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BANCA EXAMINADORA
1º. Examinador: _____________________________________________________
Prof. Dr. Alceu Ravanello Ferraro (Presidente)
2º. Examinador: _____________________________________________________
Prof. Dr. Evaldo Luiz Pauly (EST – IEPG)
3º. Examinadora: ____________________________________________________
Profª. Drª. Marga Janete Ströher (EST – IEPG)
4º. Examinadora: ____________________________________________________
Profª. Drª. Cornélia Eckert (UFRGS)
5º. Examinador: _____________________________________________________
Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL)
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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA
INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA
RECUPERANDO ESPAÇOS DE EMANCIPAÇÃO NA HISTÓRIA DE
VIDA DE EX-ALUNAS DE ESCOLA COMUNITÁRIA LUTERANA
CLAUDETE BEISE ULRICH
DOUTORADO EM TEOLOGIA
Área de Concentração: Religião e Educação
São Leopoldo (RS), março de 2006.
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RECUPERANDO ESPAÇOS DE EMANCIPAÇÃO NA HISTÓRIA DE VIDA DE
EX-ALUNAS DE ESCOLA COMUNITÁRIA LUTERANA
TESE DE DOUTORADO
por
Claudete Beise Ulrich
Em cumprimento parcial das exigências
do Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia
Para obtenção do grau de
Doutora em Teologia
Escola Superior de Teologia
São Leopoldo, RS, Brasil
Março de 2006
Dedicatória
Para meu pai, Olibio (em memória), e minha mãe, Blondina,
que tudo fizeram para que eu pudesse
estudar numa escola comunitária luterana.
Para Carlos, companheiro de todas as horas.
Para minha filha Gabriela e meus filhos Eduardo e Tobias.
Para Anneliese, Ruth, Renita e Yvonne,
narradoras, sábias e educadoras.
AGRADECIMENTOS
Agradecer é celebrar!
Celebrar a vida!
Vidas comprometidas
Com a emancipação!
Em oração, agradeço!
Ao sopro da Ruach divina e eterna sabedoria.
As narradoras, Anneliese, Ruth, Renita e Yvonne, co-autoras desta tese.
Ao querido esposo e companheiro, Carlos, pelos abraços amorosos, pela compreensão e
ajuda nas traduções.
À Gabriela, filha querida, ao Eduardo e Tobias, filhos queridos, que juntos com Carlos, me
encorajaram a fazer às 25 horas semanais (entre Jaraguá do Sul, SC e São Leopoldo, RS,
para ir e voltar das aulas e pesquisas no IEPG e na biblioteca).
Ao Tobias e Eduardo pela ajuda com o computador.
À Roselei, filha por adoção, pela ajuda, apoio ao longo destes anos e pela colaboração
solidária nos últimos dias da tese.
À Nelci, minha irmã, por contar histórias e ter me apoiado de longe.
Ao orientador, Prof. Dr. Alceu Ravanello Ferraro, pela orientação firme, observações
críticas, amizade construída, acolhimento em sua casa, pelo pronto atendimento aos e-
mails e exemplo de dignidade e de ética.
Ao co-orientador, Prof. Dr. Evaldo Luiz Pauly, pela co-orientação firme, amiga, crítica e
pelo pronto atendimento aos e-mails.
Às Profªs. Drªs. Cornélia Eckert e Marga Janete Ströher pela orientação na banca de
qualificação e pelas firmes contribuições durante o tempo da pesquisa e pela amizade
construída.
Às amigas irmãs da Casa Matriz de Diaconisas pelo acolhimento sororal, amigo, solidário
e por toda ajuda prestada no período de estudos.
Às professoras e professores, secretárias, funcionários e funcionárias do IEPG, pela
solicitude, amizade e apoio.
Ao Walmor pela ajuda, amizade e dedicação ao seu trabalho no IEPG.
Aos funcionários e funcionárias da biblioteca da EST pela prestimosa ajuda.
Aos professores Milton Schwantes e Carlos Arthur Dreher pelos primeiros incentivos a
continuar os estudos.
Ao Luiz Marcos Sander pela leitura crítica e revisão do texto.
Ao Robert Walter Beims pela eficiente ajuda na formatação do texto.
Aos amigos e amigas da Paróquia Apóstolo Tiago pelo apoio, incentivo, amizade e a
compreensão nas minhas ausências.
Às amigas e aos amigos dos grupos de pesquisa do IEPG: Exclusão Social, Escolarização e
Cidadania e Núcleo de Pesquisa de Gênero (NPG) pela troca dos saberes.
Às amigas e aos amigos de perto e de longe pela solidariedade, trocas, questionamentos,
sugestão de leituras e abraços nas horas de desânimo.
À Federação Luterana Mundial (FLM) pelo financiamento parcial desta pesquisa.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo
financiamento desta pesquisa e pela participação no Programa de Pós-Graduação integrada
(PGI).
À Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) pela liberação no tempo de
estudos.
ULRICH, Claudete Beise. Recuperando espaços de emancipação na história de vida de
ex-alunas de escola comunitária luterana. São Leopoldo : Escola Superior de Teologia,
2006.
SINOPSE
Esta tese procura recuperar os espaços de emancipação na história de vida de ex-alunas de
escola comunitária luterana. Num primeiro momento, busca-se entender os conceitos de
libertação, emancipação, autonomia racional e liberdade cristã. A partir da tessitura dos
fios teórico-conceituais, o conceito emancipação humana é tomado, nesta tese, como
categoria sintética, própria do movimento analítico-sintético da abordagem dialética.O
segundo capítulo traz o percurso teórico-metodológico, que se fundamenta numa
perspectiva etnográfica, permeada pela metodologia feminista e o referencial de gênero.
Como técnica de pesquisa utiliza-se a história de vida, visando à pesquisa narrativa, em
que se destacam a subjetividade, o cotidiano e a memória. Os capítulos três, quatro, cinco e
seis apresentam, respectivamente, as narrativas das histórias de vida das ex-alunas:
Anneliese, Ruth, Renita e Yvonne. O último capítulo recupera espaços de emancipação na
história de vida das ex-alunas: o processo imigratório, lembranças da infância, da
adolescência, os processos educacionais na família, na escola comunitária luterana, na
igreja luterana, em outros espaços educacionais, a formação profissional, a constituição da
própria família, a imagem de Deus, a leitura da Bíblia, a participação e a liderança em
grupos comunitários até o ano 2005. Percebe-se nas histórias de vida das ex-alunas
narradoras uma profunda influência da educação recebida na escola comunitária e na igreja
luterana, repercutindo na conquista ou não de espaços emancipatórios. Ao permitirem o
registro e a publicação de suas memórias, as ex-alunas narradoras colocam-se como sábias
e educadoras, permitindo a reflexão sobre a importância da religião e da educação nos
processos emancipatórios. A tese conclui enunciando que os espaços de emancipação se
realizam no cotidiano histórico da existência, e que este é um processo plural, coletivo,
conflituoso, dialético, pois aponta para o inacabamento da vida.
ULRICH, Claudete Beise. Retrieving spaces of emancipation in the life stories of former
female students of Lutheran community schools. São Leopoldo : Escola Superior de
Teologia, 2006.
ABSTRACT
This dissertation has the purpose of retrieving the spaces of emancipation in the life stories
of former female students of Lutheran community schools in Brazil. Initially the author
tries to understand the concepts of liberation, emancipation, rational autonomy and
Christian freedom. On the basis of the texture of the theoretical-conceptual threads, the
concept of human emancipation is taken in this dissertation as a synthetic category that is
peculiar to the analytical-synthetic movement of the dialectical approach.
The second chapter describes the theoretical-methodological approach, which is based on
an ethnographic perspective, permeated by a feminist methodology and the gender
referent. The author uses the life story as research technique, aiming at a narrative
investigation that highlights subjectivity, daily life and memory. The third, fourth, fifth and
sixth chapters present the life stories told by the former females students, Anneliese, Ruth,
Renita and Yvonne. The last chapter tries to identify spaces of emancipation in their life
stories: the immigration process, childhood memories, adolescence memories, the
educational processes in the family, the Lutheran community school, the Lutheran church,
in other educational spaces, professional training, the constitution of their own family, their
image of God, Bible reading, participation and leadership in community and/or
congregational groups until 2005. Their narratives reveal a deep influence of the education
they received in the community school and in the Lutheran church, bearing on the
achievement or non-achievement of emancipatory spaces. By allowing their memories to
be recorded and published, the narrators prove to be sages and educators, making it
possible to reflect on the importance of religion and education in emancipation processes.
The dissertation then concludes by discussing how the emancipation processes take place
in the historical daily lives and by emphasizing that this process is a plural, collective,
conflictive and dialectical one, for it points to the unfinished nature of human life.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 11
ILIBERTAÇÃO, EMANCIPAÇÃO, AUTONOMIA RACIONAL E LIBERDADE
CRISTÃ: ENTENDENDO O SIGNIFICADO E BUSCANDO A
INTERLIGAÇÃO DOS FIOS TEÓRICO-CONCEITUAIS .................................. 21
1.1 Teologia feminista articulada com os movimentos feministas.................................... 22
1.1.1 A experiência das mulheres como ponto de partida.......................................... 26
1.1.2 Teologia feminista da libertação ....................................................................... 36
1.1.3 Gênero como ferramenta analítica, política e relacional................................... 37
1.2 Pedagogia da libertação: situação-limite que se transforma em inédito viável ........... 42
1.3 Teologia da libertação: devir da humanidade como um processo de libertação
ao longo da história...................................................................................................... 50
1.4 Filosofia da libertação: epifania – revelação do outro e da outra ................................ 56
1.5 Emancipação humana é mais do que emancipação política ........................................ 60
1.6 Autonomia racional: fazer uso da própria palavra....................................................... 72
1.7 Liberdade cristã: fé ativa no amor................................................................................ 80
1.8 Interligando os fios teórico-conceituais....................................................................... 84
II – PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO ....................................................... 88
2.1 Ponto de partida: o processo de estranhamento e de ruptura....................................... 89
2.2 Silêncio e invisibilidade como fonte de pesquisa........................................................ 91
2.3 Elementos metodológicos para a construção das personagens narradoras.................. 97
2.3.1 Perspectiva etnográfica...................................................................................... 98
2.3.2 Perspectiva etnográfica permeada pelo instrumental de gênero
e pelo feminismo ............................................................................................. 102
2.3.3 A perspectiva etnográfica permeada pelo instrumental de gênero e pelo
feminismo como um método de pesquisa na interface da religião e educação...... 107
2.4 A importância da história de vida como técnica de pesquisa .................................... 116
2.4.1 História de vida e subjetividade ...................................................................... 120
2.4.2 História de vida e cotidiano............................................................................. 122
2.4.3 História de vida e memória.............................................................................. 124
2.5 Recuperação da história de vida das ex-alunas: o estranhamento que se
transforma em compromisso...................................................................................... 128
III – HISTÓRIA DE VIDA DE ANNELIESE ............................................................. 133
IV – HISTÓRIA DE VIDA DE RUTH ......................................................................... 173
V – HISTÓRIA DE VIDA DE RENITA ...................................................................... 206
VI – HISTÓRIA DE VIDA DE YVONNE.................................................................... 237
VII – EX-ALUNAS DE ESCOLA COMUNITÁRIA LUTERANA:
RECUPERANDO ESPAÇOS EMANCIPATÓRIOS ....................................... 275
7.1 Saída da Alemanha e a chegada ao Brasil.................................................................. 277
7.2 Lembranças do tempo da infância ............................................................................. 280
7.2.1 Espaço da casa e do pátio................................................................................ 282
7.2.2 Lembranças dos familiares: pai, mãe e outros................................................. 286
7.2.3 Festas: possibilidade das famílias e dos vizinhos se encontrarem .................. 289
7.2.4 Educação cristã familiar como conseqüência do Batismo .............................. 291
7.3 Educação cristã no espaço da Igreja Luterana: culto infantil, ensino
confirmatório e confirmação...................................................................................... 294
7.4 Espaço da escola comunitária luterana na vida de Anneliese.................................... 298
7.5 Lembranças do espaço da escola comunitária na vida de Ruth................................. 301
7.5.1 Estudos de Ruth na Escola Católica................................................................ 302
7.5.2 Curso de datilografia e aulas de piano............................................................. 303
7.6 Anneliese profissionaliza-se como professora........................................................... 304
7.7 Processo de nacionalização do ensino: conseqüências na vida de Anneliese e Ruth........ 307
7.8 Lembranças da escola comunitária na vida de Renita e Yvonne............................... 318
7.9 Renita e Yvonne: continuidade dos estudos na escola católica................................. 321
7.10 Formação e atuação profissional.............................................................................. 323
7.11 Constituição da própria família – casamento........................................................... 328
7.12 Leitura da Bíblia....................................................................................................... 334
7.13 Imagem de Deus....................................................................................................... 337
7.14 Igreja como laboratório para a vida: participação e liderança em grupos
comunitários até o ano 2005 .................................................................................... 338
7.15 Recuperando espaços de emancipação: em busca de uma tessitura ........................ 342
CONCLUSÃO ................................................................................................................. 348
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 362
INDICE DE DOCUMENTOS E FOTOGRAFIAS ..................................................... 379
ANEXOS ......................................................................................................................... 383
11
INTRODUÇÃO
Direitos Humanos
Sei que Deus mora em mim
como sua melhor casa.
Sou sua paisagem,
sua retorta alquímica
e para sua alegria
seus dois olhos.
Mas esta letra é minha.
1
A investigação desta tese de doutorado nasceu do estranhamento quando da
realização de uma visita pastoral, por ocasião do aniversário de Anneliese, no dia 17 de
março de 2002, quando ela completou 84 anos. Sentadas à mesa do café, Anneliese
começou a rememorar a sua vida. Ela contou que havia estudado na Escola Evangélica
Jaraguá, na Escola de Preparação para Professores em Timbó e atuado como professora por
algum tempo em escolas comunitárias, tendo sido proibida de lecionar por causa da
nacionalização do ensino em 1938. Foi uma grande surpresa ouvir este relato, pois ela era
conhecida como aquela mulher agricultora, idosa, viúva, que entregava leite no final do
dia, andava pelo bairro de pés descalços, só colocava calçados quando ia à igreja, passear
ou fazer compras e como uma mulher ativa nos grupos comunitários da Comunidade
Evangélica de Confissão Luterana no Bairro Amizade. A vida daquela mulher, que parecia
tão familiar, começou a se tornar estranha, fazendo brotar em mim um grande desejo de
saber mais sobre a vida de Anneliese: como ela se tornou agricultora, tendo sido antes
1
Adélia PRADO, Oráculos de maio, p. 73.
12
professora; o que aconteceu em sua trajetória e que espaços teve a escola comunitária
luterana em sua vida.
O estranhamento inicial com o relato de Anneliese despertou a pergunta geradora
dessa tese: Como as ex-alunas de escola comunitária luterana conquistaram espaços de
emancipação em suas vidas? Além dessa pergunta mobilizadora, também um grande
desejo pessoal me movia a saber mais sobre a história de vida de ex-alunas, pois também
sou uma ex-aluna de escola comunitária luterana. Naquele momento histórico, eu estava
terminando o mestrado, que tamm girava em torno da história de vida de um rapaz que
estudara 15 anos numa escola comunitária luterana.
Não obstante o desejo de saber mais, percebi que existem poucos registros escritos
sobre a história de alunos e alunas das escolas comunitárias luteranas. Tive uma noção da
escassez de reflexões, de memórias, de registros escritos sobre a experiência escolar de ex-
alunas. Desta forma, o silêncio e a invisibilidade em relação às ex-alunas tornaram-se
elementos importantes na busca de uma metodologia de pesquisa.
Busquei uma metodologia que possibilitasse registrar a voz e, através dela, a vida
cotidiana, a experiência e o pensamento de mulheres que estudaram numa escola
confessional luterana. Optei pela perspectiva metodológica etnográfica
2
, com uma
dimensão feminista e de gênero. A etnografia firma-se, de acordo com Fonseca, “na
procura por alteridades”, tendo a intenção de “captar algo da experiência das pessoas”.
3
No
processo metodológico etnográfico com uma dimensão feminista e de gênero, ocupam
papel fundamental as narrativas das histórias de vida. Por isso, a história de vida é utilizada
como fonte de pesquisa juntamente com outros recursos da perspectiva metodológica
etnográfica, com uma dimensão feminista e de gênero, como, por exemplo, a inserção no
campo, a observação participante, o diálogo, a análise de documentos, a fotografia, a
pesquisa em arquivos históricos e, principalmente, a arte da escuta e a capacidade de
sistematizar por escrito a fala de quem aprende a dizer a sua palavra. Só e possível avaliar
as marcas que as interligações entre a religião e a educação deixam na vida de uma pessoa
2
Como pesquisadora não tenho formação de antropóloga. Sou teóloga; por isso, a presente pesquisa terá uma
perspectiva etnográfica, isto é, não se fará uma descrição densa dos contextos cotidianos das quatro mulheres
que narram suas histórias de vida. Será narrada a história de vida de cada uma das ex-alunas a partir da escuta
sensível e da interação da pesquisadora com as mulheres pesquisadas. Além da narrativa oral, também serão
analisados fotos, documentos, cartas que as ex-alunas incluem em suas narrativas. Para melhor compreender
o método de pesquisa etnográfica, além de trabalhar com o mesmo no mestrado, realizei um semestre de
leitura supervisionada sobre o tema.
3
Claudia FONSECA, Família, fofoca e honra, p. 10.
13
a partir de um processo de observação e análise, capaz de contemplar sua vida em longos
períodos. Por isso, a presente tese buscou ouvir e registrar a história de vida de diferentes
gerações de ex-alunas de escola comunitária luterana. Esta pesquisa se insere na área de
concentração “Religião e Educação” do Instituto Ecumênico de Pós-Graduação (IEPG).
O objetivo geral da presente tese é o de recuperar e analisar a existência de espaços
de emancipação na história de vida de ex-alunas de escola comunitária luterana, buscando
contribuições para a construção de princípios educacionais e teológicos emancipatórios, a
partir de uma perspectiva feminista e de gênero. O objetivo geral foi desdobrado em quatro
objetivos específicos:
Refletir sobre os conceitos teóricos “libertação”, “emancipação”, “autonomia” e
“liberdade cristã”, interligando os pontos em comum.
Traçar o percurso teórico-metodológico a partir da perspectiva da pesquisa etnográfica,
permeada pela metodologia feminista e de gênero, especialmente no uso da história de
vida, em que a subjetividade, a memória e o cotidiano são partes integrantes do
processo de constituição do objeto/sujeito da pesquisa.
Ouvir e transcrever a narrativa da história de vida de quatro ex-alunas de escola
comunitária luterana.
Analisar as histórias de vida das ex-alunas de escola comunitária luterana, a partir dos
referenciais teórico-metodológicos investigados, recuperando espaços de emancipação
conquistados ou não pelas diferentes gerações de ex-alunas, considerando as
interligações de religião (confessionalidade luterana) e educação (escola comunitária).
Definida a pergunta mobilizadora e os objetivos, passo a destacar os aspectos mais
relevantes, ou, melhor dito, os desafios conceituais e teórico-metodológicos postos pela
pesquisa, apresentando os capítulos que integram esta tese, com a parceria das ex-alunas,
as quais chamo de narradoras.
4
Ouvi e registrei longamente a história de vida de quatro
4
Utilizo o termo “narradoras” para referir-me às ex-alunas pois elas não são somente o objeto de estudo
dessa tese, mas também são sujeitas ativas quando relatam suas memórias e experiências de vida. Como
afirma Ecléa BOSI, Memória e sociedade, p. 38: “Sei que a expressão ‘objeto de pesquisa’ pode repugnar aos
que trabalham em ciências humanas, se essa objetividade é entendida como tratar o sujeito à maneira de
coisa, como redução de suas qualidades individuais para torná-lo objeto compatível com o método
experimental.” Portanto, nesta pesquisa, afirmo, fazendo minhas as palavras de Bosi: “(...) fomos ao mesmo
tempo sujeito e objeto. Sujeito enquanto indagávamos, procurávamos saber. Objeto quando ouvíamos,
registrávamos, sendo como que um instrumento de receber e transmitir a memória de alguém, um meio de
que esse alguém se valia para transmitir suas lembranças.”
14
mulheres, com idades entre 87 e 51 anos, que tinham em comum a passagem por uma
escola comunitária luterana, antes e depois do processo de nacionalização do ensino. Não
se trata de um trabalho de amostragem: o desejo que me levou a empreender o registro das
narrativas das ex-alunas foi o de registrar a voz e, através dela, a experiência de vida de
mulheres que tiveram a formação em uma escola comunitária luterana, buscando encontrar
espaços de emancipação. O registro das histórias de vida alcança experiências e memórias
familiares, escolares, sociais, eclesiais. Portanto, são grupais e coletivas. Para cada uma das
narradoras se explicou com toda a clareza o motivo da pesquisa, e elas sempre tiveram
autoridade sobre o registro de suas lembranças, tornando-se parceiras e autoras na escrita
de suas narrativas.
A partir das histórias de vida, foi possível recuperar as experiências, o cotidiano, as
relações de gênero, de etnia, de classe, de geração que perpassaram e perpassam a vida das
ex-alunas. A narrativa oral da história de vida foi enriquecida com fotografias,
documentos, cartas e outras formas de registro. À medida que as mulheres encontravam
eco para a sua fala, isto é, encontravam uma escuta sensível, um estar face a face, também
as portas dos armários, das gavetas e as tampas das caixas e dos baús foram abertas. Bosi
afirma que o principal esteio no método de abordagem utilizado em sua pesquisa
foi a formação de um vínculo de amizade e confiança com os recordadores. Esse vínculo
não traduz apenas uma simpatia espontânea que se foi desenvolvendo durante a pesquisa,
mas resulta de um amadurecimento de quem deseja compreender a própria vida revelada
do sujeito.
5
O vínculo de amizade, de respeito, de confiança, compromisso entre a pastora-
pesquisadora e as narradoras foi construído durante o processo de elaboração das
narrativas. À medida que as ex-alunas liam suas memórias e lembranças escritas, elas
pediam para retirar determinadas falas e para acrescentar outras. Havia ditos e não-ditos,
presentes somente nos olhares, no rosto que se enrugava, nas lágrimas que rolavam pelo
rosto, na corp(oralidade)
6
que se fazia presente. Portanto, ouvindo, registrando e
documentando as experiências das mulheres (suas histórias de vida), surgirão, certamente,
outras interpretações de identidades femininas, emergindo os papéis informais, as
improvisações e a resistência das mulheres. O feminismo, como construção teórica e
prática, se articula a partir da experiência, sendo esta constituída pelos acontecimentos que
5
Eclea BOSI, Memória e sociedade, p. 38.
6
Renate GIERUS, CorpOralidade – história oral e corpo, p. 43-47.
15
marcam o cotidiano das mulheres, pois existe uma multiplicidade de experiências de ser
mulher.
Junto com o processo de elaboração das narrativas das histórias de vida, também
me aproximei do campo conceitual e teórico, buscando entender os significados dos
conceitos “libertação”, “autonomia racional”, “emancipação” e “liberdade cristã”. Esses
conceitos são muito utilizados em nosso cotidiano, mas nem sempre com a devida clareza
quanto ao seu verdadeiro sentido.
O conceito “libertação” nasceu no contexto da América Latina, a partir dos anos 60
e 70, apresentando diferentes enfoques. A teologia feminista da libertação aponta para a
experiência das mulheres como fonte do fazer teológico. Ela considera gênero um
instrumento de análise, entendendo que a forma como os seres humanos se relacionam
entre si, com a natureza e com as instituições sociais são construções históricas, sendo
possíveis mudanças através dos processos de libertação.
Segundo Fiori, em seu prefácio ao livro de Freire Pedagogia do Oprimido, a
alfabetização é “aprender a escrever a sua vida, como autor e como testemunha de sua
história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se. A pedagogia faz-se
antropologia”.
7
É nesse sentido que Freire aponta para a importância do processo de
conscientização, que leva à humanização do ser humano. A característica antropológica da
pedagogia da libertação é superar as situações-limite, tornando-as possibilidades para o
devir pleno das mulheres e dos homens na história de sua sociedade.
O termo “libertação” foi amplamente utilizado pela Teologia da Libertação.
“Libertação” – entendida como consciência histórica ou como horizonte hermenêutico –
não é um conceito exclusivamente teológico.
8
O conceito libertação tem uma origem
extrateológica determinável, a saber, a assim chamada “teoria da dependência”.
9
Sujeitos
dessa libertação só podem ser os próprios povos oprimidos, como sujeito coletivo. Por isso,
segundo Gutiérrez, “a teologia é reflexão, atitude crítica. Primeiro é compromisso de
caridade, de serviço. A teologia vem depois, é ato segundo”.
10
7
Ernani Maria FIORI, Aprender a dizer a sua palavra, p. 10.
8
Luís Marcos SANDER, Jesus, o Libertador, p. 12.
9
Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da libertação, p. 78-83.
10
Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da libertação, p. 24.
16
A filosofia da libertação coloca a relação de alteridade, o estar face a face, como
aspecto imprescindível para a libertação. Só na relação face a face é possível recuperar a
humanidade. A libertação acontece no processo, na abertura ao Outro e à Outra, ouvindo a
sua voz, estando aberto para o processo de epifania. É isto que se exercitou quando se
ouviram as histórias de vida das ex-alunas, em que o silêncio da pesquisadora foi
fundamental para que as narradoras pudessem se revelar.
O conceito emancipação é construído a partir da noção de emancipação humana
desenvolvida por Marx, no seu escrito A questão judaica. “Toda a emancipação”, diz
Marx, “constitui uma restituição do mundo humano e das relações humanas ao próprio
homem”.
11
É por isto que, para o autor, não basta a emancipação política. Marx diz que “a
emancipação política é a redução do ser humano, por um lado, a membro da sociedade
civil, indivíduo independente e egoísta e, por outro, a cidadão, a pessoa moral.” A
emancipação política, hoje traduzida por cidadania, não é suficiente. Por isso, segundo
Marx:
A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver em si o
cidadão abstracto; quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas
suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico; e quando tiver reconhecido e
organizado as suas próprias forças (forces propres) como forças sociais, de maneira a
nunca mais separar de si esta força social como força política.
12
A emancipação humana transcende a emancipação política, atingindo as relações
sociais, de gênero, de etnia, de geração, atingindo o ser genérico, conduzindo para a
plenitude do ser humano, homem e mulher, e para a construção de uma nova sociedade.
O conceito emancipação humana traz questionamentos ao conceito emancipação
racional trabalhado por Kant. Este inicia a sua reflexão respondendo a pergunta: Que é o
Iluminismo? Ele responde: “O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que
ele próprio é culpado”.
13
Percebe-se que emancipação é um processo histórico. Kant
entende o marco histórico do Iluminismo como a passagem da infância para a idade adulta
e como a conquista da autonomia humana. Podemos conceituar autonomia como a
capacidade de pensar por si mesmo e de dizer a sua própria palavra, como a “vocação para
o pensamento livre
14
e como alcance da maioridade. Em resumo, o ideal de emancipação
11
Karl MARX, A questão judaica, p. 63.
12
Karl MARX, A questão judaica, p. 63.
13
Immanuel KANT, A paz perpétua e outros opúsculos, p. 11.
14
Immanuel KANT, A paz perpétua e outros opúsculos, p. 19.
17
propagado por Kant era o uso da razão autônoma, tanto na existência pessoal como na vida
social. Tudo, no entanto, é visto a partir racionalidade, em que o belo, o sensível, não tem
espaço. O autor se dirige ao homem livre, cidadão proprietário; em conseqüência,
mulheres, crianças e escravos estão excluídos, não sendo consideradas sujeitos morais e
tampouco cidadãs ativas.
Nesse período histórico, o processo de ensino-aprendizagem apresenta-se de forma
dicotômica. Os homens são educados para a racionalidade, autonomia e liberdade,
enquanto que a educação da mulher se volta para o casamento, a maternidade e o cuidado
dos filhos. Rousseau, em seu famoso Emílio, dedica o capítulo V à educação de Sofia,
afirmando que a sua educação deve estar a serviço de Emílio. Pestalozzi apresenta a
educação diferenciada de Gertrudes e Leonardo. Portanto, quando se fala de autonomia
racional, é necessário questionar de onde se está falando e qual é o projeto de educação e
de sociedade a que se refere conceito. Procuro recuperar algumas vozes proféticas que se
colocaram contra esse discurso, como Wollstonecraft, Gouges, Condorcet e, no Brasil,
Nísia Floresta Augusta. Portanto, percebe-se que autonomia racional foi entendida de
forma diferente para os homens e para as mulheres, criando-se hierarquias e fortalecendo-
se a desigualdade.
Para Lutero, “um cristão é senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito. O cristão
é um servo oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito”.
15
Para o reformador, a liberdade cristã
tem na fé e no amor elementos teológicos importantes para o exercício da liberdade: “A
liberdade que o cristão tem através da fé é, precisamente, liberdade para a serviçalidade
do amor. E serviçalidade do amor só existe na medida em que acontece liberdade”.
16
Para
Lutero, portanto, a nova base para a ação ética está na “fé ativa no amor”.
17
Ele entende
que os cristãos e as cristãs precisam atuar no mundo. Esta atuação, o reformador chama-a
de Besserung (melhoramento). No entanto, essa atuação no mundo acontece de forma
diferente para homens e mulheres. Na opinião do reformador, a mulher foi criada como
ajudante do homem, uma companheira de todas as coisas, particularmente para dar à luz os
filhos.
18
Os teólogos da Reforma, segundo Deifelt, repetiram os argumentos da ordem
natural como ordem instituída por Deus para explicar a desigualdade social entre homens e
15
Martinho LUTERO, Tratado de Martinho Lutero sobre a liberdade cristã, p. 437.
16
Gerhard EBELING, O pensamento de Lutero, p. 168.
17
Gerhard EBELING, O pensamento de Lutero, p. 85.
18
Martinho Lutero, Da vida matrimonial, p. 160ss.
18
mulheres.
19
Essa compreensão também trouxe reflexos diferentes para o processo de
ensino-aprendizagem de homens e mulheres.
É dos conceitos teóricos “libertação”, “emancipação”, “autonomia” e “liberdade
cristã” que trata o primeiro capítulo. Busco compreender o conceito “emancipação
humana” como Aufhebung superação, no mais genuíno sentido dialético hegeliano e
marxista, onde o superado não é eliminado, mas, na categoria sintética, elevado a um
patamar superior de compreensão. O conceito “emancipação” é tomado, nesta tese, como
categoria sintética, própria do movimento analítico-sintético da abordagem dialética.
O segundo capítulo apresenta o percurso teórico-metodológico desta tese, que inicia
no processo de estranhamento com a história de vida de Anneliese e encontra no silêncio e
na invisibilidade fontes para a pesquisa. A elaboração das histórias de vida foi um longo
processo, de escuta, de escrita, de reescrita, permeado pela perspectiva etnográfica,
feminista e de gênero. A história de vida considera a subjetividade de cada narradora, bem
como a memória pessoal que se interliga com a memória coletiva, de acordo com
Halbwachs. A história pessoal está interligada com a história da humanidade. De acordo
com Eckert: “O tempo lembrado não é, então, a permanência do passado, mas viver no
presente a partir de valores socialmente ressignificados”.
20
Segundo Perrot, a diferença
entre os homens e a mulheres em relação aos relatos do passado está no fato de que os
homens se mostram mudos, pois esqueceram quase tudo que não tem ligação com a vida
do trabalho, enquanto as mulheres se mostram faladoras quando deixam vir à tona as
lembranças que falam da vida cotidiana.
21
Bachelard
22
afirma que o conhecimento da
intimidade pessoal, por meio das memórias, dá-se pela recordação dos espaços em que se
passaram as vivências; por isto, procuro nesta tese recuperar os espaços de emancipação.
Em Lutero, exploro os escritos sobre a educação, que são resultados das suas
conclusões teológicas, buscando entender relações entre a religião (confessionalidade
luterana) e a educação (escola comunitária luterana) na história de vida das ex-alunas. A
metodologia feminista, permeada pela análise de gênero, é referencial para suspeitar e
desconstruir certas verdades teológicas e pedagógicas que hierarquizaram mulheres e
19
Wanda DEIFELT, Mulheres pregadoras, p. 362.
20
Cornélia ECKERT, A vida em outro ritmo, p. 176.
21
Michelle PERROT, Os excluídos da história, p. 207.
22
Gaston BACHELARD, A poética do espaço, p. 22-29.
19
homens no decorrer da história. Enfim, ouvir as narrativas das quatro ex-alunas foi um
grande desafio; narrar as suas histórias de vida resultou em arte, como ensina Benjamin.
23
O terceiro, quarto, quinto e sexto capítulos trazem a narrativa escrita da história de
vida das ex-alunas. Este processo nasceu da narrativa oral interligada com o processo da
narrativa escrita, em que a pesquisadora e as narradoras tornam-se co-autoras da história de
vida escrita. É a experiência de vida que se torna história. Não faço um estudo sobre as
escolas comunitárias luteranas.
24
Esta reflexão aparece na medida em que está interligada
com a história de vida das ex-alunas. Os nomes das narradoras são reais. As autorizações
para o uso da narrativa de suas histórias de vida, bem como de imagens e documentos,
foram obtidas por escrito e registradas em cartório, encontrando-se anexadas ao corpo da
tese.
O sétimo capítulo recupera espaços de emancipação identificados nas histórias de
vida. Nele, além de analisar as histórias de vida, procuro tecer alguns fios teóricos e
metodológicos desenrolados desde o princípio da presente tese. As narrativas das histórias
de vida das ex-alunas deixam clara a necessidade de se abandonar uma referência abstrata
à escolarização e de se pensar em modos de educação escolar, que geralmente têm variado
historicamente de acordo com marcadores sociais tais como gênero, classe social, etnia,
religião.
25
As escolas comunitárias luteranas estavam imbricadas dentro de uma
perspectiva de melhoramento do mundo; por isso, também fizeram parte da vida dos
imigrantes alemães, que estavam à margem da sociedade brasileira. O currículo estava
ligado com as coisas práticas do cotidiano, pois não se buscava formar uma pequena elite
de letrados, mas capacitar pessoas que viessem a atuar como agentes ativos em seu
contexto. O processo de ensino-aprendizagem também tinha como objetivo a emancipação
da pessoa, no tocante à leitura e interpretação da Bíblia. Sem a educação, a própria
confessionalidade luterana estava ameaçada. Como permanecer na confessionalidade
23
Walter BENJAMIN, O narrador, p. 63-81.
24
Em relação às escolas comunitárias luteranas, aponto para os seguintes estudos: Gisela I. W. STRECK,
Ensino Religioso com adolescentes: em escolas confessionais luteranas da IECLB (tese de doutorado), 2000.
Alvori AHLERT, Educação, ética e cidadania: referenciais para as escolas da Rede Sinodal de Educação
(tese de doutorado), 2004. João KLUG, A escola teuto-catarinense e o processo de modernização em Santa
Catarina: A ação da igreja Luterana através das escolas (1871-1938) (tese de doutorado), 1997. Dagmar E.
E. MEYER, Identidades traduzidas: cultura e docência teuto-brasileira-evangélica no Rio Grande do Sul,
2000. Neide A. FIORI (Org.), Etnia e educação: a escola “alemã” do Brasil e estudos congêneres, 2003.
Norberto DALLABRIDA (Org.), Mosaico de escolas: modos de educação em Santa Catarina na Primeira
República, 2003.
25
Norberto DALLABRIDA, A fabricação escolar das elites, p. 28.
20
luterana sem uma escolaridade mínima, que permitisse ler a Bíblia, o Catecismo Menor e o
Hinário com seus cantos e orações?
É importante deixar claro que não pretendi escrever uma tese sobre histórias de
vida de ex-alunas e tampouco sobre escola comunitária luterana, mas sim recuperar
espaços de emancipação na história de vida de ex-alunas. Espaços de emancipação que se
materializam na conflituosidade da experiência coletiva da historicidade da vida cotidiana,
que se interligam na religião e na educação. Escrevi toda a tese na primeira pessoa do
singular, pois neste trabalho se encontram as subjetividades de cinco mulheres (da
pesquisadora e das quatro narradoras), além do diálogo estabelecido com os diferentes
autores e autoras, onde sempre foi necessário tamm tomar uma posição. Como pastora-
pesquisadora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), compartilho
a opinião de Josuttis sobre o uso democrático do “eu” na pregação “dialogal porque não é o
nós generalizante, mas o eu que convida para uma resposta”, considerando que o “ouvinte
maduro haverá de revoltar-se e protestar contra um pastor (ou uma pastora) que fala em
termos de nós. Em relação ao que fala em primeira pessoa, o ouvinte é levado a pensar
qual seria a opinião de seu próprio eu...”
26
Por isso afirmo, com a poetisa Adélia Prado:
“Deus mora em mim, mas esta letra é minha.”
26
Manfred JOSUTTIS, Prática do evangelho entre política e religião, p. 84. A inclusão é minha.
21
I – LIBERTAÇÃO, EMANCIPAÇÃO, AUTONOMIA RACIONAL E LIBERDADE
CRISTÃ: ENTENDENDO O SIGNIFICADO E BUSCANDO A
INTERLIGAÇÃO DOS FIOS TEÓRICO-CONCEITUAIS
Segundo o historiador britânico Eric Hobsbawm
27
, o século XX é marcado pelo
movimento social mais relevante na história da humanidade: o movimento de emancipação
das mulheres, em que a educação teve um papel fundamental. O processo educacional
representa uma interface importante de mobilidade social para as mulheres e,
conseqüentemente, de poder nas relações sociais, na medida em que as mulheres tenham
controle sobre suas vidas, seus corpos e planejem seu presente e futuro. A escolarização
significou e significa ganhos concretos para as mulheres, possibilitando-lhes a entrada nos
mais diversos campos do saber, implicando também a conquista de melhores postos de
trabalho e, inclusive, de melhores salários. O acesso à educação é entendido como
condição indispensável para a mudança nas condições sociais e culturais das mulheres.
Mesmo com o avanço da educação das mulheres e os ganhos concretos na escolarização,
persistem aspectos culturais, históricos, sociais e econômicos que preservam o caráter
opressivo e discriminatório que se mostra nas relações de gênero, de etnia e de classe
social.
Neste capítulo, procuro entender os conceitos de libertação, emancipação,
autonomia e liberdade e as suas possíveis interligações, possibilitando a reflexão sobre a
recuperação de espaços de emancipação na história de vida de ex-alunas de escola
27
Eric HOBSBAWM, O novo século, p. 146-150: “Não há dúvida de que a emancipação feminina foi um
dos grandes fenômenos da história do século XX. Para o século XXI, o problema pendente é definir o que
resta a fazer. Na realidade, a emancipação das mulheres ao longo do século XX restringiu-se a algumas
regiões do mundo e a determinados setores da população. Ainda existem extensas partes do globo em que
esse fenômeno não ocorreu. (...) Uma emancipação maior das mulheres será uma das marcas do próximo
século. Seu instrumento mais eficaz será a difusão da educação por todo o planeta, até nos países mais
atrasados. Pois essa revolução se propaga pelo conhecimento de que outras pessoas agem de modo diferente
daquele que era considerado parte das leis imutáveis da natureza. Desse ponto de vista, a emancipação
feminina só deu o primeiro passo, pois ainda o afetou a maior parte da população mundial.”
22
comunitária luterana. Inicio com o conceito de libertação presente na teologia feminista da
libertação. Sigo, então, em busca da compreensão do mesmo conceito na pedagogia,
teologia e filosofia da libertação latino-americana. Passo então a refletir sobre o conceito
de emancipação política e emancipação humana em Marx, o conceito de autonomia
racional em Kant até, finalmente, chegar ao conceito de liberdade cristã em Lutero. Por
fim, busco uma interligação entre esses conceitos.
1.1 Teologia feminista articulada com os movimentos feministas
A teologia feminista aparece em cena, no contexto do século XX, em sintonia com
o movimento feminista
28
. Segundo Teles, o conceito de feminismo aqui adotado refere-se
a um movimento político que questiona as relações de poder, a opressão e a exploração de
grupos de pessoas sobre outras, particularmente da dominação sobre a população feminina.
Contrapõe-se radicalmente ao poder patriarcal que sobrevive ainda nos dias de hoje,
sutilmente ou não, disfarçado em “igualdade”, “competência” e “liberdade de disputa e
concorrência”.
29
O movimento feminista apresenta uma crítica às relações de poder, especialmente a
dominação que as mulheres sofrem através do poder patriarcal que ainda persiste em
nossos dias. Segundo Lagarde
30
, viver no mundo patriarcal significa que, mais além de
nossa vontade e de nossa consciência, as mulheres e os homens ocupam espaços vitais
hierarquizados, cumprem funções e papéis, realizam atividades, estabelecem relações e
têm ou carecem de poderes de maneiras estreitas e rígidas prefixadas pela sociedade. O
mundo patriarcal concentrou bens materiais e simbólicos – a terra, o dinheiro, o capital, as
mulheres, o saber, o poder político – nas mãos dos homens. Da mesma forma, expropria as
mulheres – seu corpo, sua criatividade e seus bens – convertendo-as em posse, controlando
e tutelando-as, excluindo-as das decisões mais importantes. Para a autora, as mulheres
estão sujeitas a diferentes cativeiros
31
, nos espaços que ocupam e nos seus grupos de
28
Wanda DEIFELT, Temas e metodologias da teologia feminista, p. 171.
29
Maria Amélia de Almeida TELES, Feminismo no Brasil, p. 51.
30
Marcela LAGARDE, Democracia genérica, p. 13-16.
31 Marcela LAGARDE, Los cautiverios de las mujeres, p. 151-152. “Cautiverio es la categoría antropológica
que sintetiza el hecho cultural que define el estado de las mujeres en el mundo patriarcal: se concreta
políticamente en la relación específica de las mujeres con el poder y se caracteriza por la privación de la
libertad. Las mujeres están cautivas porque han sido privadas de autonomía, de independencia para vivir, del
gobierno sobre sí mismas, de la posibilidad de escoger, y de la capacidad de decidir.” Marcela Lagarde, faz
referência à experiência das mulheres como sujeitas a diversas cativeiros, a teóloga Ivone GEBARA pode ser
agregada nessa discussão quando fala em senzala, uma experiência particular das mulheres nordestinas, que
pode ser um paralelo das experiências de outras mulheres de nosso contexto. Consulte também o livro Ivone
GEBARA, A mobilidade da senzala feminina: mulheres nordestinas, vida melhor e feminismo: Paulinas,
2000.
23
pertença, aqueles que, de maneira contraditória, deveriam oferecer-lhes segurança,
proteção e pertença: sua comunidade, sua família, seu esposo e os grupos nos quais elas
atuam: escola, trabalho, partido político, comunidade religiosa. As mulheres estão sujeitas
ao domínio do conjunto da sociedade, garantido por normas que as colocam como cidadãs
de segunda categoria, menores de idade, seres marginais ou como minoria. O Estado, como
síntese política de forças, instituições, normas, pactos, mandatos, conflitos, consensos,
coerções, é um organismo patriarcal. Portanto, é necessário suspeitar da democracia
genérica, que propaga igualdade, fraternidade e liberdade para todos e todas
32
. Como diz
Bourdieu, é necessário superar a dominação masculina
33
. “A teoria feminista, como crítica
ao patriarcado, endereça-se à democracia na perspectiva das mulheres”.
34
Acrescenta-se a isso, no entanto, a circunstância de que a opressão sofrida pelas
mulheres se manifesta em graus diferentes, dependendo de sua classe social, educação,
faixa etária, religião, relações étnico-raciais, orientação sexual. Não é possível
universalizar a opressão sofrida pelas mulheres. É necessário localizá-la em seu contexto
sócio-histórico-cultural. Ela assume formas diversas, transformando-se ao longo da história
da humanidade, através de movimentos que buscaram e buscam mudanças na sociedade.
“No século XIX, o conceito de emancipacionismo buscava a igualdade de direitos,
mantida na esfera dos valores masculinos”
35
, sendo necessária “uma crítica à razão
patriarcal”
36
. É importante ter claro que o conceito de emancipação empregado nos inícios
do movimento feminista situa-se na esfera da conquista de direitos: direito ao voto, direito
à educação
37
, direito ao trabalho fora de casa, entre outros.
Atualmente, o feminismo “formula o conceito de libertação que prescinde da
‘igualdade’ para afirmar a diferença – compreendida não como desigualdade ou
complementaridade, mas como ascensão histórica da própria identidade feminina”.
38
O
conceito de libertação acentua a importância da diferença nas relações e na constituição do
ser humano. De acordo com Rieger:
32
Marcela LAGARDE, Democracia genérica, p. 15-17.
33
Consulte o livro de Pierre BOURDIEU, A dominação masculina, 2003.
34
Marie Jane CARVALHO, Qual cidadania desejamos, p. 222.
35
Maria Amélia de Almeida TELES, Feminismo no Brasil, p. 52.
36
Celia AMORÓS, Hacia una crítica de la razón patriarcal, 1991.
37
Consulte o livro de June E. HAHNER, Emancipação do sexo feminino, 2003.
38
Maria Amélia de Almeida TELES, Feminismo no Brasil, p. 52.
24
Libertação deve ser vista, neste contexto, como um processo multifacetado. Por um lado
ela inclui uma análise dos dados sociais, políticos e econômicos em cada caso, com auxílio
de um instrumental científico-sociológico, com o fim de tornar visíveis as dependências de
toda espécie, as estruturas de poder e as condições de dominação que juntas produzem e
estabilizam a situação de opressão. Por outro tem que identificar e denunciar perante o
público os elos efetivos entre racismo e economia, entre sexismo e capitalismo etc., isto é,
a libertação pressupõe que sejam desmascaradas e manifestadas as múltiplas estruturas de
violência, para possibilitar a ação. (...)
Libertação significa a possibilidade de possuir identidade cultural e religiosa, a garantia de
satisfazer as necessidades humanas básicas, como alimentação, moradia, trabalho,
educação, liberdade pessoal e política. A isto as mulheres acrescentam ainda a libertação da
primazia masculina em todas as esferas, entendendo sob este conceito o fim da divisão do
trabalho conforme o sexo, assim como a retomada de posse do próprio corpo e a
(re)descoberta da sexualidade feminina.
39
O feminismo também tem se utilizado do conceito de autonomia, que, segundo
Praetorius, designa “a meta do processo de emancipação: libertar-se da determinação
estranha (heteronomia), adquirir independência”.
40
Acentua-se, dessa forma, o processo de
libertação da mulher, no sentido de ela tomar as suas próprias decisões.
Feminismo, portanto, é um movimento plural com posições e questionamentos
convergentes e divergentes entre si. Segundo Carvalho, a educação é um princípio que está
presente nas diferentes visões históricas do feminismo:
a) ora dirigido à reivindicação de escolarização, de qualificação pessoal e profissional com
vista à mobilidade social e à conquista de poder,
b) ora com demandas específicas que atendam às mulheres e
c) ora como um projeto de mudança cultural nas formas de educar meninos e meninas.
A educação é um meio-fim necessário para equalizar as condições de vida e as relações
entre homens e mulheres. Por si só a escolarização não oferece garantia de uma vida
melhor, todavia é condição necessária para a mobilidade social e um espaço importante de
aprendizagem da convivência democrática entre gêneros, raças e classes sociais.
41
A reivindicação do direito à educação tem acompanhado o movimento feminista
como fator importante para a mobilidade social das mulheres, para a transformação das
relações de opressão e para a conquista de poder social. Deifelt salienta que “somente
quando as mulheres tiveram pleno acesso à educação formal elas puderam ter acesso
também ao voto, direito à propriedade e o reconhecimento de seu trabalho”.
42
O direito à
educação, portanto, foi uma das principais alavancas do movimento feminista para
conseguir a cidadania.
39
Renate RIEGER, verbete Teologia da libertação, p. 500-501.
40
Ina PRAETORIUS, verbete Autonomia/emancipação, p. 211-212.
41
Marie Jane CARVALHO, Qual cidadania desejamos, p. 224.
42
Wanda DEIFELT, Educação teológica para mulheres, p. 269.
25
A plataforma de ação para a educação da 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher
apresenta tanto a antiga reivindicação de acesso à escolarização quanto de incorporação de
medidas de atenção aos mecanismos sexistas intra-institucionais, com propostas dirigidas a
mudanças significativas no currículo
43
. A educação é vista como uma condição importante,
mas não exclusiva, de mudança nas condições sociais e culturais. Além da escolarização
em si, são necessárias transformações na cultura, possibilitando que pais e mães conciliem
emprego e vida doméstica, dividindo custos, compartilhando responsabilidades, cuidado
com os filhos e as filhas e desfrutando conjuntamente das recompensas emocionais
44
.
O processo educacional, a partir da perspectiva feminista, questiona a forma como
se aprende e se ensina sobre a mulher, levando também em consideração classe social,
gênero, geração e etnia, entre outros. Nesse sentido, os movimentos das mulheres negras
trouxeram uma grande colaboração, demonstrando que as suas experiências são entendidas
de forma simplista onde não se discutem a estruturação das relações sociais e os efeitos das
posições de raça, etnia, classe social e gênero na vida delas
45
.
O feminismo, além da luta política, tem também um caráter humanista, enquanto
busca a libertação das mulheres e dos homens, rompendo com as hierarquias, afirmando-se
num processo de autonomia. Também os homens precisam ser libertos “do mito do macho,
que os coloca como falsos depositários do supremo poder, força e inteligência”.
46
Não é
possível universalizar o Homem, o Conhecimento e a Palavra como sendo verdades
absolutas e eternas. O movimento feminista vem enfatizar, segundo Harding, “que não há e
nunca houve homens genéricos”.
47
O que existe é a classificação de homem e mulher
através do gênero, dentro de um determinado contexto. Dissolvida “a idéia de um homem
essencial e universal, também desaparece a idéia de sua companheira oculta. Temos uma
infinidade de mulheres que vivem intrincados complexos históricos de classe, raça e
cultura”
48
, que se articulam conjuntamente. Grossi afirma que, no Brasil, o feminismo teve
visibilidade e um forte caráter de luta de classe, posicionando-se contra a ditadura militar.
49
43
ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas, IV Conferência mundial sobre a mulher, p. 63-74.
44
Marie Jane CARVALHO, Qual cidadania desejamos, p. 224-230.
45
Marie Jane CARVALHO, Qual cidadania desejamos, p. 234.
46
Maria Amélia de Almeida TELES, Feminismo no Brasil, p. 52.
47
Sandra HARDING, A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista, p. 9.
48
Sandra HARDING, A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista, p. 9.
49
Miriam Pilar GROSSI, A Revista Estudos Feministas faz 10 anos, p. 4.
26
1.1.1 A experiência das mulheres como ponto de partida
Na releitura ou interpretação bíblica promovida na América Latina, impulsionada e
ao mesmo tempo impulsionadora da teologia da libertação, o critério da experiência já é
conhecido e aplicado. A teologia feminista propõe como critério hermenêutico, não
qualquer experiência, mas a experiência das mulheres, que transita entre opressão e
alienação até libertação e emancipação. Segundo Ruether:
A experiência humana é o ponto de partida e de chegada do círculo hermenêutico. (...) A
singularidade da Teologia Feminista não reside em seu uso do critério da experiência, mas
antes, em seu uso da experiência das mulheres, que no passado foi quase que inteiramente
excluída da reflexão teológica. Portanto, o uso da experiência das mulheres na teologia
feminista explode como uma força crítica, revelando que a teologia clássica, incluindo suas
tradições codificadas, baseia-se na experiência masculina, e não na experiência humana
universal.
50
O inédito na hermenêutica feminista, como método da teologia feminista, é que a
experiência das mulheres se torna fonte do fazer teológico
51
, fazendo profundos
questionamentos à teologia clássica. Se a experiência das mulheres é um conceito-chave
para a teologia feminista, isto significa que é necessário dar nome à experiência, pois “todo
conhecimento é contingente, situado, localizado e temporal, não universalizado e toda a
experiência constitui-se não apenas como interpretação da realidade, mas constituinte da
mesma”.
52
Ströher chama a atenção para o seguinte fato:
Assim como qualquer outro conhecimento, a teologia sempre serve a certos interesses; a
teologia é política, e por isso mesmo, deve abandonar a premissa da assim chamada
objetividade e neutralidade, e assumir a sua parcialidade, “tornar-se partidária”, como diz
Elisabeth S. Fiorenza (2004), indicando a favor de quem ela se pronuncia e se constitui.
53
É isso que a teologia feminista busca fazer: nomear as experiências, a partir das
realidades específicas e contextuais das mulheres, buscando a integralidade da vida. Cada
mulher, cada cultura, cada organização produz as suas experiências. Enfim, cada pessoa,
cada mulher, cada corpo é um lugar único e inédito. É a partir da experiência de cada corpo
de mulher com a Transcendência, que vive a experiência do divino na sua corporeidade,
que se faz a hermenêutica e teologia feminista.
54
“As experiências de opressão das
50
Rosemary R. RUETHER, Sexismo e religião, p. 18.
51
Elaine Gleci NEUENFELDT, Gênero e hermenêutica feminista, p. 49.
52
Marga J. STRÖHER, A história de uma história, p. 122.
53
Marga J. STRÖHER, A história de uma história, p. 122.
54
Elaine Gleci NEUENFELDT, Gênero e hermenêutica feminista, p. 49-50.
27
mulheres e suas lutas de libertação são, portanto, chaves epistemológicas”.
55
Isto não
significa homogeneidade. Nem todas as mulheres compartilham das mesmas experiências
todo o tempo, embora o patriarcalismo forneça elementos de experiência comuns. Tendo
como ponto de partida a experiência das mulheres, a teologia feminista procura evitar
generalizações, insistindo que a particularidade seja reconhecida.
As experiências são os acontecimentos que marcam o cotidiano das mulheres e a
partir dos quais o feminismo, como construção teórica e prática, se articula. As questões
consideradas pessoais e privadas passam a ser entendidas como públicas e políticas. O
cotidiano necessita ser historicizado e politizado
56
, porquanto é nele que as dimensões da
“justiça de gênero e a corporeidade passam a ser critérios éticos e teológicos”.
57
Uma importante porta de entrada para a leitura bíblica e reflexão teológica é o nosso
cotidiano, nosso dia-a-dia, marcado também pela fé e espiritualidade. Alegria, dor,
sofrimento, esperança, morte, angústia, prazer... vão marcando a realidade de nossas
vidas... fazem parte da história de nossos corpos em relação com outros corpos. Somos
pessoas inseridas num contexto maior, marcado por crises generalizadas, por desgovernos,
onde a prática da injustiça impera sobre a justiça, a corrupção se exalta sobre a retidão, a
impunidade anda solta, a miséria e o empobrecimento clamam aos céus e aos nossos
corações! Vendo toda essa realidade, somos igualmente pessoas que buscam se organizar
para resistir, propor e vivenciar alternativas.
58
O feminismo, tendo como pressuposto as experiências cotidianas, históricas,
políticas, teológicas, renuncia à pretensa neutralidade e universalidade, questionando o
papel normativo que o homem branco ocupa na construção da sociedade.
59
Segundo Scott:
Precisamos dar conta dos processos históricos que, através dos discursos, posicionam
sujeitos e produzem suas experiências. Não são os indivíduos que têm experiência, mas os
sujeitos são constituídos através da experiência. A experiência torna-se não a origem de
nossa explicação, não a evidência autorizada (porque vista ou sentida) que fundamenta o
conhecimento, mas sim aquilo que buscamos explicar, aquilo sobre o qual se produz
conhecimento. Pensar a experiência dessa forma é historicizá-la, assim como as identidades
que ela produz.
60
55
Wanda DEIFELT, Temas e metodologias da teologia feminista, p. 177.
56
Branca Moreira ALVES, Jacqueline PITANGUY, O que é feminismo?, p. 8: “Ao afirmar que o sexo é
político, pois contém também ele relações de poder, o feminismo rompe com os modelos políticos
tradicionais, que atribuem uma neutralidade ao espaço individual e que definem como política unicamente a
esfera pública, ‘objetiva’.”
57
Marga J. STROHER, A história de uma história, p. 122.
58
Ivoni Richter REIMER, O belo, as feras e o novo tempo, p. 16.
59
Ivoni Richter REIMER, O belo, as feras e o novo tempo, p. 9.
60
Joan W. SCOTT, Experiência, p. 27.
28
Os sujeitos são constituídos através da experiência. Refletir sobre a experiência é
historicizá-la, assim como as identidades que ela produz. “Não se trata de uma experiência
ou uma identidade ‘encontrada’, mas que foi construída ou atribuída e, portanto, pode ser
modificada”.
61
Silva afirma
a necessidade de documentar a experiência vivida como possibilidade de abrir caminhos
novos. Outras interpretações de identidades femininas virão à luz na medida em que
experiências vividas em diferentes conjunturas do passado forem gradativamente
documentadas, a fim de que possa emergir não apenas a história da documentação
masculina, mas sobretudo os papéis informais, as improvisações, a resistência das
mulheres.
62
Se o ponto de partida da hermenêutica feminista é a experiência das mulheres,
então, na América Latina, isto significa para a maioria das mulheres uma experiência
duramente marcada pela opressão cultural, agravada pela opressão econômica, social e
étnica. A grande maioria das mulheres brasileiras e latino-americanas é pobre, analfabeta,
maltratada, sofrida
63
. Elas são indígenas, negras, migrantes, imigrantes, chefes de família.
Atualmente, vem aumentando o número de trabalhadoras que sustentam sozinhas a sua
família
64
. Ao mesmo tempo, são mulheres lutadoras, criativas, comprometidas,
intimamente ligadas com a fé, a justiça e um grande cuidado pela vida.
Segundo Bondía, “experiência é o que se passa conosco, o que nos acontece, o que
nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. (...) Nunca se passaram
tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara”.
65
A experiência é cada vez mais
rara, porque tudo se passa demasiadamente depressa. A falta de silêncio e de memória é
inimiga mortal para o sentir em profundidade a experiência. Isto se reflete em todos os
aspectos da nossa vida. De acordo com o autor:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de
interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para
pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e
escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes,
suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da
ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
61
Marga J. STRÖHER, A história de uma história, p. 122.
62
Maria Odila da Silva DIAS, Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista, p. 374.
63
Essa denúncia está documentada no livro de Hildete Pereira de MELO, Gênero e pobreza no Brasil, 2005.
O livro apresenta o relatório final do projeto “Gobernabilidad Democrática de Género en América Latina y el
Caribe” a partir de convênio firmado entre a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) e a
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
64
Consulte o livro de Clara ARAÚJO e Celi SCALON (Orgs.), Gênero, família e trabalho no Brasil, 2003.
65
Jorge Larrosa BONDÍA, Notas sobre a experiência e o saber da experiência, p. 21.
29
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito,
ter paciência e dar-se tempo e espaço.
66
O sujeito da experiência, para Bondía, é como um território de passagem, como um
lugar de chegada ou como um espaço do acontecer.
O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. O saber da experiência se dá na relação
entre o conhecimento e a vida humana. (...) O saber da experiência é um saber particular,
subjetivo, relativo, contingente, pessoal. (...) duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo
acontecimento, não fazem a mesma experiência. (...) O saber da experiência é um saber que
não pode separar-se do ser humano concreto em que encarna. Não está, como o
conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura a
personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana
singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma
estética (um estilo).
67
Segundo Sampaio, “as construções de saber são datadas, contextualizadas,
sexuadas, racificadas, socialmente classificadas e implicam relações de poder que precisam
ser identificadas para desencadear processo de des-construção e construção”.
68
Por isso, a
teologia feminista traz a experiência das mulheres como critério hermenêutico, pois
saberes são construídos historicamente, atendendo, inclusive, a certos interesses, e
necessitam ser revisados e transformados. É neste sentido que acontece o questionamento
das Sagradas Escrituras, percebendo-se que também o texto é construído dentro de um
determinado contexto sócio-histórico-cultural.
O feminismo e a teologia feminista, como construção teórica e prática, se articulam
a partir da experiência, sendo esta constituída pelos acontecimentos que marcam o
cotidiano das mulheres, pois existe uma multiplicidade de experiências de como ser
mulher. Toda experiência é socialmente localizada, no tempo e no espaço, e implica uma
construção histórica, social e cultural. Ela também é simbolicamente representada. A
teologia necessita considerar o simbólico, as subjetividades, a vivência da espiritualidade, a
linguagem, as liturgias, os ritos e os mitos. Interpretando a Bíblia, os escritos teológicos e
as práticas cristãs a partir da experiência das mulheres, devolve-se ao falar e fazer
teológico o outro lado da experiência humana, buscando a plenitude da experiência
humana.
66
Jorge Larrosa BONDÍA, Notas sobre a experiência e o saber da experiência, p. 24.
67
Jorge Larrosa BONDÍA, Notas sobre a experiência e o saber da experiência, p. 25-27.
68
Tânia Maria SAMPAIO, Horizontes em discussão na arte de fazer Teologia, p. 196-197.
30
Uma crítica feminista reconhece que a desigualdade entre homens e mulheres é
produto das estruturas, sendo justificada pelas diferenças biológicas e os mandatos divinos
de submissão
69
. Por isto, a partir da experiência das mulheres, além de utilizar-se da
hermenêutica da suspeita
70
, torna-se necessário fazer uso do processo de desconstrução e
reconstrução dos textos e tradições cristãs
71
. De acordo com Ströher, a teologia feminista
demarca o campo da ação teológica. Ela diz que a teologia feminista apresenta desafios
para o processo de interpretação de textos bíblicos, da história e da tradição cristã.
A Teologia Feminista demarca o campo de ação teológica com um diferencial: chama a
atenção para a exclusão das mulheres proclamada a partir de discursos, ações e ritos
patriarcais fundamentados em argumentos e concepções errôneas da biologia e do divino.
A Teologia Feminista apresenta desafios à interpretação de textos bíblicos ou da história
cristã. Ao iniciar o processo interpretativo do texto sagrado pela hermenêutica da suspeita,
pergunta pelas histórias não contadas, pelas experiências de opressão e libertação e pelas
formas como a história das mulheres foi contada e interpretada. Faz parte desse processo de
leitura e interpretação bíblica, a desconstrução de textos e interpretações sexistas e
patriarcais, a reconstrução de histórias e tradições de mulheres e a construção de novas
leituras e novos impulsos de espiritualidade. Essa desconstrução não se dá apenas a nível
teórico-acadêmico, mas na vida prática cotidiana, inclusive, na vida doméstica da casa, que
também é espaço de construção de saber. E recupera o potencial das mulheres, suas
tradições não inscritas nos cânones patriarcais e propõe novas tradições, articulações
teológicas, símbolos, rituais, ações pró-ativas e novas proposições éticas.
72
Schüssler-Fiorenza afirma que “(...) o silêncio e a invisibilidade das mulheres são
geradas pelas estruturas patriarcais da igreja e sustentadas pela teologia androcêntrica, isto
é, masculina”.
73
Ao lado do silêncio e da invisibilidade, está a linguagem sexista e genérica
através da qual a história da mulher é esquecida e deturpada.
74
“Obediência religiosa,
dependência econômica e controle sexual são a força que sustenta o patriarcado
eclesiástico”.
75
Segundo Fiorenza, “as igrejas cristãs superarão suas tradições patriarcais e
opressivas do passado e suas ideologias do presente, apenas quando a própria base e
69
Wanda DEIFELT, Teoria feminista e metodologia teológica, p. 9.
70
Elisabeth Schüssler FIORENZA, Quebrando o silêncio, p. 21.
71
Ivoni Richter REIMER, O belo, as feras e o novo tempo., p. 21.
72
Marga Janete STRÖHER, A história de uma história, p. 119. (Os grifos são da autora).
73
Elisabeth SCHÜSSLER-FIORENZA, Quebrando o silêncio, p. 10. Por androcentrismo ou dualismo
androcêntrico a autora entende a “(...) cosmovisão de linguagem, mentalidade ou ideologia que legitima o
patriarcado, enquanto sexismo, racismo e classismo são componentes estruturais de um sistema social
patriarcal de dominação e exploração.”
74
Elisabeth SCHÜSSLER-FIORENZA, Quebrando o silêncio, p. 18-19. “Na medida em que os meninos e
meninas aprendem a se exprimir e a definir o mundo numa linguagem genérica gramaticalmente masculina
que inclui a mulher sob a denominação ‘homem’ e ‘ele’, aprendem a entender-se em termos de
superordenação e subordinação patriarcal, de estarem no centro ou na margem. (...) Além disso, essa
linguagem androcêntrica torna duplamente invisível a mulher pobre, a mulher de cor, ou a mulher
colonizada.”
75
Elisabeth SCHÜSSLER-FIORENZA, Quebrando o silêncio, p. 14.
31
função dessas tradições forem modificadas”.
76
A autora chama, por isso, a atenção para a
necessidade de permanentes processos de conscientização e da revitalização de estratégias
que modifiquem as atitudes e as crenças tanto das mulheres como das crianças e homens
para transformações significativas. Ela alerta que a “articulação de uma teologia feminista
constitui não somente uma intervenção intelectual como também política e religiosa”.
77
E
em relação à hermenêutica feminista, Schüssler-Fiorenza afirma que não pretende oferecer
prescrições metodológicas, mas um jogo de ferramentas hermenêuticas. Por isso, ela
propõe a metáfora da dança circular ou da dança em espiral.
78
Para a autora, dançar é
movimento e mobilização. Segundo Fiorenza, “dançar mobiliza o corpo e o espírito, os
sentimentos e as emoções, nos leva além de nossos limites, cria comunidade. Dançar
desconcerta toda ordem hierárquica, porque é um movimento que se desenvolve em
espirais e círculos”.
79
A partir desse conhecimento, o feminismo questiona a autoridade da
Bíblia, quanto à forma como as mulheres são ali descritas e às justificativas teóricas para
tal descrição. Dentro da história do cristianismo, criaram-se hierarquias entre o homem e a
mulher, justificadas biblicamente. Rosino Gibellini, no seu estudo A teologia no século XX,
ao fazer o histórico da teologia feminista, afirma que um dos textos do Antigo Testamento
muito utilizados para justificar a inferioridade da mulher em relação ao homem é Gênesis
2-3. Este texto (fonte Javista) relata que a mulher foi criada depois do homem (Gn 2.18), a
partir de uma de suas costelas (Gn 2.22), justificando e produzindo “a inferioridade ôntica
e ética da mulher: a mulher, criada em segundo lugar, foi quem pecou em primeiro
lugar”.
80
Também os escritos do apóstolo Paulo têm sido usados para subjugar e silenciar
as mulheres.
De acordo com Deifelt, “as teólogas feministas revisam textos e tradições
consideradas normativas e canônicas, apontando para o seu caráter androcêntrico, e
resgatam a perspectiva de grupos excluídos – entre os quais as mulheres”.
81
Quando se fala
em resgatar a perspectiva de grupos excluídos, torna-se importante entender o que vem a
ser excluído e o conceito exclusão. Martins afirma que a “categoria ‘excluído” não é
76
Elisabeth SCHÜSSLER-FIORENZA, Discipulado de iguais, p. 83.
77
Elisabeth SCHÜSSLER-FIORENZA, Deus (G*d) [*] trabalha em meio a nós, p. 1. Segundo a autora, na
p. 10: “Eu introduzi esta grafia G*d (Deus) para indicar que a linguagem humana jamais é capaz de
compreender e expressar o Divino. Portanto a teologia feminista precisa ser cuidadosa para não utilizar
qualquer nome para G*d (Deus).”
78
Elisabeth SCHÜSSLER-FIORENZA, Los caminos de la sabiduría, p. 32-33.
79
Elisabeth SCHÜSSLER-FIORENZA, Los caminos de la sabiduría, p. 221.
80
Rosino GIBELLINI, A teologia no século XX, p. 428.
81
Wanda DEIFELT, Temas e metodologias da teologia feminista, p. 173.
32
verificável na prática, na vivência dos chamados ‘excluídos’”.
82
Ele também diz que a
“categoria ‘exclusão” expressa, ao mesmo tempo uma verdade e um equívoco”.
83
Isto é
verdade na medida em que pessoas, de fato, são excluídas; equívoco, porque elas, de fato,
são incluídas de “forma degradada (...) pois a sociedade contemporânea é uma sociedade
que pede contínua ressocialização de seus membros, contínua reelaboração de
identidades”.
84
Análise semelhante foi desenvolvida por Santos, que retoma o conceito
marxista “exército industrial de reserva” como método de análise sobre a pobreza. Para
esse autor, no caso dos pobres, “quem permanecer fora do mundo do emprego permanente
não está perdido para a economia como um todo”.
85
Isso significa que a pessoa pode estar
excluída do mundo do trabalho formal, mas permanecer incluída no mercado de consumo
através de um trabalho informal ou precário. Muitas mulheres encontram-se no mundo do
trabalho informal, no entanto continuam fazendo parte do mercado de consumo. Assim
sendo, a raiz da opressão não é questionada e nem superada.
Ribeiro
86
afirma que há limites em relação ao conceito exclusão social, identificada
com a ‘nova pobreza’, devido a sua imprecisão conceitual, a seu viés culturalista, a sua
filiação à sociologia durkheiminiana; ele não consegue alcançar a compreensão da pobreza
e do desemprego como produzidos pela luta de classes. De acordo com a autora:
(...) a exclusão está incluída na própria dinâmica do processo de produção capitalista, daí
porque Hegel (1990), já antes de Marx, não fez mais que apreender esta dinâmica.
Segundo, seu viés ideológico, porque desloca a atenção da luta de classes, que se dá no
coração da produção capitalista, para a luta por políticas sociais compensatórias (de
inserção e/ou de inclusão). (...) O conceito exclusão e suas derivações políticas consegue
desviar a atenção que deveria centrar-se na compreensão da guerra que o capital, na feição
neoliberal, move contra o trabalho. Dificulta, desse modo, a formulação de estratégias para
o enfrentamento à realidade e ao estado de exclusão.”
87
Portanto, é necessário esclarecer que a exclusão não é somente uma questão
cultural; ela é gerada numa sociedade extremamente conflitiva, pela luta de classes. Isso
significa que não basta criar políticas sociais compensatórias que não atacam a raiz da
82
José de Souza MARTINS, A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes
sociais, p. 25.
83
José de Souza MARTINS, A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes
sociais, p. 43.
84
José de Souza MARTINS, A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes
sociais, p. 46.
85
Milton SANTOS, Pobreza urbana, p. 34.
86
Marlene RIBEIRO, Exclusão: problematização, p. 40-44.
87
Marlene RIBEIRO, Exclusão: problematização, p. 46.
33
pobreza, incapazes de produzir uma transformação da realidade social. Neste sentido
remeto à tese de doutorado de Oliveira, onde o autor sustenta:
[...] a exclusão está incluída na lógica do capital. E no limiar do novo milênio ainda
persiste, mutatis mutandis, o sistema do capital, ou seja, uma rede complexa, de relações
multiplamente determinadas, que se articulam como sistema coerido pela lógica do capital.
Inumeráveis acontecimentos, fatos, fenômenos que, à primeira vista, parecem
absolutamente independentes, formam, na verdade, um sistema cuja coesão é garantida
pelo princípio do capital. Este poder absoluto submete todos e cada elemento da vida social
à sua lógica onímoda e oniparente e, então, refere cada realidade elementar a todas as
demais, num sistema reticular complexo. O sistema do capital é muito mais amplo que o
modelo econômico capitalista; atravessa, na verdade, todos os âmbitos de relações que os
seres humanos estabelecem.
88
Oliveira chama a atenção que o sistema do capital é muito mais amplo que o
modelo econômico capitalista, e este atravessa todas as relações que os seres humanos
estabelecem nos mais diferentes âmbitos da vida. Isto significa a articulação de vários
elementos, acontecimentos e fatos que geram a exclusão social dentro do chamado sistema
do capital, onde o capital se coloca acima da vida. Oliveira, cita Rosemberg (1999), que
no artigo Expansão da educação infantil e processos de exclusão mostra como as
hierarquias de gênero interagem com as de raça e classe, produzindo um sistema
educacional profundamente excludente. Para o autor, Rosemberg “trabalha com um
conceito relativamente bem definido de exclusão. O que ela qualifica como exclusão está
sempre associado a um entrecruzamento de subalternidades.”
89
Assim , a exclusão faz
parte da própria lógica do capital, incluindo vários aspectos os quais são ressaltados por
Pauly dentro da realidade histórica brasileira :
As causas da pobreza encontram-se nas relações societárias existentes entre o modo de
produção capitalista e a pobreza, entre as estruturas sócio-culturais e a representação
política; entre a geopolítica e a demografia; entre a tradição escravocrata da república dos
coronéis e os atuais partidos fisiológicos; entre o latifúndio da sesmaria hereditária e as
famílias camponesas que lutam pela Reforma Agrária [...] Cada uma dessas relações, por
sua vez, incide sobre a religião! Do ponto de vista religioso, a ‘exclusão social’ nasce com
a Independência do Brasil. O art. 5º da Carta da Lei de 1824 estabelecia o catolicismo
como ‘religião do Império’. O Brasil nasce livre e, ao mesmo tempo, exclui pessoas sem
religião ou adeptas das religiões cristãs não-católicas, afro-brasileiras e/ou indígenas.
90
O autor também salienta o entrecruzamento de vários fatores sócio-históricos que
geram subalternidades na realidade brasileira, promovendo a exclusão. Para Pauly “a
88
Avelino da Rosa Oliveira, Educação e Exclusão: Uma abordagem ancorada no pensamento de Karl Marx,
p. 197.
89
Avelino da Rosa Oliveira, Educação e Exclusão: Uma abordagem ancorada no pensamento de Karl Marx,
p. 194.
90
Evaldo Luiz PAULY, verbete exclusão social a ser editado no dicionário da ASTE.
34
exclusão é possível numa dinâmica social capaz de promover constante e simultaneamente,
inclusão e exclusão. (...) A exclusão é uma relação societária que se constitui entre pessoas
concretas que ocupam determinadas posições nos espaços e tempos sociais.”
91
Portanto,
em relação ao conceito de exclusão é necessário que o mesmo afronte a raiz da opressão e
da alienação, apontando para as estruturas injustas. Isto significa que não basta apenas a
inversão da exclusão, isto é, a inclusão daqueles e daquelas que são excluídos do sistema
capitalista, sem uma profunda transformação no modo de produção capitalista, que produz
pobreza, desemprego, hierarquias de gênero, etnia, resultantes da luta de classes. É
necessário esclarecer, como faz Ribeiro, que:
A categoria exclusão presta-se à compaixão, evidenciando uma ‘ideologia perversa’ que
tanto oculta uma política deliberada de produção da exclusão quanto divide o sujeito ético
em dois, colocando, de um lado, a vítima sujeita à exclusão; de outro, o sujeito da
compaixão.
92
É na busca do desmascaramento de uma ideologia perversa da compaixão, apontada
pela autora, que a teologia feminista desenvolve esforços dialógicos com as distintas
posições acadêmicas acerca da exclusão social. A exclusão que atinge a mulher se dá, às
vezes, simultaneamente, pelas vias do trabalho, da classe, da cultura, da etnia, da idade, do
gênero, e, assim sendo, torna-se difícil atribuí-la a um aspecto específico desse fenômeno,
em vista dela combinar vários dos elementos da exclusão social, resultantes da lógica do
capital. Dificilmente se poderá compreender a exclusão particular da mulher sem antes
conhecer o fenômeno da exclusão e suas diversas formas de manifestação. A teologia
feminista, numa perspectiva pluralista, além de apontar para a opressão da mulher, também
integra em seu falar a presença de outros grupos sociais que tem sido subjugados e
discriminados no decorrer dos processos históricos
É neste sentido que se recupera os elementos libertadores dablia e dos processos
históricos. Celebra-se a presença e atuação das mulheres no contexto da Bíblia e da história
da Igreja Cristã. Reafirma-se que todos os seres humanos – homem e mulher – são criados
à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26-27) e que, mediante o batismo (Gl 3.27-28), já
não há mais motivos para a discriminação, pois somos novas criaturas em Cristo. Deifelt
93
apresenta como ponto de partida para a participação ativa das mulheres no ministério
eclesiástico a atuação das mulheres no ministério de Jesus. O próprio Jesus iniciou seu
91
Evaldo Luiz PAULY, verbete exclusão social a ser editado no dicionário da ASTE.
92
Marlene RIBEIRO, Exclusão: problematização, p. 44.
93
Wanda DEIFELT, Mulheres pregadoras, p. 355.
35
ministério impulsionado por Maria, sua mãe, na festa de casamento, quando foi desafiado a
ajudar a resolver o problema da falta de vinho (Jo 2.1-12). Ströher também chama a
atenção para a circunstância de que, no primeiro século da comunidade cristã, a casa foi o
centro de organização da ecclesia, “assegurando a estrutura econômica da comunidade, a
plataforma para o trabalho missionário, a estrutura de liderança e autoridade, e um papel
mais ativo para as mulheres”.
94
Nesse contexto, avalia-se também o uso instrumental e fundamentalista da Bíblia e
aponta-se para a necessidade de reconstrução, buscando novas formulações teológicas e
novas práticas democráticas e cidadãs.
95
Desta forma, é possível perceber as relações de
poder que transparecem nos textos, nas falas, nas interpretações e tradições cristãs,
revelando que “as atribuições e características dadas a homens e mulheres fazem parte de
uma construção sócio-cultural”
96
, sendo necessário apresentar outras metáforas de Deus
que melhor expressam a experiência humana
97
, bem como introduzir uma linguagem mais
integradora e menos machista em nosso cotidiano.
98
A discriminação da mulher e de outros
segmentos da sociedade está ligada também a uma compreensão dualista do mundo e da
humanidade, sendo necessário abolir as dicotomias corpo e alma, certo e errado, particular
e público, corpo e mente, entre outras. A teologia feminista questiona, portanto, a coluna
vertebral das estruturas que sustentam essas dicotomias, que é o patriarcado, entendido
como o regime social no qual o macho (pater familiae) exerce a autoridade absoluta em
todas as instituições sociais, família, escola, igreja, Estado, inculcando a desigualdade entre
homens e mulheres, brancos e negros, senhores e escravos.
99
De acordo com Deifelt,
a teologia feminista surge como um passo metodológico importante, afirmando que a
experiência das mulheres – incluindo também suas experiências de fé – é o ponto de
partida da reflexão teológica. A partir desse olhar novas conexões são possíveis se a
experiência humana é analisada a partir das marcas deixadas em nossos corpos e mentes
pelo sexismo, pelo classismo, pelo racismo, pelo militarismo ou pelo secatarismo religioso.
A superação desses condicionamentos é que permite forjar uma nova realidade.
100
94
Marga Janete STRÖHER, Casa igualitária e casa patriarcal, p.78.
95
Wanda DEIFELT, Temas e metodologias da teologia feminista, p. 173.
96
Wanda DEIFELT, Temas e metodologias da teologia feminista, p. 173.
97
Ivone GEBARA, Rompendo o silêncio, p. 235. Segundo a autora, deseja-se acima de tudo “explicitar de
várias maneiras, através de poemas e de metáforas, de discursos ou de narrativas, através de sonhos ou de
desejos, a inesgotável realidade do ‘Eu sou Aquele/Aquela que Sou’ (Ex 3.14).”
98
Marga Janete STRÖHER, Por uma linguagem inclusiva e integradora, p. 257.
99
Elisabeth SCHÜSSLER-FIORENZA, Quebrando o silêncio, p. 10.
100
Wanda DEIFELT, Temas e metodologias da teologia feminista, p. 174-175.
36
A teologia feminista, é profética, pois aponta para o entrecruzamento de vários
elementos que subjugam a mulher e outros grupos sociais, criando subalternidades.
Denuncia as estruturas injustas e anuncia a radical necessidade de enfrentar e superar as
raízes da pobreza e da opressão, geradas por uma sociedade capitalista, sinalizando à “vida
em abundância”
101
proclamada por Jesus para todas as pessoas.
1.1.2 Teologia feminista da libertação
Na América Latina, adotou-se oficialmente o termo Teologia Feminista da
Libertação em dezembro de 1993, no Encontro Regional das Teólogas da
ASETT/EATWOT (Associação Ecumênica de Teólogos e Teólogas do Terceiro Mundo),
no Rio de Janeiro.
102
Segundo Deifelt, empregando “o termo feminista, as teólogas
reunidas assumiram gênero como uma categoria de análise (assim como já haviam
utilizado classe e raça/etnia), dentro de um princípio metodológico de desconstrução e
reconstrução”.
103
A teologia feminista da libertação garante, pela análise de gênero, certa
novidade teológica, assumindo um posicionamento político, pois reivindica outras formas
de relações e de políticas. “É no processo de revisão crítica e autocrítica da teologia da
libertação que a teologia feminista na América Latina encontra um espaço novo de
possibilidades e desafios para o presente e o futuro da prática teológica no continente”.
104
Conforme Ströher:
Mulheres não podem e não querem apenas ser incluídas ou anexadas na construção do
conhecimento e na organização da sociedade, mas serem reconhecidas como sujeitos
sociais e políticos, como sujeitos éticos e do conhecimento. Na teologia as mulheres
querem ainda ser reconhecidas e capacitadas como sujeitos do conhecimento e da
elaboração teológica, ou seja, ter reconhecida, na expressão de Ivone Gebara, a sua
cidadania teológica.
105
Alcançar a cidadania teológica é uma das grandes metas da teologia feminista da
libertação. Para as mulheres, isso significa receber capacitação no fazer e saber teológico e
o reconhecimento de que são sujeitos éticos do conhecimento e da elaboração teológica.
Nesse sentido, torna-se importante incluir gênero como instrumental de análise na teologia
feminista, entendendo que as formas como os seres humanos se relacionam entre si, com a
101
Segundo o Evangelho de João 10.10.
102
Wanda DEIFELT, Temas e metodologias da teologia feminista, p. 172.
103
Wanda DEIFELT, Temas e metodologias da teologia feminista, p. 172.
104
Silvana SUAIDEN, Questões contemporâneas para a teologia, p. 148.
105
Marga Janete STRÖHER, A história de uma história, p. 119.
37
natureza e com as diferentes instituições sociais são construções sociais, sendo possíveis
mudanças, através dos processos de libertação.
É necessário considerar as críticas de Fiorenza à análise que algumas estudiosas
fazem da questão das mulheres, levando em conta somente o binônimo sexo/gênero.
106
O
conhecimento não é somente pautado pelo gênero (sexo), mas também pela raça, pela
dominação de classe e pelo colonialismo. Da mesma forma, afirma Ströher
107
, é pertinente
a seguinte observação crítica da reconhecida teóloga brasileira Gebara:
A teologia feminista na América Latina, particularmente no Brasil, não conseguiu a
audiência esperada nas instituições religiosas e acadêmicas. A maioria das mulheres que se
dedicam à pesquisa na linha feminista, além de serem poucas numericamente, estão de
certa forma renunciando às opções feministas radicais em favor de uma convivência menos
conflitiva com a teologia tradicional nas suas diferentes expressões e inclusive com a
Teologia da Libertação. Nesses últimos anos, elas têm perdido força organizativa e,
sobretudo, força política nas instituições da religião. Aceitaram falar mais de relações de
gênero e menos de feminismo, sem perceber que as análises de gênero sem feminismo
legitimam as mesmas estruturas patriarcais. Quando muito, abrem brechas na ordem
estabelecida, mas não a modificam.
108
É necessário, portanto, considerar as colocações de Schüssler-Fiorenza, Ströher e
Gebara, quando dizem que não é possível falar de análise de gênero sem feminismo, sob
pena de não se questionarem profundamente as estruturas patriarcais de opressão. O
gênero será utilizado como instrumento de análise, considerando a reflexão da teoria e da
teologia feminista, onde a experiência das mulheres é um critério hermenêutico de
discernimento.
1.1.3 Gênero como ferramenta analítica, política e relacional
Scott define gênero em duas partes, implicando quatro elementos, que estão ligados
entre si, mas precisam ser distinguidos na análise. Segundo a autora:
O núcleo essencial da definição repousa sobre a relação fundamental entre duas
proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as
diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às
relações de poder. (...)
O gênero implica quatro elementos: primeiro, os símbolos culturalmente disponíveis que
evocam representações simbólicas (e com freqüência contraditórias). (...)
Em segundo lugar, os conceitos normativos que põem em evidência as interpretações do
sentido dos símbolos, que se esforçam para limitar e conter suas possibilidades metafóricas.
(...)
106
Elisabeth SCHÜSSLER-FIORENZA, Deus (G*d) [*] trabalha em meio a nós, p. 3-7.
107
Marga Janete STRÖHER, A história de uma história, p. 120.
108
Ivone GEBARA, Entre os limites da filosofia e da teologia feminista, p. 158.
38
O desafio da nova pesquisa histórica que consiste em fazer explodir essa noção de fixidez,
é descobrir a natureza do debate ou da repressão que produzem a aparência de uma
permanência eterna na representação binária do gênero. Este tipo de análise deve incluir
uma noção de política bem como uma referência às instituições e à organização social –
este é o terceiro aspecto das relações de gênero.
O quarto aspecto do gênero é a identidade subjetiva.
109
O conceito de gênero apresenta novos horizontes, inclusivos, questionadores,
apontando para mudanças nas relações sociais construídas entre os sexos. “O conceito de
gênero serve, assim, como uma ferramenta analítica que é, ao mesmo tempo, uma
ferramenta política,”
110
tendo um caráter relacional.
111
Para entender o gênero feminino, é
necessário conhecer o masculino e o que se entende por feminilidade e masculinidade em
cada cultura ou sociedade. Não se pode, portanto, substituir gênero pela palavra “mulher”.
Esse é um erro que traz sérias conseqüências no processo de visibilização e libertação de
mulheres e de homens, pois, fazendo uso de gênero dessa forma, agregam-se à reflexão
valores e conceitos masculinos, tradicionais e patriarcais, sem provocar verdadeiras
mudanças na reflexão teórica e prática.
112
Para Lagarde, a perspectiva de gênero está baseada na teoria de gênero e se
inscreve no paradigma teórico histórico-crítico e no paradigma cultural do feminismo. Esta
perspectiva se estrutura a partir da ética, conduzindo a uma filosofia pós-humanista, por
sua crítica à concepção androcêntrica da humanidade que deixou fora metade do gênero
humano: as mulheres.
113
Há uma diversidade de gêneros que coexistem em cada sociedade,
em cada comunidade e em cada pessoa. É possível que uma pessoa, ao longo de sua vida,
modifique a sua visão de gênero, devido a transformações em sua própria pessoa e também
na sociedade, apresentando mudança de valores, normas e maneiras de entender a si
mesma e as outras pessoas. As mulheres foram educadas para serem seres-para-os-outros.
Isso se mostra na vivência da sexualidade das mulheres, que acontece em duas direções:
procriação, reprodução e cuidado de outros seres; satisfação das necessidades eróticas dos
homens. A sexualidade não é definida a partir da vivência e satisfação da mulher, mas a
partir do estar-aí-para-os-outros. Esta realidade produz uma identidade fragmentada,
reduzindo os corpos das mulheres a instrumentos para atender finalidades específicas,
109
Joan SCOTT, Gênero: uma categoria útil de análise histórica, p. 14-16.
110
Joan SCOTT, Gênero: uma categoria útil de análise histórica, p. 16.
111
Guacira Lopes LOURO, Gênero, sexualidade e educação, p. 22.
112
Elaine Gleci NEUENFELDT, Gênero e hermenêutica feminista, p. 46.
113
Marcela LAGARDE, Género y feminismo, p. 13.
39
tornando-os objetos e não sujeitos da sua vontade.
114
A perspectiva de gênero apresenta as
aspirações das mulheres e suas ações para saírem da alienação e atuarem como seres-para-
si, enfrentando a opressão, tornando-se protagonistas de sua vida.
115
Gênero também é uma construção simbólica e contém o conjunto de atributos
designados às pessoas a partir do sexo. O gênero está assentado na experiência e no
cotidiano de cada pessoa, de cada homem e de cada mulher. Por sua vez, cada qual existe a
partir de sua corporeidade, e esta categoria confirma a historicidade dos corpos humanos e
a conformação, em cada caso, da unidade do sujeito em seu corpo. Portanto, a identidade
sexual é um aspecto da identidade de gênero. Por sua vez, o sexo e o gênero não estão
condicionados um ao outro de forma reducionista; a própria sexualidade é uma diferença
construída social, histórica e culturalmente.
116
Segundo Lisboa, quando se introduz gênero “em epistemologia, impõe-se uma
maneira diferente de compreender o conhecimento humano”.
117
O termo “gênero” nomeia
de outras maneiras as coisas conhecidas, dando-lhes outros significados. Inclui, segundo a
autora, o propósito de desconstruir a ordem dos poderes entre os gêneros e, junto com ela,
a vida cotidiana, as relações, os papéis e os estatutos da mulher e do homem. “Exige uma
nova postura diante da concepção do mundo, dos valores e do modo de vida, ou seja, põe
em crise a legitimidade do mundo patriarcal”.
118
Ainda segundo Lisboa, “permite
compreender que as relações de desigualdade e iniqüidade entre os gêneros são produtos
da ordem social dominante e que as múltiplas opressões de classe, raça, etnia, geração”
119
se manifestam cotidianamente na vida das mulheres.
A partir deste instrumental analítico e político, é possível perceber que os papéis
tradicionalmente atribuídos a mulheres e homens, resultando em desigualdades entre
homens e mulheres, não são naturais, mas foram construídos histórica, social e
culturalmente. Se estas diferenças foram construídas e aprendidas no decorrer da história,
então são passíveis de transformações. Gênero, portanto, “(...) significa uma construção
114
Elaine Gleci NEUENFELDT, Gênero e hermenêutica feminista, p. 53.
115
Marcela LAGARDE, Género y feminismo, p. 13.
116
Marcela LAGARDE, Género y feminismo, p. 27.
117
Teresa Kleba LISBOA, Gênero, classe e etnia, p. 19.
118
Teresa Kleba LISBOA, Gênero, classe e etnia, p. 19.
119
Teresa Kleba LISBOA, Gênero, classe e etnia, p. 19.
40
social, um modo de ser no mundo, um modo de ser educado/a e um modo de ser
percebido/a que condiciona o ser e o agir de cada um”.
120
De acordo com Neuenfeldt:
A experiência das mulheres é marcada pelas diferenças biológicas e por construções
genéricas. A teoria de gênero auxilia o entendimento de que essas construções genéricas
geram desigualdades que não são “naturais”, que não se nasce feminina/o ou masculina/o,
mas que, num processo histórico, cultural, se aprende a formar tal processo identificatório.
O instrumental de gênero possibilita desmistificar e conquistar o poder de questionar essas
diferenças que se transformam em desigualdades. Ele clarifica a contradição existente entre
as identidades impostas, construídas e a que realmente se vive no cotidiano. Portanto, se
são características construídas e aprendidas nos processos de socialização, são passíveis de
mudanças. Esta é a contribuição específica do instrumental de gênero à hermenêutica
feminista.
121
O instrumental de gênero deixa claro que as desigualdades geradas entre homens e
mulheres não são naturais, mas são construídas e aprendidas nos processos de socialização
e de ensino-aprendizagem. No campo das pesquisas de gênero, já nos anos 30, Mead
demonstrou que os comportamentos e atitudes de homens e mulheres não são inatos, mas
sim construídos diferentemente por cada grupo social.
122
Gênero aponta para além do desempenho dos papéis masculinos e femininos, pois
também está interligado com a identidade das pessoas. A forma de ser feminina ou
masculina passa a fazer parte da maneira de alguém ser e assumir a sua vida. Segundo
Louro, quando se afirma “que o gênero institui a identidade do sujeito (...) pretende-se
referir, portanto, a algo que transcende o mero desempenho de papéis, a idéia é perceber o
gênero fazendo parte do sujeito, constituindo-o.
123
Além do mais, segundo a autora, “o
gênero
é mais do que uma identidade aprendida, é constituída e instituída pela
multiplicidade das relações sociais, das instituições, símbolos, discursos, doutrinas e
formas de organização social”.
124
Ela diz que as diferentes “instâncias, práticas, ou espaços
sociais são ‘generificados’ – produzem-se ou ‘engendram-se’, a partir das relações de
gênero (mas não apenas a partir dessas relações, e sim, também das relações de classe,
étnicas, etc.)”.
125
Portanto, falar em gênero é pensar não em homens e mulheres
biologicamente diferenciadas, mas em masculino e feminino constituídos a partir de
120
Ivone GEBARA, Rompendo o silêncio, p. 106.
121
Elaine Gleci NEUENFELDT, Gênero e hermenêutica feminista, p. 49.
122
Margareth MEAD, Sexo e temperamento, p. 19-27. Na sua pesquisa realizada em três tribos da Nova
Guiné (os Arapesh, os Mundugumor e os Tchambuli), demonstrou como homens e mulheres tinham
comportamentos muito diferentes em cada lugar.
123
Guacira Lopes LOURO, Gênero, sexualidade e educação, p. 25.
124
Guacira Lopes LOURO, Nas redes do conceito de gênero, p. 12.
125
Guacira Lopes LOURO, Gênero, sexualidade e educação, p. 25.
41
relações sociais fundadas nas diferenças entre os sexos, diferenças lentamente construídas
e hierarquicamente determinadas.
Louro parte do princípio da contínua transformação das identidades de gênero, pois
a construção do gênero é histórica, estando em constante mudança; isto significa que as
relações entre homens e mulheres, os discursos e as representações dessas relações também
estão em constante transformação.
126
Ela também chama a atenção para a necessidade de
se questionar os currículos escolares que reafirmam as formas tradicionais de
masculinidade e de feminilidade, sendo necessário um olhar crítico sobre o cotidiano
escolar. Louro salienta:
Expectativas distintas são projetadas para o desempenho intelectual e físico; critérios
implícitos de avaliação insinuam-se na apreciação de comportamentos e resultados
escolares; aptidões ou tendências são “identificadas” e sugerem orientações profissionais
diferentes... As fronteiras de gênero continuam sendo vigiadas, ainda que possam ser, aqui
ou ali, afrouxadas.
127
Auad mostra que, devido à percepção diferenciada em relação ao masculino e ao
feminino existente em nossa sociedade, “espera-se que as mulheres sejam mais pacientes,
delicadas, educadas, caprichosas, preocupadas com a aparência e limpeza, organizadas; por
outro lado, espera-se que os homens tenham mais iniciativa, sejam mais agressivos,
desajeitados com serviço doméstico e pouco preocupados com a aparência”.
128
As
diferenças entre homens e mulheres não são naturais e essenciais, mas construídas por um
conjunto de elementos, fatos, acontecimentos, entre os quais estão as “verdades” que as
escolas, as igrejas e as famílias têm transmitido no decorrer da história. O conceito
“relações de gênero” foi introduzido, a partir das reflexões feministas, justamente para
questionar e transformar as relações desiguais entre homens e mulheres, mulheres e
mulheres, homens e homens, envolvendo também as reflexões acerca de etnia e classe
social, bem como as próprias organizações sociais. Lagarde afirma que a crescente
utilização de gênero nas interpretações, nos diagnósticos e políticas públicas tem permitido
a visibilização das mulheres e das problemáticas que as envolvem, bem como avançar na
própria emancipação feminina.
129
126
Guacira Lopes LOURO, Gênero, sexualidade e educação, p. 35.
127
Guacira Lopes LOURO, Segredos e mentiras do currículo, p. 42.
128
Daniela AUAD, Feminismo, p. 57.
129
Marcela LAGARDE, Género y feminismo, p. 21.
42
Gebara sustenta que “falar de gênero é também falar no plural, tendo em vista a
diversidade de nossas culturas e situações. Da mesma forma, falar de gênero é afirmar a
pluralidade do humano”.
130
Os seres humanos estão marcados pela classe social, pela
etnia/raça, pela religião, pela idade, pelo processo educacional, entre outros. O ser humano
é mais do que uma construção biológica. Não se pode, no entanto, fazer do gênero um
instrumento universalizante, como se fosse substituir a perspectiva androcêntrica. A autora
sublinha a importância da categoria de gênero como instrumento hermenêutico, abrindo
novas possibilidades de análise, dizendo, ao mesmo tempo, não à universalização da
categoria de gênero como categoria única e englobante da experiência de todas as
mulheres.
131
Gênero é um instrumento de análise, sim, quer transformar idéias,
pensamentos, relações e instituições sociais, mas não quer ser um instrumento que assuma
o papel de universalidade e de objetividade, tão criticadas pelo movimento feminista.
Nesse sentido, aponta-se para a importância do processo de ensino-aprendizagem, onde a
pedagogia da libertação, permeada pelo referencial de gênero, poderá trazer alguns
elementos importantes para o processo de emancipação das mulheres.
1.2 Pedagogia da libertação: situação-limite que se transforma em inédito viável
A pedagogia da libertação insere-se dentro da reflexão teórica e prática libertária da
América Latina. Paulo Freire elabora a pedagogia da libertação a partir da sua experiência
de vida impregnada com a história do povo brasileiro. Segundo Fiori, “a vida como
biologia passa a ser vida como biografia”.
132
Uma característica dos livros de Paulo Freire
é iniciar o processo reflexivo contando uma parte de sua história de vida. Desta forma, vai
se constituindo enquanto sujeito histórico e pedagogo brasileiro.
(...) A crise econômica de 1929 obrigou a minha família a mudar-se para Jaboatão, onde
parecia menos difícil sobreviver. Uma manhã de abril de 1931 chegávamos à casa onde
viveria experiências que me marcariam profundamente.
Em Jaboatão perdi meu pai. Em Jaboatão experimentei o que é a fome e compreendi a
fome dos demais. Em Jaboatão, criança ainda, converti-me em homem graças à dor e ao
sofrimento que não me submergiam nas sombras da desesperação.
(...)
O golpe de Estado (1964) não só deteve todo este esforço que fizemos no campo da
educação de adultos e da cultura popular, mas também levou-me à prisão por cerca de 70
dias (com muitos outros comprometidos no mesmo esforço). (...) o que se queria provar,
repito, era o perigo que eu representava.
130
Ivone GEBARA, Rompendo o silêncio, p. 107.
131
Ivone GEBARA, Rompendo o silêncio, p. 111-114.
132
Ernani Maria FIORI, Prefácio – Aprender a dizer a sua palavra, p. 10.
43
Fui considerado um “subversivo internacional”, um “traidor de Cristo e do povo
brasileiro”, – “Nega o senhor – perguntava um dos juízes – que seu método é semelhante
ao de Stalin, Hitler, Perón e Mussolini? Nega o senhor que com seu pretendido método o
que quer é tornar bolchevique o país?” (...)
O que aparecia muito claramente em toda esta experiência, de que saí sem ódio nem
desesperação, era que uma onda ameaçadora de irracionalismo se estendia sobre nós (...).
133
Segundo Fiori, “talvez o sentido mais exato da alfabetização seja aprender a
escrever a sua vida, como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se,
existenciar-se, historicizar-se. A pedagogia faz-se antropologia”.
134
“Aprender a dizer a sua
palavra é toda a pedagogia, e também toda a antropologia”.
135
“A alfabetização, portanto, é
toda a pedagogia: aprender a ler é aprender a dizer a sua palavra. E a palavra humana imita
a palavra divina: é criadora”.
136
Aprender a dizer a sua palavra é um processo de
construção de autonomia, conduzindo para a emancipação, na relacionalidade do ser
humano. A pedagogia propagada por Freire se dirige a todos e todas, acontecendo num
processo coletivo, de comunhão, de criatividade, de criticidade. “Ninguém liberta
ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens libertam-se em comunhão”.
137
O vocábulo “conscientização” é central nas idéias de Paulo Freire sobre educação.
O autor, entretanto, deixa claro que o mesmo foi criado por uma equipe de professores do
Instituto Superior de Estudos Brasileiros por volta de 1964. O autor percebeu a
profundidade do significado do termo, porque, para ele, “a educação, como prática da
liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade”.
138
“A
conscientização não é apenas conhecimento ou reconhecimento, mas opção, decisão,
compromisso”
139
com a transformação da realidade, onde “alfabetizar é conscientizar”.
140
Conforme Freire:
Na compreensão da História como possibilidade, o amanhã é problemático. Para que ele
venha é preciso que o construamos mediante a transformação do hoje. Há possibilidades
para diferentes amanhãs. A luta já não se reduz a retardar o que virá ou a assegurar a sua
chegada; é preciso reinventar o mundo. A educação é indispensável nessa reinvenção.
133
Paulo FREIRE, Conscientização, p. 15-16.
134
Ernani Maria FIORI, Prefácio – Aprender a dizer a sua palavra, p. 10.
135
Ernani Maria FIORI, Prefácio – Aprender a dizer a sua palavra, p. 18.
136
Ernani Maria FIORI, Prefácio – Aprender a dizer a sua palavra, p. 20.
137
Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 52.
138
Paulo FREIRE, Conscientização, p. 25.
139
Ernani Maria FIORI, Prefácio – Aprender a dizer a sua palavra, p. 10.
140
Ernani Maria FIORI, Prefácio – Aprender a dizer a sua palavra, p. 11.
44
Assumirmo-nos como sujeitos e objetos da História nos torna seres da decisão, da ruptura.
Seres éticos.
141
Ainda segundo Freire, a educação como prática da liberdade, para o ser humano-
sujeito
142
, inclui uma dimensão ético-política, mostrando que tanto a existência de
oprimidos quanto a de opressores são manifestações de desumanidade.
143
Os oprimidos, que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem suas pautas, temem a
liberdade, na medida em que esta, implicando a expulsão desta sombra, exigiria deles que
“preenchessem” o “vazio” deixado pela expulsão com outro “conteúdo” – o de sua
autonomia. O de sua responsabilidade, sem o que não seriam livres. A liberdade, que é uma
conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca.
144
Na construção da liberdade é necessário aprender a dizer a sua palavra, assumindo
responsabilidade. Portanto, o ponto de partida da pedagogia da libertação não pode ser
simplesmente a experiência do oprimido. Esse oprimido precisa ser contextualizado. Este
processo pressupõe uma análise sistemática que deve entender a realidade de opressão não
como um mundo fechado, ou fato imutável, ou vontade de Deus, nem como um processo
individual ou um problema pessoal, mas sim como uma situação desumana e
enfraquecedora que pode ser transformada. “A práxis, porém, é reflexão e ação dos
homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da
contradição opressor-oprimidos”.
145
“A libertação, por isto, é um parto. E um parto
doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela
superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos”.
146
A pedagogia do oprimido é uma pedagogia humanista e libertadora, composta de
dois momentos distintos. No primeiro momento, os oprimidos vão desvelando o mundo da
opressão e vão se comprometendo, na práxis, com a sua transformação; o segundo
momento mostra que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do
oprimido e passa a ser a pedagogia dos seres humanos em processo.
147
Segundo o educador e pedagogo Paulo Freire:
141
Paulo FREIRE, À sombra desta mangueira, p. 40.
142
Paulo FREIRE, Educação como prática da liberdade, p. 36.
143
Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 30.
144
Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 34.
145
Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 38.
146
Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 35.
147
Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 41.
45
A conscientização, como atitude crítica dos homens na história, não terminará jamais. Se os
homens, como seres que atuam, continuam aderindo a um mundo “feito”, ver-se-ão
submersos numa nova obscuridade.
A conscientização, que se apresenta como um processo num determinado momento, deve
continuar sendo processo no momento seguinte, durante o qual a realidade transformada
mostra um novo perfil.
148
A conscientização é um processo dialético, sempre em movimento, unindo teoria e
prática. É processo, transformando a realidade, mostrando um novo perfil, um novo olhar,
uma nova possibilidade. Freire considerava como tema fundamental de sua época “o da
dominação, que supõe seu reverso, o tema da libertação, como objetivo que deve ser
alcançado”.
149
É este tema que dá à nossa época a sua característica antropológica. De
acordo com Freire, “para realizar a humanização que supõe a eliminação da opressão
desumanizante, é absolutamente necessário transcender as situações-limite nas quais os
homens são reduzidos ao estado de coisas”.
150
A característica antropológica da pedagogia
da libertação é transcender as situações-limite, tornando-as possibilidades para o devir
pleno dos homens e das mulheres. Segundo Streck, para Freire, “o homem que não é livre,
o homem dominado e oprimido, não ascendeu ainda à sua verdadeira condição humana de
experimentar as situações-limite da existência como desafios a serem enfrentados e não
como fatalidade”.
151
Não se pode buscar a libertação servindo-se da concepção bancária de educação, em
que os seres humanos são vistos como seres de adaptação, de ajustamento, arquivos de
depósitos, em que se exercita uma simples transferência de conteúdos, marcada pela falta
de diálogo, autonomia e criticidade. Freire salienta:
Na medida em que esta visão “bancária” anula o poder criador dos educandos ou o
minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade, satisfaz aos interesses dos
opressores: para estes, o fundamental não é o desnudamento do mundo, a sua
transformação.
152
De acordo com a concepção de educação bancária, o que se quer são cidadãos
adaptados e integrados, eficientes sob o ponto de vista econômico, mas completamente
incapazes de ser críticos. Por isso, segundo o autor:
148
Paulo FREIRE, Conscientização, p. 27.
149
Paulo FREIRE, Conscientização, p. 30.
150
Paulo FREIRE, Conscientização, p. 30.
151
Danilo STRECK, Correntes pedagógicas, p. 29.
152
Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 60.
46
Quanto mais adaptados, para a concepção “bancária”, tanto mais “educados”, porque
adequados ao mundo. Esta é uma concepção que, implicando uma prática, somente pode
interessar aos opressores, que estarão tão mais em paz, quanto mais adequados estejam os
homens no mundo. E tão mais preocupados, quanto mais questionando o mundo estejam os
homens.
153
Se o sistema educacional privilegia a educação bancária, impedindo a emancipação
individual, então é ainda mais repressivo em relação à emancipação coletiva. Para a
educação problematizadora, segundo Freire, “enquanto um quefazer humanista e
libertador, o importante está em que os homens submetidos à dominação lutem por sua
emancipação”.
154
A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem
com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres vazios,
nos quais se depositam conteúdos e para os quais se transferem conhecimentos, mas na
problematização dos homens em suas relações com o mundo.
155
Esse processo é coletivo.
Para superar as situações-limite
156
, é necessário estar enraizado na realidade
contextual, cotidiana e histórica. Fazendo uso da memória, Freire convida-nos a
rebuscarmos os quintais que povoaram nossa infância, refazendo a esperança de nosso
viver, na busca de inéditos viáveis
157
que superem as situações-limite. No livro Á sombra
desta mangueira, Freire recorda:
Meu primeiro mundo foi o quintal de casa, com suas mangueiras, cajueiros de fronde quase
ajoelhando-se no chão sombreado, jaqueiras e barrigudeiras. Árvores, cores, cheiros, frutas,
que, atraindo passarinhos vários, a eles se davam como espaço para seus cantares.
(...)
153
Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 63.
154
Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 75.
155
Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 67-68.
156
Conforme consulta realizada no glossário sobre a obra de Paulo FREIRE que se encontra no site
www.paulofreire.org/Paulo_Freire/glossário.pf_htm, onde o termo “situações-limite” é explicado como “as
situações que desafiam de tal forma a prática dos homens que é necessário enfrentá-las e superá-las para
prosseguir. Para Paulo Freire, elas não devem ser contornadas, mas analisadas, enfrentadas e estudadas em
suas múltiplas contradições, sob pena de reaparecerem mais adiante com força redobrada.” Segundo Paulo
FREIRE no seu livro Pedagogia do oprimido, p. 90-95: “(...) não são as ‘situações-limites’, em si mesmas,
geradoras de um clima de desesperança, mas a percepção que os homens tenham delas num dado momento
histórico, como um freio a eles, como algo que eles não podem ultrapassar. No momento em que a percepção
crítica se instaura, na ação mesma, se desenvolve um clima de esperança e confiança que leva os homens a se
empenharem na superação das ‘situações-limites’ (...) Para alcançar a meta da humanização, que não se
consegue sem o desaparecimento da opressão desumanizante, é imprescindível a superação das ‘situações-
limites’ em que os homens se acham quase coisificados.”
