ele, a cujo serviço livremente se põe. Lembre-se de que, no início, distinguíamos o homem excelente do
homem vulgar dizendo: que aquele é o que exige muito de si mesmo, e este, o que não exige nada,
apenas contenta-se com o que é e está encantado consigo mesmo (43). Contra o que sói crer-se, é a
criatura de seleção, e não a massa, quem vive em essencial servidão. Sua vida não lhe apraz se não a faz
consistir em serviço a algo transcendente. Por isso não estima a necessidade de servir como uma
opressão. Quando esta, por infelicidade, lhe falta, sente desassossego e inventa novas normas mais
difíceis, mais exigentes, que a oprimam. Isto é a vida como disciplina - a vida nobre -. A nobreza
define-se pela exigência, pelas obrigações, não pelos direitos. Noblesse oblige. "Viver a gosto é de
plebeu: o nobre aspira a ordenação e a lei" (Goethe). Os privilégios da nobreza não são originariamente
concessões ou favores, mas, pelo contrário, são conquistas, e, em princípio, supõe sua conservação que o
privilegiado seria capaz de reconquistá-las em todo instante, se fosse necessário e alguém se lho
disputasse (44). Os direitos privados ou privilégios não são, pois, posse passiva e simples gozo, mas
representam o perfil onde chega o esforço da pessoa. Contrariamente, os direitos comuns, como são os
"do homem e do cidadão", são propriedade passiva, puro usufruto e benefício, tão generoso do destino
com que todo homem se encontra, e que não corresponde a esforço algum, como não seja o respirar e
evitar a demência. Eu diria, pois, que o direito impessoal se tem e o pessoal se mantém.
É irritante a degeneração sofrida no vocabulário usual por uma palavra tão inspiradora como
"nobreza". Porque ao significar para muitos "nobreza de sangue" hereditária, converte-se em algo
parecido aos direitos comuns, numa qualidade estática e passiva, que se recebe e transmite como uma
coisa inerte. Mas o sentido próprio, o étimo do vocábulo "nobreza" é essencialmente dinâmico. Nobre
significa o "conhecido", entende-se o conhecido de todo o mundo, o famoso, que se deu a conhecer
sobressaindo sobre a massa anônima. Implica um esforço insólito que motivou a fama. Nobre, pois,
eqüivale a esforçado ou excelente. A nobreza ou fama do filho já é puro benefício. O filho é conhecido
porque seu pai conseguiu ser famoso. É conhecido por reflexo, e, com efeito, a nobreza hereditária tem
um caráter indireto, é luz espelhada, é nobreza lunar como feita com mortos. Só fica nela de vivo,
autêntico, dinâmico, a incitação que produz no descendente a manter o nível de esforço que o
antepassado alcançou. Sempre, ainda neste sentido desvirtuado, noblesse oblige. O nobre originário
obriga-se a si mesmo, e ao nobre hereditário obriga-o a herança. Há, de qualquer modo, certa contradição
na transferência da nobreza, desde o nobre inicial a seus sucessores. Mais lógicos os chineses, invertem a
ordem da transmissão, e não é o pai quem enobrece o filho, mas o filho quem, ao conseguir a nobreza, a
comunica a seus antepassados, destacando com o seu esforço sua estirpe humilde. Por isso, ao conceder
os níveis de nobreza, graduam-se pelo número de gerações passadas que ficam prestigiadas, e há quem só
torna nobre seu pai e quem alonga sua fama até o quinto ou décimo avô. Os antepassados vivem do
homem atual, cuja nobreza é efetiva, atuante; em suma: é; não, foi (45).
A "nobreza" não aparece como termo formal até o Império romano, e precisamente para opô-lo à
nobreza hereditária, já em decadência.
Para mim, nobreza é sinônimo de vida esforçada, posta sempre a superar-se a si mesma, a transcender
do que já é para o que se propõe como dever e exigência. Desta maneira, a vida nobre fica contraposta à
vida vulgar e inerte, que, estaticamente, se reclui a si mesma, condenada à perpétua imanência, caso uma
força exterior não a obrigue a sair de si. Daí que chamemos massa a este modo de ser homem - não tanto
porque seja multitudinário, quanto porque é inerte.
A rebelião das massas.
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