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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E
SOCIEDADE
YANNE ANGELIM ACIOLY
REFORMA PSIQUIÁTRICA: COM A PALAVRA, OS
USUÁRIOS.
FORTALEZA
2006
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE
YANNE ANGELIM ACIOLY
REFORMA PSIQUIÁTRICA: COM A PALAVRA,
OS USUÁRIOS.
Trabalho apresentado ao Curso de Mestrado Acadêmico em
Políticas Públicas e Sociedade, da Universidade Estadual do
Ceará, como requisito ao título de Mestre.
Área de estudo: Política Pública em Saúde
Orientadora: Profa. Dra. Maria Glaucíria Mota Brasil
FORTALEZA
2006
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE
REFORMA PSIQUIÁTRICA: COM A PALAVRA, OS USUÁRIOS.
YANNE ANGELIM ACIOLY
DEFESA EM: __/__/__ CONCEITO OBTIDO: ___________
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Maria Glaucíria Mota Brasil, Profa. Dra.
Orientadora
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
__________________________________________
Cleide Carneiro, Profa. Dra.
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
__________________________________________
Carmen Silveira de Oliveira, Profa. Dra.
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
4
Manicômio é sinônimo de um certo olhar, de um certo
conceito, de um certo gesto que classifica desclassificando,
que inclui excluindo, que nomeia desmerecendo, que
sem olhar (Amarante, 1999).
5
AGRADECIMENTOS
A realização deste trabalho foi possível graças aos apoios muito especiais
que não poderia deixar de agradecer.
Agradeço, sobretudo, a minha família. Aos meus pais, pelo carinho e apoio
em todos os momentos; aos meus irmãos, pela acolhida sempre carinhosa e o incentivo
para continuar; ao meu companheiro, pelo amor, incentivo e pela escuta sempre
compreensiva em momentos difíceis nessa caminhada. Ao mais novo “xodó” da
família, meu amado filho que, ainda no ventre, partilhou de tantos momentos deste
estudo me encorajando a prosseguir e após seu nascimento se privou várias vezes da
minha presença para que o trabalho fosse concluído.
À professora e minha orientadora Glaucíria Brasil, que com sua crítica
construtiva e competência muito contribuiu na realização desse estudo.
À amiga Teresa Cristina Esmeraldo pela escuta sempre carinhosa, pelas
palavras de incentivo e sugestões valiosas em todos os momentos em que a procurei.
Obrigada por ser uma amiga tão solidária e, embora extremamente inteligente, não se
deixar levar pelo egoísmo, partilhando seus conhecimentos.
À amiga Carmelita Sampaio, por tudo que partilhamos no Mestrado e pelo
apoio em momentos fundamentais.
À amiga Milena Barroso pelas palavras de carinho e o incentivo para
prosseguir.
À amiga Veridiana Simões (Veri) pelo apoio em momentos fundamentais à
realização desse estudo.
Aos profissionais e usuários do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS/
6
SER III) que contribuíram direta e/ou indiretamente para realização desse estudo e,
principalmente, aos interlocutores da pesquisa. Sem a disponibilidade de vocês esse
estudo não seria possível.
À professora Dra Cleide Carneiro por ter contribuído muito ao participar da
banca de qualificação do projeto de dissertação e aceitar fazer parte da banca
examinadora final.
À professora Dra Carmen Silveira de Oliveira por aceitar participar da
banca examinadora vindo de longe para contribuir conosco.
Aos integrantes da Rede Internúcleos do Movimento Nacional da Luta
Antimanicomial e em especial aos que participam do Núcleo Cearense desse
Movimento, por tantos conhecimentos e momentos partilhados. Continuemos firmes e
em “boa companhia”!
À Coordenação do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade
-professor Dr. Horácio Frota - sempre empenhada em oferecer melhores condições de
estudo aos alunos e melhor qualidade ao curso.
À admirável Fátima Albuquerque, secretária desse Mestrado, por
desempenhar suas atividades com tanta dedicação e pelo carinho de todas as horas.
À CAPES pelo incentivo financeiro fundamental para subsidiar despesas
com livros e outros materiais, além do meu deslocamento à campo.
À todos (as) que de maneira direta e indireta contribuíram para a realização
desse trabalho, meus sinceros agradecimentos.
7
LISTA DE ABREVIATURAS
CAPS: Centro de Atenção Psicossocial
COOPCAPS: Cooperativa do Centro de Atenção Psicossocial Ltda.
DINSAM: Divisão Nacional de Saúde Mental
HUWC: Hospital Universitário Walter Cantídio
I CNSM: I Conferência Nacional de Saúde Mental
I CNTSM: I Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental
II CNTSM: II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental
MS: Ministério da Saúde
MTSM: Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental
PMF: Prefeitura Municipal de Fortaleza
SER III: Secretaria Executiva Regional III
UFC: Universidade Federal do Cea
8
RESUMO
O presente trabalho trata de um estudo a respeito da reforma psiquiátrica em Fortaleza. Tem como
objetivo compreender e interpretar o lugar social dos sujeitos que utilizam serviços de saúde mental
na reforma psiquiátrica em Fortaleza partindo de suas narrativas acerca deste processo. Trata-se de
um estudo qualitativo cuja metodologia é descritiva-analítica. A pesquisa teve como campo empírico
um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) desse município. Para obtenção de dados foram
entrevistados alguns usuários vinculados à Cooperativa do Centro de Atenção Psicossocial. As
observações direta e participante, bem como, o diário de campo foram recursos complementares
importantes. Os principais conceitos discutidos foram loucura, institucionalização, reforma
psiquiátrica e desinstitucionalização. As discussões desses conceitos partiram prioritariamente dos
discursos dos interlocutores da pesquisa. Surpreendentemente a maioria destes afirmou desconhecer o
processo de reforma psiquiátrica e aqueles que puderam falar a respeito destacaram apenas o aspecto
do tratamento. O distanciamento dos interlocutores em relação a essa discussão não se por mera
desatenção dos mesmos. Traduz o distanciamento das ações do próprio CAPS em relação aos
princípios da proposta de reforma psiquiátrica, limitando-se a condição de "lugar de tratamento",
revelando assim a fragilidade dessa proposta em nível local. Ademais, evidencia que tal como
historicamente o "louco" esteve à margem das decisões sobre seu destino, silenciado, ocupando um
lugar social periférico demarcado por determinados saberes e práticas, no processo de reforma
psiquiátrica local os usuários continuam tendo seus espaços delimitados por esses mesmos saberes e
práticas séculos hegemônicos que, embora sob novos discursos, os mantém "presos" ao silêncio.
Contudo, além destes conteúdos, algumas narrativas sugeriram uma demanda de
desinstitucionalização e sinais de resistência. Nesse sentido, a oportunidade à palavra como
argumento e ação aos usuários dos serviços de saúde mental é condição fundamental para que se
possa pensar em uma efetiva reforma psiquiátrica no Brasil ou particularmente, em Fortaleza.
ABSTRACT
This work deals with the psychiatric reform in Fortaleza. The objective was to understand and to
interpret the social place of the citizens that use services of mental health in the psychiatric reform in
Fortaleza, from its narratives about this process. This is a qualitative study whose methodology is
descriptive-analytical. The research was developed in one of the Centers of Psicossocial Attention
(CPSA) of this city. For data keeping was interviewed some users of the institution who participate of
the Cooperativa do Centro de Atenção Psicossocial. The direct and participant observations, as well
as, the diary of field, was important complementary resources. The main concepts argued was
madness, institutionalization, psychiatric reform and “deinstitutionalization”. The quarrels on these
concepts came from speeches of the interlocutors of this research. The majority of them unknew the
process of psychiatric reform; and those that had been able to say something about the theme detached
only the aspect of the treatment. The lack of information in relation to the quarrel is not given to mere
carelessness of the interlocutors, but reflects the distance of the actions of the CPSA in relation to the
principles of the proposal of psychiatric reform, limiting itself to the condition of "treatment place",
thus disclosing the fragility of this proposal in local level. This also demonstrate that, as historically
the so called "crazy" was apart of the decisions in relation to his own destiny, silently, occuping a
peripheral place demarcated with knowledge and practical activities, in the process of the local
psychiatric reform the users of the services of attention in mental health continue with its spaces
delimited for these same knowledge and practical activities, hegemonic for centuries, that, now under
new speeches, keeps them “arrested” to silence. However, some narratives suggested a demand of
deinstitutionalization and signals of resistance. In this direction, the opportunity to the users of the
services of attention in mental health to speak is a fundamental condition to a efective psychiatric
reform in Brazil or particularly, in Fortaleza.
9
SUMÁRIO
Lista de abreviaturas ........................................................................................... 7
Introdução............................................................................................................ 11
Capítulo I - Questionando a realidade: a construção do objeto de pesquisa........... 23
1.1 Elementos de um mosaico revelando a “história” do objeto ..................... 24
1.2 Trilha percorrida...................................................................................... 29
1.2.1 Trabalho de campo: “estando lá” ....................................................... 30
Capítulo II - Reforma Psiquiátrica: uma construção histórico-social.................... 39
2.1 Desinstitucionalização: desospitalização ou (des)construção? ..................... 47
Capítulo III - CAPS/SER III: observando e descrevendo o locus da pesquisa.........
55
3.1 Um pouco da história................................................................................. 55
3.2 Aspectos gerais sobre as pessoas atendidas............................................... 56
3.3 A equipe técnica........................................................................................ 58
3.4 Principais atividades.................................................................................. 59
3.5 Quem são os interlocutores da pesquisa?................................................... 61
Capítulo IV - Discursos e práticas que constituem a institucionalização da "loucura"
............................................................................................................................. 75
4.1 A percepção da "loucura" por aqueles que são nominados de "loucos" ... 75
4.2 Razão e não razão: se penso não posso estar louco, se estou louco, não posso
pensar .................................................................................................................. 79
10
4.3 Disciplinamento e controle dos corpos .................................................... 84
4.4 A "loucura" como “doença mental” ......................................................... 91
Capítulo V - Reforma psiquiátrica em Fortaleza: construção de um outro lugar social
para a chamada loucura .................................................................. 95
Considerações finais ............................................................................................ 105
Bibliografia........................................................................................................... 111
Anexos ................................................................................................................ 120
11
INTRODUÇÃO
Ao longo da história da humanidade, a “loucura” tem sido interpretada sob
diversos prismas
1
, conforme as condições objetivas, as perspectivas econômicas,
sociais e culturais próprias de cada época; entretanto o olhar e as ações predominantes
a seu respeito têm sido pautados na segregação.
Historicamente, o hospital psiquiátrico assumiu a conotação de espaço de
“tratamento” aos chamados loucos, os quais, reclusos nessas instituições, eram
submetidos aos mais diversos tipos de violência (repressão, maus-tratos, negligência),
resultando na negação de sua condição de sujeito.
Essa prática de institucionalização - e de diversas formas de violência
veladas pelas paredes” institucionais - mesmo após tantos séculos de história, ainda é
hegemônica em vários países, dentre os quais o Brasil.
O filme Bicho de sete cabeças, da cineasta Laís Bodanzky, inspirado no
livro O canto dos malditos, de autoria de Austregésilo Carrano Bueno, chama atenção
para a realidade desumana identificada cotidianamente em hospitais psiquiátricos,
onde as pessoas, aprisionadas, são subjugadas ou como diria Goffman (2001), passam
por um processo de mortificação e degradação da individualidade e identidade, e eu
acrescento, quando não chegam à morte física.
Publicado pelo Conselho Federal de Psicologia em 2001, o livro A
instituição sinistra: mortes violentas em hospitais psiquiátricos no Brasil traz
denúncias que estão além do que poderíamos conceber como ficção. Evidencia relatos
de alguns crimes ocorridos no interior de hospitais psiquiátricos brasileiros no período
de 1992 a 2001, revelando que histórias de horror e dor no interior dessas instituições
1
Foucault (1999a) menciona que a chamada loucura esteve presente na arte e literatura, esteve relacionada às
supostas “manifestações malignas”, às “fraquezas humanas”, ao “erro”, à “não-razão”. E, a partir do século
XVIII, com o nascimento do asilo e, por conseguinte, o surgimento da psiquiatria, a “loucura” assume a
conotação de doença mental. Para complementar informações a respeito das representações em torno da loucura,
12
(dor que ultrapassa o campo subjetivo, dor que é física), além de reais, não fazem parte
de um passado longínquo ou apenas de séculos passados evidenciados por Foucault
(1999a) em seus estudos sobre saberes e práticas em relação à “loucura”.
Tais crimes, como retrata essa coletânea de casos de morte física em
hospitais psiquiátricos brasileiros (embora os autores reconheçam a morte simbólica
também proporcionada pela instituição total, detêm-se a casos de morte física),
acontecem em nossos dias e, também, em nosso estado. Dentre os sete casos
ressaltados no livro, destaca-se um crime ocorrido na antiga Casa de Repouso
Guararapes, no município de Sobral, região norte do Ceará
2
.
Diante dessas e de outras questões que envolvem a referida “assistência” em
hospitais psiquiátricos e as formas histórico-culturais de lidar com o fenômeno loucura
e o chamado louco, tem-se construído nas últimas décadas, no cenário mundial, um
processo de discussões e de críticas através do que se denominou Movimento de
Reforma Psiquiátrica.
No Brasil, o Movimento alcançou maior visibilidade no chamado período de
redemocratização, no final da década de 70 e ao longo da década de 80, em meio à
consultar Pessotti (1994).
2
Damião Ximenes Lopes morreu em 04 de outubro de 1999, de “causa indeterminada”, na Casa de Repouso
Guararapes, em Sobral. Segundo relatos de sua irmã, Irene Ximenes Lopes Miranda, apresentados no livro, no
dia 1 de outubro de 1999, tarde de sexta-feira, Damião foi internado naquela instituição, levado por sua mãe que
o deixou para que recebesse cuidados médicos. Na segunda-feira seguinte, pela manhã, a mãe retornou para
visitar Damião e o encontrou quase morto. Ele apresentava sinais de espancamento, estava com suas roupas sujas
e rasgadas. Exalava “odor de sangue, fezes e urina”. Suas mãos estavam amarradas para trás e ao se aproximar
da mãe chamava pela polícia. Uma das faxineiras do local citou auxiliares de enfermagem e monitores de pátio
como os autores da violência contra Damião. Após providenciar medidas de higiene e de ver seu filho medicado,
a mãe de Damião retornou para sua residência em Varjota, cidade situada a 70 km de Sobral. Ao chegar foi
informada de um telefonema da Guararapes exigindo sua presença com urgência. Ao retornar àquela instituição,
tomou conhecimento de que Damião havia falecido e lhe foi entregue um laudo informando “parada respiratória”
como causa mortis. A família, ciente de que se tratava de um homicídio, procurou a polícia, solicitando um
exame cadavérico, contudo, o então médico legista era o diretor clínico da Casa de Repouso. Desse modo, nada
aconteceu. A família então solicitou o mesmo exame junto ao Instituto Médico Legal de Fortaleza, mas ainda
segundo os relatos de Irene Ximenes, o exame foi incompleto e o resultado manipulado, constando causa mortis
“indeterminada”. A partir daí, Irene denunciou o caso para todas as autoridades relacionadas a saúde, justiça e
direitos humanos. Várias providências foram tomadas, dentre as quais, auditorias, supervisões e vistorias pelas
Secretarias de Saúde do Estado e de Sobral. Através de sindicância, as denúncias da irmã de Damião foram
confirmadas. Dentre as recomendações referentes ao relatório final da Comissão de Sindicância datado de 18 de
fevereiro de 2000 constava o descredenciamento da Casa de Repouso Guararapes da prestação de serviços ao
Sistema Único de Saúde, no âmbito do Sistema Municipal de Saúde de Sobral. Após os esforços da família da
vítima em busca de apoio de entidades e autoridades competentes, a instituição foi fechada em julho do mesmo
ano.
13
efervescência de rios movimentos sociais, sofrendo, talvez por esse contexto, maior
influência do Movimento de Reforma Psiquiátrica da Itália ou Psiquiatria
Democrática.
3
A reforma psiquiátrica questiona o modelo de atenção em saúde mental
pautado na psiquiatria tradicional, o qual tem o hospital psiquiátrico como centro de
“tratamento”, propondo não novas formas de atenção às pessoas com sofrimento
psíquico,
4
mas também a construção de novas formas de relacionamento com a
experiência da “loucura” e com o chamado louco.
Dentro dessa proposta de novas formas de atenção, destacam-se os Centros
de Atenção Psicossocial (CAPS). Estes serviços surgiram no Brasil em 1987, na
cidade de São Paulo. Esse CAPS, segundo Pitta, (...) constitui-se num espaço
paradigmático de reabilitação psicossocial onde a ética presente está a serviço da
ampliação de direitos e liberdade dos que ali transitam (1994, p. 654).
Ainda a respeito desse CAPS, Goldberg sublinha que [d]esde sua criação é
um serviço de assistência, ensino e pesquisa, inserido na rede pública de atenção à
saúde mental (1996, p.p. 33-34). E Oliveira acrescenta que foi inaugurado (...) com a
proposta de atendimento a pacientes com transtornos mentais, em especial, psicóticos
e neuróticos graves (2002, p. 73).
No Ceará, a emergência ou a maior visibilidade da reforma psiquiátrica se
deu a partir da década de 90, caracterizada por uma maior mobilização dos
trabalhadores de saúde mental a respeito das questões políticas, morais, econômicas e
3
Este modelo teve Franco Basaglia como seu principal mentor e a psiquiatria tradicional como alvo de suas
críticas. Tratarei a esse respeito no capítulo II.
4
A partir do contato com a literatura específica e ao participar como espectadora de alguns eventos (seminários,
palestras etc.) sobre o tema em estudo, percebi que diferentes formas de se referir às pessoas que utilizam
serviços de saúde mental, dentre as mais comuns destaco: doença mental, transtorno mental e sofrimento
psíquico. O conceito doença mental, como citei antes e destacarei mais adiante, surgiu entre o fim do século
XVIII e início do século XIX como um novo significado para a loucura e com ele emergiu a figura do asilo e por
conseguinte, a psiquiatria. A denominação transtorno mental vem do inglês disorder, ou seja, o que não está em
ordem, um transtorno, um desvio. Franco Basaglia utiliza a expressão doença mental entre aspas despertando
suspeitas quanto a possibilidade desse conceito proveniente da psiquiatria explicar completamente a experiência
tão complexa por ele representada. Daí a preferência do autor em utilizar a expressão existência-sofrimento,
questionando assim o paradigma racionalista causa-efeito. Nesse sentido, optei por utilizar o termo sofrimento
psíquico como possibilidade mais aproximada da expressão basagliana.
14
culturais que ofereciam (e ainda oferecem) sustentabilidade ao modelo tradicional
(segregador) vigente.
Dentro da perspectiva preconizada pela reforma psiquiátrica em 1991 surgiu
o primeiro CAPS do Estado, no município de Iguatu, localizado na região Centro-Sul.
Nesse período logo passaram a surgir seminários e outros eventos
5
no cenário local,
que tinham como objetivo a discussão das experiências em construção, inclusive, em
outros estados.
A partir dessa iniciativa em Iguatu, outros CAPS foram implantados no
Ceará, dentre os quais: os de Canindé (1993), Quixadá (1993), Icó (1995), Cascavel
(1995), Aracati (1997), entre outros. Na capital, mais especificamente, o primeiro
CAPS surgiu apenas em 1998, vinculado à Universidade Federal do Ceará.
Todo esse processo pela reforma psiquiátrica no Ceará culminou no
estabelecimento da lei 12. 151/1993, que dispõe sobre a extinção progressiva dos
hospitais psiquiátricos e sua substituição por outros recursos de assistência, além de
regulamentar a internação compulsória.
6
Embora o primeiro CAPS tenha sido instalado no Brasil na década de 80,
apenas em 1992, o Ministério da Saúde reconheceu a existência desses serviços,
regulamentando o funcionamento dos mesmos, inicialmente através da Portaria nº
224/1992.
Através dessa Portaria, dentre outros aspectos, o Ministério da Saúde (MS)
definia os CAPS como (...) unidades de saúde locais/regionalizadas, que contam com
uma população adscrita definida pelo nível local e que oferecem atendimento de
cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um
5
Destaca-se a realização da I Conferência Estadual de Saúde Mental no ano de 1992 em Fortaleza.
6
Consta no artigo 2º dessa lei a seguinte definição de internação psiquiátrica compulsória: aquela realizada sem
o expresso consentimento do paciente, em qualquer tipo de serviço de saúde, sendo responsabilidade do dico
autor da internação, sua caracterização enquanto tal.
15
ou dois turnos de 4 horas, por equipe multiprofissional.
É oportuno destacar que os CAPS são atualmente regulamentados pela
Portaria nº 336/2002, do Ministério da Saúde, a mesma estabelece em seu artigo 1º que
os mesmos poderão constituir-se em três modalidades de serviços, quais sejam, CAPS
I, CAPS II e CAPS III, (...) definidos por ordem crescente de porte/complexidade e
abrangência populacional.
7
Também são considerados nessa Portaria os modelos
CAPS i (para atendimento infantil) e CAPS AD (para atendimento de casos de
alcoolismo e drogadicção).
De acordo com essa Portaria, os CAPS devem constituir-se em serviço
ambulatorial de atenção diária, incluindo as seguintes atividades de assistência aos
usuários: atendimento individual (medicamentoso, psicoterápico, de orientação, entre
outros); atendimento em grupos (psicoterapia, grupo operativo, atividades de suporte
social, entre outras); atendimento em oficinas terapêuticas; visitas domiciliares;
atendimento à família e atividades comunitárias que favoreçam a integração do
usuário na comunidade, bem como, sua inserção familiar e social.
8
Em publicação recente o Ministério da Saúde define um CAPS como
... serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema Único de saúde (SUS).
Ele é um lugar de referência e tratamento para pessoas que sofrem com
transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja
severidade e/ou persistência justifiquem sua permanência num dispositivo
de cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida.
9
Desse modo, a reforma psiquiátrica não sugere a extinção da atenção aos
usuários de serviços de saúde mental e sim, uma efetiva atenção consentânea às suas
necessidades e, principalmente, a construção de novas possibilidades de entender e
7
Para atendimento nessas modalidades de CAPS são previstos nessa Portaria os respectivos números
populacionais: municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes; 70.000 e 200.000 habitantes; acima
de 200.000 habitantes.
8
Essas atividades são comuns às três modalidades de CAPS, apenas uma atividade é exclusiva do CAPS tipo III,
qual seja, o acolhimento noturno nos feriados e finais de semana para eventual acompanhamento.
9
Brasil. Saúde Mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à
Saúde; Departamento de Ações Programáticas estratégicas. Brasília, DF, 2004. Grifos meus.
16
relacionar-se com esses sujeitos. Pretende, assim, o investimento na construção da
autonomia deles próprios, visando a possibilidade de que estes construam novas
sociabilidades.
Segundo Birman (1992), a reforma psiquiátrica está além da discussão sobre
a assistência psiquiátrica, objetivando a construção de um outro lugar social para a
chamada loucura. A respeito desse lugar, Amarante o especifica como [u]m lugar
social que não seja o da doença, anormalidade, periculosidade, irresponsabilidade,
insensatez, incompetência, incapacidade, defeito, erro, enfim, ausência de obra (1999,
p. 49).
Partindo dessa ótica, a construção de uma efetiva Política blica de Saúde
Mental envolve, portanto, não somente o compromisso do setor público e a construção
de uma rede de novos serviços de caráter não segregador, tais como CAPS, centros de
convivência, leitos psiquiátricos em hospitais gerais etc., mas também a dissolução de
mitos e preconceitos histórica e culturalmente construídos, ainda muito arraigados e
evidentes na sociedade.
Assim, esse processo extrapola os muros institucionais e requer o
envolvimento não dos trabalhadores da área, mas também das pessoas que utilizam
serviços de saúde mental, dos seus familiares e de demais segmentos sociais.
Esse discurso de interação com a sociedade (não isolamento) e de ênfase na
participação social advindo da reforma psiquiátrica subsidia as propostas até então
existentes de serviços substitutivos ao modelo tradicional de confinamento. Inclusive,
a referida Portaria 336/2002, em seu artigo 3º, estabelece que os CAPS (...)
poderão funcionar em área física específica e independente de qualquer estrutura
hospitalar.
É possível identificar esse discurso também na lei 10.216/2001,
10
que
10
Consta no artigo dessa lei: É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a
17
dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de sofrimento psíquico e
redireciona o modelo de assistência em saúde mental.
Sampaio & Barroso, ao destacarem os objetivos do CAPS, também
assinalam essa perspectiva de envolvimento com a sociedade. Dentre os objetivos
assinalados pelos autores, podem-se destacar: [p]revenir hospitalismo, desamparo e
outras formas de alheamento, garantindo permanência dos vínculos sociais;
[p]revenir rotulação, estigma e cronificação; [e]stimular redimensionamento crítico
das relações com família, trabalho, vizinhança, sexualidade e política (2002, p. 4).
Essa dimensão da inserção, mais especificamente dos usuários, no processo
de reforma psiquiátrica, despertou algumas inquietações, quando da pesquisa que
realizei para subsidiar o trabalho monográfico ainda na graduação em Serviço Social.
11
A busca em compreender o objeto estudado à época suscitou novas indagações que
não puderam ser respondidas naquele momento e que se mostraram relevantes para
novos estudos.
Despertou atenção o fato de alguns dos usuários entrevistados afirmarem
desconhecer o processo de reforma psiquiátrica, o que foi emblemático levando-se em
consideração que o CAPS trata-se de um dos chamados novos serviços substitutivos às
assistência e a promoção de ões de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação
da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as
instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais. Vale
ressaltar que recentemente o Ministério Público (MP) promoveu em Fortaleza o I Seminário sobre Internação
Psiquiátrica e Cidadania do Ceará, cuja preocupação central foi a implementação do conteúdo dessa lei. Esse
evento apresentou duas dimensões relevantes. Por um lado, sugeriu uma preocupação do Ministério Público em
fortalecer o processo de Reforma Psiquiátrica do Ceará, o que é louvável, indiscutivelmente. Mas, por outro,
evidenciou o quanto ainda é necessário avançar, uma vez que discutia-se na ocasião a efetivação do conteúdo de
uma lei já aprovada há dois anos, sem considerar os anos de tramitações para que esta viesse a existir.
11
Esse trabalho monográfico, intitulado Entre o velho’ e o ‘novo’: um estudo sobre a ação profissional do(a)
assistente social na saúde mental, teve como objetivo compreender se o movimento de Reforma Psiquiátrica
configurava-se como redefinição da ação profissional do(a) assistente social. A pesquisa foi realizada durante o
segundo semestre do ano de 2002 e teve como campo empírico o Centro de Atenção Psicossocial vinculado à
Secretaria Executiva Regional III da Prefeitura de Fortaleza. Para levantamento de dados realizei entrevistas com
as assistentes sociais, alguns profissionais de outras categorias e usuários da instituição. A observação direta e o
diário de campo foram recursos complementares extremamente importantes. O estudo revelou que a ação
profissional das assistentes sociais da instituição oscila entre o “velho” e o “novo” paradigmas de atenção em
saúde mental, isto é, ora apresentam uma prática pautada no modelo tradicional, centralizado na perspectiva da
doença e negando a condição de cidadão do usuário, ora atuam em consonância com a proposta inovadora da
Reforma Psiquiátrica, entendendo o portador de sofrimento psíquico como sujeito.
18
instituições asilares referendados pela reforma psiquiátrica, que preconiza o
envolvimento de usuários, seus familiares e a sociedade como um todo, além dos
trabalhadores da área, na construção de novas relações com a chamada loucura.
Assim, essa desinformação dos usuários pareceu contraditória. Como se
inserir ativamente na reforma psiquiátrica sem minimamente tomar conhecimento
desse processo? Como pensar em efetiva participação social, interação com a
sociedade, segundo consta na legislação específica, se nem mesmo as próprias pessoas
que utilizam os serviços de saúde mental estiverem fazendo parte dessa construção que
se pretende coletiva?
Essas inquietações iniciais levaram ao aprofundamento dos questionamentos
culminando na necessidade de melhor compreender e interpretar
o lugar social dos
sujeitos que utilizam serviços de saúde mental na reforma psiquiátrica em Fortaleza a partir
de suas narrativas acerca deste processo.
Para tanto cabe indagar: Quem são esses
sujeitos? O que pensam sobre a chamada loucura? Qual a compreensão e a avaliação
desses a respeito da reforma psiquiátrica? Quais as possíveis estratégias (institucionais
ou não) utilizadas por eles para se inserirem no processo de reforma psiquiátrica local
(ex: associações, fóruns, Conselhos, entre outros)? Esses sujeitos se reconhecem como
atores sociais importantes nesse processo, tal como sugerem a literatura e a legislação
específicas?
Foi sobre essas questões a que voltei o meu olhar, tomando um ponto, uma
experiência disponível no universo que constitui o campo da atenção em saúde mental
na cidade de Fortaleza e os serviços de atendimento existentes:
12
o Centro de Atenção
Psicossocial vinculado à Secretaria Executiva Regional III (CAPS/SER III), campo
empírico desta pesquisa.
Vale salientar que a delimitação desse campo empírico não foi algo
imediato. Depois de delimitar o objeto de pesquisa, passei a me questionar sobre o
12
Dentre os serviços existentes em Fortaleza destacam-se, além dos CAPS, um arsenal de sete hospitais
19
possível locus para o estudo. Inicialmente pensei em tomar os três CAPS até então
existentes em Fortaleza como universo empírico para poder me referir à questão de
forma mais ampla, inclusive podendo comparar aspectos específicos dessas
experiências. Por outro lado, eu me questionava se o campo ideal não seria o Conselho
Municipal de Saúde, uma vez que este, em tese, se propõe a ser um espaço aberto à
participação de usuários dos serviços de saúde. Retomei insistentemente o projeto de
pesquisa buscando, no próprio objeto, indicações. Além disso, foram preciosas as
contribuições de pessoas da área ao discutirem comigo a respeito, levando-me,
portanto, a novas reflexões.
