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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
REPENSANDO OS MESSIANISMOS
DE CANUDOS E JUAZEIRO
NORMA MOREIRA DE MORAIS
GOIÂNIA
2006
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
REPENSANDO OS MESSIANISMOS
DE CANUDOS E JUAZEIRO
NORMA MOREIRA DE MORAIS
Dissertação apresentada ao
Mestrado em Ciências da Religião
da Universidade Católica de Goiás,
como requisito parcial para
obtenção do título de mestre em
Ciências da Religião, sob orientação
do Prof. Dr. Joel Antônio
Ferreira.
GOIÂNIA
2006
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11
SUMÁRIO
Identificação do projeto.…….............................................11
Introdução.........................................................................15
Capítulo I... UMA LEITURA PSICOSOCIOLÓGICA
1.1.1. Teoria psicossociológica..........................................24
1.1.2. Messianismo e milenarismo.....................................36
1.1.3. Os movimentos messiânicos...................................36
1.1.4. O messias................................................................36
1.1.5. A abordagem teológica............................................36
1.2.1. Milenarismo psicossocial.........................................36
1.2.2. Milenarismo teológico..............................................36
1.3. Duas aproximações psicossociológicas.....................36
1.3.1. Teoria da privação...................................................40
1.3.2. Teoria do contato.....................................................45
Capítulo I I... O CONTEXTO HISTÓRICO
2.1. A experiência de Canudos..........................................55
2.2. O messias do Império Belo Monte..............................58
2.3. O sonho.......................................................................59
2.4. O espaço.....................................................................63
2.5. Organização Social.....................................................64
2.6. causas dos conflitos....................................................66
2.7. Influência da Imprensa................................................69
12
Cap. III... A CIDADE DE JUAZEIRO/CIDADE MÍSTICA
3.1. O histórico de Padre Cícero........................................85
3.2. O messias de Juazeiro/advogado dos pobres............85
3.3. O sonho do Padre Cícero...........................................89
3.4. O embuste..................................................................93
Conclusão
RESISTÊNCIA E FORÇA/SONHO E LIBERDADE...........99
Refefências bibliográficas.............................................109
Anexos..............................................................................115
Memória Fotográfica........................................................116
13
RESUMO
MORAIS, Norma Moreira de. REPENSANDO OS MESSIANISMOS DE
CANUDOS E JUAZEIRO
(Mestrado em Ciências da Religião) Universidade Católica de Goiás, 2006.
Movimentos sociais messiânicos acabam sempre destruídos pelas forças das
sociedades envolvente e dominadora. O Messianismo sempre pode
recomeçar como aconteceu com Padre Cícero, em Juazeiro do Norte,
Ceará, ou pode extinguir-se como ocorreu com Antônio conselheiro em
Canudos, no sertão baiano. A cidade de Canudos sucumbiu porque
enfrentou o poder hegemônico. A questão analisada é: porque alguns
messianismos/milenarismos ainda subsistem e outros foram
massacrados? O fator anomia aparece em todos eles. Outro fato é que
esses Messias exercem uma chefia sagrada e profana em seus
redutos. Ambos tinham e têm seu imaginário impregnado pela
religiosidade do catolicismo popular. A teoria psicossociológica vem
sobremaneira corroborar para explicar os fenômenos. Outra questão
levantada: os fatos ocorridos com os dois messianismos estudados
foram mais circunstanciais, por causa das privações de bens causadas
pelas crises econômicas, devido ao choque intercultural do povo
nordestino advindo da proclamação da República em 1889.
Palavras-chave: messianismo, Canudos, sagrado, profano, leitura
psicossociológica.
14
ABSTRACT
MORAIS, Norma Moreira de. Reading the messianism of Canudos and Juazeiro.
(Mastership in science of Religion) University Catholic of Goiás, 2006.
The dominant society forces have always destroyed the messianic social
movements. The messianism almost ever originates the same way as
priest Cícero in Juazeiro do Norte, Cea did or even be extinguished as
it happened to Antônio Conselheiro in Bahia. The massacre of Canudos
movement is directly related to clash with current dominant society. Why
some messianic/millennialism movements can subsist while others were
massacred was the issue in this analysis. It can be recognized that
anomie (sociology subject) has participated in both evaluated
circumstances. Furthermore, these messiahs could practice both sacred
and profane leadership in their follower groups. Thus, it was possible to
report that Northeast Brazilian people’s imaginary has been influencing
by popular Catholicism religiosity. Phenomena like these can be
explained by the psycho-sociological theory. It is important to notice that
both events studied here were circumstantial because they would be
related to the privation of possessions, economical crises and the
intercultural clash that occurred especially after Republic proclamation in
1889.
Key words: messianism, sacred and profane and psycho-sociological.
15
INTRODUÇÃO
Visando analisar o assunto proposto de maneira ordenada e sintética, far-
se-á, inicialmente, um recorte na história escrita de Canudos na Bahia e Juazeiro
do Norte no Ceará. Esta é a perspectiva pretendida, para posteriormente
aprofundar as fases da investigação.
Em seguida, far-se-á um confronto entre a realidade existente na vida da
próspera cidade de Juazeiro do Norte no estado Ceará, onde o Padre Cícero ficou
conhecido como messias e um estudo histórico pragmático da arrasada cidade de
Canudos no estado da Bahia.
Com isso, a sociedade interessada no tema terá mais uma visão do
assunto, analisado de forma sistemática, sem alegorismo. Estaremos cientes de
nossas responsabilidades perante a transformação social, como também teremos
a certeza de que o ser humano não é inerte, e que quando o ideal de liberdade se
ascende ele passa para a atividade.
16
imperatividade de perder a inocência de que soluções virão do Estado, como
poderes constituídos, por exemplo: Executivo, Legislativo e Judiciário, pois
este se tornou negligente como tem demonstrado em suas decisões” segundo a
professora Kuenzer (KUENZER, 1999, p. 70).
Devemos procurar entender que o Estado é o conjunto das sociedades. O
que parece faltar é uma formação consciente por parte dessa sociedade.
Nesta mesma linha de pensamento, Freire reflete:
Insistimos, em todo o corpo de nosso estudo, na
integração e o na acomodação, como atividade de
ajustar-se à realidade acrescida, de transformá-la a que
se junta a de optar, cuja nota fundamental é a criticidade.
Na medida em que o homem perde a capacidade de optar
e vai sendo submetido a prescrições alheias que o
minimizam e as decisões não são suas, porque são
resultados de comandos estranhos, não integra.
Acomoda-se. Ajusta-se (FREIRE, P. 1974, p. 42).
O porquê do desenvolvimento da crença e, conseqüentemente, da cidade
de Juazeiro do Norte, com suas nuances, êxitos, abordando dificuldades
encontradas: uma espécie de balanço histórico neste século de existência.
A questão a ser analisada será: por que o Movimento de Canudos só existe
na memória enquanto o Movimento de Padre Cícero possuiu e ainda possui uma
força religiosa e econômica na região, atraindo estudiosos de Universidades
conceituadas de todo mundo? Também pretendemos analisar se o messianismo
ainda sobrevive. Quais os motivos que levam as pessoas a esperarem um
paraíso terrestre?
17
Isso acontece quando um povo começa a se ver como ser humano, como
parte integrante da sociedade civilizada, contrária a ideologia da classe dominante
que impõe seus valores às classes dominadas e as classificam em categorias
negativas e em áreas marginais. Gramsci chama o processo de intimidação
ideológica de hegemonia, afirmando que as classes dominantes detêm não os
meios de produção física, mas também os meios de produção simbólica. A partir
da observação da população rural inglesa pode-se afirmar que as populações
rurais sofriam, pelo menos, uma alienação dos circuitos institucionais do poder
simbólico e de suas contra partes urbanas (GRAMSCI apud ARROYO, 1999, p.
67).
Este povo espera a felicidade que deveria ser aqui e agora, ela não chega,
então, surgem movimentos que tem a intenção de realizá-la. Muitas vezes, este
novo deveria acontecer pela conjunção entre a divindade e os adeptos do
movimento.
Nessa massa de tensão social, no grupo excluído da sociedade dominante,
surge o desejo de inclusão, e com isso, surge o messianismo que concretiza os
anseios do povo na espera, isto é, fundamenta-se na esperança de dias melhores
onde reinará a paz social. Nesta fase, ainda não se percebem os movimentos
messiânicos propriamente ditos. Estes movimentos necessitam de um líder
carismático enviado do céu.
As denominações que os adeptos costumavam atribuir a seus lideres, entre
as quais, Jesus Cristo, Espírito Santo, Santo Antônio Aparecido, depois, Dom
Sebastião, mostram que a religiosidade impregna inteiramente os ambientes
messiânicos brasileiros. Algumas vezes esses messias se dizem reencarnações
de figuras religiosas cristãs.
18
O trabalho pretende realizar-se através de bibliografia que se refere ao
tema proposto. Nesta dissertação serão analisados, os porquês voltados à
questão messiânica na religiosidade. Com isso, espera-se o levantamento de um
resultado que é a recuperação do ideal messiânico. Uma vez recuperado esse
ideal, a sociedade poderá apontar sua importância.
O misticismo do povo não pode ser explicado como limitações de classe,
apesar de ser encontrado em grande medida nas classes subalternas. O
processo de felicidade que o capitalismo prometia se tornou em
desencantamento, obrigando seus adeptos a se refugiarem em algum tipo de
misticismo.
Para esse tipo de análise foram eleitos os seguintes procedimentos
metodológicos:
- Levantamento bibliográfico das obras relacionadas ao tema e das obras
indicadas sobre as teorias das Ciências da Religião;
- Leitura de livros e textos pertinentes ao assunto abordado na pesquisa;
- Análise das informações: via internet e outros recursos midiáticos;
- Elaboração do relatório final trazendo a resposta ou um novo
questionamento ao objeto de pesquisa;
- Análise feita dentro da visão psicossociológica e sociológica.
Com relação à comunidade acadêmica, esta terá a oportunidade de rever o
tema sob um recorte diferente, conhecendo um arranjo distinto de interação entre
o êxito de Juazeiro e a decadência de Canudos sob a perspectiva da Ciência da
Religião.
Os planos desta pesquisa constituem uma indagação que é perseguida
desde os tempos em que se tomou conhecimento de um tema que suscita boa
19
parte da problemática que envolvia preconceitos de classes e que dividia o país
em dois brasis. Estudiosos brasileiros e de outros países escreveram sobre o
assunto, mas sempre imbuídos de preconceitos reacionários e, por outro lado,
assumiam uma postura de extrema esquerda. Alguns autores classificam o
movimento como messianismo outros como milenarismo, defendendo como
messianismo professora Queiroz e denominando milenarismo o trabalho de
Levine. Com isso, surgem inúmeras indagações sobre o tema, inclusive, a
hipótese levantada neste trabalho. São Indagações de suma importância para o
entendimento da dinâmica da Sociologia da Religião, que sempre requer
reflexões interadas com outras áreas do conhecimento das ciências humanas.
Os estudos realizados sobre a questão Messiânica têm colocado o assunto
dentro do modelo de desenvolvimento em curso, criticando e tentando explicar a
importância de se conhecer o assunto sem o menor preconceito, com a prometida
esperança de recuperação da verdadeira história. A abordagem do tema se
justifica, pois, pela necessidade de esclarecimento e devida compreensão dos
processos dinâmicos relativos ao messianismo e às suas causas.
Uma perspectiva evolucionista tem permeado estudos nacionais e
internacionais a respeito de movimentos sociais. A partir do caso brasileiro
concretamente. Tal perspectiva ordena os diferentes movimentos, mas o
escolhido para esse trabalho foi o messianismo ocorrido nas cidades de Canudos
na Bahia e Juazeiro no Ceará.
O trabalho proposto tentará desvendar o porquê de os agrupamentos
formados pelos adeptos acabarem quase sempre destruídos pelas forças da
sociedade envolvente. O ciclo, porém, pode recomeçar como aconteceu em torno
da figura do Padre Cícero, ou, como mencionado, condenar-se ao insucesso,
20
considerando-se o caso de Antônio Conselheiro, a história da cidade de Canudos,
no interior da Bahia (VALLE, 200, p. 76-77).
O estudo da sociedade exige o estudo da religião. Para onde se olhar,
mesmo em uma aldeia primitiva, ou em uma moderna metrópole, encontra-se a
religião na tecida trama da vida social. As crenças, os ritos e as estruturas dos
grupos o enormemente variados e importantes, porém, não faltam a nenhuma
sociedade. Descuidar da compreensão da religião é perder um dos caminhos
mais frutíferos de estudar a vida do homem. Apesar de controvérsias entre as
ciências e de suas convicções pessoais diferirem profundamente, existe o
consenso de que o estudo da vida humana e dos comportamentos das pessoas
tem de considerar a exploração da religião como uma tarefa principal. Sem
embargo, os sociólogos precisam encampar este desafio, de forma mais efetiva.
No presente trabalho, iremos nos valer, para a compreensão do movimento
da cidade de Juazeiro e da cidade de Canudos, as contribuições das Ciências da
Religião, da Teoria Social Religiosa e, particularmente, do estudo do
messianismo. Este trabalho irá somar a Ciência da Religião e pretende contribuir
de forma satisfatória, completando as teorias a respeito do tema abordado. A
análise da religião é fundamental para se compreender grande parte dos
problemas considerados significativos para o ser humano.
As Ciências da Religião se baseiam no trabalho de Durkheim sobre o
processo de anomia, segundo o qual, todo contexto de formação da consciência
coletiva, responsável e geradora da exclusão ou inclusão, resulta num dos
motivos da formação do sonho utópico do paraíso perdido largamente visto
nesses movimentos.
21
Em situações de indecisão, anomia ou transição, os sociólogos consideram
que emergem personagens mais ou menos equilibrados que captam e expressam
sentimentos presentes de forma reprimida em todos nós. Esses personagens
funcionam como catalisadores de esperanças e medos relegados aos porões de
nossa psique, graças às artimanhas repressivas do inconsciente. Os
milenarismos e messianismos de ontem e de hoje são uma expressão dessa
realidade obscura que está subjacente à euforia suicida dos seus adeptos,
segundo Freud citado por Valle.(VALLE, 2001, p. 97.)
Certamente, o comportamento do ser humano pode ser justificado
através do contexto social, sendo o fator espiritual preponderante para a reflexão
sobre as operações de mudanças e crenças, pois, a religião é base de todo
comportamento humano, como afirma o sociólogo Durkheim, em seu livro Formas
Elementares da Vida Religiosa (DURKHEIM, 1989, p. 392).
Não de se concordar que esses autores, em seus respectivos trabalhos,
possuam profundo conhecimento e preocupação com a problemática da tensão
social (problemática que preocupa quase todas as áreas). Isso porque esse tema
é complexo e existem controvérsias a respeito. A meta planejada nesta pesquisa
é de investigar se a religião também foi um elo entre os dois movimentos
estudados.
Pois bem, sabe-se que a política adotada pelo Estado não foi efetiva na
solução do problema dos excluídos. Os outros caminhos são também tortuosos e
lentos, mas foram unânimes em denunciar que a situação era caótica e que seres
humanos viviam marginalizados em situações desprezíveis, Apesar de seguirem
caminhos distintos apontam questões pertinentes e por isso não o que se
discordar quanto à riqueza dos materiais levantados pelas diversas áreas, os
22
quais podem contribuir para o avanço das Ciências da Religião. Especificamente,
o Messianismo e a Teoria Social Religiosa têm pontos nucleares que devem se
enriquecer mutuamente. O desafio é, pois, o de incorporar esta interaração.
Cabe ao pesquisador aceitar o desafio e tentar trazer à tona o
esclarecimento de questões fundamentais para a compreensão do ser humano.
Desse modo, a ciência contribui para o esclarecimento da sociedade acerca de
uma problemática que tanto coisifica os seres humanos.
Nesse momento, o nosso desafio é o de procurar investigar e responder,
ao menos provisoriamente e sem pretensões à exaustão, aos seguintes
questionamentos:
a) Os movimentos de Canudos e de Juazeiro em seu comando geral
possuíam a figura central do messias?
b) Os dois movimentos foram contemporâneos?
c) Os seus adeptos tinham a mesma formação cultural, social e
econômica?
d) Qual era a formação religiosa e como essa formação era vista dentro
do seu contexto. Existiam nuances?
e) Como estavam distribuídos os adeptos dos dois movimentos? Como
foram definidas as escalas sociais?
f) O que tem a religiosidade a ver com os movimentos estudados?
g) Os movimentos sociais tendiam a radicalidade?
h) Com foram exercidos os poderes pelos considerados messias?
Foram restritos ao sagrado ou também tinham conotações profanas?
Os líderes conseguiam fazer uma clara distinção entre eles?
i) Existia um pacto solene e silencioso. Entre líderes e liderados?
23
j) Os fatos ocorridos entre os dois contextos foram planificados ou
foram circunstanciais?
24
CAPÍTULO I
1. UMA LEITURA PSICOSOCIOLÓGICA
1.1. Teoria psicossociológica sobre o messianismo e milenarismo
A teoria psicossociológica compreende a explicação das abordagens
psicossociais dos grupos sociais. Esta teoria baseia-se em aspectos psíquicos,
inconscientes ou não, bem como em agentes sociais que interferem nos grupos e
sociedades estudadas. Relaciona-se ao tema estudado, uma vez que explica o
porquê de o homem se sentir excluído do contexto social, e, ainda, o que leva o
homem a retirar-se para uma sociedade alternativa.
Nem tudo são enigmas: a esmagadora maioria das pessoas que segue o
messias enquadra-se no que se poderia caracterizar como grupos de homens
pertencentes à classe dominada na formação social capitalista, que divide o país
em elite e campesinos. Esses grupos seguidores do chamado messias.
Encontram-se, desde sempre, às voltas com os grilhões da pobreza e,
presentemente, nesses movimentos, encontram-se massas proletárias,
campesinas e desempregadas por decorrência de crises econômicas geradas
pela vigor do capitalismo, Porque o capitalismo não tem nenhum compromisso
com a superação dessas variáveis. Ele tem compromisso com a produção de
mais-valia (dinheiro-mercado-dinheiro).
25
A sociedade dominante exclui o grupo marginalizado por vários motivos,
mas os principais são sempre os políticos e os econômicos. O grupo
marginalizado entra em anomia, isto é, perde os valores que tinha até então, não
sendo mais capaz de receber o novo e o diferente, não está mais aberto às coisas
novas. Por isso, os membros deste grupo se apegam às coisas mais antigas que
de certa forma lhe dão alguma segurança no cotidiano conturbado pelo novo que
vem de fora acompanhado pela incerteza do futuro. Estes homens se sentem
desprotegidos diante do nascimento do novo, justamente, porque não o
conhecem. Eles não sabem lidar com a nova situação e, por isso, eles acreditam
que o melhor que têm a fazer é se separar em grupos menores para garantir sua
sobrevivência como grupo dentro de um outro grupo maior. Como o ser humano é
essencialmente social busca viver em grupos. Os homens vivem juntos, no
entanto, em processo de anomia (ARAÚJO, 1977, p.231).
A anomia também pode acontecer quando existe um choque cultural, por
exemplo: a Monarquia era o poder delegado por Deus no imaginário coletivo e a
República era considerada pelos adeptos do Conselheiro como governo do
Anticristo, havia um embate entre o Estado e os interesses do povo e neste caso
não é uma falta de ordenamento ou perdas de valores segundo o primeiro
entendimento citado anteriormente. E sim porque as pessoas politizam-se.
