento e na colonização das Américas e na sub-área hispânica.
Quando se diz que as Américas se apresentam maduras para estudos
transnacionais do seu passado e da sua atualidade por assuntos, por
problemas ou por complexos — estudos de que o fenômeno da influência
inglesa, em diversas nações ibero-ameri-canas, seria exemplo — no que se
pensa é no fato de que já se vem realizando, sob esse critério, a
investigação das culturas indígenas do continente. Investigação na qual a
obra do Professor Wissler e, mais recentemente, a do Professor Kroeber e,
para certas sub-áreas, a de Robert Redfield, se destacam pela sua
profundidade de indagações antropológicas de caráter humanístico além de
científico. Também no fato de que, sob igual critério, embora com menos
profundidade, se iniciam estudos das culturas africanas nas Américas: obra
de que se destacam esforços admiráveis como os do Professor M. J.
Herskovits, norte-americano e do antopólogo brasileiro, infelizmente
falecido no meio de seus trabalhos, Professor Arthur Ramos.
Mestre uruguaio de Economia Rural, especializado no estudo da
produção de carne no Rio da Prata, o Professor Agustin Ruano P'ournier,
concorda com o autor destas notas em que se deve fazer desse complexo
— a produção de carne estendida em produção de couro, chifre, lã — uma
sondagem transregional que transborde da sub-área platina para alcançar
toda a área econômico-social colorida mais vivamente pelo fenômeno. A
história social dos metais preciosos, como a do açúcar e a do café, a do
cacau e a do milho, pedem iguais sondagens de alcance continental:
esforço em que se juntem especialistas de vários países e mestres de várias
especialidades científicas dentro de critério interrelacionista de análise.
Sob igual critério super-nacional e inter-científico, lembrou o autor
dessas notas na conferência de cientistas sociais — Georges Gurvitch,
Horkmeier e outros — reunida em Paris em 1948, para a consideração de
problemas de tensões internacionais, que se empreendessem estudos
sócio-biográficos de figuras americanas que até
hoje tem dividido povos, dado o excesso de culto patriótico em torno
delas num país e o exagero em sentido contrário noutro país
ou noutros países, quando o que parece é que, a esses heróis nacionalistas
se pode aplicar pelo avesso o famoso dito humorístico de que
esgaravatando-se o russo, encontra-se o cossaco. Esgarava-
tando-se muitos desses heróis, caudilhos, caciques, aparentemente
o de um povo e que, na verdade, extremaram-se às vezes no serviço
GILBERTO FREYRE
desse povo ao ponto de nada mais os interessar ou preocupar na vida senão
exaltar sua gente e destruir as vizinhas, encontra-se o americano. Um
americano às vezes pervertido no seu sub-ameri-canismo excessivo mas
um americano pelos traços principais de sua personalidade e de sua cultura.
Tal o caso do paraguaio Francisco Solano Lopes felizmente vencido no seu
furor de caudilho mas em quem é tempo de reconhecer-se um americano
— e não apenas um paraguaio — de algum valor, e não um inimigo
indigno do esforço brasileiro que teve de exercer-se contra seu sistema de
pervertido nacionalismo. Esforço orientado de modo memorável pelo
Duque de Caxias.
A influência do judeu, a da Inquisição, a do flamengo, a do francês, a
do alemão, a do italiano, são outros assuntos de história ou de sociologia
que — ao lado da influência inglesa — pedem, com relação à América
inteira, ou apenas à hispânica — a que o Brasil pertence — estudos
especiais sob critério transnacional. Estudos sob critérios globais:
americano, hispano-americano ou hispano-tropical.
Mauá e a Segurança Nacional
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
A vida brasileira, a principiar do desembarque e da instalação, no Rio
de Janeiro, da Família Real Portuguesa, ia transformar-se profundamente.
Na verdade, a independência estava à vista, ou antes, tomava suas cores
iniciais. A abertura dos portos e a revogação de toda a legislação que nos
mantivera na condição de área colonial, num império gigantesco que, no
entanto, começava a perder conteúdo, extensão e importância, porque se
extinguira no Oriente e na Africa, também diminuía a olhos vistos, eram os
sinais realísticos dessa novidade. D. João, com os atos que nos levaram a
uma situação privilegiada na Sulamérica, onde os arroubos revolucionários
não haviam ainda tomado corpo na "guerra a muerte", que tanto sangue
faria correr e tantos homens providenciais, heróis reais, haveria de
produzir, fundara um novo império, um Brasil que nascia monárquico.
Ascendíamos, assim, na posição soberana realisticamente e de certo modo
tranquilamente.
O acontecimento ia exigir, todavia, para que pudesse tornar-se
continuo, eterno mesmo, a existência de elites, capazes de conduzir a nova
nação e assegurar-lhe a continuidade através dos atos legais e de toda uma
vasta série de medidas capazes de dar estrutura sólida a refletir, não apenas
um estado de consciência, uma decisão, mas igualmente o exercício de
uma política sensata, efetiva, que nos valesse para a construção da Pátria.
A história do processo de formação política e de estabilidade da
soberania dos novos Estados, saidos do colonialismo que a Europa nos
trouxera desde o século XVI, nesse particular não foi um processo sereno
que autorizasse confiança no futuro desses mesmos Estados novos.
Quando Panikar, o eminente pensador, historiador, sociólogo e diplomata
indiano nos falava, com sua palavra austera, proferida na Sorbone, a
respeito dos problemas que angustiam os Estados jovens, aqueles que
emergem do colo-
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
nialismo, não pensava em termos das Américas que, no século XIX,
haviam deixado a posição de membros do que hoje chamamos de "terceiro
mundo", para criar-se o status de nações livres, mas dos povos que na
África e na Ásia estavam alcançando aquele status em pleno século XX.
Nem por isso, poderemos deixar de constatar que êle, examinando a
problemática de seus irmãos, estava realmente examinando, também, a dos
povos americanos, porque, no decorrer do século XIX, todas aquelas
dificuldades, a que assistimos agora, eram dificuldades que eles
experimentavam e, de certo modo, permitiam a impressão, que o próprio
Bolívar enunciara, êle que se desgastara física, financeiramente e
civicamente na luta pela independência, — "A América é ingovernável".
"Arei na areia". Teríamos experimentado a conjuntura sob aquele aspecto
negativo? A história de nossa formação, após o Sete de Setembro, não
possuiu os mesmos aspectos. Realizam-nos com muito menor parcela de
agitações. O caudilho não encontrou clima entre nós. Os sucessos
revolucionários foram muito menos drásticos. A preocupação de manter a
unidade foi a preocupação dominante. As elites, que tiveram em suas mãos
a modelagem do país em sua estrutura política, administrativa e cultural,
revelaram-se com os atributos necessários. O cesarismo da América
espanhola não constituiu, também, portanto, capítulo dessa fase de nossa
elaboração. A monarquia valeu como um instrumento vigoroso, institu-
cional, que satisfez e impediu a desorganização. O diploma que Pedro
Primeiro outorgara ouvidas as Câmaras de todas as Províncias,
consubstanciando princípios em experiência por toda parte, os princípios
liberais, de que se valera para assegurar-se, com a ordem, a segurança do
próprio sistema governamental, garantia à estabilidade. Todo um amplo
arcabouço jurídico integrava esse sistema institucional.
As gerações que se sucediam no poder, possuídas da ideia de que
precisavam servir com fidelidade ao regime para a continuidade da vida
nacional soberana, podem ser apreciadas, por isso mesmo, como gerações
que souberam realizar-se num cumprimento rígido de seus deveres cívicos.
Eram elites que se haviam formado em grande parte no exterior, em
Portugal e na França. Já, porém, muitos dos que as compunham possuíam
formação básica essencial, adquirida nos centros universitários formados
pelas academias que aqui funcionavam. Seriam, como se escreve hoje, ao
analisar o período e os homens que o constituíram com seus atos e seu
comportamento, frutos ou figuras de um iluminismo retardado, se o
considerarmos à luz do que ocorrera fora do Brasil, na Europa e mesmo em
certos trechos da própria América ibérica, não a portuguesa, mas a
hespanhola, iluminismo que se afirmaria nas Escolas de Direito e de
Medicina que forjavam caráter, cultura e civismo.
MAUÁ E SEGURANÇA NACIONAL
A integração brasileira, compondo um dos pontos de mais firme
preocupação dos que tinham em suas mãos os destinos do país, não podia,
no entanto, ser alcançada unicamente pela manipulação de atos de alto teor
jurídico, mas principalmente pela redução das distâncias que já eram
visíveis entre as unidades componentes do quadro político-administrativo
do Império. E essa tarefa deveria mobilizar não apenas os que, como
estadistas, gover-navam ou traçavam diretrizes politicas de longo alcance,
mas os que na aventura de uma economia de produtos primários para
satisfação de mercados de consumo exteriores, realizavam o outro lado do
esforço para a integração efetiva. Esses outros elementos, participantes do
aglomerado social, estariam também conscientes do papel que deveriam
desempenhar? Teriam formação do tipo daquela dos que vinham das
Academias, os iluminados da nossa Ilustração, tardia, mas eficiente?
Seriam do tipo daqueles admiráveis membros das Sociedades Econômicas
dos Amigos do pais, que Espanha, em fins do século XVIII, organizara e
transferira, como seiva e vitalidade, para arejar seu império americano? As
sociedades em que se examinassem os problemas da produção, do
comércio, das comunicações, dos transportes, da natureza física e humani-
zada na paisagem, renovada ou enriquecida pelo homem, existiriam no
Brasil nascente?
Os criadores de riqueza entre nós, nos dias do Império, não se
mostraram com aqueles títulos que podem ser encontrados nos homens
públicos em exercício do poder. Foram muito menores. Não se lhes deve
atribuir uma posição inferior no quadro da vida brasileira, indiferentes ao
seu processo de desenvolvimento, mas nem por isso poderemos deixar de
registrar que não possuíam o relevo dos outros figurantes do quadro.
Todos assim? Não haveria a exceção, de todas as regras? A afirmativa não
seria ela também uma afirmativa demasiado ambiciosa e talvez arrojada,
injusta?
Em cada Província do Império, surgiam, é certo, os homens de
empresa que se distinguiam e tomavam atitudes que não significavam
conformismo ou incapacidade para criar. Ao contrário, eram exemplares
magníficos de uma nova fauna, a dos empresários rurais e urbanos, dos
negócios da produção agrícola que não se fixavam apenas nos canaviais,
mas começavam a fixar-se também nos cafezais, que iam constituir os
fundamentos dos últimos tempos do Império e formariam, com os
seringais, o binómio fortificador da economia republicana das primeiras
três décadas da novidade que era o regime implantado a 15 de novembro.
E um deles, na Corte Imperial, atingira um comando de iniciativas que o
consagrariam como um leader, leader de nova espécie, leader de uma
revolução que não usaria quartéis nem apelaria para os conflitos de rua.
Esse homem foi Irineu Evangelista de Souza que nasceu no Rio Grande do
Sul, em Arroio Grande, em 1813, quando o Brasil expe-
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
rimentava os primeiros passos no caminho de sua emancipação através da
política progressista promovida pelo príncipe D. Joào. Seu desabrochar
para o mundo ia realizar-se, porém, em período dramático da vida
brasileira, a fase delicada do início da grande experiência do regime
democrático e da soberania do Brasil, quando seus homens públicos
deviam ser postos à prova na empresa de garantir a continuidade do país na
forma monárquica que preferira e na decisão de manter-se sem mais os
vínculos de submissão à Península, é bom insistir na tese.
De origens humildes, Irineu Evangelista viria, ao decorrer de longa
jornada, tornar-se figura-símbolo no processo de desenvolvimento do país,
ao lhe criar novas modalidades existenciais, tentando, contra o sistema
dominante, a transformação da paisagem econômica para a incorporação da
antiga colônia na área beneficiada, destarte, pela revolução industrial que
viera da Inglaterra e começava a expandir-se. Nesse particular, ninguém, na
história interna e externa do país, pode superá-lo, tanto mais quanto, nesse
objetivo que foi uma sua constante ativíssima, não realizou apenas obra de
criação interna, mas a de projeção de sua pátria no cenário universal. Na
verdade, impõe-se ao título de artífice, com José Bonifácio e Caxias, da
unidade nacional. Consciência avançada, como que distanciado de seu
tempo pela ambição de levar o Império a destinos que os responsáveis pela
administração da coisa pública não pareciam dispostos a compreender ou a
aceitar, teria de enfrentar os obstáculos criados pela rotina e pelo receio do
crescimento veloz.
Estava muito certo, portanto, Tristão de Ataíde, quando escreveu: "O
Visconde de Mauá, desde a maioridade até a República, acompanhando a
realeza imperial com a sua realeza econômica, na as-cenção e na
decadência, pressentiu e tentou resolver todos ou quase todos os grandes
problemas econômicos brasileiros, os problemas essenciais do período
moderno de nossa história, desde os interesses do Rio Grande, que
representou na Câmara, até a navegação do Amazonas. Foi um quadro
assombroso de unificação nacional na cabeça de um só homem, o Caxias
de nossa unidade econômica".
Encontramo-lo, inicialmente, servindo ao inglês Ricardo Caru-thers,
de quem seria sócio e por fim sucessor nos negócios que aquele promovia
no Rio de Janeiro. Educado no pensamento e na energia criadora e no
comportamento britânicos, criou-se mentalidade pragmática, sensível às
reações do mundo econômico e para êle todo voltado como preocupação
maior e fundamental de sua vida.
Num balanço de sua existência, o haver é imenso. Lidia Besouchet
escreveu, com muita precisão — "O resumo das atividades de Mauá,
dentro e fora do Brasil, com a aproximação de datas, faz destacar a
genialidade de sua capacidade realizadora".
MAUÁ E SEGURANÇA NACIONAL
Seu primeiro grande feito de caráter regional foi a organização da
Companhia de Rebocadores a vapor do Rio Grande do Sul, em 1847, com
o que deu à sua Província natal uma contribuição preciosa, de vez que
criou condições fáceis para o intercâmbio através da barra do Rio Grande.
Veio, a seguir, a Companhia de Luz Esteárica, de cujas ações se fez o
grande possuidor. Obtendo a concessão para iluminar a gaz a capital do
Império, transforma a Esteárica em Companhia de Iluminação a Gaz do
Rio de Janeiro, o que, na época, valia como autêntica revolução visando à
criação de condições de vida nova na capital do Império.
Em 1851, fundava o segundo Banco do Brasil, com capital de vinte
mil contos de réis. A competição que manteve com o Banco Comercial foi
intensa. Lançando na praça, com franca aceitação, vales a prazo, espécie
indígena de cheque, escreve Alberto Faria, assegurou-se, senão o domínio
do mercado, uma superioridade manifesta. O conflito entre as duas
organizações levou o governo a fundi-los numa terceira, um novo Banco
do Brasil, com atribuições amplas, inclusive aquela da emissão, sob
favores oficiais quase ilimitados. Mauá, convidado a aceitar o lugar de
diretor que lhe foi oferecido, recusou.
No ano seguinte, atendendo a um convite do governo imperial,
organizava a Companhia de Navegação do Amazonas, com que se
iniciava, no extremo-norte, a revolução dos navios a vapor, que
possibilitaria a integração mais rápida daquela região à comunhão nacional
e asseguraria condições novas para a sua dinamização econômica. Não
havia capitais disponíveis na região. Todas as tentativas feitas tinham
fracassado. Mauá aceitou a responsabilidade do negócio. A Companhia é
hoje o SNAPP, organização do governo federal. Era preciso, ao tempo,
fazer funcionar um empreendimento daquele porte. Havia pressões do
exterior para a abertura do rio à navegação mundial. Mauá, criando os
serviços, evitaria a internacionalização já advogada àquela altura.
O ano de 1853 foi, porém, o mais importante em sua atuação
financeira. É que organizava o Banco Mauá Mac Gregor & Cia,. sociedade
bancária em comandita, capital de 20.000:000$000, agência em Londres e
início das operações de envergadura que iam levar a participação do Brasil,
no campo financeiro, às repúblicas platinas (Argentina e Uruguai) e
constituiria instrumento da maior importância para os grandes
empreendimentos comerciais e industriais que implantou e a que assegurou
continuidade. Enquanto o terceiro Banco do Brasil perdia-se em operações
onerosas, o de Mauá crescia.
A estrada de ferro Mauá, em 1854, valeu como a sua primeira grande
contribuição para o esforço de industrialização nacional. Serviu de ponto
de partida para a política ferroviária que o governo adotaria. Tendo obtido
concessão da Província do Rio de Janeiro
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
para a ferrovia do porto Mauá à raiz da serra e a concessão do governo
imperial para a navegação entre a Prainha e porto Mauá, com o capital de
2.000:0001000, lançou os trilhos e com a "Baro-neza" nome da primeira
locomotiva, a 30 de abril fazia, em 23 minutos, o percurso dos quinze
iniciais de estrada. Concedeu-lhe o Imperador, na oportunidade, o título de
Barão de Mauá.
À primeira ferrovia, seguiu-se a Santos-Jundiaí, para o que mobilizou,
devidamente autorizado, capitais do exterior, que somou aos seus e com os
quais obteve um concurso interessante que promovia rendimentos
apreciáveis, de certo modo abrindo perspectivas animadoras para outras
inversões.
O Canal do Mangue, de 1856, constituiu novo empreendimento que
promoveu com o empreiteiro, contribuindo para a obra de saneamento da
Corte. Custou, na época, 1.378:000$000. Ia até a ponte dos Marinheiros.
A toda essa imensa e variada atividade criadora, nos anos seguintes
somou novos atos de pioneirismo industrial — Companhia Fluminense de
Transporte, Caminho de Ferro da Tijuca, Estrada de Ferro Antonina-
Curitiba, Estrada de Ferro Recife-S. Francisco, Estrada de Ferro Rio
Verde, Estrada de Ferro Paraná-Mato Grosso, Estrada de Ferro Bahia-São
Francisco, Companhia de Abastecimento de Agua do Rio de Janeiro, para
cuja execução fez realizar estudos completos e de cuja excelência
apresentou comprovação no encanamento do rio Maracanã, mas não teve
andamento ante a preferência concedida a financiados pelos banqueiros
Rothschild, de Londres; Companhia de Cortumes e de abastecimento de
carne verde ao Rio de Janeiro, localizada na atual avenida Pedro Segundo e
rua Figueira de Melo, e onde sediou até há pouco o 1
o
Regimento de
Cavalaria (Dragões da Independência). Toda, assim, uma longa série de
empreendimentos, nem sempre bem sucedidos, mas que refletem a decisão
de seu espírito e a paixão criadora que o animava.
Em Ponta da Areia, criou, em 1845, uma fundição de ferro, que
transformou rapidamente em estaleiro de construções navais, substituindo
modesto telheiro com máquinas primitivas de fundição de ferro e carreiras
ao lado, onde se faziam barcos a vela. Mil operários, sob orientação de um
técnico inglês, trabalharam ali, construindo barcos do mais variado
tamanho para enriquecer a frota mercante e a frota de guerra do Brasil. Na
oportunidade das campanhas navais do Prata, foi de Ponta da Areia que
sairam os navios que nos asseguraram as vitórias necessárias à nossa
hegemonia e à nossa segurança no processo continental.
Em certo momento, Ponta de Areia constituiu o maior estabelecimento
industrial do país, pois que nele se fabricava quanto era necessário ao
equipamento essencial ao progresso do Império. O júri da exposição
preparatória de Londres, em 1861, por isso mesmo, feito o confronto com
todo o acervo apresentado como
MAUÁ E SEGURANÇA NACIONAL
comprovação do desenvolvimento manufatureiro do país, procla-mara-o o
maior empreendimento de que a nação já podia orgulhar-se. A mudança
de orientação política do governo, quase que abolindo os benefícios da
tarifa Alves Branco e garantindo a entrada da produção estrangeira,
violentou a prosperidade do estabelecimento que, só nos seus dez
primeiros anos, produziu 72 barcos a vapor e a vela.
A "Montes Áureas Brasilian Gold Mining Company", que operaria no
Maranhão procurando restaurar o negócio da exploração do ouro, que dera
substância econômica e social ao centro oeste do Brasil no período
colonial, realizada como companhia de mineração maranhense, constituiu
atividade sem, porém, resultados compensadores mas que importava em
significar a sua presença em todos os pontos do território nacional e em
todas as facetas da empresa econômica.
A tentativa de construção de um dique flutuante no Rio de Janeiro
mereceu, também, a sua atenção. Organizou, baseado no projeto de um
engenheiro de Ponta da Areia, pequena empresa que iniciou a operação.
Os resultados efetivos não compensaram os dispêndios vultosos. Mauá, em
face do fracasso, restituiu o dinheiro aos demais acionistas.
A Rio de Janeiro Gaz Company Limited, que incorporou em Londres,
para cumprir contrato que firmara com o governo e na execução do qual,
nos primeiros tempos, com sucesso total, atuará só, com capital
unicamente seu, acrescido aos poucos, em face do êxito do negócio, com a
participação dos que começaram a acreditar em suas iniciativas, trouxe à
Capital do Império o começo de sua transformação material, pondo fim ao
sistema de precaríssima iluminação a azeite de peixe, que datava do
período colonial.
A Companhia de Bondes Jardim Botânico, que visava dar transporte
ao Rio de Janeiro, se não foi ideia sua, contou com a sua cooperação
decisiva, inclusive na atração de capitais estrangeiros que vieram participar
do empreendimento, confiantes no seu sucesso pela presença de Mauá.
A Estrada de Ferro D. Pedro Segundo, hoje Central do Brasil, cuja
concessão fora adjudicada a capitalistas brasileiros e cuja construção não
ocorreu senão sob grandes dificuldades financeiras, só pôde realmente ser
realidade graças à intervenção de Mauá que assumiu, perante os
empreiteiros britânicos, a responsabilidade do pagamento das obras, para o
que fez lavrar, em tabelião, em caráter sigiloso, escritura de compromisso
a que se obrigou com todos os seus bens, havidos e por haver.
A Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, hoje S. Paulo Railway (Paulista),
de cuja construção era concessionário, concretizou-se como realização
material pelos seus esforços continuados, capital
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
com que concorreu, elaboração dos planos e confiança que inspirou aos
capitalistas britânicos, que trouxeram também a sua contribuição.
O cabo submarino, ligando o Brasil à Europa, velha aspiração, que se
imaginara ser obra unicamente possível a cargo da iniciativa privada, fora
contratado, mediante convenção assinada entre o Brasil, França, Itália e
Portugal, com Pier Alberto Ballestrini. O contratante, no entanto, não
obteve recursos para cumprir os compromissos. Mauá foi chamado a
executar o privilégio, que lhe concederam em 1872. Obtendo a colaboração
técnica de Sir John Pender, que já realizara a ligação entre a Europa e os
Estados Unidos, a 22 de junho de 1874 fazia funcionar a ligação
telegráfica, dirigindo-se o Imperador Pedro Segundo à Sua Santidade o
Papa Pio IX e a Chefes de Estado europeus que, no dia seguinte, lhe
responderam às saudações. Concedeu-lhe o Imperador, nesse mesmo dia, o
título de Visconde com grandeza.
No Uruguai, em 1857, fundou o Banco Mauá y Companhia, o primeiro
estabelecimento de crédito que possuiu aquela República. Mauá, através
dele, assegurou uma contribuição eficiente para a solução dos graves
problemas que enfrentava o país, a braços com o desenfreio das paixões
políticas depois da atribulada campanha para afirmar-se como nação
soberana. Muito do que ali foi realizado com o objetivo progressista, no
campo agro-pastoril e como desejo de criar a riqueza por obra da
manufatura, deveu-se ao Banco, que financiou, inclusive, o próprio
governo uruguaio em fases delicadas.
A um capítulo de seu grande livro, Alberto Faria deu o título — o que
Mauá não fez — Porto de Pernambuco, Estrada de Ferro para Mato
Grosso, Companhia Pastoril, Agrícola e Industrial.
No primeiro caso, aprovada a sua proposta, a mudança de orientação
governamental prejudicou a iniciativa. Mauá, nas obrigações que indicara,
fizera constar — "a Companhia obriga-se a não possuir escravos e a não
empregar no serviço de suas obras senão pessoas livres."
A Companhia Pastoril visava à criação em campos próprios em Mato
Grosso, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina,
com frigorificação de carnes para ser lançada em mercados nacionais e
estrangeiros. Só naqueles países, o ativo da Companhia fora avaliado em
25 milhões de dólares.
A estrada de ferro, no sonho do estadista de ação continental partindo
de Curitiba, atingiria Mato Grosso, de onde, depois, passaria à Bolívia para
alcançar o Pacífico. Era a ligação de dois oceanos, ainda hoje não
efetivada. "A estrada iria de Curitiba a Campo Largo e Palmeira no Paraná;
daí, ganhava o vale do Ivahy, atravessando o rio Paraná em direção à
cidade de Miranda em Mato Grosso, a 630 milhas da Costa do Atlântico.
Daí, ramificava-se para o norte na direção de Cuiabá e para o oeste na
direção da fronteira da Bolívia, atravessando o Rio Paraguai em frente
ao
MAUÁ E SEGURANÇA NACIONAL
Capão da Queima, povoado boliviano no departamento de Chuqui-saqua
até à cidade de Sucre, antiga capital e daí a Potosi e Oruro, onde estaria
ligada ao Oceano Pacífico pela estrada de ferro que ia até La Paz."
Em maio de 1875, Mauá requereu moratória por 3 anos. Em 1864, por
ocasião da grande crise que abalara o Império, cem casas comerciais da
maior importância sucumbiram. Mauá, os banqueiros Bahia, Irmãos e
Companhia e o Banco do Brasil, este garantido pelos favores
governamentais, escaparam ao desastre. A moratória era uma consequência
de todo um gigantesco esforço que realizara para criar a fortuna privada
brasileira na jornada diária de desenvolver a economia nacional. A guerra
contra Lopes, o procedimento irregular do governo uruguaio, dificultando
a vida do Banco na República e levando-o à falência, sentença iniquia de
tribunal brasileiro a propósito de dívida de 600.000 libras, dívida já
prescrita pelos tribunais ingleses, a inveja dos que não o suportavam pelos
triunfos que alcançara, a incompreensão dos que entendiam perigosas as
iniciativas do Barão, amarrados que estavam a idéias ultrapassadas, a
penetração de capitais estrangeiros em competição favorecida esta pela
liberalidade da legislação brasileira, a frieza dos homens que dispunham do
poder e não tiveram, bem claramente, uma ideia do que representavam as
obras que Irineu Evangelista empreendera, tudo somado ia levá-lo à
falência.
Então, com uma superioridade sem limite, diria — "não hei de ficar
com um vintém para mandar ao mercado, seja qual fôr a conduta dos
credores para comigo".
Dirigindo-se a Cotegipe, dizia-lhe — "Cinquenta anos de um trabalho
insano, procurando sempre, em todo esse longo período, fazer sempre
algum bem, foram perdidos inteiramente para mim pois, acredite V.
Excia., as combinações e esforços que ainda emprego não pecam por falta
de energia e são exclusivamente com este fim — cumprir o meu dever para
com os credores da casa. Se o conseguir, morro resignado, se não o
conseguir, morro impenitente".
E na Exposição aos Credores, afirmou: "Tem-se o direito de ser
acreditado na hora mais amarga da existência, quando se acham destruídas
todas as aspirações, quando a realidade interpõe sua autoridade, afastando
da mente todas as ilusões... Na idade avançada em que me acho, nesta hora
solene em que a vítima de um grande e não merecido infortúnio, vem dar
explicações a quem tem o direito de exigi-las, não posso, em presença do
acontecimento que motiva esta exposição, realizado pelo modo por que foi
resolvido, não posso ter outro objetivo em vista senão salvar do naufrágio
aquilo que para mim vale mais do que quanto ouro tem sido extraído das
minas da Califórnia, um nome puro"...
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
Cumpriu a promessa. Pagou aos credores. Também era credor
de capitalistas ingleses e do governo uruguaio. Nenhum lhe pagou
o que devia. Reabilitado, ainda tentou reerguer-se. A 22 de
outubro de 1889 faleceu. Da falência, dissera Rio Branco, no Senado:
_ »A catástrofe da Casa Mauá foi um infortúnio nacional".
Mauá, cuja vida ficou proposta nesta síntese, teria merecido a crítica
que lhe fizeram de que, na realidade, antes de um homem voltado para os
interesses de sua Pátria, serviu muito mais e muito mais decididamente,
como preocupação fundamental, a seus próprios interesses, como homem
de empresa, servindo, portanto e finalmente, a seu apetite, suas ambições
do que talvez já pudéssemos denominar de poder econômico?
Realizando as tarefas a que se entregou e, em muitas delas, como foi o
caso da navegação do Amazonas, tendo atendido a solicitação do próprio
público, impotente, com seus recursos, para enfrentar certos problemas
graves que exigiam investimentos, decisões, que só o homem de empresa
pode possuir, técnica avançada e aquele "savoir faire" que não era
abundante na época de tão poucas iniciativas generosas e dignificadoras,
Mauá, na verdade, deu um concurso admirável ao interesse nacional, ou
antes, à segurança nacional. É que assegurando o progresso, criando
condições novas de trabalho, proporcionando o enriquecimento do país,
tranquilidade pela aventura da iniciativa industrializante em que enveredara
sem temores e com espírito cheio de energia, disposto a vencer, Mauá
estava garantindo, ao próprio poder público, aquela paz necessária à
execução dos programas, de natureza política, que absorviam os homens
públicos, inclusive aqueles que diziam respeito à nossa presença no Prata,
onde essa presença era necessária para a preservação da integridade
nacional e preservação de nosso prestígio como nação que se construía
mantendo de pé todo o edifício gigantesco que fora a construção territorial,
determinada de Lisboa, no período colonial, mas, promovida por soldados,
colonos, religiosos, funcionários do Estado. Ora, a segurança nacional, que
não pode nem deve ser limitada à defesa de instituições pelo uso do
instrumental disciplinador, deve compor-se de todo o vasto esforço de
manter as populações nacionais em condições de dignidade sanitária,
cultural e em atividade criadora, que lhes dê a consciência de terem missão
a cumprir e direitos e deveres de que não se devem desviar, contribuindo
para o bem-estar coletivo. Entendida assim, não teremos em Mauá um dos
melhores construtores da unidade e da segurança nacional, desde que
cumpriu aqueles objetivos essenciais e cumprindo-os serviu muito mais aos
interesses nacionais que aos seus interesses pessoais?
Sobre sua grande vida, assim se expressou, em síntese admirável,
Laudelino Freire em "Notas e Perfis": "O nome de Mauá, tristemente
ignorado e esquecido é, no entanto, o do brasileiro que mais
MAUÁ. E SEGURANÇA NACIONAL
trabalhou, batalhou, sofreu e fez em prol da prosperidade de sua
terra...
Impõe-se, a todos, o dever de reconhecer, diante disto, que o
Visconde de Mauá não foi um homem, foi um governo. Fez o que só um
bom governo pode fazer".
A lição de sua vida maravilhosa, não devia constituir permanente
lição proposta ao exame de governantes e de governados, das gerações que
se preparam para os destinos futuros do Brasil, gerações que se perdem na
agitação sem medida e na irreflexão que não leva sequer a uma
perspectiva menos áspera? Poucos homens devem merecer a nossa
reflexão pelo que produziram. Não somos ricos nesses exemplares da
inteligência, do civismo, da dignidade e da energia criadora. MAUÁ foi
uma dessas figuras-simbolos. Sua vida provoca confiança nos homens.
Os estudos antropológicos no Brasil (*)
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
Ao propor-me a transmitir nestas notas algumas informações — e
insisto neste ponto: trata-se de informações, e não de qualquer trabalho
interpretativo ou avaliativo — a respeito dos estudos antropológicos no
Brasil, permito-me salientar que, com esse propósito, procurarei mostrar
como o homem brasileiro tem sido estudado; desta maneira oferecerei
sugestões para um melhor conhecimento das linhas seguidas nesse estudo,
e que contribuição, para as próprias ciências humanas em geral, os estudos
antropológicos têm oferecido.
Neste sentido, ao focar este tema, procurarei desenvolvê-lo através de
três grandes quadros: em primeiro lugar, as fontes e os estudos realizados;
em segundo lugar, a contribuição da Antropologia, através desses estudos,
para a formação de um pensamento social e cultural no Brasil e do Brasil;
e, finalmente, em terceiro lugar, os problemas e perspectivas atuais da
Antropologia no Brasil.
O primeiro aspecto para o qual desejo solicitar vossa generosa atenção
refere-se a uma afirmação que talvez pareça surpresa: a Antropologia
existe no Brasil desde a descoberta. É claro que, assim dizendo, não quero
referir-me à Antropologia como ciência, tal como hoje a conhecemos.
Quero especificamente referir-me ãs fontes de informação que, ãs vezes
sendo um documento histórico ou uma simples descrição de viagem,
constituem elementos de natureza antropológica, ou pelo menos de
interesse antropológico. Elementos que assim hoje consideraríamos, isto é,
fontes etnográficas para o estudo do homem brasileiro.
(*) Texto, reconstituído, de conferência pronunciada em Lisboa, a 20 de novembro de
1968, inaugurando o Curso de Antropologia do Instituto Superior de Ciências Sociais e
Política Ultramarina.
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
Neste sentido a Antropologia se inicia, no Brasil, com a carta de Pêro
Vaz de Caminha. É o primeiro documento sobre o Brasil; é um documento
tipicamente etnográfico, primeira fonte para o estudo antropológico no
Brasil. Com ela temos o quadro da existência do elemento indígena
encontrado na terra, e com o qual os colonizadores foram entrar em
contacto, mesclando-se fisicamente e intercambiando valores culturais. A
carta de Caminha descrevendo o indígena, fosse do ponto de vista físico,
fosse do ponto de vista cultural, nos oferece o conhecimento da população
aborigine naquele momento histórico, antes que tivesse qualquer contacto
com o elemento civilizador, isto é, o português.
É, portanto, o primeiro documento da Antropologia brasileira. Sua
curiosidade pelo indígena, descrevendo-lhe os hábitos e os valores
materiais encontrados, faz da carta de Caminha uma fonte fundamental
para o estudo antropológico no Brasil. Essa curiosidade pelo indígena
alonga-se aos cronistas que se lhe seguem: Vespucci, Luis Ramirez, Hans
Staden, tantos mais, sem esquecer o manancial que, a partir do meado do
século XVI, constituem as Cartas Jesuíticas, as Informações ânuas ou
quadrimestrais enviadas para Portugal, as narrativas dos padres, suas
descrições, e até mesmo seus sermões.
Desses documentos jesuíticos, três devemos destacar como mais
importantes para o estudo antropológico, no sentido de permitirem a
reconstituição daquele período em que começam a fundir-se os três
grandes grupos étnicos que no Brasil se encontraram: o elemento nativo, o
índio; o elemento colonizador, o português; e o elemento importado como
escravo, o negro-africano.
As cartas de Nóbrega têm uma significação bastante expressiva. Até
então os cronistas ou viajantes, pelo rápido contacto com os indígenas, em
geral se referiam apenas a aspectos da cultura material, e se acaso volviam-
se a aspectos de cultura espiritual falhavam completamente. É o caso, por
exemplo, do etnocentrismo de Vespucci, para o qual os índios não tinham
nem leis, nem reis, nem templos, isto é, nem organização social, nem
organização política, nem organização religiosa; não as tinham, é claro,
como os portugueses. Aí temos, consequentemente, uma falha de obser-
vação, mas que contribui para vermos de quanto é capaz o etnocentrismo
do observador, de uma parte, e, de outra parte, a falta de conhecimento do
que modernamente se chama de relativismo cultural.
Pois bem: Nóbrega, porque teve um contacto maior com as
populações indígenas, pôde revelar aspectos de sua cultura espiritual. É
com Nóbrega que se podem recolher as primeiras informações a respeito
das práticas religiosas, de suas crenças, de sua visão espiritual. É com êle
que recolhemos dados sobre a mitologia indígena, a concepção de Ser
Supremo, o papel do pagé ou cacique,
Os ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NO BRASIL
a organização da sociedade tribal, tanto do ponto de vista que hoje
chamaríamos político como do ponto de vista de organização familiar.
Anchieta, por sua vez, autor de numerosas cartas, é também o autor de
várias informações ânuas ou quadrimestrais; tais documentos são ricos de
informações, em particular quanto à sociedade em formação. Trata-se, de
modo especial, das relações entre os padres, os colonos e os indígenas;
falam da vivência nos grupos que se formavam; dão-nos dados a respeito
de como a sociedade estava se constituindo e que características
apresentava. Não esquecem os problemas de relações étnicas e igualmente
os de uma sociedade em que o elemento feminino, de origem branca, era
escasso, quando havia a abundância da mulher indígena e começavam a
chegar as mulheres africanas. A sociedade brasileira nas suas origens, em
suas primeiras características, está desenhada nas cartas e informações de
Anchieta.
O terceiro documento jesuítico, altamente importante para o estudo
antropológico, é a narrativa epistolar do padre Fernão Cardim. Este S. J.
acompanhou o visitador Cristóvão de Gouveia por todas as partes do Brasil
onde havia padres da Companhia. E então nos descreve, com minúcias
expressivas, a vivência encontrada — e isto já nos fins do século XVI —
em cada uma dessas vilas ou povoados. É com êle que recolhemos o
quadro da vida quotidiana em cada uma dessas localidades; fala-nos da
aristocracia dos engenhos, os hábitos fidalgos, o uso de damascos, sedas e
ouro; também nos descreve as primeiras festas, entre elas o primeiro Natal
Brasileiro, em que os padres e índios cantaram e dançaram diante do
presépio — e cantaram, de certo, autos pastoris portugueses, tão comuns
naquela época — animados pelo berimbau do irmão Barnabé. Foi o
primeiro Natal festejado em terras brasileiras; ou, pelo menos, o primeiro
de que até o momento temos o registro documental.
Seria supérfluo, e creio que desnecessário, pormenorizar cronista a
cronista, viajante a viajante, que no correr dos séculos, do XVI ao XIX,
foram trazendo sua contribuição, que aqui poderíamos chamar etnográfica,
para a formação da Antropologia Brasileira. São informações recolhidas
em diferentes partes do Brasil; são documentos que testemunham as
características de vivência em cada região; são elementos, enfim, que nos
dão a paisagem cultural do Brasil, em distintas manifestações,
possibilitando assim, aos estudiosos de hoje, a reconstituição do passado
cultural, em particular de nossa formação como povo culturalmente
considerado.
São, de modo geral, descrições ou informações. Com Alexandre
Rodrigues Ferreira, fins do século XVIII e começos de XIX, é que
passamos a ter uma observação já mais solidamente centífica;
MANUEL DIEGUES JÚNIOR
talvez uma interpretação, poderíamos dizer, de características culturais dos
grupos indígenas, pois particularmente a respeito das populações
aborígenes da Amazônia é que se detiveram os estudos de Alexandre
Rodrigues Ferreira.
Contudo, o verdadeiro caráter científico, formando já uma autêntica
análise antropológica, vamos dever a dois alemães que se situam, no
tempo, um nos começos, outro nos fins do século. Cari Frederick von
Martius, cujo nome abre um grupo de cientistas
em especial, naturalistas — que, viajando pelo Brasil, oferecem
contribuição valiosa para conhecimento do homem brasileiro, nos
deixou uma obra monumental, escrita em colaboração com Spix;
sua viagem pelo Brasil é uma fonte inesgotável de informação a
respeito das populações brasileiras. Especificamente, dele, no campo
da Antropologia, encontramos três estudos: a origem dos indígenas
brasileiros; a organização social do indígena; a classificação dos
grupos indígenas, segundo as línguas. Se os dois primeiros são hoje
superados, em face das pesquisas que desde então se desenvolveram,
o último ainda pode ser considerado, sobretudo porque serviu de
base a todos os estudos posteriores a respeito da classificação das
tribos indígenas.
Von den Steinen fêz duas viagens ao Brasil — em 1874 e em 1878 —
e entrou em contacto, no Xingu, com populações indígenas até então
virgens de qualquer relacionamento com populações brasileiras. Von den
Steinen realizou o que hoje chamaríamos de pesquisa pela observação
participante. É assim a primeira pesquisa de campo, verdadeiramente
científica, realizada no Brasil. E com critério ainda hoje consagrado pela
Antropologia: a de, anos depois, voltar à mesma região para reestudar as
mesmas populações, de modo a confirmar as observações anteriores ou
registrar as transformações havidas. A classificação de von den Steinen, a
respeito das tribos indígenas, baseada na língua e em aspectos culturais,
ainda hoje é adotada, sobretudo quanto aos primeiros quatro grupos
o tupi, o jê, o aruaque e o caraiba — por êle mesmo definitiva
mente considerados.
Entre um e outro desses dois alemães numerosos são os viajantes
cronistas, comerciantes, naturalistas, jornalistas — que visitam
o Brasil e deixam seus depoimentos, muitos deles ainda hoje válidos,
a respeito do homem brasileiro de então; também a respeito das
relações entre os grupos étnicos; igualmente a respeito das carac
terísticas culturais — usos, hábitos, costumes, trajos, alimentação,
encontradas nas diferentes populações visitadas. Todo um material,
portanto, que constitue fonte ainda hoje indispensável aos estudos
antropológicos no Brasil. Em especial, para reconstituição de nossa
formação, de um lado, e, de outro lado, para conhecer as origens
do nosso panorama cultural contemporâneo.
Os ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NO BRASIL
Ao mesmo tempo, neste citado século XIX, novas iniciativas vão
contribuir para o desenvolvimento da Antropologia no Brasil. Exemplo: o
Museu Nacional. Criado, em 1818, especialmente voltado para as ciências
físicas e naturais — e entre estas, é evidente, se considerava então o estudo
do homem físico — o Museu passou depois, nos meados do século, a
estudar também aspectos que hoje chamaríamos de Antropologia cultural
ou de Etnologia. A arte marajoara, a cerâmica, do indígena amazônico, por
exemplo, preocupa os estudiosos do Museu. Neste sentido, a contribuição
que então surge, ainda hoje podemos considerar válida; e não raro,
perfeitamente confirmada por estudos posteriores.
É ainda no Museu Nacional que surge, em 1877, o primeiro curso de
Antropologia no Brasil. Deve-se tal iniciativa a Batista Lacerda. É claro
que a Antropologia de então, sem nenhum restritivo para classificá-la ou
identificá-la, era voltada quase exclusivamente para o estudo físico do
homem; e dentro do estudo físico, quase se prendendo ao estudo
anatómico. Contudo, abre perspectivas para o melhor conhecimento das
características — características físicas, é claro — do indígena brasileiro;
da mesma forma que abre perspectivas, em particular como estímulo, a
novos estudos, a novas pesquisas, a novas missões entre as populações
indígenas.
É também neste fim de século — do século XIX — que os estudiosos
brasileiros, e entre eles destacadamente Nina Rodrigues, se interessam pelo
estudo do negro-africano, ou do negro-brasileiro. Com estes estudos, e em
especial os de linguística, inicia-se todo um campo novo na Antropologia
brasileira. Mas só em nosso século atual os estudos acerca do elemento
negro-africano aprofundaram-se e diversificaram-se; não só estudos de
caráter histórico ou social, também estudos de fundo econômico, de
interpretação das relações étnicas, da mestiçagem, dos valores culturais
introduzidos; em grande parte, estudos de âmbito regional, que ainda mais
valorizam suas conclusões.
O elemento indígena, contudo, continuava a pedir a atenção dos
especialistas, porque grandemente desconhecido, disperso na imensidão do
território brasileiro, sobretudo nas áreas de floresta tropical. A Missão
Rondon, nos começos do século atual, iria abrir novas perspectivas para o
conhecimento dos indígenas, em especial pela possibilidade de revelar
tribos até então desconhecidas e, ao mesmo tempo, de dar ensejo à
publicação de uma obra que ainda hoje constitui um dos patrimónios da
Antropologia brasileira: Rondônia, de Roquette Pinto. Torna-se este
cientista um dos renovadores dos estudos antropológicos no Brasil, não
apenas por suas pesquisas entre as populações aborígenes, reveladas em
Rondônia e outros estudos, mas sobretudo pela contribuição nova,
cientificamente atualizada, que dá aos estudos antropológicos.
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
A contribuição de Roquette Pinto, não se marca exclusivamente pelo
estudo do índio; caracteriza-se principalmente pelo estudo de populações
brasileiras não aborígenes; pela revelação de novos aspectos da formação
brasileira; e, sobretudo, por se ter antecipado, na bibliografia brasileira, à
concepção de não ser a Etnografia — como assim chamava o que hoje
denominamos Etnologia ou Antropologia Cultural — apenas dedicada ao
estudo do indígena, mas ser disciplina abrangedora igualmente de outros
grupos populacionais brasileiros. Isto foi oportunidade para evidenciar o
nível de avanço com que se desenrolavam os estudos de Antropologia.
Embora ainda hoje alguns autores procurem conceituar a Etnologia ou
Etnografia como restrita ao estudo do primitivo, dentro da originária
concepção alemã, a realidade é que as tendências mais modernas se
dirigem para dar à Antropologia condições de estudar quaisquer grupos,
primitivos ou civilizados, em seus aspectos físicos, quando é conhecida
como Antropologia Física ou Biológica, ou em seus aspectos culturais,
quando se chama Antropologia Cultural ou Etnologia.
A partir de 1930 os estudos sociais se renovam no Brasil. A
antropologia passa agora a ocupar uma posição de destaque, e sua
influência mais se acentua na formação de um pensamento social e cultural
no Brasil. 1933 é um ano marco. E assim podemos considerá-lo pelo
aparecimento de Casa Grande & Senzala. A obra de Gilberto Freyre marca
a época de renovação dos estudos sociais; abre novas perspectivas para o
pensamento brasileiro; assinala o encerramento de um período e a abertura
de outro, tal como, nos fins do século XIX, a obra de von den Steinen para
os estudos indigenistas.
Desenvolvem-se, desde então, os estudos regionais e os trabalhos
monográficos, através dos quais se torna possível uma visão mais real do
Brasil pelo conhecimento de suas peculiaridades, não mais dentro de um
conhecimento monolítico como até então se vinha fazendo. Arthur Ramos
dedica-se aos estudos sobre o negro brasileiro, do ponto de vista cultural,
estudando-lhe as manifestações folclóricas, as práticas religiosas, os
elementos culturais introduzidos. Evolue da concepção psicanalítica de
seus primeiros trabalhos para uma interpretação culturalista. Amplia sua
visão do homem brasileiro, e nos oferece seu monumental Introdução à
Antropologia Brasileira, que é como que a síntese de todos os seus
trabalhos a respeito da formação de nossas populações.
O Museu Nacional, o Museu Paulista, o Museu Goeldi, para citar
apenas três exemplos, ampliam seus trabalhos de pesquisas a respeito do
índio. O início das atividades universitárias, com a Escola de Sociologia e
Política de São Paulo, com a lamentavelmente efémera Universidade do
Distrito Federal, no Rio de Janeiro, com as Faculdades de Filosofia,
Ciências e Letras, criadas a partir de
Os ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NO BRASIL
1939, os estudos antropológicos tomam nova visão; e temas relativos a
diversos aspectos da cultura brasileira são estudados e pesquisados. Não
devemos esquecer igualmente que depois de 30 é que começam a surgir no
Brasil os primeiros estudos, não mais exclusivamente históricos ou
geográficos, mas agora de natureza cultural, acerca do elemento imigrado
— o alemão e o italiano, principalmente — no Brasil. Na década de 40, em
particular, esses estudos se incrementam, graças aos trabalhos pioneiros de
Emilio Willems, ainda na década anterior, e os que se seguem, sobretudo
de seus discípulos. Desta maneira completa-se o conhecimento do homem
brasileiro em todas as feições originárias que para êle contribuíram, ou têm
contribuído, ou — mais exatamente — estão contribuindo em nosso
tempo.
Aliás, é oportuno ressaltar, a esta altura, que como estamos tentando
identificar os rumos do estudo do homem brasileiro não nos temos
preocupado em distinguir a contribuição de cada um desses setores da
Antropologia; não discriminamos o que é puramente estudo de
características físicas, como foram, por exemplo, os primeiros estudos de
valores ou elementos culturais, como se tem feito, em particular, através de
estudos de comunidade.
Dada a unidade do homem, e o processo de mestiçagem verificado no
Brasil desde o primeiro século, completado pela transcul-turação entre os
três grupos étnicos fundamentais, a que se vieram juntar, a partir do século
XIX, os grupos europeus ou não europeus trazidos pela imigração,
podemos compreender como se vem formando esta unidade, sem prejuízo,
é claro, da diversidade de alguns tipos físicos ou de algumas regiões
culturais. Nossa preocupação se situou, particularmente, em mostrar as
linhas seguidas pelos estudos antropológicos. Foi, principalmente, uma
tentativa de estudar o homem brasileiro, identificando as fontes a que
recorrer para fixar suas origens ou o processo de sua formação, na
complexidade criada pelas relações variadas e diversas que, apesar de tudo,
têm contribuído para alicerçar a unidade do homem. Procuramos assim,
independente de mostrar especificamente essa ou aquela contribuição, em
cada setor de trabalho, situar o desenvolvimento desses estudos dentro do
ambiente social brasileiro, de que o homem, mestiçado, transculturado,
participa e lhe dá vida.
Um segundo aspecto desejaria salientar nesta exposição: a
contribuição que a Antropologia — quase sempre mesmo sem ser
considerada Antropologia — tem dado para a formação de um pensamento
social ou cultural no Brasil, e do Brasil. Este segundo aspecto completa,
sob certos ângulos, o primeiro; e isto porque ainda uma vez são estudos,
nem sempre originariamente antropológicos, que oferecem esta
contribuição. São, rigorosamente, estudos que, abordando sob distintos
aspectos, o homem brasileiro, trazem uma contribuição, ainda hoje válida,
não apenas para os estudos brasi-
MANUEL. DIÉGUES JÚNIOR
leiros mas, de modo especial, para a formação de um pensamento
autenticamente brasileiro.
Trata-se de estudos ou pelo menos de alguns estudiosos que, focando
o homem brasileiro, o encararam sob ângulos que hoje chamaríamos
antropológicos. Aqui consideramos, portanto, a Antropologia, embora sem
o imperialismo todo dominante de uma ciência, como o estudo do homem;
no caso, do homem brasileiro; e, ainda mais especificamente, de como
através desse estudo do homem brasileiro se formou um pensamento social
e cultural no Brasil.
É uma contribuição que, poderíamos fixar, começa com José
Bonifácio, aclamado como o Patriarca da Independência, quando se
esquece quase sempre o que representaram seus estudos sobre a escravidão
ou sobre o indígena, por exemplo, na formação das próprias ideias que
criaram a nacionalidade brasileira. José Bonifácio não foi apenas o
político, o lider da emancipação nacional; foi essencialmente um pensador,
e através dessa sua contribuição, deu os primeiros fundamentos de uma
concepção já brasileira seja em relação ao problema da escravidão, seja
quanto à situação das populações indígenas.
Outra contribuição, não de antropologia, mas igualmente com seu
sentido antropológico, vamos encontrar em Antonio Pedro de Figueiredo,
jornalista pernambucano que divulgou, entre nós, ideias socialistas de
Cousin; e por isso mesmo foi apelidado pelos adversários de suas ideias de
"Cousin fusco", em face do seu mulatismo. Seus estudos sobre o problema
da terra no Brasil, mostrando os maus efeitos produzidos pelo latifúndio,
refletiam as necessidades de promoção do homem; para êle a pessoa se
situava no centro da solução do problema agrário. O que sucede também
com Joaquim Nabuco. A este devemos uma contribuição altamente
importante, que o situa entre os nossos primeiros pensadores sociais, e não
apenas políticos, embora sua ação tenha sido nitidamente política,
sobretudo na campanha abolicionista, de que foi um dos líderes mais
destacados.
A Joaquim Nabuco, em seus discursos parlamentares ou da campanha
abolicionista, ou em seus estudos ou conferências, se devem algumas ideias
fundamentais, baseadas essencialmente na comprensão do problema do
homem. Três delas podemos destacar aqui: a necessidade de realizar o que
êle chamou "a democratização do solo", que não era outra coisa que a
reforma agrária contemporaneamente considerada; a preocupação pelo
futuro dos escravos, pois — ressaltava — não era necessário apenas
libertar os escravos, mas encontrar o seu destino futuro; e, finalmente, a
concepção, hoje consagrada por sociólogos e antropólogos, de que a
influência africana entre nós foi essencialmente a do escravo e da
escravidão, e não a do negro africano.
Os ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NO BRASIL
Outro pensador social, embora tenha morrido antes de projetar toda
sua inteligência, e que também deixou uma contribuição altamente
expressiva foi Tavares Bastos. A êle devemos estudos sólidos sobre a
escravidão e o trabalho livre; foi quem despertou o interesse nacional pelo
problema da imigração como substituição da escravidão, ou seja o trabalho
livre substituindo o trabalho escravo. As ideias políticas de Tavares
Bastos, solidamente sociais, assinalaram a importância do federalismo na
formação brasileira; e ainda hoje páginas de seu livro A Província são
rigorosamente atuais. Como atualíssimas são muitas das suas Cartas do
Solitário.
Mais próximo de nós um homem de letras, escritor e historiador da
literatura, foi quem introduziu em seus estudos o método antropológico,
então assunto da moda: Silvio Romero. Influenciado pelas ideias de Tobias
Barreto, trouxe para a literatura uma interpretação social e humana, que
deu contornos novos ao conhecimento da formação brasileira. É
interessante assinalar que se deve a Silvio Romero uma classificação
regional do Brasil em "zonas sociais"; o que êle assim chamou eram zonas
identificadas pela atividade econômica existentes, marcando diferentes
áreas geográficas do Brasil. Poderíamos dizer que as zonas sociais de
Silvio Romero são, não há negar, uma antecipação do que a Antropologia
contemporânea chama de "tipo de cultura".
A presença do elemento negro começa a ser estudada antropo-
lògicamente, com Nina Rodrigues, nas últimas décadas do século XIX. Foi
quem então melhor estudou a contribuição do negro africano, apesar de
suas ideias estarem bastante marcadas de preconceitos, em sua maioria
difundidos na época; entre eles, o da inferioridade mental do negro
africano. Mas teve o mérito de reunir informações ainda hoje válidas,
sobretudo pela carência de outras fontes documentais e pelo
desaparecimento de africanos legítimos com os quais conviveu na Bahia.
Sua obra foi continuada, a partir de 1926 mais ou menos, por Arthur
Ramos que se tornou o nosso mais autorizado africanista. Deve-se a
Ramos nova interpretação, já agora social e cultural, da participação do
elemento africano na vida brasileira.
Nos começos do século apareceu uma obra que haveria de tornar-se, e
ainda hoje o é, verdadeiro best-seller: Os Sertões, de Euclides da Cunha. O
livro descrevia o episódio conhecido como a guerra de Canudos: a irrupção
de um surto de messianismo com a figura de Antonio Conselheiro fixando
as atenções, nos sertões baianos. Euclides estudou o problema, e a partir do
que poderíamos dizer a relação entre a terra e o homem, encontrou a chave
da situação: o problema da distância cultural. O choque entre duas culturas
— a sertaneja e a litorânea. Teve a visão cultural do problema, que não era
restrito a Antonio Conselheiro, pois antes como depois outros
fenómenos idênticos, embora sem a mesma
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
repercussão, se verificaram. Apesar de ter tido a autêntica concepção do
fenômeno, a obra de Euclides se marcou de alguns senões, talvez
produzidos pela influência nele exercida por certas concepções da época e
pelo homem do sertão, resistente a toda a espécie de pressões: a da própria
terra e a de outra cultura, principalmente.
Contribuição pioneira de um autodidata — Oliveira Viana — marcou
a abertura de estudos do que hoje chamaríamos antropologia regional; seu
livro sobre as populações meridionais do Brasil voltou-se para o
conhecimento dos grupos do extremo sul, onde o elemento indígena era
importante, mas logo superado pelas populações de origem europeia:
primeiro, as portuguesas, da Europa e dos Açores; depois, as imigradas —
alemães, italianas, etc. Os problemas então focalizados deram uma feição
nova à interpretação do povoamento do extremo sul. Mais tarde, Oliveira
Viana reuniu, em livro, seus estudos que chamou de psicologia social,
contribuição apreciável para a fixação de certos traços peculiares ãs nossas
populações. Um pequeno livro, porém altamente interessante para
conhecimento do brasileiro no que êle possa ter de mais característicos,
psicologicamente falando.
A um jovem parlamentar de 1915 iria dever-se um chamado a
problemas reais do país, retomando a análise que, no século passado,
Tavares Bastos havia abordado com a palavra "realidade" no pórtico de seu
livro. Falando na Câmara dos Deputados sobre as instituições políticas e o
meio social, em discurso que marcou um momento na vida cultural do país
— a surpresa pelos conceitos, o espanto pelas ideias, a incapacidade de
digerir novas concepções — o então deputado Gilberto Amado abria
perspectivas inesperadas, não apenas para o conhecimento, mas para a
interpretação exata, da realidade nacional. Mais tarde, parte deste discurso
foi publicado em livro, comemorativo do centenário da Independência, mas
como análise da vida republicana.
O mais importante, entretanto, é que aquele ponto de partida, ocorrido
na primeira grande guerra, foi retomado pelo próprio Autor em estudos
posteriores, cuja marca sensível era justamente a procura da realidade do
país; procurava mostrar o irrealismo existente nas instituições políticas e
nas sociais diante de um país real, em processo de crescimento e de
transformação. O pensamento de Gilberto Amado, não sendo — o que,
aliás, sucedeu com outros autores, antes e depois dele — de fundo
antropológico, trazia porém para os estudos de antropologia do Brasil um
subsídio altamente expressivo. Sobretudo, pelo acento que êle dava ao
apontar a realidade existente contra a fachada irrealista que era imposta ao
país.
De Gilberto Amado é ainda a defesa do mestiço, mostrando sua
superiodade e os resultados da tarefa que, em quatro séculos de vida
tropical, êle realizara no Brasil; em discurso de 1918, acentuava a
superioridade do mestiço antecipando-se antropològicamente ao
Os ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NO BRASIL
que somente muitos anos depois a própria Antropologia confirmaria.
Outra análise sua refere-se ao irrealismo do eleitorado brasileiro. O quadro
traçado em 1925, mudados os números pelo aumento da população, é
quase o mesmo, qualitativamente, do que existe em nossos dias.
A importância da contribuição de Gilberto Freyre, com a publicação
de Casa Grande & Senzala, se pode marcar por três aspectos principais,
sem excluir outros que consideraríamos secundários: em primeiro lugar, a
metodologia, pela primeira vez empregada entre nós; depois, a distinção
que estabelece, para ela chamando a atenção, entre raça e cultura, isto é, o
que é herança genética e o que é herança social, até então não percebida,
pois mesmo Silvio Romero, imperceptivelmente, tudo atribuia à influência
racial, quando se tratava, de fato, de influência cultural; e, finalmente a
abertura de novos estudos, através das sugestões e ideias que enriquecem o
livro. A partir de então — e principalmente através de estudos regionais —
se desenvolveram pesquisas e estudos que completavam sugestões
oriundas de Casa Grande & Senzala. Inclusive de outras obras do próprio
Gilberto Freyre: Sobrados e Mucambos, Nordeste, Interpretação do Brasil,
por exemplo.
Com Gilberto Freyre tomamos consciência de nosso processo de
mestiçamento tanto físico como cultural; compreendemos também a
realidade de nossa formação desde o quadro da colonização, sobretudo
para sentir que, apesar da base lusitana, já havíamos produzido alguma
coisa nossa, não puramente lusitana, mas já brasileira, como decorrência
da transculturação verificada; sentimos também que nossa unidade,
considerada verdadeiro milagre na história contemporânea — sobretudo
em face da colonização espanhola que, quase na mesma época de nossa
Independência, se esfacelou em vários países — era antes um produto da
diversidade, isto é, um Brasil "irredutivelmente múltiplo, variado e
diverso", cuja soma produzia a unidade, resultando assim da própria diver-
sidade; aprendemos também a ver no homem brasileiro o criador e
construtor do Brasil moderno em que pesem as deficiências de educação,
de saúde, de habitação, de alimentação que sofre este homem.
Também a Gilberto Freyre se deve influência marcante em dois outros
episódios que contribuem para o desenvolvimento dos estudos sociais,
visando à formação de um pensamento brasileiro, através da pesquisa e do
ensino. É iniciativa dele a realização do I Congresso Afro-Brasileiro,
reunido no Recife em 1934, a que seguiu, em 1937, o segundo em
Salvador da Bahia; os estudos reunidos nos dois encontros, ocupando três
volumes, constituem contribuição valiosa para compreensão da
problemática do elemento negro-africano e sua presença na formação
cultural e humana do Brasil.
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
A segunda iniciativa é sua participação na obra pioneira, e ainda hoje
não repetida, da Universidade do Distrito Federal, criada em 1935 na então
capital do Brasil (Rio de Janeiro); aí se realizou o primeiro curso de
Antropologia Cultural e Social, ministrado por Gilberto Freyre,
completado por seu curso de Sociologia, dado na mesma oportunidade, e
ambos refletindo-se na formação do Clube de Sociologia que reunia velhos
e novos estudiosos, e não apenas estudantes, de Sociologia e Antropologia.
Se a Universidade do Distrito Federal foi pioneira, como experiência de
ensino, a cadeira de Gilberto Freyre se tornou igualmente pioneira:
pioneira no ensino moderno de Antropologia não apenas fisicamente
considerada, como havia sido a experiência de 1877, mas voltada também
para os problemas de cultura.
A estes dois fatos, outros se seguem, igualmente como elementos que
vão contribuir, através do estudo do homem brasileiro, para maior
arraigamento de um pensamento autenticamente nosso. É o caso dos
Congressos Brasileiros de Folclore, o primeiro realizado em 1951, e a que
se seguiram outros dez; é o caso também das Reuniões Brasileiras de
Antropologia, na segunda das quais (Bahia, 1955), foi fundada a
Associação Brasileira de Antropologia. Seis desses encontros já se
realizaram, e em breve se realizará o Sétimo. É o caso ainda do estudo da
Antropologia que, a partir de 1939, se inscreve como cadeira obrigatória
nos cursos de ciências sociais e de história e geografia das Faculdades de
Filosofia.
Infelizmente, a carência de antropólogos não deu, se não com algumas
exceções, a esse ensino as autênticas e verdadeiras bases cientificamente
antropológicas que seriam necessárias. A verdade, entretanto, é que
numerosos alunos saindo das mãos de professores quase improvisados,
autodidatas que se revelaram compreensivos e interessados, se voltaram,
com dedicação, ao estudo da Antropologia e hoje estão começando a
ocupar as cátedras respectivas. Para a complementação da formação desses
especialistas atuais, muito contribuíram os cursos de especialização e
aperfeiçoamento realizados no Museu do índio, no Museu Nacional, no
Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, por iniciativa de Darcy
Ribeiro, um dos nossos antropólogos mais autorizados.
De qualquer maneira, a formação de novos especialistas, apesar de
todas as deficiências que se podem assinalar, contribuiu para o
desenvolvimento da pesquisa e do estudo cientificamente fundamentados;
trabalhos de campo, através de pesquisas entre populações indígenas, ou
populações rurais, ou mesmo populações urbanas, têm aberto novas
perspectivas a um conhecimento mais aprofundado do homem brasileiro.
A diversidade de estudos, no campo da Antropologia do Brasil atual, é
bastante significativa; não se restringe mais a Antropologia apenas ao
estudo do indígena. Ouvido o ensinamento de Roquette Pinto, em 1912,
abertas as novas perspectivas
Os ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NO BRASIL
que a metodologia moderna introduziu, diversos têm sido os campos de
trabalho do antropólogo: grupos negros; comunidade; relações raciais;
messianismo; contactos entre grupos; assimilação de imigrantes;
urbanização; e por aí afora. São alguns dos problemas estudados pela
Antropologia moderna no Brasil, já voltada para um pensamento
autenticamente brasileiro, embora validamente universal em seu espírito
científico.
Outra série de estudos que não podemos esquecer: os de cunho
folclórico. O levantamento e o estudo dos elementos de cultura popular,
contos, cantos, novelística, desafios, cantorias, representa um dos valores
mais autênticos não apenas para traduzir o espírito brasileiro, mas ainda —
e sobretudo — para dar consistência e consciência a esse mesmo espirito.
Pois é neste manancial de criação popular — e destaque-se aqui o que tem
realizado de pesquisa e de interpretação Luis da Câmara Cascudo, sem
esquecer outros estudiosos também ilustres e dedicados — em que muitas
vezes se inspiram os autores eruditos; da mesma forma que nele também
se fundamentam formas de criação artística, musical ou teatral, expressivos
de um espírito autenticamente brasileiro.
De estudos regionais, que então se desenvolveram no .Brasil falar aqui
seria tomar todo o tempo de uma conferência; é que de um ponto a outro
do Brasil pesquisadores e estudiosos, em diferentes campos, troxeram sua
colaboração para conhecimento de sua região, ou, às vezes, de seu Estado.
Com estes estudos se evidenciaram aspectos os mais diversos de
peculiaridades brasileiras, em âmbito regional. Na Amazônia, Arthur César
Ferreira Reis; no Maranhão, Raymundo Lopes e Domingos Vieira; no
Ceará, Leonardo Mota, Pompeu Sobrinho, Joaquim Alves; no Rio Grande
do Norte, Luís da Câmara Cascudo, Veríssimo de Mello; em Pernambuco,
Gilberto Freyre, Gonçalves de Melo, Vasconcelos Sobrinho, Manoel
Corrêa de Andrade; nas Alagoas, Nico Brandão, Octávio Brandão,
Abelardo Duarte; na Bahia, Luis Viana Filho, Thales de Azevedo, José
Calazans; em São Paulo, Alcântara Machado, Taunay, Sérgio Milliet; nas
Minas Gerais, João Camilo, Ayres da Mata Machado, Diogo de
Vasconcelos, Silvio Vasconcelos; em Santa Catarina, Oswaldo Cabral; no
Rio Grande do Sul, Dante de Laytano, Augusto Meyer, Moisés Velhinho;
— eis alguns dos nomes que me ocorrem, no momento, entre os muitos
que se dedicaram à pesquisa de sua região; e que a respeito de sua região
ou, em especial, de seu Estado, aportaram aos estudos sobre o homem
brasileiro uma contribuição valiosa. O que. vale justamente por ainda
merecerem ser lembrados. E em particular, pelo que tiveram de
continuadores nas novas gerações, as que hoje estão desenvolvendo, em
sua região ou em seu Estado, novos estudos regionais.
A partir de um certo momento, e graças aos estímulos que foram
surgindo — como anteriormente referimos, aliás — os estudos
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
já agora antropològicamente realizados vieram trazer sua contribuição para
conhecimento do homem brasileiro, em diferentes aspectos de sua variada
dimensão. Métodos e técnicas de pesquisa antropológicos passaram a ser
utilizados. Daí resultaram, no enriquecimento da bibliografia brasileira,
estudos de comunidade, dentro das normas que esse campo de pesquisa
recomenda; outros são análise de situações regionais; ainda outros são
problemas de contacto ou de relações entre grupos diferentes. Os primeiros
— estudos de comunidade — avultaram, e se tornaram importantes,
sobretudo porque permitiram estudar aspectos às vezes específicos dentro
de um contexto cultural ou social global. Merecem referência especial,
porque realizados por um grupo de antropólogos brasileiros e norte-
americanos, os estudos de diferentes comunidades em distintas situações
geo-econômicas: uma no recôncavo baiano, outra no sertão árido, outra na
zona montanhosa, outra na zona cacaueira, outra ainda na Amazônia.
Sínteses de alguns desses estudos foram publicados pela UNESCO: Races
et classes dans le Brésil rural.
Estudos acerca de situações regionais, ãs vezes envolvendo análise
comunitária, também representam uma contribuição antropológica bastante
expressiva para o conhecimento do Brasil e a formação de um pensamento
social autenticamente brasileiro pela revelação não apenas de
peculiaridades, que seriam até certo ponto locais, mas ainda de certas
características que permitem identificar a unidade do homem brasileiro, em
que pesem as múltiplas facetas de suas relações e contactos inter-grupais.
São de lembrar, a esse respeito, os estudos de Maria Isaura Pereira de
Queiroz sobre sociedades rurais brasileiras, analisando alguns de seus
aspectos mais característicos, que vão desde o tipo de camponês até o
cangaceirismo, sem esquecer relações de trabalho, tradicionalismo,
messianismo, etc. Também estudos sobre atividades peculiares a uma
determinada área, um determinado grupo, ou uma especialização
profissional: o garimpo mineiro, o engenho de açúcar no Nordeste; os
parceiros, o sitiante, o caiçara, o caipira, o imigrante, o camponês, o
favelado; o jangadeiro, o seringueiro, — para citar alguns exemplos — que
se devem a diferentes autores.
O terceiro grupo de estudos citado refere-se, particularmente, a
assuntos que envolvem o processo, e não apenas problemas, de relações e
de integração cultural; a esse respeito são interessantes os estudos que vêm
desenvolvendo Roberto Cardoso de Oliveira e seus colaboradores do
Museu Nacional Júlio Melatti e Roque Laraia e Roberto da Mata, acerca
do indígena em seus contactos com populações brasileiras em frentes
pioneiras; os de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octávio
Ianni sobre o elemento negro em São Paulo e no sul do Brasil; os de
Thales de Azevedo sobre elites de côr na Bahia; os de René Ribeiro sobre
relações raciais em Pernambuco; os de Egon Schaden sobre alemães e
japo-
Os ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NO BRASIL
nêses em processo de aculturação; e por aí afora, uma série de pesquisas
antropológicas que evidenciam o aprofundamento do assunto e a
consciência de uma problemática que torna possível a compreensão do
Brasil em sua diversidade tão característica da unidade que apresenta.
O que devemos também salientar — e isto é importante para não se
pensar num exclusivismo isolacionista da Antropologia — é que os
antropólogos brasileiros não têm desprezado, nem esquecido, a
colaboração de outros especialistas. E isto de duas maneiras: de um lado,
utilizando e valorizando estudos, realmente de mérito, que em outros
campos — o da economia, o da psicologia, o da demografia, por exemplo
— têm sido realizados pelos respectivos especialistas; e de outro lado,
atraindo para seu contacto estes especialistas, em reuniões conjuntas ou em
encontros científicos. E isto com cientistas sociais que, em outros setores
de pesquisa, se revelam capazes desse contacto e desse encontro
interdisciplinar.
Do sociólogo, em primeiro lugar; os campos do antropólogo e do
sociólogo estão muito próximos e, por isso mesmo, o trabalho comum é
construtivo. Do economista e do demógrafo também a colaboração é
necessária. Igualmente do estatístico e do psicólogo social, a cooperação se
apresenta como útil e interessante, em especial quanto ao psicólogo social,
pelo que este pode oferecer para identificação de atitudes e de valores.
Neste sentido o trabalho comum desses especialistas se torna útil e capaz
de revelar por vezes desapercebidas no trabalho isolado de um especialista.
Reuniões de Antropologia e Congressos Afro-brasileiros, Congressos
de Folclore e cursos de aperfeiçoamento têm procurado sempre reunir
diferentes especialistas, o que contribui, sem dúvida, para dar maior
significação ao trabalho antropológico. Sobretudo ao trabalho de campo,
que procura investigar e conhecer o homem brasileiro, e através dessa
investigação e desse conhecimento, levantar os dados, os elementos e os
valores que caracterizam as linhas fundamentais do pensamento social e
cultural do Brasil. Dada a múltipla dimensão que o homem apresenta em
sua unidade, não poderia ser de outra maneira.
Um terceiro aspecto para o qual desejaríamos atrair vossa atenção,
refere-se, de um modo particular, ao conhecimento acerca de problemas e
de perspectivas da Antropologia no Brasil em nossos dias. Verificamos até
agora qual a contribuição da Antropologia dentro dos quadros de estudos
brasileiros para o conhecimento do homem e a formação de um
pensamento cultural entre nós; esta parte final visa mostrar quais os
problemas com que ela se defronta.
Apesar de seu papel, das obras que nela se fundamentaram para o
estudo de problemas brasileiros, apesar do que têm sido seus estudos, no
sentido de situar o conhecimento do homem brasileiro em seus mais
adequados contornos, apesar de tudo, a
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
realidade é que a Antropologia não desfruta de uma situação ideal.
Sinteticamente poderíamos dizer que se situa como outras disciplinas
sociais sem maior relevo no próprio quadro do ensino; e mesmo no que se
refere à realização de pesquisas tipicamente ou exclusivamente
antropológicas, seu número é ainda muito restrito ou limitado, em que
pese sua melhor qualidade.
A Antropologia está assim envolvida em problemas, cuja enumeração
seria talvez longa e cansativa. Poderemos, todavia, resumi-los em alguns
mais especificamente importantes, porque refletem a realidade de sua
vivência no quadro cultural do pais contemporaneamente.
Um desses primeiros problemas é a carência de recursos financeiros e
de instituições apropriadas ou exclusivamente antropológicas, tais como
instituições, escolas, museus. Se faltam recursos, faltam também
instituições. Exclusivamente antropológica, como instituição, e ainda assim
de natureza puramente cultural, é a Associação Brasileira de Antropologia
que, neste momento, tenho a honra de presidir. Outras instituições, em
quadro universitário ou extra-Universidade, são em sua maioria ligadas ãs
ciências sociais, em geral, e entre elas a Antropologia tem papel muito
restrito, em pé de igualdade com outras, ou até, não raro, em situação
inferior. A ênfase em geral é dada à Sociologia ou, em parte, à Economia;
são estas duas, de maneira geral, as ciências sociais mais prestigiadas no
Brasil.
Esta observação, assim o seu tanto generalizada, não exclui a
existência de instituições dedicadas exclusivamente à Antropologia. É o
caso, por exemplo, do Instituto de Antropologia da Universidade Federal
do Ceará; também o do Instituto de Antropologia da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte; ainda o Departamento de Antropologia da
Universidade Federal do Paraná. Sua existência, todavia, é precária, pois se
ressentem tais órgãos de outra falha grave: a carência de recursos. De fato,
seus programas e projetos não têm tido a amplitude necessária justamente
pela falta de recursos financeiros que permitam sua realização adequada.
Na mesma situação poderíamos lembrar o Instituto de Etnologia e
Antropologia no Pará.
Outras instituições de alto prestígio no campo dos estudos
antropológicos não são exclusivamente dedicadas à Antropologia; é o caso
do Museu Nacional, no Rio de Janeiro; também o do Museu Paulista, em
São Paulo; ainda o do Museu Goeldi, no Pará. O mesmo sucede com
alguns Institutos de Ciências Humanas, ou de Filosofia e Ciências Sociais;
ou de Ciências Sociais, existentes em Universidades Federais, onde a
Antropologia se inclue, sem, porém, liberdade maior para atuar.
Um segundo problema que considero dos mais relevantes, refere-se ao
ensino de Antropologia. Ou melhor: a falta de auto-
Os ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NO BRASIL
nomia do ensino de Antropologia. Em primeiro lugar, o ensino de
Antropologia não dá título; depois, não há curso especializado; e,
finalmente, a cadeira de Antropologia se situa como disciplina acessória
ou ilustrativa no quadro do ensino de Sociologia ou de Ciências Sociais. O
curso de Antropologia é geralmente de um ano nos cursos das antigas
Faculdades de Filosofia, agora nos Institutos de Filosofia e Ciências
Sociais. Na Escola de Sociologia e Política da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro experimentou-se
e o sucesso dessa experiência ficou comprovado posteriormente
um curso de cinco semestres. Reforma posterior reduziu esse ensino a
dois semestres, experiência que tem demonstrado ser falha pela
insuficiência de tempo para preparação dos estudantes.
Iniciativa recente que merece todos os aplausos, e ao registrá-lo confio
em que prosseguirá nos anos futuros, deve-se ao Museu Nacional que
iniciou, no corrente ano de 1968, o Curso de Mestrado em Antropologia.
