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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
ERIC BEUTTENMÜLLER
A QUESTÃO DA IDENTIDADE NA LÍRICA DE
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
São Paulo
2006
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ERIC BEUTTENMÜLLER
A QUESTÃO DA IDENTIDADE NA LÍRICA DE
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
Dissertação de Mestrado apresentado
ao Curso de pós-graduação stricto
sensu da Universidade Presbiteriana
Mackenzie
ORIENTADORA: MARLISE VAZ BRIDI
São Paulo
2006
II
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ERIC BEUTTENMULLER
A QUESTÃO DA IDENTIDADE NA LÍRICA DE
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre
em Letras.
Aprovado em 5 de fevereiro de 2007
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________
Prof .(a) Dr.(a) Marlise Vaz Bridi
Universidade Presbiteriana Mackenzie
____________________________________________________________________________
Prof.(a) Dr.(a) Lilian Lopondo
Universidade Presbiteriana Mackenzie
__________________________________________________________________
Prof.(a) Dr.(a) Mônica Muniz de Souza Simas
Universidade de São Paulo
III
A todos os leitores de poesia, que
rareiam cada vez mais.
IV
Agradecimentos
A minha orientadora, professora Marlise, por todo o apoio, incentivo e material cedido para a
pesquisa. Sem a sua ajuda, este trabalho não teria a mesma profundidade nem a mesma
qualidade.
Aos meus amigos e familiares, por todo o suporte e incentivo ao longo de todos os meus anos de
estudo. Em especial, ao meu pai, por ter lido meu trabalho e dado suas valiosas opiniões.
A minha namorada, Suzana, pela paciência pelos sábados perdidos na confecção deste trabalho. E
pelo apoio que me deu.
V
RESUMO
A questão da identidade é extremamente importante e muito discutida quando se fala em
Modernidade. No Modernismo português, por exemplo, além de Mário de Sá-Carneiro, temos a
figura emblemática de Fernando Pessoa e os seus heterônimos, que proporcionam grandes
discussões sobre o tema. O objetivo desta pesquisa é analisar a questão da identidade na obra
lírica de Mário de Sá-Carneiro. O foco principal está na relação, criada em seus poemas, entre a
imagem que o eu-lírico tem dele mesmo e a imagem ideal que ele cria para si e as conseqüências
que esse conflito gera. Nos poemas deste importante poeta português, há uma diferença bem
perceptível entre essas imagens. Verificaremos em que medida, nos poemas de Mário de Sá-
Carneiro, o eu-lírico tenta criar uma identidade própria. Como, em um momento histórico que
exige a fragmentação, o eu-lírico busca a sua identidade, segundo uma concepção de sujeito que
seja perfeito e centrado. Notaremos como e por que essa tentativa está condenada ao fracasso.
Palavras-chave: Teoria da Literatura, Identidade.
VI
ABSTRACT
The theme of identity is very important and discussed when we talk about Modernity. In the
Portuguese modernism, for example, besides Mário de Sá-Carneiro, we have the emblematic
figure of Fernando Pessoa and his heteronyms that assure a lot of discussions about the theme.
The objective of this research is to analyze the question of identity in Mario de Sá-Carneiro’s
lyrics. Throughout his poems, the main focus is the relation made up among the image that the
persona has about itself and another one, ideal, that it creates for itself, plus the consequences that
the established conflict generates. In all the poems written by the renowned Portuguese poet,
there is a strong perceptible difference between these images. From Mário de Sá-Carneiro’s
poems, we will ascertain the way the persona tries to create an own identity. We will also notice
how, in a historic period that demands fragmentation, the persona searches for its identity,
according to a conception of subject that is perfect and self-centered. We will realize how and
why this attempt is condemned to fail.
Keywords: Theory of Literature, Identity.
VII
Sumário
Introdução........................................................................................Erro! Indicador não definido.
Capítulo 1 – A procura pela identidade........................................................................................... 5
Capítulo 2 – O embate entre real e ideal ....................................................................................... 37
Capítulo 3 – Autodestruição e desengano ..................................................................................... 57
Capítulo 4 – Anima e mitologia relacionadas ao eu-lírico ............................................................ 77
Capítulo 5 – O eu-lírico como sujeito na Modernidade................................................................102
Considerações Finais.....................................................................................................................125
Referências Bibliográficas............................................................................................................132
VIII
Introdução
1
A questão da identidade, que pode ser definida como a noção de sujeito, em Análise do
Discurso, é extremamente importante e muito discutida quando se fala em Modernidade. No
Modernismo português, por exemplo, além de Mário de Sá-Carneiro, temos a figura emblemática
de Fernando Pessoa e os seus heterônimos, que proporcionam grandes discussões sobre o tema.
Além disso, vários estudiosos, como Stuart Hall, que propõe três concepções de sujeito, e outros
autores, como Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Adolfo Casais Monteiro e Authier-Revuz falam
da questão da fragmentação do sujeito, o que mostra a relevância do tema da identidade dentro na
Modernidade.
Na obra poética de Mário de Sá-Carneiro é muito importante o tema da identidade, e este
trabalho procurará mostrar isso. Em muitos poemas deste autor, há um confronto entre o “eu”
real, que representa o modo como o eu-lírico se enxerga, e o “eu” ideal, que diz respeito ao seu
sonho. Mostraremos como a concepção de sujeito desse eu-lírico interfere na construção de sua
identidade.
É importante esclarecer que, ao longo deste trabalho, quando se fala em sujeito,
identidade e personalidade, a referência é sempre ao eu-lírico presente nos poemas, e não à
pessoa real, ao homem Mário de Sá-Carneiro. Este trabalho não procurará estabelecer relações
entre a biografia do autor e sua obra poética.
No primeiro capítulo, mostraremos a busca do eu-lírico por se encontrar como sujeito,
em construir uma identidade. Mostraremos como ele sente que a realidade exterior é vazia de
significados profundos e que o mergulho em sua interioridade é a única forma de encontrar algo
de valor, que o satisfaça. Perceberemos que embora essa jornada inicialmente o empolgue, logo o
fará se sentir mais perdido que no início dela, uma vez que o eu-lírico não consegue construir
uma identidade que lhe seja satisfatória. Analisaremos também como o estudo das vanguardas
portuguesas da época, a saber, o Paulismo, o Interseccionismo e, principalmente, o
2
Sensacionismo, podem enriquecer a leitura dos poemas e esclarecer alguns pontos referentes à
construção da identidade desse sujeito.
O segundo capítulo mostrará o embate interno do eu-lírico frente às duas imagens que
ele concebe para si mesmo, uma o seu “eu” real, imperfeito, sem autenticidade e o “eu” ideal, que
seria uma imagem perfeita a ser alcançada, um objetivo. Uma vez que não consegue ser o que
deseja, acaba ficando a meio caminho entre o que imagina ser e o que aspira a ser, e continua
perdido em sua busca, ou seja, não consegue assumir, definir uma identidade própria, uma
personalidade. Perceberemos, então, que o eu-lírico rejeita a idéia de que o sujeito é um ser
fragmentado, buscando constantemente ser como o “eu” ideal que criou, desejando construir uma
identidade perfeita e centrada.
Como isso não é possível na sociedade moderna, a conseqüência que esse eu-lírico sofre,
e que é o tema do terceiro capítulo, é uma profunda desilusão, que desencadeará um forte
sentimento autodestrutivo. Ao contrapor o “eu” real com o ideal, mostra um forte sentimento de
raiva consigo próprio, advinda da diferença entre essas duas imagens. Mostraremos como isso
ocorre em seus poemas, tanto na sua primeira fase da obra poética de Sá-Carneiro, a de influência
do Simbolismo e Decadentismo, quanto na segunda, de temática mais moderna.
No quarto capítulo, faremos uma análise de seus poemas à luz de algumas teorias de Carl
G. Jung sobre a psique humana e suas partes, e sobre alguns mitos presentes em seus poemas.
Não se pretende fazer uma análise psicológica do homem Mário de Sá-Carneiro, como faria a
Psicocrítica, mas sim verificar de que forma certas teorias psicanalíticas podem acrescentar algo
de valioso sobre a questão da identidade em sua obra. Da mesma forma, os mitos que serão
estudados contribuirão para se verificar como o eu-lírico de seus poemas se comporta frente a
algumas situações, e o que isso pode indicar sobre a construção de sua personalidade.
3
Por fim, verificaremos de que forma o eu-lírico, enquanto voz representativa da
Modernidade, dialoga com algumas idéias e tendências que permeiam esse momento histórico.
Faremos algumas apreciações sobre teorias formuladas por Charles Baudelaire quanto à questão
do artista moderno, do suicídio e de como é viver a Modernidade. Veremos, em Sá-Carneiro, que
mesmo reagindo de forma bastante individual e peculiar em alguns casos, o eu-lírico apresenta
idéias convergentes com as de alguns sujeitos modernos, como o citado Baudelaire e os
expressionistas, e divergentes com as de outros, como os construtivistas e os futuristas. Essa
relação entre o individual e o coletivo também poderá ser muito útil, na análise dessa questão da
formação de seu sujeito, da sua identidade.
Verificaremos, então, no final de todo esse percurso, em que medida, nos poemas de
Mário de Sá-Carneiro, o eu-lírico tenta criar uma identidade própria. Como, em um momento
histórico que exige a fragmentação, o eu-lírico busca a sua identidade, segundo uma concepção
de sujeito que seja perfeito e que possua um centro único e invariável. Notaremos, em mais
detalhes, como e por que essa tentativa está condenada ao fracasso.
4
Capítulo 1 – A procura pela identidade
5
A questão da identidade vem sendo amplamente discutida, e o que se chama “crise de
identidade” é algo comum de se encontrar em debates sobre o tema. A crise de identidade,
segundo Stuart Hall (2005, p. 7): “é vista como parte de um processo que está deslocando as
estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que
davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social”. Assim, os homens modernos
tem dificuldade em encontrarem uma identidade, construírem uma imagem própria.
Hall trabalha com três concepções de identidade, a partir do sujeito: o sujeito do
Iluminismo; o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. A noção de sujeito da época do
Iluminismo, está baseada na noção de um indivíduo totalmente centrado, unificado, racional.
Havia nele um centro, um núcleo interior que surgia com o nascimento, sendo desenvolvido
durante a vida, mas que permanecia essencialmente o mesmo. Esse centro essencial e unificado
do eu era a identidade da pessoa. Esta concepção do sujeito e de sua identidade era muito
“individualista”.
À medida que as sociedades foram se tornando mais complexas, elas adquiriram uma
forma mais coletiva e social. Dessa forma, surgiu uma outra noção de sujeito, mais sociológica,
que refletia a complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do
sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com outras pessoas e os
diversos mundos que ele habitava. Segundo essa concepção: “a identidade é formada na
‘interação’ entre o ‘eu’ e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o
‘eu’ real, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais
6
‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem.” (HALL, 2005, p. 11). Dessa forma, a
identidade é construída na interação entre o eu e a sociedade.
A terceira concepção, a do sujeito pós-moderno, surge do questionamento da anterior, e
fala em um descentramento do sujeito. Assim, o sujeito não teria uma identidade unificada e
estável, mas seria formado por uma fragmentação em várias identidades, algumas vezes
contraditórias ou não-resolvidas. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente.
Essa concepção pós-moderna de Hall que fala de um sujeito descentrado, converge com
as teorias de Análise do discurso sobre o assunto. Segundo Helena Brandão (2004), a partir das
idéias de Authier-Revuz, o sujeito não é uma entidade homogênea, mas o resultado de uma
estrutura complexa que inclui o inconsciente, descoberto por Freud. Segundo ela: “Não há,
portanto, centro para o sujeito, fora da ilusão e do fantasma. Esta ilusão, designada por Freud
como a ‘função do desconhecimento do eu’ é uma tendência necessária e normal para o sujeito.
Em outros termos, é próprio da constituição do sujeito a função que o eu assume de manter
ailusão de um centro.” (BRANDÃO, 2004, p. 68). Assim, o “eu” perde a sua centralidade, sendo
que o sujeito assume a ilusão de ter um centro próprio. Mas, é normal que o sujeito tenha essa
ilusão de centralidade, o centro é um “golpe montado” do sujeito, que não deve ser abolido, mas
sim conhecido. É necessário ter a ilusão de um centro, para viver como sujeito em uma
sociedade.
Finalmente, mais uma opinião importante que converge com as duas acima nos é dada por
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, quando versa sobre as obras modernas:
Não é possível definir o indivíduo como uma globalidade ético-psicológica
coerente, expressa por um “eu” racionalmente configurado: o “eu” social é uma
máscara e uma ficção, sob as quais se agitam forças inominadas e se revelam
7
múltiplos “eus” profundos, vários e conflituantes.” (AGUIAR E SILVA, 1973,
p. 278)
Dito isso, dentro do tema da identidade na obra poética de Mário de Sá-Carneiro, este
capítulo procurará mostrar a busca que o eu-lírico empreende para achá-la. Logo no primeiro
poema da coletânea Dispersão, percebe-se a questão da identidade como algo importante. Este
tema acompanhará quase toda a obra poética de Mário de Sá-Carneiro, como veremos ao longo
deste trabalho. Segundo Dieter Woll (1968), neste poema: “A realidade, tal como se apresenta ao
poeta, e o mundo de idealidade que ele lhe opõe são confrontados pela primeira vez dentro desta
coletânea”. Percebe-se que o eu-lírico enfrenta uma situação em que oscila entre dois pólos, o da
real e o do ideal, e isso é mostrado de forma brilhante ao longo da obra deste crítico. Há todo um
mundo interior do eu-lírico a ser explorado, um universo totalmente independente do real, e, para
ele, um mundo genial, muito mais rico e fantástico que o mundo real, com sua rotina diária, seu
cotidiano banal. Neste confronto, ambos os pólos se referem a imagens do eu-lírico, em outras
palavras, ele não imagina um mundo ideal, tampouco uma mulher ideal ou uma infância de
pureza, como faziam, por exemplo, alguns românticos. A oposição real e ideal se dá em relação à
personalidade do eu lírico, à sua identidade.
Partida
Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.
Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam refletir.
A minh’alma nostálgica de além,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,
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Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de sumir também.
Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul à busca da beleza.
É subir, é subir além dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados rezar, em sonho, ao Deus,
Que as nossas mãos de auréola lá douraram.
É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e d’irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.
É suscitar cores endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção d’alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.
Ser coluna de fumo, astro perdido,
Forçar os turbilhões aladamente,
Ser ramo de palmeira, água nascente
E arco de ouro e chama distendido...
Asa longínqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de subtil vapor,
Ânsia revolta de mistério e olor
Sombra, vertigem, ascensão – Altura!
E eu dou-me todo neste fim de tarde
À espira aérea que me eleva aos cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!...
Miragem roxa de nimbado encanto –
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
Sou labirinto, sou licorne e acanto.
Sei a distância, compreendo o Ar;
Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz;
Sou taça de cristal jogada ao mar,
Diadema e timbre, elmo e cruz...
.............................................................................
.............................................................................
9
O bando das quimeras longe assoma
Que apoteose imensa pelos céus!
A cor já não é cor – é som e aroma!
Vêm-me saudades de ter sido Deus...
Ao triunfo maior, avante pois!
O meu destino é outro – é alto e é raro.
Unicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois...
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 15-7)
Logo na primeira estrofe, notamos um desejo de fugir da realidade, de mergulhar em um
outro mundo. As “águas certas” da vida, ou seja, a sua rotina banal, as suas ocupações triviais não
satisfazem ao eu-lírico, que deseja sair dessa situação tediosa e comum. Então, ele se detém nas
“coisas geniais em que medito”, volta-se para o seu interior a procura de realidades mais plenas
de significado, que possam suprir as suas necessidades invulgares. É importante notar como ele
dá valor às suas idéias, ao que está em seu interior, ele lhes dá a qualidade de “geniais”, em
oposição às “águas certas” da realidade, ao cotidiano normal, ao dia a dia comum do mundo
burguês. Dessa forma, não há outro lugar onde procurar grandeza e elevação, isto é, essa outra
realidade que procura, senão dentro de si mesmo: “Afronta-me um desejo de fugir / Ao mistério
que é meu e me seduz”, a fuga da realidade banal se dá em um mistério que está nele mesmo, não
no exterior. O eu-lírico se sente isolado do mundo exterior, e das pessoas que nele habitam, por
isso a sua busca interior de magnificência, uma vez que ninguém, ou muito poucos, podem
partilhar com ele dessa outra realidade. Assim ele desiste de encontrar cumplicidade para a sua
tarefa e se fecha em seu próprio e particular mundo: “Mas logo me triunfo, a sua luz / Não há
muitos que a saibam refletir.”. Assim, essa “luz” que surge da sua procura não pode ser
compreendida pela maioria das pessoas, pelo vulgar mundo da burguesia, tornando-o um ser
isolado, uma pessoa que se sente pouco à vontade em seu mundo.
10
Na terceira estrofe, o eu-lírico sente “saudades” de algo maior, a necessidade de vivenciar
uma realidade plena, algo (“além”) que não está em nosso cotidiano. Embora saiba que essa
tarefa vai lhe tornar um ser isolado, resolve continuar, tentando disfarçar a sua angústia: “Aos
meus olhos ungidos sobe um pranto / que tenho a força de sumir também”. Neste trecho há uma
referência à morte, nos “olhos ungidos”, assim como adiante no poema, em “extrema-unção
d’alma”, que podemos entender como reflexo dolorido de seu estado, uma conseqüência funesta,
angustiante de sua jornada, de sua viagem.
Contudo, o eu-lírico não se dobra diante dessa dor, não desiste diante dessa dificuldade:
“Porque eu reajo”, e busca uma motivação para sua procura, que será também, ao mesmo tempo,
uma mostra de sua superioridade, de sua grandeza. Ele se assume como um artista, que deseja
viver algo além do mundo burguês e trivial: “(...) A vida, a natureza, / Que são para o artista?
Coisa alguma / O que devemos é saltar na bruma, / Correr no azul à busca da beleza.” Para um
artista como ele, a vida cotidiana não traz sossego à sua alma, não preenche as suas expectativas,
é vazia de significados mais profundos. Mais do que isso, a sociedade burguesa cria uma
estrutura em que o poeta não se encaixa, não faz parte da engrenagem que move as relações de
trabalho, as relações econômicas. Dieter Woll nos mostra como o poeta está inadaptado ao
mundo que o cerca:
Em grande parte, esta burguesia mostra-se incompreensiva perante o poeta
moderno, que, por sua vez, a provoca muitas vezes conscientemente, não
aceitando aquela incompreensão como atitude de legítima defesa em face de
pretensas tendências de dissolução ética dentro do mundo moderno, mas
chegando a considerá-la como francamente inferior sob o aspecto ético; a
burguesia vive sem refletir, muitas vezes numa atitude hipócrita, seguindo leis e
costumes tradicionais. (WOLL, 1968, p. 54)
11
Uma vez que o eu-lírico se assume como artista, não pode se contentar com a hipocrisia e
a superficialidade do mundo burguês. Resta ao artista buscar uma saída para essa situação. No
caso de Sá-Carneiro, a solução é mergulhar em seu interior.
Para mostrar, para representar tal empreitada, o eu-lírico recorre a imagens não muito
comuns, e a uma forma de organizá-las também não muito trivial, mas que são marcas registradas
da poética de Sá-Carneiro. Essa busca de um mundo ideal, de uma viagem pela sua interioridade
são assim representadas, por exemplo, nos trechos: “O que devemos é saltar na bruma, / Correr
no azul à busca da beleza”, “É subir, é subir além dos céus”, “É partir sem temor contra a
montanha / (...) Brandir a espada fulva e medieval, / A cada hora acastelando em Espanha.”, “É
suscitar cores endoidecidas”, “Viajar outros sentidos, outras vidas.”, entre outros.
Essas imagens e a forma como elas são organizadas já mostram algumas características da
poética de Sá-carneiro. Em relação, primeiramente, à parte formal, nota-se uma estrutura em
paralelo, quando o eu-lírico vai expondo as formas de como seria este mergulho na interioridade.
A quinta, sexta, sétima e oitava estrofes, por exemplo, começam com o verbo “ser” indicando
como seria essa fuga, esse “saltar na bruma”. Vejamos a sexta estrofe:
É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e d’irreal;
Brandir a espada fulva e medieval
A cada hora acastelando em Espanha.
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 15)
A partir de um verbo de estado, no caso “ser”, caracteriza-se essa fuga a partir de uma
lista, seguindo a estrutura paralelística, isto é, um paralelismo sintático. Assim, essa procura por
algo mais significativo que a vida cotidiana, a natureza, que o mundo burguês é “partir” sem
temor e brandir uma espada, por exemplo, ou ainda “subir”, “suscitar”, ou “ser coluna de fumo
(...)” “ser ramo de palmeira (...)” etc. Esse tipo de estrutura é muito comum na obra poética de
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Sá-Carneiro, e causa um efeito estilístico de repetição, que cria uma reafirmação das idéias, um
reforço da “tese” defendida.
Todas essas imagens citadas, e as outras várias que aparecem neste e em outros poemas
mostram como a presença delas é comum e constante em sua poética. Segundo Fernando Paixão
(2003): “E porque se trata de uma poética de forte jogo metafórico, implicando em uma trama
semântica concisa e ágil, torna-se natural que o aspecto visual das imagens seja privilegiado em
seu imaginário”. Claramente, o eu-lírico faz uso constante de metáforas para representar o seu
mergulho interior, todos aqueles versos citados que se encontram em estrutura paralelística se
referem a essa empreitada. Muitas delas dão um efeito de dispersão, em que o eu-lírico se dilui,
se expande ao mesmo tempo em que se dissolve, como em “Ser coluna de fumo”, “água nascente
/ e arco de ouro e chama distendido...”, “Nuvem precoce de subtil vapor”. Há a impressão de que
o “eu” quer, de alguma forma, se dissolver, enquanto empreende a sua jornada, o que torna mais
difícil a formação de uma personalidade, a construção de uma identidade. A oposição entre
identidade e “dispersão” do eu, mostra-se neste e em outros poemas de Sá-Carneiro, como
veremos adiante.
Dando continuidade à questão das imagens, é importante notar que elas não são “reais”
para o eu-lírico. Segundo Emil Staiger (1997), diferentemente do poeta épico, que descreve um
mundo exterior a sua pessoa, um mundo narrado, apresentando objetivamente a realidade, em que
seus objetos e seres descritos estão “fora” do poeta e têm existência independente dele, o poeta
lírico apresenta o seu mundo interior, íntimo, mostrando o reflexo das coisas e dos
acontecimentos em sua consciência individual. Enquanto no épico, há o distanciamento entre o
“eu” que narra e o objeto narrado, na poesia lírica não há essa distância, sujeito e objeto são um
só.
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Cria-se, dessa forma, uma lógica interna no poema, diferente da lógica cartesiana, ou
mesmo daquela pertencente às narrativas tradicionais. Nesse mergulho fantástico e fantasioso,
todas as imagens referentes ao seu interior, ao mundo da idealidade, são grandiosas e incomuns.
Elas mostram que seu mundo interno é mais rico, mais interessante, mais significativo que o
mundo exterior, por exemplo: “Sei a distância, compreendo o Ar; / Sou chuva de ouro e sou
espasmo de luz; / Sou taça de cristal lançada ao mar, / Diadema e timbre, elmo real e cruz...”.
O eu-lírico se caracteriza, ou melhor, caracteriza o seu “eu” interior, como alguém
grandioso, que “compreende” o ar, que é chuva de ouro; alguém puro e diferenciado, ele é luz,
taça de cristal. Mas nem tudo é calma, nem todas as sensações despertadas são positivas, visto
que ao mesmo tempo em que ele é luz, ele é um espasmo dela; ao mesmo tempo em que é taça de
cristal, ele é uma que foi atirada ao mar, de forma que podemos entender nestes versos uma
espécie de desperdício dessa mesma pureza. Essa mesma idéia está presente em “Vêm-me
saudades de ter sido Deus...”, ou seja, ele era alguém de valor, alguém grandioso, que perdeu sua
pureza, sua grandeza.
Estas “saudades” poderiam fazer referência a um passado, a um tempo decorrido, uma
época perdida. Mas na poesia lírica, uma vez que não existe distanciamento entre sujeito e objeto,
não existe também o tempo passado. Isso é o que nos explica Staiger (1997, p. 59), quando se
refere ao verbo “recordar”, usado em uma poesia lírica: “O poeta lírico nem torna presente algo
passado, nem também o que acontece agora. [...] Ele se dilui aí, quer dizer ele ‘recorda’.
‘Recordar deve ser o termo para a falta de distância entre sujeito e objeto, para o um-no-outro
lírico.” Assim, essas saudades a que ele se refere não é um sentimento ligado a um passado, mas
a outra coisa. No caso deste poema, as “saudades” seriam um sentimento de falta, mas não de
algo passado, concreto em uma época que acabou, mas a falta de algo superior, maior que o
comum: um ideal de grandeza, de superioridade. Aparece aqui, de forma velada, um tema muito
14
comum em Sá-Carneiro e que será discutido mais à frente: a questão da oposição entre um “eu”
real, que se assume como verdadeiro, e um “eu” ideal, uma imagem criada pelo eu-lírico de algo
que ele gostaria de ser, uma meta a ser alcançada, em temos de personalidade, de qualidades para
a sua pessoa, e que muitas vezes é colocado aparentemente em um tempo passado.
A última estrofe revela o destino do artista, de quem resolve sair da banalidade cotidiana
para “viajar outros sentidos”. O destino que o espera é grandioso, valioso: “o meu destino é outro
– é alto e é raro.”, mas tem uma conseqüência que parece ser inevitável e implacável:
“Unicamente custa muito caro: / A tristeza de nunca sermos dois...”. Há um preço por escolher
esse caminho, não será ileso que o eu-lírico sairá da realidade cotidiana para viver um mundo
ideal. Ele nunca poderá se unir com alguém, não poderá ter uma vida burguesa se escolher este
caminho. Essa relação com o mundo burguês, em “a tristeza de nunca sermos dois” não está tão
clara neste trecho, uma vez que “sermos dois” poderia fazer referência a algo que não fosse o
casamento burguês. Contudo, Fernando Cabral Martins nos mostra que esta interpretação foi
dada pelo próprio Sá-Carneiro em uma carta a Fernando Pessoa. Este poema foi inicialmente
escrito com o nome de “Simplesmente”, e que após algumas modificações, ganhou o nome de
“Partida”. Segundo Martins (1994, p. 197): “É que a parte inicial, que é depois substituída pela
quadra única, expõe o desejo mesmo desse ‘dois’: o amor romântico, e mesmo a família burguesa
idealizada.”. Assim sendo, o eu-lírico se configura como alguém insatisfeito com o mundo
burguês e trivial e que busca, em seu interior, algo mais substancial, mais significativo. Ao fazer
isso, sabe que se tornará inadaptado ao mundo que abandonou, não podendo ter o amor
romântico, tampouco o modo de vida burguês. Essa tristeza mostra que o abandono do real, em
prol do ideal, não será feito sem concessões, sem remorsos, mostra ainda uma personalidade
dividida e angustiada.
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Esta mesma temática, da busca por uma transcendência, de uma fuga do mundo cotidiano,
aliada a uma busca por sua identidade, está presente também no segundo poema da coletânea
Dispersão:
Escavação
Numa ânsia de ter alguma cousa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E a minh’alma perdida não repousa.
Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente à força de sonhar...
Mas a vitória fulva esvai-se logo...
E cinzas, cinzas só, em vez de fogo...
– Onde existo que não existo em mim?
....................................................................
....................................................................
Um cemitério falso sem ossadas,
Noites d’amor sem bocas esmagadas –
Tudo outro espasmo que princípio ou fim...
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 18)
Aqui, há o tema da fuga presente em “Partida”, em que o eu-lírico busca escapar de uma
existência burguesa e trivial, se repete. Ele procura ansiosamente essa transcendência, “divago
por mim mesmo a procurar” como havia feito anteriormente, mas não consegue achar o que
busca, seu esforço parece em vão. O próprio título – “Escavação” – dá a impressão de uma busca
profunda em seu interior, mas que não é bem sucedida, apesar de seu empenho: “Desço-me todo,
em vão, sem nada achar, / E a minh’alma perdida não repousa.”. Novamente a sua alma, o seu ser
não se encontra em paz, ela que havia “recebido” a extrema-unção no poema anterior, aqui está
perdida e sem descanso. Isso parece não ser um contratempo para o eu-lírico: “Nada tendo,
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decido-me a criar”, ou seja, uma vez que não encontra o que procura, resolve criar seu mundo
interior e idealizado. Novamente se associa a uma “luz harmoniosa” e a uma “chama genial”, que
ousam, que podem tentar de tudo, mas desde que esse “tudo” sejam sonhos, desejos,
“Unicamente à força de sonhar”.
Percebe, contudo, que essa criação, que seus sonhos não resolvem seu problema, a
transcendência alcançada não é autêntica, a sua identidade continua a ser um mistério, permanece
obscura: “Mas a vitória fulva esvai-se logo... / E cinzas, cinzas só, em vez de fogo... / – Onde
existo que não existo em mim?”. A vitória não veio, a sua busca não foi alcançada, tornou-se algo
incompleto, imperfeito (“cinza” em vez de “fogo”), e sua procura por uma identidade continua
em vão. A idéia de falsidade, imperfeição está presente nos versos da quarta estrofe, organizados
paralelísticamente, e refletem o modo como ele se vê: “Um cemitério falso sem ossadas, / Noites
d’amor sem bocas esmagadas – / Tudo outro espasmo que princípio ou fim...”. Essas imagens
sugerem incompletude: um cemitério sem ossadas não é um cemitério propriamente dito, e uma
noite de amor sem paixão (sem “bocas esmagadas”), também não se realizou por completo. É
assim que o eu-lírico se enxerga, falso, incompleto, e esse tema é recorrente em outros poemas de
Sá-Carneiro, por exemplo, na segunda estrofe de “A Queda”:
Se acaso em minha mãos fica um pedaço d’ouro,
Volve-se logo falso...ao longe o arremesso...
Eu morro de desdém em frente dum tesouro,
Morro à míngua, de excesso.