Porque o povo sentiu que a Nova República não havia trazido melhoras, que se
propagou na época de sua instalação (MARTINS, 1981, p. 143).
Esses grupos excluídos são levados a reagir contra a opressão, a
inquietação, a frustração, muito mais no terreno religioso do que no
organizacional-político. Neste caso, todas as suas manifestações culturais,
manifestações de ordem social, econômica, política ou filosófica, são
26
tradicionalmente permeadas de espírito religioso (como tentaremos mostrar na
análise final).
Ao se sentirem desprotegidos, os grupos marginalizados agarram-se à
menor fagulha de esperança. Nesse momento é que surge a figura do
carismático, de um líder que usa de toda racionalidade conseguindo dos seus
adeptos a legitimação social. Esse líder assume o papel do grande homem. No
imaginário popular, ele é o enviado, o iluminado. Desse modo, o grupo espera
que ele tenha sempre as respostas para suas angústias e desesperanças. Para o
grupo excluído, esse líder sempre sabe mais e é quem melhor lida com os
problemas que surgem.
Desse processo de exclusão e desamparo é que surge a figura do
messias. Este repousa na crença de que o der é um enviado divino e que esse
enviado traria ao seres humanos a felicidade terrestre. É a atividade de todo um
grupo de excluídos, que obedece às ordens do enviado divino com objetivo de
instalar o paraíso na terra, que permite a construção do movimento messiânico.
Para esse grupo de excluídos, o carismático está acima do bem e do mal.
No entendimento primário do grupo excluído, onde estão firmados os prosélitos,
esse líder vem ratificar o afã de liberdade com ânsia de salvação terrena. A
função profana das chamadas religiões populares tende a devotar resoluções de
crises existenciais concretas determinadas pela dinâmica histórica, função que
consiste em restauração de formas adequadas de redenção mítico-ritual.
O considerado enviado divino faz renascer o mito do paraíso perdido e
promete a regeneração do mundo aqui e agora. Cria como solução auto-
subsistente baseada em uma ordem profética de solidariedade, cooperativismo e,
na reação contra o inimigo comum que o seus opressores, quase sempre a
27
sociedade dominante. O mito exprime o reclamo de uma época de liberdade e
bem estar, contra o estado atual de opressão e de miséria (WEBER, 1982, p.112).
A subversão da ordem atual e correspondente palingenesia, isto é, o eterno
retorno, ou melhor, renascimento sucessivo do mesmo ideal nos indivíduos. São
conseqüências da opressão e da miséria. Esta subversão se realiza pelo anúncio
de um messias, que constitui o núcleo de todo movimento profético. Para estes
movimentos, dirigem-se as formas religiosas tradicionais, como o mito do paraíso
terrestre, os mortos que retornam etc. São re-elaboradas com vistas a uma
função nova, que não pertence à tradição, mas se agarra ao antigo de maneira
paradoxal, sendo produzida pelo choque entre a cultura subordinada e a
hegemônica. Como não conhecem o novo, preferem assegurar o antigo para fugir
da anomia. O movimento profético tem em os apenas aquilo que é o concreto
e que é o conhecido de suas realidades, como afirma o professor Araújo (1977, p.
50-53).
A nova função do movimento profético consiste na libertação em relação
aos opressores e na aquisição de um padrão de vida mais alto, somado ao desejo
de elevação do status. Esta função é aguçada justamente pelo encontro dos
grupos marginalizados com a situação recém chegada, que, geralmente, traz
consigo uma cultura desconhecida e instrumentos extraordinários de supremacia.
Cabe notar que, no momento mesmo em que nasce, ou no momento em
que re-elabora o mito do fim do mundo, o movimento profético se encarrega de
uma atualidade e de uma concretude que lhe é dada pelo rito correspondente. De
fato, toda coletividade, como se vê, entra, por assim dizer, no fim do mundo. A
coletividade sai ritualmente da história, da ordem, numa atmosfera de exaltação
28
religiosa que através da cessação de toda atividade econômica costumeira e na
expectativa do renascimento cósmico realiza, a seu modo, aquele mito.
Sendo assim, todo mito necessita de um rito correspondente. No seu
estudo sobre a cultura humana - intitulado A violência e o sagrado, ReGirard
se refere à importância dos sacrifícios na constituição das sociedades. O autor
explica que a formação de grupo autônomo exige sacrifícios e, ainda, que o
sacrifício une as pessoas em comunidades. O sacrifício elimina o mal,
transformando-o em “bode expiatório”. Esse comportamento esconde a
agressividade de um povo que, no entanto, aparece nos poros do corpo social,
mesmo tão polarizado em sua vivência cultural. Por isso o rito rememora, e dá
validade ao mito. Vejamos o que diz o autor:
É para transformar a suspeita de todos contra todos na
agressividade de todos contra um. Nada ou quase nada é
necessário: o mais banal indício, a menor suspeita
espalha-se com incrível velocidade e instantaneamente
transforma-se numa prova inelutável, e esse suspeito tem
de apenas ser suspeito, pois é a possível inocência, que
purifica o grupo, e livra esse grupo de qualquer culpa
(GIRARD, 1993, p. 86).
É como acontecera nos sacrifícios tribais no antigo testamento e como
acontecera com Jesus no novo testamento. Foi também o que se deu no episódio
de Canudos (cf. 2), que será analisado a partir da perspectiva psicossociológica.
Outro fator que explica o fenômeno psicossocial aqui analisado é o medo
coletivo, ou coletiva, que pode transformar um acontecimento em vida ou em
morte. Em vida, quando se trata dos milagres e curas inexplicáveis e em morte,
29
quando se trata dos casos de suicídios coletivos ou de convulsão social, como
ocorreu no episódio de Catulé em Minas Gerais (VALLE, 200, p. 87-98).
Logo se vislumbra como a dramática necessidade de renovar a religião e a
cultura assume, nos movimentos proféticos, formas místicas e messiânicas,
mesmo caóticas e pueris, nas quais se juntam as mais elementares experiências
vividas.
1.1.2. Messianismo e Milenarismo
Para entender bem o que é messianismo, deve-se considerar o significado
de três palavras: messianismo, messias e messiânico. A palavra Messianismo é
encontrada na Bíblia (Is. 91.5-6 e 2 Sm 7,1-14). Ela traduz a expectativa do
Messias, a esperança de um salvador ou redentor, compreende a crença na
intervenção de ocorrências extraordinárias, de individualidades providenciais ou
carismáticas, que permitiriam o surgimento de uma era plena de felicidade
espiritual e social, isto é, o paraíso. As características do Reino Messiânico
obedecem a um mesmo padrão: trata-se de um reino celeste que existirá neste
mundo dotado de atributos maravilhosos, compreende um lugar no qual não se
adoece, onde não se precisa trabalhar, onde se é plenamente feliz, onde residem
os santos.
Não podemos confundir messianismo com milenarismo, pois, no
messianismo, existe a figura do messias que anuncia e introduz um reino celeste
na terra. O milenarismo vem apressar este reino. O grupo marginalizado se reúne
à espera deste messias com a esperança de que ele traga a boa nova para o
povo que também está à espera do juízo final.
30
1.1.3. Movimentos Messiânicos
O Movimento Messiânico se caracteriza por agregar movimentos sociais
populares e por antever o milênio e, assim, instalar a coletividade sob o comando
de um enviado por Deus, o messias que instalará o paraíso na terra.
O líder Messiânico é conhecido de duas maneiras:
a) Existe um personagem imaginário e mítico que tem o papel de
Salvador do povo;
b) Existe um personagem histórico que marcou o seu povo. Em torno
dele, aparecem estórias de milagres e de visões como se ele fosse a
transfiguração do Messias.
Konings (1989), em um de seus comentários, observa que apesar de todas
excepcionais qualidades, o messias sempre pertenceu ao reino de um “ser
humano, de carne e osso”. Nessa mesma linha também pensa Drumond. Haveria
sempre evidência muito clara que apontaria para a natureza ordinária do messias.
Evidências que o caracterizam simplesmente como um “ser humano”, a exemplo
do que encontramos nos Salmos de Salomão: “Filho de Davi”, “Rei justo cujo
mestre é o senhor” e “o ungido” (KONINGS/ DRUMOND apud DELUMEAU, 1989,
p. 239-421).
Considerando este cenário, discerne-se o mistério envolvido e escondido
debaixo de sete chaves que se refere às comunidades messiânicas e aos seus
habitantes. Como afirma Foucault:
O que é fascinante nas pessoas que lideram é que nelas
o poder, não esconde, não mascara cinicamente, se
31
mostra com a liderança de um messias levada aos mais
ínfimos detalhes, e, ao mesmo tempo, é puro,
inteiramente “justificado”, visto que pode inteiramente se
formular no interior de uma moral que serve de adorno ao
seu exercício; sua liderança é sempre enviada por Deus,
aparece então como dominação serena do Bem sobre o
Mal, da ordem sobre a desordem (FOUCAULT, 2002, p.
72-73).
1.1.4. O Messias
A doutrina do Messias e de sua missão além de ser conhecida, aparece
com muita freqüência na literatura rabínica. Segundo Queiroz, Cohen é incisivo ao
sustentar em sua pesquisa que o Talmud se refere centenas de vezes ao messias
(COHEN apud QUEIROZ, 1968, p. 23).
A palavra Messias vem do hebraico mashiah, ungido. No latim, messias é a
pessoa ou a coletividade na qual se concretizavam as aspirações de salvação e
redenção personalíssima. E é a estas pessoas que Deus comunica algo de seu
poder ou autoridade. O líder carismático é a pessoa esperada com ansiedade e
que pretende ser um reformador social. O líder possui uma função no esquema
sócio–político.
Estas questões em torno do messias e, ainda o messianismo surge sempre
quando as tensões sociais estão saturadas pela política, economia, cultura e
religião de um determinado contexto e tempo. Os contextos imediatos de crises
32
sociais e políticas em Israel o ofereceram um cenário diferente, pois, este país,
uma vez mergulhado em crises sociais, pode ter alimentado as esperanças de
redenção em tal grau, que um passo preliminar fora aceito, ou seja, a vinda de um
predecessor de Davi.
O mesmo acontecera em Canudos no interior da Bahia. A turba que
rodeava o Conselheiro identificou-o inicialmente a Santo Antônio Aparecido. Mais
tarde confundiram-no com a própria figura Divina, dando-lhe o nome de Bom
Jesus Conselheiro. Havia ainda quem afirmasse que ele era a encarnação do
próprio Espírito Santo. No entanto, ele mesmo nunca afirmou ter essência
sagrada, mas sim, tão somente, ser um enviado, um intermediário, um
representante de Deus na terra. Quando alguém ajoelhava para pedir a bênção,
ele respondia: “Levante-se que Deus é outra pessoa”. E também afirmava: “Rios
de leite e montanha de pão para meu povo, essa era a ordem de Deus”. Ele
anunciava que um novo tempo estava por vir. Um tempo de abundância,
igualdade e paz (NOGUEIRA apud QUEIROZ, 1968, p. 206).
1.1.5. A abordagem Teológica
A abordagem através da doutrina seria teológica, enquanto a abordagem
do Messias seria sócio-psicológica. Estas duas teorias somam-se e isto será
interessante para o trabalho de análise dos movimentos messiânicos em questão.
Isto vai acontecer no decorrer da análise, observando-se sempre que o
messianismo é um grupo ativo e permanentemente em ação, tendo em vista um
determinado objetivo, que seria o de instalar o paraíso aqui na terra, noutras
palavras, o de transformar o mundo em que vivem.
33
Relembremos que a partir de Desroche - que foi um marco para o
entendimento de que o messianismo não é religioso, que ele também pode ter
conotações políticas e sociais - começou-se a perceber que, necessariamente,
nem todos os movimentos messiânicos têm dimensões religiosas como pano de
fundo, como se acreditava até então, que possuem também conotação ideológica,
como é possível verificar na experiência dos Chiapas no México ou na guerrilha
do Araguaia aqui em Goiás no período de 1969–1970 (DESROCHE, 1985, p. 36-
41).
Estes dois movimentos sempre foram de cunho político. A guerrilha do
Araguaia, nos idos de 1969, inspirava-se na liderança de socialistas chineses e
tinha o princípio, através dos ensinamentos, de criar uma sociedade igualitária e
um povo politizado. Eram formados por intelectuais que queriam uma
transformação que se iniciasse nas bases. Foi massacrada no século passado
pelo Exército Brasileiro, que tudo teria realizado em nome da liberdade e da
democracia.
No México, esses movimentos ainda sobrevivem com o mesmo propósito.
Representados pelos Chiapas e por outros paramilitares, eles são chamados de
subversivos, mas outra corrente, diz que são pessoas que lutam armados por
justiça social, tem como meta derrubar o governo existente e instalar um novo
programa de governo, que não aceite os ditames dos imperialistas.
Como quase todos os movimentos messiânicos nascem do processo de
anomia e do descontentamento de um grupo excluído, liderado por um messias
que fundamenta suas prédicas em um mito, como fora mencionado, esse mito,
aqui no Brasil, tem suas origens, segundo Queiroz, no sebastianismo. “Que os
movimentos messiânicos existentes no Brasil foram provenientes de Portugal,
34
com o nome de sebastianismo, que, mais tarde, chegaram a servir de base pelo
menos para dois movimentos” (QUEIROZ, 1965, p.195).
O sapateiro Bandarra escreveu trovas em que copilava uma série de
profecias, as quais prometiam a vinda de um grande príncipe e senhor que daria
infalivelmente a hegemonia para Portugal diante de outras nações. Deve-se
mencionar, ainda, que Portugal também passava por toda situação de anomia
descrita inicialmente.
As crenças messiânicas tinham se concentrado em torno do jovem rei Dom
Sebastião. Ele seria o grande rei que tiraria Portugal da miséria causada pela
invasão napoleônica e transformaria o país em cabeça das nações. As crenças
concentraram no herói todos os caracteres do Rei dos Últimos Dias descritos a
agora. Esta situação vem sobremaneira corroborar a teoria psicossociológica do
grande homem, que chega à exasperação utópica (YNGER, 1969, p. 241).
Além da questão social, existe também a questão transcendental, ou seja,
o ser humano sempre temeu os vaticínios e movimentos anunciadores do fim.
Houve quem pensasse que sempre se repetiria a mesma onda de terror
apocalíptico que varreu a Europa medieval na passagem do primeiro milênio para
o segundo milênio. Estariam aqui em jogo as mesmas esperanças e os mesmos
medos inconscientes que surgem com a sombra, na dimensão coletiva
inconsciente da humanidade, com aquela época que brota de tempos em tempos,
em especial, quando a humanidade se sente confrontada com a previsão do fim e
do juízo.
É algo tão forte quanto o desejo, igualmente inconsciente, de um retorno ao
paraíso que irremediavelmente se foi. Princípio e fim se confrontam na
precariedade do presente vivido. A inquietação social, promovida por esta
35
precariedade, leva os homens a construírem comunidades para que nelas eles
possam esperar pelo fim, ou melhor, comunidades que apressem este fim.
Porém, o milênio não é forçosamente trazido por um messias. Delumeau
afirma que o milenarismo espera um reino deste mundo, reino que seria uma
espécie de paraíso terrestre reencontrado, estreitamente ligado à noção de uma
idade desaparecida (DELUMEAU apud VALLE, 2000, p. 65).
Cohen afirma ainda que:
O milenarismo não é necessariamente limitado mil
anos. o mundo seria habitado por uma humanidade de
bondade perfeita e gozando também de felicidade perfeita
e duradoura. Ambos movimentos, Messianismo e
milenarismo, espera a felicidade aqui na terra, o
milenarismo representa uma forma assumida pela
frustração da espera messiânica, isto é, de um caráter
terrestre (COHEN apud QUEIROZ, 1958, p. 23).
Muitos estudos sobre os movimentos milenaristas idealizam não só as
condições pré-capitalistas, como também a sua economia moral. A escola
“político–revolucionária”, exemplificada pelo estudo Primitive Rebels de Eric
Hobsbawm, o milenarismo como arma política para organização de protestos
contra mudanças associadas à penetração do capitalismo em comunidades
camponesas isoladas. Variantes dessa teoria acabaram, ao contrário de seu
idealizador, atribuindo aos crentes, o papel de heróis camponeses revoltados
contra a exploração feudal e inseridos num contexto de luta armada entre as
classes. Essa variante deu origens a várias lutas armadas pelo mundo, inclusive,
no Brasil do século XX, mas que não mudaram a realidade precária existente.
36
1.2.1. milenarismo psicossocial
Os milenarismos, como fenômenos psicossociais, não dependem de
decimais fechados. Pouco tem a ver com mil ou dois mil, como a palavra
milenarismo poderia sugerir. Eles radicam nos medos e nas esperanças
profundas da humanidade quando esta se volta aflita para a iminência do fim.
São fenômenos e reações presentes em todas as épocas. São conhecidas
suas manifestações em praticamente todos os povos e culturas. Existiram na
Babilônia e no Egito antigo. O budismo, o hinduísmo e o islamismo também
vivenciaram, ao longo dos séculos, inúmeros movimentos milenaristas,
irrompidos, quase sempre, em situações de choque, confusão, stress social e
liminaridade cultural.
1.2.2. Milenarismo teológico
A palavra milenarismo é, no entanto, própria do vocabulário judeu-cristão.
Refere-se a episódios e a situações características dos ambientes culturais do
judaísmo, onde são variadas e constantes suas manifestações.
Os messianismos são uma das formas da escatologia judaica. Acham-se
intimamente ligados aos milenarismos. Os três - escatologismo, messianismo e
milenarismo - são uma tríade que se completa:
a) A escatologia aponta para o fim último, para as coisas que levam ao fim
dos sofrimentos, à realização plena e terrível do que nos espera no fim;
37
b) O messianismo corporifica a expectativa do grupo social por uma
mensagem ou por uma pessoa dotada de força e ungida para
encaminhar os fatos em direção ao futuro definitivo;
c) O milenarismo, por sua vez, não é outra coisa senão a vivência grupal
da pulsão e da certeza escatológica in actu.
Em seu sentido estrito, o milenarismo é a crença de que Jesus Cristo
viria e estabeleceria sobre a terra, após a sua segunda vinda, seu reino de mil
anos, o milênio. Conforme uma interpretação literal do apocalipse. Em sociologia
da religião, a palavra é usada em uma acepção mais ampla, deixando para traz o
marco judeu-cristão que está em sua origem. Segundo Queiroz, a maior estudiosa
do tema no país, o milenarismo:
[...] designa a crença em uma vida futura, profana e, sem
embargo, sagrada, terrena, mas igualmente celeste.
Todos os erros seriam corrigidos (nesta era), todas as
injustiças reparadas; a enfermidade e morte abolidas
(QUEIROZ apud VALLE, 2001, p.73).
O livro de Daniel, com toda sua literatura apocalíptica veterotestamentária
de forte linguagem simbólica, expressa a atitude milenarista que caracterizou as
alternâncias de destruição e renovação do pequeno povo de Israel em seu
confronto com grandes e ameaçadoras potências do Oriente antigo. Também a
primeira geração de cristãos, premida pelas perseguições e pela insegurança,
conheceu a expectativa e a ansiedade apocalípticas na visão literal.
Os evangelhos sinóticos apresentam alusões precisas a um próximo
retorno do Senhor, acompanhado de terríveis sinais (Lc. 21, 7-28, e Mt 24, 3-14).
