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MARIELE RODRIGUES CORREA
UMA CARTOGRAFIA DO ENVELHECIMENTO NA
CONTEMPORANEIDADE:
a velhice e a terceira idade
ASSIS
2007
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MARIELE RODRIGUES CORREA
UMA CARTOGRAFIA DO ENVELHECIMENTO NA
CONTEMPORANEIDADE:
a velhice e a terceira idade
Dissertação apresentada à Faculdade de
Ciências e Letras de Assis UNESP
Universidade Estadual Paulista para
obtenção do título de Mestre em
Psicologia (Área de Conhecimento:
Psicologia e Sociedade)
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sônia Ap.
Moreira França
ASSIS
2007
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AGRADECIMENTOS
No caminho da construção de nossa cartografia, percorremos diversos territórios
e lugares afins. Durante esse percurso, encontramos paragens e pessoas que nos
auxiliaram a tornar possíveis essas cartas de algumas paisagens sociais...
Ao grupo das Oficinas de Psicologia do projeto Universidade Aberta à Terceira
Idade, da UNESP, campus de Assis, pelos valorosos anos de convivência e trabalho.
Essa pesquisa certamente pôde ganhar corpo mediante o intenso contato e confiança que
travamos ao longo desse período. Agradeço por me apresentarem o ato de envelhecer
como um convite da vida para a vivência do tempo nos corpos.
À minha orientadora, Profª. Drª. Sônia Ap. Moreira França, que desde a
graduação tem compartilhado seu grande conhecimento e sabedoria, engendrando
inquietações e indagações sobre esse nosso mundo contemporâneo. Seu olhar atento,
dedicado e delicado na condução desse trabalho foi imprescindível na construção de
nosso trabalho.
À professora Soráia G. F. de Paiva Cruz, presença constante em nossa formação.
Obrigada pelo apoio e zelo despendidos ao longo de todo esse período.
À professora Meyre Eiras de Barros Pinto, pelas atenciosas e valiosas
contribuições na qualificação e pelo acompanhamento na finalização desse trabalho.
Aos mestres e amigos, professores Francisco Hashimoto, Luiz Carlos, Mário
Sérgio, Ana Maria e, em especial, Cristina Amélia, pela formação intelectual e política.
Aos amigos Nelma e Guilherme, Anésia e Castro, Tati e Pinda, Maria Elvira,
Karina, Marisa e Rafael, Heloísa e Guina, Ana e Edgar, Lu e Ari, e Tuco, Flávia e
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Ottoboni, Nobuko, colegas do mestrado, de Assis e São José, Dani, Joana, Guilherme,
Rafa, amigos-territórios de afeto e acolhimento.
À minha grande família, em especial aos meus pais, fortalezas de apoio, suporte
e carinho. Agradeço todo incentivo!
Ao meu Justo companheiro, porto seguro nas paragens e movimentações pela
vida... Obrigada pelo olhar atento, cuidadoso e crítico a esse trabalho. “Seu olhar
melhora o meu”, como dizia o poeta...
Às funcionárias da Seção de Pós-Graduação pelo auxílio nos trâmites
institucionais.
À CAPES, pelo apoio e incentivo à realização dessa pesquisa.
5
RESUMO
Desde a década de 50, pesquisas e estatísticas têm
apontado o crescente envelhecimento da população
mundial. O aumento do número de idosos, a partir de
então, irrompeu no cenário das preocupações sociais. É em
meados do século XX que a velhice passa a ter maior
visibilidade no cenário brasileiro, sendo tomada como
objeto de diversas áreas do conhecimento, do Estado e de
investimento do mercado capitalista. Nosso objetivo, a
partir de levantamento bibliográfico sobre o tema e de
nossa experiência com grupos de terceira idade, é analisar
a emergência da velhice como categoria de gestão, que se
vale de políticas públicas e das ciências do
envelhecimento para ditar modos de ser e viver essa fase
da vida, sobretudo, criando e difundindo o conceito de
terceira idade. A aliança entre o Estado e a medicina no
Brasil propiciou a construção de novos procedimentos
para a velhice, fundada num projeto de prevenção ao
envelhecimento e na difusão de um ideário de ancianidade
baseado numa pedagogia que incita a produção de corpos
saudáveis e rentáveis ao capitalismo. Dessa forma, os
estigmas e as práticas de invalidação da velhice cedem
lugar para tentativas de representá-la como um período da
vida que pode comportar atividades produtivas, realização
de projetos e participação ativa no mercado de consumo.
A gestão do envelhecimento na atualidade se caracteriza
na promoção de diversos programas para a terceira idade
que, além de funcionar como controle social da população
que envelhece, contribui para a propagação de um ideal de
envelhecimento que enrijece outras possibilidades de
vivência da velhice.
Palavras-chave: velhice; terceira idade; gestão das
populações.
6
ABSTRACT
Since the 50's, research and statistics have pointed the
increasing aging of the world-wide population. The
increased number of elders, from now on, burst in the
scene of the social concerns. It is in the middle of the XX
century that the elders starts to have greater visibility in
the Brazilian scene, being taken as an object of diverse
areas by which it is known to the State and the investment
of the capitalist market. Our objective, from
bibliographical survey on the subject and of our
experience with groups of the third age, is to analyze the
emergency of the elderly as a category of management,
that counts on public politics and sciences of the aging to
dictate ways of being and living in this phase of life, over
all, creating and spreading out the concept of third age.
The alliance between the State and medicine in Brazil
propelled the construction of new procedures for the
elders, established in a project of prevention to those aging
and in the diffusion of an ideal of old age based on a study
that stirs up the production of a healthy body, that helps on
the income of capitalism. In this form, the stigmata and the
practicess of invalidation of the elderly yield place for
attempts to represent it as a period of life that can hold
productive activities, accomplishment of projects, and
active participation in the consumption market. The period
of aging in present time, characterizes in the promotion of
diverse programs for the third age that, beyond
functioning as social control of the population that ages,
contributes for the increasing number of an aging ideal
that hardens other possibilities of experience of the
elderly.
Key-words: elders; third age; management of the
population.
7
SUMÁRIO
I. Prólogo .............................................................................................................
II. Apresentação...................................................................................................... 7
III. Metodologia....................................................................................................... 16
IV. Linhas cartográficas: a velhice e a terceira idade............................................. 20
4.1. A gestão do envelhecimento nas políticas públicas ....................................
4.2. O papel da ciência na construção de saberes e práticas sobre a
velhice................................................................................................................
4.3. A aliança entre o Estado e a ciência na produção de uma nova velhice.....
V. Ensaios da velhice na contemporaneidade: relevos
cartográficos............................................................................................... 74
VI.Considerações Finais...................................................................................... 103
VII. Bibliografia.......................................................................................................
106
8
I. PRÓLOGO
Registros da memória: um inventário de experiências
“Nossa herança nos foi deixada sem nenhum
testamento”
HANNAH ARENDT.
Com essa epígrafe, Hannah Arendt inicia seu texto Entre o passado e o futuro
(1972) sobre os legados que uma geração deixa a outra e que são guias imprescindíveis
para que cada uma seja capaz de se posicionar no presente como sujeito da história. Para
tanto, segundo ela, é necessário que as gerações sejam capazes de nomear suas
realizações, seus feitos, dar sentido a eles e, assim, poder ofertá-los àqueles que chegam
ao mundo.
Colocamo-nos nessa tarefa de nomear alguns feitos e apresentar seus sentidos e
direções, no entanto, sem pretender ser intérprete de uma geração ou de um tempo, mas
tão somente como portadora de uma razoável experiência de trabalho com a terceira
idade, que julgamos oportuna comunicá-la a outros.
Uma tarefa aparentemente simples, quando encarada como uma descrição do se
fez, se disse e se ouviu, mas deveras complexa, quando se coloca o desafio de expressar
seus sentidos e não o feito em si. São muitas as incertezas e dilemas quando se pretende
fazer um inventário o qual não apenas indique o que se quer deixar como efeito de um
trabalho, mas que o se selecionou, que valores se atribuíram, a fim de apreciar e analisar
criticamente o que foi construído.
O ato de apresentar e inventariar todo um percurso de realizações quase sempre
não permite resgatar tudo que se fez, afinal nem tudo possui um registro e, nesse
9
sentido, trata-se de realizações sem testamento, eventualmente perdidas na memória.
Segundo, daquilo que está presente na memória, é difícil escolher aquilo que pode ser
inventariado como um cristal de tempo e que valha a pena ser passado adiante. Tal
escolha exige um exame crítico e uma reflexão cuja principal dificuldade é, exatamente,
vislumbrar ou atribuir sentido às diversas realizações, sentidos esses que não se refiram
apenas às idiossincrasias de quem realizou, mas que sejam capazes de se conectar com
aspirações e desejos coletivos.
Nesses quase cinco anos de convívio com o grupo de idosos, são muitas as
histórias que nos atravessaram e permaneceram, suscitando pensamentos e inquietações
que nos levaram a analisar a relação do homem com a finitude e o envelhecimento, esse
rosto perdido no espelho do narcisismo contemporâneo que preza por um ideal de
beleza baseado na juventude. Uma experiência profunda e enriquecedora, para além de
questões curriculares e profissionais.
As reflexões realizadas nesse trabalho advêm do contato com a terceira idade
propiciado pelas oficinas de psicologia oferecidas dentro da programação da
Universidade Aberta à terceira Idade, da UNESP - Assis. No início participamos de tais
oficinas como estagiária da graduação e, posteriormente, como coordenadora do grupo.
Quando passamos a atuar nessas oficinas, elas existiam um bom tempo,
pelo menos outros cinco anos antes de nossa chegada. Portanto, fomos herdeiros de um
legado construído por gerações anteriores de estagiários e por muitos participantes que
ali passaram. Prosseguimos uma tradição criada, um grupo formado, com algumas
pessoas que foram seus fundadores e tantas outras que estavam nele havia bastante
tempo. Um grupo já constituído por certas práticas, com raízes firmes na instituição que
lhe dava guarida, com marcas identitárias referenciadas na sua história, na sua
10
continuidade no tempo e nas formações discursivas sobre a terceira idade,
especialmente, aquela do campo psi no qual estava inscrito.
Certamente, acolhemos de nossos antecessores, acerca dessa oficina, heranças
atestadas e outras sem qualquer testamento. Daquelas atestadas, ou seja, devidamente
nomeadas e zelosamente transmitidas pelo docente responsável pelo projeto das oficinas
e seu mentor, recebemos a indicação do referencial teórico e de princípios e objetivos
norteadores desse trabalho.
Do referencial teórico, havia uma ênfase especial na concepção de grupo
operativo, de Pichón-Rivière, sobretudo no que dizia respeito à importância da
constituição dos vínculos afetivos, da articulação entre o implícito e as exteriorizações
grupais, dos papéis emergentes na interação e da tarefa como ponto de convergência e
de articulação das ações individuais.
Outra vertente do referencial teórico destacava a importância da linguagem na
constituição do sujeito e do grupo. Linguagem entendida não como mera representação
ou conjunto de signos arranjados sob normas gramaticais e utilizados para
comunicação, mas como ferramenta de produção de subjetividade, de produção de
relações e de realidade social, mediante a atividade simbólica, a intervenção do discurso
na materialidade do mundo. Roland Barthes, Eni Orlandi, Isidoro Blikstein, dentre
outros, eram autores sempre citados e lembrados no campo da semiótica, da análise do
discurso e da lingüística.
Também se enfatizava o papel da senso-percepção no processo de subjetivação,
porém, sensações e percepções compreendidas no campo da fenomenologia, tomadas
como funções psicológicas embrenhadas de intencionalidade, articuladoras das relações
do sujeito com seu mundo, compreendidas como produtoras de sentido e inteligibilidade
11
e não estabelecidas mecanicamente ou mediante atuações cegas. Merleau-Ponty e Ana
Verônica Mautner foram autores bastante mencionados nessa ênfase.
Em menor grau, porém, também citado, comparecia o psicodrama e, por meio
dele, as preocupações com os papéis constituídos ou potencializados nos grupos, os
relacionamentos e ações deflagradas na atividade grupal e as condições geradas para o
acolhimento dos participantes e para a promoção da empatia e da espontaneidade.
As oficinas possuíam uma estrutura bem definida. Subdividiam-se em três
momentos, assim delimitados: o do aquecimento, o da tarefa e o da reflexão. O
aquecimento, como tal, continha atividades preparatórias e preliminares, com o intuito
de criar um clima favorável para a realização da oficina programada para o dia. Eram
utilizados recursos como brainstorming ou relaxamento, por exemplo, e tantos outros
que se prestassem à entronização do trabalho principal ou do tema norteador do
encontro.
O momento da tarefa abrangia a realização da atividade central do dia,
programada em torno de uma questão sugerida pelo próprio grupo ou trazida pela
equipe. As oficinas eram temáticas, ou seja, cada encontro se organizava em torno de
um tema orientador da tarefa. Evidentemente que, sempre que ocorressem emergentes
grupais destoantes do tema, esses eram objetos de consideração até que fossem
superados e permitissem o retorno à tarefa programada, se fosse o caso.
Por último, o momento da reflexão tomava como objeto a própria oficina, a
experiência ocorrida, em todos os seus aspectos, o conteúdo da tarefa, os
acontecimentos deflagrados em torno dela, os relacionamentos entre os participantes,
deles com a equipe e tantos outros que pudessem emergir. Tratava-se da ocasião da
passagem da experiência para o plano intelectual, quando o pensamento e a linguagem
12
tomavam conta e se procurava, na interlocução, construir coletivamente um
conhecimento daquilo que havia se passado no encontro. Era o momento privilegiado
para transmitir ao coletivo o que havia sido vivido no plano individual, para simbolizar,
dar sentido e inteligibilidade para aquilo que fora experimentado pelas sensações, de
realizar um debate que envolvesse as dimensões de passado, de presente e de futuro e as
contingências do envelhecimento.
A composição do grupo era basicamente de quinze a vinte e cinco pessoas, com
idade entre quarenta e cinco a oitenta e dois anos, predominantemente mulheres. Os
homens eram em número bem menor, de dois a três. O nível de escolaridade também
era diversificado, desde a primeira série do ensino fundamental até a formação
universitária. Alguns eram casados, outros solteiros, separados, ou viúvos. Além dessas
características básicas, havia outras diferenças entre os participantes, mas que não
impediam a convivência entre si, como também não criavam obstáculos para o
funcionamento do grupo.
Fomos herdeiros do nome Oficina de Psicologia da Terceira Idade e, embora
essa designação, como todo nome próprio, não contivesse indicações precisas de seu
sentido, alguns foram bem assinalados no nosso testamento. Oficina é lugar de
produção, de trabalho, de atividade. É lugar de criação, de realizações artesanais, ainda
que se opere com algumas tecnologias mais sofisticadas. É lugar de encontro, reunião,
de trabalho coletivo, compartilhado; de trabalho não alienado no qual o sujeito participa
decisivamente do processo e da destinação final do seu resultado, do produto.
O testamento sublinhava, ainda, que nessa oficina a preocupação principal era
com o processo e não com o produto, ou seja, interessava mais a maneira de se fazer, os
relacionamentos estabelecidos em torno da tarefa, do que o produto final. Aliás, o
13
produto visado era o processo grupal, as realizações do coletivo, a constituição do
grupo.
Assim, o grande e principal objetivo de tais oficinas era, segundo nos foi legado,
a construção de um grupo, definido nos seus moldes mais tradicionais. Compreendemos
essa noção como a conjunção de pessoas em um tempo e lugar determinados, mediante
o compartilhamento de objetivos racionais, vinculações afetivo-emocionais e fantasias
inconscientes capazes de impulsionar e articular ações e papéis individuais na direção
de realizações e gratificações comuns.
Em outras palavras tratava-se de criar um espaço, dentro da universidade, de
existência para um grupo de velhice e de terceira idade, um espaço de encontro entre
eles e deles com a comunidade universitária. Um espaço diferente daqueles habituais,
no qual pudessem, diante do grande espelho da universidade e, em particular, sob o
espelhamento da psicologia, projetar e recolher imagens de si mesmo até então
impossíveis de serem forjadas.
Diante da empreita de abrir caminhos possíveis para o trabalho com a velhice,
cada semana era um grande exercício de reflexão e criação na tentativa de elaborar
oficinas que pudessem oportunizar experiências grupais capazes de expandir o universo
do idoso, a partir do questionamento dos seus papéis e de seus lugares possíveis na
atualidade.
As Oficinas de Psicologia se constituíram em um espaço de referência, de
agrupamento e de relações sociais entre os idosos e a Universidade. Além disso, essas
atividades nos ofereceram um lugar de análise das possibilidades de envelhecimento na
atualidade, isto é, tomando a oficina como um analisador
1
da condição da velhice e da
1
Sobre o assunto, ver: LOURAU, R. A análise institucional. Petrópolis: Vozes, 1975.
14
terceira idade e do homem com a finitude, reflexões estas emergentes em nossa
pesquisa.
Incitando grupos e socialidades nas oficinas
Soa extemporâneo falar em grupo em um tempo no qual se visualiza o neo-
tribalismo como paradigma de socialidade
2
. Contudo, se insistimos em promover a
associatividade grupal e não tribal em nossas oficinas com a terceira idade, não foi por
desconhecimento, por aquiescência cega às nossas heranças ou por algum lapso, mas
sim por uma clara determinação.
Nosso objetivo de situar o envelhecimento na contemporaneidade a partir das
oficinas era uma preocupação constante nas práticas que exercíamos com os idosos.
Vários autores
3
têm destacado que uma das características do mundo atual é a tendência
ao isolamento, ao individualismo, à solidão e à privatização da vida humana. Portanto,
falar em grupo ou coletividade pode parecer um arcaísmo frente a uma sociedade
produtora de contatos interpessoais mínimos e até efêmeros.
É na velhice que recai, de forma mais intensa, o isolacionismo da sociedade
contemporânea. A condição de solidão a que muitos idosos estão submetidos é
avassaladora. O afastamento do mundo do trabalho, única condição de expressão e valor
humanos, da vida social, do lazer e isolados no próprio espaço doméstico, suas
possibilidades de contato e apropriação do mundo se encontram bastante reduzidos.
Dessa forma, o trabalho centrado na formação de grupos com a velhice e a
terceira idade permite uma experiência de enfrentamento dessa tendência de
2
Sobre o assunto, ver MAFESSOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades
de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
3
Sobre o assunto, ver BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.; HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1998.
15
individualização e sujeição na atualidade que também afeta a velhice. Além disso, é
possível romper com a experiência de segregação a que essa população está submetida.
É certo que o ímpeto grupalista pode resultar em guetificação, abafamentos das
singularidades e padronização de condutas. É igualmente seguro que a retroação a
modelos anteriores nem sempre é a melhor estratégia de enfrentamento de modelos de
associatividade emergentes, considerados dissipadores da vida coletiva. Entretanto, para
o caso específico da terceira idade, o grupo pode ser uma arma, ainda que ultrapassada,
de cil manuseio. Além disso, no contexto do projeto da Universidade Aberta à
Terceira Idade, o grupo pode ser beneficiado pelo respaldo da instituição, por mais
paradoxal que possa parecer.
Em nossa experiência pudemos observar que a terceira idade é bem recebida
pela Universidade na qual realizamos nossas atividades, a UNESP, campus de Assis.
Verificávamos que o contato dos estudantes com os idosos ocorria sempre de forma
amistosa e nem sempre a partir de alguma atividade diretamente relacionada às oficinas.
Logo nos corredores, quando o grupo caminhava em direção à sua sala, havia a
aproximação de universitários que cumprimentavam e entabulavam conversas com os
idosos. Diálogos prosaicos como aqueles relatados por algumas senhoras que diziam se
sentir como avós daqueles alunos, pois sempre lamentavam com elas a saudade que
sentiam da casa materna. Isso demonstrava o quanto eram assimiladas nesse espaço da
socialidade, construído no interior da instituição. Socialidade que significa
relacionamentos não submetidos ao controle e à esfera do funcionamento formal da
instituição, mas sim emergentes no plano da informalidade, a partir de encontros
fortuitos e das iniciativas dos próprios atores.
16
Além desse contato informal com os estudantes, havia outros encontros
decorrentes das atividades das oficinas. Muitas oficinas tinham exatamente o propósito
de deflagrar interações do grupo da terceira idade com a comunidade universitária. Os
idosos, em subgrupos, entrevistavam os alunos e também professores e funcionários
sobre diversos temas com filmadoras, gravadores ou com anotações das respostas. Esse
material era discutido no contexto da atividade, analisando-se os pontos principais de
discórdia ou não das opiniões e as impressões geradas no grupo a partir daquela
intervenção.
Realizamos, ainda, outras intervenções no espaço da Universidade, como festas,
bingos, exposições de objetos e cartazes, idas à biblioteca e laboratórios, comemorações
e bailes. A presença da velhice e da terceira idade em diversos lugares, algumas vezes,
provocou quebras da rotina institucional, chegando a gerar descontentamentos e
protestos de professores e funcionários em determinadas ocasiões. Reações desse tipo
foram tão importantes quanto às de tolerância e aceitação incondicional para firmar o
grupo perante os demais grupos da instituição, sem protecionismos ou tutelas.
O corpo nas oficinas
As possibilidades de experimentação da velhice encontram uma série de
barreiras e interditos. Uma das mais severas diz respeito ao próprio corpo. Em nossas
oficinas, procuramos problematizar essa questão, utilizando, como disparador de
imagens e sensações primárias um espelho no qual todos deveriam mirar-se. As reações
foram variadas, porém, carregadas de sentimentos e expressões imediatas. Alguns
manifestaram espanto, dizendo “o espelho está mentindo! Deixe eu me arrumar... Oh,
Deus, podia ser mais nova... Que coisa terrível!” (sic).
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De fato, encarar a face da velhice atravessando o corpo em uma sociedade como
a nossa é experenciar o estranhamento desse outro que habita em nós. Simone de
Beauvoir (1990) diz que a velhice é sempre o outro, pois o sujeito não a imagina em si
mesmo. Para ela, o velho dificilmente se como tal e o jovem ignora a velhice que
reside em seu corpo.
A associação entre fealdade e velhice também é algo recorrente no imaginário
social. A beleza da juventude cede lugar para o seu oposto no percurso da vida: “eu vejo
uma mulher feia, velha e magra. Olha o estado em que você chegou...”. Muitas vezes,
busca-se o rosto perdido no espelho do tempo: “o que vejo é uma mulher que no
passado era bonita e hoje é barriga”, ou ainda, “olho a foto de um homem de setenta
e dois anos que ele parece não ter”.
Outras frases nos chamaram a atenção, como “você não pode ficar pensando que
está velho. É manter o cabelo arrumado que está bom”. Parafraseando Clarice
Lispector, a experiência do envelhecimento é a harmonia secreta da desarmonia: “você
vai ficando feio, mas harmonioso”, como disse uma senhora do grupo.
Os anos parecem acrescentar um fardo em alguns casos: “eu olho para uma
pessoa de quarenta e cinco anos que parece ter setenta”; “vejo uma mulher com muita
vontade de tirar o peso das costas”. As possibilidades de vivência do envelhecimento
podem guardar outros sentidos, como bem-estar, felicidade: “estou me vendo velha,
gorda e saudável!”; “estou vendo eu mesma. Não poderia estar melhor”; “sou uma
mulher de cinqüenta e nove anos e feliz”; “os anos passaram! Tenho paz e
tranqüilidade”.
Ao discutirmos as sensações atualizadas por essa atividade, outras falas
remeteram à chegada do envelhecimento espraiando a existência humana: “achei que a
18
velhice ia ser gostosa. Depois que apareceu a dor, piorou... O novo é disposto. Mas a
velhice vai calando na gente. A idade chega e a gente se submete”. O silêncio é
ensurdecedor na experimentação do envelhecimento no corpo. Ele é o destino
irremediável do homem: “Deus perdoa. A natureza, não. Vem a idade e a gente sente no
corpo o tempo e as desgraças. As perdas físicas e emocionais aparecem, mas o tempo
ajuda a perceber o que você tem pela frente”.
Experimentar a finitude humana no corpo é algo único frente ao interdito do
contemporâneo que prega a impossibilidade da vivência do envelhecimento com a
cultura de valores relativos à juventude. Tais valores correspondem não à rebeldia que
consideramos típica em adolescentes, mas aos padrões de beleza impostos pelo
mercado.
No mundo atual, a velhice é colocada como algo indesejável. As mudanças que
ela impõe aos corpos são objetos de intervenções várias visando suas reversões, como
cirurgias plásticas, cosméticos, exercícios, dietas, etc. Não deixa de ser interessante a
contradição de nosso tempo: com tanto arsenal tecnológico produzido na atualidade, a
expectativa de vida aumentou substancialmente. No entanto, ao mesmo tempo em que o
mundo moderno promete a eternidade e alonga o chronos da vida, ele não lhe reserva
um campo de possibilidades. Assim, a velhice fica confinada e interditada no plano das
experiências possíveis do homem. Todo esse caráter da dimensão temporal na relação
do homem com a finitude nos incitou a analisar as vicissitudes do tempo na sociedade
contemporânea e sua interface com o envelhecimento em nossa pesquisa.
Frente a um cenário de abolição do tempo, no qual a velhice é negada e se exalta
a figura perene da juventude, não deixa de ser um grande desafio pensar no papel do
19
profissional psi na atuação com idosos. É preciso romper as barreiras que impedem a
vida de avançar no tempo e no espaço e diversificar as formas de subjetivação.
A senso-percepção nas oficinas
O trabalho com a senso-percepção em grupo com idosos é uma ferramenta
importante para conhecer e ampliar o universo de sentidos e formas de aparecer do
corpo humano. Conforme destaca Isidoro Blikstein (1983) em sua obra Kaspar Hauser:
a fabricação da realidade, as sensações e as percepções funcionam como momento
inaugural da produção de sentido e da subjetividade. Constituídas na práxis, as
sensações básicas e as percepções elementares fornecem as impressões e figurações ou
imagens primeiras mediantes as quais o pensamento e a linguagem passam a operar
4
.
Nas atividades de senso-percepção, procuramos potencializar e aguçar os
sentidos básicos do corpo humano, muitas vezes enrijecidos e esquecidos. Trabalhar
com essa temática foi muito interessante, pois buscamos dar novos significados à
experiência corporal de ver, tocar, ouvir, sentir...
Nas oficinas sobre a visão, por exemplo, exercitamos a presença e a ausência
desse sentido em uma atividade na qual havia uma troca de papéis entre o participante
com os olhos vendados e o outro que o guiava. Houve uma situação muito interessante
nesse contexto, pois havia um casal cujo homem sofria de uma deficiência visual grave
e sua companheira o ajudava no dia a dia. Quando fizemos a inversão das duplas, ou
seja, quando ele foi o guia e ela passou a ser guiada, percebemos sua ansiedade ao se
deixar conduzir.
Ainda sobre essa temática da visão, realizamos outras atividades que
procuraram questionar o aspecto seletivo do olho humano, que muitas vezes não
4
Sobre esse assunto, ver ROUANET, S. P. A razão cativa. São Paulo: Brasiliense, 1990.
20
percebe as nuances do dia a dia. Em outra oficina, trabalhamos com as várias
possibilidades de olhar o mundo por meio da troca de óculos entre os participantes.
Cada um vestia as lentes do outro para experimentar as formas de ver e perceber as
coisas ao redor. Essa atividade abriu margem para analisarmos e reconhecermos as
diferentes de perspectivas e visões de mundo.
Os outros sentidos do corpo humano também foram trabalhados ao longo desses
anos de experiência, como o olfato, o paladar e a audição. Procuramos aguçar essas
sensações por meio de um contato direto com diferentes objetos, como também no
resgate de lembranças de cheiros, sons e gostos da infância.
Esse trabalho de senso-percepção com o grupo foi deveras significativo. Muitos
idosos apresentavam dificuldades em algum dos sentidos, como a visão, a perda da
audição, do olfato, do paladar ou até mesmo do tato, devido à maior sensibilidade
provocada pelas dores de reumatismos. Dessa forma, ao colocarmos em análise essas
restrições advindas com os anos, pudemos vislumbrar outras possibilidades de
experimentação dos sentidos, seja com o seu aguçamento, seja pelo resgate de memórias
relacionadas às diversas sensações (re)vividas.
Ao realizarmos atividades a partir dessa temática nas oficinas, julgamos ser
necessário analisar em nossa pesquisa a visão dos estudiosos do envelhecimento sobre o
corpo idoso. Constatamos, conforme discutiremos ao longo da pesquisa, que muitos
insistem em acentuar a perda da acuidade dos sentidos e não suas potencialidades de
experimentação, encerrando esse corpo em uma materialidade instituída e engessada.
O papel da linguagem nas oficinas
A função da linguagem como possibilidade de ruptura e subversão do instituído,
conforme destaca Roland Barthes (1996), em seu texto Aula, foi nosso referencial no
21
trabalho com a palavra nas oficinas ou nas ofissignas, conforme o neologismo criado,
certa vez, por um estagiário, para nomear especificamente as oficinas que tinham o
signo e o processo de produção de sentido como alvo (JUSTO et. al., 1997, p.95).
De acordo com Barthes (1996), a língua possui um caráter eminentemente
fascista por impor uma forma de dizer, uma gramática por si é constrangedora das
múltiplas condições de possibilidades de produção de sentidos. Segundo ele, o fato da
enunciação ter que se fazer a partir de um Eu ou um Tu representa um
amordaçamento e constrição da linguagem. Porém, adensa a essa tese radical que não é
possível sobreviver fora da língua e, portanto, o que resta é trapacear com ela, como
fazem os poetas. Era o que buscávamos fazer modestamente, sem a pretensão de
produzir grandes revoluções ou golpes criativos na linguagem.