13
Tive acesso a textos
14
que tratavam sobre participação em saúde nos quais
os Conselhos de Saúde recebiam destaque. Procurei saber se havia representação de
usuários especificamente de serviços de saúde mental no Conselho Municipal de
Saúde e constatei que não
15
. representação de familiares, mas a minha proposta era
evidenciar os discursos de quem utiliza esses serviços e não de seus familiares, embora
reconheça a importância da presença destes naquele espaço. Percebi que não seria
“via” Conselhos, instâncias cujas existências são oficialmente determinadas e
normatizadas,
16
que eu poderia revelar as “vozes” que buscava; não era, então, aquele
o caminho.
Observando essas questões, retomei a idéia inicial de pesquisar nos três
psiquiátricos.
13
Destaco aqui em particular as preciosas colaborações das amigas Ana Lúcia Tavares (assistente social) e Lídia
Dias Costa (médica psiquiatra) às quais dirijo sinceros agradecimentos.
14
Côrtes (2001); Freire (2002); Tatagiba (2002).
15
Pelo menos, não oficialmente, isto é, se usuário(a), este(a) não se declara como representante desta
categoria. Caso isto se dê realmente, a mim é compreensível, uma vez que posso imaginar o que significa para
alguém se apresentar como usuário de serviços de saúde mental frente a uma sociedade cujos parâmetros de
“normalidade” estão rigorosamente definidos e que estigmatiza, recrimina e pune aqueles que considera
possíveis representantes da “anormalidade”, os “desviantes”.
16
Consta no capítulo IV, artigo 15, inciso I, da Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90) como atribuição comum
dos diferentes níveis de governo a definição das instâncias e mecanismos de controle, avaliação e fiscalização
das ões e serviços de saúde. Através do Decreto 99.438/90 o Governo Federal criou o Conselho Nacional
de Saúde, normatizando sua organização e atribuições. A constituição e estruturação de Conselhos Estaduais e
Municipais de Saúde foram recomendações aprovadas na Resolução 33/92. Esses Conselhos de Saúde
configuram-se como instâncias permanentes, consultivas e deliberativas, compostas por usuários, profissionais
de saúde, governo e entidades ou prestadoras de serviços (públicos, filantrópicos e privados). Vale salientar que
a Lei nº 8.142/90 prevê a representação paritária dos usuários em relação ao conjunto dos demais segmentos.
20
CAPS, afinal, se o objeto de pesquisa diz respeito ao processo de reforma psiquiátrica
e esse tipo de serviço vem sendo apontado pela literatura específica e em eventos da
área como referência nesse processo, a opção pelos CAPS parecia-me ser a mais
acertada. Mas, logo veio a reflexão: não seria ousadia demais tomar os três serviços,
uma vez que a intenção era realizar uma pesquisa de cunho qualitativo, cujo caminho
metodológico buscava evidenciar narrativas? Seria possível em tão pouco tempo?
Em meio a tantas inquietações, foram três os elementos básicos que
motivaram a opção pelo CAPS/SER III. Primeiro, por se tratar do mais antigo
instalado na cidade, acreditei que poderia configurar uma “experiência mais sólida”,
possibilitando, inclusive, o acesso a registros sobre sua história e dados mais
específicos das ações cotidianas, bem como estar desenvolvendo ações coletivas
importantes junto à comunidade geograficamente circunvizinha.
Segundo, o ponto de partida para a construção do objeto dessa pesquisa me
foi apresentado nesse CAPS, quando da realização da pesquisa referente ao ensaio
monográfico. E, terceiro, por uma questão estratégica: o fato de ter realizado uma
pesquisa anterior poderia facilitar não o acesso às informações através de alguns
profissionais ali envolvidos, mas também o meu “trânsito” no local, essencial para ao
estudo a que me propunha.
Assim, retomo a afirmação de que para esse estudo tomei apenas um ponto
dentro do que se constitui como campo de atenção em saúde mental no município de
Fortaleza e por isso mesmo, o texto resultante desse trabalho não é passível de
generalizações.
Trata-se da tentativa de evidenciar “vozes” múltiplas reveladoras dos
sujeitos que as impulsionaram e do que pensam sobre a condição social que assumem
ou são levados a assumir. “Vozes” registradas num espaço específico, mas não
homogêneo, num momento específico, porém passível de diversas representações e
ainda mediadas e interpretadas a partir de um certo olhar, de uma certa escuta e de
21
uma certa escrita.
O trabalho ora apresentado se subdivide em cinco capítulos cujo eixo
principal conduz à compreensão do lugar social dos sujeitos que utilizam o CAPS/SER
III na reforma psiquiátrica em Fortaleza partindo de suas narrativas a respeito desse
processo.
No capítulo I - Questionando a realidade: a construção do objeto de
pesquisa - revelo os caminhos que resultaram na construção do objeto de pesquisa e o
percurso metodológico adotado, considerando algumas impressões, sentimentos,
descobertas e decisões a partir do trabalho de campo.
No capítulo II Reforma Psiquiátrica: uma construção histórico-social -
contextualizo o processo de reforma psiquiátrica no Brasil a partir do final da década
de 70, período em que alcançou maior visibilidade, ressaltando também elementos
pertinentes à experiência no Ceará e em Fortaleza. Ao identificar o preceito de
desinstitucionalização como ponto relevante no debate sobre reforma psiquiátrica,
estabeleço também uma discussão específica a esse respeito sob a perspectiva de
(des)construção e não de desospitalização.
No capítulo III CAPS/SER III: observando e descrevendo o locus da
pesquisa - apresento uma descrição do campo onde a pesquisa foi realizada. Destaco a
história da instituição, os aspectos gerais das pessoas que ali são atendidas, a equipe
técnica, as principais atividades desenvolvidas e apresento quem o os interlocutores
da pesquisa por intermédio de alguns elementos que compõem suas trajetórias de vida.
No capítulo IV Discursos e as práticas que constituem a
institucionalização da loucura - discuto acerca do fenômeno “loucura” e do seu
processo de institucionalização tomando as compreensões dos interlocutores e suas
experiências de internação em instituições psiquiátricas como ponto de partida. Como
aporte teórico para essa discussão recorro a Foucault em História da loucura na idade
22
clássica (1999a).
No capítulo V - Reforma Psiquiátrica em Fortaleza: construção de um
outro lugar social para a chamada loucura? - apresento uma análise sobre a inserção
dos usuários de serviços de saúde mental na reforma psiquiátrica em Fortaleza com
base na compreensão dos sujeitos interlocutores sobre esse processo, estabelecendo
relação com a idéia de Birman (1992) sobre a construção de um outro lugar social
para a “loucura” (e, acrescento, para a pessoa com sofrimento psíquico).
23
CAPÍTULO I
Questionando a realidade: a construção do objeto de pesquisa
Preciso não dormir até se consumar o tempo da gente
Preciso conduzir o tempo de te amar
Te amando devagar e urgentemente
Pretendo descobrir no último momento
O tempo que refaz o que desfez
E recolhe todo o sentimento
E guarda no corpo uma outra vez
Prometo te querer até o amor cair doente, doente
Prefiro então partir a tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente
Depois de te perder te encontro, com certeza
Talvez num tempo da delicadeza
Onde não diremos nada, nada aconteceu
Apenas seguirei como encantado ao lado teu.
17
Lembrando uma alusão feita pelo professor Geovani Freitas,
18
essa
composição de Bastos & Buarque nos remete a estabelecer relações com a experiência
de pesquisar, de produzir conhecimento, uma vez que esta, diferente do que alguns
teimam em defender, não se apenas a partir do uso de teorias e métodos, mas
também do despertar e do envolvimento do pesquisador e de seus sentimentos.
A música pode ajudar a compreender, inclusive, que investigar não é tarefa
simples, fácil, exigindo do pesquisador uma certa disciplina (de conduzir o tempo, às
vezes de maneira mais apressada e, outras vezes, mais lentamente) e, ao mesmo
tempo, uma certa delicadeza.
Em pesquisa, momentos de mergulhar” no fenômeno que se pretende
17
Composição de Chico Buarque e Cristóvão Bastos intitulada Todo sentimento.
18
Sociólogo, doutor em Sociologia, professor adjunto da Universidade Estadual do Ceará. Na ocasião em que
ministrava um curso sobre metodologia de pesquisa, fez alusão à música Todo sentimento ao se referir ao
processo de pesquisar.
24
compreender, de se aproximar sem receios, objetivando apreender o máximo a seu
respeito, mas também de recuar, distanciar-se do objeto de estudo, desvencilhar-se
para conhecê-lo melhor.
Pesquisar, portanto, constitui-se uma experiência complexa e contínua,
envolve tentativas de conhecer a realidade, ou seja, aproximações sucessivas ao real
que apresenta um processo de metamorfose constante, permeado por uma riqueza de
teias de relações, sentidos, significados e linguagens até mesmo indizíveis. Daí porque
só é possível ao pesquisador conhecer fragmentos desse real imensurável na sua
totalidade.
É oportuno salientar que essa experiência não emerge por mera influência
do acaso, mas está intrinsecamente relacionada a uma dimensão filosófica, a uma
perspectiva de questionamento da realidade, muitas vezes possibilitada pela própria
história de vida do pesquisador.
Desse modo, cabe revelar, ainda que de maneira sintética, os caminhos que
me conduziram à proposta de pesquisa realizada no Mestrado. Enfim, é oportuno
destacar aqui a trajetória que resultou no meu objeto de pesquisa.
1.1 Elementos de um mosaico revelando a “história” do objeto
O meu interesse, como pesquisadora, pelo campo da saúde mental
provavelmente não aconteceu por acaso, e acredito que está também relacionado a
uma experiência pessoal bem anterior à experiência acadêmica, ainda na infância.
Na zona rural próxima a um município do interior do Ceará, viviam em
companhia dos pais e irmãos dois primos de minha mãe, conhecidos como Chaguinha
e Isaura,
19
ambos com sofrimento psíquico.
19
Atualmente Isaura reside com suas irmãs na cidade mais próxima do sítio onde vivia. Seus pais e seu irmão
Chaguinha faleceram. Isaura realiza tratamento (ambulatorial) em sua cidade e não vive mais como uma
prisioneira. Tem dificuldades de circular pelas ruas, diz que prefere ficar em casa. Na última vez que a vi, fez
25
Em determinadas ocasiões foi possível acompanhar minha mãe a algumas
de suas visitas a esses familiares e me intrigava o fato de Chaguinha e Isaura viverem
cada um em um “quartinho nos fundos do quintal”, separados do convívio com os
demais por um portão de ferro. Neste portão, lembro-me bem da existência de um
espaço por onde lhes era entregue a alimentação por sua mãe ou irmãs. Estas eram as
responsáveis pelos cuidados com alimentação, higiene e medicação de ambos.
Quando indagava porque viviam ali presos, a resposta era rápida e seguida
de advertência: porque eles são doentes da cabeça, às vezes batem nas pessoas; e, não
encoste suas mãozinhas na grade porque eles podem puxar!
Hoje, após mais de quinze anos, posso compreender muito do que eram
apenas perguntas de uma criança curiosa. Os primos, assim como tantas outras pessoas
com sofrimento psíquico, foram vítimas da ausência de uma atenção efetiva em saúde
mental somada a uma certa desinformação de familiares. Justificavam preferir mantê-
los em cárcere, seguros de que estariam sendo alimentados e limpos, a permitir que
fossem mais duas pessoas a engrossar o número de internados no hospital psiquiátrico
mais próximo daquela localidade, do qual se ouvia falar horrores, envolvendo maus-
tratos e negligência.
Após cerca de onze anos, mais precisamente em 1999, retomei minha
aproximação com a área de saúde mental, mas agora sob uma nova conotação e
diferentes circunstâncias. Em uma disciplina do curso de Serviço Social, foi-me
solicitada a realização de um trabalho a respeito da atuação do assistente social em
uma área específica de meu interesse, devendo este estudo ser complementado por
uma entrevista a este profissional em seu local de trabalho.
questão de dizer que consegue banhar-se sozinha e de mostrar que tem vaidade, exibindo com satisfação sua
habilidade em colorir seus lábios com batom. As irmãs falam, com orgulho, das conquistas de Isaura no que se
refere a sua autonomia em cuidar de si.
26
A opção pela saúde mental foi motivada pela leitura breve da obra de
Foucault, intitulada História da loucura na idade clássica (1999a), na qual, entre
outras questões, o autor aborda a respeito do processo de institucionalização da
chamada loucura, do isolamento do chamado louco do convívio em sociedade,
despertando em mim lembranças da experiência de infância acima referida. A partir de
então, iniciou-se minha trajetória de estudo nesse âmbito específico.
Essa visita a um hospital psiquiátrico proporcionou-me algumas
observações e questionamentos que extrapolavam o seu objetivo central. Inicialmente,
chamou-me atenção a dificuldade de conseguir marcar um horário junto à instituição
para que eu fosse recebida. Foram necessários contatos insistentes, o que poderia
indicar possivelmente um “fechamento” da instituição para pesquisas acadêmicas.
Outra situação intrigante ocorreu logo após a entrevista com a assistente
social, quando manifestei o desejo de conhecer as dependências do hospital. Foi
autorizada a entrada apenas no pátio utilizado para os horários de visita aos internados.
Fui informada da existência de um espaço específico aos “doentes mais violentos” e,
também, que não seria adequado “circular” pelos espaços internos da instituição.
Nesse momento surgiram vários questionamentos: por que aquele hospital,
que deveria ser um espaço de “tratamento”, onde a saúde deve ser a questão
primordial, mais parecia uma “penitenciária de segurança máxima” a qual não se podia
conhecer? Se havia um local destinado aos “doentes mais violentos” significava,
portanto, que todos os doentes eram violentos? E mais, os outros hospitais
psiquiátricos seriam da mesma forma? Infelizmente, essas e outras questões não
poderiam ser esclarecidas naquele momento.
Em agosto de 1999, a partir de minha busca por estágio na área de Serviço
Social, surgiu a oportunidade de uma experiência num hospital psiquiátrico.
Imediatamente aqueles questionamentos voltaram a me inquietar, o que foi suficiente
para aceitá-la de pronto, mesmo se tratando de uma experiência de estágio
27
extracurricular.
20
A vivência no campo de estágio passou a exigir leituras específicas com as
quais não tinha estabelecido contato no espaço acadêmico, sobretudo a respeito de
patologias e de seus sintomas.
Ao transitar pelos espaços de internamento, sentia-me perplexa com a
realidade vivenciada pelas pessoas ali internas. Era comum a prática de mendicância
por cigarros ou por algum dinheiro para comprar alimento na cantina do pátio. Seus
poucos objetos pessoais (principalmente chinelos) assumiam ali muitas vezes um valor
de moeda (valor de troca) entre o grupo.
Muitas daquelas pessoas estavam instaladas naquelas dependências anos,
o que caracterizava o espaço institucional para alguns como moradia”. Nos horários
de alimentação, chamava-me atenção aquele “emaranhado” de pessoas no refeitório.
Também era notória a carência afetiva de muitos que solicitavam minha atenção e a de
quem passasse pelo pátio a procura de um momento de diálogo, de escuta mesmo.
Muitos desses raramente eram visitados por familiares e/ou amigos; outros estavam
ali, talvez esquecidos...
Chamava-me ainda atenção a ação do Serviço Social, em que a assistente
social em seus atendimentos individuais aos usuários limitava-se a indagações tais
como: “dormiu bem?”, “está se alimentando bem?”, “está tomando a medicação
direito?”
21
Além de por vezes assumir um discurso e uma postura de cunho
assistencialista e/ou de piedade.
20
A situação de estágio extracurricular é polêmica uma vez que a (o) estudante não dispõe da orientação paralela
de um professor da graduação, muitas vezes constituindo-se como “mão-de-obra barata” para os organismos
contratantes, sem que estes tenham, portanto, a mínima preocupação com o aprendizado, o que descaracteriza a
finalidade de tal experiência. Em geral, o interesse dos alunos por estágio extracurricular está relacionado a dois
aspectos centrais, quais sejam, a ânsia em aproximar-se da prática profissional e/ou a necessidade de obter
remuneração.
21
Registro em diário de campo em agosto / 1999.
28
Aproximadamente um ano após o início dessa experiência, iniciou-se um
processo de mudanças no hospital, as quais não deveriam se restringir somente a sua
estrutura física, mas também atingir a assistência dirigida aos usuários e o “pensar”
dos profissionais ali envolvidos. Falava-se na necessidade de aproximação aos
preceitos da reforma psiquiátrica. Esta, inicialmente, me parecia ser apenas uma nova
proposta de atenção em saúde mental, não conseguindo perceber ainda sua dimensão
mais ampla de ruptura com o instituído histórica e culturalmente em relação à
“loucura” e ao chamado louco.
Desde então, passei a dedicar meus estudos à área de saúde mental, mais
precisamente à reforma psiquiátrica e a isso foram se somando inquietações
particulares com relação ao exercício profissional em geral e especificamente nesta
área. Tais inquietações advinham da minha tentativa constante de articular o conteúdo
acadêmico vivenciado na Universidade e a experiência no campo de estágio.
Nesse percurso, ao mesmo tempo em que fui procurando articular alguns
elementos, pude perceber algumas discrepâncias, levando-me a construir e
desconstruir saberes, suscitando outras indagações, tais como: aquela prática do
Serviço Social, representada na instituição por aquela assistente social, era histórica?
Por que a assistente social se restringia, nos atendimentos individuais, a indagações e
constatações daquela natureza? Essa postura seria modificada diante das discussões
sobre a reforma psiquiátrica em efervescência na instituição?
Essas e outras questões me levaram a problematizar o exercício da profissão
na esfera da saúde mental diante do contexto da reforma psiquiátrica de forma mais
ampla, não mais me limitando ao espaço daquela instituição.
Todo esse percurso, portanto, propiciou a opção em estudar a respeito da
ação profissional do assistente social diante do processo de reforma psiquiátrica como
objeto de pesquisa do trabalho monográfico.
29
Como mencionei, a pesquisa de campo suscitou questionamentos para além
do que se propunha meu trabalho naquele momento, os quais não puderam ser
explorados, uma vez que o cerne de minhas discussões era a ação profissional do
assistente social. Entretanto, com a oportunidade do Mestrado, o aprofundamento
desse estudo se mostrou possível.
Essa trajetória, articulada a leituras direcionadas e a participação em eventos
sobre a temática, propiciou a minha opção em problematizar e investigar a respeito d
o
lugar social dos sujeitos que utilizam serviços de saúde mental na reforma psiquiátrica em
Fortaleza a partir de suas narrativas acerca deste processo
como objeto de pesquisa no
curso de Mestrado.
1.2 Trilha percorrida
Na tentativa de desvendamento do real, é de fundamental importância o
percurso metodológico escolhido pelo pesquisador, que deve corresponder às
especificidades do seu objeto de pesquisa na busca de melhor compreendê-lo.
A partir dos questionamentos acima referidos e da especificidade do objeto
investigado, ir a campo além de realizar o estudo bibliográfico se revelou fundamental,
afinal, como me aproximaria daqueles sujeitos senão indo até eles?
30
1.2.1 Trabalho de campo: “estando lá”
22
...
Imagine o que sente um(a) pesquisador(a) pouco experiente ao se ver na
necessidade de ir a campo, ao se aproximar de uma realidade que não lhe é cotidiana.
uma certa ansiedade, pois a curiosidade e o mistério do novo são instigantes. Mas,
o que seduz, às vezes, desperta também um sentimento de angústia e insegurança,
atrelado a autoquestionamentos, tais como: Como será que as pessoas vão me receber?
Será que vou encontrar formas de me aproximar delas? Será que estarão dispostas a
contribuir com a pesquisa? Qual a melhor maneira de observar a dinâmica local? Terei
a capacidade de desenvolver as faculdades de olhar, ouvir e escrever de que trata o
antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira?
23
Teriam os pesquisadores experientes
questões como essas? Será que vou conseguir?
Foi acompanhada de alguns sentimentos e questões dessa natureza que, não
pela primeira vez, cheguei ao CAPS/SER III de Fortaleza. Ali estava eu numa manhã
de setembro de 2004, retornando ao locus de pesquisa do meu trabalho monográfico.
Mas, o fato de ter estado no local antes não tirava de mim o “frio na barriga” diante do
novo. Sim, novo, afinal, a realidade não é estática. Os objetos até poderiam estar nos
mesmos lugares, mas as pessoas e ações que preenchem o ambiente não. Na ocasião,
trazia o relatório final da pesquisa anterior, no sentido de dar um “retorno” aos que
colaboraram comigo.
Tal como das outras vezes o portão de entrada estava aberto, diferente do
que se observa nos hospitais psiquiátricos, trancados a sete chaves. Aliás, a estrutura
22
O antropólogo Clifford Geertz, em seu livro Trabalho e vidas: o antropólogo como autor, distingue no ato de
escrever os momentos do estando referindo-se a situação do pesquisador estar no campo e, do estando
aqui, relativo ao trabalho do pesquisador fora do campo, isto é, em seu gabinete, entre seus pares, utilizando-se
de todos os recursos que podem ser oferecidos por instituições universitárias e de pesquisa (Cf. Oliveira, 1998, p.
25).
23
Oliveira (1998) sugere que a primeira experiência do pesquisador de campo talvez seja a domesticação teórica
de seu olhar, isto é, o olhar mediado pela teoria, afinal, nenhum objeto escapa de ser apreendido pelo esquema
conceitual formador da sua maneira de ver a realidade. Entretanto, acrescenta o antropólogo, o olhar não é
suficiente para perceber a natureza dos fenômenos, sendo necessário conjugá-lo a outra faculdade do
entendimento, o ouvir. Além desses “atos cognitivos mais preliminares”, o autor destaca o ato de escrever que se
realiza, por excelência, no gabinete, apresentando singularidades em relação ao que é registrado no diário de
campo, uma vez que aí se inicia o processo de textualização do que foi visto e ouvido no campo, a tradução do
que foi observado para o plano do discurso (Cf. Oliveira, 1998, p. 18-25).
31
física do CAPS/SER III difere totalmente das referentes a instituições totais, pois tem
uma casa como sede e os hospitais psiquiátricos geralmente têm estruturas similares às
de penitenciárias: muros altos, grades e portões de ferro separando os espaços,
“olheiros” (no hospital psiquiátrico, geralmente, os auxiliares de enfermagem
assumem esse papel), entre outros.
Ao adentrar, deparei-me com poucas pessoas sentadas no primeiro cômodo
da casa aguardando atendimento. Trata-se de uma área onde cadeiras estão dispostas
em forma de semicírculo, uma sala de espera. Algumas pareciam se conhecer,
gesticulando ao passo em que conversavam sobre o cotidiano de suas vidas. Outras
apenas se olhavam...
Inicialmente fiz parte desse último grupo. Com o adiantar da hora, mais
pessoas foram chegando e sentando junto a nós. Enquanto isso, os profissionais
também iam chegando e se organizavam para mais um dia de trabalho.
A recepcionista então começou a chamar “o próximo” e as pessoas iam se
dirigindo ao balcão da sala à frente (recepção) para receber uma senha referente à
ordem de atendimento médico e assinar o que chamam de “freqüência”. Em seguida
retornavam à sala de espera para aguardar a chegada do médico. Outros aguardavam o
início de suas atividades em grupo. Começava mais um dia no CAPS/SER III.
Diferente de tempos atrás, observei que um pequeno portão de madeira
(uma espécie de “cancela”) havia sido acoplado à porta que acesso ao interior da
casa. A porta larga permanecia aberta, mas um funcionário estava lá, abrindo e
fechando a “cancela” para as pessoas que por ali passavam, exercendo assim uma
espécie de “controle” de quem entrava e de quem saía, contribuindo com a
recepcionista que chamava, por “ordem de chegada”, as pessoas que aguardavam
consulta médica para realizar os procedimentos usuais acima referidos. O diário de
campo da pesquisa revela registro de inquietação a esse respeito:
... fui surpreendida com uma ‘cancela’ na porta que liga a sala de espera
ao interior da casa. Antes observava um trânsito livre e agora essa cancela
32
separa os ambientes... por que esse controle? Havia antes e não se percebia
por não ser explícito como agora, materializada na forma de cancela ou é
uma estratégia disciplinar recente? ... ao permanecer na sala de espera
percebi que não fui a única a me inquietar com a situação. Uma mulher
chegou a mencionar em voz alta olhando para nós: “pra que isso
(posicionando a mão à cancela) na porta agora? É pra ninguém entrar?
Deus me livre, o pessoal pensa que a gente não tem educação. Ninguém vai
ficar entrando e saindo daí sem precisão ...”. Mais tarde, conversando
informalmente com o funcionário encarregado de abrir e fechar a cancela,
o mesmo me disse: não faz muito tempo que colocaram (referindo-se a
cancela) ... é pra organizar mais, tem hora que é gente demais e fica
atrapalhando o trabalho do pessoal aqui dentro ...”
24
Após um certo tempo na sala de espera, resolvi “quebrar o silêncio” e
procurei a recepcionista. Falei que gostaria de entregar o relatório da pesquisa anterior.
Na ocasião, outra funcionária me reconheceu e se mostrou receptiva. A recepcionista
também se mostrou simpática e pediu que eu aguardasse um pouco para falar com a
coordenadora sobre o relatório.
Retornei à sala de espera e permaneci por boa parte da manhã. Em meio a
olhares silenciosos das pessoas para mim e vice-versa, surgiam perguntas tais como:
Quem são essas pessoas? Que histórias as trouxeram para cá? O que buscam aqui?
Como se sentem nesse ambiente? Houve um momento em que pude perceber que não
elas me despertavam curiosidades, mas também eu a elas. Alguém me indagou se
estava a espera de atendimento. Informei o meu propósito e passamos a conversar,
quer dizer, eles mais e eu menos. Algumas mulheres traziam à tona questões de gênero
ao comentarem sobre suas relações com companheiros ou ex-companheiros, outras
pessoas comentavam entre si sobre o “tratamento”, os efeitos de medicações em uso
etc.
Essas falas, porém, eram interceptadas pela voz da recepcionista que
chamava para o atendimento e por intervalos de silêncios que me levavam a mais
questionamentos: será que meus interlocutores estariam ali entre aqueles rostos?
Embora alguns dos que ali estavam se mostrassem receptivos a conversar, seria difícil
me aproximar deles a ponto de futuramente dividirem comigo alguns aspectos e
24
Registro em diário de campo em 04/09/04.
33
episódios de suas experiências de vida e de seus pensamentos?
Alguns disseram ter história de internações em hospitais psiquiátricos, o que
me levou a pensar que tiveram sua intimidade (trajetórias de vida, sentimentos e
sonhos) invadida tantas vezes pelos atendimentos rotineiros de profissionais que
insistem numa conduta fragmentada, em que ao invés de partilharem os atendimentos
e informações, costumam, um a um (assistente social, enfermeiro, psicólogo,
psiquiatra, terapeuta ocupacional, entre outros), investigar aspectos de suas vidas
muitas vezes difíceis de serem verbalizados ou expressos de alguma maneira porque
causam dor, sofrimento. Assim, esse tipo de situação acaba revitimizando-os.
Desse modo, se haviam pessoas ali tantas vezes (re)vitimizadas, será que
estariam dispostas a me revelar, ainda que em linhas gerais, um pouco de si, de quem
são, do que pensam? Ao propor isso futuramente, estaria eu repetindo a ação
desempenhada pelo tipo de profissionais anteriormente mencionados, os quais
geralmente valorizam aspectos de seus discursos apenas no sentido de caracterizar
seus sintomas e classificar suas “doenças”? Não, respondi pra mim mesma. Meu
propósito não era ouvi-los para tratá-los”, mas ouvir e evidenciar as suas narrativas, a
palavra que pode até permanecer silenciosa, mas não silenciada.
Durante as idas ao CAPS/SER III, através do contato, geralmente receptivo,
com as pessoas que aguardavam atendimento e alguns familiares que os
acompanhavam, bem como, com os profissionais que trabalham, tomei
conhecimento de que não havia organização de usuários e familiares vinculada àquele
CAPS em forma de Associação, mas fui informada da existência de uma Cooperativa
Social cuja maioria dos cooperados é de usuários da instituição, a Cooperativa do
Centro de Atenção Psicossocial Ltda (COOPCAPS).
Essa Cooperativa surgiu em julho de 2003, a partir das atividades de terapia
ocupacional.
25
Além do suporte do CAPS/SER III, a COOPCAPS dispõe do apoio da
25
Mais especificamente das chamadas oficinas de produção, as quais, segundo a terapeuta ocupacional que tem
acompanhado as atividades da Cooperativa desde a idéia de sua constituição, têm caráter de produção para
comercialização.
34
Incubadora de Cooperativas da UFC
26
que, inclusive, foi a responsável pela
capacitação dos cooperados antes de se organizarem efetivamente.
Uma vez que ainda não dispõem de sede própria, os cooperados utilizam o
espaço físico do CAPS/SER III. O grupo é composto por vinte e três participantes
27
e
se reúne duas vezes por semana para produzir peças artesanalmente (tapetes, bonecas
de pano, cestas para arranjos florais, chaveiro etc.). A venda dos produtos é realizada
individualmente pelos cooperados, sendo uma parte do montante proveniente das
vendas destinada à compra de matéria-prima e o valor restante divido entre os
membros do grupo de maneira igualitária.
Observei que a Cooperativa se trata de uma experiência singular entre os
CAPS existentes em Fortaleza. Certamente não posso afirmar se representa uma
modificação na vida das pessoas cooperadas ou qual o significado daquela atividade
para elas, nem tampouco os possíveis impactos da renda proveniente da
comercialização dos produtos na situação financeira de suas famílias, até porque não
era este meu objeto de pesquisa. Mas, o fato de aqueles sujeitos atendidos no
CAPS/SER III estarem coletivamente organizados foi um dos critérios para a escolha
dos mesmos como interlocutores da pesquisa.