Entre estes estão assinalados: guerras e revoltas. Nações levantando contra
38
nações, profanações dos lugares sagrados, perseguições às “testemunhas
santas, grandes terremotos, estrondos do mar e das ondas, fomes e pestes,
sinais espantosos no céu, na lua e nas estrelas”, etc. No plano mais subjetivo, os
textos falam de sustos, angústia e medo de todos ante a comoção smica do
universo inteiro, que os sociólogos denominam hierofania (Apocalipse, 10-20).
O livro do apocalipse, atribuído a João, retoma estes assombros inauditos
e vai além: colocam neste cenário de destruição figuras de monstros terríveis,
pintando com cores ainda mais drásticas o cenário que acometerá vivos e mortos.
É ali que se a frase que deu origem ao termo milenarismo: “Todos eles (justos)
reviverão e reinarão com Cristo mil anos; os demais (mortos) não reviverão até
que passe mil anos” (Ap 20, 4-5). A expressão mil anos aparece também em
outras passagens do mesmo livro (MUNHOZ apud VALLE, 2001, p.74).
A partir dessas considerações, podemos dizer que, nos países de cultura
cristã, os milenarismos podem ser definidos como expectativa do reino de mil
anos de Cristo aqui na terra, precedendo o juízo final e a vitória definitiva do bem
sobre o mal. Os textos bíblicos são redigidos em fortes linguagens metafóricas e
são, além disso, internamente complexos. na Bíblia, ao menos seis estágios,
que vão do segundo retorno de Cristo até o destino eterno de prêmios ou
castigos. São, assim, do ponto de vista da composição literária dos textos. As
possíveis interpretações e datações, que são inúmeras, deram margem,
especialmente no protestantismo norte-americano e alhures, a intermináveis
controvérsias.
As discussões acerca dos textos apocalípticos existem desde a Igreja
primitiva. Atravessaram a época patrística. Grupos de índole fundamentalista
tenderam sempre a dar-lhe uma interpretação literal, buscando situá-los
39
concretamente nesta ou naquela conjuntura histórica. Os repetidos fracassos de
tais aplicações e previsões acabaram por levar os intérpretes de bom senso a
buscar um sentido mais alegórico para os textos tão ambíguos e controvertidos.
Os séculos XVI e XVII conheceram uma retomada milenarista. Em alguns
ambientes pietistas, a agitação milenarista chegou a ser uma verdadeira
epidemia, cujos vestígios podem ser encontrados nos movimentos de
reavivamento que pontilham a história religiosa do protestantismo nos Estados
Unidos. Destas tendências, do pietismo norte-americano, nasceram grupos
religiosos, entre os séculos XIX e XX, que hoje, inclusive, são muito atuantes no
Brasil, como os mórmons, os adventistas e as testemunhas de Jeová. Estes
grupos conservam muito de tal mentalidade em suas pregações e nas convicções
que inculcam em seus convertidos. o pentecostalismo, variante religiosa que
experimenta maior difusão entre nós, possui uma representação mitigada da
dimensão apocalíptica e escatológica da fé cristã, embora, a conheçam. Na
versão carismática e taumaturga desse último tipo de protestantismo, ao invés do
futuro, a força presente do Salvador parece ocupar o centro da atenção.
Dezenas de surtos messiânicos e milenaristas foram vivenciados no Brasil,
predominantemente, no ambiente rural, denominado por Queiroz de “rústico”,
mas, trata-se de um fenômeno que também pode ser constatado nos espaços
urbanos, onde têm proliferado expectativas messiânicas e anseios escatológicos
de cunho milenarista. Apouco tempo atrás, eram impregnados de religiosidade.
Ultimamente surgem modalidades mais secularizadas, inspiradas pela onda
conhecida como Nova Era (VALLE, 2000, p. 70-74).
40
Entre os casos de messianismo ocorridos no passado, iremos analisar dois
deles (cf. 2 e 3): o da cidade de Canudos na Bahia e o da cidade de Juazeiro no
Ceará.
Com o advento da ficção científica, fortemente acentuada pela indústria
cinematográfica, deu-se uma secularização dos milenarismos. O fim passou a ser
associado a civilizações extraterrestres, supostamente, mais evoluídas que a
nossa. Liga-se quase sempre a catástrofes, a guerras e a possibilidades
oferecidas pelas tecnologias ultra-avançadas, ou, então, em geral, as
possibilidades são transmitidas mais por abduções a outros planetas e/ou
revelações extraplanetárias do que por entidades espirituais. Também na ficção
científica, a batalha entre o bem e o mal é uma tônica permanente, mostrando,
novamente, o caráter projetivo dessas poderosas imagens arquetípicas. Não há
como projetar o futuro sem considerar as ameaças e as aspirações contraditórias
que habitam fundamentalmente nosso inconsciente (VALLE, 2001, p.75).
1.3. Duas aproximações psicossociológicas
1.3.1. Teoria da Privação
Para efeitos didáticos, falaremos aqui de duas modalidades teóricas de
explicação psicossociológica do milenarismo em suas variações.
A primeira é aquela que o milenarismo como comportamento decorrente
de sentimentos insuportáveis de privação da alta auto-estima, da segurança, de
carência de bens materiais ou de status social. Os surtos milenaristas e
messiânicos do passado costumavam se dar em situações drásticas, como as de
41
escravidão, de ditaduras e de usurpação de direitos. Uma das constantes de
movimentos religiosos desse tipo é que eles costumam surgir em momentos de
crise, funcionando como um mecanismo ab-reativo que permite diminuir, ao
menos no plano simbólico e do desejo, as pressões insuportáveis de desilusão e
perplexidade às quais o grupo se vê submetido (YNGER, 1969, p. 226-231).
Os episódios propiciadores da crise associam-se, com freqüência, a
condições desesperadoras de epidemias, guerras, secas e pestes prolongadas.
Mudanças culturais bruscas também podem favorecer sua eclosão, uma vez que,
originam situações de stress, com insuportável desvalorização da auto-estima,
mais ainda, das referências, dos conhecimentos, dos hábitos e dos valores
tradicionais responsáveis por dar sentido e segurança ao cotidiano dos membros
de um grupo.
O mesmo pode ser dito acerca de conjunturas marcadas por forte stress
econômico e político-social. Trata-se do caso aqui estudado. Não raramente, elas
estão na raiz de surtos milenaristas. Veja-se, como exemplo clássico, a situação
criada em Canudos no período Republicano (cf. 2 ): na iminência de morte, os
adeptos do Conselheiro, os messias rústicos, lutaram até serem completamente
dizimados (YNGER, 1968, p. 233).
Revoltava e indignava os sertanejos uma situação completamente adversa
a eles. Julgavam-se cercados de inimigos: o governo federal, os proprietários, os
capangas dos coronéis e a polícia que, por vezes, cobrava os impostos. Fácil era,
em tal estado de tensão, o surgimento de um líder que os conduzisse à revolta.
Este líder era esperado e desejado pelos sertanejos e surgiu personificado por
Antônio Conselheiro, no caso da Bahia, e por Padre Cícero Romão, no Ceará.
42
Mas, sejam quais forem as motivações ou os impulsos que deram origem
ao comportamento ou o sentimento milenarista, o fato é que eles despertam na
mente das pessoas poderosas fantasias de abundância, de invulnerabilidade e de
fuga definitiva à tensão. É esse sentimento irracional que as leva a abandonar
seus padrões usuais de bom senso no lidar com a vida cotidiana. “O Apocalipse
fala sobre a esperança de uma revolução total no cosmo [...] Em meio a mártires
e profetas, Deus é o protesto e o poder dos oprimidos [...] porque é mais belo
risco ao lado da esperança” (ALVES, 2000, p. 89-90).
Mas, os apocalipses falam igualmente do fascínio pelo mal e pelo ambíguo
desejo de superação. O Cristo e o Anticristo, Miguel e Lúcifer. São os
contendores indispensáveis ao Armagedon final entre o bem e o mal. Hoje a
teologia mitigou definitivamente as tintas da escatologia cristã. O drama final, com
a condenação ou salvação eterna, já não é postulado como a priori indispensável.
Sua descrição foi amenizada.
Ninguém mais fala de um grande plano universal do mal
que destrói calculadamente e aniquila planejadamente [...]
O mal não tem um centro, mas ele está em toda parte. Ele
não envia à sua frente uma tropa de choque, mas ele
espalha-se como um clima e prolifera como as ervas (...),
nas religiões freqüentemente ele se mostra mais
destrutivo do que em outros lugares (ARASKI apud
VALLE, p. 89).
São situações psicológicas que evocam necessidades inconscientes e
conscientes de uma proteção maior, simbolizada na palavra e na ação de líderes
religiosos que, agindo em nome de Deus, mostram-se sensíveis ao sentir coletivo.
43
Daí ao movimento de revolta contra os padrões do aut group, ou à adesão
incondicional à visão mítico religiosa do in group, é um pequeno passo. O grupo
de adeptos se sente galvanizado pela palavra do profeta. Esta palavra canaliza a
energia, o medo e a esperança do grupo, em direção a uma proposta simbólica
acessível a todos. Como metas e promessas se referem aos objetivos
praticamente irrealizáveis, ocorre, freqüentemente, o fracasso das expectativas
exasperadas dos momentos de exaltação.
Os relatos dos escritores Euclides da Cunha sobre Canudos e de Ralph
Della Cava sobre Padre Cícero (cf. 2 e 3) mostram como tais situações acabam
por criar uma dolorosa dissonância cognitiva naqueles que as vivenciam. É uma
reação amplamente descrita pelos teóricos que se dedicam aos temas das
mudanças de atitude e dos conflitos grupais
1
. Estas conjunturas tanto podem
levar à dissolução do grupo, como a revisão/reiteração do que se acreditava como
certo e já à mão.
O desfecho final costuma ser a desarticulação total do grupo, com duras
conseqüências no plano coletivo e no nível psicoindividual. Os que investem
demasiadamente na expectativa grupal podem sofrer sérias regressões e
manifestar distúrbios psicóticos de vários tipos
2
.
Na hipótese de revisão, o grupo dificilmente escapará de uma série de
desajustes internos: fraturas que conduzem a reagrupamentos e subdivisões
internas (pairing), táticas de combates e de fugas (fight and fight), isolamentos,
1
Ver, por exemplo, Leon Festinger, A Theory of Cognitive Dissonance, Stanford, Stanford
University Press, 1957; Fritz Heider, The Psychology of the Interpersonal Relations, New York,
Wiley, 1958.
2
No Contestado, quando a catástrofe não podia ser escondida e João Maria estava morto. A
neta de um dos líderes começou a ter visões do “santo” recém falecido, que através dela,
mandava que as lutas prosseguissem até a vitória, garantida pelo próprio ”São” João Maria.
44
agressões, projeções externas e internas, fantasias e entrega total à vontade
dominadora dos líderes, que, captando a tempestade, apressam-se em oferecer
uma nova versão ao que fora anteriormente prometido. As defecções são
inevitáveis e costumam acontecer mesmo depois de drásticas tentativas de
encontrar explicações e justificativas alternantes (VALLE, 2001, p. 87-95).
As re-interpretações podem ajudar o grupo a subsistir, mas, somente à
custa de difícil re-interpretação das esperanças não verificadas. Haverá sempre
um preço a pagar. O tempo poderá acertar as arestas, permitindo que tanto a
comunidade, quanto o líder - no Brasil, em geral, mais do sexo masculino que do
feminino - não percam o rosto e possam, desse modo, sair do episódio com
alguma dignidade.
Algo disto se viu nos primórdios do adventismo norte-americano. As
predições acerca do fim do mundo de seu primeiro fundador, W. Miller,
fracassaram fragorosamente. A repercussão pública foi muito negativa. Novas
datas para o advento de Cristo foram proclamadas com base em outros textos e
interpretações. Novos fracassos. A solução final encontrada foi a de dar um
sentido simbólico e genérico à questão das datas, livrando o grupo da
necessidade de lidar com novos desmoronamentos psicogrupais a cada nova
decepção. Com isto, a comunidade manteve o milenarismo como princípio
doutrinal, limitando, ao mínimo, o desgaste psicoemocional. Foi uma solução de
compromisso, ante uma situação demasiado dissonante para qualquer grupo
humano, religioso ou não.
45
1.3.2. Teoria do Contato
Passa-se a considerar, neste momento, o segundo grupo de hipóteses
explicativas. Elas se fundamentam, basicamente, na suposição de que os
milenarismos decorrem do contato entre duas culturas, uma das quais é (ou se
julga) superior à outra. O milenarismo expressaria um sentimento coletivo
daqueles que se percebem em situação de inferioridade cultural e/ou de ameaça
política.
Constatou-se, em várias partes do mundo, que a chegada dos europeus
nos distintos continentes foi o estopim de reações que se enquadram na
descrição dos movimentos denominados de milenarismo e de messianismo. Os
povos e as tribos subjugados acabavam, freqüentemente, por lançar mão de
algum mito de origem para poderem redefinir, no plano simbólico, suas relações
com os invasores. Nesse nível de fantasia, conseguiam salvaguardar o seu ego.
Revertendo e jogando para o plano religioso uma situação insuportável, podiam
salvaguardar, ademais, elementos essenciais de suas crenças, de seus costumes
e rituais. Os homens poderiam, assim, resistir, ao menos, do ponto de vista
sentimental, do sentir coletivo, aos termos de uma situação real demasiadamente
acabrunhadora. De vencidos passavam a vencedores, de pobres a ricos. Foi o
que se passou em Canudos. Outro exemplo é o do chamado cargo cult
3
dos
3
O “culto da carga” (cargo cult, em inglês) foi um fenômeno freqüente na região do Pacífico. A
velha crença na vinculação dos clãs aos ancestrais fez surgir na população a idéia de que as
mercadorias que chegavam nos navios europeus eram, na realidade, destinada a eles. Seus
antepassados enviavam do “além”, mas os europeus com sua forte mágica interceptavam essa
carga e se apossavam dela. O cargo cult deu origem a vários messias revoltados e trouxe uma
releitura, mais ou menos milenarista, da cosmovisão e dos antigos mitos de origem daqueles
povos. Releitura que o próprio povo elaborou quando se viu entre duas culturas: a sua (sem
poder) e a dos estrangeiros (com sua superioridade tecnológica e política).
46
Canacas da nova Guiné. Dizendo que os bens (o cargo) trazidos pelos navios
europeus eram um presente de seus antepassados para eles e que os europeus
usurpavam essa carga em benefício próprio, os Canacas se recompunham e
recuperavam a autoconfiança que fora abalado por aqueles que se impunham
pelo poder da tecnologia e das armas. Como resultado dessa interpretação
sagrada do desnível econômico existente entre os colonizadores e os nativos,
explodiram, com facilidade, ações reivindicatórias violentas que tinham como
objetivo a recuperação dos bens “roubados” (YNGER, 1968, p. 239-244).
A partir do sugestivo exemplo de Canudos, é possível perceber que a
teoria do contato pode e deve ser acoplada à da privação. Juntas, elas lançam
alguma luz sobre o comportamento milenarista. Mas, será isto suficiente? Não
permanecem essas explicações em uma esfera sociológica demasiado distante
do que se no cenário mais imediato do drama? Como fazer uma leitura de
cunho psicossocial que possa revelar as dinâmicas afetivas e comportamentais
das pessoas e dos grupos? É o que tentaremos mostrar.
Os convertidos à prédica do Conselheiro, quase todos ligados entre si por
laços de compadrio, laços afetivos de cunho espiritual, ou de parentesco direto ou
vicinato, dedicaram-se com intenso fervor aos cultos religiosos e às observâncias
pregadas pelo o novo líder. Não encontraram, ainda, uma resistência organizada
por parte do resto da população local, apenas a desconfiança e uma espécie de
rejeição cita dos que estranharam aquela súbita quebra de padrões de
comportamento religioso e grupal usuais na comunidade. Assim como também
estranharam todo tipo de notícias emitidas contra o povo de Belo Monte.
No in group, dá-se, provavelmente, um reforço de pertença e de identidade,
com a partilha entusiástica dos sentimentos e das emoções religiosas,
47
experimentada no novo contexto devocional. Essa experiência se torna “diferente”
para os membros do novo grupo religioso, mas não os aliena de seu meio. Talvez
isso se deva à especificidade das diferenças que os marcam. Trata-se de
diferenças “religiosas”. Desse modo, no in group convivem dois mapas distintos,
mas que têm algo em comum ARASKI ( apud do VALLE, 2001, p. 88).
Este sentimento de pertença tem uma base psicológica que, segundo
Araski, alicerça-se ”provavelmente em um tipo de associação (que) tem muito a
ver com o conteúdo específico tanto das ações conscientes como das fantasias
inconscientes daquele grupo naquele determinado momento. Da mesma forma a
liderança que emerge é aquela que pode captar e realizar melhor a mente do
grupo” (ARASKI Apud VALLE 2001, p. 25).
Araski concebe, de bom grado, que a formação e a trajetória histórica
anterior do grupo têm a ver com a conversão e constituição de seu posterior
comportamento. Visto desta ótica, a conversão pode ser explicada pela via de um
contato com uma cultura externa e, ainda, da privação, que representa um
protesto e manifesta uma forma de inverter a ordem. Como antropólogos
brasileiros têm mostrado, estas características podem ser observadas em outros
movimentos, milenaristas ou não, de natureza popular. Deve-se mencionar que os
casos de lenta gestação, como os casos de Canudos, de Juazeiro e outros, têm
elementos explicativos bastante precisos na própria trama histórica. “Mas, estão
dando pequenos recados que se referem a alguma coisa aqui e agora, e isso tem
que ser entendido dentro da história do grupo, de suas determinações, das
trajetórias dos indivíduos” (ARASKI, 1981, p. 25-26).
No estado de guerra, ao longo do tempo, os personagens do drama de
Canudos, por exemplo, viviam experiências fortes nas quais interagiam, dividiam
48
e se associavam, esperavam, e se desesperavam, surtavam, matavam ou
morriam.
Em uma análise psicossocial, deve-se perguntar, antes de tudo: por que o
homem toma determinadas atitudes? O que estão dizendo, através destas
atitudes, uns aos outros e cada um a si mesmo? Qual é mesmo a mensagem
embutida na crispação místico-religiosa que os leva a romper com as normas de
seu cotidiano, apelando para uma “revelação” na qual o bem e o mal se mostram
na linguagem escatológica daquele drama?
A preocupação de considerar os detalhes do acontecido não significa a não
aceitação de explicações de largo alcance, de tipo sociológico. Claro que
variáveis como situação socioeconômica, laços de parentesco e compadrio,
privação cultural, choque com o diferente etc., têm a ver com a conversão e o
estabelecimento de novos padrões de relacionamento e de significação religiosa.
A conversão a uma determinada forma de “irmandade” e de experimentação
direta do sagrado importado de Portugal, nos casos estudados neste trabalho,
abriu um espaço de análise, até então, o vasculhado, da imaginação religiosa
de cada participante e, ainda, do grupo messiânico enquanto unidade social em
estado de tensão. Mas, os estudos realizados descrevem estas questões sem
chegar a compreendê-las internamente. É preciso, então, aprofundá-los.