Algumas ofissignas foram marcantes. Em uma delas, propusemos ao grupo a
recriação de mensagens padrão utilizadas em datas comemorativas como o natal e ano
novo ou as mensagens de felicitações de aniversário. O objetivo foi questionar as
estereotipias de tais mensagens prontas e reinstituir a condição de fruição da linguagem,
mediante uma participação ativa de cada membro do grupo na construção de sentidos e
experiências com a palavra. Em outra ocasião, o alvo foram os ditados, frases e dizeres
populares, veiculadores de mensagens normativas, tais como: “Deus ajuda quem cedo
madruga”. A proposta era subverter esses ditados, desconstruí-los e possibilitar a
eclosão da polissemia, ou melhor, a produção de sentidos inversos àqueles cristalizados
e assimilados mecanicamente.
Tantas outras oficinas tiveram a linguagem como centro do trabalho, utilizando-
se como expediente, por exemplo, a produção de autobiografias, de poemas coletivos,
22
relato de “causos”, escrita de cartas para entes queridos, produção e divulgação de
mensagens em murais ou por meio de pequenos livretos e assim por diante.
Explorávamos as conexões possíveis da linguagem com o pensamento, a
memória, a percepção, a práxis, os relacionamentos emocionais, afetivos e sociais,
enfim, com toda a constelação que compõem os processos de subjetivação.
A velhice e a Lei
Para analisar com o grupo a emergência e a configuração da velhice na
atualidade, utilizamo-nos de várias estratégias nas oficinas. Por exemplo, tematizamos
com os idosos o papel da lei na produção social da velhice e recorremos ao Estatuto do
Idoso para analisar e refletir os direitos e deveres que lhes são consignados e o tipo de
envelhecimento nele concebido e implementado. Muitos participantes desconheciam
seu conteúdo, por isso providenciamos cópias do Estatuto, realizamos uma apresentação
sobre as principais leis e promovemos um debate sobre suas implicações. Por fim,
confeccionamos diversos cartazes sobre cada aspecto da legislação, que foram expostos
na Universidade, nos postos de saúde, pontos de ônibus e no comércio em geral.
A partir dessa atividade, percebemos que seria indispensável cartografar as
políticas públicas dirigidas à velhice em nossa pesquisa, pois elas poderiam nos fornecer
elementos importantes para analisarmos a visão do Estado sobre essa população e as
estratégias de gestão do envelhecimento, conforme discutiremos adiante.
Cabelos brancos na rua: a ocupação dos espaços urbanos pela terceira
idade
Um dos princípios básicos das oficinas estabelecia a saída paulatina do grupo do
espaço no qual habitualmente se reunia para se por em movimento, deixar-se afetar por
23
cineses, circular por recantos desconhecidos e habitar novos espaços. Afinal, se era
imprescindível expandir o universo da velhice e da terceira idade e romper com práticas
de reclusão, não se poderia mantê-los confinados em uma sala de reuniões nem mesmo
nos interiores da universidade.
A saída da toca era fundamental e se fazia mediante incursões por regiões cada
vez mais distantes e estranhas. Primeiro, os corredores do prédio e áreas adjacentes à
sala de reuniões do grupo, realizando entrevistas, afixando mensagens em murais e
paredes, promovendo uma festa junina no saguão, por exemplo, depois visitando e
fazendo intervenções em espaços do campus para, finalmente, se aventurar pela cidade,
sobretudo, pela “cidade proibida”.
Realizamos passeios por lugares diversos, como museus da cidade, parques,
bailes do clube da terceira idade e, em ocasiões mais raras, nos lançamos com mais
arrojo nos espaços “proibidos”, por exemplo, levando o grupo a uma “balada” de uma
prestigiada casa noturna, freqüentada por jovens.
Ainda que as visitas e “invasões” de redutos que proscrevem a velhice não
tenham se realizado na intensidade desejada, serviu como experiência paradigmática da
importância e das possibilidades de romper com as especializações e guetificações dos
espaços urbanos, fundamentais na produção de estigmas e na modelação da
subjetividade.
Além das intervenções diretas nos espaços da cidade, ela foi tema de oficinas
que possibilitavam interrogá-la e situá-la no plano simbólico. Programávamos
exercícios individuais de perambulação por lugares não freqüentados, ainda que fossem
os arredores do próprio bairro, ou simples mudanças de itinerários ou ainda de
24
localizações habituais, como o lugar que comumente ocupavam na igreja ou no
ambiente doméstico.
Essas experimentações com o grupo nos incitaram a refletir sobre a presença e as
memórias da velhice acerca da urbe e sua relação com o espaço diante das incitações do
mundo contemporâneo, conforme desenvolveremos na presente pesquisa.
Remexendo a memória
As oficinas sobre a memória talvez tenham sido as principais ferramentas de
nosso trabalho para promover nosso objetivo com o grupo. Era preciso atestar a herança
construída ao longo da vida e também aquela transmitida pelos antepassados, da qual
esses idosos eram portadores. O legado cultural, para nós, era o bem maior que cada um
possuía, pois no relato de histórias de vida havia a memória coletiva de um tempo. Por
isso, acabamos desenvolvendo um ensaio específico nesta dissertação de mestrado.
Dessas atividades sobre a experiência narrativa resultaram diversos cartazes e
revistas que circularam na Universidade. A primeira revista que confeccionamos se
chamava “O dinossauro e suas histórias”, cujo nome foi escolhido e criado pelos
próprios participantes. O conteúdo da revista era todo de causos e lendas de terror.
Histórias de bruxas, mulas-sem-cabeça, fantasmas, lobisomem, cemitérios e velórios,
heranças de um mundo fantástico perdido na memória. Por meio dessas histórias,
questionamos o lugar, ou melhor, o não-lugar desse legado cultural, pois até mesmo
muitos netos dos participantes não se interessavam por elas.
Com as oficinas sobre a memória, analisamos a condição de narrador do idoso,
uma prática hoje quase anulada, pois suas histórias muitas vezes carecem de ouvintes a
quem atestar suas heranças. Ecléa Bosi (1987), em sua obra Memória e sociedade,
menciona que a memória pode existir quando evocada por outrem. Encontramos essa
25
situação em nosso grupo, quando, ao incitarmos as lembranças, muitos dos participantes
alegavam que havia praticamente se esquecido de diversas histórias de vida. Essas
memórias ganharam corpo em forma de relatos, fotografias e objetos ou trazidos para as
oficinas.
Editamos, ainda, o segundo volume de “O dinossauro e suas lembranças:
recordar é viver”, no qual recorremos a memórias de costumes, hábitos e práticas do
dia-a-dia, como o cuidado com o próprio corpo e o zelo pelo outro. No terceiro volume,
realizamos um levantamento das doenças, dos medicamentos caseiros e simpatias
utilizados para a cura dos males da época. A produção do grupo foi bastante extensa e
constatamos uma série de práticas hoje já extintas.
Esses dois trabalhos ajudaram a refletir sobre a sujeição do homem moderno ao
estatuto médico e científico, que extirpa do sujeito sua condição de cuidar de si e do
outro, inserindo-o na lógica da governabilidade e pedagogização da vida humana, ainda
mais acentuada na velhice. Tais observações nos fizeram recorrer à reflexão do papel da
ciência na construção das categorias de envelhecimento e nas práticas de gestão dessa
população para a elaboração de nossa cartografia.
Em nossas oficinas, buscamos os movimentos de contra-poder e as
possibilidades de linhas de fuga com relação a esses paradigmas dominantes sobre a
população idosa. Mas muitas dessas linhas se perderam ou se aprisionaram a discursos
instituídos. pouco tempo, ao solicitarmos que grupo levantasse propostas de temas
para oficinas, um participante pediu a presença de um médico geriatra para falar sobre
as doenças da velhice e os cuidados com o corpo para “envelhecer bem”. Não podemos
deixar de assinalar nosso espanto diante dessa sugestão, depois de tanto tempo pensando
que estávamos quebrando estereotipias. De fato, o saber especialista encontra-se
26
amplamente difundido no cotidiano. Mas qualquer prática que pretenda problematizar o
instituído é um exercício constante de enfrentamento dos saberes hegemônicos e que,
mesmo assim, pode ser capturada pelas forças da biopolítica
5
instituídas no
contemporâneo.
Terceira idade, velhice e a finitude do homem
A experiência com grupo de idosos, além de se constituir em um espaço de
exercício do pensamento, é também a possibilidade de entrar em contato com a
condição de finitude a que somos sujeitos. Ao longo de nosso trabalho, pessoas muito
queridas nos deixaram para sempre. Experienciar esses lutos, sem dúvida, foi uma
vivência radical para nós e para o grupo: o fantasma da morte e da dor elaborados a
partir do enfrentamento das perdas em uma relação com a vida e o pensamento. Além
da falta dessas pessoas tão caras para nós, outros participantes tiveram de abandonar o
grupo por motivos de adoecimento. O corpo muitas vezes cansado pedia repouso.
A morte continua indecifrável e incontornável, apesar de todos os avanços das
ciências e das demais tentativas de dar-lhe um contorno e uma inteligibilidade aceitável,
como a religião. Os grupos da terceira idade se constituem ambiguamente em relação ao
espectro da morte: por um lado, fornecem o amparo e as presenças dos outros,
confirmando a possibilidade da manutenção e do prolongamento da vida, por outro, na
medida em que aqueles que estão ao lado sucumbem, vem à tona a constatação de que
ela continua em sua insidiosa ronda.
As preocupações, temores e receios pela iminência da chegada da morte se
imiscuíam em contos e causos, em narrativas nas quais ela é a personagem principal ou
o plot (núcleo central) da história, como, por exemplo, em histórias que contavam sobre
5
Sobre o assunto, ver PELBART, P. P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.
27
os cuidados com os mortos velados em casa e até mesmo em situações cômicas
relacionadas a esses eventos. Certa vez, uma pessoa do grupo contou que o tradicional
cafezinho servido em um velório caseiro fora feito com a água que haviam dado banho
no defunto. Lendas ou realidades à parte, a questão é que essa temática da morte e da
experiência da finitude está posta sempre no grupo, seja pela perda de algum ente
querido, seja pelo afastamento de um participante por motivos de adoecimento.
Essa geração que hoje denota a velhice e a terceira idade apresentou uma
convivência maior com a presença da morte. As tantas histórias e casos de velório que
relatam não deixam dúvidas da proximidade que mantinham com a morte ou mesmo
com a doença, tratada em casa.
Atualmente, com o poderoso arsenal médico e científico, a finitude humana é
tratada por uma série de procedimentos que transformaram a morte em uma experiência
distal, asséptica e higiênica. A internação do doente, os exíguos horários de visitação, a
delegação dos cuidados ao enfermo aos médicos e enfermeiros, criam um
distanciamento em relação à morte e um certo cordão de isolamento entre aquele que se
encontra na iminência de morrer e os outros que lhe são próximos.
O prolongamento da vida e as tecnologias médicas colocam a experiência com a
morte como algo intangível e longínquo ao ser humano. Além disso, o morrer tornou-se
objeto de mercado de funerárias, floriculturas, cemitérios e velórios ávidos em oferecer
seus serviços. A relação do homem com a finitude passa por diversos intermediários
que cada vez mais distanciam o sujeito da sua condição de ser finito.
A experiência com o grupo da terceira idade, nesse sentido, também é
disparadora dessas questões relacionadas à presença da morte no curso da vida. No caso
das oficinas, vivenciamos essa relação de maneira muito próxima e, passado o luto, o
28
desejo pela eternidade ia além da presença física daqueles que se foram, pois, tal como
diz o poeta Drummond,
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Cenas introdutórias do itinerário cartográfico
Esses relatos arquivados na memória e agora atestados são o ponto de partida, os
primeiros passos, para apresentar o percurso percorrido na construção de nossa
cartografia sobre o envelhecimento na contemporaneidade. Uma trajetória que nos
apresentou alguns caminhos de possibilidades para análise da compreensão desse
fenômeno no mundo atual, cujas principais vias foram a velhice e a terceira idade.
Diferentes faces da relação do homem com sua condição de finitude nos espelhos do
tempo.
29
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?
(Cecília Meireles)
30
II. APRESENTAÇÃO
Eu não tinha esse rosto de hoje...”
Foi no ano de 1970 que Simone de Beauvoir lançou o livro A velhice, que até
hoje é referência na área das ciências do envelhecimento. A denúncia da condição de
abandono da velhice pela sociedade em geral ecoa ao longo de toda sua obra, cujo
intuito, de acordo com a autora, era o de quebrar a conspiração de silêncio em torno
dessa população. na apresentação de seu texto, a autora faz um apelo: “é por isso que
urge quebrar esse silêncio: peço aos meus leitores que me ajudem a fazê-lo” (idem, p.
14).
O silêncio social em torno da velhice expresso no abandono e no descaso dessa
população apontava o modo pelo qual a sociedade tratava de seus velhos: como um
refugo. Essa era uma das faces da velhice, estigmatizada e indesejável, objeto de obras
de caridade, confinada em asilos ou na solidão do desamparo familiar e social, e
preterida no âmbito das políticas públicas.
Mesmo que tenham surgido leis que procuram garantir a proteção aos idosos,
resquícios dessa velhice indesejável são encontrados com facilidade ainda hoje, seja de
forma explícita, como a violência praticada contra os velhos nos espaços urbanos e no
interior das famílias, seja travestida de outras faces, como o aumento excessivo da
prática de cirurgias plásticas, a fim de evitar os efeitos do envelhecimento. Atualmente,
a regra é não envelhecer. Não somente a velhice por si é indesejável, mas a finitude
humana também o é. Por isso, o envelhecimento permaneceu na orla social por tanto
tempo como uma espécie de tabu, da ordem de um interdito em relação ao qual o
silêncio seria o melhor aliado.
31
Essa velhice silenciada, da qual Beauvoir se fez porta-voz, aos poucos foi
encontrando ressonâncias em alguns setores da sociedade, como o meio acadêmico, os
serviços de assistência social e o poder público. O que antes era uma conspiração de
silêncio em torno da velhice passou a uma intensa produção discursiva sobre o assunto,
desvelando e engendrando outras facetas desse rosto, mais revitalizado e valorado, com
alguns traços diferentes daqueles descritos por Simone de Beauvoir ou pela poeta
Cecília Meirelles, “assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios
nem o lábio amargo”. Entra em cena uma nova velhice...
“Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil”
A face da velhice, na atualidade, apresenta, enquanto construção social, aspectos
muito diferentes em relação àquela que se exibia no início do culo XX. Até mesmo a
nomenclatura para essa fase da vida se modificou, com o aparecimento de outras
designações. Terceira idade, melhor idade, feliz idade, maturidade, segunda juventude...
Novas materialidades, novos sujeitos e novos procedimentos para se referir à velhice,
assim como alusões a novas possibilidades de se vivê-la.
Não somente as palavras, mas também os signos óticos, as imagens visuais,
registram as mudanças da produção de sentido sobre a velhice. Ao olharmos fotografias
antigas com idosos, identificamos alguns signos típicos da velhice de épocas passadas:
senhores com ternos, chapéus e bengalas, e senhoras, com vestidos mais recatados e
cabelos penteados. Se, antes, a valorização do homem velho era calcada no signo do
recato, comedimento, sobriedade, da sabedoria, da experiência de vida, hoje ela também
passa pela possibilidade de ser uma fase de realizações, de atividade, de atualização, de
acompanhamento das inovações e modismos, como se pode observar na iconografia
32
expressa, por exemplo, nas novelas e anúncios comerciais dirigidos para esse segmento.
Certamente, essa velhice se modificou, ou pelo menos se abriu um leque maior de
modos de ser e de viver essa fase da vida.
A mudança do olhar sobre a velhice e também do próprio velho é acompanhada
de um importante fato, ocorrido no século XX: o envelhecimento da população. Com o
aumento da expectativa de vida e a queda da taxa de natalidade, ao longo das últimas
décadas, temos assistido a um processo de envelhecimento populacional em nível
mundial, relatado em pesquisas desde a década de 1950
6
.
O mundo está mais velho. Conhecido por ser um país jovem, o Brasil tem ficado
cada vez mais grisalho. O progresso científico, a biotecnologia, os métodos
contraceptivos, a maior produção e o acesso a medicamentos, enfim, poderíamos
elencar uma série de fatores que podem ter contribuído para o aumento da expectativa
de vida. Mas esse não seria um fator isolado, pois um processo ainda mais complexo
aconteceu em poucas décadas levando a velhice a um status até então inalcançado,
promovendo mudanças na sua forma de ver e viver o envelhecimento: a visibilidade
social.
Tais mudanças, ocorridas com relação à velhice, se configuraram na medida em
que ela se expandiu na composição demográfica. O aumento do número de idosos
praticamente em proporções globais gerou a visibilidade desse segmento e, como um
objeto socialmente visível e uma presença cada vez mais insistente, ele acabou por se
tornar em problema social. Outro fator importante na modificação do olhar sobre a
velhice foi seu forte impacto na economia e em outras esferas da sociedade, criando a
6
Sobre o assunto, ver MARTINS, E.J.S. De volta à escola: investindo em uma proposta de Universidade
Aberta à Terceira Idade. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual
Paulista, Marília, 1997.
33
premente necessidade de se delimitar essa população, caracterizá-la, conhecer seu
potencial, estabelecer sua funcionalidade, enfim, geri-la de forma eficiente.
Na sociedade brasileira, a visibilidade alcançada pela velhice deve ser analisada
por um duplo movimento que segue sua transformação em preocupação social
7
. De um
lado, houve um processo de socialização progressiva da gestão dessa categoria. Por
muito tempo, ela foi considerada como objeto da esfera privada e familiar. Cabia aos
parentes e familiares ou à iniciativa de associações filantrópicas cuidarem de seus
idosos. Com a constituição de um saber específico, por meio da gerontologia e da
geriatria, e com o advento da aposentadoria sob responsabilidade do Estado, a velhice
passa a ocupar o lugar de objeto de gestão pública.
Entretanto, temos assistido a um processo de reprivatização da velhice, no qual o
idoso é incitado a dobrar-se sobre si mesmo, à procura de realização e satisfação
pessoal, resgatando projetos antigos e buscando o prazer individual. Nesse movimento,
as mudanças ocorridas em relação ao olhar sobre essa fase da vida sugerem a revisão de
estereótipos, que vem sendo substituídos por outros, principalmente com a emergência e
propagação do conceito de terceira idade.
Esse conceito sugere algumas diferenças em relação ao de velhice. Assim como
a criação da adolescência, como fase intermediária entre a infância e o mundo adulto, no
século XIX, os conceitos de meia-idade, terceira idade e aposentadoria ativa emergem
interpostos à etapa adulta e ao envelhecimento, em meados do século XX.
A criação de conceitos intermediários entre a maturidade e a velhice provocou
mudanças significativas no modo de olhar e viver essa fase da vida. Atualmente, a
aposentadoria deixou de ser o marco de passagem da fase adulta para a velhice
7
Sobre o assunto, ver DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice. São Paulo: EDUSP, 2004.
34
propriamente dita
8
, principalmente a partir de novas políticas que visam a alocar o
tempo dos aposentados e criar outros estilos de vida. Nesse sentido, uma intensa
produção de demanda para o consumo de produtos destinados a essa população e a
propagação da idéia de que a velhice é uma fase própria para o resgate e a realização de
sonhos adiados ou não concretizados durante a existência do indivíduo.
Esses novos sentidos dirigidos à velhice, que procuram subdividir essa fase e
extrair dela uma categoria de idade cronológica intermediária, colocam-se mais adiante
da questão do aumento da expectativa de vida da população. A invenção da terceira
idade foi possível graças à forte incitação econômica gerada no mercado capitalista
frente ao potencial de consumo dessa população. De acordo com Laslett (apud
DEBERT, G., 2004, p. 19),
essa invenção requer a existência de uma “comunidade de aposentados”, com
peso suficiente na sociedade, demonstrando dispor de saúde, independência
financeira e outros meios para tornar reais as expectativas de que essa etapa é
propícia à realização e satisfação pessoal.
A abertura do mercado à velhice é algo recente em nossa sociedade. Até
algumas décadas atrás, o que se tinha voltado para essa categoria se resumia em
remédios, asilos, assistência à saúde ou alguns poucos objetos de consumo, como o
ramo do vestuário. Hoje em dia, o mercado dispõe de uma série de produtos e serviços
direcionados a essa população, sobre os quais discutiremos no decorrer de nosso
trabalho.
Tantas mudanças com relação ao objeto denominado velhice saltam aos nossos
olhos de maneira complexa e emaranhada. Linhas que emergem ao longo da tentativa de
se traçar um rosto, cuja face transborda diferentes signos e impressões.
8
Sobre o assunto, ver DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice. São Paulo: EDUSP, 2004.
35
“- Em que espelho ficou perdida a minha face?”
Os versos de Cecília Meirelles descrevem bem nossas inquietações, suscitadas
ao olharmos os contornos do envelhecimento. Ao traçarmos suas linhas, nos perdemos
diante de seus rios rostos. Terceira idade, velhice, velho, ancião, melhor idade, feliz
idade, idoso, maturidade, enfim, diferentes percursos que revelam diversas inscrições e
sentidos com relação a essa fase da vida.
A necessidade de se diferenciar e conceituar essa faixa etária parece ser uma
preocupação que revela algo curioso: a velhice foi finalmente descoberta. Não apenas o
mercado descobre o potencial desse segmento, como também o estado de direito
registra seu reconhecimento, mediante a criação de leis específicas. O estatuto do idoso,
elaborado em 2003, ao estabelecer os direitos dessa população, evidencia, sobretudo o
reconhecimento social desse segmento. A ciência, por meio da gerontologia e da
geriatria, alavanca pesquisas e cria especialidades médicas. Novos corredores de
circulação são abertos à velhice, que é convidada a sair do confinamento do lar e
mostrar sua face em bailes, clubes de convivência, projetos de universidades abertas à
terceira idade (UNATIs), no comércio e no turismo.
É certo que, ao lado dessas e outras tantas novas ofertas de espaços sociais,
existe ainda uma velhice segregada pela sociedade. Nesse cenário, o abandono, o
preconceito e a desvalorização ainda recaem sobre o idoso de forma violenta. Casos de
maus tratos no comércio, nos transportes coletivos, nas ruas e até no interior da família
são cada vez mais comuns. Algumas dessas ocorrências são noticiadas nos jornais,
porém muitas são silenciadas no âmbito social e pelos próprios idosos, às vezes por
desconhecerem seus direitos ou ainda por se sentirem envergonhados e até culpados
pelas situações em que foram vítimas de algum tipo de violência.
36
Como podemos observar, os modos pelos quais a sociedade lida e percebe a
velhice são variados. Propusemo-nos tratar essa temática nas Oficinas de Psicologia
com a velhice e a terceira idade. Na ocasião, pedimos aos participantes do grupo que
procurassem uma palavra que pudesse expressar a condição do idoso, na sociedade
atual, e a maneira como eles próprios se percebiam. As respostas foram as mais
diferenciadas, tais como:
Esquecido/ abandonado/ desrespeitado/ Desprezado/ Valorizado/ Experiente/
Incapacitado/ Usado/ Bom/ Conselheiro/ Respeitado na família/ Sentir-se
bem/ Parar no tempo/ Doenças/ Saúde/ Poeta/ Conformado/ Viver melhor/
Espanto/ Disposição/ Felicidade/ Diversão/ Privilégios/ Sair mais/ Ser mais
feliz agora.
O conjunto desses campos de sentidos revela, grosso modo, percepções
associadas a corredores semânticos positivos e negativos. Por um lado, têm-se formas
expressivas associadas a uma vida melhor na velhice, uma fase mais feliz, com poesia,
diversão, saúde, cercada de privilégios, valorizada e desconfinada do lar. Por outro lado,
aparecem imagens extremamente negativas, como a de uma velhice esquecida,
abandonada, desvalorizada, incapacitada e doente.
A coexistência de significações tão contraditórias sugere um momento de
transição do status da velhice, de um lugar desprestigiado para outro um pouco mais
valorizado e dentro de uma demanda social de refuncionalização do idoso. Em nossos
dias, o mercado não descarta mais qualquer espécie de consumidores, criando
necessidades específicas e realizando uma inserção social baseada no consumo. Esse
parece ser o caso da velhice, um dos últimos redutos agora cooptado pela economia
capitalista.
O momento de transição pelo qual passa a velhice parece delinear, na atualidade,
contornos diferenciados e ímpares, tal como se pode constatar a partir das falas
37
anteriormente mencionadas. A descoberta da terceira idade pela sociedade
contemporânea, ainda que diferenciando um segmento da velhice, fomenta outros
olhares construídos acerca do idoso. Em nossa pesquisa, temos por objetivo mapear
algumas ressonâncias da revitalização da figura da velhice, que atualmente surge como
uma importante categoria social e econômica.
A velhice da qual falamos se apresenta a partir de diferentes materialidades,
sujeitos e procedimentos, uma vez que as possibilidades de envelhecimento, na
contemporaneidade, se encontram circunscritas a duas formas de sujeição, a saber, com
o conceito de velhice e com a emergência e difusão do conceito de terceira idade. Cada
um desses aspectos trata da finitude humana com base em objetos, sujeitos,
procedimentos, saberes, instituições, discursos, práticas, regimes de verdade, condições
de exercício de poder e condições econômicas que diferem entre si. Na presente
pesquisa, traçaremos alguns perfis dessas duas faces do envelhecimento, emergentes na
atualidade, mediante ensaios calcados na literatura sobre o idoso e na nossa experiência
de trabalho com grupos da terceira idade.
Como um objeto complexo, o envelhecimento humano se inscreve em diferentes
planos conectados entre si. A compressão do tempo e do espaço, como plano social de
fundo, promove outra inscrição do homem no mundo contemporâneo
9
, cujas
conseqüências ressoam nos modos de ver e experienciar a finitude. A aceleração do
ritmo da vida e a ampliação dos espaços sociais também afetam a velhice, que passa a
ser vista e tratada como uma fase que pode receber algum aditivo, para incrementar a
circulação dos idosos. A ciência e demais produções discursivas, somadas às políticas
públicas, ao criarem a categoria denominada idoso ou terceira idade, promovem um
9
Sobre o assunto, ver HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1998. VIRILIO, P.
Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
38
conhecimento racional e instrumental do qual o mercado se apropria, para produzir
demandas apresentadas como dessa população. A mesmo a memória e a narrativa na
velhice, tidas como bens maiores dessa idade, se encontram diretamente afetadas por
todos esses atravessamentos contemporâneos, os quais fomentam uma relação
diferenciada do homem com o passado, com a experiência narrativa e com a
(im)possibilidade de se ter interlocutores no exercício de rememorar e transmitir um
legado cultural.
Para dar conta de toda amplitude que cerca as apresentações do envelhecimento
do ponto de vista social, em nosso tempo, elegemos algumas temáticas abordadas em
diferentes ensaios, os quais se encontram interligados por diversas linhas, tal qual um
mapa em que várias cidades são conectadas por diferentes estradas. Escolhemos alguns
destinos cujas rotas poderão nos oferecer uma cartografia do envelhecimento. Um
desenho composto de diversos traçados, realizados tanto no encontro com o campo de
trabalho, como também em seu distanciamento. Em cada um desses rabiscos dos
desenhos, foi-nos possível vislumbrar diferentes aspectos da velhice: sua construção
enquanto saber especializado pela ciência, como objeto de intervenção do Estado, como
apropriação pelo mercado capitalista, como possibilidades de vivência do
envelhecimento pelos sujeitos, como objeto imerso nas conjunturas contemporâneas e
tantas outras forças que atuaram em nosso percurso cartográfico.
A pergunta que nos perseguiu, durante todo esse percurso, foi aquela expressa
nos versos de Cecília Meirelles: “Em que espelho ficou perdida a minha face”? Afinal,
se antes a velhice era silenciada, ignorada e escondida, hoje ela está sendo tão exposta,
investigada e colocada em cena por múltiplas imagens e retratos, que chegam a
embaralhar o olhar e a cognição de quem procura enxergá-la com alguma nitidez.
39
Foram tantas as formas surpreendidas por nós em nossa trajetória, que precisamos nos
perder no objeto para que então pudéssemos encontrá-lo.
40
III. METODOLOGIA
A cartografia, de acordo com uma definição geográfica, é a ciência e a arte de
expressar graficamente, por mapas ou cartas, os variados aspectos de uma paisagem ou
de uma superfície. Nessa ciência, o olhar do cartógrafo é parte da construção daquilo
que pretende apresentar. Seu percurso, cujas marcas estão registradas no caminho
percorrido e em seu diário de bordo, é traduzido em cartas que apontam aquilo que e
sente o olhar do cartógrafo.
Nas ciências humanas, a cartografia diz respeito, basicamente, ao mapeamento
de signos, rastreando suas formações, contornos de regiões de produção de sentido,
tensões que divisam e instauram discursos, estratégias de enunciação e toda significação
que recorta um tempo e um lugar. Assim, ela acompanha as modulações que dão formas
significativas às relações e afetos entre os homens
10
.
Como um modo de análise social e de suas narrativas, a cartografia se coloca
como uma das possibilidades de ferramenta, na pesquisa em ciências humanas
11
. Nessa
perspectiva, ela confronta o saber e o fazer pesquisa instituídos na modernidade, tal
como o método cartesiano, que fixa um lugar para o pesquisador e para o objeto que se
deixa conhecer.
Pesquisas que procuram impor suas verdades universalizantes, arrogando para si
o estatuto de ciência, têm por princípio a chamada “neutralidade científica”, ou seja,
supõem o pesquisador como um elemento neutro, no processo de conhecimento da
10
Sobre o assunto, ver ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo.
São Paulo: Estação Liberdade, 1989.
