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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
POR UMA GEOGRAFIA DO COTIDIANO:
TERRITÓRIO, CULTURA E
HOMOEROTISMO NA CIDADE
Tese de Doutorado
Benhur Pinós da Costa
Orientador: Prof. Dr. Álvaro Luiz Heidrich
Porto Alegre, dezembro de 2007.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
POR UMA GEOGRAFIA DO COTIDIANO:
TERRITÓRIO, CULTURA E HOMOEROTISMO NA CIDADE.
TESE DE DOUTORADO
BENHUR PINÓS DA COSTA
Orientador: Álvaro Luiz Heidrich
Banca examinadora:
Prof. Dr. Nelson Rego (PPG Geografia/UFRGS)
Prof. Dr. Paulo Soares Rodrigues (PPG Geografia/UFRGS)
Profa. Dra. Rosemere Maia (Fundamentos do Serviço Social/UFRJ)
Prof. Dr. Sergio Baptista da Silva (PPG Antropologia Social/UFRGS)
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Geografia da UFRGS como
requisito para obtenção do título de doutor em
Geografia.
Porto Alegre, dezembro de 2007.
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Ordem
Desordem
Espontaneidade
Regra
Norma
Desejo
Calor
Frio
AMOR
Paixão
SEXO
Casamento
Lei
Moral
Caos
Saudade
PAI
Amante
Marido
MÃE
Meu
GEOGRAFIA
Seu
De ninguém
Vontade
Contensão
Aqui
Agora
Contra
A favor
Para além
Aquém
Morte
Vida
Dor
Para sempre
Nunca
Talvez
Certeza
Incerteza
Ódio
Fraternidade
HOMO
Hetero
Bi
Bivolt
Mono
Estéreo
MÚSICA
Edi
Silêncio
Barulho
DEUS
Orgânico
eletrônico
Amazing
Rápido
Lento
Mau
Ben
Passivo
Ativo
Conforto
Desconforto
Território
Sem território
Eu
Id
Super
Pobre
Rico
Emergir
Imergir
Tudo
MEU LUGAR?
O QUE ESTOU
O que sou
O que não sou
O que serei
O que nunca serei
O que sei
O que não sei
AMIGOS
Quase amigos
Inside
Outside
CONFUSO
TRANQUILO
PORTO
ALEGRE
MANAUS
Norte
Sul
LUZ
escuro
Direção
Sem direção
dança
imobilidade
Relação
Sem relação
Casa
Rua
Dialética
Lógica
Lugar
Não-lugar
Cultura
Fome
Sede
Muito
Neca
Pouco
Fumaça
Sólido
Liquido
Quero
Não quero
Grande
Pequeno
Certo
Errado
Previsível
Imprevisível
Constante
Instável
Micro
Macro
Ajo
Demonio
Livre... Preso...
Benhur...
Eu não sou eu, nem sou outro,
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio,
Que vai de mim para o outro.
(Poema “O outro”, Mario de Sá Carneiro, musicado por Adriana Calcanhoto)
Dedico este estudo aos meus pais, Lauro e Liene, pois somente
eles representam o grande amor, a grande dedicação e o grande
companheirismo. Também dedico a minha irmã Claudinha, a minha
querida avó Othalina (tão linda pessoa) e a meu orientador (pelo
caminho longo, desde o mestrado). Agradeço ao amor que encontro
no restante de minha família (pais, avós, tios e primos. Como é bom
estar reunido nos domingos de churrasco com vocês!). Aos meus
amigos de muito tempo: Dari, Rafa (obrigado pela força nas figuras,
desde o mestrado), Flower, Dja, Tio Luiz, Ale (embora tenha me
abandonado). A todos colegas da UFRGS e da ULBRA, onde tracei
muito de minha vida. Obrigado a estas duas instituições, pelas
oportunidades que tive. Dedico esse trabalho a minha vida! A todos
que passaram, ficaram ou não ficaram. Em cada um pude encontrar
algo que me significasse e que me formasse. Aos prazeres da vida
e, também, a tudo aquilo que os impeçam...
Pois a vida é assim.
À Geografia.
Resumo
Entendemos o espaço social como condição da relação dialética entre ordem
e desvio na modernidade. Em primeiro momento se produz e reproduz vinculado a
condição alienada do “homem-partiuclar” (Heller, 1991) e dos atores sociais de
Goffmann (1996), que representam uma “Geografia funcional dos papéis sociais”.
Em segundo momento, é condição dos conflitos existentes entre o id e o superego
de Freud (1974) e da emergência do sujeito de Touraine (1994). Essa relação
dialética explica os sujeitos contemporâneos e implica em expressões territoriais que
contém tanto elementos de repressão/ordem, assim como táticas desviacionistas (De
Certeau, 1994). Procuramos entender as “microterritorializações urbanas” (COSTA,
2005) resultantes dessas relações enfocando a existência de agregados sociais
vinculados aos desejos homoeróticos e a condição homossexual na cidade.
Palavras-Chave
Território
Territorialidade
Homossexualidade
Homoerotismo
Espaço Urbano
Cultura
Identidade
Modernidade
Espaço Social
Abstract
We understand the space social as condition of the relation dialectic between order
and shunting line in modernity. At first moment if it produces and it reproduces
entailed the mentally ill condition of the “man-particular” (Heller, 1991) and of the
social actors of Goffmann (1996), that they represent a “functional Geography of the
social papers”. In according to moment, it is condition of the existing conflicts between
id and superego of Freud (1974) and of the emergency of the citizen of Touraine
(1994). This relation dialectic explains the citizens contemporaries and implies in
territorial expressions that contain as many elements of repression/order, as well as
desviacionistas tactics (De Certeau, 1994). We look for to understand the “urban
microterritorializações” (Costa, 2005) resultant of these relations focusing social the
aggregate existence tied with the homoerotics desires and the homosexual condition
in the city.
Words-Keys
Territory
Territoriality
Homossexuality
Homoerotism
Urban Sapace
Culture
Identity
Modernity
Social Space
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................. p. 14
2. CONTRADIÇÕES NA CONDIÇÃO HOMOSSEXUAL: A DIVERSIDADE
HOMOERÓTICA E A EMERGÊNCIA DE (MICRO)TERRITORIALIZAÇÕES ..... p. 26
3. A PRODUÇÃO MULTITERRITORIAL DO COTIDIANO URBANO COMO
CENTRO DA DIALÉTICA ENTRE ORDEM E DESVIO NA MODERNIDADE...... p. 45
3.1. AS ESTRUTURAS ESPACIAIS E AS ORIGENS DOS REGRAMENTOS
MODERNOS ......................................................................................................... p. 46
3.2. A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL E OS CONDICIONAMENTOS
COTIDIANOS ....................................................................................................... p. 59
3.3. O URBANO COMO DIALÉTICA DO CONTRA E DO A FAVOR DA
SOCIEDADE ......................................................................................................... p. 65
3.4. NORMAS E DESVIOS SOCIAIS: A HOMOSSEXUALIDADE COMO EXEMPLO
DIALÉTICO ENTRE PRODUÇÕES SOCIAIS E PRODUÇÕES COMUNITÁRIAS NO
ESPAÇO URBANO .............................................................................................. p. 93
3.5. A DIALÉTICA SOBRE A FRAGMENTAÇÃO RELACIONAL NA CIDADE E DA
PRODUÇÃO DE MICROTERRITORIALIZAÇÕES URBANAS, OU POCKETS OF
SOCIAL RELATIONS ......................................................................................... p. 106
4. O METODO MICROTERRITORIAL E O CASO DAS
MICROTERRITORIALIZAÇÕES HOMOERÓTICAS EM PORTO ALEGRE-RS
............................................................................................................................. p. 123
4.1. O MÉTODO MICROTERRITORIAL ............................................................ p. 133
4.1.1. A abordagem microgeográfica .............................................................. p. 134
4.1.2. A abordagem sobre a Geografia do cotidiano .................................... p. 134
4.1.3. Multiterritorialidade e microterritorialidade ......................................... p. 134
4.1.4. Formismo ................................................................................................ p. 135
4.1.5. Nomoespaço e Genoespaço ................................................................. p. 135
4.1.6. O conceito de cultura ............................................................................ p. 136
4.1.7. O espaço social como produção dialética entre sociedade e comunidade
............................................................................................................................. p. 137
4.1.8. As representações sociais ..................................................................... p. 138
4.1.9. Território e territorialidade para Bonnemaison ................................... p. 139
4.1.9.1. Geografia existencial ........................................................................... p. 140
4.1.9.2. Etnogeografia e espaço vivido ........................................................ p. 141
4.1.9.3. Grupos culturais ............................................................................... p. 141
4.1.9.4. Território e territorialidade ............................................................... p. 142
4.1.9.5. Território como convivialidade ....................................................... p. 143
4.2. AS TÊNUES APROPRIAÇÕES NO ESPAÇO URBANO
MICROTERRITORIALIZAÇÕES URBANAS EM PORTO ALEGRE-RS: EXEMPLOS
DAS MICROTERRITORIALIZAÇÕES HOMOERÓTICAS ................................. p. 145
4.3. O ESTUDO ETNOGEOGRÁFICO E O CASO DE ALGUMAS
MICROTERRITORIALIZAÇÕES HOMOERÓTICAS EM PORTO ALEGRE-RS
............................................................................................................................. p. 155
4.3.1. Os amigos ................................................................................................ p. 155
4.3.1.1. Amigo AP .............................................................................................. p. 158
4.3.1.2. Amigo BP .............................................................................................. p. 159
4.3.1.3. Amigo CP .............................................................................................. p. 160
4.3.1.4. O amigo DP ........................................................................................... p. 160
4.3.1.5. Amigo EP .............................................................................................. p. 161
4.3.1.6. Amigo FP .............................................................................................. p. 161
4.3.2. As microterritorializações ...................................................................... p. 162
4.3.2.1.Venezianos Pub .................................................................................... p. 163
4.3.2.2. Ocidente ................................................................................................ p. 175
4.3.2.3. Vitraux ................................................................................................... p. 187
4.3.2.4. Centro Comercial Nova Olaria ............................................................ p. 196
4.3.2.5. Parque da Redenção ........................................................................... p. 206
4.3.2.5.1. Chafazriz central ................................................................................. p. 220
4.3.2.5.2. Área entre o chafariz e o lago ............................................................. p. 221
.
4.3.2.5.3. Recanto Alpino e área arboraizada .................................................... p. 221
4.3.2.5.4. Área gramada entre o chafariz, espelho de água e Recanto Oriental
............................................................................................................ p.. 222
4.3.2.5.5. Área arborizada entre o Recanto Oriental, o Auditório Araújo Viana, o
Instituto de Educação e a Oswaldo Aranha: Recanto Oriental, taquareiras e
rosa-dos-ventos .................................................................................. p. 223
4.3.2.5.6. Área gramada na periferia e no centro do caminho central atéperto do
monumento dos açorianos e principalmente entre o caminho central e
Recanto Grego arborizado .................................................................. p. 224
4.3.2.5.7. Recanto Grego .................................................................................... p. 225
4.3.2.5.8. Equipamentos de musculação atrás do Recanto Grego e nas periferias da
pista Olímpica ..................................................................................... p. 225
4.3.2.5.9. Banheiros e pracinha em frente ao colégio militar, na Rua José Bonifácio
............................................................................................................. p. 226
4.3.2.5.10. Campo de futebol sem grama, entre os banheiros e a pista Olímpica
............................................................................................................. p. 226
4.3.2.5.11. Cancha de bocha próximo ao campo de futebol sem grama ........ p. 227
4.3.2.5.12. Monumento aos Expedicionários ................................................... p. 227
4.3.2.5.13. Pracinha próximo a UFRGS, área arborizada perto do mini-zoológico
............................................................................................................. p. 228
4.3.2.5.14. Pracinha perto do minizoológico .................................................... p. 229
4.3.2.5.15. Café do Lago ................................................................................. p. 229
4.3.5.2.16. Quadras de vôlei, futebol de salão e pista Olímpica ...................... p. 229
4.3.5.2.17. Bancos próximos à Rua José Bonifácio e João Pessoa ................ p. 229
4.3.5.2.18. Auditório Araújo Viana ................................................................... p. 230
4.3.5.2.19. Brique da Redenção ...................................................................... p. 230
4.3.2.6. Praça da Alfândega e Rua da Praia Shopping ............................... p. 239
5. A DIALÉTICA DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL:
MICROTERRITORIALIZAÇÕES (CULTURAIS) URBANAS “A FAVOR” E
“CONTRA” A SOCIEDADE ............................................................................... p. 248
5.1. AQUÉM DO INDIVÍDUO, O HOMEM-PARTICULAR ................................. p. 248
5.2. A NATUREZA DIALÉTICA DO COTIDIANO .............................................. p. 260
5.3 O ATOR E A GEOGRAFIA DOS PAPÉIS SOCIAIS ................................... p. 264
5.4. DO ATOR AO SUJEITO .............................................................................. p. 272
5.5. A DIALÉTICA DO SUJEITO E AS TERRITORIALIZAÇÕES NO ESPAÇO
SOCIAL .............................................................................................................. p. 289
5.6. LATOUR E OS HÍBRIDOS .......................................................................... p. 295
5.7. O ESPAÇO SOCIAL ................................................................................... p. 309
5.7.1. Relação sociedade/comunidade/natureza ............................................ p. 316
5.7.1.1. Sociedade ............................................................................................. p. 317
5.7.1.2. Natureza ................................................................................................ p. 321
5.7.1.3. Comunidade ......................................................................................... p. 323
5.7.2. Relação espaço/tempo ........................................................................... p. 326
5.8. PERGUNTAS NECESSÁRIAS À GEOGRAFIA ......................................... p. 330
5.9. AS MICROTERRITORIALIZAÇÕS DE AGREGADOS SOCIAIS
HOMOERÓTICOS .............................................................................................. p. 332
6. CONCLUSÃO ................................................................................................. p. 347
7. REFERÊNCIAS .............................................................................................. p. 353
14
1. INTRODUÇÃO
Além de entender sobre as expressões homoeróticas como manifestações
diversas do desejo entre pessoas do mesmo sexo e a condição homossexual, como
uma sexualidade de identificação de um pólo divergente e desviante da condição
heterossexual definida como instituição social normal à manifestação do desejo
sexual -, este trabalho acaba procurando desvendar os sentidos da sociedade e o
seu espaço, que não é reflexo dela, mas a existência concreta da sociedade e de
suas contradições.
Evidenciamos a relação íntima e imbricada entre a manifestação dos desejos
e das afetividades homoeróticas e a parte do espaço no qual elas podem ocorrer. A
territorialização dessas manifestações, suas restrições espaciais, está condicionada
ao fundamento dinâmico cerne da construção da sociedade: a sociedade como
expressão da civilidade e do regramento das espontaneidades e dos instintos,
incapaz de poder abarcar toda a diversidade e toda a fluidez das emoções humanas
em rígidos “enquadramentos” ideais, lingüísticos e territoriais.
Por outro lado, esse fundamento dialético da sociedade se esconde em suas
definições e em suas instituições, aparentemente normalizadas e sólidas. No
entanto, além das normalidades sociais, inúmeras marginalizações ocorrem. Elas a
cada dia são mais claramente visíveis, principalmente nas cidades fora do centro
dinâmico capitalista, nos bairros pobres, nas favelas, nos agrupamentos de homens
e mulheres marginalizados no espaço público. Porém, além desses grandes
agrupamentos marginalizados mais visíveis na paisagem urbana do mundo
contemporâneo, ltiplos outros incompatíveis com os enquadramentos sociais
acabam sendo marginalizados nos fatos mínimos da vida em sociedade. A
sociedade, assim, é um misto daquilo que ela pretende e daquilo que ela descarta.
Os descartados são abarcados pelas definições sociais como os outros repletos de
dúvidas, degradados, doentes, insanos ou incapazes de viverem os “benefícios” dos
modelos talvez mais condizentes da vida em sociedade. Mas, mesmo identificados
por definições degradantes, os descartados, na sua luta para tornarem-se aceitos e
inclusos nessa sociedade, rompem com as perspectivas normalizadoras e criam
15
pequenos mundos de interações nos quais possam viver na “plena felicidade” da
expressão da afetividade coletiva e do desejo individual.
Assim ocorre aos indivíduos orientados para o mesmo sexo (same sex
oriented, conforme COSTA, 1992). A eles é negado, na história da civilização
moderna, o espaço público, cuja norma é a expressão das afetividades e
sensualidades heterossexuais. Mas, além disso, também como evidência da
incapacidade da norma, vai emergir a expressão e a sujeitificação
1
homossexual,
que culmina nas manifestações de uma cultura e de uma comunidade gay
2
em
formação nas cidades desse mundo moderno. Por outro lado, aquém da propensão
de formação de uma comunidade e uma de cultura unificada, expressão de uma
sujeitificação e identificação ampla a todos os homens e mulheres orientados para o
mesmo sexo, inúmeras outras expressões homoeróticas ocorrem vinculadas a
contextos psíquicos, identitários, coletivo-culturais e territoriais diversos, que
transcendem múltiplas definições conceituais e/ou estereótipos. Transcendem
também os elementos constituintes de uma cultura gay e de uma identidade
homossexual
3
. Contudo, tanto como fundamento da sexualidade desviante e
emergência de um tipo cultural gay, como também evidência da diversidade de
expressões propostas pelas diversas comunhões de indivíduos orientados para o
mesmo sexo (como desmanche da identidade homossexual e da cultura gay
unificada), o espaço apropriado torna-se fundamental ao compartilhamento de uma
das múltiplas formas de afetividades homoeróticas.
O território, como aqui concebido, se torna a localização de encontro daqueles
mesmos indivíduos same sex oriented, ou seja, lugar possível ao esclarecimento e à
efetivação da ação de desejo para o mesmo sexo. Em primeiro momento, se
territorializam os desejos, pelo compartilhamento com os mesmos localizados. Em
1
Sujeitificação homossexual se refere, conforme iremos ver no decorrer do trabalho, a idealização do
sujeito homossexual, como constructo teórico que se impregna nas identificações do tecido social.
Sobre isso usamos os trabalhos de COSTA, 1992, e PARKER, 2002.
2
Neste trabalho, optamos por não grifar o termo “gay”, mesmo sendo um estrangeirismo, por ser de
uso corrente.
3
Como iremos observar no decorrer do trabalho, a cultura gay implica um movimento social e a
formação de um mercado destinado a uma alteridade identitária, condizente com a emergência das
diferenças culturais urbanas desde os anos 1960. A identidade homossexual apresenta-se como uma
categoria conceitual anterior muito vinculada à ciência (médica) e a literatura do século XIX e início do
XX, cujos muitos atributos foram reinventados como motivos de orgulho da auto-estima identitária gay.
16
segundo momento, outras concordâncias, como símbolos, comportamentos
esperados, assuntos e gostos, acabam dando conformação a uma singular
coletivização localizada pelas expressões que acontecem no tempo e no espaço
exato, que costura sujeitos múltiplos que guardam em si o peso das experiências de
se viver as certezas e as contradições de determinada sociedade. O território não se
apresenta aqui num formato rígido. O território é o “aqui e agora”, que talvez possa
repetir-se, mas se apresenta fluido e disforme, sobreposto e justaposto a outros,
cujas fronteiras não-visíveis são a possibilidade de participação na agregação
humana.
As microterritorializações homoeróticas apresentam-se como microespaços
apropriados
4
(em muito grande escala), cujas fronteiras são as do compartilhamento
das expressões ali presentes. São microterritórios em formação, enclaves diversos
em um espaço social que se queria ordenado e regrado, mas cujos enclaves
remetem à desordem de tal espaço social e evidenciam o caráter de uma sociedade
que é pura expressão de suas próprias contradições e divergências. A sociedade,
assim como condição da normalidade racional, não se realiza completamente. Desse
modo, apresentamos como mais evidente a produção de um espaço orgânico de
convergências e de segregações das diversidades identitárias, no qual as diversas
marginalizações de uma pretensa normalidade social, de diferentes níveis e
naturezas, se territorializam para poderem existir. A territorialização dessas
expressões, portanto, significa a sua própria capacidade de existir e de viver na
busca da felicidade e da afetividade.
Nesse sentido, cada agregação social microterritorializada, ao mesmo tempo
em que é uma expressão do “aqui e agora” das relações dos indivíduos ali
interagindo, também guarda em si as condições determinantes da sociedade que
busca organizar as emoções humanas. o, ao mesmo tempo, evidência das
contradições e das determinações sociais. Mesmo as agregações humanas mais
divergentes dos projetos sociais acabam transpondo, em suas relações mínimas,
4
Apropriação territorial refere-se a territorialização e não ao território, dominado, já definitivo e
construído. Apropriação é a presença do grupo que aos poucos impõe suas práticas a uma parte do
espaço, ainda não o dominando completamente, mas selecionando os participantes a agregação
espacial.
17
alguns discursos normativos das instituições que ficaram impregnadas nos atores
sociais em suas trajetórias de vida
5
. Nesse sentido, pensamos que a sociedade pode
ser entendida pelas condições expressas no espaço social nas inúmeras
microterritorializações existentes nele, que são expressões ao mesmo tempo, como
nos fala Maffesoli (2002), “contra” e “a favor” da sociedade. Assim, as normalizações
e as contradições da sociedade são/estão expressas no cotidiano. São, ao mesmo
tempo, o cotidiano da alienação e das condições normativas dos papéis sociais, mas
também o da emergência do desejo, do prazer, da sexualidade, do improviso, do
jogo e do acaso. O espaço social, cravejado de microagregações muito dinâmicas,
fluidas e de vida curta, é produto da ordem da sociedade, ou seja, existe em
virtude da produção da sociedade moderna de direito, mas, concomitante a isso, é
realidade da incapacidade de ordenação das espontaneidades humanas, que
produzem “linhas de fuga” múltiplas e territorializações de mistos relacionais
dialéticos entre a ordem e a espontaneidade das interações ali presentes.
Observamos que os regramentos da sociedade apresentam suas origens nas
condições da modernidade, na qual suas definições espaciais estão contidas em
duas escalas básicas: a escala do Estado-Nação Moderno, como projeto de
unificação da diversidade cultural e homogeneização de uma cultura nacional “supra-
orgânica”, que tende a imprimir suas condições a todos os indivíduos pertencentes
ao território ampliado; e a urbanidade, que vai constituir o locus da temperança, da
ordem racional e lógica e do controle das pulsões individuais. A modernidade, cujos
marcos estão fincados na Renascença, no iluminismo e nos eventos político-
econômicos da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, apresenta-se assim
5
Em nossa pesquisa participativa verificamos que muitos dos estereótipos e preconceitos imersos
entre os grupos de afetividade homoerótica são atributos vinculados àquilo que fez deles diferentes
como desviantes dos gêneros sexuais “normais” e “aceitos” socialmente. Na diversidade homoerótica
qual convivemos, tanto preconceitos quanto atributos estéticos e comportamentais segregam diversos
sujeitos homoeróticos e os microterritorializam em grupos culturais diferenciados. Esses preconceitos
se apresentam como marcos de gostos preferenciais de atributos contidos nas posturas de gêneros
sexuais das definições do comportamento heterossexual (ora muito divergentes, ora muito próximos),
definidos para as mulheres e para os homens. Na condição homossexual, inúmeros foram os
“atributos-entre-gêneros” definidos pela literatura dos séculos XIX e XX, que convergiram para a
diversidade de manifestações da cultura gay na segunda metade do século XX, cujos grupos culturais
homoeróticos se identificam e se segregam de forma muitos dinâmica, entre invenções estéticas e
comportamentais diversas. Atributos esses que contêm inúmeros preconceitos e discriminações que
complexificam as definições de uma cultura gay que se pensa unificada.
18
como imposição de uma racionalidade científica, moral e ética à desordem natural (o
que remete à contenção dos instintos). No entanto, o próprio ambiente urbano
agrega muita diversidade. Nele as ltiplas identificações vão construir outras
formas de agregações não totalmente condizentes com os projetos de organização
social, mas mais próximas a condições afetivas e espontâneas que produzirão
inúmeras “centralidades subterrâneas” ao social.
Nas cidades modernas, as realidades divergentes de seus projetos e
discursos ideológicos, contidos na ciência, na educação e na formação da cultura
dos papéis sociais vão culminar na representação de todas as variantes humanas.
Tais representações produzem inúmeras polarizações entre “certo” e “errado” aos
determinantes sociais contidos nos papéis normalizados. Em relação à identificação
dos desvios, que se tornam múltiplos, suas existências ficam contidas em inúmeras
privatizações ou microterritorializações, que possibilitam pequenas oportunidades
coletivas de expressão de desejos individuais discriminados socialmente. Pela
diversidade de existência dos desvios, eles vão contaminando o sentido da ordem
racional e moral da sociedade moderna e se espraiam continuamente pelo espaço
público normatizado, fechando suas fronteiras de convivência e privatizando
pequenos domínios. A cidade, assim, torna-se um misto de funcionalidades e
espontaneidades, sendo expressão de inúmeras culturas orgânicas muito singulares
e territorializadas, as quais contêm as forças das regras e dos acasos sociais.
Considerando isso, expomos a importância de estudar o cotidiano urbano. O
cotidiano é esse misto de forças que imprimem condições morais e ideológicas e
alienam o homem, assim como de forças espontâneas emergentes dentro dos
próprios homens e de suas coletividades afetivas, desconstruindo regras, valores
rígidos, determinações de vida e burlando o campo de normas impregnadas nas
instituições sociais e nas relações face-a-face. A dialética do cotidiano coloca em
discussão idéias muito afastadas, impregnadas de contradições e discordâncias;
porém, o cotidiano é fruto das relações das contradições e das existências conjuntas
delas. O cotidiano são as condições instituídas que alienam e particularizam o
homem conforme visto em Lefebvre (1958) e Agnes Heller (1991) -, assim como é
o conjunto de representações dos atores sociais cumprindo papéis segundo
19
Goffman (1988, 1996) -, e as objetividades das formas e das normas construídas por
uma microfísica do poder, que dobra o homem comum como em Foucault (1993).
Por outro lado, o cotidiano também são as agregações afetivas do “estar junto por si
só” e as “potências subterrâneas” informais e desregradas, como visto em Maffesoli
(2002); assim como o necessário sentimento de viver-se em comunidade e de tornar
a comunidade um refúgio para as “dores sociais”, como argumenta Baumann (2003);
e a táticas desviantes que burlam a natureza instituída e rígida das coisas, dos
lugares e das relações, que lemos em De Certeau (1994).
Verifica-se que, além de uma sociedade moderna, que tenta organizar-se para
progredir, com vistas à perfeição, o que se instaurou, de forma ramificada, foram às
críticas cotidianas severas à existência de profundas desigualdades econômicas e
culturais, a negação das tradições e das formações culturais orgânicas e localizadas,
bem como a emergência dos sofrimentos individuais quanto às dificuldades de
estabelecer-se de acordo com as objetividades dessa sociedade
6
. Por outro lado, a
própria condição capitalista da sociedade moderna instaura a sua contradição, uma
vez que, principalmente na segunda metade do culo XX, a empresa e as
estratégias de consumo vão importar-se mais com o desejo e com as
contradições/desordens existentes no seio da sociedade, não mais importando-se
com a homogeneização consumista, mas com a diversidade e a promoção dos
bandos, dos nichos culturais e da diversidade e da alteridade. Nesse sentido, o que
se observa é a existência dialética de três (des)ordens, três mundos ideológicos que
produzem o mundo do cotidiano, do concreto e do entendimento subjetivo das
pessoas e dos grupos sociais: o mundo da regra e da razão abstrata, o mundo do
desejo (consumista) e o mundo das exclusões. O desejo e a razão se chocam e
produzem contextos outros diversos e impossíveis de se explicarem por
classificações exatas. A dialética entre razão e desejo (consumista) inclui as
exclusões definidas pela incapacidade de atingir-se ou a despreocupação das
6
Os discursos de ordem e a transposição de valores de uma sociedade moderna em ascensão,
desde a Renascença até a organização da sociedade industrial do século XX, foram tornando-se
autoritários perante a complexidade de valores humanos tradicionais e de espontaneidades individuais
e coletivas contidas nessa própria sociedade. Nesse sentido, uma pretensa ordem dos
comportamentos e dos espaços de convivências humanas acabou não ocorrendo, formando-se,
assim, um espaço social, para o qual convergem muitos significados e produções materiais, políticas e
culturais fluidas e dinâmicas.
20
próprias normas em abarcar determinados agregados sociais, assim como as
exclusões quanto ao mundo do desejo consumista e do fetiche. Esses três mundos
vão existir em conjunto em todos os contextos sociais e vão instituir os sujeitos
sociais: produtos dialéticos desses três mundos. Por outro lado, conforme nos mostra
bem Lefebvre (1983), esses sujeito são um devir instável, que identificamos como
produtos do devir dialético dos três mundos. Os sujeitos sociais não são identidades
lógicas, mas multiplicidades de coletividades em constante instabilidade e mutação,
sempre prontas a explodir e transformar-se, sempre em processo de territorialização
e desterritorialização. Por outro lado, para existirem, vão reterritorializar-se,
constituindo assim, em virtude da diversidade de processos de territorialização dos
sujeitos múltiplos e instáveis, um espaço social orgânico, mais identificado pela
imprevisibilidade, pelo acaso e pela desordem do que por uma estrutura organizada
e provável.
Nesse sentido, estabelece-se uma crítica ao sujeito homossexual, uma vez
que ele não se apresenta como uma identidade lógica e estável, um lo de desvio,
mas sim um constante devir, condição sim da instabilidade e da diversidade dos
desejos homoeróticos expressos em múltiplos e dinâmicos processos de agregação
social territorializadas. O mundo da razão e da moral abstrata, o mundo do desejo de
consumo e o mundo das exclusões diversas (da existência dialética dos dois mundos
anteriores) vão constituir inúmeras condições individuais e coletivas de existências
homoeróticas localizadas no tempo e no espaço. Nesse sentido, torna-se difícil
encontrar uma condição unificada da homossexualidade, assim como classificações
referentes a ela. O que sabemos é que se instauram “formas-conteúdos” instáveis
traduzidos pelo devir dos sujeitos que expressam desejos homoeróticos de forma
coletiva no “aqui e agora” de uma localidade do espaço social. Sendo assim, a
microterritorialização desse devir, constituído pela objetivação da agregação de
subjetividades
7
múltiplas, apresenta-se como essência do processo de identificação,
de conformação estética e de produção cultural.
7
Subjetividades aqui refere-se à construção do ego humano, visto em Freud (1974) e em Marcuse
(1975), como ordenamento daquilo que é desejo e espontaneidade em relação aquilo que é razão e
moralidade social. Nesse sentido, é um misto, não sendo totalmente àquilo que se espera
socialmente, mas muito daquilo que é próprio a um eu não ordenado e “cheio” de desejos a serem
21
Assim, além da existência de uma “sociedade normal”, vista cotidianamente
como uma ordem natural das coisas, e de uma condição de um homem
paticularizado como autômato determinado pelo labor e pela reificação, ocorrem
condições prazerosas para viver-se no espaço social, que se apresentam como
“veios” de expressão da espontaneidade humana. Além de uma sociedade mecânica
ou definida como um conjunto de cerimônias preestabelecidas em cenários
racionalizados pelos papéis sociais rígidos, temos também a existência do devir dos
sujeitos múltiplos que se questionam e buscam compreender o seu mundo. Assim
como os desejos, os questionamentos são muitos e instáveis, construindo a
imprevisibilidade e o extremo dinamismo das microinterações sociais que se
territorializam, produzindo um espaço fluido - de diversos enclaves, conectados ou
não -, orgânico - pela natureza do corpo em constante transformação - e imprevisível
- pela essência mutante das relações.
Em relação à sujeitificação homossexual, os estudos médicos e a literatura
contribuíram em muito para sua unificação e rigidez. Por outro lado, isso se
apresenta como uma insuficiência teórica em virtude da existência de uma geografia
complexa das microterritorializações dos devires dos sujeitos homoeróticos em
interações dinâmicas, fluidas, imprevisíveis e instáveis. As agregações homoeróticas,
assim, apresentam-se como exemplos da condição ampla do espaço social, ou seja,
um conjunto de microterritórios de interações sociais cujas relações que se tecem
não são totalmente racionais quanto às normas morais da sociedade e não
totalmente divergentes a ela. Verificamos, assim, um espaço composto por múltiplos
fragmentos mistos que ora tendem a formas mais racionais de interação social (vida
em sociedade) ora são evidências de agregações informais e afetivas de pessoas
somente em busca do prazer mútuo.
saciados. Os desejos somente podem ser saciados nas relações sociais, pois são o campo da
realidade. Assim, o próprio social não se apresenta totalmente como uma realidade objetiva das
padronizações da ordem instituída, mas um misto de desordem contida nas espontaneidades dos
desejos dos sujeitos sociais. Sujeitificação, palavra usada anteriormente, refere-se à construção da
identidade social dos sujeitos que expressam seus desejos e espontaneidades individuais e que
encontram coletividades propensas a essas expressões. A sujeitificação é a produção racional
identitária dos discursos sociais procurando enquadrar a diversidade de existência humana e, ao
mesmo tempo, é a realidade da incapacidade desses processos de enquadramento.
22
É nos sentidos que discutimos anteriormente que apresentamos este trabalho.
Ele está disposto em quatro capítulos em que procuramos entender a condição do
espaço social, estabelecendo como foco de análise a produção de
microterritorializações urbanas das culturas que envolvem os desejos homoeróticos
masculinos.
No primeiro capítulo procuramos atentar para a construção histórica da
produção da condição homossexual, assim como para a emergência da cultura e do
movimento social gay. Tanto a categoria identitária homossexual, como construto
teórico, quanto a formação da cultura gay, considerando-se atributos estéticos,
comportamentais e condições de um mercado de consumo, vão apresentar
tendências a unificação de uma alteridade sexual e, assim, procuramos mostrar as
insuficiências teóricas e empíricas contidas nelas.
A partir dessas insuficiências, vamos discutir também as diversidades que
envolvem os desejos homoeróticos, que culminam em uma nova teoria denominada
queer, a qual implica a necessidade de pensar o dinamismo e a multiplicidade de
condições que envolvem as culturas e as convivências homoeróticas. É por essa
dinâmica histórica da construção de uma série de discursos que procuram enquadrar
os desejos homoeróticos e que atualmente tornam-se insuficientes em virtude das
evidências em relação à diversidade que os envolve é que vamos explicar a
formação de microterritorializações urbanas de indivíduos same sex oriented, como
um cerne empírico que permite entender a própria condição dialética de uma
sociedade moderna que não se realizou somente pela ordem e pela razão, mas pela
fluidez e organicidade das espontaneidades diversas humanas. A sociedade que
ainda não se realizou apresenta-se mais pela condição de um espaço social
orgânico, complexo e diverso quanto às múltiplas condições culturais territorializadas
que se apresentam em diversas escalas de análise empírica.
Além disso, nesse capítulo, incluímos uma exposição sobre notas de uma
pesquisa, que traça principalmente a própria condição de existência e de
experiências territoriais homoeróticas do autor, envolvendo uma profunda pesquisa
participante e os envolvimentos com a discussão dessa temática perante toda sua
vida acadêmica.
23
No segundo capítulo, vamos atentar para as origens dos regramentos
modernos, discutindo principalmente a formação do capitalismo e de suas condições
espaciais da separação entre mundo rural e urbano e da integração territorial que
envolve o Estado-Nação Moderno. Observamos que as escalas urbanas e do
território nacional vão ser produtos e condicionantes dos regramentos individuais e
da organização dos fluxos racionais e morais da vida em sociedade.
Por outro lado, nesse mesmo capítulo, vamos atentar também para a
impossibilidade prática dos regramentos das instituições sociais modernas conterem
os desvios sociais, sendo eles realidades existenciais múltiplas como produtos
dialéticos das razões e morais sociais assim como expressão de espontaneidades
incontidas humanas. Nesse sentido, o próprio urbano vai ser condição dialética
daquilo que é convergente e divergente à sociedade. Como produto disso, a cidade
vai apresentar-se pelas múltiplas fragmentações relacionais humanas, definidas
como microterritorializações fluidas e orgânicas que contêm convivências que ao
mesmo tempo são contra e a favor dos atributos e dos padrões normais da
sociedade. A homossexualidade vai apresentar-se, assim, como um exemplo dessa
dialética e como uma teorização sobre a existência concreta de círculos de
convivência de desviantes sociais. Ela vai ser um importante elo de entendimento
sobre os afastamentos de certos indivíduos as pretensões de organização das
relações e dos espaços relacionais humanos na sociedade moderna.
No terceiro capítulo vamos aprofundar nossa análise sobre as
microterritorializações homoeróticas na cidade de Porto Alegre, apresentando
sujeitos que colaboraram com a pesquisa e a diversidade de seus comportamentos e
posturas quanto a tais desejos e relações. Nesse capítulo vamos propor o todo
“microterritorial” para tentar entender as agregações sociais microterritorializadas nas
grandes cidades da atualidade, discutindo exemplos em Porto Alegre a partir do
estudo “etnogeográfico” sobre as relações same sex oriented estabelecidas nesse
espaço urbano.
No quarto capítulo vamos dar corpo conceitual às dialéticas contidas na
produção do espaço social e evidenciar que este se apresenta mais pela
multiplicidade de convivências humanas microterritorializadas de forma orgânica e
24
instável do que um todo organizado, previsível e homogêneo. Para dar conta disso,
vamos discutir o cotidiano pelas múltiplas vertentes teóricas que o definem e que
podem ser expressas em duas perspectivas essenciais: o cotidiano banal e
racionalizado do homem alienado e o cotidiano das espontaneidades instáveis das
práticas imprevisíveis humanas.
Em relação à condição dialética do cotidiano, vamos adentrar as contradições
do exercício de papéis racionais e morais dos atores sociais, o que implicará o
debate sobre as condições emergentes dos diversos sujeitos sociais, frutos de uma
racionalidade que os dobra ao exercício de funções e aos condicionamentos das
normas morais, mas que também possibilita o exercício de autenticidades,
espontaneidades e outras formas de entender o mundo que os rodeia. Os sujeitos
não são totalmente condizentes com as definições sociais; porém, suas lutas
políticas os fazem emergir como possibilidades alternativas de vida em sociedade.
De acordo com os argumentos de Santos (2002), a emergência dos sujeitos
sociais implica a existência de um “multiculturalismo emancipatório”, ou seja, “temos
o direito de ser iguais quando à diferença nos inferioriza e de sermos diferentes
quando à igualdade nos descaracteriza”. A discussão sobre sujeitos sociais e sobre a
complexificação da definição de sujeito conforme Latour (1994), para quem os
“híbridos” são vistos como sujeitos ltiplos que se definem por inúmeras posições
daquilo que se afasta e daquilo que se aproxima dos padrões da racionalidade e da
moralidade da sociedade moderna - são de extrema importância para discutir a
complexidade do espaço social na contemporaneidade. Os sujeitos se expressam
por seus espaços sociais como microterritorializações que contêm suas condições
dialéticas de existência (de tudo aquilo que é “a favor” e/ou “o contra” a sociedade).
Os sujeitos expressam sua cultura, que é o próprio território de existência concreta e
simbólica. E o território é, ao mesmo tempo, necessidade e elemento de
fortalecimento para suas lutas políticas.
Assim, vamos atentar para a condição alienada do “homem-particular” e do
“ator social”, como produtos da racionalidade e da moralidade das ordens
institucionais da sociedade moderna, além de aprofundar questões sobre a
emergência dos múltiplos sujeitos híbridos entre dialéticas das questões que
25
convergem e divergem a essa sociedade. Nesse contexto vamos explicar a
emergência do “sujeito homossexual”, sua insuficiência teórica,
8
e adentrar na
complexificação desse tema, tratando sobre a diversidade de espontaneidades
homoeróticas que vão produzir-se como múltiplas condições territorialidazadas da
expressão coletiva desses desejos.
O homoerotismo apresenta-se para os indivíduos como expressões
territorializadas das formações culturais dos sujeitos diversos em interação e
envolvidos com tais desejos. Ao mesmo tempo, essas interações territorializadas são
produtos dialéticos de inúmeros atributos que possam afastar-se tanto quanto
convergir para os padrões de uma pretensa sociedade de padronizações morais e
racionais que não se completou.
As microterritorializações homoeróticas são singularidades de uma cultura
relacional que envolve o “aqui e agora” do acontecimento, mas, ao mesmo tempo,
está impregnada de discursos e condições que perduram e que convergem para as
padronizações e regramentos sociais. Tais microterritorializações expressam um
contexto cultural e espacial único, e elas se multiplicam no espaço da sociedade,
tornando essa sociedade uma pretensão de homogeneidade irreal que dá lugar a um
espaço difuso, orgânico, complexo e mutante, produto das múltiplas existências
dialéticas dos híbridos sujeitos sociais. Finalmente, também procuramos explicar
com mais atenção o espaço social a que atentamos, principalmente pelas seguintes
relações: a relação sociedade-comunidade-natureza e a relação espaço-tempo.
Nesse momento retornamos à pesquisa empírica e vamos demonstrar a formação de
microterritorializações homoeróticas em Porto Alegre-RS.
8
A insuficiência teórica remete a uma crítica quanto à identificação do sujeito homossexual como algo
estabilizado e rigidamente definido. Ao contrario de uma identidade homossexual unificada temos a
diversidade de expressões e identificações homoeróticas.
26
2. CONTRADIÇÕES NA CONDIÇÃO HOMOSSEXUAL: A DIVERSIDADE
HOMOERÓTICA E A EMERGÊNCIA DE (MICRO)TERRITORIALIZAÇÕES.
Em outro trabalho, sobre “a condição homossexual e a emergência de
territorializações” (COSTA, 2002), salientamos a condição estigmatizada do
homossexual, tomado como anormal e perverso pela Santa Inquisição noção que
persiste a 1821 (MOTT, 1988) e depois caracterizado por desvio e transtorno
sexual (GUIMARÃES, 2007).
A criação do termo homossexual, cunhado pela médica húngara Karoly Maria
Benkert, em 1869, marca um modelo binário ao comportamento sexual: ou o
indivíduo mantinha uma “saudável” vida sexual “hetero”, ou estava preso a um
transtorno chamado homossexualismo. Por esse viés, toda a sexualidade humana,
no mundo moderno, estava fadada a esses dois pólos ordenadores dos
comportamentos sexuais.
Segundo Costa (1992), sexualidades emergem a partir do século XIX como
construtos teóricos nascidos da racionalidade científica ou com pretensões a ela. O
autor remete a Kraft-Ebing, que, em seu livro Psychopathia sexualis, desenvolve,
com base no evolucionismo e no positivismo naturalista do século XIX, noções de
ordem e desvio naturais, classificando todas as aberrações e anormalidades sexuais.
Kraft-Ebing também estabeleceu uma distinção entre os “normais”, que copulam com
pessoas do mesmo sexo, e os “perversos”, que somente se excitam com partes do
corpo de pessoas (assim como de animais), sem ter compromisso de reprodução.
Entre essas duas classificações identifica os “invertidos”, que sentem desejos por
pessoas do mesmo sexo. Mas a homossexualidade, como construção teórica, que
acabou impregnando-se no tecido social, identificando de forma simplória a
diversidade de atrações homoeróticas, como lo contrário à heterossexualidade,
emerge, segundo Costa (1992), por incrível que pareça, como instrumento de
denúncia social.
Escritores same sex oriented, da passagem do século XIX para o XX,
procuram encontrar saídas que amenizem a idéia do invertido perverso; no entanto,
fundam a síntese dos traços comuns que identificariam o “homossexual”, acabando,
27
na mesma forma, por classificar e polarizar as diferentes subjetividades e expressões
sexuais humanas. Escritos de Balzac, Proust e Wilde procuram denunciar a
hipocrisia dos costumes emergentes da burguesia moderna industrial e dos padrões
e representações da sociedade urbana emergente. Para esses autores, o
“homossexual é um outsider cuja preferência amorosa desfaz o silêncio tecido pela
sociedade em torno de sua origem e funcionamento escusos” (COSTA, 1992, p. 45).
Porém, ao denunciar a sociedade hipócrita, a literatura sobre a homossexualidade
cria um ser homossexual e, assim, acaba contribuindo para a polarização da
sexualidade e a organização das expressões vinculadas a ela. Dessa forma, mesmo
como críticos a sociedade, tais autores contribuem com a ordem ascendente.
Segundo o autor (COSTA, 50-55), os discursos apresentados são estes:
a) defesa do homossexual como um marginal ou como um rebelde romântico:
o homossexual seria uma espécie de bom selvagem em meio à selva
parisiense do século XIX, um homem apto a subverter moralmente a
sociedade, como tratado por Balzac;
b) a transgressão homossexual vista como mera submissão aos
mandamentos do instinto; homossexualismo como sexo animal, sem
freios, vergonhoso e imoral, como abordado por Adolfo Caminha em “O
bom-crioulo”;
c) homossexualismo relacionado às leis da evolução de Darwin: o
Homossexual é um exemplar da natureza, mas de natureza especial, a
natureza depois da queda, depois de banida do Éden pelo castigo dos
deuses. Ele é visto, por exemplo, em Proust, como descendente da raça
de Sodoma, dos que escaparam à ira de Deus. O homossexual, assim, é a
transfiguração do infame. Os sodomitas se encontram e se atraem, porém
o encontro inevitável não leva à reprodução biológica. O produto desse
acasalamento é a fecundidade espiritual, uma fertilidade superior, que gera
o belo, o artístico, o amor pelo elevado. O homossexual, assim, teria uma
refinada sensibilidade. À imagem do homossexual depravado, perverso e
corruptor de menores, Proust opõe o retrato do sodomita aureolado de
flores, polens, insetos e delicados aromas;
28
d) homossexual como ser em conflito. Em Gide, o homoerotismo é um caso
particular da luta entre o bem e o mal, o pecado e a virtude, a falta e a
reparação, a carne e o espírito, a razão e a emoção, o hedonismo e o
ascetismo. O homossexual é um ser dilacerado, um exemplo da divisão
infeliz e da divisão ontológica do sujeito.
e) outras correntes:
- relações homoeróticas como latência perversa que todos possuímos:
homoerotismo como etapa da vida (pertencente à infância) que deve
ser meticulosamente vigiada e punida para ser controlada e esquecida.
Se persistir, se degenera em atrocidades inconcebíveis. Costa cita Raul
Pompéia, Musil, Forster, Stephen Spender e Gide como autores que
desenvolveram essa idéia;
- homossexualismo de quartel: novelas como O Bom Crioulo, de
Caminha, O oficial prussiano, de Lawrence e Golpe de
misericórida, de Yourcenar. O sono da repressão produz monstros.
Em ambientes militares inflexíveis e rígidos, homoeroticamente
inclinados entregam-se em verdadeiras orgias de brutalidade contra as
vítimas de suas aspirações sexuais. O desejo amoroso torna-se uma
descida aos infernos;
- homossexual moderno e sua matriz exótica, cumprindo três funções
básicas:
superioridade do burguês branco, civilizado,
metropolitano e colonizador: Gide, em O grão não
morre e O imoralista desloca o homoerotismo para a
África do Norte, e, em meio às dunas, areias
escaldantes, absinto, danças do ventre e “peles
escuras”, qualquer desvario sexual justifica-se. Todo
imoralismo torna-se parte da aventura colonizadora.
Pecado e falta fazem parte de terras cristãs e
civilizadas. Junto aos fracos e infiéis, tudo é permitido
ao forte;
29
o homossexualismo relacionado à face decadente e
fantasmática da aristocracia, sendo contraface da
saudável sociedade burguesa: para Gide, o
homossexual é o exótico submisso e atrasado; para
Proust é o arcaico, o pano de fundo pálido, onde
desfilavam a vitalidade, o progresso e o
expansionismo do imperialismo burguês.
homossexual como “trasfuga” de classe (Foster e
Gide): não podendo exercitar sua perversão entre
pares, recorre à dissimetria social e faz-se aceitar por
aqueles que não possuem a moral do verdadeiro
cidadão (burguês).
Costa (1992) procura mostrar que, a partir da literatura e da medicina, desde a
passagem do século XVIII para o século XIX, funda-se a idéia identitária do
“homossexual” como construção teórica importante da cultura moderna, que irá
encaixar as pessoas orientadas para o mesmo sexo. As caixas da identidade forçam
a diversidade humana a orientar-se para alguma classe teórica, e isso é um dos
principais fundamentos da sociedade moderna organizadora, de acordo com
Giddens (2002). Dessa forma, os próprios desejos humanos referentes ao sexo, ou
seja, o erotismo, tornam-se encaixados em descrições (PARKER apud COSTA,
1992, p. 44). Nesse sentido, a homossexualidade representa um conjunto
identificatório, desviante e contraditório ao normal heterossexual, que torna
convergente uma infinidade de desejos sexuais orientados entre pessoas do mesmo
sexo. Esses sistemas de classificações representam a qualidade do sistema cultural
supra-orgânico moderno que pressiona os indivíduos à auto-identificarem-se
(GIDDENS, 2002). Os sistemas classificatórios modernos apresentam-se por sua
racionalidade positivista binária, que legitimam pólos aceitos e não-aceitos pelos
poderes que impregnam e constroem o social: o feio e o bonito, o certo e o errado, o
desenvolvido e o subdesenvolvido, o selvagem e o civilizado, o heterossexual e o
homossexual.
30
Por outro lado, também na segunda metade do século XIX, e também na
Hungria, o médico Sandro Ferenczi
9
(COSTA, 1992) cunha o termo homoerotismo,
demonstrando a insuficiência teórica do termo “homossexual”, para o estudo da
diversidade dos desejos e das expressões eróticas entre pessoas do mesmo sexo.
No entanto, provavelmente devido à manutenção de um status quo centrado na
procriação, na célula-mestra da sociedade moderna - a família -, na hereditariedade
e nas condições morais e dos bons costumes relativos aos gêneros sexuais, o que
mais largamente se utilizou nos estudos médicos e o que mais largamente se
popularizou foi o termo “homossexual”, conotando um desvio e uma antinorma.
Costa (1992) e Braga Junior (2006) observam como a figura do homossexual
imoral foi reforçada pela literatura do final do século XIX e início do século XX. Costa
analisa os escritos de Balzac, Gide e Proust, e Braga Jr., aqui no Brasil, os livros de
Caminha e Raul Pompéia, cujas figuras desviantes dos homossexuais se misturam à
condição assimétrica dos gêneros sexuais, pela qual o feminino se estabelece como
condição inferiorizada à masculina, definindo um elemento marcante da família
patriarcal burguesa, nos países do centro e, principalmente, na tradicional família
com origens coloniais brasileiras. O homossexual nessa literatura é mostrado como
doentio, um ser incapaz de conter os instintos. Além disso, o homossexualismo é
relacionado a uma ação em um contexto de sujeitos interagindo sob repressão e
submissão, cuja “penetração anal” representaria o domínio dos mais fortes em
relação aos mais fracos. O homossexual será o passivo dominado frente ao
dominador masculino, ou seja, um homem que é penetrado e sujeito ao prazer do
macho dominador, nesse sentido, assumindo o papel feminino, um ser, naquele
momento, sujeito ao desprezo. Esse contexto, de acordo com Fry (1982),
estabelecerá popularmente um modelo “homossexual hierárquico”, constituído pelas
figuras da bicha (um verme), ou seja, o passivo, que assume o papel feminino na
relação sexual, e o bofe, o macho, cujo papel de penetrador não altera sua figura
masculina e nem sua condição de heterossexual.
Butler (2003) observa que na sociedade moderna ocorre uma
“heterossexualização do desejo”, ou seja, a invenção de uma norma que enquadra a
9
No texto de 1913, L´homoérotisme: nosologie de l´homossexualité masculine.
31
vida sexual dos sujeitos e os define quanto as suas práticas sexuais e quanto ao
desempenho de papéis nas relações. Nesse sentido, construíam-se posições
assimétricas de masculino e feminino em que, no seio das instituições família, escola
e trabalho, os sujeitos deveriam cumprir um script que constitui os comportamentos,
as formas de falar, de vestir, de agir e de se relacionar. O sexo deve estar condizente
ao gênero, em todas as circunstâncias das vidas pública e privada, e, caso isso não
ocorra, a sombra do desvio homossexual acaba corrompendo a “identidade sadia” do
sujeito. Nesse sentido, a idéia de gênero (BUTLER, 2003) implicaria, segundo
Gagnon (apud GARCIA, 2003), um sistema cognitivo estruturado, ou seja, um script,
que não são propriedades cognitivas de atores isolados, mas parte integrante de
uma estrutura social. Assim, para Butler (apud BRAZ, 2006), o gênero seria a
estilização retida no corpo, ou seja, um conjunto de atos em uma cultura reguladora
que irá constituir a “heterossexualidade normativa” (grifo nosso), estabelecida por um
conjunto de fronteiras, individuais e sociais, politicamente significadas e mantidas.
Nesse sentido, a heterossexualidade e a homossexualidade, vão acomodar o
sexo e os sujeitos em um conjunto de representações que estabelecerão significados
reguladores da sexualidade. Esses significados representativos, de acordo com
Moscovici (apud LACERDA; PEREIRA; CAMINO, 2002), traduzem um pensamento
do senso comum sobre a sexualidade próprio da sociedade contemporânea. Assim,
conforme os estudos de Costa (1992, p. 153), o homossexualismo é associado à
continuidade e à constância de relações homoeróticas, passividade no coito,
passividade de atitudes e ausência de agressividade, efeminamento de maneiras e
modos de falar e gosto por atividades lúdicas e profissionais tidas como femininas.
De acordo com Braga Junior (2006), em virtude da ação de redes
multiculturais inseridas na emergência da globalização, partir dos anos 1960, a
homossexualidade sofrerá um descentramento. O final dos anos 1960 é marcado
pela emergência das “minorias” culturais, em um contexto que, de acordo com
Vallerstein (1995), representa a explosão dos movimentos sociais contra a
desigualdade (econômica e cultural) e o descrédito, contras os discursos e teorias
que pregavam a perfeição e o progresso da sociedade enquadrada em modelos
“corretos” a serem seguidos. A marca da história do movimento homossexual
32
mundial (UNIDOS PELA CAUSA: PROCESSO MODERNO ESTABELECE
VISIBILIDADE PARA O MOVIMENTO GAY, 2007) foi a noite de 28 de junho de
1969, na qual homossexuais reagiram - com garrafas e pedras, gritando frases como
“poder gaye “sou bicha e me orgulho disso” - ao fechamento, por policiais, do bar
Stonewall Inn, no Geenwich Village, em Nova Iorque. Esse fato passou a ser
comemorado em todo o mundo como “Dia internacional do Orgulho Gay”;
comomeração que no Brasil teve a estréia em 1995. Em virtude da pressão dos
movimentos homossexuais, emergentes desde então, e principalmente devido às
discussões sobre a AIDS e a ampliação do debate sobre o homossexualismo a partir
dos anos 1970/1980 (ver COSTA, 1992; TREVISAN, 2000; GREEN, 2000; PARKER,
2002), a Associação Psiquiátrica Americana retirou o homossexualismo da lista de
transtorno mentais em 1973. Em 1985 o homossexualismo perde no Brasil o caráter
de desvio e transtorno sexual e, em 1993, a Organização Mundial da Saúde adota o
termo homossexualidade no lugar de homossexualismo (identificador de doenças).
Em março de 1999, entra em vigor a resolução 001/99, do Conselho Federal de
Psicologia, reiterando que a homossexualidade não constitui doença, distúrbio, nem
perversão (GUIMARÃES, 2007).
Em virtude da emergência dos movimentos sociais e do debate sobre a AIDS,
a homossexualidade entra em cena não mais como uma anormalidade ou um desvio
a ser estudado em sujeitos definidos como transtornados psíquicos e pervertidos
sexuais. Emerge, então, um movimento político que prega agora a luta pela
existência de uma comunidade pela estratégia de afirmação da identidade social.
Nesse sentido, de acordo com as idéias de Louro (2001) e Parker (2002), observa-se
uma outra etapa na construção do que seria o sujeito homossexual. De anormais e
perversos, para portadores de patologia e seres atormentados,
10
os homens
orientados para o mesmo sexo a partir de então se inserem numa cultura “diferente”
e minoritária das tantas existentes e emergentes no pós-anos 1960 e 1970.
10
De acordo com Costa (1992), após o término da Santa Inquisição e a cunhagem do termo médico
“homossexual”, os desejos homoeróticos passam de instintos perversos a uma patologia sexual. No
próprio século XIX, assim como na continuidade do século XX, a patologia começa a ser tratada pela
literatura “sobre o amor que não ousa dizer o nome” – no dizer de Oscar Wilde. Assim, o homossexual
torna-se discutido e “sujeitificado” por inúmeros atributos humanos que expressa, como, por exemplo,
em Gide, um ser atormentado sobre sua incapacidade de conter seus instintos sexuais
(homoeróticos).
33
De acordo com Louro (2001), no final dos anos 1970 a política gay e lésbica
se encaminha para um modelo que poderia ser chamado de “étnico”. Gays e lésbicas
são representados como “um grupo minoritário, igual mas diferente”, ou seja, um
grupo que busca alcançar igualdade de direitos no interior da ordem social existente.
Afirma-se, no discursivo e na pratica, uma identidade homossexual, denominada gay
por seus defensores. A afirmação pública gay, causada pela presença do movimento
nas ruas e na mídia, cria o discurso de invenção de uma “comunidade”,
11
no qual os
lemas “assumir-se” ou “sair do armário” são importantes para o fortalecimento dessa
identidade e da cultura que precisa existir. A comunidade,
12
nesse sentido, seria
abrigo e proteção a todos os que se atraiam sexualmente por outros do mesmo sexo,
e expressaria uma cultura que iria imprimir as marcas de uma diferença de existência
possível no meio social. Funda-se a “cultura gay”,
13
que vai marcar um modelo
11
Voltaremos a essa discussão, mas Parker (2002) argumenta que o movimento social gay culmina na
organização de comunidades gays, como as de bairros das grandes cidades americanas, européias e
australianas. Por outro lado, o autor verifica que no Brasil o discurso comunitário implicou mais uma
imaginação sobre um conjunto populacional grande, mas disperso geograficamente, sem a produção
de espaços continuos e de concentração gay, como nas regiões anteriormente citadas.
12
A comunidade aqui representa o agir em relação à agregação informal e afetiva, que se difere do
agir em sociedade, no qual Weber (1995) aproxima os propósitos funcionais e dotados de
instrumentalidade no cotidiano burocrático e prático dos papéis sociais. Nem razão nem a função
constituem os traços da agregação, mas a afetividade contida subjetivamente nos indivíduos em
interação. A comunidade aqui aparece concretamente, como os bairros gays de algumas grandes
cidades americanas, como talvez a imaginação de uma população que, mesmo dispersa, partilha os
desejos homoeróticos.
13
A estética gay converge muito para a alteração e subversão dos padrões de gênero sexual, na
forma de vestir-se e em comportamentos relativos ao corpo e nas interações entre indivíduos. Os
prazeres gays valorizam a atratibilidade pelo mesmo sexo, enfatizando partes do corpo desejada, fato
que vai marcar a forma de vestir-se e pontuar a maioria dos assuntos em grupos de amizade. A
linguagem gay implica criações, simbologias e gestos que envolvem os prazeres sexuais e a
necessidade de expressá-los, como gestos erotizados sutis no momento da paquera, uso de
expressões específicas para determinar situações sexuais nas conversas entre amigos e assim como
tipos de acessórios que vão definir os gostos do indívíduo durante o ato sexual. Pollak (1983),
identifica, entre muitas comunidades gays norte-americanas, o uso de anéis em determinadas
posições para identificar o ativo e o passivo. Por outro lado a necessidade de marcar partes do corpo
masculino vai sugerir atrações diferenciadas, assim como o fetiche gay por determinadas expressões
masculinas faz transitar indivíduos que se usam de determinadas estéticas para erotizar seu próprio
corpo, assim como aproximação ao objeto desejado. A cultura gay, por sua vez, vai condicionar-se em
muitas expressões convergentes às festas gays contidas em bares e boates a partir dos anos 1970.
Nesses lugares, a drag queen vai expressar a reinvenção e o exagero da estética feminina, como um
deboche às determinações de gênero. Os shows de drags vão expressar o deboche e a ironia quanto
a situações da vida cotidiana repressiva, principalmente o sarcasmo quanto a heterossexuais, assim
como as próprias situações envolvendo o homoerotismo. Outro ponto que converge à cultura gay
contida nas festas do gueto é o culto a artistas femininos que se tornam divas, sendo reinventadas
nos shows de transformismo, assim a culto à dança (dance music) como expressão de liberdade
contida e como elemento de expressão dos desejos quanto ao corpo.
34
alternativo de vida (estética, consumo, prazeres, gostos, linguagens, etc), porém
minoritário, fato que, de certa forma, não coloca em risco o padrão heterossexual e
as condições de gênero. Louro (2001) afirma que a representação positiva de uma
identidade gay apresenta um efeito também regulador, pois estabelece uma dada
posição-sujeito, com seus contornos, limites, posições e restrições.
Assim emerge uma cultura gay, fundamento da construção de uma
comunidade de indivíduos que, mesmo dispersos, assumiam-se como tal. Fry (1982)
observa que nesse momento, junto às camadas médias urbanas, emerge um modelo
“igualitário” que contradiz o hierárquico tradicional das dicotomias bicha e bofe. No
final dos anos 1950, a tese de José Fabio Barbosa da Silva, republicada por Green e
Trindade (2005), observa os elementos constituintes de uma cultura gay como
expressão dos valores homossexuais: a conversação sobre sexo, a dança, o flerte
sem conseqüências, a adoção e o exagero do comportamento feminino e a afetação
na fala. O show de transformismo e o desfile de moda do travesti tornam-se formas
extremas desse caráter. Esses elementos marcam a cultura de uma minoria como
“uma visão privada de cultura desenvolvida pela maioria” (SILVA, 2005, p. 120). Em
virtude do caráter positivo gay, estabelecido pela emergência do movimento político
e pela divulgação da valorização estabelecida em Stonewall (“sou bicha
14
com
orgulho” e “poder gay”), os indivíduos orientados para o mesmo sexo, em meio a
tantas tensões entre a sociedade heteronormativa, acabam convergindo à proposta
cultural gay e intensificam os contatos com essa minoria pela participação efetiva nos
lugares de encontros do grupo. Muitos indivíduos homoeróticos, dispersos e à deriva,
15
atormentados em meio aos preceitos da sociedade heteronormativa, então
convergem a lugares de expressão da cultura gay, que os protegem, vislumbram e
estimulam. O gueto gay toma força em virtude do poder gay instaurado. A marcação
e a divulgação da diferença possível e acolhedora ameniza os sofrimentos de muitos
que não vêem mais possibilidades nem de conter, nem de exercer seus desejos. Os
14
Tomamos a liberdade de não grifar termos como “bicha”, “bofe”, entre outros, embora não sejam,
para um trabalho acadêmico, considerados próprios da linguagem que se espera de tal gênero de
texto.
15
Para Perlongher (1987), a deriva” espacial, ou o perambular pelo espaço público, procurando
alguma experiência sexual em lugares inusitados ou evidentes como lugares de encontros
homoeróticos, apresenta-se como uma importante características de sujeitos same sex oriented.
35
lugares de encontros gays sempre existiram,
16
porém nunca foram tão positivamente
marcados por uma cultura possível, como a partir dos anos 1960. A eles vai
convergir uma gama de indivíduos orientados para o mesmo sexo que serão
abarcados pelos elementos culturais expressos nesses lugares e incentivados à
participar da invenção de uma comunidade gay imaginada, que vai marcar
positivamente uma nova cultura que contribuirá mais uma vez para a unificação das
expressões homoeróticas.
17
Concomitante a esse processo - e em momento de
expansão de um capitalismo que busca no prazer, no fetiche e na diferença a
ampliação do consumo -, explode uma série de lugares gays de convivência
marcados pelo consumo (bares, saunas, boates, casas de shows, cinemas, etc). Por
esses lugares, uma cultura gay se transnacionaliza, inserindo e produzindo seus
modelos de consumo: as bebidas, as músicas (das divas da dance music), os
elementos estéticos da moda (disseminando modelos aos gays de classe média
urbanos) e os elementos relacionais (assuntos, formas de expressão, temas de
discussão, vínculos com a mídia, entre outros), que dão corpo a uma cultura mais ou
menos unificada na rede de relações gays do mundo todo. Na continuidade do
16
O filme “O Einstein do Sexo” mostra a existência de reuniões homoeróticas no início do século XX,
por entre elementos da burguesia, cuja estética transgênero já ocorria, assim como a existência de
lugares mais específicos na cidade, como praças e ruas, cujos indivíduos homoeróticos se
encontravam para atos sexuais. O filme “Madame Satã” nos remete ao Rio de Janeiro antes dos anos
1960, em que se verifica que o trânsito de indivíduos homoeróticos estava presente de forma difusa
entre bares da região boêmia da cidade, como a Lapa, antes da formação de uma rede de lugares
específicos de reunião e consumo gay. Parker (2002) observa que, antes do surgimento do mercado
gay, indivíduos orientados para o mesmo sexo circulavam camufladamente (ou não, como, por
exemplo, a forma explícita de muitos travestis que também estavam presentes nesse contexto, como
Madame Satã) por entre as regiões de boemia e acabavam concentrando-se em algum bar ou ponto
dessas regiões.
17
Trevisan (2000) e Costa (2002) argumentam sobre a influência artística dos anos 1960 e 1970 na
construção do imaginário gay. Muitos personagens da música pop acabam sendo acatados como
expressões gays, principalmente pela indefinição em relação às rígidas estéticas de gênero sexual.
Artistas como David Bowie, Mick Jagger, Caetano Veloso e Ney Matogrosso tornam-se figuras
referenciais da estética desse imaginário. As reuniões gays, mesmo antes da construção de um
mercado gay, que vai reunir um conjunto de bares específicos a essa convivência, vão transitar pelo
clima de festa e de orgia, no qual a transgressão e a reinvenção dos atributos valorizados
socialmente, assim como os não valorizados, são fundamentos dessa cultura. Na música dos anos
1970 e 1980 as expressões artísticas vão acatar esse ímpeto transgressor e fazer extravasar pela
mídia e pelo mercado cultural. Muitos artistas emergem dos bares e lugares de encontros
homoeróticos e vão propor uma estética alternativa condizente às necessidades homoeróticas de
ironizar aquilo que reprime esse sentimento. Assim como a festa, a liberdade momentânea e o brilho,
em meio a um cotidiano imerso em repressão, acabam sendo valorizados (ver Gloria Gaynor, Villlage
People, Gengis Kan, nos anos 1970, e Madonna, Pet Shop Boys, Erasure, entre outros, nos anos
1980).
36
processo, uma publicidade gay toma o espaço público nas bancas de revistas, nas
novelas e nos programas televisivos. Nesse sentido, a produção de um mercado,
que se torna acessível de contato pela publicidade e pela mídia, atrai aqueles
orientados para o mesmo sexo a ter uma experiência territorializada em lugares que
acabam tornando-se específicos ao consumo desse público. De certa forma, isso vai
fortalecer a formação de uma identidade gay que contém os atributos relacionais e
comportamentais de uma cultura gay produzida nos lugares de convivência e de
consumo fechado de indivíduos orientados para o mesmo sexo. Nas grandes
cidades, para as quais convergem as atenções de ações capitalistas vinculadas aos
investimentos no oferecimento de serviços culturais destinados a públicos cada vez
mais diversos, os bares e as boates de encontros homoeróticos se disseminam e
fazem convergir para uma gama de indivíduos interessados a esse tipo de
convivência. O resultado é a produção de uma cultura que envolve a territorialização
do encontro homoerótico, na qual a festa, a dança, a música, a produção estética
das vestimentas, o glamour e o brilho tornam-se elementos importantes à
convivência que busca a alegria e a liberdade de expressão.
Parker (2002) observa uma descontinuidade nos atributos de uma cultura gay
emergente no Brasil. Por um lado, ocorrem a manutenção e a valorização das
relações comparativas aos atributos de gênero tradicionais no país, implicando as
dicotomias bicha e bofe, cujas caricaturas vão promover uma visão debochada da
sociedade tradicional – fato que marcará, então, uma cultura gay brasileira. Por outro
lado, também observa a emergência de um novo personagem, ou seja, o “entendido”
dos anos 1980, que paulatinamente sesubstituído/confundido pela palavra “gay”
propriamente dita. De “gay”, componente do exagero feminino ou do efeminamento
dos corpos masculinos, como expressão positiva, vamos ter o “gay” do final dos anos
80 (ou “entendido”), como uma auto-identificação comum entre homens não-
caracterizados como efeminados (nos comportamentos e estéticas), cujo modelo se
tornará mais próximo ao “padrão igualitário”
18
dos moldes norte-americanos.
18
Embora as preferências entre “ativo” e “passivo” no ato sexual persista como um atributo de
aproximação afetiva entre as pessoas, o tipo igualitário dá ênfase ao encontro sexual de dois homens
cujos traços comportamentais estão de acordo com os atributos do gênero masculino heterossexual,
coisa que pode implicar até mesmo um preconceito com o efeminamento que se aproxima da figura
37
Monteiro (2000), observa essas descontinuidades a respeito do que
poderíamos definir uma cultura gay no Brasil, que já apresenta discordância quanto a
sua unidade. O interessante trabalho do autor verifica propostas diferenciadas em
relação à construção de “publicidade gay” brasileira. O autor verifica as propostas
diferenciadas nas revistas Sui Generis e Homens. A primeira estaria marcada pelo
incentivo à promoção de uma comunidade gay mais ou menos homogênea, na lógica
do gay positive,
19
incentivando a construção de uma comunidade por evidenciar o
“retrato” de uma unidade e um conjunto de virtudes e problemas pertencentes a
todos. De acordo com o autor, a constituição corporal na revista preza pela figura da
virilidade masculina e pelas formas musculosas, contrastando com a proposta de
valorização do efeminamento, elemento que poderia também definir os fundamentos
de uma cultura gay. A revista prega a necessidade de assumir-se, “sair do armário”,
da bicha. No entanto, não conseguimos observar uma polarização quanto a esse tipo de
comportamento nas relações homoeróticas de que participamos. O efeminamento e a masculinização
acontecem em circunstâncias diversas: muitos homens que prezam a distinção da masculinidade
podem, em alguns momentos festivos entre amigos “gays”, apresentarem e liberarem
comportamentos efeminados, outros nunca o fazem e outros gostam de marcar esse traço em todas
suas relações. Costa (2002) explica esses comportamentos como um atributo de auto-afirmação em
relação às experiências repressivas da pessoa, assim como reprodução festiva daquilo que é tido
como desvio pela sociedade. Nesse sentido, o efeminamento transita como um comportamento ora de
ironia e transgressão à sociedade repressora e rígida (que contém as determinações de gênero
sexuais) ora de celebração à liberdade e à condição gay (auto-afirmação de uma cultura desviante,
visto em Bourdieu, 1989). A idéia de Fry (1982) talvez sim implique a determinação da rigidez dos
gêneros sexuais contaminando as relações homoeróticas, algo típico das relações existentes na
cultura brasileira; porém, as sobreposições culturais estabelecidas pela introdução no mercado da
cultura gay norte-americana no Brasil, a partir dos anos 1970, produziram uma complexidade de
situações e de representações dos corpos homoeróticos quanto ao efeminamente e à masculinização.
O efeminamento talvez implique a celebração da festa e dos ícones gays, muito contida na figura da
Drag Queen, mas a masculinização talvez também implique o culto ao corpo masculino e à
valorização dos atributos de gênero que tanto atraem sexualmente homens same sex oriented. Essas
duas condições vão emergir em situações diferenciadas quanto às relações coletivas existentes,
implicando assim uma condição da territorialização da situação, assim como a propensão individual,
também mutável e instável, a tais comportamentos. Em relação ao nosso trabalho, podemos distinguir
duas situações territoriais em relação a essa questão, assim como em Costa (2002): a territorialização
amigável homoerótica em boates e bares gays vai implicar uma aproximação ao efeminamento de
muitos componentes do grupo, assim como a acidez e o sarcasmo nos assuntos e a ironização
quanto às situações do cotidiano. As territorializações de busca sexual implicam, quase sempre, a
manutenção de posturas masculinizadas, como atrativo ao provável parceiro. Por outro lado, muitos
sujeitos também podem marcar o efeminamento e a condição passiva em suas expressões, tornando
a situação de busca sexual marcada pela preferência quanto à distinção de papéis sexuais no ato.
19
Positive Gay foi um movimento contido na mídia e cinema gay norte-americano durante os anos 90.
Constitui um esforço de publicitários, artistas e cineastas de produzir programas e filmes que
romantizassem e valorizassem expressões gays, no intuito de aproxima-las e torná-las mais aceitas
perante a sociedade.
38
da constituição de uma comunidade unificada, dos temas sobre preconceito e
promoção de um consumo dito gay a todos pertencentes a essa comunidade. Por
outro lado, a revista Homens centra-se numa variabilidade de personagens que
transitam por um “mundo gay” (bichas, bofes, travestis, michês) e que vão configurar-
se ao redor de suas práticas sexuais. Em primeiro momento, observa a ocorrência de
contatos entre o que seriam heterossexuais e o que seriam homossexuais em tramas
marcadas de fantasias erotizadas pelas práticas sexuais que transitam nas
experiências cotidianas. Em segundo momento, a revista não vai preocupar-se com
a militância ou com temas referentes ao preconceito, fundando uma diversidade de
personagens que a fortalecem as divisões tradicionais entre “ativo” e “passivo”,
típicos da manutenção dos gêneros na sociedade heteronormativa. Nesse sentido, a
análise do autor sobre essas duas revistas coloca em questão um complexo mundo
de desejos e de relações homoerotizadas, que podem circular tanto por atributos
referentes à homogeneização de uma cultura, assim como pela fluidez de suas
expressões, configurando personagens e formas de contato e agregação múltiplos e
instáveis.
20
Tonely e Perucchi (2006) observam que, relativamente à construção binária
dos gêneros sexuais, ocorre a cristalização dos sujeitos sexuais, mulher e homem, e,
inserido no contexto desses gêneros, se fortalece a “sujeitificação” da
homossexualidade (PARKER, 2002). Isso ocorrerá, como vimos, pela definição de
homossexual contida na medicina, na psiquiatria e na literatura do mundo ocidental,
além da popularização de uma cultura e de uma identidade fará pertencer, de forma
unitária, todos os indivíduos orientados sexual e afetivamente para o mesmo sexo.
No entanto, Hall (2002) verifica que, no mundo dito “pós-moderno” (concebendo
como pós-moderno as transformações culturais ocorridas por volta dos anos 1960 e
1970 que culminam num trânsito constante de culturas e identidades), ocorrem a
20
Os desejos homoeróticos vão transitar por entre as estéticas que se acumulam quanto ao
masculino, muito divulgada e explorada comercialmente desde a segunda metade do século XX,
assim como os determinantes de gênero estabelecidos pela heterossexualidade. Por entre esses
desejos, identificações (quanto à expressão do corpo em vestimentas, acessórios e comportamentos)
vão estabelecer teor de atratibilidade homoerótica, fundando expressões corporais e reuniões grupais
de diversas formas de expressar o homoerotismo, muitas delas confundindo expressões gays com
outras não especificadamente de origem homoerótica: como estéticas que envolvem os skatistas, os
punks, os hip-hop, os motoqueiros, os fisioculturistas, os roqueiros, os executivos, ente outras
estéticas masculinas possíveis.
39
fragmentação e o deslocamento de identidades culturais de classe, etnia,
sexualidade, raça e nacionalidade. Tonely e Perucchi (2006) também citam o autor,
mas observam que a identidade não se apresenta hoje fragmentada, como evidência
de uma condição pronta, mas como “uma unidade inacabada e fluida, constituída
histórica e culturalmente a partir das posições que os sujeitos ocupam nas redes de
socialidade”. Seguindo essa idéia de identidade fluida e inacabada, Braz (2006),
estudando o contexto homoerótico leather (que significa couro, no qual ocorre uma
“hiper-valorização” da masculinidade), verifica que, em contextos territoriais fechados
a essas reuniões “sexuais”, homens “codificariam os sujeitos desejantes/desejados e
os objetos desejantes/desejados como masculinos”. Nesse sentido, nos lugares de
reunião leather, ocorre uma rearticulação e um deslocamento de convenções sobre o
sexo e o masculino. Na conclusão do autor, ocorre uma “contextualização
materializada dos sujeitos”, ou seja, suas existências são criadas a partir de suas
práticas.
21
Assim, enfatizamos a concepção de identidades que não estão fixas, mas
acabam fluindo em contextos diferenciados, nunca se finalizando, mas estando
sempre em processos de construção de socialidades móveis. É nesse sentido que,
em momento de fluidez identitária, não mais serve a estanque identificação
homossexual. Observamos a emergência de contextos e de sujeitos criados pelos
contextos, nos quais identidades são criadas para servirem de “porta-vozes” para a
desconstrução de paradigmas heteronormativizados, segundo Braga Junior (2006). É
nesse sentido que emerge a idéia de homoerotismo, que vai aproximar-se da idéia
de que as sexualidades humanas (e os desejos homoeróticos) são cambiantes e
expressos em múltiplos contextos, tão diversos quanto as práticas dos grupos que os
exercem.
Braga Junior (2006) observa que a própria construção de uma “comunidade
gay” enfraquece a unidade em torno do sujeito homossexual, uma vez que fortalece
o sentimento de pertença a uma “personagem coletiva, mutante e provocadora”. A
emergência do homoerotismo, em virtude da fluidez cultural s-anos 1960,
desculpabiliza indivíduos orientados para o mesmo sexo e, como tendência-reação,
21
Esse trabalho tem como preocupação central explicar isso, ou seja, a territorialização homoerótica
sendo condição essencial a sua existência.
40
ocorre a “carnavalização” das estéticas e dos comportamentos de gênero em
inúmeros contextos polifônicos instáveis e constantemente construídos e
reconstruídos. A polifonia da cultura gay, segundo o autor, torna-se evidente a partir
da transnacionalização da mídia e da plasticidade do mercado da publicidade, da
moda e da sica, ou seja, torna-se vinculada a uma cultura pop pulsante que
divulga e mistura constantemente estilos que detonam qualquer unidade identitária.
Segundo o autor, o marco desse processo foi o surgimento da MTV norte-americana,
em 1983, e o da brasileira, em 1990. O evento fundador do pastiche pós-moderno é
a apresentação de Madonna no primeiro MTV Music Awards, com a
música/performance Like a Virgin. Pela cultura da música, do videoclipe e das divas
pop, emerge a paródia camp (excesso, carnavalização, pastiche), como
representação pastichosa da realidade dos elementos heteronormativos. A cultura
gay, como uma “visão delirante das coisas”, abre-se, então, ao experimento, à
mistura, à irreverência, à multiplicidade de contextos e de sujeitos, ao sempre novo e
à reinvenção de tudo.
Louro (2001) verifica que a AIDS, nos anos 1980, promove, em plena
ascensão do movimento político gay, a retomada da homofobia. Caracterizada como
“doença gay” a homossexualidade começa a ser vista como “coisa que se pega”. Por
outro lado, a AIDS possibilita uma retomada sobre as discussões acerca da
sexualidade, gênero e homossexualidade, deslocando os discursos sobre identidade
e enfatizando os debates sobre as práticas sexuais (como a prática do sexo seguro),
segundo a autora. Nesse sentido, em relação aos grupos políticos organizados e às
teorias sobre a questão, nesse período, evoca-se, por um lado, a necessidade da
criação de uma identidade que busque a igualdade e a cidadania (direitos
homossexuais), mas, por outro lado, emerge um novo contexto de desafio
generalizado a qualquer padronização identitária, cujos movimentos (intelectuais,
culturais, políticos e artísticos) procuram desvendar e criticar todas as binaridades
existentes, principalmente a que define os gêneros sexuais, e querem colocar em
pauta todas as relações de poder existentes nas categorias sociais tidas como fixas.
Emerge assim uma teoria pós-identitária chamada Queer que, segundo a autora,
pode ser traduzida como excêntrico, raro, extraordinário, estranho e ridículo, mas
41
que significa colocar-se contra a normalização, representando as diferenças que não
querem ser assimiladas ou toleradas. A teoria Queer, segundo Louro (2001), é uma
construção inserida num quadro do pós-estruturalismo e da pós-identidade e que
pode ser assimilada desde a desconstrução de Freud sobre a vida psíquica do
indivíduo; perpassando Lacan, que instaura a divisão do sujeito instável e não coeso,
e nas teorias que denunciam a autoritária racionalidade moderna, como em Foucault,
pela análise dos múltiplos discursos de controle da sexualidade, e em Derrida, pela
denúncia dos binarismos que impregnam a gica ocidental moderna, que fixa a
identidade dos sujeitos e de seus opostos desviantes. Nesse sentido, emerge uma
nova forma de pensar a ambigüidade e a fluidez das identidades (sexuais), mas
também uma nova forma de pensar a cultura, o conhecimento e a ciência.