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 34)
Este poema traz novamente a noção de falsidade do eu-lírico, presente na idéia de que
qualquer “ouro” que lhe caia nas mãos, logo se torna falso. Nada que se refira a sua pessoa pode
ser autêntico, e mesmo que encontre algo aparentemente legítimo em sua busca, seu caráter
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disperso, incompleto, logo o tornará sem valor, sendo, depois, descartado, desprezado, “ao longe
o arremesso...”. O eu-lírico não acredita ter algo autêntico dentro de si, por isso se ele encontrar
“um tesouro” sua reação será de desdém, de desprezo, porque esse “tesouro” será,
inevitavelmente, falso, sem valor, como tudo o que se relaciona a ele.
Essa sensação de falsidade trás também muita angústia para o eu-lírico, diminui, quando
não acaba, com o seu entusiasmo, nos poucos momentos em que o possui. Segundo Maria de
Graça Carpinteiro, no poema “Ângulo” o eu-lírico se vê como em uma armadilha, em que, o que
era considerado como certo, real e possível de ser alcançado – isto é, suas ânsias e ímpetos –
acaba desaparecendo. Para ela:
[...] o adjectivo falso, que encontra equivalente na sensação de fingido, de
errado, que reveste certos acontecimentos, certas figuras, certos cenários. É
como se avançássemos realmente sobre o cais da poesia Ângulo, esperando um
mar largo e um horizonte rasgado, e nos achássemos de repente em face dum
“truc” teatral cuja ilusão de óptica se desfaz contemplada de perto: banido o seu
efeito, o mar é apenas ausência. É o choque de alguém que se vê apanhado em
uma armadilha, a angústia de ver falhar um chão que parecia seguro, abrir
fendas na estabilidade das situações. (CARPINTEIRO, 1960, p. 59)
Carpinteiro nos mostra como a sensação de falsidade que o eu-lírico sente sobre si mesmo
acaba tornando não realizados seus sonhos, seus objetivos. O “cais” onde estava não era
confiável como imaginava, uma vez que era falso: “Segui no cais. O cais era abaulado, / Cais
fingido sem mar à sua beira...” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 52). A expectativa criada não poderia
ser concretizada, a sensação de que seus ímpetos poderiam, achar um “porto”, é, também, falsa.
Em outro poema seu, “Estátua falsa”, por exemplo, esse tema reaparece. O eu-lírico é uma
“esfinge sem mistério” (ibid, p. 26), alguém que perdeu o seu valor, sua essência. Por isso, existir
é algo doloroso e distante, não há a vivência plena de seus momentos, ele não sente o momento
presente mais do que o passado: “Como Ontem, para mim, Hoje é distância” (ibid, p. 26). Ao
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viver dessa forma, suas experiências perdem significado, perdem força, energia: “Nada me aloira
já, nada me aterra: / a vida corre sobre mim em guerra, / E nem sequer um arrepio de medo!”
(ibid, p. 26). O eu-lírico mostra-se desligado da realidade que o cerca, nada mais o comove, o
emociona. Viver se transformou em uma experiência vazia de sentidos, já não sente nem medo
em face de uma relação insalubre com a realidade. Suas emoções não mais estão ligadas ao real, a
realidade cotidiana não o comove mais. Por isso, na última estrofe, ele expõe, novamente em
estrutura paralelística, o que realça e reforça as suas idéias, o modo como se vê frente ao mundo.
Mostra-nos imagens referentes a sua identidade: “Sou estrela ébria que perdeu os céus, / Sereia
louca que deixou o mar; / Sou templo prestes a ruir sem deus, / Estátua falsa ainda erguida ao
ar...” (ibid, p. 26). Todas elas se referem a sua falsidade, ao ser incompleto e imperfeito que ele é.
Ao mesmo tempo, mostram também alguém que não encontrou o seu espaço, que não encontrou
a si mesmo, alguém que se sente deslocado e sem lugar no mundo real: uma estrela que deixou os
céus, ou uma sereia que abandonou o mar, são seres deslocados de seu ambiente de origem e que
não podem se sentir bem, completos em outro lugar. É assim que ele se sente, alguém que perdeu
o seu lugar original, onde se sentia bem, e se encontra em um outro ambiente, deslocado e
inadaptado. A “estátua falsa” do texto parece se referir a uma estátua construída em homenagem
a alguém, como as que existem para homenagear personalidades importantes, só que de alguma
maneira há uma falsidade nessa estátua. A imagem da estátua pode não ser fiel ao ser
homenageado, ou o próprio ser que receberia o tributo não seria digno de preito. De qualquer
forma, reside aí a idéia de falsidade e inadaptação.
Há um comentário importante feito por Fernando Paixão sobre a questão temporal neste
poema, discordando da interpretação concebida por Wolfgang Kayser em sua célebre obra
Análise e interpretação da obra literária:
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Por isso, acreditamos que a imutabilidade temporal de “Estátua Falsa” – em
consonância com a obra do autor – deixa de ser a expressão de uma
“indiferença absoluta do sujeito que fala”, conforme ressaltado por Kayser, para
configurar, antes, um sujeito subjugado e impossibilitado de existir uno. Sua
experiência subjetiva afirma-se, em verdade, por meio da insuficiência,
condição “falsa” ligada a um devir. (PAIXÃO, 2003, p. 111)
Parece-nos que a interpretação de Paixão é mais exata, mais correta que a de Kayser, e
converge com a idéia de Staiger, citada anteriormente, sobre a questão do tempo na poesia lírica.
Não parece que o sujeito que fala se coloca de forma indiferente, pelo contrário, parece muito
envolvido, emocionalmente, com o conteúdo de seu texto. Quanto à questão temporal, o poema
lírico expressa um mesmo tempo, um “eterno presente”, e não funciona da mesma forma que o
tempo de uma narrativa, por exemplo. Dessa forma, parece-nos mais correta a interpretação de
Paixão, em que a presentidade contínua expressa um sujeito incompleto, insuficiente.
Outro poema consoante com esta idéia é “Quase”. Nele, está fortemente presente a idéia
da irrealização, de incompletude, de que falta algo para que o eu-lírico se torne autêntico,
completo. Aparece a idéia de um “grande sonho” que não foi alcançado, mostrando novamente o
embate entre realidade e idealidade, entre um “eu” real e outro idealizado, na obra de Sá-
Carneiro. Não foi alcançado esse sonho, uma vez que o sujeito não era capaz disso, não era
autêntico, uno, verdadeiro enquanto personalidade, para que pudesse obter êxito. Nada do que
buscou se realizou plenamente: “Quase o amor, quase o triunfo e a chama, / Quase o princípio e o
fim – quase a expansão...” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 27). E a culpa, no seu modo de ver, é dele
mesmo, ele é o responsável por esta situação, e isso lhe causa grande tormento. Foram seus erros
que o levaram a tal estado: “Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, / Asa que se elançou mas
não voou...” (ibid, p. 27). Mais uma vez a questão da falsidade está presente, na asa que não
serviu para o vôo e trouxe-lhe a derrota, a falha, como também em: “Templos aonde nunca pus
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um altar” (ibid, p. 27), ou ainda, “Rios que perdi sem os levar ao mar” (ibid, p. 27). Depois, há
outras imagens de um ser imperfeito, por exemplo: “Se me vagueio, encontro só indícios...” (ibid,
p. 27). Neste verso, é retomada a questão da busca da identidade, do mergulho interior dos
poemas “Partida” e “Escavação”, o eu-lírico não é real, uno, mas só “indícios” de alguém, de
alguma coisa. Ele não alcança nem a “dispersão” almejada enquanto ser artístico, “quase a
expansão” (ibid, p. 27), tampouco consegue se construir enquanto identidade.
Os versos finais da sétima quadra “Hoje, de mim, só resta o desencanto / Das coisas que
beijei mas não vivi” (ibid, p. 27), mostram novamente a infelicidade do eu-lírico, frente a tudo
que poderia ter realizado mas não o fez, de tudo que poderia ter sido, mas não foi. Há aqui,
novamente, a questão temporal presente. O eterno presente da lírica nos mostra uma situação
cantada por um eu-lírico que fala de como é o seu “eu”, de como ele se enxerga frente ao mundo,
de suas expectativas e desilusões. O tempo passado é novamente usado textualmente para dar um
efeito dramático, um recurso estilístico, não funcionando como marcação de um tempo
cronológico, linear e horizontal.
A última quadra, que é uma repetição da primeira, servindo ao mesmo tempo de
introdução e conclusão de seu texto, reforça a idéia que pretende defender. Ele não consegue
atingir o seu ideal, e faltou pouco para isso, “Um pouco mais de sol [...]” e “Um pouco mais de
azul [...]” (ibid, p. 27), faltou pouco para ele ser o que deseja, para alcançar seu grande sonho, ser
“brasa”, ser “além”. Faltou “subir” um pouco, faltou “um golpe de asa”, para que alcançasse uma
“altura” ideal, um patamar genial como seus sonhos e aspirações. O tema da subida será discutido
mais adiante. O verso final traz a idéia de que o pouco que faltou para alcançar seu sonho,
também é algo frustrante, era melhor estar mais distante, “aquém” de sua situação, do que chegar
perto e falhar, do que “quase” conseguir a sua meta. Todas essas idéias confirmam a noção de
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que o eu-lírico se apresenta, além de perdido em sua procura, um ser angustiado, transtornado e
altamente incomodado com seu estado.
Até o momento, então, o eu-lírico nos mostra que essa jornada em busca de sua
identidade, em em face de uma realidade cotidiana, banal e sem significado para ele, só pode ser
encontrada em seu próprio interior. Ao se assumir como artista, que paira acima do cotidiano e
trivial, esse eu-lírico transborda de imagens para caracterizar-se, todas elas buscadas em seu
próprio ser. Percebe, nesta busca – como em “Quase” e “Estátua falsa” – que o seu “eu” não é
grandioso como gostaria que fosse, percebe e mostra, por meio de imagens metafóricas, que sua
interioridade, sua personalidade é incompleta, imperfeita, algo sem valor e sem sentido, como
uma “sereia louca que deixou o mar” (ibid, p. 26), como alguém que não encontrou seu espaço,
seja na sociedade, seja consigo mesmo.
Dando continuidade a essa questão do sentir do eu-lírico, de sua forma característica de
apreensão do mundo exterior, faz-se necessária uma explanação quanto à questão do
Sensacionismo em Mário de Sá-Carneiro. Não faremos aqui uma grande análise dessa estética,
nem de outras correlatas, como o Paulismo e o Interseccionismo, ambas surgidas na brilhante
geração modernista portuguesa, organizada em torno de diversas publicações, entre elas a
famigerada Orpheu, visto não ser este o objetivo deste trabalho. Faremos sim, algumas
considerações, principalmente em relação ao Sensacionismo, que possam acrescentar algo de útil
à questão central da identidade na poética de Mário de Sá-Carneiro.
Segundo Dieter Woll, a importância, dentro da estética sensacionista, não está no objeto
exterior ao eu-lírico, mas nas sensações que ele desperta:
Em primeiro plano não se encontra, portanto, uma descrição de objetos e
acontecimentos suscetíveis de serem apreendidos pelos sentidos, mas o efeito
que eles têm no domínio psíquico. [...]
22
Nesse sentido é de importância secundária o fato de, nas poesias de Sá-
Carneiro, quase não existir uma realidade pessoalmente experimentada ou
literariamente evocada. (WOLL, 1968, p. 118)
Neste trecho, o crítico germânico nos mostra que, para o Sensacionismo, o objeto descrito
em um poema não é importante, mas sim a sensação que ele causa no eu-lírico. Além disso, ele
mostra por que não tem importância, na obra de Sá-Carneiro a “realidade exterior” ao eu-lírico, e
sim a sua vivência interior.
Fernando Paixão, em sua obra Narciso em sacrifício, que versa sobre a poética de Sá-
Carneiro, em determinado momento, fala sobre o assunto: “Sensacionar o mundo será, pois, o
modo pelo qual o poeta acreditará deslocar o eixo de atenção a fim de tomar contato com uma
pulsação interior que repercute a dimensão estética da realidade.” (PAIXÃO, 2003, p. 55). A
realidade não é apresentada diretamente, “nua e crua” ela passa pelo crivo do eu-lírico, é moldada
por ele, sua pulsação interior recria o mundo exterior e o apresenta de uma forma diferente, neste
caso, a partir das sensações que ele desperta.
Segundo Georg Lind (1981), a intenção de Fernando Pessoa era de criar era criar um
movimento a partir, principalmente, do Simbolismo francês, do Cubismo e do Futurismo. Mas o
excesso de considerações abstratas, sem clareza e sem convicção, entre outras coisas, impediu
que o Sensacionismo se tornasse uma escola literária. Fernando pessoa não conseguiu fazer
escola com seu programa estético. Por isso é difícil saber até que ponto Sá-Carneiro seguiu os
passos imaginados por Pessoa, uma vez que não existiu um manifesto claro para o
Sensacionismo. Por exemplo, Georg Lind nos mostra que em alguns poemas do sensacionista
Álvaro de Campos, principalmente suas odes, há uma valorização do “poder de construção”, em
que se podem construir poemas de grande fôlego, ao contrário dos saudosistas da época. Ora, os
poemas de Sá-Carneiro, à exceção de alguns, como “Manucure” não possuem esse fôlego
23
valorizado, o que mostra como o Sensacionismo não conseguiu se firmar como modelo estético
definido. Fernando Pessoa, chegou a firmar que o Sensacionismo era um sistema aberto, e não
fechado. De qualquer forma, cabe fazer algumas considerações que enriquecerão futuras análises,
neste trabalho.
O Sensacionismo buscava uma análise exata das sensações, como o Simbolismo. Segundo
Fernando Guimarães (1992), Cesário Verde teria sido o “precursor inconsciente” deste
movimento. Do Cubismo, herdou a chamada “decomposição do modelo”, embora com uma
diferença. Enquanto para os cubistas havia a decomposição do objeto, para o Sensacionismo
havia a decomposição das sensações dos objetos. Do Futurismo, embora herdasse menos do que
comumente se imagina, comungava a fascinação pelas tecnologias da Modernidade: “Pessoa, tal
como Marinetti, também vê nas descobertas e invenções científicas dos tempos modernos o ponto
de partida para a necessária renovação da arte” (LIND, 1981, p. 184).
Para Pessoa, o idealizador do Sensacionismo, a base de toda a arte é a sensação. E esta,
não é apenas um sentir com a emoção, ele buscava com que o artista se separasse de suas
vivências, que tornasse a sensação intelectualizada. Assim, para o Sensacionismo existe, segundo
Pessoa, a sensação, a consciência da sensação e, finalmente, a consciência dessa consciência,
para poder-se intelectualizar essas emoções. À parte dessas abstrações que tornam confusa a
teoria do sensacionismo, Lind nos mostra que a chave para uma teoria desse movimento “[...] é a
frase ‘sentir tudo de todas as maneiras’. Resume-se nela a doutrina sensacionista.” (LIND, 1981,
p. 180). Outro ponto claro deste quase movimento, é o desprezo pelas causas sociais, pela arte
engajada. Esse ponto é claro em Sá-Carneiro, que produz poemas centrados no “eu”, com pouca
ou nenhuma preocupação com o que acontece ao seu redor na sociedade.
Finalmente, segundo Lind (ibid) Pessoa desejava, com o Sensacionismo, por meio
desdobramento do “eu” através das sensações, desvendar o mistério do mundo. O eu-lírico
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identifica-se com todas as coisas e deixa-se levar pelo dinamismo delas, até o ponto em que elas
perdem seus contornos definidos e se fundem com o eu-lírico, numa espécie de “força abstrata”.
Novamente, parece haver discordância com Sá-Carneiro, uma vez que, ao contrário de pessoa, ele
não buscava o mistério de algo exterior a ele, seja o mundo ou o universo. Sá-Carneiro buscava o
mistério de si mesmo, de sua identidade.
É importante analisar como as imagens presentes nos poemas que constroem a
interioridade do eu-lírico aparecem e são percebidas e sentidas por ele. A forma como ele se
relaciona com essas imagens é muito pessoal, individual, e se realiza a partir de uma forma
peculiar de sentir o mundo, de percebê-lo através dos sentidos. Além do modo sensacionista
propriamente dito e pensado por Fernando Pessoa, está presente, inúmeras vezes, em seus
poemas, a chamada sinestesia, em que ele mistura os sentidos e amplia as possibilidades de
sentir. Assim, temos, por exemplo: “A cor já não é cor – é som e aroma” (SÁ-CARNEIRO, p.
16), em “Partida”; “Vivo em roxo e morro em som” (ibid, p. 19), em “Inter-sonho”; “Grifam-me
sons de cor e de perfume” (ibid, p. 20), em “Álcool”; “O aroma endoideceu, upou-se em cor,
quebrou...” (ibid, p. 39), em “Salomé”; entre outros casos.
Mas a forma de sentir do eu-lírico, da sua relação com seus sentidos e como eles fazem a
mediação entre o “eu” e o mundo exterior, vai muito além de simples sinestesias. Dieter Woll,
nos mostra como o eu-lírico nos poemas de Sá-Carneiro tenta ampliar sua possibilidades de
sentir, como intensifica e expande os seus sentidos para a percepção do mundo. Segundo ele: “o
‘eu’ do poeta espalha-se para além de todos os limites, ‘estende-se’ sobre as coisas – e perde com
isto a sua coesão própria, o seu isolamento perante o outro, o estranho; perde em firmeza e
consistência, dispersa-se dentro do mundo circundante” (WOLL, 1968, p. 105-6). A forma
pessoal de sentir vai muito além da construção de sinestesias, o eu-líríco se expande, se dispersa
sobre os objetos que os seus sentidos percebem. Isso também é uma característica do
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Sensacionismo que buscava se fundir com os objetos. Georg Lind nos mostra como isso ocorre,
ao comentar alguns poemas do sensacionista Álvaro de Campos:
O Eu poético identifica-se com todas as coisas, e deixa-se levar pelo dinamismo
delas até um delírio vertiginoso, no auge do qual as coisas isoladas perdem os
contornos e se fundem com o Eu sensível numa “força” abstrata, na energia que
faz mover o universo. (LIND, 1981, p. 193)
O desejo de “sentir tudo de todas as formas” faz o poeta se unir, diluir-se com o objeto,
por isso, também, ele não consegue se sentir centrado, completo, por isso “Divago por mim
mesmo a procurar, / Desço-me todo, em vão, sem nada achar” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 18),
em “Escavação”. Por causa de sua forma peculiar de sentir a realidade de forma sensacionista, em
que ele tende a se dispersar, a se diluir nos objetos, fica mais difícil sua busca por uma
identidade, fica mais difícil de conseguir a ilusão de centro, de que fala a Análise do Discurso.
Sua forma sensacionista de sentir, dificulta um isolamento em relação ao objeto, o “eu” perde sua
coesão e, com isso, sua personalidade própria fica difícil de ser percebida, quase impossível de
ser construída. O Sensacionismo exige uma concepção de sujeito fragmentada, que parece não ser
a do eu-lírico de Sá-Carneiro, que busca um centro. Parece que a concepção de identidade que
permeia os poemas é uma concepção de identidade tal como a do Iluminismo, porque ele não
aceita as suas variações de personalidade, a fragmentação de seu sujeito. Ele prefere um sujeito
ideal, centrado e totalizante.
O poema “Álcool” mostra bem essa situação e confirma o que foi dito em “Escavação”,
um “eu” que não se encontra, não alcança nunca uma identidade centrada. Vejamos alguns
trechos desse poema:
[...]
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Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo –
Luto, estrebucho...Em vão! Silvo para além...
Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de ouro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...
[...]
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 20)
Está clara, novamente, a busca por sua identidade, e que essa é uma tarefa árdua, que
exige muito esforço do eu-lírico (“luto, estrebucho...”). Nota-se também, que novamente essa
busca, esse mergulho em sua interioridade foi em vão, seu desejo de se reunir, para formar um
sujeito centrado, não foi alcançado e que sua dispersão, novamente, é algo inevitável, um fim que
ele não consegue evitar: “Quero reunir-me, e todo me dissipo”. Este problema parece perseguir o
eu-lírico: uma vez que parece adotar o modelo de sujeito centrado, do Iluminismo, como formar,
ou encontrar uma personalidade em meio a essa dispersão?
O tema representado por “– Onde existo que não existo em mim” (ibid, p. 18), de
“Escavação”, está aqui novamente presente em “Corro em volta de mim sem me encontrar...”, ou
seja, a sua identidade perdida. Parece que, quando ele diz: “fecho meus olhos com pavor da
bruma...”, está se referindo ao estado que ele fica, logo após sua busca malsucedida. Temos a
impressão de que, ao não se encontrar, ao não se concentrar em “um”, ele entra em um estado
ébrio, de alucinação, de torpor. Por isso, nos versos seguintes, se pergunta:
Que droga foi a que me inoculei?
Ópio d’inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 20)
27
Por sentir essa embriaguez, esse entorpecimento, ele se pergunta qual droga foi a que
tomou. Mas não foi uma droga, um fator externo que o deixou nessa situação, mas sim a sua
própria busca, em vão, por sua identidade. Conclui seu poema dizendo que não foi nenhuma
droga – “nem ópio, nem morfina” (ibid, p. 20) – que o deixou com “pavor da bruma”, que o
entorpeceu, mas sim ele mesmo: “É só de mim que ando delirante – / Manhã tão forte que me
anoiteceu.” (ibid, p. 20). Foi a sua busca em vão, seu mergulho em sua interioridade que o deixou
dessa forma, foi sua intenção de se reunir, sem sucesso, foi sua dispersão que o deixou assim.
Dando continuidade às suas idéias acerca da forma como o eu-lírico dos poemas de Sá-
Carneiro sente a sua realidade, no modo como os seus sentidos fazem a mediação entre o “eu” e o
mundo, Dieter Woll faz uma afirmação importante:
Mais significativo ainda do que a sinestesia das qualidades sensoriais exteriores
é, contudo, um outro passo que o poeta dá, mais além, e através do qual
transpõe o domínio dos dados sensoriais, para o relacionar como domínio das
emoções e assim atingir uma vivência ainda mais complexa: cores, sons,
aromas e sensações táteis provocam nele imediatamente emoções psíquicas
como alegria ou medo e afetam por fim todo homem no seu conjunto
psicossomático, de forma que surgem ligadas com fenômenos como vida e
morte, volúpia ou dor e doença e especialmente com um estado de êxtase ou até
de loucura.
(WOLL, 1968, p. 106)
Dessa forma, percebemos que o modo de sentir o mundo, através de seus sentidos, tem
ligação direta com suas emoções. Há uma relação direta entre o modo como ele reúne seus dados
sensoriais por meio de sinestesias, e o modo como ele reage emocionalmente. Para verificar tal
idéia, um trecho do poema “Álcool” novamente pode servir de exemplo:
Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.
28
Batem asas d’auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Descem-me a alma, sangram-me os sentidos.
[...]
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 20)
Esse trecho mostra bem a idéia defendida por Dieter Woll. Sua forma peculiar de sentir,
representada, por exemplo, pela sinestesia “grifam-me sons de cor e de perfumes”, ou pelos
crepúsculos “amarelos” e “doentios de roxidão”, tem um reflexo direto em suas emoções. Essas
imagens, “descem” pela alma, “sangram” os sentidos, ou seja tem uma forte e aberta influência
nos seus sentimentos. Não há separação entre o sensorial e o emotivo, para esse eu-lírico.
É importante notar, a partir dessa idéia, que as emoções geradas pelo sensorial, pela forma
como seus sentidos captam o mundo exterior, são sempre negativas, quase sempre associadas à
morte ou à loucura. A “bruma” gerada por este estado, pode ser associada a um êxtase ou a um
estado de loucura, e ela gera um medo no eu-lírico, que é obrigado a “fechar os olhos”, ou seja, a
fugir, de alguma forma. Esse estado de torpor, gerado pela busca de identidade, e conseqüência
do seu modo peculiar de sentir, que afeta suas emoções, e lhe causa medo, faz com que ele se
distancie cada vez mais de uma personalidade própria, tornam a formação de uma identidade
centrada e autêntica para ele, cada vez mais difícil. Não lhe é agradável essa busca, por isso a
fuga e a conseqüente derrota em seu objetivo de se encontrar.
Continuando com a questão do sentir, do Sensacionismo, veremos que Mário de Sá-
Carneiro vai além das convenções de qualquer movimento. Nesta estética, como foi dito, o que
importa não é o objeto, mas sim a sensação que ele causa em um sujeito. Dieter Woll nos mostra
que o objeto que despertará as sensações não precisa, em Sá-Carneiro, existir “realmente”. E
mais, o eu-lírico em seus poemas aspira a uma independência quanto ao objeto, sendo que a
29
sensação não viria de nenhum objeto “real”. Assim, Woll mostra que, por exemplo, em “Certa
voz na noite, ruivamente...” há uma referência a uma princesa que, “na verdade”, não existe.
Segundo ele:
Encontramos a solução do enigma, se concebermos o seu desejo não como uma
ânsia de um amor puramente espiritual em oposição a um amor sensual, mas
sim como ânsia de uma sensação pura, que seria, é certo, plenamente sensual,
mas não estaria ligada ao mundo tangível. Quer dizer: o poeta aspira à
independência em face do objeto real. (WOLL, 1968, p. 157-8)
Dessa forma, novamente percebemos um eu-lírico que se fecha, ou deseja se encerrar
completamente, em seu próprio mundo. Além de serem as sensações mais importantes que o
próprio objeto, isto é, o subjetivo ficar acima do objetivo, o próprio objeto é também uma
criação. Há, então, o domínio total da interioridade, das sensações do “eu” em face ao mundo
tangível, aos objetos concretos.
Essa característica pode ser também observada, por exemplo, na segunda parte de “Como
eu não possuo”. Aquela que ele deseja, e que não nomeia, não precisa existir necessariamente,
seu desejo de: “Bebê-la em espasmos d’harmonia e cor” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p.29), parece
ser o desejo de sentir puramente, de alcançar a sensação pura, e não de possuí-la de forma carnal,
ou ansiá-la de forma espiritual. Parece ser o desejo de sentir tudo de todas as formas, da estética
sensacionista. Ele se dilui no objeto, no caso “ela”, para que possa ampliar seus limites de sentir,
para que possa “desdobrar” seu “eu” no objeto. È um sentir que não possui moral ou
espiritualidade, mas estética sensacionista. Contribui para essa interpretação, os dois versos
finais, que falam que mesmo a tendo: “É que eu teria só, sentindo e sendo / aquilo que estrebucho
e não possuo.” (ibid, p. 30), ou seja, a sua posse não seria carnal ou espiritual, porque ele não a
possui, ele apenas fala, ou estrebucha, mas não é algo que se realiza concretamente, mas sim
30
esteticamente como resultado do desejo sensacionista de sentir as coisas. As sensações
despertadas por “ela” – que nem existe no mundo tangível – é o que importa, e não a sua
existência.
Quanto ao Paulismo e ao Interseccionismo, cabe fazer algumas curtas considerações.
Segundo Fernando Paixão (2003), Maria Aliete Galhoz relaciona Sá-Carneiro ao primeiro e
Fernando Pessoa ao segundo. O Paulismo tinha forte influência do Saudosismo, evocava o vago e
o sutil, por meio de sintaxes inesperadas, além de ter relações com o Simbolismo e o
Decadentismo. Além disso, e o que mais nos importa neste momento, o Paulismo exprimia uma
sensação de tédio e vazio da alma. Sendo assim, esse tédio e vazio de alma estariam presentes na
poética de Sá-Carneiro.
De certa forma, isso já foi comprovado neste trabalho. Quando o eu-lírico tenta se
encontrar e não consegue, ou quando, por exemplo, em “Estátua falsa” se declara falso,
incompleto – “Sou esfinge sem mistério no poente” (ibid, p. 26) – ele mostra o vazio que sente
em seu interior. A palavra “alma” se repete em vários poemas, sempre associada a esse sentido de
vazio, sempre com um sentimento de tristeza ou mesmo de morte: “a minh’alma nostálgica de
além” (ibid, p. 15), de “Partida”; “E a minh’alma perdida não repousa” (ibid, p. 18), de
“Escavação”; “Numa incerta melodia / Toda a minh’alma se esconde” (ibid, p. 19), de “Inter-
sonho”; “Tenho a alma amortalhada, / Sequinha dentro de mim” e “Assim eu choro, da vida, / A
morte da minha alma” (ibid, p. 23), de “Dispersão”, entre outros.
Quanto ao Interseccionismo, Fernando Cabral Martins (1994) o define como uma
sobreposição de duas sensações, de dois planos coexistindo juntos. Segundo ele, Sá-Carneiro
teria, em algumas de suas obras, traços interseccionistas. Ele apresenta uma interessante
passagem sobre o assunto, escrita pelo próprio Fernando Pessoa, em carta a Corte-Rodrigues:
31
Intersecção do Objeto consigo próprio: Cubismo.(Isto é, intersecção dos vários
aspectos do mesmo Objeto uns com os outros).
Intersecção do Objeto com as idéias objetivas que sugere: Futurismo
Intersecção do Objeto com a nossa sensação d’ele: Interseccionismo,
propriamente dito; o nosso. (PESSOA, 1985, p. 45-6 apud MARTINS, 1994, p.
155).
Essa intersecção do objeto com a sensação que ele causa, pode ser associada a uma parte
da obra poética de Sá-Carneiro. A sensação que ele causa seria o Sensacionismo, e a presença de
ambos (da sensação e do objeto) coexistindo em diferentes planos, dentro de um mesmo poema,
seria o Interseccionismo.
Dando continuidade ao estudo da identidade do eu-lírico, é hora de examinarmos o poema
“A Queda” em sua totalidade. Ao mesmo tempo em que dialoga com os anteriores, antecipa
algumas tendências futuras na poética de Mário de Sá-Carneiro. Ele fecha o ciclo Dispersão,
como um resumo e, ao mesmo tempo, ampliação de alguns temas tratados nessa coletânea.
A Queda
E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la
E giro até partir...Mas tudo me resvala
Em bruma e sonolência.
Se acaso em minha mãos fica um pedaço d’ouro,
Volve-se logo falso...ao longe o arremesso...
Eu morro de desdém em frente dum tesouro,
Morro à míngua, de excesso.
