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casa. Se só recolhesse à noite, se jantasse fora, não daria sinal de si senão, tarde, à
noite! E ele, que havia de fazer? Errar, pelas ruas, à espera que sua mulher saísse?
E isto dava-lhe uma sensação terrível de abandono, de desordem, como se para
sempre tivesse acabado a regularidade das coisas. De repente, viu o galego. Tinha
entregado a carta ao senhor Neto. E descera logo, não esperara mais nada. Então,
Godofredo, aliviado, continuou caminhando ao acaso, e pouco a pouco os seus
passos, instintivamente, fizeram o caminho de todas as manhãs, o caminho do
escritório. Desceu o Chiado. Na rua do Ouro parou um momento a olhar uma pistola,
na vitrine do Lebreton. E a idéia da morte atravessou-o. Mas não queria pensar
nisso, agora, nem no seu duelo .Logo às sete horas, quando se recolhesse, achasse
a casa vazia, então pensaria no duelo, em ajustar contas com o outro. E foi andando
ao acaso. Um momento pensou em ir ao Passeio Público; mas receou encontrar o
Machado. E foi pelo Terreiro do Paço, pelo Aterro, quase até Alcântara. Ia como um
sonâmbulo, sem reparar na gente que acotovelava, nem na beleza da tarde de
verão, que morria num esplendor de ouro vivo. E não pensava em coisa alguma: era
uma ondulação de idéias, em que passavam toda a sorte de coisas, as recordações
do seu namoro com Ludovina, dias de passeio que tinha feito com ela, depois a
maneira como ela estava recostada no braço do outro, e com o vinho do Porto
defronte: e a cada momento voltavam-lhe fragmentos das cartas dela. “Meu anjo, por
que não hei-de eu Ter um filho teu?” Era a mesma coisa que ela lhe dissera com os
lábios unidos ao dele, de noite, no calor do leito... E regozijava-se agora de não ter
um filho daquela infame.
Ia escurecendo, ele pensava em voltar: uma grande fadiga tomava-o, de
todas aquelas emoções, aquela grande caminhada, no ar mole daquele dia de julho.
Entrou um momento num café, bebeu um grande copo de água: e ficou sentado,
com a cabeça apoiada à parede, abandonando-se, no prazer daquele curto repouso.
O café estava numa penumbra. Um crepúsculo quente envolvia a cidade: todas as
janelas abertas respiravam, depois da grande calma do dia: uma ou outra luz ia-se
acendendo, e via-se passar gente encalmada, com o chapéu na mão. E ele sentia
um prazer, naquela penumbra, e naquele repouso: parecia que a sua dor se
dissipava, se dissolvia, naquela inação do corpo, entre as sombras do anoitecer. E
vinha-lhe um desejo de ficar ali para sempre, sem jamais se acenderem as luzes,
sem que ele jamais tivesse de mover um passo na vida. E a idéia da morte invadiu-
o, dum modo sereno e insinuante, como o sopro duma carícia. Desejou
verdadeiramente morrer. Naquele abatimento em que o seu corpo caíra, todas as
amarguras que ainda tinha a passar, as coisas cruéis que tinha a penar, a volta à
casa solitária, o encontro com o Machado, os passos a dar para procurar
testemunhas – lhe pareciam outros tantos esforços, intoleráveis como penedos, que
as suas pobres mãos jamais poderiam erguer: e seria delicioso encostar a cabeça
ao muro, e ficar ali, naquele banco, morto, liberto, fora de toda a dor, tendo saído da
vida, com a silenciosa tranqüilidade da luz que finda. Um momento pensou no
suicídio. E não o aterrava, nem o fazia estremecer a idéia de se matar. Somente o
procurar uma arma, o dar um passo, para se atirar ao rio, eram ainda esforços, que
lhe repugnavam, naquele desfalecimento de toda a vontade. Quereria morrer ali,
sem se mover. Se uma palavra bastasse, uma ordem dada baixo ao seu coração
para que parasse e arrefecesse, diria essa palavra, tranqüilamente... E talvez ela
chorasse, e lhe sentisse a falta. Mas o outro?
E a esta idéia, do outro a resolução voltara-lhe, uma energia, vaga, ainda
bastante para que se erguesse, continuasse o seu caminho... Sim , o outro ficaria
bem contente, se ele desaparecesse essa noite. Sentiria um completo alívio. Um ou