157
Em relação a este conceito, realizei consulta no glossário sobre a obra de Paulo Freire que se encontra no
site www.paulofreire.org/Paulo_Freire/glossario_pf.htm. “O inédito viável é a nova possibilidade de
solução para certos problemas que se revelam para além das ‘situações-limites’, quando o máximo de
‘consciência possível’ do homem consegue observar além do visual da ‘consciência efetiva’. É o devir, o
futuro a se construir, a futuridade a ser criada, o projeto a realizar. Em outras palavras: inédito viável é a
possibilidade ainda inédita de ação.” Segundo o livro de Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 93,
inédito viável é a possibilidade histórica de transcender as situações-limite.
47
Antes de tornar-me um cidadão do mundo, fui e sou um cidadão do Recife, a que cheguei a
partir de meu quintal, no bairro da Casa Amarela. Quanto mais enraizado na minha
localidade, tanto mais possibilidades tenho de me espraiar, me mundializar. Ninguém se
torna local a partir do universal. O caminho existencial é o inverso. (...) Sou primeiro
recifense, pernambucano, nordestino. Depois, brasileiro, latino-americano, gente do
mundo.
158
Temos aqui um convite: voltar ao quintal de casa. É necessário fazer essa parada.
Descansar debaixo das sombras das árvores, das memórias da existência, para encontrar o
rumo. Recuperar as forças para continuar a caminhada da vida com mais esperança. Voltar
às origens, não esquecer o chão da história de vida é essencial para quem reflete sobre sua
vida e se compromete com transformações necessárias para si e para outros/as. É se
entender como sujeito histórico, com passado, presente e futuro. O quintal da infância é
espaço temporalizado, geografia, história, cultura. O quintal da infância também traz a vida
em toda a sua contradição: dor, fome, miséria, e esperança de milhões, igualmente
famintos de justiça. É nessa dialética que nos movemos e é nela que vivemos, pois “a
esperança é exigência ontológica dos seres humanos. Os seres humanos vivem na
relacionalidade uns com os outros e com o mundo local e global. São também seres
históricos, de possibilidades, inacabados”.
159
Freire aponta para a esperança como um
elemento constitutivo da libertação. Ele esclarece:
A esperança na libertação não significa, já, a libertação. É preciso lutar por ela, dentro de
condições historicamente favoráveis. Se elas não existem, temos de pelejar
esperançadamente para criá-las. A libertação é possibilidade, não sina, nem destino, nem
fado. Nesse contexto, se percebe a importância da educação, da decisão, da ruptura, da
opção, da ética, afinal.
160
A esperança não é passiva. Ela é ativa. Não acomoda. A esperança leva a lutar pela
libertação, considerando o contexto, a realidade, ou criando condições para que a
libertação se realize. A libertação é possibilidade! Se a libertação é possibilidade, então ela
se realiza na relacionalidade dos seres humanos em sua diversidade e pluralidade, bem
como nas relações que se estabelecem com a realidade local e global. A educação que tem
como valor máximo a vida em sua integralidade é uma educação ética.
Nos anos 70, Paulo Freire defende, em seu livro Pedagogia do oprimido, o direito à
educação para todas as pessoas, especialmente para os oprimidos e para os pobres. No
entanto, ele não especifica quem são estes oprimidos e pobres, utilizando-se de uma
158
Paulo FREIRE, À sombra desta mangueira, p. 24-25.
159
Paulo FREIRE, Pedagogia da autonomia, p. 55-56.
160
Paulo FREIRE, À sombra desta mangueira, p. 30.
48
linguagem genérica. Em 1992, publica Pedagogia da esperança: um reencontro com a
pedagogia do oprimido, onde faz, com muita humildade, uma análise do volume imenso de
cartas que recebeu em Genebra, com críticas de mulheres norte-americanas, depois da
publicação do livro Pedagogia do oprimido, cujo lançamento se deu em 1971.
161
Ele nos
dá um belo exemplo, reconhecendo o uso da linguagem machista. A primeira edição deste
livro saiu em inglês
162
, devido ao regime militar e ao fato de Freire estar no exílio no Chile.
É que, diziam elas, com suas palavras, discutindo a opressão, a libertação, criticando, com
justa indignação, as estruturas opressoras, eu usava, porém, uma linguagem machista,
portanto discriminatória, em que não havia lugar para as mulheres. (...) Em certo momento
de minhas tentativas, puramente ideológicas, de justificar a mim mesmo, a linguagem
machista que usava, percebi a mentira ou a ocultação da verdade que havia na afirmação:
“Quando falo homem, a mulher está incluída”. E por que os homens não se acham
incluídos quando dizemos: “As mulheres estão decididas a mudar o mundo”? (...) Daquela
data até hoje me refiro sempre a mulher e homem ou seres humanos. Prefiro, às vezes,
enfeiar a frase explicitando, contudo, a minha recusa à linguagem machista.
(...)
A discriminação da mulher, expressada e feita pelo discurso machista e encarnada em
práticas concretas, é uma forma colonial de tratá-la, incompatível, portanto, com qualquer
posição progressista, de mulher ou de homem, pouco importa.
A recusa à ideologia machista, que implica necessariamente a recriação da linguagem, faz
parte do sonho possível em favor da mudança do mundo. (...)
Não é puro idealismo, acrescente-se, não esperar que o mundo mude radicalmente para que
vá mudando a linguagem. Mudar a linguagem faz parte do processo de mudar o mundo. A
relação entre linguagem-pensamento-mundo é uma relação dialética, processual e
contraditória. É claro que a superação do discurso machista, como a superação de qualquer
discurso autoritário, exige ou nos coloca a necessidade de, concomitantemente com o novo
discurso democrático, antidiscriminatório, nos engajarmos em práticas também
democráticas.
163
A recusa à linguagem machista através das palavras escritas e faladas implica
necessariamente à recriação da linguagem escrita, falada, simbólica. Transformar a
linguagem faz parte do processo de reconstrução do mundo. A mudança do mundo não é
automática. Além da mudança da linguagem, exige-se o engajamento em práticas também
democráticas. A linguagem faz parte da construção cultural, social e histórica, sendo,
portanto, passível de mudança. Linguagem-pensamento-mundo é uma relação dialética,
processual e contraditória, necessitando estar em constante movimento de reflexão,
mostrando que a mudança dessa realidade se processa não somente num novo discurso
democrático, antidiscriminatório, como também no engajamento nas práticas democráticas
e emancipatórias.
161
Paulo FREIRE, Pedagogia da esperança, p. 66.
162
Paulo FREIRE, Pedagogia da esperança, p. 63. A 1ª edição do livro Pedagogia do oprimido aconteceu
em inglês, no início do ano de 1971. No Brasil a 1ª impressão só foi possível em 1975.
163
Paulo FREIRE, Pedagogia da esperança, p. 66-68.
49
Nessa obra, Freire também retoma o conceito de inédito viável, conseqüência das
situações-limite, analisadas por ele como desencadeadoras da busca do aprender, do
enfrentar e superar um problema.
164
A compreensão de situações-limite como o inédito
viável somente é possível quando se entende a pessoa humana como estando dotada de
liberdade. Portanto, também as situações-limite vivenciadas pelas mulheres tornam-se
oportunidade para o inédito viável
165
, transformação de uma situação de opressão em
novas realidades de libertação. Freire salienta que,
complexo e plural, o processo de libertação se envolve com quantas dimensões marquem
fundamentalmente o ser humano: a classe, o sexo, a raça, a cultura.
Da mesma forma como jamais pude aceitar que a luta de libertação pudesse ser restringida
à briga de indivíduos, jamais aceitei também que ela pudesse ser reduzida à luta das
mulheres contra os homens, dos negros contra os brancos. A luta é dos seres humanos pelo
ser mais. Pela superação dos obstáculos à real humanização de todos. Pela criação de
condições estruturais que tornem possível o ensaio de uma sociedade democrática.
166
O processo de libertação, para Freire, é complexo e plural, trazendo presente a
ambigüidade dos seres humanos, a relação dialética de opressor-oprimido; por isso, é
necessário realizar a “páscoa”: que “morram” como machistas, como racistas, como
elitistas para renascer como verdadeiros progressistas, inscritos na luta de reinvenção do
mundo.
167
Parta de quem parta, a sectarização é um obstáculo à emancipação dos seres
humanos.
168
Nada acontece sem reflexão e engajamento. A esperança da mudança do mundo
nos põe em movimento. Aqui encontro mais um ponto de encontro entre a pedagogia de
Paulo Freire e a perspectiva da teologia feminista. Os saberes precisam ser revisados,
através do processo de estranhamento, suspeita e ruptura, interligando-se com novos
olhares e fazeres na experiência histórica, cotidiana da vida. O processo educacional, a
partir de uma pedagogia da libertação, permeado pela questão feminista e pela teoria de
gênero, é elemento indispensável para a conquista da libertação e emancipação de homens
e de mulheres.
164
Estes dois conceitos são analisados pela autora revisora das notas, Ana Maria FREIRE, no livro
Pedagogia da esperança, p. 206-207.
165
É o que será possível perceber na análise das narrativas das histórias de vida das ex-alunas de escola
comunitária luterana, no capítulo VII da presente tese.
166
Paulo FREIRE, Cartas a Cristina, p. 208.
167
Paulo FREIRE, Cartas a Cristina, p. 212.
168
Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 25.
50
1.3 Teologia da libertação: devir da humanidade como um processo de libertação ao
longo da história
A pedagogia e a teologia da libertação nasceram praticamente juntas na América
Latina, reinstalando o diálogo entre estes saberes. O educador Streck afirma:
Provavelmente uma das maiores contribuições de Paulo Freire para a educação cristã e para
a educação popular é ajudar a reinstaurar o diálogo entre a pedagogia e a teologia num
momento histórico ímpar de surgimento de uma consciência de povo no Brasil. (...) Como
marco desse fato situa-se a publicação quase concomitante de duas obras hoje clássicas em
suas respectivas áreas: Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire, publicado em 1970, e
Teologia da libertação, de Gustavo Gutiérrez, publicado em 1971. Estas obras sinalizam
que do chão de um continente secularmente maltratado pode e precisa surgir uma nova
prática, acompanhada de uma nova reflexão teológica e pedagógica.
169
Gutiérrez, no seu livro Teologia da libertação, faz referência explícita ao trabalho
de Paulo Freire como um dos esforços criadores e fecundos na realização de uma
revolução cultural, tencionando a constituição de uma “pedagogia do oprimido”.
170
Chama
atenção para o processo de conscientização, onde o oprimido ‘extrojeta’ a consciência
opressora que nele habita, adquire conhecimento de sua situação, encontra sua própria
linguagem e torna-se, ele próprio, menos dependente, mais livre, comprometendo-se na
transformação e construção da sociedade: “Por meio de uma ‘ação cultural’ - que une
teoria e práxis – desalienante e libertadora, o homem oprimido percebe e modifica sua
relação com o mundo e com os outros homens. Passa de uma ‘consciência ingênua’ (...) a
‘uma consciência crítica’.”
171
A consciência crítica, no entanto, não é um estado a que se
chega uma vez por todas, mas um esforço permanente situado no espaço e no tempo, para
que se possa exercer a capacidade criadora e assumir responsabilidade, sendo relativa a
cada etapa histórica de um povo e da humanidade em geral.
O conceito “teologia da libertação” nasceu a partir da realidade cultural, social,
econômica e política sob a qual se encontrava a América Latina nas décadas de 60/70 do
último século. O continente vivia em meio a ditaduras militares, onde miséria, fome,
pobreza, doença, analfabetismo e a falta de liberdade estavam na ordem do dia. Esse
quadro de degradação que se apresentava na América Latina é o núcleo gerador do
conceito de libertação. Gutiérrez afirma: “Dependência e libertação são termos correlativos
(...) a insustentável situação de miséria, alienação e espoliação em que vive a imensa
169
Danilo STRECK, Correntes pedagógicas, p. 26.
170
Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da libertação, p. 88.
171
Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da libertação, p. 88.
51
maioria da população latino-americana pressiona, com urgência, a encontrar o caminho de
uma libertação econômica, social e política”.
172
A libertação, então, é toda “ação que visa
criar espaço para a liberdade”.
173
Gutiérrez aprofunda dizendo o seguinte:
Nesse processo de libertação está presente, aliás, explícita ou implicitamente, um substrato
que convém não esquecer. A busca da libertação do subcontinente vai mais longe que a
superação da dependência econômica, social e política. Consiste, mais profundamente, em
ver o devir da humanidade como um processo de emancipação do homem ao longo da
história, orientado para uma sociedade qualitativamente diferente, na qual se sinta homem
livre de toda servidão, seja o artífice de seu próprio destino. É buscar a construção de um
homem novo.
174
O movimento da libertação vai muito além da superação da dependência
econômica, social e política. Busca o devir da humanidade como um processo de
emancipação do ser humano ao longo da história, onde aconteça a libertação de toda
servidão e o ser humano seja o artífice de seu próprio destino, sujeito histórico. Enfim,
busca-se a construção de um ser humano novo e de uma nova sociedade. “Libertação é
libertação do oprimido. Por isso, a teologia da libertação deve começar por se debruçar
sobre as condições reais em que se encontra o oprimido de qualquer ordem que ele seja”.
175
Os irmãos Boff afirmam: “A Teologia da Libertação encontrou seu nascedouro na
fé confrontada com a injustiça feita aos pobres”.
176
Eles afirmam que o pobre a que se
referem é um coletivo:
(...) as classes populares que englobam muito mais que o proletariado estudado por Karl
Marx (é um equívoco identificar o pobre da Teologia da Libertação com o proletariado,
como muitos críticos fazem): são os operários explorados dentro do sistema capitalista; são
os subempregados, os marginalizados do sistema produtivo – exército de reserva sempre à
mão para substituir os empregados – são os peões e posseiros do campo, bóias-frias como
mão-de-obra sazonal. Todo este bloco social e histórico dos oprimidos constitui o pobre
como fenômeno social.
177
Segundo os irmãos Boff, constata-se que na América Latina os pobres são
simultaneamente cristãos.
178
A pergunta que se coloca era e é: “Como ser cristãos num
mundo de miseráveis e injustiçados?” A resposta, de acordo com os autores, não podia ser
outra:
172
Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da libertação, p. 75.
173
Leonardo BOFF, Teologia do cativeiro e da libertação, p. 87.
174
Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da libertação, p. 87.
175
Leonardo BOFF; Clodovis BOFF, Como fazer teologia da libertação, p. 40.
176
Leonardo BOFF; Clodovis BOFF, Como fazer teologia da libertação, p. 14.
177
Leonardo BOFF; Clodovis BOFF, Como fazer teologia da libertação, p. 14.
178
Leonardo BOFF; Clodovis BOFF, Como fazer teologia da libertação, p. 18.
52
Só seremos seguidores de Jesus e verdadeiros cristãos se formos solidários com os pobres e
vivermos o evangelho da libertação. De dentro das lutas sindicais, na defesa das terras e
dos territórios indígenas, na luta pelos direitos humanos e em formas de compromisso
surgia sempre a questão: que colaboração traz o cristianismo na prática e nas motivações
pela libertação dos oprimidos?
179
Na América Latina, onde nasceu a teologia da libertação, sempre houve, desde os
primórdios da colonização ibérica, movimentos de libertação e resistência. Para Gutiérrez,
“a teologia é reflexão, atitude crítica. Primeiro é compromisso de caridade, de serviço. A
teologia vem depois, é ato segundo”.
180
Os irmãos Boff também deixam claro que o
primeiro passo para a reflexão teológico é o compromisso da fé.
Antes de fazer Teologia é preciso fazer libertação. O primeiro passo para a Teologia é pré-
teológico. Trata-se de viver o compromisso da fé, em nosso caso, de participar, de algum
modo, no processo libertador, de estar comprometido com os oprimidos.
(...)
É preciso que fique claro isto: na raiz do método da Teologia da Libertação se encontra o
laço com a prática concreta. É dentro dessa dialética maior de Teoria (da fé) e Práxis (da
caridade) que atua a Teologia da Libertação.
181
A prática da caridade como compromisso reflexivo da fé vai elaborando o chão de
atuação da teologia da libertação, que se processa em três momentos fundamentais, que
correspondem aos três tempos do conhecido método pastoral: ver, julgar e agir. O ver
corresponde à mediação socioanalítica, que olha para o mundo do oprimido. Procura
entender por que o oprimido é oprimido. A teologia da libertação utiliza-se do método
histórico-dialético para analisar a realidade sócio-histórica de opressão e de exclusão. “Na
teologia da libertação o marxismo nunca é tratado em si mesmo, mas sempre a partir, e em
função dos pobres”.
182
O marxismo é usado de modo puramente instrumental; isto é,
utilizam-se algumas indicações metodológicas para uma melhor compreensão do universo
dos oprimidos, por exemplo, a importância dos fatores econômicos, a atenção à luta de
classes, o poder mistificador das ideologias, inclusive religiosas, entre outras.
183
A categoria “pobre” é sempre entendida coletivamente. “A figura epocal do
oprimido no Terceiro Mundo é a do pobre sócio-econômico. São as massas deserdadas das
179
Leonardo BOFF; Clodovis BOFF, Como fazer teologia da libertação, p. 18.
180
Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da libertação, p. 24.
181
Leonardo BOFF; Clodovis BOFF, Como fazer teologia da libertação, p. 38.
182
Leonardo BOFF; Clodovis BOFF, Como fazer teologia da libertação, p. 45.
183
Em relação ao uso instrumental do marxismo na teologia da libertação, confira: Enio R. MUELLER,
Teologia da libertação e marxismo, p. 265-268; Michael LÖWY, A guerra dos deuses, p. 111-134.
53
periferias urbanas e do campo”.
184
No entanto, os irmãos Boff propõem um alargamento
da concepção de pobre, apontando para a opressão do tipo racial (negros), do tipo étnico
(índios), do tipo sexual (mulher). “Por seguinte, deve-se superar uma concepção
exclusivamente ‘classista’ do oprimido, como se este fosse apenas o pobre sócio-
econômico. Na fila dos oprimidos encontramos mais que somente os pobres. (...) Um pobre
é tanto mais oprimido quando ele é, além de pobre: negro, índio, mulher ou velho”.
185
Para Gutiérrez, o teólogo da libertação é um intelectual orgânico
186
, “alguém desta
feita comprometido pessoal e vitalmente com fatos históricos, datados e situados, através
dos quais países, classes sociais, homens pugnam por libertar-se da dominação e opressão
a que os submetem outros países, classes e homens. (...) a verdadeira interpretação do
sentido descoberto pela teologia dá-se na práxis histórica”.
187
O teólogo da libertação
precisa estar inserido nas bases, estando ligado a uma comunidade concreta, inserido
vitalmente. Ele ouve, fala, aprende, interroga e é interrogado pelo povo. De acordo com os
irmãos Boff, o teólogo da libertação necessita
possuir em alto grau a arte da articulação: articular o discurso da sociedade, dos oprimidos,
do universo das significações populares, simbólicas e sacramentais com o discurso da fé da
grande Tradição. No ambiente da libertação querer saber somente Teologia é condenar-se a
não saber a própria Teologia . Por isso o teólogo da libertação possui seu momento de
pastor, de analista, de intérprete, de articulador, de irmão de fé e companheiro de
caminhada.
188
O teólogo da libertação faz teologia com o povo e a partir do povo. Por isso, essa
teologia é fundamentalmente uma tarefa a ser cumprida coletivamente.
189
A expressão
“teologia da libertação” mostra o sentido “suleador”
190
desse discurso teológico. O genitivo
“da libertação” aponta para o horizonte da fala acerca de Deus e, ao mesmo tempo, mostra-
nos que Deus é fonte de libertação: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do
Egito, da casa da servidão.” (Êx 20.2). Deus se manifesta nas lutas históricas e cotidianas
pela justiça. Acontece uma releitura da Bíblia e também uma leitura popular da Bíblia.
184
Leonardo BOFF; Clodovis BOFF, Como fazer teologia da libertação, p. 41.
185
Leonardo BOFF; Clodovis BOFF, Como fazer teologia da libertação, p. 47-48.
186
Leonardo BOFF; Clodovis BOFF, Como fazer teologia da libertação, p. 34. Os irmãos BOFF afirmam:
“O teólogo da libertação não é um intelectual de gabinete. É antes ‘intelectual orgânico’, um ‘teólogo
militante’, que se situa dentro da caminhada do Povo de Deus e articulado com os responsáveis da Pastoral.”
187
Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da Libertação, p. 25.
188
Leonardo BOFF; Clodovis BOFF, Como fazer teologia da libertação, p. 35.
189
Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da libertação, p. 35-36.
190
Utilizo a palavra “suleador” lembrando que a palavra “sulear” é usada em contraposição à palavra
“nortear” no livro de Paulo FREIRE, Pedagogia da esperança, p. 24, para denunciar o caráter ideológico das
palavras.
54
Uma nova face de Deus é anunciada pela teologia da libertação. Deus ouve o clamor do
seu povo e vem ao seu encontro, para libertá-lo da escravidão.
191
“O teólogo da libertação
vai às Escrituras carregando toda a problemática, a dor e esperança dos oprimidos. Solicita
à Palavra divina luz e inspiração. Realiza, pois, aqui uma nova leitura da Bíblia: a
hermenêutica da libertação”.
192
Deus se encarna em Jesus Cristo, assumindo totalmente a
realidade humana. Boff mostra Jesus Cristo libertador que anuncia e vive o Reino de Deus:
O tema da pregação de Cristo não foi ele mesmo nem a Igreja, mas o Reino de Deus. Reino
de Deus significa realização de uma utopia do coração humano de total libertação da
realidade humana e cósmica. (...) Para que se realize semelhante transformação libertadora
do pecado, de suas conseqüências pessoais e cósmicas, de todos os demais elementos
alienatórios sentidos e sofridos na criação, Cristo faz duas exigências fundamentais: exige
conversão da pessoa e postula uma reestruturação do mundo da pessoa.
193
O Reino de Deus significa a realização de uma utopia do coração humano de total
libertação da realidade humana e cósmica. Para que esta se realize, é necessária uma
transformação libertadora do pecado. Libertação é um processo bastante amplo, que
envolve a realidade pessoal, social e cósmica, exigindo mudança na forma da pessoa agir e
pensar, bem como uma profunda transformação na sociedade. A pregação do Reino de
Deus aponta para a evangelização. Conforme Boff:
A presença do novo modo de ser Igreja na sociedade se caracteriza pela vontade de serviço
e não de poder. A evangelização não se articula como na época colonial e até os anos 60
com os poderes dominantes da sociedade, participando do poder hegemônico. (...) Hoje,
mediante a rede de comunidade de base, o povo aprende a ser sujeito de sua Igreja e de sua
situação social. Ele aprende também a ver a história a partir de sua própria condição de
oprimido e descobre o potencial transformador do reverso da história, especialmente
quando se dá conta de que Deus se coloca do seu lado e que o projeto de Jesus implica uma
libertação integral, logo também econômica, política e social, numa palavra, cultural.
194
A nova evangelização se realiza como serviço onde há respeito às diferenças e à
pluralidade de culturas. A partir das comunidades de base, o povo aprende a ser sujeito de
sua Igreja e de sua situação social. Aprende a ver a história a partir de sua própria condição
de oprimido, descobrindo o potencial transformador a partir do reverso da história.
Novamente o autor enfatiza que o projeto de Jesus implica uma libertação integral,
envolvendo todos os aspectos da vida humana, social, histórica e cultural. Mondin salienta
que a “teologia da libertação é um movimento teológico que quer mostrar aos cristãos que
191
Alexandre Marques CABRAL, A teologia da libertação, p. 2.
192
Leonardo BOFF, Clodovis BOFF, Como fazer teologia da libertação, p. 51.
193
Leonardo BOFF, Jesus Cristo libertador, p. 76-77.
194
Leonardo BOFF, Nova evangelização, p. 125.
55
a fé deve ser vivida numa práxis libertadora e que ela pode contribuir para tornar esta
práxis mais autenticamente libertadora”.
195
O ser humano cristão é impelido a viver a
práxis libertadora nos diferentes momentos da história. A libertação, para ser autêntica e
plena, deverá ser assumida pelo próprio povo oprimido, partindo dos próprios valores
desse povo. Só dessa forma pode ser levada a bom termo uma verdadeira revolução
cultural.
A teologia da libertação nasceu a partir da realidade dos empobrecidos, despertando
cristãos e cristãs para uma ação engajada em favor da mudança do mundo, mas não de
forma paternalista. Löwy assinala:
A preocupação com os pobres foi uma tradição da Igreja por quase dois milênios, que
remonta às origens evangélicas. Os teólogos latino-americanos se colocam como
continuadores dessa tradição que lhes dá tanto referências quanto inspiração. No entanto,
(...) eles rompem radicalmente com o passado em um ponto fundamental: para eles, os
pobres já não são basicamente objetos de caridade, e sim agentes da sua própria libertação.
A ajuda ou assistência paternalista é substituída pela solidariedade com a luta dos pobres
por auto-emancipação. Aqui é que se estabelece a conexão com o princípio político
marxista fundamental: a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios
trabalhadores. Essa mudança talvez seja a nova contribuição política mais importante por
parte dos teólogos da libertação. E a que tem maiores conseqüências na área da práxis
social.
196
O autor deixa claro que a assistência paternalista é substituída pela solidariedade
com a luta dos pobres por auto-emancipação. A emancipação dos trabalhadores será obra
dos próprios trabalhadores. Essa é a mudança trazida pela teologia da libertação, com
grandes conseqüências na práxis social, política e religiosa. Pauly, na resenha sobre o livro
A guerra dos deuses: religião e política na América Latina, do autor referido, afirma que
Lowy utiliza o termo cristianismo da libertação para “incluir tanto a cultura religiosa e a
rede social, quanto a fé e a prática” (p. 57). A teologia da libertação seria a “doutrina
religiosa” que brota e, ao mesmo tempo, alimenta criticamente esse movimento social bem
mais amplo que o representado pelas parcelas importantes do clero e da hierarquia que
produzem essa teologia. A tese mais polêmica do livro (...) explica a ruptura da teologia da
libertação com a tradição teológica européia pela “inovação radical: a) ao propor a
separação total entre a Igreja e Estado; b) ao rejeitar a idéia de um partido ou sindicato
cristão, e ao reconhecer a necessária autonomia dos movimentos sociais e políticos; c) ao
rejeitar qualquer sugestão de uma volta ao ‘catolicismo político’ pré-crítico e sua ilusão de
uma ‘nova Cristandade’; e d) ao defender a participação cristã nos movimentos ou partidos
populares não religiosos”. Não se trata, portanto, da mera distinção entre o público e o
privado, entre a Igreja e o Estado, como afirma a teologia liberal clássica. Trata-se de uma
separação absoluta exigida pela “democracia secular moderna” (p. 99). A tese de
195
Batista MONDIN, Os teólogos da libertação, p. 25.
196
Michel LÖWY, A guerra dos deuses, p. 123. (O grifo é meu).
56
separação total é radicalmente democrática e explica a inexistência de partidos ou
sindicatos cristãos com peso eleitoral na América Latina.
197
Pauly, como teólogo luterano, chama a atenção para o fato de que para Löwy a
teologia da libertação rompe com a tradição teológica européia, propondo a separação total
entre Igreja e Estado, sendo esta uma exigência da “democracia secular moderna”.
198
Isso
significa, como já se apontou, que os pobres se assumem como sujeitos de sua auto-
emancipação, não necessitando mais da tutela paternalista da Igreja. A partir da teologia da
libertação, os e as pobres irrompem como sujeitos históricos.
1.4 Filosofia da libertação: epifania – revelação do outro e da outra
A filosofia da libertação também surgiu na América Latina no final dos anos 60 e
início dos anos 70. Segundo Mance
199
, ela não é uma filosofia da liberdade, mas da
libertação. Ela reflete sobre um momento concreto, histórico, de passagem de sujeitos que
estão dominados e oprimidos para uma condição de pessoas que realizam a sua própria
liberdade. A libertação é sempre um movimento, uma ação que jamais estará totalmente
realizada, completa. A filosofia da libertação, portanto, se considera uma reflexão
filosófica sobre a realidade concreta, em que vivem as pessoas submetidas a diversas
formas de dominação, bem como sobre os processos voltados à transformação dessa
situação. Trata-se de compreender a realidade da dominação e o processo de libertação. Ela
acentua o processo coletivo e histórico, entendendo que não se podem supor categorias
formais de liberdade e libertação, como se elas existissem a priori do próprio processo. Por
exemplo, não há nenhum filósofo do mundo, homem ou mulher, que sozinho possa dizer,
de antemão, o que é libertação da mulher. É necessário todo o movimento da práxis das
próprias mulheres, que se dão conta, a cada dia, das estruturas machistas, das estruturas
opressivas nas quais se encontram envolvidas. É nesse movimento e processo que o
conceito do que é libertação da mulher vai se construindo e se transformando. Segundo
Mance: “A categoria de libertação se constrói no próprio processo da práxis”.
200
E o autor
esclarece:
197
Evaldo Luis PAULY, A guerra dos deuses, p. 985-988 [Resenha]. Faço referência à resenha de Pauly,
pois desejo mostrar como um teólogo luterano acolheu essa interpretação marxista contemporânea.
198
Remeto ao texto de Evaldo Luis PAULY, Teologia da cruz como novo paradigma para a relação “fé e
política”, p. 19-36.
199
Euclides André MANCE, Desafios que a filosofia da libertação enfrenta, p. 2-3.
200
Euclides André MANCE, Desafios que a filosofia da libertação enfrenta, p. 4.
57
O grande desafio da filosofia da libertação está em compreender a liberdade sob o
movimento da sua própria realização, movimento que historicamente limita essa própria
liberdade, sob um conjunto de possibilidades situadas. A liberdade se realiza numa certa
circunstância, e essa circunstância impõe limites. Trata-se de criticar estes próprios limites
situacionais – a liberdade nos possibilita isso – para que esses limites sejam superados em
movimento contínuo, perpétuo, de libertação que transforma todas as estruturas, códigos e
processos – que impedem a realização singular de homens e mulheres – visando o exercício
ilimitado da sua própria liberdade.
201
Dussel é um dos grandes representantes da filosofia da libertação, especialmente,
em relação a uma ética da libertação latino-americana. Primeiramente, procuro entender
algumas categorias elaboradas por este autor, para uma melhor compreensão de seu
pensamento. A proximidade é entendida, pelo autor, como ato de aproximar-se das pessoas
na fraternidade. Este conceito está presente na teologia da libertação. Para os teólogos e as
teólogas da libertação, a teologia é sempre um ato segundo, que se realiza a partir da
realidade concreta dos excluídos e das excluídas. O teólogo e a teóloga da libertação
sempre terá um duplo olhar: para Deus e para o pobre (o excluído). Deus é a fonte de toda
libertação possível, e o pobre e o excluído identificam onde há necessidade de libertação;
enquanto que, para o filósofo,
práxis é um “ato” que uma pessoa, um sujeito humano realiza, mas que se dirige
diretamente a outra pessoa (um aperto de mão, um beijo, um diálogo, um golpe) ou
indiretamente (por intermédio de algo: por exemplo, repartir um pedaço de pão; o pão não
é pessoa, mas se reparte para a outra pessoa. Se estou dormindo, não estou presente no
mundo porque descanso, porque não estou consciente, não há práxis então. A práxis é a
maneira atual de estar em nosso mundo frente ao outro; é a presença real de uma pessoa
ante outra.
202
Práxis, portanto, é o ato realizado por um ser humano que se dirige diretamente a
um outro ser humano. A práxis envolve relação entre duas pessoas; é a presença real de
uma pessoa em relação a uma outra. “Uma pessoa é pessoa só quando está ante outra
pessoa ou pessoas”.
203
Ser pessoa é, para Dussel, estar em relação com outras pessoas. Ele
se apóia na tradição bíblica (hebraica-cristã) para fazer a sua afirmação.
204
Quando se está
com o “rosto frente ao rosto do outro na relação prática, na presença de práxis, ele é
201
Euclides André MANCE, Desafios que a filosofia da libertação enfrenta, p. 4.
202
Enrique D. DUSSEL, Ética comunitária, p. 18.
203
Enrique D. DUSSEL, Ética comunitária, p. 19.
204
Enrique D. DUSSEL, Ética comunitária, p. 19. “O Senhor falava frente a frente com Moisés” (Êx 33.11).
“Não voltou a surgir em Israel profeta semelhante a Moisés, com quem o Senhor tratasse face a face” (Dt
34.10). “Com ele falo face a face” (Nm 12.8). (...) “No presente vemos por um espelho e obscuramente, então
veremos face a face” (1 Co 13.12). “‘Face’, ‘cara’, ‘rosto’ se diz em hebraico panin, em grego prósopon (de
onde vem em latim ‘persona1’).”
58
alguém para mim e eu sou alguém para ele. O ‘face-a-face’ de duas ou mais pessoas é ser
pessoa”.
205
O face a face, frente a frente, pessoa a pessoa é a relação prática de
proximidade, constituindo o outro como próximo, como outro e não como coisa,
instrumento, mediação, possibilitando a alteridade.
Segundo Dussel, “a erótica latino-americana quer pensar a posição face-a-face do
homem e da mulher do nosso mundo dependente”.
206
“O sujeito europeu que começa por
ser um ‘eu conquisto’ e culmina como a ‘vontade do poder’ é um sujeito masculino”
207
,
que também é branco, cristão, ocidental. A história do homem e da mulher latino-
americanos é de conquistados e subjugados. O autor busca entender os fundamentos
ontológicos de dominação que se instituíram na América Latina, a partir das origens
históricas e culturais da civilização.
Dussel afirma que “no pro-jeto ontológico do conquistador hispânico, a mulher era
algo como um botim em suas batalhas, algo sobre o qual se tinha ‘direito de conquista’,
algo ‘à mão’ para saciar a pulsão (no mero e primário sentido do ‘princípio do prazer’ sem
repressão alguma de um ‘princípio de realidade’ ainda inexistente)”.
208
A mulher era vista
como aquela que podia ser usada e abusada. E o autor prossegue:
Tudo isso nos indicará que a eticidade negativa (a maldade) é a do pro-jeto ontológico
erótico que tendo como único horizonte a Totalidade constitui a mulher como “objeto”
sexual (“o outro” interno ao “o Mesmo”), onde o ego fálico é de fato a medida do próprio
ser e a medida da sexualidade.
209
A mulher constitui-se em objeto sexual, ficando alienada de sua sexualidade. Ela
está aí, como objeto sexual, para o ego fálico e conquistador. Dussel mostra que a partir
dessa moral o próprio homem foi reprimido, reduzido em sua afetividade, educado para a
autodestruição agressiva, competitiva de todos os outros homens.
210
Resulta daí que o “ser
da mulher se constitui por mediação do varão: ‘Esposa do governador’ é sua glória, como
em outros tempos os escravos tinham a glória de serem da família mais influente do
lugar”.
211
205
Enrique D. DUSSEL, Ética comunitária, p. 19.
206
Enrique D. DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana, p. 55.
207
Enrique D. DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana, p.56.
208
Enrique D. DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana, p. 126-127.
209
Enrique D. DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana, p. 128.
210
Enrique D. DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana, p. 141.
211
Enrique D. DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana, p. 143.
59
Ligada com a erótica está a pedagógica. A pedagógica é a parte da filosofia que
pensa a relação face a face entre pai-filho, mestre-discípulo, médico-psicólogo-doente,
filósofo-não-filósofo, político-cidadão. Ela não deve ser confundida com a pedagogia, que
é a ciência do ensinamento ou aprendizagem. A práxis da libertação pedagógica, conforme
Dussel, funda-se no postulado de que
nunca posso eu mesmo pronunciar a palavra reveladora do Outro: cabe-me somente,
originariamente, escutar a palavra meta-física, ética. A cultura libertadora, revolucionária e
futura, pratica-se como ethos de amor-de-justiça gratuito, como serviço, como práxis ana-
lética que é a resposta à palavra analógica.
212
Ninguém pode dizer a palavra pelo outro e pela outra. Cada um precisa dizer a sua
própria palavra. A palavra é também revelação do outro e da outra. A ação educativa será
libertadora se houver a escuta da voz do outro.
213
“Uma pedagógica libertadora – diz
Dussel – tem consciência de que o mestre é um sujeito pro-criador, fecundante do
processo, desde sua exterioridade crítica”.
214
Na pedagógica libertadora, o mestre está
presente criativamente no processo, com uma postura crítica que escuta o outro e a outra.
Ele entende que “saber ouvir o discípulo é poder ser mestre; é saber inclinar-se diante do
novo; é ter o próprio tema do discurso pedagógico”.
215
Ouvir é ter uma atitude de abertura
para o outro e a outra, tratando-os numa relação de igualdade. Ele deve ser um partejador,
trazendo à luz o novo, a partir da realidade contextual do educando. O mestre deve buscar
uma educação que possibilite ao ser humano a discussão corajosa de sua problemática, que
o advirta dos perigos do seu tempo e que desenvolva a consciência de mudança.
O critério ético supremo para Dussel é o seguinte: “afirmar o outro é o ato bom;
negar o outro e dominá-lo é o ato mau”.
216
A afirmação do outro e da outra se dá pela
escuta de sua voz. A voz do outro e da outra significa sempre o conteúdo que se revela. Na
pedagógica, essa revelação é recíproca entre mestre e discípulo. Isto significa que “o
mestre libertador permite o desabrochar criador do Outro. O preceptor que se mascara por
detrás da ‘natureza’, da ‘cultura universal’, e muitos outros fetiches encobridores, é o falso
mestre, o sofista cientificista, o sábio do sistema imperial que justifica as matanças do
212
Enrique D. DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana, p. 236.
213
Ernani Maria FIORI, na introdução do livro Pedagogia do oprimido, como foi possível perceber no item
1.2, afirma o mesmo. “Aprender a dizer a sua palavra é toda a pedagogia, e também toda antropologia.” O ser
humano se constitui sujeito quando aprende a dizer a sua palavra.
214
Enrique D. DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana, p. 246.
215
Enrique D. DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana, p. 246.
216
Enrique D. DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana, p. 231.
60
herói conquistador, repressor”.
217
Aqui se encontra, conforme o autor, a diferença entre
uma pedagógica dominadora e uma pedagógica libertadora:
Para saber algo do Outro como outro, daquilo que é como liberdade, como mistério, como
distinto, necessariamente preciso me calar. Calar para escutar sua palavra. Esta me revela o
que o Outro é, não de forma temática ou conceitual, mas de forma análoga, pela
semelhança na distinção, pela presença na ausência. Por isso, o silêncio (para escutar),
tanto do mestre como do discípulo, é fundamental para que a pedagógica possa ser a
afirmação do Outro, isto é, para que possa ser libertadora.
218
Ouvir o outro e a outra é estar aberto para a epifania, revelação do Outro e da outra.
É isto que se exercitou quando se ouviram as histórias de vida das ex-alunas, quando o
silêncio da pesquisadora foi fundamental, para que a Outra pudesse se revelar. Nessa
relação de extremo respeito à Outra, à sua história, ao seu mistério aconteceu a revelação
da Outra. Escutar a voz do Outro e da Outra exige proximidade, estar face a face com o
Outro e a Outra. A proposta pedagógica libertadora, construída a partir da alteridade, do
Outro e da Outra enquanto Outro e Outra fornece elementos para a construção de uma
relação de autenticidade, de autonomia, de respeito, de criatividade; uma analética entre
professor e aluno, sendo esta a grande contribuição da concepção dusseliana de
“mestre”.
219
A libertação, para Dussel, acontece no processo, na abertura ao Outro e à
Outra, ouvindo a sua voz, deixando que ele e ela se revele como ser humano, sujeito
histórico.
1.5 Emancipação humana é mais do que emancipação política
A partir dos conceitos que foram expostos até o momento, a partir da teologia
feminista, da pedagogia, teologia e filosofia da libertação, considero importante resgatar o
conceito de emancipação humana elaborado por Marx, que, no meu entender, se interliga
com o conceito de libertação. Acredito que esses dois conceitos se interligam na busca da
realização plena do ser humano. Para Marx, a emancipação humana vai muito além da
emancipação política. Isto significa que é insuficiente, embora necessária para a
concretização da emancipação das mulheres e dos pobres, a garantia dos direitos humanos,
o exercício da cidadania. É necessário que os direitos civis sejam conhecidos e vividos no
cotidiano, bem como sejam buscados novos direitos para todas as pessoas, a partir da
realidade histórico-sócio-cultural. Isto implica profundas mudanças nas relações familiares,
217
Enrique D. DUSSEL, Para uma ética da libertação latino-americana, p. 231.
218
José Pedro BOUFLEUER, Pedagogia latino-americana, p. 93.
219
Carmen HICKERT, Enrique Dussel, p. 95.
61
educacionais, religiosas e profissionais. O processo de emancipação inicia pela
emancipação política, mas vai além, precisa alcançar a emancipação humana. As mulheres
só alcançarão a emancipação plena com a emancipação de toda a humanidade.
Este é um processo constante que se mostra nas relações dialéticas da sociedade. A
teoria e a teologia feministas, a partir do referencial de gênero, apontam para a questão das
relações de opressão homem-mulher, mulher-mulher, homem-homem, em relação à classe,
etnia, geração, nacionalidade e outros aspectos.
A reflexão crítica de Marx nasceu da realidade histórica, dinâmica, conflituosa e
contraditória do capitalismo, no século XIX.
220
O primeiro ato histórico do ser humano é o
seu ato de produção e de subsistência, tendo como objetivo a garantia de sua
sobrevivência.
221
No entanto, a transformação numa época histórica pode ser determinada
pelos avanços das mulheres em direção à emancipação, em que também, dialeticamente,
acontece a emancipação dos homens.
Em A questão judaica, escrita em 1843, Marx critica Bruno Bauer por este não ter
sabido separar emancipação política de emancipação humana. Ele diz:
Os judeus alemães buscam a emancipação. Que emancipação desejam eles? A
emancipação civil, política.
Bruno Bauer responde-lhes: na Alemanha, ninguém é politicamente emancipado. Também
nós não somos livres. Como poderemos libertar-vos? Vós, judeus, sois egoístas, se
pedirdes para vós, como judeus, uma emancipação especial. Como alemães, deverieis [sic]
trabalhar pela emancipação política da Alemanha e, como homens, pela emancipação da
humanidade. Deverieis [sic] sentir o tipo particular de vossa opressão e do vosso opróbrio
não como excepção [sic] à regra, mas como confirmação da regra.
222
Segundo Bauer, o ser humano só podia se tornar um cidadão emancipado se
abandonasse a religião; portanto, o judeu devia abandonar o judaísmo. Marx observa que,
segundo Bauer: “A emancipação da religião põe-se como condição, quer ao judeu que
aspira à emancipação política, quer ao Estado que o deveria emancipar e emancipar-se a si
próprio”.
223
O autor aponta ainda:
Bauer, por um lado, deseja que o judeu renuncie ao judaísmo e que o homem em geral
abandone a religião, a fim de se emancipar como cidadão. Por outro, pensa – e com
necessidade lógica – que a abolição política da religião constitui a abolição de toda a
220
Karl MARX, O capital, p. 449-459. O autor denuncia a exploração do trabalho das mulheres e das
crianças.
221
Karl MARX; Friedrich ENGELS, A ideologia alemã, p. 10-11.
222
Karl MARX, A questão judaica, p. 35.
223
Karl MARX, A questão judaica, p. 37.
62
religião. O Estado que pressupõe a religião não é ainda um Estado verdadeiro e real. “Sem
dúvida, a idéia religiosa proporciona ao Estado algumas garantias. Mas a que Estado? A
que espécie de Estado?
Neste ponto, sobressai a formulação unilateral da questão judaica.
Não bastava perguntar: quem deve emancipar? Quem terá de ser emancipado? A crítica
teria ainda de fazer uma terceira pergunta: que espécie de emancipação está em jogo? Que
condições se fundam na essência da emancipação que se procura?
224
Em relação a isto, Marx afirma: “A questão da relação entre emancipação política e
religião torna-se para nós o problema da relação entre emancipação política e emancipação
humana”.
225
Ele continua dizendo:
A emancipação política do judeu, do cristão – do homem religioso em geral – é a
emancipação do Estado em relação ao judaísmo, ao cristianismo e à religião em geral. O
Estado emancipa-se da religião à sua maneira, segundo o modo que corresponde à sua
própria natureza, libertando-se da religião do Estado; quer dizer, ao não reconhecer como
Estado nenhuma religião e ao afirmar-se pura e simplesmente como Estado. A
emancipação política da religião não é a emancipação integral, sem contradições, da
religião, porque a emancipação política não constitui a forma plena, livre de contradições,
da emancipação humana.
226
Marx argumenta, dialeticamente, afirmando que a emancipação política não
constitui a forma plena da emancipação humana. Ele faz isto mostrando que existe uma
oposição secular na relação entre o Estado político e os seus pressupostos, quer estes sejam
elementos materiais, como a propriedade privada, ou elementos espirituais, como a cultura
ou a religião. Ele aponta para o conflito entre o interesse geral e o interesse particular, a
cisão entre o Estado político e a sociedade civil. “O Estado político aperfeiçoado é, por
natureza, a vida genérica do homem em oposição à sua vida material”.
227
O interesse geral (Estado político), que é a vida genérica (vida social) do ser
humano, está em oposição ao interesse privado e à sua vida material (sociedade civil).
Segundo Marx: “O conflito em que o homem, enquanto adepto de uma religião particular,
se vê envolvido com a própria qualidade da cidadania e com os outros homens enquanto
membros da comunidade, reduz-se ao cisma secular entre o Estado político e a sociedade
civil”.
228
224
Karl MARX, A questão judaica, p. 39.
225
Karl MARX, A questão judaica, p. 42.
226
Karl MARX, A questão judaica, p. 42.
227
Karl MARX, A questão judaica, p. 45.
228
Karl MARX, A questão judaica, p. 46.
63
O ser humano pertence a uma comunidade política (ser genérico/social/coletivo) e à
sociedade civil (ser particular/privado/individual). A religião pertence à sociedade civil, ao
mundo privado. Por isto, para Marx, “a emancipação política representa, sem dúvida, um
grande progresso. Não constitui, porém, a forma final de emancipação humana, mas é a
forma final de emancipação humana dentro da ordem mundana até agora existente”.
229
Por
isto, “o homem emancipa-se politicamente da religião, ao bani-la do direito público para o
direito privado”.
230
No entanto, diz Marx que “a emancipação política não abole, nem
sequer procura abolir, a religiosidade real do homem”.
231
É importante ressaltar este
aspecto em Marx: a religiosidade faz parte da vida do ser humano. Para que aconteça
emancipação política, nem o judeu, nem o cristão precisam deixar a sua religião.
É interessante perceber que Marx tem uma visão pluralista do ser humano. “A
desintegração do homem em judeu e cidadão, protestante e cidadão, homem religioso e
cidadão, não é uma fraude praticada contra o sistema político, nem sequer um subterfúgio
da emancipação política. É a própria emancipação política, o modo político de se
emancipar a religião”.
232
A cidadania pertence a todas as pessoas, sendo direito e dever,
independentemente da sua religião. Marx afirma: “A diferença entre o homem religioso e o
cidadão é a diferença entre o comerciante e o cidadão, entre o jornaleiro e o cidadão, entre
o proprietário de terras e o cidadão, entre o indivíduo vivo e o cidadão”.
233
O autor
entendia que “a cisão do homem em pessoa pública e pessoa privada, o deslocamento da
religião do Estado para a sociedade civil, não é uma fase, mas a consumação da
emancipação política”.
234
Marx mostra-se extremamente positivo e até certo ponto
reducionista. Sabe-se, hoje, que o deslocamento da religião do Estado para a vida privada
foi um momento importante na emancipação política, mas não a consumação da
emancipação política, principalmente quando se lembra o processo de emancipação das
mulheres. É importante ressaltar que a religião também tem uma dimensão política, que se
mostra na solidariedade com a luta dos e das pobres, onde eles e elas se tornam artífices da
história.
229
Karl MARX, A questão judaica, p. 47.
230
Karl MARX, A questão judaica, p. 47
231
Karl MARX, A questão judaica, p. 48.
232
Karl MARX, A questão judaica, p. 48
233
Karl MARX, A questão judaica, p. 46.
234
Karl MARX, A questão judaica, p. 47-48.
64
A emancipação humana, portanto, envolve e supera a emancipação política. Marx,
no entanto, reconhece: “A emancipação política representa, sem dúvida, um grande
progresso. Não constitui, porém, a forma final de emancipação humana até agora
existente”.
235
A emancipação humana envolve uma revolução permanente. Para Marx: “O
Estado democrático, o Estado real, não necessita da religião para a sua consumação
política”.
236
A religião pertence ao mundo privado, ser humano particular. Marx diz: aquilo
que prevalece no Estado cristão não é “o homem, mas a alienação
237
, enquanto que no
Estado democrático a base não é o cristianismo, mas a base humana do cristianismo.
238
No
Estado o cidadão passa a ser visto como um sujeito livre e autônomo. Pode-se dizer que o
Estado democrático é a realização profana da base humana da religião.
239
“Os membros do
Estado político são religiosos por causa do dualismo entre a vida individual e a vida
genérica, entre a vida da sociedade civil e a vida política”.
240
A religião particular (confessional) não pode se sobrepor ao Estado, e sim à atuação
política, que se estende a todos os cidadãos e não cristãos. A religião pertence ao ser
humano particular. “A religião permanece como a consciência ideal, não secular, dos seus
membros, porque é a forma ideal do estádio evolutivo humano, que se atingiu”.
241
Marx é
extremamente positivo em relação à religião, apresentando-a como a consciência ideal, a
forma ideal na evolução humana, não secular. A religião revela essencialidades humanas,
trazendo propostas nas relações entre as pessoas; por isto Marx ressalta a importância da
base humana do cristianismo no Estado democrático.
242
(...) a emancipação política da religião deixa ficar a religião na existência, embora já não se
trate de uma religião privilegiada. A contradição em que o adepto de uma religião
particular se encontra quanto à sua cidadania é apenas uma parte da universal contradição
secular entre o Estado político e a sociedade civil. A consumação do Estado é o Estado
que se reconhece simplesmente como Estado e abstrai da religião dos seus membros. A
emancipação do Estado a respeito da religião não é a emancipação do homem real quanto à
religião.
Por conseguinte, não dizemos aos judeus como Bauer: não podeis emancipar-vos
politicamente sem de todo vos emancipardes do judaísmo. Dizemos antes: porque podeis
235
Karl MARX, A questão judaica, p. 49.
236
Karl MARX, A questão judaica, p. 51.
237
Karl MARX, A questão judaica, p. 52.
238
Karl MARX, A questão judaica, p. 52.
239
Rosalvo SCHÜTZ, Limites da emancipação política, p. 93.
240
Karl MARX, A questão judaica, p. 52.
241
Karl MARX, A questão judaica, p. 53.
242
Este é o argumento central dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso (PCNER). Sugiro
a leitura do texto de Evaldo Luiz PAULY, O dilema epistemológico do Ensino Religioso, no qual o autor
argumenta de forma diferente.
65
emancipar-vos, politicamente, sem renunciar por completo e de modo absoluto ao
judaísmo, é que a emancipação política em si não é a emancipação humana.
243
A emancipação política é a redução do ser humano, de um lado, a membro da
sociedade civil e, de outro, a cidadão do Estado. Assim sendo, a emancipação política em
si não é a emancipação humana. Marx coloca a seguinte questão: “Mas se o homem,
embora judeu, pode ser politicamente emancipado e obter direitos civis, poderá ele exigir e
alcançar os chamados direitos do homem?
244
Bauer diz que não”.
245
Marx, no entanto, argumenta dizendo: “A idéia dos direitos do homem só foi
descoberta no mundo cristão no último século. Não é uma idéia inata ao homem, pelo
contrário, foi conquistada na luta contra as tradições históricas em que o homem foi
educado até agora”.
246
Marx reconhece que os direitos do homem são resultado da luta, da
reivindicação de homens e mulheres contra as tradições históricas. Ele afirma: “Os direitos
do homem são, em parte, direitos políticos, que só podem exercer-se quando se é membro
de uma comunidade. O seu conteúdo é a participação na vida da comunidade, na vida do
Estado”.
247
Os direitos do ser humano estão interligados com a participação na vida da
comunidade e do Estado. Estes direitos se inserem “na categoria de liberdade política, de
direitos civis
que, (...), não pressupõem de nenhum modo a abolição consistente e positiva
da religião; nem por conseguinte do judaísmo”.
248
Marx faz uma distinção entre os direitos do homem e os direitos do cidadão: “Entre
eles, encontra-se a liberdade de consciência, o direito de praticar a religião que se escolher.
O privilégio da fé é expressamente reconhecido, ou como conseqüência de um direito do
homem, isto é da liberdade”.
249
O autor prossegue: “Os direitos do homem, enquanto
distintos dos direitos do cidadão, constituem apenas os direitos de um membro da
243
Karl MARX, A questão judaica, p. 53.
244
A Revolução Francesa declarou os direitos do homem e os direitos do cidadão em 1789. A reflexão crítica
de Marx se dirige a estas declarações. Por isso, mantenho o termo “homem”, pois as mulheres não estavam
incluídas; por isso, Olympe de GOUGES escreveu uma Declaração dos direitos da mulher e da cidadã
(setembro de 1791). No Art. I – afirma “A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As
distinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum.”
245
Karl MARX, A questão judaica, p. 53.
246
Karl MARX, A questão judaica, p. 54.
247
Karl MARX, A questão judaica, p. 54.
248
Karl MARX, A questão judaica, p. 54-55.
249
Karl MARX, A questão judaica, p. 55.
66
sociedade, isto é, do homem egoísta, do homem separado dos outros homens e da
comunidade”.
250
Marx, portanto, faz uma crítica aos direitos do homem que consistem em
igualdade, liberdade, segurança e propriedade.
251
Ele lembra que “a liberdade é o direito
de fazer tudo o que não cause dano aos outros. (...) Trata-se da liberdade do homem
enquanto mónada isolada, retirado para o interior de si mesmo”.
252
Segundo Marx,
a aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito humano à propriedade
privada. (...) O direito humano da propriedade privada, portanto, é o direito de fruir da
própria fortuna e de dela dispor como se quiser, sem atenção pelos outros homens,
independentemente da sociedade. É o direito do interesse pessoal. Esta liberdade individual
e a respectiva aplicação forma a base da sociedade civil. Leva cada homem a ver nos outros
homens, não a realização, mas a limitação da sua própria liberdade.
253
No decorrer da sua exposição, Marx vai deixando claro como os direitos do homem
são direitos individualistas e egoístas. “A igualdade não possui significado político. É
apenas o igual direito à liberdade como antes foi definido; a saber, todo o homem é
igualmente considerado como mónada auto-suficiente”.
254
A segurança, segundo Marx,
constitui o conceito social supremo da sociedade civil e burguesa, o conceito da polícia,
segundo o qual toda a sociedade somente existe para garantir a cada um de seus membros a
conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade.
255
O conceito de
segurança não faz com que a sociedade se sobreponha a seu próprio egoísmo; pelo
contrário, é a preservação deste. Nenhum dos chamados direitos do homem ultrapassa o
egoísmo do homem, membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si
mesmo, para seu interesse particular, em sua arbitrariedade privada e dissociado da
comunidade.
256
Marx prossegue fazendo uma crítica aos libertadores políticos que reduzem
a cidadania à comunidade política. Ele diz:
O assunto torna-se ainda mais incompreensível ao observarmos que os libertadores
políticos reduzem a cidadania, a comunidade política, a simples meio para preservar os
direitos do homem; e que, por conseqüência, o citoyen é declarado como servo do
“homem” egoísta, a esfera em que o homem age como ser genérico vem degradada para a
250
Karl MARX, A questão judaica, p. 56.
251
Esses direitos eram dirigidos, inicialmente, para os homens e proprietários. Só em 1948 são declarados os
direitos humanos, incluindo também as mulheres.
252
Karl MARX, A questão judaica, p. 56-57.
253
Karl MARX, A questão judaica, p. 57.
254
Karl MARX, A questão judaica, p. 57.
255
Karl MARX, A questão judaica, p. 58.
256
Karl MARX, A questão judaica, p. 56-58.
67
esfera onde ele actua como ser parcial; e que, por fim, é o homem como bourgeois e não o
homem como citoyen que é considerado como o homem verdadeiro e autêntico.
257
Criticando os libertadores políticos que reduzem a cidadania à comunidade política,
simplesmente para preservar os direitos do homem, Marx, na verdade, está criticando a
sociedade burguesa e o ser humano burguês. As constituições burguesas, portanto,
originárias das duas grandes revoluções políticas de fins do século XVIII – a americana e a
francesa – acabam apenas protegendo e definindo os direitos do burguês. Para Marx, os
direitos do homem não conduzem à emancipação humana, pois na sua base está a defesa
dos direitos individuais, particulares, faltando a visão de uma emancipação humana plena,
que visa ao ser humano genérico, isto é, social.
258
Marx apresenta uma visão integral de
emancipação que passa pelo ser humano particular e se estende até o ser humano genérico.
Toda a emancipação constitui uma restituição do mundo humano e das relações humanas
ao próprio homem.
A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil,
indivíduo independente e egoísta e, por outro, a cidadão, a pessoa moral.
A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver em si o
cidadão abstracto; quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas
suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico; e quando tiver reconhecido e
organizado as suas próprias forças (forces propres) como forças sociais, de maneira a
nunca mais separar de si esta força social como força política.
259
Para Marx, o conceito de emancipação restitui o mundo humano e as relações
humanas ao próprio ser humano. O individual precisa estar inter-relacionado e ser
interpenetrado pela dimensão social. Para a emancipação humana se realizar, é necessário
que o ser humano particular transcenda a sua visão egoísta de mundo, tornando-se um ser
genérico. O que significa ser um ser genérico? Significa que o ser humano individual tenha
presente em si a necessidade de todos os seres humanos; que a luta individual pelos
direitos humanos transforme-se em luta coletiva. Emancipação significa também uma
superação da dualidade do ser individual/particular e do ser social/genérico. É preciso
vencer o individualismo, o egoísmo que o capitalismo fez crescer nos seres humanos.
Como afirma Freire, a páscoa precisa se realizar. Emancipação humana plena, para Marx,
conduz para a construção integral e plena do ser humano e de uma nova sociedade.
257
Karl MARX, A questão judaica, p. 58-59.
258
Alceu Ravanello FERRARO, Políticas públicas em trabalho, educação e lazer, p. 62. “A emancipação
humana precisa atingir o plano das relações sociais e, por isso mesmo, o ser genérico, o ser humano
enquanto gênero.”
259
Karl MARX, A questão judaica, p. 63.
68
Para se realizar a emancipação humana, o ser humano necessita vencer a alienação
que se mostra na realização do trabalho. Como diz Marx, porquanto “o objeto que o
trabalho produz, o seu produto, se defronta como um ser alheio, como um poder
independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, se
fez coisa, é a objetivação do trabalho”.
260
O trabalhador está alheio aos produtos do seu
trabalho como se fossem objetos estranhos, que não lhe pertencem, pois estes não são para
suprir sua necessidade. O trabalhador perde neles parte da sua vida, não conseguindo
manifestar a sua capacidade criadora. A partir desta realidade, a própria vida não lhe
pertence, mas ao objeto. Porém, a alienação não se mostra apenas no resultado, mas no ato
da produção, dentro da atividade produtiva mesma.
Na sociedade capitalista, a própria atividade do trabalho deixa de ser do
trabalhador. O trabalhador permanece alienado na atividade do próprio trabalho.
O trabalho é exterior ao trabalhador, ou seja, não pertence a sua essência... O seu trabalho
não é portanto voluntário, mas compulsório, trabalho forçado. Por conseguinte, não é a
satisfação de uma necessidade mas somente um meio para satisfazer necessidades fora
dele. A sua alienidade emerge com pureza no fato de que,
tão logo exista coerção física ou
outra qualquer, se foge do trabalho como de uma peste. O trabalho exterior, o trabalho no
qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação...
261
O ato de produção/trabalho é entendido como atividade voltada contra o
trabalhador. Nas relações de produção, o trabalhador vende a sua força de trabalho, por isto
mesmo não pode se sentir realizado na sua atividade de produção. O trabalhador, portanto,
fica relegado a suas funções animais e em suas funções humanas só se sente ainda como
animal. Segundo Marx: “Finalmente, a exterioridade do trabalho aparece para o
trabalhador no fato de que o trabalho não é seu próprio, mas sim de um outro, que não lhe
pertence, que nele ele não pertence a si mesmo, mas a outro”.
262
Resumindo, de acordo com o autor, posso dizer que dois aspectos podem ser
considerados no ato de alienação da atividade humana prática, o trabalho:
1 A relação do trabalhador com o produto do trabalho como objeto alheio tendo poder
sobre ele. Esta relação é simultaneamente a relação com o mundo alheio que se lhe
defronta hostilmente.
2 A relação do trabalhador com o ato da produção dentro do trabalho. Esta relação é a
relação do trabalhador com a sua própria atividade como uma atividade alheia pertencente
a ele, a atividade como sofrimento, a força como impotência, a procriação como
260
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 149.
261
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 153.
262
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 153.
69
emasculação, a energia mental e física própria do trabalhador, a sua vida pessoal – pois o
que é vida senão atividade – como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente
dele, não pertencente a ele.
263
Isto significa que o ser humano perdeu a sua humanidade, virando apenas uma peça
da máquina, algo a ser explorado pelo capital, “ou seja quanto mais riqueza produz, menos
tem acesso a ela, a tal ponto de ver-se privado mesmo dos objetos mais necessários”.
264
Conforme Marx:
Na prática a universalidade do homem aparece precisamente na universalidade que faz da
natureza inteira o seu corpo inorgânico, tanto na medida em que ela é 1. Um meio de vida
imediato, quanto na medida em que é 2. A matéria, o objeto e o instrumento de sua
atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza na medida
em que ela mesma não é corpo humano. O homem vive da natureza, significa: a natureza é
o seu corpo,
com o qual tem que permanecer em constante processo para não morrer.
265
Marx entende o ser humano como ser integral, interligado com a natureza e com a
sociedade. O trabalho aliena o ser humano do produto do trabalho, do ato de produção,
levando para uma terceira alienação.
Na medida em que o trabalho alienado aliena do homem 1. a natureza e 2. a si mesmo, a
sua função ativa própria, a sua atividade vital, aliena do homem o gênero; lhe faz da vida
do gênero um meio da vida individual. Em primeiro lugar aliena a vida do gênero e a vida
individual, e em segundo lugar faz da última em sua abstração um fim da primeira,
igualmente na sua forma abstrata e alienada.
266
Marx afirma que “o trabalho alienado faz: do ser genérico do homem, tanto da
natureza quanto da faculdade genérica espiritual dele, um ser alheio a ele, um meio da sua
existência individual. Aliena do homem o seu próprio corpo, tal como a natureza fora dele,
tal como a sua essência espiritual, a sua essência humana”.
267
O trabalho deixa de ser um
ato criativo e passa a ser apenas um meio de subsistência. “Em geral, a proposição de que o
homem está alienado do seu ser genérico significa que um homem está alienado do outro,
tal como cada um deles da essência humana”.
268
Levando, em meu entender, para uma
quarta alienação: “uma conseqüência imediata do fato de o homem estar alienado do
263
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 153.
264
Avelino da Rosa OLIVEIRA, Marx e a liberdade, p. 84.
265
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 155.
266
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 155.
267
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 158.
268
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 158.
70
produto do seu trabalho, da sua atividade vital, do seu ser genérico, é o homem estar
alienado do homem”.
269
O ser humano se dá conta de que está alienado do seu semelhante quando consegue
se colocar frente a si mesmo. “Quando o homem está frente a si mesmo, então o outro
homem está frente a ele”.
270
Aquilo que vale para a relação do homem com o seu trabalho,
com o produto do seu trabalho, com seu ser genérico e consigo mesmo, isto vale para a
relação do ser humano com outro ser humano. Para Marx, as relações se medem pelo grau
de desenvolvimento humano daqueles que se relacionam entre si. Se o ser humano está
alienado, também as suas relações humanas sofrem alienação. Esta alienação termina em
confrontação das classes: a trabalhadora e a capitalista.
O resultado das diferentes faces da alienação que sofre o trabalhador é a
propriedade privada. “A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado, a
conseqüência necessária do trabalho exteriorizado, da relação exterior do trabalhador com
a natureza e consigo mesmo”.
271
De acordo com Marx,
o emancipar a sociedade da propriedade privada, etc., da servidão, se exprime na forma
política da emancipação dos trabalhadores, não como se tratasse apenas da emancipação
deles, mas porque na emancipação deles está contida a emancipação humana universal, e
esta está contida naquela porque a servidão humana inteira está envolvida na relação do
trabalhador com a produção e todas as relações de servidão são apenas modificações e
conseqüências desta relação.
272
A emancipação da sociedade se mostra na forma política da emancipação dos
trabalhadores. Marx acreditava que com a emancipação dos trabalhadores aconteceria a
emancipação humana universal. Segundo o autor:
A superação positiva da propriedade privada, enquanto apropriação da vida humana, é por
conseguinte a superação positiva de toda a alienação, portanto o retorno do homem desde
religião, família, Estado, etc., à sua existência humana, isto é, social. A alienação religiosa
como tal só se desenrola no terreno da consciência, do interior do homem, mas a alienação
econômica é a vida efetivamente real – a sua superação abrange por conseguinte ambos os
lados.
273
269
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 158.
270
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 158.
271
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 161.
272
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 162.
273
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 170.
71
A superação da alienação se encontra na superação da propriedade privada,
enquanto apropriação da vida humana.
274
Somente assim o ser humano poderá retornar à
religião, à família, ao Estado, à sua existência humana e social. Para Marx, “o conceito de
emancipação surge da crítica social, e a práxis emancipativa é encaminhada por
movimentos revolucionários”.
275
A emancipação é, antes de mais nada, uma “emancipação
política dos trabalhadores”, embora se estenda a todos os âmbitos da realidade social. Marx
tem como ideal de ser humano emancipado o ser onilateral (total, integral). De acordo com
o autor:
O homem se apropria da sua essência onilateral, de uma maneira onilateral, logo como um
homem total. (...) A apropriação da realidade efetiva humana, o seu comportamento
perante o objeto é o exercício da realidade humana; eficácia humana e sofrimento humano,
pois tomado humanamente o sofrimento é um autoconsumo do homem.
276
O ser integral é um ser relacional. É na relacionalidade humana que o ser humano
vai se constituindo enquanto ser emancipado. A emancipação, portanto, é também o
processo de recuperação da humanidade do próprio ser humano, como ser
genérico/universal e particular.
Como consciência do gênero o homem confirma a sua vida social real e apenas repete a
sua existência efetivamente real no pensar, tal como inversamente o Ser do gênero se
confirma na consciência do gênero e é para si em sua universalidade como ser pensante.
O homem – por mais que seja por isto um indivíduo particular, e exatamente a sua
particularidade faz dele um indivíduo e um ser comunitário individual efetivamente real – é
igualmente a totalidade, a totalidade ideal, a existência subjetiva da sociedade sentida e
pensada para si, assim como ele também existe na realidade efetiva tanto como intuição e
fruição efetivamente real da existência social quanto como uma totalidade da manifestação
humana da vida.
277
Ao mesmo tempo, a emancipação é também o processo de recuperação de relações
solidárias e éticas entre o homem e a mulher, das pessoas entre si, com a natureza, numa
visão de totalidade e de integralidade. O processo de emancipação do desenvolvimento
histórico é também o do desenvolvimento humano.
274
Como é possível perceber, a sociedade burguesa produziu certas liberdades, mas criou outras coações,
como a alienação do trabalho e a propriedade privada dos meios de produção. A partir dessa colocação é
possível perceber uma concordância entre Marx e Lutero na superação do capitalismo, ainda que por razões
diferentes. Lutero como teólogo afirma em seu livro Da autoridade secular, p. 99, que “a fé é um ato livre,
ao qual não se pode coagir a ninguém”.
275
Marciano VIDAL, verbete Emancipação, p. 205
276
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 173.
277
Karl MARX, A consciência revolucionária da história, p. 172.
72
Resumindo, para Marx, a emancipação nasce de uma consciência “reivindicativa”.
Com a conscientização da situação de “alienação”, surge a decisão de emancipar-se. Ela
consiste na “auto-emancipação” do proletariado pela luta revolucionária. A emancipação
tem o caráter de “classe” e está vinculada à consciência de classe.
278
A emancipação
humana, no entanto, é maior que a emancipação política. A emancipação humana visa à
libertação da propriedade privada e de todas as estruturas injustas e à construção,
coletivamente, de uma nova sociedade e do ser humano onilateral, sendo sempre um
processo coletivo, dialético e ético.
1.6 Autonomia racional: fazer uso da própria palavra
Marx amplia o conceito de emancipação da razão elaborado por Kant, o qual define
o Iluminismo como processo de emancipação. Kant inicia a sua reflexão respondendo à
pergunta: Que é o Iluminismo?
279
E ele mesmo responde:
O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A
menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal
menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na
falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere
aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento!
280
O ser humano é considerado culpado pela sua menoridade. O que significa
menoridade? O termo menoridade no alemão é Unmündigkeit
281
, que significa a condição
de menor de idade, imaturo, dependente, que não pode fazer uso da sua palavra. Para Kant,
a menoridade não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem
em fazer uso da sua própria palavra. Ele diz:
É tão cômodo ser menor. Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um diretor
espiritual que tem em minha vez consciência moral, um médico que por mim decide a
dieta, etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando
posso simplesmente pagar, outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida.
282
Segundo Kant, é mais fácil ser menor, porque outros fazem as coisas em meu favor.
Por que eu vou pensar, se outros podem fazer isso por mim? Ele também coloca que a
relação de pagamento faz os outros pensarem por mim: pagando, outros empreenderão a
tarefa de pensar.
278
Marciano VIDAL, verbete Emancipação, p. 204-205.
279
Immanuel KANT, A paz perpétua e outros opúsculos, p. 11. Este texto de Kant é de 1784.
280
Immanuel KANT, A paz perpétua e outros opúsculos, p. 11. (O grifo é meu).
281
Veja o texto de Jorge LARROSA, Sujetos e identidades en Filosofia, p. 3.
282
Immanuel KANT, A paz perpétua e outros opúsculos, p. 11-12.
73
O autor continua a reflexão afirmando que a passagem para a maioridade é difícil,
penosa e até considerada perigosa. Kant salienta:
Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à
maioridade difícil e também muito perigosa, é que os tutores de boa vontade tomaram a
seu cargo a superintendência deles.
É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tornou quase
uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente incapaz de se servir do seu
próprio entendimento, porque nunca se lhe permitiu fazer uma tal tentativa. (...) São, pois,
muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação do seu espírito
arrancar-se à menoridade e iniciar então um andamento seguro.
283
A passagem do estado de menoridade para o de maioridade é uma travessia difícil,
até considerada perigosa. A palavra antônima de Unmündigkeit, menoridade, é Mündigkeit,
maioridade, que pode ser traduzida por condição de maior de idade, emancipação,
conservando desta forma o sentido jurídico da palavra que a define como libertação da
tutela, reconhecimento da capacidade para tomar as próprias decisões (autonomia),
plenitude dos direitos. O ser humano alcança a Mündigkeit, a maioridade, isto é, a
capacidade de “fazer uso da palavra, falar por si mesmo”, quando consegue fazer uso do
entendimento, da razão sem a tutela de um outro, realizando a vocação de pensar por si
mesmo.
284
Para alcançar a maioridade, diz Kant, “nada mais se exige do que a liberdade; e
claro está, a mais inofensiva entre o que se pode chamar liberdade, a saber, a de fazer uso
público da própria razão, com liberdade”.
285
No entanto, o uso público da razão só é
acessível ao mundo letrado, geralmente, aos homens livres e proprietários. Kant parece não
excluir as mulheres do processo de alcançar a maioridade. No entanto, ele nomeia as
mulheres como “o belo sexo”, e isto tem conseqüências para o alcance da maioridade.
No texto As observações sobre o sentimento do belo e do sublime de 1764, o
filósofo afirma que o sentimento do belo refere-se às mulheres e o sentimento do sublime,
aos homens. Kant classifica os sentimentos, criando uma hierarquia entre os mesmos. Ele
coloca o sublime/masculino acima do belo/feminino. Ele diz:
Em relação às qualidades morais, apenas a verdadeira virtude é sublime. (...) A mulher
possui um forte sentimento inato por tudo o que é belo, gracioso e ornado. (...) O belo
entendimento elege como objeto tudo aquilo que é muito aparentado com o sentimento
refinado, e abandona especulações ou conhecimentos abstratos – úteis, porém áridos – ao
283
Immanuel KANT, A paz perpétua e outros opúsculos, p. 12. (O grifo é meu).
284
Immanuel KANT, A paz perpétua e outros opúsculos, p. 12-13.
285
Immanuel KANT, A paz perpétua e outros opúsculos, p. 13.
74
entendimento diligente, sólido, profundo. Por isso, a mulher não aprenderá geometria
(...).
286
O sentimento do belo é um belo entendimento, enquanto que o sentimento do
sublime é um entendimento profundo. As características naturais, isto é, consideradas
inatas, atribuídas à mulher (belo, gracioso e ornado) a incapacitam, no entanto, para o agir
moral autêntico. Carvalho ressalta que para Kant a mulher sempre é colocada como menor:
“As crianças são por natureza menores e seus pais são seus tutores naturais. A mulher,
qualquer que seja a sua idade, é declarada civilmente menor; o marido é seu curador
natural”.
287
Para entender melhor o que leva o autor a não reconhecer que as mulheres possam
ter personalidade civil, é interessante, segundo Carvalho, ver o que ele escreve na
“Doutrina do Direito”, sob o título O direito político, onde faz uma distinção entre
cidadania ativa e cidadania passiva. São cidadãos ativos aqueles que têm liberdade de
escolher segundo a sua própria vontade. Esta é a característica que determina a distinção
entre cidadão ativo e cidadão passivo.
288
Para Kant, as mulheres são consideradas menores;
isto significa que elas não têm condições de escolher por sua própria vontade: por isso
necessitam da tutela do pai ou do marido. As mulheres, portanto, sendo menores, estão
excluídas da emancipação racional, da vocação para o pensamento livre. Segundo
Carvalho, “a desvalorização da dimensão sensível da existência operada por Kant, para a
construção do sistema ético puro, leva-o a não reconhecer a capacidade moral das
mulheres, uma vez que o filósofo as identifica com a dimensão por ele desvalorizada”.
289
O processo de saída da menoridade, da situação de tutela para a entrada e a
apropriação da maioridade é conceituado como emancipação, sendo o uso da própria razão
o ponto principal. Percebe-se que emancipação é um processo histórico. Kant entende o
marco histórico do Iluminismo como a passagem da infância para a idade adulta e como a
conquista da autonomia humana. Pode-se conceituar como autonomia a capacidade de
pensar por si mesmo, dizer a sua própria palavra, a “vocação para o pensamento livre
290
, o
alcance da maioridade. Em resumo, o ideal de emancipação humana propagado por Kant
era o uso da razão autônoma tanto na existência pessoal como na vida social. Tudo, no
286
Immanuel KANT, Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, p. 30-49.
287
Maria de Penha Felício dos Santos de CARVALHO, As observações kantianas sobre o belo sexo, p. 61.
288
Maria de Penha Felício dos Santos de CARVALHO, As observações kantianas sobre o belo sexo, p. 61.
289
Maria de Penha Felício dos Santos de CARVALHO, As observações kantianas sobre o belo sexo, p. 66.
290
Immanuel KANT, A paz perpétua e outros opúsculos, p. 19.
75
entanto, é visto a partir da racionalidade, onde o belo, o sensível não tem espaço. Para o
autor, “a emancipação consiste no uso antropológico e político da autonomia racional”
291
,
isto é, no uso da razão no sentido público e privado, dessacralizando as instituições sociais.
Kant é um dos primeiros a trazer para o campo da reflexão filosófica o termo
“emancipação”, que tem sua origem no campo jurídico.
Em sua obra Sobre a pedagogia, o autor afirma que o ser humano é o que a
educação faz dele. “Uma vez que as disposições naturais do ser humano não se
desenvolvem por si mesmas, toda educação é uma arte”.
292
A pedagogia necessita estar
submetida à ciência, em lugar do mecanicismo, senão, como afirma Kant, “uma geração
poderia destruir tudo o que uma anterior tivesse edificado”.
293
O fim da educação é a idéia
de humanidade e seu destino. Conforme Kant, pela educação o ser humano deve alcançar o
seguinte:
1. Ser disciplinado. Disciplinar quer dizer: procurar impedir que a animalidade prejudique
o caráter humano, tanto no indivíduo como na sociedade. Portanto, a disciplina consiste em
domar a selvageria.
2. Tornar-se culto. A cultura abrange a instrução e vários conhecimentos. A cultura é a
criação da habilidade e esta é a posse de uma capacidade condizente com todos os fins que
almejamos. (...)
3. A educação deve também cuidar para que o homem se torne prudente, que ele
permaneça em seu lugar na sociedade e que seja querido e tenha influência. A essa espécie
de cultura pertence aquela chamada propriamente de civilidade. (...)
4. Deve, por fim, cuidar da moralização. Na verdade, não basta que o homem seja capaz de
toda sorte de fins; convém também que ele consiga a disposição de escolher apenas os bons
fins. (...)
294
A formação do sujeito depende do domínio de sua natureza interior, ou seja, a
liberdade pressupõe coação. Aqui entra o clássico paradoxo kantiano.
Um dos maiores problemas da educação é o poder de conciliar a submissão ao
constrangimento das leis com o exercício da liberdade. Na verdade, o constrangimento é
necessário! De que modo, porém, cultivar a liberdade?
295
Kant afirma a idéia da autonomia racional e do ser humano como construtor de si
mesmo, afirmando a racionalidade e a subjetividade, cultivando a liberdade. Na
Pedagogia, o autor expõe o necessário, gradual e contínuo acompanhamento da criança
291
Immanuel KANT, A paz perpétua e outros opúsculos, p. 19.
292
Immanuel KANT, A paz perpétua e outros opúsculos, p. 21.
293
Immanuel KANT, Sobre a pedagogia, p. 21.
294
Immanuel KANT, Sobre a pedagogia, p. 25-26.
295
Immanuel KANT, Sobre a pedagogia, p. 32-33.
76
para torná-la capaz de atos livres. No entanto, é necessário deixar claro que Kant está aqui
pensando no homem livre, cidadão e proprietário, sendo que mulheres, crianças e escravos
estão excluídos. As mulheres estão excluídas da emancipação, da autonomia, da razão
ilustrada, não sendo consideradas sujeitos morais e tampouco cidadãs ativas.
Neste sentido, Prestes traz para a reflexão a questão da educação e racionalidade,
salientando o seguinte:
A pretensão de validade da educação de formar sujeitos capazes de autonomia moral e
intelectual funda-se na razão auto-esclarecedora e no princípio da subjetividade, presentes
no discurso da modernidade. Esta formula-se como uma tentativa de autonomia da
humanidade em contraposição a todas as heteronomias. Enquanto expressão da
possibilidade de educação do gênero humano, a modernidade gerou teóricos que
tematizaram a educação. Entre eles, destacam-se Rousseau com o clássico Émile,
Pestalozzi com Leonard et Gertrude e inclusive Kant, com sua obra tardia Pedagogia. Em
todos, a idéia de educação para uma vida social adequava-se à orientação geral do
iluminismo.
296
A Revolução Francesa, com os seus ideais de Liberdade, Fraternidade e Igualdade,
pregou a construção de nova sociedade, através da ascensão da burguesia. No entanto, a
concretização desta nova sociedade, apesar de as mulheres lutarem juntas para a conquista
do poder, destinou-se, mais uma vez, somente à metade da população: homens e
proprietários. É interessante também perceber que a idéia de educação que brotou nesse
período histórico era de diferenciação entre os homens e as mulheres.
Rousseau, o principal ideólogo da Revolução, dizia: O mundo masculino é, por
natureza, o mundo externo, e o feminino, o mundo interno. Segundo Rousseau, que além
de filósofo é considerado também um grande pedagogo, a mulher deveria ser educada e
encontrar sua realização “natural” colocando-se a serviço do homem, desde a infância até a
idade adulta. Ele defendeu uma educação diferenciada para Emílio e Sofia, baseado na
“natureza das mulheres”, especialmente no livro V de Emílio ou Da educação, dedicado a
A educação de Sofia.
297
Segundo Rousseau:
Da boa constituição das mães depende em primeiro lugar a boa constituição das crianças;
do cuidado das mulheres depende a primeira educação dos homens; das mulheres
dependem também seus costumes, suas paixões, seus gostos, seus prazeres, sua própria
felicidade. Assim, toda a educação das mulheres deve ser relativa aos homens.
298
296
Nadja Hermann PRESTES, Educação e racionalidade, p. 35-36.
297
Jean-Jacques ROUSSEAU, Emílio ou Da educação, p. 491ss.
298
Jean-Jacques ROUSSEAU, Emílio ou Da educação, p. 502.
77
Rousseau e Kant, pensadores de grande influência na sociedade ocidental, excluem
a mulher do processo de emancipação racional. Eles relegam a mulher a um ser de segunda
categoria, sem autonomia e liberdade, destinada ao casamento, à maternidade e ao cuidado
dos filhos. Pestalozzi, que se inspira em Lutero e em Rousseau, também coloca Gertrudes
como esposa e mãe ideal, uma figura angelical, sensata, uma heroína, a guardiã da
moral.
299
Em relação às argumentações de Rousseau, contrapõe-se Wollstonecraft com a sua
obra Vindication of the Rigths of Woman
300
, na qual defende uma educação igualitária para
homens e mulheres, visando à cidadania plena das mulheres, reconhecendo-as como
sujeitos éticos autônomos.
301
O próprio título da obra da autora: Reivindicação dos direitos
da mulher mostra que a Revolução Francesa e os seus ideólogos não consideraram as
mulheres cidadãs portadoras de direitos. A obra de Wollstonecraft, segundo Amorós, se
afirma no eixo emancipatório, “y podría ser interpretada como una radicalización de la
invitación al sapere aude! y a la autonomía en clave ontológica: atrévete a asumir tu
libertad!”
302
As mulheres encontravam-se em situação semelhante à dos escravos, o que era
garantido pela lei e reforçado pela religião.
303
Desaive constata que na pregação católica e
protestante as virtudes femininas eram consideradas e proclamadas como inatas.
Doçura, compaixão e amor materno fazem parte das virtudes inatas do sexo feminino. Às
mulheres cabem, portanto, as obras da misericórdia e caridade, o cuidado dos doentes, dos
pobres e dos velhos; a elas que têm os filhos, cabe-lhes a responsabilidade pela sua
primeira educação, pela sua instrução religiosa e pelas regras do saber viver; a elas
também, confinadas à casa e reinando no universo doméstico, cabe ainda a boa gestão do
lar, as ocupações úteis e um olhar vigilante sobre a domesticidade.
304
Segundo Perrot
305
, durante todo o século XVIII, foi se operando uma distinção forte
entre o que pertencia à esfera do público e o que pertencia à esfera do privado na vida das
pessoas, colocando em oposição homens (públicos) e mulheres (domésticas/privadas).
299
Alessandra ARCE, A imagem da mulher nas idéias educacionais de Pestalozzi, p. 8.
300
Consulte Mary WOLLSTONECRAFT, Vindication of the Rights of Woman, 1983.
301
Henry N. BRAILSFORD, Shelley, Godwin y su círculo, especialmente capítulo VII, Mary Wollstonecraft
, p. 161. “El mérito principal de Vindication es su clara percepción de que en el futuro de la mujer todas las
cosas dependen de la revisión de la actitud de los hombres hacia las mujeres y las mujeres hacia sí mismas.”
302
Célia AMORÓS, Tiempo de feminismo, p. 385.
303
Henry N. BRAILSFORD, Shelley, Godwin y su círculo, p. 151-152.
304
Jean Paul DESAIVE, As ambigüidades do discurso literário, p. 304-305.
305
Michelle PERROT, A família triunfante, p. 93-104.
78
Hunt afirma que, ao final do século XVIII, a mulher era representada como o inverso do
homem e passou a ser identificada por sua sexualidade. “O útero define a mulher e
determina seu comportamento emocional e moral. Na época, pensava-se que o sistema
reprodutor feminino era particularmente sensível, e que essa sensibilidade era ainda maior
devido à debilidade intelectual”.
306
No entanto, houve resistência, vozes de mulheres e homens apontaram para a
realidade dramática das mulheres, por exemplo o Marquês de Condorcet, Mary
Wollstonecraft e Olympe de Gouges. Além do que citei de Wollstonecraft, posso apontar
ainda para Condorcet, que, já em 1790, redigiu um projeto de instrução pública igualitária
para os dois sexos e uma proposta de extensão do direito de cidadania para as mulheres.
307
Olympe de Gouges, em 1791, publicou a primeira Declaração dos direitos da mulher e da
cidadã
308
, em contraposição aos direitos do homem, mesmo que isso lhe tenha custado a
morte na guilhotina, como já se mencionou anteriormente.
Portanto, emancipação para as mulheres também significa fazer uso público da
razão, ter direito ao processo de ensino-aprendizagem. Dizer a sua palavra, falar da sua
experiência de vida! Isto significa trazer as suas problemáticas, visões de mundo para a
reflexão teórica e prática, propondo mudanças, tornando-se sujeitas de suas histórias.
Quando a mulher faz uso público da razão, inicia também um processo de emancipação.
Ela exerce a sua cidadania, alcança autonomia, liberdade de pensamento e ação.
No Brasil, a herdeira da teoria de Wollstonecraft é a educadora Nísia Floresta
Brasileira Augusta (1810-1885), autora de importantes títulos sobre a mulher, professora e
fundadora de colégios para meninas, que muito contribuiu para o avanço da educação
feminina no Brasil. O primeiro livro que Nísia publicou é Direitos das mulheres e injustiça
dos homens. No período colonial quase não havia escolas no Brasil. A situação começou a
mudar aos poucos com a vinda da corte real, em 1808. A partir do sentimento comum de
que o século XIX representava para a sociedade burguesa o auge da civilização, todos
pareciam concordar – ainda que com interesses diversos – que não era mais possível
admitir que metade da população estivesse numa situação absurda de inferioridade.
306
Lynn HUNT, Revolução Francesa e vida privada, p. 50.
307
Jean-Antonio-Nicolas de Caritas CONDORCET, Esboço de um quadro histórico dos progressos do
espírito humano, p.176-203.
308
Consulte Olympe de GOUGES, Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, disponível em
http://www.direitoshumanos.usp.br/documentos históricos/declaracao, acesso em 28/03/2003.
79
Nísia defendeu, em seu livro Opúsculo humanitário
309
, a estreita relação entre o
cuidado com a educação feminina e o adiantamento de uma nação. Desde o início, a
educação feminina foi concebida a partir de uma visão romântica: educação baseada na
religião e na moral, voltada para estimular a dignidade e preparar a futura mulher para
assumir as funções de mãe e esposa junto à família. As mulheres recebiam apenas o ensino
primário e aprendiam a desenvolver as habilidades domésticas. As jovens de posses
continuavam recebendo educação em suas próprias casas por meio de preceptoras ou sob a
orientação dos pais. Nísia, no entanto, não avançou muito no que se refere às possíveis
mudanças nas condições de vida da mulher do seu tempo. A cultura geral serviria para
melhor preparar a mulher para assumir com responsabilidade o papel de mãe de família,
dentro de um rígido controle da moralidade. Na avaliação de Duarte,
ao enfatizar nos seus escritos as “virtudes naturais” da mulher, ao lhe atribuir uma ação
moralizadora diante da família e ao considerar a “educação moral” como a responsável
pela maior consciência dos seus deveres, a autora termina por contribuir também para a
construção e a cristalização de uma “mística feminina” que ocorria naquele momento e por
tocar as mesmas teclas de outros pensadores, em tudo contrários a uma ampla emancipação
da mulher. Segundo essa “mística”, o melhor destino era “viver sua feminilidade” e ter
como únicos sonhos ser apenas uma boa mãe e uma esposa perfeita, o que estreitava o
mundo feminino aos limites do lar.
310
Com argumentos semelhantes, também em Santa Catarina, os jornais viriam a
defender a instrução para as mulheres, pois “na constituição dos ‘homens melhores’ que
formariam a nação brasileira, além de freqüentarem a escola, era necessário que tivessem
uma formação no lar, e essa formação deveria ser ministrada por uma mãe instruída. Foi
dentro dessa filosofia que se reivindicou a educação pública para meninos e,
principalmente, para meninas”.
311
Portanto, a educação das mulheres visava em primeiro
lugar a formar a esposa e a mãe, e as primeiras escolas públicas não eram mistas, mas
separadas por sexo.
312
Percebe-se que a educação das mulheres foi vista com um sentido
utilitário em função da “constituição de homens melhores”. Besse, numa pesquisa sobre a
educação das mulheres entre os anos de 1914-1940, afirma: “Como mediadora entre o
velho e o novo, a educação feminina associava grandes doses de educação moral e de
disciplina social à instrução em conhecimentos e habilidades básicas. A tarefa atribuída à
309
Constância Lima DUARTE, A ficção didática de Nísia Floresta, p. 293.
310
Constância Lima DUARTE, A ficção didática de Nísia Floresta, p. 323.
311
Joana Maria PEDRO, Mulheres honestas e mulheres faladas, p. 45.
312
Joana Maria PEDRO, Mulheres do Sul, p. 278-321.
80
mulher era ‘civilizar’, ‘elevar’ e ‘redimir’ o mundo, não transformá-lo”.
313
A autonomia
racional, no decorrer da história, foi entendida de forma diferente para os homens e para as
mulheres, criando relações hierárquicas e de submissão.
1.7 Liberdade cristã: fé ativa no amor
Em seu livro Tratado sobre a liberdade cristã (1520), Martim Lutero chamou a
atenção para a liberdade cristã, a partir de duas afirmações aparentemente contraditórias:
“Um cristão é senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito. O cristão é um servo
oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito”.
314
Estas duas frases falam da liberdade do cristão e
da cristã.
315
Elas estão fundamentadas em 1 Co 9.19: “Embora, sendo livre de todos, fiz-me
escravo de todos” e em Rm 13.8: “A ninguém fiqueis devendo qualquer coisa, exceto que
vos ameis uns aos outros”.
316
Altmann diz que Martim Lutero, a partir do tratado sobre a liberdade cristã, esboça
seu conceito de liberdade em duas direções:
Uma na relação do ser humano com Deus, em que o ser humano se torna livre a partir da
ação gratuita de Deus que lhe concede a liberdade (justificação por graça mediante a fé);
outra na relação com seu semelhante, que passa a ser caracterizada por serviço
desinteressado. A pessoa cristã, que na fé é livre e não está sujeita a ninguém, no amor é
servidora de todas as demais pessoas e está sujeita a estas. Essa “servidão no amor” é o
exercício concreto da liberdade gratuita obtida por graça na fé. Ambas, liberdade e
“servidão como expressão da liberdade”, são irrestritas, totais e potencialmente universais
(“sacerdócio universal”, embora “dos crentes”).
317
A primeira frase se refere à liberdade alcançada através de Cristo pela fé. A fé em
Cristo liberta as pessoas da lei e da obrigação de seguir e cumprir leis e preceitos humanos.
A morte de Jesus as desobriga de fazer boas obras para conquistar a salvação. As pessoas
são libertadas por Cristo, na cruz, por isso estão livres de tudo e de todos (Jo 8.31-32).
Segundo Pauly, no primeiro momento, Lutero traz a dimensão espiritual da pessoa: a alma,
313
Susan K. BESSE, Modernizando a desigualdade, p. 142.
314
Martinho LUTERO, Tratado de Martinho Lutero sobre a liberdade cristã, p. 437.
315
Evaldo Luis PAULY, Ética, educação e cidadania, p. 158. “Lutero pretende provar sua tese
demonstrando que a contradição é evidente, caso se tome o termo cristão da primeira frase como tendo o
mesmo sentido lógico da segunda, o que não é o caso para Lutero. As duas frases não formam silogismo
lógico. Lutero considera o termo cristão da primeira proposição como a dimensão ‘espiritual’ da pessoa,
toma o segundo em sua dimensão ‘carnal’.” O autor sustenta essa exegese a partir da opção interpretativa que
supõe a influência da mística alemã na antropologia fundamental de Lutero. Consulte também Evaldo Luis
PAULY, As possibilidades de uma ética cidadã a partir do mundo do trabalho, p. 67-73.
316
Martinho LUTERO, Tratado de Martinho Lutero sobre a liberdade cristã, p. 437.
317
Walter ALTMANN, Lutero e libertação, p. 325.
81
cuja existência está assegurada pela palavra de Deus.
318
“Para a existência da alma basta a
Palavra de Deus. Diante dela, a alma nada pode além de receber tal Palavra por fé”.
319
Segundo Lutero, “só a fé, sem as obras, justifica, liberta e salva”.
320
Lutero assinala que “toda a Escritura de Deus está dividida em duas partes:
preceitos e promessas”.
321
Pauly afirma: “As leis mostram o que devemos fazer, mas não
dão força para fazê-lo. Ou seja, as leis levam ao desespero da impotência, a pessoa
percebe-se incapaz de cumprir as leis que lhe são exigidas pela autoridade divina, que,
neste caso, são ordens externas”.
322
O autor chama a atenção para a circunstância de que “a
passividade da alma é absoluta, partilhando com Deus a sua absoluta liberdade, sendo,
portanto, livre de todas as contingências”.
323
Lutero afirma: “Esta é a liberdade cristã,
nossa fé, que não faz que sejamos ociosos ou vivamos mal, mas que ninguém necessite da
lei ou de obras para a justiça e a salvação. Este é o primeiro poder da fé”.
324
A segunda frase se refere, segundo Lutero, “à pessoa exterior”.
325
Agora trata-se
“da pessoa carnal, do ser humano material, historicamente situado no mundo da
contingência”.
326
É importante deixar claro que não se trata de uma visão dualista de ser
humano, e sim da formulação clássica luterana; na concepção de Lutero, segundo Pauly,
“o cristão é justo e pecador ao mesmo tempo”.
327
Ebeling diz: “A liberdade que o cristão tem através da fé é, precisamente, liberdade
para a serviçalidade do amor. E serviçalidade do amor só existe na medida em que
acontece em liberdade”.
328
A serviçalidade do amor tem a preocupação com o bem-estar
das pessoas, com a sociedade e com o meio ambiente. Tudo que se faça em favor do
próximo, na visão de Lutero, refere-se a “serviços voluntários em favor e para o
melhoramento dos demais homens”.
329
Lutero, em sua conclusão, afirma “que a pessoa
318
Evaldo Luis PAULY, As possibilidades de uma ética cidadã a partir do mundo do trabalho, p. 68.
319
Evaldo Luis PAULY, Ética, educação e cidadania, p. 159.
320
Martinho LUTERO, Tratado de Martinho Lutero sobre a liberdade cristã, p. 439-440.
321
Martinho LUTERO, Tratado de Martinho Lutero sobre a liberdade cristã, p. 440.
322
Evaldo Luis PAULY, Ética, educação e cidadania, p. 159.
323
Evaldo Luis PAULY, Ética, educação e cidadania, p. 159.
324
Martinho LUTERO, Tratado de Martinho Lutero sobre a liberdade cristã, p. 441.
325
Martinho LUTERO, Tratado de Martinho Lutero sobre a liberdade cristã, p. 447.
326
Evaldo Luis PAULY, Ética, educação e cidadania, p. 160.
327
Evaldo Luis PAULY, As possibilidades de uma ética cidadã a partir do mundo do trabalho, p. 69.
328
Gerhard EBELING, O pensamento de Lutero, p. 168.
329
Martim LUTERO, Da liberdade cristã, p. 44.
82
cristã não vive em si mesma mas em Cristo e em seu próximo, ou então não é cristã. Vive
em Cristo pela fé, no próximo pelo amor”.
330
A liberdade e a “servidão como expressão da liberdade” estão ancoradas no amor
de Jesus. O reformador conclui dizendo: “O cristão não vive em si mesmo, mas em Cristo
e no próximo. Em Cristo pela fé e no próximo pelo amor. Pela fé o cristão se eleva até
Deus e de Deus se curva pelo amor; mas sempre permanece em Deus e no amor
divino...”.
331
De acordo com Forell:
A vida cristã é efetivamente uma vida de fé e amor; mas fé é a atitude do cristão frente a
Deus, e amor é a atitude do cristão frente ao próximo, que se segue da fé. Fé em Deus
através de Cristo é a pressuposição necessária para que amemos o nosso próximo, e ela é,
conseqüentemente, a fonte de toda a ética.
332
Para Lutero, portanto, a nova base para a ação ética está na “fé ativa no amor”.
333
Ele entende que os cristãos e as cristãs precisam atuar no mundo. A finalidade da ação dos
cristãos no mundo é o Besserung melhoramento. Em meados de 1520, escreveu também Á
nobreza cristã da nação alemã, acerca da melhoria do estamento cristão.
334
Ele propõe
que se deixem de lado a ostentação e o luxo, que se tenha controle sobre o comércio, que
se combata a usura, bem como que sejam fechadas as casas de prostituição. Segundo
Dreher, “essas sugestões de Lutero não são propostas de Reforma, mas de ‘melhoramento’,
pois Lutero não se compreendeu como reformador. A Reforma será obra de Deus”.
335
Melhorar o mundo significa cuidar do mundo de Deus e não fugir desse compromisso.
Assim vive-se a ética cristã, baseada na liberdade que se mostra na vivência da fé e do
amor. Segundo Altmann,
(...) Lutero pôde encarar o mundo de maneira mais dialética. (...) Assim, de um lado,
descobriu uma nova alegria de viver no mundo como criação de Deus. Desde as belezas da
natureza até as gostosuras de sua cerveja predileta, sem esquecer uma reavaliação ampla e
profunda da sexualidade humana, tudo lhe passou a ser maravilhas, das quais Deus, o
criador, lhe permitia participar livremente e de boa consciência. Lutero foi então
descobrindo espaços de vida até então desprezados como âmbitos preferenciais para a
atuação da pessoa cristã.
336
330
Martinho LUTERO, Tratado de Martinho Lutero sobre a liberdade cristã, p. 42-43.
331
Martin LUTERO, Da liberdade cristã, p. 48.
332
George W. FORELL, Fé ativa no amor, p. 85.
333
George W. FORELL, Fé ativa no amor, p. 85.
334
Martinho LUTERO, Á nobreza cristã da nação alemã, p. 277-340.
335
Martin DREHER, Entre a Idade Média e a Idade Moderna, p. 41.
336
Walter ALTMANN, Lutero e libertação, p. 35.
83
A partir de Lutero, cunha-se, inclusive, uma nova visão da atividade profissional,
correspondendo a uma vida secularizada. Surge um novo vocábulo, Beruf,
337
que significa
ofício, profissão, mas que também indica vocação. Altmann salienta que
(...) Lutero conferiu sentido vocacional à atividade profissional. (...) entendeu a profissão
não como um mal necessário, nem divisou seu sentido preponderante na busca de auto-
sustento – também presente, como é óbvio –, mas sobretudo como possibilidade de serviço
a outros.
338
Assim, surge uma nova visão de trabalho: pode-se servir a Deus na profissão
secular e não somente nos monastérios. Desta forma, surge uma inusitada disciplina do
trabalho que marca o luteranismo. Segundo Klug:
(...) A justificação mediante a fé e independente das boas obras passa agora a produzir um
novo tipo de boas obras, que por sua vez estão centradas nas necessidades reais das
pessoas. Esta valorização do trabalho, visto agora não mais como uma atividade
desprezível, esta “secularização” da vida cristã, deixou sua marca através dos séculos,
podendo ser identificada nos migrantes luteranos em Santa Catarina, especialmente no
período da imigração.
339
Lutero escreveu dois textos em relação à educação, com vistas ao melhoramento do
mundo: “Aos conselheiros de todas as cidades da Alemanha para que criem e mantenham
escolas cristãs” (1524) e “Uma prédica para que se mandem os filhos à escola” (1530), os
quais serão estudados com mais detalhes no segundo capítulo, especialmente no tocante à
interface entre religião e educação. No entanto, é preciso deixar claro que, para Lutero,
toda realização política seria nula, caso não fosse atendida a necessidade mais urgente, que,
na sua visão, era a educação da juventude.
340
Ele também defendeu a educação de meninas;
no entanto, em condições desiguais em relação aos meninos, considerando-se uma menor
carga horária e um currículo diminuído.
341
Lutero entendia que a mulher foi criada como
ajudante do homem, uma companheira de todas as coisas, particularmente para dar à luz
filhas e filhos.
342
Será esse o Beruf das mulheres, conforme o reformador? Fiorenza
337
Remeto ao texto de Max WEBER, A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, p. 71-83. Weber
afirma que o significado religioso do conceito Beruf, vocação, em Lutero, alterou-se, evoluindo para uma
dimensão secularizada. Por isso, não pode ser creditada a Lutero a ética do trabalho conforme o capitalismo a
desenvolveu. Por isso Weber dirige sua análise ao protestantismo calvinista, ao pietismo, ao metodismo e às
seitas batistas.
338
Walter ALTMANN, Lutero e libertação, p. 35.
339
João KLUG, A escola teuto-catarinense e o processo de modernização em Santa Catarina, p. 36. (O grifo
é do autor.)
340
Martinho LUTERO, Aos conselhos de todas as cidades, p. 325.
341
Martinho LUTERO, Aos conselhos de todas as cidades, p. 320.
342
Martinho LUTERO, Da vida matrimonial, p. 160ss.
84
questiona a compreensão da Igreja advinda da Reforma por essa não conseguir romper
com o viés androcêntrico no ministério eclesiástico, através do qual o celibato clerical foi
substituído pelo casamento patriarcal.
343
Para Deifelt, a justificação por graça e fé e a
dimensão escatológica do batismo não foram traduzidas numa eclesiologia e numa
antropologia que refletissem a reflexão teológica. Os teólogos da Reforma, segundo a
autora, repetiram os argumentos da ordem natural como ordem instituída por Deus para
explicar a desigualdade social entre homens e mulheres.
344
1.8 Interligando os fios teórico-conceituais
A teologia feminista da libertação aponta para a importância da diferença, tendo o
gênero como referencial de análise política e relacional. Na pedagogia da libertação,
encontra-se o processo de conscientização, que leva à humanização do ser humano,
transformando situações-limite em inéditos viáveis. Na teologia da libertação, assim como
na teologia feminista da libertação, a experiência é a chave hermenêutica. O novo da
teologia feminista da libertação é trazer para o âmbito do fazer e saber teológico a
experiência da mulher. A filosofia da libertação coloca a relação de alteridade, face a face,
como aspecto imprescindível para a libertação. Só na relação face a face é possível
recuperar a humanidade. É na relação face a face que o ser humano se revela.
O termo “libertação” foi amplamente utilizado pela teologia da libertação.
Libertação – entendida como consciência histórica ou como horizonte hermenêutico – não
é um conceito exclusivamente teológico.
345
O conceito de libertação tem uma origem
extrateológica determinável, a saber, a assim chamada “teoria da dependência”.
346
A
categoria “libertação” passa a constituir um correlato oposto à “dependência”.
347
“Libertação” implica não apenas um valor ético, a saber, a recuperação ou aquisição de
liberdade como “processo de despegamento da dependência e da liberdade para a
construção de uma convivência menos opressora e injusta”.
348
Libertação é uma ação
criadora de liberdade, “é uma palavra-processo, palavra-ação, intencionalmente orientada a
uma práxis que liberta de e para”.
349
Sujeitos dessa libertação só podem ser os próprios
343
Elisabeth S. FIORENZA, Discipulado de iguais, p. 47.
344
Wanda DEIFELT, Mulheres pregadoras, p. 362.
345
Luís Marcos SANDER, Jesus, o Libertador, p. 12.
346
Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da libertação, p. 78-83.
347
Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da libertação, p. 75.
348
Leonardo BOFF, Teologia do cativeiro e da libertação, p. 17.
349
Leonardo BOFF, Teologia do cativeiro e da libertação, p. 18.
85
povos oprimidos. O processo de libertação inclui, por um lado, o sacudimento de qualquer
tipo de servidão e, por outro, a criação de uma nova sociedade, na qual o ser humano
possa a ser sujeito ativo de suas próprias decisões.
350
O lugar do surgimento da teologia da
libertação é o encontro com o pobre. As teólogas feministas, então, fazem a sua crítica à
teologia da libertação chamando a atenção para o fato de que o pobre, num primeiro
momento, não foi definido. Elas defendem que a mulher pobre é a oprimida do oprimido;
sendo esta mulher negra e índia, ela é mais oprimida ainda: além da opressão de gênero e
classe social, é discriminada por sua etnia. Por isso, as teólogas feministas adotaram a
terminologia “teologia feminista da libertação”, tendo o gênero como instrumental de
análise; nessa perspectiva, além de analisarem a relação entre homem e mulher, também
refletem sobre a relação entre mulher e mulher, bem como a relação entre homem e
homem. Elas também afirmam que a teologia feminista da libertação precisa ser crítica ao
próprio processo de libertação.
A teologia da libertação aponta para a libertação integral do ser humano. Conforme
Altmann, o conceito libertação, empregado como eixo hermenêutico pela teologia da
libertação latino-americana, é herdeiro das tradições da Reforma e da esquerda hegeliana:
da Reforma, fazendo alusão freqüente à gratuidade da ação de Deus; da concepção
hegeliana da história (“esquerda hegeliana, sobretudo Karl Marx”), trazendo presente a
condição histórica da libertação humana.
351
Ainda segundo o mesmo autor, isto significa
que se amplia e se aprofunda a noção de mediações para a própria ação divina (dentro da
história, através de agentes históricos) e, de outra parte, se enfatiza o compromisso
histórico dos seres humanos em geral e das pessoas cristãs em particular com a libertação
enquanto processo.
352
Altmann diz que “ambos os conceitos, de liberdade e de história,
estão incorporados no conceito de ‘libertação’, num sentido hegeliano de superação
(Aufhebung)
.
353
O mesmo autor diz, em relação aos ideais da Revolução Francesa, que, por um
lado, estes ideais são incorporados e ampliados na luta da libertação: “são conquistas para
os indivíduos e, enquanto tais, expressão de avanço no processo de libertação, mas devem
350
Gustavo GUTIÉRREZ, Teologia da libertação, p. 87.
351
Walter ALTMANN, Lutero e libertação, p. 326-327,
352
Walter ALTMANN, Lutero e libertação, p. 327.
353
Walter ALTMANN, Lutero e libertação, p. 326-327.
86
ser ampliados para ser expressão de conquistas e garantias sociais da coletividade
humana”.
354
Altmann afirma ainda:
Atualmente, registra-se uma tendência de conjugar uma revalorização da faceta positiva da
relação com a tradição burguesa (democracia, liberdade, direitos humanos, feminismo),
como parte integrante e irrenunciável da luta por libertação, com a crítica profunda do
sistema econômico (capitalista) globalizado prevalente no mundo, que em nome da
liberdade destrói a base de subsistência e de qualidade de vida de contingentes
populacionais cada vez mais amplos do mundo (...).
355
A partir da tessitura desses diferentes fios conceituais, a presente pesquisa utilizará
o conceito emancipação, que envolve os processos históricos, sociais, políticos, pessoais,
educacionais, buscando a transformação da realidade pessoal e contextual, numa relação
dialética e coletiva. Emancipação humana só é possível quando se faz uma análise
profunda das relações de poder presentes nas interações humanas. No processo de
emancipação humana, é necessário valorizar a experiência como ponto de partida, em que
se busca respeitar a diferença. O gênero como instrumento de análise é importante nesse
processo, em que se analisam as relações de poder, verificando onde ocorre ou não a
emancipação humana. Além do mais, a emancipação humana vai além daquilo que foi
apregoado por Kant e por outros pensadores. Não é possível alcançar a emancipação
fazendo uso apenas da autonomia racional numa perspectiva individual kantiana. O termo
emancipação humana aponta para a complexidade da vida. Todos e todas precisam dizer a
sua palavra.
O termo “emancipação humana” nasce das profundas lutas sociais. Nesse sentido,
percebe-se a sua interligação com a pedagogia, teologia e a filosofia da libertação, sendo
que a pedagogia da libertação aponta para a superação das situações-limite, tornando-as
inéditos viáveis. O processo de libertação aponta para a necessidade da páscoa, como
processo de superação das relações de machismo, classismo e racismo e todos os outros
ismos. Emancipação humana é muito mais do que a conquista dos direitos humanos
individuais; ela aponta para as conquistas coletivas, onde a conquista da cidadania é um
primeiro momento desse processo libertador. Para acontecer a emancipação humana, é
necessário o uso responsável da liberdade.