Alteio-me na cor à força de quebranto,
Estendo os braços d’alma – e nem um espasmo venço!...
Peneiro-me na sombra – em nada me condenso...
Agonias de luz eu vibro ainda entanto.
Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,
– Vencer às vezes é o mesmo que tombar –
e como inda sou luz, num grande retrocesso,
em raivas ideais, ascendo até o fim:
Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso...
...............................................................................................
32
Tombei...
E fico só esmagado sobre mim!...
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 34)
Em primeiro lugar, o título remete a um tema recorrente na obra de Sá-Carneiro em seus
poemas até aqui: o da ascensão e da queda, quando o eu-lírico mergulha em seu interior,
apresentando as imagens metafóricas e que irão gerar sensações ligadas a emoções. Segundo
Maria Aliete Galhoz:
Há nas evocações e nos temas de Sá-Carneiro, quebrados, insustentados,
mesmo assim, uma potência de grandiosidade que os pode aproximar das
iluminações dos exploradores dos infernos e dos êxtases. [...] É a atração de um
vórtice cuja rotação espiralada tem o sinal de infinito, mas abissal e marcado da
queda. (GALHOZ, 1963, p. 101-2)
Notamos aqui, referência a uma ascensão e um descenso, representados, respectivamente,
pelo “êxtase” e “inferno”, ambos grandiosos, como quase todas as imagens referentes ao “eu”,
presentes nos poemas de Sá-Carneiro. Além disso, é interessante observar que os movimentos são
em espiral, como um vórtice, e que o movimento de descida não é infinito, mas uma queda.
Fernando Paixão confirma as palavras de Galhoz, e afirma que esse tema está presente,
por exemplo, no poema “Partida”, é o que ele explica ao se referir à conotação dada ao verbo
“viajar”:
A atitude de viajar encontra-se assim reforçada na dimensão simbólica. Não
chega a ser estranho, pois, que esse verbo esteja com freqüência relacionado
com a idéia de altura, em cuja ascensão o poeta se empenha. [...] Do mesmo
modo, reproduzindo o conceito de altura, ainda que inversamente, existem as
palavras ligadas à descensão, metaforizando por meio de movimento a queda do
poeta. (PAIXÃO, 2003, p. 96)
33
No poema “A Queda”, encontramos as duas idéias referidas neste trecho, a ascensão e o
descenso. A viagem que consta no poema analisado por Paixão, acontece dentro do eu-lírico, em
sua interioridade, como já falamos anteriormente, e acontece em um movimento de subida e,
posterior, queda.
Iniciando a análise do poema, na primeira estrofe, aparece logo no primeiro verso, – “E eu
que sou o rei de toda essa incoerência / Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la” – a noção de
falsidade, de incompletude do eu-lírico, a qual já havíamos comentado em “Estátua falsa” e
“Quase”. Logo após, surge um sentimento de torpor, de confusão, além de um existencial tédio:
“E giro até partir...Mas tudo me resvala / Em bruma e sonolência.” Há aqui um diálogo com o
poema “Álcool”, em relação à “bruma”, ao entorpecimento causado pela viagem em seu interior
em busca de suas idéias e sensações geniais.
O substantivo “turbilhão”, que aparece no segundo verso, e o verbo girar, no terceiro,
trazem uma idéia de movimento circular, em que essa viagem, essa subida seria em movimento
espiral. A mesma idéia está contida no poema “Rodopio”, como o próprio nome diz. Neste
poema, há uma sucessão de imagens metafóricas desencadeadas paralelisticamente a partir do
primeiro verbo, na primeira estrofe: “Volteiam” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 32). Todas as
imagens que aparecem em seguida, “Milagres, uivos castelos, / Forcas de luz, pesadelos, / Altas
torres de marfim” (ibid, p. 32), por exemplo, são guiadas por esse movimento em espiral, por esse
rodopio. Todas essas imagens referentes à interioridade do eu-lírico aparecem em movimento
ascendente, e as sensações que elas geram causam um sentimento de êxtase, quase que
acompanhando a subida das imagens. A estrutura paralelística ajuda a dar essa sensação de
deslumbramento, de arrebatamento, como se fossem sendo listadas as imagens em ritmo
frenético, à medida que elas aparecem, causando sentimentos extasiantes. No final, o eu-lírico
aparece como que maravilhado com todas essas imagens maravilhosas que “volteiam” dentro
34
dele, e expressa isso nos dois últimos versos: “Tantas, tantas maravilhas / Que não se podem
sonhar!...” (ibid, p. 33). Novamente aparece o conceito de grandeza do artista e de suas idéias
geniais, uma vez que as imagens que se movimentam em rodopio ascendente, são tão
maravilhosas que nem em sonho pode-se imaginá-las, a mente vulgar não pode sequer sonhá-las.
Dito isso, voltamos ao poema “A Queda”, que em sua terceira estrofe mostra, de novo, a
idéia de uma ascensão ideal: “Alteio-me na cor à força de quebranto”, que não é bem sucedida: “
[...] – e nem um espasmo venço!...”. O eu-lírico continua tentando “se reunir”, constituir uma
personalidade, mas o movimento de dispersão é mais forte: “Peneiro-me na sombra – em nada
me condenso...”. Percebemos, então, que há, neste poema, como já foi dito anteriormente, uma
forte tensão entre a formação de uma identidade e a sua dispersão.
A quarta estrofe antecipa alguns temas que serão abordados futuramente neste trabalho e
que, como já foi dito, integram alguns poemas futuros de Sá-Carneiro. A referida ascensão a que
aspira o eu-lírico é algo que ele mesmo concebeu, foi algo por ele idealizado, algo que foi
concebido por suas idéias geniais. Esta estrofe marca a derrota do ideal, uma derrota pessoal de
um sujeito que, não atingindo as alturas desejadas, por ter um caráter falso e incompleto, se sente
derrotado. Ele não alcança o seu ideal: “Não me pude vencer, mas posso-me esmagar”, ou seja,
ele não superou a sua condição vulgar, não se superou, não atingiu a elevação desejada, mas
ainda lhe resta uma saída: a sua autodestruição. Ele pode se aniquilar, “[...] posso-me esmagar”.
Mesmo sem a vitória: “– Vencer às vezes é o mesmo que tombar” ele ainda se reconhece,
mesmo que de forma negativa, raivosa, e continua seu movimento de subida: “e como ainda sou
luz, num grande retrocesso, / Em raivas ideais, ascendo até o fim:”. Ao chegar “ao topo”,
reconhecendo a sua derrota, resta-lhe a alternativa de executar o movimento contrário à subida,
mas desta vez, de forma autodestrutiva: “olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso... /
...................... ..../ Tombei... / E fico só esmagado sobre mim!...”.
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Fica claro, pela última estrofe, a presença de dois “eus” neste poema: o real, que ele
reconhece e despreza, e o ideal, a que ele aspira, mas não alcança. Um está sobre o outro, o ideal
esmagando o real. Quanto ao gelo, em que ele se atira, é uma imagem de um objeto, que, a partir
do ideário Sensacionista, irá gerar sensações, e conseqüentes emoções. Este objeto, extremamente
duro e frio, pode estar simbolizando a forma como ele se sentia interiormente, com as emoções
“frias” e “endurecidas” após o movimento “quente” e “extasiante” da subida.
Destarte, o eu-lírico se apresenta como alguém fechado em seu próprio mundo, que dá
mais valor às suas sensações, – e às emoções que estas desencadeiam – do que ao mundo
exterior, “real”. Na obra poética de Mário de Sá-Carneiro, o eu-lírico parece girar sempre em
torno de si mesmo, seus temas e sua forma de abordagem sempre se referem ao seu “eu”, sendo o
mundo externo algo de menor valor, menor significado que sua vivência genial de artista. O
mundo “real” e cotidiano, para ele, parece sempre ser o mesmo, sempre ter a mesma
configuração de algo banal e de menor importância que suas idéias grandiosas e sensações. A
vida que escoa “em suas águas certas” (SÁ-CARNEIRO, p. 15), de “Partida” não é páreo, não
pode se igualar às “coisas geniais em que medito” (ibid, p. 15).
Por fim, é importante dizer que, o tema do “eu” real e do ideal, já estava presente de
maneira sutil em algumas passagens dos poemas de Dispersão. Temos, por exemplo, “O pobre
moço das ânsias...” (ibid, p. 22), e “Pobre menino ideal” (ibid, p. 24), em “Dispersão”, como
imagens referentes ao “eu” ideal. Este tema será, contudo, mais explicitamente tratado em seus
poemas futuros. E será, também, o assunto do próximo capítulo.
36
Capítulo 2 - O embate entre real e ideal
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Neste capítulo, novamente veremos que nos poemas de Sá-Carneiro há um modelo
imaginado pelo eu-lírico de sujeito centralizado, uma vez que não se assume fragmentado, e
diferencia uma imagem real de outra ideal, para si mesmo. Como foi dito no capítulo anterior, o
eu-lírico elege um “eu” ideal a ser alcançado pelo seu “eu” real, uma imagem que ele deseja para
si mesmo. Esse perfil ideal é caracterizado sempre por imagens grandiosas, quase perfeitas, e
seria difícil de ser alcançado por qualquer um. Uma vez que esse desejo não é cumprido, que ele
não alcança o que aspira, o eu-lírico se sente derrotado, sente uma queda, e passa a se lamentar e,
também, a esmagar-se, a destruir-se.
Esta idéia é defendida por Cleonice Berardinelli, em um estudo crítico acerca do autor.
Segundo ela:
[...] e ao segundo volume de poemas ele dará o título de Indícios de Oiro, como
a acentuar que as marcas nele impressas são do Outro, daquele que tem em si
“oiro marchetado a pedras raras”, daquele que ele devia ter sido e em cuja
busca perdeu-se sem, contudo, atingi-lo: [...]
(BERARDINELLI, 1958, p. 12)
Mesmo que Cleonice esteja falando, muito provavelmente, do homem Mário de Sá-
Carneiro, enquanto sujeito angustiado com sua vida real, suas considerações são relevantes para
este trabalho, uma vez que o eu-lírico “sofre do mesmo mal”, isto é, passa pela mesma situação.
Assim, o “outro” a que se referiu Berardinelli é o que chamamos de “eu” ideal, aquela imagem
sonhada pelo eu-lírico para si, e que não é alcançada. É importante notar que, esse eu ideal é
alguém grandioso, é caracterizado por meio de imagens imponentes, por exemplo, como no
trecho citado do poema “Taciturno”, em que o eu ideal é marchetado, é pleno de ouro e pedras
preciosas, imagens que denotam riqueza, nobreza.
38
Essa caracterização grandiosa aparece também em outros poemas, por exemplo, em “O
Lord”.
O Lord
Lord que fui de Escócias doutra vida
Hoje arrasta por esta a sua decadência,
Sem brilho e equipagens.
Milord reduzido a viver de imagens,
Pára às montras de jóias de opulência
Num desejo brumoso – em dúvida iludida...
(– Por isso a minha raiva mal contida,
– Por isso a minha eterna impaciência)!
Olha as Praças, rodeia-as...
Quem sabe se ele outrora
Teve Praças, como esta, a palácios e colunas –
Longas terras, quintas cheias,
Iates pelo mar fora,
Montanhas e lagos, florestas e dunas...
– Por isso a sensação em mim fincada há tanto
Dum grande patrimônio algures haver perdido;
(– Por isso o meu desejo astral de luxo desmedido –
E a Cor na minha Obra o que restou do encanto...)
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 77)
Logo no primeiro verso, nota-se a presença de uma imagem para caracterizar esse “eu”
ideal, que é bem grandiosa, a de um nobre, um lorde. É importante notar o uso do tempo passado:
“Lord que fui de Escócias de outra vida”, que não denota um passado como em uma narrativa.
Ou seja, esse “Lord” que ele supostamente foi em outra vida, como diz o poema, não se refere a
um momento passado de sua existência, mas sim à imagem ideal que ele sonha.. O “eu” que ele
deseja alcançar é comparado metaforicamente a um lorde, alguém pertencente à nobreza.
De mesma forma, o segundo verso se refere ao seu “eu” real, é ele que “arrasta” a sua
decadência. Toda a grandeza desse ideal, representada também pelo “brilho e equipagens” não
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está presente no real. A relação presente/passado, em que havia uma riqueza e uma nobreza que
se perderam, representam, na verdade, a relação realidade/idealidade, em que o ideal tem uma
grandeza que o real não consegue alcançar. Dessa forma, o “Milord reduzido a viver de
imagens,”, dentro da concepção sensacionista, é uma imagem que despertará uma sensação em
relação à oposição ideal/real, eu/outro. E parece que o que é despertada é a noção de que, assim
como um nobre teria perdido a sua nobreza, esse “eu” real não alcançará a grandeza, a majestade
do “eu” ideal. Fato semelhante ocorre nos versos finais do poema “Dispersão”: “Castelos
desmantelados, / Leões alados sem juba...” (ibid, p. 25), em que essas imagens remetem ao tema
da riqueza perdida, representada pelos “Castelos desmantelados,”; ou da nobreza decaída,
representada pelos “leões alados sem juba”.
O eu-lírico, ao perceber que não poderá alcançar o que deseja, o que sonha, assume uma
atitude de revolta, de inconformismo: “(– Por isso a minha raiva mal contida, / – Por isso a minha
eterna impaciência)!”. O uso de parênteses acentua o tom de explicação, desses versos, como se o
eu-lírico estivesse dando uma satisfação, fazendo um comentário sobre o seu comportamento
violento e de angústia. O fato de não alcançar as esferas a que almeja é a causa de suas atitudes
hostis.
Aliás, nesta e na segunda estrofe, em alguns momentos, ao se referir a sua própria pessoa,
o faz em terceira pessoa, o que acentua esse tom de explanação. Basta observar a conjugação dos
verbos: “arrasta” e não “arrasto”; “Pára”, ao invés de “Paro”, ou ainda “Olha”, em vez de “Olho”,
além de usar o pronome “ele” para se referir ao “Lord”, em vez de “eu”. Esse afastamento, tem
um tom de ironia consigo próprio, e colabora para dar um ar de explicação, além de afastar de si
o “eu” ideal, como imagem sonhada e não real, não pertencente ao seu sujeito. Esse tom de
explicação, dada pelo uso da terceira pessoa não é comum em outros poemas, e parece, como
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dissemos, denotar um tom sarcástico, irônico. Como veremos no capítulo 3, esse escárnio consigo
próprio gera uma atitude autodestrutiva.
Na segunda estrofe, o eu-lírico “narra” o comportamento desse lorde, que vaga pelas
praças se lembrando de suas riquezas perdidas. O eu-lírico, como dissemos, se distancia e chega a
questionar se esse lorde tinha alguns objetos que lista a seguir. Parece que há uma relação entre
este questionamento e a construção da personalidade desse “eu” ideal, como se para cada riqueza
que o lorde poderia ter, houvesse uma qualidade, uma característica positiva associada a um dos
objetos descritos, que poderia compor esse “eu” ideal. Assim, todas as imagens, todos os objetos
que o “Lord” tinha eram grandiosos, fossem naturais, (terras, quintas, montanhas, lagos, florestas,
dunas), ou feitos pela mão do homem, (palácios, praças, colunas), tornando o “eu” ideal
metaforicamente associado à grandeza, a uma superioridade em relação ao comum.
Não há nada de concreto que tenha sido perdido, não houve a bancarrota de um lorde,
apenas a “sensação em mim fincada há tanto”. Todos os objetos “perdidos”, na verdade, devem
despertar sensações, neste caso, de decadência, de inferioridade. Os versos: “– Por isso a
sensação em mim fincada há tanto / Dum grande património algures haver perdido;”, não
mostram uma perda material, mas a sensação de uma perda maior, de alguém que está frustrado.
Nas palavras de Berardinelli (1958, p. 12): “daquele que ele devia ter sido e em cuja busca
perdeu-se sem, contudo, atingi-lo”, ou seja, a frustração é a de quem se sonhou grande, e buscou
esse estado, mas que se perdeu em seu caminho e falhou.
Os dois versos finais, mostram a conseqüência dessa frustração. Ele se tornou frívolo,
fútil, desejoso de coisas materiais, de luxo: “(– Por isso o meu desejo astral de luxo desmedido”.
E o que lhe resta é a sua obra, a sua condição de artista, que ainda traz algum encanto, retém certa
graça: “E a Cor na minha Obre o que restou do encanto...)”. A única coisa que pode ser
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comparada ao seu “eu” ideal e que existe, é a sua arte (“a Cor na minha Obra”), sua condição de
artista.
Esse estado, de quem vive entre dois pólos, entre oposições, como eu/outro, ou
realidade/idealidade, tornam esse eu-lírico alguém confuso, com grande dificuldade de assumir
uma identidade, de se encontrar enquanto indivíduo. Essa dificuldade em se definir está presente,
também no pequeno poema entitulado “7”
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 44)
Nos dois primeiros versos, já fica clara a situação de indefinição quanto a uma
personalidade própria. O eu-lírico não se reconhece nem como seu “eu” real, tampouco como seu
“eu” ideal, ele fica entre uma coisa e outra, entre o acredita ser, e o que sonha ser. Quando tenta
se definir, se coloca como um pilar de uma “ponte” que vai de um “eu” ao outro. Esse “pilar”
estaria representando, como observa Martins (1994), algo que corta verticalmente a ponte, e a
divide em duas. O eu-lírico, como o pilar, fica sendo “qualquer coisa de intermédio”, não se
reconhece na sua idealidade sonhada, tampouco na realidade. Essa situação lhe causa tédio, o que
já foi estudado anteriormente em outros poemas. É interessante notar o reaparecimento do tema
do “quase”, do imperfeito neste poema. Segundo Berardinelli (1958, p. 13): “[...] a ponte já seria
qualquer coisa de intermédio, mas chegaria ao Outro; o poeta, não: é o pilar, o quase, como ele
mesmo disse [...]”. A ponte seria um objeto metafórico que daria a idéia, a sensação de ligação
possível entre os pólos da realidade, e o da idealidade. Todavia, o eu-lírico não é uno, autêntico,
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ele não é a ponte, é o “quase”, é o pilar da ponte, acaba não sendo nem o “eu” real, não vive a sua
personalidade, nem o “eu” ideal que ele sonha.
Neste e em outros poemas de Sá-Carneiro, podemos observar o que foi chamado por
Dieter Woll, de “vivência sensacionista do espaço”. Neste fenômeno literário, há uma série de
cenários descritos nos poemas, que refletem o interior do eu-lírico, e não um ambiente, um local
determinado. Ao comentar sobre o poema “sete canções de declínio”, diz:
A sexta das Sete canções de declínio faz erguer-se diante dos nossos olhos a
imagem de toda uma cidade fantástica, constituída por formas arquitetônicas
grandiosas: cúpulas, torres, avenidas, praças, jardins, palácios, catedrais; todos
elementos que, no conjunto, criam novamente um efeito de espaço grandioso.
[...] o caminho que o eu-lírico percorre [...] significa, como torna explícito o
final dos respectivos poemas, um caminho para a própria alma, quer dizer, para
o próprio “eu”, [...]
(WOLL, 1968, p. 131)
Na verdade, aqui não existe nenhuma idéia absolutamente nova, que não tenha sido
discutida anteriormente. O que este trecho traz de mais importante é a idéia de que Sá-Carneiro,
repetidas vezes, usa de imagens arquitetônicas grandiosas, de paisagens sublimes para expressar
o seu “eu” ideal. São “cenários” fantásticos que devem despertar sensações, e ao percorrê-los,
percorre uma trilha de autoconhecimento. Essas imagens fantásticas muitas vezes são oriundas do
inconsciente, o que justifica algumas leituras surrealistas da obra de Sá-Carneiro, como aponta
Fernando Cabral Martins (1994). Segundo ele, o poeta português já foi considerado por H
Houwens Post, o precursor do Surrealismo português. Mais adiante, no capítulo 4 retomaremos
esta questão do inconsciente na obra de Sá-Carneiro.
Outro poema, em que aparece essa vivência sensacionista do espaço, é, por exemplo,
“Taciturno”. Segundo Woll (1968, p. 131), assim como já foi dito em relação à “Sete canções de
declínio”, em “Taciturno” a idéia básica é “[...]a recordação de um ‘eu’ anterior [...]”, lembrando
43
sempre que esse “eu” anterior constitui a imagem ideal que ele deseja alcançar, e não uma etapa
saudosa de sua vida que ele está recordando. Cabe agora, então, uma análise mais detida deste
poema.
Taciturno
Há Ouro marchetado em mim, a pedras raras,
Ouro sinistro em sons de bronzes medievais –
Jóia profunda a minha Alma a luzes caras,
Cibório triangular de ritos infernais.
No meu mundo interior cerraram-se armaduras,
Capacetes de ferro esmagaram Princesas.
Toda uma estirpe real de heróis d’Outras bravuras
Em Mim se despojou dos seus brasões e presas.
Heráldicas-luar sobre ímpetos de rubro,
Humilhações a lis, desforços de brocado;
Basílicas de tédio, arneses de crispado,
Insígnias de Ilusão, troféus de jaspe e Outubro...
A ponte levadiça e baça de Eu-ter-sido
Enferrujou – embalde a tentarão descer...
Sobre fossos de Vago, ameias de inda-querer –
Manhãs de armas ainda em Arrais de olvido...
Percorro-me em salões sem janelas nem portas,
Longas salas de trono a espessas densidades,
Onde os panos de Arrás são esgarçadas saudades,
E os divãs, em redor, ânsias lassas, absortas...
Há roxo fins d’Império em meu renunciar –
Caprichos de cetim do meu desdém Astral...
Há exéquias de heróis na minha dor feudal –
E os meus remorsos são terraços sobre o Mar...
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 51)
Logo no título, temos uma referência, negativa, ao “eu” real, ao modo como o eu-lírico se
enxerga e se constrói. Qual seria a causa de sua tristeza, o que o teria tornado taciturno? A
resposta já foi dada por Dieter Woll na citação acima, a amargura do eu-lírico é causada pela
recordação de um “eu” anterior, que não existe mais, que perdeu a sua grandeza. Em outras
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palavras, o que lhe causa desgosto é a diferença, a defasagem entre as imagens do “eu” e a do
outro, do “eu” ideal, do “Eu-ter-sido”.
Na primeira estrofe aparece uma referência ao “eu” ideal, que tem em si “Oiro
marchetado[...] a pedras raras”, trazendo um ar de nobreza, de grandeza ao seu sonho. Mas há
também “Oiro sinistro”, “Cibório triangular de ritos infernais.”, estas imagens referentes ao seu
“eu” real, e que denotam toda a falta de altivez que as imagens anteriores tinham.
A segunda estrofe traz outras imagens desse “eu” que ele constrói para si, alguém que
destruiu coisas belas e singelas de seu próprio ser: “Capacetes de ferro esmagaram Princesas.”.
As princesas representariam a inocência, a sua beleza interior que ele mesmo aniquilou de forma
violenta e severa (“esmagaram”). Segundo Chevalier & Gheerbrant (2005, p. 744), estudiosos
dos símbolos, “o príncipe e a princesa são a idealização do homem e da mulher, no sentido da
beleza, do amor, da juventude, do heroísmo”. Beleza, amor, juventude e heroísmo, são conceitos,
que habitavam o seu interior, e foram extintos por uma extrema violência consigo próprio, ou
seja, são qualidades aspiradas, desejadas, que fazem parte do “eu” ideal, e que não pertencem ao
“eu” real. A seguir, uma sensação correlata surge, uma “estirpe real de heróis” largou, se
despojou de sua nobreza, de seus “brasões e presas”. Essas imagens também devem causar
sensações, sentimentos relacionados ao “eu” real, dando a impressão de falta de nobreza (“se
despojou dos seus brasões”), de distinção, quiçá de caráter (caracteriza seu “eu” real como
covarde, uma vez que não há mais sua “estirpe real d’Outras bravuras”).
A seguir, na terceira estrofe, aparecem imagens em paralelo, que remetem também a essa
sensação de perda de algo importante, da imposição de um mal sobre um bem. Não há esperança
por parte do eu-lírico de que isso mude, de que seja possível “voltar a ser” o que era antes.
Esse retorno, essa recordação do “eu” anterior, ou seja, a possibilidade de que o “eu” real
possa alcançar as alturas do “eu” ideal, não é algo possível de ser concretizado, como nos mostra
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o eu-lírico na quarta estrofe. A “ponte” que levaria a esse “eu” ideal, mais uma vez, como em
“7”, não pode exercer a sua função, é um objeto que não cumpre o seu papel. Essa “ponte” não
tem mais serventia, ela, não tem brilho, é “baça”, enferrujou e é em vão que “a tentarão descer”.
Assim, o “Eu-ter-sido”, não poderá se concretizar no “presente”, o que representa que “eu” ideal
não pode mais ser alcançado. Como no poema “O Lord”, há aqui a relação realidade/idealidade
representada pela oposição presente/passado.
Ele busca em sua personalidade por esse “Eu-ter-sido”, mas não o encontra: “Percorro-me
em salões sem janelas nem portas”. Este “percorrer-se” em objetos revela a atitude sensacionista
de querer sentir tudo de todas as formas. Contudo, o desejo de se encontrar, a partir dessa
experiência, foi em vão. Sem “janela” ou “portas”, ou seja, sem saída, sem ter um caminho a
percorrer ou um horizonte a contemplar, está preso a uma condição irremediável, a uma condição
existencial que, outrora grandiosa, “Longas salas de trono a espessas densidades,” não representa
mais que uma lembrança, ou seja, um desejo de magnificência: “Onde os panos de Arrás são
esgarçadas saudades, / e os divãs, em redor, ânsias lassas, absortas...”. As “saudades” que sente
de seu passado, do “Eu-ter-sido”, as “ânsias” que sente de restaurar tal condição, na verdade,
representam seu estado verdadeiro, seu “eu” real, que anseia por uma condição mais nobre, ideal.
Na última estrofe há algumas referências à morte, que podemos entender como a do “Eu-
ter-sido”, o fim de um estado existencial desejado, que “sensaciona”, que remete o eu-lírico ao
“eu” real e seu estado lamentável. No primeiro verso, a cor roxa pode estar associada a esta
morte, da mesma forma como o fim “d’Império”; podemos ainda entender o verbo renunciar
como o fim de um ciclo. As exéquias, honras fúnebres, que são de heróis e, talvez também, do
“Eu-ter-sido”, mostram como distante, para não dizer impossível, está o “eu” ideal. Assim como
“morreram” os heróis, morreu o seu “eu” anterior, de forma que podemos entender que o “eu”
ideal não será alcançado, de alguma maneira ele está “morto” para as ambições do eu-lírico. O
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que resta, é um sentimento de amargura, amplo como um terraço de um castelo: “e os meus
remorsos são terraços sobre o mar...”, seu remorso, seu desgosto está aqui “espacializado” como
algo amplo, vasto. Por isso ele é taciturno, seu “eu” ideal nunca será alcançado, por sua própria
culpa. São essas as sensações que as imagens desse poema geram: um “Eu-ter-sido” que tinha
beleza, amor, juventude e heroísmo, morreu por sua própria culpa, foi “esmagado” e agora não há
como voltar a sê-lo, ou seja, novamente o eu-lírico toma consciência de que a imagem ideal que
ele tanto busca não pode ser alcançada, mesmo porque esta imagem perdeu sua essência, foi
aniquilada.
Um sentimento análogo a esse expresso no poema “Taciturno” encontra-se em “Ângulo”,
também pertencente a Indícios de oiro. Neste poema, percebemos novamente a impossibilidade
do eu-lírico de alcançar o seu ideal, que se mostra desiludido frente a sua meta, novamente o
desejo de ser um sujeito centrado e ideal:
Ângulo
Aonde irei neste sem-fim perdido,
Neste mar oco de certezas mortas? –
Fingidas, afinal, todas as portas
Que no dique julguei ter construído...
– Barcaças dos meus ímpetos tigrados,
que oceano vos dormiram de Segredo?
Partiste-vos, transportes encantados,
De embate, em alma ao roxo, a que rochedos?...
– Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
Onde, em Champagne, a minha ânsia ia,
Quebraste-vos também ou, porventura,
Fundeaste a Ouro em portos d’alquimia?...
..................................................................
..................................................................
Chegaram à baía os galeões
Com as sete Princesas que morreram.
Regatas de luar não se correram...
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As bandeiras velaram-se, orações...
Detive-me na ponte, debruçado,
Mas a ponte era falsa – e derradeira.
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar à sua beira...
– Por sobre o que eu não sou há grandes pontes
que um outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes...
Um outro que eu não posso acorrentar...
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 52)
Logo na primeira estrofe, o eu-lírico já demonstra desilusão, já expressa a sua decepção
frente a uma expectativa criada: a de que seus ímpetos, suas ânsias, suas esperanças fossem
alcançadas. Todos os meios pelos quais poderiam ser realizadas, representadas pelas “portas”
revelam-se falsos, são possibilidades “fingidas”. A imagem do “dique” causa a sensação de
aprisionamento, de angústia, uma vez que as “portas” que julgou haver construído no dique eram
falsas, ou seja, as possibilidades, os caminhos possíveis de serem trilhados para se alcançar seus
sonhos não existem.
Na segunda estrofe, mostra como as suas vontades não se realizaram, e se questiona o
que houve com elas. Seus desejos, as “Barcaças de meus ímpetos tigrados”, se perderam em
algum “oceano”, foram para algum “rochedo” desconhecido. Mais imagens aparecem na terceira
estrofe referentes às suas aspirações frustradas, a “nau de festa” e “ânsia” que foram destruídas
ou estão perdidas. Até aqui, temos um eu-lírico cheio de sonhos frustrados, que está preso a uma
realidade monótona, num “mar oco de certezas mortas”, e que não consegue vislumbrar uma
saída, um caminho a ser seguido. Sua “nau de festa” quebrou, ou está em algum “porto
d’alquimia”.