11
Sobre o assunto, ver MAIRESSE, D.; FONSECA, T. M. G. Dizer, escutar, escrever: redes de tradução
impressas na arte de cartografar. Revista Psicologia em Estudo, v.07, n° 2, p. 111-116, dez. 2002.
41
verdade e do saber, sem estar incitado pelo momento histórico, pelas conjunturas
econômicas, políticas e sociais. Como um procedimento tipicamente positivista, a
investigação com base no pressuposto de neutralidade realiza uma cisão entre sujeito do
conhecimento e objeto a conhecer (S/O). Ao sujeito do conhecimento cabe conhecer a
natureza do homem, para conhecer a natureza do objeto, uma vez que seu objeto é o
próprio ser humano. Nesse caso, a metodologia é o que i possibilitar a construção da
natureza em si do objeto, isto é, conceber sua verdade originária e sua essência
12
. Para
Patrícia Kirst (2003), “esse é o indivíduo neutro da modernidade, que esterilizado pelo
método, adquire a assepsia e a pureza necessárias para investigar o real sem infectá-lo”
(p. 93).
Na pesquisa cartográfica, o cartógrafo, parte integrante da investigação, não se
pretende neutro e com um lugar pré-fixado. Dessa forma, nossa cartografia visa a
mapear a produção dos processos de envelhecimento, na dimensão social e histórica,
especificamente os perfis engendrados na velhice e na terceira idade, mediante
concepções criadas sobre elas e as gestões que as tomam como objeto de políticas
públicas, no cenário brasileiro contemporâneo.
Para tanto, foi a partir do encontro entre objeto e cartógrafo que os traçados da
pesquisa ganharam seus contornos. O que se pretende não é a configuração de um mapa,
na sua totalidade homeostática, nem o desvelamento de uma verdade antes oculta.
Nossa ferramenta de pesquisa incita a busca de percursos possíveis, de tal maneira que
escapemos da captura de caminhos anteriormente dados, principalmente aqueles
investidos de bom sentido ou de um sentido verdadeiro.
12
Sobre o assunto, ver DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para
além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
42
As primeiras paisagens de nossa cartografia foram avistadas ainda na graduação,
quando do encontro e experimentação com um grupo de idosos que freqüentavam as
Oficinas de Psicologia, dentro do projeto Universidade Aberta à Terceira Idade, no
campus da UNESP de Assis
13
. A partir dessas oficinas, realizadas semanalmente e
coordenadas por nós, durante mais de quatro anos, surgiram algumas inquietações sobre
essas várias faces do envelhecimento. Rostos que nos apontavam as diferentes
possibilidades de experimentações, como a vivência do luto na viuvez, a constrição ou a
expansão dos espaços de circulação social, a vida de senhora recatada, da apaixonada
pelos bailes da terceira idade, da alegria de ser avó, bisavó, das dores que tomam conta
do corpo, as perdas, a utilização do tempo livre, as saudades e os projetos... Territórios
que nos encorajaram a trilhar os diversos percursos referentes a esse objeto tão
complexo, com diversas materialidades.
Ao longo desses anos de experiência com o grupo de idosos, uma das oficinas
foi deveras intrigante e, ao mesmo tempo, elucidativa. Com o intuito de construirmos
um conceito de velhice, realizamos uma atividade na qual os participantes teriam de se
expressar com gestos e comportamentos típicos, de acordo com as várias idades da vida.
Na fase referida à infância, eles a representaram de forma lúdica, imitando brincadeiras
e fazendo gracejos. O olhar sobre a adolescência foi caracterizado por gestos típicos,
tais como um andar desmazelado, o emprego de uma fala com gírias e trejeitos
consumistas e frívolos. A fase adulta foi caracterizada pela escassez do tempo, na figura
de um adulto envolto com seu trabalho, na correria do dia-a-dia. Por fim, ao
solicitarmos que os idosos representassem a velhice, eles a caracterizaram como uma
13
As oficinas de psicologia com a terceira idade aconteceram semanalmente com um grupo de cerca de
25 idosos. O principal objetivo dessas atividades era o de construir um espaço grupal de expressão e
compartilhamento de experiências comuns a essa faixa etária. A cada encontro, trabalhamos um tema
elaborado previamente a partir de questões emergentes do próprio grupo ou dos coordenadores. A
estrutura das oficinas era baseada no modelo de grupo-operativo de Pichón-Rivière, contemplando
atividades na direção do plano sensorial para o cognitivo e do individual para o coletivo.
43
fase decrépita, como se o corpo estivesse em franco estágio de degenerescência e ruína.
Esses gestos nos chamaram a atenção, pois percebemos claramente que o grupo não se
via nessa condição de velhice. Afinal, que velhice era aquela significada por eles? E
como esse grupo de fato se representava?
Com base nessa atividade, percebemos que um novo movimento se engendrava
entre a idade adulta e a velhice propriamente dita. Uma nova face que, aos poucos, foi
se diferenciando do que habitualmente denominamos velhice. Estávamos lidando com a
terceira idade, que apresenta atributos próprios pela relação do homem com sua finitude,
conforme discutiremos ao longo deste trabalho. Seguramente, essa relação não é a
mesma, tal como foi vivida por gerações anteriores, nem segue um fluxo de tempo
unidirecional. Portanto, trata-se de conhecer as materialidades que estruturam esses
novos desenhos do envelhecimento delineados na contemporaneidade, seja a partir do
encontro direto com o campo de trabalho, seja na literatura sobre o tema.
Em nosso trabalho com idosos, iniciado ainda na graduação, pudemos entrar em
contato com as mais diferentes histórias de vida. Dessa convivência vinda de muitos
encontros, surgiram questões de fundo sobre as expressões da condição da finitude
humana, principalmente com as narrativas da experiência de vida dos integrantes do
grupo. Relevos de uma cartografia dotada de diferentes campos de enunciação.
Para a construção dessa cartografia, foi possível observar alguns desenhos
expressos em ensaios que se fizeram necessários na compreensão do fenômeno da
descoberta da velhice, na atualidade. Por isso, os objetos teóricos a ser utilizados serão
explicitados de acordo com a necessidade da análise, no momento em que cada um
44
deles for útil à leitura de um dado de pesquisa
14
. Nesses esses anos de atuação com o
grupo de idosos, pudemos realizar o registro de algumas falas, histórias e imagens que
serão empregadas conforme o desenrolar de nossa pesquisa. É importante ressaltar que
houve a permissão do grupo para o aproveitamento do material produzido nas oficinas,
uma vez, também, que esse material faz parte da vida desta pesquisadora. Seu conteúdo
está inscrito na memória e no pensamento.
Em nossa pesquisa, elegemos alguns percursos para mapearmos a condição da
velhice e da terceira idade, na contemporaneidade. Para tanto, buscamos na literatura
sobre o tema a emergência dessas categorias nas políticas públicas e na ciência,
especificamente na geriatria e na gerontologia. Tal ferramenta se constituiu necessária e
indispensável para compreendermos as materialidades e os atributos envoltos no
processo do envelhecimento humano, pois o aumento da população idosa e a
conseqüente aliança entre o Estado e a ciência engendraram novas práticas e saberes
que incidem sobre a velhice e a terceira idade, hoje em dia.
Ao nos interrogarmos sobre a condição de envelhecimento na sociedade
contemporânea, alguns relevos cartográficos emergiram em nossa pesquisa, levando-nos
a analisar sua relação com o tempo, o espaço, a memória, o mercado capitalista e a
linguagem, ou seja, as condições de expressão das formas da velhice e da terceira idade,
na atualidade. Tais ensaios estão calcados na literatura sobre o tema e principalmente na
nossa atuação com o grupo de idosos, uma vez que nessa relação sempre procurávamos
questionar o lugar da velhice no tempo presente.
As cartas geográficas não se pretendem findas e definitivas. Assim como as
paisagens físicas, as paisagens sociais também se modificam, ganham outros contornos.
14
Sobre o assunto, ver FERRAZ E FERRAZ, M.G.C. Religare: uma cartografia da fé. Tese (Doutorado).
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1994.
45
O olhar do cartógrafo constrói uma possibilidade de paisagem, mas o mapa se expande
para além de seus contornos. Por isso, a pesquisa deve comportar espaços vazios de
interlocução e de recriação, a partir do encontro entre cartógrafo e seu campo de
trabalho. Esses espaços se fazem necessários, a fim de que a pesquisa tenha autonomia e
possa experimentar as perdas que o conhecimento impõe, porque, de acordo com Kirst
et al. (2003, p. 97), o cartógrafo “também quer perder-se, pois é o único modo de
ganhar: ganhar a experiência de se rever e de manter um certo grau de desprendimento
perante a pesquisa e conhecimento produzido”. Fundamentalmente, o que se pretende é
dar passagem às narrativas e aos afetos da velhice, tantas vezes e por tanto tempo
confinada e silenciada. Por conseguinte, essa cartografia não se constitui enquanto um
fim, e sim como um meio.
46
IV.LINHAS CARTOGRÁFICAS: a velhice e a terceira idade
4.1. Políticas públicas e gestão do envelhecimento
“Os países em desenvolvimento envelhecerão antes de se tornarem ricos”. Foi
com um tom quase profético que a coordenadora do Estudo Global sobre o
Envelhecimento e a Saúde Adulta da Organização Mundial da Saúde (OMS), Somnath
Chatterji, deu sua declaração por ocasião da divulgação de um estudo realizado pela
ONU sobre o envelhecimento da população mundial, em 11 de abril de 2007
15
. De
acordo com a pesquisa, no ano de 2050, a população idosa será maior do que a de
crianças, pela primeira vez na história. Para Chatterji, as conseqüências econômicas e
sociais motivadas por essas projeções devem ser objeto de preocupação pública e
política: [...] minha mensagem é que o envelhecimento da população é algo que deve
ser abordado. Há uma mudança dramática que atingirá tanto o mundo em
desenvolvimento como o desenvolvido”.
Os dados da pesquisa demonstram que, no ano de 2050, as pessoas com mais de
60 anos representarão 32% da população mundial, triplicando dos 705 milhões atuais
para quase 2 bilhões. As projeções indicam um significativo aumento do número de
idosos, em vel global. A Europa deverá ter 35% de sua população idosa; a América do
Norte, 27%; a África, 10%; a América Latina, 24%, enquanto a população infantil deve
diminuir um terço, chegando a 19% nos países em desenvolvimento e a 16% nos
chamados países desenvolvidos.
Dados como esses e tantos outros que dizem respeito à vida humana não são
novidades, na imprensa ou no meio científico. O emprego de estatísticas e de projeções
em pesquisas que envolvem indicadores humanos se constitui numa estratégia para
15
Texto disponível no site http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2007/04/11ult1766u21157.jtm. Acessado
em: 12 abr 2007.
47
sensibilizar e mobilizar tanto os indivíduos quanto os governos para o que parece ser
imprescindível no corpo social: é preciso gerir a vida da população.
Essa gestão
16
envolve uma série de expedientes que auxiliam na construção de
um modelo de gerência da vida humana. A demografia é um desses pilares. De acordo
com o dicionário Aurélio, demografia é o “estudo estatístico das populações, no qual se
descrevem as características de uma coletividade, sua natalidade, migrações,
mortalidade, etc.”. Para a gestão da população, essa ferramenta se torna imperiosa, visto
que está ligada aos dimensionamentos econômicos e sociais, ou seja, aos custos
despendidos no governo das populações. Com base em indicadores, são elaboradas as
políticas públicas que ditam as formas de organização e gestão da vida humana.
Os dados destacados pela ONU, na recente pesquisa sobre o envelhecimento
mundial, mais uma vez buscam alertar para a necessidade de se elaborar políticas para a
velhice. Projeções como essa datam de algumas décadas atrás, quando a população
idosa adquiriu visibilidade por meio de divulgação de estatísticas como as realizadas
pela ONU (Organização das Nações Unidas), pela OMS (Organização Mundial da
Saúde) e pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Os dados
levantados por essas organizações buscavam alertar os governos para a necessidade de
um plano de gestão do envelhecimento populacional, atribuído aos avanços da
medicina, ao aumento da expectativa de vida e à diminuição da taxa de natalidade.
Dessa maneira, a inversão da pirâmide etária acabou por se transformar um problema de
ordem pública, principalmente por acarretar demandas de investimento econômico
dirigidos para a atenção a essa população tida como economicamente inativa.
16
Sobre o assunto, ver: CASTEL, R. A gestão dos riscos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987;
FOUCAULT, M. Seguridad, territorio, población. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2006;
FOUCAULT, M. A “governamentalidade”. In: FOUCAULT, M. Estratégia, poder, saber. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003.
48
No caso do Brasil, a preocupação com a temática do envelhecimento
populacional também se traduziu por meio de divulgação de pesquisas cujos dados
demográficos apontavam um aumento da população idosa, em nosso país
17
. Atualmente,
segundo os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Brasil
conta com uma população de 13 milhões de habitantes com mais de 60 anos, com
estimativas de que, após o ano de 2020, o país terá aproximadamente 30 milhões de
idosos e poderá ser considerado o sexto em população idosa no mundo. A partir de
pesquisas como essa, que destacavam o inexorável aumento do número de idosos, a
velhice acabou por se transformar em um novo problema social para o país.
Desde a década de 50, as pesquisas que abordam o envelhecimento populacional
são amplamente divulgadas, com o intuito de chamar a atenção para o problema social
emergente na época. No entanto, não é o fato isolado do aumento do número de idosos
no país que se constitui por si em uma problemática. Enquanto objeto construído e
produzido historicamente pela sociedade, a velhice tem implicações políticas,
econômicas e sociais que dizem respeito, inclusive, à necessidade de se dar visibilidade
e de engendrar uma política de gestão e controle dessa população em franco
crescimento. O crescimento do número de idosos criou uma preocupação em diversos
segmentos da sociedade acerca dos velhos: o que fazer com esse contingente humano?
Para Milnitzky et al (2004), “a velhice ganha visibilidade quando se e em
xeque a própria sociedade, impondo-se como um risco social, que deve ser enfrentado
17
Sobre o assunto, ver: CANOAS, C. L. A condição humana do velho. São Paulo: Cortez, 1985;
HADDAD, E. A ideologia da velhice. São Paulo: Cortez, 1986; KAUFMANN, T. A idade de cada um:
vida plena na velhice. Petrópolis: Vozes, 1982; MAGALHÃES, D. N. O crescimento do número de
idosos nos países em desenvolvimento. Rio de Janeiro: Boletim Intercâmbio, p. 5-14, out/dez 1986;
MARTINS, E. J. S. De volta à escola: investindo em uma proposta de Universidade Aberta à Terceira
Idade. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista,
Marília,1997; SALGADO, M. A. Aspectos da problemática social do idoso no Brasil e as ações do SESC
de o Paulo. São Paulo: SESC, 1978; SIMÕES, R. Corporeidade e terceira idade: a marginalização do
corpo idoso. Piracicaba: Ed. Unimep, 1998; VERAS, A novidade da agenda social contemporânea: a
inclusão do cidadão de mais idade. Revista A Terceira Idade. São Paulo: SESC – GETI, v. 14, n° 28, p. 6-
29, set. 2003.
49
com políticas públicas” (p. 59, grifos nossos). Que riscos sociais a velhice poderia trazer
ao mundo público? Ao ser enquadrada como categoria de risco, a velhice torna-se um
objeto de gestão e controle social, já que o envelhecimento da população se transformou
em uma espécie de ameaça à continuação da sociedade
18
.
Uma das grandes preocupações de diversos governos refere-se à previdência
social. No Brasil, essa questão tem suscitado muitas discussões e reformas, sem que as
medidas tomadas se revertam na pretendida melhora do que denominam de grande
rombo” nos cofres da previdência. O aumento do número de idosos, nesse sentido, é
tido como um risco à própria continuidade dos benefícios da aposentadoria, hoje um
direito universal em nosso país.
A emergência da aposentadoria no contexto brasileiro pode ser compreendida
como resultado de modificações ocorridas nas práticas de assistência à população
carente
19
. Aos poucos, as empresas e o próprio Estado assumiram um papel até então
ocupado pelas entidades filantrópicas. A institucionalização da aposentadoria, com base
no critério da idade, promoveu uma homogeneização dessa camada da população, ao
relacionar a velhice à incapacidade para o trabalho: “[...] a aposentadoria causou uma
profunda modificação nos significados da velhice. Associando a velhice à invalidez,
tornou a idade um fator determinante para o afastamento do indivíduo do trabalho,
independentemente de suas reais condições de saúde” (GROISMAN, D. 2001, p. 53).
A palavra inativo, de acordo com o Dicionário Aurélio, significa inerte, ou seja,
aquele que não age. Essa designação é bastante utilizada no Brasil para se referir aos
aposentados. Inativos no trabalho ou na economia, como são chamados, muitos idosos
18
Sobre o assunto, ver: DEBERT, G. G. A aposentadoria e a invenção da “terceira idade”. In: DEBERT,
G. G. Antropologia e velhice. Campinas: Textos Didáticos. v.1, n.2, n.13, p. 7-27, 1998; DEBERT, G. G.
A reinvenção da velhice. São Paulo: Edusp, 2004.
19
Sobre o assunto, ver GROISMAN, D. Velhice e história: perspectivas teóricas. Cadernos IPUB
UERJ. Rio de Janeiro, n° 10. 3ª ed, p.43-5 6, 2001.
50
aposentados têm-se dedicado atualmente, contudo, a outras atividades de
complementação de renda. Em algumas cidades, agências especializadas em
empregar esse tipo de mão-de-obra. A necessidade econômica ou o desejo de não se
tornar inativo têm ajudado a promover outras possibilidades de vivência da
aposentadoria, que, presentemente, é um importante meio de sobrevivência de diversas
famílias sustentadas por idosos, além de constituir questão preocupante para alguns
especialistas, os quais acreditam ser necessária uma preparação adequada para entrar
nessa nova fase da vida.
A preocupação com a aposentadoria para a velhice, no Brasil,
20
data de 1923,
quando foram criadas as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs), inicialmente
destinadas aos ferroviários, estendendo-se aos estivadores, em 1926. Desde 1930,
somaram-se às CAPs os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), fundados pelo
Estado, a fim de atender apenas a algumas parcelas da população urbana
economicamente ativa, de acordo com determinadas categorias profissionais. Elaborada
no governo de Getúlio Vargas (1951-1954), a Lei Orgânica da Previdência Social
(LOPS) foi promulgada em 1960, no governo de Juscelino Kubitschek, com o intuito de
uniformizar a legislação previdenciária com relação às contribuições salariais.
Leis e portarias sobre a previdência social foram construídas, derrubadas e
aprimoradas, segundo diferentes governos que ocuparam a presidência do país. É
possível notar que, aos poucos, a previdência social dirigida aos idosos adquire status de
política governamental, sendo necessária sua gerência e controle. Os contornos de uma
velhice como um problema de Estado começam a se delinear.
20
Sobre o tema, ver: HADDAD, E. A ideologia da velhice. São Paulo: Cortez, 1986.
51
Em 1966, ocorre a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e,
em 1973, foi garantida ao segurado da previdência a aposentadoria aos 60 anos para as
mulheres e aos 65 para os homens. A chamada aposentadoria por velhice foi
estabelecida a partir dos 65 anos para mulheres e dos 70 para os homens. As garantias
de aposentadoria normalizadas pela lei acontecem num momento em que a sociedade
civil inaugura o Movimento Pró-Idoso (MOPI), no ano de 1972, o qual, junto a
entidades públicas e privadas, buscava promover a integração e a participação do idoso
no campo social. Nota-se que uma busca pelo reconhecimento do homem idoso
como parte integrante da sociedade, pleiteando-lhe um lugar e algum modo de
participação.
É nos anos de chumbo da ditadura militar, mais especificamente em 1974, que o
então presidente General Geisel assina a Lei 6179, que dispõe sobre o “amparo
previdenciário” para idosos acima de 70 anos e para inválidos incapacitados pelo
trabalho. O direito a meio salário mínimo vigente ou a 60% do salário do local de
trabalho era garantido aos trabalhadores contribuintes do INPS por um período de pelo
menos 12 meses. Esse benefício, muito comemorado e elogiado, na época, foi
concedido num momento em que se apregoava, com ufanismo, o “milagre brasileiro”.
Sob a máscara de seguridade social, seu objetivo era o de reduzir a mendicância na
velhice, tida como um problema nessa época de domínio militar e de atos institucionais.
Ou seja, mais uma estratégia para abrandar, mascarar a miserabilidade social com
medidas populistas e paliativas, ainda hoje empregadas na máquina de produção de
políticas de assistência social.
A criação, ainda em 1974, do Programa de Assistência ao Idoso (PAI), ligado
inicialmente ao INPS, procurou formar Grupos de Convivência com idosos segurados
da previdência, com o objetivo de criar condições de promoção social dos participantes,
52
por meio de uma série de ações, como atividades físicas, recreativas, culturais, etc.
21
.
No ano de 1977, esse programa é expandido para a Legião Brasileira de Assistência
Social e, em 1979, passa a ser responsável pela assistência ao idoso em todo o país, em
parceira com ONGs, Estados e Municípios. Aos poucos, a velhice começa a se tornar
objeto de gestão do Estado por intermédio de medidas que visavam a criar uma imagem
de envelhecimento ativo com base em uma série de programas direcionados aos
idosos
22
, como o mencionado PAI (Programa de Assistência ao Idoso), embrião dos
atuais clubes voltados para o segmento chamado de terceira idade.
A preocupação com o processo de envelhecimento populacional levou, em 1978,
à criação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), na Câmara dos
Deputados federais, a fim de se investigar soluções e práticas para a problemática do
idoso, uma vez que as estatísticas já alardeavam o crescimento do número de velhos, no
país
23
. Na ocasião, o professor de Administração Regional do SESC SP, Marcelo
Antônio Salgado, foi convidado pelos parlamentares para prestar depoimento sobre a
atuação da referida entidade com seu programa direcionado à população idosa.
De acordo com a declaração de Salgado à Comissão, a velhice não se constitui
por si em um problema social e se diferencia das demandas sociais de outros níveis
etários. Na ocasião de seu depoimento, o professor questionou a falta de iniciativas
políticas para com os idosos, alegando que os governantes se voltavam somente para a
juventude e os alertava para a urgência de uma política para a velhice, principalmente
no preparo do indivíduo para a aposentadoria, mantendo-o ativo e útil, pois, quando o
21
Sobre o assunto, ver: SILVA, J. C. Velhice e Assistência Social no Brasil. Revista A Terceira Idade.
São Paulo: SESC – GETI, v. 17, n° 35, p. 54-64, fev. 2006.
22
Sobre o assunto, ver: CARDOSO, D. M. Longevidade de tempo livre: novas propostas de participação
social e valorização do idoso. Revista A Terceira Idade. São Paulo: SESC – GETI, v. 15, n° 30, p. 36-51,
maio 2004.
23
Sobre o assunto, ver: SALGADO, M.A. Aspectos da problemática social do idoso no Brasil e as ações
do SESC de São Paulo. São Paulo: SESC, 1978.
53
aumento do número de idosos no país não é processado pela sociedade, a velhice passa
a ser um problema social e objeto de intervenção política.
Sob a égide do processo de envelhecimento populacional, percebemos que essa
fase da vida acabou por se transformar em uma nova demanda social, com a
necessidade da atuação direta do Estado na elaboração de políticas no direcionamento
da última etapa da vida, para além da questão previdenciária. Além disso, a
aposentadoria já é sinalizada na fala de Marcelo Salgado como um objeto problemático,
no qual seria necessária a preparação do indivíduo para esse ritual de passagem para a
velhice. Nesse sentido, a preocupação da medicina e do Estado também se voltará para
esse aspecto da aposentadoria, principalmente na gestão e administração do tempo
ocioso do idoso aposentado, conforme veremos mais adiante.
No Estado de São Paulo, em 1981, o então governador Paulo Maluf propôs a
criação do Programa Pró-Idoso, cujas diretrizes gerais focalizavam a necessidade de
conscientização e mobilização social no atendimento ao idoso institucionalizado ou não,
além de treinamento de recursos humanos, levantamento de dados sobre a condição do
idoso e estabelecimento de contratos e convênios
24
.
Com o objetivo de fomentar ações de promoção, prevenção e assistência, o
programa visava, por meio da conscientização e mobilização popular, a resgatar o papel
da comunidade e da família, no cuidado ao idoso, a fim de mantê-lo no seio familiar.
Essa estratégia demonstra que a velhice adquire um status de preocupação política com
o reconhecimento da necessidade de uma intervenção do Estado no papel da família, na
sua relação com o idoso. De acordo com Guita Debert (apud GROISMAN, D., 2001, p.
44), “durante muito tempo considerada como própria da esfera familiar, uma questão de
24
Sobre o assunto, ver: HADDAD, E. A ideologia da velhice. São Paulo: Cortez, 1986, p. 75
54
previdência individual ou de associações filantrópicas, ela (a velhice) se transformou
numa questão pública”.
Além disso, com o treinamento de recursos humanos para o atendimento das
pessoas idosas, é possível vislumbrar a tentativa de se construir uma mão-de-obra
especializada para a educação da velhice. Foi na década de 80 do século passado que a
geriatria e a gerontologia começaram a ganhar força e abrangência, dentro do campo da
ciência. Dessa forma, tornou-se necessário formar e sensibilizar profissionais de
diversas áreas da saúde não somente para o cuidado específico dos idosos, mas também
para a consolidação de um saber e de uma categoria social que emergia dentro do
âmbito da saúde.
Outras diretrizes do Programa Pró-Idoso suscitam outros procedimentos de
gestão da velhice, como a atividade de levantamento de dados sobre as condições dos
idosos. Ora, para gerir os corpos é preciso que se saiba quem se está governando. É
possível que, na época da elaboração desse programa, houvesse poucos dados referentes
aos modos de vida do idoso, gerando a necessidade de se ter conhecimento desse objeto
que começava a ter visibilidade. Esse modelo de pesquisa com levantamento de perfil
de população é ainda bastante utilizado, principalmente com o intuito de conhecer as
demandas da comunidade e implementar programas para melhoria da qualidade de vida
dos indivíduos. Tais demandas não deixam de ser socialmente produzidas e incitadas,
inclusive pelos mecanismos de gestão que atuam por meio de programas de assistência,
como os direcionados para a velhice. É interessante notar que a diretriz seguinte do
programa de Paulo Maluf se refere à criação de contratos e convênios possivelmente
para a execução de projetos de intervenção.
55
O plano elaborado para o idoso contou, ainda, com a elaboração de dois
subprogramas: o de Assistência Social ao Idoso Institucionalizado e o de Assistência ao
Idoso em Meio Aberto. Essa medida constitui-se numa tecnologia de controle social
amplo, com vistas à gestão dos corpos, seja nas instituições fechadas (asilos), seja em
espaços sociais abertos. Dentre os objetivos desses dois programas, destacamos o da
valorização do idoso como um ser socialmente útil e vinculado à família e à
comunidade, por intermédio de atividades ocupacionais, grupos de convivência,
recreação, etc. Nesse sentido, a velhice começa a emergir como um objeto a ter
destinação utilitária no meio social, de alguma serventia ou proveito.
O Programa Pró-Idoso não chegou a se concretizar enquanto política pública,
mas se configura como um importante meio para compreender a visão do Estado sobre a
velhice, especialmente numa época em que ela começa a se tornar um problema social,
devido ao aumento do número de idosos, no país.
No mesmo ano em que a ONU (Organização das Nações Unidas) alertou os
países quanto ao indiscutível aumento do número de velhos no mundo, foi instituído o
Ano Internacional do Idoso
25
. Na ocasião, os países integrantes dessa organização foram
convidados a participarem da Assembléia Mundial sobre o Envelhecimento na cidade
de Viena, de 26/07 a 06/08/1982, com a presença de geriatras e gerontólogos de mais de
cem países.
Ao final do evento, foi redigida a Carta de Viena, com um Plano de Ação
Internacional sobre o Envelhecimento, incluindo cerca de cento e vinte recomendações
aos países participantes de sorte a alertar para a necessidade de um planejamento de
25
Sobre o assunto, ver: KAUFMANN, T. A idade de cada um: vida plena na velhice. Petrópolis: Vozes,
1982; MARTINS, E.J.S. De volta à escola: investindo em uma proposta de Universidade Aberta à
Terceira Idade. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista,
Marília, 1997.
56
uma política de atendimento ao idoso nas áreas social, econômica, médica e legal. Nesse
documento, a afirmação de que o envelhecimento bem-sucedido seria possível somente
se houvesse uma parceria entre o Estado e a sociedade civil, apontava a urgência de
adesão social frente aos planos de gestão da velhice, que deveria contemplar os campos
da cidadania, da saúde, moradia, do trabalho e bem-estar. O Brasil, atendendo à
proposição da ONU, instituiu no país o Ano Nacional do Idoso, pelo decreto
presidencial 86.880, de 27/01/1982, e criou uma Comissão Nacional para estudar a
problemática da velhice que se delineava no campo social brasileiro. No Estado de São
Paulo, a Lei Complementar 3464 de 26 de julho de 1982 instituiu o "Dia do Idoso", a
ser comemorado no dia 21 de setembro.
A preocupação mundial com o envelhecimento global, conforme podemos
perceber, data de mais de vinte anos, com divulgação de estatísticas, previsões, alertas e
pesquisas que cada vez mais afirmam a necessidade de se ter o controle social da
população que envelhece. De acordo com Edna Martins (1994, p. 22),
pesquisas sobre o envelhecimento e as várias fases da vida adulta são relativamente
recentes. Consideradas incipientes nas primeiras décadas desse século (XX), foi a
partir dos anos 50 que se assiste à explosão de trabalhos científicos sobre o
envelhecimento, ganhando força e se firmando nos anos 70 e hoje, em todas as
áreas, estão em franca expansão, revelando a preocupação gerada pelo acelerado
aumento de sexagenários do mundo.