Por esse viés, observamos que chegamos a um contexto de inúmeras
representações sobre os desejos homoeróticos em que, ao mesmo tempo, todas se
interpenetram e todas se tornam insuficientes. Observamos que a sociedade, em
relação aos desejos e às espontaneidades homoeróticas, apresenta-se por forças
que agem dialeticamente, tanto favorecendo a constante necessidade de regramento
e enquadramento desses desejos, como possibilitando inúmeras fugas de tais
enquadramentos, que culminam nas expressões de sujeitos desejantes em atos e
ações de “comunhão” diversas. Assim, verificamos que os sujeitos homoeróticos não
se apresentam em uma unidade homossexual ou gay, mas são contextualmente
materializados. Nesse sentido, o que verificamos é a existência de uma complexa
geografia, pela qual fundam-se inúmeros contextos territorializados nos quais fluem
diferentes expressões individuais quanto a suas relações/experiências homoeróticas.
A interpenetração das subjetividades dos sujeitos participantes corpo às
microterritorializações existentes nas redes homoeróticas caracterizadas pelo
contexto “aqui e agora” de existência. Nas microterritorializações fluem tanto desejos
desregrados, espontâneos e definidos pelo acaso das relações, como regras de
comportamentos e elementos condicionantes da cultura heterossexual, ambas
situações apresentando diferentes níveis e interpenetrações.
Não mais totalmente perversos e anormais, os indivíduos orientados para o
mesmo sexo, ao se (micro)territorializem, se encontram em escalas diversas entre o
42
visível e o não-visível, entre a abertura e o fechamento ao exterior, entre o trajeto de
deriva e o ponto de agregação e entre suas condições de “tipo igualitário” ou
“hierarquizado” (lembrando os modelos de Fry, 1982). Os desejos homoeróticos
microterritorializam-se em inúmeros contextos que ora trazem o caráter desviante e
unificador da sujeitificação homossexual; ora a homogeneização de uma minoria
cultural gay; ora o desmanche, o experimento, a irreverência e o pastiche camp; ora
a desconstrução e a negação generalizadas do controle na teoria Queer.
Na dialética da sociedade, entre eventos verticalizadores e autoritários, que
procuram normalizar as expressões em identidades estanques, e a emergência
imprevisível das espontaneidades e dos prazeres humanos, o que importa é a
localização das práticas coletivas, contestatórias ou não, e a imposição dos
significados a tais localizações, entre as muitas de um espaço social fluido, múltiplo e
instável. Nesse sentido, as experiências, socialidades e expressões homoeróticas,
seguindo as idéias também de Parker (2002), são mais condições de um “circuito”
homoerótico - de inúmeras, fluidas e instáveis territorializações de desejos expressos
em formações coletivas - do que uma condição única e impressa em todos os
indivíduos. Essas microterritorializações vão abarcar as diferentes subjetividades nas
quais a identidade do participante não é relevante, mas sim suas disposições ao
local e a como ele pode encaixar-se no perfil do parceiro desejado, nas habilidades
de relacionar-se com os outros e o conhecimento sobre a agregação, que existe
como tal, assim como os modos coletivos de uso do espaço (LEAP apud SIVORI,
2002).
Perlongher (2005, p. 264), observa a importância da abordagem territorial para
representar as categorias de auto-definição sexual “como pontos dispostos em redes
circulatórias, numa relação de contigüidade e mesmo de mistura”. O lugar - as
relações que se tecem e que tecem o lugar - é que define os sujeitos. Nesse sentido,
de acordo com o autor, as “identidades” seriam substituídas por “territorialidades” e,
por esse conceito, poderíamos apreender como “os sujeitos se definem
mutavelmente a partir de ´posições´ e ´trajetórias´ (ou ´derives´) variáveis dentro de
uma rede, bem como a participação em diferentes redes” (PERLONGHER, 2005, p.
43
265). A territorialidade, assim, seria expressa por um “código-territorial”, que distribui
atribuições categoriais a corpos e desejos em movimentos.
Nesse sentido, pelas instabilidades conferentes ao homoerotismo - mesmo
com uma gama de definições construídas que procuram o enquadramento e a
organização da sexualidade, definindo um ser homossexual ou gay - é o território de
encontro - constituído por um código-territorial ou territorialidade (expressões que
singularizam e asseguram a agregação territorial) - que constituirá a possibilidade de
existência das relações afetivas de indivíduos orientados para o mesmo sexo, a troca
de experiências e o conforto coletivo. Nesse sentido, a identidade apresenta-se como
a projeção dos indivíduos quanto aos “enquadramentos” determinados pela
sociedade; porém, em relação aos enquadramentos identitários, complexidades
micro-coletivas se fundamentam nos territórios de encontro delas e definem uma
diversidade de atributos individuais construídos pelos “campos” de vivências de
certas práticas culturais localizadas. A identidade existe como determinantes
individuais da sociedade e elas se multiplicam em virtude das diversas
territorialidades daquilo que elas não conseguem aprender ou apreendem em
termos.
Essas territorialidades ao mesmo tempo agregam aquilo que as identifica e
que foge das identificações contidas como banalidades sociais, assim como propõem
outros estados individuais e coletivos, afirmando as indefinições dessa sociedade.
Tais territorialidades apresentam-se como diversidades representativas e simbólicas
que apresentam o apoio material dos encontros coletivos delas, em grande escala
(microterritorialização), no qual esse apoio material é delimitado no tempo e no
espaço, mas, ao mesmo tempo, são instáveis, efêmeros, flutuantes, transitórios e
mutantes, sendo produtos da dialética entre ordem e desvio, racionalidade e
espontaneidade da sociedade.
Por outro lado, elas são expressão do “contra” e do “a favor” (MAFFESOLI,
2002) à sociedade: contra, pela necessidade de combater o controle; a favor, pela
existência de elementos discursivos e relacionais que reproduzem o próprio controle.
Nesse sentido, elas são condições “dentro” e “fora” da sociedade, representando,
44
assim, mais a existência de um espaço social orgânico, instável, caótico e mutante
do que a de uma sociedade plenamente estruturada e organizada.
45
3. A PRODUÇÃO MULTITERRITORIAL DO COTIDIANO URBANO COMO
CENTRO DA DIALÉTICA ENTRE ORDEM E DESVIO NA MODERNIDADE
22
Este capítulo é uma reflexão acerca da produção histórica do espaço social da
cidade e sua íntima relação com o desenvolvimento da modernidade e do
capitalismo. Defendemos que a produção do espaço urbano não se de forma
homogênea, como tanto foi o interesse do projeto moderno de controle social, mas
se estabelece por múltiplos processos de fragmentação relacional dos grupos
humanos. A própria fragmentação relacional urbana produz e é produto de diferentes
formas de apropriação espacial dos agregados sociais que constituem a cidade.
Verificamos, assim, a produção multiterritorial do espaço urbano, na qual cada
parcela apropriada do espaço se identifica como um microterritório em formação
(uma microterritorialização urbana) ou um pocket of social relation
23
.
A diversidade de microterritorializações urbanas é originada nos diferentes
níveis entre contradição e concordância em relação a seus processos mediadores
modernos, que procuram uma certa homogeneização do espaço construído
(edificado e usado pela funcionalidade) e vivido (o espaço das relações sociais, tanto
lugar de condições de funcionamento do sistema homogeneizante, como palco da
expressão espontânea dos indivíduos e grupos sociais). A modernização
24
dos
lugares o constitui a tabula rasa da modernidade, mas a dialética presente no
ordenamento territorial
25
acompanha contestações generalizadas em relação aos
próprios projetos de gestão e também de cumprimento de papéis e comportamentos
previsíveis em situações do dia-a-dia. Daí a necessária atenção à produção do
cotidiano urbano como centro de conflito entre regras e desvios (as regras) sociais,
no qual o produto disso é expresso por apropriações espaciais tanto contraditórias
22
As idéias contidas nessa seção foram utilizadas e originaram textos apresentados no IX Simpósio
Nacional de Geografia Urbana, em Manaus - ver Costa, 2005 -, e no Seminário Globalização e
Marginalidade, da comissão da União Geográfica Internacional sobre marginalização, globalização e
seus impactos locais e regionais, em Natal-RN, em 2005 – texto no prelo.
23
Gluckmann apud Velho, 2004. Como a sociedade fosse um conjunto de pequenos bolsos” de
relações sociais singulares. Esses bolsos além de sua singularidades fazem parte da dinâmica
totalizante da sociedade.
24
A condição racional e funcional na organização dos lugares: para a reprodução do capital e das
instituições sociais modernas, assim como a moralidade a que fazem parte.
25
Compreendido como o planejamento tecnocrático do espaço, assim como o “ordenamento das
vidas”, inserindo-os na funcionalidade massificadora.
46
como concordantes (como contextos específicos) as condições presentes na
modernidade das relações sociais. Assim, cada microterritorialização urbana é
sentido e produto da dialética para o qual atentamos e para essa análise utilizamos a
condição social de indivíduos e agregados humanos que se relacionam em virtude
dos desejos e afetividades homoeróticas.
3.1. AS ESTRUTURAS ESPACIAIS E AS ORIGENS DOS REGRAMENTOS
MODERNOS
A vida urbana, como contraponto a vida no campo, é fundamento do que se
chama modernização (do novo, do progresso, do rompimento do passado e da
atenção ao futuro) e de suas implicações nas relações sociais. Ela emerge junto com
a fundação do capitalismo burguês e o rompimento com o modelo de vida tradicional
das comunidades feudais pré-modernas na Idade Média.
Sabemos que o modelo feudal começa a se desagregar na baixa Idade Média,
a partir do século XIII, quando se torna incontestável a produção de excedentes
agrícolas a partir de algumas evoluções técnicas artesanais estabelecidas entre
camponeses dominados pelos senhores feudais. Novos equipamentos, ainda que
rudimentares e não-industriais, foram criados, e, cada vez mais, excedentes foram
produzidos, fazendo surgir um novo elemento nessa estrutura comunitária: o
comerciante e, por conseguinte, a atividade de comércio de excedentes agrícolas
(que se difere do restante das funções do regime fixo do feudo).
A produção de excedentes e o aparecimento dos comerciantes rompem com a
organização comunitária feudal, caracterizada por um formato de pequenas unidades
de produção auto-suficientes. As pessoas que se apropriam do excedente agrícola,
assim como das técnicas que possibilitam sua produção, afastam-se das áreas
produtivas e aos poucos organizam uma forma espacial destinada ao
armazenamento e a comercialização dele. Tais formas, formas de “burgos”,
constituem zonas de concentração populacional nas fronteiras dos feudos. Nos
burgos moram os burgueses, ou os primeiros comerciantes, que fazem reflorescer o
comércio na Europa depois de séculos da queda do Império Romano. Essa nova
47
classe vai criar um “capitalismo comercial” que vai desestruturar as relações
tradicionais feudais, provocando a ascensão de um sistema territorial urbano e a
centralização/homogeneização socioeconômica na organização dos primeiros
Estados europeus.
A economia urbana, ao mesmo tempo em que requer um espaço político
para seu desenvolvimento, proporciona os fundamentos materiais para que
esse espaço se constitua. Uma vez estabelecida, desta maneira, a
economia urbana integra as diferentes partes do território, ao especializa-
las produtivamente, tornando-as interdependentes, o que reforça a
unificação política. (SINGER, 1998, p. 17).
De acordo com Singer (1998), ocorre uma Revolução Comercial no século
XVI. Os burgos crescem - as casas se aglomeram e esse espaço se diferencia - e se
tornam hegemônicos sobre o campo, estabelecendo a centralização/concentração de
pessoas e de objetos econômicos. Essa revolução é produzida pelos comerciantes e
banqueiros, que libertam certas cidades do domínio feudal, tornando possível a fuga
de servos para essas localidades, e criam a “liga de cidades”, organizando uma
divisão de trabalho interurbana e o desenvolvimento das forças produtivas.
A cidade, na passagem do feudalismo ao capitalismo comercial, torna-se
caótica em termos de convívio entre uma diversidade cultural que a habita e a
indefinição de regras de comportamento que organizaria a estrutura social e as
relações de poder. Segundo Gomes (2002, p. 75), era ausente nessa cidade um
direito territorial, e ela estava fragmentada em várias unidades de direitos tradicionais
de grupos que traziam seus costumes de outros lugares e os reproduziam em
pequenos núcleos dentro do espaço urbano nascente.
26
Nesse sentido, é na cidade nascente que começam a estabelecer-se as faces
antagônicas (econômicas, políticas e culturais) entre o antigo regime (camponês e
feudal) e a nova organização (que irá prezar o urbanismo como forma social). Antes
disso a cidade começa a estabelecer um antagonismo de um novo “modo de vida”
26
Nesse ponto, salientamos a importância de entender os conceitos de cidade” e de “urbanismo”
estabelecida por Harvey (1980, p. 174). Para o autor, a cidade constitui-se como uma forma
constituída a respeito do modo de produção, como uma loja atacadista de heranças fixadas,
acumuladas, antes de produção”. Urbanismo seria “uma forma social, um modo de vida, ligado, entre
outras coisas, a uma certa divisão do trabalho e a uma certa ordem hierárquica de atividade, que é
amplamente consistente com o modo de produção dominante”.
48
que vai se contrapor ao do campo. Nela mesma torna-se necessário combater a
“barbárie”, fruto da convergência diversa de pessoas que reproduzem nela a vida
quase “animal” do campo. A cidade, assim, vai tornar-se condição de uma sociedade
organizada e civilizada, ou seja, expressão materializada das relações sociais
urbanas:
O antagonismo entre a cidade e o campo começa com a transição da
barbárie à civilização, da tribo ao Estado, da localidade a nação e atravessa
toda a história da civilização até o presente (...). A existência da cidade
implica, ao mesmo tempo, a necessidade de administração, política,
impostos, etc; em resumo, da municipalidade e assim, da política geral...”
(MARX; ENGELS apud HARVEY, 1980, pp. 174-175).
O espaço urbano da cidade (aquela ainda da transição do sistema feudal ao
comercial), vai representar, assim, o lugar no qual o comércio poderia ser regulado,
em meio a um sistema intercidades ainda caótico, irregular e definido pelo
contrabando. O principal antagonismo entre campo e cidade, nesse momento, vai ser
a capacidade de controlar as relações comerciais dentro da cidade, calcado no
desenvolvimento de uma regulamentação política e de uma sociedade ordenada.
Harvey (1980) verifica que a cidade assumiu uma forma de “corporação territorial”,
para facilitar o comércio. Nela também vão promover-se vantagens monopolísticas
entre outras cidades, assim como o controle do conflito interno. O autor verifica que
nas cidades comerciais emergentes fundam-se as sociedades ordenadas, que vão
estruturar-se em relação ao parentesco e aos direitos herdados de propriedade, nos
quais penetraram as antigas nobrezas feudais, que vão expressar suas normas
sociais e morais, assim como a apropriação do excedente. Dessa forma, é na cidade
que o capital vai acumular-se e monopolizar-se nas mãos de uma ordem de
parentesco que funda as bases da organização social: organização do comércio e de
suas atividades, baseadas numa hierarquização social (condição da hierarquização
do capital pela monopolização); organização de um conjunto de normas baseadas na
moralidade imposta pela ordem de parentesco que possibilita a sua reprodução
econômica e social. Conforme Trevor-Roper (2003, p. 33),
A ascensão dos príncipes, no século XVI na Europa, é um espetáculo
fascinante. Surgem um após outro, primeiro na Itália e Borgonha, depois em
49
toda a Europa. Suas dinastias podem ser velhas, e mesmo assim seu
caráter é novo; são mais exóticos e muito mais apaixonados do que seus
predecessores. [...] E, se quisermos entender a crise no final de seu
governo, deveríamos lembrar que seu poder não surgiu do nada. Sua
extraordinária expansão no início do século XVI não foi in vácuo. A Europa
teve de abrir espaço para sua expansão. Os príncipes surgiram às custas
de alguém ou alguma coisa, e eles trouxeram em seu séqüito o meio de
garantir seu novo poder repentino usurpado. Eles surgiram às custas dos
órgãos mais antigos da civilização européia, as cidades, e trouxeram
consigo como meio de conquista, um novo instrumento político, “a corte
renascentista”. (TREVOR-ROPER, 2003, p. 133)
Em relação à produção do excedente, verifica que a condição monopolizante
dos processos capitalistas se expressa em uma estrutura hierárquica das relações
interpessoais entre indivíduos na cidade e se desloca para as relações que se
estabelece pela troca de mercadorias e pela circulação da mais-valia em outras
escalas (nas relação capitalistas entre as cidades). A estrutura se organiza em
[...] elos de exploração que estende o vinculo capitalista entre o modo
capitalista e as metrópoles nacionais aos centros regionais (parte de cujo
excedente se apropriam), e destes aos centros locais, assim por diante,
para alcançar os proprietários de terras e comerciantes que expropriam
excedentes de pequenos camponeses e rendeiros e algumas vezes mesmo
destes últimos para os trabalhadores sem terra explorados por eles.
(LÖSCH apud HARVEY, 1980, p. 225).
Isso condiciona a organização espacial do excedente pela metropolização e a
definição de uma estrutura comercial que vai fundando-se, nas origens do mundo
moderno, ao redor das “metrópoles européias” (baseadas na concentração do
excedente próximo e também dos de origem colonial). Essas vão concentrar capital e
organizar um poder que permita a sua reprodução, estabelecendo concretamente as
suas hinterlândias: pela normatização do espaço comercial interurbano e de seu
conjunto de práticas vinculado à homogeneização ampliada das instituições
necessárias a ele. Isso dará constituição aos oligopólios e ao fim do mercado auto-
regulado, dando forma a uma organização econômica a partir da metrópole, que
concentra capital e inovações e que, por ela, se distribui e organiza a rede de
cidades que constitui a sua hinterlândia.
Os poderosos grupos agem pelas veias do mercado oligopolístico (não mais
auto-regulado) e no tecido das negociações fundam e impregnam uma organização
50
econômica ampliada territorialmente, por onde fluem suas normas sociais e morais.
O mercado assim é forçado a uma regulamentação (dos oligopólios) e a necessidade
disso marca a integração de uma antiga rede urbana ainda condição de um mercado
não-regulado. A marca dessa regulamentação é a organização de uma estrutura de
poder (um Estado) que integra os diferentes níveis hierárquicos burgueses e os
diferentes lugares de comercialização e produção de excedentes num território
ampliado.
Trevor-Roper (2003) contribui a nossa construção mostrando que o processo
de formação/integração territorial do Estado está relacionado à emergência dos
príncipes e a suas trajetórias relativas à anexação de cidades. Os príncipes vão
subjugar a Igreja, estender sua jurisdição e mobilizar o campo. A partir do poder do
Estado, vão estabelecer regras de circulação; cobrar impostos sobre as riquezas da
cidade, protegendo e estendendo seu comércio; apoderar-se e desenvolver sua arte
e arquitetura. Algumas cidades, assim, crescem através da concentração
oligopolística organizada e legalizada pelo poder dos príncipes. Por esse poder e
pela metrópole, o restante do território comercial vai integrando-se pela
homogeneização da legislação e pela disseminação de instituições sociais como
condições “acima” dos costumes e condições locais (organiza-se uma economia e
uma sociedade condição de uma cultura supra-orgânica)
27
.
O capitalismo passa de uma desordem do mercado auto-regulado, condição
do contrabando e das irregularidades das relações sociais (e culturais) na cidade
medieval comercial, para a ordem da regulamentação dos oligopólios, imanentes das
metrópoles que se originam dentro da rede de cidades comerciais (hierarquizadas
pela dinâmica de hierarquização dos contatos burgueses, nas trocas dos excedentes
e na apropriação da mais-valia). Da metrópole vão emanar novas formas
institucionais e normas jurídicas que procuram a regulamentação do mercado em
prol dos interesses hegemônicos estabelecidos. Essas formas institucionais e essas
normas vão dar fundamento ao Estado, mentor e protetor do mercado regulado,
27
De acordo com Duncan (2003), “supra-orgânico” refere-se a elementos de organização “acima” das
condições locais, constituídas por todas as formas legais instituídas pelo Estado, assim como as
superestruturas de legitimação. Desenvolvimento de uma cultura totalizante a todo território que por
seus elementos faz integrar a diversidade.
51
como instituição máxima da manifestação da autoridade sobre uma sociedade que
se organiza perante novas legalidades e verdades sobre a realidade:
A concentração geográfica de pessoas e atividades produtivas nos grandes
centros metropolitanos nas nações capitalistas avançadas o seria
possível sem as enormes concentrações de mais-valia em instituições
superordenadas tais como as grandes corporações e o governo nacional.
Nem seria possível essa concentração sem um aparato elaborado para
proteger a estrutura hierárquica da economia de espaço global, para
assegurar a manutenção de fluxos de hinterlâncias para os centros
urbanos, dos centros menores para os maiores e de todos os centros
regionais para os centros de atividade capitalista. (HARVEY, 1980, p. 230)
Singer (1998) também verifica que a economia urbana requer um espaço
político para desenvolver-se e proporciona os fundamentos materiais para que esse
espaço se constitua. Essa economia é capaz de integrar as diferentes partes de um
território, promovendo a especialização produtiva e a interdependência, reforçando a
organização/unificação política e produzindo o corpo ampliado dos Estados
territoriais. O urbanismo, fundamento da economia urbana, do espaço das cidades,
da emergência do capitalismo e das políticas territoriais do Estado, torna-se a base
de uma nova sociedade regrada e ordenada que tende a
homogeização/funcionalização/racionalização das práticas econômicas e das
relações sociais. As cidades (a rede delas) e o Estado territorial tornam-se faces da
mesma moeda, ou seja, da organização dos agentes capitalistas e das relações
sociais imersas nessa organização, pautando as necessidades de
acumulação/concentração do capital e os condicionamentos sociais numa teia de
formalidades e funcionalidades necessárias para sua manutenção.
A capacidade de produção de excedente foi possível pelo emprego de novas
técnicas na agricultura. A visualização dessa capacidade e a possibilidade de
comercialização incentivaram a evolução das técnicas. Aos poucos, com o
incremento de pessoas morando em burgos e com a expansão da Revolução
Comercial, surge a necessidade de domínio completo e ampliação territorial do
campo agrícola, assim como o contínuo investimento e modernização da produção
para suprir o comércio. Nessa relação, com a complexidade que passam a ter as
relações comerciais a partir da circulação de moeda e da acumulação de capital,
52
vão-se produzindo maiores investimentos e surgindo a necessidade de controle de
feiras, centros comerciais, áreas produtivas, produtores e mercados consumidores.
Na continuidade do processo, a classe burguesa vai diferenciando-se intensamente,
concentrando riquezas e poder, e começa a assumir estratégias de ampliação de
controle territorial e homogeneização de práticas políticas em território ampliado, a
fim de romper barreiras que dificultam a acumulação de capital.
De acordo com Singer (1998), a cidade vai constituir-se como uma inovação
na cnica de dominação e na organização da produção. A cidade vai concentrar
população e produção, e a relação entre elas torna realidade um mercado regulado
pela monopolização/oligopolização do capital (comercial, em primeiro momento,
gerador da mais-valia, em segundo momento). A expressão do mercado regulado se
na institucionalização do governo, em primeiro momento a cidade; posteriormente
como expressão do domínio exercido pelos oligopólios dentro de uma “classe
burguesa hierarquizada e desigual” que se estabelece numa rede de cidades e
trocas comerciais. A cidade dominante torna-se a metrópole, que acumula riquezas e
organiza a sociedade, assim como a força necessária ao domínio estabelecido. A
força profissional do exército do governo metropolitano lança bases a possibilidade
de integração territorial efetiva da sua área de influência e ampliação territorial.
Assim, surge a necessidade de ordenamento político das sociedades
tradicionais e a homogeneização das práticas legislativas, comerciais e culturais em
um território maior para suprir as necessidades de acumulação capitalista dos novos
atores hegemônicos burgueses. Por um lado, o controle era estabelecido pelas
relações comerciais que agregavam vários burgos e uma população extensa e
heterogênea. Caberia, então, fundar uma instituição legal que possibilitasse
homogeneizar as práticas econômicas e sociais em prol dos interesses comerciais
das classes dominantes burguesas: o Estado-Nação. Em primeiro momento, o
Estado se configura como Estado Absolutista e se impõe pela força, pela criação do
exército e pela integração territorial a partir da figura do líder absoluto. É um
momento de coação física para a manutenção necessária da ordem econômica, em
que surge o Estado centrado na figura do todo poderoso monarca absolutista. Nesse
período “convém perceber o Estado como uma organização do poder voltada ao
53
domínio do território que, por sua vez, contém habitantes que dele fazem parte,
assim como as riquezas, numa estrutura voltada para a produção, etc” (HEIDRICH,
2000, p. 31). Por outro lado, a configuração do Estado Moderno, diferente do Estado
Absolutista, define um “poder político objetivado para a produção de um consenso
voltado abstratamente ao todo social” (HEIDRICH, 2000, p. 32).
Com a expansão dos meios de produção, a diversificação das atividades
produtivas e comerciais, a monopolização do capital burguês e a ampliação das
atividades manufatureiras, se estabelecem uma diversidade de modos de
apropriação do espaço, bem como a emergência de uma multiplicidade de atores
econômicos que tendem a defender suas propriedades privadas e o direito de ação
livre quanto a investimento e reprodução de capital. Ao poucos, a numerosa e
complexa classe burguesa clama pela desvinculação de qualquer forma de poder
tradicional ou absolutista. Nesse sentido, segundo Heidrich (2000), emerge a
necessidade de um Estado que seja um articulador dos diversos interesses dentro do
território nacional, que seja mediador dos conflitos, que proteja a propriedade privada
e que organize as relações sociais e jurídicas, assim como a infraestrutura e os
recursos públicos em prol dos diferentes interesses capitalistas.
É claro que os diferentes interesses capitalistas acabam hierarquizando-se em
virtude dos mecanismos de concorrência e monopolização do mercado, mantendo
hegemonias sobre as outras e afunilando o cume da pirâmide social, assim como do
poder político. No entanto, a ideologia do Estado Moderno centra-se na liberdade de
comércio e na proteção dos interesses privados, na igualdade das oportunidades,
assim como na observação de que os benefícios das obras públicas e das regras e
legislações políticas são para todos, em prol do desenvolvimento conjunto da
população. Essa ideologia servirá para maquiar as relações de poder, para a
alienação de possíveis agentes revoltosos e para esconder os processos de
apropriação desigual do capital em uma sociedade capitalista urbana que tende à
formação de grandes concentrações populacionais.
Com a gradual perda de controle dos senhores feudais sobre o campo, a
agricultura e a pecuária modernizando-se e tornando-se comerciais, a progressiva
liberalização da mão-de-obra camponesa e a aglomeração constante de população
54
nas cidades, a Europa pós-feudalismo torna-se um conjunto de cidades ligadas por
rotas de comércio que se agruparam num formato diferenciado àquele fragmentado
feudal: é o Estado-Nação Moderno. A lógica do Estado-Nação Moderno centra-se na
necessidade de aglutinar as forças produtivas e manter um controle dessa produção.
Forças essas que escapavam quando ainda eram concentradas nas pequenas
unidades de domínio e de produção dos feudos. Nesse sentido, o conceito de nação
foi importante para aglutinar o conjunto das populações que não estavam tão mais
dispersas, mas inseridas em conjuntos de cidades e rotas de transporte que
dominavam a produção do campo.
A nação configura abstratamente uma comunidade territorial ampliada,
conformada por uma língua oficial (uma língua comum que une a diversidade do
território)
28
, uma religião oficial, um traço étnico predominante e, finalmente, a
visualização de uma estrutura econômica e política comum evidenciada pelos
mecanismos de informação
29
e a escolarização ampliada.
30
Dessa forma, os grupos
nacionais o estabelecidos por compartilharem de forma nata o mesmo território e
de uma herança comum à própria nacionalidade. Segundo Gomes (2002), a
Revolução Francesa estabelece ideologicamente os laços de fraternidade e de
solidariedade que firmam a coexistência dos homens, na construção de um mesmo
espaço compartilhado entre iguais, submetido às mesmas regras jurídicas, que se
tornam legitimadas pela racionalidade lógica e amparadas pela noção de bem
comum.
Segundo Vallerstein (1995), a Revolução Francesa representou a grande
expressão política do Iluminismo, que se apresenta por um traço de ambigüidade.
Por um lado, apresenta um plano político pautado na fraternidade, igualdade e
liberdade; por outro, refere-se a um projeto hegemônico de reprodução de capital e
28
Segundo Anderson (1989), a reforma protestante e a tradução de artigos religiosos, como a Bíblia,
por Lutero torna-se elemento importante a integração de uma diversidade sobre a imaginação de um
nacionalismo. A língua comum torna-se um elemento mediano entre uma língua totalizante (o latim) e
a diversidade de dialetos existentes no território. A língua comum é expressão do poder cultural,
burocrático, político e econômico das metrópoles emergentes e a integração inter-urbana promovida
por ela.
29
A invenção da imprensa por Gutemberg é elemento dessa dinâmica integradora.
30
A escolarização jesuítica torna-se fundamento de construção do nacionalismo francês, assim como
o ensino de Geografia, como nos mostra Lacoste (1974), torna-se elemento fundamental para
estabelecer o conhecimento necessário a integração do território alemão no final do século XIX.
55
manutenção do poder de classes privilegiadas, assim como da condição desigual de
apropriação do capital. Segundo o autor, a restauração da França, depois da queda
de Napoleão, em 1815, é centro de debates políticos que culminam na chamada
“trindade ideológica”, que tem como pilares o conservadorismo, o socialismo e o
liberalismo. Vallerstein (1995) indica a emergência do liberalismo como o mais capaz
de manter uma geocultura de legitimação ao sistema de desigualdade e
hierarquização do poder político e econômico. Esse sistema possibilitaria o controle
das “classes perigosas” e a capacidade de reprodução da sociedade e do capital de
acordo com a lógica das classes dominantes. Para isso, na essência, o liberalismo
foi e ainda é repressor, mas essa repressão sempre esteve acompanhada de
constantes concessões sociais e possibilidade de formação de minorias políticas,
mantendo abafadas as possíveis revoluções.
Outros elementos essenciais foram a possibilidade de participação política, (o
sufrágio universal), e a concretização da premissa-chave iluminista de pensamento e
ação racionais. O liberalismo funda a visão dialética de que o Estado não poderia
constranger o indivíduo e, ao mesmo tempo, esse Estado seria peça-chave a
minimizar a injustiça para com ele. O Estado Moderno, então, se funda numa lógica
liberal, estabelecendo uma ideologia e um conjunto de valores ditos nacionais para
unificação das classes sociais e ruptura radical das possibilidades de separatismos
populacionais. Mesmo duvidosas, a participação política, a partir do sufrágio
universal, e as cláusulas de bem-estar social dão coerência aos ideais de igualdade,
comprometimento social e sentimento coletivo, desestruturando as possíveis
rebeliões de massas e mantendo coeso o sistema. Por outro lado, sob a ação do
Estado-Nação Moderno Liberal, funda-se, segundo Vallerstein (1995), o reformismo
racional, em que a educação escolar e a universitária, a partir das ciências
formais/racionais, concretiza os modelos de planejamento e as ideologias de
desenvolvimento que se tornam legitimados a toda população e dão continuidade
harmônica ao processo de acumulação e reprodução social do capital. O Estado e os
poderes político e econômico tornam-se “naturais” àqueles mais educados, mais
estudados, que seriam capazes de guiar o restante da população segundo os ideais
pregados pela Revolução Francesa.
56
Segundo Gomes (2002), esse processo funda uma cultura e um contrato
social, ou seja, “trata-se de uma cultura que podemos chamar de pública e
democrática, ou seja, um certo número de valores que devem ser vividos por
esses indivíduos: os da justiça social, da liberdade individual, da ética
comportamental, da moral lógica, etc.”. Segundo esse autor, estavam opostos, por
essa ideologia, os conceitos de civilização e de cultura, nas quais a civilização
representou a expressão da pretensa superioridade do Ocidente e exprimiu “a idéia
de um processo geral e irreversível que conduz ao estabelecimento de um código de
conduta lógico, virtuoso e justo”. Por outro lado, a cultura estabeleceria a relação de
um lugar que lhe é próprio e ontológico, ou seja, não adequado às premissas de
homogeneização social necessária à unificação dos processos e fenômenos sociais
dos Estados-Nações em caminho de consolidação.
Aos poucos, o termo civilidade começou a ser centro do projeto burguês. Esse
termo vai substituindo o termo courtoisie, ou cortesia, que era utilizado na Idade
Média como padrão de bom comportamento associado à sociedade cavalheiresca.
Ainda Gomes (2002), a burguesia francesa, nos séculos XVII e XVIII, assume os
comportamentos da aristocracia centrados na cortesia (da corte ou da aristocracia) e
pressiona a difusão desses comportamentos como os que deviam ser aceitáveis
para toda a sociedade, condicionando, então, formas e maneiras de convivência nas
cidades que se desenvolviam nessa época.
Nesse sentido, contra a fragmentação territorial das cidades nascentes, se
elege uma cultura, aqui chamada de civilidade e corte, como elemento de unificação
da diferenciação para seguir a ordem iluminista que pretendia construir um campo de
formas de relações comportamentos aceitos, gerais, uniformes e inteligíveis por
todos. Nessa perspectiva,
[...] a urbanidade é um conjunto de atitudes e comportamentos que dá
ênfase à reciprocidade entre indivíduos diferentes, mas expostos a um lugar
de permanentes trocas sociais, a urbe. A cidade é, pois, nesse modelo o
lócus de temperança, do controle das pulsões individuais e da ordem
estabelecida sobre bases racionais e lógicas. (GOMES, 2002, p. 109).
57
De acordo com Giddens (2002), a modernidade aposta na razão instrumental
pela qual o homem conseguiria desvendar as regras da natureza (que tanto
ameaçavam a sociedade) e fundaria as regras da própria sociedade contra as
naturais ameaças existentes nas relações humanas, dotadas de impulsividade,
ambição e descontrole. A modernidade apresenta a necessidade de ordenar o
mundo em relação a um conjunto de preceitos verdadeiros que levariam aos bons
costumes e a civilidade da relação entre os homens. A modernidade teria em seu
centro articulador o combate à barbárie, a desordem e a regulação das ações
humanas. O bem-estar coletivo passaria pela organização de um conjunto de
preceitos estabelecidos entre o “certo” e o “errado” ou um conjunto de normas
racionais que garantiriam a convivência pacífica dos homens.
Plastino (2001) observa que o paradigma moderno é norteado para a definição
de realidade subordinada à razão lógica que atua por dualidades (homem/natureza,
sujeito/objeto, normal/anormal), que define um conjunto de imagens/representações
de determinados ideais que convergem à figura de um homem interiorizado, racional,
reflexivo e eternamente em conflito entre razão e paixão. A definição de norma e de
normal é difundida no século XIX pelas reformas das instituições pedagógicas e
sanitárias que se vinculam ao bom funcionamento da ordem capitalista a partir da
regulação/normalização dos sujeitos (CANGUILLEM, 1978).
Essas reformas vão compor os projetos do “reformismo racional” indicado por
Vallertein (1995), posteriores à Revolução Francesa, que incluem a organização do
espaço (em prol de novas qualidades sanitárias e pedagógicas) e das relações
sociais via a constituição de um corpo científico e legal que adquire posturas
normativas e impõe modelos de comportamentos e julgamentos que atribuem uma
essência ao ser vivo e a definição de valor de tipos ideais (PRATA, 2004).
Marcuse, 1975, verifica a modernidade como uma condição de progresso da
dominação, no qual essa dominação evolui desde o “pai primordial”, do clã fraterno,
a um sistema de autoridade institucionalizada cuja dominação torna-se cada vez
mais impessoal, objetiva, universal, mais racional, eficaz e produtiva (efetiva divisão
social do trabalho). A sociedade moderna, assim, emerge como “um sistema
duradouro em expansão de desempenho úteis; a hierarquia de funções e relações
58
adquirem a forma de razão objetiva: a lei e a ordem identificam-se com a própria vida
em sociedade” (MARCUSE, 1975, p. 91). Assim, o homem passa a ser avaliado, de
acordo com o autor, por sua capacidade de realizar, aumentar e melhorar as coisas
socialmente úteis. Desse modo, “a produtividade designa o grau de domínio e
transformação da natureza, a progressiva substituição de um meio natural
incontrolado por um meio tecnológico controlado” (MARCUSE, 1975, p. 143). A
modernidade da razão e da produtividade vai definir, então, um meio controlado,
distante da desordem natural, caracterizado pela organização do espaço social
tecnologizado pela racionalidade científica (expressos na gestão e no planejamento
do Estado e da empresa) e pela produtividade do indivíduo num sistema que exige e
controla seu desempenho como possibilidade única de sua existência. o
necessários a razão exploradora, a domesticação dos instintos da natureza e o
estabelecimento de uma ordem lógica regida pela necessidade de produtividade.
Assim sendo, a modernidade se instaura como um paradigma que funda as
bases de uma sociedade que preza a organização para a produtividade e a
reprodução do capital. As necessidades de ordenamento o estabelecidas no
campo da formação de uma cultura “supra-orgânica” que irá organizar o campo
social em conjuntos de identidades fixadas aos sujeitos e organizadas em relação a
padrões lógicos e naturalizados” das normalidades sociais e seus desvios.
Vinculado à necessidade de regramento do comércio, da produção e da geração de
mais-valia, o homem moderno torna-se regido por um conjunto de procedimentos
objetivos que o alienará mediante as necessidades vinculadas as suas avaliações de
desempenho.
Como expressão dessa objetividade, a urbanidade se organizará como uma
materialidade e uma forma social. A vida nas cidades torna-se então regida por um
sistema instrumental que requer o máximo proveito de produtividade dos homens.
Suas vidas, assim, tornam-se condicionadas pela lógica do trabalho e pelos
mecanismos morais instaurados nas relações sociais. Além da moralidade, como
expressão das vontades hegemônicas disseminadas no tecido social, o sistema
jurídico racional apresenta a fatalidade das condições de se viver em sociedade.
59
O espaço social, por esse viés, é representado pela organização das regiões
dentro das fronteiras dos Estados Modernos, pelas ações de planejamento e
ordenamento territorial. Na escala urbana se evidencia, por um lado, o ordenamento
racional e funcional das localizações e dos fluxos urbanos e, por outro lado, a
manifestação de um modo de vida caracterizado pelo comprimento das obrigações
que medem o desempenho dos indivíduos: pelos papéis sociais normalizados em
identidades mais ou menos fixadas, pela instrumentalidade das trocas
socioeconômicas e pelo raciocínio lógico nas ações e interações sociais.
3.2. A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL E OS CONDICIONAMENTOS
COTIDIANOS
Podemos dizer que a modernidade refere-se a todo um conjunto de esforços e
ações acumuladas historicamente que vão organizar a sociedade em prol da
manutenção da reprodução econômica e das classes ou agentes sociais
beneficiados por essa reprodução. O estabelecimento de mecanismos de controle
perpassa tanto o campo das idéias, que impregnam o social e legitimam certas
formas de “ser” e “estar” cotidianos, como a própria organização do espaço e das
relações entre suas diferentes escalas.
31
A consolidação da organização do espaço
mediante uma complexa funcionalidade promove a manutenção do status quo das
estruturas hierárquicas de poder. Os poderes agem e emanam das próprias relações
sociais, de acordo com Foucault (1993). Nesse sentido, tendem a reproduzir o social
concreto e abstrato (o visível concreto e os pensamentos das pessoas). A lógica do
poder apresenta-se como lógica da sociedade disciplinar, cujas formas construídas
são objetividades de controle e cujas ações estabelecidas são produtos dos próprios
sujeitos mediante suas atividades de desempenho numa complexa teia de
funcionalidades.
31
O capitalismo se organiza em processos de oligopolização que atingem a escala global. A crucial
necessidade de manutenção da reprodução do capital em certos agentes econômicos organiza uma
complexa teia que perpassa o estabelecimento de padrões de moralidade e de legalidade que se
tecem entre diferentes escalas nos quais ligam diferentes contextos de acumulação. A organização
assim preza o local, a cidade, a região, o Estado e os vínculos com o mundo.
60
A organização do espaço social ganha mecanismos complexos e dinâmicos
não percebidos rapidamente: são os discursos políticos, as informações carregadas
de intenções específicas, os projetos de infraestrutura que gerem os espaços
urbanos e o regional, as repetições de atividades inseridas nas relações cotidianas e
a inserção pessoal inevitável em instituições sociais inquestionáveis. Todos esses
são mecanismos devidamente calculados que produzem as engrenagens eficazes de
poderes que abarcam todo o campo social.
No surgimento da sociedade urbana, desde o final do feudalismo, era
preocupante a necessidade de organização da diversidade social que tornava
caótica a convivência espacial e perigosa aos projetos da classe burguesa
dominante. A organização legal do espaço regional e urbano (o planejamento do
Estado na escala nacional e local urbana) apresenta-se como premissas à
integração/dominação das diversidades culturais a fim de converter essas energias
em capacidades de produzir trabalho e capitais. Os ideais centrados no reformismo
racional do liberalismo, emergentes após a Revolução Francesa, legitim a
racionalidade nas atividades de planejamento em prol do desenvolvimento e do
progresso da cidade, da região e da nação. Tais ideais vão evidenciando a
interligação das escalas mencionadas e reforçam um pensamento abstrato de
pertencimento individual a todas elas, ou seja, a um povo ou a uma nação que
representa uma totalidade cultural e econômica, mas que, na realidade, servem de
território ampliado de reprodução de classes dominantes e de seus jogos de
interesses.
O poder acaba sendo exercido diretamente nos corpos dos indivíduos, que
vão ser submetidos, domados, transformados para o trabalho e docilizados para se
tornarem úteis. O poder que emana das relações e das organizações objetivas da
sociedade é denominado por Foucault (1984) por “disciplinas”. Na “sociedade
disciplinar”, as condições dos indivíduos convergem para regras naturalizadas pela
história das relações sociais e expressam a normalização de todas as atividades e
suas instituições. Para Foucault, a sociedade se organiza em um conjunto de lugares
por onde os comportamentos podem obter normatividade, sendo “instituições
disciplinares” que objetivam corrigir e integrar os indivíduos através de uma forma de
61
poder ligada a “ortopedia social”. As instituições disciplinares funcionam a partir de
“poderes laterais impessoais” (ao invés da verticalidade visível do antigo poder
pessoal), como a polícia, as instituições psicológicas, psiquiátricas, pedagógicas e
médicas. O poder, então, é a ação dos indivíduos sobre eles mesmos. Essas ações
de regulamentação presentes nas interações entre os indivíduos advêm da
incapacidade deles de questionarem os valores vigentes e da necessidade de
desempenhar a atividades necessárias e comportamentos inerentes ao “dever ser”
(não ao ser propriamente dito) em sociedade.
Além disso, Prata (2004) observa como força desse processo a própria
existência da norma que é reforçada pelo “temor à norma”, que funciona como
“culpabilização”. Concomitante a isso, a norma funciona a partir de um constante
processo de produção de “verdades”, como efeitos específicos do poder, que agem
para classificar, julgar e definir maneiras de viver dos indivíduos. Os poderes, de
acordo com Foucault (1999), funcionam como formas de sujeição regionalizadas e
instituídas localmente, o que não implica saber sobre “quem tem o poder”, mas saber
como ele se implanta e acaba produzindo efeitos de realidade.
Segundo Lefebvre (2001), o processo de industrialização estabeleceu uma
organização racional da vida pública urbana, uma vez que o advento da cidade
industrial rompe com o sistema urbano preexistente. O urbano medieval e comercial,
antes da Revolução Industrial, representa justamente a centralidade do encontro, do
comércio e da visualização de um espaço público de discussão e de vivência
conjunta. A cidade industrial, segundo Lefebvre (2001), é representada por um
traçado racional e uma funcionalidade fria longe da cidade preexistente. Com a
intensificação do processo de industrialização e a acumulação de população perto
das fábricas, a cidade industrial torna a cidade comercial. Nesse sentido, o que se
observa é um choque violento entre sociedade urbana e sociedade industrial, cuja
racionalidade da produção mecânica influencia e determina a produção de relações
sociais instrumentais e gera instituições criadas para perpetuação dessa
funcionalidade.
O autor observa que a cidade industrial tende a crescer em virtude do êxodo
rural. O campo acompanha as mudanças da sociedade industrial e moderniza-se - é
62
subjugado pela indústria -, tornando-se mais produtivo e, ao mesmo tempo, atingido
por um processo de concentração fundiária. Por esse crescimento, a cidade tende a
“explodir” e, ao mesmo tempo, “implodir”. “Explodir” pela proliferação de subúrbios
industriais e/ou de classe distintas, planejados pela tecnocracia estatal ou produzidos
por processos fundiários caracterizados pela racionalidade da rápida lucratividade da
produção da terra urbana. “Implodir” por os centros urbanos tradicionais tenderem a
perder importância, deteriorando-se arquitetonicamente e agregando população
desviante das condições de convivência e relações padronizadas da Modernidade
fabril.
A planejamento racional ataca a cidade para organizar as relações sociais
caóticas existentes nela. Um primeiro exemplo disso é a (re)construção da Paris de
Haussmann. O centro de Paris, em 1848, abriga uma diversidade social e uma
infinidade de ruelas e casas que faziam florescer a vida boêmia e o contato com a
diversidade de tipos sociais e diferentes classes sociais. É fato que essa democracia
urbana ameaçava os privilégios das classes dominantes. Dessa forma, o centro de
Paris é planejado a partir de um conjunto de monumentos e “boulevares” que
dinamizam a circulação geral, principalmente a policial, e dificultam as agregações
populacionais conspirativas que se escondem entre o antigo traçado orgânico. Em
um segundo momento, a suburbanização faz explodir a cidade, tirando os operários
e, posteriormente, outras classes do convívio e da obra urbana. A suburbanização
marca a funcionalização do espaço e a racionalização das relações sociais,
intensificando um modelo de vida especializado e marcado por um individualismo
crescente.
Na continuidade do processo, no século XX, com o crescimento
populacional e a grandiosa aglomeração populacional urbana, os poderes
municipais, como o de Paris, não conseguem controlar a produção do espaço. Nessa
cidade, por exemplo, criam-se nos subúrbios os chamados “pavilhões”, condição de
uma lógica orgânica, muito diferenciada da realidade funcional dos conjuntos
habitacionais. Emerge nos pavilhões a possibilidade de realização das práticas
sociais autênticas e comunitárias, do encontro e da diversão. A diversidade social e o
afrouxamento do controle do Estado nos pavilhões produzem formas de convivência
63
que tendem a romper um pouco com a racionalidade da urbanidade industrial,
acentuando a produção de um espaço orgânico estabelecido por relações sociais
mais puras e não-condicionadas à lógica das instituições sociais modernas.
Até agora verificamos uma série de eventos que convergem para a formação
de uma sociedade organizada por uma racionalidade instrumental e funcional
vinculada as urgências da acumulação e reprodução do capital e dos agentes que se
beneficiam dessa acumulação/reprodução. A funcionalidade da cidade industrial
apresenta-se como evidencia da transposição da racionalidade abstrata num traçado
e numa rede de relações concretas que vão moldar a vida dos indivíduos. Na ótica
do indivíduo, a civilização e a construção da sociedade moderna, que vai culminar na
racionalidade urbana-industrial, marcam a descrição de Freud da transformação do
“princípio de prazer” em “princípio de realidade” (MARCUSE, 1975).
O homem, vinculado a uma realidade e a um conjunto de verdades
estabelecidas, tende a transformar seus impulsos “animais” em um “ego organizado”,
desenvolvendo-se em função da razão ao examinar a realidade e distinguir o que é
bom e o que é mau, verdadeiro e falso, útil e prejudicial, tornando-se um sujeito
consciente, pensante e equipado para uma racionalidade que lhe é imposta de fora
(MARCUSE, 1975, p. 35). Nesse sentido, de acordo com o autor, o principio de
realidade materializa-se num sistema de instituições sociais organizadas, e o
indivíduo, em contato com essas instituições, apreende que os requisitos do princípio
de realidade são os da lei e da ordem.
Esse vai ser o sentido da civilização descrita por Freud (1974), ou seja, a
realidade expressa pela cultura dos valores e realizações supremos, porém
repressivos. Por outro lado, Freud observa que o princípio de realidade nunca cessa
de ser restabelecido na própria história, indicando que o triunfo sobre o princípio de
prazer nunca é seguro e completo. Nesse sentido, tal princípio, mesmo convertido
em sublimações úteis à razão das trocas sociais, sempre se apresenta como força
pulsante no indivíduo, o que indica a eterna luta primordial pela existência,
condicionada ao seu antagonismo eterno em relação ao principio de realidade.
Touraine (1994) evidencia uma modernidade que nunca se completou, uma
vez que as realidades dos projetos de massificação ordenativa dos grupos humanos
64
nunca se adequaram efetivamente nos diferentes lugares do mundo. Por outro lado,
o autor enfatiza sim um processo de “modernização” que apresenta como outra
realidade que não aquelas racionais e abstratas das ações planejadoras do mundo
material e dos discursos massificadores de verdades universais da razão científica e
da moral. As forças das contestações das diversidades dos grupos humanos são
movidas pela força do “principio de prazer”, que enfatiza os valores localizados, as
relações afetivas e comunitárias, o prazer e a espontaneidade contra a
racionalização e instrumentalização das relações condizentes aos processos
repressores que procuram instaurar uma universalidade e uma homogeneidade
cultural, produtiva e institucional.
Como exemplo disso encontramos a própria evidência de processos
contraditórios no contexto dos primeiros passos ordenativos do espaço urbano
presentes na Paris de Haussmann, descrito por Lefebvre (2001). O surgimento dos
“pavilhões” supõe a incapacidade do principio de realidade instituir totalmente a
razão nas relações humanas e nas suas formas produzidas. Além da realidade, os
pavilhões apresentam-se como outras realidades não totalmente racionais, talvez
irracionais, instintivas, prazerosas e afetivas, como fundamentos de outros
interesses: o de se viver em coletividades afetivas e prazerosas e não em meio a um
conjunto prático de fluxos e interações instrumentais.
Além do mais, a própria realidade dos quarteirões, além de muitas outras
realidades desiguais existentes pelo mundo afora, apresenta-se por um conjunto de
indivíduos que não conseguiram acompanhar às exigências econômicas pretendidas
pelo princípio de desempenho nas sociedades capitalistas. ltiplos patamares de
exclusões levam a múltiplas formas individuais e coletivas de reinventar-se o mundo
civilizado. Além disso, em virtude desses múltiplos veios de exclusão, são
estabelecidas diversas tentativas de escape das necessidades de organização dos
egos individuais (e também coletivos)
32
. O mundo das diversas exclusões inerentes
32
A razão unifica egos, mediante princípios comuns, causando a massificação ordenativa. Os desvios
em relação à ordem e os preceitos de desempenho, assim como os “veios” de escape deles, podem
ao mesmo tempo implicar um caos individual como contestações coletivas (movimentos sociais) e
exclusões (aglomerados de exclusão, favelas, guetos, governos paralelos). Devemos, porém,
relativizar a exclusão e a contestação, uma vez que elas ou pertencem, ou são frutos, ou apresentam
algum elo ao processo universal de racionalização/funcionalização e reprodução do capital.
65
às forças de desigualdades existentes no seio do modo de produção capitalista
aproxima muitos indivíduos e grupos a situações distantes dos atributos de uma
imagem pretendida de civilização.
Por esses contextos, aquém da civilização e da civilidade, emergem forças
próximas a natureza
33
pelas quais os atributos do princípio de prazer são os que
mais tendem a emergir. Por outro lado, somente podemos entender a emergência
dessas exclusões e/ou contextos “quase natureza” (contextos permissíveis à
promoção do livre prazer) pelo seu pertencimento a um processos que busca a
totalização dos regramentos pela razão (desde a antiguidade grega) e que constitui a
história da civilização humana que atinge seu ápice na modernidade capitalista-
industrial. A razão vai implicar, então, a política da restrição dos impulsos e das
paixões humanas em busca de uma sociedade perfeita e equilibrada. Por outro lado,
os próprios domínios dessa sociedade, cuja perfeição é impregnada como meta a ser
seguida, são corrompidos pelo extravasamento desses impulsos, presentes nos elos,
domínios e processos e ações dos próprios agentes de modernização.
3.3. O URBANO COMO DIALÉTICA DO CONTRA E DO A FAVOR DA
SOCIEDADE
O processo de urbanização, de acordo com Clark (1985), está relacionado,
além da concentração de pessoas na cidade e do aumento do número de cidades,
ao florescimento de uma cultura urbana, que tende a diferenciar-se das relações
estabelecidas no meio rural. Na cidade as pessoas se vinculam a atividades
fragmentadas e especializadas, o que acaba promovendo uma individualização
extremada, que é dinamizada pela necessidade de ascensão social, fazendo da
cidade um lugar de desconfiança, concorrência e, ao mesmo tempo, de diferenciação
extrema. A cidade é corrompida pelo urbanismo moderno. A cidade na modernidade
33
Latour (1994), em Jamais fomos modernos, salienta a modernidade como expressão do
distanciamento da sociedade em relação à natureza. Por outro lado, também salienta que o produto
desse distanciamento nunca se estabeleceu por um completo distanciamento e uma definição precisa
de polarizações sociedade e natureza, mas contextos diversos caracterizados como “híbridos”
produzidos pelos processos desiguais existentes no seio da própria modernidade (mais caracterizada
como modernização): são os diferentes contextos de “sociedades-naturezas”.
66
se diferencia daquela cidade requerida na antiga Grécia, caracterizada pela
formação do espaço público de encontro com os diversos interesses pela cidade e
da “ágora” da discussão democrática.
A cidade da modernidade é abarcada pelo urbanismo moderno, como
conseqüência da “funcionalidade da máquina” da sociedade industrial. Como nos
mostrou Lefebvre (2001), essa cidade, conseqüência da emergência da razão
instrumental do iluminismo e da concentração do capital, que se tornou industrial,
significou um choque com a cidade preexistente: a cidade comercial, ou seja, o lugar
da possibilidade de existência, de encontro e de trocas simbólicas entre as
diversidades culturais. A cidade industrial, conseqüência da emergência da
modernidade, é condição da formação da sociedade disciplinar, racional e
instrumental, cujo próprio traçado, cujas organização dos objetos e relações sociais
(qualificadas pelas frieza das trocas mercantis, da maquinaria do trabalho e dos
procedimentos burocrático-instrumentais) levam à “particularização” e a “alienação”
humana.
Sennet (1998) observa o espaço público moderno como condição da sua
contradição, ou seja, a característica de um individualismo extremado que leva a um
intimismo generalizado na vivência desse espaço. Por outro lado, em virtude de o
espaço público não representar o encontro com a diversidade e a discussão
democrática sobre a cidade, ele é atacado por diversos microcontextos de
“privatizações ilícitas” e de microenclaves de vivência afetiva dos “desgarrados” do
conjunto de previsões racionais modernas.
34
Assim, se estabelece, então, a
realidade urbana como expressão das contradições existentes entre “subúrbios” e
“pavilhões” da Paris descrita por Lefebvre (2001).
34
Senett (1998) argumenta que o espaço público declina por dois aspectos: um pelo extremo
intimismo gerado pela funcionalização do espaço e das relações sociais, e outro pela própria
contradição existente também no espaço privado. A política do espaço público, para Arendt (1998),
significa o enfrentamento das paixões e da produção de regras de convivência entre elas. Na
modernidade urbana, as paixões são relegadas ao espaço privado (da família). Por outro lado, o
espaço afetivo-privado da família é propriamente produzido por uma extremada repressão moral,
tornando-o locus da efetiva repressão das paixões. Na formação de um contexto privado repressivo e
na instrumentalização e intimização” do espaço público, as paixões o convergir para novos
contextos “público-privados” no seio do próprio espaço público: são os enclaves de uniões dos
“desgarrados” das necessidades de desempenho na sociedade moderna. Esses contextos
“privatizam” partes do espaço público em microconvivência com outras que se diferenciam das formas
de relações baseadas na instrumentalidade e moralidade modernas.
67
A cidade e a urbanização seriam, sob a perspectiva da modernidade, uma forma
e um conjunto de relações profundamente desagregadoras (contra a coletivização
humana e formação de comunidades). Isso implicaria, segundo Oliven (1987), a
formação da cultura urbana caracterizada por relações instrumentais preponderantes
às afetivas, caracterizada pela competição individualista, pelo anonimato e pelo
desempenho de papéis sociais racionalizados e fragmentados. A cultura urbana se
diferenciaria da cultura camponesa, que se apresentaria com características
homogêneas, sem forte diferenciação quanto aos papéis sociais a desempenhar,
com uma forte solidariedade grupal (ajuda mútua) e cujas relações apresentam-se
preponderamente espontâneas, sem fins racionais e instrumentais.
Podemos observar a contradição estabelecida ao conceito de “cultura” às
características de convivência na cidade. No desenvolvimento do trabalho de Gomes
(2002), a “matriz nomoespaço” está relacionada a um projeto de regramento das
relações sociais, estabelecendo critérios e parâmetros que irão definir as
banalidades cotidianas no meio urbano.
Como já vimos, o início da urbanidade moderna vincula-se à polidez e à
teatralização das posturas e dos comportamentos tomados da nobreza francesa nos
séculos XVIII e XIX. Esses costumes se diferenciam daqueles dos camponeses
pobres, separando a vida urbana das comunidades rurais e, num segundo momento
(o momento da industrialização), o modo de vida urbano é influenciado pelos valores
científicos racionais (emergentes desde o Iluminismo e com a ciência positivista).
Como nos lembra Lefebvre (2001), os comportamentos e as relações sociais tornam-
se meramente instrumentais e movidas por interesses específicos engajados no
processo reprodução social sob a lógica econômica capitalista industrial (a extração
da mais-valia).
Quando Gomes (2002) desenvolve a idéia sobre a matriz “nomoespaço” ele
observa na urbanização e na modernização da sociedade um projeto civilizacional
que se difere de um projeto cultural. O projeto civilizacional apresenta, na escala
urbana e do Estado-Nação, a totalização das práticas sociais sob a perspectiva
racional (instrumentalidade e funcionalidade), dando conta de organizar as
contradições perigosas da diversidade cultural (afetivas, espontâneas, comunitárias).
68
O processo de totalização daria cabo à estruturação de uma moralidade definida por
princípios lógicos e naturalizados pelas relações sociais (dados como verdades
natas) e a um corpo material de objetos burocráticos e disciplinadores condizentes
com o modelo panóptico
35
de Foucault (1984).
Relacionado a isso colocamos o conceito de cultura em discussão. Duncan
(2003) discute a concepção de cultura por dois vieses: o primeiro como entidade
supra-orgânica e o segundo como orgânica. O autor, na verdade, defende a noção
de cultura como processos de interações entre as pessoas que representam um
contexto, uma localização de costumes estabelecidos por uma dinâmica interativa,
caracterizados como produções orgânicas e espontâneas dos indivíduos que
remetem, ao mesmo tempo, a permanências e à mutações através das gerações.
Nesse sentido, cultura seria um processo dinâmico e, ao mesmo tempo, espontâneo
que se construiria na interação face a face nas localidades humanas. Por outro lado,
Duncan (2003) nos demonstra muito bem como o conceito de cultura foi
desenvolvido de forma contrária a essa perspectiva. A noção de cultura como
entidade supra-orgânica remete justamente ao projeto moderno que
pretendia/pretende a organização dos comportamentos sociais, tornando-os
previsíveis. Por esse viés, a cultura apresenta-se como uma extrema força
gigantesca que iria imprimir uma série de valores, posturas, formas de ação e
situações possíveis às ações sociais, que iriam ser impressas e abarcar todo o corpo
social. Nesse projeto, segundo Oliven (1987, p. 18),
[...] a cultura não é encarada como um fenômeno que é produzido pelos
homens como resultado das relações sociais, mas como algo externo à
sociedade e que seria uma espécie de variável independente. O
comportamento social seria então explicado como resultado da cultura, e
não o contrário.
Freud (1974) explica essa noção de “cultura” impressora de valores e criadora
de personalidades como emergência de uma civilização moderna. A personalidade
dissolveria o indivíduo, uma vez que ela representa as imposições morais que
35
O panóptico, de acordo com Prata (2004), foi definido inicialmente por Jeremy Bentham e refere-se
a um edifício em forma de anel, com pátio no meio, uma torre central e um vigilante. O anel se divide e
celas que dão para o interior, que permite que o olhar do vigilante as atravesse. Essa forma
apresentaria a caráter disciplinar, referindo-se também às escolas, às prisões, às fábricas, etc.
69
ensinam que o homem não pode saciar livremente seus impulsos instintivos (pulsões
que buscam o prazer). O motivo da cultura seria sustentar a vida dos membros de
uma sociedade restringindo seus impulsos (possíveis de se tornarem destrutivos),
desviando sua energia para o trabalho e para a sexualidade.
36
A civilização seria
fundada na supressão dos instintos, para o autor.
Freud (apud MARCUSE, 1975) explica que a formação da cultura
37
estaria
ligada à figura do pai repressor, que se apodera da mãe (prazer), e que impõe a
noção do “ideal do ego” (a personalidade condicionada ao trabalho e aos propósitos
morais), ou seja, a canalização das pulsões/energias destrutivas (pulsões e morte)
38
à utilidade e às condições de respeito, convivência e afeição entre indivíduos. No
entanto, na ordem patriarcal, ocorreria um ódio muito forte dos filhos, e a rebelião
deles levaria ao assassinato e à devoração coletiva do pai, culminando no
estabelecimento do clã de irmãos. Por outro lado, a culpa pelo assassinato levaria à
adoração do pai (divindade) e à emergência de restrições que originariam a moral. A
moral emergiria, assim, como contenção individual em virtude do interesse e da
preservação do grupo. A passagem da dominação de um para a dominação de todos
faz com que o prazer se “autopropague” e que a repressão seja “auto-imposta” no
grupo. A repressão, a partir de tabus (moral), vai impregnar a vida dos próprios
opressores e as energias individuais vão ser sublimadas por essa repressão “auto-
imposta”, expressa pelo trabalho (social) e pela afeição/respeito, condições das
interações civilizadas impostas pelos tabus.
Para Freud, a civilização apresenta, assim, sua origem no sentimento de culpa
(complexo de Édipo) contraído pelo assassinato do pai pelos irmãos. O assassinato
satisfez o instinto agressivo, mas causou-lhes remorso. Do remorso emergem os
tabus que vão significar as restrições que impediriam novamente o fato (agora a
destruição dos irmãos pelos irmãos), ou seja, a satisfação do impulso agressivo e a
possível vida em sociedade de irmãos. O conjunto dos tabus formaria o superego,
36
A sexualidade aqui, como Eros, vai representar a emergência do amor e da afeição como
compromisso com o outro, não o outro sendo puro objeto de prazer pulsional, cuja relação tenderia a
destruição do objeto desejado.
37
Aqui civilização ou como cultura supra-orgânica de Duncan.
38
A pulsão de morte é regida pelo principio do nirvana, ou seja, a aniquilação completa do prazer pela
emergência do nada, da destruição da matéria, do objeto e, finalmente, do próprio sujeito.
70
que suprime as pulsões agressivas em busca da satisfação do pleno prazer (id). O
impulso agressivo contra o pai e seus sucessores é derivativo do impulso de morte
(que, caso não fosse contido, tenderia a aniquilação total do grupo, atingindo o
princípio de nirvana). Os tabus (formadores do superego), além de representarem a
culpa pelo fato, possibilitam a manutenção da vida.
39
Os tabus sublimam a pulsão de
morte, tornando-a energia em sexualidade,
40
que guarda consigo a civilidade do
amor, da afeição, da cortesia, do respeito e do romantismo, ou seja, Eros. E Eros
torna-se a renúncia do instinto/pulsão de morte (a necessidade de totalização do
prazer ou nirvana), combinando vidas em unidades cada vez maiores e produzindo a
cultura. A cultura, assim, é a combinação possível de vidas em unidades maiores. A
combinação é a totalização da energia sexual sublimada em condições de existência
de vida (social) contra o princípio de nirvana.
Por outro lado, Marcuse (1975, p. 87) verifica que a cultura exige sublimação
contínua: ao mesmo tempo que as inibições se propagam, os impulsos agressivos
seguem na mesma ordem. Eros implica sublimação das pulsões em uma ordem
moral da preservação da vida, o que implica a formação do “ideal do ego”, ou seja, a
idealização do indivíduo, culminando no conflito/fusão
41
entre Eros e instinto de
morte. A idealização do ego acaba sendo propagada/acumulada pela cultura
moderna, assim como o é a “labuta” do trabalho, que impõe uma repressão profunda
das possibilidades de prazer.
Por um lado, a fusão entre Eros e instinto/pulsão de morte representa a
subjugação do elemento hostil. Por outro lado, a sublimação contínua enfraqueceria
o Eros (sublimação cultural: romantismo, respeitabilidade, afeição, admiração,
compromisso), tornando-o “mais-repressão” (lei, norma, autoridade vertical violenta,
ditadura, trabalho, função, razão). A mais-repressão vai representar a
39
Aqui se apresenta a noção de “impulso de vida”, assim explicada: a ausência do poder supremo do
pai faz com que irmãos contenham seus impulsos pela invenção dos tabus, que acabariam
preservando a vida numa situação sem regulação suprema dos impulsos de morte.
40
Sexualidade aqui não é pulsão, mas a sublimação da pulsão, transformando-a em comportamento
cultural.
41
Temos que entender que o Eros não é somente a contradição entre as pulsões de vida e de morte,
mas uma instância que combina as duas e satisfaz ambas. O Eros forte leva à preservação da vida
pelo amor em relação ao outro, pela solidariedade, entrega e assistência.
71
“dessexualização” e o enfraquecimento do Eros.
42
Isso acaba libertando os impulsos
destrutivos. A civilização, assim, é ameaçada pelos instintos de morte (que quer
ascender sobre o instinto de vida) e, de acordo com o autor, tende para a
autodestruição.
A cultura, ou a civilização, para Freud (1974), convergiria/estaria intimamente
ligada/expressa no indivíduo pela produção da personalidade, cujas forças tenderiam
de produção do ideal do ego. Nesse sentido, a psicanálise acaba sendo também
uma teoria da sociedade (civilização e a sociedade moderna). Em sua teoria, ele
procura resolver a discussão e a dialética existente entre indivíduo e sociedade.
O Eros, para preservação da vida, é acumulado em unidades maiores e gera a
sociedade: conjunto de instituições que regula todos os impulsos individuais. Porém,
a sociedade cresce, e o prazer se propaga no clã de irmãos. O Eros procura seu
equilíbrio, porém, em relação o adensamento populacional, o prazer se propaga em
múltiplas condições de dominação na sociedade de irmãos.
Ao mesmo tempo em que se auto-regulam (condição da sociedade), múltiplas
condições do prazer de dominação dos objetos (irmãos e coisas) se estabelecem e
levam à desigualdade dentro da sociedade (condição do desequilíbrio da regulação
civilizada). Na sociedade capitalista, então, é latente essa desigualdade. Goldmann
(1979) observa que o capitalismo expressa desordem, uma vez que sua principal
característica é a promoção do desejo/prazer. As relações de consumo expressam a
emergência do prazer de possuir e de destruir.
43
Na sociedade capitalista, o Eros
está desequilibrado (relações sociais desiguais e de exploração), e isso levaria à
autodestruição pelo consumo de tudo e de todos. Os processos capitalistas de
exploração social levariam à necessidade da “mais-repressão” para o equilíbrio das
relações entre o clã de irmãos. A mais-repressão se organizando-se em instituições
cada vez maiores para o equilíbrio dos instintos de dominação e de consumo
(destruição) de coisas/objetos/sujeitos.
A história da civilização, para Freud, é a história de sua dialética. No
capitalismo, ela é expressa, conforme Goldmann, pela dialética entre
42
O equilíbrio da fusão representativa do Eros seria quebrado, e a balança penderia para a
emergência do prazer dos impulsos de morte.
43
Consumir lembra destruir o objeto desejado.
72
prazer/desordem de consumo e ordem das instituições, da moral e da racionalidade.
A modernidade repressiva também acaba sendo produto dessa dialética: ao mesmo
tempo que gera intuições de controle das pulsões pela racionalidade nas relações
sociais, é produto de relações desiguais no mundo do desejo e consumo capitalista.
Por entre a racionalização de suas estruturas e instituições sempre o desejo acaba
emergindo como latente nas relações desiguais de produção/consumo/acesso.
A modernidade é expressão de suas próprias contradições (TOURAINE,
1994), uma vez que a ordem racional sempre existiu perante sua contradição: a
irracionalidade dos instintos impulsivos/consumistas. Na história das contradições
instintivas da modernidade, a mais-repressão torna-se evidente: mais-repressão
torna-se via de promoção de prazer de poucos em relação a muitos. A
racionalização/funcionalização da vida de muitos se torna condição da existência do
consumo e do poder de destruição das pulsões de poucos.
Em relação aos muitos dominados, a força das ordens modernas,
racionalizadas em intuições repressivas, gera a canalização dos impulsos destrutivos
pela histeria, de acordo com Freud (1974). Pela análise da histeria, Freud encontra,
no indivíduo, a civilização e a sociedade, suas existência como instância
integradas/dialéticas/contraditórias. Os casos de histeria seriam evidência das
repressões exercidas pela moral e ordem modernas, nos quais os impulsos
prazerosos/destrutivos encontram uma “válvula de escape” em meio às
impossibilidades de exercício sociedade. A sociedade é condição da mais-repressão,
ou seja, da canalização da energia do impulso sexual pela labuta (função/produção)
e pela sublimação (compromisso/respeito/entendimento das condições de felicidade
social).
No entanto, conforme Prata (2004, P. 43),
[...] ainda que a histeria, por exemplo, funcione como um refúgio para o
sujeito diante das pressões sociais, talvez possamos também percebê-la
como um modo de reação contestatória à disciplina, ou seja, não apenas
como um esconderijo, mas como um modo de reação às normas sociais.
Assim, na histeria de conversão, será que não poderíamos, para além de
uma interpretação que a situa sempre no pólo negativo do queixume,
ressaltar sua recusa à “docilização” do corpo?
73
Podemos entender a sociedade moderna como próxima à idéia de sociedade
disciplinar descrita por Foucault (1984). A sociedade se organizaria, então, num
conjunto de instituições, procedimentos, práticas e discursos que convergiriam a
docilização dos corpos. O cumprimento das regras necessárias à vida em sociedade
também serviria à manutenção da estrutura desigual do capitalismo.
44
A “sociedade-
disciplina” é condição da necessidade de mais-repressão, ou seja, não mais a
condição primeira da civilização como convergente para a pulsão de vida, na qual os
instintos destrutivos são acatados pelo equilíbrio do Eros (da sexualidade, do amor,
da sublimação pelo comprometimento e afeição com o outro).
O “panoptismo” social constitui a vida sobre a norma e a disciplina, coisa que
enfraquece Eros e, aquém da pretendida disciplina, o que ocorre é a explosão da
histeria e das ações de destruição. Nesse sentido, mesmo dependente dos impulsos
de prazer (sublimado pelo consumismo de mercadorias)
45
o capitalismo deve
encontrar meios de promovê-lo sem desorganizar suas estruturas hierárquicas. A
hierarquia é representante da possibilidade de exercer prazer sobre os outros, assim
como a racionalidade é a repressão organizadora dos muitos em virtude dos prazer
de poucos. No entanto, em virtude da mais-repressão que exerce, a sociedade
disciplinar entra em colapso, em virtude da variante contestatória que gera. Foucault
(1988) observa que o poder que regra e disciplina sempre está fadado ao fracasso e
obrigado a recomeçar. Esses constantes recomeços geram mais-repressão. Nesse
sentido, o recomeço significa o fracasso do poder e da disciplina, assim como o
fracasso das normas que mantém o prazer dos poucos detentores de prazer e
poder
46
. Assim, a sociedade disciplinar torna-se inadequada aos princípios do
capitalismo, uma vez que esse centra-se no prazer de consumo, mas também na
capacidade de manutenção do pleno prazer (consumo) daqueles que o fundam, pela
disciplina.
44
A organização da sociedade como modo de manter a promoção do prazer de uns poucos sobre
muitos outros.
45
No capitalismo tudo se torna mercadoria: os produtos do mercado e o mercado de corpos, de
paisagens, de culturas e de idéias. Pela necessidade de maior rentabilidade, o mercado se expande e
consome tudo. O capitalismo, assim, apresenta-se também como autodestrutivo, uma vez que o
consumo de tudo e de todos pode ser comparado à destruição de tudo e de todos no princípio de
nirvana.
46
Poder significa, assim, também prazer.
74
A disciplinarização constante pela mais-repressão gera a contradição da
histeria, que tende a tornar-se coletiva, que culmina na necessidade de destruição de
todas as estruturas que geram mais-repressão, ou seja, todos os poderes
instaurados. Marcuse (1975), nos remetendo a Freud, chama isso de o eterno
“retorno do oprimido”. Nesse sentido, é necessária ao capitalismo contemporâneo
uma nova sociedade, que não contenha a mais-repressão em forma de disciplina e
que mantenha a desordem do prazer de consumo; porém, não a desordem
contestatória sobre ele mesmo.
Deleuze (1996) verifica que essa necessidade do capitalismo está
acontecendo na contemporaneidade. A evidência disso talvez seja a deslegitimação
e a desordem existentes em instituições próprias da sociedade disciplinar, como a
crise das escolas, das prisões, dos hospitais, assim como a crise de todos os
discursos tidos como verdades absolutas e dos binarismos que expressariam as
sínteses autoritárias entre “certo” e “errado”. O controle e o poder a cada dia são
menos impessoais. Além de impessoal, o poder é ausente, e o que controla é a
própria ação/pensamento do indivíduo. Nesse sentido, o meio técnico-científico-
informacional, cuja informação é o principal vetor da sociedade (SANTOS, 1999),
torna-se a lógica da sociedade de controle. A sociedade da informação rompe a
disciplina pela manobra de idéias que produzem os sujeitos, constantemente
reinventando-os pela promoção do prazer de consumo.
Erenberg (apud PRATA, 2004) verifica que, na sociedade de controle, o
homem é proprietário de si mesmo, e a relação indivíduo-sociedade não é
representada mais pela disciplina, mas pela iniciativa individual em se projetar, sendo
a auto-estima a condição da ação, que rompe a norma. Ao mesmo tempo, o homem
contemporâneo insere-se no mundo da informação buscando sinais para agir e
promover-se perante os outros.
Nessa necessidade de projeção a diversidade emerge e a criatividade é
norma. A sociedade a cada dia se diversifica, e a racionalidade que homogeniza é
rompida pela concorrência entre os diferentes e das inovações que reinventam tudo
a cada instante. Além disso, a Prata (2004) verifica que o homem, na sociedade
contemporânea, busca incessantemente saúde e felicidade, e essa busca representa
75
a convergência da ação pelo puro prazer: não mais aquele prazer sublimado e
estável os quais as instituições modernas queriam produzir, mas o retorno do prazer
instantâneo e do indivíduo por ele e para ele mesmo.
Nesse sentido, a vida, conforme Bauman (2001), é, a cada dia mais, regida
pelo consumo, cujas normas já não são mais importantes, mas sim a orientação pela
sedução e pelos desejos crescentes e instáveis (voláteis). Somos consumidores e
devemos sempre estar prontos para adequarmo-nos às novas seduções, mantendo
um corpo flexível e ajustável, mantendo a aptidão à ascensão competitiva e o
constante ajuste ao novo (consumo, moradia, comportamentos, experimentos
diversos, mercado flexível, trabalho flexível). Nesse contexto, o homem é
responsável por si mesmo e encorajando à criatividade e à flexibilidade, numa
condição social que afrouxa os sentimento de culpas sobre a não-adequação as
disciplinas. Por outro lado, além da neurose e da histeria (tidas como
condições/doenças modernas), o que ataca o homem contemporâneo é a depressão
em não poder dar cabo das necessidades extremas de felicidade agora ligadas ao
acumulo da capacidade de consumir.
Em virtude da crise das instituições disciplinares e ao descrédito em relação a
verdades tidas antes como absolutas, assim como do desmoronamento das visões
lineares e de um mundo de segurança futura, Lasch (1983) verifica a emergência de
uma era da diminuição das expectativas: o futuro torna-se incerto e, nesse sentido, o
adiamento da satisfação
47
não tem mais sentido. O que ocorre, então, é o imperativo
do gozo, que, para o autor, significa o enorme medo do envelhecimento, a
fascinação pela celebridade, o receio permanente da competição, o culto ao corpo e
a necessidade de ser reconhecido como um vencedor. Nesse novo mundo, o homem
é largado como único responsável por seu sucesso e pela promoção de sua
felicidade. Por outro lado, a nova culpa é representada pela situação de não
conseguir ser feliz: sua infelicidade acaba promovendo a depressão quanto ao
desamparo em que é largado.
47
Imperativo do trabalho e do esforço/sofrimento no presente para construção do futuro melhor: típico
discurso da razão moderna e do progresso.
76
O desamparo generalizado força o homem a resolver-se por ele mesmo:
“afundando-se” na depressão e agregando-se à infelicidade/alienação da disciplina
da labuta dolorosa e/ou criando novos mundo para promoção da sua felicidade. A
depressão, como expressão da dialética contemporânea
“felicidade/desamparo/responsabilidade sobre si mesmo” gera a emergência da
diversidade do mundo atual e das diferentes forças de expressão do si (indivíduo) e
dos mundos diversificados de interações humanas. Na sociedade disciplinar, a
norma regia as necessidades de desempenho dos homens e sua adequação ao ideal
do ego. Por outro lado, na atualidade, o que mais se percebe é a emergência do eu
ideal pela autopromoção da criatividade individual e pelos mundos alternativos que
se disseminam, nos quais fluem o consumo instável e o prazer da satisfação
instantânea.
Voltando à disciplinaridade promovida pela razão moderna, podemos ver em
Marcuse (1975) que esse domínio jamais foi realizado e que seus projetos de
totalização sempre foram contestados. Daí a idéia de Touraine (1994) sobre
modernização, não uma realidade facilmente moderna. A modernização converge
para um mundo que nunca conseguiu progredir para a unidade, mas para uma
dialética unidade/diversidade, razão/fantasia, racionalidade/fantasia, ordem/desejo. A
principal incompatibilidade à razão é a fantasia; daí seu combate histórico às
tradições culturais e ao misticismo contrários aos saberes verdadeiros da ciência. No
entanto, em virtude da “grande recusa”, em relação à ruptura da integralidade do
homem com a natureza (dos prazeres impulsivos/instintivos), gera-se a fantasia de
que “as imagens irracionais de liberdade tornem-se racionais, e as ‘profundezas vis’
da gratificação instintiva assumam uma nova dignidade” (TOURAINE, 1994, p.147).
Para isso, o autor remete aos personagens clássicos da mitologia grega do Orfeu e
do Narciso.
O mundo órfico vai representar o reencontro com a natureza e o narcisista um
auto-erotismo que se liga ao meio (mundo objetivo/realidade), integrando o ego
48
às
coisas racionais do mundo. Esses mundos vão possibilitar uma outra relação
existencial com a realidade, sendo símbolos de uma atitude erótica não-repressiva
48
O ego narcisista pelo qual fluiem, pelo auto-erotismo, os impulsos/prazeres ao mundo real.
77
em relação à realidade, muito além do princípio de desempenho determinado pela
racionalidade. A figura do Orfeu é a realidade da irracionalidade, cuja razão não
consegue combater: o encontro do homem com a natureza. O Orfeu é o híbrido
demonstrado por Latour (1994), e sua idéia é de que “jamais fomos modernos”
porque nossas fantasias extrapolam e implodem a realidade e a cultura repressiva da
razão e seu projeto de expansão (cujo centro é a grande recusa em relação a
natureza). Esse projeto se fez incompleto: perturbou e reprimiu a natureza,
arrancando-a do homem. Por outro lado, isso gerou a infelicidade contida no projeto
civilizacional e a contestação generalizada ou pela negação ou pela fantasia que
extrapola ela mesma e se torna também realidade.
Kant (apud MARCUSE, 1975) observou que a dimensão estética vai ocupar
um lugar central na relação de que estamos falando. Para o autor, sensualidade e
moralidade são dois pólos fundamentais da existência humana. Kant liga estética ao
prazer derivado da forma pura do objeto, independente de seu propósito. O objeto
representado pela forma pura é obra da imaginação que prazer. A imaginação
estética/sensual é criadora, constitui beleza e perturba a realidade/objetividade. Essa
perturbação imaginativa pode gerar, então, a “essência de uma ordem não-
repressiva” (MARCUSE, 1975, p. 160).