Como conseqüência, após algum “tempo”, representado pelos dois versos somente com
pontos, o que é comum nos poemas de Sá-Carneiro, há a desilusão, o sentimento de desengano,
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de que suas expectativas estão decididamente frustradas. Os galeões que chegam com princesas
mortas são imagens que mostram esse sentimento. Como em “Taciturno”, em que as princesas
são “esmagadas” com capacetes de ferro, novamente essas “princesas” estão representando o que
havia de belo em seu interior. Por isso, ele entra em um estado de profunda tristeza, não há
alegria: as “Regatas de luar não se correram”, por isso, a sua angústia: “as bandeiras velaram-se,
orações...”. Dessa forma, esta estrofe é uma conseqüência das anteriores, mostrando uma
expectativa frustrada, representada nos dois últimos versos pelas imagens citadas: as regatas que
eram esperadas, como forma de comemoração, não aconteceram; as bandeiras festivas foram
guardadas; e, em lugar de cânticos festivos, orações de luto.
Na estrofe seguinte, frente a tudo isso, o eu-lírico contempla a sua situação, “debruçado”
em uma “ponte”. O cais, que poderia simbolizar a partida para algo melhor, uma jornada em
busca de suas ânsias e ímpetos, na verdade, não pode realizar tal intento. Como a ponte, ele é
“falso”, é “fingido”, e portanto não se presta à partida para esse “lugar” almejado, não serve para
a realização de seus anseios. Neste poema, o cais e a ponte também são falsos, o primeiro é um
“Cais fingido sem mar a sua beira...”; a segunda é uma ponte falsa e “derradeira”, que nos remete
ao mesmo sentimento despertado em “Taciturno” pela ponte “enferrujada”, não há como alcançar
o “eu” ideal. A “ponte” que poderia ligar a realidade e o sonho não é verdadeira, não pode
cumprir a sua função.
A última estrofe traz a imagem que era desejada, mostra que os ímpetos e ânsias eram por
um “eu” ideal, representado, neste poema, pelo “Eu que não sou”. Para se chegar a esse “eu”,
haveria caminhos, “grandes pontes” que levariam à realização de seus anseios. Através dessas
“pontes” o “eu” real – representado por “um outro, só metade” – poderia chegar onde queria.
Percebe-se que o eu-lírico se reconhece como um sujeito dividido entre o “Eu que não sou” e o
49
“outro só metade”, entre a idealidade e a realidade. Ele é um sujeito fragmentado que não se
assume como tal, pretende ser centrado.
Contudo, esse “caminho” , como já foi dito, não pode ser trilhado, mesmo que o “eu” real
queira trilhá-lo, não poderá fazê-lo, uma vez que o caminho não o levará a seu objetivo. O “outro,
só metade” trilharia por “miragens de falsos horizontes”, ou seja, esse caminho também é falso, é
um “truc”, uma armadilha. Mesmo assim, suas ânsias não podem ser controladas, seu desejo de
alcançar a idealidade sonhada é muito forte: “Um outro que eu não posso acorrentar...”. Assim,
não há como abafar seus desejos, não há como “acorrentar” o “eu” que busca suas aspirações de
grandeza.
Este poema mostra uma “tripartição” do sujeito, como mostra Woll (1968, p. 201), e que
converge com o conceito de sujeito fragmentado: “Desta vez, o ‘eu’ lírico, o ‘eu’ que fala, [...], é
que pertence ao domínio da realidade dada e não pode impedir a ânsia do ‘outro’, que aqui
designa o ‘eu’ intermédio, aquele que vai a caminho do ideal.”. Dessa forma, há um sujeito que
fala, o eu-lírico propriamente dito, um “eu”, que é enxergado por esse eu-lírico, como a sua
imagem real, que, por sua vez, vai em busca de uma terceira parte de seu próprio sujeito: o “eu”
ideal. Há um outro poema, “Escala”, que traz um eu-lírico que expressa as ânsias desse “eu” real,
desse “Um outro que eu não posso acorrentar” do poema “Ângulo”, que parece se reanimar em
sua busca pelo ideal. Logo nos primeiros versos existe a referência a esse desejo de buscar a
idealidade: “Oh! Regressar a mim profundamente / E ser o que já fui no meu delírio...” (SÁ-
CARNEIRO, 2004, p. 62), que é reafirmado ao longo do texto em outros versos: “Cinja-me de
novo a grande esperança, / E de novo me timbre a grande Lua!” (ibid, p. 62), ou na estrofe:
Rompa a fanfarra atrás do funeral!
Que se abra o poço de marfim e jade!
– Vamos! É tempo de partir a Grade!
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Corra o palácio inteiro o vendaval!
(ibid, p. 62)
As imagens evocadas, que trazem a noção da espacialização, dentro do Sensacionismo,
fazem referência ao seu novo estado de ânimo, do “eu” real que parte em busca do “eu” ideal. As
imagens que representam lugares ou eventos, “fanfarra”, “poço de marfim e jade”, “palácio”,
fazem referência não a um ambiente externo, mas sim a seu mundo interior. Então, quando ele
diz: “Corra o palácio inteiro o vendaval!”, ele quer dizer que o entusiasmo, – o “vendaval” –,
deve percorrer todo o seu mundo interior – o “palácio” –, deve percorrer cada “canto” do seu ser,
e despertar de novo a sede pelo sonho ideal. A alegria, a “fanfarra”, deve abafar a tristeza
acumulada por muito tempo, o “funeral”.
Ao longo do poema, mais imagens como essa são evocadas, até que nas estrofes finais
parece ocorrer algo inusitado na poética de Sá-Carneiro: é como se o “eu” ideal ganhasse voz e
incentivasse, incitasse o “eu” real a que partisse decididamente em sua busca. As duas estrofes
finais dão essa impressão:
Recama-te de Anil e destempero,
Tem coragem – em mira o grande salto!
Ascende! Tomba! Que te importa? Falto
Eu, acaso?... – Ânimo! Lá te espero.
Que nada mais te importe. Ah! Segue em frente
Ó meu Rei-lua o teu destino dúbio:
E sê o timbre, sê o oiro, o eflúvio,
O arco, a zona – o Sinal de oriente!
(ibid, p. 63)
É claro que a confusão de identidade do sujeito, e sua partição em eu-lírico, “eu” real e
“eu” ideal, além de confundir o próprio eu-lírico, que pretende ser centrado, pode confundir
também seus leitores. Mas uma coisa é certa, há, nestas duas estrofes, um sujeito que se dirige a
51
um receptor, uma vez que há o uso do pronome pessoal oblíquo átono “te”, e o do possessivo
“teu”, ambos de segunda pessoa. Assim, há uma voz de incentivo, um tom imperativo: “Recama-
te”, “Que te importa”, “Lá te espero”, “Que nada mais te importe”, “seque em frente / Ó meu rei
lua o teu destino dúbio”. É claro que emissor e receptor, neste caso, sejam “a mesma pessoa”,
representem o mesmo sujeito, fragmentado. Pelo tom e conteúdo, parece que o “eu” ideal se
dirige à sua contraparte real e o estimula a seguir em busca de sua meta: “Tem coragem – em
mira o grande salto”, e apesar de suas tentativas anteriores fracassadas, “Ascende! Tomba! Que te
importa?”, ele não deve desistir, uma vez que a idealidade está presente enquanto virtualidade, ou
seja, o sonho existe enquanto potencial de ser alcançado. E este sonho estará sempre ao lado do
real, “Falto / Eu, acaso?...”, e é uma possibilidade que o “eu” real pode alcançar. O “eu” ideal
tenta incentivá-lo a chegar onde ele “está”: “[...] – Ânimo! Lá te espero.”. Deve ser uma busca
intensa, em que o “eu” real deve colocar todas as suas forças, “Que nada mais te importe. Ah!
Segue em frente”. O “eu” ideal usa uma imagem positiva a se referir á sua contraparte, refere-se a
ele como o “Rei-lua” (ibid, p. 63), que deve seguir o seu caminho, mesmo sabendo-o dividido,
sendo um “destino dúbio” (ibid, p. 63). Para ter sucesso, deve ser como as imagens citadas nos
dois últimos versos, e sintetizadas em uma final, “o Sinal de Oriente”. Mais uma vez, o eu-lírico
faz uso do Sensacionismo, de imagens que sugerem sensações, que, em Sá-Carneiro, se
transformam em emoções, sendo que, apesar de serem vagas, remetem a harmonia (“timbre”),
valor (“oiro”) e dispersão (“eflúvio”). O “Sinal do Oriente” parece representar um espaço a ser
alcançado, o que, dentro da estética da vivência sensacionista do espaço, representa um estado de
alma, de espírito a ser atingido. Como afirmam alguns autores, entre eles Fernando Martins e
Dieter Woll, Sá-Carneiro sofre forte influência do Simbolismo, principalmente de Camilo
Pessanha, e parece que esse “Oriente” pode ser lido a partir dessa relação. Segundo Martins: “A
imagem de Pessanha, [...], é, pois, o reconhecimento de um modelo. Mas não só de poética:
52
também de um imaginário de sublimação e exorcismo.” (MARTINS, 2004, p. 138). Converge
com essa idéia, a do outro teórico:
É especialmente com a pergunta misteriosa e receosa acerca da sua origem, [...],
que Sá-Carneiro se aproxima de Camilo Pessanha. Camilo Pessanha fala, de
maneira análoga, de uma origem misteriosa do seu “eu”. [...] Também se
encontra nele a idéia dum país perdido, que está na base do poema Distante
melodia. (WOLL, 1968, p. 220-1).
Martins e Woll nos mostram como Camilo Pessanha e os Simbolistas foram importantes,
como eles influenciaram fortemente Mário de Sá-Carneiro, e seus colegas modernistas
portugueses. Em relação à citação de Woll, mais especificamente, notamos que além de terem em
comum questões acerca do “eu” de cada um, fazem referência a um “país perdido”. Pessanha, em
“Inscrição”, diz: “Eu vi a luz em um país perdido” (MOISÉS, 1985, p. 368), que pode ser
referência à própria Macau, onde morou. O citado poema “Distante melodia”, de Sá-Carneiro, faz
referências a um espaço ideal, que se refere ao “eu” ideal de Sá-Carneiro. Neste poema, em suas
“lembranças” de outro “Tempo azul” (ibid, p. 48), o eu-lírico, por meio da espacialização, diz
que seus sentidos “eram cores” (ibid, p. 48), que na sua alma havia “Outras distâncias” (ibid, p.
48), mostra que tudo era mais belo, mais sublime, mais grandioso. Nesse “tempo”, nessa “época”,
“Caía ouro se pensava Estrelas” (ibid, p. 48), havia magia, encantamento: “Noites-lagoas, como
éreis belas / Sob terraços-lis de recordar-me” (ibid, p. 48). Porém essa “época” passou, o eu-lírico
não é mais o que era, só lhe restam “recordações”: “Lembranças fluidas...cinza de brocado...”
(ibid, p. 48). Essa relação entre um passado majestoso e sublime e um presente de desilusão, na
verdade, expõe a comentada oposição entre o “eu” real e o “eu” ideal. O “Rei exilado” (ibid, p.
49) é uma imagem que “sensaciona”, que exprime a sua condição: a de “rei” – que representa o
ideal – que está exilado, que nos lembra a idéia de falsidade, de falta de autenticidade do “eu”
53
real, já comentada anteriormente. Quanto à questão do “Oriente”, presente em “Escala”, há
referências, em “Distante melodia”, a: “Tapetes doutras Pérsias mais Oriente” (ibid, p. 48), ou:
“Novas Bizâncios-alma, outras Turquias...” (ibid, p. 48). Parece, então, que o espaço que
representaria melhor o seu ideal para um “eu” grandioso, genial, “rei”, que se situaria em um
passado mítico, seria o Oriente, talvez pelo seu mistério e exotismo.
Fernando Cabral Martins (1994) nos fala também da forte influência de Pessanha sobre
Sá-Carneiro. Ele afirma que em uma resposta à revista República, o poeta moderno deixa
transparecer que Pessanha lhe serve como um modelo de poética. Martins vai além, e afirma que
a sintaxe de Sá-Carneiro é derivada de Pessanha, e cita uma lista de poemas de ambos os artistas
que podem ser aproximadas também sintaticamente. Não faremos aqui um estudo comparativo
entre a sintaxe de ambos, mas é importante registrar a forte influência dos simbolistas,
principalmente Camilo Pessanha sobre Mário de Sá-Carneiro.
Dando continuidade ao tema deste capítulo, é o momento de examinarmos um problema
levantado por Fernando Paixão, no capítulo 2 de seu livro Narciso em sacrifício, a saber, a
questão da “verticalidade” e da “horizontalidade” do sujeito nas obras de Mário de Sá-Carneiro e
Fernando Pessoa, respectivamente. Para ele, há uma diferença frontal entre o modo como um e
outro fazem a chamada “ampliação”, um conceito sensacionista em que se fundam horizontes
imaginários que se superpõe à realidade. Segundo Paixão:
Cabe ainda a distinção, grosso modo, de que a ampliação perseguida por Sá-
Carneiro pode ser representada espacialmente pelo sentido vertical –
configurado na oposição real-ideal, dor e sonho, cadência e altura etc. Pessoa,
por sua vez, encontra-se mais estimulado pela ampliação em termos de
horizontalidade, como veio a ser representada em sua produção heteronímica.
(PAIXÃO, 2003, p.51)
54
Assim, o conceito de ampliação, largamente discutido nas famosas cartas trocadas entre
os dois amigos e poetas, e que representava muito da inquietação estética do movimento
modernista português, teve configurações diferentes nas obras poéticas de Sá-Carneiro e Pessoa.
A questão da fragmentação do “eu” que, como vimos, não é bem aceita por Sá-Carneiro, é
encarada de forma diferente por Pessoa.
O eu-lírico dos poemas de Mario de Sá-Carneiro, como já vimos, diferencia o sonho da
realidade, elegendo um “eu” ideal, a ser alcançado, e firmando um “eu” real, imperfeito e falso.
Assim, se formos representar espacialmente essa dualidade, o ideal está acima do real, trazendo a
idéia de um eixo vertical, em que o poeta tentaria subir em um movimento espiral – como as
imagens, por exemplo, de “Rodopio” – mas não conseguindo chegar ao topo, cai e volta para
onde havia saído. Esta queda é dolorosa e autodestrutiva, como vimos no poema “A Queda”.
Por sua vez, Fernando Pessoa resolve de forma diferente a questão da fragmentação do
sujeito. Ele não idealiza um “eu” perfeito e que está acima da realidade, mas “divide” o seu “eu”
em personalidade várias – os heterônimos –, sendo que não existe um melhor ou pior que o outro,
não há um confronto entre realidade e idealidade, como em Sá-Carneiro. Não há como dizer, por
exemplo, que Álvaro de Campos é melhor ou pior, superior ou inferior, a Alberto Caeiro, ou
Ricardo Reis, em termos de valores que Sá-Carneiro estipula para o “eu” real e o ideal. Pode
haver, para alguns críticos, uma diferença de valor estético de um heterônimo para outro, em que
um seria superior artisticamente aos outros, ou um questionamento existencial dentro de um
mesmo heterônimo, mas não em termos de criação de uma imagem ideal a ser alcançada, não em
termos de uma comparação entre os heterônimos. Por isso, a idéia de horizontalidade quando
falamos da ampliação na obra de Pessoa, não há um acima do outro, mas uma fragmentação que
se dá em heterônimos que estão “lado a lado”, que desdobram o sujeito poético de Pessoa. Dieter
Woll (1968) converge com essa idéia de que Fernando Pessoa criou mundos fictícios, e
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acrescenta que essa opção trouxe a possibilidade de se desligar das limitações do “eu”, ao
vivenciar suas personalidades fictícias – os heterônimos –, e de renunciar ao desejo de uma
personalidade ideal e harmônica.
Este, mergulha em um profundo niilismo e se deixa dominar por um sentimento
autodestrutivo. Seu desejo por atingir uma imagem idealizada e centrada, está fadado ao fracasso,
e isso gera uma reação negativa no eu-lírico, como percebemos em diversos poemas analisados.
Como diz em “O Lord” sua reação negativa é conseqüência de seu fracasso, como mostra a
conjunção explicativa “por isso”: “(Por isso a minha raiva mal contida, / – Por isso a minha
eterna impaciência)!” (SÁ-CARNEIRO, 2004,p. 77). A sua raiva e impaciência são o resultado
do processo descrito de desejo e frustração. E, como veremos no próximo capítulo, esses
sentimentos destrutivos voltam-se contra o próprio eu-lírico, contra o próprio sujeito.
56
Capítulo 3 - Autodestruição e desengano
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Como foi dito final do capítulo anterior, a sensação de frustração do eu-lírico, frente à
impossibilidade de atingir seu ideal, torna-se um sentimento de autodestruição, toda a raiva volta-
se contra ele mesmo. Neste capítulo veremos de que forma isso acontece, em alguns de seus
poemas, e verificaremos que esse sentimento se realiza de mais de uma forma, com mais de um
tom, além de terem influências diferentes, uma mais guiada pelo Simbolismo e Decadentismo
portugueses, e outra de cunho mais moderno.
Como diz Cleonice Berardinelli, dentro dele habitam dois sujeitos: o “eu” ideal e
desejado, e o “eu” real e desprezado. Segundo ela:
Entre os dois seres que nele coabitam não se pode baixar “a ponte levadiça e
baça de Eu-ter-sido” – o Outro ficará irremediavelmente perdido. Contrapondo-
os, o poeta sente que na disparidade entre eles está a raiz da sua “raiva mal
contida”, da sua “eterna impaciência”, da sua sensação de perda, do seu “desejo
astral de luxo desmedido”...e essa raiva se volta contra o que ele chama, em
mofa dolorosa, El-rei, ou em um sangrento auto-retrato, Aqueloutro.
(BERARDINELLI, 1958, p. 13)
De acordo com ela, que fala do homem real, a causa da frustração de Sá-Carneiro, que é a
mesma do eu-lírico de seus poemas, reside na desigualdade entre o seu sonho e a realidade, entre
um ideal que não pode ser realizado e a cruel realidade. Além disso, Dieter Woll (1968) nos
mostra que o “eu” ideal não serve tanto como um modelo a ser seguido, visto que ele é, na
verdade, pouco “descrito”. Ele serve mais para mostrar as imperfeições do “eu” real, denotando
uma atitude de aniquilamento do seu próprio sujeito, pois o ideal não é tanto um sonho a ser
alcançado, mas um espelho que mostrará suas deficiências. A referida autodestruição se expressa
de mais de uma forma, ou em tom de deboche, como, por exemplo, no poema “El-rei”, ou de
forma mais violenta, como em “Aquele outro”. Há ainda, um poema chamado “Fim”, em que o
autodesprezo se dá de forma quase grotesca, em que se mistura tragédia e uma atmosfera ridícula.
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Isso posto, cabe agora uma análise dos poemas citados, para se verificar as semelhanças e
diferenças entre as formas em que se dá essa autodestruição. Pela ordem, iremos verificar o
poema “El-rei”, uma zombaria consigo próprio.
El-Rei
Quando chego – o piano estala agoiro,
E medem-se os convivas logo inquietos...
Recuam as paredes, sobem tectos –
Paira um luxo de Adaga em mão de Moiro.
Meu intento, porém, é todo loiro
E a cor-de-rosa, insinuando afectos.
Mas ninguém se me expande...os meus dilectos
Frenesis ninguém brilha! Excesso de Oiro.
Meu Dislate a conventos longos orça.
Pra correr minha Zoina, aquém e além,
Só mística, de alada, esguia corça...
– Quem me convida mesmo, não faz bem:
Intruso ainda – quando, à viva força,
A sua casa me levasse alguém...
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 92)
Este poema fala de uma situação por que passa o eu-lírico, em que ele se encontra em um
salão, repleto de convidados, algo como uma festa, uma recepção, uma reunião de pessoas. Nota-
se também um clima burguês, por exemplo, pela presença de um piano e da própria situação de
um agrupamento de pessoas como em uma festa. Este eu-lírico sente-se logo deslocado, não
consegue se comportar como os outros, causando rejeição e afastamento por parte deles. Uma vez
que os outros dele se separam com estranhamento, “E medem-se os convivas logo inquietos...”, o
eu-lírico se sente mal, desprezado, diferente dos demais, por isso as paredes “recuam” e o teto
“sobe”, mostrando como ele não se sente à vontade na situação em que se encontra.
Mesmo tendo boas intenções, carregadas de afetividade, “Meu intento, porém é todo loiro / E a
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cor-de-rosa, insinuando afetos.” ninguém com ele interage, “Mas ninguém se me expande...”. Na
verdade, isso não poderia ocorrer, uma vez que naquele salão não há uma pessoa que possa
compartilhar de sua grandeza, que tenha a mesmo brilhantismo que ele, “Os meus dilectos /
Frenesis ninguém brilha! Excesso de Oiro.”. O eu-lírico possui, a seus olhos, uma grandeza, uma
majestade que não encontra par naquele ambiente burguês, trivial e superficial, por isso ninguém
reconhece a sua afetividade, tampouco, ninguém é capaz de reconhecer a sua nobreza, sua
personalidade elevada.
Por isso, ele se isola e recorre a sua “Zoina”. O eu-lírico tem que se fechar em seu mundo
interior e, para ele, grandioso e superior ao que vê ao seu redor. Ele acredita ser mesmo, de
alguma forma, alguém distinto de todo o resto que ali está, alguém superior àquela banalidade
burguesa, àquela vulgaridade de pessoas que não o reconhecem grande. Por isso o título “El-Rei”,
o eu-lírico, de certa forma, se sente maior que os demais, ele possui uma “majestade” que os
outros não possuem.
Aliás, segundo Fernando Cabral Martins (1994), existe uma explicação para essa
“majestade” do eu-lírico, há um motivo para ele se sentir diferente e superior aos demais. A
citação a seguir mostra isso, a partir de uma relação entre três poemas: “O fantasma”, “El-Rei” e
“Aquele outro”. Para ele, “O fantasma” apresenta símbolos opostos, que serão desenvolvidos nos
outros dois poemas supracitados, com sentidos contrários. Em “O fantasma”:
Há um ambiente de degradação, onde as coisas parecem animadas de um
movimento hostil. Essa oposição simbólica vai ser desenvolvida pelo contraste
de tom entre os dois sonetos seguintes. El-Rei caracteriza o “eu” que ao chegar
ao salão [...] faz entreolharem-se os “convivas logo inquietos”, e fica exposto ao
isolamento entre os demais [...]. É o “eu” artista, que traduz a “tristeza de nunca
sermos dois” de Dispersão, isto é, a superioridade dos cismos contra a
vulgaridade terra-a-terra. Aquele Outro objecta a esse imaginário “artista” com
uma fúria que múltipla as redundâncias nos primeiros versos, sempre insistindo
na não-sinceridade do que se intitulava El-Rei. (MARTINS, 1994, p. 312)
60
Assim, percebemos que, segundo Fernando Cabral Martins, o motivo que leva o eu-lírico
a se sentir superior aos demais convivas do salão, em “El-Rei”, é porque ele é um artista. Como
já foi analisado no primeiro capítulo deste trabalho, e citado por Martins, essa oposição entre o
mundo do artista e o mundo burguês aparece logo no seu primeiro poema “Partida”, da obra
Dispersão. A referida “tristeza de nunca sermos dois...” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 17), que
constitui o último verso deste poema, indica a impossibilidade do artista, que vive em um plano
mais elevado que as pessoas comuns, que possui outro destino, que é “alto e é raro” (ibid, p. 17),
de viver o mundo burguês. Este é o preço que o artista tem de pagar, um preço que “custa muito
caro” (ibid, p. 17). Contudo, como foi dito, o poema “Aquele outro” contesta essa grandeza que o
eu-lírico reivindica para si, dizendo que não é sincera a sua suposta “majestade” e grandeza.
Assim, “El-Rei” faz um deboche da sua situação frente aos outros, em que o eu-lírico, por
ser um artista que é capaz de “Viajar outros sentidos, outras vidas” (ibid, p. 15), não consegue
conviver de forma sadia, não consegue se situar e se acostumar com o mundo burguês, com a
realidade trivial do dia a dia das pessoas comuns. Já “Aquele outro” contesta essa distinção que o
eu-lírico alega ter, e o faz de forma violenta e autodestrutiva, como veremos a seguir.
Aquele outro
O dúbio mascarado, o mentiroso
Afinal, que passou na vida incógnito;
O Rei-lua postiço, o falso atônito;
Bem no fundo, o cobarde rigoroso...
Em vez de Pajem, bobo presunçoso.
Sua alma de neve, asco dum vômito...
Seu ânimo, cantado como indômito,
Um lacaio invertido e pressuroso...
O sem nervos nem ânsia, o papa-açorda...
(Seu coração talvez movido a corda...)
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Apesar de seus berros ao Ideal.
O corrido, o raimoso, o desleal,
O balofo arrotando Império astral,
O mago sem condão, o Esfinge gorda...
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 93)
O primeiro verso já traz imagens negativas referentes ao eu-lírico, ligadas à idéia de
falsidade, já presente em outros poemas e comentada anteriormente. Ele, na verdade, é o
“cobarde rigoroso”, que não tem coragem de enfrentar os convivas do salão, que se sente inferior
às outras pessoas, e não tem coragem de encará-los. Algumas imagens sugerem essa covardia,
“um lacaio invertido e pressuroso”, “o sem nervos nem ânsia”, “o papa-açorda”. Apesar de achar,
em “El-rei”, que o artista seja superior ao mundo burguês, neste poema, ele não se sente acima
dos demais, ele é o “O Rei-lua postiço”, “o falso atônito”, ou seja, mais uma vez há a idéia de
falsidade ligada ao eu-lírico, ele não se sente mais superior, distinto. Como foi dito no comentário
de Fernando Cabral Martins, o “El-Rei” não é uma imagem sincera aos seus olhos, e ela é
destruída em “Aquele outro”, assim como toda e qualquer idéia de elevação, de “majestade”
ligada ao eu-lírico.
Assim, a noção de que seu “intento, porém, é todo loiro / E a cor-de-rosa, insinuando
afectos” (ibid, p. 92), a idéia de que ele não é compreendido apesar de suas boas intenções e de
sua nobreza, defendida em “El-Rei”, é destruída neste poema. Ela é substituída pela imagem de
que sua alma, supostamente pura, “de neve”, na verdade não passa de “asco dum vômito...”. Ele
não é isolado por ser mal compreendido pelo mundo burguês, mas por sua covardia, por isso ele
passa “na vida incógnito”.
O terceto final traz uma série de imagens autodestrutivas e violentas, contestando a
grandeza presente em “El-Rei”. Uma delas, de uma força incontestável, “O balofo arrotando
Império astral”, mostra como na verdade ele se enxerga, alguém que supostamente vive num
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estado de distinção, em esferas elevadas que os artistas alcançam, mas que na verdade é um ser
grotesco, de uma falsidade muito grande, “O mago sem condão”.
Por falar em grotesco, há um poema que expressa esse sentimento de que não há
dignidade nenhuma no eu-lírico, que ele deve ser achincalhado sem dó nem piedade. É formado
apenas de duas quadras e funcionaria quase como que um epitáfio:
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos berros e aos pinotes –
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro...
......................................................
......................................................
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 97)
Fica claro, neste poema, o elevado grau de desprezo que o eu-lírico tinha por si próprio. O
começo poderia aludir a que seu enterro fosse alegre, como algumas pessoas pedem antes de
morrer, para que sejam lembradas com alegria. Mas não, a imagem sugerida é de um espetáculo
grotesco, de uma encenação absurda, como foi sua vida aos seus olhos. Um enterro com palhaços
e acrobatas, tendo o caixão levado por um burro adornado, lembra a idéia de falsidade, tão ligada
a sua pessoa em muitos de seus poemas. Quem viveu sem autenticidade,sem formar uma
identidade centrada e ideal, na sua opinião, não merece outro tipo de funeral. Para efeito de
registro, este poema não teve título dado por Sá-Carneiro, ganhando de Fernando Pessoa o de
“Fim”, à época de sua publicação na revista Athena.
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Dando continuidade à questão do tratamento autodestrutivo que o eu-lírico dá a si mesmo,
é importante diferenciar dois universos imagéticos, temáticos e vocabulares em que isso ocorre.
Segundo Dieter Woll (1968), existem duas formas que o eu-lírico usa para fazer isso.
Os versos de desilusão que citamos até aqui mantinham-se dentro do âmbito
daquilo que o simbolismo admitia. O mundo imagético e o vocabulário
submetiam-se a uma determinada escolha. [...]
De fato, nos elementos imagéticos escolhidos pelo poeta, a partir do poema
Elegia, para a caracterização do seu estado, já se pode notar uma mudança
clara. A desilusão aproxima-se dum ponto em que expressões simbolistas de
caráter fascinante seriam despropositadas. [...]
A novidade que Elegia traz são principalmente novas metáforas e um
vocabulário novo, e estes são tirados cada vez mais do domínio da realidade
quotidiana, banal: [...] Com isto, Sá-Carneiro dá o passo decisivo em direção
àquela lírica que C.M. Bowra apresenta como a lírica representativa do século
XX [...] (WOLL, 1968, p. 231, 232, 233)
Percebemos, segundo a explicação de Woll, que há duas formas de expressão, dentro da
lírica de Sá-Carneiro: uma filiada à tradição simbolista e também decadentista portuguesa, e outra
que podemos chamar de “moderna”, ligada ao Modernismo em Portugal e ao século XX. Em
outro trecho, Woll (1968) nos mostra que o imaginário simbolista, que, de certa forma faz uso de
um vocabulário grandioso e misterioso, não é mais capaz de expressar a total desilusão por que
passa Sá-Carneiro, que necessita de novas formas de expressão para o seu desencanto. O
Modernismo permite para ele, o uso uma linguagem mais cotidiana e menos fantástica que a do
Simbolismo, mostrando que sua desilusão é tamanha, que até no nível da linguagem ele não pode
mais ser grandioso, que ele necessita de uma nova forma de se expressar.
Sendo assim, é o momento de observarmos e analisarmos dois poemas, cada um
representando uma fase de sua lírica, a simbolista e a moderna, verificando a devidas diferenças
entre ambas. Primeiro, vamos verificar um poema de influência mais simbolista, em que a
autodestruição está presente.
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O Resgate
A última ilusão foi partir os espelhos –
E nas salas ducais, os frisos de esculturas
Desfizeram-se em pó...Todas as bordaduras
Caíram de repente aos reposteiros velhos.