A facilidade de encontrá-los reunidos semanalmente foi outro critério. Além
disto, chamaram atenção aspectos heterogêneos do grupo. As pessoas não estão
reunidas por serem especificamente homens ou mulheres, jovens ou idosas, com
diagnóstico A ou B.
26
A Incubadora de Cooperativas Populares de Autogestão da Universidade Federal do Ceará (UFC) foi
implantada em 1997 como Projeto de Extensão. É uma iniciativa inspirada na Autogestão e na Economia
Solidária e tem como objetivo incentivar o modelo cooperativista e associativista de trabalho e produção como
possibilidade de gerar trabalho e renda em áreas de baixo poder aquisitivo. Desse modo, propõe-se a oferecer
assessoria técnica e educacional às cooperativas incubadas, abrangendo desde o processo de formação até sua
efetiva inserção no mercado; capacitar os associados direcionando-os para um processo de auto-gestão com
sustentabilidade no sentido da distribuição de renda e da economia solidária; auxiliar na formação de
incubadoras de cooperativas que tenham como objetivo a disseminação da Autogestão e a Economia Solidária
(www.incubadora.ufc.br).
27
Vinte usuários e três familiares.
35
Desde que tomei conhecimento da existência dessa Cooperativa, passei a
participar de suas reuniões para produção e acompanhar o processo de confecção das
peças a serem comercializadas, inclusive, ora “colocando a mão na massa” a convite
do grupo.
Esses momentos foram de muita importância, sobretudo, para o
estabelecimento de uma relação de confiança mútua, a meu ver, necessária ao
desenvolvimento da pesquisa, uma vez que minha proposta era adentrar no universo da
subjetividade dos interlocutores, buscando compreender e interpretar suas concepções
e opiniões pessoais jamais possíveis de serem encontradas em documentos ou outra
fonte que não o contato direto entre nós.
28
Após um período de acompanhamento do grupo passei a estabelecer contato
individual por meio da técnica de entrevista
29
com os cooperados que se dispuserem a
colaborar com a pesquisa no sentido de abordar questões mais específicas acerca do
objeto de estudo. Para tanto, mostrou-se necessário o uso de um roteiro mínimo de
orientação
30
no intuito de trabalhar de maneira compatível com o tempo disponível
para a pesquisa de campo, o que se tornaria difícil caso optasse pela perspectiva o
diretiva.
28
A respeito desses contatos com o grupo, lembro-me de momentos em que, mesmo tentando explicar meu
propósito ali como pesquisadora, a minha presença foi interpretada por alguns sob outra dimensão: ... observo
que minhas idas ao CAPS, o acompanhamento das atividades do grupo têm possibilitado a construção de uma
relação de confiança entre nós. Às vezes quem ‘quase misture as coisas’, como os rapazes que vez por outra
me indagam se tenho namorado ou se sou casada, tecem elogios carinhosos. No geral, porém, acredito que a
maioria das pessoas compreende o motivo da minha presença no grupo, inclusive, algumas perguntam quando
conversarei individualmente com elas para que possam colaborar com meu trabalho. Essa disponibilidade em
contribuir com a pesquisa e a vontade que demonstram de falar fortalece em mim o desejo de tornar ‘visível’
suas concepções, desejos, sonhos, enfim, suas ‘vozes’, com muito respeito. (Registro em diário de campo em
22/11/04).
29
A entrada no campo e início do acompanhamento do grupo ocorreu em setembro de 2004. As entrevistas
foram realizadas no período de março a maio de 2005. A opção pela entrevista se deu a partir da especificidade
do objeto de estudo e da necessidade de um aprofundamento qualitativo à pesquisa, bem como, por identificá-la
como uma técnica possível dada a receptividade dos membros do grupo. Vale ressaltar que todas as entrevistas
foram gravadas sob o consentimento dos interlocutores e seus nomes foram revelados ou substituídos por nomes
fictícios de acordo com a vontade dos mesmos.
30
O roteiro pode ser consultado em anexo.
31
Os modelos se encontram em anexo. É importante lembrar que a identificação ou utilização de nomes fictícios
na transcrição dos discursos está de acordo com a autorização ou não de cada interlocutor previamente acordada
quando da assinatura desse termo.
36
As entrevistas eram geralmente agendadas com antecedência e sempre
realizadas nos dias e horários de encontros do grupo. Algumas vezes houve
disponibilidade de uma sala reservada para realizá-las, outras vezes utilizamos o
próprio pátio onde os cooperados trabalham. Nestes casos mantínhamos uma certa
distância dos demais membros do grupo durante a entrevista.
Antes de iniciar cada conversa relembrava o objetivo da pesquisa em linhas
gerais e uma vez percebendo a disponibilidade do possível interlocutor, apresentava-
lhe o termo de consentimento livre.
31
Após a leitura e assinatura deste, iniciávamos a
entrevista que soava como uma conversa apenas guiada pelo roteiro mínimo
previamente elaborado.
Dos vinte usuários vinculados à Cooperativa, treze foram entrevistados.
Conversei com aqueles que estavam participando regularmente dos trabalhos do grupo
e se dispuseram a colaborar com o estudo, além de estarem presentes nos dias
programados para as entrevistas. Vale ressaltar que a relação de confiança com base no
vínculo construído entre esses usuários e eu ao longo da pesquisa foi também um
elemento relevante para tomá-los como interlocutores.
Através desse contato direto e individual, procurei conhecer alguns aspectos
relacionados à trajetória de vida dos sujeitos, considerando, inclusive, possíveis
experiências de internações em hospitais psiquiátricos. Conhecer quem são as pessoas
com as quais dialoguei foi importante para compreender suas concepções de mundo,
uma vez que aquilo que pensamos e fazemos geralmente se relaciona às nossas
experiências e trajetórias de vida.
Considerei ainda suas concepções acerca da chamada loucura e da reforma
psiquiátrica a fim de discutir tais conceitos também a partir dos discursos desses
sujeitos e não apenas do que trata a literatura específica.
37
Vale salientar que a observação direta e anotações no diário de campo foram
recursos extremamente importantes à consecução desse estudo principalmente no que
se refere às definições em relação ao “caminhos metodológicos” percorridos. A
delimitação dos interlocutores, por exemplo, foi possível a partir do contato direto
com o campo empírico através de observações sistemáticas e conversas informais. O
uso do diário de campo, além de registrar informações captadas pela observação,
possibilita registrar narrativas em momentos diversos.
É importante destacar que o diálogo com autores que trabalham conceitos
básicos a esse estudo como loucura, institucionalização, reforma psiquiátrica e
desinstitucionalização se deu ao longo do percurso metodológico, entretanto, em
diferentes proporções, visto que no período dedicado ao trabalho de campo priorizei o
contato com os sujeitos interlocutores da pesquisa e suas concepções de mundo
construídas com base em suas experiências de vida.
Após a saída do campo
32
me dediquei à conclusão das transcrições das fitas
e a interpretação dos discursos com base na teoria consultada sob uma perspectiva
analítica-crítica. o é redundante lembrar que busquei realizar esse trabalho
investigativo valorizando idéias, opiniões, crenças, valores, sentimentos, lembranças,
sonhos e silêncios dos interlocutores. Nessa perspectiva, essencialmente o trabalho
deve ser visto como um “feito por várias mãos”.
Assim, como referem Buarque & Bastos, ... apenas seguirei como
encantado ao lado teu... Cabe aqui retomar esse trecho da composição desses autores
para assinalar que, embora com a satisfação de ter vivenciando mais uma experiência
de pesquisa, não me apropriarei do conhecimento por ela proporcionado, pois outros
sujeitos foram partícipes da consecução desse estudo a ser partilhado, somado,
multiplicado. Afinal, como nos diz Gondim, (...) a maior contribuição que o
pesquisador pode dar para mudar o mundo reside no trabalho que realiza para tornar
esse mundo compreensível (1999, p. 29).
32
Agosto/2005.
38
39
CAPÍTULO II
Reforma psiquiátrica: uma construção histórico-social
O Movimento de reforma psiquiátrica vem sendo discutido em vários países
conforme suas conjunturas, havendo, portanto, diferentes experiências, dentre as quais
encontram-se as Reformas francesa, canadense, americana e italiana, sendo esta última
- Psiquiatria Democrática - segundo Rotelli & Amarante (1992), a de maior influência
para o Brasil.
Esse modelo inicialmente emergiu na Itália na década de 70, tendo Franco
Basaglia como seu principal idealizador. Basaglia, após um processo de
amadurecimento crítico em relação à natureza da instituição psiquiátrica a partir de sua
experiência inicial em Gorizia, concluiu que de nada bastaria apenas à reorganização
da instituição psiquiátrica e assim, iniciou na cidade de Trieste, também na Itália, um
processo de demolição da estrutura manicomial - extinguiu os chamados “tratamentos”
pautados em violência, destruiu os muros de separação entre os espaços intra e extra-
institucional, abriu cadeados e grades - e propôs a construção de novos espaços e
formas de lidar com a chamada loucura.
33
O pensamento crítico de Basaglia no que diz respeito à instituição
psiquiátrica, aos poucos foi deixando de se restringir apenas aos grupos daqueles que
com ele trabalhavam, atingindo, cada vez mais, técnicos, usuários, líderes sindicais e
comunitários, repercutindo ainda no surgimento de iniciativas também em outras
cidades italianas.
Em 13 de Maio de 1978, na Itália, foi aprovada a Lei Basaglia (Lei 180) que
33
Antes de propor a transformação em Trieste, Basaglia realizou um trabalho no hospital psiquiátrico de Gorizia
na década de 60, cujo objetivo era a transformação daquela instituição em comunidade terapêutica e a tentativa
de sua superação, o que não foi possível tendo em vista o impedimento de forças políticas locais. Após essa
experiência Basaglia concluiu ser insuficiente a reorganização da instituição psiquiátrica, decidindo assim pelo
fim do manicômio. Com o fim do manicômio em Trieste, surgiram Centros de Saúde Mental, Cooperativas de
Trabalho destinadas aos ex-internos e Serviço de Emergência Psiquiátrica. Para aprofundar estudo a respeito da
experiência italiana consultar Barros (1994a); Rotelli & Amarante (1992).
40
substituiu a legislação de 1904, proibindo não apenas a recuperação de antigos
manicômios como qualquer iniciativa de construção de novos espaços como esses. A
exemplo da Itália, outros países engajaram-se nesse processo de mudança, dentre eles,
o Brasil.
Foi também na década de 70, mais precisamente no final desse período, que
o Movimento de reforma psiquiátrica alcançou maior visibilidade no Brasil,
intrinsecamente relacionado com o surgimento do Movimento dos Trabalhadores em
Saúde Mental (MTSM).
Na concepção de Amarante et al pode-se perceber três importantes
momentos ou trajetórias do processo de reforma psiquiátrica no Brasil, quais sejam, a
alternativa, a sanitarista e de desinstitucionalização ou de desconstrução/invenção
(1995, p. 89).
A primeira foi caracterizada por importantes manifestações no âmbito da
saúde, num contexto marcado também pelo crescimento de movimentos sociais em
oposição ao regime militar.
Nesse contexto emergiu o MTSM, fazendo fortes denúncias contra o
governo militar que, muitas vezes, utilizava a psiquiatria como mecanismo de controle
da sociedade, através, inclusive, de torturas.
Esse Movimento tinha como finalidade a construção de propostas de
transformação da assistência psiquiátrica brasileira. Entretanto, vale destacar que
inicialmente suas reivindicações não se restringiam a críticas à psiquiatria tradicional e
à busca de um novo modelo, havendo também uma preocupação com questões
trabalhistas, tais como a melhoria salarial.
Nesse período, surgiram vários encontros de discussão, dentre os quais
destaco o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em 1978, dado o seu
41
relevante significado, uma vez que possibilitou a organização de iniciativas similares
ao MTSM em vários estados brasileiros.
Com a repercussão nacional alcançada, no ano seguinte realizou-se na
cidade de São Paulo o I Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental (I
CNTSM), no qual, entre outras questões, priorizou-se a crítica ao modelo asilar dos
hospitais públicos como espaço depositário de “marginalizados”, em detrimento dos
aspectos corporativos.
O início da década de 80 foi marcado pela ascensão da trajetória sanitarista,
caracterizada pela incorporação de parte do movimento de reforma sanitária, além da
psiquiátrica, ao Estado, configurando-se um momento essencialmente
institucionalizante.
34
Nesse período, os Ministérios da Saúde e da Assistência e Previdência
Social tomaram providências para a reestruturação das unidades hospitalares
constituintes da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), órgão do Ministério
da Saúde à época.
[O] início da trajetória institucional da estratégia sanitarista é uma
tentativa tímida de continuar fazendo reformas, sem trabalhar o âmago da
questão, sem desconstruir o paradigma psiquiátrico, sem construir novas
formas de atenção, de cuidados, sem inventar novas possibilidades de
produção e reprodução de subjetividades (Ibdem, p. 93).
Nessa mesma década, em março de 1986, ocorreu em Brasília, com uma
grande participação popular, a 8a Conferência Nacional de Saúde, donde surgiu uma
nova concepção de saúde como um “direito do cidadão e dever do Estado”. Neste
evento também foram definidos princípios básicos, dentre os quais, o de
universalidade no acesso à saúde.
34
Os marcos teóricos conceituais que estavam na base da origem do pensamento crítico em saúde (...) dão lugar
a uma postura menos crítica onde, aparentemente, parte-se do princípio que a ciência médica e a administração
podem e devem resolver o problema das coletividades (Amarante et al, 1995, p. 91).
42
Dando continuidade ao leque de eventos dos anos 80, foi realizada, em
1987, a I Conferência Nacional de Saúde Mental (I CNSM), acontecimento que
marcou o início da trajetória da desinstitucionalização ou da desconstrução/invenção,
a partir da qual foi iniciada a construção de um novo projeto de atenção em saúde
mental, sendo a desinstitucionalização entendida para além da simples
desospitalização.
Essa ruptura com a perspectiva sanitarista se deu a partir da emergência de
conflitos entre alguns militantes do MTSM e os promotores do evento (DINSAM e
Associação Brasileira de Psiquiatria). Estes defendiam um evento de cunho técnico,
enquanto aqueles exigiam que fosse adotada uma perspectiva participativa.
A partir dessa Conferência surgiram associações de usuários e familiares
tais como a SOSINTRA (RJ) e Associação Franco Basaglia (SP), constituindo-se
como novos atores nesse processo, descentralizando as discussões pertinentes à
chamada loucura. A questão da loucura e do sofrimento psíquico deixa de ser
exclusividade dos médicos, administradores e técnicos da saúde mental para alcançar
o espaço das cidades, das instituições e da vida dos cidadãos, principalmente
daqueles que as experimentam em suas vidas (Ibdem, p. 95).
Em 1987, como desdobramento da I CNSM, realizou-se na cidade de Bauru
o II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental (II CNTSM) sob o lema
Por uma sociedade sem manicômios, percebendo-se a inviabilidade da trajetória
institucionalista de ocupação e de aliança com o Estado. A perspectiva assumida era a
de que a questão da loucura e das instituições psiquiátricas deveriam ser discutidas
também pela sociedade.
35
A intervenção da Secretaria de Saúde do Município de Santos, no hospital
psiquiátrico privado Casa de Saúde Anchieta, culminando no seu fechamento, tendo
em vista casos de óbitos e outros absurdos ali constatados, trouxe forte repercussão
35
Vale frisar mais uma vez que, ainda nesse mesmo ano foi inaugurado, na cidade de São Paulo, o primeiro
CAPS (Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira).
43
nacional ao processo de reforma psiquiátrica no ano de 1989.
Ainda nesse ano, pode-se destacar como desdobramento e resultado do
processo político encaminhado inicialmente pelos Movimentos de Trabalhadores em
Saúde Mental, a apresentação do Projeto de Lei nº 3.657/89 de autoria do então
deputado Paulo Delgado (PT/MG). Seu conteúdo versava sobre a regulamentação de
direitos de pessoas com sofrimento psíquico no que diz respeito ao tratamento, bem
como, a extinção progressiva de manicômios públicos e privados e a substituição
destes por outros recursos de atenção não manicomiais.
Esse Projeto de Lei desencadeou críticas contrárias e a favor, dividindo
opiniões, inclusive de algumas associações de usuários e familiares. Discussões sobre
questões referentes à chamada loucura e práticas institucionais a ela direcionadas
assumiram relevância nacional.
Em 1992 ocorreu em Brasília a 2a Conferência Nacional de Saúde Mental,
ocasião em que foi ratificado o compromisso pela desinstitucionalização e destacada a
necessidade de análise sistemática dos novos serviços de atenção em saúde mental no
sentido de evitar o funcionamento dos mesmos como mera extensão do manicômio.
A década de 90 também foi um período importante para o campo da saúde
mental no Ceará, pois é desse período que datam a emergência ou a maior visibilidade
do Movimento de reforma psiquiátrica, o processo de instalação de CAPS e, como
mencionado anteriormente, a aprovação da Lei 12. 151 que trata da reforma
psiquiátrica no estado.
Diante do exposto, torna-se evidente a ampla dimensão da reforma
psiquiátrica, (...) um processo histórico de formulação crítica e prática, que tem como
objetivos e estratégias o questionamento e elaboração de propostas de transformação
do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria (Ibdem, p. 87).
44
Ao longo dos últimos anos no Brasil, verificam-se, portanto, avanços e
conquistas significativas no campo da saúde mental e na sociedade em si, como a
criação de serviços substitutivos
36
aos hospitais psiquiátricos em diversos municípios;
elaboração, bem como, aprovação de leis estaduais e federal de reforma psiquiátrica;
elaboração e implantação de portarias ministeriais e estaduais sobre procedimentos e
estruturação de serviços de saúde mental; crescimento do movimento social em prol da
defesa dos direitos civis das pessoas portadoras de sofrimento psíquico através de
Associações de usuários e familiares; entre outros.
Vale lembrar, contudo, que o modelo tradicional centralizado no hospital
psiquiátrico ainda é hegemônico. Não se trata aqui da defesa de iniciativas de extinção
imediata de todos os hospitais psiquiátricos do país sem que exista de fato uma
substituição progressiva desses espaços por serviços de caráter não segregador, mas
não se pode retroceder a ponto de acreditar na “humanização” do espaço hospitalar
como “ponto de chegada”.
Nesse sentido, a questão do financiamento se apresenta como um desafio. A
proposta é que, com o fechamento progressivo de leitos em hospitais psiquiátricos, os
recursos sejam redirecionados, possibilitando a construção dos chamados serviços
substitutivos.
Essa proposta é factível, entretanto o atual contexto problemático de saúde
pública no Brasil requisita um controle social veemente para que não nos deparemos
com o fim dos hospitais psiquiátricos atrelado à ausência de serviços que de fato os
substituam, o que significaria, ao contrário do que busca o Movimento de reforma
psiquiátrica, um verdadeiro descaso com a população que necessita dessa atenção
específica.
De modo geral, na realidade, questões de ordem política e não técnica ou
36
O hospital-dia e o CAPS são exemplos desses serviços. O hospital-dia é definido pela antiga Portaria
224/92 como um recurso intermediário entre a internação e o ambulatório, que desenvolve programas de atenção
de cuidados intensivos por equipe multiprofissional, visando substituir a internação integral.
45
financeira m-se apresentado como maior obstáculo à efetivação da reforma
psiquiátrica. É fundamental que os usuários dos serviços de saúde mental estejam
envolvidos ativamente nesse processo, não acompanhando a gestão dos
denominados novos serviços, a exemplo dos CAPS, mas também se inserindo nos
mais diversos espaços (institucionais ou não) que possibilitem o fomento de discussões
em torno da condição social em que se encontram (estigma, preconceito), bem como a
proposição, implementação e o acompanhamento de Políticas Públicas de Saúde
Mental consentâneas às suas necessidades.
Mesmo considerando iniciativas importantes como as Associações de
usuários, as discussões em torno da saúde mental, pelo menos no Ceará, parecem ainda
estar muito mais próximas do segmento dos trabalhadores que atuam na área.
A implantação dos CAPS é importante, contudo não significa que os
problemas em torno da atenção em saúde mental estejam resolvidos. O artigo da lei
cearense de nº 12. 151 preconiza a instalação e funcionamento de vários serviços como
leitos psiquiátricos em hospitais gerais,
37
hospitais-dia, centros de atenção, centros de
convivência,
38
entre outros.
Em Fortaleza, contudo, a rede pública de saúde dispõe atualmente apenas de
dois desses tipos de serviços, quais sejam, hospital-dia e CAPS, que se apresentam em
número insuficiente frente à demanda.
Observa-se na atual gestão municipal a preocupação com a construção de
uma rede de serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos. Ao final do primeiro
semestre do ano de 2005 foram implantados dez CAPS em Fortaleza 01 do tipo
infantil (CAPS i), 03 do tipo geral (CAPS II) e 06 do tipo AD (CAPS AD)
37
Para os casos em que a internação se mostre realmente necessária. A disponibilidade de leitos em hospitais
gerais favorece o enfrentamento do estigma historicamente vinculado às pessoas com sofrimento psíquico e à
própria figura do hospital psiquiátrico.
38
Espaços propiciadores de trocas sociais em que o convívio entre pessoas com sofrimento psíquico e a
população em geral deve favorecer o exercício da cidadania, fomentando projetos de trabalho, lazer, associações,
entre outros, ampliando a compreensão e as formas de relacionamento com a “loucura".
46
totalizando atualmente treze serviços dessa natureza.
39
Até então não havia CAPS para
atendimento específico ao público infantil ou para casos de alcoolismo e/ou uso de
outras drogas.
Certamente apenas com esses serviços ainda não podemos falar de uma
rede de atenção em saúde mental no município, mas é mais um importante passo no
longo caminho a percorrer para a efetivação da reforma psiquiátrica em Fortaleza.
Outro desafio que se apresenta, mais especificamente, aos próprios
trabalhadores da área, inseridos nesses serviços substitutivos, é o de não reproduzirem
em seu interior as práticas tradicionais, anos desenvolvidas nos hospitais
psiquiátricos, as quais se pretende superar.
Esse aspecto é extremamente relevante uma vez que efetivar a reforma
psiquiátrica não significa apenas mudar o ambiente institucional, pintar paredes e
suprimir grades. O Movimento de reforma psiquiátrica em curso no Brasil, entendido
como uma tentativa de transformação de uma realidade, requisita dos profissionais
envolvidos na área de saúde mental, bem como, da sociedade, uma nova postura, o que
passa obviamente pela necessidade de dissolução de saberes e/ou concepções histórica
e culturalmente construídos e cristalizados muitas vezes como verdades absolutas e
intransponíveis.
Ademais, é ainda predominante a percepção social em relação à pessoa com
sofrimento psíquico como um ser necessariamente incapaz e que oferece perigo à
sociedade, devendo, portanto, lhe ser destinado um lugar específico.
O preconceito construído histórica e culturalmente em relação a quem se
convencionou chamar louco e à chamada loucura (denominada doença mental a partir
do final do século XVIII) talvez seja a principal “barreira” à efetivação da reforma
psiquiátrica, de uma Política de Saúde Mental construída a partir da coletividade.
39
As sedes desses nove novos CAPS estão sendo providenciadas e organizadas. Por enquanto os profissionais
desses serviços estão utilizando equipamentos socais existentes nas comunidades (ex: postos de saúde e centros
sociais) para realizar alguns atendimentos à população.
47
2.1 Desinstitucionalização: desospitalização ou (des)construção?
Como dito anteriormente, a reforma psiquiátrica questiona o modelo de
atenção em saúde mental pautado na psiquiatria tradicional, centralizada no hospital
psiquiátrico como espaço de “tratamento”, propondo novas formas de atenção em
saúde mental e de sociabilidades aos chamados loucos. Nesse sentido, destaca-se a
desinstitucionalização como um de seus preceitos.
O conceito desinstitucionalização surgiu nas sociedades européias e
americana no período pós-Segunda Guerra Mundial, a partir dos “processos de
reestruturação sócio-institucional” dessas sociedades, quando os Estados Modernos
assumiram a responsabilidade pelos problemas sociais (Barros 1994a; 1994b).
No contexto europeu pós-Guerras a realidade dos hospitais psiquiátricos,
cujas estruturas comparavam-se a campos de concentração, despertou interesse social
em meio às discussões voltadas para redefinições políticas e econômicas, bem como, a
imprescindível necessidade de reorganização institucional. Cada país europeu elaborou
respostas a esse problema a partir de suas particularidades históricas e concepções
próprias acerca da loucura e da doença mental (Barros, 1994b).
No caso dos americanos, a autora sugere que o processo vinculou-se muito
mais à necessidade de redefinição das atribuições do Estado na regulação capital-
trabalho. Do ponto de vista de mudanças na assistência à população, essa discussão
teve maior destaque nos anos 60, quando criaram o termo desinstitucionalização para
qualificar as altas hospitalares e a reinserção comunitária dos internos psiquiátricos.
Conteúdos heterogêneos surgiram a partir da perspectiva de
desinstitucionalização no que dizia respeito às questões práticas das instituições de
caráter manicomial. Nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra a proposta
privilegiou a criação de serviços de assistência comunitários, apostando assim no
48
enfraquecimento da estrutura hospitalar (asilar) como conseqüência inevitável da
existência daqueles novos serviços.
Na Itália o caminho foi diferente. Acreditou-se na necessidade de criar
condições para o desmonte do manicômio a partir do seu interior, aniquilando seu
funcionamento e sua lógica sustentadora. A intenção era desconstruir o manicômio e,
simultaneamente, construir serviços territoriais.
40
A noção de desinstitucionalização norte-americana traduziu-se apenas em
desospitalização e racionalização de recursos. Em contrapartida, o processo italiano
assumiu maiores proporções, tomou outros movimentos sociais e sindicatos como
aliados, ampliou as denúncias às instituições psiquiátricas vislumbrando o seu fim.
Embora a Itália tenha adotado inicialmente o modelo de comunidade
terapêutica,
41
Barros (1994b) pondera que, ao verificar suas limitações, a experiência
italiana contrapôs-se ao asilamento, bem como, aos modelos de comunidade
terapêutica e psiquiatria de setor,
42
preservando destas o princípio de democratização
das relações entre os atores institucionais e a noção de territorialidade (tratamento em
serviços comunitários), respectivamente.
43
O movimento de desinstitucionalização revelou o manicômio como locus de
uma psiquiatria que é administração das figuras da miséria, periculosidade
social, marginalidade e improdutividade. O conhecimento a respeito do
40
Destaca-se nesse sentido a experiência de Gorizia em 1961, comentada anteriormente.
41
A experiência de comunidade terapêutica surgiu efetivamente no final dos anos 50 na Inglaterra.
Caracterizada por um processo de reformas no campo institucional (mais no interior do hospital psiquiátrico),
propunha ações democráticas, participativas e coletivas, tendo como finalidade transformar a dinâmica da
instituição asilar. Desse modo, constituiu-se um modelo importante de modificação no interior do espaço
hospitalar, contudo não “extrapolou seus muros” atingindo efetivamente a comunidade externa, não questionou
o(s) motivo(s) da reclusão dos chamados loucos no asilo. (Cf. Amarante et al, 1995; Oliveira, 2002)
42
A psiquiatria de setor surgiu na França como contestação à psiquiatria asilar francesa, objetivando provocar
na psiquiatria uma perspectiva terapêutica, proposta inviável dentro de uma estrutura asilar. Assim, o hospital
psiquiátrico seria apenas um dos momentos do “tratamento”, sendo prioritário aproximar a psiquiatria à
comunidade. Defendia-se com esse modelo a realização do “tratamento” na própria região na qual o indivíduo
“doente” vivia, preservando seu convívio social. Tal como o modelo de comunidade terapêutica, a psiquiatria de
setor permaneceu com a estrutura asilar e manteve a noção de loucura como doença mental, não realizando,
portanto, nenhuma transformação no campo da psiquiatria. (Cf. Amarante et al, 1995; Oliveira, 2002)
43
Cabe destacar aqui a experiência de Triste nos anos 70, portanto, posterior a de Gorizia, também citada em
momento anterior. Em 1973 surgiu o primeiro núcleo da psiquiatria democrática, um movimento que
coordenou, ao longo dos anos 70, a luta pela transformação da psiquiatria italiana. (Barros, 1994a/b)
49
sofrimento psíquico e mesmo a ação dos operadores em saúde mental não
poderiam, para a equipe triestina, desconsiderar a realidade do
asilamento, que é anterior à constituição da doença mental. A
desinstitucionalização deveria, assim, concretizar-se na desconstrução do
manicômio (p. 175).
44
(Des)construção cujo sentido ultrapassa os muros institucionais, suas
estruturas físicas, e atinge saberes e práticas, entrelaçamentos políticos e culturais
mantenedores do manicômio e de tantas outras instituições violentas por este
representadas.
(Des)construir o manicômio pressupõe questionar um produto do
iluminismo, tal como adverte Foucault (1999a).
45
Nesse sentido, implica o
questionamento de pressupostos históricos a partir dos quais a “doença mental” foi
definida e classificada. Processo histórico esse que, aliás, continua se reproduzindo e
legitimando o saber-poder psiquiátrico que reduz o fenômeno “loucura” à “doença
mental”.
O preceito de desinstitucionalização, portanto não deve ser confundido
apenas com ato de fechamento do hospital psiquiátrico, ou seja, desinstitucionalização
não significa (ou, pelo menos, não deve significar) simplesmente desospitalização.
[A] ‘negação da instituição’ não é a negação da doença mental, nem a
negação da psiquiatria, tampouco o simples fechamento do hospital
psiquiátrico, mas uma coisa muito mais complexa, que diz respeito
fundamentalmente à negação do mandato que as instituições da sociedade
delegam à psiquiatria para isolar, exorcizar, negar e anular os sujeitos à
margem da normalidade social (Rotelli & Amarante, 1992, p. 44).
