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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO?
Religião e Infância no semi-árido nordestino
Flávia Ferreira Pires
Rio de Janeiro
2007
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QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO?
Religião e Infância no semi-árido nordestino
Flávia Ferreira Pires
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Doutorado em Antropologia Social
Orientador: Prof. Dr. Otávio Guilherme Alves Velho
Co-orientadora: Profa. Dra. Christina Toren
Rio de Janeiro
2007
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III
QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO?
Religião e Infância no semi-árido nordestino
Flávia Ferreira Pires
Tese submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Doutor.
Aprovada por:
Prof. Emérito Otávio Velho (UFRJ - MN) – Orientador
Prof. Dr. Moacir Palmeira (UFRJ - MN)
Profa. Dra. Renata Menezes (UFRJ - MN)
Prof. Emérito Pierre Sanchis (UFMG)
Profa. Dra. Regina Novaes (UFRJ - IFCHS)
Profa. Dra. Clara Mafra (UERJ) – suplente
Prof. Dr. Márcio Goldman (UFRJ - MN) - suplente
Rio de Janeiro
2007
IV
FICHA CATALOGRÁFICA
PIRES, Flávia Ferreira
Quem tem medo de mal-assombro? Religo e Infância no semi-árido nordestinao/ Flávia Ferreira
Pires. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.
XI, 227, cclxxxiii f.
Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social, 2007.
Orientador: Otavio Guilherme Cardoso Alves Velho.
1. Antropologia da Religião. 2. Antropologia da Criança e da Infância 3. Mal-assombros. I. Velho,
Otavio Guilherme Cardoso Alves. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social. III. Título.
V
RESUMO
QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO?
Religião e Infância no semi-árido nordestino
Flávia Ferreira Pires
Esta é uma tese etnográfica que versa sobre o processo de tornar-se adulto em uma cidadezinha
chamada Catingueira, no semi-árido nordestino, interior da Paraíba. Ali, tornar-se adulto implica, em
grande medida, tornar-se uma pessoa religiosa. O principal objetivo da tese é acompanhar e analisar
como esse processo acontece, tendo em vista as crianças, os adultos e os idosos. Detectamos, nesse
processo, a presença dos mal-assombros entendidos, pelos adultos, como a alma dos mortos e,
pelas crianças, como tudo aquilo que faz medo. Tornar-se adulto, portanto, implica em restringir
toda uma gama de possíveis mal-assombros a apenas as almas dos mortos. Essas almas serão tidas
como entidades religiosas, na medida em que são reconhecidas como enviadas de Deus ou do
Demônio. Demonstramos, através de diversas técnicas de pesquisa dentre elas, desenhos e
redações −, que são os adultos, e não tanto as crianças, que mais temem os mal-assombros.
Trabalhamos com a hipótese de que crescer implica em desbastamento religioso, conversão religiosa
e cristianização. Além disso, exploramos uma realidade na qual o cristianismo aparenta ser mais
importante que as distinções entre as religiões.
Palavras-chave:
Cristianismo; criança; infância; mal-assombro; semi-árido nordestino; desenhos.
VI
ABSTRACT
WHO IS AFRAID OF MAL-ASSOMBRO”?
Religion and Childhood in the Northeast semi-arid region of Brazil
Flávia Ferreira Pires
This ethnographic doctoral thesis discusses the process of becoming an adult in Catingueira, a
village located in the Northeast semi-arid, countryside region in the State of Paraíba - Brazil. In this
village, the process of becoming an adult entails the simultaneous process of becoming religious.
The principal objective of this thesis is to illustrate and analyse how this process occurs by taking
into account the perspectives of children, adults and the elderly. The presence of “mal-assombros”
was found to be integral in the process of becoming religious. For adults “mal-assombros” are
understood to be the souls of the dead, yet for children these “mal-assombros” can take the form of
anything that causes them fear. The process of becoming an adult involves a narrowing of the
perception of “mal-assombros”. When a person fully becomes an adult, that person is only able to
view these “mal-assombros” as the souls of the dead. Moreover, these souls are interpreted as
religious entities, recognised as being sent by God or the devil. In this thesis, I demonstrate through
various research techniques, including drawings and writings, that adults fear these “mal-assombros”
more than children. I attempt to explore the hypothesis that to become an adult simultaneously
involves religious conversion, Christianisation and the gradual restriction of some religious
experiences. Moreover, this thesis is framed within and explores a reality in which the influence of
Christianity as a whole is prevalent and predominates over the varied influences of the individual
Christian churches.
Key words:
Christianity, child, childhood, “mal assombros” (ghosts/spirits), semi-arid Northeast Brazil,
drawings.
VII
“Deixai vir a mim os pequenos e não os impeçais, porque o Reino de Deus é daqueles que se lhes
assemelham”.
Marcos 10, 14.
VIII
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Otavio Velho, pelo direcionamento e paciência durante estes seis anos de
formação intelectual. À minha co-orientadora Christina Toren, pelo estímulo e diálogo. Aos
professores Moacir Palmeira e Luiz Fernando Dias Duarte, pela leitura atenta do meu trabalho nas
duas qualificações. Sinto-me grata e honrada por poder contar com os professores Moacir Palmeira,
Pierre Sanchis, Regina Novaes e Renata Menezes na banca final, assim como Clara Mafra e Márcio
Goldman, como professores suplentes.
Ressalto a minha gratidão à CAPES pela bolsa de doutorado, nos dois primeiros anos do
curso, e pela bolsa PDEE (Programa de Pós-Graduação no País com Estágio no Exterior), de
novembro de 2005 a maio de 2006. À Wenner Gren Foundation pela concessão da bolsa Library
Residency Scholarship de setembro a dezembro de 2004. À FAPERJ pela bolsa de doutorado Nota
Dez, nos últimos dois anos do curso.
Ao PPGAS (Programa de s-Graduação em Antropologia Social) na figura dos seus rios
coordenadores ao longo do meu percurso no Museu Nacional, assim como às secretárias e às
bibliotecárias. À Brunel University por ter revogado a taxas escolares, o que possibilitou o meu
intercâmbio.
Aos colaboradores, amigos e amores: João Ricardo Ferreira Pires, Maria Ana Dias de
Alvarenga Baptista, Alessandra Tsallis, Eloísa Martin, Tamás Papp, Luciana Oliveira, Luciana
Patrícia de Morais, Rogério Lopes, Léa Perez, Andréa Detmer, Letícia dos Santos Martins, Tânia
Freitas, Francisco Ferreira Filho, Cecília Ferreira Eufrázio, Julianne Bezerra, Sônia Pires (Sônia
da Padaria) e Alexandre Ayoub.
À minha família principalmente ao meu pai, à minha mãe, ao meu iro João Ricardo, ao
meu irmão Bruno, à minha irmã Luana e a minha prima-irmã Viviane.
E especialmente ao povo de Catingueira, principalmente aos que se tornaram meus amigos e
às crianças, minha gratidão e meu amor.
IX
Para o meu pai,
João Bosco Lustosa Pires
X
ÍNDICE
PREFÁCIO...................................................................................................................................12
INTRODUÇÃO............................................................................................................................14
PARTE 1: COMENTÁRIOS INICIAIS...............................................................................................14
PARTE 2: ABORDAGENS TEÓRICAS PARA O ESTUDO DAS (E COM AS) CRIANÇAS EM ANTROPOLOGIA
SOCIAL........................................................................................................................................21
1. Introdução..........................................................................................................................21
2. Uma cultura ou sociedade das crianças?............................................................................26
3. Teorias da teoria.................................................................................................................32
4. Conclusões..........................................................................................................................38
CAPÍTULO 1: SER ADULTA E PESQUISAR CRIANÇAS: EXPLORANDO
POSSIBILIDADES METODOLÓGICAS NA PESQUISA ANTROPOLÓGICA....................39
1. INTRODUÇÃO...........................................................................................................................39
2. SER ADULTA E PESQUISAR CRIANÇAS........................................................................................39
3. DESENHOS E REDAÇÕES: CONDUÇÃO, CONSIDERAÇÕES E RESULTADOS......................................46
4. DELIMITANDO A REALIDADE SOCIAL DAS CRIANÇAS: OUTRAS TÉCNICAS DE PESQUISA UTILIZADAS
...................................................................................................................................................55
5. CONCLUSÕES...........................................................................................................................59
6. ANEXO: SELEÇÃO DE ELEMENTOS DESENHADOS .......................................................................62
CAPÍTULO 2: CIDADE, CASA E IGREJA: SOBRE CATINGUEIRA, SEUS ADULTOS E
SUAS CRIANÇAS........................................................................................................................66
1. INTRODUÇÃO...........................................................................................................................66
2. A CIDADE DE CATINGUEIRA .....................................................................................................66
3. O QUE É SER CRIANÇA EM CATINGUEIRA?.................................................................................77
3. 1. A criança pequena ..........................................................................................................77
3. 2. Organização doméstica...................................................................................................80
3. 3. A família e a criança.......................................................................................................85
4. CONCLUSÕES...........................................................................................................................94
CAPÍTULO 3: QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO? .................................................96
1. INTRODUÇÃO...........................................................................................................................96
2. SOBRE A DEFINIÇÃO DO MAL-ASSOMBRO ..................................................................................96
3. CRISTIANIZAÇÃO DAS CRIANÇAS E DOS MAL-ASSOMBROS........................................................107
4. QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO?...................................................................................112
5. CONCLUSÕES.........................................................................................................................123
6. ANDICE..............................................................................................................................127
CAPÍTULO 4: O QUE AS CRIANÇAS PENSAM SOBRE RELIGIÃO? ..............................129
1. INTRODUÇÃO.........................................................................................................................129
2. RELIGIÃO E O PAPEL DA FAMÍLIA: OS PRIMEIROS ANOS ............................................................129
3. SOBRE A IRRELEVÂNCIA DO SIGNIFICADO: UMA RELIGIÃO DA PRÁTICA?...................................139
4. CONCLUSÕES.........................................................................................................................148
5. ANDICE..............................................................................................................................153
CAPÍTULO 5: COMO SE FAZ UMA PESSOA RELIGIOSA − OU, SIMPLESMENTE,
COMO SE TORNAR UM CATINGUEIRENSE......................................................................154
1. INTRODUÇÃO.........................................................................................................................154
2. TORNAR-SE RELIGIOSO...........................................................................................................155
3. RELIGIÃO E MAL-ASSOMBRO: DOIS PROCESSOS ANALISADOS EM PARALELO .............................168
XI
4. SOBRE A DÚVIDA: FANTASIA OU REALIDADE?.........................................................................175
5. CONCLUSÕES.........................................................................................................................178
6. ANDICE..............................................................................................................................184
CONCLUSÕES ..........................................................................................................................185
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA............................................................................................192
ANEXOS.....................................................................................................................................224
ANEXO 1...................................................................................................................................224
ANEXO 2:............................................................................................................................CCXXIX
1) MAPAS:..........................................................................................................................CCXXX
2) FOTOS...........................................................................................................................CCXXXI
3) DESENHOS..................................................................................................................CCXXXV
12
PREFÁCIO
Em todas as salas de aula na escola onde eu cursei todo o então chamado primeiro grau, em
Divinópolis (MG), havia um crucifixo em cima do quadro negro. Inúmeras vezes, em momentos de
apuros, eu olhava Jesus naquela triste figura e pedia por socorro. Naquele tempo, a aula não
começava sem que as crianças todas em fila indiana rezassem acompanhadas da diretora da Escola
Estadual São Francisco de Assis. No mês de maio, tínhamos até coroação de Nossa Senhora no
recreio. Falando em recreio, lembrei-me de que o sinal do icio ou final das aulas não era o
tradicional apito de fábrica, mas o hino de São Francisco. Na escola, havia uma capelinha com a
imagem do santo, cujos fundos para sua construção eu, orgulhosamente, ajudei a arrecadar. Foram
incontáveis as vezes que eu passei por ali para conversar com o santo. Para mim, São Francisco era
tão bonito...
Eu fui formalmente educada no catolicismo. Fiz primeira comunhão e crisma. Missas
semanais, catecismo e confissão faziam parte da minha vida. Além do ensinamento formal da
religião, meus pais eram católicos praticantes e faziam questão de ter os filhos educados no mesmo
regime. A pequena canção Ao Senhor agradecemos, Aleluia, o alimento que teremos, Alelu-u-ia”,
cantada na voz grave e desafinada de meu pai, antes das refeições, reverberava em mim uma espécie
de euforia interior. De duas, uma: ou era dia de festa ou ele estava muito feliz.
Nos anos da minha infância, eu sempre rezava antes de dormir e, por mais que meus
desejos não fossem atendidos, o poder da oração era incontestável. Eu acreditava piamente que os
olhos de Deus estavam por toda parte, o que, às vezes, amedrontava e, às vezes, confortava. Lembro-
me, também, que na pré-adolescência, senti vontade de morrer para ir ter com Deus. Devia ser
maravilhoso viver no céu ao lado de Deus e dos anjos. Eu ia ao catecismo para encontrar meus
coleguinhas e ganhar um bombom da professora, mas também porque eu queria conhecer Aquele
para quem “nada é impossível”. Muitas vezes, senti meu coraçãozinho queimando de alegria de ter
sido uma das escolhidas de Deus ou Jesus… não sei bem. Tanto que, na primeira infância, eu tinha
medo de me encontrar com Deus porque achava que ele poderia aparecer para mim a qualquer
momento. E como sabia que Ele não era dado a visitas freqüentes, assustava-me com a possibilidade
dele querer aparecer justamente para mim. O meu medo vinha do fato de que eu acreditava ser
especial aos olhos de Deus, o que o levaria a querer se encontrar comigo. Na verdade, no meu
íntimo, eu não queria vê-lo, porque O temia mas isso Deus desconhecia.
Pensava eu que, lá acima das nuvens, no céu, havia uma tábua de madeira muito, muito
grande; quiçá, infinita. Nessa tábua, eram pregados de braços abertos, a la crucificação de Jesus
13
(mas sem o sofrimento), todos os que morriam. Com seu próprio corpo, cada um dos defuntos
acabava por desenhar uma cruz. O primeiro homem a ser pregado naquela grande tábua havia sido
Jesus. Ele ficava exatamente no centro desta madeira horizontal, enrolado com aquele trapo de pano
na cintura. Segundo minha metasica s-morte, Jesus havia de compartilhar a mesma tábua com
todos os mortos. O primeiro homem que morreu depois de Jesus tomou lugar à direita do Pai”, e o
segundo foi pregado do lado esquerdo. O terceiro já foi colocado a uma posição distante de Jesus – e
assim sucessivamente. O lugar onde cada um seria pregado no céu seguiria a ordem cronológica da
sua morte. Se alguém quisesse conversar com outras pessoas, que mesmo mortas engatavam em
animadas conversações, era esticar o pescoço, identificar o interlocutor e mandar ver no bate-
papo. Muitas vezes, pensava eu, seria preciso gritar para ser ouvido. Assim, se, por exemplo, quando
eu morresse, quisesse conversar com o meu aque morreu alguns anos, eu possivelmente
teria que gritar, porque ele estaria ‘pregado’ distante de mim.
A primeira vez que eu fui a Catingueira, cidade natal de meu pai, eu tinha oito anos de idade.
Era janeiro, tempo da Festa de São Sebastião. Meus pais tinham saído para aproveitar a festa e nós,
as crianças, ficamos em casa, dormindo na companhia da minha avó paterna. Naquela ocasião, algo
misterioso me aconteceu, mas é difícil descrevê-lo com palavras. Eu me lembro que era noite e eu
tinha medo. Medo do quê? Medo da morte. Lembro-me de ter dormido e acordado no escuro, sem
saber bem ao certo onde estava. Tive medo de que aquela escuridão não tivesse um fim. Da mesma
forma com que tive medo de ser, para sempre, sozinha. Outras crianças dormiam comigo, isso é fato,
mas eu o as via. Eu via o medo e via a solidão. Chamei pelos meus pais, mas eles não estavam por
perto. Minha avó, por sua vez, se recusava a chamá-los ou os chamou e eu não percebi. Eu lembro
que me senti arrebatada por uma força muito poderosa, frente à qual eu nada podia. Foram
momentos de total imersão num mundo que eu ainda não sabia que existia, mas do qual logo tomei
total conhecimento. Lembro que minha mãe chegou e, enfim, prestou atenção ao que eu dizia. Eu
predizia a morte. De ninguém precisamente. Apenas a Morte, o substantivo, infalível, diluída em
todos nós.
Quando criança, eu experimentei o mistério. Foi algo extraordinário para a menina que fui.
Em grande medida, os ecos daquela experiência ainda ressoam dentro de mim a ponto de, por
caminhos o tão evidentes, ter escolhido estudar o tema das experiências e idéias religiosas das
crianças.
14
INTRODUÇÃO
- “Dito, você sabe que quando a gente reza, reza, reza, mesmo no fogo do medo, o medo vai s’
embora, se a gente rezar sem esbarrar?!”
Miguilim em Campo Geral, Guimarães Rosa.
PARTE 1: Comentários Iniciais
Desde que pus os pés pela primeira vez em Catingueira
1
, sempre me causou estranheza o fato
de que os mal-assombros são tema de conversa freqüente. Basta que haja um corte de energia, que
uma porta bata ou que um pássaro venha a piar em cima da casa onde mora algum doente, para
começarem as previsões de mau agouro e morte baseadas na interferência das almas de outro
mundo. O que mais me chamava a atenção, no entanto, era que os adultos eram sempre os primeiros
a manifestar medo e comentar sobre estes fatos. Um vizinho meu, viúvo e pai de filhos adultos, dizia
que sozinho não dormiria na casa onde eu dormia nem que lhe pagassem muito dinheiro. Ele tinha
medo de mal-assombros. Medo das almas. E o dizia sem o nimo constrangimento, porque este
medo não é coisa de criaa; é, ao contrário, medo de gente crescida.
Como será visto, não o as crianças que propriamente temem os mal-assombros em
Catingueira, senão os adultos e os idosos. Mas isso é assunto que será discutido no decorrer de toda
a tese. Casos de aparições de mal-assombros são numerosos. A experiência de ter visto um mal-
assombro é de natureza intensa e se resignificada com o passar dos anos. De acordo com o
material de pesquisa que produzi, a experiência de ter visto uma alma é comprovada por parentes
próximos, sugerindo o lugar primordial dos laços familiares na vida religiosa. Além disso, a
afirmação de Keesing (1982) a respeito dos ancestrais Kwaio pode ser atualizada para Catingueira:
This is not a world where ancestral shades are remote presences, creations of theological
imagination. They are part of the daily social life of Kwaio communities” (1982: 113). Contra os
mal-assombros, a solução mais eficaz são as soluções consideradas religiosas. Por exemplo, uma
missa na intenção da alma daquele parente morto que de vez em quando aparece em sonho pedindo
1
Minha primeira experiência de campo em Catingueira foi no ano de 2000, para a elaboração da monografia de
conclusão do curso de graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais. Na oportunidade, passei
dez dias na cidade. A segunda oportunidade de pesquisa de campo ocorreu durante o mestrado em Antropologia Social
no Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro. A pesquisa de campo durou três meses, de janeiro a
março de 2002. Por ocasião do doutorado, um primeiro período de trabalho de campo aconteceu em 2004, quando passei
seis meses na cidade, de março a agosto. O segundo peodo de trabalho de campo teve início em meados de março, logo
após a aprovação da primeira qualificação da tese, e terminou em outubro. Ao final, foram feitos treze meses e dez dias
de trabalho de campo. Todavia, é útil lembrar que havia visitado a cidade, por motivos pessoais, pelo menos três
vezes. Gostaria também de mencionar que o meu pai nasceu na cidade de Catingueira em 1947, tendo emigrado para a
cidade do Rio de Janeiro aos doze anos de idade. Assim como os seus irmãos e irmãs, ele é considerado um Filho-
ausente(PIRES 2000, 2003, 2005a). Apesar do fato de hoje em dia o se encontrar na cidade nenhum parente direto
da minha família, alguns catingueirenses se referiam a mim carinhosamente como prima, porque contávamos com algum
ascendente em comum.
15
ajuda. Um terço rezado com fé ou acender uma vela para as almas do purgatório podem iluminar o
“bom caminhopara aquelas almas que se encontram perdidas. Foi a partir desta constatação que
tive a iia de perguntar às crianças, por meio dos desenhos, sobre os mal-assombros e sobre a
religião”.
Durante o trabalho de campo, juntei-me a duas mães que faziam caminhadas ao nascer do
sol. Nestas ocasiões, suas respectivas filhas, às vezes, as acompanhavam. s formávamos grupos
segundo a classificação etária: as crianças por volta dos onze anos de idade, as moças entre os
dezesseis e os vinte anos de idade e, por fim, as mães por volta dos quarenta anos de idade. Eu
circulava entre os grupos etários de acordo com a conveniência, mas privilegiava o convívio com as
es, já que a convivência com as crianças era mais espontânea. Uma vez, o grupo das crianças
afastou-se muito do grupo das es e das adolescentes. Paramos para esperá-las em uma pequena
ponte de cujo rio restava apenas um escasso fio d´água. Neste momento, uma das mães teceu um
comentário: “só Deus sabe o que elas tanto conversam!…” Estas palavras retornaram ao meu
pensamento toda vez que a possibilidade de realização deste projeto de pesquisa foi colocada em
xeque: só Deus sabe o que elas tanto conversam!…” O mundo infantil é entendido em Catingueira
como inacessível ao adulto. Quanto mais nova é a criança, mais alteridade lhe é concedida – embora
algumas conversas das crianças com onze anos de idade ainda possam ser entendidas como
inescrutáveis pelos adultos. Durante estes quatro anos de pesquisa e dedicação ao tema que aqui será
tratado, as seguintes perguntas constantemente vinham à baila: será mesmo possível entender o que
se passa naquelas cabecinhas? São as experiências infantis plausíveis de compartilhamento? Se a
resposta for positiva, como será possível acessá-las? Será pelo caminho da oralidade, através de seus
desenhos?
Este estudo é uma tentativa de lançar luzes sobre a religiosidade infantil e adulta. Como será
visto, compreender a religiosidade infantil pode levar-nos a melhor compreender a religiosidade nos
moldes adultos. De acordo com a minha perspectiva, é impossível empreender o projeto de estudar
as crianças deixando de lado os adultos. Os adultos estão presentes nesta tese do princípio ao fim,
foram incluídos na observação participante, nas entrevistas, nas comparações. Os adultos foram
crianças, as criaas serão adultos e, além disso, toda criança é filha de dois adultos e vive cercada
por eles. Além disso, como argumentarei, a família tem papel primordial na vida das crianças.
Adultos e crianças precisam ser estudados em relação, na medida em que, para entender como
chegamos a ser o que somos em termos religiosos, é necessário levar em conta todo o processo de
introspecção corporal e mental dos “dados” daquela comunidade estudada. Não estou dizendo, no
entanto, que o estudo das crianças possa ser levado a cabo em função de uma melhor
compreensão dos adultos. Acredito que o estudo das crianças pode iluminar o mundo dos adultos, da
mesma forma que o estudo dos adultos tem o potencial de iluminar o mundo das crianças. Isto
16
porque o que opera são as relações entre as pessoas de diferentes idades. Apesar de serem vistos, em
grande medida, como ontologicamente distintos, não existe em Catingueira um ambiente
exclusivamente infantil ou adulto e, por isso, não faria sentido congelar os dois grupos para estudá-
los como se existissem em função de si mesmos.
Gostaria de esclarecer que esta tese o se filia unitariamente aos estudos da antropologia da
criança ou da infância. O projeto empreendido pode ser entendido como um esforço intelectual da
área antropologia social, mas com o diferencial de que as idéias das crianças aqui são levadas a
sério. Neste sentido, acredito, como Toren que “[…] one can gain better acess to big ideas such as
family, caste, individual, democracy, class, God, hierarchy, and so on by studying how children
bring these ideas into being for themselves in a way that at once maintains and transforms them
(2002: 113). Foram as crianças que sugeriram a Toren um aspecto da hierarquia que era, até então,
desconsiderado pelas análises. A insinuação das crianças à pesquisadora, de que a posição
geográfica interfere no reconhecimento de hierarquia, possibilitou-lhe reelaborar a teoria sobre a
hierarquia tida, até então, apenas como o resultado de uma conjução de senioridade, gênero e
ranking. Para Toren, além destes, o eixo espacial, acima e abaixo, ultrapassa todas as distinções
sociais fijianas. É importante ressaltar que foram as crianças, através dos desenhos, que a levaram a
esta afirmação. Com isso, o estamos aprisionados no reino da antropologia da criança ou infância.
Estamos falando de antropologia apenas, com a diferença de que aqui as crianças são incluídas. A
sua visão do mundo é reconhecida como uma interpretação plausível, que ilumina aspectos do real
que talvez estivessem obscuros a um adulto como o caso citado, no qual o eixo espacial não era
levado em consideração nas teorias de hierarquia fijianas. O fato sugere a legitimidade da linguagem
infantil como discurso elucidativo e analítico.
Os dados da vida social não são dados desde sempre; ao contrário, eles são elaborados com o
passar dos anos à medida que a pessoa cresce. O dado, ou os dados, poderiam ser definidos como
tudo aquilo para o qual as es não têm explicação racional para oferecer aos filhos na idade dos
porquês e, perdendo a paciência, dizem: é assim porque é. Os adultos tendem a naturalizar os dados
porque tomam-nos como a realidade. Eles não se dão conta de que as crianças estão vendo o mundo
pela primeira vez e que, para elas, o dado o é evidente. Nem sempre os adultos dão-se conta de
que a criança precisa elaborar seu próprio juízo do mundo e que o que lhe apresentam como se fosse
a vida tal como ela é isto é, tal como os adultos a concebem –, não é óbvio. Por isso, muitas vezes
as perguntas das crianças soam tão engraçadas. Elas indagam sobre o óbvio. E este, por sua vez,
parece ser realmente engraçado se refletirmos sobre a arbitrariedade das categorias com as quais
lidamos cotidianamente.
17
Para o antropólogo, assim como para a criança, os dados, todavia, não estão disponíveis na
superfície. Para decodificá-los é preciso pesquisa de campo. Observação participante atenta, mas não
direcionada, é mais útil nesta etapa que as entrevistas ou outros métodos mais focados. Uma vez que
os dados são decodificados é preciso ainda tentar compreender como é que se seu processo de
compreensão e que particularidades eles apresentam. Ao fim deste processo, uma criança estará
pronta para assumir determinadas tarefas consideradas “de gente grande”, e dela não rirão mais os
adultos, como fazem também dos loucos ou dos antropólogos. Os adultos riem das crianças quando
estas ainda estão elaborando o aprendizado social, quando estão no processo de “fazer sentido”
sobre a realidade. Enquanto estão tentando compreender e fazer seu próprio julgamento do mundo
social em que estão inseridas, as crianças são alvos das risadas dos adultos, para quem o dado já é
absolutamente evidente. Mas para as crianças eles se esquecem não nada de inequívoco no
modo como a sociedade está organizada socialmente, tudo lhes é novo. Os antropólogos também
poderiam ser comparados às crianças na medida em que eles também fazem perguntas sobre o óbvio
e que acabam soando engraçadas. E, muitas vezes, mesmo sem estudar especificamente as crianças,
são elas que primeiro “ensinam” o antropólogo sobre a comunidade em estudo
2
.
Compartilho com Christina Toren (1999) a afirmação de que How do we become who we
are?” é uma pergunta crucial da pesquisa antropológica. Morton (1996) parece encaminhar-se na
mesma direção quando indaga: How does a Tongan become a Tongan, and how does being Tongan
change over time?(1996: 18). Similarmente, uma das principais perguntas desta tese é: como um
catingueirense se torna um catingueirense? O objetivo central desta tese é discutir como os
catingueirenses chegam a ser o que são. Como será visto, os catingueirenses têm orgulho ao se
definirem como gente “religiosa”. Parece-me possível afirmar que a religiosidade crisé um dado
em Catingueira. A partir desta constatação, a pergunta inicial restringe-se aos termos religiosos:
como os catingueirenses se tornam religiosos? Para tanto, será necessário acompanhar detalhamente,
do ponto de vista individual e diacrônico, todo o processo que pode culminar na auto-identificação
pessoal como crente ou católico ou esrita. Como os católicos chegam a ver a igreja como coisa
sagrada mesmo se não a freqüentam? Como atingem a certeza da existência da vida após a morte e
da atuação das almas dos mortos no mundo dos vivos? Como as pessoas chegam a afirmar a
existência de Deus, a ponto de terem as suas vidas pautadas, em grande medida, nesta certeza? é
uma das muitas questões que a análise dos dados aqui apresentados propiciará discutir.
No entanto, pedir às crianças para desenhar e escrever sobre a sua religião trouxe limitações
incontornáveis à análise do material coletado. Parece que a sugestão do tema acabou estabelecendo
2
Os loucos, os antropólogos e as crianças são criaturas risíveis na medida em que não entendem ou não se submetem às
normas sociais. Lembro-me de ter lido, em certa ocasião, uma crônica de jornal na qual Jo Saramago tecia
considerações sobre as similaridades entre os loucos e as crianças (SARAMAGO: 1996).
18
um recorte em direção à religião enquanto instituição, sendo ineficiente para abranger também
aspectos da espiritualidade ou as experiências místicas. Algumas crianças ficaram perdidas com o
pedido de desenho, sem saberem o que desenhar. Minha escolha temática vinha do desejo de eleger
um tema o mais amplo possível que permitisse às crianças discorrer sobre religião do seu ponto de
vista. Mas veja a dificuldade que me foi colocada: que outro termo usar? Deus? Jesus? Igreja? Qual
termo seria o mais abrangente possível para fazer as crianças ponderarem amplamente sobre a sua
vida espiritual? Acabei optando pelo termo “a minha religião”. Ao acrescentar “minha” [religião]
tinha por objetivo incentivar as crianças a escrever e desenhar sobre a sua própria relação com o
mundo religioso, preocupada que estava com a possibilidade, que se fez real, das crianças
descreverem a religião segundo termos adultos. Estou ciente de que a definição do tema do desenho
tenha direcionado em alguma medida a aproximação das crianças ao tema. Pom, em todos os
casos, acredito que haja legimitidade na pergunta sobre a religião da criança se pensarmos que os
desenhos o foram usados como único método de pesquisa. Essa legitimidade será testada no curso
da tese e poderá ser avaliada pelo leitor. É preciso, por fim, acrescentar que outros temas de
pesquisa foram testados, como Deus, Jesus, a Igreja, mas não com a mesma abrangência que os
temas da religião e do mal-assombro.
No decorrer da tese, observar-se-á um certo privilégio das semelhanças, em detrimento das
diferenças, entre as várias religiões da cidade. Isto não implica, no entanto, um negligenciamento das
diferenças entre as religiões. O que me parece importante ressaltar é que, mais que diferenças,
importantes similaridades entre as religiões representadas, atribuídas ao fato de todas as religiões
representadas serem cristãs. O cristianismo, como vou sugerir nesta tese, parece ser o terreno onde a
criança aprende a ser um catingueirense. Tudo se passa como comenta o menino de doze anos de
idade: “[...] Tem vários tipos de religião. Tem a religião católica, a religião evangélica. Mas todas
são iguais porque não é importante as religiões serem iguais, o que importa é o Amor por Deus, e a
fé por ele e por todos os Santos da religião.[...] (RJ. 12. M. 18). Observamos em outras
oportunidades (PIRES 2003, 2005a) a preponderância do santo padroeiro enquanto mediador entre
as religiões representadas, papel este potencializado na festa a ele consagrada em janeiro de cada
ano. Mas até os santos calicos, a maior causa das discordâncias entre os crentes e os católicos,
parecem ser desconsiderados por este menino citado há pouco. Neste trabalho, no entanto,
destacaremos algumas práticas religiosas que associam todos os catingueirenses independentemente
da sua religião, como o “pedir a bênção” mas, principalmente, o medo dos mal-assombros.
Em uma entrevista à revista Ciência Hoje, Pierucci (2005) argumenta que a suposta
diversidade religiosa brasileira não corresponde à realidade: não pode haver diversidade religiosa
quando nove em cada dez brasileiros se definem como cristãos, segundo os dados do último censo.
Segundo o autor, a auto-imagem enquanto país etnoracialmente diverso levou os brasileiros a se
19
acostumarem a se definirem igualmente como religiosamente diversos, quando, na verdade, apenas
3,5% da população pertence a religiões não-cristãs: Que bela diversidade religiosa é essa nossa, na
qual as religiões não-cristãs não somam mais do que 3,5% da população? É uma auto-ilusão que
alimentamos (:7). Ele ainda pontua o cenário de descréscimo do número dos praticantes de
religiões afro-brasileiras e o aumento dos pentencostais, que em algumas áreas são tão numerosos
quanto os católicos. É interessante constatar que a indagação quanto à existência de cultos de origem
afro-brasileira é altamente recorrente quando começo a expor o painel religioso de Catingueira.
Ressalto ainda a decepção e, às vezes, a incredulidade do meu interlocutor quando aponto a
inexistência destas manifestações religiosas. Mas como? Talvez não tenha se dado conta? Talvez
não tenha tido tempo suficiente para perceber estas manifestações religiosas? Tudo se passa como
se os cultos afro-brasileiros estivessem presentes em todas as cidades brasileiras, como parte
imprescindível do contexto religioso nacional. Acredito que a sugestão de Pierucci (2005), que alerta
para a massiva presença dos cristãos, pode ser útil para pensar o contexto onde fiz pesquisa, e quiçá
muitas outras cidadezinhas do interior do Brasil; afinal, como o autor salienta: Somos realmente o
país do Cristo redentor (:7)
3
.
Gostaria, neste momento, de apresentar brevemente cada um dos capítulos da tese. Todos os
capítulos contêm uma introdução, onde anuncio os temas a serem tratados, e uma conclusão, onde
aponto algumas observações conclusivas. Apesar dos capítulos pretenderem ser auto-explicativos,
muitas vezes, para uma melhor compreensão, o leitor poderá recorrer aos outros capítulos,
principalmente quando referidos.
A Introdução tem como objetivo apresentar rapidamente as motivações e o tema da pesquisa,
tecer alguns comentários importantes para a leitura da tese, além de apresentar um panorama teórico
dos estudos sobre (e com) crianças nas ciências sociais. No Capítulo Um, apresento e discuto os
rios métodos e técnicas de pesquisa utilizados na confecção da tese. O Capítulo Dois se dedica a
apresentar a cidade de Catingueira e os seus habitantes, dando destaque às crianças. O Capítulo Três
volta-se a compreender o que são os mal-assombros e a sua relação com os catingueirenses adultos e
crianças. O Capítulo Quatro destina-se a entender o que as crianças pensam sobre religião,
observando como os seus conceitos religiosos mudam ao longo dos anos até a idade adulta. No
Capítulo Cinco, apresento detalhadamente o resultado dos desenhos, principalmente aqueles cujos
temas eram “a minha religião” e o mal-assombro”, a fim de tecer um panorama do processo de
crescimento etário, que relacione a religião aos mal-assombros. Na Conclusão, coloco em diálogo
3
Robbins (2003) argumenta em favor de uma antropologia do Cristianismo, parcialmente inspirada em um esforço bem
sucedido em dirão a uma antropologia do Islamismo. Este projeto comparativo deveria estar atento para não se filiar
unitariamente a nenhum ramo do cristianismo, mas tentar compreender as similaridades e diferenças entre as rias
expressões do cristianismo espalhadas pelo mundo.
20
todos os capítulos apresentados, tecendo algumas considerações etnográficas e tricas. Por fim, no
Anexo 1 estão descritos alguns dos mal-assombros. No CD – Anexo 2, constam todos os desenhos e
as fotos citados no texto da tese, assim como outras fotografias e desenhos complementares e, por
fim, os mapas.
Para finalizar esta primeira parte da Introdução, algumas rápidas considerações adicionais
são necessárias.
Embora a cidade de Catingueira conte com três igrejas Evanlicas e um Centro Espírita
Kardecista, a grande maioria dos seus habitantes é católica. Desta forma, no decorrer da tese, o leitor
poderá notar um privilégio na descrição e na análise de eventos católicos. Isso o se justifica por
uma preferência analítica da pesquisadora, senão por uma realidade da área pesquisada que não
poderia deixar de ser levada em consideração. Outra observação é que muitas vezes utilizo o termo
crente” no lugar de “evangélico”, uma vez que é assim que as pessoas referem-se aos que
freqüentam as igrejas protestantes naquela localidade, ao mesmo tempo em que é um termo auto-
identificador. Vale ressaltar, no entanto, que recentemente tenho ouvido alguns fiéis da Assembléia
de Deus auto-referindo-se como “evangélicos”. A palavra parece menos dada a brincadeiras jocosas
e, por isso, preferível. Um exemplo destas brincadeiras é dizer que alguém é “quente” no lugar de
crente”, brincadeira muito popular entre as crianças.
Gostaria de alertar o leitor quanto ao uso das palavras, principalmente no caso de palavras
como igreja e religião. Estas palavras podem apresentar diferentes sentidos de acordo com o
momento em que são empregadas, como, por exemplo, quando pedi para as crianças desenharem
sobre a sua religião e elas desenharam a religião enquanto igreja, tanto como templo, quanto como
ecclesia. Embora possa causar uma confusão aparente, ao apresentar os diferentes sentidos dados
pelos informantes a uma mesma palavra, a pesquisadora está acompanhando os significados
diferenciados empregados pelas pessoas em situações distintas. Além disso, é importante afirmar
que essas mudanças nos significados das palavras empregadas é justamente um dos objetos da tese.
Acredito que os significados de cada uma das palavras vá se elucidando no decorrer da tese.
Os desenhos das crianças foram classificados e aparecem no texto da tese da seguinte forma:
Iniciais do nome da criança, idade, sexo, número do desenho dentre aquela faixa etária. Um
exemplo: EF. 16. M. 3. Donde, EF. o as iniciais do nome da criança; dezesseis anos é a sua idade;
M indica masculino; e, por fim, três é o número do desenho na faixa etária dos dezesseis anos.
Alguns desenhos não contam com o último recurso de classificação, ou seja, não foram classificados
segundo o número do desenho dentre aquela faixa etária. Um exemplo: L. 5. F. L é a inicial do nome
21
da criança, que tem cinco anos e é menina. Outra forma de classificar os desenhos é a seguinte: J. 8.
M. (pastor), que por sua vez indicam o nome, idade e sexo da criança, assim como “pastor”, que está
entre parênteses, indica o tema sobre o qual a criança estava desenhando.
A redação das crianças foi modificada quando me parecia dificultar a compreensão do
texto.
A fim de não expor demasiadamente as crianças e os adultos citados na tese, apenas a(s)
inicial(is) de seus nomes foi mantida. Mas os nomes dos candidatos da campanha eleitoral de 2005,
na medida em que se tornaramblicos, foram mantidos.
Algumas crianças cresceram a olho nu durante a realização da pesquisa. Às vezes, observo as
primeiras fotografias do ano de 2000 e chego a me espantar com o fato irremediável da passagem do
tempo. Gostaria de esclarecer que, quando me refiro à fala ou ao desenho de uma criança, cito a
idade que ela tinha na época do ocorrido. Com isso, algumas crianças foram registradas com idades
diferentes, apesar de se tratar da mesma pessoa.
Para concluir, gostaria apenas de informar que todas as traduções de língua estrangeira
apresentadas são de minha autoria e foram devidamente destacadas no texto.
PARTE 2: Abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças em Antropologia Social
1. Introdução
O campo de estudos sobre a infância a partir de uma perspectiva sociológica ou
antropológica é relativamente recente. Em conseqüência disso, a literatura sobre o tema não é
extensa. Ademais, os pesquisadores não estão de acordo em vários pontos, inclusive sobre a própria
hisria dos estudos sobre criança. Neste texto, apresentarei uma seleção de algumas idéias e
algun(ma)s pesquisadore(a)s da infância e da criança, com o intuito de realizar um breve (e não
completo) histórico do tema, concentrando-me não apenas na literatura produzida no Brasil. No
entanto, o levantamento não se pretende exaustivo.
Observa-se, tanto no Brasil quanto no exterior (Reino Unido, Estados Unidos da América,
Portugal, França, países nórdicos) um crescimento do interesse dos antropólogos e sociólogos na
criação de um campo de estudos específico para o estudo do tema
4
. Na França, os estudos sobre
4
Há espaço para variadas formas de se conceber a infância. Uma delas, por exemplo, é a teoria que proclama o fim da
infância (BUCKINGHAM 2000, POSTMAN 1994). Neste terreno, os meios de comunicação, como a televisão e a
internet, são considerados os culpados pela indistinção da fronteira entre idade adulta e idade infantil. Na contracorrente
22
criança estão vivendo uma fase de crescimento quantitativo e de abertura de novas frentes teóricas,
tendo sido reconhecidos pela Associação Internacional dos Sociólogos de Língua Francesa (AISLF)
apesar de, como afirma Eric Plaisance (2004), ainda ser um campo de pesquisa disperso, mal
circunscrito, trabalhado por pesquisadores que mal se conhecem e têm poucas interações(: 222).
Do mesmo modo, no Brasil, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) incluiu em 2006, pela
primeira vez na sua reunião bianual, um grupo de estudos voltados para a temática (GT 41: Por uma
antropologia da Infância).
As abordagens que relacionam religião e infância são ainda mais raras. Consegui localizar
alguns poucos estudos que se concentram numa interface entre religião e infância, embora não se
restrinjam à antropologia (ASTUTI in press 1; COLES 1990; BOVET 1928; ELKIND 1978;
GARBARINO 1996; HARDMAN 1999; HELLER 1986; NESBITT 1993, 2000a, 2000b;
ROBINSON 1977). Segundo Nesbitt (2000a), autora que vem trabalhando com crianças de origem
Sikh na Inglaterra, a literatura sobre criança e religião concentra-se em uma abordagem quantitativa
e altamente psicológica. Os exemplos citados por ela são Bushnell (1967), Anthony (1971), Gates
(1976, 1982), O´Keeffe (1986), Bullivant (1987), Francis (1987), Hyde (1990), Lall (1999), Davies
(1997) sendo os dois últimos direcionados à comunidade Sikh. Há, no entanto, um campo de
estudos sobre educação religiosa ou espiritual que conta inclusive com alguns periódicos como
Religious Education, British Journal of Religious Education, The international Journal of
Children´s Spirituality
5
.
Alguns pesquisadores discorreram sobre uma impossibilidade de empreender tal projeto de
pesquisa com crianças pequenas. “O trabalho descrito por Edward Robinson em The Original
Vision (1977: 11) sugere que as pessoas que se lembram de terem tido alguma consciência
espiritual da sua infância, eram geralmente incapazes de falar sobre o fato. Além disso, muitas
dessas pessoas também disseram que foi apenas quando elas se tornam adultas que reconheceram a
importância desses eventos. Isso parece sugerir que qualquer tentativa de discutir assuntos
destes estudos, outros pesquisadores afirmam que as novas mídias eletrônicas são responsáveis pela tomada de poder
pelas crianças em relação aos adultos, já que os primeiros as dominam com mais facilidade que os seus pais.
5
Hay & Nye (2006 [1998]), preocupados em estudar a educação espiritual, afirmam que as crianças têm experiências
religiosas mais intensas que os adultos porque naturalmente os seres humanos são equipados com uma consciência
religiosa que vai sendo esquecida com o passar dos anos. Os autores afirmam sua filiação a Alister Hardy (1965, 1966,
1979), um zoólogo darwinista da Universidade de Oxford que trabalhou com a […] hypothesis that what he called
‘religious experience’ has evolved through the process of natural selection because it has survival value to the
individual” (HAY & NYE 2006 [1998]: 22). Para eles, “By locating spirituality in the human organism it places a focus
on childhood and on spirituality is intrinsic rather than taught”. (HAY & NYE 1996: 13). Eles ainda afirmam que “We
will thus be able to move beyond an understanding of children´s spirituality based on ‘knowledge’ towards a more
general psychological domain of spirituality as a basic form of knowing, available to us all as part of our biological
inheritance”. (HAY & NYE 1996: 10) E concluem dizendo que Spirituality is characterized here as a natural form of
human awareness” (HAY & NYE 1996: 6). Espiritualidade, em seus termos, é algo mais abrangente que a religiosidade,
e é encontrada em ambientes seculares. A minha pesquisa distingue-se da pesquisa ora citada na medida em que o
estou interessada em pesquisar as origens da religião ou da experiência religiosa.
23
“espirituais” com crianças muito pequenas é infrutífero” (McCREERY 1996: 197 tradução minha).
Ronald Goldman vai mais longe e descreve: “Percepções e conceitos religiosos não são baseados
em dados sensoriais diretos, mas são formados a partir de outras percepções e conceitos de
experiência. Os místicos, que afirmam terem sensações divinas diretas, são exceções, mas como eles
são casos extremamente raros, ainda mais raros na adolescência e praticamente desconhecidos na
infância, nós não precisamos explorar a sua significância” (1964: 14 tradução minha). Goldman
o acredita possível realizar tal empreendimento de pesquisa porque, segundo ele, as crianças
pequenas não teriam conceitos ou percepções religiosas ainda: “o insight religioso geralmente
começa a aparecer entre os doze e treze anos de idade” (1964: 226 tradução minha).
Além disso, estudar infância, como afirmam Robinson (1977) e James, Jenks e Prout (1998:
183), apresenta, dentre outros, o problema de que muitos sentem-se autorizados a expressar sua
opinião, como se o fato de terem sido crianças os autorizasse a teorizar sobre a infância. Como se
pode observar em outro texto de James, Eu não simplesmente estudei crianças, mas fui criança e
tive crianças!” (1993: 14 tradução minha), ser mãe ou ter sido criança é inexplicavelmente afirmado
como garantia de uma boa pesquisa. Outro problema recorrente da literatura sobre o tema é
considerar a memória, através dos relatos sobre infância, como a própria expressão da voz das
crianças, como fez Robinson (1977)
6
. A memória, como se sabe, é um exercício reflexivo que dota
ao passado valores de acordo com o momento presente. Para se estudar as idéias e experiências
infantis, é preciso estudar as crianças propriamente ditas, e o o que os adultos têm a dizer sobre a
sua infância ou a dos seus filhos. Não estou dizendo, no entanto, que se devam excluir os adultos das
pesquisas sobre infância (ponto a ser discutido em outros vários momentos).
Gostaria de esclarecer, antes de mais nada, o que se acredita ser a diferença entre os estudos
das crianças e da infância. De maneira geral, a antropologia da infância visa a estudá-la como uma
instituição social, como uma representação cultural, como um discurso ou como uma prática. Por
sua vez, a antropologia da criança atém-se a estudar o crescimento, o aprendizado, o trabalho e as
brincadeiras das crianças (WOODHEAD 2003a: 08). Tentei trabalhar na presente tese tanto na
perspectiva da antropologia da criança, que se concentra nas próprias crianças em ação, como
também na perspectiva de uma antropologia da infância, na qual os constrangimentos e
especificidades de uma geração em uma determinada sociedade ou cultura é que estão em jogo.
Acredito que seja mais procuo tentar pensar, ao mesmo tempo, as duas perspectivas, ou seja, as
crianças inseridas em um contexto de infância específica, que varia historicamente e culturalmente.
6
Para este autor (ROBINSON 1977) a experiência religiosa é uma experiência ordinária que ocorre de primeira mão e,
por isso, de maneira mais completa, na infância. A esta experncia, ele denomina “a visão original”. Como na
experiência mística, o sujeito sente que foi abalado por um poder maior que ele próprio. Para o autor, essa experiência é
essencial para o desenvolvimento do entendimento maduro, não se tratando de fantasia mas, sim, de conhecimento. I
believe that what I have called “the original vision” of childhood is no mere imaginative fantasy but a form of
knowledge and one that is essential to the development of any mature understanding” (:16).
24
Segundo Prout (2005), os estudos sobre a infância m início na modernidade, justamente
porque somente neste momento foi concebida a separação entre a infância e a idade adulta. Philippe
Ariès (1962) é o grande representante da teoria moderna nos estudos da infância. Como se sabe, ele
argumenta pelo “nascimentoda infância na época moderna. Seu trabalho é reconhecido por ter
introduzido definitivamente as crianças nas pesquisas acadêmicas e por ter afirmado a condição da
infância como uma construção social. No entanto, a crítica mais corrente ao seu trabalho é que ele
padece de um viés etnocêntrico, na medida em que não reconhece outras formas históricas de
infância, a não ser aquela da modernidade. Sempre houve criança em todas as épocas históricas; o
que não havia era criança tal como a concebemos na modernidade (POLLOCK 1983). Outra crítica
corrente a Ars é o seu viés evolucionista, na medida em que traça as mudanças nas idéias sobre
organização familiar e sobre a criança desde a idade média até o final do século XVIII. Apesar de
nunca ter afirmado que estes estágios de transformação das idéias sobre família e criança eram
inevitáveis, a teoria foi lida desta forma por alguns pesquisadores.
A psicologia tem uma grande tradição nos estudos infantis. Freud, Piaget e Vygotsky gozam
de reputação ainda hoje e podem ser atualizados pela antropologia. Experiências de pesquisa atuais
tentam conciliar a herança psicológica com o olhar sociológico e/ou antropológico, na tentativa de
o repetir erros do passado. Um desses erros fundamentais está expresso na seguinte frase: [...] a
antropologia tem ignorado as crianças na cultura, enquanto os psicólogos do desenvolvimento têm
ignorado a cultura na infância(SCHWARTZ 1981: 4 tradução minha). Christina Toren (1999),
por exemplo, usa o conceito de esquema de Piaget em paralelo ao conceito de autopoiesis cunhado
por Maturana e Varela. Segundo ela, estes conceitos são similares, na medida em que autopoiesis é
uma estrutura dinâmica que permite o relacionamento com o mundo, em um processo
microhistórico. Por sua vez, o esquema permite esse mesmo processo de tornar-se” na hisria
cotidiana no nível cognitivo, que para a autora diz respeito à pessoa como um todo em relação aos
outros e no decorrer da história
7
.
De acordo com James e Prout (1990) até o final dos anos 70, os estudos sobre crianças
padeciam de um viés evolucionista altamente influenciado por Piaget, autor que estudou os vários
estágios de desenvolvimento ou evolução da criança até chegar a ser adulto. As crianças eram
tratadas em termos de simplicidade, irracionalidade e mundo natural, em contraposição ao mundo
adulto, complexo, racional e cultural. Segundo James, Jenks e Prout, Piaget nega a agência na
criança e o caráter socialmente construído da infância (JAMES, JENKS, PROUT 1998: 173
tradução minha). Porém, concordo com Gates (1996: 135 tradução minha) “[...] apesar do
desenvolvimento psicogenético criar certos constrangimentos à capacidade de entendimento da
7
A partir disso, a autora chega á sua definição de mind. “Mind is a function of the whole person constituted over time in
intersubjective relations with others in the environing world(TOREN 1999: 12).
25
criança, é evidente que a razão está dada, desde os primeiros anos de vida, no entendimento da fé,
fato e fantasia”. Sem dispensar a obra de Piaget, sua teoria ainda pode ser utilizada, se olhada de
uma perspectiva mais generosa como o fez Toren (1990). Além disso, Woodhead (2003a: 25/28)
argumenta a favor de Piaget dizendo que ele foi um ouvinte atencioso das crianças e que seus erros
foram o de tratá-las como seres ainda em constituição (como potencialidades), além de enfatizar por
demais o que era natural no processo cultural
8
.
Na sociologia, podemos afirmar que Durkheim (1922, 1925, 1979 [1911]) foi um dos
primeiros a estudar as crianças, a quem ele chamou “o adulto a ser” (1979 [1911]: 149 tradução
minha). Preocupado com as questões da educação, trabalhou o tema da socialização, vista através de
um modelo vertical, em que a ação da geração mais velha sobre a geração mais nova é um traço
recorrente em todas as sociedades e épocas hisricas. A educação, como todo fato social, é então
percebida como uma força de imposição e coerção. A socialização culmina, segundo seu argumento,
com a interiorização de normas e valores.
No Brasil, parece que a primeira
9
contribuição da sociologia e antropologia, no sentido de
reconhecer a criança como um sujeito humano de pouca idade e um agente de socialização
considerável, vem de um trabalho realizado na década de 1940 por Florestan Fernandes, mostrando a
rua, além da família e da escola, como lugares privilegiados da infância. Escrito originalmente em
1944 para o concurso Temas Brasileiros, instituído pelo Departamento de Cultura do Grêmio da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, este trabalho foi publicado
em 1947 sob o título As "Trocinhas” do Bom Retiro. Trata-se do registro inédito de elementos
8
Segundo Piaget, dos três a seis anos predomina na criança o estágio pré-operacional: nele, a criança o mundo
segundo termos antropomorfos. Aos seis ou sete anos, a criança adquire as operações concretas que lhe proporcionarão
no futuro a possibilidade de uma relação pragmática com o mundo. Aos onze ou doze anos, tornam-se possíveis as
operações formais, com novos modos de pensamento e aquisição de concepções abstratas a respeito do espaço, tempo e
causalidade.
9
No Brasil, o fenômeno da pauperização infantil emergiu como um problema social e objeto de discussão política, num
contexto marcado pelo advento da República, pelo crescimento acelerado de suas metrópoles, pela Abolição da
Escravatura e a conseqüente criação de uma força de trabalho livre urbana constituída, significativamente, por
contingentes de imigrantes estrangeiros. Mas somente na década de 1920 os problemas relacionados à criança tornam-se
objeto de alçada judica, surgindo, assim, a categoria social denominada menor. É interessante observar como a palavra
menor ganha as ruas enquanto uma categoria classificatória da infância pobre. Tal categoria foi criada em 1921, quando
a justiça modificou "o código civil determinando que se considere abandonado o menor sem habitação certa ou meios de
subsistência, órfão ou com o responsável julgado incapaz de sua guarda" (ALVIM & VALLADARES 1988: 5-9).
Embora, no Brasil, a "criança pobre” tenha sido motivo de preocupação por parte do Estado desde meados do século
XIX, a produção brasileira na perspectiva de uma sociologia da infância só efetiva-se em 1939, com o primeiro relatório,
elaborado por Sabóia Lima, sob o título A infância desamparada. Na década de 70, mais um relatório de pesquisa é
realizado com o objetivo de subsidiar a definição de políticas e programas sociais, mediante diagnóstico da criança em
situação de risco. Encomendada pelo Tribunal de Justiça da cidade de São Paulo e realizada pelo Cebrap, e publicada em
1972, sob o título A criança, o adolescente, a cidade, esta pesquisa tinha por objetivo contribuir para a ação dos juizados
de menores, num período em que a questão do menor colocava-se como um problema social grave. É interessante
observar que, na cidade do Rio de Janeiro, também empreende-se, no mesmo período, uma pesquisa semelhante,
publicada em 1973, com o título Delinqüência Juvenil na Guanabara. Estas pesquisas marcam o esforço das ciências
sociais em direção à elaboração de diagnósticos referentes à condição social da criança, reunindo, deste modo, os
interesses do Estado aos dos assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, antropólogos e sociólogos. Ressalto o caráter
não exaustivo da minha leitura. Outros tentivas de compreender a infância e a criança podem ser tido lugar em outras
áreas, como na sociologia da educação, na psicologia e na educação, bem como em outras épocas.
26
intrínsecos à vida das crianças, captadas a partir de observações sobre grupos de crianças residentes
nos bairros operários da cidade de São Paulo que, depois do período da escola, juntavam-se nas ruas
para brincar. Entendendo a criaa como participante ativo da vida social, o jovem Florestan
observa, registra e analisa o modo como se realiza o processo de socialização das crianças, como
constroem seus espaços de sociabilidades e quais as características destas práticas sociais.
O caráter original das "Trocinhas" do Bom Retiro está no fato de F. Fernandes anunciar a
linguagem que posteriormente trataria as crianças como atores sociais completos, reconhecendo
agência no mundo infantil. Ele chega a utilizar o termo culturas infantis, e afirma que as crianças
quando estão brincando não estão imitando os adultos, mas estão envolvidas nas elaboradas culturas
infantis: “[...] entre as crianças (até 7 ou 8 anos entre os meninos e até mais entre as meninas)
brinquedos cujos motivos são aspectos da vida do indivíduo adulto, tais como "fazer comidinhas",
"brincar de casinha" etc. (...) nos brinquedos, a criança não imita seu pai ou sua mãe. Pai e mãe
são entes gerais, representam uma função social. As crianças abstraem da pessoa A, B ou C, para
falar de "pai" e "mãe" de modo genérico, desempenhando nas brincadeiras as suas funções
(FERNANDES 1979: 387)
10
.
Ao prefaciar o texto em pauta, Roger Bastide (1979) observa o quanto o estudo da vida
infantil era negligenciado e o quanto era necessário reconhecê-lo. Constata o autor: "[...] entre o
mundo dos adultos e o das crianças como que um mar tenebroso, impedindo a comunicação. Que
somos nós, para as crianças que brincam ao nosso redor, senão sombras?". Contrariando Durkheim
(1922), Bastide defende a necessidade de se multiplicarem as pesquisas deste tipo, ressaltando a
importância de se estudar as representações infantis, de conhecer o mundo dos brinquedos, das
brincadeiras e jogos
11
.
2. Uma cultura ou sociedade das crianças?
Na antropologia, por sua vez, a infância sempre foi contemplada nas monografias de modelo
clássico, porém sempre como tema adjacente, raramente como tema principal (salvo raras exceções
como Kidd, D. 1906. Savage Childhood: a study of Kafir children. London: Black. Mead, M. 1930.
Growing up in New Guinea. New York: Morrow). O mais comum era introduzir uma sessão no
capítulo sobre família, descrevendo o nascimento e a socialização infantis. Porém, na década de 30,
10
Posteriormente, em outras palavras e por uma feminista norte-americana, chegamos a formulações deste tipo: As
interações das crianças não são preparações para a vida, já são a própria vida (THORNE 1993: 3 tradução minha)”.
11
Para Bastide, "para poder estudar a criança é preciso tornar-se criança. Quero com isso dizer que não basta observar
a criança, de fora, como também não basta prestar-se a seus brinquedos; é preciso penetrar, além do círculo mágico
que dela nos separa, em suas preocupações, suas paixões, é preciso viver o brinquedo" (BASTIDE 1979: 154 tradução
minha).
27
Margaret Mead desponta efetuando um grande salto nos estudos sobre criança na antropologia.
Apesar de muito criticada, a autora teve um papel crucial na descoberta da infância pelos
antropólogos. Embora disponha de uma obra etnográfica bastante avantajada e, portanto, ainda
aberta a interpretões, foi largamente criticada por utilizar uma noção de cultura constrangedora da
agência infantil. Sua idéia básica de socialização, como via de mão única, na qual o adulto ensina à
criança como se tornar social em determinada sociedade, deslanchou uma forte crítica por parte dos
chamados new social studies of childhood, a partir da década de 80 do culo XX. O principal
objetivo destes estudos era estabelecer a compreensão dos fenômenos da infância a partir do social,
inaugurando, então, a era do construcionismo social nos estudos infantis. As crianças deixariam de
ser vistas como passivas e dependentes do mundo adulto, para serem pensadas como sujeitos plenos,
rompendo a relação necessária entre família-socialização-criança a fim de conceber a infância como
um objeto de estudos válido em si mesmo. A ênfase voltava-se para a fenomenologia com Merleau-
Ponty, para os estudos literários, e privilegiam-se o trabalho de campo e as descrições como todos
mais adequados para o estudo da diversidade das experiências e formas de infância.
A partir dos new social studies, na psicologia, criticou-se a noção de desenvolvimento
(infantil) tido como excessivamente individual e biológico. Na sociologia e na antropologia,
fortaleceu-se a crítica da noção de socialização, como ação de sujeitos plenos (adultos) sobre
sujeitos incompletos (criaas): Na abordagem sociológica da infância o conceito central é
socialização. Um sinônimo para este processo poderia ser aculturação, na medida em que este
termo implica que na aquisição cultural as crianças não são vistas como indivíduos completamente
equipados para participar em um mundo adulto complexo, mas como seres que têm o potencial para
serem trazidos lentamente para o contato com os seres humanos(RITCHIE 1964 tradução minha).
Deste modo, como conseqüência de um membro adulto ser considerado naturalmente maduro,
racional e competente a criança é vista, em justaposição, como não completamente humano, não
acabado e incompleto” (JENKS 1982: 19 tradução minha). Os new social studies questionaram estes
conceitos de criaa e adulto, propondo alternativas que enfatizassem a agência infantil.
Alan Prout e Allison James, grandes representantes deste paradigma, também chamado new
paradigm in the sociology of childhood, elaboraram uma síntese bastante elucidativa deste período
da disciplina, que gostaria de apresentar, apesar da extensa citação.
1. “A infância deve ser entendida como uma construção social. Como tal, ela provê um
quadro interpretativo para contextualizar os primeiros anos da vida. Infância, como
distinta da imaturidade biológica, não é uma característica natural e nem universal
dos grupos humanos, mas aparece como um componente estrutural e cultural
específico em muitas sociedades.
28
2. A infância é uma variável da análise social. Ela não pode nunca ser separada das
outras variáveis, como classe, gênero ou etnicidade. Análises comparativas e
interculturais revelam uma variedade de infâncias e não um fenômeno único e
universal.
3. As relações sociais das crianças são válidas como objeto de estudo em si mesmas,
independentemente da perspectiva e das preocupações dos adultos.
4. As crianças devem ser vistas como ativas na construção e determinação de suas
próprias vidas, na vida daqueles que as cercam e das sociedades onde elas vivem. As
crianças não são simplesmente sujeitos passivos frente às estruturas e processos
sociais.
5. A etnografia é uma metodologia particularmente útil para o estudo da infância. Ela
permite que a criança participe mais e tenha uma voz mais direta na produção do
dado social em comparação ao que normalmente é possível usando estilos de
pesquisa experimentais ou surveys.
6. A infância é um fenômeno em relação ao qual a dupla hermenêutica das ciências
sociais se apresenta (veja Giddens 1976). Proclamar um novo paradigma para a
sociologia da infância é também se engajar no e responder ao processo de
reconstrução da infância na sociedade (PROUT e JAMES, 1990: 08 tradução
minha).
Woodhead (2003a) prefere usar, no lugar de criança socialmente construída ou estruturada,
termo consagrado pelos new social studies of childhood, o termo criança sócio-cultural ou criança
na sociedade, já que os primeiros enfatizam por demais a abordagem sociológica. Segundo ele,
Prout (2005) e outros autores, o campo de estudos da infância é um campo necessariamente
interdisciplinar. O autor condensa os seis tópicos propostos acima em apenas dois princípios. Quais
sejam: O primeiro é sobre infância: a infância é socialmente construída em todos os níveis e isso
tem implicações em como ela é estudada e teorizada. A segunda é sobre criança: deve-se
reconhecer seu status e os seus direitos como o ponto de partida para a pesquisa, política e prática
(WOODHEAD 2003a: 16-17 tradução minha). Ele afirma, além disso, que não adianta apenas ouvir
as crianças e transcrever suas falas. É preciso que a análise do pesquisador esteja em sintonia com os
interesses das crianças e o com os do pesquisador e da sociedade adulta (2003a: 32).
A idéia de socialização, criticada pelos new social studies, pressupõe um indivíduo adulto
que impõe sua visão de mundo a uma criança. Hoje em dia esta idéia de socialização é considerada
ultrapassada. Ao contrário disso, aceita-se que as crianças são agentes da sua própria socialização,
paralelamente ao adulto. O problema nesse caso é que os new social studies tenderam a inverter a
29
balança, colocando a criança como sujeito pleno da sua própria socialização. Sem, no entanto, 1)
reconhecer o papel do adulto neste processo, e 2) criticar a própria noção de socialização enquanto
aprendizado estático e previsível. Como afirmou Mayer (1970) a socialização tem lugar durante
toda vida, ela não termina na infância (1970: 82 tradução minha)”. Toren (1993a: 461 tradução
minha) vai mais longe e afirma […] antropologia tende ainda a assumir que o ponto de chegada
da socialização é sabido. Esta suposição está na raiz no desinteresse da antropologia pelas
crianças”. A autora não apenas sugere que a socialização não tem fim no adulto, como também
afirma que o desinteresse da antropologia pelas crianças pode estar ligado a este mau entendimento
do processo de aprendizagem.
Por sua vez, a socialização tal como foi tratada pelos antropólogos e sociólogos que tentaram
entender a infância de uma perspectiva social não conta do processo que culmina com uma
pessoa que crê, por exemplo, na aparição de espíritos. Em 1970, J. Briggs lançou o livro Never in
Anger, no qual ela mostra como a sociedade Inuit e a infância Inuit são criadas simultaneamente. Ela
afirma posteriormente (1992) que os adultos, assim como as crianças, nunca cessam de reelaborar
sua cultura e identidade. Daí a afirmação de que também a cognição adulta deve ser tratada como
fluida, em processo e contextualizada, já que os adultos também estão reelaborando sua cultura
constantemente. Desta forma, estudar crianças pode levar não apenas a repensar o processo de
aprendizado, mas os conceitos de cultura e o seu correlato, de sociedade, incluindo dinâmica na
análise de processos culturais e societais.
Parece-me que os new social studies of childhood enfatizaram sobremaneira a agência
infantil o que criou um descompasso entre as relações crianças-adultos, esvaziando o poder destes
sobre aquelas de maneira incoerente. Veja esta citação de Corsaro & Molinari (2000: 197/8 tradução
minha): “a socialização não é alguma coisa que acontece com as crianças, é um processo pelo qual
as crianças em interação com os outros, produzem a sua própria cultura e eventualmente
reproduzem, estendem ou compartilham o mundo adulto”. Ou aindar: “[…] as crianças são agentes
sociais ativos e criativos, que produzem a sua própria e única cultura das crianças, enquanto
simultaneamente contribuem para a produção de sociedades adultas(CORSARO 2005[1997]: 4-5
tradução minha). De acordo com a pesquisa por mim realizada, se crê nos mal-assombros ou em
alguma das entidades porque se teve algum tipo de experiência com eles
12
. Ninguém é ensinado de
maneira formal a temer os mal-assombros. Como, da mesma forma, a crença não nasce da própria
criança, mas desenvolve-se à medida que ela estabelece relações sociais mas não apenas com
crianças e, sim, com toda a comunidade que a cerca
13
. Sugiro que se teme um mal-assombro porque
12
Tudo aquilo que eu sei do mundo [...] eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência no mundo [...]
(MERLEAU-PONTY 1999 [1945]: 03).
13
Isto fica claro quando constatei que os mal-assombros não fazem sentido para as crianças de dois anos de idade.
Porém, por volta dos cinco anos de idade, nenhuma criança recusou-se a desenhar os mal-assombros. Disso, concluo que
30
se tem certeza da influência dos mesmos na vida corrente, porque de alguma forma o sujeito
experienciou sua existência; mas isso o significa uma experiência essencialmente individual. Pelo
contrário, como será visto no decorrer da tese: é em interação social que a criança aprende sobre
religião e sobre os mal-assombros.
A infância, como afirma Toren (1999), é um espaço de intersubjetividades. Uma criança
aprende sobre o mundo que lhe cerca e toma conhecimento dele nas relações sociais que estabelece
com os outros membros da sua comunidade, sejam eles adultos ou crianças. O material de pesquisa
que coletei está repleto de histórias contadas pelas crianças relatando experiências de parentes
próximos, mãe, pai, avó, etc., com os mal-assombros. Com isso, parece que a ênfase deve estar
colocada nas relações sociais, nas palavras de Strathern (1996) e Toren (1999), na rede de
attachement como quer Latour (2000) ou ainda no rizoma, segundo Deleuze (1997 [1980]). Essas
idéias, embora guardem suas discordâncias, concordam que o lócus da vida social está nas relações
que essas pessoas, adultas ou crianças, estabelecem entre si e entre os outros elementos da rede. E
Latour deixa claro que estes elementos não são apenas humanos, deixando uma brecha para incluir
os mal-assombros no caso do campo de pesquisa específico dentro do qual trabalho.
Baseada nos dados de campo que produzi, sugiro que quando estudamos as crianças é
preciso incluir os adultos. Alguns autores, como Wartofsky (1983), Tammivaara e Enright (1986), e
W. Corsaro (1992, 2003, 2005 [1997]), Thorne (1993), Sarmento e Pinto (1997) e Corsaro &
Molinari (2000) pensam o contrário, argumentando nos termos de uma cultura das crianças, uma
sociedade das crianças que existe concretamente em oposição à sociedade dos adultos
14
. Como toda
cultura, a cultura infantil teria suas representações, regras, conceitos, formas adequadas de ação
social, símbolos, linguagem
15
. Tendo, no entanto, a concordar com James, Jenks e Prout (1998) no
sentido de que as “[...] abordagens sobre a cultura das crianças são problemáticas porque de
diferentes maneiras eles retiram o contexto social da vida das crianças que não concerne à relação
com as outras crianças(JAMES, JENKS, PROUT 1998: 82 tradução minha). Do mesmo modo,
Mayall (1995) argumenta que tratar as crianças em separado do mundo adulto é ir em sentido
contrário à realidade da criança, que vive em um mundo cercado também de adultos.
Falar sobre a cultura das crianças ou as culturas das crianças traz alguns outros problemas.
Primeiro porque a cultura é um conceito chave para antropologia, mas passou a ser a causa e o
efeito, e não ponto de partida para as pesquisas. Em segundo lugar, na pesquisa que realizei, percebi
que não há como tomar as crianças como um mundo à parte (vide página 120, Capítulo Três, na qual
apresento a insistência de uma criança de doze anos, para que eu fosse fazer pesquisa com os seus
as crianças de dois anos ainda não tinham conhecimento dos mal-assombros, a ponto de expressar uma imagem no
papel, mas não teriam nenhuma dúvida da sua existência e sua aparência quando alcançassem os cinco anos de idade.
14
Sylvia Anthony (1971: 78) fala de umasub-cultura de crianças.
15
Para Corsaro, a cultura simlica infantil alimenta-se da mídia e da literatura dirigida às crianças e das figuras míticas
e lendas (1997: 100). Vide Capítulo Um, no qual discorro sobre os usos da língua do “Pê”.
31
pais). Não criança sem adulto, e o faz sentido estudar somente as crianças como um mundo à
parte e fechado em si mesmo, simplesmente porque isso não corresponde à realidade. Sabemos
muito bem, depois de ler Robert Redfield e Levi Strauss, só para citar grandes mestres, que nenhuma
sociedade sobrevive de portas fechadas. Que a "cidade" e o "campo" enquanto conceitos são partes
de uma mesma realidade e foram formados exatamente no mesmo instante, através de uma relação
de interdepenncia. As crianças são parte da sociedade e, quando digo isso, não retiro a agência
infantil; pelo contrário, afirmo-a. As crianças têm suas particularidades na forma de conceber e
experimentar o mundo: é sábio não negligenciá-las. Mas no mundo, o que opera são as relações
entre as pessoas, sejam adultos ou crianças. Ambos são parte da sociedade, com inserções
diversificadas e, portanto, com pontos de vista diferentes que devem ser explorados para se chegar a
um retrato mais fiel de uma comunidade. Não acredito que a opção teórica que fiz retire o poder das
crianças. A agência, me parece, é uma condição do indivíduo em sociedade, não importa que
categoria de indivíduo. Com isso, espero ter deixado clara a opção feita por mim de estudar as
crianças inseridas no contexto social, ou seja, em relação ao mundo dos adultos. Não acredito que
seja útil, pelo menos para a antropologia, estudar as crianças em si mesmas, como ambiciona o
quarto pico de Prout e James (1990) citado anteriormente. Ainda voltarei a este ponto no decorrer
da tese.
Muito esforço foi dispensado no começo da descoberta da infância enquanto femeno social
pela antropologia e sociologia, nas últimas duas décadas do século passado e, no meu ponto de vista,
ocorreu um certo exagero. Talvez na tentativa de estabelecer esta área de pesquisa dentro do jogo
das políticas acadêmicas, tendeu-se a enfatizar em demasiado a chamada agência infantil e, com
isso, caiu-se em um outro extremo, em que as crianças eram vistas como um mundo à parte da
sociedade adulta, com regras, linguagem, rituais próprios e independentes. Para quê? Entre outras
coisas, para corrigir uma injustiça praticada desde sempre na hisria da antropologia e da
sociologia, para dar vozes àqueles que mais intensamente que as mulheres foram silenciados
enquanto sujeitos nas pesquisas. Também para denunciar as poticas de proteção às crianças, como
o Estatuto da criança e do adolescente, que perpetuam um viés considerado ultrapassado por estes
teóricos, no qual as crianças eram invariavelmente vistas como excessivamente passivas e
dependentes do adulto e à mercê de proteção e tutela. No entanto, para além das poticas públicas e
da política acadêmica, parece haver incutido no diálogo uma lógica científica muitas vezes pendular
entre pensamentos que se sucedem no tempo.
Nesta direção, vemos ocorrer recentemente uma crítica interna aos new social studies of
childhood nos livros de Alan Prout (2000, 2005), como mostra a citação: [...] nós precisamos
descentralizar a agência, perguntando-nos como é que as crianças algumas vezes a exercitam [...].
A observação de que as crianças podem exercitar a agência deveria ser um ponto de análise inicial
32
e não um ponto de chegada (2000: 16
16
). Allison James também parece rever suas próprias
afirmações quando menciona que a ausência dos adultos no caso, os pais nos estudos sobre
infância é similar à operação de exclusão das crianças dos estudos sobre família (JAMES 1999: 184)
17
. De um lado, a agência não deve ser levada ao extremo, como também não deve deixar de ser
contemplada. É preciso, como sugere Prout (2005), pesquisar até que ponto ela opera. O exemplo de
Palmer e Hardman (1999) pode ser interessante. Elas organizaram um livro sobre as criaas nas
novas religiões. Dividiram-no em duas partes. Na primeira parte enfatiza-se a agência infantil, no
sentido de como as crianças modificam estes movimentos religiosos. A segunda parte trata de como
estes movimentos moldam as crianças. É preciso não partir do pressuposto da agência (ou da
construção social), mas averiguar até que ponto ela está presente (PIRES 2005b).
3. Teorias da teoria
Outra maneira de compreender os estudos sobre infância é classificá-los como estudos que
concebem as crianças como índices
18
do mundo adulto e estudos que trataram as crianças como
agentes. Como afirmei, os estudos de crianças como agentes tratam de analisar a infância de uma
16
Citação completa: “[...] we need to decentre agency, asking how it is that children sometimes exercise it, that is bring
about some effect in the relationships in which they are embedded, [whilst on other occasions they do not]. The
observation that children can exercise agency should be a point of analytical embarkation not a terminus”.
17
“[...] somewhat ironically, therefore, this new exclusion of parents from childhood studies mirrors the somewhat
longer exclusion of children from studies of family where, traditionally, children’s interests were assumed to be
congruent with those of the family represented, in turn, as being the interest of their parents (JAMES 1999: 184).
18
Segundo a classificação de N. Rapport e J. Overing (2000: 29/32) as crianças foram estudadas enquanto índices do
mundo adulto por diversas correntes:
a) Relativismo cultural: a infância e a juventude foram usados como argumento para provar o privilégio da
influência da cultura sobre a biologia. Mead e Benedict são apresentadas como exemplos neste tipo de abordagem.
b) Neo-freudianismo: diversas práticas e cuidados infantis foram analisados em várias sociedades e estudadas em
termos freudianos, esclarecendo que as caractesticas adultas são reflexões de conflitos na infância. Erikson, Du Bois,
Spiro, são tidos como teóricos importantes deste tipo de análise.
c) Neodarwinismo: as práticas de educação infantil foram estudadas em relação às pressões do ambiente, cujo
representante teórico é Le Vine.
d) Psicologia do desenvolvimento:: a partir da teoria dos estágios universais de desenvolvimento cognitivo
desenvolvido por Piaget, observou-se como as crianças desenvolviam o entendimento do mundo, desde a manipulação
de objetos concretos até o raciocínio lógico-moral e abstrato. A partir de Vygotsky, pesquisou-se como os universais da
biologia do desenvolvimento eram mediados por contextos históricos culturais e pelos processos sociais cotidianos.
Alguns teóricos: Dasen, Shildkrout, Levy, Goodman.
e) Papéis (role play): explorando a natureza relacional da vida social, teríamos a natureza relacional do papel do
adulto e do papel da criança, que fazem sentido se remetidos um ao outro. Harkness, Super, Goody, Carsten são
pesquisadores tidos como representantes desta abordagem.
f) Autoconsciência: como as crianças movem-se de uma inconsciência primitiva a uma reflexividade adulta,
paralelamente a humanidade, com a sucessão de gerações, tem maiores condições de controlar a consciência em relação
ao cosmos e a si. Ong é a representante desta abordagem.
g) Política social: foca-se as vidas das crianças como marcas dos veis de bem-estar social de uma sociedade com
privações ou desvantagens na contemporaneidade. Alguns teóricos que desenvolveram essa abordagem são Ennew,
Lacey, Heath, Weisner, Qvortrup.
h) Crítica social: as crianças são peças-chave na reprodução dos discursos hegemônicos sobre desigualdade social e
cultural, na mesma linha dos trabalhos de Gramsci e Bourdieu. Jenkins, Hebdige, Scheper-Hughes, Willis são exemplos
de pesquisadores que abordaram a infância a partir deste paradigma.