Ao mesmo tempo em que se produz o aumento da expectativa de vida, atribuído
principalmente às ciências, tem-se uma preocupação generalizada com esse contingente
humano que exibe uma série de implicações que serão tomadas como objeto de gestão
da velhice: grande número de aposentados, que representam um problema aos cofres da
previdência; uma população que possui amplo tempo livre, o que também será visto
como uma questão de gestão; com o aumento do número de velhos, também um
57
aumento de gastos com essa população, no sistema de saúde pública. Dessa maneira, a
criação de políticas públicas para a velhice respondeu a uma necessidade frente ao
grande desafio na direção e controle dos rumos do envelhecimento.
Ainda no ano de 1982, no Estado de São Paulo, foi assinada a portaria n° 2864
26
,
que dispunha sobre uma série de justificativas para uma política assistencial para a
velhice. Dentre elas, destacamos os serviços prestados pelas entidades assistenciais do
governo, que, de acordo com a referida portaria, seriam de natureza preventiva,
terapêutica e promocional no atendimento às pessoas idosas. As ações de natureza
preventiva deveriam ser dirigidas para o desenvolvimento de atitudes positivas frente ao
envelhecimento. No caso das ações terapêuticas, elas se orientariam para o tratamento
de dificuldades e de problemas referentes aos idosos. Por fim, as atitudes promocionais
deveriam proporcionar ao idoso condições de ser socialmente útil junto à família e à
sociedade.
Percebe-se que as políticas públicas assistenciais se dirigem no sentido de uma
tentativa de otimização da figura do idoso, tornando-o, de alguma forma, útil à
sociedade. O discurso dos estudiosos do envelhecimento
27
, na década de 80 do século
passado, enfatizava que o Estado, o sistema capitalista e a cultura brasileira eram
responsáveis pela desvalorização do idoso, um sujeito sem lugar na organização social,
por ser considerado inativo economicamente, um ônus para a sociedade. Assim, forma,
as políticas voltadas para a velhice começam a ter a tônica de propor programas de
promoção de uma nova imagem do idoso, com ações preventivas que conduzissem para
uma visão positiva do envelhecimento.
26
Sobre o assunto, ver HADDAD, E. A ideologia da velhice. São Paulo: Cortez, 1986.
27
Sobre o assunto, ver DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice. São Paulo: Edusp, 2004.
58
O modelo de assistência tradicional à velhice seria modificado por volta da
década de 1980, partindo de uma política que atendia à parte pobre da velhice para
outras modalidades de ações, com ênfase, sobretudo, em programas que ampliassem
as possibilidades de integração social do idoso; a necessidade do
envolvimento da participação da família, da comunidade e das entidades
assistenciais públicas e privadas que atuam na área de atendimento ao idoso;
a necessidade de planejar, coordenar e controlar os planos e programas a fim
de garantir o funcionamento harmônico das ações em todos os níveis da
administração das entidades do Sistema Nacional de Previdência e
Assistência Social (HADDAD, E., 1986, p. 65).
Aos poucos, o envelhecimento passa a ocupar outro espaço dentro das
preocupações da gestão pública, cujo olhar se volta para uma política principalmente
preventiva e promocional. Nessa época surgem, ainda, leis específicas para a questão
dos maus-tratos na velhice e a iniciativa de criação de um espaço voltado para o idoso.
Em São Paulo, em abril de 1986, por decreto do então governador do Estado Franco
Montoro, foi criado o Conselho Estadual do Idoso, regulamentado no ano seguinte pela
Lei 5763
28
. A função principal desse conselho seria a de formular diretrizes para a
implantação de ações voltadas à defesa dos direitos do idoso, como organização de
debates para a promoção da cidadania, elaboração de medidas normativas junto ao
legislativo, orientação de idosos e estimulação na implantação dos Núcleos Regionais
do Idoso (NRI), no interior paulista.
Essa iniciativa visava estimular a atenção e o apoio da comunidade regional e
local para os idosos por intermédio de núcleos, centros de convívio, clubes e/ou postos
de atendimento para a terceira idade. A promoção de atividades tais como “seminários,
excursões, cursos, gincanas, grupos de teatro, corais, atividades físicas, modalidades
28
Sobre o assunto, ver: MARTINS, E. J. S. De volta à escola: investindo em uma proposta de
Universidade Aberta à Terceira Idade. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade
Estadual Paulista, Marília, 1997.
59
esportivas, são promovidas com o objetivo de extinguir-se pela convivência com seus
pares ou com outras gerações a imagem do idoso como um ser incapaz (MARTINS,
E., 1997, p. 68)”.
É nesse cenário que emerge a terceira idade, grupo etário que se caracteriza por
outras materialidades sobre o envelhecimento, não mais visto como uma fase de
doenças ou do ócio, mas de produtividade, realizações e juventude. Aliás, Magalhães
(1986) a denomina de “segunda juventude”. O próprio conceito de terceira idade
também traz em seu bojo uma revitalização da imagem do envelhecimento
29
, como
pode ser notado numa ocasião em que um clube da terceira idade do interior paulista
criou um lema que expressa muito bem essa nova condição: “Com a idade
envelhecemos, com a terceira idade rejuvenescemos”.
As associações da terceira idade que derivaram desse movimento, hoje presentes
na maior parte das cidades, se constituem num grande meio propagador dessa imagem,
veiculada principalmente nas atividades oferecidas. Nota-se que os Núcleos Regionais
do Idoso surgem com a idéia de promover uma série de ações que imprimem diferentes
marcas: seminários, debates e cursos, que demonstram a necessidade de se ter um
envelhecimento bem informado e conscientizado; as excursões, um meio de promover
maior presença do idoso na cidade e no turismo e também de realização pessoal; as
olimpíadas, gincanas, atividades físicas etc. reforçam que é preciso ter uma velhice
saudável, higiênica e forte. Os núcleos, associações e clubes voltados para os idosos
estão, atualmente, em grande parte das cidades brasileiras.
É preciso ressaltar que tais entidades figuram um importante meio de
associatividade dos idosos, sempre carentes de possibilidades de circular e habitar
29
Sobre o assunto, ver: DEBERT, G. G. A aposentadoria e invenção da “terceira idade”. In: ________.
Pressupostos da reflexão antropológica sobre a velhice. Textos Didáticos. Campinas. v. 1, n.2, n.13, p. 7-
27, 1998.
60
diferentes espaços na cidade. No entanto, muitas vezes esses espaços correm o risco de
funcionar como um gueto de idosos. De fato, o próprio espaço urbano é produtor de
guetificações
30
, quando vislumbramos, por exemplo, os lugares de circulação da
população jovem em determinadas ruas e avenidas, casas noturnas e bares. Nesses
lugares, dificilmente encontramos a presença de idosos. A esses, restam os clubes,
que permanecem entre os seus iguais, tal como acontece em vários outros espaços da
cidade.
A criação dos núcleos para a terceira idade, no Estado de São Paulo, estimulada
pela Lei 5763/1987, é de extrema importância para a análise da revitalização da
figura do idoso. Ao longo das políticas públicas analisadas neste ensaio, percebemos
que o envelhecimento do homem cada vez mais se torna objeto de intervenção do
Estado, desde a instituição da aposentadoria até na sua emergência nas formas de
utilização do tempo livre. Os contornos dessa nova imagem de terceira idade se
configuram na medida em que essa categoria passa do plano do assistencialismo para o
da revitalização, reutilização e otimização da figura do idoso.
A década de 80 do século passado foi, no Brasil, a da descoberta da velhice nas
organizações privadas e na gestão pública
31
. Além disso, é nessa época que surgem,
também, as Universidades Abertas à Terceira Idade
32
. Com projetos que objetivavam o
oferecimento dos recursos das universidades para a melhoria da qualidade de vida e
ampliação das possibilidades de circulação dos espaços sociais dessa população, as
30
Sobre o assunto, ver MAFFESOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades
de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
31
Sobre o assunto, ver DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice. São Paulo: Edusp, 2004.
32
Sobre o assunto, ver MARTINS, E. J. S. De volta à escola: investindo em uma proposta de
Universidade Aberta à terceira Idade. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade
Estadual Paulista, Marília, 1997; SANTOS, C. J. Universidade aberta para a terceira idade: um caminho
de vida. Santos: Leopoldianum, 1997.
61
UNATIs colocaram-se entre as grandes propagadoras dessa nova materialidade do
processo de envelhecimento.
Hoje em dia, essas organizações estão presentes em grande parte das
universidades públicas e particulares e continuam sendo fundamentais para a difusão de
dessa imagem ativa, saudável, empreendedora, capaz de produzir, consumir e participar
de outros campos da sociedade. E é por meio da instituição universitária, que representa
a ciência e o saber, que se tem procurado demonstrar que há possibilidade de vida
saudável para os idosos e que estes devem manter-se ativos no meio social, desfazendo
estereótipos de uma fase marcada pela caduquice, invalidez e inutilidade. Mais uma vez,
uma preocupação em refuncionalizar a figura do velho e redimensionar os processos
de envelhecimento.
A apreensão com os rumos da velhice se expressa com mais intensidade
principalmente a partir de 1982, quando a ONU, conforme mencionamos, decretou o
Ano Internacional do Idoso
33
. É nessa época que a imagem propagada em relação a essa
fase da vida foi profundamente marcada pelos signos da miséria e abandono desses
cidadãos na sociedade brasileira. Para a Associação Nacional de Gerontologia, apesar
do comprometimento do governo brasileiro com o Plano Internacional de Viena,
firmado em assembléia da ONU, os anos seguintes a 1980 foram marcados por
denúncias da pauperização material e física da velhice, sendo que as instituições
assistencialistas eram o único reduto para uma grande parcela da população idosa
34
.
Dessa maneira, aos poucos houve uma tentativa de reconfiguração dos rumos
dessa população, que cada vez mais ganhou espaço dentro do cenário social, por meio
33
Sobre o assunto, ver KAUFMANN, T. A idade de cada um: vida plena na velhice. Petrópolis: Vozes,
1982.
34
Sobre o assunto, ver: SILVA, J. C. Velhice e assistência social no Brasil. Revista A Terceira Idade. São
Paulo: SESC – GETI, v. 17, n° 35, p. 54-64, fev. 2006.
62
de diversas ações. Frente à velhice pauperizada, abandonada e asilada, criaram-se
políticas de assistência terapêuticas. Uma nova imagem foi se desenhando, com traços
mais revitalizadores, por ações de promoção e prevenção, no sentido de transformar o
idoso em um cidadão de direitos e protegido por lei, útil à sociedade, com maior
participação na família e na comunidade, apresentando o envelhecer como uma fase
positiva da vida.
Em virtude das determinações da constituição de 1988, que propiciou a
participação da sociedade civil no desenvolvimento de políticas públicas através de
conselhos, foi elaborada, em 1994, a Lei 8842 que dispõe sobre a Política Nacional
do Idoso, regulamentada, em 1996, pelo Decreto 1948
35
. Um dos objetivos dessa
política voltada ao idoso foi o de estabelecer uma “política de direito”, com garantia de
renda, de vínculos relacionais, proteção social e promoção da cidadania, em ações
executadas nos municípios, com a parceria da sociedade civil. Por meio dessa política
em âmbito nacional voltada para o idoso, criou-se o Conselho Nacional do Idoso, cujas
ações estariam direcionadas, dentre outras providências, para a substituição dos asilos
por centros de convivência e estimulação à assistência ambulatorial e domiciliar. As
ações programáticas teriam como público-alvo os idosos a partir dos 60 anos e o
benefício da prestação continuada seria destinado àqueles com mais de 70 anos.
À época da elaboração dessas políticas para os idosos, o IBGE ressaltava que a
população idosa no Brasil era de 12 milhões de brasileiros acima de 60 anos, com uma
taxa de crescimento anual de 3,5%, enquanto a população como um todo crescia 2%.
35
Sobre o assunto, ver: MARTINS, E.J.S. De volta à escola: investindo em uma proposta de
Universidade Aberta à Terceira Idade. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade
Estadual Paulista, Marília, 1997; MILNITZKY, C., et. al. Políticas públicas e envelhecimento: conquistas
e desafios. Revista A Terceira Idade. São Paulo: SESC-GETI, v.15, 31, p. 54-69, set. 2004; SILVA, J.
C. Velhice e assistência social no Brasil. Revista A Terceira Idade. São Paulo: SESC GETI, v. 17,
35, p. 54-64, fev. 2006.
63
Projetava-se, entre 1985 e 2005, um crescimento de 94% do número de idosos.
Projeções como essa colocaram a questão do envelhecimento da população como um
problema para a administração pública, que via nesse fator uma questão econômica para
os cofres públicos. De acordo com Edna Martins (1997, p. 55),
se no Brasil, em 1986, 48% dos benefícios sociais eram absorvidos com
pessoas com mais de 55 anos, a previsão para o ano de 2010 é de que
praticamente toda a verba oficial seja consumida por essa faixa etária se não
se adotarem políticas de atuação adequadas a essa questão.
A preocupação com os gastos com essa faixa etária tornou-se um desafio para a
gestão pública, principalmente nas áreas da previdência social e da saúde. A previdência
social é ainda um grande problema para muitos países, que procuram por meio de
reformas uma maneira de equilibrar os gastos previdenciários, o que reflete diretamente
no orçamento dos idosos. O Brasil, em um estudo comparativo com outros vinte países,
de acordo com uma pesquisa realizada pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada)
36
, é o país que oferece a maior facilidade para o indivíduo se aposentar.
Ainda de acordo com a análise feita pelo instituto, praticamente em nenhum país do
mundo um trabalhador pode se aposentar antes dos 60 anos, a não ser no Brasil. Dessa
forma, a previdência brasileira é tida como uma bomba-relógio prestes a ser detonada,
em virtude dos altos gastos com o pagamento de aposentadorias e pensões.
O gasto da Previdência Social no começo dos anos 90 não chegava a 6% do
Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Atualmente, essa conta chega a 11,5%, de acordo
com a referida pesquisa do IPEA. Com o país cada vez mais envelhecido, a conta tende
a aumentar e transformar-se em um problema ainda maior. Várias reformas foram
realizadas e outras certamente estão por vir num futuro próximo.
36
Pesquisa disponível no site
http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/publicacoes/bpsociais/bps_13/PrevidenciaSocial.pdf. Acessado em 02
mai 2007.
64
Com relação aos gastos com a saúde pública, a velhice também se coloca como
um problema para os governantes. De acordo com Renato Veras (2003), o gasto do
Ministério da Saúde com os idosos, envolvendo médicos, ambulatórios, hospitais e
exames, é de cerca de 25% a 30% da verba total destinada à saúde pública. Ainda
segundo o autor, 1/10 da população consome 1/4 do orçamento da saúde, ou seja, algo
em torno de 7 bilhões de reais despendidos na atenção à saúde do idoso.
Diante dessas cifras, o autor alega que se gasta muito com essa faixa etária e se
gasta mal, pois esse montante é utilizado no atendimento às doenças na velhice,
enquanto deveria ser dirigido para ações preventivas para diminuição de despesas. A
proposta-chave para o grupo dos idosos seria a de postergar o início da doença, através
do seu adequado monitoramento
37
. Mais uma vez, a velhice é colocada como um risco à
administração do mundo social, urgindo medidas de gestão e controle dos idosos, a fim
de que se possam minimizar custos de uma população que, além de tudo, é tida como
economicamente inativa e onerosa.
uma preocupação com a saúde e a qualidade de vida do idoso, mas, para
Renato Veras, “é reconhecido que o custo da saúde é muito alto, apesar de ser
fundamental para qualquer sociedade. Por este motivo, as políticas precisam ser
eficientes, contemporâneas e elaboradas por profissionais qualificados e experientes”
(op. cit., p. 15). As políticas públicas, nesse sentido, necessitam, de fato, serem
eficientes para que se possa ter uma otimização dos custos despendidos com a saúde e
ainda produzir mais-valia social.
37
Sobre o assunto, ver: VERAS, R. A novidade da agenda social contemporânea: a inclusão do cidadão
de mais idade. Revista A Terceira Idade. São Paulo: SESC – GETI, v. 14, n° 28, p. 6-29, set. 2003.
65
Para a maximização dos custos com a saúde, o autor defende que a educação
seria um facilitador para a manutenção da capacidade funcional do idoso e no
envelhecimento com qualidade de vida. A educação para a velhice estaria atrelada à
saúde, no sentido de influenciar alguns aspectos:
permitindo maior acesso a cuidados médicos;
aumentando o conhecimento sobre comportamentos de saúde mais
apropriados;
estimulando a atividade mental e funções cognitivas, e retardando, por
exemplo, o desenvolvimento da doença de Alzheimer. (op. cit., p.
16).
A educação do corpo do idoso com estratégias como essas reflete sua
pedagogização por meio do saber médico, de uma educação para a saúde e da prevenção
dos males do envelhecimento
38
. A função da educação atualmente tem assumido um
caráter de vigilância e gestão dos corpos, atuando como um agente preventivo,
conforme podemos verificar, no caso da velhice. A utilização dessa nova estratégia
empregada em políticas públicas tem provocado um alcance para além da vida do
indivíduo. “Em outras palavras, investimento em educação traz benefícios que
ultrapassam o campo restrito desse saber” (VERAS, R. 2003, p. 16). De fato, os
beneficiários desse novo modelo de assistência baseado na prevenção pela educação
são, mais do que os cidadãos, as engrenagens da máquina capitalista, a produção de
mais-valia, a economia de gastos públicos, além de se obter como resultado corpos
saudáveis, úteis e governados.
Para a pedagogização do envelhecimento, o Estado e a medicina caminham lado
a lado, numa relação de comensal, na qual ambos são beneficiários de um mesmo
objeto, sem que haja prejuízos a nenhum dos dois. O Estado minimiza custos e a
medicina se fortalece enquanto campo de saber sobre o corpo, tal como se pode
38
Sobre o assunto, ver HADDAD, E. A ideologia da velhice. São Paulo: Cortez, 1986.
66
depreender da seguinte afirmação: “[...] os estudos vêm demonstrando que ações
apropriadas de saúde, ou ainda, uma prática médica mais resolutiva, não permitem
uma melhoria do estado geral de saúde do paciente como também a diminuição dos
custos” (op.cit., p. 23)
Nessa perspectiva, a aliança entre esses dois segmentos se expressa através de
políticas preventivas para o envelhecimento sadio, promovendo o ideal de um corpo
envelhecido, porém de espírito jovem, saudável e sem as indesejáveis marcas e doenças
de um homem velho.
Por fim, a criação, em 2003, do Estatuto do Idoso, aparece como um marco para
as políticas dirigidas à velhice no sentido de reconhecer, por lei, os direitos e deveres
dessa fase da vida, assegurando prioridades e protegendo-a de maus-tratos, com uma
legislação específica
39
. As garantias de acesso a direitos fundamentais se apóiam no
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à
cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
O estatuto oferece ainda proteção ao idoso contra a negligência, discriminação,
violência, crueldade e opressão.
A promulgação do estatuto do idoso inaugura um novo olhar ao processo de
envelhecimento do homem, haja vista que ela é singularizada de outras fases da vida em
termos legais. É certo que muitos motivos para se comemorar essa conquista dos
idosos. Todavia, as garantias assinaladas na lei precisam ganhar corpo no mundo social,
porque muitas vezes, no cotidiano de muitos idosos, elas permanecem em um plano
virtual e desconhecido.
39
Sobre o assunto ver, CENEVIVA, W. Estatuto do idoso e Constituição Civil: a terceira idade nas
alternativas da lei. Revista A Terceira Idade. São Paulo: SESC – GETI, v. 15, n° 30, p. 7-23, maio 2004.
67
4.2. O papel da ciência na construção de saberes e práticas sobre a velhice.
Como produtora de modos de ser, a partir da observação e intervenção no corpo,
a medicina, enquanto ciência, emerge como grande aliada na produção de subjetividade
em torno do envelhecimento humano. Esse processo é a matéria-prima da evolução das
forças produtivas do capitalismo, que ditam maneiras de ser e perceber o mundo
40
.
Em conseqüência, a velhice, tida como um processo natural do desenvolvimento
humano se constitui, na realidade, em uma velhice fabricada, produzida e incitada, tal
como a percebemos atualmente, dentro de uma lógica de mercado que visa a
sustentabilidade da máquina capitalista. Dessa forma, é notável o quanto a ciência
médica contribui com relação ao lugar e ao papel destinados aos idosos nos atuais
contornos do mundo contemporâneo, pois
tais mutações da subjetividade não funcionam apenas no registro das
ideologias, mas no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de
perceber o mundo, de se articular com o tecido urbano, com os processos
maquínicos do trabalho, com a ordem social suporte dessas forças produtivas.
(GUATARRI, F. & ROLNIK, S., 1986, p. 26)
O discurso científico produzido sobre o corpo envelhecido freqüentemente
aparece com pressupostos processos biológicos universais, descolados de um contexto
sócio-histórico que estimula modos de produção sobre o corpo do idoso. O recorte da
vida baseado no modelo etário toma o processo de envelhecimento como algo natural e
universal. Ao considerar esse processo como algo naturalmente produzido pelo corpo
biológico, são definidas categorias universalizantes sobre o que, do envelhecer, é natural
40
Sobre o assunto, ver: GUATARRI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis:
Vozes, 1986.
68
para todos, sem que se levem em conta as dimensões sociais da produção do
envelhecimento
41
.
A divisão da vida humana em estágios diferenciados, com fundamento no
critério etário produz modos de ser próprios de uma determinada fase da vida, tal como
acontece, por exemplo, na prática médica ou na psicologia do desenvolvimento. Desse
modo, diferentes práticas de intervenção são lançadas sobre o corpo, baseadas nesse
processo de diferenciação dos corpos.
Com relação à velhice, a ciência ocupa um importante papel em algumas
tecnologias de diferenciação que singularizaram a velhice de outras fases da vida
42
. Esse
processo se deve à emergência da velhice enquanto uma entidade demográfica: “para
alguém ser velho, apenas é necessário que envelheça. Entretanto, para se tornar parte de
uma população de pessoas idosas, se requer que essa pessoa seja absorvida por um
discurso específico de diferenciação” (GROISMAN, D., 2001, p. 50).
Uma dessas tecnologias de diferenciação seria a constituição de um saber
específico sobre o corpo nessa fase da vida, o qual se configurou na ciência através do
nascimento da geriatria e da gerontologia
43
no início do século XX. Até então, de
acordo com Guita Debert (2004), o interesse científico em relação à velhice
41
Sobre o assunto, ver DEBERT, G.G. Pressupostos da reflexão antropológica sobre a velhice. Textos
Didáticos. Campinas. v.1, n.2, n.13, p. 7-27, 1998.
42
Sobre o assunto, ver GROISMAN, D. Velhice e história: perspectivas teóricas. Cadernos IPUB
UERJ. Rio de Janeiro, n° 10, 3ª ed., p.43-5 6, 2001.
43
A geriatria se constitui numa especialidade médica destinada ao estudo e tratamento das patologias da
velhice. a gerontologia visa o estudo multidisciplinar dos processos de envelhecimento, passando pela
biogerontologia até a gerontologia social, com a participação de profissionais de várias áreas do
conhecimento, principalmente da saúde e das ciências humanas. Essas duas disciplinas têm uma relação
de intrínseca proximidade, sendo que quando nos referimos ao “saber gerontológico”, não estamos
excluindo a geriatria. Sobre o assunto, ver: GROISMAN, D. Velhice e história: perspectivas teóricas.
Cadernos IPUB – UERJ. Rio de Janeiro, n° 10, 3ª ed., p.43-5 6, 2001.
69
permanecera por muitos anos restrito a uma procura em explicar as causas do
envelhecimento e os possíveis métodos para retardá-lo.
Nos séculos XVIII e XIX, a velhice, para a medicina, não era considerada uma
categoria separada de outros pacientes, portanto, não demandava tratamentos
específicos, de sorte que as intervenções terapêuticas sobre as doenças não levavam em
conta as diferenças de idade
44
. É certo que se admitia que essa fase da vida fosse dotada
de características e doenças tidas como próprias da idade, mas esse fato não afetava
diretamente os modos de se tratar tais males. As moléstias advindas desse corpo eram
tomadas como inevitáveis, uma vez que “a debilidade da saúde dos velhos não era
considerada um estado amenizável ou curável. Pelo contrário, os médicos acreditavam
que esta seria a qualidade essencial e irremediável do processo de envelhecimento”
(GROISMAN, D., 2002, p.69).
O corpo envelhecido era visto como um declínio da energia vital do corpo
humano, desgastado pela ação do tempo. Dessa maneira, a velhice se constituía no
irremediável destino humano, acreditando-se que não havia muitas opções de medidas
terapêuticas junto ao idoso, fato que contribuía para que esse assunto não suscitasse
muito interesse dentro da classe médica.
Algumas mudanças do olhar médico sobre esse processo começaram a se
delinear ao longo dos séculos XVIII e XIX, permitindo a construção de um saber
específico sobre esse objeto por meio do estudo da anatomia patológica, a qual buscava
na superfície corpo os sinais da doença. Assim, essa categoria seria diferenciada em
relação ao corpo jovem de acordo com os sinais que os distinguiam. Para a ciência, as
marcas do corpo passaram a denunciar as diferenças entre os indivíduos.
44
Sobre o assunto, ver GROISMAN, D. A velhice, entre o normal e o patológico. História, Ciências,
Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 9 (1): p. 61-78, jan.-abr. 2002.
70
O grande asilamento no século XIX
45
proporcionou a construção de um saber
mais específico sobre o corpo envelhecido. À época, em Salpêtrière, o número de idosos
asilados era de cerca de dois a três mil, facilitando a coleta de dados clínicos. Charcot
proferira muitas palestras nessa instituição, posteriormente publicadas em 1866, com
grande repercussão. O modelo de atenção à velhice, antes preventivo, dera lugar ao
terapêutico, com a preocupação em cura-la. Defendendo que essa nova categoria do
corpo, a velhice, deveria ser considerada um objeto à parte, de acordo com suas
patologias, Charcot e outros pesquisadores começaram a definir uma base clínica para a
senescência.
Outras importantes contribuições para o estudo do envelhecimento, na época,
foram as pesquisas de Bichat, cuja teoria concebia que a doença se originaria na
deterioração dos tecidos e, conseqüentemente, nos órgãos. Dessa forma, o processo de
envelhecimento estaria ligado a um processo de morte, uma vez que os tecidos se
deteriorariam. De acordo com Daniel Groisman (2002, p. 69), “a partir do trabalho de
Bichat, o corpo envelhecido passaria a ser reconhecido como um corpo morrendo”. Essa
visão ainda permanece no imaginário social, que na velhice a finitude humana, cujo
destino é esperar a morte chegar.
De fato, com as autópsias realizadas em idosos, os pesquisadores descobriram
sinais de esclerose e deterioração de tecidos e órgãos. Acreditava-se, por conseguinte,
que o envelhecimento fatalmente produziria doenças físicas e mentais, de maneira que o
destino da velhice estaria selado: ela passou a ser tomada como uma fase distinta e
irreversível da vida humana.
45
Sobre o assunto, ver: BEAUVOIR, S. A Velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990; FOUCAULT,
M. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004; FOUCAULT, M. A História
da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2002; GROISMAN, D. Velhice e história:
perspectivas teóricas. Cadernos IPUB – UERJ. Rio de Janeiro, n° 10, 3ª ed., p.43-5 6, 2001.
71
Seria praticamente impossível que o corpo pudesse retornar à sua condição
original. Como afirma Haber, a senescência passou a ter a sua própria
natureza fisiológica. Ela diferiria da juventude de tal maneira que um
observador não treinado não poderia compreender suas especificidades.
Numerosos textos médicos passaram a descrever a fisiologia e a
anatomopatologia da velhice. O velho, assim como os outros grupos etários,
necessitaria ser tratado de acordo com os padrões apropriados para sua faixa
etária (GROISMAN, D., 2002, p. 71)
É interessante notar as imagens evocadas tendo em vista a palavra final dada
pela ciência a respeito da velhice: ela é um processo fatal, irremediável, inevitável, tal
como em uma tragédia grega. Impossível escapar de suas conseqüências, do declínio e
da deterioração do corpo humano. Um corpo marcado pelo tempo e por olhares
produtores de sentidos. A singularização da velhice, por esse recorte médico, foi um
marco no sentido de apontá-la como um estado patológico qualitativamente
diferenciado, dotado de um funcionamento peculiar e com uma necessidade de
intervenção terapêutica própria.
Desde o final do culo XIX, a velhice ganha contornos mais definidos, quando
a importância do tecido humano aumentou e as lentes sobre o corpo focalizaram uma
unidade ainda mais reduzida e singular: a célula
46
. Ela passaria a ser responsável tanto
pelo desenvolvimento e crescimento humano, quanto pelo processo de envelhecimento.
Com seus microscópios, os cientistas afirmaram que a renovação celular era deficitária
nos idosos e, ainda, que a própria composição da célula havia se modificado. Percebe-se
que, no processo de delineamento da velhice enquanto objeto médico, essa fase da vida
foi aos poucos sendo reduzida e singularizada, dotada de particularidades específicas de
uma dada faixa etária. As lentes do microscópio foram captando sinais de diferenciação
em unidades cada vez menores, cada vez mais específicas.
46
Sobre o assunto, ver GROISMAN, D. A velhice, entre o normal e o patológico. História, Ciências,
Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 9 (1): p. 61-78, jan.-abr. 2002.