A imaginação, então, nos trabalhos de Narciso e Orfeu, sugere o exercício do
puro prazer e a representação do mundo pela imaginação de sua forma pura: “a pura
manifestação do seu ‘estar-ai’, de sua existência” (MARCUSE, i1975, 160). A
estética, desse modo, apresenta-se como o fortalecimento da sensualidade e a
canalização do prazer em mundos possíveis frente à repressão da razão. A ordem
não-repressiva da beleza, do prazer e da natureza culmina na realidade incompleta
da racionalidade/funcionalida/moralidade moderna e se aproxima das múltiplas
realidades “aqui e agora” ou formistas (forma pura) nas quais Maffesoli (2002)
explica.
Como conclusão dessa discussão, podemos evidenciar uma condição
dialética da realidade da sociedade moderna. Essa dialética se apresenta pelos
seguintes elementos:
78
a) a realidade é movida pelo principio de desempenho, ou seja, pela
adequação à moralidade e às exigências da labuta moderna;
b) o mundo moderno é regido pela funcionalidade das diversas relações de
trabalho existentes, fragmentando a vida social e alienando o homem;
c) a moral burguesa adequou o homem às exigências das instituições sociais;
d) a condição de mais-repressão apresenta-se como sobre-exigências ao
desempenho do indivíduo. Isso provoca a histeria, a neurose e a criação
de outros mundos egoísticos por onde ele pode se proteger do mundo
exterior e reinventar os impulsos provenientes de seu exterior. A histeria
apresenta-se como um projeto de libertação;
e) o trabalho de imaginação está presente na repressão da razão, criando
novas realidades existenciais e aproximando o homem da natureza (da
natureza de seus instintos/impulsos e do prazer);
f) a imaginação que cria novos mundos existenciais tende a aprender a
pureza do objeto além de seu propósito, acompanhando a existência
estética das interações sociais no “formismo” do acontecimento delas e
não somente em virtude a instrumentalidade e a funcionalidades de seus
propósitos;
g) no capitalismo contemporâneo, as condições de mais-repressão
apresentam-se como contraditórias à estrutura capitalista de manutenção
da obtenção de prazer de poucos sobre a maioria. A mais-repressão gera
a histeria e a violência, que vê, na ordem e na razão, a repressão. A
histeria volta-se contra os detentores dos prazeres consumistas,
perturbando a ordem capitalista;
h) o próprio capitalismo centra-se no prazer/desordem do consumo contra a
ordem da razão e da moral. O capitalismo incentiva o prazer do consumo e
libera os instintos destrutivos dos impulsos humanos;
i) como condição da contradição entre ordem moderna racional/moral e
capitalismo dos prazeres de consumo, as instituições disciplinares na
atualidade entram em crise; os indivíduos são organizados pela busca
incessante de felicidade baseada no consumo, responsáveis por si mesmo
79
e largados à própria sorte em relação às necessidades de promoverem-se
em sociedade. A dialética felicidade/infelicidade leva os sujeitos a criarem
seus mundos de promoção da felicidade: várias condições entre os
ditames da felicidade consumista e as reais condições de acesso dos
indivíduos. Nesse contexto, vários mundos-imaginação-fantasia tornam-se
realidades na busca de felicidade.
Sendo assim, o próprio conceito de cultura é dialético. Por um lado, a cultura
pode ser encarada como um conjunto de normas e regramentos sociais. Por outro
lado, a cultura também é dinâmica e produzida pelas interações sociais localizadas,
sendo processos de construção de costumes, atitudes e valores orgânicos a
convivência dos indivíduos, que se apresentam carregados de afetividade e
sentimento de estar-junto coletivo, contradizendo a instrumentalidade relacional.
Além da pretensa homogeneidade cultural moderna, da realidade baseada no
principio de desempenho, da instrumentalidade e racionalidade das interações de um
mundo funcional, ocorrem múltiplas rupturas culturais em diferentes escalas. Em
decorrência dessas rupturas, homens se relacionam pela criatividade e produção
imaginária de outros contextos existenciais baseados na promoção do prazer
intersubjetivo/coletivo/comunitário, nos quais fluem os desejos/prazeres humanos
sem causa ou finalidade, pela pura representação da beleza no momento da
existência desvinculada de propósitos.
Segundo Hall (2002), o Humanismo Renascentista do século XVI e o
Iluminismo do século XVIII promovem o nascimento do indivíduo soberano que
rompe com os sistemas tradicionais do passado (feudal), tornando realidade o
sistema social da modernidade. Carvalho (2002), estudando os processos de
sensibilização da natureza na história, observa que nesse momento se estabelece
um ethos antropocêntrico em que se afirma um modelo urbano em contraposição
com o padrão medieval, camponês e teocêntrico, designado como inculto. Segundo
a autora, nesse momento inaugura-se a modernidade, que corresponderia a um
processo civilizador que se fundamenta nos traços urbanos de polimento,
aperfeiçoamento, progresso e razão, para domesticação da animalidade e imposição
80
de uma ordem humana (aqui identificada como científica e racional) ao mundo
natural desordenado.
Segundo Giddens (2002), a modernidade corresponde à afirmação de um
mundo industrializado, centrado na dimensão capitalista em que a cidade e o Estado-
Nação são seus correspondentes espaciais. Para esse autor, a modernidade
representa a ascensão das tentativas de ordenação e o controle regular das relações
sociais pelo mundo das organizações: o Estado, a empresa, as instituições sociais e
as ideologias moralizantes que irão permear o cotidiano. Aliás, são importantíssimos,
na emergência da modernidade, o regramento cotidiano e a construção de uma
moralidade e de um sistema de constrangimentos que irão pré-formatar a ação dos
indivíduos, sendo pequenos, triviais, rotineiros e previsíveis, mas exercendo uma
força tão eficiente que farão construir no indivíduo as imagens de si mesmo, de
acordo com complexas redes de poderes que constituem o social.
Segundo Giddens (2002, p. 53),
O mundo social, afinal, não deve ser entendido como uma
multiplicidade de situações em que “ego” enfrenta “alter”, mas como um
mundo em que cada pessoa está igualmente implicada no processo ativo
de organizar uma interação social possível. A ordem da vida diária é uma
ocorrência miraculosa, mas não deriva de qualquer intervenção externa; ela
é produto de uma realização contínua da parte de atores cotidianos de
maneira inteiramente rotineira.
Observamos uma racionalização da vida social que envolve o cotidiano
moderno através das atividades rotineiras, em que as interações sociais face a face
envolvem uma série de instituições, ordens burocráticas, normas de comportamento
e formas de tipificação e pensar eleitos como irredutíveis. Tais instituições exercem
uma constante vigilância do corpo e do discurso individual, caracterizando a pessoa
como um ator que age desempenhando papéis para poder inserir-se e continuar seu
percurso no mundo social. A rotina moderna irá basear-se num conjunto fragmentado
de lugares, condutas e códigos de comportamento que irão representar um conjunto
funcional e especializado de centros de convivência que se ligarão em prol do
dinamismo racional e econômico da vida moderna. Esses fragmentos “encaixam” as
81
pessoas em atividades parcelares que se comunicam pelas interações dos objetos e
dos serviços, mas não coletivizam as pessoas.
É nesse processo que a identidade torna-se um elemento-chave para a
modernidade. Ela proporciona, segundo Giddens (2002), um elemento de segurança
ontológica em que a disciplina da rotina ajuda a construir um referencial para a
existência, cultivando um sentido de “ser” em separação do “não-ser”. Nesse sentido,
Mead (apud GIDDENS, 2002) argumenta que a identidade apresenta-se como “mim”,
ou seja, uma identidade social, de que “eu” se torna consciente no decorrer da vida
da pessoa, como se o “eu” fosse o sujeito primitivo que assume o “mim” como reflexo
dos laços sociais. A consciência do “mim” representa a lapidação do indivíduo na
busca da sua inserção na rotina social pré-estabelecida, nas funções especializadas
cotidianas e nos diferentes grupos sociais fragmentados que o indivíduo
restritamente irá costurar para dar continuidade à necessidade de ser cidadão ativo
na vida social.
A auto-identidade se estabelece pelo papel social do indivíduo nas relações
com outros papéis sociais: na identificação do “outro” ou da(s) outra(s) identidade(s).
Por outro lado, também é uma condição de esforço do indivíduo em sua inserção no
processo social e na busca de sobrevivência: o sucesso e a ascensão no mundo do
trabalho e a adequação às condições relacionais que irão exigir uma boa
performance nas situações cotidianas. Tais situações exigem alguns tipos de
adequações para encaminhamento do progresso da atividade especializada que
contribuirá para o todo social da reprodução do capital e dos poderes inerentes a
essa reprodução. Segundo Fortuna (1997, p. 128), a identidade é o elemento central
no entendimento da manutenção do mundo urbano-industrial moderno, sendo “objeto
de escolhas e de possibilidades individuais, feitas de acordo com a própria
percepção da estrutura das relações sociais disponíveis e dos efeitos previsíveis”.
Segundo Bauman (2003), a invenção da identidade representa o colapso da
comunidade: a guerra da sociedade contra a comunidade. A fundação da sociedade
urbana moderna, como vimos, por movimentos culturais e ideológicos da
Renascença e do Iluminismo, firmados pela política da Revolução Francesa e
consolidados pela economia industrial, representa a afronta e a destruição do modo
82
de vida comunitário, tradicional e camponês, tido como irracional, ignorante, feio e
animalesco. Segundo o autor, comunidade significaria um entendimento
compartilhado natural e cito, sendo pequena, distinta e auto-suficiente, próxima ao
modelo feudal anterior à sociedade industrial capitalista. A comunidade não se
vincula a sentimentos de identidade individual, uma vez que, segundo o autor,
“identidade significa aparecer: ser diferente e, por essa diferença, singular”
(BAUMAN, 2003, p. 21).
Observamos que, no decorrer do processo de expansão capitalista,
49
foi
crucial romper com os vínculos tradicionais das comunidades pequenas, auto-
suficientes e calcadas na descentralização do poder territorial. Pequenas
comunidades distintas e coesas representavam um entrave ao modelo capitalista de
liberdade dos fluxos de capitais necessários a lucratividade. A burguesia deveria, em
primeiro plano, expandir o território de produção e consumo; em segundo, mobilizar a
massa trabalhadora para as cidades e incrementar a produção no campo; em
terceiro, criar condições de pertencimento abstrato a um território ampliado (do
Estado-Nação) e, em quarto, criar condições de controle e coerção ao trabalho e ao
consumo da diversidade populacional que convergia para cidade (e que também
ameaçava caoticamente o próprio poder que a constituía).
Esse projeto se relaciona com a complexa estrutura da modernidade; e suas
relações, com a emergência da racionalidade científica, de estruturação das rotinas
sociais e de vinculação de todas as pessoas ao mundo do capital.
50
Sobre isso,
Bauman (2003) e Gomes (2002) colocam em oposição dois traços principais da
organização da vida comum humana: a vontade orgânica (Wensenville) e a vontade
refletida (Kurwille). Conforme Gomes (2002), o primeiro se constrói dentro de um
49
Acumulação e concentração do capital, acompanhada por uma concentração do poder político e
necessidade de expansão territorial para reprodução do capital, a partir da mobilização de grandes
massas populacionais, expansão da produtividade no campo, aumento do consumo na cidade e
organização dos processos de trabalho.
50
Na frenética busca pela ascensão social, na fragmentação das atividades produtivas de bens e
serviços, nas concessões assistencialistas de bem-estar social, na dicotomização entre uma vida
urbana civilizada e um rural arcaico, nas aspirações de desenvolvimento e modernização, no controle
social panóptico e na vida em sociedade fundada em identidades social funcionais e especializada,
em contraponto com as relações localizadas e produzidas por condições afetivas familiares e
religiosas da comunidade.
83
contexto relacional afetivo e personalizado que seria denominado comunidade
(Gemeinschaft), e o segundo guiaria as relações sociais através de um mecanismo
lógico de relações formais que se aproximariam das relações em sociedade
(Gesellschaft). No desenvolvimento da modernidade,
51
paulatinamente ocorre a
transformação das relações humanas baseadas em comunidades mais afetivas, ou
“quentes” (Gemeinschaft), para relações humanas que irão constituir sociedades
(relações sociais em contraponto com relações comunitárias), interações “frias”,
formais, racionais (Gesellschaft).
A lógica da modernidade e seus pressupostos iluministas pregam o progresso
do indivíduo e o desenvolvimento da civilização, das atitudes e dos estudos
racionais, da libertação do pecado e da ascensão do indivíduo livre de quaisquer
restrições impostas pelo tradicional. Esse foi o lema da sociedade moderna, que se
contrapunha à vida extremamente localizada, fechada e restrita das comunidades
rurais. A cidade proporcionaria tal liberdade, ou seja, a autonomia do indivíduo dos
laços familiares e religiosos tradicionais e o experimento de novas sensações, novas
possibilidades e a capacidade de escolher. Esse foi o principal modelo de
propaganda moderna e o principal foco atrativo à cidade (e ainda o é), principalmente
para os jovens de pequenas cidades e regiões camponesas. A cidade é libertadora e
oferece uma vida de autonomia e livre escolha.
Como vimos, esse discurso ou propaganda da vida urbana, que persiste no
imaginário social até os dias de hoje, constitui um encobrimento da realidade
panóptica e da produção alienante da vida restringida por rotinas cotidianas que
reprimem o indivíduo. O que se conhece como autonomia urbana moderna, como
observamos em Giddens (2003), é o esforço do indivíduo em construir o “mim” a
partir do “eu”, de vencer a concorrência social em um fluxo de vida pré-construído,
que o obriga a produzir as melhores performances de acordo com as exigentes
normas de ascensão social e sobrevivência num meio de extrema concorrência
vinculado ao consumo e à necessidade de busca de acumulação de capital (principio
de desempenho).
51
Calcada na formação de Estados-Nacionais e em conjuntos de cidades que aprofundam as relações
urbanas em contraposição com um modelo de vida camponês.
84
Bauman (2003) argumenta que o processo de individualização e autonomia
moderna foi claramente uma troca em relação à segurança. Na frieza das relações
funcionais e no excessivo individualismo capitalista moderno, as relações de
afetividade concretas, de coletivização, de proximidade e de real fraternidade tendem
a se extinguirem. A segurança coletiva foi trocada pela liberdade individualista, e
essa liberdade restringiu-se na autonomia, ou, além disso, na obrigação de melhor
competência para a inserção no movimento regrado da sociedade moderna. A
própria idéia de liberdade também seria uma ilusão, segundo Bauman (2003, p. 30):
[...] uma guerra contra a comunidade foi declarada em nome da libertação
do indivíduo da inércia da massa. Mas o verdadeiro resultado ainda que
não dito dessa guerra foi o oposto objetivo declarado: a destruição dos
poderes de fixar padrões e papéis da comunidade e tal forma que as
unidades humanas privadas de sua individualidade pudessem ser
condensadas na massa trabalhadora.
No entanto, Bauman (2003) argumenta sobre o crescente processo de
expansão do sentimento e da necessidade de relações comunitárias na sociedade
urbano-industrial moderna. Primeiramente, ele argumenta que o modelo panóptico
também prendia os supervisores ao lugar (local, a região, a cidade e a própria fábrica
como prisão).
52
Por outro lado, o sentimento de vida comunitária, de segurança e de
vida coletiva, de afetividade grupal é inerente e fundamental ao humano. Como
estratégia de segurança sobre a própria produção e para a coerção das massas, o
modelo fordista culmina na produção de uma série de instrumentos assistencialistas
de bem-estar social e projetos que incitarão a formação de direitos trabalhistas e
processos de coletivização mediante interferência de sindicatos. Por esse modelo,
concorreiam duas tendências na história do capitalismo. A primeira seria a
expropriação de total iniciativa da força de trabalho, baseada nas teorias de
organização científica do trabalho de Taylor. Isso converge para total alienação e
individualização, contrárias aos ideais de comunidade. A segunda representaria
emergência de novos modelos urbanísticos de arquitetos filantropos que pensavam
na organização de residências, traçados urbanos e condomínios que possibilitassem
52
Henri Ford era tão dependente de suas máquinas e de sua força de trabalho quanto elas do modelo
alienante construído pela racionalização das relações de trabalho e pela vida burocrática padronizada.
85
o encontro das pessoas e uma melhor qualidade de vida, pelo estabelecimento de
práticas afetivas comunitárias em virtude da existência de uma série de espaços que
estimulariam a integração informal.
Segundo Bauman (2003), emerge, na década de 1930, a “escola das relações
humanas” de Mayo, que funda a necessidade de criar-se, em ambientes de trabalho,
uma atmosfera doméstica e amigável, modificando a disposição dos trabalhadores e
cuidando da circulação da informação a respeito do significado das contribuições de
cada elemento ao processo geral de produção. Tal processo possibilita uma nova
guinada na modificação das relações sociais urbanas e a ascensão de possibilidades
relacionais afetivas propriamente comunitárias. Os novos modelos arquitetônicos
para a cidade, como os de Le Corbusier, Charles Forrier e Howard, vão privilegiar a
produção de espaços de encontros e, além de valorizarem o incremento de
paisagens “naturais”, convergem para um ideal urbano de projeção de ambientes
típicos de comunidades.
Giddens (2002) alega que os sistemas de vigilâncias disciplinares, na
sociedade moderna, não são inteiramente “consensualizados”. Isso quer dizer que,
ante o projeto de organização e regramentos modernos, regidos por complexas
tramas de poder, outras forças de contestação produzem barreiras para a completa
modernização do espaço e a normatização das relações sociais. Podemos observar
que, ao mesmo tempo em que existe um poder universal que vai corrompendo
relações sociais comunitárias localizadas,
53
“revoluções moleculares” (GUATARRI;
ROLNIK apud HAESBAERT, 2002, p. 78) impõem-se como forças contestatórias que
comungam a afirmação do lugar, das práticas contextualizadas e da cultura
comunitária. Segundo Giddens (2002), a vigilância e a identidade reflexiva trabalham
no sentido de aplainar as diferenças que não fazem parte do mecanismo de
reprodução dos sistemas, isolando-as, tornando-as alheias, desviantes, anormais e
doenças que esperam uma cura. Dessa forma, podemos perceber, no processo de
modernização, um constante conflito entre normatização e desregramentos às
normas. Por outro lado, as forças disciplinadoras operam para a irreversibilidade
53
Para a inserção de modelos abstratos carregados de controle disciplinar, que exploram o discurso
do progresso e da modernização.
86
desse fenômeno, identificando algumas possibilidades de desregramento e
trabalhando com a relação lógica binária entre “certo” e “errado” a fim de estabelecer
constrangimentos cotidianos para frear ou anular a espontaneidade humana e a
coletivização de práticas sociais discordantes aos modelos de comportamento e
interação sociais racionais/morais.
Um grande avanço das forças que irão contradizer essa disciplinarização
social são os estudos de Freud, que argumentam que
[...] nossas identidades, nossa sexualidade e a estrutura de nossos desejos
são formadas com bases em processos psíquicos e simbólicos do
inconsciente, que funcionam de acordo com a lógica muito diferente
daquela da razão, arrasando com o conceito de sujeito cognoscente e
racional provido de uma identidade fixa e unificada o “penso, logo existo”,
do sujeito de Descartes. (HALL, 2002, p. 36).
Por essa análise, Hall (2002) argumenta que os significados são totalmente
instáveis, principalmente no meio urbano, desde sua formação, pois as coisas, as
situações e as pessoas (a identidade) são constantemente perturbadas pela
diferença que a cidade agrega: diferença étnica dos imigrantes; extrema
diferenciação das atividades urbanas e tipos de engajamentos dos indivíduos;
diferenças quanto aos níveis e formas de consumo.
54
Nesse sentido, as diferenças
proliferam na cidade. Muitas diferenças radicais, que se afastariam por completo do
projeto de identidades sociais aceitas na urbanidade moderna, tendem a ser
fortemente segregadas, ficando escondidas em lugares bem específicos da cidade,
longe de áreas onde a normatização do espaço público torna-se status quo.
Comportamentos desviantes que contradiziam o bom senso social, relacionados a
desvios sexuais, insanidade, crime, prostituição e doenças comportamentais,
tornavam-se perigosos à estabilidade social e deveriam ser curados ou isolados
socialmente.
Segundo Giddens (2002, p. 147), a própria “idéia que os homens podem ser
submetidos à correção estava necessariamente envolvida com a noção que a própria
vida social está aberta à mudança radical”. Assim, o autor argumenta que “os
54
Pelas próprias necessidades de reprodução de capital o consumo tornam-se muito variáveis, e a
sua geração está carregada de estratégias que se vinculam ao desejo que foge a razão.
87
ambientes urbanos modernos oferecem uma diversidade de oportunidades de os
indivíduos procurarem outros com interesses semelhantes e com eles formarem
associações, além de oferecer mais oportunidades para cultivo de uma pluralidade
de interesse geral”, nesse sentido, “a vida social moderna empobrece a ação
individual, mas favorece a apropriação de novas possibilidades; ela é alienante, mas
ao mesmo tempo, de maneira característica, os homens reagem contra
circunstâncias sociais que acham opressivas” (2002, p. 162-163).
Segundo Goffman (1988), são inerentes à sociedade normas de identidade
que estão balizadas pelos seus próprios desvios. Esses desvios se estruturam em
uma série de constrangimentos que definirão a estigmatização do indivíduo
desviante. Nesse sentido, a manipulação do estigma é em si uma característica
geral da sociedade: a cada relação social normatizada e a cada lugar com regras de
comportamento específicas, pode haver alguma forma de desvio de conduta. A
sociedade é em si um paradoxo entre norma e desvio, e o envolvimento do
indivíduo representa seu trabalho de ora encobrir, ora desencobrir atributos que
possam ser estigmatizados em determinados ambientes sociais. A cidade,
55
nesse
sentido, torna-se palco das contradições e complementaridades existentes entre
normas e desvios sociais, da dialética entre condutas regradas e condutas
contestatórias. No meio urbano, as imprevisibilidades das conseqüências entre
situações da contradição mencionada acabam por produzir “centros de reabilitação”
ou espaços possíveis de convivência do desviante (como lugares gays e zonas de
prostituição, por exemplo).
Maffesoli (2002) observa que, “para aquém e para além das formas instituídas,
que sempre existem e que, às vezes, são dominantes, existe uma centralidade
subterrânea informal que assegura a perdurância da vida em sociedade”. O autor
compreende essa centralidade como “potência” que surge na forma de uma
abstenção, de um silêncio, de uma astúcia que se opõe ao poder político-econômico.
Essa potência contestadora representa uma forma de coletivização que se oporia ao
social e convergiria à comunidade, rompendo com a idéia de identidades
55
Pela diversidade de tipos e contextos de relações sociais originadas pela diversidade de funções
urbanas e pela variabilidade de culturas que circulam, em virtude da polarização populacional que ela
exerce.
88
fragmentadas baseadas na frieza das classificações e tipificações do sujeito em
relação a uma sociedade funcional e racional. Estariam também presentes e
incrustadas no mundo moderno comunidades emocionais que representariam o
simples prazer e a necessidade de sentir-se em coletividade. As agregações de
conjuntos de indivíduos romperiam as relações instrumentalizadas e se
estabeleceriam por sensações estéticas, sexuais, “espirituais”, concretas em relação
ao foco autêntico, empírico e carnal dos contatos estabelecidos.
De acordo com o autor,
O sexo, a aparência, os modos de vida, até mesmo a ideologia são cada
vez mais qualificados em termos (“trans...”, “meta...”) que ultrapassam a
lógica identitária e/ou binária. Em resumo, e dando a esses termos a sua
acepção mais estrita, pode-se dizer que assistimos tendencialmente à
substituição de um social racionalizado por uma socialidade com dominante
empática. (MAFESSOLI, 2002, p. 5).
Para esse processo, o autor utiliza a expressão “tribalização do mundo”, com
base empírica na infinidade de microagregados relacionais que se proliferam nas
esquinas, nos bares, nas ruas, nas praças, ou seja, em espaços públicos ou
semipúblicos das grandes cidades. As relações nessas microagregações urbanas,
ou “tribos urbanas”, estariam fundamentadas na proximidade da idéia da estética
Kantiana, no qual falamos. As relações sem propósito funcionais/racionais/morais
entre sujeitos e sujeitos e objetos implicariam em relações orgânicas de sinergia, que
representariam uma resposta não-consciente, quase animal, ao querer viver em
coletividade; o que a contradição do social acaba por fazer perder.
O cimento da tribalização seria o lugar de encontro que possibilitariam os
contatos triviais em propósito racional: como beber junto, conversar, paquerar, vestir-
se de tal forma, compartilhar de certos prazeres estéticos e sexuais ou certas
atividades corporais. As causas desse processo de tribalização convergiriam para os
fundamentos racionais, abstratos, repressivos e individualizantes da sociedade
moderna, que provocariam uma desumanização do real, uma abstração e uma perda
de sentido das atividades e das interações, uma vez que não provocam prazer, mas
dores coletivas pela racionalidade/funcionalidade da labuta e da repressão moral.
Nesse sentido, a potência (MAFFESOLI, 2002), estaria contra o poder disciplinar, de
89
(FOUCAULT, 1984), gerando um conjunto de fugas, derivas, promiscuidades,
extravasamentos emocionais e estéticas relacionais que contrariariam a rotina
normatizante do cotidiano.
Bauman (2003) observa que tais microcomunidades, ou agregações tribais, se
formam no espaço urbano e recorrem em muito a uma forma estética ou a um evento
festivo coletivo. Por outro lado, muitas se apresentam em torno de problemas com
que muitos indivíduos se deparam e não podem ser resolvidos socialmente, uma vez
em que tais problemas representam exatamente situações de desvio social. Nesse
sentido, o lugar de encontro, os agentes que possibilitam o encontro, os interesses e
os próprios eventos de reunião funcionam como “cabides”, nos quais
[...] as aflições e preocupações experimentadas e enfrentadas
individualmente são temporariamente penduradas por grande número de
indivíduos para serem retomadas em seguida e penduradas alhures: por
essa razão as comunidades estéticas podem ser chamadas ”comunidades-
cabide”. (BAUMAN, 2003, p. 67).
De fato, havemos de concordar que, nas grandes cidades contemporâneas,
existe um intenso fenômeno que remete a agregações tipo comunitário, em
diferentes graus de integração e solidez potica, desde as simples agregações de
tribos urbanas, que se reúnem em determinados bares, ou ruas, esquinas e praças,
até a comunidades políticas de bairros, que se organizam solidamente para
resistirem a planos e interesses espaciais do Estado e da iniciativa privada,
contestando as determinações que envolvem o grande capital na cidade. Na escala
do Estado-Nação, observamos, conforme Haesbaert (2001), dois processos de
fragmentação: um promovido pelas especificidades regionais de exploração e
aproveitamento de vantagens comparativas do capital e outro movimentado por
sentimentos regionalistas originados pelos complexos processos de inclusão e de
exclusão social.
As formas sociais produzidas na desigualdade contestam espaços de
participação/acesso às possibilidades da sociedade moderna, apegando-se às bases
culturais locais e questionando os processos conservadores de exploração e
desigualdade territorial. Vallerstein (1985) observa que o mundo passou por uma
90
revolução anti-sistêmica radical, a partir dos anos 1960, que colocou em xeque o
próprio processo liberal e seu reformismo racional, (que prometia progresso,
desenvolvimento e consumo a todos), assim como as próprias forças anti-sistêmicas,
como o socialismo e os sindicalismos, que foram consideradas inadequadas e
fracamente anti-sistêmica.
Algumas evidências desencadearam o processo de deslegitimação das
situações instauradas, tanto do liberalismo como do socialismo, e a ascensão de
movimentos contestatórios. o eles a própria globalização, facilitando a circulação
da informação no mundo; a maior participação política, mesmo ainda existindo
processos alienantes repressivos; a própria conscientização que a democracia liberal
representava uma antidemocracia pela alienação e pelas manobras ideológicas, em
virtude da interferência da mídia; ausência das possibilidades de discussão próprias
da “ágora grega” em troca do simples sufrágio universal; e, principalmente, maior
visualização e incapacidade de esconder as agravantes desigualdades e
empobrecimento das populações em todo mundo.
A deslegitimação não é somente política, mas cultural, e, principalmente,
deslegitimação quanto ao próprio projeto de modernidade e de crença irredutível na
racionalidade científica e nos projetos econômicos que pregam melhoria de vida a
todos. As contestações permeiam diversas escalas, desde a contestação quanto à
trivialidade das ações, rotinas e naturalização de conceitos e processos cotidianos,
desde a desconfiança quanto a macroprojetos políticos, econômicos e científicos que
entendem a sociedade como um todo unificado. Novas perspectivas se formam por
essas contestações, principalmente aquelas voltadas à busca de segurança, crédito
e confiança nas ditas “comunidades-cabides”. Múltiplos movimentos populacionais
que giram em torno de questões como etnia, pobreza, riqueza, sexualidade, gênero e
estética apresentam-se no meio urbano no tamanho/escala micro, mas representam
uma diversidade local que rompe, agride e transforma o sistema e que atingem
ramificações transnacionais que percorrem todo o globo.
Bauman (2003, p. 70) acrescenta que nos encaminhamos para um mundo de
modernidade sem modernismo e que os processos sociais ainda continuam sendo
levados pelo propósito de transgressão emancipatória e progresso. No entanto, esse
91
propósito ou destino único apresenta-se como obscuro, não-linear, instável e
inseguro. Por outro lado, segundo o autor, as elites se desprendem totalmente dos
subalternos, tornando-se globalizadas, sem raízes exatas, e assumindo cada vez
mais comandos eficientes pelo uso de tecnologia. Isso deixa a maioria à mercê do
acaso; e os indivíduos, desamparados quanto aos propósitos de suas vidas,
tornando crucial alcançar a felicidade em virtude de sua auto-promoção e
criatividade. Além disso, os projetos de alta civilização, alta cultura e alta ciência
tornam-se superados pela existência de uma diversidade que não mais se deixa
superar. Tais projetos agora se vinculam aos nichos culturais e à constante inovação,
adquirindo interesses passageiros, formas voláteis e desprezando a
instrumentalidade e os propósitos funcionais em troca da irracionalidade dos desejos
e da sensualidade. Nesse sentido, segundo Friedamam e Fraser (apud BAUMANN,
2003, p. 70 e 71), “na decadência do modernismo, o que sobra é simplesmente a
própria diferença e sua acumulação”, existindo hoje uma “indiscriminada separação
da política cultural da diferença em relação à política social da igualdade” em que a
“justiça hoje requer tanto a redistribuição quanto o reconhecimento”.
Mesmo saindo um pouco da escala intraurbana de análise e remetendo-nos
ao momento atual chamado de globalização, podemos dizer, seguindo os
pensamentos de Santos (2002), que existe uma dialética em relação aos processos
culturais desse fenômeno e o seguimento concomitante de duas tendências: se, por
um lado, a homogeneização modernista se evidencia como processo básico da
construção de uma sociedade global, ela convive com uma intensa fragmentação
cultural e étnica.
Segundo Appadurai (apud SANTOS, 2002), a abrangência dos meios de
comunicação facilita a construção de mundos de imaginação coletivos. O “trabalho
de imaginação” extravasa de espaços individuais, românticos e artísticos e são
assumidos concretamente por grupos humanos em suas vidas cotidianas,
construindo “comunidades de sentimentos” - partilha de gostos, prazeres e
aspirações - que tanto podem ser transnacionais como bem específicas nas
constituições de agregados humanos em partes do espaço urbano. Esses campos
de imaginação e de agregação populacionais podem ser perfeitamente manipulados
92
por políticas culturais do Estado e do mercado, porém eles podem ser também
campos férteis de contestações e agregações autênticas que buscam fugir dos
regramentos políticos capitalistas:
É através da imaginação que os cidadãos são disciplinados e controlados
pelos Estados, mercados e os outros interesses dominantes, mas é
também da imaginação que os cidadãos desenvolvem sistemas coletivos
de dissidência e novos grafismos da vida coletiva. (APPADURAI apud
SANTOS, 2002, p. 46).
Podemos entender esse processo de constante acumulação da diferença por
dois vieses: o primeiro iria ao encontro da crescente possibilidade de extravasamento
emotivo que geraria comunidades políticas em busca do reconhecimento de
determinadas práticas relacionais humanas que, muitas vezes, foram extremamente
reprimidas no decorrer da história do desenvolvimento da civilização. O segundo
indica que o acúmulo e a percepção de alteridades relacionais humanas estariam
sendo incentivados pelo capitalismo em sua busca novos nichos de consumo. Isso
geraria, a partir da propaganda e de manobras psicológicas da mídia, um
comportamento de constante experimentação e superficialização das relações, que
vai de encontro ao empobrecimento político das massas fragmentadas em
agregações de cunho estético e afetivo muito exploradas pelo consumo mutante.
Ambos os fatos apresentados podem acontecer conjuntamente, mas as
“comunidades-cabides” podem ser formadas justamente pelos problemas originados,
por um lado, pela extrema instrumentalidade racional das relações sociais, assim
como pela superficialidade do próprio consumo ou a incapacidade de consumir.
As desigualdades proliferam no sistema capitalista, e a modernização
incompleta produziu múltiplas diferenciações em termos de renda e em termos de
desvio dos modelos de identidade e comportamento social valorizados. Muitas das
formas de diferenciação remetem a sofrimentos causados pela exclusão das
estruturas socioeconômicas do sistema. Assim, as agregações dos desviantes
serviram de possibilidades de “ajuda-mútua” e coletiva que amenizam as dores e os
sofrimentos sociais. Essas pequenas comunidades, por mais fragmentadas que
sejam, se proliferaram e tomaram contornos interescalares, apresentando-se como
93
novas alternativas, novas racionalidades, novas perspectivas e novas formas de
viver em sociedade, mais ainda, em comunidade.
Por outro lado, as forças alienantes, os poderes e as conformações
panópticas existem e regram o cotidiano, muito embora as agregações de cunho
emotivo ou “quentes” continuem a proliferar. Os indivíduos perpassam planos
individualistas e funcionais, mas também, em oportunidades diferenciadas, procuram
mobilizações políticas contestadoras ou simplesmente participam de agregações que
remetem ao calor do viver coletivo, mobilizadas por desejos que possam estar
escondidos no âmago do eu e que, em certos momentos, encontram possibilidades
de serem liberados. Assim gira o social, nas contradições e num movimento dialético
entre “eu” e “ser” ou “mim”, entre a busca de adequar-se à força mobilizante da
sociedade e a constante necessidade de fuga à procura de relações quentes e
fugazes que se afastem da funcionalização dos movimentos urbanos e do extremo
individualismo que o assola.
3.4. NORMAS E DESVIOS SOCIAIS: A HOMOSSEXUALIDADE COMO EXEMPLO
DIALÉTICO ENTRE PRODUÇÕES SOCIAIS E PRODUÇÕES COMUNITÁRIAS NO
ESPAÇO URBANO
Podemos entender o exposto aagora, observando o caso do estudo sobre
condição homossexual. O conceito de homossexualidade deriva de uma condição de
desvio social (COSTA, 2002) em contraposição a uma normalidade ou a um conjunto
de práticas, formatos de comportamento, expressões de sentimentalidades e
prazeres componentes das determinações de gênero sexual e da
heterossexualidade. Na construção da condição homossexual, esse termo assegurou
a identificação de uma homossexualidade desviante dos padrões da maioria
heterossexual e identificou-a como uma categoria paradoxal possível encontrada nas
relações em sociedade. Tal termo amenizou um pouco a história de perseguição
violenta a homossexuais.
56
56
De acordo com Mott (1988), a Santa Inquisição perseguia homens que sentiam prazer de
copularem com outros homens por via anal, desejo totalmente contrário aos fundamentos da
civilização cristã, que foram motivados pela procriação para expansão populacional da fé, das
94
Segundo Mott (1988, p. 123-126),
[...] além de ameaçar a sempre instável e questionada ordem estamental
vigente, realizaram certas fantasias (os sodomitas) que a maioria dos
mortais tanto cobiçava, sem contudo concretizá-las por temor da repressão
judiciária ou do repúdio social. [...] Mais do que derramar semente dentro do
vaso traseiro, o que se temia e devia ser erradicado a ferro e fogo, era a
tentadora alternativa erótico-social proposta pelos pederastas: a destruição
da indissolubilidade compulsória do matrimônio; a dissociação do livre
prazer sexual, liberto da abominável cadeia imposta pelo Levítico e Concílio
de Trento, alforriado da procriação obrigatória; o rompimento das barreiras
de idade, raça e condição socioeconômica nas interações erótico-
sentimentais.
Em virtude do desenvolvimento de uma “literatura da homossexualidade”,
segundo Costa (1992), desenvolveu-se a figura do homossexual extremamente
sensível e muito propenso às atividades artísticas, mas por outro lado, uma pessoa
incapaz de conter seus impulsos sexuais e revoltada com os padrões da sociedade.
Em Gide e Proust, o homossexual aparece como um indivíduo importante para a
crítica ao sistema, e, principalmente, um ser inquieto e confuso de sua própria
identidade, que sofre de tormentos psíquicos constantes. Por esse viés, a condição
homossexual saiu de uma posição de anormalidade e de animalidade, propensa a
práticas violentas de repressão, para uma especialização das relações homoeróticas
e, ainda mais, para um “afunilamento” e organização da própria sexualidade humana
em dois pólos possíveis: um plenamente aceito socialmente, o heterossexual, e outro
desviante, digno de pena e propenso à cura, o homossexual.
Esses pólos, ainda presentes na sociedade atual, são mantidos
ideologicamente por uma complexa teia de definições sociais divulgadas por
mecanismos de informação e regramentos que se estabelecem na cotidianidade,
movimentados por ações, comportamentos e pequenas medidas de repressão
originadas de preconceitos que permearam as relações face a face. Podemos falar,
assim, de uma identidade homo e heterossexual, percebendo identidade, como
havíamos afirmado, como uma “moldura possível onde os sujeitos podem existir e se
expressar, [...] na atualização de princípios de classificação social ordenado por
políticas e dos ideais cristãos e visavam à construção social familiar e as condições dos neros
sexuais masculinos e femininos.
95
valores que fabricam e situam o sujeito” (HEIBORN, 1996, p. 137). Nesse sentido,
quaisquer formas de desejo sexuais estariam regradas por esses dois pólos, ou seja,
tenderiam a ser identificadas através deles, e isso apresentaria um mecanismo
eficiente para a organização social cotidiana da sexualidade e o controle dos desvios
que contradizem o projeto de desenvolvimento e progresso modernos, centrados
ainda em valores referentes a hereditariedade, matrimônio, família e, principalmente,
racionalidade lógica binária, que definem os gêneros sexuais.
O que se observa é que esse modelo contradiz a tese de que a sexualidade
humana é muito diversa e pode ser variável na biografia pessoal. O relatório Kinsey,
mostrado no filme Kinsey, argumenta justamente isso: na tabela produzida por essa
pesquisa no meio do século 20, verificou-se que a sexualidade humana pode variar
de 0 (heterossexual exclusivo) a 10 (homossexual exclusivo) e que, entre 0 e 10,
várias outras possibilidades podem estar presentes na biografia sexual individual das
pessoas. Porém, como o próprio filme mostra, essa pesquisa foi extremamente
refutada e reprimida por políticas conservadoras da época.
Em alguns trabalhos de Luis Mott,
57
podemos observar que a história da
homossexualidade está relacionada a um dos grandes estigmas da humanidade.
Mesmo com toda a perseguição, pessoas orientadas sexualmente para o mesmo
sexo nunca conseguem abafar tal desejo. Muitas são mortas por perseguições
violentas, como na Santa Inquisição, e, nos tempos modernos, durante o
nazismo.
58
Na “idade da razão”, os desejos homoeróticos são envolvidos pelos
estudos médicos e psiquiátricos, uma vez que tal sexualidade não mais poderia ser
reprimida com violência, em virtude do desenvolvimento dos direitos humanos e do
cidadão. Por outro lado, a partir da evolução dos instrumentos de comunicação e da
formatação dos ideais da sociedade moderna, a homossexualidade, como um desvio
sexual, serve de parâmetro à organização dos estímulos sexuais. A própria noção de
uma sexualidade degradada, impura e desviante fortalece o outro pólo possível,
baseado no romantismo do amor entre homem e mulher.
57
Ver o site do grupo gay da Bahia: www.ggb.org.br.
58
O filme Bent mostra bem isso.
96
Os dois pólos sexuais serviram, e ainda servem, para balizar a sexualidade na
modernidade e estabelecer comportamentos previsíveis quanto às necessidades de
controle social. A partir daí a homossexualidade desviante aparece condicionada à
intimidade, assim como toda prática sexual. À afetividade homoerótica foi negado o
domínio público, e isso acabou estabelecendo-se em lugares bastante escondidos na
cidade: geralmente em períodos noturnos, em que a circulação familiar cessa; muitas
vezes em parques, em períodos de esvaziamento, ou em zonas industriais,
portuárias, no próprio centro da cidade ou em áreas de degradação imobiliária que
se tornam vagas fora dos horários comerciais.
O homossexual carrega consigo um estigma, porém é difícil para ele a
negação dos desejos homoeróticos. A pessoa orientada para o mesmo sexo
estabelece performances cambiantes que possibilitam ora o encobrimento, ora a
divulgação da identidade homossexual. O indivíduo se apropria dessa identidade,
uma vez que ela mesma expressa um locus de regramento sexual pela própria
binaridade em que essa identidade é originada e pela contraposição desviante que
identifica esse regramento. No entanto, o projeto social de fixação de identidades
sociais rígidas sempre foi problemático. As identidades são múltiplas, em virtude dos
inúmeros processos de interação social previstos e não-previstos na modernidade,
tanto entre agrupamentos sociais e comportamentos estabelecidos como normais,
como em nomeações e generalizações de impulsos desviantes. Nesse sentido, o
processo de fixação de identidades na modernidade ainda está em pleno
desenvolvimento e luta para uma organização binária entre certo e errado, entre
normal e anormal, entre feio e bonito e entre certo e desviante.
Todas essas classificações procuram produzir a ordem previsível do cotidiano
em relação à complexidade das possibilidades determinantes as práticas individuais,
tanto afetivas, como em relação a complexificação das estruturas de produção e
prestação de serviços no meio urbano moderno. Assim, de acordo com Fortuna
(1997), as situações ainda definem e são definidas pelas identificações entre os
indivíduos em processos relacionais, previstos pelo social - tanto os relativos à
normalidade dessas relações quanto os previstos como desviantes -; porém, as
identidades vão-se acumulando nos indivíduos, tornando-se transitórias, plurais e
97
auto-reflexivas em relação a contextos em que se exigem performances e
identificações definidas.
Goffman (1988), ao estudar os estigmas sociais, percebe que os indivíduos
possuem uma ou algumas identidades virtuais e uma ou algumas identidades reais.
As identidades virtuais remetem às performances, às representações que observam
os indivíduos como atores sociais que devem representar uma cena lógica à situação
dada. A identidade real remete à percepção que o indivíduo tem de si mesmo, sua
intimidade, ou seja, o entendimento dos seus impulsos subjetivos em relação à
realidade. O estigma visualizado pela construção da identidade homossexual está
guardado na subjetividade individual e compõe a identidade real do indivíduo. O
estigma identitário homossexual necessita ser encoberto enquanto o indivíduo
estabelece performances em contextos e situações sociais de que faz parte ou que
compõem a complexidade de sua identidade virtual. Por outro lado, a identidade real,
que possibilita o aflorar dos desejos e afetividades homoeróticos, tende a ser
mostrada em rculos restritos em que o desviante comunga com outros.
Observamos, a partir desse exemplo, o caráter fragmentário das convivências e da
vida em sociedade, que vai especializando práticas sociais em lugares específicos,
tornando dividida a vida para melhor governá-la.
Plummer (apud WEEKS, 1999) observa que a formação da identidade
estigmatizada gira em torno dos seguintes estágios: sensibilização da diferença, ao
ser rotulado; significação, quando atribui sentido a diferença e toma conhecimento
das possibilidades no mundo social; subculturização, pelo reconhecimento de si
mesmo a partir do envolvimento com outros; e estabilização, ou estágio de plena
aceitação e fortalecimento da identidade individual.
Percebemos, dessa forma, em primeiro lugar, o caráter processual identitário,
como uma construção, e, em segundo, os processos cotidianos que vão envolvendo
os indivíduos, especializando/fragmentando e territorializando as relações sociais no
espaço urbano. As pressões sociais são exercidas desde a sensibilização. Após isso,
se estabelece a identificação dos desejos pelo que está pronto socialmente. Mais
tarde, as relações de determinado estigma ficam domesticadas em algum lugar
restrito onde as práticas relacionadas a ele possam ser vividas. Nesse sentido se
98
processa a territorialidade, como observa Perlongher (2005), ou seja, as relações
confinadas vão produzir relações próprias ao confinamento, cheias de
representações e simbologias quanto aos seres que partilham dele. Isso acaba
fazendo parte presente na construção subjetiva dos participantes dos lugares,
produzindo elementos contidos em suas personalidades, em seus valores e em suas
expressividades.
Em relação ao estigma, a identidade desviante que o compõem se dissolve e
é reinventada em múltiplas territorialidades originadas das produções simbólicas e
imaginárias dos indivíduos em interação localizada. Embora a territorialidade não
implique localização e materialização como o território, sua existência simbólica
implica a realidade e o marco de convivência e de partilhamento coletivo dela.
A subculturalização remete a processo de “guetificação”,
59
que possibilita o
encontro com iguais e exercício livre de práticas relacionais desviantes. Por outro
lado, o gueto também representa o controle dessas práticas, restringindo sua área de
exercício, privatizando-a e excluindo-a do domínio público. Nesse sentido, o gueto é
um paradoxo entre liberalização e restrição de sentimentos que no espaço público
tornam-se repudiados.
O gueto fecha-se ao social, assim como o social a ele. O gueto restringe
práticas a fronteiras bem definidas e é produzido justamente pela negação que essas
práticas têm na esfera pública regrada pelo ordenamento entre o que é e o que não é
aceito socialmente. Por outro lado, a convivência no gueto pode assumir preceitos
políticos e de valorização da própria identidade estigmatizada. Os indivíduos que se
encontram nos guetos costumam usar, assumir e valorizar palavras e atos que no
espaço público soam como preconceitos e estereótipos sociais: como o uso do termo
“bicha” para comunicação entre pessoas de um gueto homossexual, termo que é
empregado no cotidiano social como visualização da degradação individual.
Segundo Bordieu (1989, p. 125),
59
Tonely & Perucchi (2006) observam que a palavra guetto encontra-se no clássico “The Guetto” de
Wirth, de 1969, referindo-se aos bairros gays e lésbicos de Nova Iorque, Chicago e São Francisco,
nos EUA. No entanto, conforme Perlongher (1987), os “guettos” no Brasil não se referem a contornos
de bairros e comunidades politicamente organizadas como nos EUA, mas lugares-enclaves de
encontros e de paqueras.
99
O estigma produz a revolta contra o estigma, que começa pela
reinvidicação blica do estigma, construindo assim um emblema
segundo o paradigma “black is beutiful” e que determina a
institucionalização do grupo produzido (mais ou menos tolerante) pelos
efeitos econômicos e sociais da estigmatização.
A produção da identidade estigmatizada perpassa o fortalecimento das
condições desse estigma, segundo Goffman (1988), pois ela é construída da
seguinte maneira:
a) a introjeção do estigma;
b) o sofrimento individual ao carregar esse estigma e a tentativa de negação
da identidade estigmatizada, procurando assumir outras posturas que
levariam a identificações aceitas normalmente. Isso poderá produzir dois
caminhos possíveis:
- a infelicidade ou a assunção de uma vida enfadonha e repressão do
desejo tal situação remete a contextos sociais extremamente
repressores e a baixa possibilidade de guetificação homossexual
60
.
60
Podemos pensar a maior dificuldade de expressão dos desejos homoeróticos em ambientes rurais
ou pequenas cidades do interior do Brasil. A cidade, quanto maior, mais diversa culturalmente é, torna
as expressões homoeróticas somente mais algumas entre as tantas possíveis. Algumas pessoas com
que conversamos no decorrer desta pesquisa relatavam suas dificuldades em exercer livremente seus
desejos homoeróticos quanto residiam fora de capitais como Porto Alegre e Manaus. As relações
homoeróticas em cidades do interior brasileiro, como o caso de Dom Pedrito, no Rio Grande do Sul, e
Anori, no Amazonas, - cidades de origem de dois amigos com quem podemos compartilhar
discussões e histórias de vida apresentam poucas possibilidades de compartilhamento coletivo e
reunião afetiva de indivíduos orientados para o mesmo sexo. As relações homoeróticas acabam
transitando entre a normalidade heterossexual, contendo inúmeras situações de conflito, dúvida,
preconceito e discriminação entre os indivíduos que as exercem. A cidade grande, contendo lugares
de reunião homoerótica e possibilitando relações coletivas de livre expressão dos desejos
homoeróticos, acaba sendo muito atraente a tais indivíduos, e o próprio desejo acaba sendo o
propósito de seus deslocamentos e mudança de residência (como mostra bem Parker, 2002). Além
desses dois amigos, também conhecemos um advogado e um sargento do exército. Ambos moravam
em cidades da campanha gaúcha, onde mantinham uma preocupação quanto a velar os desejos
homoeróticos. Esses amigos esporadicamente se deslocavam a Porto Alegre e freqüentavam os
lugares de convivência homoerótica procurando encontrar parceiros sexuais e amizades. Ambos
alegavam não ter nenhum amigo “gay” nas cidades em que viviam, construindo grupos de amizade
somente em Porto Alegre. O advogado apresentava muita preocupação quanto à revelação de sua
condição à família. O militar, sendo de origem nordestina, não tinha família na cidade em que morava
seis anos, mas se preocupava muito com o preconceito dentro da instituição que fazia parte, além
de perceber que sua cidade apresentava um circulo social muito fechado em que todos se conheciam.
Outro fato também foi conhecer algumas pessoas que aproveitavam alguns eventos regionais, como a
Expointer em Esteio, para freqüentar os lugares de freqüência homoerótica. Tivemos a oportunidade
de encontrar duas pessoas: na Redenção, encontramos um jovem estudante de Santa Maria, que
aproveitara a oportunidade da Expointer para procurar alguma experiência homoerótica em Porto
Alegre, encontrando-a no parque; no Eróticos Vídeo, a transfomista, do inicio da noite de uma quarta-
100
Por outro lado, mesmo assumindo vida heterossexual, muitas vezes
os desejos homoeróticos acabam sendo assumidos em atos de
infidelidade;
- o caráter inevitável desse sofrimento e a retomada da auto-
identificação pelo próprio viés da identidade estigmatizada;
c) a retomada da auto-identificação pelo próprio viés do estigma remete à
possibilidade de encontrar pessoas que partilham o mesmo interesse e
lugares de convivência. Nesse sentido, o desvio e a guetificação,
originados pela opressão social, são fortalecidos pela assunção dos
próprios indivíduos oprimidos em relação a uma identidade estanque que
serve simplesmente para definir tal desvio.
Os guetos, assim, são condicionados e produtos da repressão, contribuindo
para o próprio processo de ordenamento social. No entanto, as culturas produzidas
nos guetos, mesmo assumindo construções sociais a partir de condições que
reprimem elas mesmas, assumem momentos de fortalecimento da identidade e
busca pela inserção no espaço público, adquirindo caminhos de luta política por
grupos organizados.
No entanto, podemos verificar que, desde os 1970, os movimentos políticos
gays foram vinculados a uma necessidade de auto-identificação de seus sujeitos (de
uma cultura da assunção de uma identidade gay), estando muito comprometidos
com a reprodução/consolidação dos pólos de sexualidade (hetero e homo), o que
negou, de certa forma, a existência da diversidade das possibilidades sexuais
humanas. A necessidade de marcar uma diferença gay, sustentada pelo movimento
político, que se reproduz na publicidade gay, vai assumindo contornos culturais
pautados em modelos estéticos fetichizados por uma série de estereótipos que
consolidam o afunilamento das diversidades de desejos e práticas sexuais. Criam-se
contornos culturais imaginários gays que pregam a necessidade de fortalecer o
movimento político e o combate à discriminação, em busca da cidadania, pela
feira, apresentou um senhor de aproximadamente 50 anos de idade que se dizia fazendeiro do interior
gaúcho, casado e pai de três filhos. Tal senhor alegou vir pouco à capital, mas sempre que vinha
procurava o Eróticos Vídeos e “aventurava-se” pelos “labirintos” do lugar procurando alguma
experiência homoerótica.
101
instauração de um mundo alternativo possível de vida. As práticas culturais dos
guetos gays acabam extravasando e se dissipam entre os vários sujeitos
homoeróticos, criando um imaginário de unidade e de uma condição existencial de
luta pela cidadania em um mundo repressivo.
No entanto, mesmo querendo estabelecer a realização de uma sujeitificação e
de um mundo imaginário, no Brasil os grupos e formas coletivas gays acabam sendo
muito dispersas e perpassadas por inúmeros e diferenciados elementos que vão dar
caráter singular à interação de seus integrantes,
61
diferentemente dos EUA e da
Europa, marcados por comunidades gays mais firmemente territorializadas e por
contornos territoriais mais bem precisos. Nesse sentido, mesmo vinculada a toda
uma publicidade que envolve a formação de um mercado gay e de um movimento de
político em busca da cidadania, a “comunidade gay brasileira” acaba sendo mais
definida como redes ou circuitos de interações homoeróticas microterritorializadas
nos espaços das cidades brasileiras. Essas microterritorializações dos desejos e
interações homoeróticas vão se caracterizar pela diversidade das expressões,
estéticas, comportamentos e posturas de seus integrantes.
Como vimos, no capítulo anterior, nos anos 1980, a AIDS foi em muito
representada como uma “epidemia gay”. Esse fato produziu uma ruptura social do
movimento político gay e sua luta pela cidadania. A doença, ao mesmo tempo em
que aumentou os debates sobre a sexualidade, fez também aumentar o estigma
homossexual. Nesse contexto, produzirem-se múltiplas fugas homoeróticas de uma
pretensa sujeitificação/unificação da sexualidade sob a proposta gay. Os contornos
culturais dos guetos e/ou das microterritorializações gays se tornam ainda mais
indefinidos do que eram. Os impulsos desejantes homoeróticos acabam
convergindo para inúmeros possíveis contornos imaginários em relação a uma
realidade que transita de forma instável entre a repressão e a livre expressão.
62
61
Perlongher (1987) e Parker (2002) nos mostram como no Brasil torna-se difícil demarcar a
existência de uma comunidade gay mais consolidada, e sim uma diversidade de experiências
territorializadas em circuitos gays existentes em todas as grandes cidades brasileiras. Em São
Francisco (EUA), esta comunidade tem um contorno mais bem definido no bairro Castro.
62
Costa (2002), Parker (2002) e Braga Jr. (2006) analisam a diversidade de formas de convivência e
expressividades homoeróticas existentes nas cidades brasileiras. Costa (2002) atenta para Porto
Alegre e Parker (2002) para Rio de Janeiro e Fortaleza. Braga Junior (2006) discute o pastiche gay
como sintoma da diversidade contida nessa pretensa unidade cultural. Em nossas experiências
102
As redes dos circuitos gays nas cidades brasileiras, assim como as
microterritorializações de encontros homoeróticos, tornam-se diversamente
transitórios e múltiplos quantos aos caracteres estéticos, comportamentais e de
formas de interação que agregam. A eles convergem, como criações imaginárias da
realidade, inúmeros elementos expressivos da dialética repressão/liberdade que o
momento histórico contém. Transitam, como elementos culturais dessas
microterritorializações homoeróticas, representações de uma realidade que ora
contém a aproximação a normalidade social, ora afasta-se como tomada de
contestação. Nesse sentido, múltiplos contextos interacionais territorializados se
tecem no qual cada um é um momento/espaço específico da dialética
ordem/norma/desvio/liberdade/espontaneidade. Por outro lado, como também vimos
no capítulo primeiro, a teoria/movimento queer no movimento cultural gay
justamente o pastiche, e não a unidade. Talvez o que se defina como gay seja a
realização de uma explosão de possíveis imaginações de mundo que se libertam
participativas continuadas em Porto Alegre, assim como outras mais breves em outras cidades como
Manaus, Florianópolis, Curitiba e Rio de Janeiro, verificamos que, a cada microterritorialização
homoerótica formada, as definições estéticas e comportamentais são singulares. Mesmo quando os
sujeitos se repetem nos lugares visitados, tais lugares acabam forçando a uma produção de uma
postura quanto à estética, ao comportamento, ao tratamento do corpo e aos gestos e aos assuntos a
discutir. Em primeiro momento, as estéticas de gêneros sexuais podem misturar-se, ou tornarem-se
caricaturas, ou, até mesmo, serem exacerbados. As microterritorializações desses convívios
transmitem o grau em que esses elementos são reinventados, exacerbados ou normalizados. Por
outro lado, muitas outras estéticas e comportamentos distantes do que seria a representação de gay
acabam misturando-se em determinadas convivências territorializadas, como, por exemplo, os
elementos urbanos surf, rock, dark, reggae, emo, retrô. Braz (2006), por exemplo, analisa o universo
homoerótico leather. Atualmente ocorrem muitas festas temáticas voltadas a um público
essencialmente homoerótico, mas cuja agregação não se fundamenta somente pelo desejo, mas
pelos estilos de música e de expressões artística que cultuam. Muitos sujeitos homoeróticas também
acabam negando e mantendo repúdio a qualquer vinculo estético e prática cultural que se vincule a
alterações quanto às definições de gênero masculino, denotando gosto a beleza do masculino, e a
práticas esportivas que possibilitem a expressão dessa beleza: no Rio de Janeiro muitos adeptos ao
surf e/ou a musculação se territorializam em partes das praias para manterem afetividades
homoeróticas, assim como em Manaus a prática do voleibol na Praia da Ponta Negra também é
permeada pelas afetividades homoeróticas desse tipo. Não necessidade aqui de argumentar sobre
cada realidade expressiva de agregados territorializados homoeróticos, porém é importante frisar que
o desejo homoerótico pode ser o motivo da agregação, mas inúmeros outros elementos podem
contribuir a sua diversificação. Outro fator evidente, analisado também em Costa (2002), é a
capacidade de indivíduos same sex oriented experimentarem inúmeras situações de reunião
homoafetiva, mantendo a curiosidade quanto à diversidade de possibilidades relacionais que possam
viver. A necessidade do experimento e de investimento homoerótico em situações inusitadas e/ou
condições de reuniões estéticas e comportamentais múltiplas acaba produzindo um constante
processo de reinvenção quanto aos fatores de atração de indivíduos same sex oriented, tornando
esse mundo cada vez mais complexo.
103
povoando a realidade em diferentes contextos de interação movimentados pelos
desejos homoeróticos. Gay, nesse sentido, teria um caráter de expressão latente,
mutante e instável, mais vinculado à diversidade e à alteridade de expressões do que
propriamente a uma unificação cultural. Nesse sentido, o entendimento dessa cultura
somente poderia ser aprendido pela diversidade que ela agrega, ou seja, pelas
formas de expressão de agregados humanos homoeróticos microterritorializados no
espaço urbano.
Nesse contexto histórico também observamos que os regramentos morais
contidos nas interações cotidianas das instituições e dos discursos sociais acabam
afrouxando-se perante a própria deslegitimação dessas instituições e desses
discursos. Como discutimos, a disciplinarização entra em crise em virtude da
emergência de uma “era” de busca da felicidade e de responsabilidade individual em
se obtê-la. Aos poucos a disciplina, na atualidade, vai sendo substituída pelo controle
dos parâmetros de felicidade e pela aguda depressão de quem não consegue ser.
Os projetos de desempenho social desdobram-se na necessidade de auto-promoção
criativa dos sujeitos.
63
O sucesso individual e o senso atual de incentivo à
criatividade possibilitam que o trabalho de imaginação prevaleça sobre a realidade
racional (perante os rígidos moralismos e as determinações de instituições sociais
arcaicas). O homem contemporâneo, espera-se, constantemente deve mudar e
atualizar seus conceitos, uma vez que a sociedade contemporânea apresenta-se
marcada pelo consumo e pela inovação.
A inovação permeia o tecido social e constrói múltiplos sujeitos. A “inovação
que consome inovação” estabelece patamares e modelos de sucesso e de felicidade
que se instabilizam a cada instante. Nesse dinamismo mutante e desenfreado, tudo
pode ser/ter chance de sucesso e promover felicidade, uma vez que pode se
apresentar como inovação. Nesse processo, tudo se mistura e tudo pode tornar-se
possível e fonte de felicidade. Assim, observamos a explosão de possibilidades
63
Em relação aos projetos de desempenho havia parâmetros morais que os regravam, no qual os
sujeitos deveriam ser disciplinados em relação a normativas que organizariam suas vidas. Em relação
ao controle dos parâmetros de felicidade, o prazer do consumo (desordenado e amoral - muitas vezes
imoral quanto a muitos padrões passados) e o sucesso egoístico e individualista tende a cada dia
regrar a vida em sociedade. Antes o sofrimento era originado pela dor da castração e da repressão,
agora a depressão em não se “obter” (consumo, felicidade e sucesso) é sinônimo de marginalização.
Nesse sentido o indivíduo acaba sentindo-se como sendo o único causador de seu sofrimento.
104
expressivas nas quais os desejos acabam sendo elementos importantes ao sucesso
e a felicidade humana (atrelada ao consumo de inovação). Nesse dinamismo,
qualquer barreira autoritária que impeça a fluidez das alteridades dos desejos ser
combatida, ou seja, tudo que seja autoritário e procure se perpetuar é visto com
desconfiança. Por outro lado, ao mesmo tempo em que a felicidade se dissipa pelo
desejo em/e pela inovação, torna-se muito cil ser infeliz. A infelicidade permeia
também um tecido social regido pela sagacidade em se inovar (inovação de si
mesmo). Conforme Prata (2004), no mundo contemporâneo, a histeria é substituída
pela depressão. Se a primeira estava relacionada à repressão disciplinar das rígidas
instituições sociais, a última estaria relacionada à instabilidade e à insegurança em
um mundo em que tudo que seja estável e rígido é tido como antiquado e autoritário.
Conforme Baumann (2001), o homem na modernidade se abstém do desejo em
troca da segurança (do desempenho individual em relação à estabilidade das
instituições sociais). Segundo o autor, na emergência da pós-modernidade, o desejo
é o que prevalece, ou seja, o desejo movimentado pelo caos do mercado. O homem
tende a abster-se dos rígidos instrumentos de controle sobre seus desejos (da
segurança promovida pela vida social regida pela racionalidade institucional) em
troca da felicidade em poder exercê-los. Em meio à crise das instituições sociais, o
homem se responsável por si em sua saga por felicidade, que acaba sempre se
tornando insuficiente em virtude do incrível dinamismo existente em relação ao
consumo de inovação e do acréscimo que isso representa as exigências de “mais-
felicidade”. Assim, múltiplos contextos de infelicidade também são produzidos em
meio a complexos e múltiplos modelos de felicidade. A felicidade, nesse dinamismo,
também é revelada pela desigualdade em se obtê-la, em virtude da incapacidade de
todos igualmente otimizá-la e de se atualizarem permanentemente na mutabilidade
criativa das inovações que a promovem.
O trabalho de imaginação tende a criar a realidade contemporânea. O homem
imagina e cria contextos de inovação que promovem patamares e modelos diversos
de exercício de seus desejos que o tornam momentaneamente feliz. Por outro lado, o
homem precisa também inventar/imaginar outras possibilidades de existência
quando se encontra infeliz em não ter acessado/sido a inovação. Nesse sentido, a
105
sociedade apresenta-se mais por seus contextos múltiplos de imaginações que se
tornam realidades, do que por um todo racional, gico e unificado. O que se
apresenta, então, é um espaço social caótico e orgânico de criação de uma
infinidade de realidades provenientes da imaginação dos homens em interação e em
busca de felicidade. Nesse caos tudo é possível, mas também tudo é desigualmente
possível para a promoção da felicidade. Não ser/estar feliz hoje se apresenta
também como uma autoritária repressão. Não ser feliz, perante uma sociedade que
obriga o indivíduo a ser, implica afundar-se na depressão. Assim se fundam as
“separações” no mundo atual, como contextos diversos de felicidade e de infelicidade
dos sujeitos responsáveis por si mesmos. Nesses contextos, rígidas normas
identitárias perdem terreno ao experimento, à inovação e ao desejo.
Nesse sentido, em relação aos desejos homoeróticos, contextos diversos
(quanto à possibilidade de expressão deles, quanto a formas de interação coletivas e
quanto a elementos/formas estéticas dos corpos) são existências não mais
reprimidas, desde que se vinculem a parâmetros ótimos e necessários de felicidade
e inovação. Em vez de visualizarmos uma condição social desviante unificada,
parâmetro da bimodalidade heterossexual e homoessexual, hoje podemos perceber
inúmeras realidades que vinculam expressões homoeróticas à felicidade de
autopromover-se em relação ao consumo de inovação (estética e criativa). Sujeitos e
microcoletividades homoeróticas tornam-se desiguais nesse dinamismo,
condicionando-os em múltiplas “realidades-imaginárias” entre ser/estar feliz ou
infeliz, ou seja, apresentam-se em múltiplas agregações microterritorilizadas de
acesso as condições de felicidade ótimas. Em meio a circuitos espaciais e à
diversidade de expressões individuais e coletivas, múltiplas segregações/separações
e diferentes realidades de discriminação e de livre exercício da sexualidade podem
ser observadas em virtude dos parâmetros de sucesso, felicidade e inovação que o
momento adquire. Assim, podemos visualizar toda a alteridade existente nas
interações homoeróticas e todas a diversidade de possíveis territorializações dessas
interações em virtude as condições de felicidade que elas possam realmente
expressar.
106
3.5. A DIALÉTICA SOBRE A FRAGMENTAÇÃO RELACIONAL NA CIDADE E DA
PRODUÇÃO DE MICROTERRITORIALIZAÇÕES URBANAS, OU POCKETS OF
SOCIAL RELATIONS
Podemos entender a modernidade como um grande projeto de organização
racional das identidades sociais assim como as suas distribuições funcionais no
espaço urbano. A homossexualidade apresenta-se, nesse contexto, como um lo
unificado para qual convergem os desviantes (sexuais). No entanto, relembrando
Vallerstein (1995), as décadas de 1960 e 1970 são marcadas pela deslegitimação
dos propósitos de organização social em prol do progresso e do desenvolvimento,
uma vez que os “louros” desse propósito são muito restritos em todo mundo,
tornando ricos poucos e pobres muitos. A percepção de que as desigualdades
econômicas estão relacionadas com as diferenças culturais fortalecem movimentos
sociais em prol da igualdade e da cidadania contra o preconceito. Emergem,
portanto, os movimentos religiosos, das mulheres, dos gays, dos negros, dos
indígenas, dos punks, entre outras coletivizações e culturas que se acumulavam nas
grandes cidades.
Por outro lado, Bauman (2003) sugere que a própria libertação das diferenças
e sua acumulação é possível devido a uma constante transnacionalização do
capitalismo e de sua elite, que, com a emergência do capital financeiro, desvincula-
se das necessidades de regramento social. Como vimos, além da explosão dos
movimentos sociais e da emergência das alteridades, ocorre o afrouxamento dos
instrumentos/instituições de disciplinarização social, em um mundo onde a regra é
ser feliz (e ser responsável por isso). Além da disciplina institucional, o consumo
capitalista vai regrar a sociedade, promovendo o desejo individual e tornando
necessário ser feliz. A elite capitalista não depende mais drasticamente do próprio
meio material e humano local, uma vez que o capital cada vez mais é propenso em
se desvincular da força de trabalho. O que ocorre hoje é a necessidade de estimular
a diversidade de níveis e formas de consumo que estão ligados à diversificação
cultural dos grupos humanos.
107
Nesse sentido, nos parece que as possibilidades de expressão da diversidade
cultural nos meios urbanos atuais estão ligadas a duas interpretações possíveis:
a) a diversificação cultural é fetichizada pelo consumo: constantemente se criam
e recriam tipos de consumo e grupos inseridos neles, o que diversifica as
experiências de convivência e de sensações sociais. Essa diversidade
“banaliza” as experiências individuais e “aliena” pela superficialidade delas,
estabelecendo o controle continuo pelo domínio dos corpos e das sensações
e não mais pela inserção em instituições disciplinares;
b) contestações aos regramentos sociais, tanto aos vinculados com as
disciplinas institucionais, como aos estabelecidos pela repressão/controle em
relação à comercialização dos desejos humanos. Movimentos que buscam
contestar a disciplina e ao controle buscam a autenticidade individual e
coletiva e estão presentes nos meios urbanos como alternativas de autonomia
de vida. Talvez a alienação pelo consumo seja uma estratégia capitalista
oportuna em um momento de diferenciação sociocultural excessiva e de sua
incapacidade de regramento social.
Noutra discussão, além dos mundos imaginados irracionais promovidos pelo
consumo, outros mundos da imaginação são criados em virtude das depressões
promovidas pela incapacidade em obter-se “mais-consumo” e, conseqüentemente,
“mais-felicidade”. As inseguranças de um mundo da ascensão do desejo consumista
e da responsabilidade individual em obter felicidade tornam necessárias invenções
de outros “mundos/realidades” de segurança. Essas novas formas seguras vão
apresentar-se, por exemplo, pela coletivização afetiva dos “bandos” urbanos e das
demonstrações extremadas de emoção das “galeras” de futebol e das igrejas
evangélicas. Nem toda alteridade é alteridade relacionada ao desejo/prazer de
consumo regrada pelo mercado. Existem níveis diferenciados de regramento
consumista e outros veis diferenciados de infelicidade promovidos pela
desigualdade em se obter prazer pelo consumo. A depressão promovida pela
incapacidade de acompanhar o pleno exercício de prazer em um mundo do consumo
mutante e instável, regido pela inovação, gera a necessidade de criarem-se outras
108
imaginações coletivas que podem questionar o controle consumista por diferentes
óticas e relações entre negação e contemplação consumista.
Nesse sentido, são diversas as formas de convivência exercidas na cidade.
Ela é, de um lado, ainda um conjunto de fragmentos espaciais previsíveis, como fruto
da funcionalidade econômica e da especialização das atividades e das agregações
sociais. Por outro lado, nela estão presentes diferentes comportamentos e formas de
coletivização que escapam da racionalidade da realidade instrumental e moralista.
Tais expressões, porém, não perambulam livremente no espaço público, e, ao
mesmo tempo, também não se escondem em guetos fechados, mas singularizam
lugares que tornam visíveis as propostas inventadas pelas coletividades
afetivas/imaginárias humanas. A cidade se produz e se transforma por esse conjunto
de fragmentos singulares que são o que são pela especificidade do conflito ou da
interação entre regramentos e desregramentos em relação a disciplinaridade da
sociedade racional e da desordem e do prazer de consumo capitalista. Fragmentos
urbanos são condições tanto da sociedade como da sua negação. Esses fragmentos
relacionam-se com a sociedade num movimento de interdependência e de
coabitação, assim como de conflito e de negação.
Forças conflitantes de regramento da sexualidade agem na produção de uma
territorialização gay em uma parte do espaço social. Essas forças ora conflituam, ora
interagem, e acabam produzindo um espaço possível a visualização da sexualidade
homoerótica: são borbulhantes na territorialização forças cotidianas de repressão e
de libertação que agem concomitantemente e dão características ao local, às
convivências, às relações coletivas e às percepções individuais. Assim se produzem
os espaços de convivência na cidade. Cada fragmento deve ser estudado por essa
dialética entre norma/disciplina e espontaneidade/prazer/desejo. O resultado da
produção microterritorial gira em torno de alguma coisa entre a regra, desvio e
espontaneidade.
Cabe então ressaltar a importância do entendimento da produção do espaço
social urbano a partir de suas contradições e ambigüidades. A cidade
contemporânea, como argumenta Salgueiro (1998), se apresenta como um espaço
fragmentado no qual essa fragmentação se estabelece em escala muito grande. São
109
microespaços segregados tanto pela lógica de reprodução do capital imobiliário
como pela aleatoriedade e diversidade de microagregados sociais de convivência
afetiva ou funcional. Então, a produção dos fragmentos urbanos de convivência
social, seja afetiva ou funcional, não se define simplesmente, de um lado, como uma
fuga às determinações sociais ou, por outro lado, como fazendo parte de conjunto de
relações especializadas motivadas pelo parcelamento de grupos urbanos envolvidos
na funcionalidade econômica da cidade. Todo fragmento relacional urbano apresenta
uma realidade em conflito entre determinantes sociais e práticas subjetivas que
discordam e forçam o rompimento com o próprio social, no qual o resultado da forma
e da expressão das relações coletivas resultantes é imprevisível e também mutante.
Para entender tais produções e o fundamento da multiplicidade de
microagregados territoriais urbanos, devemos recorrer ao método dialético de
entendimento do cotidiano. De acordo com Lefebvre (1958), a cotidianidade é um
misto ambíguo e instável de racionalidade e empirismo, de positivismo e
sentimentalidade. Um misto de lógica formal (da identidade) e lógica dialética (das
relações de diferença, de oposição, de reciprocidade, de interação, de
complementaridade). Nesse sentido, o autor enfatiza a necessidade do pensamento
dialético recusando o discurso logicamente coerente. A lógica coerente remete a
uma estabilidade das coisas e as relações de “causa e efeito”, que produzem
modelos e possibilidades que se tornam naturalizadas e que mascaram as
contradições existentes na sociedade. Na verdade, a estabilidade é sempre
provisória no mundo real dos fenômenos naturais e sociais, ou seja, a pretensa
estabilidade apresenta pontos críticos de uma estrutura que se quer coerente, mas
que sempre pode explodir.
É necessário rever a estabilidade e as constâncias e estudar o conflito, as
contradições e os antagonismos. É importante perceber os pontos críticos, de ruptura
e de desestruturação das coisas e dos fenômenos que se querem estáveis. O
pensamento dialético consiste em um estudo das estabilidades, das estruturas que
não negligenciam o tornar-se e um estudo do tornar-se que não negligencia as
estabilidades, ou seja, não por um “sim” ou “não”, mas por um “sim” e “não”, “talvez
um sim”, “talvez um não”.
110
O meio urbano atual se caracteriza por uma multiplicidade de pequenos ou
microterritórios nos quais relações coletivas humanas acontecem numa dinâmica
incrivelmente rápida no sentido da construção e desconstrução de espaços de
convivência e a da transitoriedade dos indivíduos que participam de tais agregações.
Podemos observar duas coisas a respeito disso: em primeiro lugar, é fundamento de
tais microterritórios de convivência a relação dialética entre instrumentalidade e
afetividade das relações, influências de ideologias metafísicas de regramentos e
incitações de revoltas moleculares de desregramentos. Cada fragmento relacional
urbano possibilita-nos realizar uma análise dos condicionantes verticalizados, que
regram o comportamento das pessoas, e das práticas locais de improvisação,
expressão de subjetividades e contestação ou fuga em relação aos elementos
repressores. Em segundo lugar, devido à transitoriedade dos elementos que vêm
participar do agregado territorializado, o próprio fragmento, ou seja, a área de
convivência demarcada (o território) ou o meio concreto entendendo o suporte
físico, os próprios corpos e a expressão estética do lugar acaba por sobrepujar-se
ante o social. É o microterritório, como uma área que delimita a interação e/ou o
conflito entre práticas racionais e afetivas, que forma às práticas sociais diversas
em meio urbano.
Por estabelecer-se por processos de interação entre movimentos globais e
experiências local e pela dialética entre empirismo-incoerência e lógica formal
coerente, cada microterritório urbano tende a ser uma totalidade singular. Mesmo
influenciado pela globalização da cultura e dos regramentos moralistas modernos, o
agregado territorial tende a absorver essas influencias e reinterpretá-las a partir de
práticas locais. Nesse sentido, segundo Maffesoli (2002, p. 183 e 184), “o solo é o
que faz nascer, é o que permite o crescimento, é o lugar onde jazem todas as
agregações sociais e suas sublimações simbólicas, o espaço é um ponto de
referência, um ancoradouro para o grupo” e “enquanto ligado ao seu lugar, um grupo
transforma (dinâmica) e se adapta (estática), nesse sentido, o espaço é um dado
social que me faz e que é feito”.
De acordo com Gomes (2004), o espaço pode ser visto como uma condição
de construção de relações sociais específicas. Nesse senso ele não é somente um
111
espelho das relações sociais, mas um cenário onde as relações sociais acontecem,
estruturando os limites das ações, condicionando e qualificando-as. O autor sugere a
análise de duas matrizes espaciais que procuram entender a dinâmica entre espaço
e sociedade, tanto a partir das normatizações sociais, como pelos processos locais
afetivos que agregam as pessoas.
A primeira matriz seria o nomoespaço, definido através de normas regulares
que antecipam comportamentos, delimita-os, classifica-os e impõe-lhes níveis
hierárquicos e constrangimentos quanto a desvios. Essa matriz preza a regra de
convivência do espaço público, definido por um pacto formal ou um contrato
construído sobre a renúncia de parte da liberdade pessoal em prol do bem comum. O
nomoespaço é fundamento da democracia, em que formas de regulação da
convivência regram a diversidade e aplicam o respeito mútuo a partir de direitos e
deveres cidadãos que garantem a coabitação. Esse regular códigos de conduta é
estabelecido e nomeado como civilidade, urbanidade e polidez e condiciona a vida
diária da população.
A segunda matriz seria o genoespaço, que remete à voluntária adesão
individual a um tipo de agregação humana. Essa matriz se origina nos processos de
atração e convergências de tipos específicos de pessoas interessadas na formação
de uma coletivização que se caracteriza por práticas relacionais singulares.
Processos de identificação formam a agregação espacial, assim como a agregação
espacial possibilita processos de identificação e a própria agregação das pessoas.
Na concepção de genoespaço é importante a categoria de território, pois o
processo de agregação social específica, em diferentes escalas, remete a fronteiras
dos limites de determinada agregação e emergência de outra, numa constante
alternância espacial entre identidade e alteridade. As agregações territoriais são
baseadas em símbolos, valores, comportamentos, estéticas e éticas que se
diferenciam de outros grupos, colocando o território como fundamental para a
manutenção dessas evidências de singularização e persistência do próprio grupo.
Sugerimos, assim como Gomes (2004), o uso dessas matrizes espaciais para
analisar a sociedade urbana contemporânea. Os fragmentos territoriais de
convivência se proliferam no espaço urbano, e cada fragmento é condição tanto de
112
processos evidentes no nomoespaço como no genoespaço. A cada realidade de
agregação socioespacial, podemos entender uma complexa interação entre as duas
matrizes, que acabam gerando formatos de agregação populacional imprevisíveis,
ora tendendo para o regramento normativo do nomoespaço, ora para a organicidade
empírica do genoespaço. As duas matrizes devem ser instrumentos de uma análise
dialética da diversidade de microinterações populacionais territorializadas no espaço
social urbano.
Chamamos novamente a atenção para o conceito de cultura e sua contradição
teórica entre orgânica e supra-orgânica. A sociedade definida por uma cultura supra-
orgânica é deslegitimada pela existência de um espaço social no qual prolifera-se
uma diversidade de “culturas orgânicas” que irão estabelecer uma gama de
comportamentos e construções objetivadas pelas relações das pessoas nos locais
singulares de interação. Segundo Geertz (1989), a cultura se refere à manutenção
temporal de certas práticas relacionais humanas localizadas, cujos sujeitos se
entendem a partir delas, assim como agem em virtude dela. A cultura remete à
localização das interações humanas, que são pela produzidas pela cultura e, ao
mesmo tempo, a produzem; por isso, ela remete à construção de escalas de
interações específicas nas quais cada lugar se apresenta com uma cultura singular.
Porém, essa singularidade não se estabelece no local e simplesmente pelo local,
mas na relação entre a autenticidade das relações locais permeadas por processos e
construções que se estabelecem em diversas escalas geográficas e temporais em
diferentes níveis de comunicação, interação e agregação de aspectos.