33
perspectiva mais interpretativa, fenomenológica e literária. O objetivo é compreender as crianças
segundo elas mesmas, como seres ativos e participativos na sociedade envolvente e mais, com
particularidades que requerem métodos e teorias apropriadas. Nesta perspectiva uma ênfase em
como as crianças enquanto agentes criam, interpretam, adquirem e recriam a cultura juntamente com
os adultos e com outras criaas. Um bom exemplo a ser citado é o livro de Bluebond-Langner, The
private world of dying children, de 1978. Ela demonstra, através de uma pesquisa com crianças
portadoras de câncer, como elas são capazes de elaborar seu próprio entendimento sobre o mundo
em que foram inseridas, sobre o funcionamento do hospital, drogas, morte, estágios da doença e
nomes médicos, ainda que não tenham sido ensinadas formalmente. Além disso, a autora assinala
como as crianças sabem que vão morrer com certa precisão temporal. Mesmo que haja todo tipo de
tentativas de esconder a possibilidade da morte das crianças por parte da equipe médica e da família
como, por exemplo, não responder às perguntas sobre o tema ou mentir, dizendo que uma criança
que estava muito doente foi para casa quando, na verdade, havia morrido.
Por sua vez, James (1995) elaborou a sua classificação de como as ciências sociais m
trabalhando as crianças, na qual afirma que elas foram tratadas das seguintes formas:
Criança em desenvolvimento. Tratada como incompleta, sem status e relativamente
incompetente.
Criança tribal. Tratada como competente por ser parte de uma cultura que deve ser estudada
em si mesma, a cultura infantil, mas não pertencendo ao mesmo mundo comunicativo do
pesquisador. Em parte, desenvolveu-se como resposta às abordagens da criança em
desenvolvimento (JAMES, JENKS, PROUT 1998: 180).
Criança adulta. Vista como socialmente competente da mesma forma que o adulto.
Criança social. É vista de maneira diferente em relão ao adulto, mas não necessariamente
com competências sociais inferiores.
Em livro posterior, juntamente com Jenks e Prout, James (1998) apresenta uma classificação
dos estudos das crianças de maneira ampliada. Exponho aqui uma elaboração pessoal a partir das
idéias deste livro paralelamente às idéias do livro de Smart, Neale e Wade (2001). De tal modo,
estudos que incluíram a infância poderiam ser divididos entre aqueles que trataram a criança como
1) ser pré - social e, posteriormente, como 2) ser social.
1) os estudos da criança pré-sociológica dividem-se em:
A criança . A corrupção e a maldade são os elementos primários da constituição da
criança, de acordo com Hobbes, o Antigo testamento, a criminologia, a prática pedagógica e
a moral blica. As crianças eram vistas como pequenos demônios marcados com o pecado
original. Como resposta a isso, métodos severos de educação foram desenvolvidos na Europa
34
Puritana nos séculos XVI e XVII. Uma variação do modelo é a criança como um pequeno
selvagem ou bárbaro, em que ela é vista como incivilizada, mas não necessariamente má.
A criança inocente. Em Rousseau temos o maior exemplar da concepção da criança
naturalmente boa, pura, inocente e gentil. A bondade da criança é um dado da natureza, e não
social. Ele propunha ao invés da punição, a proteção e a celebração da sua bondade
19
.
A criança em desenvolvimento natural ou modelo embrionário. Na psicologia de Jean Piaget,
tido como um modelo evolucionista, a criança inicia a vida como um simples organismo
biológico, e termina por alcançar os variados estágios de desenvolvimento através do
progresso sico e intelectual. “A criança” segundo Piaget, representa todas as crianças, um
conceito a - histórico, generalizado e hipotético. Além disso, ela era vista como um ser em
potencial, não um ser completo; por isso, o nome modelo embriorio.
2) No modelo da criança sociológica, ela foi tratada em si mesma como lócus de pesquisa e
o como intermediária para as questões da família ou da escola. Subdivide-se em:
A criança socialmente construída. A abordagem nasce contra o positivismo da sociologia
brinica nos anos 1970, com inspiração em Husserl e Heidegger. Acredita que o uma
criança universal, mas uma pluralidade de formas de infância. Comprometida com o
relativismo e com o construtivismo social, estuda as formas das identidades infantis.
A criança socialmente estruturada. Infância é uma constante e um reconhecido componente
de todas as estruturas sociais através do tempo e do espaço. Qvortrup é o grande
representante deste tipo de abordagem mais comprometido com um conceito global de
infância. A infância, segundo ele, sempre existiu, não concordando, desta forma, com a tese
da invenção da infância na época moderna.
A criança tribal. Concentra-se em estudar o mundo infantil, as brincadeiras, a escola, a
literatura. Teve grande repercussão nos anos 1950 e 1960 com o casal Iona e Peter Opie,
principalmente na antropologia. A ação social da criança é estruturada, mas através de um
sistema não conhecido pelos adultos; portanto, são necessárias as etnografias. Pode ser vista
como uma versão potencialmente politizada e empírica da criança socialmente construída.
Parte de uma visão particularista que vê a criança localizada no espaço e no tempo e imbuída
de agência.
A criança enquanto um grupo minoritário. A infância é socialmente estruturada. uma
relação de poder entre crianças e adultos que necessita ser mudada. A sociologia ou
antropologia devem existir ‘para as crianças’ e não apenas ‘sobre as crianças’. Em relação
aos seus direitos, a infância é uma categoria universal. É uma abordagem universalista e
19
Apesar de incorrer no sentimentalismo, a abordagem de Rousseau foi importante na medida em que concebeu
características positivas aos pequenos, abrindo espaço para outras abordagens mais generosas para com as crianças.
35
global, que vê a criança como ativa e consciente. Como se vê, pode ser pensado como uma
modificação mais empírica e politizada da criança socialmente estruturada.
De acordo com a figura abaixo (JAMES, JENKS, PROUT 1998: 206), as abordagens da criança
socialmente construída e criança como minoria social têm tantas relações entre si, quanto a criança
socialmente estruturada e a criança tribal.
William Corsaro, sociólogo norte americano, vê a infância como uma forma estrutural e as
crianças, por sua vez, como agentes sociais que contribuem para a reprodução da infância e da
sociedade através da negocião com adultos mas, principalmente, através da produção criativa de
culturas de crianças com seus pares. O autor desenvolveu o conceito de reprodução interpretativa,
segundo o qual as crianças ativamente contribuem para a preservação ou reprodução e modificação
da sociedade. Este conceito representa sua tentativa de conciliar o que ele denominou os modelos
deterministas e os modelos construtivistas.
O modelo determinista compreende os modelos funcionalistas dos anos 50 e 60 que se
concentraram nos aspectos superficiais da internalização das normas sociais requerida pelo processo
de socialização. Para T. Parsons, um dos representantes deste modelo, as crianças são uma ameaça à
sociedade e devem ser enquadradas nela. Os modelos reprodutivos, incluídos entre os deterministas,
foram desenvolvidos por Bourdieu, Bernstein, Passeron. Segundo Corsaro, Bourdieu oferece uma
visão um pouco menos determinista reconhecendo, apesar de sutilmente, a agência infantil sem,
no entanto, conceber a criança como agente de nenhum papel ativo na mudança cultural. A criança
apenas participa e reproduz a cultura. O modelo determinista concebe a criança como um ser passivo
que pode contribuir para a manutenção da sociedade e que deve ser controlada pela educação.
Voluntarismo
Agência
Diferença
Universalismo
Global
Continuidade
Identidade
Estrutura
Determinismo
Particularismo
Local
Mudança
Criança
Tribal
Criança
enqto. grupo
Minoritário
Criança
Socialmente
Estruturada
Criança
Socialmente
Construída
36
Segundo Corsaro, a fraqueza do modelo reside na simplificação demasiada de processos complexos
e à falta de atenção à importância da criança e da infância na sociedade.
Por sua vez, os modelos construtivistas concebem a criança como agente ativo e como jovem
aprendiz, argumentando que ela ativamente constrói seu mundo social e seu lugar dentro dele. Este
modelo tem como ícones Piaget e Vygotsky. O segundo elaborou a teoria do desenvolvimento
intelectual como uma progressão através de séries de estágios de habilidade: desde os primeiros dias
de vida, a criança interpreta, organiza e usa as informações do ambiente para construir as
concepções conhecidas como as estruturas mentais. Ao contrário de Piaget, para quem o
desenvolvimento humano é primariamente individual, dado em processos cognitivos e estruturais.
Segundo Corsaro, a debilidade do modelo construtivista reside no seu foco central no
desenvolvimento individual, com pouca consideração em relação às experiências interpessoais no
desenvolvimento individual. Vygotsky, de outro lado, com uma visão sociocultural do
desenvolvimento humano concebe a criança como tendo um papel ativo do desenvolvimento
humano, sendo este entendido como primariamente coletivo, dado na história e no contexto.
A proposta de Corsaro de reprodução interpretativa a criança como participante ativo na
sociedade e reconhece a importância da coletividade, da relação com os adultos e com os pares. Para
ele, o termo socialização é por demais equivocado e deveria ser abandonado. A sua noção captura a
idéia de inovação e criatividade na participação em sociedade (interpretativa) e, ao mesmo tempo, a
sua contribuição para a reprodução cultural (reprodução)
20
. O autor concebe um diagrama do the
orb web model (2005 [1997]: 25) como metáfora da reprodução interpretativa. No centro do
diagrama em forma de espiral, vemos a família de origem. À medida que a espiral vai se
expandindo, a idade vai aumentando, de idade pré-escolar, pré-adolescência, adolescência, até a
idade adulta. Todo o diagrama é atravessado por diversos campos. São eles: educacional, familiar,
comunitário, econômico, cultural, religioso, político e ocupacional. Para o autor, o desenvolvimento
individual está envolvido na produção coletiva de uma série de culturas infantis que, por sua vez,
contribuem para a reprodução e a mudaa no mundo adulto. O diagrama espiral torna possível a
visualização da participação constante das crianças em uma rede onde estão envolvidos os adultos e
as crianças e, conseqüentemente, a visualização do fato de que as duas culturas, adultas e infantis,
estão necessariamente implicadas. Apesar de não concordar com os termos ‘cultura infantil’ e
‘cultura adulta’ tendo a concordar com Corsaro quanto à participação necessária das crianças e dos
adultos na análise do mundo social. Resulta disso a implicação de que a pesquisa deve ser realizada
tanto com crianças quanto com adultos. Implicação com a qual Corsaro, curiosamente, não
20
“[...] as crianças e suas infâncias são afetadas pelas sociedades e culturas das quais elas são membros. Estas
sociedades e culturas, em contrapartida, têm sido moldadas e afetadas pelo processo de mudança histórica(1997: 18
tradução minha) do qual as crianças são parte ativa.
37
compartilha, já que concebe as crianças como constituindo um mundo autônomo em relação aos
adultos e que, por isso, deve ser estudado em si mesmo
21
.
Por sua vez, Jens Qvortrup (1990, 1993a, 1993b) do Norwegian Centre for Child Research,
na Noruega, trabalha com uma perspectiva diferente da de Corsaro. A infância, nos seus termos, é
um fenômeno social construído socialmente, mas é também uma categoria estrutural que deve ser
explicada através da relação entre as outras estruturas sociais. Infância não é uma fase transiria, é
sim uma estrutura que se encontra em todas as sociedades. A concepção [de infância] vincula a
idéia que infância é uma estrutura permanente em qualquer sociedade, mesmo se os seus membros
são continuamente substituídos” (1990: 08 tradução minha). Portanto, sua pesquisa concentra-se na
infância, e não nas crianças em particular. Ele argumenta ainda sobre a ausência das crianças nas
estatísticas oficiais sobre potica, macroeconomia, bem-estar social. Avançando um pouco a
discussão, eu diria que não se deve apenas desenvolver dados estatísticos sobre as crianças, mas que
a opinião das próprias crianças deve ser levada em conta para o desenvolvimento de projetos de ação
social voltados não apenas para a infância, mas para a sociedade abrangente uma vez dado que a
criança também faz parte da sociedade
22
. Qvortrup acredita que a infância é uma parte integrante da
sociedade e afeta o mundo social e econômico. Por exemplo, as crianças, mesmo quando não
trabalham, também fazem parte da divisão social no trabalho, dado que é o seu estudo que permite
aos pais trabalharem.
Para o autor, não se deve separar infância de outras variáveis da análise social, como gênero,
classe social, etnicidade ela deveria ser vista como uma variável entre tantas. As crianças, segundo
Qvortrup (1993), não o apenas recipientes da cultura dos adultos, mas também co-construtoras da
própria infância e da sociedade. Elas estão expostas às mesmas forças sociais que os adultos, como
por exemplo, a economia e as instituições, mas de uma maneira específica. Como pertencentes a um
grupo minoritário, em relação ao status e aos privilégios do grupo dominante (os adultos), as
crianças estão sujeitas a tendências de marginalização e paternalismo. A autora afirma que não há
diferença ontológica entre criaas e adultos, e é essa diferença construída que permite o uso do
poder pelos adultos (“human beings”) e não pelas crianças (“human becomings”). Questionar o
princípio das diferenças ontológicas entre os adultos e as crianças é uma objeção ao argumento
ideológico de que os adultos têm o direito “natural” de exercer poder sobre as crianças
(QVORTRUP et al. 1994: 03 tradução minha). Finalmente, a ideologia da família, que prega que a
21
“[...] children’s peer cultures have an autonomy that makes them worthy of documentation and study in their won
right” (1997: 41).
22
Como exemplo vide Vogel (1995).
38
criança é sua propriedade e sua responsabilidade, constitui uma barreira que impede o bem-estar
social e os interesses das crianças de serem alcançados
23
.
Podemos dizer que Qvortrup e os outros pesquisadores que seguem a linha da infância como
um fenômeno social, como ele mesmo intitula, abordam o tema de uma perspectiva diversa dos new
social studies of childhood na medida em que: 1) o concebem o estudo das crianças enquanto
válido em si mesmo, além de 2) o conceberem diferença ontológica entre crianças e adultos. Por
fim, estes pesquisadores tecem uma crítica à antropologia e sociologia da criança, entendida em
contraponto à antropologia e sociologia da infância.
4. Conclusões
Como vimos, há uma variedade de interpretões sobre a história do campo de estudos das
crianças. De outro lado, o ainda um corpus teórico hegemônico ao qual os neófitos possam se
reportar. Em contrapartida, há um conjunto de teorias de ciências afins que podem ser utilizados
para a elaboração de pesquisas com as crianças. Ao mesmo tempo, como mostrei, diferentes
maneiras de pesquisar as crianças, testadas ou em desenvolvimento, no seio da antropologia, o que
atesta a vitalidade e a pertinência do tema.
23
É interessante lembrar que a velhice e a juventude têm se colocado como temas centrais de pesquisas acadêmicas e
políticas públicas com as modificações que a pirâmide etária vem sofrendo em diversas sociedades, principalmente com
o aumento do número de idosos e a diminuição do número de jovens e de crianças.
39
CAPÍTULO 1: Ser adulta e pesquisar crianças
24
: explorando possibilidades
metodológicas na pesquisa antropológica
"Les grandes personnes ne comprennent jamais rien toutes seules, et c'est fatigant, pour les enfants,
de toujours leur donner des explications."
Le petit prince. Saint Exupéry
1. Introdução
Este capítulo tem como um dos objetivos discutir a questão dos métodos e das técnicas de
pesquisa utilizados no estudo de crianças pela antropologia. Pergunto-me em que medida estudar
crianças requer métodos e técnicas especiais ou se devemos continuar aplicando os mesmos
instrumentos empregados no estudo dos adultos. Além de mapear os métodos e as técnicas
utilizados, discuto sobre o lugar do pesquisador adulto na pesquisa com crianças, os esforços para
sair desta posição e os problemas disto resultantes.
Um capítulo metodológico em uma tese de doutorado em antropologia social se justifica na
medida em que o presente trabalho se valeu do uso de materiais de pesquisa não convencionais na
tradição de estudos antropológicos, a saber, desenhos, redações, filmagem, drios, fotografias,
cartas, entrevistas com crianças, programas de rádio. Apesar de não serem inéditas, as técnicas de
pesquisa trabalhadas a partir destes materiais citados foram pouco utilizadas na pesquisa
antropológica. Embora tenha sido largamente utilizada, a metodologia de pesquisa o se restringiu
à observação participante. Como será visto, o conjunto dos métodos e técnicas aqui descritos e
discutidos foi essencial para a elaboração da tese. No entanto, é necessário desde já advertir o leitor
do fato de que, exceto a observação participante e os desenhos conjugados com as redações, as
outras técnicas utilizadas têm um caráter complementar e o foram trabalhados exaustivamente.
2. Ser adulta e pesquisar crianças
Como já aludi, a confecção desta tese de doutorado contou com a aplicação de vários
todos e técnicas de pesquisa. A observação participante foi largamente utilizada, embora não
tenha sido o único método de pesquisa a apresentar resultado positivo. Foi feita observação
sistemática e regular das missas, cultos e reuniões espíritas, assim como também dos serviços
religiosos especialmente destinados às crianças. No caso do catolicismo, trata-se do “catecismo” e
24
Allison James e Pia Christensen (2000) advogam contra a pesquisa sobre crianças em favor de uma research with
children que, inclusive, dá título ao livro organizado pelas autoras. A tentativa é envolver as crianças como co-
construtores da pesquisa, como informantes ativos ou como sujeito de ação social. De minha parte, tenho simpatia pelo
projeto, mas não considero que apenas o uso ou não de uma palavra possa determinar os rumos de uma pesquisa; por
isso, continuo utilizando construções consideradas ultrapassados, como pesquisar crianças...
40
da reunião da “Infância Missionária”. No caso da Assembléia de Deus, trata-se da “escola
dominical”. E, por fim, da reunião das crianças” no caso do Centro Espírita. Foram observados
também eventos como funerais, enterros, novenas do mês de Maria (maio), procissões, a festa do
padroeiro e a gincana da Infância Missionária.
A relação com as crianças que participaram mais intensamente da pesquisa foi constrda ao
longo dos anos. Comecei a fazer pesquisa na cidade de Catingueira no ano de 2000, quando a
pesquisa não necessariamente focava as crianças. Desde aquele ano, tenho ido à cidade em
intervalos variados, computando ao todo quase catorze meses de trabalho de campo. No entanto, a
estadia na cidade foi intensificada nos últimos dois anos, 2004 e 2005. De modo geral, meu primeiro
mecanismo de inserção social foram visitas aleatórias. Assim que chegava a uma casa, me
apresentava. Muitas vezes, me convidavam para entrar. Outras vezes ficávamos na varanda ou, na
pior das hipóteses, em pé do lado de fora da porta. Conversávamos sobre amenidades e, depois, eu ia
embora. Ao final de alguns meses fazendo visitas diárias, muita gente já me conhecia pelo nome
25
.
Com o tempo e as repetidas “palestras” (conversa, bate-papo) passei a ser conhecida íntima de
algumas famílias. Estas famílias, que por sua vez tinham crianças, facilitaram as primeiras interações
com o mundo infantil.
Em 2004, quando a pesquisa passou a se concentrar também nas crianças, foi preciso
inventar pretextos para que elas se aproximassem da minha casa (sobre as atividades na minha casa
vide fotos de 1 a 11 no CD anexo). Um dia, ensinei um grupinho de meninas a fazer papel reciclado.
A notícia espalhou-se rápido e, por fim, a procura por aprender a fazer papel reciclado demandou
alguns dias de oficinas. Às vezes, lia uma estória; às vezes, inventava estórias; às vezes, pedia que as
crianças contassem estórias. Um dia, fiz um bolo para cantar parabéns para um aniversariante.
Também inventava brincadeiras, dinâmicas e temas de conversa em grupo. Assim feito, logo a casa
estava sempre “cheia de menino”, como se costuma dizer em Catingueira. Concomitantemente, fui
muitas vezes nas casas das crianças, mas a opção por convidá-las para a minha casa tem como
justificativa o fato de que queria observá-las também longe das suas famílias.
Talvez seja necessário discorrer um pouco sobre a minha opção de chamar as crianças para
desenhar na minha casa. O leitor pode se perguntar o motivo pelo qual eu não priorizei a casa das
crianças, o seu ambiente “natural”, a fim de levar a cabo a pesquisa. Quero esclarecer que freqüentei
as casas das crianças e as observei em interação familiar. No entanto, apostei também na pesquisa
com as crianças entre si, longe do olhar disciplinador do adulto. Com isso, resolvi convidá-las para a
minha casa, o que se mostrou produtivo. Todavia, Latour (2005) faz considerações interessantes
25
Desde os primeiros contatos em Catingueira, pedi que me chamassem apenas pelo meu primeiro nome. Os que se
tornaram mais íntimos acabaram por chamar-me apenas de “Flavinha”, tanto crianças quanto adultos embora outros
continuassem me chamando de senhora ou doutora. Sobre a minha relação pessoal com a cidade de Catingueira, refira-
se à Introdução.
41
sobre a elaboração do fato científico nas ciências sociais, especialmente a sociologia. Ele afirma que
a artificialidade faz parte de qualquer experimento científico, inclusive na antropologia: “De-
scribing, inscribing, narrating, and writing a final reports are as unnatural, complex, and
painstaking as dissecting fruit flies or sending a telescope into space. If you find Faraday´s
experiments oddly artificial, what about Pitt-Rivers´s ethonographic expeditions? If you believe
Lord Kelvin´s laboratory contrived, what about Marx compiling footnotes in the British Library,
Freud asking people to free-associate on his Viennese couch, or Howard Becker learning how to
play jazz in order to take notes on jazz playing?” (LATOUR 2005: 136)
26
. A presença do
pesquisador introduz artificialidade ao contexto pesquisado mas, embora não seja possível evitá-lo, o
fato deve ser sinalizado.
As crianças pareciam gostar de ir para a minha casa e alternavam-se em função do horário da
escola e das atividades domésticas pelas quais o responsáveis. Se quisesse ficar sozinha, a única
solução era o abrir a porta ou as janelas da casa, fingindo que não estava ou que estava
dormindo
27
. em casa, as atividades funcionavam assim: em cada período do dia, seja manhã ou
tarde, pedia que as crianças fizessem, pelo menos, um desenho ou redação. Isto era considerado o
trabalho”. Depois disto, as crianças eram liberadas para brincar conforme quisessem, no quintal,
chamado de “muroou dentro de casa
28
. Dentro de casa, dentre outras brincadeiras, a preferida era
abrir um velho jogo de sofá-cama que ficava na sala e pular em cima dele, como se fosse um pula-
pula. Todas as crianças, das pequeninas (de dois e três anos) até as de catorze e quinze anos de
idade, adoravam pular em cima do sofá. No entanto, as crianças nunca o fizeram sem pedir a minha
permissão. Nos momentos em que eu perdia a paciência com a barulheira dentro de casa, minha
estratégia era simplesmente pedir para fechar o sofá, o que equivalia a pedir que elas fossem embora.
26
Citação completa. “What is so wrong with ‘mere descriptions’? A good text is never an unmediated portrait of what it
describes nor for that matter is a portrait. It is always part of an artificial experiment to replicate and emphasize the
traces generated by trials in which actors become mediators or mediators are turned into faithful intermediaries. There
is nothing less natural than to go into fieldwork and remain a fly on the wall, pass out questionnaires, draw maps, dig up
archives, record interviews, play role of a participant-observer, compile statistics, and ‘Google’ one’s way around the
Internet. De-scribing, inscribing, narrating, and writing a final report are as unnatural, complex, and painstaking as
dissecting fruit flies or sending a telescope into space. If you find Faraday’s experiments oddly artificial, what about
Pitt-Rivers´s ethonographic expeditions? If you believe Lord Kelvin’s laboratory contrived, what about Marx compiling
footnotes in the British Library, Freud asking people to free-associate on his Viennese couch, or Howard Becker
learning how to play jazz in order to take notes on jazz playing? The simple act of recording anything on paper is
already an immense transformation that requires as much skill and just as much artifice as painting a landscape or
setting up some elaborate biochemical reaction. No scholar should find humiliating the task of sticking to description.
This is, on the contrary, the highest and rarest achievement” (LATOUR 2005: 136/7).
27
Mesmo assim, um dia, de manhãzinha, um menino pulou o muro pela casa da vizinha, vindo ter comigo na janela do
quarto dos fundos, onde eu dormia. Outro dia, ainda, quando eu estava começando a organizar os desenhos, resolvi
fechar a porta e as janelas da frente, para evitar visitas. Estava bem concentrada trabalhando, quando escutei chamarem
meu nome insistentemente na porta. Pensava comigo: ‘mas como eles sabem que estou em casa?’. Como o foi
possível disfarçar, fui abrir a porta. A senhora que me esperava disse que quando viu a casa fechada pensou que eu o
estava. Mas mudou de idéia, quando, atenta, observou que a chave estava do lado de dentro da fechadura.
28
Apesar da semelhança com o ambiente escolar, onde os professores dão as tarefas e depois liberam as crianças para
brincar, parece que as crianças associavam as atividades na minha casa muito mais com diversão que com trabalho
escolar, que até o que eu considerava o trabalho era para elas uma atividade de lazer (o desenho). Sem falar que a
atividade na minha casa não tinha caráter obrigatório, e nem resultava em avaliação.
42
Quando isto acontecia, todos rapidamente paravam de pular e de gritar, fechavam o sofá e ficavam
sentados, quietinhos, calados, tristonhos. Então, uma criança chamava a outra: Lulu, vamos
embora”. Lulu levantava-se na hora e então uma avalanche de “vamos embora” levava toda a
algazarra, deixando para trás o silêncio (e, é claro, alguma sujeira para ser limpa).
Hoje, retrospectivamente, tenho a impressão de que foi este sofá a minha maior moeda de
troca com as crianças. Elas me davam companhia e desenhos, e recebiam de volta um sopara
pular! O fato é que as crianças não são autorizadas a pular no sofá em suas próprias casas
29
, e até as
brincadeiras, principalmente dentro de casa, têm certa disciplina a ser seguida. Aos poucos, percebi
que as crianças iam para a minha casa, sob a desculpa bastante digna de que estavam estudando
comigo o que justificava até negligenciar os afazeres domésticos para brincar livremente, pulando,
gritando, correndo e também brigando uns com os outros. Entretanto, não me tinha dado conta de
que, talvez, as crianças estivessem extrapolando na gritaria a ponto de incomodar os vizinhos, até
que uma das minhas vizinhas comentou com outra vizinha que, por fim, comentou com a cidade
inteira, que ia denunciar-me para a proprietária do imóvel onde eu morava, sob a acusação de que
estava “deixando as crianças destruírem a casa”!
Afora minha chateação com a intolerância da vizinha, o incidente iluminou alguns aspectos
sobre o estatuto da criança naquela cidadezinha. Como, por exemplo, que se deve impor limites às
crianças. Que os adultos devem estabelecer uma certa distância em relação a elas se querem ser
respeitados. Que o respeito aos mais velhos deve ser ensinado e exigido desde cedo. Que a criança
deve ficar em silêncio na presença de adultos, principalmente quando os adultos estão conversando.
Que, enfim, elas devem servir os adultos porque “o direitodo adulto ultrapassa o da criança
30
. O
atrito com a vizinha rabugenta vem do fato de que, segundo ela, eu o estava comportando-me de
acordo com o que é esperado de uma pessoa adulta. De um adulto, espera-se que ele não deixe as
crianças fazerem muita algazarra ou que, pelo menos, coloque ordem na bagunça quando for
preciso. Agindo daquele modo, eu podia ser considerada uma irresponsável. Conseqüentemente,
isso colocava a própria possibilidade de realização da pesquisa em jogo. Precisava contar com a
aprovação dos pais das crianças para que eles as deixassem na minha companhia. Para levar a cabo o
29
Muitas casas em Catingueira o têm sofá, que é tido como móvel de luxo. Nas casas tipicamente sertanejas, a sala,
primeiro ambiente de uma casa depois da porta da rua, é lugar onde geralmente os filhos rapazes ou eventuais visitas
masculinas dormem. Durante a noite, as redes são armadas e, durante o dia, elas são dobradas e penduradas em cima do
próprio armador de redes, deixando o chão da sala vazio de móveis. Algumas casas possuem tamboretes ou bancos de
madeira que seo dispostos para o uso das visitas. A sala é também usada para armazenar os produtos da lavoura,
quando não se dispõe de um cômodo para este fim. A cozinha, por sua vez, está localizada em dirão oposta à sala,
como o cômodo mais distante da rua. Poderíamos sugerir que a cozinha é o lugar por excelência da mulher, assim como
o muro (quintal), enquanto a sala seria o lugar por excelência da esfera do masculino dentre outras coisas, porque os
produtos do roçado, cultivado geralmente pelo pai de família, ali estão colocados. Vide Heredia (1979: 89-97) para
considerações sobre a casa na área da zona da mata pernambucana. Vide também Bourdieu (1970) para uma análise
sócio-antropológica da casa kabila. Vide Da Matta (1991) para reflexões sobre a casa e a rua. Para fotografias do sofá
aberto e das crianças, vide fotos 10 e 11 no CD anexo.
30
Recorra ao Capítulo Dois, parte três, “O que é ser criança em Catingueira?”, onde discorro sobre as relações entre os
adultos e as crianças.
43
meu trabalho, de um lado, era preciso aproximar-me das crianças e, até certo ponto, “fazer-me um”
com elas; de outro lado, não poderia comportar-me excessivamente como criança, por correr o risco
de perder a confiança de seus pais, comprometendo a própria pesquisa. De fato, três meninas, muito
assíduas às atividades na minha casa, repentinamente deixaram de comparecer. Vim a saber mais
tarde, através delas mesmas, que a tal vizinha tinha comentado com as suas mães sobre as bagunças
que elas vinham fazendo na minha casa, o que resultou na proibição de freqüentá-la.
Do ponto de vista das crianças, eu também não podia ser considerada uma adulta nos termos
correntes. Afinal, que tipo de mulher deixa as crianças “destruírem” a casa? Pular no sofá ou gritar
dentro de casa não é certo. E as crianças sabem disso porque insistiam, com a expectativa estampada
no rosto, em sempre me perguntar se podiam mesmo abrir o sofá. De fato, quando pulavam no sofá,
as crianças o poupavam entusiasmo, gritavam a plenos pulmões, dançavam e cantavam
extravagantemente. Era como se soubessem que aquela alegria era daquele tipo proibida, que
pode durar muito pouco. De outro lado, aos olhares infantis, eu também não podia ser considerada
uma criança plena, principalmente por dois motivos: 1) eu morava sozinha e, 2) os meus pais não
estavam por perto. Meu objetivo durante o trabalho de campo era aproximar-me das crianças e, se
permitia certas extravagâncias na minha casa, era com vistas a distinguir-me dos outros adultos aos
olhos infantis
31
.
Como de costume, aos domingos eu ia para o catecismo. O mesmo acontece em uma sala de
aula onde se amontoam crianças de três a quinze anos de idade
32
. Minha estratégia era de sempre
tentar estabelecer certa distância em relação às professoras de religião: as catequistas, a chamada
professorinhada reunião dominical e em relação às “meninas” que ajudavam na reunião infantil
do Centro Espírita. Na prática, isso se dava, por exemplo, quando, no caminho para o catecismo,
preferia a companhia das crianças à das professoras. Da mesma forma, eu tomava partido nas
brincadeiras promovidas pelas professoras filiando-me ao grupo das criaas. Minha intenção era
que as crianças soubessem que eu não era como as professoras; que, apesar de ser adulta, estava ali
para aprender, e o para ensinar-lhes sobre religião. Para as professoras, por sua vez, ter por perto
um adulto que não age como tal dado que elas estavam acostumadas a estarem sozinhas com as
crianças é uma situação, no nimo, embaraçante. Por isso, elas constantemente tentavam
envolver-me na direção da reunião. Às vezes, não era fácil recusar certos pedidos das professoras.
31
Margaret Mead (1932) também afirma que nunca orientava ou repreendia um comportamento (ou um desenho) das
crianças, a o ser quando elas corriam perigo e que, do mesmo modo, mantinha a sua casa sempre aberta para as
mesmas. Mary Catherine Bateson (1994 [1984]), no livro em que trata das suas memórias infantis em relação aos seus
pais (Margaret Mead e Gregory Bateson), descreve como a sua própria infância serviu de teste para as idéias de uma
pedagogia libertária associadas ao Dr. Spock, amigo do casal. Desta forma, o espontaneísmo com o qual Mead conduzia
as suas pesquisas parece ser apenas aparente: deixar as crianças “livres” era parte do projeto de pesquisa empreendido
pela pesquisadora.
32
O catecismo tem lugar em um prédio de escola desativado utilizado pela igreja Católica para o catecismo e para outras
atividades. Embora crianças com variadas idades comparam, predominam as crianças que pretendem fazer a primeira
eucaristia ao fim do ano, que têm por volta dos onze anos de idade.
44
Elas pediam-me para fazer a oração, pediam para ler a historinha ou a Bíblia e, às vezes, pediam por
socorro no quesito disciplina. Eu recusava, sempre recusava, mas, uma vez ou outra, elas acabavam
por passar-me a palavra com inquisições do tipo: “O que tu acha disso, Flávia?”. Normalmente, não
sabia o que responder, provavelmente gaguejava e, por fim, conseguia escapar, dizendo algo não
muito consistente. Às vezes o que era ainda pior a professora me passava o controle de uma
classe; por exemplo, no caso da ausência de uma das professoras. Essas situações não eram
produtivas do ponto de vista da pesquisa, na medida em que me colocavam em situação de
autoridade em relação às crianças, demolindo meu objetivo de aproximar-me delas. Se as crianças
me vissem como um aprendiz e não como uma professora que sabe todas as respostas e ensina, seria
mais fácil desencadear uma relação de cumplicidade e confiança, o que tornaria possível a pesquisa.
Uma vez, no catecismo, depois de lerem uma história bíblica, as professoras iam começar a
ditar as perguntas que deveriam ser respondidas, a fim de avaliar o nível de compreensão da
passagem bíblica lida. Todas as crianças abriram seus cadernos e ficaram a postos, com o pis na
o, para escrever as questões. Uma criança, percebendo que o trouxera caderno nem lápis para
anotar as questões, perguntou-me se eu queria emprestados uma folha do seu caderninho e um lápis
para fazer o meu exercício. Neste momento, para aquela criança, eu era apenas mais uma estudante
que tinha por obrigação copiar o ditado e que estava em apuros, por ter esquecido de trazer os
materiais. Neste mesmo dia, as professoras pediram que as crianças se dividissem em grupos para
uma tarefa que fariam em casa. Um menino e uma menina saíram dos seus assentos e vieram
correndo perguntar-me se eu já tinha grupo; caso contrário, eles convidavam-me para entrar no seu
grupo. Neste dia, voltei para casa satisfeita com o resultado da minha inserção, pelo menos no
catecismo.
É imprescindível ressaltar que o meu intento não era “tornar-me nativo
33
mas, sim, ser
assimilada pelas crianças como uma adulta diferente. Uma adulta que interage com elas, seja
brincando, seja conversando, seja discutindo. Como já foi enfatizado, em Catingueira, o estatuto das
crianças e o dos adultos são tidos como inteiramente distintos. Os adultos não interagem
demasiadamente com as crianças. As crianças não escutam conversa de adulto, não participam em
ambientes de adultos. Seria considerado desrespeitoso se uma criança ousasse discutir a opinião de
seus pais ou responsáveis. Parece que as crianças e os adultos, em grande medida, são vistos como
33
Para uma análise crítica da noção de tornar-se nativo, vide Marcio Goldman (2003): “Melhor seria ouvir a advertência
levistraussiana: “não é jamais ele mesmo nem o outro que ele [o etnógrafo] encontra ao final de sua pesquisa” (Lévi-
Strauss, 1960, p. 17). De toda forma, penso que a perspectiva de Lévi-Strauss sobre o trabalho de campo e da
etnografia articula-se estreitamente com a idéia estruturalista de que cada sociedade atualiza virtualidades humanas
universais e, portanto, potencialmente presentes em outras sociedades: o nativo não é mais simplesmente aquele que eu
fui (como ocorre no evolucionismo) ou aquele que eu não sou (como ocorre no funcionalismo), ou mesmo aquele que eu
poderia ser (como ocorre no culturalismo); ele é o que eu sou parcial e incompletamente (e vice-versa, é claro)(2003:
462-3). Marcio Goldman sugere pensar a noção de “devir nativo” que implica em ser “afetado” (FAVRET-SAADA
1990, DELEUZE & GATARRI 1997 [1980]) pelas mesmas forças que afetam os nativos (GOLDMAN 2003: 463-5).
45
ontologicamente diferentes, habitantes de mundos que não devem correr o risco de misturar-se.
Acredita-se que criança que convive excessivamente com adultos aprende o que o deve. De outro
lado, um adulto que interage demasiadamente com as crianças é tolerado em situações
previstas, como, por exemplo, na escola, no consultório médico ou no cuidado infantil cotidiano que
as meninas mais velhas dispensam ás crianças. Todavia, para a realização da pesquisa, era preciso ir
contra este modo de interação local entre crianças e adultos. Precisava me aproximar das crianças, a
fim de trocar experiências de vida. Precisava ouvir as crianças, suas opiniões sobre o mundo, sobre
religião, sobre os fatos do cotidiano.
É preciso esclarecer que o meu interesse pelas crianças parece não ter levantado suspeita o
que poderia ter sido diferente em outras cidades. Isso se deve parcialmente ao fato de que é
considerado normal que as mulheres solteiras passem tempo com as crianças, cuidando delas,
ensinando os deveres escolares ou simplesmente “matando o tempo”. No entanto, às vezes, causava
impressão o fato de que eu nunca me cansava delas e que estava sempre disposta a recebê-las em
minha casa, uma vez que o cuidado dispensado as crianças é visto, algumas vezes, como um serviço
penoso porque exaustivo. Algumas mães disseram-me que não deixavam a sua criança na rua ou na
casa dos outros, mas que a única casa que sua filha (o) freqüentava era a minha, enfatizando a sua
confiança na minha pessoa. Em Catingueira, a criança o deve ficar na casa dos outros ou na rua
por muito tempo por estar sujeita a aprender o que não deve. Uma mãe, cujo filho fica muito tempo
nas casas alheias ou na rua, pode ser taxada de displicente e culpada caso esta criança incorra em
erro
34
.
A solução para este impasse, de ser adulto e pesquisar criança de uma perspectiva
antropológica, deve ser buscada no campo, de acordo com cada caso estudado. Corsaro (2003), por
exemplo, descreve que sua imperícia no donio da língua italiana facilitou a interação com as
crianças em uma escola na Itália. Ele era visto, pelos alunos, como uma criancinha, que ainda estava
balbuciando as primeiras palavras. Isso acabou por inverter a relação costumeira: as crianças
empenharam-se em ensinar (o idioma) o adulto. Eu, de certa forma, realizei meu intento, na medida
em que falhei como mulher adulta deixando as crianças destruírem a casa” onde morava e que,
ao mesmo tempo, expus-me às atividades tipicamente infantis, como as brincadeiras. Não acredito
que as crianças tenham me visto como uma criança. Mas acredito que o fato de eu ser adulta e elas
serem crianças deixou de ser um imperativo negativo para a relação. Mais do que uma adulta, eu
34
Vide Desenhos Temas Variados número 4 (desenho 4 Y. 12. F [Livre] Ela, amiga e pesquisadora) no CD anexo, no
qual a menina desenhou-se deitada na rede ao lado da pesquisadora e de uma amiga.
46
estava sentada na carteira ao lado, ouvindo e prestando atenção ao catecismo. Enfim, a atividade em
que estávamos imersas suplantou o fato da nossa diferença de idade
35
.
Apesar de ter sido quase sempre bem-vinda nas rodas infantis, lembro-me de que as crianças,
ás vezes, não permitiam a minha participação nas suas atividades e conversas. Quando eu era
criança, algumas meninas no meu colégio interagiam entre si usando a ngua do “Pê”
36
língua na
qual eu, sofregamente, nunca consegui ser fluente. Em Catingueira, curiosamente, as crianças
utilizavam o mesmo recurso da ngua do “Pê” para excluir-me de certas conversações. O
interessante é que elas o faziam deliberadamente, na minha vista, como se quisessem tornar explícito
o abismo que nos distinguia. Desta forma, temos mais um motivo para acreditar que elas não me
viam como criança. Parece-me plausível afirmar que os mundos do pesquisador enquanto um adulto
e o do nativo enquanto criança são comunicáveis. Mas nem sempre é o caso.
3. Desenhos e Redações: condução, considerações e resultados
Como afirmei, os desenhos foram usados em outras pesquisas antropológicas. Mead e
Bateson (1942) coletaram em Bali mais de mil e duzentos desenhos, entre os anos de 1937 a 1939,
feitos por adultos sua maioria e são acrescidos de um relato sobre os mesmos (GEERTZ 1995
37
). Na
35
Talvez o leitor faça uma objeção ao argumento, afirmando que a maneira como a pesquisadora aproximou-se das
crianças, como um “adulto diferente”, o passe de um estereótipo de um adulto liberal das classes médias dos estados
do sul e sudeste brasileiros. Assim, ao invés de aproximar-se das crianças, a pesquisadora teria afirmado seu
etnocentrismo em relação àquela comunidade. No entanto, tendo tido contato com outros adultos do sul e sudeste, os
chamados “filhos-ausentes”, que em visitar a cidade durante a Festa do Padroeiro, foi possível constatar que nenhum
deles comportava-se como a pesquisadora em relação às crianças. As suas atitudes para com as crianças diferiam das dos
catingueirenses, mas não eram, de maneira alguma, da mesma natureza das da pesquisadora. Destarte, mesmo fazendo
pesquisa nos estados do sul e sudeste, seria necessário descobrir um modo de interação com as crianças que as deixasse
confortáveis o bastante na frente do pesquisador. Acredito que, neste outro contexto fictício, agindo apenas como um
adulto liberal do sul e sudeste, a pesquisa não poderia ser levada a cabo a contento.
36
“A língua do “pêconsiste em acrescentar-se no final de cada sílaba da palavra, uma sílaba formada com a letra P
mais o fim da sílaba original. Veja os exemplos: Você = vo+po+cê+pê.
Gato=ga+pa+to+pó. Menino= me+pe+ni+pi+no+pó”. (Jangada Brasil, no. 4, dez. 1998
(http://jangadabrasil.com.br/dezembro/ca41200b.htm , acessado em 11 de junho de 2006). A língua do “Pêtambém
pode ser vista como a língua das crianças, bem ao gosto dos pesquisadores que advogam uma “cultura infantil” ou
“sociedade infantil”, com regras, dinâmicas, rituais e, até língua próprias e, por princípio, distintos daqueles dos adultos
(Wartofsky (1983), Tammivaara e Enright (1986), e W. Corsaro (1992, 2003, 2005 [1997]), Thorne (1993), Sarmento e
Pinto (1997) e Corsaro & Molinari (2000). Por exemplo, Corsaro afirma: In attempting to make sense of the adult
world, children come to collectively produce their own peer worlds and cultures” (CORSARO 2005 [1997]: 24).
Poderíamos fazer duas objeções à afirmação de que as crianças inventam uma ngua própria independente dos adultos.
Primeiro, os adultos que aprenderam a ngua do “Pê” quando crianças não a esquecem quando se tornam adultos. No
entanto, o uso da língua do “Pê” por parte dos adultos leva a um sentimento de inadequação, o que contribui para o seu
desuso. Assim, podemos reafirmar a sua particularidade como língua infantil. A segunda objeção é o fato de que os
adultos também conversam entre si de maneira cifrada quando querem que a criança não entenda. O fato é que,
geralmente, a criança sabe que os adultos estão tratando de algum assunto importante, que segundo os últimos o lhes
diz respeito embora talvez o possa precisar o conteúdo da conversa.
37
Hildred Geertz faz algumas reflexões interessantes sobre o uso dos desenhos para a análise antropogica em virtude
dos desenhos coletados por Mead e Bateson em Bali (GEERTZ 1995: 3): “We uneasily ask ourselves questions: What in
them comes from the desire of their makers to please foreigners? What derives from their own cultural preoccupations,
47
pesquisa por mim empreendida, os desenhos foram largamente utilizados como material de pesquisa
complementar à observação participante. Ao desenhar sobre um tema proposto, as crianças colocam
no papel o que lhe é mais evidente. Neste sentido, o desenho é um material de pesquisa interessante
para captar justamente aquilo que primeiro vem à cabeça, aquilo que é mais óbvio para a criança.
Porém, quando combinado com a observação participante é que os dois instrumentos potencializam
a sua utilidade. Os desenhos podem funcionar como um guia para a observação participante. Com os
desenhos à mão, é possível direcionar o olhar para a realidade, de acordo com os tópicos levantados
pela população estudada. De outro lado, a observação participante corpo ou refuta as sugestões
que os desenhos engendram
38
.
Foram feitos três tipos de desenhos: 1) livres, 2) temáticos e 3) temáticos controlados.
Chamo de desenho livre os desenhos sem tema definido a priori, onde as crianças decidiam por elas
mesmas, às vezes individualmente, às vezes coletivamente, o que desenhariam. Muitas vezes, elas
mesmas tomavam a iniciativa de pedir para desenhar; outras vezes, eu sugeria
39
. Este tipo de
desenho é interessante principalmente em um primeiro momento da pesquisa porque, a partir dele,
pode-se melhor definir os temas que devem ser aprofundados. Fizemos um total de cento e setenta e
dois desenhos livres. Nestes, os temas mais ressaltados foram: 1) Elementos da natureza - que tanto
é o tema principal do desenho quanto coadjuvante, decorando a folha de papel. 2) As casas, que são
desenhadas sempre com portas e janelas. Abaixo, veja a lista completa dos elementos mais
desenhados nos desenhos livres:
Elementos da natureza 64
Casa 32
Gente 24
Mal-assombro 17
Religiosos
40
12
their own aesthetic values, and their own ways of seeing? How much did these painters simplify their subjects and
prettify the images they confected in order to satisfy purchasers whom they saw as ignorant, godless, and tasteless?
When I look at their works, am I projecting onto them my own, perhaps romantic, notions of what Bali and the Balinese
are, or where at that time? I have met these concerns in the only way that I know – through a redoubling of my efforts as
an anthropologist to get at implicit Balinese view of life and the world. Ela também afirma que (…) these paintings
provide complex interpretations of the deeper meaning underlying the outer visible shell of Balinese life”.
38
Toren (2002) também é favovel ao uso do desenho conjugado com a observação participante, dentre outras razões,
por incluir os adultos. Vide citação: This sistematic study requires the use of diagnostic tasks, which maybe be quite
simple in form – for example, asking children to make a drawing of a particular scene and then talking with them one by
one about what they have drawn. This kind of proceeding with children is equivalent to open-ended interwiews with
adults. There is no point, however, in focusing on children to the exclusion of adults. Moreover, long-term participant-
observer study remains absolutely necessary, for without it the anthropologist cannot know where it will be fruitful to
focus any more systematic investigations with children” (TOREN 2002: 118/9).
39
Cohn (2006) chama de desenhos espontâneos aqueles que as crianças Xikrin faziam por iniciativa própria e com temas
por elas escolhidos.
40
Dentre os religiosos: São Sebastião, Maria Mãe de Jesus, cruz, Smilingüido, Anjinho, A Rainha do Céu, uma bailarina
dançando com um hexágono na ponta dos dedos onde está escrito “Deus”, igreja, cemitério, terço, promessa, Jesus, São
48
Outros 10
Conjugados (casa, natureza e
outros)
05
Festa de São João 03
Carro 03
A classificação dos desenhos parece-me ser uma questão a ser discutida. As categorias acima
utilizadas foram idealizadas pela pesquisadora para dar conta de um sem número de elementos
desenhados. Em última instância, o que foi considerado, por exemplo, “religiosoou “gente”, foi
decidido pela pesquisadora. No entanto, todas as crianças descreveram os seus desenhos, o que
orientou a classificação dos mesmos. Para exemplificar mais detalhadamente, no caso em que a
criança descreveu seu desenho como “a minha irmã”, este desenho acabou sendo contabilizado na
categoria “gente”. Particularmente, a categorização os “elementos da natureza” pode levantar
algumas dúvidas. É importante ressaltar que, por exemplo, a Serra da Catingueira não é tida como
apenas “a natureza”, senão pelos forasteiros das grandes cidades, que ocasionalmente aportam em
Catingueira para desfrutar da subida da Serra. Para as pessoas que moram na cidade, a Serra não
existe apenas em função do eco-turismo. A Serra da Catingueira enfeita a cidade, hospeda os
cruzeiros onde se pagam promessas e abriga a Maria Fulorzinha e o Carneiro de Ouro. Além disso,
ela serve de pasto para o gado, contém a Furna e a Cachoeira da Mãe Luzia, serve de moradia para
famílias, dentre outros
41
. Por isso, não poderíamos afirmar que, para as crianças, a Serra é apenas
parte do mundo da “natureza” embora, no caso dos desenhos livres, a Serra tenha sido
categorizada como elemento da natureza, assim como as árvores, os pássaros e as flores. O esforço
de classificação dos desenhos é útil como primeiro passo na direção de uma análise mais completa,
mas não deve ser tomado como suficiente em si mesmo.
Em uma segunda etapa da pesquisa, pode-se propor desenhos com temas específicos,
baseando-se nas dicas que as próprias crianças apresentam nos desenhos livres. Propus temas os
mais variados, como “A minha família”, “O que eu mais gosto\odeio na vida”, “A minha futura
família”, “O meu maior sonho”, Um homem mau morreu, para onde ele foi?”, “Em quem você
votaria para prefeito?”, entre inúmeros outros, que perfazem um total de duzentos e quarenta e um
desenhos
42
. Tanto os desenhos livres, quanto os desenhos temáticos, foram todos feitos na minha
Antônio com bengalinha, floresta com o nome DEUS escrito. Dentre os de Mal-assombro: Maria Fumaça, Maria
Fulozinha, Carneiro de ouro, o peixe de ouro, Rasga-mortalha, fantasma, casa da bruxa, Homem do Saco, ET de Marte.
Sobre os mal-assombros, vide Índice de referências de mal-assombros, no final desta tese, Anexo 1.
41
No Capítulo Dois, há mais informações sobre a Serra, os cruzeiros e a Cachoeira da Mãe Luzia.
42
Todos os temas abaixo descritos foram desenhados (e classificados por idade e gênero):
Questões da política: Em quem vovotaria e por que? Em quem você o votaria e por que? (para prefeito e para
vereador).
49
casa, no ambiente descrito anteriormente. Aqui também é útil ressaltar que os temas dos desenhos,
embora discutidos com as crianças, foram propostos por mim, de acordo com os meus interesses de
pesquisa, e o podem ser confundidos com o espelho do real da vida infantil.
Depois dos desenhos livres e dos desenhos temáticos, resolvi aprofundar dois temas
específicos que iam ao encontro do tema da pesquisa por mim realizada e que, ao mesmo tempo,
eram recorrentes no imaginário infantil da Catingueira. O objetivo era recolher uma amostra
abrangente de desenhos em relação a cada faixa etária a ser pesquisada. Elaborei uma amostra que
cobre crianças dos três aos treze anos de idade em relação ao tema “A minha religião” e ao tema O
mal-assombro”. Recolhi pelo menos vinte desenhos de cada faixa etária em relação aos dois temas
apresentados, o que perfaz um total de duzentos e cinqüenta desenhos do tema “A minha religião”, e
trezentos e quatorze desenhos do tema O mal-assombro”. A este tipo de desenho chamei de
temático controlado. Pela maior quantidade de desenhos, já se percebe a predilão das crianças pelo
tema do mal-assombro. Quando solicitadas que desenhassem, escrevessem ou falassem sobre a
religião, as crianças tendiam a relutar diante da proposta da pesquisadora, afirmando sua inaptidão
ou o seu desgosto pela tarefa. Voltarei a este assunto posteriormente quando se fizer necessário mas,
principalmente, nos Capítulos Três e Cinco. Além disso, a escolha do tema de desenho “A minha
religião” parece ter tido repercussões importantes nos desenhos das crianças. A discussão destas
repercussões foi anunciada na Introdução e trabalhada no Capítulo Cinco.
A aplicação dos desenhos temáticos controlados deu-se nas duas escolas na cidade, durante
os meses de março a maio de 2004, sendo complementada e finalizada durante o mês de julho de
2005. A escolha por aplicar os desenhos nas escolas deu-se pela comodidade de se encontrar o
número de crianças necessário (vinte), já estrategicamente divididas em grupos etários. Como não
Questões da vida prática: Desenhar Catingueira. A Serra e o que tem nela. O que você compraria se alguém te desse um
bolo de dinheiro. O que fizeram no domingo. Algo bom que aconteceu hoje. Coisas anormais, fora do normal. Do que
você mais gosta de brincar. Um sítio. Um Cangaceiro. Você, no seu aniversário dos sonhos. Coisas que eu gosto e não
gosto de comer.
Questões da alteridade: Desenhar um índio, desenhar “o Índio(“O Índio” era um descendente de índios, morador de
Recife, que passou uns dias de rias na cidade).
Questões do self: De quem eu gosto. Como serei quando eu for grande. Como será a minha vida quando eu for grande.
Desenho de si mesmo.
Questões sobre a família: Desenhar sua futura família. A a. O avô. Uma mãe, um pai e um filho. Algo sobre o dia dos
pais. Uma família. De quem você mais gosta e de quem menos gosta na sua família. Uma família que não seja a sua.
Um velho e uma criança. O seu pai e a sua mãe.
Questões sobre as entidades: A Maria Fulozinha. O Homem do Saco. A Rasga-Mortalha. A Mulher de Branco. O Papa-
Figo. A caba da estrada. Carneiro de ouro. A Gia Encantada. Histórias da Serra de Catingueira.
Questões morais: A coisa mais bonita do mundo. A coisa mais feia do mundo. Algo que dá medo. A coisa mais triste e
mais alegre do mundo. Seu maior sonho. A pior coisa que pode acontecer. A coisa mais feliz, a mais triste e o que lhe
deixa com mais ódio. A coisa mais importante na minha vida. Um recado para outras crianças que você não conhece.
Questões sobre religião: Desenhar Deus. O anjo da guarda. Fazer um desenho para Jesus. O que eu aprendi na igreja. O
padre, o pastor, Doutor Fernando (diretor do centro Espírita).
Questões sobre a morte: Alguém que morreu e de quem você gostava. Alguém que morreu. Um homem bom. Um
homem mau. Uma mulher boa. Uma mulher má. Um homem mal e um homem bom - quando morreu, para onde eles
foram.
Para maiores informações sobre os desenhos, recorra ao anexo deste capítulo.
50
foi possível encontrar as vinte crianças na faixa etária dos três anos de idade freqüentando escolas,
fui ter com elas em suas casas, tendo o cuidado de controlar ao máximo as possíveis interferências
familiares na execução do desenho. Desta forma, apenas nesta faixa etária, os desenhos o foram
coletados na sua integralidade no ambiente escolar. A cidade conta com duas escolas, uma gerida
pela municipalidade e outra pelo Estado da Paraíba. Minha primeira providência foi procurar a
diretora da escola do Estado em sua casa. Apresentei-me, falei da pesquisa que estava conduzindo e
pedi sua autorização para aplicar os desenhos nos próximos dias. Ela consentiu prontamente. Fui ter
com a diretora da escola do município (que mora em Patos/PB
43
) na própria escola. Na parte da
manhã, diante da sua ausência, uma auxiliar me autorizou a começar a pesquisa. Pela tarde, pude
conversar com a diretora, que o apresentou qualquer empecilho à condução do meu trabalho.
Também não encontrei qualquer tipo de oposição à pesquisa por parte dos funcionários das escolas;
pelo contrário, geralmente todos ficaram entusiasmados em poder contribuir. O mesmo aconteceu
com as professoras e os professores. Uma única professora aproveitou o tempo em que eu estava na
sala para descansar, deixando-me sozinha com as crianças. As outras professoras, a grande maioria,
permaneceu, no entanto dentro da sala, auxiliando as crianças e dando suporte no quesito disciplina.
Algumas professoras acabaram por influenciar o que seria desenhado, ao dar dicas sobre, o que e
como desenhar dentro do tema proposto. Mas isso não resultou em grande prejuízo, na medida em
que as crianças interpretam a fala do adulto e acabam por fazer seu próprio desenho. No entanto,
algumas professoras chegaram a pegar na o das crianças para ajudar a desenhar o que os
pequenos diziam não serem capazes. Embora sob os meus protestos, uma única vez uma professora
desenhou no lugar da criança. O tempo gasto em cada sala de aula variou entre trinta minutos e uma
hora. (Vide foto 16 no CD anexo).
Geralmente, a diretora ou a sua auxiliar iam comigo até a porta da sala de aula para
apresentar-me à professora (o) e aos alunos. Depois da breve apresentação, eu saudava a (o)
professora (o) e os alunos e explicava que estava conduzindo uma pesquisa para o meu doutorado,
acentuando que precisava da sua contribuição. Em seguida, apresentava o tema a ser desenhado e
dava as instruções. Às crianças não alfabetizadas, era pedido que desenhassem e, depois, a sua
interpretação do desenho seria registrada. Quando se tratava de crianças em fase de alfabetização, a
43
Na dissertação de mestrado defendida por mim (PIRES 2003), trabalhei sobre a relação entre os “de dentro” e os “de
fora” enquanto categorias êmicas que designam aqueles que moram e aqueles que o moram em Catingueira, através de
qualidades morais intrínsecas. Os “de dentro” são pensados sempre como inferiores aos “de fora”. É na festa do
padroeiro da cidade que estas categorias são atualizadas e potencializadas como referentes sociais. Causa impressão, no
entanto, que a grande maioria das autoridades da cidade o resida ali. O médico, o prefeito, os vereadores, os maiores
proprietários de terras e, como destaquei acima, também a diretora do colégio, não residem em Catingueira. Isso afirma a
hipótese sugerida. Um lugar hierarquicamente inferior é reservado aos que moram ali, mas que uma vez sendo
autoridades, ou seja, hierarquicamente superiores, não poderiam compartilhar a inferioridade com o resto dos habitantes,
vivendo na cidade. É interessante que um ex-prefeito da cidade ali tenha residido durante o seu mandato. Dentre os
outros prefeitos, este, em especial, goza de status diferenciado, sendo considerado “gente pobre como a gente”, “gente
do povo”, não escolarizado e, por alguns, ignorante. Mísia Reesink (2006) expandiu em abrangência os conceitos “de
dentro” e “de fora” enquanto categorias definidoras nas festas religiosas.
51
instrução era que desenhassem e escrevessem alguma coisa sobre o seu desenho (uma frase, pelo
menos). Já no caso de crianças alfabetizadas, a instrução era que fizessem um desenho e uma
redação sobre o tema. E, no caso de crianças acima de treze anos, a instrução era que fizessem uma
redação e, se quisessem, complementarmente podiam desenhar (geralmente as meninas o fizeram; os
meninos, não). Desta forma, os materiais de pesquisa produzidos são desenhos, redações e desenhos
conjugados com redações
44
.
Na sétima e na oitava séries do ensino fundamental, devido às altas taxas de repetência,
deparei-me com muitos alunos adultos. Somente neste momento observei resistência deliberada à
pesquisa geralmente por parte dos adolescentes do sexo masculino. Atitudes ‘engraçadinhas’
foram observadas, como um dos rapazinhos que deveria escrever sobre religião, que me perguntou:
se eu fizer a redação, eu ganho uma passagem para o céu?, provocando uma gargalhada geral na
classe. Alguns outros entregaram a folha em branco, e outros copiaram literalmente o que um colega
tinha escrito. Não sei se de brincadeira ou não, mas um menino de dezesseis anos (E.F. 16. M. 3)
escreveu um estória de mal-assombro na qual, segundo ele, o monstrengo parecia-se comigo!
45
No
entanto, este viés da pesquisa acabou sendo útil, na medida em que acumulei alguns desenhos que
podem favorecer uma comparação entre a visão dos adultos, a dos adolescentes e a das crianças,
através do uso da mesma técnica de pesquisa. Todavia, geralmente as crianças responderam com
prazer à minha proposta de pesquisa. Algumas delas ressentiram-se do fato de eu não ter “passado”
por suas salas. Mesmo depois de alguns meses de concluída essa etapa da pesquisa, algumas
crianças ainda paravam-me na rua para pedir a minha presença na sua sala de aula.
Todos os materiais necessários para desenhar e fazer a redação foram providos. Os pis de
colorir e os de cera, folhas de papel em branco e o apontador de lápis (chamado localmente de
lapiseira)
acabaram por desempenhar um papel importante de incentivo à participação na pesquisa,
uma vez que estes elementos tinham bastante apelo entre as crianças
46
. Pergunto-me se o entusiasmo
das crianças com os materiais escolares pode ser entendido como uma particularidade do campo de
44
Para facilitar a leitura, optei por mencionar apenas “desenhos” quando, na verdade, posso estar referindo-me também a
uma redação ou a um desenho conjugado com uma redação.
45
Fantasma. Era um lindo dia de lua quando uma pessoa de branco veio em minha direção. Quando eu olhei era uma
pessoa do sexo feminino, ou seja, era uma mulher morena, de cabelo longo e era também muito bonita parecida com
essa mulher de óculos. Ela quis me alguma [coisa] ou me dizer, que eu não estava e ela aparecia para
mim. Não sei nem porque, só sei que o outro não via nada nem ninguém. Isso aconteceu umas quatro vezes e depois que
ela veio pela última vez, eu perguntei o que era que ela queria comigo. Ela respondeu que queria me alguma coisa
chamada de botija. Só que eu não tive coragem de responder se eu queria ou não e ela foi embora para sempre, e depois
desse dia eu não a vi mais. Eu acho que ela deu para outra pessoa que teve coragem de arrancar”.
46
Além disso, no caso dos desenhos livres e temáticos, feitos na minha casa, a fim de incentivar a feitura dos desenhos,
algumas vezes foram fornecidas revistas semanais antigas para a realização de recortes e colagens. Em uma dessas
colagens, C. 7. F selecionou de uma revista a figura de um homem de terno e gravata segurando um guarda-chuva sob a
chuva que caía abundante. A menina recortou a figura, mas deixou de fora a chuva. Colou a figura do homem no papel e
escreveu: Que sol quente!O exemplo nos alerta para as particularidades do uso e interpretação dos objetos. Para uma
criança que raramente vê chuva, o guarda-chuva é antes associado aos dias quentes nos quais é necessário proteger-se do
sol usando este tipo de utensílio. Além disso, em dias muito quentes, quem vai ao sol usa roupa de manga comprida para
se proteger, como o terno do homem da revista.
52
estudos no qual atuo, uma vez que grande parcela das crianças não tem acesso a eles a o ser
esporadicamente, na própria escola. No entanto, Mead (1932) relata que as crianças Manus estavam
sempre dispostas a desenhar, apesar de não possuírem tradição pictográfica e, conseqüentemente, do
desenho não ser uma atividade à qual as crianças dedicam-se espontaneamente nas horas de lazer ou
de estudo. Além disso, Cohn (2006) também afirma que as crianças Xikrin gostavam bastante de
desenhar.
Como afirmei, quando finalizado um desenho, a criança sempre era incentivada a colocar um
título no mesmo e escrever sobre ele, elaborando o que eu denominei a “esria do desenho”. No
caso de crianças iletradas, elas eram incentivadas a falar sobre o desenho de preferência para a
pesquisadora, mas na impossibilidade desta, também para uma criança maior ou para a professora.
Essas últimas, por sua vez, redigiriam a sua reflexão sobre aquele desenho na parte de trás da folha.
Os desenhos úteis para a pesquisa antropológica são, sem dúvida, aqueles nos quais as crianças se
esmeraram nos comentários. Diferentemente dos psicólogos, os antropólogos o são treinados para
inferir qualquer conclusão a partir de um desenho
47
. No meu caso específico, precisava das crianças
para dizer-me se uma árvore desenhada era um “mal-assombro” ou a “mangueira do tio do meu
avô”
48
. Para esclarecer este ponto, cito um exemplo. Três crianças diferentes desenharam uma cópia
de uma imagem de um livro. O interessante é que cada uma delas interpretou a imagem de maneira
diferente, quais sejam: “Santa com o anjinho(D. 6. M. 6), Mãe de Deus” (M. 6. F. 5) e “Maria e
Jesus” (J. 8. F. 1). Enquanto para mim, a imagem correspondia a uma quarta interpretação: uma
santa da tradição católica, que o sou capaz de identificar. Desta forma, a reflexão da própria
criança sobre aquilo que ela mesma desenhou, assim como a reação aos desenhos das outras
crianças, devem ser incentivados porque são matéria prima para a pesquisa
49
. Por outro lado, os
desenhos sem título ou sem a “estória do desenho” não puderam ser aproveitados para a alise que
se seguiu.
James, Jenks e Prout (1998) concordam que a eficácia da técnica do desenho é potencializada
na medida em que eles são motivos de discussões posteriores: Conversar com as crianças sobre os
significados que elas atribuem para seus desenhos ou pedir a elas que escrevam uma estória,
permite que as crianças se engajem mais produtivamente com as nossas questões de pesquisa,
47
Talvez uma análise que não se restringisse apenas ao que as crianças dizem sobre os desenhos, mas se ativesse
também ao próprio desenho fosse interessante e revelasse aspectos que a técnica aqui utilizado não permite. No entanto,
como não tenho formação em psicologia, iconografia ou artes, não poderia trabalhar os desenhos senão como uma
antropóloga. Entretanto, parece-me claro que o desenho, quando utilizado como técnica complementar à observação
participante, pode ser um instrumento rico de pesquisa para a antropologia.
48
Vide um exemplo de árvore mal-assombrada. Desenho Livre (P. 10. F) “A árvore Mal-assombrada. Era uma vez uma
árvore mal-assombrada. Ela tinha dois olhos e era muito malvada. O nome dessa árvore era árvore mal-assombrada.
As crianças e os adultos quando passavam perto daquela árvore, ela comia as crianças e os adultos. Um dia as polícias
se vestiram de árvore para matar a árvore”.
49
Como descrevo no Capítulo Dois, quando Y. 10. F. discorria sobre o seu futuro de mulher casada, acentuando que o
marido e ela iam trabalhar fora o dia todo, A.J., de seis anos de idade, que acompanhava a elaboração do desenho,
imediatamente perguntou: “E quem vai fazer a comida?”.
53
usando os talentos que elas possuem(JAMES, JENKS, PROUT 1998:189 tradução minha). Além
disso, o desenho mostra-se uma técnica adequado para trabalhar com as crianças, dentre outras
coisas, porque, como mostram Christensen e Allison (2000), desenhar é um ato que não requer
nenhum skill especial, uma vez que constantemente as crianças desenham por lazer
50
. Além disso, o
desenho está menos sujeito à crítica, se comparado ao texto escrito (em relação, por exemplo, à
correção gramatical e ortográfica) e, portanto, menos associado às atividades desenvolvidas no
ambiente escolar.
No entanto, algumas considerações sobre a aplicação dessa técnica merecem ser elaboradas.
As crianças, muito constantemente, copiam o que alguma delas está desenhando. Geralmente,
copiam do mais velho, do considerado mais inteligente ou daquele que sabe desenhar melhor. Nunca
interferi no momento em que uma criança estava deliberadamente copiando um desenho da outra
criança. O que eu sempre fazia, no entanto, quando distribuía os papéis e comentava sobre o tema a
ser trabalhado naquele dia, era alertar para que as crianças tentassem o olhar para o que o colega
estava desenhando. E, se por acaso olhasse, tentasse inventar algo diferente. Ressaltava também que
o existia desenho errado, que todos estavam certos e que eles podiam desenhar o que quisessem.
Como incentivo, eu geralmente acrescentava um elogio aos desenhos assim que me fossem
entregues. Mead (1932) afirma que, da mesma forma, não interferia na elaboração dos desenhos, a
o ser para incentivar as crianças com palavras de encorajamento
51
.
Acredito que eu seria facilmente assimilada ao papel de professora se coibisse a circulação
das possíveis abordagens do tema proposto (a chamada “cola”). Ser comparada à professora pode
trazer dificuldades para a pesquisa, como discuti anteriormente, na medida em que a relação
professor-aluno baseia-se, em alguma medida, no pressuposto de que o primeiro sabe e o outro
ignora. Se as crianças em a pesquisadora como aquela que sabe de tudo, pode ser difícil
estabelecer uma relação direta e franca, em que eles sintam-se à vontade para expressar seus
sentimentos e pensamentos. Apesar de alerta, no entanto, não pude deixar de ser assimilada como
professora em alguns momentos. Com raras exceções, as crianças requeriam a minha aprovação para
os desenhos. Muito comumente elas perguntavam-me se estava certoo desenho que elas estavam
começando a fazer, ou se era assim mesmo que eu esperava que elas fizessem. Além disso, o modo
como as es, não as crianças, me inquiriam a fim de saber se podiam mandar seus filhos para a
minha casa, remete-me claramente ao universo pedagógico: Flávia, tu vais ensinar hoje?” Outras
50
As autoras esqueceram-se de acrescentar que isso se dá apenas quando se trata de sociedades com tradição
pictográfica.
51
Como Cohn (2006) afirma, Mead não interferia sequer promovendo temas de desenho. Os desenhos com os quais a
autora trabalhou foram desenhos aos quais eu chamaria de livres. Sobre o espontaneísmo da pesquisa de Mead, recorra à
nota 31.
54
vezes trocavam o verbo ensinarpor atender”. As crianças que já conheciam o esquema de “ir
para a casa de Flávia” sabiam que o que acontecia era pouco estudo e muita diversão.
Além disso, na análise dos desenhos e redações sistematicamente recolhidos segundo o corte
de faixas etárias, que se estar atento para o fato de que alguns desenhos não seguem a lógica
padrão esperada
52
para aquela faixa etária em questão. São desenhos estranhos ao conjunto dos
dados que, no entanto, são interessantes na medida em que mostram as idiossincrasias individuais e
alertam para o fato de que uma abordagem desenvolvimental baseada em faixas etárias pode ser
falaciosa que suprime as diferenças individuais. Esse viés pode ser minimizado se os desenhos
são trabalhados em paralelo à observação participante. O antropólogo que conhece o seu campo de
estudos saberá distinguir um desenho que faz sentido no conjunto dos dados por exemplo,
antecipando uma tendência que es por vir na próxima faixa etária. De outro lado, parece-me
possível tecer algumas considerações baseadas em faixas etárias distintas, se estas não forem
tomadas muito fixamente. Descobri que há importantes semelhanças na maneira de conceber a
religião segundo uma determinada faixa etária embora ao mesmo tempo haja idiossincrasias
pessoais.
O desenho de uma criança aos cinco anos de idade, por exemplo, autoriza uma análise em um
nível individual e pontual, que diz respeito apenas àquela criança naquele momento específico. No
entanto, vinte desenhos de crianças aos cinco anos de idade conduzem a uma abordagem que não
é apenas individual, mas aponta para observações coletivas, em harmonia com a faixa etária em
questão. O que eu fiz foi, além disso, observar, em um único momento, como as crianças de variadas
faixas etárias compreendiam um determinado assunto. Esta técnica nos permite observar
diacronicamente como se dá o processo de tomada de conhecimento
53
da religião e dos mal-
assombros com o passar dos anos. Como resultado da pesquisa, temos um panorama geral que
contém as diferenças na percepção do tema proposto em relação a todas as idades em questão. Os
dados podem ser analisados de dois pontos de vistas diferentes. Temos um olhar datado e específico,
que diz respeito a uma faixa etária ou a um indivíduo. Ao mesmo tempo, temos um olhar na
perspectiva diacrônica, que diz respeito às mudanças na concepção do tema para as crianças com o
passar dos anos, mas a partir de observações coletivas. Em outras palavras, ao observar um único
momento histórico, percebemos as mudanças, através das faixas etárias, que ocorreram no vel
individual. Simultaneamente, essas mudanças devem ocorrer com todas as crianças naquela faixa
etária. A abordagem é, assim, a um só tempo, individual e coletiva, histórica e etnográfica.
52
Por lógica padrão esperada considero o que foi mais desenhado naquela faixa etária sobre um determinado tema.
53
Visto que, como explico nos Capítulos Três, Quatro e Cinco, religião e mal-assombro não fazem sentido para as
crianças desde sempre.
55
4. Delimitando a realidade social das crianças: outras técnicas de pesquisa utilizadas
Durante o trabalho de campo, foi feito um treinamento para o uso da minha máquina
fotográfica com sete crianças, além de uma introdução às técnicas sicas de fotografia. Isso
resultou em trinta e duas fotografias feitas pelas próprias crianças. Depois de reveladas, as
fotografias foram discutidas; além disso, cada uma das crianças escreveu sobre as suas fotos. Para
um exemplo destas fotografias, vide Foto 19 no CD anexo. De modo geral, nas fotografias
destacam-se: 1) ênfase na família, incluindo pai e mãe, mas, sobretudo, nas crianças; 2) ênfase nos
elementos da natureza, particularmente no Açude do Prefeito e na Serra de Catingueira, com
destaque para o pôr e o nascer do sol; 3) ênfase nos amigos. Destacam-se também alguns elementos
religiosos porém em menor quantidade se comparado aos três temas anteriormente mencionados
54
.
54
Fotos (julho de 2004). O olhar infantil sobre o mundo: o que é considerado digno de uma foto, o que é bonito ou
importante o bastante para ser fotografado.
F. 11. F.
1) Mãe e amigas voltando da caminhada com as montanhas refletindo a água do açude.
2) Nascer do sol.
3) Amigas na paisagem (“aniversário de uma delas, quebraram ovos na sua caba, foi muito engraçado”).
4) Centro espírita, de dentro.
5) Bonecas (“simbolizam a minha infância”).
A. 11. F.
1) Amigos que ensaiavam uma quadrilha, na sua casa.
2) Rocinha do pai.
3) Centro espírita, de fora. “Idéia das irmãs mais velhas, ia tirar do primo M., mas ele viajou”.
4) Gatinho, na cozinha da sua casa.
5) Família dentro de casa, mãe, pai e irmã (os outros irmãos recusaram-se).
L. 12. F.
1) Amiga e irmã na Serra.
2) Pai ralhando milho.
3) r do sol. A sua casa com mãe, pai e outros na porta (difícil visualização).
4) Açude, “pegando” a Serra. “Quando a água brilha parece os olhos da minha mãe”.
5) Irmã caçula.
S. 12. F.
1) Pesquisadora.
2) Rangel, namorado, sem camisa, andando pela rua principal, com Catingueira (centro) aos fundos.
3) O pôr do sol no açude.
4) Açude.
5) Gato na porta da cozinha.
R. 12. F.
1) Irmão, afilhada de consagração, amigas e a Serra ao fundo, onde ela morou três anos.
2) Filha da madrinha. “V. (amiga que foi criada bem dizer junta) está segurando a menina”.
3) Serra com o paredão/ barragem.
4) Pai e tio trabalhando na Serra.
J. 14. M.
1) A televisão na tela do Super Mário/ Vídeo game.
2) Duas primas.
3) “Primo de 1 ano e 4 meses mais as duas primas (ele não quis tirar sozinho)”.
4) Nossa Senhora de Fátima (“Eu tenho uma santa”). (Foto não revelada).
5) Amigas.
R. 13. M.
1) Amigo.
2) Ensaio religioso no salão paroquial, meninas/ amigas.
3) Amigos (só meninas).
56
Cabe, mais uma vez, ressaltar que a classificação elementos da natureza e família é, em
última instância, apesar de discutida com as crianças, da própria pesquisadora
55
. As fotografias
tiradas sugerem o que as crianças concebem como importante. Além disso, não é qualquer coisa
importante que merece ser fotografada. que ser belo. Beleza e importância são os critérios
escolhidos pelas crianças para se fotografar em Catingueira. As fotografias mostram que as crianças
pinçam no seu cotidiano os elementos que elas consideram mais bonitos e dignos de serem
eternizados. O fato de as crianças terem enfatizado a família pode ser entendido, se lembrarmos que
o mundo da criança é construído no cotidiano da família e em contato com os amigos e vizinhos
próximos. Essas relações são o âmago da vida da criança. É principalmente no contato com a família
que a criança vai aprender a comportar-se como um catingueirense. Além disso, a família parece ser
uma das instituições sociais mais importantes, segundo os catingueirenses. Este processo de
tornar-se gente adulta através da família –, e o lugar central reservado à família naquela sociedade
serão detalhadamente trabalhados ao longo da tese.
A natureza, por sua vez, é tida como bela, e é a sua presença que torna a Catingueira uma
cidade bonita. Os elementos da natureza são usados, em muitos casos, como adorno. Mesmo não
sendo o tema principal, eles estão presentes como ornamentação, por exemplo, em vaso de planta ou
em uma flor. Interessante relembrar que os desenhos livres mais populares foram justamente os de
elementos da natureza. Em segundo lugar, a casa foi o elemento mais destacado. Ela pode ser
entendida como referência à família, na medida em que é a casa o lugar por excelência da mesma.
Com tudo isso, verificamos que diferentes técnicas de pesquisa podem apresentar resultados
complementares. Pouco pode ser dito sobre as crianças de Catingueira unicamente através das
fotografias que elas tiraram. Entretanto, quando analisamos um conjunto de técnicas de pesquisa em
contraste e relação, podemos melhor apurar a validade dos dados recolhidos.