72
Se anteriormente a velhice não era diferenciada em relação a outras idades da
vida, com uma visão de corpo dotado de um princípio vital que se desgastara e não
havia como recuperar, aos poucos essa visão foi se especializando e individuando a
velhice como objeto médico. Ao estabelecerem sinais de uma composição de tecido
diferente do corpo jovem, os pesquisadores da ciência médica afirmaram que, na
realidade, ela necessitava de um tratamento específico. Essa produção de uma demanda
em particular assinala o quanto o corpo envelhecido é incitado socialmente para
legitimar saberes e práticas dentro de um campo específico, que essa concepção de
envelhecimento baseada no modelo da degeneração celular, do aparecimento de
doenças e de mudanças fisiológicas foi a base para o surgimento da geriatria, no início
do século XX.
Foi o médico americano Nascher quem introduziu o termo geriatria em 1909 em
um artigo para a comunidade médica e na publicação do livro em 1914 sobre as doenças
da velhice e seus tratamentos, procurando construir uma base clínica que diferenciasse
essa fase dentro do ciclo de vida
47
. A visão de envelhecimento associado a uma etapa de
degeneração celular é assumida pelo médico, que se dedicava “a detalhar com o
máximo de precisão a maneira como os velhos deveriam ser diferenciados a partir de
seus corpos, e como esses corpos deveriam ser pesquisados” (GROISMAN, D., 2002, p.
70).
Em sua publicação, Nascher atribuiu à degeneração celular uma série de fatores
como a queda dos cabelos, dos dentes, as rugas, as atrofias, a esclerose e outras
patologias que fariam parte de um processo normal de envelhecimento. Para o médico, a
degeneração celular interna, associada ao declínio físico externo, afetaria as
47
Idem.
73
características mentais e o comportamento dos corpos velhos, fazendo surgir
características como a avareza e o interesse sexual exacerbado.
Com sua pesquisa, o médico americano tencionava chamar a atenção da classe
médica para a urgente necessidade da criação de uma especialidade própria para esse
estado do corpo. Com um discurso em que o normal e o patológico não tinham limites
definidos nessa fase da vida, Nascher acreditava que, com a geriatria, “os médicos
estariam capacitados para estabelecer as diferenças entre as mudanças fisiológicas e
patológicas e tratar somente as doenças – e não as condições normais da velhice” (op.
cit., p. 71). O critério para definir o que é normal, nessa fase da vida, estaria
severamente comprometido devido ao grande número de doenças tomadas como
próprias do idoso, atribuídas à degeneração celular e fisiológica. Assim, o critério de
saúde/doença tornava-se praticamente uma questão de opinião pessoal, de acordo com a
avaliação do médico.
Durante muitos anos, a geriatria não despertou muito interesse da classe médica,
que permaneceu atuando em áreas mais lucrativas e populares. O início da geriatria
apresentava uma série de contradições e sua proposta terapêutica era centrada em
práticas pouco ortodoxas com relação a outros campos da medicina, como a prescrição
de tônicos e estimulantes, atividades ocupacionais e de jardinagem, leitura, sugestão de
escutar música, ter uma companhia etc.
48
.
É certo que atividades como as descritas acima são prazerosas e estimulantes,
mas, de fato, parece-nos estranho um médico receitar tais práticas em uma consulta.
Entretanto, elas entraram no domínio de prescrições médico-terapêuticas,
principalmente na atualidade. Qualquer atividade prazerosa, como bordar ou dançar, é
48
Sobre o assunto, ver GROISMAN, D. A velhice, entre o normal e o patológico. História, Ciências,
Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 9 (1): p. 61-78, jan.-abr. 2002.
74
naturalmente receitada com a alegação de promover um envelhecimento com
“qualidade de vida”. Exemplo dessa prática pode-se vislumbrar em uma pesquisa com
idosos em bailes da terceira idade, na qual um pesquisador pergunta: “[...] por que o
senhor vem ao baile?”. Diz o entrevistado: “[...] os médicos recomendam. É bom para
evitar a depressão [...].” (ZAGO, A.; SILVA, A., 2003, p. 68). Aquilo que poderia ser
oportunidade de lazer, de encontros, de prazer e diversão, torna-se prescrição,
procedimento médico.
No Brasil, a primeira sociedade de geriatria foi fundada em 1961
49
. Atualmente,
essa especialidade é um ramo emergente na medicina, com um campo de atuação bem
delineado. Ela foi uma tecnologia fundamental para o estabelecimento da velhice
enquanto uma categoria de diferenciação, juntamente com a gerontologia.
Além do discurso de singularização do velho em relação ao seu corpo
envelhecido, esse processo se daria também em razão de seus comportamentos e suas
condições sociais, tornando-se por fim uma entidade demográfica, uma população
específica evidenciadas por outras tecnologias de diferenciação dos corpos aliadas com
as práticas geriátricas e gerontológicas
50
.
O nascimento da gerontologia enquanto disciplina é mais complexo que o da
geriatria. Esse termo teria sido cunhado, em 1903, pelo médico Metchnikoff, para
designar o estudo das possibilidades do prolongamento da vida por meio de
intervenções médicas. O conceito de gerontologia se expandiu, tornando-se um campo
49
Sobre o assunto, ver DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice. São Paulo: EDUSP, 2004.
50
Sobre o assunto, ver GROISMAN, D. Velhice e história: perspectivas teóricas. Cadernos IPUB
UERJ. Rio de Janeiro, n° 10 3ª ed., p.43-5 6, 2001.
75
multidisciplinar por volta dos anos 30, no Brasil. Na referida época, a velhice passa a se
constituir em objeto de interesse principalmente das ciências sociais e da psicologia
51
.
Nos anos 60 do século passado, a velhice começa a ocupar as páginas de revistas
médicas, na discussão de temas relacionados à área da saúde. Nessa época, também
foram criadas associações e sociedades de geriatria, além do programa para a terceira
idade no SESC em 1963, um dos pioneiros a dirigir atividades para essa faixa etária.
Aos poucos, a temática da velhice começa a fazer parte das preocupações acadêmicas,
especialmente na década de 70 do mesmo século, quando ela se torna objeto de pesquisa
em diferentes ramos do conhecimento, com maior presença na pós-graduação de
diversas universidades.
É interessante notar que foi nos anos de 1970 que Simone de Beauvoir lançou o
livro A velhice, considerado uma leitura obrigatória no que se refere ao estudo e à
pesquisa do envelhecimento. Em sua obra, a autora conclama os leitores a ajudá-la a
quebrar a “conspiração de silêncio” em torno da velhice, um tabu para a medicina, as
artes, as políticas públicas e a sociedade em geral. Por denunciar a finitude humana, a
velhice seria um assunto triste e desagradável para se falar ou pesquisar. Essa obra teve
grande impacto nas ciências humanas, em particular a psicologia e a sociologia, o que
pode ter contribuído para que a temática da velhice começasse a ganhar mais espaço
dentro dessas áreas.
A constituição da gerontologia enquanto um campo específico de saber
52
se
configurou enquanto um conjunto de disputas, no qual o discurso dos gerontólogos
brasileiros se empenhava em transformar a velhice em uma questão política ou propor
práticas para um envelhecimento saudável. A denúncia da falta de tratamento aos idosos
51
Sobre o assunto, ver DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice. São Paulo: EDUSP, 2004.
52
Sobre o assunto ver DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice. São Paulo: EDUSP, 2004.
76
buscava romper o “pacto de silêncio”, em função de quatro elementos evocados no
discurso gerontológico.
Primeiramente, a ameaça da explosão demográfica, que, nas décadas de 1970 e
1980, denunciavam um crescimento vertiginoso da população brasileira, com projeções
alarmantes para um futuro próximo, como a estimativa de que haveria um crescimento
de 94% da população idosa no Brasil entre 1985 e 2005
53
. Essas pesquisas, reiteradas
ainda hoje, prestam-se para sensibilizar governos e justificar a efetivação de políticas
públicas para conter vertiginosos gastos públicos com saúde ou previdência que
colocam em risco a própria reprodução da vida social, como numa “crônica da crise
anunciada”. Nesse sentido, o uso do discurso da explosão demográfica igualmente
contribui para legitimar a própria gerontologia e a necessidade de implementar ações
voltadas para preconizar um envelhecimento com “qualidade de vida”
54
.
Outro elemento organizador do discurso gerontológico foi a crítica ao
capitalismo e ao sistema econômico-social brasileiro
55
. A denúncia da desvalorização e
do desamparo na velhice pautava-se na idéia de que o idoso, não sendo útil enquanto
mão-de-obra, era desertado pelo Estado e pela sociedade. Nas palavras de Simone de
Beauvoir (1990, p. 13), “a economia é baseada no lucro; é a este, na prática, a que toda
civilização está subordinada: o material humano só interessa enquanto produz”. Como o
velho não estaria inserido num contexto de produção de mais-valia, ele seria objeto de
exclusão social, acentuada principalmente na velhice menos favorecida financeiramente.
53
Sobre o assunto ver MARTINS, E.J.S. De volta à escola: investindo em uma proposta de Universidade
Aberta à Terceira Idade. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual
Paulista, Marília, 1997.
54
Sobre o assunto, ver TRENTINI, C.; XAVIER, F. M.; FLECK, M. P. Qualidade de vida em idosos. In:
Cognição e envelhecimento. Porto Alegre: Atrmed, 2006.
55
Sobre o assunto, ver DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice. São Paulo: EDUSP, 2004.
77
Talvez, na atualidade, essa crítica ao capitalismo tivesse que ser reformulada,
quiçá invertida. O mercado descobriu que até mesmo a velhice pode ser produtiva e
render lucros. Ainda que se possa dizer que os aposentados são inativos no trabalho ou
na economia, eles têm sido alvo de grande investimento do capitalismo, que soube ser
visionário, ao enxergar nos idosos um potencial mercado de consumo. Hoje em dia,
uma série de produtos e serviços destinados a essa população, de viagens a
empréstimos, de remédios a produtos de pet shop, além das casas de repouso e de
condomínios específicos para a velhice. O sentido da aposentadoria parece ter-se
modificado, passando de um direito a um valor de mercado.
A crítica à cultura brasileira, cujos interesses se inclinariam em cultuar o novo e
a juventude, se constitui no terceiro elemento do discurso gerontológico. Conhecido
como um país de jovens, haveria no Brasil maior preocupação em absorver as novidades
advindas principalmente do exterior, o que conseqüentemente não propiciava um culto
às tradições. De acordo com Guita Debert (2004, p. 200),
a idéia de um país sem memória, que despreza o seu passado, usada por
historiadores e políticos, é para o discurso gerontológico a prova do descaso
com que os velhos são tratados pela sociedade de uma justificativa central
para os trabalhos interessados em recuperar a memória dos idosos.
A importância de promover a memória do idoso foi uma tônica em diversos
trabalhos, na década de 1980. Talvez o seu maior expoente tenha sido a obra de Ecléa
Bosi, intitulada Memória e Sociedade: lembrança de velhos, outra importante referência
acadêmica sobre a velhice. Nela, a autora versa sobre a memória de idosos na cidade de
São Paulo, destacando o papel essencial da narrativa oral, que seria um trabalho
artesanal de comunicação
56
. Para ela, o idoso estaria confinado em suas próprias
56
Sobre o assunto ver BOSI, E. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1987.
78
lembranças, por não encontrar ressonância no meio social: “[...] ele não pode mais
ensinar aquilo que sabe e que custou uma vida inteira para aprender” (BOSI, E. 1987, p.
37). O livro de Ecléa Bosi teve importante difusão no meio acadêmico, até então carente
de trabalhos direcionados para o debate sobre a condição do idoso.
Outros pesquisadores na década de 80
57
também reforçaram o discurso sobre a
importância da memória do idoso, desprezada pela sociedade brasileira, enfatizando a
necessidade de elaboração de práticas que visassem à promoção da atividade
memorativa em velhos:
A sociedade brasileira oferece ao idoso pouca oportunidade para ativar e
exercitar sua lembrança, tão importante ao diálogo com as demais gerações.
Contemporâneo ou não, o diálogo é indispensável ao exercício do
pensamento. A sociedade dominante tem, ao contrário, estimulado o
esquecimento. O que foi produzido no passado não tem interesse hoje e
possivelmente será esquecido amanhã (MAGALHÃES, D. 1986, p.
11).
A sociedade produtivista e consumista seria responsável pela perda da função
social do idoso, qual seja a de ser a memória de seu tempo: “Em nossa opinião, o grande
esquecido foi o sujeito da história do Brasil: o nosso homem comum. Não se cultiva a
memória dele, não se recorda a sua obra” (CARRATO, J. F., 1987, p. A-3). Além
disso, o culto aos valores jovens igualmente levaria à exclusão do idoso enquanto
sujeito: “Na realidade, o brasileiro não tem sabido envelhecer, e, influenciado,
possivelmente, pela própria propaganda que cultua as qualidades e as forças dos jovens,
57
Sobre o assunto, ver CANOAS, C. L. A condição humana do velho. São Paulo: Cortez, 1985;
CARRATO, J. F. Memória e cultura: o passado encontrado. Anais do 3° Encontro Nacional de Idosos.
Editora SESC: Santos, p. A-2 – A-9, 1987; FRANÇA, S. A. M. Corpo tutelado da velhice. Dissertação de
mestrado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 1983. MAGALHÃES, D. N. O crescimento do
número de idosos nos países em desenvolvimento. Boletim Intercâmbio: Rio de Janeiro, p. 5-14, out/dez
1986.
79
tenta manter-se eternamente nessa faixa de idade, temendo e não aceitando o próprio
envelhecimento” (op. cit., p. 2).
O quarto elemento organizador do discurso gerontológico é a crítica ao Estado,
porque se acreditava que o processo de modernização nos países capitalistas, o declínio
da família extensa e um Estado inábil na resolução dos problemas básicos de grande
parte da população deixavam os idosos em uma situação de grande vulnerabilidade
58
.
Esses quatro elementos do discurso gerontológico foram essenciais na
construção de uma imagem da velhice brasileira como vítima de sofrimento
59
. Não
podemos afirmar, ao certo, o quanto a luta da gerontologia em transformar o
envelhecimento numa questão política influenciou o direcionamento de ações do Estado
para essa população. No entanto, é principalmente a partir dos anos de 1980 que a
velhice começa a ocupar cada vez mais espaço entre os temas de preocupação social.
Nessa época, houve um aumento do número de pesquisas sobre o tema, a figura do
idoso passou a ter mais presença na mídia e também houve maior abertura de agências
governamentais e privadas na organização de programas para essa faixa etária.
Contudo, a imagem veiculada pelo discurso gerontológico da época contrastava
com aquela propagada na mídia e nas pesquisas
60
. Uma velhice que precisava se
reinventar era a tônica do discurso desses dois últimos elementos. Essa idéia foi
fortemente divulgada nos diversos programas para a terceira idade que surgiram na
época, como o Programa Pró-Idoso a que nos referimos anteriormente, os Conselhos
Estaduais e as Universidades Abertas à Terceira Idade. O discurso gerontológico se
apoiava em outra imagem, mais referida a uma velhice empobrecida e abandonada.
58
Sobre o assunto, ver DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice. São Paulo: EDUSP, 2004; FRANÇA, S.
A. M. Corpo tutelado da velhice. Dissertação de mestrado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica,
1983.
59
Idem.
60
Idem.
80
Dessa forma, Guita Debert (2004) enfatiza que o discurso sobre o
envelhecimento criou duas diferentes perspectivas com relação ao idoso. Uma delas
seria a perspectiva da miséria, na qual os processos de modernização e industrialização
mergulharam o idoso numa existência sem significado. Essa era então uma das críticas
da gerontologia, segundo a qual a velhice não era tomada como objeto de interesse do
Estado, nem da família.
A outra perspectiva é o oposto da anterior, ou seja, a do idoso como fonte de
recursos. Nesse caso, a velhice é apresentada como sendo composta de seres ativos,
capazes de oferecer respostas criativas ao desafio do envelhecimento. Essa imagem de
velhice era e ainda é na atualidade propagada em especial pelos diversos programas
voltados para essa faixa etária. A partir dessa perspectiva, temos uma redefinição da
imagem da velhice na relação com a sociedade e a família, com a figura do idoso
refuncionalizada e revitalizada, ressaltada pelo do conceito de terceira idade.
Para Guita Debert (2004), o grande problema dessa cisão entre as duas diferentes
imagens propagadas de velhice é que esta última encobre a primeira. É sabido que nossa
sociedade abriga um grande número de idosos abandonados, (sobre)vivendo na extrema
pobreza e atribulado por grande incidência de doenças. Existem, ainda, outros tantos
idosos que não se enquadram nessa perspectiva de revitalização dos rumos de seu
envelhecimento. A questão é que, na atualidade, uma grande propagação discursiva
sobre a necessidade de cuidado com o corpo, de “reciclar-se”, motivar-se, exercitar-se.
Frente a essas diversas faces da velhice, a gerontologia harmonizou seu discurso,
no sentido de ainda se referir ao envelhecimento como uma fase de forte incidência de
doenças, como também de apresentar aspectos mais revitalizadores da velhice, expresso
81
no discurso da prevenção e manutenção de um ideário de envelhecimento ativo e
saudável, por meio de uma pedagogia para a velhice.
Como pudemos destacar, o chamado “progresso” científico nas últimas
décadas tem elevado consideravelmente a expectativa de vida. Mas, ao mesmo tempo
em que o aumento da população idosa, no Brasil, existe também uma grande
preocupação com o número de velhos, principalmente no que concerne ao custo que
eles representam ao Estado e à sociedade: “[...] estes (aposentados inativos),
praticamente, tornam-se uns mortos-vivos, ficam por pelas praças e outros lugares”
(BERG, apud HADDAD, E., 1986, p. 29). O crescimento demográfico da população
idosa, conforme vimos em pesquisas, na década de 1980
61
, colocaram em pauta a
necessidade de gerir essa população enquanto “objeto de adestramento político e moral
[...], inclusive as de natureza médica” (op. cit., 1986, p. 18).
Dessa maneira, assim como a ciência trouxe o aumento da expectativa de vida,
ela também irá contribuir para a construção de uma velhice sem envelhecimento, quer
dizer, na construção da idéia de corpos saudáveis e rentáveis ao capitalismo. A geriatria
e a gerontologia, especialidades médicas responsáveis pelo estudo científico do
envelhecimento, juntamente com o Estado, o tornam-se propagadores da
refuncionalização do idoso. De acordo com o geriatra Jarbas Ávila (op. cit., p. 34), “os
nossos velhos são um peso morto na sociedade, embora, na verdade, a maior parte deles
podem ainda ser úteis e dinâmicos por muitos e muitos anos”.
Para Hana Hermanova (op. cit., p. 25), “envelhecer é uma fase normal da vida
humana e deve ser considerada como tal”. No entanto, a intervenção da ciência no
61
Sobre o assunto, ver KAUFMANN, T. A idade de cada um: vida plena na velhice. Petrópolis: Vozes,
1982.
82
campo da velhice mostra claramente que esse não é um processo natural, mas algo
produzido socialmente. Em conseqüência, enquanto se produz um prolongamento da
vida, um ideário de envelhecimento que estimula modos de ser na velhice no mundo
contemporâneo. Como aliada do mercado, a ciência é parte no processo de construção
desse ideário expresso por meio da procura da “fonte da juventude”, de fórmulas,
drogas e de prevenção ao envelhecimento, a fim de levar à produção de subjetividades
que reforcem a gica capitalista do “espírito jovem” e do reaproveitamento do corpo
idoso.
Em nossos dias, percebemos uma forte presença do discurso do saber médico-
científico acerca da velhice, na sociedade, difundido de várias formas. As universidades,
por meio de publicações científicas, de programas voltados para a terceira idade, de
pesquisas, livros, congressos, associações, etc., fornecem os subsídios que alertam para
a necessidade de uma intervenção no campo da velhice, uma vez que, para muitos
pesquisadores, é natural que o corpo se degrade, na medida em que o tempo atravessa o
ser humano
62
. Para Eneida Haddad (1986, p. 23), a literatura médica trata não somente
do aspecto de caráter eminentemente biológico referente à velhice, mas também do seu
aspecto de cunho marcadamente sócio-cultural”, de sorte que a propagação de
discursos que ditam modos de ser na velhice a fim de evitar que o envelhecimento,
fenômeno fisiológico, se transforme em velhice-enfermidade.
Simone de Beauvoir (1990), no referido livro “A velhice”, procura realizar um
traçado histórico desse período da vida, desde a Grécia Antiga. Em seu estudo, a autora
salienta que muitos pensadores e pesquisadores da velhice acreditam que ela é uma fase
62
Sobre o assunto, ver KIELING, C. et al. Bases biológicas do envelhecimento cognitivo. In: PARENTE,
M.A.M.P. (org) Cognição e Envelhecimento. Porto Alegre: Artmed, 2006; SIMÕES, R. Corporeidade e
terceira idade: a marginalização do corpo idoso. Piracicaba: Ed. Unimep, 1998.
83
correspondente ao inverno da vida, repleto de doenças e do desgaste do corpo. Segundo
sua concepção, “até o século XV, todas as obras sobre a velhice são tratados de higiene”
(p. 25), trazendo receitas, modos de conservar a saúde ou de minimizar doenças,
sintomas e seus respectivos tratamentos.
Mesmo que nestes tempos ainda haja o discurso do envelhecimento ativo, por
outro lado esse efeito de sentido desvitalizador é bastante presente na produção
bibliográfica. A procura por um conceito de velhice propõe interface com outras áreas
do conhecimento; não obstante, seu veio apresenta forte presença do discurso voltado
somente para os aspectos biológicos do envelhecimento, no qual o corpo do idoso é
visto como uma máquina que se desgastou.
A construção da categoria de velhice passa por diferentes regimes de saber,
assim como também a dificuldade em situá-la numa determinada etapa da vida. A
procura por um conceito de velhice demonstra a preocupação em caracterizar e
delimitar essa fase. Circunscrevendo-a no interior de determinadas características
entendidas como próprias da velhice, ela é enfim discriminada de outras idades da vida.
Para Edna Martins (1997, p. 21), “a velhice pode ser definida como um conjunto
de modificações morfológicas, fisiológicas, bioquímicas e psicológicas que se observam
no ser humano por volta dos 60 anos”. As mudanças ocorridas no processo de
envelhecimento apontam para uma fase em que o indivíduo sofreria determinadas
perdas com relação ao seu corpo, as quais tornariam o idoso mais vulnerável à
incidência de doenças.
De acordo com Stuart-Hamilton (2002), o envelhecimento se constitui no estado
final do desenvolvimento, que todo indivíduo sadio e que não sofreu acidentes vai
atingir. Uma fase na qual “todas as capacidades latentes de desenvolvimento foram
84
realizadas, deixando apenas potencialidades de dano de ação tardia” (p. 22). Do ponto
de vista da ciência biológica, a velhice seria “o declínio na habilidade do organismo em
responder a estímulos estressores, levando a uma disfunção na homeostasia e a um
aumento na incidência de doenças” (KIELING, C., et al, 2006, p. 48).
O indivíduo idoso estaria, ainda, sujeito a uma perda da identidade psíquica por
conta de ser a velhice uma fase de grandes mudanças
63
. Dessa maneira, seriam
necessárias diversas intervenções no sentido de auxiliar sua preservação, pois é essa
identidade “que ajuda o homem a se adaptar às demandas do mundo externo e a
enfrentar com serenidade a perda progressiva da capacidade física e de todas as outras
limitações impostas pelo envelhecimento” (ROSA apud SIMÕES, R., 1998, p. 103).
As perdas e as limitações do corpo e até da subjetividade são a tônica do
discurso sobre a velhice. Conforme Stuart-Hamilton (2002), “o quadro geral das
mudanças no corpo que envelhece não é muito atraente”. De fato, não é nada aprazível a
pintura produzida sobre a velhice, que é descrita por ele como uma fase em que a pele e
os músculos perdem a elasticidade, acontece uma perda da eficiência mitocondrial, o
sistema urinário se torna menos eficiente, um declínio da massa muscular, como
também menor absorção de oxigênio, declínio da capacidade cardiovascular,
diminuição da eficiência do funcionamento cerebral e psicológico e outras assinaladas
pelo autor. Um homem em franco estado de declínio. Um corpo em processo de
degenerescência. Nas palavras de Regina Simões (1998, p. 27),
a característica principal da velhice é o declínio, geralmente físico, que leva a
alterações sociais e psicológicas. Os teóricos classificam esse declínio de
duas maneiras: a senescência e a senilidade. A senescência, que é um
fenômeno fisiológico, arbitrariamente identificada pela idade cronológica,
pode ser considerada um envelhecimento sadio, onde o declínio físico e
mental é lento [...]. a senilidade caracteriza-se pelo declínio físico
associado à desorganização mental [...] pois se identifica com uma perda
63
Sobre o assunto ver SIMÕES, R. Corporeidade e terceira idade: a marginalização do corpo idoso.
Piracicaba: Ed. Unimep, 1998.
85
considerável do funcionamento físico e cognitivo [...], além de uma
considerável perda da memória.
Na procura de um padrão para a velhice, o olhar que se lança ao homem
marcado pelo tempo é caracterizado pela idéia de que essa fase implica, além das perdas
naturais de faculdades humanas, a estagnação do desenvolvimento e a degenerescência
do corpo. Alguns pesquisadores de psicologia
64
em particular a psicologia do
desenvolvimento, tomam a velhice como uma fase em que não aquisições e
contribuições para a formação do sujeito psíquico. Diferentemente da infância e da
adolescência, que são tomadas como pilares da vida do sujeito, como construção da
matriz psicológica do adulto, a velhice é vista como o período de inércia, do sujeito
constituído e do declínio de suas funções biológicas e cognitivas. Para Vargas (apud
SIMÕES, R., 1998, p. 41),
o processo de envelhecimento [...] apresenta uma involução psicológica
ocorrendo uma perda normal da inteligência e uma deterioração fisiológica
das capacidades intelectuais, diferindo da deterioração das demências; estas
são gratuitas e responsáveis pela desestruturação da personalidade (grifos
nossos).
Uma visão da figura humana quasimodesca, um outro à parte da cena social:
“Toda pessoa idosa esquece ou não aprende fatos novos, ouve mal, constitui-se um
estímulo sexual aversivo, não tem capacidade para o trabalho ou é muito lenta”
(PAIVA, V., apud MARTINS, E., 1997, p. 30). Desse homem talvez nem lhe reste a
memória, porquanto muitos pesquisadores afirmam que a velhice, além de sofrer as
inerentes perdas das diversas capacidades do corpo, também sofre com a perda da
memória. Para Regina Simões (1998), “a inteligência pode ou não sofrer um
decréscimo, diferindo da memória, cujo declínio é inevitável (p.42, grifos nossos).
64
Sobre o assunto ver KIELING, C. et al. Bases biológicas do envelhecimento cognitivo. In: PARENTE,
M.A.M.P. (org) Cognição e Envelhecimento. Porto Alegre: Artmed, 2006.
86
Conforme Angulo (apud HADDAD, 1986), “(certas faculdades intelectuais) se revelam
mais sensíveis ao envelhecimento e ‘dependentes da idade’, como, por exemplo, a
faculdade da memória e observação” (p. 28).
As explicações dadas para esse fato normalmente são circunscritas em torno de
vários fatores de cunho fisiológico, como o endurecimento das artérias, a hipertensão ou
alguma outra deficiência que prejudique a irrigação sangüínea no cérebro
65
. De qualquer
modo, aqui um entrave, no mínimo curioso: se ao idoso é facultado o lugar de ser a
memória de seu grupo social
66
, como pode exercer essa função se, de acordo com o
discurso científico, sua capacidade memorativa sofre com a ação do tempo?
São muitos os regimes de saber que tentam explicar como e por que
envelhecemos. As ciências biológicas
67
destacam duas grandes vertentes teóricas atuais:
de um lado, teorias que propõem uma programação interna que regularia o processo de
envelhecimento; de outro, teorias que consideram o envelhecimento como resultante de
um acúmulo gradual de erros e danos gerados a partir do ambiente. Stuart-Hamilton
(2002) arrola algumas teorias com curiosas nomenclaturas que procuram explicar esse
fenômeno da existência humana com base no ciclo da vida e da morte celular, como por
exemplo, a teoria do envelhecimento programado, a teoria da catástrofe e do erro, do
envelhecimento auto-imune, do lixo celular, da senescência programada, a teoria do
desgaste pelo uso, teoria do desuso e tantas outras. Na verdade, uma preocupação
posta em desvelar os segredos e as vicissitudes dessa fase da vida habitada por
diferentes signos e produções discursivas.
65
Sobre o assunto, ver SIMÕES, R. Corporeidade e terceira idade: a marginalização do corpo idoso.
Piracicaba: Ed. Unimep, 1998.
66
Sobre o assunto, ver BOSI, E. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1987.
67
Sobre o assunto, ver KIELING, C. et al. Bases biológicas do envelhecimento cognitivo. In: PARENTE,
M.A.M.P. (org) Cognição e Envelhecimento. Porto Alegre: Artmed, 2006.
87
Quando reduzida unicamente a um corpo orgânico, a velhice é inserida numa
racionalidade científica e num regime de saber que buscam as causas das falhas e da
degenerescência do processo de envelhecimento. O declínio de habilidades, o aumento
de doenças, o mecanismo interno desregulado, enfim, sintomas de um corpo que
praticamente se esgotou e que precisa de reparos.
Com relação à psicologia do desenvolvimento, o nascimento dessa área de
conhecimento é marcado pelo ideário moderno de progresso e de mudança
68
. Assim, ela
acabou por desqualificar o antigo, como as velhas estruturas sociais, políticas e
culturais, tidas como empecilhos para a edificação de uma nova sociedade. A infância e
a adolescência passaram a ser priorizadas na psicologia do desenvolvimento, como
caminho estratégico para a construção do novo homem, enquanto a velhice foi vista e
tratada como depositária de resquícios de arcaísmos que necessitavam ser ultrapassados.