Atônito, parei na grande escadaria
Olhando as destroçadas, imperiais riquezas...
Dos lustres de cristal – as velas d’ouro, acesas,
Quebravam-se também sobre a tapeçaria...
Rasgavam-se cetins, abatiam-se escudos;
Estalavam de cor os grifos dos ornatos.
Pelas molduras d’honra, os lendários retratos
Sumiam-se de medo, a roçagar veludos...
Doido! Trazer ali os meus desdéns crispados!...
Tectos e frescos, pouco a pouco, enegreciam;
Panos de Arrás do que não-Fui emurcheciam –
Velavam-se brasões, subitamente errados...
Então, eu mesmo fui trancar todas as portas;
Fechei-me a Bronze eterno em meus salões ruídos...
– Se arranho o meu despeito entre vidros partidos,
estilizei em Mim as douraduras mortas!
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 53)
As três primeiras estrofes deste poema trazem imagens de destruição, de um cenário
luxuoso que foi arrasado, as “salas ducais, os frisos das esculturas” foram aniquilados. Na
segunda estrofe, o eu-lírico observa a destruição das “riquezas imperiais”, dos “lustres de cristal”,
das “velas d’ouro”, da “tapeçaria”, em uma atitude contemplativa.
Sabemos, a partir do que já foi discutido anteriormente sobre o que se chama “vivência
sensacionista do espaço” dentro da lírica de Sá-Carneiro, que, na verdade, as imagens não se
referem a um cenário externo, se referem ao próprio eu-lírico, ao seu mundo interior. São
imagens grandiosas, que remetem a uma atmosfera de luxo e nobreza, indicando um valor
positivo, que foi destruído por alguma razão. A terceira estrofe traz versos com sujeito
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indeterminado (“Rasgavam-se”, “abatiam-se” e “Estalavam”), que causam a sensação de que não
foi um agente externo que “destruiu” o que havia de belo em seu interior, mas, como fica claro
adiante no poema, ele mesmo é o responsável. O eu-lírico contempla “Atônito” o que ele mesmo
fez.
A quarta estrofe mostra quem foi “o responsável” por toda essa “destruição”. “Doido”,
mostrando grande imprudência, ele expõe o que existe de mais belo dentro de si a um outro lado
seu, violento e autodestrutivo, expõe as “imperiais riquezas” aos seus “desdéns crispados”.
Dentro de si, o eu-lírico possui um sentimento de extermínio, algo como um desprezo ácido, que
age contra sua interioridade, no que ela possui de mais positiva aos seus olhos. A destruição é
total, “Tectos e frescos, pouco a pouco, enegreciam;”, e seu “eu” ideal, seu sonho tão desejado é
também atingido por essa “avalanche” que nada preserva: “Panos de Arras do que não-Fui
emurcheciam – / Velavam-se brasões, subitamente errados...”. Seu “eu” ideal, (representado pelo
termo “do que não-Fui”) emurcheceu, foi desaparecendo de alguma forma, foi sumindo, atingido
pelo seu lado destrutivo. Seu desejo de centralidade do sujeito fez aflorar e prevalecer um lado
ruim de sua personalidade.
O que lhe resta é a solidão, “Então, eu mesmo fui trancar todas as portas;” se fechar nesse
mundo destruído, “Fechei-me a Bronze eterno em meus salões ruídos...” e se ater ao que sobrou,
“Estilizei em Mim as douraduras mortas”. Também esse não é uma imagem de algo autêntico,
mas sim, novamente, uma idéia de falsidade, uma vez que ele “estilizou” as “douraduras mortas”,
o que dá idéia de algum tipo de modificação artificial, maquiada.
Após esta rápida análise do poema “O resgate”, é o momento de verificarmos o que existe
nele de uma possível influência simbolista. Nota-se, em primeiro lugar, o uso de um vocabulário,
de imagens, referentes a castelos, nobreza (“salas ducais”, “imperiais riquezas”) enfim, a um
universo de luxo, a uma atmosfera medieval. Podemos observar o mesmo em alguns poemas
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decadentistas e simbolistas, por exemplo, nos versos de Júlio Brandão: “Os castelos feudais
abandonados, onde / À minha sede ninguém dá um copo d’água” (PEREIRA, 1975, p. 271); ou
nos de Eugênio de Castro: “Lá no seu palácio alabastrino, cheio / de perfumes, sedas e ouros
cinzelados...” (ibid, p. 275); ou ainda no poema “Castelo de Óbidos”, da obra Clepsidra, de
Camilo Pessanha: “Quando se erguerão as seteiras / Outra vez, no castelo em ruína, / E haverá
gritos e bandeiras / Na fria aragem matutina? / [...] E sairemos ao combate / De cota e elmo e a
longa espada?” (PESSANHA, 1973, p. 59)
Além do vocabulário e das imagens, converge com Sá-Carneiro um certo tom de
desânimo e pessimismo, entre os decadentistas e simbolistas portugueses, como nos mostra José
Carlos Seabra Pereira:
É, em grande parte, como fruto deste inelutável domínio do desengano e da
maneira pessimista de se situar perante o mundo dos homens, que deve ser
encarada a atitude desistente e prostrada, à qual a lírica decadentista se
abandona constantemente. [...]
Camilo Pessanha, o poeta que com maior freqüência e elegância estética traduz
a atitude de desistência e prostração, bem deixa transparecer como se enternece
a olhar seu corpo que “Dorme enfim sem desejo e sem saudade / Das coisas não
logradas ou perdidas” (PEREIRA, 1975, p. 276, 277).
Podemos perceber que a desilusão e o pessimismo dos poemas analisados está presente
também nos simbolistas e decadentistas portugueses, sendo Camilo Pessanha quem “melhor”
representa esses sentimentos. O eu-lírico que “Dorme enfim sem desejo e sem saudade” é alguém
que nada mais espera do mundo, que tem seus sonhos soterrados e aniquilados pelo mundo em
que está presente, lembrando alguns versos de Sá-Carneiro que transmitem essa mesma idéia,
esses mesmos sentimentos, por exemplo, o final de “Caranguejola”: “Nada a fazer, minha rica. O
menino dorme. Tudo o mais acabou.” (ibid, p. 87), ou em “Vontade de dormir”: “Quero
dormir...ancorar...” (ibid, p. 21). Não há mais esperança, não há mais nada a se esperar da vida, o
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que resta é um certo niilismo, um certo cansaço existencial frente a várias desilusões. Aquele que
“dorme” sem nada esperar da vida e sem ter nenhuma saudade, sente algo muito parecido com
quem “trancou” todas as “portas”, quem se fechou dentro de si mesmo, também sem nada
aguardar, sem nenhuma ambição frente ao mundo.
Dito isso, cabe agora verificarmos um poema de imaginário e vocabulário mais modernos,
como nos propusermos anteriormente. Veremos que não existe mais esse mundo fantástico de
imagens de influência simbolista, a desilusão do eu-lírico é tanta que esse universo não lhe serve
mais, é necessária uma renovação tanto imagética quanto lexical, para que possa expressar sua
desilusão. O que fica de igual, é o sentimento de desilusão, pessimismo, e uma atitude destrutiva
consigo próprio.
O poema a seguir, “Serradura”, assim como “Cinco Horas”, se passa em um espaço
preciso e determinado: um café parisiense. Esse elemento, assim como outros presentes no
poema, como o folhetim e uma menção à Alemanha, mostram uma “invasão” do “mundo real”
dentro de seu texto, o que é uma novidade, se compararmos com o imaginário simbolista citado
anteriormente. Contudo, Dieter Woll (1968) nos lembra que o café é um prolongamento exterior
da sua vida interior: “Mas o verdadeiro lugar do poeta é o café parisiense. [...] este representa
para Sá-Carneiro o local da musa moderna, e sai assim para além do domínio da realidade,
incorporando-se no mundo ideal do artista” (WOLL, 1968, p. 82). Vejamos, então, em
“Serradura”, como é feito esse jogo interseccionista de cenário e interioridade a partir do café, e
perceberemos o vocabulário mais moderno adotado neste poema.
Serradura
A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
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A minha vida fartou-se.
E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna trançada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.
Pois é assim; a minh’Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.
Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o “Matin” de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo!
Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.
Folhetim da “Capital”
Pelo nosso Júlio Dantas –
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma apatia igual...
O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia, e fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!...
Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra uma porta aberta...
Isto assim não pode ser...
Mas como achar um remédio?
– Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:
O que era fácil – partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel
A gritar: “viva a Alemanha”...
Mas a minh’Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade.
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Vou deixá-la – decidido –
No lavabo dum Café
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 76-7)
Neste poema, podemos sentir a desilusão e o pessimismo encontrados nos anteriores, de
imaginário simbolista, mas com um universo, tom e vocabulários modernos. Há aqui a presença
de elementos da realidade exterior, como o café, uma referência ao momento literário português,
com a disputa entre a nova geração moderna e a velha tradição literária (representada aqui por
Júlio Dantas), além de uma alusão à guerra que estava sendo travada na Europa.
Logo na primeira estrofe fica claro o seu sentimento de desapontamento, sua “vida
sentou-se / E não há quem a levante”, sua situação frente à vida é de estagnação, de uma certa
letargia, e não há perspectivas de melhora. Na segunda estrofe ela é caracterizada por um termo
da linguagem cotidiana (“mona”), e está em um “sofá”, não mais em um castelo ou em um outro
ambiente grandioso.
Na terceira estrofe, ele diz que não sonha mais com coisas grandes, não espera mais nada
importante da vida, aquele que sonhava “Rússias”, se contenta com o banal, com o trivial da vida,
“E hoje sonha só pelúcias.”. Essa idéia está presente também na quarta estrofe, em que surge o
“cenário” do café, em que, de maneira intersecionista, intercalam-se o plano exterior do “Café” e
outros elementos: um “bock” e o “Matin”, e o plano interior do eu-lírico, com seus sentimentos.
A partir dessa estrofe, intercala-se a realidade exterior e a interioridade.
Os dois últimos versos dessa estrofe, além de denotarem sua situação de pessimismo e
desengano, em que não há “salvação” à vista, não há como alcançar o ideal, o “Oiro antigo”,
pode representar também uma idéia em relação à sua própria poética. Sua situação é tão séria, seu
nível de desilusão é tão alto, que não há mais sentido em se invocar as imagens grandiosas do
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imaginário simbolista, não há mais aquela grandeza que ele via dentro de si. Não há mais
mistério, tudo está claro para o eu-lírico, não há mais como voltar atrás, não há maneira de se
regressar ao “Oiro antigo” simbolista. Assim, este poema representa uma nova fase, mais
moderna, dentro da poética de Sá-Carneiro.
A quinta e sexta estrofes reforçam o sentimento de desilusão, que causa nele tédio, fastio
existencial. Seu estado de pessimismo é maçante para ele e aborrece como “O zumbido de um
moscardo / Ou comichão que não passa”, é algo fortemente presente, que incomoda bastante e
que parece não passar nunca. Algo tão antipático a ele, tão irritante quanto Júlio Dantas, em mais
uma referência ao mundo exterior. Aparece aqui a briga da geração de Orpheu para se afirmar na
literatura portuguesa, apesar das críticas dos defensores da velha tradição literária. Ele usa um
elemento externo para caracterizar sua interioridade, seu “fardo” é tão maçante quanto Júlio
Dantas.
Assim, passa a viver de maneira “burocrática”, ou seja, burguesa e trivial, não tendo mais
as aspirações grandiosas de um artista. Agora “fuma o seu cigarrinho / Em plena burocracia”, a
imagem de estagnação e banalidade do eu-lírico sentado em um café esperando o tempo passar,
com grande tédio, reflete seus sentimentos de vazio existencial e conseqüente abandono de seus
ideais anteriores. Por isso, já que não existe mais uma saída, ele é capaz de um ato impensado,
autodestrutivo, pois não há mais nada a perder. Se ele tiver uma oportunidade, se encontrar “uma
porta aberta” é capaz de um “disparate” de um gesto absurdo e de despautério, movido pelo seu
desespero.
A “solução” para sua situação seria a loucura, uma vez que a racionalidade ou o bom-
senso não podem tirá-lo de seu estado. Este, e outros gestos parecidos são comuns aos artistas
modernos, como veremos em um capítulo mais adiante. De qualquer forma, reflete o desespero
por que passa o eu-lírico, que se sente inadaptado ao mundo burguês e, ao mesmo tempo, não
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pode mais se refugiar em seu mundo interior, uma vez que sua suposta grandeza foi
desmascarada, seus sonhos grandiosos foram por terra. Por isso, como fuga da realidade, resta a
loucura, resta sair à rua “A gritar: ‘Viva a Alemanha’...”, em mais uma referência ao mundo
exterior, no caso a Primeira Guerra Mundial. Gritar o nome do inimigo em plena guerra seria
absurdo, mas a loucura seria uma “solução”, um refúgio para sua situação igualmente absurda.
Mas esse refúgio seria uma tentativa de “salvar” sua alma, de encontrar uma solução,
“Mas como achar um remédio?”. Contudo, o eu-lírico em completa falta de auto-estima,
totalmente perdido e desiludido, acredita que não merece ser “salvo”, sua alma “Não merece tal
façanha, / Tal prova de lealdade.”. Por isso resolve abandoná-la “No lavabo dum Café”, o que
mostra que não sente mais vontade de alcançar seus sonhos, sua atitude autodestrutiva alcançou o
ponto da total falta de esperança, por isso deve “largar” a sua alma, e viver o resto de seus dias
imerso na banalidade.
Percebemos neste poema, o fim do ideário simbolista em sua obra e a presença de outro
regido pelo Modernismo. O sentimento de desilusão é muito parecido, mas a forma com que ele é
construído é bastante diferente, não há mais imagens grandiosas, mas sim a representação do
mundo exterior, com seus cafés, hotéis, jornais, folhetins, bebidas e cigarros, além do vocabulário
mais informal, usando elementos da linguagem cotidiana: “mona”, “cigarrinho”, “raio”
(significando pessoa travessa), entre outros.
Há outro texto, com esse mesmo tom moderno e que também faz algumas referências a
elementos externos ao eu-lírico, o poema “Caranguejola”. Nele, existe um “eu” e uma
interlocutora feminina, um “tu”, mas Segundo Martins (1994), essa interlocutora é apenas
imaginária, como já foi observado em outros poemas de Sá-Carneiro.
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Caranguejola
– Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores.
Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado,
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.
Não, não estou para mais – não quero mesmo brinquedos;
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
– Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar...
Noite sempre p’lo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho – que amor...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –
P’lo menos era o sossego completo...História! era a melhor das vidas...
Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
– Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo – e se resigne a não ter jeito...
De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário. Bom édredon, bom fogo –
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co’a breca! levem-me p’ra enfermaria –
Isto é: pra um quarto particular que o meu Pai pagará.
Justo. Um quarto de hospital – higiênico, todo branco, moderno e
[ tranqüilo;
Em Paris, é preferível – por causa da legenda...
Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda –
E depois estar maluquinho em Paris, fica bem, tem certo estilo...
– Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores
[ maneiras:
Nada a fazer minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 88)
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É possível perceber, desde o começo do texto, que esse é um poema diferente da maioria
dos outros de Sá-Carneiro, pela sua métrica irregular e mais “livre”. Além disso, possui imagens
bastante nítidas, e que fazem referência a elementos mais concretos do mundo real. Há um
cenário e um interlocutor, mesmo que o cenário seja uma extensão de seu interior, seja, de certa
forma, uma fantasia do eu-lírico, e que o interlocutor seja uma criação.
Desde a primeira estrofe, fica clara a vontade de isolamento, de refúgio do mundo
exterior, de um sujeito, que como uma caranguejola, não tem segurança, “solidez” para enfrentar
a vida. Ele deseja que o “metam entre cobertores” e que se feche em seu quarto, e não atenderá
ninguém, nem a “ti se tu lá fores”.
É importante perceber quem é esse “tu”, a quem o eu-lírico se remete. Segundo Martins
(1994) é um interlocutor imaginado, que ao mesmo tempo remete a uma mulher amada e a uma
figura materna, e a um ambiente de infância. De acordo com o crítico português: “Há a memória
de um quarto de infância, com livros e brinquedos” (ibid, p.300), contudo, o poema não é uma
regressão à infância, o que há é uma interseção de espaços, de interiores, sendo um deles esse
“plano” de tom infantil.
Na segunda estrofe, ele afirma que deseja conforto, “Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem
calafetado...”, tudo que o mundo burguês pode lhe proporcionar de prazer, além de abandonar
seus ideais artísticos, de se fechar até para esse seu lado, antes exaltado. Ele não deseja “Nenhum
livro, nenhum livro à cabeceira...”, não quer saber de nada, nem do que antes lhe dava maior
prazer, agora deseja os prazeres mais mundanos, “Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.”.
Comida e bebida, em vez de literatura, mesmo porque ele não é compreendido, “Daqui a vinte
anos a minha literatura talvez se entenda”. Esse é, possivelmente, um dos fatores mais fortes do
seu desejo de isolamento. A arte, a literatura, que antes lhes eram tão caras, tão amadas, a quem
se ligava tão fortemente, nesse momento não lhe trazem mais consolo. Se antes se isolava do
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mundo burguês tendo o consolo de saber que era genial, era um artista que pairava acima do
vulgar, não sabe mais se isso tem valor, e mais, passa a ignorá-los. Percebe-se, então, que seu
nível de desilusão atingiu o que era mais valoroso para o eu-lírico. Por isso, “Que a porta do meu
quarto fique para sempre fechada”, seu isolamento é total.
Não lhe servem mais nem as mesas dos cafés, nem a vida burguesa mais trivial lhe é
possível, ele não sabe vivê-la. Os “brinquedos”, não sabe usá-los, “Até se mos dessem não
saberia brincar...”, tampouco sabe se comportar socialmente, como percebemos em “El-rei”,
“Crise lamentável” e “Campainhada”, o eu-lírico não se sente bem em volta das outras pessoas,
nem em momentos de descontração: “Não fui feito para festas”. A “tristeza de nunca sermos
dois” (ibid, p. 17), de “Partida”, o tema da inadaptação ao mundo burguês, às coisas mais banais
da vida é uma constatação que é reafirmada nestes versos. Em “Crise lamentável” aparecem
outras imagens dessa mesma incapacidade, desse medo de viver o mundo exterior, ele deseja
“Não ter receio de seguir pequenas / E convidá-las para me pôr nelas.” (ibid, p. 90) . O eu-lírico
mostra um desejo de interagir com a sociedade, de ter iniciativa para fazer o que todos fazem,
mas sua fraqueza, sua “falsidade”, representada pelas imagens ridículas que cria para si próprio,
como em, “Aquele outro”: o “Esfinge gorda”, “bobo presunçoso”, “Rei-lua postiço” (ibid, p. 93),
entre outras, mostram uma baixa auto-estima, que o impede de se afirmar, de se impor, de
enfrentar o mundo real, a sociedade. Quando afirma que se fechar em seu quarto, “Pelo menos
era o sossego completo...História!...era a melhor das vidas...”, talvez não deseje tanto essa
situação pelo sossego, nem pelo conforto, tampouco por acreditar realmente que essa era a
melhor coisa que podia lhe acontecer.
Talvez fosse a única saída que ele vislumbrava, um sujeito desiludido com sua “falsa”
grandeza, e que não tem coragem de encarar o mundo real, “Se me doem os pés e não sei andar
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direito / Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord”, não lhe resta mais sua nobreza
interior, nem consegue se encaixar na sociedade.
Chega então a uma conclusão, na sétima estrofe, “Desistamos. A nenhuma parte a minha
ânsia me levará.”, não há mais o que fazer, o eu-lírico se resignou com a situação. Surgem, então,
algumas imagens bem nítidas de “cenários” modernos, o quarto do hospital e a cidade de Paris,
onde enlouquecer “tem certo estilo...”.
Essa imagem parece revelar um ser irônico consigo próprio. Como dissemos
anteriormente, essa ironia tem um tom de autodestruição, como em outras situações que
mostramos neste capítulo. Ao dizer que ficar louco em Paris tem certo estilo, ou, como afirmou
em “Serradura”, que se deixasse sua alma num lavabo de um café seria um final “raffiné” para
sua existência, o eu-lírico mostra um forte sarcasmo, um forte desprezo consigo próprio, revelado
esteticamente pela presença dessa figura de linguagem.
Como mostra seu último verso, sua desilusão continua inabalável: “Nada a fazer, minha
rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou”. É um verso que traz uma imagem forte de
pessimismo e de desengano que não mais passarão. Esse “menino” que dorme, talvez seja o
mesmo “Pobre menino ideal...” (ibid, p. 24) de “Dispersão” a quem faltou alguma coisa, e que
agora não deseja mais nada, que agora “dorme”. Esse desejo, já aparecia em “Vontade de
dormir”, “Quero dormir...ancorar... / [...] / Arranquem-me esta grandeza!... / – Pra que me sonha
a beleza, / Se não a posso transmigrar?...” (ibid, p. 21), ou seja, quando sua grandeza foi
“arrancada”, quando a “beleza” não é mais sonhada, finalmente chega ao estágio que já previra
anteriormente, o nada, o total vazio existencial, “Tudo o mais acabou”, por isso, só lhe resta
“dormir”, se isolar de tudo.
Concluindo, o objetivo deste capítulo foi mostrar que o eu-lírico, frente à impossibilidade
de atingir suas metas, frente à percepção de que seus sonhos de ser um sujeito centrado e ideal
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não passam realmente de sonhos, adota uma atitude autodestrutiva. Essa maneira violenta de agir
consigo próprio é representada, primeiramente, com um imaginário de influência simbolista,
como o era também o imaginário dos seus poemas em que fala de seu “eu” ideal. Posteriormente,
frente à desilusão total e completa, abandona esse imaginário de mistério, incompatível com seu
estado, e adota um tom mais moderno, inserindo elementos do mundo externo em seus poemas.
Finalmente, deseja abandonar tudo, fechar-se completamente, refugiar-se de tudo, inclusive de
seu interior, antes genial para ele, e que depois não lhe preenche mais, não tem o menor sentido, a
menor importância. O “eu” que desejava ser grande e uno, desiste de seus sonhos, desiste de
tudo.
77
Capítulo 4 - Anima e mitologia relacionadas ao eu-lírico
78
Neste capítulo, faremos algumas considerações da obra poética de Mário de Sá-Carneiro a
partir da investigação de alguns mitos, arquétipos e símbolos presentes em sua obra. Além disso,
faremos uma investigação e análise à luz de algumas teorias de Carl G. Jung sobre consciente e
inconsciente. Não nos caberá analisarmos o artista enquanto ser humano vivente, em outras
palavras, não é o propósito deste capítulo uma analise psicológica do homem Mário de Sá-
Carneiro, não olharemos para sua biografia.
Como já foi dito anteriormente, segundo Fernando Cabral Martins (1994), alguns
estudiosos da obra de Sá-Carneiro, como H. Houwens Post e Natália Correia, fizeram uma leitura
de alguns de seus poemas a partir do Surrealismo. Uma vez que esse movimento pressupõe a
existência do inconsciente, que será definido mais adiante, este capítulo pretende fazer uma
análise similar, mas não partindo do Surrealismo. Será a partir de uma leitura do inconsciente a
partir das teorias de Carl G. Jung que, como os Surrealistas, admite sua influência nas obras de
arte.
Assim, nem sempre tudo o que está em uma obra de arte foi racionalizado pelo autor, por
exemplo, os elementos inconscientes, existem influências que ele próprio pode desconhecer.
Sobre esse assunto nos fala Northop Frye:
A alegação de que um crítico não deveria procurar num poema mais do que se
pode presumir com segurança que o poeta tenha tido a consciência de colocar
ali é uma forma comum daquilo que se pode chamar de falácia de teleologia
prematura. [...]
O fato de que a revisão é possível, de que o poeta faz mudanças não porque
gosta mais delas mas porque elas são melhores, significa que os poemas, como
os poetas, nascem, não são feitos. A tarefa do poeta é dar à luz o poema num
estado tão ileso quanto possível; se o poema estiver vivo, fica igualmente
ansioso de livrar-se do poeta e grita para ser desatado de suas memórias e
associações privadas, de seu desejo de auto-expressão, e de todos os outros
cordões umbilicais e tubos de alimentação de seu ego. (FRYE, 2000, p. 16, 17)
79
Assim, mesmo que o poeta tenha construído racionalmente seu poema, como era o desejo
do Sensacionismo, aparecem elementos de que ele não fazia idéia, que vêm de “algum lugar” de
que o próprio artista não se dá conta. Segundo ele: “Mais importante é o fato de que cada poeta
tem sua mitologia particular, sua própria faixa espectroscópica ou formação de símbolos peculiar,
da qual ele não é consciente em grande parte.” (ibid, p. 17). É claro que o estudo das vanguardas
e dos movimentos literários é fundamental para que se faça uma leitura mais madura, mais
completa de uma obra. O que queremos mostrar é que existem elementos presentes em uma obra
que extrapolam a própria consciência do artista, que ultrapassam o seu lado puramente racional, e
que podem nos ajudar a fazer uma leitura da obra. No caso deste trabalho, auxiliarão na forma
como estudamos a construção da identidade na lírica de Sá-Carneiro.
Sobre essa mitologia particular de cada artista de que falou Frye, é importante observar
outro comentário que converge com o seu, feito por Vítor Manuel de Aguiar e Silva (1973) sobre
uma corrente da crítica chamada psicocrítica, delineada por Charles Mauron. Sem entrar em
grandes detalhes dessa corrente, de que nos interessa apenas uma parte, vamos examinar
resumidamente o seu método de interpretação. Segundo Aguiar e Silva, a partir das idéias de
Mauron, deve-se procurar, inicialmente, na obra de um artista, alguns elementos que se repetem,
agrupamentos de imagens, provavelmente involuntárias. Em segundo lugar, deve-se analisar e
combinar os temas variados para que se ache o mito pessoal do artista, que representa uma
expressão de sua personalidade inconsciente. Os resultados adquiridos devem ser comparados
com a vida do escritor.
Nosso trabalho, como já foi dito não abrangerá a vida pessoal de Sá-Carneiro, como faria
a psicocrítica. De qualquer forma, esta corrente mostra a relevância do estudo dos mitos presentes
na obra de um artista. É isso que procuraremos fazer neste capítulo.
80
Dito isso, é relevante também observar um comentário feito por Fernando Paixão a
respeito do assunto, em que afirma que existem certos “motivos” universais da vivência humana,
e que podem ser encontrados em lendas da mitologia clássica:
[...] as suas histórias, ao final das contas, acabam por transmitir o valor
arquetípico de determinada condição. Vistas sob esse ângulo, a cada lenda
corresponderia um “motivo espiritual” – tal como o caracterizou Ernst Cassirer,
em estudo sobre a metáfora, ao sustentar que as estruturas do mundo mítico e
do mundo lingüístico são determinadas pelos mesmos “motivos”. [...] somos
logo estimulados a pensar que uma possível chave para o entendimento da
poética de Sá-Carneiro bem pode estar representada em alguma das histórias
clássicas da Antiguidade. (PAIXÃO, 2003, p. 62).
Percebemos que, mesmo com certa relutância, Paixão aceita o convite de analisar a obra
de Sá-Carneiro à luz da mitologia, amparado por Ernst Cassirer. Não são poucos os artistas que
utilizam a mitologia em suas obras, seja citando o mito tal como ele é conhecido universalmente,
seja atualizando o mito nas obras modernas e contemporâneas, adaptando-o aos dias em que a
obra é escrita. Antes de continuar, primeiramente faremos uma breve consideração a respeito de
alguns termos teóricos, como mito e arquétipo, a partir, principalmente, dos estudos de Jung
sobre o assunto.
Paixão afirma que a mitologia clássica e suas histórias transmitem o valor arquetípico de
determinada situação, mas que seria isso? Jung (1964) explica, ao considerar sobre os sonhos,
que existem elementos sonhados que não pertencem ao universo de experiências pessoais de
quem sonhou, não são elementos individuais. Esses elementos são chamados arquétipos.
O arquétipo é uma tendência para formar estas mesmas representações de um
motivo [...] sem perder a sua configuração original. Existem, por exemplo,
muitas representações do motivo irmãos inimigos mas o motivo em si conserva-
se o mesmo. [...] A sua origem não é conhecida; e eles se repetem em qualquer
época e em qualquer lugar do mundo. (JUNG, 1964, p. 67, 69)
81
O conceito de arquétipo...deriva da observação reiterada de que os mitos e os
contos da literatura universal encerram temas bem definidos que reaparecem
sempre e por toda parte. Encontraremos esses mesmos temas nas fantasias, nos
sonhos, nas idéias delirantes e ilusões dos indivíduos que vivem atualmente.
(JUNG, 2005, p. 352)
Notamos que os arquétipos são elementos, são motivos universais que estão presentes na
mente de todos os homens, mesmo que eles não saibam. O arquétipo tem origem no inconsciente
– mais adiante faremos uma melhor explicação sobre consciente e inconsciente – e por isso
muitas vezes não são reconhecidos como tal por quem o produz, uma vez que não temos controle
sobre o inconsciente. Além do motivo citado, o dos irmãos inimigos, há inúmeros outros que
fazem parte de toda e qualquer cultura e que são enfrentados por todos os seres humanos de
qualquer época da história. Por exemplo, os arquétipos da união entre masculino e feminino, a
ressurreição, a figura do herói, da iniciação à vida adulta, entre outros.
Extremamente ligado ao arquétipo está o mito. Segundo Jung (1964) a origem dos mitos
remonta aos contadores de histórias primitivos, mesmo porque, a origem da palavra é grega,
mythos e significa narrativa, fábula. Mas o mito não é apenas uma simples história, mas tem um
significado mais profundo, não podendo ser compreendida em seu sentido literal, mas sim com
forte carga simbólica.
Nise da Silveira, em seu livro intitulado Jung, em que faz um breve relato da vida e dos
trabalhos do renomado psicanalista, explica que os mitos não são simples histórias, mas que,
originados da psique humana, revelam elementos do inconsciente.
Os mitos condensam experiências vividas repetidamente durante milênios,
experiências típicas pelas quais passaram (e ainda passam) os seres humanos.