O conceito de liberdade na teologia da libertação engloba a libertação social, sendo,
para Lutero, decorrente da liberdade pessoal. Neste sentido, o método dialético esboçado
354
Walter ALTMANN, Lutero e libertação, p. 327.
355
Walter ALTMANN, Lutero e libertação, p. 327.
87
no texto programático da Reforma Tratado de Martinho Lutero sobre a liberdade cristã,
do reformador Martim Lutero, nos mostra que a fé dá tudo em abundância. A fé em Cristo
liberta as pessoas da lei e da obrigação de seguir e cumprir leis e preceitos humanos.
Lutero nos desafia a sermos para nosso próximo uma pessoa cristã da maneira como Cristo
foi conosco. A liberdade cristã, através da fé, aponta para a serviçalidade do amor, e esta só
acontece quando existe liberdade. A serviçalidade do amor tem a preocupação com o bem-
estar das pessoas, não somente com aqueles e aquelas que estão próximos, mas com toda a
humanidade e, inclusive, com todo o planeta. Portanto, a fé ativa no amor leva a processos
de libertação, conduzindo à emancipação humana, já ocorrida ou a se realizar sempre de
novo.
Entendo que o conceito emancipação humana aponta para a experiência cotidiana
coletiva e individual como espaço da superação da opressão e da alienação, como o
processo histórico de libertação (antes, durante e depois) em que a pessoa emancipada vai
se tornando senhor ou senhora de seus próprios atos, de sua pessoa; livre, independente,
sendo esse processo pessoal e coletivo. Neste trabalho, intitulado “Recuperando espaços de
emancipação na história de vida de ex-alunas de escola luterana”, objetivo analisar e
verificar em que espaços as mulheres se tornaram pessoas emancipadas, livres, autônomas,
apresentando uma nova visão de mundo, família, igreja. Falo em “espaços de
emancipação”, porque os mesmos são construídos, desconstruídos e reconstruídos no
cotidiano histórico da experiência – na presente pesquisa, na interface entre educação
(escola comunitária) e religião (confessionalidade luterana).
88
II - PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO
Caminhante, são teus rastos
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se há de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar.
356
O segundo capítulo reflete o percurso teórico-metodológico, com o objetivo de
verificar espaços de emancipação conquistados ou não pelas mulheres com uma educação
recebida em uma escola comunitária luterana, a partir da narrativa da história de vida de
quatro ex-alunas. Não há um caminho pronto e acabado, como diz o poeta Antonio
Machado. O segredo está no caminho que alguém se dispõe a caminhar. Aprende-se numa
relação de alteridade, observando e dialogando com mulheres de diferentes gerações, para
entender e vivenciar melhor o presente, tendo como esperança um futuro com relações
mais amorosas, equilibradas e humanas no cotidiano.
O processo de conhecer a história de vida de diferentes gerações de mulheres com
formação escolar comunitária luterana suscitam perguntas e suspeitas entre a escola
comunitária e a confessionalidade luterana e a sua influência emancipadora ou não na vida
das ex-alunas. As perguntas e suspeitas são problematizadas e aprofundadas com os
referenciais teóricos e as descobertas que a perspectiva etnográfica, a teoria de gênero e a
hermenêutica feminista apontam, considerando a experiência como elemento-chave na
reflexão. Nesse processo, as histórias de vida apresentam-se como importantes ferramentas
metodológicas para um melhor conhecimento da trajetória de vida de ex-alunas,
valorizando a subjetividade, a memória e o cotidiano dessas mulheres.
356
Antonio MACHADO, Provérbios e Cantares, p. 158.
89
2.1 Ponto de partida: o processo de estranhamento e de ruptura
Estar sendo pastora e pastor em uma comunidade possibilita um contato intenso
com as pessoas, participando nos mais diferentes momentos da vida. A data do aniversário
é um momento celebrativo, um rito de passagem importante na vida pessoal. Sou pastora e
professora, meu esposo também é pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no
Brasil (IECLB). A presente pesquisa nasce a partir da realização de uma visita por ocasião
da celebração do aniversário de uma mulher chamada Anneliese, no dia 17 de março de
2002.
Quando eu e meu marido chegamos à casa de Anneliese, já estava anoitecendo. As
amigas, vizinhas e os familiares já se haviam retirado. Tivemos a alegria de termos a
companhia da aniversariante à mesa do café. Como pastora fiz uma oração agradecendo
pela vida de Annelise. Em torno da mesa, criou-se uma intensa comunhão com uma
animada conversa sobre a vida. Em determinado momento eu disse: “Anneliese, você está
fazendo 84 anos. Que idade bonita e abençoada.” Esta frase desencadeou em Anneliese a
coragem de relatar partes “guardadas” de sua história de vida, criando em nós, pastora e
pastor, um processo de estranhamento com aquela mulher que nos parecia tão familiar.
O processo de estranhamento
357
e de ruptura
358
se manifestaram na surpresa em
ouvir daquela mulher humilde, idosa, agricultora, viúva, participante ativa da Comunidade
Evangélica Luterana no Bairro Amizade, em Jaraguá do Sul, que anda de pés descalços
pelo bairro, que só coloca calçados quando vai à Igreja, quando vai passear ou fazer
compras, que tinha estudado na Escola Jaraguá, que havia ido para Timbó estudar na
Escola de Preparação para professores, tendo se profissionalizado e atuado como
professora em escolas comunitárias evangélicas luteranas, que fora proibida de lecionar de
forma drástica com o processo de nacionalização do ensino em 1938. Levanto aqui uma
pergunta. Será que Anneliese fez este recorte no relato de sua história de vida, porque,
naquele momento histórico, a pesquisadora, além de atuar como pastora, também atuava
como professora no Colégio Evangélico Jaraguá, encontrando aí um ponto de
identificação, recordando esta parte “ainda não revelada” da sua história de vida?
357
Roberto Da MATTA, em O ofício do etnólogo, p. 28, diz que só se tem a Antropologia Social quando se
tem o exótico e, a partir da distância social, se desemboca no estranhamento. O que o olhar antropológico faz
é “(a) transformar o exótico em familiar e ou (b) transformar o familiar em exótico.” Isto significa perceber a
“normalidade” das práticas culturais que nos parecem estranhas e “estranhar” as coisas que nos acostumamos
a considerar “normais”.
358
Pierre BOURDIEU; Jean-Claude CHAMBOREDON; Jean-Claude PASSERON, A profissão de
sociólogo, p. 23.
90
A vida daquela mulher que parecia tão familiar começou a se tornar estranha,
brotando um grande desejo de saber mais sobre a vida de Anneliese. Como ela se tornou
uma mulher agricultora, tendo sido professora? O que aconteceu em sua trajetória de vida?
Como sua história de vida ajuda a entender e a lançar novas luzes sobre a história das
mulheres?
A partir do estranhamento com a narrativa de Anneliese e do desassossego que a
mesma causou, comecei a construir o objeto de pesquisa da presente tese, pois na época
estava terminando o mestrado, a partir da seguinte pergunta: como as ex-alunas de escola
comunitária luterana conquistaram espaços de emancipação em suas vidas? No processo da
pesquisa, percebi que existem poucos registros escritos sobre a história de alunos e alunas
de escola comunitária luterana.
359
Sabe-se que só é possível avaliar as marcas que as interligações da educação e da
religião, através da educação em uma escola comunitária luterana, deixam na vida de uma
pessoa, a partir de um processo de observação e análise capaz de contemplar a vida em
longos períodos.
360
Ou seja, o questionamento que nasce da relação da escuta sensível e da
reflexão a partir da narrativa da ex-aluna de escola comunitária luterana colocou a autora
diante da necessidade de buscar instrumentos de pesquisa para uma avaliação longitudinal,
interligando religião (confessionalidade luterana) e escola (comunitária). A partir do
estranhamento do relato de vida de Anneliese, numa relação de alteridade, a própria
pesquisadora, que também é ex-aluna de escola comunitária luterana, iniciou um processo
de estranhamento com a sua própria história pessoal, buscando um reencontro com a sua
própria trajetória de vida.
Como afirma Ricoeur:
A manutenção de si é para a pessoa a maneira de comportar tal que o outro possa contar
com ela. Porque alguém conta comigo, eu sou responsável por minhas ações diante de um
outro. O termo de responsabilidade reúne as duas significações: contar com..., ser
responsável por... Ele as reúne, acrescentando aí a idéia de uma resposta: “Onde está
você?” indagada por outro que me solicita. Esta resposta é: “Eis-me aqui”. Resposta que
enuncia a manutenção de si.
361
359
Existem produções acadêmicas estabelecendo essa relação para o caso da religiosidade católica. Veja-se,
por exemplo, Arthur Blasio RAMBO, O teuto-brasileiro e sua identidade, p. 63-92.
360
O ex-professor de clínica pastoral da EST Christoph SCHNEIDER-HARPPRECHT, a partir do
aconselhamento pastoral, propôs estudo análogo para a sua área. Veja o artigo A contribuição da
etnopsicanálise para a clínica da família, p. 223-245.
361
Paul RICOEUR, O si e a identidade narrativa, p. 195.
91
O estranhamento inicial com o relato de Anneliese despertou na autora a
responsabilidade de resgatar a história de vida de ex-alunas com formação na escola
comunitária luterana. Ricoeur diz que o termo “responsabilidade” traz presente o “contar
com... e ser responsável por...”. O “contar com” significa tornar-se parceiras de diálogo
(pesquisadora e narradoras) no processo de pesquisa, e “ser responsável” é demonstrar
empatia, respeito com os relatos das narradoras.
2.2 Silêncio e invisibilidade como fonte de pesquisa
Primeiramente, foi Anneliese, hoje, em 2005, com 87 anos, que despertou uma
resposta à pergunta: “Onde está você?”. A resposta “eis-me aqui” demonstra compromisso
e responsabilidade ética com o resgate da narrativa da história de vida das ex-alunas de
formação luterana. Anneliese despertou em mim, como pesquisadora, a responsabilidade
de resgatar os fios que teceram, reteceram e tecem a vida de ex-alunas com formação
luterana. A partir do relato de Anneliese, outras ex-alunas foram localizadas. Ruth, com 77
anos, foi aluna de Anneliese, sendo citada em sua narrativa. As narrativas da história de
vida de Ruth e Anneliese retratam aspectos do período de nacionalização do ensino em
1938.
Renita, com 51 anos, identificou-se como ex-aluna da escola comunitária luterana
num trabalho realizado pela pesquisadora na Comunidade Evangélica Luterana na Vila
Lenzi. Além de identificar-se como ex-aluna, Renita citou o nome de uma ex-colega
chamada Yvonne como uma outra mulher que teria muito para contar. Renita e Yvonne,
em seus relatos, visibilizam aspectos do processo educacional da década de 50 em diante.
As narradoras, portanto, não foram escolhidas antecipadamente, mas foi se
constituindo uma rede de contato, onde uma foi indicando a outra, e assim teceram-se os
fios, através do contato da pesquisadora com as ex-alunas e da disponibilidade delas de
compartilharem as suas histórias de vida. Visitei e ouvi as mulheres em suas casas, no local
de trabalho, e também em outros espaços, como reuniões e encontros da Ordem
Auxiliadora das Senhoras Evangélicas (OASE), apresentações de música, teatro na
Sociedade Cultural e Artística (SCAR), cultos, celebrações na Igreja Evangélica de
Confissão Luterana em Jaraguá do Sul, visita à casa dos pais de Renita e passeio pelas
terras onde ela trabalhou e brincou quando criança, entre outros. Nesse processo de escuta,
diálogo e observação participante, além do diário de campo, também o gravador foi
utilizado. Com a Renita e a Yvonne tive praticamente um ano e meio de contatos intensos,
92
encontrando-nos uma vez por semana para conversar, por um período de uma a duas horas.
Com Ruth e Anneliese, o tempo de contato foi ainda maior; quase três anos. As falas de
Anneliese aconteceram quase todas na língua alemã. Ela entende e fala o português, mas
fazia questão de falar da sua vida utilizando-se da língua alemã. A língua alemã dá
visibilidade à história de vida de Anneliese, sendo utilizada como um elemento de
resistência por não ter conseguido se naturalizar brasileira na década de 30. Muitas vezes,
precisava pedir para que repetisse o que havia falado para que pudesse entender melhor. As
narrativas foram, primeiramente, inscritas no diário de campo, depois transcritas e
entregues para as narradoras, que tiveram a liberdade de alterar ou de acrescentar aspectos
nas narrativas. Cada narrativa foi escrita quatro vezes, até que houve concordância com o
texto escrito. As narradoras também reescreveram partes do texto escrito, tornando-se co-
autoras. Como pastora e pesquisadora, procurei ser ética, respeitando as alterações
sugeridas e reescritas pelas narradoras.
Além da conversa pessoal, também o telefone foi utilizado para tirar alguma
dúvida em relação ao texto escrito. Chorei e ri junto com as narradoras. Silenciei. Olhei
documentos, fotografias, cartas, objetos, roupas que fazem parte da história pessoal de cada
uma das entrevistadas. Também fotografei Renita, Ruth e Anneliese em diferentes espaços.
Só não foi possível fotografar Yvonne, pois os encontros sempre aconteceram em seu
ambiente de trabalho. Somente uma vez nos encontramos na sua casa, onde conversamos;
e ela me mostrou fotos, documentos, diários, e conheci a sua casa.
Muitas vezes, fui convidada pelas narradoras para saborear um chá, um suco, uma
sobremesa, um café. À medida que crescia a confiança entre nós, também aspectos íntimos
foram trazidos à tona, que nem sempre foram transcritos, por pedido das entrevistadas.
Foram contados como desabafo, pois precisavam contar para alguém que as ouvisse com
respeito e guardasse em sigilo o que havia escutado. Uma das narradoras tamm estava
lendo o caderno As Igrejas dizem “Não” à violência contra a mulher, publicado pela
Federação Luterana Mundial.
362
Estar lendo este texto e estar relatando a sua história de
vida trouxe vários questionamentos à sua vida; por isso, também houve demora na
devolução do escrito de sua história de vida. O contrato feito com as ex-alunas, por escrito
e registrado em cartório, foi de deixar seus nomes reais, usar documentos, fotografias,
362
Prisilla SINGH, As igrejas dizem “Não” à violência contra a mulher, 2005 .
93
cartas, boletins e históricos escolares na narrativa, por entender que as fotografias
363
e os
documentos
364
são um importante registro histórico. A fotografia revela uma cena, uma
imagem, a captura de um determinado momento, que, segundo Santos, “a cada evento se
transformam”.
365
Somente foram retirados nomes das pessoas quando a narrativa das
mulheres fazia alguma avaliação sobre atitudes e posturas que poderiam implicar
comprometimentos posteriores e elas acharam por bem retirar. O papel do orientador foi
fundamental nesse processo de amadurecimento da escrita – processo este, aliás, doloroso;
escrever a história de vida das narradoras foi, ao mesmo tempo, fazer uma releitura da
própria história, interligada com a busca pela emancipação humana.
Visibilizar a memória transgeracional
366
de mulheres, ex-alunas de escola
comunitária luterana, tem como propósito uma discussão sobre as interligações da religião
(confessionalidade luterana) e da educação (comunitária) na vida das mulheres. Quais
foram as imposições, as rupturas e as conseqüências culturais, sociais, históricas,
religiosas, teológicas, morais que as mulheres sentiram em suas vidas, a partir da educação
formal recebida na escola comunitária luterana?
Além das narradoras, também posso ser vista como uma narradora, estetizando na
linguagem escrita a narrativa oral, o processo de pesquisa, de escuta, de diálogo, dos
olhares atentos e análise que brotaram a partir dos ditos, não-ditos, fotografias,
documentos, cartas. É necessário também dizer que o meu olhar, a partir da história de vida
das narradoras, apontou para um novo olhar sobre si mim mesma, minha própria história
de vida. Eu reaprendi a ver e a compreender que a história emancipatória das mulheres está
sendo tecida há tempo e os fios estão interligados com a história de vida e a luta de
diferentes gerações de mulheres.
Nesta direção, Ricoeur se utiliza do “recurso à noção de dívida, contrapartida do
distanciamento no espaço e no tempo”.
367
O autor afirma:
entendo por dívida o sentimento de sermos devedores enquanto herdeiros de nossos
predecessores. A dívida atravessa as gerações e estende-se indeterminadamente rumo a um
363
Valeska Fortes de OLIVEIRA; Vânia Fortes de OLIVEIRA; Laura Elise de Oliveira FABRÍCIO, O oral e
a fotografia na pesquisa qualitativa, p. 163-180.
364
Jacques Le GOFF, História e memória, p. 110. “Nenhum documento é inocente. Deve ser analisado. Todo
documento é um monumento que deve ser desestruturado, desmontado.”
365
Milton SANTOS, A natureza do espaço, p. 87.
366
Paul RICOEUR, O passado tinha um futuro, p. 375: “Uma memória transgeracional assegura assim a
transição entre a memória individual e coletiva e a história dos historiadores.”
367
Paul RICOEUR, O passado tinha um futuro, p. 376.
94
passado insondável; a dívida é obrigação, no sentido em que requer dos homens do
presente a restituição, sob forma de representação, daquilo que os antigos nos confiaram.
Um passo a mais na via aberta pelo sentimento do endividamento vai nos levar a um
questionamento sobre o tipo de proximidade que a dívida instaura entre nossos
predecessores e nós. Essa proximidade induz um interesse pela semelhança, que compensa
a atenção privilegiada dada pela história à mudança e às diferenças na mudança.
368
A noção de dívida elaborada por Ricoeur mostra, exatamente, que o presente é fruto
de um passado e que o futuro ainda está em aberto. O sentimento do endividamento leva a
um questionamento sobre o tipo de proximidade que a dívida instaura entre nossos
predecessores e nós, induzindo a um interesse pela semelhança dada pela história, a um
interesse pela mudança e pelas diferenças na mudança. Isto significa que, apesar das
semelhanças e diferenças que cada momento histórico instaura, as conquistas
emancipatórias das mulheres de hoje são fruto das lutas das mulheres de outrora. As
conquistas das diferentes gerações estão interligadas numa grande rede, tendo como meta a
construção da vida digna e justa.
Tendo em vista que as histórias de vida das mulheres transcendem sua própria
época e não podem ser entendidas isoladamente, passa a ser relevante na pesquisa a
compreensão que Elias construiu da relação entre indivíduo e sociedade, envolvendo o
conceito de rede:
Nessa rede, muitos fios isolados, ligam-se uns aos outros. No entanto, nem a totalidade da
rede nem a forma assumida por cada um de seus fios podem ser compreendidos em termos
de um único fio, ou mesmo de todos eles, isoladamente, considerados; a rede só é
compreensível em termos da maneira como eles se ligam, de sua relação recíproca. (...)
Entretanto as relações interpessoais nunca podem ser expressas em simples formas
espaciais. E esse é um modelo estático. Talvez ele atenda um pouco melhor o seu objetivo
se imaginarmos a rede em constante movimento, como um tecer e destecer ininterrupto das
ligações. É assim que efetivamente cresce o indíviduo, partindo de uma rede de pessoas
que existiam antes dele para uma rede que ele ajuda a formar.
369
O conceito de rede é dinâmico; muitos fios estão entrelaçados, e neles acontece um
tecer, destecer, retecer das relações na vida das narradoras e das suas ligações pessoais,
familiares, sociais, culturais, históricas, colaborando na construção de outras redes de
relações que se construíram desde a infância até o momento da pesquisa, ano de 2005,
continuando até a morte. A construção da identidade e da emancipação humana se dá em
meio a fios interdependentes, estando interligada aos valores e padrões de determinada
época histórica. Na perspectiva da teologia feminista, nossa função e posição servem tanto
368
Paul RICOEUR, O passado tinha um futuro, p. 376.
369
Norbert ELIAS, A sociedade dos indivíduos, p. 35.
95
de legitimação de lugares culturalmente construídos quanto de transformação desses
lugares. Segundo a teóloga Deifelt: “Nascemos para dentro de culturas e sociedades
independentes de nós, que nos condicionam concretamente. No entanto, a continuidade
dessas instituições depende de nossa anuência”.
370
Para Elias, cada pessoa tem “um
passado que se estende muito além do seu passado pessoal e permite que alguma coisa das
pessoas de outrora continue a viver no presente”.
371
Nesta direção, lembro Ricoeur que diz:
Os homens [as mulheres] de outrora não tinham somente um vívido presente e um
horizonte de incerteza quanto ao futuro. Eles [elas] tinham também opções abertas,
projetos, temores, expectativas, sonhos. Para nós, que chegamos depois, esses projetos
parecem não cumpridos. À indeterminação do futuro do passado junta-se a não-realização
ulterior dos desejos. Assim o passado é também para nós aquilo que não puderam fazer as
pessoas da Idade Média, as pessoas da Renascença ou da Reforma, as do Iluminismo, os
nacionalistas e os revolucionários do século XIX. (...) Os sonhos não realizados, as
promessas não cumpridas do passado, em suma, todas as marcas do futuro no coração do
passado, foram. O que foi o futuro não realizado dos homens [das mulheres] de outrora
será para sempre algo de incólume. E é essa qualidade de incólume que, em última
instância, endivida-nos e intima-nos.
372
Nós temos uma dívida com as diferentes gerações de mulheres, que viveram antes
de nós. O que temos hoje é, em grande parte, fruto de suas lutas, conquistas e, inclusive,
resultado da morte de mulheres
373
, em diferentes momentos históricos, pela causa da
emancipação das mulheres. Segundo Bosi: “O passado revelado desse modo não é
antecedente do presente, é a sua fonte”.
374
A dívida com o passado nos intima a uma
vivência responsável e plena no presente, comprometendo-nos com as gerações presentes e
futuras, buscando a superação da alienação e da opressão. Ricoeur traz presente a palavra
trans-histórico, “segundo a qual a história não é somente o que nos separa do passado e,
por meio dessa separação, torna-o para nossos olhos estrangeiro. Trans-histórico é também
370
Wanda DEIFELT, O corpo e o cosmo, p. 257.
371
Norbert ELIAS, A sociedade dos indivíduos, p. 182.
372
Paul RICOEUR, O passado tinha um futuro, p. 377-378. (inclusão minha)
373
Lembro Olympe de Gouges, que lutou pelo direito das mulheres na Revolução Francesa, motivo que a
levou a ser guilhotinada. Recordo que Mary Wolstonecraft, no seu livro Vindication of the Rights of Woman,
expressa o direito das mulheres à educação. Trago à memória as 129 operárias tecelãs que morreram
queimadas nos EUA, no dia 08 de março de 1857, porque reivindicavam melhores condições de trabalho e
salário. No Brasil, lembro a organização das mulheres e a sua luta pelo reconhecimento da profissão, dos
direitos sociais... Trago à lembrança Rose, que entregou a sua vida na luta pela terra. Não esqueço minhas
avós, minha mãe, minha irmã, minha filha e minhas amigas...
374
Ecléa BOSI, Memória e sociedade, p. 89.
96
o que atravessamos, ou seja, o que nos aproxima daquilo de que a história parece nos
distanciar”.
375
O que nos aproxima daquilo de que a história parece nos distanciar? É o silêncio
em relação à história de vida das mulheres e a sua invisibilidade nos registros históricos.
376
Silêncios históricos
377
que se mostram nos seus corpos-memórias
378
, que se expressam nas
experiências no cotidiano da vida: de dores e alegrias, de tristezas e esperanças, de morte e
vida, de opressão e libertação, de alienação e emancipação. Segundo Perrot, é a questão do
poder que está no centro das relações entre homens e mulheres na história e no presente.
379
Foucault afirma que “as relações de poder são uma relação desigual e relativamente
estabilizada de forças, é evidente que isto implica um em cima e um em baixo, uma
diferença de potencial”.
380
O autor refuta a teoria jurídico-política do poder. Para ele, o
poder está entranhado no cotidiano, em todas as relações e instituições sociais. Foucault
não estrutura uma teoria do poder, ele fala de uma analítica do poder.
381
Nesta direção,
Silva afirma:
Impõe-se a necessidade de documentar a experiência vivida como possibilidade de abrir
caminhos novos. Outras interpretações de identidades femininas somente virão à luz na
medida em que experiências vividas em diferentes conjunturas do passado forem
gradativamente documentadas, a fim de que possa emergir não apenas a história da
documentação masculina, mas sobretudo os papéis informais, as improvisações, a
resistência das mulheres.
382
375
Paul RICOEUR, O passado tinha um futuro, p. 378.
376
Michelle PERROT, Os excluídos da história, p. 185. Segundo a autora: “Da História, muitas vezes a
mulher é excluída. (...) O ‘ofício do historiador’ é um ofício de homens que escrevem a história no
masculino. Os campos que abordam são os de ação e do poder masculinos, mesmo quando anexam novos
territórios.”
377
Usa-se a palavra “silêncio” no plural, pois o silenciamento, o ocultamento das experiências de vida das
mulheres se dá nas mais diferentes áreas do conhecimento, sendo atualmente um campo fértil de pesquisa, a
partir da perspectiva de gênero. Em relação ao silêncio, Michael POLLAK, Memória, esquecimento, silêncio,
p. 5-6, afirma: “O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que
uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. (...) Em relação aos sobreviventes dos
campos de concentração, ele diz: “Seu silêncio sobre o passado está ligado em primeiro lugar à necessidade
de encontrar um modus vivendi com aqueles que, de perto ou de longe, ao menos sob a forma de
consentimento tácito, assistiram à sua deportação.”
378
Renate GIERUS, CorpOralidade, p. 51: “O corpo é uma memória. Esta é cartografada e registrada nele.
Ao dizê-la, mostrá-la, expressá-la, mulheres e homens se autonomeiam, conscientizando-se, através de seu
próprio discurso, do lugar que ocupam no mundo, da importância que têm, (re)criando e (re)afirmando sua
auto-estima. Perceber o corpo na expressão do seu cotidiano reconstrói e reelabora os micro e macropoderes
das memórias perdidas, empoderando protagonistas excluídos/as de vida.”
379
Michelle PERROT, Os excluídos da história, p. 184.
380
Michel FOUCAULT, Microfísica do poder, p. 250.
381
Michel FOUCAULT, História da sexualidade I, p. 80.
382
Michelle PERROT, Os excluídos da história, p. 187.
97
O silêncio e a invisibilidade em relação às narrativas e à história das mulheres são
resultado das relações desiguais do poder, mas, ao mesmo tempo, o próprio silêncio e a
invisibilidade são poderes que irrompem, documentando e trazendo à luz as experiências
das mulheres excluídas pela história. A partir do registro das histórias de vida, se
vislumbrarão novos papéis, improvisações e a resistência das mulheres. Segundo Louro:
Tornar visível aquela que fora ocultada foi o grande objetivo das estudiosas feministas
desses primeiros tempos. A segregação social e política a que as mulheres foram
historicamente conduzidas tivera como conseqüência a sua ampla invisibilidade como
sujeito – inclusive como sujeito da Ciência.
383
Perrot afirma e incentiva a pesquisa quando diz: “No entanto, o que importa
reencontrar são as mulheres em ação, inovando em suas práticas, mulheres dotadas de vida,
e não absolutamente como autômatas, mas criando elas mesmas o movimento da
história”.
384
Como os silêncios e as invisibilidades das histórias de vida das mulheres
podem ser desvelados e se fazer ouvir? Como resgatar a aprendizagem das histórias de
vida de mulheres de diferentes gerações para iluminar o processo educacional das gerações
presentes? Como a formação escolar e comunitária ajudou as ex-alunas a conquistarem ou
não espaços de emancipação em suas vidas? Como recuperar esses espaços de
emancipação?
385
2.3 Elementos metodológicos para a construção das personagens narradoras
A partir do estranhamento inicial e do reconhecimento do silêncio e da
invisibilidade em relação às histórias de vida das mulheres, partiu-se em busca do diálogo
com autores e autoras que pudessem ajudar a compreender o significado de espaços de
emancipação na vida das ex-alunas, a partir da formação em escola luterana. Somado à
procura pelo referencial teórico também se buscou um método de pesquisa que pudesse
contemplar a narração da trajetória de vida das ex-alunas. Optou-se pela perspectiva
etnográfica e, como técnica de pesquisa, pela história de vida, somada à análise de gênero e
à pesquisa feminista, tendo emancipação humana como fio teórico-conceitual.
383
Guacira Lopes LOURO, Gênero, sexualidade e educação, p. 17.
384
Michelle PERROT, Os excluídos da história, p. 187.
385
Howard S. BECKER, Métodos de pesquisa em ciências sociais, p. 163. Segundo o autor: “Pergunte
‘Como? - não ‘Por quê?’ Acho que é uma boa idéia em pesquisa sobre qualquer tópico evitar perguntar às
pessoas por que elas fazem uma certa coisa quando na realidade se quer descobrir como aconteceu que elas a
fizeram.”
98
2.3.1 Perspectiva etnográfica
A perspectiva metodológica etnográfica
386
é uma proposta de pesquisa qualitativa,
vinda da área da Antropologia. Está baseada “na procura de alteridades”, sendo sua
preocupação “captar algo da experiência das pessoas”, a partir do “método de reunir
partículas”.
387
A etnografia (estudo da cultura) pressupõe a existência de um mundo
cultural ainda não conhecido e sobre o qual o/a pesquisador/a tem interesse e desejo de
conhecer
388
, ampliando o olhar e o conhecimento.
Geertz se utiliza do termo “descrição densa”
389
para designar o que pretende a etnografia. O
mesmo autor, apoiado em Max Weber, afirma que o “ser humano é um animal amarrado a teias de
significado que ele mesmo teceu”.
390
Geertz assume “a cultura como sendo essas teias e a sua
análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência
interpretativa, à procura de significado”.
391
Segundo o autor, a cultura é um sistema de símbolos
construídos, “não é um poder, algo a quem pode ser atribuída a causa dos eventos sociais,
comportamentos, instituições ou processos; é um contexto, algo dentro do qual os símbolos podem
ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com intensidade”.
392
Geertz
393
, portanto, na via de
uma antropologia interpretativa, pensa a cultura enquanto “teia de significados”, e o profissional da
antropologia enquanto alguém que “lê” a cultura do outro a partir da leitura do outro sobre a sua
própria cultura.
A partir da pesquisa etnográfica, lança-se um novo olhar sobre a realidade, onde a
diferença, a cultura e a história do/a outro/a é respeitada e valorizada. Os trabalhos de
386
Como pesquisadora não tenho formação na área da antropologia. Sou teóloga; por isso, para melhor
conhecer o método de pesquisa etnográfica, realizei durante o tempo de estudo do doutorado uma leitura
supervisionada sob a orientação do Prof. Dr. Alceu R. Ferraro sobre o tema “A importância do método
etnográfico na educação como práxis do cuidado na emancipação das mulheres”. Participei do seminário de
estudos interdisciplinares “Memória Coletiva e Identidade Social: Aspectos Teóricos e Metodológicos”, com
a Profª. Drª. Cornélia Eckert. No mestrado, trabalhei com história de vida de um aluno da escola comunitária
luterana, sob a orientação do Prof. Dr. Evaldo L. Pauly. Esses três momentos foram muito importantes para o
delineamento do método de pesquisa nesse trabalho. No entanto, devido às minhas limitações, a presente
pesquisa terá uma perspectiva etnográfica, isto é, não será feita uma descrição densa das realidades das
diferentes mulheres entrevistadas, mas será narrada a história de vida de cada uma das ex-alunas, a partir da
escuta sensível e da interação da pesquisadora com as mulheres narradoras. Além da narrativa oral, também
serão analisados fotos e documentos que as ex-alunas incluem em suas narrativas.
387
Cláudia FONSECA, Família, fofoca e honra, p. 10-12.
388
Iselda Sausen FEIL, A pesquisa etnográfica, p. 16.
389
Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas, p. 15. Geertz tomou emprestado o termo “descrição
densa” do filósofo Gilbert Ryle para descrever o que pretende a etnografia.
390
Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas, p. 15.
391
Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas, p. 15.
392
Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas, p. 24.
393
Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas, p. 15.
99
Malinowski e Margareth Mead, entre outros, inauguraram uma nova forma de olhar e
entender a cultura do/a outro/a. Durante muito tempo, os europeus e americanos (EUA),
quando conheciam povos de culturas diferentes, classificavam esses povos de atrasados,
selvagens e sem cultura. A partir desta visão, inúmeros povos e culturas foram eliminados
e silenciados. O modelo de cultura imposto foi etnocêntrico
394
, onde prevaleceu a imagem
do ideal do homem, branco, ocidental e cristão. A partir desta visão, como diz Boff,
criaram-se mitos, como, por exemplo, o mito do bom selvagem, o mito do sexo frágil, o
mito do negro preguiçoso.
395
Atualmente não é mais possível falar “em Cultura no singular, mas de culturas no
plural, pois as leis, os valores, as crenças, as práticas e instituições variam de formação
social para formação social”.
396
Entende-se, portanto, cultura como “a maneira pela qual os
humanos se humanizam por meio de práticas que criam a existência social, econômica,
política, religiosa, intelectual e artística”.
397
Desta forma, podemos ver a nossa própria
cultura como uma construção
398
– apenas uma possibilidade em meio a tantas outras. Não
se tem acesso à cultura, ao universo simbólico de um grupo ou de uma pessoa, mas às
interpretações dos sujeitos sobre a maneira como vivenciam e fazem sua própria cultura.
Por isto, para estudar uma determinada sociedade ou grupo social, é necessário
estranhá-lo. Da Matta
399
diz que só se tem a Antropologia Social quando se tem o exótico,
a partir da distância social que desemboca no estranhamento. Isto significa perceber a
“normalidade” das práticas culturais que nos parecem estranhas e “estranhar” as coisas que
nos acostumamos a considerar “normais”. Velho afirma que “o processo de estranhar o
familiar torna-se possível quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo
394
Everaldo ROCHA, O que é etnocentrismo, p. 35. O autor afirma que etnocentrismo pode ser definido
como uma visão de mundo em que o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo, visão segundo a
qual todos os grupos são pensados e sentidos através de nossos valores, nossos modelos, nossas definições do
que seja a existência. No âmbito intelectual, o etnocentrismo pode ser identificado na dificuldade de
pensarmos a diferença: já no aspecto afetivo, é percebido nos sentimentos de estranheza, de medo e de
hostilidade. Julga-se na verdade o valor da cultura do “outro” a partir da cultura do seu próprio grupo.
395
Leonardo BOFF, Saber cuidar, p. 56.
396
Marilena CHAUÍ, Convite à filosofia, p. 295.
397
Marilena CHAUÍ, Convite à filosofia, p. 295.
398
Marilena CHAUÍ, Convite à filosofia, p. 295.
399
Roberto Da MATTA, O ofício do etnólogo, p. 28.
100
emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a respeito de fatos,
situações”.
400
É necessário, como diz Fonseca, ir além das falas, apostar nas observações das
práticas sociais.
401
A etnografia apóia-se “menos na linguagem normativa dos ritos e mais
na lógica informal da vida cotidiana inscrita”.
402
Geertz aponta para a necessidade de
“atentar-se para o comportamento, e com exatidão, pois é através do fluxo do
comportamento – ou, mais precisamente, da ação social – que as formas culturais
encontram articulação”.
403
As grandes marcas de uma pesquisa com perspectiva
etnográfica são, portanto, a valorização da experiência das pessoas, diferentes formas de
interpretação da vida, formas de compreensão do senso comum, significados variados
atribuídos pelos participantes às suas experiências e vivências.
404
Percebe-se que “a etnografia é uma opção metodológica que estuda a atividade
humana no seu existir e fazer cotidiano, concebendo-o como fonte inesgotável de
investigação, construção e intervenção”.
405
A teoria vai sendo tecida durante o processo de
pesquisa
406
, que não está restrito a um roteiro de entrevista fixa, mas concentra-se
especialmente na convivência intensa, com perguntas de caráter mais aberto, baseando-se
na observação participante-dialógica. Isto permite à pesquisadora partir de um esquema
teórico flexível, o qual vai se ampliando, aprofundando e reconstruindo ao longo da
pesquisa e até mesmo após a sua conclusão.
407
A intenção da pesquisa etnográfica não é a
simples reprodução da experiência, do conhecimento daquilo que já é conhecido, mas a
construção de um novo saber e de uma “teoria como prática”
408
para “construir modelos
alternativos da vida social que fogem da lógica prevista e previsível da modernidade”.
409
400
Gilberto VELHO, Observando o familiar, p. 45. Ainda conforme o autor, p. 39: “O que sempre vemos e
encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode
ser exótico, mas, até certo ponto, conhecido. No entanto estamos sempre pressupondo familiaridades e
exotismos como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente.”
401
Cláudia FONSECA, Família, fofoca e honra, p. 10.
402
Cláudia FONSECA, Família, fofoca e honra, p. 10.
403
Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas, p. 27.
404
Marli Eliza Dalmazo Afonso de ANDRÉ, Etnografia da prática escolar, p. 20.
405
Iselda Sausen FEIL, A pesquisa etnográfica, p. 9.
406
Iselda Sausen FEIL, A pesquisa etnográfica, p. 9, É durante o processo de pesquisa que o/a pesquisador/a
“promove o confronto entre o que se propôs observar e o que efetivamente observou, redimensiona, delimita
o próprio foco da pesquisa”.
407
Iselda Sausen FEIL, A pesquisa etnográfica, p. 10.
408
Dagmar E. Estermann MEYER, Identidades traduzidas, p. 26.
409
Cláudia FONSECA, Família, fofoca e honra, p. 7.
101
Fonseca apresenta como possibilidade o desdobramento do método etnográfico em cinco
etapas:
410
1ª etapa – estranhamento no contato/na inserção com a experiência cotidiana e
subjetiva do/a outro/a.
2ª etapa – esquematização. Procura-se juntar as partículas (anotadas no diário de
campo) para entender o todo. Organização da narrativa da história de vida das ex-alunas.
3ª etapa – desconstrução. Os dados não falam por si mesmos; eles precisam ser
analisados. É preciso ter claro o quadro teórico que orienta a pesquisa. Para podermos
“escutar” o/a outro/a silenciado/a, captar significados particulares, devemos rever
conceitos, noções de nossa própria cultura e história.
4ª etapa – comparaçãoprocura por dinâmicas análogas. Além do
aprofundamento teórico presente na terceira etapa, junto com a análise do campo é
necessário buscar comparações com outras realidades. No processo comparativo, tanto as
semelhanças como as diferenças colaboram para se chegar mais perto de uma pesquisa
mais refinada.
5ª etapa – sistematização do material em modelos alternativos. É muito
importante insistir que a pesquisa etnográfica aponta para uma análise social, combatendo
desta forma uma tendência oriunda do individualismo metodológico de isolar o sujeito do
seu contexto.
No método etnográfico, há sempre um vai-e-vem entre as várias preocupações a
serem adaptadas em função das circunstâncias, da dinâmica e dos novos elementos que vão
sendo incorporados à pesquisa. Segundo Rocha e Eckert, ele “aponta para uma ética de
interação, de intervenção e de participação construída sobre a premissa da relativização,
onde os temas da interpretação e da crise da identidade pessoal do antropólogo despontam
como centrais”.
411
O método etnográfico vai sendo construído durante o processo da
pesquisa, onde a ética interativa é imprescindível. O método etnográfico não aponta para a
410
Cláudia FONSECA, Quando cada caso NÃO é um caso – pesquisa etnográfica em educação, p. 66-76.
Lembro, no entanto, o alerta da professora Dra. Cornélia ECKERT na minha qualificação de doutorado, dia
17/12/2004, na Escola Superior de Teologia. “O método etnográfico é flexível e aberto, sendo muito difícil
enquadrá-lo num esquema.”
411
Ana Luiza Carvalho da ROCHA, Cornélia ECKERT, A interioridade da experiência temporal do
antropólogo como uma condição da produção etnográfica, p. 101.
102
terra firme do conhecimento, mas para a relativização das descobertas, onde a crise do
pesquisador e da pesquisadora é parte integrante da pesquisa.
É importante deixar claro que o processo da pesquisa não segue rigidamente as etapas. A
pesquisadora ou o pesquisador etnográfico “‘inscreve’ o discurso social: ele/a o anota. Ao fazê-
lo, ele/a o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de
ocorrência, em um relato, que existe em sua inscrição e pode ser consultado novamente”.
412
O
diário de campo
413
foi o companheiro indispensável no processo de ouvir e inscrever as
narrativas das histórias de vida. É a partir dos detalhes, das pequenas coisas, observadas,
dialogadas no cotidiano da existência e convivência, aparentemente sem sentido, que se constrói,
desconstrói e reconstrói o saber, dando novo sabor à existência. Isto significa ampliar o saber ou,
inclusive, estabelecer um novo saber.
414
Essa maneira de pesquisar nos aproxima do ideal exegético de Lutero que tornou
proverbial a necessidade do intérprete científico da Bíblia observar as crianças quando elas
brincam, ouvir as mulheres em suas conversas na cozinha e os homens discutindo no
mercado. Ora, o que são essas atitudes senão etnografia? Marx também faz análise da
situação do judeu, da mulher, da criança, do proletariado e mostra que a emancipação dos
mesmos tem uma relação intrínseca com a emancipação de toda a humanidade. Ele faz isso
a partir de observações da vida cotidiana, de documentos, de registros, o que também é
uma atitude etnográfica. A teologia feminista tem como suporte a experiência cotidiana das
mulheres, interligando-se com a perspectiva etnográfica.
2.3.2 Perspectiva etnográfica permeada pelo instrumental de gênero e pelo
feminismo
Torna-se indispensável não esquecer que, no campo das pesquisas de gênero, já nos
anos 30, Mead demonstrou que os comportamentos e atitudes de homens e mulheres não
412
Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas, p. 29.
413
Alceu Ravanello FERRARO; Nádie Christina Ferreira MACHADO, A pesquisa-ação na construção de
políticas públicas, p. 263. Os autores também se reportam à importância do diário de campo na pesquisa por
eles realizada. “Este foi útil principalmente no processo de degravação. Por exemplo, para identificação dos
autores das falas. (...) O diário de campo preservou falas que outros meios não conseguiram registrar.”
414
Foi exatamente isso que aconteceu com a antropóloga Cláudia Fonseca. Ela construiu, a partir da pesquisa
etnográfica, um novo saber em relação à organização das famílias populares brasileiras num bairro em Porto
Alegre. A partir da sua inserção, observação, diálogo, percebeu uma forma diferente de família daquela que
correspondia ao modelo de classe média. Consulte o livro Cláudia FONSECA, Caminhos da adoção, 1995.
A autora demonstra que o fato das crianças circularem não é uma anomalia, nem prejudica as crianças, ao
contrário, faz parte de uma organização familiar que permite que esses grupos consigam criar suas crianças.
Também é uma forma de evitar que alguns velhos (avós, por exemplo) vivam sozinhos, etc. Essa é uma
grande contribuição da antropóloga aos estudos sobre a família brasileira e sua diversidade.
103
são inatos, mas sim construídos diferentemente por cada grupo social. Na sua pesquisa
realizada em três tribos da Nova Guiné (os Arapesh, os Mundugumor e os Tchambuli),
demonstrou como homens e mulheres tinham comportamentos muito diferentes em cada
lugar.
415
A perspectiva de gênero é relacional, o que implica que o uso de seus
instrumentais inclui outras categorias e interpretações em relação a um conjunto de
fenômenos sociais e históricos em relação à identidade, como, por exemplo, as questões da
idade, da etnia, da nacionalidade, da classe social, entre outros.
A pesquisa feminista, quando atravessada pelo instrumental de gênero
416
, levanta
alguns pressupostos metodológicos que ampliam as possibilidades de abordagem. Isto
significa não isolar as mulheres (ex-alunas) para analisá-las, como um grupo separado, sem
interconexão com outros grupos e outras condições históricas, mas buscar o contexto das
tramas de relações sociais. Isto faz com que se vá além da visibilização das narradoras,
para perguntar pelas relações de poder, de classe, de etnia, de religião, de gênero, dos
processos educacionais presentes nas narrativas de suas histórias de vida.
As críticas feministas situadas no espaço entre as diferentes áreas, culturas e
tradições chamam a atenção para a necessidade de se negociar permanentemente com as
várias forças locais e translocais, numa atividade que já foi denominada “descrição
contingente”, em oposição à “descrição densa” de Geertz.
417
(...) para o feminismo a preocupação política, fundamentada na materialidade da
experiência das mulheres, permanece a condição sine qua non para enquadrar a pesquisa e
para delinear, neste caso, os contornos de uma etnografia feminista. Na medida em que a
feminista, em seu duplo papel de ativista e intelectual conseguir com sucesso articular
necessidade política com indagação teórica, ela estará “escrevendo o outro” [a outra
(incluão minha)] contrariamente ao conjunto de representações antropológicas tradicionais
(ou como diz Abu-Lughod [1991]), estará “escrevendo contra a cultura”).
418
A pesquisa que faz uso da perspectiva etnográfica como uma dimensão feminista
precisa formular sua teoria dentro de uma política fundamentada no concreto, na
experiência de vida das mulheres. A pesquisada, portanto, não é apenas uma mera
espectadora, mas uma participante ativa, sendo que ambas, pesquisada e pesquisadora,
interferem no resultado da pesquisa. A perspectiva etnográfica, além de trazer a
415
Margareth MEAD, Sexo e temperamento, p. 19-27.
416
No primeiro capítulo já refleti sobre a importância de gênero como referencial de análise a partir de uma
perspectiva feminista.
417
Claudia Lima COSTA, Etnografia, representação e prática política, p. 97.
418
Claudia Lima COSTA, Etnografia, representação e prática política, p. 97.
104
experiência à luz do dia, precisa ter um compromisso ético-político com a emancipação,
promovendo a solidariedade e transformação da realidade cotidiana da outra oprimida e
silenciada.
419
Para Louro, “coloca-se aqui uma das mais significativas marcas dos Estudos
Feministas: seu caráter político”.
420
A autora afirma que, com a pesquisa feminista,
objetividade e neutralidade, distanciamento e isenção, que haviam se constituído,
convencionalmente, em condições indispensáveis para o fazer acadêmico, eram
problematizados, subvertidos, transgredidos. Pesquisas passavam a lançar mão, cada vez
com mais desembaraço, de lembranças e de histórias de vida; de fontes iconográficas, de
registros pessoais, de diários, de cartas e romances. Pesquisadoras escreviam na primeira
pessoa. Assumia-se, com ousadia, que as questões eram interessadas, que elas tinham
origem numa trajetória histórica específica, que construiu o lugar social das mulheres e que
o estudo de tais questões tinha (e tem) pretensões de mudança.
421
A pesquisa feminista traz importantes contribuições, questionando,
problematizando e transgredindo a razão instrumental, sua excessiva objetividade,
normatividade, a-historicidade e neutralidade, que deixam de lado as dimensões da vida, o
reconhecimento das múltiplas formas de alteridade e o direito às diferenças de
subjetividade. A subjetividade, através das histórias de vida e lembranças, é assumida com
uma trajetória histórica específica, constituindo o lugar social das mulheres com pretensão
de mudanças, portanto, com uma perspectiva emancipatória. Grossi aponta que a pesquisa
em relação ao campo feminista é um espaço permeado de respeito à diferença e à
pluralidade.
422
A autora, por isto, prefere sempre se
referir a este campo como de estudos feministas, de mulheres e de gênero, lembrando que
cabem nele tanto estudos sobre mulheres como estudos sobre homens, uma vez que ambos
constituem o objeto tanto das teorias feministas (sob o ângulo da dominação masculina)
quanto dos estudos de gênero (sob o ângulo das relações entre mulheres e homens,
mulheres e mulheres, homens e homens).
423
Os estudos feministas apresentam um caráter inclusivo, destacando também que a
história e o significado da categoria mulher devem ser entendidos à luz das histórias e dos
significados de outras categorias: classe, religião, etnia, nacionalidade, gênero entre outros.
Desta forma, chamam “atenção para a heterogeneidade da categoria ‘mulher’, bem como
419
Alcione Leite da SILVA, A pesquisa como prática na emancipação da mulher, p. 108. Segundo a autora,
“a pesquisa constitui-se em prática política, que emerge do compromisso com a socialização do
conhecimento e do poder, com as transformações sociais, sendo, portanto, eminentemente emancipatória.”
420
Guacira Lopes LOURO, Gênero, sexualidade e educação, p. 17.
421
Guacira Lopes LOURO, Gênero, sexualidade e educação, p. 19.
422
Miriam Pilar GROSSI, A revista Estudos Feministas faz 10 anos, p. 9.
423
Miriam Pilar GROSSI, A revista Estudos Feministas faz 10 anos, p. 9.
105
têm destacado a importância das metodologias qualitativas para conhecer mais de perto o
cotidiano e a realidade das mulheres”.
424
Como diz Deifelt: “Em vez de ser universalista, o
feminismo procura ser pluralista”.
425
O feminismo procura evitar generalizações,
afirmando a particularidade das construções sociais e históricas. Além de apontar
criticamente para os valores masculinos que têm dominado a humanidade, o feminismo
propõe mudanças profundas nas relações pessoais e institucionais. Procura formular uma
nova visão de família, de escola, de mundo, de sociedade, de igreja, de teologia, de ser
humano que seja inclusiva daqueles e daquelas que estiveram ausentes ou foram excluídas
das formulações teóricas, apontando para uma nova ética.
Um projeto político feminista está baseado no diálogo participativo, na abertura
para ouvir a voz da outra, na relação de alteridade, no respeito e na ética. Quando se vai a
campo, é necessário ter claro para si e também deixar claro para as pesquisadas o que se
propõe, o que se deseja alcançar com a pesquisa, comprometendo-se com a outra. Nas
quatro narrativas realizadas, sempre procurei deixar claro o objetivo da pesquisa, dando
liberdade às narradoras de dizerem a sua palavra. Isto significou que, em determinadas
situações, deram-se dois momentos distintos entre a fala oral e o texto escrito. Nem sempre
aquilo que foi falado foi transcrito no texto. A narrativa foi também um desabafo, mas que
ainda não estava suficientemente amadurecida para ser escrita e trazida a público. Falar,
ouvir, escrever e tornar público o escrito são momentos distintos de uma mesma pesquisa.
Às vezes, elas me perguntavam: “O que significa espaços de emancipação?” Eu respondia:
“É a tentativa de encontrar na narrativa da sua história de vida espaços, momentos onde
houve superação dos limites impostos pela sociedade, onde vocês se sentiram livres e
felizes.” A pergunta motivadora foi esta: Como a formação na escola comunitária luterana
ajudou ou não nesse processo? Segundo Costa,
(...) ao situarmos nós mesmos/as e os/as que queremos ‘estudar’ em relação aos objetivos e
interesses – tanto quanto aos/às deles/as – em termos éticos, políticos e intelectuais,
estaremos aptos/as a abrir espaço para um exame ou uma reformulação crítica da
perspectiva epistemológica que define o enquadramento de nossa visão de mundo.
Expandir os limites desse enquadramento, aprendendo outros modos de ver, sentir e se
deixar representar na tecedura de alianças e de identificações (não identidades) é apenas
um dos muitos meios de engendrar uma prática etnográfica.
426
424
Teresa Kleba LISBOA, Gênero, classe e etnia: Trajetórias de vida de mulheres migrantes, p. 15.
425
Wanda DEIFELT, Teoría feminista y metodología teológica, p. 9.
426
Cláudia de Lima COSTA, Etnografia, representação e prática política, p. 95-96.
106
Um projeto político feminista tem como meta trazer à luz do dia a experiência
silenciosa e oculta das mulheres, buscando, nos espaços privados e públicos, os sinais de
coragem e ousadia, isto é, de emancipação em suas vidas e apontando para os sinais de
transformação. Segundo Eggert, “o compromisso de uma metodologia feminista é
conseguir perceber na ‘outra’ pesquisada uma cúmplice da descoberta de nós mesmas.
Somos sujeitos capazes de transformar determinada realidade/pesquisa e nos
transformarmos”.
427
Nesse sentido, Deifelt
428
apresenta uma proposta metodológica
feminista em três passos.
1) A consciência da exclusão – Critica as formulações patriarcais em todos os
aspectos, analisando as relações de poder, identificando focos de resistência e buscando
tradições em que as mulheres são sujeitos presentes e atuantes.
2) Uma tradição de nós mesmas – Reconhecimento de que, apesar de as mulheres
terem sido silenciadas e praticamente esquecidas no processo histórico e excluídas do texto
bíblico e de textos seculares, elas são, de fato, participantes da história, da cultura e da
sociedade. A consciência da exclusão leva as mulheres a questionarem os argumentos que
justificam sua exclusão. Assim, a teologia feminista se põe a rastrear a memória esquecida
da presença das mulheres.
3) Reconhecimento de tradições alternativas – Nesse passo, as mulheres deixam
de ser apenas leitoras de textos e passam a ser produtoras literárias. Tornar-se intérprete,
articuladora, formuladora do conhecimento requer o ensaio de uma nova epistemologia,
onde o saber das mulheres é valorizado. A teologia feminista tem a função não só de
criticar o passado e de buscar histórias perdidas de mulheres, mas também de reconstruir a
teologia, recriando e revisando categorias teológicas, usando as experiências de opressão e
as lutas de libertação das mulheres como articuladoras do saber. Segundo Ströher:
As experiências e o contexto podem ser a fronteira de onde fazemos as nossas perguntas –
a nossa periferia, a nossa territorialidade, os limites impostos, as restrições, as contradições
cotidianas, os espaços inacessíveis, os espaços ocupados, os lugares inabitados, a
disposição de nossos tempos. E é o lugar para descobrir outros horizontes, formular novas
perguntas, sugerir outras respostas e encontrar novos caminhos para se pensar a
mudança.
429
427
Edla EGGERT, Educação popular e teologia das margens, p. 20.
428
Wanda DEIFELT, Temas e metodologias da teologia feminista, p. 178-186. A autora afirma que há uma
variedade de propostas metodológicas. Tais metodologias compartilham uma hermenêutica da suspeita,
dentro de um método de desconstrução e reconstrução, juntamente com o instrumental analítico de gênero.
429
Marga Janete STRÖHER, A história de uma história, p. 123.
107
Papel fundamental, nesse processo metodológico, ocupam as narrativas da história
de vida das mulheres, partindo de suas experiências, de seu cotidiano, de seu contexto,
reconstruindo a própria vida e apontando para uma ética feminista. A narrativa das
histórias de vida tem um significado vital para as mulheres, sendo um importante processo
de construção, desconstrução e reconstrução de suas vidas. É a partir da narrativa da
história de vida que é possível nomear a experiência. Deifelt entende ser esta uma tarefa
teológica, e eu acrescento pedagógica, pois as “(...) palavras sempre foram o material de
trabalho da teologia. Aliás, a religião, de modo geral, serve-se de ritos e palavras,
trabalhando o imaginário simbólico e traduzindo-o para dentro de um universo específico
de palavras”.
430
É necessário incluir no fazer teológico e pedagógico a palavra vivida e
experimentada no cotidiano histórico das mulheres: o prazer e a dor, a alegria e a tristeza, a
libertação e a opressão, as coisas concretas da vida.
2.3.3 A perspectiva etnográfica permeada pelo feminismo e o instrumental de
gênero como um método de pesquisa na interface da religião e educação
Como foi possível perceber, a perspectiva etnográfica caracteriza-se,
fundamentalmente, pelo contato direto do pesquisador e da pesquisadora com a situação
pesquisada. Permeada pelo feminismo, assume um caráter ético-político e, partindo da
consciência da exclusão, do reconhecimento de que apesar do esquecimento, as mulheres
são participantes ativas da história procura trazer aportes para a transformação nas relações
dos saberes, em nosso caso na área da religião e da educação, buscando o reconhecimento
de tradições alternativas.
Objetivo identificar e analisar as influências que o “mundo sociocultural” da escola
comunitária luterana deixou na vida das ex-alunas, como foram constituindo a sua vida, a
partir da infância, da juventude, idade adulta até o momento presente, ano de 2005. A
partir das narrativas das ex-alunas, também consultei arquivos históricos, analisei
documentos, fotografias, atas, cartas e outros instrumentos indicados nas narrativas pelas
pesquisadas. Busco o confronto daquilo que é revelado com outras teorias já existentes.
Quando se procura conhecer a história de vida de ex-alunas e a influência da escola
comunitária em suas vidas, não se pode esquecer o contexto histórico do surgimento destas
escolas no Brasil
431
, bem como a interação entre a confessionalidade luterana e a educação.
430
Wanda DEIFELT, Palavras e outras palavras, p. 7.
431
As escolas comunitárias confessionais luteranas ligadas à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no
Brasil (IECLB) remontam ao movimento da Reforma e à vinda dos imigrantes europeus, especialmente ao
108
O luteranismo teve seu primeiro impulso no Brasil através da imigração européia. Mas a
importância da imigração alemã e italiana, as mais expressivas no sul do Brasil, não
impactou somente a Igreja, mas também a sociedade. Isto se deu pela introdução das
escolas comunitárias. Segundo Deifelt:
A escola representava, para os imigrantes e seus descendentes, um mecanismo para a
melhor formação religiosa e, ao mesmo tempo, o despertar da consciência da cidadania.
(...) A importância das escolas paroquiais, tanto católicas quanto protestantes, está na
educação mista. Tanto meninos quanto meninas eram enviadas à escola.
432
O espaço da escola comunitária luterana remete ao movimento da Reforma. Uma
das primeiras preocupações do reformador Martim Lutero foi a tradução da Bíblia para a
língua de seu povo, o alemão, facilitando o acesso às Sagradas Escrituras. Para Lutero, isto
não era suficiente; precisava-se criar condições para que as pessoas pudessem ler a Bíblia.
As idéias pedagógicas do reformador são resultados das suas conclusões teológicas Desta
forma, o movimento da Reforma também se preocupou com o processo de ensino-
aprendizagem das pessoas, criando escolas ou reivindicando que o incipiente poder público
municipal – burguês – as constituísse.
O primeiro texto do reformador é dirigido Aos conselheiros de todas as cidades da
Alemanha para que criem e mantenham escolas cristãs (1524), sendo uma exortação aos
prefeitos e câmaras municipais para que não somente criem mas que mantenham escolas
cristãs. A criação e a manutenção da escola é colocada por Lutero como uma
responsabilidade do poder público. Inicia o texto lançando uma pergunta, à qual ele mesmo
respondeu:
De que nos valeria se, no mais, tivéssemos e fizéssemos tudo e fôssemos todos santos, mas
deixássemos de fazer aquilo que é a razão principal de nossa existência: a educação da
juventude? Em minha opinião, nenhum pecado exterior pesa tanto sobre o mundo perante
Deus e nenhum merece maior castigo do que justamente o pecado que cometemos contra as
crianças, quando não as educamos.
433
sul do Brasil. Estas escolas passaram por diferentes fases que acompanham o desenrolar da história da
educação brasileira. Além dos livros e teses já indicadas na introdução sobre o assunto, sugiro os artigos de
Carlos Eduardo Müller BOCK, O pastorado escolar na origem das escolas evangélicas e o momento atual,
p. 90-95. Arnildo HOPPEN, Fundação do Ginásio Sinodal no contexto do sistema escolar do Sínodo
Riograndense, p. 123-144. João KLUG, A escola alemã em Santa Catarina, p. 141. Lothar C. HOCH,
Impulsos da Reforma Luterana para a atuação da IECLB na área da Educação, p. 107-119. Martin
Volkmann, Lutero e a Educação, p. 93-105.
432
Wanda DEIFELT, Educação, teologia e cidadania, p. 16.
433
Martinho LUTERO, Aos conselhos de todas as cidades, p. 307.
109
Neste texto, Lutero fala da importância da educação tanto para as mulheres como
para os homens, situando a atuação de ambos em esferas distintas. Ele diz:
Mesmo que (como já disse) não existisse alma e não se precisasse das escolas e línguas por
causa da Escritura e de Deus, somente isso já seria motivo suficiente para instituir as
melhores escolas tanto para meninos como para meninas em toda parte, visto que também
o mundo precisa de homens e mulheres excelentes e aptos para manter seu estado secular
exteriormente, para que então os homens governem o povo e o país, e as mulheres possam
governar bem a casa e educar bem os filhos e a criadagem. Ora, tais pessoas devem surgir
dentre os meninos, e tais mulheres dever surgir dentre as meninas. Por isso urge que se
eduquem meninos e meninas para isso. Já disse acima que o homem simples nada faz neste
sentido nem o pode fazer, nem o quer, nem o sabe. São os príncipes e senhores que o
deveriam fazer.
434
Segundo Lutero, a educação dos homens deve visar ao governo do povo e do país,
enquanto que a educação das mulheres é para governar bem a casa, educar bem os filhos e
a criadagem. Para o homem está reservado o mundo público e, para a mulher, o mundo
doméstico. No entanto, é interessante perceber que ele usa o mesmo verbo governar tanto
para a atividade da mulher quanto a do homem. Poderíamos, então, deduzir que ambas as
atividades (governo do país e governo da casa) têm o mesmo valor para o reformador.
Meyer coloca que “governar a casa tem [...] um sentido que se aproxima do
conceito de economia na filosofia aristotélica, um termo que aí se refere à administração
doméstica e se contrapõe à política, ou seja, à arte de administração da cidade ou do
Estado”.
435
No entanto, Aristóteles, no Tratado sobre a Política, no v. 1, Sobre o governo
da casa, argumenta que o governo da casa e da polis tem o mesmo princípio e não se
contrapõe; a casa é uma cidade em miniatura - cada família é uma parte do Estado (I,
1260b 10) e cada Estado é constituído a partir do governo ou da administração da casa (I,
1553b).
436
Para Aristóteles não há contraposição entre economia – governo da casa e
política – governo da cidade , há uma interligação e dependência entre ambas.
437
434
Martinho LUTERO, Aos conselhos de todas as cidades, p. 318.
435
Dagmar E. Estermann MEYER, Identidades traduzidas, p. 100.
436
STRÖHER, Marga Janete. Casa igualitária e casa patriarcal - espaços e perspectivas diferentes de
vivência cristã, p. 99-100. Segundo a autora: Aristóteles parece justificar por que ele começa o tratado de
Política com o assunto da casa. Casa é entendida como unidade econômica, a oikonomia, ou seja, a relação
econômica entre os membros da família, que é composta por escravos e livres, mas que constituem, por sua
vez, uma unidade política (Política I, 1252 b 10 e 1253b). A numeração dos textos, na dissertação de Ströher,
segue a versão de Hellmut FLASHAR, Aristoteles Werke in deustcher Übersetzung; as citações em português
seguem ARISTÓTELES, A política, tradução de Roberto Leal FERREIRA.
437
STRÖHER, Marga Janete. Casa igualitária e casa patriarcal - espaços e perspectivas diferentes de
vivência cristã, p. 99-100. A autora faz a seguinte citação de Aristóteles: “Uma família completamente
organizada compõe-se de escravos e de pessoas livres. Mas como só se conhece a natureza de um todo pela
análise de suas partes integrantes, sem exceção das menores, e como as partes primitivas e mais simples da
família são o senhor e o escravo, o marido e a mulher, o pai e os filhos, convém examinar quais devem ser as
110
Lutero, provavelmente, não se baseia na filosofia de Aristóteles para fazer a sua
argumentação sobre a importância do governo da casa e o governo do país. O reformador
se firma, possivelmente, no referencial bíblico-ético-cristão, onde ele avança em sua
argumentação teológica, mas, por outro lado, fica preso à cultura patriarcal de sua época.
No mundo de Lutero, grande parte da vida econômica, social, cultural girava em torno da
casa. A expressão Hausfrau
438
, nessa época, justamente era dada para a mulher que
governava a casa, isto é, que administrava os bens e as propriedades da família. É como
Hausfrau que Dalferth se refere a Katharina von Bora, que era casada com Lutero.
439
Acentuo que não é possível fazer uma distinção rígida do mundo público e privado neste
período histórico, pois grande da parte da vida girava em torno do governo da casa. Neste
sentido, a mulher tinha um papel ativo e significativo. Renaux denominou esta unidade de
produção e de reprodução da vida de “casa global”.
440
Para aprofundar a visão do reformador em relação à mulher, trago para a reflexão o
texto de Lutero intitulado Da vida matrimonial (1522).
441
O reformador parte de Gn 1.27,
onde se afirma que Deus criou homem e mulher; por isso, “cada qual honre a pessoa e o
corpo como boa obra de Deus, que agrada ao próprio Deus”.
442
Lutero, a partir do relato da
criação, resgata o respeito à outra pessoa, bem como a importância do corpo como obra de
Deus. Na continuidade de sua reflexão, Lutero afirma: “Depois de haver criado homem e
mulher, ele os abençoou e disse: ‘Crescei e multiplicai-vos’ (Gn 1.28)”.
443
Homem e
funções e a condição de cada uma dessas três partes. Chamaremos despotismo o poder do senhor sobre o
escravo; marital, o do marido sobre a mulher; paternal, o do pai sobre os filhos... Alguns fazem também
entrar no econômico a parte relativa aos bens que compõem o patrimônio das famílias e aos meios de adquiri-
los.” ARISTÓTELES, Política I, 1253b 5-10, segundo a versão de Roberto Leal FERREIRA, p. 9. Os grifos
são do tradutor. David L. BALCH, Let wives be submissive, p. 34, observa que este é o mais importante
paralelo para os códigos domésticos do NT, o qual demonstra que o modelo de submissão, apresentando os
três pares - como em Cl 3.18-4.1 - está baseado no primitivo tópico aristotélico sobre o governo da casa.
438
Heloisa Gralow DALFERTH, Katharina von Bora, p. 44. Dalferth em sua pesquisa sobre Katharina von
Bora, esposa de Lutero faz uma referência ao termo Hausfrau afirmando: “A Hausfrau (dona-de-casa) tinha
a responsabilidade de zelar por tudo o que girava em torno da casa. É terminantemente impossível transportar
a atual compreensão do termo dona-de-casa para o século XVI. Naquela época, havia toda uma
administração por trás, pois o termo Haus (casa) não era restrito ao que hoje entendemos por lida da casa,
jardim e pequena horta. Entendia-se que também as terras, a agricultura, a criação dos animais, a
comercialização dos produtos agrícolas, a coordenação do trabalho dos empregados faziam partes das tarefas
da Hausfrau.”
439
Heloisa Gralow DALFERTH, Katharina von Bora, p.59-61.
440
Maria Luiza RENAUX, O papel da mulher no vale do Itajaí 1850-1950, p. 25: “À casa global camponesa
ou às unidades econômicas rurais correspondiam nas cidades os lares das famílias dos artesãos e dos
comerciantes, englobadas no conceito de pequena burguesia.”
441
Este texto foi redigido antes do casamento de Katharina e Lutero, que se realizou no ano de 1525.
442
Martinho LUTERO, Da vida matrimonial, p. 161.
443
Martinho LUTERO, Da vida matrimonial, p. 162.
111
mulher devem se unir para se multiplicar. O casamento está ligado à procriação. Dreher
salienta que, no texto Ensaios sobre a letra: um sermão de 1519, Lutero atribui um teor
espiritual à procriação, atentando que cabia à mulher, como boa esposa e mãe, tamm o
cuidado das crianças e a educação cristã na família.
444
Deifelt salienta:
De acordo com Lutero, o matrimônio é a melhor das instituições divinas, uma instituição
temporal (weltlich) ordenada por Deus, e que deve conter a realidade de pecado. Como
imagem de Deus, homem e mulher são iguais, o que se reflete especialmente na ordem da
redenção: ambos são justificados e chamados a viver em Cristo. Porém, na ordem natural, o
papel da mulher corresponde à sua função materna, subordinada ao homem. Lutero não
propõe uma submissão cega e unilateral das mulheres, mesmo que muitas vezes se refira a
elas em linguagem crassa. Percebe-se, nitidamente, um descompasso entre o avanço
teológico e a aquiescência à cultura da época.
445
Um resultado do avanço teológico de Lutero se mostra em relação à participação do
homem no cuidado da criança. Segundo Lutero:
Se um homem fosse lavar as fraldas ou realizasse qualquer outro serviço desprezível na
criança, e todos zombassem dele, dizendo que é um babaca e afeminado; no entanto, se ele
o fizesse no espírito (...) e na fé cristã – dize-me, agora, quem zomba mais do outro? Deus
se alegra com todos os anjos e criaturas, não porque [o pai] lava as fraldas, mas por fazê-lo
na fé.
446
Pauly salienta que “um homem trocando as fraldas por causa da fé alegra a Deus. É
um jeito de fazer culto a Deus”.
447
Lutero também diz: “Pai e mãe são apóstolo, bispo e
pastor das crianças, anunciando-lhes o Evangelho.”
448
Na sua exposição, Lutero avança de
forma positiva em suas reflexões teológicas, mas está limitado ao contexto sócio-histórico-
cultural do seu tempo. Segundo Dreher, “por um lado, se revela imbuído do patriarcalismo
dominante e, por outro, ataca e subverte pontualmente valores patriarcais”.
449
Retomando a reflexão sobre Aos conselheiros de todas as cidades da Alemanha
para que criem e mantenham escolas cristãs, Lutero fala da importância da educação “em
escolas ou em outras instituições, onde houvesse mestres e mestras instruídos e
disciplinados”
450
,
444
Luís H. DREHER, Da letra às ordens, p. 228.
445
Wanda DEIFELT, Mulheres pregadoras, p. 362.
446
Martinho LUTERO, Da vida matrimonial, p. 177.
447
Evaldo PAULY, Fé?! Qual é?!, p. 35.
448
Martinho LUTERO, Da vida matrimonial, p. 181.
449
Luis H. DREHER, Da letra às ordens, p. 228.
450
Martinho LUTERO, Aos conselhos de todas as cidades, p. 319.
112
que ensinassem línguas e outras disciplinas, e História, aí então conheceriam a história e a
sabedoria do mundo inteiro, a história desta cidade, deste império, deste príncipe, deste
homem, desta mulher e, desta forma, poderiam ter diante de si, em breve tempo, como um
espelho, a natureza, vida, conselho, propósitos, sucessos e fracassos do mundo inteiro. Isso
lhes serviria de orientação para seu pensamento e para se posicionarem dentro do curso do
mundo com temor de Deus. Além disso, a História os tornaria prudentes e sábios, para
saberem o que vale a pena perseguir e o que deve ser evitado nesta vida exterior, e para
poderem aconselhar e governar a outros de acordo com estas experiências.
451
O reformador fala da importância da instrução de mestres e de mestras, bem como
de se conhecer as experiências históricas, valorizando a história e a sabedoria do contexto
local (desta cidade, deste império, deste príncipe, deste homem e desta mulher) e global
(mundo inteiro). As experiências históricas são valorizadas pelo reformador, podendo
servir como aconselhamento para governar a outros de acordo com estas experiências. É
importante ressaltar que ele coloca no mesmo nível a importância de conhecer a história do
homem e da mulher.
Lutero também deixa claro que a educação precisa ser lúdica. As crianças precisam
aprender com prazer e brincando. Ele lança luzes para uma pedagogia lúdica. Segundo o
reformador, “pela graça de Deus, está tudo preparado para que as crianças possam estudar
línguas, outras disciplinas e História com prazer e brincando (...) mas também deveriam
aprender a cantar e estudar Música com toda a Matemática”.
452
Lutero defende a educação para meninos e meninas, ainda que de forma
diferenciada. Segundo o reformador:
Os meninos devem ser enviados diariamente por uma ou duas horas e, não obstante, fazer o
serviço em casa, aprender um ofício ou para que sejam encaminhados, para que as duas
coisas andem juntas enquanto são jovens e podem dedicar-se a isso. (...)
Também uma menina pode dispender diariamente uma hora para ir à escola e, ao mesmo
tempo, cumprir perfeitamente suas tarefas domésticas. (...)
453
Além do tempo diferenciado para a educação de meninas e meninos, é importante
ressaltar que a ida para a escola não exclui a aprendizagem das tarefas domésticas para as
meninas, o serviço em casa e a aprendizagem de um ofício para os meninos. Aqui fica
clara a questão, colocada antes por Lutero, em relação ao governo da casa e ao governo do
país. Junto com a educação escolar, aprende-se, na casa, o que significa ser mulher e ser
homem, através da aprendizagem das tarefas domésticas para meninas e da aprendizagem
451
Martinho LUTERO, Aos conselhos de todas as cidades, p. 319.
452
Martinho LUTERO, Aos conselhos de todas as cidades, p. 319.
453
Martinho LUTERO, Aos conselhos de todas as cidades, p. 320.
113
de um oficio para meninos, criando uma divisão entre os gêneros feminino e masculino. As
aprendizagens teóricas e práticas andam juntas na concepção do reformador. Ele também
diz que aqueles e aquelas que se destacam poderiam ser mais bem qualificadas e
encaminhadas “para o cargo de professores e professoras, pregadores e outros cargos
clericais; a esses tem que se proporcionar um estudo mais prolongado e intensivo ou, até,
destiná-los exclusivamente ao estudo”.
454
Portanto, percebe-se no texto de Lutero uma defesa da educação de meninos e
meninas, mesmo que em condições diferentes. Ele aponta para a importância do governo
da mulher, inserindo-a, no entanto, no âmbito do governo da casa, que, como se viu, é
bastante amplo, não significando um confinamento doméstico. No entanto, Lutero
distingue os espaços de atuação de homens e mulheres. Por outro lado, ele aponta para a
importância da formação de mestres e mestras, professores e professoras. Aqui, o
reformador já abre novos espaços para a atuação das mulheres: ser mestras. É interessante,
no entanto, constatar que ele não apoiou o ministério ordenado de mulheres. Segundo
Deifelt, Lutero se utiliza de dois argumentos para delimitar o ministério feminino.
Em primeiro lugar, utiliza o argumento cultural, ou seja, que os homens teriam mais
desenvoltura para expressar-se em público. (...) Lutero entende que seja mais apropriado
que o homem pregue, para manter o respeito e a disciplina. O segundo argumento é de
ordem teológica. Paulo invoca a lei (Gênesis 3.16) que impõe submissão às mulheres, ao
que Lutero naturalmente contrapõe o Evangelho e o Espírito. (...) Mas concorda com Paulo
que a pregação feminina não seria aceitável quando na comunidade há homens para fazê-
lo. (...) Lutero deslegitima esta conclusão ao afirmar que o ofício da pregação é comum a
todos os cristãos, tarefa de toda pessoa batizada.
455
Aqui, novamente, Lutero se encontra entre o cultural e o teológico. Deifelt acentua
dois aspectos importantes para atuação das mulheres na Igreja, a partir do movimento da
Reforma. O primeiro, para a autora, é a concepção eclesiológica, onde o sacerdócio geral
de todas as pessoas crentes, a partir do batismo, é afirmado. A Reforma afirma que a Igreja
depende de seu fundamento primeiro, que é Jesus Cristo. A hierarquia entre pessoas leigas
e ordenadas é dissipada. O segundo fator se encontra na natureza dos sacramentos. A santa
ceia é o corpo e o sangue de Jesus Cristo, independentemente de quem a oficiar.
456
Saliento
esse aspecto, pois as narradoras ressaltam em suas histórias de vida uma participação ativa
na Igreja Luterana.
454
Martinho LUTERO, Aos conselhos de todas as cidades, p. 320.
455
Wanda DEIFELT, Mulheres pregadoras, p. 363.
456
Wanda DEIFELT, Mulheres pregadoras, p. 364.
114
Em 1530, o reformador volta ao tema da educação, agora se dirigindo aos pais
cristãos, chamando-os à responsabilidade de cuidar da escolaridade dos filhos: “Uma
prédica para que se mandem os filhos à escola”. Lutero expõe, de acordo com Beck,
“amplamente aos pais o dever de bem educarem os filhos, atendendo à responsabilidade
sagrada de proverem a Igreja e o Estado de líderes e servidores”.
457
Da mesma forma, Beck
diz que Lutero em sua exposição expõe: “o prejuízo bem como os benefícios que resultam
para a Igreja e para o Estado de se negligenciar e de se promover a educação humana e
cristã dos filhos”.
458
Segundo a opinião de Lutero, “as autoridades têm o dever de obrigar
os súditos a mandarem seus filhos à escola (...) para que no futuro possamos ter
pregadores, juristas, pastores, escritores, médicos, professores e outros, pois não podemos
prescindir deles”.
459
Ele vai adiante na sua reflexão afirmando que “se o pai for pobre,
usem-se para isso os recursos da Igreja. Os ricos deveriam destinar valores para essa
finalidade em seus testamentos, como fizeram alguns que instituíram bolsas de estudo”.
460
Para Lutero, a educação não era, a rigor, uma questão espiritual; fazia parte, no entender do
reformador, do reino secular, sendo necessário “agir com a razão (...). Pois Deus sujeitou o
regime secular e as questões corporais à razão (Gn 2.19)”.
461
De acordo com Beck:
Estes escritos de Lutero não chegam a formular uma teoria cristã de educação. Servem,
porém, para justificar o empenho pela boa educação que tem caracterizado as comunidades
e os líderes luteranos desde a Reforma.
462
Portanto, esses escritos sobre a educação mostram a preocupação do reformador
com o melhoramento do mundo. Nesta pesquisa, vamos conhecer e dialogar com mulheres
que tiveram a formação básica (1º ao 4º ano primário) numa escola comunitária luterana,
além de terem nascido em famílias de identidade luterana. Para a Igreja Luterana, além da
importância da liberdade cristã, homens e mulheres são chamados a exercerem o
sacerdócio geral de todos os crentes, a partir do batismo, pois são justificados por graça e
por fé e todas as pessoas são igualmente santas e pecadoras, independentemente de classe,
etnia, gênero. A teologia feminista demonstra que estas verdades teológicas
463
, no decorrer
457
Nestor L. J. BECK, Introdução - Uma prédica para que se mandem os filhos à escola 1530, p. 326.
458
Nestor L. J. BECK, Introdução - Uma prédica para que se mandem os filhos à escola 1530, p. 326.
459
Martinho LUTERO, Uma prédica para que se mandem os filhos à escola, p. 362.
460
Martinho LUTERO, Uma prédica para que se mandem os filhos à escola, p. 362.
461
Martinho LUTERO, Uma prédica para que se mandem os filhos à escola, p. 350.
462
Nestor L. J. BECK, Educação – Introdução ao assunto, p. 301.
463
Wanda DEIFELT, Justificação pela fé fala para a experiência das mulheres, p. 8. A autora sugere que
termos teológicos como pecado e graça sejam reinterpretados a partir da experiência das mulheres e de outros
grupos oprimidos.
115
da história, tiveram pesos diferentes para homens e mulheres. Elas foram, muitas vezes,
usadas para justificar a submissão da mulher, inclusive a partir de uma leitura
fundamentalista da Bíblia. É isto que também busco analisar nas histórias de vida. Lutero
apresenta em seus escritos uma educação diferenciada para meninos e meninas. Ele é um
homem do seu tempo. Como foi possível perceber, Lutero avança a partir da teologia,
trazendo uma perspectiva de novas relações entre os gêneros, mas, por outro lado, fica
preso a argumentos da cultura que ofuscam o evangelho libertador.
Wolff, em sua pesquisa sobre Como se forma uma “boa dona de casa”: a
educação das mulheres teuto-brasileiras na Colônia Blumenau (1850-1900), constatou que
a educação da mulher imigrante européia estava voltada para o lar e para formação de uma
boa dona de casa, devendo a mesma aprender e saber cozinhar, lavar e bordar, saber fazer
pão e cerveja, cuidar dos animais, plantar (cultivar a horta, o pomar e o jardim) e ainda
trabalhar com seu marido na roça ou no seu ofício de artesão. Além disso, a mulher
imigrante também cuidava da educação dos filhos do casal, ensinava a língua de origem,
hábitos de conduta e os valores religiosos.
464
A pesquisa da autora é anterior ao nascimento
da mais idosa das entrevistadas (1918). Servirá, assim, de referência, para verificar se esta
forma de educação ainda se encontra presente na vida das ex-alunas.
O acesso à educação formal foi uma das grandes reivindicações do movimento das
mulheres no século XIX e no início do século XX, justamente porque as mulheres
perceberam o papel fundamental que o saber, o conhecimento e a teoria têm dentro da
manutenção das relações hierárquicas do poder.
465
A importância da educação das ex-
alunas na escola comunitária luterana precisa ser entendida em relação à vida dos
imigrantes luteranos, nas suas diversas formas de expressão. A instituição escolar
comunitária luterana precisa ser analisada em relação às outras instituições, como a
família, a igreja, o estado e também em relação ao contexto social, econômico e político
vigente. Há poucos registros sobre a vida de ex-alunas da escola comunitária luterana. Aí
está a importância da narração das histórias de vida. A reconstrução do papel
desempenhado pela escola comunitária luterana na vida das ex-alunas requer uma análise e
interpretação que possa localizar, identificar e interpretar as informações recolhidas nas
entrevistas, percebendo a história de vida de cada uma delas como uma construção sócio-
histórica. A partir dessa análise, será possível recuperar espaços de emancipação na
464
Cristina Scheibe WOLFF, Como se forma uma “boa dona de casa”, p. 170-171.
465
June E. HAHNER, Emancipação do sexo feminino, p. 115-182.
116
história de vida das ex-alunas. O objetivo é abrir o leque de interpretações possíveis e não
fechar o assunto ou criar novas fórmulas dogmáticas.
2.4 A importância da história de vida como técnica de pesquisa
A perspectiva etnográfica somada à metodologia feminista, atravessada pelo
referencial de gênero, mostra o traçado das etapas fundamentais da pesquisa. A história de
vida
466
será utilizada como técnica de pesquisa, correlacionada com o método proposto.
Langness afirma que a história de vida pode ser um documento escrito na 1ª pessoa
(autobiografia) ou na 3ª pessoa (biografia).
467
Ela é utilizada para expressar os dados e a
experiência ao longo de vida de uma pessoa, podendo ser relatada pela própria pessoa,
outra pessoa ou ainda por ambas. Estes dados podem ser coletados através de entrevistas,
depoimentos orais (história oral)
468
, lançando “mão da memória como fator dinâmico na
interação entre passado e presente, fugindo do aspecto estático do documento escrito que
466
A história de vida como técnica de pesquisa tem uma longa história. L. L. LANGNESS, A história de vida
na ciência antropológica, p. 16, diz que, na sociologia, o primeiro estudo de referência foi o de Thomas e
Znaniecki, intitulado The Polish Peasant in Europe na América de 1918. No entanto, deve-se à Escola de
Chicago, influenciada por Robert Park, a produção de um conjunto de estudos em que se destaca o
interacionismo simbólico de George Herbert Mead (1863-1931), trazendo uma nova maneira de pensar o
comportamento social dos indivíduos. Segundo Teresa Maria Frota HAGUETE, Metodologias qualitativas
na sociologia, p. 81: “A história de vida na sua origem é claramente subsidiária do interacionismo simbólico
de Mead em termos teóricos e de Thomas e Znaniecki em termos práticos.” Carlos FONTES, Métodos
biográficos, p. 1, chama a atenção para o fato de que a maioria do trabalho da Escola de Chicago se orientou
para a compreensão dos comportamentos desviantes em meios urbanos. As representações destes indivíduos
espelham percursos fortemente marcados por estigmas sociais, facilmente apreensíveis. Ainda segundo
Teresa Maria Frota HAGUETE, Metodologias qualitativas na sociologia, p. 83-84, a opção pelas histórias de
vida tomou maior força no mundo inteiro a partir dos movimentos de resistência, na década de 70. Neste
período, a história de vida voltou-se para os grupos silenciados, com o objetivo de dar voz aos excluídos:
camponeses, trabalhadores sazonais, operários, empregados, industriais, elite, mas também jovens
delinqüentes e outros grupos similares. Neste período, aparece também a história de vida de mulheres, devido
à força do movimento feminista. Veja também o texto de Verena ALBERTI, História oral na Alemanha, p.
1-20, este texto apresenta semelhanças e diferenças em relação com relação ao desenvolvimento da história
oral no Brasil e na Alemanha.
467
L. L. LANGNESS, A história de vida na ciência antropológica, p. 17.
468
Paul THOMPSON, A voz do passado, p. 22: “A história oral não é necessariamente um instrumento de
mudança; isso depende do espírito com que seja utilizada. Não obstante, a história oral pode certamente ser
um meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da história. Pode ser utilizada para alterar o
enfoque da própria história e revelar novos campos de investigação; pode derrubar barreiras que existem
entre professores e alunos, entre gerações, entre instituições educacionais e o mundo exterior; na produção da
história – seja em livros, museus, rádios ou cinema – pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a
história mediante suas próprias palavras.” Veja também o texto de Verena ALBERTI, História oral na
Alemanha, p. 1-20, este texto apresenta semelhanças e diferenças em relação com relação ao
desenvolvimento da história oral no Brasil e na Alemanha.
117
permanece o mesmo através do tempo”.
469
A história de vida, no entanto, é complementada
através dos documentos escritos, registros, fotografias.
470
Esta técnica de pesquisa é utilizada em diferentes áreas, como, por exemplo, nas
ciências humanas, sociais, psicológicas, médicas. É importante ressaltar que o uso desta
técnica também tem diferentes objetivos, alcançando diferentes graus de sucesso. Percebe-
se que, na teologia cristã, a narrativa bíblica apresenta fragmentos de histórias de vida e
grandes genealogias. Como diz Mesters:
A Bíblia parece um álbum de fotografias. (...) A Bíblia é o álbum de fotografias da família
de Deus. Nas suas reuniões e celebrações, o povo olhava as suas “fotografias”
471
, e os pais
contavam as histórias. Era o jeito de integrar os filhos no povo de Deus e de transmitir-lhes
a consciência da sua missão e de sua responsabilidade.
472
A Bíblia é comparada com um álbum de fotografias que retratam as histórias do
povo de Deus. Para manter viva a memória do povo, a consciência de sua missão e
responsabilidade, o povo olhava as fotografias, e os pais e as mães contavam as histórias.
As histórias de vida eram contadas oralmente como uma forma de ensino de geração em
geração: “Ouvimos, ó Deus, com os próprios ouvidos; nossos pais nos têm contado o que
outrora fizeste, em seus dias.” (Sl 44.1).
Em relação à importância do uso da história de vida, Marre afirma:
A história de vida é mais do que uma técnica de “coleta de dados”. Ela, acima de tudo, é
um recurso que deve ser utilizado como método biográfico cujo objetivo é – a partir da
totalidade sintética que é o discurso específico de um indivíduo – reconstruir uma
experiência humana vivida em grupo e de tendência universal.
473
A história de vida visa à totalidade sintética que é o discurso específico de uma
pessoa. Ela objetiva reconstruir uma experiência humana vivida em grupo e de tendência
universal. A narrativa de uma trajetória singular torna-se uma janela aberta para entender o
outro e a outra.
474
Nesta direção, Bourdieu lembra criticamente que é impossível:
Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos
sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito” cuja constância
certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar
469
Teresa Maria Frota HAGUETE, Metodologias qualitativas na sociologia, p. 93.
470
L. L. LANGNESS, A história de vida na ciência antropológica, p. 17.
471
Pergunto: Como as mulheres aparecem no álbum de fotografias da família de Deus?
472
Carlos MESTERS, Flor sem defesa, p. 18.
473
Jacques MARRE, História de vida e método biográfico, p. 89.
474
Carlos FONTES, Métodos biográficos, p. 1.
118
explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a
matriz das relações objetivas entre as diferentes estações. Os acontecimentos biográficos se
definem como colocações e deslocamentos no espaço social.
475
A história de vida não é algo somente individual, pessoal e particular, mas está
ligada ao todo. Assim como é absurdo explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar
em conta a estrutura da rede, que é a matriz das relações objetivas entre as diferentes
estações, a história de vida se define através das colocações e deslocamentos no espaço
social. A imagem do mosaico utilizada por Becker ajuda a entender a importância da
história de vida, no entendimento do todo, a partir da importância das partes:
Cada peça acrescentada num mosaico contribui um pouco para nossa compreensão do
quadro como um todo. Quando muitas peças já foram colocadas, podemos ver, mais ou
menos claramente, os objetos e as pessoas que estão no quadro, e sua relação uns com os
outros. Diferentes fragmentos contribuem diferentemente para nossa compreensão: alguns
são úteis por sua cor, outros porque realçam os contornos de um objeto. Nenhuma das
peças tem uma função maior a cumprir; se não tivermos sua contribuição, há ainda outras
maneiras para chegarmos à compreensão do todo.
476
O uso da história de vida, na sociologia, está empenhado em explicar a vida social
do ser humano e grupos humanos em determinada sociedade, situação ou contexto. De
acordo com Becker:
(...) o objeto de pesquisa da sociologia é a vida social na qual estamos todos envolvidos, a
capacidade de fazer uso imaginativo da experiência pessoal e a própria qualidade da
experiência pessoal de alguém serão contribuições importantes para a capacitação técnica
dessa pessoa. Como agir para traduzir experiência pessoal em hipótese ou, em outras
palavras, como usamos esta experiência para dar forma às hipóteses desenvolvidas de
outras maneiras?
477
O mesmo autor prossegue, dizendo:
A história de vida, mais do que qualquer outra técnica, exceto, talvez, a observação
participante, pode dar um sentido à superexplorada noção de processo. Sociólogos gostam
de falar de “processos em curso” e coisas parecidas, mas seus métodos geralmente os
impedem de ver os processos sobre os quais falam tão desembaraçadamente. (...) Pois a
história de vida, se bem-feita, nos fornecerá os detalhes deste processo cujo caráter, de
outro modo, só seríamos capazes de especular, do processo ao qual nossos dados devem se
referir em última análise, se quisermos que tenham valor teórico e não somente operacional
e de vaticínio. Ela descreverá aqueles episódios interativos cruciais nos quais novos
aspectos do eu são trazidos à existência. Assim, é por conferir uma base realista à nossa
475
Pierre BOURDIEU, A ilusão biográfica, p. 190-191.
476
Howard BECKER, Métodos de pesquisa em ciências sociais, p. 105.
477
Howard BECKER, Métodos de pesquisa em ciências sociais, p. 44.
119
imagem do processo subjacente que a história de vida serve aos propósitos de verificar
pressuposições, lançar luz sobre organizações e reorientar campos estagnados.
478
A história de vida aponta para a dimensão de “processo em movimento”
479
,
descrevendo os episódios interativos cruciais do cotidiano, onde novos aspectos do eu são
trazidos para a reflexão. Desta forma, é possível verificar pressuposições, lançando luzes
sobre organizações e reorientar campos do saber.
Na antropologia social
480
, a importância da técnica da história de vida, segundo
Eckert,
se dá na medida de sua correlação com as demais fontes de dados do método etnográfico: a
convivência prolongada que permite uma observação antropológica elaborada, o
conhecimento dos ritmos e espaços da vida cotidiana, os complexos eventos coletivos, as
múltiplas redes sociais onde os indivíduos circulam e negociam identidades (os rituais, os
laços familiares, de parentesco, o poder local, os agentes, etc.).
481
A utilização da história de vida na pesquisa exige flexibilidade, sensibilidade, uma
grande capacidade para ouvir, muita paciência, uma relação empática de respeito pela
história de vida da outra pessoa, pois esta técnica requer muitas horas, até meses e, na
presente pesquisa, anos de contato, diálogo e escuta.
482
Debert chama a atenção para a
circunstância de que, em relação à história de vida, “sempre teria sido possível mergulhar
mais profundamente nas mesmas coisas de forma a perceber novos ângulos. A cada nova
entrevista, um novo leque de questões poderia ter sido aberto”.
483
Trabalhar com a técnica
da história de vida traz a sensação do inacabamento, mas, ao mesmo tempo, aí está a
riqueza de se utilizar este procedimento de pesquisa.
Não se pode esquecer que a história de vida está inserida em uma determinada
sociedade, cultura, contexto. Ela não está isolada da história da humanidade; a pessoa está
478
Howard BECKER, Métodos de pesquisa em ciências sociais, p. 109-111.
479
Teresa HAGUETE, Metodologias qualitativas na sociologia, p. 82.
480
E. E. EVANS-PRITCHARD, Antropologia social, p. 224-225. “O antropólogo social estuda as sociedades
enquanto totalidades. Nelas examina a ecologia, a economia, as instituições legais e políticas, as organizações
familiares e de parentesco, a religião, a tecnologia, as artes, etc... como partes de sistemas sociais gerais. O
trabalho do sociólogo, por outro lado, é usualmente muito especializado constituindo-se no estudo de
problemas isolados como divórcio, crime, insanidade, distúrbios trabalhistas e incentivos industriais (...).”
481
Cornélia ECKERT, Questões em torno do uso de relatos e narrativas biográficas em experiências
etnográficas, p. 23.
482
Aspásia CAMARGO; Lucia HIPPOLITO; Valentina da Rocha LIMA, Histórias de vida na América
Latina, p. 20. “Outro aspecto fundamental da história de vida é ser ela uma técnica cuja aplicação demanda
longo tempo. Não é em uma ou duas entrevistas que se esgota o que um informante pode contar de si mesmo,
tanto mais que a duração delas é limitada devido ao cansaço. Além de exigir muitos encontros com narrador,
também deve-se contar quanto levam os relatos para serem transcritos.”
483
Guita G. DEBERT, Problemas relativos à utilização da história de vida e história oral, p. 145.
120
ligada com o coletivo, com grupos sociais, inserida num determinado contexto social e
cultural. Por isso, a história de vida está ligada com os acontecimentos nacionais e
internacionais que ocorreram no período no qual transcorre o relato da história de vida,
com a forma como estes acontecimentos moldaram a história de vida da pessoa ou grupo
pesquisado. As histórias de vida, afirma Costa, “dão aos fenômenos importante significado
pessoal e afetivo que é cada vez mais significativo nas reconstituições históricas”.
484
2.4.1 História de vida e subjetividade
Pesquisar a história de vida é valorizar a “reabilitação progressiva do sujeito e do
ator”
485
, apostando no sujeito enquanto individualidade, essência única capaz de fornecer
determinadas informações acerca de sua trajetória. História de vida é uma técnica utilizada
pela etnografia, visando à pesquisa narrativa, que é uma tentativa de “realocação do sujeito
no centro das interpretações das ciências humanas”
486
e sociais. Josso salienta:
Provavelmente nossas opções metodológicas tinham e continuam a ter necessidade de
reivindicar, de dar um lugar, justificar sua sustentação, dando uma legitimidade à
mobilização da subjetividade como modo de produção de saber e à intersubjetividade como
suporte de trabalho interpretativo e de construção de sentidos para os autores dos relatos.
487
A história de vida tem por objetivo demonstrar que a produção do saber passa pela
subjetividade de cada pessoa, sendo a interpretação e a construção dos sentidos o resultado
da intersubjetividade. Portanto, na narração da história de vida
488
encontram-se a autora da
história de vida e a pesquisadora da narrativa, as quais juntas, numa inter-relação dialógica
de troca de saberes, constroem novos saberes e novas práticas. Desta forma, a narradora
torna-se autora do texto escrito, e não somente fonte de pesquisa. A pesquisadora torna-se
uma narradora, na medida em que vai estilizando na linguagem escrita a narrativa oral.
Segundo Josso:
A originalidade da metodologia de pesquisa-formação em História de vida situa-se, em
primeiro lugar, em nossa constante preocupação em que os autores dos relatos cheguem a
uma produção do conhecimento que faça sentido para eles, que se engajem, eles próprios,
num projeto de conhecimento que os institua como sujeitos.
489
484
Cristina COSTA, Métodos e técnicas de pesquisa, p. 234.
485
Marie-Christine JOSSO, História de vida e projeto, p. 13.
486
Denice Barbara CATANI et al., História, memória e autobiografia na pesquisa educacional e na
formação, p. 21.
487
Marie-Christine JOSSO, História de vida e projeto, p. 15.
488
Veja as histórias de vida de Anneliese, Ruth, Renita e Yvonne, respectivamente capítulos 3, 4, 5 e 6.
489
Marie-Christine JOSSO, História de vida e projeto, p. 23.
121
O objetivo, portanto, de fazer uma narrativa de história de vida é, em primeiro
lugar, afirmar que cada pessoa é capaz de envolver-se pessoalmente com a produção do
conhecimento, relatando a sua experiência concreta de vida. Em segundo lugar, a narrativa
do relato da história de vida torna-se fonte de pesquisa. Como já se mencionou
anteriormente, na investigação etnográfica a ênfase está no processo e não tanto nos
resultados finais. Uma das principais características da história de vida, na pesquisa
etnográfica, “é a preocupação com o significado, com a maneira própria como as pessoas
vêem a si mesmas, as suas experiências e o mundo que as cerca”.
490
A história de vida
coloca-se como uma adequada alternativa na articulação da vida pessoal aos fenômenos
sociais mais amplos. Pollak assinala que, em cada história de vida,
encontra-se um núcleo resistente, um fio condutor, uma espécie de leit-motiv (...) devem ser
consideradas como instrumentos de reconstrução da identidade e não apenas como relatos
factuais. Por definição reconstrução a posteriori, a história de vida ordena acontecimentos
que balizaram uma existência. Além disso, ao contarmos nossa vida, em geral tentamos
estabelecer uma certa coerência por meio de laços lógicos entre acontecimentos-chave (que
aparecem então de uma forma cada vez mais solidificada e estereotipada), e de uma
continuidade, resultante da ordenação cronológica. Através desse trabalho de reconstrução
de si mesmo, o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas relações com os outros.
491
Na história de vida, vão se destacar acontecimentos-chave que vão estabelecendo
uma certa continuidade, rupturas ou marcas na existência. Essa periodização do passado,
de acordo com Debert, “está indissoluvelmente ligada à leitura que os indivíduos fazem da
experiência de vida atual e ao contexto a partir do qual são solicitados a acionar elementos
do passado ou do presente”.
492
A história de vida é um verdadeiro ato de recriação do
passado, com o objetivo de entender melhor o presente, buscando a transformação do
futuro.
Os acontecimentos-chave de uma história de vida, dentro da perspectiva da
pedagogia libertadora de Freire, estão ligados a situações-limite que podem se transformar
em inéditos viáveis, através da conscientização, do diálogo e do exercício da liberdade. A
construção do sujeito histórico, segundo a postura metodológica de Freire, realiza-se em
constante diálogo no processo de recontar e recriar a própria história.
493
Como diz Matos, é
o dar-se conta “de que a história não recupera o real do passado, não narra o passado, mas
490
Marli Eliza Dalmazo Afonso de ANDRÉ, Etnografia da prática escolar, p. 29.
491
Michael POLLAK, Memória, esquecimento e silêncio, p. 13.
492
Guita Grin DEBERT, História de vida e experiência de envelhecimento para mulheres de classe média
em São Paulo, p. 131.
493
Percebe-se esse processo na vida de Paulo FREIRE, especialmente no livro Cartas a Cristina, p. 37ss.
122
constrói um discurso sobre este, trazendo tanto o olhar, quanto a própria subjetividade do
historiador que recorda e narra o passado”.
494
2.4.2 História de vida e cotidiano
A história de vida se concretiza no cotidiano. No cotidiano, as pessoas vivem suas
relações umas com as outras, acumulam experiências de vida, crescem enquanto
individualidades. Segundo Dias:
O cotidiano define um campo de múltiplas interseções para transcender categorias e
polaridades ideológicas. Interseções que diluem conceitos como público e privado,
biológico e mental, natureza e cultura, razão e paixões, sujeito e objeto.
495
É nas interseções do cotidiano que se diluem e se transformam conceitos binários e
dualistas, tendo-se uma visão mais integral do ser humano. E, desta forma, acontecem
trocas de saberes, de fazeres, de experiências, de poderes de vida em toda a sua
materialidade. Dias nos diz:
O estudo do cotidiano nas sociedades em transformação, ao resvalar por experiências de
vida, escapa ao normativo, ao institucional, ao dito, ao prescrito e aponta para o vir a ser,
para papéis informais, para o provisório e o improvisado, em geral para o vivido, o
concreto, o imponderável e o não-dito, sobretudo quando confrontado com regras, valores
herdados e papéis prescritos (...).
496
O cotidiano traz experiências de vida que escapam ao normativo, ao institucional,
ao dito, apontando para o novo, buscando a superação de regras, valores herdados e papéis
prescritos. Certeau, em seu livro A invenção do cotidiano, contrapõe “maneiras de fazer” a
“maneiras de escrever”: “Como na literatura se podem diferenciar ‘estilos’ ou maneiras de
escrever, também se podem distinguir ‘maneiras de fazer’ – de caminhar, ler, produzir,
falar”.
497
A vida cotidiana, como nos diz Agnes Heller, é a vida de todo ser humano. Todas
as pessoas vivem o cotidiano, independentemente do lugar que ocupam na divisão do
trabalho intelectual ou físico. O ser humano participa na vida cotidiana com todos os
aspectos de sua subjetividade e objetividade. O amadurecimento para a cotidianidade
começa sempre em grupo, geralmente na família, na escola, em pequenas comunidades. E
esses grupos face-to-face estabelecem uma mediação entre o ser humano e os costumes, as
494
Maria Izilda S. de MATOS, Gênero, p. 98.
495
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Teoria e método dos estudos feministas, p. 51-52.
496
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista, p. 375.
497
Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano, p. 92.
123
normas e a ética de outras integrações maiores. O ser humano aprende no grupo os
elementos da cotidianidade.
498
Agnes Heller continua dizendo que a vida cotidiana
não está “fora” da história, mas no “centro” do acontecer histórico: é a verdadeira
“essência” da substância social. (...) quem assimila a cotidianidade de sua época, assimila
também, com isso, o passado da humanidade, embora tal assimilação possa não ser
consciente, mas apenas “em-si”.
499
É para o centro da vida cotidiana que a narrativa da história de vida das ex-alunas
se move, onde se faz presente a arte do fazer e, a partir do registro escrito, também a arte
de escrever, repensando a própria vida. As narradoras fazem parte da humanidade, sendo
simultaneamente, ser particular e ser genérico... A unicidade e irrepetibilidade são, nesse
ponto, fatos ontológicos fundamentais”.
500
O ser humano também é um ser genérico. A representação do ser humano genérico
é sempre dada pela comunidade “através” da qual este realiza o seu percurso, ao longo da
vida, realizando a história da humanidade. É na relação com a comunidade que se forma a
“consciência de nós” e a “consciência do Eu”.
501
Elias também afirma: “Não há identidade-
eu sem identidade-nós”.
502
No entanto, segundo Heller, “as possibilidades da vitória espontânea da
particularidade suscitaram a ética como uma necessidade da comunidade social”.
503
O
cume da elevação moral acima da cotidianidade é a catarse. Na catarse, o ser humano
torna-se consciente do humano-genérico e de sua individualidade.
504
O contar a vida,
chorar, desabafar, dizer a sua palavra foi um momento importante de catarse para as ex-
alunas.
A teóloga feminista Gebara afirma que “a partir da questão de gênero o cotidiano
aparecerá como elemento importante na historiografia das mulheres”.
505
Ela define assim a
importância do cotidiano:
498
Agnes HELLER, O quotidiano e a história, p. 19.
499
Agnes HELLER, O quotidiano e a história, p. 20.
500
Agnes HELLER, O quotidiano e a história, p. 20. Os grifos são da própria autora.
501
Agnes HELLER, O quotidiano e a história, p. 21.
502
Norbert ELIAS, A sociedade de indivíduos, p. 151.
503
Agnes HELLER, O quotidiano e a história, p. 23.
504
Agnes HELLER, O quotidiano e a história, p. 23.
505
Ivone GEBARA, Rompendo o silêncio, p. 121.
124
(...) o cotidiano das mulheres se introduz na ciência chamada universal para lembrar-lhes o
concreto, as coisas que são necessárias à vida ou à sobrevivência. (...) o cotidiano são
nossas histórias pessoais, nossos sentimentos diante dos acontecimentos (...) O cotidiano
das mulheres e dos homens entra na ciência histórica para mostrar que as grandes estruturas
econômicas e políticas têm a ver com o que vivemos em nossos lares.
506
Ter presente o cotidiano é penetrar na análise crítica da própria história,
objetivando a sua avaliação e conseqüente transformação. A trama miúda da vida cotidiana
revela o tecido social. Segundo Matos, “a descoberta do político no âmbito do cotidiano
(...) envolve a interação sem uma neutralidade prefixada, criando uma verdadeira
sintonia”
507
entre a pesquisadora e as narradoras.
2.4.3 História de vida e memória
Visibilizar e recuperar a memória transgeracional
508
de mulheres, ex-alunas de
escola luterana, como já salientei, tem como propósito uma discussão sobre a interface da
religião e da educação no processo educacional das mulheres. A história de vida permite
tornar presente a memória de uma pessoa ou de um grupo, apontando para a sua dimensão
social. Como afirma Bosi, em seu livro Memória e sociedade: lembrança de velhos, “(...)
esse registro alcança uma memória pessoal que, como se buscará mostrar, é também uma
memória social, familiar e grupal”.
509
A memória pessoal está, intrinsecamente, inter-
relacionada com a memória coletiva.
Neste sentido, Halbwachs afirma que a memória não é apenas algo pessoal, mas
também uma memória coletiva:
Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros,
mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com
objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que
outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre
conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem.
510
Como pessoas humanas não somos uma ilha, vivemos em constantes relações. A
vivência cotidiana nos proporciona o entrelaçamento de memória pessoal e memória
coletiva. Cada memória individual é única e “cada memória individual é um ponto de vista
506
Ivone GEBARA, Rompendo o silêncio, p. 121.
507
Maria I. F. MATOS, Gênero, p. 97-104.
508
Paul RICOEUR, O passado tinha um futuro, p. 375: “Uma memória transgeracional assegura assim a
transição entre a memória individual e coletiva e a história dos historiadores.”
509
Ecléa BOSI, Memória e sociedade, p. 1.
510
Maurice HALBWACHS, A memória coletiva, p. 26.
125
sobre a memória coletiva (...) este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo e
(...) este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios”.
511
Halbwachs, analisando a memória coletiva, enfatiza a força dos diferentes pontos
de referência que estruturam nossa memória da coletividade a que pertencemos. O autor
insinua não somente a seletividade de toda memória, mas também um processo de
“negociação” para conciliar memória coletiva e memórias individuais. Ele acentua a
necessidade de uma comunidade afetiva, afirmando que a função da memória coletiva é de
reforçar ou constituir um sentimento de pertinência a um grupo, classe ou categoria que
participa de um passado comum. O que está em jogo é tamm o sentido da identidade
individual e grupal.
512
Portanto, a memória do indivíduo não depende somente de sua
subjetividade, “mas do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a
escola, com a igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de
referência peculiares a esse indivíduo”.
513
“Se lembramos, é porque os outros, a situação presente, nos fazem lembrar”.
514
Foi
o que aconteceu no encontro inicial com Anneliese. Ela recordou a partir de uma frase
colocada pela pesquisadora num momento especial de sua vida (aniversário), no espaço da
comunhão de mesa e pelo fato – segundo minha suspeita – de estar sendo professora
naquele momento histórico. O lembrar está relacionado com outras pessoas. Bosi salienta
que: “Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar,
com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado”.
515
Halbwachs, segundo Bosi,
“amarra a memória da pessoa à memória do grupo; e esta última à esfera maior da tradição,
que é a memória coletiva de cada sociedade”.
516
A linguagem é o elemento socializador da
memória.
517
Aqui se encontra um elemento importante para a narração da história de vida.
Ela se realiza a partir de um processo dialógico, onde o ato de contar e de ouvir é de
fundamental importância, acontecendo uma interação de compromisso entre a narradora e
a pesquisadora, indo além da simples técnica, mergulhando na pluralidade da vida.
Pesquisadora e narradora numa relação de alteridade são, então, potencializadas para
511
Maurice HALBWACHS, A memória coletiva, p. 51.
512
Maurice HALBWACHS, A memória coletiva, p. 25-52.
513
Ecléa BOSI, Memória e sociedade, p. 54.
514
Ecléa BOSI, Memória e sociedade, p. 54.
515
Ecléa BOSI, Memória e sociedade, p. 55.
516
Ecléa BOSI, Memória e sociedade, p. 55.
517
Ecléa BOSI, Memória e sociedade, p. 56.