E o que dizer de abordagens psicanalíticas que interpretam episódios de
violência religiosa como a de Canudos a partir de uma linha genérica, segundo a
qual, os movimentos foram motivados por um inconsciente caótico, por uma
alucinação irracional, mais ou menos psicótica, ou, então, em uma perspectiva um
pouco diferente, mas que seria bem próxima, segundo a qual, estes movimentos
seriam expressões de fanatismos e de obsessões? Novamente, deve-se
49
reconhecer que essa análise considera questões importantes, mas não entra na
trama do psicologicamente sucedido. Muitas questões permanecem
incompreensíveis, exatamente como acontecia com a fala do louco antes de
Freud (VALLE, 2000, p. 90).
Para exemplificar, tomemos uma fala dos fiéis citada no trabalho de
Euclides da Cunha: “o que o Conselheiro prometeu para vocês morrer por ele o
sertanejo preso disse salvar nossas almas”. Seriam coordenadas demasiadas
amplas, as que vêm da sociologia, da psicologia, que nos ajudam a entender o
que o Conselheiro disse a esse povo e porque eles acreditavam piamente nele, a
ele aderindo numa caminhada alucinada que pode conduzir, e conduziu, à morte
e a desagregação sócio-emocional? (CUNHA, 1987, p. 100-235).
Partindo dessa inquietação, relativa à insuficiência das abordagens, Araski
levanta uma hipótese extremamente simples sobre o ocorrido, que procura
ampliar perspectivas como a da crescente irracionalidade do comportamento do
grupo e das pessoas, como a da radicalização assustadora de certos aspectos
que aconteciam na vida normal dos participantes após a conversão aos
ensinamentos rigorosos do Conselheiro. Araski considera que o eixo explicativo
de tudo o que foi acontecendo reside em um fato elementar que costura por
dentro os vários atos em que se desenrola a guerra de Canudos (ARASKI, 1981,
p. 24-37).
O problema específico que estava em jogo e que levou ao desenlace final
foi algo extremamente simples: no fundo, um ataque do exército brasileiro
despertava no grupo uma ansiedade. Sentimentos muito acentuados de medo, de
incompetência e de insegurança. Em um nível inconsciente, a guerra punha em
risco, as frágeis defesas com as quais o grupo contava e que os protegiam de sua
50
angústia. Tudo o mais girava em torno deste dado aparentemente simples.
Vejamos mais de perto esta hipótese que tenta explicar a explosão e a exaltação
suicida coletiva que tomaram conta do movimento até morrerem quase todos,
aniquilados pela “potência” do inimigo.
O senso de valor e a auto-estima de grupos tão combalidos pela vida e por
sucessivos fracassos são engrandecidos pela acolhida do Conselheiro.
Aumentam o zelo e o fervor religioso que eram incentivados pelo Conselheiro. O
movimento contava até com “um encarregado para as celebrações religiosas”.
Tudo isso provoca, na comunidade, o desejo de também ela se tornar um
instrumento de defesa de sua Jerusalém. Esse desejo é reforçado pelo
Conselheiro que não percebe o outro lado deste anseio que são os sentimentos
represados de medo, de insegurança e de ansiedade, diante de um exército que
era bem mais potente (CUNHA apud HOORNAET, 1998, p. 83).
A difícil meta de se defenderem em uma guerra contra o exército implicava
inúmeros sentimentos contraditórios. A defesa de Belo Monte, a guerra contra um
exército desconhecido, “o representante do cão”, contra a hostilidade dos
soldados, vistos como superiores, era mais do que romper com as condições
usuais de vida do in grupo canudenses. A guerra poderia representar uma
liberação dos instintos, havia, ainda, o temor da prisão e da morte.
Eles sentiam medo porque conheciam, através da literatura, que a história
estava repleta de guerras. Guerras que eram retratadas a partir das inúmeras
atrocidades cometidas em campos de batalha. Isto seria verdade ou ficção?
Nunca se sabe. O ataque o é uma coisa inofensiva, era a iminência de um tiro
de canhão. A comunidade sabia disto, melhor pressentia.
51
O Conselheiro, que estava investido de poder religioso e de poder moral,
era uma promessa de superação da privação anterior. A crença que ele inculca
em seus adeptos encarna uma fantasia de grandeza, de controle do mundo a
partir do controle de si mesmo. Fantasia poderosa por ser chancelada por um
líder, um representante de Deus, e, ainda, pela vitória na primeira batalha. Como
naquele momento tinham a própria vida e um reduto sagrado, os homens se
dispuseram a morrer defendendo o seu céu. Sentiam uma obrigação, mais ou
menos divina, de se defenderem, a si e a seus bens. Numa situação dessas,
diante da guerra iminente, é que reagem os demônios interiores
4
. Mas, apesar de
estarem conscientes das diferenças de força, intimamente, mantinham a
esperança. Esperança obsessiva, que não podiam escapar a sanha do
demônio onipresente. Na perspectiva de Bion, dir-se-ia que esta resposta coletiva
expressa a angústia básica do grupo todo. O que interessa agora é salvar a
fantasia inconsciente da qual o grupo inteiro participa. Dá-se, em Canudos, o
mesmo fenômeno psicogrupal que se observou no grupo de Jim Jones, na
atualidade, que caminhou para a morte, o que, também, aconteceu em outros
grupos liderados por outros gurus. Estes grupos preferem matar e morrer a
renunciar a esse seu “suposto básico”, como diria Bion (BION apud VALLE, p.
95).
A angústia e seu irmão gêmeo, que é a culpa, espreitam permanentemente
o sentimento religioso. São dois sentimentos eminentemente humanos e,
portanto, necessários. Ambos têm a ver com a esperança, outra incansável
companheira do ser humano. O animal sente medo, mas não experimenta a
4
Esse é um modo de falar da umbra ou sombra. Aqui, os demônios interiores são a parte
tenebrosa, o lado indesejado, não-consciente, reprimido dos indivíduos. Em Canudos, os
demônios têm a ver, com a parte fraca, ilegítima.
52
culpa. Não pode, tampouco, esperar e imaginar utopicamente um futuro diferente.
O medo sem culpa das espécies animais “é sempre idêntico a si mesmo,
imutável. (...). O medo humano, filho de nossa imaginação, não é uno, mas
múltiplo, não é fixo, mas perpetuamente cambiante” (VALLE, 2001, p. 96).
É por essa razão que o medo e a culpa podem causar a parálise e a
involução de processos religiosos “normais” em grupos ou pessoas traumatizadas
por lutos e frustrações insuportáveis. É um jogo complexo, que não pode ser visto
superficialmente. A individuação, no sentido junguiano, não se realiza sem esse
lado obscuro seja vivenciado e integrado pela pessoa e/ou pelo grupo.
Um dos objetivos dessa parte da análise é mostrar que o medo e a culpa
são fenômenos que se alicerçam em aspectos psicogrupais sutis e precisos. Para
explicá-lo, é necessário fazer uma análise detalhada de aspectos intra e
interpessoais próprios de cada situação e de cada personagem. São detalhes que
podem passar facilmente despercebidos por sociólogos e psicólogos em suas
tentativas de descrever medos concretos em termos generalizantes, como no
caso das teorias da privação e do contato intercultural. a consideração das
minúcias e das filigranas presentes na trama psicológica e nas interações entre as
pessoas em cada situação concreta pode ajudar o pesquisador a entrar no
emaranhado aparentemente caótico dos comportamentos irracionais, os quais
costumam acompanhar os acentuados surtos religiosos, como os aqui estudados.
O que se tentou mostrar, no exame psicológico do perigoso jogo vivido
pelos habitantes de Canudos, não foram vivências inconscientes dos sujeitos
envolvidos, por mais importantes que essas possam ser para a compreensão do
que se passou no sertão da Bahia. O que se buscou considerar com mais ênfase
53
foi o processo relacional dinâmico ali vivenciado. O resultado desse esforço
parece-nos compensador.
Erupções de euforia, de depressão, de exacerbação emotiva e de
irracionalismo, freqüentes em episódios apocalípticos ou milenaristas, são
compreendidas de maneira mais adequada quando colocadas em quadros como
os aqui esboçados. Interessante notar que, freqüentemente, os antropólogos e
sociólogos têm mais sensibilidade para esse aspecto do que os supostos
especialistas em questões relacionadas à psique (VALLE, 2001, p. 94).
Finalmente, deve-se mencionar que a umbra, ou a sombra do medo, são
constituídas pelos demônios interiores, que são, por sua vez, a parte tenebrosa, o
lado indesejado, não-consciente, reprimido dos indivíduos. É também, o latejar da
esperança. Marcas inconfundíveis do humano em sua busca do sentido que
transcende. O medo e a esperança são dois sentimentos limítrofes para o ser
humano, apenas um fio de navalha os separa.
Em Canudos, ao largo dos anos vertiginosos, os personagens desse drama
viveram experiências fortes nas quais interagem.
Em uma análise psicossocial, devemos nos perguntar antes, de mais nada,
porque o fazem. O que estão dizendo com isto? Porque apelam para uma
“revelação” na qual o bem e o mal se mostram ao vivo na linguagem escatológica
do drama?
A preocupação em descer aos detalhes do acontecido não significa a não-
aceitação de explicações de largo alcance, de tipo sociológico. Claro que
variáveis como a situação sócio-econômica, laços de parentesco e compadrio, a
privação cultural, o choque com o diferente etc. têm a ver com a conversão e o
estabelecimento de novos padrões de relacionamento e de significado religioso. A
54
conversão àquela nova forma de “irmandade” e de experimentação direta do
sagrado, abre espaço a então não vasculhado pela imaginação religiosa de
cada participante e do grupo enquanto unidade social em estado de tensão.
O que se tentou mostrar no exame psicossociológico do perigoso jogo
vivido pelos adeptos de Canudos. Não foram vivências inconscientes dos
indivíduos envolvidos, separadamente por mais importantes que estas possam
ser para compreensão do que se passou naquela pequena cidade. O que se
considerou foi mais o processo relacional dinâmico ali verificado.
55
CAPÍTULO II
2. O CONTEXTO HISTÓRICO
2.1. A EXPERIÊCIA DE CANUDOS
Em 1889 ocorreu uma mudança histórica na política bastante conhecida:
com um golpe, derrubou-se o Império e instituiu-se a República no Brasil. Essa
mudança foi fruto da articulação de setores agrários com o Exército. O golpe
republicano não significou uma revolução nas estruturas econômicas do país, que
continuou dependendo basicamente da produção de café. Deve-se mencionar,
ainda, que o trabalho escravo não existia mais devido à lei da abolição
sancionada no ano anterior (FARIA, 1995, p. 232).
Por volta de 1890, a situação dos camponeses nordestinos se agravou. Em
1877, começou uma longa seca que mataria mais de 300 mil pessoas. Castigados
pela seca. Também oprimidos pelos coronéis, os nordestinos agarravam-se
fervorosamente à religião. A mensagem cristã católica tinha grande impacto sobre
eles porque reiterava que haveria um mundo em que todos seriam iguais. Um
mundo sem injustiças, sem fome, onde todos seriam plenamente felizes. Para o
cristianismo católico, esse paraíso só seria alcançado depois da morte.
56
Nessa época, no nordeste, surgiu um homem com grande carisma e poder
de oratória, chamado Antônio Vicente Mendes Maciel denominado
carinhosamente de Conselheiro. Ele anunciava que um novo tempo estava por
vir. Um tempo de abundância, igualdade e paz. Suas idéias eram consonantes
com as expectativas populares. Ele arrebanhou centenas de seguidores, os quais
o viam como um santo. Alguém com poderes especiais. Logo, a popularidade de
Antônio Conselheiro despertou a ira dos poderosos.
Havia surgido alguém com mais prestígio do que eles e que lhes tirava a
mão-de-obra barata. A Igreja também se opôs de forma contundente ao
Conselheiro, visto como um concorrente. Com poderes absolutos para dirigir a
massa, o Conselheiro se tornou um perigo real para a hierarquia eclesiástica, que
passa, então, a admoestar a Igreja por meio de pastorais, a acusá-lo de
subversivo, de ser um homem contra a religião, a ordem pública e o novo regime.
Desse modo, a Igreja considerou que se tratava de um homem que devia ser
combatido. Conselheiro passou a sofrer oposição por parte de uma Igreja, que
combatia os poderes políticos (BENICIO apud QUEIROZ, 1965, p. 204).
Logo, Antônio Conselheiro começou a sofrer perseguições. Diante disso,
ele resolveu refugiar-se em Canudos, fazenda abandonada no norte da Bahia. A
notícia correu pelo sertão. Milhares de nordestinos abandonaram as fazendas
onde moravam e partiram para Canudos. Em pouco tempo, o povoado tinha mais
de 20 mil habitantes. Bem mais do que a maioria das cidades do nordeste
daquela época. Lá chegando, as pessoas entregavam o que tinham à
comunidade. Vinham, simplesmente, em busca de uma vida mais digna, longe da
opressão dos coronéis. Em Canudos, os escolhidos viviam suas vidas de maneira
57
simples, mas tinham a sensação de que estavam num mundo diferente. Um
mundo onde todos se ajudavam e onde todos eram irmãos.
Os coronéis e a Igreja o estavam dispostos a ver a popularidade de
Antônio Conselheiro crescer a cada dia. Pressionaram o governo para destruir
Canudos. Lembravam que a popularidade do Conselheiro era uma ameaça à
República, pois, ele pregava contra ela. Conselheiro era acusado de monarquista
pelos coronéis e pela Igreja. A verdade é que esse monarquismo sertanejo tinha
muito pouco, ou quase nada, a ver com a monarquia dos Bragança, deposta e
extinta em novembro de 1889. Para os sertanejos, as mudanças radicais em suas
vidas pareciam decorrentes da implantação da República, da instauração “da lei
do cão”, como diziam os sertanejos. Concretamente, as mudanças que atingiam
os sertanejos diziam a respeito à posse da terra e à crise econômica. Essas
mudanças, de imediato, tinham muito pouco a ver com a alteração do regime
político (QUEIROZ, 1966, p. 18).
Tropas estaduais foram enviadas à cidade de Canudos. Entretanto, os
moradores de Canudos reagiram bravamente e as derrotaram. Sem armas
modernas, mas cheios de vontade de defender o lugar que para eles, era
sagrado, os moradores de Canudos derrotaram duas expedições do Exército e
uma expedição da polícia baiana. A guerra, no sertão da Bahia, que durou cerca
de um ano, envolveu metade do exército e milhares de camponeses e teve,
aproximadamente, cinco mil mortos. O conflito impôs severa derrota às forças
militares.
No sertão, as vitórias alimentaram a crença de que a cidade de Canudos
era protegida por Deus. Na capital, as derrotas feriram os brios do Exército. Em
1897, o governo organizou uma gigantesca e bem armada expedição que deveria
58
arrasar Canudos. Os habitantes do povoado optaram por defender o lugar que
lhes tinha devolvido a esperança de viver e, se preciso, morreriam lutando, que
as chances de saírem com vida eram remotas. Como afirma Hobsbawm, “[...] eu
me inclino a pensar que a idéia de um movimento camponês geral, a menos que
esteja inspirado de fora ou, melhor ainda, de cima, não é absolutamente viável
[...]” (HOBSBAWM, 2002, p. 356).
A luta foi demorada e desesperada. Ao final, o Exército venceu. Milhares
de cadáveres se amontoavam nas ruas de Canudos. Apenas poucas pessoas
escaparam com vida. O sonho de igualdade foi destruído. O sertão voltara à
normalidade.
2.2. O Messias do Império Belo Monte
O messias brasileiro mais conhecido e estudado foi Antônio Conselheiro.
Antônio Vicente Mendes Maciel, que viveu uma infância e uma mocidade
acidentadas, havia sido reservado pelo pai à carreira eclesiástica, mas, não pôde
cumprir seu destino. Ainda que não tenha seguido a carreira eclesiástica, a partir
de 1867 ou 1868, passou a se dedicar totalmente à vida religiosa. Antigo beato,
vitimado por duradouro conflito de família com os Araújo, era homem culto. Foi
caixeiro de armazém, professor e advogado provisionado. Falava e escrevia
fluentemente, inclusive, em latim. Nesse período, o interior do nordeste era
percorrido por missionários itinerantes que, acompanhados por uma turba de
penitentes e de romeiros, iam de lugarejo em lugarejo evangelizando (QUEIROZ,
1965, p.203).
59
Antônio Mendes Maciel foi, inicialmente, um romeiro. É provável que tenha
atravessado o Ceará em direção à Bahia. Não existem muitas informações acerca
desse período de sua vida, que vai de 1867 até 1873. As informações sobre ele
reaparecem em 1873, quando ele visita Itapicuru, no norte da Bahia,
pregando por conta própria. Esse momento foi imortalizado no romance de
Euclides da Cunha: “E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos
até os ombros, barba inculta e longa; face escaveirada, olhar fulgurante [...]”
(CUNHA, 1936, p. 153-164).
Por onde passava recebia doações, aceitando apenas o necessário para o
sustento de cada dia. Eles rezavam, faziam procissões, construíam igrejas,
consertavam muros de cemitérios e, ainda, queimavam, em autos de fé, tudo
aquilo que não condizia com sua moral religiosa. A fama de Antônio Mendes
Maciel crescia e por onde ele passava, atendia às pessoas que queriam vê-lo,
pedir conselhos e ouvi-lo. Chamavam-no Irmão Antônio, por ele ajudar e socorrer.
Manifestava dons de curas, realizava milagres. Quando rezava, as pessoas
manifestavam forças extraordinárias, como afirma Queiroz, elas entravam em
êxtase, para se comunicarem com o próprio Deus (QUEIROZ, 1965, p. 203-218).
2.3. O sonho
Antônio Mendes Maciel sempre contava um sonho em suas prédicas. No
sonho, ele ouvia uma voz que lhe dizia:
Sairás, Antônio, pelo sertão, como teu xará de Lisboa, a
fazer penitência, pregando meu evangelho e as escrituras
sagradas. Sofrerás perseguição dos maus e dos hereges,
60
que retribuirás com benefícios derramados por onde
passares. Terás como Pedro, Paulo e todos os meus
santos discípulos, o meu povo que te seguirá e de que
será o guia. Encher-te-ei de poder na terra e serão tu e
teus adeptos cheios de graças na vida eterna (BENÍCIO
apud HOORNAERT, 1995, p.18).
O sonho revela, a Antônio Vicente, sua missão. Não é nenhum teólogo que
lhe traça o caminho, nem a leitura da Bíblia que lhe orienta: ele dirige seus passos
de acordo com o sonho que lhe vem direto de Deus. Sonho que revela o que a
lógica teme descobrir. Assim como Paulo conhece sua missão através de um
sonho (o sonho de Damasco) e Maria recebe “em sonho” a visita do anjo Gabriel,
Antônio Vicente ouve, em seu sonho, Jesus lhe dizer que a sua missão é a de
“sair pelos sertões e fazer penitência”. O Conselheiro passa a se colocar
imediatamente na presença de Pedro e de Paulo (HOONAERT, 1998, p. 31).
A missão de Antônio Vicente, além de compreender a liderança religiosa,
também compreendia a resolução de questões práticas da vida diária, a solução
de problemas sócio-políticos, econômicos. Missão típica e legítima do messias,
conforme o messianismo: o messias salvador ou redentor, uma individualidade
providencial ou carismática, que viria intervir de forma extraordinária, para o
surgimento de uma era de plena felicidade espiritual e social (QUEIROZ, 1965, p.
213).