Ao partir dessa concepção, a reforma psiquiátrica traz para a sociedade a
necessidade de refletir sobre o que historicamente produziu e entendeu como “atenção
em saúde mental” e sobre suas próprias concepções acerca da chamada loucura e
doença mental. E ainda, evidencia a responsabilidade dessa mesma sociedade criar
44
Grifo meu.
45
A prática da reclusão do chamado louco é anterior ao surgimento do asilo, entretanto, como destaca Foucault
(1999a), isto se dava junto a outros “errantes” (desocupados, prostitutas etc), não existindo até então, um locus
de aprisionamento-“tratamento” específico aos “insensatos”.
50
meios efetivos de atenção não mais pautados na segregação, bem como, a necessidade
de se oportunizar outras formas de sociabilidade àqueles que demandam atenção
específica nessa área.
Vale frisar, contudo, que nem todos os envolvidos no processo de reforma
psiquiátrica comungam com essa idéia de desinstitucionalização como desconstrução.
Alguns teóricos defendem inclusive a proposta de investimento em “bons hospitais
psiquiátricos”, além da existência de serviços ambulatoriais ou ainda, a
“transformação” da instituição psiquiátrica em instituição “terapêutica”, lembrando a
noção de comunidade terapêutica comentada anteriormente.
Um dos teóricos a compartilhar dessa idéia é Gentil (1999). Este analisa a
proposta de fechamento do hospital psiquiátrico como uma “vertente radical” dentro
do Movimento de reforma psiquiátrica e acrescenta:
Longe de abrir mão da moderna psiquiatria, para promover um efetivo
aprimoramento do modelo assistencial em Saúde Mental, será necessário
investir em uma rede diversificada, abrangente e integrada em seus vários
níveis, que não se restrinja apenas ao atendimento dos casos mais graves e
à reabilitação, mas que inclua ambulatórios, hospitais especializados de
retaguarda e asilos não-hospitalares. (...) é melhor extinguir os
manicômios, garantir o direito de asilo e proteção aos necessitados,
ampliar a rede extra-hospitalar, notadamente os ambulatórios
psiquiátricos, e incentivar, também investimentos em alguns bons hospitais
psiquiátricos, públicos e privados (p. 22-3).
Vale registrar que, ao defender a garantia do direito de asilo e proteção aos
necessitados, o autor induz ao pensamento de que os asilos teriam surgido na
perspectiva de “direito” dos internados, talvez até como uma necessidade/demanda
destes, quando, na realidade, a história revela que, como sugerem os estudos
foucaultianos, o asilo surge a partir de um processo histórico de separação do louco”
do convívio em sociedade, em que este passa a ser considerado doente mental,
necessitando de “tratamento” específico.
No campo da chamada psicoterapia institucional, por exemplo, Vertzman et
51
al (1992) também se posicionam em defesa pela manutenção da instituição psiquiátrica
como espaço legítimo de “tratamento” para alguns sujeitos ao dizerem:
Uma instituição psiquiátrica, desde que adquira uma disposição capaz de
acolher e escutar esse indivíduo com uma organização psíquica particular,
pode ser um lugar legítimo de tratamento e tecido de vida para
determinados sujeitos. Obviamente a instituição que mencionamos de forma
alguma pode ser confundida com o asilo (...) (p. 18).
Os autores não apenas defendem a manutenção do hospital psiquiátrico, mas
se referem ainda sobre o locus da noção fundamental da psicoterapia institucional,
qual seja, os denominados “clubes terapêuticos”. Estes são definidos como
... uma organização autônoma no interior dos estabelecimentos
hospitalares e são geridos prioritariamente por pacientes e técnicos. (...)
Mas é preciso não confundir o clube com um lugar comum, uma sala, por
exemplo, que abre em certos horários e onde os pacientes se encontram por
alguns momentos. (...) o clube é muito mais que isso, é o que agrupa todos
ao ateliês e, mais ainda, é todo o sistema de encontros, um sistema de
superfície, de agrupamento horizontal, facilitador de trocas. (...) todas as
atividades cotidianas do hospital giram em torno do clube: os ateliês, as
saídas, as festas etc (Ibdem, p. 27).
A partir das considerações desses autores percebo que a “transformação” da
instituição psiquiátrica em “instituição terapêutica” propõe que se estabeleça uma
espécie de “réplica da sociedade” no espaço intra-institucional. Então, cabe-nos
questionar por que o permitir que os sujeitos experimentem tais trocas”,
supostamente facilitadas pelos “clubes”, no espaço social não artificial? Não teria esse
sujeito o direito de viver em espaços para além dos “muros” institucionais?
O hospital psiquiátrico, um tipo de instituição total, como denomina
Goffman (2001), por mais que tente “humanizar” suas relações, o perde sua
característica de “fechamento”. Assim, as “escolhas” e “possibilidadesdo internado
são sempre pré-estabelecidas.
Lembrando ainda os estudos de Goffman, mesmo que seja modificado o
espaço institucional, como alguns teóricos defendem, a barreira à relação social com
52
o mundo externo permanece, e com ela a idéia da existência do que caracterizaria de
dois “mundos impermeáveis”: “mundo dos normais” e “mundo dos anormais”.
É importante assinalar também que o fato de extinguir o hospital
psiquiátrico não significa a supressão da cultura pautada no manicômio como espaço
necessário ao chamado louco. Afinal, caso não haja um processo crítico-fiscalizador
constante, os serviços extra-hospitalares podem assumir o caráter de reprodutores
dessa cultura hospitalocêntrica, havendo assim, uma mudança apenas de espaço físico.
[E]ntendemos que é necessário desconstruir não apenas a instituição
manicomial, mas também as idéias, as noções e os preconceitos que a
acompanham e modelam, e que são parte do imaginário mesmo daqueles
que, conscientemente, desejam destruí-la (Barros, 1994b, p. 191).
No entanto, o se pode acreditar que a implantação de novos serviços de
cunho não-manicomial, por si só, seja suficiente para que o hospital psiquiátrico venha
a ser superado nem tampouco que sua “humanização” signifique um caminho possível.
Rotelli & Amarante chamam atenção de que a superação desse tipo de instituição é
imprescindível diante da inviabilidade de sua autodestruição:
A ilusão de que o hospital psiquiátrico torna-se obsoleto pela simples
implantação de uma rede de serviços assistenciais ‘extra-hospitalares’, ou
aquela outra, de que pode humanizar-se e tornar-se terapêutico com a
modernização técnica e administrativa, já não devem contaminar-nos mais.
Por isso mesmo, desconstrução não é o mesmo que destruição do hospital,
mas superação do aparato manicomial - o que diz respeito à ruptura dos
paradigmas que fundamentam e autorizam a instituição psiquiátrica
clássica, os paradigmas clínico e racionalista de causa e efeito (...) (1992,
p. 53).
Rotelli destaca ainda que esses paradigmas produziram (...) o conjunto de
aparatos científicos, legislativos, administrativos, de códigos de referência cultural e
de relações de poder estruturados em torno de um objeto bem preciso: ‘a doença’, à
qual se sobrepõe no manicômio o objeto ‘periculosidade’ (1990, p. 90).
Ao participar de alguns eventos relacionados ao tema em questão pude
identificar que quem justifique a permanência do hospital psiquiátrico como
53
hospital especializado assim como é comum em outras especialidades da área médica,
como por exemplo, hospitais específicos para tratamento de cardiopatias. Porém, é
importante recordar as representações acerca da “loucura” e da própria figura do
hospital psiquiátrico socialmente construídas, as quais em nada se compara à situação
dos que sofrem de cardiopatas (ou de quem sofre de outras patologias), afinal, em
geral estes não são estigmatizados ou “alvo” de preconceito.
Como ressaltou um usuário de serviço de saúde mental que participava do I
Encontro da
Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial
sediado no Ceará em
dezembro de 2005, (...) a sociedade o cego como alguém que precisa de ajuda, mas
o louco é visto pelas pessoas como desnecessário ou perigoso. No caso do hospital
psiquiátrico, por mais que se tente pintar as paredes e deixar tudo por dentro mais
bonitinho, a gente o pode esquecer que os muros desse lugar têm história. Uma
história, na maioria das vezes, de pesadelo, de dor e sofrimento.
Nesse sentido, a reforma psiquiátrica, a partir de seu princípio de
“desinstitucionalização-(des)construção” se configura como mais que um
questionamento do modelo tradicional de atenção em saúde mental, pressupõe a
(des)construção de saberes e práticas em relação à “loucura” e à “doença mental”
socialmente cristalizados como absolutos. Daí porque também representa interferência
nas relações de poder e nas estruturas de dominação implicadas, demonstrando sua
característica de continuidade.
54
CAPÍTULO III
CAPS/SER III: observando e descrevendo o locus da pesquisa
3.1 Um pouco da história ...
O CAPS vinculado a Secretaria Executiva Regional III
46
da Prefeitura
Municipal de Fortaleza (CAPS/SER III) funciona das 08 às 17 horas, numa casa
relativamente espaçosa, localizada em frente ao Hospital Universitário Walter Cantídio
(HUWC), na rua Capitão Francisco Pedro, 1269, no bairro Rodolfo Teófilo. A casa
é alugada pela Prefeitura Municipal.
Esse serviço é o mais antigo dentre os CAPS existentes na cidade, foi
inaugurado em 1998. Surgiu de uma iniciativa de trabalhadores do HUWC, mais tarde
apoiada pela Prefeitura Municipal.
Segundo informações de profissionais que estão no CAPS/SER III desde sua
implantação, “tudo começou” com uma equipe técnica vinculada ao Hospital HUWC,
constituída por profissionais das áreas de enfermagem, psicologia, psiquiatria
(professores da Faculdade de medicina da UFC), serviço social e terapia ocupacional.
A idéia e conquista primeira desse grupo foi a implantação de um serviço de
saúde mental (ambulatório de saúde mental) dentro do HUWC em substituição ao
antigo ambulatório de psiquiatria e psicossomática, pautado no modelo tradicional,
(...) em que o paciente vinha, recebia a receita e ia pra casa (...) sem nenhum
acompanhamento.
47
A partir dessa iniciativa e de experiências em desenvolvimento no interior
46
A Prefeitura Municipal de Fortaleza passou por uma reforma administrativa a qual, dentre outras providências,
dividiu o município em seis regiões, correspondendo a cada uma delas uma Secretaria Executiva Regional
(SER). Estas Secretarias funcionam como miniprefeituras e executam as ações da Prefeitura nos bairros.
47
Depoimento concedido em 07/11/02 por uma profissional entrevistada na ocasião da pesquisa que subsidiou
meu trabalho monográfico.
55
do estado do Ceará
48
e em outros estados brasileiros, como São Paulo, surgiu a idéia
de se implantar um CAPS no município de Fortaleza. Então, o grupo passou a buscar
parcerias, culminando na realização de um convênio entre a UFC e a Prefeitura
Municipal de Fortaleza, através da SER III.
O grupo de profissionais que trabalhava no serviço de saúde mental do
HUWC assumiu o trabalho nesse novo serviço, ficando a Prefeitura responsável em
viabilizar os recursos materiais necessários, porque na época não dispunha de recursos
humanos para serem alocados no CAPS.
Em virtude do número insuficiente de profissionais, o CAPS/SER III, no seu
primeiro ano de existência, era aberto ao blico apenas um expediente, depois
passando a funcionar durante os dois turnos, inclusive com os mesmos profissionais
vinculados à UFC. Apenas ao final do ano 2000, a Prefeitura realizou concurso
público para a contratação de mais profissionais para integrar a equipe daquele CAPS.
Mesmo havendo o convênio entre o HUWC - UFC e a Prefeitura Municipal
de Fortaleza, o CAPS/SER III é uma instituição municipal, embora, de acordo com
alguns de seus profissionais, aquela Universidade seja a grande parceira, inclusive
fornecendo muitas vezes material de expediente, o que seria de responsabilidade da
Prefeitura. A farmácia, que fornece medicação aos usuários do CAPS/SER III, também
pertence à estrutura do HUWC - UFC.
3.2 Aspectos gerais das pessoas atendidas
Atualmente no CAPS/SER III estão cadastradas aproximadamente 6.000
pessoas, entretanto, estima-se que apenas 20% a 30% dessas comparecem
regularmente.
49
48
Tal como mencionei antes, desde 1991 começaram a surgir CAPS em municípios do interior do estado do
Ceará.
49
Registro em diário de campo em 26/10/04. Informações fornecidas por um dos funcionários do CAPS/SER III
vinculado ao setor de arquivo. Uma vez que o número de pessoas cadastradas se modifica a cada dia de
56
Em virtude da demanda significativa por atendimento em descompasso com
o número restrito e insuficiente de CAPS e de outros serviços de atenção em saúde
mental de caráter não asilar que possam responder a essa demanda, o tempo dio de
espera para ser atendido pela primeira vez no CAPS/SER III é de dois (ou até três)
meses.
Para ser usuário do CAPS/SER III, o interessado tem de preencher os
seguintes critérios: ter acima de 12 anos de idade e residir nas regiões de abrangência
da Secretaria Executiva Regional III. Além disso, deverá se dirigir a esse serviço
levando um encaminhamento médico ou de instituições da rede de saúde ou de
assistência social, e, segundo uma das recepcionistas, (...) de preferência apresentar
comprovante de residência porque é muita procura das regionais que é pra atender
e não dá pra receber pessoas de outras regionais.
50
De acordo com a então Coordenadora Administrativa, o público-alvo desse
serviço pode ser caracterizado como ... adulto-jovem, psicótico ou neurótico, em
sofrimento psíquico crônico ou agudo.
51
Apresenta como diagnósticos mais freqüentes
transtornos de ansiedade e depressão, mas o serviço também atende pessoas que
apresentam transtornos psicóticos, entre outros. E embora ocorra atendimento a alguns
adolescentes, complementou a Coordenadora, esses não são público-alvo da
instituição.
funcionamento do CAPS, certamente esse número já foi superado.
50
Informação concedida por uma das recepcionistas. Registro em diário de campo em 04/10/04.
51
Registro em diário de campo em 06/10/04. Recentemente o cargo de Coordenação Administrativa do CAPS
passou a ser ocupado por outra profissional.
57
3
.3 Equipe técnica
Com a realização do referido concurso público no ano 2000 a Prefeitura
alocou mais alguns profissionais na equipe do CAPS/SER III, que se constitui
atualmente por quatro assistentes sociais, duas enfermeiras, três psicólogas, quatro
psiquiatrias, duas terapeutas ocupacionais e uma psicopedagoga.
52
É oportuno assinalar que com a contratação dos profissionais através do
concurso da Prefeitura, a equipe passou a apresentar um caráter misto, no sentido do
tipo de vínculo institucional dos profissionais, o que os diferencia na questão salarial.
As assistentes sociais vinculadas à Prefeitura, por exemplo, têm remuneração inferior à
assistente social vinculada ao Ministério da Saúde, cedida para trabalhar no CAPS/
SER III.
Uma das assistentes sociais com quem conversei informalmente afirmou
que a busca pela modificação dessa situação tem se dado através de processos na
Justiça, mas sem garantia. Segundo ela, (...) o salário é vergonhoso, se disser ninguém
acredita. O que tá salvando a gente é a produtividade.
53
Outra questão que pude perceber foi que o fato do CAPS/SER III ser
conveniado à UFC o configura também como um espaço de pesquisa e extensão,
tornando-se campo de experiência para alunos de graduação, tais como enfermagem,
medicina, psicologia, serviço social e terapia ocupacional. E ainda recebe
profissionais dessas áreas interessados em atualização, sendo incluídos no serviço por
um período de seis meses, sendo chamados de extensionistas. Esse caráter de pesquisa
e extensão parece facilitar a presença de alunos de graduação e s-graduação para a
realização de pesquisas.
52
Também trabalham no CAPS/SER III: auxiliares de enfermagem, auxiliar e agente administrativo.
53
Registro em diário de campo em 06/10/04.
58
3
.4 Principais atividades desenvolvidas
Ao chegar pela primeira vez para atendimento no CAPS/SER III, a pessoa
inicia seu percurso pela atividade triagem, uma espécie de “porta de entrada” do
serviço, a partir da qual lhe é indicado um plano de atividades (nomeado pela equipe
de plano terapêutico) de acordo com sua demanda ou especificidade. Esta atividade é
realizada por vários profissionais da equipe, exceto o médico.
Em conversas informais com alguns profissionais de outras categorias, essa
ausência do profissional médico na triagem é interpretada como decorrente da
expressiva demanda para um número restrito de psiquiatras, o que termina
restringindo-os a atividade de consulta médica ou ainda, como expressão da
dificuldade dessa categoria profissional trabalhar numa perspectiva interdisciplinar
tendo em vista a posição histórica que o saber-poder médico
54
tem ocupado nas
instituições de saúde: (...) tem muita gente pra ser atendida pelos psiquiatras e como
eles são poucos, não tempo participar de outra atividade (...) é difícil mudar uma
cultura, o poder médico na equipe ainda é uma questão muito forte ...
55
Essa questão do saber-poder dico me reporta a um episódio que observei
em campo, na sala de espera.
Por volta de 8h uma pessoa da recepção foi chamando cada pessoa que
54
A questão do poder aparece nas análises foucaultianas atrelada a discussão do saber. Para Foucault, saber e
poder implicam-se mutuamente. O saber se origina de relações de poder e estas se constituem de um campo de
saber que compõe novas relações de poder. No caso específico do saber-poder médico sua constituição está
diretamente relacionada ao surgimento do hospital como “lugar de cura”. Até meados do século XVIII, o
hospital caracterizava-se basicamente como instituição de assistência, separação e exclusão. Nesse período quem
decidia sobre o cotidiano hospitalar eram os religiosos. O médico apenas fazia visitas irregulares aos internos,
estando submetido administrativamente ao pessoal religioso. Por volta do fim desse mesmo século, quando o
hospital passou a ser concebido como instrumento de cura, assumindo assim uma dimensão terapêutica, o
médico tornou-se a principal figura da organização hospitalar. Vale salientar ainda que nesse mesmo período, o
hospital passou a se configurar como lugar de formação e transmissão de saber aos médicos. O interno, portanto,
tornou-se objeto do saber e da prática médicos. No caso mais específico do saber-poder médico no hospital
psiquiátrico do século XIX, conhecido como asilo, Foucault em Microfísica do poder (1999b, p. 122) refere que
[o] grande médico do asilo (...) é ao mesmo tempo aquele que pode dizer a verdade da doença pelo saber que
dela tem, e aquele que pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, na realidade, pelo poder que sua
vontade exerce sobre o próprio doente. Todas as técnicas ou procedimentos efetuados no asilo do século XIX
(...) tinha por função fazer do personagem do médico o ‘mestre da loucura’; aquele que a faz se manifestar em
sua verdade quando ele se esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a domina, a acalma
e a absorve depois de a ter sabiamente desencadeado.
55
Registro em diário de campo em 05/10/04.
59
aguardava consulta médica para receber a senha por ordem de chegada e
assinar o que os que aguardam chamam de “freqüência”. O detalhe é que
o médico por eles esperado chegaria às 11h. Nesse período me chamou
atenção uma mulher de cabelos curtos, estatura média, cuja expressão
corporal, sobretudo a da face, sugeria profundo sofrimento ratificado por
palavras dirigidas a todos nós que ali estávamos: “tomara que o doutor ...
não se atrase porque eu não tô bem, tô com uma angústia danada, já faz um
tempão que não venho e preciso falar com ele ...”. Depois de certos
intervalos de tempo a mulher voltava a verbalizar o quanto se tornava
insuportável aquela espera: “ô meu Deus, nem quero pensar no que vou
fazer se o doutor ... demorar hoje. E se ele não vier?” ( passava as mãos
pelos cabelos e rosto, o olhar era de dor, sofrimento) ... Quando finalmente
o médico adentrou e passou pela recepção, a senhora então disse: doutor
..., graças a Deus (ergueu as mãos ao alto em gesto de agradecimento) que
o senhor chegou”. O médico desejou-nos bom dia e se dirigiu a sala de
atendimento. A mulher complementou: “Deus muitos anos de vida ao
doutor ...”
56
Essa situação leva a pensar: por que aquela mulher permaneceu por
aproximadamente três horas à espera do médico tentando suportar o sofrimento que
sentia e expressava e não procurou um outro profissional da equipe, no sentido de
tentar encontrar pelo menos um acolhimento a sua dor? Por que demonstrava depositar
apenas na figura do médico a possibilidade de resolver seu problema? O discurso
acima demonstra que o poder médico também é legitimado por quem é usuário do
serviço de saúde.
Ainda sobre a atividade triagem, convém destacar que os profissionais
utilizam um roteiro de entrevista previamente elaborado como instrumento para
registrar dados gerais de identificação do entrevistado e conhecer um pouco da sua
história de vida e familiar, bem como, da história de desenvolvimento da doença.
Também fazem parte do roteiro da entrevista os itens exame psíquico e exame físico.
Ao final, o profissional sugere uma hipótese diagnóstica e um plano terapêutico para o
entrevistado que pode ser constituído de consulta médica, acompanhamento em
grupos, psicoterapia individual etc., dependendo da demanda de cada indivíduo.
Além da triagem, no CAPS/SER III são desenvolvidas as atividades de
grupos de queixas difusas, oficinas terapêuticas, psicoterapia individual, consulta
56
Registro em diário de campo em 05/10/04.
60
médica, visita domiciliar e dispensação de medicação.
57
Tal como citei anteriormente, a COOPCAPS vem sendo apoiada pelo
CAPS/SER III, inclusive utiliza o espaço físico dessa instituição, o que talvez possa
explicar o fato de alguns profissionais e usuários considerá-la como uma das
atividades daquele CAPS.
Em conversas informais com alguns profissionais da equipe identifiquei a
inexistência de trabalhos do CAPS/SER III junto à comunidade circunvizinha, embora
seja uma recomendação oficial do Ministério da Saúde, como parte da assistência
prestada pelos CAPS, a realização de atividades comunitárias enfocando a integração
do doente mental na comunidade e sua inserção familiar e social.
58
3.5 Quem são os interlocutores da pesquisa?
Márcia,
59
39 anos, nascida em Fortaleza, partiu para São Paulo em
companhia de seus familiares por volta dos três anos de idade vivendo ali
parte de sua infância. A família também viveu no Paraná por dois anos,
retornando a Fortaleza quando Márcia tinha doze anos. Primeira dentre os
três filhos de seus pais, da mesma forma que seus irmãos, não pode
desfrutar muito da convivência com o pai (falecido há cinco anos), uma vez
que os desentendimentos do casal e as saídas” de seu pai de casa eram
freqüentes, culminando em separação definitiva entre ambos. Quando o pai
saía de casa, a mãe trabalhava muito para não deixar que os filhos
passassem fome. Solteira, testemunha de Jeová, reside em companhia de
sua mãe, irmão, cunhada e três sobrinhas. Concluiu o grau, mas não teve
nenhuma experiência de trabalho antes de vincular-se a Cooperativa. A
manutenção econômica da casa é de responsabilidade de sua mãe
(aposentada) e irmão. Relaciona-se bem com a mãe, mas tem conflitos com
o irmão e a cunhada: a gente discute muito dentro de casa, a minha mãe, a
minha cunhada, meu irmão. Minha mãe querendo apaziguar e eu fico logo
com raiva porque eu acho que ela sempre do lado dos outros, acho que
ela nunca tá do meu lado. Eu sou assim, eu acho que eu tenho, não sei, uma
57
É importante lembrar que, embora esta seja uma das atividades do CAPS/SER III, as pessoas recebem a
medicação mediante apresentação de documento de identificação pessoal e receituário médico na farmácia
localizada nas dependências do HUWC. Pude observar que nem sempre a medicação prescrita pelo médico é
disponibilizada na farmácia. Em certa ocasião uma usuária me informou: (...) tô indo na farmácia.. Tomara
que tenha meu remédio porque quando falta algum remédio é horrível, a gente que é pobre não sabe o que fazer
porque precisa do remédio e não tem. Minha fia, a vida o é fácil, não. (Registro em diário de campo em
05/10/04)
58
Portaria nº 336/2002.
59
Optou por esse nome porque disse ter simpatia por ele, mas afirmou não ter nenhum motivo especial para essa
escolha.
61
mania de perseguição, que as pessoas não gostam de mim. Eu acho ... às
vezes eu me sinto assim ... tem hora que eu não me sinto da família, assim
... por exemplo, eu quero fazer um bolo, eu não tenho aquela ação de ir
atrás de comprar o açúcar, os materiais pra fazer o bolo. Eu não me sinto
assim da família, às vezes eu me sinto intrusa. (...) às vezes eu gosto muito
de me meter nas coisas ... um dia desses meu irmão disse, um tio meu tava
com raiva lá que ele não dá de comer a um vagabundo que é um conhecido
lá. Ai eu disse assim: mas ele certo, não é filho dele, não é nada dele e é
vagabundo mesmo e o dinheiro é do meu tio. ele [o irmão] disse assim:
então, assim eu não tenho obrigação a comida a você, você também é
vagabunda. Mas isso eu tô até hoje sem falar com ele. Eu me senti
magoada por isso porque como que eu sou vagabunda? A diferença (...) eu
sou mulher, eu não ando atrás de maconha. Essa outra pessoa que ele
estava se referindo, ele é desse jeito (...) as pessoas que moram sustenta
ele de tudo (...). Eu penso assim, tem que ser verdadeiro. Como é que eu
vou ser verdadeiro se eu não digo, se eu não demonstro? Se eu digo uma
coisa que a pessoa não gosta, ai eu, não, não vou dizer pra não magoar. Ai,
eu não sou disso não. Tem que dizer, nem que magoe. Esse meu irmão não
disse pra mim, não me magoou? Por que a agora eu não posso magoar ele
também? Não falando de revidar, porque a bíblia diz pra gente não
revidar, mas é por que às vezes eu me sinto assim, se as pessoas tudo
podem, pra minha mãe, porque ela sempre me ensina muitas coisas
também, me ensina, (...) mas às vezes eu entendo assim: as pessoas podem
tudo nessa casa e eu não posso nada ... quer dizer, elas não podem ser
magoada e eu posso? Eu penso assim ... Além da Cooperativa, Márcia
participa de um grupo religioso e como lazer gosta de ficar em casa, ouvir
músicas ou dormir. Afirma não ter experiência de internação em hospital
psiquiátrico e que freqüenta o CAPS dois anos por indicação de um
médico do HUWC. rcia diz-se satisfeita com o atendimento recebido no
CAPS e com sua participação na Cooperativa, o que a faz sentir-se como
“uma funcionária da instituição”: o atendimento do CAPS é bom, eu gosto
do atendimento dos médicos, dos enfermeiros, dos psicólogos que ajuda a
gente, as terapeutas. Eles são muito bons, sempre prestativo, sempre presta
atenção na gente e todo mundo que vem pra gosta, diz que se sente em
casa e realmente é. Quando eu entro ali é como se eu fosse tipo uma
funcionária daqui e não uma paciente (risos). Eu entro ali no portão do
CAPS como se eu já fosse uma funcionária e não uma paciente, eu me sinto
assim aqui no CAPS desde que começou a cooperativa. (...) Eu gosto muito
de fazer as coisas aqui no CAPS. Tem hora que, eu sou assim, um trabalho
difícil como fazer uma cesta eu fico assim, mas (...) meu negócio é
assim, se eu tiver uma ajuda por perto, uma orientação, eu vou fazendo
bem direitinho (...) se eu não tiver uma orientação eu não consigo fazer, eu
não sei o que é, se é doença ou o que é, é de mim. Mas, eu tendo uma
orientação, eu vou fazendo até aprender (...). É assim que eu consigo fazer.
Quim,
60
31 anos, paraense, veio morar em Fortaleza ainda criança. Reside
atualmente com sua avó e uma tia. A manutenção econômica da casa se
com a aposentadoria da avó, a ajuda de seus filhos e de Quim, que trabalha
vendendo dindins feitos por sua tia. Diz que o relacionamento familiar e
com os vizinhos é bom. Solteiro, católico, estudou até a 8 série e trabalhou
algum tempo com avicultura, experiência que representa sua
profissionalização. Além da Cooperativa, não participa de nenhum outro
60
Escolheu esse nome por ser um apelido que lhe foi dado por familiares.
62
grupo. Nas horas de lazer gosta de assistir t.v., jogar dama e dominó com
seu tio e com as pessoas da família. Passou por três internações em
hospitais psiquiátricos (HP) e duas em hospital-dia (HD), chegando ao
CAPS por sugestão de uma psiquiatra de um dos hospitais em que esteve
internado. Diz que o atendimento no CAPS é bom, mas chama atenção para
a necessidade de melhorar o acesso a subsídios para deslocamento: Eu acho
que o atendimento é bom, em termos da gente receber remédio. Agora se as
pessoas levassem a sério até mesmo o vale-transporte, não deixasse faltar o
vale-transporte eu acho que seria melhor ainda. [E o atendimento em si,
dos profissionais?] Eu acho um atendimento bom. No que diz respeito a
participação na Cooperativa observei que Quim prioriza ações de feitura
dos objetos e não de comercialização dos mesmos.