Por isso temas idênticos são encontrados nos lugares mais distantes e mais
diversos. A partir desses materiais básicos é que os sacerdotes e poetas
elaboram os mitos, dando-lhes roupagens diferentes, segundo as épocas e as
culturas. (SILVEIRA, 1997, p. 114-5)
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Fica evidente, assim, a relação entre mito e arquétipo, o primeiro é a narração, uma
história em que aparecem elementos, de origem inconsciente e universal, sobre temas que
atingem a todos os seres humanos; o segundo é um dos elementos presentes dentro do mito, da
narrativa. Assim, um mesmo mito pode trabalhar com mais de um arquétipo, e um arquétipo pode
aparecer em uma história contemporânea, que não seja declaradamente mitológica. Uma redação
de um estudante colegial, que fale sobre os problemas da adolescência, pode trazer, por exemplo,
o arquétipo da iniciação à vida adulta. Portanto, podemos encontrar mitos e arquétipos nas mais
variadas fontes, nos mais variados textos. Joseph Campbell (1990) uma das maiores autoridades
na questão do mito, afirmou: “James Joyce e Thomas Mann eram meus professores. Eu lia tudo o
que eles escreveram. Ambos escreveram em termos do que se poderia chamar de tradição
mitológica” (CAMPBELL, 1990, p. 4) . A seguir, dentro do texto, explica os mitos presentes em
Tonio Kröger, de Thomas Mann.
Por tudo isso, uma investigação da obra de Mário de Sá-Carneiro a partir de alguns mitos
pode ser bem proveitosa e enriquecer nosso trabalho de investigação da questão da identidade em
sua obra poética. James Joyce e Thomas Mann são autores modernos, assim como Sá-Carneiro,
mostrando que realmente os mitos estão presentes hoje em dia como sempre estiveram na história
da humanidade e da Literatura.
Fernando Paixão (2003) cita em sua obra que o mito de Ícaro foi associado ao poeta
português, mas que, na sua opinião, a figura mitológica que mais se aproxima dele é Narciso. Diz
ainda que, Sá-Carneiro coloca-se voluntariamente em sacrifício, para que seus leitores
entendessem que a aflição do poeta era a mesma que eles possuíam, ou seja, que o desejo de algo
maior, de um sonho ideal, faz parte do imaginário de todos nós. Segundo ele: “Sabemos que a
aflição que lhe agita a carne é nossa também, já que de algum modo estamos tocados pela ordem
do sonho.” (PAIXÃO, 2003, p. 129). Quanto a essa questão de que a situação do poeta é similar a
83
dos outros homens modernos, esse será o assunto do capítulo seguinte. Cabe agora analisarmos a
questão dos mitos levantados por Paixão.
Um poema que parece ter relação com o mito de Ícaro é “Quase”, em que ele tenta
alcançar algo grandioso, mas falha:
Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se eu ao menos permanecesse aquém...
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 27)
Percebemos a vontade de ir “além”, o desejo de alcançar uma esfera superior, mas o eu-
lírico falha por pouco. Não ficou distante de seu objetivo, faltou apenas “um golpe d’asa” para
tanto. Mas, percebemos no verso final a frustração causada pela derrota, em que ele desejaria ser
“menor”, ser “aquém” do que ele é, para não se decepcionar tanto. Dentro de seu raciocínio,
parece que, já que seu objetivo não pode ser alcançado, é pior chegar perto dele e falhar, melhor
seria ficar “mais longe” de sua meta. A frustração, ao que parece, não seria tanta.
Dando continuidade ao assunto, há outro poema que pode ser útil, também, se fizermos
algumas considerações a respeito do tema mitológico de Ícaro. Trata-se de “A Queda”, que já foi
analisado no primeiro capítulo, em relação a questões como: a ascensão e a queda como tema
recorrente em sua obra, o tema da falsidade relacionada com sua personalidade, o conflito entre
identidade e dispersão, entre outros.
Em “A queda” , como dissemos anteriormente, temos um eu-lírico que busca esferas mais
altas, mais sublimes que a realidade comum e banal, um sujeito que sonha um “eu” ideal e tenta
alcançá-lo, em vão. A imagem de Ícaro também é de alguém que tenta alcançar algo maior, mas
84
sem ter cuidado. A “queda” de Ícaro, representa o entusiasmo desenfreado e sem discernimento.
Segundo o que Chevalier e Gheerbrant afirmam em seu dicionário de símbolos:
Ícaro é o símbolo do intelecto que se tornou insensato...da imaginação
pervertida. É uma personificação mítica da deformação do psiquismo,
caracterizada pela exaltação sentimental e vaidosa. [...] A tentativa insana de
Ícaro é proverbial pela emotividade no mais alto grau, por uma forma de
aberração do espírito: a mania das grandezas, a megalomania. (CHEVALIER &
GHEEBRANT, 2005, p. 499).
É importante lembrar que, no mito de Ícaro, existe outra figura importante: a de seu pai
Dédalo, que foi quem construiu os dois pares de asas que os libertariam do labirinto de Creta. Se
Ícaro foi imprudente e simboliza a megalomania, a figura de alguém incauto e insensato, Dédalo,
ao contrário, representa a cautela e a moderação. Enquanto Ícaro tentou alcançar o que não era
possível, Dédalo voou moderadamente e alcançou a liberdade no continente.
Joseph Campbell (1990), ao falar sobre esse mito, diz que o entusiasmo excessivo pode
representar o desastre para quem não mantiver sua mente sob controle. Parece que o eu-lírico de
Sá-Carneiro caiu nessa mesma armadilha de Ícaro, seu entusiasmo por um ideal grandioso o
levou a sua ruína. Dieter Woll (1968) assinala que, em seu poema “Partida” Sá-Carneiro dá sinais
de otimismo e euforia, na sua tentativa de sair da vida monótona da burguesia em direção de um
universo ideal. Como ele mesmo assinala, esse entusiasmo logo arrefece, como fica claro no seu
próximo poema, “Escavação”. Se olharmos para “Partida”, podemos notar essa euforia de que
fala Woll, quando o eu-lírico sente que pode atingir uma esfera existencial grandiosa: “Sei a
distância, compreendo o Ar; / Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz; / Sou taça de cristal
lançada ao mar, / Diadema e timbre, elmo real e cruz...” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 16). Esse
trecho é um exemplo desse entusiasmo referido pelo crítico alemão, que está presente em outras
partes do poema. Sá-Carneiro, ao que parece, se lança de forma insensata na busca desse “eu”
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ideal, da mesma forma que Ícaro se lança em direção ao sol, o sonho de grandeza foi o fim de
ambos. Talvez, se o eu-lírico tivesse se contentado com o que era, com uma existência mais
moderada, como fez Dédalo, seu destino teria sido outro. Talvez não tivesse enfrentado a “queda”
que teve que experimentar: “Tombei... / E fico só esmagado sobre mim” (ibid, p. 34), talvez se
sonhasse com algo menos grandioso e mais possível de ser realizado, esse ideal não o teria
“esmagado”, não o teria destruído. Jung fala da tentação do orgulho, a arrogância (a hybris), que
tomou de assalto muitos dos heróis mitológicos, e que pode ter influenciado o eu-lírico. Assim,
dentro dele, havia a pergunta: por que “voar” moderadamente, se eu posso “alcançar o sol”?
A hybris o impulsionava a querer sempre mais. Isso tudo revela um sujeito que não se
contenta com o que tem, que é assaltado de tal forma por sua megalomania que não tem outro
destino possível que a desgraça, uma vez que seu sonho, sendo ao mesmo tempo impossível e
fortemente tentador para ele, como aconteceu com Ícaro, não poderia ser outra coisa, a não ser o
seu maior infortúnio.
Dando prosseguimento à questão dos mitos de Ícaro e Narciso, chega o momento de
analisarmos a segunda personagem mitológica. Paixão nos mostra a opinião de Gaston Bachelar
sobre esse mito, procurando negar a obviedade da interpretação negativa de Narciso: “A
sublimação não é sempre a negação de um desejo; [...] Ela também pode ser a sublimação por um
ideal. Por isso, Narciso não diz mais: ‘eu me amo tal como sou’, ele diz: ‘eu sou tal como eu me
amo’”.(BACHELAR 1981 apud PAIXÃO, 2003, p. 63-4). Assim, a figura de Narciso é entendida
como a de um idealizador, de alguém que não se contenta com a banalidade do real, e tenta
sublimá-lo, superá-lo. A questão de que Sá-Carneiro teria se sacrificado para mostrar algo para
seus contemporâneos, segundo Paixão, apesar de falar do ser humano real, toca uma questão
interessante: a do sacrifício.
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Ao contrário do que muitos imaginam, a idéia do sacrifício esta ligada, em muitas
culturas, com a noção de merecimento. O ser sacrificado é grandioso, tem de ser merecedor do
sacrifício, como nos mostra Campbell ao falar de um jogo maia, em que o capitão do time
vencedor era o sacrificado. Segundo ele: “Nesse ritual maia, o jogo consiste em tornar-se
merecedor de ser sacrificado como um deus” (CAMPBELL, 1990, p. 114). Isso nos mostra, mais
uma vez, que o eu-lírico dos poemas de Sá-Carneiro muitas vezes se via como alguém nobre,
quase divino, superior aos demais, ao mundo burguês. Por isso, dentro da idéia de Paixão de que
ele se sacrificou, há o arquétipo do sacrifício do merecedor, de um sujeito invulgar. Nos mostra
também a confusão interna desse sujeito que, em alguns momentos se mostra grandioso, um
“Lord”, em outros é o “Esfinge gorda”, que reflete o conflito entre o “eu” real e o “eu” sonhado.
Outro mito que já foi associado à obra de Mário de Sá-Carneiro, mas sem tanta ênfase, é o
do paraíso perdido. Encontramos, por exemplo, uma citação de José Régio, que fala sobre o tema:
“[É] um poeta romântico, e um dos mais sinceros, direi ainda que não só pelo gosto desses temas
essenciais [consciência da Queda, Paraíso perdido, ânsia de Infinito, tentação do Desconhecido]
senão também pelo tom confessional das suas criações.” (RÉGIO, 1948, apud MARTINS, 1994,
p. 161). Encontramos em alguns poemas de Sá-Carneiro, referência a um “tempo passado”, em
que tudo era melhor, inclusive o próprio eu-lírico. Claro que temos que entender esse “tempo
passado” não como um tempo de uma narrativa, no caso de Sá-Carneiro, esse “tempo” na
verdade se refere a uma imagem, a do “eu” ideal. Assim, quando ele diz, por exemplo, em “O
lord”: “Lord que fui de Escócias doutra vida / hoje se arrasta por esta decadência,” (SÁ-
CARNEIRO, 2004, p. 77), sabemos que este “Lord” que ele teria sido refere-se a uma imagem
ideal.
O mesmo ocorre com o “espaço” referido em “O resgate”, em que as “salas ducais” que
foram destruídas, se referem ao interior do eu-lírico, e não a um lugar externo, um ambiente em
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que ele teria vivido. Dieter Woll (1968), ao citar os versos de “Distante melodia”: “Vêm-me
lembranças de outro Tempo azul” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 48), afirma que esse “Tempo azul”
não se refere a nada concreto, mas seria uma referência a um passado fantástico, irreal.
Chegamos à conclusão de que, o paraíso perdido desse eu-lírico não se refere a um
período de tempo passado, ou a um lugar habitado que possa gerar nostalgia, mas sim a ele
mesmo, ao seu interior, mais especificamente ao seu “eu” ideal. Seria como uma “nostalgia” de
algo que nunca teve, saudades de algo que nunca pode alcançar. Cria-se um efeito estranho, uma
sensação peculiar, e tudo isso é orientado pelo Sensacionismo, em que o objeto em si não é o que
importa, mas o que ele pode gerar de sensações, que sentimentos ele pode suscitar.
Dando continuidade à questão dos mitos e sua relação com a poética de Sá-Carneiro, é
interessante fazermos algumas considerações a respeito da figura mitológica do herói. Segundo
Campbell (1990), o herói é alguém que realizou uma proeza além do nível normal de realizações
ou de experiência, sendo essa proeza física ou espiritual. Quando espiritual, “[...] o herói aprende
a lidar com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma mensagem”
(CAMPBELL, 1990, p. 132), isto é, o herói, neste caso, superou alguma barreira, teve alguma
experiência sublime e volta para dividi-la com os seus. Assim, Campbell (ibid) define a aventura
do herói como um círculo, um ciclo, em que há uma partida para o desafio, uma realização de
uma façanha, de uma proeza incomum e, por fim, o retorno. É possível associar esse ciclo do
herói, com a intenção do eu-lírico em “Partida” de “subir além dos céus” (SÁ-CARNEIRO, 2004,
p. 15), de alcançar experiências sublimes como as que os heróis experimentam.
Continuando a desenvolver esse tema, Campbell fala do exemplo de Ulisses, e que nem
sempre a mensagem trazida pelo herói é entendida pelos outros, nem sempre seus conterrâneos
estão a altura de entender o que ele traz. Quando na ilha do Sol, Ulisses e seus marinheiros são
avisados de que não deveriam matar nenhum boi daquele lugar. Famintos, os marinheiros
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desobedecem ao aviso para saciar sua fome, e são punidos. Isso representa que eles estão nos
níveis mais baixos de consciência, e não podem alcançar a iluminação: “Quando em presença de
tal iluminação, você não pode pensar: ‘Ai, estou faminto. Me arranje um sanduíche de carne
assada’. Os homens de Ulisses não estavam prontos ou qualificados para a experiência que lhes
foi oferecida.” (CAMPBELL, 1990, p. 143).
Essa idéia nos lembra, por exemplo, o tema do poema “El-rei”, já discutido no capítulo
anterior. Quando o eu-lírico afirma “Mas ninguém se me expande...Os meus dilectos / Frenesis
ninguém brilha! Excesso de Oiro” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 92), ele reclama que não há
ninguém presente naquele espaço em que ele se encontra capaz de entender os seus “dilectos
frenesis”, ninguém capaz de compartilhar de sua grandeza. A intenção, já comentada, que ele tem
em “Partida” de alcançar experiências superiores ao comum, pode ser a de depois compartilhar
com quem encontrasse, mas ninguém se importa com ele, nem com seus “ensinamentos”, por isso
ele se sente deslocado, isolado dos demais. Interessante notar que Sá-Carneiro usa muitas vezes a
palavras “oiro” em seus poemas, como por exemplo em “El-rei”, para denotar a sua grandeza,
sendo que ele teria “Excesso de oiro”. Campbell (1990) fala de um tema comum nos contos de
fada, que é o de alguém que retorna da floresta com um punhado de ouro, que se transforma em
cinza. A idéia é a mesma que já comentamos, o ouro representaria a experiência sublime que, ao
não ser compreendida pelos demais se perde, torna-se cinzas.
É importante assinalar que, mais adiante, Campbell (ibid) afirma que muitas vezes a
experiência que o herói traz não está acima da capacidade de compreensão dos outros, mas que
muitas vezes o mundo recusa aquilo que o herói tem para oferecer. Fica então a pergunta: quando
o eu-lírico vive a experiência traumática a que se refere em “El-rei” de que não há ninguém com
que possa compartilhar de sua grandeza, na verdade, ele é um ser rejeitado ou incompreendido?
89
As outras pessoas recusam sua grandeza, suas experiências sublimes, ou não estão à altura de
entendê-las? Parece que a segunda, é a hipótese mais provável.
No mundo burguês, as pessoas estão preocupadas com o trivial, com o mais banal do dia a
dia, e parece que não reconheceriam algo de grandioso que o eu-lírico pudesse trazê-las. Talvez,
se tivesse conhecimento disso, se possuísse a maturidade necessária de saber que há experiências
que não podem ser experimentadas por todos, e que, mais ainda, não podem ser reconhecidas e
valorizadas pela grande maioria, o eu-lírico não se sentisse tão arrasado como ele ficou. A reação
que ele teve, e que está expressa em “Aquele outro” é a de quem passa a duvidar de sua grandeza,
de quem passa a achar que certos estão os outro e não ele, o “dúbio mascarado, o mentiroso”, o
“bobo presunçoso” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 93). Talvez ele não seja presunçoso, talvez não
haja com quem compartilhar certas experiências por que passou, o que nos faz lembrar o famoso
ditado que parece se aplicar bem aqui: “não atire pérolas aos porcos”. Mas por não ter confiança
em si mesmo, por ter uma auto-estima baixa, como já vimos, causada, em grande parte, pelo
embate interno entre realidade e idealidade, entre o “eu” real e o “eu” sonhado, o eu-lírico
acredita que ele é que é falso, e arrogante, ele que é um “mago sem condão” (ibid, p. 93).
Novamente notamos uma concepção de sujeito centrado, em que o ele não aceita suas variações,
aspira a uma imagem totalizante e ideal.
Para fechar nossas reflexões acerca da figura mítica do herói e suas relações com a poética
de Sá-Carneiro, é interessante olharmos para um comentário de Joseph Campbell, em que ele fala
do herói que não consegue alcançar seus objetivos. Não é positiva a conseqüência apontada por
Campbell: “Eventualmente pode acontecer de um herói fracassar, mas este será normalmente
representado como uma espécie de palhaço, alguém com pretensões além do que pode realizar”
(CAMPBELL, 1990, p. 135). Não discutiremos aqui, se as pretensões do eu-lírico de Sá-Carneiro
estavam além de suas possibilidades, se o seu sonho poderia ou não ser alcançado. O que importa
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é a figura, o arquétipo formado e representado em seus poemas, que reflete a atitude de quem
acredita ter fracassado.
Ao comentar sobre os versos de “Fim”, em que se apresenta o cenário de seu enterro, ao
mesmo tempo absurdo e ridículo, em que ele deseja “Que o meu caixão vá sobre um burro” (SÁ-
CARNEIRO, 2004, p. 97), com a presença de palhaços e acrobatas, Cleonice Berardinelli tece a
afirmação:
Um enterro de clown. E não o teria sido Sá-Carneiro? Em vez de cara
enfarinhada, da gola de babados e do calção entufado, o diadema, o elmo, os
brocados e as pedrarias do Lord de outra vida, a ocultar os batimentos de um
coração inquieto, as angústias de uma alma torturada. (BERARDINELLI, 1958,
p. 14)
Berardinelli se pergunta se, afinal de contas, não teria ele sido realmente um palhaço? Um
palhaço escondido por trás das roupas do Lord, por trás de uma aparência nobre e luxuosa, que
possui a alma torturada por nunca ver seu sonho realizado, por nunca acalmar suas angústias.
Mas parece que eu-lírico constrói, de alguma forma, para si, essa imagem que dialoga com a
imagem referida por Campbell do herói que fracassa. Sá-Carneiro se enxergava grandioso, nobre,
como são os heróis e, ao fracassar na sua missão, ao retornar de sua jornada frustrado em seus
anseios, não lhe resta mais nada a não ser o ridículo. Na sua opinião, ele fracassou, por isso o
arquétipo do herói / palhaço. Novamente, não cabe aqui julgarmos se houve fracasso ou não, se
havia realmente uma missão a ser cumprida, e se ela não foi bem sucedida. O que interessa é a
construção de sua personalidade, a forma como ele se vê e se constrói em seus poemas. O que
fica para nós, e para este trabalho que investiga a identidade, é a imagem que ele nos apresenta de
alguém que falhou, e por isso não merece recompensa, mas o ridículo.
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Tudo isso revela certa crueldade consigo próprio, uma vez que o fracasso que ele mesmo
imagina, e que talvez nem tenha existido, não é bem digerido. Ele não consegue lidar bem com a
idéia de que fracassou, e sua reação é autodestrutiva, como já verificamos no capítulo anterior.
Mas essa crueldade volta a ser assunto deste capítulo, mas desta vez vista sob outro prisma, a
partir de algumas idéias de Jung sobre o inconsciente.
Seria novamente uma crueldade consigo próprio, mas desta vez com o seu “lado
feminino”, com a parte feminina de sua personalidade. Há, em alguns de seus poemas, uma clara
referência e esse aspecto de sua personalidade, no seu desejo declarado de se sentir mulher, de
dar asas ao seu lado feminino, como nos versos finais de “Não”: “(Se a minha alma fosse uma
Princesa nua / E debochada e linda...)”, (idem, p. 42), ou em “Abrigo”, “Quisera dormir contigo /
Ser todo sua mulher!...”. Como veremos a seguir, a sua relação com seu lado feminino não é
saudável, não é positiva, mas evoca sentimentos negativos e uma atitude cruel consigo próprio.
Paula Morão, citada por Fernando Cabral Martins, fala desse lado feminino de Sá-
Carneiro, ao comentar sobre a figura de Salomé presente em suas obras:
Paula Morão considera que “as personagens femininas (nas novelas como nos
poemas) não representam figuras reais” e que Salomé é apenas um modelo
simbolista, concluindo que funciona como a metáfora do “seu lado feminino,
conflituoso e agressivo” (MORÃO, 1990 apud MARTINS, 1994, p. 263).
Assim, a figura de Salomé representa o seu lado feminino, não sendo uma personagem ou
figura externa ao próprio eu-lírico. Podemos entender esse símbolo, essa metáfora do lado
feminino de várias formas, inclusive pelo viés da Psicanálise, como sendo o que Jung chama
anima, ao se referir ao lado feminino do inconsciente dos homens.
Antes de falarmos sobre animus e anima, que fazem parte do inconsciente, é preciso
explicar em que consiste, segundo os estudos da Psicanálise, esta parte da psique humana.
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Segundo Jung (2005) a consciência humana é limitada, e existem coisas além de seu campo de
conhecimento. O que não conhecemos, e está fora de nós, refere-se ao mundo exterior, e o que
não conhecemos, mas está dentro de nós, só que não fora de nosso campo de consciência, é o
inconsciente. Assim:
Tudo o que conheço, mas não penso em determinado momento, tudo aquilo de
que já tive consciência mas esqueci, tudo o que foi percebido por meus sentidos
e meu espírito consciente não registrou, tudo o que foi involuntariamente e sem
prestar atenção (isto é, inconscientemente), sinto, penso, relembro, desejo e
faço, todo o futuro que se prepara em mim e que só mais tarde se tornará
consciente, tudo isso é conteúdo do inconsciente. (JUNG, 2005, p. 354)
Ele continua explicando que, o inconsciente, na psicologia jungiana, compreende o
inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. O primeiro se refere às camadas mais superficiais
do inconsciente, e se refere apenas às experiências individuais, variando de pessoa para pessoa. Já
o segundo, diz respeito às camadas mais profundas do inconsciente, sendo uma herança que toda
a humanidade possui, sendo comum a todos os homens. Fazem parte do inconsciente coletivo, os
mitos e arquétipos.
Uma vez esclarecido este ponto, vamos agora falar propriamente sobre anima e animus,
que fazem parte do inconsciente do homem. Segundo ele:
Anima é a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na
psique do homem – os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas,
a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza
e, por fim, mas nem por isso menos importante, o relacionamento com o
inconsciente. (JUNG, 1964, p. 176)
Anima e animus – personificação da natureza feminina do inconsciente do
homem e da natureza masculina do inconsciente da mulher. [...]
Todas as manifestações arquetípicas, o portanto, também o animus e a anima,
têm um aspecto negativo e um aspecto positivo. Um aspecto primitivo e um
aspecto diferenciado. (JUNG, 2005, p. 351)
93
Assim, dentro do inconsciente do ser humano existem o animus e a anima, as partes
masculina e feminina, da mulher e do homem, respectivamente. Veremos, então, como aparece a
anima em alguns poemas de Sá-Carneiro, e perceberemos que a relação com seu lado feminino é
ruim, sua manifestação é negativa, primitiva.
Jung, desenvolve suas idéias sobre a anima e, a certa altura de sua obra O homem e seus
símbolos, nos dá um exemplo de alguns contos de fada, que é bem interessante e dialoga com a
obra de Sá-Carneiro. A interpretação que Jung apresenta converge bastante com a atitude que o
eu-lírico do artista português assume em alguns de seus poemas.
Uma manifestação ainda mais sutil da anima negativa aparece, em alguns
contos de fada,, sob a forma da princesa que pede a seus pretendentes que
respondam a uma série de enigmas ou que se escondam exatamente à sua
frente. Os candidatos morrem se não conseguem encontrar as respostas ou se
ela descobre onde se esconderam, e a princesa ganha sempre. A anima sob este
aspecto envolve os homens num jogo intelectual destruidor. Podemos notar o
efeito destes seus estratagemas em todos os diálogos neuróticos e pseudo-
intelectuais que impedem o contato direto do homem com a vida e suas
verdadeiras definições. Ele pensa tanto a respeito da vida que não consegue
vivê-la e perde toda a espontaneidade e faculdade de comunicação. (JUNG,
1964, p. 179)
Este trecho mostra a personificação de uma anima negativa, uma princesa que brinca, que
gosta de jogar com seus pretendentes, em um jogo mortal. Ela revela uma personalidade de
alguém que pensa muito, exageradamente, e, por isso, não consegue agir, fica estático com suas
reflexões.
Há um poema, em que o eu-lírico assume seu lado feminino e, ao fazê-lo, tem uma atitude
muito parecida com a citada princesa dos contos de fada, trata-se de “Feminina”:
94
Feminina
Eu queria ser mulher pra me poder entender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos Cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó-de-arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos Cafés.
Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro –
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer “potins” – muito entretida.
Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar –
Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.
Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos – mesmo ao predileto –
Como eu gostaria de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...
Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra poder me recusar...
.............................................................................................................
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p, 95)
Logo no primeiro verso, notamos claramente uma referência ao seu lado feminino: “Eu
queria ser mulher”, que se repetirá ao longo do poema. Talvez sendo mulher ele se sentisse mais
à vontade, poderia se “estender [...] / nas banquettes dos Cafés”, ou passar pó-de-arroz na frente
das outras pessoas, sem se sentir angustiado, como normalmente se sentia nessas situações. O ato
de se maquiar na frente dos outros, pode representar uma atitude afirmativa, de autoconfiança,
que não costumava ter normalmente. Os versos seguintes de “Crise lamentável” mostram bem a
sua falta de iniciativa: “Levantar-me e sair. Não precisar / De hora e meia antes de vir p’ra rua”
(ibid, p. 90). Também, sendo mulher, se sentiria mais à vontade com seus próprios amigos, coisa
que também não ocorria, como novamente verificamos em “Crise lamentável”: “Não estar
sempre a bulir, a quebrar cousas / Por casa dos amigos que freqüento – / Não me embrenhar por
histórias melindrosas / Que, em fantasia, apenas argumento...” (ibid, p. 90). Sendo mulher se
95
sentiria mais confiante, não quebraria as coisas com seus modos desajeitados, nem teria que
mentir aos seus amigos, criando histórias fantasiosas.
Na segunda estrofe, refere-se a como seria a sua vida na nova condição: fútil, não tendo
pensamentos ou preocupações, e explorando os homens mais velhos. Uma existência vazia e
superficial, era isso que ele teria.
A terceira, mostra que seus “enleios”, suas confusões mentais, que o aborrecem e que
considera inconvenientes e inaceitáveis para um homem, seriam todos normais, na sua opinião, se
ele fosse uma mulher. Isso completa o quadro de banalidades proposto na segunda estrofe.
É na quarta estrofe que aparece mais claramente a relação com os contos de fadas que
Jung citou. Aqui, também a mulher que o eu-lírico desejava ser “brinca” com seus pretendentes,
“E enganá-los a todos” (ibid, p. 95), e os encara como peças de um jogo. Parece que o “rapaz
gordo e fio, de modos extravagantes” é uma imagem dele mesmo, que serviria apenas para
enganar e, de certa forma, humilhar o seu amante loiro e esbelto. Ninguém escaparia de ser um
peão no tabuleiro desta “mulher” esperta e cruel.
A imagem de seu lado feminino presente neste poema, termina de forma tão negativa
quanto começou, servindo como um objeto de adoração sexual que, como veremos, é uma das
formas mais negativas e primitivas da anima. Por fim, conclui dizendo que seu desejo de ser
mulher serve também para humilhá-lo, “para poder me recusar” (ibid, p. 95), novamente
mostrando uma atitude autodestrutiva, cruel consigo próprio.
Como disse Jung, este tipo negativo de anima, presente no inconsciente dos homens,
revela uma personalidade neurótica de alguém que fica centrado em jogos mentais, em
“labirintos” de pensamento que parecem não ter fim. São pessoas que pensam tanto a respeito da
vida, que são incapazes de interagir e se comunicar de forma sadia, positiva, com as outras
pessoas. Vimos isso em alguns poemas de Sá-carneiro, como por exemplo “El-rei”, em que o eu-
96
lírico se fecha frente às outras pessoas, ao mundo burguês. Em “Crise lamentável”, há um quadro
semelhante de medo frente ao mundo e às outras pessoas: “Não ter receio de seguir pequenas / E
convidá-las para me pôr nelas. / À minha torre ebúrnea abrir janelas, / Numa palavra – não fazer
mais cenas!” (ibid, p. 90). O eu-lírico não tem coragem de convidar as mulheres para um jantar,
ou algo semelhante, apresenta um medo incontrolável que o impede de agir. Ele está fechado
dentro de si mesmo, preso em sua “torre ebúrnea” sem contato com o mundo, sem “abrir janelas”.
Quando tem de interagir com o mundo, se sente de tal forma incomodado e desacostumado, que
age de forma estranha, tendo comportamentos bizarros, fica a “fazer cenas”.
Este poema mostra, a partir da interpretação de como sua anima está presente nele, que o
sujeito construído é o de alguém inseguro, que se sente muito desconfortável quando tem que se
relacionar com outras pessoas, e, por isso, fecha-se dentro de si mesmo, tornando-se o “Emigrado
Astral” (ibid, p. 91), de “O fantasma”, um “emigrado” dentro de sua própria sociedade.
Convergem com esses versos, outros de “Aquele outro”, mostrando que ele é alguém que “passou
a vida incógnito” (ibid, p. 93), por não ter coragem de viver normalmente como as outras
pessoas, tornou-se “Bem no fundo, o cobarde rigoroso” (ibid, p. 93).