Muito bem estruturado e muito bem orientado, o Curso atraiu o interesse
de um grupo de recém graduados em ciências sociais que voltavam suas
preocupações para a Antropologia. Foi a oportunidade — e oportunidade
feliz — que se lhes ofereceu. Dentre vinte candidatos inscritos, treze foram
selecionados, e estão realizando o curso que, além da parte teórica, é
completado pela realização de pesquisa de campo em duas regiões
diferentes do Brasil. Como professor de Antropologia Cultural na
Universidade Católica do Rio de Janeiro, permito-me quebrar a modestia
para informar que, entre os oito primeiros colocados para a admissão ao
curso, cinco foram nossos alunos; e com exceção de um, mais antigo, os
outros quatro haviam feito o curso no regime de cinco semestres. Uma
comprovação a mais, e esta evidente, do mérito da experiência então
realizada, e a que anteriormente aludi.
Um terceiro problema, este igualmente importante, é a falta de
profissionalização em Antropologia. Quero dizer: não há oportunidade
para uma dedicação exclusiva ao trabalho antropológico
o ensino ou a pesquisa, por exemplo — daqueles que a esta
tarefa queiram dedicar-se. São poucos os que se entregam a um
trabalho de natureza profissional em Antropologia com caráter de
exclusividade: etnólogos no Museu Nacional, no Museu Goeldi, no
Museu Paulista; talvez um o outro professor que alia à atividade
de ensino a direção de um órgão dedicado à Antropologia. De
modo geral, o professor de Antropologia tem outra atividade; da
mesma forma que o investigador em Antropologia depois de uma
pesquisa em sua especialização poderá participar de uma pesquisa
de natureza sociológica ou de um estudo de caráter psicológico.
Talvez essa falta de profissionalização contribua para um outro
problema que é a falta quantitativa de pessoal altamente especializado em
Antropologia. Não quero dizer, nem esta é a minha intenção, que nos
faltem antropólogos de alto valor; muito ao
MANUEL DIÉGUES JÚNIOR
contrário: temos elementos de excelente qualidade, do mais alto nível e da
mais completa formação. Contudo, é pessoal ainda em número
insuficiente, não corresponde nem mesmo a todas as exigências de ensino
nas diferentes Universidades Federais do País, para cuja formação do
corpo docente nem sempre foram recrutados professores com formação
profissional em Antropologia, o mais comum, talvez ainda como um
resquício da tradição antropológica ligada ao estudo do homem físico, foi
o recrutamento de médicos. O ensino de Antropologia se iniciou assim
quase pela Antropologia exclusivamente Física, não raro estudada mais
como Anatomia humana. Hoje as coisas se apresentam, em grande parte,
mudadas, mas ainda assim há carência — numérica, repitamos — de
pessoal altamente habilitado.
É de crer que iniciativas mais recentes, como é o caso do já citado
Curso de Mestrado em Antropologia no Museu Nacional, abram
perspectivas mais novas no sentido de criar a consciência acerca da
necessidade de formação de pessoal altamente qualificado tanto para o
ensino como para a pesquisa em Antropologia. Esta necessidade decorre,
fundamentalmente, do próprio desenvolvimento dos estudos
antropológicos entre nós, no sentido de que disponhamos de pessoal com
formação científica mais ampla e mais sólida para o atendimento dos
diversos aspectos a serem examinados e pesquisados e estudados como
estímulo de que esse próprio desenvolvimento se torna provocador.
Esta exposição não teve outro propósito — repitamos — se não o de
informar; quiz ser tão só uma informação, descrevendo aspectos que nos
parecem importantes acerca dos estudos antropológicos no Brasil.
Procuramos descrever sem preocupação de interpretar ou de avaliar, mas
antes de apenas dar uma informação, mercê da qual os que assim o
desejam encontram alguns pontos de referência capazes de permitir o
aprofundamento desses estudos. Ou, se fôr o caso, da interpretação do
papel da Antropologia na formação cultural brasileira.
Como simples descrição ou informação talvez tenha o seu mérito;
pode afigurar-se-nos um espelho. Aquele espelho em que nos vejamos, em
que conheçamos nossas falhas ou em que identifiquemos as rugas que
merecem ser tratadas. Talvez mesmo nos possa indicar que remédio
deveremos usar, que modificações deveremos imprimir, que
transformações estão sendo reclamadas. Assim alcançaremos mais
completo êxito nas tarefas que a Antropologia hoje exige de nós, pelo
estudo do homem brasileiro, através do seu conhecimento no passado e de
sua situação no presente, e em condições capazes — quem sabe? — de nos
indicar as perspectivas futuras.
O nosso desejo foi apenas o de colaborar, situando os aspectos que
nos parecem mais importantes focalizados nesse espelho em que nos
vemos. É uma contribuição que, através do que informamos,
Os ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NO BRASIL
poderá oferecer elementos válidos para um melhor e mais aprofundado
conhecimento dos estudos antropológicos no Brasil.
Dizia o nosso grande padre Vieira — nosso, porque nascido em
Portugal, se tornou essencialmente brasileiro pelo espírito e pelas ideias —
dizia Vieira, em um de seus sermões da Bahia, que a ousadia é a metade da
vitória. Apego-me ao pensamento de Vieira para considerar-me vitorioso.
Uma metade, a vitória pela ousadia de haver falado a auditório tão
brilhante, não apenas pelas autoridades presentes , pelos mestres e amigos
que aqui vejo, pelos que acorreram para ouvir-me; a outra metade, pela
maneira carinhosa com que recebido, pela atenção de vossa presença, pela
generosidade com que me ouvistes. Ousadia minha e generosidade vossa
me deram esta vitória, pela qual vos estou imensamente, profundamente,
agradecido.
Letras
Sabiá & Sintaxe
CASSIANO RICARDO
A poesia de Gonçalves Dias desperta sempre algumas reflexões novas,
não obstante a complexa e fascinante problemática do poema de hoje,
muito diversa (como todos o sabemos) notadamente sob o aspecto formal-
estético.
Tinha êle, antes de tudo, um comportamento próprio em assunto de
poesia e linguagem, que ainda interessa, e muito, aos estudiosos de sua
obra.
Mesmo no tocante à "Canção do Exílio" e ao sabiá que aí gorjeia há
umas tantas coisas que lhe podem esclarecer as intenções, justamente por
sua singeleza e. .. clareza. O caso da saudade lusa, por exemplo. Afinal, a
saudade da terra natal que Gonçalves Dias sentiu no exílio e que tonifica
todo o poema, é mesmo lusa ou brasílica?
O autor de "Olhos Verdes" teria sido realmente um romântico só
porque viveu no período do Romantismo? ou, ao contrário, por sua
contenção e severidade clássica, estaria melhor situado em outra
concepção de arte, em outra escola literária?
Teriam sido uma espécie de "fingimento" os males de que êle tanta
vez se queixa em seu lirismo autobiográfico?
São perguntas para cuja resposta se ousa dar esta pequena
contribuição.
Não seduz hoje à crítica investigar o que o poeta diz de si senão os
elementos de composição que entram no corpo verbal do poema,
examinado em sua estrutura.
Mas o sentimento não faz parte dessa estrutura ou do seu contexto
cultural?
Ninguém ignora que os três gêneros — lírico, épico e dramático —
integram a poesia de Gonçalves Dias.
Canto, ação e narrativa.
Sob as três faces, foi ainda êle diferente de si mesmo quantas vezes
quis.
CASSIANO RICARDO
Mas qual a sua concepção de poesia?
Releia-se o prólogo dos Primeiros Cantos (1847):
a) Menosprezo (menospreço, dizia) as regras de mera convenção.
b) Adotei todos os ritmos da metrificação portuguesa e usei deles
como me pareceram quadrar melhor com o que eu pretendia exprimir.
c) Não têm (as poesias) unidade de pensamento entre si porque
foram compostas em épocas diversas — debaixo de céu diverso — e sob a
influência de impressões momentâneas. Foram compostas nas margens
viçosas do Mondego e nos píncaros enegrecidos do Gerez — no Doiro e no
Tejo, sobre as vagas do Atlântico e nas florestas virgens da América.
d) Escrevi-as para mim, e não para os outros; contentar-me-ei se
agradarem; e se não... é sempre certo que tive o prazer de as ter composto.
e) Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a
nossa arena política para ter em minha alma, reduzido à linguagem
harmoniosa e cadente, o pensamento que me vem de improviso, e as ideias
que em mim desperta a vista de uma paisagem ou do oceano — o aspecto
enfim da natureza.
/) Casar assim o pensamento com o sentimento — o coração com o
entendimento — a ideia com a paixão — colorir tudo isto com a
imaginação, fundir tudo isto com a vida e com a natureza, purificar tudo
isto com o sentimento da religião e da divindade, eis a Poesia.
gr) A Poesia grande e santa — a Poesia como eu a compreendo sem a
poder definir; como eu a sinto sem a poder traduzir.
(Enumeraram-se aqui os vários trechos do prólogo dos Primeiros
Cantos, para fins de método e exegese).
Quanto à letra b) esclareceu melhor o poeta o seu ponto de vista no
prólogo dos Segundos Cantos:
... "o pensamento dominando em todo o verso, mas que seja
menosprezada a metrificação — e a rima que naturalmente se lhe sujeita
e o metro que se desdobra em todos os sentidos" etc.
Em "O Vate" vê-se depois que a poesia, para o autor dos Primeiros
Cantos é o poder de "recriar" as coisas.
... "Homero o mundo criou segunda
vez, o inferno Dante, Milton o paraíso..."
Mas, embora pergunte:
"De Anacreonte o gênio prazenteiro
de que me serve a mim?" ("A Minha Musa")
SABIÁ & SINTAXE
e embora diga que a sua fonte de inspiração não é o amor, o certo e que o
seu lirismo vai do anacreôntico ao amoroso e do amoroso ao panteista.
A sua fórmula é pensamento e sentimento, sintetizados na ima-
ginação, e compreende-se como é admirável tal solução pessoal que torna
tão humano o seu pensamento e tão severo o seu sentimento.
Compreende-se. Nada mais difícil que conceber um homem ima-
ginativo (é uma afirmação de Baudelaire) que não seja sensível ao mesmo
tempo.
Há também uma verdadeira topografia poemática na sua poética
como se vê pelo prólogo dos Primeiros Cantos. Tanto êle escreve
no Doiro como sobre as vagas do Atlântico, tanto nos píncaros do
Gerez como nas florestas virgens da América.
O poeta, assim, não só muda de feição quantas vezes lhe apraz
lírico, dramático, épico etc. — como muda de lugar, em sua "geo
grafia psicológica", (como diria Georges Hardy).
As viagens lhe terão, realmente, enriquecido o estro, pela poesia da
"experiência humana", a que se refere Charles Morgan. Muito conhecido o
conselho de Rilke — sobre o quanto as viagens ilustram a sensibilidade
poética.
A lira gonçalvina é variada e experiente; é feita de um ramo cm flor,
não há dúvida — considerado o poeta em seu amor à natureza; mas é
educada, à europeia, pela civilização que nos revela, pelo que tem de
"caprichosa imagem da cidade".
Versado em várias línguas e na literatura de outros países — como a
alemã, a francesa, a espanhola, a italiana e a inglesa, tendo recebido em
cheio o contato com os portugueses, tudo isto explica a qualidade da sua
dicção e do seu espírito à luz do conhecimento, que tinha, dos grandes
problemas literários do seu tempo.
MINHA TERRA TEM PALMEIRAS Mas o seu
brasileirismo é, inicialmente, feito de agreste pureza:
"Minha terra tem palmeiras, onde
canta o sabiá; as aves que aqui
gorjeiam não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
nossas várzeas têm mais flores,
nossos bosques têm mais vida,
nossa vida mais amores.
CASSIANO RICARDO
Em cismar, sozinho, à noite, mais
prazer encontro eu lá; minha terra
tem palmeiras onde canta o sabiá
Minha terra tem primores que tais não
encontro eu cá; em cismar, sozinho, à
noite, mais prazer encontro eu lá; minha
terra tem palmeiras, onde canta o sabiá.
Não permita Deus que eu morra sem que
eu volte para lá; sem que desfrute os
primores que não encontro por cá; sem
que inda aviste as palmeiras onde canta o
sabiá.
(Coimbra, 1843)
Trata-se de um poema que nem seria necessário transcrever, porque o leitor o
sabe de cor.
Não haverá outro — ao que se saiba — mais fácil, mais singelo. Mas por que
agrada tanto ao ponto de ser tido como "quase sublime" por José Veríssimo e
promovido a "sublime" por Manuel Bandeira?
Sublime por quê?
Apontam-se vários motivos: a) por causa da melodia, por ser uma canção
mais do que um poema; b) por causa de certas palavras chaves, como "sabiá", que
nela gorjeia quatro vezes; c) — por causa do "á" de sabiá, com o seu sabor de
vogal indígena ao fim de cada estância, em agudo; d) por causa da rima por
aliteração de fonemas iniciais (primores, palmeiras); e) por não possuir um único
adjetivo qualificativo.
Enfim, por não ter outro qualificativo senão o que lhe dão:
"quase sublime", (José Veríssimo) "sublime" (Manuel Bandeira).
Ora, tudo isso poderia ser, como já o foi, contestado. Por causa da melodia,
não; aquele "por cá" nada possui de melódico para ouvidos mais exigentes. Por
não possuir um só adjetivo, também não; porque o leitor não dará por isso. Por
causa de certas palavras chaves, também não.
SABIA & SINTAXE
O sabiá, v. g., já havia sido empregado por Gonçalves de Magalhães, em seus
Suspiros Poéticos e Saudades sem resultado algum,
SABIÁ & SINTAXE
poético (1). E note-se: Magalhães empregou o sabiá em oposição ao
rouxinol, o que se tornava muito importante numa hora de reinvin-dicação
nativista.
O sabiá passava a ser um argumento "ideológico", como o indígena.
Mesmo mais tarde Pedro Luís censura a Casimiro por causa do
rouxinol, ao mesmo tempo que Camilo, no ataque a Fagundes Varela,
proclama que "sabiá não substitui a sintaxe".
Observa, porém, Pedro A. Pinto que o sabiá que frequenta as
palmeiras é justamente o único que não canta: o sabiá poca. O que canta é
o "laranjeira", o sabiá piranga; é também o sabiá una; e estes não cantam
em palmeiras... (2).
Portanto, ainda sob este aspecto, Gonçalves de Magalhães foi mais
exato que Gonçalves Dias, pois o seu sabiá cantava na laranjeira, e não na
palmeira.
Aqui caberia logo uma réplica: se o sabiá "não dispensa a sintaxe", a
sintaxe lírica poderá fazer o sabiá cantar na palmeira, e mui legitimamente.
Tanto que o sabiá de Gonçalves de Magalhães, cantando em lugar certo,
ficou mudo ou foi silenciado pelo olvido; e o de Gonçalves Dias, mesmo
posto na palmeira, gorjeia até hoje. Ninguém o conseguirá emudecer.
Trata-se daquela "verdade poética" que não precisa ser provada. No
mesmo poema, Gonçalves Dias diz:
"Nosso céu tem mais estrelas,
nossas várzeas têm mais flores".
São mais duas verdades poéticas que ninguém irá contestar,
estatisticamente. As verdades poéticas se irmanam com os mitos, ou
(1) Quando CAMILO ataca FAGUNDES VARELA, a sua ojeriza se volta eontra o
sabiá: "Em poesia um sabiá não substitui a sintaxe", (Polêmicas em Portugal e
no Brasil, seleção de COSTA REGO, p. 130).
O sabiá em oposição a rouxinol se institui em nossa literatura, desde essa época, e continua até
hoje. JOÃO BIBEIRO, referindo-se aos nossos poetas, já na campanha modernista, escreve: "valia a pena
sentir como os sabiás haviam de responder ao desafio dos rouxinóis (Crítica Os Modernos, p. 739).
Quanto à prioridade no uso da palavra, é certo que, já antes de GONÇALVES DIAS, O sabiá gorjeia
nos versos de GONÇALVES DE MAGALHÃES. Mas quem havia descoberto o sabiá para a poesia
(ALCÂNTARA MACHADO, "Gonçalves dr Magalrães, ou o Romântico Arrependido", p. 45) foi
MARQUES PEREIRA, (Peregrino da América, cap. V).
"Lá cantava o sabiá
um recitado de amor
em metro doce e sonoro"
(2) PEDRO A. PINTO, Revista de Filologia, n.° 2.
CASSIANO RICARDO
são mitos elas mesmas, e não há lógica nem filologia capazes de reduzi-
las (3) pela análise.
À opinião de Pedro A. Pinto pode-se, aliás, opor a de Alfredo de Assis
Castro que, em artigo publicado no Jornal do Comércio (outubro de 1956)
e intitulado "Sabiás e Palmeiras", sustenta que em Caxias, à margem do
Itapecuru, se os sabiás não cantassem nas palmeiras talvez não tivessem
onde cantar. Porque aí quase só existem palmeiras.
E o autor cita o testemunho de Godofredo Viana, para quem cantam
eles nas palmeiras babaçu, que são baixas e de acolhedora fronde, e de
Francisco de Assis Iglésias, autor das Caatingas e Cha-paãões que no
Jardim Botânico, sede do Serviço Florestal, quando exercia as funções de
diretor dessa importante repartição, observou sabiás cantando em
palmeiras.
Parece inútil tanto esforço em demonstrar que sabiá canta em palmeira
porque — como se disse há pouco — a verdade poética está acima da
verdade lógica. Por certo que a Milton se increpa o haver reunido num só
ato as quatro estações do ano.
Mas isso é outra coisa.
Poder-se-ia recorrer ao símbolo: o canto do sabiá, voz da saudade, já
que esse passarinho triste "é a voz de nossa paisagem"; na palmeira,
imagem da pátria: Mas, por quê? Um certo surrealismo, explicável numa
hora de exacerbação ou de angústia desfiguradora causada pelo sentimento
da ausência — vá lá — poderia ser invocado. Mas, com que fim?
A natureza errou, evidentemente; havia dado ao que não canta o que
devia ter dado ao que canta; a altitude, a elevação que o canto obtém
quando cantado na palmeira e não na laranjeira... Vem o poeta e corrige o
que estava errado na natureza; era um direito seu.
O que surpreende é que um poema tão singelo, o mais singelo que se
possa conceber — uma comparação entre coisas de lá e de cá em termos de
saudade — tenha dado margem a tantas explicações. Sabe-se que é
sublime; não se sabe porque.
Uma pequena obra-prima é que é, por seu lirismo tão à mostra, tão nu,
tão de uma só face. Faz mesmo lembrar aquelas figuras que as crianças
desenham de perfil (como os egípcios o faziam) e com os dois olhos no
mesmo lado do rosto, pra não ser preciso saber o que está no outro lado.
Pra que o leitor se contente com a sua singeleza; não faça como certas
outras crianças que, como diz Goethe a Eckermann, ao se
(3) Mesmo à luz da concepção moderna de poesia (de um VALÉRY, para citar um mestre) "o
instinto poético conduz cegamente à verdade". É um cartesiano como ALAIN, citado por JULIEN
BENDA, em sua La France Bysantime quem afirma: "há uma verdade que não exige prova;, a música
não precisa ser provada; a Vênus de Milo, idem.
SABIÁ & SINTAXE
verem no espelho lhe dão a volta e vão saber o que existe atrás dele...
Houve quem objetasse ainda que no sul não há palmeiras, mas o poeta
disse "minha terra tem palmeiras" mui acertadamente. O Brasil não era
a Terra Papagalorum; era o Pindorama, da linguagem indígena. Xa so
Pindorama koti, iramarana pó anhatin, yara rama ae recê.
A SAUDADE LUSA E BRASÍLICA
Fritz Ackermann (4) havia observado que a saudade contida na
"Canção do Exílio" é um sentimento tipicamente brasileiro, mas Paulo
Quintela, criticando-o (5) diz tratar-se de uma afirmação abusiva,
arbitrária, insuficiente, superficial.
A palavra "saudade" é portuguesa, e não brasileira — afirma o escritor
luso citando em seu favor d. Carolina Michaelis e Karl Vossler. Seria
justo, ainda em seu favor, acrescentar que se cada povo pode ser
representado, como propõe Madariaga, por uma só palavra (o inglês por
fair-play, o francês por droit, o espanhol por el honor), a saudade é a
palavra representativa do português.
Mas Gonçalves Dias não empregou a palavra saudade; não chegou,
sequer, a sugeri-la nesse poema. E que o fizesse; era êle um brasileiro e
não estaria — é evidente — sentindo aí uma saudade portuguesa.
Onde, portanto, se vê que Paulo Quintela já não parece ter razão é em
pensar que sendo a palavra "saudade" tipicamente portuguesa, o
sentimento que ela exprime ou consubstancia também o é. Como se pra
sentir saudade fosse indispensável ser português...
Este será o seu engano e a prova é que a saudade gonçalvina da
"Canção do Exílio" é mais que brasileira, chega a ser brasílica: pela
ingenuidade que a caracteriza e que é típica das canções indígenas; por
evocar o "país das palmeiras", o Pindorama, onde canta o sabiá (uirachué,
ou boã-pyi-har); por ser o canto do sabiá extremamente conotativo, de tão
nostálgico, em relação à nossa saudade; mas principalmente pela intenção
clara do poeta que colocou esse poema no rol de suas poesias indianistas
(ou americanas).
É até, sem nenhum desprimor, uma saudade antiportuguêsa num
sentido geográfico, porque sentida em Portugal; portanto, em oposição ao
lugar onde o poeta se sentia exilado.
Mas, pode-se falar então numa saudade indígena?
É sabido que os nossos índios conhecem esse sentimento, embora sem
nenhuma complexidade; antes com uma doçura, uma pureza e magia que o
tornam incomparável.
(4) FRITZ ACKERMANN, A Obra Poética de Gonçalves Dias, in Revista do Arquivo
Municipal de São Paulo, fase. n." LX-LXIV, 1939-1940.
(5) PAULO QUINTELA, Brasília, tomo II, p. 783.
CASSIANO RICARDO
O amado ausente é um tema indígena; constitui um refrão nos poemas
rudimentares do nosso selvagem. Há um deus, chamado Rudá — como
nos informa Couto de Magalhães — cuja missão é justamente despertar a
saudade no coração dos homens e fazê-los voltar à tribo. Além disso,
Catiti e Cairé são as mensageiras sistemáticas da índia amorosa, em seus
momentos de mais aguda saudade (6):
Cairé, cairé nu Manuara
danú çanu Erê ei, erú,
cika Piape emú O
manuara ce recé Quaha
pituna pupé.
Tradução: excluídos os dois primeiros versos, "Eia, minha mãe lua,
fazei chegar esta noite no coração dele (o amante) a minha lembrança!"
"Catiti, catiti, Iamara
notiá notiá iamara E
peju (fulano) Emu
manuara Ce recé
(fulana) Cuçu kui xa ico
Ixé anhú i pia porá.
Tradução: excluídos o terceiro e o quatro versos, que o tradutor
(COUTO MAGALHÃES) não decifrou:
"Lua nova, lua nova! soprai em fulano a minha lembrança. Eis-me
aqui estou em vossa presença, fazei que eu tão-sòmente ocupe o seu
coração!"
Sobre saudades dos índios ver também GABRIEL SOARES (Tratado
Descritivo do Brasil, 2.
a
edição, cap. CLXII, p. 293. (Das saudades dos
tupinambás e como choram e cantam.)
"Porque tardas, Jatir, que tanto a custo à voz
do meu amor moves teus passos? Da noite a
viração, movendo as folhas, já nos cimos do
bosque rumoreja.
(6) Realmente, a saudade indígena chega a ter um deus, Ruda, e uma intercessora,
Cairé:
SABIÁ & SINTAXE
Eu sob a copa da mangueira altiva nosso
leito gentil cobri zelosa onde o frouxo
luar brinca entre flores com mimoso
tapiz de folhas brandas,
Do tamarindo a flor jaz entreaberta, já solta o
bogari mais doce aroma! Como prece de amor,
como estas preces, no silêncio da noite o bosque
exala. Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
correm perfumes no correr da brisa, a cujo influxo
mágico respira-se um quebranto de amor melhor
que a vida!
A flor que desabrocha ao romper d'alva um só giro
do sol, não mais, vegeta: Eu sou aquela flor que
espero ainda doce raio do sol que me dê vida.
Sejam vales ou montes, lago ou terra, onde quer
que tu vás, ou dia ou noite, vai seguindo após ti
meu pensamento; outro amor nunca tive; és meu,
sou tua!
Meus olhos outros nunca viram, nem sentiram
meus lábios outros lábios, nem outras mãos, Jatir,
que não as tuas, a araçóia na cinta me apertaram.
Do tamarindo a flor jaz entreaberta, já solta o
bogari mais suave aroma; também meu coração,
como estas flores, melhor perfume ao pé da noite
exala!
Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes à voz do
meu amor, que em vão te chama! Tupã! lá rompe
o sol! do leito inútil a brisa da manhã sacuda as
folhas!
Como na "Canção do Exílio", há ai, nesse "O leito de Folhas Verdes",
profundo, o sentimento da ausência. Quem poderá negar essa espécie de
saudade brasileira em sua forma inocente embora também magoada?
"Fazei chegar ao coração dele (o
amante) a minha lembrança!"
CASSIANO RICARDO
Continue-se, contudo, achando ainda que Quintela tem toda razão
quanto à palavra "saudade" como exclusivamente portuguesa. Não
obstante existir — segundo o que se diz — em romeno, um vocábulo que
exprime a mesma coisa, com as mesmas conotações líricas.
Em seu favor se poderá alegar ainda que o próprio Gonçalves Dias
terá insinuado "saudade" em seu sentido português, em outros poemas,
como realmente a insinuou. Uma coisa é certa: menos em "Canção do
Exílio", menos nesse "Leito de Folhas Verdes".
A saudade indígena está retratada admiravelmente por Gonçalves Dias
em ambos. Lá é a nostalgia que o leva a falar no sabiá e no pais das
palmeiras. Aqui é a índia que de saudade passa a noite em vigília, ouvindo
o desabrochar das flores, sentindo o cheiro do bogari mais intenso ao
amanhecer.
Filha da natureza — observa Fritz Ackermann, em seu estudo sobre
Gonçalves Dias — ela contou as flores que, uma após outra, vão
desabrochando no correr da noite.
Saudade ainda não contaminada, mas em estado de pureza nativa:
"Onde quer que tu vás, ou dia ou noite, vai
seguindo após ti meu pensamento".
e que está ligada à separação pela ideia da distância e não do tempo. Como
na canção indígena: "Fazei chegar esta noite ao coração dele (o amante) a
minha lembrança!"
O pormenor não deixa de ser curioso, no sentido, pelo menos, de
revelar a diferença que desde logo existe entre a saudade brasílica e a
portuguesa, pois esta, ao contrário daquela, está ligada à ideia de
separação, não pelo espaço, mas pelo tempo.
A primeira será a poesia da distância, a canção do exílio; a segunda é
das coisas que o tempo levou consigo. A diferença está nos próprios
poemas de Gonçalves Dias: entre a "sócia do forasteiro" (em "A Tarde") e
a "rainha do passado" (em "A Saudade").
Diferença que bem se compreende quando se pensa nas distâncias que
no Brasil, mesmo hoje, implicam numerosos motivos de separação
(geográfica) e no amoroso apego do português ao seu passado tão rico de
tradição, sugestão e força lírica incomparável.
Resulta que mesmo sendo a palavra portuguesa o seu sentido
brasileiro se agrava, já conotativamente, já apenas semanticamente, pela
soma de três exílios (o sabiá pelo meio); o do índio, com saudade da taba; o
do preto, com saudade do Congo, ou da Angola; o do português, com
saudade do reino.
Torna-se mais complexa, mais dolorosa.
Será aquele "fantasma consumidor" em "Ausência".
Por mais portuguesa que seja, entretanto, a palavra, é preciso ponderar
que ela será (em "geografia psicológica"; como diria Geor-
SABIÁ & SINTAXE
ges Hardy) brasileira, romena, francesa etc. — conforme a nacionalidade
de quem a sentir.
"oh, seja a punição dos insensíveis,
não a sentir jamais!"
LIRISMO AUTOBIOGRÁFICO
Celebram-se amiúde os amores de Gonçalves Dias.
João Ribeiro acha que a imaginação humana é muito fértil e valoriza
os amores dos poetas — gente volúvel, que ama o amor quase
profissionalmente. O que aconteceu ao poeta dos "Olhos Verdes" foi caso
vulgar e cotidiano.
Realmente, pouco nos interessariam os amores de Goethe (João
Ribeiro se esqueceu disto, como goethiano que era, admirável) se não
houvessem produzido (7) algumas das suas obras-primas.
No caso do brasileiro, os seus amores foram, na maior parte, frívolos,
impacientes. Além de não pensar em outra coisa, vivia contando, em forma
não raro de pura gabolice, os seus amores aos amigos. Era, ao mesmo
tempo, um realista cru, sem nenhum romantismo.
O maior defeito que descobre numa certa apaixonada — a que
conhecera num baile de máscaras — era ser "romântica"; "romântica
exagerada, corajosa, que passa à temeridade" (8). Nem é sem razão que
Celine lhe diz: "Je sais que quoique poete vous êtes três positif"...
Que nos importa a nós houvesse êle amado a filha da dona da pensão,
a portuguesa Engrácia, ou a israelita, ou a viúva de trinta anos, ou a alemã
Leontina, ou a francesa Eugénie, ou a belga Celine, ou a brasileira Amélia
R., ou três raparigas ao mesmo tempo, uma das quais lhe inspirou "Os
Suspiros"?
Mesmo o seu casamento com Olimpia se reveste de circunstâncias que
não o recomendam; nem como homem, nem como lírico amoroso. A
"pálida imago mortis" não teve senão consequências domésticas.
Dois dos seus amores, porém, o dos "Olhos Verdes", que lhe ia
custando duelo, e o de Ana Amélia, que nos deu "Se se morre de amor",
resgatam as suas culpas e o mal da sua "volubilidade frascaria", tão pouco
interessante.
(7) Sobre os amôres de Goethe, leia-se Alfeu e Aretusa, de MARIA DE LOURDES TEIXEIRA.
(8) Gonçalves Dias, de MANUEL BANDEIRA, ed. Pongetti, p. 75.
CASSIANO RICARDO
"Amor é vida, é ter, constantemente
alma, sentidos, coração abertos
ao grande, ao belo; é ser capaz d'extremos,
d'altas virtudes, té capaz de crimes!
Compre'nder o infinito, a imensidade,
e a Natureza, e Deus; gostar dos campos,
d'aves, flores, murmúrios solitários;
buscar tristeza, a soledade, o ermo,
e ter o coração em riso e festa;
e a branda festa, ao riso da nossa alma
fontes de pranto intercalar sem custo;
conhecer o prazer e a desventura
no mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
o ditoso, o misérrimo dos entes:
isto é amor, e desse amor se morre!
Amar é não saber, não ter coragem para dizer que
amor em nós sentimos! Temer qu'olhos profanos nos
devassem o templo, onde a melhor porção da vida
se concentra; onde avaros recatamos essa fonte de
amor, esses tesouros inesgotáveis, d'ilusões
floridas! Sentir, sem que se veja, a quem se adora,
compr'ender, sem lhe ouvir, os pensamentos. segui-
la sem ousar dizer que amamos, e temendo roçar os
seus vestidos, arder por afogá-la em mil abraços:
Isto é amor, e desse amor se morre!
O que mais conta literariamente é o de Ana Amélia. Sabe-se o que
houve: o poeta "não tinha fortuna; longe de ser nobre, de sangue azul, nem
ao menos era filho legítimo". (9)
Repelido pela família da moça chora de dor, em silêncio; é censurado
como covarde, pela própria amada que o acusa de não a ter, então, raptado,
como o exigira um grande amor que, para ser grande (e romântico) teria
que ser cego a todas as contigências.
Mas o que valeu, sem dúvida, foi o "Ainda uma vez Adeus", escrito
por ocasião do seu reencontro, em Lisboa, em situação irreparável, com
aquela que o amava ainda.
A sua despedida é de culpa — por não ter sido um verdadeiro
romântico, raptando-a como o exigia o seu grande amor.
(9) ... "não havia pechas maiores do que a bastardia e a mestiçagem". (VIRIATO
CORREIA, A vida amorosa de Gonçalves Dias, conferência na Academia, curso sobre o
Poeta, p. 29).
SABIÁ & SINTAXE
Ao fim, pede perdão, nestes termos:
Dói-te de mim, que t'imploro
perdão, a teus pés curvado;
Perdão! de não ter ousado viver
contente e feliz! Perdão da minha
miséria, e se do mal que te hei
feito também do mal que me fiz!
Adeus, qu'eu parto, senhora; negou-me
o fado inimigo passar a vida contigo.
ter sepultura entre os meus; negou-me,
nesta hora extrema, por extrema
despedida, ouvir-te a voz comovida,
soluçar um breve adeus!
É que o amor é aquela "llama que arde con apetito de arderr más",
como o definiu San Juan de la Cruz.
De nada valeram poemas discorrendo sobre "Minha Vida e meus
Amores", ou sobre "O Amor" (enlevo d'alma) etc; foi preciso que
Gonçalves Dias ardesse mais; (10) experimentasse um amor à altura do
que se exige a um grande poeta para lhe sair da pena esse "Ainda uma vez
Adeus", — dolorosa página de autobiografia como raramente se há escrito.
Ninguém terá sido tão patético no sentimento de culpa, coisa que faz
esquecer a parte inglória do seu lirismo amoroso. Parte inglória que
constitui o motivo da sua anterior auto-acusaçào:
"O amor sincero, e fundo, e firme e eterno, não,
eu nunca o senti".
De Gonçalves de Magalhães se disse que foi "um romântico
arrependido". De Gonçalves Dias se poderá dizer que foi um arrependido
de não ter sido romântico.
(10) "Gonçalves Dias e Ana Amélia", MÁRIO MEIRELLEB, Rev. da Academia Maranhense, vol.
VII, p. 31 "Eaeh king of love has its characteristic poetry, but only passionate love evokes poetry of the
higest order" diz HEBBERT READ, judiciosamente (Phases of English Poetry, p. 43).
CASSIANO RICARDO O
POETA E A NATUREZA
Alguns críticos dão muito apreço ao fato de apelar o poeta, tão
amiúde, e mesmo em temas de amor, a comparações com a natureza
(Ackermann, Lúcia Miguel Pereira): "fresca rosa, olhos da côr do mar" etc;
mas isso é corriqueiro em "todos os poetas; não constitui uma nota capaz
de identificar "um" poeta; nem ao menos capaz de provar o seu amor à
natureza.
A correlação psíquica entre as coisas da natureza e dos nossos
sentimentos é tão comum e tão antiga que o estranho seria justamente fazer
exceção no poeta do "Canto do Piaga". O seu amor à natureza não será,
antes, a imposição — pelo menos na parte india-nista — de sua temática
aborígine?
Em todo o caso, o assunto tem que ser encarado: ou "idllica-mente",
ou em suas relações líricas com a paisagem (e quando se diz paisagem se
diz natureza de um país).
Idilicamente (por ex.) no "Leito de Folhas Verdes", na "Canção do
Exílio"; em suas relações líricas com a natureza, no "O Romper d
;
Alva", ou
no canto inicial do "Os Timbiras".
O próprio Gonçalves Dias não aceita a natureza em bruto. Uma
realidade em estado bruto não é uma realidade, já alguém o disse. Enfeita
êle de agrestes flores a sua lira, por certo: "estima e preza a natureza", mas
"as lágrimas do orvalho lhe distenderão as cordas, ameigando e
embrandecendo a fereza da selva". A segure que o lenhador utiliza pra
cortar o tronco ao cedro corpulento se tinge de puro mel...
Mesmo quando o poeta exclama:
"Tudo existe contigo e tu és tudo",
o seu panteísmo não é uma descrição impessoal das coisas; é antes uma
interpretação que vai do animismo ao antropomorfismo, sem nunca ser a
natureza pela natureza.
Ninguém negará assim o que há de natureza em grande parte dos seus
poemas, quem foi que disse? Mas daí a um permanente "idílio", como quer
Ronald de Carvalho, vai uma grande distância.
E a paisagem? E o homem na paisagem?
Então há, mesmo em se aceitando a observação de Ronald (11) esses
dois esclarecimentos que dão à natureza uma significação geográfica
(paisagem) e humana (o índio, habitante desse quadro paisagístico) .
(11) LAMARTINE olha a natureza "como um civilizado exausto", na feliz expressão de
CÂNDIDO MOTA FILHO (Oomantismo), p. 139). GONÇALVES DIAS é um associado da
natureza; com ela vive, também, em razão dos seus índios.
SABIA & SINTAXE
"LAGRIMAS LIVRES"
Nos poemas de Gonçalves Dias não faltarão lágrimas. Talvez se possa
até classificá-las:
— as lágrimas que êle vê na natureza (o talo agreste do cipó verte
compridas lágrimas cortado);
as lágrimas que os seus índios choram, ora o "pranto ignóbil", ora
o pranto do orgulho e alegria, que "não desonra" (coisa natural porque as
lágrimas fazem até parte do ritual e das festas indígenas);
as lágrimas que êle mesmo, o poeta, várias vezes chora; umas "que
consolam", outras "em silêncio", outras "fictícias".
Na "Consolação das Lágrimas", diz:
"Nada melhor que este pranto, em
silêncio gotejado".
O seu pranto, silencioso, desaltera as dores fictícias. Será o mesmo a
que hoje se refere Claudel: "Hereux celui qui souffre et qui sait à quoi
bon".
"Lágrimas livres, diz Gonçalves Dias. O
chefe dos seus "timbiras" exclama:
"Não sei chorar, bem sei, mas fora grato
talvez bem grato! à noite, a sós comigo,
sentir macias lágrimas correndo".
E inveja:
"A quem feliz de lágrimas se paga".
O que não se lhe descobre são lágrimas falsas, fingidas. Antes, muita
lágrima se explicará, nos poemas indianistas, pelo que o poeta tem de
fundo índio; muita pelo seu mal de origem que tanto o acabrunha; muita
pela vocação brasileira para a tristeza (o prazer secreto da tristeza).
Nenhuma por fingimento, que o seu tom severo até no sofrer não
permite.
E que houvesse fingido. Que cosa es la poesia — que em nuestro
vulgar gaya sciencia llamamos — já perguntava Santillana, em seu tempo
— sinon un fingimiento de cosas utiles? "E Fernando Pessoa o confirma
bem modernamente: sim, o poeta "é um fingidor".
Fácil a explicação: por mais que finja, o que o poeta diz é sempre
verdadeiro, num sentido humano. A verdade, se não está no que
CASSIANO RICARDO
êle finge sentir, estará no leitor em cuja sensibilidade o "fingido" passa a
ser "verdadeiro".
Mas o certo é que Gonçalves Dias não fingiu.
Os males de que se queixa, em seus poemas como nas cartas, são
reais:
"... e estes sofrimentos de todos os dias, de todos os instantes,
obscuros, implacáveis, renascentes — ligados à minha existência
reconcentrados em minha alma, devorados comigo, (12) umas vezes me
deixaram sem força e sem coragem, e se reproduziram em pálidos reflexos
do que eu sentia, ou me forçaram a procurar alívio, uma distração no
estudo, e a esquecer-me da realidade com as ficções do ideal".
Como, em verdade, levar à conta do romantismo os padecimentos de
ordem moral e física, causados pelo seu complexo e pelas doenças que tão
cedo lhe minaram o organismo?
Com romantismo ou sem êle, a sua mágoa racial e a sua origem
espúria seriam as mesmas; seriam irremediavelmente autobiográficas. O
seu "Ainda uma vez Adeus" seria o mesmo — um grito patético que só êle,
num determinado momento da vida, e em condições pessoais autênticas,
poderia exprimir.
O romantismo lhe deu, isso sim — o direito de não se envergonhar das
suas emoções; (13) e êle se contentou com isso.
(12) Dedicatória dos últimos Cantos.
(13) Por certo o romantismo significava o triunfo do sentimento, Da expressão de ORTEGA Y
GASSET. Até então o homem se envergonhava das suai emoções, orgulhoso das suas ideias.
(MENENDEZ Y PELAYO, História das Idéias Estéticas, vol. V, p. 1S8).
Locuções Tradicionais no Brasil
LUIS DA CAMARÁ CASCUDO
Palavras caseyras com que nos creamos... D.
FRANCISCO MANOEL DE MELO, 1657.
- A VER NAVIOS: — Esperando o que não virá. Aguardando o inde-
terminado. Demitido, desempregado, vivendo a esmo. Locução portuguesa
ainda vulgar no Brasil. Alusão à lenda do rico Pedro Sem, mercador no
Porto, cujos barcos naufragaram à sua vista quando desafiviava Deus a
fazê-lo pobre. Sobre os problemas, temático e cronológico, ver
DICIONÁRIO DO FOLCLORE BRASILEIRO, II, Sem. Creio mais lógico
constituir referência aos Sebastianistas que iam ao Alto de Santa Catarina,
em Lisboa, esperar a vinda da náu que traria o "Encoberto". Está a vêr
navios no Alto de Santa Catarina! era a imagem desses devotos, teimosos e
fiéis ao Rei, desaparecido em Alcácer-Quibir, (1578). A localização foi
esquecida, por dispensável, nas citações brasileiras.
— COM UMA BOCHECHA D'AGUA: — Fácil, pronta, imediatamente.
Pelo diminuto líquido avalia-se a pouquidade do esforço. É a porção que
cabe na boca. "Desfaço suas sentenças com uma bochecha de água",
escreveu Francisco Rodrigues Lobo, (A CORTE NA ALDEIA), Lisboa,
1619). Em agosto de 1591, dona Luiza de Almeida queixava-se ao Santo
Oficio na cidade do Salvador, de Fernão Cabral de Atraide, senhor de
Jaguaripe, que sendo amigo e compadre do seu marido, a convidara para
"ajuntamento carnal e que o tivesse com êle dentro da mesma igreja", "A
dama repelira-o, indignada", e o dito Fernão Cabral lhe respondeo que
tanto monta dormir carnalmente com comadre como com quem não he
comadre, e que tudo o mais, erão carantonhas, e que com huã bochecha
dagoa se lauaua tudo. (DE-NUNCIAÇÕES DA BAHIA, 365. S. Paulo,
1925).
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
_ PAGAR O PATO: — Satisfazer o que não deve. Pagar e não comer.
Recair a punição no inculpado. Vulgar e secular em Portugal. Sá de
Miranda, na "CARTA" a Antônio Pereira: —
Onde se ha de lançar tanto?
Aquilo é pagar o pato!
No AUTO DA FESTA, de Gil Vicente, (1535), diz a cigana Lucinda: —
Yo temo, hermana mia,
se nos toman en tal trato,
que paguemos nos bien el pato
y aun muy mas de la contia.
Numa versalhada de Gregório de Matos, derradeiras décadas do sec. XVII,
a uma mulata Anica, na cidade do Salvador, encontra-se: —
Quem te curte o cordovão
Por que não te dá sapato?
Pois eu que te rôo osso
É que hei de pagar o pato?
Antonio José da Silva, o Judeu, na ESOPAIDA, (1734): —
— Euripedes: Êle pagará o pato.
Mestre João Ribeiro enfrentou o enigma sem resolve-lo. "São muitas as
histórias que se contam; mais numerosas são ainda as que se podem
inventar para ir ter à conclusão de que alguém pagou o pato sem o comer".
A transcrita e obscena anedota de Poggio, (FACETIAE, 1450), de forma
alguma determinaria divulgação em Sá de Miranda e Gil Vicente. O marido
da mulherzinha loureira pagou o pato, mas saboreou-o à ceia. Seria o mais
antigo registo da locução na Itália, já velha na segunda metade do séc. XV.
O enredo deve ser invenção de Poggio, talqualmente a sugestão de
Cassiodoro de Reyna, cem anos depois, substituindo pato por pacto, de
convergência impossível para a memória coletiva.
Provém do jogo de destreza, antigo e favorito: — Correr o pato. Frei
Manoel Calado descreve uma dessas festas, no Recife de 1631:
— (O VALEROSO LUCIDENO, II, 2): — e correndo no fim patos a mão,
e a espada. Essa era proeza de equitação. O atilho que prendia a ave ao
poste deveria ser cortado com um único golpe. Ou o cavaleiro, curvando-se
da sela para o solo, ergueria o pato, num movimento feliz. Havia
modalidade bárbara. Decepar a cabeça do pato, enterrado n'areia, numa
espadada certeira. Nas aldeias, corria-se o pato a pé, perseguindo-o,
agarrando-o sem repetir a tentativa. Fa-
LOCUÇÕES TRADICIONAIS
lhando, pagava o pato. Penalidade hilariante. O escritor português Gastão
de Bettencourt, disse-me ter assistido a um desses divertimentos no norte
de Portugal.
ESFARINHADO: — Sabedor, instruído, familiar no assunto. "Es-
farinhado" em História. Farinha é sinônimo de abundância, fartura,
multidão.
— Mande a tarrafa Com
toda a linha Que pega
peixe Como farinha.
Assim recebemos de Portugal. D. Francisco Manoel de Melo, VISITA
DAS FONTES, Lisboa, 1657, faz dizer a "Fonte Nova": —"Tinha eu por
certo, que todos os que andão por longas terras, vinhão à nossa
esfarinhados nos costumes alheyos".
- CAMISA DE ONZE VARAS: — "Meter-se em camisa de onze varas" é
estar em situação difícil, angustiosa, desesperada. Debater-se em problema
possivelmente insolúvel.
As explicações sobre a figura complicam-na em vez de esclarecê-la. Certo
é que jamais foi usada camisa com esse tamanho. A vestia dos condenados
à forca apenas cobriam os pés dos suplicados. Não media, evidentemente,
onze varas, ou sejam doze metros e dez centímetros de extensão.
Desde o Rei Afonso Henrique, no séc. XIII em Portugal, as penas de
açoites eram aplicadas por cima da camisa, conforme a resistência física do
sentenciado. Um documento da época, divulgado por Viterbo, é
convincente: —"Toda mulher torpe, que sem causa injuriar a mulher
honesta, leve sinco açoutes por cima da camisa." È a interpretação do
"Estatutos da Confraria de Santa Maria do Castelo de Thomar", (1388): —
"Se algum Confrade ferir outro Confrade com espada, ou com coytello
entre em camisa em XXX tagantes. Aquel, que a seu Confrade der punhada,
ou lhe messar a barba, entre em camisa a sinco tagantes. Tagante era o
choque do açoite, podendo cortar, retalhar a carne. Do verbo tagar, ferir,
cortar. Em camisa, evitava-se maior dilaceração da epiderme. A sentença
de onze golpes dados com varas sobre a camisa do condenado será a
explicação da frase, ainda expressiva: — entrar em camisa de onze varas.
A pena seria rápida e pouco dolorosa, comparativamente, mas, apregoada e
pública na execução, tomava o caráter oprobidoso de humilhação notória e
vergonhosa exibição. Daí o cuidado de evitá-la e o horror de sofrê-la.
SALVE ÊLE! — Viva! Saúde! Seja bem-vindo! Saudação cordial e
popular, por todo Brasil. Salvar, no séc. XVI quando o brasileiro
LUIS DA CÂMARA CASCUDO
nasceu, era saudar. Ainda hoje, "salva" de palmas ou de artilharia. O navio
"salvou a Terra", com 101 tiros. Salva Real. Originava-se do "almejar
saúde" a alguém. Dar o "Deus te salve". Era o Salve, saudação matinal em
Roma, dedicada a Deusa Salus, filha de Esculápio, quae matutina esct
salutatio. Cortesia indispensável ao romano. Ave, emprega-se nas horas
vespertinas. Vale, ao despedir-se, definitivamente, no quotidiano. Luis
Gomes, abril de 1594 em Iga-raçu, ante o Santo Oficio, terminava a
informação contra Antonio Gonçalves, o Mutuca, antigo vaqueiro no Una
"que ora ouviu dizer estar no Cabo de Santo Agostinho começando a
querer ser pescador":
_ "... deixe que dias passados tiveram umas palavras de agasta-
mento por ele denunciante lhe ferir uma porca, mas que depois se fallão e
salvão". Lopo Martins, depondo em Olinda, agosto de 1955:
"respondeo que algumas vezes falou e de passagem salvou ao ourives
da praia de cujo nome não está lembrado": — (DENUNCIAÇÕES DE
PERNAMBUCO, 265, 474, São Paulo, 1929).
LAVAGEM: — Vitória esportiva espetacular. Diz-se da agremiação
vencida por grande contagem de pontos. Purgante, clister, vomitório,
repreensão severa, lavadura prolongada. No primeiro sentido, dizia-se no
séc. XVII: — "Ele sem tirar nem bainhar dice aquilo: vem bater a boa
pedra: chegue-se, levará sua lavagem: D. Francisco Manoel de Melo,
FEIRA D'ANNEXINS, Diálogo 6, Lisboa, 1875.
SOPA NO MEL: — O bom no melhor. Coincidência insuperável.
Oportunidade feliz. "Gaspar Dias falou muito enfadado, e pretendia de si
vingar, e mais porque lhe caiu a sopa no mel": (Frei Manoel Calado, O
VALEROSO LUCIDENO, II, IV, Lisboa, 1648). Sopa não é o caldo
contemporâneo, incompreensível para o entendimento da frase, mas uma
fatia de pão torrado úmedecida n'agua em que ferveram carnes e hortaliças.
Sobre esse pedaço de pão, molhado no liquido de cocção, constituindo a
sopa antiga, a presença do mel duplicaria os valores do sabor e da nutrição.
Era a Sopa de Mel.
OS TRÊS VINTÉNS: — Perdê-los é decair do estado de virgindade,
abandonar o título de Donzela, renunciando à pureza angelical. A mulher,
privada de tais vintens, é mulher perdida. Não ocorrendo a compensação
matrimonial, encontrar-se-á na Perdição. João Ribeiro esclareceu,
(FRASES FEITAS): — "Três Vintens de prata era moeda que, furada e
pendida de par com o sino samão e as figas, livravam do quebranto." Havia
em Portugal o Vintem de São Luis, trocado no dia do santo onomástico,
retirado da bandeja das esmolas. D. Francisco Manoel de Melo,
(ESCRITÓRIO AVARENTO, 1655), dizia-o "bom para o ar, para
enxaqueca, quartans, afflacto, mal de olhos, quebranto, e mulheres de
parto". Equivalia ao ecupercé, de França, de onde viera a tradição.
Nenhuma alusão ao privilegio virginal. Teófilo Braga, (O POVO
PORTUGUEZ, II, Lisboa, 1885)
LOCUÇÕES TRADICIONAIS
informa: — "Os talismans que livram a criança de quebranto são um
cordão de seda preta tendo enfiado um sino-saimão, três vinténs ae prata
furados, uma argola, uma meia lua, uma figa e um dente de lobo". Resulta
que o amuleto não seria o Vintém de São Luis nem jamais houve em
Portugal valor metálico divisionário valendo sessenta réis. Havia o vintém,
de prata. Furavam três deles e suspendiam num fio ao pescoço, e não uma
única moeda, inexistente na espécie. O des-virginamento correspondia à
perca dos talismãs defensores. Daí a insistência dos vocábulos, perder,
perdida, perdição. A donzela estaria de corpo-aberto desde que ficasse
sem a custódia sobrenatural, desaparecida a vigilância mágica.
Nunca os três vinténs valeram indenização compensadora. Uma donzela
deparada sem os três vinténs provocava a dedução malevola, de lógica
formal. Havia perdido as sentinelas comprovantes da inocência. Sem os
três vinténs, não mais era donzela. Os demais pendurucalhos destinavam-
se a outras finalidades. Os "três vinténs", com a efigie do Rei-Santo,
notadamente o símbolo estava na flor de lis, o lirio da Pureza, explicando a
perdição feminina.
IR AO MATO: — Para todo o Sertão do Nordeste ir ao mato é defecar.
Não havia recursos interiores para alguém dar de corpo. É uma
reminiscência dos indigenas. "Nos vocabulários modernos aparece o
vocábulo kaá, (caá ou kaha), com a significação de evacuar (Ege-rere),
quando significa mato ou folhas. O indio não tem uma palavra própria para
exprimir essa necessidade da vida, e quando d'ela quer tratar diz: —Cha ço
kaá pe, ou vou ao mato; ou Cha ço ráin kaá pe, eu ainda vou ao mato,
porque se subentende o que vai fazer": Barbosa Rodrigues, PORANDUBA
AMAZONENSE, Rio de Janeiro, 1890. Antiga anedota recorda velho
sertanejo, viajando por mar, procurando, aflito, o mato do navio.
— CABELINHO NAS VENTAS: — Ter cabelinhos nas ventas, notada-
mente as mulheres, anuncia gênio brigão, afoito, atrevido. O cabelo é
índice expressivo da masculinidade. Ter cabelos no peito é sinônimo de
bravura. Brave à trois poils, dizem os franceses. Denunciam, para o Povo,
energia fecundadora. Afirmam força fisica. Sansão perdeu-a quando
cortaram sua cabeleira. Na Grécia, Niso, rei de Mégara, e Pterelas, rei dos
Tafios, tinham a existência concentrada num cabelo dourado no meio da
cabeça. Sem êle, sucumbiram. A trunfa, o topete, o cacho, dos cangaceiros,
capoeiras, valentões de outrora. A tresse, a cadenette, dos velhos soldados
da França, desde Luis XIII. A penalidade de aparar, raspar os cabelos, a
descalvação, era castigo oprobidoso, desde o Código Visigótico. Calva à
mostra. Desmoralização.
O nariz é o lugar da vergonha, do brio, da autoridade moral. Por ali penetra
o sopro vital. Dizer verdades nas ventas de alguém é audacia destemerosa.
Não ter vergonha nas ventas atesta despudor e covar-
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
dia. No idioma tupi, TI ou TIN vale nariz, focinho e também vergonha.
Inti pereço será TIN, pomunha ramé cuá puxisána? "Não tendes vergonha
(TIN) quando estais fazendo esta feiura?" Cunha cicô TIN pocu. A mulher
tem o nariz comprido: (Stradelli). Ter cabelinhos, aqui num sentido
aumentativo, nas ventas, é pregão aterrorizador.
SAO OUTROS QUINHENTOS: — Estudando essa frase (COISAS
QUE O POVO DIZ, Rio de Janeiro, 1968), apenas marquei rumo com
as fontes então disponíveis. Adianto um pouco.
A partir do séc. XIII os fidalgos de linhagem na Peninsula Ibérica podiam
requerer satisfação de qualquer injúria, sendo condenado o agressor em
500 soldos. Quem não pertencesse a essa hierarquia alcançava apenas 300.
Compreende-se que outra qualquer vilta, vitupério sem razão posterior à
multa cobrada, seria incluída na primeira. Matéria nova para novo
julgamento. Outra culpa. Outro dever. Seriam, evidentemente, outros
quinhentos soldos. Assim, D. Quijote, (I, XXII) afirma a Sancho Panza ser
hijodalgo de solar concedido posesión y propriedad Y DEVENGAR
QUINIENTOS SOLDOS. Devengar, hacer suya cosa ó adquirir derecho â
ella.
A frase é de emprego secular na mesma intenção contemporânea. Luis de
Camões, FILODEMO, 1555, representado em Goa: — "Do-riano: —
Dionisia, a mais formosa dama que nunca espalhou cabelos ao vento,
senão ainda para assegurar esse sua boa ventura que lhe vem a descobrir
que é filha de nam sei quem nem que não. — Monteiro: — Esses são
outros quinhentos..."
Antonio José da Silva, o Judeu, no PRICIPICIO DE FAETONTE, Lisboa,
1738, faz dizer ao servo Chichisbéu: —"Senhor, quem albardar uma
formosura, há de aturar o ser reivosa, zelosa, comichona, pedinchona,
desvanecida: pois se tiver acidentes da madre, ainda são outros
quinhentos\"
Francisco Manuel do Nascimento, (Filinto Elisio, 1734-1819, OBRAS
COMPLETAS, I, 21-22): —"Ah, que se eu metesse em conta todos os
ciúmes, ódios, pragas, críticas e ainda satiras que os versinhos me
granjearam, outros quinhentos seriam!"
BIGODEADO: — Logrado, escarnecido, burlado. Reminiscência da
linguagem de caça — Dar um bigode é matar a perdiz, errada por outro. O
Imperador D. Pedro II, no seu DIÁRIO DE 1862, anotava a 19 de julho: —
"Disse-me (o marquês de Abrantes), que era preciso que o Ministério
mostrasse que se não deixava bigodear."
REQUENTADO: — "Amizade remendada, café requentado", recolheu
Afrânio Peixoto. E o adagio português: — "Do amigo reconci-
LOCUÇÕES TRADICIONAIS
liado e do caldo requentado, nunca bom bocado". A desconfiança nasce
dos alimentos reaquecidos, julgados sem valor nutritivo.
— Coma frio
Ou coma quente, Que
o requentado Ofende
a gente.
Mesmo nos antigos cartapácios médicos, como o ARTE COM VIDA OU
VIDA COM ARTE, (187, Lisboa, 1738), quer o doutor Manoel da Sylva
Leitão livrar-se
— Do Médico novo, e desconhecido E
do comer duas vezes cosido, E da
má-mulher, Libera nos, Domine!
Insegurança nas reconciliações onde as mágoas e rancores não se
evaporaram. Lamina soldada não dá som que preste, dizia Ruy Barbosa.
Nas famílias de outrora conservava-se o caldo, para crianças ou
convalescentes, em banho-maria, evitando voltá-lo ao lume. O caldo
requentado motivava um vago complexo de temerosa suspeita. É uma
herança doméstica de Portugal. Vale regresso ineficaz à Notoriedade.
COMA SAL COM ÊLE: — "Diz que não lhe encontra defeitos? Coma
sal com êle!" O conhecimento será o resultado da convivência. Viver
juntos, refeição em companhia, provando o mesmo sal, é a melhor
escola para a revelação dos temperamentos. A intimidade consagra
ou decepciona. Não há meio termo. A locução continua popular.
D. Duarte, XI.
0
Rei de Portugal, (1433-38), dedicou o capitulo XIX
do seu LEAL CONSELHEIRO, (deixado manuscrito e publicado em
1842, Paris), a estudar a "razom por que dizem que se deva comer
um moyo de sal com algúa pessoa até que a conheçam".
O ditado seria vulgar na centúria anterior.
No tempo de D. Duarte o moio de sal contava sessenta e quatro
alqueires.
Comer 882,2 litros de sal, condimentando alimentos comuns, creio
ser período suficiente para a percepção da mentalidade do comensal.
Pelo menos, pensava-se assim no séc. XIV.
BUSCAR FOGO: — Em 1944, estava no Rio de Janeiro, na rua Cruz
Lima. O meu amigo José Mariano Filho morava na Paissandu. Per
tinho. Fui buscar um livro emprestado e resisti às tentações da
conversa. — "Alda! gritou o dono da casa — traga um tição, porque
ele veio pedir fogo!"
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
A frase era comum. Desapareceu a função mas ficou a imagem, jus-
tificando visitas rápidas.
Criei-me no alto sertão do oeste norte-riograndense, vivendo em pequena
fazenda de gado, "Logradouro", em Augusto Severo. Acabados os
fósforos, fogão frio, ia-se pedir um tição de fogo ãs casas vizinhas que não
eram próximas. A demora seria, evidentemente, mínima. Regressava-se
agitando o tição para conservá-lo aceso. Agouro, o tição apagar-se no
trajeto.
Depois é que os fósforos abundaram, adquiridos nas lojas da rua,
povoação mais apropinquada. Rua é também sinônimo de Vila para o
lavrador português do Minho. Os fósforos só se tornaram comuns depois
de 1915, quando as primeiras rodovias articularam o sertão ao agreste e
este ao litoral, na pancada do Mar. Mesmo assim, pe-dia-se emprestado
algumas cabeças de fósforos. Voltando-se, no domingo, da feira, pagava-
se a dívida. A caixa de fósforos era escondida para os meninos não
estruirem com vadiagem à toa. Acender o cachimbo ou o cigarro, fumo
picado na mão, enrolado em palha de milho, basta o artificio, isqueiro de
chifre jamais negando serviço.
Pela SÁTIRA que Nicolau Tolentino dedicou a D. Martinho de Almeida
em 1779, o pedir lume às vizinhas era tradicional em Lisboa.
Então já quando em cardume
Sai gente da Fundição,
Como sabeis que é costume,
E já as vizinhas vão
Pedir às vizinhas lume.
No AUTO DA ÍNDIA, 1519, Gil Vicente informava: —
Encerrada nesta casa,
Sem consentir que vezinha
Entrasse por uma brasa.
NHEM-NHEM-NHEM: — é a conversa, explicação, queixa, intermi-
nável, repetida em tom de lamúria, irritante, monótona, insistente e despida
de interesse psicológico. É o rem-rem sem fim das mulheres ciumentas,
exprobando a conduta alheia. É a lenga-lenga em Portugal. Equivale ao
xororô das águas correntes ou ao xi-xi-xi da chuva molhadeira, constante,
miúda, exasperante.
"A mulher passou o santo-dia naquele nhen-nhen-nhem sem fim.
Provirá do nheem, falar, dizer, dos indígenas tupis. O nhenga do
Amazonas.
O indígena, notadamente o tupi, cantador e bailarino, era loquaz, falador,
discurseiro. Aturdidos com a incompreensível loquela, os portugueses do
séc. XVI teriam denominado o falatório ininterrupto nhen-nhen-nhen,
triplicação do verbo nativo, tão presente naquele
LOCUÇÕES TRADICIONAIS
dispensável exercício de eloquência. Nhen-nhen-nhen vale falar, falar...
Teria sido, na linguagem usual dos povoadores europeus, um dos pri-
meiros brasileirismos...
LEVAR FORQUILHA: — malogro, decepção, exposto à irrisão,
escárneo público, ridicularizado. Pereira da Costa cita uns versinhos
do Recife, America Ilustrada, 10 de março de 1877, com a caricatura
de um candidato à Deputação Geral, derrotado nas eleições: —
— Serena Estrela
que no céu não brilha.
Gastei meu cobre E levei
forquilha.
Em Roma aplicavam a forquilha, furca, instrumento bifurcado, de madeira
rija ou ferro em forma de ipsilom, na garganta dos escravos de pequenas
culpas, indolentes, larápios, descuidados. Era o Forcifes, levando a furca,
forquilha humilhante. Considerava-se, nos últimos tempos, mais uma
desonra que um suplicio, outrora incluindo flagelação: — ignominia magis
quam supplicci causa, informa Donat. Com a furca in collo era uma
divulgação notória da culpa e não sofrimento cruel, como tantos outros em
Roma.
A furca desapareceu nas punições legais mas levar forquilha continua
significando zombaria indiscutivel ao culpado de haver perdido o que
desejara.
— COMER COM OS OLHOS: — É olhar cubiçosamente os alimentos.
Ter olho-pidão, faminto, insaciável. Ficar com insistência.
O Povo concede aos olhos faculdades mágicas e também a transmissão de
força magnética. Cobras e jacarés chocam os ovos com o olhar. Também
os lacertilios, enfim todos os sáurios. Origina o Quebranto e o Mau-Olhar.
A Inveja é o olhar malfasejo, in-video. Olhar de séca-pimenteira, de azar,
de mofina. Certos olhares absorvem a substância vital dos alimentos,
deixando-os inúteis à nutrição. Soberanos negros da Africa Ocidental não
consentiam testemunhas ãs suas refeições. Comiam ocultos e sozinhos. Os
sertanejos acreditam que o olhar fincado no comer, tira a sustânça. Uma
nossa empregada, em junho de 1954, enxotou o meu basset que mirava o
jantar, aguardando a ração: —"Saia daí Gibi, você está tirando as forças do
meu comer!"
Estudei o assunto no Símbolo respeitoso de não-olhar: (SUPERSTIÇÕES
E COSTUMES, Rio de Janeiro, 1958).
Nos pejís dos Candomblés, Umbandas e Xangôs, os orixás utilizam as
oferendas pelo olhar.
Havia em Roma uma modalidade do Silicernium, festim fúnebre,
oferecido aos Deuses Manes, durante o qual a família, cliente e ami-
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
gos não tocavam nos alimentos, limitando-se a olhá-los em silêncio e
fixamente. Quod eam silenter cernant, neque degustant. Participavam do
ágape com a intenção visual. Comiam com os olhos.
_ SEM DIZER AGUA VAI: — Inopinadamente, sem aviso, inesperado,
de súbito. Até a segunda metade do séc. XIX o despejo das residências
domésticas, notadamente dos sobrados, era atirado à rua, com o grito: —
Agua vai! Assim em Portugal e Brasil, para não aludir à Europa inteira. Na
comédia de Cervantes, LA CASA DE LOS CELOS, jornada II, canta a
pastora Clori: —
Derramaste el água, la nina,
Y no dijistes: — "Agua va"
La Justicia os prenderá.
O serviço de esgotos eliminou a função mas não suprimiu a frase.
SURDO COMO UMA PORTA: — ou burro, estúpido, como uma
porta. A explicação do mestre João Ribeiro é a porta ser dura de
fechos, como o animal seria duro de queixos. Queixos, fechos, quicios,
e a imagem abrangeu azémolas e portas, pelo emperro dos gonzos,
dificultando a tração.
Havia em Roma, mesmo além do séc. III da Era Cristã, o costume de
OCCENTARE OSTIUM, constituindo em fazer grande ruído diante de
uma porta fechada, dirigindo-lhe injúrias e imprecações, com repetidos
clamores e vozerio, como protesto ou admoestação. Regis-tou-o Sextus
Pompeius Festus no De Significatione verborum, e Samuel Pitiscus repetiu
no seu Dicionário de Antiguidades Romanas, (Paris, 1766), "eles dirigiam
suas súplicas á Porta, honrando-a como uma Deusa, e fazendo mil outras
extravagâncias qu'Ovidio, Properce & Tioulle décrivent fort au long".
Esse documentário é suficiente para evidenciar a personalidade da Porta,
respondendo pelo silêncio ao furioso ou apaixonado appellatio dos
interessados, na esperança de ve-la obediente e aberta. Não seria possível
melhor exemplo de insurdescência, permanecendo cerrada e muda.
TORCER A ORELHA: — A orelha era dedicada a Mnemosine
deusa da Memória, mãe das nove Musas. Por isso os velhos mestre-
-escolas puxavam-nas aos discípulos, para que retivessem a lição,
protegidos pela égide da Lembrança.
Quando alguém torce a própria orelha, castiga-se de não haver ouvido a
voz da Razão em tempo oportuno, É gesto-símbolo do Arrependimento,
auto-punição pela desatenção culpada.
Se tu não deras á golhelha,
Nunca o nosso agravo fora,
Nem eu torcera a orelha.
LOCUÇÕES TRADICIONAIS
"Dar a golhelha" é falar demasiado.
Assim são os lamentos de Marta do Prado, vendedora de peixe, na
ROMAGEM DE AGRAVADOS, que Gil Vicente escreveu e fez repre-
sentar em Évora a El-Rei D. João III, "na era do Senhor de 1553".
AMARRAR O BODE: — é zangar-se. "Estar de bode amarrado" é-
mauhumorado, enfezado, irritado. Corresponde ao prendre la chèvre,
valendo se fâcher, de velho uso na França porque Montaigne já empregara
na segunda metade do séc. XVI. Não afirmo presença francesa ou
observação direta das cabras amarradas, ou bodes presos, forçosamente
inquietos e furiosos. Criados em liberdade, a prisão será motivo de
rebeldia, expresso em movimentação e berreiro.
NEM A GANCHO: — Não ceder à força. Difícil, quase impossível
"Nem Deus com um gancho e o Diabo com um garrancho!" Impassível à
violência e habilidade. "Gancho" é também o trabalho auxiliar ao
orçamento normal. "Foi à gancho", lenta e custosamente. Lucro adventício.
No Repertório das Leis Extravagantes, (II, tit. XVII, Lisboa, 1569), de
Duarte Nunes de Leão, o Rei D. Manoel determinara que os mecânicos
deveriam ter um gancho com croque de haste de 16 palmos para acodirem
às brigas e agarrar os que se acolhiam, para não serem presos em flagrante.
Para retirar objetos das casas incendiadas. Mecânico era o plebeu, não-
nobre.
— MAO BEIJADA: — Gratuitamente, sem encargos e retribuições. Desde
o séc. XV referia-se às doações do Rei, satisfeitas com o simples gesto de
beijar a mão, agradecendo. Em documento de 1555, o Papa Paulo IV aludia
às benesses das igrejas, meios regulares de provento sem ônus: — pé do
altar, ofertas depositadas espontaneamente nos templos, e mão beijada, as
dádivas generosas para o explendor do culto e propagação da Fé. Grátis
pro Deo.
LEVANTE O DEDO!: — É frase provocando individualização res-
ponsável. "Quem estiver de acordo, levante o dedo!" Reminiscência do
juramento antigo, erguendo-se o indicador para o alto, apontando o Céu.
Em 15 de junho de 1635, o alferes Antonio Caldeira da Mata, depondo na
Bahia sobre os portugueses amigos do invasor holandês denunciava Pêro
Lopes de Veras, senhor de engenho em Serinhaem, que aconselhava aos
moradores submissão ao Príncipe de Orange:
"Não conheceram por Senhor nem a Sua Majestade e que eles pagarião
o mesmo que pagavão a El-Rei nosso Senhor, e alevantavão o dedo para
sima": (UMA DEVASSA DO BISPO DOM PEDRO DA SILVA,
introdução de Anita Novinski, S. Paulo, 1968).
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
LAMBA AS UNHAS: — Vale dizer, conforme-se com o possuído; dê as
graças por não participar do caso; alegre-se de não estar envolvido; considera-se
feliz. Isabel Davila, denunciando ao Santo Oficio, novembro de 1591, na cidade
do Salvador, informava: —"Vio mais a dita Mecia Roiz, que tem por costume,
quando ouve dizer a alguma pessoa que outra mulher teve roim parto, lamber com
a boca as unhas dos dedos de entrambas as mãos, e isto lhe vio fazer por muitas
vezes, e perguntando-lhe a razão por que o fazia, não respondeu nada." É um gesto
de exorcismo popular judeu. Não repetem o ato mas a frase ficou, demonstrando a
intenção acauteladora: (Luís da Câmara Cascudo, MOUROS, FRANCESES E
JUDEUS, 129, Rio de Janeiro, 1967). Denunciava a repleção pessoal.
— RABO ENTRE AS PERNAS: — Humilhado, espavorido, acobardado. Os
animais amedrontados ou fugitivos baixam a cauda: coue, antiga forma de queue,
rabo ou rabudo, daí provindo o couard, qui a la queue basse: (Albert,
DICTIONAIRE ETYMOLOGIQUE DE LA LANGUE FRANÇAISE, Paris,
1938).
HÓPEDE DE TRÊS DIAS: — A hospitalidade tanto mais agradável quanto
menos demorada. Deixando saudades pela brevidade. Dizem em Portugal,
"Hóspede e pescada aos três dias enfada." E no Brasil, "Hóspede de três dias dá
azia". É preceito mouro, impondo limite ao Ed-Diaf-Allah, hóspede de Deus.
Ensinava Ibn Khaldun: —Vós sabeis que a hospitalidade deve ser dada por três
dias! Marcus Accius Plautus, (250-184, antes de Cristo), na comédia MILES
GLORIOSUS, (III, 2), pensava semelhantemente na Roma republicana. O hóspede
Pleuside diz a Périplectomeno, dono da casa, quanto despertaria animosidade aos
familiares uma permanência superior a três dias: — ubi tridum continum fuerit jam
odiosus siet. Plauto faleceu 1516 anos antes de Ibn Khaldun nascer em Tunis.
Tournou-se o critério normal da hospedagem.
Quevedo, na PREMATICA DEL TIEMPO, entre 1610-1614, divulga a norma: —
Item, porque sabemos hay algunos caminantes pelones y gorreros, hospedándose
más de lo que fuere razón en casa de los amigos, declaramos que el primero dia
segundo bien venidos, tratados con recocijo y hospedados con diligencia; el
segundo admittidos con llaneza, y el terrero con descuido y tan mal detenidos
sean tenidos, ya no por amigos, sino por enemigos de casa y de la hacienda. Nuno
Marques Pereira, COMPENDIO NARRATIVO DO PEREGRINO DA
AMÉRICA, (I, XXVI, 1728), registrou: "E pedindo-lhes licença para seguir a
minha viagem, (porque tinha ouvido dizer que os hóspedes aos três dias enfadam),
com efeito deles me despedi". Antonio José da Silva, o Judeu, no GUERRAS DO
ALECRIM E MANJERONA, (Lisboa, 1737), faz o dom Lancerote dizer: —
"Sobrinho,
LOCUÇÕES TRADICIONAIS vós bem sabeis, que hóspede, passando os três
dias fede, como cavalo morto!" Joaquim Alves de Oliveira, comandante de
Meia-Ponte, (Pirenópolis, Goiás), em agosto de 1819 dizia a Augusto de
Saint-Hilaire: —"Concedo aos meus hóspedes três dias de repouso; mas, ao
cabo desse tempo, encarrego-os de uma parte da administração da minha
casa":
(VIAGEM ÀS NASCENTES DO RIO S. FRANCISCO E PELA PRO
VÍNCIA DE GOYAZ, II, XXIV).
Há mais de vinte e dois séculos que hóspede de três dias dá azia...
COM UNHAS E DENTES: — Apesar de tantos séculos de apreen
são, a imagem não saiu da contemporaneidade. É a mais expressiva
porque independe do aparato artificial, recorrendo unicamente ao
auxílio de órgãos humanos e pessoais. Com unhas e dentes! tenaz
mente, com todas as forças, utilizando a plenitude da energia
individual, decidido a não ceder o posto, não renunciar a pretensão. É a batalha
entre populares desarmados e no corpo-a-corpo feroz. Unhadas e dentadas, clássica
briga feminina. Reflete a obstinação
agressiva. No AUTO DA BARCA DO PURGATÓRIO, 1518,
diz o Lavrador: — — Nós somos vida das gentes E morte de
nossas vidas; Que a unhas e a dentes Nos tem as almas roídas!
Foram as primeiras armas do Homem. É o registo de Lucrécio,
57 anos antes de Cristo, no DE NATURA RERUM, V, 1282. —
Arma antiqua, manus, ungues, dentesque fuerunt. Continuam
sendo as primeiras, instintivamente mobilizadas.
POETA D'AGUA DOCE: — Insulso, descolorido, banal.
Sem o
sabor, movimentação, sonoridade, do Mar. Foi amplamente empre
gado nos sécs. XVI-XVIII, e não se aposentou. Com as variantes de
pintor d'água doce, de D. Francisco Manoel de Melo, e meus críticos
d'ãgua doce, de Filinto Elisio. Já no séc. XIV em França, na farsa do
Maistre Pierre Pathelin, diz o drappier Guilhaume Jaceaune: —
— Je retourneray, qui qu'en grousse Cheuz cest
advocat d'eaue douce.
Os gêneros não desapareceram.
RIR A BANDEIRAS DESPREGADAS: — Rir imoderadamente, a
vontade, ãs escâncaras, sonoramente. Castro Lopes corrige para bra
guilhas despregadas. Despregar, além de tirar do prego, é exibir, mos-
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
trar, patentear alguma cousa, fazendo uso dela, regista D. Domingos
Vieira. Santa Tereza de Jesus, em dezembro de 1576, escrevia de Toledo
ao Padre Jerónimo Gracian: —En fin, mi Padre, le ayuda Dios y ensena a
BANDERAS DESPLEGADAS, como dicen. Vale, abundantemente,
ostensivamente.
É uma reminiscência das praxes militares de outrora, a partir de finais do
séc. XV. A guarnição que defendera com heroismo uma fortaleza, castelo,
cidade fortificada, ao render-se tinha as honras de guerra, nas prévias
capitulações. Deixava a praça em formatura regular, tambores rufando,
cartucho na boca, murrão aceso, bandeiras tendidas, isto é, soltas,
despregadas, drapejando ao vento, mostrando suas cores. Não amarradas,
enrolada à haste. Os oficiais conservavam as espadas e o regimento a
bandeira. Não era a rendição incondicional, humilhante. Por associação
lógica, rir ás bandeiras despregadas será o riso liberto de qualquer coação,
limitado pela própria deliberação, na plenitude da reação hilariante, assim
como a bandeira, erguida pela valentia de sua guarda, estalava no ar a
integridade de suas dimensões.