Antônio,
61
42 anos, nascido em Fortaleza, é o oitavo dentre os onze filhos
de seus pais. Divorciado, protestante, mora com sua mãe, duas irmãs e um
irmão. Concluiu o grau e diz que além de participar da Cooperativa
trabalha como vendedor na “banca” de bombons que sua mãe tem na
calçada de casa. Acrescenta que recebe um dinheiro mensalmente, mas não
sabe precisar se corresponde a Benefício de Prestação Continuada ou
aposentadoria. A manutenção econômica da casa é por conta da mãe, com a
pensão deixada pelo cônjuge falecido e através da comercialização de
dindins e de bombons na “banca” na calçada. O próprio Antônio diz
também ajudar quando pode. Ao mencionar sobre seu relacionamento com
a família, sugere insatisfação: É o seguinte: lá em casa, por exemplo,
compra um bolo e bota na geladeira lá. Quando eu vou ver, têm comido
todim. Queijo, bolo, milho, aí eu fico chateado. Eu fico chateado porque, ó,
o meu irmão (...) bota a comida dele, a minha irmã bota a dela, a outra
bota a dela, minha mãe bota a dela e eu, quem bota a minha comida é a
minha irmã. [Por que?] Porque, sei lá, tudim bota a comida e eu como
pior, bota a comida que quer, porque eu vou dizer uma coisa, não tem coisa
melhor do que a pessoa gostar duma coisa e quer botar aquela coisa
daquele jeito e os outros botando, não, bota de terceira, de quarta, sei lá, aí
eu fico chateado. É difícil eu falar alguma coisa, mas um dia eu falei em
casa. (...) A minha irmã disse assim: olhe, quando a mamãe morrer, tu vai
pagar tudo que tu fez. Eu disse assim: o que foi que eu fiz? Não, quando a
mãe morrer tu vai pagar tudo que tu fez. (...) E minha mãe tem problema de
pressão e ela é velhinha, anciã, tem 75 anos. Aí, muitas vezes eu não quero
discordar dela. Além de participar da Cooperativa, Antônio é engajado num
grupo de sua igreja. Sobre seu relacionamento com as pessoas nesse espaço
religioso, também demonstra uma certa insatisfação por jamais ter assumido
alguma responsabilidade de destaque na igreja que freqüenta atualmente: É
o seguinte, na minha igreja lá, é o seguinte, eu tenho bem vinte e um anos
de crente e, acredita que eu nesse período eu nunca fui nada na igreja,
nunca fui auxiliar. Na Bela Vista eu já fui noutro ministério [refere-se aqui
a outra igreja protestante que freqüentava no bairro Bela Vista]. (...)
Na Bela Vista, meu sogro, pai da minha esposa, ele era pastor de lá. eu
falei pra ele e botou pra ser auxiliar. E eu fui auxiliar. Aí, saí de e fiquei
na minha igreja, aí pronto, eu na minha igreja, nunca fui nada. [Por que
nunca foi nada?] Porque eles diz que eu sou uma pessoa que sou
inconstante. Eu tô numa igreja e vou pra outra, fico assim. Ele [o pastor da
igreja] diz a mim que eu sou uma pessoa sem contenta, porque um irmão
da minha igreja, na hora ele pegava e fazia assim comigo [nesse
61
Preferiu optar por seu primeiro nome.
63
momento, Antônio bate uma mão na outra com força produzindo um
alto som para demonstrar] e dava a paz do Senhor, batia na minha mão
com força, pá! [Imita o som das mãos batendo]. Aí, eu dizia, não rapaz,
não faz isso não. a paz do Senhor direitinho, rapaz. Assim, não. , ele:
não, certo. Aí, ele [novamente demonstra o bater das mãos e imita o
som]. Aí, uma vez na dominical de manhã, termina a dominical prás
10:30, na frente da igreja, aí eu taquei a mão na cara dele [Por que ele fez
isso?] Foi. Aí, ele disse no culto que não tava agüentando falar porque
tinha levado uma tapa de um irmão, não sei o que (...). Então, é isso. Nos
momentos de lazer, Antônio diz que gosta de pregar a palavra de Deus”.
Foram várias as suas experiências de internação em hospitais psiquiátricos,
tantas que não consegue quantificar. O ingresso no CAPS
aproximadamente cinco anos se deu por indicação de uma psiquiatra de um
desses hospitais pelos quais passou. Demonstra extrema satisfação ao falar
sobre o atendimento prestado no CAPS: aqui é um lugar que eu me sinto
bem. Quando é um dia de segunda ou quarta pra mim parece que eu vou é
pro céu.
Lindalva,
62
58 anos, é a caçula dentre seus quatro irmãos. Natural de
Fortaleza, protestante, casada e mãe de quatro filhos. Sua família é do
interior do estado, município de Iguatu. Retomou os estudos recentemente,
cursa a série do primeiro grau. Como profissão aponta sua atividade na
Cooperativa. Reside em companhia do cônjuge e de um de seus filhos. Seu
companheiro, aposentado, mantém financeiramente a casa e Lindalva
realiza as atividades domésticas. Sobre o relacionamento familiar e com os
vizinhos reservou-se a dizer apenas que é legal”, não acrescentando mais
comentários. Além da Cooperativa, participa de um grupo religioso e
resume seu relacionamento com esse grupo da seguinte forma: ouvir a
palavra de Deus e orar, ir pras reunião. È muito bom. O trabalho parece
estar sempre presente no cotidiano de Lindalva, inclusive, preenchendo seus
horários de lazer: O que eu gosto de fazer? trabalhano mesmo, caçando
uma coisa pra fazer pra não ficar, a perturbação na cabeça melhorar,
porque nós tamo precisando é disso. Tem dia que a gente com a cabeça
grossa, começa a fazer uma coisa e se esquece. [Que coisas seriam
essas?] É fazer esse negócio mesmo que eu tô fazendo, é fazer esses brincos
[no momento da entrevista, Lindalva confeccionava um colar de
miçangas], colar, essas coisas, enterteno mais a cabeça pra num
pertubando a gente parada sem fazer nada. Lindalva diz que nunca esteve
internada em hospital psiquiátrico. Quando necessitava de atendimento de
urgência era atendida em hospitais gerais e não psiquiátricos: Porque eu
sentia depressão, aí tinha dia que eu saía de casa e não sabia onde era que
tava. Quando me acordava tava nos hospital já. A crise de nervo era
grande. [Para quais hospitais a senhora ia?] pra o Conjunto Ceará, o
frotinha do Conjunto Ceará, me levavam pro frotão. Eu não sabia nem
onde era que tava, quando acordava tava . Em acompanhamento no
CAPS praticamente desde sua inauguração, diz-se contente: minha nora
trouxe eu pra cá e graças a Deus aqui tô me tratando e tô me sentindo bem.
(...) achando bom. Primeiro eu fui pro grupo (...) renascer [grupo de
mulheres também denominado grupo de queixas difusas] e do renascer
passei pra cá [refere-se a cooperativa] e tô me dando bem.
62
Escolheu esse nome como homenagem a sua nora que costuma acompanhá-la quando vai se consultar ou
resolver alguma coisa importante. Diz gostar muito dessa nora.
64
Francisca,
63
30 anos, católica, natural de Fortaleza, considera-se solteira,
embora mencione ter um companheiro. Estudou até a série do primeiro
grau e atualmente trabalha com vendas de cosméticos, além de
desempenhar atividades na Cooperativa. É a mais nova de uma família de
nove irmãos. Reside com o companheiro, com a mãe e uma sobrinha do
mesmo. É a sogra de Francisca a responsável pela manutenção financeira da
casa. O dinheiro de Francisca proveniente das vendas de cosméticos não é
destinado às despesas domésticas. Destaca que às vezes seu companheiro
lhe pede algum dinheiro “pra beber uma cachacinha”. Sobre o
relacionamento familiar, Francisca diz que é “mais ou menos”, pois tem
conflitos com a sogra que não compreende sua mudanças de humor: quando
eu “emburricada” a véia diz que é porque eu se faço. E não é porque eu
se faço. Que às vezes quando a pessoa desse jeito a pessoa não fica
emburricada, né? [Como assim?] Emburricada, sem falar com ninguém.
Aí, a véia diz que eu se faço. Sobre o relacionamento com os vizinhos,
Francisca diz não conhecê-los, não ter amizade. Não participa de nenhum
outro grupo além da Cooperativa e nos momentos de lazer diz que gosta de
passear, ir à missa e à praia. Francisca afirma ter sido internada em hospital
psiquiátrico uma vez, mas não lembra o período. Passou a freqüentar o
CAPS por sugestão de uma neurologista do HUWC e diz sentir-se bem com
o atendimento que lhe é oferecido, destacando o fato de se tratar de um
serviço aberto que oferece a sensação de liberdade, diferente do hospital
psiquiátrico: Eu acho bom. (...) Me sinto melhor. [Já que você já teve
experiência em hospital psiquiátrico, essa experiência aqui é diferente?]
É sim. [Em que é diferente?] Porque aqui não é preso, aqui é livre e os
doido aqui não arenga [risos].
Camila
64
é uma jovem de 21 anos, solteira, católica, nascida em Fortaleza..
Estudante de um curso supletivo (5a e 6a séries), atualmente, além de suas
atividades escolares e domésticas, trabalha na Cooperativa. Reside com seus
pais e irmão. É a filha mais velha do casal. É com a renda proveniente do
trabalho do pai de Camila que a família se mantém financeiramente. Define
seu relacionamento com os familiares sinteticamente: bom (...), sem brigar.
É um pouco insatisfeita com o relacionamento cotidiano com seus vizinhos
que, segundo ela, reclamam de tudo: Porque tem vezes que é muito chato,
tudo reclamam. (...) Se botar som alto eles vai e pede pra baixar, fica
falando das pessoas, da gente por trás. Camila informou que não participa
de nenhum outro grupo além da Cooperativa e que nos momentos de lazer
gosta de passear na casa das amigas. Não tem experiência de internação
em hospital psiquiátrico e está em acompanhamento no CAPS alguns
meses. Não precisou quanto tempo, mas acha que faz menos de 1 ano. Ao
ser indagada sobre por que procurou o CAPS sua face revelou “um ar de
tristeza” e disse que não queria falar a respeito. Comentou apenas o que
acha do atendimento: É bom. [Bom como?] O pessoal tudo unido. [Como é
que você se sente aqui?] Bem. Alguns dias bom outros dias ruim. (...)
[Como é esse bom e esse ruim?] Porque tem um menino que eu o
gosto dele. [Aqui na Cooperativa?] É. Ele é muito chegadinho demais,
enxeridinho. Eu falei isso pra médica e ela ainda não resolveu nada
pelo que eu vi. [Mas, do CAPS em geral, os atendimentos?] São muito
bons. [E sobre a Cooperativa?] Eu acho bom a Cooperativa. Fazer
bonecas, faço bisquit ...
63
Escolheu esse nome, mas disse que não há motivo especial para tal escolha.
64
Escolheu o nome da sua melhor amiga.
65
Nira
65
nasceu em Fortaleza, é solteira e católica. De uma família de 11
irmãos, é provavelmente a quinta (não precisou), não quis revelar sua idade.
Tem o grau incompleto e trabalhou algum tempo em um mercantil como
“repositora de produtos”. Sua situação ocupacional atual resume-se ao
trabalho na Cooperativa e as atividades de lavar e passar as roupas de uma
irmã que a remunera por isto. Como seus pais e uma de suas irmãs
faleceram, atualmente reside com sete irmãos e uma sobrinha. Duas de suas
irmãs trabalham e sustentam a casa economicamente. O relacionamento
familiar é repleto de desentendimentos: São briguenta [risos]. Ninguém se
entende com a outra, vou ser sincera. Ninguém gosta da outra, é a maior
confusão desde a minha mãe. Minha mãe quando era viva e pior, pior,
pior, uma coisa horrível. Você não pode calçar nada sem ser sua, ninguém
calça nada. Até minha chave é de cadeado porque quando eu chegava elas
tinham arrombado a chave e eu dizia: não vai mais mexer não. Pode deixar
meu guarda-roupa. Eu sabia o que tinha e o que não tinha, quando eu
chegava tava aberto, aí quebrou tudo. eu peguei e botei um cadeado e
ando com a chave nos meus cós. Agora no cadeado. Elas [refere-se as
irmãs] mexe, briga, são muito briguenta, passa o dia todim brigando. Eu
não gosto, eu não gosto e acabou-se. (...) eu faço o almoço por causa do
meu irmão que deu AVC, então, quem faz o almoço sou eu, ela não sabe
fazer nada, nada, nada, nada, tudo errado. Esse meu irmão que deu AVC a
culpada foi a mais velha que fez comida salgada. Elas não querem fazer
comida nem pra si e nem pra ele, o que você acha? (...) Eu faço a
comida dele e a comida delas, lavo o banheiro e ainda lavo a roupa da
minha irmã e engomo. O relacionamento de Nira com os vizinhos é restrito:
os vizim? Não, eu não tenho convivência com vizim, eles gosta muito de
conversa, muito chafurdo, fofoca de verdade. eu não tenho convivência,
falo oi, tudo bom. Eu não falo com todo mundo naquela rua. Aquela rua
se você for conversar com uma pessoa, já acha que você falando
daquela pessoa, fofocando. Nira costuma freqüentar uma academia de
ginástica, demonstra se preocupar muito com sua aparência física. Não
participa de nenhum outro grupo além da Cooperativa e como lazer diz que
gosta principalmente de ir a festas: eu gosto muito é nos meus domingo ir
prum forrozim, não vou mentir. É forró, uma praia quando eu posso. (...)
Gosto de festa, adoro uma festa. Afirma jamais ter passado por internação
em hospital psiquiátrico e que se encontra em acompanhamento no CAPS
desde 2003 para onde foi encaminhada por uma médica que a atendeu em
um posto de saúde. Estar no CAPS para Nira não representa estar em um
ambiente de tratamento, mas de trabalho e de alívio para seus problemas
domésticos: [Desde esse período que você está aqui?] Sim. Mas, não tem
nada com negócio de remédio. [Você faz parte da Cooperativa e tem
psicólogo ou algum outro profissional que acompanha?] Nada disso aí.
Nada. [Só vem pra Cooperativa.] pra Cooperativa pra uma ajuda
porque eu preciso sair [de casa], o problema é de casa. Aqui eu não
sentindo nada. Lá em casa eu sinto dor de barriga, mal-estar, aquela
agonia, é dor de cabeça. Ao falar de sua participação na Cooperativa
demonstra satisfação e orgulho pela qualidade dos tapetes que produz,
porém sente vergonha de sua baixa remuneração (valor mensal comumente
redistribuído entre os cooperados após a venda dos produtos), muitas vezes
mentindo sobre o valor para evitar constrangimento: Tem uma mulher na
academia que viu o meu tapete e achou muito bonito esse tapete e acha
65
Este é um apelido pelo qual é chamada comumente por seus familiares.
66
muito bem feito esse tapete.(...) Quando eu ela disse que é não sei o
que Cooperativa das Cooperativas, que registrada, que ganha um
salário. eu tenho que mentir (...). Quanto é que tu ganha? eu não sei
nem aonde é que eu fico. Não, eu faço tapete, a gente assina lá, aí ela junta
aquele dinheiro, a gente assina o ponto, a gente fica ali, num pouquim,
pouquim, mas dá. E quanto é o pouquim? Eu disse assim: mulher, um
salário mínimo não é duzentos e tantos reais? é assim, quando chega
naquele mês, se a gente faltar a gente tá em falta ganha aquela
metade daquilo que pode ganhar. (...) Aqui eu digo que ganho um salário
porque faz vergonha dizer que eu ganho dez reais por mês ...
Fátima,
66
59 anos, solteira, evangélica, natural de Fortaleza. Estudou até o
2º grau e atualmente trabalha apenas na Cooperativa, onde se dedica a
atividade de costura, principalmente, feitura de bonecas de tecido. Reside
com uma sobrinha e o filho dela. Fátima considera essa sobrinha uma irmã,
pois “foram criadas juntas”. Diz que a casa é dividida em duas, sendo uma
parte sua e a outra onde reside a sobrinha com o filho. As casas têm em
comum apenas a área da frente. Sobre os recursos financeiros para suprir as
necessidades básicas, Fátima diz que é seu filho recém-casado quem a
sustenta: Ele casou, mas mesmo assim ainda me ajuda porque eu não tenho
renda. Sobre o relacionamento com os vizinhos, revela que mora no mesmo
local mais de trinta anos e que mantém um comportamento reservado:
Minha vizinhança é de bom dia, só de cumprimentar. Eu não sou assim de
ficar na calçada conversando, deixando o que fazer dentro de casa pra ir
pra calçada conversar. Mas, não sou intrigada com ninguém, na hora que a
pessoa precisar de mim eu chego, na hora que eu precisar da pessoa ela me
serve, entendeu? (...) Eu dou preferência a ficar dentro de casa fazendo
meus trabalhos, minhas ocupações, do que ficar na calçada conversando.
Não é questão de querer ser melhor de que o fulano. Não. Passo, falo, se
tiver que perguntar alguma coisa e saber alguma coisa. A vizinha há muitos
ano que mora ali, tá com mais de trinta ano, nós se entrosa. E que eu saiba
ninguém nunca disse assim: a Fátima é antipática. Ninguém tem o que
dizer de mim, eu acredito que não, pelo meno até agora. Além da
Cooperativa Fátima participava de um grupo de dança, mas as atividades
por enquanto estão paralisadas. Entretanto, salienta que pretende prosseguir
tão logo o grupo retorne a ativa. Também pratica hidroginástica duas vezes
por semana e iniciou recentemente um curso de informática. Nos momentos
de lazer gosta de visitar seus familiares. Nunca esteve internada em hospital
psiquiátrico. Freqüenta o CAPS três anos. Antes era acompanhada por
profissionais do HUWC e de foi encaminhada para o CAPS. Ao falar do
atendimento recebido demonstra satisfação: eu acho ótimo. Acho bom. Eu
acho ótimo porque, agora faz como se diz assim, aqui foi a tábua de
salvação. O tratamento assim em termos de saúde aqui foi a tábua de
salvação. Eu acho, acho bom. Não tenho o que dizer não. Aprendi muita
coisa com a doutora terapeuta, doutora ... [revela o nome da profissional]
que é enfermeira-terapeuta, ela é ótima, ela diz palavras assim mesmo de
incentivo e se a gente por em prática, a gente levanta.
Graça,
67
46 anos, casada, católica, natural de Quixadá-Ce, estudou até a
série do grau. Sexta filha de uma família de sete irmãos, saiu de Quixadá
com seus familiares para residir em Fortaleza no ano de 1977. Trabalha
66
Preferiu ser identificada pelo próprio nome.
67
Preferiu ser identificada pelo próprio nome.
67
como comerciante em estabelecimento próprio, em casa, além de revender
cosméticos e atuar na Cooperativa. Reside com o marido e duas filhas.
Afirma que é seu companheiro, também comerciante, quem sustenta a casa
economicamente. Cada um é responsável por um estabelecimento
comercial. Ao ser indagada sobre sua participação em assumir despesas
domésticas, Graça diz que os dois participam, mas o dinheiro dela se
destina mais as compras para as filhas. Com alimentação e outros gastos
fixos da família é seu marido quem se responsabiliza. Sobre o
relacionamento familiar, revela sofrer apenas com conflitos com sua filha
adolescente: Eu tenho um sofrimento porque minha filha de 14 anos está
numa fase de idade muito ruim, ela me fazendo sofrer muito, tem dias
que eu fico muito nervosa porque ela tá muito rebelde comigo, respondona,
tanto comigo como com o pai, querendo viver na rua direto, sem querer
fazer as coisas em casa, só faz na hora que quer, responde muito. O
problema só é esse. Com os vizinhos as relações são boas, reside na mesma
casa treze anos. Além de participar da Cooperativa, Graça freqüenta
regularmente um grupo religioso e diz que seu relacionamento com as
pessoas desse grupo é muito bom: eu me dou muito bem mesmo com eles,
gosto de participar porque eu me dou muito bem. A gente que tem esses
problemas assim quanto mais amizade a gente tem, né? Mais entrosamento
com as pessoas. É um pessoal muito bondoso, eu me dou muito bem com
eles. O lazer se resume a participação das atividades da comunidade
religiosa e a missa aos domingos. Afirma nunca ter sido internada em
hospital psiquiátrico. Seus tratamentos antes de ingressar no CAPS foram
apenas em nível ambulatorial com neurologista por quem foi orientada a
procurar o CAPS três anos. Manifesta contentamento com o
acompanhamento oferecido pela equipe técnica do CAPS, mas revela
insatisfação com a postura adotada com os usuários por um funcionário: Dei
início no mês de fevereiro que agora faz três anos que eu estou aqui, me
dou muito bem mesmo. (...) É o seguinte: o atendimento que venho
recebendo aqui eu me dou muito bem, (...) sobre aqui, no geral, dos outros
eu não tenho o que dizer, mas o problema aqui que a gente sofre um pouco
é um funcionário que tem aqui que é o ... [revela o nome], ele não
atenção a gente, a gente vai falar com ele e ele trata a gente com
ignorâncias, muito ruim. Então, se a gente é doente dos nervos, vem pra um
posto fazer um tratamento e chega no posto e fica sendo mal tratado pelos
funcionários, então, não tem como a gente ter melhora. vem pra a
procura de socorro pra melhorar, em casa nervosa e tudo, vou pra o
CAPS que no CAPS é melhor, eu tenho mais sossego lá e, quando chega
aqui vai e ainda fica agüentando ignorância também, então, não é? Mas,
sobre esses assuntos, é só isso aqui. Expressa gostar de participar da
Cooperativa, entretanto, tece crítica a forma como muitas vezes é conduzido
o ingresso de pessoas nesse grupo: Pra mim é o seguinte: eu gosto muito da
Cooperativa, agora o problema daqui é porque não tem assim um modo
melhor, ali botam qualquer pessoa, pessoas que nem tem atividade e ficam
fazendo as coisas sem experiência [Como assim?] Tanto faz ter
experiência como não. [Como assim?] Assim, por exemplo, qualquer
pessoa que entra, depois que formamos a Cooperativa, quantos novatos
não entraram? Uma pessoa entra [no CAPS], início a terapia
[refere-se a terapia ocupacional], no mesmo dia bem dizer ela ali
dentro da Cooperativa. O erro que eu acho é esse, ali bota, aqui, vai
fazer isso. a pessoa não sabe nem, não fez a terapia ainda pra pegar a
prática, ali, vai ficar ali aprendendo, aprendendo, então, eu
não acho isso bom, eu não vou mentir não.
68
Pedro,
68
34 anos, casado, católico, natural de Itapiúna-Ce. Terceiro filho de
uma família de seis irmãos, mudou-se para Fortaleza quando ainda era
criança. Estudou até a 2ºsérie do 2ºgrau. Aposentado, trabalha atualmente
na Cooperativa. Reside apenas com sua companheira. O sustento
econômico da família se através de sua aposentadoria e da renda da
companheira que trabalha como costureira: Ela é costureira e eu sou
aposentado. Nós dois juntamos o nosso dinheiro e formamos uma força. A
respeito de seu relacionamento com a companheira comenta apenas que ... é
bem estável. Com os demais familiares (pai, madrasta, irmãs), entretanto, o
relacionamento é difícil, pois lhe tratam com descaso, indiferença. Sobre o
motivo desses problemas, acrescenta: Porque são problemas que causa
assim, como se eu fosse uma pessoa inválida que não prestasse pra nada.
(...) Eles acham isso. Como se eu fosse uma pessoa que não seja, [pausa]
sabe? [que não seja o que?], eles tem um lado deles de interesse assim,
porque eu não tenho nada pra oferecer a eles, nada pra oferecer assim em
termos de situação financeira. Pedro não participa de nenhum outro grupo
além da Cooperativa e nos momentos de lazer gosta de escrever e assistir
t.v.: Eu escrevo o dia-a-dia, as atividades que eu faço em casa. [Você
costuma escrever sobre a sua própria vida?] Minha própria vida. [você
me falou em alguma outra ocasião que você, inclusive, está escrevendo
um livro. E esse livro é exatamente um resumo dessas coisas que você
escreve? Seria por aí?] De tudo que passou na minha vida. Mas, eu não
falava só de coisas boas, eu falava muito era de coisas ruins. [Uma forma
de desabafo, talvez?] É. [Escreve alguma outra coisa além de sua vida?
Por exemplo, algum poema?] Alguma coisa de educação religiosa
(...).Gosto também de assistir televisão. Internou-se três vezes em hospitais
psiquiátricos, a última internação ocorreu aproximadamente cinco anos.
Está em acompanhamento no CAPS um pouco mais de quatro anos.
Procurou este serviço por sugestão de uma pessoa vinculada a Associação
de moradores de seu bairro e exprime muita satisfação em relação ao
atendimento que lhe é prestado: Excelente! Nota 10! É assim: terapeutas
ocupacionais, psicólogas, assistentes sociais, todas elas e, inclusive os
acadêmicos também me trataram bem, me tratam bem. Pra mim foi ótimo.
Berenice,
69
36 anos, solteira, católica, natural de Mulungu-Ce. Estudou até
a série do grau. Diz que sua profissão é costureira e que atualmente
trabalha apenas na Cooperativa. É a quinta dentre os onze filhos de seus
pais. A família mudou-se de Mulungu para Fortaleza 10 anos. Berenice
reside com os pais e seu pai é o responsável pelas despesas domésticas.
Entretanto, o dinheiro referente ao Benefício de Prestação Continuada
recebido por ela também tem contribuído para prover as necessidades
básicas da família. Caracteriza seu relacionamento com os familiares de
maneira positiva: Bom. (...) Convive assim, normal. De chegar, ficar normal
mesmo, quer dizer, convive normal, um relacionamento normal de
conversas, às vez quando pra conversar, conversa, o que vontade de
perguntar, pergunta. Além da Cooperativa atualmente Berenice não
participa de nenhum outro grupo, mas refere interesse em participar de um
grupo religioso. A respeito do que gosta de fazer nas horas de lazer
menciona: praia, adoro praia! E lazer assim de uma piscina e de uma casa
no sítio, assim. Dou o maior valor. Disse nunca ter sido internada em
68
Preferiu ser identificado pelo próprio nome.
69
Preferiu ser identificada pelo próprio nome. Acrescentou que antes sentia vergonha do nome porque achava
feio e agora está se sente bem com relação a isso.
70
Preferiu ser identificada pelo próprio nome.
69
hospital psiquiátrico, embora tenha passado por atendimentos de
emergência em instituições dessa natureza antes de ser encaminhada ao
CAPS. Tomou conhecimento da existência deste serviço por intermédio de
um profissional de um dos serviços de emergência em que foi atendida.
Freqüenta o CAPS quase três anos e avalia positivamente o atendimento
que recebe: Acho bom. [Bom como?] Bom assim, porque o medicamento
que passa tem na farmácia. Ou falta, às vezes a gente vai pegar, mas às
vezes não tem remédio. Teve um tempo que a não tava faltando, mas
agora tem alguns que passa muito tempo faltando. [E o atendimento em si,
dos profissionais? O que você acha?] Acho bom, acho bom mesmo.
[Explica como é esse bom] O bom é que eles são atencioso, conversa
normal, sem discussão.
Rosalba,
70
50 anos, divorciada, católica, natural de Limoeiro do Norte/Ce, é
a caçula de uma família de oito irmãos. Vive em Fortaleza desde seus treze
anos de idade, quando chegou a esta cidade para residir com uma tia.
Completou o ensino médio e trabalhou muitos anos como vendedora,
empacotadora e “repositora de produtos” em algumas lojas da cidade.
Rosalba fala dos locais onde trabalhou com muito orgulho: ... deixa eu dizer
as empresas tudim que eu trabalhei, posso? O primeiro emprego foi na
Samasa, trabalhei dois anos, isso foi em 75, (...) como vendedora. Da
Samasa passei para o Armazém do Sul, trabalhei sete anos e oito meses. Do
Armazém do Sul passei para a vencedora que hoje é Big Jeans e da
vencedora eu fui pro Armazém Atlântico, trabalhei sete anos e dez meses.
Do Armazém Atlântico fui pro Colégio Cristhus, trabalhei quatro anos lá,
(...) era auxiliar de serviços gerais. Trabalhei de 97 até 2001 que foi meu
último emprego. (...) Eu tenho vinte e seis anos de carteira assinada, vinte e
seis anos de INSS pago. Atualmente realiza suas atividades na Cooperativa,
dedicando-se prioritariamente as vendas e menos a confecção de produtos e
trabalha como autônoma vendendo cosméticos. Rosalba foi casada durante
nove anos e este relacionamento terminou quando o marido a abandonou.
Desempregada, sem condições de assumir as despesas domésticas, passou a
viver em companhia de sua irmã gêmea, porém a convivência resultou em
desentendimentos, fazendo com que Rosalba passasse a morar com sua mãe
que atualmente tem 81 anos e continua sendo sua companhia. As despesas
domésticas básicas são custeadas pela mãe que é aposentada e por um de
seus irmãos que embora não resida na mesma casa costuma ajudá-las
financeiramente. O dinheiro proveniente do trabalho de Rosalba se destina
prioritariamente às suas necessidades pessoais. Sobre o relacionamento com
a mãe destaca: às vezes eu discuto com ela, não vou mentir não. Às vezes eu
discuto, aborreço ela. Meu irmão disse que eu tivesse muito cuidado porque
ela tem problema de coração, evitar aborrecimento. Às vezes eu procuro
evitar, mas às vezes a gente num momento assim de raiva, às vezes
acontece de eu discutir com ela. [Mas, de um modo geral, como você
consideraria esse relacionamento?] Ela, ave Maria, ela me trata muito
bem, ela é uma santa como diz o ditado, é uma santa mesmo. Guarda as
coisas de comida melhorzinha guarda pra mim, mãe é mãe. [Vocês tem um
bom entendimento, então, no geral?] Tem, no geral é. Desentendimento é
muito comum, quem é que não discute hoje em dia, mãe e filho, por mais
boa que a pessoa seja, né? Eu vou fazer as compra pra ela porque ela não
pode ir ... Sobre o relacionamento com os irmãos, acrescenta: às vezes eu
discuto com uma irmã minha, às vezes ela me marca muito, não sei se é
70
porque eu tive esses problema de depressão, às vezes é porque acham
que eu sou ignorante, não sabe? Domingo mesmo eu tive um atrito com
meu cunhado, esposo da minha irmã, eu tive uma crise de choro. Em
relação aos vizinhos diz que não ter do que reclamar: Não tenho nada a
dizer, não. Logo a vizinha do lado de lá é evangélica, se fosse pelo gosto
dela eu ia ser evangélica também, que eu não mudo de religião de jeito
nenhum. Eu nasci católica e vou morrer católica, até o resto da minha vida.