Velho (1989, p. 14), remetendo-se a Simmel, nos faz pensar sobre essa
ambigüidade do conceito de cultura, que gravita entre a sua característica objetiva e
a subjetiva:
O homem é um organismo superior, com um self cujas potencialidades
podem ser desenvolvidas. Não preciso insistir que Simmel coloca-se dentro
de uma longa e complexa tradição do pensamento ocidental, em que a idéia
de uniqueness do indivíduo é crucial. Toda a idéia de self-cultivation,
presente, de uma maneira ou de outra, em pensadores como Goethe,
reaparece com todo vigor em Simmel, através da noção de cultura subjetiva
(subjective culture). Para ele, existe uma cultura objetiva (objetive culture)
externa ao indivíduo, sempre interagindo com ele. Mas são relações
diferentes sem relações mecânicas. A cultura objetiva de uma sociedade
pode ser complexa, diferenciada, heterogênea, e a cultura subjetiva de seus
113
membros pode nada ter a ver com isso. Este, aliás, seria um dos paradoxos
da modernidade, pois o desenvolvimento da tecnologia e da civilização
material, a complexificação e fragmentação da vida social não produziriam
indivíduos com uma cultura subjetiva mais elaborada. Segundo vários
pensadores dar-se-ia justamente o contrário. No entanto, para mim, neste
momento é mais relevante mostrar como Simmel distingue cultura objetiva
da subjetiva. Esta deve ser compreendida como uma totalidade cujo
aperfeiçoamento passaria pela busca de harmonia entre diferentes
potencialidades, capacidades, características.
Pensamos que o conceito de cultura opera na interação entre objetividade e
subjetividade, entre forças externas ao indivíduo, que o dobra e o condiciona, e sua
capacidade de escolha: sua iniciativa; sua capacidade de improvisar e usar forças
internas que burlam e que dão novas formas a interações externamente objetivadas.
Nesse sentido, a construção do território é que localiza, que identifica e que
estabelece os limites de interação e/ou de conflito entre objetividade e subjetividade,
fazendo criar uma aura ou um campo de interações humanas singulares. Devido à
diversidade de possibilidades de escolhas e ao acúmulo de diferenças e de
experiências na cidade contemporânea, as culturas são muito diversas e tendem a
ser expressas por microterritórios que possibilitam a convivência e as práticas de
determinada agregação humana.
Como afirma Geertz (1989, p. 10), a cultura é um contexto. Podemos dizer
que a cultura é um território ou territórios, que podem ser entendidos em diferentes
escalas, nas quais aparecem as fronteiras entre práticas individuais humanas em
interações coletivas, estabelecidas tanto pela necessidade de totalização dessas
práticas como, ao mesmo tempo, pelas forças de singularização e autenticidade local
delas:
Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria
símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é o poder,
algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais,
os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto,
algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível isto é,
descritos com densidade. (GEERTZ, 1989, P. 10)
A sociedade moderna vive em processos dialéticos de particularização e de
universalização, e isso se apresenta na realidade da fragmentação microterritorial da
vida social urbana. Podemos entender como fragmentação tanto a condição de
114
parcelamento instrumental e individualização promovida pela necessidade de
totalização dos regramentos racionais, como pelas agregações de cunho comunitário
e formação de meios de interação afetivos regidos pela imaginação e pela promoção
do prazer irracional junto às possibilidades que as realidades urbanas oferecem.
Esses movimentos acontecem concomitantes nos processos de interação social, de
sociabilidade, em que, como afirma Mafessoli (2002), dialeticamente “vai ao encontro
de e contra o social”. Tais forças, interagindo juntas, tendem a produzir resultados
diversos (que são as interações) que se expressam em grande escala delimitada, ou
seja, são microterritórios que produzem, mantêm e condicionam a agregação
humana ou sociabilidade.
Velho (2004) argumenta que os indivíduos, vivendo em sociedade, devem
produzir projetos individuais que os ligarão a um conjunto de cenários fragmentados
e instituições que constituem um campo de possibilidades de atuação performática já
produzidas e aceitas socialmente. O campo de possibilidades irá condicionar o
indivíduo e a produção de seu projeto, sendo que tal projeto deve ser público,
mostrado e avaliado em relação a outros projetos e ao campo de possibilidades que
restringe seu próprio processo de construção. No processo de construção desse
projeto, existe uma série de regramentos e punições cotidianas que irão lapidá-lo,
retirando os inconvenientes, os desejos pecaminosos e os sentimentos impróprios.
O desempenho dos papéis individuais é estabelecido em virtude do
desempenho de outros papéis no processo de interação social, em que esse
processo de interação produz contextos ou cenários que encaixam determinadas
encenações coletivas, que, por sua vez, interagem com outros contextos definidos
por outros campos de desempenho de papéis individuais. Assim se constituem os
fragmentos de interação e os condicionamentos sociais que dobram o indivíduo: a
partir de um conjunto de pockets of social relations (GLUCKMAN apud VELLHO,
2004, p. 31), condicionados por campos de possibilidades que interagem e
constituem escalas hierárquicas para a busca da totalização e do ordenamento da
sociedade geral.
Dessa forma, Velho (2004) observa que o espaço social condiciona os
indivíduos à produção de papéis que permitirão a elaboração de identidades mais ou
115
menos sólidas, respeitadas ou gratificantes. Porém, a individualidade pode
expressar-se a partir de uma performance mais ou menos bem-sucedida e, devido a
isso, sempre podem ocorrer possibilidades de manobras ao desempenho de papéis
sociais, nas quais criam-se novas alternativas individuais/subjetivas a objetividade do
desempenho deles. As manobras e os improvisos em relação à rigidez presente no
desempenho dos papéis sociais acabam promovendo um “retorno do eu reprimido”,
mas também a sua castração em virtude da rigidez objetiva presente nos cenários de
interação social. Isso acaba acarretando um deslocamento espacial das novas
alternativas de interação e formação de lugares que possibilitariam as “manobras
espontâneas” que reinventariam os determinantes sociais.
Segundo o autor, podem ocorrer desvios mesmo em contextos de interação
bastante rígidos e comprometidos com as determinações sociais. Isso evidencia
que existe nesses grupos o entrelaçamento entre regramentos e transgressões na
constituição dos pockets of social reations. Porém, a pessoa pode buscar maiores
possibilidades de expressão de seus desejos individuais, ou seja, ela sai
primeiramente em busca de individualização, mas, ao mesmo tempo, na busca de
contexto de interação que possibilitem tal individualização. Nesse paradoxo entre
fragmentação e totalização, normatização e desregramento, vão sendo produzidos
pockets of social relations, nos quais cada um se caracteriza por forças dialéticas
singulares da relação entre norma e espontaneidade. Na cidade, então, podem ser
mapeados diferentes bairros que tendem à maior normatização das relações sociais
e outros que tendem ao maior afrouxamento das normas de convivência, assim
como a agregação consolidada mais em relação ao projeto de totalização do que em
relação ao de fragmentação e vice-versa.
Pensamos que também, dentro de cada bairro, numa escala maior, possam
ser observados microterritórios, ou micro pockets of social relations, que se
diversificam entre níveis diferenciados de regramento e desregramentos. Ainda mais,
nos próprios microterritórios que possam surgir em virtude da agregação de
desviantes sociais, como os microterritórios de convivência homossexual, podem ser
116
observados condutas e comportamentos que muitas vezes remetem à reprodução
das normas sociais.
64
Podemos entender, então, a urbanização como o produto e a dinâmica
complexa da dialética entre individualização e coletivização que vão produzindo
múltiplas formas e conteúdos, em grandes escalas (micropartes do espaço urbano),
que evidenciam, ao mesmo tempo, o paradoxo e a interação entre social e não-social
(comunitário). Seriam inerentes à urbanização a formação, a diferenciação e a
segregação entre diversas formas de agregação social, na qual tais agregações
tendem a existir pela possibilidade de apropriação de parte do espaço e da formação
de um território (territorialização). O próprio processo dialético, gerando ora conflitos,
ora interações entre macrodefinições sociais (expressadas por ideologias e
intervenções urbanas concretas do Estado e do grande capital) e a organicidade
material e simbólica (expressadas em tribos urbanas, comunidades de bairros,
segmentos socioeconômicos e culturais específicos), produzem diversos processos
dinâmicos de territorialização (assim como de desterritorialização), gerando formas e
conteúdos urbanos (agregações sociais territorializadas) mutantes e fluidos.
A cidade se constitui por um conjunto de território (microterritórios) que
marcam os diferentes sujeitos e convivências urbanas. O território produz a
existência concreta de várias estratégias de representação dentro da cidade, assim
como seus limites, ou seja, os limites onde começam estratégias de representação
diferentes. As microterritorializações urbanas se expressam pelas diferenças de
convivência e de relações intersubjetivas dos indivíduos que participam. Elas
possibilitam o próprio encontro a o fortalecimento dessas ligações ou laços
intersubjetivos. Parece que a cidade multiplica-se em realidades urbanas dentro dela
mesma, na qual a diversidade de comportamentos possíveis e a complexa produção
subjetiva dos indivíduos tornam dinâmica a busca de coletivizações singulares para
extravasamento de necessidades relacionais espeficas.
Segundo Silva (2001, p.34),
64
Trevisan (2000) observa em grupos homossexuais a reprodução da dicotomia entre ativo e passivo
nas relações sexuais e comportamento individual, como uma característica relacional que vai ao
encontro ao ordenamento de gêneros masculinos e femininos nas relações heterossexuais.
117
Os territórios podem manifestar-se com diferentes matérias expressivas,
como verbal, a fônica ou a escritural; também podem reconhecer a
diversidade genética, como serem de homens ou de mulheres; podem
também definir variações na idade dos participantes como territórios de
jovens (inclusive “sardinos”, como na Colômbia chamamos os jovens, e de
“gagás”, como se diz no Brasil) ou de velhos. Pode-se igualmente
reconhecer extratos sociais, ou origem citadina e regional ou formação
acadêmica e nível escolar. Em outras palavras, para que falemos da
construção de territórios, se quer que os refiramos a um conjunto de
práticas que em seu todo mostrem ser construídas por sujeitos territoriais
que tenham conseguido um processo de atualização para reconhecer-se na
própria experiência social.
Nesse sentido, a cidade se produz por microterritorializações urbanas, que
significam, usando as palavras de Silva (2001, p. 33 e 34), “a sobrevivência
necessária de espaços de auto-realização de sujeitos identificados por práticas
similares que em tal sentido são impregnados e caracterizados, pode-se
conseqüentemente deduzir que os territórios são de natureza diferentes”. Por serem
de profunda subjetividade social e produzirem-se por sentimentos coletivos no
urbano, as microterritorializações não são precisas. Elas delimitam e expressam,
assim como possibilitam contextos específicos de interação em processos de
diferenciação e segregação. Porém, os limites delas não são precisos, flutuam.
Muitas vezes as microterritorializações somem para aparecerem em outro horário (ou
no mesmo horário em outro dia) e podem também estar sobrepostas umas a outras.
Por outro lado, elas existem, e as fronteiras entre diferentes interações existem,
mesmo sendo quase imperceptíveis. Nesse sentido, o território, portanto, não é um
mapa, mas um croqui, com limites imprecisos, quase sempre evocativos e
metafóricos (SILVA, 2001, p. 24).
As microterritorializações urbanas evidenciam múltiplas possibilidades de
agregação e aproximação de indivíduos, pois o elas que fundamentam
concretamente formas e conteúdos estéticos, possibilidades de sensações e
relações coletivas e extravasamentos emocionais pela existência de uma
variabilidade de rituais inseridos em cada uma delas. É o espaço (as
microterritorializações urbanas) que possibilita uma certa durabilidade de certos
processos interativos entre as pessoas, uma vez que as próprias pessoas, movidas
por uma vontade frenética de experimentação e consumo de formas de convivilidade
118
e empirismo, estão constantemente em trânsito e acessam fugazmente
determinadas experiências. Segundo Haesbaert (2002), o mundo pós-moderno não
se desterritorializa, mas se reterritorializa. Nele as “tribos” evidenciam a revalorização
da vida cotidiana, da frivolidade e da superficialidade e provocam aproximação
(promiscuidade) porque existe o partilhamento do mesmo território no qual vemos
nascer a idéia comunitária e étnica que é seu corolário. Nesse sentido, no cotidiano
urbano das grandes cidades, podemos observar muitas “tribos”, muitos segmentos
sociais e muitas territorialidades urbanas que produzem e são produzidas por esse
movimento de reterritorialização, ou seja, ocasionando contexto para que elas
existam.
Devido à multiplicidade de experimentação sociocultural e ao plano
cosmopolita em que se encontram as grandes cidades, múltiplas culturas estão
presentes e marcam seus territórios de expressão. Os constantes contatos culturais
que a cidade proporciona e a acentuada dinâmica de experimentação produzem
identidades, estéticas e comportamentos compósitos e híbridos, em que os
indivíduos não são identificáveis por essa ou aquela forma de expressão ou
identidade, mas tornam-se, de acordo com Baumann (apud FORTUNA; SILVA, 2002,
p. 452), “estranhos”.
A cidade não é lugar nem da aceitação nem da negação ao diferente. Em
primeiro lugar, nela se observa uma postura blasé, como argumentamos, ou seja,
uma indiferença quanto à diferença. Em segundo lugar, o estranho, ou aquele que
experimentou diferentes formas de relacionamento coletivo na cidade e que
absorveu diferentes itens culturais não é merecedor nem de crédito nem de
descrédito. A cidade, como espaço multicultural, apresenta-se como tolerante à
diversidade, mas essa tolerância não abstém os processos de segregação, pois o
próprio processo de hibridismo ou composição cultural é diverso e leva a outras
formas de diferenciação que tendem a segregarem-se. Perpassa a hibridização o
processo de diferenciação em relação à outra forma e contexto híbrido. Isso mantém
e complexifica a hibridização cultural do mundo urbano, tornando dinâmica a criação
e a destruição de possíveis interações e mantendo a realidade de experimentação
119
contínua do indivíduo em vários contextos relacionais que se alteram no tempo e no
espaço.
O estranhamento em relação ao híbrido urbano leva a uma postura de
tolerância que pode ser positiva ou negativa, segundo Fortuna e Silva (2002). No
comportamento de tolerância negativa, observa-se a aceitação, mas não o
partilhamento de atitudes e comportamentos de determinada agregação e estética
coletiva. Por outro lado, o comportamento de tolerância positiva leva à absorção
completa ou de certos aspectos em processo de experimentação individual e de
mergulho nas atividades interacionais do agregado humano com que se entra em
contato.
Tanto no processo de tolerância positiva como no de tolerância negativa
verifica-se a necessidade de haver territórios destinados a certas agregações e a
certas experiências coletivas. No meio urbano podem existir microterritorializações
onde a tolerância negativa determina as diferenças e as singularizações estéticas e
comportamentais do agregado em relação a outro, definindo fronteiras de
convivência muito próximas e flutuantes entre tribos urbanas. No entanto, existem
microterritorializações urbanas em que a lógica de convivência é justamente a
mistura e a experimentação de vários tipos estéticos e comportamentais que
compartilham o mesmo espaço. Por outro lado, também podemos falar de bairros de
grandes cidades onde não acontecem hibridismos culturais, e as relações
estabelecidas seguem rígidos modelos de comportamento e homogeneização social.
Muitos bairros residenciais de moradores de alta renda apresentam seu espaço
concreto homogeneizado por padrões arquitetônicos e por regulares formas de
relacionamento entre seus moradores. Porém, existem espaços públicos nos quais
circulam uma extrema diversidade de pessoas provenientes de várias partes da
cidade e amesmo de fora dela. São eles espaços de lazer e de entretenimento,
como praças, parques, praias, até mesmo shoppings centers e algumas ruas de
diversão noturna onde inúmeros bares se aglomeram.
Em tais regiões urbanas é que as diferenças culturais tornam-se próximas e
que acontecem tanto os fenômenos de tolerância negativa como de tolerância
positiva. Enquanto se operam processos de hibridização, também processos de
120
segregação se tornam acentuados, o que acarreta a disputa pela apropriação do
espaço e a oportunidade de mostrar a diferença em espaço público. Muitos grupos
reforçam seus sentimentos de singularidade pelo contato com a alteridade em
regiões urbanas onde a diversidade cultural habita. Na questão gay, por exemplo,
torna-se evidente a alegria do compartilhamento e a expressão de afetividade em
espaço público;
65
porém, essa expressão é possível porque o próprio espaço
65
O que podemos notar é ainda o contínuo repúdio em relação às afetividades homoeróticas (como
por exemplo o beijo e os carinhos trocados entre pessoas do mesmo sexo) em público. No entanto,
em alguns espaços blicos, em que convergem uma diversidade de “estranhos”, que não se
conhecem completamente, tais expressões, ao mesmo tempo em que são “estranhadas”, são
banalizadas. Mesmo as pessoas que passam ainda expressam certos “olhares” e comentários
discriminatórios. Porém, para serem vistas publicamente, as afetividades homoeróticas necessitam da
reunião microterritorial, na qual seus componentes sentem-se seguros pelo compartilhamento coletivo
delas. Em alguns países europeus elas apresentam-se dissolvidas por entre a multidão, sem denotar
algum problema; no entanto, em muitas cidades brasileiras, torna-se necessária a
microterritorialização de proteção à livre expressão, como, por exemplo, em Porto Alegre, as reuniões
pontuais homoeróticas no Parque da Redenção nos domingos, assim como a região do centro
comercial Nova Olaria e esquinas das ruas Lima e Silva e República, no bairro Cidade Baixa. No Rio
de Janeiro observamos a microterritorialização homoerótica no Posto 9 da Praia de Ipanema e em
alguns bares da rua Farme de Almoedo, neste mesmo bairro. Em Manaus essas expressões ocorrem,
em espaço público, nas periferias da boate A2, antes e durantes as festas noturnas das sextas e
sábados, muitas vezes entre passantes que se dirigem aos pontos de transporte coletivo. Tamm
Praça São Sebastião, durante a noite, para a qual converge uma diversidade de pessoas para
passearem. Verifica-se a reunião em frente ao Teatro Amazonas. Em Florianópolis é muito evidente,
assim como no Posto 9, no Rio de Janeiro, a concentração espacial no bar do Deca na Praia Mole. Os
exemplos das praias do Rio de Janeiro e de Florianópolis nos mostram microterritórios justapostos a
outros muito próximos, como, por exemplo, a reunião de surfistas e de outras expressões
heteroeróticas. Em Porto Alegre as reuniões pontuais no Parque da Redenção apresentam-se muito
diversificadas quanto às qualidades estéticas dos sujeitos homoeróticos. No Centro Comercial Nova
Olaria, microgrupos se formam, entre a maior concentração de pessoas, em frente ao centro
comercial, como, por exemplo, a “mistura” entre homoerotismo e expressões darks, rocks e emos - os
primeiros basicamente cultuando a estética sombria nas roupas e na maquiagem, inclusive com
alguns homens maquiados no estilo; os segundos, usando vestimentas surradas dos grunges de
Seatle (EUA) e elementos visuais, como camisetas, dos artistas e banda que cultuam; os terceiros,
misturando elementos darks e clubbers dos anos 1990, como, por exemplo, o uso de botas militares,
maquiagens sombrias com acessórios (cintos, pulseiras, colares, botons) multicoloridos e destoantes
do entorno; os emos (termo reduzido de emotion), acabam facilmente expressando homoerotismo em
seus gestos e comportamentos, pois a sigla e as reuniões implicam justamente a expressão livre de
emoção, qualquer que seja, muito próxima à proposta Queer, de expressão homoerótica livre, sem
qualquer necessidade de definição autoritária. As culturas homoeróticas de praia no Rio de Janeiro
apresentam-se mais específicas, mas, de certa forma, mais divergentes dos estereótipos tidos como
gays. As barbies expressões que denomina muitos sujeitos homoeróticos cariocas apresenta-se
como um grupo muito fechado de convivência e são, em sua maioria, homens que cultuam esportes
diversos, academias de ginástica e uso de anabolizantes. Fecham-se em círculos relacionais mais
restritos, e o corpo masculino musculoso e as roupas que permitem o delinear são atributos de
aproximação. Mesmo exacerbando as expressões masculinas, podemos perceber entre as barbies
amigas” a expressão de muitos gestos e modos de falar efeminados, fazendo transitar muito
drasticamente a estética de neros sexuais, assim como alguns homens musculosos são drags em
boates como a Boy – ou seja, os corpos são musculosos, mas a expressão, feminina, exacerbada,
da drag queen. Na Praia Mole, em Florianópolis, acaba também havendo essa tendência de culto
121
público se define pela diversidade cultural que circula e por várias formas de
agregação que se processam, dando consistência à possibilidade de livre expressão
cultural.
Para a expressão livre de subjetividades individuais, é necessária, em primeiro
lugar, uma porção do espaço público que aceite a circulação da diversidade cultural
e não apresente dispositivo rígido de repressão; em segundo lugar, a existência de
pockets of social relations, ou microterritorializações, que possibilitem a identificação
de uma tribo urbana ou de um tipo de agregação cultural, mesmo sendo híbrida ou
apresentando uma forma estética mais homogênea. Em muitas áreas urbanas de
propensão ao aparecimento da diversidade cultural ou ao hibridismo, percebemos
que a formação da microterritorialização que marca a agregação humana torna-se
elemento fundador das possibilidades de se exercer determinadas práticas
relacionais e afetivas. Na cidade atual, observamos uma diversidade de grupos que
se relacionam de forma totalmente diferente e precisam de algum lugar para poder
se encontrar. Podemos observar nas esquinas, em partes de uma rua, em um bar,
em uma boate, em um café, em um restaurante e em partes específicas de praias e
parques, pontos que são marcados por um conjunto de pessoas que se parecem e
que possuem assuntos comuns a debater. Essas agregações parecem triviais,
parecem não possuir importância, mas elas carregam justamente múltiplas
realidades que evidenciam a diversidade de formas de ver, sentir e viver a cidade.
Nesse sentido, a cidade multicultural não é somente a face da aceitação e da
existência pacífica das alteridades, ela implica múltiplas segregações, discriminações
e preconceitos contidos nas contradições sociais. Essas contradições representam
situações dialéticas entre aquilo que imprime condições e reprime os indivíduos e
grupos sociais, definidos por parâmetros homoegenizantes e discriminatórios da
estrutura macrosocial, e suas micropolíticas de contestação e de sobrevivência em
relação a suas dificuldades em encontrar expressão e espaço nessa estrutura.
exagerado ao corpo masculino - inclusive, pelas informações que obtivemos, ocorre o uso de prótese
deslocável na região genital dos homens para que parecessem ter grandes membros. Em
Florianópolis também observamos uma tendência migratória sazonal homoerótica, ou seja, muitos
homens orientados para o mesmo sexo passam as férias nessa cidade no verão, principalmente
paulistas e gaúchos, muitas vezes tornando na experiência de férias intensas as exeriências
homoeróticas.
122
Maclaren (2000) argumenta, assim, que a as relaçoes entre indivíduos, grupos
e a sociedade implicam um contínuo refazer nos quais “macro” e “micro” se informam
e se constituem mutuamente. Toda alteridade, assim, está imersa na estrutura
classificatória da sociedade e é auto-influenciada por suas definições morais e pelos
interesses de racionalização e funcionalização das relações sociais. Por outro lado,
ela é autêntica, devido à força de seus questionamentos e ações de resistência
contra a opressão e a discriminação relativa aos processos desiguais de distribuição
de riquezas, de inserção e de oportunidades sociais, assim como em relação aos
preconceitos quanto aos seus interesses afetivos, a seus prazeres e às
especificidades das interações que estabelecem. Em virtude desse processo
dialético, as alteridades se reconstituem e se reinventam tornando singularidades
espaciais e temporais importantes para entender os conflitos e contradições
inseridas no espaço urbano da sociedade contemporânea.
Mas o que é a cidade? A cidade pode ser muitas coisas; aliás, múltiplas,
centenas de visões são construídas da cidade por todas as pessoas que vivem ela.
Para entender essa multiplicidade de visões sobre o urbano, temos que captá-lo
naqueles lugares onde determinadas pessoas convivem e expressam coletivamente,
em processo de interação, seus gostos e desgostos de viver a cidade. Somente
assim é que podemos entender o urbano, ou seja, pela diversidade de
entendimentos que ela agrega. Essa diversidade tem se ser captada, pois assim
que podemos agir e estabelecer um direito à cidade, como nos lembra Lefebvre
(2001).
Para entender a diversidade, o espaço torna-se fundamental. As pessoas e as
percepções urbanas se estabelecem porque existem lugares onde elas possam
encontrar-se e conversar a respeito delas mesmas e de suas interações com a
cidade. Esses lugares é que criam a interação e as próprias pessoas, assim como
suas contribuições à caracterização do urbano. Os fragmentos espaciais urbanos é
que dão condições à produção de uma base de entendimento concreto sobre a
cidade.
123
4. O METODO MICROTERRITORIAL E O CASO DAS
MICROTERRITORIALIZAÇÕES HOMOERÓTICAS EM PORTO ALEGRE-RS
O foco de estudo desse trabalho compreende a formação de uma rede de
relações constituída de amigos
66
muito íntimos, companheiros de longo tempo, assim
como conhecidos mais distantes e personagens passageiros de ligeiras conversas e
contatos breves (mas que se tornaram densos no tempo curto que parou, que se foi
e deixou suas marcas). O cerne empírico é a experiência de vida e a inserção efetiva
no interesse de estudo, constituído pelos contatos humanos diversos, dentro da rede
de relações, assim como em relação a amigos externos dos amigos dessas redes,
que se tornaram, às vezes, mais que amigos, mas companheiros das intimidades e
das simples conversas de bar e das noites nas boates de Porto Alegre, do Rio de
Janeiro, de Florianópolis, de São Vicente e de Manaus. O texto discorre sobre
experiências diversas: com os amigos, com os companheiros de sempre e com os
breves, nas situações de “paqueras”, nas “noitadas” e, muitas vezes, nas tardes
longas e improdutivas. O interesse formou-se pela compreensão dessa rede de
relações que envolveram o autor, assim como o entendimento dele nesta rede, como
um conjunto de sujeitos que, por seus contatos, compreendem cada vez mais os
outros e a si mesmos.
Porto Alegre é a cidade das “experiências mil",
67
desde os primeiros tempos
nas noites de sábado no Enigma
68
, nas sextas do Ocidente
69
e nos domingos de
66
O termo amigos” refere-se aos sujeitos que contribuíram a pesquisa e cuja discussão teórica
converge para as relações estabelecidas entre nós e eles, como um conjunto de trocas de
experiências e produções de entendimentos conjuntos sobre o homoerotismo e suas relações
espaciais.
67
Essa pesquisa é eminantemente participativa, mas também longitudinal, a partir do momento que
tomamos vivências de tempos diversos que remetem a essas experiências. O caráter “pessoal” aqui,
não inviabiliza o caráter “científico” da tese. Colocamo-nos com centro de um conjunto de atividades e
experiências que convergem para os sujeitos e grupos que entramos em contato e que queremos
discutir com uma teoria que explique as relações entre território, territorialidade, homossexualidade,
homoerotismo, cultura e espaço urbano.
68
Antiga boate gay de Porto Alegre, localizado na área central, na rua Pinto Bandeira. Hoje não
funciona mais, sendo o prédio destinado a atividade de comércio com funcionamento diurno.
69
O Ocidente persiste no tempo. Posteriormente iremos discutir as relações microterritoriais desse
lugar. Localiza-se no bairro Bom Fim, na esquina da rua Oswaldo Aranha com João Telles.
124
tarde no Escaler
70
, assim como qualquer dia da semana no centro, próximo ao
Shopping Rua da Praia e Praça da Alfândega
71
. Hoje somente podemos contar com
o Ocidente e o Vitraux, bem diferentes do que os tempos de 1994. Depois dele veio o
Fim de Século, o bar Venezianos, a esquina da Lima e Silva com a República, o
Centro Comercial Nova Olaria e o Cine Teatro. A Porto Alegre da rede de relações
não é somente a desses lugares de consumo, cujos sujeitos consomem e são
consumidos pelo desejo, mas a Porto Alegre da rua e as ruas de Porto Alegre.
Desde os encontros rápidos, e muitos outros rápidos que se tornaram longos, na
Redenção
72
, no Shopping Rua da Praia, na Casa de Cultura Mario Quintana e nas
calçadas da Cidade Baixa, do Bom Fim e do Centro. Os espaços dos encontros se
constroem aos poucos na vida dos desejos e na felicidade de viver-se pelos
contatos, pelos abraços, beijos, fluidos, corpos, sexos. Permitem se encontrarem as
vidas: suas alegrias, seus desesperos, suas emoções, suas decepções, seus
comprometimentos, suas realizações, suas procupações e seus “não estou nem
aí...”. Por eles encontram-se sujeitos muito distantes, mas que, num piscar de olhos,
tornam-se íntimos pela conexão forte de suas experiências. Pelo espaço dos
encontros os desejos daqueles a quem são negados a publicidade pode emergir.
Os espaços de encontros homoeróticos povoam todas as grandes cidades na
atualidade. Eles são aqueles movidos pelo consumo do desejo e pelo desejo
consumidor homoerótico, das casas gays e GLS,
73
assim como os lugares da
simples transgressão, nos labirintos escuros dos parques e nas sutilezas
encontradas em banheiros públicos, praças de alimentação de shoppings, nas
praças e nas ruas tanto desertas como as totalmente povoadas. Nos encontros não
ocorre a preocupação identitária (Você é gay? Vo é homossexual? Você é
heterossexual?). O que ocorre é a necessidade de posicionamento, a comunhão,
desde as agregações informais das ruas, até as agregações mais
identificadas/identificadoras dos lugares de consumo gay. Os posicionamentos dos
70
O Escaler era um bar “ao ar livre”, localizado no Mercado do Bom Fim, entre as ruas Oswaldo
Aranha e José Bonifácio, no mesmo bairro. Foi fechado em 1996, para revitalização do prédio e não
mais aberto depois da conclusão das obras, em 2000.
71
Apresentamos essas experiências microterritoriais passadas em Costa (2002).
72
O nome oficial do Parque da Redenção é Parque Farroupilha, porém preferimos o uso desse nome
por ser mais usual.
73
Sigla pra Gays, Lésbicas e Simpatizantes.
125
sujeitos são especificados e especificadores dos lugares de encontros; portanto,
posicionamentos definidos pela coletividade (“aqui e agora”) que marcam os atributos
dos sujeitos desejantes ltiplos e definem alguns atributos comuns. A comunhão
marca e limita o lugar, sendo territorializada pelas fronteiras de convivências
estabelecidas. Somente a marcação da comunhão permite aflorar os desejos
homoeróticos, mas, grande parte das vezes, essas marcações são instáveis e
difusas (como um parque em que, até certo ponto, permite, em certos espaços,
expressões homoeróticas, mas em outros as nega).
Em relação aos muitos amigos, companheiros, conhecidos e transeuntes que
compõem a rede de relações que envolvem o autor, o estigma homossexual constitui
a origem de muitas de suas manobras de existência: manobras para a busca da
autenticidade que vai burlar e combater o estigma, mesmo que somente para
eles/si/nós mesmos. Por outro lado, a identificação gay vai remeter ao encontro com
a aceitação, mas que não vai significar uma igualdade de corpos e mentes, nem a
“curtição” das mesmas músicas, dos mesmos desejos, das mesmas formas de falar
e de comunicar-se entre si. Mesmo aqueles que se dizem gays, as perspectivas
perante os desejos homoeróticos e perante os processos de territorialização serão
diversos. Nesse sentido, o que denota os atributos do homerotismo é a emergência
dele na comunhão territorializada. Advém daí a necessidade de teorização que
produziu o texto desta pesquisa.
Além das informalidades que se apresentam, o cerne empírico, como contexto
de múltiplas experiências do autor, o texto permeia uma história acadêmica de
pesquisas sobre a temática.
74
Essas pesquisas possibilitaram contatos com um
gama de indivíduos orientados para o mesmo sexo, em suas freqüências nas praças
e parques de Porto Alegre, assim como nos bares e boates da cidade. Conseguimos
tecer redes de contatos informais pelas quais conseguimos apreender perpectivas,
74
Desde os trabalhos de mestrado que produziram a dissertação A Condição Homossexual e a
Emergência de Territotializações, perpassando as pesquisas feitas junto ao curso de Geografia da
ULBRA, sobre os cotidianos das praças e parques de Porto Alegre, por onde derivam sujeitos
desejantes homoeróticos, com a colaboração dos bolsistas voluntários Eriberto Teixeira, Arilson
Volken, Denise Carvalho e Alexandro Amaro, até o retorno do foco na pesquisa sobre
territorializações homoeróticas, no projeto de iniciação científica patrocinado pela FAPERGS e
desenvolvido pelas bolsistas Vanessa Branco Cardoso e Ângela Muller – esta, em caráter voluntário.
126
discursos, comportamentos e ideais quanto à relação entre indivíduos conhecidos e
homoerotismo. Entre as diferentes conversas tecidas, foram agregando-se
mensagens num corpo mental constituinte da observação participativa que se tornou,
pouco a pouco, pesquisa-ação (THIOLLENT, 2002). Nesse processo, o pesquisador
acabou impregnando-se do grupo cultural estudado, transitando por sua diversidade
e vivendo os prazeres contidos em seus territórios de convivência afetiva, cujos
formatos transitam entre muitos trajetos indefinidos, em lugares bem fechados,
somente dos que “entendem”.
Merece destacar a excitação desse mundo que transita entre o proibido, a
tristeza das inúmeras tênues repressões e a emoção das felizes experiências dos
encontros e das festas que definem suas possibilidades de vivencia coletiva. O
mundo homoerótico é um “circuito” espacial (nos moldes de PARKER, 2002) por
onde derivam (nas idéias de PERLONGHER, 1987) homens (o caso da pesquisa
centra-se no universo masculino) em constante estado de excitação e “saídas de si”:
são as aventuras derivantes pela cidade (ruas, becos, praças, shoppings, banheiros),
cuja atenção é o puro desejo do encontro (principalmente sexual) que se territorializa
em pontos mais certos de sucesso (embora o acaso aconteça a qualquer lugar),
tornando o espaço urbano (principalmente trajetos e lugares melhor definidos por
uma coletividade que não se enxerga totalmente) extremamente erotizado (PARKER,
2002), tanto nas noites escuras do Centro vazio como no formar da multidão durante
os horários de rush.
Por outro lado, além das “deriva-territorialiazadas” de busca sexual, conforme
demonstramos no trabalho da dissertação (COSTA, 2002), os grupos de amigos
coesos divertem-se de forma muito afetiva nos bares, pubs e boates da cidade, e é
por esses grupos primários que se tecem alguns elementos que seriam constituintes
de uma cultura gay, muito embora os próprios assuntos, interesses e
comportamentos grupais e individuais nos grupos denotem várias formas de
expressão e investimentos homoeróticos.
em Costa (2002), observamos a tentativa de se enquadrar essa
diversidade, coisa um tanto pretensiosa, uma vez que as condições são múltiplas e
mutantes. Tentamos classificar as microterritorializações homoeróticas em Porto
127
Alegre a partir de transposições quanto à identidade homossexual (velada, negada e
divulgada) dos sujeitos envolvidos nos lugares (nos quais se estabeleceu a
convivência participativa), quanto ao padrão estético (estilo fashion, masculinização
excessiva, trangenerificação, afirmação de estéticas de gênero masculinos, etc.),
quanto à postura em relação aos comportamentos gays (bofes, bichas, homens
comuns same sex oriented, travestis, etc), quanto ao tipo de convivência espacial
(amigável, de busca sexual, segregada, não-segregada, banalização pós-moderna,
desvio moderno, entre outros) e quanto ao padrão territorial (trajetos, pequena área e
espaço localizado). A proposta já conseguiu estabelecer uma idéia da diversidade de
microterritorializações de convivência em Porto Alegre, embora muitos dos lugares
representados já não existam há um bom tempo.
Porém, a sobreposição de idéias aos lugares, contudo, talvez nunca possa ser
suficiente para defini-los, uma vez que eles são microterritorializações do “aqui e
agora” da rede social que se tece no espaço e no momento exatos e fazem convergir
diferentes subjetividades que objetivam suas qualidades em aparências,
investimentos grupais, expressões estéticas, comportamentos, nos quais essa rede
de diferentes sujeitos envolvidos produz a aura” e a “forma” do lugar (nos moldes
“formistas”, discutido por MAFFESOLI, 2002). Nesse sentido, o interesse do trabalho
aqui apresentado é discutir e teorizar sobre essa objetivação cotidiana instável e
mutante dos desejos homoeróticos, cujo elo de expressão e ligação grupal é a
existência do microterritório, que nunca pode ser visto pela perdurância, mas pelo
momento espacial, que guarda consigo tanto o acaso dos momentos e das
espontaneidades, quanto os imponderáveis rígidos da história autoritária de uma
sociedade normativa.
Além da ação-participativa nas “derivas de caça (busca sexual), o
envolvimento num grupo de amizade sólido no tempo (de mais de cinco anos)
permitiu entender muitas das questões que envolvem a homossexualidade, a cultura
gay e os desejos homoeróticos. Tal grupo formado por amigos comuns cujas tramas
de intrigas da vida fizeram proliferar-se em outros grupos em dissidências diversas,
muitas vezes identificados pelo convívio coeso, ou somente pelo encontro em
momentos de lazer, outras vezes indicando contatos individuais, nos quais se teciam
128
revelações íntimas de cada um, não-pertencentes nem divulgadas a todos
componentes. Os sujeitos desse grupo apresentam-se como elementos muito
diferentes quanto a posturas, desejos, preferências de estéticas e prazeres sexuais,
profissões e formas de comportar-se em relação à sociedade heteronormativa. Suas
representações circulam na diversidade composta por cada um e nas diferenças
entre as expressões vividas nos lugares em que estão sozinhos, nas do grupo unido
e nas diferentes situações de convivência desse próprio grupo em comunhão. No
entanto, todos vão necessitar, estando sozinhos ou unidos, dos lugares de encontros
- e usá-los - para tornarem-se espontâneos e objetivarem seus interesses afetivos
homoeróticos.
Nos territórios possíveis, a convivência espontânea dos homoerotismos
75
componentes de cada um, vão acontecer comunhões de idéias e comportamentos
no interior do pequeno grupo de amigos e na totalidade que representa a
territorialização, composta de elementos individuais assim como outros grupos de
amizades. Parece que, pela brincadeira e pelo lazer, flui entre os grupos de amigos
elementos que podem ser vistos como gay (ou camp): como o efeminamento nas
falas e posturas, os modelos estéticos fashions, as discussões sobre música e divas,
a necessidade de dançar e extravasar, a paquera e o sexo descomprometido, e o
culto ao pastiche, representado pela estética do lugar e pelos shows de drag queens.
Mas tudo isso são representações que vão permear e ser assumidos mais ou
menos por alguns, não por todos. Muito deles vão levar esses atributos ao cotidiano
inteiro de suas vidas (principalmente quanto os vemos envolvidos em certas
profissões, como cabeleireiro; embora se tenha conhecido cabelereiros totalmente
envolvidos com uma postura e uma estética bem masculinas que façam lembrar o
surfista, por exemplo). Outros, porém, apresentam nos lugares surtos componentes
de expressões camp e outros, ainda, nunca foram vistos transitando por essas
expressões.
75
Homoerotismo aqui vai implicar o desejo sexual envolvendo indivíduos masculinos, nos quais se
fundam estéticas, comportamentos corporais e gostos relativos a eles. A expressão do corpo e as
manifestações discursivas envolvendo o desejo em relação ao masculino (corpo ou partes dele),
assim como suas relações com o feminino (como a androginia, o efeminamento, o travestismo ou o
distanciamento da masculinização excessiva), irão aproximar ou distanciar indivíduos que precisam
enxergar/identificar-se mutuamente, os motivos da agregração social e da territorialização delas.
129
Outro fator notado foi a relação entre modelo “hierárquico” (ativo e passivo) e
modelo “igualitário” de Peter Fry (1982): parece-nos que isso faz parte efetivamente
das posturas homoeróticas. Por outro lado, aparecem ênfases variáveis quanto ao
grupo de convivência, perpassando os somente passivos, os somente ativos, os
bivolt (expressão usada para designar aqueles que gostam das duas coisas),
aqueles que transam com ambos os sexos, aqueles em que a penetração não é
necessária, os próximos ao sadismo e ao masoquismo, os que querem somente
sexo com amor, os que durante muito tempo se tornaram assexuados, entre outros
bem definidos e que se transformaram radicalmente nesses cinco anos de
convivência.
Gostaríamos de ressaltar a experiência de um amigo que se apresentava sob
os moldes totalmente gays: cabeleireiro, cabelo descolorido, roupas brilhantes e
extravagantes, efeminamento na fala e nos gestos, gosto pela atividade sexual
passiva, assíduo as boates e festas gays, constantes extravasamentos de humor e
alegria exacerbada, entre outros. Tal amigo, de repente, deixa o grupo e estabelece
uma vida totalmente heterossexualizada e familiar (inclusive com o nascimento de
uma filha) no decorrer de pelo menos quatro anos nesse período de convivência.
pouco tempo, no ano de 2007, esse amigo volta a participar nova e efetivamente da
vida gay que tinha deixado no passado.
Em nossas experiências de observação, pudemos, em muito, perceber
histórias de vida que se aproximam de fases propostas por Costa (1992) e Plummer
(apud WEEKS, 1999). O primeiro evidencia as fases de “tornar-se homossexual”, “a
proteção pelo/contra o preconceito”, a “aceitação da identidade homossexual” e a
“revalorização da identidade homossexual contra o preconceito”. O segundo observa
as fases de aquisição da identidade estigmatizada: a fase da “sensibilização” (sentir-
se diferente), da “significação” (atribuir sentido à diferença), a da “subculturização”
(reconhecer-se a si próprio pelo envolvimento com outros) e “estabilização” (aceitar
os sentimento e o modo de vida).
Vamos retomar mais tarde essas fases, inserindo-as na discussão sobre as
territorializações homoeróticas; porém, podemos evidenciar que realmente vai existir
uma significação de uma diferença homossexual a todos os indivíduos. Essa
130
diferença talvez não seja conhecida por todos como homossexual, em primeiro
momento, mas na participação na família, na escola e nos grupos de amizades,
durante a infância e a adolescência, sentir-se diferente remeterá à não-adequação às
atividades, maneiras e comportamentos de gênero sexual, causando outras formas
de denominações discriminatórias conhecidas, popularmente, como bicha, veado,
boilola, mulherzinha, gay, etc. Somente buscando a significação de seus desejos e
comportamentos, talvez na adolescência, ou depois de muitos anos de sofrimento
e luta contra eles, na fase adulta, talvez os homens orientados de alguma forma para
o mesmo sexo poderão denominar isso de comportamento homossexual. Porém,
mesmo todos sabendo que somente estar/ser atraído por atributos masculinos
constitui um comportamento unificado homossexual, muitos dos indivíduos vão
expressar e exercer a dita “homossexualidade” em momentos, tempos, condições e
atributos diferenciados.
A convivência em lugares de freqüência homossexual e o contato com o lazer,
a sexualidade e a afetividade delirante dessas agregações, nos moldes camp ou gay,
é que o indivíduo aos poucos vai tornando-se “subculturizado”. A subculturização
implicará a territorialização dos desejos e afetividades homoeróticas, e o contato com
elementos diversos e com o pastiche gay. Talvez ele realmente atribuirá sentido
ao que é ser gay, diferente do gay como que era chamado na adolescência, que
constituiria o sinônimo de bicha e veado; portanto, altamente discriminatório. Ser gay,
nesse momento, implicaria a auto-identificação com uma comunidade, um conjunto
de experiências territorializadas e uma aura cultural que começa a ser expressa em
seus gostos, vontades e estilos. No entanto, mesmo existindo uma grande maioria de
indivíduos que se auto-identificam como gays, ser gay vai remeter a muitas tantas
experiências, estilos e formas de agregação possíveis pela constante reinvenção de
consumo de identidades e estéticas que esse mundo possa transitar.
Por outro lado, muitos indivíduos podem não gostar da expressão gay. Mesmo
vivendo em meios essencialmente homoerotizados, descartam qualquer
possibilidade de vínculo e valorização dos atributos gays. Também podemos verificar
outros homens que convivem com uma ambigüidade prática (atos sexuais) ou
somente subjetivada (imaginações, voyerismo, masturbação, contatos muito breves,
131
etc) com os desejos homoeróticos, nunca inserindo-se ou auto-identificando-se como
gays.
Todos esses elementos são pontos mais ou menos marcados das
possibilidades homoeróticas, mas os homens transitam constantemente entre esses
pontos, como pudemos verificar, entendendo as transformações constantes de
nossos amigos, e com retomadas de contatos com personagens breves que
mantivemos no passado e que se apresentaram no presente com outras idéias,
outros comportamentos e outros vínculos com os desejos homoeróticos, assim como
participantes de territorializações que talvez nunca antes tivessem coragem de
participar.
Em outro momento,
76
organizaram-se entrevistas estruturadas para
aprofundar sobre as histórias de vida dos indivíduos com que tivemos contato e
enfocar o significado dos microterritorios de agregação a construção dos
comportamentos e das qualidades dos sujeitos homoeróticos. O questionário foi
organizado mantendo a idéia de Plummer sobre a constituição da identidade
estigmatizada, porém enfatizamos a tentativa de perceber como e quando se
estabeleceu o processo de “subculturização”, no sentido de analisar como essa
“subculturização” está remetida ao envolvimento com uma territorialidade
homoerótica.
O questionário foi aplicado na cidade de Porto Alegre, no segundo semestre
de 2005 e no primeiro de 2006, envolvendo conversas com aproximadamente vinte
pessoas orientadas para o mesmo sexo.
Grande parte das pessoas entrevistada já pertencia à rede de “conhecidos” do
autor. O restante foram outros contatos estabelecidos pelas bolsistas de iniciação
científica em envolvimento com o trabalho. As teorizações sobre as respostas
obtidas com o questionário estarão melhor explanas no ultimo capítulo, no qual
enfatizamos a discussão sobre a territorialização das expressões homoeróticas.
Porém, salientamos a importância do envolvimento de outras pessoas neste
trabalho, principalmente as bolsistas de iniciação científica, causando oportunidades
76
Que irá marcar uma atividade da pesquisa de doutoramento e a oportunidade de participar do
programa de iniciação científica da FAPERGS, nos anos de 2005 e 2006, que participaram as
graduandas Vanessa Cardoso e Ângela Muller, do curso de Geografia da ULBRA.
132
de discussões entre autor e outras visões fora/em primeiros contados do/com os
contextos estudados. Para o autor foi possível perceber a visão daqueles
distanciados desse cotidiano, cujos debates convergiam sempre para a tentativa do
autor procurar fragmentar” e “desfragmentar” visões já prontas e estabelecidas
durante alguns anos de convivência, observação continuada e interação efetiva com
sujeitos e territorialidades homoeróticas.
As experiências de convivência com sujeitos homoeróticos e com a
diversidade de suas territorialições, levaram-nos a preocupação do entendimento do
cotidiano que envolve a construção das condições de existências desses desejos e
espontaneidades, assim como, nosso interesse como geógrafo, como as condições
espaciais vão permitir e reprimir tais expressões tão repudiadas na história da
humanidade. Nesse sentido, como base de sustentação teórica para explicar a
relação entre território e homoerotismo, centramo-nos nos estudos do cotidiano, uma
vez que o próprio cotidiano é condição de todas as coisas que o normalizam e
tornam regras de convivência em sociedade, assim como todos os improvisos e
espontaneidades que permeiam as relações face a face.
O cotidiano é o misto ambíguo entre regra e espontaneidade, ambas
alterando-se e se constituindo mutuamente. Nesse aspecto, nos parece que as
espontaneidades homoeróticas acabaram sendo reprimidas em enquadramentos
desviantes que necessitavam, em meio à sociedade normativa e das regras da
publicidade, condições territoriais específicas para acontecerem, mas também como
espaços delimitados nos quais elementos de regramento poderiam ser exercidos
com maiores facilidades. É por esse viés que nosso trabalho se justifica, ou seja,
pela construção de um conjunto de teorizações a respeito de uma Geografia do
cotidiano urbano que enfoca o caso das (micro) territorializações dos desejos
homoeróticos em meio a um espaço normatizado.
No decorrer das discussões, acabamos tendo a idéia de que a dialética entre
ordem e desvio é a condição essencial da sociedade, assim como evidência da sua
condição incompleta. Verificamos que, aquém de uma sociedade que se quis perfeita
para o progresso, o que encontramos foi o puro espaço social ambíguo, como
condições ltiplas de territorialidades e territorializações de contextos singulares
133
que envolvem a dialética entre diversas formas-conteúdos espontâneos das
interações humanas e as condições normativas historicamente construídas, como
produtos de uma sociedade moderna que quis se unificar perante todo o mundo.
Dessa forma, sugerimos a atenção a um método de analise microterritorial na
Geografia, que vai tentar procurar discutir as múltiplas diversidades existenciais
territorializadas no espaço social. Esse método se originou do interesse empírico da
vivência junto às derivas e comunhões homoeróticas, mas pode servir de
entendimento a muitas outras realidades expressivas que se territorializam e
produzem a diversidade desse espaço social.
4.1. O MÉTODO MICROTERRITORIAL
A produção do espaço urbano não se de forma homogênea, como tanto foi
o interesse do projeto moderno de controle social, mas se estabelece por múltiplos
processos de fragmentação relacional dos grupos humanos. A própria fragmentação
relacional urbana produz e é produto de diferentes formas de apropriação espacial
dos agregados sociais que constituem a cidade. Verificamos, a partir disso, a
produção multiterritorial do espaço urbano, na qual cada parcela apropriada do
espaço se identifica como um microterritório em formação.
A principal atividade de nossa pesquisa é discutir sobre a contribuição da
Geografia para o entendimento das diferentes apropriações espaciais que se tecem
na cidade. Enfatizamos o estudo de microterritórios tênues e informais - que
expressam convivências muito específicas -, como os representados por um “ponto”
de reunião de grupos de jovens ou, então, no caso para o que atentamos, de grupos
orientados para o mesmo sexo. Por outro lado, enfatizamos que este estudo pode
ampliar-se para a análise do “fechamento” territorial de áreas maiores e mais
populosas na cidade, estabelecidas devido às contradições de classe e de
micropolíticas de contestação e violência em virtude aos processos de contradição
entre exclusão e inclusão social. Procuramos desenvolver uma proposta teórico-
metodológica para entender esses processos inseridos na realidade do espaço
134
urbano contemporâneo. Assim, discutimos, de forma integrada, os elementos que
seguem:
4.1.1. A abordagem microgeográfica
Esta abordagem é trabalhada por Gomes (2001), que procura analisar a
organização das convivências sociais do espaço urbano, inseridas na dialética da
relação entre espaços público e privado e no processo de retração do espaço público
em virtude de microapropriações espaciais de grupos específicos que produzem
fronteiras de convivências entre eles.
4.1.2. A abordagem sobre a Geografia do cotidiano
Aprofundamos nossa análise sobre o cotidiano urbano e procuramos discutir
duas vertentes fundamentais:
a) o cotidiano como condição “supracultural” (superestrutura, ideológica, e
infraestrutura, material), que imprime condicionamentos (regras de
comportamento, lógicas de agir e pensar) e reprime o homem como mero
ser ordinário e alienado (LEFEBVRE, 1958; HELLER, 1991);
b) as correntes que tratam das ínfimas relações informais presentes na vida
do homem comum, as quais, ao mesmo tempo, reproduzem traços
rotineiros da estrutura social, mas também promovem improvisos e novas
perspectivas que contradizem a normalidade dessa estrutura (DE
CERTEAU, 2004; GOFFMANN, 1996; COULON, 1995).
4.1.3. Multiterritorialidade e microterritorialidade
Enfocamos os conceitos de território e de territorialidade como fundamentais à
pesquisa. Verificamos as múltiplas possibilidades de manifestação da territorialidade
(HAESBAERT, 2004), principalmente enfocando os processos culturais de
135
apropriação espacial e a “grande escala”, ou microáreas, de análise, ou seja, as
microterritoritorializações culturais urbanas.
4.1.4. Formismo
A partir de MAFFESOLI (2002), enfatizamos a formação de
microterritorializações “tênues” (fluidas, instáveis, mutantes, restritas a tempos
curtos) no espaço urbano, como fenômeno espacial dos processos de “estar-junto
comunitário”, ou seja, pontos e trajetos urbanas apropriados por determinados tipos
culturais (agregados culturais ou tribos urbanos) que se atraem mutuamente,
sobretudo por um sentimento estético (expressões de desejos e necessidades
relacionais específicas espontâneas nas quais as relações se tecem como puras,
sem sentidos e propósitos funcionais) e menos por uma condição racional inserida
nas rotinas urbanas. Isso se insere a realização dos mundos imaginados dos sujeitos
em busca do prazer e da felicidade.
4.1.5. Nomoespaço e Genoespaço
De acordo com Gomes (2004), o espaço pode ser visto como uma condição
de construção de relações sociais específicas. Nesse senso, ele não é somente um
espelho das relações sociais, mas um cenário onde as relações sociais acontecem,
estruturando os limites das ações, condicionando e qualificando-as. O autor sugere a
análise dessas duas matrizes espaciais que procuram entender a dinâmica entre
espaço e sociedade, tanto a partir das normatizações sociais, como pelos processos
locais afetivos que agregam as pessoas em partes delimitadas do espaço urbano.
Conforme vimos na seção três
77
, a primeira matriz seria o nomoespaço, que
organiza e normatiza o espaço público, pela moral, pela lei e pelas classificações
sociais. A segunda matriz seria o genoespaço, que remete a espontaneidade das
relações e das agregações humanas, muitas vezes discondantes a norma do espaço
77
Pagina 111.
136
público, sendo condição de sua descontrução ou retração, tornando parte desse
espaço apropriado, privatizado ou semiprivatizado.
Para cada realidade de agregação socioespacial, podemos entender uma
complexa interação entre as duas matrizes que geram formatos de agregação
populacional imprevisíveis ora tendendo para o regramento normativo do
nomoespaço, ora para a organicidade empírica do genoespaço. As duas matrizes
devem ser instrumentos de uma análise dialética da diversidade de microinterações
populacionais territorializadas no espaço social urbano.
4.1.6. O conceito de cultura
Chamamos atenção para o conceito de cultura e sua contradição teórica entre
orgânica e supra-orgânica (DUNCAN, 2003), conforme trabalhado também na seção
três.
78
A cultura na perspectiva supra-orgânica remete a construção “macro” da
sociedade, como uma estrutura que se impõem ao indivíduo, obrigando-o a dobrar-
se frente à lei e seguir papéis firmados por normas morais gidas. A cultura impõe
regras e organiza a vida pelo trabalho, pelas instituições sociais, por preceitos morais
e ideológicos e pela objetividade do ordenamento do espaço.
A cultura na perspectiva orgânica remete a singularidade inserida em
contextos diversos de relações humanas, que escapam a normalidade do sistema
cultural supra-orgânico e das regras que impõem preceitos de comportamento e
ordenam as vivências socioespaciais. A cultura orgânica se estabelece nas relações
localizadas no espaço e no tempo, na espontaneidade humana e nas relações
“quentes”, promovidas pelo desejo, pela informalidade e pela imprevisibilidade. As
relações quaisquer, em quaisquer escalas, produzem culturas que vão significar os
contextos espaço-temporais das interações e das negociações entre indivíduos que
ora se identificam ora se segregam mutamente.
Essas duas perspectivas aparecem como dialéticas. Elas estão presentes nas
diversas manifestações culturais da sociedade contemporânea, que fragmentam as
78
Pagina 112 e 1113.
137
vivências dos homens e promovem a instabilidade de suas relações. Preceitos
normativos forçam a normalização da sociedade, assim como espontaneidades
diversas ocorrem para desconstruir à pretensa homogeneidade e organização das
vivências e experiências humanas. O que resta são fragmentos de interações sociais
microterritorializados que expressam recortes da manifestação dessa dialética. São
culturas ou, conforme Geertz (1989), territórios que se singularizam tanto pela
necessidade de totalização das práticas sociais, como pela autenticidade das
relações localizadas.
4.1.7. O espaço social como produção dialética entre sociedade e comunidade
Bauman (2003) e Gomes (2002) desenvolvem alguns de seus pensamentos com
bases conceituais propostas por Tonnies (1974), o qual estabelece a distinção entre
comunidade e sociedade. A primeira seria estabelecidade por uma vontade orgânica
(Wenselville) e a segunda por uma vontade refletida (Kurville).
Conforme Gomes (2002), a primeira se constrói dentro de um contexto relacional
afetivo e personalizado que seria denominado, então, de comunidade
(Gemeinschaft). O segundo guiaria as relações humanas segundo mecanismos
lógicos e convencionais estabelecendo interações formais, ou seja, os mecanismos
da sociedade (Gesellschft). Assim, relacionados ao desenvolvimento das sociedades
modernas, estariam em ascensão as interações formais baseadas na racionalidade
dos papéis sociais e em sistemas reflexivos quanto aos padrões a serem seguidos a
cada contexto interacional.
Por outro lado, a partir do que desenvolvemos até aqui, em relação às redes de
modernização, proliferaram-se uma diversidade de contextos interativos constituídos
por relações afetivas do simples prazer de “estar-junto”. A isso se deve a formação
das “comunidades-cabides” (BAUMAN, 2003), que constituem fugas socioespaciais
dos condicionamentos frios relativos à vida em sociedade.
Pensamos que o espaço social emerge de uma dialética ou ambigüidade na qual
estão presentes microcontextos interacionais “contra” o social, em busca da
afetividade comunitária, e “a favor do social, por onde ainda se estabelecem os
138
condicionamentos objetivos de repressão e controle, estabelecidos por processos
reflexivos de cumprimento dos papéis sociais. Microterritorializações expressam essa
dialética e ora tendem mais para contextos interacionais sociais, caracterizados pelo
cumprimento dos rígidos papéis sociais, ora tendem a forças afetivas espontâneas,
tendendo mais ao calor da comunidade.
Agier (apud BERTRAND e OUALLET, 2002, P. 9) nos falam do constante
processo de fabricação de identidades, no qual estigmatizações e ilegalidades
identitárias tomam a forma de diferenças culturais e, embora possibilitem a
existência, muitas vezes bloqueiam as possibilidades de trocas sociais.
Gouëset e Hoffmann (2002) induzem ao entendimento de comunidade como uma
categoria de pensamento eminentemente contextual, que não pode ser apreendido
fora da situação que ele exprime, porém as comunidades atuais se caracterizam
como muito fluidas, pontuais e de aparências múltiplas.
A partir dessas idéias, o que queremos instaurar é a atenção à noção de
“comunitarismo” a microagregações que tomam forma na cidade, sejam elas tênues
“comunidades-cabides”, sejam elas “organizações cidadãs” mais organizadas.
A idéia de comunidade nos remete à atenção aos aspectos culturais e
interjubjetivos das microterritorializações urbanas, vinculando-se não mais a noção
de lugar social racional vinculado às estruturas de classes, rendas, profissões, mas
aos aspectos afetivos que unem as pessoas e produzem outras racionalidades de
entendimento. É claro também que não devemos estabelecer um exagero quanto à
aproximação primária das agregações microterritoriais e buscar complexificar as
análises tanto quanto aos fatores internos afetivos dela, assim como condicionantes
objetivos e morais que regulam a interação entre as pessoas.
4.1.8. As representações sociais
As diversidades microteritorias encontradas no espaço urbano contemporâneo
indicam múltiplas formas de relações e intepretações que os indivíduos fazem de
suas condições sociais, que envolvem a dialética entre ações e interações que lhes
dão prazer, e aquelas que se referem à funcionalidade, à moralidade e às obrigações
139
inseridas no “viver em sociedade”. Os conflitos intimistas encontram espaço na
realidade pela interação com os outros, e juntos formulam definições de si, de suas
relações, ora contraditórias, ora consentidas pela sociedade, assim como a
materialização daquilo que imaginam ser e de que gostam de ser.
A sociedade, em função dos questionamentos dos indivíduos e da realização de
seus conhecimentos sobre ela e sobre si mesmos, em vez de se apresentar como
uma condição homogênea em conformidade com uma cultura universal - que indica
a unificação de todos pela razão, bom senso e pela moral -, se torna mais complexa
e permeada de ltiplas representações sobre suas condições. Isso se aproxima da
idéia de que as microterritorializações se constroem a partir da formulação coletiva
dessas representações, indicando o agir e o pensar dos grupos e/ou agregados
sociais sobre determinados fatos.
A teoria das representações sociais formulada por Moscovici (2003) apresenta
dois conceitos importantes: a ancoragem, que significa como os indivíduos e os
grupos classificam e criam identificações para as coisas e os fatos sociais; e a
objetivação, produzida pelo acúmulo de conhecimentos que compara determinadas
coisas e fatos conhecidos com outros desconhecidos. O método microterritorial deve
envolver a análise sobre esses processos de classificação, identificação e
entendimento dos indivíduos sobre si mesmos e sobre a sociedade, implicando então
o envolvimento com os grupos sociais e os singnificados produzidos nos territórios
de convivência deles, que nos faz pensar em interpretar as territorialidades que, ao
mesmo tempo, os criam e são criadas por eles.
4.1.9. Território e territorialidade para Bonnemaison
Damos atenção ao trabalho de Bonnemaison (2002) a respeito dos conceitos de
território e de territorialidade e, a mesmo, a seu entendimento a respeito da
geografia, evidenciando, sinteticamente, as seguintes concepções.
140
4.1.9.1. Geografia existencial
Bonnemaison salienta a necessidade de produzir-se um entendimento real do
espaço geográfico pelo dinamismo das relações vividas, aproximando-se do
entendimento da complexidade subjetiva que produz e reproduz os diferentes grupos
sociais, o apego aos lugares e a produção simbólica do espaço. Entender as “visões
de mundo” é fundamental para análise da realidade espacial, o viver nos lugares, o
uso do espaço e sua produção. Para isso é necessário penetrar nas relações
cotidianas, entender os fatos mínimos que estabelecem as relações socioespaciais,
as rotinas que fazem persistir os movimentos, os funcionamentos e os laços afetivos
e/ou objetivos dos diferentes grupos sociais e suas localizações.
As produções do social e do material se misturam, se influenciam, se
interdependem, estando relacionadas tanto a determinações estruturais - que
procuram padronizar/homogeneizar formas e conteúdos, pelo grande poder que
exercem as macroinstituições ligadas ao Estado e ao capital - como a improvisos, a
microdefinições de micropoderes locais e a complexidade subjetiva que permeia as
múltiplas vivências do social.
A sociedade e o espaço devem ser entendidos como interdependentes e
analisados tanto por macro como por micro resultados, sendo os primeiros
constituídos por macromovimentos que procuram fazer tabula rasa da produção
objetiva e subjetiva do espaço a todos os lugares em escala global; e o segundo, por
“revoluções moleculares” (GUATARRI; ROLNIK apud HAESBAERT, 2002, p. 78),
seguindo um constante processo de diferenciação socioespacial que dá atenção ao
espaço vivido, produzido pelo cotidiano e pela construção subjetiva do local. Nesse
sentido, a prática cotidiana em geografia é de extrema importância, necessitando
cada vez da construção de uma abordagem da geografia do cotidiano que se
preocupe com a teia de relações localizadas, situacionais e os processos subjetivos
que as constroem para dar conta do complexo movimento da sociedade e de suas
relações espaciais.
141
4.1.9.2. Etnogeografia e espaço vivido
A relação entre os indivíduos e os lugares deve ser entendida também por um
sentido de afetividade e de identidade, ou seja, por um conjunto de crenças, valores,
costumes, seus desejos e suas necessidades de relações coletivas. Para entender o
espaço devemos procurar aprofundar as relações emotivas de um grupo e seu
espaço vivido, não somente as relacionadas à funcionalidade econômica e/ou
jurídico-institucional. Nesse caso, razão (objetividade funcional) e emoção
(subjetividade/desejo) devem estar lado a lado para compreensão do espaço, sendo
assim, ele é subjetivo, ligado a identidade e a cultura.
Bonnemaison (2002) sugere a abordagem da etnogeografia, procurando entender
o espaço das relações sociais por uma lógica informal, espontânea, construída por
conjuntos de experiência pessoais, pelas rotinas, pelo contexto ou cena social e as
ações normais. A etnogeografia, fundamentada no método etnográfico, procura
entender os “significados e significantes dos dados culturais dos grupos sociais,
buscando descobrir as significações e os sentidos que os indivíduos, enquanto
elementos de um grupo social, formulam de suas própria (situ)ações da vida
cotidiana” (TEDESCO, 2003, p. 99). Nesse sentido, o espaço vivido toma
importância, e ele deve ser entendido pelo “olhar do habitante” (SAUTTER apud
BONNEMAISON, 2002, p. 90), como se a construção espacial se estabelecesse pela
vivência que cada um tem com o grupo social com que se relaciona. O espaço seria
a teia emotiva, o campo de relações, os símbolos (materiais, comportamentais) que
solidificam as relações e que poderá ser apreendido pela incursão ao grupo para
entendimentos dos seus significados e significantes.
4.1.9.3. Grupos culturais
Bonnemaison (2002) funda uma abordagem geográfica da etnia, entendida como
grupos culturais, ou seja, grupos humanos reunidos a partir de identidades, de
conjuntos de práticas culturais - fundadas na soma de crenças, costumes, rituais,
simbolismos - e de suas existências geográficas que permite a permanência e a
142
estabilidade desses agrupamentos humano. De acordo com o autor, “a etnia elabora
a cultura e, reciprocamente, a existência da cultura funda e identidade da etnia”
(BONNEMAISON, 2002, p. 94). A existência geográfica da etnia ou do grupo cultural
é o que solidifica a singularidade e a permanência da identidade e da cultura, que
contrastam com outras. Nesse sentido, “não existe etnia ou grupo cultural que, de
uma maneira ou de outra, não tenha se investido física e culturalmente num território”
(BONNEMAISON, 2002, p. 97).
O autor evidencia que, na sociedade moderna urbanizada, os grupos - no caso,
microgrupos - são diversificados e apresentam complexas definições culturais,
territoriais e identitárias, dadas pelo dinamismo mutante e fluido de suas agregações.
Nesse sentido, o autor percebe a existência de diferentes etnias na cidade, ou seja,
pequeninos grupos culturais que se agregam e se apropriam de micropartes do
espaço urbano, estabelecendo complexas tramas (micro)territoriais interpostas,
sobrepostas, mutantes e fluídas.
4.1.9.4. Território e territorialidade
A criação e a solidificação da etnia ou grupo cultural se fundamentam pela
correspondência entre espaço e suas representações simbólicas. Nesse sentido,
uma coletividade cultural se estabelece pela identificação entre os indivíduos no
compartilhamento de sistemas simbólicos em um determinado espaço apropriado.
Por esse viés, “o território lembra as idéias de diferença, a etnia e a identidade
cultural” (BONNEMAISON, 2002, p. 126). Para o autor o território não se define
somente por uma relação à fixação espacial, mas sim por aproximar-se de uma
malha constituída de lugares e itinerários expressa por uma territorialidade, ou seja,
a relação que o grupo social tem com esse conjunto de lugares e itinerários. Dessa
forma, o território não se constitui como fechado, mas “é muito mais um núcleo do
que uma muralha, e um tipo de relação afetiva e cultural com a terra”
(BONNEMAISNO, 2002, p. 101), cabendo ao geógrafo desvendar a relação que une
os homens aos lugares.
143
O autor salienta a importância de se entender o território pelas relações
cotidianas, como espaço vivido e afetivo, ou seja, o espaço apropriado pelo campo
subjetivo (identitário) dos grupos culturais. Temos então um território que, ao mesmo
tempo, não representa somente fixidez (também o é quando lembramos a
representação do núcleo territorial), mas também um conjunto de lugares (também
mutantes) e trajetos ou itinerários (estabelecido pelo movimento) que se estabelecem
em diferentes escalas (passando pela escala transnacional, nacional, regional,
interregional, local – urbana ou rural).
Nesse sentido, fortalecemos a idéia das microterritorializações urbanas,
estabelecidas pelas relações cotidianas dos grupos culturais dentro da citada, ou
seja, conjuntos de lugares de reunião ou encontro e redes de trajetos firmados pela
agregação de pessoas que compartilham gostos, desejos, necessidades relacionais,
comportamentos e estéticas comuns. Cabe novamente ressaltar o caráter fluido em
mutante dessas microterriorializações e de suas fronteiras de convivência.
4.1.9.5. Território como convivialidade
Bonnemaison (2002, p. 126) diferencia território e espaço dizendo que o “espaço
começa fora do território quando o indivíduo está só, confrontando, e não mais
associado a lugares, numa relação de está excluída toda a intimidade”. Nesse
sentido, o território seria a parte de espaço com o qual um eu se identifica e mantém
intimidade e no qual convive com quem mantém vínculos de identidade e de
intimidade. De acordo com Bonnemaison (2002), no espaço o indivíduo torna-se
errante, e as pessoas que passam tornam-se estranhas. O autor argumenta sobre
essa idéia tomando como exemplo as grandes cidades modernas, nas quais se
constroem muitos espaços, fazendo-se imperar o individualismo pela pressa das
relações racionais, movidas por interesses práticos (econômicos). Por outro lado, ao
mesmo tempo em que a vida urbana se identifica como racional, individualista e
errante, observa-se que diversos refúgios ou lugares de “convivialidade” se
produzem, mantendo agregações sociais singularizadas por suas práticas cuturais
(construindo muitas microterritorializações). O território é, antes de tudo, uma
144
“convivialidade”, o lugar de encontro e de reunião, com a reunião apropriando-se de
parte do espaço, mesmo que seja pequena, uma esquina: um quadrante de uma
praça, um banco da praça.
145
4.2. AS TÊNUES APROPRIAÇÕES NO ESPAÇO URBANO
MICROTERRITORIALIZAÇÕES URBANAS EM PORTO ALEGRE-RS: EXEMPLOS
DAS MICROTERRITORIALIZAÇÕES HOMOERÓTICAS
No "mix" de expressões socioculturais que ocorrem nas grandes cidades,
ocorrem agregações sociais movidas por processos de identificação e formação de
alteridades. As identificações podem ser processadas por motivos bem simples,
como uma reunião de pessoas que passeiam com seus cachorrinhos de estimação,
ou podem demonstrar complexas convivências, como grupos de "punks", "gays",
prostituto(a)s, travestis, "hippies", garotos de rua, mendigos, entre outros.
O encontro com os "iguais", os processos de identificação e de pontuação de
alteridades, se processam constantemente e vão provocando microssegregações, ou
seja, singularizam pequenas partes do espaço do parque ou da praça pública por
uma convivência específica ou pela presença de determinado tipo social. Esses
microagregados sociais se apropriam de pequenos espaços (territorializam-se)
durante um período de tempo relativamente efêmero e produzem fronteiras de
convivências bastante permeáveis e elásticas (que se retraem e se expandem
esporadicamente) em estreita proximidade com outro agregado – que às vezes estão
sobrepostos ou dividem o espaço em tempos diferentes.
É importante o estudo desse movimento populacional para procurar entender
as características das expressões culturais diversas que fragmentam o espaço social
em microterritórios singularizados por práticas culturais, comportamentos, estéticas,
níveis de renda, e expressões de subjetividades diferenciados. Além disso, é
necessário entender os processos de identificação que reúnem determinados tipos
sociais em agregados de convivência, assim como os processos de
microssegregação espacial destes agregados, para, finalmente entender o
estabelecimento de alteridades e segregação/singularização espacial, ou seja, de
formação de microterritorializações urbanas. Para entender essas
microterritorializações, vamos tomar como exemplo as apropriações espaciais
homoeróticas em Porto Alegre-RS.
146
Figura 1: Principais áreas de territorialização homoerótica em Porto Alegre-RS
Na figura 1
79
acima, podemos observar as principais áreas onde ocorrem as
microterritorializações homoeróticas em Porto Alegre. Primeiramente temos dois
eixos-trajetos de deriva homoerótica, nos quais indivíduos same sex oriented se
microterritorializam em bares, boates e partes do espaço público durante o dia e
durante a noite. Os dois eixos são a Rua Lima e Silva, no bairro Cidade Baixa, e a
continuidade das ruas Cristóvão Colombo e Alberto Bins (mais precisamente das
79
Todas as figuras sobre Porto Alegre foram idealizadas pelo professor Benhur Pinós da Costa e
produzidas tecnicamente pelo professor Rafael Lacerda Martins, como parte do projeto de pesquisa
As tênues apropriações do espaço urbano: microterritorializações em parques e praças de
Porto Alegre-RS, junto ao curso de Geografia da ULBRA. As figuras também fazerm parte do texto
Microterritorializações urbanas: análise das microapropriações espaciais de agregados sociais
de indivíduos same sex oriented em Porto Alegre/RS, apresentado no I Seminário Nacional sobre
Múltiplas Territorialidades, ocorrido na ULBRA, em Canoas-RS, no ano de 2004. As figuras originais
foram preservadas, principalmente com as indicações da instituição e do projeto que as produziu,
porém elas foram usadas como instrumentos e como motivos de atualização ao projeto Por uma
Geografia do cotidiano: território, cultura e sexualidades homoeróticas na cidade, vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRGS, no qual originou essa pesquisa.
147
esquinas da rua Cristóvão Colombo com Ramiro Barcelos até a esquina da rua
Alberto Bins com o viaduto da Conceição). Além disso, podemos observar na figura
outras áreas importantes, como o Parque Farroupilha ou Parque da Redenção, a
praça da Alfândega, onde localiza-se também o Rua da Praia Shopping, e o Brique
da Redenção, localizado na rua José Bonifácio, na periferia sudeste do parque da
Redenção.
Podemos observar na cidade, de acordo com as figuras 2 e 3, abaixo, duas
grandes “áreas-trajetos” que se identificam pela circulação (deriva)
80
e formação de
microterritorializações de indivíduos e agregados sociais homoeróticos, que se
referem mais ao padrão de tipos de convivências espaciais vinculadas a encontros
amigáveis, festas gays ou GLS
81
, e buscas sexuais em lugares fechados (bares e
boates) destinados ao público same sex oriented. Essas duas grandes
territorializações em formato de “áreas-trajetos” mantêm o caráter tipicamente
noturno, vinculado às festas homoeróticas noturnas. A primeira se refere ao eixo da
rua Lima e Silva, típica rua boêmia de Porto Alegre, que agrega uma diversidade de
tipos sociais, principalmente universitários e intelectuais da cidade que se agregam
principalmente nos cafés da Rua República com a Lima e Silva e no centro comercial
Nova Olaria. Temos, nesse eixo, a freqüência de homossexuais nos cafés da
República, no Nova Olaria Shopping, nos bares Circuito, Venezianos, Azul Cobalto e
Da Lua, além de presenças esporádicas em todos os outros bares ao longo da rua
Lima e Silva, produzindo microterritórios de convivência aberta e de troca de
experiências entre a diversidade de tipos sociais que por ali circulam. Bares como o
Venezianos tem frêqüência gay assídua, produzindo um microterritorialização de
convivência amigável e de “paquera” homoerótica. Nele são apresentados shows de
“drag queens”, números musicais de preferência de lésbicas (que adoram Ana
Carolina e Adriana Calcanhoto), noite da paquera e dos “recadinhos” além de um dia
especial dedicado a música eletrônica, para fazer todos dançarem. Tal bar se
apresenta com uma microterritorialização de reunião da grande família gay, onde
todos se conhecem, trocam experiências, se amam e se inserem na cultura gay.
80
Ver Perlongher (1987).
81
Gays, Lésbicas e Simpatizantes.
148
Figura 2: Microterritorializações no eixo da Rua Lima e Silva no bairro Cidade
Baixa em Porto Alegre-RS
A segunda territorialização em área-trajeto homoerótico se refere ao eixo das
ruas Cristóvão Colombo-Alberto Bins. Nele estão algumas boates que promovem
festas gays típicas; muita música dançante; espetáculos de transformistas, drag
queens, strippers masculinos; e muita “paquera” e convivência amigável gay. Estão
localizados aí “guetos gays típicos”, referentes a boates noturnas: o bar Sungas
82
, na
Cristóvão Colombo, o cabaret Indiscretu´s freqüentado por garotos de programas,
sendo microterritorialização de busca sexual e extrema erotização masculina , o
Eróticos deos aberto durante todo o até a e início da noite, promovendo shows
82
No final do ano de 2006 o nome do Sungas foi mudado para Cine Teatro. De casa muito popular
entre gays de Porto Alegre, passou a selecionar um público mais refinado quanto ao gosto sobre
música eletrônica, princialmente aqueles que não gostam da musica pop eletrônica, mas se
interessam pelo trance e o techno, ou seja, músicas que misturam a dance music com tendências do
rock e do new hage. Além de simples festas GLS, o Cine Teatro promove festas temáticas, como
festas funk e festas que abordam algum tema e intervenções teatrais, causando a atração de um
público mais diversificado.
149
de strippers, sauna gay, shows de drags, sessões em salas de vídeo pornográficas
coletivas e individuais, com muita “pegação”
83
homoerótica no local -, a boate e bar
Vitraux com grande freqüência gay nas festas de domingo e com assiduidade
também de lésbicas e o Enigma
84
boate noturna com grande freqüência de
garotos de programa, drags, transformistas e homossexuais de classe mais baixa.
Outras casas se caracterizam como microterritorializações bastante fechadas,
lucrando por proporcionar um lugar escondido para efetivação de encontros
homoeróticos entre homens. São elas a deo-locadora Eróticos Vídeo, a sauna
Comendador Coruja e a Casa de Vídeo Santo Antônio.
Figura 3: Microterritorializações no eixo das ruas Cristóvão Colombro e Alberto
Bins, entre os bairros Floresta e Centro, em Porto Alegre-RS.
83
Gíria gay para práticas sexuais.
84
O Enigma, do início até o final da década de 90, foi a casa gay mais freqüentada de Porto Alegre.
Nos anos 2000 permaneceu funcionando, com a freqüência principalmente de garotos de programa e
travestis. Depois do final do ano de 2006 a casa fechou definitivamente.
150
Apresentamos os dois principais eixos territoriais noturnos da vida gay de
Porto Alegre. Agora vamos observar a agregação homoerótica em espaços públicos,
tomando como exemplo as apropriações, pontos e trajetos, homoeróticos. Durante o
dia, a circulação homoerótica se apresenta vinculada à necessidade de busca sexual
nos parques e nas praças, ou seja, de encontrar um parceiro para práticas sexuais
diurnas. Essa busca de práticas sexuais homoeróticas diurnas reúne diferentes tipos
masculinos, vinculados ou não à vida e à cultura gay. Observamos, nos trajetos e
pontos das praças e parques, tanto homens que não participam da cultura e das
territorializações gays e GLS noturnas, assim como garotos de programas, idosos e
gays de diferentes classes sociais e tipos estéticos e comportamentais.
A busca sexual homoeróticas masculina tende a misturar classes sociais e
idades: gays que se aproximam com o tipo estereotipado da bicha, gays discretos,
homens casados, bofes
85
, entre outros tantos citados em Costa (2002). A partir
pesquisa As tênues apropriações do espaço urbano: microterritorializações em
parques e praças de Porto Alegre-RS, vamos demonstrar a diversidade de
agregados sociais e suas apropriações espaciais no parque Farroupilha e praça da
Alfândega em Porto Alegre.
Na figura 4 estão representados os pontos e trajetos de busca sexual que
constroem a microterritorialização homoerótica na praça da Alfândega e no Rua da
Praia Shopping. As indicações por letras identificam pontos de encontro e práticas
sexuais homoeróticas (felação, masturbação, voyerismo, exibicionismo). Os
principais pontos dessas práticas são os banheiros masculinos da praça (indicação
1) e os localizados no subsolo (indicação 2) e no segundo piso do shopping
(indicação 3). As linhas com flechas indicam os trajetos de deslocamentos, que se
referem principalmente aos trajetos de ligação entre os banheiros. Devido a essa
circulação de busca sexual entre os banheiros, reunindo uma diversidade de homens
em busca de experiências sexuais com outros homens, temos a produção de
reuniões homoeróticas mais estáveis, aproximando-se da convivência gay amigável
e da convivência entre clientes e garotos de programa.
85
A dicotomia bicha e bofe faz parte da cultura gay brasileira: bicha seria o efeminado e passivo na
relação sexual, o bofe, ao contrario, seria o masculino e ativo.
151
Figura 4
86
: Microterritorializações homoeróticas entre a Praça da
Alfândega e Rua da Praia Shopping, em Porto Alegre-RS.
Na indicação A, nas periferias da praça da Alfândega com a Rua dos
Andradas, entre o shopping e os banheiros da praça, verificamos a presença
constante de agregados sociais, de homossexuais idosos em convivência com
garotos de programas, de pouca idade (adolescentes e jovens adultos). Nesse ponto
são microterritorializados em um tipo de convivência bastante interessante, em que
michês
87
jovens e clientes idosos conversam, trocam experiências, se ajudam
mutuamente, se divertem e não se vinculam somente às necessidades de práticas
sexuais.
86
Propomos representar no plano os fenômenos microterritoriais em escala muito grande (o
quadrante sudoeste da praça e o prédio do Shopping). A figura não está georeferenciada e apresenta
algumas distorções quanto à proporcionalidade de áreas. Nosso interesse é somente visualizar as
microterritorializações.
87
Gíria gay que identifica garotos de programa.
