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Ando a pensar estes dias: tanta coisa anda a me acontecer na minha
vida, mesmo incluindo esta minha conversa contigo aqui, que ficas só a
me deitar olhares desses, tipo eu sou maluco de ficar a te contar bué de
mambos, várias direcções da conversa, às vezes num capitas, né?,
pensas que eu avario, mudo sulinorte nos poentes e nascentes,
trocadilhos dos personagens, é isso? Calma só, muadiê, como eu digo:
pra saber q’a maré tem quatro comportamentos, é preciso olhar o mar
um dia inteiro, tais a capitar? O que eu te ponho aqui, dica ou
recordação, vais precisar pra entender tudo. Portanto, desculpa só, eu
sei: meus devaneios todos, minhas outras lembranças, mas tá tudo
ligado, num dá pra fugir, os assuntos tão todos aqui [...] (ONDJAKI,
2004, p 116).
Tal procedimento é semelhante ao do narrador de Grande sertão: veredas, que
“estilhaça a narrativa em idas e vindas, ao sabor da memória; uma memória subjetiva,
que traz as experiências emotivas do vivido e incorpora também a oralidade ao seu
discurso.” (SECCO, 2003, p 74). Também Luandino Vieira se vale dessa estratégia
narrativa. Vemos, portanto, que, em Quantas madrugadas tem a noite, outro recurso
bastante usado pelo autor são as intertextualidades, que estudaremos mais adiante.
A narrativa ondjakiana, além de fragmentada, é múltipla, pois entrecruza várias
pequenas narrativas, que se encaixam umas às outras, à maneira de uma Matrioshka
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formando, entretanto, um tecido coeso que dá coerência ao enredo. Como se fosse um
jogo de “estória-puxa-estórias”, o narrador, ao apresentar a estória de uma determinada
personagem, se vê obrigado a narrar outras, para que esta primeira seja plenamente
entendida. Este recurso, ao mesmo tempo que cria um certo retardamento do contar
central, o enriquece. Todorov, em seu livro As estruturas narrativas, ao definir este tipo
de narração, cria o termo “narrativa de encaixe”, mostrando como esse procedimento é
comum em narrativas de oralidade:
A aparição de uma nova personagem ocasiona infalivelmente a
interrupção da história precedente, para que uma nova história, a que
explica o “eu estou aqui agora” da nova personagem, nos seja contada.
Uma história segunda é englobada na primeira; esse processo se chama
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Brinquedo tradicional da Rússia, constituída por uma série de bonecas, que são colocadas umas dentro das
outras, da maior (exterior) até a menor.