126
tornarem visível a história silenciada, perpassada por lágrimas e sorrisos, fracassos e
vitórias.
A memória, segundo Pollak, “ao definir o que é comum a um grupo e o que o
diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras
sócio-culturais”.
518
Ao reconstruir os acontecimentos, também se constrói a identidade
pessoal e a do grupo no qual a pessoa se encontra inserida. Para o autor, quando a pessoa
recorda, ela elabora uma representação de si mesma e para aquelas pessoas que a rodeiam.
Isso requer um sentido de coerência, de unicidade e de continuidade de uma pessoa ou de
um grupo social, na reconstrução de si. O ato de lembrar também traz conflitos, pois vai
recuperar a “memória ‘proibida’ e portanto ‘clandestina’”
519
, ou seja, a memória social do
grupo, trazendo presente as relações de poder. “Para poder relatar seus sofrimentos, uma
pessoa precisa antes de mais nada, encontrar uma escuta”.
520
Percebe-se, portanto, que
“existem nas lembranças de uns e de outros zonas de sombras, silêncios, ‘não-ditos’”.
521
Le
Goff assinala que
(...) a memória coletiva foi um importante elemento de luta das forças sociais pelo poder.
Tornar-se senhor da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das
classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram as sociedades históricas. Os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de
manipulação da memória coletiva.
522
A memória coletiva tem se utilizado dos esquecimentos e dos silêncios. Por isso
mesmo, os esquecimentos e os silêncios são chaves hermenêuticas para analisar as
histórias de vida das ex-alunas. Segundo Le Goff:
A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado
para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva
para a libertação e não para a servidão dos homens e [das mulheres].
523
É muito importante conservar a memória histórica preservando os museus, as
bibliotecas e os monumentos edificados. Não se pode, entretanto, apagar ou neutralizar a
memória que se opõe ao poder estabelecido na esperança de que ela seja esquecida. “O
longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma
518
Michael POLLAK, Memória, esquecimento e silêncio, p. 3.
519
Michael POLLAK, Memória, esquecimento e silêncio, p. 5.
520
Michael POLLAK, Memória, esquecimento e silêncio, p. 5.
521
Michael POLLAK, Memória, esquecimento e silêncio, p. 8.
522
Jacques Le GOFF, História e memória, p. 422.
523
Jacques Le GOFF, História e memória, p. 477. A inclusão [das mulheres] é minha.
127
sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais”.
524
O silêncio é um sinal
de resistência ao poder instituído. “Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos
marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias
subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à
‘memória oficial’”.
525
A visão de história de Benjamin, segundo Gagnebin, não consistia “simplesmente
na conservação do passado, mas (...) transformação ativa do presente”.
526
O pensamento de
Benjamin é paradoxal e se aproxima da tradição profética judaica, pois funda a visão do
futuro e não a nostalgia do passado. Segundo Gagnebin:
Um paradoxo que se esclarece, e se compreende que o verdadeiro objeto da lembrança e da
rememoração não é simplesmente, a particularidade de um acontecimento, mas aquilo que,
nele, é criação específica, promessa do inaudito, emergência do novo. Se a lembrança se
contenta em conservar piamente o passado numa fidelidade inquieta e crispada, ela se
torna, sub-repticiamente, infiel a ele porque negligencia o essencial: que havia nele de
renovação e que só pode repetir-se sendo outro, criação e diferença. Essa estrutura
paradoxal do lembrar criador e transformador (inerente à compreensão autêntica do rito),
funda a concepção benjaminiana de uma escrita da história ao mesmo tempo destrutora e
salvadora. A veemência, mesmo a violência da tradição profética e radicalidade da tradição
marxista se encontram aqui na exigência de uma salvação que não consista simplesmente
na conservação do passado, mas que seja também transformação ativa no presente.
527
Portanto, para Benjamin, o verdadeiro objeto da lembrança e da rememoração é a
emergência do novo. O lembrar não consiste simplesmente na conservação do passado,
mas na transformação ativa do presente. Para o autor, “o narrador (...) é um lapidário”.
528
Percebe-se aqui uma ligação com a metodologia feminista, onde a consciência da exclusão
leva à recuperação de uma tradição e de uma memória das próprias mulheres, conduzindo
para uma renomeação das experiências e a formulação de novas propostas.
As memórias silenciosas, clandestinas, subterrâneas resistem e insistem na
sobrevivência de geração em geração. Elas são transmitidas pela via da oralidade, de mãe
para filhos e filhas, amigos e amigas, grupos para grupos. Memória silenciosa que requer
ser tirada da clandestinidade, despertada e anunciada. Ela está presente nos “movimentos
de minorias culturais e discriminadas, principalmente de mulheres, índios, homossexuais,
negros, desempregados, além de migrantes, imigrantes, exilados, tem encontrado espaço
524
Michael POLLAK, Memória, esquecimento e silêncio, p. 5.
525
Michael POLLAK, Memória, esquecimento e silêncio, p. 4.
526
Jeanne Marie GAGNEBIN, História e narração em Walter Benjamin, p. 105.
527
Jeanne Marie GAGNEBIN, História e narração em Walter Benjamin, p. 105.
528
Walter BENJAMIN, O narrador, p. 79.
128
para abrigar suas palavras, dando sentido social às experiências vividas sob diferentes
circunstâncias”.
529
2.5 Recuperação da história de vida das ex-alunas: O estranhamento que se
transforma em compromisso
A pesquisa começou com um encontro, um momento onde se recordou a vida, onde
memória silenciosa e clandestina aflorou. Para Benjamin, “a experiência transmitida
oralmente é a fonte de que hauriram todos os narradores [e as narradoras]”.
530
A autora
Dewey lembra o seguinte:
A autoridade oral é intrinsecamente democrática e igualitária: a possibilidade de conquistar
autoridade oral está ao alcance da maioria das pessoas. Quase todas são capazes de falar;
falar bem requer habilidade, prática e experiência, mas não requer instrução formal. (...) O
meio oral é um meio de oportunidades relativamente iguais.
531
Este momento de “ouvir contar”
532
conduziu ao processo que se encontra no
terceiro, quarto, quinto e sexto capítulo, que são as narrativas escritas das ex-alunas. A
formação de um vínculo de amizade foi fundamental no processo da elaboração das
narrativas. Uma amizade marcada pela relação de alteridade, resultando num
amadurecimento e compromisso em compreender a vida que se ia revelando através das
narrativas. Foi fundamental nesse processo, a pergunta suscitada por Bachelard: “como
habitamos o nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas da vida, como nos
enraizamos, dia a dia, num ‘canto do mundo’”.
533
O autor afirma que o conhecimento da
intimidade pessoal, por meio das memórias, dá-se pela recordação dos espaços em que se
passaram as vivências. Ele afirma: “Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo
comprimido. O espaço serve para isso. (...) É pelo espaço, é no espaço que encontramos os
belos fósseis de uma duração concretizados em longos estágios”.
534
A casa, o jardim, a
horta, a roça, a rua, a escola, a igreja, os salões de baile, o trabalho, viagens são espaços
que habitam as recordações das narradoras. A pergunta que faz é: são espaços de opressão
ou libertação, de alienação ou emancipação?
Segundo Thompson:
529
José Carlos Sebe Bom MEIHY, Manual de história oral, p. 9.
530
Walter BENJAMIN, O narrador, p. 64.
531
Joanna DEWEY, Das histórias orais ao texto escrito, p. 30.
532
Título do livro de Verena ALBERTI, Ouvir contar, 2004.
533
Gaston BACHELARD, Poética do espaço, p. 24.
534
Gaston BACHELARD, Poética do espaço, p. 28.
129
Recordar a própria vida é fundamental para nosso sentimento de identidade, continuar
lidando com essa lembrança pode fortalecer, ou recapturar a autoconfiança. A dimensão
terapêutica do trabalho da história de vida tem sido uma descoberta que sempre se repete.
(...) Os sociólogos também assinalaram a dimensão confessional da entrevista de história
de vida e, em parte porque grande parcela de seu trabalho tem sido feito com indivíduos de
comportamento desviante que muitas vezes são isoladas como pessoas, têm-se defrontado,
de modo especial, com reações inesperadamente calorosas dadas a um ‘ouvido
solidário’.
535
O vínculo da amizade, da confiança, do ouvido solidário, de uma postura ética
resultou num processo de aproximação e amadurecimento entre pesquisadora e narradoras.
Foi um tempo de epifania, revelação da vida de quatro mulheres. Benjamin , assim como
Thompson, evoca o valor terapêutico e salvador das narrativas:
que, como o gesto lento e preciso das mãos acariciantes, pode acarretar a cura. (...) todas
essas narrativas devem, para ser ‘o começo de um processo curativo’, ter a força de romper
o que como ‘uma barragem (...) resiste ao fluxo narrativo’, isto é, ‘a dor’, essa dor que não
quer saber da sua história. (...) Para Benjamin, o obstáculo real à enunciação verdadeira da
história, a essa retomada do passado na fidelidade transformadora do presente, não é tanto
de ordem epistemológica ou científica, mas, muito mais, de cunho ético e político: a
dificuldade do sofrimento vir a ser realmente dito, isto é, a exigência de trabalhar essa
narração, árdua, de desfazer os nós da dor na multiplicidade das palavras, de torná-la como
que mais fluida para poder levá-la (...) no fluxo de uma narração redimida até o mar do
feliz esquecimento.
536
A narrativa
537
aparece para o autor como sede da experiência vivida. O passado é
narrado com lembranças e esquecimentos.
538
O poder curativo se encontra na retomada do
passado na busca transformadora do presente. Na narrativa das histórias de vida, também
transparecem processos de enraizamento e desenraizamento
539
, levando para a construção
ou não de um sentimento de identidade pessoal, coletiva, onde a lembrança, o rememorar,
elevou a auto-estima e a autoconfiança das narradoras.
535
Paul THOMPSON, A voz do passado, p. 208.
536
Jeanne Marie GAGNEBIN, História e narração em Walter Benjamin, p. 110.
537
Jeanne Marie GAGNEBIN, História e narração em Walter Benjamin, p. 100-101. “Em sua teoria da
narração e em sua filosofia da história em particular, o indício de verdade da narração não deve ser procurado
no seu desenrolar, mas, pelo contrário, naquilo que ao mesmo tempo lhe escapa e esconde, nos seus tropeços
e nos seus silêncios, ali onde a voz se cala e retoma fôlego. (...) essas paradas e esses silêncios são outros
tantos signos daquilo que deve ou quer ser negado pelo historiador oficial (...) É necessário se utilizar da
‘hermenêutica da suspeita’ ( Ricoeur ).”
538
Jeanne Marie GAGNEBIN, História e narração em Walter Benjamin, p. 110 “(...) o esquecimento não é
sinônimo de perda, como ocorre tantas vezes na reflexão historiográfica de Benjamin, sempre preocupado em
salvar o passado de um abandono definitivo. O esquecimento remete aqui à felicidade porque não significa
mais negligência e injustiça, mas, além desta rememoração perigosa que é a dolorosa narração da história, a
intensidade do presente. (...) O esquecimento significa aqui a resposta ativa ao apelo do presente e à
promessa do futuro.”
539
Ecléa BOSI, Cultura e desenraizamento, p. 16-41. “Seria mais justo pensar a cultura de um povo migrante
em termos de desenraizamento. Não buscar o que se perdeu: as raízes já foram arrancadas, mas procurar o
que pode renascer nesta terra de erosão”. (p. 17).
130
Desta forma, as ex-alunas, ao relatarem suas histórias de vida, através do ato de
narrar, voltaram um olhar para suas próprias trajetórias de vida, organizaram o tempo e o
espaço a partir das marcas deixadas na memória. À medida que elas narravam suas
histórias de vida, levantavam e baixavam os seus olhares, os seus corpos encurvavam-se e
ficavam eretos, sorrisos e lágrimas se fizeram presentes, o rosto se enrugava ou abria-se em
alegria. 0s baús da memória e as portas dos quartos, das gavetas, dos armários e as caixas
de fotografias, documentos, cartas, roupas e objetos foram aos poucos sendo abertos e
mostrados, revelando e desvelando as suas histórias de vida
540
, redescobrindo a
importância das suas raízes. As narrativas aconteceram tendo um sentimento parecido
como o de Freire, dialogal e emancipador: “É com este espírito enraizado no agora que
repenso o que vivi”.
541
De acordo com Weil:
O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma
humana e uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua
participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos
certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro.
542
A construção das escolas comunitárias luteranas foi uma das formas de buscar o
enraizamento do povo imigrante europeu em terras brasileiras, preservando um tesouro do
seu passado que era a educação.
543
Essas escolas também inauguraram um novo jeito de
fazer educação em terras brasileiras, onde meninas e meninos estudavam juntos na mesma
sala de aula.
544
A narração das histórias de vida das ex-alunas de escola luterana procura afirmar
que cada mulher é um ser humano histórico, com raízes a serem recuperadas, capaz de
envolver-se com a construção do conhecimento. Quando as mulheres narram suas histórias
de vida, processa-se a construção da auto-estima, de um sentimento de identidade de classe
social, gênero, etnia, profissão, religião, de pertinência a comunidades afetivas
545
, ou
540
Myriam Moraes Lins de BARROS, Memória e família, p. 35: “Esses objetos não são apenas partes de um
passado, mas símbolos da família, dos laços de descendência, que podem ser transcritos como bens que
contêm uma história.”
541
Paulo FREIRE, Cartas a Cristina, p. 21.
542
Simone WEIL, A condição operária e outros estudos sobre a opressão, p. 317.
543
Arthur Blasio RAMBO, O teuto-brasileiro e sua identidade, p. 69: “Os colonizadores alemães, desde
muito cedo, elegeram a escola como um dos meios mais eficazes do combate ao que consideravam
decadência cultural e religiosa. Em todos os núcleos coloniais cuidou-se, então, desde o início, de
fundamentar a escola e a educação em bases sólidas.”
544
Wanda DEIFELT, Educação, teologia e cidadania, p. 16.
545
Ecléa BOSI, Cultura e desenraizamento, p. 30-41, reflete sobre a importância do culto e da liturgia como
elementos para o enraizamento dos migrantes. Este aspecto será importante na análise das narrativas, pois
131
categorias que participam de um passado comum, destacando-se acontecimentos geradores
que estabelecem continuidades, rupturas e marcas na existência. O objetivo é construir um
novo saber a partir da memória silenciada e oculta do cotidiano da vida escolar das
mulheres. Conforme Soave:
Com a passagem da memória oral para a memória escrita aconteceu um forte processo de
emudecimento de mulheres, crianças e pobres. O papel das mulheres foi reduzido ao
mínimo. A memória das mulheres acabou sendo moldada com as formas patriarcais dos
textos escritos. A tradição escrita androcrática (de poder exclusivamente masculino)
controlou cada vez mais o conteúdo da tradição oral.
546
O emudecimento das mulheres se deu na passagem da memória oral para a
memória escrita. Esse silêncio-marginal que nasce da clandestinidade e do ocultamento é
necessário recuperar. A mulher sempre transmitiu a história, contando relatos e mantendo
viva a memória. Segundo Perrot: “É também pelas mulheres – mulheres crepusculares –
que se transmite, muitas vezes de mãe para filha, a longa cadeia de histórias de família ou
aldeia”.
547
Contudo, a maioria dos relatos das mulheres tem permanecido na tradição oral.
A mesma autora continua dizendo: “Enquanto a escola, as formas modernas de
organização, o próprio sindicalismo constroem histórias oficiais, depuradas e acabadas, as
mulheres guardam o traço do que se gostaria de recalcar”.
548
A diferença em relação aos
relatos do passado entre os homens e as mulheres, para Perrot, está no fato de que os
homens se mostram mudos, pois esqueceram quase tudo que não tem ligação com a vida
do trabalho, enquanto as mulheres se mostram faladoras quando deixam vir a onda de
lembranças, quando falam da vida cotidiana.
549
“O homem habituou-se demais a impor
silêncio às mulheres, a rebaixar suas conversas ao nível de tagarelice, para que elas ousem
falar em sua presença”.
550
O controle da fala e da memória são formas visíveis de
dominação e de tutela do homem sobre a mulher, que se mostra naquilo que Bourdieu
denominou de dominação masculina.
551
Desta forma, foram impostas às mulheres regras
sociais, jurídicas, morais e religiosas, deixando-as na “sombra da história”.
552
O trabalho,
elas vêm de mulheres luteranas e ex-alunas de escola confessional luterana, que trazem consigo também uma
história de imigração.
546
Maria SOAVE, Luas ...: contos e en-cantos dos evangelhos, p. 8.
547
Michelle PERROT, Os excluídos da história, p. 207.
548
Michelle PERROT, Os excluídos da história, p. 207.
549
Michelle PERROT, Os excluídos da história, p. 207.
550
Michelle PERROT, Os excluídos da história, p. 207.
551
Pierre BOURDIEU, A dominação masculina, p.45-67
552
Georges DUBY; Michelle PERROT, Escrever a história das mulheres, p. 7-8.
132
portanto, de recuperação dessa presença ativa feminina exige uma atenção particular aos
silêncios.
Ao tirarem a memória da clandestinidade, com seus silêncios, lutas, sofrimentos,
ditos, não-ditos, estratégias, ousadia e coragem, as mulheres estão sendo chamadas não
somente para visibilizar a experiência de opressão e alienação, mas também para se
assumirem como protagonistas de libertação e emancipação. O Evangelho de Mateus 26.6-
13 nos diz:
(...) aproximou-se dele uma mulher, trazendo um vaso de alabastro cheio de precioso
bálsamo, que lhe derramou sobre a cabeça, estando ele à mesa. Vendo isto, indignaram-se
os discípulos e disseram: Para que este desperdício? (...) Por que molestais esta mulher?
Ela praticou boa ação para comigo. (...) pois, derramando este perfume sobre o meu corpo,
ela o fez para o meu sepultamento. Em verdade vos digo: Onde for pregado em todo o
mundo este evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua.
553
“Onde for pregado em todo mundo este evangelho, será também contado o que ela
fez, para memória sua”: Jesus coloca no centro do Evangelho, a memória da mulher, que se
preocupa com o perfume da vida, que vence a morte.
554
O gesto litúrgico e solidário da
mulher traz esperança para todas e todos crucificados da terra. Têm-se, portanto, a partir da
narrativa bíblica uma grande motivação para a realização da presente pesquisa, a partir das
narrativas das ex-alunas de escola comunitária luterana. Que as narrativas das histórias de
vida de Anneliese, Ruth, Renita e Yvonne envolvam a todos e todas, na arte de tecer a
vida.
553
Conforme A Bíblia Sagrada, tradução João Ferreira de Almeida.
554
Maria José Fontelas Rosado NUNES, De mulheres e deuses, p. 10-12. O título do livro da E. S.
FIORENZA no inglês diz: In Memory of Her: A Feminist Theological Reconstruction of Christian Origins, e
no francês En mémoire d’elle – Essai de reconstruction des origines chrétiennes selon la théologie féministe,
enquanto que na tradução brasileira foi suprimido Em memória dela, e o título ficou: As origens cristãs a
partir da mulher – Uma nova hermenêutica. O termo em grego fala de memorial, lembrança e memória. A
autora levanta a questão da memória das mulheres, mostrando um discipulado de iguais que foi silenciado
pela tradição cristã, pois nem o nome da mulher aparece no Evangelho. O gesto da mulher é um rito litúrgico,
esquecido pela comunidade cristã. A morte de Jesus na cruz traz, dialeticamente, o perfume da vida e a
esperança para todas as pessoas crucificadas da terra.
133
III - HISTÓRIA DE VIDA DE ANNELIESE
Nasci no dia 17 de março de 1918, em Swakopmund, Okahandja, na África do
Sudoeste. Meus pais se chamavam Matthäus Weh e Margarete Heidenreich. Eles eram
naturais da Alemanha. Quando nasci, trabalhavam em Swakopmund, na África. Eu nasci
no final da I Guerra Mundial. Eu sou a segunda filha. A minha primeira irmã, Hildegard,
nasceu no dia 24 de março de 1916. Minha segunda irmã chamava-se Charlotte. Eu não
lembro a data do seu nascimento. Não recordo muita coisa dela, somente que a vi morta,
no necrotério. Ela faleceu pequena na Alemanha, vítima de tifo.
A placa diz:
Swakopmund 4
Okamandja 190
Windhoek 235
Sw. 19.9.73
Querida Hildegard e querida Anneliese!
Para vocês se destina hoje a nossa lembrança. Nós
estamos aqui por uma semana. Eu penso muito nos
pais de vocês, pena que não possamos mais contar a
eles. É muito bonito aqui e tudo tão alemão. Toda a
cidade lembra muito o velho tempo alemão. É
interessante, de um lado o Atlântico e de outro o
deserto. De Windhoek até aqui são
aproximadamente 400 km. Um trecho passa pelo
deserto. Eu ficaria muito grata se vocês numa
oportunidade nos comunicassem que a
correspondência da África chegou até vocês. A
partir de 10.10 estaremos novamente na Alemanha.
Também já descobrimos o Hansa Hotel. A vocês e à
família cordiais lembranças.
Vossa família P. Waidner e Irmhild
Documento 1
134
A correspondência que recebi em 19.09.1973 do P. Waidner e da Irmhild lembra a terra do
meu nascimento e do da minha irmã Hildegard. Certamente passei por esta estrada quando
eu era criança. Eu saí da África com 3 anos e nunca mais voltei para lá.
Quando eu tinha 3 anos, em 1921, minha família mudou-se novamente para a
Alemanha. Neste período, Swakopmund, que era uma colônia alemã na África, passou para
o domínio inglês. Meu pai trabalhava como capataz de uma fazenda. Minha mãe
trabalhava num grande hotel, chamado Hansa Hotel.
Minha avó materna era agricultora e viúva. Ela pediu para que nós voltássemos
para a Alemanha, para tomar conta de suas terras e cuidar dela, pois a sua outra filha,
minha tia Joana, iria casar e morar nas terras de seu futuro marido
555
. Só que o casamento
da tia Joana não deu certo, e nós ficamos sobrando. A terra de minha avó era pouca e não
dava para duas famílias sobreviver. Lembro que, então, meus pais fizeram um jogo com
uma moeda para ver para onde iriam. De um lado estava o Brasil e de outro estava a
África. Jogaram a moeda para o alto e, quando ela caiu, deu Brasil. Quando já estávamos
no Brasil, um dia recebemos uma carta de minha avó, onde ela pedia perdão por ter nos
chamado da África e por termos ficado sem trabalho e sem terra na Alemanha. Lembro de
uma frase de sua carta: “Perdoa-me, se é possível me perdoar...”
Meu pai veio meio ano antes para o Brasil, com o propósito de conhecer o lugar e
comprar um pedaço de terra.
Documento 2
555
Os/as filhos/as mais velhos/as ficavam com as terras dos pais. Como Joana era a filha mais velha e o seu
casamento não tinha dado certo, ela ficou com as terras da sua mãe, avó de Anneliese, como herança. As
terras, na Alemanha, também eram poucas. A família de Anneliese ficou sobrando. Não havia mais lugar
para eles e tampouco terras para trabalhar. Não havia outra solução senão migrar: voltar para a África ou
aventurar-se para o Brasil.
Passaporte do meu pai. Ele saiu da Alemanha, via
porto de Hamburgo, no dia 21 de maio de 1924.
A sua profissão (Beruf) era agricultor (Landwirt).
135
Então, viemos nós três, minha mãe, minha irmã e eu. Era outubro de 1924. Eu
estava com 6 anos. Viajamos de navio. A nossa viagem durou três semanas. Da viagem
não lembro muita coisa. Lembro que, num determinado momento, foi dito por alguém que
estávamos atravessando a linha do Equador. Também houve um batismo, uma espécie de
rito, em que as pessoas que nunca tinham viajado, homens, mulheres e crianças, foram
molhadas. Lembro que chorei por causa disto. Também não esqueço que nós três
dormíamos numa beliche. A mãe dormia na cama de baixo, minha irmã e eu dormíamos
juntas na cama de cima.
Documento 3
Documento 4
Passaporte da minha mãe,
juntamente comigo e com minha
irmã Hildegard. Aqui vê-se a foto
de minha mãe com a minha irmã
Hildegard com 8 anos. A
profissão Beruf da mãe aparece no
passaporte como agricultora
Landwirtschfrau.
Aqui está a minha foto. Nós
saímos da Alemanha, via Porto
de Hamburgo, no dia 8 de
outubro de 1924.
136
Chegamos ao Porto de São Francisco do Sul – Santa Catarina
556
. Viemos de trem
para Jaraguá do Sul. A nossa parada foi no Hotel Central. De repente, vi meu pai chegando
para nos levar para a nossa nova casa. Lembro que ele estava usando um chapéu verde.
Cumprimentamo-nos com alegria. Meu pai já tinha comprado terras e animais na
localidade chamada Três Rios do Sul. Chamou-me a atenção, quando chegamos à nossa
nova morada, que, para sinalizar o portão de entrada da propriedade, só havia uma vara
levantada que era amparada por dois postes. No mais era tudo aberto, sem cercas.
Eu tinha ido para a escola apenas meio ano na Alemanha. Lembro que, no primeiro
dia de aula, a minha mãe foi junto comigo para a escola. No segundo dia, eu já fui sozinha,
acabei me perdendo e chorei muito. Depois encontrei novamente o caminho para casa.
Nunca mais me perdi. Não esqueço que havia muito toco e pedra no caminho por onde
tinha que passar para ir à escola. Meu primeiro professor foi também o professor de minha
mãe. Aprendi a ler, escrever e fazer contas. Também precisava fazer trabalho manual. Eu
fiz um par de meias de tricô.
Foto 1
Esta foto é de 1924. Ela lembra minha primeira escola. Eu sou a primeira
sentada à esquerda, juntamente com minhas colegas e o meu primeiro professor
557
.
556
No ano de 2005, São Francisco comemorou 500 anos de história, sendo a terceira cidade mais antiga do
Brasil. O porto continua funcionando ainda hoje, com a chegada e o envio de mercadorias.
557
Pela foto percebe-se que se trata de uma escola só de meninas.
137
Em Jaraguá do Sul, meu pai nos matriculou, a mim e a minha irmã, na Escola
Jaraguá, pertencente à Igreja Evangélica Luterana. Eu e minha irmã começamos a
freqüentar a Escola Jaraguá no início do ano de 1925. Sempre íamos a pé, levávamos cerca
de duas horas para chegar à escola. Quando voltávamos para casa, sempre chegávamos
passado das 2 horas da tarde. Então, almoçávamos, tirávamos um pequeno descanso e, daí,
íamos junto trabalhar na roça com o pai e a mãe. Brincar só era permitido no domingo. Eu
gostava de brincar de bonecas. Fazíamos casinha com folhas de árvore.
Meus professores foram o pastor Ferdinand Schlünzen e o professor Heinrich
Geffert. As diferentes turmas de alunos e alunas estudavam todas juntas. O estudo era todo
na língua alemã. O professor Geffert dava tarefas alternadas para os diferentes grupos. De
vez em quando, ele dava uma olhada por cima, para ver como estavam os alunos e as alunas.
Os professores também olhavam a cabeça dos alunos e alunas para ver se tinham piolhos.
Fui dois anos na Escola Jaraguá. Nos anos 1927, 1928 e 1929 estudei numa escola
localizada na localidade onde residia. Esta escola foi construída pelos agricultores e era
mantida por eles. O ensino também era todo na língua alemã. Lembro que nós tínhamos
religião, canto, educação física, matemática, ditado, leitura, poesias. Todas as turmas
tinham aula em conjunto.
Nos anos de 1930-1931 participei do Ensino Confirmatório e voltei a estudar na
Escola Jaraguá. No Ensino Confirmatório precisava saber de cor aquilo que estava no
Catecismo Menor, e também aprendemos a cantar muitos hinos do hinário. Nestes dois
anos morei na casa do pastor. O Ensino Confirmatório também acontecia na língua alemã.
O P. Ferdinand era muito fechado e sério. Os cultos aconteciam aos domingos no prédio da
escola, de 15 em 15 dias.
Escola e Igreja estavam muito ligadas: durante a semana acontecia o ensino das
letras, e no domingo se realizava o ensino da palavra de Deus. As aulas se realizavam de
segundas até sábados de manhã. No domingo era tirada a parede que separava as duas salas
e ali se realizavam os cultos. Inclusive os cultos festivos, como o de Confirmação,
aconteciam desta forma. O Culto Infantil acontecia de 15 em 15 dias, nos domingos em
que não havia culto. A esposa do pastor e depois a Marta, irmã do pastor, coordenavam
este trabalho. Eu trabalhava como ajudante no Culto Infantil. Cada ajudante do Culto
Infantil recebia uma folha com a história bíblica e a explicação; também havia o livro de
cantos para as crianças. A Comunidade Luterana já existia em Jaraguá desde 1907; no
138
entanto, a construção do templo só aconteceu em 1935. O mais importante era que havia
lugar tanto para a ministração das aulas como para a realização dos cultos. Durante a
semana, a construção era escola, e aos domingos era igreja.
A minha confirmação se realizou no dia 05 de abril de 1931. O hino de entrada para
o Culto de Confirmação foi Wir sind ein Volk vom Strom der Zeit [Nós somos um povo
torrente de uma época]. O pastor que realizou a bênção da Confirmação foi o P. Ferdinand
Schlünzen. Não lembro direito quanto tempo era o Ensino Confirmatório, se era um ou
dois anos. A palavra bíblica de minha confirmação foi Isaías 54.10: “Porque os montes se
retirarão, e os outeiros serão removidos; mas a minha misericórdia não se apartará de ti, e a
aliança da minha paz não será removida, diz o Senhor, que se compadece de ti.” Na
Confirmação era a primeira vez que a gente usava sapatos, senão sempre se andava de pés
descalços e, quando era frio, usavam-se tamancos.
Documento 5
Lembrança de minha Confirmação, realizada no dia de 05/04/31.
139
Foto 2
A foto de minha Confirmação, juntamente com meus colegas, foi tirada na frente da escola-igreja.
O nosso P. Ferdinand encontra-se no centro. Os meninos estão vestidos de terno e
sentados ao lado do pastor, e logo atrás vem o nosso grupo de meninas, vestidas
de branco e com adornos também brancos na cabeça.
O mesmo prédio que aos domingos era igreja durante a semana era a escola.
Foto 3
Esta foto é da Escola Jaraguá. As crianças encontram-se juntas conforme a sua classe.
Esta foto é de 18.10.35, quando eu já trabalhava como professora auxiliar
558
.
558
Muitas crianças encontram-se de pés descalços. Costumavam ganhar o primeiro par de sapatos por
ocasião da Confirmação.
140
No ano de 1932 voltei para a casa de meus pais. A minha irmã Hildegard foi fazer
curso de corte e costura. Eu fiquei ajudando os meus pais na roça. Eu gostava de ir para a
roça e trabalhar ao ar livre. Gostava muito mais do trabalho da roça do que realizar o
trabalho da casa. O trabalho da roça era mais livre. O trabalho da casa era muito rotineiro.
Minha mãe era uma pessoa muito bondosa, mas eu era mesmo puxa-saco do meu pai. Meu
pai e eu, geralmente, íamos juntos trabalhar na roça. Fiquei em casa, trabalhando com
meus pais, até o ano de 1934. Meus pais, nessa época. plantavam eucalipto, limão, cana-
de-açúcar. Eles vendiam estes produtos para os Hüfenussler, que já naquele tempo
trabalhavam com aromas e frutas cristalizadas. Hoje esta empresa se chama “Duas Rodas”.
Foto 4
Aqui estou com meu pai na roça, no meio da plantação de eucaliptos.
Estou com um grande avental sobre o meu vestido e o cabelo amarrado para trás.
Era assim que as mulheres agricultoras se vestiam na época.
Fui convidada, em 1935, a ser professora auxiliar na Escola Jaraguá para o 1º e 2º
ano. Fui novamente morar na casa do P. Ferdinand. Trabalhava como professora, nesta
época, a irmã do P. Ferdinand. O nome dela era Marta Schlünzen. O número de alunos
havia aumentado bastante na Schule Jaraguá [Escola Jaraguá]. Marta era natural da
Alemanha; lá ela trabalhava como contadora e veio para o Brasil para ser professora. Eu
também lecionei para a 1ª e 2ª classe. Lembro o nome de algumas alunas, como Ruth
Braun, Iolanda Wilhelm e Judta Breithaupt Marcatto, da 2ª classe, e da 1ª classe me lembro
de Antônio Mahfud, que hoje participa junto comigo do Grupo de Idosos “Coração
141
Alegre”, aqui no Bairro Amizade. Eu tinha um livro que se chamava Neue Methode [Novo
método], que mostrava como unir a letra, o som e a sílaba. Este método se usava para
ensinar a ler e a escrever. Eu precisava ensinar a escrever, a ler, matemática (fazer contas),
religião e canto. Não recebi nenhum pagamento da Schule Jaraguá [Escola Jaraguá], para
dar estas aulas. No mês de maio de 1935, foi inaugurado o templo da Comunidade
Evangélica Luterana de Jaraguá do Sul. Os Schlünzen voltaram para a Alemanha em
agosto daquele ano.
Eu, juntamente com Marta e a D. Hertha, empregada da família Schlünzen, ficamos
morando na casa pastoral com o novo pastor, Hermann Waidner, solteiro, vindo também
da Alemanha, que iniciou os trabalhos pastorais em agosto de 1935.
Meu pai e eu fomos falar com o P. Hermann Waidner, pois eu tinha o desejo de
continuar os estudos. Também meus pais queriam que as filhas tivessem uma profissão.
Minha irmã fez curso de corte e costura, tornando-se costureira. Como eu já estava
lecionando, o desejo era me formar como professora na Escola de Preparação e Formação
para Professores Provisórios em Timbó. A resposta do P. Hermann não foi nada
animadora. Ele disse para meu pai e para mim: “Uma moça no Brasil não pode fazer outra
coisa exceto casar, cuidar da casa e da família.”
Com 19 anos, fui estudar em Timbó, na Escola de Preparação e Formação de
Professores Provisórios. Éramos apenas duas mulheres nesta escola; o restante eram todos
homens (em torno de 10 a 12). Quando fui para a Escola de Preparação, eu já tinha sete
anos de estudo. Havia pessoas que tinham poucos anos de estudo. Lembro que um colega
só tinha três anos de estudo. Era uma turma muito heterogênea.
O que mais se enfatizava nesta escola de Preparação era o estudo de como lidar
com as crianças. Foram meus professores: Pedagogia e Psicologia – P. Bluemmel;
Matemática – Prof. Richter; Português – Prof. Neuhaus; Aulas de Violino – Prof. Hervig.
A Ginástica era só para os rapazes e acontecia de manhã bem cedo. As nossas aulas
aconteciam de manhã, e à tarde trabalhávamos na escola. Os rapazes trabalhavam na roça,
plantando, capinando e também faziam trato para os animais. As moças trabalhavam na
jardinagem, na horta e também no trabalho da cozinha e da escola, como, por exemplo,
arrancar penas dos marrecos, para fazer uma coberta. Além disto, precisávamos também
pagar a escola. Meus pais pagavam 87 mil réis por mês. A minha colega Hilda cuidava das
crianças do P. Bluemmel, pois seus pais não tinham condições de pagar esta quantia.
142
A casa onde aconteciam as aulas era de dois andares. Eu e minha colega Hilda
dormíamos no andar de baixo, e os rapazes dormiam em cima. Uma noite os rapazes
fizeram bastante bagunça. No outro dia, eu e minha amiga fomos chamadas ao escritório
do P. Bluemmel. Ele nos disse: “Quem ousa sujar a minha casa, fazer barulho?” Alguém
havia nos denunciado como as responsáveis pela folia dos rapazes. Queriam, inclusive, nos
excluir da escola. A nossa atitude foi ficar quietinhas. Não reagimos à denúncia. O motivo
do barulho dos rapazes, de fato, foi a caça de um gambá. Eu e minha colega, como únicas
mulheres estudantes, fomos acusadas de perturbar a ordem da casa.
Foto 5
Eu com a minha amiga Hilda na Escola de Preparação
para Professores Provisórios, descansando depois do trabalho.
Eu e a Hilda éramos as únicas mulheres que estudávamos naquela Escola.
Além de estudar, nós também realizávamos vários trabalhos, como jardinagem, limpeza...
Nesta foto, estamos com nossos grandes aventais, traje típico para o trabalho das mulheres.
Enquanto eu me preparava e me aperfeiçoava para ser professora, também trabalhei
na Escola Particular de Timbó, no 1º semestre de 1936, substituindo uma professora, Frau
Böhme, que havia ido para a Alemanha fazer um curso. A Escola Particular de Timbó
ficava próxima da Escola de Preparação e Formação de Professores Provisórios. Recebi
como pagamento pelo trabalho 150 mil réis. No 2º semestre deste ano, quase não tive
aulas, pois trabalhei na Escola Particular de Benedito Novo como professora: na parte da
manhã eu lecionava para a 1ª e 2ª classe e à tarde, para a 3ª e 4ª classe. Eu ensinava a ler, a
escrever, as quatro operações matemáticas, aritmética, cantos. Todo o ensino era na língua
alemã. O professor desta escola havia ido para Castro fazer um curso para dar aulas em
português. Ele pediu para a Escola de Preparação e Formação de Professores que enviasse
uma professora/mulher para fazer a substituição, pois a sua esposa havia ficado sozinha em
143
Benedito Novo. Neste meio ano, morei junto com a esposa do professor, atuando como
professora substituta. Aos domingos, eu e minha colega ajudávamos no Culto Infantil na
Comunidade Evangélica Luterana de Timbó. A pessoa responsável pelo trabalho era a
esposa do P. Bluemmel. No 1º semestre de 1937, eu realmente estudei, tendo aulas na
Escola de Preparação e Formação de Professores.
No final do semestre, aconteceram os exames: lembro que eu era para procurar algo
no Landkarte [mapa], mas não encontrei. Eu não tive aula de geografia em Timbó; como
eu haveria de saber algo que não havia estudado? Quando me lembro disso, preciso rir. Na
prova de violino também não consegui tocar nada. O professor foi muito generoso. Ele
disse que tinha me ouvido tocar e que eu tocava bem. Assim consegui minha aprovação.
Eu conseguia tocar violino acompanhando os hinos do hinário da Igreja.
Documento 6
Meu histórico escolar do exame realizado na Escola de Preparação para Professores Provisórios.
144
Não era permitido namorar na Escola de Preparação. Mas eu sentia um pouco de
estima pelo Rasweiler, porém não aconteceu nada entre nós. Eu tinha muito medo. Como
já pensavam coisas erradas das meninas, eu nunca falei dos meus sentimentos para
ninguém.
Todo o tempo em que estudei e lecionei, o nosso material escolar básico era a
lousa. Na lousa estavam pendurados uma pequena esponja que era molhada para lavar e
um pano para secar. Nesta época quase não existiam livros. Quando eu vejo o material que
os professores possuem hoje, eu gostaria de estar dando aulas.
Quando terminei o curso de formação para professores provisórios, trabalhei meio
ano (julho a dezembro de 1937) em Blumenau, numa escola de preparação de moças
Frauenschule [escola de mulheres] para as lidas domésticas ou o cuidado com as crianças.
As moças aprendiam a costurar, cozinhar, bordar, fazer pão e cuca, tinham aula de pintura
e educação artística. Esta casa era dirigida por uma irmã diaconisa. Eu era responsável
pelos trabalhos gerais. A casa era bastante grande. As outras moças que estavam ali tinham
um pouco de ciúmes de mim, pois eu dormia no mesmo quarto que a diaconisa. O objetivo
maior da escola era preparar as moças para o casamento e para o cuidado dos filhos e das
filhas.
A Escola de Mulheres tinha como objetivo informar e aprimorar a educação das
moças do lugar e arredores, especialmente aquelas das famílias com melhores condições
financeiras. Como é possível ver pelo prospecto, faziam parte do currículo: História da
Arte, Geografia, Música e Culinária; a sua ênfase estava na formação de professoras e
cuidadoras de crianças para o jardim de infância e no aprimoramento da economia
doméstica. A formação estava voltada para a casa – entendida como economia doméstica –
incluindo não só cozinhar, lavar, limpar, mas também a administração da casa e o cuidado
das crianças.
O pastor Schlüzen, que havia voltado da Alemanha e assumido o trabalho como
Präeses [bispo] do Sínodo Evangélico Luterano do Brasil, fez contatos com a Escola em
Canoinhas e ofereceu os meus trabalhos como professora de 1ª classe. Trabalhavam nesta
escola o P. George Weeger, na 4ª classe, e sua esposa Ana Weeger, na 2ª e 3ª classe. Iniciei
meus trabalhos como professora no início de 1938. No entanto, em maio de 1938 chegou
um tal de capitão Melo à escola. Ele proibiu o pastor e a esposa de continuarem lecionando
145
na escola, devido à língua alemã. Era o tempo da Segunda Guerra Mundial, e aconteceu o
processo de nacionalização que afetou as escolas
559
.
Eu trabalhei como professora até outubro de 1938. O decreto de nacionalização das
escolas já saiu em 31 de março de 1938. Continuei na ativa até outubro do mesmo ano.
Então, fui proibida de lecionar. Eu havia encaminhado, neste período, os meus documentos
para uma espécie de consulado alemão que tinha em São Francisco do Sul. Solicitei a
nacionalização como cidadã brasileira. Só que isto não aconteceu. Os documentos
demoraram um ano para voltar e, quando voltaram, não estavam corretos. Desta forma,
também não pude continuar lecionando, devido à minha naturalidade que era alemã.
Lembro que eu tinha um bom controle sobre as turmas, conseguia manter uma boa
disciplina. Eu só olhava e esperava o silêncio. Lembro que uma vez, em Benedito Novo,
precisei ser muito enérgica. Os meninos, os alunos, eram quase do meu tamanho. Houve
um rapaz que me desrespeitou. Eu tive que bater. Não sei mais direito onde bati. Eu acho
que bati no rosto, era só para ganhar o respeito. Eu gostava muito de ser professora. Era
bonito poder ensinar as crianças e os jovens.
O capitão Melo veio no ano de 1938 de uma hora para outra e proibiu o uso da
língua alemã na escola. As aulas precisavam acontecer na língua portuguesa. Ele proibiu os
pastores de darem aulas na escola. As aulas, na verdade, aconteciam meio a meio,
português e alemão. Até um período era em português e o outro era em alemão. Eram
quatro horas de aula. A escola foi fechada, definitivamente, no ano de 1942. A Escola de
Jaraguá, na qual trabalhei como professora auxiliar no ano de 1935, foi fechada no ano de
1938, porque a bandeira brasileira não estava hasteada. Ela estava enrolada no canto da
sala de aula. A Hilda, que havia estudado comigo em Timbó, era a professora. Ela ainda
hoje não gosta de falar sobre esta história. Sente-se responsável pelo que aconteceu.
Neste tempo, também estava em construção o internato misto, que tinha como
propósito acolher e oferecer estudo para os filhos e as filhas dos pastores que estavam no
interior do Estado. Chegou também, neste tempo, a Canoinhas um jovem chamado
Frederico Roesel, que era para ser o responsável, diretor, do internato misto. Este jovem
era brasileiro, só que havia estudado, durante cinco anos, teologia na Alemanha. Mas ele
não se formou como pastor. Fiquei sabendo bem mais tarde que, na Alemanha, ele havia
caído no gelo e isto o havia afetado mentalmente. Frederico era filho do P. Roesel, que
559
Em anexo encontra-se cópia do Diário Oficial do Estado, de 1938, onde se decreta a nacionalização do
ensino. A Segunda Guerra teve início no ano seguinte, em 1939.
146
atendia a região de Massaranduba e Blumenau. O P. Roesel foi encontrado morto.
Ninguém sabe o que aconteceu. Este acontecimento também afetou a vida de Frederico.
Foto 6
Esta foto mostra a construção do internato misto em Canoinhas.
Aqui estou eu com o meu futuro marido Frederico.
Certo dia, a esposa do P. Weeger veio falar comigo sobre o jovem Frederico,
tentando fazer com que eu me interessasse por ele. Ela falou muitas coisas boas, dizendo
que era uma boa pessoa. Soube mais tarde que o P. Weeger foi falar com o Frederico,
tentando arranjar o nosso casamento. A partir da intermediação do P. Weeger e esposa,
Frederico pediu para namorar comigo. Eu concordei, porque também achei que era uma
pessoa simpática.
Na Páscoa, ele veio junto comigo para Jaraguá do Sul para conhecer o meu pai e a
minha mãe. Então, Frederico já me perguntou se eu queria casar com ele, e eu disse que
não podia responder nem que sim, nem que não. Ele era para perguntar para os meus pais;
se eles dissessem que sim, daí tudo bem, eu me casaria com ele. No fundo, eu esperava que
meus pais dissessem que não. No dia 21 de abril, ele chegou a Jaraguá e falou com os meus
pais; para a minha surpresa, os meus pais concordaram com o casamento. Agora, eu não
podia mais dizer que não. Eu precisava honrar a minha palavra.
Frederico parecia muito simpático. Todos falavam que ele era uma pessoa boa.
Ninguém falou que ele tinha problemas de saúde. Nunca tive outros namorados. A
primeira vez que fui ao baile eu tinha 17 anos. Quando recebi o convite para trabalhar em
Canoinhas, havia uma condição: não era possível ir aos bailes.
147
Sou uma pessoa bem romântica, ainda hoje gosto de ler romances em alemão. Eu
tenho amigas que me emprestam revistas em alemão que contam histórias, romances.
Também vou à Livraria SEBUS comprar ou trocar revistas na língua alemã.
Depois que meus pais disseram sim, foi tudo muito rápido. Em Pentecostes já
aconteceu o nosso noivado. Neste período, entre Páscoa e Pentecostes, Frederico assumiu
como diretor da escola. Eu também continuei trabalhando na escola, como professora da 1ª
classe. No dia 10 de agosto de 1938, realizou-se o nosso casamento, às 11 horas, na Igreja
Evangélica em Jaraguá do Sul. Eu estava com 20 anos. A cerimônia foi realizada pelo
Praeses Schlünzen. O coro cantou no nosso casamento. A palavra bíblica do nosso
casamento é a mesma da minha confirmação, Isaías 54.10: “Porque os montes se retirarão,
e os outeiros serão removidos; mas a minha misericórdia não se apartará de ti, e a aliança
da minha paz não será removida, diz o Senhor, que se compadece de ti.” As testemunhas
do casamento foram o meu pai e o irmão do meu esposo. As fotografias nós fizemos antes
do casamento, no fotógrafo Loss.
Foto do meu casamento, realizado no dia 10 de agosto de 1938, na
Igreja Evangélica Luterana em Jaraguá do Sul.
Foto 7
148
Quando nós fomos para a igreja tivemos que ir um pedaço do caminho com a
carroça puxada por cavalos; outro pedaço do caminho fomos de carro. Tinha chovido
muito, havia muito barro no caminho. Depois da cerimônia, fomos para a casa dos meus
pais. Havia bem poucos convidados. Foi tudo muito simples. Na hora do almoço, o P.
Waidner fez um discurso, em que ele meio se queixou por não ter podido fazer o
casamento. O cardápio do almoço do casamento foi este: peixe carpa (meu pai criava),
salada de batatas (em vez de se colocar vinagre como tempero se colocava cachaça), vinho
e cerveja. À tarde, cantamos muito, e se contaram causos, depois serviu-se um café com
doces, cucas e tortas. À noite, praticamente todos os convidados foram para casa. Somente
o irmão do meu marido foi embora no dia seguinte.
Minha mãe e minha irmã fizeram o meu enxoval. Elas costuraram toalhas para
banho, roupas de cama, toalhas de mesa, panos de prato. Naquele tempo, tudo era
costurado em casa. Na quarta-feira, voltamos para Canoinhas com os presentes de
casamento e o enxoval do casamento. Não era muita coisa. Eu, agora, era uma senhora
casada. Quando chegamos a Canoinhas, fomos recepcionados pelo coro, que cantou o hino
So nimm denn meine Hände [Por tua mão me guia]. A esposa do presidente da comunidade
fez uma torta, que estava na nossa nova casa. Nós fomos morar na casa pastoral, pois o
pastor e a família foram morar no internato. Eles estavam proibidos de lecionar na escola.
Então, o jovem Frederico, como tinha naturalidade brasileira, assumiu as aulas. O P.
Weeger e esposa ficaram responsáveis pelo internato misto.
Foto 8
Quando chegamos casados a Canoinhas, fomos recepcionados com flores e presentes.
560
560
O quadro que se encontra na foto eu vi exposto na casa de Anneliese.
149
O meu casamento foi arranjado. Eu casei, porque queria ajudar, como sempre.
Frederico, para assumir como diretor do internato, precisava estar casado. As coisas
haviam mudado: devido à política nacionalista, o P. Weege não podia mais dar aulas e
assumiu como diretor do internato misto, e o Frederico como diretor da escola. Frederico
era brasileiro. O P. Weege tinha esperanças de que a escola não seria fechada, se o
Frederico assumisse sua direção. Todas as pessoas falavam coisas boas do Frederico. Eu
nem desconfiava que um dia poderia sofrer devido às doenças mentais do futuro marido.
Em 1939, iniciou a Segunda Guerra Mundial. As aulas já estavam acontecendo em
português. Como eu não podia mais dar aulas na escola, comecei a colaborar no Culto
Infantil, na Comunidade Evangélica de Canoinhas. A irmã do pastor, Tante [tia] Babette,
dirigia o trabalho com o Culto Infantil. O Culto Infantil se realizava domingos à tarde, pois
de manhã se realizava o Culto Dominical. No Culto Infantil, nós cantávamos com as
crianças, era contada uma história bíblica e dada uma explicação, faziam-se orações. Neste
tempo, as crianças já eram divididas em diferentes grupos na hora do Culto Infantil.
Meu esposo assumiu a direção da escola. Como tenho nacionalidade alemã, não
podia mais dar aulas. Eu auxiliava meu esposo em casa. Fazia todo o trabalho da secretaria
em casa. Eu cuidava dos boletins, das chamadas. Até a 4ª classe havia bastantes alunos; nas
outras, na 5ª e 6ª classes, havia bem poucos alunos. Eu trabalhava silenciosamente na
minha casa. Irene Hitzmann e o seu esposo atuavam como professores. Eu também ajudava
o P. Weege no internato, ensinando trabalhos manuais para os alunos e alunas. Nós
fizemos muitas coisas bonitas.
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Foto 9
Nós fizemos muitos trabalhos manuais bonitos com os alunos. Os alunos podiam ficar
com os trabalhos que haviam feito. Fazer trabalhos manuais era uma forma de ensinar
economia doméstica e a cuidar das coisas da casa, da família e tamm a guardar a cultura.
No meio dos tumultos e das mudanças que vinham com a Segunda Guerra Mundial,
eu engravidei do meu primeiro filho. O tempo da gravidez transcoreu bem. Em 20 de abril
de 1940, nasceu Heinz Roesel. Minha irmã Hildegard veio para me ajudar e me
acompanhar nos últimos dias da gravidez. O parto foi em casa. As dores começaram à
noitinha. Aquelas horríveis dores nas costas. Quando me lembro deste momento, parece
que ainda sinto estas dores. Veio o médico e ele disse que ainda ia demorar. Passou toda a
noite. Meu filho nasceu às 8 horas do dia 20 de abril. O médico Osvaldo fez o parto. O
nenê nasceu com problemas, não conseguia urinar. O médico precisou abrir o canal. Um
tempo depois teve que operá-lo. Comecei, então, a me dedicar muito mais aos cuidados da
casa, do pomar, do jardim e do filho. Neste período, o meu marido começou a manifestar
problemas mentais. Muitas vezes, ele não conseguia dormir. Ficava meio fora de si. Eu
ainda não sabia tudo que estava pela frente e o que eu iria passar na minha vida.
151
Foto 10
Eu com o meu primeiro filho Heinz, nascido no dia
20 de abril de 1940, em Canoinhas.
Nunca gostei de trabalhar só em casa. Assim tive a oportunidade de aprender, em
1940, a fazer o Kunststricken [tricô artístico]. A amiga Tante Babette (que também era
alemã), irmã do P. Weeger, ensinou-me a fazer o tricô artístico. Foi uma grande sorte ter
aprendido. Quando meu marido ficou desempregado, eu sustentei a casa com este trabalho.
Eu sempre tive muito trabalho, graças a Deus. Eu gostaria de ver o monte de tricô que já
fiz.
Já no ano de 1941, as aulas só se realizavam de manhã na escola. O ano letivo
terminou mais cedo, porque o Frederico, meu marido, diretor da escola, ficou doente. Os
seus problemas mentais haviam aumentado. Ele ficou bom novamente. Nas férias, viemos
para Jaraguá do Sul, para a casa dos meus pais. As férias iam até a metade de janeiro. As
crianças que estudavam em Canoinhas eram, na grande maioria, da cidade, poucas
residiam no interior.
Assim que terminaram as férias, retornamos para Canoinhas. As aulas começaram
normalmente. De repente, recebi uma notícia que me deixou muito apreensiva. Meu pai
havia sido preso. O vizinho fizera uma denúncia, alegando que ele tinha uma arma muito
boa. Só que meu pai já havia entregue a arma na prefeitura. Outros dois amigos de meu pai
também foram presos: um porque tinha munição em casa, e o outro porque tinha escondido
uma arma. Eles foram levados presos. Levaram junto todos os livros, inclusive a Bíblia e o
Novo Testamento. Fizeram uma fotografia dos três. Neste momento, passou um
helicóptero, e os soldados disseram: “Estão trazendo notícias da Alemanha.” O meu pai
152
ficou preso em Florianópolis uns 14 dias, e os outros dois amigos ficaram presos dois anos.
Só com advogado conseguiram tirar o meu pai da prisão.
Assim que meu pai saiu da prisão e voltou para casa, minha mãe mandou me
chamar para consolar o meu pai e dar-lhe um pouco de ânimo. Pudemos também buscar de
volta os livros que os soldados haviam levado junto. Quando eu estava aqui, em Jaraguá do
Sul, de repente apareceu meu marido, dizendo que haviam fechado a escola em Canoinhas.
Isto foi em maio de 1942. Eles fecharam a escola, alegando que ali não se desenvolva o
patriotismo brasileiro. A escola em Canoinhas nunca mais foi reaberta! O P. Weeger, que
também havia sofrido com as perseguições devido à Segunda Guerra, não quis mais reabrir
a escola.
Eu procurei me tornar uma cidadã brasileira, mas não consegui. Fui afastada do
meu cargo de professora, meu pai foi preso como “suspeito de traição” por ter
nacionalidade alemã. Tive um casamento arranjado. Com tudo que passamos, não vi mais
sentido em buscar a cidadania brasileira, já que eu era casada com um homem brasileiro.
Eu não busquei mais me naturalizar; assim também não precisei votar, já que o Estado
brasileiro não me quis, quando eu busquei e precisava me naturalizar para continuar com o
meu trabalho de professora! Isso me foi negado num momento tão necessário da minha
vida. Então, continuo até hoje com a minha nacionalidade alemã. Eu sei falar, ler e
escrever português, mas prefiro manter o alemão; por isso, insisto em manter o nosso
grupo de OASE em língua alemã.
Quando a escola foi fechada em Canoinhas, nada mais nos restou senão voltar para
Jaraguá do Sul. Ficamos pouco tempo. No segundo semestre de 1942, meu marido recebeu
a oferta de um trabalho numa tipografia. Ele trabalhou neste lugar até fins de 1943. No
Natal de 1943, Frederico ficou muito doente. Foi transferido para o hospital de Joinville,
para um tratamento de pessoas com problemas de nervos. Ele ficou mais doente e foi
enviado para Curitiba. Em Curitiba havia um sanatório, casa para doentes mentais. Eu
fiquei morando em Canoinhas até o final de 1943. O cunhado veio me avisar que o
Frederico havia recebido alta, mas tinha que se apresentar ao médico de 14 em 14 dias ou
até a cada três semanas. Gastamos muito dinheiro com médicos e remédios. Nós tínhamos
muitas dívidas.
Comecei, então, a ter uma vida muito dura e triste. Voltamos a Jaraguá do Sul para
o trabalho da terra, plantar, criar porcos, galinhas, tirar leite de vacas. Em 1944,
153
compramos esta terra, onde hoje resido com minha filha. Os familiares de meu marido
nunca ajudaram em nada. Um dia, pedi para os irmãos de meu marido cuidarem dele uns
oito dias. Eles me responderam na cara: “Nem um dia.” Eu tive que me virar sozinha.
Quando chegamos a este lugar, não tinha nada: nem água, nem forno para fazer
pão, nem janelas no galpão. Compramos 17 Morgen
561
de terra. Fizemos mais dívidas.
Começamos com duas vaquinhas, uma que ganhei de casa e outra que nós compramos. O
cunhado mandou dois porquinhos. A casa/galpão era muito pequena, escura, sem
claridade.
Meu marido, no início do tratamento, quando estava sob efeito de remédios, até que
estava bem, e dava para viver mais ou menos. Ele não gostava de trabalhar na roça, não
fazia nada por amor, resmungava muito. Eu sempre tive que tomar a iniciativa. Ele sempre
falava e fazia o contrário daquilo que eu falava. A minha sorte foi que eu fui criada e
nascida na colônia, na roça. Eu me acostumei a gostar de tudo.
Tinha épocas em que Frederico estava mais ou menos, parecia que estava bom.
Havia outras épocas que ele piorava bastante, ficava fora de si. Quando ficava fora de si,
ele se tornava uma pessoa muito má. Nós plantávamos de tudo: aipim, batata, milho,
capim, trato para os animais. Vendíamos ovos, leite. Meu pai vinha ajudar a arar a terra. À
noite, à luz da lamparina, eu trabalhava algumas horas fazendo crochê artístico: toalhas
para mesa, guardanapos...
Nós tínhamos apenas uma bicicleta. Nos domingos, íamos para a igreja no centro
de Jaraguá, uns 3 quilômetros da nossa casa. Meu marido ia com a bicicleta na frente, eu
com nosso filho íamos a pé, atrás.
Nosso filho, Heinz, precisou se submeter a uma 2ª cirurgia (fimose) em Blumenau,
no Hospital Santa Catarina. O enfermeiro não cuidou, a sonda saiu e toda a cirurgia foi
contaminada. Tudo era pago particular. O cunhado emprestou o dinheiro para nós
podermos pagar a cirurgia. Depois a gente precisava encontrar uma forma de devolver o
dinheiro. Apesar das dificuldades financeiras, sentia-me muito feliz com nosso filho. Em
1947, ele começou a freqüentar a escola pública Max Schubert.
561
“Morgen” – É uma antiga unidade de medida de terra. Anneliese relatou que em Jaraguá do Sul um
Morgen corresponde a 250 m², portanto, 4 Morgen corresponde a 1 hectare de terra.
154
Meu esposo precisou fazer um novo tratamento em Curitiba. O médico dos nervos
cobrou 2 mil réis. Depois deste tratamento, meu marido melhorou bastante, e eu engravidei
novamente. Antes de se realizar o parto, nós nos mudamos para a nossa nova casa. Aliás é
a casa onde moro ainda hoje com minha filha. O meu pai ajudou muito com dinheiro, areia
e madeira na construção da nossa casa. Devido à Segunda Guerra Mundial, o dinheiro das
pessoas de origem estrangeira estava preso. Meu pai só conseguiu a liberação do dinheiro
por causa da construção da casa. O médico dos nervos do meu marido havia falado para eu
não ter mais filhos, devido à doença do meu marido. Ele achava que a doença do meu
marido era hereditária; por isto; levei nove anos para engravidar a segunda vez.
Nove meses se passaram. Estava chegando o tempo de nascer o nenê. A minha
barriga estava bem grande. Era sábado. De manhã, limpei toda a casa, deixando-a
arrumada para o fim de semana. Fiz pão no forno para a semana. Às 14 horas, as dores
começaram a ficar mais fortes. Eu pedi, então, para a vizinha Hilda Borck me levar até o
hospital. Lá fomos nós duas com uma carreta, puxada por um cavalo só. Ainda não havia
hospitais em Jaraguá do Sul. O médico da cidade tinha uma casa com mais quartos; ali as
pessoas doentes e as parturientes eram cuidadas. O meu parto foi realizado pela Schwester
[Irmã] Alice . Ela era [Hebamme] parteira. O parto foi muito difícil, senti dores muito
fortes. No dia 7 de maio de 1949, no mesmo sábado, nasceu nossa segunda filha, a Ruth.
Foi o dia mais bonito da minha vida, pois havia nascido uma filha, que eu tanto esperava.
No domingo, recebi a visita da minha amiga Hilda e da minha irmã Hildegard. A minha
irmã ficou junto comigo para me lavar a roupa. Não lembro se meu marido veio me visitar.
Depois do parto, ficava-se, geralmente, oito dias nesta casa (uma espécie de pequeno
hospital). Voltei para casa, minha irmã ficou uns dias; depois de 40 dias, eu assumi
novamente o trabalho e as lidas da casa, dos animais e da roça.
A minha vida era bastante difícil. Tinha um filho e uma filha que eu amava muito.
No entanto, precisava puxar todas as frentes. Meu marido não sabia fazer negócios. Muitas
vezes ele também não ia para a roça trabalhar. Além do trabalho da roça e da casa, eu não
deixava de fazer o meu tricô artístico. Gostava e gosto de fazer este trabalho artístico com
as mãos; além dele ajudar no sustento da família, também me ajudava a distrair os meus
pensamentos. Além disso, eu também fazia um outro trabalho, que era engomar os
guardanapos. Saber engomar bem um guardanapo é dar ao trabalho um bom acabamento.
Eu fazia e ainda faço esse trabalho da seguinte forma: eu tenho várias tábuas e também
folhas de isopor. Eu lavo os guardanapos, engomo e deito-os sobre estas tábuas ou folhas
155
de isopor, colocando alfinetes para segurar. Assim o guardanapo ou toalha seca e fica reta.
Não é preciso passar o ferro no guardanapo para ele ficar seco e reto.
Como meu marido, aparentemente, estava melhor, acabei engravidando pela
terceira vez. O meu terceiro filho, Curt, nasceu no dia 23 de maio de 1951. Era uma quinta-
feira. A parteira também foi a Schwester [Irmã] Alice. O parto não foi tão difícil como o
parto de Ruth. Lembro que o cordão umbilical estava em volta do pescoço do nenê, umas
duas ou três voltas. A parteira era bastante experiente e ágil e deu tudo certo, graças a
Deus. A família Friedel, os vizinhos aqui da frente, emprestaram a carroça para meu
marido me levar até a casa onde a parteira atendia as pessoas. Depois de oito dias, voltei
para casa. Lembro que voltei para casa num carro particular.
Graças a Deus, meus dois filhos e minha filha nunca estiveram muito doentes. A
Ruth se queimou uma vez, e os outros dois só tiveram as doenças de crianças: sarampo,
coqueluche. A filha e os dois filhos deram sentido para minha vida. Eu gostava de crianças,
sempre gostei também de dar aulas para as menores.
Foto 11
Meus dois filhos, Ruth e Curt Roesel, brincando
com brinquedos de madeira feitos pelo pai.
Nós éramos agricultores. Como já falei, meu marido não gostava da roça. Eu
sempre precisava puxar a frente, se não a gente morria de fome. Meu marido não tinha
muita iniciativa. Nesta época, nós vendíamos leite. Passavam as carroças do leite (das
famílias Grübbler, Hangen, Weege) e recolhiam o leite nas casas. Também se vendia o
156
queijo, a nata, a manteiga. Eles pagavam pouco. Com este dinheiro, a gente comprava as
coisas que a gente precisava para dentro de casa: farinha, sal, açúcar, café...
Neste tempo, os meus pais venderam uma casa que haviam recebido de herança na
Alemanha. Eles compraram uma casa aqui em Jaraguá do Sul e a colocaram no meu nome.
O aluguel desta casa nos ajudou muito nas despesas da nossa família, no tratamento
médico do marido. Esta casa, mais tarde, foi colocada no nome da filha Ruth. Depois, ela
vendeu esta casa e comprou um apartamento, que está alugado.
Meus dois filhos (Heinz e Curt) e minha filha (Ruth) sempre participaram do Culto
Infantil. Em nossa família, nós sempre fazíamos oração em conjunto; ao meio-dia, antes do
almoço, fazíamos uma das seguintes orações: Komm, Herr Jesus, sei du unser Gast und
segne, was du uns bescheret hast. Amen. [O vem, Senhor, Jesus, sê o nosso convidado, e
tudo o que nos dás nos seja abençoado. Amém.] Segne, Vater, diese Speise, uns zur Kraft
und dir zum Preise. Amen. [Abençoa, ó pai, estes alimentos para nos dar forças e para te
exaltar. Amém.] Wir danken Gott für seine Gaben, die wir von ihm empfangen haben, und
bitten unsern lieben Herrn, er wolle uns hinfort auch beschern. Amen. [Senhor,
agradecemos-te por estas tuas dádivas. Agradecemos-te por tua bondade e por teu amor.
Amém.] À noite, orávamos em conjunto o Pai-Nosso em alemão. Meditação, cada um
fazia a sua individualmente.
No ano de 1953, o Heinz começou a participar do Ensino Confirmatório. Ele
sempre ia até a igreja do centro a pé. Ele estava na quinta série e estudava no Colégio São
Luiz. Esta era uma escola católica. A escola luterana ainda estava fechada devido à guerra.
Neste ano, reiniciaram as atividades, na escola, com o jardim de infância.
O P. Waidner sempre chamava a atenção do Heinz no Ensino Confirmatório. Ele
dizia: “O que os outros fazem, tu não deves fazer, por que teu bisavô era pastor”. O Heinz
não gostava que o pastor falasse isto para ele. O meu primeiro filho foi confirmado no
Palmsonntag [Domingo de Ramos]. Foi a última confirmação realizada pelo P. Waidner.
Ele voltou para a Alemanha com a família. Eles tinham duas bicicletas, uma feminina e
uma masculina. Quando voltaram para a Alemanha, eles as deram de presente para mim e
para o meu marido.
Depois da confirmação, Heinz saiu de casa. Foi para Blumenau, ficou na casa do
tio. Começou a trabalhar fora; por isto; parou de estudar. Foi muito difícil para mim, mas
em casa não dava certo com o meu marido. Heinz trabalhou então na Souza Cruz. Depois
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de um tempo, foi para Rio Negrinho. Fez de tudo para ser despedido. E, então, foi para
Curitiba e estudou Engenharia Mecânica. Ele era muito inteligente em matemática, mas
não completou a faculdade. Conheceu a futura esposa, que era estudante de veterinária.
A vida para mim continuava na mesma rotina. A mesma lida de sempre na vida de
uma família de agricultores. A Ruth e o Curt ainda eram pequenos. O Frederico, meu
marido, estava sempre mais ou menos com a sua saúde. Quando era lua cheia, parecia que
ele ficava mais agitado do que em outros períodos. Frederico se queixava de que não era
respeitado pela filha e pelo filho. Eu dizia a ele: “Por que, então, as crianças respeitam a
mim? O respeito a gente conquista!” Frederico tinha muitos altos e baixos; num dia estava
tudo bem, no outro já brigava e xingava muito.
No ano de 1957, Ruth começou a ir à escola. As crianças começavam a freqüentar o
primeiro ano primário no ano em que elas completavam 8 anos. Ruth foi direto para o
primeiro ano. Neste tempo, a Escola Jaraguá já havia aberto novamente as suas portas. Ela
estudou nesta escola até o 4ª ano. Na mesma sala de aula, havia duas meninas com o
mesmo nome de Ruth. Uma era chamada de Ruthinha, que pertencia à família mais rica, e
a minha filha era chamada somente pelo sobrenome Roesel. Com isto eu quero dizer que
havia diferenciação no tratamento das pessoas na escola. As mais ricas eram mais
valorizadas do que as mais pobres. Depois que ela terminou o primário, passou a estudar
na Escola das Irmãs Divina Providência. Ela passou sem exame de admissão, cursou
durante quatro anos o curso normal. Minha filha me contou que na Escola das Irmãs era
necessário rezar de joelhos. Ela, com mais duas amigas luteranas, Iracema e Orla, quando
era para orar ajoelhadas, sempre sentavam. Em 1968, Ruth iniciou os estudos na
Universidade Federal em Curitiba. Ela morou na casa dos estudantes. Cursou Letras:
português-alemão, durante quatro anos. Ruth não se entendia com o pai, quando ela vinha
nos visitar no final do ano. No segundo dia de Natal, já voltava para Curitiba.
Eu sempre tive uma vida muita ativa, de participação na igreja. A igreja era o único
ambiente que eu freqüentava, além de visitar os parentes e os vizinhos, que não eram
muitos naquele tempo. Quando as crianças eram pequenas, sempre participei da
Frauenhilfe [Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas] no centro. Eu ia aos cultos
praticamente todos os domingos. Antes de ir ao culto, eu fazia os trabalhos, tratava os
animais, tirava o leite, fazia o café para a família. Depois do culto, preparava a comida.
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Nos domingos, à tarde, geralmente visitava os meus pais. Para chegar à casa dos meus
pais, eu precisava atravessar o rio Itapocu.
A minha vida continuava na mesma lida, seguindo seu curso normal. Trabalhava na
roça, cuidava da casa, da família. Participava da igreja, indo aos cultos, e do grupo da
OASE. Depois do almoço acontecia a lavação da louça. À noite, à luz da lamparina de
querosene, e nos dias de chuva, eu realizava o meu trabalho de tricô artístico. Gostava e
ainda gosto de fazer este trabalho. Considero uma pena que, hoje, poucas pessoas se
interessem em aprender a fazer esta atividade com as mãos. Estou contente que minha filha
Ruth também se interessa por este trabalho artístico. Como já disse, trabalhar com as mãos,
seguir uma receita de tricô e criar uma toalha, guardanapos ou uma colcha, é algo muito
bonito. Além do mais, este trabalho concentra os pensamentos no fio da linha; enquanto a
gente vai tricotando os fios, a gente vai criando uma obra de arte e não pensa em bobagens.
Eu pratico todo dia meu tricô artístico e sei que este trabalho, toalha ou guardanapo, vai
fazer mais bela a casa da pessoa que adquirir este trabalho.
Foto 12
Aqui estou na nossa sala de refeições; na frente; já se encontra a cozinha.
Estou tecendo os fios da linha, a partir de receitas do tricô artístico.
Tricotando os fios da linha, desmanchando novelo por novelo, sustentei a minha família.
159
No ano de 1959, meu terceiro filho, o Curt, foi à escola. Durante dois anos, ele
freqüentou a escola pública Max Schubert; como era uma escola mantida pelo governo,
não precisávamos pagar. A partir do terceiro ano primário, ele foi para a Escola Jaraguá.
Ele era muito bom em matemática. Depois, quando foi para o ginásio, não demonstrou
mais muito interesse pelo estudo. Ele estudou somente até o 1º ginasial.
No ano de 1963, a minha segunda filha foi confirmada na Igreja Evangélica
Luterana no centro. O meu marido novamente estava doente. Aliás, sempre quando tinha
um acontecimento importante, ele perdia o controle, ficava totalmente fora de si. Neste
ano, também aconteceram nossas bodas de prata, no dia 10 de agosto. Lembro que era um
sábado. Nós não fizemos festa, não tínhamos recursos financeiros. Recebemos durante o
dia a visita de um cunhado e, à noite, durante a janta, vieram o P. Gehring e a amiga
Hilda
562
, que estudou comigo em Timbó: fizeram uma surpresa, chegaram à nossa casa
cantando. Nós os convidamos para jantar. Após a janta, o pastor dirigiu uma mensagem e
deu uma bênção para nós. Neste dia, meus dois filhos e minha filha estavam presentes.
No ano de 1965, realizou-se a confirmação do meu terceiro filho na Igreja
Evangélica Luterana no centro. Depois da confirmação, ele saiu de casa e foi morar com a
avó e a tia solteira, minha irmã Hildegard, em Três Rios do Sul, no outro lado do rio. Ele
estudou apenas até o 1º ginasial. O 5º ano e o 1º ginasial ele freqüentou no colégio marista.
Ganhou uma bolsa para poder estudar lá.
O meu pai vinha, geralmente, uma vez por semana para a cidade para fazer
compras. Ele já era bastante idoso. Eu sempre combinava com ele o dia em que ele vinha
para a cidade. Então, eu ia até o rio e o ajudava a atravessar para ele poder fazer as
compras. Depois, ajudava-o novamente a atravessar o rio para poder voltar para casa. A
minha irmã mais velha, que morava com os pais, deveria fazer este papel, mas ela não
fazia. Então, eu assumia o meu papel de filha. A minha mãe nunca se acostumou ao Brasil.
Ela não gostava das conversas dos colonos. Já tinha viajado pelo mundo, tinha sido
cozinheira num grande hotel na África. Minha mãe quase não se relacionava com as
vizinhas. Ela tinha poucas amigas. Ela vivia muito dentro de casa. A minha irmã também é
assim.
562
Hilda é a sua amiga desde a escola de preparação para professores, quando ali estudaram juntas, na
localidade de Timbó. Elas continuam, ainda hoje, tendo uma relação afetiva de amizade.
160
Um momento muito triste na minha vida foi quando meu pai faleceu. Ele faleceu no
dia 11 de outubro de 1960. Meu pai tinha câncer na próstata. Eu estive junto quando ele
faleceu. Nunca vou esquecer aquele momento derradeiro, quando meu pai fechou os olhos
para sempre. Eu era muito ligada ao meu pai. Ele também nos ajudou sempre muito em
nossas dificuldades.
A minha vida continuava na mesma lida, trabalhando na roça, tirando leite,
cuidando da casa, fazendo meu tricô, freqüentando e trabalhando na igreja. Durante alguns
anos também trabalhei como empregada doméstica na casa de uma mulher muito rica, a
Sra. Fontana, no centro, fazendo a faxina da sua casa. Ela era da religião espírita. Quando
ficou mais idosa, foi para o asilo de Trombudo Central. Eu nunca pude me alegrar de fato
com os acontecimentos marcantes da minha vida e também da vida dos meus filhos e
minha filha. Sempre tinha alguma coisa com o meu marido.
Minha mãe estava bastante idosa e doente. Ela faleceu no dia 27 de novembro de
1967. Ela estava doente do coração e ficou acamada sete semanas. Eu fiquei muito triste e
me senti sozinha. Não podia mais contar com os meus portos seguros: meu pai e minha
mãe descansavam junto de Deus. Na terra que pertencia aos meus pais, ficou morando a
minha irmã Hildegard. Mais tarde, meu filho Curt foi morar e cuidar da minha irmã
Hildegard.
No ano em que faleceu meu pai, também iniciaram as atividades da OASE na
Comunidade Evangélica Luterana de Três Rios do Norte. A OASE foi fundada no dia 20
de maio de 1960. Eu sou uma membra fundadora. A Sra. Margareth Schlünzen, esposa do
Praeses [Bispo] Schlünzen, ex-pastor de Jaraguá do Sul, e a Marta Schlünzen, irmã do
Praeses, fundaram o grupo de OASE, juntamente com mais 12 mulheres. As reuniões
aconteciam uma vez por mês, nos domingos à tarde. Todo o programa se realizava na
língua alemã.
Mas a história desse grupo de mulheres/da OASE nessa comunidade não é tão
pacífica assim. Para a reunião da fundação, abriram-se as portas da igreja, pois ainda não
existia o salão da comunidade. Na segunda reunião, quando chegamos para a reunião, as
portas da igreja estavam fechadas. Ninguém veio abrir as portas da igreja para nós. Então
as mulheres se dirigiram para o Salão Alemanha (salão de baile), e na próxima reunião a
Elfi Grutzmacher abriu as portas da sua casa e nos acolheu durante 12 anos; então foi
construído e inaugurado o salão da comunidade. Durante muitos anos, o nosso grupo não
161
aumentou; também éramos mal faladas. O pessoal falava que a gente se reunia para fazer
fofoca. Alguns maridos também não permitiam que as mulheres fossem para a reunião da
OASE. Havia muitos falatórios em relação ao grupo da OASE. Na época, o grupo de
mulheres não era muito bem aceito em nossa igreja em Três Rios do Norte
563
.
No ano de 1976, eu fui convidada para dirigir o grupo da OASE na Comunidade
Evangélica de Três Rios do Norte. Neste ano, faleceu a Sra. Margarethe Schlünzen, e fui
convidada para substituí-la nos seus trabalhos de coordenadora do grupo. As reuniões,
desde meditação, oração, cantos e avisos, aconteciam todas na língua alemã. As reuniões
continuavam acontecendo uma vez por mês.
Nessa comunidade, havia um professor muito reconhecido pelo seu trabalho. Ele
era chamado de Herr [senhor] Ehnke. Também era responsável pelo Culto Infantil na
comunidade Evangélica Luterana de Três Rios do Norte. Em 1961, faleceu; então eu fui
convidada pelo P. Gehring para assumir a responsabilidade pelo Culto Infantil. Eu aceitei o
desafio. Participavam em média 100 crianças. O Culto Infantil se realizava cada 14 dias.
Sempre que não havia Culto Dominical, havia Culto Infantil. Antes de cantar um hino, eu
sempre lia o hino para e com as crianças. Todo o trabalho acontecia na língua alemã.
Existia uma liturgia própria para trabalhar com o Culto Infantil. Desta forma, algumas
crianças até aprenderam a ler alemão. Depois, contava-se uma história bíblica, dava-se
uma explicação e se faziam perguntas para as crianças sobre a história que havia sido
narrada. O Culto Infantil durava cerca de uma hora: iniciava às 9 horas e terminava às 10
horas. As crianças não tinham nenhum lazer, somente o Culto Infantil. Elas me chamavam
carinhosamente de Tante [tia] Roesel ou Frau [Senhora] Roesel. No Natal, preparavam-se
junto com as crianças teatros do nascimento de Jesus, poesias, cantos. As crianças que não
tinham nenhuma falta ganhavam um presentinho extra no Natal, geralmente um livro com
uma história bíblica. Durante muito tempo eu realizei o Culto Infantil sozinha nesta
comunidade; só bem mais tarde tive ajudantes. O pastor quase não ajudava no Culto
Infantil; somente no tempo do Natal, fornecia teatros, poesias e outros materiais. O pastor
percebia como estavam as crianças, quando elas começavam a participar do Ensino
Confirmatório.
Durante 22 anos, realizei este trabalho com muito amor. Ainda hoje, há muitas
pessoas que me dizem: “Como vai a nossa professora do Culto Infantil?” Eu pedi para
563
Esta história foi novamente lembrada por ocasião da celebração dos 45 anos da OASE, no dia 21/06/05 na
Comunidade Evangélica de Três Rios do Norte.
162
deixar o trabalho, pois o P. Raul, quando veio a Jaraguá, introduziu novos métodos para
trabalhar com o Culto Infantil aos quais eu não me adaptei. Havia também muitas reuniões,
e havia um grupo que “fiscalizava” o nosso trabalho. Eu não me senti bem com isto, pois
eram pessoas bem mais jovens do que eu; elas vinham para o Culto Infantil e ficavam
observando o que a gente fazia. Durante os 22 anos que atuei como professora orientadora
do Culto Infantil, faltei apenas em duas ocasiões: uma vez, porque eu estava doente, e
outra, porque tinha um sepultamento na comunidade. Sempre ia de bicicleta até a
Comunidade Evangélica Luterana de Três Rios do Norte (distância em torno de 6 km da
minha casa) para o Culto Infantil e para as reuniões. Sem a minha bicicleta, que eu recebi
de presente do P. Waidner, quando voltou para a Alemanha, eu não teria conseguido fazer
os trabalhos que fiz na comunidade. Quando chegava em casa, depois do meu trabalho no
Culto Infantil, na minha cozinha estava tudo frio. Meu marido não fazia nada. Primeiro eu
precisava fazer fogo no fogão a lenha, para depois fazer o almoço. Eu sempre precisei
puxar a frente de tudo. Meu marido, em vez de puxar para a frente, puxava para trás.
No ano de 1985, o grupo da OASE de Três Rios do Norte completou seus 25 anos.
Eu recebi uma placa de agradecimento pelo trabalho realizado na OASE e na comunidade.
A placa diz o seguinte: 21.06.85 – Frau Anneliese Roesel Dank für Ihre Tätigkeit in der
Gemeinde und Frauenhilfe – Três Rios do Norte.
564
Em 1985, também inicia a história da
Comunidade Evangélica do Bairro Amizade, na Escola Alberto Bauer. Quando nós
voltamos para Jaraguá do Sul, havíamos comprado 17 Morgens de terra. Mais tarde
vendemos 4 Morgens para a construção da sede da Comunidade Evangélica Luterana no
Bairro Amizade. Neste período, começaram a calçar o nosso bairro, e o calçamento iria
custar muito caro para nós, por isto, começamos a vender pedaços de chão. A cidade
começou a chegar ao nosso bairro. Lembro ainda quando o Sr. Heinz e o P. Piske vieram
falar com o meu marido para comprar um pedaço de terra para a comunidade, e como
Frederico ficou brabo. Eu estava lá fora, ouvindo a conversa. Quando eles foram, eu disse
para eles: “Deixa, eu vou falar com ele, vou resolver isto, esta questão.” Consegui
convencer meu marido de que era mais importante vender um pedaço de chão para a
comunidade, para a construção da igreja, do que para uma outra coisa.
Lembro que, quando parei de realizar o trabalho do Culto Infantil, em 1983,
“nenhum galo cantou atrás”. Ninguém da diretoria da comunidade falou uma palavra de
agradecimento. Recebi uma placa de gratidão da comunidade somente no Advento de
564
21.06-85 - À Sra. Anneliese Roesel, em gratidão por sua atividade na comunidade e na OASE
163
1991, porque as mulheres da OASE foram pedir isto para a diretoria da comunidade e para
o pastor. Esta placa diz assim: “A Comunidade Evangélica Luterana de Três Rios do Norte
agradece a Deus no Culto Infantil de sua obreira Anneliese Weh Roesel com gratidão e
reconhecimento nas palavras de Rm 1.16: ‘Não me envergonho do Evangelho, porque é o
poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê.’ Advento de 1991.”
Participar do Culto Infantil e da OASE também me deu oportunidade de passear e
sair um pouco das minhas duras lidas diárias. Em 1978, realizamos um retiro em São
Bento do Sul. Lá eu comemorei os meus 60 anos. Estes momentos eram como um bálsamo
para minha vida. Eu encontrei no trabalho da igreja um espaço para a minha realização
profissional como professora e liderança comunitária, formação essa que havia recebido na
Escola de Preparação de Professores. Por isso, eu digo sem estudo a minha vida teria sido
muito mais difícil.
Foto 13 Foto 14
Ano 2000
Aqui estou lendo o histórico de fundação do grupo da OASE de Três Rios do Norte, que se reuniu durante 40
anos, tendo as suas reuniões somente na língua alemã. Podem-se ver também as outras fundadoras: D. Elfi e
D. Anita. Apenas três fundadoras do grupo ainda estão vivas. A presidenta do grupo em 2000, Waltraud, que
tem 40 anos, representa a geração mais jovem que continua o trabalho da OASE na comunidade, juntamente
com o P. Carlos. Somente nos últimos oito anos acontecem também reuniões da OASE em português.
Em 1968, fiquei morando sozinha com o meu marido; os dois filhos já haviam
saído de casa e a Ruth estava cursando a universidade em Curitiba. Meu relacionamento
com meu marido foi muito difícil em todos os sentidos. Eu nem gosto muito de falar sobre
isto. Tive poucos momentos felizes. Meu marido sempre era do contra. Quando eu dizia
uma coisa para os filhos e filha, ele dizia o contrário. Ele batia nas crianças muitas vezes
sem motivos. Eu nunca sabia ao certo onde estava pisando. Muitas vezes fiquei quieta,
porque era melhor.
Em 1969, nasceu nosso primeiro neto. Nós só ficamos sabendo quando já estava
quase nascendo o segundo neto. Heinz não estava casado com Marli. Eles vinham nos
164
visitar, mas Heinz tinha medo de contar sobre o nascimento do primeiro filho. Um
domingo, quando eu cheguei em casa do trabalho do Culto Infantil, meu marido disse:
“Tenho uma surpresa viva para você.” Daí ele me mostrou a criança e disse: “Este é seu
neto”. Heinz contou para nós toda a sua história. Então, primeiro, eu e meu filho nos
abraçamos e choramos muito. O meu filho disse para mim: “Os outros matam as crianças,
mas nós cuidamos das nossas.” Naquele tempo, a moral era muito forte. Para constituir
uma família, ter filhos, era necessário estar casado. Nosso filho teve medo da nossa reação,
pois ele achava que tinha feito uma coisa errada e nós não iríamos aceitar. Por isto, o meu
filho escondeu este neto de nós durante tanto tempo. Logo depois, Heinz e Marli casaram e
tiveram o segundo filho.
Em 1971, meu marido se aposentou e recebeu uma boa quantia referente ao atraso
no pagamento da aposentaria. A partir daí a parte financeira começou a melhorar na nossa
família. No ano de 1972, realizou-se a formatura da minha filha em Curitiba, na
universidade, como professora de português e alemão. Ruth começou a trabalhar na Escola
Estadual Abdon Batista. Ela trabalhou nesta escola durante cinco anos. Voltou a morar
conosco. Ela me ajudava nas lidas da casa. Meu marido se preocupava em fazer o trato
para os animais. Em 1977, a Ruth começou a trabalhar como professora na escola pública
Heleodoro Borges. Trabalhou nesta escola durante 23 anos. Hoje ela já está aposentada.
Nesse tempo, também meu filho Heinz estava muito bem em Curitiba. No dia 24 de
maio de 1973, nasceu meu terceiro neto, o Carlos Alberto. Meu filho era o vice-diretor do
Colégio Curso Camões, em Curitiba. Ele também era professor de matemática. Também
tinha uma frota de caminhões e fazia fretes. A sua esposa, Marli, era veterinária. No dia 5
de novembro de 1974, nasceu a primeira neta, Christine, a quarta filha do casal. Meu filho
e a nora estavam passando por dificuldades financeiras. Eles não estavam bem. A minha
neta não foi batizada quando era pequena.
No dia 9 de janeiro de 1980 nasceu o Bruno, meu quinto neto, e no dia 28 de agosto
de 1981 nasceu o Evandro, o meu sexto neto e o primeiro filho do Curt. Quando nasceram
os meus netos e neta, com exceção do primeiro, eu, como sogra, sempre visitei as minhas
noras quando elas tiveram seus bebês, mas nunca cuidei delas após o parto. Quem ficava
junto, geralmente, era a mãe ou uma irmã mais velha da parturiente.
No ano de 1982, a nossa filha Ruth saiu de casa e foi morar sozinha. Ela não se
dava bem com o pai. Neste ano também parei com o trabalho do Culto Infantil na
165
Comunidade Evangélica Luterana em Três Rios do Norte. Foram vários motivos que me
fizeram deixar este serviço que fazia para a comunidade de forma gratuita, sem
remuneração: começaram a realizar o Culto Infantil em português: o português é difícil
para mim, mesmo que eu entenda e fale tudo em português; também vinha aquele grupo de
pessoas jovens, do centro, para fiscalizar o trabalho do Culto Infantil; pediram Culto
Infantil toda semana, e isto era difícil para mim.
Em 1983, casou o Curt, o segundo filho, com Regina. Eles já viviam juntos, tinham
um filho. Em 1984, nasceu o segundo filho do casal, o Rubens. Curt e Regina viveram dez
anos juntos e então se separaram. O casamento não deu certo. Eles brigavam muito.
Graças a Deus, eu nunca tive doenças graves. Só tive uma série de acidentes na
minha vida: a minha mãe me contou que, com 2 anos, eu comi soda; a minha língua ficou
toda dobrada. Isto aconteceu quando nós morávamos na África. Não sei quando aconteceu,
mas caí da escada e quebrei todos meus dentes. Uma vez também um cachorro me mordeu.
Outra vez, queria colher um mamão, este caiu, eu quis apará-lo com a mão, mas era muito
pesado e quebrou meu dedo três vezes. Caí de vários degraus da escada; caí de costas
numa pedra e machuquei muito minha coluna. Nunca esqueço, quando as abelhas vieram
contra mim e me picaram; também bati com enxadão na cabeça, me machuquei na
estrebaria, cortei minha mão, sangrou muito; outra vez caí na rua e machuquei meu nariz,
saiu muito sangue, precisei fazer pontos. Na maioria destes acidentes, tive que suportar a
dor sozinha e não podia parar: precisava erguer a cabeça e noutro dia continuar os
trabalhos de novo.
Eu mantenho um ritmo bastante regular na minha vida. Geralmente, vou dormir às
9 horas da noite e levanto às 7 horas da manhã. Eu durmo 10 horas por dia. Sempre comi
bastante verdura, muitas frutas (especialmente laranja, banana e abacate), e como pouca
carne. Tomo leite. Desde pequena eu sempre ando descalça. Para mim é muito importante
o contato com a terra. Hoje tenho 87 anos e o que mais gosto de fazer é andar descalça e
continuo tendo boa saúde.
Durante três anos, entreguei leite nas casas dos fregueses com a bicicleta. Neste
tempo, eu sofria de taquicardia. Caí vários tombos de bicicleta. Meu marido gostava de
mandar muito, mas quem sustentava a casa era eu com meu trabalho. O seu trabalho da
roça era sempre com resmungos. Tinha a impressão de que a doença do meu marido estava
avançando. Era um tempo de muito sofrimento e tristeza. Ele também era agressivo
166
comigo. Meu marido muitas vezes ficava fora de si. Ele era sempre contra tudo. Lembro
que, em 1989, a Ruth voltou a morar em casa. Um dia, por causa das loucuras do pai, ela
saiu uma noite e ficou uma noite toda fora, trazendo muita preocupação. Foi a noite mais
triste na minha vida, mais triste que a morte do meu pai e da minha mãe, pois não sabia
onde estava minha filha.
O que me alegrava muito era a visita dos meus netinhos e neta nas festas do Natal e
da Páscoa. Eles também gostavam de visitar a Oma [avó] e o Opa [avô]. Meu filho Heinz
separou-se da Marli e casou com uma outra mulher, e nasceu mais uma neta, a Caroline.
Como eu disse, a doença do meu marido foi se agravando progressivamente. Se no
começo ele resmungava comigo e reclamava de tudo, o pior ainda estava por vir: ele
acabou me batendo. Um dia ele teve uma crise de ciúmes. Eu estava cuidando de uma
pessoa doente. Ele me acusou de o estar traindo. Quando era o período da lua cheia, ele
ficava insuportável, revoltado e violento. No começo, quando a doença começou a se
manifestar, vinha a crise e passava. Mas as crises foram aumentando e ficando cada vez
mais freqüentes.
No dia 10 de março de 1991, iniciaram dois novos grupos de mulheres da OASE –
um em português e outro na língua alemã no Bairro Amizade. Eu também sou fundadora
da OASE na língua alemã. Como somos um grupo pequeno de mulheres, e muitas não
sabem escrever, eu estou exercendo nestes anos todos o papel de secretária do grupo,
registrando o que acontece nas reuniões no livro de atas. Tudo é registrado ainda na língua
alemã. Também quando o pastor não pode participar das reuniões, eu dirijo a meditação e
as orações do grupo. Sinto-me muito feliz e orgulhosa em ainda poder servir na minha
igreja. Gosto de escrever e ser a secretária do grupo. O estudo foi muito importante na
minha vida. Algumas mulheres que participam do grupo lêem e escrevem pouco.
No ano de 1993, veio morar perto da minha casa a Sra. Gertrudes Vierheller. Ela
veio no mesmo navio que eu, quando viemos da Alemanha para o Brasil. Depois de muitos
anos nos reencontramos. Gertrudes ficou bastante pobre, depois do falecimento do marido.
As duas filhas a abandonaram. Já faz sete anos que a OASE e a Comunidade do Bairro
Amizade a estão ajudando com uma cesta básica mensal. Minha amiga Gertrudes passou
tanta necessidade, porque tinha um grande defeito: ela era racista. O seu filho que faleceu
era casado com uma mulher brasileira. Ela não era negra, só tinha a cor da pele um pouco
167
mais escura. Esta nora e seus filhos, netos da Gertrudes, estavam bem e a queriam ajudar,
mas ela nunca aceitou ajuda deles por causa da sua cor.
Eu sempre de novo preciso agradecer a Deus por ter crescido na roça, senão a
minha vida teria sido muito mais difícil. E também se não tivesse estudado a minha vida
teria sido ainda mais difícil. O meu marido, como já relatei, estudou cinco anos na
Alemanha com o propósito de ser pastor, mas na Alemanha ele sofreu um acidente e
precisou interromper os estudos e voltar para o Brasil. No Brasil assumiu o trabalho como
professor, primeiramente em Testo Salto e depois em Canoinhas, onde nós nos
conhecemos. O P. Weeger e esposa fizeram de tudo e arranjaram o nosso casamento.
Depois, quando veio o processo de nacionalização, a escola fechou e nós ficamos
sobrando. Tornamo-nos agricultores. Meu marido nunca tinha trabalhado na roça. Ele era
filho de pastor. A história de seu pai também é bem triste e nunca foi superada pelo filho.
O pai do Frederico era Pastor da Igreja Luterana e foi assassinado quando estava
realizando atividades pastorais. Se eu não tivesse meus pais, que nos ajudaram tanto,
teríamos certamente passado fome. Fome nós nunca passamos, só miséria e pobreza.
No dia 25 de abril de 1995, meu marido faleceu com quase 90 anos. Ele era 13 anos
e meio mais velho do que eu. Faleceu de ataque cardíaco. Foi um grande susto quando eu o
encontrei morto, mas tamm um grande alívio. O médico falou para mim: “Agora,
Anneliese, você vai começar a viver.” O pastor Rückert falou na mensagem do enterro: “Se
Anneliese não tivesse a fé que ela tem, não teria agüentado 57 anos de matrimônio.” Meu
marido foi sepultado no cemitério de Três Rios do Sul. Eu acredito que só agüentei estes
anos todos, porque tenho muita fé e confiança em Deus. Quando vinha o desânimo e a
tristeza, eu sempre me lembrava da promessa que havia feito no altar de Deus no dia do
meu casamento. Nunca pensei em me separar do meu marido, apesar de tudo o que eu
passei com ele. Se eu tivesse me separado dele, o que teria acontecido com ele? Ele teria
ficado perdido, sozinho, jogado na sarjeta. Eu também pensava nos filhos e filha. Eu
sempre oro e converso com Deus, onde quer que me encontre Assim fiz durante toda a
minha vida. Eu sei muitos hinos de cor; quando batia a tristeza e o sofrimento, eu cantava
para esquecer. Eu só não consigo orar em público. O Salmo 23 é o meu preferido. Eu o sei
de cor. Meditei e orei este salmo muitas vezes na minha vida. Ainda hoje eu continuo
agindo desta forma. A fé em Deus sempre me ajudou muito. Lembrava muitas vezes que
Jesus também tinha passado pelo sofrimento na cruz, e isto me dava forças para carregar a
minha cruz.
168
No dia do enterro do meu marido também fiquei sabendo que meu filho Heinz
estava muito doente. Meio ano depois ele faleceu, em Betim, Minas Gerais, vítima de
câncer no pulmão. Ele fumava muito. Ele era para ter deixado de fumar, mas não deixou.
Eu não fui ao sepultamento; precisava ir de avião, saindo de Curitiba, e eu tive medo de
viajar de avião. Eu agradeço muito a Deus que os nossos filhos e filhas conseguiram ter
uma profissão, pois tudo que eles e ela passaram na infância e na juventude com o pai não
foi fácil para eles.
Em 1996, nasceu a minha primeira bisneta, Gabrielle, que reside em Curitiba. Ela
foi batizada católica. Eu me preocupo muito que meus netos, netas, bisnetos e bisnetas
sejam batizados na igreja cristã. Muito me alegrou o casamento do meu terceiro neto,
Carlos, em 1997, aqui na Comunidade Evangélica Luterana do Bairro Amizade. Ele
também foi confirmado no dia do seu casamento.
No Natal de 1998, minhas duas netas Christine e Caroline e o neto Bruno também
foram batizados. Eles haviam prometido no meu aniversário, em março, quando completei
meus 80 anos, que os três seriam batizados no Natal. Eu preparei tudo, falei com o
presidente da comunidade e com o P. Carlos. O batizado das minhas netas e neto trouxe-
me uma sensação de alegria e bem-estar. Sempre me preocupei muito com meus netos e
netas. O pai faleceu cedo e a mãe não é muito ligada à igreja cristã. Ela nunca se
preocupou com o batismo. Agora, eu me sinto contente e tranqüila, eles já são adultos e a
maioria deles já estão casados. Em 2000, casou o Roberto com a Lúcia, que se formou
como missionária da nossa Igreja e trabalha em Novo Hamburgo – RS. Em 2001, nasceu o
terceiro bisneto e recebeu o nome de Frederico, em homenagem ao bisavô. No dia 31de
agosto de 2002, casou o quinto neto, o Bruno Roesel, com Janaina Ribeiro, em Betim,
Minas Gerais. Só meu filho Curt foi à festa do casamento para representar a família. Minha
neta Christine casou no dia 5 de outubro de 2002. No início de 2003, nasceu o quarto
bisneto, Luiz Felipe, na cidade de Betim.
Minha vida sempre esteve muito ligada à família e à igreja. Eu acredito que vivi,
sempre, me preocupando com a vida dos meus filhos e filha; depois vieram os netos e
netas, agora os bisnetos e bisnetas. Uma das minhas maiores alegrias é que, no dia 25 de
agosto de 2003, nasceu a minha quinta bisneta, que recebeu o meu nome de ANNELIESE
ROESEL, na cidade de Betim.
169
Foto 15
Nesta foto estou eu, Anneliese bisavó, e minha quinta bisneta que leva meu nome –
Anneliese, e meu neto com sua esposa, pais da pequenina Anneliese.
Fiquei muito feliz que deram meu nome para a minha bisneta.
Parece que a esperança de vida se renova.
Hoje, neste dia, 19 de agosto de 2002, eu estou muito feliz. Finalmente, consegui
me aposentar. Saiu a minha aposentaria. Eu, até agora, só recebia a pensão do meu marido.
Vou dedicar estes R$ 151,00, que é o meu primeiro pagamento da aposentadoria, e o
dinheiro de uma toalha que eu tricotei, R$ 350,00, que representa o trabalho de meio ano
nas minhas horas de folga, muitas horas de trabalho, para o projeto de construção da igreja
luterana aqui no Bairro Amizade. Eu entrego para você esta doação de R$ 500,00, Pa.
Claudete, que está ouvindo minha história. Você faz o favor de entregar para a diretoria da
170
construção da igreja. Quando estou fazendo esta doação, lembro a oferta da viúva pobre da
história que Jesus contou. Faço isso para a comunidade com o coração aberto e agradecido,
cheio de fé e esperança.
Foto 16
Esta é a comissão de construção da nova igreja evangélica luterana no Bairro Amizade.
Fui convidada, juntamente com uma outra mulher idosa que estava presente no culto,
a tirar o pano que cobria a maquete da futura construção.
Eu tenho um bom relacionamento com as pessoas do bairro. Ainda hoje vendo leite,
trabalho na roça e faço meu trabalho artístico. Hoje eu até tenho dinheiro emprestado para
os vizinhos. Eu empresto o dinheiro a 1,5% de juros por mês. Algumas pessoas pagam e
devolvem o dinheiro, outros não pagam os juros e tampouco devolvem o empréstimo. Se a
gente pode ajudar, por que não ajudar? Quando preciso, estas pessoas também vem me
ajudar a fazer trabalhos pesados na roça ou na estrebaria.
Também sempre quando posso visito minhas vizinhas e procuro manter uma
relação de amizade, de ajuda. A família Friedel, a família Manske e nós somos as famílias
mais antigas desta localidade. O nosso bairro também mudou muito. Muitas terras de
antigos moradores, que eram colonos, foram loteadas. Os filhos e as filhas não continuam
com a lida da roça. Venderam as terras, e foi feito um loteamento, pequenos lotes para a
construção de moradias. Tudo aqui era roça. Hoje só vêem casas e mais casas... Tudo está
mudando muito depressa. Onde era roça hoje é tudo cidade.
No dia 10 de agosto de 2004, realizou-se, na Comunidade Evangélica do Bairro
Amizade, o Congresso Sinodal da OASE do Sínodo Norte Catarinense. Fui convidada a
171
dar o meu testemunho, sobre a minha participação no trabalho da OASE, para um público
de 180 pessoas. Vou tentar responder as quatro perguntas que vocês me pediram: Por que
entrei no grupo da OASE? Por que permaneço no grupo da OASE? O que poderia ser
diferente no grupo da OASE? O que é importante no grupo da OASE para a minha vida?
Eu entrei, porque recebi um convite e achei importante. Permaneço porque renovo a minha
fé, através das orações, dos cantos e da meditação. Acho que nós poderíamos “fazer mais
trabalhos” do que nós estamos fazendo. O que é importante para mim no grupo é o bom
acolhimento das amigas que participam e a meditação
565
.
Foto 17
Aqui estou dando o meu testemunho no Congresso Sinodal da OASE,
realizado nos dias 10 e 11 de agosto de 2004, na Comunidade Evangélica do
Bairro Amizade, Jaraguá do Sul.
565
Cf. Ata nº 40 do IV Congresso Sinodal da OASE, do Sínodo Norte Catarinense, realizado na Paróquia
Apóstolo Tiago, na Cidade de Jaraguá do Sul, dias 10 a 11 de agosto de 2004. O testemunho de Anneliese,
assim como das outras mulheres que falaram, encontra-se com a diretoria sinodal da OASE do Sínodo Norte
Catarinense.
172
Eu também gosto de música e de cantar. Nós temos um velho harmônio, que
mandei consertar. As minhas mãos já estão mais lentas, mas quando posso tento tocar
alguma coisa.
Resumo a minha vida da seguinte maneira:
Mein Leben war Arbeit, Arbeit und noch einmal Arbeit. Ich habe viel aus meinem
Leben erzählt; aber dies alles erleben ist eine andere Sache. Frau sein ist Gefährtin des
Mannes sein und Mutter der Kinder. Obwohl ich nach meiner Ausbildung nur ein knappes
Jahr unterrichten konnt, ist es mir nicht leid, Lehrerin geworden zu sein. Ich konnte
dadurch meinen Kindern helfen und auch vielen anderen durch Nachhilfestunden und
deutschen Privatunterricht. Besonders wertvoll war für mich der Kindergottesdienst, den
ich 22 Jahre in Três Rios do Norte gehalten habe.
566
566
Este resumo foi escrito de próprio punho, na língua alemã, pela depoente, e a tradução foi feita pela
pesquisadora e revista pela entrevistada: “Minha vida foi trabalhar, trabalhar e mais uma vez trabalhar. Eu
contei muito sobre a minha vida, mas viver tudo isto é bem outra coisa. Ser mulher é ser companheira do
homem e mãe para os filhos. Mesmo que eu tenha apenas sido um ano professora após a minha formação,
não lamento que eu tenha me formado professora. Pude, através desta formação ajudar meus filhos e muitos
outros através de aulas de recuperação e aulas de alemão em casa. Um significado especial teve para mim o
trabalho do Culto Infantil, onde servi durante 22 anos na Comunidade Evangélica Luterana de Três
Rios do Norte.” [O grifo é meu].
173
IV – HISTÓRIA DE VIDA DE RUTH
Eu nasci no dia 12 de julho de 1926. O parto do meu nascimento se realizou na casa
da minha mãe e do meu pai em Jaraguá do Sul – SC. A parteira foi a Frau Kanopke. Meus
pais se chamam Hugo Braun, natural de Blumenau – SC, e Tecla Rahn Braun, natural de
Indaial, lugar que na época pertencia a Blumenau. Meu batismo se realizou no dia 30 de
janeiro de 1927 no prédio da escola, que também servia de igreja (“escola-igreja”), da
Igreja Evangélica Luterana.
Documento 1
Observem que a certidão emitida pelo
pastor fala de nascimento e batismo. O
pastor incluiu o nome das minhas
madrinhas Adele e Marta junto ao meu
nome. Estes nomes não aparecem na
certidão do registro civil. Quando uma
menina era batizada, ela tinha duas
madrinhas e um padrinho, e, quando um
menino era batizado, ele recebia dois
padrinhos e uma madrinha. A certidão
afirma a data do batismo e que o mesmo se
realizou conforme o rito evangélico no dia
30 de janeiro de 1927. A verdade do
exposto fica atestada pelos livros
eclesiásticos da Comunidade Evangélica
Luterana de Jaraguá, do ano de 1927,
número 7, à qual o pastor se reporta e dá fé
sub fide pastorali (sob fé pastoral).
174
Documento 2
O meu nome é RUTH BRAUN na certidão do Registro Civil.
É assim também que assino meu nome
.
Da minha infância lembro-me de uma mulher chamada Helena Selbach, que era
vizinha dos meus pais. Lembro que na casa dela tinha uma rede, que estava amarrada num
pé de tangerina e num mourão. Ela me chamava para a casa dela e me embalava na rede.
Acho que eu tinha uns dois anos. Esta mulher mudou-se para a Alemanha e de lá enviava
presentes e brinquedos para mim. Eu recebi bonecas, bolas. Também lembro que ganhei de
presente um chapéu preto com aba branca de seda.
Meu único irmão, Heinz Braun, nasceu no 5 de janeiro de 1930. Eu tinha 3 anos e
meio quando ele nasceu.
175
Foto 1
O irmão Heinz com 2 meses encontra-se no colo de D. Tecla.
Eu, Ruth, com 3 anos e 8 meses, estou sentada ao lado direito
da minha mãe e do meu irmão, numa mesa para ficar quase
na mesma altura de minha mãe.
Eu lembro que eu gostava mesmo era de brincar com os brinquedos do meu irmão.
Eu gostava de brincar com os seus caminhões e carros, que eram feitos de madeira. Eu
deixava as bonecas de lado para poder brincar com os brinquedos do meu irmão. Lembro
que uma vez meu irmão ganhou um caminhão feito de madeira e eu ganhei um ônibus feito
de lata. A gente brincava bastante. Meu pai também fazia brinquedos para nós de madeira.
A gente brincava muito no jardim da nossa casa. A casa tinha jardim e pomar. Meu
pai me ensinou a subir em árvore quando eu ainda era bem pequena. Eu tinha uns 3 anos.
Eu adorava subir em árvores, nunca caí de nenhuma árvore. Eu gostava de brincar nas
árvores. Meu pai havia plantado muitas árvores frutíferas. Ele também cuidava do jardim.
Nossa casa era muito bonita. Eu brinquei muito na minha infância.
176
Foto 2
Nesta casa, vivi a minha infância. Era um pequeno paraíso. Naquele tempo, havia poucas casas. Nos fundos
vê-se a Igreja Católica. No mesmo lugar hoje se localiza a Igreja Católica Matriz São Sebastião. Meu pai
construiu essa casa antes de casar com a minha mãe. Ele era motorista. Tinha um táxi. Naquele tempo, os
taxistas eram poucos e, por isso, bem pagos.
Foto 3
Como é possível perceber, a nossa casa era cercada de plantas.
Ela era em estilo enxaimel e tinha esses arcos na frente, onde ficava uma grande área.
Nas escadas estão sentados, atrás, a minha mãe e o meu pai e, na frente, meu irmão e eu.
Nós éramos uma família bem feliz!
177
Minha mãe me ensinou a orar a seguinte oração sempre antes de dormir.
Ich bin klein,
mein Herz ist rein,
soll niemand drin wohnen,
als Jesus allein.
Daí eu dizia assim:
Ich bin gross
mein Herz ist sauber
soll Niemann gar nicht drin wohnen
als Jesus allein
Minha mãe me contava que, desde pequena, eu tinha muita personalidade. Não me
conformava com qualquer coisa. Com bem pouca idade eu já teimava com a minha mãe,
dando o meu entendimento da oração. Em vez de dizer “Ich bin klein” (Eu sou pequena),
eu dizia “Ich bin gross” (Eu sou grande). Em vez de dizer “mein Herz ist rein” (meu
coração é puro)”, eu dizia “mein Herz ist sauber” (meu coração é limpo). Em vez de dizer
“soll niemand drin wohnen” (ninguém é para morar dentro) eu dizia “soll Niemann gar
nicht drim wohnen” (não é para o Niemann [vizinho] nunca morar dentro). Eu orava assim,
porque nós tínhamos um vizinho, um senhor de idade, que se chamava Niemann.