Anderson (2000) alude à possibilidade de envolver as crianças como co-produtoras da
pesquisa através das fotografias. Nesbitt (2000a) também utilizou a técnica, e aponta como ponto
positivo o fato de que a criança se esquece que está sendo pesquisada quando es tirando ou
analisando suas fotos. Da mesma forma, Punch (2001b) utilizou o recurso metodológico com
sucesso na zona rural da Bovia. Segundo a minha experiência, o recurso das fotografias permite um
acesso ao mundo infantil, na medida em que é possível tomar conhecimento daquilo que, dentre tudo
o que está à sua volta, é considerado pela criança como o mais importante, de um lado, e bonito, de
outro. Além disso, tirar fotos é como uma brincadeira especial. As crianças tomam contato com um
equipamento alheio ao seu cotidiano, o que torna a atividade bastante atrativa. O único
Ocorrências: Natureza 9. Família 6. Amigos 3. Brinquedos 2. Religião 2. Pesquisadora 1. Namorado 1. Natureza/ família
e amigos: 1. Natureza e família: 1. Religião e amigos: 1. Família e amigos: 2.
55
Sobre o uso do termo “elementos da natureza” enquanto categoria da pesquisadora recorra às considerações elaboradas
no início do tópico três.
57
inconveniente da técnica é o custo elevado das revelações, ampliações, filmes fotográficos e,
principalmente das câmaras fotográficas, que correm o risco de serem danificadas.
Complementarmente, sete meninas entre dez e treze anos de idade mantiveram um diário por
três meses que, ao final, me foram entregues. Esta técnica também foi utilizado por Punch (2001b)
enquanto um meio de conhecer o dia-a-dia das crianças alfabetizadas
56
. As meninas responderam
com muito entusiasmo a esta técnica e elaboraram caprichados diários, repletos de gravuras,
desenhos, colagens e fotos. Em princípio, os diários são um prato cheio para a pesquisa sobre a vida
interior das crianças, já que contêm momentos de reflexão pessoal quanto aos assuntos suscitados
pelo cotidiano. A auto-reflexão que o ato de escrever um diário estimula é de grande valor para a
pesquisa antropológica, na medida em que estão em jogo as experiências e pensamentos próprios das
crianças. Através do diário, é possível, por exemplo, ter acesso a realidades normalmente restritas ao
antropólogo, como as refeições em família. No entanto, o diário feito com o propósito de ser
entregue para a pesquisadora quando concluído, parece ir em sentido oposto ao de sua definição
enquanto algo pessoal e íntimo
57
. No meu caso, observei que, na maioria dos casos, as crianças
fizeram do diário uma coletânea de cartas e recados endereçados à pesquisadora. Ao aplicar a
técnica, é preciso ter em mente que as crianças são espertas o suficiente para escreverem no diário
apenas o que elas autorizam o pesquisador a tomar conhecimento.
Prosseguindo no mapeamento das técnicas utilizadas, também foi feita a gravação de um
suposto programa de rádio por cada uma das religiões representadas na cidade. Primeiro, conversei
com as professoras de religião, e elas incumbiram-se de repassar a iia para as crianças. Essas
professoras deveriam elaborar um pequeno programa de rádio explicando para as crianças das outras
religiões como é pertencer àquela denominação. A solicitação foi atendida pela Igreja Católica, pela
Assembléia de Deus e pelo Centro Espírita. Quanto à Igreja Congregacional, apesar de terem
concordado com a proposta, o chegaram a efetivá-la. Na Igreja Seguidores de Cristo, foi-me
alegado que não havia crianças entre os participantes. Todos os programas de rádio foram feitos com
o auxílio e direcionamento de jovens mulheres que são encarregadas do ensino da religião para as
crianças. De maneira enviesada, o que podemos perceber nas fitas-cassete é, sobretudo, a visão de
mundo das professoras de religião, e não tanto das próprias crianças. É interessante ressaltar que
todas estas professoras de religião são, elas mesmas, adolescentes. Muitas vezes, ouve-se claramente
sussurros ao fundo da gravação, com o conteúdo a ser repetido pela criança. Além disso, a
linguagem e conteúdo da gravação são claramente não-infantis. O viés está presente em todas as
religiões representadas. De modo geral, todas as gravações contêm orações, cânticos e perguntas e
56
Vide também Sinats et al. (2005) para um estudo da espiritualidade de meninas adolescentes através de diários e
poesias.
57
A tradição do diarismo se tornará predominantemente íntima (a ponto de se hoje pensar um diário sempre como
um objeto da intimidade) a partir da segunda metade do século XIX na Europa e, mesmo assim, no século XX é que
podemos falar de uma ampla prática de diarismo íntimo” (PIRES: em preparação).
58
respostas no estilo de entrevista. A Assembléia de Deus elaborou um programa de rádio de sessenta
minutos (!) quando o solicitado foi em torno de cinco a dez minutos e requereu a aprovação e
colaboração do pastor e de toda a “comunidade dos irmãos”, enquanto na igreja Católica e no Centro
Espírita a atividade não precisou da aprovação do padre ou diretor do Centro, estando nas mãos das
professoras” a decisão de colaborar com a pesquisadora e com a execução do projeto
58
.
Foram feitas também entrevistas abertas com crianças. De acordo com a minha experiência,
esta técnica limita a espontaneidade infantil. No caso estudado, as conversações informais foram
usadas como substitutos das entrevistas com resultados mais positivos. As entrevistas exigem um
aparato especial, como lugar reservado, hora marcada, gravador, estar sentado. As conversações, por
sua vez, podem ter lugar a qualquer hora e em qualquer lugar. De outro lado, foram feitas
entrevistas, com roteiro estruturado, com adultos, a fim de compreender o que eles pensam sobre os
mesmos temas desenhados pelas crianças e sobre a infância de modo geral. Mayall (2000: 129)
também aposta nas entrevistas com adultos na pesquisa sobre criança. Ele afirma que, da mesma
forma que o conceito de gênero é fundamental para se estudar as mulheres, o conceito de geração é
essencial para se estudar crianças, que vivemos em um mundo composto por pessoas com idades
diferentes
59
. Esta escolha teórico-metodológica conflita com a de Wartofsky (1983), Tammivaara e
Enright (1986), e W. Corsaro (1992, 2003, 2005 [1997]), Thorne (1993), Sarmento e Pinto (1997) e
Corsaro & Molinari (2000), para os quais as crianças constituem uma “cultura” ou “sociedade”
específica e, portanto, devem ser estudadas em si mesmas. No entanto, incluir os adultos na pesquisa
sobre criança tem a aprovação de outros pesquisadores, como Christina Toren (1999), Morton
(1996) e Mayall (1995). Faço minhas as palavras de Morton quando concorda com Toren: Eu
compartilho a visão de Toren de que estudar crianças como se seu mundo social fosse, de alguma
maneira, separado dos adultos, é fornecer uma análise inadequada(MORTON 1996: 05 tradução
minha)
60
.
Elaborei também um roteiro de filmagem tratando da vida religiosa das crianças, e de como
elas interpretam os acontecimentos inexplicáveis ou misteriosos. As gravações foram efetuadas em
maio de 2005. Escolhi oito crianças para participarem do filme. Contei com um roteiro semi-
direcionado de perguntas, que fui seguindo à medida da conveniência. As crianças escolhiam o lugar
onde queriam que a gravação tivesse lugar. Dar às crianças a possibilidade da escolha do lugar da
filmagem foi uma tentativa de distribuir o poder de decisão e fazer do filme algo constrdo com as
58
A idéia inicial era divulgar as fitas cassete no rádio falante da igreja Católica, que funciona como a rádio na cidade,
divulgando notícias e anúncios, com vistas a estimular a discussão ecumênica. No entanto, a divulgação dos programas
de rádio ainda o foi realizada.
59
Os catingueirenses, por sua vez, pensam o mundo das crianças, como anunciei, como separado do mundo dos
adultos. Vide mais detalhes sobre a concepção de infância em Catingueira no Capítulo Dois.
60
Vide nota 38 neste capítulo. A situação criada na minha casa poderia ser, desta forma, considerada imprópria para a
pesquisa, que as crianças não estariam ali em contato com os adultos. No entanto, parece-me que o experimento é
válido, na medida em que também analisei as crianças em interação cotidiana com os adultos.
59
crianças. Muitas delas escolheram gravar na Serra da Catingueira o que mais uma vez destaca o
papel especial reservado pelas crianças aos elementos chamados da natureza, já constatado nos
desenhos livres e nas fotografias. Algumas filmagens foram feitas em duplas nos casos nos quais
as crianças eram grandes amigos ou muito tímidas , mas a maioria das crianças foi filmada
individualmente. O esforço resultou em quatro fitas de sessenta minutos cada, a serem editadas em
momento oportuno. A técnica mostrou-se interessante. Além de ser muito bem-vindo pelas crianças,
elas esmeram-se para parecerem inteligentes diante da mara. Com isso, deixam-nos antever o que
elas acreditam que os adultos querem ouvir, mostrando-se bastantes conscientes sobre o mundo
adulto. No entanto, que se estar atento para o fato de que a câmera pode, às vezes, inibir a
criança. Isso pode ser amenizado se a gravação das imagens é feita depois de um tempo considerável
de trabalho de campo. Se as crianças confiam no pesquisador, provavelmente vão confiar nos
instrumentos de pesquisa que ele propuser. Uma das meninas que participou do filme, ao contrário
de se mostrar tímida ou arredia, tomou a oportunidade de estar sendo filmada para mencionar um
fato bastante delicado da sua vida pessoal. Embora esta menina fosse uma das informantes mais
próximas que tive, a ponto de nos tornarmos amigas, ela nunca tinha tocado naquele assunto
previamente. Às vezes, a câmera inibe; às vezes, pode ser veículo de comunicação mais efetiva
61
.
Por fim, foi feito também um total de quinze cartas. Às crianças eram dados o papel e o
pis. A decisão do destinatário era definida pelo critério infantil. As cartas foram endereçadas a
Jesus (seis), Pesquisadora (três), Membros da família (dois), Papai Noel (um), Papai do céu (um),
Deus (um), Anjinho (um). A técnica mostrou-se com pouco apelo entre as crianças e, portanto,
pouco eficiente. Heller (1986) e Weisz (1980) pediram que as crianças escrevessem cartas para Deus
e, no caso das suas pesquisas, a técnica mostrou-se válido. Talvez eu devesse ter insistido um pouco
mais na aplicação das cartas, já que, pelos poucos exemplares que coletei, vislumbra-se um
horizonte onde as crianças mostram-se bastante religiosas. Elas escolheram, na sua maioria, Jesus
como o destinatário das suas cartas; aliás, das quinze cartas elaboradas, nove delas eram endereçadas
a entidades do mundo espiritual. O fato é que os desenhos eram tão mais populares que as crianças
mesmo decidiram sobre a técnica mais aplicada.
5. Conclusões
61
uma considerável bibliografia brasileira sobre o uso da câmera e a produção de vídeos em antropologia, assim
como sobre o uso da câmera fotográfica. Vide, por exemplo, o projeto Vídeo nas Aldeias
(http://www.videonasaldeias.org.br), Sylvia Caiuby Novaes (1993) e Rose Satiko Gitirana Hikiji (1998) ambas do Grupo
de Antropologia Visual (GRAVI-USP) e Ruben Caixeta de Queiroz (2004). Para uma abordagem clássica, vide Jean
Rouch, cuja vasta bibliografia pode ser contemplada em http://www.jeanrouch.com/.
60
Minha estratégia foi expandir ao máximo o espectro de possibilidades metodológicas na
primeira etapa do trabalho de campo no ano de 2004, tentando cobrir todas as alternativas com as
quais deparei-me na literatura (ALDERSON 2000, BERENTZEN 1989, FINE & SANDSTROM
1988, HELLER 1986, JAMES & CHRISTENSEN 2000, MAYALL 2000, NESBITT 2000b,
PUNCH 2001b, WEISZ 1980). Na seqüência, fiz um apuramento das técnicas que se mostraram
mais férteis e os desenvolvi mais intensamente na segunda etapa do trabalho de campo, no ano de
2005.
Christensen and James (2000), em um livro sobre a questão metodológica no estudo com as
crianças, afirmam que estudar crianças não requer métodos especiais. De acordo com eles, de
modo geral, os métodos de pesquisa devem ser adaptados para o contexto pesquisado. O mesmo
vale para o contexto infantil. Não justificaria, assim, segundo os autores, desenvolver novos
todos de pesquisa destinados especialmente ao público infantil. No caso da entrevista, por
exemplo, Alderson (1993) afirma que as diferenças entre crianças e adultos são de grau, e não de
tipo. Os adultos tendem a responder elaborando mais conexões, e mais detalhadamente que as
crianças. Mas isso se deve à inexperiência infantil, e não à imaturidade que, quando dominam
o assunto, as crianças expressam-se com grande desenvoltura. Da mesma forma, continua
Alderson, que o pesquisador pode encontrar uma criança tímida, pode deparar-se também com um
adulto tímido (:71), o que dificultará a entrevista. Concordo com os autores citados quanto à
validade de se usar os mesmos todos e técnicas que utilizamos para os adultos com as crianças,
como entrevistas e questionários. E concordo também que algumas adaptações são essenciais para
o sucesso dos mesmos. Contudo, não tenho nada contra a criação e discussão de todos e técnicas
que atendam às especificidades infantis. Com isso, não quero dizer que os métodos e técnicas
usados para pesquisar os adultos sejam muito complexos para o vel de entendimento infantil.
Mas, sim, que as crianças e os adultos comportam-se de maneiras diferentes e respondem de
maneiras igualmente diferentes aos diversos métodos e técnicas.
Dentre os métodos e técnicas utilizados nesta pesquisa, acredito que os que se mostraram
mais eficazes para ela foram a boa e velha observação participante, junto aos desenhos e redações.
que se ressaltar, mais uma vez, que os desenhos são realmente interessantes para a pesquisa
antropológica quando elaborados naquele contexto onde a criança é levada a refletir e a elaborar
oralmente ou textualmente sobre o que ela desenhou
62
. A pesquisa em antropologia não pode se
valer apenas dos desenhos em si mesmos. Mas se são conjugados com a observação participante,
parece-me que as duas técnicas reforçam-se mutuamente: os desenhos indicam a direção que a
observação deve tomar.
62
Afirmação com a qual Christina Toren concordaria (1999, 2002).
61
Além disso, dada a relativa novidade do estudo antropológico das crianças, parece-me útil a
experimentação de técnicas pouco usuais, como o diário, a fotografia, o filme, o programa de rádio
e a carta. Além disso, quanto mais variados as técnicas aplicadas, melhor a compreensão da
realidade a ser estudada. Até mesmo para se chegar à conclusão de quais as técnicas são os mais
adequados a um objeto específico na área da infância, é positivo extrapolar onone antropológico
da observação participante. Embora no meu caso a observação participante e os desenhos/redações
tenham sido mais utilizados, as outras técnicas em conjunto foram essenciais para a delimitação da
realidade social infantil na Catingueira.
Uma nota de esclarecimento faz-se necessária. A observação participante é o método por
excelência da antropologia o que eu estou de completo acordo. Longe de mim querer contestar
sua eficácia. O que ressalto, todavia, é que, apesar desta pesquisa ter sido construída, em grande
medida, através do recurso da observação participante intensiva e prolongada, o mesmo não
impediu a aplicação de outras técnicas de pesquisa, necessárias pelas particularidades do objeto
trabalhado. As crianças foram pesquisadas tendo como suporte metodológico os desenhos e todas
as outras técnicas descritas acima. Com os adultos, utilizei as entrevistas como técnica
complementar, embora destaco novamente, é da observação participante que tirei os melhores
frutos. No entanto, não fiz desenhos com os adultos e, assim, em relação a estes, não posso
fornecer dados quantitativos, como é o caso das crianças. A opção por não fazer desenhos com
adultos vem do fato de que são raros os que cotidianamente têm por hábito desenhar. Os adultos
que desenham em Catingueira são aqueles aos quais é reconhecido um dom especial para as artes -
ao contrário das crianças, que são facilmente envolvidas na atividade seja por prazer, seja por
obrigação escolar
63
.
Para finalizar, quanto ao fato de ser adulta e pesquisar crianças, parece-me que a
especificidade do objeto exigiu que a pesquisadora estabelecesse uma relação que difere daquela
relação corrente entre as crianças e os adultos na cidade pesquisada. Isso criou problemas. Uma
vizinha espalhou a fofoca sobre a minha suposta imperícia como adulta responsável, o que, por sua
vez, levou à proibição de algumas crianças de freqüentarem minha casa. De uma perspectiva
antropológica, o pesquisador deve ser capaz de observar a comunidade de uma perspectiva interna.
Isso não quer dizer que ele deva transformar-se em nativo, mas, sim, que as suas dessemelhanças
em relação aos nativos não sejam um impeditivo para a relação. Um dos desafios do pesquisador é
conseguir manipular a sua presença no campo, de modo que respeite as normas de interação social
reinantes e as especificidades daquela comunidade, ao mesmo tempo em que consiga inserir-se de
maneira efetiva, a fim realizar sua pesquisa satisfatoriamente.
63
Como foi citado, Mead and Bateson coletaram mais de mil e duzentos desenhos (e relatos sobre eles) na ilha de
Bali, durante os anos de 1937 a 1939, na sua grande maioria feitos por adultos considerados artistas, o que difere em
natureza dos desenhos aqui apresentados (GEERTZ 1995).
62
6. Anexo: Seleção de elementos desenhados
Apresento aqui alguns dos temas desenhados pelas crianças. Embora importantes, eles não
foram detalhadamente estudados para esta ocasião. Os mesmos estão subdivididos em questões
morais, da morte e da religião.
Questões morais
A coisa mais feia do mundo/ total: 17 (Vulcão: 5 (cópias do desenho de L. 12. F). Mal-assombro: 4.
Barata: 1. Cobra: 1).
A coisa mais bonita do mundo/ total: 17 (Natureza: 6. Pesquisadora: 2. Rezar: 2. Amigas: 2. Castelo:
1. Estudar: 1. Mãe e pai: 1. Anjinhos: 1. Saber escrever: 1. Mãe: 1. Cachoeira da Mãe Luzia: 1.
Coração: 1.
Algo que medo/ total: 11 (Alma: 3. Cobra: 2. Casa mal-assombrada: 2. Mula sem cabeça: 1.
Fantasminha: 1. Onça: 1. Leão: 1. Morte: 1. Da Ana Doida: 3 (cópias uns dos outros). Cair de um
prédio: 1. Morrer afogado: 1. Ladrões me pegarem: 1. Tiroteio: 1. (obs.: A soma não confere porque
alguns desenharam mais de um objeto. Uma criança escreveu: Deus. Jesus. Deus. Jesus. No meio do
desenho.)
A coisa mais triste do mundo/ total: 7 (Chorar: 2. Seca: 2. Tristeza: 1. Morte: 2. Diabo: 1. Poluição:
1.)
A coisa mais alegre do mundo/ total: 7 (Natureza: 3. Sorrir: 2. Consolar quem chora: 1. Coisas de
Deus: 1. Brincar: 1.)
Seu maior sonho/ total: 19 (Ser médica: 3. Casa: 2. Jardim do Éden: 1. Ser juíza: 1. Ser desenhista:
1. Computador com o show do milhão: 1. Casar, ter uma filha e morar no sítio: 1. Casar, 3 filhos: 1.
Ter uma família feliz: 1. A família: 1. Amigas: 1. Subir a Serra: 1. Ser feliz: 1. Ir embora: 1).
A pior coisa que pode acontecer/ total: 19 (Morrer: 2. Ver o Demônio/cão: 3. Homem do saco: 1. Ir
para o inferno: 1. O fim do mundo: 1. A morte da família: 1. Ter alguém que o goste de você: 1.)
O que te deixa mais feliz/ total: 18 (Meu gatinho: 2. Amor: 2. Amigos: 3. Brincar: 1. Comer: 1.
Rezar: 1. Viver: 1. Deus: 1. Outros: Natureza, casa, mato: 1). Obs. Frases religiosas: Cristo ama
todos.
O que te deixa com mais ódio/ total: 18 (Arengas/ brigas: 5. Tomar o namorado da outra: 2. Inveja:
1. Chamá-la e o esperar por ela: 1. Doença: 1. Morte (própria, em geral, dos pais): 3. Violência: 1.
Droga: 1. Vandalismo: 1. Crianças abandonadas: 1. Outros: casa, mato: 1).
A coisa mais importante na minha vida/ total 7 (Mãe e Pai: 1. Jesus: 2. Mãe: 2. Estudar: 2. : 1.
Brincar: 1. Ter saúde: 1.
A melhor coisa do mundo/ total: 4 (Rosa: 1. Jesus: 1. Família feliz: 1. Deus: 1).
63
A pior coisa do mundo/ total: 4 (O cão: 2. Cobra: 1. Morte: 1).
Recado para crianças de outras cidades/ total: 10 (Religiosos: 2. Encorajadores: 2. Descritivos de
Catingueira: 2. Descritivos destas outras crianças: 3. Sem legenda: 1. Sobre si mesmo: 1).
Questões sobre a morte
Alguém que já morreu/ total: 13 (Viva e feliz: 5. No céu: 1. Na porta do céu com asas (e auréola: 1):
3 (feliz). Enterrado: 1 (feliz). No caixão: 4. Outros: 10).
Quem? avó/avô: 6, (Desconhecido: 2, moradora da cidade: 2, tio: 4.
Mulheres: 8, homem: 4, não identificado: 1.)
Obs.: Frases religiosas: Deus”. Jesus te ama, Vovó”. Uma criança de 7 desenhou a vó no caixão
no céu. Para ela, quando se morre as pessoas ficam no caixão, deitadas: assim é o céu.
Um homem mau que morreu: para onde ele foi?/ total: 14 (texto lido: “José era muito mau, ele batia
nos animais, na mulher e nos filhos. Bebia e tomava drogas, não ia ao trabalho e maltratava as
crianças nas ruas”). Céu: 5 (imagens felizes, na porta do céu (3) mas com certeza da entrada).
Hospital: 3. Cemitério: 3. Hospital espírita onde se cuida dos desencarnados: 2. Outros
desenhos/temas: 2. Obs. um dos desenhos tem o cemitério e a porta do céu, e o próprio céu (nuvens)
(F/12anos).
Questões sobre religião
Deus/ total: 21
Escreveram frases, às vezes religiosas, às vezes, não, para mim e para Deus: 10 (Deus é fiel”.
“Flávia nunca estamos sós sempre há um amigo por nós”. “Jesus te ama e eu também”. Jesus vai te
iluminar”. Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Essas são as palavras que Deus e o Seu filho nos
ensinou até agora acredite nele e ele fará muitas e muitas coisas”. F/13anos).
Estilo da igreja: barba, cabelo grande, vestido: 7.
Jesus na natureza (como um menino): 1.
Maria (sem roupa, cabelo grande, uma luz em volta do corpo) e o Anjo Gabriel (sem roupa, com
auréola, asas e luz em volta do corpo): 1.
Natureza (Serra e céu: “onde Deus vive”): 1
Casa + menino: 1 (Perguntei: é Jesus ou Deus”? Ele disse: “tanto faz”).
Não sei desenhar: 1 (castelo)
Meu anjo da guarda/ total: 7. Com asas: 5. Coração com asas: 1. Com auréola: 1. A irmorta:
1.“Ninguém não o anjo. Quando fico doente eu ele me ajuda”. (F 7 anos).
Desenhar o padre, o pastor e o Doutor Fernando (na ordem desenhada pela criança) / total: 26.
Pe: 11. Pastor: 9. Doutor Fernando: 6
Pela ordem:
64
1°. lugar
2
o
lugar
3°. lugar
Padre 6 1 1
Pastor 1 4 3
Doutor Fernando
3 2 1
TOTAL 7 7 4
Obs.: Carol (crente, 7 anos) desenhou 2 pastores diferentes e recusou-se a desenhar o padre e o
D.Fernando. Dos representantes do protestantismo, foram desenhados: Pastor Jonito
(Congregacional), João Neto, da Assembléia, Pastor Djaci, pastores de Patos que um dia vieram de
caminhão fazer um culto aqui e foram expulsos pelo prefeito. (a menina que os desenhou nunca vira
os pastores de Catingueira).
Sobre o pastor: “Tira demônios/ espíritos das pessoas”. Faz culto nas ruas”. Características físicas:
gordo (baleia) em particular foi muito citado, p/ Djaci e João Neto. Os filhos e a mulher também.
Cantos. Homem bêbado ele disse “glória Jesus” e ele se foi. “Não gosto de ir porque eles chamam
os santos de o, prefiro o catecismo”. ‘Gosto mais ou menos de ir lá, aqui (na minha casa) é
melhor, porque você folha pra gente desenhar”. Não gosto porque o pode vestir short, brinco,
batom, e nem assistir TV”. “O pastor gosta de ir para o culto e pregar a palavra de Deus. Falam “Pai
Senhor (paz do senhor)” e respondem: Amém”. “Muito bom com as crianças”. “Briga com as
crianças quando elas fazem coisa errada no culto”.
Desenhos: Pastor e Bíblia: 4. Pastor sozinho: 3. Pastor tirando os espíritos: 1. Pastor e os bancos da
igreja: 1. Terno e gravata: 4. Roupa social (botões):1. Roupa normal: 4.
Sobre Doutor Fernando: “Me receitando”: 1. Dentro do centro: 1. Fora do centro: 2. Com
estetoscópio, livro caridade e vida” e camiseta “paz” (com a pomba): 1. Com dinheiro na mão para
dar ao menino: 1. Sobre suas habilidades médicas ao curá-la da asma, mas a doença persiste.
Características físicas. Sobre Seu Agenor (feira”) e suas filhas (reunião de domingo). “Humilde
e caridoso, bom e exigente” (‘manda parar de tomar café, comer açúcar”). tulos: D. Fernando é
bastante rico por que feira ao povo: Eu acho que ele tem poder. Poder de dar, de doar as
coisas” (M/8). “Centro de desenvolvimento espiritual Jesus de Nazaré”.
Médico exigente (manda para de comer carne, etc). Inteligente palestras no centro. Homem de
muita fé. Sobre Padre: “Muito legal, trata bem as pessoas, bom, alegre”. Inácio, 9. M, conta como é
a festa de SS com a pegada no mastro e descida, homens. Rosana, 12, gosta mais de ir para o
centro. Celebra missas, novenas, terços e quando a pessoa está morrendo ele vai lá.” Sabe fazer
um bom batizado”. “Ajuda os pobres, é caridoso”. a Bíblia e canta na igreja”. Características
físicas (“é vaidoso: cabelo enrolado e faz escova no cabelo”).A minha tia trabalha com ele,
cantando nas missas”. Denúncias ao bispo que ele bebe e está metido com potica”. “Fala mal dos
outros”. Joel, 8 anos, não sabe o que falar porque foi uma vez, ele sabe mais de crente. Pergunto
65
se ele é crente e ele diz: “Eu mesmo não, mas meu pai é”. Inventou que padre não gosta de música
nem de bebida alcoólica. Sobre a sua saída da cidade, disse o padre que se saísse de Catingueira iria
tirar a batina. “O povo o gosta quando ele fala da vida alheia e dos crentes também”.
Desenhos: Na igreja celebrando missa: 2. Com batina: 6. Sem batina: 2. Sem batina + igreja: 1. Com
batina + estrelas ao fundo e cortinas (paisagem abstrata): 1. Com batina + Bíblia: 1.
66
CAPÍTULO 2: Cidade, casa e igreja: sobre Catingueira, seus adultos e suas
crianças
Tenho pena de deixar
A Serra da Catingueira,
A fazenda Bela Vista,
A maior desta Ribeira,
O riacho do Poção,
As quebradas do Teixeira.
Inácio da Catingueira
1. Introdução
Este capítulo tem como objetivo situar a cidade de Catingueira e os catingueirenses,
abrangendo breves aspectos econômicos, políticos, geográficos, religiosos, estatísticos e sociais. O
intuito é apresentar um panorama geral da cidade para que se possa imaginar quem são os “nativos
em carne e osso”. Além disso, discuto como as crianças estão presentes neste contexto, dando
destaque, principalmente, às idéias infantis sobre a vida cotidiana e a família.
2. A cidade de Catingueira
Conta-se que, em finais do século XIX, o vilarejo que se constituía às margens de um de
catingueira
64
, dando repouso aos viajantes e comerciantes de passagem entre as cidades de Piancó e
Patos (PB), foi salvo de uma peste de cólera, através de uma promessa, pelas graças de São
Sebastião. Ao santo, é atribuído o dom de exterminar a fome, a peste e a guerra. São Sebastião
cumpriu a sua parte na promessa: ninguém adoeceu no vilarejo
65
. O pagamento da promessa
64
Caesalpinia pyramidalis Tul. É uma arvoreta com até 4 m de altura. Folhas bipinadas com 5-11 folíolos, sésseis,
alternos, obtusos, oblongos. Flores amarelas dispostas em racemos pouco maiores ou tão longos quanto as folhas.
Vagem achatada de cor escura. Madeira para lenha, carvão e estacas. É uma das plantas sertanejas cujas gemas
brotam às primeiras manifestações de umidade anunciadoras do período das chuvas. Então o gado procura as suas
folhinhas com avidez, para pouco depois desprezá-las devido ao cheiro desagradável que adquirem ao crescer. As
folhas, as flores e a casca são usadas no tratamento das infecções catarrais e nas diarréias e disenterias. É uma planta
característica das catingas. (http://www.esam.br/zoobotanico/vegetais/catingueira.htm acessado em vinte e um de
julho de 2005).
65
São Sebastiãozinho é o nome dado à imagem pequena adquirida como primeira imagem do santo padroeiro na época
da promessa inicial. Ela ainda hoje permanece na igreja. Durante a festa do padroeiro, esta imagem peregrina pelas casas
dos fiéis, pernoitando a cada noite na casa de um devoto. Durante as celebrações das missas, ela fica em um lugar
privilegiado. Além disso, nas procissões é ela que trafega pelas ruas, sustentada pelo povo. Esta imagem, por estar tão
presente na vida daqueles que participam da festa religiosa, adquiriu uma conotação humana mesmo tendo sido feita
de um material perecível, ela é tida como um ente poderoso, capaz de realizar milagres. Por isso, ao se referir a ela, não
se diz a imagem de São Sebastião, se diz o próprio São Sebastião. E em se tratando da primeira imagem adquirida, São
Sebastiãozinho”, não se trata da encarnação no barro de uma entidade exterior a ele, mas de um barro tornado santo. O
hino de São Sebastião, cantado nas missas e novenas durante a festa de janeiro, revela a esperança no santo, testada e
comprovada na promessa inicial: Livrai-nos da peste, São Sebastião” (PIRES 2003: 24). A imagem do santo pode ser
entendida como um “feitiche”, no termos de Latour (LATOUR 2002b [1996], 2000; vide também VELHO 2005).
67
compreendia a construção de uma capela e a doação ao santo de todo o lugarejo que, hoje,
compreende parte da Serra, da cidade e da área rural. Para saldar a dívida da promessa, foi preciso
unir quatro famílias distintas que doaram parte de suas propriedades ao santo, o que posteriormente
constituiria a cidade
66
. Assim, juridicamente, todos os terrenos da cidade tornaram-se propriedade do
santo. Ainda hoje, a maioria dos terrenos na cidade pertence ao Patrimônio de São Sebastião”.
Quem mora nos terrenos do santo, paga uma quantia anual à igreja, chamada foro, uma espécie de
aluguel pelo uso da terra. O pagamento do foro é calculado a partir da extensão frontal do terreno. A
cada metro, paga-se R$ 1,00 por ano (pelo menos desde o ano 2000 até 2005). Os moradores que
desejam ser donos do terreno onde construíram as suas casas podem negociá-lo, dependendo da
política do bispo em vigor
67
.
Além da igreja Católica, na cidade também um Centro espírita de linha Kardecista e três
igrejas evangélicas, dentre as quais a Assembléia de Deus é a mais antiga e com maior número de
fiéis. Para completar o quadro religioso evangélico temos, por fim, as igrejas Seguidores de Cristo e
Pentecostal do Evangelho Amor de Deus
68
. Na cidade de Catingueira, apesar da presença do
66
A cidade mudou de nome várias vezes. Este processo parece ter sido seguido também por outras cidades, como analisa
Otavio Velho (VELHO 1981 [1972]). Pela lei n.º 836, de 9 setembro de 1887, o lugarejo que se constituía recebeu o
nome de São Sebastião da Catingueira, em virtude do milagre alcançado. Pelo decreto n.º 27, de 23 de julho de 1890, o
lugarejo transformou-se em Jucá. Em 1933, pelo decreto n.º 400, o povoado transformou-se em distrito, sob o nome de
Jucá. Em 15 de novembro de 1938, o distrito teve sua mais antiga denominação reimplantada. A cidade tornou-se
município pela lei n.º 2144, de 15 de julho de 1959.
67
Veja extrato de entrevista com uma moradora no ano de 2002 (PIRES 2003: 26) sobre a promessa inicial.
“F.P.: Aqui eles falam que a cidade nasceu de uma promessa, a senhora sabe contar?[...]
Sebastiana: ...conta assim, né, que foi uma doença que houve na Catingueira aqui, né, parece que o nome era cólera...
É, eu sei que deu essa doença, e inventaram de fazer essa promessa, que São Sebastião protegesse pra num chegar até a
Catingueira e diz-se que trocava São Sebastião e fazia uma capela, e de fato, fizeram mesmo. E num chegou aqui não,
veio até a Mina do Ouro, e o povo contava, né”.
Veja também extrato de entrevista com dois senhores no ano de 2002 (PIRES 2003: 25) sobre o proprietário dos terrenos
da cidade.
“Sebastião: Quer dizer que é o seguinte, a cidade, toda a cidade tem um padroeiro dela, né? quem manda é o
padroeiro, aí a festa é do Padroeiro.
F.P. (Flavia Pires): Mas o padroeiro manda em que?
Sebastião: Em tudo, nos terrenos....
José: Essa Serra toda é dele. Aqui, até acolá no açude...
Sebastião: Se você quer comprar um chão aí você tem que falar com o padre.
José: Com o bispo.
Sebastião: Fala com o padre aí o padre vai ver e o bispo libera. Senão....
José: Não compra não.
F.P.: Nada com a prefeitura não?
Sebastião: Não, a prefeitura num tem nada. Nada, nada.
José: Nada com a prefeitura não. A prefeitura só tem o local dela”.
68
Além destes templos religiosos, existem na cidade algumas capelas. Uma delas, a Capela do Vaqueiro é conhecida
como mal-assombrada.
Nos anos anteriores a 2005, no lugar onde hoje funciona a Igreja Pentecostal do Evangelho Amor de Deus, funcionava a
Igreja Congregacional. Infelizmente, não observei detalhadamente o processo que culminou com o fim de uma igreja e o
estabelecimento da outra. No entanto, chama a atenção o fato de que o pastor e basicamente toda a comunidade de fiéis
tenha permanecido praticamente a mesma. A impressão que se tem, de uma perspectiva exterior à comunidade, é de que
a mudança limitou-se ao nome pintado do lado de fora da igreja. Assim dito, já esclareço futuras dúvidas que possa vir a
despertar o fato de que o universo evangélico, durante todo o meu trabalho de campo, foi sempre composto por três
igrejas distintas entre si, mesmo que as igrejas às quais me refira não sejam as mesmas de acordo com o ano em que a
pesquisa de campo foi realizada.
68
protestantismo e do espiritismo kardecista, o catolicismo é a religião predominante. Como se vê, a
própria constituição da cidade está ligada ao catolicismo e à fé em um santo. Neste contexto,
descrevi alhures (PIRES 2005a) que o santo padroeiro é um mediador entre as religiões
representadas. Nesta tese, pretendo discutir em que medida os mal-assombros também
desempenham este papel, sendo atualizados, embora com particularidades, por todas as religiões
presentes na cidade. Neste sentido, gostaria de enfatizar mais as mediações entre as religiões que me
concentrar unilateralmente nas especificidades de cada uma delas. Como anunciei na Introdução, o
cristianismo parece fornecer as bases sobre as quais uma pessoa vai constituir-se enquanto um
catingueirense (maiores detalhes serão fornecidos no decorrer da tese).
Quanto à localização geográfica, a cidade de Catingueira situa-se na região do semi-árido
nordestino, no chamado Vale do Piancó, na parte oeste do Estado da Paraíba (vide mapa potico do
Brasil Figura 3, e mapa do estado da Paraíba - Figuras 1 e 2 no CD anexo, no arquivo nomeado
Mapas).
Catingueira é um município onde estima-se que metade da população viva na área rural. Essa
população dos “sítios” (zona rural) vive basicamente do plantio em pequena escala do milho e do
feijão, ambos para a subsistência e para o comércio de excedentes, embora muitas famílias que
vivam na cidade também contem com a colheita do seu roçado para garantir a sobrevivência.
Dependendo da localização do tio, pode-se plantar também arroz, que “gosta” de terrenos
alagáveis, chamados de “baixios”. Além disso, algumas famílias cultivam também a batata doce, a
macaxeira e o maxixe em menor escala. O cultivo de frutas não é tradicionalmente popular. O
plantio e a colheita seguem o calendário das chuvas, o chamado inverno que normalmente tem
início em janeiro, com as celebrações em honra de São Sebastião, e finda em junho, com as
celebrações de São João, São Pedro e Santo Antônio. Em Catingueira, não se utiliza irrigação na
agricultura, apesar de não faltar água na cidade desde a construção do Açude dos Cegos, na década
de 1990. As famílias que vivem em propriedades de terceiros plantam no sistema de terça parte ou
meia. Quando o “ano é bom”, isto é, quando excedentes geralmente o milho e o feijão eles
são vendidos (ou trocados) ao longo do ano para a compra de outros gêneros alimentícios. As
famílias geralmente criam animais, como galinhas, bode, porco e jumento. Criam também gado,
porém em escala bem reduzida, que, na estação da seca, falta-lhe alimento, devido aos pastos
ficarem ressequidos. É considerado um bom negócio criar o gado no inverno (estação das chuvas) e
vendê-lo ainda gordo quando estas começam a escassear, no início do verão (estação da seca). Na
seca, o preço do gado cai drasticamente, assim como seu peso.
Na cidade, as famílias vivem basicamente dos benefícios do governo federal (bolsas e
aposentadorias), de alguma plantação ou criação de seu roçado ou muro (terreiro, quintal) ou,
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quando possuem, de um emprego na prefeitura. Comenta-se na cidade que hoje em dia ninguém
mais quer trabalhar nas roças, porque o serviço é pesado e difícil. Com isso, cada dia mais famílias
o morar na cidade, criando um problema econômico e social, dado o enorme déficit de empregos.
O raciocínio é o seguinte: ‘Bem ou mal, no tio a pessoa pode plantar um feijãozinho e a
alimentação da família fica garantida. Na cidade, a pessoa não encontra trabalho e não tem nem
como alimentar os filhos’. Infelizmente, não posso confirmar com dados estatísticos este êxodo
rural. Porém, conseguir” um emprego na prefeitura é uma grande aspiração da maior parte da
população. O emprego na prefeitura é altamente valorizado pela estabilidade que implica.
Estabilidade é entendida como a certeza de receber aquele salário no final do s, o que possibilita,
por exemplo, o planejamento da compra de bens duráveis. Mas é interessante constatar que esta
reconhecida estabilidade é compatível com o fato de que a cada novo prefeito ocorrem mudanças
drásticas no quadro de funcionários, os quais são substituídos em função dos laços de amizade ou
parentesco com o candidato a prefeito vitorioso. A necessidade de trabalhar na prefeitura, já que não
na cidade outros empregadores senão as vendas e os bares (que geralmente utilizam mão de
obra familiar) cria relações de co-depenncia entre os poticos e a população. A prefeitura, por
sua vez, sustenta-se financeiramente através do dinheiro do ‘Fundo de Participação dos Municípios
e do ‘Imposto Territorial Rural’. Na cidade, não há fábricas ou indústrias.
Alguns meninos complementam o orçamento familiar fazendo pequenos serviços, como
capinagem de terrenos, venda de picolé (conhecido alhures como sacolé ou chup-chup), ou
costurando bolas (para uma fábrica em Patos que paga R$ 1,50 por unidade costurada - julho de
2004). As meninas geralmente não são pagas pelos serviços que executam, uma vez que estes estão
inseridos nas atividades domésticas cotidianas.
Quanto aos benefícios do governo federal, a Bolsa Família compreende o Fome Zero, no
valor de R$ 50,00; a Bolsa Escola, no valor de R$ 15,00 por criança cadastrada e o Vale Gás, de R$
15,00. Além destes benefícios, Catingueira conta com o PETI (Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil), com duzentas crianças cadastradas recebendo mensalmente R$ 25,00, e com o
Agente jovem, com vinte e cinco jovens cadastrados, recebendo mensalmente R$ 65,00. ainda o
Programa leite da Paraíba, com cento e cinqüenta famílias cadastradas, que recebem diariamente
um litro de leite. E, por fim, o Auxílio à natalidade no valor de R$ 1.400,00 por nascituro. em
2002, os benefícios do governo federal geravam discussões substanciais na comunidade, como
observei em Pires 2003 (:99/100). As aposentadorias como trabalhador rural levantam uma questão
sociológica interessante, na medida em que se entende que o indivíduo que não possui sua própria
terra depende de um “patrão” para assinar os papéis da sua aposentadoria. Entre o proprietário de
terras que assinam a papelada e o trabalhador será estabelecido um vínculo, que pode ser reavivado,
por exemplo, em momentos de eleições, ou quando o proprietário de terras precisa de uma “ajuda”
70
de qualquer natureza (capinar um terreno, limpar a casa etc.), ficando aquele trabalhador e a sua
família para sempre “endividados”. O ato de assinar os papéis é tido como prova da bondade do
proprietário de terras à qual o trabalhador responde com gratidão. No entanto, ultimamente
algumas pessoas têm conseguido a aposentadoria através do Sindicato dos Trabalhadores Rurais
sediado na cidade de Catingueira.
Segundo dados do Censo do ano de 2000, Catingueira conta com 4.748 habitantes em uma
área da unidade territorial de 529,46 Km². Na zona urbana, residem 2.413 habitantes, enquanto na
zona rural habitam 2.539 pessoas. A faixa etária com o maior número de habitante está concentrada
dos dez aos catorze anos, com 667 habitantes. Dentre as pessoas residentes com dez anos ou mais de
idade, 2.222 habitantes não contam com nenhum rendimento (- rendimento nominal mensal -), sendo
o rendimento nominal médio mensal R$ 220,85 entre as pessoas residentes com dez anos ou mais de
idade, com rendimento. O PIB a preço de mercado corrente no ano de 2001 foi de R$ 8.743,00,
enquanto em 2002 foi de R$ 11.066,00. Sobre as finanças blicas, em 2003, as receitas
orçamentárias realizadas computavam R$ 2.611.909,84. Destes R$ 2.012.508,34 eram oriundos do
Valor do Fundo de Participação dos Municípios – FPM, e R$ 4.159,56 oriundos do Imposto
Territorial Rural - ITR. Em 2004, houve 1.180 matrículas no ensino fundamental, e em 2004 havia
56 docentes no ensino fundamental. Em 2000, na eleição municipal, Catingueira contava com 3.719
eleitores
69
. Os dados estatísticos podem auxiliar o leitor a imaginar a realidade social da Catingueira;
no entanto, é preciso ressaltar que os dados aqui expostos só podem ser completamente entendidos
quando referidos às especificidades locais como, por exemplo, o alto poder de compra do salário
mínimo. Em outra oportunidade, escrevi que as famílias que contam com dois salários mínimos são
consideradas ricas, o que se evidencia, por exemplo, no fato de que podem se dar ao luxo de comer
carne (ou a “mistura”, ou seja, ovos e carne) todos os dias, no almoço e no jantar (PIRES 2003: 99).
Para descrever como a vida em Catingueira se move no tempo e no espaço, não poderia
deixar de incluir o calendário das festas e de descrever os horários seguidos pela população. A festa
do Padroeiro em janeiro e a festa de João Pedro (São João e São Pedro comemorados
simultaneamente), em junho, são eventos muito significativos. Em grande medida, a cidade vive da
69
Uma revisão eleitoral feita pelo TRE no município de Catingueira, no sertão paraibano, resultou no cancelamento
de 706 títulos de eleitores fantasmas. No universo de 3.566 eleitores, 2.860 participaram do recadastramento e tiveram
os domicílios eleitorais homologados. A população de Catingueira é de 4.465 habitantes. (LKA) Fonte:
http://jornaldaparaiba.globo.com/poli-4-180606.html, em 18 de junho de 2006.
Em maio do ano de 2006, o ex-prefeito de Catingueira, João Felix de Souza, teve a sua prestação de contas do
ano de 2004 reprovada pelo Tribunal de Contas do Estado da Paraíba, sendo intimado a devolver o valor de R$
47.800,00 para os cofres públicos. O valor, na sua maioria, é referente a despesas não comprovados do INSS (Fonte:
http://www.jornalonorte.com.br/noticias/?63304, acessado em maio de 2006). O mesmo ex-prefeito está sendo
investigado pela sua participação na chamada Máfia dos Sanguessugas, no que se refere ao escândalo das ambulâncias,
considerado uma dos maiores esquemas de corrupção planejados pelos parlamentares do país.
(http://wscom.digivox.com.br/noticias.jsp?pagina=noticia&id=75810&categoria=29, site acessado em 26 de julho de
2006).
71
memória destas festas. Os comentários das festas passadas duram até que chegue a próxima. A festa
é o momento de criar ou reavivar os laços sociais, entre eles o de parentesco e o de amizade.
Também é o tempo das alianças poticas e econômicas. As festas são, em princípio, religiosas, mas
ultrapassam as comemorações estritamente religiosas, apesar de nunca prescindirem delas
70
. Há,
geralmente, bandas de forró que tocam em praça pública ou bailes na quadra de esportes, onde se
cobra um ingresso na entrada
71
. Freqüentam as festas tanto a população local e das cidades vizinhas,
quanto os chamados “filhos ausentes”, isto é, pessoas que nasceram na cidade, por razões
econômicas emigraram e, segundo os catingueirenses, acabaram por “enricar” (PIRES 2003, 2004a).
Catingueira acorda cedo, ao raiar do sol, entre as quatro e seis horas da manhã. Quem levanta
tarde (depois das sete horas) é considerado preguiçoso. A partir das cinco horas, as pessoas que vão
fazer compras em Patos ou viajar aparecem na praça para conseguir lugar nas primeiras viagens das
caminhonetas - que fazem o transporte de passageiros pelas cidades vizinhas
72
. Das cinco até as sete
horas da manhã, pequenos grupos de três ou quatro homens sentam-se na praça, batendo papo,
enquanto suas mulheres varrem a calçada ou preparam o café. A cidade vive uma espécie de
efervescência às oito horas da manhã, quando a agência dos Correios e a casa Lotérica abrem suas
portas. Entretanto, entre as onze e quinze horas, a cidade é quase deserta. se movem os grupos de
estudantes indo e voltando dos colégios. O restante da população está dentro de casa, almoçando,
descansando, tirando uma soneca ou vendo TV.depois das dezesseis horas, quando o sol abranda
seu calor, a cidade movimenta-se novamente. Ao cair da noite, salpicam cadeiras de balanço nas
calçadas. A praça movimenta-se outra vez com grupos de jovens conversando e casais namorando.
Por volta das vinte e uma horas, a praça começa a esvaziar, mas perto das vinte e duas horas e trinta
minutos se movimenta novamente, com os estudantes que deixam o colégio. Exceto por alguns bares
que ainda estão abertos, à meia noite parece que toda a cidade dorme.
70
Vide Pierre Sanchis (1983), assim como Lea Perez (1994, 1996, 2002), para belas análises sobre as festas.
71
Existem em funcionamento duas quadras de esportes na cidade. Uma quadra coberta, que fica dentro do colégio
municipal, e outra recentemente construída pela prefeitura, que fica na chamada “pista”, ou seja, na estrada que faz a
ligação de Catingueira com Patos (BR 361). Além disso, há também o campo de futebol (não coberto, não gramado) que
faz a diversão da cidade quando campeonatos nas tardes de domingo. O futebol é o esporte mais popular na cidade.
Com os torneios organizados pela prefeitura, incentivou-se a organização dos moradores em times, dentre os quais dois
são femininos.
72
O transporte, feito de maneira ilegal, utiliza caminhonetas, geralmente compradas com o benefício de isenção de
impostos para o proprietário rural. Na carroceria, são improvisados bancos de madeira para os viajantes. As
caminhonetas são, na minha opinião, uma versão atual do “pau de arara” afirmação com a qual meus informantes não
concordariam, porque vêem neste transporte algo de moderno e eficiente. Na parte da frente da caminhoneta, onde se
viaja com mais conforto viajam, em princípio, as pessoas que têm acesso à caminhoneta em primeiro lugar. No
entanto, as mulheres e os idosos têm certa preferência. Parece-me que, entretanto, a possibilidade de viajar nos bancos da
frente depende mais da relação que se estabelece com o motorista ou dono da caminhoneta (que nem sempre coincidem)
e, principalmente, do status social daquela pessoa. Entre uma jovem professora da cidade e um idoso do sítio, a
professora sentar-se-ia na frente e o(a) idoso(a) subiria na parte de trás. É preciso acrescentar que mesmo os que viajam
na parte da frente não usam cinto de segurança. Algumas vezes vi as caminhonetas pararem de rodar por algumas horas
em função do conhecimento de uma blitz da Polícia Rodovria. Para a população, por sua vez, a proliferação das
caminhonetas representa conforto, uma vez que o ônibus (transporte legal) só passa pela cidade de duas a três vezes por
dia, em horários inconvenientes.
72
Faz parte dos ritmos sociais catingueirenses o localmente chamado tempo da potica,
sobre o qual Moacir Palmeira (1996, 2001) e Palmeira & Heredia (1995, 1997) discorreram
demoradamente. “A potica está chegando” é frase que remete ao tempo social em que todas as
conversas começam ou terminam falando dos candidatos, em que não silêncio possível devido
aos carros de propaganda, em que, enfim, todas as pessoas estão envolvidas no reavivamento,
destruição ou construção de novas alianças poticas. Gostaria de assinalar que as crianças também
estão incluídas no “tempo da política” de maneira ativa e efetiva.
Em 2005, subi a Serra da Catingueira, com mais ou menos umas quinze crianças. A subida
da Serra pode ser levada a cabo basicamente com o intuito de pagar promessa ou por diversão (sobre
a Serra serão fornecidas mais informações adiante). Naquele dia, na descida da Serra, não me senti
bem. As crianças perceberam que algo estava errado, mas não sabiam o quê. De minha parte, não
queria compartilhar a causa da minha “fraqueza” porque, naquele momento, eu era a responsável por
elas. Coincidiu que, na descida da Serra, elas vinham cantando as músicas dos seus candidatos
prediletos. Havia ‘eleitor’ para todos os candidatos, o que incentivava a competição entre as crianças
na forma de brincadeiras jocosas. Aconteceu que, um dia depois da subida da Serra, um grupo de
crianças as que cantavam mais exaltadas as músicas da “política” veio até a minha casa pedir-me
desculpas. Meu mau-humor, pensavam elas, era devido à cantoria entusiasmada da música de um
determinado candidato a prefeito que, por sua vez, não correspondia, segundo elas, à minha opção
de voto! Com isso, vê-se que as crianças também estão fazendo suas escolhas poticas e, ao mesmo
tempo, têm um aguçado faro para as opções alheias (A fotografia 13 CD anexo foi tirada nesta
ocasião, aos pés do cruzeiro de o Sebastião). Para mais um exemplo de como as crianças
envolvem-se na potica, R. de treze anos, cujo padrinho Pelado” era candidato a vereador,
inventou o seguinte lema para incentivar na sua campanha: Rim por rim vote no meu padim”!
“Rimé a expressão oral de “ruim”, assim como padimcorresponde a “padrinho”. O lema da
menina, para além de seu sentido humorístico, tece uma crítica social aos poticos de modo geral.
Para ela, todos os políticos são ruins. Ela adverte: se é assim, opte por alguém que você conheça.
Sua mensagem é clara: dada a atual conjuntura, em que nenhum potico é confiável, vote no meu
padrinho, porque este, eu conheço.
De todas as crianças que desenharam em quem elas votariam, apenas uma delas, de seis anos
de idade, relutou entre dois candidatos a prefeito. Todas as outras crianças tinham feito previamente
as suas opções entre os candidatos daquele ano e as sustentavam com energia. Estas opções
geralmente coincidem com a dos seus pais, mas nem sempre. Quando perguntadas as razões para
votar em determinado candidato, as crianças enfatizavam, em primeiro lugar, algum grau de
parentesco. Se não nenhum grau de parentesco, um bom candidato é aquele que “dá as coisas ao
povo”; em outras palavras, aquele que não nega ajuda. A ajuda pode ser endereçada à comunidade
73
de modo geral, como na redação de L. 12. F: Eu gosto da dona Zuila porque ela muitas coisas
aos pobres, ajuda a quem precisa (...) Ela feira de material escolar, material de
construção de casa.Mas muito constantemente, a ajuda é pessoal e especificamente direcionada à
família daquela criança. R. 12. F escreve: Se eu fosse votar, eu votaria em Edivan. Porque ele vai
fazer a casa da minha mãe. Se eu fosse votar para vereador, eu votaria em Dr. Humberto, porque
ele conseguiu a aposentadoria da minha mãe”. A. 11. F sintetiza bem as duas grandes razões para se
votar em um candidato, quais sejam, ligação de parentesco e generosidade por parte do candidato:
Para prefeito (...) eu voto em Edivan porque, a primeira coisa (...) ele é nosso primo e ajudou
muito a nossa família”.
Razões para não votar em um candidato o de uma simples antipatia pessoal a promessas
o cumpridas, mas a principal razão é a falta de generosidade” para com o povo. S. 12. F,
escreveu: Eu não gosto dela [uma candidata a prefeito] porque um dia, foi pedir não sei o que,
aí ela disse que não dava. Aí vó e mãe não votam nela. Ela é muito falsa. Como ela quer que alguém
vote nela? Ela não fez nada para ninguém. Eu acho que quando ela era do lado do Dão [ex
prefeito], não dava nada para ninguém, nem um centavo”. Esclareço que os bens que os candidatos
distribuem através de critérios seletivos são, na verdade, bens de natureza blica dentre os quais
podem estar incluídos uma viagem da ambulância da prefeitura para levar uma criança doente até o
hospital em Patos, a inscrição em um programa de benefício do governo federal como o Bolsa-
Escola ou, inclusive, a facilitação da aposentadoria como trabalhador da agricultura. G. 7. F
escreveu Eu voto nele porque foi ele que deu óculos de mãe, e porque ele deu a chapa de mãe
(chapa é o mesmo que dentadura). Ou ainda T. 9. F Eu não gosto do Edivan porque ele, em vez de
o dinheiro aos pobres, ele faz festa”. Parece-me que o político bom é potico da família e, além
disso, é aquele que distribui dinheiro ao povo. Isso até uma criança de seis anos de idade sabe. C.
6. F., ainda elaborando que tipo de bem participa neste “jogo da generosidade”, escreveu: Eu
votaria nele porque ele é meu pai. E também quando ele recebe dinheiro, ele me um real.
Quando ele promete que qualquer coisa a mim, ele cumpre”. Interessante ressaltar, por último,
que as razões para a escolha de um determinado candidato político, segundo as crianças, parecem
o diferir daquelas dos adultos.
Quanto à geografia interna, a Rua da Cerâmica é o lado escuro e, podemos assim dizer,
criminoso da cidade. Curiosamente, é a rua tida como a mais pobre, com o maior número de casas
de taipa. Ali não iluminação blica, calçamento ou rede de esgoto. Em geral, as pessoas têm
vergonha ao dizer que moram naquela rua. Como as casas são distantes uma das outras, na escuridão
da noite, a Rua da Cerâmica torna-se perigosa”. Certa noite, passei naquela rua com um jovem
amigo e vimos um carro com o porta-malas aberto estacionado um pouco além da estrada de terra,
dentro do “mato”. Meu amigo ficou muito preocupado e pediu que acelerasse o carro, com medo de
74
que se tratasse de assaltantes ou vendedores/ consumidores de drogas. Quando chegamos à cidade,
ele foi direto para a delegacia avisar aos policiais do fato. Os policiais checaram o que estava
acontecendo, reportando ao meu amigo, com um sorriso malicioso nos lábios, se tratar de um
morador da Rua da Cerâmica com a sua namorada. O porta-malas aberto tinha como objetivo
simular uma pane mecânica do carro
73
.
A Rua do Açude é também tida como pobre, mas goza de reputação festeira talvez por sua
proximidade com o açude, ponto de lazer para rapazes e moças mais atiradas”. Ali, beber é uma
constante, e namorar, também. A Rua do Olho d´água foi considerada o “fim do mundo”, mas
hoje, com a construção de várias “casas boas” (julgamento êmico que se refere, dentre outras coisas,
ao fato de ter sido usado tijolo na sua construção), é tida como um lugar bom de se morar. Apesar de
o ser central, é perto do Olho água. Uma rua silenciosa não é uma rua considerada boa de se
morar, porque ela seria uma rua “esquisita”. Em Catingueira, quando a cidade está parada, isto é,
quando não há nenhum tipo de som ligado, diz-se que a cidade ou o dia está “esquisita(o)”. Estar
esquisito significa estar silencioso, o que não é considerado agradável. Muitas pessoas reclamam de
morar no sítio justamente porque “no sítio é muito esquisito
74
.
O Alto é um conjunto de ruas sem urbanização, iluminação ou rede de esgoto. Como a Rua
da Cerâmica, é tido como lugar de gente pobre, mas sua particularidade é ser lugar de muita
confusão e brigas. No entanto, é preferível morar no Alto que na Rua da Cerâmica considerada
erma e, por isso, como já afirmei, perigosa. Ali, ao contrário da Rua da Cerâmica, uma grande
concentração de casas, o que desestimula as atividades ilícitas, ao mesmo tempo em que estimula as
brigas familiares e entre os vizinhos. A Pista é o lugar onde está a prefeitura, os postos de saúde, a
padaria e os maiores bares. É por onde passam o ônibus e as caminhonetas que fazem o transporte de
73
Veja o que D. C., uma senhora de aproximadamente sessenta anos, moradora da Rua da Cerâmica disse: “Às vezes eu
num vou pra igreja por que num tem luz, é no escuro, mas o menino botou lâmpada. Tava jogando umas pedras...
[Quem?] Quem sabe? Um malfazejo ruim. Num vendo, minha fia, como essa rua aqui como é. Aqui é esquisito, tu
num tá vendo não, que é esquisito? É mesmo que um sítio, menina! Olhe, de primeiro eu falava os povo: ‘vocês vende
tanta as coisas aqui na rua. Na rua da Cerâmica que a gente é pobre, mas às vezes a gente compra umas coisa. Às vezes
passa uma pessoa, tá com precisão a gente compra’. Pense, menina, aqui num andava ninguém. Aí, agora eles passa”
(PIRES 2003: 16). Sobre o conceito “esquisito” vide a seguir.
74
Com isso, podemos começar a entender o que sempre me causou muita estranheza durante os meses em que vivi na
cidade. O volume da música que se ouve em Catingueira, seja nos bares, casas ou alto-falantes dos carros é altíssimo,
especialmente nas festas. No entanto, as pessoas não parecem se incomodar em absoluto. É natural que os jovens gostem
do barulho, mas nunca consegui encontrar ninguém da cidade, por mais idoso que fosse, que preferisse o som desligado.
As pessoas parecem simplesmente não se incomodar ou, eu diria, parecem até mesmo gostar do som alto. Isso pode
ser entendido, mesmo que parcialmente, se pensarmos na categoria nativa “esquisito”, que foi apresentada acima. O
silêncio é esquisito e indica alguma coisa que está parada no tempo e no espaço. o desenvolve, o cresce, o gera
dinheiro. Parece que a música e quanto mais alta melhor é um signo do progresso, que vem em forma de alegria e
conseqüente bebedeira, festa, dança. Posso dar um exemplo: O Coreto, um bar na região central, geralmente fica com as
portas fechadas em dias de semana. Mas quando a prefeitura faz o pagamento, ou quando os rapazes que vendem sapatos
pelas cidades voltam a Catingueira, o Coreto sempre abre suas portas. Não importa qual seja o dia da semana. E de
Coreto aberto, subentende-se música tocando. A título de informação, a música que se escuta em Catingueira é,
basicamente, o chamado “forró brega”, com o qual as bandas Calcinha Preta, Cheiro de Menina, Kalipso, Gaviões do
Forró, Magníficos, Limão com Mel etc. fazem grande sucesso. Resta dizer que os carros de som dos candidatos, na
época da política, não fugiam à regra do volume excessivo.
75
passageiros e cargas. Pela Pista, a cidade recebe os visitantes entre eles, os “filhos-ausentes”. O
Coreto é um bar na região central. É perto dali que acontecem as festas blicas (a casa onde eu
morei fica de frente para o mesmo). No centro da cidade (também chamado “a rua” - vide nota 73 -
ou “a cidade”) está a igreja Católica e, à sua volta, uma praça. O prestígio da localização das
residências é medido, em parte, pela sua distância em relação à igreja Católica. O Centro Espírita
está localizado em uma rua periférica próxima ao centro. A igreja Assembléia de Deus está
localizada no caminho para o Açude do Prefeito, distante do centro, enquanto a igreja
Congregacional fica na mesma rua da igreja Católica. E, finalmente, a igreja Seguidores de Cristo
fica localizada na Rua da Cerâmica.
O Açude dos Cegos abastece a cidade de Catingueira e todas as cidades vizinhas. Além disso,
é usado para lazer, pescaria e irrigação das terras próximas. O açude do Prefeito, por sua
proximidade com a cidade, é usado para lavar roupa, cavalos, jegues, carros e para o lazer
masculino, especialmente infantil. Catingueira conta com quatrocentas e vinte propriedades rurais
chamados de sítios” (informação do Incra com base em Catingueira referente ao ano de 2005). “Ser
do tionão importa qual –, em oposição a morar na cidade, é tido como marca indelével e
justificativa para o fracasso ou estupidez. Se um menino do tio tem dificuldades em aprender a ler,
sua professora dirá: “ah, é dotio”, lavando suas mãos.
A Serra da Catingueira também faz parte do painel geográfico da cidade. Ela é cantada nos
versões de Inácio da Catingueira, nas músicas do grupo O Cordel do Fogo Encantado
75
e na
saudade dos catingueirenses. Inácio da Catingueira é considerado um dos maiores repentistas de
toda a história. Ele nasceu em uma fazenda na rego onde hoje fica Catingueira. Era negro, escravo
e analfabeto mas, com sua astúcia e intelincia, foi capaz de derrotar Romano do Teixeira,
repentista também afamado, porém branco, livre e formalmente educado. A peleja entre os dois
cantadores teria durado oito dias e oito noites sem intervalos (NUNES 1979: 19; SÁTYRO 1979:
129). O “gênio negro do sertão” morreu no ano de 1879 (NUNES 1979: 15). Os catingueirenses
exaltam o nome de Inácio e a sua ligação com aquela terra sempre que é preciso afirmar as
particularidades da sua gente. Na praça da cidade, há uma estátua de Inácio em tamanho natural com
o seu pandeiro na mão instrumento pouco usual nos repentes naqueles tempos.
Na Serra, foram instalados dois cruzeiros. Um em homenagem a São Sebastião, no alto da
Serra e, outro, no meio, em homenagem a Santo Annio. No Cruzeiro de São Sebastião, há uma
casinha” de tijolos, onde são deixados ex-votos e acendem-se velas. Subir a Serra é um
divertimento para a população jovem, principalmente na época da festa do padroeiro. Os grupos
geralmente sobem a Serra ao nascer do dia, por volta das quatro ou cinco horas, para não se expor ao
75
Sobre a música, vide como exemplo, Cordel Estradeiro do já referido grupo Cordel do Fogo Encantado.
76
sol muito forte. Geralmente, vão munidos de bebida alcoólica e comida, onde a farofa/ cuzcuz com
galinha é altamente apreciada. Os rapazes e as moças, muitas vezes, depois de passarem a noite no
baile, sobem a Serra quando a “barra do dia” começa a aparecer. Cansados, descansam tirando uma
soneca no alto da Serra, onde é sempre “frio”, em virtude do vento. Existe até uma comunidade no
site “orkutchamada subi a Serra de Catingueira”, atestando a popularidade do passeio. Nos
meses de chuva, a chamada Cachoeira da Mãe Luzia fica cheia de água, propiciando deliciosos
banhos em dias quentes. A Mãe Luzia é um poço de pedras que fica desoladamente vazio em tempo
de seca. Mas quando chove, todos os pocinhos se enchem, fazendo a festa de quem sobe a Serra.
Quando o poço da Mãe Luzia está muito cheio, ele “sangra”, ou transborda, donde o nome de
cachoeira. Diz-se que Mãe Luzia era uma mulher que morava no alto da Serra e, um dia, estava
lavando roupa naquele poço quando foi comida por uma onça. (Para uma fotografia do Poço da Mãe
Luzia cheio, vide Fotografia 14 no CD anexo).
Os locais, muito constantemente, quando sobem a Serra, levam fogos de artifício para soltar
quando alcançam o seu cume. Os fogos de artifício atestam o grande feito e, ao mesmo tempo, dão
graças a São Sebasto. Se as pessoas escutam fogos de artifício pela manhã, elas dirigem o olhar
para o alto da Serra, tentando identificar quem está a soltar aqueles “foquetões” para santo. Muitas
vezes, elas sabem quem está lá em cima porque a notícia de que um grupo vai subir a Serra na
manhã seguinte corre ligeira. Também sobem constantemente a Serra, com seus cachorros bravios,
os caçadores. Nela, encontram alimento para o consumo familiar ou para o comércio
76
. ainda
famílias que moram na Serra, vivendo da extração e venda de pedras e, durante o inverno, da
agricultura. Os membros destas famílias são acostumados a subir a Serra com rapidez e, mesmo com
a dificuldade, as crianças não deixam de freqüentar a escola. Demora-se em média uma hora e trinta
minutos para a subida e uma hora para a descida, em ritmo moderado. Subir a Serra, enfim, é tido
como um grande feito, recordação para a vida toda, atividade para jovens ou para quem se endividou
com o santo e precisa pagar promessa. (Sobre a Serra vide: fotografias números 12, 13, 14 e
Desenho Temas Variados números 1, 3, 6, 8, 10 no CD anexo. Vide também um mapa da cidade
feito por uma criança no CD anexo, desenho 9 J. 8. M. Cidade de Catingueira, no arquivo de nome
Desenhos Temas Variados). Na Serra, também está localizada a Furna, uma caverna na qual nunca
ninguém conseguiu alcançar o fim. Sobre a Furna e seus mistérios, reporte-se ao Índice de
referências de mal-assombros (Carneiro de Ouro) no Anexo 1.
76
Das minhas primeiras memórias de Catingueira, lembro-me da negociação de um tatu morto, entre um caçador e meu
pai. Na época, eu tinha oito anos de idade.
77
3. O que é ser criança em Catingueira?
3. 1. A criança pequena
Certa vez, no ano de 2005, durante a missa de sétimo dia do vice-prefeito, uma criança de
aproximadamente três anos de idade ligou um daqueles brinquedos que imitam os diferentes toques
de um celular. A atmosfera da missa era solene e pesarosa, já que o defunto era o jovem vice-
prefeito que morrera tragicamente num acidente automobilístico. Ao contrário da minha expectativa,
ao invés de repreender a criança, seus pais, especialmente a mãe, começaram a sorrir, como se
estivessem orgulhosos do filho. Ela olhava para os lados convidando toda a gente, que se comprimia
dentro da igreja cheia, a apreciar o momento, como se se tratasse de um espetáculo. E, de fato, as
pessoas ao redor começaram a sorrir entreolhando-se, balançando afirmativamente a cabeça,
aprovando a atitude do pequeno. Não percebi nenhum sinal de desconforto frente ao barulho que a
criança fazia, exceto por minha parte! Em Catingueira, as crianças pequenas não são consideradas
capazes de compreensão do mundo. Ninguém realmente entende o que se passa pelas suas
cabecinhas. Da mesma forma, não se espera que elas comportem-se bem. E, talvez por isso, toda a
gente reconheça graça e pureza nos gestos e palavras das crianças pequenas. Não é à toa que, se uma
criança pequena morre, acredita-se que ela diretamente para o céu exceto quando o foi
batizada, segundo os católicos. Porém, o batismo também pode ser realizado s-morte, restaurando
o equilíbrio necessário para a aceitação daquela alma no céu. Ela “é um inocente”, como se diz em
Catingueira, daquele que não possui pecados.
Há, de modo geral, uma grande condescendência em relação às birras e choros infantis,
principalmente em relação às meninas. Isso dura até mais ou menos os cinco anos de idade, quando
atitudes como estas são desencorajadas. Em geral, os meninos são tratados com mais rigor que as
meninas, e espera-se que sejam mais fortes e demonstrem menos as suas fragilidades (como chorar).
Por diversas vezes, observei as reuniões religiosas infantis
77
serem interrompidas para se dar atenção
àquela criança pequena que caíra, chorara, ou, simplesmente, fizera algo considerado “mimoso”. Da
mesma forma, observei que o cuidado com a criança é tanto mais carinhoso quanto mais nova ela é –
assim como é mais observado, aceito e requerido por crianças do sexo feminino em detrimento das
crianças do sexo masculino. Demonstrações de carinho para com meninos são observadas
enquanto o menino ainda é muito pequeno; no máximo, até por volta dos cinco anos de idade.
77
Que são o catecismo e a reunião da Infância Missionária para os católicos, a reunião dominical para os evangélicos e a
reunião das crianças, no caso do espiritismo. A Infância Missionária é, junto ao catecismo, uma das atividades
especificamente criadas para as crianças dentro do catolicismo. Em Catingueira, a Infância Missionária é particularmente
bem sucedida, chegando a ultrapassar o número de crianças do catecismo. Um dos motivos é a popular “gincana”
organizada anualmente pela Infância Missionária (vide fotografia 17 no CD, Anexo 2).
78
Como a sociedade pensa a criança de três e quatro anos de idade? Muitas vezes, a criança
pequena faz as vezes de “brinquedo” para as outras crianças e de objeto de diversão para os adultos.
Para além do exemplo citado anteriormente da criança com o brinquedo na igreja, outro é o das
meninas que vão pelas casas “mostrando” os bebês da vizinha, da prima ou da irmã. Muitas vezes
estava na minha casa, quando aparecia uma menina (algumas vezes acompanhada de uma amiga)
carregando um bebê nos braços. A menina vinha “mostrar” a mim a criança. É muito comum ver os
bebês circulando pela cidade nos colos de meninas. Ao ver um be no colo de uma menina,
geralmente esboça-se um elogio mas não muito entusiasmado, porque o elogio é uma maneira
comum de se colocar mal-olhado
78
. Depois, pergunta-se de quem é aquele bebê. Com esta pergunta,
quer-se, de fato, saber quem é a mãe. Se a pessoa o identifica os pais do bebê logo de imediato, a
menina vai dar mais informações sobre eles: por exemplo, quem são os seus vizinhos, de quem são
filhos, onde ou com que trabalham. Identificados os pais do bebê, a conversa mirra. A menina, por
sua vez, vai à outra casa “mostrar” o bebê, até que ela se canse ou o bebê apresente comportamento
muito inadequado como, por exemplo, se ele começar a chorar ininterruptamente. Parece que as
crianças em Catingueira são igualmente tidas como propriedade da comunidade e dos seus próprios
pais. (Adiante, serão fornecidas mais informações sobre a residência infantil que parecem, em
alguma medida, confirmar esta hipótese). Em Catingueira, um be vai com facilidade para os
braços de outras pessoas que não são da própria família ou responsáveis diretos pelo seu cuidado.
No entanto, um bebê não é visto nos braços de qualquer um. São, geralmente, meninas na faixa
etária dos nove aos treze anos de idade, que circulam pelas casas mostrando os bebês, ou seja,
meninas novas demais para serem mães, e velhas demais para brincarem de bonecas. Esta menina
é importante ressaltar é uma conhecida da família. Ela pode ser uma parenta, mesmo que distante,
como uma prima de terceiro grau, ou mesmo uma vizinha. Ou seja, ela é “de confiança”. O fato é
que os bebês mesmo bem pequenos (com um mês) já passeiam pela cidade sem a companhia de seus
respectivos pais. Outro fato interessante é que o be é acordado sem para que possa ser
apreciado principalmente se tem os olhos claros. A menina que carrega o bebê vai fazer de tudo
para que ele acorde quando o está mostrando, como bater de leve na sua bochecha, sacudi-lo,
chamar seu nome em voz alta perto do seu ouvido. A vontade dos bebês parece estar submetida à
vontade dessas meninas e dos adultos.
78
Ignorante desta regra, sempre elogiava sobremaneira os dons culinários da cozinheira e o sabor da comida, quando era
convidada para o almoço ou o jantar. Comecei a perceber aos poucos um certo constrangimento quando o fazia, e fui
entender completamente que não se deve elogiar por demais uma comida muito posteriormente. Da mesma forma, uma
mãe não espera ouvir elogios quanto à beleza ou inteligência de um filho. Curiosamente, até mesmo uma mãe pode
colocar mau-olhado no seu próprio bebê. Ouvi uma mãe dizer, sorrindo, que tinha medo de colocar mau-olhado no seu
próprio filho pelo fato de amá-lo e mimá-lo demasiadamente. Sobre o mau-olhado, o olho mau ou ruim vide Otavio
Velho (1995a: 23).
79
Mostrar os bebês implica em divertimento para as meninas envolvidas na atividade. Às
vezes, elas são chamadas a tomar café ou comer um doce na casa por onde passam
79
. Mas o simples
fato de entrar em outra casa já é diversão suficiente para a menina pré-adolescente ou adolescente. O
bebê em suas mãos é como um brinquedo e, por isso, digo que as crianças pequenas são objeto de
diversão para os adultos (que se riem deles, como no exemplo da igreja) e de brinquedo para as
crianças. Não posso deixar de mencionar uma antiga recordação do trabalho de campo do ano de
2000, quando seguia o cortejo fúnebre de um anjinho. As pessoas, de suas janelas, paravam o
pequeno séqüito e pediam que levassem o caixãozinho até elas. Queriam olhar” o bebê morto. Era o
próprio pai do anjinho quem o fazia. As pessoas olhavam o pequeno com e curiosidade e, às
vezes, perguntavam: “morreu de que?”. Note que ter um anjinho no céu é tradicionalmente tolerado
pelas famílias, como forma de ter acesso privilegiado aos bens espirituais. As mães consolam-se
com a morte de um bebê pela certeza de ter alguém no céu a olhar por ela e pela família que fica na
terra. Talvez chamem este bebê de anjinho justamente porque ele ignora o mal. Para descrição do
funeral de um anjinho na cidade de Catingueira vide Flávia Pires (2003: 13/14). Quando pedi a S.
12. F que desenhasse o seu anjo da guarda, ela desenhou a sua irmã, que morreu ainda bebê. Ela
expressa carinhosamente o pesar de não tê-la conhecido e, ao mesmo tempo, a alegria de ter como
anjo da guarda a sua própria irmã. O meu anjinho ela é a minha irmã. Ela morreu, mas ela vai ser
sempre a minha irmã e o meu anjo. Ela morreu quando ela era criança, deu uma disenteria, ai ela
morreu. Eu era muito pequena, gostaria de ter conhecido ela. Adoraria muito de conhecer ela, por
isso escolhi ela. Eu adorei ela mesmo que eu não conheci, ela é o meu anjo
80
.
Contudo, se de um lado é permitido usar” o irmãozinho como brinquedo, de outro lado, a
tarefa de “pajear” as crianças pequenas é geralmente destinada à irmã mais velha. A função pode ser
exercida pelo irmão mais velho, no caso da falta de uma irem idade adequada para a tarefa. No
entanto, é mais provável que ela ser exercida por uma criança do sexo feminino: uma prima ou
uma vizinha. Muitas vezes, é a presea dessas meninas que permite que a mãe do bebê trabalhe
fora de casa. O caso descrito acima, em que as meninas vão mostrar os bebês, pode ter lugar, por
exemplo, na volta de uma visita regular ao posto de saúde. É importante lembrar que o cuidado das
crianças pequenas geralmente está sob a tutela das crianças mais velhas geralmente, meninas
81
. As
crianças pequenas sempre acompanham os irmãos mais velhos – ou, mais constantemente um deles,
79
Às visitas importantes são oferecidos doce e/ou café. O doce é sempre acompanhado de um copo de água de
preferência, gelada. É comum ouvir: “vou comer um doce para tomar água” ou “come um doce para tomar água”. Os
doces muito apreciados na região são o doce de leite, de gergelim e de frutas como manga ou mamão verde, que podem
ser cozidos com açúcar ou rapadura.
80
Para outra análise sobre a morte dos anjinhos vide Scheper-Hughes 1992.
81
Mead e Bateson (1942) descrevem atitudes similares em Bali entre as crianças menores e as meninas maiores. Child
nurse. The major which small girls play in social life is as nurses. Chiefly they carry around their own younger siblings,
but if there is no other baby in the town where a girl lives, she will borrow other babies to carry. There is a great deal of
interchange of babies so that, though a baby may leave home in the hands of one girl, it will pass through the hands of
many others before one of them brings it back to the mother. (MEAD & BATESON 1942: 212).