Além da Cooperativa, Rosalba participa de um grupo religioso denominado
“Legião de Maria” que tem como uma das atividades visitar doentes:
Legião de Maria, eu visito os doentes nas casas, dou comunhão aos doentes
todas quartas-feiras. Refere-se ao seu relacionamento com esse grupo
religioso com muita satisfação: são bons demais. Eu não vou mentir pra
você não. Eu me sinto muito melhor, minha irmã cansa de dizer: você trata
muito mal o pessoal da sua família, a minha irmã mesma me disse, às vezes
ela é ignorante comigo. Eu me sinto muito melhor com as pessoas de fora
do que com os de dentro de casa, sabia? A minha irmã, agora eu vou dizer
pra você, ela pediu emprestado 900 reais do meu fundo de garantia do
Armazém Atlântico [refere-se a uma das lojas nas quais trabalhou] e
nunca me pagou até hoje. Andou me pagando os juros e depois não me
pagou mais. [O fato de você ter sofrido com depressão e de fazer um
acompanhamento em saúde mental isso traz pra você alguma
complicação no seu relacionamento com a família? Alguém te trata
diferente por conta disso ou não?] Eu noto, eu sinto isso, porque a minha
irmã foi dizer pro meu cunhado que eu não gostei, sabe? Que eu não era
uma pessoa normal. A minha irmã. Eu não gostei do que ela disse porque
eu acho que não era motivo pra ela dizer isso. Era? Me diga. Dizer que eu
não era uma pessoa normal porque eu falei um pouco ignorante com a
filha dele, só porque eu não tratei assim [nesse momento gesticula com as
mãos dando sinal de tratamento cuidadoso/carinhoso] (...). Mas, isso era
motivo, agora eu pergunto, dela dizer pro meu cunhado que eu não era uma
pessoa normal? Eu ouvi de fora, eu tava na cozinha e de fora eu
ouvi quando ela disse isso. Isso me chocou, ó, me chocou mesmo. (...)
porque eu tive uma depressão, achar que eu não sou uma pessoa normal.
Se eu não fosse uma pessoa normal eu não vendia produtos cosméticos que
é uma coisa de responsabilidade. É ou não é? Eu disse mesmo pra ela.
Agora porque ela é professora, fez pedagogia, fez mestrado, tudo isso.
Porque ela é formada e eu não sou? Qual é a diferença, hein? Eu tenho
vários cursos, deixa eu dizer logo os cursos: desenvolvimento pessoal e
profissional que eu fiz, ouviu falar na eleição no ano passado do PDT,
no comitê do PDT que eu fiz ano passado em setembro. Eu tenho
computação, relações humanas, motivação para o trabalho e
cooperativismo que é esse daqui. O de motivação para o trabalho eu fiz no
SENAC mesmo, três dias, mas valeu a pena. Agora o daqui não, fiz
cooperativismo, vai fazer dois anos agora em junho que eu fiz o curso de
cooperativa aqui, você sabe que sempre tá recapitulando, né? Eu tenho
cinco cursos. Você acha que se eu não fosse uma pessoa normal eu ia
enfrentar pra vender produtos cosméticos que luta com todo tipo de
cliente? Isso me chocou, o que ela disse comigo eu fiquei muito chocada
porque isso não era coisa que ela dissesse pro meu cunhado não, não tem
nada haver. Não gostei não. Sou uma pessoa comunicativa, trato bem meus
clientes, quando vejo que a pessoa não paga bem direito eu não vendo mais
praquela pessoa, eu passo pra outro tipo de cliente que saiba realmente
pagar em dias. É responsabilidade Yanne, mexer com dinheiro dos outros,
produtos. Se a pessoa não pagar quem paga sou eu. É toda na minha
responsabilidade. Revendedora você sabe como é, revendedora, né? A
71
respeito do que gosta de fazer como lazer informou: mexeu nos meus calo
agora, viu? (riso) Dançar forró. Dou o maior valor, vou sempre pros clube.
Saio num dia e chego no outro. Finais de semana. Não todos finais de
semana, é claro, porque senão eu vou ficar muito conhecida, mas eu
conheci um coroão foi na festa. Ele tem quase 60 anos, tem 58, vai fazer
agora em setembro. (...) É tipo uma terapia, eu me sinto bem corporalmente
e espiritualmente. [Dança bastante ...] Bastante, passo a noite dançando. A
festa começa mais ou menos 15 pras 10 e termina 5h da manhã. venho
quando termina. Chego em casa 7h da manhã. [Então, seu lazer é esse] O
lazer que eu gosto mais é festa. Eu não posso ir pra praia porque eu tenho
problema de pele, um problema seríssimo de pele. Ao ser indagada se foi
internada em hospital psiquiátrico, disse: graças a Deus não. Não porque a
gente tem que dominar a doença e não a doença dominar a gente. Rosalba
está em acompanhamento no CAPS desde agosto de 2002 quando estava
sofrendo de depressão e procurou este serviço por indicação de uma amiga:
Porque foi no tempo que eu vivia chorando, foi até a minha colega que
veio comigo, a questão da depressão, né? Só vivia chorando no fundo duma
rede. [Você ficou sabendo do CAPS como?] Através de uma amiga minha
que me disse. Tanto que nesse dia eu nem vim só, eu vim com uma colega
minha que era muito minha amiga mais de 20 anos. Ela veio comigo até
aqui, eu chorava que nem uma criança. Eu não tive essa depressão não,
eu tive antes, quando eu trabalhava na Samasa em 75, já tive esse problema
já. Avalia o atendimento dos profissionais do CAPS de maneira positiva,
mas critica o trabalho de alguns funcionários que trabalham na recepção: Eu
acho a médica é muito boa, agora as pessoas que trabalham na recepção
(...). Tem umas duas [refere-se a duas funcionárias do CAPS] alí na
recepção que parece que tem é preguiça, atende a gente mal às vezes, não
sabe? Assim, não é questão de atender mal, a gente pergunta uma coisa às
vezes não sabe o que é. (...) A pessoa tem que ter atividade, dar atenção
direitim. [Além da médica você é atendida por quem mais aqui no
CAPS?] pelo pessoal da recepção pra marcar a volta. (...) Eu fui pra
terapia ocupacional, terapeuta. Agora pense numa pessoa boa,
maravilhosa, eu fui. Atualmente Rosalba diz que é acompanhada pela
psiquiatra e realiza atividades da Cooperativa.
Sílvia,
71
34 anos, casada, católica, nascida em Fortaleza/Ce, é a caçula de
uma família de nove irmãos. Completou o grau, trabalhou algum tempo
como professora, mas atualmente trabalha apenas na Cooperativa. Reside
em companhia de seus dois filhos, pais e três irmãs. Seu companheiro
dorme na casa de um irmão, pois segundo Silvia, a casa em que moram
não tem espaço para todos. A família está vivendo em uma casa alugada
quase 01 ano, pois suas casas estão em reforma. A casa de Silvia foi
construída no mesmo terreno da casa de seus pais (no quintal) e ambas estão
sendo reformadas algum tempo. Seu companheiro, atualmente
desempregado, é o responsável pela reforma, sendo remunerado pelo sogro:
meu marido não es morando comigo, mas não é porque a gente teja
separado, é porque é assim: a minha casa mesmo em reforma, eu
moro nos fundos da casa e em reforma toda. Aí a gente alugou uma casa
e é pequena pra caber todo mundo. o meu marido com o irmão dele.
Todo dia ele vai pra casa, tudim, não faz dormir porque a casa não
cabe. (...) E é o meu marido que tá ajudando a reformar, meu marido é que
reformando a casa. Atualmente uma irde Silvia, que trabalha como
71
Preferiu revelar seu nome.
72
professora, e o pai, aposentado, são os responsáveis pela manutenção
econômica da família. Silvia caracteriza o relacionamento familiar de
maneira positiva: é muito bom, nós somos muito unidos, uma ajuda a outra,
assim, é muito bom. (...) a gente vive numa boa. Diz que o relacionamento
com os vizinhos também é “muito bom”, são pessoas conhecidas muito
tempo, uma vez que Silvia reside com sua família na mesma rua desde seus
nove anos de idade: meus vizinhos são os mesmos, é uma família ali na rua.
Além da Cooperativa Silvia não participa de nenhum outro grupo e nos
momentos de lazer se dedica a trabalhos manuais comumente realizados na
Cooperativa: nos momentos de lazer? Eu gosto de fazer assim trabalho
manual, caixa, essas coisas, tá entendendo? É, eu gosto de fazer isso.
[Então, na verdade, o que você faz aqui na Cooperativa como trabalho
em casa você toma como lazer.] É, eu cubro caixinha, cubro enfeites, eu
dou o maior valor fazer esse tipo de coisa. Gosto demais mesmo. [Além
disso, tem mais alguma coisa que você costuma fazer como lazer?]
Passear, levo meus meninos, às vezes a praia com meus amigos, meus
irmãos. Nega internação em hospital psiquiátrico e afirma jamais ter
realizado qualquer tratamento em saúde mental antes de se vincular ao
CAPS. Freqüenta este serviço há quase um ano quando foi encaminhada por
um profissional que a atendeu em um posto de saúde. Diz que procurou o
CAPS após tomar conhecimento de que seu filho mais novo tem diabetes,
fato que a abalou (e ainda a abala) muito emocionalmente. Sofre ao ver o
sofrimento do filho em internações hospitalares, aplicações freqüentes de
insulina e com restrições alimentares: eu fico nervosa demais por causa
disso, foi um choque. É, eu sou nervosa. Eu não tomo nenhum remédio
controlado, eu não tomo nada não. Acrescenta que não sofre preconceito
pelo fato de participar de atividades no CAPS ou por sentir o que ela
denomina “nervosismo” e salienta que não tem nada na cabeça”: porque o
nervosismo que eu sinto é o medo que eu sinto dele [refere-se ao filho
mais novo] sentir alguma reação, de ir pra o médico de novo, dele se
internar de novo, tá entendendo? Fico tensa. Eu não tenho nada na cabeça
que eu seja anormal. Nunca tive esse problema nem na minha família
nunca teve. Mas é assim, foi um choque porque eu nunca esperei. Na minha
família não tem ninguém diabético, nem pressão alta, colesterol. Aí,
glicemia alta, ele [refere-se novamente ao filho mais novo] fica enjoado,
fica agressivo, fica tudo, vai pro médico e eu fico tensa porque ele já
passou muito tempo internado no hospital Walter Cantídio [localizado
em rente ao CAPS], se internou no Albert Sabin [hospital infantil
localizado em Fortaleza], fico vendo a hora o menino sentir alguma
coisa, ter que se internar. Já bem na rua depois da minha tem uma senhora
que a filha dela morreu agora faz pouco tempo, diabetes também, a menina
tinha 13 ano, começou com uma dor de cabeça e ela não ligava, dor de
cabeça, dor de cabeça, a menina foi e perdeu uma visão, internou,
internou e morreu porque a diabetes tava em cima. Aí, quer dizer, fico
com aquele medo. Meu menino toma insulina duas vez ao dia. Não é que eu
tenha nada na minha cabeça. Silvia afirma que, embora tenha marcado sua
consulta inicial, jamais foi atendida por um médico ou psicólogo no CAPS.
Inicialmente foi acompanhada pela terapia ocupacional e posteriormente
engajada na Cooperativa, sua única atividade no CAPS atualmente. Sobre o
que representa o trabalho na Cooperativa destaca: não sei nem dizer [nesse
momento parou e pensou um pouco] pra mim acho que é como se fosse
um refúgio, quando eu aqui eu esqueço meus problemas, entendendo?
Enquanto eu fazendo aquilo eu distraindo, eu acho assim excelente. O
CAPS pra mim foi o melhor remédio que apareceu, entendendo? Eu
nunca tinha ouvido falar de CAPS, antes de eu ter problema com o meu
73
filho eu nunca tinha ouvido falar de CAPS. Eu vim pra cá, mas eu achava
que não ia resolver porque eu achava que isso aqui não tinha nada haver
comigo, o meu problema era com meu filho e aqui não iam resolver nada.
Mas, não. Aqui é excelente, é ótimo, uma maravilha. Eu gosto de vim pra
cá, faço o possível pra vim pra porque eu moro longe, pego ônibus e
tenho que vale, nem sempre eu tenho, mas eu não falto porque eu gosto
das pessoas aqui, eu gosto de fazer o serviço, eu sempre gostei de cobrir
caixinha, essas coisas e aqui completa. É ótimo, excelente.
74
CAPÍTULO IV
Discursos e as práticas que constituem a institucionalização da
"loucura"
Não posso me eximir de destacar aqui uma realidade, no mínimo curiosa,
sobretudo no âmbito acadêmico, em relação ao estudo ora exposto. Comumente me
indagavam sobre a pesquisa que subsidiaria minha dissertação de mestrado e ao
revelar os sujeitos que pretendia tomar como interlocutores, ou melhor, as “vozes” que
pretendia ouvir e evidenciar no trabalho, geralmente, era interpelada com colocações
como: você acha que vai conseguir concluir seu trabalho?” “Como vai tomar os
loucos como informantes, se eles são desprovidos de racionalidade?” “Não seria
melhor entrevistar profissionais que trabalham nessa área ou os familiares dos
loucos?”
Indagações como essas sugerem um certo pensar sobre a "loucura" que não
exprime preconceito em relação a quem se convencionou nomear de louco, mas
também uma compreensão histórica e social acerca da "loucura" como uma
experiência oposta à razão e, por conseguinte, incapacitante do Ser. Esta percepção
parece comum entre os que se dizem "não loucos". E os nominados de loucos, como
concebem a "loucura"?
4.1 A percepção da "loucura" por aqueles que são nominados de "loucos"
A concepção que se tem a respeito da "loucura" oferece implicações à
forma como se percebe a proposta de reforma psiquiátrica, principalmente ao
considerar seu princípio de desinstitucionalização. Assim, à discussão acerca da
reforma psiquiátrica em Fortaleza se mostrou imprescindível abordar o próprio
fenômeno "loucura" e seu processo de institucionalização. Para tanto, cabe trazer a
cena os próprios interlocutores desse estudo por intermédio de seus discursos. O que
pensam sobre a chamada loucura?
75
Eu não sei realmente o que significa a loucura, mas eu acredito, eu
concordo com aquele senhor do filme que eu assisti até no IPC [refere-
se ao Instituto de Psiquiatria do Ceará], eu não lembrado o nome do
filme, mas era um rapaz que usava drogas. No final do filme o homem falou
que a loucura acontece por uma desilusão amorosa, não é bem desilusão, é
uma, tipo assim, uma coisa que não deu certo, como é que se chama? É, eu
acho que é, né, desilusão? Pois é. Isso e também por fome, uma pessoa que
passa necessidade. acontece de ficar louco, fazer loucura. E eu
concordo. Não tanto assim com essa desilusão amorosa, mas também,
perda na família que ele falou, também acarreta, acontece loucura
também.(...) A pessoa que passa fome mesmo ela faz loucura (...).[Quando
você diz “faz loucura”, você pensa a loucura em que sentido?] Loucura
é fazer coisa, eu pelo menos, eu fazia isso: eu morava no Planalto
Caucaia, sabe aonde é o Planalto Caucaia? Então, eu pegava dois baldes
d’água e ia buscar água no Icaraí com os baldes d’água na mão e não
tinha hora pra mim ir, era de madrugada, era qualquer hora, meio dia,
porque eu ia no Sine e não conseguia emprego, eu pensava em trabalhar
e a forma que eu achava de trabalho era essa. Entre outras. Quando eu
vinha, eu dava água aos animais no meio da rua, às vezes encontrava um
caju, comia, uma manga velha na rua, suja, eu comia, fazia essas coisas
porque eu precisava e entre outras coisas que eu nem vou falar. Até que
uma vez quando eu ia buscar água nesse Icaraí quando dois elementos me
acompanharam e deram uma mãozada nos baldes, os baldes caíram, eram
dois, um dentro do outro, caíram e de lá eu dobrei pra trás e não olhei nem
pra eles, fui embora porque era aquela hora e eu acreditava que ali era até
mesmo um pouco de loucura porque eu não imaginava o horário que
poderia ser perigoso, mas devido as dificuldades que eu tava atravessando,
passando fome, eu fazia coisas assim. (Quim, depoimento concedido em
14/03/05)
Quim apresenta uma compreensão bastante peculiar em relação às demais,
pois associa "loucura" a pobreza, privações, fome, talvez pela sua própria experiência
de vida marcada por dificuldades dessa natureza. De fato, diante da violência diária de
sobreviver com um salário-mínimo ou até com a ausência deste, da precariedade das
condições de existência a que estão submetidos tantos brasileiros, enlouquecer seria
uma alternativa de sobrevivência, a “loucura” torna-se uma espécie de “refúgio” para
alguns sujeitos que “teimam em sobreviver” em meio a essa violência que
cotidianamente vem sendo banalizada.
Dentre todos os discursos a noção de "loucura" guiada por uma perspectiva
racionalista se mostrou preponderante como se pode ver nos depoimentos a seguir:
A pessoa que não sabe o que tá fazendo. É uma pessoa que não tem
capacidade de, como é que eu quero dizer? Não tem capacidade de fazer as
coisas direito (...). [Então, loucura pra você é o que exatamente?]
76
Loucura pra mim é quem não tem juízo [riso]. (Antônio, depoimento
concedido em 16/03/05)
Loucura é, a minha compreensão é perder a memória, não saber o que
fazendo. (...) A loucura é perder a memória mesmo. (...) a coisa mais ruim
que tem é a pessoa perder a memória, a gente faz coisa que não é pra fazer.
(Lindalva, depoimento concedido em 16/03/05)
Loucura eu acho que é aquele que rasga dinheiro, não é não? [risos] E,
come bosta [risos]. (Francisca, depoimento concedido em 16/03/05)
Pra mim loucura é pessoas que não sabe o que é que estão fazendo, não
tem discernimento de nada. eu acredito que seja uma pessoa louca. Faz
coisas que não sabe nem o que é que tão fazendo, sem o controle, é isso que
eu acho que seja loucura. Não tem iniciativa própria, não sabe resolver as
coisas, pessoas anormais que vive exclusivamente dando trabalho os
outros. Embora não querendo porque a loucura não é uma coisa que a
pessoa quer, mas infelizmente, trabalho a família. (Fátima, depoimento
concedido em 28/03/05. Grifos meus)
A loucura? A loucura eu acho assim, quando a pessoa endoida mesmo da
cabeça, é quebrando, como esse rapaz aqui ... [menciona o nome de um
dos outros cooperados], eu acho que ele não é normal não, aquilo não é
normal não. Eu me assustei uma vez, eu me assustei. E como aquela menina
que tira a roupa, aquela menina que é bailarina, ela tirou a roupa. Eu vi
ela só de calça aqui. Ia correr nua, não correu por causa de mim. Ela não é
normal. (...) É isso, a pessoa tira a roupa. Que nem a cabeça do ... [cita o
nome de mais um dos cooperados], eu acho que não é normal não.
Porque se ele assim, vendo uma coisa, ele diz: eu vou te matar! Ele
pegou o pobre do ... [menciona o nome de um dos funcionários do
CAPS], puxou a roupa dele e deu um murro. Não é normal não. Mas,
chamar eu de doida? Não sei nem o que é isso meu Pai. Por que doida, por
exemplo, um tapete desse [exibe o tapete que está confeccionando], se eu
sou doida eu vou fazer de qualquer jeito (...). (Nira, depoimento concedido
em 28/03/05. Grifos meus)
A loucura? (...) Eu acho assim, por exemplo, a pessoa que é mental não tem
assim entendimento, não tem capacidade pra nada, não tem mente certa, ali
não tem negócio de fazer uma luta [refere-se a trabalho] porque não tem
capacidade pra fazer nada daquilo porque se é mental, pensa coisas
ruins, tem coisas ruins na cabeça, tudo. O que eu acho é isso. (Graça,
depoimento concedido em 30/03/05)
Loucura? É quando você faz coisas erradas, quando a pessoa faz coisas
erradas, é loucura. [Como assim?] Assim: tirar a roupa, ficar nu e
[risos] sair, [risos] sair no meio da rua [risos], é isso. (...) Loucura é você
fazer uma frase e você misturar as estações. É isso. (Pedro, depoimento
concedido em 30/03/05)
77
Loucura? Ave Maria! Loucura é uma pessoa não saber o que tá fazendo na
cabeça, a cabeça fica sem saber, sem destino mesmo, só dá vontade de você
andar muito, não tem destino não. Dá vontade de andar no meio do mundo,
não as casas, não nada, andar no caminho, no meio do mundo. É,
acho que é isso a loucura. Andando pelos cantos.(...) Eu acho que é isso, a
pessoa perder os sentidos, não saber mais o que fazendo. (Berenice,
depoimento concedido em 30/03/05)
A loucura? Eu acho assim que é a coisa mais triste que pode existir na face
da terra porque você sabe que quando a cabeça não funciona o corpo
padece, não é isso? (Rosalba, depoimento concedido em 18/05/05)
É um desvio mental. [Como assim?] Como é que eu poderia dizer? Não sei
nem como é que eu digo. Uma pessoa que não é equilibrada, uma pessoa
que faz coisa sem sentido, fala coisa sem sentido, tá entendendo? Um
transtorno, um desvio, uma coisa assim, faz coisas que não tem sentido,
fala também, não tem noção das coisa, né? Acho que é isso. (Silvia,
depoimento concedido em 18/05/05)
Antônio, Lindalva, Fátima, Graça e Berenice apresentam elementos comuns
em seus discursos. Para eles loucura” é “não saber o que está fazendo”, “não ter
capacidade de fazer as coisas direito”.
A compreensão de Francisca corresponde a uma percepção recorrente no
senso comum e, embora tenha lhe despertado riso, soado um tom de brincadeira, é
explicitamente depreciativa. Também sugere o sentido de “não saber o que faz”, de
irracionalidade.
Nira, Pedro e Silvia associam “loucura” à noção de anormalidade,
comportamento “desviante” - despir-se em público -, erro, falta de sentido. No
discurso de Nira, porém um elemento incomum aparece, isto é, a “loucura”
relacionada a violência.
Rosalba também apresenta uma compreensão particular e ao mesmo tempo
de certo modo identificada com a visão funcionalista, associa “loucura” a uma
condição infeliz de existência, ao que pode existir de mais triste. Loucura seria uma
disfunção.
78
Essas noções de “loucura” - “não saber o que está fazendo”, incapacidade,
anormalidade, ausência de sentido, erro, violência - estão vinculadas essencialmente à
idéia de “loucura” como sinônimo de (des)razão, significado esse que tem raízes
históricas profundas.
4.2 Razão e não razão: se penso não posso estar louco, se sou louco, não posso pensar ...
No sentido de compreender os meandros que envolvem discursos e práticas
em relação à "loucura" e ao chamado louco no curso da história, recorro ao
pensamento de Michel Foucault em História da loucura na idade clássica (1999a)
72
por se revelar elucidativo.
A idéia de "loucura" como contraponto à razão teve seus movimentos
iniciais na Renascença radicalizando-se na época clássica, período de predomínio da
visão cartesiana.
No caminho da dúvida, Descartes encontra a loucura ao lado do sonho e de
todas as formas de erro. Será que essa possibilidade de ser louco não faz
com que ele corra o risco de ver-se despojado da posse de seu próprio
corpo, assim como o mundo exterior pode refugiar-se no erro, ou a
consciência adormecer no sonho? (Foucault, 1999a, p.45).
Na época clássica radicalizou-se o processo de dominação da loucura pela
razão. O pensamento de Descartes foi um marco nessa transformação, pois ao afirmar
que se alguém pensa, não pode estar louco e, se alguém é louco, não pode pensar,
excluiu a loucura do campo da razão. Loucura e pensamento seriam incompatíveis, o
que culminou na redução daquela ao silêncio.
Pode-se afirmar que se Descartes representou o marco filosófico no domínio
da loucura pela razão, a criação do Hospital Geral foi seu marco institucional. Aliás,
esta instituição teve significativa expressão no que Foucault (1999a) denominou de a
72
Nesse livro Foucault não trata de uma história da psiquiatria, envolvendo seus conceitos basilares ou teorias e
métodos historicamente a ela relacionados. Sublinha a relação entre a racionalidade moderna e o processo de
dominação que encerrou por tornar a loucura objeto de ciência. Ou seja, Foucault evidencia a história da
ocultação da loucura pela razão. Para tanto situa três momentos históricos como “recorte” de suas análises, quais
sejam, a Renascença, o classicismo e a modernidade.
79
grande internação.
Nesse período o Hospital Geral não tinha o sentido médico que usualmente
lhe é atribuído, não apresentava, portanto, caráter médico-curativo, mas de assistência,
colocando-se entre a polícia e a justiça, assumindo-se assim, como uma “terceira via”
de repressão não no sentido de cura dos “loucos”, mas de exclusão dos que
representavam “ameaça” à sociedade.
... o Hospital Geral não é um estabelecimento médico. É antes uma
estrutura semijurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao
lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decide, julga e
executa. (...) Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelações, direito
de execução contra o qual nada pode prevalecer
o Hospital Geral é um
estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites
da lei: é a terceira ordem de repressão. (...) Em seu funcionamento, ou em
seus propósitos, o Hospital Geral não se assemelha a nenhuma idéia
médica. É uma instância da ordem ... (Ibdem, p. 49-50).
73
Essa caracterização do Hospital Geral como instância da ordem lembra a
figura da prisão também evidenciada e problematizada por Foucault em Vigiar e punir
(2002). Dentre os aspectos evidenciados nesse livro, destaco a disciplina como um
dispositivo de poder comum aos espaços prisional e hospitalar.
A disciplina permite o controle minucioso do corpo, realiza a sujeição de
suas forças e lhe impõe uma relação de docilidade-utilidade. É dócil um corpo que
pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado
(Foucault, 2002, p. 118).
De acordo com Foucault, à distribuição espacial dos indivíduos a disciplina
utiliza diversas técnicas, dentre as quais tem-se a cerca, definida como (...) um local
heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo (2002, p. 122). Esta técnica
comum às prisões, além de lembrar o que na época clássica se chamava Hospital
Geral, nos remete à figura moderna do hospital psiquiátrico, fechado em si mesmo,
resguardado por seus muros altos e grades de ferro intransponíveis, embora se
73
Grifos meus.
80
apresente como espaço de “tratamento”.
A organização dos espaços, inerente ao exercício da disciplina, pode ser
identificada no hospital psiquiátrico na divisão dos internos por “alas”, de acordo com
o sexo, o diagnóstico e suposto “grau de agressividade/periculosidade”.
74
Ao abordar sobre experiências de internação em hospitais psiquiátricos com
interlocutores da pesquisa o caráter prisional (fechado) do hospital psiquiátrico foi
revelado.
... eu fui internado assim, na marra mesmo, na força, porque eu não queria.
Eu achava que, eu não sabia como é que ia ser quando eu ficasse só, se
iam me tratar como uma pessoa doida mesmo eu mesmo não queria. Eu fui
internado mesmo, foram os meus parentes que me internaram, mas, foi na
marra e, pra mim entender que ia ser um tratamento que ia me beneficiar
demorou muito, só mesmo com a convivência mesmo foi que eu fui entender
que era pro meu bem, que eu realmente tava precisando de um tratamento
porque eu tava muito magro, desnutrido, carente. Eu não tinha dinheiro,
não tinha emprego, tava muito e meus parentes tavam passando
dificuldades, não podiam, assim, me auxiliar no que eu precisava, eu fui
internado e eu entendi que foi uma coisa boa pra mim, no jeito que eu
tava, naquele período que eu tava passando, aquela fase, então foi uma
coisa boa. (...) Eu fazia coisa que agora eu não faço, não faço de jeito
nenhum. Eu acredito que fiz essas coisas desse tipo, mas foi por causa da
minha fraqueza, eu passava necessidade, fome, não me alimentava direito
e se eu fosse dizer tudo que eu fiz, é porque eu tenho vergonha de dizer.
Mas as pessoas viram que eu precisava mesmo ser internado, tanto é que
me internaram, me pegaram a força e levaram, me internaram. (Quim,
depoimento concedido em 14/03/05. Grifos meus)
Inicialmente Quim deixa transparecer a noção de hospital psiquiátrico como
“lugar de salvação”, provavelmente por ter se tratado do único espaço que lhe foi
possível responder de alguma forma as suas necessidades mais elementares, sua
magreza, desnutrição. A fome é um aspecto recorrente em seus discursos. Diante de
sua situação precária, como Quim poderia não avaliar um espaço como esse de
maneira positiva se o havia outra alternativa para subsistir? Mas, isto não o impediu
74
Lembro-me agora da minha primeira visita a um hospital psiquiátrico, comentada anteriormente, quando a
assistente social me mostrava ao longe a “ala dos doentes mais violentos”. Durante minha experiência de estágio
em outra instituição da mesma natureza pude ouvir algumas vezes, profissionais mencionarem que era mais
adequado o(a) “paciente A” dividir o quarto com “pacientes B, C, D” (etc.) por serem calmos(as) e
cooperativos(as), não sendo interessante encaminhá-lo(a) para próximo de ‘X, Y, Z” (etc.), os(as) “mais
81
de identificar o cerceamento de sua liberdade e a sensação de desproteção quando
estava internado:
... eu tinha lido na minha carteira profissional que todo homem é, na
carteira profissional tem que todo homem é livre, tem a livre escolha de
emprego, essas coisa assim, eu tinha lido. quando me colocaram no
Nosso Lar [nome de um dos hospitais psiquiátricos de Fortaleza], à
força, na marra, eu pensei: que liberdade é essa que todo homem é livre e
eu desse jeito, colocando assim sem eu querer. Eu queria sair, quando o
zelador ia passar na porta eu ficava empurrando pra sair. que quando
eu cheguei no Nosso Lar, assim que eu cheguei, eu tinha ido com um calção
assim meio rasgado, calção velho e era curto, tava rasgado já, aí os
enfermeiros me colocaram num quarto e trancaram o quarto, levaram a
chave. eles mesmos que abriam, eu não entendia e passava coisa
assim pela minha cabeça, coisa assim absurda pra pessoa compreender. Eu
pensava que porque o enfermeiro falou assim: daí vai pro lixo. que eu
acho que ele falou com o calção que eu tava, eu entendi que eu é que ia
pro lixo. Eu pensava que as pessoas iam me jogar amarrado na cama do
hospital, que eles amarram às vezes, né?, quando o paciente faz coisa
assim, chuta a porta, coisa assim, eles amarram. [Você passou por isso?]