VÁ CANTAR NA PRAIA: — Dito aos reclamistas insistentes, pe
dinchões importunos, cantores desafinados, conversa-mole, dispensá
vel. Será uma inutilidade o canto ãs ondas, indiferentes e anuladoras
do esforço vocal.
Na FARÇA DE QUEM TEM FARELOS, (Gil Vicente, 1505), grita a
Velha, irritada com a tediosa serenata do pobre escudeiro Aires Rosado: —
I eramá cantar à praia!
Suficiente para evidenciar antiguidade e uso, maior de quatro séculos e
meio, e ainda atual.
CADA UM SABE ONDE O SAPATO LHE APERTA: — O adágio
vive em todas as línguas cultas, presentes e mortas.
Eu conheço meu sapato, confessava Satanás no AUTO DE CANANÉA,
representado por Gil Vicente no Mosteiro de Oudivelas, em Lisboa. A
frase veio de Portugal para o Brasil.
A mais antiga menção encontro em Plutarco, Paulo Emilio, (AS VIDAS
DOS HOMENS ILUSTRES). Casado com a nobre Papiria, pai de dois
filhos, que seriam Cipião Africano e Fábio Máximo, Paulo Emilio
repudiou a esposa e, ante o protesto dos amigos le Romain étendant le pied
et leur montrant son soulier, leur demande à son tour: "Ce soulier n'est-il
pas tout neuf? n'nest-il pas bien fait? Aucun de vous cependant ne sait ou il
me blesse". Assim está no francês de Ricard a narrativa grega do primeiro
século, depois de Cristo.
LOCUÇÕES TRADICIONAIS
Seria Plutarco um núcleo irradiante para letrados mas S. Jerónimo reforçou
a divulgação com o seu latim ágil do séc. IV, repetindo o episódio: —Et
his soccus, quem cernitis, videtur vobis novus et ele-gans, sed nemo scit
praeter me, ubi me premat: (PATROLOGIAE, Migne, XXIII).
Não mais saiu da memória europeia.
No séc. XIV, Geoffrey Chaucer incluiu-o no CANTERBURY TALES,
dizendo no The Marchantes Tales: But I wot best wher wringeth me my
sho.
No séc. XV, o autor anónimo do Maistre Pierre Pathelin, a farsa popu-
laríssima em França, dirá Guillaume Joceaume, le drappier: Je sçay
mieux ou le bas m'en blesse.
Na Espanha do séc. XVII, Quevedo: —"que sé donde me aprieta el
zapato": (CUENTO DE CUENTOS, Madrid, 1626). A tradição
responsabiliza Paulo Emilio pela observação. O anotador de Plutarco na ed.
Firmin Didot, (Paris, 1843), informa: — II y en a qui croient que ce mot est
de Paul Emile lui-même; et en effet, il parait assez être dans son caractere.
A MAE DO BISPO: — "Vá pedir à Mãe do Bispo!" Queixar-se à
Mãe do Bispo! não desapareceram na fraseologia popular, em tom
faceto. Seriam as progenitoras de influência decisiva no espírito dos
filhos prelados. Ao Bispo eram dirigidas súplicas, denúncias, lamen
tações, dado o poder administrativo que dispunham, e voto aten
dível aos ouvidos d'El-Rei.
A Mãe do Bispo surgiu no Rio de Janeiro, na pessoa de dona Ana Teodora
Ramos de Mascarenhas Castelo-Branco, esposa do tenente--coronel João
de Mascarenhas Castelo-Branco, governador da fortaleza de S. José da ilha
das Cobras. Foram os pais de dom José Joaquim Justiniano Mascarenhas
Castelo-Branco, (1731-1805), sexto Bispo do Rio de Janeiro, (1775-1805),
de quem canta louvores Monsenhor Pizarro e Araújo.
Dona Ana-Teodora mantinha residência de espavento, acolhimento gentil e
relações poderosas. Morava no Largo da Ajuda, cognominado Largo da
Mãe do Bispo, com larga referencia em quantos estudaram a segunda
capital do Brasil. D. José Joaquim Justiniano dirigiu o rebanho mais de
trinta anos. Enquanto viveu, Dona Ana-Teodora gosou das atribuições de
conselheira-privada e suprema nos assuntos alheios à Diocese. Queixar-se
ou pedir à Mãe do Bispo seria solução natural aos incontáveis candidatos
de batina e casaco. A imagem subiu para o norte e desceu para o sul
brasileiros, tornando-se usual, mesmo que fosse inaplicável. E ainda a
ouvimos, contemporânea e secular.
— ESTAR DE PAQUETE: — A severa Pudicity inglesa não evitou sua
presença motivar sinónimos populares aos incômodos privativos
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
femininos. Em França, da Gasconha a Calais, diz-se: — Les Anglais sont
dêbarquês ou les Anglais ont débarqués, numa associação à côr escarlate
das túnicas militares britânicas. No Brasil, um dos sinônimos é Paquete.
Está de -paquete, é suficiente aviso denunciador. Em 19 de fevereiro de
1810, no Rio de Janeiro, o conde de Linhares, pelo Principe Regente, e
Lord Strangford, por George III, do Reino Unido assinavam uma
Convenção sobre o estabelecimento dos Paquetes. No artigo primeiro
anunciava-se: — A Packet shall sail from Falmout to Rio de Janeiro once
in every Mouth. Sairá de Falmout para o Rio de Janeiro um Paquete em
cada mês! Por causa dessa visita do Paquete, mensal e regular, e o
vermelho da bandeira comercial da Grã-Bretanha, visivel no mastro de
cada navio, nasceu a aplicação do nome, rapidamente vulgarizado.
— DANADO: — O Povo entende danado como possesso, furioso, de-
sesperado. Danação! Danado do Inferno! Dane-se! Significa, realmente,
quem sofre danos, o expoliado, arruinado, aflito, maltratado. É natural que
a ira seja consequência lógica. O desespero não é sugestão de bom-humor
em situação angustiosa.
Os ingleses têm a praga God damn! favorita de Lord Melbourne. O God
damn deu no Brasil o Godême, valendo a pessoa do inglês e também soco,
bofetada. O verbo damn é castigar, censurar, punir. O God damn é pedir a
Deus essa punição. Corresponde ao nosso assim Deus me castigue. Ao pé
da letra, Deus me condene. O Diabo me leve!
Com esse preâmbulo, entender-se-á o registo de Humberto de Campos:
(DIÁRIO SECRETO) —"Encontro, no bonde, à rua Senador Vergueiro,
com o 2.° Delegado Auxiliar, Francisco de Paula Santiago, que conduziu
para bordo do "Alcântara" o ex-presidente Washington Luis. — "Seu
Humberto, que sujeito bruto, o "Barbado"! — diz-me. Cercamo-lo de todas
as atenções e amabilidades; pois nem assim! Quando êle chegou a bordo,
onde as autoridades e o pessoal de bordo o esperavam, êle não apertou a
mão de ninguém; passou pelo meio de todos com o chapéu na cabeça, sem
dar confiança a ninguém! la danado da vida!"
A origem verídica data da legislação de Roma, republicana e imperial.
"Danado" é o condenado, também imagem popular. Dannati aã Bestias,
Damnatus ad Gladium, Damnati ad Opus, condenado a ser devorado pelas
feras no Circus, a ser degolado, aos trabalhos públicos, minas, estradas,
cloacas, remar nas galeras. Não estariam "contentes da vida"...
ALCUNHAS NO BRASIL QUINHENTISTA
Sempre lamentei Pereira da Costa, Manuel Querino e Vieira Fazenda não
registassem os apelidos de Pernambuco, Baía e Rio de Janeiro,
LOCUÇÕES TRADICIONAIS
como Pereira Coruja fizera, em 1881, com os de Porto-Alegre, numa exposição
deliciosa de vivacidade. Será um dos elementos mais legi-timos da perspicácia
coletiva. Pedro Taques não olvidara esse aspecto na NOBILIARQUIA
PAULISTANA, com os Bandeirantes.
Recensiei alguns desses modelos no Brasil, finais do séc. XVI e segunda
década do XVII, retirando-os das DENUNCIAS e CONFISSÕES do Santo Oficio
na Baía, 1591-1593, Pernambuco-Paraíba, 1593-1595, e da VISITAÇÃO na
cidade do Salvador, setembro de 1618 a janeiro de 1619. Seriam os mais
populares.
Da Cidade do Salvador e arredores: —
Maria Gonçalves Cajada, ARDE-LHE-O-RABO, grande feiticeira portuguesa.
Isabel Rodrigues, BOCA-TORTA, Catarina Roiz, a TRIPEIRA, e outra, a GIGA.
MINEIRA e MIJA-VINAGRE, também magicavam ao modo europeu.
Mija-Vinagre é o celentéreo Physalia pelágica, exsudando liquido
urente. Alcunha de briguentos e rezingões.
O alfaiate Fernão Guomes era o DEUS O GUARDE.
Fernan Pires, MIJA MANSO. No fim do séc. XIX vivia em Ma-
caíba, (RN), o senhor MIJA MANSINHO.
Henrique Mendes, o MOUCO. Antonio Nunes, o PI FANO, Antonio
Mendes, o BEIJU. Manoel Nunes, MI PLATA. Um curandeiro de ervas
era o QUATRO OLHOS. Francisco Ribeiro morava na ilha das Fontes,
abastado, e sendo o DESNARIGADO. Francisco Mendes Cardoso era
O MERCADOR DAS GAITAS, ou CÃO-GATO....
Frei Manoel Calado, (1584-1654), futuro autor do VALEROSO LUCI-DENO,
chamado FREI MANOEL DOS ÓCULOS. Manoel Vieira, morador em Camamu,
era o MA-PELE, irascivel e violento.
João Barbosa, conheciam-no por AMARGALHAGUA. Deve ser AMAR-
GA-LHE AGUA, por não bebê-la.
Domingos Gomes Pimentel, CONDE DE POTECAVA, freguesia de
Passe. Titulo burlesco de nobreza zombeteira, talvez pelos ares
superiores do ex-Capitão de Campo, caçador de escravos fugitivos.
Em Pernambuco: — Olinda, Igaraçu e freguesias próximas: —
Bastiam Coelho, o BOAS-NOITES, genro da famosa Branca Dias.
Alcunha cigana.
Antónia da Costa, a BEICINHA. O barqueiro Gaspar Dias, o MATADO.
ALMA DOS BURZEGUINS, cunhado do lavrador Antonio Dias.
Cristóvão Martins, alfaiate, o BAIÊTA. Um lavrador em Olinda era
conhecido por NEGA-O-PAI.
Antonio Gonçalves, MUTUCA, vaqueiro no Una e depois pescador no
Cabo de Santo Agostinho. Maria de Almeida, a GALEGA, "mulher do
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
mundo". Pelonia da Fonsequa, a TORNEIRA. O mercador Afonso Martins,
diziam-no o AGUAS-MORTAS.
Tomás Lopes, o MANIQUETE ou MANQUINHO. Passeando com o pé amarrado
era sinal de reunião na Esnoga, sinagoga dos cristãos--novos. O Padre Pêro Leitão,
do Colégio de Olinda chamava-o "Campainha dos judeus".
O vigário Antonio Martins, em 1576, era o CABELINHO, por usá-lo longo. Lianor
Martins, a SALTEADEIRA, era bruxa eminente. Diogo Rodrigues, o LAGARTIXA,
de Itamaracá. o açougueiro Pedro Alvares, 0 MALHADO.
Três Pêro Gonçalves: — o GAGO, o PECU, possivel PUCU, comprido, longo, e o
PERIQUITO, este da Capitania do Espirito Santo. João Dias, o FELPUDO.
Morreu em 1564 de uma flechada. Francisco Fernandes, o TORTO. Joam Pires, o
COMBOEIRO. Lopes da Cunha, o GALEGO.
Gaspar Gonçalves, o VENTUREIRO. O negro Jorge, FANOSCA, cho-carreiro e
atrevido.
Trancisco Martins, o ROXO, pedreiro, zangadão. "Deitado na rede dizia que estava
esperando pelos Diabos que o viessem levar".
O Porteiro do Conselho de Olinda, Manoel Gonçalves, dava escândalo,
blasfemando, quando gritavam:LAVA-O-PAUl Foi denunciado ao Santo Oficio
em 20 de junho de 1595 pelo contador e inqueridor do Juízo Eclesiástico, João
Caravio, que estava "suspenso por diferenças e palavras que teve contra o Ouvidor
da Vara Ecleciástica".
Cidade do Natal.
Agosto de 1969.
Um romance inacabado de Alencar
WILSON MARTINS
A critica brasileira jamais consagrou muita atenção ao periódico
político e literário O Protesto, redigido e publicado por José de Alencar
nos três primeiros meses de 1877, ano mesmo de sua morte. É verdade que
se trata de absoluta raridade: Sacramento Blake (Dicionário Bibliográfico
Brasileiro, v. 5, p. 80) afirma que nunca o havia visto e acredita tratar-se
de "uma reprodução de publicação na imprensa política", o que não é
exato; o outro pelo cronológico, a edição Aguilar da Obra Completa (1960;
2.
a
ed. 1965) qualifica-o de "folheto", o que não é mais correto. A
Biblioteca Municipal Mário de Andrade possui uma coleção completa dos
cinco números publicados de O Protesto, em volume proveniente da
livraria de Félix Pacheco. Trata-de de publicação que deveria ter sido
quinzenal, pois o primeiro número traz a data de 5 de janeiro de 1877 e o
último a de 20 de março do mesmo ano. Contudo, é impossível dizê-lo
com certeza porque uma "distração" tipográfica manteve a data de 24 de
janeiro de 1877 para os nº. 2, 3 e 4; sendo evidente que três números
diferentes não foram publicados no mesmo dia, é também possível que a
periodicidade não obedecesse a regularidade rigorosa.
O Protesto é ainda uma consequência do ressentimento de Alencar
pelo fato de não haver sido nomeado Senador em 1869, apesar de figurar
na listra tríplice em que Pedro II, de acordo com a Constituição, tinha o
direito de escolher livremente. Alencar que, nas Cartas de Erasmo (1866),
havia prestado a mais calorosa homenagem ao Imperador, não pôde sofrear
o despeito. Comentando o episódio, escreve o insuspeito Araripe Júnior:
"Se êle, apenas ausente
(1) Pam as pesquisas bibliográficas destinadas a este artigo, contei com a Inestimável
cooperação da bibliotecária Rose Edith Fleury Charmillot, da Biblioteca Municipal Mário
de Andrade.
WILSON MARTINS
do gabinete [onde fora Ministro da Justiça], tem se apresentado na
imprensa com franqueza, revelando os tropeços que no poder encontra o
homem de talento toda a vez que pretende fazer prevalecer sua vontade...
(...) se afinal J. de Alencar tem atacado o Imperador, embora rudemente,
mas logo, sem detença, talvez toda as suas faltas como político fossem
redimidas, e o pais impressionado o ouvisse de outra maneira, e ouvindo-
o, desse-lhe forças para ser o que êle não era. (...) Infelizmente... só
depois da sua não escolha, foi que pelo Dezesseis de Julho, jornal que
então redigia, auxilidado por seu irmão Leonel de Alencar, rompeu em
uma série de artigos, esplêndidos de indignação, mas marcados desde
começo pelo público com o estigma do despeito. A contradição com as
Cartas de Erasmo era palpável...".
À decepção política veio logo juntar-se a saúde declinante, razão de
uma improfícua viagem à Europa em 1816, e, na volta, a nítida sensação
de um esvaziamento literário, de uma perda de prestígio intelectual, num
Brasil que, efetivamente, ia marcar a década de 70 com as mais profundas
modificações de atmosfera e aspirações ideológicas. Retomando a crítica
ao Imperador, agora num contexto muito mais favorável (basta lembrar
que o Manifesto Republicano data de 1870), Alencar tentaria o supremo
esforço de reconquistar para si próprio a realeza literária que, de alguma
forma, sentia haver perdido. O fim principal do Protesto, escreve ainda
Araripe Júnior, era "congregar tardiamente em torno de si uma porção de
rapazes escolhidos, que o ajudassem na grande luta e propagassem a fama
do mestre. Tem pois um sentido psicanalítico revelador a sua declaração
inicial de que O Protesto, "em vez de apresentar-se como órgão da opinião,
título que o uso tem deferido aos jornais (...), propõe-se ao inverso a
arrostar a opinião". E, mais além: "O Protesto, como o diz o seu nome, não
é uma propaganda, mas um desabafo; não é uma agressão; pode ser quando
muito uma resistência". O periódico seria, além disso, um apelo à poste-
ridade, a garrafa do náufrago com a última mensagem aos sobreviventes:
"se o jornal morre, se o público tem o poder de asfixiar o livro com o seu
indiferentismo", a ideia, pelo menos, é imortal; e, em plano não tão
ambicioso, a matéria impressa permanece e carrega o segredo da vingança
póstuma. No "jazigo de livros" da Biblioteca Nacional, O Protesto ficaria
aguardando, ao lado da literatura oficial e administrativa, o leitor do futuro;
é nas suas páginas que êle encontrará "a verdadeira história acontecida, e
não essa que se está fazendo por empreitada do governo". Alencar, de
resto, não ignora, nem esconde, que a sua é uma obra polémica,
apaixonada e parcial: "Bem desejavam [os autores, porque êle vai manter a
ficção de que se trata de um grupo redacional] saber a arte das
conveniências e possuir a alma de Tácito para escrever sine ira et studio;
mas essa grande serenidade do historiador não a
UM ROMANCE INACABADO DE ALENCAR
podem eles ter presentemente e não a querem simular. Por isso escolheram
para sua epígrafe o mote de Juvenal: — Facit indignatio versuin. De feito
nossa musa é a indignação; preferíamos que fosse outra menos acerba, a
mofa ou a ironia; e não cessaremos de invocá-las para que nos inspirem os
risos de Cervantes e Rabelais".
E, com efeito, as crónicas que, sob o título de "Beotices", êle escreve
nos cinco números do Protesto são incomparavelmente superiores a todas
as que se tornaram célebres com o nome de Ao Correr da Pena (1853-
1854). Essas últimas ressentem-se demasiado do público a que
principalmente se destinavam, constituído pelas senhoras e moças da
sociedade carioca; como no teatro, Alencar parece ter desejado fazê-las "rir
sem corar" e produzir a literatura que pudesse ser posta em todas as mãos;
e êle, que tinha uma veia satírica notável, jamais exercitada em todas as
suas virtualidades, caía também com facilidade na pieguice e no humo-
rismo contrafeito. Já o Protesto é "literatura de homens", para ser lida na
fumaça dos charutos e comentada nas salas de bilhar; Alencar nela assume
a condição de gigante viril que sempre viveu viçariam ente através dos
seus personagens célebres; e, não temendo ser indelicado, tem a coragem
de ser vigoroso. Assim, por exemplo, estas farpas contra o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, academia sagrada em que o Imperador
reunia os seus eleitos de talento e no qual recebia o culto intelectual que
mais o lisongeava:
Outro discurso, e discurso de outra sombra.
O presidente interino do Instituto Histórico figurou a sessão solene
daquela sociedade um painel buonarótico. Recomendamos este novo termo
ao sr. João Cardoso, procurador fiscal da Sociedade Regeneradora da
Língua Portuguesa.
Miguel Angelo entre outras obras pintou na Capela Sixtina um
Purgatório, onde por sinal meteu certos cardeais com quem embirrava.
Não é este decerto o painel do Instituto.
Eu daqui o estou vendo cheio de vultos homéricos, de Aquiles, de
Heitores, de Ajaxs, uns romanticamente arripiados como o sr. Homem de
Melo; outros classicamente rapados como o sr. Cândido Mendes.
O sr. Macedo declarou-se a única sombra no meio dessa luminária
geral; e carregando a mão chamou-se de infeliz figura, ruga de velho em
cara de moço, e não sei que horrores mais.
Cúmulo de modéstia! Eu que já vi uma vez a galeria viva do Instituto,
posso assegurar que o sr. Macedo, apesar de já não ser o herói da
Moreninha, fica um Antinôo no meio de seus consócios.
Também o sr. Macedo usou de uma comparação geológica. O sr. do
Bem Retiro é um Itatiaia; e êle a colina mais baixa. Qual junto de um
penedo outro penedo. A planície é que estamos por saber quem é.
WILSON MARTINS
O ilustre presidente deu-nos o júbilo de ouvir que o Imperador ao
partir DEZ VEZES recomendou: "Cuidem do nosso Instituto".
Dez vezes! Foram contadas, e arquivadas no livro de ouro. Aposto
que os ministros não se benzeram com esta augusta insistência a propósito
dos negócios públicos.
"Nosso Instituto!. .." Fraternal democracia, disse o sr. Macedo; e eu
exclamo: "Oh! terna, oh! sublime, oh! deliciosa fraternidade!"
Ficamos cientes de que o sr. Conde d Eu, ouvindo os elogios do
Instituto pode dizer: — Res nostra agitur. Em português: — Isto aqui é
nosso. Nós é que temos direito de fazer a história.
Eu porém, como beócio, acredito que Sua Alteza prefere a espirituosa
língua natal a aquele latim da artinha; e se alguma citação mental êle fêz
na sessão solene foi a de Voltaire: — Et voilà comme on écrit l'histoire.
E, justamente, desejando que a história se escrevesse com dureza e
rigor, Alencar decide atacar Pedro II diretamente na sua vaidade de
intelectual. Numa crônica intitulada "Rei ou Roque", êle toma o símile do
xadrez para lembrar que a torre (roque) "é mais que nenhuma outra
reservada à defesa do xá que por sua vez a protege; nasceu dai o conhecido
provérbio rei ou roque". E acrescenta:
Nós bem podemos hoje por amarga experiência traduzi-lo em frase
correntia e brasileira, dizendo ou bem sábio ou bem soberano.
São com efeito duas ocupações incompatíveis. A gestão dos negócios
públicos não permite, senão como recreio, as laboriosas investigações da
ciência, que absorvem e cativam o espírito.
Ninguém decerto confiaria do engenheiro incumbido de dirigir uma
grande máquina, se em vez de atender ao seu movimento, êle abstrato se
retraísse a um canto para investigar certos fenómenos de física, muito
importantes para a ciência, mas sem efeito prático na ocasião.
E que máquina mais importante do que essa da sociedade, à qual deve
presidir um soberano com incessante desvelo, e da eminência onde o
colocou o voto da nação?
Compreende-se que Alexandre dormisse com a Ilíada sob o
travesseiro e deplorando não ter um Homero para cantar a sua glória.
Mas que interessa à prosperidade deste império, que o seu monarca
saiba de cor e salteado o texto daquele poema, e dê quinaus mestres acerca
do templo de Apolo em Tenedos?
Não seria muito mais feliz este povo, se o seu defensor perpétuo. que
nos anunciam ter descoberto o verdadeiro sítio de Tróia, estivesse agora
cogitando na difícil solução da crise financeira e prescrutando a sede dos
males que nos afligem?
A questão religiosa assume cada dia maior gravidade; mas tenhamos
fé e esperança, pois segundo nos anunciou há dias o
UM ROMANCE INACABADO DE ALENCAR
primaz da imprensa, o imperador se ajoelhará em Belém e no Santo
Sepulcro.
A viagem imperial nas circunstâncias melindrosas do país é um erro
tão flagrante, que a censura transpira dos poros mesmos da mais extrênua
defesa, a que os amigos sinceros da monarquia julgam-se obrigados.
O retrospecto que publica anualmente o Jornal do Comércio é sem
contestação um escrito refletido, e repassado sempre do espírito
eminentemente conservador desse importante órgão da imprensa.
Entretanto, justificando a ausência do soberano, a rígida consciência
do historiador não pode abafar de todo a verdade severa, que desafogou-se
nestas palavras bem expressivas:
"O imperador partiu a viajar por dezoito meses deixando ao governo
do Estado, além de outras dificuldades, três problemas, um arriscadíssimo
e dois aflitivos, a reclamarem solução".
Que motivo poderoso obrigou o sr. D. Pedro II a ausentar-se do
império em época tão árdua para o povo que lhe tem dado as mais
eloquentes provas de seu amor e adesão?
A moléstia da imperatriz?
O conspícuo escritor não acredita nela; e estamos convencidos que só
a mencionou para com a recordação das virtudes de nossa augusta
soberana, avivar o amor ao trono e turbar o nosso espírito, comovendo-o.
A verdade é que sendo nossa imperatriz uma esposa cheia de
abnegação, não pode deixar de adoecer, quando sente que a viagem é
necessária ao repouso do espírito daquele a quem uniu seu destino.
A moléstia, portanto, não é causa da viagem; é efeito prévio dela;
tanto assim que depois de pequena demora com Gastein, a imperatriz foi
encontrar-se com seu esposo e com êle vai arrastando as fadigas de
jornadas penosas.
Também não é argumento, o suave refrigério de que precisa uma
inteligência ávida de saber, depois de tantos anos de assíduo reinado.
Maior reinado e mais árduo foi o de Leopoldo I; e não menos longo é
o da rainha Vitória; mas nenhum destes soberanos constitucionais afastou-
se jamais de seus Estados durante meses, e para lugar onde não pudesse
voltar em poucos dias.
Que mais suave refrigério para um soberano do que contemplar a
prosperidade de seu povo, e glorificar-se de sua obra?
Se porém o povo não é feliz, se o seu futuro depende de problemas
arriscadíssimos e aflitivos; então o soberano não tem direito ao repouso, e
o refrigério neste caso não seria suave, mas bem amargo.
Teria o travo do remorso.
O rancor de Alencar era, como se vê, implacável; mas é também de
reconhecer a coragem com que, no meio do assentimento e da servilidade
generalizada, êle saía a campo para acusar o Imperador
WILSON MARTINS
de relapso, de tolo e de mentiroso, tudo isso, naturalmente, envolto numa
felicidade de expressão satírica a que não podem ficar indiferentes os
oficiais do mesmo ofício. Os trechos referentes à Imperatriz são, quiçá,
mais ferozes do que todo o resto, e apresentando-a como vítimas submissa
de um marido que, além de imperial, era imperioso, nem por isso a
absolvem da cumplicidade geral. Pode-se dizer que Alencar ainda na hora
da morte dava a sua investida final contra o Imperador; a última crônica do
último número do Protesto (20 de março de 1877) é inteiramente dedicada
à nomeação do "ilustre estadista" Diogo Velho para o Senado. "Como êle
entrou é que ninguém sabe", escreve o panfletário, iniciando as suas inves-
tidas, e, depois de veicular várias hipóteses deprimentes ou ridículas, volta
ao seu caso pessoal (que, decididamente, era uma obsessão):
Apresentar-se um ministro candidato à senatória por sua província, à
qual êle tem representado e representa como deputado, não é para o sr.
Cândido Mendes um ato honesto. [Recorde-se ter sido essa a principal
razão em que se diz ter-se estribado o Imperador para escolher outro nome
na lista tríplice em que Alencar havia figurado].
Honestíssimo é apresentar-se um indivíduo na câmara dos deputados
com um diploma de fantasia e outras coisas mais. E, depois de demolir
rudemente a organização de Cândido Mendes, acrescenta:
Uma daquelas cunhas [nome que se dava a candidatos sem nenhuma
possibilidade efetiva e que só entravam na lista para completá-la, a fim de
forçar o Imperador, de certa maneira, a nomear o único em condições]
chamava-se Mariani, ilustração da magistratura brasileira e tipo de
probidade. O sr. D. Pedro II o rejeitou quatro vezes, porque não era
palaciano, nem pertencia ao Instituto Histórico e Geográfico.
Ninguém hoje se lembra disto; a história porém guarda o fato e êle há
de aparecer quando se apurar a pretendida longanimidade de Augusto.
O Sr. Jaguaribe revelou no Senado um segredo de estado. O ilustre
senador descobriu que mil razões [havia] para não ser escolhido o ex-
ministro da justiça do gabinete de 16 de julho [isto é, Alencar].
A primeira dessas razões era a necessidade de ser escolhido o Sr.
Jaguaribe; as outras 999 estão prejudicadas.
O sr. F. Otaviano declarou que a não escolha do Sr. Alencar tinha
firmado o princípio da abstenção dos ministros em candidaturas
senatoriais.
O sr. Junqueira era ministro quando apresentou-se candidato, quando
foi escolhido e quando tomou assento. Ninguém no senado tugiu acerca do
famoso princípio.
O sr. F. Otaviano não deve pôr a sua bela e esplêndida inteligência a
serviço de tais argumentos. S. Excia. sabe que o princípio
UM ROMANCE INACABADO DE ALENCAR
pelo qual não foi escolhido o seu amigo de infância é outro; é o que há de
servir de epígrafe a este reinado: Place ut placeam.
O sr. Zacarias taxou de temeridade o ato de apresentar-se candidato à
senatória o sr. Alencar.
Concordo. Foi não só temeridade, como até insolência desse senhor,
ter a presenção de ser senador em nosso pais.
Que ia êle fazer no senado? Romances desenxabidos, que são a única
bagagem desse borrador de papel?
Bastam já as miscelâneas do sr. Cândido Mendes.
Alencar cita, ainda, vários casos de presidentes de província que se
fizeram eleger no exercício do cargo e que foram nomeados, tudo, é
evidente, com o propósito de mostrar que a sua exclusão só se deveu a
antipatias pessoais e não a qualquer das supostas "razões" então e
posteriormente alegadas.
Estes esclarecimentos e transcrições servem para estabelecer não só a
verdadeira natureza do Protesto, mais e para o que nos interessa, o
contexto psicológico e histórico em que Alencar começou a escrever o seu
romance inacabado.
Com efeito, no clima da "questão religiosa" e das campanhas
abolicionista e republicana, que ganhavam consistência dia a dia, Alencar
revigorava o seu velho interesse pelos temas sociais e resolve escrever um
romance contra o celibato clerical. Dentro do anonimato geral (aliás logo
desvendado pela imprensa carioca) em que todo o Protesto se publicava,
Alencar imagina que o texto fora remetido por um desconhecido que se
ocultava sob o pseudónimo de Synerius, e apresenta-o com as seguintes
palavras:
Nota da redação — Recebemos há dias este manuscrito de pessoa
desconhecida que não sabemos como aventou o projeto da publicação
deste jornal.
O nome que o assina deixa-nos em completa ignorância acerca de sua
posição na sociedade como na literatura brasileira.
Há toda a razão de crer que não seja um nome; mas um pseudo; e
nesse caso revelaria proventura seus intentos [parece haver ocorrido aqui
um truncamento tipográfico].
Em todo o caso, como o nosso fito é agitar salutarmente a opinião
para arrancá-la ao profundo marasmo em que jaz, aceitamos a colaboração
do incógnito romancista, sem nenhuma solidariedade de convicções.
O tópico é enérgico; mas será êle um remédio, e sobretudo nestes
tempos em que a filosofia positiva ataca a santidade do casamento e
suprime a famíla?
A primeira frase acentua a inverossimilhança da história, pois, com
efeito, seria difícil para o anónimo saber antecipadamente que o
Protesto ia ser publicado e remeter-lhe os originais ainda a tempo de
aparecer no primeiro número, tanto mais que a folha não
WILSON MARTINS
traz nenhum nome de redator responsável, nem endereço. Seja como fôr,
Alencar adiantava, em simples fórmula de retórica jornalística, a sua
neutralidade em face do assunto e já prevenia as objeções que espíritos
mais timoratos pudessem leventar. O romance inti-tula-se Exhomem,
numa palavra só (e não Ex-homem como aparece transcrito aqui e ali), e
vinha precedido da seguinte nota do autor:
Este romance não é como o Jocelyn de Lamartine uma obra de
sentimento, mas um livro de razão. Não foi escrito para comover; só
aspira convencer.
Talvez seja êle em nosso país um precursor e lhe esteja reservada a
honra de renovar o repto corajoso que outrora lançou Feijó contra a mais
ímpia e absurda das superstições.
Essa superstição há de cair como caiu em todas as regiões que
ousaram aleijar a imagem de Deus na terra.
Há seguramente cinco anos que estelivro foi esboçado e em parte
escrito; faltava-lhe um título, que apareceu com a vez de publicá-lo.
Exhomem é um neologismo, mas de boa e pura fonte portuguesa.
Literalmente exprime o que já foi homem.
As páginas que se seguem dirão se a palavra era necessária para
designar essa outra espécie e a mais cruel do andrógino.
Sairam apenas cinco capítulos, um em cada número do Protesto, e a
publicação se interrompeu antes de que a nação realmente se inicie. Houve
tempo apenas para a apresentação dos personagens principais e para a
descrição da paisagem; tal como se apresenta, podemos imaginar que
Alencar dispunha-se a escrever qualquer coisa no gênero de La Faute de
L'Abbé Mouret, o romance de Zola que havia de se tornar muito mais
célebre na literatura portuguesa do que na literatura francesa, graças ao
famoso episódio do "plágio" supostamente cometido por Eça de Queiroz
com O Crime do Padre Amaro. Ora, La Faute de L'Abbé Mouret é de
1875, e O Crime do Padre Amaro (que, apesar das denegações sarcásticas
do autor sofreu realmente a influência de Zola — mas não a do seu livro) é
de... bom, O Crime do Padre Amaro é de 1875 também, se aceitarmos a
sua publicação na Revista Ocidental, ou de 1876, quando sai a primeira
edição em livro, ou de 1880, quando ressurge sob uma forma que, do texto
primitivo, como dizia o próprio Eça de Queiroz, só conservou o título.
Mas, não é o que importa no momento. O que importa é que José de
Alencar, tendo estado na Europa em 1876, não poderia ter deixado de
conhecer o romance de Zola, assim como é quase certo que conheceu a
primeira versão em livro do Crime do Padre Amaro. Foi essa igualmente a
edição lida por Machado de Assis.
Ora, José de Alencar, que havia insistido, nos comentários sobre as
suas peças de teatro, a respeito do realismo de escola e de inten-
José de Alencar
1829 — 1877 ( Seção de
Iconografia da Biblioteca Nacional)
UM ROMANCE INACABADO DE ALENCAR
ções que as caracteriza, escapou por pouco, com o Exhomem, de haver
introduzido no Brasil o realismo na prosa de ficção, se tivesse tido tempo e
possibilidade de concluí-lo.
Ora bem, se agora pusermos em paralelo essas tendências literárias
com o quadro moral em que Alencar estava vivendo desde a rejeição do
seu nome para a senatória e mais a publicação do Protesto, veremos que já
não será tão inverossímil uma hipótese que à primeira vista nos repugnaria:
a de que, no ano mesmo em que morreu, êle iniciava um processo sutil de
mutação intelectual que poderia conduzi-lo a ideias republicanas (êle que
já estava a meio caminho do abolicionismo) e à literatura realista. Sendo
certo que, no mesmo momento, e com os mesmos instrumentos, tentava,
como observou Araripe Júnior, reconquistar o prestígio literário e a sim-
patia da juventude, perceberemos que O Protesto é um documento
privilegiado de psicologia e um inestimável recurso de análise e
interpretação.
Na verdade, a fazenda Soledade, em que o romance aparentemente
deveria ter lugar, é um pouco o Paradou imaginado por Zola e por êle
descrito com cores e carnações luxuriantes, quase tropicais. O início é um
pouco do Guarani, assim como, logo em seguida, a caracterização do
personagem é a de um novo Peri:
Por ameno e formoso vale serpeia o rio das Flores em cujas águas
mira-se a própria Valença, a mais louçã das cidades rurais da província do
Rio de Janeiro.
As margens do pitoresco rio, outrora alcatifadas com os festões das
acácias e as grinaldas de sempre-viçosas, cobrem-nas agora extensos
cafezais e fábricas de importantes fazendas.
À borda do caminho que vai de Valença a Ipiabas, cerca de duas
léguas da vila, demorava uma casinha rústica de porta e janela,
inteiramente isolada.
A pequena distância, na quebrada, via-se uma venda com pousos,
onde frequentemente descansavam tropas e viajantes; e a além para dentro
descobria-se o teto de uma choupana.
O romance inicia-se quando duas pessoas, "um menino de treze anos,
vivo e esperto" e uma "encantadora moça de vinte anos", avançam pela
estrada, claramente em busca de um sítio determinado. Aí se encontra uma
casa e perto dela, numa clareira, ambos avistam quem deveria ser, segundo
parece, o "exhomem", o herói da história:
Era o sítio agreste e magestoso. A penha que emergia da mata
formava o soco, onde assentava a sublime arcaria da selva americana. Em
face o ribeirão, despenhando-se da lapa, rolava em borbotões de espuma
pela cachoeira.
Ao lado jazia o tronco derreado de um grosso jataí que abatera ao
peso da copa ingente à semelhança dos reis que sucumbem ao fardo da
coroa.
WILSON MARTINS
Ainda prostrado, porém, o monarca da floresta conservava a régia
pompa. Arraigado ao solo pelos garfos de uma raiz, lançava ao ar um
galho que frondava, árvore nova brotando da árvore mãe, e prometendo
breve excedê-la na grandeza.
Estava recostado no tronco do jataí, como em rústico espaldar, um
homem absorto na leitura do livro que tinha aberto diante do rosto e que
às vezes pousava sobre os joelhos, engolfando o olhar no azul diáfano do
horizonte.
No momento em que os dois irmãos chegavam à orla da mata, o
desconhecido erguia-se deixando o volume aberto em cima do tronco. Deu
alguns passos pelo gramado e concentrou-se.
Não só para preparar o necessário contraste dramático entre uma
natureza atlética e a regra mutilante do celibato, mas também porque,
confirmando as teses de Charles Lalo sobre" as grandes evasões estéticas",
o mirradinho Alencar comprazia-se em criar tipos musculosos, gigantescos
e cheios de vigor físico, o novo personagem sendo, como Peri, um homem
da vida natural, é também o modelo apolíneo da beleza e da força:
Tumultuavam em seu espírito ideias que perpassavam arrugan-do-lhe
a fronte, como os lufos da brisa quando arrufam a límpida face do lago.
Nesse recolho, sua organização estava como refrangida para o íntimo.
Mas quando, logo após, alçou o talhe, como se entrasse na possessão de si
mesmo, ostentou-se a opulência de sua individualidade .
Foi nesse momento que o viu a moça; e que sua imagem gravou-se-
lhe para sempre na alma.
Na flor da idade que expendia sua beleza varonil, tinha o mancebo a
magnitude de compleição, a que pode atingir o estalão da raça humana,
sem agigantar-se.
De grande estatura e porte amplo, a robustez de seu corpo, vasada no
molde escultural da forma viril, era como que cinzelada pela flexibilidade
dos movimentos e elegância do gesto.
As inteligências superiores, como a daquele mancebo, debuxam-se na
estátua de argila que elas animam; e imprimem-lhes no vulto essa
eloquência da forma que é a magestade do homem.
A cabeça firme e excelsa anunciava a ascensão da alma que se erige
sobre a terra projetando-se à eternidade e ao infinito. Era a fronte vasta e
proeminente o sólio da razão augusta.
Os olhos serenos, inalteráveis, banhados em profunda limpidez nunca
torvada pela menor sombra, iluminavam-se de luz etérea. Nas faces
rígidas, ovais, ligeiramente bombeadas, estampavam-se a placidez da
consciência, e a vontade inflexível.
A boca de correto desenho, sacrário do verbo criador, revia a flor da
alma; porém nunca a desairava o riso animal. Ainda cerrada
UM ROMANCE INACABADO DE ALENCAR
e muda, mostrava em seu harmonioso relevo o molde da palavra sublime.
Sua mão nobre aliava a força à supremacia do gesto com que a razão
atesta o seu império. No pé de forma pequena, e delgada, estava indicando
a natureza que não dera a essa organização privilegiada, uma base para
apoiar-se no solo, mas uma axe sobre que se elevasse acima dos homens.
O escultor que porventura desejasse plasmar no mármore a imagem
dos antigos atletas, que triunfaram ao mesmo tempo nos circos e nas
academias, não acharia mais perfeito ideal desse consórcio da inteligência
e da força que distinguiu o maior gênio da antiguidade, o divino Platão.
Assim termina o primeiro folhetim, com a arte do "suspense" que era
o talento menor dos escritores românticos em geral e de Alencar em
particular. Gabriela, pois tal era o nome da heroína, tomou o hábito de ir
diariamente espiar o desconhecido, por quem, como ficou dito, logo
passou a sentir a mais violenta paixão. Ela o admira de longe, seja
ouvindo-o declamar longos trechos de filosofia barata (é preciso dizê-lo),
seja perambulando aqui e ali, como um deus da floresta. Um belo dia,
ocorre um episódio de todo comparável às façanhas mais espantosas de
Peri:
Uma manhã, quando o desconhecido estava entretido a ler, sentado no
tronco de jataí, ouviu-se um mugido formidável.
Um touro bravo, escapo de algum curral da visinhança, e acossado
pelos cães, rompeu da mata e surgiu à borda do campo. Quando o animal
enfurecido, com os olhos injetados de sangue, arrojava-se de novo aos
corcovos para atravessar o gramado, avistou em frente o vulto de um
homem.
O desconhecido erguera a fronte; com uma calma que tocava à
indiferença, contemplou o touro, que estacara no meio do campo e
escarvava o chão soltando urros medonhos.
Chegaram os cães que vinham na batida e após eles dois campeiros
armados de varas. O touro arremeteu contra os seus perseguidores, e
aproveitando-se da corrida que lhes dera meteu-se outra vez pelo mato.
O desconhecido inclinou de novo a cabeça e continuou a leitura
interrompida. O turbilhão que por ali passara não havia nem de leve
alterado a magnânima serenidade de sua fronte.
Esta cena deixou no espírito de Gabriela uma impressão indelével.
A quietude da força em repouso tinha um cunho de grandeza que ela
não conhecia. Se o desconhecido lutasse com o touro e o abatesse, essa
proeza certamente a encheria de admiração.
Mas, herói embora, o mancebo prostrando o animal bravio, não
passaria de um homem; praticava ação já muitas vezes repetida;
WILSON MARTINS
enquanto que esse desprezo do perigo e essa calma sobranceira o
revestiam de magestade divina.
O IV folhetim é um intermezo para proporcionar algumas perspectivas
biográficas sobre Gabriela e preparar a história de amor que
provavelmente viria em seguida. Moça de educação esmerada, e vivendo
na fazenda de sua mãe viva, chegou, entretanto, o momento de levá-la para
a corte, para a escolha do futuro marido. Deslumbrada a princípio pelo
brilho da sociedade, Gabriela logo começou a perceber o vazio mental ou o
baixo interesse de todos os pretendentes; veio o tédio e o desinteresse e é
ela própria quem pede à mãe voltarem para a fazenda, com grande
satisfação da velha senhora que se dava muito melhor na tranquilidade e na
existência simples do campo. É nesse regresso, e possuindo já os
indispensáveis elementos de comparação, que Gabriela descobre o
desconhecido. A paixão desencadeia-se de forma absoluta e ela aproveita
todos os pretextos para dirigir-se à clareira onde vive o misterioso
personagem. Êle a percebe e a encara, mas parece pouco interessado em
aventuras amorosas, tanto que desaparece quando nota a insistência da
moça. Um dia, porém, "ela percebeu que o desconhecido a observava por
entre a folhagem de uma espessura, onde se ocultara, e disfarçou para não
afastá-lo de novo. Quando chegou à casa lembrou-se desta circunstância e
teve um júbilo indefinível". A essa altura, chega a notícia de que Angélica,
uma velha liberta, tivera um ataque e estava a expirar. Era quase uma
pessoa de casa e a mãe de Gabriela, juntamente com esta última e outros
familiares, decide encaminhar-se imediatamente para a cabana. Impaciente
com a marcha da liteira em que ia a senhora, Gabriela pôs o cavalo a
galope e foi a primeira a chegar:
Apeando-se rápida, encaminhou-se para a palhoça. A porta estava
cerrada; pela fresta que deixava, a moça viu a triste cena que nesse instante
apresentava o interior do pobre albergue.
No fundo, sobre um catre de madeira, jazia o corpo da velha Angélica,
de costas, e já inteiriçado pela rigidez cadavérica. Um pedaço de vela de
cera espetado em uma estaca servia de círio mortuário, e derramava frouxo
clarão pelo escuro aposento.
A cabeceira do leito, estava um padre reclinado sobre o corpo da
velha, cujos dedos crispados ainda conservavam presa a mão do sacerdote,
que ela estringira na última convulsão. O ministro da religião rezava; e o
sussuro de suas orações confundia-se com o crepitar do rústico brandão.
Gabriela, à primeira impressão deste quadro lúgubre, recuou transida
de santo pavor. Trêmula, sustendo-se a custo, arrimou-se ao umbral da
porta, e volveu um olhar aflito para o caminho, ansiosa de que chegasse a
mãe.
Momentos depois, ouvindo o tropel dos cavalos, a moça, mais
animosa, empurrou a porta, e ajoelhou-se perto. A luz do dia, que
Este número da REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA foi
composto e impresso nas oficinas da Gráfica Tupy
Ltda. (Rua Barão de São Félix n.° 42, Rio - GB )
REVISTA BRASILEIRA DE
CULTURA.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
CONSELHO FEDERAL DE CULTURA
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR:
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO:
Glarival do Prado Valladares
Manuel Diégues Júnior
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Mello Franco
Redação: Palácio da Cultura — 7.° andar Rio de
Janeiro — Brasil
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
No 2 OUTUBRO/DEZEMBRO 1969 ANO I
Sumário
ARTES
VICENTE SALLES Quatro Séculos de Música
no Pará 13
ARIANO SUASSUNA A Arte Popular no Brasil 37
CLAMVAL DO PRADO VALLADARES Embrechados e Embuti
dos 45
CIÊNCIAS HUMANAS
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS — O Culto do Passado no
Mundo em Renovação 57
CELSO KELLY A Ecologia na Interpre
tação da Cultura Flumi
nense 69
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE Diário de Paracatu 83
MOISÉS VELLINHO — O Mestre-de-Campo An
dré Ribeiro Coutinho 115
LETRAS
GILBERTO FREYRE Recordação de Gilberto
Amado, o Recifense 131
OCTÁVIO DE FARIA Kierkegaard e o Existen
cialismo de Ernani Rei-
chmann 141
Luís DA CÂMARA CASCUDO Três Provincianos 151
PEREGRINO JÚNIOR A Lição do Modernismo 163
Calendário Cultural 173
Artes
Quatro Séculos de Música no Pará
VICENTE SALLES
1. Os primeiros músicos a se evidenciarem no Grão-Pará foram o
padre jesuíta João Maria Gorzoni, o comerciante Jacobo Eggers e
Manuel Pereira. Todos três viveram no século XVII, isto é, na pri
meira centúria da conquista e povoamento da Amazônia. O primeiro
era italiano e tocava habitualmente gaita, tendo ensinado aos índios
a tocá-la também. Jacobo Eggers, de provável origem judaico-holan-
desa, é citado por Betendorf, cronista daquele século, como hábil
tocador de viola, tendo ainda organizado a música que se tocava no
palácio dos governadores. Betendorf elogia o paraense Manuel
Pereira, natural de Cametá e ali residente, como "hábil rabequista".
Consta que o padre Antônio Vieira foi o introdutor, no Pará, da viola e
de outros instrumentos musicais, que trouxera do reino. O interesse do
jesuíta pela música e pelo seu ensino está patenteado na legislação interna
da Companhia de Jesus, que êle redigiu, — o "'Regulamento das aldeias do
Maranhão e Pará" —, onde se lê, no parágrafo 15: "Nas escolas de ler e
escrever das aldeias, havendo número bastante, ensinem-se também a
cantar e a tanger instrumentos" (1:112).
A crônica do padre Betendorf (II), datada de 1698, é rica de
informações sobre o ensino religioso-musical nas missões da Companhia
de Jesus. Nela, êle afirma que "no Pará houve belas e mui gabadas vozes
de gente destra no canto" e informa também que nas escolas dos jesuítas se
ensinava música em tábuas de madeira dura, acapu, habilmente
xilografadas.
2. No século XVIII, a instalação do bispado do Pará trouxe para
Belém, em 1724, D. Frei Bartolomeu do Pilar, primeiro titular do
bispado, que era cantor e nas cerimónias do clero chegava "a cantar
com êle à estante". Frei Bartolomeu criou apreciável corpo artístico
VICENTE SALLES
para a Sé, integrado inclusive por elementos naturais do Pará: 16 capelães,
sendo um deles subchantre; 9 capelães músicos, sendo um deles mestre-de-
capela; 8 moços de coro, também instruídos em música, e um organista.
Dentre eles havia o músico paraense Eduardo Lopes de Faria, que foi
expulso dos ofícios da Catedral a 15 de abril de 1732, com pesar do bispo,
que o admirava, por desobediência, alegando-se ainda — "por não poder
resistir ao prazer de ir à festa da Vigia sem licença". (111:75). Esse músico
morreu em Belém no dia 22 de agosto de 1762.
Os primeiros grandes músicos da Catedral foram os irmãos Lourenço e
Antônio Alvares Roxo de Potfliz, ambos nascidos em Belém e filhos de um
comerciante e médico francês ali estabelecido. Lourenço, nascido em 1699
ou 1700, além de chantre da Catedral, nomeado em 1734, também foi
organista. Em 1735 criou uma escola de música que recrutava meninos
dotados de aptidões musicais para colaborarem no coro da Catedral. Essa
escola parece ter existido ainda vários anos depois de sua morte (ocorrida a
9 de abril de 1756), talvez dirigida por seu irmão Antônio Francisco, que
também o sucedeu nos cargos de chantre e de organista, pois o coro de
meninos da Catedral é mencionado e elogiado pelo padre João Daniel. (IV:
374)
Nesse século, passaram ainda pelo bispado do Pará três grandes
vultos, amantes da música: Frei João de São José Queiroz, Frei Caetano
Brandão e D. Manuel de Almeida Carvalho. O maior protetor da música
sacra no Pará colonial foi, entretanto, frei Caetano Brandão: em 1786
dotou o Seminário de uma cadeira de música vocal e outra de canto
gregoriano, mandando vir de Portugal as músicas dos melhores autores.
Durante seu governo episcopal o côro da Sé alcançou o apogeu e temos
notícia de dois excelentes organistas: João de Almeida Loureiro, cujo
nome a história guardou como o de músico muito competente, e João
Batista de Góes, que morreu idoso, em Belém, em 1814.
3. Algumas festas populares foram introduzidas no Pará com os primeiros
colonos e religiosos. Muitos desses folguedos constituíram a base do hoje
rico folclore amazônico. Os missionários diluíram na sociedade que se
formava os elementos básicos do cantochão. Os colonos aclimataram
folguedos profanos, inclusive o entrudo, contra o qual já em 1695 o padre
Bento de Oliveira instituiu no Colégio do Pará as 40 horas, solenidade
elogiada por Betendorf: —"Não falo nos ofícios das trevas, porque no Pará
houve belas e mui gabadas vozes de gente destra no canto; também por
toda a quaresma houve assistência dos muito reverendos padres das
Mercês, para cantarem, ao som do cravo, os misereres, no princípio, e, no
cabo das práticas, os seus motetes devotadíssimos, acomodados à Sagrada
Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo" (11:632).
QUATRO SÉCULOS DE MÚSICA NO PARÁ
4. O corpo artístico do bispado paraense sofreu alterações em diferentes
épocas, reduzindo-se ou aumentando. Depois de Frei Caetano Brandão,
que elevou a música da Catedral ao melhor nível que o ambiente permitia,
não houve continuadores. Ascendendo ao cargo o paraense Romualdo de
Sousa Coelho (8.° bispo), este lutou para melhorar as condições, sem
lograr grandes resultados. Verdade que seu governo episcopal, embora
bastante longo (1818-1841), atravessou um período sombrio, em que as
condições políticas, sociais, econômicas e sanitárias do Pará eram as mais
lastimáveis. Era a época das lutas pela Independência, nas quais o clero se
envolveu, e da rebelião dos cabanos. Romualdo, cultor da música,
escreveu Dissertação Litúrgica, "em defesa da rubrica do breviário
lusitano relativamente à omissão da Aleluia, em tempo pascoal, nas
comemorações que se fazem no coro depois da Prima, Noa e Completas",
que é, ao que parece, o primeiro trabalho sobre arte musical que se
escreveu no Pará (V:108).
5. A figura dominante, nos primeiros tempos do século XIX, é a do
flautista carioca Antônio da Silva Conde, que veio para Belém em 1805
com a música do Batalhão dos Extremos, e aí viveu muitos anos. Dele
falaremos adiante. Somente depois da Cabanagem se processa novo surto
artístico nesta Província. A música da Catedral voltou a ter grande pompa
e o governo contratou em Portugal o organista João Nepomuceno de
Mendonça. Além de organista e mestre-capela da Catedral, esse Mendonça
se dedicou ao magistério, identificado com a pedagogia musical italiana.
Formou alguns dos melhores músicos do Pará, no século XIX, entre os
quais Henrique Eulálio Gurjão foi seu aluno mais talentoso. Em 1842
publicou para uso dos seus alunos uma "artinha" intitulada Compêndio de
princípios elementares de música, impressa em Belém na oficina de
tipografia de Santos & Menor (está na Biblioteca Luiz de Camões, no Rio
de Janeiro, o único exemplar que pudemos compulsar).
6. O teatro paraense é uma tradição que remonta aos primeiros anos da
Colônia. A 29 de agosto de 1677 houve representação de um auto
sacramental, em Bélem, defronte do convento das Mercês. Admite-se que
esses espetáculos já eram comuns na época, mas não se tem dados
positivos de representações anteriores. Betendorf fala da representação de
autos natalinos no engenho de Catarina da Costa. Trata-se de um Mistério
Divino, cujo acompanhamento musical era feito com rabecas e violas. Em
1739, durante as comemorações solenes da canonização de São Francisco
Regis, houve representação no Colégio do Pará da trági-comédia Hercules
Gallicus, religiosos vindex, composta pelo padre Aleixo de Santo Antônio,
professor de retórica no mesmo estabelecimento. Em 1763 já funcionava a
Casa da ópera ou Teatro Cômico, do Pará, sendo representados trabalhos
de Antô-
VICENTE SALLES
nio José da Silva, o Judeu, e de outros autores. Esses espetáculos foram criticados
pelo voltaireano bispo do Pará, frei João de São José Queiroz, nas suas Memórias
(VI).
A Casa da ópera foi construída pelo arquiteto italiano Antônio José Landi,
famoso pelas obras que deixou no Pará, todas elas consideradas monumentos da
arquítetura colonial. Ao mesmo Landi o governador João Pereira Caldas
encarregou, em 1775, "o desenho e a ereção de um pequeno Teatro bem ordenado
junto ao lado oriental do Jardim do Palácio". (VII: 192)
A Casa da ópera funcionou regularmente até os primeiros anos do século
XIX. Ainda em 1809 houve representação lírica, declamação e cena dramática. O
comerciante Francisco Batista de Carvalho encarregou-se de apresentar novas
decorações internas do teatro, "entre as quais teve lugar a fronte da cidade do Pará
fielmente retratada no segundo plano de Proscênio, e com vestiduras de custo nos
comediantes", além de várias alegorias e farta iluminação externa (VII:280).
Depois de 1812 entrou em decadência e já em 1817 não se davam espetáculos.
Nesse ano, o governador Conde de Vila--Flor mandava "construir um novo teatro
no mesmo lugar do antigo, em que há tempos pelo seu estado de ruínas já não
havia jogos cénicos" (VII:303). O novo teatro, segundo Ernesto Cruz, nunca foi
construído. Mas Baena ainda informa que a Junta Provisória de 1821 também se
interessou pela construção do teatro, que deveria ser erigido — "em lugar próprio,
e de grandura proporcionada ao concurso provável ainda no caso de população
mais aumentada" (VII:326). Mais tarde, proclamada a Independência, surge o
Teatro Providência, que se localizava no Largo das Mercês. Este foi o mais
notável teatro paraense no período imperial, tendo funcionado regularmente até
pouco depois da inaguração do Teatro da Paz (1878). Um incêndio o destruiu
inteiramente. Nele foram representados vaudevilles compostos por H. Gurjão. A
companhia que mais se notabilizou, no palco do Providência, foi a do ator e
empresário pernambucano Vicente Pontes de Oliveira, que o arrendou, durante
muitos anos, trazendo a Belém, entre outros, os artistas Xisto Bahia e Manuela
Lucci. O ator paraense Antônio Lima Penante, inicialmente escriturado na
Companhia de Vicente Pontes de Oliveira e depois como empresário, foi outro
grande movimentador desse teatro.
Ao lado do Providência, funcionou o teatro mantido pelas famílias Meninéa e
Baena. O movimento iniciado nesse teatrinho, parece ter evoluído bastante, ao
ponto de determinar a fundação da Sociedade Dramática Particular Filo—Thalia,
que teve seus estatutos datados de novembro de 1852. O Teatro Chalet, de
propriedade do ator Lourenço Dias, foi inaugurado em 1873 e se localizava nas
proximidades do largo de Nazaré, onde anualmente havia uma grande
Como o doscuhiata-caricaturista David O.
Widhopff documentou a vida musical
paraense em 1895: Carlos Gomes o os
compositores paraenses Gama Mal-cher,
autor da ópera "Iara", e Clemente Ferreira
Júnior. In: "O Mosquito", Belém, Ano 1,
n.° 3, 13 de abril de 1895.
Satira de David O. Widhopff focalizando Carlos Gomes. In: "O Mosquito", Belém, Ano 1, n.° 3, 13 de abril de 18!
QUATRO SÉCULOS DE MÚSICA NO PARÁ
festa religiosa popular. No arraial, durante a quinzena festiva, er-guiam-se
numerosas casas de espetáculos, barracas de jogos, de bebidas e comidas,
do mais variado comércio varejista, continuando a tradição iniciada pelo
governador Francisco de Souza Coutinho em 1793 que ali montou uma
grande "feira". (VII:227) No centro, havia uma grande construção,
"Pavilhão de Flora" depois substituída pelo "Pavilhão de Vesta", onde se
exibiam comediantes locais e grupos folclóricos. Tocatas e retretas eram
feitas especialmente, como ainda hoje, nos coretos do arraial. Pelo ano de
1854 anunciava-se o Tivoly Nazareno, onde se davam números musicais e
todos "os mais divertimentos do costume". Foi porém o Teatro Chalet que
iniciou a longa tradição do chamado teatro nazareno, de baixo nível artís-
tico, porém muito popular, e que teve numerosos cultores. Centenas de
peças foram criadas pelos autores e compositores locais para as
temporadas nazarenas. O Chalet foi inagurado no dia 17 de agosto de
1873 com um espetáculo em benefício da Sociedade União Paraense dado
pelos membros da Sociedade Dramática Familiar. Repre-sentou-se o
drama de Augusto da Silveira, autor e ator português radicado no Pará,
intitulado "Carlos, o Artista".
7. A inauguração do Teatro da Paz a 13 de fevereiro de 1878 marca o
início do período de maior esplendor artístico do Pará, notável sobretudo
pela movimentação de seus palcos. Vivíamos a época do fastígio
econômico provocado pela valorização da borracha. Até hoje, com altos e
baixos, esse teatro centraliza as principais realizações artísticas. Da
proclamação da República até o fim da primeira década deste século, êle
recebeu numerosas companhias nacionais e europeias. Ali, em 1918,
excursionando pelo Brasil, dançou a bailarina Ana Pavlova: uma placa
comemorativa registra o evento. Veio depois o período de decadência,
restando-lhe hoje uma história lendária e tão fantástica como a que cerca o
Teatro Amazonas, de Manaus, construído com pedras e mármores impor-
tados da Europa.
8. Numerosos outros teatros funcionaram regularmente na capital
paraense em diferentes épocas. Os mais destacáveis foram o Poli-theama,
o Cosmopolita e o Palace, este ainda existente. História movimentada
tiveram também os teatros Moderno, Éden e o do Bar Paraense, hoje todos
extintos. No Largo de Nazaré, durante a quinzena de festas, erguiam-se
numerosos teatros provisórios. Mas também algumas construções
permanentes ali se ergueram, como o Moderno, o Variedades e outros. A
maioria desses teatros foram depois transformados em cinemas, fenômeno
que aconteceu em quase todas as cidades brasileiras.
Houve época em que os folguedos natalinos ganharam os palcos
paraenses, movimentando elencos infanto-juvenis. Muitos desses
VICENTE SALLES
grupos tiveram teatrinho próprio, como o Alegria, talvez o mais
movimentado.
9. Além de músicos, nomes isolados, a história registra no Pará, desde o
período colonial, a existência de orquestras ou simples conjuntos de
instrumentistas. Sabe-se que Jacobo Eggers, no primeiro século, era
incumbido da organização das festas e reuniões musicais que se
realizavam no paço dos governadores. Betendorf cita-o como regente de
um pequeno conjunto musical. Alguns senhores de engenho acumularam
vastas riquezas e possuíam grande escravaria. Havia escravos
charameleiros que, com seus instrumentos musicais, alegravam as festas.
As melhores charamelas estavam nos engenhos de Ayres de Sousa
Chichorro, no de Catarina da Costa e no de Diogo Pereira de Lacerda, este
morador em Cametá.
No governo de João Pereira Caldas (1772-1780) é citada uma
orquestra de 13 músicos, negros escravos, composta de tímbales, 6
trompas, 2 rabecas, 2 flautas e 2 clarins, e os negros se apresentavam
"vestidos todos com vestidos azuis e escarlates, agaluados de galões de
seda, com seus barretes nas cabeças" (VIII).
Em 1805 chegou ao Pará o flautista Antônio da Silva Conde, natural
do Rio de Janeiro e que ali fora fazer a guarnição da música do Regimento
dos Extremos. Considerado por Guilherme de Melo "o primeiro flautista
brasileiro em 1820" (IX: 178), opinião endossada por Cernicchiaro
(X:507), Silva Conde pontificou nos últimos anos do Pará colonial como a
figura de maior destaque entre os músicos locais. Organizou a parte dos
festejos que, em 1808, se realizaram em Belém pela chegada da Corte
Portuguesa ao Brasil. Foi também responsável pelos espetáculos dados ao
povo, em 1809, em regozijo da tomada de Caiena aos franceses. Ignora-se
a data em que se afastou do Pará; mas sabe-se que aí viveu vários anos e
que, por seu espírito atrabiliário e algo turbulento, foi autor de numerosas
tropelias com que procurou intrigar D. Manuel de Almeida Carvalho (7
bispo do Pará) com as autoridades civis, criando-lhe vexames e embaraços
administrativos (VII:291-2).
Depois da Cabanagem, reorganizada a sociedade e a vida admi-
nistrativa do Pará, surgem novas orquestras. Em 1858, a mais notável era a
do "Recreio Militar", agremiação citada na crônica social da época como a
única sociedade de danças existente então em Belém. Surgem também
numerosas bandas de música. Notabi-lizou-se como diretor de banda o
maestro Luiz da França da Silva Messias.
A partir de 1860 há um grande surto artístico em Belém. Fun-da-se a
Sociedade Phil'Eutherpe, que manteve orquestra filarmónica, a primeira do
gênero no Pará, de caráter mais ou menos permanente e que realizava
concertos vocal-sinfônicos. Foram seus regentes os paraenses Luiz da
França da Silva Messias e Henrique Eulálio Gur-
QUATRO SÉCULOS DE MÚSICA NO PARÁ
jão e o polonês, radicado no Pará, Adolfo José Kaulfuss. Em 1864,
estando em Belém o maestro italiano Tartini, este, com a colaboração de
Kaulfuss, regeu o "Stabat Mater" de Rossini com um côro de -cm vozes e
a orquestra Phil'Eutherpe. Foi um acontecimento.
No teatro, destacaram-se, como regentes de orquestra durante as
temporadas organizadas por Vicente Pontes de Oliveira, no Providência,
os maestros Libânio Collás (maranhense) e Theodoro Orestes
(pernambucano). Entre os mais novos, surgiam dois alunos de Henrique
Gurjão: Aureliano Guedes, baiano, radicado definitivamente no Pará, e
José Domingues Brandão, português, que chegou muito jovem ao Pará.
Brandão organizou várias bandas de música e outros conjuntos de dança
que se notabilizaram. Como compositor, foi um dos mais destacados do
Pará. A estes juntou-se depois outro português. Roberto de Barros, bom
flautista, regente, professor, que aqui também chegou muito jovem.
Em 1873, dissolvida a Sociedade Plul'Eutherpe, surge em seu lugar a
Sociedade Musical Club Philarmonico, cuja orquestra realizou seu
primeiro concerto, sob a regência de Theodoro Orestes e com colaboração
de vários artistas locais no dia 26 de julho do mesmo ano. Em 1874
aparece a banda da Sociedade Lyra Paraense de Santa Cecília. Em 1878
estreia a orquestra do Club Verdi, que procura rivalizar com a do Club
Philarmonico. E, em 1879, novo conjunto sinfônico, a Filarmônica do
Club Eutherpe, dirigida por Carlos Colas, mantendo aulas de música sob a
direção de José D. Brandão.
A música sinfônica desenvolveu-se no Pará, embora sem o mesmo
brilho e a mesma continuidade comparativamente com a ópera que, nesse
momento, mal se manifestava. As orquestras, que vinham de um período
anterior, jamais tiveram existência duradoura. Em 1878, para a
inauguração do Teatro da Paz, o maestro Francisco Libânio Colas
organizou uma grande orquestra. Dirigiu esse conjunto, na noite da
abertura do teatro, a 13 de fevereiro, auxiliado por 4 bandas de música,
perfazendo um total de 150 executantes.
O florescimento da ópera no Teatro da Paz trouxe para Belém o
maestro italiano Enrico Bernardi, de grande renome no seu país e em
alguns centros artísticos europeus. Bernardi era compositor de óperas e
sobretudo de bailados. Tinha predileção pela música sinfónica. E assim
coube-lhe dar impulso aos empreendimentos que nesse setor se tentavam.
Êle veio para Belém em 1881 com uma companhia lírica contratada por
Gama Malcher e que trazia também pela primeira vez o maestro Carlos
Gomes. Em 1883 Bernardi fixou-se na capital paraense e desde então
apareceu como animador da nossa vida musical. Em 1884 fundou uma
escola de música e no ano seguinte fêz estrear, a 8 de dezembro, no Teatro
Cosmopolita, uma orquestra sinfónica, realizando vários concertos. Em
1887, pretendendo dar estabilidade à orquestra, promoveu a fundação da
Sociedade Philarmonica "Santa Cecília", que deveria mantê-la,
com
VICENTE SALLES
50 professores efetivos. Apesar da realização de várias séries de concertos
vocal-sinfônicos, a iniciativa fracassou em poucos anos.
Todavia, a fase mais brilhante da música sinfônica no Pará ocorreu
após o declínio da ópera. Desde a instalação do conservatório de música,
em 1894, logo denominado Instituto Carlos Gomes, começou-se a dar
importância aos concertos instrumentais. Nesses empreendimentos,
destacou-se também o maestro paraense Gama Malcher que, com pequena
orquestra de concertos, até 1900, realizou mais de 100 audições. Contudo,
foi o maestro Meneleu Campos, que assumiu a direção do conservatório
em 1900, quem programou séries de concertos com mais assiduidade e
com programas exclusivamente sinfónicos.
A orquestra do Instituto Carlos Gomes, reunindo professores e alunos,
era a mais completa até então organizada no Pará. Mas sua existência foi
efêmera. Em 1908, fechado o conservatório, o conjunto foi dissolvido.
Data de 1914 a fundação do Centro Musical Paraense, a mais estável e
mais fecunda sociedade artístico-musical do Pará. O Centro tratou logo de
organizar sua orquestra de concertos, frente a qual se revezaram vários
regentes paraenses ou estrangeiros radicados no Pará: Gama Malcher,
Alípio Cézar, Marcelino Gonzalez, Ettore Bosio, Paulino Chaves, Meneleu
Campos, Manuel Luís de Paiva etc. A orquestra do Centro teve atuação até
pouco depois de 1930, quando foi dissolvida.
Em 1938 Armando Lameira tentou reviver os concertos sinfônicos no
Pará, reagrupando os músicos locais, mas não logrou realizar mais de dois
concertos. Em 1942 surgiu a Orquestra Sinfónica Paraense, organizada
pelo mestre de banda Manuel Belarmino da Costa, e que até hoje se
mantêm, oficialmente, realizando um ou dois concertos anuais... e com
rendimento muito precário.
A evasão dos bons músicos de banda e de orquestra não tem permitido
a organização de conjuntos nesse gênero, outrora florescente no Pará.
ultimamente, o maestro Nivaldo Santiago, amazonense radicado em
Belém, organizou a orquestra sinfónica da Universidade Federal do Pará,
que vem cumprindo suas finalidades, mas com grande esforço e sacrifício.
10. História gloriosa contam todas as bandas de música. Raro é o Estado
que não possui suas bandas tradicionais. No Pará, não apenas na capital,
mas também em várias cidades interioranas, existem bandas tradicionais e
algumas são centenárias ou estão beirando essa idade provecta. A mais
antiga é certamente a da polícia estadual, cuja organização data dos idos de
1853 (criada pela Lei n.° 229, de 20 de dezembro de 1853), com 17
músicos efetivos, no então Corpo Provincial de Caçadores da Polícia. Pela
lei n.° 526, de 1 de novembro de 1867 (Coleção de Leis da Província do
Grão Pará, tomo 29, Parte I),
QUATRO SÉCULOS DE MÚSICA NO PARÁ
o presidente Joaquim Raimundo de Lamare ficou autorizado a dar nova
organização à força de polícia, fixando seus efetivos em 400 praças, e
banda de música composta de 1 mestre ensaiador, 4 músicos de primeira
classe, 6 de segunda e 6 de terceira, num total de 17 músicos. A banda
sofreu nova alteração pela lei n.° 738, de 27 de abril de 1872 (Idem, tomo
34, Parte I), assinada pelo presidente Abel Graça, que extinguia a antiga
corporação, autorizava a venda. do instrumental, em hasta pública, e com
seu produto fossem adquiridos os instrumentos precisos para se criar uma
"banda de cornetas", rezando ainda o artigo 9 que para servirem nesta nova
corporação o presidente da província poderia alistar menores de 14 anos,
com preferência dos filhos das praças do corpo, ou órfãos e desvalidos.
Mas essa modificação não foi julgada adequada e logo a presidência teve
de recompor a corporação.
Na República, é criado o Regimento Estadual e a banda de música
cresceu de importância e aumentou consideravelmente seus efetivos. O
governo contratou maestros estrangeiros para dirigi-la. Em 1900 estava à
frente do conjunto o maestro italiano Luís Maria Smido. A 17 de julho de
1903 Smido foi dispensado do cargo, sendo nomeado, para substituí-lo,
outro italiano, o maestro Ettore Bosio.
Até hoje essa é uma das melhores bandas de música do Estado.
Na ordem de importância e tradição, coloca-se a do Corpo de Bom-
beiros, que teve também notáveis regentes titulares, mas decaiu muito até o
ponto de cessar suas atividades. Outra importante corporação foi a do
Instituto dos Educandos, já existente em 1857, dirigida então por Luís de
França da Silva Messias e depois por Teodoro Orestes, Aureliano Guedes,
sob cuja direção alcançou a mudança do regime, em 1889, sendo depois o
estabelecimento transformado no Instituto Lauro Sodré. Verdadeira escola
de músicos profissionais, a banda do Instituto Lauro Sodré teve um notável
diretor: o maestro Cincinato Ferreira de Sousa, também vitorioso
compositor. Além dessa, vários estabelecimentos de ensino organizaram
bandas de música: a mais importante banda escolar, ao lado da banda do
Instituto dos Educandos, foi a do Colégio Atheneu Paraense, organizada e
dirigida pelo professor Hermenegildo Alberto Carlos e que estreou a 14 de
julho de 1888. Todas essas bandas escolares estão extintas, em nossos dias,
passado o interesse que a música despertava, como importante instrumento
pedagógico.
Outrora, muitas sociedades se organizaram para manter bandas de
música. Até sociedades recreativas tiveram conjuntos desse gênero, como
a Tuna Luso Comercial, cuja corporação foi muito ativa quando dirigida
pelo guitarrista e regente português Alfredo Marques Coelho.
Atualmente, além da banda do Regimento Estadual, centenária
corporação, destacam-se em Belém as bandas do Exército, da Marinha, da
Aeronáutica e a dos Bombeiros, reorganizada.
*
VICENTE SALLES
A banda de música se associa evocativamente ao "coreto" das praças
públicas, onde se realizam "retretas". Belém, nos primeiros anos deste
século, era dirigida por um "intendente", famoso político, Antônio liemos,
que construiu numerosos coretos nas principais praças da cidade. Alguns
são exemplos típicos da arquítetura daquela época que tinha no ferro a
matéria prima. O pavilhão "Frederico Rhossard", na Praça da República
(Largo da Pólvora) é um dos mais belos exemplares.
Tentaremos agora resumir a história de algumas dessas bandinhas
espalhadas pelas cidades ou vilarejos do interior paraense, conjuntos
sempre aplaudidos e apreciados pelo povo, que vibra à sua passagem e
toma partido nas suas rivalidades.
Na Região Bragantina, várias comunidades possuíram — e algumas
ainda possuem — bandas regularmente organizadas: Bragança, Capanema,
Igarapé-Açu, Castanhal, Benevides, Ananindeua etc. Bragança foi contudo
o município que deu maior impulso a esse gênero de corporação musical.
Deu-se até ao luxo de possuir sua Banda Municipal, que em 1908 era
regida pelo mestre Cézar Constantino. Deixaram também seus nomes na
história os mestres Vicente Monteiro (1870-1923), bragantino mesmo, e
Cantídio Gouveia, baiano, diretor e regente da "Santa Cecília". Violinista,
compositor e mestre de banda foi Raimundo Mota da Cunha (1881-1958),
mais conhecido pelo apelido "Uricica". O Grêmio Musical "Naseazeno
Ferreira", fundado a 9 de janeiro de 1947, manteve a banda "Cantídio
Gouveia", jazz, orquestra sacra e a Escola de Música "Santa Cecília". A
banda de Igarapé-Açu, denominada "Euterpe Guajaraense", foi uma das
que mais se destacaram nesta região. A de Castanhal, dirigida pelo mestre
Francisco de Assis, egresso das bandas de música da capital, também se
notabilizou. Desapareceu após a morte do seu titular. Na vila operária de
Marituba, Ananindeua, Cláudio A. da Silva fundou e dirigiu várias bandas.
A Região do Salgado é notável pelo número de bandas de música que
possui. Vigia, Curuçá, Marapanim, Maracanã, Salinópo-lis, São Caetano
de Odivelas etc. têm bandas de música tradicionais e que, além de atuarem
nas respectivas sedes, excursionam pelos municípios vizinhos. A banda
"31 de Agosto", da Vigia, foi fundada a 26 de dezembro de 1876, contando
portanto 93 anos de existência. Apareceram depois a banda "15 de
Novembro", "7 ae Setembro" e a do "Clube União Vigiense", esta
impulsionada pelo mestre Serafim dos Anjos Raiol Filho (1896-1962). Em
PortoSalvo, no mesmo município, encontramos a banda "25 de
Dezembro", dirigida por Raimundo Albuquerque. Em São Caetano de
Odivelas, município vizinho, anotamos várias corporações: a banda
"Cesarino das Chagas", fundada em 1908, foi uma das mais ativas.
Atualmente há duas bandas
_ 22 —
QUATRO SÉCULOS DE MÚSICA NO PARÁ
de música na sede do município: a "Rodrigues dos Santos" e a 'Milícia
Odivelense". Já em Curuca, destacaram-se, entre outras, as bandas "Lauro
Sodré" e "União e Firmeza", além da banda do Clube Musical Henrique
Gurjão, fundada no século passado e reorganizada em 1901 pelo professor
Luciano Sousa. Marapanim, mais adiante, possui duas bandas de música
tradicionais, que se rivalizam. Em todo o município anotamos, em 1953,
nada menos de 6 conjuntos musicais, respectivamente nos distritos de
Cuinarana, Marnaú, Lus-satana, Santo Antônio, Matapiquera e Maú. Em
Salinópolis (antiga Salinas) deixou nome o músico, alfaiate e barbeiro
Manuel Raimundo Azevedo, falecido a 8 de outubro de 1902.