80
aquele responsável pelas crianças. Assim, espera-se evitar que o irmão mais velho faça alguma coisa
da qual esteja proibido e, ao mesmo tempo, espera-se que ele tome conta do menor ou dos irmãos
menores. Muitas vezes, essas crianças pequenas vão, por exemplo, para o catecismo, porque o irmão
ou a irmã mais velho (a), responsável por tomar-lhe conta, es se preparando para a primeira
eucaristia. Neste caso, a família acha bom que a criança pequena aprendendo alguma coisa
sobre religião. No entanto, nem os pais, nem as outras crianças, nem as professoras esperam que eles
entendam o que se está tratando no catecismo. Destas crianças pequenas não se exige que falem,
rezem ou mesmo comportem-se bem nas reuniões de religião.
3. 2. Organização doméstica
Aos cinco ou seis anos de idade, uma criança é chamada a assumir certas tarefas domésticas.
No caso de meninas, muito constantemente elas são responsáveis por lavar “os troços”, ou seja, a
louça do almoço ou da janta por vezes, ambas. Também são responsáveis por lavar a sua própria
roupa e, às vezes, ajudar a mãe ou a irmã mais velha a lavar a roupa da família (isto é, dos membros
familiares do sexo masculino e dos bebês, já que elas são responsáveis por lavar a sua própria roupa
desde pequenas). Quando se trata de uma família pobre e numerosa, a roupa é lavada no açude,
geralmente pela e da família. Exceção ocorre quando ela se encontra enferma: neste caso, lavar a
roupa da família passa a ser obrigação da irmais velha. No caso de uma família pobre, mas pouco
numerosa, a roupa pode ser lavada na própria casa, desde que se conte com água encanada e os
meios de pagar a conta do fornecimento da água, ao fim do s. No caso de famílias consideradas
ricas, a roupa também pode ser lavada no açude, mas o serviço será contratado de outra mulher fora
do rculo familiar. Outra tarefa das meninas é varrer a casa e passar o pano. A última tarefa aplica-
se apenas quando a casa não possui piso de barro. Ainda, as meninas são chamadas a buscar água na
nascente, no olho d´água ou no açude, com o auxílio de latas de metal. No caso de crianças nesta
idade (cinco ou seis anos), a lata utilizada para carregar a água é de proporções reduzidas. As mães
geralmente carregam a água nas latas de tinta reutilizadas cuja capacidade é de vinte litros, enquanto
as crianças transportam a água nas mesmas latas reutilizadas mas menores, as de cinco litros
82
.
82
As meninas de variadas idades muito constantemente pediam para arrumar a minha casa e lavar as minhas vasilhas.
Algumas delas disseram-me que gostavam mais de fazer o serviço da casa que de desenhar ou ir para o colégio. Sentia-
me incomodada de -las trabalhando na minha casa, mas elas insistiam para que as deixasse fazer as tarefas. Algumas
vezes, deixei. Muitas vezes, quando fazíamos alguma refeição juntas, tão logo acabávamos elas levantavam-se da mesa e
iam direto para a pia lavar as vasilhas. Faziam como que automaticamente e sem o mínimo constrangimento, como se
não houvesse nada a fazer naquele momento senão aquilo. Às vezes, dizia não”, e elas vinham com uma ladainha de
por quês. Pedindo que as deixassem fazer, que elas gostavam, que elas queriam… Argumentava que as tinha ouvido
reclamando do serviço da casa. Elas replicavam, dizendo que queriam fazer porque era na minha casa e para mim. O fato
pode ser parcialmente entendido se pensarmos que, em relação a uma parenta por volta dos vinte anos, o dever de lavar
as vasilhas será da menina mais nova que more na mesma residência porque a atividade é tida como fácil dentre os
outros serviços domésticos. E, neste caso, fui colocada no papel de mulher mais velha. Mas outras considerações a
fazer. Um fato é que a casa desarrumada e as louças por lavar depositadas na pia depõem contra a dona da casa e,
81
O serviço doméstico é sempre feito o quanto antes possível, sempre na parte da manhã.
Geralmente, a primeira de todas as tarefas é acender o fogo. A maioria das casas usa a lenha ou o
carvão pra cozinhar. Muitas casas têm fogão a gás, mas o preço do gás em botijão é tido como
empecilho para o seu uso cotidiano. Em muitas casas, o fogão a gás funciona como peça decorativa,
muitas vezes colocado na sala, outras vezes na cozinha que fica dentro da casa a qual não é usada.
Geralmente, o fogão a gás não fica perto do fogão a lenha ou carvão para evitar que a fumaça o torne
inapelavelmente preto. Ter um fogão a gás, mesmo que o sendo utilizado, é sinal de status social.
A verdadeira cozinha, isto é, onde se faz a comida, fica geralmente do lado de fora da casa, num
puxadinho” ou numa espécie de tenda especialmente feita para comportar o fogão a lenha ou
carvão. É nele que a comida é preparada, e geralmente é mesmo onde as pessoas comem no dia-a-
dia. Acredita-se que a comida preparada no fogão à lenha é mais saborosa e mais nutritiva. Por fim,
muitas casas usam uma espécie de estrutura de metal sustentada por um tripé, chamado de
“fogareiro”, para cozinhar. No fundo do tripé, depositam o carvão. O fogareiro comporta apenas
uma panela. O uso difundido do fogareiro justifica-se na medida em que não é incomum as famílias
alimentarem-se apenas de feijão com farinha. O fogareiro é a maneira mais econômica de cozinhar,
dado que utiliza o combustível necessário para apenas uma panela. Como ele fica no chão, para ser
capaz de manuseá-lo a cozinheira adulta precisa abaixar-se de cócoras, mas no caso de uma
cozinheira criança (na faixa dos dez anos de idade), a panela alcança a altura das mãos. Embora a
altura da brasa seja fixa, em alguns destes fogareiros a altura da panela pode ser regulada, mantendo
a comida quente mas sem cozinhá-la por demais. Pode-se colocar a panela mais ou menos perto da
brasa. Ainda, em algumas casas usa-se para cozinhar apenas uma pilha de tijolos ou pedras no chão,
em algum cantinho ao ar livre, mas preservado do vento. Neste, igualmente faz-se o fogo com
carvão ou lenha.
Por volta das nove horas da manhã a arrumação da casa deve estar concluída para se
começar a preparar o almoço, que ficará pronto entre as dez e onze horas. Se há duas crianças do
talvez, elas zelassem pela minha imagem social. Outra razão é que na minha casa os serviços domésticos eram feitos de
maneira diferente da maioria das casas da cidade e, com isso, talvez para elas, o serviço soasse divertido. Eu lavava os
“troços” na pia, ao ins de utilizar a torneira perto do chão do lado de fora da casa. E usava detergente líquido, e não
sabão. As meninas sempre se mostram prestativas quando era hora de varrer a casa e passar o pano. Em muitas casas, no
entanto, não se passa o pano molhado, porque o chão é de barro. É interessante citar que essas meninas varrem o chão de
barro da sua casa de cócoras com o auxílio de ramos de massambê que, juntos, dão a forma de uma vassoura, mas sem o
cabo. Na minha casa, o chão de cerâmica era limpo com um rodo e um pano molhado. Não foram apenas as crianças que
me ofertaram ajuda doméstica. As mocinhas e as moças também se ofereciam para ajudar-me na lida, ou “luta”, da casa.
Uma delas, de quinze anos, sempre me dizia que mandasse chamá-la quando fosse lavar a casa. As moças da minha
idade também tinham atitudes parecidas e uma, em especial, oferecia-se para lavar minhas peças de roupa grandes no
açude. (Por exemplo, redes, toalhas de mesa e banho, lençol. Peças pequenas e delicadas são lavadas preferencialmente
com água encanada, porque correm o risco de ser manchadas com água do açude). Por outro lado, há certa dose de
diversão envolvida na arrumação da casa, principalmente se a atividade é feita com a ajuda das amigas. Não é incomum
estar entre amigas a arrumar a casa umas das outras. Neste momento, as meninas se divertem. Conversam, riem muito,
escutam música e dançam. As mães, no entanto, geralmente reclamam da arrumação coletiva, dizendo que elas demoram
muito tempo, e que o serviço fica mal feito.
82
sexo feminino em uma família e crianças pequenas para se “pajear”, a mãe encarregar-se-há do
almoço, e as meninas encarregar-se-hão de cuidar dos irmãozinhos e do serviço da casa. De todas as
atividades domésticas, a preparação da comida parece ser a última a ser estendida às crianças,
permanecendo como atividade destinada à mulher casada. Por exemplo, numa família onde há
apenas a mãe idosa, uma filha por volta dos vinte e cinco anos e um filho por volta dos trinta anos, a
e será a cozinheira. A filha sabe muito bem como cozinhar, mas esta tarefa ficaa cargo da mãe
até que ela se torne inválida ou faleça. Expus anteriormente (nota 82) que as meninas sempre se
mostravam ansiosas por ajudar-me na “luta”
83
da casa; no entanto, nenhuma menina nunca ofereceu-
se para cozinhar. Fazer a comida parece ser o serviço reservado para as mães ou, pelo menos,
derradeiramente passado para as filhas. Avançando um pouco, diria que comer é uma atividade
reservada, feita no íntimo da família, no ambiente de casa mais distante da porta da rua. Não se
come nas ruas, assim como não se oferece comida para os visitantes assim que eles chegam à sua
casa. Há que ser visita íntima ou importante para ser convidado a tomar parte na mesa das refeições.
As crianças do sexo masculino começam a trabalhar mais tarde que as meninas, porque seu
trabalho é, geralmente, feito fora da casa. No entanto, na falta de uma menina, eles podem ajudar a
e ou a irmais velha nas tarefas domésticas consideradas femininas, como cozinhar, lavar e
passar a roupa e lavar as louças. No entanto, nunca vi um garoto buscando água com os latões na
cabeça. Mas se a família possui um jumento ou uma carroça, a atividade de buscar água passa a ser
essencialmente masculina, pela qual os meninos são geralmente responsáveis. No entanto, exercer
cotidianamente atividades domésticas femininas pode gerar prejuízos para a imagem social do
menino. Ele pode ser tima de troça pelos colegas e de preocupação com o seu futuro papel social
enquanto homem pela sociedade em geral. Em compensação, embora raro, um rapaz que saiba “se
virar” no caso de uma necessidade, isto é, que saiba cozinhar e tomar conta de uma casa, é apreciado
como um futuro bom marido.
Em contrapartida, um menino acompanha seu pai ou irmão mais velho em atividades
consideradas masculinas. Se o pai da família sai para pescar, é esperado que o garotinho lhe
acompanhe, ajudando a carregar os instrumentos, observando o pai e aprendendo a atividade.
Acompanhar o pai ou os irmãos mais velhos é uma atividade prazerosa da qual o garoto se orgulha.
Da mesma forma, um pai pode levar os filhos para ajudá-lo quando sai para trabalhar na roça. Os
filhos maiores são pagos, pelo empregador, de acordo com o sario corrente; as crianças são pagas
tendo em vista sua menor capacidade de produção. Crianças de cinco ou seis anos não são
contratadas, mas podem substituir o pai se ele estiver cansado, propiciando-lhe algum tempo de
83
Muitas vezes ouvi donas de casa desculpando-se por não poderem ficar de bate-papo com as vizinhas porque tinha
“muita luta lá dentro!”.
83
descanso. Ainda, é sempre uma criança do sexo masculino que leva o almoço e a água do pai e dos
irmãos mais velhos quando estão trabalhando na lavoura
84
.
Em Catingueira, as crianças de ambos os sexos também são consideradas muito úteis para
levar recados e informações papel igualmente destacado por Cohn (2000) no seu estudo sobre as
crianças Xikrin. Naquele contexto, as crianças têm acesso às unidades familiares com muito mais
facilidade que os adultos, e por esta vantagem, diz-se que “as crianças tudo sabem”. Onde fiz a
pesquisa de campo, além de levar recados, as crianças são mandadas para realizar compras quando a
família está em dia com a venda. Geralmente, as compras nos mercadinhos não o feitas em
espécie, independentemente de o comprador ser um adulto ou uma criança. O dono do mercadinho
anota o valor gasto em uma caderneta o qual deverá ser pago assim que a família receba o salário
ou benefício do governo federal a que tem direito. No caso de atraso do pagamento da conta do
mercadinho, o chefe da família, a mãe ou o pai, de acordo com a capital social que dispõe,
comparece para negociar o crédito e possibilitar a nova compra. Uma criança, em princípio, não
poderia negociar crédito. Se, por exemplo, o pai da família é tido como um alcoólatra, a mãe irá à
venda. Da mesma forma, pagamentos de benefícios governamentais, como a Bolsa-família,
destinados à família ou às crianças, não são entregues ao pai ou mãe tidos como irresponsáveis. Os
pagamentos dos referidos benecios são feitos através dos Correios, sendo a funcionária do mesmo
a detentora deste poder de decisão.
Desde a idade de cinco ou seis anos de idade, as criaas podem assumir as atividades
descritas acima. As tarefas reservadas para a criança variam de acordo com a família. Famílias
maiores promovem maior distribuição das tarefas. Famílias mais ricas podem postergar, reduzir ou
extinguir o trabalho infantil doméstico. Entretanto, a crença geral de que as crianças devem
começar a trabalhar desde cedo, uma vez que o trabalho tem um caráter educativo. Nos primeiros
anos, não se espera maestria no cumprimento das tarefas, já que a atividade é tida mais em termos de
aprendizado. Acredita-se que a criança que não ajuda os pais desde cedo tem grandes chances de
transformar-se em um adulto preguiçoso e pouco qualificado para a vida adulta um adulto que, em
outras palavras, não sabe fazer nada. Uma moça que o saiba cozinhar ou um rapaz sem disposição
para o trabalho poderiam ser enquadrados nesta descrição (de quem não sabe fazer nada). Para além
disso, acredita-se que o trabalho, desde pequena idade, ajuda a formar uma pessoa de bom caráter,
que sabe dar valor ao que tem. Embora grande parte da literatura sobre infância enfatize a
contribuição material do trabalho infantil para o orçamento familiar como uma adequação às
condições adversas da pobreza, o trabalho infantil também tem como objetivo educar a criança em
84
Guimaes Rosa (2006 [1956]: 62-79) descreve literariamente a atividade em Campo Geral, quando Miguilim leva o
almoço para o pai na roça e tem uma série de surpresas pelo caminho. Sobre o prazer que as crianças têm em ajudar seus
pais, em uma passagem do mesmo livro, Miguilim se dirige ao “Pai”: “-Pai, quando o senhor achar que eu posso, eu
venho também, ajudar o senhor capinar roça... Pai não respondia nada. Miguiliam tinha medo ter falado bobagem
faltando ao respeito” (:64).
84
um sistema de educação moral, como lembra Maya Mayblin (2005: 220, 226). A pesquisadora
destaca o papel educativo do trabalho infantil, como forma de desenvolver a “coragem”,
característica moralmente apreciada em Santa Rita, no agreste pernambucano
85
. O trabalho como
forma de educação moral perpassa os diferentes segmentos sociais, embora sua aplicação varie de
acordo com a família. Por sua vez, uma família que valorize a educação formal ou uma criança cuja
família reconheça talento para os estudos pode reduzir as tarefas pelas quais ela é responsável, a fim
de incentivar as horas de dedicação à vida escolar.
Em Catingueira, entende-se que o trabalho doméstico tem como objetivo educar a criança
para exercer atividades que lhe serão essenciais quando adulta. No caso de uma menina, a
capacidade de gerência familiar e de organização doméstica podem, em muitos casos, ser qualidades
mais apreciadas que a educação formal. No entanto, o programa Bolsa-escola parece ser bem
sucedido porque, no caso estudado, incentiva a freqüência escolar ao garantir o salário” da criança
no final do mês. Quando não dependem daquele benefício para comprar os gêneros de primeira
necessidade, as famílias endereçam parte do montante recebido muito constantemente, R$ 5,00,
diretamente para a criança, que decide como gastar o dinheiro. As meninas geralmente investem o
dinheiro em roupas, sapatos e materiais escolares. Os meninos também investem em sapatos
(principalmente tênis), brinquedos ou materiais escolares. Entretanto, a não ser no caso do PETI,
onde as crianças ficam na escola durante os dois turnos, as crianças que recebem o Bolsa-escola não
parecem ser dispensadas das atividades domésticas. A criança que freqüenta o PETI, no entanto,
pode ser mais facilmente dispensada de todo trabalho doméstico, porque o estudo, nestas condições,
é considerado por demais estafante. O seu tempo livre é dedicado à diversão, no qual brincar com os
colegas e vizinhos e assistir” [televisão] parecem ser as atividades preferidas.
Por volta dos cinco anos de idade, a criança deve começar a ir ao colégio, a fim de se
preparar para a primeira série do ensino fundamental que começa por volta dos seis anos de
idade
86
. Se a família não valoriza a educação formal, a adaptação no colégio não é forçada,
postergando o início da vida escolar para o próximo ano. Acredita-se que não compensa forçar a
criança pequena a fazer o que ela não quer. A primeira infância é tida como a melhor fase da vida e,
no entanto, a mais curta. Seu contraponto é a idade adulta, repleta de sofrimento e obrigações. Maya
Mayblin (2005), especialmente nos capítulos dois e três da sua tese, descreve muito bem este
sentimento de que a vida de adultos casados (no caso dos habitantes de Santa Rita - agreste
pernambucano) é pensada em termos de sofrimento e responsabilidades, que se contrapõem à idade
infantil e à adolescência. De modo geral, as famílias consideradas ricas, no entanto, fazem questão
85
If a person does not start performing work activities by fourteen years of age at the latest, they will never develop the
“coragem” necessary to confront such tasks when older (MAYBLIN 2005: 223).
86
A idade para começar a freqüentar a escola pode variar entre cinco até os sete anos de idade, de acordo com o nível de
conhecimento formal que a criança apresente.
85
de mandar os filhos o quanto antes para o colégio. É necessário ter, no nimo, três anos de idade
para ser aceito na escolinha chamada de Sossego da Mamãe. A mesma funciona como reforço
escolar, pré-primário e creche, todos os dias úteis com uma duração de uma hora e trinta minutos. A
classe é multi-seriada, assim como os interesses variados. Por exemplo, algumas crianças estão ali
para fazer os deveres do colégio; outras, para aprender a ler; outras, porque estão atrasadas em
relação ao conteúdo didático do colégio; outras, ainda, para começar a pegar o gosto pelo lápis. A
creche” é particular, mas funciona nas dependências do colégio municipal. Paga-se R$ 15,00 por
aluno (dado do ano de 2005). O município de Catingueira e o estado da Paraíba provêem ensino
fundamental e secundário completos; mesmo assim, algumas famílias optam por mandar os filhos
para escolas particulares em Patos, com vistas a uma educação de melhor qualidade.
Uma criança aos cinco e seis anos de idade ainda é objeto de apreciação, carinhos e motivo
de risadas embora comparativamente menos que aos três ou quatro anos de idade, como descrevi
acima. A redução deste tipo de tratamento vem junto com a constatação de que a criança começa a
entender o mundo que a cerca. Em outras palavras, começa a ser gente. Ela deixa o estatuto de peça
de entretenimento para começar a ser vista como um pequeno aprendiz. Este aprendizado é
pensando a longo prazo e, por isso, não se exige demasiadamente de uma criança nesta idade. De
acordo com o entendimento geral, ela está aprendendo. No entanto, a atividade que a criança executa
é sempre levada a sério. Ela não está brincando de lavar a roupa; ela realmente lava a sua roupinha.
Se não fizer a atividade a ela reservada, certo desequilíbrio na organização doméstica vai ser criado.
Por fim, parece que o trabalho das crianças faz diferença na organização e no orçamento familiar,
uma vez que existem atividades consideradas exclusivamente infantis. Da mesma forma, o trabalho
infantil está incluído em um sistema de educação moral, em que a disposição para o trabalho parece
ser uma das principais características a ser aprendida.
3. 3. A família e a criança
As crianças elaboraram variados desenhos em que o tema da família foi contemplado seja
por sugestão da pesquisadora, seja por iniciativa própria. Gostaria de discutir alguns destes
desenhos. Além disso, apesar de concentrar o olhar em uma perspectiva infantil, as idéias dos
adultos sobre família também serão endereçadas.
Nestes desenhos, os idosos são quase sempre vistos pelas crianças como pessoas boas isto
porque “dão às coisas às crianças”. Em um dos desenhos, um idoso rico uma nota de R$ 50,00
para o menino, o qual sai correndo para comprar sorvete. No outro desenho, a criança que um dia
ajudou o idoso é convidada a ir morar na sua casa, em virtude da perda de seus pais, demonstrando a
bondade e compaixão dele para com a menina. Em outro desenho, o idoso esmola para as
86
crianças pobres que em pedir na sua porta: o velho sempre esmolas, mesmo que as crianças
estejam mentindo”. Apenas em um momento o idoso é considerado mau; isto acontece quando ele
bate no menino, seu neto. Mas o idoso logo se arrepende e vai desculpar-se (O velho e a criança J.
8. M, L. 12. F, Y.10. F, C.7. F).
A avó em Catingueira é boa quando as coisas” para os netos geralmente, coisas de
comer e quando os livra das “pisas” (o mesmo que agressão física)
dos pais. J. M. 13. M (quem
você gosta e quem você não gosta) descreveu sintetizando o que é uma boa avó: Eu gosto muito da
minha avó, ela é muito legal comigo igualmente a minha mãe, ela é muito boa para mim. Minha avó
nunca briga comigo. Sempre me as coisas”. C. 7. F (a vó) escreveu sobre a sua avó: (...) eu
gosto muito dela porque quando ela recebe o dinheiro e faz a feira em Patos, mais o meu irmão,
compra uma bolacha para mim, recheada de chocolate (...)”. Y. 10. F (a avó) escreveu: “A minha
é bonita, eu adoro ela porque ela não briga comigo”. E, por fim, S. 12. F (quem você gosta e quem
você não gosta) escreveu: Eu gosto muito da minha vó, ela me salva das pisas e de muitas outras
coisas. Ela é como se fosse a minha mãe. Mas é a mãe da minha mãe. Mas eu sempre vou gostar
dela como gosto da minha mãe, mas eu gosto das duas do mesmo jeito. Do jeito que eu gosto de
uma, eu gosto da outra”. Podemos dizer que as características que fazem uma boa avó assemelham-
se as de uma boa e, que serão trabalhadas posteriormente. Quais sejam: generosidade e paciência
para não brigar ou bater nas crianças. No entanto, diferentemente das mães, uma boa avó protege as
crianças dos desmandos maternos ou paternos. Além disso, as crianças também disseram que uma
boa avó sempre leva os netos “para onde quer que ela vá o que, para a criança é nada menos que
um passeio
87
.
A bondade de uma mãe e de uma avó assemelham-se, como vimos anunciado acima. Por
exemplo, J. 8. M (o pai e a mãe) escreveu uma redação intitulada Minha mãe é boa”, na qual ele
descreve a sua mãe: “(...) Essa é a minha mãe. Minha mãe é boa porque ela faz a feira e compra
coisa para eu e Sara [sua irmã]. Antes ela estudava de noite, mas quando foi para São Paulo, ela
parou de estudar. Ela foi para a casa do meu tio e da minha tia. Ela foi passar uns tempos lá e ficou
muito tempo. Quando ela veio chegando estava muito de noite, estava de noite que só, estava perto
de amanhecer, ela estava dentro de um camburão, é o corujão, da Ganabanara. Estava tudinho
esperando, eu, minha tia e minha avó. Meu pai tinha ido dormir. Estava muito de noite quando
ela chegou. Cada um ganhou um presente, uma roupa, menos eu. Eu não ganhei nada. Ela arruma a
casa, passa pano, lava louça, lava pano, ela se veste bem, água os pés de pau [o mesmo que árvore]
dela. Tem um de coqueiro lá, tem dia que ela pega coco, pega a água”. J. deixa-nos antever que
uma boa mãe é uma pessoa que as coisas para os filhos, por isso ele se chateou e ainda se lembra
87
Infelizmente, dentre as crianças que participaram desta etapa da pesquisa, nenhuma delas tinha a vivo, mas todas
tinham pelo menos uma avó.
87
que, quando ela foi para São Paulo, não lhe trouxe nada de presente. Ele também enfatiza que uma
boa mãe é aquela que cuida da casa. A boa e difere da boa avó neste ponto no fato de que ela
gosta, faz com prazer e bem feito, o serviço da casa sem se esquecer do cuidado com os filhos.
No retrato de uma família muito feliz e unida, a mãe, invariavelmente, gosta de fazer os
serviços de casa, como lavar roupa, lavar as louças, estender as camas, passar pano e dar banho nas
crianças. L. 12. F (uma família) escreveu, [a mulher] gosta muito de fazer seus serviços de casa,
como lavar roupa, arrumar, lavar louças, gosta muito do seu marido e dos seus filhos maravilhosos
que eles têm”. Ao mesmo tempo, vemos que outro elemento mencionado pelas crianças é o amor
entre o casal e deste para com os filhos principalmente, o amor de mãe. As mães boas
amam/gostam dos seus filhos assim como dos seus maridos. É interessante ressaltar que a maioria
das crianças que citou o amor enquanto sentimento, como algo importante na família, são meninas
pré-adolescentes.
Nos desenhos das famílias que as crianças desejam construir no futuro há, invariavelmente,
um marido, uma esposa e os filhos. Todos os desenhos ressaltam a profissão do marido necessária
para comprar uma casa, mas, principalmente, para bem criar os filhos. Ressaltam que serão bons
pais porque o vão beber bebida alcoólica e boas mães porque vão cuidar bem dos filhos e da casa.
Cuidar dos filhos é dar-lhes o que eles precisam: comida, roupa e material escolar. Nos desenhos das
futuras famílias, isto é, quando estas crianças mesma tiverem filhos, maridos e esposas, algumas
meninas ressaltam a sua profissão fora de casa. Em um dos casos, a menina de dez anos (Y. 10. F)
vai trabalhar em um shopping, e o marido, em uma empresa de celular. Segundo ela, eles vão ser
muito ricos: sua casa vai ter piscina, helicóptero, trampolim, e os seus dois filhos terão um triciclo.
Os filhos serão mandados para a creche desde cedo, porque a mãe tem que trabalhar! E quem vai
fazer a comida?” −, perguntou, surpresa, A.J., de seis anos de idade, que acompanhava a elaboração
do desenho. A empregada!” Y. ainda emendou: E quem vai limpar o jardim é o jardineiro”!
Trabalhar fora parece estar associado, para estas crianças, a um alto poder aquisitivo. O raciocínio
implicado aqui é que ser rico permite que a pessoa trabalhe fora, ao contrário do que geralmente
pensam os adultos: eu trabalho, logo existe a possibilidade de tornar-me rico.
Outras meninas também querem trabalhar fora do ambiente doméstico. Uma delas vai
trabalhar em uma empresa de carros” (R. 12. F) e as outras duas não especificaram o serviço, mas
escreveram: Quero trabalhar para dar as coisas para os meus filhos, dar o que eles precisam.
Quero que eles sejam nutridos, bem gordos (L. 1. F)
88
”. A outra menina (S.12. F) escreveu, Eu vou
trabalhar para dar o comer para os meus filhos e o meu marido vai ter que trabalhar também”. J.
11. F (como será o meu futuro) também quer trabalhar, mas titubeia entre dois destinos diferentes:
88
Dizer para alguém: “como tu está gordo!” é um elogio em Catingueira. Olha, como ele ficou gordo!” poderia ser um
comentário sobre uma criança que apareceu bonita em uma fotografia.
88
Eu penso que eu vou trabalhar na roça e vou ser muito feliz. E eu pretendo estudar bastante para
me formar em veterinária e não trabalhar na roça. Esse homem do meu lado é o meu marido”. A
e e a avó desta menina trabalham como agricultoras. Parece que ela acredita que seu destino deve
ser parecido com o das mulheres da sua família, embora sonhe em ser diferente.
Apesar de algumas meninas aludirem à possibilidade de proverem financeiramente a família,
na maioria dos desenhos sobre a futura família, o dever de sustentar a casa é do marido, enquanto à
mulher cabe cuidar dos filhos e das atividades domésticas. Um menino (J. 13. M) escreveu: Quero
ser professor de Educação Artística e minha mulher vai trabalhar em casa com meus filhos”. Uma
menina (R. 13. F) escreveu sobre a sua vida familiar futura: Ele é motorista e ela cuida da casa e
dos filhos”. J. 8. M escreveu “Minha mulher trabalha lavando roupa e passando pano, e eu
trabalho em carro, moto, trabalho tirando as peças ruins e botando as novas”. Mas esta menina, T.
9. F., de nove anos, sintetizou o papel masculino no fogo familiar: Nós vamos morar no Rio de
Janeiro, ele vai ter que trabalhar para me sustentar e também meus filhos”. Interessante observar
que a lida doméstica feminina é descrita por esses dois meninos em termos de trabalho”. Mas o
em termos de profissão. Profissão e trabalho são pensados como atividades distintas. Entre as
profissões, estão as de médico, professora, dentista, enfermeira. Todas as outras atividades são vistas
como trabalho: gari, motorista, agricultor, operário. Beatriz Heredia (1979: 77-104) discute a
categoria “trabalho” em um contexto em que o trabalho está largamente associado ao serviço no
roçado, em contraponto ao serviço na casa. Segundo a autora, na zona da mata pernambucana, o pai
da família é sempre quem trabalha” e, os seus filhos e a esposa ajudam”, mesmo fazendo
exatamente o mesmo serviço. Isso se dá porque o trabalho é associado ao roçado − tanto o
gerenciamento quanto o serviço ele mesmo enquanto lugar do masculino, por excelência. Maya
Mayblin (2005), por sua vez, discorre sobre as variadas formas de trabalho, a moralidade envolvida
nos mesmos e a sua relação com a religo, no agreste nordestino.
Em relação ao futuro, elas e eles querem se casar. As crianças querem ter quase sempre
apenas dois filhos, um menino e uma menina
89
. Mas não tão cedo. Duas meninas (J. 14. F, T. 9. F)
expressaram desejo de ter filhos tardiamente, aos trinta e oito anos de idade, enquanto este não
parece ser o padrão seguido pelas mulheres da cidade. Acredito correto afirmar que a idade da
primeira natalidade entre as mulheres de Catingueira é anterior à média nacional. Vamos ver o que
esta menina de catorze anos escreveu: “Sou J. e quero me casar com Rafael. Gosto dele, mas não
pretendo me casar agora, vou deixar passar mais tempo para nós se casar. Não pretendo ter filhos
logo, só quando tiver 38 anos. _ E se eu tiver filhos, quero ter dois, não é? Porque passando de dois
é demais! E seus nomes vão ser RETENNEN se for mulher, e, se for homem, vai ser RENYTEN.
89
Apesar de que J., menino, de oito anos de idade, assegurou-me que não queria ter mulher, não, porque elas dão muito
trabalho!
89
Os nomes dos meus filhos é com a inicial do meu marido RAFAEL. E queria que esse sonho se
realizasse de verdade, e sei que ele gosta de mim e eu também dele. Fim”. J. resume um desejo de
muitas crianças de Catingueira: casar e ter um casal de filhos.
Interessante observar que, se as famílias do futuro foram ilustradas nuclearmente, destacando
o pai, a mãe e os dois filhos, atualmente a maioria destas crianças não vive em famílias nucleares.
Parece haver um hiato entre a realidade familiar destas crianças e a família que elas representam
como ideal, para o seu futuro. Cotidianamente, nas suas vidas, as crianças deparam-se com uma
grande variação na configuração familiar, na qual a família nuclear parece distante. Durante a
pesquisa, me deparei com famílias configuradas das seguintes maneiras: ego, iros, pai, a avó
paterna. Ego, irmãos (ãs), primos (as), tios (as), mãe, amaterna, avô materno. Ego, irmãos (ãs)
primos (as), sobrinhos, tia-avó, tio-avô, tios, tias, mãe. Ego e madrinha (não aparentada). Ego, mãe,
marido da mãe. Ego, irmãs, tio, pai, apaterna. Ego e avó paterna sem deixar de mencionar a
configuração tradicional ego, iros (ãs), pai, mãe. Entretanto, nos desenhos da “família atual”,
nenhuma família tem menos de três filhos apesar de uma menina de nove anos de idade, P., que
mora com apaterna, ter se desenhado apenas com sua mãe e seu pai. Tanto sua mãe, quanto seu
pai, já constituíram novas famílias e moram com seus atuais njuges e os filhos destes casamentos.
Mesmo assim, quando pedi que ela desenhasse a sua família, P. desenhou seu pai e sua mãe. Parece
que família, para ela, extrapola as regras da co-residência. Em uma situação na qual o modelo ideal
parece ser uma família nuclear, as pessoas que dividem a mesma casa, mesmo sendo aparentadas,
podem não ser consideradas família, segundo os critérios infantis.
Ainda em relação ao momento presente e a família atual, os filhos ficam chateados quando os
pais brigam com eles ou neles batem. S. 12. F (atual família), escreveu: Não gosto quando minha
mãe briga comigo, nem meu pai, mas eles têm o direito. Também não gosto quando eles batem em
nós, dói demais, chega a ficar vermelho. Eles batem na gente de cipó, mangueira, fio, cinto, chinelo
e de mão. Mas não vou parar de gostar deles
90
. Mesmo apanhando, a menina acima deixa claro
que, ainda assim, nunca vai deixar de gostar da sua mãe, porque uma e, quando bate no filho, não
está extrapolando o seu direito. Jamais uma criança mencionou que não gostava da sua mãe ou do
seu pai. Y. 10. F (o pai e a mãe) pondera sobre o porquê deste amor incondicional: (...) [os] pais
são capazes de sentir frio para dar os filhos [sic], sentir fome para dar comida aos filhos, são
capazes até de morrer pelos filhos, por isso que não tem nenhum filho que não goste de seus pais”.
Parece plausível afirmar que a família em Catingueira carrega em si um valor positivo. Arriscaria
afirmar que a família é uma das instituições sociais mais importantes para os catingueirenses.
90
A mesma menina escreveu (S. 12. F o pai e a mãe) Essa é a minha mãe. Gosto muito da minha mãe. Eu adoro, ela é
um tesouro para mim. Gosto muito dela, ela é tudo para mim, não gosto quando ela exagera. Ela já deu pisa na
gente de corda, cipó, tem vezes que ela pega a gente de pedra corre atrás da gente, mas mesmo assim eu gosto dela (...).
Ela cuida da casa e quando a gente esta precisando de alguma coisa ela compra ou arruma. Ela é trabalhadora, mais
do que o meu pai”.
90
Interessante observar que, nos desenhos livres e nas fotografias que as crianças tiraram, conforme
foram analisados no Capítulo Um, a família é um dos temas mais destacado pelas crianças. Isso está
expresso nos inúmeros desenhos de casas e no fotografar os membros da família, principalmente os
pais e as crianças. (Para um exemplo vide fotografia 19 no CD anexo). Mas, talvez por isso mesmo,
manter o equilíbrio familiar é tarefa complicada, como diz D. 13. M (futura família): A família é
algo muito especial para quem sabe lidar com ela! Quem não sabe, padece!
A família pode ser origem dos mais graves infortúnios. Ser trdo pela esposa ou “ter um
marido bêbado dentro de casa” são apontados como as maiores desgraças que podem acontecer a
uma pessoa. O menino de treze anos atesta esta constatação:A família boa e a má. A família é algo
muito especial para quem sabe lidar com ela. A família é, às vezes, complicada porque tem uma
pessoa que faz destruí-la, mas se tem pessoas que ajudam os seus familiares, tem exemplos de
família boa e família . [sic] 1º. Exemplo: A família boa é aquela que faz tudo para ter a paz no
lar da sua família, os pais não bebem e nem brigam, eles se amam muito. 2º. Exemplo: a família má
é aquela que destrói outras famílias e traem seus maridos ou esposas(D. 13. M Futura família).
Uma família destrda é aquela na qual traição entre os cônjuges, muita bebedeira e, por fim,
aquela na qual os filhos não respeitam os pais.
Como discorri acima, parece que o ideal de mulher dessas meninas é aquele da dona de casa
dedicada ao lar e à família. Ao que parece, o bom pai é aquele que provê para o sustento da família,
colocando a comida na mesa. A boa mãe, por sua vez, as coisas aos filhos quando eles pedem.
Inclusive “besteiras”, como balas, pelotas (pirulitos), pipocas. Em situação de dificuldade
econômica, a perícia materna em prover as necessidades dos filhos é altamente apreciada. S. 12. F (o
pai e a mãe) escreveu sobre a sua e: Ela cuida da casa e quando a gente esta precisando de
alguma coisa ela compra ou arruma”. Ao pai, geralmente não se pede “besteiras”. O bom pai é
aquele que tem coragem de lutar pela felicidade dos seus filhos e da sua mulher, isto é, não deixando
faltar nada de essencial. L. 12. F (uma família) descreve um pai exemplar como (...) uma pessoa
[...] com coragem de lutar pela felicidade dos seus filhos”. Um pai assim é aquele que não é
preguiçoso, que, na necessidade, “pega qualquer serviço” e, principalmente, não desperdiça o
dinheiro com bebida. L. 12. F (futura família) escreveu sobre a sua futura família: Essa é a família
que eu queria ter. Gosto que meu marido seja bom para os meus filhos. Gostaria que ele não
bebesse cana, porque se tem uma coisa que eu não gosto é que o meu marido seja cachaceiro”.
Quando as crianças dizem que não o beber quando crescerem ou que bons pais não bebem,
elas se mostram sensíveis a uma realidade cotidiana, principalmente masculina. De fato, a
quantidade de bares na cidade é motivo de piadas elaboradas pelos visitantes e pelos moradores
locais. Como opina esta menina (J. 11. F redação sobre Catingueira): Catingueira é uma cidade
pequena e tem 26 ruas e 285 árvores. (...) Catingueira é uma cidade simples, mas é muito boa de se
91
viver. Aqui de ruim tem os bêbados se não, não teria nada de ruim, coisas boas”. Como em toda
cidade, existem pessoas que abandonam a vida social em virtude da bebida. Chegam a dormir na
rua, tomam cachaça no lugar do cacom leite pela manhã e acabam sendo objeto de troça pela
cidade. Em Catingueira, algo em torno de oito personagens como esses. Digo personagens
porque, com o tempo, esses homens passam a exercer certo fascínio na populão. Se, por um lado,
eles são considerados uns sem-vergonha, de outro são também tido como engraçados, dignos de
pena, inocentes e, por fim, timas da cachaça. Um destes personagens era muito querido por toda a
gente. Veio a falecer afogado no Açude do Prefeito, o que colaborou para o aumento da sua fama.
Quando se fala no seu nome, sempre pesar por sua morte, e contrição na voz. Ele era tido como
uma boa pessoa, mas que se deixou levar pelo vício. No entanto, se há um julgamento moral contra a
fraqueza dos bêbados, também uma crea difundida de que a cachaça é sempre mais poderosa
que o homem e, talvez por isso, os bêbados são, no fundo, perdoados. A potência da bebida alcoólica
está parcialmente associada ao demônio tanto que os crentes abstêm-se por este motivo. L. 12. F
(A pior coisa do mundo) escreveu, ele [o cão] é muito mau, ele faz com que o povo beba”. A
menina em questão não é crente. Ela assiste as reuniões no Centro espírita e, às vezes, vai à igreja
católica. Interessante observar que não parece haver diferença entre as crianças evangélicas,
católicas ou espíritas, quanto ao repúdio à bebida alcoólica. As crianças, independentemente da sua
religião, parecem condenar o consumo de bebida alcoólica.
No entanto, para o homem adulto não-crente que beba depois do trabalho e nos fins de
semana, a bebida é vista como instrumento de diversão e relaxamento. Não há mal algum em beber,
desde que a bebida não o impeça de trabalhar e respeitar a moral e os bons costumes − apesar de um
rapaz que evite a companhia de bebedores renomados ser elogiado principalmente pelas senhoras na
idade de serem sua sogra. Avançando um pouco, é verdade que um homem que não beba e não seja
crente, é tido como um ser um tanto deslocado. Beber faz parte do status masculino. Mulheres
também bebem, mas encontram alguns preconceitos por parte da sociedade. Por isso, muitas
mulheres, principalmente as solteiras, o bebem nos bares pela cidade, mas convidam as amigas
para beber em sua casa. Nestas ocasiões, elas pedem a um irmão ou amigo, a alguém de confiança
do sexo masculino, que faça a compra das bebidas na venda sem, é claro, mencionar o seu nome.
Ouvi mais de uma vez mulheres solteiras dizendo: “Eu sou mulher de beber em bar?”, negando o
convite de algum rapaz para ir para um bar. Isso não quer dizer que esta mulher nunca beba em
bares, mas a exortação funciona como uma boa desculpa quando ela o quer a companhia daquele
rapaz.
Entretanto, é importante ressaltar, algo a que se orgulhar nas bebedeiras. A memória de
bebedeiras passadas é sempre reavivada, relembrando os laços sociais criados na ocasião (quem
estava presente, quem namorou quem, quem bebeu mais, quem dormiu primeiro, quem perdeu o
92
controle etc.). De um lado, a bebida mais popular, a cachaça, é também a mais perigosa e
socialmente reprovável. Bebe-se também rum com refrigerante, vista como uma bebida mais
sofisticada que a primeira. Bebe-se pouca cerveja porque ela é considerada cara e pouco efetiva para
o embebedamento. A cerveja é, em grande medida, uma bebida que as mulheres podem beber sem
correr o risco de macular sua fama ao passo que o sque, apesar de ser a bebida mais apreciada e
o seu bebedor ser considerado um sujeito de prestígio e bens, é, impeditivamente, caro. As crianças,
por sua vez, podem experimentar bebidas alcoólicas por volta dos oito anos de idade. Aos treze ou
catorze anos de idade, um menino pode ser um bebedor assíduo, principalmente se provê seu
próprio sustento.
Como já adiantei acima, quando pedi que desenhassem a família atual, algumas crianças
ficaram na vida entre desenhar as pessoas que moram na sua casa ou desenhar aqueles que elas
consideram como a sua família. Na maioria dos casos, as crianças desenharam as pessoas que
moram na sua casa, incluindo tios (as), avós (os), primos (as), irmãos (ã), tia-avó (vô), sobrinho (a)
etc. Alguns insistiram em perguntar: é para desenhar quem mora na minha casa?”
91
. A pergunta
evidencia a diferença entre morar na mesma casa e ser da família. Um menino de treze anos de idade
(D. 13. M) mora com uma madrinha, mas desenhou a sua e e seus irmãos biológicos, enquanto
outra menina (Y. 10. F) desenhou quem mora na sua casa. Parece que as crianças elegem, do seu
cotidiano, as pessoas que são consideradas como parte da família. A família, desta forma, não é uma
categoria rígida; ao contrário, ela muda circunstancialmente. J. 11. F incluiu a mãe em um desenho
de família, e em outro a excluiu, porque [ela] tinha fugido de casa com outro homem”. A realidade
familiar parece ser retratada de acordo com as preferências afetivas circunstanciais da criança. No
caso de duas crianças, irmãs entre si, uma delas incluiu o atual marido da mãe no que ela denomina
família, enquanto que a outra, não. Ser considerado como parte da família depende da relação que a
criança estabeleça com aquelas pessoas naquele determinado estágio da vida. Por exemplo, uma
criança (menino de treze anos de idade, J. 13. M) desenhou o seu pai falecido. Ao passo que outro
menino da mesma idade (D. 13. M), e que também tem o pai falecido, não o desenhou. De forma
parecida, uma menina de sete anos de idade incluiu no desenho dois tios já falecidos.
A configuração familiar, ou melhor, os membros de uma casa, extrapolam a família nuclear,
entre outros motivos, porque parece existir uma circulação intensa de pessoas entre resincias. Em
Catingueira, por exemplo, é comum “pegar” uma menina para criar, a fim de que ela ajude nas
atividades domésticas. Pensando a longo prazo, espera-se que ela cuide dos seus pais adotivos
quando estes tornarem-se idosos. Esta menina vai freqüentar a escola, mas nunca como prioridade na
sua vida. Este tipo de adoção não é visto como exploração infantil, nem como caridade. É, como
deve ser, parte do equilíbrio doméstico das famílias da cidade. Uma família com muitos filhos, ou
91
Respondi que elas podiam desenhar o que quisessem.
93
em situação financeira precária, ficaria feliz em ceder uma das crianças para morar com uma outra
família, se esta última precisasse de mais uma criança para ajudar na lida da casa. Ceder uma menina
o implica na chamada adoção plena, na qual o adotado passa a ser efetivamente filho dos
adotantes, em caráter irrevogável e de forma plena. A criança em Catingueira, nesta situação que
estou descrevendo, nunca será adotada formalmente: continuará a chamar a sua mãe biológica de
“mãinha” e o pai biológico de “painho”, e os visitará freqüentemente podendo até, eventualmente,
passar a noite na casa dos pais biológicos. Dependendo da relão que estabelecer na casa onde
passará a morar, esta menina pode passar a chamar a mãe adotiva de “mãe” e o pai adotivo de “pai”.
A família que “pega” a menina para “ir morar” na sua casa pode ter ou não filhos na mesma idade da
que é “adotada”, mas esta menina será tratada de maneira diferente em relação aos filhos naturais do
casal. Quando pedi que as crianças vivendo nesta situação desenhassem a sua família, elas
desenharam invariavelmente a sua família biológica, e não a família com a qual elas residem.
Da mesma forma, há uma grande circulação de crianças dentro da própria família. Quase
todas as avós e avôs têm um ou mais netos que moram com eles e que passam a lhes chamar de mãe
ou “mãinha”, pai ou painho”. Destarte, parece que as crianças vão morar com outras famílias
quando os adultos necessitam dos seus serviços ou, simplesmente, da sua companhia. Cito como
exemplo o fato de que acredita-se, em Catingueira, que ninguém deve dormir sozinho: uma vez um
mal-estar repentino pode advir durante a madrugada, deixando o sujeito à mercê de ajuda alheia.
Estar abandonado ao próprio destino, sem ter a quem pedir ajuda, parece habitar os medos dos
catingueirenses. Conta-se que uma senhora com a saúde debilitada havia pedido que a filha da
vizinha dormisse com ela, mas esta lhe negou o pedido. Na manhã seguinte, a senhora foi
encontrada morta. Os moradores asseguram que ela poderia ter sido salva se tivesse alguém perto,
para lhe socorrer. Dessa forma, quando uma pessoa está provisoriamente sozinha no caso de
viagem dos membros da casa −, ou quando mora sozinha (caso raríssimo), ela vai sempre contar
com a companhia de uma criança que vem à noite simplesmente para dormir na sua casa
92
. Assim
que a criança acorda, ela vai para a sua casa (ela o janta, nem toma café da manhã na casa onde
está dormindo o que poderia ser motivo de alegria para a mesma). Para os habitantes de
Catingueira, era inadmissível que eu dormisse sozinha. Muitas mães ofereceram as suas crianças, e
até mesmo as próprias crianças ofereceram-se para me fazer companhia à noite, dormindo na minha
casa. Muitas vezes, eu aceitei.
92
Conheci um senhor idoso, SJG., cujo único filho (adotivo) havia falecido e cujos netos o moravam na cidade.
Como não tinha “família” e, conseqüentemente, não tinha ninguém a quem pedir tal favor, ele pagava um menino para
dormir com ele. Se não me engano, eram R$ 20,00 mensais (em 2005). Este senhor é um dos casos raros de pessoa que
mora sozinha. Mas ele não se cansava de reclamar da sua situação, a qual é vista com piedade por toda a população. Ele
sempre dizia a quem fosse lhe visitar: Morreu tudo, não tenho pai, e, irmão, irmã, mulher, filho. Morreu tudo.
Rebhun (1999:57-59) acentua o fato de que os brasileiros, principalmente os nordestinos, raramente apreciam a solidão:
People consider an experience not shared an experience not fully savored (1999: 57).
94
Além de companhia noturna, as crianças também, muitas vezes, são pensadas como reservas
para o futuro, para quando os pais tornarem-se velhos. Espera-se que os filhos tomem conta dos pais
e os supra materialmente tão logo possível. Por tudo isso, observa-se que, constantemente, as
crianças são concebidas como propriedade dos adultos, habitando o mundo para servi-los. Parece-me
plausível afirmar que as crianças existem, em grande medida, para tornar o fardo dos adultos mais
leve – de variadas maneiras.
4. Conclusões
Catingueira é uma cidadezinha do interior do Brasil que, como muitas outras, não possui
autonomia financeira e depende do governo federal para saldar despesas cotidianas, como a folha de
pagamento dos funcionários. A cidade sofre com a estiagem, como todas as cidades do semi-árido
brasileiro. Luta contra altas taxas de analfabetismo. Luta contra a desnutrição e subnutrição, e toda
sorte de problemas decorrentes destas. A cidade não oferece perspectivas de crescimento econômico
aos seus habitantes, que muitas vezes optam por emigrar para conseguirem melhorar de vida. Como
se o bastasse, Catingueira tem os seus poticos envolvidos em escândalos de corrupção de nível
nacional.
Na sua grande maioria, a configuração familiar ideal, ressaltada pelas crianças isto é, a
família nuclear −, não corresponde à realidade atual. No que diz respeito às aspirações infantis
quanto ao futuro, seus sonhos e desejos pessoais, todas as crianças que desenharam sobre o futuro
colocaram-se numa posição de adultos casados com filhos. Algumas meninas acentuaram a
necessidade de trabalhar para prover todas as necessidades dos filhos. No entanto, a maioria das
meninas se imagina no futuro como donas de casa zelosas. Aos meninos, futuros maridos, cabe o
dever de sustentar a família: em outras palavras, de colocar a comida na mesa.
A exisncia das crianças, em grande medida, é pensada como meio de suprir as necessidades
e desejos dos adultos. Isso foi constatado quando elas são objeto de divertimento por parte das
crianças maiores e dos adultos. Vimos também que os bebês estão à mercê dos caprichos das
meninas pré-adolescentes que, apesar de serem responsáveis por pajeá-los, também se divertem à
custa deste trabalho. Além disso, vimos que as crianças servem aos adultos até na sua morte, que
um anjinho no céu resulta em proteção divina. Da mesma forma, as crianças tornam-se
imprescindíveis na organização doméstica familiar sob as variadas formas destacadas anteriormente
(companhia durante a noite, resincia fora da família biológica, suprimento material e afetivo assim
que se tornam adultos). De outro lado, parece-me inútil centrar a análise na “exploração” das
crianças pelos adultos, como o faz certa parte da literatura especializada dado que essa mesma
exploração” acaba por proporcionar uma tomada de poder pelas crianças, na medida em que elas se
95
tornam ferramentas imprescindíveis para o bom funcionamento da unidade familiar e, de modo mais
geral, de toda a comunidade.
96
CAPÍTULO 3: Quem tem medo de mal-assombro?
“This is not a world where ancestral shades are remote presences, creations of theological
imagination. They are part of the daily social life of Kwaio communities”
Keesing 1982: 113.
1. Introdução
Este capítulo tem como objeto analisar o que são os mal-assombros do ponto de vista dos
adultos e das crianças. Além disso, pretendo analisar como o conceito de mal-assombro transforma-
se ao longo dos anos, discorrendo sobre o processo que culmina com a cristianização das crianças
paripassu a cristianização dos mal-assombros. Discuto, a partir disso, em que medida crescer em
Catingueira implicaria em conversão religiosa. Por fim, investigo em que idade verificam-se as
maiores taxas de medo de mal-assombro para, dentre outras, discutir a hipótese de um crescimento
etário em termos de desbastamento religioso.
2. Sobre a definição do mal-assombro
Para discutir os mal-assombros, é preciso, primeiramente, defini-los. Para um indivíduo
adulto, mal-assombro, em poucas palavras é a alma de uma pessoa que faleceu e que, por algum
motivo, estabelece contato com os vivos. Grande parte dos mal-assombros são almas que não
encontraram seu rumo depois da morte. Algumas foram timas de mortes trágicas e, dado o caráter
surpresa do seu falecimento, ainda o tiveram tempo para se acostumarem com a sua nova
condição. Estão perdidas no mundo dos mortos
93
. Neste caso, as almas estão em situação de risco.
Estas almas são consideradas presas fáceis para o Cão
94
. O mal pode facilmente apoderar-se delas e
93
Segundo Jean Delumeau (1996) “[...] tinham particular vocação para a vagueação post mortem todos aqueles que
não se haviam beneficiado de um falecimento natural e, portanto, tinham efetuado em condições anormais a passagem
da vida ‘a morte – logo, defuntos mal integrados a seu novo universo [...]. A essa acrescenta-se uma outra categoria de
candidatos-fantasmas: aqueles que haviam morrido no momento ou na proximidade de um rito de passagem que, por
essa razão, não se realizara (fetos mortos, casados falecidos no dia das bodas etc.).” (: 95). Em outro contexto, Eloísa
Martin (2006), na sua tese de doutorado, explica, para o caso dos mortos transformados em santos, como não apenas as
almas vítimas de mortes trágicas podem ser acionadas pelos vivos: Mas, como vimos, não é apenas a morte anômala o
que permite a ação de quem transpôs a fronteira da vida, pois para os nativos, para qualquer morto podem ser pedidos
favores e, dentro de acordos similares de etiqueta e possibilidade, eles vão atender esses pedidos” (: 241).
94
Ou também chamado de Demônio, Diabo, Maligno, Encardido, Satanás, O das Trevas, Inimigo, Medonho, Bicho.
Algumas crianças relutavam em proferir estes nomes, com medo de que o referido lhes aparecesse. Quando as instigava
a dizê-lo, fazendo-me de desentendida, elas muitas vezes diziam: “Aquele”, “O que anda pela noite”, “O malvado”...
Veja os exemplos a seguir, tirados da rie de livros infanto-juvenis Harry Potter” (ROWLING 2000a, 2000b). Os
professores Dumbledore e Minerva discutem sobre o mal e Dumbledore diz a ela: "Minha cara professora, com certeza
uma pessoa sensata como a senhora pode chamá-lo pelo nome. Toda essa bobagem de Você-Sabe-Quem, onze anos
venho tentando convencer as pessoas a chamá-lo pelo nome que recebeu: Voldemort.- A professora franziu a cara, mas
Dumbledore, que estava separando dois sorvetes de limão, pareceu não reparar. - Tudo fica tão confuso quando todos
97
fazê-las sua companheira nas suas artimanhas. Embora as almas com tendência para a maldade
sejam as primeiras a ser recrutadas pelo Cão para agirem como mal-assombro, almas boas também
podem ser usadas pelo Mal como mal-assombro, principalmente quando se encontram perdidas
95
.
O que parece estar em jogo é um processo de diabolização ou divinização dos mal-assombros
que seguem padrões diferentes se compararmos cada ramo do cristianismo presente na cidade.
Para os crentes, indubitavelmente, os mal-assombros o obra do Diabo. Se a alma de um familiar
falecido lhe aparece, o crente deve duvidar da aparição. Se a alma lhe pede qualquer favor, o crente
o lhe deve obedecer. Para o crente, a aparição de uma alma é um Demônio transfigurado naquela
pessoa querida, com o objetivo de fazer crer aos seus familiares, para enganá-los, para dissuadi-los a
fazer o que a alma pede. Ou seja, obedecer ao Demônio. Interessante notar que, dentre os pedidos
das almas, os mais comuns são missas e rezas”
96
curiosamente, práticas católicas. O fato das
almas pedirem tais oferendas é uma prova de que a aparição não é do bem, porque tais práticas não
são de Deus”, diriam eles. Outro motivo refuta a possibilidade da vinda da alma de um morto à terra:
segundo os evanlicos da Assembléia de Deus sediada em Catingueira, uma pessoa que morre fica
dormindo esperando o julgamento final. Isto prova que a aparição da alma do familiar não é o
próprio, porque este deveria estar dormindo mas, sim, o Diabo que usa sua aparência física para
fins obscuros. Além disso, muitos crentes apóiam-se na parábola blica do livro de Lucas, capítulo
16, versículos 19 a 31, para contraporem-se à possibilidade de visitas do além–túmulo. Na parábola,
o mau rico, depois de morto, pede ao Pai Abraão que mande Lázaro avisar aos seus irmãos dos
males do inferno, enquanto eles ainda estão vivos. Pai Abraão nega, dizendo que os que estão vivos
têm os profetas para os orientarem. Com isso, segundo os crentes, fica provado que os mortos não
podem se comunicar com os vivos
97
.
não param de dizer "Você-Sabe-Quem". Nunca vi nenhuma razão para ter medo de dizer o nome de Voldemort. -Sei que
não vê -disse a professora parecendo meio exasperada, meio admirada - Mas você é diferente. Todo mundo sabe que é o
único de quem Você-Sabe... ah, está bem, de quem Voldemort tem medo” (ROWLING 2000a: 15). Ou ainda, depois de
escapar de Voldemort, Harry no hospital conversa com Dumbledore: - Professor? - disse Harry. - Estive pensando...
professor. Mesmo que a Pedra tenha sido destruída, Vol...quero dizer, o Senhor-Sabe-Quem... - Chame-o de Voldemort.
Sempre chame as coisas pelo nome que têm. O medo de um nome aumenta o medo da coisa em si” (ROWLING 2000a:
254). Além disso, no segundo livro da rie “Harry Potter”, a autora refere-se ao mal como Ele-Que-Não-Deve-Ser-
Nomeado(2000b: 20, 82).
95
O fato aponta para a importância de noções vindas do espiritismo, principalmente kardecista. Bernado Lewgoy (2001)
aponta a importância da síntese entre o catolicismo e o espiritismo kardecista na constituição de uma “cultura brasileira”.
Ele afirma: “[...] a dominante cultura católica brasileira impregnou os diferentes espaços sociais, tradições e atores que
vivenciam o espiritismo no cotidiano das grandes cidades brasileiras, operando-se de uma síntese original de
catolicismo e de kardecismo, que ganha uma definitiva referência nacional na vida e na obra do médium mineiro [Chico
Xavier]”.
96
Ao contrário de “rezar” associado ao catolicismo os crentes “oram”.
97
Os espíritas kardecistas rebatem a interpretação da pabola, dizendo que o que impede a comunicação entre Lázaro e
os parentes vivos do rico mau é a disparidade no que diz respeito à sua evolução moral. Lázaro é bom e, morto, foi para
um bom lugar. Segundo eles, após a morte, cada alma se encaminha para um lugar condizente com o seu grau de
desenvolvimento espiritual. O rico era mau e quando faleceu foi parar em um lugar de sofrimento. Estes dois mundos
não são comunicáveis. O rico mau faz a primeira tentativa de comunicação quando pede a Lázaro para molhar a sua
língua com um pouco de água. Mas Pai Abraão não permite, dizendo que na vida ele teve do bom e do melhor, e o
dava a Lázaro nem as migalhas do seu pão. Ele tenta comunicar os mundos do bem e do mal novamente, pedindo que o
98
Reconhece-se imediatamente, o seu pacto com o Demônio, quando as almas não têm outro
objetivo senão assombrar
98
. Este estaria elaborando uma armadilha para desestabilizar
emocionalmente o crente que tem a visão do mal-assombro. Em uma entrevista, uma fiel da
Assembléia de Deus, de quarenta anos de idade, casada, mãe de três filhos, referiu-se ao fato como
uma tentativa do Demônio de fazer-lhe cair em depressão.
NP.: Uma vez… eu… (conversa paralela) uma vez tinha uma festa ao lado do coreto. Se fosse
uma pessoa humana andando dentro de casa você num ouvia. Uma pessoa humana andando… num
ouvia não. Eu tava naquele sono, quando a pessoa quer abrir o olho e não consegue. Aí eu ouvi
aquele arrastado pro meu lado, aquele arrastado, pro meu lado, eu digo, ‘oxente’. (F: E tinha festa
no coreto?) Era um barulho dentro de casa se uma pessoa fosse andando dentro de casa você não
conseguia ouvir uma pessoa pisando dentro de casa. Inclusive, o arrastado, se você vê, o arrastado
era P.. Mas porque ele [o Diabo] se aproveitou que eu estava muito assim... eu cuidei muito dela
[quando P. estava para morrer], eu fiquei muito assim… a gente sempre fica, né, com... Mas o jeito
que ele veio foi pra me assustar, o jeito que ele veio. Pra eu me impressionar que eu tava vendo P. e
depois eu caí numa depressão, num é? E ele aproveitar! E ele achar uma brechinha, ele entra
mesmo. Aquele arrastado atrás. Eu naquele sono assim, eu queria abrir o olho e não conseguia.
ela foi chegando perto de mim assim me deu um assopro tão grande no meu ouvido! Naquele sono
assim eu disse: ‘oxente, P. já veio pra gente fazer caminhada?’ Mas isso era bem 12 horas da noite.
Ela deu aquele assopro no meio ouvido, eu me assustei.
F: E ela já tinha morrido?
NP.: Já. eu olhei assim e não vi nada. ‘Oxente, o que foi isso?’ Eu disse: ‘tá repreendido,
repreendido, Satanás’. Aí eu me levantei, fui na cozinha, tomei água, foi me deitar eu adormeci.
foi repreender… você pensando que eu tenho medo? Meu Deus é poderoso e não me deixa
temer”.
Para os católicos, por sua vez, o mal-assombro pode ser realmente a alma de uma pessoa
falecida muitas vezes, um parente. Neste caso, a alma do parente morto interfere para o bem ou
para o mal na vida cotidiana da família que permanece viva. Quando uma alma interfere
positivamente no dia-a-dia dos vivos, reconhece-se que ela se encontrou no mundo dos mortos.
Sua ação, neste caso, é intencional. Quando a alma de um parente interfere negativamente na vida
dos familiares ela é tida como um espírito ignorante das regras do além-túmulo. Considera-se que
esta alma encontra-se perdida. Suas ações têm conseqüências nefastas, mas ela não tem controle
sobre as mesmas porque ignora como se relacionar de maneira saudável com os vivos. Reconhece-se
que este tipo de alma está em sofrimento e necessita de ajuda. A ajuda pode vir dos vivos. Eles
devem parar de chorar pelo morto para que ele possa seguir seu caminho e, ao mesmo tempo,
oferecer-lhe missas e orações. Os espíritas também mandam celebrar missa na intenção da alma de
Pai mande zaro avisar seus irmãos ricos (e maus) que estão na terra das agruras do além túmulo. Pai Abraão
novamente não consente, dizendo que se os vivos não ouvem os profetas, não hão de ouvir os mortos. Segundo os
espíritas kardecistas, a impossibilidade de comunicação, que vem desde o tempo em que eram vivos, é dada pela
diferença na evolução moral de ambos e não, como pensam os crentes, pela impossibilidade de comunicação entre o
mundo dos vivos e dos mortos.
98
Seria interessante explorar a relação entre os vocábulos “assombramento” e “mal-assombro” com “sombra”, enquanto
ausência da luz, escuridão; em algum sentido, ausência de Deus.
99
parentes falecidos. O mesmo não ocorre com os crentes, que concebem os mal-assombros de modo
bastante díspar em relação aos católicos e espíritas.
Para os católicos e os espíritas, ao contrário dos evangélicos, os mal-assombros podem ser
obra de Deus quando, por exemplo, uma alma aparece em sonho para indicar o lugar onde enterrou
uma botija de ouro. Entende-se que Deus permitiu que ela viesse em sonho para dar a botija a algum
familiar. Neste caso, trata-se de uma concessão divina, uma vez que a botija enterrada pode impedir
que o seu dono entre no céu, atormentado com o desperdo da fortuna de toda a sua vida. Deus, na
sua infinita bondade, concede que a alma venha à terra fazer o que deveria ter feito em vida: dar o
dinheiro a alguém que, de outra maneira, ficaria para sempre perdido. Assim, neste caso, a alma
que aparece em sonho é um enviado de Deus, que trará o bem para quem sonha com ela (ficará rico
se seguir seu conselho) e, ao mesmo tempo, para ela própria (livrar-se-á do que o impede de entrar
no reino dos céus).
Conta-se que as botijas de ouro remontam ao tempo em que os cangaceiros andavam pela
região de Catingueira. Os mais ricos, temendo um assalto às suas fortunas, escondiam as moedas de
ouro e outros bens preciosos dentro de um caixote de madeira ou metal, chamado de botija, e o
escondia em um buraco no chão ou na parede da casa onde moravam. Na ausência de bancos nas
pequenas cidades no interior do nordeste, as botijas funcionavam como alternativa para manter as
economias seguras. Geralmente, o patriarca da família era quem “enterrava” secretamente a botija.
Podia acontecer da morte ou outra adversidade levar este senhor desta casa sem que ele tenha tido
tempo suficiente para desenterrar ou dar” a botija para alguém. Por isso, são comuns estórias de
sonhos, nos quais a alma de quem enterrou a botija vem “dá-la” para seu escolhido. Neste sonho, ele
indica com precisão onde ela está enterrada e descreve as exigências que o escolhido deve cumprir
para conseguir desenterrá-la e gozar de vida rica a partir de então. As exigências são como um teste
de coragem, no qual muitos falham. Entre as exigências, muito geralmente, o escolhido deveria ir
sozinho ao local determinado e exatamente à meia noite cavar” a botija. Diz-se que se o medo
impedir o sujeito de ir sozinho à meia noite ao local devido, a botija não seria encontrada, mesmo
que procurada no lugar exato onde teria sido enterrada. Da mesma forma, a botija não pode ser
encontrada por pessoa a quem ela não tenha sido dada (em sonho pela alma). Mas isto não impede
que as casas antigas abandonadas sejam constantemente timas de caçadores de botijas, que cavam
buracos em todos os cantos da casa e derrubam paredes em busca do tesouro. Além disso, casos
de desaparecimento de moradores da cidade que são explicados a partir de botijas. Uma pessoa que
encontra uma botija tende a ir embora da cidade a fim de evitar a cobrança dos espólios pelos
herdeiros. Na região, acredita-se que todas as casas antigas de famílias remediadas ou ricas têm ou
tinham uma ou mais botijas. Alguém deve ter se beneficiado das botijas, pensam os catingueirenses.
Á parte, as botijas de ouro são um tema muito interessante de pesquisa e podem render contribuições
100
para o estudo da economia, do cangaço, da religião, do parentesco e família na rego do semi-árido
nordestino, além de ter análogos em outras regiões do mundo (CAPABLANCA: s/d).
Adicionalmente, as botijas são temas freqüentes na literatura de cordel. Vide o exemplo a seguir:
Certa noite ele dormia
Embalado por Morfeu
Na beira da sua rede
Uma alma apareceu
Dizendo não tenha medo
Contou-lhe todo o segredo
Grande fortuna lhe deu (KLÉVISSON & VIANA 1999: 08).
Também se entende como uma permissão divina se a alma de uma pessoa querida aparece
para dar uma notícia. Há relatos de pessoas que tomam conhecimento da morte de um familiar
próximo através da alma deste mesmo que vem lhe avisar. Muitas vezes, a alma não avisa sobre a
sua morte, mas apenas profere palavras de conforto a fim de preparar seu ente querido para a triste
notícia que está por vir. O vidente, sem entender o que se passa, indaga ao familiar morto quanto à
sua repentina aparição, sem dar-se conta de que se trata apenas da sua alma. Uma mulher me contou
que a alma da sua mãe veio lhe avisar da sua morte. Era bem de manhãzinha, e quando ela foi lá ao
fundo do “muro(quintal) buscar não sei o que”, viu a sua mãe sentada em um tamboretinho. Ela
se espantou e disse: Oxê mãinha, tão cedo a senhora aqui na minha casa! Por onde foi que a
senhora entrou que eu não vi?”. Outra pessoa contou-me que chegou até a oferecer comida para a
alma que, por sua vez, não aceitou, dizendo que estava com pressa e o podia demorar-se muito.
Muitas vezes, o vidente se dá conta da morte do familiar quando chega a notícia do seu
falecimento por outras vias. Há, também, outras almas que aparecem para dar conselhos aos vivos
ou trazer conforto em situações difíceis. Além disso, se alguma pendência que impeça aquela
alma de purificar-se o necessário para entrar no reino de céus por exemplo, uma goa não
resolvida , Deus pode permitir que ela venha à terra a fim de resolver a questão. Em um momento
de necessidade, uma alma também pode ajudar a um vivo espiritualmente, dando um conselho ou
sugestão e, até mesmo, materialmente. Pode acontecer também de Deus permitir que a alma venha à
terra somente para consolar a sua família querida e pedir que parem de chorar por ela, assegurando
que se encontra em um bom lugar. Para os católicos e espíritas, em todos esses casos as almas são
associadas ao bem. Parece-me que a aparição dos mal-assombros pode ser pensada como uma
concessão divina em função dos vivos ou dos mortos pelos católicos e espíritas. Mas para os crentes,
diferentemente, não alma que venha fazer o bem, porque todas elas são enviadas pelo Demônio.
Mesmo que ela venha anunciando uma boa notícia, o bem vai reverter-se em mal posteriormente.
Por exemplo, no caso de uma botija de ouro, a riqueza vai ser amaldiçoada, trará discórdia na
família, será causa de brigas e desentendimentos.
101
De outro lado, há, ainda, almas que vêem buscar auxílio indireto entre os vivos. Por não
conhecerem outro caminho senão aquele, elas acabam tomando o caminho da casa onde moravam
quando vivos. Neste caso, elas são comumente vistas executando tarefas cotidianas, como se ainda
vivessem naquela casa. Por exemplo, tomando café no seu lugar preferido da mesa ou costurando na
sua máquina de costura. Muitas vezes, as almas não m interesse em assombrar. Apenas querem
viver ali, como viviam no passado
99
. O problema é que o tarda a algum vivo percebê-las de
alguma maneira mais comumente pela visão ou por sonho. Veja a estória de uma adolescente de
quinze anos de idade: “Um certo dia minha vó me contou que ela estava vindo do Rio para
Catingueira e que na metade da viagem ela passou pensando em fantasma. Ao chegar de viagem ela
foi se deitar para descansar e passou parte do sono sonhando com fantasmas. Às três horas ela se
levanta e diz: “ainda bem que foi um sonho”. Quando ela ouve o chamado “Zumira, Zumira”! Era
a voz do falecido marido. Um ano depois se levantou para fazer café quando terminou, foi buscar a
caneca e quando voltou viu com seus próprios olhos o seu marido falecido tomando café. Na hora
ela desmaiou.[...].”(FFF. 14. M. 5)
100
. Muitas vezes, no intuito de se divertir à custa do medo que
provocam nos vivos, algumas almas gostam de fazer barulhos, chamar pelo nome das pessoas, ou
mover as coisas de lugar. Este tipo de mal-assombro peralta é geralmente reconhecido como a alma
de uma criança que faleceu crescida o bastante para não poder ser considerada um “anjinho” e, ao
mesmo tempo, pequena o bastante para não poder ser corrompida pelo mal
101
. (Para maiores
detalhes sobre o estatuto das crianças pequenas, refira-se ao Capítulo Dois).
Se, no entanto, a intenção da alma é fazer o mal através do assombramento, reconhecem-se,
neste caso, segundo todas as religiões em questão, que este mal-assombro não é um enviado de
Deus. Vale enfatizar que, em alguns casos, também os católicos e os espíritas reconhecem que as
suas ações estão associadas ao Demônio. Isso ocorre, por exemplo, quando os habitantes de uma
casa são repetidamente acordados com barulhos estranhos, quando objetos mudam de lugar sem
explicação, ou quando a TV ou o rádio ligam sozinhos, causando medo demasiado. Igualmente,
quando uma pessoa tem pesadelos perturbadores e vies ameaçadoras, ou quando, sem outros
99
O leitor poderá estar se perguntando se não haveria, neste contexto, almas consideradas “bem-assombros”. Argumento
que o referido o existe porque, em princípio, a aparição de almas causa medo (o que é considerado intrinsecamente
ruim). No entanto, como ficará claro a seguir, o assombramento de um familiar morto não deve perdurar, sendo possível
estabelecer outras relações que ultrapassam o medo inicial.
100
Vide mais um exemplo: O mal-assombro: O mal-assombro. Era uma vez uma estória muito engraçada. Minha avó
Celeste ela tinha morrido. E ela gostava muito de costurar as roupinhas dela na máquina. Aí meu pai, tinha ficado lá, e
os meus tios tinham vindo para Catingueira. E o meu pai estava em Campina onde a minha avó que tinha morrido. Ele
ficou lá, ele escutou a zoada da máquina. Ele estava dormindo ele se acordou e foi olhar e a máquina estava do
mesmo jeito. Quando meu pai estava contando a eu, eu o estava acreditando, mas várias pessoas dizem que é real”.
(LSB. 11. F. 23). Seria interessante citar o artigo de Marcio Goldman (2003), no qual o antropólogo, ele mesmo, afirma
ter ouvido os tambores dos mortos, que poderiam ser ouvidos pelos iniciados. A partir do fato, Goldman tece
interessantes considerações sobre o trabalho de campo.
101
Jean Delumeau (1996: 95), citando o etnólogo polonês L. Stomma, que trabalhou em seu país com documentos da
segunda metade do século XIX, afirma que 38,6% dos casos de mortos transformados em “demônios” ou fantasmas são
de crianças mortas antes do batismo.
102
motivos aparentes, torna-se agressiva, doente, cai em depressão ou, ainda, quando em sua vida tudo
parece dar errado, mesmo quando ela está levando uma vida de acordo com o padrão socialmente
aceivel. Entende-se que lugar de morto o é em casa de vivos apesar disso muitos deles
parecem gostar de viver junto da família, no lugar onde moravam antes da sua morte. No caso em
que um parente morto esteja inoportunamente freqüentando a sua casa, os vivos devem, geralmente,
rezar por ele, acender velas, mandar celebrar missas, visitar e cuidar do seu túmulo, ou deixar de
pensar excessivamente nele. Em casos mais extremos, pode-se pedir ao padre, pastor ou presidente
do Centro espírita para ir àquela casa a fim de benzê-la ou fazer uma oração. Pode-se também
recorrer ao exorcismo, em casos extremos. No entanto, esta é uma possibilidade remota, que parece
o ter precedentes na cidade. É interessante constatar que, como será visto adiante, algumas
pessoas pedem a Deus a oportunidade de encontrar-se com determinadas almas. Assim, parece-me
que os mal-assombros podem ora ser tidos como bons, ora como maus; ora associados a Deus, ora
associados ao Demônio. O mal-assombro é, então, uma entidade ambígua, que vai ser definida de
acordo com as suas relações que, por sua vez, definem a sua atuação no mundo.
Como afirmei, muito comumente os mal-assombros aparecem” para os vivos através dos
sonhos e dos sentidos. Pode-se ver, sentir, cheirar e ouvir os mal-assombros. Todavia, parece ser a
visão o mais importante dos sentidos no contato entre os vivos e os mortos. Os mal-assombros se
dão a ver principalmente em três lugares diferentes, cujos primeiros dois chamarei de “não-cidade”
dado que, em muitas estórias ouvidas, os fantasmas são vistos “indo para a cidade”, assombrando
a cidade”, “invadindo a cidade”. São eles: 1) No cemitério, onde as mais altas taxas de aparição
de mal-assombro constatadas na pesquisa. 2) Na natureza: em lugares ermos, afastados das cidades,
como os tios e as florestas/matas. 3) Os mal-assombros podem aparecer também nas casas mal-
assombradas. As casas mal-assombradas podem ser divididas em: a) casas velhas abandonadas,
algumas vezes afastadas das cidades e, b) casas onde moram pessoas vivas. Os mal-assombros
podem fazer parte da família que ali habita ou habitava mas não necessariamente. Em princípio, é
possível afirmar que o habitat dos mal-assombros é o longe, o campo, o tio, o cemitério (que
também é geralmente distante da cidade), e as casas abandonadas pelos vivos. Quando permanecem
distante dos vivos, estão em paz. Eles e os vivos. O problema todo instaura-se quando eles vêem
habitar o mundo dos vivos e adentram as suas casas, tomando posse do que não mais lhes diz
respeito, mas que eles parecem ter dificuldade em compreender. Da mesma forma, quando os mal-
assombros habitam as casas abandonadas, parecem não incomodar demasiadamente os vivos;
todavia, começam a causar problema quando vêem habitar as casas onde os vivos moram
102
. Assim,
102
A Maria Fulozinha, por exemplo, reina na Serra da Catingueira, o mato é sua casa. Mas se os caçadores querem
adentrar sua casa e caçar um dos seus animais, devem em troca lhe fazer um agrado na forma de fumo, para mostrar que
são bons convidados. Questão de cortesia. Se, ao contrário, adentram sua casa sem reconhecer a dona, podem esperar
receber uma surra muito bem dada e merecida. É apenas quando a Chapeuzinho Vermelho vai pelo caminho da floresta
103
parece haver uma forma de organizar o espaço dos vivos e dos mortos: os vivos ocupam o espaço
que pode ser nomeado: a casa, a cidade, o dia, enquanto os mortos ocupam os espaços opostos aos
dos vivos, como: a não-cidade, o distante, a noite enquanto ausência de luz e claridade. A sugestão é
a de que, através dos mal-assombros, os catingueirenses parecem elaborar uma etiqueta que regula
os modos de relação entre os vivos e os mortos
103
.