152
Na indicação B está representado o salão de beleza no terceiro andar do
shopping Rua da Praia, ponto de forte atração gay, onde cabeleireiros gays e seus
amigos se encontram, produzindo uma convivência amigável em relação ao trabalho
de cabeleireiros. Essa microterritorialização produz um exemplo diurno de agregação
social vinculada às práticas culturais e tipo de convivência GLS. Na indicação C
observamos a reunião de garotos de programa no fliperama do subsolo do shopping,
perto do banheiro masculino, ponto fundamental de “pegação” gay. Nessa
microterritorialização, garotos de programa convivem entre os jogos de fliperama e a
necessidade econômica da prostituição vinculada às experiências homoeróticas. Tais
garotos não se identificam como gays, e entre eles fortalecem a identidade
masculina e os seus desejos para com o sexo oposto, evidenciando as práticas
sexuais homoeróticas como simples necessidade financeira e pontuando seus
papéis ativos nas relações sexuais. A indicação D remete à praça de alimentação
no subsolo do shopping, próximo ao banheiro masculino e ao fliperama. Nessa
indicação, observamos a reunião de amigos homossexuais que estão paquerando
em grupo, observando a movimentação no banheiro, e de michês entre o banheiro e
o fliperama. Muitos desses grupos de amigos fortalecem o tipo do gay efeminado
entre eles, muitas vezes tentando atrair bofes ativos ou firmando uma identidade gay
entre o grupo de amigos.
Finalmente, na indicação E está representado o ponto de encontro na frente
do Rua da Praia Shopping. É um dos mais conhecidos pontos de encontro da cidade,
ou seja, várias pessoas que pretendem encontrar alguém tendem a marcar seus
encontros nesse lugar. No entanto, em meio à diversidade de quem marca encontro
nas portas do shopping, ficam garotos de programas encostados/escorados nas
grades baixas rentes ao prédio da Caixa Econômica Federal (CEF), situado em
frente à porta do Shopping, e homossexuais parados na própria porta do shopping.
Os dois grupos não se misturam, praticam suas “paqueras” sozinhos, principalmente
homossexuais na porta do shopping, mas se apresentam trocando olhares e
estabelecendo contatos que visam diretamente a deslocamento a algum lugar (casa
ou motel da área do centro da cidade) para efetivar as práticas sexuais. As outras
indicações de asteriscos numerados representam outras microagregações
153
socioespaciais que segregam grupos na praça da Alfândega. Tais indicações servem
para demonstrar a diversidade de tipos de convivência social e suas apropriações na
praça.
Figura 5: Microterritorializações homoeróticas no Parque Farroupilha –
ou Parque da Redenção – em Porto Alegre-RS.
Na figura 5 estão representados os pontos e trajetos que constituem
microterritorizalizações homoerótica de busca sexual no Parque Farroupilha (ou
Parque da Redenção) no período diurno e nos dias de semana. Não estão
representadas as dinâmicas microterritoriais dos finais de semana, períodos em que
as agregações são outras e a densidade populacional que freqüenta o parque é bem
maior. Novamente chamamos atenção para a circulação homoerótica nos banheiros
do parque, justamente pela busca de experiências sexuais entre homens,
154
representados pelas indicações 1, 2 e 3 na figura. As outras indicações numéricas
referem-se a pontos no parque que se apresentam mais reservados por manterem
vegetação mais densa, na qual, em diversos horários diurnos, principalmente cedo
da manhã, pelo meio-dia, ao cair da noite e em dias de chuva podem ser observados
contatos íntimos same sex oriented, assim como voyerismo e exibicionismo.
São os seguinte os pontos de microterritorialização: 4 - recanto alpino -; 5 -
área arborizada perto do orquidário -; 6 - taquareiras perto do recanto oriental -; 7 -
área arborizada próximo ao colégio Flores da Cunha -; 8 - recanto oriental -; 9 - rosa
dos ventos -; 10 - recanto grego. As linhas tracejadas referem-se aos trajetos de
circulação (“deriva”) homoerótica em busca sexual.
Também estão representadas as áreas de contato com outras
microterritorializaçãoes de outros agregados sociais que convivem no Parque da
Redenção: A e B - pracinhas (crianças e convivência familiar) -; C - mini zôo -; D -
adolescentes escolares que se reúnem para beber e fumar no recanto alpino -; E -
microterritorialização de diversidade social, frequentado principalmente por
aposentados, grupos de jovens universitários e grupos de homens e mulheres gays
em convivência amigável -; F e G - respectivamente, as proximidades das
taquareiras, próximo ao recanto oriental, e o recanto grego, onde podemos observar,
além da busca sexual homoerótica, jovens namorados e voyers que ficam a observá-
los, excitando-se e, até mesmo, masturbando-se -; I - equipamentos de ginástica,
onde convivem esportistas e “marombeiros”,
88
-; J - campo de futebol, que agrega
vários tipos sociais masculinos em virtude do futebol (estudantes do colégio militar,
aposentados da região, michês do parque, moradores de rua e mendigos, entre
outros); L quadra de bocha, principalmente freqüentada por aposentados dos
bairros próximos -; M - área de freqüência de “elzas”,
89
que muitas vezes atraem
homossexuais em busca sexual para os assaltarem -; N - desempregados, muitas
vezes jovens que buscam descanso no parque e podem entrar em contato com a
prostituição masculina, transformando-se em michês esporádicos.
88
Homens musculosos, fisioculturistas amadores.
89
Gíria gay para ladrões.
155
4.3. O ESTUDO ETNOGEOGRÁFICO E O CASO DE ALGUMAS
MICROTERRITORIALIZAÇÕES HOMOERÓTICAS EM PORTO ALEGRE-RS:
Esse estudo está organizado da seguinte forma: primeiramente uma
apresentação dos companheiros same sex oriented os quais acompanhamos em
cinco microterritorializações de encontros homoeróticos, no ano de 2006, para
podermos identificar comportamentos e discursos deles quanto as convivências
estabelecidas. Depois da apresentação vamos analisar aquelas para as quais
atentamos, reproduzindo alguns discursos ouvidos, assim como um quadro
explicativo sobre o envolvimento de nossos companheiros nelas.
4.3.1. Os amigos
Vamos procurar caracterizar os companheiros que influenciaram nossas
experiências homoeróticas e o entendimento sobre os lugares em que elas podem
ocorrer. Salientamos que não podemos expor a complexidade dos sujeitos
envolvidos, pois somente um trabalho de intensa análise psicológica poderia fazê-lo.
No entanto, podemos resumir algumas perspectivas diferenciadas quantos a seus
desejos, suas afetividades e seus comportamentos.
Observando que as microterritorializações de encontros same sex oriented
são lugares importantes para nossos amigos tecerem suas relações afetivas de
amizade e de encontros como parceiros amorosos, as posturas das pessoas
envolvidas com essas microterritorializações se defimem basicamente em relação a
três perspectivas: a de encontro festivos entre amigos de muito tempo, fazendo
lembrar os motivos que caracterizam a festa gay;
90
a de lazer entre namorados (que
90
A festa gay é o motivo da imaginação de uma comunidade e de uma cultura que a identifica. Ela
concede a liberdade restrita em relação a ela. Muitos dos indivíduos same sex oriented aprende a
velar seus desejos na sociedade, liberando-os na festa. A festa gay apresenta-se como
microterritórios de exaltação ao desejo e auto-afirmação dele. Ela constrói a cultura gay, pois o
experimento das relações contidas na festa constrói grande parte das representações e
entendimentos individuais sobre seus desejos homoeróticos: a liberdade é cultuada pela dança
frenética (dance music); a liberalização do experimento afetivo-sexual homoerótico (sexo sem
compromisso, prático e na maior quantidade possível o estigma acaba produzindo um sintoma de
escassez de oportunidades de saciar os desejos sexuais); a ironia e a mistura quanto aos padrões
estéticos de nero sexual expressos nas roupas, nos acessórios, nos comportamentos e tratamento
156
também encontram grupos de amigos para festejar); ou a de simples busca por
parceiro sexual, cujo encontro pode desenvolver-se em um relacionamento mais
duradouro ou permanecer como um simples momento de prazer.
Observamos a separação de “domínios” de convivência territorial na vida de
nossos amigos, como por exemplo, a separação entre afetividade homoerótica,
família, trabalho e, até mesmo, vida privada em suas residências.
91
Eles ora
camuflam, ora divulgam a identificação homossexual,
92
e isso implica atenção às
pessoas, grupos, instituições e microterritorializações em que essa identidade possa
ser revelada.
93
Embora a convivência entre nossos amigos nos deixe confusos em
aproximá-los de uma identificação homossexual, eles mesmos se acham diferentes
de uma maioria heterossexual. Em virtude desse conhecimento, construído em
relação à polarização sexual da sociedade vigente, acreditam na existência de uma
“comunidade gay” (como uma população homossexual que vive diferente dos
heterossexuais), mesmo sendo difusas as suas próprias compreensões sobre o fato.
do corpo; o sarcasmo e a comédia impregnada dos assuntos que reproduzem situações que
envolvem o estigma, contornando sua gravidade e valorizando atributos do estigmatizado. A cultura
gay se constrói pela territorialidade homoerótica, que se estabelece em diversos lugares específicos
de convivência e de expressão de sexualidade, uma vez que não é possível totalmente sua
publicidade pois está baseada num estigma social. Esses lugares representam as festas noturnas,
nas quais o mercado age vinculando-se a um segmento social e a um grupo cultural. Para esses
lugares converge uma série de elementos de consumo (tipos de vestuário, grifes, tipos de serviços,
musicas, cinema e artes no geral), que concretizam a cultura e os tornam trocados simbolicamente em
várias regiões do mundo (pela mundialização da informação e da rápida troca de mercadorias e
símbolos). A cultura tende a unificar-se, assim, pela condição estigmatizada da homossexualidade
(que é uma realidade em quase todo o globo, mesmo em diferentes situações e condições
localizadas), pela tendência de localização afetiva desses indivíduos (no espaço urbano) e pelas
estratégias de mercado que vão ligar-se com as necessidades e construções de coletivas dessa
sexualidade e os lugares em que elas são incentivadas (ou até mesmo forçadas) a acontecer.
91
Alguns homens, mesmo independentes e morando sozinhos, procuram preservar suas residências
dos relacionamentos amigáveis ou sexuais, por motivo de segurança pessoal em relação a muitos
oportunistas que podem usar esse tipo de atração para furto, roubo ou algum tipo de violência.
92
Preferimos usar expressões derivadas da palavra “homoerotismo”, ou same sex oriented, para
explicar situações e indivíduos orientados para o mesmo sexo, uma vez que os comportamentos,
estéticas e perspectivas desses indivíduos são múltiplas. Aqui usamos a identificação “homossexual”
porque ela remete à simples polarização de uma sexualidade divergente a heterossexualidade e
apresenta-se como realidade de identificação na sociedade, principalmente em contextos de
instituições sociais ditas normais. Usamos “homoerotismo” e same sex oriented quando o texto quer
indicar a dificuldade de caracterizar os sujeitos orientados para o mesmo sexo, assim como “gays”
quando os sujeitos indicam uma postura de relação próxima com a cultura gay, assim como
“homossexual” para pontuar simplesmente qualquer tipo individual orientador para o mesmo sexo, ou
quando o texto somente quer indicar a orientação, e não fazer lembrar a complexidade de expressões
que envolve.
93
Conforme Costa (2002).
157
Expressões como “entendido”, da “turma”, até mesmo “gay”, “bicha”, “veado”,
“boiola”, remetem à identificação de todos à condição identitária polarizada
homossexual, mas, cotidianamente, suas relações com outras pessoas, suas
estéticas, seus prazeres e os lugares em que convivem são diversos. Observamos
que homens orientados para o mesmo sexo se entendem e se identificam como
homossexuais, são conscientes de que o múltiplas as suas experiências
envolvendo o homossexualismo.
A boemia urbana e a constituição de uma rede de lugares de consumo e de
festividade noturna também se reproduzem relacionadas à polarização da
sexualidade humana. Por outro lado, atualmente existem l microterritorializações
definidas pela possibilidade de freqüência “misturada”, definidos como GLS, assim
como muitas casas que procuram uma clientela mais específica, caracterizadas
como temáticas, nas quais a atenção à sexualidade é o que menos interessa.
94
Mesmo naqueles bares e boates definidos como gays, as características estéticas,
as perspectivas de convívio e as posturas das pessoas que os freqüentam remetem
quase sempre à heterogeneidade. Essas relações o muito difíceis de serem
explanadas na sua complexidade, pois implicam relações bastante diferenciadas da
moralidade e da racionalidade social. Implicam também as perturbações das
94
Algumas casas GLS promovem festas temáticas, relacionando tipos músicais e incentivando o traço
cultural que elas trazem e, por conseguinte, atraindo também um público que não se define pelo gosto
homoerótico. No Cine Teatro (ex-Sungas, conforme localizado na figura 3, pagina 148), localizado na
Avenida Cristóvão Colombo, os espetáculos de transformistas são apresentados como peças teatrais,
atraindo qualquer pessoa. Em alguns momentos em que estivemos assistindo a uma peça; a casa
tinha a presença de muitos casais ditos heterossexuais e de idosos que estavampelo espetáculo, e
não em virtude de muitas representações de situações gays que expressavam. A comédia em
questão enfatizava a vida de ex-prostitutas, mas, com um texto mais sutil, se aproximava de situações
envolvendo a vida de travestis e os desejos e prazeres homoeróticos. As comicidades do texto e das
interpretações, em vez provocarem estranhamento, eram aceitas como engraçadas pelo público. A
festa “pancadão”, por exemplo, envolve a cena funk nacional, enfatizando um estilo carioca. Entre as
músicas são feitas também encenações de transformismo, reproduzindo de forma cômica algumas
performances de artistas do gênero. Nessa festa encontramos muitas mulheres e casais de
namorados que não procuram especificamente alguma experiência homoerótica, e sim a expressão
contida na música e na dança. A festas do lugar também contêm shows de go go boys que chamam a
atenção do público feminino, principalmente amigas de gays, que vão lá para olhar os rapazes. A festa
Erótica oferece ao público cenas de sexo explícito e muito erotismo nas performances de dançarinos e
dançarinas em um lugar que não representa uma casa de prostituição específica, atraindo um público
que se interessa por isso mas que não quer freqüentar aqueles estabelecimentos. É evidente também
que essas aproximações vão promover algumas experiências homoeróticas (dança, paquera e
encontros sexuais) entre pessoas (homens e mulheres) não especificadamente orientados para o
mesmo sexo.
158
definições promovidas pela agregação de alteridades e desvios sociais (as diferentes
microterritorializações homoeróticas, por exemplo). No entanto, aqui vamos procurar
explanar alguns pontos principais que ajudarão nossa construção teórica sobre o
assunto proposto, em relação às alteridades individuais encontradas em nossa
pesquisa participante
95
:
4.3.1.1. Amigo AP
Empregado de nível técnico em uma industria da região metropolitana de
Porto Alegre, assim como residindo na mesma cidade em que trabalha, esse amigo é
solteiro e habita com a mãe. Mantém relações amorosas fixas com um parceiro,
embora não fiéis, sempre convivendo em lugares de encontros homoeróticos para
efetivar uma paquera.
Procura reforçar seus atributos masculinos e se distancia de qualquer
tipificação efeminada, embora, em suas falas, o desejo quanto ao corpo masculino
se apresente quase como uma obsessão. Busca discursivamente enfatizar sua
postura sexual restrita à atividade e ao desejo quanto à região dos glúteos
masculinos (a “bunda”), reproduzindo os discursos definidores do “macho” em meios
ditos heterossexuais.
Ao mesmo tempo em que freqüenta e admira expressões típicas do imaginário
gay, como a dança e o gosto pelas divas da dance music,
96
bem como as relações
com efeminados e a admiração em relação aos shows de drag queens, procura a
simplicidade e a masculinização de suas estética corporal, atentando à postura em
conformidade com o gênero, sem expressar trejeitos e vocabulários evidenciados na
cultura gay.
Seu circulo de amizades é restrito, mantendo amigos mais lidos fora de
Porto Alegre. Na cidade mantém algumas amizades com indivíduos orientados para
o mesmo sexo somente quanto freqüenta microterritorializações específicas para
esses encontros. Com poucos convive fora desses ambientes. Grande parte dos
95
Embora as denominações sejam fictícias, remetem a sujeitos concretos.
96
Gloria Gaynor, Tony Braxton, Whitney Houston, Cher, Madonna, Sarah Brightmann, entres outras.
159
conhecidos são paqueras e transas esporádicas, sem nenhum vinculo afetivo e
compromisso.
4.3.1.2. Amigo BP
Profissional cabeleireiro, este amigo trabalha e reside na capital. Atualmente
habita com o namorado. Apresenta um comportamento de efeminamento nos gestos
e na fala, mas, ao mesmo tempo, faz musculação e preocupa-se com o cultivo dos
contornos do corpo masculino. Declara-se passivo nas relações sexuais, assim
como, em suas falas, atenta para o desejo em relação ao sexo masculino (a “neca”,
na linguagem gay).
Não se preocupa ou não atenção a camuflar suas preferências sexuais,
assim como seus atributos e comportamentos que denotam confusão quanto às
estéticas de gênero. Declara gosto pelas divas do imaginário e se emociona
imitando-as. Utiliza-se de muitas expressões de um “vocabulário gay”, como “uó”
(horrível), “edi” (ânus e bunda), “neca” (pênis), “elza” (roubo, ladrão), “aqué”
(dinheiro), “odara” (grande – “neca odara”), entre outros.
Vive longe da família, mantendo visitas muito esporádicas a ela, inclusive
alegando muitas divergências quanto à aceitação dos pais em relação a sua
condição.
Conhece muitas pessoas que convivem constantemente nas
microterritorializações de encontros homoeróticos. Tais pessoas são, em sua
maioria, ex-namorados ou ex-paqueras ou alguém com quem teve alguma
experiência sexual, não declarando nenhuma restrição quanto a tipos de
relacionamentos sexuais anteriores e a amizades presentes, quase todos fundando
um círculo de relações que confunde amor, sexo, amizade, sem um total
compromisso ou preconceitos quanto ao teor da relação que manteve, explicitando a
qualquer um essas relações.
160
4.3.1.3. Amigo CP
Advogado, muito preocupado com a estética elegante e com as vestimentas
da moda que não destoam dos atributos masculinos, de fino trato ao corpo e à
limpeza (individual e do ambiente em que habita), este amigo preza pelo cuidado
corporal das pessoas e dos ambientes que freqüenta. Apresenta um certo gosto ao
refinamento (tipos de restaurantes, lojas, lugares de lazer) e um ótimo conhecimento
de cinema, artes cênicas e artes plásticas.
Em relação às preferências musicais, não apresenta preconceito quanto ao
ecletismo, mas além da dance music, prefere a MPB, o jazz e o blues (inclusive
cultua grandes divas desses tipos de musica, como Sarah Vougan e Aretha
Franklin).
Extremamente discreto e, embora não preocupado em camuflar a identificação
homossexual, mantém posturas pelas quais não gera nenhuma desconfiança quanto
a suas relações homoeróticas, assim como não se preocupa em exacerbar
comportamentos masculinos.
Seu circulo de amizade não é extenso, mas demonstra grande afetividade e
companheirismo no meio dele, assim como preza uma relação afetiva estável e não
é propenso à promiscuidade, que, de acordo com ele, é muito evidente em relação
aos meios de convivência homoerótica.
4.3.1.4. O amigo DP
De convivência mais difícil e muito esporádica em encontros não relativos a
lugares como bares e boates de festas gays, mas em microterritorializações de
transito homoerótico de paquera e busca sexual, como banheiros públicos e parques,
este amigo apresenta-se, como estando longe de qualquer vínculo com a cultura
gay, mantendo uma vida territorializada em lugares nos quais pode encontrar um
parceiro ou qualquer experiência homoerótica (voyerismo, maturbação, felação
rápida). Seus argumentos giram em torno da família, dos filhos e dos projetos de
trabalho e futuro. Pouco entende a respeito do que se torna muito importante e
161
cotidiano estabelecido entre círculos territorializados homoeróticos ou de um
conjunto de atributos definidores de uma cultura gay, como a música, as roupas, as
expressões corporais e os vocabulários.
Apresenta o desejo e consegue ter prazer homoerótico quando encontra
lugares públicos onde isso pode acontecer. Seus desejos não implicam a penetração
no ato do sexo, mas a admiração quanto ao membro masculino (somente observá-lo
e tateá-lo).
4.3.1.5. Amigo EP
Muito descontraído e falante, de fácil aproximação e conhecedor de uma
grande quantidade de pessoas same sex oriented em Porto Alegre, este amigo é um
jovem que, embora se vincule principalmente a grupos de amizades de indivíduos
efeminados, não apresenta nenhum atributo que o identifique com o estereótipo gay,
embora explicite suas preferências como passivo na relação homoerótica.
Mora em um bairro periférico da cidade e mantém relacionamento com um
policial militar, por quem se declara perdidamente apaixonado, mas não
correspondido, fato que o faz autopermiter-se manter muitas outras relações sexuais
esporádicas.
Apresenta um teor romântico em sua fala, almejando sempre um grande amor,
embora faça parte de uma rede de amizades cujas experiências sexuais acontecem
sem comprometimento e de forma promiscua.
4.3.1.6. Amigo FP
Este amigo apresenta grande capacidade de transitar entre a discrição das
expressões normalizadas quanto a atributos do gênero masculino, quanto à mistura
de estéticas de gênero (trangenerificação) entre os grupos de amizade a que
pertence.
Trabalhador de uma fábrica da região metropolitana de Porto Alegre, mantém
uma flexibilidade quanto a suas expressões pessoais, exacerbando o efeminamento
162
e, muitas vezes, “montando-se” (expressão de designa o travestismo) em sua
residência e em boates gays, assim como assumindo um perfil condicionado às
posturas masculinas em ambientes de trabalho e em outras situações cujos cenário
e o público não permitem expressões homoeróticas.
4.3.2. As microterritorializações
97
Para nossa análise quanto às microterritorializações homoeróticas de que
participamos em Porto Alegre, vamos organizar explanações textuais que
apresentam aspectos gerais delas, alguns discursos
98
colhidos no momento da
97
Apresentamos aqui não a totalidade de microterritorializações homoeróticas de Porto Alegre. Isso
foi o trabalho desenvolvido em Costa (2002). Atentamos para algumas nos quais o trabalho de
observação participante no ano de 2006 foi mais atento e mais condicionado às relações entre os
amigos com quem convivemos, para podermos relacionar as expressões individuais a respeito da
homossexualidade e a diversidade de comportamentos que definem os lugares de convivência
homoerótica.
98
Os discursos aqui remetem a dados colhidos pelo trabalho etnogeográfico”, que procurara “olhar
com os outros dos outros”, como argumenta Bonnemaison (2003). Isso também se refere a nossas
intepretações sobre o entendimento e a relação dos nossos amigos com as microterritorializações
homoeróticas, que apresentamos nos quadros a seguir. Os discursos e as análises contidas nos
quadros representam um esforço de procurar entender como os indivíduos same sex oriented
entendem a condição deles e os lugares em que convivem, assim como suas relações com a moral,
os padrões e os (pré)conceitos sociais. Esse esforço implica, então, procurar expor as representações
que estabelecem sobre desejos e situações relacionais que envolvem o homoerotismo, aproximando-
se da teoria das “representações sociais” de Moscovici (2003). Por outro lado, muitos discursos
divergem sobre as microterritorializações, assim como sobre as identificações que as pessoas
estabelecem com elas. Nesse sentido, as microterritorializações existem em virtude da condição
social sobre a homossexualidade, como polarização identificatória que unifica desejos e sujeitos
orientados para o mesmo sexo; porém, esses sujeitos divergem quanto aos sentidos que dão aos
seus desejos e quanto às posturas que assumem em relação à auto-afirmação de uma diferença
cultural, à necessidade de adequar-se aos parâmetros de gênero sexual e aos vínculos que
estabelecem em relação a vínculos estéticos e outras culturas comercializadas em meio urbano. A
microterritorialização possiblita o encontro homoerótico, que ainda não é totalmente aceito como
expressão pública de afetividade; porém, as representações que os sujeitos estabelecem em relação
a elas apresentam-se como dialéticas e se referem mais a um conjunto de negociações que giram em
torno de preconceitos, discriminações e identificações diferenciadas existentes entre tais sujeitos.
Assim, a microterritorialização apresenta um contexto de negociação do aqui e agora” da reunião
homoerótica, permeada por questões que se apresentam “contra” e a favor” da sociedade; da razão;
da moral; de certas representações contidas no mercado, nas imaginações sobre o desejo e na
expressão e comportamentos espontâneos. Daí a dificuldade de perpetuar no tempo as definições das
microterritorializações, mesmo sendo únicas oportunidades de certos indivíduos manterem
afetividades homoeróticas. Elas alteram-se em relação às negociações que se estabelecem no
momento da reunião territorializada, no qual emergem contradições existentes entre sujeitos sociais
same sex oriented.
163
participação
99
e um quadro explicativo que reporta às relações estabelecidas pelos
amigos que nos acompanharam. Nas linhas vamos dispor os amigos e, nas colunas,
as relações deles ao microterritorialização, manifestadas a partir de nossas
impressões e dos discursos que fluíram em nossas conversas
100
. As relações deles
estão organizadas da seguinte forma, em descrições breves:
a) estranhamento: elementos da reunião territorializada que provocaram
estranhamento e desconforto a nossos amigos;
b) identificação: elementos que provocaram conforto e admiração à
convivência na microterritorialização;
c) banalização: elementos que nos chamaram atenção e que não foram
comentados ou observados por nossos amigos;
d) transformação: alguns atributos que se constituíram como mutantes entre
nossos amigos e que atribuem-se à participação na microterritorialização.
4.3.2.1.Venezianos Pub
Localizado na rua Joaquim Nabuco, do bairro Cidade Baixa, apresenta-se
como uma pequena casa de dois pisos nos quais se “amontoam” pessoas orientados
para o mesmo sexo.
101
Embora podendo observar estéticas diferenciadas e a
formação de subgrupos, a reunião territorializada, em certos momentos parecemos
estar contidos em uma “grande família”, cujos membros, quase todos, se conheciam.
E muitos teciam comentários quantos às pessoas
102
“novas” e “fora do lugar”
103
em
que estavam presentes.
99
Os discursos não são reproduzidos de forma fidedigna, pois remetem a conversas informais, que
constituem a observação participativa, e não uma entrevista. Assim não foram registrados ou
gravados, mas guardados como idéias importantes para o desenvolvimento da pesquisa.
100
Apresentamos um resumo que representa nossa avaliação sobre as posturas e comportamentos
de nossos amigos. Além disso, não nos preocupamos em numerar a quantidade de vezes em que os
acompanhamos ao lugar, pois muitas das impressões colhidas também não implicam participação
direta nas microterritorializações, mas conversas estabelecidas em outros lugares da cidade, que não
sejam de freqüência especificadamente homoerótica.
101
Tanto homens quanto mulheres. Porém nosso interesse é observar as relações estabelecidas
entre os homens.
102
Usamos a palavra “pessoas” para indicar o senso comum, ou seja, uma pessoa qualquer ou uma
unidade humana. Muitas vezes usaremos também “indivíduos” para indicar a unidade e não o grupo
que estamos analisando, ou aquele que se individualizou na perspectiva de Heller (1991). As palavras
164
O pub está localizado numa região em que transita uma diversidade de
expressões culturais urbanas da cidade, mas sua especificidade de apresentação do
prédio implica discrição: uma casa comum e fechada, numa rua escura um tanto
distante das regiões do bairro de concentração de bares (a Rua Lima e Silva, João
Alfredo e José do Patrocínio). Ao mesmo tempo em que se localiza na região boêmia
da cidade, o pub está discretamente inserido nela, possibilitando certa “camuflagem”
para a chegada e saída de pessoas que o freqüentam. O que queremos dizer com
isso é que o bar apresenta-se como um dos tantos outros presentes no bairro Cidade
Baixa, mas define-se como um tipo específico que não divulga o que acontece em
seu interior, causando “proteção” no que tange à exposição das expressões
homoeróticas.
Tivemos a oportunidade de conviver com essa microterritorialização
juntamente com cinco amigos dos seis que destacamos anteriormente, assim como
com outros conhecidos mais esporádicos e os relativos a breves contatos exercidos
no lugar
104
. O pub Venezianos apresenta-se como uma microterritorialização
possível para a livre afetividade homoerótica sem preocupação com a camuflagem
delas, por outro lado nem todos as pessoas sentem-se confortáveis e identifiquem-se
com as relações estabelecidas ali. Aliás, a própria microterritorialização se fragmenta
em propostas de convivências diferenciadas, produzindo formas de interações
culturais muito específicas, dependendo da noite da semana em que ocorre a
“pessoa” ou o “indivíduo” usadas aqui se aproximam da banalidade do homem-particular” ou do “ator
social” que representa papéis sociais, assim como a discussão que estabeleceremos quando as
contradições contidos nesses conceitos.
103
Os “fora do lugar” referem-se principalmente à estética e a apresentação visual. O Venezianos
pode ser caracterizado como um lugar de convergência de homens same sex oriented que
apresentam uma situações financeira bem defina, fazendo parte de um segmento social de classe
média. Muitos dos participantes procuram manter assuntos e mostrar conhecimentos sobre arte,
cinema e mídia no geral, assim como discutirem fatos que são divulgados pelos instrumentos de
comunicação globais. Tais homens, em sua maioria, têm curso superior completo e investem numa
boa apresentação pessoal quanto às roupas e aos acessórios que usam. Nesse sentido, todos os que
divergem dessas qualidades são notados como “fora do lugar”. Por outro lado, tais “pessoas
descontextualizadas” podem ser aceitas se causarem algum atrativo homoerótico a seus
participantes, como atributos valorizados da beleza masculina (corpo malhado, expressões másculas,
entre outros).
104
Vamos utilizar muito a palavra “lugar”, no entando, não discutimos a categoria geográfica lugar”.
Aqui aparecem como localizações, próximas ao senso comum. Mesmo dizendo “lugar” e “lugares” e
definindo a característica dele (s), queremos explicitar que essas localizações e as relações culturais
existentes nelas são as expressões das reuniões homoeróticas microterritorializadas. Nesse sentido,
lugar aqui se refere a simples localização das microterritorializações para que atentamos.
165
agregação: na noite de quarta-feira, é um lugar de encontro de solteiros amigos que
estão dispostos a encontrar um par romântico, devido a ser a noite do cupido (em
que um homem bonito e musculoso transita entre as mesas entregando recados,
como um cupido); na noite de quinta-feira, a casa se transforma numa pista de
dança, ocorrendo shows de drags e havendo muita sensualidade e paquera, algo
que se aproxima de uma festividade tipicamente gay; na noite de sexta-feira,
ocorrem shows de MPB ao vivo, havendo a reunião é amigável e percebendo-se que
o público é de homens e mulheres de meia-idade; muitos deles casais fixos; no
sábado, o lugar se transforma num ponto de encontro “pré-festa” (após estarem no
Venezianos, se dirigem para outras casas noturnas), concentrando uma diversidade
de expressões e indivíduos e perdendo a forma de “grande família” que
comentávamos; no domingo, novamente temos a formação da pista de dança de
música eletrônica, e o lugar funciona como um “matinê aos seus freqüentadores
mais assíduos.
Nas vezes em que estivemos na microterritorialização, observamos a
condição de um pequeno espaço quase sempre superlotado, no qual as pessoas se
“amontam”, sendo que muitos desses participantes se conhecem, se abraçam e se
beijam quando chegam ao recinto. A aura de intimidade condiciona um receio
quanto a novos elementos que venham participar da reunião, assim como a definição
do objeto de prazer quanto ao novo e ao diferente (como o discurso sobre a “carne
nova”, ou aquele que é estranho e precisa ser experimentado sexualmente pelos
participantes). Ao mesmo tempo em que todos praticamente se conhecem, também
se ironizam
105
. Entre os discursos de repúdio quanto a parceiros da mesma
microterritorialização, emergem caracteres degradantes que convergem para as
definições de passividade, efeminamento, instabilidade emocional e promiscuidade,
reproduzidos das discriminações sociais.
105
A ironia é aceita como comédia pessoal, implicando o relato de algum fato ou atributo da pessoa
que poderia ser visto como algo degradante, mas que aqui é tornado comédia entre conhecidos. Ao
mesmo tempo, a fronteira entre ironia e discriminação é muito nue. De comédia a ironia pode
transformar-se em preconceito e identificação daquele que não é bem-vindo a reunião amigável, em
comentário sobre a antipatia, ou no estabelecimento de uma relação não muito interessante com a
pessoa a que se refere.
166
A seguir vamos reproduzir alguns discursos de pessoas que identificam ou
criticam as relações estabelecidas no Venezianos Pub:
Gosto de vir aqui porque a maioria dos meus amigos sempre freqüenta o
lugar. Conhecemos os garçons, a dona do lugar, assim como podemos
escolher as músicas que ouvimos. É falar com o DJ! Em Porto Alegre é
um bom lugar para bater papo e encontrar gente bonita. Em outros é uma
perturbação, e os tipos dos que circulam temos até medo. (Nível superior,
34 anos)
Nessa fala podemos observar dois aspectos que territorializam essa pessoa
no Venezianos: o primeiro é sentir-se parte de um grupo, como se a grande maioria
dos presentes fossem seus amigos, assim identificando-se com eles, com uma
“grande família” que pode acessar, mesmo que em momentos bem específicos,
106
e
com a qual compartilha com a sua condição; o segundo é a restrição à participação.
De acordo com ele, em outros lugares, como o Vitraux, as pessoas não mantêm uma
boa apresentação pessoal,
107
ou seja, se vestem mal.
108
Nossa observação indica
que a freqüência da microterritorialização remete à condição de classe social de seus
participantes, sendo o Venezianos Pub uma microterritorialização de freqüência de
indivíduos same sex oriented que apresentam um boa e segura condição
financeira.
109
106
A temporalidade ou o momento do dia ou da semana em que ocorre o encontro fortalece a idéia de
microterritorialização urbana. A especificidade dos períodos de ocorrência de determinada agregação
social em determinado lugar da cidade se relaciona à condição diferenciada dos indivíduos que se
agregam, cujo território lhes dá sentido de conforto, felicidade e, até mesmo, de proteção.
107
Isso se refere ao trato com o corpo, com o cabelo e as mãos, por exemplo, assim como ao uso de
roupas adequadas à estatura e forma corporal, assim como a escolha delas e dos acessórios e a
combinação entre eles. Existe um senso estético que se refere à adequada composição das roupas às
posturas de gênero sexual, assim como marcas e modelagens que se apresentam na moda e que
implicam um investimento quanto à apresentação no lugar.
108
É comum nessa convivência observar a grife das roupas das pessoas. A atenção à roupa
discrimina aqueles que se vestem com peças compradas no mercado popular do Centro e de grandes
lojas de departamentos cujos modelos iguais são vendidos em grande quantidade. Estar no
Veneziano significa manter um cuidado com a aparência pessoal, e esse cuidado implica gasto em
tipos de vestimentas que nem todos de ter.
109
Não apresentamos uma pesquisa socioeconômica dos lugares apresentados. Esse não é nosso
interesse nesse momento, mas podemos falar sobre isso, pois sabemos que boa parte das pessoas
que freqüentam o bar é de profissionais liberais com curso superior ou autônomos da cidade. Esse
conhecimento foi estabelecido pelo trabalho “etnogeográfico” e se refere a como as pessoas
entendem o tipo de convivência que se estabelece no lugar. Boa condição financeira, para nós,
remete a tipos de profissão que envolve os membros desse grupo: muitos são advogados, médicos,
bancários, funcionários públicos de nível médio ou superior, professores, etc.
167
Sempre venho aqui antes de ir para alguma outra boate. Aqui podemos
encontrar os amigos e conversar de forma mais tranqüila, embora a cada
dia esteja mais cheio! O clima é mais amigável, e não existe muita
promiscuidade. Podemos encontrar namorados com que estão juntos
muito tempo! (Nível médio, 26 anos)
Aqui percebemos que a microterritorialização é reservada para o encontro
tranqüilo, distante da agitação e a exacerbação de sensualidade das festas gays.
Geralmente é usado para encontrar amigos e namorados para uma diversão mais
intensa em outro lugar. Por outro lado, a promiscuidade, ao mesmo tempo em que é
uma realidade sempre observada por entre os próprios indivíduos orientados para o
mesmo sexo, também faz parte da preocupação deles, quando criticam tal postura e
procuram enfatizar a necessidade de fidelidade e de relacionamento estável. Assim,
observamos que o bar é muito freqüentado por casais, assim como por grupos de
amigos constituídos por casais com alguns solteiros que assumem o objetivo de
paquerarem, não para o sexo casual, mas para tentar encontrar o amor com um
parceiro fixo. Essa é uma tendência da microterritorialização, mas não se refere ao
comportamento e predisposição de todos os indivíduos que o freqüentam.
Venho aqui porque o ambiente é legal. Gosto das noites de quinta-feira. A
musica eletrônica que toca é muito boa, embora não haja muito espaço
para dançar. Gosto de caras mais maduros... Sabe... E aqui posso
encontrá-los para, quem sabe, rolar algo... (Nível médio 21 anos)
Outro fator importante exposto aqui é a faixa etária dos freqüentadores. As
festas gays de Porto Alegre são muito freqüentadas por jovens. O culto ao corpo
masculino e a sensualidade das festas produzem uma atenção à juventude. A faixa
etária, assim, é fator de atração entre iguais, mas também é entre aqueles que são
diferentes, que se interessam em relacionar-se especificamente com a alteridade.
É comum também ouvir relatos de rapazes que negaram “ficar”
110
com outros
da mesma faixa etária por alegarem gostar de “caras mais velhos” - às vezes, muito
mais velhos. Embora as festas gays contenham uma diversidade de participantes,
podemos observar a territorialização de homens mais maduros em outros bares.
Algumas saunas, como a “Corujas”, localizada na rua Comendador Coruja,
110
“Ficar” significa manter uma relação amorosa por certo tempo ou no momento de convívio no lugar.
O termo também é usado em outros contextos fora dos lugares de convívio same sex oriented.
168
apresenta a freqüência de homens com idade bastante avançada, por exemplo. No
Venezianos, é comum encontrar homens com mais de 40 anos, muito diferente da
freqüência existente no Ocidente e no Cine Teatro, cujos participantes apresentam,
muito comumente, menos de 20 anos. Além disso, nesse bar é comum encontrar
namorados de faixas etárias diferentes, às vezes com 30
anos de diferença entre
eles.
Ah aqui é tudo! Gosto da noite da roda de viola! Canto muito e depois vou
dançar no Ocidente! Se pintar algo nem vou ao Ocidente, fico por
mesmo, bebendo e paquerando muito. Às vezes nem preciso de boate.
Aqui me divirto muito com meus amigos.(Nível superior, 31 anos)
Aqui verificamos outro aspecto das convivências estabelecidas no Pub. Como
lugar de encontro “pré-festa”, as pessoas também se prédispõem ao sexo e ao
experimento homoerótico casual, mantendo o clima de acaso e de “tudo pode” entre
grupos de amigos que procuram intensa diversão e oportunidades de serem
espontâneos ao ximo. Cremos que o romantismo, a manutenção de uma boa
postura e a fidelidade e estabilidade entre casais o fatores que se aproximam
muito das condições impostas pela moral familiar heterossexual. Por outro lado, a
promiscuidade e a liberação dos desejos e expressões sexuais, ou a transgressão
em relação à adequação ao bom comportamento - principalmente aos que remetem
à postura quanto ao gênero sexual, assim como o “escracho” gay, que causa
estranhamento e repúdio em muitos indivíduos same sex oriented - remetem à
espontaneidade e à crítica à moral e à previsibilidade contida nas relações sociais,
como táticas que burlam as convenções nelas inseridas. Nesse sentido, os
comportamentos estabelecidos nesse bar implicam a dialética contida nas
microterritorializações homoeróticas, ou seja, ao mesmo tempo “a favor” e “contra” a
sociedade.
Venho aqui, mas às vezes parece que todo mundo se conhece e todo
mundo fica com todo mundo. Mesmo assim é um lugar muito agradável
para ficar, namorar e ouvir outras coisas que não aquelas músicas que
sempre tocam na boate. (Nível superior, 23 anos)
Mais uma vez aqui se observa a dialética sobre a qual falamos. Ao mesmo
tempo em que o aspecto da “grande família” pode tornar-se um aspecto “positivo”
169
sobre a agregação homoerótica contida na microterritorialização - assim como da
homossexualidade, como um fator que lembra o movimento sobre positive gay -, ele
também representa um elemento de autoproteção entre indivíduos que se identificam
e segregam outros. Isso fortalece também a idéia da microterritorialização que
constitui o Venezianos: homens bem vestidos, com uma boa condição financeira,
que se interessam por arte, moda e cinema. As fronteiras de convivência se erguem
diante daqueles que se diferenciam das relações estabelecidas na
microterritorialização.
Em relação a essas fronteiras, discursos daqueles “de fora” (ou os outsiders)
são estabelecidos como avaliações ao lugar: entre eles, é comum ouvir que existe
promiscuidade entre um grupo muito fechado, assim como a idéia de que “todas” (as
bichas) que freqüentam o lugar são arrogantes, sendo chamadas de “bichas finas”.
Outro ponto também encontrado nessa fala é a divergência no bar a respeito
do tipo de música que toca em festas gays: a dance music
111
. Esse tipo de música é
taxada como “música gay” pela juventude heterossexual, em Porto Alegre. Por outro
lado, o bar Venezianos torna-se exemplo de algo que diverge dessa cultura por
proporcionar aos seus freqüentadores outros tipos de música que podem ouvir e com
as quais festejar. Exemplo disso é a “roda de viola”, que ocorre nas sextas-feiras,
com shows de covers de música popular brasileira, que são apresentados por
artistas locais e que reúnem como público, principalmente, casais estáveis de
homens e mulheres orientados para o mesmo sexo. A festa que pode ser
considerada mais gay do bar é a de quinta-feira, em que o ambiente se transforma
numa boate que apresenta efeitos de luzes e dance music. Quinta também é a noite
mais freqüentada por jovens, apresentando maior exposição sensual e maior
propensão à paquera e ao sexo casual, de forma muito espontânea.
111
Esse tipo de música é construído eletronicamente: apresenta sons artificiais de bateria e percussão
acelerados e muitos outros, psicodélicos, de sintetizadores. Esse tipo de música quase sempre traz
vocais femininos, fala sobre amores impossíveis e auto-estima (coisas que muitos indivíduos same
sex oriented gostam de ouvir e cantar). As representações contidas nos shows dessas artistas e nos
vídeoclipes versam sobre as festas noturnas, sobre sexualidade, amores mal-resolvidos e
extravagância estética feminina. Muitas cantoras tornam-se divas e são reproduzidas em shows de
transformismo e drag queens, passando essas representações a fazer parte das imaginações
contidas na cultura gay.
170
A seguir trazemos os quadros com que vamos relacionar as expressões
homoeróticas individuais de nossos amigos e suas avaliações pessoais sobre o
Venezianos:
171
Quadro 1 – Venezianos Pub: expressões homoeróticas individuais dos “amigos” participantes da pesquisa
Amigos
Estranhamento Identificação Banalização Transformação
AP
Facilidade de encontrar posturas
efeminadas. Intimidade e proximidade
entre a maioria dos participantes.
Importância à moda no vestuário e
acessórios corporais. Masculinização
de AP e simplicidade estética
destoante, provocando estranhamento
em relação ao restante. Expressões
de fechativas e incisivas tidas como
atrevimento.
A dança e a música eletrônica
de quinta-feira (festejo em
relação a determinadas
músicas e artistas).
Aproximação sexual quanto à
estética daqueles que
enfatizavam atributos
corporais masculinos.
Shows de Drags Queens.
Expressão de afetividade
entre casais. Pouca atenção
quanto à diversidade
estética que também
compõe o lugar e à simples
diferenciação entre bichas e
bofes.
Melhor atenção quanto ao
vestuário. Ênfase maior à
masculinidade. Inserção da
presença do namorado e
expressão de afetividade nas
sexta-feiras da “roda de viola”
(show de MPB).
BP
Repúdio às paqueras com indivíduos
efeminados. Estranhamento em
relação a novos elementos não
condizentes com o teor fashion do
lugar. Pouco gosto em relação à
música MPB e à roda de viola.
Adequação estética em
relação às tendências da
moda cultuadas no lugar (tipo
fashion determinado pelo uso
de roupas de grife, como
Ellus, Levi´s, Adidas, Puma,
Zoomp, etc). Efeminamento,
extrema afetividade entre
amigos, ironização quanto a
situações cotidianas e
sarcasmo nos assuntos que
comentados sobre algum
participante do lugar.
Conhecimento da maioria dos
participantes assíduos ao
lugar. Atenção aos novos
participantes do lugar. Atitude
incisiva de assédio caso haja
interesse sexual
(principalmente se jovem e
não-efeminado).
Expressões extravagantes e
efeminadas também
comentadas e, às vezes,
repudiadas por outros in-
tegrantes do lugar.
Extravagância nos gestos e
na forma de dançar como
causa de estranhamento de
outras pessoas. O
efeminamento muitas vezes
implica discrição entre
grupos de amigos e não
extravazamentos
exagerados.
Observação de si quanto a
maior discrição e aproximação
a certas estéticas mais
masculinizadas, como
alteração do tipo de penteado,
uso de vestimentas mais
discretas, uso de bermudas
lembrando moda surf e
regatas que mostram a
transformação do corpo
malhado de academia de
ginástica.
CP
Promiscuidade observada por ele
entre os participantes do lugar e a
troca constante de parceiros entre
Preocupação com a
apresentação e com a boa
qualidade do vestuário.
Pouca atenção à
diversidade no sentido não
de não observá-la, mas de
Uso de vestimentas mais
despojadas e mais juvenis.
Atenção à musica eletrônica,
172
eles. Insalubridade do lugar, quando
muito cheio. Atrevimento em relação a
acintosas investidas sexuais (“passar
a mão”), ao “deslumbre”
(egocentrismo exacerbado e
glorificação individual, quanto ao relato
de situações vividas e às posses) de
muitos participantes.
Presença de casais fixos.
Gosto pela música MPB nas
rodas de Viola. Boa
apresentação do prédio.
Diversidade de tipos, idades e
estéticas que circulam, no
lugar propenso a aproximação
afetiva e sexual entre jovens e
homens mais maduros.
manter uma atitude de
aceitação e de não-
preconceito. Poucas
relações com indivíduos de
mais idade presentes no
lugar (próximos a sua idade)
e atenção aos círculos de
amizade entre indivíduos
mais novos.
participando mais
efetivamente dos dias de
quinta-feira.
DP
Recusa de ir a lugares ditos gays por
falta de identificação com tais
expressões.
Sem relação Sem relação Sem relação
EP
Revelação sobre pouca freqüência ao
Venezianos; porém, sem
demonstração de desconforto por nele
estar.
À vontade em todos as noites
do lugar, tanto dançando
música eletrônica, quanto
cantando alegremente na roda
de viola. Conhecido de muitas
pessoas. Festejos em
diferentes pequenos grupos.
Mesmo com vestuário
destoando de um padrão da
moda do lugar - desfilando
roupas mais simples e baratas
- aceito pelo carisma.
Interessante: não restrito a
algum grupo específico do
lugar. Banalização de todas
as expressões,
aproximando-se facilmente
delas. Comportamento
pouco efeminado, masculino
no uso das roupas e dos
gestos, levando a entender
preferência ativa, apesar de
dizer-se com preferência
passiva. Capacidade de
reverter em caso de
paqueras de indivíduos de
preferência também
passiva, não implicando
restrição (como muito
acontece no lugar), mas um
elemento de aproximação
amigável.
Item não observado.
FP
Demonstração de desconforto por
definir o lugar como de concentração
de “gays” que representam ter uma
boa condição social e se relacionam
pelo interesse financeiro. Repúdio as
“representações artificiais e aos
Sem total aproximação ao
lugar. Freqüentador com o
objetivo de escandalizar e
provocar repulsas. Paradoxo:
aproveitando o acúmulo de
pessoas para poder
Gosto por expressões e
shows de transformismo,
sem atentar aos shows de
algumas drags que se
apresentam no lugar,
achando artificial suas
Condicionamento a uma
melhor produção que
procurasse esconder sua
condição de classe.
Aproximação de pessoas e
manutenção de assuntos que
173
preconceitos que giram em torno da
reunião. Preferência por lugares mais
populares, nos quais as pessoas
vestem-se com mais simplicidade e
são mais autênticas. Aspecto
“fechativo” causa repúdios e
comentários preconceituosos dos
outros participantes.
ousadamente investir
acintosamente em relação aos
outros participantes. Quase
sempre alcoolizado quando
está no lugar.
apresentações. por ele identificados como
fúteis, das “bichas finas”.
Demonstração de desconforto
e pouco tempo de
permanência no lugar.
174
Nossos amigos revelam também muitas das questões contidas nos
discursos daqueles outros colaboradores da pesquisa. Em um primeiro momento,
o caráter fashion remete à apresentação de muitos que freqüentam a
microterritorialização e torna o grupo fechado e segregador. Um principal fator que
constrói as fronteiras de convivências entre indivíduos homoeróticos, dispostos a
participar da microterritorialização, são as formas com que se vestem e as lojas
onde compram, fazendo representar uma boa condição financeira. Mesmo
aqueles que não a têm procuram investir suas economias em vestuário para
representar um bom status e assim ser atrativo, afetiva e sexualmente, ao grupo.
Por outro lado, a atração masculina também é forte e, em relação ao sexo, uma
experiência com um “pobre machão” também faz parte dos desejos e
experimentos homoeróticos,
112
tornando possível o acesso aos indivíduos do
grupo. A arrogância de muitos indivíduos causa estranhamento entre aqueles que
não apresentam condições financeiras para tanto ou entre aqueles para quem
essas questões são consideradas fúteis e que prezam a humildade e
autenticidade. Tais fatores mencionados causam um desconforto quanto à
participação na microterritorialização, não impedindo o fluxo a ela, mas produzindo
o atributo de sua singularização.
Embora a apresentação dos homens convirja para vestimentas que não
transgridem em nada as estéticas conferentes aos gêneros sexuais, os grupos
fechados de amigos - em momentos de festejos e brincadeiras, na
espontaneidade na fala e ao contar certas histórias que remetam a situações
cômicas que envolvem relações homoeróticas - tendem a expressarem posturas e
formas de falar efeminadas, como que demonstrando conforto e segurança em
expressar essas posturas desviantes entre amigos. Muitas vezes isso é usado por
outros que estranham ou são segregados dessa reunião como atributo de defina
as “bichas finas” e que demonstre a artificialidade e futilidade deles.
112
Isso nos faz lembrar Gide (apud COSTA, 1992): o homoerotismo como transfuga de classe. Por
outro lado, quando o estigma de classe está acompanhado pelo estigma da não-adequação às
estéticas de gênero sexual, o repúdio acontece de forma mais intensa, implicando discursos em
que transparecem termos como “breguice”, “baixaria”, “bafonas” e “desceu o morro”.
175
Outro fator também visto no quadro é a dialética entre espontaneidade de
livre expressão de sexualidade, contida em representações de promiscuidade e
atitudes incisivas na paquera e na intensa sensualidade expressa nas atitudes
entre casais que se encontraram no momento, e moralidade quanto a bom
comportamento e cuidado de si, expresso na boa conduta entre casais de
namorados de muito tempo de convivência.
4.3.2.2. Ocidente
Localizado na rua Oswaldo Aranha com a rua João Teles, o bar Ocidente
faz parte da história da boemia de Porto Alegre. Funcionando desde o início da
década de 1980, ele vai ser a microterritorialização de convergência dos
elementos culturais globais das expressões artísticas vinculadas à música. Na
década de 1980, o lugar era identificado pela circulação dos “moderninhos”, de
acordo com Silva (1991), para os quais muitos atributos dos artistas do momento
eram reproduzidos pelas pessoas que o freqüentavam. No Ocidente formou-se
uma cultura das convivências homoeróticas conectou-se com formulações
estéticas que circulavam em esfera global, divulgadas por artistas como Madonna,
David Bowie, Pet Shop Boys, Erasure, Mick Jagger e de outros tantos vinculados
à dance music, assim como reproduções daqueles que, viajando ao exterior,
divulgavam os acontecimentos envolvendo a cultura gay norte-americana.
Na década de 1990, por volta de 1995, o Ocidente foi interditado, voltando a
funcionar no ano 2000. Hoje se apresenta como uma microterritorialização de
freqüência alternativa, mantendo a agregação homoerótica nas sextas-feiras e
promovendo festas temáticas nos outros dias da semana. Nas sextas-feiras a
freqüência homoerótica é, em sua maioria, de jovens que expressam uma
diversidade de comportamentos e atributos estéticos.
O interessante dessa microterritorialização é a convergência entre várias
composições culturais que envolvem as relações same sex oriented: observamos
muitos jovens com endumentária skate e surf, cujas relações com o lugar se
176
especificam pela experiência homoerótica, assim como jovens emos
113
e outros
cujos atributos vinculam-se à androginia e à mistura de estéticas de gêneros
sexuais nas vestes e no comportamento. A reunião implica a diversificação e o
contato com várias formas de expressões juvenis, mas agrega velhos
freqüentadores do lugar que procuram manter-se em relação às expressões da
moda divulgadas por artistas do momento. O ambiente é festivo e a agregação é
motivada pelas sicas que tocam e que remetem aos artistas preferidos e suas
formas de expressão estética.
No quadro que sugerimos, vamos procurar esclarecer as interações
diversificadas de nossos amigos indivíduos nesta microterritorialização,
representando uma relação entre a necessidade de territorialização dos desejos
homoeróticos, mas também a diversidade de comportamentos e situações de
convergência e divergências de gostos e avaliações quanto às interações
estabelecidas. Antes disso, vamos reproduzir alguns discursos colhidos de
participantes da microterritorialização:
Aqui no Ocidente, ninguém se importa com ninguém. Tem gente
cheirando, gente bêbada, mauricinhos, até punks vi circular. Posso
trazer minhas amigas que sabem de mim. Elas gostam de vir porque
sempre ficam com alguém. Noto também muitos bissexuais que vêm
aqui. Acho que é o melhor lugar para se divertir de Porto Alegre e
encontrar gente bonita e todo tipo. (Nível médio, 22 anos)
Essa fala remete a principal característica do Ocidente: a diversidade
estética que envolve o corpo homoerótico. Por ser uma casa que faz parte da
história da vida noturna de Porto Alegre, uma grande diversidade de pessoas a
procura. Os contatos diversos assim se estabelecem, e abre-se um espaço para
aqueles que não necessariamente se envolvem constantemente com desejos e
prazeres homoeróticos de curtirem tais experiências (paquera, afetividade e
práticas sensuais e sexuais). Por isso a incidência de muitos “bissexuais”, como
fala o colaborador com a pesquisa. Nas sextas-feiras, o interesse dos
113
Termo resultante da redução de Emotion. Estética híbrida que faz lembrar atributos darks
(roupas pretas e maquiagem sombria), assim como punks (cabelos “espetados” e coloridos),
clubbers (acessórios coloridos, uso de roupas de brechó com variações diversas, sem uma rígida
combinação).
177
participantes são as relações homoeróticas que proporciona a
microterritorialização, mas também a diversidade de tipos que circulam,
114
a
qualidade da música que toca, assim como o envolvimento com as drogas.
O Ocidente já foi melhor, lá por 93 e 94. Hoje tem muito garoto e
também esses novos emos. A gente não sabe o que eles querem e o
que eles gostam. Tem muita bichinha, mas ainda sempre podemos
encontrar alguém realmente que vale a pena. (Nível superior, 36 anos)
Esse é um discurso de quem viveu o Ocidente desde quase suas origens.
Seus interesses estão arraigados nas expressões da década de 1980 e inicio da
década de 1990, que fez do Ocidente conhecido no Brasil inteiro como lugar de
música e “gente alternativa”. Em nossa conversa, a pessoa alegou ter o Ocidente
“virado pop” e os gays terem saído do undregroud
115
e se adequarem ao
consumismo barato. Tal discurso significa uma opinião sobre o caráter
transgressor anterior do ocidente relacionado ao homoerotismo. Não
necessariamente o Ocidente da década de 1980 era relacionado como lugar gay,
mas como convergência de culturas urbanas alternativas que, embora estivessem
relacionados com a agregação de culturas globais em Porto Alegre, questionavam
114
No Ocidente há michês, “mauricinhos” e “patricinhas(os bem “arrumadinhos”), aqueles que se
usam moda street, skate e surf, não mostrando alguma alteração de gênero sexual, mas
interessados a experiências homoeróticas, assim como bichas, bichichas e bichonas (bichinhas
pela questão da pouca idade, assim como pela estatura e corpos magrinhos bichona como
homens mais velhos de estatura grande e efeminados usamos esses termos pois eles são
correntes entre gays). As finas”, ou aquele tipo que freqüenta o Venezianos Pub, também estão
presentes, assim como tipos com jeitos e vestimentas mais formais ou mais despojadas, como, por
exemplo, elementos da cultura grunge (calça jeans rasgada e camisas xadrez surradas). As
“bafonas” são um tipo especial: algumas bichas, mesmo mantendo uma estética de acordo com os
padrões da moda, bebem, se drogam e provocam, seguidamente, “fechação” no Ocidente.
Algumas situações delas são contadas não como repúdio, mas como casos de comédia.
Anteriormente, quando era necessário subir uma escada íngreme para entrar e sair do Ocidente,
uma bicha muito bêbada ao sair rola até a rua. Ao se recompor do tombo, argumenta: “cada um
desce a escada do jeito que quer”, e sai “jogando cabelo” (expressão do imaginário gay que
designa um gesto de “não estar nem aí”, como uma virada de cabeça brusca que movimenta um
cabelo longo que não tem). Esse fato, depois de muito tempo, é relatado por muitos que viveram a
situação, assim como por aqueles que somente a ouviram.
115
Underground remete a cena noturna marginal da Londres, na passagem dos anos 1980 para os
anos 1990, constituída pelo consumo de drogas e pela cultura punk e rave (festas que misturavam
rock com musica eletrônica e que eram divulgadas em um circulo fechado de participantes, em
virtude do consumo de drogas e das batidas policiais). Essas táticas de transgressão aos poucos
foram sendo reproduzidas em festas itinerantes e em lugares de consumo abertos ao público em
geral, a partir do inicio dos anos 2000, sendo uma expressão que acabou popularizando-se no
mundo inteiro como sinônimo de festas alternativas. Elas representavam táticas de fuga à
normalidade social e acabaram sendo apreendidas por estratégias de capitalistas de consumo que
as popularizou.
178
a normalidade e a moralidade da sociedade.
116
Por outro lado, aos poucos, tais
expressões começaram a ser vistas como as de “moderninhos”, ou daqueles que
estão atentos ao que acontece nas cenas artísticas da mídia global. Hoje, de
acordo com a fala de nosso amigo, tudo se tornou consumo, e os “emos, por
exemplo, não transgridem nada, preocupam-se que roupa combinar... ou não
combinar, ... que acessório vão usar e como vão cortar e colorir o cabelo”. Por
outro lado, ainda gosta das músicas que tocam e que fazem lembrar os primeiros
anos do Ocidente (um tanto nostálgico), assim como o encontro com pessoas que
não consomem somente a cultura pop, mas se interessam por expressões mais
alternativas.
117
Incrível esse lugar. Uma casa velha com gente bonita de todas as
classes e todos os tipos. Gosto que todo mundo convive e não tem
aquela pegação de outros lugares gays, como a Refúgios... Às vezes
vemos umas loucas que agarram todo mundo e que se atiram contra as
paredes como lagartixas, mas tudo bem... Por outro lado tem cada gato
musculoso que nem parece gay... (Nível superior, 29 anos)
não gosto das pessoas cheirando no banheiro, às vezes nem
podemos entrar lá, assim como também tem muita pegação. Para vir
aqui não posso ir ao banheiro. Mas ainda é um lugar em que podemos
namorar e também dançar, ao contrario daquela escuridão de outras
boates. Por outro lado as pessoas fazem o que querem mas respeitam
as outras. [Fala procurando aprovação do namorado.] (Nível médio, 25
anos)
Nos dois discursos anteriores, novamente podemos observar as várias
expressões que envolvem o homoerostimo encontrado na microterritorialização,
desde as “bichas loucas” aos “gatos musculosos que nem parecem gays” - ao
mesmo tempo, a necessidade de a pessoa encontrar o desejo e o prazer
homoerótico sem que ele seja exacerbado em situações de “pegação”,
encontrados em outros lugares de freqüência same sex oriented. A casa transita
entre aquilo que transgride e aquilo que está de acordo com o que é mais aceito
116
Em um show com Castanha, ator consagrado na cena gay de Porto Alegre, ele transforma uma
experiência de vida sua em um texto de espetáculo teatral e de transformismo. O texto versa sobre
uma bicha nova e efeminada que se apaixona por um punk no contexto do Ocidente no inicio dos
anos 1980. A história envolve drogas, homoerotismo e a mistura alternativa que representava o
Ocidente naquele momento.
117
De acordo ele, artes plásticas, música e cinema alternativo, não muito consumidos, ou
característicos do pop.
179
socialmente, e assim agrega uma diversidade de tipos de indivíduos que convive
harmoniosamente
118
.
Não sei, às vezes tenho receio de vir aqui e encontrar algum colega de
trabalho, de faculdade... O Ocidente tem muita gente que não é e tá aqui
de curiosa... Ou quer experimentar. [risos] Hoje não temos muita opção
de boates gays em Porto Alegre para se divertir... É legal o Ocidente,
mas já encontrei certa vez um vizinho de um primo meu... Fiquei com
receio disso. (Nível médio, 27 anos)
Interessante tal passagem, pois remete a um discurso de um homem que
procura esconder seus desejos e relações homoeróticas. O microterritório de
convivência dessas práticas para ele significa uma proteção contra aqueles que
não as entende - assim uma construção subjetiva sua de não divulgar sua
orientação sexual. Esse é um fundamento essencial da territorialização
homoerótica no espaço urbano, mesmo atualmente ela estando mais dispersa e
constituindo lugares de convivência mais “misturados” e mais visíveis ao restante
da sociedade.
É justamente esta a preocupação do colaborador da pesquisa: a mistura e a
diversidade que envolve o Ocidente possibilita a inclusão de outros que não estão
envolvidos necessariamente com uma cultura gay e não compreendem ou aceitem
totalmente as expressões homoeróticas. Por outro lado, ele mesmo compreende a
relação entre seus desejos e a sociedade como um estigma, em virtude de uma
construção subjetiva impregnada de preconceitos por que passou. O que
queremos dizer é que nosso colaborador representa o elo de significação
desviante da homossexualidade em relação à sociedade (à moralidade e aos
padrões que ela procura tornar rígidos) e, por isso, necessita velar aquilo que
transgride e que o estigmatiza, tornando a ele necessário lugares específicos de
convivência entre pessoas que mantém esse tipo de atração sexual.
118
Embora tenhamos observado atos de agressividade entre homens que se mostravam másculos
contra alguma bicha que os tenha assediado de forma acintosa. Esses atos, em principio, remete a
um preconceito contra a bicha e uma necessidade do agressor manter suas paqueras veladas,
mais de acordo com a discreta postura e um regramento moral em relação a experiência sexual, e
possíveis somente para aqueles que não sejam efeminados e estejam de acordo com os padrões
de gênero sexual.
180
Aqui é legal, não é muito caro e não tem gente feia. de tudo, é claro,
mas sempre rola alguma coisa. É certo que no início as pessoas dão
carão, mas perto do fim da festa todo mundo quer ficar com todo
mundo... (Nível médio, 19 anos)
O “carão” é algo bastante tratado em meios de convivência homoerótica.
Isso é comum em quase todos os lugares e separa aqueles não se preocupam em
velar os desejos homoeróticos ou expressarem comportamentos gays e aqueles
que procuram manter um bom comportamento e querem moralizar suas posturas
e as dos outros, sendo contrários à promiscuidade, ao sexo casual, à “fechação” e
à transgressão excessiva das estéticas de gênero.
119
O “carão” é comum entre os
participantes de festas gays nas primeiras horas em que ocorrem, em que as
pessoas parecem não se preocuparem com a busca sexual, mas festejar entre
amigos e manter um ar soberbo como uma postura de auto-valorização. Porém a
participação as festas o se refere somente à autopromoção pessoal, mas à
busca de um parceiro amoroso. Nesse sentido, no decorrer das horas e mais ao
final da festa, a maioria daqueles que estavam “dando o carão” acabam mudando
seu comportamento para uma busca sexual mais atenta e acintosa, sendo esses
período denominado entre os gays como “o arrastão”, ou “a hora da xepa”, ou
“liquidação”, ou ainda “os restos da enchente”, denominando aqueles que ainda
não “ficaram” com ninguém. Por outro lado, acabam existindo lugares nos quais o
“carão” é mais evidente, como o Venezianos Pub, pois isso remete à configuração
de um grupo relacional mais coeso em relação a classe social a que pertencem e
as estéticas e comportamentos que cultuam.
O site Mix Brasil observa que em certas cidades brasileiras o “carão” é
menos observado. Esse site divulga como característica positiva das convivências
homoeróticas em Manaus-AM a extrema liberdade da expressão e a cil
propensão ao encontro sexual, como se as barreiras morais fossem
desconstruídas, não somente nas festas gays, mas na “pegação” de rua. Por outro
lado, no Rio de Janeiro, indivíduos orientados para o mesmo sexo que cultuam o
corpo masculino malhado e as posturas másculas, chamadas barbies entre os
119
Na verdade isso não existe como uma fronteira que separa as pessoas, mas se refere a
contextos, situações e estados de espírito individuais, mas que acabam contaminando o
localização e o momento dos convívios homoeróticos.
181
gays cariocas, se usam muito do “carão para selecionar os interesses de
convivência e de relacionamento sexual.
A seguir vamos expor algumas impressões de nossos amigos em relação
ao Ocidente.
182
Quadro 2 – Ocidente: expressões homoeróticas individuais dos “amigos” participantes da pesquisa
Amigos Estranhamento Identificação Banalização Transformação
AP
Demonstra-se muito distante
das diversidades estéticas do
lugar, todas implicando algum
ponto de convergência com
expressões artísticas e de
elementos de consumo de
diversas tendências da moda.
Repúdio quanto ao uso de
drogas. Desconforto quanto à
extrema afetividade entre jovens
efeminados [bichinhas “milk-
shake”, conforme ele mesmo
argumentava].
A expressão que reforçava a
masculinização e também a
estética simplória, não
implicando nenhuma
aproximação com algum
elemento convergente a moda
e a expressões artísticas,
também contribuía para a
diversidade contida no lugar.
O jeito machão contribuía para
a aproximação sexual, embora
muitos outros machões
acabassem se interessando
não pelos atributos de
masculidade do provável
parceiro, mas algum outro
elemento estético contido no
vestuário e na forma de
expressão individual (o
contexto específico do corpo).
O clima de diversidade
estética e pouco
conhecimento mútuo entre
os participantes do lugar
deixa AP mais solto para
divertir-se, assim como
clima festivo e de confusão
de expressões contribui
para o estabelecimento de
contatos com muitos
indivíduos cujos traços
efeminados não foram
levados em conta.
Nenhuma Transformação.
Continua pontuando as suas
concepções negativas a
respeito dos comportamentos
efeminados e andróginos de
muitos indivíduos; por outro
lado, muda suas resistências
em freqüentar o ambiente em
virtude do convívio de muitos
homens jovens que procuram
acentuar em suas vestimentas
os dotes másculos.
BP
Sente-se muito a vontade no
Ocidente, aceitando plenamente
a diversidade e o ambiente
festivo do lugar.
Ir ao Ocidente implica atenção
nas roupas, tornando suas
expressão a mais atual e
autêntica possível. Conhece
muitas pessoas e se
identificam com a expressão
exacerbada de afetividade,
assim como reforça o
efeminamento e a
sensualização na dança
durante as músicas prediletas.
Em momentos de paquera, o
corpo malhado e valorizado
pelas roupas de grife
Ao mesmo tempo em que
nada escapa de algum
comentário, BP sente-se
feliz pela simples
característica de múltiplas
expressões estéticas que
envolve o lugar.
Pela condição de convívio de
simpatizantes no lugar,
procura conviver
principalmente com mulheres
ditas heterossexuais. São,
sobretudo, amigas convidadas
por BP cujas companhias
fazem-lo esquecer busca
sexual e o condicionam
somente ao convívio
amigável.
183
contribuem muito para o
interesse sexual e para
conquista de muitos parceiros.
CP
Mantém certo estranhamento
em relação ao consumo de
drogas no lugar, assim como à
baixa qualidade dos serviços
prestados (atendimento).
Preza muito a diversidade
estética dos participantes do
lugar, assim como a boa
seleção das músicas tocadas
pelo DJ. A atração sensual do
lugar é forte para CP, uma vez
que existem muitos jovens
passivos, mas não
efeminados, como é a
preferência dele.
Banaliza a condição
precária do prédio em
virtude do contraste
existente entre o fino trato e
culto a tendências da moda
entre muitos participantes
do lugar.
Preocupa-se muito em relação
às suas expressões que
envolvem a dança, assim
como a manutenção de um
visual juvenil que diverge de
sua estética formal durante o
cotidiano. Essa preocupação
também é observada durante
nossa convivência no Pub
Venezianos.
DP
Nunca freqüentou o lugar na
sexta-feira, dia de festas GLS.
foi ao Ocidente no bado,
em virtude da festa Balonê,
conhecida na capital como
revival de músicas dos anos
1970 e 1980.
Na festa Balonê, freqüenta
com a mulher, tomando uma
postura de banalização a
respeito de muitos
indivíduos same sex
oriented que também
freqüentam essa festa.
Certa vez alegou encontrar
um rapaz que conheceu na
rua e com quem manteve
relações sexuais, jurando
nunca mais ir ao Ocidente.
Nenhuma evidência é
percebida.
EP
Embora freqüente todas as
noites de sexta-feira, muitos
participantes o vêem muito
próximo, com muitos garotos de
programa (michês) do lugar.
Alega nunca ter feito programa e
pensa que a forma de vestir-se
(calças largas, abrigos de
moleton e roupas não
compradas em grifes) implica
um certo preconceito para com
ele.
Por outro lado, EP conhece
muita gente que freqüenta o
lugar, entre jovens, pessoas
de mais idade, drogados,
emos, mulheres. Circula
cumprimentando um e outro e
não se preocupa com a
paquera e a busca sexual.
Alega gostar do lugar pela
possibilidade de encontrar
gente diferente e não somente
gays, característica do
Venezianos.
Sua estética é destoante da
apresentação de grande
parte dos que participam no
lugar, com roupas caras, de
grifes como Adidas e Puma.
Isso não é importante a ele.
Consegue relacionar-se com
um diversidade de pessoas,
mantendo suas
possibilidades econômicas
destoantes. Vai ao lugar
antes das 10 horas, para
não pagar a entrada e
Embora não festeja
preocupado com o vestuário
caro, alega economizar com o
intuito de poder comprar em
algumas lojas de grifes da
cidade.
184
divertir-se mais tarde.
FP
Não freqüenta o Ocidente. Alega
não gostar das músicas loucas e
da gente estranha do lugar,
assim como a mistura GLS, que
agrega. Embora flexível quanto
à expressão de sua
sexualidade, FP é rígido quanto
aos lugares que gosta de
freqüentar, principalmente os
exclusivos gays e que mantêm a
freqüência de transformistas,
travestis e drag queens.
Nas poucas vezes em que
esteve conosco, gostou muito
da incidência de tipos
másculos ao lugar e manteve
uma breve experiência sexual
com um garoto que estava
trabalhando no lugar.
Mantendo uma postura de
pouco gosto, não percebeu
a existência de muitos
freqüentadores do Vitraux,
clube para o qual prefere ir
para se divertir.
Em vez de apresentar um
comportamento efeminado e
com gestos, formas de falar e
acentuar palavras de
expressões de cunho gay,
assume uma postura máscula
que tem em meios de convívio
heterossexual, como em seu
trabalho. O desconforto
quanto ao lugar o faz
representar uma condição
masculinizada.
186
Nas impressões sobre o comportamento de nossos amigos no Ocidente,
verificamos os seguintes elementos que caracterizam a microterritorialização:
a) a relação entre corpo masculino e consumo estético (vestimentas,
acessórios, cortes de cabelo, serviços de academia, etc.) vincula-se à
atenção a algumas marcas de roupas
120
e as tendências a moda. Ao
mesmo tempo a autenticidade também é valorizada na reunião, desde
que não sejam muito divergentes das prováveis expressões urbanas de
jovens de classe média (surf, skate, brechó, emos, etc.);
b) Por outro lado, a diversidade de pessoas que freqüentam o Ocidente é
valorizada por alguns de nossos amigos como possibilidade de
encontrar pessoas diferentes e se relacionar. Os traços mais comuns de
consumo de roupas e acessórios, que se reproduzem como formas de
expressão urbanas, são importantes ao convívio, porém a autenticidade
também faz parte da reunião, uma vez que encontramos diferentes
formas de combinar esses elementos estéticos, implicando uma
indefinição quanto as expressões pessoais da microterritorialização;
c) outros amigos estranham a “mistura” encontrada no Ocidente,
pontuando a necessidade de conviver em microterritorializações
exclusivas de encontros homoeróticos;
d) embora o Ocidente na sexta-feira seja caracterizado principalmente por
uma sensualidade e convívio homoerótico, muitos outros não envolvidos
com isso acabam indo ao lugar como uma alternativa de festa,
principalmente mulheres amigas de gays, assim como seus namorados.
A diversidade sexual que agrega possibilita experimentar os prazeres
homoeróticos a quem o procura esporadicamente e a quem nunca
experimentou. Aliás, pela característica “hibrida” da convivência, o
Ocidente atrai muitas pessoas (principalmente jovens) que procuram
120
Existe uma preocupação com as marcas e tipos de vestimentas, e elas são identificadas
facilmente entre muitos freqüentadores do lugar. Também ocorre a identificação quanto a um tipo
periférico de baixa renda: roupas compradas nas lojas populares do centro ou no mercado
informal, formas de cortes de cabelo e combinação de roupas e acessórios organizados de forma
extravagante e tidos como “brega”. Ao mesmo tempo certos estilos periféricos são estabelecidos
como marca de uma cultura musical e se agregam sem discriminação a diversidade estética do
Ocidente, como o hip-ho e o funk, por exemplo.
187
aproximar-se pela primeira fez as festas, a afetividade, a sensualidade e
as práticas sexuais homoeróticas;
e) a própria estética da microterritorialização apresenta-se como
alternativa: pela diversidade das música que toca (diversos ritmos, a
musica eletrônica não popular, os hits de todos os tempos, o rock e o
hip hop), pela característica do lugar (um prédio velho que mantém a
sensação de estar vivendo uma cena undergroud, constituinte da
própria rua Oswaldo Aranha). A tradição underground do Ocidente
também é levada em conta, embora tenha sido superada pela
Garagem Hermética. Muitos filmes gaúchos e histórias de Porto Alegre
remetem a uma cultura musical construída no Ocidente, do rock gaúcho
e de suas relações com a musica eletrônica. Além disso, ele representa
uma fuga quanto à massificação consumista presente em muitas casas
noturnas, como uma opção muitas outras casas temáticas existentes,
mas não tão radical como a Garagem Hermética (de freqüência de
punks, darks e drogados).
4.3.2.3. Vitraux
Localizado próximo ao viaduto da Conceição, no centro da cidade, é muito
próximo ao terminal de transportes da região metropolitana
121
. Ao contrário do
121
Faz parte da ironia gay comentar sobre a freqüência de bichas RM”, sigla de Região
Metropolitana. Isso diferencia bastante os freqüentadores do Venezianos e do Vitraux. Nos
domingos a noite, ambos funcionam e são bastante freqüentados, porém existem muito mais
“bichas RM´s” no Vitraux que no Venezianos. Nesses dias ocorre também uma boa freqüência de
cabeleireiros, uma vez que a maioria o trabalha na segunda-feira, aproveitando para divertir-se
em ambos os lugares. Por outro lado, os cabeleireiros que freqüentam o Venezianos geralmente
são de salões de beleza conhecidos da cidade de Porto Alegre, muitos deles localizados em
bairros de classe média alta e alta, como Higienópolis, Mont´Serat, Bela Vista e Moinhos de
Ventos, enquanto muitos cabelereiros do Vitraux são de cidades da região metropolitana e dos
bairros de classe baixa de Porto Alegre. O corte de cabelo feminino em Eldorado do Sul, cidade
da região metropolitana, chega a ser cinco vezes mais barato que o corte em um salão localizado
no bairro Higienópolis. Às vezes ser dono de um salão numa cidade ou bairro periférico não
proporciona maiores lucros ao proprietário do que ser um empregado em um salão localizado no
barro Moinhos de Ventos, por exemplo. Por outro lado, consegue trabalhar em um salão lucrativo
não implica necessariamente formação profissional, mas contatos que determinada pessoa
manteve no circuito homoerótico de Porto Alegre, proporcionando amizades e relações amorosas
188
Ocidente e dos Venezianos, o Vitraux apresenta-se principalmente pela freqüência
de indivíduos same sex oriented de classe baixa
122
. Encontramos no Vitraux as
previsíveis figuras existentes nos guetos gays brasileiros: o travesti;
123
, o michê ou
garoto de programa; o bofe; a bicha e a fanchona, ou sapatão ou machorra; assim
com as sapatilhas.
124
O atrativo a microterritorialização é a pista na qual se tocam
música sertaneja, funk e hip-hop nacional, assim como forro e axé. Além dessa
pista, existe a de dance music que toca os principais sucessos das rádios da
cidade. Por outro lado, os pontos altos da festa são os shows de transformismo, e
isso faz da microterritorialização o centro de produção da arte de cultura gay, que
se apresenta tão diversificada e indefinível em outros lugares da cidade.
A seguir vamos expor alguns discursos de participantes da
microterritorialização:
Imagina eu ir no Ocidente ou no Venezianos... Seria corrida de lá. Sei
que às vezes sou mais homem que aquelas bichas finas, mas aqui
somos o que somos, e encontramos nossas amigas. Aqui acham a
gente o máximo. Uma vez fui no Venezianos montada, e todo mundo me
olhava. Arrasei! Mas não dá para ir sempre, né...” (Travesti, níível médio,
23 anos)
Aqui encontramos mais um elemento que rompe a idéia de uma unidade de
uma cultura gay: a segregação entre travestis e outros gays. Ao mesmo tempo em
que a cultura gay implica a relação estética transgênero, isso não é uma postura
que possibilitaram fazer parte desse grupo mais seleto de profissionais cabeleireiros. Freqüentar o
Venezianos e o Ocidente, por exemplo, permite esse tipo de contato.
122
São geralmente trabalhadores do comércio e da industria de Porto Alegre e, principalmente, da
região metropolitana. também muitos vinculados ao comércio informal. Em relação a todos que
conversamos, suas indicações e nossas observações nos permitem concluir que poucos
freqüentadores possuem curso superior, assim como muitos apresentam rendimentos que pouco
ultrapassam dois ou três salários mínimos. Em contradição, o Vitraux - em relação à entrada e aos
preços de bebidas -, não é mais barato que o Venezianos. A diferença de classe remete à cultura
estabelecida ali, possibilitando um ambiente de pouca importância quanto ao vestuário, por
exemplo, assim como a localização central facilita o uso de transporte coletivo para deslocamento,
principalmente aqueles moradores dos bairros da zona norte de Porto Alegre e de outras regiões
da região metropolitana.
123
Ocorrem principalmente travestis (que vivem todos os dias como mulheres), mas encontramos
também transformistas (que somente se vestem de mulher para fazer um show de dublagem ou
freqüentar a festa) e as drag queens (muito próximos aos travestis, mas expressam um feminino
mais caricato, destoando da reprodução fidedigna da mulher feita pelo travesti e pelo
transformista).
124
Mulheres same sex oriented que mantêm a feminilidade e são passivas nas relações sexuais.
189
aceita por todos, existindo posturas e situações indefiníveis para esse tipo de
expressão.
argumentamos sobre as diversas manifestações individuais quanto ao
homoerotismo, mas aquele tipo cultural que mais se aproxima do que seria um
gay
125
ainda apresenta muita dificuldade de se relacionar tranqüilamente com um
travesti, mesmo “adorando” seus espetáculos e freqüentando os lugares em que
ocorrem. Os comportamentos e as estéticas transgêneros, que no travesti e no
transexual atingem um elevado nível de transgressão, são reproduzidas entre a
maioria dos gays, mas poucos conseguem efetivamente assumir uma postura
totalmente feminina em todas as situações cotidianas como aqueles.