Sob a influência direta de Belém, a Região Guajarina contou com
numerosos conjuntos musicais e algumas bandas muito apreciadas. Alguns
distritos interioranos de Belém tiveram suas bandas tradicionais, como o
Mosqueiro e o Pinheiro (Icoaraci). No Mosqueiro, a mais célebre
denominou-se "Senador Lemos". Recebeu grande impulso do intendente
Lalor, ganhando, em 1902, um instrumental novo e completo importado
diretamente da Europa. No antigo Pinheiro, Tertuliano da Silva foi
professor e regente da banda de música "Progresso do Pinheiro". Aí se
destacou também o mestre Benjamin e a banda "Rosa Cruz" que, em 1911,
era considerada a mais disciplinada da vila.
Nesta região, Abaetetuba se destaca como celeiro de músicos e pelas
suas bandas. Houve época em que as bandas ali se rivalizavam e dessa
rivalidade lucrou o ambiente artístico local. A banda mais tradicional ainda
hoje é a "Carlos Gomes", fundada a 25 de abril de 1880 por Hermínio
Pauxis. Nela militaram muitos artistas de renome na região, como o
maestrino Benjamin Moreira da Silva, Jerônimo de Freitas Guedes (depois
regente da banda "Henrique Gurjão"), Raimundo Pauxis (filho do
fundador), Francisco de Miranda Margalho. Atualmente a "Carlos Gomes"
é dirigida pelo mestre Miguel Maués Loureiro, o músico mais estimado da
velha geração, conta com o apoio da Prefeitura Municipal (que concluiu o
edifício de sua sede) e com a colaboração dos irmãos Pedro e Licínio
Araújo. Seu efetivo soma 22 músicos. Mas em Abaetetuba, como nos
demais municípios, nota-se a decadência das velhas bandas de música.
Atualmente, além de duas corporações — a outra se denomina "Virgem da
Conceição" —, há na sede do município vários conjuntos dedicados à
música de baile, com formação típica de "jazz-ban Na antiga vila de
Oeiras, atual cidade e sede municipal de Araticu, houve a banda de música
regida pelo professor Raimundo de Nazaré Barbosa. Em São Sebastião da
Boa Vista, a banda "Perseverança", dirigida por Miguel Pinheiro. De
Igarapé-Miri sabemos que, em 1900, foi fundada no povoado Concórdia
uma associação musical denominada "Meneleu Campos".
VICENTE SALLES
Cametá, no baixo Tocantins, possui também longa tradição musical.
Celeiro de artistas e intelectuais, Cametá tem fornecido, desde o periodo
colonial, músicos para as orquestras de Belém. Betendorf, cronista do
século XVII, citou Manuel Pereira, natural de Cametá, como hábil
rabequista — já dissemos. Cametaense foi José Pedro de Morais
Bittencourt, um dos mais ativos chantres da Catedral paraense. No
Império, vários músicos e professores aí se destacaram. Maria Dolores de
Morais, pianista, iniciou nos estudos musicais Alípio César, o mais notável
compositor cametaense, que se formou depois na Itália. Dali saiu uma
excelente violinista, Zulima Redig, que em 1900 estreou o "Concerto" para
violino e orquestra, de Meneleu Campos, em Belém. E um músico
cametaense, Satiro de Melo, ganhou renome nos meios da música popular
carioca como compositor e "escritor" de músicas. Satiro de Melo, iniciou
sua carreira nas bandas de música de Cametá.
Em 1874 foi fundada pelos srs. coronel José Francisco de Siqueira
Mendes, Manuel Pedro de Alcântara Dias e Francisco Lopes de Mendonça
a sociedade mantenedora da banda "Euterpe Cametaense", que existe até
hoje, com 95 anos de existência, embora na mais pungente decadência. A
"Euterpe Cametaense" é talvez a mais antiga banda de música do interior
paraense. Seu atual mestre é o professor Vicente Serrão de Castro Filho.
Em 1884, foi fundada a "Carlos Gomes", a maior rival da "Euterpe",
reorganizada em 1887 pelo músico Leandro Bonifácio Cardoso. No distrito
de Curuçambaba houve a filarmônica fundada e dirigida pelo clarinetista e
compositor Clementino Martins e, na vila de Carapajó, as bandas "União
Tocan-tina" (fundada nos fins do século passado por Raimundo J. Gomes e
mais tarde dirigida pelo mestre Felipe de Moraes Bittencourt) e a
"Perseverança", dirigida por Ivo Vicente de Morais. Também houve banda
de música no distrito de Juaba. Dali saíram vários músicos, como Cândido
Garcia Mendes, o "Broca", e seu filho Jacinto Gomes, violinista,
compositor e regente. Ainda no vale do Tocantins, município de Baião,
houve a banda "Senador Lemos".
Na ilha de Marajó, ou mais precisamente em Soure, o professor
espanhol Manuel Puga criou vários discípulos, entre os quais Manuel
Belarmino da Costa, fundador da Orquestra Sinfónica Paraense e
conhecido mestre de bandas na capital. Puga organizou também uma
banda de música em Soure.
Outro músico saído daquela cidade marajoara é o maestro Alfredo
Trindade, bastante conhecido nos meios musicais de Belém e que tem
produzido, como compositor, uma obra numerosa e de boa qualidade.
Ainda na ilha, em Cachoeira, vamos encontrar várias bandas. Em
1908 havia naquela comunidade dois conjuntos: a "Banda Carlos Gomes",
dirigida pelo professor José Affer de Miranda, e a "União cachoeirense".
No município de Chaves, na parte ocidental da ilha,
QUATRO SÉCULOS DE MÚSICA NO PARÁ
a figura de maior relevo foi Honório Hermeto Carneiro Leão, nascido em
Pernambuco a 20 de dezembro de 1862, professor de música e regente da
banda local. Em Muaná, também houve banda de música e dali saiu um
dos mais conhecidos músicos da capital paraense, o professor Marcos
Quintino Drago, que tocou em numerosas bandas e pertence atualmente à
orquestra da Universidade Federal do Pará.
Subindo o Amazonas, encontramos em Souzel, município de Porto de
Môz, na margem inferior, a banda musical "Senador Porfírio", regida por
Luís Gonzaga de Figueiredo. Em Alenquer, funcionou durante muitos anos
a banda do Atheneu Alenquerense. Óbidos contou sempre com bandas
militares, da unidade do exército ali sediada. Entre seus músicos mais
eminentes são lembrados: o padre José Ferreira Fleury, que estudou no
Seminário de Montmorrillon, na França, e fêz curso de aperfeiçoamento
em música na Itália; o padre Eutíquio Pereira da Rocha, professor de
música e piano; Ana Rai-munda Dias d'Araújo, também professora de
música e piano no Colégio São Luís Gonzaga e, mais recentemente, os
franciscanos alemães frei André Noirhomme e frei Alberto Kruse. A banda
de praças músicos encostados na fortaleza de Óbidos teve larga atuação
naquela cidade.
Santarém, na margem oposta, ocupa atualmente posição invejável no
quadro que esboçamos. Embora a história da música local seja
relativamente recente, pois nada sabemos do passado colonial, Santarém
conhece hoje intensa atividade musical. Dali sairam varios músicos para as
orquestras e bandas da capital, como Temís-tocles dos Sarttos Bruce, Isaías
Oliveira da Paz (1887-1966), bom violinista, e o também violinista
Virgílio Pereira da Silva, formado na Inglaterra. Filhas de Santarém são as
irmãs Peluso (Rachel e Gio-conda), residentes em São Paulo. Rachel,
pianista e compositora, com várias obras publicadas; Gioconda, cantora e
professora. Em Santarém, os irmãos Fonseca (Wilson, compositor e
regente, e Wilde, regente e organista) têm centralizado toda a vida musical
dos últimos anos. Os frades franciscanos da prelazia de Santarém concor-
reram notavelmente para o impulso dessa vida musical destacadamente
Ambrósio Phillipsburgo, Feliciano Trigueiros e Alberto Kruse (que adotou
o pseudônimo Tomás Samaí em suas composições publicadas) . Entre os
mestres de banda, com larga atuação em Santarém, anotamos Luís
Bonifácio da Silva Barbosa (1873-1952), santareno, e José Agostinho da
Fonseca (1886-1945), amazonense, que ali se fixou em 1906.
11. No trabalho de catequese do gentio, o canto teve grande importância.
As duas ordens que mais se distinguiram, na Amazônia, pelo cultivo da
música nas suas missões e colégios foram incontestavelmente a
Companhia de Jesus e a dos frades Mercedários. Parece
VICENTE SALLES
que, nos primeiros tempos, as festas religiosas dos Mercedários tinham
maior esplendor. Esses frades possuíam, no convento de Belém, um
notável coro e representavam constantemente autos sacramentais. Entre os
jesuítas, já vimos que o padre José Maria Gorzoni, italiano, natural de
Mântua, ensinava os índios a tocar numa gaitinha, — "por sôlfa", esclarece
Betendorf. Outro jesuíta que muito se destacou na música foi o
maranhense Diogo da Costa, natural de Alcântara (1652-1725). Diogo da
Costa missionou no Pará, na aldeia de Maracaná, e — "ensinou os rapazes
a cantarem e toca-íem, suspendia os ouvintes quando se cantavam as
Ladainhas e Salve Rainha à honra da Virgem Senhora Nossa da Luz"
(11:478).
O coro da Catedral de Belém foi instalado, já o dissemos, pelo
primeiro bispo do Pará, Bartolomeu do Pilar. Os músicos e cantores eram
designados beneficiados e gozavam de certas regalias. Primi-cério ou
chantre eram denominados os regentes de coro. Os primeiros foram
Antônio Rodrigues de Azevedo (1724-1726) e Antônio José da Cruz
(1726-1733), ambos portugueses, que vieram na comitiva de frei
Bartolomeu do Pilar. Em 1734 o cargo era preenchido pelo paraense
Lourenço Álvares Roxo de Potfliz, filho de um médico e comerciante
francês estabelecido no Pará. Foi tão notável a atuação de Lourenço de
Potfliz que La Condamine não lhe poupou elogios, cha-mando-o "grand
Chantre" (XI: 197). Potfliz criou, como vimos, uma escola de meninos
cantores, que foi instalada no prédio ainda existente na Rua Dr. Assis n.°
64 (antiga rua do Espírito Santo), Cidade Velha, e hoje ocupado pelos
padres missionários do Preciosíssimo Sangue. Já o 3.° bispo, D. Miguel
Bulhões, podia manter um coro de 10 meninos.
Em toda a parte os missionários difundiram o canto. A música era
muito apreciada pelos indígenas. Data dos primeiros tempos a instituição
de um cortejo, o "çairé", talvez promovido pelos missionários e que depois
se tornou um dos mais interessantes folguedos folclóricos da Amazônia,
chegando ainda a ser documentado, descritiva e musicalmente, por
Barbosa Rodrigues (XII) e em nossos dias, por Nunes Pereira (XIII).
Frei Caetano Brandão, nas suas visitas pastorais, deteve-se em muitos
lugares, embevecido pelo canto dos índios e dos negros escravos. Cita
diversos coros infantis, regalando-se notadamente com o da vila de
Odivelas, onde os meninos "cantaram os louvores de Deus por diferentes
modos, e alguns bem engraçados; no que se distinguiam muito duas
meninas, que tinham lindíssimas vozes, e estavam bem ensaiadas pelo
vigário" (XIV:227)). Na vila de Monforte, ilha de Marajó, ouviu um coro
de meninos — "todos filhos de índios" — anotando que alguns tinham
vozes lindíssimas (XIV: 227). Ainda na iiha de Marajó, na fazenda dos
Mercedários, observou duas pretinhas no coro — "que faziam uma
admirável consonância de primeira e 3egunda voz" (XIV:231). Até na vila
do Ega, no Alto Amazonas, o
QUATRO SÉCULOS DE MÚSICA NO PARÁ
bispo encontrou coro de índios — "instruídos, em outro tempo por quem
entendia música, e que chegaram a cantar Missa de órgão" (XIV:312).
Nem sempre porém o bispo prodigalizava louvores. Na vila de Oeiras,
durante a 4.
a
visita pastoral, observou: "nunca me esquecerá a música
desentoada e feia com que ouvi aqui louvar a Nossa Senhora" (XIV:288).
Detestou também o vozerio dos índios remeiros, que emitiam — "gritos
desentoados, música bem pouco agradável" (XIV: 197). Observou, enfim,
que o instrumento mais apreciado pelos índios era o berimbau e que os
selvagens trocavam qualquer coisa pelo berimbau.
A música vocal estava pois intensamente difundida na Amazônia, e,
pode-se admitir, exercia importante papel pedagógico e político,
participava das transformações sociais que se operavam, ao mesmo tempo
que ia fixando elementos embrionários de uma aculturação mais intensa e
extensa, capaz de influir decisivamente no complexo cultural do povo
amazônico. Mais de um século depois, Mário de Andrade, por volta de
1927, admirou-se ouvindo uma cabocla amazonense entoar, acalentando o
filho, uma cantiga. Apurando bem o ouvido, identificou o Tantum ergo
cantado em cantochão... de tapuio.
Esse trabalho catequético-apostólico dos missionários, com o auxílio
da música, declinou, certamente, com a política de Pombal. As ordens
religiosas foram expulsas e o clero secular não estava preparado para
prosseguir o trabalho nos colégios. As missões foram substituídas pelos
diretórios, passando a autoridade político-administrativa dos padres para
as mãos dos leigos, que nenhum interesse tinham na aplicação da música.
Isto se refletiu na arte musical que então se praticava mais ou menos
intensamente e com objetivos precisos. Belém sofreu duramente, neste
aspecto, apesar dos esforços de frei Caetano Brandão, que instalou aula de
música vocal no Seminário e tomou outras providências para manter
elevado o nível artístico da Sé. Os sucessos políticos que antecederam e
sucederam a adesão do Pará à Independência desembocaram na guerra
popular e geral, mais conhecida pelo nome de Cabanagem. A decadência
artística atingiu então o mais baixo nível.
Em 1838 o general Andréa, após vencer os cabanos e pacificar a
província, tomou algumas deliberações visando a restauração da música
nos atos religiosos. Foi autorizado, pela Assembleia, a contratar vários
músicos e um organista. Veio então para Belém o organista português João
Nepomuceno de Mendonça. Pela lei n.° 43, de 15 de outubro de 1839, nos
informamos que então trabalhavam na Sé 21 artistas, dos quais 9 eram
capelães cantores, 1 organista (João Nepomuceno de Mendonça), 1
subchantre e 10 moços de côro. O organista também devia lecionar música
vocal e instrumental.
VICENTE SALLES
Em 1847 foi contratado para aquele lugar o organista espanhol D. Manuel
Marti. Nesse ano, o côro e a orquestra já se achavam completos, contando
39 figuras, sendo 16 músicos e 23 cantores. O grande impulso, porém, foi
dado pelo bispo Antônio de Macedo Costa, que restaurou o coro de
meninos e a aula de música vocal e instrumental do Seminário, designando
para dirigi-la o maestro Adolfo José Kaulfuss. Além disso, o bispo
adquiriu um novo e grande órgão para a Sé. A 21 de março de 1867,
Kaulfuss já regia um coro de 100 vozes na apresentação de programas
artísticos, com obras, inclusive, de sua autoria. Nesse dia foi apresentada
sua Cantata "Exulta, Humanidade".
A música vocal continuou tendo grande desenvolvimento, e o canto,
que sempre foi uma predileção dos paraenses, alcançou níveis apreciáveis.
Surgiram numerosos corais sacros e profanos. Na crônica histórica, vários
nomes se destacam e o Pará também manda estudar na Europa os seus
cantores, entre os quais, os mais talentosos, foram Corbiniano Villaça —
que fêz carreira no teatro lírico francês — e Corina Penner, formada na
Alemanha. Dois cantores, irmãos, alcançam grande notoriedade: Helena e
Ulysses Nobre.
Em 1900 o Instituto Carlos Gomes mantinha, ao lado da orquestra
sinfónica, um grande coral, regido ambos por Meneleu Campos. José
Telles Gomes, primeiro tenor, muito ativo nos coros sacros, foi depois o
regente desse coro. Era músico de boa formação e tocava trompa na
orquestra do Instituto. No âmbito da Igreja, destacava-se, em 1905, o coral
da Pia União das Filhas de Maria, dirigido pela Prof.
a
Maria Gabriela Pena
Soares, na matriz de Sant'Anna. Em 1911 o Orfeão Português, de Belém,
se compunha de 80 vozes de ambos os sexos. Em 1916, Gama Malcher
dirigiu o conjunto vocal "Franz Schubert", com 12 vozes femininas e 5
masculinas. Em 1918, o Coro Santa Inês, dirigido pela Prof.
a
Maria
Joaquina Travassos, agrupava 12 vozes femininas; em 1921, o grupo
estava reduzido para 10 vozes. Também feminino foi o coro Santa Cecília,
dirigido por Paulino Chaves e que se apresentava na igreja de N. S. de
Nazaré. Na Catedral, durante vários anos o coro foi dirigido por Zinha
Paiva e a orquestra por seu irmão Manuel Luís de Paiva, outro bom
compositor paraense.
Mas foi Clemente Ferreira Júnior — notável compositor popular —,
pianista formado na Europa e professor do Instituto Carlos Gomes desde
sua fundação, quem, na qualidade de professor de canto coral, iniciou no
Pará espetáculos orfeônicos de grandes proporções. Clemente Ferreira
Júnior, no Pará, e Silva Novo, no Ceará, foram dois pioneiros. Já em 1907
Clemente reunia concentrações orfeônicas de 400 vozes juvenis. Esse
volume vocal era aumentado em 1911, durante as comemorações cívicas
de 15 de agosto, para 1.500 vozes juvenis. Alípio César e Meneleu Campos
sucederam-se no cargo, mas limitaram as audições a grupos muito
reduzidos. Mais
QUATRO SÉCULOS DE MÚSICA NO PARÁ
tarde, Margarida Schivazappa, depois de cursar o conservatório Nacional
de Canto Orfeônico, no Rio de Janeiro, onde recebeu orientação de Heitor
Villa-Lobos, voltou a apresentar grandes concentrações orfeônicas. Além
disso, organizou e apresentou, em 1940, o Orfeão dos Professores.
O canto orfeônico substituiu assim o ensino de música instrumental
nas escolas paraenses. Mas, depois da influência de Villa--Lobos, através
de seus discípulos, essas atividades decresceram sensivelmente.
12. A ópera floresceu no Pará durante um curto período, de 1880 a 1908
aproximadamente, mas deixou reminiscência algo lendária. Trata-se, a
nosso ver, de fenômeno de explicação sociológica e não propriamente
artística. As "grandes companhias", importadas diretamente, são um mito
que os cronistas e saudosistas tentaram perpetuar. Na época, com a
valorização excessiva da borracha, circulava muito dinheiro na Amazônia,
embora suas condições sanitárias continuassem lastimáveis. Esse dinheiro
construiu dois teatros monumentais: o Teatro da Paz, em Belém,
inaugurado em 1878, e o leatro Amazonas, em Manaus, construído entre
1891 e 1896.
A abertura do Teatro da Paz a 13 de fevereiro de 1878, foi um
acontecimento memorável. Vicente Pontes de Oliveira assinou contrato
para realizar, naquele ano, a primeira temporada artística. De fevereiro a
dezembro de 1878, a companhia deu nada menos de 125 espetáculos. Pela
época do carnaval, a exemplo do que se fazia nas capitais europeias,
resolveu o governo dar bailes carnavalescos no teatro. A ideia foi recebida
com aplausos pela burguesia provinciana e assim, na noite de 24 de
fevereiro de 1878, dançou-se o primeiro baile de máscaras no Teatro da
Paz.
De 1878 aos nossos dias, o Teatro da Paz tem dado lugar a
memoráveis temporadas de arte. Foi mesmo, durante algum tempo, o mais
famoso centro artístico do Norte e um dos mais movimentados em todo o
país. Sousa Bastos considerou-o o primeiro teatro brasileiro. Por sugestão
do bispo D. Antônio de Macedo Costa, tomou a denominação de "Nossa
Senhora da Paz" (paz que o prelado acenava entre as relações da Igreja e o
Estado cuja tensão o levara ao cárcere), logo abreviada para "Teatro da
Paz", por deliberação ao conselho administrativo do Conservatório
Dramático Paraense, aprovada pelo presidente da província.
Em 1880, procedente da Bahia, chegou a Belém a primeira companhia
lírica italiana "importada" para ocupar o palco do Teatro da Paz. Era
dirigida por Tomás Passini e tinha um grande elenco no qual pontificavam
os nomes do soprano dramático Filomena Sávio, do contralto Júlia
Consolani, do meio soprano Climene Kallas, do tenor Orlandini, etc. A
temporada causou verdadeiro acontecimento. Sua estreia deu-se na noite
de 7 de agosto de 1880, inaugu-
VICENTE SALLES
o com a ópera "Ernani", de Verdi, a tradição lírica do Teatro da Paz.
Em 1881 veio a segunda companhia, que deu nada menos de 50 récitas e
apresentou a primeira ópera escrita por compositor paraense: a "Idália", de
Henrique Eulálio Gurjão. Pouco depois fundava-se a Associação Lírica
Paraense destinada a exercer atuação relevante na vida musical de Belém e
que era presidida por Antônio Baena e Justo Chermont. A entidade entrou
logo em contacto com o jovem maestro paraense José Cândido da Gama
Malcher, que se encontrava na Itália, incumbindo-o de trazer outra compa-
nhia, com um grande elenco e repertório moderno. Com essa empresa,
veio pela primeira vez ao Pará o grande compositor brasileiro Antônio
Carlos Gomes.
Durante os anos que se seguiram várias temporadas líricas italianas
foram realizadas no Teatro da Paz. Algumas companhias vinham, na
realidade, diretamente para a Amazônia, tocando apenas no Recife, onde se
cumpria ligeira estação no Teatro Santa Isabel. Logo as excursões se
estenderam a Manaus, que inaugurou em 1896 o seu grande teatro.
Companhias dramáticas portuguesas e nacionais passaram também a
frequentar mais assiduamente os teatros paraenses. E atrás dessas,
incontáveis companhias "mambembes", de revistas, operetas, zarzuelas, de
todas as origens.
No gênero lírico, apareciam como empresários os maestros Roberto de
Barros, Gama Malcher e Joaquim Franco; no lírico e dramático, destacou-
se sobretudo o empresário Juca de Carvalho.
Com a débâcle da borracha, tornou-se impossível continuar
sustentando essa orgia de arte. E a ópera, empreendimento dispen-
diosíssimo, encontrou seu fim tão rapidamente como havia surgido. Em
1906 deu-se a última grande temporada. Em 1911 a Companhia Espanhola
de Zarzuelas, óperas e Operetas, dirigida pelo ator Pablo Lopez e
empresariada por Juca de Carvalho, ainda apresentou algumas óperas —
"Marina", "Cavalaria Rusticana", "Traviata", "Baile de Máscaras",
alternando as representações com operetas e zarzuelas. A partir de então
Belém ainda assistiu a montagens "avulsas" de óperas compostas por seus
próprios compositores, ou uma ou outra opera impingida ao público
saudosista pelas companhias de operetas. Mas em 1953, com grande
estardalhaço, realizou-se uma fracassada "temporada" de óperas no teatro
da Paz, promovida pelo maestro italiano Nino Gaioni: "Boemia",
"Traviata" e "Rigoletto" foram as únicas óperas representadas.
13. O florescimento da arte musical exigiu a formação em nosso próprio
meio de pessoal habilitado. Jovens paraenses, bem dotados para a música,
iam buscar na Europa um título que lhes desse status artístico. Através dos
tempos, alguns mestres isolados se dedicaram à formação musical dos
jovens paraenses. Por fim, o governo resolveu premiar os talentos mais
dotados, fornecendo-lhes bolsas de
QUATRO SÉCULOS DE MÚSICA NO PARÁ
estudo. Muitos pretenderam os favores oficiais, mas poucos foram os que
os obtiveram. Na Europa se formaram, entre outros, Henrique Gurjão,
Gama Malcher, Clemente Ferreira Júnior, Alípio Cézar. Meneleu Campos,
Paulino Chaves, Marcos Raggio de Salles, Mamede Costa, Virgílio Pereira
da Silva, as irmãs Matilde e Virgina Sinay, Corina Penner, Corbiano
Villaça e tantos outros.
O governo estadual, na governança de Lauro Sodré, resolveu
concretizar a criação de um Conservatório de Música e entregar sua
direção a Carlos Gomes que, muito doente e desamparado, vivia momentos
difíceis. Atendendo a solicitação, Carlos Gomes chegou a Belém no dia 21
de maio de 1895. Estava bastante alquebrado, de sorte que somente no dia
5 de junho pôde tomar posse do cargo de diretor do novo estabelecimento.
O ato se revestiu duma homenagem especial ao compositor. Havia
numerosa assistência, grande número de alunos e todo o corpo docente. Êle
chegou, acompanhado por diversos professores. Relata o noticiário da
época, na imprensa cotidiana: "Elegante, digno, nobre, com a bela cabeça
erguida como um vencedor, o glorioso mestre foi alvo das mais
expressivas provas de admiração e estima". A banda de música do 1.°
Corpo de Infantaria, sob a regência do maestro Aureliano Guedes, deu
início à solenidade. Momentos depois ouvia-se a protofonia de "II
Guarany", sob a regência do professor Nabuco de Araújo. Finda a
execução, teve lugar a cerimônia da posse, aos acordes do Hino Nacional.
O Sr. Pedro Chermont apresentou ao maestro o corpo docente, que
ficou assim constituído: Carlos Gomes, Contraponto e composição;
Antônio Facciola, piano, para o sexo feminino; Clemente Ferreira Júnior,
piano, elementos, divisão e solfejo, para o sexo feminino; Manuel Pereira
de Souza, piano, para ambos os sexos; J. Corrêa, piano, curso elementar,
para o sexo feminino; Luigi Sarti, violino, para ambos os sexos; Virgínia
Sinay Block, violino e canto, para o sexo feminino; Roberto de Barros,
flauta, elementos e divisão, para o sexo masculino; Aureliano Guedes,
instrumentos de metal; Giuseppe Cirone, fagote; Esmeralda Cervantes
Grossmann, harpa; Hermenegildo Carlos, harmonia, solfejo, clarineta,
óboe e corn-in-glès; Dr. Euphrosino Nery, anatomia e fisiologa dos órgãos
vocais; Dr. Heliodoro de Brito, língua francesa; F. Veirgtell, língua
italiana; Dr. Paulino de Brito, literatura poética e dramática, história e esté-
tica musical.
Poucos meses porém Carlos Gomes resistiu ainda à doença. Faleceu
em Belém a 16 de setembro de 1896. A direção do Conservatório, que foi
reestruturado e recebeu a denominação de Instituto Carlos Gomes, passou
para as mãos do maestro italiano Enrico Ber-nardi. Em 1898, Bernardi
licenciou-se para tratamento da saúde e foi para a Itália, falecendo pouco
depois. Gama Malcher assumiu, interinamente, a direção do Instituto,
passando-a em 1900 para o o novo titular, o maestro paraense Meneleu
Campos.
VICENTE SALLES
Na administração de Meneleu Campos o Instituto Carlos Gomes
conheceu seus melhores dias. Mas, pressões políticas acabaram afas-
tando-o do estabelecimento, no governo de Augusto Montenegro. Em
1908 resolveu o mesmo governo cerrar suas portas.
O ensino da música voltou então ao antigo regime das escolas
particulares, dirigidas por este ou aquele professor.
Em 1928, alguns intelectuais e artistas, entre estes Cincinato Ferreira
de Sousa e Ettore Bosio, resolveram propor ao governo a restauração do
Instituto Carlos Gomes, o que realmente se efetivou e, desde então, este
tem sido o único estabelecimento de ensino musical mantido pelo Estado.
Em homenagem a um de seus mais ativos professores e diretores, o
maestro Ettore Bosio, foi fundado o coral de professores e alunos do
Instituto Carlos Gomes, que ultimamente tem recebido também orientação
de Valdemar Henrique, atual diretor do Teatro da Paz.
O "Pavilhão do Vesta", ao Largo de
Nazaré, edificado em 1891, substituiu
o"Pavilhão de Flora", construído no
mesmo local em 1851. Ao fundo um dos
quatro "coretos" do Largo. No último
plano a fachada da Igreja, por volta de
1800. A atual Basílica começou a ser
construída em 1900.
Pavilhão de Música (Largo da Pólvora), na
atual Praça da República, Belém.
Orquestra Feminina do "Chibo Enter pe",
sob a direção da Professôra Serra Freire
(sentada, com o violino) (Belém 1928).
O Teatro do Paz antes da reforma
Augusto Montenegro.
QUATRO SÉCULOS DE MÚSICA NO PARÁ
BIBLIOGRAFIA
(Nas citações, os algarismos que seguem dois pontos indicam o número de página).
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Janeiro, Portugália, 1938. IV volume.
II — BETENDORF, João Felipe — Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no
Estado do Maranhão. In: "Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro", vol. 72
(l.
a
parte). Rio do Janeiro, 1910.
III — QUEIROZ, Gaspar de Siqueira — Tabela histórica e cronológica dos Ex.
mos
e Revd.
mos
Senhores Bispos da Diocese paraense, das dignidades, Cônegos e Beneficiados
da Respectiva Catedral desde sua fundação (etc.) Pará, Typo-graphia do Santos e Filho,
1850.
IV — DANIEL, Pe. João — Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas. In:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro", tomo III. Nota: O coro de
meninos é citado nesta passagem — "com um seminário de meninos no coro, e música tão
excelente, que as funções sagradas e Cultos Divinos se fazem e celebram com tão grande
esplendor, como se podem celebrar nas mais magníficas catedrais da Europa".
V — REIS, Arthur Cézar Ferreira — Dom Romualdo de Souza Coelho. Belém |Ed. Novidade|
1941.
VI — QUEIROZ, Fr. João de São José —Visitas pastorais; memórias. Pref. do prof. Basílio de
Magalhães. Notas do prof. Basílo de Magalhães o prof. Cândido Juca Filho. Rio de Janeiro,
Ed. Melso, 1961.
VII — BAENA, Antônio Ladislau Monteiro — Compêndio das eras da província do Pará (2. ed.)
Belém, Universidade Federal do Pará, 1969.
VIII — BRAGA, Theodoro — "Escavações Históricas". In: "O Estado do Pará", Belém, edição de 8
de fevereiro de 1920.
IX — MELO, Guilherme de — A música no Brasil. . . 2. ed. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional,
1947.
X — CERNICCHIARO, Vicenzo — Storia della musica nel Brasile... Milano, Fratelli Riceioni,
1926.
XI — CONDAMINE, Charles Marie de — Rélation ábrêgée d'un voyage fait dans I'intérieur de
I'Amérique Méridionale. . . Paris, Veuve Pissot, 1745.
XII — BARBOSA RODRIGUES, João — Poranduba amazonense. Rio de Janeiro, Typ. G.
Leuzinger, 1890.
XIII — NUNES PEREIRA, Manuel — O sahiré e o marabaixo, tradições da Ama-
zônia. Rio de Janeiro, Ouvidor, 1955.
XIV — AMARAL, Antônio Caetano do — Memórias para a história da vida do
venerável arcebispo de Braga D. Fr. Caetano Brandão. Braga |Portugal| Typ. dos orphãos,
1867. 2. ed., 2 vols.
VICENTE SALLES
ÓPERAS DE AUTORES PARAENSES
Autor Título Enredo Observações
Eenrique E.
Gurjão (n.
Belém, 18 34
— m. Bolem,
1886).
"Idália", 3 a. — Gon-çalvo,
Conde Catrona; Idália,
sua filha; Rodolfo ;
Rodrigo, duque de
Gerace; Frei Roberto; um
pagem; salteadores;
camponeses, etc.
Motivo histórico
das "cruzadas".
Estreia: 3-XI-1881, no Teatro da
Paz. Espetáculo de honra e despedida
da Cia. Tomás Passim. Outras
audições: 5, 8 e 10-XI-81 no
mesmo Teatro. Popularizaram-se
trechos sinfónicos e vocais, como
a Proto-fonia, a "cavatina de
Idália" (soprano) e a ária "Signo di
rose" (barítono).
GAMA MAL-
OHER, José
Cândido da
(n. Belém,
"Bug-Jargal", 4 atos. —
Bug-Jargal, escravo negro
rebelde; Irma, escrava
negra; Leopoldo d
'Auvemey, senhor da
fazenda; Antônio d
'Auvemey, seu sobrinho;
Maria filha de Leopoldo e
noiva de Antônio.
Motivo extraído
do romance de
V i c t o r Hugo
(libreto de Vi-
cenzo Vale).
Estreia: 17-LX-1890, no Teatro da
Paz. Companhia lírica empresariada
por Gonçalves Leal & Cia. Outras
audições: 30-XII-1890, no Teatro São
José, S. Paulo e 25-11-1891, no
Teatro Fénix, Rio de Janeiro.
Recomendam-se o Prelúdio do 3.° ato
e as danças do 4.° ato, pela
originalidade.
1853; m. Be-
lém, 1921).
"Iara", 3 atos. —
Iara, deidade fluvial
amazônica; Begiuqui-rá,
jovem Índio; guerreiros;
ninfas, etc.
Motivo amazôni-
co. Libreto do
próprio compo-
sitor, baseado na
lenda divulgada
pelo naturalista
Conde Elmano
Stradelli.
Estreia: 20-111-1895, no Teatro da
Paz. — 0 caráter nacionalista do
libreto, também se anuncia na
instrumentação, pois Maleher
introduziu temas de melodias
populares e instrumentos típicos da
região amazônica.
BOSIO, Et-
tore (n. Vi-
cenzo, Itália
1862; m. Be-
"Duque de Vizeu", 3
atos.
Motivo histórico
lusitano. Libreto
em português,
de Pacheco Neto,
que o extraiu do
drama de 'Lopes
de Mendonça.
Estreia: Março de 1895, no Teatro da
Paz.
lém, 1936).
"Ideale", 1 ato. 2 per-
sonagens: o Ideal; e o
Poeta.
Drama-lírico ba-
lo-fantástieo, li-
breto de Gustavo
Chiesa.
Estreia: 29-V-1900, no Teatro da Paz.
Estilo wagneriano.
QUATRO SÉCULOS DE MÚSICA NO PARÁ
Autor
Titulo Enredo Observações
CÉSAR, Ali
pio (n. Ca-
meta, Pará,
1871; m. Be-
lém, 1925).
"Notte Bizzarra", 3
atos. Rodolfo, jovem
milionário; Feliciano,
seu amigo; Franca,
prima de Feliciano.
Ópera-cômica. Li-
breto de Giu-
seppe Tadini.
Ação passa-se
em Veneza na
época do Car-
naval.
Estreia: 7-IX-1917, no Teatro da Paz.
É a única ópera-cômica escrita por
um compositor paraense. A música
contém alguns trechos apreciáveis.
Antônio Ci-
rilo Silva (n.
Belém, 1875;
m. Belém,
1932).
"Soirée-Blanehe", 3 atos.
Drama jocoso,
libreto do pró-
prio compositor.
A ação se passa em
Belém na época
do carnaval.
Estreia: 17-IV-1921 no Teatro São
João, por um grupo de rapazes do
b
loco carnavalesco "Os
Linguarudos".
LEMOS, A.
Iberê de (n.
Belém, 1901;
m. Bio de Ja-
neiro. 1967).
"A Ceia dos Cardeais", 1
ato.
Drama-poema de
Júlio Dantas,
Estreia parcial: 1941 no Teatro da
Paz, com a orquestra sob regência do
autor. Solista: baixo Portocarrero.
COSTA, B.
Belarmino da
(n. Soure,
Ilha de Ma-
rajó, 1907).
"A Cabanagein", 3
atos, e 2 quadros. —
Eduardo Angelim; caudilho
cabano; Luiza Clara, sua
noiva; Batista Campos,
líder da revolução; Simão
José da Silva, etc.
Motivo histórico
paraense. Libreto
de Roberto
Camelier e Lou-
rival Penalbor.
Estreia: 10-III-1949 no Teatro
da Paz, com um elenco regional
e a O.S.P., sob regência do
autor.
Outras audições: 13 e 19-111-
-1949, no mesmo teatro.
VICENTE SALLES
ÓPEBAS INÉDITAS DE AUTORES PARAENSES
Autor Titulo Observações
GAMA MALCHER, "Idílio"
Divulgado o trecho "Preghiera" pelo
soprano Helena Nobre.
José Cândido da (n.
Belém, 1853; m. Be-
lém, 1921).
"Seminarista"
Divulgado o solo de violino intitulado
"Meditação", inclusive numa
transcrição para orquestra de cordas,
pelo autor.
"I Vesperi", em 2 atos;
BOSIO, Ettore (n. Vi-
cenzo, Itália, 1862; m.
Belém, 1936).
"La Coppa d'Oro", 1 ato;
Divulgados os trechos "Barcarola" e
"marcha" para côro, muito executados
em Belém.
"Semeie", em 1 ato;
Divulgados trechos por Helena e
Ulysses Nobre. Idem.
"Alexandra", em 3 atos.
CAMPOS, Meneleu (n.
Belém, 1872; m. Ni-
terói, 1927).
"Gli Eroi", Libreto de L. Illica.
ALMEIDA, Raimundo
Pinto de (n. Belém,
1880; m. Belém, 1950).
"Barão de Marabá", Libreto
de Alberto Martins.
A Arte Popular no Brasil
ARIANO SUASSUNA
Se, em geral, já é difícil distinguir o que seja, de fato, Arte popular,
nas condições particulares do Brasil o problema se agrava mais ainda.
Creio, mesmo, que, no campo da Literatura e da Arte brasileiras, existem
poucos setores onde reinem maiores confusões do que este da Arte
"primitiva" e da Literatura "popular".
Os equívocos surgem, em primeiro lugar, por causa das dimensões do
país: o Brasil é um continente, cujas condições variam muito, fazendo com
que o que é válido aqui, tenha que ser discutido ou adaptado ali.
Outra causa de equívocos e confusões, nesse campo, tem sido a paixão
política. Nos meios mais acadêmicos e oficiais — digamos assim — cria-
se uma espécie de suspeita, toda vez que nós falamos em Cultura
brasileira, em Arte popular brasileira, em Literatura popular brasileira.
Julgam que estamos fazendo uma discriminação, mais ou menos
semelhante às de Mao Tse Tung, e criam, como defesa, uma discriminação
contra a Cultura popular brasileira e mesmo contra a Arte e a Literatura
brasileiras, eruditas mas ligadas ãs raízes populares.
No entanto, essa Arte popular brasileira existe. E não apenas isto: é
vigorosa e autêntica, como provam, entre outras manifestações, as
xilogravuras populares do Nordeste. E a Literatura popular brasileira
também existe, bastando o fato de possuirmos, nos folhetos, o maior e mais
variado Romanceiro vivo do mundo, para demonstrar esta minha
afirmação. O Romanceiro medieval ibérico é, hoje, apenas uma
sobrevivência, estudada como importantíssima manifestação literária que
é, mas também apenas quase como coisa de museu, nas cátedras
universitárias europeias. Nós, aqui no Brasil, temos, à mão, um material
muito mais vasto, rico e variado do que o Romanceiro ibérico, um material
que, se caísse, daqui a dois séculos, na mão de um crítico de sensibilidade,
encheria toda a sua vida de
ARIANO SUASSUNA
estudos, e, apesar disso, por causa da injusta discriminação a que já me
referi, o Romanceiro popular do Nordeste é deixado de banda nos estudos
literários universitários do Brasil. Aqui, são criadas essas discriminações
contra grandes artistas e escritores que, somente por não terem tido
formação universitária ou informações e participação sobre as "conquistas
da civilização industrial", ficaram como que estigmatizados e relegados a
posições secundárias. No entanto Henri Rousseau, primitivo,
marginalizado da civilização industrial e da formação universitária, é um
dos maiores gênios da pintura contemporânea; no entanto Homero nunca
conheceu a civilização industrial nem as universidades: era filho de uma
comunidade áspera e selvagem de cabreiros e estava situado, na compli-
cada hierarquia social, apenas um grau acima dos rudes aedos surgidos
dessa comunidade, pois, de fato, sua obra é fundamentalmente ligada aos
cantos épicos, de cuja corrente êle é a coroa e o cume.
Digamos, porém, que na Idade Média as condições mudam. O saber,
acumulado desde a antiguidade greco-latina vai se tornando objeto de
estudos sistemáticos nos mosteiros e nas universidades. Suponhamos,
então, que necessariamente um artista que não faça estudos sistemáticos
nas universidades seria necessàriamentae inferior: isso só seria verdade se
a criação dependesse do conhecimento reflexivo e não da imaginação
criadora.
A partir da Renascença, porém, é que se intensificam as confusões, os
equívocos, as discriminações. Os europeus se habituaram a considerar sua
cultura, isto é, a cultura de origem greco-latina, como a cultura, a cultura
padrão, fora da qual só existiam as exóticas, isto é, as culturas situadas fora
do eixo, condenadas ao pitoresco. No entanto, a Escultura indu, produto de
cultura considerada exótica e primitiva, é pelo menos tão importante
quanto a grega.
Isto, se comparamos uma manifestação cultural europeia com outra
não-européia. Dentro do próprio campo da cultura europeia, porém, tinha
se intensificado aquela separação a que já aludi. Com a fundação das
universidades, começaram a conviver paralelamente e cada vez mais
distintas, uma Literatura cortezã, universitária, cavaleiresca e erudita, e
outra popular. O Cancioneiro dos trovadores é cortezão e erudito, o
Romanceiro (com o romance do Conde Claros, o da Donzela que foi à
guerra ou o da Nau Catarineta) tem todas as características da Literatura
popular — as repetições, as datas e números mágicos, o espírito épico
misturado ao satírico etc.
Entre uma e outra, fazendo o papel de elemento de ligação, é preciso
não esquecer o papel da Igreja, com os cantos religiosos populares rimados
e com os monges, poetas e copistas, guardiães e divulgadores da poesia e
da novela. Não se trata, portanto, de afirmar a superioridade da Literatura
cortezã sobre a popular. Preferir uma ou outra, é questão de temperamento,
de gosto pessoal. Pode-se
A ARTE POPULAR NO BRASIL
até escolher ambas e tentar fundir as duas, porque as duas correntes se
interpenetram e se influenciam mutuamente, ora mais ora menos.
O Barroco, com sua capacidade "dialética" de unir contrastes, introduz
às vezes o espírito popular na Literatura erudita. Surgem, então, os
romances em verso de Góngora ou as novelas picarescas como o Lazarilho
de Tormes. E aparecem, mesmo, os casos em que numa obra de gênio,
como o "Dom Quixote", aportam e se unem os elementos cortezãos e
eruditos da tradição renascentista e greco--latina, os elementos da épica
popular do Romanceiro ibérico e da novela picaresca, a novela de
cavalaria e a tradição dos contos orais, vivos na memória do Povo
espanhol e mouro ao qual pertencia o grande Cervantes.
No caso do Brasil, a situação é muito semelhante. A causa principal da
discriminação, aqui, é o encontro cultural que nossa formação propiciou,
com a cultura europeia dominando entre os Senhores e com a negra e a
indígena formando a base da cultura do Povo. É verdade que
imediatamente o nosso Povo começa a recriar e reinterpretar o Barroco
ibérico de um modo brasileiro, tosco, mestiço: ainda assim, e mesmo por
causa disso, os Senhores começam a se envergonhar dos elementos negros
e vermelhos de nossa Cultura. De modo apenas aparentemente paradoxal,
isso começa a se agravar no século XIX, quando as nossas elites urbanas
começam a desprezar nossos valores ibéricos trocando-os tudo quanto era
valor europeu de fora trazido por tudo quanto era de Missões Francesas
que nos têm chegado até agora, de fato ou pelo correio. Essa é, no fundo, a
origem daquela discriminação social e política ainda hoje presente em nós
contra a Cultura popular.
Infelizmente, porém, não é este o único equívoco, a única discri-
minação existente na Cultura brasileira por causa das paixões políticas.
Existe, também, a discriminação contrária: os meios radicais e sectários da
Esquerda criam também a sua. Quando nós afirmamos a existência de uma
Literatura popular brasileira, os críticos e teóricos de Esquerda na mesma
hora batem palmas, juntando entusiasticamente suas vozes à nossa. Mas, a
partir daí, não se conformam com as liberdades amplas da criação: querem,
também, "purificar e expurgar", limitando os interesses dos artistas e do
Povo, de acordo com cartilhas e esquemas. Não se conformam com o fato
de o Povo não se pautar, em suas criações, por tais cartilhas, e querem nos
impor, por outro lado, outra discriminação, desta vez a deles, dirigida
contra toda a nossa cultura europeia, contra toda a tradição da Cultura
mediterrânea, aquela mesma identificada por Mao Tse Tung com a "cultura
burguesa", numa interpretação abusiva e sem dúvida tendenciosa.
Primeiro, porque a cultura europeia, principalmente a ibérica que foram
uma raiz-tronco da Cultura brasileira, está povoada de elementos
populares. Isto desde começos, como já mostrei: se Virgílio e Camões
pertencem a uma corrente mais polida, erudita e livresca, Homero,
Cervantes e Gil Vicente são
ARIANO SUASSUNA
clássicos mais ligados à áspera e forte corrente da Literatura popu
lar _ aos cantos dos aedos, às gestas do Romanceiro, às novelas,
contos e racontos orais, às farsas populares representadas nos tablados das
praças públicas.
Em segundo lugar, a interpretação de Mao Tse Tung está errada,
porque, na tradição da Cultura mediterrânea, a burguesia só veio a
contribuir de modo realmente eficaz para a Arte e a Literatura a partir dos
séculos XVIII e XIX. Até então, a Literatura era ou aristocrática ou
popular. Daí a tragédia, a novela de cavalaria e o romanceiro,
aristocráticos, e a comédia, a novela picaresca e o romanceiro, populares,
terem surgido muito antes do romance e do drama, gêneros cultivados a
partir da Revolução Francesa e da ascensão da burguesia.
É, então, a partir principalmente daí que se encarniça esta outra
discriminação da qual estamos falando, a de Esquerda. No Recife, certa
vez, alguns jovens críticos de esquerda escreveram uma série de artigos
destinados, por um lado, a acusar os Cantadores e poetas populares
nordestinos por não serem suficientemente progressistas, por povoarem
seus folhetos de Reis, de Princesas filhas de fazendeiros, de Condes, barões
e Cavaleiros; e destinados, por outro lado, a provar que Dostoievski era
obscurantista e reacionária. A escolha era feita a dedo, para me fazer
raiva, porque eles tinham conhecimento de meu entusiasmo tanto pelo
Romanceiro popular nordestino como pela obra de Dostoievski. Respondi,
protestei, e a briga pegou fogo. Sustentava, como sustento, primeiro que é
exatamente a liberdade poética de reinventar e recriar o mundo que faz o
encanto e a força dos folhetos nordestinos, tão realistas por outro lado.
Quanto a Dostoievski, eu mostrava como o romance é uma herança típica
da cultura burguesa e como, apesar disso, na obra de Dostoievski (ou na de
Gógol e de Tolstoi) pulsa o sangue do grande Povo russo, de um modo que
os falsos romances populares e operários, os romances dirigidos e
fracassados do realismo socialista em vão tentaram alcançar. Todos nós
sabemos que essas injustiças não são de agora: Bielinski e, de modo geral,
a crítica de esquerda, amarguraram a vida de Dostoievski e fizeram tal
campanha de desprezo pela obra de Liéskov que ainda hoje ela é
marginalizada e desconhecida. Isto, somente porque esses dois escritores
não se pautavam pelas cartilhas que os críticos tinham elaborado paciente-
temente à falta de poder criador.
Foi por isso, também, que aí por 1962 ou 63, escrevi um artigo, no
Recife, dizendo que o Movimento de Cultura Popular constituía uma
contrafação, pelo menos pelo que o título indicava. A Cultura popular é
feita pelo Povo, pelo "quarto estado", aqui identificado com os analfabetos
ou semi-analfabetos. É o conjunto dos espetáculos como o "bumba-meu-
boi", dos versos do Romanceiro, dos contos orais, das xilogravuras das
capas dos folhetos, das esculturas
Autor e Proprietário - MANOEL CAMILO DOS SANTOS
As Palhaçadas de BIU
Arte Popular
Perceguições de Lampeão
pelas forças legaes
Chegada de Lampeão no
Espiritismo
HISTORIA DE UM RAPAZ
QUE BEIJOU UM VELHO
e o SAMBA DE MARIA BONITA
DIREITOS RESERVADOS
PREÇO - CR $100
Arte Popular
A ARTE POPULAR NO BRASIL
em barro queimado, das talhas, dos ornamentos, das bandeiras e dos
estandartes de Cavalhadas — enfim, de tudo aquilo que o Povo cria para
viver ou para se deleitar e que, tendo sido criado à margem da civilização
europeia e industrial, é, por isso mesmo, mais peculiar e singular. No
Brasil, ao lado de escritores e artistas mais ligados às experiências
europeias e americanas, existe hoje um outro grupo que porcura uma Arte
e uma Literatura recriadas a partir dessa Arte e dessa Literatura populares
brasileiras. Como já disse a respeito da Cultura medieval, a preferência por
uma ou outra atitude é uma questão pessoal. Por mim, assim como prefiro
os romances populares ibéricos às cantigas de amigo ou de amor do
Cancioneiro, tenho preferência, aqui, pelos escritores e artistas que
procuram ligar seu trabalho criador à raiz popular. Mas, de fato, as duas
correntes se interpenetram e se influenciam desde o século XVI. Vejamos
um exemplo, entre muitos. Nós sabemos, por exemplo, que uma das
estrofes mais empregadas pelos Cantadores e poetas populares nordestinos
é a décima de sete sílabas, rimada na disposição ABBAACCDDC (as
rimas iguais correspondem a letras iguais). Essa estrofe é usada, no século
XVII, pela Poesia cortezã e erudita dos espanhóis e portugueses. Gregório
de Mattos, poeta brasileiro seiscentista, herdeiro direto do Século de Ouro
ibérico, é um espírito tipicamente barroco: como tal, absorve em sua obra,
elementos os mais contraditórios — cortezãos e populares, religiosos e
obscenos, místicos e desesperados e assim por diante. Através de sua obra,
podemos rastrear o caminho que a décima seguiu, viajando do Século de
Ouro ibérico até a obra dos Cantadores nordestinos. Vejamos primeiro o
mesmo tipo de estrofe usado por Calderón na Espanha, ou depois por
Bocage em Portugal, sendo empregado por Gregório de Mattos:
O sol e o fogo são quentes, a chuva
aonde cai molha, quem não tem
vista não olha, ossos na boca são
dentes. É afronta dizer — mentes!
É ave grande a galinha, o cabelo cai
com tinha, quem é rouco tem
catarro, carregado canta o carro,
mulher de rei é rainha. Todo chapéu
é sombreiro, as árvores são de pau,
tudo o que não presta é mau, e faz a
barba o barbeiro. O olho de trás é
traseiro, é nervo a pena de pato,
filho de parda é mulato,
ARIANO SLASSUNA
mulheres todas são fêmeas, duas
num ventre são gêmeas, no pé se
calça o sapato.
Agora, vejamos a mesma estrofe usada pelo Cantador nordestino Luis
Dantas Quesado em versos que, aliás, lembram curiosamente os do poeta
barroco brasileiro do século XVII:
Juazeiro é pau de espinho, todo
moleque é canalha, fichu de besta é
cangalha, bebida de branco é vinho. O
pau que risca é graminho, o jantar à
noite é ceia, casa de preso é cadeia,
homem de força é Sansão, banho de
cabra é facão, palito de negro é peia.
Nem todo pássaro voa,
nem todo inseto é besouro,
nem todo judeu é mouro,
nem todo pau dá Canoa,
nem toda notícia é boa,
nem tudo o que eu vejo eu creio,
nem todos zelam o alheio,
nem toda medida é reta,
nem todo homem é poeta,
nem todo pau dá esteio.
Como se vê, até a maneira de enumerar as afirmações é a mesma.
Também estudos e comparações semelhantes poderiam se fazer na Pintura,
na Escultura ou no Teatro, mostrando, por exemplo, a semelhança de
espírito e de formas existente nas peças de Gil Vicente, no bumba-meu-boi
(misto de farsa e festa, tomando-se festa, aqui, no sentido ibérico de
sagração e celebração profana, violenta, dionisíaca); ou comparando
algumas peças de Antonio José, o Judeu com as farsas do mamulengo
nordestino.
Assim, o caminho da Arte e da Literatura brasileiras deve ser o da
integração, e não o das discriminações. Aliás, nisso como em muitas outras
coisas, a própria atitude dos Cantadores e poetas populares é muito mais
aberta, criadora e humana, ao mesmo tempo que singular, peculiar,
resistentemente brasileira. Os folhetos, ao mesmo tempo que mantêm a raiz
brasileira, não se fecham ao que vem de fora: pelo contrário, acolhem tudo,
desde os contos da tradição oral até peças representadas nos circos ou
filmes exibidos nos cinemas, fitas que os Poetas assistem por acaso e que
aparecem
A ARTE POPULAR NO BRASIL
recriadas em folhetos de sua autoria, com a mesma força e a mesma
peculiaridade das histórias mais tradicionais. Os Cantadores nem repelem
as histórias europeias ou americanas, nem se descaracterizam em nome
dessa caricatura do universal que é o cosmopolitismo, a novidade pela
novidade, o servil espírito de imitação das falsas vanguardas brasileiras.
Quando os astronautas americanos chegaram à Lua, a única coisa
realmente boa como Literatura que li foi um folheto nordestino publicado
sobre o assunto: o resto eram as coisas mais convencionais e sem
imaginação que já vi. Aliás, o próprio filme do episódio real, exibido na
Televisão, pareceu-me bem inferior aos filmes seriados de Flash Gordon.
Entre as estrofes do folheto nordestino, havia uma que dizia:
Os astronautas trajavam calça,
culote e colete, um guarda peito de
aço, desenhado um ramalhete, e
cada um tinha uma estrela de prata
no capacete.
Ora, num folheto sobre assunto mais tradicional do Nordeste, já havia
uma estrofe muito parecida:
Lampeão trajava caque, calça,
culote e perneira, um Chapéu
agaloado, sendo massa, de
primeira, oito moedas de ouro
circulando a bandoleira.
Do mesmo modo, sem perder sua peculiaridade brasileira, o Ro-
manceiro popular do Nordeste acolhe filmes, contos de Boccaccio, a
"Iracema" de José de Alencar, ou "Romeu e Julieta" de Luigi da Porto e
Shakespeare. O Povo, bem menos acadêmico do que os críticos e teóricos
assimila tudo, tudo recria e transfigura. O que é necessário é que as elites
brasileiras se portem à sua altura e tomem o seu exemplo, acabando de vez
com essas proscrições e condenações. Porque, no campo da criação, no
campo mais importante da Arte e da Literatura, esses expurgos e cartilhas
em vez de purificar — como talvez pensem os radicais — só fazem é
empobrecer, diminuir e esterilizar o humano.
Embrechados e Embutidos
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
Ambos são artesanatos antigos e tradicionais, em certas regiões com
exemplos tão remotos que já pertencem aos capítulos da arqueologia.
O interesse deste ensaio é chamar a atenção para algumas obras encontradas
no Brasil, de excelente lavor e de reconhecível qualidade artística, entretanto
pouco mencionadas, ou simplesmente omissas, nas referências dos historiadores
de arte.
Os exemplos de nosso acervo foram importados desde o século XVII,
sobretudo de Portugal, e é importante assinalar a influência que teriam
determinado e o modo com que participaram da decoração das igrejas de maior
riqueza, bem como seus arremedos em nível de arte popular.
Para não confundir os dois tipos de lavor, transcrevemos a definição de cada
conforme se lê nos dicionários do tempo em que eram praticados. Francisco de
Assis Rodrigues diz que emprechado ... "é formado ou ornado a modo de gruta,
com pedrinhas, búzios, conchas, etc." ... "pedacinhos de louça, de cristal, vidros,
pedrinhas e conchas com que se jazem grutas nos jardins e se ornam as paredes".
Sobre embutidos, o mesmo que embutidura, descreve como ... "engastar,
introduzir em caixas ou cavidades de madeira, pedra ou metais, figuras,
emblemas ou ornatos de relevo, ou sem êle, mas com diferentes cores, para
poderem sobresair e agradar, como vemos em alguns altares, retábulos e outras
peças de igrejas dos séculos XV, XVI, e XVII". (
1
)
Identifica, pois, com a artesania de incrustar, correspondente do italiano
incastrare e incassatura, do francês emboiter e do inglês inlaying. (
2
)
O acervo brasileiro é relativo e pouco expressivo em ambos os gêneros, por
se ter verificado descontinuidade na prática e desaparecimento das atividades
entre os artífices.
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
Trata-se, por isto, de casualidades históricas integradas aos
monumentos arquiteturais e, noutro aspecto, de exceções folclóricas
manifestadas através de lavores tradicionais europeus transferidos com
emigrantes, ou quando ocorrentes por conta da inventiva popular.
Embrechados mais antigos no Brasil talvez sejam aqueles de
fingimento de mobília (bancos e cadeiras) construídos de alvenaria e
revestidos de conchas, búzios e pequenos seixos rolados, ainda existentes
nos pátios de velhas fortalezas, conventos e engenhos. (3)
Vale indicar o tipo de revestimento de seixos rolados delineados por
fieiras de conchas que permaneceu em grandes construções do século
passado e do princípio deste, fazendo o piso geometrizado das aléias
ajardinadas, como ainda se conservam nos pátios do Hospital Santa Isabel
ou nas veredas do Campo Santo da Bahia, por exemplo. Para alguns
cronistas, tal sistema de pavimentar originado da Ilha da Madeira, gerou
processos e adaptações locais, de acordo com a serventia dos materiais da
região. Da facilitação dessa prática surgiu o típico revestimento mosaicado
das calçadas cariocas, com a chamada "pedra portuguesa", permitindo uma
escala sem limites de desenhos. Alguns se valorizaram em nível de sinais
emblemáticos de cidades ou bairros, como no caso da calçada de
Copacabana, de ondulado preto e branco de grande efeito ótico e
comunicativo, ou no das calçadas da Avenida 28 de Setembro, de
instrumentos e notas musicais para consagrar a memória do poeta e
compositor Noel Rosa, nascido e falecido em Vila Isabel.
Outra fonte de influência para os embrechados deve encontrar-se na
azulejaria, no período em que esta assumiu o revestimento externo de casas
e edifícios. Aqueles embrechados improvisados de restos de faiança datam,
geralmente, do século passado e se constituem de aproveitamento de
quebras e fragmentos de azulejos e de baixelas da louça caseira.
Há exemplos curiosos de boa composição, acrescidos daquela virtude
que é o toque de arte, a nobilitação de um material já excluído e quase lixo.
As torres e frontão da Igreja de N. Sr.
a
do Rosário de Maceió, (Fig. 5) o
torreão de uma cúpula de mausoleo da Irmandade da Santa Casa da
Misericórdia em Salvador, (Fig. 6) e o obelisco do Pacheco daquela
cidade, (Fig. 7) ilustram plenamente a prática desse tipo de embrechado de
recuperação de materiais para embelezamento decorativo da arquítetura e
da paisagem. (
4
)
Diversos túmulos de Cuiabá, Belo Horizonte, Vila Boa de Goiás,
Penedo, Mecejana do Ceará e até no Caju do Rio de Janeiro, antigos e
recentes, são embrechados de seixos rolados, conchas, cristais, pedaços de
ladrilhos, vidros de côr e calcáreos, sempre enfatizando a natureza local.
(Fig. 1, 10, 11)
Alguns desses simplórios lavores coincidem com as soluções
propostas por um grupo de belas-artes em termos de renovação universal
da tradicional arte do mosaico.
EMBRECHADOS E EMBUTIDOS
Se o mosaico da arte tradicional não estivesse tão implicado a uma
transcendência estética, e sobrecarregado de contexto escatológico, não
faríamos recusa em confundir as propostas recentes de embrechados mais
sofisticados, com aqueles mosaicos que expressam a historicidade de uma
longa era.
Um percurso de dez séculos da amplitude geográfica do mundo
cristianizado, tecnicamente fundamentado nos artesanatos da cerâmica, do
esmalte e da vidraria policromada, que por sua vez correspondiam
culturamente às manifestações do desenho, da pintura e da arquítetura, não
poderia hoje restar como referência de uma arte superada em face de
renovações destituídas de ponderável temática.
Por isso não fica mal o apelido de embrechados aos "mosaicos" da
escola nova, respeitando-se a simplicidade deles.
Um outro capítulo de prendas praticadas no fim do século XIX e no
princípio deste, refere-se às caixas e armações de presepes, — (Ceia do
Senhor, Calvário, Morte de Nossa Senhora, Sermão das Oliveiras, o Reino
do Menino Deus, a Cela de Santo Antônio) — e tantas outras motivações,
as quais, hoje analisadas sob o vocabulário da crítica de arte, seriam
incluídas nos capítulos do objet-trouvé, ready-made, box-form, hard-edge,
colagem, etc.
É nosso empenho acentuar a presença da técnica de embrechados
(conchas, sementes, contas de vidro, folhas, recortes, colagens, etc.) — em
muitos dos trabalhos da ingenuidade e da paciência, conforme podem ser
vistos, ainda hoje, nas coleções do Instituto Feminino da Bahia.
Sobre os embutidos — (trabalhos de incrustação) — nos acervos e nos
artesanatos brasileiros, idêntico esquema de apreciação poderá ser feito.
Isto é, em primeiro lugar a constatação de obras integrantes da arte
religiosa seiscentista e setecentista e, em segundo, & verificação da
continuidade, da prática e produção no período seguinte, considerando-se
também o empobrecimento da técnica e o esvaziamento do consumo. (
B
)
Há exemplos relevantes, do ponto de vista artesanal e artístico, nos
monumentos religiosos do período colonial. Um dos mais remotos data
dos fins dos Quinhentos ou primeira década dos Seiscentos. Refere-se à
lage tumularia de José de Anchieta, certamente lavrada em Lisboa e
conservada numa cripta do atual Palácio do Governo do Estado do Espírito
Santo em Vitória, erigido no local e sobre a demolição do antigo Colégio e
Igreja de São Tiago, dos jesuítas. (Fig. 1).
A época presumida justifica-se pela data do óbito (1597), e da
trasladação dos ossos para a Igreja de Jesus do Colégio da Bahia, hoje
Catedral, em 1609, onde se guardou em local não demarcado. (
6
)
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
Consiste, aquela lápide sepulcral, de caprichoso trabalho de
incrustação em recortes ornamentais de granito escuro sobre pedra de Lios
(calcáreo róseo), formando desenhos acânticos em toda cercadura.
Por ordem cronológica, a segunda referência de embutidos cor-
responde às anotações do Livro dos Guardiães do Convento de São
Francisco da Bahia (
7
) quando informa que em 1738, o 13.° Guardião Frei
Gervásio do Rosário ... "mandou vir do Reino para o pavimento da Capela
Mor a pedra lavrada a modo de alcatifa", ou quando registra em 1741,
com o 38.° Guardião Frei Manuel do Nascimento, a notícia de que ... "no
seu tempo se assentou no pavimento da Capela Mor a alcatifa de pedra."
(
s
)
Tais documentos revelam a arquítetura de interior decorando uma
grande nave mediante piso de embutido, com padrão ornamental indicado
e com cinco anos de prazo entre a data da encomenda e a do assentamento!
Os embutidos de pedras para os pisos foram, no tempo próprio,
elementos decorativos para o ambiente da igreja tão importantes quanto a
entalha das paredes e os painéis de forro. Quando não fosse de toda a nave,
haveria de ser pelo menos e sobretudo do chão do presbitério, área
reservada para os sepultamentos mais nobres. Assim se entende neste texto
do Livro dos Guardiães franciscanos da Bahia ... "mandou vir do Reino, e
assentou as sepulturas de pedra mármore branca, e vermelha, em todo o
Cruzeiro da Igreja, das grades para cima".
O barroteamento de alizares de pedra de Lisboa ainda existe em
algumas igrejas setecentistas, dividindo as campas de tampos de taboado,
para os sepultados temporários e as lages perpétuas, muitas de armoria
paquifada de Cavaleiros da Ordem de Cristo, fidalgos da Corte e outras
dos senhores Bispos do Rei de Portugal.
Nas áreas não utilizáveis para sepultamento e próprias de ambientes
nobres da vida monástica, verifica-se idêntico empenho de decoração
caprichada com embutidos policromados.
As sacristias do Convento do Carmo e do Colégio dos Jesuítas, os
frontais de escadaria e arcos do belvedere da Santa Casa de Misericórdia e
os painéis laterais da capela mor da Igreja de São Pedro dos Clérigos, (Fig.
2 e 3) todos do acervo colonial baiano, assim como o piso do presbitério da
Igreja de São Francisco da Penitência do Rio de Janeiro, são obras
marcantes categorizadas como elementos integrantes da arquítetura. Não
são valores incidentais, que por artifício de interpretação ou sentimento
saudosista se admite como belo por ser velho.
São belos e monumentais por discernimento de seus autores,
arquitetos que os desenharam e os encomendaram aos artífices de então.
Ao se ver os degraus e patamares da Santa Casa de Misericórdia da
Bahia não se escapará daquela impressão de notas coloridas —
Embrechados
e
Embutidos
Fig. I Lápide sepuleral. José de
Anchieta conservada no primitivo local
do Colégio de São Tiago de Vitória de
Espírito Santo , demolido. Encontra-se
numa das salas do porão do atual Palá-rio do
Governo . Trabalho de embutido de
recortes de granito em laje de pedra do
Lios.
Fig. 2 — Igreja de S. Pedro dos Clérigos,
Salvador, Bahia. Frontal late-ral do
presbitério. Embutido polierô-mico em
matriz de pedra de Lios. Data presuvel:
segunda metade do século XVIII.
Fig. 3 — Igreja S. Pedro dos Clérigos,
Salvador, Bahia. Frontal lateral do
presbitério.
Fig. 4 — Frontal do altar da Igreja do
Seminário Jesuíta de N. S. Belém, Cachoeira,
Bahia. Fot. do E. Cerqueira Falcão.
Fig. 5 — Igreja de N. S. do Rosário, Maceió,
Alagoas. Ático e torre revestidos de
embrecbado policrômico de frag-
mentos de azulejos, pedras e louça"-. Data de
construção: 1.853.
fig. 6— Campo Santo, Salvador, Bahia.
Torreão de mausoléu coletivo revestido com
embrechado de fragmen-tos de louça o
azulejos. Segunda metade do século XIX.
Fig. 7 — Obelisco do Pacheco (demolido)
datado de 1857 — trabalho de
embrechado com fragmentos de azulejos,
pratos de louça e calcários, fot. de E.
Cerqueira Falcão, 1940, na ocasião da
demolição. Salvador Bahia,
Fig. 8 — Cruz do Pascoal, Salvador,
Bahia. Oratório construído em alvenaria
com aproveitamento de azulejos próprios
de revestimento de edifícios; embre-
chado de arte popular.
Fig. !) — Cemitério S. José de Poran-
gaba. Ceará. Jazigo de família datado de
1892 revestido de embrechado da
calcários e quartezitos locais.
Fig. 10 — Cemitério de Penedo. Alagoas.
Túmulo revestido de embrechado de
seixos o calcários do barranco. Cruz de
folha de metal recortado semelhante aos
abebês (lo ritual xangô (v. "Iconologia
Africana no Brasil", Revista Bra-sileira
de Cultura, n.° 1, 1969 |.
Fig. I I — Cemitério da Piedade de Cuiabá,
Mato Grosso. Sepultura de uma naturalista
alemã, afogada no rio Coxpó, construída com
calcários e quart-zos multicores da região,
Fig;. 12 -- Campo Santo, Salvado! Bahia.
Mausoléus coletivos da Irman dade da
San ta Casa. Piso com calçamento de
embrechado (seixos e con chas).
EMBRECHADOS E EMBUTIDOS
verdes, rubras, pretas e amarelas — dos recortes embutidos, discretos e bem
espaceados, sobre o róseo mármore da pedra de Lios. Aqueles mesmos ornatos
que revestem as faces dos arcos para emoldurar a paisagem do mar, das ilhas, dos
veleiros e das fortalezas.
Tal composição entre estruturas construídas e paisagem natural, jamais
ocorreria ao jeito de casualidade.
O universo conflitante do barroco em sua aventura brasileira, esplendoroso
nas caixas majestáticas da nave franciscana e da sacristia carmelita, revela que o
tão apregoado domínio curvilíneo é uma locução de valor relativo, pois a
característica daquele período e estilo é a ousadia, a liberalidade de uso de todos
os valores formais, retilíneos como nos emolduramentos dos painéis de forro, ou
curvilíneos como nas colunatas salomônicas, nos torçais, nos corpos nus e
contorcidos das cariatides, anjos e monstros.
Numa tentativa de estabelecer um pouco de ordem nas referências principais
do acervo religioso baiano, relativas às obras de embutiduras, destacamos as
seguintes indicações:
lavabo, altares da sacristia e púlpitos de mármore policromado da Igreja do
Colégio de Jesus, hoje Catedral Primaz do Brasil, de materiais padrões e estilo
do artesanato praticado na Itália, sobretudo nas igrejas da contra-reforma.
arcaz da mesma sacristia, construído no local em jacarandá, com incrustações
de marfim e tartaruga, em relevante trabalho de marchetaria.
piso alcatifado da Igreja de São Francisco de Salvador, de desenho semelhante
(ornato e movimento acântico) ao da capela mor de São Francisco da
Penitência do Rio de Janeiro.
— lavabo e altar da sacristia da Igreja do Convento do Carmo, de mármore
policromado em características romanas do século XVII.
lavabo da sacristia da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, com incrustações
policrômicas idênticas às referidas da escadaria e arcos, em materiais de
procedência portuguesa. (9)
lavado da sacristia da Igreja da V. O. III de S. Francisco em materiais
policrômicos e características estilísticas portuguesas, com motivos
fitomórficos e zoomórficos regionais. (
10
)
frontal do altar da Igreja do Seminário dos Jesuítas de Belém da Bahia, (Fig.
4) em pedras policromadas e lavor artesanal de alto nível com desenhos de
rosas, flores e ornatos renascentistas. (
11
)
frontais laterais do pódio do presbitério da Igreja São Pedro dos Clérigos de
Salvador, em semelhantes características de materiais e desenho do embutido
do frontal do altar referido na nota 6. (Fig. 2 e 3)
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
Dessas verificações, sumárias e parciais em confronto ao acervo
brasileiro colonial, permitimo-nos destacar as seguintes coincidências:
a) os embutidos de mármore policromado da Igreja do Colégio de
Jesus (Catedral) assemelham-se aos da sacristia do Convento do
Carmo e se identificam aos modelos romanos e florentinos.
b) os pisos alcatifados dos presbitérios de São Francisco de Salvador
e da Igreja de São Francisco da Penitência do Rio de Janeiro são
do mesmo padrão e lavor, fabricados e importados de Portugal na
primeira metade do século XVIII.
c) há relevante divergência de desenhos ornamentais e de ma-terais
entre o embutido da lápide sepulcral de José de Anchieta, em
Vitória do Espírito Santo e o do frontal do altar da Igreja do
Seminário dos Jesuítas de Belém da Bahia, ambos trabalhados em
padrão estilístico barroco.
d) a coincidência de características de desenho e composição entre
os frontais laterais do pódio da capela-mor da Igreja de São Pedro
dos Clérigos e do lavabo da Igreja da V. O. III de S. Francisco de
Salvador faz crer numa mesma procedência e autoria, de maior
probabilidade portuguesa e de oficina de marmoristas habilitados
aos modelos barrocos do século XVII, destacando-se no lavabo da
sacristia dos terceiros franciscanos desenhos de pássaros da região
(papagaios) e amorinos que parecem índios.
São pouco frequentes embutiduras conservadas em outros materiais.
São, entretanto, de excepcional valor e significação as poucas peças
restantes de incrustações de marfim e prata em imagens e cruzes de
madeira, ou, por alargamento do tema, das imagens do Cristo com
incrustações de rubis simulando gotas de sangue.
Na marcenaria não houve desenvolvimento do artesanato ponderável
para uma apreciação crítica. Móveis franceses foram importados no século
XIX para os abastados atraídos pela beleza da marqueterie.
Nossa marchetaria foi descontínua e limitada, atingindo produção
mais hábil entre emigrantes do Paraná que se fizeram artífices no fabrico
de objetos de toucador, bandejas e tampos de caixas incrustando folheados
de madeiras regionais na composição esterio-tipada da paisagem pitoresca
marcada pela silhueta da palmeira ou da araucária.
Sob o critério crítico resistem apenas as obras de acervo reli
gioso colonial, algumas improvisações ingénuas e populares de vária
época e os ricos trabalhos de marchetaria importados até o primeiro
quartel de nossa centúria. 1
EMBRECHADOS E EMBUTIDOS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1) Diccionario Technico e Histórico de Pintura, Esculptura, Architectura e Gravura composto
por Francisco de Assis Rodrigues — Lisboa, 1875.
2) v. Encyclopedia of World Art — McGraw-Hill Book Company, Iuc. — New York — Toronto
— London — vol. VIII —
Enciclopédia Universale dell'Arte — Instituto per la Collaborazione Cultu-rale, Venezia
— Roma.
3) v. Relíquias da Bahia, de Edgard Cerqueira Falcão, 1940, p. 9. (documento fotográfico de
pátio do Porte São Marcelo, Salvador, fingimento de mobília construída em alvenaria
de pedra e revestimento de conchas e seixos).
4) id. ibid, doe. fotográfico p. 392.
Monumento de alvenaria, construído em fornia de pirâmide alongada revestida
de sobras de azulejos e pratos de faiança policromada, de gracioso destaque
colorístico e agradável interferência paisagística, tendo em uma das faces da
base a seguinte inscrição:
José Joaquim De Mello
Pacheco J. B. Franco
Lima Em 5 d 'Agosto de
1857
5) Michelangelo Cagiano de Azevedo — (in Enciclopédia Universale deli'Arte)
— generaliza os termos do italiano — tarsia, o intarsiatura, derivados do árabe
tarsi — como . . . "trabalhos ornamentais ou figurados produzidos por ajunta
mento de múltiplas peças polidas de diferentes materiais, p.e., mármores,
pedras coloridas, marfim, madre-pérola, madeira, metais, vidros, etc, fixados
sobre uma superfície apropriadamente preparada."
O citado autor estuda o artesanato em relação à antiguidade enquanto em dois outros capítulos
André Chastel e Hermann Goetz abordam obras e estilos da civilização europeia ocidental e do
mundo oriental e islâmico, respectivamente. A correlação do acervo brasileiro à amplitude do
universal, situa-o como ressonância frágil da influência renascentista e barroca através de
Portugal. As características de orientalismo ornamentativo procedem da transculturação sobre os
desenhos prototípicos renascentistas italianos, não sendo de nosso conhecimento a continuação
desse artesanato amplamente exercido cm toda civilização islâmica e certamente manifestado na
arte ibérica.
Em relação ao mundo ocidental, de acordo com Plínio o Velho, a técnica da incrustação já era
aplicada ao tempo de Mausolus de Caria, no quarto século antes de Cristo. Espalhou-se através
da civilização sob os termos de incrus-tatio e, menos frequente de loricatio, conforme
registraram Isidoro de Sevilha e Vitruvio.
Plínio usa denominações de especificação para o tipo de trabalho: opus sectile, quando a
incrustação é feita de pedras de igual espessura ajuntadas, e opus interrasile, quando sobre uma
matriz mais espessa (lage parcialmente escavada nos desenhos) recebe recortes ajustados de
outras cores. A variedade de recursos, padrões e materiais praticados no Oriente e Ocidente,
envolvendo ou participando de outras técnicas, v.g., cerâmica, mosaico, esmalte, marchetaria,
etc, conferem ao processo artesanal do embutido uma identificação com a História da
Pintura, desde que esta se conceitue com a
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
alteração das cores e formas de uma superfície, mediante qualquer matéria e processo, sob
motivação e ordenação de atributos estéticos. Sob tal ângulo, ié., como expressões de pintura,
os embutidos, eruditos ou ingênuos, devem ser estudados.