Para avançarmos no estudo da anima presente em alguns poemas de Sá-carneiro, vamos
retomar a imagem de Salomé, e a da “personagem feminina” de “A inegualável” discutida por
Martins. Ele afirma que: “Salomé é o símbolo de uma sexualização, ao mesmo tempo que da
ritualização dela.” (MARTINS, 1994, p. 263), “para ficar como símbolo das paixões do corpo e
afirmação do desejo.” (ibid, p. 268). Ao se referir sobre o poema “A inegualável”, ele afirma que:
“O seu tratamento da mesma personagem feminina é, sobretudo, afim do de uma Salomé vítima
[...] Há, noutros momentos das cartas finais, elementos que permitem identificar essa
“personagem feminina” como prostituta. (ibid, p. 272-3)
97
Notamos que, nestes poemas, a figura feminina que aparece, ou seja, sua anima, é
associada ao desejo, na sua manifestação mais carnal e libertina, e à prostituição. Vamos ver
como isso ocorre, em “Salomé”:
Salomé
Insônia roxa. A luz a virgular-se em medo,
Luz morta de luar, mais Alma do que lua...
Ela dança, ela range. A carne, álcool de nua,
Alastra-se pra mim num espasmo de segredo...
Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas...
O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou...
Tenho frio...Alabastro!...A minh’alma parou...
E o seu corpo resvala a projetar estátuas...
Ela chama-me em Íris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto...
Timbres, elmos, punhais...A doida quer morrer-me:
Mordoura-me a chorar – há sexos no seu pranto...
Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
Na boca imperial que humanizou um Santo...
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 39)
Como bem disse Martins (1994), há uma oposição bastante presente neste poema, que é a
entre Eros e Tânatos, ou seja, ao mesmo tempo existe desejo e morte no ambiente construído
neste poema.
Logo no início, a cor roxa, “Insônia roxa” como afirma Woll (1968) está associada com
sensações eróticas, que dialogam com outras sensações da mesma natureza despertadas pela
dança, pela carne, pelo “álcool de nua”. Cria-se, ao longo do poema uma atmosfera sinestésica de
cores, sons, aromas, relacionados, também, ao efeito que a dança da bailarina Salomé cria. O
verso “O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou...” mostra bem o efeito sinestésico causado
pela dança, que mais sugere que descreve objetivamente o cenário, o ambiente que se cria.
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O primeiro terceto, mostra bem a mistura de desejo e morte, enquanto ela “Golfa-me o
seios nus”, aparecem imagens que despertam a sensação da morte, “Timbres, elmos, punhais...”.
Logo após, um uso peculiar do verbo morrer, que passa a ser transitivo direto, causando um
sentido incomum: “A doida quer morrer-me”. Não há uma forma única de se interpretar este
verso – assim como a maioria dos versos de Sá-Carneiro, principalmente os com apelo para a
sinestesia – mas parece que “morrer-me” significa que o sujeito que mata é o mesmo que morre,
ou seja, ele e a dançarina são a mesma pessoa. Ele não está assistindo a uma mulher “real” que
está dançando, mas Salomé representa, neste poema, a sua anima.
Fica claro o tom de desejo presente neste poema, a forte sexualidade que ele evoca e
representa. Mas é um desejo na sua esfera mais baixa, mais carnal, como disse Martins. Essa
representação da anima associada ao erotismo, à prostituição tem uma interpretação bem
interessante, segundo Jung. Para ele:
A manifestação mais freqüente da anima é a que toma a forma de uma fantasia
erótica. Os homens podem ser levados a alimentar estas fantasias no cinema,
nos shows de stip-tease, ou nas revistas e livros pornográficos. É um aspecto
primitivo e grosseiro da anima mas que só se torna compulsivo quando o
homem não cultiva suficientemente suas relações afetivas – quando a sua
atitude para com a vida mantém-se infantil. (JUNG, 1964, p. 179-80)
Ora, se este aspecto da anima é negativo e primitivo, principalmente para quem não
desenvolve suas relações afetivas, este parece ser bem o caso do eu-lírico de Sá-Carneiro. Ele não
associa os seus desejos sexuais a imagens positivas, o que mostra que ele não lida bem com sua
sexualidade. Ele é alguém que não vai atrás “das pequenas”, isto é, que não tem contatos afetivos
com o sexo oposto. A sua atitude em “Caranguejola” tem um tom de infantilidade, de quem quer
se fechar no seu quarto, ficar na cama, sob as cobertas, “aninhado a dormir, bem quentinho” (SÁ-
CARNEIRO, 2004, p. 87). Mais uma vez, surge a imagem de um sujeito que se relaciona mal
99
com o mundo, que não tem contatos afetivos com as mulheres, e que reflete tudo isso nas
imagens negativas que, inconscientemente, cria para a sua anima.
O poema “Bárbaro” também traz essa imagem negativa de seu lado feminino. Novamente,
um ambiente que mistura desejo e morte: “Mima a luxúria a nua – Salomé asiática... / Em volta,
carne a arder – virgens supliciadas” (ibid, p.55). A essa atmosfera em que convivem Eros e
Tânatos, acrescenta-se um desejo de torturar essa “mulher”, de vê-la sofrendo: “Sibilam os
répteis...Rojas-te de joelhos... / Sangue te escorre já da boca profanada...” (ibid, p. 55). Há um
prazer claro e expresso em ver esta “Salomé” sofrer dos piores suplícios, em ver o objeto de seu
desejo ser torturado.
Outros versos mostram a relação entre sexualidade e depravação, mostram a anima na sua
forma mais rudimentar, primitiva: “O ar apodreceu da tua perversão... / Tenho medo de ti, n’um
calafrio de espadas – / a minha carne soa a bronzes de prisão...” (ibid, p.55). Ela é associada à
depravação, à corrupção do desejo sexual e, como em “Salomé” lhe causa medo, lhe causa frio:
“Tenho frio...Alabastro!...A minh’alma parou...” (ibid, p. 39). Enfim, a conclusão que se chega é
a mesma que traz “Salomé”, a de um sujeito fechado dentro de si mesmo, de certa forma infantil,
que está preso numa rede de pensamentos que lhe impede de interagir com o mundo ao seu redor,
mesmo nas coisas mais comuns para as outras pessoas, e que não lida bem com seus desejos e
com as mulheres.
Portanto, este capítulo visou, num primeiro momento, a estabelecer relações entre alguns
mitos e arquétipos e a obra poética de Sá-Carneiro e, posteriormente, analisou alguns poemas à
luz do conceito de anima, segundo as teorias de Psicanálise defendidas Carl G. Jung.
Percebemos, de forma geral, que o eu-lírico dos poemas se apresenta como um sujeito
transtornado, confuso e que não se relaciona bem com o mundo ao seu redor. Seja pela sua
megalomania, referida como a hybris de Ícaro, seja pela sua desilusão frente à sua missão como
100
herói, que o transformou no arquétipo do herói / palhaço, seja pela sua má relação com seu lado
feminino, ou, de acordo coma terminologia de Jung, com sua anima. Mesmo se colocando,
eventualmente, em uma posição nobre, de destaque, para que possa ser sacrificado em nome de
uma mensagem a ser transmitida aos seus contemporâneos, no final, fica, na sua opinião, como
imagem mais forte, a de quem falhou no seu sonho grandioso de alcançar o “eu” ideal, seja este
um sonho possível ou não.
101
Capítulo 5 - O eu-lírico como sujeito na Modernidade
102
Para que se compreenda um pouco mais sobre a identidade do eu-lírico dos poemas de
Mário de Sá-Carneiro, é preciso que seja verificada a época em seus poemas foram escritos.
Dessa forma, saberemos sob que circunstâncias eles foram produzidos, para que se entenda a voz
desse sujeito dentro de um contexto histórico. Por terem sido escritos na Modernidade,
inevitavelmente o eu-lírico possui, como sujeito produtor, características próprias desse período,
refletindo eventos e pensamentos modernos.
Em seu célebre ensaio sobre lírica e sociedade, Theodor W. Adorno nos fala da relação
entre o poeta e a época em que produz seus poemas. Segundo ele:
Não que aquilo que o poema lírico exprime tenha de ser imediatamente aquilo
que todos vivenciam. Sua universalidade não é uma volonté de tous, não é mera
comunicação daquilo que os outros simplesmente não são capazes de
comunicar. Ao contrário, o mergulho no individuado eleva o poema lírico ao
universal por tornar manifesto algo de não distorcido, da não captado, de ainda
não subsumido, [...] A composição lírica tem esperança de extrair, da mais
irrestrita individuação, o universal.
(ADORNO, 2003, p.66)
Assim, o poeta lírico não manifesta em seus poemas aquilo que todos em sua época
sentem, mas é capaz de captar o que a maioria de seus contemporâneos não percebe, é capaz de
revelar o que muitos não apreendem. Não se deve, contudo, ao se levar em consideração o social,
tomar a obra de arte como objeto de uma tese sociológica, mas levar em consideração o que a
referência ao social pode enriquecer a análise da obra, ou como ele mesmo disse: “Levar mais
fundo para dentro dela” (ibid, p. 66).
Seriam os artistas que teriam a capacidade de perceber o que a maioria das pessoas do seu
tempo não percebe, sua sensibilidade é capaz de notar o que seus contemporâneos, ocupados com
seus afazeres diários, não notam. A voz do artista seria então a voz de uma época, de um período:
“Só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da humanidade; [...]”
103
(ibid, p. 67). Fica clara, então, a relação entre o que o poeta lírico produz e o momento histórico
que ele viveu. Como disse Adorno, não devemos submeter a obra ao período em que foi
produzida, buscando nela somente elementos que pertençam a determinada época, mas verificar
de que modo o estudo de um período pode enriquecer uma análise.
Para o fim que este trabalho se propõe, esta análise é muito rica e proveitosa, uma vez que
a identidade de um sujeito não pode ser desvinculada do período em que ele viveu. Assim, este
capítulo verificará algumas tendências da Modernidade, de que forma o eu-lírico de Sá-Carneiro
dialoga com elas, e o que isso revela sobre a sua personalidade, sobre a construção de sua
identidade.
Primeiramente, examinaremos o ensaio de Walter Benjamin, intitulado “Experiência e
pobreza”, em que ele mostra como as gerações que viveram a Modernidade estavam carentes de
experiências significativas, de como elas estavam desvinculadas de todo a cultura produzida pela
humanidade antes desse período.
Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa
geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da
história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia
notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais
pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. [...] Porque nunca
houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência
estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a
experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. [...]
Aqui se revela, com toda a clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas
uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso
como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio
cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?
(BENJAMIN, 1996, p. 114-5)
Segundo Walter Benjamin, as gerações que viveram a Modernidade não encontraram
experiências significativas em seu dia a dia, suas vidas eram vazias nesse sentido. A guerra não
trouxe nada de glorioso, nenhum sentimento de vitória, de conquista, como verificamos nos
104
relatos antigos, por exemplo, a Ilíada, ou a Odisséia, de Homero, em que os combatentes eram
heróis, e personagens como Ulisses encarnavam todas as virtudes reconhecidas da época. Essas
batalhas traziam experiências significativas, faziam sentido para a população da época, o que não
ocorreu na Primeira Guerra Mundial. Por mais que Ulisses tenha enfrentado inúmeras
dificuldades em seu retorno ao lar, essa experiência foi repleta de sentido, tinha um fundo
heróico. O mesmo não ocorreu com os modernos, não houve heroísmo nenhum na guerra em que
participaram, não houve sentido nenhum a fome, a pobreza, a inflação a moral duvidosa de seus
governantes. Enfim, as experiências por que passaram eram vazias de significado profundo.
Converge com essa opinião, a reflexão que Joseph Campbell fez sobre a personagem de
Cervantes, Dom Quixote. A partir da leitura da obra Meditações sobre o Quixote, de Ortega y
Gasset, Campbell tece as seguintes considerações:
Dom Quixote foi o último herói da Idade Média. Saiu pelo mundo à procura de
gigantes mas, em vez de gigantes, o ambiente à sua volta lhe ofereceu moinhos
de vento. Ortega assinala que a história se passa numa época em que surge uma
interpretação mecanicista do mundo, de modo que o meio não fornecia mais
respostas espirituais ao herói. [...]
Primitivamente, porém, o mundo em que o herói se movia não era um mundo
mecanicista mas um mundo vivo, que correspondia às suas expectativas
espirituais. Atualmente, ele se tornou um mundo tão absolutamente
mecanicista, tal como interpretado pelas ciências físicas, pela sociologia
marxista e pela psicologia behaviorista, que não passamos de um padrão
previsível de esquemas que reagem a estímulos. (CAMPBELL, 2006, p. 138)
Dessa forma, observamos que um ambiente mecanicista, como é o ambiente forjado por
algumas teorias modernas como o behaviorismo, o determinismo e o marxismo, não ofereceria,
segundo Campbell, respostas com significado mais profundo, expressivo. Em outras palavras,
não oferece as experiências significativas a que se referiu Benjamin.
Para o eu-lírico de Sá-Carneiro, esse ambiente moderno, burguês e previsível, era tedioso
e limitado. Como diz em Partida, “Ao ver escoar-se a vida humanamente / Em suas águas certas,
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eu hesito,” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 15), a vida ao seu redor era certa, cotidiana, repetitiva. E
ele não hesitava em escapar dela, “Afronta-me um desejo de fugir / Ao mistério que é meu e me
seduz.” (ibid, p.15), e ao estilo do Sensacionismo buscava obter o máximo de sensações, de
percepções possíveis em sua jornada. Buscar experiências significativas por meio de suas
sensações: “É suscitar cores endoidecidas, / Ser garra imperial enclavinhada, / E numa extrema-
unção de alma ampliada, / Viajar outros sentidos, outras vidas.” (ibid, p. 15).
Assim, o eu-lírico seria uma voz moderna que dialoga em termos de concordância com
outras vozes de artistas modernos. Ambos representariam, segundo as idéias de Adorno, uma
espécie de sentimento de época, que não seria captado por todos os seus contemporâneos. E é
importante observarmos como essa voz representa as idéias de um sujeito moderno, como
contribui para a construção de sua identidade.
Dito isso, é hora de verificarmos outras idéias modernas com que o eu-lírico dialoga em
seus poemas. Além da questão já abordada sobre a pobreza de experiências, podemos apontar
algumas outras, por exemplo, a situação do artista moderno, enquanto sujeito inserido na
sociedade que se forma.
Em seu famoso ensaio “A modernidade”, Walter Benjamin (1971) mostra e discute, entre
outros assuntos, a situação do artista no mundo moderno. Sabemos que, em princípio, dentro da
sociedade capitalista e de suas relações de trabalho, o artista é um excluído, uma vez que não
pertence nem ao proletariado nem à burguesia. Ele vive sem uma função dentro desse contexto, e
segundo Benjamin, por isso a sua existência é ao mesmo tempo heróica e trágica. Para Octavio
Paz: “Condenado a viver no subsolo da história, a solidão define o poeta moderno. Embora
nenhum decreto o obrigue a deixar sua terra, é um desterrado. [...] O poeta moderno não tem
lugar na sociedade porque efetivamente não é ‘ninguém’. Isso não é metáfora: a poesia não existe
para a burguesia nem para as massas contemporâneas.” (PAZ, 1982, p. 296). Paz mostra que a
106
produção artística do poeta não tem valor mercantil, não vale nada para o mercado. E se não tem
valor, não existe realmente em nosso mundo. Ao se reduzir o mundo ao que tem valor de
mercado, automaticamente se expulsou o poeta e suas obras da esfera da realidade.
Benjamin, que no ensaio citado, discute algumas idéias de Baudelaire, mostra o que o
poeta francês pensava sobre a Modernidade: “O herói é o verdadeiro tema da modernité. Isto
significa que para viver a modernidade é preciso uma formação heróica.” (BENJAMIN, 1971, p.
14). Assim, o heroísmo é intrínseco a todos os homens modernos, e o trabalhador assalariado
teria, segundo ele, uma vida tão heróica quanto, por exemplo, a dos gladiadores da Roma antiga.
Deveriam receber os mesmo aplausos e a ter a mesma glória dos antigos. Marshall Berman, que
comenta sobre este ensaio, fala também sobre o que pensava Baudelaire:
O ponto crucial do heroísmo moderno, como Baudelaire o vê aqui, é que ele
emerge em conflito, em situações de conflito que permeiam a vida cotidiana no
mundo moderno. Baudelaire dá exemplos da vida burguesa, bem como das altas
esferas da moda e das mais baixas de vida: o político heróico, [...]; o heróico
homem de negócios, como o perfumista de Balzac, Birotteau, lutando contra o
espectro da falência, [...]; respeitáveis patifes, como Rastignac, capazes de tudo
– das mais desprezíveis às mais nobres ações – ao longo de seu caminho em
direção ao alto; [...] ‘Tudo isso deixa transparecer uma nova e especial beleza,
que não é nem a de Aquiles nem a de Agamenon.’ (BERMAN, 2001, p. 140)
Há uma espécie de “beleza heróica” em viver o mundo moderno para Baudelaire, que não
houve em nenhum período anterior da história, nem com os clássicos. Todo o homem moderno
tem uma vida heróica, sempre fazendo peripécias que ultrapassam o medíocre, o comum. Mesmo
os criminosos e as prostitutas, mesmo o submundo das grandes cidades contem temas heróicos a
serem explorados: “Os poetas encontram na rua o lixo da sociedade e a partir dele fazem a sua
crítica heróica.” (BENJAMIN, 1971, p. 19). Há, nas cidades modernas, material de sobra a ser
explorado pelos artistas modernos.
107
Por exemplo, com a construção dos bulevares em Paris, toda uma multidão de pobres que
viviam em bairros escondidos, em ruelas de pouca visibilidade para a burguesia, aparece aos
olhos de todos. Berman (2001) comenta sobre o poema em prosa de Baudelaire chamado “Os
olhos dos pobres”, em que uma família burguesa, enquanto jantava em um restaurante, vê outra
família, de mendigos, pedindo esmola. Toda uma massa de pessoas necessitadas passa a ter
visibilidade e começam a ser tema para o artista moderno. T.S. Eliot mostra uma cena dessa
cidade moderna, em que as imagens são desesperadoras, como já sugere o título de seu famoso
poema “A terra desolada”:
Cidade irreal,
Sob a neblina castanha de uma aurora de inverno,
Fluía a multidão pela Ponte de Londres, eram tantos,
Jamais pensei que a morte a tantos destruíra.
Breves e entrecortados, os suspiros exalavam,
E cada homem fincava o olhar adiante de seus pés.
(ELIOT, 2004, p. 141)
Notamos um ambiente sombrio e desagradável, de uma vivência trágica da Modernidade.
Toda uma multidão consumida por uma existência deplorável e que salta aos olhos do artista
moderno. Para Baudelaire, a única solução para essas massas, que mal conseguem sobreviver
com o seu trabalho, haveria apenas uma saída heróica: o suicídio.
Benjamin, em seu citado ensaio, mostra como Baudelaire via o drama, a tragédia dos
homens modernos, principalmente as pessoas mais humildes, o proletariado. “A modernidade
deve estar sob o signo do suicídio que sela uma vantagem heróica que nada concede à atitude que
lhe é hostil. Este suicídio não é renúncia, mas paixão heróica.” (BENJAMIN, 1971, p. 15).
Assim, Benjamin mostra como o suicídio, dentro da modernidade, para Baudelaire, não é uma
fuga, um ato covarde, mas, pelo contrário, é um ato heróico e a única saída para uma situação
108
trágica. Seria o ato niilista por excelência, a “passion particuliére de la vie moderna” (ibid, P.
15). Benjamin cita uma litografia da época, em que um operário inglês se suicida, por não poder
ganhar seu sustento, e mostra como a idéias do suicídio ganha força entre as massas urbanas.
Em muitos poemas de Sá-carneiro, encontramos um eu-lírico niilista, desenganado com a
vida. Não se fala, nesses poemas, abertamente na questão do suicídio, mas podemos apontar um
desejo de aniquilar o “eu”, de “suicidar” o sujeito que fala. No poema “Caranguejola”, nos versos
finais encontramos esse eu-lírico pessimista e desgostoso com a vida: “Nada a fazer, minha rica.
O menino dorme. Tudo o mais acabou.” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p.88). Esse “menino” que
“dorme” poderia representar o eu-lírico que perdeu a vontade de viver, e de alguma forma desiste
da vida, “Noite sempre p’lo meu quarto. As cortinas corridas, / E eu aninhado a dormir, bem
quentinho – que amor...” (ibid, p. 87) e da literatura: “Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...”
(ibid, p. 87). Se considerarmos o suicídio a aniquilação do sujeito, encontramos nesses poemas
uma vontade semelhante, a de desistir da vida, de se entregar. É um eu-lírico que cansou de
existir, e desistiu de ser sensacionista, desistiu de sentir as coisas de várias maneiras. É como se
ele tivesse “suicidado” o seu sujeito estético, como se não houvesse mais o seu lado artístico.
Se considerarmos, segundo o conceito moderno de identidade, que coloca o sujeito como
um ser fragmentado, formado por várias “partes”, uma delas, a parte artística desse eu-lírico é
“morta”. Esse “suicídio” de um fragmento seu, do que se pode chamar de “sujeito estético” é uma
forma de desaparecer, de aniquilar o próprio sujeito, é uma forma de “suicídio”. Para ele, talvez
não fosse conscientemente um ato heróico, mas seria uma saída para a desilusão que sentia frente
ao mundo moderno. Esse suicídio do “sujeito estético” pode ser encontrado, também, em “Cinco
horas”: “Buscando pelo ar os traços / Da minha vida passada [...] Passar o tempo é meu fito, /
Ideal que me resta:” (ibid, p. 80-1); “Serradura”: “Pois é assim; minh’Alma / Outrora a sonhar de
Rússias, / Espapaçou-se de calma, E hoje sonha só pelúcias.” (ibid, p. 75); “Além-tédio”: “e só
109
me resta hoje uma alegria: / É que, de tão iguais e tão vazios, / Os instantes me esvoam dia a dia /
Cada vez mais velozes, mais esguios” (ibid, p. 31).
Em todos esse poemas encontramos um eu-lírico desiludido, que não espera mais nada da
vida, que tem instantes cada vez mais vazios, cuja ocupação é apenas passar o tempo, e que não
“sonha” mais “Rússias”, mas sim apenas “pelúcia”. É um sujeito que desistiu de sua arte, um
artista que não segue mais os preceitos sensacionistas, ou estética alguma. Um eu-lírico que,
talvez heroicamente como o operário inglês, tomou a única atitude possível frente ao seu estado:
“suicidou” o seu “sujeito estético”.
Para Baudelaire, como dissemos anteriormente, o artista também tinha uma vida heróica e
trágica, como as pessoas comuns. Segundo Benjamin explica: “O poeta, o substituto do herói da
antiguidade, [...] tinha que ceder ao herói moderno, [...] Ele está predestinado à derrota e não
precisa ressuscitar qualquer dos trágicos para apresentar tal necessidade.” (BENJAMIN, 1971, p.
20). Por não ter lugar na sociedade moderna, o artista tem uma vivência trágica, de alguém
excluído do cerne da dinâmica social. Sua vida é condenada, como a das pessoas comuns, ao
fracasso.
Baudelaire, em seu poema, “O albatroz” mostra, por meio de uma analogia com o pássaro
marinho, como ele enxerga a situação do artista moderno. Tal como a ave, capturada e despejada
no convés de um navio, o eu-lírico se sente pouco à vontade em relação à sociedade em que vive:
“E por sobre o convés, mal estendido apenas / O monarca do azul, canhestro e envergonhado,”
(BAUDELAIRE, 2005, p. 18). Não tem mais o respeito que tinha outrora, a Modernidade o
transformou em um elemento sem função e até mesmo, em motivo de riso para os outros: “Hoje é
cômico e feio, ontem tanto agradava!” (ibid). Chega mesmo a ser alvo de brincadeiras e
humilhações, como a tripulação faz com o albatroz: “Um ao seu bico leva o irritante cachimbo, /
Outro imita a coxear o doente que voava.” (ibid). Como o pássaro, o artista está: “Exilado na
110
terra e em meio do escarcéu, / As asas de gigante impedem-no de voar” (ibid), como a ave ficaria
no convés de um navio, longe dos céus, do seu ambiente natural, o poeta se encontra perdido no
mundo, sem conseguir “andar”, ou seja, se relacionar de forma positiva e saudável. Vemos
também uma concepção de artista como um ser grandioso (“as asas de gigante”), diferente da
massa ignorante e vulgar.
Segundo Berman (2001), Baudelaire luta para esclarecer a diferença entre progresso
material e espiritual. Mostra como a noção de progresso não trouxe benefícios visíveis para a
maioria das pessoas, fazendo ainda o homem esquecer de seus deveres e tornando-se um sintoma
da decadência da sociedade de sua época. Baudelaire desvincula o artista do mundo material das
indústrias e tecnologias recém descobertas, tornando-se alguém superior a tudo isso: “Assim, na
mercurial e paradoxal sensibilidade de Baudelaire, a imagem antipastoral do mundo moderno
gera uma visão notavelmente pastoral do artista moderno, que, intocado, flutua, livre, acima disso
tudo.” (ibid, p. 136). Há uma idealização da imagem do artista, que é visto como um ser superior
a tudo o que está ocorrendo ao seu redor.
Esses mesmos temas de “O albatroz” podem ser encontrados nos poemas de Sá-Carneiro.
A idéia da dificuldade de se relacionar com o mundo já foi exposta em capítulos anteriores deste
trabalho, como por exemplo nos poemas “Como não possuo” e “Crise lamentável”. Neste último,
estão presentes o medo de viver: “Levantar-me e sair. Não precisar / De hora e meia antes de vir
p’ra rua” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 90) e a dificuldade de se relacionar com os outros: “Não ter
receio de seguir pequenas / E convidá-las para me pôr nelas.” (ibid, p. 90), de que fala
Baudelaire.
A outra idéia, a de grandeza do artista, também já foi bastante explorada neste trabalho. A
título de registro, falam deste assunto, por exemplo, os poemas “Partida”: “E detenho-me às
vezes na torrente / Das coisas geniais em que medito” (ibid, p. 15); “El-rei”: “[...] Os meus
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dilectos / Frenesis ninguém brilha! Excesso de oiro.” (ibid, p. 92); “Escavação”: “Brando a
espada: sou luz harmoniosa / E chama genial que tudo ousa” (ibid, p. 18), entre outros. Nota-se,
portanto, tanto nos poemas de Baudelaire, quanto nos de Sá-Carneiro, um eu-lírico que reflete os
temas da dificuldade do artista de viver o mundo moderno e da grandeza do artista.
Dentro dessa visão, a Modernidade não é vista com bons olhos pelo artista, o ambiente ao
seu redor não é visto como algo significativo, mas, ao contrário, é descrito com pesar, tédio e
outros sentimentos negativos. Segundo Berman (2001), para Baudelaire a poesia e o progresso
material existentes na modernidade são “inimigos mortais”, não podem coexistir sem prejuízo
para um ou para outro. O poeta francês mostra desprezo por sua época:
Mas por que inimigo mortal? [...] A resposta imediata, na qual Baudelaire
acredita com tanta veemência (ao menos nesta altura) que nem sequer ousa
expressá-la com clareza, é que a realidade moderna é intrinsecamente
repugnante, vazia não só de beleza mas de qualquer potencial de beleza.
(BERMAN, 2001, p. 137)
Baudelaire, enfim, mostra uma concepção da Modernidade como um período negativo,
triste para o artista, que não consegue se encontrar nessa nova realidade, e para a sociedade em
geral, que vive um período carente de eventos significativos, em que se toma o progresso material
como única meta, deixando-se de lado o que ele chama de progresso espiritual.
É o momento de verificarmos um poema de Sá-Carneiro da segunda fase de sua obra
poética, em que ele usa um vocabulário e elementos modernos, e cujas idéias acima expostas
estão presentes. Trata-se de “Cinco horas” que seria “ambientado” em um espaço bastante
moderno: o café.
112
Cinco horas
Minha mesa no Café,
Quero-lhe tanto...A garrida
Toda de pedra brunida
Que linda e que fresca é!
Um sifão verde no meio
E, ao seu lado, a fosforeira
Diante ao meu copo cheio
Duma bebida ligeira.
(Eu bani sempre os licores
que acho pouco ornamentais:
os xaropes têm cores
mais vivas e mais brutais).
Sobre ela posso escrever
Os meus versos prateados,
Com estranheza dos criados
Que me olham sem perceber...
Sobre ela descanso os braços
Numa atitude alheada,
Buscando pelo ar os traços
Da minha vida passada.
Ou acendendo cigarros,
– Pois há um ano que fumo –
Imaginário presumo
Os meus enredos bizarros.
(E se acaso em minha frente
Uma linda mulher brilha,
O fumo da cigarrilha
Vai beijá-la, claramente...)
Um novo freguês que entra
É novo actor no tablado,
Que o meu olhar fatigado
Nele outro enredo concentra.
E o carmim daquela boca
Que ao fundo descubro, triste,
Na minha idéia persiste
E nunca mais se desloca.
Cinge tais futilidades
A minha recordação
E destes vislumbres são
As minhas maiores saudades...
113
(Que história d’oiro tão bela
na minha vida abortou:
Eu fui herói de novela
Que autor nenhum empregou...)
Nos cafés espero a vida
Que nunca vem ter comigo:
– Não me faz nenhum castigo,
Que o tempo passa em corrida.
Passar tempo é o meu fito,
Ideal que só me resta:
Pra mim não há melhor festa,
Nem mais nada acho bonito.
– Cafés da minha preguiça,
Sois hoje – que galardão! –
Todo o meu campo de acção
E toda a minha cobiça.
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 80-1)
As duas primeiras estrofes passam uma falsa idéia de deslumbre do eu-lírico pela
Modernidade, um suposto entusiasmo pelas coisas ao seu redor, mais especificamente, os objetos
de um café. Se a ironia com que estes versos foram construídos não for notada, pode-se achar que
o eu-lírico está fascinado por tudo que é descrito. Há ironia, por exemplo, quando fala que
dispensou os licores, que seriam pouco ornamentais, em favor dos xaropes. Mais adiante no
poema, notaremos porque fica claro que o eu-lírico está entediado, e não entusiasmado.