Além disso, a atração homoerótica remete ao corpo e à estética masculina,
e isso faz com que persista nas práticas homoeróticas uma atração pelas
representações sobre o bofe e aqueles heterossexuais por quem muitos se
apaixonam de forma platônica. Tal desejo, muitas vezes, retorna ao corpo sob a
forma de manutenção de uma masculinidade exacerbada em relação àqueles que
vivem em academias malhando o corpo, como as barbies cariocas - formam
territorializações de convívio fechado, como no posto 9 da Praia de Ipanema, no
Rio. Outras territorializações de manutenção da masculinidade exacerbada, muito
fechadas ao exterior, são as festas dos “pauzudos”
126
e dos leathers em São
Paulo, assim como dos ursos ou bears, que ocorria no bar Jardim Elétrico, em,
Porto Alegre, e agora no Clube Ícaro, na Avenida Brasil, na zona norte da cidade.
O travesti, no Venezianos Pub, é visto como um estranho, ao mesmo tempo
em que todos conhecem o tipo e comentam sobre performances nos shows em
casas gays, inclusive delas reproduzindo algumas falas e trejeitos, mas mantêm
um certo distanciamento relacional, demonstrados por olhares e comentários de
reprovação. O que ocorre nas quintas-feiras e nos domingos, nesse bar, são
shows de drag queens, mas não são os mesmos daquelas do Vitraux. A drag
125
Ou aqueles cujos comportamentos, representações e perspectivas relacionais estão
impregnado de uma cultura que se tece nos “guetos” e que é atingida por um mercado que a
homogeniza em uma comunidade.
126
Existe o site do “Clube do Pauzudos”, que marca festas nas quais se reúnem “pauzudos
machos”, sendo macho a reprodução do estereótipo masculino, não necessariamente implicando
ser somente ativo na relação sexual.
190
Swan, por exemplo, lembra mais um corpo e uma estética andrógina, do que a
tentativa de reprodução fidedigna da mulher, ou a caricatura dela. A androginia de
Swan remete também a um ambiente clubber,
127
assim como suas performances
são de artistas desse meio ou muito próximo dele. O Vitraux – reinterando o que já
foi comentado anteriormente - é uma microterritorialização no qual podemos
observar polarizações sexuais e estéticas dentro da cultura gay, que reproduzem
as estéticas de gênero heterossexual: o travesti, a bicha, o bofe, o michê, a
sapatona e a sapatilha. Isso constitui muito dos atributos que são estigmatizados
pela sociedade e que devem estar contidos num território fechado, que é o gueto
gay, como o Vitraux.
Venho aqui no domingo. Gosto mais do Ocidente. Llá tem gente mais
bonita. Aqui muito deprê, tem cada figura.... Mas pra dar risadas...
Domingo a gente não tem muita opção. Tem o Venezianos, mas lá
parece uma sardinha e tem muita passiva. Aqui sempre tem uns bofes
circulando. Fiquei com um cara aqui que tinha namorada e tudo... Fui
tudo... Dei a noite toda. (Nível médio, 24 anos)
As contradições desse discurso expressam as contradições do circuito
homoerótico de Porto Alegre. Ao mesmo tempo que nosso colaborador reclama do
ambiente “deprê” do lugar e das “figuras” que transitam por ele, diz que nele se
diverte e pode encontrar um parceiro sexual mais condizente com as suas
expectativas ao que poderia encontrar no Ocidente. Ao mesmo tempo que
esclarece sua preferência passiva e a necessidade de encontrar um “cara”
masculino e ativo - de preferência, heterossexual -, se contradiz tendo preconceito
contra as “figuras” - como travestis, sapatões e bichas pobres - do lugar. Ele, em
outros lugares, apresenta relações de amizade entre passivos e efeminados, que
esteticamente se vestem melhor e de forma mais discreta, mas procura o Vitraux,
pois, além de encontrar as bichas, pode relacionar-se sexualmente com os bofes
machos, não importando a classe a que pertençam e nível educacional que têm.
Às vezes quero dançar no domingo e não tem uma boate legal. O
Venezianos não é uma boate propriamente dita. Então venho pra cá.
127
Cultura urbana dos anos 1990, constituída por pessoas que freqüentavam as raves e o
underground, usando acessórios, roupas e cabelos coloridos, lembrando o psicodelismo estético e
a androginia, assim como cultuando a música eletrônica, a dança frenética. Muito comum era o uso
de cocaína e de ecstase em ambientes clubber..
191
Mas tem cada figura, amigo... Parece que baixa o morro... Fico na
pista eletrônica com alguns amigos, danço um pouco, vejo o show e vou
embora.” (Nível médio, 33 anos)
Aqui novamente a questão de classe social evoca o preconceito e as
rupturas existentes entre indivíduos orientados para o mesmo sexo. O caráter da
pista eletrônica se difere do caráter de “povão” da pista de axé e hip-hop. De
acordo com nosso colaborador, as pessoas que se concentram na pista eletrônica
“são mais bem vestidas” que as pessoas da outra pista. Além disso, na outra pista,
também existe uma concentração bem maior de negros que na eletrônica. Aliás, o
próprio Vitraux caracteriza-se como é uma microterritorialização de concentração
de indivíduos same sex oriented negros.
A relação entre negros e classe baixa é muito próxima no Brasil,
128
e no
Vitraux fica clara essa relação. A pista que toca axé, samba, forró e hip-hop
apresenta uma concentração muito forte de negros bichas e bofes, cujos
estereótipos masculinos e femininos estão exacerbados em corpos masculinos,
com vestuário e acessórios que remetem a formas e marcas baratas e populares.
Quando observamos discursos sobre as qualidade das pessoas que
freqüentam a microterritorialização, esses envolvem sempre referências a tipo de
roupa que usam, trato com o corpo (existe uma grande atenção com o trato com o
cabelo), o efeminamento, estéticas femininas (uso de maquiagem, anéis, brincos;
corte de cabelo, delineamento de sombrancelhas, etc) e a raça. No Ocidente, por
exemplo, os negros que circulam são poucos, e os que aparecem apresentam um
visual fashion, assim como uma aparência bem masculina. O efeminamento de
corpos negros mal-vestidos apresenta-se como um forte estigma entre indivíduos
same sex oriented de Porto Alegre, fazendo aqueles caracterizados concentrarem-
se em lugares específicos, como o Vitraux. Por outro lado, um negro másculo
repercute numa possibilidade de experiência interclasse e inter-racial, presente no
imaginário e nos desejos homoeróticos.
Aqui é legal porque tem o show que começa à meia noite. Gosto de ver
a Dandara, a Susy B. O Castanha também é legal. Tem muita caçaação
aqui, mas também tem muitos namorados e a gente pode encontrar
128
Os estudos de Paul Singer (2001) revelam muito disso.
192
alguém sim, aqui. fiquei com um cara quase dois anos, que conheci
aqui. Só não gosto muito das sapas, são muito mal-educadas, passam e
carregam a gente...” (Nível médio, 28 anos)
Muitas sapatas da microterritorialização reproduzem forma rude de
tratamento, como exacerbação de um comportamento masculino, assim como a
pouca limpeza e cuidado corporal. Entre os gays que freqüentam a
microterritorialização, estão presentes em seus imaginários os shows de
transformismos, assim como as histórias, os trejeitos e as formas de falar deles.
Muitos homens, em grupos de amigos íntimos, reproduzem expressões e trejeitos
contidos nesses shows, assim como as bichas circulam pela microterritorialização,
representando-os a todo instante.
Minhas amigas [homens] sempre vêm aqui. Gosto daqui, só que tem muita sapata.
A primeira vez, foi uma amiga sapa que me trouxe. Antes tinha pouco gay. Agora
domingo, elas [os gays] são a minoria. Gosto delas, conheço muitas, mas gosto
mais dos bofes. Gosto de ver o show, acho muito criativos.” (Nível médio 21 anos)
A seguir continuamos com o quadro que aproxima as impressões de
nossos amigos sobre a microterritorialização.
193
Quadro 3: Vitraux - expressões homoeróticas individuais dos “amigos” participantes da pesquisa
Amigos
Estranhamento Identificação Banalização Transformação
AP
Apresenta-se muito
confortável no lugar e
festeja muito a
proposta da festa.
No Vitraux encontra grande
parte de suas paqueras. O
ambiente torna propícia a
expressão de sua masculinidade
exacerbada (figura do bofe). Ao
mesmo tempo, admira muito as
apresentações de transformistas
locais. Seus atributos estéticos
simplórios e seu baixo
investimento em vestimentas de
grifes se misturam com
expressões comuns ao lugar.
Embora em outros lugares
comente sobre o efeminamento de
muitos indivíduos same sex
oriented, no Vitraux isso não é
percebido, e, inclusive, os gestos
e as posturas femininas e de de
sugestão de passividade de
muitas bichas o aproximam para o
relacionamento sexual.
Nenhuma transformação é
percebida. Mantém suas posturas
masculinizadas, porém solta-se
mais na pista de dança, circulando
tanto pelo axé e como pela dance
music.
BP
Estranha o baixo nível
econômico dos
freqüentadores e
ironiza as formas de
vestirem-se. Estranha
muito e detesta o
comportamento rude
das mulheres
(sapatões).
Interessa-se por muitos bofes
presentes no lugar, mesmo
simples na forma de vestirem-
se. O tipo masculino e a
diferença de classe provoca
interesse sexual.
Não banaliza nada, notando e
ironizando os comportamentos e
falando muito mal de quase todos
os presentes. Porém, sente
interesse por muitos homens
másculos que freqüentam o lugar
(bofes).
Entrega-se à dança e relaciona-se
com muitos de quem notou a
estética e a criticou. Mantém
relações acintosas e sensuais
tanto com bofes como com bichas
do lugar. Parece que tudo se torna
permitido a BP nesse lugar.
CP
Sente-se deslocado
quanto à expressão
rude e vulgar das
machorras e das
bichas. Preocupa-se
com a segurança em
relação a muitos tipos
bofes e michês do
lugar.
Admira muito a arte expressa
nos shows de transformismo.
Não denota preconceito quanto ao
nível socioeconômico dos
participantes do lugar, mas não se
sente confortável quanto à má
educação e teme possíveis
roubos. Mesmo assim, sente-se à
vontade na pista de dança
eletrônica e festeja com algumas
músicas que conhece. Em todas
as vezes que esteve no lugar
conosco, sentiu-se atraído por
algum jovem efeminado e acabou
saindo com ele.
Não se percebe transformação
alguma. Mantém a postura
diferenciada quanto ao
comportamento refinado e à boa
qualidade e custo do vestuário.
Algumas vezes procurou vestir-se
mais simplesmente com medo de
algum assalto, assim como abster-
se do uso de jóias.
194
DP
Não conhecia o lugar
e não se interessou
em ir, assim como
alegou
impossibilidade disso,
de deixar a família à
noite.
Não pode ser observado. Não pode ser observado. Não pode ser observado.
EP
Demonstra muito boa
aceitação ao lugar,
embora alegue
preferir freqüentar o
Ocidente, em virtude
do “baixo nível” do
Vitraux.
Sua forma de vestir-se se
aproxima mais da dos tipos
existentes no Vitraux do que da
dos frequantadores do Ocidente,
porém diz que se identifica
melhor com o último. Assumiu
uma postura de paquera e de
busca sexual, diferenciada da
de atenção amigável no
Ocidente.
Ao contrário do que demonstrou
no Ocidente apresenta como
mais um em meio aos
freqüentadores do lugar. Conhece
muita gente também e mantém
relações fáceis com todos os
presentes.
Assume posturas de paquera e de
busca de relacionamentos
sexuais, diferente da pouca
preocupação deminstrada com
isso no Ocidente.
FP
Diz não gostar do
comportamento rude e
a da má-educação de
muitos.
“Adora” os shows de
transformismo, conhece grande
parte das bichas, travestis e
transformistas. Ironiza os bofes
e assedia-os. Extravasa a
feminilidade e exacerba os
comportamentos sarcásticos e
efeminados. Sente muito gosto
de freqüentar o lugar.
Sua atenção está voltada aos
shows de transformismo,
comentando sempre todas as
roupas e apresentações, e a
paquera com os bofes. São
poucas as relações tecidas com
as mulheres, assim como também
é muito pouca a freqüência na
pista de axé.
Com algumas mulheres com
quem conversa, enfatiza menos a
representação da bicha,
normalizando a voz e os trejeitos.
Observamos esforçar-se numa
teatralização em grupos de
amigos mais íntimos e normalizar
o comportamento entre as
mulheres e ante uma possível
paquera.
196
As impressões coletadas de nossos amigos no Vitraux convergem para
nossas interpretações sobre os discursos que procuramos reproduzir
anteriormente. As relações que se tecem na microterritorialização pontuam figuras
diferentes que constituem a cultura gay. As reproduções de formas mais
masculinas e mais femininas estão confusas ou exacerbadas em ambos os sexos,
causando atrações pela desigualdade das representações, ou pela igualdade,
caso vejamos dois homens muito masculinos relacionando-se.
129
Por outro, lado
os bofes se relacionam com as bichas e com os travestis, se não, são
simplesmente taxados como “bichas-homem”, e vistos como concorrentes de
busca sexual. Os bofes, muitas vezes, se aproximam das bichas e travestis por
dinheiro. Os michês
130
cobram por serviços sexuais. Muitos bofes não cobram,
mas se aproveitam do pagamento de bebidas e de outros favores.
Ocorrem também estranhamentos em relação à classe social. Esses
estranhamentos apresentam-se como receio ao assalto e à violência. Assim, a
concentração de pessoas em um único ambiente é acompanhada de muitas
divergências e de separações entre elas, vindo à tona questões de classe, de
raça, de preferência sexual, de formas de comportamento em relação ao
homoerotismo e de níveis de conhecimento e educação. Ao mesmo tempo,
mesmo os transformistas e os travestis não sendo totalmente aceitos para
relacionamentos afetivos, eles o cultuados como artistas e referência entre o
público do lugar. Muito da cultura que envolve essas pessoas, principalmente as
bichas, são reproduções de criações desses transformistas.
4.3.2.4. Centro Comercial Nova Olaria
O Centro Comercial Nova Olaria localiza-se na Rua Lima e Silva. Constitui
um prédio que foi revitalizado em 1992 e reaberto em 1995. Apresenta-se com
129
Nunca vimos dois travestis juntos, assim como duas bichas é pouco comum no lugar.
130
Os michês pontuam uma postura masculina e sempre se dizem ativos na relação sexual. Esse
seria o principal atributo que o torna atraente. Por outro lado, muitos gays, inclusive muitas bichas,
alegam terem sido ativos nas relações com michês, inclusive aqueles bem másculos, e que muitos,
embora representem a extrema masculidade, gostam de ser penetrados. Por outro lado, muitos
travestis alegam que grande parte de seus clientes (a maioria dos travestis se prostituem) gostam
de ser passivos, sendo muito comum essa postura.
197
uma série de lojas de vestuário alternativo, um salão de beleza, uma livraria e
muitos pequenos bares-restaurantes. Na parte de trás, localiza-se o cinema
Guion, que se especializou em filmes europeus e de cunho também alternativo,
fora do circuito hollywoodiano. Por apresentar uma proposta de cinema e lojas
diferenciadas do que se encontra no restante da cidade e pela localização na
região da Cidade Baixa, o lugar começou a ser muito freqüentado por indivíduos
same sex oriented, principalmente um pessoal envolvido com arte, moda e mais
intelectualizado. No decorrer do tempo, nas tardes de domingo, o Olaria se tornou
foco de agregação homoerótica, principalmente após o fechamento do Mercado
do Bom Fim.
131
Por volta de 2004 e 2005, a esse lugar convergia uma diversidade
homoerótica bastante considerável. No entanto, muitos de seus freqüentadores
eram jovens pobres que o consumiam no local e, ao mesmo tempo em que
circulavam por entre o Olaria e as ruas da Cidade Baixa, mantinham uma postura
pouco despreocupada em relação ao homoerotismo contido em seus atos:
beijavam-se, acariciavam-se e simulavam alguns atos sexuais em público. As
posturas escandalosas fizeram surgir muitos olhares de estranhamento. Muitas
das expressões remetiam à “fechação” e ao reforço dos estereótipos da bicha
louca entre jovens muito novos, assim como estava presente também um grupo
bastante numeroso de jovens surdos e muitos outros que apresentavam uma
estética híbrida, muito próxima à dos emos, fazendo lembrar muitos uma mistura
entre darks e roqueiros. Estes últimos consumiam muita bebida alcoólica
(principalmente vinho e algumas misturas destiladas), sem serem compradas nos
bares do lugar. Ao mesmo tempo em que o Olaria mantinha padrões estéticos,
arquitetônicos e serviços que deveriam atrair freqüentadores oriundos de um
segmento social mais abastado, estava presente nele uma diversidade de jovens
pobres que expressavam de forma intensa e publicamente os prazeres
homoeróticos. Tais jovens sentiam-se seguros pelo grupo numeroso e
diversificado que compunha reunião territorializada no lugar.
131
O Mercado do Bom Fim, localizado na esquina das ruas José do Patrocínio e Oswaldo Aranha,
no bairro Bom Fim (ver Figura 5 pag. 153), foi fechado em 1996 para revitalização. Nele continha
uma forte agregação homoerótica nas tardes de domingo, no bar Escaler.
198
No final do período de 2005, grupos contrários a essa reunião,
principalmente proprietários dos estabelecimentos, assim como muitos moradores
da proximidade, reagiram contra tal “democracia sexual” e organizaram um força
policial privada acintosa que literalmente expulsou esses indivíduos. Observamos
o fato como uma prática radical de preconceito coletivo, assim como um exemplo
de autoritarismo e força repressiva de uma classe mais abastada em relação ao
outra menos. O Nuances, grupo gay de Porto Alegre, reagiu contra a situação e
promoveu um “beijaço gay” na frente do Olaria, porém a opinião pública gaúcha
calou-se em relação ao fato. Por outro lado, muitos outros indivíduos same sex
oriented também se sentiam desconfortáveis em relação às declarações
públicas sobre a freqüência homoerótica do lugar, assim como a postura
“fechativa” de grande parte dos participantes.
Atualmente a agregação se estabelece na frente do centro comercial;
porém, a cada dia que passa, muitas pessoas não mais se fazem presentes no
lugar. A microterritorialização ainda é constituída de jovens que se encontram e
que expressam coletivamente afetividades homoeróticas, porém não tão
fechativas em outro momento.
A seguir vamos coletar algumas opiniões sobre essa microterritorialização:
Eu podia namorar aqui. Agora tem todos esses caras armados. Outra
vez fui expulsa do banheiro, pois estava com minha namorada, e o
tava fazendo nada. Eles colocaram umas mulheres armadas para vigiar
o banheiro. Eu não gosto muito de ir em lugares à noite. Aqui podia
encontrar meus amigos e namorar. Agora vamos ficar aqui na rua.
(Mulher, 17 anos, cursando ensino médio)
O Olaria representava uma microterritorialização de aconchego para
aqueles orientados para o mesmo sexo e mais uma alternativa de agregação além
das boates e bares que estão vinculados ao consumo.
132
Jovens pobres ou sem
renda, não podendo estar na boemia, pela pouca idade e pela incapacidade
132
Em boates e bares têm que se pagar para entrar, e o consumo de bebidas acaba sendo uma
norma de comportamento nesses lugares. Muitos jovens que não tem renda e pessoas de classe
baixa que não podem participar dessas possibilidades de agregação homoerótica vão convergir a
lugares públicos em que elas ocorrem. A forma coletiva localizada, ou a territorialização, fornece
força de visualização de atributos estigmatizados, como foi o caso do ocorrido no Olaria.
199
financeira, se reuniam nas tardes de domingo tendo como principal forma de
atração os desejos homoeróticos. Esses jovens reproduziam certas experiências
culturais captadas na escola e na mídia
133
e misturavam nelas o homoerotismo. A
adrenalina da juventude era extravasada no Olaria, assim como a necessidade
emergencial de prazer e de auto-afirmação. A beleza do lugar também atraía,
assim como sua localização privilegiada entre bares, na aura cosmopolita do
bairro Cidade Baixa.
A gente gosta de se vestir assim. Cada um cada um. Tem gente careta
que não gosta. Aqui a gente pode ficar junto e beber nosso trago. O que
tem a ver? Conheci minha mina aqui. Ela vem com o Zé, que é gay... E
daí? (Homem, diz ter 18 anos, cursando ensino médio, emo)
Embora vinculado ao consumo (das roupas, dos tênis e dos acessórios,
assim como da banca de que gosta: o Green Day) esse jovem inspira
transgressão. Muito da reunião jovem do Olaria implica transgressão, assim como
a expressão livre e exacerbada de afetividade homoerótica também continha esse
sentido. Aqui esse jovem se diz não-homossexual e se diverte entre amigos “gays”
com sua namorada. Tais amigos, contudo, estão longe de serem próximos a uma
estética gay: um jovem faz lembrar um grunge (como Kurt Cobain, vocalista
morto da banda Nirvana); outro, um dark (soturno, como um clipe de Nine Inch
Nails), outro andrógino (como algum componente do Placebo); e outro, um nerd
dos anos 1960 (óculos quadrado e preto, roupas antiquadas de brechó, cabelo
cortado como um Beatle). Ao mesmo tempo, a bebida e alguma droga,
principalmente maconha, faz parte dessa transgressão, assim como alterar o uso
de um lugar bonito e de freqüência burguesa “careta”.
Estava na hora de fazer algo. Não podíamos nem chegar mais no Olaria.
Era uma confusão que até dava medo. Acho que os comerciantes têm
razão em reforçar o policiamento; afinal, o podíamos ir tomar um
café. O pessoal é muito atrevido mesmo e não estão nem pra nada.
133
MTV, principalmente. As expressões estéticas transitam entre esses jovens como elementos
contidos nas roupas, nos acessórios e nos comportamentos de artistas e músicos. As imaginações
dos vídeos clips tornavam-se realidades entre eles. Tendo a mídia uma diversidade de expressões
estéticas, eles também reproduziam essas diversidades. O mundo da fantasia, assim, tornava-se
realidade nessa agregação localizada.
200
(Dois namorados que estavam no Bar Azul Cobalto, quando ainda se
localizava na Lima e Silva, em 2006. (Profissionais liberais autônomos,
38 e 40 anos).
Aqui o discurso contrário observa a visão de um casal de homens same sex
oriented que apresentam uma boa condição financeira e se adequaram às
condições de consumo que o lugar oferece (cafés, bares, cinema, livraria, lojas
alternativas). Suas posturas pouco desviantes, condicionadas à moralidade da
sociedade, e a atenção burguesa ao consumo (do lugar Olaria, por exemplo), os
tornam aceitos em meio à sociedade normativa.
O consumo, ao mesmo tempo que torna possível a diversidade desviante, a
coloca como mais uma alteridade possível em uma sociedade organizada. Todos
aqueles que se comportam bem e consumiam no Olaria são bem-vindos. O
policiamento e a repressão fora estabelecidas por e para aqueles que lucram com
freqüência dos “bem comportados” e “bons consumidores”. Os próprios bares
incentivam a freqüência homoerótica ao local. As garçonetes, por exemplo,
representam dar uma boa atenção a grupos de amigos e casais gays, inclusive
participando de muitos assuntos que tratam sobre esse tema com tais clientes.
Por outro lado, quando indivíduos jovens gays pobres passam expressando de
forma espontânea suas afetividades, os olhares e comentários são
discriminatórios. Essa é a contradição existente nesse evento repressivo que
ocorre no Centro Comercial Nova Olaria.
Ia ao Olaria, pois achava interessante tomar um café, conversar e
paquerar um pouco. Depois do Escaler, sentia vontade de poder
encontrar outros entendidos em lugares ao ar livre. Todo lugar é muito
fechado e insalubre. Tínhamos prazer em estar no Olaria com os amigos
e sempre pintava uma paquera boa-pinta. Agora está meio difícil circular
lá. (Nível superior, 37 anos)
O discurso evidencia a desterritorialização da convivência homoerótica “ao
ar livre”. Elas existem em todas as cidades,
134
mas isso implica uma certa
134
Em Porto Alegre os parques da Redenção, Marinha do Brasil e Moinhos de Ventos são
freqüentados por homens procurando outros homens para “transarem”, principalmente em
períodos noturnos, ao meio-dia e muito cedo da manhã. Além disso, em dias muito frios ou muito
chuvosos, esses parques também são invadidos pelas relações homoeróticas. Em outras cidades
essa relação se repete (como em Manaus, Brasília, Curitiba e Florianópolis), assim como também
201
camuflagem e um esconderijo. Em parques e praças, por exemplo, a busca sexual
e a convivência homoerótica estão camufladas por entre as árvores e nos horários
e tempos de menor circulação. Caso essas convivências invadam o espaço
público e se tornem muito visíveis, ficam sujeitas à repressão indireta, como a
alteração da configuração espacial do lugar, relacionados aos projetos de
revitalização. Isso aconteceu como o fechamento do Mercado do Bom Fim e do
bar Escaler, onde ocorria a agregação homoerótica, nos domingos à tarde, até
1996. Essa agregação foi desterritorializada e se reterritorializou no Olaria. Nesse
sentido, podemos observar que existe um processo tático de luta pela visualização
e convivência blica de afetividades homoeróticas, mas que são castradas pelas
estratégias que reconfiguram as formas e convivências dos lugares.
Gosto da Cidade Baixa porque sempre tem gente da turma circulando...
Entende? Acho que o pessoal pode ser o que é, e achei muito forte o
policiamento e como tratavam aqueles jovens. Está certo que tinha muita
bichinha escandalosa, mas ninguém tem o direito de reprimir ninguém.
(Nível médio, 30
anos)
O Olaria é tudo. Aqui a gente parece livre, para tomar uns tragos,
beijar muito, fumar um bek. Sempre fico com uns três ou quatro. Agente
conversa, se diverte. Agora ta meio foda ficar aqui com esses caras...
(17 anos, cursando ensino médio)
Nos dois discursos acima, verifica-se que a ação policial privada remete a
uma repressão social. Ao mesmo tempo, elas revelam que a espontaneidade
existia de fato e incomodava moralmente outras pessoas (outros clientes,
proprietários/comerciantes, moradores próximos). Tal espontaneidade é
caracterizada pela expressão livre de afetividades homoeróticas, assim como o
uso de bebidas alcoólicas e de drogas. O fato exposto representa a
microterritorialização estabelecida no Olaria nos domingos à tarde: palco de
conflito entre interesses sociais divergentes, entre prazeres diversos (o
homoerotismo, o consumo, as formas de expressão estética) e discursos que
convergem para a moralização da sociedade.
nas faixas de areias de praias mais escuras durante a noite (caso da Praia da Boa Viagem, em
Recife).
202
Quadro 4 – Centro Comercial Nova Olaria –
expressões homoeróticas individuais dos “amigos” participantes da pesquisa
Amigos Estranhamento Identificação Banalização Transformação
AP
Nega-se ir ao lugar. Alega
receio de encontrar conhecidos
que não sabem de sua
orientação. Discorda das
expressões fechativas e do uso
de bebidas alcoólicas por
jovens. Não se interessa pelos
serviços prestados no Centro
Comercial. Concorda
plenamente com a segurança
que foi instalada.
Não demostra identificação.
Ao mesmo tempo acha os
bares do lugar muito caros
para freqüentar, assim como
estranha os filmes que
passam. Tem algum interesse
pela agregação homoerótica e
pelas possibilidades de
encontro sexual; porém, aos
poucos, acha que o lugar
torna muito visível sua
sexualidade.
Mantém alguns amigos que
freqüentam o lugar e nele
expressam algumas
posturas que estranha.
Nas vezes em que estivemos
no lugar, negou-se a
permanecer por muito tempo,
mas acabou envolvendo-se
com um rapaz, mantendo
encontros com ele no Olaria.
BP
Sempre circula pelas tardes de
domingo no bairro e passa
algumas vezes pelo Olaria.
Encontra muitos conhecidos no
lugar, mas incomoda-se com a
forma de uso de bebidas
alcoólicas entre jovens, embora
tenha mantido experiências
sexuais com elementos desse
grupo. Discorda com a
repressão policial feita no lugar.
Muitos dos freqüentadores do
lugar se parecem com BP,
principalmente na forma de
penteado (cortes disformes,
pontiagudos e multicoloridos),
assim como nas roupas
(coloridas, marcando o corpo,
calças justas de cós baixo) e
na forma de gestos e falas
efeminadas.
Não importância ao que
acontece ao lugar em
termos de receio sobre a
visualização pública, porém
prefere não expor-se tanto
quanto muitos de seus
amigos fazem. Também não
se incomoda com o que
aconteceu no lugar, em
relação à repressão policial.
BP transita entre a
feminilidade e a expressão de
formas masculinas. No lugar
se parece com um rapaz
malhado distante, com muitos
aspectos estéticos efeminados
e dos roqueiros, darks e
emos, que não se preocupam
com o culto aos músculos do
corpo. Nesse sentido, BP se
diferencia do conjunto, mas se
aproxima, em relação às suas
expressões, de muitos
conhecidos que estão ali,
mantendo falas e gestos
efeminadas e assuntos que
ironizam certas situações
cotidianas, envolvendo
homoerotismo.
203
CP
Estranha a apresentação dos
jovens, acha-os degradados em
sem perspectivas concretas de
vida. Acha desnecessárias as
ações fechativas e o uso de
bebidas alcoólicas, assim como
acha também autoritária a forma
de repressão exercida.
Embora não se preocupe com
a visualização pessoal e não
tenha preconceitos contra
qualquer expressão das
pessoas, discorda da postura
de muitos dos participantes,
principalmente pelo alcoolismo
e pela forma de disposição
(sentados no chão, deitados,
etc). Freqüenta muito o Olaria
em outros dias da semana,
principalmente para um
happy-hour com amigos e
para o cinema. Além disso, o
que o atrai é a incidência de
muitos jovens com quem pode
paquerar.
Embora estranhe os atos
fechativos e a postura dos
participantes, aproxima-se
deles em virtude do desejo
sexual quanto a jovens
same sex oriented. Mantém
relações com pessoas
discordantes de sua postura
estética (formal e executiva).
CP se aproxima da proposta
do Olaria, de convergência
de um público
intelectualizado e
consumidor. A reunião que
se estabelece no domingo é
que modificou essa proposta
e fez com que muitos tipos
como CP tivessem que
banalizá-los para poderem
manter freqüência aos
serviços do lugar.
Como em outros lugares,
procura manter uma estética
mais despojada, mas que
ainda se diferencia do
restante.
DP
Nega-se a ir ao lugar durante o
domingo à tarde.
Gosta de circular no lugar nos
dias de semana durante o dia,
procurando algum parceiro
sexual e para encontrar
alguém com quem conversou
nas salas de bate-papo da
internet.
Não banaliza o que
acontece no Olaria no
domingo à tarde, mas nega-
se em participar.
Nenhuma transformação é
observada.
EP
Sempre freqüenta o lugar, e não
apresenta nenhum receio em
estar lá. Fica irritado com os
seguranças do lugar e discorda
de sua presença.
Acha “incrível” estar no Olaria.
“Adora” a liberdade que
expressa no lugar. Sente-se
feliz em poder expressar sua
sexualidade perante todos.
Banaliza a segurança como
um ato de repúdio a ela.
Insiste em circular no interior
do Olaria, não dando
importância às convenções
que se estabelecerams-
repressão policial no lugar
(não poder encostar-se nas
paredes, não ficar em
grupos muito grandes, não
Mantém suas formas de agir.
204
poder sentar no chão).
FP
Nunca freqüentou antes o Olaria
pelo caráter excludente e
burguês que apresentava ter,
fazendo circular muitas “bichas
finas”. Por outro lado, aos
poucos passa por ali em virtude
de conhecer muitos dos jovens
freqüentadores e sentir-se à
vontade de estar entre eles.
Discorda severamente da forma
como foi estabelecido o
policiamento.
Identifica-se com muitos
jovens que conhece e que
freqüentam o Vitraux, mas não
se sente totalmente à vontade
em manter as posturas de
representação feminina que
mantém no Vitraux.
Não banaliza formas de
reunião do Olaria. Por um
lado, as identifica como
“burguesas”, por chamar os
freqüentadores de “bichas
fina”. Por outro lado se
incomoda muito com o
policiamento do lugar, mas
circula rapidamente por ele
para encontrar alguns
amigos.
Assume posturas mais
discretas entre amigos,
comprando-se com a
liberdade que expressa no
Vitraux.
206
As impressões coletadas de nossos amigos verificam as contradições
existentes entre os discursos e as opiniões quanto à territorialização estabelecida
no Olaria. Por um lado, o Olaria poder segregar tipos de indivíduos same sex
oriented que não se sentem confortáveis por poderem ser confundidos como o
caráter transgressor das expressões contidas ali. Por outro, a “normalidade” do
Olaria implicaria também a seleção no que tange ao segmento social a que
pertencem tais indivíduos. Tanto a normalidade quanto a transgressão não
constituem condições suficientes quanto aos interesses da totalidade dos
indivíduos orientados para o mesmo sexo e se apresentam como questões que
referem-se à dialética da microterritorialização.
Também podemos observar que aceitação à diversidade cultural não
necessariamente implica aceitação à diversidade de segmentos sociais (no
sentido econômico do termo). Quando às questões de alteridade, ao mesmo
tempo, remetem a questões culturais e econômicas, tornando a aceitação e a
banalização mais complicadas de acontecerem. Toda alteridade também
apresenta um limite de aceitação moral, e esses limites aqui estão relacionados ao
uso de drogas e de bebidas alcoólicas, assim como à limpeza e ao capricho
corporal.
4.3.2.5. Parque da Redenção
Este grande parque da cidade de Porto Alegre é chamado de Parque da
Redenção ou Parque Farroupilha. Campos da Redenção foi a denominação dada
em 1884, em comemoração à abolição da escravatura, uma vez que tais campos
eram lugar onde negros realizavam batuques nos domingos. Parque Farroupilha é
a denominação que se origina da importância histórica do lugar como campo de
batalhas durante a revolução de mesmo nome. Deve-se também a presença
militar na área, com a construção da Escola Militar e de quartel para as tropas em
1872.
Em 19 de dezembro de 1935, o prefeito Alberto Bins o denominou
oficialmente de Parque Farroupilha, seguindo um plano de urbanização que o
207
aterrou e levou a construção de um lago e de uma fonte luminosa. Nos anos 1940,
foram construídos os “recantos” do parque: o Recanto Alpino, o Europeu e o
Oriental. Após a II Guerra Mundial, foi erguido o Monumento aos Expedicionários,
em homenagem aos pracinhas que lutaram nessa guerra. Em 1960, foi construído
o Auditório Araújo Viana, e, em 1978, foi criado o Brique da Redenção, na rua
José Bonifácio
135
. Em 1997 o Parque Farroupilha (nome oficial) ou Redenção
136
(nome popular valorizado pela criação do Brique da Redenção), com 375.163
metros quadrados, foi tombado como Patrimônio Histórico da Cidade. (Atlas
Ambiental de Porto Alegre, 1998, p. 127)
A urbanização da Redenção, ao longo do tempo estabeleceu, uma
diversidade espacial interna, produzindo vários lugares e paisagens diferenciadas;
construindo lugares mais abertos, propícios à circulação, e lugares mais fechados,
arborizados e escondidos, propícios ao descanso e ao convívio discreto. O
caminho central que vai da Reitoria da UFRGS até o Monumento aos
Expedicionários e à Rua José Bonifácio (JB) constituem-se em lugar, por
excelência, da circulação e do encontro com uma grande diversidade de pessoas
que caminham, correm, praticam exercícios ou se sentam nos bancos para
somente conversarem e observarem os que passam. Os lugares de maior
aglomeração de pessoas neste caminho são o chafariz central e o entorno do
monumento aos Expedicionários.
Por outro lado, a configuração espacial da Redenção possibilita uma
variedade de lugares discretos e bonitos, sendo ocupados por quem procura
esconder-se e camuflar-se da aglomeração populacional da cidade e da parte de
circulação central do parque. Como dissemos, foram construídos uma série de
“recantos” diferenciados a partir de 1940. Recanto se refere a um lugar especial e
singular. Muito utilizada como expressão regionalista, recanto se refere àquele
lugar familiar, carregado de simbologias e nostalgia e que denota o apego e o
conforto que o gaúcho mantém por ele. É lugar onde se conversa; onde se sente
135
A rua José Bonifácio localiza-se na parte sudeste dos limites do Parque, tendo suas esquinas
com as ruas Oswaldo Aranha e João Pessoa. Ver Figura 1, p. 146, e Figura 5, p. 153.
136
Vamos utilizar o nome Redenção ao Parque Farroupilha por ser o mais popular e mais utilizado
entre seus freqüentadores. Gays e travestis que freqüentam o parque, por exemplo, o chamam de
“Redereca”.
208
confortável; que acolhe os pensamentos, os desejos e a afetividade. O recanto
representa a ligação da identidade com uma parte do espaço, com uma paisagem.
Nesse sentido, o termo popular de recanto se aproxima do conceito de lugar, ou
seja, carregado de uma representação subjetiva que define a identificação com o
espaço de convivência afetiva e a formação de campos de relações singulares.
Mesmo sendo os recantos construídos por projetos de urbanização que definem
estéticas e nomes fora do contexto regional, por não representarem efetivamente
a cultura local, eles foram apropriados por aqueles que freqüentam a Redenção.
Tal processo constitui lugares de convivências singulares, que representam a
subjetividade de pessoas que se fazem presentes e que o especializam em
campos de relações diferenciados.
Os recantos Alpino, Europeu e Oriental são circundados por árvores e
constituem lugares recatados para serem “invadidos” por aqueles que precisam de
discrição e a procuram ao freqüentarem o parque. Além desses recantos
construídos, outros lugares onde a mata se encontra mais fechada e cujos
caminhos não os cortam, são apropriados e se identificam como lugares de
convivência e descanso localizados à parte dos lugares de circulação. Os nomes
descontextualizados dos recantos servem como referências que estabelecem a
reunião de diferentes pessoas em diferentes momentos.
A Redenção é um parque, ou seja, é um lugar nitidamente público. Porém,
por verificarmos inúmeras formas singulares de convivência, os recantos do
parque tornam-se semiprivados ou semipúblicos, isto é, são apropriados por
aqueles que se fazem presentes. Outros que percebam um determinado tipo de
convivência em um determinado recanto e não concordem com as práticas e as
relações ali estabelecidas, procuram outro lugar de descanso e convivência. Aos
poucos, segregações e singularizações espaciais são produzidas. Isso representa
um processo de banalização da diferença que nega o contato efetivo com ela. Tal
processo, como demonstramos anteriormente, é chamado de tolerância
negativa.
Os lugares o singularizados devido à presença de algumas formas de
convivência de diferentes tipos sociais que se agregam pela identificação estética
209
e por assuntos, valores, desejos e comportamentos comuns. Embora sejam
presenças muito tênues, elas o bem visíveis em momentos diferenciados,
principalmente em horários em que os espaços de circulação são menos
freqüentados: início da manhã e da noite e ao meio-dia. Dessa forma, podemos
observar a construção de microterritorializações, ou seja, a singularização de
lugares pelo estabelecimento de campo relacional de um agregado social que se
segrega de outros (construindo fronteiras de convivência e seleção subjetiva de
participantes do agregado).
A seguir vamos reproduzir alguns comentários sobre a relação entre
indivíduos same sex oriented e a Redenção.
A Redereca é tudo. Lá o babado é forte... Principalmente nas taquareiras
[bambus perto do Recanto Oriental]. rola de tudo, amiga. Até durante
o dia tem jejo [paquera e práticas sexuais]. Esses dias estava passando
perto do lago dos padalinhos e tinha uma bicha por entre as árvores
dando pro bofe. Eu vou lá à noite... E aí? Tem muita gay que vai lá e fica
se fazendo de fina... Sei que tem Elza [roubo], mas a gente sabe dos
bofes que querem o aqué [dinheiro] das manas. (Ensino médio, 26 anos)
Tem muita gente que nega ir na Redenção caçar. Eu, o. Tem gente
que está em boates e se faz de santa, mas faz coisas piores que lá.
Isso é preconceito. Tem muita biba [bicha] preconceituosa. Tem outras
que falam mal, mas ficam circulando de carro perto da Redenção para
pegar os bofes. Qual a diferença? acho que também é perigoso, pois
tem muito cara que se aproxima das bibas para assaltar. (Nível superior,
31 anos)
Interessante nesses discursos é a presença de algumas expressões que
compõem uma gíria gay, que sempre estão acompanhadas de gestos e trejeitos
efeminados. Além disso, o discurso também nos mostra a relação do Parque da
Redenção com a “pegação”.
137
Outro elemento interessante também é a postura
de auto-afirmação, vista aqui em dois aspectos: o primeiro é a valorização da
representação da bicha, na fala e nos gestos; o segundo é a afirmação da
freqüência ao lugar e do motivo da busca sexual, visto por muitos indivíduos same
sex oriented como um comportamento degradante.
137
Busca ou efetivação de práticas sexuais homoeróticas.
210
Ao mesmo tempo que o discurso da promiscuidade degrada aqueles que
são vistos no parque, principalmente à noite, muitos daqueles que reproduzem tal
discurso em algum momento foram vistos lá. De acordo com nosso amigo,
“aquelas finas que dão o carão na boate vêm pro parque chupar pau”.
Assim, vemos que posturas e discursos morais se misturam com a
emergente expressão do desejo e a espontaneidade sexual entre indivíduos same
sex oriented. A transgressão se estabelece pela auto-afirmação do
comportamento que é tido como desviante, assim como a moralidade da
sociedade se reproduz na figura do homossexual correto
138
que romantiza as
relações homoeróticas e que repudia certos comportamentos que são vistos como
desequilibrados, como a promiscuidade, a busca sexual desenfreada.
Esses pólos são modelos inseridos no cotidiano homoerótico, mas, nas
histórias de vidas desses indivíduos, eles se misturam em situações diversas.
Muitos daqueles que se assumem promíscuos e negam qualquer possibilidade de
relacionamento afetivo estável alegam ter tido muitas decepções amorosas,
muitas delas envolvendo traições e, amesmo, implicando situações de “flagra”
do namorado praticando sexo com outro na Redenção. Por outro lado, muitos
daqueles que mantêm uma relação estável e assumem um comportamento de
fidelidade se fazem presente no parque procurando alguma experiência fora do
relacionamento.
139
Além disso, alguns casais mantêm o relacionamento estável e
procuram experiências sexuais com outros parceiros sem nenhum problema,
muitas vezes encontrando o terceiro no parque.
140
138
Positive gay.
139
Muitas vezes correr no parque ou levar o cachorro para passear implica disfarçar um
comportamento de busca sexual.
140
Certo dia, no parque, conversando com um rapaz, comentávamos sobre um casal que estava
muito tempo junto e sempre freqüenta o lugar, inclusive enfatizamos em nosso discurso a
beleza disso. O rapaz, contradizendo-nos, logo disse que os dois realmente estavam juntos
muito tempo, mas que circulavam pelo parque para encontrar um terceiro parceiro para suas
práticas sexuais. O mais interessante foi à postura ironica em que o fato foi relatado, assim como
de desaprovação dessa atitude. Este tipo de atitude pode ser encontrada em qualquer tipo de
relacionamento amoroso, assim como entre heterossexuais. No entanto, ela define-se como algo
contrário aos preceitos sociais de fidelidade nesses relacionamentos. Nos relacionamentos mais
sólidos entre dois homens ou duas mulheres, pode ocorrer, antes disso, o estranhamento da
relação que reproduz o casamento heterossexual. Em relação à infidelidade e as relações sexuais
a três, isso converge tanto a um previsível preconceito quanto à provável “promiscuidade gay”,
quanto à recusa da infidelidade por alguns. Em relação ao último comportamento, tenta-se
211
Pelo que podemos perceber, as situações que envolvem as relações
homoeróticas estão cercadas de contradições em relação às suas posturas quanto
a padrões morais da sociedade e quanto aquilo que é desejo e espontaneidade
141
.
Interessante é que essas contradições “a favor” e “contra” a sociedade fazem
parte do contexto do parque da Redenção e nele são vividas.
Vou passear durante o dia. Não gosto muito dos finais de semana pois
fica muito cheio. Gosto de passear com a parque vazio. Sempre pinta
alguém interessante, mas também tem as Irenes [mais velhos] lá. A
maioria dos meus namorados conheci lá; caras bacanas, melhor que
encontrar em boate. transei também, no final da tarde. Tem
cantinhos bons pra isso, mas se junta muita gente pra ficar olhando. Daí
também tem o medo da polícia chegar... (Ensino médio, 35 anos)
A Redenção, como comentado anteriormente, é vista e freqüentada para
as práticas sexuais homoeróticas, principalmente em horários em que a circulação
de pessoas é menor, como a noite, ao meio-dia, cedo da manhã e em dias de
muito frio ou chuva. Os cantos, recantos e lugares no qual a vegetação é mais
fechada se efetivam tais práticas. Pelo tamanho da área vegetada, e por
proporcionar certos esconderijos não encontrados na rua, esse parque
possibilitam que comportamentos desviantes se efetivem. No entanto, o
policiamento mais intensivo, como ação do regramento institucional do espaço
público para àqueles que burlam as convenções que organizam as convivências
reproduzir um quadro referente ao positive gay, que, embora divergente quanto a tendência
desviante da homossexualidade, converge de forma ideal a moral e bons costumes sociais. A
novela da rede Globo de televisão, Paraíso Tropical, exibida no ano de 2007, apresentava os
personagens Rodrigo e Tiago, estrelado por Carlos Casgrande e Sérgio Abreu, respectivamente.
Eles constituem um “casal gay”, mantinham uma união conjugal estável, apresentavam-se
extremamente “corretos”, de acordo com os preceitos morais de convivência em sociedade, e não
revelavam comportamentos de desvio quanto suas posturas masculinas. Observamos que tal
“casal” refere-se a divulgação do modelo positive gay, a que estamos atentando.
141
O filme Philadelphia apresenta a condição de boa conduta de um casal gay (relacionamento
estável, comportamento condizente com os padrões sociais e vida profissional de sucesso). Por
outro lado, também mostra o desejo transgredindo o “bom-senso” contido na relação: a situação de
“pegação” de um, o personagem interpretado por Tom Hanks, numa sessão de cinema
pornográfico. A conseqüência disso foi o contágio por HIV e a ênfase da doença como produto de
um comportamento promíscuo. Em outra situação, esse discurso se explicita: o advogado
heterossexual, interpretado por Denzel Washington, é assediado por um gay numa loja de
conveniência e, como discurso final, o personagem diz: “por comportamentos desse tipo que vocês
são repudiados pela sociedade”. Isto é, a espontaneidade sexual homoerótica, que quebra as
convenções sociais, deve ser calada: ou elas serão condenadas a morte, pelas doenças que
podem contrair, ou a exclusão e sofrerão a repressão pela lei social.
212
nele, reprime essas práticas. Nesse espaço, indivíduos same sex oriented são
castrados qaunto a possibilidade de efetivarem as práticas homoeróticas, tanto
pelo regramento que contém o espaço público - como expressão da civilidade e da
moralidade - que produz a política de regramento das paixões, para a racional
convivência entre os homens (GOMES, 2002; ARENDT, 1991); como pelo sintoma
de “retração” da civilidade, uma vez que a violência é comum
142
.
A moral heterossexual e familiar, durante muito tempo, discriminou os
desejos homoeróticos, produzindo o regramento sexual quanto às expressões
possíveis no espaço público. Mesmo assim, as formações coletivas same sex
oriented foram invadindo esses espaço, microterritorializando-se e privatizando
porções dele para tais práticas. Ao mesmo tempo em que essa realidade ocorre,
uma série de conhecimentos sobre tais práticas eram produzidos pela literatura.
As práticas se unem à teoria e produzem um sujeito homossexual. Tais sujeitos
organizam uma cultura que os defina como alteridades, mas que também lute pela
participação livre no espaço público. Aos poucos as convenções que organizam o
espaço vão alterando-se pela força de um movimento social que emerge da
clandestinidade cultural. As leis se alteram, assim como as definições teóricas
quanto à homossexualidade. Por outro lado, os preconceitos impregnados no
cotidiano ainda passam por uma mudança mais lenta, e as discriminações e
violência quanto a homossexuais, embora possam ser reprimidas pela lei,
acontecem de forma velada na sociedade.
143
Outro fator que converge também aqui é a organização do mercado do
desejo, que, ao mesmo tempo, possibilita a existência dos desviantes sociais, mas
também o condiciona a um espaço de liberdade restrita no qual também o capital
pode reproduzir-se. A Redenção, em virtude da repressão, tanto policial quanto de
assaltantes e homofóbicos, causa um receio quanto à freqüência. Por outro lado,
142
Na Redenção é comum muito ladrões aproximarem-se das bichas para assaltarem. Em alguns
casos, a violência é mais extrema, misturando roupo com um comportamento homofóbico. Isso
causa receio à freqüência ao lugar. Por outro lado, o desejo contido faz com que muitos procurem
sexo rápido e não observem isso.
143
O caso do Olaria, comentado anteriormente, poderia mover um processo contra o preconceito e
a discriminação. Embora o grupo político Nuances tenha se manifestado contra tal discriminação,
ela se manteve velada pela sociedade, assim como a aplicação da lei se fez nula ou ainda muito
lenta.
213
organizou uma série de casas com funcionamento diurno e noturno nos quais se
paga para praticar sexo, como as saunas e as videolocadoras
144
. Nesse sentido, o
espaço público ainda vai organizando-se reprimindo a expressão dos desviantes
sociais.
No que tange à Redenção, as práticas homoeróticas são vistas com
preconceito até mesmo pelos discursos encontrados na cultura gay local. Esses
discursos, aliados aos perigos que tais freqüências envolvem (quanto à violência e
à integridade pessoal), fazem com que muitas pessoas orientadas para o mesmo
sexo se dirijam às videolocadoras, em vez de ao parque. Nelas, embora se pague
pelo sexo, se tem segurança e certa discrição.
145
Elas também proporcionam que
o espaço público se libere das convivências e práticas sexuais homoeróticas,
fazendo regrar-se de acordo com os preceitos afetivos da moralidade da
sociedade.
Acho que tem gente que é obcecada por sexo.Tem gente que transa
com um e com outro na Redenção. Muitos nem se cuidam. Chupam um
e outro. A gente passa quanto anoitece e nas moitas tem quatro ou
cinco batendo punheta, se chupando e dando pra qualquer um. Não
entendo isso. Também não entendo os quartos escuros das boates. Mas
já vejo que isso é comum entre os gays... (Nível superior, 27 anos).
O estranhamento aqui se refere ao desejo de manter-se uma postura
conveniente para viver-se em sociedade, muito próxima ao modelo positivo de
gay, que discrimina certos comportamentos tidos como promíscuos, romantizando
a afetividade homoerótica.
Adoro o Brique. Sempre venho aqui passear, paquerar... É bom para
conversar com os amigos, tomar um chimas
146
... Sempre pinta um cara
ou outro, mas aqui fico bem com os amigos... Se os olhares persistirem
vamos ver qual é, né. [risos]. (Nível médio, 24 anos)
144
As saunas gays são mais caras, por isso selecionam mais a freqüência, porém as
videolocadoras são mais baratas e mantêm salas coletivas em que passam filmes gays e labirintos
escuros para as práticas sexuais.
145
Os “quartos-escuros” ou “dark room” permitem a prática sexual de maneira muito velada quanto
a identificação da pessoa que se faz presente, ou seja, “sexo as escuras”, sem conhecer a pessoa,
sem saber o nome, a origem, etc. Por outro lado, essas práticas atentam somente a determinadas
partes do corpo masculino, ou seja, o pênis, as nádegas e o anus.
146
“Chima” ou “Chimas”, é expressão coloquial para designar “chimarrão”, bebida típica gaúcha.
214
A atitude blasé desse discurso implica uma postura de passear no parque
entre amigos e paquerar de forma discreta, não objetivando praticar sexo e não
estando totalmente preocupado com as convenções sociais que o possam reprimir
em relação à afetividade estabelecida entre seus amigos. Nesse sentido, o
parque, principalmente aos domingos, torna-se palco de expressão de grande
diversidade cultural, desde que não se burlem de forma radical as convenções
sociais, como as relativas às posturas e aos comportamentos de gênero sexual.
As repressões contra aquilo que burla radicalmente o espaço público
podem ser vistas quanto às práticas sexuais homoeróticas - mesmo não
implicando total visualização, devido aos períodos em que ocorrem -, assim como
a repressão quanto a grupos de jovens que se expressavam de forma muito
espontânea em frente ao monumento aos Expedicionários
147
no domingo à tarde.
Esses grupos agregam darks, rockers e grunges e mantém o prazer de transgredir
publicamente a normalidade e a pacificidade do Brique da Redenção no domingo
à tarde. Há o uso de drogas, como maconha e álcool, assim como uma postura de
livre expressão nas falas, nos atos e na afetividades. A repressão a eles se dá em
relação aos seus encontros conflituosos com os militares, que seguidamente
expõem seus equipamentos no parque.
148
O ápice de tal relação conflituosa é a queima da bandeira do Brasil na
semana da Pátria de 2005. Tais jovens são reprimidos severamente e, a partir de
então, suas reuniões ficam vigiadas durante muito tempo e tornam-se a cada dia
mais escassas.
A revitalização do Mercado do Bom Fim
149
também constitui uma forma de
conter a agregação dos “indesejáveis”, como argumentamos, assim como as
repressões policial e privada no Olaria
150
.
Ficamos aqui sentados no banco [perto do chafariz central] tomando um
chimarão, fofoqueando sobre a vida alheia. Uma biba e outra passa,
olha e se vai pro mato... Tem umas que estão sempre por aqui. Assim
147
Ver figura 5, p. 153.
148
A proximidade de quartéis e do Colégio Militar apresenta-se como facilitadora de tal
manifestação.
149
Ver figura 5, p. 153.
150
Discutimos sobre isso em 4.3.2.4.
215
como nós! [risos] É, mas não me aventuro por aí. Gosto de curtir minhas
irmãzinhas... [risos]. (Nível superior, os três, 23, 30 e 32 anos).
Os comportamentos homoeróticos no parque se dividem entre aqueles que
buscam sexo e que se aventuram em períodos de menor circulação, aqueles que
somente vão passear com seus namorados e amigos no domingo à tarde,
(momento de agregação de população e intensa diversidade cultural), e aqueles
que freqüentam o parque quase todos os dias para descansarem, encontrarem os
amigos, sentarem ao sol e tomarem chimarão. Estes últimos assumem uma
postura de ir ao parque não para sexo, mas para relações amigáveis. Por outro
lado, acabam circulando por entre os recantos e a parte central (os recantos são,
quase sempre, destinados à postura de “caça”; a parte central, à de convívio
amigável). Entre aqueles que buscam sexo e os grupos de amigos, paqueras
podem ocorrer e levarem ao encontro sexual e afetivo mais intenso.
Agora vamos demonstrar as impressões percebidas a partir das situações
de convivência com nossos amigos.
216
Amigos Estranhamento Identificação Banalização Transformação
AP
Durante os finais de
semana, se preocupa ao
circular com certos amigos,
com o namorado e com
casos no parque, em virtude
da exposição que ele
proporciona e do perigo de
ser identificado com um dos
“gays” presentes.
Gosta da diversidade que
encontra no parque nos finais de
semana e com a possibilidade de
encontrar muita “gente” bonita,
principalmente tipos masculinos
(musculosos, esportistas) que
pode observar.
Quando expressões
homoeróticas remetem à
masculinização, muito
encontradas no parque, o
desejo do contato e o encontro
torna a preocupação com a
exposição menos intensa.
Nenhuma transformação é
é percebida. Mantém uma
postura masculinizada e
procura não se misturar
muito entre grupos
homoeróticos para não ser
notado como tal.
BP
Alega manter receio de
circular no parque à noite,
em virtude do perigo que
pensa que existe. Também
mantém certa desconfiança
e preconceito contra a
“caça” de banheiro e nas
partes escondidas e
vegetadas do lugar. No
entanto, não desaprova
amigos que agem dessa
forma.
Nas conversas entre amigos, a
Redenção aparece sempre como
representação ironizada das
práticas sexuais entre bofes e
bichas. Transforma o convívio
homoerótico do parque numa
comédia, remetendo a situações
de “Elza” (roubo), assim como
descrevendo minuciosamente as
experiências sexuais de muitos
amigos com determinado tipos de
bofes (militares, seguranças,
policiais, operários, etc.). A
experiência sexual interclasses e
a oportunidade de manter
relações com heterossexuais é
valorizada e erotizada de forma
cômica. Também as conversas
remetem à banalização e à
valorização dos interesses e
posturas das bichas (passividade,
efeminamento, subjugação
sexual).
Ao mesmo tempo que contesta
as práticas sexuais que
acontecem no lugar, ironiza
situações que as envolvem,
demonstrando serem bem
conhecidades dele. A comédia
sobre as aventuras sexuais na
Redenção pontua isso como um
cotidiano banal, comum a
muitos indivíduos same sex
oriented, embora mantenha
claro que tais práticas não
fazem parte de seu
comportamento.
Ao mesmo tempo que
nega fazer parte das
situações de pegação” na
Redenção, apresenta-se
muito propenso à
paquera, fazendo o desejo
e os comentários sobre
possíveis amantes
tomarem conta de seus
assuntos em passeios
com os amigos.
CP
Sempre se refere à
Redenção como o “verde”
ou o “matinho”,
manifestando recusa em
Identifica-se com a diversidade
cultural que circula no parque.
Não alega ter interesse
explicitamente sexual de
Torna banal a diversidade
homoerótica que circula com
fins amigáveis. Embora indique
preocupação quanto à
Nenhuma transformação é
observada.
217
relação às práticas sexuais
explicitas no lugar,
principalmente durante a
noite; assim como temos ao
perigo de violência que ela
representa. Embora conviva
com amigos que freqüentam
o lugar buscando praticar
sexo, explicita sua
desaprovação quanto a
essas atitudes.
freqüentá-lo, vê ele como um lugar
de lazer e convívio com amigos e
para passear com quem se
relaciona afetivamente.
promiscuidade que envolve o
lugar em certos momentos,
torna possível contatos sexuais
a partir do conhecimento de
grupos de amigos que se
reúnem durante o dia, nos finais
de semana. Circula entre grupos
de amizade que convergem a
um tipo comum masculino,
sempre mantendo a boa
apresentação estética e o uso
de roupas de grife.
DP
Procura afastar-se do
parque nos finais de
semana, em que está com a
família, com receio de
encontrar algum conhecido
com quem estabeleceu
práticas sexuais. o
concorda com a exposição
gay de muitos grupos de
amigos que circulam nos
finais de semana.
Freqüenta largamente o parque
durante a semana, principalmente
nos horários de folga do trabalho,
no final da tarde e durante o
período de almoço. Também
alega freqüentar bem cedo da
manhã, momento em que o
parque está vazio, pois é fácil
encontrar algum homem para
manter práticas de masturbação e
felação mútua.
Durante suas buscas sexuais
banaliza a expressão efeminada
de muitas bichas que encontra,
inclusive mantém uma postura
de interesse sexual que muitas
também tem.
Nenhuma transformação é
observada. Mas o Parque
faz parte dos lugares em
que busca sexo com
outros homens. A paquera
em banheiros públicos e
em certas regiões
escondidas do parque
torna-o parte de práticas
sexuais entre as bichas
que tanto deprecia.
EP
Não tem nenhum
preconceito ou
estranhamento quanto às
convivências estabelecidas
no parque. Somente tece
comentários sobre aqueles
que nos finais de semana
representam um tipo “fino”
(conforme sua fala) e
discreto no parque e que em
períodos noturnos se
aventuram como “loucas por
entre as taquareiras atrás de
bofe”.
Se diz “criado” na Redenção, onde
encontra seu amores e seus
melhores amigos. Costuma
freqüentar muito durante a noite e
não se preocupa em esconder as
práticas sexuais que manteve,
tornando cômicas muitas
situações, até de perigo e
violência, assim como valorizando
sua postura passiva e feminina no
ato sexual, contrapondo-a a
masculina e os atributos dos bofes
com quem mantém contato.
Também torna cômicas histórias
de bofes que se tornaram
Nada observado. As transformações de EP
remetem a uma forma
masculinizada que
assume fora de seus
meios amigáveis e de
busca sexual. No parque,
mesmo em finais de
semana, em que circula
uma diversidade de
pessoas, não se preocupa
em exacerbar um
comportamento efeminado
e valorizar uma condição
de auto-identificação com
o estereótipo de bicha.
218
passivos no ato sexual e mudaram
as posturas masculinizadas, de
forma repentina e radical.
FP
Não tem nenhum
preconceito ou
estranhamento quanto às
convivências estabelecidas
no parque.
Antes de ir ao Olaria, passa pela
Redenção para encontrar os
amigos. Não declara freqüentar o
lugar e o somente como lugar
de passagem. Assim como seus
amigos, somente circula
rapidamente pelo parque para
agregar-se em grupos se dirigirem
para o Olaria no final da tarde.
Banaliza as convivências do
parque, uma vez que somente é
lugar de passagem para ele. No
parque sempre passa sozinho e
encontra alguns conhecidos.
Preocupa-se em dirigir-se para o
Olaria.
Nenhuma transformação é
observada.
220
As impressões sobre nossos amigos em relação às suas convivências no
parque convergem para posturas mais propensas à transgresão ou à manutenção
das convenções sociais, que implica preconceitos e discriminações entre os
próprios indivíduos same sex oriented. O desconforto quanto ao convívio e à
busca sexual no parque implica temor quanto à integridade pessoal, em virtude da
repressão policial e das ações homofóbicas, que se misturam com o roubo e a
violência que pode ocorrer no parque. Por outro lado, a diversidade de expressões
culturais existentes no parque atraem grupos de amigos same sex oriented que,
de forma mais velada e não totalmente trangressoras, acabam expressando algum
comportamento e alguma afetividade que possam definir-se como gay entre
aqueles que somente observam.
Agora vamos procurar descrever estes recantos ou lugares singulares ou
microterritorializações que o produzidas na Redenção. Cabe salientar que esta
descrição é fruto de observações diárias no parque e do contato informal com os
indivíduos que participam delas no período de março de 2004 a outubro de 2006.
4.3.2.5.1. Chafazriz central
151
Neste recanto, percebem-se dois grandes grupos:
a) encontros GLS amigáveis: encontrados junto ao chafariz central do parque,
são grupos de amigos gays que se encontram para conversar e divertir-se.
Também se fazem presentes grupos de lésbicas que dividem um lugar
próximo a um banco que circunda o chafariz, bem como pares de
namorados, sejam duas mulheres lésbicas ou dois homens gays.
Encontram-se freqüentemente também gays acompanhados de amigas que
ficam observando rapazes que correm próximo ao chafariz e passam por
eles. Esses grupos estão mais presentes no final da tarde, quando o parque
está mais cheio. Em outros horários, observamos gays sozinhos que estão
no parque procurando um parceiro sexual;
151
As microterritorializações a partir daqui descritas podem ser localizadas na Figura 5, página
153.
221
b) Idosos aposentados: encontram-se, sobretudo, pela manhã, quando
praticamente invadem o parque. Muitos deles se reúnem em grupos
bastante numerosos e conversam descontraidamente sentados nos bancos
próximos ao chafariz, enquanto outros se encontram dispersos no parque,
caminhando ou sentados em algum outro lugar.
4.3.2.6.2. Área entre o chafariz e o lago
:
Neste lugar encontramos a muitos cães e seus donos, muitos dos quais
moram nas proximidades do Parque da Redenção, principalmente Bom Fim,
Cidade Baixa e Centro. O lugar se transforma em um verdadeiro canil a céu
aberto, onde os cães brincam alegremente enquanto seus donos conversam. O
principal motivo da reunião espacial nesse lugar é ter um cãozinho. A partir dos
cães, se fazem amizades e, até mesmo, se promovem paqueras. Os assuntos
giram em torno da criação dos animais, como acessórios, problemas de
convivência, tipos de raças, comportamento do cão, até atingirem assuntos mais
pessoais ou gerais.
4.3.2.6.3. Recanto Alpino e área arboraizada
Também nesse recanto percebem-se dois grandes grupos:
a) paquera homoerótica: neste lugar encontramos muitos homens same sex
oriented que buscam um parceiro sexual. Nos períodos mais vazios do
parque, sobretudo pelo meio-dia e pela manhã bem cedo, podemos
observar, amesmo atos sexuais, como masturbação e felação. Podemos
observar algumas diferenças na freqüência homossexual em horários
diferenciados:
- idosos: sobretudo pela metade da manhã até o meio-dia;
- adolescentes: principalmente após o período de aula da manhâ e
antes da aula da tarde, ou seja, nas proximidades do meio-dia;
- travestis: no amanhecer, pois passaram a noite no parque;
222
- vigilantes e trabalhadores das redondezas: freqüentam
principalmente no amanhecer, procurando uma experiência
sexual com travestis ou com outros homens que estão neste
horário justamente para encontrá-los. Outros trabalhadores das
redondezas passam, com o mesmo propósito, no parque antes e
depois do trabalho, além do horário do almoço.
b) adolescentes existem grupos de adolescentes (normalmente em torno de
dez elementos) que estudam perto da Redenção e que se reúnem no
recanto Alpino para experimentarem drogas, principalmente maconha;
fumar cigarros e tomar bebidas alcoólicas. São bastante coesos e riem,
brincam e falam alto. Todos os percebem, principalmente pela manhã e à
tarde, antes do término das aulas, no momento dos últimos períodos
escolares, que são “matados” ou “enforcados” (não assistidos) para se
direcionam ao parque antes de ir para casa.
4.3.2.6.4. Área gramada entre o chafariz, espelho de água e Recanto Oriental
Neste lugar se reúnem, principalmente no final da tarde, grupos de neo-
hippies que cultuam as atividades circenses. Parecem com os hippies dos anos
1960. Usam basicamente roupas com tecidos soltos e calças jeans surradas,
cabelos compridos e mal-cuidados, acessórios de madeira e couro, bolsas
surradas de tecido e couro com longa alça que se apóia no pescoço e cai até
abaixo da cintura. Os homens usam barbas serradas ou longas e, nos dias de
calor, estão sem camisa, mostrando o corpo magro, esbelto e curvado. Todos
praticam atividades circenses, como malabarismos, tocha humana e perna de pau.
Existem muitos rastas, estilo Bob Marley, e black powers, negros com cabelos
cheios e calças boca de sino e casacos surrados. Todos convivem muito
harmoniosamente e carinhosamente, conversam em círculos, onde se abraçam,
se tocam, se beijam e descansam deitados proximamente. O uso da maconha é
freqüente, fato que remete ao movimento hippie dos anos 1960.
223
4.3.2.6.5. Área arborizada entre o Recanto Oriental, o Auditório Araújo Viana, o
Instituto de Educação e a Oswaldo Aranha: Recanto Oriental,
taquareiras e rosa-dos-ventos
Em tal local, observamos três grandes grupos:
a) paquera homoerótica: neste lugar indivíduos orientados para o mesmo sexo
circulam ou permanecem sentados em lugares mais visíveis ou outros
menos, como nas taquareiras, procurando algum parceiro sexual. Muitas
vezes percebemos alguns atos de masturbação ou felação mútua, sendo
mais visível em lugares mais escondidos e em horários de parque mais
vazio, como ao meio-dia, no início da manhã e no cair da noite.
Encontramos, circulando também, alguns michês (garotos de programa)
que procuram algum homem que os pague em troca de sexo. São
principalmente jovens e, até mesmo, adolescentes. Microterritorialização
freqüentada por uma diversidade de tipos homoeróticos, desde os mais
idosos, que estão presentes sempre pela manhã, até os adolescentes, em
períodos após a aula da manhã e antes da aula da tarde. Pela tarde, o
lugar fica mais movimentado, intensificando-se ao cair da tarde. Alguns se
escondem entre as árvores, outros ficam esperando uma paquera,
sentados nos bancos da rosa-dos-ventos e perto do jardim budista, e
muitos deles somente passam afoitos a olhar quem se encontra sentado;
b) namorados: misturados entre aqueles que buscam paquera homoerótica,
namorados heterossexuais ficam sentados, em abraços e beijos calorosos,
principalmente perto do jardim grego. São, sobretudo, estudantes que saem
da escola ou faltam as aulas e procuram o lugar para namorarem. Muitos
desses casais são adolescentes que estudam no Colégio Militar e passam
tempos bem longos no parque;
c) voyers: observamos alguns homens de mediana idade que se sentam
sozinhos próximos aos casais de namorados adolescentes e permanecem
a olhá-los. Chamamo-os de voyers, pois têm o prazer de somente olhar
casais namorando, tocando-se e beijando-se. Verificamos que eles
224
observam e ficam excitados com as cenas, muitas vezes praticando
discretamente a masturbação, outras vezes sendo mais explícitos, caso o
casal de namorados não se importar ou gostar de uma terceira pessoa que
os observe. Neste último caso, cria-se entre o voyer e o casal um clima de
extrema sensualidade; porém, nunca observamos um contato maior do
voyer com algum casal. Os voyers acompanham os lugares prediletos dos
casais, principalmente no recanto oriental, no recanto europeu e na rosa-
dos-ventos.
4.3.2.6.6. Área gramada na periferia e no centro do caminho central atéperto do
monumento dos açorianos e principalmente entre o caminho central e
Recanto Grego arborizado
Nas periferias do caminho central, principalmente perto do Recanto Grego e
do centro gramado do caminho, observamos grupos de adolescentes masculinos
que, em períodos de maior calor, se reúnem e jogam futebol. o sobretudos
adolescentes masculinos que mantém o estilo surfista, ficando sem camisa e
deixando sempre os bermudões rebaixados da cintura - muitos deixam mais
evidente a parte superior das peças íntimas (cuecas) como item de sensualidade.
É lugar de afirmação masculina adolescente. Mostram e cultuam os corpos
malhados entre os colegas. Pela linguagem e pelos gestos acentuam o caráter
masculino e pelo futebol concorrem entre si com virilidade, no intuito de serem
bem-conceituados no grupo. Jogam futebol principalmente no período da tarde,
principalmente no final dela.
Quando não estão jogando, observamos estes jovens homens em grupos
tomando sol e chimarão. Muitos trazem seus cães Pit Bulls. O cão Pitt Bull, no
parque, constitui uma marca que acentua a virilidade de seu dono. A característica
corporal deste cão se assemelha com as características dos homens que cultuam
um corpo musculoso e procuram acentuar o caráter masculino no falar, andar,
gesticular e se vestir.
225
4.3.2.6.7. Recanto Grego
No Recanto Grego observamos quatro tipos sociais:
a) casais de namorados (estudantes sobretudo);
b) voyers que observam estes casais;
c) homens orientados para o mesmo sexo que procuram algum parceiro;
d) pessoas que se deslocam até o lugar para meditar e fazer yoga.
4.3.2.6.8. Equipamentos de musculação atrás do Recanto Grego e nas periferias
da pista Olímpica
Este lugar é destinado à prática da musculação. Dessa forma, observamos
principalmente esportistas que, depois de uma corrida pelo parque, param no
lugar para se alongarem e praticarem musculação. Outros passam pelo parque, a
caminho da escola ou do trabalho e praticam flexões na barra. Os “marombeiros”
(praticadores de musculação) são encontrados, sobretudo, à tarde. Pela manhã,
encontramos homens de meia-idade e até velhinhos que se alongam neste lugar,
contanto com a facilidade de alguns equipamentos.
Perto deste lugar ficam descansando ao sol muitos mendigos e bêbados,
além dos cães vira-latas que os acompanham. Juntamente estão os vendedores
de drogas (maconha, cocaína) que convivem com os que cultuam musculação nos
equipamentos. Estes vendedores atraem diferentes tipos sociais que consomem
drogas, desde estudantes, neo-hippies, “marombeiros”, neo-surfistas, entre outros,
que passam somente para comprar drogas. A concentração de pessoas fazendo
musculação, ou seja, tendo um objetivo, pode dissipar a atenção à venda de
drogas, despistando a ação da polícia. Por outro lado, observamos que a maioria
dos cultuadores do corpo, assíduos daquele lugar, estão em contato com a droga.
Também encontramos homens same sex oriented que praticam esportes no
parque ( musculação e corrida) e vão a o lugar, escondendo sua identidade,
para se exercitarem e, muitos deles, observarem discretamente os homens
musculosos que ali se encontram.
226
4.3.2.6.9. Banheiros e pracinha em frente ao colégio militar, na Rua José Bonifácio
O banheiro masculino público próximo à pista olímpica é ponto de parada
de homens same sex oriented masculinos que estão no parque ou passam por
ele.É lugar para promover sexo rápido (felação, masturbação e exibição). O clima
do banheiro é de extrema excitação e sexualidade. Na grande maioria das vezes,
quando entramos, podemos observar algum homem se exibindo e se
masturbando. O fluxo no banheiro é muito intenso. Alguns passam para realmente
usá-lo fisiologicamente, outros somente entram esaem para sentir o movimento
e perceber quem lhes interessa, outros ficam tempos longos junto ao mictório,
exibindo-se. Aliás, muitas das pessoas que ficam um bom tempo no banheiro
procurando sexo não se parecem em nada com o estereótipo gay conhecido.
Muitos homens másculos se encontram presentes, procurando masturbação
mútua com outro homem. O banheiro é um lugar oportuno para estar próximo
sexualmente com outro homem; por isso ele é um lugar ótimo para homens
casados e “não-assumidos” sobre sua homossexualidade promoverem uma
experiência rápida. Além da necessidade fisiológica, a necessidade sexual marca
o lugar.
Vizinha aos banheiros, encontra-se a pracinha infantil, onde crianças
brincam todas as horas do dia, acompanhadas de suas mães e da família. Nesse
sentido, quando compararmos a pracinha com o banheiro masculino próximo,
podemos observar a diversificação intensa de usos que os lugares do parque
possui. Os freqüentadores dos lugares são vizinhos e presentes, mas o
possuem nenhum contato mais direto com os elementos e as práticas de cada um.
4.3.2.6.10. Campo de futebol sem grama, entre os banheiors e a pista Olímpica
É lugar de futebol organizado em equipes competidoras amadoras que cria
uma convivência a respeito do futebol. Grupos de amigos se encontram para jogar
e conviver amigavelmente, trocando experiências e pontuando o mundo
masculino, suas exaltações e seus problemas com os amigos mais próximos.
227
Também os citamos por um fato muito interessante que observamos e que define
a tolerância social presente na Redenção.
Numa certa manhã, assistimos brevemente a um jogo futebol amador
organizado. Os times tinham camisetas próprias, e os componentes se
dedicavam à atividade. O mais interessante é que em um time estava jogando
uma pessoa que integra um grupo político organizado que trata sobre as questões
da homossexualidade (direitos, cultura, sexualidade, estética e ética) em Porto
Alegre (o Grupo Nuances), ou seja, homossexual assumido. Na outra equipe
encontramos um garoto de programa que circula pelo parque. Ambos se
encontravam convivendo, no futebol, juntamente com traficantes da área;
residentes do bairro Bom Fim aposentados; um homem com o estilo rasta e,
para pontuar a diversidade de tipos sociais naquele jogo, um estudante do colégio
militar que parou no local, vestiu a camiseta de uma das equipes e começou a
jogar. Tomando como exemplo essa partida, podemos classificar o lugar do
campo de futebol como um lugar de tolerância e convivência mútua das diferenças
sociais que se encontraram para jogar futebol (tolerância positiva). Isso promove a
aceitação mútua em virtude de um objetivo: o futebol.
4.3.2.6.11. Cancha de bocha próximo ao campo de futebol sem grama
Trata-se de local de reunião de homens principalmente oposentados e mais
idosos do bairro Bom Fim e Cidade Baixa.
4.3.2.5.12. Monumento aos Expedicionários
Encontramos nesse lugar, pela manhã e pela tarde, uma reunião de
pessoas que se envolvem com esporte neste período, principalmente ciclistas e
corredores, com uma diversidade de idades bastante grande, desde aposentados
com mais de 50 anos de idade, até adolescentes e pessoas de idade mediana. A
grande maioria se encontra envolvida com o ciclismo, a caminhada e a corrida.
Mas este lugar também é um ponto de parada, para conversar, para alongar-se e
228
tomar sol. Muitos aposentados permanecem no lugar somente tomando um sol,
embora vistam-se como roupas bem apropriadas ao esporte. A diversidade de
idades é causada principalmente pelo fator familiar da reunião. Muitos pais, mães
e netos estão presentes pela manhã e pela tarde, bem abaixo dos arcos do
monumento. Nas periferias do monumento, sentados nos bancos que o
circundam, encontramos uma diversidade de pessoas: eventuais passantes,
grupos familiares tomando chimarrão, estudantes, militares, casais de namorados,
envolvidos no local pela atração ao sol.
4.3.5.2.13. Pracinha próximo a UFRGS, área arborizada perto do minizoológico
Encontramos a presença de muitos mendigos em período diurno, por ser
espaço arborizado e constituir mais um caminho do que um lugar de parada e
convivência. Essas pessoas encontram o descanso que não conseguem em
outros lugares do parque mais procurados e congestionados. Essa região também
está mais próxima do Centro e das paradas de ônibus provenientes de bairros das
zonas sul e leste de Porto Alegre. Para quem chega de ônibus da zona sul de
Porto Alegre, esse é primeiro lugar de contato com o parque. Pela proximidade
dao Centro, encontramos muitas pessoas que ali se sentam, sozinhas. Muitas
delas carregam pastinhas que contêm currículos profissionais. São
desempregados que param no parque para aliviar a tensão de uma longa jornada,
à procura de emprego. Encontramos desde jovens a pessoas mais velhas, muitas
vezes cabisbaixos, sozinhos e desanimados pelo problema do desemprego.
Juntamente com mendigos e desempregados encontramos alguns
indivíduos orientados para o mesmo sexo que atraem e são atraídos por homens
desempregados do local. Muitos jovens desempregados procuram o parque com o
intuito de ganhar algum dinheiro com um eventual programa com outro homem.
Isso promove uma atração mútua destes dois tipos por este lugar, mantendo como
ponto focal os banheiros próximos ao minizoológico. Muitos homossexuais de
mais idade passam por ali procurando um parceiro e encontram um homem
desempregado mais jovem, o convencendo-o à prática sexual e levando-o a um
229
motel ou à própria casa para esse ato. Assim como encontramos michês
eventuais, também michês mais assíduos circulam comumente pelo lugar em
período diurno.
4.3.5.2.14. Pracinha perto do minizoológico
A pracinha e o minizoológico atraem um público de mães, pais e filhos,
constituindo um ambiente muito familiar.
4.3.5.2.15. Café do Lago
Público de maior poder aquisitivo é encontrado no local, que tem grande
freqüência de artistas, intelecutuais, professores e estudantes universitários que
procuram o parque e o café para conversarem e se divertirem com a beleza do
lago da Redenção. O Café funciona até a noite, com policiamento e lugar para
estacionar o carro. Aos finais de tarde, o café lota: são promovidos shows de
MPB, atraindo um público mais seleto quanto aos níveis escolar e econômico.
se constitui um lugar de consumo e diversão “obrigatória” no mapa turístico em
Porto Alegre.
4.3.5.2.16 Quadras de vôlei, futebol de salão e pista Olímpica
Reuniões de esportistas profissionais e amadores assim como de
estudantes e professores para as aulas de educação física., ocorrem nessas
quadras.
4.3.5.2.17. Bancos próximos à Rua José Bonifácio e João Pessoa
Encontramos, sobretudo, aposentados mais idosos que moram próximo ao
parque e que preferem sentar nos bancos a caminhar. Muitos vão acompanhados
de familiares ou enfermeiras.
230
4.3.5.2.18. Auditório Araújo Viana
Encontramos grupos de mendigos e de meninos e meninas de rua que
moram sob as marquizes da construção do auditório. Durante o dia eles colocam
seus “trapos” a secar e tomar sol e reúnem-se em grupos no gramado para beber
e cheirar cola. Muitos dormem em grupos reunidos ao sol no gramado.
4.3.5.2.19. Brique da Redenção
É um espaço de tolerância positiva, com microsinguralizações espaciais na
Rua José Bonifácio nos domingos.
O Brique da Redenção constitui um espaço de lazer tradicional nos
domingos de Porto Alegre. Para este lugar (rua José Bonifácio) imigra uma
diversidade de pessoas de vários bairros de Porto Alegre e da região
metropolitana procurando fazer parte do cosmopolitismo desse espaço público.
Constitui-se um espaço público por excelência, onde as pessoas passam,
encontram conhecidos e conhecem outras, conversam, trocam informações,
enriquecem seus conhecimentos, aprendem e ensinam, assistem a incursões
artísticas, debatem política, absorvem e/ou promovem manifestações políticas e
culturais, compram e produzem arte, ficam a par dos movimentos culturais e de
consumo de vanguarda, assim como do ressurgimento de alguma moda antiga. É
um espaço público cosmopolita porque todas as expressões que ali circulam,
desde as individuais não espetaculares até as apresentações artísticas
profissionais e amadoras, remetem a manifestações trazidas de esferas nacional
e/ou global que se agregam ao cotidiano cultural de Porto Alegre.