Embora, desde o início de sua constituição como uma especialidade da
psicologia, a psicologia do desenvolvimento humano se tenha atribuído como objeto de
estudo os processos de mudanças que ocorrem ao longo de toda a vida, acabou por
ignorar, por muito tempo, a velhice. Assim, essa ciência contribuiu significativamente
para a construção de um signo que retrata essa fase da vida como estagnada,
conservadora ou de predomínio de um estado de decrepitude ou de degenerescência,
sendo necessária a aprendizagem para o envelhecimento.
Atualmente, a concepção de velhice na psicologia apresenta novas perspectivas,
com um olhar para o sujeito que envelhece inserido em um processo histórico, social e
biológico de envelhecimento. Se atualmente a psicologia tenta reabilitar a velhice, as
outras ciências não se comportaram de forma diferente. A medicina moderna, como é de
68
Sobre o assunto, ver BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
88
sua natureza produzir o adoecimento, logo tratou de atribuir ao idoso uma série de
doenças, limitações físicas e degenerescências neurológicas e mentais, sendo a grande
responsável pela legitimação dos estereótipos de “caduquice”, travamento motor e perda
da acuidade perceptiva, que permearam as imagens criadas para figurar o idoso.
A procura pela delimitação do início da velhice é outra questão igualmente
presente nas preocupações dos estudiosos do envelhecimento. Alguns autores
69
defendem a idéia do ciclo de vida, no qual esta estaria dividida em diferentes períodos
seqüenciais de desenvolvimento, com intervalos de 20 a 25 anos cada um. A maturidade
corresponderia ao quarto período da vida, o qual se caracterizaria por uma fase em que
não haveria responsabilidades nem ligação com o trabalho.
Outras correntes sugerem que a velhice começa no nascimento, estendendo-se ao
longo de toda a vida do indivíduo. Outras afirmam que ela principia com o início da
vida sexual. ainda uma vertente que marca o começo da velhice aos 20 anos, quando
termina o desenvolvimento físico, e outra que fixa sua chegada para os 40 anos.
A divisão dos processos do envelhecimento em diferentes fases é outra
característica das ciências do envelhecimento, na procura de dividir a velhice em
estágios para isolar suas particularidades. Stuart-Hamilton (2002) propõe sua divisão em
três etapas, sendo elas o envelhecimento primário, em que ocorrem as mudanças
corporais da idade; o envelhecimento secundário, em que as mudanças acontecem com
maior freqüência; e, por fim, o envelhecimento terciário, que é a rápida e acentuada
deterioração física imediatamente anterior à morte.
69
Sobre o assunto ver KAUFMANN, T. A idade de cada um: vida plena na velhice. Petrópolis: Vozes,
1982; MARTINS, E.J.S. De volta à escola: investindo em uma proposta de Universidade Aberta à
Terceira Idade. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista,
Marília, 1997; RIEMANN, F. A arte de envelhecer. São Paulo: Veredas, 1990; SIMÕES, R.
Corporeidade e terceira idade: a marginalização do corpo idoso. Piracicaba: Ed. Unimep, 1998;
STUART-HAMILTON, I. A psicologia do envelhecimento: uma introdução. Porto Alegre: Artmed,
2002.
89
A dificuldade dos teóricos em conceituar e circunscrever a velhice no interior de
uma categoria promove um recorte dessa fase sobre si mesma, o que a singulariza e a
diferencia em relação ao próprio processo de envelhecimento por meio da criação de
categorias intermediárias, como é o caso da terceira idade.
O acelerado processo de envelhecimento da população pode ser um dos fatores
contribuintes sobre essa divisão da velhice em várias fases. Com o aumento da
expectativa de vida, o critério etário se transforma em um dos elementos organizadores
do conceito de velhice. Nesse sentido, Burnside (apud Stuart-Hamilton, 2002) divide a
velhice em diversas categorias, como a dos “velhos-jovens”, de idade entre 60 a 69
anos; “velhos-de-meia-idade”, de 70 a 79 anos; “velhos-velhos”, aqueles que se
encontram na casa dos 80 aos 89 anos; e por fim os “velhos muito velhos” quem passou
dos 90 anos. De fato, o aumento da expectativa de vida criou uma situação curiosa na
qual os pesquisadores se esforçam a fim de denominar o que é essa velhice do mundo
atual, tal como Cecília Meirelles procurando sua face, perdida em algum espelho.
O prolongamento da vida, característica do mundo contemporâneo, promoveu
esses recortes sobre o envelhecimento, ampliando o conceito de velhice e criando etapas
interpostas. Para Stuart-Hamilton (2002), as pessoas da terceira idade estariam situadas
na faixa dos 65 anos, período que se refere a um estilo de vida ativo e independente na
velhice. Já o conceito de quarta idade corresponderia ao período final, marcado pela
dependência para com as outras pessoas.
A Organização Mundial da Saúde atualmente classifica a velhice em quatro
estágios
70
: a meia-idade, dos 45 aos 59 anos; o idoso, dos 60 aos 74 anos; o ancião,
entre 75 a 90 anos; e a velhice extrema, dos 90 anos em diante. De acordo com Tânia
70
Sobre o assunto, ver SIMÕES, R. Corporeidade e terceira idade: a marginalização do corpo idoso.
Piracicaba: Ed. Unimep, 1998.
90
Kaufmann (1982), a classificação etária se dividiria da seguinte forma: até os 20 anos,
os indivíduos são jovens em desenvolvimento; entre os 20 e os 30 anos estaria a fase
adulta; a partir dos 40 anos, o indivíduo se torna gerontino; dos 40 aos 65 anos, a
maturidade; dos 65 aos 75 anos, a terceira idade; e, a partir dos 75, a anciania.
Para Philippe Ariès (1981), um homem do século XVI ou XVII ficaria espantado
com as exigências de identidade civil a que nos submetemos com naturalidade. Dentre
essas determinações, admitimos a declinação da idade como um dado de identificação.
A data de nascimento é algo que nos acompanha a todo o momento, desde abrir uma
conta no crediário até consultas médicas ou à lápide do cemitério.
As categorias de idade estão sempre presentes e são imprescindíveis na
classificação dos indivíduos em determinados contextos, como, por exemplo, em planos
de saúde, em concursos públicos, na preferência em filas de banco, na aquisição de
benefícios sociais etc. Para nós, que estamos acostumados e inseridos nessa lógica de
funcionamento, parece difícil imaginar um outro modo de organização social sem que o
critério etário seja levado em conta, principalmente porque ele é uma quantidade
mensurável e precisa, do mundo da exatidão e do número.
A idade cronológica, recortada por diferentes categorias, é uma das bases de
nossa organização social e um procedimento útil à gestão das populações. Guita Debert
(1998, p. 12), ressalta que, mecanismos fundamentais de distribuição de poder e
prestígio, no interior das classes sociais, levam em conta esse critério etário: “[...]
categorias e grupos de idade implicam, portanto, a imposição de uma visão de mundo
social que contribui para manter ou transformar as posições de cada um em espaços
sociais específicos”.
91
A divisão da vida humana a partir das idades da vida aparece na Idade
Média
71
em tratados “pseudocientíficos”, nos quais as idades corresponderiam ao
número de planetas até então conhecidos, isto é, sete. A primeira idade seria a infância,
do nascimento até os sete anos, quando a criança ganha os dentes e aprende a falar.
Após a infância, viria a segunda idade, chamada de pueritia, que se estenderia até os 14
anos. A terceira idade seria a adolescência, terminando por volta dos 28 anos, mas
podendo chegar até os 50 anos. Entre a juventude e a velhice, haveria a senectude e, por
fim, a partir dos 70 anos, a velhice propriamente dita.
Ariès (1981) assinala que as etapas da vida, tais como expressas na Idade Média,
não corresponderiam apenas a etapas biológicas, mas a funções sociais. Em seu estudo
iconográfico, o autor enfatiza que as idades da vida eram retratadas de acordo com as
funções de cada fase. Por exemplo, a idade dos brinquedos, da escola, do amor ou do
esporte, da guerra, do sedentarismo, da sabedoria. Segundo ele, a vida era bem
delimitada em etapas conforme as atividades, funções, tipos físicos e vestimenta.
No mundo contemporâneo, essa delimitação se coloca um tanto quanto
dificultada por conta do valor agregado à juventude que se espraia para outras idades da
vida. No caso específico da velhice, Ariès (1981) assinala que essa fase desapareceu,
dando lugar à figura do “senhor de certa idade ou da “senhora bem conservada”.
Assim, a idéia tecnológica de conservação substitui ao mesmo tempo a idéia biológica e
moral da velhice.
Apesar das tentativas atuais em se categorizar e subdividir cronologicamente a
velhice, existe a tendência da cultura contemporânea em desfazer limites, fronteiras e
separações rígidas entre quaisquer diferenciações espaço-temporais. Nosso tempo,
71
Sobre o assunto, ver ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Guanabara,
1981.
92
dentre outras coisas, propaga a mixagem, a mistura. No mínimo, exalta a convivência
entre os diferentes. Neil Postman (1999), inclusive, defende a tese de que a infância está
desaparecendo como um período da vida apartado da idade adulta, em conseqüência da
invasão do espaço da infância pelo adulto (a adultização da infância) e, inversamente,
pelo movimento da infantilização do adulto.
Tal tentativa de derrubada de fronteiras colide com o ideário de pureza da
modernidade, destacado por Zygmunt Bauman (1998)
72
, que fazia da rígida separação
estratégica dos objetos uma forma de conservação e manutenção de suas pressupostas
qualidades essencialistas e, com isso, mantinha a ordem livre de qualquer contágio. Por
esse princípio higienista e purista, igualmente se separavam rigidamente as idades, as
diferentes fases da vida, atribuindo-se a elas características que se lhes imputavam como
essenciais, ou seja, como constitutivas de uma essência natural que cada uma trazia
consigo.
A cultura atual, diferentemente, tende a liquidificar a vida, conforme também
acentua Bauman (2007)
73
, o que, dentre outras coisas, poderíamos assim entender,
desfaz as barreiras entre as idades e torna mais fluidas as conexões entre elas. Talvez,
por isso, tenhamos uma maior assimilação da velhice, de maneira geral, ainda que
pinçada em algumas de suas pontas, como a da chamada terceira idade. Quiçá os
esforços para subdividir a velhice em subcategorias se preste a facilitar esse processo de
assimilação social dos idosos e a modificação, senão a derrubada, das fronteiras
cronológicas herdadas dos períodos mais segregacionistas da nossa história.
A preocupação dos pesquisadores em delimitar o conceito e o início da idade da
velhice demonstra uma similaridade com o pensamento científico moderno, alimentado
72
Sobre o assunto, ver BAUMAN, Z. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
73
Sobre o assunto, ver BAUMAN, Z. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
93
pela busca da gênese, do início e da origem das coisas, como se pode observar na
ascensão da história como ciência, no pensamento darwinista e no sucesso de algumas
teorias do desenvolvimento como a psicanálise e a teoria piagetiana.
A busca pela origem da velhice, suas características e particularidades sugere
que uma tentativa de se obter um controle sobre todo o processo do envelhecimento.
Ao conhecê-lo, torna-se possível a implementação de políticas preventivas e profiláticas
de sorte a eliminar seus efeitos indesejáveis, minuciosamente descritos nos manuais de
geriatria e gerontologia.
A educação para a velhice é uma das idéias preconizadas por gerontólogos. É
por meio dessa pedagogia que suas práticas serão legitimadas, na gerência da vida
humana, na prescrição de modos de ser e viver e na produção de uma imagem de
velhice sem envelhecimento. De acordo com o geriatra Jarbas Ávila (apud HADDAD,
E., 1986, p. 34), “todos nós odiamos a velhice e em nenhum momento de nossa vida nos
preparamos para o inexorável envelhecimento. Todos apoiamos escolas que ensinam os
meninos a serem homens; quem conhece escolas que ensinam os homens a serem
velhos?”
As escolas para a velhice estão presentes em diversas práticas difundidas em
consultórios, na mídia, em programas etc. A construção de um corpo científico sobre
essa fase da vida possibilitou a implementação de saberes e práticas dirigidas para um
corpo apropriado enquanto objeto de estudo e de gestão. A substituição das ações de
caridade, antes praticadas em favor dos idosos, por técnicas mais eficazes engendrou
uma proposta de educação vigiada:
[...] objetos de intervenção, os velhos são, ao mesmo tempo, objetos de saber.
entra o solicitado serviço da universidade em prol do desenvolvimento e
aceleração de uma política social voltada para o idoso: o trabalho social
precisa se apoiar num saber psicológico, psiquiátrico, psicanalítico,
94
sociológico, antropológico, etc., voltado para o que chamamos de “pedagogia
da velhice”. (HADDAD, E., 1986, p. 39)
Inscrita numa racionalidade científica, a velhice passa a ser habitada por
discursos de especialistas, os quais ditam estatutos de verdade normativos sobre o que é
e como dever ser gerida essa fase da vida. Tais especialidades do envelhecimento, sob a
égide científica, dizem de um corpo biológico, da sua degenerescência e das medidas de
controle e prevenção necessárias para que se possa ter uma velhice esclarecida
74
.
A educação para a velhice acarreta um processo de aprendizagem, quer dizer, de
saber envelhecer. Os resultados de trabalhos dos teóricos
75
sinalizam que a realidade
humana pode ser modificada pela ação da ciência, das instituições, do Estado e do
próprio idoso, por meio de sua pedagogização.
Determinar os limites da velhice, conhecer profundamente suas características,
delimitar seu início dentro do ciclo da vida, portanto, são ferramentas fundamentais para
que se possa construir um corpo teórico-científico e engendrar as práticas necessárias a
serem difundidas sobre os processos do envelhecimento. A construção de um saber
científico produz fatos normativos, sendo que, ao qualificar ou desqualificar um objeto
ou uma prática, opera mediante um estatuto de direito e de definição de normas
76
.
A educação para a velhice é alvo de preocupação de geriatras e gerontólogos,
assim como acontece na pediatria, com uma educação para a infância, e na hebiatria,
com a adolescência. No caso das ciências do envelhecimento, a questão se coloca na
preparação para a velhice, como assinala o geriatra Edison Rossi: “O adulto deve ser
ensinado para a velhice, assim como se procura ensinar a criança para a vida” (apud
74
Sobre o assunto ver HADDAD, E. A ideologia da velhice. São Paulo: Cortez, 1986.
75
Idem.
76
Sobre o assunto ver DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice. São Paulo: Edusp, 2004.
95
HADDAD, E., 1986, p. 34). Tal projeto educativo, para Fernandes & Rossi, deve
iniciar-se e se estender ao longo da vida do sujeito: “[...] torna-se impostergável
proporcionar orientação, assistência e cuidados para que o indivíduo que atravessa as
etapas da infância à idade madura esteja alerta, prevenido” (op. cit., p. 35)
O ensino difundido acerca da velhice visa a promover uma imagem saudável,
bem esclarecida sobre o corpo do idoso, ativo, criativo, útil à sociedade. Ou seja, assim
como ocorreu por meio das políticas públicas, o conceito de velhice também é
revitalizado pela gerontologia com a terceira idade. No entanto, de acordo com Guita
Debert (2004), ao promover uma imagem de velhice permeada por um ideário de
preservação do corpo jovem, a gerontologia e a geriatria desconstroem seu objeto de
estudo, isto é, os processos de envelhecimento.
4.3. A aliança entre o Estado e a ciência nos rumos do envelhecimento
Ao longo de nosso ensaio, diferentes contornos das faces da velhice emergiram
no percurso cartográfico. Das políticas de assistência e à não diferenciação do corpo
idoso como uma categoria à parte, o envelhecimento passa a ser investido de programas
preventivos e a ter seu próprio estatuto reconhecido por lei, além de ser objeto de uma
especialidade médico-científica que o singulariza, em relação a outras idades da vida.
Todo esse processo de construção da categoria de velhice foi possível, dentre
outras coisas, a partir de uma aliança entre o Estado e a ciência. A geriatria e a
gerontologia, com a proposta de educação e prevenção à velhice, auxiliaram na
construção de políticas públicas que procuram reduzir o ônus acarretado pela população
idosa aos cofres públicos, com programas para a terceira idade, à base da promoção de
uma velhice útil e saudável. Dessa maneira, de acordo com Eneida Haddad (1986, p.
96
72), “fica evidente que a gerontologia e a geriatria são os instrumentos utilizados pelo
Estado junto à sociedade a fim de repropor a figura física e psicológica do
envelhecimento”.
Com o aumento da população idosa, a velhice passou a ser tomada como um
problema social emergente no país, o que gerou a necessidade de gerir essa massa de
idosos aposentados. Uma das preocupações que se colocaram para essa gestão foi o
reaproveitamento do tempo livre. Assim, a gerontologia e o Estado, pelas políticas
públicas, problematizaram essa questão, a fim de refuncionalizar o tempo ocioso. A
aposentadoria foi então colocada como uma fase na qual haveria a necessidade de
preparação e programação do tempo disponível, para não se correr o risco de provocar
adoecimentos:
Tempo livre é uma das causas de maiores tensões estressantes [...]. A melhor
terapêutica para o envelhecimento é o trabalho. A aposentadoria é não raro
uma espécie de doença ou de morte que toma conta progressivamente do
indivíduo, acabando por liquidá-lo, em geral, antes do tempo. O trabalho é o
melhor prêmio que a vida pode oferecer ao homem (STEIGLITZ, apud
HADDAD, E., op. cit., p. 40).
Afastado do mundo do trabalho, o homem estaria próximo a uma existência sem
sentido, de que decorre a necessidade de reaproveitamento de seu tempo ocioso. Assim,
a gerontologia e o Estado promoveram uma aliança, na qual a educação para a velhice
atua no sentido de ensiná-la a preencher o tempo com atividades terapêuticas e
profiláticas. Com o discurso de que é preciso manter-se ativo para não adoecer, a
gerontologia oferece os subsídios para a implementação de diversas políticas públicas
dirigidas à velhice:
A deterioração do cérebro consiste na perda de células. Dos 25 aos 40 anos
algumas células já se perderam. Depois dos 40 anos essa perda se acelera. Na
meia-idade, portanto, é necessário que cada pessoa procure compensar essa
perda, dando ao cérebro tranqüilidade para trabalhar. Isso não quer dizer que
97
o cérebro deva fica ocioso. Pelo contrário. O cérebro deve estar sempre
“ligado”. Quando está acordado, funciona melhor (RIBEIRO, A., 1996,
p. 27).
A necessidade de se ter uma velhice ativa começa a se delinear, associando a
idéia de atividade à saúde. Mantendo-se ativo, o idoso poderá ao menos preservar o
“espírito jovem” do qual tanto se fala, vetando o “espírito velho”, que é associado a
sentidos torpes. Para Marcelo Salgado (1996, p. 7), uma diferença entre ser e estar
velho:
Ser velho é o destino de todos nós, o que a humanidade, por mais progressos
que tenha feito, não conseguiu ainda evitar. Estar velho é outra coisa. Este
conceito se refere ao sentido pejorativo da velhice, enquanto significa uma
série de manias, achaques, confusões, ensimesmamentos que podem afetar as
pessoas, independentemente de sua idade cronológica. Assim, existem jovens
velhos e velhos jovens.
A idéia de uma velhice rejuvenescida vai modificar o olhar dirigido a essa fase
da vida, seja por meio de políticas e programas, seja pelo discurso dos especialistas, que
insistirão na necessidade de promover esse novo ideário de envelhecimento: “O
envelhecimento não é simplesmente um processo físico, mas um estado de ânimo, e
hoje nós estamos sendo testemunhas do início de uma mudança revolucionária nesse
estado de ânimo” (MAHLER, apud HADDAD, E., 1986, p. 25).
Para a redefinição das imagens da velhice, a gerontologia, a geriatria e a
intervenção do Estado foram importantes atores na construção desse novo olhar,
dirigido a essa fase da vida. Mediante o discurso que remetia a velhice a uma etapa de
doenças, de degeneração do corpo, de caráter marcadamente biologizante, a
gerontologia se constituiu em uma das porta-vozes da promoção do envelhecimento
98
saudável, educando o corpo para a velhice com o auxílio de políticas implementadas
com esse fim.
Para essa mudança de olhar, o discurso sobre os processos de envelhecimento
passou a ter uma marca também do ponto de vista moral. Observem-se as palavras do
gerontólogo Jarbas Ávila (apud HADDAD, E., op. cit., p. 27),
O velho sadio não é psicológica nem fisiologicamente velho. O que
caracteriza a velhice não é a quantidade de anos vividos. Nem é o estado das
artérias, como dizia Metchinikok. Nem é anormalidade endócrina, como
queria Pende. O que caracteriza a velhice é a perda dos ideais da juventude, é
a dessintonização com a mentalidade do seu tempo, é o desinteresse pelo
cotidiano nacional e internacional, é o humor irritadiço, é a desconfiança no
futuro, desamor ao trabalho.
Nessa perspectiva, produz-se a necessidade de se ter uma velhice bem
informada, jovem, ativa, confiante, feliz... Não é à toa que uma das denominações para
essa nova velhice tenha sido “feliz idade”. De fato, os rumos do envelhecimento
galgaram outras paisagens, remodelando os contornos do envelhecimento.
Com a transformação do corpo em objeto de saber científico, a velhice entra em
cena por meio de diferentes aspectos, quais sejam, da degeneração corporal e o aumento
da expectativa da vida ao desequilíbrio demográfico e o ônus das políticas sociais
77
. A
geriatria e a gerontologia, com seu campo de saber produzido sobre a velhice, prestam
importante contribuição ao Estado. Ao promoverem saberes, essas ciências engendram
demandas que serão difundidas por meio de políticas públicas, além de obterem o aval
do Estado para consolidarem suas práticas e difundirem seus conhecimentos a respeito
da velhice.
77
Sobre o assunto, ver DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice. São Paulo: EDUSP, 2004.
99
Para Eneida Haddad (op. cit.), porém, a relação entre a ciência e o Estado não
deixa de apresentar alguns conflitos, que uma disputa de poder na qual ambos
estão inseridos. Para suas ações públicas e estatutárias, o Estado necessita do saber
técnico sobre a velhice, que possibilite sua intervenção. a gerontologia cobra do
governo a implementação de uma política comum, pela qual seja possível a gestão dos
idosos.
A difusão de discursos sobre a velhice, que apontam essa fase da vida como algo
que se insere num processo de degeneração, procurou evidenciar e justificar a
necessidade de uma intervenção e de uma gestão da população idosa pela medicina,
pelo Estado e por diversas instituições sociais. Uma vez que a expectativa de vida
obteve um aumento significativo, em poucas décadas, elevando o número de idosos no
país, a velhice tornou-se um grande problema político em diversas esferas da sociedade.
A necessidade de promover uma gestão dessa população propiciou a aliança
entre o Estado e a ciência, no redimensionamento dos rumos da velhice. A geriatria e a
gerontologia, com seu corpo de saber sobre essa fase da vida, passaram a ocupar um
lugar de intervenção nos processos de envelhecimento, na perspectiva de reutilização da
figura do idoso e de prevenção aos males advindos desses processos. As políticas
públicas passaram do assistencialismo para a prevenção, juntamente com o saber sobre
a velhice e se configuraram em importantes propagadores dessa nova imagem de
envelhecimento, refuncionalizada e otimizada por meio de diversos programas
direcionados para a terceira idade.
100
V. ENSAIOS DA VELHICE NA CONTEMPORANEIDADE: relevos
cartográficos
5.1. Tempo, envelhecimento e mundo contemporâneo
Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.
(Mário Quintana – A cor do invisível)
Enquanto o tempo acelera e pede pressa,
Eu me recuso, faço hora, vou na valsa:
A vida é tão rara...
(Lenine)
A efemeridade do mundo, marcada pela passagem do tempo acelerado nos
corpos, nas relações, nos objetos e nas histórias, tem provocado uma ruptura com o
próprio tempo e com o espaço. Num mundo que privilegia a velocidade cada vez mais
acelerada ou até mesmo a eliminação das barreiras temporais, a instantaneidade é vivida
com grande intensidade na experiência do homem com seu mundo. A abolição do
tempo
78
pode até mesmo significar seu congelamento em alguma de suas formas de
expressão, a fim de que seus rastros não provoquem os efeitos tão conhecidos por nós: o
de envelhecer o que quer que seja por onde passa.
A relação entre tempo e envelhecimento é conhecida e quase que
automaticamente se associa um ao outro. Afinal de contas, para a sociedade, o que é um
idoso, senão alguém que viveu muito tempo? Além disso, por ter vivido tanto tempo, o
homem velho seu destino selado na velhice: a iminente proximidade da morte, uma
idéia mais fortemente presente do que em outras idades da vida.
78
Sobre o assunto, ver: BAUMAN, Z. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1999.
101
A invenção do tempo engendra algumas questões que perpassam o bojo da
existência humana e sua finitude, uma vez que “existir, para a realidade humana, é
temporalizar-se” (BEAUVOIR, S., 1990, p. 445). Ao inscrever-se enquanto ser humano,
enquanto existência, o indivíduo é registrado numa categoria temporal, na qual a sua
condição de ser finito é, por assim dizer, decretada por essa entidade infinita chamada
tempo.
Muitas vezes concebido como algo exterior ao homem, de existência própria e
permanente, o tempo é extensão e criação da realidade humana. Tal criação, aliás, surge
para lidar com a contradição ontológica do homem, que é a tensão entre a sua
permanência e a transitoriedade no mundo, seu poder e sua impotência em face dessa
condição de finitude a que está submetido. A invenção do tempo nasce não somente
para ordenar as ações humanas, mas também como tentativa de negar a morte
79
. O
próprio Chronos, tal como representado pelos antigos, era um ancião que trazia consigo
uma foice que ceifava vidas.
Com o advento do capitalismo, o tempo foi ressignificado como bem e
mercadoria, subscrito pelo lema “tempo é dinheiro”. Para tanto, a produção de mais-
valia perpassava pelos ponteiros do relógio, onde cada segundo batido representava um
lucro a mais. Todo esse processo mercantilizou a relação do homem com o tempo,
inclusive, do homem com seus semelhantes. Fazer tempo é fazer dinheiro. Ao que
parece, isso foi levado às últimas conseqüências na contemporaneidade, como se pode
observar na grande bandeira da produtividade ou do produtivismo, que pode ser
traduzida como uma maximização do tempo na produção e no consumo.
79
Sobre o assunto, ver AUGRAS, M. O ser da compreensão: fenomenologia da situação de
psicodiagnóstico. Petrópolis: Vozes, 1986.
102
As barreiras temporais, inclusive, estão sendo transpostas, tamanha sua
velocidade
80
. A instantaneidade (a expressão maior da compressão do tempo) é o
paradigma norteador das ações humanas: diversos tipos de produtos são vendidos com
esse princípio, a fim de valorizar sua praticidade e rapidez para o consumo (ex: o
“macarrão instantâneo”, o fast food, que vende a economia de tempo na preparação dos
alimentos; e, dentre outros tantos exemplos, o telefone celular, que permite localizar o
destinatário a qualquer momento). A internet é outra vedete da compressão do tempo:
propicia o contato virtual instantâneo entre pessoas nos mais diferentes logradouros. A
televisão transmite, em tempo real, a notícia no mesmo momento em que ela acontece.
A efemeridade e a brevidade dos contatos humanos obedecem a essa mesma
lógica de velocidade, expressa radicalmente na instantaneidade. O “ficar”, por exemplo,
nada mais é do que um encontro momentâneo com outra pessoa. A aceleração da rotina
da vida parece não favorecer mais os contatos, os encontros e os nculos entre as
pessoas.
Nesse cenário, o hábito, enquanto uma disposição duradoura adquirida pela
repetição freqüente de um ato, uso, costume, parece ser a possibilidade de ruptura com a
efemeridade das relações que estabelecemos no mundo. Mais do que em outras fases da
vida, é interessante notar o quanto o hábito está integrado ao dia-a-dia do idoso. O que
muitas vezes é conhecido tipicamente como “manias de velho” pode ser um
comportamento que se expande no sentido de estabelecer uma relação continuada e
duradoura com o mundo. Incorporado à vida, o hábito se torna poesia do cotidiano: o
80
Sobre o assunto, ver VIRILIO, P. Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
103
presente é um passado revisitado e o futuro pode ser antevisto
81
, o que é capaz de
garantir alguma segurança, diante da brevidade das coisas mundanas.
Diferentemente de outras épocas, como na efervescência da modernidade, no
século XIX e na primeira metade do século XX quando se buscava acelerar o tempo
para produzir mudanças, revoluções, enfim, o progresso hoje, a erradicação do tempo
ou a instantaneidade suprimem passado e futuro, mergulhando o homem num eterno
presente e retirando os ideários de mudança até então construídos com um olhar adiante
e outro atrás
82
.
A vivência do homem contemporâneo, imerso nesse constante presente,
igualmente se traduz diante do culto ao corpo jovem como um valor, um bem a ser
adquirido por meio das mais variadas práticas. Um corpo no qual o tempo não
atravessa, com o ideal de permanecer eternamente jovem, cristalizado na sua fase áurea
da vida, a juventude... As rugas, a flacidez, os cabelos brancos de fato não são valores
exaltados pelos padrões de beleza estética; ao contrário, são indesejáveis.
Atualmente, assistimos a um grande avanço nas pesquisas sobre a prevenção aos
processos de envelhecimento, graças principalmente à aliança entre a medicina e a
estética, expressa sobretudo no surgimento da medicina antienvelhecimento, mais ou
menos quinze anos, nos Estados Unidos. A premissa dessa prática médica recai sobre
medidas preventivas às doenças consideradas típicas da velhice. De acordo com uma
profissional da área, “a Medicina Antienvelhecimento não é capaz de parar o tempo,
81
Sobre o assunto, ver ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.
82
Sobre o assunto, ver BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
São Paulo: Companhia das Letras, 1986; HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1998.