Tenho lembranças boas do meu pai na minha infância. Ele sempre se arrumava
bem. O cabelo sempre estava bem penteado. Ele era um motorista e fazia parte da
Sociedade dos Chauffers (motoristas) de Jaraguá do Sul. Este grupo de motoristas se
organizou para arrecadar recursos para construir um hospital em Jaraguá. Essa sociedade
foi fundada no dia 2 de agosto de 1926. Meu pai fazia parte do conselho fiscal. Como
taxistas, eles levavam as pessoas doentes para Florianópolis ou Curitiba. Muitas pessoas
enfermas morriam no caminho. Ele também tinha o dom da música e tocava violoncelo.
178
Foto 4
Meu pai é o terceiro à direita com o violoncelo. Ele está com dois amigos na
localidade do Rio Cerro. Eles formavam um pequeno conjunto instrumental.
Também me lembro dos meus avós maternos, Albert e Berta Rahn. Meu avô veio
com 4 anos para o Brasil. Quando a gente ia visitá-los, minha mãe mandava uma cartinha
junto para o meu avô, para ele me dar umas aulas particulares. Meu avô era professor. Com
ele, eu aprendi a fazer cálculos de cabeça, usando a memória. Aprender esses cálculos foi
muito importante para a minha vida profissional. Meu avô também era um poeta. Ele fazia
poesias que falavam do Natal, da natureza, do fim-de-ano. Eu tenho várias poesias
guardadas do meu avô. Ele escrevia em alemão. Esta aqui fala da natureza, eu já a
declamei para uma amiga no seu aniversário. Também já a declamei na OASE.
Die Blumen
Wer hat die Blumen nur erdacht?
Wer hat sie so schön gemacht?
Gelb und rot, weiss und blau.
So dass ich meine Lust dran schau.
Wer hat im Garten und im Feld
Sie so auf einmal hingestellt?
Wer ist, der ihnen alles liess
Frisch duftend noch so frisch, schön und süss?
Das ist Gott in seiner Kraft
Der die lieben Blumen schafft!
567
(Albert Rahn)
567
As flores
Quem inventou as flores?
Quem as fez tão belas?
Amarelas e vermelhas, brancas e azuis
Assim que tenho ali prazer para o meu olhar
Quem as dispôs desta forma
Outrora no jardim e no campo?
Quem é aquele que a elas tudo deu.
Exalam frescor ainda mais frescor, bonitas e doces.
Este é Deus em seu poder
O qual fez as queridas flores! (Tradução Carlos L. Ulrich e Claudete B.Ulrich)
179
Já com 2 anos e meio eu comecei a participar do Culto Infantil. O Culto Infantil
acontecia de 14 em 14 dias. Muitas crianças participavam. O Culto Infantil era o ponto alto
de encontro das crianças. Havia várias orientadoras/professoras que dividiam as turmas
conforme a idade das crianças. Elas contavam a história bíblica para as crianças, cantavam
e oravam com as crianças. As professoras Marta e Anneliese também eram as professoras
do Culto Infantil. Depois o pastor Schlünzen fazia perguntas sobre a história bíblica que as
orientadoras tinham narrado para a gente. Tudo era realizado na língua alemã. Havia três
séries : “untere, mittlere und obere Klasse”. [série inferior, média e superior] A gente
participava do Culto Infantil até terminar o Ensino Confirmatório.
Foto 5
Grupos do Culto Infantil na frente da Igreja Evangélica Luterana. A igreja foi inaugurada
em maio de 1935. Eu me encontro à direita, usando um chapéu preto. Eu tinha em torno de 10 anos.
Até essa data os cultos aconteciam na escola-igreja.
Minha mãe chamava meu irmão de Kleiner Heinzi [pequeno Heinz]. Quando
sobrava uma sobremesa, ela a dava para ele, que era o mais pequeno. Eu não sentia ciúmes.
A minha mãe não trabalhava fora de casa. Nós tínhamos uma empregada negra.
Com 4 anos eu apanhei do meu pai, porque eu não queria dormir junto no quarto com a
empregada negra. Ela falava em alemão. As pessoas negras moravam no Morro da Boa
Vista, que também era chamado Morro África
568
. Da nossa casa, a gente via as crianças
568
Segundo Emílio da SILVA (Jaraguá do Sul: um capítulo na povoação do vale do Itapocu, p. 59), desde
1901 já existia um pequeno agrupamento de negros no Morro Boa Vista. Em 1907, estes foram desalojados
com violência e fogo, pois eram moradores que não tinham títulos de suas terras. O governo vendeu então
três lotes de terras, onde já havia uma pequena favela. Nasceu daí o segundo nome de “Morro da África”
180
negras, meninos e meninas, tomando banho no rio. Eu disse em alemão: Ich will nicht bei
der Schwarzen schlafen [Eu não quero dormir com esta negra]. Até que veio meu pai e me
deu umas boas cintadas; aí eu chorei bastante e adormeci.
Nós tínhamos vizinhos muito pobres. Um dia, meu irmão trouxe um caminhãozinho
de madeira que pertencia a uma das crianças desse vizinho para casa. Era um brinquedo
simples que tinha sido feito pelo pai do amigo do meu irmão. Meu irmão achou bonito e
trouxe junto. A minha mãe fez ele devolver esse brinquedo. Ela pegou uma vara de
pêssego e foi batendo no meu irmão até a casa do vizinho, onde ele teve que devolver o
brinquedo para o seu amiguinho Rudi de 5 anos. Nunca esqueço esse acontecimento. Ele
serviu de lição! Nossa mãe nos ensinou a ser honestos e a respeitar as pessoas mais velhas.
Meu pai nunca falou um palavrão para nós. Nosso pai nunca contou uma piada forte na
nossa frente.
A minha mãe era muito religiosa. Eu lia a Bíblia com ela. Eu lia e ela ouvia. Eu sei
o salmo 23 de cor na língua alemã. Eu uso muito este salmo como oração. Este é meu
salmo preferido. Meu irmão já não precisava ler tanto como eu. Minha mãe era mais rígida
comigo. Também fazíamos orações antes das refeições.
Komm, Herr Jesus, sei Du unser Gast
und segne, was Du
uns bescheret hast. Amen.
Ó vem, Senhor Jesus, sê nosso convidado
e tudo que nos dás
nos seja abençoado. Amém.
Com 8 anos e meio, no ano de 1935, ingressei na Schule Jaragua [Escola Jaraguá].
Eu só falava alemão. A minha primeira professora foi Marta Schlünzen. Também a
Anneliese Weh, hoje Roesel, foi minha professora. Ela ajudava a professora Marta. Marta
era alemã e irmã do P. Ferdinand Schlünzen. Ela veio para o Brasil para atuar na escola.
181
Foto 6
Esta foto é do ano de 1935. Eu estava no 1º ano primário. Sou a terceira menina sentada à esquerda. Na
fotografia, encontram-se de um lado os meninos e de outro as meninas. Não lembro direito, mas penso que
nós estamos colocados na foto conforme o ano que estávamos na escola. Os meninos se encontram no lado
direito do professor e as meninas do lado esquerdo.
569
Minha mãe me ajudava bastante em casa com os deveres da escola. Ela me ensinou
os números e também o a,b,c..., o alfabeto. Lembro-me de algumas palavras que foram
usadas na escola na nossa alfabetização – p – pusten (assobiar), m, n – nasais, t – tuten
(buzinar), f – fauchen (avançar)... Desta forma, eu aprendi muito fácil o alfabeto. Não tive
dificuldades com a matemática e a gramática. A gente só tinha a lousa. Na sala de aula,
havia meninos e meninas. De um lado sentavam os meninos, e de outro as meninas. Nós
não tínhamos uniforme para ir à escola. Cada criança vinha com as roupas que podia.
Muita gente chegava descalça à escola. As crianças do interior ganhavam o seu primeiro
par de sapatos no dia da confirmação. Eu e meu irmão sempre tivemos calçados.
O recreio na escola era uma festa. Cada criança trazia a sua merenda. A maioria das
crianças vinha estudar na Schule Jaragua. Lembro que as crianças que vinham da Ilha da
Figueira traziam pão de milho com queijinho branco. Às vezes, trocávamos o nosso
lanche; eles tinham vontade de comer o nosso pão e nós o deles, pois era diferente. Depois
que a gente fazia o lanche, brincava de mata soldado/acusado. As brincadeiras aconteciam
separadas. Meninos e meninas não brincavam juntos. De um lado, brincavam os meninos,
e de outro lado as meninas. Lembro de três grandes amigas de infância: Jutha Breithaupt e
569
Esta foto é um recorte de jornal que a depoente entregou para a pesquisadora. O recorte não continha o
nome do jornal e tampouco a data do mesmo.
182
Iolanda Wilhelm e Nessi Mathias. Eu era amiga de berço da Iolanda. Nossos pais já eram
amigos e se visitavam. Nós quatro brincamos muito juntas.
Foto 7
Eu e o meu irmão Heinz estamos prontos para irmos à Schule Jaraguá.
Ambos estamos bem vestidos, arrumados, com uma maleta de
couro onde ia o material que se usava na escola, bem como a
merenda para o recreio. Meu irmão está com 7 anos e eu com 10 anos e meio.
Esta foto foi tirada em nossa casa, no ano de 1936.
A minha mãe também me ajudava bastante nas atividades da escola. Ela sempre
falava para não esquecer de cumprimentar as pessoas: Guten Morgen (Bom-dia), Guten
Tag (Boa-tarde) e Guten Abend (Boa-noite). Meu pai ensinou para nós a questão da
etiqueta, como se comportar, quando sentávamos à mesa, como segurar os talheres, o copo
etc... Nós tínhamos uma casa grande e bonita. Com 7 anos de idade fui aprender a fazer
crochê com a Frau Fiedler.
As datas de aniversário eram sempre comemoradas. A gente se visitava. O
aniversário era uma data especial. Quando eu tinha 10 ou 11 anos, não lembro direito,
minha mãe me disse que não podia fazer nada para comemorar o aniversário. Estavam com
problemas financeiros. Eu contei para as minhas amigas. Elas falaram: “Se a tua mãe não
pode fazer doces, não faz mal. Ela pode fazer pão com lingüiça.’’ E assim foi comemorado
o meu aniversário. A gente se divertiu muito. Primeiro, a gente brincou bastante no jardim
da casa, e depois foi feito o café. O jardim e o pomar da nossa casa eram muito bonitos.
Nós corríamos em volta da casa... O quintal era grande. Eu praticamente me criei comendo
183
frutas. Meu pai havia plantado muitas árvores frutíferas. Parece que vejo as árvores de
cerejas, laranjas, tangerinas, uvas... A gente gostava de subir nas árvores.
Foto 8
Essas palmeiras foram plantadas pelo meu pai e faziam parte do nosso jardim,
onde brincávamos muito.
Tenho saudades desse tempo. As crianças adoravam ir brincar no pátio de nossa
casa. Lá também havia uma rua sem saída, onde a gente jogava “acusado”. Era um jogo
com bola. Adorávamos brincar na rua. Nos sábados, domingos à tarde e também no dia do
aniversário se juntavam umas 12 a 15 crianças. Acho que meu dom de liderança começou a
ser desenvolvido nesse tempo. Um dia, meu pai disse para minha mãe: “Ruth sempre tem a
boca maior que todo o mundo.”
Meu irmão Heinz foi para a escola quando tinha 7 anos. Ele não queria ir para a
escola. Ele sempre perguntava para minha mãe: “Por que as crianças precisam ir para a
escola?” Minha mãe respondia: “Os pais precisam enviar seus filhos para a escola, para
que eles aprendam mais coisas.” Meu irmão continuava insistindo na sua pergunta: “Por
que as crianças precisam ir para a escola?” Minha mãe respondia: “Se os pais não enviam
seus filhos para a escola, eles vão presos. Se nós formos presos, o que você e a Ruth vão
ficar fazendo sozinhos aqui em casa?” Daí, meu irmão se conformava. Mesmo assim,
minha mãe precisou ficar junto com ele durante um bom tempo. Meu irmão é uma jóia
rara.
Eu aprendi muito bem a gramática alemã. Havia incentivo de casa. A gente se
correspondia com pessoas que residiam na Alemanha, nossos antigos vizinhos que haviam
retornado para a Alemanha. Ela [a antiga vizinha] se admirava com as minhas cartas. Um
184
dia esta pessoa escreveu: “Me admiro que uma brasileirinha escreva cartas em alemão sem
erros.”
Até o 3º ano primário todas as aulas eram feitas na língua alemã. Neste ano também
chegou uma nova professora: Professora Hilda Baumann. No ano de 1938, eu ingressei no
4º ano primário. Nesse ano eu aprendi mesmo o português com o professor Mauro
Schneider. Foi um tempo bastante difícil para mim e também para os meus colegas.
Quando não sabíamos ler ou falar em português, precisavamos estender as mãos. O
professor nos batia com a régua. Eu não sabia falar quase nada em português. Um dia, na
escola, o professor pediu para eu ler um texto em português. Não consegui ler direito. O
problema maior era com a pronúncia do português. Então, o professor mandou eu estender
as mãos e me bateu porque eu não soube ler e pronunciar corretamente o português. Eu
chorei! Nunca esqueço isso! Foi bem humilhante!
A partir do 3º ano que a gente aprendia o português... A maioria das crianças não
sabia o português. Pouco tempo depois, a escola foi fechada. A professora Hilda (que
também é uma grande amiga) conta que chegou um homem à escola e percebeu que a
bandeira brasileira não estava hasteada e que as crianças falavam alemão. Ele decretou o
fechamento da escola em agosto de 1938. Hilda não pôde mais ser professora do primário,
e a escola foi fechada. Era época da guerra. Isso foi bem triste para todos nós! Eu entrei
com 7 anos na escola e permaneci até os 11 anos, quando a escola foi fechada em agosto
de 1938. O resto daquele ano fiquei em casa, não estudei mais. Era um tempo difícil. Havia
soldados nas ruas. Toda a fala em alemão era proibida. Inclusive, o P. Waidner, nosso
pastor, foi preso como suspeito.
Meu avô Albert Rahn foi professor durante 50 anos na localidade do Rio Cerro II,
por um salário bem reduzido. Em 1903, veio morar em Jaraguá do Sul. Ele foi um dos
primeiros professores da região. Meu avô, muitas vezes, substituiu o pastor evangélico
Ferdinando Schlünzen. Isso acontecia principalmente nas épocas de muita chuva, quando o
pastor não conseguia chegar até a comunidade, pois a condução era a cavalo. Meu avô
fazia enterros, batizados, cultos, doutrina... Só casamentos que ele não fazia. Ele era
professor e também, muitas vezes, foi pastor nos momentos de emergência. Fazia também
os discursos (que era o seu grande dom) nas festividades da comunidade. Muitas vezes
apaziguava brigas entre pessoas e famílias, era sempre procurado pelas pessoas que
185
apresentavam seus problemas, pedindo assim um conselho. Nas horas em que ele não se
preocupava com a comunidade ainda atuava como lavrador
570
.
Na época da guerra, ele foi preso juntamente com o pastor de Pomerode, porque
falaram em alemão em alguma reunião. Meu avô contava que foram levados para a prisão
em Blumenau. Na cela não havia cama, só cimento. Eles tiraram o paletó, deitaram a
cabeça em cima e dormiram a noite toda. Meu avó já estava aposentado. Não estava mais
dando aulas. Ele foi delatado por um outro professor brasileiro. Ele falou que meu avô
tinha livros em alemão em casa. Esses livros foram todos queimados.
Eu fiquei sem escola de agosto de 1938 até fevereiro de 1939. Meu pai falava mais
ou menos bem o português devido à sua profissão de motorista. Minha mãe falava pouco
português. Em fevereiro de 1939, ingressei no Colégio São Luiz, que era dirigido por irmãs
católicas. A maioria dos meus colegas foi para o Grupo Escolar Abdon Batista. Poucas
crianças foram para a escola particular católica. Minha mãe era uma “artista” para driblar o
problema do dinheiro. Nós usávamos uniforme para ir ao colégio. As meninas usavam um
vestido inteiro reto com três pregas na frente e três atrás, que se ajustava com um cinto,
com gola e punhos brancos. A cor do uniforme era um cinza esverdeado. Os meninos
tinham um uniforme cáqui, amarelo puxando para o verde, calça curta e um paletó, cor dos
escoteiros. Minha primeira professora no Colégio São Luiz foi Otilia Nicolini. Ela ainda
vive. A Irmã Estefania, diretora do colégio, foi uma grande amiga.
Em 1940, eu fui estudar no Colégio Divina Providência, cuja construção ficou
pronta nesse ano. Nesse ano, aconteceu uma divisão: os meninos ficaram no Colégio São
Luiz, e as meninas foram estudar no Colégio Divina Providência. Só a turma do
complementar (5º e 6º ano) foi toda para o Divina, os meninos e as meninas. O Colégio
São Luiz abrigava um internato de meninos, e o Divina, de meninas. As aulas eram dadas
todas em português. Para mim foi bem sofrido. Tive que me esforçar bastante para poder
acompanhar a turma.
A Irmã Estefânia Fischer elogiava muito a minha mãe, pois o meu uniforme era
muito bem engomado, passado, cuidado. Ela pediu à minha mãe que eu repetisse o 5º ano
devido ao português. Assim, repeti o 5º ano no Divina Providência. O 5º e o 6º ano eram o
Curso Complementar ao Primário. A gente tinha Trabalhos Manuais, História, Geografia,
570
Em anexo encontra-se um pequeno relatório escrito por Ruth Braun em 3 de novembro de 1999 sobre o
seu avô Alberto Rahn.
186
Ciências, Português, Matemática, Religião, Educação Física, Canto, Desenho. Nas aulas de
religião havia liberdade de sair ou ficar nas aulas. Eu, mesmo sendo evangélica luterana,
sempre ficava nas aulas de Religião. Eu sempre tirava nota 100, só em Matemática tirei 95.
Além das aulas de trabalhos manuais na escola, eu também ia às aulas de trabalhos
manuais à tarde no colégio onde aprendi muito bem a bordar com as irmãs.
A Irmã Estefânia também encapava os meus cadernos, livros de leitura e de
matemática. Ela tinha escrito RUTE na capa. Um dia, quando estávamos tendo aula com
esta irmã, alguém chegou à porta e a chamou para atender uma pessoa. Ela pediu para eu
continuar passando o ponto no quadro. Quando voltou para a sala, disse: “Vocês não
adivinham quem veio falar comigo. A mãe da Ruth.” Eu pensei: “O que será que a minha
mãe veio fazer aqui no colégio?” Daí ela contou que a minha mãe tinha ido ao colégio falar
com ela porque o nome da sua filha Ruth não estava escrito corretamente. “A mãe da Ruth
protestou e disse que seu nome, conforme a certidão de nascimento, não é RUTE e sim
RUTH.” A irmã Estefânia gostou deste gesto de minha mãe de ir falar com ela. Ela disse
para mim: “Ruth, a sua mãe é muito dedicada! Ela é uma grande mulher!”
As mensalidades da escola eram bem caras. Meu pai, neste tempo, já trabalhava
como motorista da Autoviação Catarinense. Ele tinha um bom emprego e assim conseguia
pagar as nossas despesas com a escola. Quando completei 15 anos, terminei o curso
complementar!
Foto 9
Colégio Divina Providência – Formandos do Curso Complementar – 29.11.41.
A formatura foi mista: meninos e meninas.
Eu uso um vestido azul marinho, com detalhes brancos.
Estou sentada à direita do paraninfo Sr. Artur Müller, que era o prefeito da época.
187
Depois eu fiz durante um ano o curso de datilografia. Durante este tempo, eu
também estudei piano com a Sra. Adélia Fischer. Estudei até o 3º método. Eu tenho um
ouvido musical desde criança.
Fui confirmada no dia 17 de março de 1940, no período da Páscoa. O Ensino
Confirmatório era só de um ano devido à guerra. O pastor que me confirmou foi o P.
Hermann Waidner. O lema da minha confirmação foi 1 João 1.7: “Se, porém, andarmos na
luz como ele está na luz, mantemos comunhão uns com os outros.” Na doutrina nós
aprendíamos os mandamentos, o Credo Apostólico, o Pai-Nosso, histórias bíblicas, hinos
da igreja. Cantavam-se bastante os hinos do hinário. Era tudo em alemão. Para o dia da
confirmação eram convidados as madrinhas, o padrinho, tios, tias e avós. Lembro que na
minha confirmação tinha um almoço; vieram meus avós, madrinhas, padrinho, uma tia e
um tio.
Documento 3
Lembrança da minha confirmação realizada no dia 17 de março de 1940. O Pastor
que me confirmou foi Hermann Waidner. Ele veio para Jaraguá do Sul após a saída do
P. Schlünzen, que foi eleito Praeses (bispo) do Sínodo Luterano
de Santa Catarina, Paraná e outros estados.
188
Minha mãe era uma pessoa bem culta. Ela também atuou como professora,
substituindo o meu avô Alberto Rahn, na Escola do Rio Cerro II, quando ele estava doente.
A minha mãe lia muito comigo a Bíblia. Também aprendi muitas orações. Antes das
refeições, nós orávamos Komm, Herr Jesus... [vem, Senhor Jesus]. Quando eu era pequena,
bem pequena, minha mãe orava comigo antes de dormir: Ich bin klein... Eu sou pequena.
Nunca mais esqueci estas orações, porque eu também mudava as palavras. Também
aprendi o Pai-Nosso, Vater Unser, muito cedo, em casa. Nós cultivávamos em casa, com a
nossa mãe, uma vida de orações e leitura da Bíblia.
Depois da confirmação, com 17 ou 18 anos, eu trabalhei, voluntariamente, como
professora do Culto Infantil. Era tudo na língua alemã. Nas sextas-feiras à noite, acontecia
a preparação juntamente com o pastor. O Culto Infantil se realizava de 14 em 14 dias, nos
domingos em que não havia Culto Dominical. Cada professora do Culto Infantil tinha em
torno de 17 a 20 crianças, conforme a faixa etária. A gente cantava com as crianças, orava
e contava uma história bíblica. Depois o pastor fazia perguntas, para ver se as crianças
haviam prestado atenção na história que havia sido contada. Trabalhei com o Culto Infantil
durante uns 10 anos, no tempo do P. Waidner.
Com 17 anos também comecei a trabalhar em uma firma. Eu iniciei no dia 11 de
maio de 1944 e me aposentei no dia 11 de maio de 1983. Trabalhei 39 anos na mesma
firma: BERNARDO GRUBBA S.A. Eles vendiam de tudo. Tinham secos e molhados,
fábrica de laticínios, engenho de arroz, açougue e uma serraria em Itapocuzinho, Sociedade
Ita Ltda, onde compravam madeira dos colonos. A firma tinha várias filiais. Em Bananal,
hoje Guaramirim; em Retorcidas, hoje o Bairro Nereu Ramos. Já naquele tempo era
valorizada a pessoa que tinha capacidade para trabalhar.
Meus pais estavam passando por dificuldades econômicas. Eles não conseguiam
mais pagar as minhas aulas de piano. Foi a minha professora de piano, D. Adélia, que me
incentivou a ir trabalhar para poder continuar estudando piano. Um dia, meu pai estava no
bar, no Harnack, um local onde as pessoas se encontravam naquela época, tomando um
chope. Ele soube que o Sr. Waldemar Grubba estava procurando uma moça para trabalhar
no escritório. Ele contou isso em casa e lá fui eu, cheia de coragem, pedir o emprego.
Lembro que cheguei à firma e uma moça estava atendendo. Perguntei: “A senhora é uma
filha do Grubba?” Ela respondeu: “Sou.” Eu disse: “Soube que aqui estão precisando de
uma moça para trabalhar no escritório.” Ela chamou o seu irmão, e ele me perguntou “De
189
quem você é filha?” Eu disse: “Meu pai é o Hugo Braun.” O Grubba disse: “Ele é meu
amigo. Você pode começar a trabalhar amanhã.” A sua irmã, D. Hilda, disse: “Quinta-feira
é um ótimo dia para começar.” Durante o tempo em que trabalhei nessa empresa, pedi
umas cinco vezes para sair... Sempre que pedia a minha demissão, eles aumentavam o meu
salário e me pediam para ficar. Assim trabalhei 39 anos no mesmo lugar. Eu ajudei a criar
a 3ª geração da família Grubba. Na verdade, trabalhei com as três gerações na firma.
Quando eu era criança, me perguntaram o que eu queria ser quando crescesse.
Lembro que eu dizia: “Quero trabalhar como secretária na Autoviação Catarinense.”
Quando eu precisei trabalhar, não havia vagas na Autoviação. Então, fui trabalhar no
Grubba. Meu irmão também só trabalhou em dois lugares. Nós éramos pessoas muito
fiéis e honestas. Ali no trabalho fizemos a nossa vida. Isto veio muito da educação que
recebemos de casa. Minha mãe sempre nos ensinava que não é bom mudar muito de
emprego: “Pular de galho em galho não presta.”
Foto 10
Esta foto é do local do meu trabalho. Os colonos estão com as carroças cheias de sacos de arroz
para vender, na frente do Engenho de Arroz da firma Bernardo Grubba – 1959. Também se pode
ver uma carroça com latões de leite para a fábrica de laticínios. As carroças estão posicionadas
conforme a ordem de chegada.
Fui uma das primeiras mulheres a trabalhar num escritório em Jaraguá do Sul, a
cuidar da contabilidade. Eu conhecia somente duas mulheres que trabalhavam fora de casa.
Uma amiga minha trabalhava no Banco INCO, hoje BRADESCO, e a outra trabalhava
como secretária no escritório da Viação Catarinense. Durante muito tempo, eu fui a única
mulher que trabalhei num escritório, fazendo a contabilidade de uma empresa. Havia
outras moças que trabalhavam como balconistas.
190
Desde que eu comecei a trabalhar nos GRUBBA, sempre trabalhei nas eleições. Até
já fui presidenta de mesa. Sempre fui muito corajosa. Meus patrões também eram
envolvidos com a política. Eu voto desde os meus 21 anos. Lembro-me que meu avô,
professor e meio político, um dia veio e falou para minha mãe que ela agora também
poderia votar. Eu ainda era uma adolescente. Se não me engano, isso foi lá pelos anos de
1940.
As minhas grandes amigas Iolanda e Jutha não precisavam trabalhar fora de casa,
porque eram de famílias ricas. Eu sempre me senti um pouco menos em relação às minhas
amigas. A minha mãe sempre estava meio doente, fraca e depressiva. Com 11 anos, eu já
lavava e passava roupa, limpava a casa... Nós tínhamos uma casa grande. Minha mãe se
curou da depressão participando da Ciência Cristã. Esta ciência dizia que Deus não queria
a doença, afirmava a vida, as coisas positivas. Eles também oravam com bastante força.
Isto faltava na nossa igreja, que, naquele tempo, era mais fria. Minha mãe viveu até os 93
anos. Ela também nunca deixou de participar de nossa igreja e da OASE.
Com a minha mãe, eu também aprendi a arte de cozinhar. Aprendi a fazer muitas
coisas, carne na panela feita a vapor, carne enrolada e diferentes tipos de doces. Gosto de
fazer especialmente um bolo de queijo e um pudim de leite, que aprendi com a minha mãe.
Só que, com o decorrer do tempo, fui colocando o meu toque nessas receitas. Eu sempre
tive orgulho das minhas receitas. Fazer um bom prato é uma arte.
RECEITAS
Bolo de queijo
Massa
1 colher de manteiga
1 colher rasa de banha
2 ovos inteiros
Bater os ingredientes.
1 xícara e meia de trigo
1 pitada de sal
Um pouco de leite.
1 ½ a 2 xícaras de açúcar
Misturar os ingredientes
e colocar junto 1 colher rasa de fermento Royal.
Recheio
800 g a 1 kg de queijinho branco (requeijão)
150g de nata
1 colheirinha de sal
1 colher bem cheia de trigo
1 a 2 ovos inteiros
Açúcar a gosto – bem doce
191
Untar a forma/Esquentar o forno
Colocar a massa na forma e bem rápido colocar o recheio em cima.
Levar ao forno bem quente.
Pudim de Leite
1 litro de leite (ferver o leite)
1 pitada de sal para quebrar o gosto do leite
açúcar a gosto
1 a 2 gemas.
Misturar com 2 colheres
ou um pouco mais de maisena para engrossar.
C/leite ou água.
Mexer bastante e deixar dar uma fervura. Desligar.
Bater as claras dos 2 ovos em neve.
Misturar as claras batidas em neve junto ao pudim... conforme o gosto.
Meu irmão começou a trabalhar com 14 anos na firma Bernardo Mayer, fábrica de
manteiga. Ele despachava a manteiga para Curitiba. Depois, foi servir na Base Aérea do
Rio de Janeiro. Voltou para casa com 20 anos, quando o Sr. Bernardo Mayer o levou para
trabalhar em Curitiba. Além de trabalhar como distribuidor de manteiga da firma, também
ajudava o Sr. Bernardo em outras coisas. Mais tarde, esta firma fechou. Ele foi trabalhar na
indústria Bonet, também em Curitiba, onde trabalhou em torno de 30 anos. Isto se deve à
educação recebida de casa. Nossa mãe sempre nos ensinou a ser honestos e fiéis. A nossa
educação estava mais nas mãos de nossa mãe do que do nosso pai. Se ela tinha algum
problema conosco, contava para o pai à noite.
Eu sempre gostei de música e de canto. Com 12 anos ganhei um violão. Aprendi a
tocar a partir de um método russo. Tocava um sistema de acompanhamento. O violão foi
presente da minha mãe. Mais tarde ganhei um outro violão, mas era muito grande. Sou
uma fundadora do Coral Evangélico. A fundação do Coral aconteceu no dia 29 de junho de
1948, pelo P. Hermann Waidner, na sala do meio da antiga escola-igreja. Nós, os
coralistas, usamos os bancos escolares como nossas cadeiras. Éramos em torno de 20
pessoas. O coral nunca interrompeu suas atividades. Eu não participei durante meio ano
devido a um acidente e à doença de minha mãe. Eu canto o 1º soprano. Também já fiz solo.
No momento, também fazemos uma dupla, o P. William e eu. Cantamos a duas
vozes na OASE e no Grupo dos Idosos. A participação no Coral me trouxe muitas
possibilidades de viajar, conhecer outros lugares e fazer grandes amizades. Além de se
apresentar em vários estados do Brasil, o Coral se apresentou no Paraguai, em Asunción;
192
em duas oportunidades, no Chile, em 1991; na Argentina, em Monte Carlo; no Uruguai,
em 1973, por ocasião dos 25 anos do Coral, e na Alemanha, em 1997.
Foto 11
Nesta foto, estou com o P. Waidner e família, em Giessen, na Alemanha, em 1997,
por ocasião da 1ª excursão do Coral para a Alemanha. O P. Waidner
foi o pastor que me confirmou e também é o fundador do Coral
Evangélico Jaraguá. O P. Waidner faleceu no ano 2000.
Já gravamos um disco e tamm um CD. No grupo do Coral eu ocupei vários
cargos: fui secretária, tesoureira... Desde 1983, sou coordenadora do coral, quase 22 anos.
Já arrumei muitas pastas para os coralistas, verificando se as músicas estavam em ordem
na pasta... Fiz as cobranças... Esse trabalho sempre é feito à noite. Em outubro de 2004,
aconteceram as eleições da diretoria do Coral. Devido aos novos estatutos da comunidade,
o Coral, agora, precisa de uma diretoria. Eu pensei: “Já estou fazendo o trabalho de
coordenação do Coral, que envolvia o trabalho de presidente, tesouraria, secretaria, há
quase 22 anos; por que não assumir o cargo de presidente?” Assim, coloquei meu nome à
disposição para ser a presidenta do grupo. As eleições aconteceram. Fui eleita pelo grupo
como presidente do Coral. Vejo isso também como um reconhecimento pelo meu trabalho.
Quero distribuir as tarefas que envolvem o trabalho do coral com toda a diretoria eleita.
193
Foto 12
Foto atual do Coral Evangélico Luterano de Jaraguá do Sul – 2005,
com o seu maestro, o Prof. Ricardo Feldens.
De 21 de maio a 11 de junho de 2005 aconteceu a 2ª viagem do Coral à Alemanha.
Foi uma viagem sem defeitos. Foi muito bom! Houve muita união entre o grupo.
Apresentamo-nos em nove cidades. Entre elas: Neuenburg, Speyer, Roth, Greiz, Bielefeld,
Hannover e Solingen. Nosso coral foi muito elogiado. Cantamos quatro músicas em latim
do século 18, cantamos também algumas músicas em português. E duas músicas em
alemão, de Felix Mendelssohn-Bartholdi e Heinrich Schütz. De uma pessoa muito
entendida em música, “um cantor”, nosso coral recebeu a nota 8. Em todos os lugares, as
pessoas diziam que nós somos um coral muito bom. Isso nos deixou muito felizes como
grupo.
Desde os 9 anos de idade eu participei da ginástica. Os professores eram Hermann e
Ada Schultz. Eles eram alemães. Nós tínhamos dança rítmica com música de piano, barra,
cavalete, no Clube Schützenverein, hoje Baependi. Meu pai era um sócio forte. A ginástica
era sempre nos sábados à tarde, no salão Buhr. Quando eu era criança, começou ali. Isto foi
até que veio a guerra. Depois participei ativamente do grupo dos 18 aos 25 anos. Eu tinha
muita flexibilidade no meu corpo.
194
Foto 13
Desfile da turma da ginástica da qual eu participava, no ano de 1952.
Nós íamos para Corupá e até São Bento do Sul para fazer apresentações. Depois
das apresentações, acontecia um grande baile. Eu gostava de dançar e dançava muito bem.
Eu dançava leve. Era um tempo muito gostoso. Eu tinha muita saída para dança. Um dia,
num baile, eu tinha três cavalheiros na minha frente, querendo dançar comigo. Naquele
tempo era assim: os cavalheiros, rapazes, se curvavam na frente da moça, convidando-a
para dançar. A primeira vez em que eu fui sozinha, sem meus pais, a um baile, foi quando
eu tinha 18 anos, mas estava acompanhada por famílias das minhas amigas. Com 14 anos,
eu fui pela primeira vez a um baile, acompanhada pelos meus pais, na localidade do Rio
Cerro. Dancei com minhas primas, tio e também com meu pai. Os bailes eram diferentes
dos de hoje. Iniciavam bem mais cedo.
Nos domingos, aconteciam as famosas soirées (as domingueiras) Elas começavam
por volta das 15 horas e iam até as 18 horas, no inverno, e, no verão, se prolongavam até as
19 horas. Nós íamos ao Salão Döhring, Baependi...
195
Foto 14
Aqui estou vestida a rigor para um grande baile em 1956.
Com 27 anos eu estava noiva de um rapaz de uma família tradicional de São Bento
do Sul. Ele tocava 1º violino na orquestra da cidade. Este rapaz gostava muito de mim. Eu
o conheci numa destas festas das Sociedades de Ginástica. Nós começamos a namorar no
Natal, e na Páscoa do ano seguinte ele já pediu para noivar... Nós noivamos, só que eu não
tinha amor por ele... Meu pai dizia para mim: “Ruth, die Liebe kommt!” (Ruth, o amor
vem!) O amor não chegou! O nosso noivado foi se arrastando por um ano... foi e foi, até
que meu noivo acabou o noivado. Eu sofri com o acontecido, mesmo que não tivesse amor
por ele. Na época, havia muitos casamentos arranjados. Muitas amigas casaram com
pessoas da quais não gostavam. Eu sempre dizia: “Se eu encontrar alguém que não amo, eu
não caso”. Meus pais faziam gosto do meu noivado. Meu pai dizia: “O amor vem com a
convivência.” Com 21 anos eu havia me apaixonado por uma outra pessoa, mas não lutei
pelo meu amor, não tive forças suficientes!
Eu também fui líder do trabalho da Juventude Evangélica. A gente fazia
meditações, cantava, fazia brincadeiras. O pastor não vinha sempre às reuniões; quando ele
vinha, fazia-se estudo bíblico. Nós fazíamos piqueniques, pequenos passeios. Participavam
em torno de 25 jovens, rapazes e moças... O trabalho com os jovens era misto. Nas
196
reuniões da juventude, a gente não dançava. Eu sempre estive ligada com o trabalho da
comunidade.
Meu pai faleceu aos 62 anos, em 1957. Nos últimos anos de vida, ele teve
problemas sérios com a bebida. Desde que meu pai começou a ter problemas de
alcoolismo, precisei sustentar a casa. Ele tomou remédio para parar de beber. Ele bebia
mais de noite; durante o dia, trabalhava como motorista da Autoviação Catarinense. Um
dia, ele teve um acidente e quebrou a perna. Ficou um tempo sem trabalhar. Então, eu
precisei ser “chefe de família”. Meu pai bebia, mas eu não tinha raiva dele. Quando meu
pai bebia, ele ameaçava bater e até matar minha mãe, mas ficava só na ameaça. Ele tinha
ciúmes da minha mãe. Minha mãe sofreu muito nesse período; por isso, ela tinha
depressão. Meu pai era um homem bonito, benquisto, amigo, tinha boa conversa... Eu não
tinha raiva dele, mas sentia vergonha. Nesse período, a minha mãe sofreu muito.
Eu freqüentava os bailes da sociedade, precisava comprar os vestidos adequados,
longos ou não, para participar das festividades. Meus pais não tinham condições de
comprar. Eu economizava bastante e conseguia mandar fazer um vestido de vez em
quando. As minhas melhores amigas, como já falei, eram de família rica. Sentia a diferença
financeira que havia entre a gente. Eu sempre gostei muito de dançar. Atualmente, danço
pouco. A gente dançava nas festas de São João, no grupo da OASE, mas hoje a gente não
dança mais. O nosso pastor não gosta muito de dança.
Depois da morte do meu pai, de 1960 a 1962, minha mãe e eu construímos uma
outra casa, já que a velha casa – minha casa de infância – não valia a pena consertar.
Construímos uma casa de dois andares. A parte de cima da casa foi alugada. Mamãe e eu
morávamos na parte de baixo.
Foto 15
Nossa nova casa foi construída entre os anos de 1960-1962,
com as minhas economias e da minha mãe.
197
Eu fui tesoureira da Comunidade Evangélica Luterana de Jaraguá do Sul (centro)
no período de 1999 a 2001. Eu estava desejando fazer alguma coisa pela comunidade. E
estava na praia, quando o Sr. Marquardt ligou, pedindo para eu ser tesoureira da
comunidade. Ele era o presidente da comunidade. Ele me disse: “Eu já falei do seu nome
na diretoria, e seu nome foi aceito por unanimidade.” Foi a esposa do Marquardt que
sugeriu o meu nome para compor a diretoria da comunidade. As reuniões da diretoria da
comunidade eram sempre à noite. Nós começamos a construir o novo salão... foi um tempo
difícil. Eu gosto de trabalhar na comunidade. Deus me deu esse dom, de ser uma líder
comunitária. Gosto de fazer o trabalho de tesouraria! Quando eu olho para trás, fico
admirada que já consegui fazer a contabilidade de uma grande firma como era o
GRUBBA. Agora, esta firma já não existe mais... Depois da 3ª geração foi fechada.
As reuniões da diretoria da comunidade terminavam tarde da noite. Uma vez,
tivemos uma reunião bem pesada e difícil. Depois da reunião, o pastor, o estagiário e o
presidente ficaram conversando e eu aproveitei e fui embora para casa. A maioria das
pessoas que participavam da diretoria era homens. Imagine o que os meus vizinhos iriam
dizer se eu viesse para casa sempre acompanhada por um outro homem. Os três me
contaram que eles se deram conta de que eu não estava mais ali e mandaram o estagiário
correndo atrás de mim. Quando ele viu que eu estava chegando em casa, esperou eu entrar
e daí voltou para a igreja. A minha vizinhança me vigiava e controlava. Um outro episódio
interessante, em relação às minhas vizinhas, aconteceu um dia quando uma delas disse para
mim: “Ruth, estranhei que você chegou em casa de madrugada.” Ela me perguntou: “Onde
você estava? Aconteceu alguma coisa?” Eu lhe respondi: “Estava em Joinville dançando.
Depois, quando voltamos, eu deixei minhas amigas em casa. Eu fui a motorista.” Então
minha vizinha disse: “Ruth! Bem que você faz!” Pensava-se, naquele tempo, que, depois
das 22 horas, uma mulher não podia circular sozinha na rua. Minhas vizinhas me vigiavam
para ver a que horas eu chegava em casa e se eu estava fazendo alguma coisa errada.
Eu não me casei, mas acredito que Deus tinha um outro plano para mim. A
comunidade também precisa de pessoas que se dedicam a ela. Eu tive muitos pretendentes:
homens de boa posição social e inteligentes. Mas nenhum deles me interessou para o
casamento. Eu tive uma paixão amorosa aos 21 anos, mas este rapaz não foi aceito pela
minha mãe. Tive muitos conflitos com a minha mãe. Eu não quis casar sem amor.
198
Como já contei, eu trabalhei no escritório até o dia 11 de março de 1983. A partir
de então, comecei a participar do grupo da Ordem Auxiliadora das Senhoras Evangélicas
(OASE). Minha mãe é uma das fundadoras desse grupo do qual eu participo. Aliás, a
história do nosso grupo é muito interessante. A fundação do grupo da OASE aconteceu em
08 de novembro de 1931. Para a primeira reunião, o P. Schlünzen chamou os maridos e
falou sobre a sua intenção de trazer uma parteira formada da Alemanha, pois estavam
morrendo muitas mulheres na hora do parto e crianças recém-nascidas. A partir disso, ele
pediu a autorização dos mesmos para iniciar um grupo de mulheres – Frauenhilfe – que
tinha como objetivo fazer trabalhos manuais, que seriam vendidos num bazar da
comunidade, para arrecadar fundos para pagar a parteira. Ter uma parteira formada era
uma necessidade urgente. A continuidade da vida estava em jogo. Faltava um tratamento
adequado para as parturientes. Os maridos apoiaram a iniciativa do pastor, e assim
começou o trabalho da OASE em nossa comunidade. Meu pai esteve na primeira reunião.
Desde então, a minha mãe participava das reuniões e encontros. Minha mãe me contou que
o primeiro passeio do grupo da OASE se realizou em 1956 e foi para Corupá. Esta
informação também consta no livro de atas da OASE, no nosso livro ouro, como
chamamos.
Foto 16
Eu com minha mãe nas comemorações dos 60 anos de fundação do grupo da OASE.
199
Quando me aposentei, eu participava de um grupo de oração que se reunia nas
sextas-feiras à tarde com o P. Piske e a D. Alba. Nós tínhamos um momento de leitura da
Bíblia, meditações. Depois a gente ia visitar os hospitais.
Agora, já estou participando há 22 anos do grupo da OASE, “grupo das quintas-
feiras”. Eu me sinto muito bem participando do grupo. Hoje estou num cargo de liderança.
Sou a presidenta desde 2002. Ser uma líder é uma arte! Não sou uma líder caxias, durona.
Procuro ser amiga e compreensiva. Divido as tarefas entre toda a diretoria. Sinto que o
grupo da OASE gosta do meu trabalho. Já fui tesoureira do grupo durante seis anos. Eu me
integro muito bem com o P. William. De vez em quando, cantamos em conjunto. Também
dirijo as reuniões sozinha, quando o pastor não está presente. Preparo as meditações,
orações e cantos. Nas datas festivas, como Páscoa, Dia das Mães, Festa de São João,
Natal... também preparamos momentos especiais Nós nos reunimos todas as quintas-feiras.
A língua oficial do nosso grupo ainda é o alemão. Algumas mulheres tamm fazem
trabalhos manuais que são vendidos no nosso bingo anual. Eu também já fiz muito crochê
para o trabalho da OASE. Todo o nosso trabalho é dedicado para a edificação da
comunidade. O que me ajuda nesse trabalho de liderança é que desde pequena eu lia a
Bíblia, atuei no Culto Infantil, na Juventude Evangélica. Canto no Coral há 57 anos.
Cultivo uma vida de oração. Minha vida sempre foi ligada à igreja. Meu trabalho com a
contabilidade, na firma dos Grubba, também me ajudou no trabalho como tesoureira no
grupo da OASE e da comunidade. Trabalhando fora de casa, eu aprendi a me comunicar
com as pessoas. A OASE é a minha família. Além do trabalho no grupo, também realizo
visitas a pessoas doentes do grupo da OASE e da comunidade. Às vezes eu vou sozinha
fazer visitas, outras vezes vou com amigas do grupo. Eu não me sinto só. Nunca tive
solidão, porque sempre me ocupei com muitas coisas. Eu sofri com as experiências de
namoro que não deram certo.
Além de participar na OASE, eu tenho um grupo de amigas que se reúnem uma vez
por mês na casa de uma das participantes. É o nosso grupo do lanche. A gente se encontra
para conversar, trocar idéias, se fortalecer e tomar junto um café. Participo nesse grupo
desde 1983.
200
Foto 17
Grupo de lanche das sextas-feiras. Esta foto lembra a comemoração do aniversário
da amiga Muschi, quando completou seus 80 anos, em 2004.
Em 1975, eu comprei meu primeiro fusca. Eu tinha 48 anos quando aprendi a
dirigir carro. Minha mãe era contra. Depois ela ficou contente. Poucas mulheres dirigiam e
tinham carro. No local onde eu trabalhava, das funcionárias ninguém tinha carro.
Chamaram-me de valentona. Minha amiga Iolanda também tinha um fusca. A compra do
meu fusca foi resultado de muita economia.
Além de comprar meu primeiro carro e de aprender a dirigir, eu tinha um outro
sonho, que era comprar uma casa ou apartamento na praia. Num fim de semana, eu fui
junto para a praia, na casa do meu primo em Itapema. Eu me dava muito bem com as
minhas primas, porque eu era solteira. Daí meu primo me chamou e disse: “Olha, Ruth,
todos os homens estão lá no prédio. Você não queria comprar um apartamento?” Fomos lá
e conversamos com o dono do prédio. O homem me propôs um negócio, e eu,
mentalmente, já fiz as contas de nossas economias. Voltamos de Itapema, levei minha
prima e a filha dela para casa. Falei para a minha mãe do negócio que tinha aparecido e das
condições de pagamento. Pensei que ela não fosse concordar com a compra. Para minha
surpresa, a minha mãe disse: “Então vamos comprar o apartamento!” O meu apartamento
foi um dos primeiros na praia de Itapema. Ali perto ainda tinha um engenho de cana-de-
açúcar. Este tempo foi muito bom.
201
Foto 18
Eu com minha mãe, na frente do meu fusca amarelo, meu primeiro carro,
e do nosso apartamento na praia em Itapema.
Nunca esqueço que, no domingo dia 10 de janeiro de 1976, levei minha mãe para
Itapema e compramos o apartamento. No dia 17 do mesmo mês já levamos a mudança.
Todos os parentes ajudaram a descarregar a mudança. Depois aconteceu uma grande festa
de inauguração do apartamento. No verão nós ficávamos um mês na praia. Isto foi durante
muitos anos. Minha mãe gostava de ir à praia.
Depois que minha mãe faleceu, precisava ir e voltar sozinha da praia. Mas, este
ano, 2004, resolvi vender o apartamento. Eu sou corajosa! Mas hoje em dia não sinto
alegria em ficar sozinha na praia. O médico também proibiu o sol para mim, por causa da
minha pele clara. Se eu quero ir uns dias para a praia, posso ficar na casa de uma amiga ou
de algum parente.
O estudo foi tudo na minha vida. Consegui um trabalho, ganhei o pão... Realizei-me
profissionalmente. Fiz a contabilidade daquela grande firma. Se não tivesse estudado, não
teria sido capaz de fazer o que fazia e faço hoje. Já fiz muitos livros-caixas... Sem o estudo,
eu não seria nada. Somente três mulheres, que eu tenha conhecimento, trabalhavam em
escritório naquele tempo, como já contei. Eu fui uma das primeiras a fazer a contabilidade
de uma firma. Além de cuidar da contabilidade, fazia cálculos difíceis sobre compra e
venda de madeira e outras coisas. Eu sempre tive muita iniciativa. Quando foi necessário,
eu me arrumei, saí de casa e fui procurar um emprego. Eu não fiquei em casa sentada,
202
olhando para as paredes; sempre fui à luta. Assim pude ajudar meus pais e também não fui
obrigada a deixar de lado as coisas que eram importantes para a minha vida.
A primeira vez que me mudei de residência foi quando tinha 77 anos. Nasci, cresci
e vivi no mesmo lugar. Vendi as minhas propriedades para comprar um apartamento.
Acredito que seja mais seguro para mim. No local onde eu nasci e me criei, demoliram a
casa antiga e estão construindo um edifício. Este edifício vai levar o meu nome – “Edifício
Ruth Braun” –, mas não vai ser nesse edifício que eu vou morar.
Preciso pensar na minha velhice. Nos anos que virão pela frente. Ainda quero fazer
muitas coisas, como conhecer um pouco mais do Brasil. Comprei um apartamento no
Edifício San Sebastian. É mais próximo do centro da cidade, fica próximo do teatro da
SCAR, mais perto da igreja, onde se encontram os grupos de que eu participo. Por
enquanto aluguei este apartamento que pertence à Comunidade Evangélica Luterana. Em
outubro estarei me mudando para a minha nova residência.
Tenho 79 anos. Sinto-me uma mulher ativa. Gosto de ir atrás das coisas e organizar
os ambientes, especialmente para as festividades dos nossos grupos. Alegro-me quando as
mulheres participam do nosso grupo da OASE. Nós temos muitas participantes. No
encerramento das atividades, contamos com a participação de 70 mulheres. Sinto-me feliz
e orgulhosa em ser mulher. Sou grata a Deus por ter me feito mulher. Tenho amor à vida.
Gosto de dizer o que sinto. Não gosto de esconder nada. Sou uma pessoa sincera.
Minha família é bem pequena. Tenho meu irmão Heinz, minha cunhada Olívia,
minha sobrinha Carin, casada com Paulo, e uma única sobrinha-neta, a pequenina Carolina,
com 2 anos e 5 meses.
203
Foto 19
Eu com o meu irmão Heinz e com a pequenina Carolina, minha única sobrinha-neta,
com apenas 2 meses. Esta foto foi tirada na sala da casa do meu irmão e da minha cunhada Olívia.
Além da minha família, tenho muitas amigas, amigos e 13 afilhados que tamm
me visitam. Fiquei feliz que, no meu aniversário em 2004, minha família veio me visitar.
Também me alegrei que vieram pessoas que eu nem esperava. O aniversário é sempre uma
data especial! Em 2006 tenho o desejo de fazer uma festa, um almoço, e comemorar os
meus 80 anos.
Foto 20
Ruth, com a sua afilhada mais nova, Natália,
no dia do seu aniversário em 19 de agosto de 2000.
Fazem 14 anos que vivo sozinha. Para mim é bom. Eu me sinto em paz. Poder
chegar em casa, sentar no sofá, espichar as pernas, ficar um pouco em silêncio. Sempre
morei com a minha mãe. Ela controlava a minha vida. Eu estava com 65 anos e a minha
204
mãe ainda ficava me vigiando. Eu sempre estava debaixo dos olhos dela. No começo,
quando a minha mãe faleceu, foi difícil. Mas, depois, eu me senti independente. Eu fui
sempre aquela “pequena” para a minha mãe. Eu nunca pude deixar a minha mãe. Lembro e
me identifico com a Ruth da Bíblia. A Ruth ficou e cuidou da sogra. Eu cuidei da minha
mãe até o fim da sua vida.
Documento 4
Este cartão com o significado do nome Ruth foi me dado de presente pela minha sobrinha. Ela o trouxe da
Alemanha, quando esteve lá. A tradução do cartão é a seguinte: O nome Ruth é de origem hebraica e
significa amizade. A figura bíblica Ruth era reconhecida por sua devoção, fidelidade e coragem. Sempre é
possível confiar na rápida Ruth.
De acordo com o meu estilo de vida e meu jeito de ser, eu nunca poderia ter
colocado a minha mãe num asilo; aonde eu ia, a minha mãe ia junto. Eu não tinha coração
para deixar a minha mãe. Minha mãe também me dava segurança. Eu me sentia
responsável por cuidar dela. Como eu era uma mulher solteira, recebia muitos galanteios.
Nunca deixei de cumprimentar alguém e ser gentil, mas sempre mantive uma certa
distância. Quando me lembro das cantadas e propostas que recebi, posso dizer que eu fui
uma artista; consegui sempre manter uma boa postura e educação.
Eu tive convites para trabalhar fora de Jaraguá do Sul. Em Bremen, Alemanha, um
casal amigo da minha mãe me convidou para trabalhar na empresa e ser tradutora de
alemão e português. Também recebi um convite de Curitiba para trabalhar num escritório
de lá. Em Jaraguá do Sul também recebi vários convites para trabalhar na WEG. Como eu
205
falei, quando queria sair dos Grubba, recebia um aumento e continuava no emprego. Quem
sabe, a minha vida poderia ter sido diferente, se tivesse saído de Jaraguá do Sul ou mudado
de emprego, mas foi assim que eu a vivi. Tive um grande amor e cuidado pelos meus pais,
enquanto estavam vivos, e agora tenho um grande amor e cuidado por minha comunidade.
Fazer este trabalho na comunidade me dá alegria e prazer. A comunidade, os grupos da
OASE e o Coral são parte da minha família. Também não descuido da minha pessoa.
Procuro sempre cuidar do meu cabelo e estar bem vestida. Isto não significa vestir roupas
caras. Gosto de me arrumar. Isso me faz bem! Também cuido da minha saúde, da minha
alimentação. Procuro manter sempre o bom humor. Gosto muito de cantar. Domingos de
manhã sempre, quando posso, vou ao culto. Tenho o meu carro. Posso me locomover pela
cidade. Sou uma pessoa independente, mas gosto de participar dos grupos, de ajudar onde
posso e de me relacionar com as pessoas, de estar entre amigos e amigas.
206
V – HISTÓRIA DE VIDA DE RENITA
Eu nasci no dia 22 de setembro de 1954 no Hospital e Maternidade Jaraguá. Meus
pais se chamam Helga e Alitor. O médico que assistiu minha mãe na hora do meu
nascimento foi o Dr. Otsa. Fui batizada na Igreja Evangélica Luterana no Centro, no dia 16
de janeiro de 1955. O pastor que realizou meu batismo foi o P. Hermann Waidner. Tenho
três caixinhas de lembranças do batizado que recebi das minhas madrinhas e do meu
padrinho, logo após o meu batismo. Minha mãe me contou que meu padrinho e minhas
madrinhas entregaram estas caixinhas para eles, no altar da igreja. Nas caixinhas havia
uma Patenbrief [carta do padrinho ou da madrinha] com seus votos e desejos. Além disso,
tinha um pequeno presente em dinheiro. Guardo-as com carinho. A carta do padrinho e das
madrinhas traz uma mensagem bíblica ou o hino, referente ao batismo, para que, à medida
que a gente crescesse, pudesse lê-la. Essas lembranças significam para mim que o batismo
e a vivência da palavra de Deus estão unidas, sempre juntas. Eu cresci, amadureci...
aprendi a ler, a refletir e a viver a fé.
O dia do batismo também foi motivo de festa familiar. Foram as minhas avós que
fizeram a comida. Naquele tempo tudo era feito em casa. Foi um almoço especial com
marreco, salada de batata, massa, e, certamente, à tarde teve um café com cuca e bolo.
207
Documento 1
Presente de uma das minhas madrinhas no dia do batizado.
A cartinha está escrita na língua alemã.
Documento 2
Esta cartinha é do meu único padrinho. Eu tinha duas madrinhas e um padrinho.
Recebi este presente das três pessoas. Além dos desejos expressos no cartãozinho,
também eram colocados outros presentes, como dinheiro
571
.
Meus pais me contaram que o ano em que eu nasci foi muito conturbado
politicamente. Foi o ano do suicídio do Getúlio Vargas, presidente do Brasil, trazendo
571
Interessante observar que ela recebeu duas cartas escritas em português e uma em alemão. Dar estes
presentes era um costume pomerano.
208
muitas mudanças na vida do povo brasileiro. Tenho duas irmãs mais velhas, Inge e Astrid.
Sou a terceira filha. Depois de mim, nasceu o Alois, meu irmão; então vieram as gêmeas
Gisela e Roseli e, por fim, a Edla.
Foto 1
Nesta foto de família, ainda não havia nascido a sétima filha e minha sexta irmã, Edla.
Eu estou do lado da minha mãe, em pé.
Meus pais são agricultores. Hoje já estão aposentados, mas ainda trabalham muito.
A nossa maior alegria é que nossos pais têm saúde. Meu pai tem 81 anos e minha mãe 73
anos. Eles têm uma vida bem independente. Eles plantavam milho, banana, arroz e
verduras... também criavam galinhas, porcos... vacas... Desde pequenos, a gente precisava
ajudar os pais na lavoura. Eles precisavam da mão-de-obra das filhas e do filho. A nossa
vida era bastante dura. Lembro que, quando chovia, a gente precisava cortar o “mata-
pasto”. A gente também fazia mutirão com os vizinhos no tempo da colheita, e contávamos
também muitas histórias. Nós colocávamos os assuntos em dia. Trabalhando na roça, a
gente também ia construindo os nossos sonhos... Sonhávamos em um dia não mais precisar
trabalhar na roça.
Os trabalhos em casa e na roça eram pesados e vistos por nós como castigo, mas
hoje, olhando para trás, vejo que foi muito importante e saudável para minha vida. Lembro
que os períodos de descanso de minha mãe foram quando ela estava internada no hospital.
Meu pai sempre teve bom humor. A mãe era mais brava. Além de ajudar na roça, também
ajudávamos no trabalho da casa: lavar a louça, tratar os animais. Quando as irmãs gêmeas
Gisela e Roseli eram pequenas, a minha responsabilidade era cuidar da Gisela. Uma das
209
alegrias que os pais contam para nós é que nós, as filhas e o filho, nunca ficamos doentes.
Certa ocasião meu irmão foi mordido pelo nosso cachorro Tuki. Ele levou muitos pontos.
Anos mais tarde ele também teve febre tifóide.
A casa dos meus pais fica no interior, a 5 km do centro da cidade. Hoje é tudo
cidade. Não existe mais esta separação de roça e cidade. Em 2005, faz 56 anos que meus
pais residem nesse lugar. Esta terra é herança dos bisavós Karl e Johanna Wilhelmina. Karl
adquiriu essas terras em 25 de julho de 1892
572
. Meu bisavô veio com 15 anos da
Pomerânia Oriental, região que na época integrava a Prússia. Meu pai herdou esta terra do
nosso avô Emil. Uma terra plana, próxima do rio, ótima para a agricultura. Os tempos
mudaram, hoje meus pais estão idosos, e das filhas e dos filhos ninguém continuou no
trabalho da roça. Nossos vizinhos já venderam suas terras. E nós também vendemos uma
grande parte para a indústria de motores WEG, que está ampliando as suas instalações. Nós
temos um vínculo afetivo com essa terra, pois a gente cresceu ali. A terra, no entanto, já
não é mais usada para a produção e para o sustento da família.
Perto da nossa casa ficava a Escola Isolada Vieiras, na Entrada de Itapocuzinho.
No ano em que eu completei 8 anos, iniciei o primeiro ano primário. Fui direto para a
escola, não passei pela pré-escola. Lembro que até os 5 anos eu só falava alemão em casa.
Um ano antes de ir para a escola, com 7 anos, a gente aprendia um pouco de português.
Minha mãe começou a me treinar a escrever o meu nome e o nome da professora da Escola
Isolada Vieiras. Na época, meus pais estavam decidindo onde eu iria estudar: Escola
Isolada Vieiras ou na Escola Particular Jaraguá. Meus pais, então, me matricularam na
Escola Particular Jaraguá, escola que ficava no centro e estava ligada à Igreja Evangélica
Luterana. Precisei aprender a escrever o nome da professora, que se chamava Estheria
Lenzi Friedrich. Achei este nome mais complicado para escrever. Precisei também
aprender a nova língua, o português, pois só falava alemão em casa. Uma palavra que eu
achava difícil em português era “travesseiro”, que em alemão é Kissen. Eu não entendia
como as palavras podiam ser tão diferentes. Eu gosto de aprender novas línguas até hoje.
Minhas duas irmãs mais velhas já estudavam na Escola Particular Jaraguá. A gente
estudou nessa escola porque recebeu bolsa de estudos (convênio da escola com a
prefeitura). Antes de ir para escola, eu observava minhas irmãs Inge e Astrid organizando
os cadernos. Elas me ajudaram bastante. A minha irmã mais velha, Inge, me levava na
572
Astrid Eggert BOEHS, Uma família: tempos, movimentos e espaços, p. 24. Astrid é irmã de Renita. Ela
escreveu um livro de memória da família Eggert.
210
garupa da bicicleta. Parece que ainda vejo a nuvem de poeira que ficava para trás. O nosso
uniforme da escola era saia azul marinho com tirantes, blusa branca com o nome da escola
bordado. Lembro-me das nossas dificuldades de meninas que moravam e trabalhavam na
roça, mas estudavam na escola particular. Isso nem sempre era fácil.
A tarefa de cortar batatas doces para as vacas fazia com que as nossas mãos
ficassem manchadas, isso exigia da gente um esforço bem grande de limpeza. Todas as
noites, a gente precisava esfregar com limão as nossas mãos para saírem as manchas.
Havia uma rotina diária que precisava ser cumprida durante todo o tempo em que
estávamos na escola. Depois da janta, quando todas as tarefas já estavam cumpridas, a
gente passava o ferro elétrico no nosso uniforme e arrumava o material para o dia seguinte.
Quando chovia, a gente ia a pé e seguia pelos trilhos do trem. Nós íamos caminhando
devagar com a nossa sombrinha até chegar à escola, pois tínhamos medo de sermos
respingadas e chegarmos sujas à escola. Desta forma, fomos percebendo as diferenças
entre a vida das pessoas que moravam no centro da cidade e a nossa, da roça. A nossa
rotina era bem diferente. Alguns colegas nas férias iam para a praia. O verão era a época de
mais trabalho na roça. O arroz era plantado em novembro, quando as aulas terminavam, e o
nosso pai já esperava a nossa ajuda para a colheita do arroz. Em janeiro, num dos meses
mais quentes do ano, era colhido o milho que era plantado em julho. A colheita do milho
era difícil, pois a palha seca liberava uma poeira fina que ia penetrando na roupa e na pele,
produzindo desconforto e coceira. A gente falava para os nossos primos da cidade que as
nossas férias aconteciam quando tínhamos aulas. Acho que eles não entendiam isso direito.
O 1º e o 2º ano do primário eram de manhã. As turmas eram mistas e separadas por
ano, sendo que cada uma tinha a sua própria sala. Nestas séries, as meninas sentavam de
um lado, e os meninos do outro. Havia bastante rigidez. Cada turma tinha a sua própria
sala. A gente já tinha caderno, lápis, caneta-tinteiro, tinta Parker e mata-borrão. Usávamos
uma cartilha no primeiro ano. Lembro-me bem do b, a; ba, be, bi, bo, bu = boné escrito no
quadro. Todos os cadernos eram encapados e precisavam ser bem cuidados. Lembro-me
bem da cartilha, do mata-borrão, do caderno de caligrafia e do caderno quadriculado de
matemática. Isso foi no 1º e 2º ano primário. Minha primeira professora foi a dona
Esthéria. Ela era muito severa. Eu me considerava uma aluna estudiosa. Um dia, errei uma
palavra na hora do ditado. Ela virou a palma da minha mão, pegou a régua e bateu para não
errar mais, didática da época. Recebi, em outra ocasião, um outro castigo que era sentar
junto com um menino. A escola era mista, com meninos e meninas, só que de um lado
211
sentavam os meninos, e de outro as meninas. D. Déta e D. Sílvia eram as professoras que
davam aula de religião.
A pasta da escola era feita de couro, tipo uma mala feita pelo sapateiro, com duas
repartições. Esta mala era para todo o tempo de escola. Ela tinha umas fivelas para fechar e
era pesada para carregar. Tudo ia dentro da mala, o lanche, o penal, os cadernos e os livros.
A chamada sempre era feita com o nome completo (nome e sobrenome); por isso, até hoje
lembro dos colegas com nome e sobrenome. Nós tínhamos nome e sobrenome, e não
éramos chamados por um número ou somente pelo primeiro nome. A merenda para o
recreio a gente levava de casa: pão de milho, queijinho branco, Muss [doce], melado ou
lingüiça. Tudo isso era enrolado num guardanapo de pano bem limpinho. A gente ficava
com um pouco de vergonha quando via o pão de nossas colegas da cidade, que era o pão
branco. No recreio, depois de comer a merenda, nós brincávamos todos juntos, rapazes e
meninas, na frente do pátio da escola. A gente brincava muito de “bandeira”, ovo podre ou
de mata-soldado. O recreio era um momento feliz e de muita alegria. Para voltar à sala de
aula, tínhamos que fazer fila, 2 a 2, para entrar na sala de aula em ordem.
Foto 2
Minha foto do 1º ano primário, na Escola Particular Jaraguá, no ano de 1962.
A professora Esthéria era católica. Quando eu estava no segundo ano, ela ficou
muito doente e chegou a falecer. Lembro que todos nós da escola fomos ao velório na sua
casa e ao enterro. Como a escola ficava do lado da Igreja, quando a gente ouvia o sino
tocar, ficava com os ouvidos atentos. “Quem faleceu?” era a primeira pergunta. Assim nós
212
aprendemos a decifrar as batidas do sino. Conforme as batidas, sabíamos se havia falecido
uma criança, um homem, uma mulher.
Neste período, também chegaram à cidade os novos professores: Prof. Ricardo
Feldens e o Prof. Geraldo Kleine, que era casado com a Profª. Rute Horst. Ricardo também
era o professor do Culto Infantil. Ele costumava visitar os alunos e alunas em casa. No
domingo de manhã, minhas irmãs e eu íamos novamente para o centro, não para a escola,
mas para o Culto Infantil. O que mais lembro do Culto Infantil são os teatros de final de
ano, com a dramatização do Natal. Minhas irmãs e eu sempre participamos do Culto
Infantil aos domingos. Quando voltávamos para casa, um gostoso almoço nos esperava,
“um almoço de domingo”, com marreco ou pato assado, macarrão e sobremesa, geralmente
um pudim de fruta ou de leite com um molho doce. Também era aberto a rote gasosa
uma garrafa de refrigerante de framboesa. Cada filha e filho recebia partes iguais.
No 3º e no 4º ano primário, usávamos caneta esferográfica. Também tínhamos
geografia, história e ciências. A gente precisava copiar o ponto do quadro. No caderno de
geografia, relevos, acidentes geográficos, que desenhávamos para exemplificar. A
professora dizia: “Vamos copiar o ponto”, e tínhamos que copiar rápido. A Escola Jaraguá
tinha três salas enormes, como ainda se pode ver.
Na sala do 3º ano, havia um armário com vidro – era a biblioteca da escola, e lá
estavam os livros clássicos: O Barba Azul, As Viagens de Gulliver, Marco Pólo, O Gato de
Botas, Robson Crusoé, O Eremita, A Gata Borralheira, A Ilha do Tesouro. Eu os li com
muito gosto. Estes livros eram grandes, de capa dura, encapados com papel amarelo. A
gente, para ver a ilustração da capa, tirava um pouco a capa amarela, porque, vendo as
figuras, se viaja muito mais. Eu tinha muita curiosidade. Esta era a maneira de ver
televisão na época. Foi nesta época que eu adquiri o gosto pela leitura. Hoje sou uma
leitora assídua da Biblioteca Pública Municipal de Jaraguá do Sul. Tenho a minha
carteirinha já há muitos anos.
Quando nós estávamos no 3º primário, a minha irmã mais velha, a Astrid, ganhou
uma bicicleta nova, e eu fiquei com a velha. As bicicletas de hoje são muito diferentes do
que as daquele tempo. As ruas também são bastante diferentes. Quando a gente ia para
escola, não tinha calçamento ou asfalto. Tudo naquele tempo era mais devagar. Não havia
tanto perigo. O pulsar da vida era bem diferente. Quase tudo mudou; muitas casas foram
demolidas na Rua Joinville. Até o nome mudou: hoje é a Avenida Waldemar Grubba. As
213
mudanças são rápidas e bruscas. Jaraguá do Sul se industrializou, a partir dos anos 60, com
o chamado milagre econômico, trazendo muitos empregos, mas também muita correria e
muitas mudanças... Todo o mundo corre em Jaraguá do Sul. A vida está mudando
sensivelmente. Onde um dia existia roça, hoje está virando cidade industrial.
Foto 3
Esta foto foi tirada em 2005, quando a pesquisadora
e Renita visitaram o lugar onde a narradora viveu, brincou, cresceu
e trabalhou na roça. Vêem-se aos fundos os avanços da construção da WEG.
A roça cede lugar à indústria.
Quando eu era criança, me espelhava muito na Astrid. Eu acabava lendo os livros
que ela lia, porque a gente ia junto para a escola; ela era um ano mais velha, e, enquanto
voltávamos para casa, já íamos trocando idéias e opiniões sobre as aulas e os livros. Em
casa, a gente via a nossa mãe lendo também. O nosso pai era um ótimo contador de
histórias. Nós gostávamos de receber visita da minha tia de Massaranduba; quando ela
vinha nos visitar, também contava as histórias de lá. A gente também adorava ir passear na
casa dos tios em Massaranduba. Essas viagens e visitas eram o nosso tempo lúdico, de
férias, de lazer.
A gente também passava os domingos com os nossos primos na casa do tio Emílio
e da tia Nilda. Não existiam cercas. Era o nosso parque de diversão. A gente brincava
muito, no pátio, de pegar, esconder, pega-ladrão. Lá também moravam o meu avô e a
minha avó paterna; ela não podia mais caminhar. A gente sentava na cama onde ela estava
e olhava junto as revistas alemãs: Bunte, Stern, Revue. A avó explicava em alemão as
reportagens, as entrevistas com os artistas e as personalidades da época, anos 60. Meu tio
Emílio também assinava as revistas Seleções, Cruzeiro, Brasil-Post. Minha tia fazia cada
214
bordado lindo e coisas gostosas. Infelizmente, eles faleceram em 1981, num acidente com
a “litorina”.
Também íamos à casa dos Meier e ficávamos no rancho lendo a revista Seleções a
tarde inteira. Eu ficava deslumbrada vendo “o outro mundo”, e a fantasia corria solta.
Depois a gente debatia o que tinha lido, quando ia trabalhar na roça. Ficávamos apoiadas
no cabo da enxada e falando sobre o que tínhamos lido. Os sonhos corriam soltos. Eu tinha
uns 11 anos; era no final do primário.
Sempre participei do Culto Infantil. A nossa vida era escola, igreja, família,
trabalho em casa e na roça, as visitas, passeios que a gente fazia, especialmente para os
familiares. O trabalho e o lazer estavam misturados, isto é, no trabalho a gente também
fazia brincadeiras. Quando a gente levava o milho para o rancho, tínhamos que jogá-lo no
sótão. A gente brincava, deixando cair uma espiga ou outra para os porcos e corríamos
atrás deles. Era bem divertido. Nosso pai entrava na brincadeira também.
A escola, a igreja e a casa pastoral, no centro, estavam lado a lado. Uma lembrança
bonita que eu tenho é que muitas vezes a gente subia na torre da igreja para ver a cidade
mais longe. A gente subia, mas tinha medo. O calçamento ia só até o correio. A igreja
continua a mesma, mas as coisas, os prédios, as casas ao redor se transformaram. A
paisagem mudou muito. O prédio mais alto naquele tempo era a igreja. Muitas casas
antigas foram derrubadas, mas o trem continua passando no centro da cidade. Lembro que
se viajava de trem para visitar parentes em Rio Negrinho. Bons tempos. Quando o trem
“misto” [passageiros e carga] passava às 8 h 30 min, era a hora do Frühstück [lanche].
Foto 4
Pequeno rancho na roça que servia para os momentos
de descanso, para o Frühstück ou para se proteger da chuva.
Nos momentos de descanso também se contavam muitas histórias.
215
Próximo da igreja, no centro, havia uma casa que fazia um sorvete maravilhoso:
“Harnack – o Bar da Dona Catarina”... Era o point da cidade. O sorvete era uma delícia.
Com um pouco de dinheiro, a gente tamm podia comprar, no armazém do Ristow, a
famosa bolacha-maria e o wafer a granel. Em Jaraguá do Sul era fabricada a famosa
laranjinha do Max Wilhelm. A gente tomava muita laranjinha nas festas. Em casa, somente
nos domingos, nossos pais abriam uma gasosa, rote gasosa, feita de framboesa, ou uma
limonada, uma cerveja preta ou um vinho caseiro.
No 3º e 4º ano, estudei à tarde. Às quintas-feiras, víamos as senhoras da OASE
irem para o salão, e da sala de aula sentíamos o cheiro do café e ouvíamos o belo canto.
Neste salão aconteciam as festas da Escola. Infelizmente, o salão teve que dar lugar para a
escola que cresceu. A minha primeira experiência de falar em público foi na nossa
formatura do 4º ano primário. Aquela sensação de subir no palco, todo mundo olhando
para a gente! Lembro que eu li a oração de São Francisco de Assis: “Senhor, fazei de mim,
um instrumento de tua paz.” Depois a gente recebia o certificado das mãos do diretor e da
professora da turma.
Documento 3
Meu certificado de Conclusão do Curso Primário Complementar
Escola Particular Jaraguá – 1965
216
Quando terminei o 4º ano, eu me preparei para fazer o exame de admissão. O
exame de admissão para o ginásio era como um vestibular. Quando não se passava no
exame de admissão, tinha-se de fazer o 5º ano. O Livro de Admissão tinha todas as
matérias para estudar para o exame: matemática, português, história, geografia e ciências.
A minha professora do 3º e do 4º ano, a D. Carla, me emprestou o livro dela para que eu
pudesse estudar para o exame. O livro era caro. Estudei e passei. Foi assim que fui para o
Colégio Divina Providência.
A rotina da semana variava em função dos turnos na escola. Em casa, havia uma
certa divisão de tarefas: quem estudava à tarde ajudava no período da manhã, e quem
estudava de manhã ajudava no período da tarde. Lembro que estudei mais tempo de
manhã. A gente chegava em casa por volta do meio-dia e meia, muito cansadas. Vínhamos
de bicicleta. Andávamos 5 km de estrada cheia de poeira. Então, almávamos,
ajudávamos a lavar e secar a louça. Podíamos descansar até às 14 h. Então, vinha o café da
tarde. Depois, podíamos fazer os deveres da escola. Por volta das 15 h íamos para a roça
cortar batatas ou capinar aipim e arroz ou molhar as verduras quando era outono. Cada
época do ano tinha as suas plantações e os seus cuidados. Isto foi assim até terminar o
ginasial. A nossa vida era muito diferente da das amigas e colegas da cidade. A gente
sonhava muito em um dia mudar de vida! Minha mãe fazia pão duas vezes por semana no
forno à lenha. Quando saia do forno, ela colocava o pão numa tábua. Era aquela fileira de
pão dourado, oito a nove pães. Que delícia!
Todos os meus sonhos de vida começaram neste período. Quando eu vou ao centro,
vejo ali o prédio da escola onde estudei: é como se eu voltasse para o útero, para o paraíso.
Ir para a escola foi a minha primeira saída de casa; fui aprendendo a me virar sozinha e a
construir novos sonhos, amizades. Certa tarde, voltávamos de bicicleta com outras colegas.
Íamos em pares. Lá pelas tantas, os pedais da 1ª dupla se engataram, e elas caíram.
Vínhamos atrás rindo delas; quando passamos por elas, de tanto rir caímos. A outra dupla
que vinha atrás também caiu. Era um bolo de seis bicicletas e seis meninas. Quando nos
encontramos hoje, sempre rimos lembrando o fato.
Meus pais sempre se empenharam para que todas as filhas e filho recebessem
estudo. Nossa vida sempre foi escola, igreja e família, que envolvia trabalho desde
pequenas e o lazer – visitas, festas e brincadeiras com os primos. Meus pais nos deram a
liberdade para estudar e buscar o próprio caminho. Nós tivemos mais liberdade do que
217
outras moças/meninas que a gente conhecia. Muitas nem terminaram o primário, pois os
pais não davam tanta importância ao estudo. O trabalho da roça era mais importante. A
mulher não precisava estudar, pois era educada para casar e agüentar.
Depois que eu passei no exame de admissão [final de 1965], iniciei os estudos da
primeira série do curso ginasial no Colégio Divina Providência, no ano de 1966. Este
colégio era dirigido pelas irmãs católicas. Era um colégio só de meninas. Os meninos
estudavam no Colégio São Luiz, dirigido pelos irmãos maristas. Também estudei nesta
escola particular, porque recebi bolsa de estudo. Naquele tempo havia poucas escolas
públicas. Esse colégio tinha uma biblioteca bem estruturada. Era linda e ficava bem no
meio da construção; na parte superior; havia até uma sacada com flores. Era a época da
ditadura militar. Todo o mundo tinha medo do tal do comunismo. Havia um clima de
guerra e de medo no ar.
No 1º ano do ginásio, em 1966, eu tive uma professora muito linda. Era a D. Astrid.
Ela entrava na sala já falando inglês: Good Morning, [Bom dia] era o seu cumprimento!
Com ela, eu aprendi a gostar de inglês. As boas professoras e os bons professores a gente
nunca esquece. Deixam marcas na vida da gente.
No 3º ano ginasial, a gente também aprendia francês. Em 1969, eu completei o
ginásio e lembro que nesse ano foi a primeira vez que eu fui ao cinema. Nós fomos a
última turma a estudar a matemática antiga. No tempo em que estudei no Divina, nós
vínhamos de bicicleta até a nossa igreja, deixava a bicicleta ali e íamos, então, a pé até o
colégio. O espaço físico do colégio era muito bom. A gente tamm recebia influências da
Igreja Católica. Toda primeira sexta-feira do mês havia missa na igreja São Sebastião. A
gente adorava ir à missa, porque se encontrava com os rapazes que estudavam no São Luiz.
A primeira sexta-feira do mês era muito esperada. A missa da sexta-feira era o dia que
proporcionava os encontros e os olhares entre as meninas do Divina Providência e os
meninos do São Luiz. Era o tempo das “primeiras paqueras”.
No último ano do ginásio, também tive a minha primeira paquera. Paquera era só
mãozinha dada, mais nada. Ele era aluno interno do Colégio São Luiz. Ele lia muito.
Imagina, foi ele que me emprestou um livro sobre educação sexual. Um outro livro que ele
me emprestou foi “O Nilo”. Muito bom! Ele também curtia os Beatles. Eu ganhei um
compacto simples que tinha “Hei Jude”. Era também a época da jovem guarda; eu sabia
218
cantar todas as músicas da época: Caetano Veloso, Renato e seus Blue Caps, Wanderléia,
Vanusa, The Fevers, etc...
A gente também tinha, no Colégio Divina, os exames de educação física, exame de
resistência, seqüência de exercícios
573
. O exame era individual, e ficávamos com fortes
dores musculares nos dias seguintes.
Minha mãe nos proibia de ler fotonovela. Nesse tempo, abriu uma livraria de
revistas velhas, Sebus, na frente do Colégio São Luís. Imagina pedir dinheiro em casa para
comprar revista. Nem pensar, jamais. Então, eu e a Astrid colhíamos laranja e vendíamos
na verdureira. Dava para comprar algumas revistas e depois vendíamos aquelas lidas por
outras. Isso tudo escondido da mãe. Se ela achasse, queimava tudo.
Uma das coisas que lembro desse tempo de adolescência era também a forma que
nós irmãs arquitetávamos para ouvir, no rádio, a transmissão das novelas “Redenção” e “A
Cabana do Pai Tomás”, na Rádio Guarujá de Florianópolis. Nós íamos para a roça
trabalhar; uma de nós ficava fazendo as tarefas acompanhada das irmãs menores, e a outra
voltava para casa com alguma desculpa a fim de ouvir a novela de rádio, algo proibido
pelos nossos pais. Ouvir esta novela foi motivo de muitas fugas da roça.
Tivemos pouca orientação de casa sobre as mudanças que ocorrem em nosso corpo
no tempo da adolescência. Esse era um assunto quase proibido. Como eu tinha duas irmãs
mais velhas, elas me ajudaram a esclarecer muitas dúvidas. Uma prima mais velha de
Massaranduba também contava algumas coisas para a gente. Foi com elas que fiquei
sabendo sobre a menstruação. Todo mês tinha uns paninhos pendurados no varal; eu não
sabia por quê. Um dia, perguntei para minha mãe. Ela não gostou da minha pergunta, até
ficou brava comigo. Havia muita vergonha para falar sobre esse assunto. Só quando fiquei
menstruada, entendi o motivo dos paninhos no varal. Nós usávamos ainda os paninhos. Só
mais tarde que fomos conhecer e usar os absorventes higiênicos. Mas penso que os
paninhos eram mais saudáveis e não poluíam tanto o meio ambiente. As fraldas que as
crianças usavam, na época, também eram todas laváveis. Não havia tanta poluição.
Em 1966, eu iniciei o Ensino Confirmatório. Todas as crianças participavam no
Ensino Confirmatório na Igreja Evangélica Luterana no Centro; tudo era centralizado. O
Ensino Confirmatório era dirigido pelo P. Karl Gehring. Ele era bastante rígido. A gente ia
573
Confira ficha de educação física em anexo.
219
dois anos na doutrina, como a gente chamava. Nós tínhamos o livro “Ensinamentos
Evangélicos”. O ensino era muito na base da memorização. A gente precisava decorar os
mandamentos, o Credo Apostólico, o Pai-Nosso. Nós usávamos muito o livro nas aulas do
Ensino Confirmatório. Também aprendemos a usar a Bíblia. A gente cantava bastante. O
dia da confirmação foi um dia muito importante para mim. Lembro que as minhas duas
madrinhas e meu padrinho vieram para a minha Confirmação. Uma das minhas madrinhas
era a irmã mais velha da minha mãe e morava em Curitiba. A gente sempre dizia: “A tia
chique de Curitiba”. A outra madrinha morava em Blumenau, e meu padrinho Tio Oscar
morava perto de nós, junto com meus tios e avós.
Foto 5
Esta é a foto de turma da minha Confirmação. Lembro de várias colegas: Yvonne, Renate...
Não lembro por que só as meninas estão na foto.
Se os meninos foram confirmados em um outro domingo...
O pastor está no centro, e ao redor estamos nós, as confirmandas... Éramos uma turma grande!
Eu tenho uma foto onde estou sozinha; ela ainda está na casa dos meus pais.
574
Minha Confirmação aconteceu no dia 07 de abril de 1968. As confirmações
aconteciam no tempo da Páscoa. Hoje mudou. É em outubro, época da Reforma. O meu
vestido de Confirmação foi costurado pela Frau Pasold, mãe da Rosema [mulher que
participa do grupo da OASE do Centro]. Cada uma ganhava o seu vestido de Confirmação.
O dia da Confirmação era cercado de muita expectativa e ansiedade. Era um grande dia.
574
Verifiquei no Livro de Registros de Confirmações da Comunidade Evangélica e realmente nesse domingo
foram confirmadas somente moças. Num domingo anterior aconteceu um culto de confirmação onde também
havia rapazes. Ao que tudo indica havia poucos rapazes a serem confirmados naquele ano.
220
Documento 4
Considero a certidão de confirmação um documento bem importante na minha vida.
É como se fosse um momento de passagem... de afirmação da nossa vida.
Sempre guardei minha certidão com muito cuidado
A gente tinha o hábito cotidiano de rezar juntos em casa antes das refeições.
Lembro-me da minha mãe lendo a Bíblia e comentando com a gente. Aprendíamos a usar a
Bíblia no Ensino Confirmatório. Sempre íamos ao culto. Ainda vejo a nossa família toda
indo para o culto da Sexta-Feira Santa, manhã de Páscoa e Natal. Sexta-Feira santa até o
Sábado à tarde era um silêncio total. Não se podia gritar ou ouvir música alta.
Lembro que eu tinha um quadro no meu quarto, que me inspirava muito. Era o
quadro “Jesus orando no Getsêmani”. Esta imagem me ajudava muito nas minhas orações
e meditações pessoais. Gosto também muito do Salmo 23. Leio e medito muito nesse
salmo. É um salmo consolador e tem me acompanhado muito na minha vida.
Uma das coisas bonitas que lembro das festas de casa, de nossa família, era o dia do
aniversário. Esta era uma data especial. Se a gente fazia uma “arte”, naquele dia não era
punido. Nesse dia, a gente se sentia importante. Na nossa casa, a gente sempre lembrava o
aniversário de todos os membros da família. Ninguém era esquecido. Geralmente, tamm
era feito um café especial pelo dia do aniversário. Outros momentos que eram festejados:
Batismo, Confirmação, casamentos, bodas dos pais. Eram convidados os parentes,
padrinhos, madrinhas e os vizinhos mais próximos. A dona Irma Bolduan, que era nossa
parente, fazia a comida gostosa para todos.
221
No dia 3 março de 1968
575
também foi fundado o grupo da OASE na casa de meus
pais. A minha mãe escreveu a ata de fundação. Estas reuniões foram presididas pelas
senhoras Margarete Schlünzen [esposa do pastor] e pela Marta Schlünzen [irmã do pastor].
Com a fundação do grupo da OASE tamm se deu a fundação da Comunidade Evangélica
Luterana, na Rua Joinville, anos mais tarde. A minha mãe e outras mulheres puxaram a
frente. Eu era uma adolescente e estava me preparando para a confirmação, mas estava ali
junto com a minha mãe. No dia das reuniões era colocada uma toalha branca na mesa
grande da sala de refeições. Também eram colhidas flores e colocadas no vaso. Havia
cucas e um gostoso café. O cheiro de café me traz boas recordações.
Minha mãe recebeu no dia da fundação do grupo da OASE uma cruz que continua
pendurada na porta da sala. Este era um espaço muito importante – ali aconteciam as
reuniões da OASE, mas também era o espaço de encontro da nossa família, onde nos
reuníamos para conversar e fazer as refeições.
576
Mesmo que meu nome não conste na ata
de fundação, eu estive presente nesse momento importante.
No último ano do ginasial, em 1969, nós levantamos recursos financeiros para a
nossa formatura. Um dia, nós fomos vender rifa. Éramos três meninas e saímos para
vender rifa. Chegamos tarde ao colégio. Fomos interrogadas individualmente por uma
freira, para ver se nós contávamos as mesmas histórias. A desconfiança da irmã era que
nós estávamos fazendo atividade subversiva. A Irmã Elisabete disse para nós: Vocês
acham que eu não tenho antenas? Ficamos três dias de suspensão. Como eu ia contar isso
para os meus pais? Minha irmã mais velha assinou para mim. Havia muita desconfiança,
por causa da ditadura militar, até no colégio.
Nossa turma viajou para Florianópolis por ocasião da formatura do ginásio. Passar
pela ponte Hercílio Luz foi emocionante. Fomos até o Morro das Pedras [na Armação]. Foi
uma viagem inesquecível. Na missa de formatura do ginásio, não lembro por quê, eu não
fui cumprimentar meus pais. Minha mãe ficou muito brava comigo. São coisas da
adolescência.
575
Helga Maas EGGERT, Histórico da fundação da OASE rua Joinville, p. 2-3.
576
No dia 29 de março de 2005, Renita convidou a pesquisadora e fomos até a casa dos seus pais. Andei com
ela pelos caminhos da roça, onde ela trabalhou como criança e adolescente. Também conheci a casa de seus
pais, vi muitas fotos na parede, e ela também me mostrou o espaço da sala onde aconteciam as reuniões da
OASE; a cruz pequena de madeira está lá no alto da porta. Percebe-se este espaço como sagrado, onde
aparece a interligação com um espaço importante da família (espaço das refeições) que se abre e é oferecido
como espaço para as reuniões da OASE – grupo de mulheres da Igreja Luterana, espaço de meditação, oração
e articulação. Ali também foi articulada a criação da Comunidade Evangélica Luterana da Rua Joinville.
222
Documento 5
Certificado de conclusão e histórico escolar dos quatros anos de ginásio no Colégio Divina Providência.
Outra coisa que lembro da infância e adolescência foi que nosso avô Emil cuidava
muito para que a gente não esquecesse de falar o alemão. Na sua frente, tínhamos que falar
em alemão; assim também acontecia com os nossos primos. Ele também cuidava das
nossas saídas de casa. Descobriu que eu estava “paquerando” um aluno interno do São
Luiz. Ele não tinha aparência de “alemão”. O avô foi logo avisar a minha mãe, que me
bateu e nos proibiu de sair de casa aos domingos. Era muito forte essa questão de “alemão”
ter que casar com “alemão”. Eu me senti muito vigiada na adolescência. A gente também
223
ia para as soirées [domingueiras], nos domingos à tarde até o entardecer. Quando
começava a ficar escuro, precisávamos estar em casa.
No ano de 1970, eu fui para Joinville, no Hospital Helena, aprender e trabalhar
como atendente de enfermagem... na Helena Stift... [Fundação Helena] do Hospital
Evangélico Luterano. Nesse tempo, eu tirei minha carteira de trabalho – carteira de menor,
outubro de 1970. As irmãs que trabalhavam no hospital eram todas alemãs. Havia um
incentivo para as mulheres serem freiras e enfermeiras. Havia muitas meninas, de 40 a 50,
que estavam ali para aprender sobre enfermagem. Quem me incentivou e teve a idéia de eu
ir para lá foi a minha mãe. A minha irmã Astrid foi um ano antes de mim. A formação de
atendente de enfermagem se dava na prática. No meu tempo, vieram duas moças de
Panambi [Rio Grande do sul] que já haviam feito o auxiliar de enfermagem. Elas já
usavam um uniforme diferente do nosso. O nosso uniforme era azul, que combinava com
os uniformes das irmãs diaconisas. Havia muita rigidez nos horários e nas nossas saídas.
Como minha irmã já estudava lá, a gente tentava transgredir as regras e normas vigentes.
Saíamos e voltávamos mais tarde. No dia em que cheguei no hospital, fui chamada de Die
Kleine [a pequena]. Era a forma como chamavam as calouras. Tinha a Schwester [Irmã]
diaconisa Elza. Todo o mundo tinha medo dela: onde ela passava, ficava um rastro de
temor e tremor. Era bem rigorosa. Eu comecei na parte clínica. Lembro que a irmã
diaconisa Elza me deu um tomate para eu fazer o teste de como fazer uma injeção. Eu fiz a
primeira injeção na Schwester [Irmã] Sofie. Anos depois, ela foi trabalhar em Lapa. Passei
da parte clínica para a maternidade e berçário. Eu até então, com 16 anos, não sabia como
nasciam os bebês. Para mim, trabalhar na maternidade foi uma grande escola de vida. Foi
mágico.
Foto 6
Eu sou a 2ª à esquerda, junto com outras colegas, trocando os bebês no berçário.
224
No período de trabalho, também conversava com minha amiga Sigried, que é de
Jaraguá. Ela também estava fazendo o curso de atendente de enfermagem. Estudei com ela
desde o primário. O pai dela era da Marinha e trazia livros para as filhas. Com ela eu li
Ernest Heminway – “Adeus às armas”, “O velho e o mar”. E outros livros tidos pelas
freiras do Divina Providência como subversivos, livros sobre o socialismo e comunismo. A
Sigried lia e comentava para a gente, dávamos boas risadas. Isto influenciava a gente
bastante. Foi um período de amizades novas que perduram até hoje.
No Hospital Dona Helena, a gente continuava lendo e comentando as leituras sobre
filosofias, romances, comunismo. Uma irmã diaconisa disse para a gente: “O que está
escrito é uma coisa, mas viver é bem outra.” A minha amiga Sigried tinha muita opinião e
também tinha um outro jeito de pensar, pois tinha recebido uma educação de casa diferente
da minha. Ela sempre dizia: “Se você não gosta, não precisa agüentar. Vá adiante.” A
educação que eu recebi foi esta: “Você escolheu isso. Agora precisa agüentar as
conseqüências.”
Lembro que, no tempo de Natal e Páscoa, a gente fazia teatros para os pacientes.
Também nos apresentamos numa igreja presbiteriana; lembro de um pastor Godinho. Isso
era algo inédito. Havia um certo ecumenismo, via hospital e as irmãs diaconisas. Havia
uma capela onde fazíamos as apresentações e cantos.
Estudava à noite no científico (2º grau) no Colégio Estadual Celso Ramos. Íamos a
pé ou de bicicleta. Tínhamos que atravessar a cidade para chegar lá. O estudo era bem mais
fraco que nas outras escolas que freqüentei.
Morávamos no Schwesternhaus [Casa das Irmãs Diaconias]. Era confortável. Os
quartos com banheiro eram para duas ou três internas. O trabalho mais pesado no hospital
eram os plantões noturnos. Ficavam somente três pessoas que tinham formação ou estavam
tendo estágio de atendente e um enfermeiro. O plantão durava todo o mês, inclusive às
noites e também aos domingos.
No hospital, a comemoração do dia do aniversário era parecida com a de casa.
Quando a gente ia para o refeitório, a cadeira estava toda enfeitada e com presentes. A
gente se sentia uma pessoa especial. Nos cafés da manhã, também acontecia o momento de
meditação. Eu lembro a Schwester Johana lendo sempre um trecho de um livro para nós.
Eram os anos 70, tempos do movimento hippie, amor livre e drogas. As irmãs diaconisas
falavam sobre as drogas. Elas buscavam nos esclarecer. Quando tinha um acontecimento, a
225
irmã lia o jornal. Mas também havia tempo para ler a mensagem do dia. A gente acordava
às 6 h 30 min, subia às 7 h, dava banho nos pacientes, trocava a roupa de cama; às 8 h 30
min acontecia o café no refeitório. Quem ficava de plantão durante o café ia distribuindo os
remédios na seção. Ficavam duas atendentes, as demais desciam para o café. A leitura
durante o café era algo sagrado e muito bom, pois aquilo te concentrava. A descida para o
refeitório era um momento de liberdade. O almoço era outra cerimônia. Todo o mundo no
seu lugar, todo o mundo com seu guardanapo engomadinho, mas nesta hora não se fazia
leitura; apenas eram dados os avisos. Após o almoço, tínhamos a famosa freie Stunde
[tempo livre], em que nós íamos passear, explorar os jardins de Joinville, ao correio, e eu
também ia à biblioteca pública.
Foi nessa época que começaram a surgir os sindicatos na área da saúde. Eu era
muito amiga da irmã que era parteira. Ela também dirigia carro. Lembro que, de vez em
quando, ela me convidava para ir até a colônia próxima de Joinville para comprar frutas,
limões e outras coisas... No fim de 1972, no Natal, eu voltei para Jaraguá do Sul: havia
sido reprovada em matemática quando estava no 2º cientifico. Foi um ano de muitas
enchentes. Voltei para a casa e para a roça. Esta volta foi bem difícil. Trabalhei duro nas
arrozeiras. Precisava arrumar e carregar o barro para a arrozeira. Houve épocas que eu
pensava: por que voltei para Jaraguá do Sul? Talvez eu não tivesse coragem suficiente para
enfrentar a vida sozinha, pois minha irmã estava indo para Florianópolis para cursar a
Faculdade de Enfermagem. De volta para casa, pude conviver mais com minhas irmãs
menores, e trabalhei duro na roça.
Continuei a estudar no Colégio São Luiz, fazendo de novo o 2º ano científico.
Estudava de manhã. Em dezembro deste ano, 1973, comecei a trabalhar numa loja
comercial. Nesta época, já ia de ônibus para o trabalho e passei a estudar à noite.
No ano seguinte, em 1974, festejamos as bodas de prata dos meus pais. Meus pais
se casaram no dia 20 de agosto de 1949. Nos dois primeiros anos de casados residiram na
casa de meus avós paternos. Depois construíram uma pequena casa de madeira no lado
leste do terreno. Em 1962, construímos a casa nova, bem maior, que existe até hoje.
226
Foto 7
Nenhuma das filhas tinha casado até a comemoração dos 25 anos de casamento dos meus pais.
A Astrid foi a 1ª filha que saiu de casa, no ano de 1969.
Inge foi a 1ª filha que foi trabalhar fora de casa. Eu casei em 1976.
O nosso sonho era sair de casa... e da roça!
No ano de 1974 também conheci o meu marido, num salão de baile. Nós
namoramos dois anos e casamos. Ele é católico e de origem italiana. A minha mãe tinha
dificuldades de aceitar nosso namoro. Ela não permitiu que a gente casasse na Igreja
Católica. Osni e eu fomos até a casa do bispo, Dom Gregório Warmeling, pedir
autorização para Osni casar na Igreja Luterana. A exigência do Osni foi: “Eu caso na Igreja
Luterana, mas nossos filhos vão ser batizados na Igreja Católica.” Eu pensava que o
casamento fosse me trazer uma nova vida. No entanto, a vida a dois também tem os seus
conflitos, e casamento misto gera um conflito solitário. No meu caso, continuo sozinha, na
minha igreja; raramente minhas filhas ou meu marido me acompanham, exceto nas
cerimônias como batizados, casamentos ou funerais. Pior do que ir sozinha era enfrentar as
brigas para ir. Fiquei mais calma quando compartilhei este conflito com outras mulheres,
do grupo da OASE, que, pasmem, viviam o mesmo conflito em casamentos com maridos
da mesma religião – no caso, luterana. Hoje vejo que a luta continua. Valeu construir,
desconstruir às vezes, mas o importante foi sempre permanecer na fé.
227
Documento 6
Certidão/lembrança do meu casamento,
que se realizou no dia 27 de fevereiro de 1976.
Casei aos 22 anos. Fomos morar no outro lado da cidade. Construímos nossa casa
num bairro próximo do centro e da WEG Motores, um local agradável, onde acompanhei a
chegada de bons vizinhos e idas de outros. Continuei trabalhando fora, mas em outro local,
no Comércio e Indústrias Breithaupt. Depois de casada, trabalhei até dezembro de 1976.
Em 1977 passei a me dedicar à casa. Como eu trabalhava no comércio, e ele na indústria –
WEG Motores, nossas férias não coincidiam. Com o casamento, passei a conhecer outra
família grande, com outros costumes, ganhei muitos sobrinhos pequenos e grandes, pois
meu marido é o caçula de uma família com 10 irmãos. Alguns anos se passaram. Sempre
íamos à praia nas férias coletivas nos finais de ano. Voltávamos na 2ª semana de janeiro.
Nesta época, a minha sogra D. Maria veio morar conosco por alguns meses. Foi um
convívio rico de conhecimento. Ela estava doente e morava um pouco na casa de cada filho
ou filha em tempos diferentes. Fiz novas amizades. Passei a me dedicar à família, ao meu
marido, indo visitar a minha família sempre nos fins de semana.
228
No ano de 1978, eu engravidei pela primeira vez. Tive rubéola no 2º mês de
gravidez e perdi a minha primeira criança com seis meses de gravidez. Isso foi muito triste
para nós. Em 1981, tive a primeira filha: Ângela, linda e perfeita. Depois de seis anos,
nasceu nossa segunda filha: Sarah. No mesmo ano em que nasceu a Ângela, também
faleceu a minha sogra. O meu sogro faleceu em 1979. Minhas cunhadas sempre foram
muito solidárias comigo.
Ângela cresceu cercada de mimos e cuidados de tias, avós e muitos primos. Seis
anos depois, ela perdeu o trono para a Sarah. A Ângela foi batizada no dia 24 de dezembro
de 1981, véspera de Natal, na Igreja Católica. Sarah boi batizada no dia 22 de novembro de
1987, também na Igreja Católica.
Com 4 anos, Ângela entrou para a pré-escola no Instituto Jangada. Quando a Sarah
ingressou na pré-escola, ambas foram para o Colégio Divina Providência. Elas
permaneceram lá por quatro anos, voltando então para o Jangada, onde permaneceram até
o fim do ensino médio. Também neste período fiz um curso de inglês, o que anos mais
tarde me deu a oportunidade de lecionar a matéria numa escola estadual. Foi um período de
grande aprendizado. Em 1998, eu lecionei para oito turmas do ensino fundamental. Em 19,
em setembro, tive a oportunidade de viajar à Europa com meu marido. Foram 14 dias de
deslumbramento pelo Velho Mundo: Alemanha, Áustria, Suíça, Itália e França. Neste ano
não lecionei. Voltei a trabalhar na escola, no ano seguinte, 2000, ano da copa do mundo.
O laboratório que me preparou para enfrentar a sala de aula foi também o trabalho
na igreja. Depois de confirmada, eu e minha irmã assumimos o trabalho de orientadoras do
Culto Infantil na Escola Isolada de Vieiras. O trabalho com as crianças na igreja foi o meu
primeiro espaço como professora. A nossa maior tarefa era explicar a história bíblica para
as crianças. Mais tarde, a Inge e eu também demos aulas no Projeto do Mobral,
trabalhando com a alfabetização de adultos.
Foto 8
Eu e minha irmã Inge atuando como professoras no Projeto Mobral.
229
Depois, já casada, morando aqui na Vila Lenzi, fui uma das fundadoras do grupo
dos idosos e do grupo de OASE “Dália”, da Comunidade Evangélica Luterana na Vila
Lenzi. Ali também precisei aprender a falar em público. As pessoas idosas são uma
importante platéia. Sempre participei da OASE, desde a fundação, e foi ali com as outras
mulheres que eu me desenvolvi muito como pessoa e ajudei outras pessoas. No ano
passado, uma amiga nossa da OASE ficou muito doente, com câncer. Nós fizemos um
trabalho muito bonito, nos revezando para ajudar as filhas a cuidar da mãe. Nos grupos da
igreja, aprendi a me afirmar como ser humano. Foi muito importante para mim dar um
testemunho no Congresso Sinodal da OASE, no ano passado, falar para tantas mulheres de
lugares diferentes sobre a minha experiência no trabalho da OASE
577
.
Foto 9
Aqui estou dando o meu testemunho no Congresso Sinodal da OASE do Sínodo Norte Catarinense,
no dia 10 de agosto de 2004. Contei que a minha aproximação com a OASE iniciou quando era criança.
Eu estudava na Escola Particular Jaraguá e sentia todas as quintas-feiras um cheiro gostoso de café e via
muitas mulheres indo para o salão comunitário da Comunidade Evangélica Luterana Centro Jaraguá
do Sul. Ouvia também belos hinos. Mais tarde foi fundado o grupo de OASE da Comunidade Evangélica
Luterana da Rua Joinville, na casa dos meus pais, sendo minha mãe uma das mulheres fundadoras do grupo.
Como já falei, os grupos de trabalho da igreja foram e são importantes laboratórios
para minha vida. Aprendi a perder alguns medos. Eu sempre participei de grupos fora de
casa, sempre me organizei para também estar em casa. Como presidenta e coordenadora da
577
O testemunho de Renita encontra-se gravado e está aos cuidados da diretoria da Ordem Auxiliadora das
Senhoras Evangélicas (OASE) do Sínodo Norte Catarinense.
230
OASE eu resgato o tempo em que fui orientadora do Culto Infantil. A gente lia os folhetos
para poder explicar as passagens bíblicas. Lembro da época em que li os quatro
Evangelhos.
Minhas filhas foram batizadas na Igreja Católica, mas não a freqüentam. Eu
continuo uma membra
578
ativa da Igreja Evangélica Luterana. Vou ao culto; atualmente,
participo do grupo da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas e também do trabalho
diaconal – atendimento às famílias necessitadas, preparando cestas de alimentos, visitando
e conversando com estas famílias pobres. Também se for necessário, eu e minhas amigas,
encaminhamos as famílias pobres para a Assistência Social da Prefeitura. Procuro dar um
testemunho para a minha família através do gesto e não tanto através das palavras. Não
falo muito sobre fé e igreja para não dar brigas aqui em casa, mas atuo! Percebo que,
agora, de vez em quando, minhas filhas começam a me acompanhar. Não imponho nada!
Este ano também fui convidada para participar do programa radiofônico “Conversando
com você”. É uma experiência divina.
A convivência na grande família Eggert mudou muito. As visitas já não acontecem
mais como aconteciam quando a gente era criança. A maioria de nossos familiares já não
mora mais na roça, mas vive em diferentes cidades. A mudança que aconteceu com a nossa
família também aconteceu com grande parte da população brasileira – a trajetória do
campo para a cidade. Com o objetivo de reunir a família, aconteceu um grande encontro da
família Eggert no dia 21 de fevereiro de 1999, onde pudemos recordar histórias de nossas
antecedentes e também da nossa infância.
Foto 10
Meu pai Alitor e meu tio Gerhard festejando juntos o aniversário.
Meu pai festejou 75 anos no dia 20 de fevereiro de 1999,
e meu tio Gerhard, 70 anos no dia 22 de fevereiro de 1999.
578
O termo membra não existe na língua portuguesa. Renita mesmo se autodenominou membra da OASE.
231
O aniversário era uma data, um momento festivo, que antigamente reunia toda a
família. O aniversário, para minha família, sempre foi uma festa familiar importante.
Geralmente, no aniversário se reunia a grande família: irmãos, sobrinhos, cunhados/as...
quase todos os parentes. Hoje isso mudou. Por isso, a data do encontro dos descendentes de
Emil e Ema Eggert aconteceu com um motivo especial: comemorar também o aniversário
do meu pai e do meu tio.
Assim, minha irmã Edla iniciou a saudação no dia do encontro de nossa família:
“ANIVERSÁRIOS, ENCONTRO E MEMÓRIA
Já não era sem tempo um encontro, uma festa.
A idéia de nossos tios Alitor Eggert e Gerhard Eggert de comemorarem seus respectivos
aniversários, 75 e 70 anos no dia 20 e 22 de fevereiro, com todos nós, filhas/os, netos/as,
suas sobrinhas/os é motivo de alegria e honra. Alegria pela vida celebrada entre nós, e
honra pelo exemplo de coragem, trabalho, fé, honestidade, senso de humor e tantas outras
coisas que nos trazem hoje aqui para comemorar.
Encontro importante esse de hoje que, quase no final do século, busca refazer alguns
caminhos no exercício de reconstruir a memória de pessoas que sonharam, no além-mar,
uma vida melhor em terras brasileiras. É bom lembrar que a vida na Pomerânia no século
passado, de onde vieram os nossos antepassados, estava bem parecida com os colonos sem-
terra dos nossos dias aqui no Brasil.
É importante buscar na História coisas que se parecem e podem nos ensinar e nos fortalecer
como cidadãs e cidadãos brasileiros orgulhosos desta terra e não mais com saudades do
além-mar.”
579
A minha irmã Astrid fez uma pesquisa sobre os nossos antecedentes que vieram da
parte leste da Alemanha. Acho interessante colocar junto com a minha história de vida a
pesquisa de minha irmã, pois também faz parte da minha história.
Os tataravós maternos, por parte do meu pai, Karl Hermann Friedmann (1837-
1915) e Frederike Auguste Steiniger Friedmann, nasceram em Köstritz, parte leste da
Alemanha. Através dos registros, deduzimos que já vieram casados quando chegaram ao
Brasil, no Porto de São Francisco do Sul – SC, antes de 1861, pois os filhos e filhas
nasceram e foram registrados no distrito de Joinville logo após esta data. Foram membros
579
Palavras de Edla no encontro dos descendentes de Emil e Ema Eggert, em fevereiro de 1999. As mesmas
encontram-se digitadas num pequeno polígrafo junto com uma parte histórica sobre a vinda dos tataravós que
vieram da Alemanha. A parte histórica foi pesquisada pela irmã Astrid E. Boehs. Esse polígrafo foi mostrado
para a pesquisadora no dia da entrevista.
232
ativos na paróquia luterana de Pirabeiraba, distrito de Joinville. No livro de registros dos
óbitos da paróquia, o pastor fez um relato sobre a vida de Karl
580
.