André Chastel considera que durante o barroco (séc. XVI, XVII) esses trabalhos recrudesceram
dispondo de rico mercado e tendo a participação de artistas como Borromini, autor da Capela
Spada em S. Girolamo, Boma, cujo padrão ornamental parece corresponder ao ponto de partida
do desenho que se praticou em Portugal e que de lá chegou ao Brasil.
6) A lage sepulcral de José de Anchieta tem seus desenhos ornamentais da cer
cadura semelhantes aos da mesma artesania do século XVII, de estilo barroco
e de influência florentina dos embutidos em mármore e outras pedras.
Seus materiais (qualidade do calcáreo) são nitidamente portugueses. Os desenhos se filiam aos
do frontal do altar hoje exposto no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, originalmente
destinado à Igreja de São Bento da Saúde, daquela cidade, (v. reprodução fotográfica em
Rapports et Communications, vol. II, do XVI Congrés International d'Histoire de l'Art, Lisboa
— Porto, 1949, p. 320, fig. 1 da comunicação "Identificação de um Frontal de Altar do século
XVII", da autoria de João Afonso Corte-Beal).
O pesquisador informa existir em Portugal um outro semelhante na capela-mor da Igreja Matriz
da Batalha.
Taia exemplos ligam-se estilisticamente aos do acervo brasileiro indicados no presente ensaio:
lápide sepulcral de José de Anchieta e frontais da capela-mor da Igreja do São Pedro dos
Clérigos de Salvador.
7) Livro dos Guardiães do Convento de São Francisco da Bahia (publicado por Frei Fidelis Ott,
nome religioso de Carlos Ott) — Bev. IGH da Bahia, 1943, n.° 69.
8) Transcrito de "Maravilhas da Religião e da Arte na Egreja e no Convento de São Francisco da
Bahia", do Frei Pedro Sinzig, O.F.M., Bol. da Rev. do Inst. Hist. e Geog. Brasileiro, 1934, do
texto original do Livro II da Crónica de Frei Jaboatão. Reprodução fotográfica do piso alcatifado
da capela-mor.
9) v. Carlos Ott, "A Santa Casa de Misericórdia da Cidade de Salvador", pub. DPHAN, n.o 21,
Bio, 1960, p. 105.
Sobre o referido lavabo, comenta o A. : ... "Menos sabemos ainda quanto à melhor peça de
escultura existente na Santa Casa — o lavatório da sacristia. Ê, mesmo, dos melhores que se
encontram na Cidade do Salvador, evidentemente feito em Portugal durante a primeira metade
do século XVIII. Um especialista português talvez possa identificar a oficina em que foi fabri-
cado.". ..
10) v. trecho da "Breve Notícia", datada de 1760, da autoria do Secretário da
Ordem Terceira de São Francisco da Bahia e fornecida a Frei Jaboatão que
a inseriu no Cap. VIII de "Novo Orbe Seráfico Brasílico".
... "O tecto e as paredes delia estão cubertas todas de talha dourada, o ricos payneis. Tem um
formozo órgão no meyo do choro, e athe o proprio frontispício he de pedra entalhada toda, com
grande custo. Da mesma forma he ornada a Sachristia..." Transcrito de Marieta Alves, "Historia
da Venerável Ordem 3." da Penitencia do Seráfico Pe. São Francisco da Congregação da
Bahia" — Bahia, 1948, p. 19, 80 (doc. fotog. do lavabo), p. 79.
11) v. Edgard Cerqueira Falcão, "Relíquias da Bahia", doe. fotográfico p. 484.
EMBRECHADOS E EMBUTIDOS
De acordo com Rocha Pita o frontal do altar da Igreja de N. S. de Belém, é da autoria
do Padre Jesuíta Alexandre de Gusmão, arquiteto e construtor daquela igreja e
seminário.
"Com algumas esmolas e com o seu laborioso cuidado, fabricou pelo seu desenho,
suntuosa igreja, a que deu o título de N S. de Belém e fêz OB excelentes
artefatos de retábulo, fabricados de fina e manchada tartaruga, e de várias obras
dessas pela sacristia, e muitos presépios de diferentes materiais pelas suas
mãos". "Ver Antonio Loureiro de Souza "Marcos de Nossa Fé" (Belém de
Cachoeira), Rev. da Semana, Rio, 19-11-1949.
Desta informação de Rocha Pita, transcrita incidentalmente, correlacionamos a
fotografia 484 de "Relíquias da Bahia", feita por E. Cerqueira Falcão em 1940,
da pedra do primitivo altar da Igreja de Belém encontrada na casa do zelador da
mesma igreja. A identificação de autoria valoriza consideravelmente o trabalho
bem como nos permite conhecer mais próximo a personalidade artística do
arquiteto jesuíta, construtor do seminário e artesão do frontal do altar. Valoriza-
se, também, a informação de Rocha Pita, contemporâneo de Alexandre de
Gusmão, ao indicar diversos trabalhos deste na técnica de embutidos (frontais de
altar e trabalhos de sacristia) e outros de embrechados — (os muitos presépios
de diferentes materiais).
Ciências Humanas
O Culto do Passado no Mundo
em Renovação
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
Estamos vivendo a mais intensa e nervosa experiência de mudança
estrutural do mundo. O que se imagina para o ano 2000, como decorrência
de toda essa transformação, será realmente uma resultante da mudança e
com a mudança de que participamos e de que somos um instrumento de
ativação, teremos criado um mundo realmente diferente que tenha atingido
a perfeição que os homens possam idealizar e realizar?
Assistimos ou somos participantes, efetivamente, de transformações
profundas na estrutura politica, cultural, social, econômica, espiritual.
Toda uma nova ordem pretendemos criar, destruindo padrões e valores que
configuravam, para não irmos muito distantes no tempo, o início deste
século. O balanço que se deu, em 1900, acerca de como funcionava a
sociedade humana em suas instituições de vária espécie, em suas
ambições, em seus propósitos, em suas demonstrações de criatividade, em
sua força espiritual, em suas aflições, inventário de que se encarregaram
figuras admiráveis do pensamento e da inteligência europeias, inventário
que cobrira todo um século — 1800 a 1900 e se encerrara no principiar de
XX, refletiu a existência de uma dinâmica, como a de hoje, de uma intensa
atividade em que todos os povos se definam em suas aflições, em suas
angústias e em suas manifestações visando alterações profundas em seus
sistemas de vida e em sua visão do futuro. O processo de desenvolvimento
parecia ter atingido o seu climax. Pouco mais talvez pudesse ser obtido.
Os valores do passado, em 1900, estavam superados.
Ao encerrar-se o segundo conflito mundial, já havia uma outra
orgânica universal diferente daquela de 1900, que todos, no entanto,
sentiam a caminho de um fim não melancólico. A guerra gerara
esperanças, em meio ao desespero dos que haviam perdido ou sentiam, em
sua estrutura passada, a impossibilidade de sua
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
manutenção. E logo a seguir, não foi possível manter o convivio que as
organizações internacionais visavam, desde que se havia decidido, em
conferências e pactos firmados antes e no decorrer do entrevero sangrento,
a elaboração de um universo humanizado e fraterno, com direito de acesso
ao progresso e ao bem-estar a todos que compunham a grande família
humana. As divergências continuavam e novas angústias e reivindicações
surgiam, demonstrando que todo aquele aparatoso texto de direitos e
obrigações, que se decidira executar, era insuficiente ou não expressava a
realidade que devíamos enfrentar. Os choques amiudavam-se. Eram as
divergências ideológicas, as divergências espirituais, as exigências nacio-
nalistas, as investidas contra a existência do chamado "terceiro mundo",
que não admitia mais a continuação de um status de que resolvera sair de
qualquer modo. Os desequilíbrios eram gritantes. Os distanciamentos
estavam cada vez mais visíveis. O arcabouço da sociedade tradicional, que
procurava resistir, apelando para toda a espécie de orientação e de técnicas,
entrava em colapso. A Europa indagava surpresa, meio aturdida,
insatisfeita, se poderia continuar o destino, que imaginara definitivo, de dar
continuidade e expressão à vivência universal. Teria esgotado sua
capacidade de liderança? Os novos horizontes pareciam-lhe adversos.
Outros continentes desafiavam sua permanência e força criadora. A
inventiva humana, de seu lado, crescia sem mais limitações. O homem não
se aproximava de Deus, porque a êle procurava substituir, somando
energias, combatividade, criatividade para o sensacionalismo de uma
técnica que o fazia, senão um rival, mas um divinizado no esplendor de seu
engenho.
Há inegavelmente, portanto, alguma coisa que nos leva a refletir e
concluir que estamos vivendo, realmente, um mundo desordenado,
insatisfeito, que se transforma velozmente sem que haja a orientá-lo a
segurança de uma filosofia, como ocorreu em outras idades, quando as
sociedades eram prevenidas da proximidade de mudança pelo surgimento
de um pensamento novo que produzia impactos, mas levava à efetivação
de uma nova sistemática. Não vamos longe — quando, no século XVIII, os
filósofos do liberalismo britânico e francês enfrentaram a ideologia
conservadora, anuncia-va-se, com audácia, é certo, mas segurança de
convicções, um novo horizonte, que o século XIX experimentou. Quando,
posteriormente, Marx e Engels refutaram os cânones do capitalismo,
anunciando a destruição de uma ordem política e social, realizavam o
impacto que prenunciava o socialismo de Estado que se experimenta em
largo trecho do mundo atual.
As transformações que se operam à nossa vista e da qual par-
ticipamos, envolvem todos os povos, assegurando-lhes ou impondo-lhes a
contribuição que possam trazer. As nações que deixaram a era colonial e
são constitutivas do "Terceiro Mundo", os povos da Africa e
O CULTO DO PASSADO NO MUNDO EM RENOVAÇÃO
da Ásia, em sua história distante ou atual, não são um elemento essencial
na demonstração das mudanças que se operam? Se até bem pouco, viviam
sob a direção politica de nações poderosas, que quase repentinamente
viram escapar-lhes das mãos a direção que possuiam, o domínio que
exerciam, encontrando-se em pé de igualdade soberana com o mundo
exótico que lhe aprendera a lição e decidira gover-nar-se por si próprio,
nos moldes e fórmulas que lhes haviam ensinado nos séculos de posse
política! Já fora assim, aliás, um século antes, com o espetáculo que os
latino-americanos e anglo--americanos havíamos dado, quando nos
desligamos da subordinação em que vivêramos durante trezentos anos! A
lição fora aprendida e a organização que adotáramos nos fora ensinada
através de uma experiência dolorosa. Herdáramos um status cultural, de
que nos valeríamos imediatamente para a elaboração, não de uma nova
sociedade, que essa já contava distancia do tempo, mas de uma orgânica
política que seguimos e nos definiu no convívio que passamos a ter na
comunhão universal.
Nesse mundo em mudança, que reflete a insatisfação coletiva
universal, sim universal porque é de todos os instantes e de todas as áreas
ideológicas e espirituais, que papel poderá ainda possuir o tradicionalismo,
que importe em manter vivos os valores do passado e não constitua um
embaraço ou uma reação ao progresso? Em que dimensão poderá esse
tradicionalismo ter vivência se o acusamos de responsável pelos desajustes
e pelos desconcertos que tentamos agora alterar ou destruir, criando o
mundo novo? As gerações que se fizeram criadoras de uma época
histórica, aqui e ali, servindo aos ideais da época em que se realizavam,
atuando na medida em que as possibilidades de seu instrumental, em
qualquer setor da vida, lhes permitiu atuar, procurando, no esforço de todo
dia, montar e construir uma ordem de vida que fosse realmente a satisfação
de seu entendimento, de sua espiritualidade, de seus propósitos, por acaso
essas gerações são passíveis unicamente de crítica negativa, de condenação
sem apelo e agravo, sem defesa, portanto? Ou devemos ver nelas,
compreendendo-as, o que pretenderam realizar e puderam realizar, nos
aspectos positivos ou não de sua passagem pelo mundo, o haver a que têm
o direito, haver que pode ser verificado facilmente por toda parte? Negar
por negar, lembremos, pode vir a ser o futuro que nos espera, quando
outras gerações procurarem estu-dar-nos no que tivermos promovido e não
encontrem, em nosso atuar, senão essa parcela imensamente grande de
negação de tudo e de todos.
Não esqueçamos que, nos momentos mais difíceis da vida dos povos,
o culto do passado, o tradicionalismo, hoje tão malsinado, serviu à
manutenção das esperanças e valeu como fogo sagrado, necessário ãs
energias que se perdiam ou interrompiam e estavam precisando da
renovação, do rejuvenescimento que se foi buscar no
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
que êle representava, isto é, nos valores e no pretérito distante ou próximo
como lição eterna a guiar o mundo. Quando, na guerra recente, os povos
da Rússia soviética sentiram, na carne, o rigor violentíssimo do hitlerismo,
a voz do passado, que não era o passado socialista mais recente, mas
aquele dos dias enérgicos da fundação do Estado monárquico dos Czares,
da formação territorial, da imposição de uma disciplina política e, de certo
modo, cultural, representada por hábitos e processos existenciais,
incluindo o uso de um idioma que era língua franca, essencial à elaboração
nacional e à unidade que se pretendia fixar, a voz do passado foi invocada
para argamassar a vibração de quantos eram filhos da mãe Rússia, eterna e
historicamente realização de seus filhos, agora mobilizados, em seu nome,
para a tarefa da defesa e da sobrevivência. A tradição do cesarismo
distante, mas vivo, como força para a resistência e para a consolidação da
unidade que, se rompida, teria provocado o próprio fim do sistema que era
e é vigente, foi o elemento espiritual que reacendeu confiança e deu
segurança na hora difícil.
E se formos a um país que nos fala sempre ao coração, pelo que a êle
devemos na formação de nossa cultura, a França, que vemos, nos dias
tormentosos que vem vivendo desde a segunda guerra, senão um esforço,
não apenas de sobrevivência, de majestade, de poder, de soberania
crescente, mas de manutenção de sua condição de povo, enobrecido por
séculos de história, de tradição, que lhe valeram a projeção que alcançou e
hoje procura defender e manter? As comemorações nepoleônicas,
anunciadas para o ano em curso, que significam senão esse estado de
espirito? Nos Estados Unidos, em meio ao materialismo que lhe assegura
tanto vigor e tanta projeção, o culto do passado não foi abandonado. Ao
contrário, é continuadamente fortificado para que a nação, que se realizou
com a participação de milhões de humanidades as mais variadas, vindas de
todos os cantos da terra, não fosse perturbada na sua essência nacional e a
americanização, como processo cultural, alcançasse o êxito admirável que
alcançou. O tradicionalismo, em nenhum momento interferiu para impedir
o progresso, como este também jamais o ignorou ou desprezou. O que
nesse particular, os norteamericanos constroem, defendendo o passado
como lição permanente, é, de certo modo, sem similar e pode ser
constatado nos museus, nas bibliotecas, na vasta literatura que se escreve e
alimenta o nacionalismo da poderosa nação no objetivo maior de "um
destino manifesto."
E que dizer dos países novos da Africa e dos velhos, que se libertaram
na Ásia? Por acaso recusaram o passado próximo ou distante que lhes
explica as aspirações e as características? No particular da Africa, que é a
chamada "negritude" senão o movimento que busca fundamento nas raízes
africanas, naquelas raízes milenárias dos vários grupos e impérios que os
europeus encontraram e submeteram à escravidão para o nefando comércio
a que se entrega-
O CULTO DO PASSADO NO MUNDO EM RENOVAÇÃO
ram durante três séculos e posteriormente transformaram no trabalho,
executado na base de salários que desciam a menos de 10 (dez) dólares por
ano, notem bem, por ano e não por mês. Naquelas raízes, que os
pesquisadores africanos e os pesquisadores europeus e norteamericanos
estão revelando em minúcias quase impossíveis de um crédito, tal a
riqueza por que elas se apresentam e a variedade de valores que possuem,
os africanos se estão, eles próprios, redescobrindo para restaurar-se na
dignidade de povos livres, que desejam seguir um novo destino, mas
destino que eles acreditam ter de ser realizado com a fundamentação de
um tradicionalismo que lhes assegura e explica a existência e lhes atribui
uma nova missão humana e cultural.
O conflito que se constata entre o que é tradicional e o que deve ser
buscado ou é buscado à novidade, importada dos sistemas e instituições
trazidas pelo colonizador, dificultando a elaboração política, nem por isso
tem sido considerado como força cultural a desprezar ou negar. O conflito
é o conflito que se eterniza, em toda parte, entre os que defendem o
conservadorismo, a quietude de uma vida sonolenta, rotineira e os que
almejam e lutam por uma sistemática mais intensa, mais atual, mais
dinâmica. Em nenhum momento devendo ver-se nele a ideia da destruição
do que é tradicional.
No particular da Ásia, o quadro é ainda mais vivo. Porque, ali, as
culturas, representadas não unicamente nas manifestações da criatividade
material, mas, principalmente, na criatividade espiritual, são muito mais
antigas e sublimadas por traços admiráveis, a revelarem povos que
souberam elaborar valores de que se surpreenderam os descobridores,
conquistadores de impérios e fundadores de uma nova ordem que, de certo
modo, foi responsável pela destruição daqueles valores seculares. Valores,
aliás, que influenciaram, como foi o caso da filosofia, e enriqueceram a
espiritualidade europeia, alimentando-a de maneira impressionante. O
passado desse mundo estranho, ainda há pouco nos recordava o grande
Panikar, naquele ensaio maravilhoso acerca da presença europeia no
Oriente e a pressão que ela exerceu sobre os destinos, os valores e a
sistemática de vida regionais, por acaso foi por êle desprezado? Aceitando
a novidade revolucionária, introduzida pelo europeu, os orientais deixaram
de ver, na sua tradição secular, naqueles padrões de cultura de que se
orgulhavam, um motivo de decesso, que devia ser ignorado ou desprezado?
Evidentemente não vem sendo essa a atitude deles no momento em que
recuperam a liberdade e se restauram como Estados, nacionalidades
definidas em suas características, não apenas humanas, mas sociais e
culturais. Todo esse acervo imenso de somatório cultural, acumulado
durante séculos, constitui, no presente, a força de preservação essencial à
nova fase que começam a experimentar. A tradição não desfigurou, não
comprometeu, não foi indicada como um estorvo na hora da restauração da
independência. As
ARTHUR CEZAB FERREIRA REIS
origens de toda espécie, aquelas raízes seculares, continuam a servir de
lição e de explicação para o próprio presente. Na India, no Pakistão, na
Indonésia, para referir os Estados que mais se exaltaram na defesa de sua
independência, o culto do passado vale tanto como o culto religioso, É
assunto sagrado, a que todos se rendem, na certeza do que êle vale e do
que representa como conteúdo para a personalização nacional.
Na América Latina, se há povos com a tradição quase milenar, como é
o caso dos mexicanos, dos centro-americanos, dos peruanos e bolivianos,
que encontram raizes indígenas verdadeiramente impressionantes pela
grandiosidade das civilizações que representaram, há igualmente os povos
que não encontraram raízes do mesmo tipo ou que se expressaram
pobremente e, em consequência, todo seu acervo de realizações culturais é
uma resultante do processo de intercultu-ração e de mestiçagem que se
operou no decorrer da dominação europeia, portuguesa, espanhola e
francesa. Os estoques culturais, que falam do tradicional, nesses países ou
entre esses povos, por acaso vem encontrando a reação negativa do que
eles possam significar? Não é essa a realidade. Em todos eles, o
condimento tradicional vem sendo utilizado para fortificar a unidade e o
prosseguimento à decisão nacional de caminhar mantendo-se soberanos e
progressistas.
Se recuarmos no tempo, para, com olhos de ver, acompanhar o
processo de desenvolvimento da ideia de nacionalidade que, no século
XIX, marcou tão eloquentemente a vida política da Europa, o que vamos
encontrar é o culto do passado servindo à elaboração de doutrina, proposta
justamente para servir aos ideais de autonomia de povos e unidades étnicas
que desejavam recobrar a autonomia, reestruturando-se em termos do que
lhes significavam as raízes culturais e étnicas. Rumenos, bálticos,
poloneses, húngaros, sérvios, croatas, montenegrinos, belgas, flamengos,
walões, alemães, itálicos, irlandeses, ukranianos, num esforço quase
desesperado, sustenta-ram-se, nos seus anseios de liberdade e de autonomia
política, através de um apelo permanente ãs raízes e ao passado étnico-
cultural, que lhes servia para a formação dos sentimentos nacionais.
A doutrina racista, da superioridade de povos e de raças, sustentada
por Gobineau, de logo encontrou os adeptos e os que a combatiam
justamente porque ela surgia em meio ao problema das nacionalidades.
Defendendo-se a tese de que as nacionalidades eram o fundamento
racional dos Estados soberanos ou quando menos, lhes asseguravam o
direito de um tratamento preferencial ou diferente, especial quando
submetidos em organismos políticos mais poderosos, evidentemente o
debate da superioridade ou inferioridade do que então denominávamos
raças, puras ou impuras, era um debate necessário, natural e apaixonante.
A tradição, buscada na lição dos fatos históricos, estava, portanto,
presente, e dava expressão ao prin-
O CULTO DO PASSADO NO MUNDO EM RENOVAÇÃO
cipio que, insistamos, foi a constante do século XIX na Europa e deu sêr,
realmente, às unificações nacionais que garantiram a existência da
Alemanha, da Rumania, da Bélgica e da Itália, vencedores, os seus povos,
nos seus anseios de uma consolidação política que encontrou na tradição,
no passado, a razão de ser de sua nova existência.
Confunde-se hoje, no entanto, nacionalidade alicerçada no passado e
no que êle motiva, com o interesse e a segurança nacionais. Estará certo?
O interesse e a segurança nacionais estarão ligados à ideia nacionalista?
Nos Estados Unidos, é esse um principio vencedor. E vencedor, como já
tivemos ocasião de registrar, porque serviu para consolidar a elaboração do
povo americano, que se constituíra, étnica e culturalmente, de verdadeira
multidão de povos, dos mais diversos valores, e que deviam encontrar no
passado local, dos primeiros dias da empresa britânica, a força de união, de
consolidação e de estabilidade. Sem tradição, sem passado, nenhum povo
conseguiu vencer suas dificuldades, face aos interesses nem sempre
ponderáveis ou dignos de outros.
Nossa formação apresenta aspectos próprios. Aqui não houve a
conquista militar, da façanha hispânica. Aqui não houve a transferência de
lares, como sucedeu na experiência inglesa nas colônias do norte do
continente. Aqui não ocorreu a instalação de grupos, católicos ou
protestantes, remetidos por companhias que disputavam, com o espaço, o
comércio da especiaria que se foi descobrindo na floresta e nas águas
internas ou marítimas, como se viu na presença dos franceses no Canadá e
nas Antilhas. Nossa história começou a escrever-se através de ensaios
tímidos, seguidos de decisões de permanência de um povo austero, forte,
capaz, que vencera o oceano e assegurara, à Europa, o domínio de novos
espaços físicos, novas naturezas e novas humanidades e culturas, que fora
revelando e incorporando, na empresa extraordinária da europeisação da
terra. Aqui, criou-se uma sociedade que se multiplicou pelo processo de
mestiçagem. O colono, o soldado, o servidor público que chegavam para a
aventura americana, como sucedera no Oriente, não traziam consigo o
prejuízo racista. Como consequência imediata, acomoda-ram-se no meio
físico, compondo, com a mulher da terra e a que veio da Africa, o grupo
social que deu os homens providenciais, que criaram o novo espaço, na
dilatação da fronteira, que não era a fronteira estabelecida nos
entendimentos ibéricos, mas a fronteira que eles estavam elaborando com
o seu arrojo, sua capacidade de vencer distâncias e dificuldades materiais.
Homens providenciais que produziram a economia tropical da cana de
açúcar, do algodão e do tabaco, enfrentaram a floresta, de onde extraíram
as riquezas que tinham preço convidativo nos mercados competitivos da
Europa; enfrentaram os campos distantes, onde lançaram as cabeças de
gado, trazidas do Cabo Verde e foram semente dos imensos rebanhos que
constituíram outra fonte de recur-
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
sos na operação alimentar e na operação de abastecimento de mercados
mais longínquos; enfrentaram áreas interiores, onde descobriram o ouro,
as pedras preciosas, fazendo, de sua extração, um gênero de atividades que
provocou a incorporação, como as outras também haviam contribuído para
essa incorporação, de novos territórios, sobre que se foi levantando o
edifício de uma Pátria nova no Novo Mundo.
Essa história, um tanto diversa daquela história que franceses,
espanhóis e britânicos escreveram com seu sangue e com seus ímpetos
imperiais, foi, assim, uma história marcada por lances sensacionais
próprios, que outros povos, séculos depois, também escreveriam, repetindo
a façanha em outras latitudes e merecendo, por isso, a admiração e o
louvor dos que a revelaram. Referimo-nos à expansão norteamericana em
direção ao Pacífico e à conquista e dominação das terras que compõem
hoje a grande Austrália.
Ora, essa história que teve seus fundamentos em episódios de tamanha
significação para explicar o surgimento de um povo, essa história
enobreceu-se, igualmente, por outro tipo de episódios, como os da defesa
do território, face ao interesse de outras nações, que disputavam um
estranho direito de dominar o que estávamos criando. Não foi uma história
que mereça o desprezo de gerações que vieram depois e dela devem tirar
os exemplos capazes de levá-las a um estado de consciência cívica
dignificadora. Porque, na verdade, quando, posteriormente, outros homens
admiráveis pensaram em termos de uma nova orientação para a vida
coletiva, levantando a tese do exercício da soberania passar ãs nossas
mãos, deixando de permanecer nas dos que nos haviam dado o sêr mas,
agora.deviam tomar outra direção, não estavam ignorando o passado, de
onde provinham todos. Ao contrário, reconheciam esse passado, buscando
nele elementos para a sustentação da ideologia política a que se filiavam e
por que combatiam.
O iluminismo do século XVIII, refletindo-se no Brasil em formação,
não significou, como em outras partes onde êle constituiu experiência
sangrenta nos efeitos que provocou, uma negação do passado.
Fortificando-se nele, nele encontrou os valores de que se serviu para que
tivesse também aspectos particulares, tão bem proposto recentemente, em
monografia admirável, que seguramente prenuncia ensaio de mais vigor e
maiores minúcias, pela professora paulista Maria Odila.
O iluminismo brasileiro, ao invés de apenas promover a destruição de
um sistema político, tomou uma direção diferente — inventariou a terra e o
homem para a formulação de princípios condizentes com nosso estado de
cultura e a conveniência de apressar-se a utilização de todos os valores
materiais, descobertos na terra, e os valores humanos, representados nos
homens novos da sociedade nova que se estruturava sem limitações
odiosas.
O CULTO DO PASSADO NO MUNDO EM RENOVAÇÃO
Nossa participação nos destinos do mundo igualmente não se
inscreveu em capítulos de atuação que nos levasse a ter restrições ao
passado mais longínquo, em que nos iniciávamos nesses destinos com a
nossa contribuição hesitante, sem velocidade, mais visando a uma
experiência que propriamente compondo uma contribuição que nos valesse
compreensão e respeito dos outros povos de maior vivência temporal. Para
essa participação, no entanto, não contribuímos apenas com a ação de
diplomatas, militares e princípios que defendêssemos. Contribuímos com o
nosso comparecimento aos mercados universais com o que produzíamos e
constituía uma continuação ampliada, muito ampliada, do que
aprendêramos no passado e constituíra empresa econômica de altor teor.
Nossa lição permanente de instituições, decorrentes de necessidades e
conveniências que eram o fruto da sociedade que se realizava sem
limitações odiosas, cumpre sempre insistir nesse aspecto de nossa
formação histórica, não pode levar-nos a deixar de abrir crédito ponderável
aos que os construíram com seus exemplos e sua conduta. A história, que é
o nosso passado, não é a história banal de povo sem convicções e sem
raízes dignas. O "homem cordial" de que nos fala Sérgio Buarque de
Holanda, resultou de todo esse sistema de vida, que é um haver admirável
e não um passivo desconcertante a envergonhar-nos.
Ora, se o que estamos afirmando é verdade irrecusável, pergun-ta-se:
como vem sendo essa história apresentada às gerações que preparamos
para o futuro? O ensino que ministramos, sem a preocupação da "história
ad usum defini", mas história que seja realidade, positivada na
comprovação dos diplomas legais, do noticiário que se examinou
seriamente nos arquivos ou dos depoimentos que nos ficaram, será a
história autêntica, realística, sem falsificação propositada, sem prejuízos
ideológicos, sem limitações condenáveis? Sei que há muito desequilíbrio
na dosagem dos tempos e dos fatos. Sei que há muita distorção perversa.
Sei que há muita deslealdade no que se afirma. Sei que há muito pouca
preocupação de dizer a história como ela se fêz realmente. Sei, todavia,
que há um esforço, cada vez maior, dos que podem e devem ser chamados
de historiadores, para que a história sirva à verdade e não a interpretações
cavilosas. História social, econômica, institucional, cultural, espiritual,
militar, política, história escrita para conhecimento do que ocorreu
realmente e não do que se desejou que tivesse ocorrido.
A história que os historiadores brasileiros escrevem ainda não é,
porém, a história que deve ser devidamente escrita. E isso porque há ainda
por verificar, nos arquivos nacionais e estrangeiros, portugueses em
particular, milhões de documentos que esclarecerão episódios e restaurarão
a verdade dos fatos, fundamento maior da investigação histórica para a
elaboração da história autêntica. Não significa isso que esses historiadores
tenham descumprido seus deveres como homens de ciência falseando a
história ou dela não apresentando o
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
que realmente deveria ser apresentado como resultado da pesquisa
histórica. Não é fácil, todavia, proceder ao inventário de nossos fastos. O
inventário do cedulário não está feito. E o estado em que se encontram
nossos arquivos, com raríssimas exceções, é de confranger qualquer
coração, daí porque o Conselho Federal de Cultura decidiu, em seu
programa para o ano em curso, promover o estudo de uma política que
remova os obstáculos que dificultam o funcionamento regular dos
arquivos. Para exemplificar, refiro o caso do arquivo de meu Estado.
Encontrei-o abandonado, tratado da maneira mais ciiminosa, jogado no
porão de um prédio, pasto de baratas, ratos e outros elementos daninhos
que o destruíam furiosamente. E não se diga que esse era o tratamento que
de há muito lhe vinha sendo dado. Ao contrário, época houvera em que os
cuidados, os zelos por que êle representasse, não um depósito de papéis
velhos, mas um estabelecimento organizado, onde aquele cedulário que
representava o passado era devidamente tratado servindo, inclusive, para
conteúdo de uma publicação, hoje raríssima, "O Arquivo do Amazonas",
que Bento Aranha organizara, dirigira e valia como um cartão de visitas
para demonstrar o carinho por que se compreendia o que representava o
acervo precioso. Lembro-me que, apresentando ao Marechal Castelo
Branco as fotografias que fizera tirar do Arquivo no estado em que o
encontrara, olhou-me surpreso, indagando — mas isso é um depósito de
papéis imprestáveis? À minha resposta, espantadíssimo, disse-me: mas o
que eu estou vendo constitui mais um crime dessa gente insensata.
Ora, esse estado de coisas não constituía nem constitui exceção. A
exceção está justamente na situação diferente. Consequência de desamor
ao passado, ãs tradições, incompreensão do que vale, para uma sociedade,
o que ela realizou anteriormente? Evidentemente, todas essas razões
podem ser oferecidas à nossa meditação, pois todas elas são efetivamente
razões reais, tristemente reais. E para não ir longe — o Arquivo Nacional
não teve as obras de sua preservação durante anos interrompida ou
vagarosamente promovida? Não foi só agora, recentissimamente, já no
governo do Presidente Costa e Silva, que se concluiu, condignamente, a
série de obras que se arrastavam indefinidamente ali? As publicações do
Arquivo, publicações preciosíssimas, não estão ainda por prosseguir?
Os Museus, que constituíram, durante muito tempo, entre nós,
mostruários que representavam como que cemitérios, abertos à visitação
pública para que houvesse uma recordação de um passado que não se
compreendia devidamente, quanto tempo tiveram de esperar para que a
nação pudesse tê-los na conta exata do que representavam, e
demonstravam o grau de cultura que alcançáramos, refletindo, assim, uma
consciência nova acerca do que ensinavam e do que preservavam do
patrimônio que conseguíramos criar ou como demonstração mais atual do
que estávamos criando?
O CULTO DO PASSADO NO MUNDO EM RENOVAÇÃO
Um Museu não é, exatamente, o sepulcro que muitos imaginaram e foi
a constante da interpretação acanhada, canhestra, falsa por que dezenas,
milhares entenderam, num primarismo de visão, que era índice do
primarismo por que tratávamos os elementos que constituíam, não apenas
passado recente ou próximo, mas uma resultante da vivência com que nos
assinaláramos no mundo, que começara dos dias anteriores à presença
europeia e se afirmava, de maneira impressiva, no decorrer de quatro
séculos. Nossa participação na construção do mundo humano, mundo em
permanente ebulição, ora mais veloz, ora menos veloz, mas sempre em
dinâmica, e nunca estagnado, podia ser encontrada nos nossos museus que
preservavam a tradição ou constituíam fontes permanentes à nossa
apreciação, daquele patrimônio de que poderíamos ter a ideia exata nos
mostruários, não mortos, mas continuadamente renovados e intensamente
vivificados.
Evidentemente, o Brasil passa ou acompanha todo esse agitado
processo de mudança cultural, política, social, econômica e espiritual que
sacode o mundo. O que chamamos de mundo em mudança tem a nossa
contribuição até, de certo, bastante ativa. Somos, nesse mundo assim tão
marcado, o povo mais jovem da terra. Crescemos quantitativamente como
nenhum outro. Estamos prosseguindo na conquista de nosso território.
Mobilizam-se as atenções nacionais para todo um vasto empreendimento
que será a demonstração mais evidente de nossa capacidade de vencer
naturezas e criar outras naturezas físicas e humanizadas com o nosso
esforço realizador e civilizador. Falará da nossa maturidade. Há, pois, todo
um gigantesco esforço nacional que as vozes agourentas não conseguem
impedir que se verifique em sua importância e em sua extensão.
Enriquecemos o patrimônio universal com os nossos atos de bravura,
consubstanciando na empresa admirável de dominar espaços e de neles
edificar um novo status, capaz de propor-nos à admiração universal em
aspectos que não são mais aqueles aspectos negativos, através dos quais
pretendiam caracterizar-se no entendimento falso que possuíam a nosso
respeito.
Dê-se o balanço rigoroso do que vimos sendo pelos tempos e a
surpresa de muitos poderá ser realmente imensa. Seria até o caso de
lembrar, aos que cursam esta Casa, e aos que nela permanecem por dever
de ofício ou paixão de ofício, a realização de um inventário ativo do que,
século a século, fomos conseguindo ser. Partiríamos do estado em ser
como natureza em que o espaço, que seria posteriormente o Brasil na sua
base física, se apresentava, estado em ser como natureza em alguns trechos
ainda em arrumação, como diria Euclides, e humanidades em condições
culturais, senão precárias, menos apreciáveis que as que encontraríamos
em outros pontos de nossa América. E século a século, até nossos dias,
iríamos verificando como se processara a rearrumação da natureza
física e
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
humana e de como vencêramos hesitações, dificuldades de toda espécie,
erigindo monumentos, centros ativos de vida material e espiritual,
instituições, lares, desse modo efetuando a empresa realmente sensacional
de uma tomada de posição no contexto da criatividade mundial. Teríamos,
no que resultasse desse inventário, a resposta enérgica, elucidadora,
candente mesmo, a quantos, derrotistas impenitentes, afirmam a nossa
incapacidade para qualquer esforço na área dessa mesma criatividade. E
esse inventário, no realismo que apresentasse, forneceria gigantesca
contribuição para a reativação mais firme da consciência nacional.
Vivemos, também, como em outras partes se vive, o mundo em
mudança. E nesse mundo em mudança, já vimos, o culto do passado não
foi interrompido porque fosse prejudicial, peso a impedir a caminhada dos
povos em seus anseios de progresso e de bem-estar. Ao contrário, o culto
do passado continua expressivo, como necessário à própria mudança pela
lição que êle ensina continuadamente. O conflito que poderia existir ou
imaginarmos que existisse, realmente, não existe.
Ora, as nações que não se preservaram, não continuam se não
acreditam em seu destino e em sua capacidade para realizar-se. No culto do
passado, encontramos as energias e os valores capazes de assegurar essa
confiança. A cultura de uma Nação efetiva-se, na dinâmica que deve
presidi-la, na exaltação de seus valores e no enriquecimento que lhe vem
da atividade criadora constante. A preservação desses valores constitui, por
isso mesmo, um dos aspectos de maior relevo na consideração do que a
cultura representa. O culto do passado está ligado profundamente a essa
preservação de valores. O culto do passado é, assim, uma necessidade de
Estado e uma necessidade cultural natural. No mundo em mudança, êle não
feneceu. Continua vivo e necessário.
A Ecologia na Interpretação da
Cultura Fluminense (*)
CELSO KELLY
a) A ecologia humana e sua contribuição no quadro das ciências sociais,
especialmente a política.
1. No quadro das ciências sociais, vem encontrando a ecologia
humana não só acolhida como estímulo. À semelhança da ecologia vegetal
e da ecologia animal, empenhadas no estudo dos processos de "competição
das plantas entre si ou dos animais sub-humanos", a ecologia da nossa
espécie interessa-se pelas relações entre os homens, na medida em que
essas relações estão por sua vez relacionadas com o "habitat". Os nossos
semelhantes, os grupos e instituições selecionam-se de acordo com a
capacidade em competir e distribuem-se, consequentemente, no espaço.
Peculiaridades do mundo natural influem, de modo concreto, na situação e
no destino do homem e condicionam as relações entre os indivíduos, em
estreita dependência dos outros seres vivos, que animam a paisagem, em
incessante disputa de área e predomínio, coberta pelas aparências da mais
generosa e tranquila harmonia. Essa "ecologia" distin-gue-se
fundamentalmente da geografia humana, que visa ao estudo das mudanças
feitas na superfície da terra pelo homem; e da antro-pogeografia que cuida
das mudanças na cultura do homem, devidas às forças geográficas. Seu
interesse é outro. Reside, segundo Donald Pierson, no processo de
competição, "na medida em que esse processo entre seres humanos, se
assemelha ao existente entre plantas e animais" (
1
). Importa a expressão
"competição" na noção natural de vida; é a concorrência biótica pela
sobrevivência. Nessa conceitua-
(*) Conferência pronunciada na Faculdade Fluminense de Filosofia, por ocasião da abertura do curso
de extensão universitária, sob a denominação de "Estudos Fluminenses".
(1) Donald Pierson, "Teoria e Pesquisa em Sociologia", pág. 83.
CELSO KELLY
ção vê o Sr. Gilberto Freyre "uma expressão biológica em sociologia:
expressão de imperialismo biológico" (
2
). Para Mukerjee, a região é "um
organismo vivo, em que operam harmoniosamente vários sistemas vivos"
(
3
): o vegetal, o animal, o humano. Ao geógrafo Ratzel parece
identificarem-se a antropogeografia e a ecologia humana. Para os neo-
ecologistas de Chicago, a ecologia cuida do estudo de distribuição e de
movimento no espaço físico-social de seres, grupos e instituições humanas
(
4
). Equivale à sociologia regional (Gilberto Freyre), como uma das
sociologias especiais, tendentes, ou a tornar-se, um dia, geral, ou a
contribuir para a geral com princípios de validade universal. Diríamos que
nela se pode vislumbrar uma sociologia diferencial, em função dos grupos,
como a psicologia diferencial, diante do indivíduo.
2. Com essa ou com aquela conceituação o que importa realçar é a sua
qualidade neutral. As ciências sociais prejudicam-se, em parte, pela
circunstância de que o objeto perquirido, isto é, o homem, se confunde com
o perquiridor, envolvendo, sem que o queira, o subjetivismo do analista no
objetivismo do processo. As preferências do analista, no campo da religião,
da filosofia, da política, da economia, refletem-se, fortemente, no
seguimento de seus estudos, por mais inspirados que estejam nos métodos
positivos de pesquisa e observação. Durante muito tempo ainda, as ciências
sociais lutarão diante desses embaraços, envidarão esforços por alcançar a
integral autonomia científica. Na aplicação de seus princípios e conclusões,
e na dedução dessas "verdades liminares", intrometem-se conceitos
relativos de "valor" e aspirações legítimas de grupo, falando a linguagem
do sectarismo filosófico e do interesse momentâneo. Por isso, encontrando-
se mais afastada de qualquer subjetivismo, a ecologia contribui para uma
interpretação neutra de fatos em que o grande personagem visado é e
continua a ser o homem. Essa neutralidade resulta de que ela não se inspira
na direção da vontade arbitrária dos indivíduos, mas busca basear-se em
correlações do mundo natural, diante de um fenômeno comum, o da vida, e
de sua consequência lógica, a sobrevivência. Assim como as plantas e os
animais, os homens também competem, na diferença das idades e dos
atributos, das raças e das crenças, das instituições enfim, visando à melhor
acomodação dentro de um determinado espaço. A que consequências leva
essa competição? A formação de comunidades bióticas, como clima de
convívio e perpetuação da espécie; a dispersão, com maior ou menor grau
de mobilidade, ou a concentração; a cooperação de esforços, importando
na divisão de trabalho; a invasão no espaço ou a sucessão, no tempo; o
equilíbrio biótico, que
(2) Gilberto Freyre, "Sociologia", vol. II, pág. 425.
(3) Rhadhakamal Mukerjee, "Regional Sociology".
(4) Conf. iw Gilberto Freyre, ob. cit., pág. 426.
A ECOLOGIA NA INTERPRETAÇÃO DA CULTURA FLUMINENSE
representa a balança da natureza. Quantos aspectos se desdobram, â
margem, inteiramente à margem da influência de conceituações subjetivas,
pois a ecologia os tenta surpreender e analisar em função exclusiva das
"relações humanas no quadro das competições de uma região."
Longe, pois, dos embaraços que por vezes, toldam as pretensões
científicas de certos estudos sociais, a ecologia, dado seu caráter
eminentemente neutral, pode, pela aplicação de suas observações e
princípios, contribuir para o reexame de problemas concretos no destino de
grupos, propugnando por um comportamento coletivo que terá, de
antemão, o beneplácito da terra e de suas forças orgânicas. "Para viver em
qualquer região — ponderava o sociólogo Carneiro Leão, em cátedra da
Sorbonne — é indispensável que os indivíduos e os grupos tenham um
bom comportamento ecológico, o que será tanto mais fácil quanto sejam
mais naturais suas relações com o clima, a vegetação e a fauna"
(5)
. E isso
por que: "são as relações íntimas entre o homem e a terra, as plantas, os
animais, os outros homens da mesma região (com apoio em Mukerjee) que
dão à zona da cultura sua forma e sua vida". Eis o alvo pragmático que se
pode vislumbrar nessa ciência particular das relações espaciais: o equilí-
brio ecológico. Não será um dos caminhos abertos pela ciência para a
reconstrução do mundo? Gilberto Freyre acentua claramente: a ecologia
nos proporciona "métodos através dos quais se verifique o equilíbrio ou a
balança entre o homem e as demais formas de vida, em certo sentido, da
região". Como espécie animal, o homem parece ter logrado todo o
desenvolvimento possível. O mesmo não ocorre nas relações inter-
humanas. "Está virtualmente terminada — pondera E. G. Conklin — a
evolução intelectual do indivíduo enquanto a evolução intelectual dos
grupos se encontra apenas no começo... Descobriu-se nova senda de
progresso na evolução social, senda cujo têrmo ninguém pode prever" (°).
A essa imprecisão de destino e de acontecimentos futuros, ao sabor de
preferências eventuais, a ecologia opõe as razões de seus estudos e
revelações. Para ela devem voltar-se os olhos de todos os interessados nas
ciências sociais especialmente os políticos, que têm, acima de tudo, o
dever de soluções pragmáticas e objetivas.
b) A região fluminense; privilégio de situações e climas; mobilidade e
caráter; adaptação de raças; cultura própria.
3. É a região fluminense privilegiada por suas possibilidades de
topografia e clima; facultada, pois, a diversos tipos raciais e às mais
diversas diferenças humanas. Pode ser considerada zona de confluência, de
fácil migração, de assimilação e estacionamento. Ali
(5) A. Carneiro Leão, "Panorama Sociologigue du Brésil", Paris, pág. 08.
(6) Apud Osborn e Neumneyer, "A comunidade e a sociedade", pág. 481.
CELSO KELLY
se resumem as virtudes da terra: o litoral acidentado, vale dizer, rico de
enseadas e ancoradouros, receptivo, acolhedor, num aspecto; exportador,
expansionista, noutro; a planície ampla, generosa, comprometida
posteriormente na Baixada, porém recuperada e, de novo, promissora; a
montanha, soberba, altaneira, comandando a natureza, pletórica de
localidades climáticas, exuberante de paisagens, desenhando perfis, a que
não falta, como um símbolo de bons augúrios, o Dedo de Deus; o Paraíba,
correndo ao alto, sobranceiro; outros rios de planície, precursores da rede
de estradas e caminhos, hoje completa que facilita a mobilidade, aproxima
os núcleos humanos, ajuda a afirmação do caráter comum. O generoso
quadro fluminense responde com vantagem, direi mesmo com requinte, ao
labéu de inadequação das áreas tropicais às grandes civilizações. Vale
recordar a maneira incisiva com que A. Carneiro Leão, com apoio no
Barão Homem de Melo, refutara a alegação da impropriedade do clima
para as culturas superiores "... numa imensa região de nosso território, a
altitude compensa prodigiosamente os efeitos da latitude. Mais ainda: nos
trópicos, a configuração do solo, a direção dos ventos e das correntes
oceânicas, a proximidade ou o afastamento das grandes massas d'água,
doce ou salgada, influem sobre o clima de uma maneira independente de
sua posição com relação à eclítica" (
7
). A explicação geral se ajusta, sob
medida, ao caso fluminense.
A mobilidade do índio bastaria para indicar o acesso e a locomoção
fácil; ao mesmo tempo, a adaptabilidade de climas e "habitat". A situação
geográfica teria atraído, logo nos primeiros tempos, o francês, desejoso de
estabelecer-se nestas paragens da América; e o episódio francês gera mais
cuidadosa assistência lusa, o zelo da Metrópole ameaçada, o conluio com.
os indígenas, o início efetivo da transplantação da cultura ibérica. O colono
português, consequente do caldeamento de raças, aqui se aclimata, e para
aqui não traz preconceitos étnicos, mas, ao contrário, o gosto do
cruzamento. A terra tinha de tudo para receber os adventícios. A crônica
registra o espanto e a admiração dos estrangeiros que atingiam a Fazenda
do Córrego Seco, onde pouco depois os alemães plantaram a futura cidade
de Petrópolis: "Clima de Europa, delicioso clima europeu nos trópicos!" E
os suíços escalariam a serra, para plantar outro núcleo, Nova Friburgo, com
o gosto da proliferação das fazendas e das comunidades limitadas.
Correntes humanas, de origem vária, acomodaram-se admiravelmente na
terra, hospita-leira por si mesma, por suas virtudes naturais, antes que o
fosse pelos seus filhos.
4. As condições ecológicas estavam a oferecer a terra a gentes vindas
de longe, em perfeita sintonização com suas preferências e
(7) Obr. cit., pág. 107.
A ECOLOGIA NA INTERPRETAÇÃO DA CULTURA FLUMINENSE
exigências. Para os naturais e para os adventícios, o rincão fluminense
tinha a pluralidade de situações, umas à vizinhança das outras, com
impressionante mutação de cenários. E essas diferenciações, que
contribuíam para um ajustamento espontâneo, não obstavam o intercâmbio
entre os núcleos. As comunicações faziam-se pelos rios e pela planície,
pelo litoral e pelas enseadas, por toda sorte de recursos naturais. No
apogeu de sua civilização rural e patriarcal, o porto de maior movimento
não seria oceânico, mas fluvial, a localidade que se tornara conhecida por
Porto das Caixas.
Tem significação relevante o sistema de comunicações, pois
impulsiona a interação, mais que de indivíduos: a interação dos grupos.
Esse comércio de grupos, menos de mercadorias, mais de sentimentos,
ideias, práticas, aspirações, costumes, realiza lenta e seguramente a grande
tarefa sociológica da transformação de culturas diferenciadas numa cultura
comum, ou por outras palavras, a tarefa de atribuir caracteres comuns a
núcleos vizinhos. À facilidade das comunicações naturais deve-se a base
de costumes e sentimentos, que veio a caracterizar, no quadro nacional, o
grupo fluminense.
c) O grupo fluminense, suas características; seu grande intérprete:
Oliveira Vianna.
5. Em verdade, existe o grupo fluminense. Quem procedeu a estudos
sociológicos, históricos e ecológicos no cenário da antiga Província, foi
um de seus mais ilustres filhos, Oliveira Vianna, cuja obra, em grande
parte, se inspirou na terra natal. É a êle, por justas homenagens, que vamos
pedir o depoimento autorizado:
"Os aspectos pelos quais o seu grupo regional (o fluminense) se
diferencia, histórica e culturalmente dos outros grupos regionais, são os
que caracterizam uma sociedade essencialmente agrária, destituída
inteiramente de quaisquer tradições belicosas, quer nos elementos
materiais da sua cultura, quer nas expressões espirituais e morais. É na
superioridade da sua organização doméstica, da sua "estrutura" social e
política (no sentido sprangueriano da expressão) que a sociedade
fluminense afirma a singularidade, senão a originalidade de sua posição
nacional" (
s
). Como se não bastasse a caracterização por si, Oliveira
Vianna a realçou pelo contraste: "Não tem a história fluminense o ressoo, a
vibração, a beleza épica da história paulista, da história pernambucana, da
história riogran-dense do sul, mesmo da mineira na sua fase antiga. O
grupo fluminense — a antiga Província do Rio de Janeiro — não oferece à
história lances fixáveis em páginas de epopeia. O fluminense, mesmo na
época em que estrondeava os sertões a belicosidade do paulista vizinho, foi
sempre, desde os primeiros dias, um tipo pacífico de
(8) "Peq. Est. de Psicologia Social" pg. 73.
CELSO KELLY
agricultor, de criador de gados, de drenador de brejos, de devastador de
florestas; ou fundando currais e engenhos nas suas baixadas, ou nelas
cultivando anil e plantas cerealíferas" (
9
).
6. Êle próprio, o sociólogo eminente, vivia o gosto dessa civi
lização rural. Por ela trocara o fausto da Capital e o prestígio das
posições oficiais para entregar-se ao estudo direto das comunidades
fluminenses, a partir das peculiaridades de sua propriedade modesta
em Saquarema. Um de seus autorizados biógrafos, o professor Mar
cos Almir Madeira, observou a respeito: "O que o atraía, o que lhe
interessava, o que lhe aprazia era conferir as letras de seus livros
com as cenas do seu minifúndio. O título de propriedade servia
apenas para acrescer os títulos de sociólogo; e os alqueires não pas
savam de um pretexto — pretexto para estudar pesquisando, e pes
quisando na fonte, vendo a vida viver na intimidade roceira das suas
mazelas rurais, dos seus tiques sociais e dos seus cacoetes políti
cos" (
10
). Êle próprio, no discurso acadêmico, fêz a confissão de fi
delidade e gratidão à terra: "Não quero também deixar de agradecer
à minha terra. Ela me deu tudo o que tenho em mim de essencial:
deu- me o espírito e a sensibilidade, como me deu a matéria dos meus
primeiros estudos e ainda as inspirações do meu pensamento polí
tico. Tudo que sei aprendi aqui, aqui adquiri, foi aqui absorvido.
Continuo ainda hoje, vinculado à minha gleba natal por todas as
raízes do seu ser, preso a ela por suas matrizes mais puras, que são
as populações rurais" (
n
).
d) A vocação ruralista fluminense; ausência de grandes cidades; 75% da
população em estilo rural; agricultura e pequenas indústrias.
7. É esse caráter que informa e marca a civilização fluminense. A
medida do ruralismo ainda se vai colher nos dados estatísticos com relação
à população. Conservam-se em estado rural as comunidades que contam
até cem mil pessoas. Quando a densidade se apresenta mais diluída, em
núcleos que não insistem em crescer, mas em desdobrar-se através de
outros núcleos, a ruralização se positiva, e ocorre, simultaneamente, a
presença de fazendas e sítios, de roças e pastagens e de pequena e média
indústria, desde a indústria ainda caseira, até a manufatura modesta, porém
eficiente e produtiva, de feição regional, com caráter próprio.
8. A população do Estado do Rio de Janeiro é estimada, em 1967,
em 4.315.856 habitantes, dos quais aproximadamente a metade
(9) ia., pág. 71.
(10) "Oliveira Vianna e o espírito de sua obra", pág. 7 e S.
(11) Discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras.
A ECOLOGIA NA INTERPRETAÇÃO DA CULTURA FLUMINENSE
em zona rural. Com mais de cem mil habitantes, apenas nove muni
cípios: Niterói, com 295.452; São Gonçalo, 315.602; Campos....................
372.289; Duque de Caxias, 309.974; Nova Iguaçu, 457.521; São João de
Miriti, 244.039; Nilópolis, 123.024; Petrópolis, 191.371; Volta Redonda,
112.973. Desses municípios, excetuados os contíguos à cidade do Rio de
Janeiro, os demais continuam com características rurais, apesar do
progresso de suas sedes, como Campos e Petrópolis, São Gonçalo e Volta
Redonda. Entre 50 e 100 mil, conta o Estado do Rio treze municípios;
entre 10 e 50 mil, quarenta e um municípios. A população média do
município fluminense é de 68 mil, distribuídos pela sede e pelos distritos
numa diluição tipicamente rural. Mais de 75% da população total está na
condição ruralizada. O ruralismo encontra no Estado do Rio um exemplo
expressivo, e seu foco de atração continua a ser, em grande parte, a antiga
Capital do Brasil. (
12
)
9. Sob o ponto-de-vista econômico, indiciam o ruralismo, a
agricultura, a pecuária e a pequena indústria. Essas três formas de
atividades não forçam a condensação humana em áreas restritas,
mas, ao contrário, inspiram a disseminação e justificam soluções
frequentes de equilíbrio ecológico, sobretudo no que diz respeito a
espaço e alimentação. Não se torna necessário realçar, no solo flu
minense, as atividades agropecuárias. Resta indagar se a indústria
está afetando aquele equilíbrio. Ainda não, mesmo computando
Volta Redonda, que representa uma realização à parte, fora do ritmo
natural da evolução das diferentes regiões do Estado, a estatística
acusa a média de vinte operários por estabelecimento, média indi
cativa de "pequenas indústrias".
Outra razão confirma o equilíbrio ecológico: a ausência de quaisquer
indícios de aparecimento de "grandes concentrações urbanas", em qualquer
lugar do Estado: essa outra razão reside na facilidade com que emigram
para a Guanabara os fluminenses que se deixam seduzir — repito — pelas
atrações da vida urbana intensa; contam eles com uma cidade tentacular, à
sua vizinhança, terra de sua terra, dentro da sua área, no seu coração,
atingível com pouco esforço, confundida nos municípios limítrofes. Fica,
assim, intacta a vocação rural fluminense.
e) A civilização rural e suas possibilidades: um tipo de cultura
equilíbrio, moderação e polidez; contraste entre as pequenas cidades
gregas e Roma; ruralismo e municipalismo; densidade demográfica e
economia organizada.
10. A civilização rural oferece possibilidades positivas de pro
gresso, e até de esplendor. Sendo ecologicamente superior aos aglo
merados humanos, representa solução natural e lógica: proporção
(12) Anuário Estatístico do Brasil.
CELSO KELLY
com a área e os recursos que dela podem ser auferidos; mobilidade em
busca de um ajustamento perfeito. O habitante rural sente-se mais senhor
de suas terras e de seu destino; mais responsável por seu desenvolvimento;
mais ligado à comunidade; elemento, enfim, de mais valia. O habitante
urbano, ao contrário, perde-se no turbilhão; deixa-se vencer por toda sorte
de desajustamentos, que se sucedem uns aos outros. A iniciativa privada
viceja nas comunidades rurais, em função dessa boa compreensão de
responsabilidade de seus habitantes. A solução de problemas públicos, por
vezes dificultada com as distâncias, se beneficia graças a cifras diluídas,
facilitando o atendimento dos grupos. No caso fluminense, aquelas
distâncias são mínimas, não constituindo embaraço, tal o sistema de
comunicação. A realidade aponta-nos o grau de prosperidade a que chegou
o estilo de vida de várias comunidades rurais fluminenses, desfrutando
habitantes seus de condições que, muitas vezes, faltavam a figuras de
projeção, domiciliadas na Corte: é o capítulo de esplendor que a história da
antiga Província escreveu nos quadros da cultura brasileira. Ainda aqui tem
pertinência outra citação, buscada a Oliveira Vianna: "Os fluminenses, em
trezentos anos de história, constituíram um grupo, que é dos mais
policiados e polidos do Brasil. Os traços diferenciais de sua inteligência e
do seu caráter são conhecidos: sempre primaram pelo senso da moderação
e do equilíbrio, como também pelo gênio sutil e harmonioso" (
13
). Essa
medida, esse equilíbrio, essa polidez são frutos inequívocos de uma
solução ecológica — nitidamente a solução rural. A mesma harmonia
viveu a Grécia, com as suas pequenas cidades; Roma, com o fausto da
primeira grande metrópole da Europa, dominando o mundo da Antiguidade
com as suas legiões, não alcançou nem o equilíbrio, nem a felicidade, mas
verificou antecipadamente todos os males das aglomerações intensas.
11. Onde se verifica a feliz disseminação rural, o ideal do
municipalismo deve encontrar ambiente propício. O municipalismo
importa em manter a Nação acordada, ativa e vigilante. Não se espera a
ação da autoridade distante. Não se desiludem os municípios com a
demora ou com a indiferença, pois têm ao seu alcance os recursos para
pleitear e para empreender. O protecionismo em favor de uma localidade
sobre as outras deixa de existir; o progresso resultará da competição e
conter-se-á dentro dos limites naturais, tal como nos indica sabiamente, a
lição do equilíbrio ecológico, que cumpre não seja quebrado. As
comunidades fluminenses não devem olhar tanto para o Poder Central —
da União ou do Estado; devem olhar para si mesmas, para as regiões que a
integram, para a riqueza que encerram, para as suas peculiaridades,
sabendo acomo-
(13) Ob. cit., pág. 250.
A ECOLOGIA NA INTERPRETAÇÃO DA CULTURA FLUMINENSE
dar-se até ao que, à primeira vista, parece negativo. A ecologia nos ensina
que, de qualquer região, tudo se aproveita.
12. Cabe aqui recordar o Professor Lourenço Filho, que realizou
há anos um ensaio histórico sobre o "Grupo Fluminense", numa
interpretação similar: "O que não há negar é que o torrão flumi
nense foi a sede de uma sub-cultura, que, para logo se diferenciou,
por muitos aspectos, da cultura de origem, a portuguesa. E, o que
mais importa: essa diferenciação, que poderia ser observada tam
bém, sob diferentes formas, em outros pontos ou núcleos de coloni
zação, aí tomava especial consistência, por duas razões capitais: a
primeira era a taxa de densidade demográfica, que permitia mais
fácil circulação e comunicação de ideias e sentimentos, ou de cul
tura, pois, como vimos, é ela essencialmente comunicação; a outra
seria a economia organizada, que viria permitir estabilidade social
e, por isso mesmo, desenvolvimento cultural crescente. Uma e outra
decorreriam da fixação à terra, e passar a exprimir vida própria
no patriarcalismo e, logo no municipalismo" (
14
).
1) A civilização rural e a boa prática democrática; contraste com os
grandes aglomerados; as condições favoráveis do Estado do Rio;
pequenas nações, grandes democracias: Suiça, Suécia, Noruega,
Uruguai; a atitude das pequenas cidades francesas com relação a
Paris.
13. Campo por excelência para a experiência democrática é o
Estado do Rio. A começar por seu caráter ruralista. Os grandes
aglomerados humanos enfrentam problemas, inexistentes em comu
nidades menores. As cifras que representam impedem soluções totais.
O ritmo da mudança, quase sempre fortíssimo, gera desajustamentos,
penosamente removíveis. Enquanto subsiste o desajustamento ou o
mal-estar, proliferam os pretextos de descontentamentos e de pro
testos. Incitam-se as multidões. A demagogia desfruta terreno pro
picio. O cidadão urbano vive aturdido, explorado, convocado para
alguma coisa que êle não sabe o que é. Bem diversa se apresenta a
condição rural. Começa por não ter esses entraves. Acontece também
que se encontra mais perto do equilíbrio ecológico. A democracia
pode marchar, com mais segurança, nas comunidades rurais. É ne
cessário que os processos não venham de fora, como imposição, mas
que brotem do próprio meio. Democracia é uma atitude que resulta
da evolução natural do convívio: respeito, cooperação, acatamento,
responsabilidade. Não há lei que improvise essas virtudes. Elas se
apuram na vida simples e sincera do povo, longe dos vícios das gran
des aglomerações. A marcha da democracia faz-se sentir inequivo
camente no sentido de harmonizar a liberdade individual com os
(14) "O Estado do Rio na cultura nacional", pág. 15.
CELSO KELLY
interesses sociais. É a democracia construtiva e empreendedora tanto mais
útil e quanto praticada lealmente pelas pequenas comunidades rurais. O
Poder não precisa armar-se de excessos de força; precisa acenas de saber
equacionar soluções, realizar por si e estimular a realização pela própria
iniciativa privada. Isso coincide, de um lado, com o municipalismo e de
outro, com a mentalidade ruralista.
14. Grandes nações, que ensaiam a vida democrática, não têm atingido
ainda os resultados a que aspiram: dentro delas, as lutas se sucedem, quer
como prova de vitalidade, quer como documento irrefutável de falta de
madureza do sistema filosófico e político. Onde vamos encontrar as mais
tranquilas e modelares democracias? Em nações pequenas, engrandecidas
pelos processos de ajustamento político e social. Basta citar o exemplo da
Suíça, da Suécia, da Noruega, e, mais perto de nós, no espaço e na idade, o
do Uruguai. O Estado do Rio de Janeiro, por suas condições específicas,
quer na intimidade e variedade de seu solo, quer na distribuição equitativa
de sua gente, encontra-se em condições de ser o viveiro de uma democracia
evoluída e generosa, baseada na harmonia e tranquilidade, pois, em fim de
contas, convergem para a tranquilidade, como resultante, os legítimos e
autênticos postulados de filosofia democrática: luta e competição como
meios; tranquilidade e harmonia como fins. Tomo, de novo, a Oliveira
Vianna a sua autoridade em abono de minhas palavras: "A região
fluminense é, talvez, no Brasil, a que realiza a moderação em tudo: no
clima, na hidrografia, na orografia, nos aspectos da flora e da fauna. Nada
da monotonia dos planaltos e dos pampas. Nada da agrestia e dureza dos
sertões exsi-cados. Nada do pleonasmo de águas e selvas, que é o extremo-
norte. Na brancura e na constância do seu clima, na formosura e amenidade
do seu relevo; na variedade dos seus aspectos e cores, lembra, de certo
modo, aquele "pais da Galileia", de Rénan, três vert, três omoragé, três
souriant, le vrai pays du Cantique des Cantiques et des chansons du bien
aimé" (
15
). O fluminense deve continuar fluminense, harmonioso e polido,
ligado à terra, não pretendendo transformar suas pequenas cidades em
metrópoles congestionadas e dramáticas; não lhe cabe copiar os modelos
exagerados e mal definidos do carioca, opulento de aparência, minado
porém de preocupações e angústias. Pelo Estado a dentro, não esmorecerá
a flama ruralista. Serve-lhe, a esse respeito, de exemplo, a França, essa
França gloriosa, que se diz ter herdado dos gregos o sentimento de
harmonia e sabedoria de viver. Nenhuma de suas deliciosas cidades de
província — cada qual mais zelosa em manter suas peculiaridades — tenta
copiar ou imitar Paris. E, pela frescura de sua topografia, pela tradição de
seus castelos e ruas, pela fidelidade a seus costumes, são
(15) Ob. cit., pág. 240.
A ECOLOGIA NA INTERPRETAÇÃO DA CULTURA FLUMINENSE
elas que conservam o povo francês ligado à terra, ocupando-a e
cultivando-a, dela tirando tudo e a ela dando tudo, em perfeita simbiose
natural.
g) A metrópole brasileira e o Estado do Rio; Nova York e São Paulo,
dentro dos respectivos Estados; complementação recíproca; o
urbanismo moderno condena as grandes cidades; pequenas cida-des-
satélites nos Estados Unidos; a mudança da capital para o interior do
país e o retorno da cidade do Rio de Janeiro ao Estado; solução
ecológica: equilíbrio do urbano e do rural.
15. Resta, agora, considerar, em face da cultura fluminense, a
posição da cidade do Rio de Janeiro, como antiga capital do Brasil.
Desmembrada da velha Província, por ocasião da criação do Município
Neutro, a cidade que seria Corte e sede do Governo republicano, cresceu e
desenvolveu-se em proporções gigantescas, e veio a formar entre as
cidades de mais de vários milhões de habitantes, no estilo das metrópoles
americanas. Não lhe ocorre o que sucede a Nova York ou a São Paulo,
alimentadas por um Estado, de que são sedes, não circunscritas, como o
Rio, a um pequeno território mais citadino que estadual, de um ruralismo
reduzido ao mínimo. O atual Estado da Guanabara é, em verdade, cidade,
apenas cidade, entrosamento de núcleos urbanos, que se sucedem pelos
leitos das estradas de ferro e rodovias, até os seus limites geográficos: um
Estado sui generis. Nele se aglomera uma população, já desproporcionada
com relação aos recursos a seu alcance. Habitação, alimentação e trans-
porte escasseiam e o ameaçam de asfixia, ante o crescimento do
consumidor e a incapacidade de novos elementos abastecedores dentro de
sua área. Recorre a outro Estado, de que sempre usufruiu lavoura, energia,
água, elementos humanos. Em troca, nada lhe dá, porque à vizinhança
oferece menos do que perturba, pela atração ao nivel aparentemente melhor
de vida. E os seus problemas angustiam, sem esperança de solução. Sua
administração não pode ficar confinada nos recursos primitivos do
Município Neutro. Arma-se uma equação maior, envolvendo a cooperação
íntima do Estado do Rio. Ecologicamente, Guanabara e o Estado do Rio se
completam.
16. Sob o ponto de vista urbanístico, estão condenadas as cidades
"milionárias'". Ao atingir o primeiro milhão, a vida já está perturbada. Os
milhões subsequentes caminham numa progressão suicida: a cidade
estrangula-se. Eis por que, diante da evidência dos prejuízos do
crescimento, Nova York cuidou de semear, à sua vizinhança, pequenas
cidades satélites, onde o norte-americano de Wall Street vive
confortavelmente com sua família, em pleno equilíbrio com a natureza. O
Estado do Rio aí está com suas terras magnificas, em climas de
reconhecida salubridade, alcançáveis por transporte ligeiro e econômico,
em condições de agasalhar núcleos
CELSO KELLY
humanos, com características peculiares a seu tipo de civilização rural,
com que contrabalançará os vícios e defeitos do urbanismo exagerado. A
interpretação ecológica das duas áreas — a fluminense e a carioca
aponta o caminho da complementação recíproca.
17. Ante a mudança da capital para Brasília, duas hipóteses
foram formuladas sobre o destino da cidade de São Sebastião: ou
viria a constituir um novo Estado, como previra a Constituição Fe
deral de 46; ou se incorporaria ao Estado do Rio. A primeira ainda
tem contra si a ausência de condições locais para a solução de seus
próprios problemas: viveria subsidiária de outro Estado, não mais
como capital nacional, porém como unidade federada, que se baseia
na autonomia e na igualdade de tratamento. Imaginem a capital
paulista, transformada subitamente no Estado da Paulicéia, ilhado
dentro do Estado de São Paulo, como se, em vez de uma de suas célu
las, passasse a constituir nova unidade. Ninguém descobriria a lógica
ou a viabilidade de tal solução. A segunda hipótees, entretanto, conta
a seu favor com a lição ecológica: é a atual zona fluminense emi
nentemente rural, lastreada de agricultura e de pequenas e médias
indústrias, equilibrada na distribuição de sua gente e de seus recur
sos, com condições de contribuir e subsidiar uma metrópole, que ela
se dispensa de erguer em Niterói, em Campos ou em Petrópolis, por
que se mantém fiel à sua vocação ruralista, com visão profética das
inevitáveis consequências negativas. A metrópole natural dos flu
minenses, com todos os seus erros de crescimento, há de ser a cidade
do Rio; esse grande aglomerado humano e sua urbanização equili
brada só lograrão solução num planejamento de larga extensão ter
ritorial, após os mais detidos estudos ecológicos. A região a equa
cionar transcende do território carioca: alcança em cheio as terras
fluminenses. O retorno à unidade política, anterior à instituição do
Município Neutro, representa o único caminho de solução: tudo
resultará, daí em diante, de um binómio, sensatamente formulado,
de urbano e rural, de sub-urbanos e sub-rurais, dentro do equilíbrio
ecológico, o único que sobrevive aos artifícios.
h) Estados fluminenses; a participação da ecologia; papel das
universidades: a pesquisa local; acentuação do caráter fluminense;
perfeição e ajustamento.
18. Prossigam-se os estudos sobre a terra e o homem, sobre as
relações dos homens entre si nesse "habitat" privilegiado, que é o
solo fluminense. Com o batismo do próprio objetivo, esses "estudos
fluminenses", terão muito a revelar. Os métodos ecológico, histórico,
sociológico e geográfico imprimirão a tais estudos a mais segura
orientação. As universidades existem, dentre outras tarefas, para
essa, que lhe deve ser a mais cara; a de pesquisar o meio. "Estudos
fluminenses" são o corolário da Universidade Fluminense, hoje com-
A ECOLOGIA NA INTERPRETAÇÃO DA CULTURA FLUMINENSE
plementada por tantas escolas superiores, É dentro de seus quadros, por
intermédio de todas as suas escolas, mobilizando todos os recursos
humanos — professores, alunos, ex-alunos — que o levantamento da
ecologia regional há de ser tentado. Sobram valores, vocação e abnegação.
Ponha-se à prova o destino ruralista das populações locais. Inquira-se
sobre a natureza e as possibilidades das cidades pequenas, que animam o
território, como núcleos discretos de vitalidade. Examine-se o
aperfeiçoamento do sistema de comunicações, de tal modo que as
comunidades caminhem para uma comunidade só, de sentimentos comuns,
a cuja base se situe o comum sentimento cristão e democrático. Norteie-se,
sobretudo, por essa intimidade topográfica, que vem ensinando moderação,
harmonia e equilíbrio. Preconize-se a vivência naturalista, em consonância
com a riqueza de possibilidades que o ambiente proporciona.
19. Terra magnífica, que tudo oferece e a tudo convida. Agricultura,
criação, pesca, pequena indústria, clima, esporte, turismo, universidade,
grande industrialização... A que mais pode aspirar, senão perfeição e
ajustamento? E esses hão de ser obtidos, graças aos conselhos inspirados
nos estudos ecológicos.
Diário de Paracatu
(Notas de uma viagem ao sertão)
1925
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
(Segunda-feira) 13 de julho de 1925
(Piraporinha)
Desde ontem, à tarde, estamos da "banda de cá do Rio". (')
Para isso, os preparativos foram grandes: organizamos uma verdadeira
caravana, com meninos de todas as cores, para transportar a nossa
bagagem para casa do Sr. Amâncio. De lá saiu tudo em carroça para esta
casinha, que tio Juca (
2
) alugou, ao chegar, e onde já nos esperavam dois
camaradas — o Leandro e o Antônio, bem apessoados e de confiança.
Logo depois de instalados — um cafezinho. Mais tarde, o jantar — o
primeiro ã moda sertaneja, feito em pratos de folha, colocados entre os
joelhos.
Estávamos conversando, já bem escuro, quando chegou a primeira
visita: — o coronel Maximiano de Campos Valladares (
s
) (o Nono, como
tio Juca o chama). Fazendeiro abastado das duas margens do Paracatu.
Logo depois que este partiu, fizemos as nossas camas, sobre couros, no
chão, e pomo-nos a dormir. Mas outras visitas chegavam — um Dumont
russo, que conhecemos na loja do Abdala, acompanhado de outros. Nós,
contudo, não lhe aparecemos.
O Guerra (
4
) que se achava na sala da frente, deitado ao flanco do
Mário Santos (
5
), principiou, então, a revelar-se um "monstro".
(1) Rio de São Francisco, que divide a cidade de Pirapora. A "banda de cá"
era a margem esquerda, caminho de Paraeatu.
(2) Tio Juca, irmão de Virgílio de Melo Franco, avô do A.
^3) Os Campos Valladares eram aparentados com o A.
(4) Jorge Tavares Guerra, amigo do A. e dos seus primos.
(5) Mário Santos, diamantinense, secretário do Conde Modesto Leal.
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
Depois de várias tentativas de conversa com Afraninho (
6
) e comigo
(à distância, pois estávamos no quarto do fundo), êle não se conteve e veio
até à nossa cama, de onde o despachamos ao fim de 15 minutos. Instalado,
de novo, aproveitou um momento em que o Mário Santos espertou,
iniciando uma palestra memorável, a meia voz. Discutiu, um a um, todos
os membros da familia Rocha Miranda. Depois, com detalhes, a pessoa do
Conde Modesto Leal. Logo, o Jaguanharo (
T
).
Entrou a analisar a questão de valorização de terrenos em
Copacabana: eram horas que corriam, enquanto êle se certificava da
situação exata deste lote, de uma ou de outra casa de Fulano ou de Sicrano.
Quando pensei que estava esgotado o assunto, êle passou a tratar do
mesmo negócio em Petrópolis. Enfim, na Tijuca, onde o Mário Santos e
êle têm largos conhecimentos, que discutiram, com minúcia incrível.
Os galos já estavam amiudando, havia muito. Eu cobria os ouvidos
com o braço. Tapava-os com os dedos todos, um por um, ã medida que
cada um deles se cansava. E o Guerra, incansável. Enfim, desesperado, a
um momento em que tio Juca se levantou, fui até junto ao homem e,
tragicamente, pedi misericórdia.
Êle calou-se. Mas eu já não podia mais dormir. Só me consolei
quando, depois de muito matutar, descobri para êle dois qualificativos
próprios: — "Mamouth", monstro anti-diluviano, e este outro — "filhote
de maritaca com curiango".
Hoje, cedo, antes de 5 horas, estávamos acordados quatro e, logo,
despertei os outros dois ao som da trombeta.
O assunto obrigatório foi a paulificação noturna do Guerra: liderando
os protestos, exprobei-lhe a tagarelice até cair em abatimento. Acho
mesmo que fui um pouco excessivo, conforme o meu desprezível costume.
Mas, felizmente, o nosso Guerrinha não se aborreceu e foi, alegrinho, com
o Mário Santos, até à cidade.
Já claro, fomos, tio Juca, Afraninho e eu, dar um passeio necessário
até a margem do ribeirão. De volta, quando Afraninho trazia uma queixada
de burro para enfiar na mala do Guerra, uma rapariga interpelou-nos para
perguntar qual de nós era doutor: — queria receita para um pobre preto,
rapagão robusto, que parece moribundo. Afraninho mandou que ela fizesse
chamar médico em Pirapora: êle pagará a conta.
Até agora, foi só. Isto é, mais uma revelação sensacional de tio Juca:
foi êle quem... (
8
)
(C) Afrânio de Melo Franco Filho, primo do A.
(7) Jaguanharo Rocha Miranda, genro do Conde Modesto Leal.