104
mas pode atrasar o nosso relógio biológico, reduzindo substantivamente a velocidade
com que envelhecemos, minimizando, desta forma, as possibilidades de patologias”.
83
A idéia de prevenção ao envelhecimento acusa que essa fase da vida pressupõe
doenças, efeitos indesejáveis no corpo e até o limiar da morte, configurado no objetivo
de reduzir a aceleração do relógio biológico. Promovendo os benefícios da medicina
antienvelhecimento, diz a especialista:
Não é muito mais difícil atingir o estado ótimo de saúde depois que estamos
doentes? o é muito mais difícil aguardar passivamente até que as
coisas estejam terrivelmente defeituosas, para, então, tratarmos de
fazer reparos e remendos? Você concorda que é muito mais inteligente
investir na prevenção e detecção precoce das doenças, permitindo que as
possibilidades de mantermos a saúde e o vigor da juventude sejam bem
maiores?
84
Os “defeitos” provocados pela ação do tempo são alvo de grande investimento
do mercado de consumo, através de produtos que prometem ser o “elixir da juventude”,
para combater os efeitos do tempo nos corpos. De fato, o culto à juventude despreza e
desqualifica o corpo da velhice, que precisa ser “remendado e reparado”, de acordo com
a especialista, para ser aprazível para os olhos e até para a própria saúde.
Além disso, acredita-se que a velhice seja uma época de perdas em relação ao
corpo
85
: os sentidos perdem a acuidade, vão-se os dentes, perdem-se alguns fios de
cabelo, os movimentos, o viço da pele, tudo se torna cinza... Não obstante, pode ser que
esse acinzentado se expresse para além do sombrio, representando a presença da vida, a
materialização de chronos que passagem ao tempo naqueles corpos repletos de
história.
83
Texto disponível no site: www.clinicaideally.com.br. Acesso em 15 jun. 2007.
84
Idem (grifos nossos).
85
Sobre o assunto, ver SIMÕES, R. Corporeidade e terceira idade: a marginalização do corpo idoso.
Piracicaba: Ed. UNIMEP, 1998.
105
Os modos pelos quais o homem contemporâneo se relaciona com o tempo têm
conseqüências ainda mais fortes na velhice. No culto ao corpo jovem, o velho é
estigmatizado. Na velocidade, na aceleração e instantaneidade do mundo, o idoso nem
sempre consegue acompanhar o compasso frenético do consumo e da produção. Seu
corpo não corre mais na velocidade exigida pelo capital.
O ritmo acelerado em que vivemos, na nossa relação com as pessoas e as coisas,
também se configura na forte presença da tecnologia em nosso cotidiano cada vez mais
informatizado, que comprime o tempo e possibilita que as ações humanas sejam
realizadas no menor período possível. O computador doméstico, os serviços de banco,
eletrodomésticos em geral, secretária eletrônica, enfim, temos atualmente uma gama de
mercadorias e serviços informatizados presentes em nosso cotidiano. Essa demanda de
uma vida computadorizada requer conhecimentos específicos de manuseio, os quais
nem sempre estão plenamente acessíveis à população idosa, além da necessidade de se
adaptar ao ritmo acelerado para o manejo desses produtos.
Em nossa relação com a dimensão temporal, outras conseqüências se colocam à
nossa frente. Vivendo em um mundo no qual o tempo é um valor, cultivamos a idéia de
que a ociosidade é, na realidade, “perda de tempo”. que se ganhar dele, trapaceá-lo,
ultrapassá-lo, para que ao final se possa conquistá-lo, vencê-lo. O tempo livre se coloca
como um tempo oco, vazio, que deve ser preenchido. Nesse caso, a velhice se encontra
intimamente ligada a essa questão, porque dispõe de muito “tempo vago” no seu
cotidiano, por se acreditar que a aposentadoria significa o fim de atividades laborativas,
ou seja, o idoso deixa de produzir mais-valia
86
.
86
Sobre o assunto, ver HADDAD, E. A ideologia da velhice. São Paulo: Cortez, 1986.
106
Conforme vimos anteriormente, a questão do tempo ocioso se tornou objeto de
preocupação e intervenção do Estado e da medicina, por meio de políticas públicas e de
procedimentos gerontológicos
87
. A idéia de se ter tempo livre foi associada à produção
de doenças, decorrendo dessa premissa a necessidade de se intervir para otimizar o
“tempo estéril” dos aposentados. Ocupar o tempo, preenchê-lo com atividades diversas
significa dar uma carga valorativa a ele, diferentemente da idéia de gastá-lo com coisas
que podem ser consideradas supérfluas. Por exemplo, o ato de bordar deixou de ser uma
atividade de lazer, para se tornar uma prescrição terapêutica, assim como uma série de
outras ações humanas, as quais foram apropriadas pelo receituário médico como
profilaxia de doenças ou para se ter o que chamam de “qualidade de vida na velhice”. A
própria cultura popular tem um ditado que diz: “Cabeça vazia é oficina do diabo”. Quer
dizer, é preciso ocupar o tempo, para não cometer traquinagens, maldades ou outros
males.
Nesse sentido, a velhice é atualmente alvo de uma série de programas e
prescrições que visam a aproveitar o tempo disponível na aposentadoria com atividades
produtoras de lucro. Diversas empresas têm manifestado essa preocupação no preparo
de seus funcionários, com programas de preparação para os jubilados através de
palestras e eventos. No ano de 2007, foi realizado em Ilha Solteira, campus da UNESP,
o “I Congresso de Preparação para Aposentadoria: aprendendo a empreender”. Dos
objetivos do evento, destacamos os seguintes pontos
88
:
Desencadear reflexão com o “aposentável” sobre esse novo ciclo de
sua vida, levando-o a descobrir novas formas de auto-realização;
Capacitá-lo para a formulação de um novo projeto de vida produtiva;
87
Sobre o assunto, ver CARDOSO, D. M. Longevidade e tempo livre: novas propostas de participação e
valorização do idoso. Revista A Terceira Idade. São Paulo: SESC GETI, v. 15, 30, p. 36-51, maio
2004.
88
Texto disponível no site
http://www.feis.unesp.br/instituicao/administracao/dta/saepe/congresso/congresso_ppa.php. Acesso em
20 mai. 2007.
107
Mostrar meios e formas de substituir as fontes de satisfação pessoal
derivadas do trabalho, por outras ligadas à sua realização como pessoa
humana.
A busca pela auto-realização é um atributo dessa nova categoria de velhice
chamada terceira idade. Cabe ressaltar que esse projeto de satisfação pessoal muitas
vezes tendo em vista o segundo item dos objetivos do referido congresso, que é levar
uma vida produtiva na aposentadoria, isto é, tornar-se um aposentado empreendedor.
Todas essas questões perpassam pela preocupação com o tempo livre do idoso,
tomado como problemático na sociedade atual. Assim, ele é inserido num conjunto de
procedimentos que procuram preencher o tempo com diversos tipos de atividades, pois
não se pode “ficar à toa” num mundo que privilegia a produção, o consumo e o
movimento.
Certa vez, nas oficinas de psicologia com idosos, narraram-nos um episódio
que envolvia uma senhora numa fila de banco. Como várias pessoas tomassem a sua
frente (quando na realidade deveria ser o contrário), ela perguntou a um jovem por que
ela estava sendo passada para trás. Ele respondeu: “Vocês, que são velhos e
aposentados, têm mais tempo de ficar à toa, por isso podem esperar mais”. Além de ser
desrespeitosa, essa situação nos mostra o quanto a velhice está atravessada pelas
relações do homem com o tempo, na contemporaneidade, seja na velocidade que move
nossas ações e relações com o mundo, seja pela necessidade de consumir o próprio
tempo e preenchê-lo com a maior quantidade de atividades possíveis.
Além disso, a aceleração do tempo provocou um distanciamento entre décadas
recentemente passadas e a que vivemos. Os reflexos desse feito podem ser vislumbrados
108
no que chamamos de era da informação
89
, na qual o que importa são as notícias
veiculadas em tempo real. Nesse caso, as narrativas e as memórias dos idosos são,
freqüentemente, transformadas em algo obsoleto e ultrapassado, pois o mais relevante é
o que está acontecendo e não o que aconteceu. Tal ditadura do tempo, imposta pelo
homem, representa ainda como rudimentares e arcaicas as práticas do cotidiano e dos
saberes que a velhice traz em seu bojo. A velocidade de informações e de conhecimento
do mundo contemporâneo faz parecerem ignóbeis as memórias dos idosos, que se
sentem desqualificados e atrasados com relação ao próprio tempo presente. Uma vez
perguntamos a uma senhora o que significava a palavra velhice para ela. Sem titubear,
respondeu: “É parar no tempo”. Imediatamente sua colega a questionou: “Mas se que
foi o tempo que parou ou fomos nós que paramos no tempo?”.
Seja qual for a resposta, a velhice tem um ritmo de estar no mundo que lhe é
peculiar. Parado no tempo, debruçado sobre ele ou não, é preciso se ter algo importante
em mente: a velhice pode ser a possibilidade de quebra da ampulheta do tempo, tal
como o vivemos na atualidade. Com seu ritmo próprio, o velho é uma das maiores
estratégias de enfrentamento das condições da velocidade do mundo contemporâneo.
Ele tem seu próprio tempo: seu caminhar às vezes é lento, assim como seus movimentos
e suas ações. O idoso nos obriga a reduzir a velocidade. Entretanto, uma outra face da
velhice, a terceira idade, se posiciona de maneira um pouco diferente, com seu ritmo
mais conjugado com o contemporâneo, um pouco mais acelerado, com mais atividades,
exercícios etc.
Além do mais, a velhice se constrói para além do tempo que culmina com a
sabedoria e experiência de vida. A todo o momento, sua existência humana é evocada,
ora ela se totaliza, ora ela se quebra: “Num mesmo movimento, o tempo nos e nos
89
Sobre o assunto, ver SANTAELLA, L. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996.
109
rouba o mundo” (BEAUVOIR, S., 1990, p.469). Enquanto alguém que acumula anos
em sua vida, o idoso não é meramente um ser que se esgotou ou que está regredindo: ele
continua a se desenvolver, a ensinar e a atualizar o passado, à sua maneira.
Ainda que tentemos trapacear a ação do tempo, estamos sujeitos a ele. Os muitos
anos de vida que desejamos a alguém, quando faz aniversário, recordam-nos que um dia
talvez estejamos velhos, que tenhamos em nós todas as idades como diz a poeta Cora
Coralina –, ou ainda poderemos nos espantar um dia quando depararmos com os anos
que se acumularam em nossa existência, como a Chiquinha, de 82 anos: “Tem dias que
acordo, me olho no espelho e penso: será mesmo que tenho essa idade?”.
Viver muito tempo ou viver o tempo... Talvez imaginar que possamos
experienciar as contradições de um tempo que atravessa nosso mundo contemporâneo,
numa relação em que a dimensão temporal não precisasse ser amarelada, apagada,
rejeitada ou mesmo omitida.
5.2. Espaço, cidade e memória
“As lembranças se apóiam nas pedras da cidade”.
(Ecléa Bosi)
A cidade é o lugar em que o tempo toma igualmente formas peculiares: os
espaços também envelhecem. Edifícios desgastados pela ação da chuva, do sol e do
tempo ilustram e testemunham a história de uma cidade. É interessante notar o quanto a
arquitetura diz respeito a uma determinada sociedade, pois se expressa a relação do
homem com o espaço.
110
O espaço urbano é a presentificação de um acontecimento. É nele que se travam
toda sorte de histórias públicas ou pessoais. Talvez ele mesmo seja a “testemunha não
ocular da história”. Dessa forma, os espaços urbanos são imbuídos de sentidos e
valores, de significações próprias de um determinado acontecimento. Os monumentos
históricos revelam fatos importantes da história de uma cidade ou de um país. São
marcos dignos de investimentos, cujo propósito é perpetuar e difundir a memória de
grandes acontecimentos do lugar: a casa de uma personalidade considerada importante,
os palácios e casarões de marqueses e reis, monumentos em que pessoas foram
assassinadas em prol de uma causa, toda espécie de museus etc. Espaços considerados
patrimônios, uma vez que eles guardam e preservam a história de uma determinada
sociedade.
Mas ainda os espaços que narram a história do cotidiano das pessoas de uma
época: pequenas casas, armazéns, fazendas, praças, capelas... Esses espaços têm
também sua importância, uma vez que as pessoas que o habitaram construíram,
igualmente, a história e memória de uma cidade.
O fluir constante do tempo e das mãos humanas alteram, consideravelmente, a
paisagem da cidade. “O espaço volta a assumir as traições do tempo: os lugares
mudam” (BEAUVOIR, S., 1990, p.451). Aquela cidade da infância, tal como foi
experenciada, existe somente na memória. Certamente, as mudanças da cidade também
foram vividas por aqueles que a habitaram, mas muitas vezes nota-se, nos idosos, a
sensação de estranhamento e saudosismo frente às tantas alterações que aquele espaço
sofreu. Em conversas com idosos, é comum ouvirmos relatos de histórias que utilizam
referências antigas da cidade. Ao narrar um acontecimento, muitas vezes eles se
reportam a ruas e casarões que não existem mais e, no entanto, as imagens se conservam
na retina da memória.
111
A cidade permanece e resiste ao tempo, ao menos subjetivamente. “Cidades
invisíveis”
90
, das quais tomamos conhecimento através de relatos apaixonados de
Marcos Pólos desbravando os entremeios daquilo que não pode ser visto, mas que se
materializa no ato de narrar a cidade ou o campo, ou nas imagens impressas em
fotografias antigas, que também preservam os lugares hoje extintos. É preciso enfatizar,
sobretudo em se tratando de uma tentativa de cartografar signos espaciais, que aquilo
que sobressalta nas lembranças dos mais velhos é, especialmente, as mudanças de
sentido e valores que acompanham as percepções das transformações dos lugares.
Por exemplo, certa vez, ouvimos nas oficinas relatos sobre a vivência da infância
na cidade, à época da Segunda Guerra Mundial. Naquele tempo, conforme nos
disseram, foi imposto um racionamento de alguns alimentos básicos do dia-a-dia, como
pão, farinha, açúcar, sal. A quantidade desses mantimentos era calculada de acordo com
o número de pessoas por família e, assim, se distribuíam fichas para a compra dos
alimentos num determinado armazém. Quem precisasse desses produtos, para além da
cota, teria que pagar um alto preço no chamado “mercado negro”.
Tudo isso se passava em uma rua que hoje é a avenida central da cidade, coração
do comércio municipal repleto de lojas, farmácias, bancos, lanchonetes e bares que
invadem as calçadas. O comércio clandestino de outrora deu espaço a um comércio a
céu aberto, agora esgotado não mais pela falta, mas pelo excesso. Escassez, guerra,
comércio regulado, mercado negro tudo isso, ainda mais visto pelo olhar da infância,
empresta um contraste muito grande com os sentidos atuais desse mesmo lugar.
Outros tantos relatos interessantes provocam até nossa imaginação acerca do
espaço urbano e seus sentidos. Uma dessas histórias é sobre uma antiga cadeia
90
Sobre o assunto, ver CALVINO, I. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
112
municipal de uma cidade ao norte do Paraná. mais ou menos quarenta anos, o
marido de uma das participantes do grupo trabalhava como agente carcerário. As fotos
revelam a velha cadeia: a estrutura do prédio era uma casa de madeira. Os banheiros e o
refeitório ficavam na parte externa, que não tinha grades e sim uma cerca de balaústre.
A porta de entrada permanecia aberta o tempo todo e as crianças entravam livremente
para espiar os presidiários. Além disso, o carcereiro escolhia o preso de melhor
comportamento para cuidar de seu filho pequeno em sua própria casa ou ainda nas
cercanias da cadeia. Esse filho, atualmente um policial militar, ficou sob os cuidados de
alguns presos que auxiliavam em tarefas do cotidiano, como cozinhar, limpar a casa,
cuidar da criança. Em tempos difíceis e violentos, tal como hoje, essa façanha é
inimaginável. De fato, não somente os espaços mudaram, mas também as relações que
se estabelecem com eles se modificaram sobremaneira.
A ruptura com o velho e a abertura para o novo se concretizaram de forma
radical na arquitetura, com o movimento modernista brasileiro. Muitos edifícios
históricos caíram por terra, literalmente, e várias cidades ganharam uma nova aparência
mais “moderna”. Ainda hoje, muitas construções históricas são derrubadas ou mal
preservadas, embora a arte contemporânea, diferentemente da arte modernista, não se
proponha mais romper com o antigo, mas, ao contrário, incorporá-lo ou até revitalizá-lo,
tal como ocorre, sobretudo, na arquitetura, com a remodelação ou restauração de
edifícios antigos.
No plano das relações entre as gerações, apesar de ainda predominar a
desqualificação e o distanciamento do jovem em relação ao idoso, é possível identificar
sinais de uma aproximação ou de uma valorização da velhice, conforme se observa na
própria ascensão da figura do idoso. Tal como está se buscando a revitalização do
centro antigo de São Paulo, parece também que a velhice está sendo restaurada como
113
valor social. Nessa questão, em particular, o moderno dialoga com o velho. Já no plano
das relações pessoais diretas entre o jovem e o idoso, os diálogos parecem mais
constritos e problemáticos.
Ainda que haja essa tentativa de miscigenação entre o velho e o novo em alguns
planos, a circulação do idoso no espaço urbano é objeto de restrições várias. Numa
sociedade guetificada, como a atual
91
, os grupos sociais e etários possuem modalidades
de circulação diferentes na cidade. Os lugares estão bem delimitados: os espaços dos
jovens, dos casais, das crianças e dos velhos. Dificilmente ocorre que um circule no
grupo de outro.
A circulação pelos espaços é delimitada por fronteiras sociais que determinam
onde cada categoria deve transitar. Aliás, o próprio mercado se encarrega de produzir
tais lugares, como por exemplo, casas noturnas voltadas especificamente para jovens e
adolescentes, salões de dança para casais, boates gays, clubes de convivência para a
terceira idade em que são realizados os bailes etc. Dificilmente as diferenças mais
radicais se encontram nesses lugares tão especificados. Aliás, em uma experiência com
nosso grupo, nós os levamos a uma badalada casa noturna da cidade, freqüentada
somente por jovens. O incômodo provocado pela situação de choque de gerações foi
mais presente nos adolescentes do que entre os próprios idosos. nos tradicionais
bailes da terceira idade, é comum encontrar pessoas de outras gerações. Ali, a presença
de moças e rapazes é bem assimilada, de acordo com os participantes do grupo, ao
contrário das festas dos adolescentes, onde a presença de um velho poderia ser
praticamente “barrada no baile”.
91
Sobre o assunto, ver MAFFESOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades
de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998; SENNETT, R. Carne e pedra: o corpo e a cidade
na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 2001.
114
As possibilidades de experimentação do espaço urbano pela velhice, como
percebemos na sociedade brasileira, são demasiadamente restritas. Sua circulação em
ambientes onde a presença de jovens é maciça muitas vezes não é bem-vinda pelos
adolescentes. Em ambientes tipicamente noturnos, como bares e restaurantes,
dificilmente encontramos uma presença mais acentuada da população idosa. Aos idosos,
cabem apenas os clubes para a terceira idade, um espaço no qual são realizados bailes e
outras atividades de convivência entre os mais velhos, além de suas memórias sobre
essa cidade, que permanece subjetivamente, onde que nem sempre encontram
interlocutores para dialogar.
Certa vez, propusemos uma atividade, nas oficinas de psicologia com a terceira
idade, que consistia em fazer uma maquete que figurasse a cidade e a relação que cada
um estabelecia com esse espaço. Divididos em pequenos grupos, eles tinham à
disposição diversos materiais de papelaria e reciclagem. Ao final, eles apresentaram a
produção do grupo para que pudéssemos discutir as implicações da atividade realizada.
O espaço urbano retratado por todos os subgrupos reunia praticamente os
mesmos conteúdos: a igreja, a praça central, o comércio, a escola, a casa do filho, uma
lanchonete, a sorveteria, o supermercado, o hospital. Em nossa discussão sobre o
material produzido, eles afirmaram que essa era a cidade à qual pertenciam e aqueles
eram seus acessos de circulação na urbe. Notamos que, para esses idosos, lugares como
casas noturnas eram interditados e não faziam parte de sua possibilidade de
experimentação e apropriação da cidade.
Essas restrições de circulação, experimentação e apropriação do espaço urbano a
que estão submetidos os idosos são frutos de uma criação social, pois “queremos que os
velhos se conformem à imagem que a sociedade faz deles. Impomos-lhes regras com
115
relação ao vestuário, uma decência de maneiras, e um respeito às aparências”
(BEAUVOIR, S., 1990, p. 268). Por isso, muitos territórios são previamente
delimitados, assim como as regras de convivência nesses espaços. Em dois diferentes
clubes da terceira idade que pudemos conhecer, onde acontecem os bailes semanais, é
colocado, na entrada, um grande aviso que determina as regras da casa: mulheres não
podem entrar com roupas curtas, homens têm de estar bem vestidos e é proibido o
namoro explícito naquele espaço.
Além das barreiras sociais impostas aos idosos, ainda as barreiras físicas que
comprometem o acesso a logradouros diversos. Escadas, meios de transporte, calçadas e
até o trânsito dificultam a circulação de idosos nos espaços urbanos. Essas restrições,
físicas ou sociais, recaem de maneira muitas vezes intensa na velhice. Dos lugares que
fizeram parte de uma história pessoal restam muito poucos, ou até mesmo nenhum. Dos
espaços de circulação, ainda algumas possibilidades de mobilidade. Além disso, a
ação do tempo nos espaços muda o cenário e as relações entre as coisas.
Como vimos, a velhice permanece à margem da condição de apropriação e
experimentação do espaço urbano. Desse sentimento de pertença à cidade, resta aos
idosos apenas uma memória que se apóia nas pedras de um espaço que muitas vezes
lhes nega e interdita as possibilidades de circulação e participação na urbe. Por isso, o
resgate dessas memórias sobre a cidade pode contribuir para um embate sobre a
condição a que o idoso é submetido na sociedade contemporânea brasileira e também
sobre o confronto com os rumos do espaço urbano nas suas transformações advindas da
ação do tempo e do mercado capitalista, que destróem a paisagem histórica urbana e
interditam a livre movimentação na cidade com a produção de guetos urbanos.
116
5.3. Mercado e qualidade de vida: a descoberta da terceira idade
“Hoje os adultos se interessam pelo velho
de outra maneira: é um objeto de
exploração
(SIMONE DE BEAUVOIR)
As últimas décadas do século XX e os primórdios do atual revelam um
sentimento com relação à velhice diferente de outras épocas. Até então, os idosos eram
expropriados da sociedade capitalista consumidora e produtiva. Hoje são alvo de uma
infinidade de produtos e serviços direcionados a essa população. Assim, aliado à
ciência, que constrói o conceito de velhice e a divide em outras categorias, o mercado
injeta demandas específicas voltadas a eles.
É interessante notar que a atual situação econômica de nosso país, juntamente
com a economia neoliberal, engendrou a categoria a terceira idade como categoria de
consumo, graças ao mercado que enxergou seu potencial de compra frente à
estabilidade da aposentadoria, ainda que advinda de um salário nimo, na maioria dos
casos. De acordo com Simone de Beauvoir (1990), esse interesse pela terceira idade
aparece como objeto a ser explorado economicamente.
Atualmente, o idoso é investido de uma importância econômica e social
diferente de outras épocas. Não se trata de uma ascensão vinda de reivindicações por
melhores condições de vida e protesto contra a discriminação, mas de uma valorização
social para sua maior exploração e funcionalização, como aparece na fala de uma das
participantes do grupo de idosos: “O comércio finalmente descobriu a terceira idade.
Nas lojas, dão até cafezinho. Mas eles nos tratam assim por causa da nossa
aposentadoria e oferecem crédito ilimitado para nós. O comércio nos descobriu para
comprar. Falta nos descobrirem enquanto gente, mesmo”.
117
Em famílias pobres, atualmente, muitos idosos sustentam filhos ou netos
desempregados. Dados do Ipea
92
(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) apontam
que 53% dos idosos têm participação na renda familiar. A aposentadoria figura como
importante meio de sobrevivência de algumas famílias e até como garantia de
empréstimos em agências de financiamento. Além da aposentadoria e da pensão,
idosos que têm renda acrescida de aluguel de imóveis ou de previdência privada.
O mercado de produtos e serviços para essa população é vasto: ofertas de
alimentos a clínicas particulares, de condomínios de alto luxo a empréstimos de bancos,
pacotes de viagem e aulas em academia, tendências de moda e cursos variados em
universidades que cobram mensalidade, tudo especificamente direcionado para a
população da terceira idade.
Atentos a esse potencial de mercado, 51 grandes empresas voltadas ao comércio
para a terceira idade promoveram, em 2006 e 2007, na cidade de São Paulo, uma grande
feira chamada “Plenitude: Salão da Maturidade”. A quantidade e a variedade de
produtos e serviços impressionam: além dos citados acima, foram desenvolvidos
produtos para os animais de estimação dos idosos, como o caso de uma prótese de
silicone colocada nas garras de cães e gatos para não ferir o dono do animal.
Apesar do que diziam os organizadores do evento, afirmando que a terceira
idade é “um mercado que não pára de crescer”, o que se observa é uma contínua
produção de demanda sobre os idosos. O convite expresso no site do evento
(www.salaodamaturidade.com.br) convocava a terceira idade a “conhecer em primeira
92
CAMARANO, A. A. O idoso brasileiro no mercado de trabalho. Texto para discussão 830.
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEA. Rio
de Janeiro, out./ 2001. Disponível no site www,ipea.gov.br. Acesso em: 15 mar. 2007.
118
mão, empresas que se preocupam com a maturidade e lançam produtos e serviços para o
setor que consume aproximadamente R$ 150 bilhões/ano”.
Tamanha cifra, de fato, aguça os olhos de investidores atentos a quaisquer sinais
de possibilidades de abertura para diferentes mercados de consumo. A velhice parece
ser um dos alvos de investimento em maior ascensão na atualidade, haja vista que o
aumento do número de idosos, conseqüentemente, promove um aumento dessa
população para consumir. Para o mercado, as engrenagens da máquina do capitalismo
não podem parar ou funcionar de forma desarmônica. Por isso, ele absorve, atualmente,
qualquer categoria da população.
Recentemente, o Ministério do Turismo criou o programa “Viaja mais melhor
idade”, divulgado em vários meios de comunicação. O objetivo dessa iniciativa, tal
como expresso no site (http://www.turismo.gov.br/viajamais), é oferecer crédito
consignado para aposentados e pensionistas na compra de pacotes de viagens para
destinos nacionais em baixa temporada. A proposta do Ministério não deixa de ser
extremamente interessante, se analisarmos que essa população passaria a ter maiores
possibilidades de acesso a essa modalidade de lazer. Mas, para além dessa questão
imediata, analisamos os objetivos específicos desse projeto, assim colocados:
aumentar a oferta e a procura para os períodos de baixa ocupação, a
fim de minimizar os efeitos da sazonalidade
aumentar a ocupação da oferta existente
estimular a articulação entre as empresas do trade turístico e seu
comprometimento com as ações do VAI BRASIL
manter os empregos atuais, diminuir a rotatividade e ampliar a oferta
de vagas
fortalecer o papel do setor turístico como gerador de renda e de
desenvolvimento social
dar oportunidade a todos os integrantes da cadeia produtiva do turismo
de divulgar seus produtos em escala nacional
93
93
Texto disponível no site http://ww1.vaibrasil.com.br/oquee.asp. Acesso em 20 out. 2007.
119
A idéia de promover o turismo na terceira idade, como não poderia deixar de ser,
tem forte incitação econômica. Como os idosos não dependem de feriados ou de férias
para viajar, pois dispõem de tempo livre, o governo, em parceria com várias empresas
do setor aéreo e hoteleiro, vislumbrou a possibilidade de aumentar seus lucros e gerar
desenvolvimento. De acordo com o texto do site, “com mais gente viajando dentro do
Brasil, são mais postos de trabalho, mais emprego e renda. É o turismo levando inclusão
social e desenvolvimento por todo o país”. Inclusão baseada em um projeto de consumo
e de objetivos que visam à manutenção e equilíbrio do mercado capitalista.
Nesse processo de produção de demanda, o conceito de qualidade de vida tem
sido amplamente difundido e também associado à idéia de acesso a bens de consumo.
Assim, ao consumir produtos e serviços, o sujeito produz e consome qualidade de vida.
Para a velhice e a terceira idade, tal noção se coloca de forma acentuada, atualmente.
Fala-se muito da necessidade de viver com qualidade de vida nessa faixa etária. Porém,
do que trata, de fato, esse conceito?
Para Anita Neri (apud TRENTINI et al., 2006), são diversos os significados
associados a tal concepção. No caso da medicina, ela estaria ligada à relação
custo/benefício inerente à manutenção da vida ou à capacidade funcional dos doentes.
Já na economia, esse conceito concerne a medidas objetivas, como renda per capita, que
é um indicador de acesso a bens de consumo e demais serviços como saúde, educação
etc. No campo da psicologia social, ainda de acordo com a autora, a referência seria a
experiência subjetiva, baseada no conceito de satisfação.
Pesquisadores como Andrews (1974) e Abrams (1973) (apud TRENTINI et al.,
2006) atribuem igualmente a noção de qualidade de vida ao grau de prazer e satisfação
de necessidades físicas, psicológicas ou de outros domínios da vida. Conforme o Grupo
120
de Qualidade de Vida da Organização Mundial da Saúde (OMS, 1995), é “a percepção
do indivíduo da sua posição na vida, no contexto de sua cultura e dos sistemas de
valores da sociedade em que vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões
e preocupações
94
” que deve orientar a compreensão do conceito de qualidade de vida.