O falecido foi um dos fundadores da igreja [Pirabeiraba], embora tenha sido um
desdenhador conseqüente dos meios da graça. Durante anos, enquanto durou o pastorado
do pastor Dehmlow, desligou-se da igreja (1889-1897). Implicante e não obediente à
verdade, usou numa assembléia da comunidade, durante uma discussão, estas palavras:
“Quem se humilha é tolo” (grifo é da autora). Apesar de descortês no calor da discussão,
tinha um caráter reto, mesmo que fosse brigão. Há sete meses estava lendo
“Gemeindeblatt”, o que, tendo em vista sua conseqüente recusa, se constituía num sinal de
esperança de que começou a se desfazer sua recusa de Deus. Tendo se afastado
inteiramente do Senhor, mandou chamar o pastor e pediu para receber a absolvição e os
sacramentos e com a mente clara se curvou diante do Senhor [...] Ele foi visitado várias
vezes posteriormente e fortificado com a palavra de Deus. Causa da morte: senilidade.
Deixa viúva e 12 filhos casados. Sepultado na quarta-feira, dia 27 de janeiro de 1915.
Hebreus 4.16; Pastor R.I.P.
581
Os tataravôs paternos, Johann Eggert (1822-1898) e Louise Tessner Eggert (1823-
1905), viviam na região de Köslin, Pomerânia Oriental. Em 1866, emigraram para o Brasil,
chegando ao porto de São Francisco do Sul, Santa Catarina, no mês de agosto, com dois
filhos, Karl, com 15 anos, e Gustav, com 6 anos, e duas filhas, Auguste, de 13 anos, e
Emilie, de 2 meses, da qual não existem registros posteriores, deduzindo-se que veio a
falecer durante a viagem. Foram registrados na imigração como Landmann, [agricultores].
Houve um outro filho, que emigrou para os Estados Unidos, do qual nunca mais se teve
notícias. Karl Friedrich Ferdinand casou com Johanna Wilhelmine Keyser; o casal teve
duas filhas e seis filhos; o quinto filho era meu avô, Emil Louis Guilherme Eggert, que
casou com Emma Ida Friedmann, minha avó, em 1913. Emma Ida Friedmann era filha de
Julius Friedmann e Ida Nielsen Friedmann
582
.
580
Pesquisa realizada por Astrid Eggert Boehs.
581
Pesquisa documental realizado por Astrid Eggert Boehs, no livro de registro nº 5 de batismos (1873-
1935); casamentos (1903-1939); enterros (1903-1939); Pirabeiraba e Estrada da Ilha, município de Joinville
(SC). Mantive a tradução realizada pela própria autora da pesquisa. Renita me mostrou um pequeno
polígrafo, onde consta esta pesquisa. No original: “Der Entschlafene war unter den Gründern der Gemeinde,
jedoch ein konsequenter Verächter der Gnadenmittel. Jahrelang hatte er in den Amstjahren von P. Dehmlow
die Verbindung mit der Gemeinde gelöst (1889-97). Zänkisch und der Wahrheit nicht gehorchend, in einer
Versammlung der Gemeinde konnte er gelegentlich die Worte gebrauchen: “Wer sich demütigt, ist ein Narr”.
Doch nur in der Hitze unhöflich, im Grunde ein gerader Charakter, wenn auch ein Polterer. Sei 7 Monaten las
er das Gemeindeblatt, bei seiner konsequenten Ablehnung ein Hoffnungszeichen, dass seine Ablehung zu
erweichen began. Vom Herrn ganz ausgezogen, liess er den Pastor holen und begerhte Absolutio und
Sakramente und beugte sich klaren Geistes unter den Herrn. Er konnte noch wiederholt besucht werden und
aus Gottes Wort gestärkt werden. – Todesursache: Alterschwäche. Hinterläst Witwe und 12 verheiratete
Kinder. Beerdigt am Mittwoch, den 27. Januar 1915. Hebr 4,16. R.I.P.”
582
Astrid B. EGGERT, Uma família: tempos, movimentos e espaços, p. 31-49. Edla EGGERT, irmã de
Astrid e Renita, na sua tese de doutorado também recupera parte da sua história de vida: Educação popular e
teologia das margens, p. 141-149.
233
Meus avós Emil e Julius estiveram envolvidos com o Movimento Integralista na
década de 30. Não sabemos o motivo por que eles se envolveram nesse movimento, mas
acredito que buscavam melhores condições de vida para os colonos. Pelo que nos contam o
pai e a mãe, também as nossas avós acompanhavam a trajetória dos nossos avós, pegando
junto no trabalho da roça e nas atividades sociais. Na casa da minha mãe ainda há uma foto
de casamento onde se percebe que estão uniformizados de acordo com o movimento
integralista... homens e meninos estão com um lenço amarrado no pescoço.
Foto 11
Foto do encontro da família Eggert, em fevereiro de 1999.
Nesta foto se encontram os descendentes de Emil e Ema Eggert, nossos avós.
O encontro realizou-se nas dependências da Comunidade Evangélica Luterana dos Apóstolos, na rua
Waldemar Grubba, Jaraguá do Sul, que foram edificadas no local onde nosso bisavô Karl Eggert tinha
construído sua primeira casa. Esse terreno foi doado pela família Eggert para a construção das dependências
da igreja.
Foto 12
Nesse dia de encontro também tiramos uma foto
somente com os descendentes de nossos pais.
Foi muito importante: estavam todas as irmãs e irmão com suas famílias.
234
Da família da minha mãe – família Maas – não se sabe muita coisa. A mãe nos
contou que a sua família também era de origem pomerana e de religião luterana.
O dia 20 de agosto de 1999 foi inesquecível. Daqueles que valem 50 anos. A
família estava reunida, unida... parentes próximos, amigos, vizinhos queridos... Foi assim a
celebração do culto de gratidão a Deus pelas bodas de ouro dos meus pais. O culto foi
emocionante, pois filhas e filho, netos e netas participaram da programação. Tive a honra
de ser a oradora da família. Segue um pouco da minha fala naquele dia memorável.
[...] para nossa família, o dia de hoje é um dia de graças alcançadas... a alegria é imensa...
50 anos é muito tempo... 18 mil e tantos dias. São muitas histórias, acontecimentos,
nascimentos, lutas, alegrias e tristezas. Aqui estão três gerações – nós, as filhas e o filho,
fazemos parte da geração das grandes mudanças. Isto foi um privilégio, um desafio
constante.
Agradecemos e parabenizamos a vocês, nossos queridos pais, pela estrutura forte que
deram a nós para enfrentarmos a vida,
Agrademos também pela carinhosa presença de cada um aqui presente. Vocês também
fazem parte da nossa história. É justo que compartilhem da nossa alegria.
[...] Para homenageá-los, partimos do princípio que imagens falam mais do que palavras.
Gravamos em fita de vídeo, relatos de pessoas da outra geração sobre fatos acontecidos no
passado e mensagens para o dia de hoje. [...].
583
Tudo foi realizado na igreja e salão da comunidade dos Apóstolos. O celebrante foi
o pastor Cláudio. Um detalhe importante: quem forneceu o jantar foi o Sr. Mauro Bolduan,
filho de D. Irma Bolduan, que tantas vezes, no passado, nos deliciou com sua comida nas
festas da família.
583
Parte da fala de Renita no dia da celebração das bodas de ouro de seus pais, realizada no dia 20 de agosto
de 1999. Ele falou em nome de todas as filhas e filhos.
235
Documento 7
Esta era a parte interna do convite para as bodas de ouro de meus pais, que se realizaram no dia 20 de agosto
de 1999. No lado direito se encontra também a árvore genealógica, onde estão os nomes das filhas e do filho
do casal Alitor e Helga, bem como os nomes dos netos e netas.
Foto 13
Meus pais, Alitor e Helga, no dia das suas bodas de ouro,
no dia 20 de agosto de 1999.
Em março de 2005, viajei para São Paulo e participei da defesa da tese de
doutorado da minha irmã Gisela, na USP. Quando ela era pequena, eu cuidei dela muitas
vezes. Minha irmã também fez entrevistas comigo para sua tese sobre a importância da
leitura na minha trajetória de vida. Quase todas as minhas irmãs estavam presentes.
236
Incentivo de casa para estudar nunca faltou em minha vida. Estou fazendo o mesmo
com as minhas filhas. Este ano minha filha Ângela termina seu curso na faculdade, e Sarah
acabou de ingressar na universidade. Estou fazendo junto com Ângela um curso de italiano
e também estou fazendo um curso técnico de guia de turismo regional. Estou gostando
muito. Meu marido está se aposentando e fazendo planos interessantes.
Meu nome é Renita. Ele tem a ver com as palavras resistência e persistência. Estou
com 50 anos. Sinto que é tempo para continuar a aprender e fazer novas coisas na minha
vida.
237
VI – HISTÓRIA DE VIDA DE YVONNE
Eu nasci no dia 31 de agosto de 1954, em Jaraguá do Sul, como filha de Eugênio
Victor Schmöckel e de Brunhilde Mahnke Schmöckel. Eu sou a 2ª filha do casal. Minha
irmã mais velha havia falecido em fevereiro de 1953. Minha mãe dizia que eu era uma
réplica da minha irmã mais velha, que se chamava Sandra Elisa. Tenho uma irmã mais
nova, que nasceu em 1958 e se chama Rosane Beatriz, e um irmão, que nasceu em 1962 e
se chama Eugênio Vitor. Eu sempre morei no centro da cidade de Jaraguá do Sul. A cidade
mudou muito. Quando eu nasci, poucas ruas eram calçadas. As estradas eram todas com
macadame ou saibro. Minha casa tinha um grande quintal, com um jardim muito bonito e
um pomar. Era muito bom e gostoso para brincar. Eu brinquei muito na minha infância.
Brincava com as vizinhas que moravam na frente da nossa casa. Eu adorava subir em
árvores. No pomar de nossa casa, havia muitas árvores frutíferas: pitangueiras, ameixeiras,
laranjeiras, figueiras, jabuticabeiras... cana-de-açúcar... Também havia pinheiros (árvores
que eram plantadas e cortadas para o Natal). A gente também jogava peca (bolinha de
gude)... brincava de esconde-esconde, de pega-pega, peteca e outras brincadeiras que
aconteciam ao ar livre.
Os aniversários também eram sempre muito comemorados com festas, inclusive no
Salão da Comunidade. Tenho cartões de lembrança até o 5º aniversário.
Foto 1 Foto 2
Lembrança do meu 1º aniversário. Lembrança do meu 2º aniversário.
238
Foto 3 Foto 4
Lembrança do meu 3º aniversário. Lembrança do meu 4º aniversário.
Foto 5
Lembrança do meu 5º aniversário.
Segundo minha mãe, eu comecei a ir ao Jardim de Infância Pestallozi bem cedo,
quando tinha um 1 ano e 8 meses. A esposa do P. Karl Gehring era muito amiga da minha
mãe e gostava muito de mim. Eles não tinham filhas, somente filhos. Ela se apegou muito
a mim e pediu para que a minha mãe me deixasse ir para o Jardim de Infância. Assim, ela
também me cuidava. Fiquei no Jardim de Infância até os sete anos quando fui para o 1º ano
primário. Lembro que a Profª Edeltraud Schmidt Müller brincava bastante com a gente no
Jardim de Infância.
239
Foto 6
Lembrança da Páscoa de 1958. A minha turma de Jardim
está feliz, juntamente com as outras turmas. Recebemos nossas cestinhas de Páscoa.
Posamos para a foto defronte à Igreja Evangélica de Confissão Luterana,
que ficava ao lado do prédio do Jardim.
Continuei na Escola Jaraguá, onde funcionava o Jardim de Infância Pestallozi, pois
era ligada com a Comunidade Evangélica Luterana. A minha primeira professora foi
Esthéria Lenzi Friedrich. Ela era bastante brava, a gente tinha muito medo dela, pois era
bastante insistente e exigente. O 1º ano acontecia no período da manhã, já o 2º ano se
realizava no período da tarde; então, na época eu fazia o 1º ano de manhã e deveria ir à
tarde fazer deveres com a professora junto com o 2º ano. Para mim foi uma tortura, mas
tinha que obedecer. Uma vez, fui escolhida para recitar uma poesia. No dia da
apresentação me deu um branco. Fiquei super nervosa e não consegui declamar a poesia.
Fiquei com trauma. Nunca mais recitei. O meu professor do 3º ano foi o Prof. Ricardo, e a
professora da 4º ano foi a Carla, que hoje é a reitora da UNERJ (Universidade Regional de
Jaraguá do Sul). Nós tínhamos aulas de alemão com o Prof. Ricardo. As aulas de religião
eram com a D. Déta. A gente também tinha aulas de trabalhos manuais. Quando eu voltava
da escola, queria contar as novidades para a minha mãe e falava em português, mas ela me
obrigava a falar em alemão, e eu perdia a vontade de continuar a contar, pois ela me dava
um corte.
Nunca tive muitas dificuldades no estudo. A escola era mista, com meninos e
meninas. Só que na sala de aula os meninos e as meninas sentavam separados. De um lado,
sentavam os meninos, e, de outro, sentavam as meninas. Eu era bastante tagarela, gostava
de conversar. Um dia a professora me pegou conversando e como castigo ela me sentou no
meio de três rapazes. Fiquei ali no meio dos meninos toda envergonhada.
240
O momento mais esperado era o recreio. O tempo do recreio era muito alegre. A
gente comia o lanche que trazia de casa, conversava e depois brincava. Eu era uma menina
bem agitada, vivia correndo. Um dia, os meninos me derrubaram na escada da escola, eu
me machuquei e lá fui eu fazer um curativo na enfermaria da escola. Vivia na enfermaria.
Os meninos eram bem atentados, gostavam de mexer comigo. A escola era a continuação
da minha casa. A minha vida era a escola e a casa. A convivência era muito intensa.
Foto 7
Foto da minha turma da 4ª serie na Escola Jaraguá.
Sempre tive muitas amizades na escola. A gente trocava mensagens, escrevendo
num caderno de recordações. Tinha um caderno com um questionário, com várias
perguntas, onde a gente ia respondendo diferentes questões: “o que você gosta?” O que
você pensa sobre determinada coisa e assim por diante... Quando as minhas amigas vinham
me visitar na minha casa, a gente brincava muito no jardim da nossa casa. No jardim
acontecia o nosso mundo!
Eu sempre ia a pé para a escola. A minha casa ficava próxima da escola. Vivi na
mesma casa até os 20 anos, quando casei. Esta casa é hoje a sede do jornal Correio do
Povo. Quando chovia, eu ia toda protegida, com galochas, capa de chuva e sombrinha. Era
divertido caminhar na chuva. A gente gostava de brincar nas poças de água.
Minha mãe sempre teve empregada doméstica. Eu ajudava, cuidando da minha
irmã. Eu também apanhava da minha mãe, por causa da minha irmã. Quando acontecia
alguma coisa, ela ia se queixar para minha mãe e sobrava para mim. Apanhei muito por
causa da minha irmã mais nova. Recordo de uma empregada que obrigava a gente a ficar
241
no quarto. Ela também nos colocava medo, para ficarmos quietas. Nos domingos, eu
precisava passar o Mop, que era uma vassoura de fios para tirar o pó do chão.
Foto 8
Aqui estou cuidando da minha irmã Rosane Beatriz.
Eu tinha 4 anos quando ela nasceu.
Meu pai era um homem muito ocupado. Foi um dos primeiros contadores de
Jaraguá do Sul. Ele formou-se com a 1ª turma de contadores da Universidade Federal do
Paraná; não havendo outra faculdade no ramo, aguardou alguns anos para começar a
Faculdade de Ciências Econômicas, Administração e Finanças, que hoje são quatro
faculdades. Tinha um escritório de contabilidade, um dos maiores da cidade, onde fazia
contratos sociais, contabilidade de muitas empresas e outros serviços afins. Dentre os
contratos sociais posso citar o da Eletromotores Jaraguá, hoje, WEG, Jaraguá Fabril, hoje,
Ailatan, e muitas outras. Ele era muito procurado por pessoas do interior, para dar
consultas a respeito de heranças, separações, questões familiares e outras, tal era a
confiança que as pessoas tinham nele.
Meu pai sempre teve uma pequena escola no seu escritório de contabilidade. Muita
gente aprendeu com ele o oficio de contador. Muitos aprendiam o trabalho e, quando
estavam bem treinados, iam trabalhar em empresas ou até abriam seu próprio escritório.
Muitas vezes, meu pai fazia o papel de advogado para ajudar a resolver os problemas das
pessoas. Por isso, a nossa educação (filhas e filho) ficou mais ao encargo de nossa mãe.
Mais tarde, assumiu também o jornalismo. Foi eleito, várias vezes, vereador de
nosso município. Foi o primeiro vice-prefeito de Jaraguá do Sul, no período de 1970 a
1973, sendo também prefeito em exercício. O partido dele foi a UDN, depois a ARENA,
depois o PDS, o PPB e o PP. É o autor do brasão e da bandeira de Jaraguá do Sul, patrono
do Arquivo Histórico de Jaraguá do Sul, sendo um dos integrantes do movimento da
242
Fundação Educacional Regional Jaraguá (FERJ), a atual UNERJ. Era um participante ativo
do Rotary Club. Em 1958, tornou-se proprietário do jornal Correio do Povo, o mais antigo
de Jaraguá do Sul.
Nos domingos, a gente participava do Culto Infantil. A cada cinco domingos que a
gente participava, recebia como prêmio uma figurinha com uma mensagem. Tinha um bom
grupo de crianças que participava do Culto Infantil. Participei do Culto Infantil durante
muitos anos. Eu sempre gostei de ir à igreja. Ainda hoje gosto de ir à igreja, fora dos
horários dos cultos e das missas. Fico ali em silêncio, meditando, me reencontrando. Nos
domingos em que estou em casa, na cozinha, preparando alguma coisa, eu ligo o rádio e
acompanho o culto ou a missa pelo rádio.
A festa do Natal era muito comemorada na nossa família. Havia muita surpresa. A
gente não sabia nada do que ia acontecer. Minha mãe fazia bastante segredo. Minha mãe
preparava tudo sozinha, no maior dos sigilos, com bastante calma e antecedência. No dia
25 de dezembro, uma amiga, a Eliane, fazia aniversário. A gente brincava muito nesse dia.
Íamos para o aniversário com as roupas e sandálias novas que havíamos recebido de
presente no Natal. Este tempo era bonito... Hoje, o Natal é só stress, muitas festinhas de
encerramento, presentes de amigo-secreto...
Foto 9
Essa foto retrata quatro gerações: minha bisavó, minha avó,
minha mãe e eu com 4 meses (Natal de 1954).
243
A Páscoa era outra festa que a gente comemorava e onde tinha muita surpresa. Os
ninhos eram escondidos no mandiocal. Nós precisávamos procurar... Também havia umas
surpresas como varinhas e pedras enroladas nos ninhos. Nestes momentos de festas íamos
à casa dos avós... Havia o encontro da família toda. Isto são coisas muito boas que lembro
da minha infância. Tenho muitas saudades.
Nas férias da escola, nós íamos para a praia. A minha avó materna, Olga Henschel
Mahnke, ficava conosco na praia. Ela era ótima. Fazia almoço e cuidava de nós. Eu
ajudava na limpeza da casa. Nas folgas, ela jogava baralho comigo para passar o tempo. Da
minha avó Olga eu também herdei uma receita gostosa de “marreco recheado”, que é um
prato típico de nossa região.
Receita de marreco recheado
Salgar o marreco por dentro e por fora.
Costurar a parte de baixo, tirando o excesso de gordura para o recheio.
Recheio:
Picar o estômago, fígado, coração e a gordura que tiver em excesso do marreco e
acrescentar sal, pimenta do reino, cebola, Três gemas, um pouco de trigo e um
pouco de farinha de rosca. Misturar tudo acrescentando as claras em neve. (Pode
colocar no meio um pedacinho de carne pura).
Derramar tudo dentro do marreco e costurar a outra parte. Quando colocamos a ave
no forno, é bom acrescentar 2 gotas de pimenta líquida.
Molho:
Cebolas, tomates picados ou em fatias e outros temperos a gosto. Fazer um
refogado como para qualquer molho.
Da minha mãe herdei uma receita chamada “prato da mamãe”. Esta receita foi
criada por ela. São coisas que vão passando de geração em geração.
Receita do prato da mamãe
Ingredientes:
Bacon, lombinho defumado, óleo, cebolas, tomates, temperos para refogado, 12
batatas inglesas descascadas de tamanho maior, 12 salsichas.
Modo de fazer:
Fritar uma quantia razoável (1 xícara) de bacon. Em separado, fritar no óleo as
cebolas fininhas picadas, tomates, temperos à vontade e fazer um refogado ir
acrescentando água, quando o refogado estiver pronto, juntar o bacon.
Picar 1 xícara a 1 ½ xícara de lombinho picado bem pequeno só para sentir o gosto.
Passar 3 x por água fria e jogar no molho para amolecer.
Descascar as batatas e cortá-las em tamanhos grandes e colocá-las no molho
quando estiver pronto e já com o lombinho bem cozido, macio.
244
Cobrir com água e se quiser colocar molho de tomate, molho shoyo, cebolinha
verde e outros. Quando as batatas estiverem semimoles, pôr as salsichas cortadas
em rodelinhas sobre elas abafando sempre em fogo baixo. Mexer com escumadeira
de leve. Servir com arroz e saladas.
Eu também passava as férias na casa da minha avó Ida Zettel Schmöckel, que era
minha madrinha e avó. Ela residia em Curitiba e sempre me levava junto para os cafés. Era
uma mulher muito elegante. Quando minha avó completou 84 anos, ela disse: “Eu sou a
única que faço um quatro com a minha idade.” Ela faleceu com 96 anos de idade. Tenho
boas lembranças das minhas avós. Dessa minha avó eu herdei a vontade de me arrumar e
procurar sempre estar de bem com a vida.
Foto 10
Minha avó paterna Ida, no jardim de sua casa em Curitiba.
Nós viajamos bastante quando éramos crianças. Nossos pais saíam bastante com a
gente. Uma viagem que fizemos foi em direção a Ibirama, a Rio do Sul e até Porto Alegre.
Em relação a esta viagem tenho um pequeno diário, contando as impressões da viagem
(19.07.68 até 25.07.68). Outra viagem que fizemos como família foi para o Rio de Janeiro,
Itaperuna, Petrópolis, Teresópolis... Visitamos os museus de Petrópolis, em São Paulo o
Museu do Ipiranga. Foi muito legal. Outra viagem foi para Ponta Grossa, Londrina,
245
Maringá, Cornélio Procópio. Nós tivemos muitas oportunidades de sair e conhecer outros
lugares, quando éramos crianças.
Estudei na Escola Particular Jaraguá até os 10 anos, até o 4º ano primário. Tenho os
meus boletins ainda guardados. Os boletins naquele tempo eram tipo um livrinho. As notas
eram registradas com caneta esferográfica, e os pais precisavam assinar todos os meses.
Documento 1
Frente do boletim da 4ª série primária.
As notas asseguravam a promoção para o ano seguinte.
Documento 2
Somente no boletim da 4ª série não se encontra este aviso
com o regulamento interno da Escola.
246
Documento 3
As disciplinas que nós tínhamos eram Língua Nacional (Redação e Gramática
e Leitura e Interpretação Oral); Iniciação Matemática,
Cultura Geral, Atitudes, Hábitos, Práticas Educativas.
Observação: Yvonne era beneficiada pelo parágrafo 1/artigo 8/Decreto 773/63.
Documento 4
Última página do boletim.
Fiz exame de admissão para o 5º ano primário no final do ano de 1965. Fui
aprovada. Passei a estudar num colégio católico, dirigido por irmãs, que era uma escola só
247
para meninas. Lembro que os cheiros nesta escola eram muito bons. Havia muitas flores.
As irmãs lidavam na terra, cuidavam do jardim As janelas das salas de aula eram grandes.
Entrava o sol pela janela. As mudanças foram bem grandes com a mudança de escola.
Éramos só meninas em sala de aula. As irmãs eram bastante rígidas. Os meninos
estudavam no Colégio São Luiz, dirigido pelos Irmãos Maristas. Uma das coisas que me
chamavam atenção era que as meninas que estudavam nas classes mais adiantadas usavam
as saias mais curtas e umas unhas bem compridas, indo contra as normas do colégio.
Eu gostava de estudar matemática, português, ciências, geografia. Nas aulas de
ciências, nós fazíamos experiências. Gostoso era o recreio. Eu tinha muitas amigas. A
gente tinha uma grande amizade na nossa turma. O nosso relacionamento na sala de aula
era bem harmonioso.
A irmã Cleonice me marcou bastante. Ela sempre me chamava de Ione Alice. Eu
ficava indignada e me perguntava como a Irmã não sabia o meu nome direito. Depois do
exame de admissão, fiz o 1º, 2º, 3º e 4º ginasial na Escola Normal e Ginásio Divina
Providência.
Documento 5
O boletim era tipo um livrinho. Ali tudo era anotado.
O boletim era um elo de comunicação entre a família e a escola.
248
Documento 6
Este regulamento está presente nos boletins dos anos 1966, 1967 e 1968.
Documento 7
O regulamento de 1969 é um pouco mais brando em comparação com os dos outros anos.
249
Documento 8
Estas são as minhas notas do meu último ano do ginásio, em 1969. Algo que chama atenção é que nos
outros boletins não aparece apenas Artes e, sim, Artes Fem. Nos boletins de 1966 e 1967, também aparece
Ed. Rel., e nos dois últimos ap
enas Religião.
Nas sextas-feiras sempre havia missa. A gente tinha a liberdade de ir ou não à
igreja. Eu geralmente participava das missas. Na missa também participavam os alunos do
Colégio São Luiz. A missa era um momento esperado com expectativa, pois a gente tinha a
oportunidade de se encontrar com os meninos do São Luiz.
Eu também fui candidata à rainha dos estudantes. Seria escolhida aquela que
vendesse mais votos. A minha mãe se esforçou um monte para vender os votos, mas eu não
ganhei. Uma outra colega vendeu mais votos. Eu fiquei a 1ª princesa. Adorei nossa viagem
de formatura no final do 4º ginasial. Nós fomos a Florianópolis – capital de Santa Catarina.
Foto 11
Viagem de formatura do 4º ginasial para Florianópolis.
250
Na época do ginasial, depois da minha confirmação, eu comecei a ir ao cinema
(acontecia nos domingos à tarde). Os rapazes pediam se podiam sentar com a gente. Tinha
um rapaz que era um gordinho. Eu não queria pegar na mão do gordinho. Achava bonito os
rapazes de cabelos escuros. Além de ir às soirées [domingueiras], também ia ao cinema.
Tinha dois vestidos bons para passear: um azul e outro vermelho. Eram bem lindos. Um
domingo eu usava o azul e no outro domingo eu usava o vermelho; eram os melhores para
sair, é claro.
Sábados à tarde, a cidade ficava morta. Tudo era fechado. Não havia nenhum
movimento. Tinha aulas de bordado com a D. Adele Jansen onde hoje fica a loja de R$
1,99, na Rua Mal. Floriano Peixoto. Aprendi a fazer ponto cruz, ponto cheio e outros. Com
minha Oma, aprendi a fazer o ponto vagonite. As moças, nesta época, geralmente
aprendiam a fazer algum trabalho manual.
Com 12 anos eu iniciei o Ensino Confirmatório. Foram dois anos de doutrina. Se
não me engano, eu estava no 1º ano ginasial quando iniciei o Ensino Confirmatório. Cada
aluno tinha o livro “Ensinamentos Evangélicos”. Nós aprendemos os mandamentos, o
Credo Apostólico, o Pai-Nosso. Aprendi a lidar com a Bíblia. As meninas católicas tinham
dificuldades de lidar com a Bíblia, de encontrar os textos. Eu tinha facilidade. Meu pastor
do Ensino Confirmatório foi o P. Karl Gehring. Lembro que meninos e meninas sentavam
bem separados. O pastor tinha um controle muito grande sobre a turma. A minha
confirmação foi um marco muito importante na minha vida. Houve uma grande festa no
Clube Atlético Baependi. Meus pais reuniram toda a família, amigos. Como meu pai era
político, houve muitos convidados. A festa da minha confirmação foi como festa de
casamento. O número exagerado de convidados era uma espécie de retribuição aos
convites recebidos por minha família. Eles sempre foram muito convidados. Eu perguntei
para a minha mãe se ia ter dança. Minha mãe disse: “Na confirmação, dança jamais!” Eu
ganhei muitos presentes. Minha mãe preparou com muito esmero a festa da minha
confirmação. Sinto ainda aquele cheiro gostoso e agradável.
251
Foto 12
Minha confirmação se realizou na Igreja Evangélica Luterana do
Centro, no dia 07 de abril de 1968.
Neste tempo, fiquei mocinha e não sabia o que estava acontecendo comigo. Minha
mãe não explicou nada para a gente. Ela me deu um livreto que falava como usar o
“modess”, mas não conversou nada comigo sobre isto. Um dia eu fui de bicicleta brincar
na casa da Margit, que era uma grande amiga. De repente, eu senti que tinha um
sangramento, corri para a casa como uma louca, desesperada: “O que tinha acontecido
comigo? O que era aquilo?” Nós tínhamos uma empregada, a Edite, que trabalhou sete
anos e meio com a minha mãe, e depois como diarista mais nove anos e meio. Ela cuidava
da gente e da casa. Eu fui contar para ela; em vez de ir falar com a minha mãe, fui falar
com a empregada... “Edite, pelo amor de Deus, o que está acontecendo comigo?” Ela
disse: “Nossa, a Yvonne ficou mocinha.” Espalhou aos quatro ventos o que tinha
acontecido comigo. Eu fiquei toda envergonhada. Ela me mostrou o “modess’ e como
deveria usar... Daí chegou a minha mãe e disse: “Mas como, Yvonne, eu já tinha explicado
para você.” Na verdade, ela só me tinha dado o livreto que falava sobre isso.
Acho que os pais deveriam falar muito mais com as filhas e os filhos sobre as
mudanças que acontecem no corpo. Se não me engano, a minha mãe e minha tia chegaram
a casar sem saber das coisas. O meu pai que instruiu a minha mãe. Ele tinha o livro “Nossa
vida sexual”. Tenho esse livro na biblioteca. Ele deu para minha mãe ler. Depois, quando
252
eu tinha uma certa idade, comecei a ler esse livro. Um dia, chamaram-me a atenção por
estar lendo esse livro, e eu queria saber alguma coisa. Meus pais estavam na copa, minha
irmã de 11 anos estava lá também. Fui lá onde eles estavam com o livro. Meus pais me
repreenderam: onde já se viu abrir aquele livro na frente da minha irmã que só tinha 11
anos? Ah, meu santo, achei aquela atitude dos meus pais tão atrasada.
Quando estava no ginásio, comecei a ler a revista Pais e Filhos com o objetivo de
saber mais coisas sobre a educação e o relacionamento com os filhos. Pensava para comigo
que queria educar meus filhos diferente. Minha mãe conversava pouco e tamm me batia
bastante por causa da minha irmã mais nova. Sempre consegui ter mais abertura com o
meu pai.
Debutei com 15 anos. Este foi o momento da minha apresentação para a sociedade.
Eu debutei em Jaraguá do Sul, Guaramirim e Joinville. Eu não tive uma festa especial para
festejar os meus 15 anos. Só participei de uma grande festa de 15
anos de uma amiga que
se chama Nancy. Lembro-me de uma dança de nome bolo vivo. A aniversariante dançava
com vários rapazes. A aniversariante, na verdade, virava uma boneca de tão bem vestida e
arrumada que ficava.
Foto 13
Aqui meu pai está me apresentando à sociedade.
Foto do meu baile de debutantes no Salão Baependi.
Até os meus 15 anos eu não soube o que eram problemas e sofrimento. Tudo era
alegria e felicidade. Não tinha nenhuma tristeza de que eu me lembre. Quando eu tinha 15
253
para 16 anos, meu pai sofreu um grande desfalque no escritório. Ele foi roubado por
funcionários nos quais depositava a maior confiança. Meu pai era um homem muito
honesto. Como já falei, era muito procurado pelas pessoas da região. Ele fez o primeiro
Contrato Social da WEG... Ele também fazia vários contratos de família (usufruto). As
pessoas deixavam o dinheiro no escritório para meu pai pagar os seus impostos. Elas
recebiam os comprovantes mais tarde, quando tudo estava pago. Meu pai havia deixado o
escritório sob a confiança dos funcionários. Quem chamou a atenção para o meu pai foram
os amigos Sr. Victor B. (prefeito na época) e Hans Gerhard Meyer. Eles disseram para ele
prestar atenção nos funcionários. Que havia alguns que estavam fazendo coisas que não
condiziam com o seu salário. Meu pai foi atrás e descobriu o desfalque no escritório. Foi
um baque para ele. Tinha muitos funcionários. O trabalho do escritório havia crescido
muito. Havia ampliado o trabalho. Meu pai chorou muito quando soube da situação do
escritório. Meu pai sempre foi muito envolvido na política, foi vereador, primeiro vice-
prefeito, prefeito em exercício, suplente de deputado estadual... Também estava envolvido
na diretoria da igreja, no Clube Atlético Baependi... no jornal da cidade.... Por causa desse
envolvimento dele na vida social e política, foi deixando o trabalho do escritório nas mãos
de outras pessoas que traíram a sua confiança. Meu pai pediu para eu assumir o controle e
o caixa do escritório. Precisei verificar a situação financeira cliente por cliente, pois eles
deixavam o dinheiro no escritório para que a gente pagasse os seus impostos. Como houve
roubo de dinheiro, meu pai teve que assumir os pagamentos de muitos clientes para honrar
o seu nome, sujo pelos funcionários que o traíram. Depois do desfalque, a gente não tinha
dinheiro para mais nada. Fizemos uma grande economia e conseguimos superar as
dificuldades financeiras.
Deste momento em diante comecei a trabalhar no escritório e sempre fui uma
grande companheira e amiga do meu pai. Eu e meu pai tínhamos uma grande amizade. Ele
me compreendia e me ensinou muitas coisas no escritório. No ano de 1969, último ano do
ginasial, meu pai me ensinou a dirigir o carro. Nós íamos para as bandas do Rio Cerro e lá,
nos areões, aprendi a dirigir. Meu pai depositava confiança na minha pessoa. No verão
quando fomos à praia, meu pai deixou o fusca para nós. Eu perguntei se podia dirigi-lo,
mesmo que ele não estivesse presente. Meu pai disse: “Pode, mas olha a
responsabilidade!” Eu ainda era de menor.... Sempre fui muito devagar e com muito
cuidado. Com 18 anos, eu fiz a carteira de motorista.
254
Foto 14
Férias na praia de Barra Velha – SC.
Quando eu terminei o ginasial, fui fazer o curso de técnico de contabilidade no
Colégio São Luiz. Meu pai lecionou 19 anos no Colégio São Luiz, mas ele não chegou a
dar aulas para mim. Foram três anos de estudo bastante rígidos. Eu tive bons colegas e
bons professores. O Irmão André explicava, explicava, mandava fazer os exercícios e não
deixava perguntar muito. Ele nos deu aulas de recuperação nos sábados à tarde porque
ninguém entendia a matéria. Ele falava para a gente: “Estou deixando de plantar as minhas
bananas para ensinar para vocês, que não aprendem.” No 2º ano do técnico (2º Técnico B),
eu precisava tirar um 4 no exame. Fui à farmácia e comprei um remédio “Reativan” para
estudar bastante e não dormir. Eu fiquei bem alterada. Um colega perguntou no dia do
exame: “O que você tem, Yvonne?” Fiz o exame e consegui um 7. Tínhamos um outro
professor que faltava muito. Um dia, resolvemos todos ir embora, porque o professor não
veio. Quase nos ferramos, pois saímos sem a autorização do diretor.
No Técnico, nós só tivemos professores homens. Em 1972, aconteceu a nossa
formatura na Escola Técnica de Comércio São Luiz. Nossa turma tinha como paraninfo
“Norberto S. Emmendorfer.” Não me lembro da festa de formatura. Só me lembro da
formatura, que foi um momento bem solene. Foi no Cine Jaraguá.
Foto 15
Formatura em Técnico de Contabilidade, em 1972, no Cine Jaraguá.
Estamos todas de minissaia, que era a moda da época.
255
Foto 16
A formatura do Técnico era um momento
muito importante: até vestimos toga.
Eu trabalhava durante o dia e estudava à noite. Neste período também tive a minha
primeira paixão, que foi o meu vizinho. Depois, namorei um rapaz que trabalhava no
escritório. Eu era bem apaixonada por ele, mas me decepcionei, profundamente, quando
descobri que ele também estava metido no grupo de funcionários que deu o desfalque no
meu pai. Fui procurar o padre Aloísio para pedir um conselho em relação ao meu namoro.
Ele me disse: “Quem não tem caráter nunca terá caráter.” À noite, cheguei ao colégio e
levei junto todas as fotos e cartas que havia recebido dele. Entreguei tudo a ele e acabei o
namoro. Eu disse a ele: “Acabou, não tem mais volta!” Ele disse: “Você vai se arrepender
do que está fazendo.” Eu não olhei mais para trás. Durante um bom tempo, eu me vestia
toda de preto. Fiquei de luto por causa dessa situação. Eu o matei dentro de mim! Eu
sempre pensava: “Meus pais e eu não merecemos um rapaz mentiroso.” Vivi meu luto... o
fim do namoro! Do jeito que eu achei melhor para mim!
Eu sempre gostei de dançar. Houve uma época em que havia sete rapazes que
estavam interessados em namorar comigo. Eu achava isso o máximo! No último ano em
que estudei no São Luiz, conheci o Antonio e começamos a namorar. Nós namoramos dois
anos e sete meses. Ele era um rapaz muito bonito, bastante cobiçado pelas moças. Nunca
esqueço que meu pai me deixou ir sozinha com três amigos a um baile de debutantes em
Corupá. Um desses amigos era o Antonio. Meu pai só me disse: “Você deve ser
responsável o bastante para se cuidar!” Essa frase do meu pai me pesou como uma
tonelada.
O tempo de namoro foi muito bacana. O Antonio sempre me acompanhava até em
casa depois das aulas no São Luiz. Minha mãe recebia a gente muito bem. Sempre
preparava um lanchinho para nós. Meu avô materno, Bruno, era meio contra o meu namoro
256
com o Antonio; dizia que ele era um caboclo e um católico. A minha avó ajudou a mudar a
mentalidade do meu avô.
O Antonio fez vestibular antes de mim e foi estudar na antiga FURJ (hoje Univille),
em Joinville. A FURJ ficava no Colégio Santos Anjos. Ele estudou Administração de
Empresas. Quando eu terminei o Técnico em Contabilidade, fiz cursinho pré-vestibular no
Colégio Bom Jesus. Prestei vestibular na FURJ para o curso de Letras: Português e Inglês.
Estudei durante dois anos no antigo local da FURJ (1973-1974) e também acompanhei a
mudança para o Câmpus Univille (1975-1976). Íamos todas as noites de Kombi para
Joinville.
O Antonio tinha uma Kombi, na qual levava os estudantes. Naquele tempo a
rodovia não estava asfaltada. A estrada era de barro, e muitas vezes ficamos atoladas nela.
Nós vimos a rodovia nascer. Nós passávamos pelas ruas do interior para desviar dos
atoleiros na estrada. Levávamos em torno de 1 hora e 15 minutos. Às 17 horas, a Kombi
passava e começava a pegar os estudantes... Eu sempre atrasava uns 10 min. Eu era a
última que a Kombi apanhava. Precisávamos sair às 17 h 30 min e acabávamos saindo às
17 h 40 min. Nós íamos entre 11 pessoas na Kombi. Eu também dirigia a Kombi às vezes.
Na BR 101, certo trecho não tinha acostamento. Um dia, num sábado, levei um grande
susto devido ao ônibus da Catarinense, que vinha podando vários veículos no sentido
contrário. Peguei e parei no meio do asfalto. Outra vez, fomos pegas pela polícia. Eu
também estava dirigindo; eram 23 h 30 min. Na saída de Joinville, eu não fiz o balão e fui
direto. A polícia veio atrás. Estávamos em 12 pessoas na Kombi. A polícia não nos multou.
Só deu uma bela chamada de atenção. Ela multou o carro que vinha atrás de nós, que era
dirigido por um rapaz. Quando chegamos a Jaraguá do Sul, na frente da São Sebastião,
encontramos os rapazes que haviam sido multados pela polícia... Eles perguntaram: “O que
vocês têm que nós não temos?” Eles levaram duas multas. Essas aventuras faziam parte
das nossas idas e vindas de Joinville.
Eu era a única que fazia Letras. As outras colegas faziam outros cursos. Nós
tínhamos aulas na faculdade de segundas a sextas à noite e nos sábados à tarde das 13
horas às 18 horas. Estudar sábados a tarde era uma chatice... sol quente batendo na janela.
A professora também não ajudava muito. Gostei de estudar as disciplinas de psicologia.
Também tínhamos latim, lingüística, inglês... Não gostava muito das teorias. Fazer a
faculdade foi bem puxado! Trabalhava durante todo o dia no escritório e à noite ia a
257
Joinville para estudar... Os fins de semana também eram curtos... Sobrava o domingo, já
que nos sábados tínhamos aulas!
Meu marido terminou a faculdade em 1974. Nós casamos no dia 25 de janeiro de
1975 na Igreja Católica São Sebastião em Jaraguá do Sul. O casamento civil aconteceu no
dia anterior, dia 24 de janeiro de 1975, na casa dos meus pais. Eu tinha 20 anos. O dia do
meu casamento foi muito quente. Nossos parentes foram recepcionados na casa dos meus
sogros, que tinham uma casa grande. Nós tínhamos convidado umas 120 pessoas e vieram
participar umas 80 pessoas. A festa se realizou no Hotel Itajara. Foi muito bonita. Nós
estávamos bem felizes. Depois da festa, fomos passar a lua-de-mel no sul; primeiro
paramos na praia em Barra Velha. Nossos amigos nos perseguiram até lá. Jogaram pedras
no telhado e na janela do nosso quarto. No dia seguinte, seguimos para a nossa viagem de
lua-de-mel. Fomos em direção a Torres, Gramado, Canela, passamos por Curitiba e
voltamos para Jaraguá do Sul. Ficamos uma semana viajando. Viajamos com um Chevette
75/0, que o Antonio havia comprado recentemente. Na viagem, o nosso carro estragou. A
nossa lua-de-mel foi uma aventura muito gostosa.
Meu marido é o primeiro filho dos meus sogros. Minha sogra conta que ela fez uma
promessa a Santo Antonio: colocou um par de sapatinhos, pedindo para ficar grávida. O
Antônio é o primeiro filho; depois vieram mais nove. Meu sogro era professor da escolinha
da localidade, na Ilha da Figueira. Hoje é o Colégio Estadual Holando Marcelino
Gonçalves. Minha sogra cuidava e administrava um armazém de secos e molhados. Todos
os quatro filhos e as seis filhas fizeram Faculdade. Meu marido também atuou como
professor de Matemática. Ele lecionou nos colégios Homago, Abdon Batista, Duarte
Magalhães.
Os primeiros dois anos de casamento foram maravilhosos. Depois tivemos alguns
problemas, porque meu marido começou a beber, e isso foi bem difícil. No início do
casamento, quando as minhas amigas me perguntavam se era bom casar, eu falava para
todo o mundo: “Casem que é muito bom.” Nós trabalhávamos juntos no escritório. Eu
continuei estudando. Terminei a Faculdade de Ciências e Letras na FURJ, em Joinville. A
minha formatura se realizou no final do ano, dia 03 de dezembro de 1976. Eu tinha o
desejo de receber o meu canudo ou das mãos do bispo Dom Gregório Warmeling ou do Dr.
Salomão Ribas Jr. Isso acabou se realizando. A festa da minha formatura foi muito bacana.
Foi um momento muito feliz.
258
Foto 17
Recebi o meu diploma da Faculdade do bispo Dom Gregório Warmeling.
Meu marido também se candidatou a vereador em 1982 pelo PDS. Ele recebeu 555
votos, mas não foi eleito. Como ele era Gonçalves... Havia muita rivalidade! O pessoal do
lugar não o apoiou. Eles tinham inveja daquela família trabalhadora e próspera. Esta
discriminação aconteceu, mesmo que meu pai tivesse sido vice-prefeito e várias vezes
vereador e muito o apoiasse.
Nas férias, em janeiro de 1977, nós fomos para Florianópolis. Eu me sentia bastante
fraca. Também quase quebrava no meio de tão magra que eu estava. Eu achava que estava
esgotada, por causa do stress do final de ano: trabalho e final de curso. Fiz alguns exames.
Qual foi a minha, a nossa surpresa? Eu estava grávida e não sabia. A gravidez foi um
tempo muito bom. Senti-me muito bem. Não fiz ultra-som. Naquele tempo, nem havia
esses aparelhos em Jaraguá do Sul. Só em Joinville. Só se fazia esse exame se havia algum
risco na gravidez. Eu me sentia muito bem grávida. No tempo da gravidez, continuei a
trabalhar normalmente no escritório de contabilidade. Meus pais residiam em
Florianópolis, nesse tempo. Meu pai trabalhava para uma empresa do governo. O
escritório, praticamente, estava sob minha responsabilidade. Eu sempre fui de confiar
muito nos funcionários.
Quando chegou a hora do parto, eu tive que fazer cesariana. Tive a alegria de ter
uma linda menina, a qual se chama Alessandra. Ela nasceu no dia 16/09/1977. A
Alessandra sempre foi muito saudável. Ela não teve maiores problemas na infância. Era
259
bastante serelepe, mexia em tudo. Alessandra é uma filha maravilhosa. Nós sempre fomos
muito amigas.
Nós trabalhávamos no escritório e em casa tínhamos uma empregada para fazer o
trabalho da casa. Depois de quatro anos, eu engravidei novamente. A gravidez também foi
tranqüila. Eu tive um menino. O Leandro nasceu no dia 02/02/1982. Ele também nasceu de
cesariana. Foi tudo bem. Só que oito dias após, eu tive uma hemorragia muito forte. O
médico disse que eu tive uma “atoria uterina”, um “acidente de cesariana”. O médico
explicou que o útero relaxou e houve sangramento. Precisei ficar hospitalizada dois dias. A
minha família trazia o nenê, meu filho, para ser amamentado no hospital. Lá no hospital,
eu também amamentei outras crianças, pois tinha leite sobrando. Eu não pude amamentar a
minha filha e meu filho durante muito tempo. A Alessandra eu amamentei só durante uma
semana, o Leandro eu amamentei durante um mês, mas por causa do refluxo não pude
amamentá-lo mais tempo. Precisamos alimentá-lo com leite Ninho e maizena, para ele
poder crescer e se desenvolver. Foi um tempo muito bom. Nas férias, a gente sempre
ficava um bom tempo na praia.
Quando o Leandro tinha 2 anos, nós fizemos uma viagem para São Paulo. Fomos
visitar a cidade das crianças em São Bernardo do Campo e o zoológico de São Paulo.
Fizemos esta viagem com os amigos do Rotary. Foi na Páscoa de 1984. Foi uma Páscoa
em família. Éramos sete famílias que viajamos num ônibus de Jaraguá até São Paulo.
Lembro que o Leandro viu o ônibus e disse: “Que brum-brum grande...” Ele entrou no
ônibus e ficou no meu colo o tempo todo. Ele tinha medo. Foi muito engraçado. As
pessoas me diziam: “Não é uma loucura viajar com uma criança tão pequena, numa
viagem tão longa?” A viagem foi maravilhosa; o Leandro e a Alessandra foram crianças
maravilhosas. No final da viagem até elogiaram o Leandro, dizendo que ele tinha sido
ótimo companheiro de viagem. Nós viajávamos muito como família. Fomos a Cascavel,
Toledo, Foz do Iguaçu. O irmão do meu marido morava nessa região. Foi muito bom. A
gente aproveitou bastante.
260
Foto 18
Alessandra segurando o irmãozinho Leandro.
Eu e meu marido éramos muito felizes com a nossa filha e o nosso filho.
Foto 19
Aqui estou com a minha filha Alessandra
com 5 anos e o Leandro com alguns meses.
De maio a dezembro de 1984, eu lecionei no Colégio Holando Marcelino
Gonçalves. Substituí a minha cunhada Júlia. Lecionei para as 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries
português, inglês e ensino religioso. Esta foi a minha única experiência profissional em
sala de aula. Às vezes me pergunto por que eu fiz o curso de Letras. Eu comecei a trabalhar
261
muito cedo no escritório do meu pai. Sempre cuidei das finanças e até hoje estou
trabalhando na administração e nos recursos humanos da nossa empresa.
Em 1984, tivemos um Natal maravilhoso em família. No dia 25 de dezembro, nós
fomos para a praia em Barra Velha. A gente ficava um bom tempo na praia, de um a dois
meses. Praticamente, o verão todo. Meu marido, nesse verão, praticamente vinha todas as
noites nos ver em Barra Velha. Ele estava organizando a gráfica do nosso jornal. Outros
pais de família também faziam a mesma coisa. A esposa com as crianças ficava na praia. O
marido vinha no final de semana ou durante a semana para se encontrar com a família. O
Leandro nasceu em fevereiro, um período em que, geralmente, nós estávamos na praia.
Nós estávamos preparando o seu aniversário de 3 anos. A gente fazia a festinha na casa da
praia. O aniversário dele em 1985 iria acontecer num sábado. Eu já havia preparado alguns
doces, e meu marido estava vindo de Jaraguá do Sul para Barra Velha, trazendo a carne e
outras coisas para o almoço. Só que nessa noite aconteceu uma coisa terrível na BR 101...
Algo que abalou a nossa vida... Aconteceu um terrível acidente, e meu marido foi uma
vítima fatal. Foi algo terrível. Tudo foi muito triste. (Lágrimas e muita tristeza no olhar de
Yvonne.)
Meu marido faleceu... Eu fiquei viúva, com duas crianças pequenas. Tudo foi muito
triste. A Alessandra tinha 7 anos, ela ficou muda. Precisei levá-la até o psicólogo. O
Leandro era muito pequenino. Ele vinha, mais tarde, e perguntava: “Mamãe, papai morreu!
Por que o papai morreu?” Como eu iria responder para uma criança, se nem eu tinha uma
resposta para mim? Foi muito difícil. Tivemos um casamento de 10 anos e 1 semana. A
morte do meu marido foi um outro baque na minha vida. Como já contei, até os 15 anos eu
não sabia o que era tristeza. Só havia algumas brigas, porque eu era a irmã mais velha e
precisava cuidar da minha irmã mais nova. Uma vez também apanhei na boca da minha
mãe, porque eu era muito respondona. Fora isso, era tudo felicidade. Com 15 anos, precisei
enfrentar os problemas, assumindo o trabalho junto com o meu pai no escritório. Nunca
deixei de estudar. Depois, casei, tive um casamento feliz, porém, com o acidente e a morte
do meu marido, houve novamente uma ruptura na minha vida. Precisei enfrentar sozinha
toda a situação. Eu tive bastante suporte da minha família. Lembro que meu pai até fez
uma reunião com o pessoal do escritório, pedindo que tivessem bastante compreensão
comigo, em respeito ao meu sofrimento, e colaborassem no trabalho. Também tive muito
apoio da família Gonçalves.
262
Meus sogros moram perto da minha casa. Só que minha sogra não tinha tempo para
cuidar de crianças pequenas. Meus pais moravam, neste tempo, em Florianópolis. Eu tinha
uma empregada que estava trabalhando comigo há um ano. Ela era muito boa, só que a
mãe dela a convenceu a sair da minha casa e voltar à casa dela, alegando que ela tinha
filhas adolescentes que precisavam de ajuda. Isso foi bem difícil. As mulheres que
trabalhavam como empregadas domésticas não gostavam de trabalhar em casas que
tivessem crianças pequenas. Eu tinha duas crianças pequenas e estava justamente
precisando de uma empregada por causa das crianças. Se não me engano, num mês
passaram umas 11 moças na minha casa; não tinham qualificação para o trabalho. Eu
administrava o escritório, precisava cuidar do trabalho, administrar a casa. Tinha duas
crianças pequenas.
Uma coisa bacana que aconteceu no período do luto foi que um bom tempo,
durante a semana, os amigos e familiares vinham sempre me visitar. Isso me deu um bom
suporte. Sempre tinha alguém se preocupando comigo, perguntando como eu estava
passando. Isso foi muito bom! O pior era durante os fins de semana, ficava eu sozinha com
minha filha e meu filho. Jaraguá não oferecia nada para se fazer no fim de semana. Aí que
a solidão e a dor batiam mais forte. Considero-me uma pessoa feliz, porque tive amigos e
uma família que me apoiaram naquele momento tão duro da minha vida.
Na época, uma forma de solucionar o problema foi matricular minha filha e meu
filho no Colégio Evangélico Jaraguá, que ficava aqui no centro e próximo do escritório. A
Alessandra já tinha ido um ano na escola pública Holando Marcelino Gonçalves, escola
que fica próxima da minha casa e tem a ver com a história da família do meu marido. O
Leandro tinha 3 anos. Ele não queria ficar na escola. Puxava o uniforme, querendo rasgá-
lo. Ele dizia: “Eu não quero ir na escola. Por que eu preciso ir para a escola?” Ele chorava
bastante. Minha mãe o acompanhou durante dois meses. Ela ficava junto à mesinha da sala
de aula, sentada numa cadeirinha. A Alessandra também procurava consolar o irmão,
argumentando que a escola era boa, procurando me ajudar para que ele ficasse na escola.
Depois, a minha sobrinha e afilhada Rafaela o acompanhou o resto do ano. Foi um tempo
bem difícil, mas superado, graças a Deus. Sou eternamente grata às pessoas que me
ajudaram de forma tão solidária.
As pessoas, para me consolar, diziam: “Deus fecha uma porta, mas abre uma
janela.” Acredito que também isso aconteceu na minha vida. Perdi meu esposo, tornei-me
263
chefe da família e consegui criar minha filha e meu filho muito bem. Durante um ano e
meio quase não saí de casa, ficava somente com as minhas crianças e visitava os sogros e
meus pais. Só que eu também não agüentava mais; eu ia à casa dos meus sogros, e era
aquela tristeza pela morte do meu marido; ia nos meus pais, e era a mesma história. Eu
precisava respirar e fazer outras coisas. Então me encontrei com uma amiga, ex-colega de
escola, a Dalva, que me convidou para sair. Depois de muito relutar, acabei aceitando o
convite e comecei a retomar a minha vida. Tinha um barzinho no centro da cidade onde a
gente se reunia, se encontrava com amigos e amigas, ria bastante. Quando meu marido
faleceu, eu fiquei perdida. Nossos amigos eram todos casais. Não me encaixava mais nesse
grupo. No grupo de pessoas solteiras eu também não me sentia muito bem. Como mulher,
viúva, eu me sentia um tanto discriminada. A gente também escutava maus comentários. A
gente procurava se cuidar para não ser mal falada.
Um dia, o Leandro ficou aos cuidados da minha sogra. Ele tinha uns 4 para 5 anos.
Uma das minhas cunhadas me avisou que o havia visto andando de bicicleta na avenida, na
Marechal. Outro dia, aconteceu a mesma coisa; quando vi, ele estava aqui no escritório.
Liguei para minha sogra e perguntei onde estava o Leandro. Ela disse: “Ele está aqui,
brincando.” Então eu disse a ela: “Então quem é esse menino que está aqui na minha
frente?” Minha sogra disse: “Não acredito que ele fugiu de novo.” O Leandro disse: “Eu só
queria ver a minha mãe.”
Uma outra coisa que me marcou, nesse tempo, foi que, às vezes, eu precisava ficar
em casa de manhã, principalmente quando não conseguia ninguém para trabalhar na casa.
Então, o escritório ficava mais por conta dos funcionários. Nesse período, eu também fui
roubada por uma pessoa em quem eu tinha toda a confiança. Eu descobri através de uma
ligação anônima... Alguém me disse: “Vai trás... porque esta pessoa está comprando além
das possibilidades...” Fui verificar e realmente percebi que ela não estava sendo honesta.
Foi um outro golpe. Chamei um advogado. Essa pessoa, que trabalhava no caixa do
escritório, confessou o roubo...
Um dia, numa viagem para São Paulo com meu irmão Eugenio e meu cunhado
Rogério, aconteceu algo que me fez muito bem. Sentada num banco da rodoviária, eu fui
comprar uma revista de horóscopo; comecei a ler e a rir. Havia um homem sentado do meu
lado, que perguntou: “O que está escrito confere com a sua vida?” Puxou papo, apresentou-
se e insistiu para pegar o número do meu telefone. Eu não queria dá-lo; depois de muita
264
insistência, acabei dando a ele. Eu o apresentei para o meu pessoal. Voltamos para Jaraguá
do Sul. Pensei: “Nunca mais vou ver esta pessoa.” Quando cheguei a Jaraguá, já estava me
ligando de Araçatuba-SP a pessoa que havia conhecido na rodoviária. Veio me visitar em
Jaraguá do Sul, mas queria que eu fosse morar com ele em Araçatuba-SP. Eu nunca iria
deixar todas as coisas e a minha vida aqui em Jaraguá do Sul. Ele dizia que adorava,
achava lindo o sul, mas que era um mundo bem diferente do dele. Nós somos do trabalho e
casa. Lá tinha vida noturna intensa, outros costumes, muito diferentes. Ele era uma pessoa
bem colocada, trabalhava no Banco do Brasil, mas não deu certo.
Como falei, comecei a sair com ex-colegas da escola, amigas da infância e da
juventude. Tinha uma amiga que era muito divertida, a Rute. Um dia, fomos à boate, ela
me apresentou para uma pessoa, dizendo: “Ela é viúva, rica e bonita.” Era como essa
amiga me via. Imagina como ela me apresentava! A gente ria muito. Conheci uma outra
pessoa, tivemos um relacionamento durante um tempo, inclusive moramos juntos, mas
também não deu certo. Eu me sentia muito sufocada. Ele me queria demais.
Até que conheci o Francisco em 1989. Ele gostava de dançar e eu também. A gente
saía, só para dançar. Isso foi muito legal! Nosso relacionamento foi crescendo até a gente
resolver morar juntos. Já estamos juntos há 16 anos. Quando conheci Francisco, ele
trabalhava como técnico de farmácia. Convidei-o para trabalhar no setor comercial de uma
das empresas. Tempos depois, as empresas se separaram, e Francisco passou a dedicar-se
ao jornal, houve resistência por parte de funcionários, que não aceitaram a sua chegada.
Um dia, apareceu no escritório um jovem pedindo emprego. A gente não tinha
vagas naquele momento. Ele voltava sempre de novo pedindo emprego. Surgiu uma vaga
de contínuo. A gente percebeu que este rapaz tinha muita vontade de aprender. Quando
estava pronto com seu serviço, já procurava ajudar nos outros setores de trabalho. Ele
demonstrava muito interesse de aprender. No final do ano, pediu para sair por problemas
familiares, e o Francisco veio falar comigo, para ver se a gente não arrumava um canto
para ele morar lá em casa. Eu me assustei, pois seria mais alguém diferente morando na
minha casa. O Francisco ainda era um estranho no ninho, agora mais um adolescente
morando lá em casa. Fiquei com medo. Acabamos entrando num acordo, e o Darlon, nosso
filho adotivo, já está conosco há 15 anos. Ele veio morar com a gente quando tinha uns 14
para 15 anos. Quando veio morar com a gente, nós ficamos com dó dele, pois ele morava
na Vila Lenzi, durante o dia vinha trabalhar com a gente no centro da cidade e à noite fazia
265
o 2º ano do 2º grau no Colégio Homago, que ficava atrás da nossa casa. Ele fazia tudo isso
a pé. Quando veio morar com a gente isso melhorou, pois ele ia de carro com a gente
trabalhar, e o Colégio ficava bem próximo da nossa casa.
Ele aprendeu de tudo. Trabalhou na linotipo na gráfica do jornal. Depois tivemos
que trocar as máquinas. Ele também se esforçou em aprender. Ele é muito criativo, mas
ainda não fez faculdade, porque não tem faculdade de Desenho/Criação por perto. Ele cria
os desenhos, marcas, logotipos, historinhas. Desenvolve histórias. Faz gibis contando a
história das empresas, do município através de desenhos, para que o operário entenda
melhor e também as crianças. Ele fez para a Lunelli o livro da família. Esteve 12 dias
viajando com a Lunelli na Itália, na Alemanha para conhecer melhor a história dos Lunelli
e, assim, poder escrever melhor a história dessa família.
É incrível como eu me dou bem com o Darlon. A gente conversa muito. Se
existisse reencarnação, vidas passadas... eu acho que sim... eu acredito... Mas também não
sei, porque ninguém voltou para contar... Não dá para explicar, é como se o Darlon fizesse
parte da nossa família! O Darlon é muito próximo, ele é muito amigo, é um
companheirão... Às vezes, um filho não é tão atencioso como ele é... Ele é brincalhão, é um
jovem muito educado. Tem uma integração muito grande com a gente. Ele nunca nos
incomodou. É bastante inteligente, mas, vivendo com a gente, ele teve uma família
diferente, irmãos novos e pais novos. Ele se envolveu com a nossa família e, como nós
temos uma empresa, também se envolveu na empresa. Inclusive a mãe dele sempre nos
agradece muito, pela oportunidade que teve de se desenvolver como pessoa. Como é um
jovem inteligente, acredito que a gente contribuiu no seu crescimento, mas certamente teria
encontrado outras brechas para crescer, porque é uma pessoa do bem. Ele é bem especial
para toda a nossa família. Por tudo isso que a gente diz que há alguma coisa a mais.
Quando nós pensamos em tê-lo em nossa casa, muita gente achou estranho. “Como vocês
vão pegar um rapaz que ninguém conhece para morar com vocês. Ele tem apenas 14 anos.
Ele pode causar problemas!” Mas, graças a Deus, nós conseguimos dobrar as bobeiras da
adolescência e vivemos muito bem.
Ele já foi duas vezes para os Estados Unidos. Lá fez de tudo para sobreviver. Ele
trabalhou como marceneiro, cuidava de cachorros, limpava carros, trabalhou com uma
mineira que tinha um jornal em Miami. Ele fazia qualquer coisa para sobreviver e também
ganhou um bom dinheiro. Ele ficou nos Estados Unidos 1 ano e 4 meses, pois foi duas
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vezes para lá. Ele quebrou a cara uma vez quando foi para a Espanha. Lá ele foi roubado.
Depois de uma semana, voltou para casa. Estava um tanto envergonhado, achando que a
gente não iria mais recebê-lo em casa, mas eu fui esperá-lo no aeroporto em Joinville. Ele é
bem aventureiro e bem persistente. O Darlon já aprendeu bastante, porque já deu muita
cabeçada. Agora ele está se preparando para sair da nossa casa. Está indo para Blumenau.
Isso está sendo difícil, porque ele é muito amigo da gente.
Com o passar do tempo, minha filha e meu filho foram crescendo e começaram a
ter a sua vida independente. Eu trabalhava o dia todo no escritório e me virava com o
trabalho da casa. Adquiri, na época, uma secretária eletrônica, para que a Alessandra e o
Leandro, quando viajassem, pudessem deixar os recados, já que não tinha ninguém em
casa para atender ao telefone. Enfim, nossa vida com o Darlon foi muito boa, a Alessandra
e o Leandro também se dão muito bem com ele.
Depois que eu e o Francisco estávamos uns cinco anos juntos, nós pensamos em ter
uma criança. Com 36 anos eu pensei em engravidar novamente. Minha mãe me chamou de
louca... Com 38 anos eu engravidei da Larissa. Eu passei super bem no período da
gravidez. O Francisco, meu marido, precisava sair muito por causa do jornal. Na época, a
Alessandra estava com 15 para 16 anos. Ela gostava de sair com as amigas, mas sempre
cuidamos bastante das companhias. O Leandro tinha de 11 para 12 anos e estava bastante
envolvido com o futebol. Ele jogava pelo colégio, pelo município e ajudava trabalhando na
gráfica. A gente sempre cuidou para envolvê-lo bastante. Graças a Deus, eu nunca tive
problemas de drogas com a minha filha e meu filho. O Leandro tem muitos amigos do
nosso Bairro da Ilha da Figueira. Ele sempre teve muita maturidade; se um amigo
começava a ir para o fumo ou para a droga, ou os amigos mudavam de atitude, ou o
Leandro se afastava desses amigos. Sempre procurei dialogar muito com a Alessandra e o
Leandro, pedindo para que cuidassem nas relações de amizade.
Eu demorei para engravidar, porque havia épocas que eu e o Francisco não
estávamos muito bem. Daí eu pensava: “Deus vai me orientar o momento certo para eu
engravidar.” Havia épocas em que eu tomava pílulas e épocas em que não tomava. Com
dois meses de gravidez, descobri que estava realmente grávida. Engravidei com 38 anos, e
a Larissa nasceu quando eu já tinha 39 anos, no dia 05 de outubro de 1993. Foi uma grande
alegria. Ela foi muito bem-vinda! Eu fiz o enxoval com muita alegria, e com pouca coisa.
Algumas coisas ganhei de presente. Tamm nem tinha condições de fazer muita coisa, eu
267
já tinha uma filha e dois filhos (contando com o Darlon). Os três estavam na adolescência.
Mas foi muito bom esse tempo. Quando a Larissa nasceu, nós colocamos na porta do
quarto: “Nossa princesinha chegou!” Foi a maior alegria! Temos fotos com a minha mãe,
com a minha avó, com as crianças com ela no hospital. Imagina o Darlon com 19 anos, a
Larissa com 16 anos e o Leandro com quase 12 anos. E, daí, chega um bebê. Acontece que
a Larissa era paparicada por todos os lados. Os irmãos, os amigos e amigas dos irmãos,
todo mundo dava presente no Natal e na Páscoa. A Alessandra passeava muito com ela.
Quando a Larissa nasceu, eu fiquei cinco meses afastada do meu trabalho. Tentei
curtir o máximo o bebê. Também curti as outras duas gravidezes. Só que não fiquei tanto
tempo em casa; fui trabalhar mais cedo. Claro que eu fiquei em casa com a Larissa com a
colaboração e inclusive a pedido do meu marido. Eu contratei uma empregada para fazer o
serviço e uma outra mocinha para ajudar a cuidar da Larissa. Depois, quando ela estava
com 2 anos e 4 meses, eu a coloquei na Educação Infantil Dente de Leite. Estudou no
Colégio Evangélico. Agora está no São Luiz. Ela se desenvolveu super bem.
Para a minha filha Larissa foi muito bom eu ficar em casa com ela. Hoje eu me
pergunto se para minha profissão foi bom ter ficar tanto tempo em casa. Acho que perdi
muito na parte profissional. Sei lá, pode ser que eu esteja enganada, e mais tarde vá saber.
Um pouco esse balanço eu já fiz: me afastei demais, deixei tudo por conta do Francisco. A
gente, não estando junto, acaba perdendo os fios da meada. Mesmo que eu seja a “dona da
coisa”, é difícil retomar. Hoje, eu entendo melhor o meu pai, quando ele saía e voltava para
o escritório. Ele não se localizava mais ali. Isso eu tenho do meu pai. A gente tem que estar
junto na empresa, no dia-a-dia, envolvida, senão não é a mesma coisa... Ah, eu vou ficar
em casa e acompanhar de longe... Eu não consigo... Preciso estar junto! Há pessoas que
conseguem acompanhar tudo de longe; eu as admiro, até gostaria de ser assim, mas não
consigo. Talvez até seja um treinamento que não tive. Eu não sei! Uma coisa que sinto é
que fiz poucos cursos, depois que terminei a minha faculdade, para me manter na
profissão. Uma coisa é que, agora, há mais cursos... Outra coisa é que sempre estive
ocupada com a casa e o trabalho. Talvez também porque o meu primeiro marido faleceu e
fiquei muito tempo sozinha. Sempre tentei levar a nossa empresa, tendo pessoas
competentes do meu lado!
A volta para o trabalho foi bem complicada, depois de tanto tempo afastada. Desde
que a Larissa nasceu, eu saio muito pouco, só saio para aquelas coisas realmente
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essenciais. Sinto que seria necessário fazer uma pós-graduação, me atualizar. Eu fiz o
curso de Letras. Hoje me pergunto por que não fiz algum curso ligado à área de
contabilidade ou de administração. Sinto que preciso fazer alguma coisa, mas não sei o
quê. Também não consigo me ver toda noite numa sala de aula. Sinto-me muito cansada
para isso. Alguma coisa preciso fazer, para ficar mais atualizada. Se eu me colocar em
qualquer coisa, curso ou pós-graduação, preciso repassar algumas funções que tenho no
escritório.
No ano de 1997, fiz uma viagem para a Europa com um grupo de mulheres,
organizado pela Cosmos Turismo. Foi uma oportunidade ímpar de conhecer a Espanha e a
França.
Foto 20
Eu com uma amiga defronte à torre Eiffel.
(França, outubro de 1997).
Minha filha me surpreendeu com o anúncio de seu namoro com seu atual marido,
pois ele já era um homem feito, e seus amigos eram ainda muito novos. Namorou uns
quatro anos com João Carlos, quando deram um tempo e ficaram separados por uma
semana. Daí eles voltaram para noivar e casar. Ele se formou em direito na FURB, em
Blumenau. No domingo, depois da formatura, fez uma surpresa para a Alessandra, na casa
dos tios dele. Subiu numa cadeira e pediu para ficar noivo da Alessandra. Foi uma surpresa
para todo o mundo, inclusive para ela. No final de 1998, ele veio me anunciar que queria
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casar na metade do ano seguinte. A princípio, eu fiquei chocada, pensei “n” coisas. Será
que vamos dar conta de fazer o enxoval, arrumar a casa, preparar a festa...
A minha filha Alessandra casou num sábado, no dia 31 de julho de 1999, às 11 h 30
min. Foi um dia mágico, apesar do inverno. Ela casou na Igreja Católica, na Gruta do
Molha. Amanheceu um dia 31 de julho maravilhoso. Daí veio um café da manhã de
surpresa para a Alessandra... Eu e minha amiga Araci, que também é como uma irmã,
fomos até o quarto dela. Uma cena engraçada foi a volta da Alessandra do cabeleireiro. Ela
foi sozinha para lá e já estava meio atrasada... Voltou dirigindo pela cidade com o véu na
cabeça....
Aquele dia foi muito especial. Um dia maravilhoso em todos os sentidos. Eram
luzes em todos os sentidos. Meu genro é uma pessoa muito especial. Ele, assim como a
Alessandra, também já não tem mais o pai. Eu é que fiquei meio nervosa para entrar na
igreja, pois não conseguia dar um passo para entrar na igreja. Até que o Francisco me deu
um puxão e lá fui eu. A decoração da igreja estava linda com laranjas, limões e lírios cor
laranja, copos de leite e gérberas amarelas.
Eles estavam casados há dois anos quando a Alessandra me anunciou por telefone
que eu seria avó. Estava na casa de uns amigos, quando ela ligou para mim. Foi uma
grande surpresa e alegria. Quando essa criança nasceu, foi outra coisa mágica. Estávamos
lá no hospital, eu, o Francisco, a outra avó Célia, o Dr. Romeu e o pai João Carlos,
esperando o momento do nascimento do nenê. Quando apareceu aquele nenê, foi uma
grande alegria! O meu primeiro neto nasceu no dia 10 de outubro de 2001. O nome dele é
Arthur. O seu nascimento foi uma festa para toda a família. Ser avó foi um momento muito
especial na minha vida.
Eu procurei acompanhar a minha filha nesse período importante da sua vida.
Quando a Alessandra saiu do hospital, eu fiquei cinco dias na casa dela. Quando nasceram
minhas filhas e meu filho, minha mãe também me ajudou e acompanhou. Eu também
queria fazer isso pela minha filha. Esse fato causou ciúmes na minha filha mais nova, na
Larissa. Ela só tinha 8 anos. Eu disse a ela: “Larissa, um dia também quero fazer isso para
você. Você também vai precisar disso, quando ficar maior. A minha mãe fez isso para
mim, pude fazer pela Alessandra e também quero fazer isso por você. É muito importante a
gente ter companhia, ajuda e cuidado da mãe da gente, quando a gente dá à luz um filho ou
uma filha.”
270
O Arthur é um menino muito observador. Ele gosta de cantar. Tem uma boa
memória visual e auditiva. Ele gosta de contar histórias e piadas. Ele já vai para a Escola
de Educação Infantil. A minha filha está grávida novamente. O meu segundo neto (já sei
que é o Matheus!) deverá nascer no final desse ano de 2005. É a vida que se renova.
Foto 21
Natal em família. O primeiro Natal com meu neto Arthur em 2001.
Foto 22
Meu neto Arthur com 3 anos.
Meu pai faleceu no dia 17 de maio de 2004, com 82 anos. Foi muito difícil para
mim perdê-lo. Sempre me ajudou muito. Eu estava junto com meu pai no hospital, quando
ele faleceu. A morte dele foi tranqüila. Meu pai adormeceu e assim faleceu. Eu me
espelhava muito no meu pai. Hoje sou a diretora-presidenta do jornal Correio do Povo. O
nosso jornal circula desde 1919. Minha função é executiva, além de acumular o setor de
recursos humanos, por uma questão de estratégia. As relações humanas são bem
271
complicadas. É difícil quando é necessário despedir pessoas... fazer mudanças! Mas as
mudanças são necessárias.
O jornal Correio do Povo foi fundado em 10 de maio de 1919, por Arthur Muller e
Venâncio da Silva Porto, fazendo parte desde então da história de Jaraguá do Sul e região,
estando presente em todas as conquistas, sejam elas políticas, econômicas e principalmente
sociais. Atualiza-se dia após dia, é um jornal sério, responvel, ético, independente, que
procura se profissionalizar a cada ano; conseguiu sobreviveu a todos os tipos de
intempéries numa cidade economicamente forte. A cada dia esforçamo-nos para superar
novos desafios. Temos hoje quase 50 funcionários, dentre eles os meus filhos, que têm a
incumbência de levar esta história adiante. Queira Deus que eles enfrentem menos
dificuldades do que nós, eu, meu pai, meu marido, e que saibam conduzir da melhor forma
possível as suas vidas e a da empresa.
No dia 31 de agosto de 2004, Alessandra, juntamente com as outras pessoas da
família e do trabalho, preparou uma festa-surpresa pela passagem do meu 50º aniversário.
Fiquei muito feliz com a surpresa. Senti-me amada e querida pelas pessoas que me cercam.
Foto 23
Fiquei super feliz com a festa de aniversário surpresa.
Uma das coisas que mais me preocupa no momento é achar mais tempo para minha
filha Larissa. Achar mais tempo e mais paciência. Toda aquela paciência que a gente tem
quando nasce a criança a gente vai perdendo à medida que ela vai crescendo e
desenvolvendo a sua própria personalidade. Eu, como mãe, também tenho a minha
personalidade e meus afazeres. Larissa está entrando na adolescência. Então, às vezes, as
272
coisas não batem entre nós duas. Mas eu quero ser amiga da minha filha! Eu sou muita
amiga da Alessandra, do Leandro, do Darlon (que considero como filho), e podemos falar
sobre qualquer assunto. Quero que também seja assim com a Larissa! A Larissa sempre
viveu no meio dos adultos, a gente às vezes está conversando, e a menina já escutou e já
está participando da conversa. Lá em casa, tudo é muito aberto! Eu já escutei a Larissa
falando para outras pessoas: “Minha mãe não tem tempo para mim! Ela só trabalha!” Às
vezes, nós estamos juntas sentadas à mesma mesa. Estou concentrada, lendo alguma coisa,
ou fazendo alguma coisa do escritório. A Larissa está comigo fazendo os deveres da
escola. E aí ela me pergunta coisas daquilo que está estudando e quer que eu responda na
hora. A Larissa não quer tirar o tempo para ler e estudar. Ela quer a minha resposta sobre
aquele assunto, mas eu também não li e não sei responder naquele momento. É nesses
momentos que acontecem os nossos pegas. Sinto que a Larissa não se concentra. Ela tem
tempo para estudar, mas, quando pode, está na frente da televisão, porque nós não temos
computador em casa, só temos no escritório. O Francisco, o pai dela, não quer o
computador em casa, porque ele quer que a Larissa leia, faça os trabalhos, através de
livros; até pode pesquisar e usar o computador, mas não direto. Às vezes não sei o que está
correto. Os colegas do colégio têm computador em casa, e nós fizemos a opção de não o
termos. Não sei o que é melhor! Ela precisa ir até a biblioteca pública ou usar os
computadores do colégio. Esses são alguns dos dilemas com a minha filha Larissa! Eu
preciso achar mais equilíbrio na nossa relação!
Foto 24
Primeira comunhão da filha Larissa, que se realizou no
dia 30 de outubro de 2004, na Igreja Matriz São Sebastião.
273
Eu, atualmente, não tenho qualquer grupo fixo de que esteja participando. No
momento não estou em nada. Saio bastante por causa do trabalho, do jornal. Eu participei
durante alguns anos de um grupo de mulheres, “grupo de lanche”, que se encontrava para
conversar e lanchar. A gente se encontrava nas residências das mulheres todas as quartas-
feiras. A gente se esmerava em ter a casa bem arrumada. Fazíamos alguns doces para o
lanche. Havia algumas amigas que preparavam um aperitivo, até rifavam brindes.
Conversávamos sobre situações e problemas que envolviam a nossa vida com toda a
sinceridade. A gente tinha certeza de que não ia sair daquele espaço de conversa. O grupo
era muito unido, a gente falava sobre educação de filhos, problema de casamento, entre
outros.
Depois que eu fiquei viúva, no ano de 85, o grupo começou a se reunir de 15 em 15
dias. Para mim não foi muito legal, pois eu havia acabado de ficar viúva, e aquele grupo
fazia falta para mim. A vida mudou para muitas mulheres que participavam desse grupo.
Algumas tinham filhos pequenos e achavam que era muito corrido se encontrar todas as
quartas-feiras; depois dos 40, quando os filhos estavam grandes, elas iniciaram a faculdade
e foram trabalhar. Este não era o meu caso, porque eu comecei a trabalhar com 15 anos e
fiz logo a faculdade. Quando os encontros iniciavam às 15 horas, eu sempre chegava
atrasada por causa do meu trabalho. Elas sempre pegavam no meu pé... “Por que você não
tira o tempo e chega no horário?” Eu não conseguia chegar no horário, pois meu dia era
bem atribulado.
Depois, o grupo começou a se reunir das 17 h 30 min até as 19 h 30 min ou 20 h.
Os filhos já estavam crescidos. O grupo diminuiu; no início eram 12, depois estávamos
entre cinco e seis mulheres. No começo se fazia tudo em casa; quando as coisas mudaram,
as mulheres estudando e trabalhando, os encontros aconteciam raramente nas casas e, sim,
em lugares que serviam café, na Grafipel, na Melânia. As participantes também
começaram a diminuir. Muitas vezes, entrava muda e saia calada... Os assuntos de
discussão também começaram a mudar e se tornar bastante fúteis, como viagens, cirurgias
plásticas, lipoaspirações... Elas eram lindas e maravilhosas, mas estavam fazendo cirurgias
plásticas. Os assuntos não me acrescentavam mais nada. Eu tinha um outro sentido das
coisas. Eu acabei me desligando do grupo. Achei que este grupo não tinha mais nada a ver
comigo.
274
Eu tenho uma grande amiga, que também é uma irmã; o nome dela é Araci. Eu a
conheci através do meu concunhado... Tornamo-nos muito amigas. Ela veio de Presidente
Getúlio para Jaraguá do Sul e não tinha onde morar, acabou morando na minha casa.
Trabalhou um tempo comigo no escritório de contabilidade. Hoje ela é minha comadre, me
ajudou muito quando o Leandro nasceu. É daquelas pessoas com as quais dá para contar
em qualquer momento, de dia e de noite. Atualmente, mora do outro lado da cidade. É uma
pessoa bem especial! Ela morou várias vezes na minha casa. Atualmente, mora no mesmo
terreno dos pais. Seus pais acabaram vindo residir em Jaraguá do Sul. Ela é solteira,
independente... Ela é muito inteligente, lê muito! Qualquer coisa a gente está se falando;
quando podemos; vamos juntas ao teatro. Ela é muito chegada! Eu a conheci faz muito
tempo. Alguns anos antes do Leandro nascer. O Leandro tem 23 anos... Então, faz bastante
tempo! Ela é madrinha de batismo da Larissa e é muito prosa por isso; é a sua única
afilhada.
Para mim, ser mulher é ser feminina, buscando sempre a construção de boas
relações na família, com minhas filhas e meus filhos, com meu marido, administrando com
ética e responsabilidade a empresa e a casa.
584
Quando preciso buscar um refúgio para me
fortalecer, eu busco um templo, uma amiga ou a natureza verde e florida, assim me
reencontro e me reequilibro. A oração que tem sempre me acompanhado e me dado força é
o Pai-Nosso e a palavra da Bíblia, o Salmo 23.1: “O Senhor é meu Pastor, nada me
faltará.”
584
Em anexo, encontra-se uma entrevista realizada pelo jornal Correio do Povo de Jaraguá do Sul, em março
de 2004, retratando a história de vida de Yvonne.
275
VII – EX-ALUNAS DE ESCOLA COMUNITÁRIA LUTERANA:
RECUPERANDO ESPAÇOS EMANCIPATÓRIOS
Mulher ao cair da tarde
Ó Deus,
não me castigue se falo
minha vida foi tão bonita!
Somos humanos
585
,
nossos verbos têm tempos,
não são como o Vosso,
eterno.
586
Ex-alunas de escola comunitária luterana narram suas histórias de vida. Segundo
Brun: “Histórias de vida é vida que se torna história. É experiência coletivizada. (...) É
memória que ecoa de uma geração para outra”.
587
Memórias que falam das experiências de
vida. Experiências que falam de dores e de prazeres, de alegria e de tristeza, de espaços de
emancipação humana.
É através da narrativa, do falar sobre a experiência, das memórias que nos
defrontamos com a necessidade de renomear as experiências. É necessário tirar o véu do
silêncio e da invisibilidade para reler a experiência educacional vivenciada na escola e na
igreja, descobrindo espaços, ou não, de emancipação na história das mulheres narradoras.
Entendemos que os processos de emancipação ocorrem no cotidiano histórico da existência
sempre de forma coletiva.
585
Eu acrescento: somos humanas.
586
Adélia PRADO, Oráculos de maio, p. 61.
587
Marli BRUN, Redoma de vidro, p. 48.
276
As histórias de vida das narradoras estão localizadas em tempos históricos e
espaços distintos. Anneliese nasceu em 1918 (fim da Primeira Guerra Mundial), em
Schwakopmund, África do Sudoeste
588
, colônia da Alemanha. Em 1924 imigrou para o
Brasil. Ruth, Renita e Yvonne nasceram no Brasil, entre as décadas de 20 e 50 do século
passado. Desde a chegada de Anneliese ao Brasil em 1924 e o nascimento das outras
narradoras até o momento presente (2005), o Brasil passou por profundas transformações
políticas, sociais, culturais, econômicas, religiosas e eclesiásticas. Busca-se recuperar
espaços de emancipação na história de vida das quatro narradoras, tendo presente que a
história pessoal está interligada com a história coletiva. Segundo Klein, a “pequena história
pessoal é parte de uma grande história. Este é um dos principais caminhos por meio dos
quais uma pessoa elabora e assimila significados, constrói sua identidade e descobre quem
ela é”.
589
Para Halbwachs, como bem lembra Bosi, “cada memória individual é um ponto
de vista sobre a memória coletiva”.
590
Isto lembra a afirmação de Marx de que a
emancipação humana transcende a emancipação política.
591
É a perspectiva metodológica
etnográfica, feminista e de gênero que nos conduz no processo reflexivo de analisar as
histórias de vida de Anneliese, Ruth, Renita e Yvonne, recuperando os processos de
emancipação que vivenciaram e vivenciam.
O processo, construído durante o tempo em que se deram as narrativas, foi marcado
pela alteridade, face a face, relação de respeito entre narradoras e pesquisadora. Não um
tempo marcado pelo kronos (tempo), mas um tempo marcado pela memória afetiva,
familiar, educacional, eclesial, entre outras. Um tempo de olhar para trás, para o passado e
se descobrir como humana, sujeita da história, ser pensante, reflexiva, ativa, lutadora,
sensível, solidária. Foi um tempo de revisão da vida, de recuperar a auto-estima, tempo de
olhar para o passado e para o futuro, a partir da narrativa da história de vida; por isso, o
tempo no qual se construíram as narrativas foi tempo de novidade – kairós. O kairós não
está ligado ao tempo cronológico, mas à descoberta de espaços de emancipação vividos,
buscados, conquistados, não conquistados ou em projeto pelas mulheres que narram suas
histórias de vida. Essa emancipação passa pelos processos de dizer a sua própria palavra,
de libertar-se da tutela dos outros, renomeando as experiências, a partir das memórias. Para
588
A cidade Swakopmund é uma cidade à beira do Oceano Atlântico, fazendo parte, atualmente, do país da
Namíbia, que era chamado de África do Sudoeste. Para obter mais informações consulte, por exemplo, o site
da internet: http://www.catolicanet.com.br/gf/conteudo.asp?pagina=1083
589
Remí KLEIN, A narração de histórias bíblicas na perspectiva da criança, p. 23.
590
Eclea BOSI, Memória e sociedade, p. 413.
591
Karl MARX, A questão judaica, p. 63.
277
Benjamin, tanto o narrador como a narradora “alinha-se entre os educadores e os
sábios”.
592
As mulheres que narram suas histórias são, educadoras e sábias, trazendo para a
reflexão teórico-prática as suas experiências de vida que estabelecem a inter-relação entre a
religião e a educação no cotidiano histórico, onde se concretiza a emancipação humana.
Para melhor entender os espaços de emancipação construídos ou não na história de
vida das ex-alunas de escola comunitária luterana, inicio refletindo sobre o processo de
imigração, o espaço da casa e do pátio na infância, a educação cristã familiar, o trabalho
educacional da igreja, o espaço da escola comunitária luterana na vida de Anneliese e Ruth
até 1938, o processo de nacionalização do ensino, o espaço da escola católica na vida de
Ruth, o espaço da escola comunitária luterana na vida de Renita e Yvonne, a continuidade
dos estudos de Renita e Yvonne na escola comunitária católica, a formação e atuação
profissional, o casamento, a leitura da Bíblia, a imagem de Deus e a participação em
grupos comunitários até o ano de 2005. Anneliese, Ruth, Yvonne e Renita são quatro
mulheres, cada uma com sua história de vida única e irrepetível. Assim, à poesia de Adélia
Prado: “A vida foi bela”, acrescentamos a idéia de inacabamento, de Paulo Freire.
593
7.1 Saída da Alemanha e a chegada ao Brasil
Anneliese veio para o Brasil como criança-imigrante. O motivo que provocou o seu
deslocamento e o da sua família da Alemanha para o Brasil era a possibilidade de se
tornarem proprietários de um pedaço de terra. A sua família não tinha terras. É interessante
como a família toma decisão de emigrar para o Brasil: através de um jogo com uma
moeda: cara ou coroa entre Brasil e África. Venceu o Brasil. Por que imigrar, mudar de
continente, mudar de vida? Dreher nos diz que uma vasta parte da população da Europa
estava submetida à miséria. Essa situação provocou uma grande expulsão populacional.
Segundo o autor, os números falam dessa realidade que foi provocada por razões
econômicas e sociais:
De 1800 a 1845 saíram da Europa 1,5 milhões de pessoas. Já entre 1845 e 1875, foram 9,5
milhões. A partir de 1880, essas cifras passam a ser de cerca de 800 mil pessoas ao ano,
explodindo desde 1900, quando 1,4 milhões deixaram anualmente o continente europeu. O
êxodo rural, a industrialização, reformas agrárias fracassadas, o crescimento desenfreado
dos centros urbanos, o colapso da agricultura em conseqüência da importação dos produtos
produzidos a custos bem inferiores na Austrália, na Argentina e nos Estados Unidos da
América do Norte – tudo isso levou o europeu a procurar fazer a vida em outros
592
Walter BENJAMIN, O narrador, p. 80.
593
Paulo FREIRE, Pedagogia da Autonomia, p. 55. “Onde há vida, há inacabamento.”
278
continentes. O sonho por um pedaço de terra nas Américas é a mola propulsora que levou
milhões à beira da miséria absoluta a emigrarem.
594
A família de Anneliese se somou a estes milhões de famintos e sem-terras que
foram “expulsos” de terras européias. Dreher afirma que “as chagas do corpo social, as
crises na economia fazem com que o bóia-fria europeu, o operário, o pequeno agricultor, o
artesão e o servo que adquiriu liberdade migrem ao menor aceno”.
595
O processo de
emigração acena para a possibilidade de uma vida melhor. No Brasil também havia
incentivo para a imigração européia. Segundo Dreher, os principais motivos eram:
segurança e integridade nacionais, a conquista de terras habitadas por indígenas,
substituição da mão-de-obra escrava por mão-de-obra livre, branqueamento da raça,
construção e conservação de estradas, cuidado das fronteiras e o estabelecimento do
regime da pequena propriedade, onde o agricultor branco trabalhava com sua família; e nas
grandes fazendas estabeleceu-se o sistema de parceria, nas quais o imigrante branco
substituía a mão-de-obra escrava.
596
O pai de Anneliese veio para Jaraguá do Sul, no Estado de Santa Catarina, no início
de 1924 para comprar terras. Ela, sua irmã e sua mãe chegaram em outubro do mesmo ano.
No passaporte consta que a Beruf (profissão) do pai é Landwirt (agricultor) e da mãe
Landwirtschaftsfrau (agricultora).
597
Anneliese retrata em sua memória e seu corpo a história do povo europeu
imigrante.
598
Ela tem uma experiência dupla de imigração. Quando ela nasceu, em 17 de
março de 1918, no fim da Primeira Guerra Mundial, seus pais, alemães, trabalhavam na
África do Sudoeste, que neste tempo era uma colônia alemã.
599
Depois da Primeira Guerra
Mundial, esta parte da África passou para a dominação inglesa. Eles retornaram para a
Alemanha em 1921, pois havia a possibilidade de herdarem as terras da avó materna,
594
Martin DREHER, O povo luterano, p. 49.
595
Martin DREHER, O povo luterano, p. 49.
596
Consulte as obras de: Martin DREHER, O povo luterano, p. 50-51. Martin DREHER, Igreja e
germanidade, p. 21-38.
597
Confira Documentos 2, 3, 4 na História de Vida de Anneliese, p. 134 – 135.
598
Marlene de FÁVERI, Memórias de uma (outra) guerra, p. 39: “No contexto da grande imigração européia
para as Américas, perto de 5 milhões de imigrantes europeus vieram para o Brasil e em maior parcela para os
Estados do sul, isso até a década de 1940. A maioria veio através de políticas imigratórias em função da
agricultura, porém também estabeleceram-se nas cidades. No sul, colônias alemãs, italianas, ucranianas,
polonesas, ou mistas, ficaram em boa parte afastadas (mas não totalmente isoladas) do convívio direto com a
sociedade nacional até os anos de 1930.”
599
Veja o documento nº 1. É um cartão postal que lembra o local de nascimento de Anneliese na África do
Sudoeste, atual Namíbia, na História de Vida de Anneliese, p. 133.
279
devido ao casamento de uma tia. Como o casamento não deu certo, esta tia ficou morando
com a avó. As terras eram poucas, não havia como todos sobreviverem naquele pedaço de
chão. Era necessário buscar uma outra saída de trabalho e de vida. Para onde ir?
De lá emigraram novamente, desta vez para o Brasil, Jaraguá do Sul, Santa
Catarina, em 1924, onde vieram a ser agricultores e proprietários de um pedaço de terra.
“Nós viajamos de navio. Saímos do porto de Hamburgo e chegamos no porto de São
Francisco do Sul. Nós dormíamos num beliche. Minha mãe dormia na cama de baixo e eu e
minha irmã dormíamos juntas na cama de cima. Um dia alguém disse: ‘Estamos passando
na linha do Equador.’ De São Francisco do Sul até Jaraguá do Sul fomos de trem.”
600
Anneliese lembra que o pai, quando foi buscá-las na parada do Hotel Central, em
Jaraguá do Sul, estava usando um chapéu verde. A lembrança do chapéu verde mostra-se
como um símbolo de esperança na nova terra, a partir da “reunião de contrários”
601
: saída
da África e da Alemanha e chegada ao Brasil. Quando chega à nova morada, lembra que
“para sinalizar o portão de entrada da propriedade só tinha uma vara levantada que era
amparada por dois postes. No mais era tudo aberto, sem cercas.” Annelise conta que para
sua mãe o processo de imigração foi bastante difícil. Ela havia trabalhado no “Hansa
Hotel” em Swakopmund, África do Sudoeste
602
, como cozinheira. Emigrou para o Brasil
como agricultora. Esse processo foi repleto de renúncias. Por isso, Anneliese se lembra da
mãe como uma mulher voltada para o interior da casa. Ela identifica-se mais com seu pai e
com o trabalho da roça, fora da casa, num espaço aberto.
As outras três narradoras já nasceram no Brasil. A experiência da imigração, no
entanto, perpassa a história familiar. O avô materno de Ruth é imigrante, veio com 4 anos
para o Brasil. Ruth nasceu no dia 12 de julho de 1926 em Jaraguá do Sul e sempre viveu
nesta região. Renita nasceu no dia 22 de setembro de 1954. Ela relatou que a terra onde
seus pais vivem e trabalham é herança dos seus bisavós. Os bisavós de Renita vieram da
Pomerânia Oriental, região que na época integrava a Prússia. Yvonne nasceu no dia 31 de
agosto de 1954. Em sua narrativa, ela faz menção especialmente de seu pai, que veio de
Curitiba (migração interestadual). Renita e Yvonne também nasceram em Jaraguá do Sul e
aqui construíram a sua vida. Anneliese, quando chegou ao Brasil com a sua família em
1924, trouxe junto consigo a prática da fé da Igreja Luterana. Com 1 mês de idade, ela foi
600
Os relatos das narradoras serão colocados entre aspas no decorrer do texto.
601
Gilbert DURAND, A imaginação simbólica, p. 61.
602
Consultando o site http://www.hollywood.com.br/namibia/viagem1.htm, verifiquei que o Hansa Hotel
continua em pleno funcionamento.
280
batizada na Igreja Luterana, na África, onde residia na época. É significativa a observação
de Dreher de que a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil tem como
característica
uma pluralidade de formas de expressão da piedade. (...) A instalação do luteranismo no
Brasil não ocorreu em virtude de atividades de sociedades missionárias luteranas, mas
como conseqüência das necessidades do ser humano migrante. Em sua maioria, os
luteranos brasileiros descendem de imigrantes, principalmente alemães (...).
603
Com isso percebe-se a heterogeneidade das pessoas que vieram a formar esta região
de Santa Catarina, bem como a Igreja Luterana e a Escola Comunitária. Continuo a
reflexão apresentando algumas lembranças do tempo da infância para melhor entender a
trajetória de vida das narradoras.
7.2 Lembranças do tempo da infância
No Brasil, a menina Anneliese e sua família trabalhavam como agricultores, tendo
como base a agricultura familiar. Isto significa que todos os membros da família
trabalhavam juntos, sendo considerados importantes para o desenvolvimento da
propriedade. Anneliese lembra que gostava mesmo era de ir junto com o pai para a roça
trabalhar. O trabalho da casa era considerado por ela como “muito rotineiro”. “O trabalho
da roça era mais livre.” Pergunto: o trabalho da casa era tão valorizado quanto o trabalho
da roça? O que era considerado trabalho produtivo: só o da roça ou o da casa também?
604
A família, segundo Wolff, “não ocupava, na maioria das vezes, somente o espaço
da casa, mas também da propriedade agrícola, artesanal, comercial ou industrial a ela
pertencente.” A autora chama este espaço de “unidade doméstica”.
605
A iniciação das
crianças no trabalho da unidade doméstica acontecia de forma interativa com adultos:
“Ainda pequenas, as crianças ajudavam trazendo coisas, procurando ovos no galinheiro,
alimentando os animais, ajudando suas mães nos trabalhos variados. Era desta forma que
603
Martin DREHER, O povo luterano, p. 51.
604
Marlene RIBEIRO e Alceu Ravanello FERRARO, Perspectivas para a produção nos assentamentos de
Piratini, p. 86. Numa pesquisa desenvolvida nos assentamentos de Piratini o pesquisador e a pesquisadora
constataram que “as questões de gênero começam a ser discutidas e enfrentadas no MST, mas elas têm um
longo caminho a percorrer. (...) Parece aos agricultores, e isso é marcado por concepções presentes na
sociologia clássica, que o trabalho da dona de casa não é produtivo, não sendo, por isso, muitas vezes
contabilizado no cômputo das horas trabalhadas pelos cooperativados.” Portanto, a questão do trabalho
doméstico ainda é um tema em discussão tanto entre trabalhadores rurais como entre trabalhadores urbanos.
Veja o texto de Felicia Silva PICANÇO, Amélia e a mulher de verdade: representações dos papéis da mulher
e do homem em relação ao trabalho e à vida familiar, p. 151ss.
605
Cristina Scheibe WOLFF, Como se forma uma “boa dona de casa”, p. 164.
281
aprendiam”.
606
Anneliese não fala desse tipo de trabalho em sua narrativa. Ela só diz que o
trabalho da casa era muito rotineiro.
Da mesma forma Renita, como filha de pequenos agricultores, lembra que
trabalhava desde criança em casa e na roça:
“Meus pais são agricultores. Eles plantavam milho, banana, arroz e verduras... também
criavam galinhas, porcos, vacas. Desde pequenas a gente precisava ajudar os pais na
lavoura. Eles precisavam da mão-de-obra das filhas e do filho. A nossa vida era bastante
dura. Lembro que quando chovia a gente precisava cortar o “mata-pasto”. A gente também
fazia mutirão com os vizinhos, quando era o tempo da colheita, e contávamos muitas
histórias.”
A vida é lembrada como bastante dura. Renita apresenta um aspecto importante da
relação entre os vizinhos, que era a prática do mutirão no tempo da colheita. Uma família
ajudava a outra família, de acordo com as necessidades. O mutirão, como prática social,
mostra que, além de trabalhar, as famílias também contavam histórias, fortalecendo os
laços de amizade, de trabalho e de solidariedade mútua. Outro aspecto importante que
transparece no relato de Renita é que, no cotidiano, o lúdico se misturava com o trabalho.
Segundo Renita:
“O trabalho e o lazer estavam misturados, isto é, no trabalho a gente também fazia
brincadeiras. Quando a gente levava o milho para o rancho, tínhamos que jogá-lo no sótão.
A gente brincava, deixando cair uma espiga ou outra para os porcos e corríamos atrás
deles. Era bem divertido. Nosso pai entrava na brincadeira também.”
Na narração de Renita, é possível perceber que todas as pessoas da família tinham
as suas tarefas: “Além de ajudar na roça, também ajudávamos no trabalho da casa, lavar a
louça, tratar os animais. Quando as irmãs gêmeas Gisela e Roseli eram pequenas, a minha
responsabilidade era cuidar da Gisela.”
Ruth e Yvonne residiam na cidade. Elas se enquadravam dentro das famílias de
classe média, como trabalhadores na área de serviços qualificados, naquele momento
histórico. O pai de Ruth, quando ela era criança, tinha um táxi. Mais tarde foi motorista da
Viação Catarinense. O pai de Yvonne foi um dos primeiros contadores de Jaraguá do Sul.
As mães de Ruth e Yvonne trabalhavam em casa, mas tinham empregadas domésticas.
Ruth e Yvonne, no entanto, tinham como tarefas cuidar de seu irmão e de sua irmã menor,
respectivamente.
606
Cristina Scheibe WOLFF, Como se forma uma “boa dona de casa”, p. 164.
282
Constato que o trabalho
607
fazia parte da vida das narradoras desde crianças. Em
alguns momentos, as narradoras não falam de trabalho; dizem apenas que ajudavam na
roça e em casa e que cuidavam dos irmãos e das irmãs menores. Pergunto: será que o
trabalho da criança e também o da mulher não têm o mesmo valor que o trabalho dos pais
ou do marido, sendo, por isso, considerado auxílio, ajuda e cuidado? É possível notar uma
hierarquia no valor que se dá ao trabalho, a qual transparece nas narrativas. Segundo Renk,
foi com o movimento das mulheres agricultoras que se iniciou todo um processo de
reflexão sobre o trabalho produtivo da mulher na agricultura. A autora afirma:
Por parte das mulheres, o primeiro rebatimento no interior da família consistiu na
reivindicação do poder de decisão, privilégio daqueles que “trabalham”. O esforço
feminino nas lides agrícolas passa a ser enunciado como “trabalho” e não como “ajuda”.
Na esfera moral, o trabalho feminino visto e avaliado como “ajuda” pressupunha posições
hierarquizadas e de subordinação.
608
É possível verificar que foi através da organização social das mulheres agricultoras
que se passou a ver o trabalho da mulher na roça como trabalho e não como ajuda. O
processo da valorização do trabalho da mulher também a coloca em pé de igualdade com o
homem, buscando a superação das hierarquias e da subordinação, sendo este um processo
em curso na vida cotidiana de homens e mulheres.
7.2.1 Espaço da casa e do pátio
O espaço da casa da infância não foi narrado em seus detalhes físicos ou
arquitetônicos. Anneliese reside há quase 50 anos na mesma casa. Nesta casa aconteceram
as entrevistas, geralmente na sala de refeições que fica ao lado da cozinha, que tamm é o
seu espaço de leitura e de fazer o seu tricô artístico.
Ruth, em sua narrativa, apresentou uma fotografia da casa da infância, onde se
percebe que a arquitetura lembra uma casa em estilo enxaimel, com uma grande área,
cercada de flores e árvores.
609
Renita me levou até a casa dos pais para conhecer a sua casa da infância. Andei
com ela pelas terras onde trabalhou, vi e fotografei o rancho no caminho da roça
610
, que era
607
Ademir Valdir dos SANTOS, Grandeza pelo trabalho: formação de trabalhadores e cultura do trabalho
em Jaraguá do Sul, 2003 (tese de doutorado). Esta tese de doutorado em Educação apresenta uma pesquisa
com trabalhadores de Jaraguá do Sul, evidenciando a importância da relação entre a imigração alemã e a
concepção de trabalho. Consulto o site: http://www.ufscar.br/~ppge/fund/resumos/fundamentos/2003dout-
fund_santos.pdf.
608
Arlene RENK, Mulheres camponesas, p. 229.
609
Veja fotos 2 e 3 na Historia de Vida de Ruth, p. 176.
283
o espaço de descanso e de recompor as forças, comer o Frühstück (merenda), como se
fosse possível voltar no tempo e mudar algumas coisas. A família de Renita estava
vendendo as terras para a indústria de motores WEG. A roça cede lugar para a indústria.
Este processo de vender as terras estava sendo muito doloroso
para Renita. Essas terras
lembram a história de três gerações da família de Renita: bisavós, avós e pais.
611
As entrevistas com Yvonne foram realizadas na casa da sua infância, onde
atualmente funciona o jornal Correio do Povo de Jaraguá do Sul. O escritório onde ela
trabalha era o seu quarto de infância. Da casa, Yvonne se lembrou da limpeza: “Nos
domingos, eu precisava passar o mop, que era uma vassoura de fios para tirar o pó do
chão.”
A disposição interna da casa de infância não foi descrita em detalhes por nenhuma
das narradoras. A casa apareceu, nas narrativas, como um espaço de aconchego, onde se
firmaram as relações familiares. Foi nesse espaço que as narradoras aprenderam a conviver
e a trabalhar, foram cuidadas, protegidas, aprenderam a orar, a ler a Bíblia e conheceram
regras de boa convivência. O momento das refeições era sagrado. As famílias tinham o
hábito cotidiano de orar antes das refeições. Na sala de refeições onde Anneliese reside
atualmente há um quadro bordado que diz Unser tägliches Brot gib uns heute (O pão nosso
de cada dia dá-nos hoje), lembrando a oração do Pai-Nosso, que ela orava e ora todas as
noites antes de dormir.
612
Observei uma prática cotidiana de espiritualidade na vida das narradoras desde a
infância. Yvonne não faz menção, em sua narrativa, da prática de orar antes das refeições.
Suspeito que, à medida que o processo de urbanização e industrialização vai se firmando,
também passem a se perder práticas de espiritualidade, ligadas à vivência da família. Orar
em conjunto no momento das refeições significa ter a família reunida.
610
Confira foto 3 na História de Vida de Renita, p. 213
611
Ecléa BOSI, Memória e sociedade, p. 424: “Na Roma antiga a terra pertencia para sempre à família que a
cultivava, que nela enterrava seus mortos e erigia o altar dos deuses lares. Terra, família e religião
comungavam do mesmo espírito. Na terra se cultivavam o alimento e a memória dos vivos e dos mortos. (...)
Se cada família não tem mais, como na Roma antiga, seus cantos, preces, seu próprio culto, não se pode
negar que tenha um espírito seu, uma maneira de ser, lembranças e segredos que não passam das paredes
domésticas. E tem suas figuras exemplares, modelos, cuja fisionomia se procura reconhecer nos mais jovens;
avós lendários ou vindos de país remoto que imprimem a todos os seus um traço distintivo. (...) A história da
família é fascinante para a criança.”
612
Segundo Martinho LUTERO, Como se deve orar, para o mestre Pedro Barbeiro, p. 134. Lutero
recomenda: “por isso, é bom que, de manhã cedo, se faça da oração a primeira atividade, e de noite, a
última.”
284
Além da casa, as lembranças das narradoras apontam para um espaço que parece
ser mais importante em suas vidas: Hof (pátio), mostrando que elas não estavam
confinadas ao espaço da casa (espaço fechado). Mesmo que o Hof seja cercado, ali há uma
convivência com a natureza. Segundo Rambo, na cultura teuto-brasileira o pátio abarcava
um grande espaço físico, do qual das Haus (a casa de moradia) era parte integrante:
Os componentes físicos do Hof compreendiam a casa de moradia (das Haus), os depósitos,
os estábulos e as demais benfeitorias. Não podia faltar um jardim com flores em frente à
casa. Entre as construções cresciam árvores de sombra e árvores frutíferas. Soltos andavam
galinhas, patos, gansos e obviamente cães e gatos. (...) A área, não raro, ultrapassava vários
mil metros quadrados. Todo esse complexo formava um pequeno mundo imediato ao
agricultor. A criança, ao sair do recinto quase sagrado da casa, entrava nesse espaço ainda
perfeitamente delimitado e circunscrito. Até os seis ou sete anos esse seria basicamente o
seu mundo. Nele vivenciaria as alegrias e as realizações, as tristezas e as frustrações da
infância. Esse minúsculo universo lhe proporcionaria o contato com plantas e animais.
Nesse local descobriria as primeiras incógnitas oferecidas pela natureza, no qual passaria
os dias brincando, divertindo-se e tentando decifrar os mistérios da vida e da natureza.
613
Havia uma integração entre os componentes do Hof, que compreendiam a casa, os
depósitos, os estábulos, o jardim de flores, a horta, o pomar e a roça, formando a unidade
doméstica. Desde pequena, a criança convivia com a natureza e os animais domésticos.
Anneliese e Renita, como filhas de agricultores, desde pequenas iam junto trabalhar na
roça. Renita lembra:
“Trabalhando na roça, a gente também ia construindo os nossos sonhos... Sonhávamos em
um dia não mais precisar trabalhar na roça. Os trabalhos em casa e na roça eram pesados, e
eram vistos por nós como castigo, mas hoje, olhando para trás, vejo que foi muito
importante e saudável para minha vida.”
Como é possível perceber, Renita avalia, a partir do seu relato, o trabalho na roça
de forma diferente. Se, quando era criança e adolescente, entendia esse trabalho como
castigo, hoje ela olha para trás e o avalia como um elemento importante e saudável em sua
vida.
Renita apresenta em sua narrativa uma dimensão maior das relações familiares:
estas envolviam não somente as irmãs, irmão, pai, mãe, mas também os primos, os tios, a
avó e o avô paterno:
“Eu passava os domingos com os primos na casa do tio Emilio e da tia Nilda. Não
existiam cercas. Era o nosso parque de diversão. A gente brincava muito no pátio de pegar,
esconder, pega-ladrão. Lá também morava o meu avô e a minha avó paterna, e ela não
podia mais caminhar. A gente sentava na cama onde ela estava e olhava junto as revistas
613
Arthur Blasio RAMBO, O teuto-brasileiro e sua identidade, p. 72-73.