É lugar onde a “alma” cultural e artística de Porto Alegre troca informações
e se agrega a expressões de outras esferas/escalas não-locais, produzindo uma
diversidade sociocultural e a tolerância as diferentes expressões individuais e
artísticas. Mesmo assim, possui uma localização restrita e exata no espaço e no
tempo, ou seja, acontece na Rua José Bonifácio, aos domingos. Assim como o
Gasômetro, nas margens do lago Guaíba, cuja vida pública floresce também no
231
domingo, o Brique da Redenção representa uma das únicas oportunidades de
viver o espaço blico propriamente dito em Porto Alegre, cuja retração é visível
pelo mundo do trabalho, do consumo, pela “correria” cotidiana e pelo intimismo
que se instalou no centro da cidade.
Por possibilitar a expressão artística e política diversa, também é lugar de
expressões de diferentes subjetividades individuais que se sentem livres e imersas
na variabilidade de formas estéticas e de tipos de convivência. Podemos dizer que
se forma uma territorialização de tolerância à diversidade estética, sexual, ou seja,
de vários tipos sociais que expressam diferentes subjetividades. Dessa forma, no
Brique, as pessoas encontram e entram em contato com novos comportamentos,
novas sensações e começam a apreender a usar novos padrões de consumo,
novas idéias e concepções acerca da vida cotidiana, sejam em éticas, como
estéticas. É microterritorialização de contato e aprendizado mútuo de culturas e
valores.
No entanto, nesse emaranhado de pessoas que caminham, inseridos num
grande conjunto espaço-cultural diversificado internamente, as pessoas procuram
encontrar aqueles que expressam valores culturais, e/ou estéticos, e/ou políticos,
e/ou sexuais parecidos e a eles agregar-se. Esta necessidade de identificação
referente a estéticas, assuntos, gostos, ideais e sexualidades parecidas acabam
por formas microagregados sociais que ocupam uma porção singular dessa
grande territorialização que se caracterizada pela tolerância da diversidade
político-cultural.
As microterritorializaçãoes se formam pela presença de um pequeníssimo
agregado de pessoas que se relacionam de forma diferente. Tais
microterritorializações formam-se em lugares bem específicos e pequenos nas
periferias do espaço de circulação (asfalto) da rua José Bonifácio. Essas
microterritorializações também são efêmeras dentro do espaço do Brique no
domingo, sendo vistas em tempos extremamente variáveis e produzindo-se em
diferentes graus de intensidade. No entanto, verificamos certas localizações
específicas que se tornam destinadas a pontos de encontros de algum tipo ou
232
expressão cultural, política e artística singular dentro da variabilidade de tipos
sociais que circula pelo Brique.
Podemos dizer que o Brique da Redenção é uma territorialização de
tolerâncias positivas em virtude da diversidade sociocultural presente, pela
intensidade manifestações culturais e pelas diferentes facções políticas que estão
juntas. Porém, dentro dessa grande territorialização, processos de identificação se
produzem e singularizam determinados pequenas microterritorializações es de
convivência específica e/ou de consumo cultural e/ou tipos de manifestações
artísticas e políticas, produzindo o sintoma de tolerância negativa ou
pequeníssimas segregações.
Nesse sentido, tentaremos visualizar algumas microterritorializações que
representam estas singularizações dentro desse espaço de tolerância positiva.
Tarefa difícil quando estas microterritorializações são tão pequenas e efêmeras,
mudando constantemente.
As territorializações das bancas localiza-se ao longo do canteiro central
da rua José Bonifácio (JB), onde estão localizadas bancas para vendas de obras
de arte, decoração e utensílios de artesanato. Existe uma certa organização na
disposição dessas no espaço, causando uma especialização de determinadas
partes do alongado canteiro central da JB pela característica dos produtos que
uma certa quantidade de bancas vendem. Podemos dizer que, pelas
características das bancas, que é dada pelo tipo de produtos que vendem, forma-
se um lugar de venda e discussão singular, ou seja, a constrói-se uma
microterritorialização por um tipo singular de convivência dos donos das bancas e
de compradores a respeito do “mundo daqueles produtos” (fabricação, qualidade,
histórias envolvendo a compra e venda, materiais tradicionais e novos utilizados,
formatos, inovações e manutenção das antigas características, histórias do brique
em que se envolveram, reclamações e notícias boas sobre o trabalho cotidiano,
entre outros).
O aspecto relacional dessas microespecializações espaciais, envolvendo a
venda de artesanato e os artigos de decoração no Brique da Redenção está
relacionado a culturas específicas que envolvem os produtos que se vendem. Dois
233
exemplos bem claros disso o os lugares de venda de antiquários e de
artesanato indígena.
O antiquário está relacionado a toda uma tradição e antiguidade dos
produtos que se vende. “Quando se compra um utensilho deste tipo, não está se
comprando somente um produto, está se comprando uma época, um contexto
histórico e, até mesmo, afetivo”, diz um vendedor do Brique. Ou seja, o produto
está envolto de todo um contexto histórico que define uma época, e isso determina
seu valor. A época remete ao tipo de material e ao design do produto. Além da
característica temporal desse produto, também se levam em conta a quantidade
de utensílios daquele tipo disponível no mercado e o próprio contexto de sua
fabricação. Nesse aspecto, todo uma discussão a respeito do fabricante entra na
negociação e na valorização do produto. Muitas vezes também é caráter de
valorização a família do antigo dono, que, se for famoso na cidade, tende a manter
o produto supervalorizado.
Outro lugar que se singulariza por relações culturais específicas e que se
envolve na fabricação e venda de produtos é a territorialização do artesanto
indígena, que envolve decoração e utensílios para o lar, principalmente cestos
feitos de maneira bem stica. Quando passamos pela territorialização indígena,
nos sentimos presentes em outro lugar que não a própria JB no contexto do
Brique. Remetemo-nos a uma comunidade indígena e a todas as problemáticas
que envolvem a questão dessas populações hoje. Encontramos, localizadas no
final da JB, próximo a Rua Oswaldo Aranha, pessoas com traços indígenas claros
e uma comunidade que fala, se comporta e se relaciona de forma bem diferente.
Sentimo-nos magoados pela pobreza pela qual tais comunidades passam e nos
remetemos a todo peso da exclusão e violência histórica que o indígena passou e
passa no Brasil e no mundo inteiro. Naquele lugar eles se envolvem com um
comércio de artesanato que mantém um tipo de convivência específica e uma
cultura singular. Os compradores e visitantes, ao passaram pela territorialização,
imergem em um outro contexto social e histórico, evidenciando uma sensação
relacional totalmente divergente das outras tantas que se experimentam em um
pequeno tempo presente no Brique da Redenção.
234
Estes dois são alguns exemplos de territorializações específicas que
envolvem as bancas no decorrer do domingo no Brique da Redenção. Agora
vamos listá-las, localizá-las e fazem alguns comentários sobre elas.
a) bancas de antiquários: localizam-se no canteiro central da JB, desde a
esquina com a João Pessoa até a rua Santana. É um conjunto de bancas
que vendem louças, móveis, discos, livros e roupas antigas. Essa pequena
porção do espaço abarca todo um momento de relação específica que
permeia a qualidade, o valor e o cotidiano da venda de produtos usados e
antigos;
b) bancas de quadros e esculturas: localiza-se também no canteiro central
deste a esquina da Santana até a esquina com a Vieira de Castro. O
conjunto de vendedores de quadros e esculturas firma um maior
aproximação entre eles do que a mantida com os vendedores do antiquário.
Além disso, desenvolve-se toda uma série de assuntos diferenciados que
envolvem o mundo da pintura e da escultura, assim como o mercado das
peças;
c) bancas de artesanato em geral: da esquina da Vieira de Castro até a
esquina da Rua Santa Terezinha se dispõe uma série de bancas que
vendem artesanatos variados, podendo não se caracterizar um tipo
específico, a não ser uma certa especialização da venda de artigos em
couro que se passa na esquina da rua Santa Terezinha e se alonga até o
artesanato indígena, próximo à esquina com a Oswaldo Aranha. As bancas
têm qualidades específicas: vendem artigos ou em couro, ou bonecas, ou
pequenas esculturas, ou arranjos de flores artificiais, incensos, utensílios de
metais, roupas, calçados e tapetes artesanais; no entanto, elas encontram-
se dispersas sem ser possível estabelecer uma classificação ao conjunto.
As relações próximas entre vendedores se mantêm, mas giram em torno da
troca de informações sobre cada trabalho, não sendo espefico a uma
atividade. Na verdade, cada vendedor conhece um pouco do trabalho do
outro, causando um conhecimento maior a respeito do artesanato no geral,
não sendo específico a um ramo de atividade. Existe uma menor
235
especialização das atividades em cada vendedor, característica que define
o trabalho artesanal, ou seja, o envolvimento constante com novas práticas
e o aprendizado da produção de vários utensilhos;
d) JB esquina Oswaldo Aranha: neste lugar localizam-se o artesanato
indígena, que não apresenta banca, mas a exposição dos produtos
diretamente no chão. Envolvem-se basicamente com a produção de
utensílios para o lar, produzidos com gravetos e raízes finas e com formato
rústico. Muitos deles utilizam técnicas de pinturas tradicionais dos grupos a
que pertencem. Como comentamos, ao passarmos pelo lugar, entramos
em contato com outra cultura, que sobrevive com muitas dificuldades,
preconceitos e empobrecimento dentro na cultura cotidiana de Porto Alegre.
As territorializações fora do canteiro central asfalto e periferias
situam-se além do canteiro central onde estão localizados os conjuntos de bancas.
A parte do asfalto que fica fechada à circulação de automóveis no domingo, rente
ao parque, se caracteriza como um espaço alongado onde as pessoas caminham
(passeiam) para conversar, observarem-se, comprar e olhar os utensílios e obras
vendidos nas bancas e para assistirem a alguns espetáculos culturais,
profissionais e amadores, apresentados no Brique. Podemos dizer que é um típico
“caminho” ou “trajeto” onde as pessoas passeiam e às vezes param para
cumprimentarem amigos, conversar e assistir aos espetáculos artísticos. No
entanto, além da microterritorialização das bancas no canteiro central, podemos
observar locais onde a característica do lugar passa de “trajeto” e se transforma
em pontual, onde as pessoas estão paradas, convivendo mais intensamente. O
aspecto do trajeto que é fluxo (passeio) é quebrado pela formação de um
agregado social que se reúne devido a algum motivo, singularizando uma
pequenina parte do Brique por um momento também curto. Se analisarmos o
contexto fluxo do asfalto, nos saltam aos olhos os diferentes lugares de
aglomeração, vinculados a diferentes motivos de convivência. Então agora vamos
demonstrar alguns destes.
Em frente ao Monumento aos Expedicionários é um ponto de encontro, ou
seja, lugar onde as pessoas marcam encontros e esperam outras para passearem
236
no Brique. Por ser ponto de encontro, sempre são produzidos agregados sociais
mais intensos que em outros lugares do Brique, sendo cada agregado
caracterizado por uma reunião de um tipo social determinado.
É o lugar de maior intensidade de convivência coletiva do Brique, perdendo
aquela característica de “fluxo” ou “trajetoe passando a espaço de convivência
onde diferentes agregados sociais se apropriam em diferentes momentos do dia.
Observamos principalmente uma intensa apropriação gay lugar. Ali grupos
de amigos gays estão presentes em todos os horários do domingo, sendo
principalmente grupos de amizade onde são promovidas “paqueras” entre
elementos de grupos diferenciados. Podemos observar, por exemplo, uma reunião
de grupos de homens muito bem vestidos e geralmente seguindo os padrões de
vanguarda da moda em vestuário e acessórios. Muitos desses grupos reúnem
homens gays que fogem do padrão estereotipado efeminado; porém, outros
sentem-se tão à vontade entre amigos que riem e gesticulam de forma mais
extravagante e sentem-se seguros para “paquerar”, através de olhares mais
provocativos, os que passam naquele lugar. Também observamos grupos de
mulheres lésbicas que se localizam sentadas no limite entre a calçada e a rua,
enquanto os homens preferem ficar em pé.
Outros grupos também dividem este espaço. Podemos observar grupos de
“rockers” que esporadicamente se reúnem no local, ficando mais restritos e bem
localizados próximo ao monumento. o geralmente adolescentes que vestem
roupas alternativas, saias em estampa xadrez, roupas pretas, em que são
gravados os nomes e os símbolos referentes às bandas de rock prediletas. Isso
com relação às mulheres que usam cabelos avermelhados e mal-cuidados. Os
homens usam cabelos longos ou raspados. Quanto ao vestuário, andam com
camisetas em estampa xadrez ou roupas totalmente pretas. Costumam estar
acompanhados de muito cigarro e de bebidas alcoólicas. Discretamente usam
maconha.
Também neste lugar acontecem espetáculos artísticos, muitos deles
aproximando-se de atividades circenses. Quando as atividades circenses
acontecem, observamos uma aglomeração de “neo-hippies” que promovem estes
237
espetáculos: pernas de pau, malabarismos, palhaço, apresentação de comédias.
Observamos a presença acentuada de argentinos que apresentam estes
espetáculos.
Grupos teatrais profissionais de rua também se apresentam neste lugar,
como, por exemplo, o grupo “Oi-nóis-aqui-traveis”. Ao acontecerem esses
espetáculos, às apropriações tendem a atenuarem e formam-se grandes círculos
de diversidade de pessoas que se reúnem em virtude do espetáculo.
Os canteiros gramados, locais de namoro, de amizade e de chimarão,
situam-se ao lado ao monumento aos Expedicionários e rente a parte de asfalto,
em direção à avenida Oswaldo Aranha. Existem canteiros de grama que, nos
domingos de sol, ficam cheios de grupos de amigos e de namorados que formam
círculos de conversas, passam o chimarão e tomam sol. Como dizem os gaúchos,
ficam “lagarteando”, expressão que lembra o lagarto que procura o sol para se
aquecer.
O complemento do “lagartear” é sempre o chimarão. Geralmente são
grupos de jovens, bem-vestidos, de classe média, que se reúnem no Brique nos
dias frios e de sol para conversarem e observarem os que passam na parte de
asfalto. Também podemos observar esporadicamente a presença de maconha
que circula nos círculos juntamente com o chimarão (a presença das duas ervas: a
do mate e a maconha). A aglomeração é bem evidente e territorializada nas áreas
dos canteiros gramados entre o monumento, os banheiros, a pracinha e o asfalto
da Rua JB.
Alguns espetáculos artísticos amadores são tradicionais no Brique e
promovem a reunião de pessoas em virtude do espetáculo. Tais espetáculos se
localizam no espaço asfaltado de fluxo entre as esquinas das ruas Santana e
Santa Terezinha. São eles:
a) as estátuas vivas: grupos de estátuas vivas se reúnem ao longo do espaço
asfaltado da JB, rompendo com o fluxo de pessoas. Geralmente podemos
encontrar duas ou três pessoas que se produzem e ficam paradas como
estátuas, chamando a atenção das pessoas que ficam a observar. Elas se
238
localizam principalmente entre as esquinas da rua Santana e Santa
Terezinha;
b) os saltadores e ginastas amadores: também encontramos apresentações
de saltadores e ginastas amadores que se arriscam com fogo e facas para
chamar a atenção das pessoas e ganhar algum dinheiro. Promovem a
reuniam de pessoas que os assistem, principalmente próximo à esquina da
rua Freitas de Castro;
c) “O homem e o gato”: figura tradicional em Porto Alegre e inclusive em
outras partes do Rio Grande do Sul, esta pessoa promove espetáculos
amadores de comédia de forma itinerante, em Porto Alegre e em outras
cidades do Rio Grande do Sul, principalmente nas praias, no verão. Seu
espetáculo refere-se a uma comédia hilariante da luta entre um homem e
um gato que se encontraria preso em um saco. Utilizando um utensílio de
boca, o homem imita sons que são parecidos com miados e gritos de gato.
Muitos destes miados se aproximam de palavras e frases emitidas pelo
gato no saco. Além desse espetáculo, são contadas histórias e piadas. O
público se diverte muito, e o espetáculo é um sucesso. Suas apresentações
interrompem o fluxo e cria-se um grande círculo onde ele está
apresentando-se;
As microterritorialização políticas situam-se ao longo do limite entre o
asfalto da JB e o parque, desde o monumento aos Expedicionários até próximo à
esquina da rua Freitas de Castro. Nesse espaço, se fazem presentes bancas de
partidos políticos e de sindicatos, que distribuem panfletos e vendem materiais de
propaganda, como botons, camisetas, adesivos e bandeiras. Em torno dessas
bancas, sempre existem grupos de pessoas que se fazem presente, discutindo
política, concordando com as idéias do partido ou delas discordando. É um espaço
de discussão política tênue, mas que é intensificado em períodos de participação
política global, como épocas de eleições.
Nos bares do Mercado do Bom Fim uma identificação com a paquera
heterossexual, drogas e álcool. O Mercado do Bom Fim, na esquina da JB com a
Oswaldo Aranha, tem na parte que fica de frente para a JB, uma série de lojas
239
temáticas e, em seus fundos, próximos ao parque de diversões infantil, uma série
de bares e uma área livre para as mesas. Nessa área livre, nos finais da tarde de
domingo, aglomeram-se jovens para namorar, conversar, fumar maconha e beber.
Observamos aí uma diversidade de tipos sociais alternativos: hippies, rastas,
rockers e tipos mais comuns que procuram conviver mantendo presente a música,
a maconha, as paqueras e a bebida alcoólica.
Digamos que este lugar se apresenta como uma extensão das reuniões típicas
da Oswaldo Aranha no período noturno, lugar que se caracteriza pela reunião dos
“alternativos” de Porto Alegre (hippies, punks, rastas, rockers), que procuram
bebida, drogas e discussões sobre música e sobre o mundo de cada grupo. A Rua
Oswaldo Aranha se apresenta aproxima como “zona moral” (PERLONGHER,
1987), ou seja, lugar dos degradados e alternativos, movimentada pela vida
noturna das festas que envolvem sexo, drogas e rock. Nos bares do Mercado do
Bom Fim se fazem presentes, nos finais de tarde do domingo, os freqüentadores
da Oswaldo Aranha.
4.3.2.6. Praça da Alfândega e Rua da Praia Shopping
De acordo com o Atlas Ambiental de Porto Alegre (1998), a região da praça
da Alfândega funcionava originariamente como porto, em que teve espaço o
primeiro mercado da cidade, conhecido como Largo da Quitanda. Em 1820, o
mercado foi transferido para a atual praça XV de Novembro, para dar lugar ao
prédio da Alfândega. Em 1866, foi instalado, no centro da praça, um chafariz e
plantadas as primeiras árvores. Em 1883 a arborização foi concluída, e a praça foi
denominada Senador Florêncio. Em 1912, com a demolição do prédio da
Alfândega, o aterramento e a construção do porto, a área verde foi ampliada.
Sobre o aterro foram construídos os prédios dos Correios e Telégrafos e a
Delegacia Fiscal, e, em 1933, foi inaugurada a estátua em homenagem ao
General Osório, erigida onde estava o chafariz. Em 1979 tomou a forma original
pela unificação das Praça Senador Florêncio e Barão do Rio Branco, voltando a
chamar-se Praça da Alfândega.
240
Atualmente, a praça representa o coração da cidade. Por ela e em seu
entorno, circula uma grande população que se desloca ao Centro para trabalhar e
consumir. Nessa perspectiva, a praça apresenta-se apenas como um lugar no
qual circulamos sem interesse específico de parada, a não ser para consumir
artigos de vendedores ambulantes presentes no lugar, ou, então, para visitá-la no
período em que ocorre a Feira do Livro de Porto Alegre.
No entanto, na praça, convivem pessoas que buscam algum
relacionamento específico e que nela o encontram. Despercebidos por entre os
que somente passam de forma apressada, no local se reúnem meninos de rua,
mendigos, aposentados, jogares de dama e de cartas, vendedores ambulantes
que descansam no lugar, prostitutos, prostitutas e homens procurando sexo com
outros homens. Em relação aos últimos, se forma um circuito de “deriva” entre a
praça, principalmente mantendo os marcos de convergência para o banheiro
público e o shopping Rua da Praia - neste, principalmente, entre os banheiros do
subsolo e do terceiro piso, além da praça de alimentação, também no subsolo. Na
praça de alimentação do subsolo do shopping, observamos garotos de programas,
jovens pobres da periferia e da região metropolitana de Porto Alegre; homens
mais velhos (muitos idosos) que convivem com tais jovens; grupos de amigos
jovens efeminados que se reúnem na praça de alimentação do subsolo; assim
como uma diversidade de homens que circulam por entre a praça e os banheiros
do shopping, procurando algum paquera e parceiro sexual.
A seguir vamos reproduzir alguns discursos de indivíduos same sex
oriented sobre as relações entre a região e os desejos homoeróticos:
A gente vem pra cá, bastante tempo. Fico aqui sentado e tem os
guris. Eu mais ajudo eles, mas tem uns que são tão bonitos... Moro aqui
perto, ali na Duque. [Rua Duque de Caxias, próximo ao shopping] Tem
um guri que confio mais. Bom rapaz, pena não ter muitas oportunidades
na vida. Nem fazemos nada... Mas gosto dele e acho que também gosta
de mim... (Ensino superior, 64 anos)
Aqui encontramos a fala de um senhor idoso same sex oriented, que faz
parte de um grupo de conhecidos que se territorializam entre a praça da
Alfândega, perto do banheiro público, e a praça de alimentação do subsolo do
241
shopping. Geralmente esses senhores ficam sentados nos bancos dessa
localidade da praça, nos quais muitos michês também se fazem presentes. A
microterritorialização que se forma representa a relação entre esse grupo de
amigos e entre eles e os michês, e faz parte do cotidiano da praça. Tal relação
é estabelecida pelo interesse econômico dos michês e pelo desejo dos senhores,
mas às vezes implica afetividade, quanto admiração mútua entre algum casal.
Os senhores são muito experientes e sabem sobre aqueles que possam causar
algum perigo. Geralmente os michês também são os mesmos de muito tempo,
cujas histórias de vida e cujos comportamentos são conhecidos de tais
senhores.
Produz-se, na microterritorialização, um cenário de negociações, de
entendimentos mútuos e de troca de favores entre eles, assim como de
aprendizado pela troca e pelo relato de experiências de vida. A necessidade da
troca se intensifica quando os senhores observam michês novos e estranhos no
lugar. Eles sempre procuram a longa conversa para estabelecer um largo
conhecimento da pessoa e assim saber sobre a possibilidade de aproximação
mais intensa. Os michês, por outro lado, em virtude da necessidade financeira, se
“jogam” ao experimento sexual, sem praticamente nenhum conhecimento sobre
com quem estejam relacionando-se. Tais indivíduos mantêm uma postura
masculinizada e são principalmente garotos pobres da periferia da cidade e da
região metropolitana. Os senhores são, em sua maioria, moradores do Centro
muito tempo, tendo muita experiência quantos aos perigos e prazeres das práticas
homoeróticas envolvendo interesses outros que não somente os sexuais e
afetivos. Muitas vezes tais senhores parecem manipular as conversas e os
comportamentos desses rapazes simples, e isso nos fez ver a inocência de muitos
deles, mesmo mantendo uma postura de autovalorização e esperteza entre
companheiros de atividade. Por outro lado, tais senhores, em seus assuntos,
ironizam muitos atributos, comportamentos e situações que envolveram
determinados michês, bem como as espertezas de alguns michês em eventos de
furto e extorsão a alguns elementos do grupo de senhores.
242
Aqui rende pra caramba. Tem muito cara que bem que gosta... Tem um
cara que eu fico que encontrei aqui. A gente se viu no banheiro. Tem
namorada, e eu sou a outra... [risos]. As bibas entram e saem do
banheiro, sempre catando os bofes. Quando vêem que tem uma neca
[pênis] bem, [“bem” é usado para bom, grande e bonito] saem atrás do
bofe. (Cursando ensino médio, 18 anos)
Os michês ficam perto do banheiro [do subsolo]. Eles entram e saem
do banheiro. Lá ficam mostrando seus paus e outros caras ficam
olhando. É muito excitante... Mas michê é michê, e eu não me meto com
eles. Também pagar pra transar não dá, né?! Tem coroas que pagam.
Acho por isso que eles ficam muito por aqui. Eu paquero muito aqui.
Tem muito cara casado. É legal ficar com eles... Às vezes rola durante
muito tempo. Eles não podem pegar no porque tem seus
compromissos... E eu, os meus [risos]. (Ensino médio, 29 anos).
Esses discursos implicam a relação entre componentes dos grupos de
jovens gays que se fazem presentes no lugar, principalmente na praça de
alimentação, e outros indivíduos same sex oriented que mantêm relações
homoeróticas, mas que não convivem nos lugares e não se aproximam de
comportamentos e práticas culturais gays. Muitas vezes, muitos indivíduos
mantêm uma vida condizente como os padrões heterossexuais,
concomitantemente com experiências homoeróticas, camuflando encontros
esporádicos com algum companheiro ou em idas a lugares públicos nos quais
essas relações possam ser efetivadas.
De acordo com nosso amigo, da primeira da falas anteriores, o bofe com
quem mantém relações algum tempo não vai às boates gays que ele freqüenta
e tem uma namorada fixa. Isso é valorizado por nosso amigo como oportunidade
de manter relações sexuais constantes com um homem que não é gay ou é
totalmente masculino.
152
O Shopping Rua da Praia é freqüentado por muitos gays
em virtude dessa possibilidade de encontro sexual; por outro lado é freqüentado
por homens que se dizem heterossexuais para experiências homoeróticas
esporádicas, principalmente voyerismo e masturbação nos banheiros.
Outro fator preponderante também na microterritorializações são os michês.
Além da relação entre michês e senhores, existe a relação entre michês, jovens
gays e homens same sex oriented esporádicos. A relação entre michês e jovens
152
Esse interesse faz parte do imaginário gay, como já comentamos.
243
gays é mais dificultada em virtude da baixa capacidade financeira dos jovens,
tendo eles mais relações com homens same sex oriented esporádicos, assim
como com alguns mais maduros. A relação entre michês e homens same sex
oriented esporádicos ocorre principalmente entre aqueles homens de maior faixa
etária e michês mais jovens. Sabemos de alguns casos nos quais a relação sexual
persiste durante um período longo, sempre implicando pagamento. Temos
também o conhecimento da possibilidade de o michê manter em sigilo tal relação.
Nesses casos, perpassa pelos comentários entre indivíduos da territorialização, a
possibilidade de determinao michê ser passivo na relação sexual
153
Tem gente que tem coragem em caçar no banheirão da praça.
Deprimente... Tem cada figura lá. Os michês são oportunistas e
perigosos. sei de casos de gays que levaram michês para casa e se
deram mal. Acho que muitos gays têm gosto pelo perigo. O Shopping é
tranqüilo, mas não gosto da pegação de banheiro. Não sou flor, fiz
muito disso, mas não é minha praia. Prefiro curtir com os amigos num
lugar legal, e, se pintar algo, legal. Hoje pode rolar em qualquer lugar.
Para paquerar e me divertir, gosto de ir no Venê [Venezianos]. é
seguro, e as pessoas são boa-pinta. (Ensino superior, 37 anos)
Aqui encontramos o discurso moralista do nosso amigo, implicando
preconceito com aqueles que freqüentam a microterritorialização somente em
virtude da busca sexual, assim como com aqueles que se relacionam com michês.
Também em seu discurso, além do temor ao perigo, o preconceito é presente
quanto ao segmento social que freqüenta o shopping e a praça, principalmente
pelo baixo poder aquisitivo, pela idade e pelo efeminamento dos jovens gays.
A seguir vamos demonstrar no quadro algumas impressões sobre os
comportamentos de nossos amigos quanto à microterritorialização de encontros
homoeróticos da praça da Alfândega e do Rua da Praia Shopping.
153
A identidade do michê, discutida em Perlongher (1987), perpassa a definição máscula e a
postura ativa (de penetrador) na relação sexual. Os comentários colhidos na microterritorialização,
neste caso, contradizem esssa postura. Na pesquisa, assim como em Perlongher (1987), verifica-
se as posturas másculas e a definição sexual ativa apresenta-se como uma representação do
michê, que pode facilmente ser quebrada no decorrer do ato sexual.
244
Amigos Estranhamento Identificação Banalização Transformação
AP
Nenhuma postura
negativa quanto ao
lugar é percebida
Circula freqüentemente pela
região, procurando algum parceiro
sexual. Tal circuito o protege da
divulgação de seus desejos, uma
vez que a deriva de busca sexual
pode ser velada pela
funcionalidade e a normalidade do
lugar (um shopping por onde
circula muita gente), não as
práticas “subterrâneas” que
esconde. Sempre encontra
parceiros, e usa de atributos e
gestos que intensificam a
masculinidade de seu corpo
(mexer no pênis, deixá-lo
sobressalente na calça, usar
roupas que valorizem os
músculos, não se produzir muito,
mas tornar a masculinização sua
atração estética).
Não atenta e não dá importância aos
grupos de jovens efeminados que
estão presentes no lugar. Eles
expõem essas expressões quando
estão em grupos na praça de
alimentação do subsolo, não quando
estão nos banheiros flertando ou
circulando entre a praça e os
corredores do shopping.
Nenhuma mudança
comportamental ou
estética é percebida.
BP
Mantém certo
preconceito com quem
freqüenta o lugar,
procurando paquera e
parceiros sexuais,
embora no passado
tenha encontrado
namorados no
Shopping. Não gosta do
Rua da Praia Shopping
por achá-lo muito
popular. Quanto à praça
da Alfândega, alega o
chegar perto do lugar e
Não se sente identificado em nada
com o lugar, somente remete a ele
com ironia e sarcasmo. Por outro
lado, gosta do Café localizado no
subsolo do Prédio do Santander
Cultural (ver Figura 4, p. 150), dos
Cafés e do cinema da Casa de
Cultura. O café localizado no
Santander Cultural agrega muitos
homens same sex oriented que
trabalham com artes, moda e
estética, fazendo territorializar-se
um tipo mais fashion,
intelectualizado e de classe média
Alega que pode encontrar
conhecidos e qualquer homem que
lhe interessem sexualmente no
lugar, mas sua freqüência a ele
nada tem a ver com a especificidade
dos relacionamentos homoeróticos,
mas é de caráter prático de
consumo.
Ao sair pelo Centro da
cidade para comprar algo,
procura atentar ao
máximo na produção,
procurando diferenciar-se
dos tipos populares que
circulam. Procura
também, de acordo com
ele, estar “chic para o
trottoir no centro da
cidade”, apesar de este
Centro “ser uó”.
245
não ter interesse pela
“pegação” do banheiro
masculino, indicando a
freqüência de “velhos” e
moradores de rua.
homossexual.
CP
Assim como acontece a
pegação na Redenção,
detesta e com
desprezo a pegação no
banheiro da Alfândega.
Procura manter
distância dos michês do
lugar, alegando serem
sujos e ladrões. Circula
às vezes pelo Rua da
Praia Shopping para um
descanso do trabalho e
ir ao café do
Macdonald´s. Diz gostar
do ambiente da Rua da
Praia, principalmente
seus prédios e da
beleza da praça. Por
outro lado, critica as
convivências que se
estabelecem ali e acha
um desrespeito o que
acontece nos banheiros
públicos.
Confessa que flertou com
muitos jovens que vão ao lugar
para paquerar e que prefere estar
na Casa de Cultura e no Café do
Santander Cultural quando tem
algum interesse de encontrar
parceiros sexuais.
Ao circular, mesmo tendo propensão
ao flerte, procura afastar-se de
garotos de programa e não dar
importância a eles.
Nenhuma transformação é
observada.
DP
Freqüenta sempre o
lugar e o apresenta
estranhamento a ele.
Procura afastar-se das
reuniões de jovens gays
na praça de alimentação
do subsolo do shopping.
Trabalha próximo à região e
freqüenta muito os banheiros
públicos, os bancos e os
corredores do shopping. Sempre
se vale desses lugares para
encontrar parceiros sexuais e
confessa ter tido muitas
experiências com michês que
estão lá.
Foge do convívio de grupos gays
efeminados. Por outro lado, circula
pelas praças da Alfândega e de
alimentação do shopping, sempre
atento a outros rapazes que estão
ali procurando parceiros sexuais.
Nenhuma transformação é
observada.
246
EP
Nenhuma postura
quanto ao lugar é
percebida. Convive em
um grupo bem singular
de jovens que sempre
se encontram na praça
de alimentação.
Encontra seus amigos, os
mesmos do Olaria e do Vitraux e
alguns do Ocidente. Conversa
muito em pequenos grupos
localizados de mesa em mesa na
praça de alimentação. Às vezes
uma das mesas se transforma em
uma clara territorialização desses
jovens, contendo em sua volta
quase vinte componentes.
Sempre atento e ansioso quanto às
pessoas que saem e entram do
banheiro, procura identificar alguém
com quem teve alguma relação, e
atentando aos rapazes interessantes
e propensos à paquera.
Enquanto no Ocidente, no
Olaria e no Vitraux não
enfatiza a necessidade de
procurar parceiro sexual,
sempre romantizando
suas relações e almejando
encontrar um grande amor
para ficar durante um
longo tempo; no
Shopping, juntamente com
seus amigos, assume uma
ansiosa postura de busca
sexual.
FP
Nenhum estranhamento
é mostrado.
Gosta muito de circular também
pelo Rua da Praia Shopping,
principalmente procurando alguma
experiência sexual.
Não faz parte do grupo de jovens,
mas conhece muitos homens mais
velhos que circulam pelo lugar e que
estão mais nas periferias da Praça
da Alfândega. A partir deles faz
contato com alguns michês.
Em suas investidas
sexuais no lugar, assume
uma postura mais
masculinizada,
procurando atrair melhor
algum parceiro.
247
Aqui se repetem as observações anteriores. Primeiro em relação aos casos
contraditórios no que tange à territorialização, que envolve situações diferenciadas
entre gosto, aproximação e afastamento; entre as pessoas que segmentos sociais
diferentes, faixas etárias e posturas quanto aos desejos homoeróticos. As
aproximações estão relacionadas a diferentes faixas etárias por exemplo,
envolvendo senhores e michês, assim como homens mais maduros e jovens gays
da microterritorialização - e a diferentes níveis socioeconômicos - entre segmentos
mais abastados e michês, assim como entre os que não são michês, mas que não
dispõem de rendas, como estudantes que fazem parte dos grupos de jovens gays,
fazendo se repetir, muitas vezes, a relação de faixa etária.
Além disso, também persiste um comportamento que faz aproximar bichas
e bofes, assim como muitos homens same sex oriented, embora muitos não
apresentem trejeitos afeminados: freqüentarem a microterritorialização para
encontrar um outro homem não-efeminado e, de preferência, que não freqüente
bares e boates gays e que leve uma vida heterossexual. As práticas sexuais, que
transitam entre passividade e atividade são muito importantes na definição dos
indivíduos quanto ao homoerotismo. Porém, muitas delas são encenadas e podem
somente indicar uma representação do corpo, ou seja, são discursos e posturas
quanto à masculinidade e à feminilidade. Muitos efeminados, por exemplo,
confirmam assumirem a postura ativa em relação a um homem e um michê
masculinizado, tornando obscuras as definições quanto às relações sexuais,
embora sejam representações rígidas.
248
5. A DIALÉTICA DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL:
MICROTERRITORIALIZAÇÕES (CULTURAIS) URBANAS A FAVOR” E
“CONTRA” A SOCIEDADE
5.1. AQUÉM DO INDIVÍDUO, O HOMEM-PARTICULAR
De acordo com Heller (1991), os fundamentos do cotidiano estão
estabelecidos pelo conceito de “homem-particular”. Tal concepção desconstrói
seriamente a noção de liberdade individual na sociedade moderna capitalista pós-
Revolução Francesa. Para Heller, talvez não exista o indivíduo, mas o homem-
particular, como fragmento alienado da totalidade que o reproduz, subjugado a
uma realidade pronta, naturalizada e normalizada. Daí da crítica à vida cotidiana.
Mesmo participando de vários contextos interacionais, a particularização da vida
representa o conjunto de pequenos fluxos, de pontos relacionais, das interações
apreendidas, dos destinos manifestos e das ações esperadas e repetidas. Tal
particularidade faz parte da complexa totalidade produzida por históricas ações
humanas, nos fundamentos da sociedade, que organiza o microcosmo cotidiano
como um conjunto de banalidades das coisas a fazer-e na normalidade dos modos
como se faz.
O cotidiano constitui-se, assim, como a realidade do conjunto de ações e
objetos inerentes à vida do homem-particular. A realidade é a vida cotidiana. Ela é
vivida pelo aprendizado do homem-particular em relação às coisas como elas são,
e sua busca por inserção ao que é dado, como pronto e regular. Além disso, ela
também é a vaidade alienada do individualismo, o espírito de concorrência em
relação à desordem do desejo de consumo e a selvageria na disputa pelos
prazeres que são escassos e estão desigualmente distribuídos. Tal individualismo
o se apresenta como espontaneidade, mas um desejo criado pelas próprias
condições alienantes contidas na realidade do homem-particular.
A realidade cotidiana é condição existencial do homem-particular. Ele está
particularizado pela divisão do trabalho nas sociedades capitalistas, alimentado
pelas relações de valor e de troca das interações utilitaristas e motivado pelas
249
ambições de ascensão social e de bom padrão de consumo. A realidade é o dia-a-
dia dos procedimentos com que o homem-particular se envolve; refere-se ao
contexto social em que nasceu e às condições dadas para o desenvolvimento de
sua maturidade, conforme as possibilidades que encontrou e as escolhas que fez.
Possibilidades essas inerentes às condições que estruturam a realidade, externas
a ele, assim como as escolhas que constituem um conjunto finito de portas que se
podem abrir para “desconhecidos complexos”, ou seja, de múltiplas outras
condições de realidades particulares, todas também inerentes à totalidade do
sistema de organização social e representando contextos de dominação e
alienação que pressionam outras condições de particularização.
Os desejos humanos tornam-se canalizados pelas aspirações referentes à
hierarquia social, cujo homem-particular se vai descobrindo nos sistemas de
interação social, nos quais “portas” se vão mostrando e começam a ser abertas
pela possibilidade da escolha. As escolhas são finitas; portanto, pertencem ao
sistema de alienação e, assim como os momentos de escolhas, remetem ao
complexo anterior de outras, todas finitas e pertencentes à complexidade de
particularidades inerentes à totalidade (des)organizada,
154
fragmentada,
articulada, (des)hierarquizada e alienante.
As próprias escolhas estão condicionadas a esse complexo, mas levam em
conta a espontaneidade do homem-particular. Essa espontaneidade não constitui
o livre-arbítrio, mas as condições sociais experimentais de sua história de vida,
que canalizam a energia humana (desejo e espontaneidade) aos processos
sociais. Nesse sentido, as condições dos contextos de interação social
possibilitam não escolhas, mas também algo de espontâneo ao homem-
154
Inserimos o prefixo des entre parênteses, pois verificamos que a particularização do homem se
estabelece por um lado, pela organização das objetividades e dos discursos morais da sociedade
disciplinar moderna - nesse sentido racionalmente planejada e hierarquizada -; por outro lado, pela
desordem dos mundos de desejo e imaginação promovidos pelas relações de troca e pelo
consumo no capitalismo tardio. De acordo com este último pensamento, o homem encontra-se
sozinho no lugar, sendo “instituição de si” na busca da felicidade. Isso culmina na crise das
instituições e da organização da sociedade. Nesse sentido, temos a multiplicação de sujeitos em
busca da felicidade incitada pela publicidade dos valores/prazeres divulgados pela mídia e pelos
mecanismos que inventam o consumo. A diversidade rompe a ordem massificadora e
hierarquizada, porém a ruptura representa a sublimação da transformação pela necessidade de
consumir mercadorias, idéias e culturas que se ligam à reificação e às relações quantitativas do
valor de troca no capitalismo globalizado.
250
particular, talvez chamado de “esperteza”, que permitiria a escolha mais certa às
possibilidades de plena inserção às condições de felicidade social. Aqui a
felicidade é social, ou seja, vinculada aos padrões de status, ou seja, ao que se
chama sucesso.
Ao homem-particular resta um esforço de tornar-se “esperto” e movimentar-
se dentro da estrutura social e acomodar-se em níveis de particularidade restritos,
recusando o grande esforço que poderia levar à negação das condições dessa
estrutura, coisa que levaria à marginalização, ao ilícito e ao anti-social. É certo
também que a realidade cotidiana exerce uma pressão à reprodução do homem-
particular, mantendo-o no cotidiano restrito de suas práticas.
De tudo isso, podemos depreender que existe aquilo que chamamos de
“portas finitas” que levam a “caminhos finitos e canalizados” às estruturas do
sistema, que produzem os fluxos em níveis de condições particulares da
sociedade, melhores ou piores, conforme os parâmetros de ascensão social.
Assim, a “esperteza” nas “escolhas” não são mais do que uma plena capacidade
de o homem-particular canalizar suas aspirações para os parâmetros externos que
constituem o social, e impregnar-se dele, tornando sua felicidade individual a
mesma das possibilidades de felicidade social.
Como fala Freud (1974), a realidade é externa ao indivíduo. Mais
precisamente, isso determina a condição do homem-particular. A realidade é a
naturalização e a normalidade das coisas, algo que pressiona a conduta do
indivíduo. Isso transforma o indivíduo em homem-particular, ou seja, alienado nas
particularidades que constituem a totalidade das redes sociais.
155
A realidade,
assim, é uma complexa abstração tornada “real” pelos procedimentos e condições
não-criadas pelo homem-particular, mas que o abarcam e pelos quais ele organiza
sua vida: o todas as coisas concretas por ele não criadas, são o conhecimento
155
Na sociedade disciplinar, a totalidade apresenta-se na organização e na hierarquização do
espaço dos lugares, que constituem as objetividades e os procedimentos do cotidiano desses
lugares, como a trama dos objetos e das relações sociais. Na globalização e na emergência do
capitalismo flexível, a totalidade extrapola os lugares e toma a escala mundial. Por esse viés, ela
tende a ser cada vez mais apreendida na escala do globo. A cultura global, por exemplo,
apresenta-se pela diversidade de elementos que ocupam os lugares, tornando-os confusos e
indecifráveis, mas, na escala do globo, apresenta-se como mosaico das estratégias capitalistas de
consumo que se movimentam entre culturas locais, imaginações e promoção de prazeres diversos.
251
que adquire, as coisas a fazer-se e o fazer como comprometimento com uma
natureza dada.
A condição fundamental do homem-particular é a sua adequada
localização, que significa sua reprodução do engajamento de um conjunto de
procedimentos locais, cujo trânsito pelos caminhos de ascensão social são
dificultados pelas redes de monopolização das posições sociais que instaura a
hierarquia capitalista. Por outro lado, além dessa rigidez hierárquica, a criatividade
do homem como “instituição de si”,
156
ao possibilitar a inovação e seu
aproveitamento pelo mercado, vai transitar além das determinações que o
condicionam, podendo implicar o extravasamento dessa criatividade singular que
acaba impregnando a realidade social. É nesse sentido que mundos imaginados
por alguns se tornam realidade para muitos, principalmente pelo trabalho da mídia
e pela instantaneidade da informação globalizada. Isso acaba diversificando
contextos múltiplos que impregnam o espaço social, tornando a sociedade
contradição de si mesma, ou seja, fragmentada, desorganizada, difusa e instável.
O trânsito entre as hierarquias capitalistas
157
é possibilitado pelo acesso a
tecnologias de transporte e comunicação, ou seja, pela capacidade de uso dessas
tecnologias como valores de troca. Isso se refere à localização em outros estados
da hierarquia social, nos quais essa condição concreta se altera por um conjunto
de maiores abstrações e inter-relações de mundo concebidos. Esses mundos
concebidos somente são formações particulares não-locais que se entrelaçam nas
redes do capitalismo globalizado, tornando o homem-particular envolvido em
abstrações mais complexas, porém não menos alienantes, vivendo ou não
vivendo cotidianamente outras particularidades do sistema-mundo, da moderna
156
A idéia da responsabilidade individual na busca da felicidade, condição de um capitalismo que
se livra das necessidades de disciplinarização e controla pelos assédios do prazer e do desejo,
rompe a noção de uma sociedade disciplinar rígida e estanque, aproximando-se mais de uma
condição em que a mutação das inovações e a emergência das diversidades de idéias, de
intervenções concretas e de culturas tornam a realidade muito mais mutante, caótica e
desordenada.
157
Aqui hierarquias podem traduzir-se como classes. Temos que entender “hierarquia”, na
atualidade, não mais como instância rígida, estável e permanente. Múltiplas hierarquias se tecem
nas redes do capitalismo globalizado, e todas elas tendem a explodir e dar espaço a outras com
muita rapidez. Temos que entender hierarquia pelo seu caráter diverso, instável e multiplamente
escalar na atualidade da globalização.
252
sociedade capitalista. O fato é que a realidade sempre será externa ao homem-
particular. O homem pobre está prezo ao local, o homem rico está transitando em
realidades não-locais, mas toda realidade acaba sendo uma externalidade, pois é
um conjunto de conhecimentos que se deve apreender. Assim se funda o
cotidiano das ações do “homem-particular”, ou seja, pela aceitação, pela inserção
e por suas ações que se tornam condicionadas a uma dada realidade
particularizada, tanto as mais locais quanto as mais envolvidas com outros
mundos percebidos.
Por outro lado, no mundo urbano moderno, toda realidade local está
impregnada de condições extralocais, como as próprias formas arquitetônicas ou
os sistemas de costumes, que representam aspectos das transições e
interpenetrações dos sistemas culturais e de normas relativas à mundialização da
sociedade ocidental moderna e do sistema econômico capitalista. O fato é que
podemos viver ora mais localmente ora mais em outras realidades percebidas,
porém é fato que o que é local e o que é extra-ocal se interpenetram. Dessa
forma, vivemos num conjunto de abstrações, pois tanto as paisagens como os
conhecimentos que possibilitam nossas relações o naturezas externas ao local
e não pertencem a nossas produções autênticas, mas sim a um conjunto de
técnicas, procedimentos, conhecimentos e condutas que temos que reproduzir.
Nesse sentido, o conceito de homem-particular nos apresenta o elo de
relação entre o indivíduo e a sociedade e possibilita a compreensão sobre o ser
social. O indivíduo transforma-se em homem-particular a partir dos processos de
alienação e de sua condição particularizada em relação à complexidade da
sociedade. Essa condição se estabelece, em primeiro lugar, pela realidade como
construção histórica dos procedimentos sociais objetivados, conforme nos mostra
Foucault (1993). A realidade cotidiana é a microfísica do poder. O microcosmo
cotidiano representa um conjunto de objetivações, procedimentos, subjetivados
pelo indivíduo que o pressionam a qualidade de “homem-particular”. As formas da
realidade são inerentes aos procedimentos que movem essa realidade e que
devem ser aceitos e abarcados pelo indivíduo como naturais e normais, como
fatos do cotidiano. Nesse sentido, a subjetivação representa um caminho que faz
253
o exterior transformar-se no que é interior, ou seja, produz as concepções e
aspirações do homem-particular. A realidade, assim, é que de mais imediato e
palpável, sendo materialidade e ação real, mas converge para um
desconhecimento de suas origens, dado pela alienação e pela incapacidade de
gerência das coisas do mundo. Dessa forma, tornamo-nos reprodutores de
complexos de coisas que são externas a nós. Essa realidade apresenta-se
estruturada em tudo que é concreto e em tudo que é vivido. A realidade são os
procedimentos cotidianos legitimados como verdades nas relações normais de
trabalho, pelas crenças religiosas, pelas concepções de Estado e de Nação, pela
moralidade inserida nas relações sociais, pelas noções de justiça (direitos e
deveres), pelos conhecimentos produzidos pela ciência, assim como pela filosofia
e pelas artes.
Assim se organiza um sistema formal de normas, modelos, ações legais,
crenças e conhecimentos que estruturam a realidade. A realidade é uma
abstração fundada no nível dos procedimentos cotidianos, tidos como concretos,
além de outros níveis de maior abstração que legitimam a dialética entre concreto
e abstrato no nível cotidiano, ou seja, a lei, a religião, a ciência, o Estado, a
Nação, o trabalho (a economia) e a política.
Para Heller (1991), esta é a essência da vida cotidiana: a realidade da
alienação do homem-particular, que se estabelece na dialética entre concreto-
abstrato do dia-a-dia e que se funda em outro nível de abstração referente às
instituições sociais. Além disso, também ocorrem as abstrações ideológicas,
fundadas na complexidade histórica das relações sociais, políticas e econômicas,
que formam outro nível de abstração inerente ao cotidiano. Além dos
procedimentos concretos e das instituições, as ideologias apresentam-se como o
mais alto nível de abstração da realidade cotidiana local. Elas formam e mantêm
as instituições que fundam a realidade do dia-a-dia.
Mesmo tomando o cotidiano como o concreto e as instituições e as
ideologias como abstrações, todos esses níveis colaboram para produzir a
invenção da sociedade como um conjunto de procedimentos objetivos externos ao
254
indivíduo e que em sua história de vida o pressionam para a condição alienante de
homem-particular.
O homem-particular, por um lado, acaba vivendo o mundo das instituições e
dos procedimentos cotidianos. Como na idéia do panóptico de Foucault (1984), as
instituições são forças que fazem o homem cumprir procedimentos, como
materialidades e “olhares” que os disciplinam. Nesse sentido, como concepção da
sociedade disciplinar, objetividades externas forçam o indivíduo a adequar-se à
ordem das coisas, e isso acaba causando dor e sofrimento. A externalidade da
disciplina determina ao homem produzir uma idealização de si (ideal do ego), a fim
de adequar-se aos procedimentos da sociedade e às avaliações dos outros sobre
seu desempenho. Por outro lado, na atualidade, as instituições disciplinares
exteriores dão lugar à posse/controle da subjetividade na formação do homem-
particular.
O que difere a transição de uma sociedade disciplinar para uma sociedade
de controle global (DELEUZE, 1996) é a subjetivação das ordens como se não
fossem ordens externas ao indivíduo, mas inerentes a seus próprios sentidos e
vontades de ser.
Além da intenção de produção de um ideal do ego, observamos o incentivo
à produção de “egos ideais” nos quais os indivíduos libertam-se das amarras
institucionais e são responsáveis por si mesmo na busca da felicidade. As próprias
ações da propaganda capitalista incentivam o consumo estimulam as imaginações
e as criações individuais e coletivas de sujeitos em busca a promoção de seus
desejos.
Por esse viés, os mundos imaginados dos sujeitos, que antes eram
reprimidos pela disciplina (que causava dor e histeria), são captados pelas
estratégias capitalistas e vinculados às dinâmicas de consumo e trocas de
mercadorias. Nesse sentido, ser feliz vai significar ser responsável por si em sua
trajetória de sucessos frente aos outros, assim como ter capacidade de efetivar a
realidade de seus desejos, que é ao mesmo tempo encontrada e divulgada na
mídia capitalista e que está vinculada à quantificação dos valores de troca. Assim,
255
o controle age justamente na subjetividade dos indivíduos e está relacionado aos
seus desejos mais íntimos.
Em vez da contradição entre desejo e disciplina, hoje o controle se
estabelece maquiado de prazer e imaginação (estética, sensual, valores múltiplos
e instáveis), atacando o íntimo do ser, formando-o e condicionando seu corpo,
assim como tendo-o como instrumento de determinação e controle sobre os outros
a partir das relações sociais.
É nesse sentido que a condição do homem-particular está aquém da
condição imaginada de indivíduo. Essa é a proposta fundamental de Heller (1991),
desconstruindo a visão liberal de indivíduo e de liberdade pregada nas sociedades
capitalistas.
Segundo Freud (1973, p. 54), a liberdade não constitui um dom da
civilização. Sociedades “não-civilizadas” teriam sim maior propensão à liberdade.
Para o autor, um dos fundamentos da civilização é castrar do indivíduo a
liberdade, uma vez que essa liberdade poderia levar à corrupção e à destruição do
outro. A vida em sociedade remete à civilidade contra a barbárie do indivíduo. Os
sentidos do social emergem da preocupação das relações entre os homens na
busca do equilíbrio e da contenção das pulsões de morte, ou seja, a liberdade
individual de desejo quanto ao outro e a pulsão humana de destruição daquilo que
é desejado.
A civilização, de acordo com Freud (1974), refere-se a um complexo moral
que torna restrita a espontaneidade individual. A formação da sociedade como
entidade genérica e a noção de totalidade, conforme Lefebvre (1958), é expressão
da civilidade humana. De acordo com o autor, a totalidade se revela como práxis,
ou seja, a produção material e a produção espiritual, a produção dos meios e dos
fins, dos instrumentos, dos bens e dos desejos.
A práxis remete à essência das práticas sociais, constituindo-se por
múltiplos fragmentos de totalização, ou seja, particularidades integradas ao
sentido da totalidade e da generalidade da sociedade. A produção da obra
humana representaria a parcela individual em busca de totalização, engajada na
256
práxis das relações sociais. A relação individual, assim, se daria pela imbricação
do homem com a obra, pelo trabalho envolvido com a práxis social.
A individualização remeteria à atividade humana conhecedora da totalidade
que busca sua totalização por suas obras e pelo reconhecimento de si como parte
integrante na práxis social. Nesse sentido, para Heller (1991), a individualização
remete à possibilidade de o particular elevar-se acima da particularidade, de
elaborar uma relação consciente com a genericidade e chegar a ser um indivíduo.
No entanto, os homens, como argumentamos, se tornam homens-
particulares, pois não conseguem elevar-se acima da particularidade, em virtude
dos processos de alienação. Para Lefebvre (1958), a alienação torna-se
fundamento da impossibilidade de grande parte das atividades humanas
reconhecerem seus processos de totalização, e essa incapacidade é gerada pela
separação completa do trabalho e da obra humana, ou seja, o trabalho se
transforma em labor à medida que é trocado por salário e à medida que as
atividades humanas tendem a envolver-se em fetiches econômicos e consumistas.
O trabalho motivado somente pelo valor de troca aliena e produz o homem-
particular. Contribui para isso a complexa divisão do trabalho na sociedade
moderna. Pelo valor de troca, o homem perde o sentido da obra humana e se
desgarra da práxis social, tornando alienado em funções parcelares e repetitivas.
É nessa acepção que o indivíduo se desgarra do sentido de realidade, e a
realidade torna-se algo externo a ele.
Nesse processo, o indivíduo se transforma em homem-particular,
extremamente envolvido em uma particularidade que não entende completamente,
pois a tem somente a partir das relações de troca e do fetichismo do consumo.
Produz em virtude de um valor de troca que basta a suas exigências fetichistas e,
assim, desconhece sua relação com a práxis social. Relacionados a isso estão o
individualismo na sociedade capitalista e o sentido de concorrência pela ganância
pelo dinheiro, ao contrário da concepção de individuação, que remeteria ao
indivíduo envolvido em sua obra pelo trabalho comprometido com a práxis ou a
totalidade social.
257
Lucien Goldmann (1979) nos explica a emergência desse mundo social
exterior ao indivíduo. O autor privilegia a análise marxista sobre o “valor” e
desenvolve sua teoria sobre o social a partir dos conceitos de “fetichismo da
mercadoria”, de Marx, ou de “reificação”, de Lukàcs. A respeito dessas idéias,
verifica-se que há uma tendência à ausência de regulamentação da produção para
o mercado e, nos fundamentos do liberalismo econômico, o mercado deve ter
liberdade para firmar suas metas de reprodução do capital. Tais metas se tornam
flexíveis e mutantes quanto aos seus objetivos e representam uma saga sobre as
oportunidades de geração de lucro pela venda e geração da mais-valia. Nos
fundamentos do capitalismo liberal, as regras são obtidas pela oferta e procura,
tornando as condições de reprodução econômica e de envolvimento sociais
caóticas e imprevisíveis.
A economia mercantil, segundo Goldmann (1979, p. 112), é caracterizada
por sua universalidade, por sua anarquia e pelo condicionamento das relações
sociais ao valor de troca. Isso estabelece a rigidez do sistema e as condições de
controle individual. As relações sociais de produção condicionadas pelo valor de
troca, em substituição às relações centradas no valor de uso, em sociedades não-
capitalistas, condiciona o indivíduo como um autômato que se envolve em
relações sociais objetivadas pelo mundo econômico, totalmente abstratas a eles.
Por essa razão, os homens perdem o sentido de solidariedade que envolvia
comunidades pré-capitalistas e estabelece funções sociais envolvidas no egoísmo
da necessidade de adquirir dinheiro.
Como dissemos, o trabalho se transforma em labor, ou seja, as relações
de produção das obras estão desvinculadas dos indivíduos devido à divisão
excessiva do trabalho e do pagamento salarial (valor de troca). Nesse sentido, o
homem não produz para o social, mas para si mesmo, para suprir suas
necessidades e seus anseios de consumo.
O homem-particular se envolve num mundo abstrato, quantitativo e exterior
a ele, portanto, “naturalmente” incompreensível, e seus objetivos são abarcados
pelos anseios de ascensão consumista. Com isso, o individuo, na qualidade de
homem-particular, torna-se vítima das relações de poder para reprodução do
258
capital monopolístico e processos de hierarquização social, tornando-se um ser
alienado de suas condições e envolvendo-se num mundo que é exterior a ele,
prático e racional, cuja afetividade e solidariedade vão sendo confinadas no
mundo privado da família e das relações de amizade.
Na vida humana, então, o qualitativo é substituído pelo quantitativo e, em
virtude do trabalho abstrato, o homem-particular sofre, de forma passiva, a ação
das leis sociais que são exteriores a ele, envolvendo-se numa realidade abstrata
tida como um conjunto de ordens, cenários e sistemas de ações tidas como
previsíveis e “naturais”. A origem dessa condição se justifica pela complexa teia de
mediações presentes e emaranhadas na história da formação das sociedades
capitalistas modernas, que tornaram o indivíduo um ponto inexpressivo e anônimo
pela rede de homens-particulares que se anulam mutuamente.
Dessa forma, os significados humanos são produtos da “natureza das
coisas” (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 123), e a reificação, então, é a
apreensão que o homem-particular faz dos fenômenos humanos como se fossem
“coisas” em termos não-humanos ou super-humanos, fazendo o indivíduo
esquecer a própria autoria do mundo e perdendo a consciência de suas obras.
Assim, o homem desempenha papéis como ações e situações inevitáveis, pois
são possibilidades natas de inserir-se nas condições quantitativas do labor e do
valor de troca que rege a sociedade.
Nesse sentido, o indivíduo dizemos aqui, o homem-particular - “executa
ações objetivas, conhecidas, recorrentes e repetíveis por qualquer ator do tipo
adequado” (BERGER; LUCKAMANN, 1985, p. 101). É esse o papel que lhes
compete, ou seja, um conjunto de tipificações válidas que tornam o mundo real
para os homens-particulares e que possibilitam a inserção e a reprodução das
condições da divisão do trabalho e das funções vinculadas às relações de troca.
Os papéis, assim, são institucionalizados, ou seja, são tipificados
reciprocamente como ações habituais de atores sociais. As interações
institucionalizadas convergem um conjunto de atores que desempenham papéis
como padrões previamente definidos de condutas válidas, condicionadas pela
abstração da realidade que envolve a reificação.
259
De acordo com Berger e Luckmann (1985), as instituições, como conjunto
de interações situacionais de atores desempenhando papéis sociais, são
cristalizadas e experimentadas como existindo “por cima” do individuo, ou seja,
representam justamente a perda da consciência da práxis social que qualidade
à condição de homem-particular e que dificulta os processos de individuação. Isso,
então, apresenta-se como fundamento da vida cotidiana, como se fosse o
caminho inverso da sociedade produzindo o homem, ao invés de a sociedade ser
produto humano.
A sociedade é a realidade objetiva das formas e dos procedimentos
panópticos de Foucault (1984), cuja relação entre essa sociedade e o indivíduo se
dá, em primeiro momento, pela objetivação - ou seja, as coisas do mundo são
fatos naturalizados, prontos e inevitáveis e, em segundo momento, pela
interiorização, ou subjetivação - ou seja, a conscientização da objetividade externa
como realidade dada e naturalizada que condiciona o homem-particular ou ator
social.
Muito das críticas ao interacionismo simbólico advém do fato de as análises
não manterem um caráter explicativo para os determinantes das interações, mas a
descrição do presente delas, de forma minuciosa; o que denuncia a condição
mesquinha das relações cotidianas. Os atores sociais são produtos do complexo
explicativo que produz e reproduz o homem-particular. Nisso o interacionismo não
se detém, e, assim, está sujeito a críticas, principalmente as de ordem marxista
que buscam a história dos determinantes macrocósmicos das estruturas e das
superestruturas que condicionam o cotidiano. O interacionismo, então, vai buscar
a sutileza das interações sociais que irá denunciar a pobreza do ator social. Essa
sutileza vai ser apreendida na microsociologia da descrição das interações
presentes e na denúncia sobre a pobre racionalidade dos atores no desempenho
dos papéis sociais friamente organizados pela divisão social do trabalho e pela
objetividade do valor de troca.
Defendemos que essas duas perspectivas que comentamos explicam o
cotidiano e não se anulam, mas contribuem mutuamente para estabelecer um elo
260
forte entre relações macro e micro, históricas e presentes, para o entendimento
das condições do homem em sociedade.
5.2. A NATUREZA DIALÉTICA DO COTIDIANO
A sociedade é condição dos processos de modernização e da evolução do
sistema capitalista. Por uma complexa trama de poderes e de ações/estratégias
de ordenamento, a sociedade capitalista estabelece suas atividades, produz o
espaço e as condições culturais. O homem-particular, fruto da disciplina social,
(LEFEBVRE, 1958; HELLER, 1991) é obrigado a aprender as condições dadas no
espaço, as práticas culturais inseridas nas relações sociais e as habilidades
relacionadas com as funções diversas do sistema. Porém, o sistema social é
complexo quanto às suas atividades e produz “lugares” para especializar funções
e tornar dinâmica tanto a produção econômica quanto a reprodução de seus
interesses. Nesse sentido, o homem-particular insere-se em uma parte ínfima da
complexidade total do espaço social e desconhece a amplitude das estratégias
que o organizam, ou seja, nesse sentido, está alienado.
Instituições sociais,
158
principalmente a família e a escola, estão envoltas
numa complexa aura ideológica que permite imprimir as condições culturais supra-
orgânicas (DUNCAN, 2003). Por outro lado, instituições tecnocráticas do Estado e
da Empresa produzem as formas e os procedimentos objetivos do espaço social,
que permitem a disciplinarização dos indivíduos e o bom funcionamento das
rotinas necessárias à organização histórica dos poderes políticos e econômicos.
Aos processos de modernização - que não apenas objetivam a construção
da materialidade disciplinar do espaço social, mas também o condicionamento
subjetivo de códigos, signos, formas de pensar e comportamentos apreendidos
nas instituições sociais - se contrapõem contravenções ou desvios aos caminhos
previsíveis impostos aos atores sociais.
158
Segundo Prata (2004), a noção de instituição está em Vincent Descombes, com base em
Mauss e Wittgenstein, e remete à significação que as pessoas reconhecem sem que um acordo
seja necessário, assim como à idéia que se apresenta a cada indivíduo como regras bem
estabelecidas.
261
De acordo com Goffman (1996), a vida social constitui-se como uma cena,
cujo cenário produzido condiciona os atores em seguir regras e representarem.
Isso implica a produção das rotinas cotidianas que estabelecem a normalidade
das relações. Essa condição rotineira e “normal” do cotidiano é vista por Lefebvre
(1958) como atributo de uma organização social construída historicamente que
carrega consigo uma complexa trama de poderes que permite a manutenção da
reprodução econômica interessante a eles. Nesse contexto, segundo Foucault
(1993), aparecem as formas construídas do espaço e os instrumentos objetivos de
seu funcionamento, os quais obrigam o homem-particular a apreender cnicas e
procedimentos que o aprisionam e o alienam, impondo uma normalidade de
rotinas, deslocamentos e conhecimentos.
Sabemos, entretanto, que esse “quadro social mecânico” existe em termos
relativos. Desde a formação da sociedade moderna, estiveram evidentes outras
agregações e formas de coletivização, que se apresentam desviantes e informais
aos condicionamentos sociais. Maffesoli (2002) observa a formação de grupos de
pessoas, ou, de acordo com o autor, “tribos urbanas”, que se territorializam
momentaneamente em algum lugar da cidade e que estão juntas simplesmente
por um sentimento afetivo ou estético compartilhado.
159
Essas tribos urbanas são
reuniões de cunho emotivo, nos quais o que conta é a espontaneidade relacional e
o compartilhamento de algum sentimento coletivo.
Bauman (2003) também observa a formação de “comunidades-cabides”,
que representam a agregação de indivíduos que partilham de afetividades comuns
e representam algo desviante ao “normal” ou esperado nas frias relações formais
da funcionalidade do espaço e da vida social. O que se observa é um “estar-junto
por si só”, que escapa à funcionalidade e aos interesses que movimentam os
papéis sociais. Esse “estar-junto” é construído, muitas vezes, pela dificuldade dos
indivíduos estabelecerem seus projetos de desempenho exigidos pela sociedade
normativa (VELHO, 2004). Em relação à dificuldade de os agregar-se a grupos e
relações tidas como “normais” e condizentes com papéis sociais pré-
159
Reuniões sem propósito funcional/racional. As tribos urbanas apresentam-se como a
materialização de mundos imaginados que se diferem da racionalidade da funções/atividades
sociais e das instituições.
262
estabelecidos, indivíduos produzem coletivizações do tipo comunitário, nos quais o
que conta, na reunião, é um sentimento de “ajuda-mútua”, a agregação do tipo
orgânico produzida por uma grande carga de afetividade e espontaneidade.
Nesse sentido, de acordo com De Certeau (2004), em relação às
estratégias que normalizam as convivências pela construção objetiva do espaço
disciplinar e ao regramento emocional dado pelo aprendizado de uma cultura
supra-orgância (escola, família, empresa), proliferam as “táticas desviacionistas”
dos mais fracos. Essas táticas representam “golpes” estabelecidos na teia material
e relacional do sistema, ou, de acordo com o autor, “o movimentar-se no campo
do inimigo”, que representa as fugas à normalidade imposta e à produção de
agregações e territórios, nos quais as afetividades desviantes possam ser
estabelecidas em comunidade.
O que podemos também observar é uma contemporaneidade cujos
cercamentos institucionais locais são diluídos. A atualidade representa a
sociedade de controle (DELEUZE, 1996), na qual o poder não se apresenta mais
como local/institucional, e sim se torna, ao mesmo tempo, “globalizante” e
“individualizante”.
No “meio técnico-científico-informacional” (SANTOS, 1999), a informação é
vetor primordial da vida social e pode circular a partir de um sintoma de “unificação
técnica global”. O homem comum, acessando as técnicas que se globalizam (a
TV, a internet e todos veículos de comunicação), assiste à diversidade de imagens
e possibilidades expressivas que é divulgada. Os instrumentos de comunicação e
publicidade expõem uma diversidade de fatos, elementos culturais e divulgam
uma infinidade mutante de expressões que se ligam às possibilidades globais
existentes para os indivíduos serem felizes. O consumo capitalista é promovido
pela publicidade (principalmente a televisiva) e produz sintomas/representações
de felicidade (posses, auto-estima, poder de fazer). Obter sucesso social (em
relação aos outros) implica felicidade e, para isso, homem é responsável por si
mesmo.
Nenhuma outra instituição irá possibilitar ser feliz, mas somente a
“instituição de si” (EHRENBERG apud PRATA, 2004). Os instrumentos técnicos
263
de comunicação divulgam a diversidade de elementos de sucesso e felicidade
contida numa cultura que envolve a escala global. Como em um mosaico, a escala
global da cultura envolve a diversidade/confusão cultural, quando observada na
escala local, e uma coerência totalizante/homogeneizante, quando observada na
escala em que atua. Nesse sentido, a diversidade cultural disseminada pelos
mecanismos de informação rompe a disciplinarização e a uniformidade social
local, produzindo uma diversidade de sujeitos responsáveis por suas buscas de
felicidade. Nesse processo, a criatividade dos sujeitos é estimulada, e isso acaba
contestando e rompendo as barreiras disciplinares da sociedade (local),
colocando-a em crise. A individualização criativa dos indivíduos liga-se mais ao
desejo e ao prazer e coloca em cheque as rígidas normas institucionais dos
lugares, tornando os indivíduos, sozinhos pela promoção de sua alteridade
contestadora/criativa, mas, ao mesmo tempo, ligados a uma globalidade de
controle.
O controle não mais é estabelecido pela dor da disciplina institucional, mas
pela felicidade em estar apto a ser feliz (BAUMAN, 2001). A felicidade, ligada ao
desejo e ao prazer individual, vai ajustar-se (pela sublimação e pelo controle
estabelecido pela comunicação e pela publicidade) à diversidade consumista
capitalista, que irá compor a unidade de uma cultura e de uma reprodução de
capital que se encontram globalizadas. É nesse sentido que tudo se torna menos
sólido no mundo atual, quando observamos a escala dos lugares no mundo. Em
vez de um sistema disciplinar que ordena o lugar, os lugares vão ser contestados
e fragmentados pelos indivíduos. Esses indivíduos buscam o “eu ideal” e não mais
se condicionam ao “ideal do eu”, base da sociedade disciplinar. O eu ideal os liga
mais a promoção do prazer do que a sua repressão, por outro lado, esse prazer é
encontrado no incentivo em ser feliz que implica ter aptidão em ajustar-se a
diversidade mutante de alegria, conforto e felicidade divulgada pela mídia
globalizada. A globalização da comunicação, ao mesmo tempo em que impõe um
controle global aos indivíduos, também é permeada pela contestação, pela crise
institucional e pela fragmentação promovida pela
264
agregação/socialização/territorialização das inúmeras alteridades existentes no
espaço social.
5.3 O ATOR E A GEOGRAFIA DOS PAPÉIS SOCIAIS
A imagem do ator social tem sido importante em todo o período moderno.
Ele é condição do indivíduo como célula de uma sociedade transparente regida
pelo pensamento científico-racional, pela funcionalidade das atividades capitalistas
e pela impessoalidade das leis.
Na França, após a Revolução e as Guerras Napoleônicas, de acordo com
Vallertein (1995), acontecem as discussões sobre a chamada “Trindade
Ideológica” (conservadorismo, liberalismo e socialismo) no qual as forças sociais
procuram novos rumos políticos para organizar a sociedade. Como fundamento
político, emerge, então, o liberalismo e seu “reformismo racional”, ou seja, a
organização capitalista da sociedade centrada na ideologia da igualdade perante
leis racionais e abstratas; a verdade buscada nas leis da ciência, o poder dos
letrados; a liberdade de ação, respeitando as convenções sociais justificadas
como racionais; e as obrigações e os deveres dos atores sociais. Os atores
sociais exercem, assim, uma série de convenções ideológicas, contidas na
formalização das leis jurídicas e nas “informalidades” cotidianas das condutas
exigidas perante as relações sociais. Nesse contexto, a luta começa a ser travada
contra o “irracional”, contra o histerismo e contra as paixões individuais, na
procura da integração da sociedade capitalista urbana.
160
Ao mesmo tempo, o
160
Ações de planejamento para o ordenamento do espaço vêm colaborar com isso. As reformas
urbanas, como a ocorrida em Paris de Hausmann, no final do século XIX, e a reforma Pereira
Passos, no Rio de Janeiro, na primeira década do culo XX, são exemplos concretos do esforço
tecnocrático de organização da população e moralização da habitação e das atividades humanas.
Concomitantes a essas reformas, produzidas em muitas cidades do mundo inteiro, no período
anteriormente citado, as ações sanitaristas e médicas vão impor um discurso de controle das
relações humanas e de suas práticas cotidianas, convergindo para a necessidade da produção do
corpo e da mente sadios, assim como uma série de instituições concretas são criadas para
domesticação e organização delas: a escola, o hospital, a burocracia e a documentação, as
prisões e as convenções instrumentais da funcionalidade urbana e a moralidade contida nas
ordens da família e da educação escolar. Em Porto Alegre, por exemplo, apresentamos alguns
exemplos em maior escala: no final da década de 1990 ocorreu o projeto de revitalização do
Mercado do Bom Fim. Nesse período, mantendo alguns indícios ainda hoje, a rua Oswaldo Aranha
265
mundo do trabalho, emergente com a Revolução Industrial e cria uma série de
atributos para os atores sociais, tornando-os identificados mais pelo que fazem do
que por sua natureza individual.
Uma série de instituições que procuram organizar a vida dos atores sociais
e inseri-los no trabalho e no sistema de reprodução do capital, que se
fundamentam no controle dos interesses e das paixões pessoais. Em virtude das
necessidades de crescimento econômico e tendo como justificativa o progresso
tornou-se muito freqüentada por “tribos urbanas” de drogados (como punks e rockers, entre muitos
outros) e a rua José do Patrocínio por garotos de programas ou michês. Nos finais de semana,
principalmente nos domingos, o Mercado do Bom Fim era freqüentado largamente por drogados e
indivíduos orientados para o mesmo sexo, entre muitas diversidades que incluem essa orientação.
O bar “Escaler” apresentava-se como lugar de contato entre essa diversidade, mantendo em suas
periferias o “Sofá da Barbie” ou o ponto de encontro entre indivíduos same sex oriented, perto
dos “carros autochoque” do parque infantil local, no qual se misturavam famílias e crianças que
freqüentavam tal lugar e o “fumódromo” local entre o bar e o campo de futebol do parque da
Redenção, cuja agregação era em virtude do fumo de maconha. A partir do ano de 1996, todo o
mercado é fechado e inicia-se um projeto de “revitalização”, sendo reaberto em 2000. Após a
reabertura toda a configuração do espaço se modificou: o bar Escaler foi substituído por um café
freqüentado por famílias de classe média da região, e o parque de diversões migrou para a
localidade do “fumódromo”. A revitalização, assim, como ação tecnocrática do Estado, nesse caso,
apresenta-se como ação organizadora que converge para a moralização das práticas sociais e
organização de seus espaços de consumo muito convergentes aos padrões “normais” das famílias
de classe média. Nesse sentido, a ação de ordenamento da configuração espacial vai implicar o
comportamento e o tipo de atores sociais que convivem na localidade. A revitalização urbana do
Mercado do Bom Fim é um exemplo mais atual, em outra escala e de caráter mais pontual, dos
propósitos de organização espacial ocorridas, e citadas, em Paris e Rio de Janeiro, na
passagem dos séculos XIX e XX. Embora seja muito relacionada à restauração predial e ao
embelezamento da região, ela está intimamente ligada com os segmentos sociais e os grupos
culturais que antes conviviam lá, e que hoje foram substituídos por outros, muito mais próximos à
“normalidade” dos padrões morais da sociedade e de consumo capitalista. Por outro lado, a
desterritotorialização local em relação a muitos usuários de drogas e dos grupos homoeróticos
acarretou outras reterritorializações. Após a o término da recuperação do antigo prédio de uma
Olaria na rua Lima e Silva, tornando um centro comercial denominado Nova Olaria, após 1995, que
abriga uma série de lojas de vestuário e bares temáticos alternativos, assim como um cinema,
denominado Guion, que singulariza-se em virtude dos filmes europeus, muitos alternativos,
incluindo muito a temática gay, os indivíduos same sex oriented torna a territorializar-se
novamente, freqüentanto o lugar nas tardes e noites de domingo. O lugar passa a ser chamado
popularmente de “Boiolaria”, assim como o cinema de “Gayon”. Após o ano 2000, a atratibilidade
homoerótica se diversifica intensamente, incluindo muitas expressões híbridas com estéticas darks,
rockers, raggae, principalmente por parte dos jovens de classe mais baixa e de pouca capacidade
de consumo no lugar. Além disso, o uso de bebidas alcoólicas e drogas, assim como muitas
expressões homoeróticas radicais (beijos, exacerbação emocional efeminadas, muito próximo à
“fechação” descrita por Parker, 2002) começaram a incomodar principalmente os comerciantes do
lugar. O resultado disso é a repressão privada com caráter policial, ocorrida em 2005, que expulsa
tais indivíduos, causando sua reterritorialização para a rua na frente do prédio.
266
em prol de todos, em prol da nação, os atores passam a ser avaliados
161
por suas
contribuições positivas ou negativas à integração social. O conhecimento sobre as
verdades, assim, torna-se um elemento importante na construção de uma
sociedade de comunicação. A verdade é expressa pelos condicionantes morais ao
homem-particular, que se encontra imerso numa complexa rede social de
determinações, pelas quais deve eleger algumas e excluir outras. Esse homem
esforça-se para incluir-se na exigente teia representada pelas convenções
mínimas (cotidianas, banais) e máximas (legislações, leis, políticas, convenções
formais) das relações sociais. Nesse conjunto de convenções, inclui-se a moral
como sistema de regramentos complexo.
Segundo Heller (1991), a moral é situacional e, portanto, é territorializada
pelo contexto de interação social, regendo, assim, interações múltiplas. As
necessidades de regência situacional e sua multiplicidade dão conta da
complexidade de interações necessárias ao mundo das trocas capitalistas. Ora, ao
entendermos o capitalismo como um modo de produção global, que se reproduz
em situações diferenciadas, vemos a moral também como “una” e “múltipla”,
constituída como uma esfera totalizante que apresenta suas especificidades
contextuais, que dão coerência a uma rede complexa e integrada. É por esse viés
que se estabelece a alienação e se reproduz o homem-particular. O ator social se
encontra fragmentado em um sistema de situações, muitas vezes discordantes,
regidas por normas, atividades e contextos morais específicos, porém abarcados
por uma totalidade que produz o corpo integrado do social. A esse sistema
dialeticamente integrado e diverso que chamamos de “mundo moderno”, cuja
escala pode representar o mundo, produzida pela expansão do racionalismo
europeu e pela expansão do modo de produção capitalista. O homem-particular se
territorializa em algum fragmento desse sistema, caracterizado por um contexto
moral e técnico-objetivo relacionado a suas funções em relação à totalidade. Por
outro lado, não reconhece o funcionamento dessa organização total, tornando-se
alienado sobre as reais condições que regem suas atividades e suas condutas.
161
O desempenho dos atores é constantemente avaliado nos meios sociais. Eles devem estar de
acordo com um conjunto de preceitos morais e condicionados às rotinas e aos métodos que
organizam as atividades e as funções econômicas em sociedade.
267
O sistema social que parece fragmentado é na verdade uma rede de
determinações territorializadas que abarcam parcelarmente os indivíduos e os
identifica como atores. Os atores representam convenções, apreendem formas de
interação a cenários determinados e concordam com as necessárias atividades
singularizadas a contextos produtivos. Por esse viés, o cotidiano, previsto por
Lefebvre (1958) e Heller (1991), constitui-se por uma estrutura social de atividades
banalizadas mas que, em suas profundezas, representam uma complexa trama
histórica de produções ideológicas e materiais que servem como mecanismos de
reprodução de poderes que abarcam e alienam os indivíduos, transformando-os
em atores sociais.
Goffmann (1996) evidencia que as interações sociais são estabelecidas por
“representações” que o individuo desempenha frente a um grupo de observadores.
Essas representações são desempenhadas, então, em cenários específicos de
interação. Esses cenários institucionalizam e são institucionalizados por
representações que envolvem um conjunto de papéis sociais a serem
desempenhados por atores, mediante a apropriação da fachada da representação.
Os cenários são a geografia da representação dos papéis sociais avivados por
atores. Os cenários tendem a manter-se na mesma posição e configuram a
institucionalidade das representações em relação aos papéis. O ator, então, é que
se move de cenário em cenário, e o cenário constitui-se de corpo material que
abarca a invenção nominal da instituição. A instituição, abarcada pelo cenário,
assim como também produzindo o cenário, é a fatalidade que fragmenta os papéis
sociais a serem desempenhados. O ator, então, se movimenta entre os cenários
das instituições e se apropria de um fragmento da interação, ou seja, uma
representação condizente do conjunto de papéis pertencentes à instituição e
materializados pelo cenário. As representações dos papéis sociais pelos atores
são formadas por “aparências” e “maneiras”. A primeira informa o status social do
ator, dessa forma, mais rígido e condizente com um conjunto de maneiras
esperadas que se referem a determinado status, assim atemporal a situação. As
maneiras expressam a situação “aqui e agora” e os caminhos possíveis de
268
condutas condizentes com a relação entre a aparência e a especificidade da
interação.