Entretanto, aos mal-assombros parece ser sempre reconhecido algum grau de humanidade.
Apesar de habitarem preferencialmente lugares distantes ou desabitados por humanos, o que
chamei de o-cidade (cemitérios, natureza e algumas casas abandonadas), ao mesmo tempo, os
mal-assombros também habitam as casas onde moram os vivos, preferencialmente membros da sua
própria família. Junte-se a este fato a evidência de que os mal-assombros são freqüentemente
representados com alguma característica humana. Note que todos os mal-assombros desenhados
pelas crianças m pelo menos os olhos sendo que a maioria tem, além dos olhos, a boca. Muitos
outros têm o rosto humano completo, inclusive o nariz. Outros também têm os membros superiores
e inferiores. Alguns têm as mãos, que usam para segurar armas contra os vivos ou para assustar.
Mas um detalhe nos desenhos que me chamou a atenção: muitos mal-assombros também têm
umbigos. Ademais, alguns mal-assombros são desenhados exatamente como seres humanos, com a
mesma forma corporal de quando eram vivos. Sem falar que aos próprios mal-assombros são
imputados traços de personalidade, entre eles legais, amigos, alegres, malvados, “prezepeiros”
(travessos), horríveis, horripilantes, feios... Observe o Gráfico Um ao final deste capítulo. Nele,
estão ressaltadas as características sicas dos mal-assombros segundo as pessoas de três aos quinze
anos de idade, além de outros elementos destacados ao lado dos mal-assombros. Para um exemplo
de mal-assombro com umbigo, vide no CD Desenhos O mal-assombro: Desenho 11 O mal-
assombro B. 7. F. 6 e Desenho 17 O mal-assombro LR. 7. F. 9. Para um exemplo de mal-assombro
desenhado na forma de ser humano, vide no CD Desenhos O mal-assombro: Desenho 4 O mal-
assombro GF. 8. F. 11.
Analisando o Gráfico Um, percebe-se que os mal-assombros são largamente desenhados com
características humanas. O que considerei antropomorfo foram mal-assombros desenhados segundo
a forma do corpo humano ou com alguma característica humana, como cabelo, umbigo ou, por
exemplo, usando chapéu. Chamo de Gaspar” aqueles mal-assombros desenhados a la Gasparzinho,
onde mora o Lobo Mau que sua integridade física é ameaçada. Se escondido no mato, a presença do Lobo não
amedronta; aliás, nem é notada. (Para maiores informações sobre a Maria Fulozinha, recorra ao Índice de referências de
mal-assombros – Anexo 1).
103
Astuti (in press 2) argumenta que existe uma tensão, largamente estudada pela literatura sobre Madagascar, entre os
pedidos e os desejos dos ancestrais, e as aspirações e ambições dos vivos. A fonte da tensão reside no fato inexorável de
que o passado é diferente do presente e que as pessoas que viviam no passado não podem mais viver no presente. The
source of the tension is one simple, inexorable fact: that the present is different from the past and that therefore the
people who live in the present cannot be the same as the people who lived in the past” (: 9). Além disso, as necessidades,
assim como o tempo, mudam.
104
o Fantasminha Camarada, o que também poderíamos chamar de “mal-assombro-lençol”. A sua
forma física corporal é desconhecida, uma vez que um lençol cobre o seu corpo embora se saiba
que o lençol é pensado como um artefato usado pelos mal-assombros para esconder os seus corpos
deformados ou putrefatos. uma variedade grande de desenhos dentro do rótulo mal-assombro-
lençol. Os mais simples deles têm apenas os olhos. Outros têm o rosto completo e, assim, variando
com ou sem mãos, braços, pernas, pés, umbigo e cabelo. Constantemente, os mal-assombros têm os
cabelos em ou arrepiados, resultado de um susto ou, quem sabe, para enfatizar a sua feiúra.
Alguns mal-assombros são pensados na forma de animais: lobos, cavalos, coelhos, cachorro, ou
apenas com características animalescas, como rabos ou orelhas avantajadas. As casas, por sua vez,
são casas mal-assombradas habitadas ou não por gente, de onde, geralmente, correm as pessoas
desesperadas, com medo dos mal-assombros que lá habitam ou assombram. Os mal-assombros
muitas vezes estão flutuando acima das casas ou, às vezes, são pictografados dentro delas. Algumas
vezes, os mal-assombros são desenhados com chifres ou dentes de vampiro, por onde escorre o
sangue da última tima indefesa do bicho perverso. Note que a terminologia “bichoé usada tanto
para o Demônio quanto para os mal-assombros. Também foram desenhados muitas catacumbas,
cemitérios, defuntos e enterros. Estes foram incluídos na categoria cemitério/ morte/ cruz. Por fim, a
noite, desenhada com o auxílio da lua e das estrelas, é o lugar preferido dos mal-assombros que,
muitas vezes, voltam para seu mundo (o outro mundo) quando a manhã vem chegando. Observe o
desenho 7 O mal-assombro LM. 7. F. 18, em que a criança escreveu: “Amanheceu o dia e o
fantasma foi embora”. Para ter uma idéia mais precisa de como os mal-assombros são desenhados,
sugiro que o leitor se debruce sobre os arquivos da pasta Desenhos O mal-assombro no CD anexo.
Detivemo-nos até o presente momento a tentar compreender etnograficamente a ontologia
dos mal-assombros e a sua relação com os vivos. É preciso deixar claro o que até então parece ter
sido apenas levemente sugerido: os vivos e os mortos parecem estabelecer entre si uma relação
ambígua. Em parte, os mal-assombros poderiam ser pensados como o ‘outro’ dos vivos. Eles
habitam preferencialmente a natureza em oposição às cidades, e quando querem assustar, vão para as
cidades, onde moram as pessoas. Além de habitar os sítios ou a natureza, eles habitam os cemitérios.
Da mesma forma, são quase sempre feios e, algumas vezes, têm características animalescas que os
distinguem dos humanos vivos. Mas, por outro lado, os mal-assombros são representados como
próximos dos vivos ou seu ‘igual’. Curiosamente, mesmo que “horríveis”, todos os mal-assombros
têm traços humanos. Como observei acima, todos os mal-assombros têm, pelo menos, um traço do
rosto humano, além das outras características já elencadas previamente. Da mesma forma, a moradia
preferencial dos mal-assombros é, além dos campos e do cemitério, as casas. Estas casas podem ser
abandonadas, mas também podem ser casas onde moram os vivos. Observe os Gráficos Dois e Três
no final deste capítulo, para dar-se conta da popularidade das casas. É preciso mencionar que essas
105
são populares em todos os temas de desenho propostos, e também nos desenhos livres. Contudo, o
elevado número de casas não se explica apenas pelo fato de que são simples de se desenhar, sendo
um dos primeiros desenhos que se aprende a fazer. Ao contrário, aposto que as casas desenhadas
podem ser analisadas como parte importante da ontologia dos assombramentos, enfatizando o papel
do parentesco. É interessante constatar que, recorrentemente, essas almas aparecem nas cozinhas das
casas. A cozinha é considerada, como vimos no Capítulo Dois, um dos ambientes mais íntimos e
intrinsecamente ‘familiares’ de uma residência.
O que estou querendo chamar a atenção é que, além de serem desenhados com características
humanas, os mal-assombros também residem em casas, como os humanos vivos. Destarte, os mal-
assombros têm agência humana: eles comem, dormem, conversam, vivem entre si em famílias de
mal-assombros. Existem estórias de mal-assombros, nas quais o marido morto ciumento vem tomar
satisfações com o novo companheiro da viúva. Ao mesmo tempo, ouvi estórias de almas de esposas
que ajudaram o marido viúvo a encontrar uma nova parceira para a vida conjugal. Isso parece
alertar-nos para a relação dos mal-assombros com os laços de parentesco. Observe o desenho 12 O
mal-assombro D. 9. M. 7, em que Gasparzinho e seus filhospasseiam pela noite. Keesing (1982:
40) parece concordar comigo, quando afirma a relação próxima entre os desejos dos vivos e dos
mortos no caso dos Kwaio: Ancestors, as spirits, value what humans value in life(por exemplo,
carne de porco e coco, alimentos utilizados nos sacrifícios em honra dos ancestrais e altamente
apreciados pelos vivos). Parece que o que torna os mal-assombros distintos dos humanos é (apenas)
o fato de estarem mortos. Poderíamos, então, indagar-nos até que ponto a morte cessa a humanidade
ou apenas a transforma, sendo os mal-assombros, assim, reconhecidamente tão humanos quanto os
vivos. O problema é que o mundo onde os mal-assombros moravam (e ainda teimam em habitar),
o lhes reconhece mais humanidade da forma por eles requerida. Se os vivos reconhecessem
humanidade aos mortos, nenhuma destas visões seria alardeada como anormal, coisa de outro
mundo, medonha, terrível. Para os vivos, os mortos são os outros; ao contrário, para os mortos, os
vivos são seus iguais. Para os mortos, a linha que os separa dos vivos é tênue, uma vez que todos os
vivos serão mortos e que eles pouco ainda eram vivos; no entanto, para os vivos, a morte é um
mistério, o grande “outro
104
.
104
Bering (2002: 288) afirma que In terms of the cognitive underpinnings of religion, contrary to previous accounts
(cf., Boyer, 2001), most afterlife believers do not represent ghosts and spirits simply as invisible human beings, but
rather as invisible human beings with a narrower range of subjective experience than living agents – experience that is
delimited by the inactivation of specific psychological systems at death. Os dados de Catingueira parecem sugerir a
mim que, ao contrário, os mal-assombros sãoo humanos quanto os humanos vivos, e diria até que as suas experiências
são de natureza mais abrangente que a dos vivos, uma vez que eles não estão submetidos às leis da física. uma
abundante, embora recente, literatura sobre os conceitos infantis sobre a vida após a morte a partir de uma perspectiva
interdisciplinar da ciência cognitiva da religião (psicologia, lingüística, antropologia, biologia). Em um destes textos,
Bering (2003: 246) se pergunta: […] what is a ghost but an invisible dead person with a mind?” Segundo o mesmo, a
teoria de Pascal Boyer “[...] holds unequivocally that ghosts should be no different than living people when it comes to
basic psychological functioning, at least as they are represented in human minds” (BERING 2002: 267). Boyer discorre
106
A categoria “outro mundo” faz sentido enquanto categoria inventada e acionada pelos
vivos. O outro mundo” é um termo nativo e adulto que expressa a distinção operada pelos vivos
entre o mundo onde estes habitam e aquele onde habitam os mortos. Para os vivos, dois mundos
que, embora percebidos como separados, comunicam-se em momentos muito específicos, e sob uma
etiqueta. Segundo os adultos, parece haver uma distinção ontológica entre estes mundos, como
parece haver também entre os mundos do profano e do sagrado, conforme trabalhado no Capítulo
Quatro da mesma forma como parecer haver uma distinção ontológica entre idade adulta e
infância segundo os adultos, como foi trabalhado no Capítulo Dois. De outro lado, parece que os
habitantes do chamado “outro mundo” não se contentam com o seu lugar atribuído e querem passear
e, às vezes, até mesmo morar, no mundo dos vivos. É que a situação se complica. No entanto, em
alguns casos, os mortos, por sua vez, têm consciência da distinção entre os mundos dos vivos e dos
mortos, uma vez que eles, recorrentemente, afirmam a necessidade de serem breves no contato com
os vivos, a fim de voltarem de onde vieram o mais brevemente possível
105
.
A título de conclusão provisória, parece verdadeiro afirmar que os mal-assombros que
habitam as casas onde moravam quando vivos são almas cujos corpos faleceram pouco tempo.
Em outras palavras, são almas que ainda o foram esquecidas ao passo que as almas que habitam
a não-cidade são as almas indistintas, às quais ninguém reclama parentesco, para as quais ninguém
reza ou acende velas. Estas almas estariam esquecidas se não fossem as orações das senhoras
católicas em intenção das “almas” ou das “almas do purgatório
106
. (Em algumas das igrejas
católicas, encontramos o chamado “cofre das almas”, cujo dinheiro doado deve ser usado na
inteão das almas, para que elas iluminem-se e encontrem o caminho do céu, através da celebração
sobre os fantasmas “The concept [ghost] is that of a person who has counterintuitive physical properties. Unlike other
persons, ghosts can go through solid objetcs likes walls. But notice that apart from this ability, ghosts follow very stricly
the ordinary intuitive concept of PERSON. Imagine a ghost suddenly materializes in your home as you are having
dinner. Starled by this sudden appearance, you drop your spoon in your plate of soup. In a situation like that, your mind
creates a whole lot of assumptions of which you are not necessarily conscious. For instance, you assume that the ghosts
saw you were having dinner, so she now knows that you are eating. Also, the ghost probably heard the sound of your
spoon landing in the soup and can now remember that you dropped it. You assume that the ghost knows you are here,
since she can see you... In other words, you assume that this ghost has a mind” (2001a: 73-4).
105
Um rapaz de 18 anos, EFL. 18. M. 7, contesta a associação dos mal-assombros com o outro mundo”: Muitas
pessoas velhas falam de coisas que aparecem ser do outro mundo, mas eu acho que existem em algum lugar qualquer
porque mal-assombros são invisíveis que pode aparecer a gente em matas, quer dizer florestas ou também em nossa
casa”. Para ele, os mal-assombros estão em qualquer lugar. Leach (1976: 81-82) afirma que o “outro mundo” é gerado
através de uma inversão direta das características da experiência ordinária. Neste mundo, as pessoas envelhecem e
morrem. Os seres são mortais, os homens, impotentes, e a vida segue seu curso na seqüência dos acontecimentos, um
após o outro. No outro mundo, todavia, os homens são imortais, seres onipotentes que vivem simultaneamente no
presente, passado e futuro. O poder enquanto fonte de saúde, vida, fertilidade, riqueza e influência política, está
localizado no outro mundo. Os rituais religiosos, segundo ele, têm como objetivo estabelecer uma ponte entre os dois
mundos a fim de disponibilizar poder para os homens impotentes. Por outro lado, em uma pesquisa sobre as práticas de
sacralização de uma cantora argentina chamada Gilda, Eloísa Martin (2006: 48) afirma: Como os santos do século VI,
que descreve Brown (1981), Gilda está, simultaneamente, “no céu” e presente em sua sepultura. Por um lado, estar “no
céu” não significa que esteja em “outro mundo”: o céu dos devotos é “o mundo de cima” (id: 2) e, nesse sentido, faz
parte “deste” mundo”.
106
Morada das almas que ainda não atingiram seu destino definitivo, o purgatório tornou-se o grande reservatório de
fantasmas” (DELUMEAU 1996: 96).
107
dos serviços religiosos). Entre a não-cidade e as casas onde moram os vivos, no meio termo, existem
as casas abandonadas (pelos vivos). As almas que habitam este espaço estão em processo de
esquecimento, mas podem ter seu passado rastreado quando se rememora a estória da família que ali
outrora habitava. De acordo com esta classificação, pode-se ter uma idéia de quão tevel é o mal-
assombro em questão. Os mais horríveis e maldosos são os mal-assombros dos cemitérios e da
natureza, ou seja, da não-cidade. Depois, figuram os mal-assombros que habitam as casas
abandonadas e, por fim, temos os mal-assombros que habitam as casas dos vivos e fazem parte da
família. Aos últimos, não se deve temer e, sim, auxiliar ou receber auxílio. Alternativamente,
algumas pessoas expressam desejo de se encontrar com estes mal-assombros, como anunciei
anteriormente. Muitas pessoas almejam ter uma visão ou um sonho com um ente querido falecido, e
sentem-se frustradas porque não “têm o merecimento” de ver aquela alma. Acredita-se que não é a
qualquer pessoa que as almas podem aparecer especialmente as almas queridas. Neste caso, ter a
visão de uma alma querida é tido como uma concessão divina que segue as regras do merecimento
pessoal, a respeito da qual a pessoa não pode fazer muito, a não ser seguir sendo uma pessoa boa e
aguardar resignadamente a vontade de Deus. Ver uma alma constantemente torna-se assunto para a
vida toda, principalmente se a alma faz parte da família. A visão é, muitas vezes, resignificada com
os passar dos anos, fazendo parte do rol de estórias dignas de se contar para as próximas gerações.
3. Cristianização das crianças e dos mal-assombros
Até o momento, concentramo-nos especialmente no ponto de vista adulto para entender os
mal-assombros; gostaria, agora, de discutir um pouco a perspectiva infantil. As crianças concebem
um número muito mais variado de mal-assombros comparativamente aos adultos. Para as crianças, o
Vampiro, a Bruxa, o Homem do Saco, o Papa-figo, a Rasga-mortalha, a Maria Fulozinha e outros
seres são mal-assombros. Além destes, podemos citar ainda o Gasparzinho (o Fantasminha
Camarada), a Cabeça; diversos personagens da TV, como a bruxa Keka, os robôs, o Supapo, assim
como acontecimentos inexplicáveis como uma zoada estranha, um vulto, uma bandeira branca, um
pano branco, um peso na garupa da bicicleta, um clarão, uma sombra fria, uma gargalhada, a TV
mudando de canal e volume, uma tocha de fogo, um assovio, uma voz estranha, uma réstia na
parede, uma mão branca cheia de pêlos. Sem falar no Bicho Papão, no Lobisomem, na Mulher de
Branco, no Espírito de Luz
107
, no Zumbi, na Cuca, no Esqueleto, na Mula sem cabeça, no Diabo, na
107
As almas dos mortos também podem ser conhecidas como “espíritos de luz”. Espíritos de Luz são, segundo os
espíritas kardecistas, os espíritos desencarnados que atingiram um alto grau de evolução e, portanto, podem interferir
positivamente no cotidiano dos humanos. Segundo o Kardecismo, os Espíritos de Luz são, de certo modo, como os anjos
da guarda da tradição católica; isto é, seres que ajudam e protegem os humanos quando em necessidade. De outro lado, a
concepção de anjo dos católicos difere dos espíritas porque, para os primeiros, os anjos da guarda o são almas
108
Morte e nos animais como aranha caranguejeira, morcego, barata, cobra, cobra de cinco cabeças,
rasga-mortalha, jacaré. Mal-assombro para uma criança também pode ser uma casa, um castelo, a
casa da bruxa e até mesmo um de juá ou de oiticica. E, por último, temos também os animais
encantados, que podem ser considerados como mal-assombros pelas crianças, como o Carneiro de
Ouro, a Gia Encantada do Olho D´água, a Rasga-mortalha
108
. Como escreveu um menino de onze
anos de idade em uma redação sobre mal-assombro: O malassombro é uma coisa que envolve
muitas coisas, fantasmas, bruxas, vampiros, etc.(J.P.F. 11. M. 6). O mesmo não ocorre com os
adultos que, como vimos anteriormente, apenas reconhecem a possibilidade da existência de mal-
assombro nas almas dos mortos. (Refira-se ao Índice de referências de mal-assombros, no final desta
tese, para uma definição de alguns dos mal-assombros citados).
Os adultos descartam a possibilidade da existência de todos os mal-assombros acima citados
e riem daqueles que acreditam nestas coisas, que eles consideram absurdas e infantis. Para os
adultos, ao contrário das crianças, esses seres são estórias para fazer medo às crianças. Segundo eles,
apenas os mal-assombros-almas parecem ser passíveis de existência. Na entrevista com NP., citada
anteriormente, o tom da conversa era respeitoso e sério enquanto conversávamos sobre as almas dos
mortos e a possibilidade de assombramentos. Mas quando perguntei sobre a Maria Fulozinha e
outros seres como o Vampiro e o Zumbi, NP. assumiu um tom jocoso. Ela ria das minhas perguntas,
refutava os fenômenos a eles relacionados e negava insistentemente qualquer possibilidade de
realidade àqueles seres. De modo geral, essa é atitude dos adultos quando o tema da conversa são os
mal-assombros digo, os mal-assombros que não sejam as almas. Para os adultos apenas as almas
são de verdade. Quanto aos outros mal-assombros, NP. afirma: Isso não existe! Eu acho que isso é
tudo pra fazer medo as crianças
109
. Observa-se, com o passar dos anos, do ponto de vista do
indivíduo, que aquilo que poderia ser considerado um mal-assombro vai se restringindo. O que
parece ocorrer é a redução do número das entidades plausíveis de serem consideradas mal-assombro.
Ou seja, à medida que a criança cresce, os mal-assombros vão sendo reduzidos à alma dos mortos.
desencarnadas. São espíritos elevados enviados por Deus, mas não foram pessoas em outras vidas e, portanto, não se
apresentam fisicamente na forma de humanos e, sim, na forma barroca clássica de anjos, com traços infantis e asas. Os
crentes concordam com os católicos neste ponto: para eles, os anjos são uma categoria especial de seres, e não almas
desencarnadas – embora uma menina aos dez anos de idade (9. 10. F. O mal-assombro) tenha desenhado um “Espírito de
Luz” quando lhe pedi que desenhasse um mal-assombro, deixando claro que, para ela, o espírito de luz era um mal-
assombro.
108
Segundo Pacheco (2004), “(...) o termo encantado também se refere a uma categoria específica de seres espirituais:
humanos que desapareceram misteriosamente ou tornaram-se invisíveis, “encantando-se” e indo morar em
determinados sítios naturais tais como praias, lagoas ou o fundo dos rios (M. Ferretti 2000b)”. Os encantados são muito
interessantes, na medida em que podem ser vistos pelos adultos e pelas crianças. Neste sentido, esta categoria de ser
problematiza a distinção entre criança e adulto e, conseqüentemente, a restrição dos mal-assombros às almas dos mortos.
A questão colocada pelos encantados será retomada adiante.
109
É interessante chamar a atenção para a diversidade de opiniões, mas é importante ressaltar como pano de fundo uma
cognição comum, como explora Otavio Velho no texto O Cativeiro da Besta-Fera (1995a: 13-43).
109
Todos aqueles mal-assombros que faziam sentido quando se era criança são destituídos do
imaginário adulto. Mas é essencial notar que os mal-assombros nunca deixam de existir
110
.
Assim, em se tratando dos mal-assombros, o processo de tornar-se adulto implica em tornar
religiosos elementos antes tidos como ordinários. Implica em tornar religioso o que antes não o era;
em explicar, segundo a religião, por exemplo, acontecimentos inexplicáveis como a existência de
mal-assombro. Os adultos lançam mão de explicações religiosas para entender o aparecimento dos
mal-assombros o que não o fazem as crianças. Que tipo de explicação religiosa é essa? Os adultos
explicam os mal-assombros através de: 1) da sobrevida da alma após a morte do corpo, 2) através da
conceitualização do mal e do bem e, finalmente, 3) através das figuras de Deus e do Diabo.
Uma das hipóteses deste trabalho é que, com o passar dos anos, as crianças cristianizam os
próprios mal-assombros através da restrição dos mesmos á alma dos mortos. Nos desenhos
produzidos, vimos que, até por volta dos sete anos de idade, mal-assombro não é necessariamente
alma, nem fantasma
111
. Por volta desta idade, a criança ainda não parece dialogar com o conceito de
alma versus corpo. Em um desenho de uma criança com nove anos de idade, observamos uma alma
saindo de um corpo defunto quando colocado dentro da sua catacumba, donde parece possível
afirmar a diferenciação da alma e do corpo, segundo esta criança. Vide no CD Desenhos O Mal-
assombro: desenho 9 O mal-assombro R. 9. M. 19. A iia da existência da alma e da sua sobrevida
após a morte do corpo é um conceito que leva algum tempo para ser assimilado
112
assim como os
conceitos de bem e mal, Demônio e Deus. Interessante notar que o Diabo foi desenhado como mal-
assombro pelas crianças, mas apenas a partir dos dez anos de idade
113
. Os adultos associam os mal-
assombros ao mal ou ao bem, como agentes do Demônio ou de Deus. Para fazer essas associações, é
necessário primeiro reconhecer a Deus e ao Demônio e aos princípios do bem e do mal a eles
110
O fato não parece ser uma particularidade do campo de estudos com que trabalho. Como afirma Bering (2002: 269)
[…] counterintuitive concept categories such as those dealing with afterlife beliefs would spontaneously happen to
appear in nearly all societies []”. Neste caso, por counterintuitive concept categorieso autor refere-se ao fato da
atribuição de funções mentais mesmo depois da morte. Bering & Bjorklund (2004) lembram que os adolescentes e
adultos lotam os cinemas quando o tema dos filmes é esritos ou fantasmas (2004: 218). Além disso, estudando as
crenças do pós-morte, Bering chega a afirmar que elas são quase universais, sendo encontradas em quase todas as
sociedades “[] counterintuitive concept categories such as those dealing with afterlife beliefs would spontaneously
happen to appear in nearly all societies […]” (BERING 2002: 269).
111
Observe quantas crianças identificaram mal-assombro como almas (fantasmas) - o primeiro número refere-se à
quantidade de crianças que desenhou o tema, e o segundo número é o total de desenhos para cada faixa etária. Três anos:
5/25, quatro anos: 1/23, cinco anos: 0/26, seis anos: 3/25, sete anos: 12/22, oito anos: 13/20, nove anos: 18/20, dez anos:
23/25, onze anos: 28/28, doze anos: 36/36, treze anos: 22/22, quatorze anos: 5/5, quinze anos: 11/11, dezesseis anos: 2/4,
dezessete anos: 2/2.
112
Apesar de não trabalharem com o conceito de alma, Bering (2002, 2003, 2005), Bering & Bjorklund (2004), Harris &
Giménez (2005), Astuti (in press 1), Astuti & Harris (in preparation), pesquisam como as crianças concebem a
continuidade ou a cessação das atividades biológicas, psicológicas e perceptuais das pessoas as a morte a partir da
perspectiva da ciência cognitiva da religião.
113
Recorra ao Capítulo Cinco, onde espero ter deixado claro que, por volta dos dez anos de idade, dá-se a cristianização
das crianças através do fato de que elas deixam de desenhar as igrejas como elemento síntese da religião. Isso confirma a
tese de que estas entidades começam a fazer sentido posteriormente, atras do processo de cristianização da criança.
De um ponto de vista, os mal-assombros existem antes da cristianização, e permanecem mesmo depois de cristianizados.
Parece, então, possível afirmar que eles existem independentemente da moral cristã mas apenas se pensamos no caso
das crianças pequenas.
110
relacionados. O bem e o mal, Deus e o Demônio fazem parte do espírito cristão que predomina no
universo religioso da Catingueira. Desta forma, é necessário introjetar o espírito cristão para se
esquecer de todos os outros mal-assombros infantis, restringir os mal-assombros às almas e associá-
las ao Demônio ou a Deus. Se o processo de tornar-se adulto conduz a cristianização, poderíamos
nos indagar em que medida o crescimento das crianças coincide com uma conversão religiosa, na
qual a pessoa passa a interpretar o mundo a partir de conceitos cristãos. Em Catingueira, nenhuma
pessoa “falha” ao restringir os mal-assombros às entidades religiosas cristãs quando se torna um
adulto. Nesse sentido, crescer em Catingueira implicaria em converter-se ao cristianismo. O
processo de tornar-se adulto parece implicar em conversão, na medida em que os mal-assombros,
antes entidades o-religiosas, passam a ser definidas em relação a conceitos cristãos. É necessário
atentar para a diferenciação entre a conversão de que estou falando e o seu sentido mais usual, de
conversão de adultos seja de uma religião a outra, seja de religião nenhuma para alguma. Bateson,
em "Culture contact and schismogenesis” (2000 [1972]: 64) propõe ampliar a noção de “contato
cultural para incluir "processes whereby a child is molded and
trained to fit the culture into which he was born”. O exemplo acima serve como analogia para a
extensão da noção de conversão que proponho fazer. Aqui eu utilizo o conceito de conversão para
tratar de um fenômeno que, em princípio, foge da sua definição original.
Em se tratando dos mal-assombros, este seria o limiar entre as crianças e os adultos: as
primeiras tornam-se adultas no momento em que passam a cristianizar os mal-assombros. A
cristianização dos mal-assombros coincide com a constatação de que os outros mal-assombros
(citados anteriormente) não são de fato reais e, por isso, não apresentam perigo. Eles o
reconhecidos como estória inventada pelos adultos para assustar as crianças, cuja existência só pode
ser afirmada na mente fantasiosa das crianças. Somente as crianças, porque são inocentes isto é,
o conhecem o mal −, acreditam nesse tipo de mal-assombro, como o Esqueleto. Para acreditar que
ele existe e atua no mundo dos vivos, é necessário o ter ainda bem distinto o que é o mal e o que é
o bem. É necessário, em outras palavras, ainda não ser cristão. Além disso, pensam os adultos que
para acreditar, por exemplo, na Bruxa Keka, é preciso não ser capaz de distinguir entre fantasia e
realidade. A indistinção entre os mundos da realidade e da imaginação é característica atribuída
pelos adultos às crianças.
A primeira conclusão que podemos aventar é que o processo de crescimento parece não
culminar em secularismo. Ao contrário, culmina em conversão ao cristianismo. As crianças são
consideradas adultas quando deixam de acreditar em certos mal-assombros como a Cuca e o
Lobisomem, e restringem o mundo dos mal-assombros a apenas as almas. Para que ocorra esta
mudança é preciso que a cristianização da própria criança já esteja em andamento. Ao mesmo
tempo, quando os mal-assombros o restritos às almas, eles também são cristianizados, porque
111
passam a ser concebidos como enviados do Demônio ou de Deus ou como o próprio Demônio.
Nos dois casos, em que os mal-assombros são associados às entidades, o processo aparentemente
culmina com a cristianização dos mal-assombros seja para o bem, seja para o mal. Quando a idade
adulta chega, os mal-assombros passam a ser lidos segundo a tradição cristã. Quando o que pode ser
reconhecível como mal-assombro passa a restringir-se à alma dos mortos, eles não são reconhecidos
senão com referência à moral cristã.
Além disso, parece que para as crianças pequenas, os mal-assombros são concretos, feitos de
carne e osso como os humanos vivos. Só mais tarde é que sua matéria transforma-se em o-matéria.
Quando as crianças crescem, elas acreditam que os mal-assombros são fantasmas; isto é, atravessam
paredes, flutuam, são invisíveis. Como ocorre este processo de transformar o mal-assombro em algo
impalpável? Este processo parece estar ligado à assimilação de conceitos cristãos, na medida em que
o mal-assombro passa a ser tido como não-matéria somente quando ele passa a ser alma (etérea) em
contraposição ao corpo (concreto). Ao mesmo tempo, no momento em que concebem a
possibilidade de alguém ou alguma coisa estar assombrado é que o mal-assombro deixa de ser
concreto para se transformar em um ser cuja principal característica é sua não materialidade. Assim,
se, hipoteticamente, uma criança pequena atribuiria propriedades físicas a uma mão cheia de cabelos
(MRF. 14. M. 2 O mal-assombro) ou a um Zumbi, um adulto que tivesse a mesma visão considerá-
la-ia uma presepada do Maligno que, ardilosamente, fez que com ele visse algo que o existe de
verdade como se fosse real, com o objetivo de assustá-lo. Ao contrário de pensar que, com o passar
dos anos, o conceito de Deus vai se tornando paulatinamente mais abstrato, como parece ser
unanimemente aceito na literatura sobre o desenvolvimento cognitivo (BARRETT & KEIL 1996:
244), os dados apresentados por Barrett & Keil (1996) sugerem, alternativamente, que as crianças
o se tornando mais aptas a fazer julgamentos teológicos corretos. A respeito dos mal-assombros, o
leitor poderia, da mesma forma, argumentar que eles se tornam paulatinamente mais abstratos à
medida do crescimento da criança. A afirmação parece fazer jus aos dados apresentados. Mas
algumas objeções a serem feitas. Os animais encantados, por exemplo, são, simultaneamente,
concretos e abstratos, e podem ser vistos tanto pelas crianças quanto pelos adultos. No entanto, para
a criança pequena os mal-assombros alma são tão concretos quanto a Maria Fulozinha ou o Homem
do Saco. Mas poderia também afirmar que eles são, da mesma forma, tão abstratos quanto. A
afirmação de que as crianças vão se tornando cada dia mais propensas ao pensamento abstrato o
me parece uma boa chave para compreender os dados de Catingueira. O que está em jogo não é a
concretude material dos mal-assombros, senão a sua atuação no mundo dos vivos esta, sim, tida
como absolutamente palvel. Embora: 1) alguns mal-assombros possam materializar-se, como no
exemplo da Mulher de Branco e, 2) o fato de que, para os adultos, a imaterialidade é uma das
principais características das almas.
112
Mas um porém. Para os adultos, se uma árvore o pode ser um mal-assombro, ela pode,
no entanto, estar assombrada. Assim como uma casa, uma sombra ou, até mesmo, uma pessoa. Para
a criança, diferentemente, a árvore pode ser, ela mesma, o mal-assombro. É a árvore em si mesma ou
a casa que tem agência assombradora e, portanto, o poder de assombrar. Mas isto não impede a
existência de mal-assombros que assombram casas ou árvores. Parece que, para a criança pequena, a
casa ou a árvore são o próprio mal-assombro mas, quando cresce, ela vai imputar a esses objetos
uma força que está alhures. A diferença entre a concepção dos adultos e das crianças é que, para os
primeiros, os mal-assombros enumerados previamente o são mal-assombro em si mesmos, mas
acredita-se que estejam sob a ação de um mal-assombro. Em outras palavras, para os adultos a
árvore em si mesma o assombra, mas serve de intermédio para outro mal-assombro um mal-
assombro-alma. Diz-se que ela está e/ou é “assombrada” ou “mal-assombrada”; isto é, ela mesma é
assombrada por um mal-assombro. Da mesma maneira, uma pessoa pode estar assombrada” se leva
um susto grande, algo do “outro mundo” ou tem um pesadelo. Quando um adulto aconselha:
Não passe por aquele caminho porque aquela árvore é mal-assombrada”, ele quer dizer que um
mal-assombro vem agindo naquela árvore ou através daquela árvore. Não é a árvore mesma que atira
pedras em quem passa debaixo dela, como pensam as crianças pequenas. Segundo os adultos, a
árvore não tem agência. Quem atira pedras ou faz chover apenas debaixo daquela árvore é uma alma
que ali fez sua morada preferida. Estamos diante de uma cosmologia dos adultos na qual casas,
árvores e sombras são assediadas pela atuação de forças vindas do mundo dos mortos. O que torna
algo ou alguém mal-assombrado é a atuação das almas dos mortos. Na pequena cidade de
Catingueira, segundo os adultos, as almas dos mortos podem agir por meio das casas, caminhos,
árvores e animais.
4. Quem tem medo de mal-assombro?
Para o adulto, como vimos até agora, até mesmo o mal-assombro enviado por Deus assombra
com a diferença que esse assombramento o deve perdurar. Quando um mal-assombro é enviado
por Deus, ele deve assustar somente até o momento em que se apresentar e tornar explícitas as suas
inteões. Depois disso, o mal-assombro pode até tornar-se uma companhia que presta auxílio e
proteção. Parcialmente, o medo de alma pode ser entendido pela sua ligação com o desconhecido.
Neste sentido, seria o desconhecido que amedrontaria. Quando existe alteridade, o medo está
presente, mas quando identificamos a alma mal-assombrada e, por conseqüência, os seus objetivos,
o medo tende a se dissipar. No caso dos católicos, os mal-assombros podem ser associados ao bem
se revelam-se almas de pessoas que foram conhecidas em vida. Se conhecidas em vida, as almas
serão associadas primordialmente ao bem. Se, ao contrário, não foram pessoas conhecidas, serão
113
associadas ao mal. Assim, a alma de um familiar será mais facilmente assimilada a Deus que ao
Diabo. Se esta alma conhecida começar inexplicavelmente a fazer maldades, ficará subentendido
que ela está sob as garras do demônio. Este é quem a induz a tomar certas atitudes inapropriadas.
Estar submetida ao Demônio sugere estar em apuros, à mercê de ajuda. Nestas condições, a ação
maléfica que a alma venha a cometer não é considerada intencional. Ao contrário de fugir da
companhia dessa alma, seus familiares vão tentar se comunicar mais eficazmente com a mesma a
fim de ajudá-la por exemplo, recorrendo ao Centro espírita. Dessa forma, o medo parece ser
sempre a primeira reação frente à aparição de um mal-assombro. Mas esse medo pode ser convertido
em cumplicidade se a alma revela-se uma pessoa conhecida, com boas intenções, ou em apuros.
Como afirmei, tudo isso não é válido no caso dos crentes porque, para estes, mesmo que a alma
apresente-se sob o aspecto de uma pessoa conhecida, isso não corresponde à sua verdadeira
identidade dado que o demônio pode se apoderar da aparência sica de uma pessoa querida. Para
os espíritas, diferentemente, as almas vêm do outro mundo para serem doutrinadas ou para transmitir
ensinamentos; dessa forma, não se deve temê-las.
Uma constatação etnográfica interessante em Catingueira é a constância da atitude de
assombrar. A alma que assombra é associada ao mal. Estar assombrado é considerado ruim. Mas o
adulto, deliberadamente, assombra a criança quando quer que ela lhe obedeça. Quando um adulto
o quer que uma criança vá a determinado lugar, a solução mais recorrente é inventar um mal-
assombro que lá habita. Curiosamente, o mesmo artifício que o Demônio usa contra os adultos, estes
usam contra as crianças: assombrar para ser obedecido - o Diabo, alertam os crentes, assombra a fim
de fazer os humanos lhe obedecerem. A criança mais nova é assombrada pela mais velha, o adulto
assombra ambas, enquanto o mal-assombro assombra os três. Em linhas gerais, o temor é o modo de
relação que se estabelece entre os vivos e os mal-assombros. A partir dos desenhos, das conversas e
das entrevistas, percebi que, dos sentimentos despertados pelos mal-assombros, o medo ganha em
disparada. Alguns sentem-se atraídos pelos mal-assombros, mas o número dos que os temem é
incomparavelmente maior. Vide desenho 20 O mal-assombro CM. 9. F. 9 e desenho 22 O mal-
assombro FF. 7. M. 14 para observar outras atitudes em relação ao mal-assombro, para além do
medo. No primeiro desenho, o fantasma se assusta com a mulher que pretendia assustar. O medo que
ela sentiu foi tão grande, que os seus cabelos ficaram em pé, assustando até mesmo o mal-assombro.
No segundo desenho, o mal-assombro é nomeado com o nome de um dos colegas, e serve de
diversão para toda a classe. Entretanto, o temor vai apresentar-se de maneira diferente em cada faixa
etária. Observe no Gráfico Dois como o Temor foi um dos elementos mais destacados (entre três e
vinte e dois anos de idade
114
) nos desenhos e redações sobre os mal-assombros.
114
Como já foi constatado no Capítulo Um, estes desenhos foram coletados de maneira não intencional. Fiz essa parte da
coleta dos dados nas escolas da cidade. Devido às altas taxas de repetência escolar, na turma de oitava série encontrei um
114
É preciso ressaltar que os mal-assombros fazem parte do cotidiano da cidade. Desde bebês as
crianças escutam falar neles. Aos dois anos de idade, parece que os mal-assombros o são
reconhecidos pelas crianças ou, pelo menos, não são temidos. No decorrer do trabalho de campo
no ano de 2005, em certa tarde de domingo, deparei-me com a seguinte cena: pessoas de todas as
idades assistem a uma partida de futebol. O time da casa enfrenta o time da cidade vizinha. F., um
menino de dois anos de idade, é impelido a ficar quieto por uma irmais velha, com a seguinte
exortação: Olha o Homem do Saco!” A criança pára a sua brincadeira, olha para quem lhe dirigia a
palavra e fica em silêncio. A mocinha de catorze anos de idade, responsável por lhe pajear”, diz
novamente: Olha o Homem do Saco!”. F. repete-a com sua voz balbuciante: Homem do Saco”, e
continua sua aventura pelo terreno de terra batida, sem compreender o que diabos é esse tal Homem
do Saco e, muito menos, porque ele deveria ficar quieto diante da ameaça da sua iminente
presença
115
.
Com isso, parece que os mal-assombros não afetam as crianças desde sempre. Mas, se aos
dois anos de idade as crianças não sabem o que é um mal-assombro, aos três anos de idade o quadro
parece ser diferente. Presenciei situações que revelam a familiaridade das crianças com a palavra
mal-assombro aos três anos de idade. No entanto, os mal-assombros o são tidos como almas,
muito menos como enviados de Deus ou do Diabo. Em outras palavras, isso sugere que os mal-
assombros não são concebidos a partir do cristianismo. No entanto, desde o momento em que o
conceito de mal-assombro é formado, ele é tido como algo a se temer. Mas as crianças pequenas,
menores de sete anos de idade, temem os mal-assombros segundo uma lógica própria, que difere da
dos adultos e das crianças maiores. As crianças assustam-se com os mal-assombros, mas não
poderiam afirmar que eles sejam o mal ou uma armadilha dele. O medo não vem do fato do pacto do
mal-assombro com o Maligno. Para a criança, o mal-assombro assombra – e isso é ruim. As crianças
pequenas não demandam razões para temer os mal-assombros, diferentemente dos adultos. Temem
porque temem, porque o mal-assombro é terrível e o porque o mal-assombro vem do Demônio.
Para o adulto, ele é um afiliado do mal e, por isso, assombra. Aqui o processo em jogo é que as
crianças primeiro aprendem a temer para depois aprenderem por qual motivo devem temer
processo parecido com aquele que será analisado posteriormente no Capítulo Quatro, sobre a
irrelevância do significado de ir à igreja para as crianças pequenas.
Para as crianças, por sua vez, os mal-assombros não dizem respeito à religião e, portanto, não
podem ser explicados em relação a conceitos religiosos. Mal-assombro e religião não são, em
absoluto, dois assuntos cambiáveis, de acordo com as meninas e os meninos de Catingueira. Observe
número elevado de pessoas acima de treze anos de idade. Apesar dos dados não completarem os vinte desenhos de cada
idade, eles foram úteis como termo de comparação.
115
Em direção oposta aos meus dados, Turiel (1983) afirma que a mente das crianças de dois-três anos de idade é
moralmente orientada, o que o leva a discutir em que medida a moralidade é uma herança natural e biológica, ao ins
de construída ao longo dos anos.
115
que o número de crianças que citou elementos religiosos no tema de desenho do mal-assombro
vai aparecer definitivamente depois dos oito anos de idade (Vide Gráfico Quatro no final deste
capítulo). Antes dessa idade, os elementos religiosos praticamente não são desenhados. Isso mostra
que para a criança pequena, mal-assombro não necessariamente relaciona-se com Diabo ou com o
mal muito menos com Deus ou com o conceito de espírito que sobrevive após a morte. Enquanto
para os adultos não existe mal-assombro neutro (ou ele é do mal ou é do bem), para as crianças
pequenas é diferente; esta questão não se coloca. Elas não se perguntam sobre as intenções de um
mal-assombro. Sua ontologia está toda definida no seu próprio nome: ele assombra e assombrar é
ruim. Mas ele não é ruim porque é obra do Demônio, ele é ruim porque é. Sua ruindade está definida
na sua ontologia assustadora, está toda dada em si mesmo e não pela sua relação com outro ser. Os
adultos precisam de causas, mas não as crianças pequenas.
Este processo de buscar razões para as atividades que fazemos sem nos dar conta quando
crianças, coincide com o processo de tornar-se adulto. À medida que se cresce, uma
conceitualização do cotidiano faz-se necessária. O que para as crianças é a realidade incontestável
porque vivida no dia-a-dia, para o adulto é apenas a conseqüência de uma razão maior que rege os
comportamentos. Como, por exemplo, para os adultos, o assombramento do mal-assombro existe em
função das regras do mundo religioso que regem a etiqueta de relação entre os vivos e os mortos.
Essas razões maiores são assimiladas no processo de crescimento. Esse processo de intelectualização
da realidade vivida não se restringe à crença nos mal-assombros, mas toma lugar em todas as áreas
da vida social. Algo similar ocorre a respeito da religiosidade. Primeiramente, as crianças vão à
igreja. Depois, aprendem que vão à igreja por uma razão alheia ao atendimento à igreja
propriamente dito, como se encontrar com Deus ou consigo mesmo ou porque são católicos, como
será explicado no próximo capítulo.
Mas é preciso se indagar como as crianças aprendem que o mal-assombro é algo a que se
deve temer. Como mostrei no exemplo do jogo de futebol, o menino com dois anos de idade não se
abalou com a ameaça da presença do Homem do Saco. O Homem do Saco pouco quer dizer para
aquela criança e, portanto, não amedronta. Podemos tecer um paralelo entre o aprendizado dos mal-
assombros enquanto algo que representa perigo e deve ser temido, e a conversão na Igreja Universal
do Reino de Deus (IURD). A IURD não nega a existência das entidades dos cultos afro-brasileiros,
mas, pelo contrário, “mostra” como elas são malignas e atuantes no mundo. Em um certo sentido,
pode-se afirmar que a IURD depende da existência dessas entidades para levar a cabo o seu projeto
de conversão. Tanto que em países onde as entidades das religiões afro-brasileiras não são
conhecidas, como na Europa (onde a IURD têm expandido seus templos), os pastores devem
primeiro ser capazes de provar a existência de tais entidades para, depois, em um segundo momento,
combatê-las. Como no exemplo citado, primeiro os adultos ensinam” às crianças que os mal-
116
assombros devem ser temidos. Além disso, vê-se que é através das relações sociais estabelecidas no
seio mais íntimo que a criança vai tomando conhecimento dos mal-assombros. Não é apenas na
igreja, nem no colégio, nem muito menos por meio da TV ou da literatura mas, principalmente, no
cotidiano familiar e nas atividades do dia-a-dia o que inclui as brincadeiras e o tempo de lazer que
a criança dispõe junto aos vizinhos e amigos. A criança vai entender que o mal-assombro pode ser
um representante do Satanás, da mesma maneira que aprende sobre a sua própria existência: através
das relações sociais cotidianas. Este processo será exaustivamente explicado no Capítulo Quatro.
Rita Astuti (in press 1) afirma que as crianças não aprendem sobre os ancestrais e a vida após a
morte como os antropólogos geralmente tendem a pensar ou seja, gradualmente aprendendo
sobre deuses, mágica ou espíritos. Ela afirma que as crianças aprendem que algo da capacidade
mental sobrevive á morte do corpo apenas quando entendem que a morte biológica encerra todas as
atividades físicas e cognitivas. Dessa forma, as crianças aprendem sobre a influência dos ancestrais
no cotidiano dos Vezo quando observam seus animais de estimação morrerem, ou quando dissecam
animais. Em Catingueira, acredito que se passa algo similar: as crianças não são ensinadas”
formalmente sobre os mal-assombros, mas não poderiam deixar de reconhecê-los, uma vez que
habitam um mundo onde eles são presentes no discurso dos seus pais e avós s) e nas práticas
religiosas de evitação entre os vivos e os mortos
116
.
Como mencionei, os mal-assombros são reconhecidos já aos três anos de idade; isto é, nesta
idade, a maioria das crianças teme os mal-assombros. Mas o temor, apesar de representado nos
desenhos, aparece muito incipiente dos três aos seis anos de idade. Observando os desenhos,
constatamos que até os seis anos de idade, o temor dos mal-assombros é pouco representado nos
desenhos (índice menor que 9%). Dos dez aos treze anos de idade é que o temor está mais
representado, o antes. Aos sete anos de idade, há uma taxa de 27% de desenhos onde o temor está
desenhado. E, adiante, aos oito anos: 55%; aos nove anos, 40%; aos dez anos, 72%; aos onze anos:
82%;, aos doze anos, 83%; aos treze anos, 73%; catorze anos, 80%; quinze anos, 91%; dezesseis
anos 100% e, finalmente, dezessete - vinte e dois anos: 100%. O temor dos mal-assombros é
crescente a partir dos três anos de idade, atingindo o pico dos dezesseis anos de idade em diante, mas
mantendo-se alto a partir dos dez anos de idade. O pico ocorre justamente próximo da fase dos dez
anos de idade na qual observamos a transição para a idade adulta em termos religiosos, como
veremos nos próximos capítulos. Assim, nos desenhos, o temor dos mal-assombros é
representativo a partir dos sete anos de idade, e atinge os maiores patamares acima dos quinze anos
de idade. Observe o Gráfico Quatro, no final deste capítulo.
116
“[] it is hard to imagine how Vezo children could escape the conclusion that the dead are a willful and “lively”
presence among the living, as they witness the monologues that elders direct at dead but clearly wanting interlocutors,
or they share in the offerings of meat and rice given to them, or they suffer the illnesses, enjoy the recoveries or mourn
the deaths that are caused by this or that angry angatse” (ASTUTI in press 1). Vide também Keesing (1982: 30-39).
117
Entretanto, estes dados podiam conduzir-nos a dois erros. Primeiro, o de pensar que criança
pequena não sabe o que é um mal-assombro e, segundo, o de acreditar que criança pequena não teme
os mal-assombros. Criança pequena reconhece e teme os mal-assombros, mas de uma maneira
distinta da do adulto. De modo geral, o temor dos mal-assombros é um dos temas mais ressaltados
nos desenhos, o que corrobora a afirmação de que mal-assombro e gente relacionam-se através do
medo, como foi visto no Gráfico Dois mas com a importante ressalva, em direção oposta ao
esperado, de que as criaas pequenas temem os mal-assombros com menor intensidade que as
crianças maiores ou os adultos. Assim, ao contrário do senso comum, a cognição dos mal-assombros
poderia ser considerada, em primeiro lugar, como parte do imaginário dos adultos e não tanto das
crianças! Explico-me. O bem e o mal são conceitos adultos. O mal-assombro enquanto alma é tido
como um enviado de Deus ou, mais constantemente, do Demônio. Portanto, apenas os adultos
poderiam de fato temer os mal-assombros, como alma enviada pelo mal ou pelo bem. Os outros mal-
assombros considerados infantis são temíveis, mas as crianças mesmo sabem que eles também são
de brincadeirinha. As crianças, ao contrário dos adultos, sabem inventar o mal-assombro e o próprio
medo. Sabem que criaturas amedrontadoras também podem ser criadas pela imaginação. As crianças
brincam de temer, de criar o medo, de assustar-se, enquanto o adulto não brinca com essas coisas de
Demônio. No caso dos adultos, em relação aos mal-assombros, o lugar da imaginação é restrito. Eles
sabem muito bem que o mal existe e ponto final. Eles sabem que o Demônio é real e, por isso, a
alma de um morto, sendo um enviado dele, amedronta tanto quanto o próprio. o passa pela cabeça
de um adulto brincar de inventar o medo. É divertido fazer os outros terem medo, mas sentir medo
o é nada engraçado. O medo é coisa séria para um adulto: ele não brinca de se assustar. Os adultos
inventam hisrias de mal-assombro para assustar aos outros principalmente, as crianças –, e
muitas vezes, acabam eles mesmos assustados. A diferença em relação á criança é que elas brincam
de inventar mal-assombros, ou seja, brincam de assustar-se, enquanto os adultos brincam de fazer os
outros terem medo. As crianças sabem que o Supapo existe na TV, existe nas brincadeiras, existe na
imaginação. Mas a TV, a imaginação, os sonhos que se têm dormindo e a própria imaginação
constituem para a criança parte do mundo real. As crianças sabem que podem criar um mal-
assombro com o corpo do Esqueleto, o nariz da Bruxa, os olhos da Cuca e os cabelos de arame da
Maria Fulozinha com o auxílio de um lápis e uma folha de papel. Depois de criar este mal-
assombro, a criança pode afirmar que ontem à noite ele correu atrás dela perto da porta do cemitério.
Provavelmente, esta criança nunca andou pelos lados do cemitério à noite. Mas, para a criança, um
simples desenho ou a palavra proferida faz realidade, como num passe de mágica. Esta brincadeira
de criar e descriar os mal-assombros pode ser chamada de jogo de evitação e aproximação dos mal-
assombros. Para a criança pequena, o desenho o representa um mal-assombro; é o mal-assombro.
Digo isso porque uma criança desenhou um monstro dizendo-me que o tinha visto. Perguntei onde
118
ela tinha visto aquele mal-assombro. Ao que ela respondeu que ali não existia monstro. Indaguei: e
como foi que você já viu um?” E ela respondeu: “eu desenhei!” Outras crianças também me
disseram terem visto mal-assombro. Quando pedia para explicar melhor, elas contavam-me um
sonho
117
. Interessante constatar que, para o adulto, alguns sonhos também comportam níveis de
realidade, como o sonho da botija ou o sonho da visita de uma alma querida.
Se esses mal-assombros são criados facilmente, eles também podem ser destrdos com a
mesma facilidade. Por isso, as crianças pequenas não demonstram tanto medo dos mal-assombros,
uma vez que, em relação a elas, os mal-assombros gozam de agência relativa. Sua agência é relativa
porque é dividida com a própria criança que tem o poder de criá-lo e destruí-lo, pelo bem da
brincadeira e da diversão. Ao contrário, para o adulto, o mal-assombro tem agência absoluta. Ele é,
em si mesmo, o total responsável pela sua aparição e pelos seus assombramentos. Aos adultos não
cabe mais que “se pegar com Deus” para que eles não lhes apareçam. Se eles quiserem aparecer, não
muito mais o que se fazer a fim de evitar a “visita”. Por isso, parece ser possível afirmar que se
teme mais os mal-assombros quando se é adulto, porque ele é visto como ser com agência total ao
passo que, para as crianças, os mal-assombros, em grande medida, dependem da sua imaginação
para existirem.
De toda forma, não estou afirmando que a criança não tema o mal-assombro. Afirmo apenas
que ela e o adulto temem os mal-assombros de maneiras diferentes. Também não estou dizendo que
o medo que a criança cria não seja real. A imaginação infantil é capaz de criar muitos mal-
assombros e, ao mesmo tempo, é capaz de destruí-los. Alternativamente, poderíamos pensar a partir
de Gregory Bateson (BATESON 2000 [1972]: 271-78), que a criança estabelece uma perspectiva
mais positiva em relação aos “duplos vínculos” (para uma análise do conceito de duplo nculo”
vide VELHO, em preparação). Para ela, o medo pode ser, ao mesmo tempo, inventado e real. A
figura do mal-assombro pode ser, simultaneamente, fascinante e terrível. Percebe-se que, de maneira
geral, as crianças têm uma atitude subversiva em relão a algumas antinomias da sociedade adulta.
117
Alguns desenhos de mal-assombro são interessantes misturas de mal-assombros reconhecidos, categorizados como
mal-assombro não identificado. O leitor pode estar se perguntando o que são os mal-assombros não identificados. Nas
primeiras faixas etárias pesquisadas, quando pedia para as crianças desenharem um mal-assombro, muitas vezes elas me
apresentavam desenhos que o podiam ser classificados em nenhuma categoria reconhecida de mal-assombro. Porém,
segundo elas, o desenho era um mal-assombro. Identifiquei estes mal-assombros como mal-assombro o identificado,
isto é, os quais as crianças nomearam “mal-assombro”, mas que nos quais o distinguiam nenhum traço evidente de
algum mal-assombro reconhecido. O mal-assombro é auto-explicativo na idéia de uma criança pequena: é o que é, sem
necessidade de outros substantivos como mal-assombro Vampiro, mal-assombro Bruxa, mal-assombro Maria Fulozinha.
Dizer que um ser é um mal-assombro basta para especificar um desenho, designa algo que tem começo e fim em si
mesmo. Mais tarde, as crianças começam a distinguir que o mal-assombro pode ser, por exemplo, a Rasga-mortalha ou
o Zumbi. Desde cedo, aos três anos de idade, elas sabem que existe alguma coisa que é chamado mal-assombro, embora
elas não saibam exatamente que forma ele tem e, por isso, os desenhos não eram classificáveis nas categorias
reconhecidas. As crianças pequenas estão formando a imagem do mal-assombro através dos relatos que ouvem. Uma vez
formada a imagem dos mal-assombros reconhecíveis é que vai fazer sentido vê-los. Até o momento, o número das
crianças que já viu mal-assombro não é substantivo. Isso porque o mal-assombro já existe enquanto conceito, como algo
que assombra, mas não tomou ainda uma forma física definida. Apresenta-se em várias formas, muitas vezes bricolagens
de diferentes mal-assombros conhecidos.
119
Para elas, a imaginação cria realidade, o desenho e o sonho são reais, o medo e o fascínio andam
juntos. É preciso afirmar, no entanto, que o jogo de evitação e aproximação em relação aos mal-
assombros é praticado com deleite pelas crianças. Um adolescente de quinze anos de idade escreveu
ao final de uma redação sobre os mal-assombros: Vou confessar: gostaria de ver esse monstrengo!
E você?” (ELB. 15. M. 7) As crianças mais corajosas, geralmente as mais velhas, divertem-se em
chamar as entidades pelo nome a fim de fazer medo nas outras crianças. Brincar de fazer medo,
principalmente se a noite se aproxima ou se se está em lugares ermos, é uma das brincadeiras
preferidas das crianças. Nestes ambientes, as estórias sobre os mal-assombros e as entidades surgem
como que naturalmente. Entretanto, no decorrer do jogo, até a criança que o começou está com
medo. Esse tipo de jogo do medo ocorre também entre adultos, principalmente jovens. Como no
caso dos fe(i)tiches (LATOUR 2002b [1996]) apesar de terem sido inventadas, as entidades exercem
inflncia sobre aqueles que o inventaram.
Para o adulto, ao contrário, não passa pela sua cabeça inventar um Demônio. O Demônio é
algo que “está lá”, tem vida própria, existe. Na visão de um adulto ele existe em si mesmo, e não
depende da imaginação dos homens para agir em toda a sua potência. Em outras palavras, as
crianças operam com uma variedade incrível de mal-assombro e, ao mesmo tempo, podem destruir
todos eles. Os adultos, por sua vez, acreditam em apenas um mal-assombro, mas não o concebem
como sua criatura, sua invenção. Ao contrário, para os adultos, a alma dos mortos e o Demônio têm
agência independente da vontade dos humanos. É isso que os torna realmente assustadores. Em
outras palavras, em relação aos mal-assombros, as crianças têm agência; os adultos são passivos.
Desse modo, entendemos que o medo dos mal-assombros seja muito mais substancial na idade
adulta e para as criaas maiores de dez anos de idade.
Os números apresentados de que o temor dos mal-assombros é mais substancial quando
adulto corroboram as evidências do trabalho de campo. Tentei computar o número das crianças
que tiveram contato com mal-assombro
118
. Os dados são os seguintes: três anos: 12%; quatro anos:
17%; cinco anos: 23%; seis anos: 32%; sete anos: 50%; oito anos: 25%; nove anos: 40%; dez anos:
72%; onze anos: 93%; doze anos: 94%; treze anos; 91%. Se conferirmos os dados das pessoas acima
de catorze anos de idade, o número de pessoas que tiveram contato com mal-assombro atinge a
marca dos 100%. Dos desenhos de todas as idades pesquisadas, a categoria ter visto” um mal-
assombro é um dos elementos mais ressaltados, junto com o medo desses mal-assombros, como
pode ser constatado no Gráfico Dois. Interessante notar que o medo dos mal-assombros tamm
cresce de maneira similar ao número dos que tiveram contato com eles, em escala ascendente, à
118
Nesta categoria foram incluídas a) os desenhos ou redações nos quais as crianças dizem já terem visto mal-assombro;
b) desenhos ou redações nos quais as crianças contam a estória de alguém que viu; c) desenhos ou redações nos quais
as crianças contam uma estória na terceira pessoa do singular ou plural a qual não conheciam o protagonista ou o
inventaram; d) desenhos ou redações que contam uma estória de mal-assombros que viram na TV; e finalmente, e)
desenhos ou redações sobre um sonho.
120
medida que a criança cresce. Quanto mais velha a criança, mais contatos com os mal-assombros são
afirmados e, por sua vez, mais medo parece haver. O número de crianças que afirmam terem contato
com os mal-assombros ultrapassa os noventa por cento aos onze anos de idade, e chega a cem por
cento depois dos catorze anos de idade. É interessante notar que as crianças maiores dizem terem
visto mais mal-assombro que as crianças menores ao contrário do que se poderia pensar, uma vez
que às crianças menores é imputado uma imaginação mais fértil.
Bering e seus colaboradores (BERING & BJORKLUND 2004; BERING, HERNÁNDEZ-
BLASI & BJORKLUND, 2005; BERING, in press) afirmam que as crianças pequenas possuem
uma disposição natural para atribuir aos mortos faculdades como sentimento, pensamento,
compreensão. Esta disposição torna-se menos evidente quando as crianças aprendem que a morte
constitui um processo biológico. Entretanto, os dados de pesquisa que produzi, assim como os de
Astuti (in press 1) e Paul Harris & Marta Giménez (2005), parecem caminhar em direção oposta.
Pesquisando as crenças sobre a após-morte em crianças espanholas, Harris & Giménez chegaram a
conclusão que as crianças menores vêem a morte como um fato biológico, que cessa as funções
biológicas e mentais, ao passo que as crianças maiores tendem a afirmar a continuidade de algumas
funções, mesmo após a morte biológica. Astuti (in press 1), por sua vez, analisando seus dados de
Madagascar, afirma igualmente que entre as criaas maiores houve mais afirmações de
continuidade das funções depois da morte que entre as crianças menores. Parece que os dados
produzidos por mim corroboram as sugestões dos últimos autores, na medida em que, em
Catingueira, são as crianças mais velhas que mais temem os mal-assombros, além de terem tido mais
encontros com os mesmos.
Se pensarmos no caso dos adultos, um número muito expressivo de pessoas demonstra medo
dos mal-assombros. São os adultos e, freqüentemente, os idosos, aqueles que têm mais estórias para
contar sobre os mal-assombros. Este skill lhes é reconhecido pela comunidade. Ao falar sobre as
estórias dos mal-assombros, as pessoas constantemente acrescentam que os mais velhos” são os
maiores especialistas no assunto como na redação de uma adolescente de quinze anos de idade,
cujo título era “Os fantasmas”. “Eu nunca vi mais muitas pessoas dizem que já viram. Claro que eu
não acredito, mais o povo mais velho conta muita história que deixa a pessoa apavorada. [...]
Quando falta energia fica tudo batendo, eu fico imaginando que pode ser fantasma. Eu nunca quero
ver, por que não tenho coragem suficiente” (MCNC. 15. F. 1). Além disso, são os mais velhos”
que sabem como melhor proceder no caso da aparição de um mal-assombro. L. 12. F. uma vez
indagou-me por que não ir à sua casa conversar com a sua e sobre os mal-assombros. Ela o
entendia o motivo de eu priorizar a sua versão dos fatos, já que, na sua opinião, a sua mãe e o seu pai
entendiam muito mais do assunto que ela própria.
121
Desta forma, fica claro que os mal-assombros não são assunto apenas de crianças ou dos
adultos, mas são assunto no qual toda a comunidade está implicada. Mas como sugeri anteriormente,
os mal-assombros enquanto almas dizem respeito principalmente aos adultos, na medida em que são
estes que distinguem o bem e o mal. Margaret Mead (1932) afirma que, entre os Manu, a crença dos
fantasmas era uma característica da sociedade adulta a qual as crianças não apresentavam. A
antropóloga pediu às crianças que desenhassem livremente, e constatou que pouquíssimas
desenharam fantasmas o que parecia ir contra a sociedade adulta, na qual os fantasmas
constituíam parte significativa das conversas. Naquele contexto, ela afirma que os fantasmas eram
uma pré-condição da sociedade adulta exatamente o contrário da sociedade norte americana, a
qual servia como contraponto para a antropóloga. Semelhantemente aos Manu pesquisados por
Mead, os mal-assombros-alma são, em Catingueira, primeiro um apanágio do mundo adulto, uma
vez que apenas quando se compreende as antinomias Deus e Diabo, corpo e espírito, bem e mal, é
que é possível compreender os mal-assombros-alma na sua total ontologia. Quando digo sua total
ontologia, refiro-me ao mal-assombro como alguma coisa que existe em si mesma, independente da
vontade dos humanos. Ou seja, se pode entender o mal-assombro na sua completa ontologia
quando se aproxima da idade adulta, porque só se dialoga plenamente com o cristianismo.
Entretanto não estou afirmando que os mal-assombros sejam apenas uma precondição adulta, uma
vez que eles também estão presentes na vida das crianças. A satisfação das crianças em participar da
pesquisa mostra muito bem o quanto elas interessam-se pelos mal-assombros. Em Catingueira, os
mal-assombros fazem sentido para as crianças e para os adultos. Mas existem diferenças importantes
entre as concepções de mal-assombro das crianças e dos adultos.
Resumindo o tópico, gostaria de aludir que se para temer o mal-assombro na sua total
potência assombradora é necessário reconhecer o Diabo, é compreensível que o medo não seja tão
expressivo até os sete anos de idade, uma vez que as crianças ainda não parecem dialogar com este
conceito. Elas não operam com a categorização do mal-assombro enquanto um ser do mal ou do
bem e, portanto, elas não o temem sobremaneira. No futuro, temerão muito mais. Os adultos temem
mais os mal-assombros que as próprias crianças porque, para eles o mal-assombro é, geralmente,
obra do Demônio e este sim, é um ser terrível. As crianças pequenas, por sua vez, ainda não
conhecem o mal e o Demônio. E então, faz sentido que somente quando cristianizadas as crianças
o realmente expressar maior temor dos mal-assombros, uma vez que neste momento essas
entidades vão alcançar sua completa agência em relação aos humanos. Essa afirmação pode ser
corroborada pelos números que mostram o temor aumentando à medida que a criança cresce. Como
se viu, é exatamente quando aprendem porque o mal-assombro é temível, isto é, porque tem um
pacto com “O das Trevas”, que o temor vai se apresentar com mais representatividade nos desenhos.
Somente quando as crianças efetuam a passagem da vivência cotidiana em si mesma para chegar à
122
necessidade de intelectualização da mesma, ou seja, quando elas perguntam-se por que o mal-
assombro é amedrontador; aí sim, parece que o medo vem a galope.
No entanto, faz-se necessário problematizar a distinção adulto x criança com a qual estamos
trabalhando aqui. Existe uma vasta literatura sobre a compreensão da morte pela criança. A grande
maioria destes estudos compara o entendimento infantil da morte a partir do pressuposto de que o
entendimento maduro e adulto passa pela afirmação da sua irreversibilidade: isto é, um morto o
pode voltar a viver. Brent & Speece (1993) indagam-se se os adultos realmente pensam assim, e
mostram que o pressuposto de que eles acreditam que a morte é irreversível é falso. De fato, o
resultado da pesquisa mostra que os adultos falharam em afirmar a irreversibilidade da morte com
níveis mais altos que as crianças: 44 % dos adultos e 69% das crianças afirmaram a irreversibilidade
da morte (BRENT & SPEECE 1993: 207). O fato leva-nos a refletir sobre os pré-conceitos que as
pesquisas podem, muitas vezes, comportar, além de indagar especificamente sobre as distinções
entre os adultos e crianças. Será preciso relativizar a distinção adulto x criança também nesta tese
o que deverá ser feito no final deste capítulo, assim como nos próximos capítulos e nas Conclues.
Antes de finalizar, gostaria de mencionar rapidamente a questão da possibilidade de duvidar
da existência dos mal-assombros. Veja esta redação: As aparências enganam. Existem vários tipos
de fantasmas. Feios, bonitos, legais, assombradores, muitos deles não fazem mal, querem dar
alguma coisa de bom para a gente. - O fantasma é muito feio e, às vezes, legal. Eles gostam de fazer
medo, os fantasmas não é coisa de Deus, é do encardido. Não acreditem em fantasmas, eles não
existem. (J. 14. M. Do que eu tenho medo). O texto é rico e vale a pena ser analisado. Ao mesmo
tempo em que o rapazinho exorta as pessoas a não acreditarem em mal-assombros porque eles não
existem, ele discorre sobre as características sicas e de personalidade, as intenções e as origens dos
mal-assombros. Como algo que não existe pode ser caracterizado com tantos detalhes? Ele começa
por dizer que as aparências enganam, ou seja, mesmo que um fantasma seja feio, ele pode ser bem
intencionado. Depois de dizer que eles podiam fazer o bem, ele afirma que fantasma não vem de
Deus, mas do Inimigo. Destarte a frase “Mal-assombro não é coisa de Deus” é ouvida facilmente
pelas ruas de Catingueira. Parece-me que o adolescente, em fase de rever seus conceitos, ainda não
sabe muito bem o que pensar sobre os mal-assombros. Se afirmar a existência deles, pode se passar
por criancinha. Em todos os casos, apesar de discorrer sobre os mesmos, no final da redação o
adolescente prefere não correr esse risco, e acaba por afirmar a sua não-existência. Além disso, a
veracidade da aparão de um mal-assombro é pouco contestada a não ser pelos adolescentes. Mas
como os mal-assombros não se dão a ver por toda a gente, é comum ouvir-se: eu não acredito em
alma, nunca vi uma”. Neste caso, ocorre a afirmação da possibilidade de existência dos mal-
assombros, apesar de não experimentada. No entanto, é raro uma pessoa afirmar que as almas não
existem, negando-lhes toda a realidade. O comum é afirmar nunca vi e nem quero verou Deus
123
me livre de uma hora destas!”. A frase deve ser levada a sério: somente Deus é poderoso o
suficiente para livrar os vivos do assédio dos mal-assombros, como deve estar claro,
principalmente neste capítulo. Além disso, a frase parece deixar claro que a experiência não é de
todo estrangeira. Além disso, onunca vi uma” lembra-nos o fato de que outras pessoas já viram. De
acordo com o material de pesquisa que produzi, a experiência de ter visto uma alma é comprovada
por parentes próximos, sugerindo o lugar primordial dos laços familiares no entendimento do que
sejam os mal-assombros.
5. Conclusões
Neste momento, gostaria de, em poucos parágrafos, resumir o capítulo e lançar algumas
sugestões conclusivas. Vimos que, para os adultos, os mal-assombros são apenas as almas dos
mortos quando habitadas por forças que vem do Demônio ou de Deus. Para as crianças, de outro
lado, podem ser mal-assombros uma vasta gama de seres, entre elementos da natureza, objetos,
pessoas, personagens de estórias e da TV e até acontecimentos. Segundo elas, o mal-assombro é
encantado em si mesmo, vem dele próprio a sua força assombradora. No decorrer do capítulo,
mostrei que as crianças brincam de ter medo e brincam de inventar mal-assombros. Como a
menininha fingindo assustada do bicho papão”, na letra da música de Toquinho e Vinicius de
Moraes (Valsa para uma menininha). Assim, em relação às crianças, os mal-assombros gozam de
agência relativa. Entretanto, o medo infantil é real, embora possa ser fabricado e desfeito a qualquer
momento. Distintamente, os adultos acreditam que o mal-assombro e o Diabo são seres que não
dependem da vontade dos humanos para agirem, gozando assim de agência absoluta. Curiosamente,
são os adultos que apresentam as maiores taxas de medo dos mal-assombros, além da comunidade
reconhecer nos idosos os melhores contadores de estórias de mal-assombro.
Apresentei também, ao longo do capítulo, as diferenças na percepção dos mal-assombros
segundo as religiões representadas. Para os católicos e para os espíritas, os mal-assombros podem
ser enviados de Deus ou do Diabo. São enviados de Deus quando aparecem para fazer o bem, dar
conselhos ou até pedir ajuda. São enviados do Diabo quando causam medo demasiado, ou quando
suas ações são intencionalmente maléficas. Para os crentes, por outro lado, não há mal-assombro que
o seja enviado do Demônio. Uma das hipóteses deste trabalho é que os mal-assombros passam a
ser lidos segundo o cristianismo à medida que a criança torna-se adulta. Espero ter mostrado
etnograficamente como se o processo de restrição dos mal-assombros à alma dos mortos e
associação destes á Deus ou ao Demônio.
Analisados todos os trezentos e catorze desenhos produzidos sob o título “O mal-assombro”,
espero ter esclarecido as diferenças entre os adultos e as crianças no que diz respeito à ontologia dos
124
mal-assombros e modos de relação estabelecidos com os vivos. Computando todos os desenhos que
as crianças de três a treze anos de idade produziram sobre o tema do mal-assombro, chegamos à
constatação de que gente, vi, temor, fantasma são, nesta ordem, os elementos mais citados (vide
Gráfico Dois). A primeira observação a ser pontuada vai ao encontro da presença maciça de gente
nos desenhos. Os dados parecem fazer sentido quando os mal-assombros são pensados em paralelo
ao mundo dos vivos. A segunda observação decorre da primeira: as pessoas vêem os mal-assombros.
É primordialmente através da visão que eles se o a conhecer pelos vivos. Além disso, constata-se
um número elevado de visões de mal-assombro, que aumenta à medida que a criança cresce. Outra
observação a ser destacada é que as pessoas relacionam-se com os mal-assombros através do temor.
O mal-assombro é algo a se temer. Por fim, a última observação é que os mal-assombros mais
citados são os fantasmas. Mal-assombros o fantasmas, fantasmas foram gente viva. Agora, eles
são almas. São desenhados, na maioria das vezes, como se fossem humanos, com pernas, braços,
cabeças, até umbigos e, freqüentemente, com um lençol que cobre todo o seu corpo. Fecha-se o ciclo
que e em relação as almas e os vivos. A alma foi uma pessoa viva. O morto assombra o vivo, que
vai assombrar outros vivos, quando for apenas alma.
Entretanto, os animais encantados, como o Carneiro de Ouro, a Gia Encantada, a Rasga-
Mortalha o parecem se enquadrar na descrão que aqui estou tecendo. Estes seres podem, de um
lado, ser vistos por ambos crianças e adultos e, por outro lado, a sua existência independe de
uma moralidade cristã ou religiosa. Neste sentido, os encantados colocam uma questão para a análise
concebida até então, na medida em que não se encaixam no modelo da cristianização dos mal-
assombros. Parece-me que os encantados são uma categoria de ser que problematiza a
conceitualização dos mal-assombros, não permitindo a reificação das crianças, nem dos adultos e, ao
mesmo tempo, não permitindo a reificação da própria discussão aqui apresentada.
Gostaria de, finalmente, mencionar a relação dos mal-assombros com o sistema de
parentesco, problematizando o fato de que os mal-assombros também vivem em famílias e habitam
casas. Parece-me interessante ressaltar que, antes dos sete anos de idade, as casas mal-assombradas
praticamente não são desenhadas, predominando o tipo de mal-assombro que habita a “não cidade
e, conseqüentemente, aqueles considerados mais horripilantes. Apenas depois dos sete anos de
idade, quando temos mal-assombros habitando as casas, temos mal-assombros considerados como
parte da família. Os mal-assombros que habitam as casas são almas e, por isso, nunca são tão
horríveis ou assombradores quanto os mal-assombros desenhados por crianças pequenas
119
. Além
119
Aos três e quatro anos de idade, em grande medida, não foi possível categorizar os mal-assombros desenhados.
Algumas crianças não desenharam: desenharam outros temas ou desenharam mal-assombro cuja forma não é conhecida
os chamados mal-assombros o identificados. Parece que o mal-assombro é desenhado pelas crianças de seis a oito
anos de idade com as mais diversas características que, por sinal, coincidem com as mais horríveis e assustadores. A
partir dos oito anos de idade, temos um número crescente de mal-assombro-lençol. Apesar das crianças temerem menos
os mal-assombros que os adultos, eles o desenhados como se fossem os mais terríveis e assombradores. Ao contrário,
125
disso, os mal-assombros, enquanto parentes falecidos que habitam a casa onde moravam com a sua
família quando em vida, são significantemente menos assustadores. Isso parece sugerir que os laços
de parentesco humanizam os mal-assombros, ao passo que a o relação (familiar) lugar aos
monstros e aos perversos. É possível afirmar que os mal-assombros não relacionados por laços de
parentesco tendem a ser mais assustadores que os mal-assombros reconhecidamente membros da
família. Vale lembrar que, em diferentes aspectos, a família vem sendo tema recorrente, ao longo de
toda a tese. No caso específico dos mal-assombros, a família e os laços de parentesco parecem
desempenhar papel importantíssimo na definição da ontologia dos assombramentos.
Em título de finalização do capítulo gostaria de discutir, por fim, o que me parecem ser duas
novidades – e uma conseqüência a partir delas. Vimos que para se temer plenamente os mal-
assombros, é necessário ser adulto. Vimos também que o crescimento etário conduz à cristianização
ou conversão ao cristianismo e não a secularização. Uma repercussão interessante destes dados é
que, ao invés de estarem associados preferencialmente a um mundo encantado, os mal-assombros
estarão associados a um relativo desencantamento. Isto acontece na medida em que os objetos
deixam de estar encantados em si mesmos. Quando o mundo se desencanta, os objetos perdem sua
capacidade intrínseca de agência. No seu lugar, concebe-se um mundo onde objetos sofrem
passivamente a ação de forças externas. Os mal-assombros deixam de estar em si mesmos
encantados, mas passam a sofrer a ação de encantamento de um outro ser freqüentemente, o
Demônio. A árvore, antes completamente ativa, perde toda a sua agência, e torna-se um objeto nas
os do Demônio. Este desencantar do mundo ocorre paripassu ao processo de crescimento. Os
mal-assombros são associados a este mundo que concebe as coisas como objetos separados da sua
agência. Com isso, ao contrário do esperado, a crença nos mal-assombros é uma propriedade de um
mundo que foi desencantado, um mundo adulto
120
. Simultaneamente, os mal-assombros dizem
respeito a um mundo cristão, na medida em que o mal-assombro é restrito à alma dos mortos
enquanto enviada por Deus ou pelo Maligno. Se assim é, podemos corroborar a iia de que crescer
implica em um desbastamento porque demanda a restrição drástica dos possíveis mal-assombros.