À medida que a fama crescia, também cresciam os inimigos. Com a
proclamação da República, o movimento liderado por Antônio Vicente passou a
se manifestar abertamente, encarando a mudança como prenúncio do fim do
mundo. O movimento era marcado pela espera do milênio que, segundo o
imaginário popular, aproximava-se com o fim do culo. Este sempre foi um tema
61
religioso essencial para os camponeses de todas as regiões brasileiras. A
proclamação da República apenas definira um quadro, ainda mal esboçado, de
usurpação e de injustiça, aprofundando o domínio da “lei do cão”, da ordem social
do mal.
Para os seguidores do Conselheiro, a monarquia era simplesmente o
oposto da República, era a “lei de Deus”, a ordem social do bem. Antônio Maciel
considerava que a proclamação da República era apenas a consumação da
iniqüidade de alguns coronéis, senhores de escravos, a vingança contra a
monarquia que, pela mão da Princesa Isabel, decretara um ano antes, a abolição
da escravatura, “que não fez mais do que cumprir a lei do céu porque era
chegado o tempo marcado por Deus para libertar esse povo de semelhante
estado, o mais degradante a que podia ser reduzido o ser humano [...]” (MACIEL
apud NOGUEIRA, 1974, p.72).
No início o Conselheiro andava só, mas, logo, foi encontrando fiéis por
onde passava. Tentou se fixar em Itapicuru, onde fundou o arraial de Bom Jesus.
Este quase se tornou uma cidade. Neste arraial, ficou aproximadamente doze
anos (QUEIROZ, 1965, p. 203).
No caso de Antônio Conselheiro, não foi ele quem assumiu o papel de
divindade, foi o grupo de crentes que lhe atribui este papel. Ele mesmo
permaneceu como no peristilo
5
, como um enviado, quando muito, como um anjo.
A coletividade foi mais adiante, encarando-o como portador de uma essência
sobrenatural. Que por esta razão fora denominada “Santuário”, a casinhola
fortificada que lhe servia de morada. Desse modo, foram traçados os limites de
5
(Do gr. perístylon, pelo lat.perstylu.)Galeria de colunas em volta de um pátio ou de um edifício.
FERREIRA, Aurélio. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira,
1986.
62
seu poder de “delegado do céu”. Este comportamento dos seguidores do
Conselheiro está na essência do Messianismo.
Referindo-se aos republicanos e aos fazendeiros, dizia Antônio Conselheiro
que:
Os homens ficaram assombrados com tão belo
acontecimento, porque sentiam o braço que sustentava
o seu trabalho, donde formava seu tesouro,
correspondendo com ingratidão e insensibilidade ao
trabalho que desse povo recebiam [...] (LEVINE, 1998, p.
05).
Entrou sertão afora seguido pelos fiéis, procurando, no deserto dos
chapadões que foram desolados pela seca, um lugar propício para fundar a nova
Jerusalém, onde os privilegiados que o seguiam poderiam esperar tranqüilos pelo
anunciado Juízo Final. A cidade de Canudos seria o lugar de espera e tudo o que
estava acontecendo, inclusive, a guerra contra os sertanejos, era apenas o
conjunto de sinais que anunciava o fim dos tempos. “Deus estaria esperando a
conversão do povo para instalar a monarquia novamente”, esta era a visão do
Conselheiro, pois segundo ele, a República acabaria brevemente. Esta nova
monarquia era aquela, dos redimidos, instituída antes das trevas, e se instalaria
com o retorno de Dom Sebastião, rei de Portugal desaparecido na batalha de
Alcácer Kibir, no combate aos mouros, no século XVI (HERMAN, 2000, p. 47).
Existiam diferenças significativas entre a interpretação de Conselheiro
acerca da situação e a interpretação de seus seguidores. O primeiro fazia uma
interpretação política e de classe do processo que estava atingindo o povo,
63
enquanto seus seguidores incorporavam uma esperança messiânica e
escatológica, certamente propiciada e justificada pelo próprio Conselheiro.
Outros motivos também levaram o Conselheiro a esconder seu povo do
governo republicano. Governo que era considerado pelo movimento como o
Anticristo. Entre estes motivos estão relacionados: o rompimento do Estado
brasileiro com a Igreja Católica, que se deu mediante a adoção da nova
Constituição, a qual instituía o casamento civil e, ainda, a cobrança de taxas
abusivas que pioravam, ainda mais, a situação financeira dos sertanejos.
2.4. O espaço
Conselheiro chegou com seu povo na velha fazenda de gado abandonada
à beira do rio Vaza-Barris, e ali, instalou-se, denominando Belo Monte o arraial
que imediatamente surgiu. Sermões e milagres continuavam atraindo pessoas
para a antiga fazenda de Canudos. Além da sede, inicialmente havia umas
poucas casas. O vale foi escolhido porque era um local onde se poderia obter
facilmente a água, o que facilitava o plantio. Construíram casas simples, de pau-
a-pique, mas, com dependências necessárias. Habitações iguais às de qualquer
outro vilarejo do sertão da época.
O espaço geográfico da cidade era dividido em duas partes, uma habitada
pela nobreza, que era constituída pelos ricos, a outra pelos pobres, que viviam de
esmolas. O bairro mais abastado tinha ruas mais largas e mais bem alinhadas e
casas mais confortáveis. no segundo bairro, bem maior em extensão,
moravam aqueles que constituíam a maioria da população, que eram os mais
pobres. Situação que se verifica, ainda hoje, em qualquer cidade brasileira.
64
2.5. A Organização Social
Sob o comando, absoluto e Superior, de Antônio Conselheiro, as atividades
em Canudos, dividia-se em vários setores dirigidos por subchefes. Uns geriam os
negócios da guerra, outros a administração civil e interior. Havia uma chefia
econômica e, também, uma espécie de juiz de paz, que anotava casamentos e
zelava pela ordem interna do povoado. Havia, ainda, um administrador dos bens
da comunidade.
Em troca, os gestores recebiam terras que deveriam ser cultivadas em prol
do bem comum, contavam, ainda, com o direito a vestuários e à ração. A Santa
Companhia formava os grupos que deveriam pedir proventos nas vilas próximas,
enquanto outros grupos eram enviados para pedir esmolas nas fazendas. Tudo
isto para aumentar os recursos em mantimentos.
No grupo, existia uma hierarquia interna, cujo vértice era Antônio
Conselheiro, ponto mais elevado da escala social. Conselheiro era o chefe, o
pastor, o pai. Estes eram os nomes atribuídos pelos componentes do grupo ao
seu líder. Por vezes, referiam-se a ele como “nosso pai”. Sua autoridade era
indiscutível: dominava e supervisionava tudo, desde o santuário até a última
choupana. Era servido sempre com obediência e presteza. Iniciada a batalha, era
ele quem escolhia os “soldados” que deveriam lutar. Ele apontava seu cajado em
direção aos escolhidos. A cidade de Canudos vivia sob sua vigilância, seu
domínio.
Os fiéis, por sua vez, foram distribuídos em certas posições sociais. Os
grupos, portanto, não foram abandonados à pura emoção e efervescência afetiva,
65
como afirmam alguns autores. No interior das “cidades santas” existem conjuntos
de família e de compadrio. Até Euclides da Cunha, deixando de lado a categoria
analítica do fanatismo e da patologia, atesta que, em Canudos, existia uma ordem
inalterada, uma rotina estabelecida dentro de quadros bem normais.
No reduto do Conselheiro, os homens acreditavam viver uma existência
fora do comum, confundida com o paraíso terrestre. No reduto, ninguém morria
porque se considerava que o homem “passava para o lado dos seguidores do
messias” aos quais ia comunicar o que estava acontecendo na terra.
Acreditavam, também, que num dia muito próximo, todos voltariam com o Monge.
A cena descreve este retorno da seguinte forma: o Monge estaria rodeado pelos
homens que morreram e por estandartes brancos que flutuariam ao vento. Para
maior alegria, os velhos regressavam moços, os feios bonitos. Lugar sagrado, o
reduto garantia tudo isto aos homens que ali queriam se estabelecer. A
restauração da Monarquia, o fim da República que simbolizava o mal, era mesmo
a inauguração do tempo final. Tempo no qual Deus se tornaria visível. O governo
divino que reinava no passado precisava ser restabelecido.
Em Belo Monte, uma estrutura forte e recíproca de deveres e de
compensações psicológicas exercia grande atração sobre aqueles homens e
mulheres. Homens corajosos o suficiente para agir de acordo com seu sonho ou
desesperados o bastante para negar suas vidas miseráveis, mas previsíveis. Vida
que se pode considerar suficiente, quando comparada com a vida típica dos
sertanejos marginalizados de uma região que sofria um declínio econômico
vertiginoso, a então, desconhecido. A estrutura familiar foi conservada em
Canudos. A moral pregada pelo messias é a tradicionalmente conhecida. Ela
se tornou mais rigorosa e puritana.
66
Com relação às questões religiosas, existia um acólito que vigiava o bom
cumprimento de deveres por parte da coletividade. Entre estes deveres, estava
incluída a participação no culto, o cuidado com as igrejas, os serviços de chaveiro
e de mordomo do Conselheiro, o qual tinha, sob suas ordens, oito beatas vestidas
a caráter
6
. Estas beatas estavam encarregadas de servir as refeições, de cuidar
das roupas do mestre e de acenderam, todos os dias, fogueiras para as rezas.
Os doze chefes mais importantes eram chamados de apóstolos. Além
destes, havia uma guarda especial, denominada Companhia do Bom Jesus,
fundada por Antônio Maciel e, ainda, a Guarda Católica também criada pelo
Conselheiro, que através do uniforme se distinguia dos outros adeptos. Era uma
espécie de guarda pessoal do Conselheiro (QUEIROZ, 1965, p. 210-213).
2.6. Causas dos Conflitos
Os problemas do Conselheiro e, mais tarde, de seus seguidores
começaram quando o líder rasgou os editais da Câmara de Bom Conselho, os
quais determinavam a cobrança de impostos fiscais. Esta cobrança foi uma das
questões primordiais nos primeiros anos da República. A transição para o novo
regime não trouxe benefício para a grande maioria da população. A cidade de
Canudos estava localizada em uma região que era castigada por um clima severo
e, normalmente, por uma terra pouco convidativa. Nela, estabeleceram-se
minifúndios inviáveis para a economia. A seca assolava o sertão. Junto com ela,
os sertanejos experimentaram a miséria, a fome, a desesperança, mas, o novo
governo insistia em cobrar altos impostos. “Os abusos de autoridade se repetiam
tão freqüentemente e foram de tal sorte estes abusos, que os sertanejos, por fim,
6
Eram vestidos azuis cingidas de cordas de linho (CUNHA 1936, p. 202).
67
temiam mais a polícia do que os bandidos" (GARCIA apud NOGUEIRA, 1965, p.
34).
Antônio Maciel não usurpava funções sacerdotais, apenas pregava a
doutrina do evangelho e da tradição da Igreja Católica Romana, mas, num estilo
leigo. Foi pregador leigo como muitos outros na história, inclusive, atualmente,
esta prática é recomendada pela Igreja Católica. Os sertanejos de Canudos
permaneceram segregados da contaminação do mundo urbano, criando seus
redutos, conhecidos como cidade santa, território sagrado.
Começam, então, a aparecer crescentes problemas com autoridades civis
e religiosas. A reclamação das autoridades civis é a de que elas não conseguem
arrecadar o mínimo necessário para a execução das mais necessárias obras
públicas, não obstante, todos correm atrás do beato oferecendo-lhe “esmola e
braços para o grande mutirão da construção, na qual ele administra importantes
somas de dinheiro" (HOORNAERT, 1997, p. 39).
Eles sentem que a presença do messias é incômoda e ameaçadora. O
primeiro choque vem pela diminuição do espaço e pela perda de poder. O juiz que
se indispôs nesta ocasião, pouco mais tarde, será o responsável pela acusação
de Antônio Conselheiro, pedindo tropas para resguardar a cidade de Juazeiro
contra um possível ataque dos jagunços
7
.
A partir deste momento, o quadro de interpretação da situação dos
sertanejos de Canudos temuito pouco a ver com o Conselheiro e com os seus
seguidores. O caso de Canudos foi reinterpretado à luz do temor republicano -
sobretudo militar - de restauração da Monarquia. Foi igualmente interpretado em
7
Como eram também chamados os adeptos do Conselheiro, por aqueles que via o movimento com antipatia.
(BENÍCIO apud MENEZES, Jornal da USP, 2003. p. 13).
68
função das disputas políticas regionais da Bahia, entre coronéis do sertão e o
governador Luiz Vianna, acusado de ser simpático com a Monarquia.
De um lado, foi importante o envolvimento do Barão de Jeremoabo - chefe
político da região de Canudos, indisposto politicamente com o governador,
interessado em comprometê-lo em supostas alianças com o Conselheiro - na
compreensão dos eventos ocorridos. A acusação de monarquismo indispunha
Luiz Vianna com os militares. Neste momento, iniciava-se o governo de Prudente
de Moraes, conduzido ao poder por eleições livres após a ditadura militar do
Marechal Floriano Peixoto.
Prudente de Moraes estava licenciado da presidência em 1896 quando
começou o conflito em Canudos. Em seu lugar, governava Manuel Vitorino, vice-
presidente baiano, que interessado em evitar que Prudente de Moraes
reassumisse o poder, teria entrado em entendimentos com os florianistas para
terminar o mandato, garantindo a sucessão para algum militar do grupo de
Floriano. Possivelmente, esse sucessor seria o coronel Moreira César,
envolvido em combates no sul. Os interesses dos coronéis sertanejos, contrários
a Luiz Vianna, prevaleceram (MONIS apud MARTINS, 1981, p. 54-55).
A guerra de Canudos constituiu-se, portanto, num desdobramento das
disputas entre coronéis sertanejos ou entre estes e o governo. A derrota dos
habitantes de Canudos passou a representar uma peça importante na disputa
pelo poder federal. Entre militares e civis ligados à produção do café.
Foram quatro expedições militares. A última delas contou com canhões e
com mais de dez mil soldados. As três primeiras expedições foram derrotadas, o
que permitiu que os camponeses se valessem, posteriormente, das armas do
próprio inimigo. A derrota resultou inclusive na morte de Moreira César. Num
69
primeiro momento, a quarta expedição foi igualmente derrotada, mas, logo em
seguida, foi reforçada para garantir o esmagamento da população de Canudos.
2.7. Influência da Imprensa
As primeiras notícias telegrafadas no Brasil foram sobre Canudos. O
telégrafo foi utilizado pelos políticos republicanos para consolidar, enfim, o poder
da administração federal. Administração que tinha um controle ferrenho sobre o
que poderia ser publicado. Por isso, muitos fatos sobre Canudos podem ter sido
falseados, pintados como um complô monarquista, o que serviu para intensificar o
impacto psicológico da situação dominada pela Nova República.
Com certeza, o relato mais conhecido e também o mais dramático, foi o
texto sobre Canudos que fora escrito por Euclides da Cunha. Quando seu
trabalho foi publicado, em 1902, tornou–se imediatamente base da interpretação
oficial do que aconteceu em Canudos, do significado que estes acontecimentos
assumiram. Não que as observações de Euclides fossem singulares. Houve,
antes dele, uma série de outras vozes, algumas contemporâneas aos primeiros
dias de existência da comunidade e todas partindo de uma perspectiva elitista. Os
intelectuais brasileiros, desde os idos do ano de 1870, demonstravam uma
preocupação com os problemas do sertão na época.
Os brasileiros chegaram a ser caracterizados como mestiços e, também,
como caboclos analfabetos, chamados de ignorantes e de supersticiosos por
exercer uma forma muito rústica e austera de catolicismo. Contudo, esta
caracterização não foi atribuída a todos eles. Parece provável que os moradores
das cidades do Sul raramente pensassem nos desamparados Norte e Nordeste
70
do país. Considerando que, ao longo do Império, os intelectuais costumavam
receber educação semelhante à que era compartilhada pelo pensamento elitista
do Brasil, pode-se dizer que houve, no conjunto, uma visão elitista compartilhada
pela sociedade, hostil aos atrasos de um mundo rural. Percebe-se, hoje, que o
livro Os Sertões teve grande impacto na consciência nacional por ter difundido
uma visão dos sertanejos como um povo pobre, como um grupo de pessoas
fanáticas, loucas.
Ao longo de pelo menos meio culo, historiadores
brasileiros de primeira linha aplaudiram a explicação
euclidiana de Canudos como resultado da geografia, do
clima e de raça. Um conflito religioso gerado pelo
barbarismo sertanejo (CALMÓN, 1940, p. 345).
A publicação de Os Sertões marca também o amadurecimento intelectual
acerca do Brasil, tanto que se tornou um texto consagrado, chamado de “a bíblia
da nacionalidade brasileira”. A interpretação de Euclides da Cunha permaneceu
praticamente intocável. Ela prevalecia como verdade absoluta da época.
Euclides da Cunha narra pormenores numa prosa descritiva que de tão
brilhante torna os acontecimentos quase inacreditáveis. Muitos deles se passam
em Canudos, mas, admite-se que ele tenha inserido ocorrências de outros
lugares. Afinal, Euclides da Cunha esteve em Canudos apenas no final da guerra
e brevemente. Suas narrativas têm um colorido próprio, inspirado por uma visão
angustiada do que considerava ser terrível fanatismo dos conselheiristas. A
história que ele conta é tão convincente, persuasiva, que muitos leitores a
consideram como a descrição exata da própria realidade e o como uma visão,
uma perspectiva, derivada de fatos, especialmente, quando se leva em conta que
71
o tratamento dado ao tema é inflamado pelo fervor do próprio autor e por seu
excepcional talento para descrições épicas
(
LEVINE, 1995, p. 324).
Ainda que tenha considerado a guerra de Canudos injusta e selvagem,
pelas brutalidades que presenciou, incluindo, a degola freqüente dos prisioneiros
indefesos, Euclides da Cunha, o maior cronista daquelas lutas, antigo militar, que
acompanhou as tropas como correspondente de guerra, expressou, com
freqüência, o seu preconceito contra os sertanejos. Segundo Euclides da Cunha,
os sertanejos eram ignorantes, preguiçosos, e, ainda, por serem mestiços, foram
caracterizados como resultado de uma degeneração racial.
Euclides da Cunha, que foi considerado socialista, ao registrar esses
preconceitos contra os sertanejos em luta, não via, senão, com os olhos de quem
domina. Ainda que tenha manifestado certa compaixão pelos oprimidos, não via
na luta camponesa o fim dos tempos, o mundo novo da esperança messiânica
dos sertanejos, os quais se concretizavam exatamente naquilo que ele
considerava os defeitos e as imperfeições da cidade santa de Belo Monte.
Com relação ao conflito propriamente dito, pode-se afirmar que a cidade de
Canudos funcionou como um estopim da última batalha entre monarquistas e
republicanos. A primeira década da República assistiu a várias insurreições
regionais, a rivalidades sórdidas que jogavam uns Estados contra os outros,
unidades federativas autônomas recém-criadas e, ainda, a uma depressão
econômica desencadeada em meados da década de 1890.
Neste contexto, é que surgiram relatos acerca da incompetência militar e
acerca de um suposto fanatismo monárquico que ameaçavam emergir. Pareciam
verdadeiras ameaças à própria estabilidade do governo brasileiro. Obviamente, a
maior parte das declarações era falsa, o que, no entanto, não fazia a ameaça
72
parecer menos real. Oficiais influentes como o general Artur Oscar Andrade
Guimarães, comandante do Segundo Distrito Militar e líder da quarta e última
expedição contra Canudos, distribuíram aos repórteres, gentilmente, cópias
falsificadas de cartas que relatavam, por exemplo, o uso, por parte dos líderes
monarquistas, da casa de verão do Imperador em Petrópolis como base de
articulação de um complô para derrubar a República.