285
alemãs: Bunte, Stern, Revue. A avó explicava em alemão as reportagens, as entrevistas com
os artistas e as personalidades da época, anos 60.”
Para Renita, o Hof era o parque de diversão no seu tempo de infância. As
brincadeiras relatadas lembram movimento, sendo atividades lúdicas coletivas. Anneliese
lembra que “brincar só era permitido nos domingos à tarde. Eu gostava de brincar de
bonecas. Fazíamos casinha com folhas de árvore no pátio.”
Ruth e Yvonne residiam na Stadtplatz (cidade). A casa de infância de Ruth e de
Yvonne também era cercada por um jardim, uma horta e um pomar, sendo esta uma
característica da arquitetura das casas teuto-brasileiras. Elas se recordam das belas árvores
que havia no pátio e de como esse espaço era gostoso para brincar com as amigas. Yvonne
lembra que brincou muito na infância:
“Quando as minhas amigas vinham me visitar, a gente brincava no jardim da nossa casa.
No jardim acontecia o nosso mundo! Eu adorava subir em árvores. (...) No pomar havia
uma grande variedade de árvores frutíferas: pitangueiras, ameixeiras, laranjeiras, figueiras,
jabuticabeiras, ... cana-de-açúcar... Também havia pinheiros (árvores que eram plantadas e
cortadas para o Natal). A gente também jogava peca (bolinha de gude)... brincava de
esconde-esconde, de pega-pega, peteca, e outras brincadeiras que aconteciam ao ar livre.”
As lembranças de Yvonne sobre a infância se misturam com as mudanças da
cidade: “Sempre morei no centro da cidade de Jaraguá do Sul. A cidade mudou muito.
Quando eu nasci, poucas ruas eram calçadas. As estradas eram todas com macadame ou
saibro.”
Essa experiência de conviver na infância num espaço aberto, que incluía flores,
árvores, animais, criatividade na organização das brincadeiras, jogos e brincadeiras
coletivas, demonstra que as narradoras apresentam, em suas experiências e memórias, a
importância do Hof como um espaço educativo, de aprendizagem coletiva, de fazer
perguntas, de dar e receber respostas. É nesse espaço que as narradoras vão construindo os
seus processos de liberdade e de responsabilidade. Parece ser o espaço das crianças. O Hof
transparece nas narrativas das histórias de vida como um dos primeiros espaços onde
iniciaram as experiências de sociabilidade e de organização entre as próprias crianças. As
brincadeiras eram organizadas por elas mesmas. Suspeito que o pátio se apresente como o
primeiro espaço de emancipação das narradoras em relação à família. É nesse espaço que
elas viviam ao mesmo tempo liberdade e responsabilidade: “Meu pai me ensinou a subir
em árvores”, lembra Ruth. Ela também diz: “Acho que meu dom de liderança começou a
286
ser desenvolvido nesse tempo. Um dia meu pai disse para minha mãe: ‘Ruth sempre tem a
boca maior que todo o mundo’.”
Esse processo de se lembrar do pátio, espaço aberto da casa da infância, fortalece o
enraizamento na comunidade local. Retomo, nesse sentido, a seguinte reflexão de Freire:
Antes de tornar-me um cidadão do mundo, fui e sou um cidadão do Recife, a que cheguei a
partir de meu quintal, no bairro da Casa Amarela. Quanto mais enraizado na minha
localidade, tanto mais possibilidades tenho de me espraiar, me mundializar. Ninguém se
torna local a partir do universal.
614
É no cotidiano da convivência, no espaço da casa e do pátio, que as narradoras
foram se socializando, através do brincar. O pátio era também um espaço onde a criança
era disciplinada quando, em suas relações, não cumpria as normas morais vigentes. Ruth se
lembra de um episódio que aconteceu com seu irmão, mas que serviu de lição também para
ela:
“Nós tínhamos vizinhos muito pobres. Um dia meu irmão trouxe um caminhãozinho de
madeira que pertencia a uma das crianças desse vizinho para casa. Era um brinquedo
simples que tinha sido feito pelo pai do amigo do meu irmão. Meu irmão achou bonito e
trouxe junto. A minha mãe fez ele devolver esse brinquedo. Ela pegou uma vara de pêssego
e foi batendo no meu irmão até a casa do vizinho, onde ele teve que devolver o brinquedo
para o seu amiguinho Rudi de 5 anos. Nunca esqueço desse acontecimento. Ele serviu de
lição!”
Ruth conclui esta narrativa falando da educação moral recebida pela mãe e pelo pai:
“Nossa mãe nos ensinou a sermos honestos e a respeitarmos as pessoas mais velhas. Meu
pai nunca falou um palavrão para nós. Ele nunca contou uma piada forte na nossa frente.”
7.2.2 Lembranças dos familiares: pai, mãe e outros
Na relação familiar
615
, a mãe e o pai ocupam um espaço importante, mas é
principalmente a mãe que ensina a orar e a ler a Bíblia. As lembranças do pai e da mãe se
fundem com as lembranças do cotidiano do trabalho e da vida. Badinter, em suas reflexões
em Um amor conquistado, onde fala sobre o mito do amor materno, diz que, a partir do
século XVIII, a concepção de uma “mãe educadora estava se implantando na Europa entre
a burguesia. A função de gerar, alimentar os filhos acrescenta-se à de educá-los, cada vez
614
Paulo FREIRE, À sombra desta mangueira, p. 24-25.
615
Ecléa BOSI, Memória e sociedade, p. 425. A autora lança uma pergunta e também a responde: “De onde
vem, ao grupo familiar, tal força de coesão? Em nenhum outro espaço social o lugar do indivíduo é tão
fortemente destinado. (...) Será sempre o filho da Antônia, o João do Pedro, o ‘meu Francisco’ para a mãe.
(...) Se, como dizem, a comunidade diferencia o indivíduo, nenhuma comunidade consegue como a família
valorizar tanto a diferença de pessoa a pessoa.”
287
se atribuía mais às mães e menos aos pais”.
616
A autora questiona o discurso moralizador
herdado dos grandes pensadores desse período histórico
617
, que colocavam a mulher como
menor.
618
Essa questão foi refletida no primeiro capítulo, onde se destaca que a educação
da mulher, segundo Rousseau, deve estar a serviço de Emílio. Também a teologia luterana
reduziu em parte o papel da mulher à maternidade, ao cuidado dos filhos e da casa.
619
Com
a teologia feminista da libertação e a análise de gênero, esta naturalização dos papéis vem
sendo questionada, criticada e transformada no cotidiano das relações.
Anneliese lembra que a “sua mãe era uma pessoa muito bondosa, mas eu era
mesmo puxa-saco do meu pai. Meu pai e eu, geralmente, íamos juntos trabalhar na roça.”
Ela se sentia amparada pelos pais, mesmo depois de casada. Fala da tristeza que sentiu
quando os pais faleceram: “Eu fiquei muito triste e me senti sozinha. Não podia mais
contar com os meus portos seguros; meu pai e minha mãe descansam junto de Deus.” A
única irmã, Hildegard, é lembrada como aquela que a ajudou e a acompanhou quando
nasceram os filhos e a filha.
Ruth se recorda do pai como daquele “que fazia brinquedos”. Ele também “cuidava
do jardim”. “Tenho lembranças boas do meu pai na minha infância. Ele sempre se
arrumava bem. O cabelo sempre estava bem penteado.” A mãe é lembrada como
professora que ensinou o alfabeto, os números, mas que também ensinou a orar e a ler a
Bíblia. Ela nunca esquece que apanhou do pai, porque não queria dormir junto no mesmo
quarto com a empregada negra. “Eu disse em alemão: Ich will nicht bei der Schwarzen
schlafen. (Eu não quero dormir com esta negra). A empregada entendia e falava alemão.
Então, meu pai me deu umas boas cintadas, aí eu chorei bastante e adormeci.” Ruth diz que
assim aprendeu a respeitar os diferentes tipos de pessoas. Ruth também gostava muito de
brincar com o irmão. Considera o seu único irmão uma “jóia rara”.
O avô materno está muito presente nas recordações de Ruth. “Ele era professor e
me ensinou a fazer muitos cálculos de cabeça, o que foi muito importante para a para a
616
Elizabeth BADINTER, Um amor conquistado, p. 237-331.
617
Veja as reflexões presentes no primeiro capítulo, no item 1.6 Autonomia racional: fazer uso da própria
palavra – A racionalidade era entendida como naturalmente masculina, enquanto que os belos sentimentos
como inatos à mulher.
618
O famoso texto de Kant sobre o que é o iluminismo – fazer uso da própria palavra, pensar por si mesmo –
se dirigia principalmente aos homens livres e proprietários. Veja o texto de Immanuel KANT, A paz perpétua
e outros opúsculos, p. 11-19, refletido no item 1.6, no primeiro capítulo.
619
Em relação a compreensão de Lutero sobre mulher e educação nos capítulos I e II, item 1.7 e item 2.5 da
presente tese.
288
minha vida profissional. (...) Meu avô também era um poeta. Ele fazia poesias que falavam
do Natal, da natureza
620
, do fim de ano.”
Renita lembra que os períodos de descanso da mãe eram quando ela estava
internada no hospital. “A mãe era mais brava. Meu pai sempre teve bom humor.” Renita se
lembra dos pais, compara-os com pais de outras meninas que conheceu e percebe a
diferença na educação que recebeu em casa:
“Meus pais sempre se empenharam para que todas as filhas e filho recebessem estudo.
Nossa vida sempre foi escola, igreja e família (que envolvia trabalho desde pequenas e o
lazer – visitas, festas e brincadeiras com os primos). Meus pais nos deram a liberdade para
estudar e buscar o nosso próprio caminho. Nós tivemos mais liberdade do que outras
moças/meninas que a gente conhecia. Muitas nem terminaram o primário, pois os pais não
davam tanta importância ao estudo. O trabalho da roça era o mais importante. A mulher
não precisava estudar, pois era educada para casar e agüentar.”
Ela ressalta a liberdade que as filhas e o filho receberam para estudar e buscar o seu
próprio caminho. O tratamento dado pelos pais às filhas e ao filhos foi igual. Já outros pais
não davam tanta importância ao estudo, considerando o trabalho da roça mais importante.
“A mulher não precisava estudar, pois era educada para casar e agüentar.” Renita se
lembra da grande família que a cercava. Ela tem cinco irmãs e um irmão. As terras eram do
bisavô e da bisavó, que as passaram para os avós paternos, os quais depois as dividiram
com os filhos. O pai de Renita morava próximo ao tio Emilio, mas cada um tinha a sua
parte da terra. Renita viveu numa grande família.
O avô paterno é lembrado como um guardião da língua alemã. O avô Emil “cuidava
muito para que a gente não esquecesse de falar o alemão. Na sua frente tínhamos que falar
em alemão, o que também acontecia com os nossos primos.” Ele também controlava as
saídas de casa:
“Ele descobriu que eu estava ‘paquerando’ um aluno interno do São Luiz. Ele não tinha
aspectos de ‘alemão’. Ele foi logo avisar a minha mãe, que me bateu e nos proibiu de sair
de casa aos domingos. Era muito forte essa questão de ‘alemão’ ter que casar com
‘alemão’. Eu me senti muito vigiada na adolescência.”
Yvonne lembra que apanhou muito da mãe, devido à irmã mais nova, de que ela
precisava cuidar: “Quando acontecia alguma coisa, ela ia se queixar para minha mãe e
sobrava para mim.” O pai de Yvonne era contador. Estava bastante fora da casa: “A nossa
educação (filhas e filho) ficou mais ao encargo de nossa mãe.”
620
Veja poesia do avô de Ruth na História de Vida de Ruth, p. 178
289
A avó materna é lembrada como uma mulher muito elegante. “Tenho boas
lembranças das minhas avós. Da avó paterna herdei a vontade de me arrumar e procurar
sempre estar de bem com a vida.” Da mãe e da avó materna também aprendeu a arte de
cozinhar. Ressalto que a mãe assumia um papel importante na relação familiar, já que era
ela a responsável pela educação dos filhos e filhas. Ela aparece como aquela que educa e
também disciplina. Nas memórias que colhi das narradoras também aparecem amigas,
vizinhas, primas com as quais as narradoras brincaram, com as quais compartilharam
momentos de alegria e junto às quais também encontraram apoio em momentos de
dificuldades. Estas pessoas também participaram dos momentos festivos. Yvonne se
recorda de uma grande amiga que é como uma irmã. Para ela, “é uma daquelas pessoas
com as quais dá para contar em qualquer momento, de dia e de noite”.
7.2.3 Festas: possibilidade da família e dos vizinhos se encontrarem
Uma das festas que envolvia cada uma das narradoras pessoalmente era o
aniversário. A data do aniversário é uma festa pessoal que faz parte da cultura das
narradoras. O dia do aniversário é sempre lembrado, seja com uma grande ou com uma
pequena festa. Yvonne tem cartões de lembrança até o seu quinto aniversário. Renita diz:
“Uma das coisas bonitas que lembro das festas de casa, da família, era o dia do aniversário
(...) Esta data era especial. Se a gente fazia uma ‘arte’ naquele dia, não era punido.”
É também na data do aniversário de Anneliese que iniciei a presente pesquisa. A
grande alegria de Annelise é quando chegam o Natal e o fim de ano, quando recebe a
visita de seus netos, netas, bisnetos e bisnetas. Ser visitada e lembrada nestas ocasiões é
sentir-se reconhecida como avó e bisavó.
Ruth se lembra de um aniversário da infância quando a mãe disse que não podia
fazer nada para comemorar o aniversário, pois estavam com problemas financeiros:
“Eu contei para as minhas amigas. Elas falaram: “Se tua mãe não pode fazer doces, não faz
mal. Ela pode fazer pão com lingüiça.” E assim foi comemorado o meu aniversário. A
gente se divertiu muito. Primeiro, a gente brincava bastante no jardim da casa e depois era
feito o café. O jardim e o pomar da nossa casa eram muito bonitos. Nós corríamos em volta
da casa (...) O quintal era grande.”
O aniversário era vivido como uma oportunidade das crianças se encontrarem e
brincarem juntas. As comidas não eram o mais importante. O comemorar, o brincar e o se
divertir eram mais importantes.
290
Outras festas comemoradas eram o batismo, a confirmação, os casamentos, as
bodas. Para estas ocasiões, geralmente era contratada uma cozinheira. Renita recorda que a
sua mãe contou a ela o seguinte:
“O dia do Batismo também era motivo de festa familiar. Foram as minhas avós que
fizeram a comida. Naquele tempo, tudo era feito em casa. Foi um almoço especial com
marreco, salada de batata, massa, e, certamente, à tarde teve um café com cuca e bolo.”
Renita lembra que a Sexta-Feira Santa era vivida com bastante silêncio como
preparação a Páscoa. As festas Páscoa e de Natal também eram comemoradas na família.
Havia uma ligação da comemoração dessas festas com a igreja, pois sempre a família
participava dos cultos nestas ocasiões. Cultivavam-se algumas práticas como esconder os
ninhos na manhã da Páscoa, armar uma árvore de Natal, troca de presentes, visitas de
familiares. Yvonne apresenta uma foto de quatro gerações, tirada no Natal, próximo da
árvore de Natal. Na verdade, o primeiro Natal na vida de nossa narradora, em 1954.
621
“A festa do Natal era muito comemorada na nossa família. Havia muita surpresa. A gente
não sabia nada do que ia acontecer. Minha mãe fazia bastante segredo. Minha mãe
preparava tudo sozinha, no maior dos sigilos, com bastante calma e antecedência. No dia
25 de dezembro, uma amiga, a Eliane, fazia aniversário. A gente brincava muito nesse dia.
Íamos para o aniversário com as roupas e sandálias novas que havíamos recebido de
presente no Natal. Este tempo era bonito... Hoje, o Natal é só stress, muitas festinhas de
encerramento, presentes de amigo secreto...”
Yvonne lembra o Natal da infância e o Natal de hoje, que envolve muitas festinhas
de encerramento, presentes de amigo secreto, correrias, stress... O Natal da infância – esse
tempo era bonito! A Páscoa é outra festa recordada com saudades pela narradora:
“Páscoa era outra festa que a gente comemorava, onde tinha muita surpresa. Os ninhos
eram escondidos no mandiocal. Nós precisávamos procurar... Também tinha umas
surpresas como varinhas e pedras enroladas nos ninhos. Nestes momentos de festas íamos à
casa dos avós... Havia o encontro da família toda. Isto são coisas muito boas que lembro da
minha infância. Tenho muitas saudades.”
Estas festas passam de geração em geração. Yvonne cultiva essas tradições em sua
família, como é possível ver na foto de Natal da sua família hoje.
622
Na narrativa de Renita transparece a importância dos laços que estas festas
estabeleciam entre a família. O termo “família” é entendido aqui não somente como pai,
mãe e filhos, mas incluía os tios, as tias, os primos, as primas, os avós, inclusive os
621
Veja foto 9 na História de Vida de Yvonne, p. 242.
622
Veja foto 21 na História de Vida de Yvonne, p. 270.
291
vizinhos e vizinhas. Segundo Renaux, “as festas familiares eram as ocasiões ideais para
reafirmar a unidade da família e mostrar sempre de novo os laços tecidos entre seus
membros”.
623
Renita diz que a convivência na grande família Eggert mudou muito. Ela percebe as
mudanças que aconteceram na conjuntura agrícola do país, a falta de incentivo para a
pequena propriedade, o processo de industrialização. Segundo Renita:
“As visitas já não acontecem mais como aconteciam quando a gente era criança. A maioria
de nossos familiares já não mora mais na roça, mas vive em diferentes cidades. A mudança
que aconteceu com a nossa família também aconteceu com grande parte da população
brasileira – a trajetória do campo para a cidade.”
Assim ela lembra dois acontecimentos recentes de 1999, que possibilitaram
novamente o encontro da família Eggert. Foi realizado um grande encontro da família
Eggert em fevereiro de 1999, para comemorar o aniversário do pai e do tio, reunindo os
descendentes de Emil e Ema Eggert.
624
As bodas de ouro dos pais de Renita foram outro
momento de encontro de toda a família.
625
Neste dia, Renita teve a honra de ser a oradora
da família. As festas fortalecem as raízes familiares.
7.2.4 Educação cristã familiar como conseqüência do Batismo
A educação cristã é parte integrante da vivência familiar das narradoras. Elas foram
batizadas na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
626
O Batismo na
tradição da IECLB é, geralmente, realizado quando a criança é pequena, constituindo-se
como um elo
627
de ligação entre diferentes gerações, sendo um nó da rede, isto é, um dos
elementos constituidores da identidade das mulheres que narraram suas histórias de vida.
623
Maria Luiza RENAUX, O papel da mulher no Vale do Itajaí 1850-1950, p. 183.
624
Veja foto 11 na História de Vida de Renita, p. 233.
625
Veja foto 12 na História de Vida de Renita, p. 233.
626
O nome Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) surge em 1962 com a união dos
quatro Sínodos presentes nas diversas regiões do Brasil. Em termos eclesiásticos, os evangélicos luteranos
não constituíam uma Igreja estruturada juridicamente em nível nacional. Havia quatro Sínodos
independentes: Sínodo Riograndense, Sínodo Evangélico-Luterano de Santa Catarina, Paraná e outros
Estados, Sínodo Evangélico e Sínodo Evangélico do Brasil-Central. Consulte Rolf SCHÜNEMANN, Do
gueto à participação, p. 43. Veja também o texto de René GERTZ, Os luteranos no Brasil, p. 1-30.
627
Norbert ELIAS, A sociedade dos indivíduos, p. 28: “Essas relações – por exemplo, entre pai, mãe, filho e
irmãos numa família –, por variáveis que sejam em seus detalhes, são determinadas, em sua estrutura básica,
pela estrutura da sociedade em que a criança nasce e que existia antes dela. São diferentes em sociedades
com estruturas diferentes. Por essa razão, as peculiaridades constitucionais com que um ser humano vem ao
mundo têm uma importância muito diferente para as relações do indivíduo nas diferentes sociedades, bem
como nas diferentes épocas históricas.”
292
Não há diferenciação de gênero, de classe, de etnia no Batismo: meninos e meninas
são batizados de igual forma. A teologia feminista trouxe essa importante dimensão da
inclusividade do Batismo para a reflexão, segundo Deifelt:
Afirma a dignidade das mulheres como criaturas feitas à imagem de Deus (Gênesis 1.26-
27) e partícipes íntegras do corpo de Cristo (Gálatas 3.27-28), em que, mediante o batismo,
já não há mais judeu nem grego, escravo ou livre, homem e mulher. A teologia feminista
reafirma que todos os seres humanos – homem e mulher – são criados à imagem de Deus e
que, a partir de Jesus Cristo e no batismo, já não há mais motivos para a discriminação,
pois somos novas criaturas em Cristo.
628
O Batismo, teologicamente, insere a criança no Corpo de Cristo (1 Coríntios 12.13).
A partir do Batismo, a criança é parte integrante da comunidade cristã. Para a compreensão
luterana, fundamentada na fórmula batismal encontrada no Evangelho de Mt 28.18-20, o
Batismo de crianças pressupõe o compromisso com a educação cristã da criança. O pai, a
mãe, padrinhos e madrinhas e a comunidade se comprometem com a educação das
crianças. Renita guardou as caixinhas com as cartas que recebeu do seu padrinho e das suas
madrinhas, no dia do Batismo.
629
Na sua narrativa, Renita afirma: “Essa lembrança
significa para mim que o Batismo e a vivência da Palavra de Deus estão unidas, sempre
juntas. Eu cresci, amadureci... aprendi a ler, refletir e viver a fé.”
É no ambiente da casa que tem início a educação cristã, como conseqüência do
Batismo. A mãe assume, no espaço da casa, a função de educadora na fé. A mãe de Ruth
ensinou uma oração para a filha antes de adormecer. É interessante perceber como a
narradora mistura o cotidiano de sua existência com a oração ensinada em alemão pela
mãe. Ruth brinca com as palavras, expressando a sua existência:
Ich bin klein (Eu sou pequena)
mein Herz ist rein (meu coração é puro)
soll niemand drin wohnen (ninguém é para morar dentro)
als Jesus allein ( a não ser Jesus )
Daí eu dizia assim:
Ich bin gross (Eu sou grande)
mein Herz ist sauber (meu coração é limpo)
628
Wanda DEIFELT, Temas e metodologias da teologia feminista, p. 173.
629
Veja documentos 1 e 2 da História de Vida de Renita, p. 207.
293
soll Niemann gar nicht drin wohnen (não é para o Niemann nunca morar
dentro)
als Jesus allein ( a não ser Jesus)
“Eu orava assim”, esclarece ela, “porque nós tínhamos um vizinho, um senhor de
idade, que se chamava Niemann.” A Bíblia era lida com a mãe, ou a mãe lia a Bíblia e
explicava partes para o filho e a filha. É interessante que Ruth aponta para uma
diferenciação de gênero na leitura da Bíblia. “A minha mãe era muito religiosa. Eu lia
muito na Bíblia. Meu irmão já não precisava ler tanto como eu. Minha mãe era mais rígida
comigo.” A leitura da Bíblia é usada como um instrumento educacional que aponta para a
diferenciação das relações entre os gêneros. Suspeito que a leitura da Bíblia apareça aqui
como um instrumento que aponta para a necessidade do desenvolvimento de uma
religiosidade maior na mulher do que no homem, pois a mulher será a mãe, a educadora
dos filhos e das filhas, cuidadora do lar e dos bons costumes.
Junto com a educação religiosa, Ruth se lembra de outros valores morais que ela
aprendeu com o pai e com a mãe: “Da mãe aprendi a nunca esquecer de cumprimentar as
pessoas: Guten Morgen, Guten Tag e Guten Abend (bom dia, boa tarde e boa noite). O pai
ensinou “a questão da etiqueta, como se comportar, quando sentávamos à mesa, como
segurar os talheres, o copo etc...” Havia uma forte ênfase na educação moral. Segundo
Wolf, “uma ‘moça alemã’ devia ‘se fazer respeitar’; ser asseada; ser boa mãe e boa filha;
ter uma sexualidade restrita ao casamento; ser solidária com vizinhos e parentes, além de
ser econômica e comedida”.
630
A educação religiosa estava interligada com a educação
moral.
É interessante perceber que na narrativa de Renita aparece algo parecido: “Lembro
da minha mãe lendo a Bíblia e comentando com a gente.” A educação cristã familiar
parecia ser uma atividade da mãe. O pai também participava. Ele estava presente, mas não
de uma forma tão ativa quanto a mãe, pelo menos nas histórias de vida que estou
analisando. A educação na fé em casa estava ao encargo das mães.
Havia uma tradição cotidiana de orar antes das refeições. Era o momento em que a
família se encontrava toda reunida. As narradoras aprenderam essas orações na língua
alemã. Hoje, essas mesmas orações são pronunciadas na língua portuguesa.
631
Yvonne não
630
Cristina Scheibe WOLFF, Como se forma uma “boa dona de casa”, p. 166.
631
Veja Hinário da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Hinos do Povo de Deus, p. 376-377.
294
faz menção em sua narrativa dessa prática cotidiana. Suspeito que essa prática de “orar
antes das refeições” passe a se perder na medida em que as famílias vivem em ambientes
mais urbanos e o processo de industrialização vai se instalando. A educação cristã em casa
é fortalecida pela educação cristã recebida na Igreja.
7.3 Educação cristã no espaço da Igreja Luterana: culto infantil, ensino
confirmatório e confirmação
As quatro narradoras participaram do culto infantil. O trabalho do culto infantil
iniciou no ano de 1928, conforme relato de Anneliese, quando chegou a irmã do pastor, a
senhorita Marta. Ele acontecia de 14 em 14 dias, quando não havia o culto dominical, que
envolvia toda a família. O culto infantil era destinado às crianças. Ele era o espaço
oferecido pela Igreja como complemento ao ensino cristão da família. Não havia
diferenciação de gênero; meninos e meninas participavam igualmente. Neste espaço de
formação cristã ouviam-se histórias bíblicas, faziam-se orações e cantava-se muito.
Praticamente todas as crianças da comunidade participavam do culto infantil até o
momento da confirmação. Pelo que foi possível constatar, a participação das crianças no
culto infantil era quase uma exigência da Igreja Luterana, nesta região de Santa Catarina,
para poder participar no ensino confirmatório e ser confirmado.
632
Yvonne também recorda
que havia uma espécie de recompensa para quem não faltasse ao culto infantil: “A cada
cinco domingos, quem não tinha falta recebia uma figurinha com um versículo bíblico.”
Renita lembra que “nos domingos de manhã, minhas irmãs e eu íamos novamente para o
centro, não para a escola, mas para o culto infantil.” Um dos pontos altos do culto infantil
lembrado pelas narradoras eram as encenações natalinas, onde, especialmente, era
lembrada a história do nascimento de Jesus.
Anneliese e Ruth relatam que o culto infantil era realizado na língua alemã. Ruth
lembra que as professoras da escola, Anneliese e Marta, também eram as do culto infantil.
Havia toda uma didática no trabalho com as crianças, que se iniciava por dividir as
crianças em grupos, conforme a idade: untere, mittlere und obere Klasse (série dos
pequenos, médios e grandes). Era narrada uma história bíblica pelas professoras. Elas
cantavam e oravam com as crianças. Então, vinha o pastor e fazia às crianças perguntas
sobre a história que tinha sido narrada. As crianças participavam do culto infantil até
632
Essa suspeita também é levantada pelo Prof. Dr. João Klug, conforme entrevista realizada no dia
10/05/05, com o mesmo na Universidade Federal de Santa Catarina em Florianópolis/SC.
295
terminarem o ensino confirmatório. Já quando Yvonne e Renita participaram, o mesmo era
realizado em português.
O ensino confirmatório é relatado pelas quatro narradoras como um momento
importante em suas vidas. O ensino confirmatório realizava-se no período de dois anos.
Nesse tempo, Anneliese residiu junto à casa pastoral. Ela diz: “No ensino confirmatório
precisava saber de cor aquilo que estava no Catecismo Menor, e também aprendemos a
cantar muitos hinos do hinário.” Quando Anneliese fez a narrativa da sua confirmação, ela
foi até a sala e trouxe um quadro onde estava emoldurada a sua certidão de confirmação. A
lembrança da confirmação é como um diploma na fé. O desenho que está na certidão de
confirmação de Anneliese lembra o oceano, e no fundo vê-se a cruz. A passagem pelo
oceano faz parte da história dos imigrantes, mas a cruz de Cristo sempre os orientou e
conduziu, sinalizando a esperança no horizonte na nova terra.
633
Ela lembra: “Na
confirmação era a primeira vez que a gente usava sapatos, senão sempre se andava de pés
descalços e, quando era frio, usavam-se tamancos.”
Ruth foi somente um ano no ensino confirmatório devido à Segunda Guerra
Mundial.
634
É nesse período que ela aprendeu a lidar com a Bíblia, estudou o Catecismo
Menor (os Mandamentos, o Credo, o Pai-Nosso), cantos e orações. Yvonne e Renita
635
foram juntas ao ensino confirmatório, sendo confirmadas no mesmo dia. Yvonne
636
conta
que aprendeu a usar a Bíblia no ensino confirmatório e assim pôde ajudar as amigas
católicas:
“Com 12 anos eu iniciei o ensino confirmatório. Foram dois anos de doutrina. Se não me
engano, eu estava no 1º ano ginasial quando iniciei o ensino confirmatório. Cada um tinha
o livro ‘Ensinamentos Evangélicos’. Nós aprendemos os mandamentos, o Credo
Apostólico, o Pai-Nosso. Aprendi a lidar com a Bíblia. As meninas católicas tinham
dificuldades de lidar com a Bíblia, de encontrar os textos. Eu tinha facilidade. Meu pastor
do ensino confirmatório foi o P. Karl Gehring. Lembro que meninos e meninas sentavam
bem separados. O pastor tinha um controle muito grande sobre a turma. A minha
confirmação foi um marco muito importante na minha vida.”
Renita lembra ainda que, no seu tempo de ensino confirmatório,
“(...) tudo acontecia na igreja do centro. O ensino confirmatório era dirigido pelo pastor.
Ele era bastante rígido. A participação acontecia durante dois anos na doutrina, como a
gente chamava. Nós tínhamos o livro “Ensinamentos Evangélicos”. Era muito na base da
633
Confira Certidão de Confirmação, documento 5, História de Vida de Anneliese, p. 138.
634
Veja documento 3 da História de Vida de Ruth, p. 187.
635
Veja foto 5 do grupo das confirmandas na História de Vida de Renita, p. 219.
636
Veja foto 12 na História de Vida de Yvonne, p. 251.
296
memorização. A gente precisava decorar os mandamentos, o Credo Apostólico, o Pai-
Nosso. Também aprendemos a usar a Bíblia. A gente cantava bastante.”
O ensino confirmatório é ressaltado como um tempo de aprendizagem, em que
aprender a usar a Bíblia é bastante destacado, assim como a memorização dos
mandamentos, Credo Apostólico e Pai-Nosso. Percebe-se também nas narrativas que na
sala de aula havia uma separação de gênero: “(...) os meninos sentavam bem separados. O
pastor tinha um controle muito grande sobre a turma.”
A confirmação é colocada como um marco. Não tanto como uma decisão de fé pela
confessionalidade luterana (uma das narradoras, por ocasião do casamento, mudou para a
confessionalidade católica), mas muito mais como um rito de passagem. A confirmação era
comemorada também com uma grande ou pequena festa, de acordo com as possibilidades
de cada família. Yvonne conta que, na sua confirmação, houve uma grande festa no Clube
Atlético Baependi:
“Meus pais reuniram toda a família, amigos. Como meu pai era político, houve muitos
convidados. A festa da minha confirmação foi como festa de casamento. O número
exagerado de convidados se devia em retribuição aos convites recebidos por minha família.
Eles sempre foram muito convidados. Eu perguntei para a minha mãe se ia ter dança.
Minha mãe disse: “Na confirmação, dança jamais!” Eu ganhei muitos presentes. Minha
mãe preparou com muito esmero a festa da minha confirmação. Sinto ainda aquele cheiro
gostoso e agradável.”
A narrativa de Yvonne sobre a sua festa de confirmação aponta para um dado
importante que tem a ver com a questão da dança, em que se percebe a confirmação como
um rito de passagem da fase de criança para a de jovem. Após a confirmação, era permitida
a ida a bailes, soirées (domingueiras).
Para as meninas, o período do ensino confirmatório e confirmação também é
marcado pela menstruação. Yvonne e Renita lamentam a pouca orientação recebida da mãe
em relação às mudanças do corpo e à chegada da menstruação. As mães, como as
educadoras na família, tinham vergonha e pouco falavam sobre o corpo, a sexualidade, a
menstruação com as filhas. A aprendizagem sobre o corpo e a sexualidade “era um assunto
quase que proibido”, afirma Renita. Ela lembra que foi com as irmãs e uma prima mais
velha que ficou sabendo sobre a menstruação.
“Como eu tinha duas irmãs mais velhas, elas me ajudaram a esclarecer muitas dúvidas.
Uma prima mais velha de Massaranduba também contava algumas coisas para a gente. Foi
com elas que fiquei sabendo sobre a menstruação. Todo mês tinha uns paninhos
pendurados no varal, eu não sabia o porquê. Um dia perguntei para minha mãe. Ela não
gostou da minha pergunta, até ficou brava comigo. Havia muita vergonha para falar sobre
297
esse assunto. Só quando fiquei menstruada, entendi o motivo dos paninhos no varal. Nós
usávamos ainda os paninhos. Só mais tarde que fomos conhecer e usar os absorventes
higiênicos. Mas eu penso que os paninhos eram mais saudáveis e não poluíam tanto o meio
ambiente. As fraldas que as crianças usavam, na época, também eram todas laváveis. Não
havia tanta poluição.”
Yvonne lembra que, quando menstruou pela primeira vez, ficou desesperada, pois
não sabia o que estava acontecendo com ela:
“Minha mãe não explicou nada para a gente. Ela me deu um livreto que falava como usar
o modess, mas não conversou nada comigo sobre isto. Um dia eu fui de bicicleta brincar na
casa da Margit, que era uma grande amiga. De repente, eu senti que tinha um sangramento,
corri para casa como uma louca, desesperada, o que tinha acontecido comigo, o que era
aquilo? Nós tínhamos uma empregada, a Edite, (...) Ela cuidava da gente e da casa. Eu fui
contar para ela, ao invés de eu ir falar com a minha mãe, fui falar com a empregada...
‘Edite, pelo amor de Deus o que está acontecendo comigo?’ Ela disse: ‘Nossa, a Yvonne
ficou mocinha.’ Espalhou aos quatro ventos o que tinha acontecido comigo. Eu fiquei toda
envergonhada. Ela me mostrou o modess e como deveria usar... Daí chegou a minha mãe e
disse: ‘Mas como, Yvonne, eu já tinha explicado para você.’ Na verdade, ela só me tinha
dado o livreto que falava sobre isso”.
Anneliese e Ruth não tocaram no assunto da menstruação em suas narrativas.
Yvonne e Renita falam desse período como um tempo de descobertas solitárias.
637
As
mães, como aquelas que poderiam falar sobre as mudanças do corpo, ficavam distantes.
Renita, então, conversou com as irmãs e prima, e Yvonne, com a empregada da casa. A
mãe como educadora do lar se mantinha distante nas questões que diziam respeito ao corpo
e à sexualidade de suas filhas. Yvonne recorda que a sua mãe, quando casou, sabia muito
pouco sobre relações sexuais. “Foi meu pai que ensinou para ela.” O corpo era educado
para ser comportado e para o trabalho. Segundo Louro, “a sexualidade não é apenas uma
questão pessoal, mas é social e política (...) a sexualidade é ‘aprendida’, ou melhor, é
construída, ao longo de toda a vida, de muitos modos, por todos os sujeitos”.
638
Família, escola e igreja eram a nossa vida, afirmam Renita, Yvonne, Ruth e
Anneliese. No cotidiano, as três instituições se interligavam na organização da vida social
das narradoras. A seguir, busco refletir sobre a importância do espaço da escola
comunitária luterana na vida das narradoras.
637
Guacira Lopes LOURO, Pedagogias da sexualidade, p. 24.
638
Guacira Lopes LOURO, Pedagogias da sexualidade, p. 11.
298
7.4 Espaço da escola comunitária luterana na vida de Anneliese
Para Anneliese, o processo de enraizamento na nova terra aconteceu primeiramente
pela via da escola comunitária. Quando ela chegou ao Brasil, já tinha experiência de
freqüentar a escola. Entrou na escola quando tinha 6 anos, em 1924, ainda na Alemanha.
Ela tem uma foto
639
desse tempo, na frente da escola. Pela foto, suspeito que se tratava de
uma escola de meninas. Anneliese só lembra que na turma em que ela estudava não havia
meninos. Na foto, as meninas estão sentadas na escada, na frente da porta da escola; as que
estão atrás estão de pé. Anneliese é a primeira sentada à esquerda. O professor encontra-se
do lado direito, de pé, em traje de gala. Suponho, pela postura e as roupas que veste, que a
profissão de professor tivesse um grande reconhecimento social. O professor também
passava de geração em geração: “Meu primeiro professor foi também o professor de minha
mãe”, diz Anneliese. Na Alemanha, ela já aprendera “a ler, a escrever e fazer contas”. E
acrescenta: “Também fazia trabalho manual. Eu fiz um par de meias de tricô.” A educação
doméstica artesanal, voltada para as necessidades da vida cotidiana, fazia parte do
currículo escolar.
Em meados de 1924, com a imigração para o Brasil, Anneliese interrompeu o seu
primeiro ano de estudos. Ela traz em sua experiência escolar, mesmo que apenas de meio
ano, a vivência da escola alemã. Klug diz que “para melhor compreendermos o complexo
quadro da assim chamada educação alemã em Santa Catarina, é necessário levar em conta
que a escola já exercia importante papel nos diversos estados alemães, por ocasião da
imigração para o Brasil”.
640
O pai e a mãe de Anneliese somavam-se entre aqueles
imigrantes que davam grande valor ao processo educacional das filhas.
O pai matriculou as duas filhas, Anneliese e Hildegard, na Escola Jaraguá (Schule
Jaraguá), ligada à Igreja Evangélica. Elas foram à escola no início de 1925. Para chegar
até a escola, precisavam andar duas horas a pé. Elas também iam de pés descalços;
somente no inverno usavam tamancos. Como ela contou, “o primeiro par de sapatos se
calçava no dia da confirmação”.
A escola comunitária e a igreja evangélica foram os primeiros grupos afetivos de
enraizamento na nova terra, permeados pelo uso da língua alemã. O estudo era todo na
língua alemã. Na Alemanha, Anneliese estudou numa escola elementar/primária só para
639
Veja foto 1 na História de Vida de Anneliese, p . 136.
640
João KLUG, A escola alemã em Santa Catarina, p. 143.
299
meninas. No Brasil, houve uma novidade: as turmas eram mistas e multisseriadas (1º e 2º
ano; 3º e 4º ano). “As diferentes turmas de alunos/as estudavam todas juntas. O professor
Geffert e o pastor Ferdinand davam tarefas alternadas para os diferentes grupos.” Havia
também uma preocupação com a higiene: “Os professores também olhavam a cabeça dos
alunos e alunas para ver se tinham piolhos.”
Ela estudou dois anos na Escola Jaraguá. Durante os anos de 1927 a 1929 (três
anos), Anneliese estudou numa escola na localidade onde residiam os seus pais. Esta
escola também era comunitária, mas não estava ligada à Igreja Evangélica. Era uma escola
comunitária construída e mantida pelos pais dos alunos e alunas, isto é, os agricultores da
região. Também ali, o ensino se realizava na língua alemã, e as aulas aconteciam em salas
multisseriadas. Anneliese cita dois professores em sua narrativa, sendo que um deles
também era o pastor da comunidade.
A narrativa de Anneliese apresenta duas experiências de escolas comunitárias no
Brasil, evidenciando que as mesmas não se apresentavam de forma homogênea: “As
escolas alemãs em SC evidenciavam um complexo mosaico em sua tipologia”.
641
Klug cita
Egon Schaden, que apresenta a seguinte tipologia das escolas alemãs:
a) Escolas alemãs propriamente ditas, nos núcleos urbanos e mantidas, na sua maioria, por
sociedades escolares bem estruturadas. Contavam com material de apoio, professores com
formação seminarística (Lehrerseminar), a maioria oriunda da Alemanha.
b) Escolas coloniais comunitárias, localizadas nas zonas de baixa densidade demográfica.
Normalmente não contavam com o devido apoio, nem com professores com formação. A
função era ocupada por alguém da comunidade, e não havia um plano a ser seguido. O
professor determinava o ritmo e os conteúdos a serem passados aos alunos. Estas escolas se
caracterizavam pela informalidade, sem material didático comum a todos, sem um período
escolar determinado, dada a sazonalidade das lides domésticas.
c) Escolas denominacionais, mantidas pelas igrejas evangélica ou católica. Via de regra, o
pároco era o responsável por essas escolas, que se assemelhavam muito.
642
Anneliese estudou numa escola denominacional e numa escola colonial
comunitária. Ela possui a experiência das duas organizações de escolas teuto-brasileiras.
Conforme Schaden, a segunda tipologia representa a “genuína escola teuto-brasileira”, por
ser iniciativa dos próprios colonos. É interessante que o currículo, conforme narrativa da
ex-aluna, constava de religião, canto, educação física, matemática, ditado, leitura, poesias,
sendo parecido com o da escola comunitária luterana.
641
João KLUG, A escola alemã em Santa Catarina, p. 142.
642
Egon SCHADEN, Aspectos históricos e sociológicos da escola rural, p. 67. Veja também João KLUG, A
escola alemã em Santa Catarina, p. 145.
300
Klug observa que, em relação ao que hoje chamaríamos de “proposta pedagógica”
das escolas alemãs em SC, este projeto sempre esteve em sintonia com a comunidade onde
a escola estava inserida. O autor afirma:
Adequava-se a um projeto de comunidade. Não visava formar uma pequena elite de
letrados. Devia haver possibilidades iguais para todos, pois todos deviam ser bons cidadãos
e a proposta pedagógica levava a sério este aspecto. Para isso a escola devia partir da
realidade do aluno e capacitá-lo para que ele viesse a atuar como agente em seu contexto.
Segundo Kreutz, analisando esta questão em relação ao Rio Grande do Sul, mas que é
perfeitamente aplicável para Santa Catarina, privilegiava-se a “realia” – coisas reais –, que
apontava para o universo concreto dos alunos. Evidência desta proposta pode ser percebida
no ensino da matemática, com ênfase nas “Kopfrechnungen” – contas de cabeça, a qual não
visava a memorização abstrata, mas “treinava o aluno” para saber fazer mentalmente
algumas operações básicas, cuja necessidade facilmente poderia ocorrer em momentos que
não tivesse lápis e papel à mão.
643
Nos anos de 30 e 31, ela volta a estudar na Escola Jaraguá, pois também ingressou
no ensino confirmatório. Nesse período, fez os estudos complementares (5º e 6º ano). Ela
residia junto à casa pastoral. É no período do ensino confirmatório que se criou uma maior
inter-relação de Anneliese com a vida comunitária. Ela já participava do culto infantil. É
nesse período que auxiliou no trabalho do culto infantil. Anneliese recorda que a mesma
casa que, durante a semana, abrigava as crianças para o ensino das letras, aos domingos,
acolhia as pessoas e as crianças para o culto: “Escola e igreja estavam muito ligadas:
durante a semana acontecia o ensino das letras e no domingo se realizava o ensino da
Palavra de Deus. (...) No domingo era tirada a parede que separava as duas salas e ali se
realizavam os cultos.”
Havia uma grande identificação entre escola e igreja. Essa identificação era tão
intensa, que a inauguração do templo aconteceu somente no ano de 1935. Durante 28 anos,
a comunidade e a escola utilizaram a mesma construção.
644
Segundo Anneliese, o mais
importante era que havia lugar para serem ministradas as aulas e para a realização dos
cultos. Durante a semana, a construção era escola e nos domingos era igreja. O pastor
Ferdinand também atuava como professor. Pastor e professor eram a mesma pessoa.
Conforme o relato de Anneliese, havia um grande temor em relação à figura do pastor, pois
ele era bastante enérgico.
643
João KLUG, A escola alemã em Santa Catarina, p. 149. Consulte também Lúcio KREUTZ, Material
didático e currículo na escola teuto-brasileira do Sul, 187 p.
644
Segundo Egon JAGNOW, Lembranças do passado, p. 3: “A primeira escola foi erguida em 1907. Em
1920 foi construída a nova escola, ampliada em 1924. A igreja só foi concluída em 1935. As paredes internas
das duas primeiras salas de aula eram removíveis, possibilitando a transformação da escola em sala de
cultos.”
301
Em 1935, Anneliese retornou para a Escola Jaraguá, a convite do P. Ferdinand, para
ser professora auxiliar, junto da professora Marta, irmã do pastor. O número de alunos
havia aumentado bastante na Escola. Como professora auxiliar ela tinha apenas um livro: o
Neue Methode (Novo Método), que mostrava como unir a letra, o som e a sílaba. Este
método era usado para ensinar a ler e escrever. Isto na língua alemã. Ela lecionava para as
1ª e 2ª classes. Ensinava a ler, a escrever, a fazer contas, canto e religião. Anneliese se
lembrou do nome de algumas alunas, e foi dessa forma que se localizou a segunda ex-aluna
que narrou sua história de vida: Ruth.
7.5 Lembranças do espaço da escola comunitária na vida de Ruth
Ruth ingressou na Schule Jaraguá em 1935, quando tinha 7 anos e meio. A sua
primeira professora foi Marta. A professora auxiliar era Anneliese. Aqui se cruzam os fios
nas histórias de vida de Anneliese e Ruth. Anneliese atuava como professora auxiliar na
primeira classe. O material escolar se resumia à lousa.
Ruth recorda que: “de um lado na sala de aula sentavam os meninos, e de outro, as
meninas. Dessa forma, a escola mantinha a disciplina e a ordem, separando os gêneros. A
separação entre meninos e meninas também acontecia na hora do recreio, nas brincadeiras:
“de um lado os meninos, e de outro, as meninas”.
645
De acordo com os relatos de Ruth e Anneliese, nesse período ainda não havia um
uniforme para ir à escola: as crianças chegavam à escola com as roupas que elas tinham.
Ruth lembra que ela e seu irmão sempre tiveram calçados e pasta de couro para levar o
material para a escola.
646
Segundo Ruth:
“Nós não tínhamos uniforme para ir na escola. Cada criança vinha como podia para a
escola. Muita gente chegava descalça na escola. As crianças do interior ganhavam o seu
primeiro par de sapatos no dia da confirmação.”
Percebe-se, no entanto, que Ruth faz uma distinção em relação “às crianças do
interior”, pois ela residia na Stadplatz (cidade). O recreio na escola é rememorado como
uma festa. Segundo Ruth:
“Cada criança trazia a sua merenda. A maioria das crianças vinha estudar na Schule
Jaraguá. As crianças que vinham da Ilha da Figueira traziam pão de milho com queijinho
645
A reflexão sobre a separação de meninos e meninas nas horas das brincadeiras tem sido tema, atualmente,
de vários estudos pedagógicos. Remeto ao estudo de Alessia Costa de Araújo CRAVO, Brincadeiras infantis
“forjando” identidades de meninas e meninos, p. 169-179.
646
Veja foto 7 na História de Vida de Ruth,, p.
182.
302
branco. Às vezes acontecia uma troca de lanche: eles tinham vontade de comer o nosso pão
e nós o deles, pois era diferente.”
Depois, aconteciam as brincadeiras. Meninos e meninas não se misturavam na hora
do recreio. É interessante perceber que o recreio é caracterizado como uma festa, com
comida e brincadeiras, em oposição ao espaço da sala de aula, que era sério. Será que ainda
é assim hoje, em nossos cotidianos escolares?
Além das professoras da escola, Ruth lembra que a sua mãe também a ajudou
bastante em casa, ensinando o alfabeto e os números. O avô materno também é lembrado
como professor e poeta. Foi com o avô que ela aprimorou o gosto pelas poesias e aprendeu
a calcular metros cúbicos de madeira e a fazer cálculos de cabeça. Ruth salienta:
“Aprender esses cálculos me ajudou muito no meu trabalho.”
Conforme o relato de Ruth, a partir do terceiro ano primário todas as aulas eram
realizadas na língua alemã: “Eu aprendi muito bem a gramática alemã. Havia um incentivo
desde casa. A maioria das crianças não sabia falar em português. Eu aprendi o português
com o professor Mauro Schneider, quando estava na 4ª série. Quando não sabíamos ler ou
falar em português, o professor nos batia com a régua.”
No 4º ano primário aconteceu algo triste que marcou a vida de Ruth: a escola foi
fechada. “A professora Hilda sempre conta que um dia chegou um homem na escola e
percebeu que a bandeira brasileira não estava hasteada e que as crianças falavam em
alemão.” A partir deste acontecimento, Hilda não pôde mais ser professora do primário, e
foi decretado o fechamento da escola, em agosto de 1938. O resto daquele ano Ruth ficou
sem escola. Ela recorda: “Era um tempo difícil. Havia soldados nas ruas. Toda fala em
alemão era proibida.”
7.5.1 Estudos de Ruth na Escola Católica
Com o fechamento da Escola Jaraguá, Ruth ficou meio ano sem ir à escola.
Segundo a historiadora Renaux,
depois do silêncio imposto às instituições tipicamente alemãs, entre as quais as escolas
luteranas, a educação ficou a cargo dos colégios católicos. Os colégios católicos já existiam
na região, mas, depois da guerra, conduziam de melhor maneira ao nacionalismo brasileiro
que se queria firmar e que tinha no catolicismo uma de suas expressões mais fortes. Prova
disto é que as ordens e congregações religiosas católicas que se instalaram no sul do Brasil
– os franciscanos, os padres do Sagrado Coração de Jesus, as irmãs da Divina Providência,
303
os jesuítas, as irmãs de São José – provinham de províncias alemãs e holandesas, mas nem
por isso alguma delas sofreu qualquer repressão.
647
A escola comunitária luterana foi fechada. As escolas católicas continuaram
normalmente com as suas atividades. No entanto, Ruth também diz que o Colégio Católico
era bastante caro; muitas crianças que estudavam na Escola Jaraguá foram para a escola
pública – Grupo Escolar Abdon Batista. Ruth recorda:
“Em fevereiro de 1939, ingressei no Colégio São Luiz, que era dirigido por irmãs
católicas. A maioria dos meus colegas e das minhas colegas foi para o Grupo Escolar
Abdon Batista. Foi aí que precisei usar uniforme escolar. Em 1940, fui estudar no Colégio
Divina Providência; houve uma divisão: os meninos estudavam no São Luiz, e as meninas
no Colégio Divina Providência. Eu fui fazer o complementar, o 5º e o 6º. A pedido da irmã
eu repeti o 5º ano devido à língua portuguesa. As aulas eram todas em português. Tive que
me esforçar bastante. O currículo constava de: Trabalhos Manuais, História, Geografia,
Ciências, Português, Matemática, Religião, Educação Física, Canto e Desenho. Nas aulas
de Religião havia a liberdade de sair ou de ficar nas aulas. Eu, mesmo sendo evangélica
luterana, sempre ficava nas aulas de Religião.”
Além das aulas de trabalhos manuais na escola, Ruth ia à tarde para o colégio
aprender a bordar com as irmãs. Desde os 7 anos, ela também freqüentava as aulas de
trabalhos manuais na casa da Frau Fiedler. Segundo Renaux, “bordado e crochê (...) não
eram uma ocupação apenas, mas sinalizavam o futuro casamento e o papel da mulher”.
648
7.5.2 Curso de datilografia e aulas de piano
Com 15 anos, Ruth terminou o curso complementar no Colégio Divina
Providência.
649
Depois, durante um ano fez um curso de datilografia. Segundo Renaux,
a entrada das mulheres nos escritórios de fábricas, bancos, companhias de seguro está
estreitamente ligada à maquina de escrever, lançada pela Remington em escala industrial
desde 1873/74. A partir daí, tal como a descoberta da máquina de costura dera certa
autonomia à mulher, que com seu trabalho passou a completar o ganho da família, a
máquina de escrever transformou-se para a mulher num novo instrumento de produção, que
ela aprendeu a dominar tecnicamente. A mecanização da profissão de escrevente associa-
se, portanto, à apropriação dessa profissão pela mulher.
650
Este curso de datilografia capacitou Ruth a entrar no mercado de trabalho. Ela conta
que foi uma das primeiras mulheres em Jaraguá do Sul a trabalhar num escritório. Durante
esse tempo, também estudou piano com a Sra. Adélia Fischer. De acordo com Renaux, “o
647
Maria Luiza RENAUX, O papel da mulher no Vale do Itajaí 1850-1950, p. 209.
648
Maria Luiza RENAUX, O papel da mulher no Vale do Itajaí 1850-1950, p. 133.
649
Veja foto 9, na História de Vida de Ruth, p. 186.
650
Maria Luiza RENAUX, O papel da mulher no Vale do Itajaí 1850-1950, p. 206.
304
piano era um elemento fundamental na educação da moça burguesa. (...) Dar aulas de
piano transformou-se numa das poucas profissões reconhecidas às mulheres burguesas”.
651
Ruth lembra que estudou até o 3º método. “Eu tenho um ouvido musical desde criança. (...)
A música também era cultivada pelo pai”.
652
A narradora tem experimentado durante toda
a sua vida o gosto pela música e pelo canto. Ela é fundadora do Coral Evangélico e
participa do mesmo há 55 anos.
653
7.6 Anneliese profissionaliza-se como professora
Devido à sua experiência como professora auxiliar na escola comunitária luterana,
Anneliese resolveu profissionalizar-se como professora:
“Lembro que meu pai e eu fomos falar com o pastor Hermann Waidner, pois eu tinha o
desejo de continuar os estudos. Também meus pais queriam que as filhas tivessem uma
profissão. Minha irmã fez curso de corte e costura, tornado-se costureira.
654
Como eu já
havia lecionado, o desejo era me formar como professora, na Deutsche Evangelische
Lehrerpräparande
655
Escola Preparatória de Professores Evangélicos Alemães
provisórios
656
em Timbó.”
A resposta do pastor dada a Anneliese e seu pai não foi nada animadora, colocando
a mulher dentro do ambiente doméstico. O pastor disse: “Uma moça no Brasil não pode
fazer outra coisa do que casar, cuidar da casa e da família.” Em relação a esta colocação,
Anneliese demonstrou autonomia (liberdade de escolha) e, com 19 anos, se encontrava em
Timbó estudando para ser professora. Lá, mais do que estudar, ela trabalhou como
professora substituta. Quando foi para a Escola Preparatória de Professores, já tinha sete
anos de estudo. Ela se lembra de um colega que só tinha três anos de estudo.
651
Maria Luiza RENAUX, O papel da mulher no Vale do Itajaí 1850-1950, p. 141-142.
652
Veja foto 4, na História de Vida de Ruth, p. 178.
653
Veja foto12, na História de vida de Ruth, p. 193.
654
Maria Luiza RENAUX, O papel da mulher no Vale do Itajaí 1850-1950, p. 144. “As profissões livres
admitidas, e mais apreciadas, para as mulheres na sociedade de onde vieram as imigrantes alemãs eram
representadas em uma pirâmide social, onde, na base, ficavam as freiras e as camponesas – a religião e a terra
eram consideradas como os fundamentos da sociedade –, acima destas as mulheres que cuidavam e
educavam as crianças (amas secas e professoras), ao lado das tecelãs e das domésticas (Hausmaedchen) e, no
topo, a costureira domiciliar.”
655
João KLUG, A escola teuto-catarinense e o processo de modernização em Santa Catarina, p. 216.
Segundo o autor: “Ainda em 1931 teve lugar uma importante iniciativa que deixaria significativas marcas na
história da educação teuto-catarinenese, mesmo considerando a política nacionalizadora em curso. Trata-se
da criação do Deutsche Evangelische Lehrerpräparande sob a liderança do pastor Blümel e que teve curta
existência em Timbó. Considerando a crônica falta de professores com formação, especialmente nas escolas
rurais e, considerando a importância da instrução para fortalecer a confessionalidade, em 1931, o referido
pastor inicia o empreendimento educacional.”
656
Eram provisórios, pois ainda necessitavam passar pelo exame de português promovido pelo Estado.
305
Ela e outra colega de nome Hilda eram as únicas mulheres neste seminário de
preparação para professores
657
. O que mais se enfatizava nos estudos era como lidar com
as crianças. Na avaliação eram observados os seguintes quesitos:
Quesito 1: Führung (conduta)
Quesito 2: Fleiss – (assiduidade), onde a aluna foi avaliada nos dois pontos
com sehr gut (muito bom).
Quesito 3: Kenntnisse (conhecimento) e Fertigkeiten (habilidade), subdividido
em:
I. Unterweisung im Evangelium – (aprendizagem do Evangelho) – gut
[bom];
II Deutschgut (bom); II. Portugiesisch – (português) – sehr gut (muito
bom);
IV Mathematikgut (bom);
V Erdkunde – (geografia) a) deutsch – (alemã) e b) brasilianisch – (brasileira)–
gut (bom) em ambas;
VI Geschichte – (história) a) deutsch – (alemã) e b) brasilianisch – (brasileira)
em ambas – gut (bom);
VII Pädagogik – (pedagogia) – gut (bom);
VIII. Gesang – (canto) – gut (bom);
IX Violinspiel – (tocar violino) – genügend – (suficiente);
X. Turnen – (ginástica) – não tem nota – conforme relato de Anneliese, era só
para os rapazes;
Quesito 4: Lehrgeschicklichkeit (didática) gut – (bom).
658
É possível perceber que a maior parte do estudo era na língua alemã, tendo
elementos que mantinham a identidade étnica européia; por exemplo, “violino” é um
instrumento musical clássico europeu. Além do currículo normal, os rapazes (futuros
professores) trabalhavam na roça, plantando, capinando e preparando trato para os animais.
657
Na consulta realizada no Arquivo Histórico da IECLB, em São Leopoldo, encontrei, do Sínodo Luterano
uma carta do P. Blümel, de 08 de outubro de 1935, onde ele fala da difícil situação das comunidades nas
colônias mais distantes e da importância da formação de professores. O professor e a professora não eram
somente preparados para atuarem na sala de aula, mas também para serem lideranças comunitárias, isto é,
para atuarem no culto infantil, em grupos de estudos bíblicos, dirigirem o canto e a música na comunidade. O
professor e a professora eram lideranças comunitárias que atuavam na escola e na igreja. Veja também o
anexo II da História de Vida de Ruth sobre a atuação do seu avô como professor.
658
Veja documento 6, na História de Vida de Anneliese, p. 143.
306
“Eu e minha amiga trabalhávamos na jardinagem, na horta e também no trabalho da
cozinha e na limpeza da escola. Além disso, a escola era paga. Meus pais pagavam para
mim. Minha amiga Hilda cuidava das crianças do pastor, pois seus pais não tinham
condições de pagar os estudos.”
Não era permitido namorar na Escola de Preparação para Professores. Anneliese,
no entanto, não esconde que sentiu estima por um rapaz. Mas nunca falou, pois as moças
eram bastante visadas e controladas. Ela conta que elas foram acusadas de perturbar a
ordem da casa:
“A casa onde aconteciam as aulas era de dois andares. Eu e minha colega Hilda dormíamos
embaixo e os rapazes dormiam em cima. Uma noite, os rapazes fizeram bastante bagunça.
No outro dia, eu e minha amiga fomos chamadas ao escritório do P. Blümel . Ele nos disse:
‘Quem ousa sujar a minha casa, fazer barulho?’ Alguém havia nos denunciado como as
responsáveis pela folia dos rapazes. Queriam, inclusive, nos excluir da escola. A nossa
atitude foi ficarmos quietinhas. Não reagimos à denúncia. O motivo do barulho dos
rapazes, de fato, foi devido à caça de um gambá. Eu e minha colega, como únicas mulheres
estudantes, fomos acusadas de perturbar a ordem da casa.”
No dia 20 de julho de 1937, Anneliese prestou seu exame como professora, em que
foi aprovada. Além da preparação para o exercício da docência, havia também estudos dos
idiomas alemão e português. No estudo do idioma português, a ex-aluna foi aprovada com
um sehr gut (muito bom), enquanto que em alemão obteve apenas com gut (bom). No
segundo semestre de 1937, trabalhou em Blumenau na Frauenschule (Escola de
Mulheres). Esta escola tinha o objetivo de preparar as moças, especialmente da classe
média, para as lides domésticas e o cuidado com as crianças, para ser uma boa
administradora do lar. “A minha função nesta escola era cuidar dos trabalhos gerais.” Fazia
parte do currículo da Escola de Mulheres, segundo a historiadora Renaux:
História da Arte, Geografia, Música e Culinária, a sua ênfase era no aprimoramento das
virtudes domésticas, capacitando simultaneamente as jovens nas profissões que já se
admitiam para a mulher – como a de “Hauslehrerin”, professora particular, normalmente de
pintura ou de música ou de jardim-de-infância. (...) Mesmo para as moças que optavam por
seguir os estudos, o que se procurava atender não era a sua satisfação pessoal, sua
independência, em primeiro plano, situação que perdura até mesmo depois da Segunda
Guerra Mundial.
659
Depois desse trabalho na Escola de Mulheres, Anneliese foi enviada pelo bispo do
Sínodo para trabalhar em Canoinhas. É importante destacar que Anneliese pode ser
considerada uma pioneira, pois havia se formado professora.
660
Percebe-se aqui a profunda
659
Maria Luiza RENAUX, O papel da mulher no Vale do Itajaí 1850-1950, p. 200-201.
660
Guacira Lopes LOURO, Mulheres na sala de aula, p. 443-481. A autora analisa a formação da profissão
de professora no Brasil, a partir da metade do século XIX. “A fragilidade feminina, constituída pelo discurso
307
inter-relação entre escola e igreja: foi o Präses Schlüzen (bispo Schlüzen) que fez o
contato com a escola em Canoinhas, oferecendo os trabalhos de Anneliese para aquela
escola comunitária. Anneliese foi enviada como professora para atuar na Escola
Comunitária de Canoinhas pelo bispo do então Sínodo Evangélico Luterano para Santa
Catarina, Paraná e outros estados. É possível afirmar que os professores e as professoras,
neste período histórico, tinham uma grande importância para a comunidade local
661
e
também para a Igreja Evangélica Luterana. É importante lembrar que a formação na escola
de professores não preparava somente para atuar na sala de aula. A professora e o professor
eram preparados para atuarem junto à comunidade, no culto infantil, grupos de estudos
bíblicos, regência de coral, entre outros.
7.7 Processo de nacionalização do ensino: conseqüências na vida de Anneliese e Ruth
Não é possível e nem o propósito discorrer nesta tese sobre as questões todas que
envolveram o processo de nacionalização do ensino. Faço uma introdução ao assunto
662
,
para melhor entender as conseqüências do mesmo na história de vida de Anneliese e Ruth.
A política de nacionalização do ensino atingiu de forma direta as escolas
comunitárias primárias, principalmente as de origem étnica alemã. Estas escolas
geralmente se localizavam nas Kolonietiefen (colônias mais distantes), onde o poder
público não havia se preocupado com a construção de escolas. O processo de
nacionalização do ensino, além de atingir diretamente a instituição “escola comunitária”,
marcou, profundamente, a história de vida de muitas pessoas, entre as quais Anneliese e
Ruth. É importante lembrar que, em Santa Catarina, conforme Klug,
desde o governo Vidal Ramos (1911) estava em curso a proposta de nacionalização,
conduzida de forma branda pelo Inspetor Orestes Guimarães. (...) torna-se necessário
questionar a idéia que vincula a política de nacionalização do ensino com o combate ao
nacional-socialismo nas áreas de imigração alemã.
663
religioso, médico, jurídico e educacional é também constituinte de sua proteção e tutela. A professora terá de
ser produzida, então, em meio a aparentes paradoxos, já que ela deve ser, ao mesmo tempo, dirigida e
dirigente, profissional e mãe espiritual, disciplinada e disciplinadora.” (p. 454).
661
Veja no anexo 2 o pequeno histórico escrito por Ruth sobre o seu avô Albert Rahn que era professor.
662
Para aprofundar as reflexões em relação ao tema indicamos algumas referências bibliográficas: Friedhold
ALTMANN, A roda, 1991; Neide Almeida FIORI, Aspectos da evolução do ensino público, 1991; Neide
Almeida FIORI (org.), Etnia e educação, 2003. João KLUG, A escola teuto-catarinense e o processo de
modernização em Santa Catarina, 1997; Norberto DALLABRIDA (org.), Mosaicos de escolas , 2003.
663
João KLUG, A escola teuto-catarinense e o processo de modernização em Santa Catarina, p. 212.
308
Nesta mesma direção, Paiva afirma que a política destinada a nacionalizar o ensino
foi anterior à criação do Partido Nacional-Socialista:
Pelo fato de a movimentação política com a finalidade de “nacionalizar” o ensino nos
estados brasileiros em que se estabeleceram os maiores contingentes de imigrantes alemães
ser muito anterior ao surgimento do NSDAP na Alemanha e às suas manifestações no
interior daquele grupo étnico no Brasil, faz-se necessário desvincular a política de
nacionalização do ensino de uma ligação excessivamente estreita com o combate à
propaganda e agitação nacional-socialista naquela região. Nesta outra perspectiva, a
presença do NSDAP deixa de ser causa para transformar-se em justificativa ideológica
oportuna para o endurecimento das medidas repressivas contra a especificidade e relativa
autonomia cultural dos diferentes grupos étnicos no Brasil.
664
Para o autor, “a ‘cultura brasileira’ é problema grave e central, pois ela não se
restringe a aspectos lingüísticos e culturais, mas diz respeito à própria organização do
Estado. É uma transformação de problemas políticos em culturais”.
665
Aqui é necessário
fazer menção ao fato de que
a propaganda norte-americana invadiu o cotidiano e influenciou na construção de
imaginários (...) Aqueles que não aceitassem a “amizade” dos nortistas e fossem “amigos”
dos europeus “eixistas” caíam nas malhas da polícia como antipatriotas. Como identificá-
los? Bastava ter origem e falar na língua dos “eixistas”: alemão, japonês, italiano; ser
ouvido manifestando uma opinião qualquer sobre a guerra ou a favor de outra pátria.
666
Segundo Fáveri, “se para os intelectuais brasileiros a pátria era o Brasil e todo o
conjunto de símbolos, ritos, mitos e heróis, para os alemães mudava de sentido”.
667
Segundo a autora, Seyfert auxilia na compreensão do problema que se instalou no Brasil,
percebendo a concepção de identidade teuto-brasileira ligada à ideologia de germanidade,
difundida nas colônias do sul do país pelo termo Deutschtum. Seyfert aponta que existiam
três formas de estabelecer a nacionalidade para os teuto-brasileiros:
Pela herança de sangue, fundamentada na jus sanguinis, que exclui critérios geográficos;
pelo local de nascimento de uma pessoa, baseada no jus solis; ou pela combinação destas
duas coisas. Esta última alternativa levou a uma dualidade de nacionalidades,
principalmente entre grupos de imigrantes, estabelecidos fora de seus [seu país de origem,
gerada pela confusão em torno do conceito de pátria, cidadania e nacionalidade. Por
exemplo, na ideologia pangermanista divulgada no sul do Brasil, qualquer descendente de
alemães teria direito à nacionalidade alemã (expressada pelo termo Volkstum), enquanto
que a cidadania estava restrita aos nascidos na Alemanha.
668
664
César PAIVA, Escolas de língua alemã no Rio Grande do Sul, p. 124.
665
César PAIVA, Escolas de língua alemã no Rio Grande do Sul, p. 124.
666
Marlene de FÁVERI, Memórias de uma (outra) guerra, p. 65.
667
Marlene de FÁVERI, Memórias de uma (outra) guerra, p. 67.
668
Giralda SEYFERT, Nacionalismo e identidade étnica, p.8-9. Veja também o trabalho de Dagmar E.
Estermann MEYER, “Alemão”, “estrangeiro” ou “teuto-brasileiro”?: representações de docência teuto-
309
A pesquisa de Seyfert aponta para uma diferença entre as noções de cidadania e
nacionalidade. A nacionalidade está vinculada ao direito de sangue, enquanto que a
cidadania está vinculada ao Estado onde se nasceu. Portanto, não importando onde tenha
nascido, o alemão será sempre alemão, pertencente a uma cultura, língua e pátria própria.
A autora sugere a noção de duplo pertencimento no sentido de que o teuto-brasileiro,
mesmo sendo cidadão brasileiro, naturalizado, eleitor em dia com os impostos, etc.,
continuava sendo alemão.
669
A noção de nacionalismo na cultura alemã comportava forte
componente lingüístico. Segundo Fáveri, “os alemães vêm para o Brasil trazendo esse
sentimento de pertencimento a uma raça e identificados na língua (embora houvesse
dialetos, a ligação transcendia)”.
670
A vivência cotidiana da Deutschtum (germanidade)
tornou-se um grande problema na vida dos imigrantes alemães, principalmente em relação
ao uso da língua alemã. Fáveri relata, no entanto, que os italianos eram tão vigiados quanto
os alemães:
A denúncia do idioma não era apenas contra alemães; os italianos era tão vigiados quanto,
e os processos seguem da mesma forma: uma denúncia, o delegado abria inquérito e
enviava para o Departamento de Ordem Política e Social; este encaminhava ao Tribunal de
Segurança Nacional – ou voltava para maiores investigações, ou era arquivado.
671
Portanto, a nacionalização do ensino atingiu também outras etnias, como italianos,
poloneses, japoneses. Segundo Paiva, em abril de 1938, com diferença de poucos dias, os
estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul decretaram a nacionalização do
ensino nas escolas particulares:
O primeiro decreto rio-grandense não era tão rigoroso como o dos outros estados. Era ainda
permitido o ensino de línguas estrangeiras nas escolas primárias particulares, desde que as
matérias Português, Geografia, História do Brasil e Educação Moral e Cívica tivessem
prioridade no plano de ensino. (...) Foram proibidos o recebimento de subvenções oriundas
de governos e instituições estrangeiras, a afixação de cartazes em línguas estrangeiras vivas
e homenagens a chefes de Estado e membros de governos estrangeiros. A 23 de abril do
mesmo ano, o governo rio-grandense decretou as condições de registro, funcionamento e
inspeção das escolas particulares.
Esta primeira fase da política de nacionalização do ensino no Rio Grande do Sul termina
em dezembro de 1938 com a publicação do Decreto nº 7.614, pois a legislação anterior
entrava em conflito com decretos federais que afetavam a mesma problemática. A nova lei
gaúcha determinava que o ensino primário deveria ser ministrado exclusivamente em
português. Os diretores das escolas particulares deveriam ser brasileiros natos e pessoas
brasileiro-evangélica no Rio Grande do Sul. Disponível em: http://www.anped.org.br/23/textos/0219t.PDF.
Acesso em: 29/12/05
669
Marlene de FÁVERI, Memórias de uma (outra) guerra, p. 68.
670
Marlene de FÁVERI, Memórias de uma (outra) guerra, p. 68.
671
Marlene de FÁVERI, Memórias de uma (outra) guerra, p. 98.
310
que não dominassem o português não poderiam exercer funções docentes. Ficava também
proibida a utilização de línguas estrangeiras durante e mesmo fora dos horários das aulas.
672
O Diário Oficial do Estado de Santa Catarina já publicou no dia 02 de abril de 1938
o decreto-lei n. 88, estabelecendo normas rigorosas em relação ao ensino primário em
escolas particulares no Estado:
O Doutor Nerêu Ramos, Interventor Federal no Estado de Santa Catarina, no uso da
atribuição que lhe confere o art. 181 da Constituição da República,
Considerando que, embora a arte, a ciência e o seu ensino sejam livres à iniciativa
individual e à de associações ou pessôas coletivas, “não se pode confundir liberdade de
pensamento e de ensino com a ausência de fins sociais”;
Considerando que o ensino é “um instrumento em ação para garantir a continuidade da
Pátria e dos conceitos cívicos e morais que nela se incorporam”;
Considerando que, portanto, é dever do Estado tutelar a educação da infância e da
juventude brasileiras, não apenas apercebendo-as de conceitos e noções sem fisionomia
moral e cívica, mas formando-lhes o espírito no culto às tradições, à língua, aos costumes e
às instituições nacionais, e na compreensão dos direitos e dos deveres do cidadão
brasileiro;
Considerando que, sendo cidadãos brasileiros “os nascidos no Brasil, ainda que de pai
estrangeiro, não residindo êste a serviço do govêrno do seu país, – corre ao Estado a
obrigação de resguardar e defender as novas gerações brasileiras, sem distinção de sua
origem racial, de toda e qualquer influência que contrarie aquele postulado constitucional e
desvirtue, tolha ou dificulte a propaganda dos sentimentos de brasilidade no espírito dos
que nasceram no solo nacional;
Considerando a necessidade de consolidar e uniformizar as disposições existentes relativas
ao ensino primário privado, bem como de pô-las de acôrdo com a orientação social e
política do Estado Novo;
DECRETA. (seguem 27 artigos, com vários parágrafos).
673
Este decreto exigia provas da nacionalidade dos professores.
Art. 4º: (...) 1º - “(...) de serem brasileiros natos os professores da língua nacional,
geografia, história do Brasil e educação cívica e moral, em todos os cursos; 2º - (...) de que
o diretor, ou responsável, e os demais professores são brasileiros natos, ou naturalizados;
(...)”.
674
Também foi proibido o uso de língua estrangeira nos estabelecimentos particulares
de ensino primário. Todas as aulas precisavam ser dadas em português, com exceção do
ensino de idioma estrangeiro.
Art. 7º: - É obrigatório aos estabelecimentos particulares de ensino primário:
1º - dar em língua vernácula todas as aulas dos cursos pré-primário, primário e
complementar, inclusive as de educação física, salvo quando se tratar do ensino de idioma
estrangeiro; (...) 3º - usar exclusivamente a língua nacional quer na respectiva escrituração
(...) na parte interna ou externa do prédio escolar; 4º - confiar os cursos de jardins de
672
César PAIVA, César PAIVA, Escolas de língua alemã no Rio Grande do Sul, p. 121.
673
GOVERNO DO ESTADO (*) DECRETO-LEI N. 88, Diário Oficial do Estado de Santa Catarina, p. 1.
674
GOVERNO DO ESTADO (*) DECRETO-LEI N. 88, Diário Oficial do Estado de Santa Catarina, p. 1.
311
infância e escolas maternais a professores brasileiros natos; 5º - ter sempre ensaiados os
hinos oficiais; 6º homenagear aos sábados a Bandeira Nacional, conforme se pratica nos
estabelecimentos oficiais, fazendo recitar a oração, que será fornecida pelo Departamento
de Educação; (...)
Art 8º - Os mapas, fotografias, estampas, dísticos ou emblemas, assim nas salas de aula,
como em qualquer outra parte do prédio escolar, não poderão perder o característico de
brasilidade.
§ único – É obrigatória a colocação da Bandeira Nacional, em lugar de destaque, em todas
as salas do estabelecimento.
675
Associado à obrigação do uso da língua nacional também se desenvolveu um certo
culto à bandeira nacional, afirmando o nacionalismo brasileiro. Todo sábado era
obrigatório homenagear a bandeira nacional (conforme artigo 5º), recitando a oração
fornecida pelo Departamento de Educação. Esse artigo foi de extrema importância para os
objetivos da nacionalização do ensino, pois impôs a brasilidade culticamente, através de
símbolos, hinos nacionais, ritualmente aos sábados, com a recitação de oração, fornecida
pelo Departamento da Educação. A professora Fiori traz em seu livro Aspectos da
evolução do ensino público a foto abaixo, que fala das solenidades diante do “‘Altar da
Pátria”
676
, afirmando o lado “religioso patriótico” da nacionalização do ensino.
Foto 1
Solenidades diante do “Altar da Pátria” no Grupo Escolar Municipal Machado de Assis-
Blumenau (Itoupava Seca) – por ocasião das comemorações da Semana da Pátria, em 1942.
675
Em relação a este artigo é ilustrativo o que conta o professor Friedhold ALTMANN, no seu livro A roda,
p. 79: “Os mapas tinham sido doados pela Alemanha, através do consulado. Sua legenda era em alemão. Em
vez de estar escrito Mapa da África, lá constava Karte von Afrika. Era o suficiente. Tudo isso tinha que ser
eliminado. Também avisaram que era rigorosamente proibido falar em língua alemã, tanto por parte dos
professores como dos alunos, na aula e também nos recreios.”
676
Neide FIORI, Aspectos da evolução do ensino público, p. 139.
312
Levanto aqui uma suspeita em relação ao culto à bandeira nacional. Para os
evangélicos luteranos, esse culto poderia ser entendido como idolatria, podendo ter gerado
resistência em relação a este fato e não somente um antipatriotismo, como foram acusados,
e daí o fechamento de tantas escolas teuto-brasileiras. Portanto, a nacionalização do ensino
esteve ligada a um forte nacionalismo brasileiro, que procurava dar feição nacional a todas
as atividades realizadas no país. A nacionalização do ensino implantada em 1938 nasceu
vinculada a um Estado ditatorial, mas com o apoio de uma grande parte do povo; por isso,
o governo Vargas é considerado um governo populista. As fotos aqui colocadas ilustram
essa suspeita.
“Cartilha “Getúlio Vargas para crianças", 1942
677
Escolas desfilam na Quinta da Boa Vista comemorando o Dia da Pátria, 1943.
Rio de Janeiro (RJ)
678
677
Cartilha “Getúlio Vargas para crianças”, 1942, Rio de Janeiro. Fonte disponível em
http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos37-45/ev_ecp001.htm
678
Escolas desfilam na Quinta da Boa vista comemorando o Dia da Pátria, 1943, Rio de Janeiro. Fonte
disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos37-45/ev_ecp001.htm
Documento 1
Foto 2
313
A forma como se implantou o processo de nacionalização do ensino, desde a
promulgação da Constituição de 1937, sob o governo de Vargas, institucionalizando o
Estado Novo, com decretos e imposições, tentando eliminar os valores culturais de uma
comunidade, especialmente o uso da língua materna, causou grandes danos sociais, muitas
vezes irreversíveis. Para os nacionalistas, as escolas do sul do Brasil que ministravam o
ensino em língua estrangeira, não estavam aptas a desenvolver o nacionalismo brasileiro. O
uso da língua alemã era o principal entrave para a construção do patriotismo por eles
apregoado. A língua foi o principal fator da nacionalização, pois acreditava-se que, através
do seu uso, se comungava em sentimentos e ideais. De acordo com Fáveri, “a língua, como
veículo essencial das relações, constrói identidades e designa uns e outros, exclui e inclui.
Naquele momento, a exclusão posta era para os que não dominassem o português”.
679
Além destes fatores, Paiva aponta para um outro:
A luta entre o catolicismo e o protestantismo no interior da população teuto-brasileira
reflete-se também na diferente perspectiva que os católicos tinham da manutenção da
língua alemã naquele grupo. Ainda que os católicos tenham-se empenhado profundamente
na defesa das escolas, havia a tendência a encarar o ensino do alemão como uma forma
indireta de incentivo ao protestantismo. Para os evangélicos, a perda da língua alemã em
um ambiente predominantemente católico era encarada como o primeiro passo para a
mudança de religião. (...) A Igreja Católica organiza-se com base em paróquias que podem
abranger fiéis de várias origens étnicas; a Igreja Evangélica Alemã atuava exclusivamente
no interior da comunidade lingüística.
680
O autor apresenta um dado interessante no que se refere ao uso da língua alemã e
que tem a ver com a relação entre protestantismo e catolicismo. A mudança no uso da
língua alemã era encarada pelos evangélicos luteranos (protestantes) como a primeira
perda da identidade evangélica. Dreher, no seu livro Igreja e germanidade
681
, reflete sobre
esta questão da relação entre etnia e confessionalidade, que gerou muitas discussões entre
comunidades e pastores até a formação de uma Igreja Nacional em 1962.
Anneliese, nesse período histórico, encontrava-se em Canoinhas: havia sido
contratada como professora para a 1ª classe do primário, na Escola Particular de
Canoinhas. Iniciou seus trabalhos no começo de 1938. Ela lembra:
“Em maio de 1938 chegou um tal de capitão Melo. Ele proibiu o pastor e a esposa de
continuarem lecionando na escola, devido à língua alemã. Era o tempo da Segunda Guerra
679
Marlene de FÁVERI, Memórias de uma (outra) guerra, p. 127.
680
César PAIVA, Escolas de língua alemã no Rio Grande do Sul, p. 113.
681
Veja o livro de Martin DREHER, Igreja e germanidade, p. 204-217. (Faço referencia especialmente ao
Sínodo Luterano, no qual participavam Anneliese e Ruth).
314
Mundial, e aconteceu o processo de nacionalização que afetou as escolas. Eu trabalhei
como professora até outubro de 1938. O decreto de nacionalização das escolas já saiu em
31 de março de 1938. Continuei na ativa até outubro do mesmo ano. Então, fui proibida de
lecionar. Eu havia encaminhado, neste período, os meus documentos para uma espécie de
consulado alemão que tinha em São Francisco do Sul. Eu solicitei a nacionalização
brasileira. Só que isto não aconteceu. Os documentos demoraram um ano para voltar e,
quando voltaram, não estavam corretos. Desta forma, também não pude continuar
lecionando, devido à minha naturalidade, que era alemã.”
Houve dificuldades para a naturalização de alemães nesse período histórico.
Anneliese não conseguiu se naturalizar brasileira. Lecionou até outubro de 1938. Ela
lembra que o pastor e a esposa, por serem alemães, também não podiam dar aulas. O ano já
era 1939, início da 2ª Guerra Mundial, e ela não conseguiu se naturalizar brasileira,
precisando interromper a sua profissão como professora. Anneliese continua até os dias de
hoje como estrangeira no Brasil.
Anneliese traz à memória um outro fato que mudou a sua vida de forma drástica.
Naquela época, o pastor e a esposa, que também atuavam na escola, arranjaram um
casamento para Anneliese. A partir da intermediação do pastor e da esposa, Frederico
(professor, brasileiro, recém-chegado à escola) pediu para namorar com Anneliese. Ela
concordou, porque o considerava uma pessoa simpática:
“Na Páscoa, ele veio junto comigo para Jaraguá do Sul para conhecer o meu pai e a minha
mãe. Então, Frederico já perguntou para mim se eu queria casar com ele, e eu disse que não
podia responder nem que sim, nem que não. Ele era para perguntar para os meus pais, se
eles dissessem sim, daí tudo bem, eu me casaria com ele. No fundo, eu esperava que meus
pais dissessem que não. No dia 21/04/38, ele chegou em Jaraguá e falou com os meus pais,
e, qual foi a minha surpresa, os meus pais concordaram com o casamento. Agora, eu não
podia mais dizer que não. Eu precisava honrar a minha palavra.”
Anneliese não fez uso da sua vontade, da sua palavra. Ela não se mostrou uma
mulher com autonomia; lançou essa decisão tão importante da sua vida para os seus pais.
Ela diz: “se meus pais disserem que sim, daí tudo bem”. Anneliese era tutelada pelos pais.
A sua vontade não contava. Narrando as suas memórias hoje, no entanto, ela fala da sua
vontade e do seu desejo: “No fundo, eu esperava que meus pais dissessem que não”. Qual
foi a sua surpresa quando os pais concordaram com o casamento! “Eu precisei, então,
honrar a minha palavra.” A palavra dada está ligada com a honra. No dia 10 de agosto de
1938, já se realizou o casamento de Anneliese e Frederico na igreja evangélica em Jaraguá
do Sul. Anneliese afirma:
“O meu casamento foi arranjado. Eu casei, porque queria ajudar, como sempre. Frederico,
para assumir como diretor do internato misto, precisava estar casado. No entanto, com a
315
política de nacionalização, o P. Weege não pôde mais dar aulas e ele assumiu como diretor
do internato misto, e Frederico como diretor da escola. Todas as pessoas falavam coisas
boas do Frederico. Eu nem desconfiava que um dia poderia sofrer, devido às doenças
mentais do marido.”
Um casamento arranjado devido à política de nacionalização do ensino. Frederico
era brasileiro. Devido a essa política, o diretor precisava ser brasileiro. Não ficava bem o
diretor da escola ser solteiro. Assim se arranjou o casamento entre Anneliese e Frederico,
com um objetivo: salvar a escola. Anneliese sofreu muito com esse casamento. O
casamento arranjado foi um processo de violência contra a vida de Anneliese, além de não
ter garantido a abertura da escola, que foi fechada definitivamente em 1942. A alegação foi
que não estavam cumprindo “o patriotismo”.
Mesmo com as restrições impostas pelo processo de nacionalização, Anneliese não
parou com suas atividades. Ela continuou atuante.
“Como não podia mais dar aulas, eu “auxiliava” meu esposo, que era o diretor da escola,
em casa. Fazia todo o trabalho da secretaria em casa. Eu cuidava dos boletins, das
chamadas. (...) Eu também ajudava o P. Weege no Internato, ensinando trabalhos manuais
para os alunos e alunas.”
Ela aproveitou o tempo para aprender coisas novas:
“Nunca gostei de trabalhar só em casa. Assim tive a oportunidade de aprender, em 1940, a
fazer o Kunststrickerei (tricô artístico). (...) Foi uma grande sorte ter aprendido. Quando
meu marido ficou desempregado, eu sustentei a casa com este trabalho.”
Foi também em meio aos tumultos da 2ª Guerra Mundial que Anneliese
engravidou, e no dia 20 de abril de 1940 nasceu seu primeiro filho. Foi também nesse
período que ela começou a colaborar no trabalho do culto infantil na Igreja. Anneliese
parecia não se abalar. Ela foi proibida de lecionar na escola, mas na Igreja ainda encontrou
espaço para ser professora.
Em 1942, seu pai foi preso e levado para Florianópolis juntamente com dois
amigos. Os livros da família foram confiscados, inclusive a Bíblia e o Novo Testamento.
Seu pai foi acusado de ter uma arma em casa. Ele, no entanto, já havia entregue essa arma
na prefeitura. Depois de 14 dias preso, seu pai conseguiu a liberdade com a intervenção de
316
um advogado. Os amigos do seu pai não tiveram a mesma sorte e ficaram presos dois
anos.
682
Em 1942, o Brasil entrou na 2ª Guerra Mundial, e as atividades da Escola Particular
de Canoinhas foram proibidas. A alegação foi que ela não estava cumprindo o patriotismo
brasileiro. Anneliese e Frederico ficaram desempregados. O marido conseguiu trabalho
numa tipografia em Joinville até o final de 1943. Fizeram, então, muitas dívidas e
compraram terras em Jaraguá do Sul, tornando-se agricultores. O marido não entendia nada
do trabalho da roça, mas Anneliese havia aprendido alguma coisa com os pais. A vida se
tornou muito dura. “Eu sempre precisava puxar a frente”. A doença mental do marido se
agravava cada vez mais!
Ruth, no tempo da nacionalização do ensino, ainda era uma criança. Ela estava no
4º ano primário e sofreu violência física por não saber ler nem pronunciar direito o
português:
“No ano de 1938 eu ingressei no 4º ano primário. Nesse ano que eu aprendi mesmo o
português com o professor Mauro Schneider. (...) Foi um tempo bastante difícil para mim e
também para os meus colegas. (...) Um dia, na escola, o professor pediu para mim ler um
texto. Eu não consegui ler direito em português. Ele mandou eu estender as mãos e me
bateu porque eu não sabia falar e ler em português. Eu chorei! Nunca esqueço disso. Foi
bem humilhante.”
Ruth continua seu relato e se lembra da professora Hilda, que também é sua amiga:
“A professora Hilda
683
(que também é uma grande amiga) nos contou que chegou um
homem na escola e percebeu que a bandeira brasileira não estava hasteada e que as crianças
falavam alemão. Ele decretou o fechamento da escola. Era época da guerra. Isso foi bem
triste para todos nós. Eu entrei com 8 anos na escola e permaneci até os 11 anos, quando a
escola foi fechada em agosto de 1938. O resto daquele ano fiquei em casa, não estudei
mais. Era um tempo difícil. Havia soldados na ruas. Toda fala em alemão era proibida.”
Ela conta que também seu avô materno Albert Rahn foi preso:
“Ele foi preso juntamente com o pastor de Pomerode, porque falaram em alemão. Meu avô
contava que foram levados para a prisão em Blumenau. Na cela não tinha cama, só
cimento. Eles tiraram o paletó, deitaram a cabeça em cima e dormiram a noite toda. Meu
avô já estava aposentado. Não estava mais dando aulas. Ele foi delatado por um outro
professor brasileiro. Ele falou que meu avô tinha livros em alemão em casa. Esses livros
foram todos queimados.”
682
Marlene de FÁVERI, Memórias de uma (outra) guerra, p. 139-262. A autora apresenta inúmeros casos de
denúncia devido ao uso da língua alemã e também italiana. Inúmeras pessoas foram presas, devido a
denúncias de que teriam armas em casa, livros em alemão e por terem falado em língua estrangeira.
683
Colega que estudou com Anneliese no Seminário para Professores em Timbó, no período de 1936-1937.
317
Ela recorda que também “o P. Waidner, pastor da minha comunidade em Jaraguá
do Sul, foi preso”. Um outro aspecto da vida de Ruth relacionado ao processo de
nacionalização do ensino tem a ver com a escrita do seu nome.
684
No ano de 1939, ela
ingressou no Colégio São Luiz (já existia desde 1912). No ano de 1940, houve uma divisão
nas escolas católicas. As meninas foram estudar no Colégio Divina Providência (colégio
católico que surgiu nesse período):
“As aulas eram todas em português. Para mim foi bem sofrido. Tive que me esforçar
bastante para poder acompanhar a turma. (...) A irmã Estefânia também encapava os meus
cadernos, livros de leitura e de matemática. Ela tinha escrito RUTE na capa. A minha mãe
foi lá na escola, protestou e disse que meu nome era RUTH, conforme a certidão de
nascimento.”
A irmã católica tentou aportuguesar o nome de Ruth. A partir desse fato, surge uma
questão: quais eram as relações entre as escolas católicas e o processo político que se
instalou com a nacionalização do ensino? Por que as escolas católicas não sofreram tantas
perseguições como as escolas comunitárias luteranas?
Esse período do processo de nacionalização do ensino é lembrado como um período
de muita humilhação, tensão, tristeza e medo. As suas conseqüências na vida de Anneliese
e Ruth deixaram profundas marcas, causaram rupturas e também provocaram resistências,
ditos e não-ditos. Poder falar dessas memórias é encontrar um espaço de liberdade.
Percebe-se aqui a memória atuando como um espaço de emancipação em suas vidas, pois a
narração acontece a partir do contexto de suas histórias de vida que está ligado à situação
política brasileira de nacionalização do ensino, desencadeada durante o governo ditatorial
de Vargas, na difícil conjuntura internacional que acabou desencadeando a 2ª Guerra
Mundial.
Anneliese fala das suas experiências de ser mulher, professora, imigrante, e Ruth de
ser criança nascida no Brasil, mas que aprendeu desde pequena a falar alemão, o que
acabou fazendo parte do seu cotidiano. A narrativa das suas histórias de vida leva à
seguinte questão: Por que elas tiveram que sofrer esses abalos em suas vidas, se não
fizeram e não quiseram a guerra? Falar dessas memórias subterrâneas foi um processo de
libertação, pois elas puderam expressar as suas mágoas em relação às conseqüências do
processo de nacionalização do ensino e da Segunda Guerra Mundial em suas vidas.
684
Veja documentos 1 e 2, na História de Vida de Ruth, p. 173 - 174.
318
7.8 Lembranças da escola comunitária na vida
685
de Renita e Yvonne
Yvonne e Renita estudaram no mesmo período na Escola Particular Jaraguá, nos
anos de 1962 a 1965. A experiência de ambas, no entanto, é diferente. Yvonne, antes de
ingressar na Escola, já participava do Jardim de Infância Pestalozzi desde a idade de 1 ano
e 8 meses. Renita, antes de ingressar na Escola, já trabalhava com os pais na roça e em
casa. Ela pôde estudar na Escola Particular Jaraguá porque recebeu bolsa de estudos. Para
Yvonne, no entanto, a passagem do Jardim para a Escola foi algo normal, pois uma
instituição estava ligada com a outra, tendo como mantenedora a Igreja Evangélica
Luterana.
Elas já tinham cadernos, lápis, caneta-tinteiro, tinta parker, mata-borrão e um
caderno especial para matemática, todo quadriculado. Nesse tempo já havia professoras
católicas na escola. Renita lembra do momento da chamada: “Nós tínhamos nome e
sobrenome, e não éramos chamadas por um número ou somente pelo primeiro nome.” Elas
lembram que também usavam uniforme: “O nosso uniforme da escola era saia azul
marinho com tirantes, blusa branca com o nome da escola bordado.”
Renita recorda ainda o seguinte:
“A pasta onde eu carregava o material era feita de couro, tipo de uma mala feita pelo
sapateiro, com duas repartições. Esta mala era para todo o tempo de escola. Ela tinha umas
fivelas para fechar e a mala era pesada para carregar. Tudo ia dentro da mala, o lanche, o
penal, os cadernos e os livros.”
Elas contam que a escola era mista, com meninos e meninas. Só que na sala de aula
os meninos e as meninas sentavam separados: de um lado sentavam os meninos, e de outro
sentavam as meninas. Yvonne conta que ela “era bastante tagarela, gostava de conversar.
(...) Um dia a professora me pegou conversando e como castigo ela me sentou no meio de
três rapazes. Fiquei ali no meio dos meninos toda envergonhada.” A forma como Yvonne
estava agindo na escola foi classificada pela professora como uma atitude de menino. Um
menino pode ser agitado e falante. Menina não age assim! Uma menina precisa ser calma,
serena, quieta. O castigo visava a disciplinarização dos corpos
686
, a normatização da
685
A escola retomou as atividades no ano de 1950, abrindo, primeiramente, o Jardim de Infância Pestalozzi.
686
O professor Norberto DALLABRIDA, em A fabricação escolar das elites, p. 145-196, verificou que a
vigilância e a punição eram meios utilizados pelos jesuítas no processo de formação de jovens das elites no
Ginásio Catarinense na Primeira República. Buscava-se a formação de jovens disciplinados. Aqui é
importante uma ressalva: este ginásio era formado só por rapazes. Por isso, entendo que o castigo que
Yvonne recebeu foi bastante humilhante. Ela fazia parte de uma sala mista, onde havia meninos e meninas,
quando a professora a fez sentar no meio dos rapazes. Ela classificou a atitude de Yvonne como a de um
319
conduta
687
, na construção da identidade de meninas e meninos. Renita também se lembra
da palmatória como castigo. Diz ela: “Eu me considerava uma aluna estudiosa. Um dia eu
errei uma palavra na hora do ditado. A Prof. Esthéria virou a palma de minha mão, pegou a
régua e bateu para não errar mais. Esta era a didática da época. Recebi, em outra ocasião,
um outro castigo, que era sentar junto com um menino.”
A escola, no entanto, é lembrada como a segunda casa. Renita se recorda “de um
armário com vidro, que estava em uma das salas”. Este armário era a biblioteca da escola,
lembrando, para ela, como que um mundo encantado, que guardava os livros de história.
Livros que Renita leu com gosto. Ela conta: “Os livros eram encapados com capa dura e
papel amarelo. A gente para ver a ilustração tirava um pouco a capa amarela; porque vendo
as figuras se viaja muito mais. Eu tinha muita curiosidade. Ler e olhar as figuras era uma
maneira de ver televisão na época.” Renita afirma que desenvolveu, nesse período, o hábito
da leitura, que cultiva até hoje, sendo uma assídua freqüentadora da Biblioteca Pública
Municipal.
Em relação à língua alemã, que tanto se buscou eliminar no período da
nacionalização do ensino, Renita recorda que até os 5 anos só falava alemão. Um ano antes
de ir para a escola, “a gente aprendia um pouco de português.” Yvonne lembra que,
“quando voltava da escola, queria contar as novidades para a minha mãe e falava em
português, e daí ela me obrigava a falar em alemão; eu perdia a vontade de continuar a
contar, pois ela me dava um corte.”
O momento mais esperado na escola era o recreio. O tempo do recreio era muito
alegre. A escola era entendida por Renita e Yvonne como continuação da casa. Yvonne
lembra que a convivência na escola era muito intensa: “Sempre tive muitas amizades na
escola. A gente trocava mensagens, escrevendo num caderno de recordações.” Renita conta
que
“ficava com vergonha na hora de comer a merenda. (...) A merenda para o recreio a gente
levava de casa, pão de milho, queijinho branco, Muss (doce), melado ou lingüiça. Tudo
isso era enrolado num guardanapo de pano bem limpinho. A gente ficava com um pouco de
vergonha quando via o pão de nossas colegas da cidade, que era o pão branco.”
menino. A professora humilhou-a na frente de todos alunos e de todas as alunas: afirmando, com isso, que as
meninas precisam ser boazinhas, dóceis, discretas, gentis.
687
Guacira Lopes LOURO, Pedagogias da Sexualidade, p. 18. Segundo a autora, o que se pretendia com
estas atitudes era “a produção de um homem e de uma mulher ‘civilizados’, capazes de viver em coerência e
adequação na sociedade.”
320
É na hora de comer a merenda que Renita foi percebendo diferenças entre as
meninas da cidade e as do interior. Já na hora do recreio havia uma maior integração entre
meninos e meninas, brincavam de ovo podre, mata-soldado, bandeira. Para voltar à sala
depois do recreio, “tínhamos que fazer fila, 2 a 2, para entrar na sala de aula em ordem.” É
possível perceber que havia uma grande disciplina na escola.
A ida para a escola também se realizava de forma diferente na vida de Yvonne e de
Renita. Yvonne recorda que
“sempre ia a pé para a escola. A minha casa ficava próxima da escola. Vivi na mesma casa
até os 20 anos, quando casei. Esta casa é hoje a sede do jornal ‘Correio do Povo’. Quando
chovia, eu ia toda protegida, com galochas, capa de chuva e sombrinha. Era divertido
caminhar na chuva. A gente gostava de brincar nas poças de água.”
Renita morava a cinco quilômetros do local da Escola. Até o 3º ano primário ela
vinha de carona com a sua irmã. Nesse tempo, a sua irmã Astrid ganhou uma bicicleta
nova, e ela ficou com a velha. Além de carregar a mala da escola, ela se lembra da nuvem
de poeira que ficava para trás. Em sua narrativa, Renita compara o ontem com o hoje:
“As bicicletas de hoje são muito diferentes do que as daquele tempo. As ruas também são
bastante diferentes. Quando a gente ia para a escola, não tinha calçamento ou asfalto. Tudo
naquele tempo era mais devagar. Não havia tanto perigo. O pulsar da vida era bem
diferente. (...) As mudanças são rápidas e bruscas. Onde um dia existia roça, hoje está
virando cidade industrial.”
Renita se recorda das dificuldades de estudar numa escola particular no centro da
cidade e viver no interior: “Havia uma rotina diária que precisava ser cumprida junto com
o tempo que estávamos na escola.” E esclarece:
“A tarefa de cortar batata doce para as vacas fazia com que as nossas mãos ficassem
manchadas; isso exigia da gente um esforço bem grande de limpeza. Todas as noites a
gente precisava esfregar com limão as nossas mãos para as manchas saírem. (...) Depois da
janta, quando todas as tarefas já estavam cumpridas, a gente passava o ferro elétrico no
nosso uniforme e arrumava o material para o dia seguinte. Quando chovia, a gente ia pé e
seguia pelos trilhos do trem. Nós íamos caminhando devagar com a nossa sombrinha até
chegar na escola, pois tínhamos medo de sermos respingadas e chegarmos sujas na escola.
Desta forma fomos percebendo as diferenças entre as pessoas que moravam no centro da
cidade e a nossa, que morávamos na roça.”
Também o tempo de férias da escola era vivido de forma diferente.
“Nas férias, algumas colegas iam para a praia. O verão era a época de mais trabalho na
roça. O arroz era plantado em novembro, quando as aulas terminavam, e o nosso pai já
esperava a nossa ajuda para a colheita do arroz. Em janeiro, num dos meses mais quentes
do ano, era colhido o milho que era plantado em julho. (...) A gente falava para os nossos
321
primos da cidade que as nossas férias aconteciam quando tínhamos aulas. Acho que eles
não entendiam isso direito.”
Já Yvonne passava as férias na casa da avó paterna e madrinha Ida, que residia em
Curitiba e sempre a levava junto para os cafés. Também passava férias com a avó materna
na praia. Teve oportunidade de viajar com os pais.
Essas diferenças em relação ao tempo de férias estão mais presentes nas narrativas
de Yvonne e Renita do que nas histórias de vida de Anneliese e Ruth. É possível perceber,
a partir das narrativas, uma mudança na vida econômica e social: a partir dos anos 60, a
cidade começou a se urbanizar e industrializar. Uma das maiores empresas de Jaraguá do
Sul, a WEG, fábrica de motores, foi fundada em 16 de setembro de 1961.
No final de 1965, Yvonne e Renita fizeram exame de admissão para o ginásio. Os
pais de Renita não tinham condições de comprar o livro para estudar para o exame de
admissão, e a professora Carla emprestou. Yvonne e Renita foram aprovadas.
7.9 Renita e Yvonne: continuidade dos estudos na escola católica
A trajetória da vida escolar de Renita e Yvonne durante o tempo do ginásio
continuou na “Escola Normal e Ginásio Divina Providência”, dirigida pelas Irmãs da
Divina Providência. Era um colégio só para meninas. Elas fizeram nesta Escola o 1º, 2º, 3º
e 4º ginasial, nos anos de 66-69. A estrutura física do colégio é lembrada como muito
bonita e boa. Havia cheiros de flores. O sol entrava pela janela da sala. A biblioteca é
lembrada por Renita “como muito linda. Ela ficava bem no meio da construção; na parte
superior havia até uma sacada com flores.”
Yvonne recorda:
“As mudanças foram bem grandes, com a mudança de escola. Éramos só meninas em sala
de aula. As irmãs eram bastante rígidas. Os meninos estudavam no Colégio São Luiz,
dirigido pelos Irmãos Maristas. Uma das coisas que me chamavam atenção era que as
meninas que estudavam nas classes mais adiantadas usavam as saias mais curtas e umas
unhas bem compridas, indo contra as normas do Colégio.”
Cai na vista que Yvonne observa que as meninas das turmas mais adiantadas
tentavam burlar as normas do colégio, usando saias mais curtas e unhas mais compridas.
688
688
Veja Documento 6 e 7, na História de Vida de Yvonne, p. 248. No regulamento do colégio estava escrito:
“Conforme o espírito de simplicidade que deve reinar no Educandário não se admite o uso de pintura e jóias
a não ser bem discreto.”
322
Os anos 60 foram o período em que iniciou a 2ª onda do feminismo, na qual as mulheres
buscavam uma maior libertação do seu corpo e sexualidade.
Yvonne me mostrou os boletins desse período, que são uma espécie de caderno, em
que também ficavam registrados os recados entre os pais e a direção da escola. Havia um
rígido controle sobre a saída das alunas. Em todos os quatros anos, no currículo constava
Artes Femininas, e no 4º ano, apenas Artes. No 3º e 4º também estudavam Francês,
juntamente com o Inglês desde o 1º ano. No último ano tiveram a disciplina de OSPB –
Organização Social e Política do Brasil. Yvonne também destaca que, “nas aulas de
Ciências, elas faziam experiências. Gostoso mesmo, no entanto, era o recreio.” Renita
também se lembrou dos exames de Educação Física, exame de resistência, seqüência de
exercícios. “O exame era individual e ficávamos com fortes dores musculares no dia
seguinte. Havia inclusive um boletim especial para a disciplina”.
689
Em relação à questão
religiosa, Renita diz:
A gente também recebia influências da Igreja Católica. Toda primeira sexta-feira do mês
tinha missa na Igreja São Sebastião. A gente adorava ir à missa, porque se encontrava com
os rapazes que estudavam no São Luiz. A primeira sexta-feira era esperada com
expectativa. A missa da sexta-feira era o dia que proporcionava os encontros e os olhares
entre as meninas do Divina Providência e os meninos do São Luiz. Era o tempo das
“primeiras paqueras”.
A missa era considerada como um momento social, que proporcionava o encontro
entre as moças do Divina e os rapazes do São Luiz. Este momento era esperado com
expectativa. Renita e Yvonne gostavam de ir à missa, para poderem se encontrar com as
outras turmas e também com os rapazes. É interessante que as duas narradoras não relatam
nenhum aspecto da espiritualidade católica que as tenha marcado, como orações ou outras
práticas.
Renita tem presente também o momento político que se vivia no país. O período de
66 a 69 foi marcado pela ditadura militar. Renita recorda que: “Todo o mundo tinha medo
do tal do comunismo. Havia um clima de guerra, de desconfiança e de medo no ar.” Ela
esclarece:
“No último ano do ginasial, em 1969, nós levantamos recursos financeiros para a nossa
formatura. Um dia, nós fomos vender rifa. Éramos três meninas e saímos para vender rifa.
Chegamos tarde ao colégio. Fomos interrogadas individualmente por uma freira, para ver
se nós contávamos as mesmas histórias. A desconfiança da irmã era que nós estávamos
fazendo atividade subversiva. A Irmã Elisabete disse para nós: “Vocês acham que eu não
689
Veja o anexo 3, Ficha de Educação Física, referente História de Vida de Renita.
323
tenho antenas?” Ficamos três dias de suspensão. Como eu ia contar isso para os meus pais?
Minha irmã mais velha assinou para mim. Havia muita desconfiança, por causa da ditadura
militar, até no colégio.”
Renita e Yvonne também lembram a excursão de formatura para a Florianópolis,
capital do estado, como um acontecimento importante, que marcou o fim dos estudos no
Colégio Divina Providência.
7.10 Formação e atuação profissional
Anneliese buscou formação, como já se viu, como professora de escola primária.
Desde criança também trabalhou na roça. Ela trabalhou como professora auxiliar,
substituta, fazendo serviços gerais na Escola de Mulheres, e durante quase um ano como
professora do primeiro ano na Escola Particular de Canoinhas.
Anneliese afirma:
“Eu gostava muito de ser professora. Era bonito poder ensinar as crianças e os jovens. (...)
Se eu tivesse à disposição o material que hoje as professoras têm à disposição, teria feito
um trabalho melhor.”
Quando não pôde mais assumir o trabalho em sala de aula como professora, porque
não conseguira se naturalizar brasileira, ela não cruzou os braços. Continuou em ação. Ela
fazia todo o trabalho de secretaria da escola em casa: “Eu cuidava dos boletins e das
chamadas.” Além disso, fazia parte do currículo dos alunos aprender a fazer trabalhos
manuais, com o objetivo de atender as necessidades do cotidiano. Anneliese trabalhou
junto com o P. Weege ensinando trabalhos manuais. É nesse tempo que ela também
aprendeu o Kunststrickerei (tricô artístico): “Foi uma grande sorte ter aprendido. Sustentei
a casa com este trabalho. (...) Tricotando os fios da linha, desmanchando novelo por
novelo, sustentei a minha família.” Apesar das proibições da política nacionalizadora,
Anneliese fez do seu cotidiano um tempo de novas aprendizagens. Perrot afirma que “há
uma vivência das crises e das guerras diferente para cada um dos sexos. Um tempo
econômico diferente”.
690
Como Anneliese não pôde mais exercer a docência na escola, trabalhou com
crianças na Igreja Evangélica, no culto infantil. Como se observou anteriormente, com o
processo da nacionalização, Anneliese e Frederico tornaram-se agricultores. Como mulher
agricultora, Anneliese se tornou a chefe da casa: “Eu sempre precisava puxar a frente, se
690
Michelle PERROT, Os excluídos da história, p. 190.
324
não a gente morria de fome. Meu marido não tinha muita iniciativa.” Além do trabalho na
roça, ela era responsável pelas tarefas da casa e o cuidado dos dois filhos e da filha.