Restringe-se o mundo dos mal-assombros de uma variedade imensa de seres, encantados e
ocorrências a apenas um ser a alma dos mortos cuja ontologia (ser do mau ou ser do bem), vai
quando se aproxima a idade adulta os desenhos dos mal-assombros são pouco diversos, predominando os mal-
assombros-lençol. É preciso dizer que as crianças, geralmente, usam mais a criatividade para desenhar, o que vai se
restringindo com o passar dos anos. Aos seis anos de idade, temos o primeiro mal-assombro-lençol, mas aos dez anos de
idade, a grande maioria dos mal-assombros desenhados são desde tipo embora com variações específicas, como
dentes, cabelos, olhos etc. Em compensação, se os desenhos não são tão elaborados, uma priorização da narrativa
escrita.
120
O leitor poderia indagar que se os mal-assombros deixam de ser encantados em si mesmos para sofrer a ação de
encantamento de outro ser (freqüentemente o Demônio), o que se passa não é desencantamento, mas um outro tipo de
encantamento. Por outro lado, a ão de um demônio talvez possa ser melhor entendida em termos de dominação,
sobrepujamento ou aliciação, que de encantamento. Além disso, como argumentei anteriormente, o mal-assombro deixa
de ser encantado em si mesmo, o que pode ser tido como evidência de desencantamento.
126
ser compreendida, ao fim e ao cabo, pela relação de parentesco que estabeleça com o sujeito que tem
a visão.
127
6. Apêndice
Gráfico 1
Caractesticas físicas dos M-a desenhados - 3 a 15 anos de idade
80
58
54
48
44
32
31
30
26
20 20
15
13
7
0
20
40
60
80
antropomorfo natureza Gaspar com
rosto
casa cemirio/
morte/ cruz
Gaspar rosto e
braço
cabelo em animalesco noite sangue/ f aca Gaspar c/ rosto,
braço, mão
Gaspar c/ rosto,
braço, perna
e/ou umbigo
dente de
vampiro
chifre
características físicas
mero absoluto
Gráfico 2
Elementos Destacados nos Desenhos de Mal-Assombro
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
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Elementos Desenhados
128
Gráfico 3
Casas
0%
10%
20%
30%
40%
50%
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
idade
Gráfico 4
Temor
0%
20%
40%
60%
80%
100%
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17-
22Idade
Gráfico 5
Elementos religiosos nos desenhos dos Mal-
assombros
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
3 4 5 6 7 8 9 10 11
idade
%
129
CAPÍTULO 4: O que as crianças pensam sobre religião?
Era uma vez um barco navegando no mar. Uma árvore que dá fruto, um pé de cocos que dá
coco. Uma borboleta que voa pelo ar e um trem que anda pelos matos que os animais comem. Uma
árvore que dá maça, que fruto. O sol que brilha e clareia o mundo. O aquário que vive os
peixinhos, o mar que também vive os peixinhos. A baleia que também vive no mar, a sereia, a Iara.
O trem que leva passageiros. Os pássaros que voam. A nuvem que chove, o arco íris que é bonito.
Eu gosto do arco-íris e de Deus.” CFB. 7. F. Livre.
1. Introdução
Apesar de pequena, a cidade de Catingueira conta com cinco templos religiosos de diferentes
ramos do cristianismo que, por sua vez, quase sempre estão cheios. A festa do Padroeiro São
Sebastião é um espetáculo de devoção que atrai gente das cidades vizinhas e dos grandes centros
urbanos do país (PIRES 2000, 2003, 2004a, 2005a). Por isso e por outros fatos, como a maneira pela
qual a religiosidade está configurada por exemplo, em cada pequeno gesto de cumprimento como
o pedir a benção” −, parece-me verdadeiro afirmar que, em Catingueira, a religião é um dado, e ser
religioso é a regra moral a ser seguida. Para chegar a essa proposição, foi preciso, como discuti na
Introdução, trabalho de campo multifocado. No entanto, decodificar o dado é apenas o ponto de
partida da pesquisa antropológica. É preciso agora, no entanto, debruçar-me a compreender como
este dado apresenta-se no dia-a-dia e, no meu caso, como é formado no seio de cada indivíduo.
Na introdução, foi mencionado que uma das principais questões a serem respondidas por esta
tese é como um catingueirense se torna um catingueirense. Neste momento, no entanto, restringirei a
pergunta ao seu aspecto religioso. Desta forma, o objetivo central deste capítulo é discutir como os
catingueirenses chegam a ser o que o em termos religiosos, isto é, gente que se define como
religiosa. Ser religioso pode parecer óbvio para os catingueirenses adultos, mas será detalhamente
estudado na medida em que é um processo gestado ao longo dos anos. Será necessário acompanhar
todo o processo que pode culminar com a auto-identificação enquanto católico ou crente ou espírita.
É preciso ressaltar que os argumentos aqui apresentados foram traçados principalmente a partir da
observação participante e da análise dos desenhos feitos pelas crianças, e poderão ser melhor
compreendidos com a leitura do capítulo que se segue.
2. Religião e o papel da família: os primeiros anos
Nos primeiros anos de vida, a religião parece ser concebida de uma forma particular. Ouso
afirmar, baseada no meu estudo, que até por volta dos quatro anos de idade, a criança não nomeia
130
nenhum elemento como estritamente religioso”. De acordo com os desenhos e as reflexões das
crianças a respeito daquilo que elas desenharam, e em paralelo à observação participante, podemos
afirmar que aos três e aos quatro anos de idade a “religião”, enquanto conceito ou abstração, o faz
parte da realidade infantil. A evidência que apresento para esta afirmação é que, ao serem impelidas
a desenhar sobre religo, as crianças menores acabaram por desenhar sobre outros assuntos. O que
as crianças de três e quatro anos de idade desenharam quando impelidas a desenhar sobre a sua
religião? Aos três anos de idade, 47% das crianças desenharam outros, 32% desenharam brinquedos,
26% desenharam elementos da natureza, 16% desenharam casa e afins. Já aos quatro anos de idade,
30% das crianças desenharam brinquedos, a mesma quantidade desenhou elementos da natureza,
enquanto uma porcentagem de 11% das crianças desenhou casa e afins e a mesma quantidade
desenhou personagens da TV
121
. No entanto, o número de crianças que desenhou sobre outros
assuntos quando a sugestão era desenhar sobre religião vai decaindo de maneira elucidativa com o
passar dos anos, como mostra o Gráfico Um (Soma dos elementos religiosos), em apêndice no final
deste capítulo. Neste gráfico, é possível visualizar a porcentagem de crianças que realmente
desenhou elementos religiosos quando foram pedidas que desenhassem sobre o tema: “A minha
religião”. A queda no número das crianças que desenhou sobre outros assuntos quando conduzidas a
desenhar sobre religião mostra o processo pelo qual este conceito vai sendo esboçado. Como se vê, a
partir dos cinco anos de idade em diante as crianças não se eximem em desenhar elementos
religiosos
122
.
O leitor poderia argumentar que a pesquisadora não levou em conta as dificuldades que a
técnica do desenho possa ter apresentado às crianças pequenas, desconsiderando, por exemplo, a
dificuldade no controle do movimento e a maestria no uso do lápis e do papel. Porém, como está
claro nos Capítulos Três e Cinco, as crianças na mesma faixa etária, três e quatro anos de idade, não
se eximiram em desenhar e retificar que haviam desenhado mal-assombros. Com isso, parece que a
121
Alguns esclarecimentos se fazem necessários:
1) O leitor poderia argumentar que, em direção oposta à minha interpretação, seria possível pensar que esses
outros assuntos são outras formas de religião, ou maneiras especiais de desenhar a religião ou, ainda, a transfiguração da
religião em outras instâncias. Não acredito, no entanto, que seja o caso, uma vez que, etnograficamente, nunca observei
nenhuma criança nesta idade (três e quatro anos de idade) em interação “religiosa” stricto senso − excluído, por
exemplo, o ato de pedir a benção, que parece mais associado à religiosidade cotidiana, como ficará claro em instantes.
2) Cheguei à porcentagem citada a partir do número total de crianças naquela idade em questão que desenhou
aquele motivo. A soma das porcentagens dos motivos, no entanto, não é igual a 100% porque a grande maioria das
crianças desenhou mais de um motivo em cada folha de papel. Essas categorias de desenhos foram criadas pela
pesquisadora a partir dos comentários das crianças sobre os seus próprios desenhos.
3) Outros refere-se a tudo aquilo que não foi suficientementemente desenhado a ponto de exigir uma categoria
definida. Casa e afins são casas, utensílios domésticos e partes da casa, como muro, mesa, fogão. Elementos da natureza
são árvores, sóis, nuvens, flores, rios, chuva etc. Brinquedos são basicamente bolas e bonecas. Para maiores detalhes
sobre como foram construídas essas categorias e como elas foram desenhadas pelas crianças, recorra ao Capítulo Cinco.
122
Vide também Gráfico Dois, no qual é possível observar o número de crianças que afirmou não saber desenhar o tema
proposto. Observa-se que, a partir dos oito anos de idade, este número é zero. Serão extraídas as devidas conclusões
deste e de outros gráficos no Capítulo Cinco, no qual analiso detalhamente o processo de crescimento a partir dos
desenhos dos mal-assombros e da religião.
131
perícia no uso da técnica do desenho aos três anos de idade não pode ser contestada. É preciso
esclarecer que, se de acordo com o julgamento da pesquisadora a criança tenha desenhado, por
exemplo, uma bola, se a criança nomeia o seu desenho ‘uma igreja’ e retifica a sua nomeação, é a
afirmação da criança que prevalecerá, em termos da análise do desenho. A razão pela qual as
crianças não desenharam elementos religiosos quando solicitadas, acredito, podem ser encontradas
nas possíveis especificidades infantis no trato com a religião, e não nas dificuldades que a técnica de
pesquisa utilizada possa ter imposto às crianças pequenas.
A partir dos dados apresentados, poderíamos sugerir que as crianças o parecem dialogar
com a “religião” nos primeiros anos de vida mas não tanto porque elas estejam excluídas de
qualquer sentimento ou ação religiosa, e sim porque a maneira como elas pensam a religião impede
o seu isolamento enquanto categoria analítica. Os dados parecem indicar que, para as crianças
pequenas, não existe um reino em separado da vida cotidiana que se definiria como religioso em
contraponto ao profano ou ordinário. Como não existe esta separação, não há como se falar em
religião, muito menos em “minha religião”, com uma criança pequena, tal como foi requerido pela
pesquisadora (vide Capítulo Um e Cinco para maiores detalhes sobre a aplicação da técnica de
pesquisa em questão). Ao contrário de Durkheim (2000 [1912]), para quem uma particularidade do
religioso é justamente o seu caráter distinto do profano, para as crianças pequenas a religião o
goza de status diferenciado em relação às atividades do dia-a-dia. Divergências à parte, um fato é
incontestável: as crianças desde muito pequenas estão envolvidas na vida religiosa da comunidade
onde nasceram. E se elas não dialogam com a religião, a religião, por sua vez, dialoga com elas.
Quando afirmo que na faixa etária dos três e quatro anos de idade as crianças não
estabelecem relação com a “religião”, não estou dizendo que elas passem ao largo da mesma. Para
entender a natureza da relação que as crianças estabelecem com a religião, sepreciso discutir a
inserção religiosa infantil. Desde muito cedo, as crianças são inseridas nas mais variadas atividades
religiosas. Isso se de maneiras distintas. Dentre outras coisas, desde que começam a falar, as
crianças são ensinadas a pedir a bênção. Por princípio, pede-se a benção às pessoas mais velhas, aos
pais e aos padrinhos. Digo por princípio porque pode-se pedir a benção a alguém mais novo, caso no
qual se reconheça neste prestígio ou honra suficientes
123
. Pedir a benção é prática altamente
difundida na cidade, sendo observada por todas as religiões, inclusive pelos protestantes. Aos três e
quatro anos de idade as crianças pedem a bênção, mas o constitui falta grave a criança esquecer
123
Pedir a bênção é uma prática para toda a vida. Além disso, o sujeito a quem se pede a nção não está determinado
apenas pela senioridade. Mesmo se o sujeito é o mais idoso da comunidade, a nção então continuaa ser pedida para
alguém que concentre prestígio, honra ou liderança local. O costume de pedir a bênção foi registrado por Jean-Baptiste
Debret em sua viagem ao Brasil (1834: 130) On lui a prescrit aussi le Salut religieux, qu´il affectue em demandant
préalablement la bénédiction d´un blanc qu´il rencontre isole dans un chemin, ou bien qu´il doit aborder. Dans ce cas, il
incline le haut du corps, avance la main droite à demi fermée, en signe de salut, et dit humblement a bens, meu senhor
(la bénédiction, mon seigneur): il en reçoit la réponse flatteuse (Dieu te fasse saint), Deos te faça santo; ou plus
laconiquement, Viva”. O costume entre senhores e escravos tamm foi registrado por Márcio Pires (2001).
132
de pedi-la. Se isso ocorre, ela será lembrada do seu dever por alguém mais velho, que tanto pode ser
um familiar, quanto uma pessoa fora deste rculo
124
. A maneira mais corriqueira de se pedir a
bênção é estender a mão direita com a palma virada para cima ou em posição vertical (como se fosse
receber um aperto de mão) na direção daquele a quem a bênção é pedida, e dizer: A bênçãoou A
sua bênção”. Em muitos casos, acrescenta-se o grau de relação ou parentesco: padim, madim,
mãinha etc. Somente quando ouve de volta Deus te abençoeou Deus te faça feliza mão é
recolhida. Outra maneira mais elaborada de conceder a benção é segurar a o estendida e beijá-la,
ou dar-lhe “um cheiro” (vide adiante páginas 140/1), sempre acrescendo a exortação religiosa
125
.
No entanto, pedir a bênção, prática que acompanha o sujeito durante toda a vida, não parece
ser associada a uma atividade religiosa mas, sim, como parte do dia-a-dia, tanto para as crianças
como também para os adultos. Pedir a bênção é algo que as pessoas fazem sem se darem conta. É
parte do mundo como ele é, parte da vida ordinária. Para ser gente propriamente, como fomos
ensinados desde crianças pelas nossas famílias, é preciso pedir a ão. Para os sujeitos, essa
prática pode não estar associada a parte do mundo da minha religião” estritamente falando. Parece
que certas práticas religiosas foram incorporadas ao modo de ser cotidiano dos catingueirenses. Não
se percebe que se está fazendo algo religioso, mas faz-se como se respirasse; é um dado. Nenhum
adulto se pergunta se a bênção é uma prática religiosa por princípio, como também não se questiona
quanto à necessidade de pedi-la. Apesar de ser prática corrente (e talvez por isso mesmo), nenhuma
criança jamais mencionou o procedimento de tomar a bênção nos desenhos. Isso talvez se explique
124
Mayblin (2005: 188) exemplifica o pedir a nção em relação a uma criança de três anos de idade no agreste
pernambucano. Para a autora, a citação é utilizada como evidência da existência de speech games( :187) entre as
crianças pequenas e os adultos, os quais têm como objetivo educar moralmente a primeira, ao mesmo tempo em que
possibilita aos adultos uma interação mais livre − sem, no entanto, resultar em desrespeito.
A: Hey, Luciano, aren’t you going to ask for your favourite uncle’s blessing?[Luciano looks shyly at Amauri and turns
to bury his face in Gilberto’s lap]
A: Hey, moleque (rascal), I’m talking to you: aren’t you going to ask for myblessing?
G: [to Luciano] Say ‘You are not really my uncle’, say it.
L: You are not really my uncle.[laughter from all present]
A: [to Luciano] What sort of disrespect is this?!
G: [to Luciano] Say, ‘You are not really my uncle, you are too poor to be my uncle!’,say it..
L: You are not really my uncle, you are too poor to be my uncle![hearty laughter from everyone present]
G: [to Luciano] Say ‘If you were a rich man, I would call you uncle’, say it.
L: If you were a rich man, I would call you uncle.
A: [to Luciano] Is that so? Then you won’t find many uncles around here. [laughs]”
125
Outra forma de cumprimento que geralmente indica algum grau de reverência é beijar as os, como evidencia o
ritual de beija-mão (do Imperador) da corte brasileira (PEDRO II 2003 [1959]). Em Catingueira, no caso de um ‘beijar
de mãos’ entre pessoas de status sociais distintos, se a pessoa que teve a sua mão beijada não concordar com a reverência
a ela prestada, ela vai, tão logo tenha tido sua mão beijada, segurar a mão da pessoa que antes segurava a sua, e beijá-la.
O movimento é pido. Entretanto, apesar de beijar a mão ser, em princípio, uma atitude de reverência, beijar as mãos
reciprocamente é uma saudação comum em Catingueira entre pessoas de status social similar, que demonstra carinho e
amizade. Entre jovens ou pessoas próximas, se uma pessoa beija a mão de outra, ela vai esperar de volta que a sua mão
seja beijada. Um dia, me aconteceu de ter minha mão beijada por um jovem. Fiquei constrangida pela situação, pensando
que o rapaz reconhecia em mim alguém de status superior, ou me cortejava. Entretanto, tão logo beijou a minha mão, ele
virou sua mão e dirigiu-a para perto da minha boca. Vi-me em uma situação constrangedora porque não podia imaginar o
que ele esperava que eu fizesse. Foi preciso que o rapaz me pedisse para beijar a sua mão, ao que obedeci ainda mais
constrangida. O beijar de mãos recíproco tamm foi observado, por mim, em Recife e João Pessoa.
133
pelo fato de que não faria sentido desenhar o pedir a nção nos desenhos cujo título era “A minha
religião”, porque isso equivaleria a transportar uma prática cotidiana para um reino tido, por
excelência, como o avesso da vida ordinária.
Uma hitese a ser perseguida é a de que a maneira como os adultos em Catingueira se auto-
concebem abarca traços marcadamente religiosos. Além de religiosos, cristãos. Assim, crescer em
Catingueira parece implicar em tornar-se cristão. A prática de pedir a bênção pode ser pensada
como indício dessa constatação da religiosidade cristã como terreno onde se assenta o sujeito. A
pessoa nasce e cresce inserida na religiosidade cristã e, com o tempo, aspectos desta religiosidade
tornam-se indistintos dele próprio. Apesar de ultrapassar os objetivos propostos por esta tese,
podemos nos indagar em que medida a religiosidade cristã como suporte da constituição das
subjetividades não se aplica para todo o Brasil. Como hipótese, podemos nos questionar se esta
prática e outras semelhantes, que espero deixar claras no decorrer da tese, podem ser pensadas em
paralelo aos conceitos de cultura bíblica”, segundo Otavio Velho (1995a), ou de “cultura católico-
brasileira”, segundo Pierre Sanchis (1986, 1994). Os conceitos em questão dão conta de um
conjunto de práticas e representações que está incorporado ao cotidiano, formando uma totalidade
através das transformações constantes, e que não existe necessariamente em função de uma única
denominação religiosa.
Além do “pedir a bênção”, desde que começa a falar, a criança é ensinada a rezar. Nos
primeiros anos, a oração será acompanhada por alguém da família, geralmente a mãe ou a criança
mais velha responsável por pajear” a menor. No entanto, nos desenhos que expressam, por sua
vez, o que é mais evidente para a criança em relação ao tema perguntado, o rezar vai aparecer pela
primeira vez apenas aos oito anos de idade. Contudo, é interessante constatar que rezar nunca vai
apresentar grande apelo para as crianças nos desenhos, a não ser aos treze anos de idade. Veja os
dados da porcentagem de crianças que desenhou “o rezar”: oito anos de idade: 5%. Nove anos:
14%. Dez anos: 36%. Onze anos: 14%. Doze anos: 29%. Treze anos: 48% (vide Gráfico Três
Rezar, no final deste capítulo). Interessante notar que somente aos treze anos de idade, na pré-
adolescência, o rezar aparece com maior representatividade. De resto, ele é pouco citado, apesar de
praticado desde que a criança é muito pequena. Poderíamos afirmar, então, que as crianças
pequenas não rezam? De jeito algum: isso seria tomar os desenhos como reflexo imediato da
realidade. Os desenhos são, ao contrário, como ponderações infantis sobre a realidade. contêm,
eles mesmos, representações do real, e não deveriam nunca ser tomados como reflexos imediatos
dele. Além disso, observei etnograficamente que as crianças pequenas rezam. Mas como explicar o
fato de as crianças terem desenhado tão pouco o rezar?
134
Aventuro-me a dizer que o rezar, similarmente ao pedir a bênção, pode não fazer parte, para
a criança, do que o adulto chama de a minha religião”. Poderíamos pensar, como hipótese, que as
crianças não mencionaram o rezar nos desenhos porque não o reconhecem como uma atividade
ligada ao mundo da religião mas, sim, como atividade ligada ao mundo íntimo, privado; enfim,
familiar. A criança pequena aprende a rezar em casa. Rezar é uma atividade feita no aconchego da
rede, minutos antes de adormecer, na companhia de uma presença familiar geralmente, feminina.
O fato de ter sugerido que as crianças desenhassem “A minha religião” talvez tenha impedido
menções a atividades cotidianas e íntimas, enraizadas no seio familiar, como pedir a bênção e a
oração antes de dormir que, para a criança, talvez não sejam realmente consideradas religiosas”,
mas parte da vida ordinária. O fato talvez corrobore a afirmação anterior de que, para as crianças
pequenas, não existe um reino do religioso separado da vida cotidiana. Além disso, é interessante
que, aos treze anos de idade, o rezar já seja substancialmente desenhado. Talvez isso se explique
pelo fato de que, na pré-adolescência, as crianças já estão mais próximas da maneira adulta de
definir e viver a religião.
Esse fato põe em xeque a escolha do tema de desenho “A minha religião” como instrumento
para captar a vida e as idéias religiosas infantis. A escolha do tema talvez tenha sido um tanto
infeliz. Parece-me que, além da explicitada antipatia quanto a desenhar o tema proposto, quando
cediam à proposta, as crianças tenderam a tratar a religião com R maiúsculo, buscando comentá-la
segundo as explicações dos adultos, com palavras prontas e não com suas próprias palavras,
tampouco se baseando em experiências pessoais. De certa maneira, o resultado dessa parte da
pesquisa foi uma cópia das palavras adultas com o objetivo de atingir a resposta correta, ou seja,
aquela que a criança ouvira da boca da catequista, do padre ou do pastor, dos parentes adultos ou das
crianças mais velhas. Tenho a impressão que algumas crianças leram o meu pedido de desenho sobre
a religião de maneira conservadora e restrita ao que chamamos de religião formal ou institucional.
Lanço essa dúvida, não apenas baseada na análise dos desenhos, mas também no comportamento das
crianças ao desenhar. Elas mostraram-se, muitas vezes, desmotivadas, como se esse assunto não lhes
dissesse respeito ao contrário do desenho dos mal-assombros. Essa dificuldade é discutida no
decorrer da tese mas, principalmente, nos Capítulos Um e Cinco.
Seria interessante perguntar quais as motivações infantis para comparecer aos serviços
religiosos. Penso que as crianças pequenas vão aos serviços religiosos por razões que alguns adultos
(mas não as crianças! como espero esclarecer adiante) chamariam de não-religiosas. As crianças
o às reuniões religiosas infantis, dentre outras razões; para escapar das atividades domésticas que
lhes cabem; para lanchar; porque a “mãe manda” (essa é a expressão usada pelas mães das crianças
ao conversarem com as catequistas: “ah, sim, vou mandar fulana (o) pro catecismo no sábado”) e,
finalmente, para acompanhar um colega/vizinho ou o irmão mais velho. Nas reuniões infantis de
135
todas as religiões observadas, é sempre muito difícil prender a atenção das crianças, especialmente
dos menores, para os assuntos estritamente religiosos. Lembro-me de que, em uma ocasião, um
menino de quatro anos de idade constantemente interrompia as aulas de catecismo com sua
insistência em perguntar quando as crianças iam finalmente brincar. Suas perguntas pareciam uma
ladainha a interromper e irritar a professora: quando a gente vai brincar? quando é hora da
brincadeira? vamos brincar agora? é agora? (vide fotografia 16 no CD anexo o menino está
fotografado no canto direito). Ir ao catecismo, para ele, não dispensa as brincadeiras. O que gostaria
de propor é que, para a criança a brincadeira na aula do catecismo não difere em natureza do próprio
catecismo. E se o adulto, por sua vez, chama a brincadeira de não religiosa, a criança provavelmente
o o faria
126
.
Por outro lado, há momentos em que as crianças são vistas participando ativamente do que os
adultos chamariam a parte religiosa” das reuniões religiosas infantis. Observei que as crianças
mostravam-se atentas e participativas nas seguintes atividades: nas brincadeiras, no lanche que segue
algumas destas reuniões e nos momentos quando eram chamadas a participar ativamente. Neste
caso, a atuação das crianças acontece: 1. na hora da prece entre os espíritas - quando as crianças são
chamadas a “fazer a prece” espontânea em voz alta na frente de todas as outras crianças; 2. no
momento de escolher e cantar, na frente dos colegas, um hino evangélico - entre as crianças da
Assembléia de Deus; 3. no momento de apresentar algum trabalho ou exercício para a turma - no
caso dos católicos. Nesses momentos, mesmo tratando de temas basicamente religiosos, as crianças
mostravam-se participativas. Ou seja, quando são chamadas à atitude ativa, ao contrário da escuta
passiva das leituras e dos ensinamentos das professoras de religião, elas parecem mais aptas a tratar
de assuntos religiosos stricto senso. Mesmo assim, apenas crianças maiores de quatro anos de idade
foram observadas tomando a iniciativa da prece ou do canto, da mesma forma como apenas acima
desta idade foram requisitadas a apresentar para a turma o trabalho de casa, no caso do catecismo.
Outro exemplo de agência religiosa infantil-se no mês de maio, considerado, pelos
católicos, o mês de Maria. De modo geral, observa-se que as atividades religiosas tornam-se mais
abundantes durante este mês. É tempo de realizar novenas, comparecer à missa pelo menos nas
sextas-feiras e seguir as procissões que acontecem todos os dias do mês. Nessas procissões, as
imagens de Nossa Senhora e de São José vão da casa de um morador até a igreja, para, depois da
celebração eucarística, seguirem para a casa de outro cidadão. As crianças, por sua vez, participam
da coroação de Nossa Senhora vestidas de anjos, sob a gerência de adultos. Todavia, elas próprias se
organizam para realizar novenas nas casas dos moradores da cidade. Nestas ocasiões, elas rezam,
126
Embora o esteja afirmando que a criança chamaria a brincadeira de religiosa. Parece possível tecer uma relação
entre a brincadeira no catecismo e a parte chamada de profana nas festas religiosas. As barracas, as músicas, os namoros
e as danças podem ser considerados partes da festa tanto quanto as missas e as procissões (SANCHIS 1983; PEREZ
1994, 1996, 2002; PIRES 2000, 2003). Otavio Velho (em preparação) argumenta sobre a importância da antinomia
como cerne da religião, o que curiosamente a aproxima da brincadeira. Discutiremos este ponto adiante.
136
cantam, dançam e fazem leituras bíblicas. Às vezes, freqüentam mais de uma casa por noite. Nestas
novenas, não nenhum adulto envolvido. A idéia e a concepção da novena, que conta com mais ou
menos vinte crianças, foram iniciativas infantis. Embora crianças pequenas e inclusive bebês
127
também estejam presentes, o grupo é liderado por aquelas crianças mais envolvidas no catecismo, as
quais tenham feito a primeira eucaristia ou estejam prestes a fazer, por volta dos onze anos de
idade. Nestes momentos as crianças assumem atitude bastante contrita, respeitosa e responsável.
Chegam na hora marcada, rezam com seriedade e, se uma criança se comporta mal durante a
novena, pode esperar olhares atravessados e ‘psius’ enérgicos por parte dos colegas. Com isso, quero
apenas enfatizar que, algumas vezes, as crianças tomam partido ativamente no que os adultos
chamariam de o mundo da religião.
É importante ressaltar que as crianças estão inseridas na vida religiosa da comunidade, e isso
produz efeito e tem conseqüência para a própria criança. A criança evangélica não sabe quem foi
Moisés ou Ismael, mas sabe que domingo é dia de culto no tio e, por conseqüência, dia de passeio
de caminhoneta. Além disso, Ismael pode ser o nome do seu irmão mais novo
128
. Se for católica, ela
o sabe que a hóstia é o corpo de Cristo, mas não se esquece de que a gincana da Infância
Missionáriaestá se aproximando. Ela sabe também que, à noite, a sua mãe ou a sua ir vão lhe
mandar para a rede, porque já é hora de dormir. Uma vez deitada na sua rede, a mãe virá ter com ela,
perguntando se ela rezou. É provável que rezem juntas. A princípio, a criança repetias palavras
da mãe, mas, com o passar dos meses, as duas vão rezar ao mesmo tempo a oração que ela lhe
ensinou, até chegar o dia em que, mesmo sem a e ao lado, a criança provavelmente vai rezar
sozinha. A criança sabe também que deve pedir a bênção aos mais velhos e sempre ouve de volta:
Deus te abençoe”. No entanto, “o que é nção?”, “como ela opera?”, “quais os seus efeitos? não
parecem ser questões que a criança pequena se coloca. É fundamental ressaltar que, em todas essas
práticas elencadas, rezar antes de dormir, pedir a benção e, finalmente, ir à igreja, a família tem
papel primordial. Assim, parece que, ao mesmo tempo em que aprende a rezar e a reconhecer a
autoridade de Deus, a criança aprende a maneira correta de se relacionar com sua mãe. Deitado na
rede, rezando com ela, ele aprende o que é ser um filho e o que é ter uma mãe, ao mesmo tempo em
que aprende a rezar o Pai Nosso
129
.
127
Vide Capítulo Dois, onde descrevo sobre a facilidade com que as meninas pré-adolescentes o vistas carregando
bebês nos braços pela cidade.
128
Dentre os evangélicos, é comum escolher nomes do antigo testamento para seus filhos nascituros. Chama a atenção o
fato de que, muitas vezes, apenas os filhos mais novos de um casal são chamados com nomes bíblicos, deixando antever
exatamente em que momento aconteceu a conversão religiosa daquele casal ou do pai da família (que é quem geralmente
tem a última palavra na nomeação dos filhos).
129
Junto com o Pai-Nosso e a Ave-Maria (no caso das crianças católicas), as crianças muitas vezes aprendem a rezar
para o seu anjo da guarda, e geralmente o fazem antes de dormir. Essa oração tem rias formas, mas geralmente é uma
oração pequena, rimando diminutivos e termos carinhosos. Vide um exemplo: Meu anjinho da guarda, meu bom
amiguinho, leve-me sempre para o bom caminho”. É comum que, com o passar dos anos, as crianças parem de rezar para
o anjo da guarda porque o associam a algo peculiar às crianças pequenas. O anjo da guarda passa a ser visto, assim como
137
É útil constatar que as igrejas e o Centro espírita estão sempre cheios de crianças
130
mas
elas nunca comparecem sozinhas. Acompanham-nas a família principalmente a mãe e os iros
ou somente os irmãos e os vizinhos e/ou amigos. O primeiro elemento religioso a ser desenhado
por uma criança foi uma combinação de Jesus, Maria e a igreja. A ocorrência se deu com um único
menino, aos quatro anos de idade (vide no CD desenho 11 A minha religião JP. 4. M. 2). Causa
impressão o fato de que o primeiro elemento religioso reconhecido pelas crianças tenha sido uma
igreja juntamente com Jesus e Maria. O fato parece sugerir que não será por acaso que a criança
reconheça a relação materna entre Maria e o menino Jesus como a coisa mais importante da religião.
Para a criança de quatro anos de idade, a sua relação com a sua mãe também é um dos aspectos mais
importantes na sua vida. É através desta relação que a criança conhece o mundo, nomeia as coisas,
aprende o que deve ou não ser feito e também o que deve ser sentido. Algumas crianças de quatro,
cinco e seis anos de idade desenharam Jesus e Maria juntos no mesmo desenho
131
. Isso parece estar
indicando que, quando pequenas, as crianças concebem a figura de Jesus associada à sua mãe, como
concebem a figura de um filho associado à sua mãe. Mais tarde, as crianças passam a conceber a
existência de Jesus em separado da sua e e, em concordância com isso, o número de desenhos de
Jesus ultrapassa os de Maria (Vide Gráfico Quatro, Jesus x Maria, no apêndice deste capítulo). Não
é de se estranhar que tenhamos mais Jesus que Marias desenhados quando as crianças já foram
cristianizadas, que, mais que a sua mãe, Jesus é a figura central do cristianismo.
Talvez pudéssemos afirmar que a religião, no caso estudado, se aprende no seio familiar, e
está em sintonia com as relações domésticas. Com isso, o estou dizendo, no entanto, que se
aprenda a doutrina religiosa em casa, ou que os pais são responsáveis por educar religiosamente as
crianças. Digo que as relações sociais que se estabelecem no seio da família são como o mundo da
criança e, por isso, parecem determinar as outras áreas da vida social infantil. Ao mesmo tempo em
que aprende a ser filho, a criança aprende a ser uma pessoa que ama a Deus. A criança, em família
católica, aprende sobre as verdades religiosas observando como a sua mãe paga uma promessa. Ou
quando entende que o seu próprio nascimento é dádiva de São Sebasto, a quem a sua mãe fez
promessa para que ele “vingasse”. Da mesma forma, ela aprende sobre as relações de gênero ao dar-
o Papai Noel ou o Coelhinho da Páscoa, como engodos para as crianças pequenas. Assim, crianças maiores se
distinguem das menores pela sua suposta sabedoria. “[…] when children discover the truth about Santa Clauss or Easter
Bunny (which they really knew all along), it gives them a marker of having attained a new level of maturity and
intellectual ability(ELKIND 1994: 49). Além disso, parece-me haver uma indistinção em certo grau entre o anjo da
guarda e o anjinho (nascituro falecido), como mostra o Capítulo Dois, página 79.
130
É útil esclarecer que o Centro espírita não foi desenhado como igreja. Igreja, enquanto termo nativo, pode indicar as
igrejas de São Sebastião, a Assembléia de Deus, a Congregacional ou a Seguidores de Cristo. O Centro espírita o é
chamado de igreja. Vide no Capítulo Cinco, ginas 158/9 e, como exemplo, vide redação de RJ. 12. M. 18, também
discutida no Capítulo Cinco: Redação de Religião. Tem vários tipos de religião. Tem a religião católica, a religião
evangélica. Mas todas são iguais porque não é importante as religiões serem iguais, o que importa é o Amor por Deus,
e a fé por ele e por todos os Santos da religião. A igreja é a casa do Senhor e nós vamos lá para rezar, para orar e para
pedir paz e amor”(RJ. 12. M. 18).
131
Também o fizeram as crianças de oito, doze e treze anos de idade.
138
se conta que seu pai ou avô, ao irem à igreja, sentam-se junto aos homens, perto do altar, ao passo
que sua mãe vai sentar-se com as outras mulheres, na nave da igreja. A criança vai para a igreja com
alguém mais velho, que define aonde ela vai se sentar. Mas, um dia, a criança terá que fazer sua
própria escolha e, provavelmente, optará por sentar-se onde se sentam as pessoas do seu próprio
gênero.
Contudo, não estou afirmando que as crianças copiam seus pais, ou que se tornaram
religiosas à maneira de seus pais. Nem muito menos quis afirmar que as crianças invariavelmente se
tornarão pessoas religiosas stricto senso. De um lado, o que quis expor neste pico é que, para a
criança, não importa a religião, ou o estado, ou a escola, como abstrações. Essas instituições
parecem importar na medida em que são vividas, como coisas concretas. Importa, sim, como as
pessoas com as quais ela estabelece relações próximas vivem essas abstrações no cotidiano. E, de
outro lado, sugiro que a criança vai aprendendo sobre Deus à medida que vai aprendendo sobre
como ela deve se comportar, o que esperam que ela faça ou se torne no futuro. Com isso, acontece
que as crianças vão se assemelhando aos seus pais. Mas não porque elas os imitaram simplesmente −
e sim porque eles aprenderam no cotidiano familiar como “gente como a gente” deve ser
132
. É útil
lembrar que uma pessoa ser religiosa é um dos atributos sociais mais valorizados em Catingueira.
Por fim, gostaria de ressaltar o papel das próprias crianças no processo de tornar-se religioso. Os
irmãos mais velhos têm sempre papel importantíssimo na vida das crianças menores. São esses os
responsáveis práticos por elas às vezes, mais que as suas próprias es ou pais. Por
responsabilidade de ordem prática, quero dizer certificar-se de que a criança tomou banho, se
alimentou, está pronta para ir à escola na hora certa, além de acompanhá-la nos serviços
religiosos
133
. A mãe é responsável geral por todas as crianças, pela organização e bom
funcionamento da casa. Ela resolve brigas infantis, decide o que vai ser preparado para o almoço
(mesmo que seja uma filha a responsável por cozinhá-lo), resolve problemas burocráticos junto ao
colégio, à prefeitura, à venda, aos Correios e à casa lotérica, enquanto que o pai é, geralmente,
responsável pelo provimento material. (Para maiores detalhes sobre a funcionalidade de uma
residência familiar, refira-se ao Capítulo Dois).
132
Gabriel Tarde trabalha com o conceito de imitação enquanto um processo criativo “Como forças plásticas e
funcionais que, a partir da conexão dos múltiplos fluxos de crenças e desejos, a um só tempo constituem e movem a vida
social(MELLO 2001). Para uma análise mais demorada do pensamento e trajetória intelectual de Tarde, vide Eduardo
Vargas (2000). Para uma apropriação das idéias de Tarde na direção da constituição da Teoria do Ator Rede, vide Bruno
Latour (2005).
133
Há uma certa literatura dentro da antropologia da criança que ressalta como elas mesmas são agentes do seu próprio
crescimento e do seu entendimento do mundo. O objetivo desta corrente é contrapor as idéias que dizem que as crianças
são meras cópias dos adultos, desconsiderando-as como agentes criativos do seu desenvolvimento. O que estou
destacando aqui, no entanto, é apenas o papel das crianças na boa gerência da residência familiar, no que diz respeito
especificamente às crianças pequenas. Concordo, contudo, que algumas vezes as crianças são agentes criativos no seu
próprio desenvolvimento, mas sempre em relação com os adultos.
139
3. Sobre a irrelevância do significado: uma religião da prática?
Das ocorrências observadas nos desenhos das crianças, chama a atenção o número elevado de
igrejas (templos), como é possível observar no Gráfico Cinco (Soma das Igrejas
134
), ao final deste
capítulo. A fim de entender porque a maioria das crianças desenhou igrejas quando foram solicitadas
a desenhar sobre a sua religião, parece-me importante descrever as circunstâncias que intermediam o
freqüentar a igreja. Além disso, tentaremos entender porque algumas crianças desenharam, quando
impelidas a desenhar sobre a sua religião, igrejas que o freqüentam. Como será visto, o fato parece
insinuar que as crianças desconsideram o caráter simbólico da religião, concentrando-se na prática
religiosa, entendida aqui como o ato de freqüentar a igreja.
Geralmente, as crianças colocam a sua melhor roupa para irem à missa, assim como também
para irem ao culto. Não é raro ver meninas nas igrejas vestidas com trajes de damas de honra, que
embora sejam, sem vida, antigos, estão lavados e passados com esmero. Na reunião espírita, as
crianças não o muito assíduas, mas observa-se, de modo geral, maior simplicidade da
indumentária no Centro espírita em relação tanto à igreja católica quanto às igrejas evangélicas. Por
exemplo, tanto os adultos quanto as crianças são facilmente vistos calçando chinelos na reunião
espírita − o que é mais raro nas outras religiões. De maneira geral, nos serviços religiosos as crianças
católicas são as mais bem arrumadas, seguidas das crentes e, finalmente, das espíritas. Nos serviços
religiosos infantis, a indumentária e o cuidado pessoal parecem seguir os mesmos padrões dos
adultos
135
. No entanto, seria correto afirmar, no caso das três religiões, que, se muitas crianças
134
Isto é, a soma das igrejas desenhadas, entendidas como templos, sem distinguir as diferentes denominações − embora
com os dados coletados seja possível fazê-lo.
135
Nesta nota, talvez demasiada longa, discorro sobre a indumentária adulta no atendimento dos serviços religiosos, a
fim de tecer considerações sobre o mesmo aspecto, do ponto de vista infantil.
Os crentes são conhecidos em Catingueira pelo uso de vestimenta formal. Para eles, é crucial se vestir bem para
ir ao culto – e basta observar a indumentária masculina para se certificar disto. Os homens devem, sempre que possível,
usar terno e gravata. Quando “passam para crente”, os homens fazem um esfoo para poupar parte do salário para o
logo adquirirem os itens enumerados. No entanto, camisa de manga longa para dentro da calça é onimo que se exige,
no caso dos homens, para o atendimento do serviço religioso. Não importa o quão quente esteja o dia regra muito
válida também no caso dos meninos. As mulheres protestantes também escolhem com cuidado a roupa e se arrumam
intencionalmente para o culto. Elas geralmente usam sandália baixa, saia abaixo do joelho, blusa com manga todas as
peças em cores sóbrias. Brincos, colares, pulseiras, batom, acessórios de cabelo ou esmalte nas unhas são geralmente
desencorajados, embora certo grau de vaidade feminina seja permitido quando a menina ainda é muito jovem: por
exemplo, o uso das cores vibrantes, entre as quais o rosa, é permitido (e adorado pelas meninas) e, até mesmo, o uso de
alguns acessórios, como uma bolsinha ou uns óculos de sol. Acredito que a execeção se justifique porque estes itens são
mais vistos como brinquedos infantis que como utensílios de vaidade feminina.
Para os católicos, por sua vez, também é crucial estar bem arrumado para freqüentar os serviços religiosos. É
comum as pessoas reservarem uma roupa especial, anedoticamente chamada de “roupa de ver Deus”, para irem à missa.
Os homens católicos não usam terno e gravata para ir à missa − mas, com certeza, tomam banho e colocam uma das suas
melhores roupas. Ouvi, mais de uma vez, pessoas dizerem que não iam à igreja católica, principalmente durante as
festividades em honra do santo padroeiro, porque não tinham roupa nova para vestir (PIRES 2003: 62). Algumas pessoas
também reclamam que na igreja católica todo mundo fica reparando na roupa alheia, e esta atitude acaba por inibir o
comparecimento à igreja. Na igreja de São Sebastião, qualquer pessoa que ultrapasse ou fique aquém do padrão pode ser
vítima de olhares enviesados e fofocas.
140
comparecem aos serviços infantis calçando chinelos, apresentar-se descalço seria considerado
inadequado. Muitas crianças vestem roupas consideradas gastas, mas nunca se apresentariam com
roupas sujas. Que a criança se suje sem querer no caminho para o serviço religioso é perdoável, mas
que não tenha tomado banho antes de sair de casa é inadmissível. Não tomar banho, usar roupa suja
ou comparecer descalço seriam consideradas atitudes inadmissíveis em qualquer das três religiões.
Para ir a todos os serviços religiosos, tanto infantis quanto adultos, é essencial ter tomado banho. É
desejável que, quando a criança chegue ao serviço religioso, o seu cabelo ainda esteja molhado,
evidenciando que ela, por assim dizer, “acabou de sair do banho”. Passar perfume, da mesma
maneira, é altamente recomendável para crianças e adultos. Assim, parece ficar claro que um
código especial de indumentária requerido em qualquer dos serviços religiosos das três religiões em
questão. Com o tempo, a criança vai tomando ciência de que, para ir à igreja ou ao Centro, é
necessário se arrumar devidamente. Ela saberá que não se trata de uma atividade ordinária mas, sim,
de uma atividade que pára qualquer outro comprometimento. Com o tempo, ela não vai mais
precisar da ordem da e para parar a brincadeira e ir tomar o banho, quando a hora da missa, por
exemplo, se aproxima. Por mais que as crianças não saibam quem é o Divino Espírito Santo, elas,
aos poucos, vão tomando conhecimento de que devem se apresentar bem vestidas na igreja. Dentre
outras coisas, elas vão aprendendo que existe algo na igreja que não pode ser encontrado fora dela.
Além disso, é imprescindível mencionar que as crianças nunca vão aos serviços religiosos sozinhos:
sempre lhes acompanham a família ou os amigos.
Talvez seja útil abrir uns parênteses neste momento. De modo geral, tomam-se muitos
banhos em Catingueira. Isso independe de a pessoa ser criança ou adulta. É considerado adequado
tomar pelo menos dois banhos por dia, pela manhã e antes de se deitar ou, em muitos casos, três:
um banho pela manhã, outro antes de almoçar e outro antes de dormir. Como afirmei, o uso de
perfume também é muito difundido, inclusive em crianças muito pequenas. Uma família, por mais
pobre que seja, terá sempre um vidro de perfume para ocasiões especiais, como a festa do padroeiro.
Interessante notar que uma forma de carinho bem comum na cidade é o cheiro”. Segundo Câmara
Cascudo, o cheiro é uma forma de carícia nordestina, trazida pelos portugueses através do contato
com os chineses. De todos os povos, apenas estes últimos e os inuits concebem essa forma de “beijo
Se colocássemos em relação uma mulher católica, uma crente e uma espírita e analisássemos apenas a sua
indumentária no momento do serviço religioso, seamos levados a pensar que, em escala de arrumação, a católica estaria
na frente, depois viria a crente, para depois vir a espírita. O fato é que cada religião tem um conjunto de atitudes que são
mais valorizadas e, de acordo com essas, valoriza-se uma vestimenta em concordância. Os espíritas consideram
ostentario o uso de decorações pessoais porque valorizam a simplicidade. Por isso, geralmente, as vestimentas que
encontramos no Centro espírita são as mais simples em comparação com as outras religiões. Isso o quer dizer que as
pessoas não se arrumem intencionalmente para irem ao Centro espírita: elas se arrumam, mas o código de vestimenta
considerado adequado é diferente. Por exemplo, uma mesma mulher que no sábado ao Centro espírita de sandália
baixa, calça comprida azul e blusa branca, poderia ser vista de vestido estampado ao joelho e sandália de salto alto na
missa de domingo. No entanto, parece que, no caso dos serviços religiosos especialmente destinados às crianças, temos
um menor controle das vestimentas.
141
sem os lábios” ou, diria eu, beijo com o nariz. Ao invés do beijo ou do abraço, um avô em
Catingueira pediria para dar um cheirono seu netinho. Quando o neto adentra a casa do avô, este
diria: Venha cá, deixa o dar um cheiro no meu filho”. A carícia cheiro implica em dar uma
aspirada delicada, encostando levemente o nariz na pele do outro. Geralmente, faz-se perto da
orelha, mais próximo da nuca ou, ainda, no topo da cabeça. Essa forma de carinho é comum nas
relações maternas, paternas, fraternas e também nas relações de casal. Uma pessoa que acabou de
tomar banho tem mais chances de receber “cheiros”. Se no ato do cheiro esta pessoa está usando
perfume ou, simplesmente, cheira a sabonete, “o cheiro vi acompanhado de uma observação
carinhosa sobre o fato da pessoa estar perfumada: Pense num cheiro bom!”, ou qualquer
comentário do gênero. Rebhun (1999) faz constatação parecida em relação ao seu trabalho de campo
em Caruaru/PE: “People nuzzle children with affectionate cheirinhos or little sniffs, and most people
use perfume in the expectation of being sniffed” (1999: 57)
136
.
Tendo discorrido sobre como as crianças vão às igrejas, vamos agora debruçar-nos a
entender as suas intenções. Pelo menos seis crianças, nas idades de nove, dez e treze anos de idade,
desenharam igrejas às quais elas não freqüentam: alguns católicos desenharam igrejas crentes e
alguns crentes desenharam igrejas católicas. Quando lhes perguntei o porquê do desenho, eles
disseram que tinham vontade de ir àquelas igrejas e que tinham feito pensando nas outras crianças
que as freqüentam. Mas para que ir àquela igreja específica? Insisti. No caso dos que desenharam
igrejas crentes, as crianças afirmaram que gostariam de ir para ouvir e cantar os hinos. E para ver as
imagens dos santos e como é a missa”, no caso dos crentes que desenharam igrejas católicas.
Perguntei por que elas não iam e elas me disseram unaninamente que suas mães as proibiam.
Uma das hipóteses deste trabalho é que, pela quantidade massiva de desenhos de igrejas,
podemos dizer que a religião, para as crianças, está, em alguma medida, relacionada com a igreja
entendida enquanto templo/ prédio. No entanto, com que conceito de igreja estas crianças estão
dialogando? Seria ir longe demais dizer que as crianças não reconhecem a natureza do
comparecimento à igreja como distinta do cotidiano? Como se fossem ouvir música na casa dos
amigos, elas querem ir à igreja para cantar e ouvir os hinos”. Para as crianças pequenas, como já
sugeri acima, não haveria distinção entre o religioso e o o religioso. Desta forma, ouvir música
fora ou dentro da igreja, assim como assistir a um filme na TV ou assistir à missa constituiriam
atividades da mesma natureza. Isto justamente porque, no mundo da criança pequena, não parece
haver lugar para a distinção religioso e não religioso. Na mesma direção, J. 8. M. (pastor) escreveu:
Eu gosto mais ou menos de ir à igreja. Vim aqui é muito legal. Você folha para a gente
desenhar”. A frase de J. parece corroborar a afirmação de que não há diferença ontológica entre ir à
igreja e ir à casa de alguém ao sugerir a não singularidade do atendimento à igreja e a indistinção
136
Cascudo. Superstições e costumes. pp. 65-69. http://jangadabrasil.com.br/agosto48/pa48080a.htm.
142
entre os mundos do cotidiano e do religioso. Interessante constatar que, no caso específico dos
evangélicos, o mesmo ocorreria também com os adultos, já que a idéia de igreja enquanto um espaço
sagrado distinto parecer ser predominantemente calica. Gostaria de sugerir a hipótese de que o que
mais importa para as crianças é a atividade em si mesma. Elas não estariam nem um pouco
preocupadas com o que por trás, por exemplo, de uma missa, senão com o ato em si. Com isso,
o estou afirmando que a prática religiosa não tenha conseqüências para a criança ou que a religião
da criança seja apenas exterior, como deve ficar claro adiante e no capítulo a seguir
137
.
Christina Toren (1999) parece fornecer-nos algumas pistas sobre como trabalhar
teoricamente o material de pesquisa apresentado acima. Ao analisar como as crianças e os adultos
concebem a hierarquia, conceito central para se entender os fijianos, Toren (1999) chegou a
conclusões muito interessantes. A autora utilizou desenhos pré-elaborados nos quais as crianças
deveriam indicar o chefe, as mulheres, as crianças, os homens, os idosos, e assim por diante. As suas
conclusões apontam que, para os adultos, a hierarquia define a posição geográfica de uma pessoa nas
variadas situações de interação social. Para as criaas, por sua vez, é a posição geográfica que
define o status hierárquico. Em outras palavras, para os pequenos o chefe é chefe porque se senta
acima e para os adultos o chefe é chefe logo se senta acima. Com isso, pode-se afirmar que as
crianças baseiam as suas primeiras cognições do mundo de maneira diretamente material
afirmação com a qual Piaget e Pierre Bourdieu concordariam. Algo parecido poderia ser pensado
com relação aos dados coletados por mim. As crianças em Catingueira diriam: ‘eu vou à igreja
porque meu irmão vai ou porque minha mãe manda’, enquanto seria possível ouvir de um
adolescente ou adulto, ‘eu vou à igreja porque sou uma pessoa religiosa’. Em poucas palavras,
quando criança, a religião (ser religioso) não era sequer mencionada entre as razões para o
comparecimento à igreja. Mais tarde, entretanto, quando adulto, a religião parece tornar-se a grande
razão do comparecimento à igreja. Existem, com certeza, outras razões que levam uma pessoa a
comparecer à igreja como, por exemplo, a sociabilidade como menciono a seguir. No entanto,
estou destacando que o elemento mais importante a ser elencado pelo sujeito adulto parece ser uma
razão religiosa. Não que outras razões não se coloquem, mas o que estou ressaltando é a mudaa no
137
Tudo isso não impede que desde muito pequenas elas tenham noção de que a igreja, Jesus e Maria se relacionam de
alguma forma, como desenhou o garoto de quatro anos de idade (JP. M. 4. 2). No entanto, elas ainda o sabem como
estes elementos estão relacionados. Vou dar um exemplo para deixar claro o que quero dizer com o fato de que as
crianças têm uma vaga idéia sobre os elementos religiosos e de como eles se relacionam entre si. Estava conversando
com um grupo de crianças sobre o Divino Espírito Santo. A maioria das crianças diz que nunca ouviu falar sobre o
Divino Espírito Santo. Para algumas poucas crianças, trata-se de um “passarinho”. Como todo passarinho, ele voa, bota
ovo e canta; no entanto, ele é diferente. Sua distinção se pela sua associação ao mundo religioso. Logo depois que a
conversa sobre o Divino Espírito Santo minguou, J., de oito anos de idade, começou a falar sobre Nossa Senhora. Isso
parece indicar que, para esta criança, o “passarinho” e Nossa Senhora são, de alguma forma, conciliáveis, fazendo parte
do mesmo universo de sentidos pelo fato de poderem ser emendados na mesma conversa. Mas J. não sabe explicar muito
bem como o “passarinho” e Nossa Senhora estão relacionados
143
discurso da criança para o adulto. Quando criança, “religião” não faz sentido senão como referente a
igreja (prédio) que, por sua vez, independe dos diferentes credos.
Seguindo as sugestões de Toren (1999), poderíamos argumentar que, para os adultos, ir à
igreja ‘simboliza’ algo que, por sua vez, parece mais importante que o aspecto prático do ato. Em
outras palavras, para uma mãe ir à igreja “significa” ou “simboliza” algo que ultrapassa esta ida. Ao
contrário do seu filho, ela vai a igreja por algum motivo, seja rezar, se encontrar com Deus ou
consigo mesma, pedir perdão pelos pecados, pagar promessa ou, até mesmo, observar as roupas das
outras mulheres
138
. Para as crianças, é completamente diferente diria, mesmo, o oposto: freqüentar
a igreja parece vir antes da sua cognição de significado. Quando criança, freqüenta-se a igreja;
depois é que se pergunta pelas questões teológicas, morais e propriamente religiosas, implicadas
neste movimento e pela conseqüência do ato. Para transformar-se em um adulto, a criança deve fazer
essa passagem: o ato perde forças em si mesmo e cede lugar para o significado do ato. Em um
primeiro momento, a religião pode ser entendida como uma prática. Entretanto, é preciso o se
esquecer de que a prática está imbuída de sentidos na medida em que ir à igreja, mesmo sendo algo
da ordem do mundo prático, implica em relações sociais ponto a ser mais discutido adiante. Mais
tarde, no caso dos adultos e dos adolescentes, o significado torna-se massivo, sobrepondo a própria
prática. À medida que a criança cresce, a prática vai se tornando subordinada ao seu significado.
Como na pesquisa de Toren: So the adult conception of above/below inverts the child’s concept;
what was initially understood as material and concrete comes to be seen as an expression of the
explicit adult notion of hierarchy as a kind of moral imperative: the principle of hierarchy as
derived from an interaction between rank, seniority and gender” (1990: 228).
Por que os adultos não permitem que as crianças freqüentem outras religiões que não sejam
aquelas que a sua família professa? Os adultos não deixam as crianças circularem entre as igrejas
porque, para eles, religião e igreja relacionam-se com um conjunto de ensinamentos, com uma
teologia específica; enfim, com uma maneira de relacionar-se com o sagrado. Além disso, para os
pais não se vai à igreja para ir-se à igreja. O ato de ir à igreja implica, em grande medida, em
aprender um conjunto de ensinamentos teológicos daquela igreja em particular. Por isso, importa,
sim, qual igreja se freqüente, uma vez que a definição de uma denominação religiosa importa na
medida em que as religiões divergem sobre as abordagens do fenômeno religioso
139
. Para as crianças
138
Note que nem sempre as razões para comparecer à igreja por parte dos adultos são de natureza abstrata. Gostaria de
alertar o leitor que o estou sugerindo apenas a distinção abstrato x concreto como eixo para entender como os adultos e
as crianças relacionam-se com a religião. Como espero deixar claro, a religião infantil é vivida na concretude do
atendimento à igreja, mas isso implica em uma rede de relações sociais que acabam por ultrapassar o simples aspecto
concreto do ato.
139
Alguns autores têm argumentado sobre o que é chamado de religião cósmica ou realismo mágico ou perspectiva
cosmológica. Duarte (1986: 243) denominou mentalidade cosmológica”, Sanchis (1997), lógica pré-moderna”,
Oliveira (1997: 49), “religiãosmica” e, mais recentemente, Semán (2000, 2001), “visão cosmológica popular”. Donde
na adesão a uma igreja e não a outra, importam menos os motivos teológicos que os motivos de outras naturezas, como a
144
pequenas, religião parece relacionar-se com o fato de ir a um edifício chamado igreja, nada mais. E,
por isso, não há distinção entre as religiões: tanto faz ir aqui ou ali, todas as igrejas são igrejas.
Assim, quando começam as distinções e as afirmações de pertencimento religioso, por volta dos
nove anos de idade, como será visto no capítulo a seguir, aí sim, podemos dizer que as crianças
começam a pensar razões pelas quais ir à igreja, como por exemplo, Eu sou católico”, então
freqüento a Igreja de São Sebastião. Nesse momento, em relação à religião, elas estão mais próximas
dos adultos que das crianças pequenas
140
.
Por outro lado, por que as crianças querem ir às igrejas às quais os seus pais não freqüentam?
Para as crianças, como já afirmei, uma razão simbólica para ir à igreja não se coloca: ir é o ato em si
que preenche todas as perguntas. Não se freqüenta a igreja por uma razão simbólica mas, sim,
porque a mãe manda, porque os amiguinhos freqüentam, porque o irmão mais velho freqüenta.
Trata-se, apenas, de fazer o que deve ser feito, o que todo mundo faz. Para as crianças, o que está
por trás, ou seja, o conteúdo simbólico das religiões, não está em jogo. Ao contrário, o que está em
jogo é o conjunto de atividades envolvidas no atendimento à igreja. Por fim, não importa qual das
igrejas se freqüente. O que importa e tem conseqüências é ir à igreja com os amiguinhos ou a
família. Seguindo a sugestão de Toren (1999), para a criança, ir à igreja parece ser um ‘signo’ das
relações que ela estabelece no ato de comparecer à igreja. In other words, above/below for younger
children is what is called a 'sign', that is, a 'signifier' whose 'signified' is certain relations between
people in space; for adolescents and for adults, above/below has become what is called a 'symbol',
one that contains the sign through a process of cognitive construction so that it comes to stand for
status differentiation” (TOREN 1999: 94-100).
Os antropólogos, como adultos, pensam como os seus próprios paradigmas. Segundo Toren
(1999), os antropólogos não incluem as crianças nas suas pesquisas justamente porque vêem o
mundo de uma perspectiva própria – e como não podia deixar de ser, adulta. Desta forma, quando os
antropólogos dizem que o ritual simboliza algo, eles estão partindo de um pressuposto
adultocêntrico, na medida em que a experiência das crianças no ritual é totalmente diferente da
experiência dos adultos. Para as crianças, Toren argumenta que o ritual está ligado à concretude dos
elementos ali envolvidos, enquanto que, para os adultos, a materialidade do ritual existe em função
trajetória individual ou familiar, motivos étnicos ou políticos etc. Isto permitiria às pessoas transitar entre igrejas sem
maiores conflitos “religiosos”. Neste momento, estou apenas querendo entender o porquê das crianças desenharem
igrejas que os seus pais não freqüentam e por que os pais não deixam as crianças circularem entre as igrejas. Os pais não
deixam as crianças circularem entre as igrejas porque não consideram o ato correto”. Uma pessoa, por exemplo, que
começa a freqüentar uma igreja evangélica vai ser vítima de comentários e fofocas até que ela se converta e se estabeleça
enquanto crente. Todo mundo sabe quem pertence a que igreja e a freqüência com que comparecem. Deste modo,
apesar de existirem pessoas que circulam com certa liberdade entre as igrejas, este não parece ser o acento local. Talvez
o trânsito entre religiões possa ser observado com maior relevância nas cidades de grande porte.
140
Como escreve (Toren 1999: 94-100): To find in kava-drinking what adults find there, children have to realize what
they see as concrete to be also figurative in a specific way: they have to realize kava-drinking as being 'about' status
differentiation as well as 'about' drinking”.
145
do seu aspecto simbólico. It is because we, as adults and anthropologists, have privileged our own
notions over those of children that we have taken it for granted that for everyone ritual must stand
for something other than itself and that this something is carried by the material symbols, the
behavior (including the language used, etc.).” ( :94-100).
Mesmo no caso de uma mãe que não vá à missa, ela manda os filhos irem; e mais,
determina que o filho mais velho leve o mais novo. Os adultos pensam que é sempre melhor para a
criança estar na igreja aprendendo sobre Deus que estar na rua aprendendo coisa que não presta
141
. Para os pais, interessa que a criança à igreja e, com isso, aprendendo coisas boas. A mãe
manda seu filho com o objetivo de que ele vá aprendendo a como ser religioso, fazer o bem, ser boa
gente. Porém, o adulto pensa com seus próprios paradigmas: para ele, ir à igreja, em grande medida,
implica em comungar com aquela interpretação do religioso ali oferecida e, no limite, em ser ou
tornar-se uma pessoa religiosa segundo aquela determinada religião o que distingue radicalmente
da motivação da criança ao comparecer à igreja. No entanto, é preciso não se esquecer de que
existem adultos que freqüentam diferentes igrejas sem se filiarem exclusivamente a uma delas. Os
adultos acham “bonitoir à igreja e se orgulham quando os seus filhos são religiosamente ativos. A
primeira coisa que o pequeno aprende ao freqüentar a igreja todo domingo, acompanhado do seu
irmão mais velho, não é nada religioso stricto senso. O pequeno aprende que o iro mais novo
deve seguir o mais velho, onde quer que ele vá. Aprende, em contrapartida, que o irmão mais velho
tem como dever cuidar do mais novo. Desta maneira, o pequeno vai aprendendo sobre as relações
familiares e o seu lugar no mundo, ao mesmo tempo em que aprende sobre Deus, Jesus e os Santos.
Então, aqui parece, finalmente, possível responder por que os adultos mandam seus filhos para a
igreja enquanto eles mesmos não vão. Para os adultos, mais importante que o comparecimento à
igreja é ser uma pessoa boa. Para eles, o ato de ir à igreja, em si mesmo, não tem valor se não se
pratica o bem fora da mesma. Para os adultos em Catingueira, parece que amar a Deus e ao próximo
torna-se mais importante que freqüentar a igreja. Como se aprende que a religião ultrapassa o
atendimento à igreja? Curiosamente, é justamente indo à igreja que se aprende que, para ser uma
pessoa religiosa, não é essencial comparecer à igreja! Para chegar a este raciocínio, os adultos
também foram mandados para a igreja quando eram crianças e, como seus filhos, não entendiam
quase nada do que o padre ou pastor falava. Mas, de fato, ao fim aprenderam tudo!
142
141
Note que a igreja parecer ser mais pública que a casa, porém menos pública que a rua. Até mesmo em Catingueira
parece que a rua é o lugar do perigo, enquanto a igreja é lugar de proteção nesse sentido, próxima da casa, lugar
primordial da família.
142
Sobre a insistência dos adultos em mandar as crianças para observer o ritual, Toren escreveu: Adults insist on
children observing the explicit rules of ritualized behavior because they hold these rules to express a metaphysical
principle whereby differential status is given by God. So, to behave appropriately as adults children have to make the
material fact of ritual merely the symbol of its significance, rather than its own justification (TOREN: 1999: 100).
146
Mas como se deu esse aprendizado? Como já aludi anteriormente, as crianças aprendem
sobre religião através das redes sociais, nas quais a família e as pessoas mais próximas têm papel
primordial. Além disso, as crianças aprendem fazendo, na concretude do ato. Para os adultos, ir à
igreja parece implicar em um modo específico de se relacionar com as entidades, com a comunidade
de fé e com as forças do sagrado. Para as crianças, ir à igreja é somente ir à igreja e nada mais.
Como afirma Toren (1999: 94-100), para as crianças “'kava-drinking is about drinking kava' and
'eating a meal is about eating'
143
. Mas gostaria de chamar a atenção do leitor para o fato de que
isso não é pouco. Apesar da vida da criança estar limitada por este constrangimento material, é
necessário lembrar que esta materialidade implica e se dá a partir de relações sociais que ela
estabelece no atendimento da igreja
144
. Um dos objetivos desta tese é estudar as redes de
sociabilidade nas quais as crianças estão inseridas e através das quais aprendem a ser gente, segundo
os padrões da sua comunidade. Quando criança, as redes de sociabilidade parecem estar restritas à
família, aos vizinhos e aos amigos. Por isso, foi importante observar como se a inserção das
crianças no mundo religioso, isto é, que preparativos envolve o atendimento à igreja, com quem e
como elas vão à igreja, com quem elas aprendem a rezar etc. Como vimos, as crianças participam
das reuniões religiosas infantis, isto é, dos serviços religiosos endereçados especialmente às
crianças, e também dos serviços destinados aos adultos. Entretanto, o mais importante aspecto a ser
mais uma vez destacado é que as crianças sempre vão aos serviços religiosos acompanhadas seja
por parte da família, seja pelos colegas, seja pelos vizinhos. O fato é que elas nunca vão sozinhas. É
preciso mencionar que elas também assistem a casamentos, participam da festa de São Sebasto,
aprendem a rezar antes de dormir e a pedir a bênção aos mais velhos.
Os exemplos que vou citar neste momento foram todos coletados dos desenhos cujo título
era “a minha religião”, e parecem evidenciar a relação íntima que as crianças estabelecem entre as
relações sociais e o freqüentar a igreja. A.G., de dez anos de idade (AG. 10. F. 19), pontua: A
minha religião é católica e eu freqüento a igreja todos os dias com minhas amigas e meus pais”. M.
(MJ. 11. F. 10), de onze anos de idade, escreveu: Eu vou à igreja com minhas amigas”. EF., onze
anos de idade, conclui (F. 11. F. 11), A igreja é bonita, tem o padre para celebrar a missa, tem
muita gente. Eu vou à igreja com minhas colegas”. Isso parece insinuar que, do ponto de vista da
criança − muito mais que rezar ou aprender o catecismo ir á igreja implica em se encontrar com as
143
Citação completa: For, where we anthropologists, along with Fijian adults, take above/below in reference to a
single plane to be symbolic and so implicitly metaphorical, the youngest Fijian children take it to be propositional. In
the simplest possible terms this means that, for children, ritual refers to nothing other than itself: 'kava-drinking is about
drinking kava' and 'eating a meal is about eating'. The activities are not symbolic in the conventional anthropological
sense (which is not to deny that for any given child they have specific significant associations, etc.)” (TOREN 1999: 94-
100).
144
Como afirma Toren: “The learning process is one of gradual construction and it is initially tied to certain material
objects such as the tanoa, the cloth at meals or the house itself, but these material objects are cultural artifacts; they
refer not simply to themselves but to relations between people” (TOREN 1999: 94-100).
147
pessoas. Além disso, quando pedi que desenhasse sobre a sua religião, C., de dez anos de idade
(CFC. 10. M. 8), desenhou um castelo com duas bandeiras, várias torres e oito pessoas em perto
das torres. Quando lhe perguntei o que ele havia desenhado, ele registrou: É um castelo de pessoas
carinhosas, carentes [sic]...” Indaguei a ele o que de religião havia nisso, quando ele simplesmente
respondeu: Tem gente. E porque é bonito(vide desenho 9 A minha religião CF. 10. M. 8, no CD
anexo). Complementariamente, uma menina de dez anos de idade (TB. 10. F. 23) dizia-se
insatisfeita com o novo padre da cidade porque ele deixava a paz de Cristo para o final da missa, o
que desestimulava as saudações entre as pessoas.
Interessante constatar que, para alguns adultos, a mesma afirmação pode ser verdadeira.
Podemos nos questionar em que medida encontrar-se com os irmãos não é o que também estimula os
adultos a comparecer à igreja. Acredito que este possa ser pensando como um fator importante para
o comparecimento à igreja por parte dos adultos embora pesquisar como este processo se
ultrapasse as pretensões desta tese. No entanto, não posso deixar de mencionar que um amigo, cujo
pai é mulçumano e a mãe católica, certa vez disse a mim que ele e seus amigos viviam “a religião
mulçumana no nível da cultura”. Eles se dizem muslims by culture”. Com isso, ele queria dizer que
apreciava e seguia, em algum grau, a prática religiosa, mas que não se interessava pelos
ensinamentos morais da religião. Ele gostava de celebrar o Eid, de se reunir em família para comer
depois do pôr do sol. Gostava de matar o carneiro para celebrar o fim do Hamadam. Disso, ele não
abria mão! Mas o jejum ele não seguia, muito menos rezava o Corão. É interessante que possamos
tecer, em algum nível, um paralelo entre este meu amigo, que me parece representativo de parcela da
população jovem mulçumana principalmente dos que moram em países seculares e as crianças
em Catingueira. Elas também vivem a religo na prática, interessam-se pelos hinos, pelas
procissões, pela gincana da Infância Missionária. Em alguma medida, não será também assim que
alguns adultos de Catingueira praticam a religião? Muitos não perdem a missa da festa do padroeiro,
mas raramente se confessam ou pagam o dízimo. Não estou afirmando que as pessoas freqüentam os
serviços religiosos por razões utilitárias ou por conveniência, como mostra a literatura especializada,
ao afirmar que as pessoas selecionam os momentos dos quais participar em uma festa de padroeiro,
por exemplo (STEIL 1996, FERNANDES 1982, MARTIN 2001).
Para além das inter-relações sociais que a criança estabelece no momento do serviço
religioso, as relações do dia-a-dia com as pessoas próximas constituem a vida das crianças, a sua
relação com o mundo. Elas sabem que domingo é dia de missa e bado é dia de catecismo, é isso
que faz do sábado sábado e do domingo, domingo. Além disso, é ir à missa no domingo, entre outras
coisas, que faz-nos ser quem nós somos. Em poucas palavras, o que parece ser importante para as
crianças é ir à igreja não o que se faz ou o que supostamente se aprende. Ir à igreja é alguma
coisa que a gente faz, parte do cotidiano, de ser como a gente é. Que tipo de relações são
148
estabelecidas no ato de ir à igreja, vestir roupa nova, ir com os irmãos e os vizinhos, isto importa
muito mais que ir se encontrar com Deus ou aprender sobre a Bíblia. Quais os preparativos
envolvidos no ato e como ele é praticado é mais importante que o que lá vai ser ouvido. A criança
escolhe uma roupa bonita, toma banho, passa o perfume, passa pela casa do vizinho e sai fazendo
bagunça pelas ruas. É isso o que importa para ela.
O que quis sugerir neste pico é que as crianças não entendem o ‘porquê’ de ir à igreja. Não
que esse entendimento esteja acima das suas capacidades intelectuais. O fato é que elas parecem não
se perguntar o ‘porquê’ de ir à igreja, que o significado das coisas não é uma questão colocada
pelas crianças. Não estou dizendo, no entanto, que as crianças o reflitam sobre a sua vida
cotidiana. O que estou sugerindo é que, para elas, os serviços religiosos importam em si mesmos.
Elas não se demandam um significado oculto ou simbólico nas práticas cotidianas. O ato encerra em
si toda a sua complexidade. De fato, ir à missa, ao culto ou ao Centro espírita é algo que na prática
envolve um conjunto de pessoas e diversas ações. Para a criança, o que parece importar é este
conjunto de relações sociais que a inserção religiosa propicia. Essas relações sociais estão enraizadas
principalmente na família, mas também nas relações com vizinhos próximos e amigos. É
principalmente através das relações com os membros da rede familiar que a criança aprende a ser
gente como toda a gente em Catingueira, gente religiosa, gente cristã. Para a criança, ir à igreja é
algo que ela faz sem que se conta, sem refletir. Ela faz porque é assim que deve ser. É a ordem
natural das coisas. Como afirmei, domingo é dia de missa e catecismo; sábado é dia de Infância
Missionária. Desde tenra idade ela vai à igreja, mas ainda não sabe como igreja e religião estão
relacionadas. Ela também não sabe que os adultos geralmente vão à igreja por algum motivo ligado
a um conjunto de crença e práticas específicas naquela igreja em questão. O ato, muito antes do seu
significado, é o que está mais evidente para a criança. Em si mesmo, o ato é o que importa e não o
que o motiva, porque nesta idade o que o motiva não é uma razão apenas religiosa é, sim,
circunstancial, como, por exemplo, seguir o irmão mais velho, ou porque a mãe “manda”
145
.
4. Conclusões
Na religiosidade infantil, a religião é algo que pode ser pensado como parte do mundo e não
como reino, por excelência, separado do cotidiano sem esquecer que existem momentos nos quais
esta distinção também não se coloca para os adultos, como nas festas religiosas: voltarei a este
145
Como discorre Toren: …for these youngest children, ritualized behavior does not stand for anything;it is simply
another facet of children´s material existence, part of the way the world is, and they do not seek to interrogate its
meaning in the way implied by symbolic analyses. This is not to say that given children do not form specific associations
with respect to certain practices. They do, but it is not until around 9 years of age that they hold explicitly that the
meaning of these practices goes beyond the simple doing of them. (TOREN 2002: 119/20).
149
assunto em instantes. As crianças habitam um mundo encantado, onde as árvores o seres em
potencial, assim como os animais e até os objetos, como vimos no capítulo precedente. Crescer,
então, em certo sentido, implica em desencantar o mundo, tornar as coisas coisas, os animais
animais e, por último, endereçar o sagrado à igreja − sem, no entanto, restringir-se a ela. É
importante também o esquecer que os mal-assombros encantados também fazem sentido para os
adultos assim como para as crianças, como vimos no Capítulo Três
146
. Além disso, é importante
lembrar do pedir a nção, observada como prática por toda a gente, independemente da idade e da
religião. Afirmei, igualmente, que quando se é criança, a religião, porque não é ainda concebida em
si mesma, é pensada como expandida a diferentes ambientes. Para o adulto, a religião pode exigir
uma atitude adequada (etiqueta), implicar um “sistema de crença”, se relacionar com as
especificidades teológicas de cada religo e, principalmente, pautar seu existir na separação em
relação à vida profana. Ao contrário, para a criança ir ao culto ou à missa parece ser parte da vida
como ela é, do cotidiano, do que toda a gente que mora na nossa cidade faz não guardando em si
nenhum caráter extraordinário. Desta forma, as atividades que os adultos chamariam de religiosas
para as crianças seriam tidas como parte do dia-a-dia. J. 13. M escreveu O que me deixa mais feliz é
poder estar aqui hoje nesse lugar com todos vocês amigos, também posso estudar, brincar, rezar,
comer e se divertir e poder viver(grifo meu). Mais uma vez, a atividade religiosa, rezar, não está
excluída do que é o cotidiano. É preciso não confundir o cotidiano com uma realidade sem graça,
apagada, rotineira. O cotidiano de que falo, como sendo parte da religião para a criança, é um
cotidiano que poderíamos dizer colorido, exaltado, cheio de surpresas, mas que apenas não poderia
ser chamado de extraordinário porque não um ordinário a que se contrapor. Tornar-se adulto
implicaria, entre outras coisas, em definir a esfera do religioso em oposição à do profano − o que, de
certa forma, implica em uma restrição de possibilidades de relação com o sagrado. Esta hipótese está
contemplada em toda a tese e será discutida na Conclusão.
Elenco dois exemplos de como os reinos da religião e da não religião parecem estar em
relação íntima, segundo a percepção das crianças. O primeiro deles é um desenho livre
147
feito por J.
11. F. No desenho, vemos uma imagem de uma santa com as mãos postas em oração, segurando um
terço. A menina escreveu: A rainha dos céus. A rainha dos céus nos mostra as estrelas para s.
As pessoas dizem que se contar as estrelas nasce berrugas, se for 10 são 5 berrugas” (vide desenho
14 J. 11. F. Livre, no CD anexo, pasta Desenhos Tema Variados). De um assunto religioso, a
criança rapidamente passa para um assunto não religioso, sem qualquer constrangimento. O
contrário também acontece. CFB. 7. F. (livre) desenhou sol, borboleta, árvores, de cocos, chuva,
146
Sillas (2005) mostra etnograficamente como os adultos também podem viver em um mundo encantado.
147
Observe que o tema do desenho o foi sugerido pela pesquisadora, mas que a criança mesma desenhou, por sua
própria iniciativa.
150
navio, peixes, trem e, por fim, poeticamente, escreveu: Era uma vez um barco navegando no mar.
Uma árvore que fruto, um de cocos que coco. Uma borboleta que voa pelo ar e um trem
que anda pelos matos que os animais comem. Uma árvore que maçã, que fruto. O sol que
brilha e clareia o mundo. O aquário que vive os peixinhos, o mar que também vive os peixinhos. A
baleia que também vive no mar, a sereia, a Iara. O trem que leva passageiros. Os pássaros que
voam. A nuvem que chove, o arco íris que é bonito. Eu gosto do arco-íris e de Deus.” (O exemplar
está disponível no CD anexo, na pasta de nome Desenhos Temas Variados o desenho 13 CFB. 7. F.