Este exemplo demonstra como o conflito havia inflamado os ânimos: o
general Artur Oscar alimentou de propósito a ansiedade geral, espalhando boatos
e oferecendo aos repórteres a sua interpretação política dos acontecimentos.
Caso ele tenha feito isto movido por ambição pessoal, seu plano malogrou, que
os desastres militares serviram para comprometer o prestígio da instituição,
além de levar Prudente de Moraes, que lutava para manter o controle da situação,
a despedir o ministro da Guerra (MOTA, 1979, p.54-155).
A imprensa foi inundada por todo tipo de notícia referente a Canudos. Era
notória a existência de um fascínio geral pelos relatos acerca de “fanáticos
religiosos” ensandecidos. O conflito invadia não apenas os editoriais e colunas,
como também crônicas e histórias humorísticas. Pela primeira vez, os jornais
brasileiros estavam sendo usados com o intuito de criar um pânico generalizado.
Notícias sobre a cidade de Canudos apareciam diariamente na imprensa
brasileira, e, quase sempre, na primeira página. Efetivamente, este foi o primeiro
acontecimento a ter cobertura diária na imprensa brasileira.
Uma dúzia de grandes jornais enviou correspondentes para o campo de
batalha, oferecendo as mais diversas informações sobre os acontecimentos. Em
contrapartida, durante a guerra civil no Rio Grande do Sul, que ocorreu na mesma
época, não houve nenhum tipo de cobertura jornalística. Alguma coisa em
73
Canudos provocava ansiedade, que, por sua vez, seria parcialmente mitigada
quando Canudos fosse definitivamente destruída. E um novo arranjo político
devolvesse ao Brasil seu equilíbrio conservador, mas com feições de
modernidade ou, quem sabe, seu sistema político anterior, o Império, porque
quase todos os brasileiros estavam inseguros quanto a promessa da nova
República (LEVINE, 1995, p. 53).
Para os ditos cidadãos politicamente conscientes, as notícias sobre a
ferocidade da insurreição sertaneja ameaçavam tudo o que aquela República
modernizadora representava, especialmente, depois dos primeiros reveses
sofridos pelos militares. Pior ainda, a cidade de Canudos representava uma
quebra radical em relação ao que se supunha ser legado pacífico do passado
brasileiro. As notícias que chegavam da frente de combate apresentavam,
reiteradamente, o inimigo como “fanático” e “astuto”.
Praticamente todos os políticos brasileiros, acometidos pelo frenesi geral,
mergulharam numa guerra de pronunciamentos. A imprensa se tornou a arena
onde ocorriam as principais disputas eleitorais. Estas disputas não envolveram
apenas os maiores jornais e revistas das grandes cidades. Escritórios de
negócios e gráficas pertencentes a editores controversos, especialmente os de
tendência monarquista, também eram palco para estas disputas. No Brasil do
século XIX, as taxas de analfabetismo eram grandes, mas, a atividade jornalística
era intensa. Cada facção política disseminava suas idéias através dos jornais.
No ano de 1897, quando ocorreu a última campanha contra Canudos, vinte
e sente novos jornais foram criados na capital federal. Quase setecentos jornais
foram publicados na Bahia no decorrer do culo e auma aldeia vizinha teve
74
nove jornais circulando. A maioria dos jornais não sobreviveu muito tempo, mas
para cada um que fechava, outro aparecia em seu lugar.
Os jornais mais efêmeros, O Bahia e O Republicano, na verdade, eram
simples volantes satíricos e maldosamente provocativos. Na jovem República era
comum a troca de insultos e de críticas violentas entre editores monarquistas e
republicanos. Algumas destas injúrias eram cômicas: em Salvador, o jornal A
Bahia começou a se referir ao presidente Prudente de Moraes como
"marabirigunço" - palavra híbrida que jogava com o apelido do presidente, "o
biriba", ou seja, o rústico, com a expressão “os maragatos”, que se refere à facção
federalista envolvida na revolta do Rio Grande do Sul, e, por fim, com a palavra
“jagunço”, que se refere, no caso, aos vaqueiros que formavam o exército
conselheirista. Outras alfinetadas eram menos inocentes. Ataques pessoais
produzidos da maneira mais crua e mais violenta estavam na ordem do dia.
Muitos jornais imprimiam artigos falsamente atribuídos a Antônio Conselheiro,
todos altamente sarcásticos. Foi publicado, inclusive, um suposto manifesto em
que o místico ridicularizava o governo.
O Diário de Notícias de Salvador publicou, sem maiores explicações, um
manifesto monarquista intitulado Credo de Antônio Conselheiro, que, embora, não
houvesse sido escrito por ele, correspondia aos seus sentimentos monarquistas.
Em todo Brasil, quaisquer publicações referentes a Canudos ou ao conselheiro
vendiam muito bem, por isso, os editores rodavam quase tudo que tivesse relação
com o assunto, não importando a autenticidade. O que interessava era estimular
a circulação. Os jornais do país usavam o episódio de Canudos para apresentar
um tipo de reportagem sensacionalista nunca antes vista no país, que, apesar de
75
contar com um jornalismo prolífico, gozava também da tradição de ter uma
imprensa razoavelmente séria (JORNAIS, apud LEVINE, 1965, p. 51-60).
Com o estímulo dado pela atividade jornalística, os conflitos entre
monarquistas e republicanos acabaram se transformando numa questão
problemática para o governo nacional. O governo temia que a agitação
monarquista atrapalhasse as tentativas de São Paulo de conseguir empréstimos
do exterior.
A opinião dominante, logo após a destruição da cidade de Canudos, era a
de que Euclides da Cunha estava mesmo certo quanto à existência de uma
dualidade entre sociedade brasileira do litoral e do sertão. Euclides da Cunha,
como positivista, questionava, muito antes de Canudos, o progresso nacional
manchado pela miscigenação da população brasileira. Para o autor, seu trabalho
sobre Canudos não era uma defesa do sertanejo, e sim um ataque, apesar das
barbaridades cometidas pelos “civilizados” líderes da nação. Todos os seus
escritos, e não somente Os Sertões, ridicularizavam a arrogância e a
incompetência dos oficiais civis e militares.
Em 1897, num de seus relatórios diários produzidos na frente de combate,
ele contou a história de um jagunço que havia sido capturado e levado para
Salvador, onde militares e repórteres o interrogaram, esperando ouvir relatos
referentes a milagres do Conselheiro e outras histórias do gênero. Quando o
jovem calmamente respondeu que nunca havia ouvido falar em milagre algum,
eles o pressionaram, perguntando que tipo de coisas o Conselheiro havia
prometido para convencer seus seguidores a morrer por ele. A resposta foi
simples e direta: “salvar nossas almas”.
76
Toda essa tragédia nacional, que foi o massacre de Canudos, começou
com um incidente banal. O Conselheiro comprou madeira na cidade vizinha e
surgiu um boato de que o messias iria buscá-la pessoalmente com seus adeptos.
A madeira era para terminar a construção da nova igreja. A notícia se transformou
em uma tremenda ameaça para o Estado, pois, o comentário que ela produziu foi
o de que os seguidores do Conselheiro iriam invadir a cidade vizinha de Juazeiro,
ordenando saque geral. Segundo os boatos, eles também se vingariam do juiz da
cidade por ele ter cometido um ato contra os adeptos do Conselheiro.
Assim, inicia-se o maior massacre de inocentes visto no Brasil.
Destruindo Canudos, a jovem República cometera um erro histórico, digno do
arrependimento de Rui Barbosa, que lamenta por não haver impetrado um
Hábeas corpus em favor dos canudenses (LEVINE, 1995, p.59).
A História de Canudos está entre os fatos sociais mais estudados e mais
cantados em verso e prosa. Chamou a atenção de inúmeros pesquisadores no
mundo todo e foi revisto e recortado sob vários ângulos. Atualmente, mais de cem
anos depois, o Conselheiro figura entre as referências mais populares de todo o
país, de norte a sul, de leste a oeste.
O que resta aos donos do poder é o incansável empenho em manipular a
mensagem de Canudos, num processo que já dura um século. Mas, apesar
destas tentativas do poder instituído, também existe um processo igualmente
tenaz, por parte dos herdeiros dos sertanejos e dos que com eles se
comprometem, de preservação da história original com o nervo ativo de
sobrevivência de quem imprimiu o ritmo e as táticas do início do mundo.
Depois de fazer um apanhado histórico deste contexto, pode-se concluir
que o momento também contribuiu para que a cidade de Canudos se tornasse
77
conhecida, pois, talvez, ela não tivesse chamado tanta atenção se não fosse o
choque provocado pela queda da Monarquia, um acontecimento bastante
significativo e assustador para os sertanejos que estavam atentos aos assuntos
políticos.
No contexto nacional, a cidade de Canudos significou um trauma que
surgiu de inúmeras outras questões. O fato de a comunidade ter se tornado uma
ameaça foi, em grande parte, circunstancial. Os proprietários se sentiam
vulneráveis economicamente. Além disso, a vulnerabilidade dos Estados do
Nordeste sob a Constituição republicana federalista também se manifestava.
Políticos regionais e nacionais vislumbraram, nos passivos canudenses, o bode
expiatório perfeito ao qual poderiam atribuir fantasiosas maquinações
monarquistas. A transição para a República não foi tranqüila como nos ensina os
livros de história aprovados pelo governo da época.
Pelo contrário, a transição não aconteceu sem luta. Estavam em jogo
propostas diferentes para o futuro da nação. Enquanto uns queriam o país livre,
outros queriam o autoritarismo positivista, que era representado pela República.
Esta luta fez com que os brasileiros compreendessem e sentissem que os
problemas eram muito mais complexos do que admitiam os governantes. Ainda
que a cidade de Canudos tivesse sido um refúgio de penitentes revoltados com o
governo e sedentos de salvação pessoal, ainda que a cidade tenha sido um
centro difusor de revolta e de subversão, o Conselheiro e os seus seguidores não
foram perseguidos pela recém-criada República. Por supostamente serem
monarquistas. O que a recém-criada República combatia não era a monarquia,
como perceberam muitos e muito depressa, e sim a insurreição, a subversão dos
pobres do campo.
78
A nação brasileira da época, que ignorou a condição da população rural, e,
por conveniência, não tomou conhecimento das implicações do massacre contra
Canudos, era antinacional e estava praticamente falida, como qualquer outra no
final do século XIX, decidida a adotar uma imagem de modernização
compartilhada apenas por uma pequena parcela da população (LEVINE, 1965, p.
43).
Atualmente, o histórico sítio de Canudos foi inundado pelas águas de uma
represa construída em 1970 pelo governo federal. Ainda hoje podem ser
encontrados pedaços de crânios e outros vestígios do furioso conflito armado que
culminou com a destruição da cidade de Canudos. Uma pobreza crônica aflige a
região. A profecia do Conselheiro relativa à chegada da água no sertão acabou se
realizando, mas pouco mudou o padrão de vida dos sertanejos.
No que diz respeito à relação entre o líder e os liderados, pode-se notar
que entre eles se uma empatia e um pacto silencioso em torno de objetos e
objetivos, crenças, rituais, ambições de santidade e de fartura material, cujo
fundamento é essencialmente místico religioso. Inicialmente, encontramos esta
situação quando os fiéis abandonavam tudo para seguir o messias, sempre com
boa vontade construíam igrejas e reparavam muros de cemitérios, se esforçavam
exaustivamente para erguer torres de igrejas e ambicionavam pertencer a
Companhia de Jesus, pois, para participar desta agremiação, eles sentiam no
dever de contribuir com dinheiro para o líder, ou eles vendiam o pouco que
possuíam, ou, então, furtavam.
É possível verificar um denominador comum entre os fenômenos de
Messianismo e os fenômenos ocorridos em Canudos. O Movimento de Antônio
Conselheiro compreende quase todos os pontos observados no messianismo. De
79
acordo com Queiroz, os dois fenômenos divergem apenas em nuances bem sutis.
A autora explica que estas divergências são verificadas somente no surgimento
do movimento liderado por Antônio Conselheiro. Neste momento, os fiéis insistem
em afirmar que o Conselheiro é o próprio Deus, ainda, que o próprio líder negue
esta denominação e por reiteradas vezes afirme ser apenas um enviado. Em
outras ocasiões, ele diz que é guiado por um sonho profético.
Como os demais, o movimento de Canudos também compreendia uma
reação por parte de uma camada da população que pretendia mudar sua posição
social. Tratava-se de processos internos de anomia porque os sertanejos se
sentiam rebaixados quando comparados à população litorânea.
O messias, em Canudos, foi agente disseminador do progresso notório e
não do seu freio como afirmam alguns observadores. Os indícios que temos de
Canudos são suficientes para se colocar em dúvida a explicação, segundo a qual,
os moradores da cidade estavam resistindo a inovações, eram excessivamente
conservadores. O movimento mostrou que, nem sempre, tradicionalismo quer
dizer oposição ao progresso.
O movimento liderado por Antônio Conselheiro levou desenvolvimento
econômico para a comunidade, buscou reestruturar e reorganizar a vida social
que passava pelo processo de anomia. O movimento operou essa reorganização,
forneceu a base para esse progresso, dando oportunidade aos moradores para
uma melhoria em seu nível de vida. O messias desempenhava o papel de
financiador benevolente, pois, sabia que podia contar com seus adeptos.
Benício em seus relatos da época se aproxima mais de uma imagem real
do Conselheiro, deixando de apresenta-lo como inimigo monarquista ou um
80
religioso louco e fanático, chegando mais perto de uma pessoa “carne e osso
(BENÍCIO apud MENEZES, 2003, p. 13).
Também foi possível observar a existência de vários paralelos entre os
movimentos analisados por este estudo. Uma vez que, “todos os episódios têm
como fulcro um indivíduo que acredita possuir atributos sobrenaturais e que
vaticina catástrofe de que se salvarão seus adeptos” (QUEIROZ, 1965, p. 203-
206).
A proclamação da República fez o movimento endurecer e a oposição à
nova forma de governo passou a se manifestar abertamente. A República era
encarada como o prenúncio do fim do mundo. Antônio Conselheiro deixou, então,
a vila de Bom Jesus, quase que totalmente por ele edificada, para se enveredar
sertão afora, seguido pelos fiéis, à procura nos desertos dos chapadões
desolados pela seca um local propício para instalar a nova Jerusalém, onde os
privilegiados do Conselheiro, pudessem esperar tranqüilos o anunciado Juízo
Final furtando-se ao republicano governo do anticristo. Os adeptos
desencantados buscavam um reino ou procuravam fundar uma cidade santa.
Para isso, estes adeptos colocavam em prática os comportamentos aconselhados
pelo líder.
Foi em Canudos, no Império do Belo Monte, que o Paraíso Terrestre se
colocou ao alcance dos fiéis. Habitando ali, penetravam no universo sagrado,
deixando para trás misérias e sofrimentos da vida terrena e profana (ELIADE,
1991, p. 182).
A decisão de remover os fiéis para a cidade santa, relativamente segura,
não pode ser considerada guerra. Apesar de se constituir em uma ameaça ao
status quo. Essa sensação de ameaça foi exacerbada pelo modo como o
81
Conselheiro lidava com os proprietários rurais e com as autoridades civis e
eclesiásticas. O Conselheiro era teimoso e irritadiço. Ele estava propenso a
chamar seus inimigos de agentes heréticos do Anticristo, assim como estes
inimigos estavam propensos a chamar Antônio Conselheiro de fanático
enlouquecido.
De qualquer forma, ele era um revolucionário e sua comunidade era
subversiva. Isso porque eles rejeitavam o pagamento de impostos e haviam
queimado os cartazes que continham os editais do governo que determinavam a
cobrança dos impostos devidos. Euclides da Cunha, entre outros, estava certo ao
chamar Canudos de rebelião. Desde o início, o Conselheiro sabia quais motivos
levavam o Brasil a sempre reagir com violência contra qualquer insurreição ou
manifestação política contrária ao sistema vigente. Ele sabia que uma rebelião
pública resultaria em prontas retaliações militares.
Nem tudo são enigmas: a esmagadora maioria das pessoas que seguiram
o messias enquadra-se na categoria de homens pertencentes à classe dominada
na formação social capitalista, quando se considera a divisão do país em elites e
campesinos. Neste movimento se encontravam pessoas que, desde sempre
estavam às voltas com os grilhões da pobreza. Eram pessoas que constituíam as
massas campesinas e proletárias, desempregadas por decorrência de crises
econômicas, geradas pelas crises do sistema capitalista. Crises que, por sua vez,
já tinham sido analisadas por Marx no Manifesto Comunista (COUTINHO, 1998).
Outra questão que também deve ser considerada se relaciona com a idéia
de que o Brasil seria uma nação pacífica, uma nação com uma conjuntura
idealizada. Apenas a mitologia pode conceber o país como uma nação marcada
pela passividade. As autoridades brasileiras sempre combateram, através da
82
guerra, as rebeliões ou as populações “não civilizadas”. Considere-se o exemplo
oferecido pelas expedições organizadas para destruir Canudos, ou, então,
Palmares, uma “República“ de escravos foragidos. A expedição para destruir
Palmares foi formada na última década do século XVII.
Uma outra falácia que também permeia este período da história e que
também deve ser mencionada é a de que não existiria racismo. Trata-se de uma
falácia porque foi a chamada raça dos sublevados que permitiu à elite justificar as
execuções sumárias daqueles que haviam sobrevivido. A questão racial também
impediu o surgimento de qualquer tipo de mártir ou de qualquer glorificação
póstuma, como ocorrera com os “heróis” da Inconfidência Mineira. Com o intuito
de racionalizar o massacre da população de Canudos e de embasar a decisão de
varrer a povoação da face da terra - não que se admitisse a necessidade de
justificar essas ações - os cronistas alegaram que aquele povoado de refugiados
possuía características não antiquadas como também psicóticas. O
Conselheiro foi apresentado como ameaça viva à República. Esta acusação
parecia tão verdadeira para os membros da elite regional, quanto parecia
verdadeira a idéia da figura santificada do Conselheiro para os residentes
humildes dos vilarejos e das cidades do sertão.
A cidade de Canudos ficou registrada na consciência brasileira como algo
assustador. Posteriormente, Bastos definiu o movimento, como outros intelectuais
de esquerda, da seguinte forma: “uma heróica rebelião popular contra o
feudalismo, [...] uma das mais estupendas manifestações de coragem humana no
Brasil” (BASTOS, 1986, p. 7-8). Desse modo, ele desfez, inequivocamente, o que
ainda pode restar de uma teoria que busca interpretar o Brasil a partir da
83
contestação do dualismo da sua formação econômica. Teoria contestada, entre
outros, por Levine.
O conflito em Canudos foi um dos episódios mais sangrentos da história da
nação e contou com uma resistência mais heróica que a de Tróia ou de Verdun.
Apesar de tudo, a maioria dos intelectuais brasileiros reiterou a visão de Euclides
da Cunha que definiu o conflito muito mais como um símbolo distópico da
manipulação dos impulsos primitivos de um campesinato atrasado por um falso
messias.
Faz-se necessário mencionar, também, a mudança na concepção do
Conselheiro acerca do movimento que liderava. Ou ele se tornou arrogante,
convencido que estava da invencibilidade de sua cidade, ou passou a acreditar
que toda aquela conjuntura messiânica era irreversível e que o conflito armado
aceleraria o advento do Dia do Juízo, pois, se estivesse mais preocupado em
vencer teria inculcado em seus fiéis, formas de resistência mundanas.