(8) Riscado no original. Rodrigo contou-me a confidência de tio Juca. Fora êle quem "fizera
moça" uma escrava, mucama na casa do irmão.
DIÁRIO DE PARACATU
Hoje, ao meio-dia, talvez, demandaremos, enfim, o chapadão... Não,
houve outra coisa. Apareceu aqui, vindo de sua fazenda, distante 12 léguas
do Saco, o tal Tónico de Campos. Veio pedir a tio Juca para empenhar-se
junto ao Conde Modesto Leal, para com-prar-lhe a propriedade, com 300
reses. Chegou sem jantar. Tia Mariquinha (9) preparou-lhe uma boa bóia
e, depois, uma boa cama, na sala da frente. Esta dormindo aqui perto, com
a cabeça coberta.
(Quinta-feira) 23 de julho de 1925
Ontem cedo, o Mário Santos saiu a cavalo com Jefferson (
10
), para
visitar a fazenda da Mamoneira. E, à tarde, Afraninho e o Guerra foram
caçar veado, com João, o Leandro, o Manoel Conceição e o Alexandre.
Fiquei só em casa.
Longa conversa com tio Juca. Assunto de sempre: crônica da família.
História fantástica do fim do Dr. José
(11)
Este, depois de passar a vida
metido com a negra Silvania (que êle comprou de meu bisavô João
Crisóstomo), (
12
) tomou-lhe uma ojerisa terrível. Tinha com ela uma
porção de filhos, — uns crioulinhos atrevidos, que se mostravam de uma
falta de respeito terrível, diante das impertinências do velho. O mais velho
deles — o Norberto — distinguia-se entre os outros pela audácia: furtou
gado para vender, e chegou até a construir uma casa, próximo a certo
retiro, e aí, como se fosse proprietário, vivia com uma mulata, à tripa-fôrra.
Um belo dia, Juca foi chamado à Tapera pelo Dr. José, que soubera de
mais esta proeza do Norberto: saíram os dois a cavalo e, tendo atirado ao
terreiro os trens da mulata, atearam fogo à tal casa.
O Dr. José, cada dia mais irritado com o atrevimento dos crioulos,
acabou por enxotar a Silvania. Poucos dias depois, foi envenenado, com
um assado, ao jantar. Tio Juca, chamado à Tapera, ãs carreiras, encontrou
— o muito mal. Levou-o então para a cidade (êle só consentiu em fazê-lo a
cavalo) e aí é que o Dr. José veio a falecer, perto de sua mulher, mas sem
que se tivesse lembrado de rasgar o testamento em que contemplou a
crioulada. O pior foi que a D. Júlia
(13)
, que morreu 2 meses depois dele,
ficou também intes-tada.
Tio Juca me falou, também, na afeição extraordinária que minha
bisavó D. Antónia
(14)
dedicava a Vovô Virgílio: cada vez que esse
(9) Esposa de tio Juca.
(10) Jefferson Martins Ferreira, filho mais velho de tio Juca .
(11) José de Melo Franco. Estudou na Itália. Chefe truculento cm Paracatu.
(12) João Crisóstomo Pinto da Fonseca, sogro de Virgílio de Melo Franco.
(13) Esposa do Dr. José. Italiana.
(11) Antonia de Melo Franco, mãe de Virgílio.
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
filho chegava à Chácara, ela se esquecia de tudo, de todos, para só se
ocupar dele.
Os meninos voltaram da caçada trazendo um veado, morto pelo
Leandro.
Jantamos com a fome de sempre e, findo o jantar, recomeçaram os
pagodes de viola da véspera. Estávamos assim, na pagodeira com o
Antônio, o Manoel Conceição, o José Pires, o Jovino, etc, quando
inesperadamente, chegaram Jefferson e o Mário Santos, que haviam ficado
de só voltar no dia seguinte. É que tinham encontrado o pessoal do Riacho
do Cavalo já em marcha para cá, atendendo ao chamado que lhe fizemos.
É uma caboclada notável para as festanças, em que se destacam os
irmãos Serapião e Maroto Pires, Paulo de Souza,, Benedito, etc, etc. Ao
todo, dez ou doze.
Cantaram e dançaram até 4 e meia da madrugada: os lundus, as
catiras, o marinheiro, a Isabelinha, a tirana, a arara-ararinha, e muitas
outras coisas. Em regra geral, as danças são muito difíceis e os caboclos se
mostram de uma destreza rara. A tal Isabelinha, sobretudo, é de grande
efeito decorativo, com os desenhos formados pelos lenços de cores em
cujas pontas seguram os pares:
"Isabelinha, sáe, sáe:
Seu pai ê vem.
Isabelina, sáe, sáe: ê
vem seu pai".
Nessa toada só, passam muito tempo, dançando depressa, com uma
graça que eu não vira ainda nos bailes sertanejos.
A arara-ararinha é também interessante, sobretudo porque não tem
letra obrigatória, e as quadras são cantadas de improviso: — isso permitiu
que o Serapião, que já se revelara repentista excelente, desde o começo,
evidenciasse ainda mais a sua espantosa facilidade de versejar. É o único
improvisador autêntico que vi até hoje.
Conversando com esses homens do Riacho do Cavalo, soube que aí as
danças e os folguedos só se fazem em seguida às novenas religiosas.
Assim, quando se diz — "fui à festa de Fulano" — quer dizer que houve
nessa casa nove dias de reza em louvor, suponhamos, de São Sebastião, e,
enfim, no dia da festa desse santo, se realizavam as danças e os cantos.
Outra nota curiosa, colhida entre eles: aqui, nos bailes, a parte que toca
às mulheres é pequena: dançam apenas as valsas, o schottisch e mais pouca
coisa. Não tomam parte na tirana, nem nos lundus, nem nas catiras, ou
danças de sala, enfim em nenhum dos bailados mais típicos.
DIÁRIO DE PARACATU
Observou-se, além disso, que não se usa aqui cantar em solo: são, no
mínimo, duas pessoas que entoam as canções, à viola.
Esse Serapião, além das habilidades notáveis de cantador e dançarino,
tem também outra, pitoresca: a ciência de ajudar a morrer. Soube hoje por
tio Juca que êle é sempre chamado, em toda parte, para esse mister.
O José Pires contou a Afraninho que, uma vez, tio Juca tendo sido
chamado por êle para matar uma jaguatirica, fêz várias tentativas falhas de
atirar no bicho. A arma, porém, de que se servia, era uma carabina, com
que êle nunca tinha atirado, de sorte que não conseguiu chamar a bala à
agulha: tio Juca, então, descendo do animal em que estava montado, cortou
um pau e, a bordoadas, matou a onça.
Uma coisa terrível é o trabalho de tia Mariquinhas: — ontem, só
depois do jantar, preparou e serviu doze bandejas duplas de café e bolos,
para os "riacheiros" que dançavam.
Tio Juca contou, há pouco, uma história de que, parece, Afonso tirou o
"Pedro Barqueiro". Foi o caso de um negro valentão, fugido, por cuja
prisão seu amo havia prometido um conto de réis. Êle tinha vindo aqui ao
Saco, e tio Juca, que chamara para ajudá-lo o autêntico Joaquim Mironga
(que morava perto), apanhou-o mais ou menos pela maneira por que
Afonso conta a proeza do Flor e do Paschoal. No dia seguinte, porém,
soltou-o de novo, rendido ãs suas súplicas.
(Têrça-feira, 14 de julho de 1925). A
margem do ribeirão do Cavalariano.
Ontem, só ãs 5 horas é que conseguimos partir: foi a mesma
dificuldade de se arranjarem os animais complementares de que
precisávamos. Depois, conseguidos estes com o Coronel Maximiano,
houve demoras resultantes de mil causas: ora o Amâncio, que tardava com
algumas encomendas, ora a questão do pagamento de pasto, ora o Mário
Santos e o Guerra, que se esqueciam na cidade.
Enfim, equilibrando a carga sobre o lombo dos machos (carga
formidável, que os fazia quase vergar ao seu peso), e batidas algumas
fotografias, partimos. Antes de ganhar a estrada, porém, passamos pela
casa do Coronel Maximiano, para fazer-lhe as nossas despedidas, e os
nossos agradecimentos.
A estrada do sertão é, mais do que eu podia imaginar, o deserto: de um
lado e de outro, um cerradão, formado de pequenas
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
árvores retorcidas que, sem parecer tão numerosas, não permitem que a
vista se estenda além de uma circunferência de metros. O solo é
esbranquiçado e arenoso. Não se vêem acidentes de terreno. O caminho
não tem surpresas: apenas, de quando em quando, o vôo de um bando de
papagaios ou de patos selvagens. O sertão é a monotonia.
Caminhamos apenas pouco mais de uma légua, pois anoitecera.
Aqui, à beira do riacho do Cavalariano, apeiados todos, fizemos logo
um foguinho, enquanto esperávamos os cargueiros. Estes chegados,
ergueu-se as barracas e, sem demora, o Antônio principiou a preparar o
jantar que fomos comer uma hora mais tarde, com fome de lobos.
Mas já o céu, tão lindo havia pouco, começava a se toldar e os
relâmpagos se sucediam, como prenúncio de chuva certa. Por mal dos
pecados, o Guerra, resfriado, parecia febril.
A ventania principiou, com as primeiras gotas pesadas da chuva: mas
as nossas camas, sobre os couros, estavam já estendidas no interior da
barraca e aí nos espichamos, todos, vestidos. Assunto único das conversas:
o resfriado do Guerra. Este, um pouco alarmado, reclamava que o não
enervássemos. Daí, bem cedo, um silêncio profundo.
Nunca dormi tão bem como esta noite, vestido e calçado, sobre o chão
duro, das 10 ãs 3 da madrugada.
Tio Juca anda notável de pitoresco, e Jefferson, em atividade que eu
não lhe suspeitava tanto.
(Quarta-feira, 15 de julho de 1925). Capão
do Barreiro
Esta manhã, fico desanimado com tanta coisa a registrar, aqui, sobre o
dia de ontem.
Partimos, como já de costume, atrasados: três dos animais desa-
pareceram do pasto próximo e foi preciso apanhá-los bem longe. Só ãs 9 e
20 ganhamos a estradas.
Meia hora depois, ou menos, galgada uma encosta, tivemos uma vista
admirável sobre o rio São Francisco, os plateaux que o circulam e uma
grande parte da serra do Cabral.
Tio Juca vinha mostrando e enumerando as árvores que encon-
trávamos no cerrado: sucupira, muricy, pau santo, pequi, pau-doce, etc.
Também os pés de cagaiteira, cujos frutos amarelos e deliciosos pudemos
provar.
Agora, uma vereda de buritis: a vereda Funda. Daqui por diante
iríamos encontrá-las, de tempo a tempo, com o seu aspecto risonho
característico.
Travessia do Rio Preto
O café da manhã nos
Pilões.
Pirapora. Ponte sobre o São
Francisco. AO centro
Rodrigo e Afrânio
DIÁRIO DE PARACATU
Logo, divisamos e contornamos, à sua esquerda, a Serra do Jatobá,
impressionante de configuração e semelhante à dos Penitentes, que vimos
na Cordilheira. (1
5
)
Nova vereda: — a do Jatobá: aí paramos, para o almoço, longamente.
Pouco depois chegaram dois cavaleiros mulatos, pai e filho, que
haveríamos de acompanhar, estrada fora até aqui. Para se fazer fogo, tio
Juca e eu apanhamos, na vereda, uma folha imensa de buriti, cujo
transporte até acima foi quase penoso.
Enquanto se esperava a bóia, o Jovino, caboclo a quem tio Juca
emprestara sem conhecer 20$000, em Pirapora, e consentiu nos acom-
panhasse (a pé) contou como, na sua terra do Urucuia, lhe haviam afiado
os dentes: — a operação fêz-se a navalha, por um especialista, que, feito o
serviço, lhe exigiu enfiasse os dentes com toda força numa rapadura. O
Jovino diz que pagou pela coisa 2$000; mas que, durante meses e meses, a
dentina exposta lhe provocara dores terríveis. Até hoje, quando toma
qualquer coisa ácida, sofre horrivelmente. Diz que mandou afiar os
dentes, por achar "bonito".
Montados, de novo, paramos pouco adiante a esperar o Jefferson e o
Mário Santos, atrasados. Passava um indivíduo a pé, descalço, rumo a
Pirapora, e tio Juca contou que essa gente que caminha assim precisa
sempre de carregar no ombro, como aquele, um peso qualquer, "para
regular o passo".
Tio Juca, conversando, mostra, a cada momento, o seu instinto
indomável de independência. Tem consciência de sua rudeza, de seu
atraso, mas sabe que já não seria feliz com vida diversa da que teve.
Contou, também, uma história que me comoveu: quando Afonso foi a
Paracatu, com 15 anos, o Dr. José mandou que um escravo — o Benedito
— o acompanhasse por toda parte, na "Tapera" (
16
). Trinta anos depois,
voltando Afonso de novo a Paracatu, por entre lestas estrondosas, ficou
hospedado não sei em que casa, constantemente repleta de visitas. Tio Juca
estava à porta, quando o Benedito chegou, perguntando por "nhonhô".
Afonso largou "todo o povão", para ver do que se tratava e foi logo
conhecendo o Benedito, que se abraçou chorando às suas pernas.
Mais ou menos às quatro e meia, paramos um momento, na vereda da
"Mutuca", onde eu queria tomar um banho. Mas tio Juca se opôs.
Ameaçava chuva e tocamos mais depressa, para chegar, como
chegamos (às 6 horas) ao capão do Barreiro, onde devíamos pousar. O céu
escureceu ameaçadoramente. Principiou a chover, bem antes ainda dos
cargueiros apontarem, ao alto. Mas foi coisa pouca, como
(15) O A. refere-se à Cordilheira dos Andes, que atravessara em 1923, na companhia do Tio
Afrânio de Melo Franco.
(16) Velha fazenda dos Melo Franco.
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
diz tio Juca. Logo a tempestade se dissipou e pudemos dormir muito bem,
na barraca. De madrugada é que choveu, um pouquinho.
Estou meio estrompado. Vamos ver como suporto a marcha de hoje,
que deve ser mais longa.
Ia esquecer-me da proeza de tio Juca, ontem à tardinha: apareceu de
longe, carregando uma árvore formidável sobre o ombro, para a fogueira.
Três de nós corremos para ajudá-lo e, ainda a três, o peso era terrível.
(Quinta-feira — 16 de julho de 1925). A
margem do córrego do Paredão.
Todo dia temos a maçada dos cavalos sumidos: ontem, por isso
mesmo, só quase às 9 horas é que conseguimos deixar o pouso do Capão
do Barreiro.
Mal havíamos transposto a serra, do outro lado da vereda, avistamos
pássaros enormes — um casal de coricacas — e o Guerra, caçador, logo
abateu um deles, aos nossos olhos.
No trajeto, a paisagem se transformou um pouco: — há subidas e
descidas, em vez do chapadão monótono, e a vista, agora, pode estender-se
um pouco. O caminho, porém, é muito pior, cheio de pedras e apertado.
Transpusemos a vereda da Areia. Depois a de Santa Cruz, que é larga
como um rio, e à cuja margem pastavam uns bezerros zebus.
Pouco adiante, está a fazendola de Santa Cruz, habitada por uma
família de negros, que nos ofereceu um cafezinho, com beijus detestáveis.
Mas fomos nos instalar no rancho, em frente.
Antes do almoço, tomamos um banho na vereda, que seria delicioso se
não fosse a lama horrível que forrava o riacho.
A bóia foi excelente, enriquecida pelos ovos, comprados n a
fazendola. Comemos como lobos e trouxemos, na bruaca do cozinheiro,
uma carnezinha que, assada no espeto, haveria de fazer, à noite, a nossa
delícia.
Às cinco horas avistamos, depois de longa caminhada, o rio do Sono.
Às 5 e 45, chegávamos ao arraial antigo do Paredão, típica povoação em
decadência, com o desaparecimento da mineração.
Chegamos ao pouso, pouco adiante, quase duas horas antes dos
cargueiros.
O jantar foi uma coisa soberba, com a tal carnezinha de "gado" assada
no espeto: comi tanto que tive pesadelos horríveis.
Um qualificativo empregado por tio Juca: "cara de guariba".
DIÁRIO DE PARACATU
(Sexta-feira — 17 de julho de 1925). Perto
da Cachoeira Grande
Mais uma vez: atraso, por causa da sumida de animais. Saímos às 8 e
meia do pouso do Paredão. Logo ao começo meu joelho direito que, desde
a véspera, principiara a doer, piorou sensivelmente. Meia hora depois,
qualquer passo mais duro do cavalo me fazia gemer de dor.
Faltavam 5 para 10 horas, quando avistamos o rio Paracatu e, sem
demora, por entre uma floresta de uma beleza estupenda, toda florida,
chegávamos ao tal porto do Cavalo, sobre o rio.
Os joelhos doíam-me de tal maneira, que ao saltar do animal, fiquei
muito tempo apoiado à sela; quase sem forças. Mas o sofrimento aliviou,
logo que deixei a posição forçada.
Afraninho, o Guerra e Jefferson tinham partido na frente, para tomar
providências para o nosso transporte ao outro lado. Mas chegaram apenas
10 minutos antes de nós, pois vieram vagarosamente.
Foi um custo para alguém atender-nos, à outra beira do rio: gritos,
tiros, tudo baldado. Enfim, surgiu o barqueiro — o Camilão.
O transporte foi feito, de modo pitoresco, em dois tempos: a primeira
levada, de 4 cavalos e 4 cavaleiros (Mário Santos, Afraninho, Jefferson e
eu); e a segunda, levando tio Juca e o Guerra.
Chegando ao outro lado, fomos à casa de um tal Germano, onde
tomamos um cafezinho. Tio Juca não simpatizou com a cara deste e, pouco
depois, saía a ver se os cargueiros tinham chegado: "Eu sou home
afadigado", disse êle, à guisa de desculpa.
Uma coisa admirável, logo à entrada da fazendola do Germano, foi a
quantidade assombrosa de melros ("passos pretos", como os chamam aqui)
cantando ensurdecedoramente nas árvores, enfileirados.
Almoçamos à beira do rio, com um sol abrasador. Mas, enquanto o
Antônio preparava a bóia, o Guerra atirou várias vêzes sobre um
mergulhão preto, matando-o afinal.
Às 2 e meia, partíamos, de novo. Os joelhos doíam-me horrivelmente.
Houve um momento em que o animal tropeçou e em que eu quase desci,
desanimado de tanta dor.
Tive de parar alguns minutos para consertar as perneiras, de modo que
vim, com o Jefferson, uns 5 minutos atrasado dos outros.
Atravessamos várias veredas de buritis, cada qual mais linda, e
passando pela fazendola da Anna Luisa (irmã do Maximiano Valadares)
chegamos ao pouso, perto da Cachoeira Grande.
Nossa marcha de ontem foi insignificante: apenas 4 léguas e meia.
Mas eu já estava "arreado", como dizem aqui, de sofrimento.
Era muito cedo ainda quando apeamos: fui aproveitar o tempo para
um banho no córrego próximo. Banho que me custou caro, por
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
causa do atoleiro horrendo em que me meti e de onde saí com o auxílio
do Guerra.
Junto ao fogo, depois da barraca armada, falamos longamente em
Afonso, como aliás, tem acontecido todo o decurso da viagem.
Depois, não sei se em razão da fadiga, ficamos empenhados em
longas discussões ociosas, entremeadas de gargalhadas.
Hoje cedo, ainda discutimos acaloradamente sobre este assunto: se os
filhos de tio Juca deveriam apresentar-se, no caso de serem chamados ao
serviço militar. Jefferson e Afraninho entendiam que sim. O Guerra, tio
Juca e eu pensamos que não.
Fizemos também fotografias e, agora, enquanto o Leandro e Jefferson
procuram o burro matreiro que, todo santo dia, desaparece, tio Juca, o
Mário Santos, Guerra e Afraninho conversam num grupinho e os dois
camaradas restantes se ocupam em carregar os burros.
Tio Juca pretendia que fizéssemos hoje uma marcha maior (9 léguas),
para alcançarmos a fazenda da Extrema. Mas, com o sumiço deste raio de
burro, não sei se isso nos será possível.
Espero firmemente não ter hoje mais que me queixar dos joelhos, tais
as massagens que fiz aí, à noite, com bálsamo de benguê.
20 para 9 e o diabo do burro ainda não apareceu. Estou já montado, a
uma sombra, avistando a admirável vereda de buritis onde pousamos: é um
fundo de quadro de uma beleza única, para este vasto descampado verde.
O mau é que o raio do joelho começa a me ameaçar.
9 e 10: o Leandro achou o burro. Vamos partir.
(Sábado — 18 de julho de 1925).
Fazenda da Extrema.
Ontem foi o nosso maior dia de marcha. Saímos tocando mais
animadamente os cavalos, atravessando a vereda da Rancharia, a da Vaca,
e, enfim, parando à margem da vereda do Salto, onde almoçamos, todos.
Seriam quase 2 horas da tarde, quando nos dispuse-mos a prosseguir. Para
a Extrema, ou apenas até ãs Flores? Tio Juca entendia que, no máximo,
com dificuldades, os cargueiros alcançariam esta última fazenda. Mas nós
estávamos com tanto desejo de chegar à Extrema, que o deixamos com a
tropa (que êle não consente em abandonar) e viemos escoteiros: Mário
Santos, Guerra, Jefferson, Afraninho e eu.
Atravessamos muitas outras veredas. Passamos o ribeirão do
Sumidouro, o do Cotovelo, onde fizemos fotografias, para alcançar, à
tardinha, através descampados de uma beleza serena, que ainda
DIÁRIO DE PARACATU
não tínhamos sentido, a fazenda do Brejão, de um tal Tónico de Campos, e
a das Flores, que está situada um local admirável, com uma chapada
estupenda à frente.
Eram já seis e tanto. Com estes dias curtos de julho, a noite começava
a chegar. O resto do trajeto, fizêmo-lo com a mais profunda escuridão e a
agravante de o Mário Santos estar derreado de fadiga, e o meu cavalo,
quase frouxo.
Enfim, ao avistar as luzes da fazenda, depois de perto de 2 horas de
marcha no escuro, reanimâmo-nos.
O Jefferson bateu à porta e D. Isaura (sogra do americano que dirige a
fazenda de Extrema) deu de chofre com cinco indivíduos barbados,
imundos e esfomeados. Apresentação solene. Conversinha mole na sala.
Perspectiva de comedorias: animação entre nós. Pausa prolongada:
desânimo. D. Isaura fala num cafezinho. "Ainda que seja isso" (pensamos).
Agua para lavar o rosto, trazida pela criada. Toalhas. A água é morna e o
Guerra, comovido, vê nisto indício da boa educação da senhora.
De novo, conversa na sala. D. Isaura enumera as virtudes da filha.
"Vovòzinha", berra a pequena, filha do Vivian, que chora
desesperadamente desde o começo.
Enfim, o café: em poucos minutos, os dois pratinhos de bolo de fubá,
que estavam sobre a mesa, desapareceram. Já conversamos animadamente.
Chega um visitante de Paracatu (Raul Botelho) acompanhado de um
vaqueiro.
Afinal, vamos para a varanda. Uma hora, ou perto disso, de conversa
com o tal Raul Botelho, sobre fazendas, éguas, gado alçado, caçadas, etc.
Depois, quando eu menos esperava, a D. Isaura vem dizer-nos que a
ceia está servida. Deslumbramento. Êxtase. Enternecimento. Voracidade.
O Raul Botelho chega a perguntar-nos se não tínhamos almoçado. Palestra
doce com a D. Isaura, que é surda como uma porta. O Guerra esforça-se
por cativá-la.
Ao cabo de tudo isso, já não podíamos duvidar de que teríamos pouso
também, dentro da casa. Foi, realmente, o que sucedeu: ela mostrou-nos as
camas, algumas das quais com enxergão de arame.
Tira-se a sorte, a ver a quem hão de caber aquelas maravilhas:
Afraninho e o Mário Santos ganham.
Ternas boas-noites com a D. Isaura.
Hoje fomos acordados por tio Juca, que andava muito mais do que
podíamos esperar. Tomamos um delicioso café com leite, e, agora,
estamos, deleitosos, à espera do almoço.
Observação de tio Juca sobre D. Isaura: (riscado no original).
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
(Domingo — 19 de julho de 1925).
Às 9 e 55, à beira da vereda da Extrema.
Ontem, depois de um lauto almoço oferecido por D. Isaura e sessão de
fotografias, partimos da fazenda do Vivian, em demanda da "Novilha
Brava". Trajeto monótono, cujo único incidente de menta foi o encontro
que tivemos com uma meia dúzia de negros, que manipulavam rapaduras.
Um deles foi reconhecido por tio Juca como criminoso de morte e
habitante do distrito de Lages. Aí tomamos garapa e compramos rapadura
fresca.
A viagem foi monótona, como eu dizia. Mas tio Juca alegrou-a com a
narrativa de suas proezas de vaqueiro. "Já fui bom", me contou êle, "e por
aqui, o único que encostava comigo era Melchior de Abreu". Contou
também histórias pitorescas de tio Sinhô
(17)
e das festanças organizadas por
dr. José na chácara de São Domingos, perto de Paracatu, em que os seus
companheiros eram o dr. Bernardo
(18)
e meu bisavô João Crisóstomo. Ao
que conta tio Juca, eles passavam aí dois e três dias, com muita comedoria,
bebidas e negras, que mandavam vir da cidade. Ficavam, assim, todo esse
tempo, dividindo-se entre o jogo e o mulherio. Eram as "sebadas do dr.
José", segundo tio Juca.
Não viajamos muito: 4 léguas e meia, a 5 léguas. Mas chegamos à
"Novilha Brava", já noite.
O administrador desta fazenda (que pertence à mesma companhia
inglesa que a "Extrema") é um americano, conhecido aqui pelo nome de
João Grande e que vive amasiado com uma negra, no local em que
pernoitamos. Êle, porém, não se encontrava aí, pois andava pelos matos,
de carabina, com seus empregados, a matar gado bravo, como quem caça
búfalos. Ao que dizem, nessa fazenda dos ingleses há 4 mil "reses
alçadas", mas o João Grande até agora só tinha conseguido matar 19, de
que fizera charque.
Na "Novilha Brava" pousamos no cómodo destinado aos arreios,
próximo ao paiol. Ai jantamos os petiscos rudes do Antônio, melhorados
com o charque comprado na "Extrema" e uns ovos arranjados aí mesmo.
Depois da bóia, o Jovino compareceu com o berimbau e tocou umas
toadas, que fizeram o Antônio e dois negros do lugar sapatearem um
pouco. Adormeci ouvindo o berimbau.
Hoje, antes de 5 horas, tio Juca nos acordou. Entretanto, só ãs 7 menos
5 partimos. Tio Juca, o Mário Santos, Afraninho e eu. Os demais
esperavam ainda, na "Novilha Brava", que descobrisse no
(17) Domingos José Pimentel Barbosa, tio de Ana Leopoldina, avó do A.
(18) Bernardo de Melo Franco, irmão do Dr. José .
DIÁRIO DE PARACATU
pasto um burro que possa substituir o que veio da "Extrema", emprestado,
e que não pôde consigo.
Passamos pelo retiro dos "Poções" e, agora, estamos à margem de um
ribeirão, também chamado da "Extrema", à espera dos cargueiros e do
almoço.
Tio Juca está tomando banho no córrego. O Mário Santos, dormiu um
sono curto, mas acordado por uma mutuca, está sentado, de pernas
cruzadas, mudo desde o momento em que chegamos, há meia hora.
Hoje ainda devemos chegar ao Saco (
10
), antes de anoitecer. Mas
temos diante de nós 4 léguas. O que vale é que estou lépido, desde que
desapareceu a dor nos joelhos, provocada pelo fato de meus lóros estarem
muito curtos.
De males, agora é verdade que tenho outros: estou com todo o corpo
(principalmente as pernas) como tomado de uma erupção violenta. Será só
o efeito dos carrapatos?
(Têrça-feira — 21 de julho de 1925).
Fazenda do Saco
Estamos aqui desde ante-ontem, ãs 5 e pouco da tarde.
Quando acabamos de almoçar, naquele domingo, à beira do córrego da
Extrema (já em terras da velha fazenda da Tapera, que foi do dr. José)
ficou resolvido que Jefferson e Afraninho viessem na frente, — porque eu
declarei desde logo que não deixaria tio Juca.
Assim os dois saíram sem demora e, nós outros, só às 2 e tanto
pudemos partir.
Quando, ao cabo de 2 léguas e tanto de marcha, chegamos a um capão
espesso, tio Juca não encontrou a árvore marcada, indicando o caminho
novo para o Saco. Por causa disso, andamos, de cá para lá, no capão, sem
achar local propício para ganharmos o outro lado. Foi preciso abrirmos, a
viva força, passagem no cerrado; mas, esta mesma, tão estreita que só
permitiu a passagem a pé. De qualquer maneira, este transtôrno serviu de
alguma coisa, pois que tio Juca levantou uma bezerra, que encontramos
deitada, com uma bicheira terrível.
Já, da chapada de cá, viemos cortando atalhos até à vista da casa da
fazenda, depois de caminhada bem longa. O Guerra fêz uns três disparos
de revólver e tio Juca tocou com força buzina, para anunciar a nossa
chegada.
(13) Outra velha fazenda dos Melo Franco, à margem do Bio Preto, onde vivia tio
Juca.
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
Mas, ao que parece, ninguém nos ouviu. Apenas nos avistaram
quando estávamos a uns cem metros da casa. Caí nos braços do João (
20
),
que encontrei à porta, tomando um cafezinho, com Jefferson e Afraninho
(já com ares instalados). Conheci a Glória, mulher de Jefferson, tia
Mariquinhas e Ornar (
21
).
O João estava com o rosto todo ferido: efeitos dos chifres de uma vaca
manhosa, que quase o cegou.
Jantamos admiravelmente, porque estávamos com uma fome
devoradora. Só à noite é que chegou o Zeca: (
22
) andava pelo campo, havia
dois dias, caçando gado bravo, e quando voltou, tinha abatido uma novilha,
na carreira, com um tiro certo.
Ontem, desde cedo, pusemo-nos de pé. Experimentamos a água do rio
Preto, com um banho, que seria excelente, se não fosse a grande
quantidade de lama da margem.
No mais, estivemos apenas conversando, em casa. Fiz uma grande
camaradagem com tia Mariquinhas e com Glória.
Depois do jantar, chegou o Manoel — um preto, violeiro — que
Jefferson tinha chamado para tocar, em nossa honra. Organizamos um
concerto "importante" — com as suas habilidades, as do Jovino e as do
Bernardino — um mulato pernóstico, que é o cozinheiro, aqui. Tocaram
toadas boas e dançaram lundus até uma hora da noite. O Jovino revelou-se
bom violeiro e dançarino excelente.
Êle mesmo foi quem, durante o dia, me contou uma aventura terrível
do célebre tenente Felão, no Urucuia: esse oficial famoso da força pública
do Estado, matou com um ponta-pé no ventre uma irmã do Jovino, em cuja
casa tinha entrado à procura do Vital, que era criminoso afamado na
região, e foi o único a zombar do faro do beleguim.
Nota curiosa sobre o fim do Felão: — êle havia maltratado gravemente
um curandeiro, e este lhe rogou a praga pavorosa de ser perseguido de
carrapatos, até morrer. A maldição se verificou, e o Felão, por mais banhos
que tomasse e roupas que trocasse, estava sempre "tampado de bichos".
Assim morreu.
A crónica desse Felão parece ser das mais edificantes e o próprio tio
Juca sabe de várias façanhas suas.
Hoje, o dia correu mais ou menos como o de ontem. Tomamos banho
no rio Preto, banzamos o tempo inteiro, comemos muito e, agora, à noite,
fêz-se uma nova festança de viola, com o Manuel à frente.
(20) Filho de tio Juca.
(21) idem.
(22) idem
Pouso no Paredão —
Ro-drigo corta os cabelos
de
Afrânio
Fazenda do Saco. Regre: so de
caçada. Jorge Tavares Guerra e
Âfrânio de Mello Franco.
Paracatú. Sobrado dos Mello
Franco (Séc. -XVIII — hoje
demolido).
Rodrigo escrevendo o seu Violeiros, cantadores e
Diário" no pouso do dançadores de "Catira". Lageado
DIÁRIO DE PARACATU
A coisa passou-se (e está se passando ainda, quase à meia-noite,
enquanto escrevo) num cômodo de fora, destinado aos arreios. Lá se
reuniram, com a caboclada recrutada para nós, uns homens da "chapada",
que estão de passagem para Paracatu. Dançaram o recortado, o lundu, a
dança de sala, etc, tudo isso cantado, uma voz de falsete horrivelmente
desafinada.
E o curioso é que, enquanto dançavam e cantavam, discutiam com
Jefferson as vantagens e desvantagens de liquidarem à bala de carabina as
suas questões com o delegado e com os Pinheiros (
23
).
Esquecia-me de dizer que hoje chegou para ver-nos o filho mais velho
de tio Juca — o Jorgino, que vive no "Buritizinho" com uma mulata, neta
do dr. José. É um bicho baixinho, de perna torta e voz fina, que já matou
trinta e tantas onças ferozes, mas que parece pobre de espírito. Tia
Mariquinhas tem uma grande pena dele, porque, diz, os irmãos o
desprezam. Veio em companhia de um camarada — o Alexandre — que
tomou parte muito ativa na pagodeira e que o trata com a mais escandalosa
intimidade, ao mesmo passo que mostra respeito aos seus outros irmãos,
mais moços.
Passava-me, além desse, outro incidente importante do dia: — a queda
que levou o José Pires, um tipo impressionante de símio criado aqui. Êle
esporeou uma poldra mal amansada e, tendo-se partido o barbicacho,
tomou um tombo terrível do animal. Reabilitou-se, porém, depois, metido
em brios, e dominou completamente a egui-nha. Por hoje, foi só.
(Sexta-feira — 24 de julho de 1925).
Hoje não me afastei de casa, nem para ir tomar banho no rio Preto,
como tinha feito em todos os dias anteriores.
Fiquei todo tempo lazaroniando pela casa, ou pelo pátio, sem que nada
ocorresse comigo ou aos meus olhos.
O Guerra, o Afraninho, o Mário Santos, o Jefferson e o Zeca partiram
para a grande caçada na fazenda da "Mamoeira", acompanhados de vários
camaradas. Saíram pouco depois do almoço e levaram consigo o cargueiro,
porque devem hoje dormir no mato. Essa partida foi o único incidente de
monta, durante o dia inteiro. Eu devia dar um passeio a cavalo, à tarde,
com tio Juca, mas não puderam apanhar, no retiro próximo, o animal que
me serviria para isso. De sorte que tive de trocar o passeio pela conversa
provavelmente de bom grado.
Aliás a própria conversa, hoje, foi isenta de maior curiosidade para
mim. De interessante, tio Juca me contou apenas alguns incidentes
relativos ao Capitão Justiniano (
24
) (cuja segurança só cedia
(23) Adversários políticos de tio Juca.
(24) Justiniano de Melo Franco.
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
sob a pressão do álcool) e mais um detalhe sobre o dr. José: — este
acabou mais ou menos analfabeto, à força da vida que levou.
O diabo desta figura do dr. José é, possivelmente, a mais interessante
da família. Dá assunto para uma novela curiosa, que tenho agora preguiça
de imaginar.
Outro tipo pitoresco, que vim também a conhecer através de tio Juca
(mas não hoje), é o do major Carneiro, avô de tia Mariquinha. Esse velho
bonitão, de vastas barbas brancas, vivia como um grão--senhor, na
Bagagem. Tinha copiosa quantidade de escravos (alfaiate, cozinheiro,
quitandeiro, violeiro, etc.) e, nos intervalos da boa-vida, despachava para o
outro mundo seus inimigos. Para esse efeito, servia-se dos bons ofícios do
romanesco índio Afonso (
25
) (que, na realidade era um bandido temível), e
dos filhos e parentes deste, que formavam uma verdadeira aldeia, no
Paranaíba.
(Sábado — 25 de julho de 1925).
Dormi deliciosamente até 8 e meia. Às 10, banho no rio Preto, em
companhia do João. Pouco depois do almoço — uma grande resolução:
deitei abaixo a barba que tinha deixado crescer, desde a partida do Rio.
Conforme, porém, recomendação de tio Juca, conservei o bigode, e com
este me venho ocupando o dia todo, em falta de outra ocupação.
A 1 hora, pouco mais ou menos, ouvimos um tiro do lado do rio. Era
Alírio (
20
) que chegava, acompanhado do filho — o Hugo: tio Juca mesmo
é que foi buscá-lo com a canoa, ao outro lado, e o transportou para cá,
mostrando-se remador exímio.
Alírio está voltando de Santa Luzia de Goiás (
27
) e apenas parou um
dia em Paracatu. Veio imediatamente ao Saco, logo que soube de nossa
presença aqui. Quer que, na cidade, fiquemos hospedados com êle, na
Chácara, ao contrário do que planejava para nós o Jefferson.
Diz êle que Goiás está infestado de soldados, desde que os revoltosos
(
28
) se embrenharam pelos sertões daquele Estado. Até contingentes da
polícia rio-grandense lá estão. Mas o número de desertores, entre as tropas
legalistas, parece que é considerável: os soldados vendem, por preço
irrisório, carabinas, palas, etc, e ganham o mato. Dos próprios revoltosos,
pouco ou quase nada se sabe: dizem alguns que chegam a 1.000 homens,
falam outros em 800, e o fato é
(2b) Indio Afonso ,tipo romanceado por Bernardo Guimarães.
(26) Alírio Carneiro, sobrinho e genro de tio Juca.
(27) Atual Luziania, perto de Brasília.
(28) A coluna Prestes.
DIÁRIO DE PARACATU
apenas que eles provocam um pânico terrível na população local. Muita
gente tem abandonado precipitadamente as cidades, aterrorizada, fugindo
para o mato.
Pouco antes do jantar chegou o pessoal, de volta da caçada, trazendo
como troféus somente um veado mateiro e um caitetu. Entretanto
Afraninho e o Guerra vieram entusiasmados com o fato de uma onça ter
vindo miar a poucos metros do acampamento: chegaram a ver-lhe os olhos
brilhando na escuridão.
O João é que saiu hoje, todo elegante e bem montado, sob o pretexto
de regular uns negócios com o Atanásio (pai de Antônio). Parece, porém,
que foi a uma festa, que se realiza num povoado perto, a despedir-se das
morenas. Porque êle conta ir conosco até o Rio.
Ainda há pouco, depois do jantar, tio Juca narrava uma história
trágica, sobre um dos antigos proprietários da Fazenda da Mamoneira.
Chamava-se João Soares e era casado com uma mulher clara e bonita,
conhecida sob o nome de Sinhá Pequena. Está amasiada com um negro
escravo, deliberou dar cabo do marido e, um belo dia, quando o pobre
diabo, de volta do trabalho, se tinha deitado sobre um jirau, foi morto a
machado pelo galante cativo. A tal mulher, então coseu-lhe o corpo dentro
de um couro que, desde a véspera, estava amolecendo na água
(expressamente para isso), e despachou os restos do pobre João Soares, rio
abaixo. O volume macabro foi dar à barranca, num lugar chamado Catinga,
e aí se reconheceu o corpo do infeliz. Os escravos da Sinhá Pequena parece
que a denunciaram e chegou-se mesmo a instaurar processo contra ela.
Mas nada lhe aconteceu: ela transferiu-se para o Capão Redondo, durante
algum tempo, e, mais tarde, voltou calmamente à Mamoneira.
Uma tapera que existe perto da Mamoneira: — "Samangolê". Ai,
diziam que, anualmente, na véspera de São João, se realizava uma grande
festa, concorrida por pessoal de toda parte. De São Paulo, de Ouro Preto,
do Rio, enfim, fosse de onde fosse, bastava alguém manifestar desejo de
assistir ao baile do Samangolê, era logo transportado milagrosamente para
aquele lugar. De sorte que, na noite de 23 para 24 de junho, a casa velha,
no meio do deserto, estava sempre repleta de gente luzida, e as imediações
cheias de carruagens riquíssimas, de cavalos com arreiatas de prata, de
pagens enfar-pelados de veludo, etc. O viadante, que errasse por ali,
estacava assombrado diante de tal magnificência, com os ouvidos cheios
das harmonias lindíssimas que as orquestras executavam lá dentro. Mas,
se, ao dia seguinte, entrasse pela casa antiga, acharia o interior de uma
fazendola abandonada, como outra qualquer. Estava finda a festa do
Samangolê e cada conviva já se encontrava, por encanto, de volta aos seus
sítios familiares. Hoje, ao que conta a lenda, a tapera do Samangolê está
desencantada, não sei por que arte de Deus ou do diabo. Mas, guardando a
sua porta, no tronco de uma aroeira antiga, há uma colmeia de abelhas
borá, que se encarniçavam sobre o
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
atrevido que ousar penetrar o casarão esquecido — Os meninos tiraram
uma fotografia do Samangolé. (
29
)
(Domingo — 26 de julho de 1925).
Mais um dia de ociosidade e de inércia, melhor que tudo. Pela manhã
e à tarde os meninos saíram com Alírio, para caçar na vizinhança:
trouxeram marrecos, marias-pretas, garça, socó-boi, etc.
Fiquei "sambando" pela casa, excitado apenas pela proximidade das
refeições. Conversa com o tio Juca, com Alírio, com Zeca. Prosa mole com
tia Mariquinhas. A certa hora — sessões de fotografias, importante. —
Agora, à noite, contou-me o Zeca uma uma história de assombração,
passada com aquele Paulo de Sousa, que esteve aqui há dias, tocando viola
e dançando com os riachei-ros. Ia este para a cidade, quando, na Barra da
Égua, tendo passado uma porteira, ouve um segundo batido sonoro desta,
atrás de si. Volta-se e vê uma figura de homem colossal, coberta de um
cha-pelão de abas descomunais, que corria em sua perseguição. Aterrado,
dispunha-se a apressar o passo do animal; mas este já havia partido em
disparada, como consciente de um perigo terrível, e não havia mais força
que o contivesse. Foi assim que, chegando a uma segunda porteira, pouco
adiante nem o burro esperou que êle a abrisse, em-purrando-a
violentamente com a testa e atravessando-a com tal impulso que os joelhos
do Paulo ficaram feridos de se chocarem aos moirões. E nem tinha
percorrido ainda cem metros, depois disto, em carreira desenfreada e já
sentia, ao seu encalço, cada vez mais próximo, o vulto apavorante. A ponto
de, apesar da escuridão profunda da noite, ver que o fantasma formidável
quase lhe saltara à garupa. A disparada louca do animal continuou, por
muito tempo, antes que êle entrevisse, de longe, a luzinha pálida de uma
habitação. Espontaneamente, sem que êle tentasse siquer dirigi-lo, o burro
endireitou para a casa, a cuja porta foi meter com violência a cabeça, como
pedindo socorro. — Os moradores é que vieram apear o Paulo, trémulo e
sem fala, e o acolheram, tendo tido antes o cuidado de peiar o animal, que
costumava, mesmo assim, afastar-se para pastar. Mas, ao dia seguinte,
foram verificar que o burro não se havia retirado dez braças, siquer, da
porta da habitação.
Amanhã contamos partir para Paracatu, em grande cavalhada. Ao
mesmo tempo, o Jovino seguirá para a sua terra do Urucuia, com a intuito,
porém, de voltar, "nas águas", para trabalhar um pouco "para o velho
Juca". Foi, pelo menos, o que anunciou esta tarde, à sua maneira familiar,
enquanto jantávamos e êle fazia girar com
(29) Possivelmente o Samangolé inspirou o Assombramento de Afonso Arinos.
DIÁRIO DE PARACATU
os dedos grossos o seu chapelão preto de abas largas. A perspectiva de o
perder de vista, fê-me pedir-lhe que viesse tocar um pouco de viola, por
despedida, e êle esteve aqui arranhando as cordas da choradeira. Mas o
Jovino não é grande violeiro: "gunguna um pouco", apenas, como me
informou pitorescamente, em viagem para cá. Gosta, contudo, de
descantar os seus lundus: ainda agora estou ouvindo, de longe, os sons
plangentes de sua viola, dedilhada num cómodo do terreiro.
Termina hoje esta vidinha macia da fazenda. Amanhã, cedo, já
seguimos para a cidade. E, de volta, (se voltarmos por aqui) mal teremos
tempo para fazer os preparativos para- deixar o sertão. O diabo é que sinto
não ter aproveitado, no Saco, tudo quanto seria possível. Mas, afinal de
contas, que poderia eu fazer melhor do que fiz?
(Quarta-feira — 29 de julho de 1925).
Paracatu.
Ante-ontem e ontem não tive tempo para fazer estas notas. A viagem
do Saco a Paracatu não me deixou ocioso para isso.
Domingo (ante-ontem) deixamos a fazenda pouco depois do meio-dia;
mas só à 1 hora montamos, do outro lado do rio Preto. Tia Mariquinhas,
Glória e os pequenos de Jefferson vieram acompa-nhar-nos até o posto.
Até aquela hora, tínhamos estado conversando, à espera de que a
comitiva se organizasse e, neste tempo, entre outras, Alírio contou uma
anedota engraçada sobre um Luiz Vieira de Siqueira Torres, que era o tipo
mais descansado deste mundo. Fazendeiro, boiadeiro, em todas as suas
ocupações, revelava-se de uma calma incrível. Certo dia, fazendo uma
viagem demorada, perdeu-se pelo caminho e já ia muito longe pela estrada
errada quando o camarada, que o acompanhava, se apercebeu do engano e
o avisou.
— Não faz mal, respondeu êle. Estou achando esta estrada muito boa.
Ela há de dar em algum lugar, e daí a gente toma rumo certo".
Depois de 2 léguas de marcha, a partir do Saco, paramos um bom
pedaço na fazenda do "Brejinho", que pertenceu ao capitão Justiniano e
hoje é de um português, chamado Antônio Cordeiro, genro do Cristiano de
Melo Franco. Lá tomamos café com biscoitos e visitamos a casa — um
casarão enorme e simpático, agora habitado pela negralhada da família do
administrador. Tio Juca mostrou-nos o quarto do Capitão e referiu novos
episódios de sua vida.
Quando o sol começava a descambar, passamos pelo córrego de São
José e tio Juca, ainda aí, cavalgando a meu lado, narrou-me um
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
fato ocorrido ali mesmo com êle, em uma das suas inumeráveis viagens do
Saco para a cidade.
Vovô João Crisóstomo lhe encomendara madeiras para construção,
encomenda esta que tio Juca em pessoa vinha conduzindo, carreiando um
carro de bois, descalço e em mangas de camisa. À beira daquele córrego é
que foram pousar; mas, como no dia seguinte queria seguir cedo, deixou os
bois na canga, embora soltos do carro. Ao amanhecer encontrou uma junta
deles — a melhor — morta asfixiada, por se ter a canga virado de mau
jeito. Tio Juca, então, foi ao arraial próximo, chamar gente para retirar o
couro dos animais. Ofereceú-se para este mister uma família de negros,
que logo pôs mãos à obra. Mas, ao meio da operação, o velho — o pai —
morre de repente, vítima de uma síncope cardíaca. Tio Juca ficou
horrorizado e dispunha-se a partir incontinente, com receio de que a morte
fizesse ali outra proeza, quando viu os negros — filhos e mulher — na
maior calma, depois de terem afastado um pouco o cadáver e lhe haverem
coberto o rosto com um ramo, continuarem tranquilamente a descarnar os
bois. Findo esse trabalho, carregaram, sem mais cerimônias, o corpo, para
sepultá-lo ali adiante, na cabeceira do córrego.
Com esse conto e muitos outros, Tio Juca foi me entretendo a viagem,
até chegarmos ãs proximidades do ribeirão do Guariroba, às 9 horas da
noite, depois de um trajeto admirável, pela estrada enluarada como um
sonho. (Por sinal que atravessamos, de caminho, a famosa barra da Égua).
Na Guariroba pousamos, do lado de fora de um rancho de sapé,
habitado por uma gente atacada terrivelmente de gripe. Ao chegarmos,
porém, o projeto de Alírio era dormirmos todos lá dentro. Tio Juca é que,
desde o princípio, se opôs a isso, dizendo-se "descon-riado como uma
raposa". Ninguém, porém, lhe queria dar ouvidos, até que o Guerra, que já
se afoitara a iniciar a confecção de sua cama, no interior do rancho,
apareceu à porta, de olho arregalado. Esteve, por ali, disfarçando, e,
quando dei fé, vi que já se achava instalado para dormir sobre um couro,
do lado de fora. Interpelei-o, então, e êle me declarou (não sei porque, com
a alma um tanto envenenada contra mim) que lá dentro havia um homem
doente, cuspindo sangue. Não houve, depois disso, quem hesitasse em
seguir o exemplo de Tio Juca... E passamos uma noite de cachorro ao re-
lento, com um frio terrível apesar da fogueira que havíamos improvisado .
Éramos oito: Tio Juca, Jefferson, Alírio, o Hugo, filho deste, o Mário
Santos, Guerra, Afraninho, e eu, fora 2 camaradas. No dia seguinte, cedo,
ao partir dividimo-nos em 2 grupos: o 1.°, composto de Alírio, Afraninho e
o Guerra seguiu para almoçar na fazenda de
DIÁRIO DE PARACATU
São Pedro
(30)
(fazendo uma volta considerável); e o segundo, composto
dos restantes, que veio diretamente para Paracatu.
Trajeto pitoresco e delicioso, apesar da poeira e da fadiga e da própria
falta de almoço (suprimido para abreviar o tempo da viagem) . A certa
altura, o Hugo se distanciou de nós, a fim de prevenir na chácara, de nossa
chegada.
Apenas uma parada ligeira, de 15 a 20 minutos, no arraial de Santo
Antonio da Lagoa (
3l
). Ai tomamos um cafezinho. Depois, marcha tocada,
até a cidade. Tínhamos atravessado a serra da Bo-caina, muito bonita.
Agora subíamos o morro de São Sebastião. Do alto deste, enquanto tio
Juca contava as peripécias da recepção de Afonso, em Paracatu, avistei as
casas primeiras desta terra lendária. Pouco depois, divisava o Córrego
Rico, dourado ao sol, com as suas praias imensas povoadas de lavadeiras.
E a Chácara, ao fundo. (
32
) As 2 horas, ou pouco antes, apeávamos aqui.
Tia Amélia,
(33)
Si-nhá
(34)
e a Verazinha
(35)
, à porta. Quando chegou o
outro grupo, o Mário Santos e eu já tínhamos tomado uma ducha fria
admirável, na bica natural do pomar, e sorvido um café delicioso, com
bolos e biscoitos de toda espécie, sem falar do vinho do Porto, que tio Juca
não dispensa.
Depois do jantar, copiosíssimo, fizemos uma volta pela cidade, com
Alírio, passando pelas casas que pertenceram a nossos maiores.
(Sexta-feira — 31 de julho).
Desde que chegamos, mal tenho tido tempo de rabiscar meia dúzia de
coisas neste diário. É uma lida incessante de receber e pagar visitas.
Vejamos se consigo lembrar o nome das principais: Joaquim Santiago,
Jorge Batista, Leopoldo Faria, Dr. Vidigal, Zuzú, Guèsinho, Helena —
filha do Júlio de Melo Franco, outro descendente do Antônio de Melo,
João Macedo, Demóstenes Roriz pai, filho, filhas e genro, Josino Neiva,
Olímpio Gonzaga, Nenéco, Alexandre.
O Olímpio Gonzaga levou-nos a passear de automóvel, pela estrada
que vai ao porto de Buritis, até ao cruzeiro erguido para comemoração do
novo século. Isso ainda ontem, de manhã. A noite, quando saíram as
visitas, fornos ver o cinematógrafo local e a gente que lá se achava,
seguindo uma fita em série.
É o que me lembro, apenas.
(30) Outra fazenda dos Melo Franco.
(31) Deste arraial vinham os Martins Ferreira, antepessados do A.
(32) Chácara de Joaquim de Melo Franco, onde nasceu Virgílio, avô do A.
(33) Irmã do tio Juca.
(34) Esposa do Alírio.
(35) Filha de Alírio.
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
Hoje fizemos uma visita solene ao grupo escolar Afonso Arinos, em
companhia de Alírio e do Demóstenes Roriz: a Olindina, diretora,
recebeu-nos muito bem e quis que deixássemos, no livro de estilo,
registrada a impressão de nossa visita.
Ainda de manhã, tínhamos recebido um cartão do Guèsinho
convidando-nos a assistir ao casamento da sobrinha, filha do Dr. Martinho
(
36
). Como ela devia casar-se com o tal Carlos Tunes (que tentou assassinar
tio Juca) tivemos escrúpulo em aceder ao convite. Mas o próprio tio Juca
entendeu que convinha comparecermos, em atenção à família de Mamãe
Donans (37). Foi o que fizemos, às 6 horas da tarde, depois de uma série
interminável de visitas de agradecimento, de que decorreram,
invariavelmente, pratos de doces de todo gênero. Em casa de Binda, onde
se realizou o casamento, tivemos uma acolhida muito festiva, sendo
apresentados a todos os parentes. Terminadas as cerimônias, já muito
tarde, Olindina ainda nos obrigou a ingerir uma dose formidável de outros
doces. Saímos às carreiras, atrasadíssimos para o jantar da Chácara, sem
que tivéssemos siquer feito um sinal de cabeça ao noivo. Sofremos, porém,
uma conversa constrangida com o Santos. (
38
)
Não estávamos ainda longe dali e encontrávamos o Hugo e um
camarada, que iam à nossa procura, com um bilhete de Alírio, anunciando
acharem-se à nossa espera, na Chácara, muitíssimas visitas e uma turma
vasta de violeiros e sanfonistas.
Agora, há pouco, ficou terminada a festa que nos improvisaram aqui,
com uns arremedos de baile, em que exibimos a nossas habilidades de
dançarinos.
Já é muito tarde (quase 2 horas da manhã) e não tenho tempo para
entrar na narrativa do que se passou.
Até mesmo me tinha esquecido de registrar, aqui, a partida do
Guerra e do Mário Santos, hoje, para o porto de Buritis e daí, pos
sivelmente para Pirapora, por via fluvial: eles tomaram horror ao
cavalo.
|
Afraninho e eu seguimos amanhã cedo para o Saco, com tio Juca,
Alírio e os meninos, no lombo dos machos, como viemos.
(Domingo — 2 de agosto de 1925).
Pouso da Guariroba
Partimos ontem de Paracatu, pouco depois de 1 hora. Despedida
muito triste de tia Amélia, coitada. Os meninos de Alírio (Deon e Diogo)
ficaram chorando e nem puderam nos ver saindo.
(36) Dr. Martinho Campos, juiz de Direito.
(37) Avó do A. Era parenta dos Campos.
(38) Santos Roquette. Aparentado com os Melo Franco.
DIÁRIO DE PARACATU
O Zuzú
(39)
acompanhou-nos até à igreja da Abadia
(40),
onde paramos
um momento, ao deixar a cidade.
Viagem até aqui — excelente. Tio Juca e Alírio contaram-me coisas
curiosas sobre o nosso tio-bisavô Antônio de Melo: valentão temível, cheio
de truculências e mortes praticadas no Urucuia — o único indivíduo a
quem o Major Carneiro temia, na Bagagem. Era garimpeiro de profissão e,
assim, enriqueceu bastante. Mas ficou morfético — "macuteno" (
41
), como
dizem aqui. Tio Juca se lembra ainda muito dele, morando numa casa que
ficou depois pertencendo ao Capitão Justiniano: asseado, a ponto de,
invariavelmente, mudar três vezes ao dia as roupas de linho alvo, que
usava; depois, cego pela moléstia, com os dois olhos vazados, ouvindo a
leitura dos jornais feita por um seu filho natural. Pouco antes de morrer,
havia incumbido ao Capitão Justiniano de retirar do banco, no Rio, uma
grande soma que tinha ali depositada e este irmão, sempre velhaco (já
havia ficado com os cobres avulsos do Vigário Melo) (
42
) acabou enfiando
no bolso tudo o que o Antonio Melo economizara. Por isso foi muito mais
rico que os irmãos, Tio Juca diz ainda que esse homem bizarro e violento,
apesar de sua horrível enfermidade, não vivia abandonado — antes a sua
casa vivia sempre repleta da gente melhor de Taracatu (para onde se
transferiu nos últimos tempos, a conselho tio Dr. Manoel) (
43
).
Uma reflexão desagradável feita a propósito desses Meios todos:
deles, apenas Vovó D. Antónia e Dr. Manoel constituíram uma família
decente. Os outros, todos, sem exceção de um só, apenas tiveram filhos
com negras.
Da metade para o fim do trajeto de ontem, Alírio e eu nos separamos
dos demais, para passar pela casa da fazenda da Conceição de Baixo, que
custou 30 contos e é a única apresentável da região. Pertence ao Lindolfo
Adjuto.
Chegamos ao pouso da Guariroba uns poucos minutos antes dos
outros. Jantamos bem, com um franguinho que nos preparara Sinhá e, bem
cedo ainda, metemo-nos na cama. Noite boa, apesar do sereno e do frio
intruso: dormimos ao relento debaixo do pau.
Agora estamos à espera de alguns animais que, como de costume,
desapareceram.
Hoje, lá pelas 4 horas, contamos chegar ao Saco.
Memento: vieram conosco, além de tio Juca e Alírio, Jefferson, João
e Nhôzinho. Como camaradas: João Guariroba, Cabrito e o
(39) Zuzú Torres, parente do A.
(40) A velha igreja de Abadia foi demolida por um prefeito progressista.
(41) "Mal cutoneo", corruptela.
(42) Vigário Joaquim de Melo Franco.
(43) Dr. Manoel de Melo Franco.
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
pequeno Cícero. O segundo destes está contratado para acompa-nhar-
nos a Pirapora.
(Segunda-feira — 3 de agosto de 1925)
Ontem, às 5 horas, chegávamos de novo ao Saco.
A viagem correu bem, apesar do sol abrasador. Almoçamos à beira do
córrego São José, onde se deu, com tio Juca, um episódio já referido aqui.
Desse lugar até adiante viemos num bloco único, de muitos cava-
leiros. Mas, depois da parada que fizemos na fazenda do Brejinho (para
escolher uns poldros e tomar um cafezinho) tio Juca se adiantou,
alcançando o posto do rio Preto bem antes de nós.
Na casa do Saco, o acolhimento bom de sempre. Grande satisfação
dos meninos de Jefferson com os brinquedos que lhes trouxemos .
É preciso não esquecer que nos esperavam aqui, para fazer-nos as suas
despedidas, vários riacheiros. Assim também o Jorgino que, entretanto,
depois do jantar, regressou ao Buritizinho.
À noite, alguns remanescentes dos riacheiros, que ainda haviam
ficado, tocaram um pouco de viola e ensaiaram um lundu, na sala da
frente. Mas o nosso sono era patente, pelo efeito da noite ao relento
passada na Guariroba e, antes da meia-noite, já estávamos, todos,
dormindo.
Hoje, temos passado em casa o dia inteiro. Apenas, antes do almoço,
fomos tomar um banho no rio Preto.
Pretendíamos ter um espetáculo de sensação, fazendo o Cabrito
montar o poldro que o Cordeiro deu a Afraninho. Mas o animal, depois de
ter prometido muito, fazendo o diabo enquanto estava amarrado e saltando
muito com os arreios, trotou, manso como um cordeiro, logo que o peão
lhe galgou a sela.
Em Paracatu, na lufa-lufa em que andávamos, esqueci-me de registrar
muita coisa, que, agora, me vem ocorrendo. Assim foi a visita que fizemos
ao cemitério, vendo as sepulturas de nossos 4 bisavós daqui e mais as do
dr. Bernardo, dr. José, d. Júlia, Capitão Justiniano, etc, etc.
Amanhã, depois do almoço, partiremos em demanda de Pirapora.
Serão nossos companheiros, para o Rio, o João e, provavelmente, o
Nhôzinho. Tio Juca e Alírio contam acompanhar-nos até à Extrema.
(Terça-feira — 4 de agosto de 1925).
Não partimos, como estava combinado. De manhã, pouco depois do
café, tio Juca me chamou para comunicar que não estava pronta uma carne
seca que êle faz questão de mandar para o Conde e para Mamãe.
Acontecia também que o cavalo, em que o Nhôzinho
DIÁRIO DE PARACATU
devia seguir, não chegara ainda. Impunha-se, portanto, o adiamento de
nossa viagem até amanhã.
Passamos, assim, mais este dia no Saco. E aqui, neste dia ainda, talvez
mais do que em qualquer outro, a minha atividade se desenvolveu apenas
no sentido da alimentação. Comi formidavelmente em 4 refeições.
À tarde fomos nadar e lavar-nos no rio Preto, como de costume.
Quando, pouco depois disso, conversávamos sobre a viagem, sentados
à frente da casa, João, Jefferson, Alírio e tio Juca não sei que arranjaram,
meio a sério e meio brincando, que o Nhôzinho (
44
), muito desconfiado,
declarou de repente que não seguiria mais. Ficou, realmente, muito
aborrecido e nem quis jantar. Foi preciso que tia Mariquinha, incomodada,
pedisse a minha intervenção junto a êle para que se decidisse a revogar o
que decidira de mau humor. Ainda assim, apesar de tudo, não sei, ao certo,
se êle partirá ou não em nossa companhia.
Até agora, há pouco, palestra com tia Mariquinha, na "varanda", que é
uma espécie de copa, ao fundo da casa, do lado do rio. Mas os "•frais de
conversation" foram meus.
Ontem, à noite, toda ou quase toda a conversa que tivemos, na sala de
jantar, foi relativa a episódios de assombração, de medo ou ae rasgos de
coragem.
Tio Juca referiu que estava aqui no Saco, com Vovô Zé Martins (
45
) no
dia em que morreu a mãe de Alírio. Não sabia, porém, siquer que ela
estivesse doente. Pois, à hora em que se deitou, ao soprar a vela, viu-a
distintamente, de pé, junto à sua cama. Soube, depois, que justamente
àquela hora ela tinha falecido.
Contou outra história, esta engraçada: o Joaquim Mironga (
46
) que era
seu compadre, estava muito doente, aqui no Saco. E tio Juca, achando-o
muito mal e não querendo que êle viesse a morrer aqui, mandou preparar
uma rede para transportá-lo para a sua casa. Quanto tudo ficou pronto,
dirigiu-se para o quarto do Mironga, di-zendo-lhe: — "Está na hora". Este,
imaginando que a hora fosse de morrer, teve tal pavor que se borrava todo
na cama. E afinal, seguiu viagem a cavalo mesmo, apesar do seu estado.
Depois disso, ainda viveu muitos anos.
Segundo tio Juca, quem também era muito medroso era dr. José.
Outro, que tinha horror a defunto, o padre Antonino. Diz tio Juca que êle
os encomendara, olhando para outro lado, jogando a esmo os santos óleos.
(44) Ornar, filho de tio Juca.
(45) José Martins Ferreira, marido de Antónia de Melo Franco, pai de tio Juca e bisavó
do A.
{46) Herói do conto do mesmo nome, de Afonso Arinos.
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
(Quarta-feira — 5 de agosto de 1925)
Partimos de Saco, pouco depois de 9 horas, mas já almoçados.
Despedidas muito afetuosas com todos, sobretudo com tia
Mariquinhas.
Jefferson e Zeca vieram acompanhar-nos até pouco adiante do córrego
do Medo. Alírio e tio Juca, porém, pretendem levar-nos até a fazenda da
Extrema, amanhã.
Viemos tocando bem. Entre meio-dia e uma hora, fizemos um
descansozinho, à beira do córrego do Extrema, e aí tomamos um café
gostoso, com biscoitos.
Com o sol ainda alto, chegávamos à Novilha Brava, que foi o ponto
de partida do nosso último dia de marcha, na vinda. Esta fazenda da
Novilha, que pertence à companhia dos ingleses, é administrada por um
americano, conhecido aqui sob o nome de João Grande. (
47
) Este é que nos
veio receber, à porta, com a sua vasta estatura, metido numa camisa grossa
de algodão branco. Comuni-cou-nos logo, como a convidar-nos a
prosseguir caminho, que estava também de partida para uma festinha de
roça, ali perto. É um tipo curioso de cow-boy formidável, com a reputação
de vaqueiro mais destro da região: está completamente identificado com o
meio, falando como caipira, fumando cigarros de palha e amancebado com
uma negra, que já lhe deu dois filhos.
Dentro de sua casa, estivemos pouco tempo, conversando e tomando,
enfim, um cafezinho. Prosseguiremos, para atravessar, ainda com dia, o
ribeirão do Gado Bravo, cujo vau não é dos melhores. Apesar disso,
passamo-lo sem novidade, alcançamos o retiro chamado da Pinguela (todo
fechado) e viemos apear a um bom quarto de légua daí, depois de uma
vereda.
Logo que pusemos pé em terra, porém, verificamos haver uma carniça
nauseabunda nas proximidades. A situação é imensamente desagradável.
Entretanto, como já é bem tarde e a tropa está cansada das dez léguas de
marcha que fizemos, não nos é mais possível prosseguir, chegando ainda
até à Extrema, conforme uma sugestão de Afraninho. Temos mesmo de
suportar a catinga infecta, que, de resto, não nos impediu de jantar, como o
fizemos, com grande apetite. A barraca já está armada, aqui perto.
(Quinta-feira — 6 de agosto de 1925)
Pouso na Vereda Funda
Seriam 7 e 10 quando partimos hoje, cedo, do pouso da Pinguela.
Marcha boa, tocada, até à Extrema. Aí chegamos pouco depois das 10
horas, tendo uma recepção muito efusiva de parte da D. Isaura.
(47) O A. se repete, neste ponto.,
DIÁRIO DE PARACATU
Ela disse que já havia 2 dias que nos esperava, a Afraninho e a mim, com
quarto preparado, frangos e leitões mortos, etc. Queria, por isso a todo
transe, que falhássemos (
4S
) com ela o dia de hoje. Mas não nos era
possível: — ficamos-lhe devendo apenas um grande café acompanhado e,
enfim, um vasto almoço.
Depois — despedida afetuosa com esta Senhora e com tio Juca e
Alírio, que voltaram dali, com o João Guariroba. Fiquei, de verdade,
comovido ao abraçar meu velho tio Juca e êle também me pareceu bem
sentido.
Saímos, ao mesmo tempo, em rumo oposto — tio Juca e Alírio,
demandando a Novilha Brava e nós outros — o Posto da Pedra.
Viemos sempre tocando bastante. Passamos pelas Flores, com uma
hora e vinte de marcha e, logo depois, paramos à porta do To-nicão
Campos, na sua fazenda do Brejão. Já de alguns quinhentos metros adiante
acompanhou-nos um rapaz simpático, que tivera notícia de nossa chegada
e prontificava-se a arranjar-nos, no Brejão, uma água boa de beber.
A casa do Tonicão, imunda e repleta de sua mulher e seus sete filhos,
dá uma impressão penosa e ridícula de empresa por água abaixo. A
mulher, inteiramente insensata, é a razão principal do desastre em que
sucumbe o pobre homem. Dizem que, em suas crises mais agudas de
loucura, ela o obriga a cozinhar até e, quando estão na cidade, a apanhar
água no chafariz da rua, como as negras, de balde. Agora o raio da Senhora
está em preparativos de mu-dar-se para Pirapora, com os filhos, enquanto o
desgraçado Tonicão acaba de tornar à fazenda. Os filhos são seis meninas
e um menino perebento, cuja inteligência é encarecida enternecidamente
pelos pais. A mais velha das meninas, por sinal que é bem bonita, apesar
de metida num vestido infantil demais para os seus 17 ou 18 anos seguros,
deixando-lhe ver as pernas nuas.
É uma casa de romance, com esta família e aquele tipo do Tonicão,
simpático, mentiroso, preguiçoso, esquecido dois meses em caçadas, como
me disse a mulher, enquanto a fazenda vai à garra.
Ficamos aí uma boa meia hora, conversando e sorvendo um café com
bolo de fubá. Prosseguimos, enfim, e, logo adiante, tomamos uma perdida
(
49
), que poderia ser séria, se não tivéssemos tido o juízo de desistir de
cortar rumo e de voltar a uma campina mais orientadora.
Quando anoitecia, encontramos a comitiva, que se tinha adiantado
sobre nós, acampada do outro lado da Vereda Funda, sem que se tivesse
aventurado até ao Posto da Pedra. Vamos dormir aqui e muito bem.
(48) pernoitar.
(49) Caminho errado.
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
Mas estou com muita saudade de tio Juca: a viagem sem êle perdeu o
seu principal encanto.
O Cabrito acaba de comunicar-nos: "Nós onte bebemo cardo de
carniça". Diz êle que o Guariroba verificou, realmente, que o mau cheiro
de ontem provinha de uma rês morta dentro do córrego, acima do lugar em
que pousamos...
(Sexta-feira — 7 de agosto de 1925)
Nossa marcha de hoje foi pequena, contrastando com as duas
anteriores.
Partimos cedo do pouso, com o intuito de almoçar no Porto do Cavalo,
à margem do Paracatu. Mas, uma légua antes de aí chegarmos,
consideraram os companheiros que seria conveniente fazer alto, para o
almoço. Isso, à margem do ribeirão do Salto, de sorte que nos foi possível
tomar ai um banho agradável, sem embargo de mosquitos terríveis.
Demoramo-nos e assim, só quase ãs 4 horas viemos alcançar o Porto do
Cavalo, onde encontramos notícias frescas do Guerra e do Mário Santos
(passaram por aqui há 4 dias e seguiram a cavalo para Pirapora) . A
travessia do rio Paracatu é muito maçante, sobretudo para os cargueiros: a
nossa comitiva teve de dividir-se em três sessões. Descarrega de um lado,
carrega de outro, enfim quanta caceteação e demora se possa desejar. Pros-
seguimos já quando começava a escurecer, e eu ardia em desejo de chegar
ainda hoje ao Paredão. Mas, mal tínhamos saído do cerrado que sucede á
mata da margem do rio, com uma pequena marcha de menos de légua, o
Antônio se adiantou para avisar-nos de que não convinha irmos adiante: o
Peitudo, um dos burros de carga, já estava querendo deitar.
Fizemos ainda, Afraniho e eu, uma forcinha surda para alongar a
marcha. O João e o Nhôzinho, porém, como os camaradas, ofe-receram-
nos essa resistência mole de sertanejo, que não há quem vença.
Desci do animal de mau humor e fui sentar-me sobre o areião da
estrada, de frente para a vereda estupenda de buritis que existe aqui, numa
campina verde imensa. Era lindo, o sol se escondendo sem aparato e
pintando apenas de um vermelho brando o céu, para dar graça ao desenho
fino das palmeiras.
A princípio para ver onde acharia água melhor e, depois, pelo prazer,
o Nhôzinho acendeu uma folha de burriti e, logo, ateou fogo a outras, nas
próprias palmeiras: foi um fogo de artifício violento e magnífico. Em todo
caso, apesar de tudo isso não ser "pior", como dizem aqui, eu prefereria
estar no pouso feio do Paredão.
São curiosas as expressões sertanejas, empregadas a todo propósito, e
reveladoras do temperamento fatalista, hesitante e pouco afirmativo da
gente daqui:
DIÁRIO DE PARACATU
"Só indo", responde, por exemplo, um sujeito a quem se pergunte
se vai a qualquer lugar, com isso êle dá a impressão de estar constrangido
a fazê-lo, quando vai mais que espontaneamente.
"Não é pior", replica também o sertanejo, de quem se indaga se
certo cavalo ou certa pastoria é boa, embora ache aquele ou esta excelente.
Há muito carrapato por aqui? "Sempre tem, sim sinhô. Eles chega
a treme nas fôia".
(Sábado — 9 de agosto de 1925 — 6 e 15 da manhã)
Esta noite foi a mais fria de quantas já passamos no campo. Houve um
momento em que acordei com o pano gelado da barraca me raspando no
rosto, com a sensação do contato frio de um cadáver.
Já, felizmente, o Cabrito encontrava e trouxe a tropa inteira. Às 7 ou 7
e pouco poderemos estar tocando. De sorte que podemos esperar fazer
pouso hoje no Capão do Barreiro, em situação de alcançarmos Pirapora
ainda amanhã.
Capão do Barreiro (10 para as 9 da noite).
Chegamos, felizmente, a este pouso. Nossa marcha de hoje não foi de
todo má: 8 léguas boas, sobretudo aquelas do Paredão à Santa Cruz.
No Paredão (velho povoado de mineração, a que suponho já ter feito
referência mas detida) encontramos ainda uma vez o Soter de Abreu, com
quem conversamos alguns minutos. Às 11 e 20, pouco mais ou menos,
chegávamos à fazendinha de Santa Cruz (a 5 léguas de marcha do pouso).
Logo nos dirigimos à casa dos negros que a administram e aí obtivemos
meia dúzia de ovos e algumas laranjas, para o almoço. Mas a comitiva só
nos alcançou hora e meia mais tarde, com uma das bestas de carga
inteiramente descadeirada. Ficamos abatidíssimos, sobretudo porque,
momentos antes, chegaram ali um negro velho e um moleque, conduzindo
os dois cavalos que levaram a Pirapora o Guerra e o Mário Santos: ao
mesmo tempo em que sabíamos que estes haviam feito num dia só o
percurso de 10 léguas de Santa Cruz a Pirapora, víamos, diante de nós, a
perspectiva penosa de uma viagem de cágados, com o raio da tropa
cansada.
Felizmente, arranjamos com os negros uma besta, para substituir a
Catirina, frouxa, e, lá para as 3 horas, prosseguíamos rumo a este pouso
.Trajeto agradável, com paisagens admiráveis de buritizais. De quando em
quando, um vôo de araras magníficas. Mas não vimos (nem era possível, à
tarde) espetáculo tão interessante como os que nos ofereceram, ontem e
hoje de manhã, os veados correndo na campina.
RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
Enfim, às 6 horas, estacamos no pouso. E, quando os cargueiros
chegaram, (pouco depois) tivemos a grata notícia de que as coisas tinham
corrido com eles satisfatoriamente.
Jantamos com fome devoradora e oferecemo-nos, como sobremesa,
uma parte dos doces que a Olindina enviou à Mamãe e Mamãe Donana.
Depois do jantar, conversa prolongada com o João, o Nhô-zinho, o Cabrito
e o Antônio, sobre proezas de vaqueiros e marruazes, sobre manhas de
cavalos e burros, desmandos de novilhas bravas, etc.
A um certo momento, ouvimos, na lagoa em frente, o ruído das antas,
brincando na água. João e Afraninho fizeram alguns disparos, por
desencargo de consciência apenas, pois que a escuridão da noite não podia
deixar a menor esperança de feri-las.
Agora, enquanto o Nhôzinho, já deitado, dispõe-se a dormir o sono
profundo que goza todas as noites, o resto da nossa gente conversa, do lado
de fora da varanda, em torno da fogueira apagada. Vou fazer como eles,
aproveitando a última noite dormida no sertão.
(Domingo — 10 de agosto de 1925)
Pirapora
Está terminada a viagem, embora nos reste ainda percorrer mil e
tantos quilómetros de estrada de ferro.
Chegamos, hoje, às 2 e 10 da tarde à Pirapora.
Tínhamos "feito um cedo", como se diz no Saco, e saído do Capão do
Barreiro pouco depois das 6 horas. Às 8 e meia, mais ou menos,
passávamos pelo Jatobá (ponto de almoço na viagem de ida) e, depois de
tirar algumas fotografias de um morro que lembra os "Penitentes" dos
Andes, tomamos uma perdidazinha de um quarto de légua acompanhando
uma cerca. Felizmente, logo adiante, encontramos a estrada, justo em
frente à Vereda Grande, onde devíamos almoçar. Assim, não tivemos o
risco de "cortar rumo", à toa, como sempre acontece.
O almoço — o último sertanejo — esteve excelente, apesar de constar
apenas de arroz, feijão e carne seca. Demos-lhe, como sobremesa, ainda os
doces de Olindina e iniciamos também o requeijão que Glória nos
ofereceu.