[Livre]).
Indo longe na distinção adulto x criança, seria possível insinuar que a religião infantil é
uma religo da prática, na qual a simbologia estaria relegada a um plano subordinado. O modo
como a criança relaciona-se com a religião parece diferir daquele do adulto na medida em que, para
a primeira, a religião é vivida na prática, no atendimento do prédio religioso, enquanto que, para o
adulto, religião representa ou simboliza algo maior que o simples atendimento à igreja mas o
índice e o ícone em contraste com o símbolo abstrato podem ser tidos como mais próprios à religião.
Assim, as crianças, enquanto operam com o índice e com o ícone, seriam mais religiosas” que os
adultos que operam com o símbolo abstrato (por exemplo, o santo em contraste com Deus). Isso
parece enfatizar a tese do desbastamento religioso à medida que a criança cresce. Além disso,
quando muito pequenas, as crianças o distinguem um reino que poderíamos chamar de não-
religioso de outro que poderia ser chamado de religioso. Ao contrário, parece haver uma indistinção
entre o que os adultos chamam de profano e de religioso.
Mas, a esta altura, faz-se urgente relativizar a distinção entre adulto e criança com a qual
venho trabalhando aqui. Talvez parodiando Bruno Latour no livro Jamais fomos Modernos (1994
[1991]), fosse possível dizer que ‘jamais fomos adultos’. Assim, também os adultos continuariam a
definir e relacionar-se com a religião nos termos que venho anunciando: onde o atendimento ao
serviço religioso e o aspecto relacional deste ato estariam cotados entre os fatos mais importantes e
definidores da religiosidade. Afinal, os adultos não cessam de comparecer a igreja, de lotar as
procissões e missas do santo padroeiro, de freqüentar o Centro espírita e de compartilhar a vida ao
lado dos “iros”, no caso dos evangélicos. O leitor poderia corretamente argumentar que em
momentos diversos os adultos agem exatamente como as crianças vêm sendo descritas nesta tese. O
contrário não é verdadeiro, as crianças não agem como adultos − apesar de, às vezes, imitarem o seu
discurso e prática, sem, no entanto, imitar os sentidos destes discursos e práticas. Gostaria de sugerir,
então, que os adultos, excluindo os que pertencem a uma religião de maneira fundamentalista,
continuam sendo como as crianças. A idéia da separação entre sagrado e profano, tal como a
modernidade (LATOUR 1994 [1991]), de fato, nunca teria ocorrido, a não ser nas cabeças de alguns
151
teóricos e teólogos
148
. Na prática religiosa, em que reina absoluta a antinomia (VELHO, em
preparação), o sagrado e o profano são partes de uma mesma unidade.
Em Catingueira, seria possível brincar com a paródia ‘jamais fomos adultos’, na medida em
que, em muitos momentos, não parece haver uma distinção tão aguda entre as crianças e os adultos,
como talvez tenha dado a impressão. É importante chamar a atenção para o fato de que: 1) também
os adultos operam com mal-assombros, mesmo que restritos a apenas a alma dos mortos. Indo além,
os mal-assombros encantados, como a Maria Fulozinha, continuam a fazer sentido mesmo quando a
pessoa se torna adulta, podendo ser vistos e temidos. 2) Para o adulto, ir à igreja continua sendo
importante, como parte da sua religiosidade. E, finalmente, 3) para aquele que crê, o sagrado não
estaria restrito aos ambientes genuinamente religiosos, como a igreja, mas também estaria presente
na festa do padroeiro e da diversão que ela propicia. Parece que, na tentativa de descrever as
diferenças entre crianças e adultos, posso ter exagerado ou criado esta diferença sagrado /profano
que, na realidade, não opera − ou, pelo menos, não opera com tanta abrangência. De todo modo, não
acredito ser totalmente incorreta a afirmação de que, para os adultos, existe alguma coisa que pode
ser considerada profana, que se distingue do que pode ser considerado sagrado: basta ver as
discussões que a parte não religiosa da festa do padroeiro suscita. Por parte dos protestantes adultos,
tudo que é vendido na festa é referente ao Santo, ou seja, a distinção não se coloca: tudo foi
contaminado pelo Santo (mas as crianças insistem em tomar sorvete na praça do barraqueiro que
veio para aproveitar a Festa do Santo, ao passo que algumas mães os proíbem porque estariam
tomando sorvete do santo”!). Mas, por parte dos católicos, a parte religiosa” (missas, procissões
etc.) é sagrado, e o restante (barracas, danças etc.) é profano e estes dois não devem se misturar,
segundo os católicos mais conservadores.
Sem contar os fundamentalismos religiosos, que por toda a parte, poderíamos sugerir que,
para o adulto, o que constitui o cerne da religião seria a experiência da brincadeira, quando se
aproxima do que Bateson (2000 [1972]) chama de duplo-vínculo”, e que Otávio Velho (em
preparação) sugere ser o centro na religião. A brincadeira de inventar o medo é uma experiência de
duplo-vínculo por excelência: a criança mistura fantasia e realidade, medo e fascínio, atração e
148
As práticas realizadas pelos nativos, no entanto, se bem não negam a especificidade diferencial do “sagrado”
(mesmo quando não o denominem necessariamente desse modo), mostram-nos que aquilo que os autores precedentes
diferenciam, separam e classificam como “sagrado” e “profano” coexiste e combina-se de modos bem mais flexíveis do
que aqueles que eles próprios identificam: torna-se necessário, então, uma abordagem que não substitua um dualismo
por outro (VELHO, 1997) e que, como coloca Velho (2005), consiga apreender dita especificidade diferencial, não
como descontinuidade, ruptura ou oposição, mas nas pequenas diferenças de um mundo contínuo. “Sagrado” ao ser
utilizado como adjetivo, não designa uma instituição, uma esfera ou um sistema de símbolos, mas heterogeneidades
reconhecíveis em um processo social contínuo em um mundo significativo, e por isso, o “extraordinário” nem
radicalmente outro. Processo que se ativa em momentos diferenciais e específicos e/ou em espaços determinados e que,
longe de existir de forma abstrata ou com um conteúdo universal, é reconhecido e atuado pelos nativos em diferentes
situações: nas descontinuidades geográficas, nas marcas diferenciais do calendário, nas interações cotidianas, em
gestos ordinários e em performances rituais” (MARTIN 2006: 05).
152
repulsa e, no fim, morta de medo, faz uma oração para se libertar das garras do monstro malvado. A
experiência da religião aproxima-se da brincadeira na medida em que ambas se valem da antinomia
e dos paradoxos. Tal como no caso da modernidade e da não-modernidade no livro de Bruno Latour
(1994 [1991]), poder-se-ia contrastar a idade infantil e os anos de adulto para melhor render o
argumento. Mas é preciso, em seguida, desfazer a distinção, na medida em que a mesma não opera
universalmente. “... It’s a matter of how to keep those different levels, rings, whatever, not separate,
because they can never be separate, and not confused, because if they get confused, then you begin
to take the metaphoric as absolute, as the schizophrenic does” (BATESON 1991 [1977]: 269). Nem
o sagrado/profano, nem igreja (templo)/ igreja (sistema de crenças), nem a criança/adulto podem ser
tomados como uma coisa , como confusos. Ao mesmo tempo, eles não podem ser tomados como
separados, uma vez que a relação que estabelecem entre si ultrapassa as categorias que estamos
acostumados a lidar: assimilação, confusão, englobamento, dominação... Para finalizar, parece que
estamos mesmo no terreno dos paradoxos e antinomias, segundo Otavio Velho (em preparação).
Assim, uma dificuldade coloca-se para o pesquisador: desenvolver uma retórica que seja capaz de
transmiti-los. O discurso do pesquisador deve captar este real facetado, o que coloca questões graves
para o discurso científico uma vez que estamos acostumados a tomar partido de um referente. Por
isso, se às vezes dei a impressão de estar congelando a infância ou a idade adulta, ou a distinção
profano e sagrado, é porque me faltaram ferramentas retóricas para transpor para o discurso
científico uma realidade intrinsecamente antimica.
153
5. Apêndice
Gráfico 1
Soma dos elementos religiosos
-
20
40
60
80
100
120
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
idade
mero de desenhos
Gráfico 2
Não sabe
0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
idade
Gráfico 3
Rezar
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
idade
Gráfico 4
Jesus X Maria
0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
35%
40%
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
idade
Jesus Maria
Gráfico 5
Soma das Igrejas
0%
20%
40%
60%
80%
100%
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
Idade
154
CAPÍTULO 5: Como se faz uma pessoa religiosa − ou, simplesmente, como se
tornar um catingueirense
“Eu acho a religião muito importante para mim, porque é só para falar em Deus. Eu gosto muito
de Deus, porque ele é o nosso Salvador. Eu não sou católica porque eu não gosto, só porque não gosto
de ser católica não é obrigado não gostar de Deus. A religião é muito importante para mim eu acho que
para todos também é. Eu acho bonito aquelas pessoas que são católicas. O Senhor é o meu pastor e
nada me faltará”. PM. 13. F. 21 - Redação A minha religião.
1. Introdução
O objetivo central deste capítulo é acompanhar como a religiosidade, enquanto característica
auto-referente dos catingueirenses, é incorporada pelas crianças. Como será visto, as diferenças na
percepção e na relação com a religião segundo as diferentes faixas etárias infantis deixam antever o
processo pelo qual uma pessoa se torna adulta em termos religiosos. Assim, será possível vislumbrar
como se dá o processo de transformação das idéias religiosas no cotidiano infantil, passo a passo, em
direção à constituição de um pensamento e de uma prática religiosa cristã. Os mal-assombros serão
contemplados através das diferenciações que ocorrem ao longo do processo de crescimento e através
da análise da vida quanto à possibilidade da sua existência. Finalmente, o capítulo tem como um
dos objetivos colocar em diálogo os mal-assombros e a religião, ao descrever o crescimento infantil
através de dois processos centrais e que me parecem simultâneos: 1) a restrição dos mal-assombros
às almas, ou seja, o entendimento dos mal-assombros como entidades religiosas e, 2) o
descolamento da ênfase religiosa, que em princípio estava colocada na igreja, enquanto templo, em
direção às entidades religiosas (Deus/Jesus, Nossa Senhora, Santos) e a igreja entendida como
ecclesia, a comunidade de iros.
Com isso, espero lançar alguma luz sobre as diferenças e as similaridades entre a
religiosidade infantil e a religiosidade adulta. Minha aposta é que a religiosidade infantil é vivida de
maneira concreta ou prática (indo à igreja), relacional (principalmente com a família), difusa (não
separação entre profano e sagrado) e, por fim, intensa. Como se viu, as crianças muito pequenas não
dialogam com nenhum elemento propriamente religioso. Mas, depois dos cinco anos de idade, de
modo geral, elas deixam claro, através dos desenhos, que a igreja (templo) é o que mais importa em
relação à religião enquanto que, para os adultos, parece haver um acento em Deus, nas outras
entidades religiosas e nos irmãos. Assim, na religiosidade adulta também se observa um privilégio
das atividades coletivas e na prática religiosa, embora as suas especificidades devam ser analisadas
detalhadamente. Ao fim do capítulo, re-elaboro a hipótese, já anunciada, de pensar o crescimento
das crianças como um processo de desbastamento religioso. Ao mesmo tempo, resgato também a
155
idéia de pensar que “jamais fomos adultos” em termos religiosos (LATOUR 1994), na tentativa de
pensar o que há de comum entre os adultos e as crianças.
Este capítulo valer-se-á da análise dos desenhos elaborados pelas crianças cujos temas foram
“A minha religião” e “O mal-assombro”. Para melhor discutir o tema do capítulo, também será
levado em conta todo o trabalho de campo com as crianças e com os adultos, assim como os outros
todos e técnicas de pesquisa empregados. Por fim, os desenhos serão apresentados tendo em vista
as faixas etárias trabalhadas (dos três aos treze anos de idade)
149
.
2. Tornar-se religioso
Como vimos no Gráfico Um, ao contrário dos três e quatro anos de idade, quando a taxa de
elementos religiosos desenhada tende a zero, aos cinco anos de idade as crianças começam a
desenhar elementos religiosos. Nesta faixa etária, um total de vinte e quatro elementos religiosos foi
desenhado, enquanto aos três anos de idade o número de elementos religiosos desenhados é de zero
unidades, e aos quatro anos de idade, é de três unidades. Isto parece informar que, ao contrário dos
anos anteriores, aos cinco anos de idade a religião está em processo de codificação. Por volta desta
faixa etária, começa um processo muito importante que se caracteriza pela assimilação da igreja
(prédio) enquanto sinônimo de religião, parcialmente demonstrada no fato da quantidade massiva de
igrejas desenhadas. Esta fase perdura por bastante tempo e vai, em certa medida, caracterizar o modo
de relação infantil com a religião. Aposto que, nesta idade, acredita-se que a religião é algo
intrinsecamente ligado à igreja – e esta, por sua vez, é um prédio no meio da praça. Porém, a religião
vai deixar de ser associada unitariamente à igreja por volta dos dez anos de idade, quando as
crianças começam a percebê-la de um ponto de vista que podemos considerar adulto, no qual o
sentido religioso ultrapassa (e transforma) a prática religiosa. Mas vamos devagar com o argumento.
Aos seis anos de idade, os meros dos que realmente desenharam sobre religião e, dentre
estes, os que elegeram desenhar igrejas, não muda muito em relação aos cinco anos de idade. Um
total de vinte e sete elementos religiosos foram desenhados aos seis anos de idade. Se somarmos o
número daqueles que desenharam igreja, chegamos a um total de 38% das crianças com cinco anos
de idade, e 48% das crianças aos seis anos de idade. Mas é preciso perguntar-se com que conceito de
149
A maioria das análises que se seguirão limita-se aos dados produzidos a partir da pesquisa com as crianças de três aos
treze anos de idade. No entanto, como expliquei no capítulo sobre os métodos e as técnicas de pesquisa, em algumas
classes de aula, devido a repetências, deparei-me com alunos com idades acima da faixa etária privilegiada. Optei por
deixá-los participar da pesquisa e, por fim, quando me pareceu interessante, os dados de pesquisa resultantes desta
abordagem foram aproveitados para a análise que se seguiu. Gostaria de esclarecer que, embora o número de desenhos,
ou melhor, de redações acima da faixa etária dos treze anos de idade não atinja as vinte unidades mínimas como é o
caso nas outras faixas etárias −, eles foram analisados em termos de porcentagem, e não em termos de números
absolutos.
156
igreja estas crianças estão trabalhando aos cinco e seis anos de idade. Nos primeiros desenhos sobre
religião, em que igrejas, as mesmas figuram no papel sem qualquer outro elemento conjugado.
nos desenhos posteriores, as igrejas são ambientadas em paisagens. Nestas paisagens, o mais comum
são a praça da cidade, o banco da praça, árvores, flores, sol e nuvens. Praticamente até os seis anos
de idade, podemos dizer que não pessoas nos desenhos de igreja, seja com ou sem ambientação.
Exceto em um desenho, não vida humana nas igrejas desenhadas
150
. Com isso, talvez possa ser
lançada como hipótese a sugestão de que, se a religião quer indicar igreja, esta, por sua vez, indica
nada mais que uma construção, um prédio, um edifício, para as crianças até os cinco anos de idade.
Levanto como hipótese pensar que o fato de que a não existência de qualquer ambientação no
desenho parece indicar que a criança estabelece pouca relação pessoal com o objeto desenhado.
Quanto mais detalhado um desenho, mais próxima do item desenhado a criança provavelmente deve
se sentir, já que desenhos muito elaborados geralmente vêm associados a longas descrições, as
chamadas “histórias dos desenhos”. Nestas descrições, as crianças relatam (ou inventam) estórias de
momentos vividos por elas ou por alguém próximo, um amigo ou familiar. Assim, acredito ser
possível afirmar que há um crescimento no nível de relação entre a igreja e as crianças à medida que
os desenhos tornam-se mais detalhados, com ambientações e, por último, quando as pessoas são
incluídas nos mesmos.
O que se percebe nos desenhos das crianças de sete e oito anos de idade são ainda muitas
igrejas mas, como já afirmei, elas não estão mais soltas no papel, como até então. Nesse caso, as
igrejas são desenhadas dentro de um contexto, que vem a ser o contexto da cidade. Estão rodeadas
por árvores e bancos, flores e nuvens, seja sob um sol sorridente, seja sob a chuva abundante. Como
afirmei, os primeiros desenhos contam apenas com igrejas; depois, aparecem as igrejas com
ambientações, para, só posteriormente, aparecer vida humana associada às igrejas. Isso parece
indicar crescimento gradativo da relação com a religião que, nestes anos, está associado
prioritariamente à igreja. Interessante que, para que a igreja seja pensada como instituição ou
ecclesia, seja necessária a sua descontextualização, atitude que parece ser mais característica das
crianças pequenas que desenham a igreja fora do contexto. Como será visto, esta, curiosamente, será
também a atitude dos adultos. Concomitantemente ao aparecimento de gente associada à igreja,
vemos também uma variedade maior de elementos associados à religião. Por hora, é importante
dizer que a igreja é bastante desenhada, e isso parece alertar para a importância da igreja entendida
150
Um menino de seis anos de idade da Assembléia de Deus desenhou a si mesmo e a sua família indo ao culto - Vide
no CD anexo, Desenhos A minha religião, desenho 3 A minha religião I. 6. M. 4. em todas as faixas etárias alguns
desenhos que adiantam a faixa etária posterior. Estes desenhos são muito interessantes porque mostram a “confusão
pela qual espassando a criança. Muitas vezes estes desenhos contêm mensagens que poderiam ser julgadas como
contraditórias. Mas que, ao contrário, estão mostrando como a criança está elaborando seu próprio juízo a respeito do
tema. Estes números vistos isoladamente tendem a atrapalhar a harmonia dos processos detectados, porém em conjunto
com os dados etnográficos podem adquirir inteligibilidade.
157
enquanto prédio. Como foi visto no Capítulo Quatro, a igreja não es sendo desenhada porque
representa a fé cristã ou porque é o lugar sagrado por excelência. A igreja está desenhada porque é o
lugar aonde as crianças vão: ela importa enquanto lugar aonde se vai.
Apesar da grande quantidade de igrejas, aos cinco anos de idade os desenhos também
contemplam ocorrências de Deus, Maria e Jesus, a Bíblia e a cruz. Aos seis anos de idade, a
proporção dos elementos religiosos desenhados para além da igreja é bem parecida com a de cinco
anos de idade: há alguns poucos Jesus, Marias, Bíblias, cruzes e outros religiosos
151
. Deus o
aparece, mas aparecem os santos, bastante populares entre as crianças pequenas. Os santos são
contemplados pela primeira vez aos seis anos de idade, e em nenhuma outra faixa etária deixaram de
ser desenhados. Causa impressão o fato de que, dos seis aos dez anos de idade, a popularidade dos
santos seja maior que a de Deus, ao passo que depois dos doze anos de idade, Deus desponta na
frente dos Santos
152
. Mapeando os desenhos nos quais Deus aparece, chegamos aos seguintes
números: sete anos, 5%; oito anos, 10%; nove anos, 10%; dez anos, 19%; onze anos, 28%; doze
anos, 19%; treze anos, 52%. Podemos afirmar que o número de crianças que desenhou Deus vai
aumentando com o passar dos anos. Em relação aos santos, ocorre fenômeno oposto: os números
aumentam até mais ou menos os oito anos de idade, quando começam a decair: quatro anos, 4%;
cinco anos, 4%; seis anos, 5%; sete anos, 5%; oito anos, 24%; nove anos, 19%; dez anos, 12%; onze
anos, 24%; doze anos, 24%; treze anos, 14%. Isso não quer dizer que o santo deixe de ser
importante, mas, sim, que Deus desponta como ponto central da religião. Convido o leitor a observar
os Gráficos Seis e Sete, no final deste capítulo, e atentar para a freqüência com que Deus e Jesus
foram desenhados.
De acordo com a hipótese de que religião é vivida pelas crianças na sua concretude, os dados
o parecem diferentes do esperado. As crianças vão à igreja. Pensemos no catolicismo, religião que
congrega o maior número de fiéis na cidade: que igreja é esta? A igreja de São Sebasto. Muito
raramente, as crianças afirmaram que freqüentavam a igreja católica. As respostas à perguntaqual é
a sua igreja?” eram: está ”, está na praçaou a igreja de São Sebastião”. Os adultos, por
sua vez, davam-me respostas bastante elucidativas que remetiam muito constantemente ao Santo,
como ver-se-á em instantes. Deus, enquanto ser supremo e intangível, não pode ser decodificado
pelas crianças pequenas, na medida em que, para elas, religião é algo que diz respeito às atividades
do dia-a-dia, além de estar altamente relacionada às inter-relações que elas engendram, como vimos
no Capítulo Quatro. Que imagens enfeitam a igreja? As imagens dos santos. Não há uma só
151
Os elementos desenhados foram classificados em: Igreja Genérica, Igreja Católica, Igreja Assembléia, Igreja dos
crentes, Capela, Deus, Jesus, Maria, Santo (a), Pastor /padre, Bíblia, Pecado, Liturgias, Rezar, Outros religiosos, Gente +
igreja, Cruzeiro/ cruz, Casa c/cruz, Escritos religiosos, Não sabe, Outros, Casa e afins, Personagens de TV, Elementos da
Natureza, Brinquedos, Gente, Transporte.
152
Aos nove e aos onze anos de idade os Santos e Deus são desenhados com a mesma porcentagem.
158
representação gráfica de Deus. Os santos têm representações físicas, as imagens que podem ser
vistas e tocadas. Lembre-se das crianças evangélicas, descritas no Capítulo Quatro, que desenharam
as igrejas católicas porque queriam ver os santos”. O corpo de Jesus pregado na cruz também pode
ser visto pelas crianças e parece chamar a sua atenção. Mas e Deus? Ele é um ser obscuro,
impalpável, difícil de desenhar. Não é por acaso que Deus vai passar a ser mais desenhado que o
Santo quando as crianças atingem os doze anos de idade idade próxima à adolescência. Crianças
pequenas raramente citam Deus. Podem até citar Jesus, o que pode ser entendido com relação ao que
afirmei anteriormente: que Jesus pregado na cruz é uma imagem poderosa − além do próprio menino
Jesus, que, por sua vez, parece bastante apelativo para as crianças. Com isso, caminhamos na direção
da afirmação da religião infantil enquanto pautada na concretude do dia-a-dia. Os santos são mais
desenhados porque fazem parte do cotidiano infantil ao passo que Deus, o sem representação
pictográfica, é uma incógnita
153
.
Em um trabalho anterior, fiz uma análise das respostas dos catingueirenses adultos à pergunta
(aliás, muito inadequada para o contexto em questão, já que não ateus na cidade, e que todos
professam uma religião): qual a sua religião? (PIRES: 2005a). AL., de onze anos de idade (AL. 11.
M. 17), escreveu: A religião é muito importante para nós todos. A religião nos permite ser boas
pessoas. Todos nós temos uma religião católica ou evangélica, nós todos devemos ir a igreja”. A
redação deste menino expõe com clareza facetas da religiosidade catingueirense, que me haviam
sido expostas: 1) ter religião é um universal em Catingueira e, 2) o Centro espírita não é considerado
umareligião” porque parece englobado pelo catolicismo (PIRES 2003). David Elkind (1978),
psicólogo piagetiano, pesquisador do desenvolvimento cognitivo das crianças, analisou como as
crianças constroem sua própria realidade através do tema da religião (dentre outros). O autor
perguntou às crianças: O que é um católico/ protestante/ judeu?, de acordo com a religião declarada
pela criança, chegando à seguinte conclusão: The Catholic children often replied by stressing the
practices and creeds of their church. Protestant children, on the other hand, often defined
themselves in opposition to Catholic doutrine. The same was frequently true for Jewish children,
153
Além disso, é interessante observar que a possibilidade de definir Deus parece ser um dos temas importantes da
discussão teológica. Durante o trabalho de campo, pedi às crianças que desenhassem Deus, o que resultou em vinte e um
desenhos. Na sua maioria, elas ficaram sem saber o que desenhar. Elas me perguntaram: posso copiar do livro? Posso
fazer igual o da igreja? (o crucifixo). Mas a dificuldade não as impediu de levar adiante a proposta da pesquisadora. A
maioria das crianças desenhou Deus na forma clássica de Jesus. Muitas colocaram o nome “Jesus” (uma delas escreveu
“Jesus na natureza” C. 11. F Deus). Interessante observar que desenhar Deus na forma de Jesus é, de certa forma,
acurado em termos da teologia católica referente à Santíssima Trindade. Alguns (dez) escreveram frases religiosas para
Deus ou para a pesquisadora: “Deus é fiel”. “Flávia, nunca estamos s sempre há um amigo por nós”. “Jesus te ama e
eu também”. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Essas são as palavras que Deus e o Seu filho nos ensinou até agora
acredite nele e ele fará muitas e muitas coisas” (S. 13. F Deus). “Jesus vai te iluminar”. Sete crianças desenharam Deus
no estilo de Jesus: com barba, cabelo grande e vestido. Uma menina desenhou Maria (sem roupa, com cabelo grande e
uma luz em volta do corpo) e o Anjo Gabriel (sem roupa, com auréola, asas e luz em volta do corpo) (L. 8. F. Deus).
Uma criança desenhou a natureza (“A Serra [da Catingueira] e o céu onde Deus vive”) (S. 12. F Deus). Um menino
desenhou uma casa e um menino (Perguntei: “é Jesus ou Deus”? Ele disse: “Tanto faz”) (I. 9. M. Deus). E apenas uma
menina recusou-se a desenhar porque não sabia fazer Deus e acabou por desenhar um castelo (L. 8. F Deus).
159
who often defined themselves in contradistinction to Christian dogma (i.e., The New Testament). Put
differently, this suggests that Protestant and Jewish children conceive their religious identity
relatively, in contrast to other religious, whereas the Catholic children conceive their identity
absolutely and within the confines of their own church” (1978: 26)
154
. Esta afirmação vai ao
encontro dos dados observados em Catingueira. Excluindo os judeus, ausentes na cidade, a relação
entre protestantes e católicos parece ser bastante similar. A religião católica é a religião mais
abrangente, seja em números dos fiéis, seja pela força da tradição. Nesse contexto, sugiro alhures
(PIRES 2003, 2004a, 2005a) que o santo padroeiro é importante para pensar as relações entre as
religiões, principalmente no tempo da festa de janeiro.
Outra constatação relevante é o fato da quase onipresença da cruz como símbolo religioso
nos desenhos das crianças a partir dos cinco anos de idade. Veja a porcentagem de crianças que
desenhou cruzes nos desenhos sobre “a minha religião”: cinco anos, 8%; seis anos, 24%; sete anos,
55%; oito anos, 71%; nove anos, 86%; dez anos, 68%; onze anos, 62%; doze anos, 62%; treze anos,
19%. Se as cruzes desenhadas isoladamente não são tantas, as cruzes em cima das igrejas estão em
quase todo os desenhos, porque a grande maioria deles possui igrejas. Observe que, aos dez anos de
idade, o número de crianças que desenhou cruzes começa a decair, o que parece corroborar a idéia
de que a religião deixa de ser associada majoritariamente à igreja. Além disso, não é demais lembrar
que os catingueirenses são cristãos. Segundo o cristianismo, a cruz lembra o sacrifício do filho de
Deus pelos homens. Mas o que a cruz significa para as crianças? Além de sinalizar igrejas, a cruz
muitas vezes é associada à morte ao sinalizar uma cova, principalmente nos desenhos dos mal-
assombros. Ao mesmo tempo, ao desenhar a cruz talvez as crianças se refiram àquela que elas vêem
na igreja onde pende Cristo morto de cabeça baixa. A cruz, além disso, é um símbolo muito
freqüente no cotidiano: está na porta da igreja, na torre da igreja, na capa da Bíblia, na capa do
livrinho da escola dominical ou do catecismo, dentro da igreja na imagem de Jesus crucificado, nas
os das imagens dos santos e até nas salas de aula. E, por fim, é preciso mencionar que, como as
casas, as cruzes são desenhos simples que não requerem muita habilidade para serem executados.
A criança, por volta dos seis anos de idade, já pode ser coroinha do padre. Pode, também
começar a participar seriamente das reuniões religiosas infantis como as outras crianças maiores o
que implica em estar sujeita às normas de disciplina, assim como às atividades de ‘para casa’. Como
foi mencionado, a criança de sete ou oito anos de idade geralmente reza acompanhada da mãe ou
irmão (ã) mais velho (a) antes dormir e, de acordo com a família a que pertence, pode rezar também
antes das refeições. Além disso, pedir a ão já é uma atividade cotidiana. Aos sete e oito anos de
idade, as crianças são vistas nas igrejas e no Centro espírita. Elas vão ao catecismo, à infância
154
Como é comum nas pesquisas em psicologia, não encontrei no livro nenhuma referência ao contexto no qual a
pesquisa foi realizada. Acredito que tenha sido nos Estados Unidos da América, uma vez que o livro é editado neste país.
160
missionária, à reunião dominical e à reunião das criaas. São coroinhas na igreja Católica e cantam
hinos na Assembléia de Deus. (Para maiores detalhes sobre a vida religiosa das crianças, recorra ao
Capítulo Quatro). Aos oito anos de idade, surge um número considerável de escritos religiosos como
Deus é amor”, Deus te amae versículos da Bíblia como O Senhor é meu pastor”. Interessante
notar que os oito anos de idade coincidem com a fase de alfabetização. Dessa maneira, o é de se
estranhar que as crianças comecem a expressar-se através da palavra escrita
155
. Aos oito anos de
idade, temos ocorrências de capela, Deus, Jesus, Maria, Santos, padre/pastor, cruz, outros
religiosos e, pela primeira vez, rezar também é destacados pelas crianças. Embora aos sete anos de
idade religião também diga respeito a Deus, Jesus, santos e a cruz, parece que a igreja ainda é o
elemento mais destacado pelas crianças. Da mesma forma, aos oito anos de idade, as crianças fazem
outras associações com o tema da religião, mas que não chegam a competir com as igrejas.
É preciso ressaltar um detalhe que passará a fazer diferença: o número de crianças que
desenhou pessoas indo para os serviços religiosos cresce consideravelmente com o passar dos anos.
Aos sete anos de idade, são 10%, e aos dez anos de idade, já são 64%, mas os números não vão parar
por aqui. Aos sete ou oito anos de idade, podemos dizer que as crianças começam a pensar a igreja
como lugar associado às pessoas; neste caso, a igreja deixa de ser apenas o prédio no meio da praça
para se tornar um lugar freqüentado. Nesses desenhos, observamos, por exemplo, pessoas rezando
dentro da igreja, celebração de missas e casamentos, a festa do santo padroeiro ou a família indo
para a igreja. Esse processo se acentua aos nove anos de idade, mas vai atingir seu pico aos dez
anos de idade, quando a igreja é muito recorrente e, ao mesmo tempo, observamos a maior taxa de
gente e igreja juntas (o que chamei de gente + igreja, recorra ao Gráfico Oito para maiores
detalhes). Aos dez anos de idade, temos o ápice da conjugação de igreja e gente nos desenhos. Isso
parece indicar que, para a criança, a igreja é concebida como um lugar habitado, aonde as pessoas
o. Tudo se passa como se a religião, que nos primeiros anos de vida parece não fazer sentido
algum, passasse a ser reconhecida como a igreja e esta, por sua vez, como algo exterior aos
indivíduos, sem grandes interações com os mesmos. Posteriormente, a igreja será desenhada inserida
num contexto geográfico, e um pouco adiante, aparece gente nas igrejas. Embora a religião continue
a ser entendida como igreja, agora esta é algo que diz respeito às pessoas. O fato das pessoas serem
incluídas nos desenhos parece-me importante porque pode estar revelando o modo de relação que
estas pessoas estabelecem com a religião, no qual o freqüentar a igreja parece ser essencial. Igreja é
agora, sem vida, lugar de gente, e pode ser melhor entendida a partir do seu sentido de ecclesia.
Não se trata da mesma representação gráfica dos primeiros anos na qual a igreja está desenhada
155
Os números dos escritos religiosos são os seguintes: três anos: 0%. Quatro anos: 0%. Cinco anos: 0%. Seis anos: 0%.
Sete anos: 0%. Oito anos: 5%. Nove anos: 14%. Dez anos: 36%. Onze anos: 14%. Doze anos: 29%. Treze anos: 48%.
Gostaria de ressaltar que essa ocorrência não se limita às crianças de famílias evangélicas.
161
sozinha, solta na folha de papel. Agora, temos gente indo à igreja, rezando, se casando. Observe o
Gráfico Oito, no final deste capítulo.
Se estamos no caminho correto, o número de igrejas desenhadas deveria diminuir, à medida
que as crianças crescem, para dar lugar a outros elementos que representariam a religião para os
pequenos. Curiosamente, dos sete aos treze anos de idade, o número de igrejas desenhadas
(independentemente das pessoas) permanece bastante alto, como é possível visualizar no Gráfico
Cinco, no final deste capítulo. O grande número de igrejas desenhadas põe em relevo uma questão
parcialmente anunciada acima: com que conceito de igreja estas crianças estão trabalhando? E,
ainda, como este conceito muda ao longo dos anos?
Por volta dos dez anos de idade, tem início uma mudança importante no entendimento do que
seja a igreja. O resultado dessa mudança é similar à relação que os adultos estabelecem com a
religião. Uma das hipóteses que estou levantando aqui é que a relão dos adultos com a religião
caracteriza-se, entre outros aspectos, pela separação entre os conceitos de religião e igreja (templo).
Em outras palavras, para o adulto, religião e igreja, embora se relacionem, o podem ser igualadas.
A constatação de que religião e igreja são duas coisas diferentes parece ser uma das características da
religiosidade nos moldes adultos. A religião não remete apenas à igreja, porque surge a possibilidade
de um indivíduo ser religioso sem freqüentá-la. Enquanto quase todas as crianças pequenas
desenharam igrejas, uma criança de onze anos de idade quase se esqueceu de acrescentar a igreja nas
suas considerações sobre a religião. Observe: A religião é muito importante para os católicos
porque a religião nos ensina a ser filho de Deus, ser generoso e educado, a religião fala de Jesus. A
religião fala da vinda e da vida de Jesus Cristo e dos povos antigos e da igreja”. (LG. 11. F. 18). Ao
mesmo tempo em que a religião extrapola a igreja, surge a idéia de que não basta apenas ir à igreja
para ser bom, há que se praticar o bem fora da mesma. Este processo talvez se inicie aos dez anos de
idade, mas vai acentuando-se com o passar do tempo.
Se de um lado talvez fosse esperado que o mero das igrejas desenhadas caísse em
conseqüência do advento de uma nova maneira de lidar com a religião, na qual a igreja já o é mais
soberana e na qual é possível ser religioso sem que se vá à igreja, de outro lado, simultaneamente,
constata-se, para os calicos, uma nova maneira de pensar a própria igreja, como sagrada. Em
função disso, os números de desenhos de igrejas permanecem altos. A igreja passa a ter valor em si
mesma, sendo reconhecida como lugar importante, o que vai ao encontro das concepções adultas
católicas a respeito dela. Mesmo que não se freqüente, a igreja é tida como um lugar sagrado, que se
respeita. A igreja passa a ter valor em si mesma, o que nos primeiros anos o se verifica. Este novo
valor acrescido à igreja pode ser responsável pelas altas taxas de igrejas desenhadas, mesmo quando
ela já não é a única referência em termos religiosos.
162
Interessante notar que é por volta desta faixa etária que, ao mesmo tempo, as igrejas são
habitadas e são concebidas como sagradas. Quando a igreja passa a ser lugar de gente, ela passa
também a ser um lugar sagrado. Sem as pessoas a freqüentá-la, a igreja era apenas um prédio no
meio da praça. Exatamente quando as crianças parecem se relacionar de maneira mais íntima com a
igreja (visto que esta é habitada), neste exato momento começa a ocorrer a dissocião da religião
com a igreja. Ou seja, a religião deixa de ser somente associada à igreja (prédio), quando a mesma
adquire papel significativo na religiosidade infantil. Nesse momento, outros elementos religiosos são
destacados em paralelo com a própria igreja. A afirmação faz sentido uma vez que, para os católicos,
a igreja deixa de ser simplesmente o prédio no meio da praça para tornar-se a morada de Deus. A
igreja importa não mais em si mesma, mas como templo da religo. As crianças começam a
imaginar que vão à igreja para rezar, pedir perdão ou aprender a fazer o bem. Não se trata apenas de
freqüentar a igreja. É preciso escutar o que o padre diz, rezar, comungar e se comportar
adequadamente.
Por volta dos dez anos de idade, as ocorrências encontradas nos desenhos complexificam-se.
Observe os gráficos no final deste capítulo para notar como algumas mudaas importantes ocorrem
por volta desta faixa etária. Aos dez anos de idade, temos todos os outros elementos religiosos,
inclusive pecado, rezar, sacramentos. O peso da igreja continua grande; contudo, outros elementos
estão igualmente presentes. Não há nenhuma ocorrência de Maria aos dez anos de idade, assim como
o aos nove anos de idade. Como afirmei no Capítulo Quatro, Maria junto com Jesus e a igreja
são os primeiros desenhos propriamente religiosos que apareceram na amostra da pesquisa. Jesus e
Maria podem ser concebidos conjugados pela criaa pequena, uma vez que, para ela, a relação
mais importante no seu cotidiano parece ser a sua relação com a sua mãe. Assim, como aos nove e
dez, aos onze anos de idade também não nenhuma ocorrência de Maria. Aos treze anos de idade,
quanto aos outros elementos religiosos desenhados, verifica-se a presença de todos inclusive do
pecado, que está ausente em todas as outras faixas etárias. Apenas oito desenhos citaram o pecado
número muito pequeno se pensarmos no total de duzentos e cinqüenta desenhos, sendo o primeiro
deles aos sete anos de idade. Aos onze e doze anos de idade, quase todas as outras variáveis
religiosas estão presentes. O número de Deus é bastante alto, assim como os outros religiosos. O que
ocorre talvez seja a diversificação das associações. As igrejas permanecem, mas são acrescidas de
outros elementos considerados importantes pelas crianças ao passo que Deus parece ser cada vez
mais citado, competindo com as igrejas.
Observa-se, por volta dos nove/ dez anos de idade, uma mudança bastante importante na
maneira como as crianças pensam a religião. A primeira criança (N. 9. F. 16) a declarar o nome da
sua igreja tem nove anos de idade. Ela escreveu: “o nome da minha igreja é São Sebastião, ir à
igreja é muito bom”. Segundo esta menina, há diferentes igrejas, e as pessoas “pertencem” não
163
apenas freqüentam a uma delas. Ela sabe o nome da sua igreja. A meu ver, nomear a sua igreja é
uma atitude próxima do modo como alguns adultos experienciam a religião maneira esta que não é
observada entre as crianças pequenas. A menina ainda acrescenta que é muito bom ir à igreja. Uma
criança pequena também poderia dizer que ir à igreja é muito bomporque lá, por exemplo, ela se
encontra com os seus amigos. Parece que, por volta dos nove anos de idade, as crianças começam a
dar-se conta das diferenças entre as religiões e a definirem-se por uma delas. Elas entendem que
algo para além do simples fato de ir à igreja que implica em adesão.
Aos dez anos de idade, parece que as crianças podem operar com a religião em termos
denominacionais, dado que algumas delas já afirmam o seu pertencimento religioso institucional.
Atente para o que MF., de dez anos de idade (MF. 10. F. 17), escreveu: “A minha religião é católica.
Meus pais me batizaram na Igreja de São Sebastião. O padre me batizou com o nome de F.. O
padroeiro da minha cidade é São Sebastião, eu gosto do meu nome. Eu sigo a minha religião”. TB.
10. F. 23, ao se referir á sua religião, afirmou: “lá ficarei até a morte”. Depois de discorrer sobre
como ela gosta de rezar pelas almas, é católica desde pequenininha e não critica a religião de
ninguém, a menina exorta o leitor a fazer o mesmo: Faça como eu também”. F., também com dez
anos de idade (FS. 10. F. 18), escreveu algo similar: Eu sou F., eu congrego na igreja Evangélica
Assembléia de Deus. Acho muito bom, pois tem brincadeiras e rias coisas boas, de eu o
desistirei nunca. Minha vida é assim. Tchau. Tchau”. Assim, ao mesmo tempo em que a religião
desassocia-se da igreja (e associa-se a outros elementos), as crianças que se identificam com uma
religião em particular têm condições de distinguir a sua igreja. Repare que as crianças comam a
usar a terminologia da sua própria igreja, como nos exemplos citados acima: sigo a minha religião e
congrego na igreja. Algumas crianças expressam seu pertencimento religioso denominacional
(embora congregar”, jargão crente, indique relação diferente de “pertencer”) exatamente quando a
religião toma uma dimensão maior que a própria igreja. Não se trata mais de apenas ir à igreja, mas
sim de ir à igreja à qual pertenço. É interessante notar que estes dois processos acontecem
simultaneamente
156
.
156
Contraditoriamente, quando uma outra menina de nove anos de idade (GM. 9. F. 21) entregava-me seu desenho,
perguntei-lhe: Qual a sua religião? E o diálogo seguiu assim:
Criança: Como assim?
F: Você vai à igreja?
C: (Balança afirmativamente a cabeça).
F: Qual?
C: Vou, essa aí.
F: E qual o nome dela?
C: E ela tem nome??!
Não dúvidas quanto ao fato desta menina freqüentar a igreja. Mas não lhe passa pela cabeça que a igreja tenha um
nome e, por extensão, que existam diferentes igrejas que professem diferentes credos. Como afirmei em nota anterior,
idiossincrasias pessoais no entendimento da religião são constantes. No entanto, de maneira geral, é por volta dos nove
anos de idade que o processo de distinção das denominações confessionais tem início. Algumas crianças vão viver o
164
Adicionalmente, é interessante observar que FS. 10. F., apesar de já operar com as
distinções do pertencimento religioso, ressalta que é muito bom ir para a igreja pois lá tem
brincadeira...”. Ela não salienta o que os adultos chamam de religioso na religião, apesar de
afirmar seu pertencimento religioso a um credo específico. Seus pais provavelmente afirmariam que
ela é uma menina religiosa, mas não pelo mesmo motivo que a menina o faria! Como o menino de
quatro anos de idade, citado anteriormente no Capítulo Quatro, esta menina pensa as brincadeiras
como parte indispensável da religião, ao contrário dos seus pais. O exemplo citado corpo à
hipótese desenvolvida no Capítulo Quatro de que as crianças vivem a religião de maneira associada
às atividades cotidianas, na qual a distinção profano/ sagrado não se aplica. O exemplo também
sugere o lugar da brincadeira na religião de acordo com a perspectiva infantil, mas à frente
voltaremos a este paralelo.
Ao mesmo tempo em que o conceito de religião se alarga incluindo atitudes como rezar,
conceitualização do pecado e institucionalização através dos sacramentos −, parece que algumas
crianças se apegam ao pertencimento a uma igreja. Ao mesmo tempo em que passa a conceber a
possibilidade de atividade religiosa fora da igreja, a criança define o seu pertencimento religioso a
uma igreja em especial. Não se visita mais as igrejas para apenas ver os santos ou para ouvir os
hinos, como foi largamente contemplado no Capítulo Quatro, porque entende-se que há algo singular
em cada denominação religiosa. Isso as crianças nesta idade já sabem e, por isso, talvez definam uma
igreja, a sua igreja. O fato demonstra que elas estão crescendo e, conseqüentemente, a separação
entre religião e igreja é inevitável. Paradoxalmente, neste momento, é necessário optar por uma
igreja em particular para viver a religião. Esse fato parece ir ao encontro da hitese de que crescer
normalmente implica em restringir as possibilidades de relação com o sagrado.
Aos onze e doze anos de idade, parece que o processo de conceber as diferentes igrejas e
nomear a própria processo iniciado por volta dos nove anos de idade já está completo. Isso
porque começam a surgir negações do pertencimento religioso e afirmações de umsentimento
religioso”. Ao mesmo tempo em que isso ocorre, contesta-se a assimilação religião = igreja; em
outras palavras, religião não se resume mais à igreja. Neste momento, começam a pipocar
declarações do tipo: "eu não tenho religião, a minha religião é servir a Deus". A afirmação parece
acentuar que a igreja não é a única referência quando se trata de religião. No entanto, o número de
igrejas desenhadas não decai, possivelmente pela razão explicada acima: o fato da igreja ser
reconhecida como lugar sagrado, que tem valor em si mesma, sendo concebida como a casa do
Senhor. Este processo de esvaziamento da religião enquanto o lugar físico que se freqüenta, a
igreja, e fortalecimento da religião enquanto um conjunto de práticas associados à entidade − começa
processo tardia ou precocemente. No mesmo sentido, Christina Toren (2002) afirma que não é antes dos nove anos de
idade que a criança distingue o que há de simbólico nos rituais.
165
aos nove anos de idade, vai se intensificando na adolescência e parece se estabelecer durante a idade
adulta. As bases sobre as quais a religião vai assentar-se na idade adulta estão incipientes nesta
declaração: "eu não tenho religião, a minha religião é servir a Deus". Para o adulto em Catingueira,
mais importante que ir à igreja é servir a Deus, assim como perdoar e ajudar os irmãos. Para MH.,
menina, de onze anos de idade, também. Sua redação é muito interessante e chama a atenção o seu
discurso adulto”. Vale a pena conferir: A minha religião. A minha religião é uma religião
diferente, pois eu creio em Deus e em seu filho e freqüento a igreja, rezo e tento permanecer no
caminho dos mandamentos de Deus. Por isso digo que não tenho religião, mas se quiserem saber
mesmo digo que sou católica e se me perguntarem por que digo que é porque fui batizada na
igreja católica. Quer saber mesmo minha religião? A minha religião é servir a Deus!
157
.
Um desenho muito elucidativo é o de uma menina de doze anos de idade (MD. 12. F. 15).
Para ela, religião é um grande coração vermelho onde mora paz e amor”. Ela escreveu Eu desenhei
um coração porque no coração é que existe muito amor e muita paz e, aliás, existe muita paixão,
pois nele a gente segue o caminho certo e não errado, pois o coração a gente pode confiar. Ele é
a luz que ilumina o nosso caminho, pois como nosso coração é tão generoso eu desenhei, pois eu
queria que todo mundo acreditasse nele, pois ele é a voz mais alta do nosso corpo”. Nada de igreja,
santos ou Jesus. Para ela, o que importa é estar em paz e amar. Este tipo de desenho seria impensável
aos sete ou oito anos de idade, quando as crianças parecem pensar a religião como algo
intrinsecamente ligado à igreja. Para esta menina, religião não se limita à igreja em si, mas está
relacionada ao bem-estar pessoal.
Um menino, também com doze anos de idade (NS. 12. M. 21), escreveu que sua religião era
conviver bem com as pessoas, mas também ir à igreja”. Vemos, neste exemplo, um amálgama de
duas concepções de religiosidade. Uma delas é mais acionada pelos adultos, a saber, é mais
importante fazer o bem que ir à igreja, enquanto que crianças pequenas, de quatro - cinco até mais ou
menos os dez anos de idade pensam a religião como indissociável da igreja. No entanto, é preciso
ressaltar que a igreja não deixa de ser acionada porque, como já afirmei, para os católicos, ela
continuaimportante por toda a vida, na medida em que assume um caráter sagrado. Ao mesmo
tempo, uma atitude condizente com um padrão moral passa a ser requerida para se ter um
comportamento religiosamente aprovável, principalmente fora da igreja. Ir à igreja não parece bastar.
Observa-se como o crescimento em termos religiosos implica em esvaziar a importância da igreja
que, nos primeiros anos, era largamente freqüentada. Mais importante, agora, é, dentre outras coisas,
fazer o bem (principalmente) fora da igreja. Além disso, crescer parece estar associado a uma noção
157
Essa ocorrência se trata de uma menina de Recife que se mudou para Catingueira pouco tempo e cuja família
professa o ecumenismo, conceito desconhecido pela maioria dos catingueirenses. É provável que ela escute esta frase em
casa: “minha religião é servir a Deus” (MH. 11. F. 21). No seu desenho, há uma igreja com cruzes na porta e em uma das
torres. Na entrada da igreja, há uma pessoa. Na porta da igreja, lê-se Bem vindo à casa de Deus. também dois olhos
desenhados no alto da igreja, dentro de um triângulo, no canto esquerdo.
166
de igreja enquanto ecclesia, no sentido do fortalecimento dos laços entre os irmãos, mesmo que não
estejam fisicamente presentes sem mencionar o lugar de destaque de Deus e de outras entidades,
assunto do qual tratarei adiante.
Maya Mayblin (2005: 208), em um contexto de catolicismo no agreste pernambucano, afirma
que as crianças mais velhas, entendidas como aquelas que fizeram a primeira comunhão, são mais
requisitadas a comparecer à igreja que os menores, às quais maior liberdade é concedida. Parece que
em Catingueira, em grande medida, se passa o inverso. As crianças pequenas são mais requisitadas a
comparecerem à igreja e creio verdadeiro afirmar que elas mesmas se entusiasmam mais com o
fato do que as maiores. Talvez, isso possa ser entendido a partir da constatação de que uma criança
pequena precisa ser educada/ formada através de ensinamentos religiosos. Um pré-adolescente ou,
nos termos usados por Mayblin (2005), uma criança que já tomou a primeira comunhão − acredita-se
bastante sapiente ou “sabido”, a ponto de definir o que é o caminho do bem e do mal e fazer suas
próprias escolhas. De um lado, é verdade que os adolescentes geralmente são mais preguosos
quanto ao atendimento à igreja; de outro lado, a eles já é reconhecido um grau de conhecimento do
mundo que os libera do atendimento à igreja. Tal como os adultos, que o raro se abstêm de
freqüentar a igreja, os adolescentes também o fazem. Além disso, a idade adulta está associada à
noção de liberdade de consciência. Interessante constatar que muitos jovens participam da missa
católica, mas se posicionam do lado de fora da igreja, nos bancos da praça ou nas portas da igreja,
com o corpo pendulando entre o interior e o externo do prédio religioso. Muitos ficam em silêncio
escutando o padre, outros conversam com os amigos. Na comunhão e na “paz de Cristo”, é provável
que adentrem a igreja, para, logo em seguida, preencherem os arredores da mesma. Nunca ouvi
nenhuma mãe, por mais devota que fosse, reclamando da atitude dos seus filhos que passam parte da
missa do lado de fora da igreja. A atitude das moças e rapazes não parece estar sujeita a nenhuma
reprovação. O fato descrito parece ir ao encontro da constatação de que o comparecimento à igreja
perde importância à medida que a criança cresce, conforme as sugestões elencadas a partir dos
desenhos analisados.
Merece destaque o que escreveu uma menina de treze anos de idade (PM. 13. F. 21): Eu
acho a religião muito importante para mim, porque é para falar em Deus. Eu gosto muito de
Deus, porque ele é o nosso Salvador. Eu não sou católica porque eu não gosto, porque não gosto
de ser católica não é obrigado não gostar de Deus. A religião é muito importante para mim eu acho
que para todos também é. Eu acho bonito aquelas pessoas que são católicas”. E finaliza: O Senhor
é o meu pastor e nada me faltará”. A declaração deve ser cuidadosamente estudada. A menina
parece sugerir que Deus e igreja católica são duas coisas completamente diferentes quando afirma
gostar de Deus, mas não gostar de ser católica. Quando afirma que: A religião é muito importante
167
para mim eu acho que para todos também é”, ela parece dar a entender que religião o é o mesmo
que igreja, uma vez que religião é importante, mas ela sequer cita a igreja. Por fim, ela afirma: Eu
acho bonito aquelas pessoas que são católicas”, terminando com uma evocação bíblica. Segundo
esta menina, religião diz respeito à comunhão com a entidade, e não ao pertencimento religioso
institucional (gostar de Deus ela gosta, mas o é católica). A garota parece decidida: a religião é
importante; a igreja, não. Mesmo assim, a igreja é valorizada porque ela acha “bonitoser católico.
Parece-me possível afirmar que é assim, em grande medida, que os adultos em Catingueira imaginam
a relação entre a religião e a igreja: eles também acham “bonitoir à missa e, por isso, dentre outras
razões já mencionadas, insistem para seus filhos irem. Acham bonito freqüentar a igreja, mas isto não
implica em freqüentá-la. É interessante constatar que, justamente quando freqüentar a igreja passa a
ser algo “bonito”, neste mesmo momento ela deixa de ser freqüentada com regularidade, na medida
em que a criança se torna um adolescente, assemelhando-se mais aos adultos. A transição para a
idade adulta passa por esta mudança de status da igreja. A mesma deixa de ser a peça fundamental da
prática religiosa, que permanece importante, mas parece ceder o lugar principal para Deus.
Resumidamente, o que quis sugerir foi que, aos nove anos de idade, a criança coma a
diferenciar religião e igreja. Essa diferenciação parece intensificar-se aos doze anos de idade e já
estar completa aos treze anos de idade quando a pessoa concebe diferenças ontológicas entre
religião e igreja. Como já mostrei, aos onze anos de idade começa a contestação da religião enquanto
igreja. a primeira declaração tácita de que não se pertence a nenhuma religião em particular, mas
que sua religião é servir a Deus. Aos doze e treze anos de idade, surgem declarações cujo teor é
similar: religião é “conviver bem com as pessoas, mas também ir à igreja”. Ou, ainda, “Ir a igreja
rezar mas também ser solidário com as outras pessoas”. Com isso, aos doze e treze anos de idade a
religião comporta a igreja, mas não se restringe a ela como nos primeiros anos. Valoriza-se a igreja,
mas valoriza-se ao mesmo tempo um comportamento considerado adequado, guiado, em grande
medida, pela liberdade de consciência. A igreja em si não é mais suficiente. Como esta menina (SO.
13. F. 8), de treze anos de idade, bem afirma: “Religião não é igreja. Religião é fazer o que a
Bíblia manda”.
Por outro lado, como já mencionei, com o passar dos anos o número das crianças que se
identificam com uma religião em particular cresce. Isso se torna claro na identificação dos desenhos,
nos quais as crianças colocam seu nome, a idade e, algumas vezes, a religião a que pertencem. O
número dos que se identificam religiosamente com um credo aumenta com o passar do tempo.
Porém, aos onze anos de idade, apenas 4,76%, e aos doze anos de idade, 14,3% das crianças não se
refere a nenhuma igreja em especial, mas se refere, sim, a atitudes que a identificam como uma
pessoa boa. No caso dos treze anos de idade, este número já passa para 38%. Algumas crianças
identificam-se com determinadas igrejas em particular, mas assinalo o número das crianças que
168
colocam ênfase nas atitudes que as definem como boa gente e não nas igrejas. Esta característica
o está retratada aos dez anos de idade, mas cresce dos onze anos aos treze anos de idade.
Para finalizar este sub-tópico, gostaria de ressaltar a importância da entidade para as crianças
maiores. Deus parece estar altamente associado à religião nos últimos anos pesquisados, chegando ao
mesmo vel das igrejas. Quando a religião deixa de ser apenas igreja, Deus aparece com maior
evidência. O que parece estar ocorrendo nos desenhos é a gradativa substituição das igrejas,
entendidas como templos, por Deus. Ao mesmo tempo, Deus parece ser indistinto do seu filho, Jesus.
E, nesse sentido, a igreja reaparecerá. Mas, extrapolando a simples refencia ao prédio físico, a
igreja será então entendida a partir do seu sentido maior de ecclesia, como o corpo de Cristo e o
conjunto dos fiéis, uma igreja descolada do seu contexto geográfico. Observe o Gráfico Sete: a partir
dos onze anos de idade, há um crescimento significativo dos desenhos que mencionam Deus.
Concluo esta parte com a redação de R., que me parece exemplar no processo de crescimento em
termos religiosos: Redação de Religião. Tem rios tipos de religião. Tem a religião católica, a
religião evangélica. Mas todas são iguais porque não é importante as religiões serem iguais, o que
importa é o Amor por Deus, e a fé por ele e por todos os Santos da religião. A igreja é a casa do
Senhor e nós vamos lá para rezar para orar e para pedir paz e amor”. (RJ. 12. M. 18). A criança
destaca a importância da igreja, apenas enquanto entendida como a casa do Senhore recinto onde
se “ora” pela paz e pelo amor. Em outras palavras, a igreja agora importa enquanto resincia de uma
entidade ou enquanto lugar onde se pode alcançar paz e amor”. Ele ainda destaca que todas [as
igrejas] são iguais porque (...) o que importa é o Amor por Deus, e a por ele e por todos os Santos
da religião”. A redação dessa criança parece levar-nos a refletir sobre uma das hipóteses trabalhadas
nesta tese. A criança, apesar de diferenciar os crentes dos católicos em um primeiro momento, em
seguida parece desconsiderar esta diferenciação. Até os santos, a grande questão de discórdia entre as
duas religiões, parece não ser tão importante, para ele: todas as religiões são iguais”. Isso pode ser
melhor compreendido quando pensamos o cristianismo como ponto central da moralidade
catingueirense em detrimento das diferenciações entre as religiões. Para maiores detalhes, refira-se à
Introdução e às Conclusões.
3. Religião e mal-assombro: dois processos analisados em paralelo
É a religião que promecanismos para se livrar ou evitar o assédio dos mal-assombros.
Promessas, velas e missas estão entre os pedidos das almas dos mortos para se dirigirem para um
bom caminho, deixando de assombrar os vivos. Se um antídoto eficaz contra os mal-assombros,
mesmo Deus. Ele é a resposta contra os mal-assombros, principalmente aqueles associados ao
169
Demônio. Para os católicos, reza, vela, missa, crucifixo e, em último caso, o exorcismo são
considerados remédios para lutar contra o assédio dos mal-assombros. Para os evangélicos, deve-se
orar e igualmente recorrer ao exorcismo em caso extremo. No caso dos espíritas, é necessário
doutrinar tais almas e ensiná-las o caminho para onde seguir, o que é feito nas reuniões do Centro
espírita
158
. Algumas crianças desenharam temas religiosos nos desenhos dos mal-assombros, como
cruz, água benta, igreja, capela, Bíblia, dentre outros
159
. A faixa etária de onze anos de idade é
crucial, na medida em que encontramos a maior taxa de elementos religiosos desenhada. O que isso
quer dizer? Se a criança associa o mal-assombro ao mundo da religião, é provável que o associe
também ao bem ou ao mal (porque, como já aludi, os mal-assombros são pensados pelos adultos e
crianças maiores como enviados pelo Demônio ou, em alguns casos, por Deus). Algumas vezes,
esses temas religiosos desenhados são antagônicos aos mal-assombros − como no caso da água benta
−, mas igualmente referentes ao cristianismo. Outras vezes, esses elementos reforçam o status dos
mal-assombros enquanto alma dos mortos. Por exemplo, muitas cruzes foram desenhadas indicando
mortes ou sepulturas
160
. Neste caso, no qual a morte está desenhada, parece possível extrair uma
relação próxima da moral cristã: quando uma pessoa morre, seu espírito sobrevive. É esse espírito
que tem o potencial de se transformar em mal-assombro.
Comparando a religião e os mal-assombros, a primeira começa a fazer sentido
posteriormente para as crianças. Chamou-me a atenção a precocidade com que os mal-assombros
aparecem nos desenhos. aos três anos de idade, houve dezessete ocorrências de mal-assombro
para um total vinte e cinco desenhos enquanto somente aos cinco anos de idade é que aparece um
número substancial de desenhos propriamente religiosos: apenas aos cinco anos de idade, 50% das
crianças desenharam elementos religiosos nos desenhos cujo tema era “A minha religião”. Além
disso, como já afirmei, o número de desenhos acumulados com o tema “A minha religião” é
substancialmente menor que o número de desenhos com o tema “O mal-assombro”. De acordo com
158
Veja algumas práticas para evitar ou livrar-se dos fantasmas em contextos diferentes (o texto tem um quê de
pitoresco): “Na Moravia, lê-se na obra de Dom Calmet, é ‘bastante comum’ ver os defuntos colocarem-se à mesa com
pessoas de seu conhecimento. Sem dizer uma palavra, fazem um sinal de cabeça a um dos convivas, que ‘infalivelmente
morre alguns dias depois. Livram-se desses espectros desenterrando-os e queimando-os. Na Boemia, por volta da
mesma época, livram-se dos fantasmas que desolam certas aldeias exumando os defuntos suspeitos e passando-lhes
através do corpo uma estaca que os prega ao solo. Na Silésia, lê-se ainda sob a pena de Dom Calmet, que se recusa a
dar fé a esses contos macabros, encontram-se os espectros ‘à noite e de dia’; percebem-se as coisas que lhes pertencem
mover-se e mudar de lugar, sem que ninguém as toque. O único remédio contra essas aparições é cortar a cabeça e
queimar o corpo daqueles que voltam. Na Servia, os fantasmas são vampiros que sugam no pescoço o sangue de suas
vitimas, que morrem no langor. Quando se desenterram os mortos suspeitos de ser esses espectros maléficos, eles são
encontrados como vivos, com um sangue vermelho’. Então, sua cabeça é cortada e recolocam-se no fosso as duas
partes do corpo, cobrindo-as de cal viva”. (DELUMEAU 1996: 89-90)
159
Confira os números: cinco anos: 4%. Seis anos: 0%. Sete anos: 5%. Oito anos: 15%. Nove anos: 25%. Dez anos:
32%. Onze anos: 50%. Doze anos: 31%. Treze anos: 23%. Quatorze anos: 40%. Quinze anos: 18%. Dezesseis anos:
25%. Dezessete – Vinte e dois anos: 17%.
160
Computei o número das crianças que desenharam motivos fúnebres: três anos: 8%, quatro anos: 0%, cinco anos: 8%,
seis anos: 4%, sete anos: 23%, oito anos: 35%, nove anos: 30%, dez anos: 24%, onze anos: 32%, doze anos: 66%, treze
anos: 23%, quatorze anos: 40%, quinze anos: 45%. Pode-se observar também que, a partir dos seis anos de idade, os
desenhos fúnebres foram mais desenhados por crianças do sexo masculino.
170
as reações em sala de aula, parece que, para as crianças, desenhar sobre religião era como se fosse
uma obrigação. Curiosamente, duas crianças, ao invés de desenhar sobre a religião que professam,
desenharam justamente sobre a disciplina escolar “Religião”, que são obrigadas a cursar e tirar notas
para passar de ano (JP. 13. M. 17, RC. 13. F. 6). Os resultados dos desenhos sobre “A minha
religião” podem ser lidos como exemplos de como as crianças pensam que os adultos pensam, ou de
como as crianças pensam que deveriam pensar segundo os adultos. Tive a sensação de que, quando
desenhavam sobre “a minha religião”, as crianças se preocupavam em acertar no desenho, em não
desenhar nada errado, como se estivessem sendo avaliadas o que não aconteceu com o tema do
mal-assombro. Acertar no desenho significa fazer o desenho que agradaria aos adultos
especialmente à pesquisadora. Quanto a mim, estava interessada na perspectiva infantil em relação à
religião, em entender o que elas tinham a dizer sobre o que a religião enquanto instituição havia
ensinado. As crianças, por sua vez, estavam interessadas em mostrar-me como elas tinham sido boas
alunas no catecismo e, assim, tendiam a repetir os ensinamentos ouvidos sobre a religião. Às
vezes, a repetição era inconsistente, o que resultava na sensação de que estava faltando alguma peça
para completar o argumento que a criança tecia. Por exemplo, certa vez estava conversando com L.
F. 12, e perguntei-lhe quem era Jesus. Ela respondeu nestes termos: Ele é o nosso Salvador”.
Momentos depois, vim a constatar que a menina não sabia o significado da palavra “salvador”. Esse
é um exemplo recorrente no trabalho de campo. Em várias ocasiões, as crianças tentaram me
impressionar com o seu conhecimento de religião. Mas o que percebi foi que esse conhecimento era
baseado na repetição das palavras da professora de religião, do padre ou do pastor. Contudo, é
necessário enfatizar que, se as crianças mostraram-se um pouco resistentes quanto ao tema de
desenho proposto, ao mesmo tempo estavam aptas a colocar no papel o que elas acreditam ser a
idéia do adulto sobre religião, na medida em que esta é tida como mais correta e adequada
161
.
Gostaria de mencionar uma outra dificuldade. O pedido de desenho sobre “a minha religião”
para as crianças pequenas pode tê-las levado a supra valorizar as igrejas. Assim, a imensa
quantidade de igrejas desenhadas deveria ser pensada de maneira cautelosa. Talvez, as crianças
pequenas acabaram por interpretar a religião de maneira externa e objetiva (religião = igreja = um
prédio) porque ela não parece ser um conceito com o qual elas tenham intimidade o que não
significa que ela não conheça a sua prática, ou esteja alheia a qualquer forma de religiosidade. Não é
de se estranhar que as crianças mais velhas tenham incluído no desenho da “minha religião” facetas
da sua religiosidade pessoal, uma vez que religião”, enquanto conceito, para elas já fazia sentido.
Para as crianças pequenas, a religião não pode incluir atitudes pessoais, na medida em que esta não
161
Isto nos leva a refletir sobre a presença do pesquisador, assunto já trabalhado previamente no Capítulo Um. As
crianças sabiam que eu estava interessada nos mal-assombros e nos assuntos de religião e, muitas vezes, elas mesmas
puxavam esses assuntos ou vinham à minha casa especialmente para contar-me sobre algum fato acontecido, ouvido ou
sonhado.
171
pode ser isolada como uma categoria distinta da vida cotidiana. Daí, talvez, a dificuldade das
crianças em conceitualizar o que seja “a minha religião”. O pedido de desenho pode ter sido
considerado algo esdrúxulo, no sentido de que, quando pequenas, elas o concebem a distinção
entre religioso e não-religioso, como é mostrado no Capítulo Quatro. No mesmo sentido, desenhar
sobre a minha religião” deve parecer ainda mais esdrúxulo para uma criança pequena. Em primeiro
lugar, porque ela não distingue o que seja religião do que não seja. Em segundo lugar, a religião não
pode ser algo pessoal ou individual, na medida em que ela ainda não conhece o conceito (de
religião). E, finalmente, o que a criança pequena conhece de religião é a sua relação cotidiana com a
sua família na performance diária de atividades religiosas. No entanto, para uma criança por volta
dos nove anos de idade, que distingue as denominações e que se sente como pertencente a uma
delas, desenhar sobre “a minha religião” faz algum sentido
162
.
Quanto à aplicação do tema do mal-assombro, o quadro foi totalmente diferente. Desenhar
sobre mal-assombro era divertido, emocionante e envolvia até certo grau de perigo, porque, de
acordo com elas, alguns mal-assombros fazem aparições quando seus nomes são proferidos. As
crianças envolveram-se intensamente no processo de pesquisa. O mal-assombro, ao contrário da
religião, pareceu-me um tema com o qual as crianças têm mais intimidade e, portanto, mais
habilidade para desenhar. Não houve tanta reclamão do tipo: ‘ah, eu não sei desenhar isso’,
quando as crianças desenhavam os mal-assombros. Os pequenos consideraram desenhar e falar dos
mal-assombros uma atividade prazerosa, como uma brincadeira, ao passo que desenhar e falar sobre
religião foi considerado chato! E por quê? Porque elas têm intimidade com os mal-assombros e os
162
Barrett (1998, 1999) e Barrett & Keil (1996) discorrem sobre algumas questões metodológicas envolvidas no estudo
da religião, alertando os pesquisadores para o fato de que métodos utilizados podem determinar os resultados da
investigação. Ele afirma: Depending on the cognitive demands of a task and the cognitive resources individuals have
available to deal with the demands, the concept may appear radically different (1999: 334). Isso porque, segundo ele,
vários níveis de representação dos conceitos religiosos ou relações religiosas coexistem em um mesmo indivíduo. As
pessoas tendem a responder com exatidão teológica (“Theological correctness”) às perguntas sobre Deus em
questionários − o que não acontece com métodos como a “re-contação” de estórias. Ele exemplifica: The results of the
narrative comprehension task suggested that when processing stories, adults tend to use a concept of God having few
abstract, “god-like” properties. Rather, participants quite readily attributed to God properties such as having a limited
focus of attention, having fallible perceptual systems, not knowing everything, and having a single location in space and
time. In contrast, when these same participants were asked to reflect on what properties they believed God has using
questionnaires, they reverted back to the theologically correct, abstract: God is all-knowing, has infallible perception,
has no single physical location, has unlimited attention, and so forth. Slightly modifying the cognitive demands of the
task by reminding participants of their beliefs in theologically correct properties lessened the tendency to discard the
Theological Correctness properties in favor of a more anthropomorphic concept. Control experiments successfully ruled
out artifacts of the narrative as the cause of the differences between self-reported concepts and concepts used to process
the narratives (199: 329). A sugestão do autor é um alerta para os pesquisadores da religião. Em antropologia,
particularmente, parece-me que o problema pode ser solucionado na medida em que se imputa importância primordial à
observação participante. Mesmo que algumas técnicas complementares tenham sido utilizadas, a evidência etnogfica
continua valendo como prova da validade dos resultados da pesquisa, como foi visto no Capítulo Um.
172
reconhecem, independente da idade, como assunto que lhes diz respeito
163
ao passo que o mesmo
o acontece com as crianças pequenas em relação à religião.
Parece-me correto afirmar que as crianças, em primeiro lugar, tomam conhecimento dos mal-
assombros para, posteriormente, tomar conhecimento da religião. Os mal-assombros são seres
próximos das crianças desde muito pequenas pelo menos desde os três anos de idade. Ao mesmo
tempo, as crianças são expostas ao mundo religioso desde muito cedo. Freqüentam a igreja com seus
pais, são ensinados a rezar antes de dormir e, algumas vezes, têm até que pagar promessas feitas
pelos seus familiares em seu benefício. Os mal-assombros são efetivos desde sempre, no sentido que
as crianças com três anos de idade os reconhecem e os temem. Da mesma forma, para as crianças
pequenas, a religião é efetiva no sentido da prática, mas não foi ainda conceitualizada. Em outras
palavras, as crianças com três anos de idade vão à igreja, mas não se perguntam sobre a stia, os
sacramentos ou a necessidade de usar saia longa para ir ao culto.
Finalmente, podemos perguntar-nos: como se dá a relação entre os mal-assombros e a
religião? Em determinado momento do crescimento da criança, os mal-assombros são incorporados
à religião: isto se ao serem eles mesmos cristianizados o que coincide com o fato de que a
principal referência religiosa passa a ser Deus, em detrimento da religião entendida enquanto o
freqüentar a igreja, característico das crianças pequenas. Os mal-assombros são geralmente
concebidos como as almas dos mortos que não encontraram seu caminho no “outro mundo”. Este
conceito de alma perdida agrega alguns outros conceitos que o adquiridos com o passar dos
anos, como o conceito de céu, inferno e purgatório mas, principalmente, bem e mal, ou Deus e o
Diabo. Quando a religião é vista enquanto igreja (prédio), ou seja, nos primeiros anos de vida, mal-
assombro e religião o são assuntos adjacentes porque, neste momento, mal-assombro não é ainda
visto como um enviado das entidades religiosas. Por isso, segundo as crianças pequenas, os mal-
assombros não dizem respeito à religião. O tema religioso vai aparecer substancialmente nos
desenhos dos mal-assombros aos oito anos de idade (em 15% dos mesmos). Parece possível afirmar
que o mal-assombro é uma espécie de ser ou fenômeno que não diz respeito à religião stricto sensu
durante a infância, mas que vai passar a ser assimilado à religião posteriormente, quando os mal-
assombros são tidos como almas. As almas entram pela porta da frente da igreja porque são
relacionadas à a crença cristã na sobrevida da alma após a morte do corpo além de passarem a ser
163
Como vimos no Capítulo Três, isso vai ao encontro do fato de que os mal-assombros são, ao mesmo tempo,
referentes ao mundo infantil e ao mundo adulto. Eles não são unicamente apanágios da sociedade adulta, uma vez que as
crianças se divertem tanto com eles. Os adultos e as crianças operam em um mundo povoado por mal-assombros.
Enquanto relativo ao Demônio, o mal-assombro é algo relativo à sociedade de adulta, mas vimos que existem muitos
outros mal-assombros que não se restringem às entidades religiosas. Além disso, o estou afirmando que as crianças
não se relacionam com a religião em nenhuma instância. Conforme visto no Capítulo Quatro, elas estão envolvidas nas
diversas atividades religiosas da igreja sem, no entanto, poderem ser consideradas religiosas da mesma maneira que os
adultos.
173
conhecidas como enviadas de Deus ou do Demônio e, em certos casos, até mesmo o próprio
Demônio.
Antes de terminar este subtítulo, mais uma observação a ser feita. Vimos, anteriormente,
que os mal-assombros como o Bicho Papão e o Zumbi deixam de ser considerados mal-assombros
de verdade para ceder este lugar para as almas dos mortos. Observe quantos desenhos identificaram
mal-assombro como almas (fantasmas
164
). Três anos: 5/25; quatro anos: 1/23; cinco anos: 0/26; seis
anos: 3/25; sete anos: 12/22; oito anos: 13/20; nove anos: 18/20; dez anos: 23/25; onze anos: 28/28;
doze anos: 36/36; treze anos: 22/22; quatorze anos: 5/5; quinze anos: 11/11; dezesseis anos: 2/4;
dezessete anos: 2/2. Total: cento e oitenta e um desenhos (lembre que o número total dos desenhos é
de duzentos e noventa e sete unidades). Repare que o número é sempre crescente e, partir dos nove
anos de idade, toma proporções altíssimas. Podemos nos indagar se, aos onze e doze anos de idade,
quando constatamos altíssimas taxas de ocorrências de desenhos de almas, a cristianização da
própria criança já estaria completa. Até os seis anos de idade, parece haver certa confusão se todas
as almas são também mal-assombro. Fica claro que o número de pessoas que desenhou almas vai
crescendo com o passar dos anos. A partir dos oito anos de idade, esse número permanece alto. É
interessante lembrar que, também aos onze e doze anos de idade, ocorre a negação do pertencimento
religioso institucional e a afirmação da ligação com Deus nos desenhos do tema “A minha religião”.
O que parece estar em jogo é que a igreja perde sua importância primordial cedendo lugar para
Deus, simultaneamente ao fato de que não se acredita mais nos mal-assombros que não sejam almas.
Harris & Gimenez (2005) realizaram um estudo com crianças entre sete e onze anos de idade
sobre as concepções da vida após a morte. Elas foram entrevistadas sobre a morte de um
personagem, em dois contextos diferentes, um secular e outro religioso. Uma estória na qual o avô
do personagem morre é contada para as crianças, com a diferença de que, em uma estória, ele [o
avô] está morto e enterrado” e, na outra, “agora ele está com Deus” (2005: 158 tradução minha). As
perguntas feitas posteriormente referiam-se ao processo corporal e mental do avô morto. A
afirmação de que as funções corporais e mentais continuam depois da morte aconteceu mais
freqüentemente entre crianças mais velhas. Essa freqüência foi também maior em relação à estória
religiosa e em relação ao processo mental que o processo corporal. Taking these various findings
together, we find an intriguing developmental pattern. Young children adopt a secular, biological
point of view and increasingly conceive of death as the end of life. Eventually, however, older
children and many adults incorporate religious elements into their conception of death”. (HARRIS
& GIMENEZ 2005: 145-6). Os autores concluem que, entre as crianças mais velhas, parecem co-
164
O segundo número se refere ao total de desenhos coletados naquela faixa etária, enquanto o primeiro número indica a
quantidade de desenhos em que o elemento é destacado. Fantasma e alma foram contabilizados juntos, na medida em
que parece não haver distinção considerável entre eles.
174
existir duas concepções de morte: uma que cessa o processo de vida e outra que inicia a vida após a
morte
165
.
Os dados apresentados parecem ir ao encontro ao argumento aqui proposto. No meu caso
específico não vejo como escapar do entrelaçamento da religião e da agência dos mortos. que,
como se viu, para os adultos a agência dos mortos existe na medida da sua relação com a entidade
religiosa. Meus dados sugerem que apenas quando a criança reconhece tais entidades, Deus e Diabo,
é que ela vai conceber os mal-assombros como a alma dos mortos. Esta afirmação não implica,
como parece sugerir Bering (2002, 2003), ao criticar os antropólogos, que este entendimento exista
apenas em função do aprendizado cultural. O que venho tentando mostrar é que as crianças
aprendem sobre os mal-assombros ao mesmo tempo em que vivem as suas vidas, em que crescem.