Até que ponto a corajosa decisão tomada por milhares de sertanejos de
levantar acampamento e de seguir o Conselheiro rumo à sua cidade santa não
representava um desafio coletivo? Ou a decisão era uma tentativa de salvar a
fantasia coletiva? Estas alternativas de interpretação são oferecidas pelas teorias
psicossociais, mencionadas no início deste trabalho (cf. 1).
O estudo da história de Canudos deixa várias lições, entre as quais:
a) Não se deve abrir mão do sonho de liberdade. A cidade de Canudos
poderia ter tido um final melhor. Ela poderia ter sido integrada à vida do
Estado no decorrer dos anos, se não fosse a atitude leviana dos
poderosos;
84
b) Interesses escusos sempre existirão por trás de toda guerra. Alguns
fatos sempre serão passíveis de manipulações por parte do poder
constituído;
c) A maioria da imprensa está sempre disposta a favorecer as elites
dominantes. Isto porque sempre existe a guerra de informações que
obscurece a realidade, e, por isso, talvez seja difícil publicar o que
aconteceu;
d) Devemos estudar a história para não repetir os erros cometidos no
passado. A sociedade excluída ensinou que sempre é possível haver
reações de descontentamento. O ser humano não é sempre passivo e
obediente. Quando reprimido, o homem pode passar da paralisia para
a ação. O ideal de liberdade nunca se apaga nos corações humildes,
mesmo que adversa seja a situação encontrada.
85
CAPÍTULO III
3. CIDADE DE JUAZEIRO/CIDADE MÍSTICA
3.1. A história do santo Padre
Contemporaneamente ao Conselheiro, por volta de 1872, surgiu um outro
líder carismático, que no sertão do Cariri, interior do Ceará. Líder que era mais
afortunado do que o Santo Aparecido, como era conhecido Antônio Conselheiro.
O domínio deste líder cearense sobre os adeptos durou até 1934, época de sua
morte. Mas, ainda hoje, sua influência sobrevive na cidade de Juazeiro que, por
sua vez, apresenta todos os caracteres de uma cidade mística. Trata-se do
“Padim Ciço”, o maior santo do nordeste (DINIS apud QUEIROZ, 1965, p. 231).
Quando chegou a Juazeiro, padre Cícero encontrou apenas uma capelinha. Ao
morrer, na madrugada de 20 de julho de 1934, deixou uma cidade complexa e
desenvolvida com cerca de quarenta mil habitantes.
86
A cidade de Juazeiro era servida pela Rede de Viação Cearense, contava com
dez mil prédios de tijolos, taipas e telhas. Era a cidade do interior nordestino onde
mais se desenvolvera mais se desenvolvera o artesanato, contava com
sapatarias, teares para redes, fábricas de sinos e de relógios para torres, oficinas
mecânicas, surrarias com produção constante de vaquetas e de camurça, fábricas
de beneficiar algodão e seda, fábricas de facões, de espingardas de caça, etc. A
cidade contava, ainda, com dois estabelecimentos de crédito, o Banco Juazeiro e
a Cooperativa Agrícola Juazeirense. Do interior do Estado era a cidade de maior
área urbana.
A crença que os sertanejos depositavam no Padre Cícero atraiu para a
cidade centenas de milhares de romeiros, criando um dos mais importantes
centros do Estado. Quando, em 1872, Padre Cícero se instalou em Juazeiro teria
encontrado ali “um antro de ladrões de cavalos, ébrios e desordeiros”,
amancebados que viviam nas ruas ou em sítios das redondezas. A reputação do
lugarejo era de tal ordem que os viajantes desviavam dele (QUEIROZ, 1965, p.
231).
Entre 1872 e 1890, Padre Cícero se dedicou inteiramente à catequese, à
recuperação da população para a Igreja. Sua existência era quase nômade.
Maltratado, peregrinava de sítio em sítio, de casa em casa, em constantes
missões, pregando, apaziguando brigas, organizando terços, novenas e
procissões, procurando diminuir o abandono em que vivia aquele povo. Instituiu o
culto de Nossa Senhora das Dores, dando-lhe grande ênfase. No povoado,
procurava organizar pomposas festas, mais uma vez, com o intuito de atrair a
população para a Igreja.
87
3.2. O messias de Juazeiro/advogado dos pobres
Padre Cícero Romão Batista nasceu em Crato, cidade do Ceará, em 23 de
março de 1844. Dando continuidade aos seus estudos para o sacerdócio, entrou,
em 1865, para o seminário da Prainha em Fortaleza, do qual foi afastado em
1868, subdiácono e professor de teologia. Readmitido, foi ordenado presbítero
em 1870, aos 26 anos de idade. Esta ordenação não contou com o voto do reitor,
padre Augusto Chevalier, que considerava o aluno propenso a visões fantasiosas.
Em 14 de abril de 1872, fixou-se como pároco em Juazeiro, povoação que tinha,
na época, umas seis casas de telha e trinta choupanas, aproximadamente, e uma
capelinha.
Alcançou, ao longo de seu sacerdócio, alcunhas como as de varão
piedoso, dedicado pai dos pobres, conselheiro e protetor dos desvalidos.
Denominações que o envolviam em uma atmosfera de santidade.
Desprendimento e abnegação aumentavam o respeito que a população lhe
dedicava. A fama de homem extraordinário aumentava, ainda que existissem
outras opiniões ao seu respeito (QUEIROZ, 1965, p. 232).
Padre Cícero interveio ativamente quando a cidade de Juazeiro, entre 1877
e 1879, foi acometida por flagelos e por epidemias. Nas ocasiões em que a
estiagem assolou a região, seu comportamento foi o mesmo: instalou retirantes
em terras que eram suas e nas quais os retirantes podiam cultivar de graça;
aconselhava sobre novas culturas, como a mandioca, a maniçoba; distribuía
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víveres; incitava a construção de obras públicas nas quais os retirantes pudessem
ganhar a vida, etc. Realizava estas atividades o com recursos que possuía,
mas também, pedindo ao governo. Padre Cícero se apresentava aos governantes
como porta-voz dos flagelados, como protetor dos humildes, como advogado dos
pobres. Reforçava sua imagem de beato usando cabelos e barbas longos, batina
descorada pelo uso, sandálias e, ainda, o bastão de peregrino.
As autoridades o consideravam “um elemento de ordem no sertão”. Sem
ele não conseguiriam que a região permanecesse pacífica. Qualquer reação
desencadeada pela Igreja não levaria a descrença aos ingênuos tabaréus.
Mesmo que Padre Cícero fosse proibido pela Igreja de pregar, de ouvir
confissões, de se entregar à direção das almas, de rezar a missa, os adeptos
continuariam afluindo para se colocarem em definitivo aos pés dele. Somente
para pedir a bênção.
A cidade de Juazeiro continuava crescendo. Padre Cícero obedeceu a
todas as ordens da Igreja, apenas o admitiu que o tirassem de perto do “seu
povo”. A partir dos milagres viveu praticamente independente de ordens. Se a
Igreja o exigiu que cumprisse a ordem de abandonar Juazeiro foi porque ela
sabia que os romeiros não deixariam a ordem ser cumprida sem luta. O Bispo do
Ceará permitiu que o padrinho permanecesse em sua cidade. Padre Cícero
mantinha-se obediente, proclamava sua adesão à Igreja, o que inviabilizava uma
acusação de cismático.
Ainda que existissem dissabores, o prestígio do Padre Cícero não fazia
senão crescer. Rodeado de adoração, cristalizavam-se ao redor de sua figura,
lendas e milagres. Relatos sobre estas lendas e sobre estes milagres correram
pelo sertão e muitos passaram a buscar a presença de Padre Cícero. Os
89
cantadores espalhavam, através de seus romances, os prodígios mais
extraordinários. Padre Cícero já não era mais o Padrinho, ele já era considerado o
próprio Deus. Assim pensava o povo que o adorava.
Apesar da adoração, existem opiniões contrárias que definem o Padre
como coronel e como protetor de bandidos.
Um líder messiânico, como Padre Cícero de Juazeiro do
Norte, Ceará (1870-1934), uma região que produziu
muitos jagunços, tornou-se célebre sobre os camponeses
pobres e sobre os jagunços e cangaceiros. Foi ele quem
tentou armar Lampião para lançá-lo contra a Coluna
Prestes. Ao contrário, porém, de outros lideres
messiânicos e de outros rebeldes, a rebeldia do Padre
Cícero circunscreveu-se ao interior da Igreja, suspenso de
ordens. Fora dela, juntou jagunços e coronéis, tornando-
se ele próprio um poderoso coronel sertanejo que chegou
até depor o governador do Ceará (MARTINS, 1981, p.
61).
Segundo Della Cava, o Padre Cícero não é nem santo, nem herói, seria,
apenas, um simples e humilde devoto, como tantos outros sacerdotes do sertão
do século XIX. O autor considera que ele se transformou em uma figura mais
controvertida da história do Brasil pelas circunstâncias. Defensor involuntário de
um “milagre”, Padre Cícero foi denunciado pela Igreja como impostor. Os
temerosos coronéis, chefes políticos, o viam como perigoso agitador, pois, ele era
aclamado como santo injustiçado pelas massas famélicas de sertanejos. Para
estes últimos, Padre Cícero seria capaz de livrar os pobres e os enfermos de suas
aflições.
90
Este era um dos papéis mais relevantes na vida política
do Ceará, ser político era como ser um bem feitor um
filantropo canalizando os descontentamentos das
populações, a um complexo jogo de fatores, coube a esse
obscuro sacerdote desempenhar entre populações
miseráveis e contendo-os, numa região onde
dominavam a tendência milenarista e onde era comum a
prática religiosa marcada pela ingênua e exaltada e,
por outro lado, comandando, em virtude das forças sociais
e políticas que despertou, um movimento religioso e
popular de grande amplitude (DELLA CAVA, 1976, p. 28-
30).
Juazeiro logo se transformou em uma potência política. A partir de 1907,
graças ao prestígio de padre Cícero, Juazeiro foi elevada à categoria de
município. Data da mesma época, o tão falado convênio entre os chefes políticos
do Ceará, para pôr termo às lutas, às rivalidades políticas, que ensangüentavam
os sertões. Tal reunião, convocada por Padre Cícero, sagrou-o chefe inconteste
das hostes políticas do interior do Estado e o sinal dessa supremacia foi sua
eleição, nesse mesmo ano, para vice-governador do Ceará.
Já dominado o Ceará, projetou-se no cenário da política nacional, apoiando
a eleição de Floro Bartolomeu para deputado federal. Padre Cícero tinha, assim,
na capital da República, o seu porta-voz. Mais tarde, foi demonstrada a extensão
do poderio de ambos: eles dominavam o Estado, apoiados pelo governo federal.
Juazeiro se transformou em capital política. Os romeiros de Padre Cícero
decidiam as disputas eleitorais e o poder do Padrinho ofuscava totalmente o
poder dos coronéis locais.
91
Outra prova da influência do líder carismático: suas ordens não eram
contestadas. O considerado messias assumiu o controle total da cidade, exercia
diretamente o controle e a supervisão de tudo, admoestando pessoalmente os
culpados e infligindo, ele mesmo, os castigos, ora dando bolos de palmatória, até
em homens casados, ora desferindo contra as costas do culpado o bastão no qual
se apoiava. Aquele que recebia uma repreensão ou um castigo do Mestre ficava
mais satisfeito do que se tivesse recebido uma bolsa cheia de moedas. Era um
dia de festa para o castigado (QUEIROZ, 1965, p. 240).
Seu comando sobre a vida privada dos adeptos de sua Igreja era total e
irrestrito. Nada faziam sem pedir licença, não se ausentavam, não aceitavam
trabalho algum sem consultá-lo, não casavam sem ouvir-lhe a opinião. Os
próprios divertimentos eram por ele regulados. Padre Cícero controlava a vida dos
adeptos que habitavam a cidade e, ainda, de todos aqueles que o procuravam
para lhe pedir conselhos referentes aos atos mais rotineiros da vida. Todos
seguiam fielmente as palavras de Padre Cícero.
3.3. O sonho de Padre Cícero
As características de Padre Cícero também correspondem às
características do messias que foram descritas (cf. 1). A finalidade de Padre
Cícero era a de proteger as populações desvalidas. Ele dizia que suas atitudes
eram motivadas por uma inspiração divina. Padre Cícero gostava de contar um
sonho que, segundo ele, havia lhe indicado aquele caminho. Como as revelações
dos profetas do antigo testamento da escritura sagrada, o seu sonho era bem
mítico:
92
Estava na sala da antiga escola de Juazeiro, sentado à
cabeceira de uma grande mesa, quando entraram os
doze Apóstolos, tendo à frente o coração de Jesus, que
ficou de atrás do Padre e disse, no seu sonho: - Eu
estou muito magoado com as ofensas que os homens me
fazem diariamente. Vou fazer um esforço pela salvação
de todos, mas não se quiser corrigir, acabarei com o
mundo. E quanto a ti, disse dirigindo-se ao Padre, toma
conta destes (QUEIROZ, 1965, p. 240).
Padre Cícero viu, então, vários sertanejos mal vestidos e mal calçados
entrarem na sala. Este foi o diálogo entre Deus e Padre cero, segundo seu
próprio depoimento aos fiéis. O Padrinho considerava que estava cumprindo
fielmente sua missão. O título que mais lhe agradava era o de apóstolo do
nordeste (QUEIROZ, 1965, p. 241).
Padre Cícero instituiu o regime de mutirão. Qualquer pessoa podia se
dirigir a ele. Através de suas intensas atividades tornou sua cidade e sua região
as mais prósperas do sertão, e, ao mesmo tempo, as que mais viviam próximas
dos modelos sagrados. se encontra a busca do retorno místico do sagrado, do
centro do mundo, longe do caos, teorizado por Eliade em seu clássico livro
Sagrado e Profano, talvez, a busca pelo umbigo do mundo que os judeus
procuram até hoje (ELIADE, 1972, p. 89).
O moralismo ético era praticado por Padre Cícero. “Para santificar seu
burgo, o messias expulsava da cidade meretrizes e todos os indivíduos que
considerava terem pecado contra a moral rústica, ou terem desobedecido às suas
ordens” (QUEIROZ, 1965, p. 248). Assim era o comportamento de Padre Cícero.
93
Quando os vigários da região queriam convocar os adeptos para o auxílio
na reforma de uma capela ou em qualquer outro serviço e, também, quando os
dirigentes das obras contra as secas necessitavam de mão-de-obra, valiam-se do
mesmo recurso: pediam a ele que recrutasse uma grande quantidade de
operários.
Seus adeptos ora o identificavam como Jesus Cristo, ora como Espírito
Santo, ou, então, como o Padre eterno. Seu nome passou a constar nas orações
ao lado de Nossa Senhora. Juazeiro passou a ser identificada com Jerusalém. O
próprio Padre Cícero contribuía para tal identificação com suas sábias palavras.
Fora para Juazeiro porque a virgem Maria lhe aparecera e assim ordenara. Ela
queria “ver novo sangue do seu filho”, o que aconteceu com o milagre da hóstia
sagrada.
Um apregoado milagre fez eclodir o movimento. Na manhã de de março
de 1889, o piedoso capelão de Juazeiro, Padre Cícero Romão Batista, ministrava
a Comunhão de uma das devotas do lugar. Em instantes, passou-se a acreditar
que a hóstia branca se transformou milagrosamente em sangue. O sangue que,
sem qualquer dúvida, foi considerado de Jesus Cristo.
Maria de Araújo era uma das várias devotas que se encontravam na capela
de Juazeiro para assistir à missa e para acompanhar os rituais que eram
celebrados todas as sextas-feiras do mês, em honra do Sagrado Coração de
Jesus. Foi uma das primeiras a receber a Comunhão. De repente, caiu por terra e
a Imaculada hóstia branca que acabava de receber tingiu-se de sangue. O fato
extraordinário repetiu-se todas as quartas-feiras e sextas-feiras da Quaresma,
durante dois meses, do domingo da Paixão até o dia da festa da Ascensão do
Senhor. Por 47 dias, ocorreu diariamente (DELLA CAVA, 1976, p. 69-71).
94
Por fim, em sete de julho de 1889, dia da festa litúrgica do Precioso
Sangue, Monsenhor Monteiro, reitor do seminário de Crato, comandou uma
romaria de três mil pessoas até o povoado de Juazeiro. Muitas pessoas que
participaram da romaria eram oriundas de famílias importantes de Crato. Diante
de uma assembléia trasbordante, Monteiro subiu até o púlpito e fez um sermão
sobre os mistérios da Paixão e da Morte de Cristo que, segundo os relatos, levou
lágrimas aos olhos de seus ouvintes. Então, o monsenhor agitou no ar um
punhado de panos do altar que estavam visivelmente manchados de sangue. Tal
sangue, conforme declarou, havia saído da hóstia que Maria de Araújo recebera e
era, de acordo com o monsenhor, o próprio sangue de Jesus Cristo (DELLA
CAVA, 1977, p. 240).
Daí por diante, a crença coletiva se tornou a pedra fundamental do
movimento liderado por Padre Cícero. Enquanto esteve suspenso pela hierarquia
da Igreja Católica Romana, Padre Cícero se tornou chefe de seu próprio
movimento, provocando uma controvérsia e dando origem a uma extensa
bibliografia. Infelizmente, esta tem sido bastante sectária, refletindo, no fundo,
amargas divergências políticas e religiosas inspiradas desde 1889 por Padre
Cícero e por seu movimento. Divergências que deram origem às mais acaloradas
notícias dos anais da história brasileira.
Padre Cícero parecia acreditar no advento de uma nova redenção. Parecia
acreditar que ele seria o precursor, o messias. Juazeiro seria o cenário no qual
Jesus Cristo verteria novamente seu precioso sangue. Tal crença lhe teria sido
incutida por José Marrocos, interessado na projeção do Padre e de Juazeiro.
Ambos, o padre e a cidade serviriam como apoio para seu destaque pessoal
(DINIS apud QUEIROZ, p. 245).
95
3.4. O embuste
Para Dom Joaquim, as notícias que chegavam de Juazeiro só podiam
significar um embuste e um sacrilégio. O chamado fanatismo religioso de Juazeiro
e a provocação que o povo dirigia à autoridade episcopal instigaram Dom
Joaquim a revidar com o vigor que não teve em 1889 e que passou a considerar
necessário. Mas, o bispo se convenceu de que Padre Cícero era “incapaz de
qualquer embuste”, por mais teimoso, ingênuo e rebelde que fosse. O bispo
passou a acreditar, então, que a culpa era de Maria Araújo.
Não foi fácil desvendar a farsa da qual suspeitava. Nenhum chefe político,
nenhum profissional liberal ou fazendeiro do Cariri havia proferido abertamente
qualquer palavra de descrédito com relação à transformação da stia em
sangue. Importantes membros do clero de Fortaleza ainda não haviam
questionado a veracidade dos fatos ocorridos em Juazeiro, como Dom Joaquim
esperava que eles fizessem. No final, apenas dois de seus sacerdotes do Cariri
não eram crentes entusiastas.