A quarta estrofe, traz a idéia da grandeza do artista – no caso o próprio eu-lírico, o que
não é de se espantar na forma egocêntrica de ver o mundo que lhe é peculiar – que escreve sobre
a sua mesa. O artista não é como os demais, ele produz coisas grandiosas, como seus “versos
prateados”. Por sua vez, as pessoas comuns, como neste caso os criados do café, não conhecem
ou não valorizam a arte, estão preocupados com a sua vida cotidiana e medíocre. Por isso a
estranheza deles ao ver o eu-lírico a fazer poesia.
114
A quinta estrofe traz o comportamento do eu-lírico frente ao que vê, ao que vive, ele está
em “atitude alheada”, com tédio. Ele não está focado nas coisas ao seu redor, não mostra
entusiasmo pelo ambiente moderno. Está preocupado com sua “vida passada”, ou seja, com seu
“eu” ideal, mais uma vez. Isso mostra, que a Modernidade não o fez sair de sua preocupação
principal, não o fez se desligar de sua ambição por uma identidade ideal e centrada. Segundo
Dieter Woll: “O desejo de atingir a idealidade é tão violento que nem a natureza nem a
civilização moderna podem exercer sobre ele uma atração duradoura.” (WOLL, 1968, p. 73). A
Modernidade não o fascina.
Mais à frente, diz imaginar seus “enredos bizarros”, na mesa do café. Isso mostra a sua
visão da grandeza do artista, uma vez que mesmo bizarro, grotesco, o seu enredo, a sua criação é
algo grandioso, inusitado, não é a realidade comum, não é a vida ao seu redor, que para ele é
desinteressante.
Na sétima estrofe, descreve a presença de uma linda mulher, e na oitava, a de um freguês
do café como a de um artista em um palco. Não há, novamente euforia nem em uma situação,
tampouco na outra. Novamente o seu “olhar fatigado” contempla a tudo e concentra neles um
outro “enredo”. O interesse do eu-lírico nunca é pela realidade exterior, “Os primeiros capítulos
deste estudo mostram quão pouco Sá-Carneiro se interessa por essa realidade” (ibid, p. 232). O
que a mulher e o freguês podem ter de interessante para o eu-lírico é a possibilidade de eles virem
a ser “personagens” de suas criações, de seus “enredos”. Por isso, na décima estrofe, chama-os, e
também a realidade exterior do café de “futilidades”.
Nas estrofes finais, ele mostra um certo cansaço existencial, frente à vida moderna. Como
Baudelaire, concebe-a como algo repugnante e tedioso: “Nos Cafés espero a vida / Que nunca
vem ter comigo:” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 81). A realidade não lhe traz nada de muito
115
significativo, como já vimos em outros poemas, e a seu suposto fascínio, dos primeiros versos,
pela Modernidade, não passa mesmo de ironia, não altera o seu cansaço, o seu sofrimento.
Não há nada no mundo moderno que o empolgue, que o faça sair de sua inércia, de sua
tristeza e angústia. Segundo Woll, “Todas estas evocações metafóricas caracterizam a existência
dum homem-artista que já não vê possibilidade de se elevar acima da trivialidade da vida e que
adapta as suas expressões a esta situação de indigência.” (WOLL, 1968, p. 233). Por isso os
“Cafés da minha preguiça” que seriam toda a sua ambição, todo o desejo de um sujeito desiludido
e desenganado na sua busca. Passar o tempo de forma banal é tudo o que lhe resta, não há nada
que o impulsione, que o motive.
Fica claro, no final do poema, que o mundo contemporâneo do eu-lírico não é algo que o
faça vibrar, se entusiasmar. Sequer o faz esquecer da sua angústia por alcançar um “eu” ideal e
centrado. Não há fascínio pelo moderno, o Café é apenas mais um ambiente, como todos os
outros, que o faz se sentir deslocado e infeliz. Os cafés “da minha preguiça” não o fazem
esquecer da sua derrota. Esta visão de mundo é a mesma que Baudelaire tem e que mostramos
anteriormente. Uma visão que privilegia o artista e o coloca como um ser superior, e que
despreza o que é moderno e comum.
Quando observamos, segundo as idéias de Adorno, que o artista é capaz de sentir o que os
outros ainda não sentiram, que é capaz de transmitir algo ainda não captado e que a partir de uma
experiência individual busca apreender uma universal, é preciso que se faça uma ressalva sobre o
momento histórico da Modernidade. Neste período, de intensas mudanças sociais, alavancadas
por grandes avanços em diversas áreas do conhecimento – no final do século XIX surgiram o
motor de combustão interna, a eletricidade, o automóvel, o telefone, além dos avanços do início
do século XX nas áreas do conhecimento, a teoria da relatividade de Einstein, o descobrimento
do inconsciente, por Freud, os avanços na sociologia, impulsionados pelas idéias de Durkheim e
116
Weber, entre outros – havia uma multiplicidade de visões sobre o que estava acontecendo, visto
ser a Modernidade um período bastante complexo. Sobre isso, Malcolm Bradbury e James
McFarlane discorrem no seu ensaio “O nome e a natureza do Modernismo”:
Notamos que poucas épocas apresentaram maior multiplicidade, maior
promiscuidade no estilo artístico; extrair da multiplicidade um estilo ou
maneirismo geral é uma tarefa difícil, e talvez impossível. Podemos qualificar a
literatura setecentista nos países ocidentais como “neoclássica”, a literatura
oitocentista num número ainda maior de países como “romântica”; embora os
rótulos ocultem inúmeras fendas, podemos sugerir um impulso geral na maioria
das artes significativas, entre a maioria dos artistas significativos de que
tratamos nesses períodos. (...) o romantismo tem um significado geral
identificável e serve como uma ampla descrição estilística de toda uma era.
Todavia, o que há de tão surpreendente no período moderno é o fato de não
existir nenhuma palavra que possamos empregar dessa maneira [...]
O termo tem sido utilizado para abarcar uma ampla variedade de movimentos
de subversão do impulso realista ou romântico e inclinados à abstração
(impressionismo, pós-impressionismo, expressionismo, cubismo, futurismo,
simbolismo, imagismo, vorticismo, dadaísmo, surrealismo), mas mesmo eles,
como veremos, não pertencem todos ao mesmo gênero, e alguns são reações
radicais contra outros. (BRADBURY & McFARLANE, 1998, p.16-7).
Assim, não existe um “sentimento de época” do Modernismo, não há com reduzir a uma
expressão o que é este movimento. Mesmo que os rótulos tendam a limitar e tolher uma leitura
mais profunda, em todos os períodos anteriores é possível de se traçar algumas diretrizes comuns
entre os artistas, ou como disseram Bradbury e McFarlane, alguns “impulsos gerais” nesses
períodos. Por isso, a visão pessimista do eu-lírico de Sá-Carneiro e de Baudelaire frente à
Modernidade não é a única deste período, houve correntes que exaltaram a vida moderna e seus
avanços.
È o que trata Alan Bullock, em seu ensaio “A dupla imagem”, que mostra as diferentes
concepções artísticas do Modernismo, criadas a partir das profundas transformações desse
período. Não há uma única “voz” ou tendência que o represente:
117
É mais provável que os artistas, escritores e pensadores dos anos 1900, com sua
sensibilidade mais desenvolvida, tenham reagido a tendências e conflitos –
sociais, moréias, intelectuais, espirituais – que já vinham se delineando no
horizonte, e tenham procurado novas formas, novas linguagens que projetassem
tais tendências e conflitos à frente de seu tempo. Vladimir Tatlin, ao ver a
entusiástica adoção de idéias e da arte dos construtivistas na Rússia
revolucionária, colocou a questão de maneira perfeita: “Criamos a arte de
termos a sociedade”. Um outro exemplo, em sentido oposto, é a violenta reação
de muitos pintores expressionistas às pressões desumanizadoras – a insegurança
e a solidão – que sentiam estarem sendo geradas pela crescente urbanização.
Foram duas reações contrárias à mesma tendência rumo a uma sociedade muito
urbanizada e tecnológica [...] (BULLOCK, 1998, p. 51-2)
Bullock nos mostra que a partir das transformações da época, criaram-se correntes
artísticas com enfoques e visões de mundo diferentes. Podemos apontar duas tendências básicas,
sem reduzir a complexidade do período, para a Modernidade: uma corrente que exaltava e se
maravilhava com o moderno, como por exemplo, os construtivistas e os futuristas, e outra, que
buscava ser uma reação frente às conseqüências desumanizadoras do progresso, da urbanização e
do capitalismo desse período. Nessa corrente, podemos incluir os expressionistas. O eu-lírico de
Sá-Carneiro, como o de Baudelaire e de T.S. Eliot, parecem fazer parte desta corrente. É claro
que o Modernismo é um período bastante diversificado e complexo, mas pode-se ter, para efeito
de estudo, como referência estes dois pólos ideológicos.
Dito isso, é o momento de investigarmos um poema de Mário de Sá-Carneiro que
apresenta a estética futurista, trata-se de “Manucure”. Segundo Fernando Cabral Martins (1994),
é o texto português mais próximo dos cânones do Futurismo. Contudo, não se pode fazer uma
leitura “futurista” deste poema, uma vez que apesar de utilizar a sua estética, não comunga com a
ideologia deste movimento, o que leva alguns autores, entre eles Fernando Martinho (1983), a
afirmar, citando as palavras de Fernando Pessoa, que o poema foi feito com tom de blague, de
deboche, sendo “semi-futurista”. Além disso, ele afirma que erradamente, “Manucure” é
separado, como se fosse outro poema, de sua parte final, que é iniciada por “Apoteose”, segundo
118
ele, ambos, na verdade, seriam um poema só. Resta saber qual é o gracejo, o deboche que Sá-
Carneiro propõe em “Manucure”.
O Futurismo foi um movimento que, em linhas gerais, exaltava as máquinas modernas, a
velocidade e a dinâmica do mundo, trazidos pela tecnologia. Segundo Gilberto Mendonça Teles
(2002), foi um movimento mais de manifestos que de obras, sendo seu principal mentor, o
italiano Marinetti. Segundo ele: “[...] o futurismo exaltava a vida moderna, procurou estabelecer
o culto da máquina e da velocidade, pregando ao mesmo tempo a destruição do passado e dos
meios tradicionais da expressão literária, no caso a sintaxe:” (TELES, 2002, p. 86).
Causa estranheza, por tudo o que foi dito e analisado, que o eu-lírico de Sá-Carneiro
aderisse a esse movimento, uma vez que expressa, se não um repúdio, mas um desinteresse pela
Modernidade e suas criações. Como um eu-lírico que repetidamente mostrou descaso pelos
“cafés da minha preguiça” poderia exaltar o mundo moderno, como faria um futurista? Por isso o
tom de blague a que se referiu Fernando Pessoa, citado por Fernando Martinho.
No começo do poema, o eu-lírico está em um café, sentindo o tédio que lhe é comum:
“Entanto eis-me sozinho no Café: / De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.” (SÁ-
CARNEIRO, 2004, p. 101). Em seguida descreve o ambiente ao seu redor, com suas trivialidades
e banalidades:
[...]
Entre os amigos com quem ando às vezes –
Trigueiros, naturais, de bigodes fartos –
Que escrevem, mas têm partido político
E assistem a congressos republicanos,
Vão às mulheres, gostam de vinho tinto,
De pêros ou de sardinhas fritas...
(ibid, p. 101)
119
Parece também que este ambiente lhe é monótono e tedioso. Toda a rotina de seus
contemporâneos, que bebem vinho tinto, saem com prostitutas e levam uma vida ordinária, é,
para ele, medíocre e sem significado profundo.
Mais à frente, porém, parece que surge um entusiasmo que não existia:
Deponho então as minhas limas,
As minhas tesouras, os meus godets de verniz,
Os polidores da minha sensação –
E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!
Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta,
(ibid, p.102)
Ele, que antes estava polindo suas unhas, larga tudo frente a um êxtase novo, que não era
sentido antes. E, na mais perfeita estética futurista, exalta a velocidade e os inventos do mundo
moderno:
Que calottes suspensas entre ogivas de ruínas,
Que triângulos sólidos pelas naves partidos!
Que hélices atrás dum vôo vertical!
Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de tênis! –
Que loiras oscilações se ri a boca da jogadora...
[...]
E pelas estações e cais de embarque,
Os grandes caixotes acumulados,
As malas, os fardos – pêle-mêle...
Tudo incerto em Ar,
Afeiçoado por ele, separado por ele
Em múltiplos interstícios
Por onde eu sinto a minh’Alma a divagar!...
– Ó beleza futurista das mercadorias!
(ibid, p. 102-3)
E o eu-lírico continua assim até quase o final do poema, exaltando o mundo moderno
como faria um autêntico futurista. Recorre também a letras impressas e a onomatopéias como as
que usou Marinetti em uma obra sua de 1914: “Zang Tumb Tuuum”.
120
Contudo, quase no fim de “Manucure”, surgem alguns versos que mostram que, ao invés
de exaltar o mundo moderno, o eu-lírico, na verdade, está perdido, como sempre, em seus
devaneios interiores, em sua busca por identidade. São eles: “Levanto-me... / – Derrota!” (ibid,
p.110). Fernando Guimarães nos mostra como está esse eu-lírico supostamente eufórico: “Esta
situação radical, vivida por um sujeito que acaba por se perder nos seus próprios labirintos ou
naqueles que lhe destinam,[...]” (GUIMARÃES, 1992, p. 92). O eu-lírico não poderia estar
entusiasmado com a Modernidade, principalmente da forma futurista como foi construído em
“Manucure”. Maria Aliete Galhoz mostra que é de forma sensacionista, e não futurista, que esse
eu-lírico se relaciona com o mundo: “Quando tenta o enxerto interseccionista-futurista de
‘Manucure’ e ‘Apoteose’ o que consegue é, mais uma vez, o seu Sensacionismo.” (GALHOZ,
1963, p. 121). Quanto ao sensacionismo deste poema, voltaremos a esta questão mais adiante.
Mas se o poema não é filiado com as idéias futurista, por que seguir a sua estética? A
resposta é dada por Fernando Cabral Martins, que explica que a razão por que Fernando Pessoa o
chamou de “semi-futurista” e feita com intenção de blague “[...] sublinha no poema o seu lado de
pastiche e a sua provocação deliberada do gosto público” (MARTINS, 1994, p. 280). Assim, o
eu-lírico é esteticamente “futurista” para fazer uma crítica ao gosto do público, talvez para
criticar o próprio futurismo e seu entusiasmo pelo mundo moderno.
O uso da forma a partir da estética futurista serve para expandir suas possibilidades de
sentir, de acordo com o Sensacionismo. Segundo Fernado Guimarães: “[...] ao recorrer, neste
poema, a onomatopéias, à transcrição de nomes de firmas ou letras impressas [...] dir-se-ia estar
com todo o despojamento que há nessa ‘nova sensibilidade tipográfica’ ou ‘nova simpatia
onomatopaica’” (GUIMARÃES, 1992, p. 92). Assim, essa “sensibilidade tipográfica” seria uma
nova forma de sentir, que expandiria a capacidade de percepção do eu-lírico, de forma bem
característica do sensacionismo. O mesmo é afirmado por Martins: “[...] embora Sá-Carneiro não
121
procure em Manucure o grau de radicalidade dos futuristas, encontra na dispersão tipográfica da
página e no culto da energia física uma sensitividade e uma técnica novas” (MARTINS, 1994, p.
282). A “dispersão tipográfica” a que Martins se refere parece ser a mesma dispersão que pregava
o Sensacionismo, em que o eu-lírico iria se fundir, se diluir nos objetos, para expandir as
possibilidades de sentir. A seguir, mostraremos alguns trechos de “Manucure” em que parece
haver esse desejo de fusão entre eu-lírico e objeto, que aspiram por uma ampliação das
possibilidades de sentir.
Quanto às onomatopéias, a que se referiu Guimarães, encontramos, por exemplo:
(Hip! Hip-lá! Nova simpatia onomatopaica,
Rescendente de beleza alfabética pura:
Uu-um... kess-kress... vliiim... tiln... blong... flong... flak…
Pâ-am-pam! Pam… pam… pum… pum… Hurrah!)
(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 107)
Hilá! Hilá! Hilá-hô! Eh! Eh!...
Tum… tum… tum…tumtumtumtum…
(ibid, p. 111)
Em relação à dispersão, ao desdobramento do “eu” nos objetos, ao culto da energia física,
encontramos:
– Sarapilheira dos fardos,
como eu quisera togar-me de Ti!
– Madeira dos caixotes,
Como eu ansiara cravar os dentes em Ti!
E os pregos, as cordas, os aros...–
Mas, acima de tudo, como bailam faiscantes
A meus olhos audazes de beleza,
As inscrições de todos esses fardos –
[...]
Ávido, em sucessão da nova Beleza atmosférica,
O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la
À minha volta. E a que mágicas, em verdade, tudo baldeado
Pelo grande fluido insidioso,
122
(ibid, p. 103)
Eia! Eia!
Singra o tropel das vibrações
Como nunca a esgotar-se em ritmos iriados!
Eu próprio sinto-me ir transmitindo pelo ar, aos novelos!
Eia! Eia! Eia!...
(ibid, p. 106)
Notamos nesses versos esse “eu” que se funde aos objetos, perdendo os contornos nítidos
entre um e outro. O eu-lírico “sente-se” transmitido pelo ar, revelando o desejo sensacionista de
sentir tudo de todas as formas. Há também o culto dos objetos, da beleza da força física, do
dinamismo, presentes nos caixotes, pregos, cordas, que forma a referida “nova Beleza
atmosférica”. Tudo isso, não para exaltar a beleza da Modernidade, mas para sentir de forma
nunca sentida antes, ampliar os limites de percepção. O eu-lírico deseja sentir “Toda a nova
beleza tipográfica” (ibid, p. 107).
Beleza essa, referida nos versos:
Eh-lá! Grosso normando das manchetes em sensação!
Itálico afilado das crônicas diárias!
Corpo 12 romano, instalado, burguês e confortável!
Góticos, cursivos, rondas, inglesas, capitais!
Tipo miudinho dos pequenos anúncios!
Meu elzevir de curvas pederastas!...
E os ornamentos tipográficos, as vinhetas,
As grossas tarjas negras,
Os “puzzles” frívolos da pontuação,
Os asteriscos – e as aspas... os acentos...
Eh-lá! Eh-lá! Eh-lá!...
(ibid, p. 107)
Novamente o desejo de ampliação do sentir. Os diversos tipos (romano, gótico, cursivo) e
os diversos tamanhos das letras (inclusive o “miudinho” dos anúncios), os asteriscos, as aspas e
todas as variedades encontradas pela tipografia moderna são exaltadas. Mas não por possuírem
123
uma beleza majestosa, não a título de exaltação da tecnologia moderna, esses diversos tipos
gráficos, permitem ao eu-lírico, quando “diluído” neles, sentir a realidade de diversas formas,
permite expandir e variar o modo de sentir.
Portanto, podemos incluir o eu-lírico de Sá-Carneiro como um sujeito moderno, que sofre
as vicissitudes próprias desse período. É uma voz da Modernidade, que tenta construir a sua
identidade em meio ao caos e à complexidade modernos. Sente-se, como artista, deslocado do seu
próprio ambiente, exilado do seu próprio mundo, de seus contemporâneos. Como voz moderna,
converge com aqueles que cantam as tragédias do mundo, que não se fascina com o glamour das
novas tecnologias, com a dinâmica social que se instaura. Dentro da oposição sugerida neste
capítulo, faz parte do pólo dos expressionistas, que denunciam a desumanização da Modernidade,
em oposição aos construtivista e futurista que a exaltam. Por isso, o seu poema “semi-futurista”
ser uma blague, uma provocação contra o gosto do grande público.
124
Considerações Finais
125
Neste trabalho, procuramos verificar, nos poemas de Mário de Sá-Carneiro, de que forma
o eu-lírico constrói a sua identidade. A partir das concepções de identidade formuladas por Stuart
Hall (2005), verificamos como o eu-lírico concebe e constrói a sua própria. Hall afirma que na
nossa sociedade, desde a Modernidade, não há como concebermos uma identidade centrada e
totalizante, mas, ao contrário, devemos ter como parâmetro um modelo que encare o sujeito como
um ser fragmentado, que assuma diversos papéis, nos seus diversos momentos e atividades do dia
a dia. Segundo Adolfo Casais Monteiro, na Modernidade: “A totalidade sumiu, nasceu a
fragilidade, a dispersão. É isso o retrato do homem moderno: da fragilidade ao nada.”
(MONTEIRO, 1965, p. 4). Além de fragmentado, o sujeito moderno está fragilizado frente à
“morte” de Deus e da Verdade. Monteiro afirma que os parâmetros e modelos do homem
moderno foram destruídos, cabe a ele “recomeçar do nada”. Instaurou-se a chamada “crise de
identidade”.
Logo de início, podemos verificar um eu-lírico “perdido”, que buscava algo de
significativo, frente ao vazio que enxergava na sociedade ao seu redor. Somente um mergulho em
sua interioridade genial de artista poderia satisfazê-lo nessa busca por significados profundos. Por
isso o seu desligamento do mundo “real”, do mundo exterior, e a sua constante referência ao que
existiria dentro dele, às “coisas geniais” em que meditaria. Percebe-se, logo de cara, um sujeito
que, além de perdido como qualquer contemporâneo moderno, busca uma saída para essa
situação em uma viagem interior, à procura de valores mais significativos do que os que
encontrava na sociedade.
Contudo, ao invés de se encontrar, nessa jornada, o eu-lírico parece estar mais perdido do
que anteriormente. Seu celebre verso de “Escavação” resume bem essa idéia: “– Onde existo que
não existo em mim?” (SÁ-CARNEIRO, 2004 p. 18). A conseqüência disso é a sensação de
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falsidade que permeia muitos de seus poemas, em que sua busca improdutiva gera a sensação de
fracasso, de não ser alguém autêntico.
A partir daí, o eu-lírico passa a criar um modelo ideal para si mesmo, algo que deveria
atingir, para que encontrasse uma identidade que lhe fosse satisfatória. Então, o que chamamos
neste trabalho de “eu” ideal, passou a ser a sua obsessão, uma angústia que não o abandonava.
Esse “eu”, esse modelo a ser seguido, é sempre caracterizada por imagens grandiosas, quase
perfeitas e praticamente impossíveis de serem alcançadas. Essas imagens remetem a um modo de
fazer poesia que mostra clara influência de modelos simbolistas e decadentistas, na primeira fase
de sua poética. Mais adiante, em sua segunda fase, esse imaginário ganha uma forma mais
moderna, tanto na parte formal dos poemas, quanto ao universo de imagens e temas. Mas o
conceito desse “eu” ideal e perfeito não muda, continua sendo uma imagem perfeita a ser seguida
e que mostra todas as deficiências do seu lado imperfeito, do seu “eu” real.
Essa vontade de ser perfeito parece que torna o eu-lírico um sujeito ainda mais perdido,
não se identificando plenamente com nenhuma das duas imagens, nem a que considera real, nem
a sua ideal. Isso mostra que o eu-lírico tem uma concepção de identidade, segundo os modelos
sugeridos por Hall, como a do Iluminismo, que entendia o sujeito como um ser que possuía um
centro unificado que, mesmo se desenvolvendo ao longo da vida, permanecia sempre o mesmo. O
eu-lírico não aceita o seu lado considerado “ruim” como um contrapeso do seu lado “bom”, não
aceita a diversidade que existe em cada um de nós, frente à fragmentação interna que possuímos.
Por isso o seu desejo por um a identidade ideal, centrada e perfeita.
Monteiro (1965) afirma que a Modernidade é formada por sonhos que não foram feitos
para serem cumpridos, são sonhos que criam um universo próprio, não a esperança. O eu-lírico
criou um sonho impossível e desejou alcançá-lo. Estava, portanto, duplamente condenado ao
fracasso, desde a sua partida, uma vez que os sonhos modernos são “impossíveis” e, além disso, a
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busca para si próprio de um modelo de sujeito segundo a concepção iluminista, não poderia ter
êxito, já que seu mundo contemporâneo era o moderno.
Analisamos também a sua vontade de “sentir tudo de todas as formas”, segundo os
moldes do Sensacionismo. Segundo Lind (1981), este quase movimento literário, idealizado por
Fernando Pessoa, buscava no desdobramento do “eu” nos objetos, uma espécie de dispersão que
possibilitaria uma ampliação das possibilidades de sentir, que teria como objetivo desvendar o
mistério do universo. Nos poemas de Sá-Carneiro, percebemos um eu-lírico que muitas vezes
mostra esse desejo por dispersão – representado por imagens como em “Partida”: “Ser coluna de
fumo” (SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 16). Porém, seu objetivo é diverso ao formulado pelo
Sensacionismo de Pessoa: um buscava o mistério do mundo, outro o mistério de si mesmo.
Por não conseguir alcançar a sua imagem ideal, por ter fracassado no seu objetivo de
alcançar a sua identidade sonhada, o eu-lírico assume uma atitude autodestrutiva. Seja de uma
forma guiada pelo Simbolismo, seja por uma roupagem mais moderna, o eu-lírico não reage bem
ao seu fracasso inevitável.
Em certos momentos, a partir de sua inadaptação ao mundo ao seu redor como é mostrado
em “El-rei”, o eu-lírico passa a associar imagens negativas, depreciativas à sua própria pessoa.
Chega a contestar a sua condição genial de artista, que havia assumido anteriormente. Mais uma
vez, se mostra perdido em seus labirintos interiores, não é possível afirmar nada com certeza a
respeito da imagem que tinha sobre si mesmo. Contudo, a sua autodestruição continua, com
imagens violentas e até mesmo grotescas, como em “Fim”, com seu funeral guiado por um
jumento.
O poema “Caranguejola” traria o “fim” de todo esse processo: a desilusão total, um
profundo niilismo, pessimismo, cansaço existencial por não alcançar o seu sonho de identidade
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centrada e perfeita. A impossibilidade de se adaptar ao mundo, de se sentir à vontade na
sociedade em que vivia, faz com que ele desista de tudo, e deseje ficar trancado e isolado.
Fizemos também algumas considerações a respeito dos mitos e de sua “parte feminina”, a
sua anima, segundo os conceitos de Carl Jung, presentes em sua obra, que pudessem acrescentar
alguma informação a respeito de sua identidade.
Os mitos de Ícaro e Narciso são os mais comumente associados à obra de Sá-Carneiro.
Ícaro poderia simbolizar tanto o seu desejo por sair da rotina, de superar o que é comum, quanto a
sua mania de grandeza, sua megalomania. O eu-lírico teria caído na “armadilha” de Ícaro, que
seria a insatisfação e o descontrole frente a um entusiasmo excessivo que levaria à ruína, que
seria, para a personagem mitológica, o desejo de alcançar o sol, e para o eu-lírico em estudo, o
sonho de uma identidade ideal e sem fragmentação. Narciso também poderia representar duas
tendências: uma, mais conhecida e óbvia, a de um sujeito arrogante e prepotente, guiado por um
amor próprio que o cegaria; e outra, que mostraria um sujeito idealizador, que tenta superar a
realidade mais corriqueira e banal.
Há ainda outros temas trabalhados, como a questão do herói, a do sacrifício e a do Paraíso
Perdido. Os dois primeiros, trariam a idéia de que o eu-lírico seria alguém de grande valor – o
herói, como sujeito capaz de feitos extraordinários, e o sacrifício, como ritual guardado para
poucos merecedores – e que, como o artista, são diferentes, distintos da grande maioria das
pessoas comuns. O Paraíso Perdido do eu-lírico de Sá-Carneiro seria a sua imagem do “eu” ideal,
e não um tempo passado, como o mito original.
Quando examinamos alguns aspectos que podem ser relacionados à anima do eu-lírico,
chegamos também a algumas considerações interessantes. Essa análise mostra um sujeito pouco à
vontade em seu ambiente, que não interagia de forma saudável com outras pessoas, convergindo
com o que já havia sido dito em capítulos anteriores, com outras análises de diferentes enfoques.
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A análise de “Salomé” e “Bárbaro” mostrou ainda um sujeito que não desenvolvia suas relações
afetivas, que não lidava bem com sua sexualidade, além de grande imaturidade. Há ainda, a
conclusão de que o eu-lírico não lidava bem com seu “lado feminino”, representado pela anima.
No seu desejo de totalidade, não havia espaço para a anima, não havia lugar para a concepção de
sujeito fragmentado, que aceitasse as várias facetas que compõem a identidade de um sujeito
moderno.
Finalmente, análise do eu-lírico enquanto voz representativa de uma tendência da
Modernidade, foi importante para o fechamento de nosso estudo. Uma identidade deve ser
estudada, também, a partir do momento histórico em que o sujeito está inserido, uma vez que as
tendências de pensamento e os acontecimentos de um período influenciam-no de forma
consideravelmente importante.
Assim, primeiramente, verificou-se que o eu-lírico, enquanto sujeito artístico, encontra-se
deslocado, sem função em uma sociedade que valoriza as trocas comerciais, que só considera
existente quem ou o que faz parte do ciclo capitalista de produção e venda. A existência desse
sujeito era, por isso, ao mesmo tempo heróica e trágica, segundo a visão de outro moderno:
Baudelaire.
Dentro da oposição levantada pelo estudo, que separou duas tendências básicas para os
artistas modernos frente à complexa e dinâmica sociedade moderna – uma eufórica com o
progresso tecnológico, representada, por exemplo, pelos construtivistas e futuristas, e outra,
niilista, pessimista e angustiada frente à desumanização trazida por essa mesma sociedade –
situamos o eu-lírico em estudo na tendência niilista. O eu-lírico sempre se revela um sujeito
entristecido com o seu fracasso frente à busca pela identidade sonhada, o progresso e a sociedade
moderna não o fazem esquecer-se disso, não há um fascínio que o torne embevecido o bastante
para que não lembre de sua derrota pessoal.
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Parece ser esse o destino do homem moderno, uma vez que, para Monteiro (1965), o
“chão” da Modernidade são os sonhos impossíveis do homem, a distância entre o sonho e a
capacidade de vivê-los. Não havia como o eu-lírico construir a identidade da forma como a
concebia, perfeita e sem fragmentação. Assim, para ele parece haver apenas um final possível:
falhar em sua busca por criar uma identidade centrada e ideal, que tanto sonhou.
131
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