Passei. Foi no primeiro dia que eu cheguei lá, porque eu pensava coisa
assim que não acontece, eu pensava que eles iam me jogar da ponte
metálica [refere-se aqui a chamada Ponte dos Ingleses, localizada à
beira mar de Fortaleza] amarrado na cama e daí vai pro lixo, eu entendi
que eu é que ia pro lixo, porque eles tavam quebrando lá, tava em reforma
e eu escutava aquelas pancadas (...). (Quim, depoimento concedido em
14/03/05. Grifos meus)
Essas palavras de Quim demonstram o caráter totalitário
75
do hospital
psiquiátrico, seu traço prisional. A imaginação que seria “jogado no lixo” para alguns
pode representar apenas mais um dos delírios de um internado, entretanto, a mim
sugere muito mais, revela como Quim se sentia naquele momento: com fome,
maltrapilho, solitário, amarrado ao leito, desvalido. O “lixo” parecia ser mesmo seu
destino final. Mesmo assim, a dificuldade de subsistência que o havia levado ao
hospital psiquiátrico era tamanha que depois de três experiências de internação
psiquiátrica, Quim consegue ver nessa instituição algo positivo: ser “guardiã da
miséria”.
trabalhosos(as)”.
75
Goffman em Manicômios, prisões e conventos utiliza a expressão instituições totais se referindo à tendência
de fechamento, na sua concepção, característica de toda instituição: (...) toda instituição tem tendências de
‘fechamento’. (...) algumas são muito mais ‘fechadas’ do que outras. Seu ‘fechamento’ ou seu caráter total é
simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão
incluídas no esquema físico
por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, flores
ou pântanos. A tais estabelecimentos dou o nome de instituições totais (2001, p. 16).
82
A noção de aprisionamento foi lembrada explicitamente por Francisca e
indiretamente por Pedro ao destacar sentimentos de humilhação e desamparo quando
internado:
Foi ruim [silenciou]. [Ruim por que?] Porque parece uma prisão. A
gente não nem o sol se pondo, parece uma prisão [silenciou].
(...)[Como era dentro?] dentro era ruim porque parecia uma prisão,
os doido arengava comigo [risos] e, eu arengava também com os doido
também. Eu fui até amarrada uma vez [Por quem?] Pelo pessoal de .
[Por que?] Porque a doida cismou comigo e eu fui bater na doida. Aí, eu
fui amarrada. [Amarrada como?] Amarrada numa máquina [refere-se a
maca], toda amarrada numa liga, deitada. (...) Deram um sossega leão. Os
pessoal pra amarrar a pessoa tem força. (...) Deus o livre de ir pra de
novo, pra nenhum canto. (Francisca, depoimento concedido em 16/03/05)
Tal como no discurso de Quim, o cerceamento da liberdade, com destaque
para a contenção física, foi lembrado por Francisca e isso parece ter sido tão marcante
em sua vida que descarta qualquer possibilidade de internar-se novamente. É o aspecto
totalitário do hospital psiquiátrico que mais uma vez vem à tona!
(...) pra mim era difícil porque eu gosto de ficar mais em casa. (...) Eu
tinha saudade da família, tinha saudade. (...) dentro era assim, eu não
podia dormir direito. [Por que?] Eles empurravam a porta. [Quem?] Os
pacientes. Eu tomava água suja de torneira porque não tinha filtro, não
tinha água pras pessoas. Tinha que pegar um copo pra poder levar pra
torneira e tomar água quente. [Torneira mesmo, não era de filtro?]
Torneira de pia mesmo. Era. E Pediam cigarro a gente. [Quem pedia?] Os
pacientes. Pedia duro [aqueles cigarros que fazem lá com o fumo?] É.
[E como você se sentia dentro dessa realidade?] Eu me sentia humilhado,
às vezes eu me sentia humilhado porque não era pra eu num lugar
daquele ali não, não era pra mim estar não. Porque ora eu era tratado
melhor e ora eu era tratado [faz um sinal com o polegar pra baixo
indicando algo negativo]. Se não fosse as enfermeiras que me tratasse
bem, o resto [silencia]. (Pedro, depoimento concedido em 30/03/05).
Dificuldades para dormir, a falta de visitas, ausência de água potável e a
mendicância por cigarros por parte dos outros internos são elementos que traduzem a
sensação de abandono sofrida por Pedro na condição de interno, isolado e obrigado a
se manter ali, em uma situação similar a de um detento. Humilhação é o termo que
traduz seu sentimento ao se perceber nessa situação. Embora se mostrando
conformado com o tratamento respeitoso oferecido por profissionais de enfermagem,
83
não reconhecia aquele espaço de internação como ideal para si.
A internação psiquiátrica foi - antes de assumir seu caráter curativo - e ainda
é, essencialmente, um espaço ordenador, repressor, isolacionista e punitivo. Os
discursos anteriormente destacados revelam a continuidade dessas características do
hospital psiquiátrico, seus traços prisional e disciplinar.
4.3 Disciplinamento e controle dos corpos
O exercício da disciplina no seu sentido de tornar o corpo "dócil" tem o
controle da atividade, mais especificamente, o controle do tempo, como outra técnica
relevante. Esta também pode ser observada no cotidiano do hospital psiquiátrico,
quando os internos devem respeitar os horários de banho, das refeições, de tomar as
medicações, dos atendimentos ou consultas, de receber visitas, entre outros. O tempo
penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder (Foucault, 2002, p.
129).
O adestramento, função maior do poder disciplinar, tem na vigilância um
importante recurso. De acordo com as análises foucaultianas, esse recurso constitui-se
(...) uma engrenagem específica do poder disciplinar.
76
A vigilância é (ou parece ser
aos vigiados) permanente e ilimitada, um olhar que permite ver tudo e não ser visto,
tal como o Panóptico de Bentham.
77
Quem ocupa o papel de vigilante no hospital
psiquiátrico?
Na condição de estagiária em um hospital psiquiátrico observei que os
profissionais terminavam assumindo a condição de vigilantes dos internos, inclusive
76
(Ibdem, p. 147)
77
O Panóptico tem como efeito principal (...) induzir no detento um estado consciente e permanente de
visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente
em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a
atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar presos numa
situação de poder de que eles mesmos são portadores (Ibdem, p. 166).
84
por intermédio de registros nos chamados “prontuários” que se referiam aos seus
comportamentos (se cooperativos” ou o, aceitando a medicação ou não etc.) e
discursos (“mutismo” ou “logorréia”, se “conexo” ou “desconexo” etc.). Trata-se de
uma pirâmide de olhares formada por médicos, enfermeiros, [assistentes sociais,
psicólogos, terapêutas ocupacionais], serventes (Machado, p. xvii In Foucault, 1999b).
A vigilância também se revelava na própria arquitetura da instituição.
Despertava-me atenção, por exemplo, a localização dos postos de enfermagem
próximo aos quartos, compartimentos comumente divididos por um extenso corredor
que favorecia a vigilância constante dos internos.
A disciplina implica um registro contínuo de conhecimento. Ao mesmo
tempo que exerce um poder, produz um saber. O olhar que observa para controlar
não é o mesmo que extrai, anota e transfere as informações para os pontos mais altos
da hierarquia de poder?(Ibdem)
Os sistemas disciplinares também apresentam uma dimensão punitiva, as
micropenalidades, isto é, beneficiam-se de leis, normas, regras e de julgamento
próprios.
Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma
micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções da tarefas), da
atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser
(grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo
(atitudes ‘incorretas’, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade
(imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a tulo de punição,
toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a
privações ligeiras e a pequenas humilhações (Foucault, 2002, p. 149).
No caso particular do hospital psiquiátrico, quais seriam as suas
micropenalidades? Arrisco-me a sugerir que estão relacionadas ao tempo (atraso ou
ausência), às atividades (desatenção, desinteresse), à maneira de ser (agressiva, não
cooperativa com o tratamento”), aos discursos (mutismo, logorréia), ao corpo
(atitudes “incorretas” ou “inadequadas” a situação, “higiene pessoal descuidada”), à
sexualidade (gestos obscenos).
85
Acredito que os casos de contenção do interno ao leito e/ou de deixá-lo em
quarto específico (trancado) por alguns dias com a finalidade de “observar a evolução
de seu quadro” ou de submetê-lo a superdosagens de medicações até mesmo de modo
a fazê-lo perder o controle dos movimentos de seu corpo por um certo tempo sob a
justificativa de tratamento são algumas das formas “sutis” de punição
(micropenalidades) no hospital psiquiátrico. Retomemos trechos dos discursos de
Quim e Francisca a esse respeito:
... Eu pensava que as pessoas iam me jogar amarrado na cama do hospital,
que eles amarram às vezes, né?, quando o paciente faz coisa assim, chuta
a porta, coisa assim, eles amarram. (Quim, depoimento concedido em
14/03/05. Grifos meus)
... Aí, eu fui amarrada. [Amarrada como?] Amarrada numa máquina
[refere-se a maca], toda amarrada numa liga, deitada. (...) Deram um
sossega leão. Os pessoal lá pra amarrar a pessoa tem força. (Francisca,
depoimento concedido em 16/03/05. Grifos meus)
Outro recurso para o “bom adestramento” apontado por Foucault diz
respeito ao exame, definido como uma combinação de técnicas relativas à vigilância e
normalização que se de modo extremamente ritualizado. É um controle
normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir (Ibdem, p.
154).
O “candidato à internação” ou o internado no hospital psiquiátrico também é
submetido a exame. No caso do primeiro, realiza-se o que comumente se denomina
“anamnese” e para o último, “consulta” ou “atendimento”. Para ambos o momento
“soa” como uma consulta, mas, essencialmente, termina assumindo a dimensão de
vigilância que qualifica (como “normal” ou “anormal”, “doente” ou “são”), classifica
(diagnostica) e pune (interna).
Ademais, o exame no hospital psiquiátrico, tal com na prisão, tem seus
“rituais”, métodos”, “personagens” e “papéis”, “jogos de pergunta e resposta” (ainda
que da resposta se escute o que for conveniente e que permita qualificar e
86
classificar), “sistemas de classificação”.
Retomando a História da loucura e o acontecimento da grande internação
que se deu em toda a Europa, cabe destacar a participação da Igreja. O Hospício surge
exatamente como iniciativa da Igreja de participar do processo de ampliação do
número de Hospitais Gerais nas cidades, empregando-lhe inclusive finalidades
similares.
... desempenhando um papel ao mesmo tempo de assistência e de repressão,
esses hospícios destinam-se a socorrer os pobres, mas comportam quase
todas as células de detenção e casernas nas quais se encerram pensionários
pelos quais o rei ou a família pagam uma pensão (...). Muitas vezes essas
novas casas de internamento são estabelecidas dentro dos próprios muros
dos antigos leprosários, herdam seus bens (...). Mas também são mantidos
pelas finanças públicas (...). Nessas instituições também vêm-se misturar,
muitas vezes não sem conflitos, os velhos privilégios da Igreja na
assistência aos pobres e nos ritos da hospitalidade, e a preocupação
burguesa de pôr em ordem o mundo da miséria; o desejo de ajudar e a
necessidade de reprimir; o dever de caridade e a vontade de punir ...
(Foucault, 1999a, p. 52-3).
É importante destacar que esse fenômeno da grande internação apresenta
amplo significado, uma vez que diz respeito às esferas social, moral, econômica e
política, revelando assim, a concepção de loucura característica da época clássica.
No que se refere à esfera social, a grande internação sugere uma mudança
na percepção do fenômeno pobreza, em que a visão religiosa cedeu lugar a uma visão
social. Nesse sentido, pobreza passou a assumir uma dimensão de desordem moral,
caracterizando-se sob uma negatividade, como empecilho ao ordenamento da
sociedade e, portanto, torna-se objeto de reclusão.
No plano econômico, destacam-se duas situações: desemprego e pleno
emprego. No período de predomínio daquele, a grande internação poderia oferecer
proteção aos cidadãos contra os possíveis problemas que os ociosos viessem a causar.
Quando do período de pleno emprego, serviria como meio” de se adquirir mão-de-
obra barata. Como diz Foucault de maneira elucidativa:
87
A alternativa é clara: mão-de-obra barata nos tempos de pleno emprego e
de altos salários; e em período de desemprego, reabsorção dos ociosos e
proteção social contra a agitação e as revoltas (Ibdem, p. 67).
O autor acrescenta, contudo, que essa atribuição econômica das instituições
de reclusão jamais se apresentou positivamente, uma vez que resultava no aumento do
desemprego em regiões próximas, além de intervir nos preços artificialmente.
A partir dessas análises, pode-se sugerir que não foi essencialmente
econômico o sentido da grande internação, afinal, na época clássica a categoria
trabalho estava atrelada muito mais a uma dimensão moral, a partir da qual se
compreendia a pobreza como desordem e não como resultado de desemprego. O
trabalho aparecia aqui como uma espécie de “arma” disciplinadora da pobreza.
Daí é possível identificar que o significado preponderante do internamento
reside no campo da moral. Seu significado político está na absorção dessa dimensão
moral à lei e à administração estatal, em que a repressão física passou a ser utilizada
como forma de correção do que estivesse às margens da ordem social.
O caráter moral do Hospital Geral é discutido por Foucault em vários outros
momentos de seu livro, quando se refere, por exemplo, aos “doentes venéreos”, parte
da população destinada ao Hospital Geral, ao destacar que este deve
... receber os ‘estragados’, mas não os aceita sem formalidades: é preciso
pagar sua dívida para com a moral pública, e deve-se estar preparado, nas
sendas do castigo e da penitência, para voltar a uma comunhão da qual se
foi expulso pelo pecado (1999a, p. 84).
Articulado a esse significado moral, o autor assinala outro conteúdo
importante relacionado ao internamento clássico e que evita uma visão simplista a seu
respeito, a noção de que a sua utilidade estava para além da exclusão de “imorais” e
“desordeiros”, constituindo-se como espaço produtor de homogeneização.
88
Em cinqüenta anos, o internamento tornou-se um amálgama abusivo de
elementos heterogêneos (Ibdem, p. 55). Ou seja, a grande internação produziu uma
população homogênea. Os “loucos” se encontravam em companhia de uma população
variada, mas todos apareciam sob uma uniformidade produzida por esse espaço de
reclusão e exclusão.
A hospitalização do “louco”, um costume presente, mesmo que de modo
limitado, na Idade Média e no período Renascentista, também existia na época clássica
a partir de uma noção de “loucura” como sinônimo de doença. Nesse período, o
“louco” era hospitalizado sob a esperança de cura para sua perda de razão através do
tratamento dispensado a qualquer doença, o que pressupunha sangria, purgações e, em
certos casos, vesicatórios e banhos.
78
Assim, a "loucura", nesse período, era considerada como doença integrada
as outras doenças e não especificamente como doença mental, inexistindo uma
especialidade médica disposta a tratá-la, tal como a psiquiatria. Desta forma, a teoria
sobre a “loucura” era elaborada tomando como base a doença em geral.
Uma questão fundamental nesse momento histórico é que a internação do
“louco” não se dava sob critérios próprios do conhecimento médico ou científico, mas
a partir da percepção social da loucura como desrazão. Isto é, o internamento do
“louco” correspondia à ordem da razão clássica. Desse modo, percebe-se no período
clássico um descompasso entre as teorias sobre a loucura e as práticas em relação ao
chamado louco.
A evidência do este aqui é louco’, que não admite contestação possível,
não se baseia em nenhum domínio teórico sobre o que seja loucura. (...)
Mas, inversamente, quando o pensamento clássico deseja interrogar a
loucura naquilo que ela é, não é a partir dos loucos que ele o faz, mas a
partir da doença em geral. A resposta a uma pergunta como: ‘Então, que é
loucura?’ é deduzida de uma análise da doença, sem que o louco fale de si
mesmo em sua existência concreta. O século XVIII percebe o louco, mas
deduz a loucura. E no louco o que percebe não é a loucura, mas a
inextricável presença da razão e da não-razão. E aquilo a partir do que ele
reconstrói a loucura não é a múltipla experiência dos loucos, é o domínio
78
Fosseyeux, M. L’Hôtel-dieu à Paris au XVII
e
et au XVIII
e
siècle. Paris, 1912 apud Foucault, 1999a, p. 113.
89
lógico e natural da doença, um campo de racionalidade (Ibdem, p. 187).
Outra perspectiva apresentada pelos interlocutores da pesquisa corresponde
a “loucura” como sinônimo de doença mental:
Eu não sei, é quando a pessoa sem saúde mental, não é que a pessoa
seja louca, que a pessoa seja doida, porque isso eu acho que loucura,
doido, doideira, eu acho que isso é uma expressão, como é que se diz, tão
grosseira pra quem tem esses problemas mentais. Por que mesmo as
pessoas dizendo isso, elas não vão conseguir ajudar as pessoas a se livrar
desses problemas mentais, chamando a pessoa de louca ou de doida. Então,
loucura é uma coisa que eu acho grosseira, uma palavra grosseira pras
pessoas que tem problema mental, da mente, pra mim isso é grosseiro, a
pessoa falando assim uma grosseria (Márcia, depoimento concedido em
14/03/05. Grifos meus).
A pessoa tando com depressão, não sabe o que é que fazendo. E outras
coisas que eu não sei, sei isso daí, uma depressão. [Na sua opinião
quando com depressão se está louco?] É, quer morrer, se matar, sem
destino, não sabe o que é que faz (Camila, depoimento concedido em
28/03/05).
Márcia percebe a chamada loucura a partir da relação saúde-doença, isto é,
“loucura” é ausência de saúde mental e dentre todos os interlocutores, foi a única a
chamar atenção de que se trata de um termo grosseiro. Além de perceber “loucura”
como sinônimo de doença mental (depressão), Camila apresenta uma noção também
influenciada pelo racionalismo ao afirmar que quem está "louco" não sabe o que faz,
isto é, não pensa.
4.4 A "loucura" como "doença mental"
De acordo com os estudos foucaultianos a noção de “loucura como
"doença mental" é moderna. É na modernidade que o processo histórico de controle da
razão sobre a chamada loucura atinge seu maior alcance, tornando-se extremamente
eficiente. A "loucura" é, portanto, identificada como alienação e caracterizada como
doença mental.
A respeito desse momento histórico em que a “loucura” passa a ser
90
reconhecida como doença mental, destaco a existência do asilo como lugar de
isolamento específico do chamado louco (doente mental).
Ligado ao advento desse espaço asilar no fim do culo XVIII, Foucault
(1999a) chama atenção para a figura de Philippe Pinel, na França. Este foi um dos
protagonistas de um movimento que defendia o isolamento dos “loucos” dos demais
“a-sociais”, tornando-os objeto da atenção psiquiátrica. O asilo proposto por Pinel era
o domínio da moral.
Uma moral existe, inteiramente primitiva, que normalmente não é ofendida,
mesmo pela pior demência; é ela que ao mesmo tempo aparece e opera na
cura (...). (...) O asilo reduzirá as diferenças, reprimirá os vícios, extinguirá
as irregularidades. (...) Num único e mesmo movimento, o asilo, nas mãos
de Pinel, se torna um instrumento de uniformização moral ... (p. 487-8).
Com Pinel, a “loucura” assume o estatuto de alienação mental. Com essa
noção de alienação, a “loucura” deixa de ser compreendida como ausência de razão e
passa a ser identificada no interior da própria razão, sendo vinculada a uma
possibilidade de cura. Acredita-se que o alienado não perdeu totalmente a consciência,
havendo um “resto” de razão que ainda lhe pertence.
A partir dessa compreensão, a terapia aparece nesse cenário como uma ação
moral restituidora da razão. Uma vez que o alienado não perdeu completamente a
razão, mediante a terapia pode tornar-se, mais uma vez, um ser razoável. Tem-se com
isto a “psicologização” da “loucura” na modernidade, ou seja, o total domínio da
“loucura” pela racionalidade moderna, ou ainda, a absoluta dominação da “loucura”
pela ordem psiquiátrica moderna.
Então, a chamada loucura que o Classicismo situou na relação razão-
desrazão, (na separação entre ambas) excluindo-a a partir de uma perspectiva moral,
torna-se objeto de conhecimento científico na modernidade, sob a conotação de doença
mental.
91
Aqui reside talvez uma das mais importantes questões assinaladas em
História da loucura, a saber, a desconstrução da idéia de que a doença mental é
inerente à humanidade, evidenciando que a psiquiatria é uma ciência recente e sua
intervenção em relação ao chamado louco é historicamente datada, isto é, que na
história ocidental não se pode falar em doença mental ou em “patologização” do
“louco” antes do fim do século XVIII.
Segundo a concepção foucaultiana, a psiquiatria resulta de um processo
mais amplo, histórico, essencialmente vinculado à progressiva dominação da loucura,
não devendo ser a primeira percebida como aquela que possibilitou o reconhecimento
e tratamento da segunda.
Nesse sentido, um momento histórico fundamental em que a “loucura”
assume o significado de doença mental, qual seja, o final do século XVIII com o
nascimento do asilo e, por conseguinte, o surgimento da psiquiatria.
Por outro lado, que se dizer, ainda de acordo com Foucault (1999a) que,
não foi a medicina a responsável pela definição entre razão e não razão, “loucura” e
“sanidade”. No entanto, foram os médicos os responsáveis pela vigilância das
fronteiras entre razão e não razão, pela rotulação do que se convencionou chamar
doença mental , bem como, pela interdição do “louco”.
No século XIX, a segregação do “louco” a partir de sua reclusão no local
específico do asilo, foi utilizada como importante ação terapêutica pela psiquiatria.
Esta, na compreensão foucaultiana, configura-se como uma forma mais sutil de
dominação da “loucura”, um modo menos explícito de sujeitá-la.
A partir da segunda metade desse mesmo período, a psiquiatria interessou-
se em encontrar uma nova explicação para a loucura de ordem biológica baseada no
paradigma positivista. De acordo com esse modelo biológico, o fenômeno loucura
resultaria de perturbações psíquicas de origem orgânica, isto é, a causa da “loucura”
92
estaria no organismo. Daí a relevância que os estudos do cérebro alcançaram no campo
psiquiátrico.
No final desse mesmo século, em vários países da Europa Ocidental, os
asilos se tornaram alvo de críticas tendo em vista a sua situação calamitosa, a sua
dimensão puramente disciplinar e a ausência de ações terapêuticas. Essas críticas
conseguiram destaque apenas após a Segunda Guerra Mundial, o que não significa
afirmar que, a partir de então, houve uma mudança radical no campo da psiquiatria.
A partir desse período, é possível destacar, experiências de tentativas de
mudança e até de (des)construção, tal como destacarei no capítulo a seguir, mas a
prática do internamento, a reclusão sob a noção de “tratamento”, anteriormente
sublinhadas, ainda constituem o modelo hegemônico.
Nas análises de Foucault (1999a), o nascimento da psiquiatria moderna
representa, portanto, o ápice do domínio da loucura pela razão. Nesse sentido, a noção
de doença mental atribuída à “loucura”, na modernidade, não se trata de uma evolução
ou desenvolvimento do conhecimento científico a seu respeito.
A psiquiatria se apresenta como resultado do amplo processo histórico da
progressiva dominação da “loucurapela razão, o que culminou na sua transformação
em doença mental. O silêncio imposto ao chamado louco, à sua voz e, porque não
dizer, ao seu corpo, aparece em História da loucura, seja na época clássica ou na
modernidade, como elemento revelador dessa dominação.
A partir de Foucault, a leitura do fenômeno loucura e de seu processo de
institucionalização requer um olhar abrangente, uma vez que estão envolvidos
aspectos econômicos, sociais, morais, culturais e políticos que nortearam (e norteiam)
o disciplinamento e o lugar do “louco” numa sociedade organizada pela “razão”.
Estão imbricadas nesse “universo” não relações de poder, mas e,
93
principalmente, formas marcantes de dominação, as quais, à proporção que foram (e
continuam) se aprofundando, designaram (e designam) ao louco” um lugar social
específico e periférico.
94
CAPÍTULO V
Reforma psiquiátrica em Fortaleza: construção de um outro lugar
social para a chamada loucura?
Machado de Assis em O alienista mais de cem anos havia estabelecido
uma crítica a psiquiatria e ao seu objeto (doença mental), à ciência moderna positivista
e sua perspectiva de normalização social. Nesse texto o lugar específico (periférico)
historicamente reservado à “loucura” - instituição total - e o exercício do saber-poder
psiquiátrico aparecem destacadamente.
Como diz Birman, ... a idéia de reforma psiquiátrica não se identifica
absolutamente com a noção de assistência psiquiátrica (...). Vale dizer, a
problemática colocada pela reforma psiquiátrica insere a questão da assistência
psiquiátrica como um dos seus temas e mesmo como um tema privilegiado, mas
certamente a transcende, pois o que está em pauta de maneira decisiva é delinear um
outro lugar social para a loucura na nossa tradição cultural (1992, p.72).
A construção de um outro lugar social para a "loucura" é, portanto, uma
proposta inerente à reforma psiquiátrica. neste projeto a ênfase na participação de
usuários de serviços de saúde mental e de seus familiares na sua construção e
efetivação. Isto é, no discurso da reforma psiquiátrica esses sujeitos aparecem como
atores sociais imprescindíveis à construção desse outro lugar social para a chamada
loucura.
No intuito de compreender o lugar social dos sujeitos usuários do
CAPS/SER III na reforma psiquiátrica em Fortaleza partindo de suas narrativas
indaguei aos interlocutores da pesquisa o que entendiam por reforma psiquiátrica e
suas formas de inserção nesse processo. Curiosamente das treze pessoas com quem
conversei, dez afirmaram desconhecer a respeito.
Pra mim é novidade, sabendo agora. [Nunca ouviu falar?] Não.
95
(Márcia, depoimento concedido em 14/03/05)
Reforma Psiquiátrica? Como assim? [Tento formular a pergunta com
outros termos e pergunto se ouviu falar] o. [Invisto na tentativa:
nem reforma psiquiátrica, nem reforma de saúde mental, nada desse
tipo?] Não. [Nunca ouviu falar que os CAPS, como esse que você faz
acompanhamento, fazem parte de um processo de tentativas de
mudanças no atendimento em saúde mental e que isso seria essa
reforma psiquiátrica?] Eu quero, eu gostaria que acontecesse isso. [Mas,
você nunca ouviu falar antes?] Não, antes não. (Antônio, depoimento
concedido em 16/03/05)
Não, não entendo não, viu? [Nem alguma coisa de mudança na saúde
mental? Nunca ouviu falar?] Eu posso já ter ouvido, mas eu não entendo
essas coisas não. [Insisti mais um pouco utilizando outros termos, mas
Lindalva o referiu nada a respeito, preferindo introduzir outro
assunto]. (Lindalva, depoimento concedido em 16/03/05)
Sei o, isso daí eu não sei não. [Tentei reformular a pergunta com
outros termos e pergunto novamente se nunca ouviu falar nada a
respeito e a resposta continua sendo negativa] Não. (Francisca,
depoimento concedido em 16/03/05)
Pra mim, nada. [Você o conhece?] Não. [Nem nunca ouviu falar em
mudanças no atendimento em saúde mental ou alguma coisa desse
tipo?] Não. (Camila, depoimento concedido em 28/03/05)
Não sei. Aconselhar? [Você ouviu falar em reforma psiquiátrica?
Alguém lhe explicou alguma coisa sobre reforma psiquiátrica?] Não.
[Nunca leu nada a respeito, nem ouviu falar?] A respeito eu li aquele
livro da doutora não sei o que, doutora Helena não sei o que, uma
psiquiatra que dá mais ou menos o acompanhamento da pessoa, pra pessoa
acompanhar a pessoa que é desse tipo. [Um aconselhamento pra
família?] É. Como a pessoa acompanhar a pessoa e dos tratos. O
conhecimento que eu sei só é esse. [E você sabe o que é a reforma
psiquiátrica? O que é a reforma psiquiátrica pra você?] Não sei o que é
não. Reforma [pausa e pensa] [insisto: reforma psiquiátrica] Estudar
mais? Não sei o que é o. Nunca ouvi falar não. [Insisto ainda mais:
você já ouviu falar que o CAPS faz parte da proposta de reforma
psiquiátrica?] O CAPS faz parte da reforma psiquiátrica? Não. [Também
não?] Não. Eu sei que estuda a cabeça aqui, que é o acompanhamento.
(Berenice, depoimento concedido em 30/03/05)
Nunca ouvi falar não. [Nunca ouviu falar que o CAPS faz parte de uma
proposta de reforma psiquiátrica?] Não, nunca ouvi falar nisso não.