Convinha ao bispo, em tais condições, nomear uma pessoa externa para
ocupar o cargo de vigário de Crato. Monsenhor Antônio Alexandrino de Alencar,
afável e devotado pastor de Quixadá no Ceará, chegou ao seu posto em quatro
de fevereiro de 1892. Durante os oito anos que se seguiram, ele exerceu, com
dificuldade, a mais árdua função da diocese: a de executor da política da Igreja
em Juazeiro. Devido às suas indecisões e à sua simpatia duvidosa, não tardou
em ficar sob o fogo cruzado dos contendores.
96
Primeiramente, o bispo e, depois, os dissidentes, julgaram que ele havia
traído a confiança que nele havia sido depositada. Tanto um lado, quanto o outro,
acusavam o monsenhor de apoio aos seus respectivos opositores.
Surpreendentemente, porém, quando conseguiu, em 1900, a transferência de
posto, tantas vezes solicitada, foi elogiado pelo bispo e pelos dissidentes, pois,
cada um considerou que ele havia favorecido seus respectivos intentos.
No segundo inquérito, o bispo deu Comunhão à beata por três dias
seguidos. O milagre da transformação da hóstia não ocorreu nenhuma vez. Ficou
claro que o propalado milagre não passava de um ardil (DELLA CAVA, 1976, p.
239).
Dom Joaquim escondeu a urna que continha os lenços sujos de sangue.
Decidiu que iria submeter esse material a um exame minucioso e científico, mas
quando, em seguida, procurou a urna, descobriu que o tabernáculo estava vazio.
A urna tinha sido furtada. No Crato, a suspeita recaiu sobre José Marrocos,
defensor intelectual da causa de Juazeiro. No entanto, contra ele existiam apenas
provas circunstanciais. O mistério que durou 18 anos foi esclarecido após a
morte de José Marrocos em 1910. A urna foi encontrada entre seus pertences.
O momento propício, segundo os dissidentes, para a Providência Divina
repudiar as conclusões de Alexandrino no inquérito de abril, foi quando ocorreu
uma sucessão de fatos “miraculosos” nas cidades de Juazeiro, de Icó, de Arati e
de União. A sucessão destes fatos criou a impressão de que se tratava mais de
uma coordenação “diabólica” do que, propriamente, de uma ordenação divina.
Em cada um destes lugares ocorreram espetáculos semelhantes: beatas
corriam pelas ruas, repletas de gente, que agitando no ar crucifixos que
sangravam “milagrosamente”. Em juazeiro, os altares ficaram vermelhos,
97
enquanto os crucifixos e as imagens vertiam sangue da suposta Redenção. Nas
duas semanas que se seguiram, enquanto os moradores aguardavam sua sina
bíblica, ocorreram inúmeros tumultos que para muitos, justificavam a imediata
intervenção policial.
Não se sabe se essas ocorrências foram planejadas conjuntamente ou se
eram independentes umas das outras. São conhecidas, apenas, suas
conseqüências. Na primeira carta pastoral, Dom Joaquim advertiu os fiéis “contra
os vícios opostos à nossa Santíssima e Divina religião”. Dom Joaquim rejeitou,
explicitamente, os “milagres de Juazeiro”, embora, não os tenha condenado.
Exortou os membros do clero da diocese a ignorá-los de todo (DELLA CAVA,
1997, p. 69-71). Seu último recurso foi o de enviar o caso para a Congregação do
Santo Ofício em Roma, a Inquisição.
Com o passar do tempo, Padre Cícero ganha a confiança das classes
dominantes, seja na esfera local, seja nas esferas estadual e federal. Como
garantia de sua fidelidade ideológica fornece, através da arregimentação de seus
adeptos, dos romeiros, uma legião de trabalhadores braçais para obras públicas e
privadas, sempre com a esperança de obter apoio dos poderosos, os quais
poderiam interceder em favor dele junto ao Vaticano.
Ao mesmo tempo, o Padre estava inconformado com a maldição de sua
Igreja. As histórias sociais e políticas do sertão do Cariri revelam as múltiplas
facetas de uma realidade regional no contexto do Ceará e, ainda, suas
articulações com a política federal. As relações entre os níveis local, estadual e
federal, são bastante complexas. A dinâmica da política coronelista se insurge
contra aqueles que são vistos como expressão do atraso e da estagnação do
interior face à modernização e ao dinamismo da civilização sofisticada do litoral.
98
Estas insurreições por parte dos coronéis continuam a ocorrer em Juazeiro,
mesmo após a morte de Padre Cícero em 1934. Talvez, porque o povo continuou
esperando por um novo milagre. Por um lado, ocorreram mudanças na vida do
sertão, mas, por outro, é lícito indagar acerca da permanência de determinadas
circunstâncias. Mesmo que seja uma forma de escapismo da realidade, não
podemos esquecer que o progresso do movimento liderado por Padre Cícero
ocorreu e até hoje leva romeiros a Juazeiro, propiciando a formação de um
comércio que envolve a fé.
99
CONCLUSÃO
FORÇA E RESISTÊNCIA / SONHO E ESPERAA
Entre os estudos realizados e as perspectivas assumidas, este trabalho
pretendeu dar mais visibilidade ao tema do messianismo brasileiro. Literalmente,
faz-se necessário mudar a idéia de sociedade isolada, porque sociedade é todo
seguimento organizado.
Devem mudar não apenas as idéias acerca das pessoas que aderem aos
movimentos messiânicos, como também as idéias acerca da elite dominadora,
que adota um ideal humanista, mas, pouco permite a mudança da situação social
das pessoas mais carentes. Pessoas que acabam aderindo a certos movimentos
como se estes fossem tábuas de salvação. Sem antes passarem por um processo
pedagógico de politização, de consciência que também faz parte desse processo
social. Isto é, a sociedade não existiria sem os elementos e a organização que a
estrutura e a mantém.
100
Após a adesão, estas pessoas acabam isoladas. Em determinado espaço
físico, pequeno e fechado, sob a guarda e a administração intransferível de um
líder carismático. Ao menos, aparentemente, os problemas não lhes atingem. Mas
apesar das aparências, suas inquietações não passam despercebidas pela
comunidade. A massa que segue um líder carismático exerce uma atividade útil,
mesmo quando não é uma atividade socialmente consciente. O trabalhador tem
seu trabalho explorado tanto pelos coronéis, quanto por seu líder messiânico.
Com o exemplo claro e preciso oferecido pela história de Juazeiro,
podemos perceber que a miséria humana gera caldeirões de desafortunados, os
quais foram excluídos pelo sistema. Os grupos excluídos se sentem, então, em
anomia, e, por isso, reagem contra as superestruturas massificantes. Estes
grupos se apóiam num enviado, que se vale de um mito para justificar sua
escolha. Geralmente eles são eleitos através de visões, de sonhos e de ordens do
próprio Deus, o Pai Todo Poderoso.
Aos olhos dos fiéis, a cidade liderada pelo messias é o verdadeiro céu na
terra, tanto que para eles, o paraíso não existe noutro mundo. Desse modo, a
possibilidade do escatológico é afastada. Não estamos estudando um Deus do
céu. Estamos falando de um Deus que foi dado aos homens aqui e agora, de um
Deus que se personificou, materializou-se, de um Deus que livrará os homens das
opressões dos poderosos, das segregações e da exclusão.
Entre os motivos que levam os homens ao ingresso nos movimentos
messiânicos podem ser enumerados: a busca por segurança econômica, o desejo
de escapar da realidade e de condições de empobrecimento súbito, a busca por
elevação do status social, a busca instintiva por Deus e por segurança na vida
101
além-túmulo. Trata-se de motivações de ordem psicológica, determinadas, em
sua maioria, por dificuldades na vida cotidiana.
Na história moderna, os movimentos proféticos estão incluídos entre as
manifestações mais vivas e dramáticas do choque cultural entre povos de níveis
diferentes. A expressão movimento profético exerce importante função nas
civilizações desenvolvidas e modernas porque contribui para demolir as barreiras
criadas pelo colonialismo e pelo etnocentrismo das nações ocidentais entre estes
povos de níveis diferentes, impondo uma revisão e uma atualização dos valores
da nossa cultura, dentro de um horizonte humanístico muito mais amplo do que o
elaborado no século XIX pela cultura de fundo nacionalista.
Por certo, os movimentos proféticos têm indubitável caráter religioso e
político, logo, diremos em que sentido. Todavia, eles reivindicam e pretendem
oferecer aos seus seguidores bens de importância vital. Para os seguidores, a
ausência destes bens é incompatível com uma existência digna de ser vivida. Por
isso, é que eles lutam pela sobrevivência e decidem se filiar de corpo e alma aos
referidos movimentos. Esta interpretação, acerca dos messianismos e
milenarismos, é proposta pela teoria psicossociológica, como uma possível
maneira de entender o porquê desses movimentos sociais.
A análise dos episódios de Canudos e de Juazeiro permite situar os
movimentos de Antônio Conselheiro e de Padre Cícero entre os movimentos
messiânicos, pois, ambos possuem, em seu bojo, todas as características
necessárias.
a) O movimento de Canudos possuía um Messias que, através de um
sonho, fora chamado por Deus para ser missionário entre os pobres, os
102
excluídos. O movimento de Padre Cícero também tinha a mesma
concepção;
b) Os dois movimentos foram contemporâneos. Os dois surgiram depois da
proclamação da República e tiveram como palco o sertão nordestino
castigado pela seca e pelo abandono político;
c) Os adeptos dos dois movimentos tinham a mesma formação cultural,
social e econômica. Eram antigos escravos, sertanejos castigados pela
seca e pelo descaso das autoridades da época e que foram expulsos de
suas terras por fazendeiros. Desse modo, viviam em anomia;
d) Compartilhavam a mesma fé, a no catolicismo, mas em um
catolicismo popular, rústico, festivo, que pouco tinha a ver com o
catolicismo romano. Acreditavam que seus líderes eram santos;
e) Os fiéis foram distribuídos em determinadas posições sociais. Os
grupos, portanto, não foram abandonados à pura emoção e
efervescência afetiva, como afirmam alguns autores. No interior das
“cidades santas” existiam conjuntos de famílias e laços de compadrio.
Um juiz de paz mantinha a ordem. Existia uma cotidianidade que foi
estabelecida dentro de quadros bem normais;
f) A religiosidade impregnava inteiramente os dois ambientes milenaristas
brasileiros;
g) Os dois movimentos sociais foram envolvidos por radicalismos drásticos,
tanto de esquerda, como de direita.
h) Os líderes messiânicos brasileiros controlavam o poder profano e a
chefia religiosa de suas comunidades. No entendimento de muitos
destes líderes. A religião torna-se conversão e espera. São os principais
103
objetivos e, por isso, eles devem condicionar os demais
comportamentos. Para outros líderes, entre os quais se pode situar
Padre Cícero, o objetivo de suas vidas era o de ensinar seus adeptos a
viver melhor. A religião, as penitências, as devoções, a pregação, é que
permitiam que este objetivo fosse alcançado. Tanto num caso, quanto no
outro, não é possível dissociar o sagrado do profano.
i) Mais uma observação é a de que a relação entre o líder e seus
seguidores é marcada pela empatia e por um pacto silencioso em torno
de objetos e objetivos, de crenças, de rituais e de ambições de
santidade e de fartura material, cujo fundamento é, essencialmente,
místico-religioso, e também político, como foi dito. Esta relação pode
ser verificada no contexto de Canudos e de Juazeiro.
j) Outra questão observada: é que os fatos ocorridos com dois
messianismos estudados foram circunstanciais. Que se devem as
privações de bens materiais necessários às suas sobrevivência.
Causada por catastróficas decisões da nova República, como também o
choque intercultural advindo com a proclamação da República e o
descaso preconceituoso que o sertanejo nordestino vivia.
Faz-se necessário explicar, finalmente, o sucesso do movimento na cidade
de Juazeiro. Este sucesso foi possível porque Padre Cícero se aliou às forças
políticas da época. Além de ocupar cargos importantes, ele contava com
representantes diretos no cenário da política nacional.
Considerando as questões levantadas a respeito de pontos nucleares dos
dois movimentos, é possível compreender quais foram os motivos que levaram os
governantes à destruição absoluta da cidade de Canudos, inclusive, a hoje a
104
história do movimento permanece obscura, e, por outro lado, quais foram os
motivos que permitiram o sucesso da cidade de Juazeiro, que mesmo na
atualidade continua próspera.
Pode-se concluir, a partir do estudo destes dois episódios, o seguinte: os
agrupamentos formados pelos adeptos acabam quase sempre destruídos pelas
forças da sociedade envolvente, ou, então, extinguem-se com insucesso. Mas,
Padre Cícero provou o contrário. Por ter se aliado às classes dominantes, ele
reservou a prosperidade para a cidade de Juazeiro. Na época de sua morte,
Juazeiro era uma cidade importante, capital autêntica do sertão, tanto do ponto de
vista religioso, quanto do ponto de vista econômico.
De um lado estava Antônio Conselheiro que se opôs abertamente à
República, mantendo a pretensão de restaurar a velha e deposta monarquia,
que ele e seus adeptos compartilhavam a concepção, segundo a qual, a
Monarquia era um poder delegado do céu, os reis seriam representantes diretos
de Deus. Deve-se mencionar, mais uma vez, que esta concepção foi fortemente
influenciada pelo sebastianismo tão em voga na Europa no século XVIII. De outro
estava Padre Cícero que não enfrentou a elite dominante, que, inclusive, fez
alianças para conseguir a simpatia dos poderosos às suas causas.
Ao comparar a experiência de Canudos e a experiência de Padre Cícero é
possível verificar que os dois movimentos estavam baseados em condições
sociais e ecológicas próprias do sertão. o se deve esquecer que as fraquezas
estruturais inerentes ao sertanejo constituem uma das principais causas do
messianismo. A violência interna e externa ao grupo exacerbava as tensões e
acabava por criar um sentimento de anomia na região. Esta violência, por sua
vez, resultava da desorganização social inerente a este tipo de sociedade rural.
105
Mas, a anomia, por si só, não explica a revolta e o surgimento de
movimentos milenaristas. A desorganização e a desorientação, comuns em
períodos de mudanças sociais, econômicas e políticas, em determinados casos,
podem resultar nas crises espirituais. Estas transformações podem explicar o
aparecimento do movimento messiânico milenarista em meio a uma população
que aceita uma intervenção divina, que até mesmo busca esta intervenção, e
na vida em comunidade um meio de se alcançar redenção pessoal. A profecia
parece ter achado o lugar ideal para se desenvolver.
Os moradores de Canudos não chegavam a ser politicamente inertes. No
entanto, socialmente, eram como agentes propulsores, que se dedicavam
continuamente ao seu mundo. Eles causaram um certo impacto pela decisão
coletiva de viverem afastados das demais comunidades. No caso de Canudos, as
mágoas dos fiéis não assumiram uma forma agressiva, mas sim, forte sentimento
de defesa daquilo em que eles acreditavam. Costumes locais, profundamente
enraizados, incluindo os de origem racial e os referentes à auto-imagem dos
pobres, enfraqueciam as possibilidades de autonomia rural e a capacidade de
uma ação coletiva. No entanto, Antônio Conselheiro oferecia um tipo de liderança
capaz de transformar as revoltas, espiritual, também social e política em
esperança messiânica, o que resultava na decisão de abandonar o mundo secular
e procurar refúgio numa comunidade disciplinada e protegida como Canudos.
Talvez, os atos obstinados suscitados por sua crença, bem mais
acentuados no fim do movimento do que no momento da fundação de Belo
Monte, tivessem levado o Conselheiro a arriscar a vida do movimento em uma
repressão armada, ou mesmo o tivessem levado a provocar esta repressão. Para
salvar a fantasia coletiva criada pelo contexto social espacial e político da época,
106
(cf. 1.3) Mas, como podemos nos embasar em depoimentos antipáticos ao
movimento, devemos considerar que estas são apenas especulações.
Se considerarmos o universo preto e branco de Euclides da Cunha, ao
contrário de uma realidade mais complexa do sertão não tão isolado assim, fica
mais fácil compreender por que os sertanejos passaram a rejeitar a ordem social
vigente quando escutaram as bem-vindas palavras do Conselheiro. A própria
imagem do sertão como deserto se torna falsa quando consideramos a
experiência de Belo Monte, cuja terra dura e seca se tornou produtiva e fértil
meses depois do estabelecimento dos canudenses. Quantos outros estereótipos
acerca da vida sertaneja não teriam sido desmistificados caso Canudos tivesse
sobrevivido!
Não existe nenhum testemunho de que, em Canudos, uma população fraca
e subordinada aceitasse a dominação sob a qual vivia por considerar que esta era
uma condição inevitável. No Brasil, escárnios simbólicos e mesmo ataques físicos
a sistemas hegemônicos sempre foram presença constante. A cidade de Canudos
teve um destino diferente porque, ao contrário da astúcia política do Padre Cícero,
o Conselheiro não se dispôs a utilizar sua compreensão do jogo político como
uma arma para comprar a imunidade de seus seguidores, que eram tão devotos
e, na visão de elementos externos, tão infantis e ingênuos, quanto os moradores
de Juazeiro.
A comparação entre os movimentos de Antônio Conselheiro e de Padre
Cícero permite afirmar que a cidade de Canudos foi destruída porque o
Conselheiro, por motivos circunstanciais e pessoais, colidiu com vários interesses
das elites dominantes. Aquecidas por inúmeras informações contraditórias,
inverídicas e até fantasiosas, estas elites não permitiram que a cidade de
107
Canudos sobrevivesse. Inclusive, a cidade foi inundada por um açude,
propositalmente construído na época do governo Militar. Por ironia, concretizou-se
a profecia do Conselheiro de que o sertão iria virar mar. Mas, ainda que os
governos tenham tentado, a história mostra que não é possível cobrir, nem com
sangue e nem com água, o sonho de liberdade e de felicidade, pois o sonho
constitui a essência do ser humano.
Pode-se dizer que a comparação entre estes dois movimentos sociais
permite identificar elementos homogêneos, lastros e traços profundos de união
entre as diferentes regiões do nordeste brasileiro, bem como singularidades que
os distinguem, por força da especificidade dos contextos sociais e históricos nos
quais eles se desenvolveram. Esta comparação permite ainda, como se tentou no
presente trabalho, abrir caminho para uma compreensão cientificamente mais
correta e moralmente mais isenta destas expressões dramáticas do mundo rural
de Canudos e de Juazeiro.
Finalmente, resta mencionar que, nessa mesma linha de pensamento, os
conflitos que Padre Cícero, Antônio Conselheiro e os Coronéis tiveram com a
Igreja da época devem ser objeto de novas pesquisas. Desse modo, poder-se-ia
compreender o papel que o catolicismo popular assume na transformação dos
símbolos e da linguagem religiosa. Como se sabe, o catolicismo popular era mais
alegre e festivo, enquanto o catolicismo chamado, romano era marcado por ritos
mais solenes e contidos.
O presente estudo espera que suas tentativas de esclarecimento sejam
consideradas, discutidas, pelos brasileiros, para que a sociedade possa, assim,
reconsiderar as concepções que tradicionalmente aceita. Toda a sociedade
precisa se envolver na construção da paz e da justiça social. Cabe a ela
108
compreender que a exclusão do sertanejo e sua conseqüente anomia, choques
culturais e privações resultam de precárias condições sociais. Enquanto não
assumir determinados compromissos, a sociedade não poderá promover
verdadeiras e necessárias mudanças sociais e não poderá conscientizar os
excluídos acerca de sua participação ativa nas mudanças. Devemos estas
mudanças ao nosso futuro!
109
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