Quando se conseguiu alçar a carga dos animais, já era quase meio dia.
Só depois das 12 horas, realmente, que prosseguimos, de cavalos trocados.
Pouco adiante entrávamos naquele cerradão que, só interrompido pelo
córrego do Cavalariano, se estende até Pira-porinha: — trajeto insípido de
2 léguas e tanto, com muito sol e uma poeira insuportável.
Chegados, afinal, procuramos o Coronel Maximiano Valadares, para
que êle nos indicasse meios e modos de transportar a carga
DIÁRIO DE PARACATU
para o outro lado do rio São Francisco, de empastar razoavelmente a tropa,
etc. Êle nos recomendou um sírio, que mora pouco acima de sua casa; mas
como hoje era domingo, ninguém nos atendeu ali, e tivemos de recorrer de
novo ao Maximiano. Enfim este mesmo é que nos arranjou canoa, cômodo
para desasseiar e pasto para os animais. Todos esses favores, além do
cafezinho bom que nos ofereceu em sua casa (uma casa ao gosto destas
bandas, com a mulata obrigatória e a filharada dela decorrente) .
Atravessamos o rio de canoa e Afraninho tomou logo a precaução de
tirar as perneiras e as esporas para, no caso de irmos ao fundo, não lhe
suceder o mesmo que aconteceu quando estava em São Domingos.
Viemos para o Hotel Internacional e aqui encontramos um inglês, Mr.
Barker, que nos deu notícia do Guerra e do Mário Santos. É um antigo
empregado da Brazil-Land, que se fêz fazendeiro: conhece
admiravelmente os locais que visitamos, inclusive tio Juca e o Saco.
Depois do jantar, conversou conosco longamente, oferecendo-me
informações as mais curiosas sobre o João Grande e o Thomas Kant — os
dois americanos-sertanejos.
Não vou mais reproduzi-las aqui. Este diário está terminado.
Notas de Afonso Arinos de Melo Franco.
O Mestre-de-Campo André Ribeiro Coutinho 2."
Governador do Continente de São Pedro do Sul
MOYSÉS VELLINHO
Muita coisa que fale de André Ribeiro Coutinho ainda estará dormindo
nos arquivos. O que se acha ao alcance das nossas pesquisas é realmente
bem pouco: duas cartas copiosamente rebuscadas, sua memória sobre a
ação que desenvolveu no comando e administração do Rio Grande de São
Pedro, esquivos detalhes biográficos, referências acidentais, uma alentada
obra de instrução e teoria militar. Entretanto, não é preciso mais para que a
gente sinta, nas entrelinhas desencontradas desse parco material, agitar-se e
crescer uma figura inquieta e vigorosa, cheia de ardimento, como se
reunisse todas as condições capazes de encarnar, em pleno século XVIII, a
imagem rediviva de um cavaleiro andante. Nas suas Efemérides, o Barão
do Rio Branco não pretendeu dizer tudo ao afirmar que, como Silva Pais,
1.° Governador do Rio Grande, André Ribeiro Coutinho fora "um perfeito
soldado e homem de letras". (')
Quando êle assumiu o seu posto na fronteira meridional do Brasil, em
dezembro de 1737, ainda não decorridos dez meses da instalação oficial do
Rio Grande, já tinha pelejado anos a fio na interminável Guerra da
Sucessão, que ardera largamente na Península, como também já se batera
contra os turcos, em 1717, tomando parte na famosa armada que Portugal
aprestou para libertar a Ilha de Corfu. Rompido o cerco, marcha em
seguida, ainda contra os turcos, sob o comando do Príncipe Eugênio, pelo
resgate de Belgrado, no extremo leste do Império Austro-Húngaro. (
2
)
Por esse tempo, feriu-se nas costas da Grécia a grave batalha naval de
Matapã, outro episódio da guerra contra os otomanos, tendo sido a
esquadra infiel, embora mais poderosa, inteiramente desbaratada pelos
portugueses. (3) D. João V engajara-se nessa cruzada retardatária a
instâncias do Papa Clemente XI, então seve-
MOISÉS VELLINHO
ramente ameaçado em seus domínios. A época, os negócios da marinha
estavam confiados ao Marquês de Fronteira Não é fácil, portanto, recusar
a hipótese de que seu ajudante de ordens, que era André Ribeiro Coutinho,
tenha participado de mais essa façanha. Nesses embates pela defesa da
Cruz, êle devia sentir-se devolvido àqueles velhos tempos em que Portugal
se afirmava e crescia contra as fronteiras do mundo árabe.
Por volta de 1723, os deveres de sua carreira lhe impunham nova
tarefa, esta bem mais importante que as anteriores. Investido agora no
comando de uma expedição aos apartados domínios da índia, para lá se
mandou, só regressando depois de treze anos de ação, anos duros e
infindáveis, os quais, segundo confidenciou em carta a um amigo, (
5
)
foram para êle como um degredo.
E mal voltara a Lisboa após tão longa ausência, não teve tempo sequer
de refazer-se da penosa jornada: vinte e quatro horas depois embarcava
para o Brasil, quase do outro lado do mundo em que ficava a Índia, a fim
de incorporar-se em seguida, como imediato de Silva Pais, na expedição
destinada, entre outros objetivos de grande transcendência política, a
aliviar a Colônia do Sacramento do novo cerco que lhe punham os
castelhanos.
Atingido o Rio da Prata, nem é bom lembrar as ingratas peripécias que
sofreram os expedicionários, durante meses, na luta contra os elementos
em fúria, contra os infortúnios que se abateram sobre as naus portuguesas.
Em pastoso relato, (
6
) o próprio Ribeiro Coutinho descreve o que foram os
padecimentos da expedição em que Gomes Freire de Andrade depositara
tantas esperanças e que haveria de acabar quase desmantelada, num embate
que fora mais com as potências naturais que com os homens, conforme êle
mesmo diz num dos poucos rasgos literariamente felizes de sua narrativa.
Mas depois de ter cumprido tantas jornadas, o Mestre-de-Campo se
achava agora no comando e governo do Rio Grande de São Pedro, que mal
aflorava da desolação das areias e das águas, tocadas pelos ventos que
sopravam de todos os quadrantes.
Guerreiro destemeroso e homem de ação, André Ribeiro Coutinho foi,
não obstante, um dos oficiais mais ilustres e eruditos de seu tempo. Filho e
neto de poetas, ainda muito moço teve, como disse, a "incomparável honra
de servir debaixo das disposições" do Marquês de Fronteira, comandante
dos Exércitos do Reino e reorganizador da Armada. D. Francisco Xavier
de Mascarenhas, que conhecia de perto os excepcionais recursos de cultura
e inteligência de seu ajudante de ordens, encomenda-lhe, para uso do filho,
um manual que servisse de guia e ilustração ao mancebo que se destinava,
como todo o fidalgo digno de seu berço, à carreira das armas.
O trabalho, ultimado desde 1723, pelo menos sob forma de
compêndio, só muitos anos mais tarde seria dado à estampa em
O MESTRE-DE-CAMPO ANDRÉ RIBEIRO COUTINHO
sua feição definitiva. Naquele mesmo ano, já cessadas as operações de
guerra que tinham envolvido Portugal na Europa, receberia, como vimos, a
grave incumbência de fazer-se de vela para o Estado da índia, a frente de
seis navios e quatro batalhões de desembarque. (
7
) Sua missão, que se
estenderia de 1723 a 1735, tinha por fim desbaratar os corsários que
infestavam aqueles mares e costas, assumindo então o encargo de alcaide-
mor de Buçaim, onde fêz erguer uma fortaleza. As fontes de que dispomos
neste particular nada dizem quanto a agitações de nativos, além da
referência à campanha contra os piratas muçulmanos, mas a estirada
duração da empresa, e seu duplo caráter marítimo e terrestre, deixam ver
que havia também sérios problemas com as populações locais.
Antes de se atirar ãs remotas façanhas que o levaram ãs terras onde
lidaram e cresceram os heróis de Camões, façanhas das quais pouco mais
sabemos senão que lhe custaram treze anos de ausência, Ribeiro Coutinho
já havia tecido sua legenda de guerra na própria Península, depois de
acurados estudos de letras humanas e filosofia no Colégio de Santo Antão
dos Jesuítas, em Lisboa. Terminada a campanha da sucessão do trono
espanhol, que começara sob D. Pedro II e iria findar somente em 1715, sob
D. João V, é que êle se bateria contra os turcos, primeiro no Mar Jônio e
depois na Hungria. Parece que onde havia rumor de guerra, lá estava êle
com o alvoroço e o brio dos velhos portugueses.
O que espanta é que nesses contínuos anos de luta, provavelmente no
incerto descanso dos bivaques, ou sob a proteção das fortalezas, é que êle
conseguiu elaborar, ou pelo menos rascunhar, os numerosos capítulos do
trabalho que o Marquês de Fronteira lhe pedira. É possível que
inicialmente a obra tenha sido apresentada em forma de simples esboço.
Bem mais adiante, muitos anos depois, com os cabedais da ilustração
enriquecidos pela experiência, é que iria desdobar-se nos dois alentados
volumes que constituem O Capitão de Infantaria Português, publicado em
1751. (
8
)
Esta monografia, que se desenvolve ao longo de nada menos de
oitocentas páginas de texto cerrado, sem contar a farta e aparatosa
introdução, em que se incluem cartas e pareceres de altas patentes militares
e de clérigos — onde figura também o pronunciamento de Silva Pais — é
realmente de suma importância, não apenas sob o aspecto profissional e
técnico, mas ainda como expressão de um espírito largo e arejado,
fartamente imbuído de cultura humanística. Não admira, portanto, que os
superiores do ilustre oficial dispensassem a êle as considerações mais
eloquentes. O próprio Gomes Freire chega a dizer, do alto de si mesmo, a
propósito de Ribeiro Coutinho, que "a maior entre as inumeráveis
distinções com que a inata benevolência de S.M. lhe tem dado a conhecer
por venturosa criatura sua, é o mandar-me a estes dilatados governos tão
sábios e capazes companheiros". (
9
) E desmancha-se em
MOISÉS VELLINHO
louvores deste teor: "Quem, lendo uma tão excelente obra deixa de
conhecer a razão que eu tenho para estar vaidoso, vendo repetidas vezes
gemer a imprensa com escritos de oficiais que S.M. escolheu e destacou
para meus camaradas?".
A impressão, com efeito, é de que ninguém mais bafejado pelos seus
contemporâneos que o lidador de tantas frentes de guerra na Europa e das
expedições à índia e ao Rio da Prata. Motivos êle os tinha de sobra, como
se vê, para ostentar com vaidade — e a vaidade era uma das virtudes mais
em uso na época — a .insígnia de Fidalgo da Casa de Sua Majestade.
Não era fácil, àquele tempo, o trânsito de uma obra pelo crivo suspicaz
do Santo Ofício. Mesmo que aprovada previamente após arrastada
tramitação, ainda assim deveria voltar à censura, depois de impressa, "para
conferir e taxar, e dar licença para que corra, e sem isso não correrá". E não
seria esta a extrema barrreira a vencer antes que o livro pudesse ser
definitivamente liberado. Felizmente as últimas exigências foram
cumpridas sem maiores delongas, como convinha em se tratando de autor
de tanto peso e tão festejado pelas mais respeitáveis e prestigiosas patentes
e autoridades eclesiásticas de Portugal. Gomes Freire e Silva Pais foram
secundados, nos seus ardentes aplausos, por figuras de alta projeção na
classe, como José Fernandes Pinto Alpoim e Matias Coelho de Souza.
Também vários sacerdotes depuseram com o mesmo calor, dizendo um
deles, Frei Marcos de Santo Antão, ser "uma glória de ter um condiscípulo
que já dos rudimentos da gramática mostrava valor e sabedoria".
É de crer que, cessada a missão que cumpriu no Rio Grande, já a vida
correndo com menos desconforto e insegurança, Ribeiro Coutinho haja
voltado ao manuscrito esboçado desde 1723, e o tenha enriquecido
consideravelmente, como já dissemos. A hipótese não é gratuita, pois são
introduzidas no contexto referências a alvarás e outros provimentos oficiais
com datas muito posteriores àquela.
Mas não só por isto. Quem teve a oportunidade de pulsear o conteúdo
dessa raridade bibliográfica há de surpreender-se com uma erudição que só
a maturidade costuma proporcionar. Não seria o jovem ajudante de ordens
do Marquês de Fronteira, ainda sem as lições diretas da guerra, quem fosse
reunir a suma de regras e preceitos que desenvolve em seu livro. São
páginas e páginas — cerca de 800, conforme já frisamos — não apenas de
interesse profissional ou didático, mas onde a cada momento se descobre
um espírito superiormente dotado, e no qual, ao lado da experiência vivida,
mal se pode disfarçar o humanista que levava sua curiosidade intelectual
muito além do ofício das armas. André Ribeiro Coutinho conhecia um por
um os versículos menos frequentados da Bíblia, e tinha presentes, a cada
passo, os ensinamentos dos autores latinos, que êle versava nas
próprias fontes. Quanto aos
O MESTRE-DE-CAMPO ANDRÉ RIBEIRO COUTINHO
mestres contemporâneos de sua especialidade, principalmente os
franceses, com os quais se mostra inteiramente familiarizado, trata-os de
igual para igual. Segundo a palavra austera do Conde de Bobadela, o
confronto lhe era até favorável: "Não digo no nosso Portugal aonde os
escritores hão sido tão raros como diminutos, mas ainda nos livros que em
francês e outros idiomas se hão estampados, se não encontra tão clara, tão
deduzida e genuína a razão de tudo que V.S. ensina, como nò-lo apresenta
na mesma lição com que instrui". Por isso Gomes Freire concita o
festejado Mestre-de-Campo a mostrar ao mundo "a maior, mais certa e
polida lição que devem saber todos os militares".
Em seu livro, Ribeiro Coutinho esmiuça todos os aspectos da teoria e
da arte militar de maneira infatigável, como era de seu gosto, indo ao
ponto de consagrar um capítulo inteiro ao que êle chamou Teologia
Militar, no qual desenvolve os preceitos morais que devem orientar a ação
de um bom comandante tanto em relação aos superiores como aos
inferiores. Suas considerações apontam para vários sentidos. Uma delas:
"Nunca o capitão poderá servir bem ao seu Príncipe se contra as leis de
Deus executar as disposições da guerra; e so observando os preceitos
divinos será o mais ciente nos exercícios militares". (
10
) Já na página
seguinte condena com veemência que o militar se envolva em negócios,
"porque o seu maior negócio — adverte êle — deve ser o uso das armas e
ciência militar". (
n
)
"Dirão que este livro é difuso" — penitencia-se o autor. Embora
ninguém vá opinar diversamente, o certo é que ainda hoje suas páginas,
embora resistam pesadamente a uma leitura corrida, revelam, a espaços, o
espírito reflexivo de um homem cheio de sabedoria, produto não apenas de
cultura, mas de observação e experiência, a quebrar a aridez natural do
assunto com sentenças vivas e judiciosas, como quando êle recomenda
suavidade em vez de rigor na ação do fisco "porque os alicerces de uma
coroa — pondera — não se levantam com tanta segurança sobre as ruínas
do que sobre a conservação dos seus vassalos". E justifica esta sentença
admirável dizendo, com a precisão de um clássico, que "o muito, mal
governado, a nada chega; e o pouco, bem dirigido, a nada falta". Naqueles
tempos em que o erário real esfolava o contribuinte sem dó nem piedade,
tais reflexões, passando por cima de todas as conveniências do aulicismo,
soavam quase como um ato de rebeldia. Mas os rasgos de coragem e
altivez eram traços vivos, substanciais do caráter do homem e do escritor.
O interesse pelo homem, em Ribeiro Coutinho, não era uma atitude
convencional ditada pela sua formação clássica. O humanismo descera-lhe
ao coração e nele se instalara. Não será prova disso a generosa sofreguidão
de seu depoimento a respeito do Coronel Luiz de Abreu Prego nas
operações do Rio da Prata? Talvez o
MOISÉS VELLINHO
movesse o receio premonitório de que o Comandante da Esquadra viesse a
ser punido, pelos erros e negligências que cometera, com pena mais severa
que a que afinal lhe foi imposta: — a de simples censura. Sua palavra de
que o responsável pelo insucesso do ataque a Montevideu era desses
homens "cuja verdade é de português antigo", (12) não podia ser
desdenhada pelo Conselho de Guerra que julgou o Coronel-do-Mar. O
juizo moral do prestigioso Mestre-de-Campo estaria a cavaleiro de
quaisquer dúvidas.
Logo depois, imediato de Silva Pais no comando das fortificações do
Rio Grande, se deixou sensibilizar pela sorte de alguns desertores e os
perdoou tão logo retornam presos à praça de guerra em trepidante
construção. Êle sentira, no caso, que a gravidade da indisciplina fora
atenuada pelo desespero que os desertores, extenuados pela dureza do
trabalho, famintos, quase nus, estavam curtindo naquela ribanceira deserta
e rasa, fustigada e revolvida por todos os ventos. Quando o Brigadeiro
voltou de sua dramática investida até à Serra de São Miguel, onde plantou
novo marco de conquista, não vacilou em ratificar o ato de seu substituto.
Homem de princípios, o Mestre-de-Campo dirá, em seu livro, que o
Capitão, a serviço do Príncipe, "há de formar com todos os seus camaradas
um só e indivisível corpo, metendo cada um o seu ombro ao peso de todo o
trabalho, para honra e conservação de todos (...)". Pareceria, à primeira
vista, que êle esquecera sua própria lição ao perdoar a culpa dos que
haviam tentado, pela fuga, negar-se ao serviço d'El-Rei. Mas há situações
extremas, como a do Rio Grande nos dias de sua construção, em que a
imposição do castigo regulamentar talvez comprometesse mais a "honra e
conservação de todos" do que a relevação da pena.
Nos Anais da Província de São Pedro, primeira tentativa de
levantamento sistemático da nossa história regional, obra tão rica de
informações, diz o benemérito Visconde de São Leopoldo que nada
ocorreu de notável durante os três anos de gestão de Ribeiro Coutinho, (
13
)
isto é, de 1738 a 1740. Esta afirmação, feita ao arrepio dos documentos,
carece inteiramente de procedência, como veremos mais adiante. Por
enquanto, diremos apenas que o sucessor de Silva Pais atirou-se ao
trabalho de comandar e administrar o novo domínio como quem se impôs a
si mesmo, com o máximo de suas energias, consolidar e levar adiante as
fecundas iniciativas aqui tomadas corajosamente pelo fundador do Rio
Grande.
Nos primeiros anos de sua permanência no Estado do Brasil, ao todo
mais prolongada e sem dúvida menos colorida que os treze anos vividos e
sofridos na índia, Ribeiro Coutinho esteve algum tempo servindo sob o
comando de Silva Pais. Participou dos acontecimentos do Rio da Prata,
provocados pelo novo assédio à Colônia do Sacramento (1735), e a êle,
caso a fortuna tivesse ajudado os planos portugueses, estava reservado
o governo de
O MESTRE-DE-CAMPO ANDRÉ RIBEIRO COUTINHO
Montevideu ou Maldonado, conforme o determinasse o destino das armas.
O que foram as penosas circunstâncias e intempéries que acossaram as
naus lusitanas no traiçoeiro Rio da Prata, o próprio Mestre-de-Campo se
encarregaria de registrá-lo nas engurgitadas páginas da carta transcrita por
J. da C. Rêgo Monteiro, e à qual já nos reportamos (Nota n.° 6).
Se a expedição surtiu efeito contra o longo sítio com que as tropas de
D. Miguel de Salcedo, governador de Buenos Aires, ameaçavam
estrangular a praça fronteira, falhou em outros objetivos importantes como
seria a expugnação de Montevideu ou a ocupação de Maldonado. O
sucesso de Silva Pais iria efetivar-se com a posse militar de São Pedro do
Rio Grande, a qual até então ainda não havia sido oficialmente
formalizada. Daí a conquista se estenderia logo para o sul, quarenta léguas
ao longo da faixa costeira, num golpe de largo alcance político e militar.
Ribeiro Coutinho não se encontrava com a pequena tropa de Silva Pais
quando este varou o canal, em 19 de fevereiro de 1737, tomando pé em sua
margem inferior. O Mestre-de-Campo fora adiante, mar acima, em
perseguição a duas fragatas espanholas, sem entretanto poder alcançá-las.
Finalmente aportou à Ilha de Santa Catarina e de lá baixou em seguida para
reassumir seu posto. Já em 15 de abril, êle também engenheiro, entrara
logo a cumprir a parte que lhe cabia na intensiva construção das forti-
ficações. Tudo tinha que ser feito o mais depressa possível, pois ninguém
podia saber quando é que os espanhóis iriam surgir ali para desapossá-los
da barra.
Mas não foi nada fácil ao imediato de Silva Pais chegar até o
sangradouro. Para evitar os riscos do mar, êle preferiu bater a pé um
estirado percurso de 128 léguas! Foi uma jornada incerta e cheia de
perigos. Rios correntosos, que êle tinha que atravessar em primitivas
canoas de couro — as chamadas "pelotas" — lhe cortavam o caminho a
cada passo. Talvez cruzasse, no deserto verde, entre o rosário de lagunas
da costa e os contrafortes da Serra Geral, por um que outro humilde rancho
de barro coberto de palha: eram os primeiros arremedos de estância
montados pelos pioneiros que vinham descendo de Laguna, enquanto os
tropeiros subiam rumo a Sorocaba e mais adiante. Só depois de vencidos
mil obstáculos, êle pôde reunir-se aos homens que entraram com o
Brigadeiro e às quatro companhias de "aventureiros" paulistas e
lagunenses recrutados por Cristóvão Pereira de Abreu para dar cobertura
ao desembarque do Brigadeiro. Foi o antigo contratador de couros da
Colônia do Sacramento, figura impressionante de desbravador, agora
ostentando as divisas de Coronel de Milícias, quem implantou no
sangradouro, por ordem de Silva Pais, as primeiras peças de artilharia, para
ali arrastadas sabe Deus como.
MOISÉS VELLINHO
Em 11 de dezembro de 1737, o Brigadeiro é chamado para substituir
interinamente Gomes Freire no Governo da Capitania Geral do Rio de
Janeiro, após menos de dez meses da fundação do Presídio e início do
povoamento ao pé das fortificações. Dez meses mal contados, sem dúvida,
mas decisivos para a segurança e expansão da nova conquista. Embora
escasso, o tempo fora duramente aproveitado, tornando possível a
consolidação do domínio português nestas paragens ainda mal tocadas pela
gente que desgarrava do clã dos Brito Peixoto. No mais, eram os tropeiros
que por ali passavam obrigatoriamente, vindos das Vacarias do Mar.
O comando da feitoria militar e dos pequenos redutos satélites
distribuídos estrategicamente em vários pontos do litoral se transferiu,
assim, para a alçada direta de Ribeiro Coutinho, incluindo o governo civil
da área recém anexada. Governo e comando, uma e outra coisa o Mestre-
de-Campo recebe, senão com surpresa, pelo menos com mal contido
desagrado. Na memória que dirigiu a Gomes Freire, (
14
) datada de
dezembro de 1740, ao findar sua missão nestas paragens quase desertas, êle
serviu-se da oportunidade para desabafar, ao cabo de três anos, a
contrariedade que lhe causara a investidura. Seus reparos são formulados
com vivacidade, até mesmo com impertinência. Alega êle que fora
destacado para o Brasil a fim de "instruir e doutrinar" o novo Terço de
Artilharia do Rio de Janeiro. Portanto, o governo do Rio Grande, que lhe
fora confiado — "não sei por quê" — contrariava a própria ordem real. Nas
relações mesureiras, frequentemente pegajosas, dos figurões da época, não
é fácil surpreender desses rasgos de hombridade.
Nessa reclamação, bastante irreverente, sem deixar de ser pitoresca, há
o mesmo ar de petulância que se mostra em vários lugares de sua
correspondência. Na caudalosa carta em que se estalfa para dar uma ideia
dos malfadados sucessos do Rio da Prata, diz, por exemplo, que consentiu
em desembarcar na Colônia do Sacramento mais por curiosidade que por
obrigação... Ora, naquela empresa, que embora lhe parecesse, em princípio,
uma guerra sem sentido, — "enigmática guerra", como êle diz — sua
posição era a de imediato de Silva Pais, comandante da expedição, e o que
lhe competia era cumprir ordens superiores. Mas tal posição lhe causava
certa contrariedade, o que êle deixa transparecer, algumas vezes, em
detalhes aparentemente insignificantes, como este: "eu e o Brigadeiro" ou
"o Brigadeiro veio comigo". Apesar da hierarquia, êle sempre à frente de
seu chefe...
Mas talvez se possa admitir que essa inversão de ordem não fosse
mais que simples desforço literário. O que, porém, não seria apenas isto
era a irritação que lhe provocavam as coisas que via nestes ainda informes
domínios do mundo português. A Ilha de Santa Catarina, com o pitoresco
virgem de suas enseadas e montanhas, tudo revestido de um verde espesso
e capitoso, como um
O MESTRE-DE-CAMPO ANDRÉ RIBEIRO COUTINHO
pedaço esquecido do paraíso, para êle, lugar despovoado e desguarnecido,
não passava de uma "ilha desgraçada", e as impressões que transmite a
Lisboa sobre o estado de abandono em que surpreendeu as defesas da
Colônia do Sacramento com toda a certeza encheram de susto e irritação o
Conselho Ultramarino. Tudo quanto lá se pensava a respeito, por
informações dos responsáveis, era o contrário do que êle estava vendo com
os próprios olhos. Não fosse a incapacidade notória de D. Miguel de
Salcedo, responsável pelo cerco, e todo aquele desmantelo já teria passado
para a soberania dos castelhanos.
Mas as indisposições pessoais do 2.° Governador do Rio Grande de
São Pedro, manifestadas em sua correspondência, bem como os laivos de
petulância que êle não procura esconder, não entranham quaisquer
sintomas de um temperamento que fosse de natural azedo. Parece, pelo
contrário, que Ribeiro Coutinho era homem de alma aberta e sadia.
Consciente de seu próprio valor, e fiado no alto conceito em que era tido
nos círculos influentes de Lisboa, a impressão que êle nos dá é de que
trazia o espírito franqueado a tudo, fatos bons ou maus, que êle chega a
reunir e baralhar, só para divertir-se, em alternativas de louvor e de
galhofa. Prova disso é a famosa carta em que estende aos olhos de um
amigo o que eram as contraditórias condições de vida no Rio Grande pri-
mitivo, este fim de mundo que êle suportou durante três anos, após o longo
"degredo" da índia.
A este país, meu Senhor — informa o Mestre-de-Campo, — tenho
chamado a terra dos muitos e ouça V.M. a razão com toda a verdade,
porque aqui há muita carne, muito peixe, muito pato, muita marreca,
muito maçarico real, muita perdiz, muito jucum, muito laticínio, muito
ananás, muita courama, muita madeira, muito barro, muito bálsamo,
muita serra, muito lago e muito pântano, no verão, muita calma, muita
mosca, muita motuca, muito mosquito, muita polilha, muita pulga, no
inverno muita chuva, muito vento, muito frio, muito trovão, e com todo o
tempo muito trabalho, muita faxina, muito excelente ar, muito boa água,
muita esperança, muita saúde para servir a V.M., pode produzir como já
experimentamos muita balancia, muita abóbora, muito legume, muita
hortaliça e porque com uma palavra diga o que mais importa a V.M.
também há muita falta de tudo o mais para a vida e para o luxo; e como o
que veio de baetas, tabaco, facas e chapéus e outras drogas por conta de
El-Rei se tem feito um grosso avanço, seis frascos de aguardente se
vendem por onze mil réis, bebe o comprador dois e vende os outros por
onze mil réis. Este delicioso inventário das coisas da terra, enumeração
carregada e desnorteante, em ritmo atropelado, não deixa de lembrar
MOISÉS VELLINHO
certas passagens de Rabelais. E quem deixará de desconfiar que Ribeiro
Coutinho, nas suas incursões pelos meandros do humanismo, não se tenha
deliciado com as gordas e vertiginosas extravagâncias do mestre de
Gargantua e Pantagruel?
O que Ribeiro Coutinho não confessa ao amigo em sua carta já tão
conhecida, graças à divulgação que devemos ao General Borges Fortes,
(
15
) é que na "terra dos muitos" também havia mulheres fáceis, como não
podia deixar de ser. Que é que hoje se sabe, porém, apagado o eco dos
medrosos cochichos do tempo, sobre a vida íntima de quem quer que
fosse, particularmente dos fundadores do Rio Grande? Eram eles valentes
cabos de guerra, homens na força dos anos, viris, impetuosos. Se casados,
costumavam deixar no reino as esposas: era preciso guardá-las contra as
ingratas vicissitudes das tarefas que os impeliam para além-mar, a forjar
mundos e combater inimigos. Mas os instintos se acirravam na solidão
afetiva, na impotência da saudade. E então nada mais natural que eles
costumassem violar os solenes protestos de fidelidade conjugal. Se Silva
Pais destinou, em seu testamento, (
16
) fundos para nada menos de
quinhentas missas em sufrágio de sua alma, é de supor que lhe afligisse a
consciência o surdo rebate de alguns pecados ultramarinos... Porém nada
se ficou sabendo do que porventura tenha acontecido à sombra ou à
margem de sua extrema devoção e austeridade pública.
Já com Ribeiro Coutinho, menos cauteloso, mais temerário, não se deu
o mesmo. Remexendo nos assentamentos eclesiásticos de Rio Grande,
Aurélio Porto trouxe à luz um documento inesperado, até mesmo excitante,
o qual nos informa que o Mestre-de-Campo andou metido num enredo
pecaminoso. Desse enredo lhe nasceu uma filha cujo destino se terá
extraviado nas areias volúveis da vila. A mãe era casada e chamava-se Ana
Maria da Conceição, atendendo também pela alcunha de "Mineira", como
tudo se lê na certidão de batismo. (
17
) A paternidade da criança consta do
mesmo documento, servindo-lhe de padrinhos o cirurgião do Presídio e sua
mulher. Espírito impávido e generoso, Ribeiro Coutinho não recusou à
filha natural seu ilustre nome. O que se ignora, no caso de haver ela
sobrevivido, é o que terá feito desse nome...
Mas, deixando de lado a sorte que levou essa menina, numa terra em
que então mais do que nunca só importava a história dos machos, já é
tempo de preencher o que o Visconde de São Leopoldo, naturalmente por
falta de informação, deixou em branco nos seus Anais quando se referiu
negativamente e de raspão ao governo de Ribeiro Coutinho.
O mínimo que se pode afirmar a respeito do sucessor de Silva Pais é
que durante sua gestão, — três anos árduos e penosos, — não arredou pé,
nem mesmo quando doente, do posto que lhe foi confiado, revelando-se
um continuador capaz, prodigiosamente
O MESTRE-DE-CAMPO ANDRÉ RIBEIRO COUTINHO
ativo e destemeroso da obra do Brigadeiro. A leitura da memória que êle
dirigiu a Gomes Freire, elaborada num estilo enxuto e direto, em tudo tão
diverso da maneira meticulosamente retorcida e exorbitante de suas cartas,
nos dá a súmula das vitais medidas administrativas e militares por êle
realizadas na área da nova conquista.
Embora guardasse toda a vigilância contra o inimigo, não lhe
importavam muito os arreganhos, as grossas ameaças do Governador de
Buenos Aires, que se jactava de dispor de um exército de 2.500
castelhanos e 5.000 índios "para me fazerem evacuar o Domínio do Rio
Grande". Antônio Pedro de Vasconcelos, comandante da Colônia do
Sacramento, impressionava-se com tais ameaças e transmitia seus temores
a Ribeiro Coutinho. Este, porém, que já pulseara a extrema ineficiência de
D. Miguel de Salcedo como cabo de guerra, acentuada com exemplar
isenção pelo historiador uruguaio Azarola Gil, (
18
) não se deixou
impressionar: tomou suas precauções e esperou o inimigo. D. Miguel,
porém, não se mexeu de seus redutos, talvez escarmentado pelo fracasso
que sofrera diante dos muros já derruídos da Colônia...
Como administrador, Ribeiro Coutinho fêz muito mais do que se
podia esperar de quem não dispunha senão de escassos recursos e
instrumentos de ação. O afluxo de casais, vindos da castigada praça de
guerra fronteira a Buenos Aires, de Laguna, do Rio de Janeiro, "além de
muita outra gente de ambos os sexos", não cessou mais. Aqui, recebiam
terras de lavoura, sementes, implementos agrários, alguns animais
domesticados, e iam sendo distribuídos de acordo com os interesses e
urgências da colonização. Ribeiro Coutinho era fiel ao postulado de seu
antecessor: nada melhor que fixar o homem à terra para assegurar-lhe a
posse. Se os colonos se desavinham entre si, o Governador recorria ao que
êle chamava "justiça natural", e as disputas se acomodavam. Breve foi
construída a igreja e um hospital, ao mesmo tempo que se consolidavam as
fortificações existentes e erguiam-se novas, não apenas junto ao canal
como em diferentes pontos da costa, até à Serra de São Miguel, aonde
chegara Silva Pais em sua arrancada para o sul, hoje dentro das
confrontações uruguaias.
As estâncias reais de Torotama e Bojuru, aquela na banda inferior,
esta na banda superior do sangradouro, ambas montadas por Silva Pais,
receberam benfeitorias e aumentaram consideravelmente seus rebanhos.
Registrou-se no porto grande incremento no tráfego de embarcações, que
entravam e saíam abarrotadas. A nascente indústria e o comércio de couros
desenvolveram-se em ritmo acelerado, sem que se deixasse de impor
severas medidas contra a chacina das manadas selvagens, sendo proibidas
as "cor-redorias de toda a campanha". Como eram numerosos os animais
que se perdiam na travessia do canal, Coutinho fêz construir a
MOISÉS VELLINHO
primeira barcaça para o transporte regular do gado que os tropeiros
conduziam rumo ao centro do pais. Este serviço rendia um tostão por
cabeça para o fisco real. Atendendo recomendações especiais de Gomes
Freire, êle ativou as relações de amizade com os minuanos, utilizando-se
para isto dos préstimos de Cristóvão Pereira, que continuava sendo o
homem providencial, sempre à altura das emergências.
Importantes foram os minuciosos "regimentos" baixados pelo
Governador para as guarnições militares e para as estâncias de Torotama e
Bojuru. Tanto os oficiais e soldados, como os capatazes e peães a serviço
d'El-Rei, tinham que saber, ponto por ponto, aqueles os preceitos da
disciplina, estes como procederem a bem do "sossego em que deviam
viver". Tais regimentos se desdobravam em numerosos artigos. Veja-se até
onde desciam as exaustivas providências de Ribeiro Coutinho. Se esses
documentos resistiram aos extravios do tempo, em que arquivos estarão
sepultados?
A formação do casco do Regimento de Dragões do Rio Grande
resultou das medidas com que se antecipou o Mestre-de-Campo à tarefa
que havia de caber, em má hora, ao Coronel Diogo Osório Cardoso. Mal
dirigido, mal alimentado, os soldos em atraso, o Regimento iria atravessar
momentos difíceis e acabaria respondendo ao agravamento crescente dessa
situação com a revolta de 1742. Mas então já havia dois anos que Ribeiro
Coutinho se afastara do Continente de São Pedro.
Durante os três anos de seu governo, êle não se descuidou um só
instante do serviço de vigilância da praça, nem das guarnições costeiras, e
não cedia a ninguém, o ónus do exemplo, "com a minha contínua
assistência a tudo, fazendo por tempestuosas noites a minha ronda efetiva",
e assim, na mesma tensão, se desdobrava em suas atividades até o sol
nascer. De tudo isso, e muito mais, êle presta contas em sua memória a
Gomes Freire.
As canseiras de sua gestão se estenderam por três anos — convém
repetir. Ao cabo desse tempo, e desses trabalhos, era natural que êle ficasse
com a saúde abalada. E foi por doença que se recolheu ao Rio de Janeiro.
Diria êle que fora "tão assíduo, que nem doente e sangrando faltei mais
que um dia, e por nenhuma de minhas enfermidades, ainda que com o
notório perigo de vida, tomei cama".
Em seu novo posto, êle iria retomar a elaboração do manual que lhe
fora encomendado, tantos anos antes, pelo Marquês de Fronteira. Quando a
obra finalmente saiu do prelo, êle já não pôde vê-la. No mesmo ano de sua
publicação, 1751, êle, ainda no Rio de Janeiro, despedia-se da vida, uma
vida agora por certo alquebrada e murcha, mas que fora agitada, colorida e
valorosa, marcada pelos mais assinalados serviços à sua pátria e ao seu rei,
em lugares tão remotos e apartados. Soma considerável desses
O MESTRE-DE-CAMPO ANDRÉ RIBEIRO COUTINHO
serviços prestou-os no Rio Grande de São Pedro em momentos decisivos
de sua integração no domínio luso-brasileiro. Ribeiro Coutinho fora fiel
ao pensamento e à ação criadora de José da Silva Pais.
OBBAS CITADAS
(1) Barão do Rio Branco — Efeméride» Brasileiras, Min. das Relações Exteriores, Rio, 1946, pág.
106.
(2) C. R. Boxer — A Idade de Ouro do Brasil, Comp. Edit. Nacional, São Paulo, 1953, pág. 356,
Nota n.° 21.
(3) Mário Domingues— D. João V. Ed. Romano Gomes, Lisboa, 1964, pág. 197 e segs.
(4) Eduardo Brazão Relances da História Diplomática de Portugal, Livr. Civilização, Pôrto,
1940, págs. 139-140.
(5) Pedro Calmon — História do Brasil, Livr. José Olympio Edit., Rio, 1959, Vol. IV, pág. 1114,
Nota n.° 40.
(6) J. da C. Rêgo Monteiro — A Colônia do Sacramento, Livr. do Globo, Porto Alegre, 1937,
Vol. II, págs. 113-129.
(7) C. R. Boxer — Ob. cit. ibid.; Gen. A. de Lyra Tavares — A Engenharia Militar Portuguesa,
Oficinas Gráficas da Seção de Publicações do Estado Maior do Exército, Rio, 1965, pág. 107.
(8) Publicado na Régia Oficina Silviana, Lisboa, M.DCCLI. Ao título do livro segue-se um
infindável subtítulo enumerativo, que se desdobra em mais do trinta palavras, contados apenas
os substantivos!
(9) Todas as referências entre aspas, que não trazem número, foram extraídas das páginas
introdutórias da obra, cerca de 50, que não são numeradas.
(10) O Capitão de Infantaria Português, Vol. I, pág. 121.
(11) Id., ibid., pág. 122.
(12) J. da C. Rêgo Monteiro — Ob. cit., Vol. II, pág. 42.
(13) Visconde de São Leopoldo — Anais da Província de São Pedro, Impr. Nacional, Rio, 1946,
pág. 42.
(14) Mev. do Inst. Hist. e Geogr. do fito Grande do Sul, Ano XVI, IV, Trim., 1936, págs. 237-246.
(15) O Brigadeiro José da Silva Pais c a Fundação do Rio Grande, Separata da Rev. do Inst. Hist. e
Geogr. do RGS, Ano XIII, III Trim., Livr. do Globo, Pôrto Alegre, 1933, pág. 49.
(16) Boletim do Centro- Rio-Grandense de Estudos Históricos, Rio Grande, s/data, págs. 168-176.
(17) J. da C. Rêgo Monteiro — Dominação Espanhola no Rio Grande do Sul, Imprensa do Est.
Maior do Exército, Rio, 1937, pág. 25, Nota n.° 41.
(18) Luís Enrique Azarola Gil — La Epopcya de Manuel Lobo, Compañia Ibero--Americana de
Publicaciones, Madrid, 1931.
Letras
Recordação de Gilberto Amado, o Recifense
GILBERTO FREYRE
Gilberto, além de Amado por alguns, admirado por muitos, foi — e é
— para nós, do Recife, tão nosso — tão recifense — como a Rua da
Aurora; tão nosso como a Rua do Sol; tão nosso como a Praça da
Independência; e, ainda, tão nosso como a Faculdade de Direito, como o
Convento de Sto. Antônio dos Franciscanos, como a Igreja de São Pedro
dos Clérigos, como o Teatro Santa Isabel.
Sendo o indivíduo individualíssimo, a pessoa personalíssima, a
personalidade imperial que foi, não escapou ao destino daqueles grandes
homens cuja grandeza transborda deles, extravasa, tor-nando-os
instituições. Foi uma instituição. Uma instituição universal; e, como tal,
alternou entre a Europa e a América, irradiando, além de Direito,
Compreensão Política entre as nações e exercendo, nesses setores, uma
influência que nunca brasileiro algum exerceu igual ou semelhante: nem
Ruy Barbosa, na Haya; nem Joaquim Nabuco, em Washington; nem
Epitácio Pessoa, em Versailles. Uma instituição nacional — um pensador
que se afirmou, desde jovem, pensando no seu povo, para o seu povo e
sobre o seu povo, seu pensamento completado por uma das palavras mais
incisivas e mais literariamente expressivas que já distinguiram um escritor
da língua portuguesa. Uma instituição recifense — pois esse jurista-
sociólogo de repercussão mundial, esse pensador de significação nacional,
esse escritor que honrou, como artista literário, a língua portuguesa, e não
apenas o Brasil, não foi senão no Recife que, vindo de Sergipe, se formou;
se definiu; se consolidou; se institucionalizou, sem perder, nessa
institucionalização, a individualidade irredutível.
Foi no Recife que a sua carne de adolescente moreno e tropical, de
provincianozinho de Sergipe, se fêz verbo; e aqui que seu verbo e sua
carne se fundiram numa só e magnífica expressão de criador de beleza
plástica e de ideias fortes não só em língua neo-
GILBERTO FREYRE
latina, como em país americano e em terra tropical: língua, país, terra que
se renovaram, e se revigoravam, com sua presença e sob sua ação de
intelectual whithmaniano. Whithmaniano porque de qualquer dos seus
livros maiores, seja de prosa ou de poesia, se pode dizer: quem toca neste
livro, toca num homem!
Mas quem tocasse no homem que nele dinamizou o intelectual não
deixando nunca que sua criação literária se amesquinhe em beletrismo
bisantinamente acadêmico, tocava num recifense. Em Gilberto Amado
está entre esses amados. É um amado do Recife um modo todo específico,
recifense.
Não o digo, eu, suspeito de querê-lo mais recifense do que foi: são
suas memórias que o proclamam. São suas memórias whithma-nianas que
o dizem. São elas que dizem: quem toca nestas páginas toca num homem
formado no Recife !
Recifense cheio de amor pelo Recife, como o Recife poderia deixar de
amar a Gilberto Amado, como a um dos maiores amados do seu coração ?
O Recife não sabe ser expansivo nem no seu amor nem na sua admiração
pelos vivos que ama ou admira. É reticente. É esquivo. É songamonga.
Tem a timidez do orgulho. Prefere homenagear os mortos da sua estima a
glorificar os vivos da sua admiração. Mas esse amor difícil do Recife pelos
seus amados é intenso. Gliberto Amado está entre esses amados. É um
amado do Recife com A maiúsculo. Amado, querido, admirado por todo
bom recifense que leu, ou ouviu ler, Minha Formação no Recife.
Por mim, recifense nato, êle foi recifensemente admirado desde o dia
remoto em que o secarrão do meu Pai — que perfeito recifense êle era ! —
me apresentou, eu menino, a um Gilberto Amado já homem ilustre, à porta
da Livraria Francesa, dizendo-me a meia voz: "é um grande escritor e
como V., se chama Gilberto!"
"Foi o primeiro outro Gilberto que conheci. O primeiro que admirei:
antes de admirar Chesterton. Pois não tardaria que lesse. encantado, A
Chave de Salomão; e confessasse ao velho Freyre o meu encanto por esse
outro Gilberto a quem êle me apresentara dizendo: "é um grande escritor!"
Que maior grandeza pode atingir um homem que a de um grande
escritor ? Talvez nenhuma. Desde o meu encontro com o ainda jovem e já
escritor Gilberto Amado, êle foi quase tudo na vida: deputado, senador,
embaixador, acadêmico, além de catedrático, de consultor jurídico, de
jornalista dos maiores que o Brasil tem tido. Aos meus olhos, porém, sua
maior grandeza continua sendo a que me fascinou, menino, logo depois
daquela tarde em que o vi, mais apo-líneo que dionisíaco, parado à porta da
Livraria Francesa do Recife: a grandeza de escritor. A de autor de algumas
das melhores páginas escritas na nossa língua. A de criador: criador de
beleza. Provocador de reações. Abridor de caminhos.
RECORDAÇÃO DE GILBERTO AMADO, O RECIFENSE
Ao recordar-me do meu primeiro e distante encontro com Giberto
Amado, recordo-me, também, de outro, menos remoto, quase recente, não
no Recife e perto do Capibaribe mas em Paris e à margem do Sena. No
também nosso Paris e à beira do também nosso Sena. Caminhávamos pelo
cais, felizes por termos almoçado alegremente juntos depois de alguns anos
de separação, êle, ditatorial e arbitrário, escolhendo os pratos e os vinhos
num velho restaurante seu conhecido. Felizes por estarmos mais uma vez
juntos; e juntos em Paris; e, felizes, ainda, por mais uma vez verificarmos
nossas afinidades profundas, entre divergências sinceras. E de repente
aproximou-se de nós um adolescente de olhos grandes e de cabelos louros,
a nos perguntar que caminho devia tomar para o Odeon. Era um
escandinavo: belo, sadio, bárbaro. Gilberto Amado logo identificou no
possível normando um estrangeiro pelo francês que falava. Indicou-lhe o
caminho para o Odeon. Mas, às suas palavras de guia de rua, o jovem
escandinavo quis de Gilberto Amado outras luzes. Sentiu no estranho um
mestre e um guia de inteligência. Confessou que era Comunista; mas um
Comunista incerto. E nunca vi um adolescente deixar-se fascinar tão
depressa por um adulto em quem logo sentira um superior, um guia, um
mestre, do que o escandinavo por Gilberto Amado, pela sua palavra e pelas
suas ideias luminosamente helênicas. Esqueceu-se o jovem bárbaro do
Odeon e creio que deixou, desde aquela tarde, de frequentar o Partido
Comunista Juvenil. Assim — pensei — devia ser na Grécia antiga. A
Grécia dos adolescentes iluminados pela luz do saber irradiado dos mestres
peripatéticos.
Gilberto Amado, como escritor, como jurista, como jornalista, e não
apenas como professor de Direito, foi, desde jovem, formado no Recife,
um mestre peripatético no melhor e no mais alto sentido da expressão. Um
mestre que mesmo caminhando por uma rua de Paris ou de Nova York, de
Genebra ou do Rio, fazia discípulos, iluminava de repente adolescentes,
helenizava mágica e logicamente bárbaros que por acaso lhe dirigissem a
palavra, lhe perguntassem um nome de rua, lhe pedissem a hora certa.
E bastava a sua maneira de indicar a um estranho uma rua ou de
informar-lhe a hora exata, para que o estranho inteligente ou sensível se
sentisse atraído pela luz do seu talento ou pela flama do seu saber. É assim
que se afirma o mestre incomum: o que não procura discípulos e é
descoberto, quando menos o espera, por discípulos sequiosos de mestres:
de mestres incomuns que não pareçam mestres.
Vendo-o, como o vi, pleno de glória, aos oitenta e poucos anos,
recordei-me, por vezes, de outro Gilberto Amado: o das nossas noites
fraternas e sinistras de peregrinação pelas pensões de mulheres perdidas da
Lapa e da Glória, bebendo uísque e ãs vezes cognac,
GILBERTO FREYRE
terríveis alienados, quase desesperados, mas sempre lúcidos na alienação e
no desespero, eu considerado por parentes seus "rapaz perdido", que não
convinha a um até há pouco Senador da República ter por companheiro tão
constante, enquanto o meu tio Juca advertia do Rio a meu Pai, recifense,
que só podia prejudicar-me, a mim e aos meus, ser visto com tanta
frequência, noites altas e através de madrugadas boémias, com um
"homem perdido" como Gilberto Amado, segundo êle, se tornara, depois
da chamada Revolução de 30. Homens considerados perdidos entre
mulheres de fato perdidas fomos os dois durante meses, não nos perdendo,
porém, e sim nos encontrando, no mais profundo de nós mesmos,
descobrindo até onde iam nossas fraquezas e com que forças íntimas,
pessoais e até cristãs podíamos contar para reconstituir o que, em nossas
vidas se despedaçara, o que, em nossas fés, se partira, e, até, o que, em
nossas esperanças, se fanara. Não tardou que Gilberto Amado escrevesse
Eleição e Representação, reafirmando-se, embora decaído do poder, o
admirável sociólogo da política dos seus primeiros e vitoriosos tempos de
deputado federal. E quanto a mim, já naqueles dias sinistros começara, nas
manhãs mais tristes da minha vida, numa pensão barata da Rua Paulo de
Frontin, a escrever o meu primeiro livro com verdadeiras dimensões de
livro. Respondíamos a nossas desgraças, fazendo de nossas angústias, não
propriamente poemas, porém livros sociológicos — embora nem na sua
sociologia nem na minha tenha deixado jamais de haver alguma coisa de
extra e até de anti-sociológico. De poético no sentido mais largo da
palavra.
Ao Recife, velha cidade brasileira de estudantes por vocação e por
tradição, não poderia deixar de seduzir o que em Gilberto Amado foi
mestre incomum. Mestre incomum que, aliás, está presente no escritor.
Nos seus livros. Nos seus escritos. Na sua palavra escrita como na outra:
na falada. Mestre — o perpetuado pelo escritor — que exatamente por ser
incomum é sempre poético no seu modo de ser sábio. Nunca prosaico.
Gilberto Amado passou dos oitenta anos um mestre que não deixou
nunca de encantar jovens e adolescentes, iluminando-os e esclarecendo-os.
Porque êle próprio, foi, já provecto, pelo espirito, um jovem que
compreendia jovens.
As fronteiras que dividem gerações valem muito para as gentes
medianas e pouco para os homens superiores. Não isolam um homem
superior das novas gerações, como não o separam das vindouras. E
Gilberto Amado morreu um imortal, não por ser da colenda Academia
Brasileira de Letras, mas por ser Gilberto Amado e ter criado a obra que
criou. Obra de beleza e de inteligência. Obra que começou a criar no
Recife. Ao sol do Recife. À beira do Capi-baribe. Nascendo de novo no
Recife.
RECORDAÇÃO DE GILBERTO AMADO, O RECIFENSE
Compreendo que Gilberto Amado — brasileiro de Sergipe nascido de
novo no Recife e, mais do que isto, homem que envelheceu vencendo o
tempo e nascendo de novo toda manhã, toda manhã amanhecendo para a
vida — lamentasse por vezes que seus livros, esgotados nas livrarias, não
estivessem sendo "reeditados regularmente". Queixava-se do seu e meu
amigo José Olympio que até certo ponto merecia ser advertido dessa
incúria, muito menos dele, sempre admirável em suas relações com os
escritores mais autênticos no Brasil, que da editora, por êle criada, e hoje
complexa e grandiosa. As editoras são como os jornais: quando crescem
muito, tendem a quase matar, como indivíduos, não só os grandes editores
como os seus grandes editados. Os jornais, quando se tornam grandes em-
presas, tendem a tornar impossíveis os grandes jornalistas: os efetivos e os
colaboradores. Só conheço uma exceção: a do extraordinário em tudo que
foi, até o fim da vida, Assis Chateaubriand.
Justo o clamor, ainda em vida de Gilberto Amado, do cronista José
Carlos Oliveira a favor da reedição dos livros esgotados de mestre sempre
tão atual. Nas palavras de José Carlos: "Os jovens que hoje se acham
dilacerados, à mercê de dois ou três extremismos, encontrariam na obra de
Gilberto Amado um caminho novo e antigo — o equilíbrio que lhes falta, o
bom senso, a equidistância, a paz". O cronista queria Gilberto Amado
conhecido sempre pelos sucessivos brasileiros de vinte anos. Amor fácil,
este, bastando que os brasileiros de vinte anos tivessem — e tenham —
constantemente acesso ao seu pensamento e à sua palavra. A sua palavra
de pensador, de escritor, de artista.
Acesso ao seu pensamento e à sua palavra de jurista, de inter-
nacionalista deveriam ter, agora e no futuro, os brasileiros de todas as
idades, através de uma obra de coordenação de suas intervenções nos
debates da Comissão de Juristas da Organização das Nações Unidas que o
Itamarati realizasse e divulgasse não só no Brasil como no estrangeiro. É o
que um Rio Branco já teria feito. Esse Rio Branco tão boêmio na sua
mocidade de Juca Paranhos e tão organizador na sua idade madura:
organizador de um Itamarati a serviço não só da política como da cultura
brasileira.
Boêmios como fomos, um tanto à maneira de Juca Paranhos, Gilberto
Amado e eu, durante o tempo em que, mais de uma vez, amanhecemos em
bars do Rio de Janeiro, bebericando uísque e conversando os dois, ou
ouvindo confissões de gente estranha, aprendendo com estranhos,
recolhendo de personagens noturnos pedaços de seus pequenos romances,
é interessante esta nossa outra afinidade: a de religiosos. Religiosos
sensíveis, ao nosso modo, aos próprios mistérios Católicos. Sensíveis, à
nossa maneira, a ritos da Igreja. Sensíveis, também à nossa maneira, à sua
liturgia.
GILBERTO FREYRE
Assunto que vem versado por Gilberto Amado em páginas que
parecem arrancadas a um diário que fosse a revelação de um místico ao
modo de Pascal: místico por excesso e não por deficiência de lucidez
analítica. Místico por transbordamento de razão filosófica. Místico por
superação do raciocínio pelo supra-raciocínio.
Padres e leigos semi-cultos que hoje, num Brasil a aburguesar-se não
só no bom mas no mau sentido, estão querendo ser Católicos como certos
Protestantes, isto é, deixando o Cristo, filho de Deus e igual ao Espírito,
para se tornarem "unitários" e, até, simplesmente "humanitários", deveriam
ler, reler e até decorar o pascaliano Igreja na Finlândia, de Gilberto
Amado. Um dos ensaios mais profundos.
São páginas em que o grande escritor brasileiro conta como, estando
na Finlândia, sentiu-se atraído aos poucos Católicos que ali então existiam
— e existem, suponho, hoje — e iam à missa em igreja quase igual ãs
catacumbas dos dias heróicos do Cristianismo. Como se obedecesse ao
conselho de Pascal, Gilberto Amado insensivelmente viu-se entre
Católicos, participando de práticas Católicas, ouvindo missa, seguindo a
interpretação Católica dos Evangelhos. É êle, como escritor, quem nos diz
o que foi essa sua experiência de místico que se ignorava, que se
desconhecia, que não se supunha de maneira alguma parente, mesmo
remoto, dos Sãojoães da Cruz e dos Ramons Lulio. Êle que nos revela, em
página surpreendente, essa aventura de latino desgarrado entre nórdicos.
Nenhum brasileiro deve ignorar o ensaio Igreja na Finlândia de Gilberto
Amado.
Latino desgarrado entre nórdicos, êle foi várias vezes. É claro que
latino cuja latinidade seja entendida antes como espírito, cultura, estilo de
vida, forma de religiosidade, do que simplistamente como raça. Porque em
Gilberto Amado cedo madrugou a intuição de que raça — o fato biológico
— não é nenhum deus a que devessem ser feitos sacrifícios ou pelo qual se
rejeitassem valores mais importantes, para o Homem, ou para uma nação,
que os apenas étnicos. No autor de Grão de Areia cedo se definiu um
pensador brasileiro da mesma tendência do grande José Bonifácio, com
relação à formação e à política do Brasil: com a ideia de precisarmos de
compreender essa formação como processo que vem juntando brancos,
ameríndios e negros — seus sangues e suas culturas; e implicando. esse
processo, no reconhecimento do mestiço — o de branco e negro ou negro e
ameríndio — como valor dinamicamente, positivamente, criadoramente
brasileiro; e não como a presença negativa temida por Euclydes da Cunha
e, por vezes, pelo próprio Sylvio Romero; nem o negro como o espantalho
patológico que Nina Rodrigues nele enxergou, do ponto de vista da
formação brasileira, embora estudando-o através de um dos esforços mais
ingentes de análise antropológica jamais realizados no continente
americano; e
Gilberto Amado cm companhia de
berto Freyre (Nova York, 1949),
RECORDAÇÃO DE GILBERTO AMADO, O RECIFENSE
nisto mostrando-se superior a esse outro "arianista" temeroso de negros,
em tempo retificado por mestre Roquette Pinto e pelo sábio Froes da
Fonseca, que foi Oliveira Viana.
José Bonifácio — é pena Gilberto Amado não lhe ter escrito a
biografia. Ao memorialista de primeira grandeza que se revelou já em
idade provecta, autobiografando-se de modo magnífico, e retratando ao
mesmo tempo toda uma época significativa de vida brasileira, talvez
pudesse ter se acrescentado o biógrafo do pensador -homem de ação mais
digno da sua atenção intelectual, da sua interpretação sociológica, da sua
consagração em obra prima de estatuária literária. O nosso — tão seu e tão
meu — José Bonifácio — bem merecia a honra de ter sido biografado por
Gilberto Amado.
Não faz muito tempo, erudito estrangeiro que, por vezes, se volta para
assuntos do Brasil, insinuou, um tanto levianamente, ter eu, no ensaio
intitulado Casa-Grande & Senzala simplesmente seguido o alemão Von
Martius na importância atribuída ãs três etnias — a branca, a ameríndia e a
negra — na formação étnica e cultural do Brasil. Ignora esse erudito ter
essa importância sido destacada no século XVII pelo quase-sociólogo que
foi, em algumas das suas páginas geniais, o Padre Antônio Vieira; que, no
século XVIII, foi já orientação seguida pelo Marquês de Pombal,
reconhecer o valor do mestiço brasileiro — pelo menos o chamado
mameluco — e atribuir-lhe o máximo de dignidade; que no começo do
século XIX José Bonifácio traçou, incisivamente, o modo por que,
independente o Brasil, se deveria não apenas academicamente, escrever a
história pré-nacional e nacional do país — considerando-se a fusão das três
etnias e das três culturas — como continuar a fazer-se, a desenvolver-se, a
viver-se essa mesma história.
Viver história e não apenas escrevê-la. Quem mais do que Gilberto
Amado, no Brasil, viveu história? Que história não é passado adormecido
ou aquietado no tempo mas experiência que se infiltra, viva, atuante,
inquieta, no presente e se projeta sobre o futuro. Assim foi para Gilberto
Amado o passado brasileiro: história vivida, história vivente, história,
como diria Vieira, futura,
Quem tocasse em Gilberto Amado não tocava apenas num
contemporâneo mas num antecessor e num vindouro. Em Gilberto Amado
os três tempos coexistiram sempre. Completaram-se.
São — repita-se — de seus vibrantes ensaios de mocidade — aqueles
em que primeiro se afirmou sua vocação de escritor — lúcidas intuições:
intuições que o separaram — a êle e também ao bom sociólogo e escritor
medíocre, Alberto Torres — de eminentes intelectuais brasileiros, seus
contemporâneos — um Euclydes da Cunha, um Nina Rodrigues, um Graça
Aranha, um Paulo Prado, um Oliveira Viana, um Alberto Rangel, o
próprio Sylvio Romero — para os quais a ecologia tropical e a
mestiçagem brasileira se
GILBERTO FREYRE
apresentavam, ora sempre, ora esporadicamente, com aspectos antes
negativos do que positivos da nossa situação na América ou no mundo.
Foram antecipações, essas, do intuitivo que em Gilberto Amado se
harmonizou quase sempre com o lógico, que não podem ser esquecidas.
Como não podem ser esquecidas as de Alberto Torres: o primeiro
intelectual brasileiro que, no Brasil, se referiu aos estudos revolucionários
do antropólogo Franz Boas, conhecidos também, com antecipação notável,
por esse outro admirável sábio que é o jurista-sociólogo e também escritor
de virtudes literárias — Pontes de Miranda, sobre as relações entre "raça" e
ambiente. Não pode ser esquecido Gilberto Amado pelos antropólogos,
geógrafos, biólogos, sociólogos, psicólogos sociais que, com a colaboração
de outros homens de ciência e de estudo, e, também, de artistas e de
beletristas, estão hoje empenhados, no nosso país, na ousada
sistematização em ciência de indagações várias e dispersas sobre a
ecologia tropical, em geral, e a do Brasil, em particular, e, mais, sobre os
fenómenos de adaptação de populações humanas e de culturas — inclusive
populações em grande parte, mestiças, como a do Brasil, e culturas
também mistas ou várias nas suas origens — a ecologias
predominantemente tropicais: o caso da população e da cultura brasileiras.
Esse esforço de sistematização — pelo qual se mostrou há pouco tão
interessado o historiador-filósofo Arnold Toynbee — de estudos dispersos
e de intuições pioneiras, numa possível Tropicologia, pensam alguns
estrangeiros que marca uma das contribuições mais valiosas da cultura
brasileira tanto ãs de ciências da Terra como ãs chamadas Ciências do
Homem e aos estudos humanísticos: espécie de suma socio-ecológica que
unisse essas ciências a esses estudos em torno das gentes situadas nos
trópicos. Gilberto Amado foi, de certo modo, desde a mocidade, senão um
quase tropicólogo em potencial, um tropicalista.
Pertenceu ao número dos intelectuais difíceis de ser classificados.
Porque tanto foi grande pelo seu saber de jurista — rival dos Teixeira de
Freitas e dos Clóvis Beviláqua — como pela arte de escritor; tão mestre da
expressão poemática como da prosa — tão difícil em língua portuguesa;
tão ensaísta literário quanto ensaísta sociológico. E seria indesculpável
que, numa caracterização de sua personalidade de homem-orquestra, fosse
esquecido o romancista que se não criou, procurou criar no Brasil, um tipo
de romance adaptado à expressão romanesca do lógico às vezes
completado pelo mágico que êle foi também nos ensaios e nos poemas. É
uma obra de ficção, a sua, semelhante num ponto a de Balzac: por ser
também sociológica .
Como sociológica foi sua aventura autobiográfica: a mais humana, e,
talvez, a mais imortal — se assim se pode dizer — de quantas
RECORDAÇÃO DE GILBERTO AMADO, O RECIFENSE
aventuras de inovador ou de renovador de gêneros literários e de
especialidades humanísticas marcaram a sua vida de intelectual
acentue-se — whithmaniano. Porque ao retratar-se, Gilberto
Amado se retratou homem de vários meios e de sucessivos tempos
notavelmente sua infância em Sergipe e sua mocidade no Recife —
retratando também esses meios — por vezes até paisagens e
fazendo parar momentos expressivos desses tempos aos quais êle
próprio dissesse, um tanto ao modo imaginado por Goethe: parem,
não por serem perfeitos, mas por serem belos. Ou não por serem
belos, mas por serem significativos.
Kierkegaard e o Existencialismo
de Ernani Reichmann
OCTÁVIO DE FARIA
"Se eu pudesse ter alguma pretensão no mundo do
pensamento, esta seria a de, com a minha
experiência, oferecer o melhor desmentido possível
ao existencialismo (e à filosofia da existência em sua
preocupação sistemática)." (Ernani Reichman) (1)
Nossa "vivência" kierkegaardiana, no Brasil, é bem pequena. E bem
menor ainda seria, não fosse esse espantoso cultor de Kierkegaard e de sua
problemática que é Ernani Reichmann.
Certo, fala-se muito em Kierkegaard, em seu existencialismo, em sua
"angústia", em seu "desespero", em seus problemas de existência trágica.
Mas, na verdade, pouco mais além dessas noções gerais (verdadeiras
superficialidades num pensamento todo êle escorrido em veios da mais
profunda interioridade), conseguem atingir e devassar os nossos homens
de pensamento. Falar em Kierkegaard, todos falam — e foi até moda, pelo
menos hà alguns anos atrás. Mas, ler, conhecer, estudar Kierkegaard,
confesso que sei de bem poucos que a tal empresa se tenham realmente
abalançado.
Não espanta muito, é verdade, Kierkegaard sendo um autores menos
facilmente acessíveis, mais difíceis mesmo, senão de compreender em seu
pensamento essencial (seu estilo sendo meridiana-mente claro), pelo
menos de acompanhar no desenvolvimento progressivo de seus raciocínios
implacáveis. Naturalmente, não há quem não tenha ouvido falar de sua
"doença mortal do desespero", de sua "técnica de sedução", de sua
expectativa "no temor e no tremor, do seu conceito de angústia", ou
mesmo, e já agora mais próximo do núcleo de seu pensamento total, dos
três estádios "no caminho da vida": o estético, o ético e o religioso. Mas,
quem quer que tenha dado ou tentado "dar a volta" do pensamento de
Keerkegaard ao
OCTÁVIO DE FARIA
longo de seus volumes fundamentais (-), saberá perfeitamente que, com
esse conhecimento "literário", quase "de dicionário", não terá conseguido
grande coisa em relação a uma compreensão real da mensagem do grande
"poeta-pensador" (
:1
) dinamarquês.
E, insisto, Kierkegaard não é apenas um autor difícil, de aproximação
demorada e altamente trabalhosa. É, sobretudo, um constante problema —
um problema intricado, labiríntico, às vezes ardiloso, oferecendo êle
próprio, Kierkegaard, na sua problemática, uma série de pistas falsas,
pelas quais logo se lançam muitos dos apressados que se abismam na
sedução dos primeiros caminhos entrevistos. Nesse sentido, não há como
não recomendar, aos que se dedicam à tarefa de conhecê-lo mais de perto,
um extremo cuidado e o recurso frequente a obras seguras, isentas de
sensacionalismo e mistificação. (4)
Entre nós, no terreno da nossa experiência nacional ainda exígua,
seguramente nenhum ousou ir tão longe — e com tanta participação
pessoal, "vital" mesmo, se assim me posso expressar — quanto o escritor e
professor paranaense, Ernani Reichmann. E a importância de sua pesquisa
kierkegaardiana me parece tão mais importante, e tão mais válida, quanto
não nos podemos furtar a considerar que, ao lado de seus estudos, de seu
conhecimento direto e profundo da obra do pensador dinamarquês, êle
próprio, Ernani Reichmann, sempre se deslocou, em sua vivência, num
plano de quotidianidade nitidamente kierkegaardiana.
Sua obra, ainda incompleta, mas já toda ela organizada num esquema
bem simples de vivência e sucessividade, fala-nos, acima de tudo, de uma
evolução em termos kierkegaardianos. Mas, que não se veja nessa
evolução nenhuma influência literária, nenhuma espécie de
"imitacionismo". O que "sucedeu" a Ernani Reichmann nada tem a ver
com o que sucedeu a Soren Kierkegaard, pois, como aquele tão bem diz (e
mais de uma vez, aliás): "Ninguém pode ser kierkegaardiano. A
experiência de Kierkegaard é singular demais para que alguém possa
seguir-lhe as pegadas. Agora, se ser kierkegaardiano significa sermos nós
mesmos, nesse sentido, mas só nesse, cheguei a ser kierkegaardiano, pelo
menos ao fim de minha experiência, quando descobri que fizera uma
experiência de personagem." (5) De fato, o que Ernani Reichmann
"pensou", no decorrer dos diversos momentos de sua vida, êle o pensou
sob a influência exaustiva e quotidiana do que lhe "sucedeu" (a êle, em
exclusividade), exatamente como ocorreu com o pensador dinamarquês em
relação a si próprio.
Não será, sei bem, tarefa fácil chegar ao mais vivo e pessoal do
pensamento de Ernani Reichmann, desse que alguém, certa vez, chamou
de "o introvertido mais extrovertido que conheço". (
6
)
KlERKEGAARD E O EXISTENCIALISMO DE ERNANI REICHMANN
Muitos dos que a essa empresa se lançaram, é bem provável que venham a
se perder nos meandros da prodigiosa e implacável análise existencial a
que Reichmann submete sua vida e a dos que à volta dele respiram, atuam,
existem, quer como amigos (e tomo como exemplo a vivência de outro
notável paranaense, o esplêndido Clementino Schiavon Puppi — sem me
esquecer de outras, igualmente impressionantes, como as do grande Milton
Carneiro e a de Antenor Pupo), quer como pontos de referência ocasional
(e aqui lembrarei, também como exemplos, os pontos de referência de um
Vinícius de Moraes ou de um Lúcio Cardoso, entre muitos outros). E é
provável, também, que por preguiça intelectual, ou por desinteresse, esses
estudiosos abandonem no meio do caminho a "busca" desesperada que
Reichmann, falando por si mesmo, ou na expressão sempre viva e aguçada
de seus heterônimos diversos (um Van der Lubbe, um Sorte Peer, um Van
Neutgen), empreende em relação à sua existência, desde o passado mais
remoto ao futuro mais distante, desde os atos mais concretos aos sonhos
menos realizados, desde o Paraná onde está enraizado (
7
) até a Dinamarca
distante, de onde a sombra de Kierkegaard lhe acena O), desde a
experiência da "angústia subjugada" ate o "intermezzo lírico-filosófico",
para concluir na presente "volta às origens". (
9
)
Realmente, não deverão ser muitos os que conseguirão atravessar essa
floresta de hipóteses sobre as variações e as possibilidades do eu, esse
verdadeiro mundo de análises infinitesimais da realidade humana vivida, e
pensada ao mesmo tempo que vivida. Não é empresa fácil, repito. E
convenhamos que não o podia ser. E, concordemos também, não é tarefa
aconselhável para o utilitarismo imediato, tantas vezes odioso, de nossa
época. Mas, aos que ousarem vencer as barreiras iniciais, quaisquer que
sejam as "durezas", exigindo o "sacrifício" de um pouco do "precioso
tempo", de nossa sempre azafamada modernidade, a esses posso garantir,
sem medo de errar, que encontrarão uma verdadeira obra, livros autênticos,
alguma coisa que realmente vale a pena ser lida e compreendida nas mil e
uma subtilezas de sua variada problemática. — "É a existência de um
homem, apenas?" perguntarão. "E, apenas numa das fases de sua vida?" —
"Sim, é. E não basta? E que coisa pode existir de mais importante, se
realmente fôr isso? Pois bem, é". (Falando no próprio estilo Reichmann,
haurido no velho mestre Kierkegaard).
Se os livros de Ernani Reichmann têm um ponto-chave — e isto vale
tão bem para os volumes de "plenitude" (que se espalham pelo
"Intermezzo Lírico-Filosófico" e, agora, vão proliferar nos sete volumes de
"Volta Às Origens") quanto para a época mais distante e mais povoada de
hesitações dos heterônimos chamados Van Der Lubbe ou Sorte Peer —,
esse ponto-chave me parece ser justamente essa espécie de abandono de
todas as filosofias e de todos os mestres
OCTÁVIO DE FARIA
(e até mesmo, ou sobretudo, de Kierkegaard como mestre), essa posição
zarathustriana (ao lado de Kierkegaard, Nietzsche foi seguramente o outro
"mestre" de Reichmann...), que tão bem se reflete quando o autor nos
lembra: "Se grande é a filosofia capaz de dar um exemplo, maior é o
homem capaz de demonstrar sua fé na própria existência. É com minha
experiência e só com ela que pretendo regressar ao homem, regressando a
mim próprio como uma realização simplesmente humana, sem
artificialismo. No entanto, ai de mim, se falhar!" (
10
)
* * *
No estranho itinerário que Ernani Reichmann seguiu, até hoje cheio de
idas e vindas, encontros e reencontros, a "presença" de Kierkegaard é uma
constante de que êle próprio muitas vezes não parece ter uma ideia bem
nítida e que o leva a aparentes contradições que podem ou devem
desnortear os que lhe seguem as pegadas com atenção. E não são poucas.
Acompanhá-las de perto não seria evidentemente possível num estudo
tão rápido e, até certo ponto, superficial, como este a que aqui temos de nos
cingir. Mas, algumas indicações, baseadas em textos seus, poderão nos dar
uma ideia aproximada, e quem sabe mesmo, aqui e ali, bastante nítida. Para
isto, ouçamos algumas de suas confissões mais sinceras. Esta, por
exemplo: "Foi com esse estado de espírito, procedendo em tudo dessa
maneira estética que êle (leia-se: o "homem do intermezzo", isto é: o seu
"herói" ou seja, ainda, e como quase sempre: Ernani Reichmann êle
próprio) deu com Kierkegaard. Êle lera André Gide, lera Dostoievki,
Nietzsche, empolgara-se com eles, mas não sabia exatamente o que pensar
de nenhum deles, se não tivesse ao menos uma frase como ponto de partida
para o seu entusiasmo, a sua vibração. Êle não chegou nem mesmo a ler,
com a atenção que a amizade impunha, as cartas de seu amigo Clementino
Schiavon Puppi. Cartas que êle vai descobrindo agora em toda a sua
riqueza insuperável. Mas êle era sincero, procedendo assim. Êle traiu o seu
amigo, é verdade, mas traiu-o somente depois quando quis tocar sozinho
para a frente. Foi de idêntica maneira que êle procedeu em relação a
Kierkegaard. Leu Kierkegaard, exultou com suas frases, palavras, nunca
com um livro inteiro (que êle não era capaz de compreender em todo o seu
significado). Foi um poeta de Kierkegaard. Um esteta de Kierkegaard.
Mais talvez, do que poeta, pois este ao cantar o seu herói tem que conhecê-
lo plenamente e admirá-lo em toda a sua grandeza. Êle não se colocou
diante de uma alternativa: ou isso ou aquilo. É que êle não procurou
compreender o que dizia Kierkegaard. Era-lhe suficiente o encontro, o
mergulho na fruição estética que lhe proporcionavam algumas frases e
palavras. Mas êle
KlERKEGAARD E O EXISTENCIALISMO DE ERNANI REICHMANN
procedeu esteticamente em relação a si próprio. Tivesse êle procedido de
maneira diferente em relação a si próprio, procederia de maneira diversa
em relação a todos os outros". (")
Mas, a variação para o extremo oposto não tardará. E é com a
designação "uma nota para o seu caderno (1958)" que atribuirá ao seu
"herói-homem do intermezzo" essa desnorteante declaração: "É estranho,
mas não sei como explicar. Parece-me que me afastei definitivamente de
Kierkegaard. Já não sinto uma necessidade que me parecia essencial, ou
melhor, existencial. Ler Kierkegaard, falar em Kierkegaard. Exultar-me
com Kierkegaard. O que terá sucedido, que não cheguei a ver? Nem a ver,
nem a perceber? Pois não percebi o fenômeno em seu desenvolvimento.
Isso não pode ter surgido assim de repente, essa desnecessidade de
Kierkegaard. Essa vontade de libertar-me de Kierkegaard como se eu fosse
prisioneiro dele e não de mim mesmo. É curioso, mas sinto Kierkegaard
até com uma certa saudade, como algo que tivesse passado, transcorrido, já
superado pelo tempo, longe de minha vontade, de minha decisão. Não
sinto nenhuma vontade mais, nenhuma necessidade mais de ler
Kierkegaard. É só. Também por que voltar a falar dele, agora? Tudo se
recolheu ao passado. É mistério já. E Kierkegaard, não sei o que foi feito
de toda minha admiração pela sua grandeza..."