[Nem assim, mesmo que não tenha sido pelo nome de reforma
psiquiátrica, mas nunca comentaram a respeito de mudanças na saúde
mental ou mudanças no atendimento?] Não, nada. Logo eu sou atendida
sempre pela doutora e pelo pessoal da recepção. Nunca ouvi falar em
reforma não. Por que essa pergunta? O que quer dizer reforma
96
psiquiátrica? (Rosalba, depoimento concedido em 18/05/05)
Não. [Sabe o que é reforma psiquiátrica? Entende alguma coisa a esse
respeito?] Não. [Ínsito modificando a pergunta: nem em reforma em
saúde mental?] Não, nunca ouvi falar. [Nunca ouviu falar que o CAPS
faz parte da reforma psiquiátrica?] Não. (Silvia, depoimento concedido
em 18/05/05)
Não. [Insisto: você não entende nada a esse respeito?] Não. [Nunca
ouviu falar?] Não. [Nem o termo reforma em saúde mental ou algo
desse tipo?] Não. [Nem nunca ouviu falar que o CAPS faz parte de uma
proposta de reforma psiquiátrica?] Ah, que o CAPS faz parte eu ouvi
falar nesses cartazes. [Já ouviu falar através de que?] Às vezes não tem
aquele cartaz fora que diz centro psiquiátrico, saúde mental e tudo. É
essas coisas assim. [Mas, você nunca sentou pra conversar com alguém
ou nunca escutou alguém falar, alguém explicar que o CAPS faz parte
da reforma psiquiátrica?] Não. [Então, se eu perguntar o que vo
entende por reforma psiquiátrica você diria o quê?] Eu não dizia
nada porque eu não entendo mesmo. (Graça, depoimento concedido em
30/03/05)
[Silencia. Insisto: sabe alguma coisa sobre isso, ouviu falar em
reforma psiquiátrica?] Não. [insisti mais: nem em reforma em saúde
mental?] Não. [Nada?] Nada. [Já ouviu falar que o CAPS como este
aonde você faz acompanhamento e de onde você diz que gosta tanto faz
parte da reforma psiquiátrica?] Já. Escrito nos papéis, assim, numas
folhas. [Você leu] Li. [Mas, explicava, você conseguiu entender o que
á a reforma psiquiátrica?] Não. [Mas, no papel dizia que o CAPS
fazia parte da reforma psiquiátrica?] Era. Num papel, seja no hospital
das clínicas [refere-se ao HUWC] ou aqui no CAPS. [Mas, nunca teve
uma orientação em relação a isso? Ninguém explicou?] Não. (Pedro,
depoimento concedido em 30/03/05)
Tal como é possível identificar nesses trechos, ao ouvir os interlocutores
dizerem não conhecer, assumia uma postura insistente reformulando a pergunta
utilizando outros termos diferentes de “reforma psiquiátrica”, uma vez que poderiam
conhecer o processo por outro nome, entretanto, realmente afirmavam desconhecer.
Nos casos de Graça e Pedro a diferença é que viram em cartazes algo a
respeito da relação entre os CAPS e a reforma psiquiátrica, mas mesmo assim
afirmaram desconhecer este projeto.
Apenas Quim, Nira e Fátima mencionaram algo sobre a temática em
questão.
97
Eu ouvi um comentário que tão querendo acabar com os hospitais
psiquiátricos e deixar só, assim, como o CAPS que a pessoa fica indo e
voltando, não fica mais internado. Eu ouvi falar isso, não sei se é verdade.
(Quim, depoimento concedido em 14/03/05)
O que eu entendo? [O que você conhece sobre isso?] Eu conheço assim, a
pessoa que tem problema na cabeça e vem pra fazer uma, um checap,
uma coisa pra se a pessoa tem que tomar aqueles remédios. se o
doutor acha que a pessoa não tem nada, não vai passar nada [refere-se aos
remédios]. Taí, como o doutor disse: você não tem nada, trabalhar que
é melhor. Você é muito é sadia. [tento reconduzir a conversa: Mas, o que
lhe explicaram sobre reforma psiquiátrica. Você sabe o que é?] Sim,
eu sei o que é. Porque as pessoas, quando a pessoa vem pra se
consultar, ela tem um problema, aquele problema é sério. Às vezes uma
pessoa leva uma pessoa dessa toda assim [simula debilidade no corpo
para demonstrar] pro banheiro, não é normal. A pessoa fala só, ri só, faz
marmota, faz tudo. A gente já fica cismado com a pessoa. E quando a gente
quer conversa com a pessoa, a pessoa não quer conversa com a gente. Faz
tratamento. [Então, pra você isso é reforma psiquiátrica]. Sim. (Nira,
depoimento concedido em 28/03/05)
É isso que surgiu os CAPS. Porque antigamente não existia, agora já existe
os CAPS. Então, essa reforma melhorou porque pessoas não estão sendo
mais internadas em hospitais, diminuiu mais o índice de pessoas
internadas. (...) A reforma psiquiátrica eu acredito que seja mais no termo
de evitar que pessoas sejam internadas em hospitais psiquiátricos, ajuda
nisso aí, pra evitar. (...) É uma coisa boa. Eu só acho que é uma coisa boa.
(Fátima, depoimento concedido em 28/03/05)
No discurso de Quim está presente uma noção um pouco reduzida do que
seria o projeto de reforma psiquiátrica ao mencionar apenas o CAPS como proposta de
atenção em saúde mental.
Nira relaciona reforma psiquiátrica a noção de tratamento no CAPS, porém
muito mais um tratamento no sentido ambulatorial, medicamentoso, reduzido ao
atendimento médico.
Assim como Nira, Fátima a reforma psiquiátrica como algo associado ao
surgimento dos CAPS e ao próprio CAPS. Em comparação a Nira, sua compreensão se
apresenta mais ampliada ao ressaltar a tentativa de reduzir internações e hospitais
psiquiátricos. Participar da reforma psiquiátrica na sua compreensão seria fazer o
tratamento no CAPS, participar das atividades no CAPS, como por exemplo, os
98
grupos. A reforma psiquiátrica, portanto, se mistura a própria noção de tratamento, a
reforma psiquiátrica seria o tratamento.
Os três não percebem a reforma psiquiátrica no seu sentido mais amplo,
político, sua perspectiva de mudança da realidade, transformação da forma de tratar,
mas principalmente, de perceber a chamada loucura e de se relacionar com o sujeito de
tal experiência. Contudo, o fato dessas pessoas terem algum conhecimento a esse
respeito, ainda que parcial, é positivo, afinal, sugere uma certa relação entre elas e o
processo.
O discurso de Fátima transcrito acima foi o que mais se aproximou do que
seria a reforma psiquiátrica e por isso foi a única que pode comentar sobre sua
participação e das demais pessoas atendidas no CAPS/SER III nesse processo em
Fortaleza.
[Na sua opinião, as pessoas atendidas no CAPS podem participar da
reforma psiquiátrica?] Algumas podem. Eu acho que é dependendo do
grau de perturbação. [Como elas poderiam participar?] Não, porque
aquelas pessoas que ficam perturbada por determinado tempo. [Por que?]
Assim, porque tem pessoas que são perturbadas por uma causa, tiveram
depressão e essa depressão veio a causar um desajuste mental por
conseqüência dessa depressão. Mas, tem pessoas que nasceram com a
doença, nasceram com essa doença. Então, pra essas pessoas que
nasceram com essa doença, essa reforma, eu acho que, ajuda, mas não
cura totalmente. Não cura totalmente. Pessoas que nasceram com esse
tipo de problema, vem assim como uma conseqüência até de um trauma,
são pessoas que tem uma depressão muito forte, distúrbio, um distúrbio
mesmo emocional muito forte que é difícil. Controla. Controla. A reforma,
ela controla, ajuda, mas ainda não cura. Ajuda, mas não cura totalmente.
(Fátima, depoimento concedido em 28/03/05)
Ao reforçar as palavras “cura” e “controla” tima reafirma a perspectiva de
reforma psiquiátrica como tratamento, identificada anteriormente, desvinculada de
uma dimensão mais ampla de transformação de realidade.
Indagada a respeito de sua inserção na reforma psiquiátrica em Fortaleza,
Fátima acrescentou:
Se eu participo? Eu acredito que estou participando. [De que maneira?]
99
Vindo pra cá pros grupo. Se tivesse só em casa tomando remédio não
adiantaria muito não. (Fátima, depoimento concedido em 28/03/05)
Ainda que o mencione diretamente a Cooperativa do Centre de Atenção
Picossocial (COOPCAPS) como forma de participação na reforma psiquiátrica, Fátima
reconhece as atividades em grupo no CAPS como mecanismos de participação. Talvez
porque tima não identifique a participação no seu sentido político mais amplo e
volte sua atenção apenas para o envolvimento direto com o tratamento.
A afirmação de desconhecimento por parte da maioria e o pouco
conhecimento da minoria sugerem um distanciamento dos sujeitos usuários do
CAPS/SER III do processo de reforma psiquiátrica local e nos remete a pensar o lugar
social desses sujeitos na construção/efetivação desse projeto.
O acompanhamento especializado oferecido pelo CAPS/SER III é percebido
positivamente pelos interlocutores da pesquisa que a ele se referem com vários
elogios, no entanto, não compreendem o CAPS como um dos elementos que compõem
a proposta de reforma psiquiátrica.
Os discursos a respeito da reforma psiquiátrica sugerem a inexistência no
CAPS/SER III de possibilidades de inclusão efetiva dos sujeitos usuários na
discussão/construção da reforma psiquiátrica em Fortaleza, daí porque não se
reconhecem como atores sociais fundamentais nesse processo, tal como ressaltam a
literatura e a legislação específicas. Como se envolver em algo que não se conhece?
A COOPCAPS poderia representar um espaço importante para aproximar
os usuários dessa discussão, contudo, não é assim reconhecido pelos interlocutores e
sim imbuído do sentido de tratamento. A Cooperativa seria, portanto, muito mais uma
atividade do CAPS/SER III e menos um espaço de incentivo ao envolvimento de seus
cooperados no projeto amplo de reforma psiquiátrica.
100
O desconhecimento a respeito da reforma psiquiátrica ou a compreensão da
mesma limitada à noção de tratamento, bem como, a percepção acerca da Cooperativa
como atividade do CAPS também vinculada apenas à pespectiva de tratamento são
elementos reveladores de limitações nas ações do CAPS/ SER III que mesmo fazendo
parte da proposta ampla de reforma psiquiátrica se reduz a condição de lugar de
tratamento.
Em nossos dias com a psicofarmacologia e a biologização do discurso
médico se observa cada vez mais a acentuação da perspectiva crítica da loucura
destacada por Foucault (1999a), isto é, como diz Birman (1992) a recusa de qualquer
reconhecimento da presença do sujeito na experiência da loucura.
Na modernidade, quando a loucura passou a conotação de doença mental,
tornou-se possível a restauração da razão do chamado louco e por conseguinte, de sua
condição de sujeito. Para tanto era necessária sua reclusão no asilo sob várias medidas
“terapêuticas”. Para tornar o chamado louco em sujeito seria necessário restaurar a sua
razão.
Instalado forçosamente na periferia do espaço social, nos confins do
espaço urbano, nos limites da cidade e da razão, o louco como um não
sujeito e como um quase sujeito seria ativamente convertido em sujeito da
razão e da vontade, mediante as técnicas de sociabilidade asilar impostas
pelo tratamento moral (Birman, 1992, p. 75).
Essencialmente as formas atuais de tratamento ainda visam tornar a pessoa
com sofrimento psíquico em um ser “razoável” e sociável. nas entrelinhas dos
discursos terapêuticos de nossos dias uma perspectiva de restaurar ou preencher nessa
pessoa uma certa lacuna, como destaca Birman (1992), de tornar o chamado louco um
cidadão moderno.
A convivência com a diversidade, incluindo a pessoa com sofrimento
psíquico, é um objetivo louvável, contudo, nesse caso particular as práticas
terapêuticas na sua busca de “tratar” m em sua essência o objetivo de adequar ações,
101
comportamentos para que essa pessoa seja aceita socialmente, visam senão reparar,
pelo menos minimizar os “excessos”, moldar, perpetuando assim a histórica dimensão
moral disciplinar.
Nesse sentido, concordo com a idéia de Costa (2003) de que os serviços de
atenção em saúde mental que visam substituir o hospital psiquiátrico devem ter a
capacidade de se relacionar com a experiência da loucura em suas diferentes formas de
expressão sem a intenção de moldá-la, discipliná-la.
É necessário que esses serviços possam ir além da aplicação de
psicofarmacos e terapias, enfim, fomentar - e, algumas vezes, viabilizar - o diálogo
entre a chamada loucura e a cidade. De acordo com Costa (2003), a arte pode ser um
meio para isso, não no sentido de possibilitar interpretações da “loucura”, mas da
convivência entre os ditos não-loucos e os chamados loucos.
Estariam os novos serviços se configurando como substitutivos
efetivamente? Embora este não seja o cerne deste estudo, não posso deixar de registrar
mais uma vez a preocupação com a possibilidade de que esses reproduzam antigas
práticas (manicomiais, vigilantes, disciplinadoras). Assim, parece fundamental a
freqüente autocrítica sobre discursos e práticas cotidianos.
historicamente um lugar social para a chamada loucura, o do silêncio.
Que outro lugar desejamos construir? Tomando a experiência do CAPS/SER III em
que a maioria dos interlocutores da pesquisa não pode opinar acerca da reforma
psiquiátrica por desconhecer o processo, será que estamos construindo de fato um
outro lugar?
Cabe a reforma psiquiátrica evidenciar o sujeito da loucura, trazê-lo à cena,
possibilitar a leitura dessa experiência por meio de um olhar diferente daquele guiado
pela tradição crítica. Quem sabe recorrer à perspectiva trágica da loucura descrita por
Foucault (1999a) não represente um começo?
102
Como bem nos lembra Birman (1992), é fundamental perceber a "verdade"
na “loucura”, não vazio a ser preenchido, não é necessário “enquadrar” o chamado
louco, moldá-lo seguindo parâmetros de normalidade para que ele seja sujeito. Ele é
um sujeito, apenas não expõe a subjetividade da maneira padrão, isto é, de acordo com
o que está estabelecido como "normal".
Nesse sentido, ainda estamos distantes da efetivação da reforma
psiquiátrica, pois seguimos os passos da normalização impressos no saber-poder da
psiquiatria que ainda dita as regras, inclusive nos novos serviços, onde as relações de
poder ainda dão espaço para a dominação de uma disciplina sobre as outras e de todas
as disciplinas envolvidas (psiquiatria, psicologia, terapia ocupacional, serviço social,
enfermagem, entre outras) sobre o usuário.
Isso não quer dizer que os cnicos devam ser vistos como os vilões, até
porque muitos tentam sair desse lugar comum de dominador, entretanto, estão ali
como representantes de saberes científicos específicos, representantes da mesma
Ciência que enquadra a pessoa com sofrimento psíquico como sujeito carente de
cuidados e detentor do direito a tratamento, impondo-lhe uma condição de objeto.
A reforma psiquiátrica como ação é contrapartida, o que [tem] que fazer é
instaurar ligações laterais, todo um sistema de redes, de bases populares (Deleuze In
Foucault, 1999b, p.74). Tem de extrapolar os “muros” institucionais, alcançar o espaço
coletivo comum onde múltiplas relações se constroem e reconstroem continuamente,
mas com o cuidado de não “psiquiatrizar” também essas relações senão pode incorrer
na revitalização da lógica higienista, isto é, de “medicalização da sociedade”.
103
Considerações finais
A reforma psiquiátrica é uma proposta que transcende o questionamento do
modelo tradicional de atenção em saúde mental centralizado na figura do hospital
psiquiátrico como espaço de “tratamento”; uma vez que requisita interferências nas
relações de poder e nos esquemas de dominação que historicamente designaram (e
designam) à "loucura" e aos nominados de "loucos" o lugar social da exclusão, do
104
silêncio, da sujeição.
A importância da participação efetiva dos usuários dos serviços de atenção
em saúde mental no processo de reforma psiquiátrica é um elemento recorrente nos
discursos que o legitimam. O presente estudo teve como principal objetivo
compreender e interpretar o lugar social desses sujeitos usuários na reforma
psiquiátrica em Fortaleza partindo de suas narrativas. Para tanto, tomei a experiência
particular do CAPS/SER III como campo de investigação.
Os discursos dos interlocutores da pesquisa revelaram certo consenso de que
a “loucura” seria relacionada a irracionalidade. Poucos se referiram a noção patológica
moderna de “loucura” como sinônimo de doença mental. Foi sugerida ainda certa
relação entre essas duas compreensões por um dos interlocutores da pesquisa, porém a
primeira perspectiva se mostrou preponderante.
Surpreendentemente a maioria dos interlocutores afirmou desconhecer o
processo de reforma psiquiátrica e aqueles que puderam falar a respeito destacaram
apenas o aspecto da assistência/tratamento. Isto sugere não um distanciamento dos
sujeitos usuários em relação a essa discussão, mas e, principalmente, revela fragilidade
na reforma psiquiátrica em Fortaleza que ainda está acontecendo muito mais no plano
institucional aliás, até pouco tempo atrás nem mesmo em nível institucional, pois
existiam no município apenas três CAPS até o início do ano de 2005 e menos no
"conteúdo". Em seu sentido político amplo a reforma psiquiátrica local tem um longo
caminho a percorrer!
No caso do CAPS/SER III, por exemplo, embora apresente estrutura física
distinta da costumeiramente observável nos hospitais psiquiátricos, o conteúdo das
práticas profissionais ali desenvolvidas ainda se mostra muito arraigado à noção
patológica da "loucura", limitado à perspectiva de "tratamento", à idéia de
normalização dos sujeitos. Daí se pode compreender melhor o desconhecimento
afirmado pela maioria dos interlocutores e o destaque apenas à idéia de tratamento
105
pelos poucos que falaram a respeito da reforma psiquiátrica.
Com a reforma psiquiátrica as ações dos profissionais dos serviços
substitutivos necessitam se imbuir de novos sentidos, afinal, o que adianta substituir os
espaços físicos e permanecer com práticas normalizadoras? Freqüentar um serviço de
saúde cuja estrutura física é acolhedora e confortável sem dúvida é importante, porém
é apenas um dos aspectos a serem considerados.
Os discursos sugeriram que "tratar" continua sendo o objetivo essencial da
atenção em saúde mental mesmo no CAPS, espaço que nasceu sob a perspectiva de ir
além da assistência médica, com o objetivo principal de fomentar a produção de novos
sentidos e significados para as vidas de seus usuários.
Os interlocutores da pesquisa demonstraram satisfação com os atendimentos
prestados no CAPS/SER III, mas talvez por não viabilizar oportunidades de discussões
extra-tratamento e atividades extra-institucionais, esse serviço é reconhecido por eles
apenas como lugar de tratamento. Somente duas interlocutoras da pesquisa
reconhecem o CAPS/SER III como lugar de trabalho:
Quando eu entro ali é como se eu fosse tipo uma funcionária daqui e não
uma paciente (risos). Eu já entro ali no portão do CAPS como se eu já fosse
uma funcionária e não uma paciente, eu me sinto assim aqui no CAPS desde
que começou a cooperativa (Marcia, depoimento concedido em 14/03/05)
Tem uma mulher lá na academia que viu o meu tapete e achou muito bonito
esse tapete e acha muito bem feito esse tapete.(...) Quando eu tô lá ela disse
que é não sei o que Cooperativa das Cooperativas, que tá registrada,
que ganha um salário. eu tenho que mentir (...). Quanto é que tu ganha?
eu não sei nem aonde é que eu fico. Não, eu faço tapete, a gente assina
lá, aí ela junta aquele dinheiro, a gente assina o ponto, a gente fica ali, num
pouquim, pouquim, mas dá. E quanto é o pouquim? Eu disse assim: mulher,
um salário mínimo não é duzentos e tantos reais? Aí é assim, quando chega
naquele mês, se a gente faltar a gente tá em falta ganha aquela
metade daquilo que pode ganhar. (...) Aqui eu digo que ganho um salário
porque faz vergonha dizer que eu ganho dez reais por mês ...(Nira,
depoimento concedido em 28/03/05)
Vale ressaltar, no entanto que o campo da atenção em saúde mental em nível
106
local tem passado por algumas mudanças significativas, dentre as quais se observa a
importante ampliação do número de CAPS na cidade como indicativo da preocupação
em construir uma rede de serviços de atenção em saúde mental que, inclusive, esteja
articulada aos demais serviços constituintes da rede pública de atenção à saúde.
Outro aspecto relevante é a preocupação em possibilitar capacitação aos
profissionais desses CAPS sob uma perspectiva integrada aos preceitos da reforma
psiquiátrica, principalmente, no que se refere à noção de desinstitucionalização como
(des)construção.
Diante dos avanços, recuos e contradições que permeiam o complexo campo
da saúde mental e, mais especificamente, o universo do CAPS/ SER III, algumas ações
podem ser implementadas pela instituição como sugestões para o alargamento da
horizontalidade do processo de reforma psiquiátrica em Fortaleza, considerando
sobretudo a participação ativa dos usuários.
Primeiro, é imprescindível uma maior articulação interdisciplinar entre os
profissionais que compõem a equipe, partindo de discussões periódicas e sistemáticas
acerca do “fazer cotidiano”, do significado das ações de cada profissional na equipe e
de melhores formas de partilhar esse “fazer”, considerando que a proposta de reforma
psiquiátrica que norteia a criação dos CAPS deve nortear seu “pensar” e “fazer”
cotidianos.
Segundo, igualmente relevante é incentivar e promover sistematicamente o
envolvimento dos usuários nas discussões e propostas que visem a melhoria da
qualidade dos atendimentos realizados pelo CAPS através da participação ativa destes
em todo o processo, desde o planejamento das ações.
Terceiro, cabe ao CAPS viabilizar oportunidades de socialização de
conhecimentos a respeito da reforma psiquiátrica entre os usuários, bem como, junto
aos seus familiares, fomentando maior participação destes em conferências de saúde
mental, fóruns, movimentos sociais e outros espaços democráticos, de modo a se
107
fazerem presentes o como meros coadjuvantes, mas como co-partícipes da
construção de uma política efetiva de atenção em saúde mental no município. A
COOPCAPS deve representar um espaço fomentador importante para o início desse
exercício coletivo, político.
Essa perspectiva da participação tem se construído de maneira expressiva
em alguns estados brasileiros como Minas Gerais, por exemplo, onde os usuários dos
serviços de saúde mental e seus familiares não compreendem a proposta de reforma
psiquiátrica, mas também se articulam entre si inclusive, por intermédio de
Associação de Usuários e com profissionais da área para propor e desenvolver ões
que levem à sua efetivação.
Além das ações propostas em nível institucional do CAPS, isto é,
considerando essa discussão de modo mais ampliado na cidade, cabe à gestão
municipal incentivar e acompanhar sistematicamente essas ações e, ao mesmo tempo,
é imprescindível e urgente fomentar e viabilizar também a participação efetiva dos
usuários e de seus familiares na construção de propostas que se relacionem à política
de saúde mental de Fortaleza. As discussões e decisões a esse respeito não podem
continuar centralizadas no segmento de profissionais.
Essa participação pode se dar por intermédio de instâncias instituídas tais
como os Conselhos de Saúde e as conferências de saúde, bem como, de espaços
coletivos menos formais como assembléias e outros encontros de discussão sobre o
tema. É importante lembrar que a informação é fundamental para que os usuários e
seus familiares se sintam realmente à vontade e em condições de opinar e avaliar os
conteúdos em questão, daí porque as ações no CAPS devem estar em sintonia com a
perspectiva mais ampla adotada pela gestão municipal.
A partir do objetivo principal do presente trabalho, os interlocutores tiveram
oportunidade de se pronunciarem acerca da reforma psiquiátrica. Embora não tenham
podido falar muito sobre o tema em questão, a “palavra” evidenciada se mostrou
108
reveladora de um conteúdo importante do processo local.
O desconhecimento ou distanciamento desses interlocutores em relação à
discussão acerca da reforma psiquiátrica não se por mera desatenção dos mesmos.
Traduz o distanciamento das ações do próprio CAPS em relação ao seu sentido
fundante, aos princípios da reforma psiquiátrica, limitando-se à condição de "lugar de
tratamento".
Esses contextos de realidade evidenciam que tal como historicamente o
chamado "louco" esteve à margem das decisões sobre seu destino, silenciado,
ocupando um lugar social periférico, demarcado por determinados saberes e práticas,
no processo de reforma psiquiátrica em Fortaleza os usuários dos serviços de atenção
em saúde mental continuam tendo seus espaços delimitados por esses mesmos saberes
e práticas séculos hegemônicos que, embora sob novos discursos, os mantém
"presos" ao silêncio.
“Aboliu-se” a camisa-de-força, alguns de nós aqui me incluo esperamos
ver o fim das práticas de eletrochoque, de intervenções como a lobotomia e da
reclusão em hospitais psiquiátricos, mas são muitas as resistências em lidar com a
experiência da “loucura” e com a figura do “louco” cotidianamente no espaço comum.
Insiste-se em atribuir ao “louco” noções como incapacidade e
periculosidade, em percebê-lo como aquele que necessita de tratamento para se tornar
“sociável”. Seu discurso é quase sempre interpretado apenas como indicativo para
diagnóstico, negando-lhe o exercício da “palavra” no sentido arendtiano do discurso
como importante dimensão da condição humana, como expressão que se revela no
espaço comum, lugar do homem agir e interagir com outros homens.
Ao oportunizar a “palavra” aos interlocutores da pesquisa, além dos
conteúdos evidenciados e discutidos, alguns discursos sugeriram uma demanda de
desinstitucionalização e sinais de resistência. A crítica de uma usuária a respeito da
109
“cancela” presente na porta principal de acesso ao CAPS/SER III; os discursos de duas
interlocutoras que se consideram funcionárias e não usuárias daquele CAPS; as
reclamações em relação ao mau atendimento dos recepcionistas ou sobre a falta de
medicação ou ainda à forma de ingresso de vários usuários na cooperativa são
exemplos disso.
Nesse sentido, a oportunidade à palavra” como argumento e ação aos
usuários dos serviços de saúde mental é condição fundamental para que se possa
pensar em uma efetiva reforma psiquiátrica no Brasil ou particularmente, em
Fortaleza.
110
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ROTELLI, F.; AMARANTE, P. Reformas psiquiátricas na Itália e no Brasil: aspectos
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Psiquiatria sem hospício: contribuições ao estudo da reforma psiquiátrica. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1992.
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Psicossocial do Nordeste: perfil organizacional dos serviços. 1997. Dissertação
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VASCONCELOS, E. M. Reinvenção da cidadania no campo da saúde mental e
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118
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rede: trajetórias da saúde mental em o Paulo (1989-1996). Taubaté, SP: Cabral Ed.
Universitária, 1999.
Títulos literários:
ASSIS, M. de. O alienista. 22.ed. São Paulo: Ática, 1992.
BUENO, A. C. Canto dos malditos. 7.ed. São Paulo: Lemos, 2000.
ROTTERDAM, E. de. Elogio da loucura. São Paulo: Martin Claret, 2001. (A obra-
prima de cada autor, 37)
Filme longa metragem:
BICHO de sete cabeças. Direção de Laís Bodanzky. Produção de Maria Ionescu e
Fabiano Gullane. Rio de Janeiro: Buriti Filmes; Gullane Filmes; Dezenove Som;
Imagens e Fábrica de Cinema; Riofilme, 2000. 1 filme (80 min), son., color., 35 mm.
119
ANEXOS
ANEXO I
Termo de consentimento livre (modelo I)
Declaro que fui informado(a) sobre a realização desta pesquisa e
orientado(a) sobre os objetivos e finalidades deste estudo, não havendo nenhuma
dúvida a respeito.
120
Compreendo que não sou obrigado(a) a participar da referida pesquisa, bem
como, posso me recusar a responder qualquer questionamento. Estou ciente ainda de
que posso desistir a qualquer momento.
Meu nome e o de pessoas que eu venha a citar não serão revelados nos
documentos pertencentes a este estudo.
Concordo em participar desta pesquisa e autorizo a utilização das
informações por mim prestadas.
Assinatura do(a) entrevistado(a)
Assinatura da entrevistadora
Fortaleza, ____ de ___________ de 2005.
ANEXO II
Termo de consentimento livre (modelo II)
Declaro que fui informado(a) sobre a realização desta pesquisa e
orientado(a) sobre os objetivos e finalidades deste estudo, não havendo nenhuma
dúvida a respeito.
121
Compreendo que não sou obrigado(a) a participar da referida pesquisa, bem
como, posso me recusar a responder qualquer questionamento. Estou ciente ainda de
que posso desistir a qualquer momento.
Concordo em participar desta pesquisa e autorizo a utilização das
informações por mim prestadas, bem como, a revelação do meu nome nos documentos
pertencentes a este estudo. Contudo, proíbo a citação de nomes de pessoas que por
ventura eu venha a mencionar.
Assinatura do(a) entrevistado(a)
Assinatura da entrevistadora
Fortaleza, ____ de ___________ de 2005.
122
ANEXO III
Roteiro de entrevista aos sujeitos atendidos no Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) vinculado à Secretaria Executiva Regional - III do município de
Fortaleza - Ce.
Nº _________
Data: _________________
Dados gerais:
nome: ____________________ idade: ______ estado civil: ________________
Religião:_______________________Naturalidade:_________________________
Escolaridade: ________ Profissão:__________________
Atual situação ocupacional: ___________________
Com quem reside?
Quem sustenta economicamente a casa?
Como é seu relacionamento com seus familiares?
E com os vizinhos?
Participa de outro(s) grupo(s) (artístico, político, religioso etc.) além da
cooperativa? Se sim, como é sua relação com as pessoas desse(s) grupo(s)?
O que gosta de fazer nos momentos de lazer?
Sobre possíveis experiências de internação em hospitais psiquiátricos e similares
Passou por internações em hospitais psiquiátricos (institucionalização)? Se sim,
quantas foram?
Qual o período da última internação?
123
Poderia comentar um pouco sobre essa(s) experiência(s)? O que significou pra
você ficar internado(a)?
Sofre preconceito por ser ex-internado?
Sobre o atendimento no CAPS
Por que procurou este CAPS?
O que você acha do atendimento que vem recebendo neste CAPS?
Compreensão acerca da “loucura”
Na sua opinião, o que é loucura?
Compreensão e avaliação sobre a reforma psiquiátrica
O que você entende por reforma psiquiátrica?
Qual a sua opinião em relação a isso?
Na sua opinião, as pessoas atendidas no CAPS podem participar da reforma
psiquiátrica? Como?
Você participa? De que maneira?
** Há algo mais que você gostaria de dizer?
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