Ela também exerceu durante 22 anos o trabalho catequético na Comunidade
Evangélica Luterana de Três Rios do Norte, sem nenhuma remuneração financeira. De vez
em quando, ganhava um pato, aipim, banana, alguma coisa das mães das crianças. Quando
chegava em casa, aos domingos, depois do trabalho no culto infantil, o fogão ainda estava
frio. Era preciso fazer fogo, para, então, fazer o almoço. No entanto, foi esse trabalho de
docência na Igreja, como catequista, que a sustentou e lhe deu forças para suportar a difícil
e, muitas vezes, insuportável vivência com o marido. É interessante observar que, à medida
que as mulheres vão ocupando a sala de aula na escola formal, elas também vão assumindo
a educação cristã no ambiente formal – a igreja. Esta questão perpassa também a história
de vida de Renita.
Anneliese conseguiu se aposentar como mulher agricultora somente no ano de
2002. No entanto, isso não significou parar com o trabalho. Ela continua cuidando de suas
vacas, vendendo leite, criando galinhas, vendendo ovos e fazendo ainda muito tricô
artístico. Com 87 anos, é uma mulher ativa também no trabalho comunitário da Igreja.
Ruth conta que com 11 anos já fazia praticamente todo o serviço da casa, pois a sua
mãe estava muito doente. A situação financeira da família havia mudado. O pai já não
recebia mais tão bem. Ele não era mais taxista, e sim motorista da Viação Catarinense.
Deixou a profissão de motorista autônomo e tornou-se funcionário assalariado.
Quando Ruth terminou os estudos, ela fez o curso de datilografia, para atuar como
secretária, sendo esta uma das profissões que se abria para as mulheres nesse período
histórico. Ela também fazia aulas de piano. A família já não tinha mais condições para
pagar essas aulas. Foi a professora de piano que a incentivou a procurar um trabalho para
poder continuar com elas.
Com 17 anos, Ruth começou a trabalhar na firma Bernardo Grubba S.A. Ela
ressalta o aprendizado que teve do avô materno, que lhe ensinou a fazer cálculos
matemáticos de cabeça. A firma na qual trabalhou, relata Ruth, comprava praticamente
tudo dos colonos: leite, madeira, ovos... Não havia calculadoras; além do mais, os colonos
também faziam cálculos de cabeça. Ela recorda:
“Durante toda a minha vida, 39 anos, trabalhei só nesse lugar. Da nossa casa, eu e meu
irmão recebemos a educação de sermos pessoas fiéis e honestas. Em Jaraguá do Sul, fui
325
uma das primeiras mulheres a trabalhar num escritório. Depois, com o passar do tempo,
também fiz a contabilidade desta firma por muitos anos.”
Ruth também tornou-se chefe de casa, sustentando a família. O seu pai, nos últimos
anos de vida, sofreu da doença do alcoolismo. Ela conseguiu autonomia financeira e
comprou o seu próprio carro, construiu uma casa nova, comprou um apartamento na
praia... Ruth, hoje, é uma mulher aposentada. Ela tem 79 anos. Continua muito ativa no
trabalho da Igreja e, praticamente, faz todo o serviço da sua casa sozinha. Agora,
novamente, pensando na velhice, vendeu essas propriedades e comprou um apartamento,
procurando organizar uma vida mais confortável.
Renita trabalhou desde pequena na roça. Ela, juntamente com a sua irmã Inge, teve
uma experiência como professora, dando aulas para o MOBRAL (Movimento Brasileiro de
Alfabetização), numa escola municipal próximo da sua casa.
691
Teve uma primeira
experiência de trabalho fora de casa lecionando para pessoas adultas.
Depois que terminou o ginásio no ano de 1970, Renita foi para Joinville, buscando
aperfeiçoar-se como atendente de enfermagem, na Helena Stift – Fundação Helena
Hospital Evangélico Luterano. Havia, neste período histórico, um intenso trabalho de irmãs
diaconisas em hospitais evangélicos. A sua irmã Astrid já estava lá, estudando e
trabalhando. Durante o dia, profissionalizava-se como atendente de enfermagem e, à noite,
fazia o segundo grau no Colégio Estadual Celso Ramos. Havia um incentivo para as
mulheres serem enfermeiras e irmãs diaconisas:
“Quem me incentivou e teve a idéia de eu ir para lá foi a minha mãe. A formação de
atendente de enfermagem se dava na prática. Eu, até esse momento (com 16 anos), não
sabia como nasciam os bebês. Para mim, trabalhar na maternidade foi uma grande escola
de vida. Foi mágico. Havia um clima familiar no hospital. Lembro que a comemoração do
dia do aniversário era parecida com a de casa. Quando a gente ia para o refeitório, a cadeira
estava toda enfeitada e com presentes. A gente se sentia uma pessoa especial.”
Eram os anos 70, tempos do movimento hippie, amor livre e drogas. Renita ressalta
a formação moral e religiosa que recebiam por parte das irmãs. Recordando, ela diz:
“As irmãs diaconisas falavam sobre as drogas. Elas buscavam nos esclarecer. Quando
tinha um acontecimento, a irmã lia o jornal. Mas também havia tempo para ler a mensagem
do dia. Isso da leitura durante o café era sagrado e muito bom, aquilo te concentrava. A
descida para o refeitório era um momento de liberdade. Após o almoço tínhamos a famosa
freie Stunde [tempo livre], em que nós íamos passear, explorar os jardins de Joinville, ir ao
correio, e eu também ia à Biblioteca Pública. Nesse tempo que começaram a surgir os
sindicatos na área da saúde. No fim de 1972 (Natal), eu voltei para Jaraguá do Sul, havia
691
Veja foto 8, História de vida de Renita, p. 228.
326
reprovado em Matemática, quando estava no 2º cientifico. Voltei para a casa e para a roça.
Esta volta foi bem difícil. Trabalhei duro nas arrozeiras. Precisava arrumar e carregar o
barro para a arrozeira. Teve épocas em que pensava: por que voltei para Jaraguá do Sul?”
Renita reprovou no 2º ano do científico e retornou para Jaraguá do Sul e para o
trabalho da roça. No final de 1973, ela começou a trabalhar numa loja comercial. “Nesta
época já ia de ônibus para o trabalho e passei a estudar à noite no Colégio São Luiz.” Ela
trabalhou até dezembro de 1976: “Em 1977 passei a me dedicar à casa. Como eu
trabalhava no comércio e meu marido na indústria (Weg Motores), nossas férias não
coincidiam.”
Renita sempre gostou de estudar línguas, e este gosto vem desde o tempo da escola
comunitária luterana. Por isso, anos mais tarde, ela fez um curso de inglês. Em 1998,
lecionou para oito turmas do ensino fundamental no Colégio Estadual.
Enquanto eu realizava a pesquisa, Renita estava fazendo um curso de italiano,
juntamente com a sua filha Ângela, e o curso técnico de guia de turismo regional. Ela
conclui: “Meu nome é Renita. Ele tem a ver com as palavras resistência e persistência.
Estou com 50 anos. Sinto que é tempo para continuar a aprender e fazer novas coisas na
minha vida.”
O processo de entrada de Yvonne no mercado de trabalho se deu num momento de
profunda crise financeira no escritório de contabilidade do seu pai, sendo um momento de
ruptura em sua vida. Ela recorda:
“Até os meus 15 anos eu não soube o que eram problemas e sofrimento. Tudo era alegria e
felicidade. Não tinha nenhuma tristeza que eu me lembre. Quando eu tinha 15 para 16 anos,
meu pai sofreu um grande desfalque no escritório. Ele foi roubado por funcionários nos
quais ele depositava a maior confiança. Meu pai havia deixado o escritório sob a confiança
dos funcionários. (...) ...descobriu o desfalque no escritório. Foi um baque para ele. Tinha
muitos funcionários. O trabalho do escritório havia crescido muito. Havia ampliado o
trabalho. Meu pai chorou muito quando soube da situação do escritório. Meu pai sempre
foi muito envolvido na política, foi vereador, primeiro vice-prefeito, prefeito em exercício,
suplente de deputado estadual... Também estava envolvido na diretoria da Igreja, no Clube
Atlético Baependi... no jornal da cidade.... Por causa desse envolvimento dele na vida
social e política, foi deixando o trabalho do escritório nas mãos de outras pessoas que
traíram a sua confiança.
Meu pai, então, pediu para eu assumir o controle e o caixa do escritório. Precisei verificar a
situação financeira cliente por cliente, pois eles deixavam o dinheiro no escritório para que
a gente pagasse os seus impostos. Como houve roubo de dinheiro, meu pai teve que
assumir os pagamentos de muitos clientes, para honrar o seu nome, sujo pelos funcionários
que o traíram. Depois do desfalque, a gente não tinha dinheiro para mais nada. Fizemos
uma grande economia e conseguimos superar as dificuldades financeiras.”
327
Yvonne, como filha de pais de classe média alta, vivia sem preocupações. Foi a
partir do desfalque que o pai sofreu que ela começou a trabalhar no escritório: “(...) Sempre
fui uma grande companheira e amiga do meu pai. Eu e meu pai tínhamos uma grande
amizade. Ele me compreendia e me ensinou muitas coisas no escritório.”
Quando terminou o ginásio, estudou à noite e fez o Curso Técnico de Contabilidade
no Colégio São Luiz. “Durante o dia trabalhava no escritório e à noite estudava.” Yvonne
é a única das quatro narradoras que cursou uma faculdade. O que chama atenção é que ela
fez um curso que pouco se relaciona com o seu campo de trabalho. Cursou Letras:
português-inglês, em Joinville, enquanto o seu noivo cursava Administração de Empresas.
Yvonne cursou Letras, mas trabalhava no escritório do pai. Ela não conseguiu romper
com o esquema: homens estudam Administração de Empresas e mulheres estudam Letras.
Yvonne conta que teve uma pequena experiência como professora em sala de aula:
“De maio a dezembro de 1984, eu lecionei no Colégio Holando Marcelino Gonçalves.
Substituí a minha cunhada Júlia. Lecionei para as 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries Português, Inglês e
Ensino Religioso.” A partir das experiências cotidianas de trabalho, Yvonne se pergunta:
“Por que eu fiz o curso de Letras? Eu comecei a trabalhar muito cedo no escritório do meu
pai. Eu sempre cuidei das finanças e até hoje estou trabalhando na administração e nos
recursos humanos da nossa empresa.” Então, ela vai adiante no processo reflexivo e
conclui:
“Sinto que seria necessário fazer uma pós-graduação, me atualizar. Eu fiz o curso de
Letras. Hoje me pergunto: por que não fiz algum curso ligado com a área de contabilidade
ou de administração? Sinto que preciso fazer alguma coisa, mas não sei o quê. Também
não consigo me ver toda a noite numa sala de aula. Sinto-me muito cansada para isso.
Alguma coisa preciso fazer, para ficar mais atualizada. Se eu me colocar em qualquer
coisa, curso ou pós-graduação, preciso repassar algumas funções que tenho no escritório”.
Renita e Yvonne, mulheres com 51 anos, fazem uma profunda reflexão sobre a sua
vida profissional. Elas sentem que é momento de fazer alguma coisa diferente. Percebem
que está na hora de pensar mais em si mesmas.
Anneliese e Ruth apontam para uma reflexão sobre o que fizeram . Na narrativa de
Anneliese, percebe-se uma queixa-lamento-denúncia por ela não ter conseguido exercer a
docência. Quando diz: “Minha vida foi trabalhar, trabalhar e mais uma vez trabalhar”, o
trabalho não é visto como satisfação, mas como sofrimento e carga. Ela se sentiu alienada
em seu trabalho. A realização pessoal se manifestava no trabalho como professora. Já na
narrativa de Ruth, há um sentimento de maior realização na vida profissional. Mesmo
328
assim, ela só se sentiu uma pessoa mais livre e autônoma quando a sua mãe faleceu, de
quem ela cuidou até a morte.
7.11 Constituição da própria família – casamento
Anneliese teve um casamento arranjado, o que lhe causou muito sofrimento. Mas
nunca teve coragem de se separar, pois estava muito forte nela o que havia prometido
diante do altar: “Aquilo que Deus uniu, não o separe o homem”.
692
A liturgia do casamento
reforçava a submissão da mulher ao homem. Ela havia aprendido que uma mulher está aí
para ajudar, para ser uma auxiliadora. A leitura androcêntrica de Gn 2.18: “Far-lhe-ei uma
auxiliadora idônea” e de outras passagens bíblicas que afirmam a maioridade do homem e
a menoridade da mulher reforçou a submissão da mulher ao homem, tal como vem sendo
denunciado pela teologia feminista.
A legislação brasileira também declarava a mulher relativamente incapaz. Pelo
estatuto da mulher casada, a mulher só ganhou plena capacidade jurídica em 1962. No
Brasil, somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988
693
as mulheres e os
homens passaram a ter igualdade de direitos e obrigações. Em janeiro de 2002, o
presidente da República homologou o novo Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor
em janeiro de 2003
694
, assegurando à mulher e ao homem a direção compartilhada na
sociedade conjugal, a guarda dos filhos para quem tiver melhores condições de exercê-la, o
exercício compartilhado, entre pai e mãe, do poder familiar e permitindo ao homem usar o
sobrenome da mulher, entre outros. Portanto, religião e direito reforçavam, religiosa e
juridicamente, a submissão da mulher. Estas mudanças não são naturais; elas são fruto da
organização de mulheres e homens em busca da emancipação humana.
692
Na época em que Anneliese casou, a celebração do casamento, isto é, a passagem do “tempo de solteira”
para o de “casada” era marcada por uma forte submissão da mulher ao homem, conforme o Manual de
ofícios da IECLB, p. 28. O pastor pergunta ao noivo:
“Perante Deus, o Onisciente, e na presença destas testemunhas cristãs, eu te pergunto, N.N., queres receber
esta N.N. da mão de Deus como tua esposa, amá-la e honrá-la, não abandoná-la em horas de alegria, e dor e
manter a união matrimonial santa e indissolúvel, até que a morte vos separe? Se for esta a firme resolução do
teu coração, então responde: Sim.
E logo depois, o pastor pergunta à noiva:
Perante Deus, o Onisciente, e na presença destas testemunhas cristãs, eu te pergunto, N.N., queres receber
este N.N. da mão de Deus como teu esposo, amá-lo e honrá-lo, ser a ele sujeita no Senhor, não abandoná-lo
em horas de alegria e dor e manter a união matrimonial santa e indissolúvel, até que a morte vos separe? Se
for esta a firme resolução do teu coração, então responde: Sim.” (Grifo meu).
A forma diferenciada das perguntas dirigidas para o homem e a mulher, usadas pela igreja no momento do
casamento, sustenta o caráter hierárquico da relação matrimonial, colocando o homem como a cabeça da
família, afirmando a sua supremacia, e a mulher como a sua dependente, afirmando a sua menoridade.
693
Cf. www.senado.gov.br/bdtextual/const88/Con1988br.pdf, acessado dia 09 de janeiro de 2006.
694
Cf.www.presidência.gov.br/ccivil, acessado dia 09 de janeiro de 2006.
329
Tendo presente o contexto religioso, jurídico e a educação recebida, é possível
entender por que Anneliese sofreu tanto no casamento, mas não teve coragem para romper
com a situação. Em sua narrativa, transparece várias vezes que seu marido não sabia
trabalhar na roça nem fazer negócios. Anneliese “precisava puxar todas as frentes”. Ela foi
a chefe da família. Teve dois filhos e uma filha, pelos quais sempre zelou, para que
tivessem estudo e uma profissão. Tem netos e netas, bisnetas e bisnetos.
Anneliese conta que, quando encontrou seu marido morto, “foi um grande susto (...)
mas também um grande alívio”. Ela se lembra do que o médico falou para ela: “Agora,
Anneliese, você vai começar a viver.” Não esqueceu também a mensagem do pastor no dia
do enterro: “Se Anneliese não tivesse a fé que ela tem, não teria agüentado 57 anos de
matrimônio.” Anneliese reflete sobre a sua vida matrimonial e se utiliza de argumentos
teológicos e bíblicos para justificar o seu não rompimento com a situação vivida:
“Eu acredito que só agüentei estes anos todos, porque tenho muita fé e confiança em Deus.
Quando vinham o desânimo e a tristeza, eu sempre me lembrava da promessa que havia
feito no altar de Deus no dia do meu casamento. Nunca pensei em me separar do meu
marido, apesar de tudo o que eu passei com ele. Se eu tivesse me separado dele, o que teria
acontecido com ele? Ele teria ficado perdido, sozinho, jogado na sarjeta. Eu também
pensava nos filhos e filha. Eu sempre oro e converso com Deus, onde me encontro. Assim
fiz durante toda a minha vida. Eu sei muitos hinos de cor, quando batiam a tristeza e o
sofrimento eu cantava, para esquecer. Eu só não consigo orar em público. O Salmo 23 é o
meu preferido. Eu o sei de cor. Meditei e orei este salmo muitas vezes na minha vida.
Ainda hoje eu continuo agindo desta forma. A fé em Deus sempre me ajudou muito.
Lembrava muitas vezes que Jesus também tinha passado pelo sofrimento na cruz, e isto me
dava forças para carregar a minha cruz.”
Esta profunda reflexão de Anneliese sobre por que agüentou esse casamento difícil
de 57 anos me faz perguntar pela forma como a teologia luterana e a leitura bíblica têm
sido utilizadas para justificar o auto-sacrifício das mulheres. Na discussão entram questões
teológicas importantes e fundamentais para a emancipação humana. O que significa pecado
e graça para as mulheres? Como a teologia da cruz tem sido usada para justificar o
sofrimento das mulheres? Qual a dimensão do cuidado na vida das mulheres? O cuidado
para com os outros (marido, esposo, filhos e filhas) está ligado com o esquecimento de si?
A mulher aparece como uma extensão dos outros. A teóloga luterana feminista Deifelt
afirma:
(...) o pecado das mulheres não é egoísmo, mas o que tem sido considerado as virtudes
cristãs: auto-sacrifício, obediência, etc... O pecado das mulheres é a negação delas mesmas,
dependência, ausência de auto-estima. O problema das mulheres não é o pensamento que
elas podem salvar a si mesmas, mas justamente o contrário, a falta de confiança nelas
330
mesmas, mantida sociológica e psicologicamente, que leva a um sentimento de
incompetência e incapacidade.
695
Como já se refletiu no primeiro capítulo, Lutero afirma: “Um cristão é senhor
libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito.” A liberdade provém da Palavra, que, segundo o
Evangelho, se fez carne e habitou entre nós, conforme João 1.1. É sobre a condição de ser
livre que incide o serviço. Uma segunda frase de Lutero diz: “O cristão é um servo
oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito.” Isto significa, segundo a compreensão luterana, que
tudo o que o cristão e a cristã recebem de Deus devem colocar a serviço do próximo,
como Cristo fez por nós.
Percebo, na vida das narradoras, que a teologia luterana, fundada na serviçalidade
do amor, teve repercussões diferentes na vida de mulheres e de homens. Ao incluir na
liturgia de casamento as frases: “ser sujeita ao marido no Senhor”, “o que Deus ajuntou
não o separe o homem”, a igreja legitimou a construção sócio-histórica da hierarquia na
relação matrimonial. O ritual do casamento simboliza toda uma carga cultural que marca a
vida de mulheres e de homens, legitimando a submissão da mulher ao marido.
A narrativa da história de vida de Annelise, assim como também a de Ruth, Renita
e Yvonne, como se verá adiante, torna presente a luta feminista: as mulheres têm valor por
serem mulheres, não por causa de um outro. Como foi possível perceber no decorrer do
processo de análise e reflexão, a família, a escola e a igreja
696
, as instituições que foram
citadas como o fundamento da vida das narradoras, têm mantido um intricado sistema de
controle sobre a vida das mulheres. Na verdade, têm construído sócio-historicamente, desta
forma, homens e mulheres. É mais do que nunca necessário recuperar a ética do cuidado
para com toda a humanidade. As mulheres precisam, a partir das suas experiências de vida,
colaborar no processo de reflexão teórica e prática, apontando para o cuidado como uma
dimensão social
697
de toda a humanidade. A vida não existe sem o cuidado. Mas por que só
695
Wanda DEIFELT, Justificação pela fé fala para a experiência das mulheres, p. 7.
696
Pierre BOURDIEU, A dominação masculina, p. 103. “O trabalho de reprodução esteve garantido até
época recente por três instâncias principais, a Família, a Igreja e a Escola, que, objetivamente orquestradas
tinham em comum o fato de agirem sobre as estruturas inconscientes.”
697
Rosiska Darcy de OLIVEIRA, Reengenharia do tempo, p. 70-71: “A verdade é que não se admite que a
função de care, o cuidado com outros seres humanos, mais frágeis, que dependem de nós, tenha um valor
social. (...) Na agenda brasileira, esse problema ficou confinado aos manifestos feministas. Ninguém
acreditou na vida real.”
331
as mulheres precisam cuidar?
698
Não há justificativa teológica para sustentar o monopólio
do cuidado nas mãos das mulheres, privando os homens de exercer esse serviço vital.
699
A quinta bisneta de Anneliese leva o seu nome, indicando a perspectiva de uma
nova história para as mulheres. Que não se repita nela a história de sofrimento, submissão
e silenciamento da bisavó!
700
Aqui me defronto com uma certa ambigüidade, pois busco
recuperar espaços de emancipação na trajetória de vida de Anneliese; no entanto, é a sua
bisneta que traz a esperança de uma nova história.
Ruth relata que ela não se casou, porque na sua época havia muitos casamentos
arrranjados, e ela viu muitas amigas infelizes. Ela recorda:
“Com 27 anos eu estava noiva de um rapaz de uma família tradicional de São Bento do Sul.
Ele tocava 1º violino na orquestra da cidade. Este rapaz gostava muito de mim. Eu o
conheci numa destas festas das Sociedades de Ginástica. Nós começamos a namorar no
Natal, e, na Páscoa do ano seguinte, ele já pediu para noivar... Nós noivamos, só que eu não
tinha amor por ele... Meu pai dizia para mim: “Ruth, die Liebe kommt!” O amor não
chegou! O nosso noivado foi se arrastando por um ano... foi e foi, até que meu noivo
acabou o noivado. Eu sofri com o acontecido, mesmo não tendo amor por ele. Na época
tinha muitos casamentos arranjados. Muitas amigas casaram com pessoas que elas não
gostavam. Eu sempre dizia: “Se eu encontrar alguém que eu não amo, eu não caso”. Meus
pais faziam gosto do meu noivado. Meu pai dizia: “O amor vem com a convivência”. Com
21 anos eu havia me apaixonado por uma outra pessoa, mas não ]lutei pelo meu amor, não
tive forças suficientes!”
Ruth não se submeteu a casar-se com a pessoa de quem não gostava, mas também
não teve forças de lutar pelo amor que sentia por um outro homem. Ela trabalhou desde os
17 anos e conseguiu ter uma vida bastante autônoma. Participou da Sociedade de
Ginástica. Conseguiu comprar seus próprios vestidos para participar desses ambientes.
Seu pai sofreu da doença do alcoolismo nos dez últimos anos de sua vida. Ruth
assumiu a casa como chefe de família. Também a sua mãe estava doente. Depois que o pai
faleceu, elas construíram uma casa nova. Ela comprou o seu próprio carro, ganhando mais
autonomia para locomover-se. Também comprou um apartamento na praia. Ela cuidou da
mãe até a morte. Ela reflete e diz:
698
Joan C. TRONTO, Mulheres e cuidados, p. 186-203. Claudete Beise ULRICH, Práxis ética do cuidado e
gênero, p. 1-12.
699
Leonardo BOFF, Saber cuidar, p. 190: “É o cuidado que permite a revolução da ternura ao priorizar o
social sobre o individual e ao orientar o desenvolvimento para a melhoria da qualidade de vida dos humanos
e de outros organismos vivos. O cuidado faz surgir o ser humano complexo, sensível, solidário, cordial e
conectado com tudo e com todos no universo. (...) Sem o cuidado o humano se faria inumano.”
700
Veja foto 15, na História de Vida de Anneliese, p. 169.
332
“De acordo com o meu estilo de vida e meu jeito de ser, eu nunca poderia ter colocado a
minha mãe num asilo; aonde eu ia, a minha mãe ia junto. Eu não tinha coração para deixar
a minha mãe. (...) Eu me sentia na responsabilidade de cuidá-la.”
Ruth tinha um irmão, mas ele não morava em Jaraguá; por isto ela assumiu a
responsabilidade de cuidar da mãe. Agora, já faz 14 anos que ela vive sozinha. Ela mesma
faz a seguinte avaliação de sua vida:
“Faz 14 anos que vivo sozinha. Para mim é bom. Eu me sinto em paz. Poder chegar em
casa. Sentar no sofá. Espichar as pernas. Ficar um pouco em silêncio. Sempre morei com a
minha mãe. Ela controlava a minha vida. Eu estava com 65 anos e a minha mãe ainda
ficava me vigiando. Eu sempre estava debaixo dos olhos dela. No começo, quando a minha
mãe faleceu, foi difícil. Mas depois, eu me senti independente. Eu sempre fui aquela
“pequena” para a minha mãe. Eu nunca pude deixar a minha mãe.”
Ruth se sente feliz e em paz. A morte da mãe também significou um processo de
libertação, de sentir-se menos vigiada e tutelada, mais independente. Como mulher
solteira, ela também era controlada pelas vizinhas. Ela conclui dizendo:
“Eu não me casei, mas acredito que Deus tinha um outro plano para mim. A comunidade
também precisa de pessoas que se dedicam para ela. Eu tive muitos pretendentes: homens
de boa posição social e inteligentes. Mas nenhum deles me interessou para o casamento.
(...) Eu não quis casar sem amor. Minha família é bem pequena. Além da minha família,
tenho muitas amigas, amigos e 13 afilhados que também me visitam.”
Ruth apresenta uma nova dimensão de família que ultrapassa as relações de sangue,
quando diz: “Minha família é também minha comunidade.” Ruth também lança mão da
foto de sua única sobrinha neta e da sua afilhada mais pequena, apontando para uma
memória transgeracional das mulheres.
701
Com 79 anos, ela vendeu as suas duas casas e
comprou um apartamento:
“É a primeira vez na minha vida que eu mudo de residência. Preciso pensar na minha
velhice. Nos anos que virão pela frente. Ainda quero fazer muitas coisas, como conhecer
um pouco mais do Brasil. O apartamento também fica perto da igreja, onde se encontram
os grupos de que eu participo.”
Renita conheceu o seu marido no ano de 1974, num salão de baile. Namoraram dois
anos e casaram. Ela teve problemas com a sua família, porque ele era de origem italiana e
de confissão religiosa católica. A mãe de Renita teve dificuldades de aceitar o namoro.
Ainda havia muito preconceito em relação aos casamentos interétnicos e inter-religiosos. A
mãe de Renita não permitiu que eles casassem na Igreja Católica. Ela e o futuro esposo
foram falar com o bispo católico, pedindo autorização. A exigência do marido foi: “Eu
701
Veja fotos 19 e 20, na História de Vida de Ruth, p. 203.
333
caso na Igreja Luterana, mas nossos filhos vão ser batizados na Igreja Católica.” Renita
pensava: “O casamento vai me trazer uma nova vida.” Mas estes conflitos familiares e de
confissão religiosa a acompanham até os dias de hoje. As duas filhas foram batizadas na
Igreja Católica, mas participam pouco da Igreja. Renita cuidou da sua sogra. Seus pais
ainda têm uma vida bastante independente. Uma das filhas de Renita está no primeiro ano
da faculdade, enquanto que a outra já está concluindo o curso universitário. O marido está
prestes a se aposentar. Ele sempre trabalhou na indústria de motores WEG.
Yvonne casou-se duas vezes
702
. Seu primeiro marido faleceu num acidente de
trânsito. Ela se casou em 1975. O primeiro marido era de origem portuguesa e católico.
Também sentiu um certo preconceito, especialmente por parte do avô paterno, e nesta
ocasião a avó intercedeu por ela. Do primeiro casamento nasceram uma filha e um filho. O
marido faleceu num acidente de trânsito no início de 1985, um dia antes do aniversário do
filho. A experiência da morte prematura do marido foi muito dolorosa para Yvonne. O
filho Leandro sempre a questionava: “Mamãe, papai morreu! Por que o papai morreu?
Como eu iria responder para uma criança, se nem eu tinha uma resposta para mim? Foi
muito difícil.”
Ela ressalta a solidariedade da família e dos amigos e amigas no tempo de luto. “As
pessoas, para me consolar, diziam: ‘Deus fecha uma porta, mas abre uma janela.’ Acredito
que também isso aconteceu na minha vida. Perdi meu esposo, tornei-me chefe da família e
consegui criar minha filha e meu filho muito bem.” Yvonne, no entanto, também reflete:
“Como mulher, viúva, eu me sentia um tanto discriminada. A gente também escutava maus
comentários. A gente procurava se cuidar, para não ser mal falada.”
Em 1989, ela conheceu o segundo esposo. Já estão juntos há 16 anos. Do segundo
casamento de Yvonne nasceu uma filha, em 1993. A filha e o filho trabalham juntos na
firma da família (Gráfica e Jornal Correio do Povo), onde Yvonne é administradora. Ela se
preocupa com a educação da filha adolescente, especialmente buscando uma relação de
mais amizade e companheirismo. A filha maior já é casada e é mãe de duas crianças.
Yvonne, portanto, já é avó. Como ela mesma diz: “É a vida que se renova.”
702
Ela não se casou na igreja nem no civil. Mas vive com o segundo marido há 16 anos.
334
7.12 Leitura da Bíblia
Como já expressei, as quatro narradoras falam da importância de abrir e lidar com a
Bíblia. Yvonne diz: “Eu pude ensinar as minhas amigas católicas como usar a Bíblia.” A
Bíblia é lida em casa. São, especialmente, as mães que ensinam a leitura da Bíblia.
Percebe-se, na narrativa de Ruth, que a mesma rigidez que a sua mãe tinha com ela na
leitura da Bíblia já não era praticada com o seu irmão. Pode-se perguntar sobre o porquê da
diferença no ensino da leitura da Bíblia na vivência de dois irmãos. Renita se lembra da
sua mãe lendo a Bíblia e explicando algumas partes para toda a família. Chama a atenção o
fato de que as quatro narradoras se reportam ao Salmo 23 como a oração ou o texto
preferido da Bíblia.
A leitura da Bíblia perpassa a história de vida destas quatro mulheres, como
mulheres cristãs, fazendo parte do seu cotidiano. Já chamei a atenção para o fato da Bíblia
também ter sido usada para legitimar a submissão das mulheres, especialmente, em relação
ao casamento e às questões do cuidado de filhos, de pais e mães idosas. No entanto, o que
cai na vista é especialmente a identificação que Anneliese e Ruth fazem das suas vidas
com personagens mulheres da Bíblia, encontrando desta maneira um sentido para a sua
existência. É importante deixar claro que as duas narradoras fizeram isso de forma
espontânea. A teóloga Deifelt sugere que se usem textos bíblicos para dialogar com
mulheres, ajudando-as a falarem de suas experiências de vida. Segundo a autora:
As histórias de vida dão às mulheres a possibilidade de falarem sobre sua realidade, de
compartilharem suas experiências, usando, por exemplo, um texto bíblico como base para a
reflexão. O ponto central é que as próprias mulheres possam assumir-se enquanto sujeitos
ativos e pensantes, e que fazem uso da palavra para refletir sobre a sua própria vida. O
texto bíblico oferece um ou mais temas geradores que propiciam a troca de experiência e
de reflexão. As histórias da Bíblia tornam-se até paralelos com as próprias histórias da
atualidade.
703
É importante deixar claro que, na presente pesquisa, foram as mulheres mais velhas
(Anneliese e Ruth) que, de forma livre, autônoma, enquanto seres ativos, pensantes,
sujeitos de suas histórias, lançaram mão cada uma de uma história bíblica, refletindo sobre
a sua própria vida e encontrando aí um sentido para sua existência.
Anneliese identificou-se com uma história bíblica do Novo Testamento, a viúva
pobre, que se encontra em Marcos 12.41-44 e Lucas 21.1-4. Ela faz uma releitura dessa
história, assumindo-se como a personagem central da história: a viúva pobre.
703
Wanda DEIFELT, Palavra e outras palavras: a teologia, as mulheres e o poder, p. 15.
335
Anneliese se apropria do texto bíblico, como uma teóloga, fazendo uma releitura do
mesmo à luz da sua atitude de doar o primeiro pagamento que recebeu como aposentada,
depois de muita luta para conseguir a aposentadoria, até então somente recebia a pensão de
viúva. O primeiro pagamento da aposentadoria significou para ela o seu reconhecimento
como profissional, agricultora, mulher trabalhadora. Além de agricultora, ela também é
artesã; faz questão de afirmar que “faz tricô artístico”. Tricotando as linhas, ela faz arte que
embeleza a casa das mulheres que podem pagar por esse trabalho. Não tricota por
passatempo; tricota e vende o trabalho para aumentar a sua renda. O valor do primeiro
salário de mulher agricultora aposentada (R$ 151,00 – cento e cinqüenta e um reais) e o da
venda de uma toalha tricotada artisticamente (R$ 350,00 – trezentos e cinqüenta reais) ela
doou para a construção do templo da Igreja Evangélica Luterana no Bairro onde reside.
Anneliese entregou esse dinheiro a mim como pastora e também pesquisadora. Ela me
disse:
“Eu entrego para você esta doação de R$ 500,00, Pa. Claudete, que está ouvindo minha
história. Você faz o favor de entregar para a diretoria da construção da igreja. Quando
estou fazendo esta doação, lembro a oferta da viúva pobre da história que Jesus contou.
Faço isso para a comunidade com o coração aberto e agradecido, cheio de fé e esperança.”
Ao fazer a releitura do texto bíblico, Anneliese se mostra conhecedora da Bíblia e,
ao mesmo tempo, chama a atenção para a situação das viúvas pobres idosas, trazendo à
reflexão os inter-relacionamentos de classe, gênero, estado civil e idade. Identificando-se
com a viúva pobre da história contada por Jesus, Anneliese proclama o seu desejo e
compromisso: que a construção do templo no Bairro Amizade seja casa de oração, de
acolhimento, de serviço, de transformação, onde viúvas, pobres, crianças, deficientes,
idosos, jovens, homens, mulheres, brancos, negros sejam acolhidos e fortalecidos pela
graça de Deus.
Ruth identifica-se com uma personagem bíblica de um livro do Antigo Testamento,
que tem o seu nome – Rute. Neste livro bíblico, as mulheres são as personagens principais
da história. Ela sabe que a Rute da Bíblia é uma mulher estrangeira, viúva, que opta por
ficar com a sogra. A sua sogra Noemi também é viúva. No entanto, Ruth reinterpreta esta
história, identificando-a com a sua história de vida. Ruth fez uma opção em sua vida – não
casar, o que significou para ela cuidar da mãe até o fim da vida:
“Eu não fiquei ao lado da minha sogra, mas da minha mãe. Eu a cuidei e a acompanhei até
o fim da vida. Tive muitas propostas de trabalho tentadoras em minha vida, mas não
poderia deixar a minha mãe sozinha.”
336
Fazendo a releitura dessa história, Ruth encontra um sentido para a sua existência e
olha para a sua vida, apesar de tudo, com gratidão. A Rute da Bíblia tem uma história
diferente de nossa narradora Ruth. A personagem bíblica se casa e reconstrói a sua vida.
Nossa narradora, em muitos momentos, permaneceu no mesmo trabalho, na mesma cidade,
porque tinha assumido como uma ética familiar aquela assumida por muitas mulheres:
cuidar da sua mãe até a morte. O importante é perceber que as narradoras são pessoas
autônomas, racionais, pensantes, lêem e interpretam a Bíblia. Elas fazem a sua
interpretação, sem a mediação pastoral. O teólogo Brakemeier salienta:
Lutero traduziu a Bíblia para o vernáculo. Quis que toda pessoa tivesse acesso direto à
fonte da fé, o que, aliás, pressupõe alfabetização. A leitura da Bíblia como uma forma de
‘auto-catequese’ constitui um passo imprescindível no processo de aquisição da maioridade
do indivíduo em termos de fé e de conduta.
704
Na história das nossas narradoras, encontramos presente este principio tão
importante da Reforma: o acesso direto à fonte da fé. A leitura e interpretação da Bíblia
pressupõem alfabetização escolar e capacitação cristã. Este era o motivo principal por que
Lutero se preocupou com a criação de escolas, conforme os seus dois escritos sobre
educação sobre os quais refleti no segundo capítulo. A criação de escolas comunitárias
luteranas em terras brasileiras também tinha esse horizonte, pois sem a educação a própria
confessionalidade luterana estaria ameaçada. Pode-se perceber aí um forte imbricamento
das escolas comunitárias luteranas e da Igreja Luterana. Para melhorar o mundo é
necessário ser, na concepção de Lutero: uma boa cidadã e uma boa cristã.
A leitura da Bíblia aparece nas narrativas como autocatequese, sendo um passo no
processo de aquisição da maioridade em termos de fé e de conduta. Encontro aqui aspectos
que remetem para a importância da leitura e interpretação da Bíblia em termos de
emancipação humana. A leitura e a interpretação da Bíblia são feitas por mulheres sem
nenhuma tutela religiosa. Elas interpretam a Bíblia a partir da sua experiência de vida.
Aqui entra um outro aspecto: a leitura da Bíblia também foi e é usada para legitimar
situações de submissão, obediência e silenciamento das mulheres. Como se percebe nas
histórias de vida das ex-alunas, a mulher, muitas vezes, tem sido percebida somente como
auxiliadora e não como sujeito ativo. Aqui a teologia feminista com o referencial de gênero
contribui, sem dúvida, na desconstrução de conceitos teológicos e textos bíblicos,
utilizando-se de uma hermenêutica da suspeita, trazendo outros aspectos para serem
704
Gottfried BRAKEMEIER, Ministério catequético – Perfil teológico e atribuições práticas, p. 131.
337
refletidos de forma emancipadora, como, por exemplo: a questão da mulher viúva em
nossa atualidade, a autonegação para cuidar dos pais e das mães idosas, diaconia (oferta)
como serviço de transformação de uma realidade, cuidado como referencial ético e social
da humanidade, sexualidade, violência contra a mulher.
705
As narrativas das histórias de
vida lembram as palavras de Fiori que dizem: “Aprender a dizer a sua palavra é toda a
pedagogia, e também toda a antropologia”.
706
Narrar, ouvir, contar e escrever as histórias
de vida foi um processo pedagógico libertador para as narradoras e também para mim.
Através do contar, escutar e sistematizar as narrativas fui descobrindo a beleza do ser de
cada narradora em seu cotidiano.
7.13 Imagem de Deus
As quatro histórias de vida trazem implícitas em suas narrativas imagens de Deus.
Anneliese lembra de um Deus que caminha junto com as pessoas. Um Deus peregrino: “Eu
sempre oro e converso com Deus, onde me encontro.” Ruth torna presente na narrativa
sobre sua infância a imagem do Deus com quem se pode brincar. Ela brinca com as
palavras da oração. Yvonne lembra a imagem de Deus abrindo janelas, novos horizontes,
novas perspectivas: “Deus fecha uma porta, mas abre muitas janelas.” Renita se lembra da
imagem do quadro que estava no seu quarto de criança e adolescente – “Jesus orando no
Getsemâni”. Trata-se de uma imagem que traz a figura humana de Jesus, um Deus que ora.
A imagem de Deus presente no Salmo 23, no entanto, perpassa as quatro narrativas.
Quando o Salmo 23, versículo 1, diz: “O Senhor é meu Pastor, nada me faltará”. Fala de
um Deus cuidador, protetor, misericordioso, que segura os seus filhos e filhas nos braços e
os protege dos perigos. Há no imaginário coletivo religioso cristão a figura do bom pastor
que carrega as ovelhas nos braços. Este bom pastor também vai em busca daquela que se
perdeu, conforme a parábola da ovelha perdida (Lucas 15.3-7). O Salmo 23 também traz
presente a conflituosidade da vida humana: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da
morte, não temerei mal nenhum, por que tu estás comigo...” (v. 4). Deus está conosco
assim como uma mãe e um pai fazem vigília junto ao leito de sua filha doente.
A questão da inclusividade das imagens de Deus na reflexão teológica é muito
importante para o processo de emancipação das mulheres e também dos homens. A
705
Lembro aqui que uma das narradoras (ela pediu para não ser identificada) demorou para devolver a sua
história de vida escrita, pois estava lendo o texto da Federação Luterana Mundial: As Igrejas dizem Não à
violência contra a mulher.
706
Ernani Maria FIORI, Prefácio – aprender a dizer a sua palavra, p. 18.
338
teologia feminista tem trazido importantes reflexões neste sentido. Segundo Ruether: “Não
temos um nome adequado para o/a verdadeiro/a Deus/a, o/a ‘Eu sou aquele/a que me
tornarei’. Indicações de seu nome aparecerão à medida que sairmos de formas errôneas de
nomear Deus/a modeladas com base na alienação patriarcal.”
707
Freire também fala da
necessidade de se aprender a usar uma linguagem inclusiva nos processos pedagógicos. Da
mesma forma, Ströher salienta que, “a transformação da realidade também inclui uma
nova” linguagem integradora e inclusiva de mulheres e homens.
708
7.14 Igreja como laboratório para a vida: participação e liderança em grupos
comunitários até o ano 2005
Renita, em sua narrativa, comparou a Igreja a um laboratório. Laboratório é um
lugar de experimentação. A palavra “laboratório” contém o termo “labor” – que lembra
trabalho e serviço, e o termo “ora” – que lembra oração, e o termo “oratório” – que lembra
a arte de falar em público. A Igreja como laboratório para mulheres significa uma espaço
onde as mulheres servem, oram, meditam, refletem, lêem e interpretam a Bíblia, expressam
sentimentos e aprendem a falar em público. É um espaço que possibilita a aprendizagem
para atuar no bairro, na cidade e na sociedade. No ano de 2005 circulou, especialmente nos
grupos da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas (OASE), uma revista da Federação
Luterana Mundial que discute a questão da violência, gerando discussões, falas, silêncios,
choros, perguntas, dúvidas. A violência doméstica é outro tema com o qual as mulheres
estão se ocupando. Portanto, a Igreja como laboratório pode ser um espaço que conduz à
emancipação humana.
Como se percebeu, até a adolescência as quatro narradoras receberam uma
educação cristã na Igreja Luterana. Elas participaram ativamente do culto infantil, ensino
confirmatório, cultos dominicais. Depois da confirmação, elas continuaram participando,
mas também assumiram tarefas dentro da Igreja como conseqüência do sacerdócio geral de
todos os crentes. Anneliese, Renita e Ruth assumiram a tarefa de serem orientadoras do
culto infantil na sua comunidade. A Igreja aparece como o único lugar que Anneliese
freqüentava. Quando elas constituíram família, houve o cuidado pela educação cristã dos
filhos e filhas, mesmo que numa outra confissão religiosa. Anneliese é uma verdadeira
guardiã da fé luterana. Ela tinha uma grande preocupação com netos e netas que ainda não
707
Rosemary R. RUETHER, Sexismo e religião, p. 65.
708
Marga Janete STRÖHER, Por uma linguagem integradora de mulheres e homens, p. 257.
339
estavam batizados, mesmo sendo adultos. Um momento de realização pessoal para ela foi
o batismo destes netos e netas.
Uma das coisas que chama atenção na narrativa de Anneliese é a sua reclamação
em relação à falta de reconhecimento, pela diretoria da comunidade, por seu trabalho
realizado no culto infantil, durante 22 anos. Ela conta que “nenhum galo cantou atrás
quando ela deixou o trabalho”, mas as mulheres se organizaram, foram falar com o pastor e
exigiram um reconhecimento pelo seu trabalho na comunidade. A diretoria era formada
pelos homens, e eles não conseguiam reconhecer o trabalho do culto infantil desenvolvido
pela professora (catequista) Anneliese. Foram as mulheres da comunidade que se
organizaram e reivindicaram o reconhecimento público, em culto, do trabalho da
Anneliese. Ela recebeu, então, uma placa em gratidão pelo trabalho que desenvolveu
voluntariamente durante 22 anos na comunidade.
Para Anneliese foi difícil quando chegou um pastor com uma outra ênfase no
trabalho e, em vez do culto infantil procurou introduzir a escola dominical. Além de
trabalhar no culto infantil, ela atua ainda hoje no trabalho da Ordem Auxiliadora de
Senhoras Evangélicas (OASE) e no Grupo de Idosos. Anneliese afirma que o trabalho na
Igreja possibilitou e possibilita encontros, saídas, viagens, passeios, retiros. Ela afirma:
“Estes momentos eram como um bálsamo para minha vida.” A importância da Igreja
também está ligada ao lazer, ao viajar e conhecer outras pessoas. A Igreja aparece como
um espaço social
709
, pois possibilita a saída de casa, o trabalho com as crianças e, ao
mesmo tempo, o encontro com outras mulheres, viabilizando tamm uma realização
pessoal.
Ruth, além de ter atuado como orientadora do culto infantil, foi líder da juventude
evangélica. Ela lembra com orgulho que é uma fundadora do Coral Evangélico, o que
aconteceu no dia 29 de junho de 1948, na sala do meio da antiga escola-igreja. A
participação no coral possibilitou muitas viagens e saídas. Ela conheceu vários paises,
como Chile, Argentina, Paraguai, Uruguai, Alemanha, além de conhecer vários estados
brasileiros. Já participou da gravação de um disco e de um CD. No grupo do coral ela
709
Myriam Moraes Lins de BARROS, Testemunho de vida, p. 153. A autora realizou uma pesquisa com
mulheres idosas que participam de um grupo na Igreja Católica, onde ela constatou algo parecido com aquilo
que percebi na narrativa das histórias de vida de Anneliese, Ruth e inclusive Renita. Segundo Barros: “(...)
Essa vida pública se manifesta através da Igreja ou mesmo de atividades não necessariamente ligadas à Igreja
que, no entanto, trazem para as mulheres um compromisso com valores religiosos, como por exemplo a
assistência social. (...) Participar dessas áreas como elemento decisório permitiu, entre outras coisas, a
aquisição de um status social que não seria conseguido na família.”
340
ocupou vários cargos na diretoria. Atualmente é a presidente. Participa desse grupo há 57
anos.
Ruth também já ocupou o cargo de tesoureira da Comunidade Evangélica,
colocando a serviço da Igreja a sua experiência profissional, pois foi contadora de uma
grande empresa. Ela também participa da OASE. Atualmente, é presidente do grupo da
OASE que se reúne semanalmente, utilizando ainda a língua alemã para as suas reuniões.
Realiza visitas a pessoas doentes. Ela salienta:
“Já estou participando há 22 anos do grupo da OASE, “grupo das quintas- feiras”. Eu me
sinto muito bem participando do grupo. Hoje estou num cargo de liderança. Sou a
presidenta desde 2002. Ser uma líder é uma arte! Não sou uma líder caxias, durona.
Procuro ser amiga e compreensiva. Divido as tarefas entre toda a diretoria. Sinto que o
grupo da OASE gosta do meu trabalho.”
Ruth diz que “ser uma líder é uma arte”. Ela, então, apresenta a sua concepção de
liderança, em que afirma a amizade, a compreensão e a divisão de tarefas como partes
integrantes do perfil de uma boa líder.
Renita traz na lembrança que a fundação do grupo da OASE e da Comunidade na
Rua Joinville iniciou na sala de refeições da sua casa.
710
“Com a fundação do grupo da OASE também se deu a fundação da Comunidade
Evangélica Luterana na rua Joinville anos mais tarde. (...) A minha mãe e outras mulheres
puxaram a frente. Eu era uma adolescente e estava me preparando para a confirmação, mas
estava ali junto com a minha mãe. No dia das reuniões era colocada uma toalha branca na
mesa grande da sala de refeições. Também eram colhidas flores e colocadas no vaso.
Tinha cucas e um gostoso café. O cheiro de café traz para mim boas recordações.”
A Igreja é lembrada por Renita a partir da estética (toalha branca e flores na mesa) e
dos cheiros de cuca e café, que lembram a partilha do alimento, comunhão em torno da
mesa. As lembranças remetem ao espaço da sala de refeições como espaço sagrado:
“Minha mãe recebeu no dia da fundação do grupo da OASE uma cruz que continua
pendurada na porta da sala. Este era um espaço muito importante – ali aconteciam as
reuniões da OASE, mas também era o espaço de encontro da nossa família, onde nos
reuníamos para conversar e fazer as refeições.”
Naquele tempo, Renita era uma menina. Hoje, através das memórias, ela se afirma
como pessoa humana, participante e ativa, e afirma: “Mesmo que meu nome não conste na
ata de fundação, eu estive presente nesse momento importante.”
710
Lembro aqui o nascimento das primeiras comunidades cristãs que também iniciaram nas casas. Consulte
Marga J. STRÖHER, Casa igualitária e casa patriarcal, 1998.
341
Renita coloca a importância do trabalho na Igreja para a sua atuação profissional:
“O laboratório que me preparou para enfrentar a sala de aula foi também o trabalho na
Igreja. Depois de confirmada, eu e minha irmã assumimos o trabalho de orientadoras do
culto infantil na Escola Isolada de Vieiras. O trabalho com as crianças na Igreja foi o meu
primeiro espaço de ser professora. A nossa maior tarefa era explicar a história bíblica para
as crianças. Mais tarde, a Inge e eu também demos aulas no Projeto do Mobral, trabalhando
com a alfabetização de adultos.”
Depois de casada, Renita reencontrou o espaço da Igreja, tendo sido uma das
fundadoras do grupo dos idosos e do grupo da OASE “Dália”, da Comunidade Evangélica
Luterana na Vila Lenzi:
“Ali também precisei aprender a falar em público. As pessoas idosas são uma importante
platéia. Sempre participei da OASE, desde a fundação, e foi ali com as outras mulheres que
eu me desenvolvi muito como pessoa e pra ajudar outras pessoas. No ano passado, uma
amiga nossa da OASE ficou muito doente, com câncer. Nós fizemos um trabalho muito
bonito, nos revezando para ajudar as filhas a cuidar da mãe.”
Renita também é líder do grupo da OASE; atua como presidente e coordenadora.
Ela coloca a participação na Igreja como um grande aprendizado: “Aprendi a me afirmar
como ser humano.” Falando da sua experiência de vida e da participação na OASE, Renita,
Ruth e Anneliese tiveram a oportunidade de dar o seu testemunho no Congresso Sinodal da
OASE no Sínodo Norte Catarinense, em 2004.
711
Ao mesmo tempo em que Renita fala da sua participação ativa na Igreja, lamenta a
não participação das filhas. Este é um tema sobre o qual ela tem dificuldades de conversar
em casa, apesar de participar ativamente:
“Procuro dar um testemunho para a minha família através do gesto e não tanto através das
palavras. Não falo muito sobre fé e Igreja para não dar brigas aqui em casa, mas atuo!
Percebo que, agora, de vez em quando minhas filhas começam a me acompanhar. Não
imponho nada! Este ano também fui convidada para participar do programa radiofônico
‘Conversando com você’. É uma experiência divina.”
A atuação de Renita na Igreja muitas vezes se dá de forma solitária, sem o apoio da
família. As filhas e o marido são da confessionalidade católica, mas participam pouco. Por
isso, ela mudou de estratégia, procura dar o seu testemunho mais através das suas atitudes
e menos através das palavras. Aqui se encontra algo importante para um aprofundamento
na reflexão: as mulheres aprenderam a fazer muito e pouco a falar e argumentar sobre a
importância daquilo que fazem. Será que as filhas, as netas, as bisnetas não estão à procura
711
O testemunho de Anneliese, Ruth e Renita encontra-se gravado e está aos cuidados da diretoria da Ordem
Auxiliadora das Senhoras Evangélicas (OASE) do Sínodo Norte Catarinense.
342
de outra forma de organização de Igreja? Não será por isso que a Igreja é como um
laboratório para as mulheres? Levanto também um outro aspecto importante que se
manifesta na narrativa de Anneliese, Ruth e também de Renita. A participação na Igreja
permitiu às três narradoras saírem de seus ambientes domésticos e também deu a elas um
certo stauts social, por exemplo, Anneliese é secretária do seu grupo, Ruth é presidente da
OASE e do coral, Renita é coordenadora e presidente da OASE em sua comunidade. Todas
as três exercem cargos de liderança, tendo reconhecimento em seus grupos de trabalho na
Igreja. O reconhecimento da liderança dessas mulheres nos pequenos grupos não significa
um engajamento, por exemplo, na diretoria da comunidade eclesial ou da paróquia. A
liderança das mulheres é exercida nos pequenos grupos, sendo suporte para o trabalho de
toda a comunidade. O fazer uso da palavra e atuar como liderança ainda se restringe a
pequenos grupos na Igreja, este fato, no entanto, significa desafios de mudança.
Yvonne, depois que foi confirmada, além de participar nos cultos, não teve um
envolvimento maior com a comunidade eclesial. A partir do casamento, começou a
participar da Igreja Católica, mas não tem um envolvimento em grupos como as outras três
narradoras. Ela conta que está à procura de um grupo. Participou durante alguns anos de
um grupo de mulheres que se reunia nas casas das amigas. Foi um grupo importante na sua
vida. No entanto, com as mudanças que foram acontecendo na vida das mulheres, o grupo
foi se esvaziando. Também as conversas se tornaram bastante fúteis na avaliação de
Yvonne, razão pela qual ela não participa mais. Yvonne contou que “escuta, muitas vezes,
o culto ou a missa pela transmissão na rádio”, na cozinha da sua casa. Cozinha, lugar tão
comum das mulheres, mas que, na casa de Yvonne, se torna litúrgico, como litúrgico é o
gesto de comer, de conviver, estar a caminho, em busca.
7.15 Recuperando espaços de emancipação: em busca de uma tessitura
O objetivo de nossa tese é recuperar espaços de emancipação na história de vida de
ex-alunas de escola comunitária luterana, percebendo as relações entre religião
(confessionalidade luterana) e educação, na conquista (ou não) desses espaços. As quatro
narradoras lançaram um olhar sobre as suas histórias de vida, em que a família, a escola e a
igreja tiveram um papel na construção social, histórica, educacional e religiosa da trajetória
de vida destas mulheres. As narrativas mostrammulheres em ação” em diferentes
espaços. Mulheres quietas e inquietas. A narrativa é movida pela conflituosidade da vida
humana, no movimento dialético da história. À medida que as ex-alunas narraram suas
343
histórias, elas visibilizaram não somente a história pessoal, mas a história da família, da
escola, da igreja, da cidade, das mulheres, incluindo aspectos da história local, nacional e
internacional. A recuperação de espaços de emancipação nas narrativas das histórias de
vida das ex-alunas transparece nas reflexões que elas fazem a partir do hoje, em que falam
das suas vontades, dos seus desejos. É uma profunda reflexão sobre a vida. Nesse processo,
a memória torna-se emancipatória, pois o ato de lembrar o passado leva a uma reflexão no
hoje, conduzindo para uma transformação, no futuro, na vida das próprias narradoras ou na
vida de outros homens e mulheres. Recordo que nas narrativas Anneliese lembra da
bisneta, Ruth da sombrinha neta e de suas afilhadas, Renita das filhas e Yvonne da filha
adolescente e dos netos. Os relatos orais com as imagens fotográficas das meninas e
meninos lembrados apontam para a emancipação humana como um processo trans-
histórico e transgeracional.
Como afirma Freire, é no contar e recontar a história que o sujeito histórico vai se
constituindo. Ou ainda, conforme Ströher, “o espelho da memória passa a ser o de uma
memória perigosa – a memória inscrita nos corpos de mulheres –, capaz de preconizar
outras possibilidades de conhecimento e intervenção na história”.
712
A escola comunitária luterana é lembrada como o primeiro espaço que exigia a
saída da casa. O processo de estudar está ligado com o saber e o saber fazer. A sala de aula
é lembrada como o espaço sério em contraposição ao espaço lúdico do recreio. Em seus
relatos, as narradoras marcam as diferenças e as igualdades. As quatro narradoras têm
origem étnica alemã; a língua alemã servia de elo e identificação para esse grupo humano.
Além da importância da família, tinham a escola e a igreja como pontos de identificação.
Aprender a ler, a escrever, a fazer contas (quatro operações básicas) era um direito a que,
praticamente, todas as crianças tinham acesso, seja na escola comunitária, organizada pela
comunidade religiosa, ou pelos próprios colonos. No entanto, no relato das narradoras
aparecem diferenças, especialmente entre as meninas que moravam no “centro” do núcleo
colonial e aquelas que residiam na roça. As meninas que moravam no “centro” vinham de
calçados para a escola, enquanto que as que moravam na roça iam de pés descalços ou de
tamancos, quando fazia frio. Elas chegavam com os pés sujos de poeira e precisavam lavar
quase todo dia o seu uniforme. Elas falam da diferença, na hora do recreio, da merenda “do
pão de milho” e “do pão branco” e da vergonha que sentiam em ver a diferença. Hoje, elas
712
Marga J. STRÖHER, Corpos, poderes e saberes nas primeiras comunidades cristãs, p. 135.
344
percebem que o pão de milho é mais saudável. Renita lembra que as férias escolares
significavam trabalho intenso na roça, enquanto Yvonne podia passear com a avó na praia.
Segundo Dallabrida:
As escolas diferenciam-se pela forma como respondem às demandas de capital cultural de
grupos sociais específicos, que têm expectativas diferentes em relação à educação escolar.
Por isso, urge abandonar a referência abstrata à escolarização e pensar em modos de
educação escolar, que geralmente têm variado historicamente de acordo com marcadores
sociais tais como gênero, classe social, etnia, religião.
713
A educação escolar que marcou a vida das ex-alunas está interligada pelas questões
étnica (imigrantes europeus, alemães), da língua (alemã), religiosa (confessionalidade
luterana), de gênero (escola mista, freqüentada por meninos e meninas), de classe social
(crianças que moravam na “cidade” versus crianças que moravam na colônia). A escola
comunitária luterana era marcada pela heterogeneidade. Ter a mesma origem étnica,
freqüentar a mesma igreja e a mesma escola não significava ter o mesmo cotidiano de
sobrevivência, como foi possível visibilizar nas narrativas. A escola comunitária luterana
que transparece nas narrativas era fruto de um determinado tempo histórico, marcando a
vida de homens e mulheres. A educação que as mulheres receberam tinha diferenças, assim
como a sua vida, a sua família e o seu trabalho.
O processo de nacionalização do ensino é lembrado como um processo doloroso, de
ruptura, de violência, de rompimento com um modelo de educação que interligava família-
escola-igreja. Esta tríade aparece muito forte nas narrativas. Em relação ao estudo, as
narradoras utilizam a seguinte argumentação: Anneliese afirma: “Sem estudo, a vida teria
sido ainda mais difícil.” Para Ruth:
“O estudo foi tudo na minha vida. Consegui um trabalho, ganhei o pão... Fiz a
contabilidade daquela grande firma. Se não tivesse estudado, não teria sido capaz de fazer o
que fazia e faço hoje. (...) Sem o estudo, eu não seria nada. (...) Eu sempre tive muita
iniciativa. Quando foi necessário, eu me arrumei, saí de casa e fui procurar um emprego.
Eu não fiquei em casa sentada, olhando para as paredes, eu sempre fui à luta. Assim pude
ajudar meus pais e também não deixar de lado as coisas que eram importantes para a minha
vida.”
Segundo Renita:
“Todos os meus sonhos de vida começaram neste período. Quando eu vou ao centro, vejo
ali o prédio da escola onde estudei, é como se eu voltasse para o útero, para o paraíso. Ir
para a escola foi a minha primeira saída de casa, onde fui aprendendo a me virar sozinha e
a construir novos sonhos, amizades.”
713
Norberto DALLABRIDA, A fabricação escolar das elites, p. 28.
345
Yvonne diz que, “a escola e a casa eram o seu mundo na infância”.
Uma das grandes reivindicações do movimento feminista no século XIX e XX foi o
acesso à educação. No entanto, segundo Deifelt:
O fato de mulheres terem acesso à educação em nada mudaria [sic] a existência de
hierarquias e a exclusão da cidadania plena a todos e todas, enquanto as próprias mulheres
não se derem [sic] conta do papel que desempenham na reprodução de valores e no
potencial de transformação que representam. Na educação, é necessário ter consciência de
gênero, ou seja, que a cultura e a sociedade designam funções sociais a homens e mulheres.
Essas funções muitas vezes mantêm discriminação e submissão.
714
O acesso ao saber, à educação formal, é um direito de homens e mulheres. Não
garante, no entanto, transformações nas relações que criam desigualdades de classe, etnia,
geração e gênero. O acesso à educação, porém, possibilita a conscientização, segundo
Freire, dos mecanismos que mantêm as relações hierárquicas de poder.
O exercício da cidadania, isto é, a emancipação política, não garante uma vida mais
humana. No entanto, a conquista dos direitos sociais é um passo importante em direção à
construção de uma sociedade democrática. A emancipação humana vai além da
emancipação política. Por isso, é necessário ir além da educação racional, sendo necessário
incluir a vida em sua integralidade, com dores e alegrias, na reflexão teórico-prática
teológica e pedagógica. A emancipação humana visa à libertação de estruturas injustas e à
construção coletiva de uma nova sociedade e do ser humano onilateral.
Portanto, quando as mulheres narram as suas histórias, lançando olhares para o
passado, a partir das experiências do hoje, é possível construir mudanças no cotidiano
histórico. Nas narrativas transpareceram situações de enraizamento e desenraizamento,
conduzindo para a construção ou não de um sentimento de identidade pessoal, coletiva, em
que a lembrança, o rememorar, elevou a auto-estima e autoconfiança das narradoras. Trata-
se de recuperar a capacidade de recriação da vida em plenitude, num contexto que, muitas
vezes, desvaloriza e submete as mulheres. Trata-se de ensinar a ler as palavras, mas
também o mundo, como ensina Freire. Neste sentido, entendo as narrativas das ex-alunas
como parte de um processo emancipador. Segundo, Freire, aprende-se em comunhão de
partilha, de diálogo, de avaliação da própria vida.
No processo educativo, conforme Dallabrida, urge abandonar a referência abstrata à
escolarização e pensar em modos de educação escolar, que geralmente têm variado
714
Wanda DEIFELT, Educação teológica para mulheres, p. 273.
346
historicamente de acordo com marcadores sociais tais como gênero, classe social, etnia,
religião.
715
As escolas comunitárias luteranas estavam imbricadas dentro de uma
perspectiva de melhoramento do mundo; por isso, também fizeram parte da vida dos
imigrantes alemães, que estavam à margem da sociedade brasileira. Estava presente um
sentido comunitário, ligado com as coisas da vida do cotidiano, enraizado dentro de uma
perspectiva educacional, propagada pela teologia luterana, de tornar a pessoa emancipada,
no tocante à leitura e interpretação da Bíblia.
A teologia luterana nasceu de uma profunda crise, o que fez dela uma teologia
emancipadora. Hoje precisa ser revista à luz da realidade brasileira, latino-americana e da
teologia feminista da libertação, tendo gênero como referencial de análise no processo de
inclusão de todos e de todas. É necessário reescrever a teologia, incluindo a experiência
das mulheres.
As memórias das narradoras falam da importância da Igreja como laboratório para a
vida. A Igreja foi o espaço possível para Anneliese exercer a docência, quando foi proibida
de fazê-lo pelo processo de nacionalização do ensino. A Igreja é o espaço onde é possível
experimentar coisas novas, o falar em público, expor as suas idéias, orar, ler e interpretar a
Bíblia. A Igreja é entendida como espaço de transição, de solidariedade, de diálogo para
poder enfrentar outras situações no cotidiano da existência. Percebida a Igreja como espaço
de preparação, de passagem, de recompor as forças, ela se torna uma instituição parceira
no processo de emancipação humana. Portanto, a Igreja é uma instituição humana que
precisa estar em constante reforma, como dizia Lutero.
Segundo Marx: “Toda emancipação constitui uma restituição do mundo humano e
das relações humanas ao próprio homem.”
716
Esta restituição do mundo humano e das
relações humanas ao próprio ser humano é o grande desafio lançado para homens e
mulheres, num movimento coletivo, que visa à integralidade do ser humano, onde uma
pedagogia dialógica libertadora e uma teologia feminista da libertação poderão servir como
andaimes na construção do devir da humanidade. Narrando suas histórias de vida, as ex-
alunas da escola comunitária luterana apresentam a pluralidade da vida, a busca da
superação do trabalho, das relações de cuidado, da pedagogia e da teologia que alienam as
mulheres e os homens da sua corporeidade histórica. É necessário dialogar mais sobre as
715
Norberto DALLABRIDA, A fabricação escolar das elites, p. 28.
716
Karl MARX, A questão judaica, p. 6.
347
experiências vivenciadas, que envolvem a materialidade da vida, desde a produção até a
reprodução. O desafio que as histórias de vida deixam, visando a processos de
emancipação, é o de passar da memória para a novidade de vida nos saberes e fazeres que
envolvem religião e educação.
348
CONCLUSÃO
Com a presente tese, procurei investigar espaços de emancipação na história de
vida de ex-alunas de escola comunitária luterana. A minha aproximação às ex-alunas se
deu primeiramente através do estranhamento provocado pelo relato de Anneliese, quando
ela completou 84 anos, no dia 17 de março de 2002. Foi em torno da mesa do café de
aniversário que Anneliese contou “partes guardadas” de sua história de vida. Aquela
mulher conhecida como agricultora revelou-se como ex-aluna e ex-professora de escola
comunitária luterana. O ouvido sensível ao relato, o estar face a face permitiu a revelação
de uma Anneliese não conhecida. Esse processo de epifania desencadeou a pesquisa
desenvolvida nesta tese. O primeiro desafio que esta tese lança é a necessidade de ouvir
com mais sensibilidade as pessoas que fazem parte de nossos cotidianos comunitários,
escolares, pessoais, familiares, entre outros. Como pastora da IECLB, dei-me conta da
importância da visita pastoral. Mulheres e homens, membros das comunidades, têm
histórias para contar e estão em busca de um ouvido sensível e solidário. O individualismo
gerado pela sociedade capitalista não tem permitido a escuta das histórias de vida. Quase
ninguém tem tempo para ouvir e tampouco interesse em saber da experiência da outra
pessoa! As experiências vividas já não são consideradas fonte de sabedoria. Ouvir implica
uma relação face a face, de compromisso com aquele e aquela que narra a sua experiência
de vida. O saber da experiência, portanto, está ligado ao ser humano, mulher e homem, em
sua concretude e a um determinado contexto sócio-histórico-cultural.
O estranhamento inicial com o relato de Anneliese trouxe o desejo de saber mais
sobre a história de vida de ex-alunas de escola comunitária luterana, tornando-se um dos
desafios da pesquisa. Deparei-me, então, com o silêncio e a invisibilidade em relação a
registros escritos sobre a história de vida de ex-alunas. Se as mulheres estudaram nas
escolas comunitárias luteranas, por que há tão poucos registros e relatos escritos sobre a
349
sua experiência escolar? Colocou-se, assim, a necessidade de documentar a experiência
vivida das ex-alunas para possibilitar que se abram novos caminhos para a área de religião
e de educação. Percebi, ao mesmo tempo, a necessidade de uma pesquisa que trouxesse a
religação dos saberes e incluísse a experiência das mulheres, o processo educacional
(escola comunitária luterana) e a religião (confessionalidade luterana). Só é possível
avaliar as marcas que as interligações da educação e da religião deixam na vida de uma
pessoa a partir de um processo de observação e análise capaz de contemplar a vida em
longos períodos. Ou seja, o questionamento que nasceu da escuta sensível colocou-me
diante da necessidade de buscar instrumentos de pesquisa que contemplassem uma
avaliação longitudinal, procurando recuperar espaços de emancipação na vida das ex-
alunas.
Foi assim que me aproximei do método etnográfico, pois o mesmo se funda na
busca por alteridades, valorizando o cotidiano e a experiência das pessoas. Nesta
aproximação senti os meus limites como pesquisadora. A etnografia é o método de
pesquisa que vem do campo da antropologia. Minha formação, no entanto, é de teologia e
de pedagogia. Os limites colocados pela falta de conhecimento da área de antropologia, de
onde provém o método etnográfico, tornaram-se, no entanto, desafios e novas
possibilidades. No decorrer do processo, dei-me conta de que só poderia utilizar nessa tese
uma perspectiva etnográfica, não tendo condições de fazer uma descrição densa de toda a
realidade que envolve a vida das quatro narradoras.
Junto com a perspectiva etnográfica, também desejava um método que
contemplasse a questão de gênero, numa perspectiva feminista. A pesquisa com
perspectiva etnográfica permeada pelo feminismo assume um caráter ético-político,
partindo da consciência da exclusão, do reconhecimento de que, apesar do silêncio e da
invisibilidade, as mulheres são participantes ativas da história. Tanto a etnografia como o
feminismo valorizam a experiência, o cotidiano, a subjetividade, o processo interativo, a
memória. O feminismo traz para a mesa de discussões a experiência de vida das mulheres,
numa dimensão de pluralidade. A perspectiva etnográfica feminista questiona e
problematiza a razão instrumental, sua excessiva objetividade, normatividade, a-
historicidade e neutralidade, deixando de lado as dimensões da vida, o reconhecimento das
múltiplas formas de alteridade e o direito às diferenças da subjetividade. Papel
fundamental, nesse processo metodológico, ocupam as narrativas da história de vida de
mulheres, que são um importante processo de construção, desconstrução e reconstrução em
350
suas vidas. É a partir da narrativa da história de vida que é possível nomear e renomear a
experiência. Concluo que é necessário incluir no fazer teológico e pedagógico a palavra
vivida e experimentada no processo histórico das mulheres: o prazer e a dor, a alegria e a
tristeza, a opressão e a libertação, a alienação e a emancipação.
Foi assim que optei pela técnica da história de vida somada à perspectiva
etnográfica e feminista, considerando gênero como instrumental de análise. A
subjetividade, através das histórias de vida e lembranças, é assumida com uma trajetória
histórica, específica, constituindo o lugar social das mulheres com pretensão de mudanças,
portanto, com uma dimensão emancipatória.
Ouvi, durante quase três anos, quatro ex-alunas narrarem a sua história de vida. Em
2005 elas estavam com a seguinte idade: Anneliese com 87 anos, Ruth com 79 anos,
Renita com 51 anos e Yvonne também com 51 anos. As quatro histórias de vida
apresentam experiências transgeracionais. Entendo que o processo de pesquisa iniciou
quando Anneliese contou partes da sua história de vida, no dia do seu aniversário. As
outras três narradoras não foram escolhidas antecipadamente. No decorrer da investigação
foi se constituindo uma rede de contatos. Ruth foi localizada a partir do relato de
Anneliese, Renita através do trabalho pastoral, e a mesma indicou Yvonne. Saliento que
esse processo de “ouvir contar” foi envolvente, e nele muitas vezes se misturava o papel
de pastora e de pesquisadora. Concluo afirmando que não foi possível utilizar a história de
vida como técnica de pesquisa e ficar indiferente à conflituosidade da vida presente nas
narrativas das ex-alunas.
As experiências de vida das ex-alunas são marcadas por lutas, dificuldades,
tristezas, estudos, trabalho, alegria, morte, nascimento, renúncia, sendo que a família, a
escola e a igreja foram as instituições principais em suas vidas. Muitas vezes foi difícil
separar a pastora da pesquisadora. Foi um exercício constante e dialético, por um lado, ser
pastora e ouvir com empatia a mulher que estava narrando a sua história e, ao mesmo
tempo, manter, por outro lado, a distância necessária como pesquisadora para anotar,
registrar, sistematizar, com o objetivo de analisar e recuperar espaços de emancipação. A
história de vida como técnica de pesquisa tem a característica de envolver profundamente a
pesquisadora para além do planejado e imaginado. Quando comecei a ouvir as histórias de
vida, não imaginei que levasse tanto tempo e que envolvesse tanto as narradoras e a mim
como pesquisadora. Realizar uma pesquisa com história de vida deixa a sensação de algo
351
inacabado. A história de vida envolve a subjetividade; isto significa que nem tudo que foi
narrado foi anotado, sendo somente um desabafo das narradoras naquele momento
histórico, mas que ainda não está suficientemente amadurecido para ser escrito e trazido a
público. A vida não termina quando encerra a pesquisa. A vida continua. Portanto, meu
interesse não é o de fazer da história de vida uma fórmula mágica que permita a revelação
de todo e qualquer saber ou transformá-la em um tipo de abordagem que possibilite a
eliminação de qualquer outra. Meu objetivo é o de tentar mostrar como, no caso específico
de minha pesquisa, ela foi um material extremamente rico no sentido de perceber a
trajetória da narradora e como a emancipação vai ocorrendo no decorrer da vida.
As histórias de vida de Anneliese, Ruth, Renita e Yvonne retratam a vida se
tornando história. Elas têm em comum a formação até o 4º ano do ensino fundamental
(antigo primário) na escola comunitária luterana. A pesquisa, no entanto, traz memórias
das experiências vividas em diversos cotidianos educacionais, entre esses a escola. As
narradoras, quando relatam as suas experiências, fazem-no a partir do momento em que
está ocorrendo a narrativa. Isso significa que é a partir da realidade de hoje que a
experiência do ontem é narrada. Utilizando as histórias de vida, busquei não apenas o
conhecimento individual, mas a produção coletiva do conhecimento, onde a ex-aluna
aprende a dizer a sua palavra, contando a sua experiência de vida, tornando-se co-autora da
pesquisa. A história de vida rompe com a separação e oposição entre sujeito e objeto,
expondo assim os limites das teorias que querem uma pesquisa sem subjetividade. Esta
pesquisa ativou a emoção, nas suas mais diversas formas de manifestação, que foram desde
tristeza, choro, indignação até o repensar a própria vida onde a pergunta pela mudança se
fez presente. É importante registrar que, no decorrer da pesquisa, houve uma mudança
fundamental na maneira de concebê-la. Primeiramente, parti da idéia de ouvir e registrar
histórias de vida de ex-alunas de escola comunitária luterana com o objetivo de recuperar
espaços de emancipação. No decorrer da pesquisa, aconteceu uma redefinição, pois cada
narradora tornou-se também autora na medida em que elas narraram, releram e
reescreveram partes das suas histórias, inserindo documentos e fotografias. De uma
perspectiva individual de pesquisa passou-se para uma dimensão coletiva, afirmando, com
isso, que cada narradora é um sujeito histórico, pensante, ativo e artífice na construção de
espaços de emancipação em sua vida. Concluo, portanto, que não somente eu como
pesquisadora recuperei espaços de emancipação, mas cada uma das narradoras, ao contar
as suas memórias, traz uma perspectiva de mudança para a sua própria história e para a
352
história das mulheres a partir daquilo que foi registrado. A partir do momento em que as
narradoras permitiram o registro de suas histórias de vida, elas concordaram em tornar
públicas as suas experiências. Elas se assumem como sujeitos históricos, manifestando o
valor da narrativa para a reflexão presente e futura.
Para Benjamin, o passado é fonte histórica para uma transformação no presente.
Quando perguntei às narradoras sobre a possibilidade de elas narrarem as suas histórias de
vida para este trabalho de tese, elas me responderam: “Se posso, por que não ajudar?” No
entanto, não foi somente uma ajuda que elas prestaram; foi um processo muito mais
intenso e profundo. Narrar a sua história de vida e permitir o registro dessa narrativa é
contribuir para mudanças teóricas e práticas. Recupero a imagem usada por Benjamin, que
diz que a pessoa narradora é como um artesão, um lapidário. Narrar a história é procurar
lapidar o presente. Cada experiência de vida traz questionamentos, perguntas e desafios.
Cada vida é única e irrepetível. Surge, portanto, o desafio de ouvir e contar mais sobre a
vida das pessoas, homens e mulheres, que vivem diferentes realidades teológicas e
pedagógicas Brasil afora. A experiência de vida torna-se importante fonte de reflexão a
partir da teologia de libertação.
Além da busca pelo método e a técnica de pesquisa, senti a necessidade de entender
os significados dos conceitos de libertação, emancipação, autonomia e liberdade. Esses
conceitos são muito utilizados no cotidiano teológico e pedagógico, mas o que realmente
significam? Cada um deles tem a sua história e representa uma determinada realidade.
Como esses conceitos são utilizados em nosso cotidiano teológico e pedagógico? Ter
clareza em relação ao uso de conceitos é também buscar um referencial teórico.
A novidade que a teologia feminista traz para o saber e fazer teológico é que a
experiência das mulheres se torna fonte de reflexão. A partir de uma hermenêutica da
suspeita e do uso metodológico de construção, desconstrução e reconstrução, a teologia
feminista questiona verdades teológicas, textos bíblicos ou seculares que hierarquizam as
relações entre os gêneros, bem como promovem a submissão da mulher. Utilizando o
genitivo da libertação, a teologia feminista se coloca como crítica aos processos de
libertação, onde ainda perduram valores patriarcais. A experiência das mulheres foi
utilizada nessa tese como ponto de partida para a reflexão, tendo nas histórias de vida a
porta de entrada para recuperar espaços de emancipação das ex-alunas de escola
comunitária luterana. O referencial de gênero foi utilizado com o intuito de desconstruir a
353
ordem dos poderes entre os gêneros, percebendo que as diferenças não são naturais, mas
foram construídas, ensinadas e aprendidas no decorrer da história, sendo passíveis de
mudança.
O conceito de libertação também foi objeto de reflexão a partir da teologia, da
pedagogia e da filosofia da libertação latino-americana. Esse conceito nasce de uma
profunda inserção na realidade de sofrimento e miséria da América Latina. A pedagogia da
libertação inclui a libertação dos oprimidos e dos opressores, buscando o processo de
humanização, através da conscientização. Libertação, para Freire, é a realização da páscoa:
a morte do machismo, do colonialismo, do racismo, de todos os ismos, e o nascimento de
um novo ser humano e de uma nova sociedade. Por isso, para o autor, as situações-limite
da vida se apresentam como a possibilidade do inédito viável.
Em relação à teologia da libertação, destaco que a reflexão teológica foi colocada
como um momento segundo. O próprio conceito de libertação nasceu de um contexto
extrateológico, isto é, a partir da teoria da dependência. Libertação, portanto, é colocada
como uma palavra processo, movimento, a ação de libertar-se. É um processo que acontece
na coletividade. Uma das grandes marcas da teologia da libertação, segundo Löwy, está no
reconhecimento de que o povo pobre e oprimido é o artífice da sua própria história e da sua
própria emancipação. A partir da teologia da libertação, nasce um novo sujeito histórico,
sendo um sujeito coletivo: o povo pobre.
A filosofia da libertação mostrou-me a importância da abertura em relação ao outro
e à outra, apontando para a processualidade da libertação. Resgatei para esta tese a
importância do estar face a face, para que a narradora pudesse se revelar, sendo ela mesma.
Na continuidade da pesquisa, também me aproximei do pensamento de Marx,
buscando entender as diferenças que este autor aponta entre emancipação política e
emancipação humana. Para ele, a emancipação política é o primeiro passo da emancipação,
sendo uma importante conquista dentro da realidade histórica; no entanto, ela é somente o
começo. Marx critica a emancipação política, pois ela afirma o ser humano individual e
egoísta. Por isso, ele aponta para a importância da emancipação humana, que é o retorno às
relações humanas e ao ser humano, sendo um processo coletivo, envolvendo o ser humano
e a construção da sociedade. Portanto, a emancipação das mulheres não é somente
emancipação política, envolvendo a conquista de direitos individuais, sociais e jurídicos. A
conquista desses direitos foi e é, sem dúvida, um passo decisivo rumo à emancipação, mas
354
necessita-se ir adiante na construção da emancipação humana. Percebo aqui que o conceito
de emancipação humana se liga às propostas de libertação da teologia feminista, bem como
da teologia, pedagogia e filosofia da libertação. O conceito de libertação propagado por
estes saberes e fazeres apresenta fundamentos para a realização da emancipação humana.
Nesse sentido, entendo que o termo “emancipação” é mais amplo que o termo “libertação”,
pois ele inclui os processos de libertação enfatizados pelas áreas do saber antes referidas;
inclui a emancipação política, mas vai adiante, conduzindo para o retorno do ser humano
ao mundo das relações humanas, onde ele possa se realizar plenamente como ser humano.
Esse processo sempre é histórico, multifacetado, plural e coletivo, por isso extremamente
conflituoso.
O conceito de autonomia racional elaborado por Kant necessita, hoje, ser
reapropriado e incluído no processo emancipatório das mulheres e dos pobres. Saber fazer
uso da sua palavra é, como diz Fiori, biografar-se, fazer história. É necessário sair do
processo de menoridade, da tutela e dizer a sua própria palavra. Quem aprende a dizer a
sua palavra também aprende a não se conformar com a realidade circundante, engaja-se na
busca de transformação na vida pessoal e coletiva. Esse, sem dúvida, é também um
processo doloroso e prazeroso ao mesmo tempo.
Entendo que o conceito de liberdade cristã desenvolvido por Lutero traz reflexos
para uma atuação dentro da sociedade brasileira. No entanto, também esse conceito precisa
ser revisto à luz da teologia feminista, pois o serviço de amor tem sido entendido de forma
diferente na vida das mulheres e dos homens. O serviço de amor tem sido entendido como
carga na vida das mulheres. A ética luterana da “fé ativa no amor” pode iluminar a reflexão
sobre o cuidado, que tem sido uma tarefa muitas vezes imposta às mulheres, tornando o
cuidado uma ética do ser humano. A reflexão sobre esses conceitos é bastante complexa,
mas percebi a possibilidade de interligação entre os mesmos, especialmente na reflexão
histórica e dialética sobre o ser humano e as suas relações com o contexto que o cerca.
A busca do entendimento sobre os conceitos de libertação, emancipação, autonomia
e liberdade a partir dos pressupostos teóricos acima referidos é aberta, flexível, não se
esgotando e estando sujeita à inclusão de novos elementos e de novos questionamentos.
Esse processo reflexivo sobre os conceitos foi importante para tomar a decisão relativa ao
conceito utilizado na presente tese: “Recuperando espaços de emancipação na história de
vida de ex-alunas de escola comunitária luterana.” Como já referi, entendo emancipação
355
como um termo aberto e inclusivo, mas que aponta, especialmente, para a importância da
subjetividade e da coletividade, das relações humanas e das relações sociais. Para a
realização da emancipação é necessário vencer a alienação. Marx apontou quatro passos
nessa direção: o reencontro do ser humano consigo mesmo, o reencontro do ser humano
com o outro ser humano (seu ser genérico), o trabalho entendido não como algo estranho,
mas como atividade humana que dê satisfação e prazer, o produto do trabalho como fruto e
realização do trabalhador e da trabalhadora.
As mulheres, como já mencionei, conquistaram, no decorrer da história, direitos
individuais, sociais, políticos, jurídicos, educacionais, expressões da emancipação política;
no entanto, ainda são vítimas da violência física, psicológica, religiosa, sexual entre
outras.... Muitas mulheres ainda não podem dizer a sua própria palavra, sendo tuteladas e
controladas pelos pais ou pelo marido. Outras tantas mulheres vivem em função somente
dos filhos e das filhas, do marido, da casa, estando alienadas de si mesmas. É importante
deixar claro que não é possível universalizar a opressão sofrida pelas mulheres. É
necessário localizá-la em seu contexto sócio-histórico-cultural. Torna-se urgente superar a
sociedade regida pelo capital, onde a vida é colocada em segundo plano.
Portanto, quanto utilizo o termo “emancipação”, não dispenso a emancipação
política, mas vou adiante, saliento a emancipação humana, que é um retorno às relações
humanas, ao próprio ser humano, para vencer a barbárie presente no cotidiano. Como
conseguir esse retorno às relações humanas, se há tão poucos registros de histórias de vida
de mulheres? A teologia feminista da libertação aponta para esse compromisso e
responsabilidade, isto é, de recuperar as experiências das mulheres como fonte de saber e
fazer teológico. Isso significa que também a teologia luterana necessita ser refletida à luz
da teologia feminista da libertação. Lutero precisa ser visto como um homem do seu
tempo. Ele avançou na reflexão teológica, bíblica, eclesial, no entanto, não conseguiu
romper com a cultura patriarcal. Portanto, quando analisei as histórias de vida, procurei
questionar verdades teológicas e bíblicas que tenham sido usadas para submeter às
mulheres. Acredito ser este um desafio teológico, isto é, estar atenta ao cotidiano de vida
das mulheres e, a partir do diálogo, ir desconstruindo com elas essas verdades aprendidas
que não permitem uma relação mais igualitária de gêneros.
Procurei, nesta investigação, recuperar, a partir das narrativas das histórias de vida,
espaços de emancipação conquistados ou não por ex-alunas de escola comunitária luterana.
356
Ressalto que fiz questão de incluir na presente investigação as histórias de vida como
capítulos de tese, autorizadas pelas narradoras. É a narrativa oral da história de vida
tornando-se registro histórico, podendo ser consultado em outras pesquisas. Além do mais,
em meu entender, não é possível recuperar espaços emancipatórios das ex-alunas de escola
comunitária luterana sem ter presente as lembranças da infância, da escola, da
adolescência, os processos educacionais vivenciados na família, na escola e na igreja, a
formação profissional, a constituição de sua própria família, a imagem de Deus, a leitura
da Bíblia e a participação em grupos comunitários até o ano 2005. A educação recebida na
escola comunitária soma-se ao contexto sócio-histórico-cutural onde esta menina, hoje
mulher, esteve inserida. É nesse sentido que considero que as memórias educacionais das
narradoras podem lançar luz sobre o fazer e o saber na área de educação e religião.
Halbwachs afirma que a memória não é apenas algo pessoal, mas também uma memória
coletiva. O registro das histórias de vida trouxe à tona uma memória pessoal, mas que
também é uma memória social, familiar, escolar, eclesial e grupal.
O processo educacional das ex-alunas de escola comunitária luterana insere-se
dentro da história da educação brasileira. A escola comunitária luterana está intimamente
ligada com a história do luteranismo no Brasil. A escola comunitária não é uma
experiência única e exclusiva dos imigrantes luteranos; também católicos, poloneses entre
outros, construíram e organizaram suas próprias escolas. A organização desse tipo de
escolas retrata o descaso do governo brasileiro, naquele período histórico, com a educação.
A escola comunitária é uma experiência que nasceu das margens, de pessoas imigrantes.
A história das escolas comunitárias e do luteranismo, no entanto, não é homogênea.
Isso foi possível perceber nas narrativas das ex-alunas. Anneliese e Renita são mulheres
que viveram e trabalharam na roça quando eram crianças e adolescentes. Ruth e Yvonne
viviam na cidade e seus pais eram trabalhadores na área de serviços qualificados. Elas
percebem, em suas narrativas, as diferenças dessas realidades que se manifestavam no
cotidiano da escola comunitária luterana. Chamo a atenção para esse aspecto, pois a escola
luterana estava e está situada no centro da cidade, apresentando aspectos culturais dessa
realidade. A educação escolar que marcou a vida das ex-alunas está interligada pela
questão étnica (imigrantes europeus, alemães), língua (alemã), religiosa (confessionalidade
luterana), de gênero (escola mista, freqüentada por meninos e meninas), de classe social
(crianças que moravam na “cidade” versus crianças que moravam na colônia). A escola
comunitária luterana é marcada pela heterogeneidade. Ter a mesma origem étnica,
357
freqüentar a mesma igreja e a mesma escola não significa ter o mesmo cotidiano de
sobrevivência, como foi possível perceber nas narrativas. A escola comunitária luterana
que transparece nas narrativas é fruto de um determinado tempo histórico, marcando de
forma diferente a vida das narradoras. As quatro narradoras, na medida em que, além de
contarem suas memórias, abriram caixas e gavetas de armários, incluindo fotos,
documentos, boletins em suas histórias de vida, se mostram como guardiãs da memória da
escola comunitária luterana, e não só da escola, como da Igreja Luterana. Este fato traz
questionamentos e desafios. É urgente a reconstrução da memória histórica do processo de
ensino-aprendizagem das mulheres nos contextos das escolas comunitárias e das igrejas
luteranas, pois ainda há pouca pesquisa e pouco material publicado, especialmente no
contexto brasileiro, onde a atual escola comunitária é questionada em sua estrutura e
crescem, por outro lado, as igrejas pentecostais. Recuperar espaços de emancipação de ex-
alunas de escola comunitária é reconhecer também a atuação dessas mulheres como líderes
na família, no trabalho, em grupos comunitários, na igreja.
O passado, especialmente a proibição imposta à Anneliese de não poder ser
professora e o casamento arranjado, é narrado por ela como denúncia das conseqüências do
processo de nacionalização do ensino. Ruth também denuncia a humilhação que sofreu
quando era aluna por não saber falar direito o português. Percebi que poder falar dessas
memórias subterrâneas, guardadas, que eram motivo de vergonha, foi um processo de
libertação de uma culpa que não era delas. A memória atua como um espaço de
emancipação em suas vidas. O relato de Anneliese e Ruth quanto ao processo de
nacionalização de ensino trouxe um questionamento quanto à prática do patriotismo
construído naquele momento histórico pelo governo populista de Vargas. O patriotismo
apareceu como um verdadeiro culto à pátria, transparecendo como idolatria, a partir da
concepção luterana, que se firma no primeiro mandamento: “Eu sou o Senhor, teu Deus,
não terás outros deuses diante de mim.”
Para cada uma das narradoras, a experiência de estudar na escola comunitária foi
vivenciada de forma diferente. Mas todas afirmam que a passagem pela escola foi de
fundamental importância em suas vidas. Havia uma estreita ligação no processo
educacional entre as instituições família, escola e igreja luterana, especialmente até o
momento da confirmação. Isto significa que a constituição da confessionalidade luterana
estava firmada nesse tripé, onde a mãe aparece em casa como a educadora, que lê e ensina
a orar e ler a Bíblia. Entretanto, neste tocante apareceu uma diferença. Ruth recordou que
358
ela precisava ler mais a Bíblia do que o seu irmão. O ensino religioso dado pela mãe em
casa também estava dirigido para a construção de uma identidade de ser homem e ser
mulher. Problematizando esta questão, entendo que a leitura da Bíblia, neste contexto,
estava dirigida para a formação da mulher como mãe, dona de casa, cuidadora dos filhos e
filhas.
As escolas comunitárias luteranas estavam imbricadas dentro de uma perspectiva de
melhoramento do mundo; por isso, também fizeram parte da vida dos imigrantes alemães,
que estavam à margem da sociedade brasileira. A proposta pedagógica estava ligada com
as coisas da vida e do cotidiano, enraizada dentro de uma perspectiva educacional
propagada pela teologia luterana de tornar a pessoa emancipada, no tocante à leitura e
interpretação da Bíblia. É importante ressaltar que homens e mulheres tiveram acesso à
Bíblia, mas a leitura e a interpretação nem sempre favoreceram uma relação igualitária
entre os gêneros, como foi possível perceber na liturgia de casamento na época em que
Anneliese se casou.
As escolas comunitárias eram mistas, isto é, formadas por meninos e meninas, mas
isso não significou uma interação maior entre meninos e meninas na sala de aula. As
narradoras ressaltam que na sala de aula havia uma rígida disciplina, com a separação de
meninos e meninas. Quando as meninas fugiam da normalidade imposta, o castigo que
recebiam eram sentar no meio dos meninos. Com esta atitude disciplinar se acentuava o
que significava ser menina e ser menino. As meninas não podiam ser falantes e agitadas,
precisavam ser calmas e tranqüilas; isso fica bem claro nas narrativas de Renita e Yvonne.
Essa constatação do processo de construção da identidade de menino e menina na análise
das histórias de vida aponta para a possibilidade de uma nova pesquisa que poderia ser
desenvolvida, envolvendo luteranismo, educação, corporeidade e sexualidade na vida de
ex-alunas e ex-alunos de escola comunitária luterana ou de pessoas que participam da
Igreja Luterana. Como a escola comunitária luterana trabalhou e trabalha a questão da
corporeidade e sexualidade em seu cotidiano escolar? Ou como a membresia da Igreja
Luterana reflete e vivencia a sua corporeidade e sexualidade?
Outro aspecto que destaco é que as narradoras são mulheres bastante ativas,
encontrando na igreja um espaço através do qual atuam na sociedade. A igreja é colocada
como laboratório para a vida. A igreja é entendida como lugar de labor, isto é, de colocar
aquilo que se sabe fazer a serviço da fé em Jesus Cristo, de oração, implicando a vivência
359
da espiritualidade, e de oratório, isto é de articular a própria palavra para atuar em outros
espaços, seja na família, na casa, no bairro, na escola, na comissão de trabalho social do
município, no fazer um programa radiofônico... entre outros. Esse aspecto também lança
luz sobre uma outra pesquisa interessante: como a Igreja Luterana faz parte e colabora no
processo educativo das mulheres? Foi possível perceber nas narrativas que a igreja é um
espaço social público e que é a partir daí que as mulheres atuam na sociedade. Participando
na igreja, as mulheres têm acesso a outros espaços, bem como a viagens, passeios e
encontros. Além do mais, percebi que a leitura do documento da Federação Luterana
Mundial intitulado “As igrejas dizem não à violência contra a mulher” por uma das
narradoras gerou uma profunda crise pessoal no decorrer da pesquisa. Isto significa que a
igreja é um espaço educativo, portanto, com uma dimensão social e pública. O problema
que coloco é: como trabalhar numa dimensão emancipadora a questão da violência contra
as mulheres, não ficando apenas na denúncia da situação?
Chamo a atenção para a importância da leitura da Bíblia, apresentada,
especialmente, pelas narradoras mais idosas. O acesso direto às Escrituras Sagradas é o
grande legado da Reforma, sendo também um dos motivos para que surgissem escolas
comunitárias luteranas em terras brasileiras. Anneliese encontrou um sentido para a sua
vida presente na história bíblica da viúva pobre. Ruth se identificou com a história de Rute,
fazendo uma releitura a partir das opções que ela fez no decorrer da sua vida. Ao mesmo
tempo que considero valiosa a forma como as duas narradoras se apropriam da Bíblia,
pergunto: como a leitura e a interpretação da Bíblia são feitas pelas mulheres luteranas e de
que forma elas colaboram para a conquista de espaços de emancipação?
Todas essas perguntas levantadas brotam da profunda interação realizada nessa tese
com as histórias de vida das ex-alunas de escola comunitária luterana. É na prática
cotidiana que a vida se faz teoria. Na narração da história de vida das ex-alunas está
presente uma profunda teoria que ainda poderá trazer outras luzes para a vida e para a
construção do conhecimento, na interface da religião e da educação. Concluo essa tese
apontando para a emancipação humana como um processo de inacabamento da vida.
Aquilo que foi aprendido no decorrer da vida, seja na escola, na família, na igreja e em
outros espaços, mostra-se na forma como as narradoras vivem atualmente o seu cotidiano.
Por isso, trago a receita de uma vida com saúde, vivida por Anneliese:
“Eu mantenho um ritmo bastante regular na minha vida. Geralmente, vou dormir às 9
horas da noite e levanto às 7 horas da manhã. Eu durmo 10 horas por dia. Sempre comi
360
bastante verduras, muitas frutas (especialmente laranja, banana e abacate) e como pouca
carne. Tomo leite. Desde pequena eu sempre ando de pés descalços. Para mim é muito
importante o contato com a terra. Hoje tenho 87 anos e o que mais gosto de fazer é andar
descalça e continuo tendo boa saúde.”
Destaco também a importância da vivência comunitária, mas, ao mesmo tempo, o
não esquecer-se de si mesma, como relata Ruth:
“A comunidade, os grupos da OASE e o coral são parte da minha família Também não
descuido da minha pessoa. Procuro sempre cuidar do meu cabelo e estar bem vestida; isto
não significa vestir roupas caras. Gosto de me arrumar. Isso me faz bem! Também cuido da
minha saúde, da minha alimentação. Procuro manter sempre o bom humor. Gosto muito de
cantar. Domingos de manhã, sempre quando posso, vou ao culto.Tenho o meu carro. Posso
me locomover pela cidade. Sou uma pessoa independente, mas gosto de participar dos
grupos, de ajudar onde posso e de me relacionar com as pessoas, de estar entre amigos e
amigas.”
Igualmente a busca incessante da melhora na vida profissional da qual fala Yvonne
e, ao mesmo tempo, a preocupação com o fortalecimento de relações de amizade com a
filha adolescente:
“Sinto que preciso fazer alguma coisa, mas não sei o quê. Também não consigo me ver
toda a noite numa sala de aula. Sinto-me muito cansada para isso. Alguma coisa preciso
fazer, para ficar mais atualizada. Se eu me colocar em qualquer coisa, curso ou pós-
graduação, preciso repassar algumas funções que tenho no escritório. [...] Uma das coisas
que mais me preocupa no momento é achar mais tempo para minha filha Larissa. Achar
mais tempo e mais paciência. [...] Larissa está entrando na adolescência. Então, às vezes, as
coisas não batem entre nós duas. Mas eu quero ser amiga da minha filha! [...] ser mulher é
ser feminina, buscando sempre a construção de boas relações na família, com minhas filhas
e meus filhos, com meu marido, administrando com ética e responsabilidade a empresa e a
casa.”
Renita retrata a sua inquietude e a sua busca dizendo:
“Meu nome é Renita. Ele tem a ver com as palavras resistência e persistência. Estou com
51 anos. Sinto que é tempo para continuar a aprender e fazer novas coisas na minha vida.”
Essa investigação fica por aqui. A vida continua!!! Anneliese, Ruth, Renita e
Yvonne, ex-alunas de escola comunitária luterana, cada uma com a sua história de vida,
fazem parte da história da humanidade. De fato, as mulheres desta tese, além de ex-alunas,
também foram e são trabalhadoras. A perspectiva de gênero poderá, em futuras pesquisas,
ser enriquecida pela perspectiva de classe social. No decorrer dessa tese, envolvi-me
pessoalmente com a história de cada uma das narradoras. Quando elas recordaram a
infância, o jardim apareceu como um primeiro espaço de liberdade da criança em relação à
família. Eu também me reencontrei nesse espaço, brotando a bênção que transcrevo como
361
compromisso com a história de vida das narradoras e com os saberes da religião e da
educação para que estejam a serviço da emancipação humana.
ABENÇOADAS SAUDADES DOS JARDINS DE NOSSAS MÃES/AVÓS...
Saudades dos jardins de nossas mães/avós...
Trazem lembranças/memórias do paraíso...
Tudo que foi criado pela sabedoria divina (RUACH) era bom e bonito!
Saudades dos jardins de nossas mães/avós...
Lembram cuidado, beleza...
Responsabilidade ética e estética com a criação...
Diversidade...
Cheiros...
Sabores...
Flores coloridas...
Frutas saborosas e suculentas...
Subir em árvores...
Apanhar bergamotas... Laranjas... Ameixas... Maçãs... Goiabas...
Brincar debaixo das sombras amigas e acolhedoras das figueiras... dos plátanos... dos
cinamomos...
Correr nos campos...
Deitar-se na grama macia...
Um copo de água pura e límpida...
Gostoso cheiro da terra molhada...
Renovando-se para receber a semente...
Pedras... montanhas... planaltos e planícies em harmonia...
Desenhando a natureza...
Saudades das verduras fresquinhas e saudáveis da horta-jardim...
Dos saberes no uso das plantas, dos chás na cura das doenças...
Abençoadas saudades dos jardins-pomares-hortas de nossas mães/avós...
A Sabedoria divina (RUACH), o sopro da fonte da vida, continua soprando...
Trazendo novas dimensões para o cuidado da criação!
Apontando para a diversidade, inclusividade...
Harmonia... Paz... Solidariedade... Alegria... Esperança...
Ainda é possível resgatar o jardim planetário...
Depende do engajamento das nossas saudades...
Nas ações emancipatórias do cotidiano...
Para que a vida inteira seja abençoada!
Abençoados sejam os jardins-pomares-hortas de nossas vidas...
Nos diferentes contextos de nosso mundo.
Na graça e na misericórdia da bondosa Sabedoria Divina, a fonte da vida...
362
BIBLIOGRAFIA
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Arquivo Histórico Eugênio Victor Schmockel – Jaraguá do Sul/SC.
Laboratório de História Oral FURB – Blumenau/SC.
ENTREVISTA
Entrevista com o Prof. Dr. João KLUG sobre as escolas comunitárias e o luteranismo em
Santa Catarina, realizada no dia 10 de maio de 2005, na Universidade Federal de Santa
Catarina. – Florianópolis/SC.
379
INDICE DE FOTOS E DOCUMENTOS
III – HISTÓRIA DE VIDA DE ANNELIESE
Documento 1: Cartão Postal – Namíbia – recebido 19.09.73 ........................................... 133
Documento 2: Passaporte do pai ....................................................................................... 134
Documento 3: Passaporte da mãe com a fotografia da irmã Hildegard ............................ 135
Documento 4: Passaporte da mãe com a fotografia de Anneliese..................................... 135
Foto 1: Primeira Escola – 1924 – Alemanha..................................................................... 136
Documento 5: Certidão de Confirmação........................................................................... 138
Foto 2: Confirmação – 05/04/31........................................................................................ 139
Foto 3: Schule [Escola] Jaraguá – Professora Auxiliar – 18/10/35................................... 139
Foto 4: Anneliese com o pai na plantação de eucaliptos................................................... 140
Foto 5: Anneliese e a amiga Hilda na Escola de Preparação para Professores................. 142
Documento 6: Histórico escolar do exame realizado na Escola de Preparação
para Professores................................................................................................................. 143
Foto 6: Construção Internato Misto................................................................................... 146
Foto 7: Casamento Anneliese e Frederico – 10/08/38....................................................... 147
Foto 8: Chegada em Canoinhas......................................................................................... 148
Foto 9: Trabalhos manuais ................................................................................................ 150
Foto 10: Anneliese com o 1º filho..................................................................................... 151
Foto 11: Filha Ruth e Filho Curt ....................................................................................... 155
Foto 12: Anneliese trabalhando com tricô artístico........................................................... 158
Foto 13: Anneliese lendo histórico de fundação da OASE............................................... 163
Foto 14: Mulheres reunidas – festejos da OASE - 40 anos.............................................. 163
Foto 15: Anneliese com a sua 5ª bisneta de nome Anneliese............................................ 169
380
Foto 16: Foto comissão construção Igreja......................................................................... 170
Foto 17: Anneliese dando o seu testemunho no Congresso Sinodal da OASE................. 171
IV – HISTÓRIA DE VIDA DE RUTH
Documento 1: Certidão de Batismo................................................................................... 173
Documento 2: Certidão Registro Civil.............................................................................. 174
Foto 1: Ruth com sua mãe e seu irmão.............................................................................. 175
Foto 2: Casa da infância .................................................................................................... 176
Foto 3: Família reunida em frente a casa........................................................................... 176
Foto 4: Pai tocando violoncelo com amigos...................................................................... 178
Foto 5: Grupos culto infantil em frente do templo............................................................ 179
Foto 6: 1º ano na Schule [Escola] Jaraguá – 1935............................................................. 181
Foto 7: Ruth e seu irmão Heinz......................................................................................... 182
Foto 8: Jardim da casa....................................................................................................... 183
Foto 9: Formatura curso complementar – Divina Providência.......................................... 186
Documento 3: Certidão de confirmação............................................................................ 187
Foto 10: Local de trabalho................................................................................................. 189
Foto 11: Alemanha com P. Waidner – excursão coral ...................................................... 192
Foto 12: Coral Comunidade Evangélica Luterana Jaraguá do Sul.................................... 193
Foto 13: Desfile da ginástica............................................................................................. 194
Foto 14: Vestida para o baile............................................................................................. 195
Foto 15: Nova casa............................................................................................................ 196
Foto 16: Comemoração 60 anos OASE............................................................................. 198
Foto 17: Grupo de lanche .................................................................................................. 200
Foto 18: O primeiro carro – fusca amarelo........................................................................ 201
Foto 19: Foto com o irmão e a sobrinha-neta.................................................................... 203
Foto 20: Ruth com a sua afilhada mais nova..................................................................... 203
Documento 4: Significado do nome Ruth......................................................................... 204
V – HISTÓRIA DE VIDA DE RENITA
Documento 1: Caixinhas de batizado................................................................................ 207
Documento 2: Carta de batismo do único padrinho.......................................................... 207
381
Foto 1: Foto de família...................................................................................................... 208
Foto 2: 1º ano primário 1962............................................................................................ 211
Foto 3: A roça cede lugar à indústria................................................................................. 213
Foto 4: Pequeno rancho na roça ........................................................................................ 214
Documento 3: Certificado conclusão primário complementar.......................................... 215
Foto 5: Turma de confirmandas ........................................................................................ 219
Documento 4: Certidão de confirmação............................................................................ 220
Documento 5: Histórico escolar – conclusão do ginásio Divina Providência................... 222
Foto 6: Renita no berçário................................................................................................. 223
Foto 7: Bodas de Prata dos pais......................................................................................... 226
Documento 6: Certidão de Casamento.............................................................................. 227
Foto 8: Projeto Mobral ...................................................................................................... 228
Foto 9: Testemunho congresso Sinodal............................................................................. 229
Foto 10: O pai e o tio festejando aniversário..................................................................... 230
Foto 11: Descendentes de Emil e Ema.............................................................................. 233
Foto 12: Foto descendentes Alitor e Helga ....................................................................... 233
Documento 7: Convite com desenho da árvore genealógica de
Alitor e Helga – Bodas de Ouro ........................................................................................ 235
Foto 13: Foto dos pais Alitor e Helga – 20/08/1999 – Bodas de Ouro............................. 235
VI – HISTÓRIA DE VIDA DE YVONNE
Foto 1: Lembrança do 1º aniversário................................................................................. 237
Foto 2: Lembrança do 2º aniversário................................................................................. 237
Foto 3: Lembrança do 3º aniversário................................................................................. 238
Foto 4: Lembrança do 4º aniversário................................................................................. 238
Foto 5: Lembrança do 5º aniversário................................................................................. 238
Foto 6: Lembrança da Páscoa do Jardim – 1958............................................................... 239
Foto 7: Foto 4ª série – Escola Jaraguá............................................................................... 240
Foto 8: Yvonne cuidando da irmã ..................................................................................... 241
Foto 9: Quatro gerações: bisavó, avó, mãe e Yvonne bebê............................................... 242
Foto 10: Avó paterna......................................................................................................... 244
Documento 1: Frente do Boletim 4ª série.......................................................................... 245
382
Documento 2: Regimento da escola.................................................................................. 245
Documento 3: Boletim escola particular Jaraguá.............................................................. 246
Documento 4: Última página do boletim .......................................................................... 246
Documento 5: Boletim Divina Providência....................................................................... 247
Documento 6: Regulamento Divina Providência anos 1966, 1967, 1968......................... 248
Documento 7: Regulamento Divina Providência ano 1969.............................................. 248
Documento 8: Boletim do último ano do ginásio.............................................................. 249
Foto 11: Excursão do ginásio para Florianópolis.............................................................. 249
Foto 12: Foto de confirmação............................................................................................ 251
Foto 13: Baile de debutantes ............................................................................................. 252
Foto 14: Férias na Praia Barra Velha ................................................................................ 254
Foto 15: Formatura do técnico de contabilidade............................................................... 254
Foto 16: Yvonne formatura do técnico de contabilidade .................................................. 255
Foto 17: Formatura curso de Letras – Joinville................................................................. 258
Foto 18: Yvonne com seu 1º marido, filho e filha............................................................. 260
Foto 19: Yvonne com sua filha e seu filho........................................................................ 260
Foto 20: Viagem para a França.......................................................................................... 268
Foto 21: Natal em família.................................................................................................. 270
Foto 22: Neto Arthur ......................................................................................................... 270
Foto 23: Aniversário surpresa 50 anos.............................................................................. 271
Foto 24: Primeira comunhão da filha................................................................................ 272
VII – EX-ALUNAS DE ESCOLA COMUNITÁRIA LUTERANA: RECUPERANDO
ESPAÇOS EMANCIPATÓRIOS
Foto 1: Solenidades diante “Altar da Pátria”..................................................................... 311
Documento 1: Cartilha “Getúlio Vargas para crianças”.................................................... 312
Foto 2: Escolas desfilam na Quinta da Boa Vista ............................................................. 312
383
ANEXO 1
Referente História de Vida de Anneliese
384
ANEXO 2
Referente História de Vida de Ruth
385
ANEXO 3
Referente História de Vida de Renita
386
ANEXO 4
Referente História de Vida de Yvonne
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