Ora, se levarmos em conta essas concepções, é possível vislumbrar que o
mercado absorveu o discurso científico para criar e produzir demandas de consumo
associadas a essa noção de vida com qualidade. O capitalismo, ao engendrar
necessidades numa velocidade intensa, cria um sujeito em desassossego com seu grau
de satisfação, pois as demandas mudam a todo o momento.
O conceito da OMS pode auxiliar no entendimento desse fenômeno da produção
de qualidade de vida pelo mercado, porque, ao analisarmos o sistema de valores sociais,
vemos que o sujeito contemporâneo se funda enquanto consumidor. Os objetivos, as
expectativas, os padrões e as preocupações que rondam o homem, na atualidade, estão
ligados a uma premente necessidade de consumir bens e serviços. Os valores pertinentes
à qualidade de vida se estruturam neste aspecto.
Até mesmo a noção de saúde, uma referência quando pensamos no conceito
acima, é hoje mercadoria amplamente vendida e consumida. Muitas vezes, para se ter
acesso à saúde, é preciso pagar pedágio em convênios médicos, clínicas particulares,
para a indústria farmacêutica e até mesmo para a medicina estética, haja vista que
permanecer jovem, além de ser objeto de consumo e desejo, é ainda uma noção ligada à
qualidade de vida.
Tal como é vista hoje, a qualidade de vida não pode ser traduzida por conteúdos
universais e absolutos aplicados a toda a população. Mais do que a capacidade produtiva
94
Sobre o assunto, ver TRENTINI, C. M. et al. Qualidade de vida em idosos. In: PARENTE, M. A. P. et
al. Cognição e envelhecimento. Porto Alegre: Artmed, 2006.
121
e consumista e do acesso aos bens e a eficiência econômica do sujeito quesitos
impostos pelo mercado a qualidade de vida parte, indispensavelmente, do
reconhecimento das diferenças e das peculiaridades de cada momento da vida em uma
determinada cultura, sem a pretensão de anulá-la ou de criar padrões de existência. Ao
considerarmos essas questões, talvez a velhice e a terceira idade pudessem ser
reconhecidas como uma população que se constrói para além de consumidores e
produtores de mais-valia.
5.4. Ditos e interditos na velhice
Cooptados pelo mercado, os idosos atualmente se encontram inseridos na
sociedade enquanto uma categoria de consumo, conforme discutimos anteriormente.
Essa inserção possibilitou o acesso a algumas melhorias materiais na vida desses idosos,
mas ao custo que o mercado cobra por tais serviços.
Para além da economia, os regimes de saber sobre a velhice são elementos
importantes para a compreensão das formas e dos sentidos produzidos acerca dessa fase
da vida. Tais regimes alimentam expectativas específicas sobre o lugar do idoso, na
sociedade em geral. Costumes, vocabulário e comportamentos típicos são produzidos
socialmente. O olhar do outro é produtor de estereotipias e interdições que, às vezes, o
idoso assume para si.
A produção discursiva sobre a velhice contribui para a segregação do idoso,
além de aprisioná-lo em estereótipos que o desqualificam. Essa estigmatização pelo
discurso se dá por meio de sua infantilização e depreciação, quando são chamados por
diminutivos como “velhinho”, “vovozinha” etc., além, é claro, de toda a carga
semântica pejorativa que a palavra “velho” carrega.
122
A segregação do idoso pela linguagem se faz, ainda, pelo modo polido e pudico
que se espera deles, ao falar em público. Gírias dos jovens jamais seriam bem vistas
socialmente na boca de um idoso. Por outro lado, as gírias de seu tempo são
consideradas ultrapassadas e incompreensíveis pela juventude atual. As possibilidades
de ruptura com a esse sistema de regras são poucas, mas ainda há tentativas defensivas e
reparadoras as quais criam conceitos que estabelecem um padrão de linguagem, como
quando, por exemplo, o movimento dos idosos é chamado pelos próprios de “feliz
idade”, “melhor idade” ou “terceira idade”.
Padrões de comportamento e imagens também são produções sociais
importantes para a configuração e retratação da velhice. Em uma de nossas oficinas, por
exemplo, resgatamos as maneiras pelas quais os idosos representavam seus avós. Elas
apontaram para uma produção de sentido de velhice associada a vários signos óticos,
como o vestuário por meio de roupas, suspensório, colete, terno, chapéu, saia longa e
rodada, lenço na cabeça etc.; ou ainda a outros signos remetidos às relações
estabelecidas no âmbito familiar, como o respeito expresso no olhar, no porte físico e na
postura afetiva na família.
Por muito tempo e isso ainda persiste a figura de um idoso foi apresentada
por uma vovozinha típica dos contos de Monteiro Lobato, como a famosa Dona Benta,
uma figura doce e compreensiva, cheia de histórias para contar. Quantas avós ainda são
como ela! Papai Noel, o bom velhinho, as cartolas e bengalas, as vestes impecáveis,
cabelo e barba bem aparados e arrumados, o “preto velho” e tantas outras formas são
típicas da retratação da velhice na nossa cultura. Ainda é forte o sentimento de filiação e
de parentalidade sustentado pelos avós, assim como os de amparo e segurança
emocional-afetiva.
123
Hoje em dia, a pressão mercadológica e a construção do conceito de terceira
idade fazem surgir uma série de outras figuras, diferentes das convencionais, de feição
mais “moderna” e atualizadora de sua presença no mundo contemporâneo. A
longevidade começa a ser bem apreciada, almejada e desejada como um valor de
mercado, trazendo consigo o aceno de possibilidades cada vez maiores de um
alongamento do tempo de vida, acompanhado não mais por sofrimentos e faltas, mas
por estados de felicidade e preenchimentos até excessivos. Por isso mesmo, mais do que
em outras fases da vida, existem numerosos projetos e programas destinados aos idosos
para colocá-los em movimento, em constante revitalização. E assim, junto com dona
Benta, há idosos atletas, modernos, atarefados, ociosos e tantos outros mais. Até a Dona
Benta de uma versão televisiva recente do “Sítio do Picapau Amarelo” aparece
operando um lap top. Quem sabe tal atualização dessa personagem não a levará a
abandonar seu tradicional livro de receitas e a substituí-lo pelos sites da Internet
especializados em culinária!
Além de estratégias de ação meliorativas e atualizadoras, a velhice é também
alvo de uma série de restrições sociais, apoiadas num conjunto de procedimentos que
veiculam táticas castradoras e repressivas. “Os prazeres imediatos lhes são interditados,
ou avaramente dosados: o amor, a mesa, o álcool, o fumo...” (BEAUVOIR, S., 1990, p.
550). A necessidade de uma vida regrada atinge os mais diversos campos da existência
da terceira idade. Talvez mais do que em qualquer outra fase da vida, a interdição
alimentar é a que se apresenta de forma mais intensa na velhice. A invasão da medicina
na vida no corpo do idoso é produtora de um saber que toma para si a tarefa de
permissão ou interdição nesse campo. A disciplinarização da fome e da conduta
alimentar segue padrões rígidos de educação pela boca, contra os excessos, a gordura e
a gula – um pecado capital.
124
Além do peso da interdição alimentar, ainda as interdições quanto à
mobilidade social dos idosos. A sociedade contemporânea é profundamente marcada
pelo tribalismo
95
. Essa sociedade tribal contemporânea promove relacionamentos e
contatos amplos, efêmeros e transitórios, baseados não mais em uma racionalidade
propositora de objetivos e projetos comuns, mas em afetos irracionais produtores de um
sentimento de “estar junto”. Os vínculos sociais atualmente se constituem de uma
fragilidade simplesmente peculiar, como se a qualquer momento pudessem ser
rompidos. A instabilidade dos laços humanos propicia maior circulação entre pequenos
círculos (tribos), onde não delimitações espaciais precisas nem projetos ou objetivos
deliberados que articulem e criem alguma sedimentação ou longevidade dos
relacionamentos.
Uma socialidade assim constituída contrasta fortemente com as matrizes de
relacionamento e grupalização as quais formaram as gerações que hoje estão na faixa
dos 60, 70 anos ou mais. Prevalecia até então um forte espírito de grupo, como eram
conhecidas as agregações bem delimitadas espacialmente por conjuntos bem definidos
de pessoas e solidamente projetados no tempo, como a família tradicional, por exemplo.
Imagens de tribos são associadas a jovens e jamais a idosos, que ainda são vistos
como velhinhos, recolhidos no aconchego do lar, com seus pijamas, sentados à frente de
uma televisão. Sob o suporte de um estereótipo ancorado em campos identitários que
delineiam formas de ser do idoso como personagem doméstica, estável, fixa e
aprisionada ao espaço da casa e da família, surge todo um cerceamento e recriminação
da presença dos mais velhos nos espaços públicos, especialmente aqueles criados na
contemporaneidade, como shoppings, lan houses e as badaladas casas noturnas.
95
Sobre o assunto, ver MAFFESOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades
de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
125
Enquanto a juventude é associada às novidades do mundo, como as tribos e os produtos
da alta tecnologia, os idosos são impregnados de sentidos e valores de obsolescência e
estagnação, que cerceiam sua circulação pelos espaços sociais.
Às restrições sociais somam-se ainda as dificuldades de locomoção física e de
circulação no seu território, como os meios de transporte, as calçadas, escadas, longas
distâncias entre itinerários, etc. Todavia, é possível que uma das maiores barreiras seja a
que delimita espaços de circulação social, que designa os lugares próprios onde ele deva
se movimentar: hospitais, algumas praças tipicamente freqüentadas por idosos, postos
de saúde, ruas de comércio à luz do dia, clubes e bailes específicos para a terceira idade
e tantos outros. Talvez esse seja o obstáculo mais difícil de se transpor, pois, em muitos
lugares, o idoso não é bem vindo. Nesse sentido, ele é expropriado e interditado de
possibilidades de experimentações urbanas diferentes, confinado a lugares que lhes são
determinados socialmente.
Além das interdições descritas acima, ainda outros mecanismos de opressão
da velhice
96
, como os mecanismos institucionais, por meio da burocracia dos serviços
do INSS, do SUS, de asilos e de serviços de saúde. Lidar com a parte burocrática de
uma instituição é conviver com sua parte mais enrijecida e perversa. É comum vermos
aposentados em filas incomensuráveis, à espera de atendimento nesses serviços. Toda
essa opressão é realmente necessária? Existem os mecanismos psicológicos sutis, que,
por sua vez, utilizam estratégias refinadas de controle e violência, como a tutela ao
idoso, que o desqualifica da condição de cuidar de si próprio. Há, ainda, os mecanismos
técnicos, como as próteses e o não acesso a elas e, por fim, os mecanismos científicos,
com as práticas discursivas e terapêuticas sobre o idoso, que são igualmente parte de
tantas outras formas de violência contra a velhice. Tal como vimos, alguns mecanismos
96
Sobre o assunto, ver BOSI, E. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: EDUSP, 1987.
126
são mais visíveis, enquanto outros, demasiadamente sutis, mas muitos deles
permanecem silenciados e compactuados pela sociedade.
4.5. Histórias “do arco da velha: memória e experiência narrativa
“As lutas pela memória:
eis algo de que todos temos conhecimento de causa”.
(Ecléa Bosi)
Um dos papéis atribuídos aos mais velhos é o da arte de contar histórias de um
passado considerado longínquo, seja da família, seja da cidade ou de acontecimentos
que marcaram uma determinada geração. Diz-se do idoso que ele é um saudosista, vive
das memórias de anos dourados de sua juventude e sempre as evoca, para confrontar o
passado com os contornos do contemporâneo, muitas vezes valorizando o pretérito em
detrimento do presente.
É por meio dessa atividade de exercício do resgate da memória que o passado
pode sobreviver. O legado de uma cultura, de uma sociedade, depende das lembranças
que emergem da memória e que são traduzidas para os seus
97
. As lembranças, na maior
parte das vezes, são despertadas quando provocadas por outros, em situações nas quais
o sujeito é chamado a contar um caso, a história da família ou mesmo para ajudar a
relembrar e confirmar fatos passados. Dessa forma, a memória sempre se recompõe, o
passado é atualizado e se presentifica na relação que se estabelece, ao se narrar uma
97
Sobre o assunto, ver ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972;
AUGRAS, M. O ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagnóstico. Petrópolis: Vozes,
1986; BOSI, E. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1987; ________. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê, 2003.
127
história. “Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é
sonho, é trabalho”. (BOSI, E. 1987, p. 17)
É comum se ouvir dizer que o idoso é alguém que vive de lembranças, remoendo
e degustando os anos que se foram. até um ditado popular dizendo que “quem
vive de passado é museu”, retratando os idosos como museus ambulantes
extemporâneos, situados num tempo que não o atual. Apesar do que diz a cultura
popular, debruçar-se na esteira do tempo que toma corpo nas memórias é realizar um
trabalho político. Mais do que um devaneio fútil ou uma tentativa de preencher o tempo
ocioso, recordar é dar corda de novo às engrenagens da história, em uma dimensão na
qual que tempo e espaço se inscrevem conjuntamente. Apropriar-se da memória e
transmitir esse legado cultural é reconstruir o passado, dar a ele a possibilidade de ser
atualizado e narrado de uma forma diferente daquela contada nos livros. Mais ainda: é
ter de volta o sentimento de pertença a uma história ou mesmo à própria sociedade,
sentimento este que muitas vezes é arrancado daqueles que viveram e construíram a
sociedade, cada qual à sua maneira.
A experiência narrativa, de acordo com Michel de Certeau (1994) no livro “A
invenção do cotidiano”, é diferente de uma simples técnica de descrição. Para o autor,
contar uma história é criar espaço para a ficção, é uma arte do dizer e de fazer a história.
Além disso, a narrativa implica uma relação indissociada do tempo, da noção de
duração, da memória se presentificando no ato mesmo da fala: “O discurso produz
efeitos ao querer dizer outra coisa do que aquilo que se diz; exerce sua estratégia por um
desvio pelo passado, recorrendo à memória como uma de suas táticas geradoras de
sentido” (MAIRESSE, D; FONSECA, T., 2002, p.114).
128
Ao se reler um livro ou rever um filme, o olhar sempre captura algo que antes
não se havia visto. Assim acontece quando um indivíduo recorda suas experiências
passadas. É impossível vivê-las tal e qual aconteceram, no mesmo cenário e com as
mesmas pessoas. Por isso o trabalho de recordar é uma reconstrução de fatos da
memória e da linguagem, que, a cada vez que uma lembrança é evocada, a
possibilidade de emergir novos sentidos sobre o mesmo acontecimento, assim como
outros sentimentos e sensações podem ser despertados nesse trabalho de reconstrução
da história, independentemente de serem relatos verídicos ou não.
A experiência narrativa recorre ao passado para lançar mão das histórias
impressas na memória. E é por essa última que o passado se produz, não apenas como
um antigo presente, mas enquanto algo que se constrói no próprio presente: “A memória
se constrói no encontro com os acontecimentos, em seu instante ainda virtual, quase
pronto para realizar-se. Assim, a memória consiste num meio de transformar lugares”
(op. cit., p. 114).
Nas atividades com o grupo de idosos, nosso objetivo era propiciar um espaço
no qual as experiências guardadas na memória pudessem ganhar corpo e sentidos
polissêmicos através da narrativa. A cada oficina, desenvolvíamos novas temáticas
elaboradas previamente e registrávamos a produção das histórias narradas por meio de
cartas, cartazes ou revistas de circulação no campus da universidade. Nas atividades
semanais, o presente ia ao encontro do passado no ato de experienciar as histórias que
envolviam as brincadeiras de infância, os bailes e carnavais da juventude, os “causos” e
lendas transmitidos culturalmente, os usos e costumes de uma época, os cuidados com o
corpo e a saúde.
129
O trabalho coletivo realizado em nossas atividades não visava ao lembrar por
lembrar. Procurávamos fazer dessa estratégia um ato político de confronto com as
práticas do presente e de questionamento da velhice, na sociedade contemporânea:
afinal, os idosos são atores da construção da história do cotidiano. Em acréscimo, a
experiência narrativa afirma a presença e a pertença do idoso na sociedade
contemporânea ao estabelecer o lugar da narrativa e da escuta, em um enfrentamento
acerca da expressão de sua condição na dimensão sócio-temporal.
Essa arte de contar histórias, na realidade, é uma arte do encontro do que
passou com o que é atual, com a presença das ausências, com as diferentes gerações,
com os fantasmas vagantes em algum lugar da memória e com as possibilidades de se
produzir e transformar uma(s) realidade(s):
Somente através da memória se pode atingir o passado, e este, não existindo como
um antigo presente, se torna possível enquanto produção no presente, resgatado
pelo imemorial. Assim, é somente a partir de hoje que se pode falar sobre o
passado, e é implicado no presente e comprometido com o futuro que se faz valer o
passado um passado sempre a se refazer no presente. (MAIRESSE, D.;
FONSECA, T.; 2002, p. 114)
A atividade de recordar
98
se exerce com feições diferentes, em cada fase da vida.
Enquanto somos crianças e adolescentes, não muito o que ser lembrado da própria
história de vida. Para o adulto ativo, a atividade de recordar é tida como se fosse uma
fuga, ou até mesmo contemplação nos momentos de lazer. Preocupado com sua vida
prática, o adulto dificilmente se entrega à arte de rememorar. Essa tarefa parece caber ao
idoso: ser a memória da família e do seu grupo social. É essa sua obrigação: “lembrar, e
lembrar bem” (BOSI, E., 1987, p. 24). No entanto, se essa experiência for tomada como
única condição de possibilidade de vivência no coletivo, então a tarefa de lembrar pode
98
Sobre o assunto ver BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: EDUSP, 1987.
130
se tornar aprisionadora do sujeito e o risco de se perder a dimensão política do
passado.
A partir de nosso contato com o grupo de idosos, percebemos que o passado,
seja ele advindo de uma história de vida, seja de acontecimentos do cotidiano, é muitas
vezes privado de expressão no meio social. Muitas de suas histórias chamadas “do arco
da velha” permanecem guardadas num museu peculiar: seu próprio corpo. Passada a sua
fase chamada produtiva, no mundo do trabalho, ele pode deleitar-se com essa tarefa de
recordar, mas para quem ele o faz? Como pode exercer sua “função social” e seu
exercício político, se suas lembranças se perdem num campo discursivo que não
encontra interlocutores? Em uma sociedade que preza a velocidade, a aceleração do
tempo e a compressão dos espaços
99
, a experiência narrativa e a escuta parecem estar
condenadas.
A arte da narrativa e a história oral estão interligadas. Nesse contexto, verdades e
mentiras se misturam entre as paixões humanas e o fantástico da vida. Porém, as
narrativas contemporâneas deram lugar à informação
100
veiculada pelo jornal, que passa
os fatos de forma “imparcial e verídica”. Até mesmo os causos, lendas e as histórias, tão
comumente contados pelos avós aos seus netos, vêm perdendo espaço na comunicação.
cerca de dois anos, ao realizarmos oficinas sobre causos e lendas de terror, vários
participantes do grupo relataram que seus netos caçoavam deles, quando contavam as
histórias de bruxas, mulas-sem-cabeça, lobisomem, fantasmas, dizendo que nada disso
era real...
A necessidade criada pela cultura de massa de ter que se estar bem informado
leva o sujeito a um bombardeio de informações que só têm valor no instante mesmo em
99
Sobre o assunto ver VIRILIO, P. Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996;
HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1998.
100
Sobre o assunto ver CASTELLS, M. A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
131
que surgem. Passados alguns poucos momentos, elas se perdem e se esgotam, dando
lugar a outras notícias mais recentes. Seus sentidos são muito auto-referentes e restritos
a um uso determinado, diferentemente da narrativa, que permanece no tempo e é
polissêmica, ou seja, seus sentidos são ilimitados, bifurcam em outras narrativas e não
se consomem no imediato.
A arte de narrar é um trabalho artesanal. Trabalho que, para Ecléa Bosi (1987),
exige alma, olho e mão. É assim que o narrador transforma sua matéria a vida
humana: “Seu talento de narrar vem da experiência; sua lição, ele extraiu da própria dor;
sua dignidade é a de contá-la até o fim, sem medo”. (p.49)
Além disso, segundo Hannah Arendt (1972) no livro A condição humana, os
legados de uma geração podem ser transmitidos às gerações seguintes através da
palavra, porque o que se pode transmitir é o sentido daquilo que foi vivido e não a
vivência concreta. Aliás, o próprio sujeito também pode desconhecê-la, uma vez que a
lembrança narrada pode não ter sido uma vivência do indivíduo, mas uma situação
social. Assim, pensando não apenas na necessidade de apropriação da própria história,
mas também na função social de sua transmissão, torna-se necessário criar situações nas
quais esses relatos, as experiências vividas, sejam (re)lembradas, (res)significadas e
contadas para os seus, ainda que os espaços para essas atividades estejam restritos,
atualmente.
As memórias dos idosos são densamente ricas, porque guardam consigo aquilo
que os tradicionais livros de História, na maior parte dos casos, não conseguem traduzir:
a narrativa do cotidiano. São as histórias daqueles que constroem a História
101
.
Costumes, lendas, imaginários e práticas que, transmitidos pelo legado da narrativa oral,
101
Sobre o assunto ver CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994
132
são parte importante da memória coletiva e do indivíduo que recorda. Um fio de meadas
complexas e de múltiplas possibilidades: um ponto de convergência com o passado e o
presente e suas linhas de tempo no amanhã do mundo.
133
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
“A conversa evocativa de um velho é sempre
uma experiência profunda: repassada a
nostalgia, revolta, resignação pelo
desfiguramento de paisagens caras, pela
desaparição de entes amados, é semelhante a
uma obra de arte. Para quem sabe ouvi-la é
desalienadora, pois contrasta a riqueza e a
potencialidade do homem criador de cultura com
a mísera figura do consumidor atual” (BOSI, E.,
p. 41, 1987)
Inventariar experiências com o grupo da terceira idade é a possibilidade de
oferecer inscrições de outras narrativas e reconstruir as práticas que realizamos junto às
oficinas. É recorrer à memória para atualizar outros sentidos aos encontros e poder
vislumbrar seus lastros que permanecem no tempo.
Como mencionamos, foi por meio desses quase cinco anos de contato com o
grupo que pudemos realizar as reflexões presentes nessa pesquisa. O grupo que se
constituiu em torno das oficinas era composto por presenças singulares que delineavam
possibilidades de velhice e de terceira idade. Com faixas etárias diferentes, as pessoas
que formaram essa grupalidade diferiam entre si: senhoras viúvas mais recatadas, donas
de casa igualmente reclusas e tradicionais contrastavam com outras que diziam ter
“espírito jovem”, que gostavam de sair, dançar, paquerar não com um sentimento de
saudosismo de uma época passada da vida, mas como uma experiência de pertença às
atualidades do mundo enfim, rostos e histórias díspares que se encontravam
semanalmente nas tardes de sexta-feira na Universidade.
Velhice, terceira idade, melhor idade, velho, ancião, feliz idade... Faces e
possibilidades de vivência do envelhecimento. Cartografar seus contornos constituiu um
134
desafio ao percorrer reentrâncias convexas e corredores semânticos por onde escoam as
diversas significações.
Durante o percurso cartográfico, foi-nos possível entrar em contato com essas
materialidades da finitude humana e suas formas de expressão inscritas no tempo.
Conforme pudemos observar, a conspiração de silêncio em torno da velhice, denunciada
por Simone de Beauvoir, em 1970, foi aos poucos sendo substituída por uma crescente
produção discursiva sobre o envelhecimento na ciência, nas políticas públicas e no meio
social. Transformada em problema, a velhice ganhou visibilidade por conta de uma série
de fatores, mas a questão do envelhecimento mundial talvez tenha sido o maior
propagador da necessidade de intervenção nessa faixa etária.
A velhice como problema social, na realidade, é uma construção de demandas
que envolvem a visibilidade e o interesse em criar um objeto, a fim de legitimar ações
sobre ele. A essa demanda incitada socialmente, por sua vez, somou-se um esforço no
sentido de promover uma problemática no campo das preocupações do momento. Por
conseguinte, mobilizaram-se atores sociais na tentativa de dar expressão à essas
demandas, tornando-as públicas e objetos de reivindicações.
Sendo a velhice uma categoria relativamente privada de expressão, as políticas
públicas e a ciência, por meio da gerontologia e da geriatria, foram os atores
mobilizados para dar visibilidade a esse objeto problemático. Sendo assim, a expressão
das demandas da velhice foi institucionalizada por meio de conselhos, médicos,
cientistas, programas, associações etc., muitas vezes trazendo a marca da supressão das
necessidades aprisionadas ao corpo biológico, não ao corpo político.
Dessa forma, o envelhecimento se encontra inscrito numa racionalidade aliada
ao discurso da ciência. Sua produção vinculada a esses princípios biologizantes forja
135
discursos de especialistas que ditam estatutos normativos de verdade sobre o que é e
como deve ser gerida essa categoria etária. Utilizando-se de uma estratégia que envolve
o poder de estatuto científico, a produção discursiva da geriatria e da gerontologia versa
sobre um corpo biológico, em fase de degeneração, atentando para a necessidade de
medidas de controle e prevenção a uma velhice na qual não haja o envelhecimento.
O discurso sobre o envelhecimento mundial, alardeado por diversas pesquisas,
desde meados do século XX, colocou em evidência um problema de ordem econômica.
A questão da previdência e da saúde passou a representar um grande desafio à
administração governamental, uma vez que as aposentadorias e os gastos com a saúde
da população idosa são muitas vezes onerosos ao Estado.
É interessante notar que, a partir dessa preocupação com a problemática da
velhice, surge uma aliança entre a ciência e o Estado, no sentido de promover uma nova
imagem de velhice no meio social por meio da gestão do envelhecimento. A
revitalização da figura do idoso aconteceu graças a essa aliança, na qual a gerontologia
e o Estado primavam por uma idéia de prevenção, seja por meio das práticas médicas,
seja por políticas públicas.
O nascimento da terceira idade aconteceu nesse momento em que se buscava
otimizar a figura do idoso, isto é, torná-lo útil à sociedade. Ganhando traços mais
revitalizadores, o envelhecimento hoje possui rias faces, sendo que a terceira idade
representa uma das principais, como uma fase intermediária entre o estágio adulto e a
ancianidade, marcada principalmente por contornos que a apresenta como um período
de realizações de projetos adiados ao longo da vida e de busca de satisfação pessoal.
O envelhecimento humano na contemporaneidade está circunscrito
principalmente pela noção de velhice e de terceira idade. Cada qual apresenta seus
136
atributos e características que lhes são próprios. Com relação à velhice, ela se inscreve
em um regime de tutela, de asilamento e isolamento na família e no meio social. Sua
relação com a cidade é definida, muitas vezes, pela constrição de possibilidades de
circulação. A visão que se tem sobre seu corpo se caracteriza por um estágio de
degenerescência, de decrepitude e doença. A idéia de velhice se conecta com a
proximidade da morte e do pouco tempo de vida restante.
Os atributos da terceira idade, por sua vez, estão inscritos no “espírito jovem”,
na “feliz idade”, na busca pela auto-realização, no corpo saudável, produtivo e ativo.
Essa categoria emergente no contemporâneo engendra procedimentos e aparelhos de
gestão próprios, que possibilitaram sua inscrição no cenário social e a revitalização do
envelhecimento. Dentre outras possibilidades, podemos destacar a substituição dos
asilos por centros de convivência, a prevenção às doenças e promoção da saúde, a
educação do corpo idoso com práticas pedagógicas de base médico-científica e a
substituição de ações caritativas por estratégias mais refinadas e eficazes no controle e
gestão da população.
Enquanto objeto inscrito no mundo contemporâneo, a velhice nos mostra
diferentes facetas: da miséria, do desprezo e do preconceito social, da doença e da
proximidade com a morte, da memória e do passado, da atividade e da realização, do
consumidor em potencial e do objeto de gestão, do aposentado e do trabalhador, do avô,
do homem... Uma face atravessada por diferentes espelhos que refletem possibilidades
de olhares para o rosto do envelhecimento humano.
Nosso trabalho com idosos, conforme destacamos, foi imprescindível para que
pudéssemos entrar em contato com esse complexo objeto, que se apresenta como um
desafio na tentativa de compreendê-lo e, porque não, vivenciá-lo. Para nós, estar com
137
esse grupo por tanto tempo foi uma experiência única, na qual pudemos vivenciar o
envelhecimento e a finitude anunciada daqueles que participaram das oficinas e também
o nosso próprio envelhecer. Poder tornar-se terceira idade e velho ao se lançar às
experiências do humano, de perdas, lutos, restrições, ganhos. Práticas que acompanham
o desenrolar do tempo na madureza de corpos atravessados pelo signo da vida.
Essa pesquisa, que se define mais como um meio do que por um fim, teve como
propósito cartografar e analisar o envelhecimento enquanto objeto inscrito no tempo e
suas vicissitudes no contemporâneo. As possibilidades de vivência da velhice e da
terceira idade, conforme observamos, se encontram inscritas em regimes de saber e
práticas do estatuto científico, seja pelas políticas públicas, seja pela medicina, as quais
inscrevem o corpo em racionalidades que muitas vezes engessam e delimitam a
experiência do envelhecer e da condição da finitude humana .
Nossas cartas das paisagens sociais do envelhecimento não se pretendem findas
nem definitivas Ao término dessa pesquisa, um desafio maior se coloca à nossa frente:
pensar na possibilidade do envelhecer para além desses domínios que mencionamos,
isto é, que ele possa ser tomado como objeto filosófico, na experiência do pensamento,
da estética e da ética na velhice, e também como objeto político de enfrentamento das
sujeições de paradigmas dominantes. Outros percursos e territórios que se delineiam ao
olhar do cartógrafo...
138
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