Da mesma forma, elas aprendem sobre “a religiãonão apenas no catecismo, mas a cada noite,
quando sua mãe vem acompanhar a sua oração noturna. Um aprendizado social está em jogo, mas o
165
Bering (2002, 2003, in press) argumenta que a crença de que os mortos continuam a agir de alguma forma apresenta-
se como característica inata, que existe em função de um estágio evolutivo. Acreditar em fantasma, desta forma, o
implicaria em conhecimento religioso. O autor argumenta contra as teorias que colocam ênfase no aprendizado cultural
como forma de adquirir essas crenças. Ele afirma: […] My results do not resolve the question of whether belief in
“ghosts”, per se, requires gathering information about such agents through cultural mechanisms, but they strongly
suggest that reasoning about dead agents´ minds is only superficially influenced by explicit religious beliefs (presumed
to be an artifact of social learning) about what becomes of the mind at death”. (BERING 2003: 246). Ou, em outro
momento, ele assevera: “[...] the implication is that the social transmission process plays somewhat less a role in
spreading ghosts concepts than has been thought. Rather, implicit afterlife beliefs of the variety reported here would be
characterized more or less as innate [...](BERING 2002: 292-3). Boyer (2001) parece opinar em favor do argumento
de Bering: So there is no clear empirical meaning to a representation being acquired “before” or “outside” cultural
exposure. However, one could say and it is clear that this is where Bering wants to go that certain representations
seem to develop regardless of what particular kind of cultural exposure one receives. That is certainly the case for
imaginary companions, possible agents, and of course dead people as agents” (2001: 239).
O autor apresenta algumas evidências para provar seu argumento. Entre elas, um experimento (BERING et al.
2005) feito com crianças de quatro a doze anos de idade, freqüentando escolas públicas e religiosas católicas, na
Espanha. Após observarem uma apresentação de bonecos na qual um jacaré comia um ratinho, as crianças foram
perguntadas sobre o funcionamento biológico e psicológico do rato morto. Os resultados confirmaram os dados de outro
estudo anterior realizado nos Estados Unidos da América (BERING & BJORKLUND 2004): em maior número que as
menores, as crianças maiores tenderam a responder que a morte cessa as funções biológicas e psicológicas. Ou seja, a
afirmação de que a morte cessa essas funções aumenta com a idade. Além disso, a referida afirmação é significantemente
mais recorrente entre crianças que freqüentam escolas seculares em comparação às escolas religiosas (BERING, BLASI
& BJORKLUND 2005). Em outro momento, Bering (2003) ainda afirma (…) it is striking how few children used
eschatological terms (e.g., “heaven”, “ghosts”, “spirit”, “God“ and so on) in answering the experiment’s questions
(BERING 2003: 248).
Harris & Gimenez indagam-se quanto à discordância entre os seus resultados e os de Bering & Bjorklund
(2004). Em primeiro lugar, explicam eles, Bering & Bjorklund (2004) mencionaram a morte de um rato, e não de uma
pessoa (sabe-se que a discussão se os animais têm ou não alma é tema contraditório). Em segundo lugar, como eles
focaram o aspecto biológico da morte (um jacaré que comeu um rato), era esperado que as crianças enfatizassem o
aspecto natural do fim da vida. E, finalmente, a diferença entre os resultados pode ser entendida, já que as crianças
pequenas são poupadas da irreversibilidade da morte, através de estórias fantásticas contadas pelos adultos. De outro
lado, as crianças maiores m mais informações sobre a morte do ponto de vista biogico. Isso tudo talvez explique por
que as crianças mais novas tenham dado mais respostas que sugerem a continuidade da vida depois da morte.
Embora a questão da agência dos mortos seja muito interessante, a discussão empreendida pelos autores acima
parece restringir-se, em último grau, apenas ao contexto da ciência cognitiva da religião, com implicações que fogem ao
meu interesse neste trabalho como, por exemplo, estudos sobre evolução. Tendo a concordar mais com Elkind (1978:
27) quando afirma: They [the results] show that the child’s conceptions are constructed (neither innate or simply
learned). This is true because if they were innate, they would not change; and if they were simply learned, they would
not differ so radically from adult conceptions. The continuous from early childhood through adolescence. And finally,
the data show that each level, mental constructions reflect the interaction of developmental constructions reflect the
interaction of development and experience”.
175
produto deste aprendizado não é a incorporação de “uma cultura” e, sim, uma pessoa totalmente
integrada na comunidade catingueirense que, como não podia deixar de ser, tem medo de mal-
assombro.
Em caráter de resumo provisório, colocando os primeiros desenhos sobre religião em relação
aos desenhos sobre mal-assombro, podemos afirmar que, por volta dos onze e doze anos de idade, ao
mesmo tempo em que os mal-assombros são cristianizados, vemos, por parte das crianças, ocorrer
uma mudança na maneira de conceber a religo. A religião passa a ser assunto que diz respeito, em
primeiro lugar, às entidades religiosas e ao próximo. Em adição, o peso do comparecimento à igreja
cai. O amor a Deus e ao próximo passam a distinguir uma pessoa religiosa, e pesam mais que o
comparecimento à igreja. Resumidamente, vimos que, primeiro, a religião não se relacionava com o
credo que comportava senão com a igreja em si mesma, como prédio. Em um segundo momento,
as crianças definem o seu pertencimento religioso a uma denominação específica. E, finalmente,
quando se aproxima a adolescência, os diferentes credos perdem sentido primordial, dando lugar a
um modo de ser religioso que prescinde do comparecimento à igreja e da filiação institucional a uma
religião. Em outras palavras, crescer em Catingueira implica em, simultaneamente, restringir os mal-
assombros às almas, e tornar a religião altamente orientada em direção ao próximo, a Deus e às
outras entidades, como a virgem, os santos e o próprio Jesus.
4. Sobre a Dúvida: fantasia ou realidade?
Gostaria de discorrer, neste momento sobre a possibilidade de duvidar dos mal-assombros. A
questão da dúvida na realidade dos mal-assombros não parece estar colocada senão a partir dos dez
anos de idade. Vamos aos números dos que expressam vida: nove anos, 5%; dez anos: 4%; onze
anos: 7%; doze anos: 11%; treze anos: 41%; quatorze anos: 60%; Quinze anos: 73%. Observe que a
dúvida não é contemplada em nenhum desenho antes dos nove anos de idade. Isso vai ao encontro
do que foi dito anteriormente no Capítulo Três: que, apesar de criados pela imaginação, os mal-
assombros ganham vida e, por isso, são temidos pelas crianças pequenas. O primeiro caso de dúvida
se um fenômeno estranho acontecido se tratava mesmo da atuação de um mal-assombro ocorreu aos
nove anos de idade. O menino (LL. 10. M. 4) duvida do mal-assombro porque ele lhe apareceu
apenas em sonho. Sonho e realidade são distintos para uma criança de dez anos de idade, mas não
para as crianças pequenas como pontuei anteriormente. Um desenho de uma criança aos onze
anos de idade (GL. 11. M. 22) é muito elucidativo: um velho duvida da criança quanto ao
aparecimento de um mal-assombro mas, ao final da estória, prova-se que a aparição do mal-
assombro era verdadeira. A estória parece sugerir que a dúvida na existência e aparição dos mal-
assombros é uma precondição adulta. Para a criança, a possibilidade de não existência do mal-
176
assombro não estaria colocada. O mal-assombro existe e ninguém duvida. Para além disso, a criança
o se coloca a questão da crença. Apenas aos nove anos de idade é que a primeira criança vai
levantar a questão da crença nos mal-assombros, como já mencionei. Os mal-assombros o estão
sujeitos à crença porque fazem parte da realidade. Quero deixar claro que, apesar das crianças
criarem os mal-assombros, em momento algum elas duvidam da existência da sua criação. Como já
foi explicado, mesmo sendo criados pela sua imaginação, os mal-assombros são reais
166
(LATOUR
2002b [1996]). Interessante observar que a vida quanto à existência dos mal-assombros mostra-se
alta na adolescência. Segundo observações etnográficas, posso afirmar o mesmo para a idade adulta.
Mas não descarto a possibilidade de que talvez as pessoas neguem a existência dos mal-assombros
como forma de combater o medo
167
. Em se tratando dos adolescentes, eles têm vergonha de dizer
que acreditam em mal-assombro com receio de serem tomados como crianças. As crianças mais
velhas, acima de treze anos de idade, o quase unânimes em afirmar que não acreditam em mal-
assombro porque isso é coisa de bebê(AMS. M. 16). Porém, no decorrer da redação, muitos
acabam por afirmar sua existência como esta adolescente de quinze anos de idade, que termina a
sua redação com a seguinte exortação: Fantasma na nossa imaginação!”, mas que no decorrer
do texto escreve: “Eu nunca vi um, mas se ver um eu vou sentir medo e também chegarei até a
desmaiar (MJ. M. 15). O assunto é delicado para os adolescentes. Se dizem ter medo dos mal-
assombros, serão chamados de criancinhas; se dizem não ter medo, terão que passar por um teste
para prová-lo como, por exemplo, ir desacompanhado a uma casa velha abandonada, durante a
noite. R.C.D.S., de quinze anos de idade, expressa bem essa contradição: Eu nunca vi um porque se
eu tivesse visto eu não estaria viva porque tenho medo destas coisas, eu sei que não existe mal-
assombro, mas quem é que se confia em coisas do outro mundo?” (RCDS. M. 15). Nas redações dos
adolescentes, vemos uma ambigüidade explícita em relação ao mal-assombro. Ao mesmo tempo em
que afirmam que quem acredita nisso é “bebezinho”, afirmam também que nunca querem ver ou
que, se virem, o desmaiar de pavor. Ou seja, a possibilidade da visão de um mal-assombro parece
estar colocada. Os adolescentes estão atravessando um período delicado, no qual, às vezes, são
associados às crianças, às vezes aos adultos apesar dos seus esforços em se distinguirem dos
primeiros. Além disso, eles estão no processo de desmerecer alguns mal-assombro e conceber
legitimidade a outros. É preciso separar o que são os mal-assombros reais dos que são os mal-
assombros inventados para fazer medo nas crianças. Na dúvida, com medo de serem tomados por
criancinhas, eles negam a existência de todos os mal-assombros. Como os adolescentes o querem
166
Para a criança pequena, o desenho não representa um mal-assombro, mas é o mal-assombro. Isso porque uma criança
me disse que tinha visto um mal-assombro. Perguntei-lhe onde ele tinha lhe aparecido e ela mostrou-me o desenho,
dizendo que tinha visto o mal-assombro ali, no desenho mesmo.
167
O livro A História do Medo no Ocidente (1996), escrito por Jean Delumeau, historiciza vários tipos de medos (medo
do Satã, do escuro, da morte, de fantasmas, do mar etc.), e os analisa a partir da necessidade mantê-los longe sendo o
medo conceituado como aquilo de que nós queremos afastar-nos.
177
correr o risco de serem tomados como crianças, será preciso esquecer e desmerecer os outros mal-
assombros, afirmando a sua não existência ou a sua existência apenas como fruto da imaginação
fértil dos pequenos. São os adolescentes que introduzem a distinção mundo real e mundo imaginado
para entender os mal-assombros. Para as crianças, essa distinção não se coloca: os mal-assombros
existem, e não importa se é a pessoa mesmo quem os criou ou se são concretos ou abstratos. Os
adolescentes, por sua vez, afirmam que os mal-assombros podem existir, mas apenas em fuão de
uma invenção fantasiosa o que o corresponde à realidade. Finalmente, para os adultos, os mal-
assombros podem existir igualmente apenas quando são associados à religião. No entanto, para os
últimos, aqueles mal-assombros que as crianças acreditam reais existem no reino da imaginação
infantil enquanto os mal-assombros sérios, aqueles mandados pelo Demônio ou por Deus, podem,
eventualmente, invadir o mundo dos vivos.
Dessa forma, parece que os mal-assombros são desacreditados pelos adultos e adolescentes,
ao mesmo tempo em que são temidos, evidenciando aqui uma relação antinômica o que, segundo
Otavio Velho (em preparação), constitui o cerne da religião, e que será mais discutido adiante. Uma
constatação curiosa faz-se necessária: as crianças temem menos que os adultos os mal-assombros,
mas nunca passou pela sua cabeça desacreditar da sua existência. Nenhuma criança jamais pontuou a
questão da crença nos mal-assombros, mas elas sabem que os mesmos podem ser criados pela sua
imaginação e, uma vez criados, passam a existir. Essa existência não é contestável. Crer ou não no
mal-assombro não é uma questão que a criança se coloca. Aliás, não é através da crença que os mal-
assombros e as crianças relacionam-se. Como já afirmei anteriormente, as crianças gozam de
agência em relação aos mal-assombros, enquanto que os adultos e adolescentes parecem padecer da
agência dos mal-assombros. Isso pode ser entendido como razão para as altas taxas de medo entre os
adultos, e baixas taxas entre as crianças. Se os mal-assombros são criados por nós mesmos, eles
podem ser ‘descriados’ e, com isso, o medo se amaina. Mas, para os adultos, o medo não pode ser
atenuado, porque eles não têm qualquer controle sobre os mal-assombros. Para os adultos, os mal-
assombros existem alhures; moram em um mundo que tem regras distintas daquelas do mundo daqui
onde nós moramos. Por exemplo, a lei da gravidade não se aplica aos mal-assombros, que podem
flutuar como plumas e voar como pássaros. Além disso, os mal-assombros não respeitam a lei de
que dois corpos o podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo: eles atravessam paredes de
tijolo e portas de madeira. Os mal-assombros tamm podem tornar-se invisíveis de um segundo
para outro. Tudo isso é muito estranho para um adulto. Para ele, idealmente existe o mundo real e o
mundo das iias. Neste último, coisas estranhas podem acontecer, mas isso não importa muito,
178
dizem os adultos, porque este mundo das idéias, de fato, o existe: é só imaginação, fantasia, ‘coisa
que só existe na cabeça das pessoas’
168
.
O que faz, então, o adulto, quando alguma coisa que, segundo ele, não existe nem pode
existir? é que o problema todo se instaura. Os mal-assombros são tão interessantes e sujeitos de
tantas conversas e estórias justamente porque vão contra esta separação entre mundo real e
imaginado com a qual os adultos operam e na qual o último nunca é possível ou plausível; muito
menos, real. A operação efetuada pelos adultos é bem complicada. Ao invés de estender a realidade
a outras possibilidades de vida, como os mal-assombros ou os seres encantados, e viver em
harmonia com os “não-humanos”, os adultos os remetem a um espaço onde essas coisas estranhas
podem ter lugar, ser consideradas reais e ser seguramente explicadas. Como a existência dos mal-
assombros não pode ser negada − afinal, as pessoas os vêem −, eles passam a ser regulados por Deus
e pelo Demônio. Esse dois, agentes em si mesmos, são poderosos o bastante para corromper certas
regras do mundo cotidiano sem comprometer o bom senso, ou sem ser necessário recorrer a soluções
que remetem ao mundo da imaginação − aquele que não existe e não pode existir. Deus e o
Demônio, todo mundo sabe, existem. Para os adultos, as crianças continuam sendo consideradas
como criativas e imaginativas, enquanto eles se resguardam no seu mundo real, onde mal-assombro,
Deus e Demônio existem, mas a sua existência, o se enganem, é verdadeiramente real. Não os
confunda com o Zumbi ou a Bruxa Keka... O assunto aqui é sério, e apesar de todos eles, no fundo,
terem sido feitos da mesma matéria (ou não-matéria), apenas aos primeiros é concedida a mais
concreta realidade.
5. Conclusões
Em linhas gerais, parece possível afirmar que a criança pensa “a religião” como indissociável
da igreja (prédio). para o adulto, a religião parece abranger a igreja (prédio), mas não se restringir
a ela. A religo que antes era tida como a igreja = prédio no meio na praça, passa a ser a igreja
aonde as pessoas vão, para depois deixar de ser a igreja isoladamente e chegar a ser a igreja
enquanto ecclesia. Adicionalmente, a religião também diz respeito às entidades religiosas, como
168
Levi-Strauss (2003 [1952]), em um texto no qual analisa o papel do Papai Noel nas sociedades modernas, afirma que
todo rito de iniciação, em que a sociedade se divide em dois grupos de um lado, os iniciados, e de outro, os não
iniciados, está se falando de uma distinção mais profunda, entre os vivos e os mortos. Os mal-assombros, assim como o
Papai Noel, na medida em que distingue as crianças (não iniciadas, que acreditam nele) e os adultos (iniciados, que
sabem que ele não existe) na verdade esoperando uma distinção que ultrapassa esses termos e toca o mundo dos
mortos e o dos vivos. Papai Noel celebra a vida, em oposição à morte: ele presentes a todos, é generoso, suspende o
mundo das maldades, da inveja e da ganância. Ele suspende a morte. Levi-Strauss ainda diz que as crianças são a
encarnação dos mortos, a partir da análise do mito do Katchina, entre os índios Pueblo. Ao fazê-las acreditar na vida (no
Papai Noel) é que se suspende a morte e se instaura a vida.
179
Deus e Jesus, os Santos e Nossa Senhora. Recapitulando, o modo de relação que os adultos
estabelecem com a religião passa necessariamente pela sua dissociação em relação à igreja enquanto
prédio. Essa mudança é essencial na passagem para uma concepção adulta de religião. Apesar da
equação religião (=) igual igreja não fazer mais sentido, o número de desenhos de igreja permanece
altíssimo até os treze anos de idade, com veis acima de 70%. O que se passa? Acontece que, à
medida que a criança cresce, a igreja passa a gozar do rótulo de sagrada (para os católicos) o que
o acontecia nos seus primeiros anos de vida. A menina citada anteriormente acha “bonitoque as
pessoas sejam católicas embora isso não implique em sê-lo. Muitos consideram-se religiosos sem
sentirem-se obrigados a ir à igreja. Isso é possível porque o conceito de religião tomou uma
abrangência além da própria igreja (prédio). Mas, sem dúvida, é interessante observar que, somente
a partir dos dez anos de idade, quando a igreja é habitada, ela também é concebida como sagrada
(pelos católicos).
Como se viu, somente a partir dos quatro anos de idade as crianças comam a desenhar
elementos que afirmam serem religiosos. Descrevi detalhadamente os elementos pontuados pelas
crianças em cada faixa etária estudada e observei como eles mudam no decorrer dos anos. Na
seqüência da análise dos desenhos, vimos que, por volta dos sete - oito anos de idade, as igrejas são
largamente desenhadas. Assim, parece que, quando as crianças pensam em religião, a igreja é o
primeiro item que vem à baila. Por volta dos nove - dez anos de idade, a igreja é habitada por gente:
o é mais, como anteriormente, apenas a igreja solta no papel. Depois disso, a criança pode definir
o seu pertencimento religioso institucional, para depois negá-lo em função de uma maneira tida
como mais adequada de ser religiosa, na qual as diferenças entre os credos não o tão importantes.
pelos doze anos de idade em diante, as igrejas são associadas com outras referências, e as
crianças começam a ressaltar que ir a igreja não é suficiente: que se fazer o bem como a
menina de doze anos de idade, que desenhou um grande coração vermelho e escreveu que dentro
dele muita paz e muito amor”. Nada mais de igrejas. Ela ressalta que a religo implica em se
sentir em paz e amar o próximo, uma tendência que poderia ser chamada de adulta. Com o nascer de
uma nova maneira de se relacionar com religião, que não passa necessariamente pela igreja (templo),
nem pelas denominações religiosas específicas, poderia-se esperar que o número de igreja caísse.
Isso o acontece porque, como afirmei, a igreja, para os católicos, assume uma característica
sagrada. Observe a seguinte redação: Minha religião é conviver bem com os meus amigos, com as
pessoas que eu convivo no meu dia-a-dia, estar de bem com a vida, respeitar meus pais, respeitar
também aos mais velhos, saber perdoar as pessoas que lhe fez alguma coisa de mau. Quando você
estiver triste reze por Deus que ele é o caminho da verdade. Essa é minha religião. Minha religião é
católica”. (PM. 12. M. 12). Este menino, de doze anos de idade, não menciona as igrejas quando
discorre sobre religo. Ao contrário, ele menciona Deus, atitudes que o fazem uma boa pessoa e o
180
seu pertencimento institucional. Parece que é assim que os catingueirenses tornam-se religiosos:
colocando Deus no lugar da igreja, acrescentando atitudes positivas em relação ao próximo e,
eventualmente, pertencendo a uma religião em particular.
Kessing (1982: 38) afirma a respeito dos Kwaio No child could escape constructing a
cognitive world in which the spirits were ever-present participants in social life, on whom life and
death, success and failure, depend”. Ela explica que não poderia ser diferente, dado que a criança
cresce vendo as pessoas sussurrando a um parente morto, vendo pessoas adoecerem em função de
doenças enviadas por ancestrais insatisfeitos e aprendendo a evitar os caminhos conhecidos como
habitados por “espíritos selvagens”. Em Catingueira, passa-se algo semelhante. Parece que as
crianças aprendem sobre religião no convívio cotidiano com as pessoas que lhes são mais próximas.
As crianças não o à igreja sozinhas: elas sempre estão acompanhadas da sua família ou dos
amigos e vizinhos. Ao mesmo tempo em que aprende como ser gente seja filho, irmão mais novo,
vizinho ou amigo −, a criança católica aprende que Nossa Senhora é a mãe de Jesus e que Deus é o
Nosso Pai. É importante destacar que ela aprende também como se relacionar com essas entidades
na prática. Isso não prescinde, mas ultrapassa, o aprendizado dos conceitos abstratos. Quero realçar
que este aprendizado enraiza-se na materialidade do mundo, como parece sugerir Tim Ingold (2000)
o que, por sua vez, parece ressaltar o papel fundamental da família no crescimento religioso das
crianças, uma vez que é no seio familiar que elas aprendem sobre o mundo e as relações sociais.
Astuti (in press 1) também tece considerações parecidas: as crianças Vezo aprendem sobre a
inflncia dos ancestrais no dia-a-dia nas mais variadas atividades, o-religiosas em si mesmas.
Em título de conclusão, sugiro que o processo que culmina com o pertencer a uma religião
em particular também pode ser pensado em paralelo ao desbastamento religioso necessário para se
tornar adulto. Os dados mostram como o conceito de religião vai sendo restrito aos elementos
genuinamente religiosos com o passar dos anos que, nos desenhos dos primeiros anos
pesquisados, uma variedade maior de elementos desenhados, não necessariamente religiosos.
Interessante notar que movimento parecido ocorre nos desenhos dos mal-assombros. Neste caso,
quando as crianças são pequenas, os desenhos mostram-se os mais variados possíveis e, com o
passar dos anos, vai ocorrendo uma restrição dos mesmos a um conjunto reduzido de possibilidade
de mal-assombros. Esse fato pode ser entendido em paralelo à sugestão de que crescer implica em
um processo de desbastamento religioso, ao contrário de um processo de aquisição, cada vez mais
volumosa, de informações sobre a religião o que levaria a uma vida religiosa mais intensa
169
.
169
Poderíamos pensar como hipótese que as crianças se relacionam desde cedo com as entidades religiosas, mas não
com a “religião”. Nesse sentido, os mal-assombros seriam parte do mundo da criança, assim como as entidades do
panteão religioso tradicional, como os anjos, os santos, Deus e Nossa Senhora. Para elas, tanto os mal-assombros como
as entidades têm a mesma existência e habitam o mesmo mundo. A literatura diz que as crianças relacionam Papai Noel
e Deus, anjos e personagens de contos de fadas (CLARK 1995; ELKIND 1978; SCHEIDE 1987). Como deixa claro
181
Contrariamente, estamos aqui apostando na direção oposta. A vida religiosa seria, nestes termos,
mais intensa durante os anos da infância. Como foi afirmado no capítulo anterior, as crianças
manifestam desejo de freqüentar as igrejas que seus pais não freqüentam. Esse desejo é, via de regra,
tolhido pelos seus pais como uma idéia absurda. Parece-me que a religiosidade, que antes estava
expandida a todas as igrejas, agora deve ser limitada a uma igreja em particular, à qual a criança vai
pertencer e freqüentar com exclusividade, até chegarem a exclamações do tipo das citadas acima:
“não desistirei nunca”, “lá ficarei até a morte”. Mas, ao contrário, parece que as crianças menores
saíram mais á la Riobaldo "Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião.
Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... uma só para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo
cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele,
de Cardéque." (ROSA 1986: 08/9).
Paralelamente, o processo analisado de se tornar um catingueirense pode culminar nas
afirmações de religiosidade que não implicam em uma filiação religiosa exclusiva. O exemplo mais
claro talvez seja o da menina que afirmou que não tinha religião, mas que sua religião era servir a
Deus. Isso parece confirmar uma das hiteses que estamos perseguindo durante esta tese. Para o
adulto, ser religioso, em muitos casos, ultrapassa as práticas e as crenças de um pertencimento
religioso institucional. Os ensinamentos e a moral cristãos, enfatizando as entidades religiosas e o
amor ao próximo, parecem, em grande medida, definir as principais preocupações de uma pessoa de
bom caráter − em outras palavras, uma pessoa religiosa, ou um catingueirense. Isso sem mencionar o
medo dos mal-assombros entendidos como as almas dos mortos enviadas por Deus ou pelo Diabo
−, que me parece igualmente significativo entre os espíritas, protestantes e católicos. Talvez, essa
constatação, que, em certo sentido, resume uma das hiteses centrais da tese, de que o cristianismo
é mais abrangente que as diferenças religiosas específicas de cada credo, pode ser entendido como
contraditório ao que foi apresentado anteriormente no Capítulo Quatro. Expliquei que, para os
adultos, as diferentes igrejas divergem quanto às abordagens do sagrado e, por isso, o se freqüenta
qualquer igreja mas, sim, “a minha igreja”. O que ressalto aqui é que o cristianismo ultrapassa as
diferenças religiosas de cada credo, mesmo no caso em que as pessoas definem os seus
pertencimentos religiosos de maneira exclusiva. Ou seja, mesmo os crentes pedem a bênção, e
mesmo eles têm medo dos mal-assombros. Ciente da dificuldade de lidar simultaneamente com o
que há de comum e de específico nas religiões, lanço a questão para futuros debates.
Nancy, de cinco anos de idade, segundo Elkind (1978:35): A prayer is about God, rabbits, dogs, and fairies and deer,
and Santa Clauss and turkeys and pheasants, and Jesus and Mary and the Mary´s little baby”. Ou Scheide (1987:131),
citado em Clark (1995:54)One father told of the son asking him if he was really Santa Clauss. The father had admitted
that he was, after which the boy thought for a while, and then asked if his father was also the Tooth Fairy. Again the
father admitted that he was. The son then asked if the father was also Easter Bunny, and when the father said yes, the
son asked “are you God too?. Seria esta relação com as entidades místicas e religiosas num nível pessoal e concreto o
que torna possíveis, em certo sentido, as experiências religiosas intensas na infância?
182
Antes de terminar, gostaria de recuperar as características da religiosidade infantil e adulta,
citadas na introdução deste capítulo, para pensá-las em paralelo entre si. Parece que, em certo
sentido, a religiosidade infantil pode ser distinta da adulta em basicamente quatro pontos principais,
expostos acima: 1) religião é entendida enquanto uma prática que prescinde de entendimentos
simbólicos. 2) O fato de que a religiosidade não está localizada apenas em um ponto distinto, que,
como conseqüência, 3) leva à expansão de possibilidades de agenciamentos, e o que afirma a sua
possível intensidade. E, finalmente, 4) a religiosidade infantil é vivida, em grande medida, de
maneira relacional. Essas características, ditas como referentes às crianças, levam-nos a refletir em
que medida elas também não se aplicam para os adultos como já mencionei nas conclusões do
capítulo precedente. Podemos afirmar que, para os adultos, a coletividade, entendida ora como a
família − principalmente para os católicos −, ora como a comunidade dos irmãos” − principalmente
para os protestantes −, é importantíssima na definição da religiosidade de cada pessoa; embora, para
os adultos, pareça haver uma ênfase na divindade, nas entidades religiosas e na comunidade de
irmãos ou próximo. De outro lado, é possível afirmar, igualmente, que, em muitos momentos, a
distinção entre sagrado e profano também o se coloca para os adultos. Podemos citar, como
exemplo, o fato de que, para grande parte dos católicos, a chamada “parte profana” da festa de São
Sebastião é essencial para seu sucesso. Para os protestantes, igualmente, todos os agenciamentos que
a festa do padroeiro propicia devem ser evitados, uma vez que ela é comemorada em honra de um
santo. Assim, até o sorvete que é vendido na praça é considerado parte da festa religiosa (PIRES,
2003). No entanto, é preciso mencionar dois poréns. O primeiro deles é que as crianças, protestantes
ou não, têm dificuldade em evitar as barracas de brincadeiras e jogos de azar, assim como os
sorvetes e os quitutes vendidos na praça, embora sob a vigilância e os protestos dos seus pais. O
segundo porém é que, para os católicos mais conservadores, as barracas, as daas e as alianças
políticas que podem acontecer durante a ocasião deveriam ser banidas da festa, porque corrompem o
seu aspecto “religioso” mais genuíno. Mais uma vez, como vimos no capítulo precedente, estamos
colocados frente a uma antinomia que, para Otavio Velho (em preparação), parece constitutiva
mesma da religião, sendo tarefa do pesquisador encontrar meios de transmitir esta realidade
(VELHO em preparação).
Para terminar, talvez fosse útil pensar aqui também a idéia do “jamais fomos adultos”. Em
contraste com os fundamentalismos religiosos, a experiência infantil da brincadeira, na medida em
que se apóia em antinomias e em relações duplo-vinculantes (BATESON 2000 [1972], VELHO em
preparação), pode ser o que, no final das contas, fica como religião para os adultos. Gostaria de
deixar claro que não estamos falando da religião da moralidade em que fazer o bem parece ser o
aspecto distintivo e mais importante da prática religiosa mas, sim, da experiência da igreja como
ecclesia, no sentido em que enfatiza a comunidade dos fiéis e as experiências com as entidades
183
religiosas e a divindade. A moralidade existe enquanto mediada pela presença de Deus. É justamente
porque Ele existe que nem tudo é permitido, para parodiar Dostoievski nos Irmãos Karamazov. A
literatura está repleta de exemplos que mostram como as festas aos santos católicos comportam
elementos da brincadeira, que conjugam, entre outros paradoxos, o profano e o sagrado (FREYRE
1933, SANCHIS 1983, PEREZ 1994, 1996, 2002, PIRES 2000, 2003, MARTIN 2001). E, por fim,
lembramos que a divindade no cristianismo é tida como antinômica e paradoxal por natureza,
caracterizada pela idéia de que Deus é, ao mesmo tempo, filho e pai, humano e divino sem
mencionar o Espírito Santo. O dogma trinitário onde Deus é um e trino ao mesmo tempo, crucifica
a razão (EVDOKIMOV 1959: 181). E, enfim, a verdade é sempre antinômica (EVDOKIMOV 1959:
182).” (VELHO em preparação op.cit.).
184
6. Apêndice
Gráfico 2
Soma dos elementos religiosos
-
20
40
60
80
100
120
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
idade
mero de desenhos
Gráfico 6
Deus X Santo (a)
0%
20%
40%
60%
80%
100%
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
idade
Deus Santo (a)
Gráfico 7
Deus
0%
20%
40%
60%
80%
100%
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
idade
Gráfico 8
Gente + igreja
0%
20%
40%
60%
80%
100%
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
idade
Gráfico 5
Soma das Igrejas
0%
20%
40%
60%
80%
100%
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
Idade
185
CONCLUSÕES
"Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando
cheguei a ser homem, desisti das cousas próprias de menino”. 1 Coríntios 13, 11.
Nesta tese, procurei entender o que as crianças de Catingueira, semi-árido da Parba,
pensam sobre a religião e sobre os mal-assombros, e como esses dois temas se relacionam. Comecei
a tese com um pequeno prefácio, onde discorro, de maneira pessoal, sobre as minhas próprias
experiências e iias religiosas quando menina. Na Introdução, apresentei o tema de pesquisa,
levantei algumas hipóteses e trabalhei com a literatura especializada. No Capítulo Um, discorri
sobre os métodos e técnicas de pesquisa utilizados, dando destaque para as redações, para os
desenhos e para a observação participante, na medida em que estes foram os todos mais
frutíferos para se trabalhar o tema. No Capítulo Dois, procurei expor, de maneira etnográfica, como
é a vida em Catingueira, dando um certo destaque para o que diz respeito ás relações familiares. No
Capítulo Três, foi trabalhada a questão dos mal-assombros, entendidos pelos adultos como
entidades religiosas e pelas crianças, como tudo aquilo que provoca medo. No Capítulo Quatro,
concentrei-me na religião, tentando entender como as crianças a conceitualizam e a experienciam.
No Capítulo Cinco, relacionei a religião e os mal-assombros os dois grandes temas de pesquisa
com as crianças durante o meu trabalho de campo para entender como uma criança se torna um
catingueirense. Nesta conclusão, espero retomar algumas das discussões mais relevantes da tese.
Gostaria de esclarecer um ponto que talvez tenha ficado obscuro para o leitor, qual seja, em
que medida as crianças vivem a religião de maneira externa e impessoal. Foi dito que a igreja,
entendida como templo, resume a religião para as crianças pequenas. Com isso, não estou sugerindo
que as crianças pequenas o tenham experiências religiosas ou que vivam alheias a qualquer forma
de religiosidade. Pelo contrário, a aposta aqui é a inversa, que, pela minha própria experiência
infantil, eu não poderia negar um encontro intenso com o que é chamado de forças religiosas (se
possível, refira-se ao Prefácio). A sugestão aqui é trabalhar em direção radicalmente oposta às
teorias que imaginam a criança como um ser incompleto em relação ao adulto. Poderíamos apostar
na tendência oposta não para afirmá-la, como costumam fazer os adultos, mas para realmente
brincar com ela, testar seu valor, puxar seus limites até pouco antes da corda se arrebentar, como
fazem as crianças nas suas brincadeiras (ou com os pressupostos adultos). As crianças seriam
pensadas, nesta brincadeira, como criaturas religiosas, e o crescer, como um processo de
desbastamento religioso. Crescer implicaria, ao contrário do que se poderia imaginar, em um
processo de desbastamento e não em um processo de acumulação de camadas cada vez mais
densas de relação com o religioso. À medida que crescemos, seríamos desbastados da nossa
186
religiosidade. Essa idéia, curiosamente, vai ao encontro do cristianismo e da opção preferencial de
Jesus pelas crianças, na medida em que elas têm acesso privilegiado ao céu: Deixai vir a mim os
pequenos e não os impeçais, porque o Reino de Deus é daqueles que se lhes assemelham” (Marcos
10, 14). Como essa sugestão pode ser observada? R. 13. M (o maior sonho) escreveu: O meu
maior sonho é que a terra se torne um lindo jardim do Éden, isso Deus já prometeu”. Observei que,
muito constantemente, nos mais variados temas de desenho, as crianças escreveram frases
religiosas, versículos da Bíblia ou apenas palavras religiosas, como os exemplos Deus” (R. 12. F -
Eu), “Jesus” (R. 12. F - Alguém que já morreu), Jesus é nossa luz” (T. 9. F.- Eu), Deus é amor,
Deus ama todos nós(S. 12. F Alguém que morreu), Cristo ama todos(L. 12. F - A coisa
mais feliz) e “Luana Chimba Cristo
170
(L. 12. F - A coisa mais feliz), só para citar alguns
exemplos. Muitas crianças têm como pior momento da vida se encontrar com o o (J. 11. F, M.
11. F, C. 7. F) ou ir para o inferno (M. 11. F). Curiosamente, foi quando pedi para desenhar
elementos o explicitamente religiosas que as crianças se mostraram mais “religiosas” ao passo
que, quando pedi para desenhar a minha religião”, as crianças mostraram uma religiosidade
externa e impessoal, caracterizada, sobretudo, pela igreja, como foi exposto principalmente no
Capítulo Cinco. Quando desenharam a pior coisa do mundo, algumas crianças desenharam o Cão
(L.12. F,. S.12. F), enquanto que a melhor coisa do mundo para essas mesmas duas meninas é Deus.
Da mesma forma, quando perguntei qual era a coisa mais importante da vida, duas crianças
responderam que era a mãe (R. 12. F, S. 12. F), e o mesmo número respondeu que era Jesus (C. 7.
F, L. 12. F). Tudo se passa como S. 12. F escreveu: [a coisa mais feliz do mundo é o] nosso Deus,
ele é a nossa felicidade, sem ele o que seria de nós?”. Além disso, na técnica de pesquisa das cartas
elaboradas pelas crianças, na sua maioria, Jesus foi escolhido como destinatário, como vimos no
Capítulo Dois. Aliás, das quinze cartas elaboradas, nove delas eram endereçadas às entidades do
mundo espiritual. As cartas foram endereçadas a Jesus (seis), pesquisadora (três), membros da
família (dois), Papai Noel (um), Papai do céu (um), Deus (um), anjinho (um). Estas crianças
sonham com o jardim do Éden, decoram seus desenhos com o nome de Deus
171
e escrevem cartas
para Jesus!
Por fim, parece-me necessário afirmar que, se a criança pequena não enfatizou suas
experiências religiosas nos desenhos sobre a religião, não foi porque ela as desconhecesse, mas,
sim, porque o meu pedido de desenho o pôde alcançar o seu objetivo completamente, em virtude
de uma inadequação da pergunta da pesquisadora à realidade religiosa das crianças como
anunciado na Introdução e retomado amplamente no Capítulo Cinco. Ao contrário, vimos que, nos
170
Luana é o nome de uma das irmãs desta criança, enquanto Chimba é o apelido de um dos seus irmãos.
171
Para um exemplo de desenho em que o nome de Deus figura em destaque, vide no CD anexo, na pasta Desenhos de
Tema Variados: desenho 12 S. 12. F (Livre). Vide também na pasta de Desenhos do Mal-assombro o desenho 26 O mal-
assombro MD. 11. F. 13.
187
desenhos onde a religião não era enfatizada, as crianças mostraram-se mais religiosas, inclusive as
pequeninas. Isso mostra, de um lado, que a religião nos primeiros anos de vida não é definida como
separada da vida cotidiana. De outro lado, isso parece confirmar a tese de que as crianças têm
experiências e pensamentos religiosos desde pequenas e, talvez, mais intensos que os próprios
adultos ou crianças maiores.
Robinson (1977) também afirma que as crianças têm experiências religiosas intensas, o que
ele chama de “visão original”. Como tais experiências ocorrem pela primeira vez na infância, elas
tendem a ser para sempre lembradas como algo importante em todo o curso da vida. O grupo de
pesquisa de Robinson (1977) convidou “todos aqueles que ‘sentiram que as suas vidas foram
afetadas de algum modo por algum poder acima deles mesmos’ ”(: 11) a escrever sobre esta
experiência. Sem mencionarem infância, eles constataram que 15% dos que responderam ao pedido
descreveram as experiências infantis o que, para o autor, é uma evidência de uma possibilidade de
religiosidade intensa na infância. Algumas considerações fazem-se necessárias. O autor trabalhou
com relatos sobre a infância e não com as crianças propriamente ditas: isso porque, de acordo com
ele, segundo os relatos recolhidos, os adultos afirmaram que, quando crianças, eles não tinham a
exata dimensão das conseqüências daquela experiência, e que alcaaram-na quando se tornaram
adultos. Como discuti na Introdução, se a experiência infantilpode ser entendida quando se torna
adulto, parece-me errôneo chamá-la de experiência infantil. Quando o sujeito cresce, devido às
outras experiências acumuladas, ele é capaz de compreender um fato do passado com outros olhos e
reavaliar as experiências que tenha tido na infância; porém, de uma perspectiva agora adulta, e não
infantil. Acredito que, as crianças, ao contrário, são plenamente capazes de viver e conversar sobre
experiências religiosas e acredito, em contrapartida, que, quando adultos, as experiências infantis
adquirem outra dimensão. Assim dito, parece-me que a pesquisa de Robinson (1977) não pode ser
entendida como um estudo da religiosidade infantil, senão como um estudo da memória das
experiências religiosas infantis. Como afirma Mary Catherine Bateson (1994) a respeito do livro no
qual ela descreve a sua infância: This book cannot be the child’s interpretation, for that child is
now an adult, and I write about that period is a reconstruction” (31)
172
.
172
Por sua vez, Hardy (1965, 1966, 1979) e Hay and Nye (1996, 2006) também afirmam, mas por caminhos bastante
diferentes, que a infância é um período de intensa experncia religiosa. Hay & Nye (1996, 2006), preocupados em
estudar a educação espiritual, afirmam que as crianças têm experiências religiosas mais intensas que os adultos porque
naturalmente os seres humanos são equipados com uma consciência religiosa que vai sendo esquecida com o passar dos
anos. Os autores afirmam sua filiação a Alister Hardy (1965, 1966, 1979), zoologista darwinista da Universidade de
Oxford que trabalhou com a […] hypothesis that what he called ‘religious experience’ has evolved through the
process of natural selection because it has survival value to the individual(HAY & NYE 2006: 22). E arrematam
dizendo que Spirituality is characterized here as a natural form of human awareness (HAY & NYE 1996: 6).
Espiritualidade, em seus termos, é algo mais abrangente que a religiosidade, e é encontrada em ambientes seculares,
justamente porque é dada naturalmente. Eles ainda afirmam que We will thus be able to move beyond an
understanding of children´s spirituality based on ‘knowledge’ towards a more general psychological domain of
188
Margaret Mead (1932) pesquisa como a crença nos fantasmas é ensinada às crianças Manu,
que naturalmente operam em um mundo no qual estes seres estão ausentes. Para os adultos, ao
contrário, os fantasmas são parte do mundo habitado. Essa distingue radicalmente da abordagem de
Hay & Nye, quando afirmam que By locating spirituality in the human organism it places a focus
on childhood and on spirituality as intrinsic rather than taught (1996: 13). Por sua vez, a
abordagem de Rita Astuti (in press 1) distingue-se da de Mead (1932) na medida em que não se
interessa em entender como as crianças “aprendem” sobre os ancestrais e sobre a morte mas, sim,
como elas se tornam conscientes das regras do mundo adulto através do aprendizado da biologia e
dos fatos da natureza. Em outras palavras, para Astuti (in press 1), as crianças aprendem sobre a
inflncia dos ancestrais quando aprendem que a morte biológica fim ao corpo, à mente e ao
espírito. A ambigüidade se resolve, segundo a autora, quando nos damos conta de que, para os Vezo
de Madagascar, a influência dos espíritos dos mortos não é aceita enquanto regra abstrata, mas
apenas quando é pontualmente referida.
O objetivo desta tese não é buscar as origens da religião ou da experiência religiosa. Ao
contrário, foco a análise nas relações entre as pessoas que permitem as experiências religiosas terem
lugar. Como já afirmei, as crianças aprendem sobre a religião na teia de relações em que estão
inseridas. Elas não aprendem no sentido mais comum do termo, conforme os antropólogos estão
acostumados a lidar (ASTUTI, in press 1). Ou seja, as crianças não apenas aprendem sobre religião
indo à igreja, escutando o padre ou lendo a Bíblia. As crianças aprendem a ser religiosas e a temer
os mal-assombros como enviados do Demônio à medida que aprendem como se comportar como
um verdadeiro “rapazinho” ou “mocinha”. Em outras palavras, quando aprende a ser filha, irmã,
neta, amiga, vizinha é que a criança também aprende sobre a religião e os mal-assombros. O que
acontece é que, em se tornando adulto, os dados da comunidade vão sendo entendidos, questionados
e, por fim, assimilados. Religião em Catingueira é um dado: todos têm, todos praticam, mesmo que
seja nas pequenas atividades no cotidiano como o pedir a bênção. Seria por demais estranho um
catingueirense que se dissesse ateu. Crescer em Catingueira implica em tornar-se religioso. Parece
verdadeiro afirmar que, para os adultos daquela localidade, a confiança em Deus, Jesus, Maria e os
Santos, e a moralidade que sugere a necessidade de ajudar os irmãos, superam o comparecimento à
igreja enquanto aspectos constitutivos da religiosidade. Em Catingueira, a religo está colocada
também nos mais simples e cotidianos lugares da vida social e, ao mesmo tempo, mais penetrantes,
como na bênção cotidiana, no atendimento à missa no fim de semana, na oração antes de dormir e,
finalmente, na crença dos mal-assombros.
spirituality as a basic form of knowing, available to us all as part of our biological inheritance”. (HAY & NYE 1996:
10).
189
Para melhor pensar os mal-assombros, uma citão de Maurice Bloch (1971) é interessante:
The logical link that life necessarily implies death and death implies life is one which many
cultures choose to exploit” (BLOCH 1971: 221). Em Catingueira, a morte implica em nascimento
para uma nova forma de vida, restrita à alma, que o necessita de um corpo material.
Diferentemente dos dados apresentados por Bloch (1971), em relação a Medina/ Madagascar nos
quais os mortos o assimilados a grupos de ancestrais e perdem seu cater individualizado , em
Catingueira, parece se passar o contrário. É justamente a individualidade da alma que a caracteriza e
define a sua atuação no mundo dos vivos. O interessante é que a sua individualidade é dada em
relação ao seu pertencimento ou o por uma família. Não estamos falando dos “mortos como um
todo” (e da sua inflncia na produção de boa sorte e fertilidade entre os vivos), como parece ser o
acento em Medina, mas de cada morto em particular, e de como esta individualidade vai determinar o
seu comportamento em relação aos vivos e vice-versa. Em Catingueira, as pessoas se interessam em
estabelecer contato com as almas da própria família o com as almas do purgatório ou do inferno.
Estas o temidas, e delas procura-se afastar. Ao contrário, as almas dos ancestrais estão sempre
sendo contempladas nas orações, são lembradas quando se visita seus túmulos, podem ser vistas e
podem aparecer em sonhos. Luiz Fernando Dias Duarte (2006) discorre sobre o caráter religioso que
a instituição familiar adquiriu na contemporaneidade, cujas características são a sacralidade das
representações sobre o sangue herdado, dos ideais de liberdade e de autonomia. Nesta tese, fazendo
caminho inverso, mostrei como a família institui e intermedia a relação do indivíduo com a religião.
Isso é confirmado quando, dentre outras coisas, afirmei que os próprios mal-assombros são parte da
família e, em adão, que a alma de um familiar é menos amedrontadora que as outras almas. Da
mesma forma, quando discuti que a experiência de ver um mal-assombro é confirmada pelos
parentes, ou quando foi dito que se aprende sobre os mal-assombros em família.
Gostaria, também, de lembrar que, nesta tese, as crianças não constituem o objeto último. As
crianças são incluídas na pesquisa da mesma forma que os adultos e os idosos. Mas para ser capaz
de entender o ponto de vista das crianças é que desenvolvi certas técnicas de pesquisa, as quais
acredito que sejam mais interessantes e apelativas para as próprias crianças como os desenhos.
Como as crianças interpretam o mundo é algo levado a sério, na medida em que ilumina aspectos do
real que possam estar velados aos adultos. A interpretação que as crianças têm do mundo é
conhecimento do mundo, assim como a interpretação dos adultos. Mas, na medida em que partem
de pontos de vistas diferentes, podem revelar distintos aspectos do real e servir para uma abordagem
mais abrangente da vida social. Assim, gostaria de enfatizar, mais uma vez, a necessidade de
pesquisar as crianças sempre em relação aos adultos e vice-versa. Pesquisar as crianças em si
mesmas pode representar um perigo para a análise antropológica, na medida em que não leva em
consideração a configuração do mundo social, no qual crianças, adultos e idosos convivem.
190
É necessário, também, dizer que esta tese foi constituída a partir de uma série de técnicas de
pesquisa. As sugestões apresentadas foram construídas através da análise de materiais coletados
entre eles, os desenhos e redações. Essas técnicas de pesquisa permitiram uma série de constatações
e abriram vários caminhos de análise. Pelo seu volume avantajado, os dados coletados podem ainda
render continuidades desta pesquisa, explorando aspectos aqui somente mencionados, como a
política. Quiçá os dados apresentados e as técnicas experimentadas também podem ser aproveitados
por outros pesquisadores interessados no tema da infância, criança ou religião. Evidentemente, o
material coletado também possui limitações como a já mencionada dificuldade de lidar
metodologicamente com as experiências religiosas infantis, principalmente nos desenhos sobre “a
minha religião”.
Foi sugerido, nesta tese, que o cristianismo é mais abrangente que as distinções entre as
religiões presentes na cidade: o espiritismo kardecista, três diferentes ramos do protestantismo
evangélico e o catolicismo. Isso de ser demonstrado em trabalhos anteriores (PIRES 2000, 2003,
2004a, 2005a), através do santo padroeiro, São Sebastião, e da festa a ele celebrada. Neste trabalho,
concentramo-nos no pedido de bênção atitude que parece ser largamente praticada e que
independe das filiações religiosas institucionais. Mas falamos, principalmente, do medo de mal-
assombro, que se aplica, de um lado, tanto para as crianças como para os adultos e, de outro lado,
para os calicos, crentes e espíritas. Nestes três exemplos, a festa do padroeiro, o pedir a bênção e o
medo de mal-assombro, as diferenças entre os protestantes, calicos e espíritas parecem
subsumidas em função de uma realidade que as ultrapassa. No entanto, isso não significa que os
mal-assombros, o pedido de bênção e a festa do padroeiro sejam interpretados e experimentados da
mesma maneira pelos praticantes de cada um dos três ramos do cristianismo presentes mas
implica sim, na sua relevância, mesmo que diferenciada, para compreender todas essas religiões.
É chegada a hora de colocar um ponto final neste trabalho. Gostaria de retomar a idéia de
que ‘jamais fomos adultos’ para discutir os pontos de inter-relação entre os adultos e as crianças.
Foi discutido que, segundo Latour (1994 [1991]), a modernidade nunca teria de fato ocorrido, a o
ser na cabeça dos que se consideram modernos. Para tentar priorizar um mundo contínuo (INGOLD
2000), ao invés de reafirmar um grande divisor (GOLDMAN & LIMA 1999), adulto e criança,
tentamos incluir a hipótese de que a idade adulta, a não ser para aqueles que vivem a religião de
maneira fundamentalista, nunca chegaria completamente. O que ficaria para os adultos, de modo
geral, como religião, tida como mais intensa nos anos infantis é, justamente, o seu aspecto
antinômico que a aproxima da brincadeira. A experiência íntima do devoto em relação ao santo de
sua devoção e à promessa ou às festas de padroeiro altamente participativas são alguns exemplos
que apóiam o caráter “brincalhão” e antinômico da religiosidade. Nesse sentido, os adultos jamais
teriam sido adultos, ou melhor, jamais teriam deixado de ser crianças. O que estamos sugerindo é,
191
em outras palavras, que os adultos jamais teriam separado religião da igreja, profano do sagrado,
prática e símbolo.
Os encantados, trabalhados no Capítulo Três, são muito interessantes para discutir esse
propósito, na medida em que podem ser vistos pelos adultos e pelas crianças. Nesse sentido, os
encantados problematizam a distinção entre criança e adulto e também a restrição dos mal-
assombros às almas dos mortos na idade adulta. A Maria Fulozinha é temida pelas crianças e
recebe fumo dos caçadores adultos quando sobem a Serra da Catingueira. Da mesma maneira, o
pedido de bênção e a festa do padroeiro não podem ser entendidos quando remetemos aos termos
adulto” e “criança”, como se, em si mesmos, constituíssem realidades distintas. Ambos participam
da festa e, da mesma forma, as crianças e os adultos recebem e podem conceder a bênção. Uma
criança pode dar a bênção, por exemplo, ao seu “afilhado de fogueira
173
ou ao (á) seu (sua) irmão
(ã) mais novo. Além disso, os três elementos citados, encantados, pedido de bênção e festa do
padroeiro, desestabilizam a distinção profano e sagrado
174
. Nenhum deles pode ser entendido, de
uma perspectiva que leve em conta a cosmologia nativa, se continuarmos a lidar com a
diferenciação dos dois termos. A Rasga-mortalha, ave traiçoeira, habita os sinos da igreja e prevê a
morte. Além disso, a festa do padroeiro não se realizaria sem a “parte profana”, que é organizada
pela própria paróquia de Catingueira e consta nos cartazes de cores vivas que anunciam as
celebrações ao santo. A bênção, por sua vez, é pedida constantemente, sem a necessidade de uma
postura reverencial. Talvez fosse mais útil, depois de percorrer as diferenças, pensar em
aproximações contingentes (VELHO 1997) de um mundo contínuo (INGOLD 2000), e em
diferenças sutis, mais do que de grandes oposições (VELHO 2005), tanto no caso das falsas
distinções (adulto x criança, profano x sagrado) quanto no caso do cristianismo como mais
abrangente que as denominações religiões específicas.
173
Na noite de São João é que os “afilhados de fogueira” são consagrados. Na festa a este santo, acendem-se fogueiras
nas frentes das casas. O laço entre padrinho ou madrinha e afilhado (a) se constitui quando ambos pulam a fogueira
juntos. A consagração a São João é bastante comum na localidade, e crianças pequenas de, por exemplo, sete anos de
idade, podem tornar-se padrinhos e madrinhas.
174
Eloísa Martin afirma: “As práticas realizadas pelos nativos, no entanto, se bem não negam a especificidade
diferencial do“sagrado” (mesmo quando não o denominem necessariamente desse modo), mostram-nos que aquilo que
os autores precedentes diferenciam, separam e classificam como “sagrado” e “profano” coexiste e combina-se de
modos bem mais flexíveis do que aqueles que eles próprios identificam: torna-se necessário, então, uma abordagem
que não substitua um dualismo por outro (VELHO 1997) e que, como coloca Velho (2005), consiga apreender dita
especificidade diferencial, não como descontinuidade, ruptura ou oposição, mas nas pequenas diferenças de um mundo
contínuo. “Sagrado” ao ser utilizado como adjetivo, não designa uma instituição, uma esfera ou um sistema de
símbolos, mas heterogeneidades reconhecíveis em um processo social contínuo em um mundo significativo, e por isso,
não “extraordinário” nem radicalmente outro. Processo que se ativa em momentos diferenciais e específicos e/ou em
espaços determinados e que, longe de existir de forma abstrata ou com um conteúdo universal, é reconhecido e atuado
pelos nativos em diferentes situações: nas descontinuidades geográficas, nas marcas diferenciais do calendário, nas
interações cotidianas, em gestos ordinários e em performances rituais” (MARTIN 2006: 5).
192
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ANEXOS
Anexo 1
ÍNDICE DE REFERÊNCIAS DE MAL-ASSOMBROS (em ordem alfabética)
CABEÇA: Há uma cabeça apontada como a causa de vários acidentes na BR 361, que liga Patos a
Piancó, nas proximidades de Catingueira. O mal-assombro Cabeça teve sua origem quando um
caminhoneiro sofreu um acidente fatal e, com a violência da batida, teve sua cabeça decepada.
Conta-se que a cabeça “voou” para um lado e o corpo do caminhoneiro “voou” para o outro. Desde
então, segundo populares, uma série de acidentes envolvendo timas fatais tem sido registrado
neste local. Alguns sobreviventes desses acidentes afirmam ter visto uma cabeça no meio da estrada
o que teria causado o acidente. Duas senhoras, mães de família, costumavam fazer uma
caminhada matinal por essa estrada, como descrevi na Introdução. No período do trabalho de
campo, juntei-me a elas na esperaa de ter acesso ao mundo adulto feminino e comparar as suas
idéias com as de suas filhas e filhos. Assim, por volta das quatro horas e trinta minutos da manhã,
elas batiam na minha porta e saíamos a caminhar a passo lento, apreciando o sol que nascia. Dois
acidentes envolvendo timas fatais foram registrados nessa estrada no período do trabalho de
campo. Certa manhã, tomamos o caminho dos sítios. Perguntei a razão da mudança do trajeto e elas
afirmaram que tinham mudado a direção porque estavam com medo de passar pela referida estrada
(“Pista”). Mesmo estando em oração, o Maligno poderia armar-nos uma prezepada”. Seria melhor
nos precavermos.
Capistrano (1938: 331-2) relata a estória da Cabeça errante que teria dado origem à lua,
segundo populações indígenas no Acre. Um homem cortou sua própria cabeça, que foi encontrada
por um grupo de homens que colocaram-na em um saco. No entanto, a cabeça, insistentemente,
pulava para fora do saco e continuava o caminho ao lado deles. Os homens fizeram de tudo para ela
parar de segui-los. Em vão. Quando chegaram à vila, fecharam todas as portas e janelas das casas,
assustados. A Cabeça errante pensou, então, no que poderia se transformar, e resolveu transforma-
se na lua, já que não queria ser útil a nenhum daqueles homens. Pediu ao menos que os homens lhe
fornecessem dois carretéis de linha, e a São Pedro pediu que atirasse uma varinha para ir enrolando
a linha até alcançar o céu. Assim, ela cumpriu sua palavra de o ser útil a ninguém; afinal, a lua só
ilumina quando está cheia e é preciso andar à noite, ou seja, esporadicamente. Outra versão é
contada por Frabenius (1936: 244-247), segundo o conto no qual um louva-deus transforma-se em
antílope morto. Algumas crianças decepam a cabeça de um louva-deus e, assombradas, fogem em
desespero ao ouvir a cabeça falar e mover-se. O pseudo-antílope recome-se e desaparece.
225
CARNEIRO DE OURO: Em Catingueira, alguns animais são considerados encantados. Entre eles,
estão a Gia Encantada do Olho D’água e o Carneiro de Ouro. O Carneiro de Ouro, assim como a
Gia Encantada, trará riqueza a quem o vir. E, como a Maria Fulozinha, ele também mora na Serra.
Alguns dizem que ele mora na Furna (que se localiza na Serra), mas que pode ser visto em todo o
alto da Serra. Ele é de ouro maciço. A Furna habita o imaginário da Catingueira. De tão profunda e
perigosa, ninguém jamais conseguiu atingir o seu fim; os que tentaram, diz-se que ou desistiram, ou
nunca mais voltaram. Para entrar na Furna, o sujeito deve estar sem pecado, e levar consigo uma
vela benta, que será a única fonte de luz capaz de iluminar a escuridão da mesma. Lanternas, por
mais que já tenham sido experimentadas, nunca resistem e se queimam inexplicavelmente. O sujeito
que quiser atingir o fundo da Furna, lugar onde o aguardará uma série de surpresas inclusive,
possivelmente, o Carneiro de Ouro −, deve usar uma corda de grande extensão a fim de não se
perder no interior da caverna. Um grupo de amigos deve ficar na parte exterior segurando a corda, a
fim de puxá-la, em caso de necessidade. Além disso, na Furna habitam imensas quantidades de
morcegos e outras criaturas que se valem da escuridão, como os mal-assombros, cobras e onças
sem falar que, à medida que o sujeito vai adentrando, a Furna vai se tornando cada vez mais
estreita, chegando ao ponto de o sujeito ter que se locomover arrastando-se.
Segundo Cascudo (1984: 199), o Carneiro de ouro é uma versão do Carneiro encantado. A
lenda do Carneiro encantado acontecera em Passagem de Santo Antônio, na divisa do Piacom o
Maranhão, às margens no rio Parnaíba. Um monge missionário que voltava com um saco de
esmolas para o convento foi assassinado. Os ladrões assassinos, arrependidos do sacrilégio, trataram
de enterrar ali mesmo o monge junto a todo o dinheiro roubado. Neste local do enterro, é visto um
grande carneiro branco com uma estrela radiante na testa, sinal de que ali se encontra toda a
riqueza. Sá (1913) conta estória parecida, que se passa em Campo Maior, no Piauí, na Serra de São
Antônio, e que origem ao Carneiro de ouro. Um grande carneiro de ouro, todo vestido de luz e
com uma estrela na testa, tem-se apresentado a algumas pessoas, às vezes durante o dia, às vezes
durante a noite. Dizem que ele berra junto a uma enorme corrente de ferro, como que indicando que
naquele local existem grandes riquezas e grandes encantos. Mas, como uma pessoa, ou mesmo
duas ou três, não são capazes de carregar o achado precioso, quem o volta à vila e reúne todo o
povo para buscar o velocino. Chegando, porém, ao lugar, não encontram mais sequer sinal da
corrente ou do carneiro. Dantas (s/d: 97-100) conta que, em Serra Talhada, Pernambuco, na Vila
Bela, existe um gruta em cuja entrada aparece um carneiro de ouro de brilho lusco-fusco. Dentro da
gruta, mora uma enorme e apavorante jiia que não deve ser morta por se tratar de uma linda
princesa encantada. Para entrar na gruta, é preciso ter cuidado com os morcegos e com a jibóia (em
hipótese alguma matá-la). Além disso, é imprescindível levar consigo sete velas bentas por Padre
226
cero. Essa versão é citada também por Melo (1930). Vê-se semelhanças entre essas versões com
aquela encontrada em Catingueira. Vide no CD Desenhos Temas Variados: desenho 5 G. 11. M O
carneiro de ouro.
GIA ENCANTADA DO OLHO D’ÁGUA: A Gia Encantada mora no Olho D’água, a fonte de
água potável que abastece a cidade (vide Capítulo Dois). Desde a canalização da água para as
residências, houve um decréscimo considevel do número de pessoas que bebem exclusivamente a
água do Olho D’água. Muitos preferem beber a água da torneira diretamente, tanto porque
consideram a água tratada e boa para a saúde, quanto pela praticidade. Buscar a água no Olho D’
água é, geralmente, tarefa feminina, feita com a ajuda de latas de tinta usadas transformadas em
latas d’água. O Olho D’água fica em área considerada afastada da cidade apesar de que, hoje em
dia, há casas construídas até bem perto do mesmo. Gia é o nome popular dado às rãs no nordeste. A
Gia Encantada não aparece facilmente. O felizardo que escutá-la cantando ficará rico e, como
conseqüência, terá muita alegria. Sua tarefa é nunca deixar faltar água no Olho D´água. Diz-se que
se uma pessoa, embriagada pela ambição, conseguir capturá-la, a mina de água secará para sempre.
Algumas pessoas comentam que o mal-feito já deve ter ocorrido, uma vez que o Olho D´água, hoje
em dia, produz apenas um filete d´água. Porém, as pessoas também justificam a escassez da água
em função da extração industrial de minerais na região.
MARIA FULOZINHA: é uma mulher (espírito, alma) com cabelos de arame e um chicote nas
os, que mora na Serra de Catingueira. É na Serra também onde os caçadores encontram o seu
sustento: preá, tatu, mo, dentre outros, são os animais mais encontrados. Acredita-se que, outrora,
a Serra estivesse repleta de onças e outros animais perigosos. Os caçadores utilizam-se de cachorros
treinados para ajudar nas caçadas. Durante estas, a Maria Fulozinha pode aparecer pedindo fumo.
Se o caçador negar-lhe o pedido, ela bate nos cachorros com seus cabelos de arame, podendo até
mesmo matá-los. A fim de evitar problemas, ao iniciar a caçada, os caçadores devem deixar o fumo
da Maria Fulozinha em cima de uma pedra. A Maria Fulozinha assemelha-se à Comadre
Fulozinha, uma cabocla encantada de grande cabeleira e olhos escuros que vive na zona da mata
pernambucana. A entidade serve-se de um chicote, tem os olhos pretos e é malvada e zombeteira.
Suas distrações são fazer trança na cauda dos cavalos e de gente, desorientar os caçadores com seus
assobios e, finalmente, surrar os cachorros que se encontram na mata. Ela gosta muito de fumo e
também de mel, e diz-se que protege a caça contra os caçadores. Além disso, ela tem o poder de se
transformar ora em mocinha, ora em animais, ora em um menino magro, e desaparecer sem deixar
rastro. Vide no CD Desenhos Temas Variados: desenho 11 - S. 12. F Maria Fulozinha.
227
MULHER DE BRANCO: A Mulher de Branco assusta as meninas no banheiro feminino das
escolas. Curiosamente, ela fazia suas aparições no colégio onde eu estudava em Minas Gerais, e
também foi vista nos colégios do Rio de Janeiro! Uma variação da mesma mulher é a Maria
Fumaça, que pode aparecer também no mesmo banheiro feminino quando as meninas apontam seus
pis no vaso sanitário. No momento em que puxam a descarga, dá-se a aparição mal-assombrada
(T. 9. F. Livre). Outra variação da Mulher de Branco dá-se nas estradas. A assombração pede
carona e tenta seduzir o motorista. Como ela é muito bonita e está sempre bem arrumada, poucos
homens resistem aos seus encantos. Ao fim, ela pede para o motorista parar no cemitério ou em
algum lugar onde tenha ocorrido algum acidente fatal, dizendo que ali é a sua casa.
PAPA-FIGO e HOMEM DO SACO: O Papa-Figo, segundo os Catingueirenses, é um homem
doente. Para o morrer, ele precisa se alimentar de fígados de crianças daí, o nome Figo. Ele
anda pelo mundo porque seria linchado se a sua identidade viesse a ser descoberta. É um homem
velho e maltrapilho, que aparece nas comunidades sozinho, não toma conhecimento de pessoa
alguma e permanece pouco tempo. Ele leva às costas um saco e, por isso, segundo Cascudo (1976
[1947]: 206-9), é confundido com o Homem do Saco. Este, em Catingueira, não é considerado
doente; apenas, mau. Ele também rapta as crianças e as deposita dentro do saco que leva às costas.
O que ele faz com as crianças pode variar desde comer, matar, abusar sexualmente, escravizar,
maltratar, criar como animal. Esses dois personagens também são encontrados em outras regiões,
mas com algumas variações. No Recife antigo, o Papa-Figo era um negro escravo que andava pelas
ruas da cidade aprisionando crianças em um saco que levava às costas para a degustação de seu
senhor, um ricaço que podia se alimentar de fígado de crianças (FREYRE 1933: 368). Porém, a
versão mais divulgada diz que o Papa-Figo era um homem que matava e retirava o fígado das
crianças para vender aos leprosos ricos, que o comprava na esperança da cura de seu mal. Cascudo (
(1976 [1947]: 206-9) explica a lenda do Papa-Figo no livro Geografia dos Mitos Brasileiros. Para
ele, o O Papa-Figo é o lobisomem da cidade.o muda a forma. É um negro velho, sujo, vestindo
farrapos, com um saco ou sem ele, ocupando-se em raptar crianças para comer-lhes o fígado ou
vendê-los aos leprosos ricos. É alto e magro. Noutras regiões, é muito pálido, esquálido, com
barba sempre por fazer. Sai à noite, às tardes, ao crepúsculo(1976: 206). Ele afirma, ainda, que
evidências hisricas que comprovam a existência de personagens semelhantes ao descritos
acima. A existência do fato não pode ser negada. Em abril de 1938 foram presos em Natal dois
negros que iam levando crianças. Eram pretos de meia idade, doentes, palúdicos, visivelmente
dementados. A polícia expulsou-os. Outros fatos se repetiram no Ceará e Pernambuco. No interior
dos Estados corre a mesma estória, irradiando pavores idênticos(1976: 206). Para Cascudo, a
associação da cura da lepra com o fígado, principalmente de criança, tem origem na tradição
228
galênica, da qual os curandeiros são adeptos. Essa tradição concebe ao gado predonio quase
absoluto no organismo porque este óro é o responsável pela formação e pela distribuição do
sangue por todo o corpo. Assim, ao fígado estaria reservada a regulação da saúde ou da
enfermidade, segundo os galenistas. Cascudo afirma que os pacientes de lepra constantemente
endereçam sua doença ao sangue, donde a associação do Papa-Figo aos leprosos. Além disso,
afirma ele, o banho de sangue humano e a degustação do gado o remédios tradicionais na
terapêutica contra a lepra.
RASGA-MORTALHA: A Rasga-Mortalha é uma espécie de coruja de nome Tyto Alba
conhecida ainda como Suindara ou Coruja de Igreja. É um pássaro negro com o ventre branco que
anuncia morte preeminente ou mau agouro, quando sobrevoa uma residência. Para confirmar sua
predição, ela aparece no velório daquele a quem predisse a morte, a fim de acompanhar o enterro.
Alguns dizem que ela mora na Serra da Catingueira; outros, que ela mora no alto da igreja, perto do
sino. É o seu piar agudo que a associa ao mau agouro. Além disso, o bater de suas asas lembra
perfeitamente o ruído de uma tesoura cortando pano ou o rasgar de uma mortalha lutuosa. Daí a
denominação popular “rasga mortalha”. Vide no CD Desenhos Temas Variados: desenho 2 L. 6. F
(Livre) Rasga Mortalha e desenho 8 Y. 12. F Histórias da Serra. O ninho da Rasga Mortalha na
Igreja.
ccxxix
Anexo 2:
CD:
1) Mapas.
2) Fotos.
3) Desenhos.
ccxxx
1) MAPAS:
Figura 1: Localização de Catingueira em
relação ao mapa da Paraíba
Figura 2: Mapa do Estado da Paraíba.
Figura 3: Mapa Potico do Brasil
ccxxxi
2) FOTOS
Fo t o g r a f i a 1 : E u n ã o g o s t o d o meu n o me, p o r q u e el e é
ma c o n h a . Fo i meu i r o q u e me d i s s e q u e L o l ó é ma c o n h a .
E u g o s t o s ó q u e me c h a mem d e L u c é l i a . L u c é l i a n ã o é
ma c o n h a . É s ó n o me.
E u q u er i a r o d a r a b i c i c l et a , s er á q u e a Fl á v i a d ei x a ?
Fo t o g r a f i a 2 e 3 : E s t a mo s t o d o s s en t a d o s o u v i n d o u ma es t ó r i a . D ep o i s a g en t e v a i b r i n c a r d e p a s s a r a n el . C h i mb a é c u r i o s o , q u er s a b er o q u e a
men i n a es t á c o men d o ... D o q u e s er á q u e eu es t o u r i n d o ?
Fo t o g r a f i a 4 e 5: E s t o u mo s t r a n d o p a r a v o c ê s o s meu s d es en h o s . H o j e eu d es en h ei a mi n h a f a mí l i a e mu i t a s c o i s a s . E u es t o u d e f é r i a s . N ã o t en h o
n a d a p a r a f a z er p o r i s s o eu f i c o a q u i n a Fl á v i a . E s t o u n o mu r o d a c a s a d el a , d e v ez em q u a n d o a g en t e b r i n c a a q u i .
ccxxxii
Fo t o g r a f i a 6: M eu n o me é I n á c i o . E s s a é mi n h a p r i ma S a r a .
E u n ã o g o s t o mu i t o d e d es en h a r , ma s S a r a a d o r a . E u g o s t o
ma i s d e j o g a r b o l a e r o d a r a b i c i c l et a . E u a j u d o a Fl á v i a a
t i r a r l a r a n j a d o p é .
Fo t o g r a f i a 7: A q u i es t á t o d o mu n d o mo s t r a n d o o s s eu s
d es en h o s . E s s e é o mu r o d a c a s a d e Fl á v i a .
Fo t o g r a f i a 8 e 9: E s t a mo s d es en h a n d o n a c a s a d e Fl á v i a . E l a d á a s f o l h a s e o s l á p i s e a g en t e p o d e d es en h a r o q u e q u i s er . H o j e eu
d es en h ei u ma c a s a , u m p é d e á r v o r e e u ma b o n eq u i n h a . É b o m d es en h a r . V o u p ed i r a i n h a p a r a me d ei x a r v o l t a r a ma n h ã . E u
p o s s o v o l t a r a ma n h ã ?
Fo t o g r a f i a 1 0 e 1 1 : E s t e d i a f o i u m c a r r eg o ! P en s e! Fl á v i a d ei x o u a b r i r o s o f á . P u l a mo s t o d o mu n d o j u n t o f a z en d o mu i t a f es t a . A
g en t e r i a e c o n t a v a p i a d a . T ev e a t é p i p o c a . Y a s mi m, f ec h a a b o c a !
ccxxxiii
Fo t o g r a f i a 1 2 e 1 3 : E s t e d i a f o i mu i t o l eg a l ! S u b i mo s a S er r a
d a C a t i n g u ei r a n a b a r r a d o d i a . A s men i n a s t r o u x er a m p ã o ,
b o l a c h a e r ef r i g er a n t e. A g en t e c o meu t u d o . D a q u i d e c i ma
v o c ê t em a v i s t a ma i s b o n i t a d e C a t i n g u ei r a . A s p es s o a s
p a r ec em u ma s f o r mi g u i n h a s e a g en t e s e d i v er t e t en t a n d o
en c o n t r a r a n o s s a c a s a .
C h eg a mo s a o a l t o d a s er r a d a C a t i n g u ei r a , a o s p é s d o
C r u z ei r o d e S ã o S eb a s t i ã o . E s t a mo s s eg u i n d o p r a
C a c h o ei r a d a M ã e L u z i a . S er á q u e o p o ç o es t á c h ei o ?
Fo t o g r a f i a 1 4: O b a ! T em á g u a ! N ã o t em n a d a mel h o r q u e
d a r u n s t i b u m n o p o ç o d a M ã e L u z i a !
Fo t o g r a f i a 1 5: E s t a é a I g r ej a d e S ã o S eb a s t i ã o . A q u i a
g en t e es t á n o c a t ec i s mo . A mi n h a e d i s s e q u e n o
c a t ec i s mo a g en t e b r i n c a . Q u a n d o v a i s er a b r i n c a d ei r a ?
ccxxxiv
Fo t o g r a f i a 1 6: A q u i es t a mo s n a es c o l a d es en h a n d o s o b r e o
M a l -a s s o mb r o . E u j á v i u m ma l -a s s o mb r o p er t o d a C a p el i n h a
d o V a q u ei r o q u a n d o eu i a p a r a o s í t i o ma i s o meu t i o .
Fo t o g r a f i a 1 7: E s t e é o t i me E n c a r n a d o d a G i n c a n a d a
I n f â n c i a M i s s i o n á r i a . O s d o i s t i mes emp a t a r a m. E u a c h o q u e
a g en t e g a n h o u e o s j u r a d o s f i c a r a m c o m p en a d o o u t r o
t i me.
Fo t o g r a f i a 1 8: E s t e é o A ç u d e d o P r ef ei t o . N ã o s ei s e v o c ê
c o n s eg u e v er , ma s o s men i n o s es t ã o j o g a n d o b o l a n o
c a mp i n h o . E s t a é a h o r a ma i s b o n i t a d o d i a . O p ô r d o s o l
mu d a a s c o r es d a mi n h a c i d a d e e p o r t r á s d a s er r a j á v em
c h eg a n d o a l u a c h ei a .
Fo t o g r a f i a 1 9: E s t e é p a i n h o . E l e es t á r a l a n d o o mi l h o v er d e
p a r a f a z er mi n g u a u . E l e é t r a b a l h a d o r , n ã o es c o l h e s er v i ç o .
E s t a f o t o f u i eu q u e t i r ei . P a i n h o n ã o q u er i a d ei x a r p o r q u e
d i s s e q u e o p o v o i a ma n g a r d el e ( L ei d i a n e, 1 2 a n o s ) .
ccxxxv
3) DESENHOS
A minha religião:
Desenho 1 A minha religião A.7.M.13
Desenho 2 A minha religião D.9.M.8
Desenho 3 A minha religião I.6.M.4
Desenho 4 A minha religião L.7.M.15
Desenho 5 A minha religião AL.13.M.2
Desenho 6 A minha religião D.12.M.3
Desenho 7 A minha religião JC.10.M.13
Desenho 8 A minha religião MA.9.M.12
Desenho 9 A minha religião CF.10.M.8
Desenho 10 A minha religião F.7.M.4
Desenho 11 A minha religião JP.4.M.2
Desenho 12 A minha religião MN.10.F.14
O mal-assombrro:
Desenho 1 O mal-assombro A.5.M.2
Desenho 2 O mal-assombro D.5.M.18
Desenho 3 O mal-assombro F.6.M.15
Desenho 4 O mal-assombro GF.8.F.11
Desenho 5 O mal-assombro J.6.M.11
Desenho 6 O mal-assombro K.5.F.26
Desenho 7 O mal-assombro LM.7.F.18
Desenho 8 O mal-assombro R.4.M.2
Desenho 9 O mal-assombro R.9.M.19
Desenho 10 O mal-assombro S.5.M.24
Desenho 11 O mal-assombro B.7.F.6
Desenho 12 O mal-assombro D.9.M.7
Desenho 13 O mal-assombro F.7.M.13
Desenho 14 O mal-assombro I.7.M.5
Desenho 15 O mal-assombro J.12.M.27
Desenho 16 O mal-assombro L.8.F.6
Desenho 17 O mal-assombro LR.7.F.9
Desenho 18 O mal-assombro R.5.F.8
Desenho 19 O mal-assombro RJ.11.M.14
Desenho 20 O mal-assombro CM.9.F.9
Desenho 21 O mal-assombro E.9.M.4
Desenho 22 O mal-assombro FF.7.M. 14
Desenho 23 O mal-assombro JC.10.M.13
Desenho 24 O mal-assombro JP.6.M.17
Desenho 25 O mal-assombro LF.7.M.16
Desenho 26 O mal-assombro MD.11.F.13
Desenho 27 O mal-assombro R.7.M.12
Temas Variados:
Desenho 1 G.7.F Promessa para São Sebastião
- subir a serra
Desenho 2 L.6.F (Livre) Rasga Mortalha
Desenho 3 R.12.F A serra de Catingueira
Desenho 4 Y.12.F (Livre) Ela, amiga e
pesquisadora
Desenho 5 G.11.M O carneiro de ouro
Desenho 6 L.12.F A serra da Catingueira
Desenho 7 R.12.F Livre
Desenho 8 Y.12.F Histórias da Serra. O ninho
da Rasga Mortalha na Igreja
Desenho 9 J.8.M Cidade de Catingueira
Desenho 10 R.12.F (Livre) A serra do arco íris
Desenho 11 S.12.F Maria Fulozinha
Desenho 12 S.12.F. (Livre)
Desenho 13 CFB.7.F. (Livre)
Desenho 14 J.11.F. (Livre)
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