(12)
Mas eis que ainda não está terminado o movimento, não direi
"pendular", mas nitidamente iterativo, ou frequentativo, do "homem do
intermezzo" em relação ao mestre de mocidade, de "tempo romântico", que
o atrairá em plena maturidade e estará certamente em seu coração e em sua
problemática mais íntima quando a "idade" chegar. Ainda uma vez,
ouçamos a confissão desse eterno saudoso de uma possessão de que se
acredita liberto: "Êle sabe que o problema de Kierkegaard poderá
reaparecer em sua vida. Êle sabe que não chegou ainda (e poderá não
chegar nunca) à sua realização segunda. Quando êle terá sabido para que
está nesse mundo, que deve fazer, qual a sua verdade dele mesmo para êle
mesmo. É possível porém que êle não chegue a se realizar nunca. Então,
êle morrerá — disso não tenho a menor dúvida — com uma dívida
tremenda para com Kierkegaard e para consigo mesmo. Como será
dramático, isso, meu Deus! Um homem em desespero na hora de sua morte
por não se ter realizado, embora ignorando até a última hora, em que
consistia essa sua realização! Pior se êle chegar a vislumbrá-la na hora da
morte!" (
13
)
Ou ainda, nessa variação que confirma todas as posições anteriores —
verdadeiro eco nietzscheano, quase-trecho de Zarathustra falando a seus
discípulos inconsoláveis por perdê-lo (
14
): "... não creio que alguém possa
ser kierkegaardiano. A vitória de Kierkegaard em nós é a sua própria
derrota porque êle queria, acima
OCTÁVIO DE FARIA
de tudo, que nos tornássemos atentos a nossos próprios problemas. A
problemática de todo homem é singular, como foi singular a sua
problemática. Kierkegaard nos proporciona meios excepcionais, isto sim,
para um mais profundo mergulho em nós mesmos. Foi o que procuramos
fazer, durante anos de convivência com seus livros". (
l5
)
Todo esse drama, toda essa angústia genuinamente kierkega-ardiana,
tudo isso que tanto emociona e leva à incondicional admiração, tudo isso
me voltou à lembrança quando, muito recentemente, travei conhecimento
com a publicação do 7.° volume de "Volta Às Origens" (no qual, entre
muitas outras coisas interessantes, Reichmann confessa, mais uma vez
talvez, que, no que tange aos três estádios de Kierkegaard, êle se situa no
tipo estético — um "estético superior" — não tendo ultrapassado o ético,
nem chegado ao religioso) (
10
) e com a reunião de textos traduzidos de
Kierkegaard que Ernani Reichmann acabou de entregar à Gráfica Record
Editora para ser publicada como segundo volume da coleção "Profetas Do
Mundo Moderno", isto é: o volume em que o pensamento de Kierkegaard é
trazido ao nosso conhecimento através de alguns de seus escritos
essenciais. Num verdadeiro agrupamento, espécie de "puzzle" de textos
decisivos, o pensamento e a vida do "Sócrates nórdico" (") são
reconstituídos ante nosso olhar e nosso entendimento surpreendidos com
tanta precisão e tão perfeita adequação.
Realmente, só um íntimo conhecedor dos mais secretos meandros do
permanente "viver" e do sucessivo "pensar" de Kierkegaard, poderia nos
oferecer uma imagem tão viva e tão próxima — tão completa, também —
do conjunto de uma das experiências mais interessantes e mais originais,
mais pungentes e mais decisivas até hoje realizadas. Em cada linha, em
cada página desse livro, verificamos, acima de tudo, a competência, a
exatidão direi mesmo: a perfeita adequação de um autor a um assunto.
Pois, de fato, ninguém melhor do que Ernani Reichmann poderia
enquadrar em algumas poucas centenas de páginas, e em excertos tão con-
clusivos, uma vivência e um pensamento tão ricos e intensos como os que
nos são oferecidos.
Deverá ser, sem a menor dúvida — e sem querer prejulgar — um dos
pontos mais elevados da coleção "Profetas Do Mundo Moderno" que a
Gráfica Editora está editando em programação altamente cultural. Por
deferência de seu Diretor, Hermenegildo de Sá Cavacante, foi-me entregue
o impulso inicial (
1S
) dessa Coleção que tem por finalidade básica reunir
— para uso dos que ainda estudam nesse país, ou daqueles que pretendem
trabalhar partindo de dados positivos — uma grande e selecionada galeria
de pensa-
KlERKEGAARD E O EXISTENCIALISMO DE ERNANI REICHMANN
dores e profetas do nosso mundo, apresentados "por eles próprios" ou,
expressando-me com mais exatidão: através de seus textos essenciais,
sempre traduzidos. O responsável por cada volume (no caso que
focalizamos: Ernani Reichmann em relação a Sõren Kierkegaard) deverá
"situar" diante do público o pensador ou filósofo, reunindo alguns de seus
textos básicos, traduzindo-os, e os distribuindo em seguida pelos assuntos
gerais. Assim trabalhando, o que realmente faz (ainda que indiretamente) é
dar a sua visão do autor escolhido. Pois, fazendo-o falar por si mesmo,
através de seus textos, não foge a comparecer com sua visão pessoal.
Testemunha até mais eloquentemente o modo pelo qual o concebe. De
fato, formando essa espécie de "puzzle" de seu pensamento, projeta ante o
público uma visão própria, decisiva, do vulto que está focalizando.
Kierkegaard, visto por Ernani Reichmann, será o segundo vo-vulme da
Coleção. Mas, a seu lado, e continuando a série, não faltarão grandes
pensadores ou "profetas" (naquele alto sentido anunciado por Berdiaef) (
10
)
ou"faróis" (já aqui na extensão filosófica criada pelo gênio poético de
Baudelaire) (20), e, entre eles, podemos alinhar pensadores mortos mais ou
menos recentemente (mas já consagrados) ou desaparecidos há séculos,
tanto um Teilhard de Chardin quanto um Pascal, um Bergson quanto um
Dante, um Merton quanto um Maquiavel, passando por vultos
intermediários como Nietzsche ou Dostoievsky, Kierkegaard ou Leon
Bloy, Ber-nanos ou Berdiaef, sem excluir os ainda vivos, como Maritain
ou Sartre, com essa permanente característica de serem de certo modo
essenciais para a apreensão do nosso atribulado, doloroso pensamento
moderno. Valores esse que, muitas vezes, ocorrerá não terem se projetado
muito além da esfera particular da literatura e da arte, como Proust ou
Kafka e, até mesmo, Chaplin. Pensadores que enfim, de um modo ou de
outro, têm alguma coisa de fundamental para dizer aos homens de nossos
dias.
* * *
E, realmente, quem mais do que Kierkegaard está de coração aberto e
de espirito acordado para esse "diálogo" com o mundo de hoje? (Pode-se
alegar, é verdade, que falam "línguas" diferentes, um deles entendendo as
coisas em termos de uma perenidade que o outro nem sequer acredita
possível. Mas, no fundo, é a mesma colocação, sempre absoluta, de um e
de outro, frente à existência...) E quem melhor do que Ernani Reichmann
sabe o que Kierkegaard, tem de especial, de único, para transmitir a esses
atormentados, a essa geena de "angustiados" que denunciam aos berros, e
implacàvelmente, aquilo mesmo no meio de que tanto se comprazem,
indefinida e morbidamente?
OCTÁVIO DE FARIA
Eis porque ousamos afirmar que a coleção "Profetas do Mundo
Moderno" não poderia ter encontrado melhor "intérprete" para a recriação
do mundo kierkegaardiano, do que o "kierkegaardiano" Ernani
Reichmann. Toda a sua vida, êle viveu reichmanniana-mente. Portanto,
como vimos, "kierkegaardianamente". Mais próximo do modelo, ninguém
jamais esteve. Realmente, quem com mais competência — não só
documentária, mais intima, "vital" — do que êle, para recriar ante nós o
ilimitado desse pensamento que, cedo atravessando as fronteiras de seu
pequeno país e de suas polêmicas religiosas, tomou conta do cenário
universal, tornando-se uma das figuras essenciais do Mundo Moderno?
NOTAS
(1) Ernani Reichmann — "Iutermezzo Lírico-Filosófico" — 2.
a
Parte p. 262).
(2) Entre as principais obras de Sõren Kierkegaard, lembramos, seguindo o quadro proposto por E.
Reichmann em "Kierkegaardiana" (v. "Intermezzo Lírico-Filosófico" — 7." Parte — págs. 8183)
os seguintes volumes e opúsculos; 1841 — "O Conceito de Ironia, Constantemente Referido A
Sócrates"; 1843 — "A Alternativa", Temor o Tremor", "A Repetição", "Discursos Edificantes";
1844 — "Migalhas Filosóficas", "O Conceito De Angústia"; 1845 — "Estádios No Caminho da
Vida", Três Discursos Religiosos Em Circunstâncias Supostas"; 1846 — Post-Seriptum "As
Migalhas Filosóficas", 1847 — "Os Atos do Amor", "Discursos Edificantes", "Discursos
Cristãos", 1848 — "A Crise e Uma Crise na Vida De uma Artista"; 1849 — "Três Discursos
Devotos", "A Doença Mortal ou O Desespero Humano", "Trôs Discursos"; 1850 — "A Prática
do Cristianismo"; 1851 — "Dois Discursos Para a Comunhão da Sexta-Feira"; 1855 — Nove
números de "O Momento", revista polêmieo-religiosa. Sem contar os artigos polémicos para o
jornal "A Pátria", etc. E, posteriormente, a publicação póstuma dos "Diários", de tão grande
importância.
(3) Na designação famosa de Karl Jaspers.
(4) É imensa a bibliografia sobre Kierkegaard. Nem de longe pretendemos reproduzi-la aqui.
(Seriam necessárias páginas e páginas desta revista). Queremos apenas, indicar alguns livros
mais importantes, em línguas mais ou menos acessíveis aos nossos hábitos de cultura, e às
nossas possibilidades econômicas. Destaquemos portanto, independente das diversas "kier-
kegaardianas" de Ernani Reichmann, e da "Introdução À Obra do Kierkegaard", de Gregor
Malantschuck (tr. brasileira de E. Reichmann), os seguintes volumes: Torsten Bohlin — "Soren
Kierkegaard, L"Homme Et L'Oeuvre"; Pierre Mesnard — "Le Vrai Visage De Kierkepaard";
Cari Koch — "Soren Kierkegaard"; Jean Wahl — "Études Kierkegaardiennes"; Leon Chestov —
Kierkegaard Et La Philosophic Existentielle"; Georg Brandes — "Soren Kierkegaard"; Régis
Jolivet — "Introduction A Kier kogaard"; André De Lillenfeld — "A La Rencontre De
Kierkegaard"; Ha-rald Hòffding — "Sõren Kierkegaard, Als Philosoph"; Eric Przywara S. - J.)
— "Das Geheimnis Kierkegaards"; Eduard Geismar — "Soreu
KlERKEGAARD E O EXISTENCIALISMO DE ERNANI REICHMANN
Kierkegaard"; Emmanuel Hirsch — "Sõren Kierkegaard"; John A Bain
"Sõren Kierkegaard, His Life And Religious Teaching"; Ch. Sehrempf
"Sõren Kierkegaard, Eine Biographie"; Franco Lonibardi — "Kierkegaard"; K. Lowith —
"Kierkegaard Und Nietzsche"; Sodeur — "Kier-Kierkegaard Und Nietzsche". Sodeur —
Kierkegaard Und Nietzsche". Beconiendam-se ainda, os prefácios de PH Tisseau (tradutor da
maioria das obras de Kierkegaard para o francês), o estudo de Denis de Rougerr-ont ("Necessite
de Kierkegaard" — na revista "Foi Et Vie", n.° agôsto-«etembro de 1934), o livro de Benjamin
Fondane: "La Conscience Ma-lheureuse" e o volume "Kierkegaard Vivant", colóqui» da
Unesco, 1964,).
(5) Ernani Reichmann — "Volta Às Origens" — 7.
a
Parte — p. 245.
(6) Ernani Reichmann — "Volta Às Origens" — 7.
a
Parte — p. 245.
(7) Ernani Reichmann nasceu em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, 1920.
(8) Sõren Kierkegaard nasceu em Copenhague em 5 de maio de 1813 e faleceu, também em
Copenhague, em 11 do novembro de 1855.
(9) Convém lembrar que são essas as três grandes divisões em que Reichmann enquadra seus livros
e plaquetes já publicados ou a publicar — 21 volumes ao todo, que levam o título geral de
"Experiência De Personagem". Isto é: "Angústia Subjugada" (7 volumes), "Intermezzo Lírico-
Filosófico" (7 vols.) e "Volta Às Origens" (7 vols.). Na primeira divisão, encontramos: vol. 1)
"Folhas Azuis"; 2) "Hic Fuit" (1939-55); 3) "Post-Scriptum 55" e "P.-S 56"; 4) "Memorial da
Vida Exterior"; 5) "Memorial da Vida Interior"; 6) Cadernos de Van Der Lubbe"; 7) "Cadernos
Dissonanz" e "Papéis De Sorte Peer" (1951-55). Da segunda divisão ("Ditermezzo Lírico-
Filosófico") foram publicados, creio, os dois primeiros e o último volume, isto é: o 8.°, o 9.° e o
14-° O oitavo contendo: "Carta a Um Artista" o "Um Galo Cantou no Mar"; o 9.°: "Cadernos Do
Homem" e "Apontamentos do Estranho"; o 14.° e último da divisão: Kierkegaardiana" (1955-62)
e "Carta A Carlos Galvez". Nos demais volumes dessa segunda série, distribue o autor vários
outros de seus estudos, entre os quais julgo especialmente promissores: "Apontamentos Da
Filosofia Da Existência", "Caderno Retomado", "O Problema Da Responsabilidade". A terceira
série ("Volta às Origens" — 1963-67) termina com o sétimo volume, recentemente publicado,
que contém, entre outras partes notáveis: "Paiol Grande", "Tratado Do Presente Exclusivo", "A
Resposta Do Ser", "Carta Inacabada". Entre os demais volumes a integrarem a 3." Sério,
chamam-me particularmente a atenção o volume inicial: Kierkegaardiana" (1963-67) e o 5.°:
"Clementino Schiavon Puppi".
(10) Ernani Reichmann — "Intermezzo Lírico-Filosófico" — 2.
a
Parte — p. 262.
(11) Ernani Reichmann — "Intermezzo Lírico-Filosófico" — 2.
a
Parte — pgs. 176-7.
12) Ernani Reichmann "Intermezzo Lírico-Filisófico" — 2." Parte — p. 173.
(13) Ernani Reichmann — "Intermezzo Lírico-Filosófico" — 2
a
Parte — p. 180.
(14) v. Nietzsche — "Also Spraeh Zarathustra".
(15) Ernani Reichmann — Conferência de Copenhague, comemorando o centenário da morte de
Kierkegaard — in fine.
(16) Ernani Reichman " Coita daso Aiirens . p. 112-3 (Pafre e cmrda rd
(16) Ernani Reichmann — "Volta às Origens" — p. 112-3. (Parece-me interessante reproduzir aqui o
trecho a que me refiro e que é o seguinte: "Kierkegaard (quem- não sabe?) colocou os
seguintes estádios: o estético, o ético
OCTÁVIO DE FARIA
e o religioso. Entre os primeiro e segundo situa-se a ironia e entre este e o terceiro, o humor. Já
disse que sou (ou era, pois não sei exatamente o que ae passa comigo neste momento) um tipo
estético. Que tive uma experiência ética rigorosamente secundária porque não cheguei a decidir
(remeto a outros escritos, principalmente ao "Tratado"...) Mas cheguei também ao humor. Do
humor não fui ao religioso de Kierkegaard, mas novamente ao estético (um estético superior),
pela descoberta do que o amor não pode ter objeto, ou, como disse alguém, a um estado de
amor. Esta é a forma superior do estético, a única consequente, se a existência é trágica
(enquanto o ético faz suas terríveis exigências e não há como desbordá-las) e só podemos
encontrar um caminho para a frente (a experiência sempre antecipando-se a seu conhecimento)
se desligarmos o objeto..."
(17) No dizer do Torsten Bohlin — v. "Soren Kierkegaard, L'Homme Et L'Oeuvre".
(18) "Leon Bloy" foi o seu volume inicial.
(19) N Berdiaef — "Esprit Et Liberte" (tr. franc.) — p. 376.
(20) Charles Baudelaire — "Oeuvres" (Bibl. De La Plêiade — v1 — "Spleen
Et Ideal").
Três Provincianos
LUIS DA CAMARÁ CASCUDO
João Barreto de Menezes
Contava proezas, mostrando quem é. TOBIAS
BARRETO, "OS Tabaréus".
Um metro e sessenta em ebulição, ardência, inquietação ambulatória. Falava
andando, girando, com paradas bruscas nos finais dos períodos, pontuados a murro
na mesa próxima. Voz seca, alta, veemente, percutindo a frase numa estridência
metálica de araponga. Os braços rodavam, as mãos se abriam, os dedos elétricos,
numa violência mímica de bailado russo, davam complemento à imagem
convocada. Linguagem torrencial, alagante, diluviai. Incapaz de expor sem
declamar e de evocar sem indignar-se. Nunca um narrador na plateia sossegada
mas um ator principal no palco. Regente de orquestra interior, na ininterrupta
protofonia recorda-dora. O rosto longo, escanhoado, o nariz pontudo, queixo
voluntarioso, testa larga, viviam os episódios a que o olhar chamejante dava
movimento, interesse e colorido. Para nós, estudantes na Faculdade de Direito, era
como entendendo confidência do filho do Rei. O Pai fora, positivamente, um
Soberano de inteligência, tenacidade, destemor, cultura — Tobias Barreto de
Menezes!
João Barreto de Menezes aos nossos olhos revivia l'Aiglon, desde que o Imperador
da Escola do Recife fora exilado para a ilha irrevogável da Santa Helena morta.
Ganhávamos ênfase, arrogância, empáfia sugestiva, ouvindo aquele D'Artagnan
intemporal, inacreditável e realístico. Um romance de capa-e-espada, de positiva e
provada existência. Todas as peripécias inimagináveis haviam ocorrido na sua
vida, pelo mundo em pedaços repartida. Sem deixar a Terra, fora à Lua e ao Sol.
O documentário concreto, imediato, copioso, excluía qualquer fermento de
Imaginação tropical. Estávamos assistindo aventuras assombrosas, visão imediata
dos navegadores quinhentistas e dos homens atrevidos que haviam pisado a calota
polar.
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
Em junho de 1889, ainda no Império, quando o Pai morreu, João Barreto
tinha dezesseis anos. Em casa, glória e miséria. Aumentando a idade,
iludindo pela vivacidade do espírito, obteve ingresso no Exército. Em
setembro de 1893 está ao lado do marechal Floriano Peixoto, fuzil na mão.
Destacado para a corveta Niterói, viaja, caçando inimigos, combatendo em
Santa Catarina e Paraná. Em 1897 flameja a guerra de Canudos. João
Barreto vai bater-se cem os jagunços de Antônio Conselheiro. Volta
Alferes. Campanha do Acre! João Barreto assalta Porto Alonso e,
reaparece espada em punho, entre os oficiais de Plácido de Castro.
Terminada a epopeia, deixa o Exército e permanece em Manaus. Juiz
Municipal em Faro, Pará. Polemista virulento, orador de fogo, acusador
impávido e afoito, entra no turbilhão da política amazonense. Foi agredido,
baleado, caçado como um jaguar, perseguido como uma serpente, com
emboscadas, tocaias, embustes. Responde tiro a tiro, punhal a punhal, num
corpo-a-corpo de ferocidade heróica. Não teme. Não recua. Não concorda.
Embarca sob a garantia da Força Federal. Lição proveitosa? Apenas
experiência para a continuação. Volta ao Recife fumegante. É a Salvação!
Luta de Dantas Barreto contra Rosa e Silva. Passeatas, comícios, tiroteios,
cargas de cavalaria, descargas dissolvendo a multidão delirante. João
Barreto está no seu clima. É um dos tribunos aclamados, preferidos,
indispensáveis. Dantista porta-bandeira da rebeldia. Alvejam-no de ponta-
ria, tentando apagar o protesto retórico e sonoro. Jamais desertou da liça,
galo de briga infatigável e renitente. Ficava desmoralizado na ausência do
tumulto sangrento. Como Crillon, esforçar-se-ia se vencessem sem êle. Ou
morressem. Pertencia aos cadetes de Gasco-nha, de Carbon de Castel-
Jaloux: —
Dans tous les endroits ou l'on cogne Ils se
donnent des rendez-vous!
Por esse meio, questões, desafios, provocações imprevistas, repercussão
pessoal dos embates nas ruas e praças. A reação é súbita, decidida e bravia.
Poderia perguntar, como El-Rei D. Sebastião, a côr do Medo! Creio que
nele se capitalizavam as reservas de energia de várias gerações que não
tiveram oportunidade da ação. Guardaram para o descendente esse
potencial de coragem atrevida e serenidade transformável em arremesso e
salto belicoso. Como Cyrano de Bergerac, fendant la canaille qui grogne...
Nem toda essa caudal destinava-se à catadupa estrondosa. João Barreto era
poeta, sociólogo, ensaísta, articulista, historiógrafo acidental. O Poeta não
refletia El-Campeador. O estilo decorria tranquilo, límpido, expressivo.
Com emoção, consciência, idoneidade vocabular. Nenhum toque de
clarim, disparo de carabina, volteio de espada. Georges de Scudery
tocava violino. A durandal tornara-se
TRÊS PROVINCIANOS
flauta. Quatro livros de versos, incluindo "Cromos". Outros volumes
inéditos, prefaciados com elogios por Artur Orlando, Silvio Romero,
Clóvis Beviláqua. Duas monografias sobre Direito Romano. Bachare-lara-
se em Ciências Jurídicas e Sociais, 1918. Fora candidato a uma cátedra na
Faculdade, Direito Romano e Filosofia do Direito, num concurso que o
Governo suspendeu. Conversador primoroso nas lembranças da velha
literatura. Sobretudo, na ressurreição do Pai, instintivo e reboante como
uma avalancha, lendo alemão deitado numa esteira, erguendo-se aos berros
quando entusiasmado pelas cartas afetuosas de Ernesto Haekel e demais
mestres de Iena, Goet-tingue e Bonn. O filho nascera na Escada, onde o
Pai escrevera o ESTUDOS ALEMÃES, (Recife, 1883), mantendo em
tipografia particular o espantoso DEUTSCHER KAMPFER, realmente o
"Lutador Brasileiro", que era êle mesmo. Ressaltava pormenores não
muito nítidos. Tobias em 1866 tinha 27 anos e não 30, e ainda cursava o
3.° ano jurídico. Terminaria em 1869. Castro Alves tivera farta retribuição
erótica da atriz Eugenia Camará. Tobias ganhara unicamente alguns
abraços teóricos de Adelaide Cristina do Amaral, custodiada pela
vigilância marital do ator Pedro Joaquim do Amaral, esposo legítimo. João
Barreto perguntava-nos quem fora o sentimental nos prélios condoreiros
do teatro Santa Isabel em 1866?
Pelo que sabemos, João Barreto era, encarnado e esculpido, o tempestuoso
e primaveril progenitor: — gesticulação, arrebatamento, verbosidade,
ternura. Amor ao violão e à lírica do Povo. O espadachim filial,
incorrigível em sua verte vieillesse, continuava sentindo as permanentes
românticas paternas. Tobias fora expulso do Seminário baiano por entoar,
alta noite, uma modinha amorosa, do repertório sergipense, informa Silvio
Romero, seu carmelengo. Uma noite vínhamos os dois, João Barreto e eu,
pela ponte Buarque de Macedo sob um plenilúnio de agosto. Bondes,
automóveis, transeuntes, passavam indiferentes à iluminação miraculosa
em prata fluida. Detendo-me, apontou o casario, o lento Capibaribe, a
paisagem irreal: — Tanto luar desaproveitado! Como "aproveitaria" êle o
cenário das mortas serenatas românticas? Dizendo poemas e qua-drinhas,
como fêz. A noite bole-me n'alma...
Cerquinho Nunes promovera uma reunião de amigos e admiradores que
ouviram a leitura de um meio cento de sonetos, acima de médios e abaixo
de ótimos, feita pelo Poeta. Alguns eram de apresentação sedutora.
Anunciava-se movimento editorial para o livro. Anos depois, João Barreto
dizia-me haver perdido os originais... sem cópia. Cerquinho Nunes
devolvera para a última correção e os sonetos sumiram na barafunda
papeleira do autor. Ficara vibrando quando lhe sugeri escrever
reminiscências, ambiente familiar, a vida tormentosa, revolta da Armada,
Canudos, Acre, Manaus, Recife, Floriano, Dantas Barreto, a Faculdade e
seus professores, jornalismo,
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
política, gente de todas as dimensões, encontrada no caminho! Prometi
bater-me pelo editor no Rio de Janeiro. Oliveira Lima dizia que a
publicação de livro na província era uma forma impressa de ineditismo.
Eufórico e gesticulante, prometia-me iniciar a tarefa logo-logo. Missão
suprema de restituição e saudades. Cartas para lá e para cá. Não escreveu
nem uma linha! Cerquinho Nunes, balançando num riso os lépidos
120 quilos integrais, resumia:
"João Barreto é nuvem de chuva que o vento desfaz..."
Apesar dos embates, desgastes e esbarros, veio a março de 1950, 78 anos
batidos, vividos, eloquentes.
Quinze anos depois, no Recife, um estudante bem mais curioso indagador
do Passado, perguntava no "Grande-Hotel": —
O Professor conheceu João Barreto de Menezes?
— Desde 1924...
Êle era doido?
Não, não era doido. Every man in his Humour, como pensava Ben Jonson.
Tinha uma exaltação coerente e lógica. Responderia um soneto,
depoimento suficiente para a "formação da culpa".
— MEU PAI.
Meu Pai, sabeis quem foi, funda peleja
Travou na vida e só lhe veio espinho... De
inimigos o bando ultra-mesquinho Aos pés
lhe rastejou e inda rasteja.
Pelo mundo sentindo-se sozinho, Sem Pai não
creio quem feliz se veja, Pois Êle é nossa
escola e nossa igreja, Lição e Fé plantadas no
caminho!
Por onde Êle passou será meu rumo... A
poeira dos combates me acostumo, Como Êle
a combater se acostumou.
Sem haver medo igual de que me enoje A
turba dos vilões grita-me — foge! Mas,
honrando meu Pai, não fujo. Vou!
Juvenal Antunes
Os cinquentões de Natal e do Ceará-mirim, daí para cima, não esqueceram
Juvenal Antunes, (de Oliveira, norte-riograndense do engenho "Outeiro",
no Ceará-mirim, desde abril de 1883). Da
TRÊS PROVINCIANOS
aristocracia rural do vale, bacharel no Recife de 1902, andou sendo
jornalista na efêmera A CAPITAL, Promotor na terra-matriz, e viagem para
o Acre, onde viveu sendo o nobre órgão da Defesa Pública em Rio
Branco, até abril de 1941, quando veio falecer em Manaus. Solteirão e sem
descendência mesmo juridicamente artificial. No Acre plantou anedotário
e deixou reminiscências hilariantes. Em Natal publicara um livrinho de
versos, SCISMAS, de 1909, e não no ano anterior como pensava. Em 1922,
imprimiu no Rio de Janeiro ACREANAS, poemas, despedindo-se das
tipografias. Fôz, num poema famoso, o ELOGIO DA PREGUIÇA: —
Bendita sejas tu, Preguiça amada,
Que não consentes que eu me ocupe em nada!
E saiu do Mundo na véspera do Dia do Trabalho. De vez em vez
reaparecia em Natal para alegria de todos e alvoroço da Tristeza, sua
sempre vencida adversária. Conheci-o em 1922. Pequenino, magro, nariz
notado, queixo em rostro de galera, boca de zombaria, olhar de espeto
quente, a face vermelha, salpicada de sardas, como confeti dourado num
ramalhete de flam-boyant, testa de projeção convexa, ampliando a
imponência da calva, passo miúdo, voz elétrica, espalhava amizade e bom-
humor na irresponsabilidade da improvisação. Não sei onde pairam suas
cartas, digníssimas de Mark Twain. Não tendo local nem horário para a
produção humorística, como Emilio de Menezes, perderam-se os milheiros
de respostas e reparos irresistíveis, semeados sem intenção de fruto, das
margens do Acre ãs do pátrio Ceará-mirim. Em Rio Branco, evaporada a
essência financeira prestigiosa, ficara olhando: —
Seringueiros, que a fome encova as faces lívidas, A
borracha a dois mil e pouco o quilograma, Bacharéis sem
questões e coronéis com dívidas!
Ao inquérito jornalístico sobre o futuro do Acre, respondeu: —"Devolver à
Bolívia, pedindo desculpas pela demora!" Ao irmão querido, promovido a
major, sacudiu a saudação telegráfica: —"Parabéns! Um galão em cada
pata!"
Fêz conferências, discursos aclamados, e mesmo ajudou a fundar a
Academia Acreana de Letras, na qual me fêz imortal. Cético mas não
pessimista. Sarcástico sem crueldade. Malícia sem perfídia. Fixou-se no
Acre porque acreditava nele.
O Acre será a Bahia... sem Ruy nem Seabra! Dedicou um poema a Ruy,
pranteando-lhe a morte.
Mas a fibra lírica era dissipada pelo arremesso perdulário do chiste e da
facécia. Laura, figura feminina para onde corriam as brisas
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
da ternura e quebrava o vagalhão do motejo, não seria suficiente para a
evasão do potencial imaginativo e transparente de graça.
Mereço, pois o prêmio cubicado
De, em troca do que tenho aqui sofrido,
Gozar a eterna glória e a eterna paz.
Salvo se Deus julgar mortal pecado
Ter eu milhões de vezes te mentido E
ter vontade de mentir-te mais!
Essa complacência folgazona e fácil, encantava e seduzia o auditório sem
que pertencesse, medularmente, ao locutor.
Afasto-me do santo matrimónio
Como da cruz afasta-se o Demónio!
Pois eu teria a original maldade
De aumentar neste mundo, a Fealdade?
Sempre esbarra na dúvida e no engano o
lerão carro do saber humano.
Um "cromo": —
Brincam juntos, no terreiro
Do engenho, faz mais de um'hora,
Joaquim, filho do carreiro, Com a filha
de Dona Aurora.
E, ao final: —
Homem, suarás como um mouro,
E não serás livre um'hora...
Nem hás de ter mais namoro
Com a filha de Dona Aurora!
Por duas ocasiões, ficou em nossa casa, na av. Jundiaí, no Tirol durante o
dia inteiro, do almoço ao jantar, saindo à noite. Passadas as primeiras
horas dos flamejantes paradoxos, fogo-de-vista habitual para o
atordoamento burguês, prolongado na risonha assimilação camaradesca,
seguiram-se recordações da mocidade, lembrança das figuras mortas, a
vida social nas casas-grandes do vale, leituras e planos iniciais, enfim um
vôo saudoso para a aurora do Mundo pessoal. Sem rir e sem chorar. Essa
carinhosa hospedagem ocorreu antes de 1928, quando terminei o curso
jurídico no Recife. O Promotor Público da Comarca do Rio Branco
informou sobre a marcha íorense no Acre, a mais comum incidência
criminal, a repressão
TRÊS PROVINCIANOS
legal, advogados e magistrados, um panorama movimentado e realístico do
então Território. Nem uma pilhéria interrompeu o depoimento grave.
Reafirmava a confiança no porvir do Acre, futura Bahia. Cheio de unhadas
e caretas para a região onde vivia, protestava imediatamente se alguém
concordasse no assalto ao bom--nome acreano: a terra que brigou para ser
brasileira. Essas duas longas intimidades revelaram-me o verdadeiro
espirito sob os ruidosos guisos da galhofa. Lembrei-me de Sainte-Beuve
sobre Sten-dhal: ... cependant 1'homme d'esprit avait certaines façons de
dire qu'il ne faut pas prendre absolument à la lettre; il s'amusait. Nem
sempre ostentava o traje policolor do endiabrado malabarista zombeteiro.
É preciso não vê-lo unicamente no ângulo do homem engraçado. Seria
atividade constante, espontânea mas exterior e funambulesca, para divertir-
se com o pasmo da assistência. II s'amusait... Essa. teimosa provocação ao
Riso não lhe atingiu a vida profissional, a conduta na Comarca do Rio
Branco, a enternecida compreensão aos juízes para aquele trêfego diable
boiteux, com boas pernas infatigáveis. Diria como Martial: —Lasciva est
nobis pagina; vita proba est... Não foi um desregrado, irresponsável,
esquecido moral dos deveres funcionais. Como George Sand ou Rimbaud,
as tentações da Boêmia não prejudicaram a regularidade inflexível do
Trabalho. Inverso de Baudelaire, Musset ou Verlaine. Aquela esfusiante
pirotécnica verbal criou, na imaginação contemporânea norte-riogran-
dense, um falso modelo bocagiano de Paula Ney, Lima Barreto ou do
nosso Ferreira Itajubá, jamais existente. Houve excesso de ressonância nas
suas expansões satíricas, talqualmente Quintino Cunha, no Ceará. Como
Júlio Verne, viajou muito sem mudar de residência. Um meu tio-materno,
Joaquim Manuel Fernandes Pimenta, de tanto contar estórias de caçadas,
ganhou fama de grande caçador, sem jamais ter morto cousa nenhuma na
sua vida. Dir-me-ão que, desta forma, Juvenal Antunes é um enigma.
Mais, quel homme n'est pas un enigme? perguntava Sainte-Beuve.
Certo é que não rompeu a muralha das fronteiras literárias, na mini--
imortalidade estadual. Produziu pouco e made às pressas, como dizia
Monteiro Lobato. Dois livrinhos sem circulação. Todo o Sul o ignorou.
Aqueles que o conheceram estão sendo convocados para o serviço da
Eternidade. Várias vezes maior que sua herança intelectual, bem
parcimoniosa em relação do Espírito, os dois livrinhos representam
pobremente o encanto e brilho duma Inteligência ardendo na meia-solidão
do Acre e do Rio Grande do Norte há 30 anos passados. Desaparecendo as
testemunhas, o nome perde o conteúdo humano, real e legítimo. Como
Poti, (Luis Potiguar de Oliveira Fernandes, 1894-1963), só seria avaliado
pelas impressões saudosas dos amigos. Constituiriam os únicos
instrumentos na verificação dimensional, como para José Mariano Filho,
(1881-1946), Baptista Pereira, (1881-1960) ou Vicente Licínio Cardoso,
(1890-1931), com perspecti-
LUIZ DA CÂMARA CASCUDO
vas na bruma do desconhecimento individual. Não eram inferiores aos
Notórios.
Tive confidências dos conterrâneos e colegas de turma de Juvenal
Antunes em 1902, os desembargadores Luis Tavares de Lira e Sebastião
Fernandes, o Juiz de Direito Galdino dos Santos Lima, evocando-o,
afogado num fraque alucinante, colarinho mural, cartola de Conselheiro do
Império, vivendo de-pressa, com rara frequência nas aulas e férvida
assistência às festas. Descuidado, álacre, blagueur. Brilho de orador nos
bailes de Olinda e conhecedor de todas as complementares moças bonitas,
incluindo as arrendáveis. A indumentária caprichada popularizara-o nas
"rodas acadêmicas" e palacetes dos senhores de engenho, com meninas no
ponto do pedido. As pilhérias e remoques repetiam-se nas tertúlias da
época. Plantara fama nas lembranças do Recife.
Divulgo uma peça imorredoura. Quando o sobrinho Vicente Inácio Pereira
foi ao Rio de Janeiro, procurar emprego, o tio presenteou-o com um
decálogo normativo da conduta moral, monitório de regras indispensáveis
ao comportamento e raciocínio na capital da República. Devo-o ao seu
cunhado, Waldemar de Sá. É o melhor documento do espírito faceto,
motejador, irreverente, sublimando mágoas, satirizando, palpitante de
verve.
1 — Nunca te cases, nem mesmo com uma moribunda milionária.
2 — Não furtes pouco que é muito feio.
3 — Adora as tuas produções artísticas, embora elas não valham
nada.
4 — Foge das crianças, quer masculinas quer femininas. Elas são,
em geral, as crisálidas que encerram borboletas venenosas. O
Mundo, em todos os tempos, contou mais bandidos do que
homens de bem e as mães desses bandidos os acalentaram nos
berços. Imagina, a mãe de Napoleão, Alexandre Borgia, Nero,
Messalina, Lampião, Antonio Silvino, Juvenal Antunes, Vicente
Inácio Pereira, Judas, Padre Cícero, Getúlio Vargas, e tantos
outros, cantarolando para adormecer esses monstros,
alimentando-os com o leite dos próprios seios!
5 — Ama os vícios. Eles só têm o defeito de custar dinheiro.
Quando este é muito, aqueles ficam dourados.
6 — Não mates nunca. Não por amor à espécie humana, medo
do Inferno ou respeito ãs leis, mas, porque isso é inútil. Matas um
malvado, nascem dois.
7 — Sê bacharel, médico, parteiro, comerciante, vagabundo, polí-
tico ou coisa pior, mas não sejas tolo.
8 — Ama o dinheiro. Faze como o grande imperador Vespasiano
que achou cheirosas as moedas recebidas do imposto das sentinas.
TRÊS PROVINCIANOS
9 — Não queiras saber da mulher do próximo. Deixa que os outros
a prostituam. Tu gozarás depois, calmamente, sem perigo, o fruto do
crime alheio. 10 — Só trabalhes quando te pagarem. De graça, não faças
nunca uma graça.
Esse é o Juvenal Antunes que a tradição conservou, sacudindo as
falsas alegrias na fantasia de Arlequim.
Carlos Dias Fernandes
Fiquei, agôsto-outubro de 1914, na cidade da Paraíba, hóspede do sr.
Joaquim Coimbra, amigo velho de meu Pai. Tratava dos dentes com o
alemão Hugo Hoeffer, possante e mesureiro, com propaganda feita pelos
clientes. Em setembro, meu Pai fundou em Natal A IMPRENSA,
mantendo-a sozinho até 1927. A cidade da Paraíba ani-mou-se com o
torvelinho político. Assisti à chegada do monsenhor Walfredo Leal e
depois a de Epitácio Pessoa, iniciando campanha eleitoral apaixonante. O
meu anfitrião era bacurau, partidário do Monsenhor, irritando-se com a
canção zombeteira, entoada com a solfa da Caraboo:
— Certo jornal diário, Conta,
fazendo truque, A história de um
vigário Que quer ser chefe a
muque! O pobre jesuíta Anda
fazendo fita, Pelo deserto, longo,
sem fim, A declamar assim: —
Oh! lindos Bacuraus! Dou-vos
colocação, E dou-vos proteção
Se não fores maus, Lindos
Bacuraus!...
Recebi os primeiros exemplares e recomendação de entrega e visita aos
confrades. Começaria a ser cronista em outubro de 1918. O diretor á'A
UNIÃO era Carlos Dias Fernandes. Dificilmente saí da redação, enleiado e
seduzido pela conversa estonteante do jornalista. O edifício do órgão
oficial ficava perto do gabinete dentário. Quase sempre ressarcia as
amarguras odontológicas com o feitiço envolvente da presença atordoante
do conversador. Nunca ouvira, na viva demonstração natural, o prodigioso
fascínio da palavra humana sugerindo a multiplicação dos entes na unidade
verbal. Até então os oradores fatigavam-me e as prosas familiares eram
indife-
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
rentes e tediosas aos meus 16 anos. Agora assistia uma exibição de
entidades múltiplas em movimento, rumor, timbre, permanência,
característica, pela entonação pessoal única. Com o passar do Tempo, li os
poemas e romances do Fregoli inesgotável. A impressão esvaeceu-se sem
penetração duradoura. Eram inferiores e banais comparados ao Homem. A
figura que me ficou, fiel lembrança de mobilidade sensorial, gesticulação
privativa, na fisionomia de sucessivas representações, foi a audição
surpreendente daquela voz ressuscitando mortos e anulando cemitérios.
Não era narrativa mas uma restituição vital ãs criaturas desaparecidas.
Fazia-as falar, como haviam falado, andar, debater, pilheriar. A sala de
redação, no primeiro andar, povoava-se de gritos, risos, discussões,
gargalhadas. Havia apenas um ou dois ouvintes, e o mágico, senhor do
Tempo.
Baixo, pele clara e limpa, tronco de atleta amável, músculos elásticos,
acusados sob o traje leve e confortável, incomum na época, a camisa com
o colarinho dobrado sobre a gola do palito, anunciando robustez esportiva
e saúde estuante, cabeleira fofa, ondeada, com a prata grisalha visível,
olhos inquietos, castanhos, parecendo esvoaçai? da cabeça enérgica,
modelada ao longo, no equilíbrio das proporções narmoniosas, sugeria
manhã de sol, ginástica frequente, banho de mar, com obstinada natação.
Não fumava. Não bebia álcool. Não comia carne-morta. Vegetariano
profissional. Dormia cedo, despertando antes do dia. Os vegetais
explicavam, inexplicavelmente, a euforia constante do Espírito sem sono e
sem repouso mental. De 1914 a 1922, espaçadamente, fui fração devota de
sua assistência embevecida. Estava dos 39 aos 47 anos, sólidos e ágeis.
Governos de Castro Pinto a Sólon de Lucena.
Paraibano de Mamamguape, com duas farmácias e um vigário, e o
professor Aprigio, homem de exíguas letras. Não acreditava em contágio
microbiano porque construía poleiros de papagaios com os ferros da
pequena cirurgia paterna. Cursara LIFE UNIVERSITY, incapaz de
sequência estudiosa, autodidata pelo observar e não pelo lêr. Jornalista,
semi-literário no Rio de Janeiro, onde terminaria, dezembro de 1942, no
Hospital da Cruz Vermelha, nos 67 anos exaustos, indiferentes e tristes.
Período paraense, em Belém rutilante do senador estadual Antônio Lemos,
o último Doge amazônico. Fase de aventuras hilariantes, amores de
relógio, plantando anedotário. Ia a Itália, imprimir um álbum de
propaganda. Regresso. Condenado em processo por falsificação de
estampilhas. Indultado por Nilo Peça nha. Fixa-se no Recife, onde Gilberto
Amado guardou-o em página inolvidável. Volta à Paraíba, creio com o
governador Castro Pinto. Final melancólico no Rio de Janeiro, tentando
reacender o deslumbrante fogo-de-vista, incombustível na sedução
esgotada.
A Paraíba estava sonora de chistes, sátiras e respostas pirotécnicas do
pequeno demónio infatigável e normal. Colaboração, escrita com
TRÊS PROVINCIANOS
um tição assoprado, nos jornaizinhos da festa das Neves, sacudindo os
marimbondos e assombrando abelhas e borboletas, o Rio de Janeiro e
Belém eram oceano para a fabulação, inventada ou real, com
verosimilhança e júbilo. Aí começava o domínio maravilhoso do HOMO
LOQUENS, magnético, interminável, deslumbrante.
Trabalhando n'A IMPRENSA, acompanhava o conselheiro Ruy Barbosa
nas tardes dos passeios higiénicos, numa distância respeitosa e alcoviteira.
Alcindo Guanabara fora sempre devedor ao seu talento. Coelho Neto,
Babilónia sem gente. Os jornais cariocas eram feitos com inteligência e
fome. Machado de Assis, aranha com teia, silêncio e voracidade. Naquele
tempo ninguém andava, equilibrava-se. Emilio de Menezes, improvisação
premeditada. Alberto de Oliveira, majestoso e banal. Olavo Bilac,
sacristão e vigário na sua igreginha. Guerra Durval era apenas roupa
bonita. Guimarães Passos, bom poeta intermitente. Poeta mesmo, positivo,
nativo, puro, Cruz e Souza! E o velho Luis Delfino, nos sonetos, mais do
que apreciáveis. Mas, o Cruz era gênio! Declamava os versos, vibrante de
emoção, num culto permanente. Não repito as imagens aos políticos e moe-
deiros clandestinos da Literatura, rumo ãs Utilidades, escorregando aos
pés dos patrões rendosos: Burro enfeitado; Jumento magistral;
Carroça de vaidades puchada por bestas; Tambor, tanto mais ôco mais
barulhento; Sábio oficial; Mealheiro de lixo; Solene Estupidez; Fulano
jamais escreveu cagou! Só pega no que é dele quando urina; Inimigo
Pessoal do Livro; Vacinado contra a Emoção. Referia-se a Artur
Bernardes. Aurora, a companheira, alta e magra, era um palito atravessado
na minha vida! Viveu gastando as ideias alheias! No dia em que tiver uma
ideia, morre de congestão; Cavalo inenarrável.
Comprou uma égua, encontrada na feira com dois caçuais de jerimuns,
promovendo-a à animal de corrida no Prado. Dava pessoalmente banhos,
tratamento técnico, cuidados atentos. Mudou-lhe o sexo. Era Flegon! um
dos cavalos do Sol. Para os íntimos, Papa-conha! Inevitavelmente,
Flegon-Papaconha fechava a raia.
A vida literária carioca constituía crônica inacreditável de ineditismo,
colorida, imprevista. Citava cem nomes, locais, testemunhas, antecedentes,
consequências do ato, segredo das atitudes, a explicação das condutas.
Todo esse material cachoeirava, rumoroso, aberta a comporta da
comunicação. Lembrava Martins Fontes, único concorrente na legitimidade
da competição evocadora. Ainda em 1926 ou 27, com os colegas
paraibanos, fomos buscá-lo a bordo, passando pelo Recife para o Rio de
Janeiro. Almoçou no Leite. Horas embriagadoras, incríveis, fazendo-nos
emigrar do Quotidiano. Um pouco mais contundente, original, agressivo,
pitoresco. A frase, que tivemos ao deixá-lo, resume os impactos recebidos:
— Inacreditável! Nenhum livro seu recordará a figura esfusiante,
perturbadora, dife-
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
rente. A voz coleava, modelando, ressaltando os episódios, que o gesto
acidulava. Aquela ventania nordestina passava pelos jardins e pelas
caatingas, trazendo aroma de flor e asperezas de xique--xiques e
mandacarus.
A distância permite visão mais realista embora na perspectiva simpática.
Por que essa Arte de Conversar não o orientaria para os livros documentais
do convívio intelectual que tão bem conhecera? As faculdades de
imaginação não alcançariam o interesse nos romances e novelas. Recurso
aos pormenores obscenos na RENEGADA e CANGACEIROS. Os versos
não ultrapassam a mediania limpa de solecismos, certa de rima, justa na
contagem das sílabas. Mediania, e não Mediocridade. A correção
gramatical não aumenta força ãs asas poéticas.
Nos versos de Carlos D. Fernandes há momentos felizes de originalidade e
surpresa, imagens e soluções passam, chispantes e sedutoras. Não se
repetem e menos se tornam frequentes. Carlos trabalhava o verso,
ajeitando, como êle dizia. A especialidade coruscante do causeur era
diametralmente oposta ao suado labor do artista. Minha recordação
inconsciente, índice da retenção instintiva, conservou unicamente figuras
de alguns sonetos: — Tu, devoto do coxo e da gamela; Mestre sapo,
barítono lacustre; Nas marinhas natais de Pomerania: Fui eu quem te
plantou, mangueira rosa! O resto, não ficou. Mas, em Natal, casa de H.
Castriciano que o hospedava, as frases largadas corriam para o anedotário,
puxando risadas. Obrigado pelo anfitrião a diminuir a ferocidade da crítica
a um Poeta, concedeu: —É, seu Henrique, êle tem um agitar de crinas
inteligente! O máximo da generosidade. Evidentemente precisava
provocação, como José do Patrocínio para ser eloquente. As lembranças
despertando hilaridade eram glosas aos motivos guardados na memória.
Carlos não seria compositor, criando música no penta-grama, independente
da melodia. Pianista sim, a sonoridade acordando a improvisação,
variações ao tema, modulações, floreios, melocomentários, no impulso da
virtuosidade irreprimível. O assunto de intenção cómica era o piano aberto,
teclado dócil, efeito imediato, embriagando o executando. Esses
improvisos seriam salvos da dispersão mortal se o autor os registasse,
como fêz Martins Fontes. Carlos jogou o ouro no mar. O jornalista Eugéne
Briffault lamentava: —On aperçoit qu'on a ensemencé dans le vide et
qu'on récolte le néant. A popularidade gargalhante de Paula Ney e de
Emilio de Menezes. Que nos resta do trabalho realmente pessoal?
Abandonaram um patrimônio de que raros eram sabedores. A insubs-
tituível História íntima, movimentada, pitoresca. A verdade melancólica é
que os contemporâneos da festa verbal diminuem cada ano. Com eles
dissipa-se o que vive da velha Alegria, no milagre da voz morta de Carlos
Dias Fernandes...
A Lição do Modernismo O Fenômeno
Literário na Conjuntura Nacional e Mundial
PEREGRINO JÚNIOR
Após a grande calma rural do Império, austera e digna, sobreviera o
rumor industrial da República, tocado de inquietações na aurora dos seus
dias inaugurais. Mas logo depois das incertezas e dos desassossegos
iniciais dos governos militares, consolidada a República por Floriano a
ferro e a fogo, sobrevêm, com a hegemonia política de São Paulo e Minas,
a tranquilidade do poder civil, que conduz o país a um clima social e
econômico de euforia. Prudente de Morais (1894-1898), grave e firme,
estabiliza o prestígio do poder civil. Campos Sales (1898-1902), com
Murtinho na pasta da Fazenda, consolida a situação econômica e
financeira. O mundo ardia num incêndio de paixões — e a segunda grande
guerra se avizinhava da humanidade com o rumor apocalíptico das suas
ameaças e brutalidades. E nesse clima espiritual é que temos de situar a
geração modernista e as gerações pós-modernistas. Encontrando finanças
saneadas e economia estável, Rodrigues Alves (1902-1906) promove o
progresso e acelera o desenvolvimento do País: abrem-se portos,
constroem-se estradas de ferro, Pereira Passos remodela o Rio, Oswaldo
Cruz domina a febre amarela. "O Brasil civiliza-se" — era o "slogan" da
época. E realmente o País, saneado, próspero e feliz, crescia e se
transformava sob o lema contiano da República: ordem e progresso. Esse
calmo contentamento, que a morte de Afonso Pena (1909) somente
perturbou durante alguns anos, com o advento da campanha civilista de
Rui e a ascensão do Marechal Hermes ao poder, trazendo consigo as
famigeradas campanhas de "salvação" nos Estados dominados pelas velhas
oligarquias que haviam dado estabilidade e tranquilidade à República
(1912-1914), levara o Brasil ao esquecimento total do golpe de Estado, das
aventuras do Enci-lhamento, das Revoltas da Armada, da campanha de
Canudos — e uma sensação unânime de confiança e otimismo se apoderou
de
PEREGRINO JÚNIOR
todos os espíritos, coincidindo de resto com a tranquila euforia em que se
deixava viver o mundo do fim da "belle époque"... Uma era de
disponibilidade espiritual e neutralidade política: os brasileiros, em geral,
viviam contentes, no melhor dos mundos, e os intelectuais, indiferentes e
neutros, não percebiam o rumor subterrâneo do cataclismo que se
aproximava. Entusiasmados com o sucesso de Rui Barbosa na Conferência
de Haia (1907), não haviam prestado atenção à guerra russo-japonesa
(1904), que serviu apenas de tema para inconsequentes composições
literárias, como não haviam dado importância à guerra do Transvaal, nem
dariam importância tampouco mais tarde à guerra dos Balcãs (1912). Os
acontecimentos do plano internacional deixavam as nossas elites frias,
distantes, desinteressadas. Tudo tão longe — e tão inconsequente!
Contentavam-se todoe com as alegrias fáceis de Paris, que era afinal o seu
mundo. Foi à euforia unânime dessa era de serenidade, segurança e
otimismo — tão tipicamente século XIX — que a guerra de 1914 veio pôr
termo, com o seu impacto. Mas a geração que floresceu nessa época feliz
— e viveu até 1914 momentos plácidos de otimismo e alegria, inteira-
mente devotada aos prazeres do espírito, lendo, viajando e escrevendo,
numa disponibilidade intelectual que nada até então conseguira perturbar
— viu-se de repente, após a primeira grande guerra, diante de alguns fatos
novos que abalaram o mundo, suprimindo indiferenças e neutralidades: a
Revolução Comunista na Rússia (1917), a marcha de Mussolini sobre
Roma (1922), a ascensão de Hitler ao poder (1933).
O Mundo mudou — e o Brasil sofreu os abalos naturais, por um
fenômeno inevitável de repercussividade sísmica, das transformações que
subverteram os fundamentos da civilização ocidental. Não houve mais
lugar para neutros no mundo de pós-guerra. E as opções, mesmo no Brasil,
atingiram as classes intelectuais, levando' os escritores — eles também,
afinal! — a atitudes resolutas de rebeldia. É a hora da insurreição
modernista (1922), que representou a fase final de um longo processo de
fermentação espiritual. Coincidindo com os levantes militares de 1922 e
1924, o movimento modernista filiou-se à linha revolucionária que havia
de desaguar, politicamente, no golpe de 1930, o qual subverteu e
transformou literal e definitivamente os quadros políticos e sociais do
Brasil. As epopeias dos 18 do Forte e da Coluna Prestes nutriram a ima-
ginação e exaltaram o espírito da geração de 1922. E quando sobreveio a
revolução de 30, o Brasil inteiro, contaminado das ideias políticas vigentes
então no mundo, teve que optar entre as duas grandes tendência
antagônicas: ou o Fascismo ou o Comunismo. O próprio modernismo foi
atingido pela inquietação política, cin-dindo-se de acordo com tendências
da direita e da esquerda.
A Revolução Paulista de 1932 foi um interregno romântico,
tocado das luzes heróicas do idealismo e da fé — um movimento no
A LIÇÃO DO MODERNISMO
fundo centrista e legalista, defendendo a reconstitucionalização do País. Apesar
da derrota das armas, os paulistas triunfaram politicamente: o Brasil reingressou
na ordem constitucional, em 1934, pondo fim à ditadura. Depois, os golpes
frustrados de 1935 (Comunista) e de 1937 (Integralista) dividiram os campos
radicalmente até mesmo entre os escritores brasileiros, que optaram então por
uma situação definida e clara: quem não era comunista, era fascista. Não havia
lugar para o comodismo da indiferença ou da neutralidade.
Estávamos no fim da "belle époque" filosófica, literária e social — e chegava
o começo de uma nova era, na atmosfera inquieta e excitante que a guerra de
Espanha transformava em campo experimental das novas armas e das novas
táticas militares. Preparava-se o mundo para a II Grande Guerra que é afinal
desencadeada por Hitler em 1939. Em 1945, quando as luzes mansas e claras da
Paz iluminam novamente o mundo, o que se nos depara é uma sociedade
insatisfeita e excitada, exigindo, para recapturar o sentido da vida, ingredientes
sociais de renovação, de luta, de debate.
CONSEQUÊNCIAS CULTURAIS
No mundo inteiro, aliás, haviam sobrevindo, quer no setor filosófico, quer no
literário, transformações importantes. Toda a literatura mundial vivia sob o signo
da renovação. A filosofia de Bergson, a de Husserl, a de Kierkegaard, a de
Heidegger, a de Sartre, ombreando com as doutrinas novas de Freud, de Jasper, de
Iung. As velhas ideias de Marx e Hegel, renovadas e atualizadas na expe-
rimentação e na prática pela Revolução Russa, contagiavam a mocidade. Proust,
Joyce, Faulkner tomam conta dos jovens prosadores, como Baudelaire, Mallarmé,
Rimbaud haviam-se apoderado dos jovens poetas.
E o diálogo entre os homens de todo o universo, com o surgimento
inesperado dos povos da Ásia e da Africa no cenário mundial, é cada vez mais
áspero, complexo e difícil.
Aliás, no plano cultural e estético, no Brasil e fora dele, muita coisa
importante aconteceu nesse largo período. Em 1902 haviam surgido Os Sertões,
de Euclides da Cunha, e o Canaã, de Graça Aranha. No ano anterior aparecem os
Estudos Literários, de José Veríssimo (2.
a
edição), os Ensaios de Sociologia e
Literatura, de Sílvio Romero, ao mesmo tempo em que surgia no Rio o Correio da
Manhã. Em 1913, Marcel Proust dà-nos La Recherche du Temp perdu; Tzara, em
1916, publica o Manifesto Dadaista, como em 1904 Marinetti lançara o Manifesto
Futurista.
Em 1912, edita-se o Eu, de Augusto dos Anjos. Em 1902, saíra a Réplica, de
Rui Barbosa; Hermes Fontes lança as Apoteoses em 1908. O poder literário no
Brasi tende a deslocar-se para novas
PEREGRINO JÚNIOR
mãos. Como anotou agudamente Alceu Amoroso Lima, começara na
aurora do século a "hecatombe" da "gerontocracia". Em 1901 morria
Eduardo Prado; em 1908, Machado de Assis, "o jequitibá da floresta". Em
1909, Euclides da Cunha. Em 1910, Joaquim Nabuco. Em 1911,
Raimundo Correia e Araripe Júnior. Em 1912, Rio Branco. Em 1914,
Sílvio Romero. Em 1915, Mário Pederneiras. Em 1916. Afonso Arinos e
José Veríssimo. Em 1917, Farias Brito. Em 1918, Bilac. Em 1921,
Alphonsus de Guimaraens (Cruz e Sousa precedera a todos eles — 1898).
Em 1922, Lima Barreto. Enfim, em 1923, "o Jequitibá" que sucedera ao
outro — Rui Barbosa. Desaparecia a constelação dos consagrados.
"Decapitava-se a literatura brasileira". "Os Grandes", que ficavam, já
tinham, em regra, dado o seu recado e dormiam sobre os louros, como um
Coelho Neto, no romance, um Alberto de Oliveira, na poesia, um João
Ribeiro, na crítica. Ia mudar-se radicalmente o espírito do ambiente
literário.
O país estava saturado da longa e pomposa ditadura parnasiana, que já
então era uma sub-ditadura de epígonos.
"A súbita explosão de descontentamento e aspirações unânimes" fêz
com que coincidissem, em 1922, a Semana de Arte Moderna e c levante do
F'orte de Copacabana. Isto equivale a dizer: a revolução literária e a
revolução política.
A inquietação era um fenômeno mundial — e teve seus pró-dromos no
Brasil. Em 1913, em Paris, segundo conta Alceu Amoroso Lima, já Graça
Aranha aconselhava um movimento de renovação para a literatura
brasileira. A sublevação intelectual de 1922 foi, pois, a consequência de
um velho impulso renovador, que silenciosamente vinha fazendo
estremecer o nosso subsolo.. . Anita Malfatti com sua exposição foi uma
pioneira. Como pioneiros foram os neo-simbolistas do Pará com a
publicação da Efemeris. E não terá sido também precursor Monteiro
Lobato, com os Urupês?
As correntes estéticas de "pós-guerra", que agitavam a Europa
freneticamente, começavam a captar o interesse dos nossos jovens poetas,
pintores e escritores, que contagiados pelo virus da renovação, se
levantaram num movimento deliberado e atrevido: no plano social e no
plano artístico. Mário de Andrade, aliás, procura explicar o fenômeno
dessa curiosa coincidência: a transformação do mundo com o
enfraquecimento gradativo dos grandes impérios, com a prática europeia
de novos ideais políticos, a rapidez dos transportes e mil e uma outras
crises internacionais, bem como o desenvolvimento da consciência
americana e brasileira impunham a criação de um espírito novo e exigiam
a retificação e mesmo a remodelação da inteligência nacional.
O próprio Presidente Getúlio Vargas, num discurso famoso,
pronunciado na Universidade do Brasil, acentuou com límpida lucidez as
conexões existentes entre a Semana de Arte Moderna de 1922 e a
Revolução Brasileira de 1930. É que em 1922, com o
A LIÇÃO DO MODERNISMO
movimento modernista, se criara um autêntico estado de espírito nacional.
É afirmação corrente, no Brasil, que tudo quanto fêz o movimento
modernista se faria sem êle e isto mesmo o confessou um dos seus mais
ilustres chefes. Porque o movimento nasceu como consequência natural da
situação do Brasil e do mundo de após-guerra, que desencadeara e
desenvolvera aquela consciência americana e brasileira de que falara
Mário de Andrade, criando a atmosfera para um espírito novo e para a
própria renovação da inteligência nacional.
O Modernismo foi destarte uma tomada de contacto com ideias novas,
mas foi sobretudo um despertar da consciência brasileira. Foi, como muito
bem explicou o poeta de "Macunaima", uma ruptura, um abandono de
princípios e de técnicas consequentes: uma revolta contra o que existia,
estagnado e coagulado no plano da literatura e da arte. Rompendo com o
espírito conservador e conformista, os modernistas queriam ser puros,
desinteressados e livres. E foi, como uma autêntica Revolução, um
movimento "essencialmente destruidor". Já o comparei a um "pelotão de
demolição": seguiu na frente, botando ídolos abaixo, demolindo tabus e
preconceitos, abrindo caminhos para novas gerações.
Embora, para servir-me da sugestão da carta famosa de Quental, nem
sempre tenha havido "bom-senso" e "bom-gôsto" na batalha modernista,
houve invariavelmente sinceridade e entusiasmo, além de uma certa
afoiteza afirmadora. O que governava o grupo era o espírito polêmico, um
vivo ânimo combativo, o gosto da luta. Daí, às vezes, injustiças, excessos,
vulgaridades, sobretudo confusão. Mas nem por isto deixou de ser útil tal
estado de espírito, que contagiou a opinião do país, e estendeu-se por todos
os ângulos do Brasil, num unânime entusiasmo, numa viva fé no destino
das letras, num ardente amor aos problemas da cultura.
"Que havia em todo o país uma preparação psicológica para o advento
de uma nova estética, prova-o o fato de o Modernismo haver surgido
quase ao mesmo tempo em diversos lugares: em São Paulo, no Rio, em
Belo Horizonte, em Porto Alegre, no Recife, no Pará, em João Pessoa, em
Maceió, como no Rio Grande do Norte e no Ceará, embora muitos deles,
não se deixassem prender aos próceres do Rio e de São Paulo, por nenhum
laço mais estreito do que aquele que une a escritores com a mesmas
ideias".
Belo Horizonte veria o seu primeiro periódico modernista em 1925,
com a "Revista", que tirou três números, em julho e agosto desse ano e
janeiro de 1926; a célebre "Verde", de Cataguases, surgiria em setembro
de 1927, tirando cinco números até janeiro de 1928, e mais um, em nova
fase que não foi adiante, em maio do ano seguinte. No Pará, em 1919 já
surgira Efemeris. Em Natal surge Jorge Fernandes, solitário e grande, com
a sua poesia ima-gística e regional. É também por volta de 1928 que o
Modernismo
PEREGRINO JÚNIOR
chega a Manaus, encarnando-se no Manifesto "flaminaçu", de Abguar Bastos.
"Quis com esse título", escreve êle, "caldear o latino ao índio. E daí "flaminaçu"
ou "grande chama".
Eles não estavam ligados por um pensamento comum, mas apenas por uma
mesma inquietação, difusa e unânime. Não havia propriamente um programa.
Havia, porém, uma intenção: — uma intenção subversiva e demolidora. Estavam
todos fatigados de sonetos hieráticos, de fórmulas congeladas, de prosa
empertigada e convencional. Um estado de saturação estética. Os valores enve-
lhecidos do parnasianismo e do realismo estavam caducos e peremptos.
Com a Semana de Arte Moderna, surge uma nova era para a literatura
brasileira, que rompia com os moldes do passado e seguia para novos rumos,
novos caminhos, para novos erros, novos êxitos ou fracassos, mas seguia por
caminhos diferentes, e era isto o que importava. O modernismo transformou-se
desde logo numa encruzilhada: a êle se chegava por todos os caminhos e dele se
partia em todos os sentidos.
O movimento — "a maior orgia intelectual" da nossa história literária na
frase de Teixeira Soares, prolongou-se por oito anos e, se não conseguiu impor a
"língua brasileira", limpou o nosso modo de escrever dos excessos e artifícios do
"purismo" e do "classicismo" anacrónico, bem como da ênfase e do verbalismo
das gerações anteriores. Rompeu os velhos cânones da poesia e da prosa.
Libertou-nos do bacharelismo enfático e vazio, da pompa parnasiana, da literatura
fofa e palavrosa, do narcisismo geográfico, do ufanismo ingênuo e lírico, que
foram substituídos por uma preocupação unânime de conhecer e analisar o Brasil
nas suas exatas dimensões.
Criou-se com êle, entre os escritores, o gosto da participação política, o
interesse pelos problemas econômico-sociais, uma geral curiosidade pelas coisas
brasileiras, o que resultou no movimento de "introspecção nacional" que permitiu
um "levantamento" geral da vida brasileira. Por isso mesmo suas consequências
foram extensas: houve renovação não só no plano da Poesia e do Romance, mas
também no Conto, na Sociologia, nos Estudos Históricos e Econômicos. Ainda
mais: na Música, na Pintura, na Escultura, na Arquítetura. Foi, pois, uma rebelião
fecundíssima, que abriu caminho ao trabalho criador das novas gerações,
preparando para estas um clima de compreensão e aceitação.
Quando se faz o balanço da obra realizada pelos modernistas, verifica-se,
sem esforço, que o entusiasmo nasceu no Rio, a iniciativa e a organização
pertenceram a São Paulo, enquanto os impulsos criadores vieram de Minas, do
Nordeste, do Rio Grande do Sul. E seja qual fôr a nossa atitude em face desse
movimento, não podemos negar-lhe a importância e significação: êle se
incorporou
A LIÇÃO DO MODERNISMO
à substância íntima da nossa cultura, é um capítulo vivo e palpitante da
história do nosso pensamento.
As revoluções, no Brasil, sempre se fizeram com armas estrangeiras ...
inclusive as revoluções literárias. Importando armas da Europa —
sobretudo da França e da Itália — foi que os modernistas fizeram a sua
revolução... para redescobrir o Brasil! Mas isto não impediu que nela
palpitasse aquele "instinto de nacionalidade" que já o velho Machado
rastreara na literatura brasileira em 1873. E cedo abandonaram eles as
armas do "futurismo", do "dadaismo" e do "surrealismo", para adotar
atitude resoluta e nitidamente nacionalista.
A parte esse colorido nacionalista, que acabou marcando praticamente
todos os grupos do modernismo, o movimento limitou sua ação ao plano
formal: a rejeição da rima e do metro, da simetria convencional da
composição, da ênfase verbal, das fórmulas clássicas do escrever e do falar
lusitano. E essas preocupações exteriores foram tão absorventes e
generalizadas, que se transformaram em autênticos cacoetes do
modernismo. O mundo do Modernismo era, entretanto, um mundo sem
alma — e um mundo sem Deus, houve quem afirmasse. A grande
deficiência da poesia de 22 foi com efeito a ausência do conteúdo
filosófico e humano, não obstante o filosofismo eufórico de Graça Aranha.
Sobretudo ausência de dúvida e inquietação interior.
Os poetas modernistas subestimaram evidentemente os grandes temas
de todos os tempos: o Amor, a Morte, a Dúvida, o Desconhecido, a
Eternidade. Sente-se em todos eles uma fria distância de Deus, alegre e
inconsequente. Mas Deus aparece afinal, muito depois, nos primeiros
poemas de Vinícius de Morais, ("Sermão da Montanha"), em Jorge de
Lima e Murilo Mendes. Passamos então de 8 a 80: e a presença de Deus
tornou-se desde logo um pouco exagerada, sobrevindo, com a adoção
sistemática do nome de Deus como tema de composição poética, a criação
da chamada "Poesia em Cristo". Como a inquietação modernista era
apenas formal, nisto o Modernismo se parecia com o Parnasianismo que
pretendia destruir... Fundou-se, de resto, no Brasil, em certo momento,
uma espécie de Parnasianismo.. . modernista. Um academismo... anti-
acadêmico.
SENTIDO GERAL DO MODERNISMO
Movimento autêntico de Reforma literária, o Modernismo foi, repito,
especificamente "destruidor"; mas foi uma rebelião útil, que abriu caminho
à marcha das gerações que vieram depois. Com a Semana de Arte
Moderna organizavam-se em todo o país "grupos regionais de vanguarda"
que realizaram um trabalho excelente. Sem a "limpeza" que essas
"colunas avançadas" corajosamente
PEREGRINO JÚNIOR
executaram, destruindo os tabus parnasianos, rompendo as mais
reacionárias resistências, apeando alguns ídolos dos seus altares, não seria
possível a aceitação da geração "pós-modernista" — essa bela geração de
romancistas, ensaístas, poetas, críticos e sociólogos, de que todos hoje nos
orgulhamos.
Combatendo a ênfase oratória, a eloquência verbal, o tom decla-
matório da literatura parnasiana, o Modernismo simplificou a prosa e a
poesia, adotando o uso normal da linguagem quotidiana, da frase
despojada, das palavras usuais e singelas. Criou-se, até, pelo exagero da
reação, o horror da forma, uma escie de fobia do estilo... Foi, porém,
no território da prosa, sobretudo, que a influência do Modernismo se nos
afigurou mais salutar.
A eloquência cedeu lugar ao comedimento, o abuso do descritivo ao
amor da narração telegráfica, descarnada, não raro informe, a valorização
da linguagem coloquial... Não morreu, contudo, ao sopro revoucionário do
Modernismo, a nossa paixão pela paisagem e pelo pitoresco.
Mas o "sensualismo verbal" de antes da Guerra de 1914 cedeu o passo
a uma sobriedade seca e desleixada... Mário de Andrade pretendeu criar
uma "língua brasileira", pré-fabricada, preciosa e artificial no seu
ostensivo plebeísmo, que era uma espécie de código do "falar errado"...
Não o conseguiu. Mas a sua afoita e resoluta iniciativa teve, afinal,
uma utilidade: abriu caminho para a linguagem natural e clara, singela e
viril, de fundas raízes na fala do povo, que dá seiva e riqueza à prosa
brasileira de hoje. E esse foi um dos maiores serviços que o Modernismo
prestou à literatura brasileira.
A LIÇÃO DO MODERNISMO
A "Semana" mobilizou a opinião do país, criando, como já se disse,
certo entusiasmo público pela coisa literária, uma fé unânime no destino
das letras, um amor veemente aos problemas da cultura, a paixão lúdica da
Poesia, afinal. Consequências naturais da ins-surreição Literária e
Artística. Mas não se confinou apenas nesses setores a sua atuação
subversiva: atingiu também o plano Político.
Libertando-nos do colonialismo intelectual e da servidão cultural, o
movimento modernista promoveu a orientação da nossa arte e da nossa
literatura num sentido nitidamente nacionalista, de base humana e social,
cujas raízes se afundaram nas fontes do povo, no coração da
nacionalidade, nas tradições mais puras da nossa terra e da nossa gente.
Recapitulando tudo o que já se disse, as consequências, ou as lições
do Modernismo foram as seguintes:
1.° — Descentralização intelectual, com valorização consequente da
Província. Isto permitiu que em todos os Estados florescessem
A LIÇÃO DO MODERNISMO
desde logo grandes escritores e poetas, a cuja fama e prestígio o calor da
vida metropolitana do Rio não fêz nenhuma falta.
2.° — Interesse pelo homem Brasileiro, com estudos profundos de sua
formação, de sua origem, de suas condições de vida, resultando daí a
reabilitação do negro e do índio, pelas pesquisas sociológicas,
antropológicas, econômico-sociais e históricas, e a criação do romance
social e a paixão do documentário.
3.° — Revitalização do regionalismo, do tradicionalismo, do folclore,
como resultante de um movimento unânime de introspecção nacional.
4.° — Tentativa da criação de uma "língua brasileira" (iniciativa
corajosa mas frustrada de Mário de Andrade: a "gramatiquinha da fala
brasileira" — que pena ! — ficou no tinteiro) que teve, afinal de contas,
uma consequência útil: libertou os escritores brasileiros de uma imemorial
e voluntária subordinação aos cânones clássicos de Portugal, permitindo-
lhes adotar uma linguagem mais livre, mais solta, mais natural, de
inspiração regional e popular, o que representou sem dúvida um
enriquecimento e uma libertação para a nossa linguagem literária, tornando
realidade aquilo que os românticos, com Alencar à frente, tentaram fazer
em pura perda.
5.° — Por fim, com a radicação na terra e no povo, a identificação
total com os problemas sociais, políticos e econômicos do País, e um
resoluto movimento de participação ativa na vida nacional, conservamos
viva, a presença do Brasil na prosa, na poesia, na pintura, na música, na
escultura, na arquítetura, isto é, língua, paisagem, costumes, psicologia —
vida.
O Modernismo foi portanto, um estuário, onde muitas águas se
misturaram, e na grossa torrente formada pela fusão de todas essas águas
muitos navegantes seguiram em todos esses rumos, para diferentes
quadrantes, até lançarem âncoras nas experiências e realizações culturais
dos nossos dias.
Calendário Cultural para
Janeiro/Março de 1970
janeiro
7 de JANEIRO — CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO POETA
BELMIRO BRAGA.
Belmiro Belarmino de Barros Braga nasceu em
Vargem Grande, Juiz de Fora (MG), aos sete de janeiro
de 1870, falecendo em Juiz de Fora no dia 31 de março
de 1937. Foi um poeta essencialmente lírico, embora na
sua obra se encontre um ligeiro sabor humorístico.
Deixou, entre outros, o divro de versos "Rosas do Meu
Caneiro".
fevereiro
9 de FEVEREIRO
15 de FEVEREIRO
18 de FEVEREIRO
CINQUENTENÁRIO DE FALECIMENTO DE
RIVADÁVIA CORREIA.
Rivadávia da Cunha Correia nasceu em Santana
do Livramento (RS), no dia 9 de julho de 1860,
falecendo em Petrópolis, RJ, aos nove de fevereiro de
1920. Foi jornalista e político, tendo tido destacada
atuação na propaganda republicana e participado do
Ministério do Marechal Hermes da Fonseca e do
Presidente Venceslau Braz.
CENTENÁRIO DE FALECIMENTO DE FRAN-
CISCO GÊ ACAIABA DE MONTEZUMA, VISC.
DE JEQUITINHONHA.
Francisco Gomes Brandão, um dos primeiros
oradores brasileiros, que para animar o povo e torná-lo
contra o luzitano, tomou o nome GÊ ACAIABA (GÊ é
uma tribo de caboclos e ACAIABA uma das mais
belas árvores do interior da América), demonstrando o
seu nacionalismo.
CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE LIVIO
BARRETO.
Livio Barreto nasceu na fazenda dos An-jicos,
Iboaçu, município da Granja, Estado do Ceará, aos
dezoito de fevereiro de 1870 e faleceu em Fortaleza,
aos 29 de setembro de
30 de FEVEREIRO
25 de FEVEREIRO
1895. Jornalista, um dos fundadores da "Padaria do
Ceará". O seu livro de poesias, Dolentes, póstumo,
publicado em Fortaleza, 1897, é o mais significativo
da contribuição cearense ao movimento simbolista.
- CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE AFRA-
NIO DE MELO FRANCO.
Nascido em Paracatu (MG), aos vinte-e--cinco de
fevereiro de 1870, faleceu no Rio de Janeiro, no dia 1.°
de janeiro de 1943. Parlamentar, Ministro da Viação no
2.° governo Rodrigues Alves e Ministro do Exterior de
1930 a 1933, representou o Brasil em várias missões
diplomáticas, inclusive como Embaixador Permanente
na Liga das Nações, sempre merecendo os maiores
elogios pelo seu espírito universalista, na forma de
encarar a política internacional.
VINTE-E-CINCO ANOS DE FALECIMENTO DE
MÁRIO DE ANDRADE.
Mário Raul de Morais Andrade nasceu no dia 9 de
outubro de 1893 e faleceu aos vinte--e-cinco de
fevereiro de 1945. A sua atividade foi dividida em
diversos campos: poesia, ficção, crítica literária, crítica
de artes plásticas, musicologia e folclore. Participou da
Semana de Arte Moderna e foi um dos mais destacados
doutrinadores do Modernismo. Entre suas obras
principais mencionam-se: Paulicéia Desvairada (1922)
Amar, Verbo Intransitivo (1927) — Macunaima
(1928) — A Escrava que não é Isaura (1925) —
Ensaio sobre a Música Brasileira (1928).
março
18 de MARÇO — CENTENÁRIO DE TÉRMINO DA GUERRA DO
PARAGUAI.
Registra-se como 18 de março de 1870 a data do
término da Guerra do Paraguai. O fim da guerra
decorre da morte de Solano Lopez, ocorrida em 1.° de
março do mesmo ano, às margens do riacho Aquidabá.
19 de MARÇO — CENTENÁRIO DA ESTREIA DE "O GUARA-
NI", DE CARLOS GOMES, NA ITÁLIA.
No dia 19 de março de 1870, no Teatro Scala de
Milão, Itália, estreou a ópera "O Guarani", do
compositor brasileiro Antonio Carlos Gomes.
(Notas de Luiz Antonio Barreto).
Este número da REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA foi
composto e impresso nas Oficinas da Gráfica Tupy Ltda.
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