Assim, Goffmann (1996) verifica que a sociedade se processa como um
conjunto de cerimônias que rejuvenescem e reafirmam constantemente os valores
morais dela mesma. O mundo social, assim, é um conjunto de sistemas de
reuniões ritualizadas que fundam a condição do ator social, ao mesmo tempo
abarcado pela exterioridade dos cenários e instituições sociais, e cínico pelo
desempenho frio de papeis naturalizados pelas relações mercantis do valor de
troca.
Além disso, Goffmann (1996) atenta para a complexidade social, verificando
processos que denomina de “segregação de auditório”, que permite ao ator o
envolvimento com várias representações em cenários diferenciados. Dessa forma,
além da exterioridade naturalizada das instituições e dos cenários sociais, o
homem-particular, ou ator, se fragmenta em atuações para diferentes auditórios
que se apresentam segregados. A segregação, assim, torna possível - e é
inerente a ela - a divisão de trabalho em sociedades modernas capitalistas que
mobiliza porções de atores, ou homens-particulares,
162
ao desempenho de tarefas
especializadas. O ator social se envolve em múltiplos cenários de interação que
apresentam múltiplas exterioridades referentes a papéis sociais (múltiplas
aparências e maneiras) que deve desempenhar. A intensa atividade do ator social
expressa a pobreza de sua alienação, o extremo processo de particularização que
o afasta da práxis do social.
De acordo com Velho (2004b, p. 43), Goffmann preocupa-se com o “próprio
processo de definição de situação e construção da própria interação”, assim
corpo à microssociologia, que se ocupa com as regras, as negociações, os
encontros e desencontros inseridos nas situações banais do cotidiano. No entanto,
162
Os atores sociais, em Goffmann (1996), implicam a situação de indivíduos compondo uma cena
social, desempenhado papéis preestabelecidos, realizados no ato da interação. Homens-
particulares, para Heller (1991), são a representação da alienação individual cotidiana pela
particularização estabelecida pelas relações de trabalho e pela incompreensão quando a totalidade
social. Nosso trabalho aqui é aproximar essas duas noções, a marxista e a interacionista,
observando que a sociedade é um conjunto de ões e comportamentos inseridos nos papéis que
atores têm que desempenhar numa cena, assim como a evidência da particularização alienada do
desempenho dessas ações e comportamentos.
269
a condição de banalidade guarda consigo o peso da dominação que pressiona o
homem-particular.
Para Goffmann (apud TEDESCO, 2003, p. 68), os “imponderáveis da vida
real aparecem, estruturam-se e dinamizam-se na situação social, no ambiente
recíproco, na ocasião social (evento que se localiza e se temporaliza) e no
encontro social (ocasião de interação face a face)”. Assim, os cenários de
interação são unidades temporais e espaciais que transcendem o “aqui e agora
banal” (a situação banal cotidiana) e se constituem na complexidade da trama de
poderes e formas sociais institucionalizadas que definem a sociedade como
macroestrutura.
Dessa forma, a realidade social se processa como microexperiências
baseadas na condição de homem-particular e ator social e as estruturas sociais,
na escala do cotidiano, transformam-se nas microestruturas da interação. Tais
microestruturas de interação são condições naturais de interação que apresentam
regras que guiam o processo de representação do ator social. O ator preocupa-se
constantemente com o decoro e apropria-se, pelo aprendizado, de condutas
exteriores a ele, cumprindo o “script” situacional, sendo julgado pelos atos
mínimos da platéia, desde expressões mínimas de estranhamento, até atos de
violência em relação ao descumprimento do esperado na situação.
As relações entre indivíduo e sociedade, assim, apresentam-se por essa
complexidade de situações de interação que banalizam os condicionantes
históricos da rede de poderes da própria sociedade, oprimindo o indivíduo,
impedindo seu processo de individuação e condicionando-o como ator social. Para
Goffmann, a dominação da sociedade sobre o indivíduo apresenta-se pelo
“controle escalonado” (BECKER, 2004, p. 104) como evidencia das relações de
poder sendo exercidas no ato da interação, cujos atores anulam mutuamente
ações que escapem a condição de existência institucionalizada da interação. Por
meio da condição desigual de status dos papéis, as maneiras desviantes acabam
sendo propensas a sanções, pela ação de um micropoder que faz cumprir o
estatuto interacional.
270
Assim, de acordo com Gastaldo (2004), a sociedade apresenta-se como um
conjunto de “enquadramentos” que se referem a contextos interacionais que
abarcam um conjunto de atores sociais desempenhando papéis que instituem
regras a serem seguidas. Os contextos interacionais dos “enquadramentos”
(GASTALDO, 2004, p. 112) são células nos quais pululam micropoderes que
condicionam minimamente os homens em sociedade: pelas regras dos papéis,
pelos procedimentos da interação, pelas formas dos cenários e pelo conjunto de
possíveis sanções estabelecidas mutuamente. O controle escalonado que define
os enquadramentos é situacional no tempo e no espaço, constituindo cenários
específicos e que segregam auditórios nos quais o ator deve apresentar-se e
representar.
A relação entre as noções que Goffmann propõe, como o complexo da
situação formado pelo controle escalonado, pelos enquadramentos, pelas
instituições, pelos papéis sociais e pelos atores, corpo à idéia de a sociedade
ser constituída por múltiplos e complexos microterritórios de interação, fenômeno
também chamado por Gluckmann de pockets of social relations (GLUCKMANN
apud VELHO, 2004), como bolsos de relações sociais que tendem a um
fechamento ou segregação entre diferentes formas e encontros interacionais
(diferentes cenários institucionalizados ou diferentes enquadramentos). A
sociedade assim, se constitui de múltiplas microterritorializações de interação
social.
Essa idéia adquire mais sentido quando lembramos que as interações são
temporais e espacialmente estabelecidas e definem-se por relações de poder
externas e internas a ela: internas, pelas funções desiguais de representação dos
atores no ato da interação, que culminam em sanções para que aconteça o fluxo
normal das atividades e interesses relacionais; e externas, pela condição
existencial do encontro dos atores em interação, como instantâneo ponto
localizado regido por sentidos que constituem a amplidão da sociedade e as redes
de poderes que a constitui.
Conforme Goffmann (apud BECKER, 2004, p. 107),
271
Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus
participantes e lhes dá algo de um mundo; em resumo, cada instituição
tem tendências de “fechamento”. Quando resenhamos as diferentes
instituições de nossa sociedade ocidental, descobrimos que algumas
são mais fechadas do que outras. Seu “fechamento” ou caráter total é
simbolizado pela barreira a relação social com o mundo externo e
proibições de saída, que muitas vezes estão incluídas no sistema físico
por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos,
água, florestas ou pântanos.
A sociedade, assim, além das condições macroestruturais, pode ser
explicada pela objetividade disciplinar de micropoderes que produzem e
reproduzem a realidade concreta dos atores sociais. O poder se circunscreve, de
acordo com Foucault (1993), nas pequenas áreas de interação que abarcam a
produção do material, do corpo do ator, de suas ações e de suas concepções.
Esses micropoderes constituem as formas heterogêneas e díspares da
realidade das interações sociais e se transformam nas próprias práticas sociais
que ocorrem nos contextos relacionais. A sociedade torna-se um conjunto de
formas e conteúdos que disciplinam os encontros humanos mediante interesses
complexos.
A sociedade disciplinar, constituída desses micropoderes interacionais,
organiza o espaço, distribui os homens-particulares, classifica-os, combina-os e
hierarquiza-os, tornando-os capazes de exercer funções abstratas e exteriores a
suas subjetividades. Mais ainda acaba produzindo as próprias subjetividades dos
homens-particulares.
O ator, assim, somente reproduz, estando isolado na restrição das
microparticularidades de interação, por onde fluem os micropoderes, que o torna
incapaz que apreender a totalidade ou a práxis social. O ator, assim, é a condição
do indivíduo alienado e incapaz de atingir a individuação como possibilidade de
erguer-se em relação às particularidades que o oprimem e que possibilitam a
manutenção do status quo dos interesses que se reproduzem historicamente.
272
5.4. DO ATOR AO SUJEITO
Podemos entender a sociedade como uma grande estrutura mecânica na
qual os indivíduos tornam-se meras peças a desempenhar racionalmente funções
múltiplas. Mas qual a origem fundamental disso? Digamos que a origem é
justamente o controle sobre a liberdade de prazeres dos indivíduos que formou
uma complexa espiral histórica de regulação das relações dos homens pelos
próprios homens, na qual, sob o propósito de conter o instinto de pulsão de morte
(a degradação do outro sobre o princípio do prazer), se estrutura um conjunto de
instituições e normas que fundam a ética dos relacionamentos humanos. É por
isso que a sociedade se estabelece como algo além do indivíduo, superior, que
regulamenta suas ações em prol da coletividade. O discurso de sociedade, além
da consumação da “vontade geral”, aparece como inerente ao princípio de
“civilização” que se opõe a “selvageria” das relações entre os homens, baseadas
na égide do prazer individual.
De acordo com Freud (1974), o poder do indivíduo substituído pelo poder
da comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Para o autor (FREUD,
1974 p. 53), a vida humana em comum é possível quando se reúne uma
maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado. O poder dessa comunidade
é, então, estabelecido como direito, em oposição ao poder do indivíduo,
condenado como força bruta. Nesse sentido, a essência está no fato de que os
membros da comunidade se restringem em suas possibilidades de satisfação.
O fato que nos interessa é que o desenvolvimento da sociedade significa,
em primeiro momento, para a contenção dos instintos individuais e um
aprisionamento do indivíduo sobre a ética do viver em comunidade. Nesse
significado encontra-se a discussão da dialética entre a contenção do indivíduo
sobre propósitos positivos de regulação dos instintos destrutivos do prazer e/ou a
emergência do prazer dos mais fortes contendo as forças brutas selvagens que
lhes pudessem estripar seus poderes sobre a condição do funcionamento da
sociedade. Assim, a realidade é tida como condição da relação dialética entre
273
indivíduo e sociedade, que fundamenta grande parte da sociologia e da
psicanálise, e que aqui propomos tratar sobre a ótica da Geografia.
Como contradição à visão que estabelecemos sobre uma sociedade
racional e mecânica, cuja ordem é o fundamento principal, Freud (1974)
argumenta que o principal propósito da vida animal é o princípio do prazer. A
ordem aparece como o diferencial entre o animal do homem e se transforma numa
compulsão repetitiva para decidir onde e como as coisas devem ser efetuadas. Ela
aparece como elemento fundamental à regulação do prazer de dominação dos
mais fortes sobre os mais fracos, pela necessidade de racionalização econômica
desse prazer a fim reter no tempo as condições de subordinação e reprodução
das riquezas oriundas dessa dominação. Prazer e ordem aparecem como
compulsões humanas dialéticas na obra de Freud, no entanto, o que origina a
compulsão da ordem é a compulsão primeira do prazer. A ordem, de acordo com
o autor, regula a propensão nata do prazer da destruição. A ordem nunca ocupou
as relações humanas sem obstáculos uma vez que os “seres humanos revelam
uma tendência nata para o descuido, à irregularidade e a irresponsabilidade”
(FREUD, 1974, p. 51).
A felicidade humana para Freud provém do princípio de prazer, e os
prazeres provêm da satisfação repentina com manifestação episódica, ou seja,
advém de um estado de espontaneidade que movimenta corpo e mente para a
sua satisfação. Nesse sentido, podemos derivar prazer intenso de um
contraste, e não de um estado de coisas. O prazer é a espontaneidade da ação
humana em experimento, no ato da descoberta, e tem pouco a ver com o “estado
das coisas”. Assim, segundo a ordem das coisas do mundo civilizado, as
possibilidades de felicidade (a satisfação do prazer) são sempre restringidas.
Na visão negativa de Freud o homem civilizado é pouco propenso ao
prazer, e muito mais à infelicidade. O homem é infeliz pela decadência do próprio
corpo ao longo do tempo, pelo mundo externo (civilizado), que se volta contra ele,
extirpando seus desejos e estabelecendo as regras de acordo com a ordem das
coisas, e, finalmente, pelo relacionamento com os outros homens, que
impossibilita a espontaneidade momentânea do prazer pelo próprio choque
274
relacional e/ou pela ordem que regra essas relações. Dessa forma, a história
humana talvez seja a história de contenção da felicidade que se transformou na
história da realidade.
A realidade, pelo que argumentamos, se transforma em algo externo às
necessidades espontâneas do prazer humano. As obrigações da sociedade
organizada são naturezas independentes do interior do “indivíduo desejante”. Sua
vida é condicionada pela dialética de participação a essa ordem externa e uma
pressão interna de satisfação de desejos que, muitas vezes, não são condizentes
com a vida em sociedade.
Para o autor, o que ocorre, na maioria das vezes, é uma discrepância entre
o pensamento das pessoas e suas ações, movimentadas de acordo com as
ordens sociais. Ocorre, assim, a coersão dos indivíduos a estabelecerem ações
inseridas nas necessidades do movimento e da ordem da sociedade, o que se
aproxima muito da idéia de homem-particular, na visão do cotidiano marxista, ou
de ator social, na visão interacionista.
O ego, desse modo, inclui tudo: desejos internos e mundo externo. Em
primeiro momento, o ego se volta para si, para o interior do indivíduo: são seus
pensamentos separados das ações convenientes ao mundo externo, algo próximo
aos reais sentimentos desejantes que estão contidos no id. Pelo ego o indivíduo
separa de si mesmo um mundo externo (superego). O ego se transforma num
vínculo íntimo entre indivíduo e mundo externo.
Por outro lado, o ego se expande para o mundo externo, buscando veículos
de satisfação imediata do prazer. Isso culmina na criação de mundos próprios,
com melhores condições de sensibilidade, que, muitas vezes, podem levar a
condições “patológicas” ao social. Por outro lado, ele pode expandir-se
canalizando seus estímulos a brechas que encontra no social, como a dedicação
ao trabalho e a emergência da criatividade ou a manifestação de egos desejantes
em possibilidades de relações informais no espaço social, como fundamento da
formação de agregados urbanos desviantes e guetificados nas cidades.
Tomaremos no lugar de ego, o termo “eu”. Freud, pensando no “eucomo
entidade que expressa a dialética entre prazer e ordem (bastante conflituosa no
275
interior pessoal), coloca em questão a relação do homem com a sociedade e
rompe com o simplismo da estrutura social mecânica. O prazer não pode ser
totalmente contido para o cumprimento dos papéis ou pela alienação prático-
econômica do homem-particular. Em algum momento, o ego deverá abrir-se ao
exterior e deixar fluir o núcleo individual, que consiste o id. Por outro lado, o ego
pode ser sublimado a partir de tarefas possíveis na sociedade e que o indivíduo
exerce com toda a dedicação.
Lefebvre (1958, p. 220) observa que a espontaneidade não pode ser vista
como não-social; ela é condição do social. Na vida cotidiana, para o autor, a
espontaneidade, como veículo do prazer propriamente individual, inexiste. A
espontaneidade existe como elemento arraigado às possibilidades contidas no
social. Isso equivale à espontaneidade do ator a cumprir um papel, e, por ele esse
ator, canalizar sua energia selvagem contida no id.
No entanto, a sublimação não sacia o desejo que é inerente ao homem, que
mantém uma irresistibilidade pelos “instintos perversos” e uma atração pelas
coisas proibidas. A contenção do id pelo trabalho ou pelo comprometimento com o
social é contínuo e desestimulante. Para manter-se revigorado, o trabalho deve
conter sucessivos choques de inovação, mutação das tarefas e das metas, e
eventos que possibilitem novas condições de sublimação. Em relação às
condições sociais do trabalho e à tendência às tarefas rotineiras, isso se torna
quase impossível, mesmo no atual momento da flexibilidade econômica. Em todos
os momentos, a ordem social é incondizente com o princípio de prazer individual.
Para isso, o homem não se contém e burla o social, criando possibilidades
desejantes instáveis e mutantes.
Essas possibilidades acarretam a emergência do estilo individual, da
criatividade e da personalidade forte que inova nos círculos sociais subliminares.
Também interferem na formação de círculos sociais desviantes entre os inúmeros
existentes nos intermeios, nas brechas e nas obscuridades subterrâneas do
espaço social. Por outro lado, no caso extremo, o homem-desejante pode
desvincular-se totalmente de sua particularidade, isola-se patologicamente e criar
276
uma condição de perversão extrema e totalmente aquém das condições sociais:
torna-se um louco ou um psicopata.
Como vimos, o “eu” encontra a sociedade e não é mais “eu”, mas “mim”
(MEAD apud HOLLAND, 1979), e por esse “mim cumpre papéis que
estabelecem, além de suas atitudes, inclusive suas formas de pensar. De acordo
como o autor, a condição do “mim” advém do trabalho de interação do “eu” com o
“outro generalizado”, ou seja, os determinantes institucionais da sociedade.
Porém, em substituição ao “outro generalizado”, Mills (apud HOLLAND, 1979,
p. 113) propõe a noção de “outros significativos”, que se aproxima da idéia de
círculos sociais (KELLY apud HOLLAND, 1979, p. 130), que acaba tornando mais
flexível a análise das ações sociais, uma vez que a “estrutura” é substituída pela
análise interacional da situação, assim como de perturbações existentes nela.
Nosso interesse aqui são essas perturbações.
A análise dos papéis sociais de Goffmann (1986) prevê essas perturbações a
partir da idéia de decoro. O decoro é a falha no desempenho dos papeis sociais,
porém é mais do que isso, é a evidência da tendência humana à imprecisão e à
irregularidade. O próprio Goffmann (apud HOLLAND, 1979, p. 115) prevê um
distanciamento do papel no ato da interação, ou seja, a evidência de um estilo
pessoal que acaba abarcando a complexidade de papéis que o homem exerce.
Não podemos distanciar-nos da complexidade que somos, tornando puro o
desempenho dos papéis. Somos repletos de papéis a desenvolver quanto às
exigências sociais, assim como somos também munidos de instrumentos
desejantes internos que são canalizados para o desempenho desses papéis.
Assim, a criatividade individual emerge nas interações sociais.
Holland (1979) chama atenção ao processo de socialização que consiste num
caminho que transcende o id e o ego, passando do mim e das exigências sociais
que constituem o superego. Nesse caminho, podemos ver o indivíduo abarcado
por todas essas instâncias que transcendem o papel racional. Na situação, ao
mesmo tempo, o individuo é id, ego, mim e superego.
Kelly (apud HOLLAND, 1979, p. 103) verifica que a teoria do papel social
encontra três principais perspectivas: a perspectiva econômica, centrada nos
277
outros para desenvolvimento do trabalho; a perspectiva da representação, de
cunho ideológico e da norma institucional; e a perspectiva da reunião de homens
empáticos e questionadores que buscam a compreensão do social. A primeira
denota uma instabilidade, pois os fenômenos econômicos capitalistas são
condicionados pela flexibilidade na busca de geração do lucro, mas a terceira abre
inúmeras possibilidades de questionamento e de contestação das condições
naturalizadas das situações sociais. Nesse sentido, também está presente na
teoria do papel social a relação entre os potenciais criativos humanos e as
exigências da sociedade que procura sua reprodução. A essa crítica se abrem
fluxos de possibilidades de interações informais e ilícitas ao social, que tornam
emergentes o indivíduo desejante e a canalização dos prazeres do id. Tais
“formas-conteúdo” de interação social amenizam o sentimento de culpa daqueles
que não encontram no social suas possibilidades de felicidades plenas e, em
reunião mútua, formam micro-realidades nos quais a espontaneidade e os desejos
íntimos podem ser expressos.
Assim sendo, o eu (ego) apresenta-se pela condição dialética entre
desejo/espontaneidade e ordem/função/moral, representativas, respectivamente,
do id e do superego freudiano. Na visão psicanalítica, devido às pressões sociais
exercidas no indivíduo, desde a infância, o ego, esse misto de desejo e
determinantes sociais, é idealizado, sendo sobrepujado pelas condições que
fundam o ator social. A idealização do ego representa grande parte dos problemas
individuais, e a insuficiência de felicidade que ele apresenta constitui uma das
maiores batalhas do homem desde os fundamentos da modernidade. No entanto,
uma das grandes contribuições de Freud, apesar do negativismo psicanalítico, é
justamente verificar a existência dessa batalha e explicitar que a civilização e que
a modernidade talvez constituam dois dos grandes problemas da humanidade. Os
fundamentos conceituais freudianos produzem a idéia de um ego oprimido que
busca sua emancipação.
Tal busca pode implicar patologias psicológicas e desvios sociais ou então os
diversos mecanismos de sublimação das energias humanas, nos quais as tramas
sociais, principalmente de ordem econômica, aproveitam esses benefícios
278
instintivos e criativos e os canalizam como novas formas de trabalho e reprodução
do capital pelo consumo (de identidades e culturas envolvidas com mercadorias).
A própria “evolução” da sociedade está imbricada nessa dinâmica.
Talvez o ego nunca tenha sido totalmente reprimido e/ou idealizado. Sabemos
da existência das figuras dos loucos, dos pervertidos, dos mal-feitores, dos
ladrões, dos degradados, dos corruptos, entre outras figuras repugnadas pela
sociedade, cujas formas de exteriorização do ego, em contradição com a ordem
social, ocasionam as “necessárias” patologias sociais balizadoras do “normal” e do
“anormal”. Dizemos necessárias, pois se constituem como discursos de
“identidades” negativas que oportunizam exemplos explícitos nos quais se
corrompem a ordem social e a integridade de todos: reiterando o feio, o louco, a
bruxa, a prostituta, entre outros. São necessárias para identificarem o que
estava/era “errado” e indigno dos benefícios de viver-se em sociedade.
Por outro lado, muitos desses loucos e pervertidos unem-se em outras tramas
que impõem obstáculos às rígidas condições sociais e possibilitam a emergência
de outras condições de interação que se aproximam da diversidade de
afetividades humanas. A partir daí, diferentes processos de sublimação das
identidades desviantes vão organizando-se para fazerem canalizar energias
transformadoras mais proveitosas para os interesses de poderes políticos e
econômicos que instituem o social.
Talvez isso seja um dos fundamentos da dinâmica da sociedade e a evidência
de sua fluidez. Daí a expressão de inúmeras figuras transformadoras do social,
como escritores, filósofos, educadores, lideres locais, artistas, entre outros, que
não somente canalizam suas energias vitais a formação de novas concepções,
mas abarcam os anseios de inúmeros outros anônimos diante da rigidez social.
Assim apresenta-se a condição da sociedade: como dialética entre rigidez e
fluidez, como “magma” que, ao mesmo tempo que “escorre”, vai cristalizando-se
parcialmente, por suas bordas, por seu meio, até que se transforma em rocha.
Então vem a erosão, que acaba tornando fluida a rocha, que em algum momento
forma outra, e assim por diante.
279
Os egos, então, seja pela patologia, seja pela sublimação, seja por outras
condições diversas, emergem e acabam transformando o social. Assim surgem os
sujeitos, conforme Touraine (1994), como aqueles que não se comportam
conforme os papéis sociais rígidos do ator social - mas que questionam e
modificam a sociedade, mesmo que num pequeno ato inexpressivo do cotidiano -
nem de um grande autor de uma grande obra que se dissemina por toda a parte.
O sujeito é condição da autenticidade do ego, como a ligação entre a auto-
estimulação erótica em Narciso e o encontro com a natureza em Orfeu, que
questiona a sociedade como entidade racional/funcional externa a si. Esse sujeito,
tentando compreender a sociedade, age e produz obras que fazem emergir sua
individualidade. O sujeito canaliza um processo de individuação que se sobrepõe
à condição de homem-particular, mas nunca consegue estabelecer-se totalmente
na condição de indivíduo Isso porque está presente em sua condição a própria
pressão e a rigidez da sociedade que o abarca.
Podemos falar em sujeitos sociais, no plural, pois não são entidades fixas,
mas condições individuais e coletivas fluidas diversas, que não representam um
“meio” entre o que é social e o que não é (expressão dos desejos intimistas e das
energias instintivas humanas), mas talvez vários “patamares” ou “posições”
instáveis no processo de individuação. Essas posições variadas são condições
múltiplas - como lemos em Latour (1994) - e não estáticas - dos pólos natureza e
sociedade. Daí a própria crítica ao conceito de sujeito.
Os sujeitos são múltiplos e não são condições “meio” entre natureza
(desejos humanos) e sociedade (racionalização das identidades corretas dos
papeis sociais), mas diversidades fluidas de indivíduos e/ou coletividades que
buscam suas individuações e travam ora com muitos ganhos, ora com muitas
perdas - cotidianas lutas para fazerem valer suas falas. Para aqueles que as
ganham, a crítica sobre as transformações que causam: por um lado, podem
ser ocorrências radicais transformadoras; por outro, são transformações
necessárias “aproveitadas” pela manutenção da ordem dos poderes essenciais.
Assim, ocorre a crítica às revoluções, pois ainda, talvez, nenhum processo
tenha sido totalmente revolucionário. Talvez tenham ocorrido muitas revoluções
280
verdadeiras que se perderam na complexidade do cotidiano. Em suas
emergências, elas sempre acabam atingindo algum ponto máximo e se esgotam,
até que convirjam oprimidas pela rigidez das normas e das formas sociais.
Todos passamos por “pequenas-grandes revoluções” em nossas vidas e na
vida de nossos parceiros afetivos. Tais revoluções vão construindo-nos como
sujeitos que acabam esgotando-se no passar do tempo. Lembramos dessas
micro-revoluções pelo caráter comunitário e afetivo que representam passagens
de nossas existências. Talvez a nostalgia seja a representação da pobreza
existencial do homem-particular e de seus anseios de mudança. Talvez a
nostalgia seja a evidência da sublimação do desejo de mudança que um dia
aflorou, mas que foi sublimado pelas exigências sociais que abarcamos, com
sucesso ou não.
Foucault (1993) denuncia a modernidade como condição da organização da
sociedade disciplinar representativa das complexas tramas cotidianas de poder
que vigiam e reprimem os indivíduos, colocando numa posição “aquém”
caracterizada pelo ator social ou pelo homem-particular. As idéias e referenciais
modernos de igualdade, liberdade e fraternidade vão se esgotando-se em vista da
extrema desigualdade existente e da incapacidade de todos atingirem e
conseguirem se inserir-se nos projetos de abundância e felicidade tão prometidas
pelos discursos de progresso e desenvolvimento.
Vallerstein (1995) verifica que a modernidade promoveu incríveis danos
humanos e ambientais e que ela instalou desigualdades que foram não
econômicas, mas também verificadas na interseção entre economia e cultura dos
diferentes grupos humanos. A democracia, então, foi vista como maquiagem,
desde os escritos de Marx e a emergência do movimento operio, em que se
inicia o resgate do comunismo contra a ilusão do reformismo racional imposto pelo
liberalismo.
Por outro lado, Touraine (1994) aponta contradições inseridas no
desenvolvimento da modernidade que tendem mais a desagregar que a organizar
uma ordem racional. No desenvolvimento das nações modernas, se travou um
embate contra as tradições, os costumes e os privilégios em favor da lei e da
281
razão para obtenção de um espaço nacional integrado. Porém, esse fenômeno se
instaurou mais por uma ação modernizadora do que pela modernidade
propriamente dita. A modernização irá mobilizar recursos particulares e locais,
tentando articula-los no universal.
Ora, a partir disso, conforme Le Goff (apud HAESBAERT, 2002), podemos
verificar vários tipos de modernização, produtos da imbricação de realidades
locais com verticalidades transformadoras, tendo como conseqüências outros
resultados que não somente a organização racional da sociedade, mas nos quais
estão envolvidos fatores locais que acabam impregnando o universal, ou seja,
permutando e misturando tradições e costumes locais na ordem moderna global.
Por outro lado, os processos de modernização vão vincular-se à ação da
empresa capitalista. E, no interior desses processos, vê-se a luta de classes que
se amplia, diferenciando o sistema social moderno. Contradições se inserem no
mundo do trabalho capitalista. A alienação é denunciada, e movimentos emergem,
discutindo as condições humanas e a repressão inseridas no modo de produção
capitalista.
De encontro a isso, Touraine (1994) observa o papel das estratégias da
empresa divergindo, muitas vezes, às regras gerais de racionalização na produção
de um mundo complexo e contraditório, cujo processo se estabelece mais pela
instabilidade e pelas transformações do que pela ordem e pela continuidade. O
modo de acumulação flexível
163
torna ambígua
164
a necessidade dos processos de
vigilância e repressão e preza muito mais a instabilidade de consumo pela
promoção do desejo do que pelo regramento a condições existenciais únicas da
163
Benko (1996) explica acumulação flexível pela flexibilidade do emprego da mão-de-obra no
tecido produtivo (terceirizações, desconstrução da hierarquia da empresa e formação de equipes
de trabalho), pela flexibilidade da tecnologia (enxuta, uso de novos materiais, móvel e de uso
simples), pela internacionalização da produção (constituindo um mosaico de territórios distantes e
ligados em rede) e pelo capitalismo financeiro comandando a economia.
164
As atividades de divulgação e publicidade capitalista vão muitas vezes divergir dos rígidos
padrões morais contidos na sociedade disciplinar, assim como possibilitam novos espaços de
consumo a para uma diversidade cada vez maior de sujeitos que antes eram discriminados e tidos
como desviantes sociais. A escola, por exemplo, torna-se inclusive muito repudiada por alguns
discursos contidos na propaganda, no cinema e nas formas de divulgação de certas culturas
juvenis, assim como os próprios discursos relativos ao desempenho social, que não mais prezam o
trabalho como construtor de uma vida instável, nem os regramentos morais e práticos para
consegui-la, mas o lazer, o não-trabalho e o desejo possível de ser revelado e saciado.
282
sociedade de massa e padronização das técnicas e processos inerentes ao
fordismo
165
. Múltiplos meios produtivos e uma diversidade imensa de demandas
são valorizadas tornando ainda mais complexos os processos sociais.
A respeito do consumo, a frenética busca por lucratividade da empresa,
aliada ao avanço das tecnologias de comunicação e das atividades de marketing e
propaganda, que se tornam globalizadas em virtude da disseminação da televisão,
vão ocupar-se mais com a promoção do gosto, com estímulos sedutores,
incentivando o narcisismo e o prazer, do que com o controle da libido, o que seria
condição de uma sociedade regrada e homogênea.
O consumo promove o “bando” e a diferença e afastando-se das massas e
dos projetos de homogeneização social. Inseridas em um campo de conflito
ideológico, entre possibilidades contidas nos veios de expansão consumista e
forças contestatórias autênticas que criticam relações disciplinares e de controle
moral, emergem as alteridades e disseminam-se seus núcleos de libertação
restrita. Em meio à desordem do consumo e às contestações sobre a repressão
cotidiana, a emergência das alteridades torna o espaço social palco da
multiplicação das identidades e mecanismo de segregação, nos quais ainda agem,
de forma dialética, a repressão e a liberdade de expressão.
A substituição da idéia de modernidade pela idéia de modernização,
conforme Touraine (1994), alavanca múltiplos processos permeados por múltiplas
contradições e embates cujos resultados levam à produção de inúmeras
realidades. Podemos entender a idéia de modernização pela perspectiva da rede,
ou seja, redes de modernização que constituem verticalidades que procuram
instaurar a ordenação e a racionalização das condições sociais locais.
As redes de modernização são, ao mesmo tempo, concretas e abstratas.
Elas produzem a materialidade, as ações e conduzem os pensamentos sociais.
Tais redes organizam, desorganizam, tornando a organizar o espaço social como
165
A economia flexível vem contrapor o fordismo. Para Lipietz (1989), o fordismo implica a rigidez
na produção e consumo, significando a organização hierárquica e em departamentos
especializados da “linha de montagem”, na organização da mão-de-obra, e a produção e consumo
em massa, ao contrário da produção just in time da acumulação flexível. O sistema fordista, para o
autor, implica também a regulação dos agentes privados. Essa regulação repercute na relação
detentores dos meios-de-produção e mão-de-obra, inserindo as questões dos direitos trabalhistas.
283
forças planejadoras e como produção de objetividades e saberes que condicionam
um conjunto de formas arquitetônicas e as ações dos atores sociais. Elas estão
contidas na ação planejadora do Estado e em seus projetos de reformismo
racional, assim como na ação estratégica da empresa, de acordo com a lógica
rígida de seus interesses.
As redes de modernização, de acordo com Musso (2004), apresentam uma
lógica da estruturação e da disposição das coisas, assim como um sistema de
ligação/circulação entre elas. A rede vai ser o elemento que organiza a
“fumaça”/desordem, da natureza ou do social, cristalizando-a em uma “ordem” das
coisas. Nesse sentido, a rede torna-se “um operador para a ação” (MUSSO,
2004), ou seja, a rede significa um conjunto complexo de instrumentos de poder
de uma racionalidade que organiza o caos “esfumaçado” das coisas no mundo em
uma rigidez “cristalizada” e estrutural, mas, ao mesmo tempo, propõe e organiza
caminhos de ligação e de fluidez que retoma a noção de fumaça presente na
ordem/desordem dessas coisas. A rede, dessa forma, instala o real, como
entendimento da estrutura, da disposição e da ordem dos fenômenos que
constituem a própria realidade.
Por outro lado, inserido na idéia de modernização, evidenciamos o choque
entre essa “fumaça” (caos, instabilidade, incoerência), que constitui o contexto
social, e a ação rígida e a necessidade de cristalização da ordem da rede. Nesse
sentido, ao contrário de tornarem moderno, as redes evidenciam o processo
dialético da modernização, ou seja, a formação de um espaço social que não é, ao
mesmo tempo, nem cristal, nem fumaça, mas algo entre ordem e desordem, entre
rigidez e flexibilidades, entre regra e espontaneidade. O espaço social, assim, é
produto da relação e/ou conflito entre ordem e desordem inseridos nos processos
de modernização.
Touraine (1994) observa que, a cada fragmento da modernidade - que, para
nós, é um processo singular de modernização, entre tantos outros - traz em si
simultaneamente a marca da modernidade e da sua crise. Parece que tudo, ao
mesmo tempo, é moderno e antimoderno. E essa ambigüidade se apresenta
contida nas lutas sociais e na resistência das identidades, que evidenciam, ao
284
mesmo tempo, a crise e o avanço dos determinantes modernos. No centro dessas
lutas, encontra-se a evidência de uma sociedade repressiva que, ao organizar sua
trama, exclui e identifica elementos dissidentes, tidos como anormais ao sistema e
passíveis de cura.
Foucault (1993), observa que as redes de modernização são constituídas
por corpos técnicos objetivos e por instrumentos institucionais e cotidianos de
produção de saberes. Nada se cala sobre domínios contrários aos projetos
sociais.
Como nos mostra o autor, em “história da sexualidade” (FOUCAULT, 1989),
se intensificam os discursos para organização das condições humanas, a partir da
“tagarelice” das ciências e das ações comunicantes das instituições sociais. O
objetivo principal é catalogar e identificar algumas formas e ações possíveis e
outras que deveriam ser separadas para a “cura”. Impregnados em diferentes
contextos sociais, procedimentos e normas se instauram e constrõem um
cotidiano que reprime, pelas normas de comunicação e pelas técnicas
condizentes, as interações entre as pessoas. Aos poucos, pelos processos de
aprendizado cotidiano, o homem se transforma em um ator que encena as
condições sociais, que segue um “script” e que se insere em formas e
procedimentos que constituem fragmentos históricos da complexidade cristalizada
do social.
Foucault (1988) observa uma multiplicidade de mecanismos de poder que
compõem a complexidade dos contextos e interações mais banais. Esses
mecanismos são construídos por tramas das redes que tentam consolidar ou
“cristalizar” o social, dando corpo sólido à sua natureza “esfumaçada”. Por outro
lado, o autor observa que essas táticas, que constituem micropoderes
impregnados de estratégias universalizantes, sempre estão fadadas ao fracasso e
obrigadas a recomeçar.
Talvez, por essa constatação, passamos sugerir que os mecanismos
panópticos não se reproduzem com tanta facilidade, sem antes pensarmos no
caráter conflituoso inserido nesse processo. Por isso, sugerimos duas “facções” de
“táticas” imanentes ao conflito entre objetividade organizadora, inserida em uma
285
“microfísica do poder”, e “microfísicas” contestatórias daqueles que ela quer
abarcar: as táticas dos fortes, carregadas de condicionamentos universalidades
que tentam cristalizar o social, e as táticas dos fracos, muitas vezes silenciosas,
tênues, imperceptíveis, que burlam os condicionamentos e instauram outras
coisas que a dita racionalidade no entendimento das coisas e dos fenômenos
desse mundo.
De Certeau (1994) nos fala dessas táticas como movimento no campo do
inimigo. De acordo com o autor, o espaço social se constitui pela estratégia do
lugar, condicionado pela normalidade das estruturas dominantes, mas que se
torna dialético em virtude de táticas cotidianas contextualizadas, que alteram as
relações e as normas, pelo desejo, pelo espontâneo, pelo calor das relações do
“aqui e agora”. Os golpes táticos, que remetem à natureza dos desejos individuais
e coletivos e que contradizem as normas e os condicionamentos sociais, alteram
frações do espaço social e aquecem esse cristal até “derretê-lo”.
166
Partes
“esfumacentas” aparecem e desaparecem, pululando “aqui e ali” contextos de
interações informais e, muitas vezes, contrárias à normalidade do cotidiano.
Outros cotidianos se tecem, ou seja, cotidianos de “meio-termo” entre aquilo que
representa a formalidade das condutas, condizentes com as necessidades ditadas
pelas instituições sociais formais, e aquilo que representa de mais momentâneo,
mais informal, mais carnal e mais espontâneo, condizentes com os desejos e os
prazeres humanos em suas relações descomprometidas e realmente livres de
condicionamentos.
Nesse sentido, emerge o sujeito de Touraine (1994, p. 123),
Contra o pensamento das luzes que colocava o universal na razão e
apelava para o controle das paixões através da vontade posta a serviço
da lucidez, o universal emerge com Nietzsche, e depois dele com Freud,
no inconsciente e sua linguagem, no desejo que derruba as barreiras da
interioridade. Essa condição pode ser levada até o antimodernismo mais
166
Os conflitos entre estratégias e táticas estão no exemplo dado sobre a organização do espaço
social, que não se completa, e converge, concomitantemente, para a desordem. As táticas
produziram as agregações sociais desviantes junto ao mercado do Bom Fim até 1996. Daí
estratégias a desterritorializaram e mudaram a configuração e as convivências estabelecidas no
local a partir de 2000. No entanto, as táticas homoeróticas, por exemplo, se reterritorializaram no
interior centro Comercial Nova Olaria, reterritorializando-se novamente para o exterior e para
outros bares da Rua Lima e Silva e da República a partir de 2006.
286
extremado; mas ela é também a condição de criação de um sujeito que
não seja nem Ego individual, nem o si-mesmo (self) construído pela
sociedade; um sujeito que se definisse pela relação a si-mesmo e não as
normas culturais institucionalizadas, mas que não pode existir, a menos
que se descubra o caminho que leva do Id ao Eu, caminho que deve
contornar o Ego identificado com a razão. (TOURAINE, 1994, p. 123)
Citando Nietzsche, Touraine critica as “Luzes” como meios de efetivar o
universal pela razão, para controle das paixões e formação da lucidez racional do
ator social. Sua crítica centra-se na luta entre desejo e self (construções sociais
para si ou papéis sociais), que se torna coletiva e produz o sujeito, como
valorização do entendimento e da ação “de” e “para si mesmo” (a noção de “ego
ideal”, além do “ideal de ego” visto em Freud) e não às normas culturais
institucionalizadas. De acordo com Touraine (1994, p. 124),
[...] o tema do Sujeito não é mais a procura de um fundamento
metassocial da ordem social, um novo nome dado a Um, a Deus, à
razão ou à história, mas completamente ao contrário, um movimento
social, o ato de defesa dos dominados contra os dominantes que se
identificam com suas obras e seus desejos.
O capitalismo produz duas grandes situações que abarcam o indivíduo: por
um lado, ocorre o mercado, no qual se operam múltiplas contradições e a
emergência de diferenças sociais, que lutam pela inserção contra a exclusão em
quanto às possibilidades de consumo, e a lei, que se opera pela adaptação
individual ao mundo social pela repressão. Nessa sociedade existem duas
oposições, conforme Touraine (pp. 128 e 129): de um lado, os burgueses,
conduzidos pelo desejo, e, de outro, os operários, conduzidos pela disciplina. Por
outro lado, ocorrem também a vida pública, dominada pela concorrência e pelo
dinheiro, e a vida privada, na qual se impõe a subordinação às leis, regras e
convenções.
Na vida privada cotidiana, cujo centro repressor é a família, se exerce a lei
e se produz a culpabilidade, que nasce da resistência do desejo à lei. É na vida
privada que as convenções repressoras pesam e condicionam a formação do ator
social. As regras de comportamento e o fundamento de identidades condizentes
com a necessária inserção na sociedade reprimem os desejos e instauram à
287
racionalidade e a lucidez do ser. A culpa pelo desejo proibido conduz a
inevitabilidade de encenação dos papéis sociais.
Por outro lado, ao mundo consumista determinado pelo valor de troca, na
publicidade das relações capitalistas, o desejo é possibilitado como elemento que
movimenta a reprodução do capital. O desejo, como produtor de valor, funda uma
sociedade contraditória formada por múltiplos fragmentos “desejantes”. Em
essência, vemos três importantes condições que se imbricam de forma
conflituosa: por um lado, uma totalidade social e territorial na qual existem normas
objetivadas e que foram cultivadas nas relações privadas da família; por outro
lado, uma infinidade de nichos pelos quais o desejo emerge, como fragmentos
ligados a uma totalidade de consumo capitalista. A terceira grande condição
refere-se aos “aglomerados de exclusão” (HAESBAERT, 2002) ao sistema de
desejos consumistas burgueses, caracterizados como outros mundos marginais
ao racionalismo da sociedade e ao sistema “desejante” do capitalismo. Os
aglomerados de exclusão podem constituir elementos revolucionários, mas, ao
mesmo tempo, são muito passíveis de manobra política, assistencialismo e
clientelismo, assim como podem, facilmente, tornar-se agentes de violência
momentânea, desesperados pelo desejo de consumo e não pela ação de
transformação social.
Três mundos: o mundo das regras, o mundo do desejo de consumo e o
mundo da exclusão total. Produzem as contradições do espaço social, articulando-
se e se (des)organizando em contextos diversos. Os lugares sociais o produtos
da dialética da relação entre esses mundos, estando presentes na subjetividade
dos indivíduos e na objetividade de suas ações coletivas e individuais. Devido a
essas condições é que não podemos pensar em uma modernidade racional e
organizadora, mas sim sobre múltiplos processos de modernização, que fundam
produtos e outros processos totalmente dialéticos e contraditórios desde a idéia
inicial proposta pelas luzes.
Para Touraine (1994), é desses contextos que emergem os sujeitos, como
resultados da relação entre desejo, natureza, sexualidade, pulsão e
personalidade, de um lado, e da interiorização das regras da razão universal, de
288
outro. Como no pensamento de Freud, o qual argumenta que o sujeito não é
produto da inflamação do “ego”, coisa que pode ser relacionada ao narcisismo do
consumo; portanto, ligado à sublimação das possibilidades de questionamento
social e econômico (no caso da crítica ao capitalismo), mas da relação entre “id” e
“superego”, na qual esse sujeito não é mais um representante interiorizado da lei,
mas sim um instrumento de libertação das exigências sociais, tanto em relação à
racionalidade como em relação ao desejo de consumo.
O sujeito questiona a presença dialética daqueles três mundos, e emerge
como representante ativo do contexto social, pelo qual agem, procurando
condições de existência mais justas e inserção nos processos e tomadas de
decisões sociais. O sujeito, no contexto da modernização, se torna, assim,
movimento político das diferenças como produtos diversos da existência dialética
entre o mundo da razão e das regras sociais, mundo do desejo de consumo e
mundo dos excluídos.
O sujeito é a transformação do ator social. Mesmo assim, é inseparável da
condição de ator social. A partir da repressão do ator social e de seu sofrimento
em relação aos sentimentos de culpa, que podem estabelecer os caminhos da
sublimação, do tédio e da alienação, a vida aos poucos vai resistindo no indivíduo.
O ator, aos poucos, deixa de exorcizar a libido e a valoriza como elemento para a
construção de sua unidade e como força latente de transformação social. “O
indivíduo não é senão a unidade particular onde se misturam vida e pensamento,
a experiência e a consciência” [...] “por que o ator não é aquele que age em
conformidade com o lugar que ocupa na organização social, mas aquele que
modifica o meio ambiente material e, sobretudo social no qual está colocado,
modificando a divisão de trabalho, as formas de decisão, as relações de
dominação ou as orientações culturais” (TOURAINE, 1994, p. 220-221).
289
5.5. A DIALÉTICA DO SUJEITO E AS TERRITORIALIZAÇÕES NO ESPAÇO
SOCIAL
Pelo que argumentamos até agora, observamos a natureza ambígua do
sujeito, e isso implica a busca de entendimento da realidade social pelo método
dialético, em que
[...] tudo é contraditório; todo pensamento avança graças às
contradições que contém, examina e supera; e não que se contradiz
a si mesmo, que seu sistema fechado, estancado, acabado, como se
fosse um balanço final do homem, deve explodir, avançar, ser superado!
(HEGEL apud LEFEBVRE, 1983, p. 173).
O mundo está em movimento como realidade dinâmica e as transformações
ocorrem, contradizendo definições que tentam perdurar. Com relação a isso, o
autor atento à noção de identidade, critica sua definição tautológica e vazia de que
“A=A”. A determinação do pensamento lógico, afirmado pela racionalidade
matemática e legitimado pelas instituições sociais, que se encarregam do
aprendizado, força a qualidade rígida que naturaliza e afirma a estanque
identidade restrita das coisas. Isso acaba criando, de forma abstrata, um mundo
imóvel e cristalizado, ou um “mundo dos sólidos com arestas definitivas em que
nosso pensamento seria um pensamento que recorta e fragmenta, “mas o mundo
parece imóvel por que se deseja que ele seja imóvel” e, por isso, são forçadas
justificativas sobre as “aparências e legitimam-se os momentos do pensamento,
buscando o ´grão da verdade´ do erro relativo” (BERGSON apud LEFEBVRE,
1983, p. 182).
Portanto, nada é absolutamente estável e, em movimento, os fenômenos
revelam o caráter contraditório da realidade. No entanto, a razão força a
identificação das coisas reais pela definição da verdade de que “A=A”, assim
criando e escondendo a complexidade da realidade por essa abstração. Além
disso, força também pólos contrários e procura simplificar a diversidade das coisas
pela noção simplista de diferença em que “A B”. Quanto a esses procedimentos,
existe um esforço racional de se fazerem encaixar a qualidade dos fenômenos em
290
identificações, sentenças verdadeiras e polarizações pobres que procuram,
principalmente, de forma autoritária, apreender os desvios e as exceções como
eventos minoritários passíveis de correção. Como conseqüências disso, segundo
Lefebvre (1983), foi a cisão entre humanismo abstrato (razão) e real humano
(vida) que, por seu caráter estanque e repressor da diversidade, trouxe uma
“rebelião das paixões, dos indivíduos e das massas cegas contra a razão vazia”.
A isso se relaciona, como se apontou anteriormente, a crise da
modernidade, como estruturas de identidade e de classificação racional e
estanque das coisas, e a atenção ao “devir” da modernização, como aspecto da
modernidade e de suas contradições, verificado pelo movimento e fluidez dos
produtos das lutas entre lei (identidade e razão) e desejo (vida e espontaneidade).
Forma-se, então, o sujeito cuja sua condição essencial é o “devir”, ou seja, um
estado intermediário entre o “ser” e o “nada” racional, ou seja, “o que é” e “o que
não é” e, também, “o que vai ser” e “o que foi”, “o que é determinado para esse” e
“nesse mundo”, assim como “o que não deveria ser para esse” e “nesse mundo”.
O sujeito é a tendência para algo, assim com algo que é e que fica. Ele é a
transição interrompida do indivíduo para a condição de ator. Nesse sentido, ele é
“aquém” e “além” da condição de ator. “Aquém” ao sentido social ordenativo, que
clama pelo ator, e “além” no sentido da emergência da diversidade reprimida (“o
retorno do reprimido”), que busca intervir, seja pela forma de movimento social
organizado, seja por simples táticas “desviacionistas” de grupos informais
cotidianos. Na “condição de sujeito”, se observam, ao mesmo tempo, a luta pela
inserção nas condições sociais e a prevalência da autenticidade do “eu desejante”
individual e intersubjetivo.
167
Touraine (1994) verifica no sujeito um estado de imbricação entre id e
superego, que acaba estabelecendo a crítica da ordem das coisas. O sujeito é a
167
Na seção 2 observamos a construção do sujeito homossexual. Ao mesmo tempo que é uma
condição que se origina pelo repúdio social, ela acaba convergindo para a sociedade como uma
alteridade criada por identificações feitas pelo desenvolvimento do tema estabelecido pela
medicina e pela literatura do início do final do século XIX e início do século XX. O sujeito
homossexual é produto dessa identidade que, ao mesmo tempo contem o que é convergente e
divergente da sociedade, como uma posição meio-termo de uma alteridade que existe, mas não é
completamente aceita, embora apresente disposições de pertencimento a essa sociedade de
direito.
291
dialética entre ser (self) e não-ser que se encaminha para a emergência do eu,
que não significa a formação de um ideal do ego, mas um eu coletivo e político,
comprometido com o outro e com ênfase a critica social. Esse “eu-sujeito” é
dialético, pois contém tanto o mundo de desejo de consumo como o mundo da
razão e das regras, além da clareza quanto às condições que o oprimem e o
excluem. Isso funda a ênfase no devir da libertação. A libertação também é “devir”,
que ainda não é liberdade incondicional como uma libertação completa do “id”,
mas um estado fluído de libertação, travado no conflito e na ação política do dia-a-
dia.
O sujeito é atuante pelo/no lugar que o oprime e que, assim, estabelece as
margens possíveis ao devir de sua libertação. É no lugar, construído pelas
estratégias opressoras, que o sujeito desenvolve suas táticas como um movimento
no campo inimigo, como muito bem nos argumenta De Certeau (1994). É no lugar
cotidiano que se interpenetram as redes de condicionamentos opressores que
organizam a banalidade das relações sociais expressas, principalmente, pelos
pólos identificatórios racionalizados dos modelos “A=A” e “AB”. Esse modelo
funda o pensamento lógico baseado na classificação estereotipada das coisas
banais e é legitimado pelo aprendizado produzido pelas instituições sociais. Por
outro lado, é também no lugar cotidiano que táticas alteram essas identificações e
produzem outras racionalidades mais próximas da espontaneidade individual e
coletiva, nos quais emergem um pulular de contextos interativos do “aqui e agora”,
firmadas pelo simples prazer de “estar-junto”, pela sexualidade e pela livre
expressão estética sem propósitos racionais e funcionais. Essa espontaneidade
coletiva remete a mundos “imaginados” e “irracionais” nos quais a beleza das
coisas é a contemplada por sua forma pura, desprovida de função e de sentido
lógico. Embora esses contextos interativos ainda não estejam livres de culpa, eles
persistem, em virtude da incapacidade moderna de sobrepor a uma única
racionalidade - tida como um conjunto de verdades absolutas uma realidade em
que convivem tantas indefinições, instabilidades e ambigüidades que compõem e
natureza humana e o caráter “quente” (espontâneo, afetivo, sexual) de suas
relações próximas.
292
Como vimos, a modernização se constitui como redes que ativam pontos
que se conectam em linhas: pontos e linhas materiais, mas também instituições
sociais que agem para a integração da diversidade, principalmente pela instalação
das regras e dos saberes necessário a ordenação do cotidiano. Os processos de
cristalização das redes chocam-se na condição fluida que constitui a “fumaça” das
horizontalidades (locais). Toda rede de modernização traz consigo objetos e
valores verticais, que expressam as normas dos poderes repressores. Essas
redes desenvolvem os procedimentos cotidianos, os sistemas de vigilância e os
saberes (FOUCAULT, 1993) que vão engessando o sistema social e produzindo o
indivíduo como ator alienado de suas reais condições. Porém nessas redes, e em
cada ponto ativado e conectado, se evidencia a luta entre desejo e regra, entre
normalização e espontaneidade, entre valores universais e sensações produzidas
pelo contato “aqui e agora”. Tais redes “normatizadoras” nunca conseguiram dar
corpo sólido aos lugares, assim como tais lugares nunca se produziram como
totalidades estratégicas de poderes e condições universais.
Concomitante a isso, muitas espontaneidades podem aproveitar o fluxo de
ligação dessas redes e impregnar-se como um vírus que a perturba e que a
contamina por valores constituídos pelos próprios locais que se queria dominar.
Assim, contextos específicos fundam singularidades materiais e relacionais nos
quais se estabelece a dialética entre ordem e desvio na modernidade (COSTA,
2005a). É nessa perspectiva que se pode ver a cidade atual, ou seja, um conjunto
de construções fundadas em redes de modernização, mas que, por outro lado,
também se caracterizava por uma diversidade de microcontextos nos quais as
relações, os valores e a produção material não implicam em rígidas
formas/conteúdos surgidas pela operação de interações, funções e objetos
imersos numa universalidade urbana identificada pela ordem racional. A cidade
hoje se apresenta como uma diversidade de microcontextos relacionais que ora
respeitam as condições impostas como normais e como necessárias ao bom
funcionamento da sociedade e ora divergem dela.
Esses contextos, Velho (2004) identifica-os como “pockets of social
relations”, para os quais convergem indivíduos que, reprimidos em seus desejos e
293
incapazes de cumprir projetos sociais “normais”, agregam-se, buscando uma
felicidade coletiva momentânea, fugindo da normalidade repressora do sistema. E
quanto maior for a cidade, maiores em número serão seus contextos cujos
agregados sociais não remetem nem à norma, nem a desvios sociais, mas a
condições microterritoriais singularizadas pela qualidade do conflito entre desvio e
norma. Isso produz a diferença que pode remeter à formação do sujeito social.
São microterritorializações urbanas: produtos da dialética entre ordem e desvio na
modernidade (COSTA, 2005b), uma vez que territorializam, em pequenos lugares
do espaço urbano, essa contradição dialética.
Por outro lado, esses “mundos imaginados” vão ser abarcados pelas
relações de troca da sociedade capitalista, que, principalmente na última década
do século XX, se referem às alteridades culturais para instaurar sua dinâmica
flutuante e variável. As autenticidades desejantes, de tanto reprimidas pela
funcionalidade das instituições e dos papéis sociais, acabam convergindo à
desordem de consumo pela atenção ao prazer. Mundos imaginados culminam
para a felicidade sem propósitos racionais, mas que podem ser abarcados pelas
relações de troca e de consumo capitalista. Pelo viés do mercado, essas
imaginações acabam sendo exploradas pelas inovações de consumo. Aliás, cada
mercadoria atenta para uma cultura imaginada
168
que acaba sendo explorada pela
propaganda e pelos meios de comunicação em massa.
As culturas, antes imaginações locais como fugas à
racionalidade/funcionalidade/moralidade local, acabam sendo vistas como “nichos
de mercado” ou inovações consumidoras, estratégias do capitalismo, e o
extravasadas dos lugares, constituindo verticalidades que atingem a escala
mundial. E saindo dos lugares e atingindo a escala global pelos mecanismos de
comunicação, elas voltam a outros lugares e formam um mercado dialeticamente
168
As propagandas, os programas televisivos, os filmes e as novelas exploram muito as culturas
juvenis, principalmente mostrando saúde, beleza e uma diversidade de condições estéticas que
elas podem expressar. Por outro lado, outras culturas, a cada dia, vêm fazer parte dessa
diversidade, como, por exemplo, produtos com incremento estético de culturas regionais, assim
como outras que escapam à cultura juvenil, como, por exemplo, a atenção a outras faixas etárias,
a exploração de algumas estéticas de profissionais urbanos, as transposições com outras culturas
nacionais exteriores, entre outros.
294
fragmentado e globalizado que abarca contextos diversos, mas ligados a redes de
globalização de consumo.
Pela propaganda, esses mundos imaginados divulgam possibilidades de
obtenção de prazer que exigem múltiplos esforços individuais que devem atender
a essas múltiplas demandas de felicidade. Nesse sentido, esses mundos
imaginados na escala local tornam-se microcontextos de interação, mas na escala
global atingem relações intercontinentais das redes de comunicação que os ligam
de cidade em cidade.
As microterritorializações urbanas podem evidenciar formas de agregação
social muito tênues e instáveis. Também podem estar longe de constituírem forças
de transformação social, mas elas são núcleos de formação dos sujeitos políticos
pelas vivências que eles estabelecem nesses microterritórios de interação, nos
quais acumulam-se indignações e forças coletivas propensas à formação de
movimentos sociais.
Impregnados pela formação de microterritorializações de agregação
informal de desviantes sociais, construídas como lugares específicos cujas
interações acontecem em prol dos desejos reprimidos pela sociedade, podem
emergir sujeitos políticos contestadores da ordem, assim como a formação de
movimentos coletivos que procuram encaminhar processos políticos
transformadores da sociedade. Trata-se, por exemplo, do caso da emergência do
movimento político gay, nascido e organizado nos “guetos gays” urbanos.
Atualmente, a teoria queer vai implicar a negação a qualquer definição repressora
e vai buscar a relação da alteridade sem propósitos e sob a ótica da expressão
livre de sujeitos desejantes.
169
169
As representações sobre a homossexualidade criam uma condição de um sujeito homossexual,
assim como discursos que os identificam (comentados na seção 2). A partir dos anos de 1960, os
sujeitos homossexuais começam a lutar pela maior visualização social e por direitos iguais,
fazendo emergir um movimento político que se apega à divulgação de uma alteridade cultural
diferenciada: a cultura gay (ver marco de StoneWall Inn). O lema gay, então, passa ser “assumir-
se” e “sair do armário”; nesse sentido, incentivando a identificação com uma cultura gay, que
apresenta a marca dos comportamentos e das estéticas encontradas nas festas dos “guetos” gays.
No entanto, essa cultura gay, que se pretende unificada, é contestada após o surgimento da AIDS
(TREVISAN, 2000), tornando seus atributos questionados e repudiados por muitos indivíduos
homoeróticos. Longe de uma unidade cultural, as expressões ditas gays acabam sendo diversas,
tornando assim necessárioS outras concepções que as expliquem, como o conceito de
homoerotismo e a proposta da teoria Queer (conforme discutimos na seção 2).
295
Por esse viés, podemos compreender o espaço social como fruto das
contradições do processo de modernização. Ao contrário de um espaço social
ordenado, como queriam os poderes emergentes da modernidade, desde o
Iluminismo à racionalidade econômica, emerge sim um espaço social contraditório,
no qual múltiplos contextos específicos se produzem ora mais condizentes à
racionalidade funcional e material, servindo aos interesses que instaram a
universalidade de seus objetos e valores, ora totalmente discordantes e
identificados com a localidade espontânea, como condição de realidades objetivas
das relações “aqui e agora”. O espaço social está longe de constituir-se como um
sistema de valores e de objetos integrados condizentes com uma universalidade
racional, mas aproxima-se cada vez mais de uma “fumaça impregnada de
contextos interativos ou microterritorializações fundadas da dialética ordem e
desvio, inseridas nos processos de modernização.
É nesses contextos que se produzem os sujeitos políticos que identificam o
espaço social mais como produto do conflito e da diversidade do que pela ordem e
harmonia, como se fosse um resultado da integração racional de todos os atores
em prol da felicidade. Antes todos acreditavam na felicidade em longo prazo,
como era prometido pelos “profetas sociais”; no entanto, a promessa transformou-
se em sofrimento de muitos que agora buscam, em todo lugar, de forma
espontânea, a felicidade não alcançada.
5.6. LATOUR E OS HÍBRIDOS
Foucault (1988) nos fala que a grande ação da modernidade foi apreender
a complexidade dos fenômenos da realidade e encurralaá-los nos processos de
produção de saber. Heller (1991) argumenta sobre instituições/agentes produtores
(trabalho, moral, religião, política, ciência) de saberes, técnicas e funções, que vão
catalogando as atividades e as condições do homem ordinário, organizando as
estruturas da sociedade e seu espaço. Foucault (1988), quando trabalha a história
da sexualidade, por exemplo, nos mostra que nunca houve um silêncio sobre o
sexo, mas um sistema racional autoproduzido de identificações. Como condição
296
da evolução do pensamento racional médico, ocorreu justamente a possibilidade
de falar-se muito sobre sexo, o que produziu todo o sistema de discursos que vai
gerir a sexualidade.
Durante a “idade das trevas” e na passagem para a Idade Moderna, a
confissão torna-se instrumento essencial aos domínios da fortaleza da Igreja
Católica. Por esse instrumento forma-se os tabus morais rígidos que têm a idéia
de pecado como forma de repressão a certas práticas humanas espontâneas,
instaurando a culpa, o sofrimento psicológico e o castigo pelo atentado as leis de
Deus.
Com a progressiva secularização da sociedade, condição da passagem
para a modernidade, a racionalidade emerge como um “deus” mais tênue, que
organiza formas de vigilância mais delicadas, porém muito mais abrangedoras e
eficazes. Em relação ao sexo, as práticas da confissão continuam vinculadas a um
sistema de aparelhagens e procedimentos médicos e sanitaristas, que criam
múltiplos discursos, voltados à captação da diversidade e sua catalogação, entre
pólos de sanidade e de doença, de fragilidade e de vício, de equilíbrio e de
temperança.
Sistemas de vigilância objetivos, objetos técnicos médicos e seus
procedimentos, por exemplo, estabelecem o corpo material necessário à
organização do espaço social, assim como seus procedimentos instauraram as
condições do sistema de relações da sociedade. No entanto, como observamos
em Touraine (1994), em relação a essas condições repressivas, múltiplas
contradições acorrem. Ao contrário da fundação de uma organização moderna
rígida, temos, assim, processos de modernização em que seus produtos foram os
mais diversos possíveis. Contrárias aos instrumentos de produção de saberes,
múltiplas outras realidades são produzidas.
Na saga por catalogar e organizar os comportamentos humanos, ocorre,
um esforço de se fazer encaixar a realidade na teoria. Nesses “encaixes”, tantas
foram as exceções que, em vez de tornar padrões verdades universais, múltiplas
possibilidades de existência são cogitadas. Assim, são exaustivos os esforços de
tentar dar corpo racional à diversidade “esfumacenta” do quadro social. Isso,
297
porém, acaba produzindo uma contínua luta entre o que faz parte da expressão
dos indivíduos como seres espontâneos e movidos por desejos e prazeres
diversos e aquilo que expressam a lei e a razão abstrata e descontextualizada, as
quais o inerentes aos processos imanentes das instituições modernas. Isso cria
a condição e a existência de inúmeros sujeitos como indivíduos e coletividades
políticas de contestação aos sistemas de coerções sociais. Emergem, dos
esforços coercitivos de modernização, múltiplos fragmentos constituídos de
cotidianos, de territórios e de forças políticas que tornam o social mais fumaça”
desordenada do que cristal organizado.
Para Latour (1994), as condições sociais são tão múltiplas e contrastantes
que a idéia de sujeitos torna-se, então, insuficiente para dar conta de todos os
processos e realidades. Para o autor, os próprios sujeitos seriam condições de
racionalização e constituiriam uma mediação entre ordem e desejo, no entanto,
integrados a um sistema racional e a métodos teórico-práticos que apreendem a
diversidade sociopolítica em condições coercitivas que servem para reproduzir
poderes hegemônicos.
Pensamos que, de algum modo, formas de poder vinculadas às
necessidades de reprodução do capital acabam captando os processos de
transformação social dos sujeitos e instaurando instrumentos de sublimação em
prol da ordem dos sistemas dominantes. Talvez o quadro social não se
estabeleça, conforme Latour (1994), pelas leis universais das coisas e os direitos
imprescindíveis dos sujeitos. Essa concepção de sujeito possivelmente esteja
mais próxima a uma interferência do consumo capitalista, que possibilita mais a
emergência do desejo do que da ordem para a reprodução do capital.
Esses sujeitos são os vários “sujeitos burgueses” que acabam
diversificando setores sociais e conduzem, aos poucos, ao dito “reformismo
racional” do Estado e da Empresa em prol de seus desejos coletivos. Pela ação
“desejante” dos “sujeitos burgueses”, tendo o mercado como seus aliados e
adquirindo força política, são conduzidos outros processos produtores dos valores
e da ordem dos objetos sociais, os quais não mais contêm padrões universais
relativos a uma supra-racionalidade ordenadora, mas a outras diferentes e
298
distantes condições que “infestam” o quadro social de múltiplos lugares e múltiplos
contextos relacionais possíveis de existência.
Por isso, ganha força a idéia de que três mundos se interpenetram na
formação do sujeito:
a) o mundo da razão abstrata: algo externo ao indivíduo que ele deve tomar
como preceitos de vida;
b) o mundo do desejo do consumo: que estabelece tenuamente a sublimação
do ego, a ascensão consumista burguesa e seus poderes de alteração dos
preceitos racionais
c) o mundo das exclusões: cuja repressão não se estabelece pela culpa pela
divergência de um sistema racional abrangedor, mas pela não abrangência
e desinteresse desse sistema para com esse mundo. A esse sintoma alia-
se a exclusão dos sistemas “desejantes” consumistas, o que acaba
produzindo contextos sociais caóticos que ora estão acomodados e sem
mais perspectivas, ora são produtores de vários níveis de violência, que
transitam entre o que seria uma ação revolucionária transformadora e que
seriam uma violência movida pela necessidade voraz de consumo;
portanto, sublimada pelo narcisismo consumista.
Podemos observar essas interpenetrações a respeito do que seria a formação
do sujeito homossexual (COSTA, 2002 e 2003):
a) em primeiro momento, os desejos homoeróticos são castrados pela
sociedade, em virtude dos modelos racionais impostos, principalmente de
vida privada e de família. Emergem daí os pólos hetero e homossexual,
contendo a normalidade e o desvio sexual, respectivamente;
b) em segundo momento, vinculando-se a nichos de consumo, emerge talvez
um sujeito gay, cujas práticas se inserem na sociedade em virtude do
consumo capitalista mais vinculado ao desejo que à razão;
c) em terceiro momento, encontramos o homossexual que, de um lado, sofre
a repressão social condizente com o aspecto desviante da
homossexualidade, atributo coercitivo da sociedade racional, e, de outro,
299
não consegue vincular seus desejos aos sistemas de desejos consumistas
estabelecidos pelo mercado.
A respeito de indivíduos orientados sexualmente para o mesmo sexo,
podemos verificar vários contextos psíquicos e socioterritoriais. São eles:
a) psíquicos, que envolvem:
- sofrimento: manifestado por indivíduos que sofrem pela
idealização do ego e pelas condições impostas pelo superego,
vinculadas às condições sociais dos meios familiares e amigáveis
racionalizados pelos padrões sociais;
- consumismo: que se manifesta por indivíduos orientados para o
mesmo sexo que, por sua inserção a setores burgueses, mantêm
o ego sublimado pelo consumo (ego ideal narcísico vinculado ao
prazer promovido pelo mercado). Eles podem exercer, mesmo
que em lugares restritos, uma maior visualização social de sua
condição. Esses ainda se consideram pertencentes a padrões
sexuais polarizados (homossexual e heterossexual), e os
reforçam estabelecendo os elementos diferenciadores e
formadores de modelos de vida gay, principalmente vinculados ao
consumo. Por outro lado, podem vincular-se à diversidade
estética que circula nos meios de comunicação, negando a ação
contestadora que talvez o movimento gay possa atingir e
camuflando-se em outras estéticas que se distinguem dessa
proposta, tornando-as híbridas quanto aos valores e às
sensações que carregam. Por outro lado, ainda, a hibridização
estética, misto de mercado e de contestação, quanto às
definições repressoras, funda o movimento queer - como negação
das definições repressoras e busca da espontaneidade sem
explicação autoritária -, no qual o que importa são a mutação, o
improviso e a espontaneidade dos sujeitos e das interações entre
eles;
300
- exclusão: verificada pelas condições de indivíduos que
apresentam seus desejos homoeróticos reprimidos em contextos
vinculados a padrões rígidos (familiares e de trabalho) e também
em virtude de seu poder econômico, aquém das possibilidades de
inserção vinculada ao consumo destinado aos gays. Nesses
podemos observar duas possibilidades manifestação:
- a exacerbação do id inflando um ego reprimido e
promovendo atitudes de “fechação” ou extravazamento
daquele comportamento mais discriminado pelas
condições heteronormativas (BRITZMANN, 1999) da
sociedade; ou
- a formação do sujeito como agente político vinculado à
seriedade da discussão a respeito da real inserção do
sujeito homoerótico na sociedade, tornando-se agente
político e inserindo em grupos questionadores das
imposições abstratas e racionais, assim como das
possibilidades somente ligadas ao consumo e ao mercado.
b) socioterritoriais: que envolvem a realidade na qual ocorre a
territorialização das interações sociais vinculadas as práticas
homoeróticas, remetendo também aos contextos psíquicos:
- sofrimento e depressão: enxergamos o indivíduo homossexual
excluído de possibilidades de inserção social, encontrando, em
lugares específicos, ou microterritórios de encontros
homoeróticos, o sexo rápido que satisfaça seus desejos. Seus
desejos encontram-se desterritorializados no espaço social,
condição estratégica que reproduz a sociedade heterossexual;
porém, em momentos específicos, encontra brechas nas quais,
juntamente com outros, pode territorializar (efetivar em encontros
“aqui e agora”) esses desejos. As confusões mentais entre
determinantes de padrões de sexualidade da sociedade e a
espontaneidade homoerótica individual emergem conjuntamente
301
as necessidades de auto-promoção perante o cotidiano
competitivo, causando possíveis momentos depressivos em
relação à sexualidade que talvez possa indicar um elemento
depreciativo pessoal;
- consumismo: encontramos vários níveis socioterritoriais nos quais
podemos observar diversos contextos de sublimação do ego e
dos desejos homoeróticos pelas possibilidades colocadas pelo
consumo. Apresentam-se aqui as “comunidades-cabides”
(BAUMANN, 2003; COSTA, 2005), que são contextos territoriais
que proporcionam liberdade restrita a relações tidas como
desviantes dos padrões sociais, mas que, ao mesmo tempo, se
inserem em outros novos padrões aceitos, pois estão sendo
divulgados pela sociedade de consumo ou mercado gay
(PARKER, 2002). Aqui encontramos a idéia de “gueto gay”, mas
diversificado pela maior ou menor visualização social ou abertura
quanto ao exterior, e uma infinidade de microterritórios de
agregação homoerótica, constituindo lugares semiprivados ou
semipúblicos nos quais a agregação proporciona o consumo e a
reprodução do capital. Por um lado podemos encontrar
microterritórios restritos aos encontros gays nos quais se exige
um comportamento de definição identitária de seus elementos
(“sair do armário”); por outro lado, também podem ser
encontrados contextos de hibridização estética, em que desejos
homoeróticos e alguns atributos da cultura gay misturam-se com
outras sensações estéticas vistas e divulgadas pelos meios de
comunicação. Indivíduos homoeróticos tornam-se híbridos
culturais, sendo seus atributos gays de difícil identificação. Muitos
desses híbridos acabam não aceitando qualquer preceito
identificador, sabendo que as identificações acabam por
classificar os comportamentos humanos de forma autoritária
(teoria Queer);
302
- exclusão: aqui podemos encontrar ações “fechativas” perdidas no
meio do social repressor, muitas vezes como desabafos
psicológicos. Também podemos encontrar agregações informais
que se apropriam de lugares públicos, seja para saciar
rapidamente desejos reprimidos, seja como condição do “estar-
junto” por si só, “aqui e agora”, no sentido de encontrar os iguais
que também sofrem pela exclusão social, relacionada à
sociedade heterossexual, ou pela exclusão do próprio meio
homoerótico burguês, vinculado à sociedade como nicho de
consumo. Por outro lado, encontramos aqui agregações de
discussão política sobre a sociedade e a condição homossexual
relacionada a ela, fazendo emergir locais de ação política
preocupados com as questões sociais que envolvem os
homossexuais de forma geral. Grupos gays emergem como
sujeitos políticos que criticam a sociedade como um todo, assim
como aspectos vinculados à própria condição e cotidiano gays.
Chamamos atenção aqui para a concepção de “híbridos”, sugerida por
Latour (1994). Os híbridos estão, em algum momento, entre duas contradições
polares: a primeira seria da relação entre um pólo natureza e outro pólo
sociedade, e a segunda seria em relação às dimensões não-moderna e moderna.
Tais híbridos complexificam a idéia de sujeito, que se torna superada pela
condição que expressa uma forma mediana entre o estado de natureza e o estado
de sociedade, assim como a linha de mediação entre condições dita modernas e
não-modernas.
Segundo o autor, é impossível encurralar o que seriam sujeitos sociais em
uma condição entre desejo (coisa natural) e lei (regras sociais), assim como fazer
uma mediatriz de sujeitos entre o que é não-moderno (tradições locais) e o que é
moderno (racionalização universal).
170
O que o autor procura mostrar-nos é a
170
Daí o questionamento sobre a condição do sujeito homossexual. Ele não abarca a totalidade de
indivíduos orientados para o mesmo sexo e não explica todas suas expressões grupais. O
homoerotismo vem contribuir para o entendimento da diversidade de possibilidades estéticas, de
sentimento, de gostos e de comportamentos de indivíduos same sex oriented, assim como suas
303
complexidade que impregna a sociedade e o espaço social, evidenciando
contextos diversos que não são nem constituição moderna nem sua mediatriz,
mas que podem estar mais aquém e mais além da condição mediana dos sujeitos.
Talvez não existam contextos totalmente racionalizados pelas condições ditas
modernas, impregnados de atores sociais imersos em condições racionalizadas e
desempenhando funções, como em um filme de ficção científica, assim como
também não existam contextos que fogem totalmente das imposições alienantes
da sociedade racional. Nestes últimos - de algum modo, mesmo constituindo,
talvez, um grupo totalmente excluído ou totalmente contramoderno ou
revolucionário -, elementos ordenativos e discriminatórios, vinculados a uma
universalidade de padrões, costumes e práticas, acabam impregnando-se, em
algum momento, de suas relações localizadas.
Latour (1994), evidencia vários contextos possíveis de híbridos, que não
são nem natureza nem sociedade, nem modernos e nem não modernos ou
tradicionais. A natureza não é mais totalmente natureza, é híbrida, por ser
pensada humanamente. Também a sociedade não é mais totalmente sociedade,
uma vez que a modernização promoveu mais a diversidade do que a unificação
racional, em que muitos contextos tendem a afastar-se de padrões unificadores
modernos, ora por mecanismos de exclusão que ela mesma promove, ora pela
contestação generalizada da sua condição repressora.
Assim sendo, podemos observar que o espaço social é constituído por uma
dialética inserida no próprio processo de modernização, no qual se instaura um
eterno conflito entre ordem e desvio, entre desejo e lei, entre formalidade e
informalidade, entre condições regradas e condições espontâneas. Porém, em
virtude dessa dialética, vários contextos se tramam no tecido do espaço social. Em
relação ao espaço urbano, por exemplo, em vez da aparente homogeneização
paisagística de todas as cidades, um burburinho de agregações, mistos diversos
de funcionalidade e informalidade, produz vários microcontextos que mais
possibilidades cambiantes e instáveis, implicando também a observação da diversidade de formas
de agregação deles.
304
evidenciam o social como uma fumaça difusa, difícil de ser captada na sua
totalidade, do que um cristal organizado em rígidas partes e ligações.
De Certeau (1994) nos fala da impressão que temos ao ver a silhueta da
cidade de um ponto muito alto (no texto ele nos fala do World Trade Center, não
mais existente). De um ponto alto, a cidade parece um conjunto monótono e
homogêneo, porém o contraste se estabelece logo quando saímos para a
realidade interna, nos quais atividades diversas e uma multiplicidade de
diferenciações materiais e de agregações humanas torna muito complexa a
paisagem para ser entendida rapidamente.
O espaço social por si o se constitui num todo organizado
racionalmente no qual indivíduos alienados cumprem suas funções e interagem
como quinas. Por outro lado, essa condição constitui-se como uma matriz que
revela a realidade do ator social, alienado quanto a suas reais condições e
dobrado por uma complexa rede de micropoderes que organizam a objetividade
da vida. Latour (1994) nos faz pensar em dois conjuntos de pólos: o primeiro,
naturezas e sociedades; o segundo, das dimensões modernas e não-modernas.
Nesses pólos multiplicam-se híbridos diversos ou vários contextos da realidade.
Situações polares, na verdade, são condições racionais que mais serviram para
regrar que para captar a diversidade, mas o que realmente existe é a diversidade,
e ela é contextual: contextos psíquicos, sociais e territoriais múltiplos. Isso torna o
espaço social dialético, o qual deve ser captado, ao mesmo tempo, como
totalidade histórica, que organiza condições mestras (materialidades, saberes,
regras), assim como por seus contextos específicos, produtos da dialética entre
ordem e desvio na modernidade.
Velho (2004) nos fala das incapacidades de muitos indivíduos cumprirem os
projetos sociais destinados a eles (principalmente pela racionalização das
interações constituintes do espaço privado da família) e dos processos de fuga
pela busca de microcoletividades nos quais seus reais desejos possam ser
exercidos. Embora repressivo, o meio social possibilita vários contextos
interacionais de fuga, o que faz surgir microterritorializações que se parecem com
pequenas comunidades sentimentais, nos quais as agregações se estabelecem
305
pelo simples sentimento de “estar-junto” e compartilhar desejos e prazeres
mútuos. Maffesoli (2002) nos fala sobre esses processos e verifica mais um
mundo que se organiza por um conjunto de “tribos” e comunidades sentimentais
do que por uma organização racional. Bauman (2003), também verifica a
complexa formação de “comunidades-cabides”, nas quais os indivíduos, ao
entrarem nessas comunidades, momentâneas e esporádicas, despem-se dos
papéis sociais e convivem pelo prazer. Essa dialética entre ordem e desvio, lei e
espontaneidade também apresenta relação com as matrizes espaciais de Gomes
(2002): nomoespaço e genoespaço.
171
Nós, ao estudarmos as múltiplas agregações de indivíduos same sex
oriented (orientados para o mesmo sexo), verificamos que a condição
homossexual (COSTA, 2002), ao apresentar-se no contexto da modernidade
como desviante ao pólo “normal heterossexual”, na verdade, nos fornece uma
diversidade de expressões que somente podem ser apreendidas em seus
contextos de “microcomunitarização” ou microterritorialização. Assim verificamos
que diferentes expressões homoeróticas se produzem em diferentes
microterritorializações urbanas, e essas microterritorializações o produtos, em
primeiro lugar, de uma condição de desvio social, inerente à racionalidade
moderna; em segundo, a manifestações espontâneas de fuga às repressões
sociais. Muitos desses microcontextos territoriais urbanos também são captados
pelo mercado como nichos de consumo, possibilitando mais ainda sua existência,
mas outros se apresentam como tênues agregações imersas na fumaça do
espaço social, que se produzem de forma “subterrânea”, quase que
imperceptíveis, e que escapam de qualquer regramento, de qualquer instituição
social e de qualquer estratégia mercadológica.
171
A primeira remete à complexidade estrutural fundada em funções e papéis racionais que
organizam o espaço social e instauram os atores e o homem-particular como alienado e movido
por supracondições externas a ele. A segunda remete a condições quentes” que amenizam as
repressões sociais e instauram contextos comunitários informais e espontâneos nas entranhas do
espaço social, tornando-o mais difuso e dialético. O interessante é que essas matrizes não são
pólos, mas devem ser apreendidas de forma dialética nos vários contextos urbanos. Em cada
fragmento funcional ou informal, em cada espaço blico condicionado a racionalidade do mundo
do trabalho e das regras sociais, ou em cada agregação informal, como, por exemplo, um grupo de
adolescentes, essas matrizes devem ser instrumentos operacionais para o entendimento das
relações e das condições múltiplas do espaço social.
306
Seguindo a idéia de De Certeau (1994), indivíduos orientados para o
mesmo sexo produzem táticas que burlam, camufladamente, os condicionantes
repressores no espaço social e expressam com muita perspicácia os prazeres
homoeróticos fundando microagregações localizadas. Aos poucos, micropartes do
espaço urbano, uma esquina ou uma parte de um parque, constituem
microterritorializações de convívio homoerótico, estando a parte das possíveis
funções e relações aceitas como normais em meios modernos. A partir da
apreensão sobre essas agregações informais, o mercado (prestações de serviços)
se organiza oportunizando lugares semi-públicos (como bares, por exemplo) nos
quais se imbricam liberdade restrita e condicionantes de consumo, fundando uma
cultura: que pode ser a cultura gay ou outras tantas hibridizações nos quais os
desejos homoeróticos convergem.
A expansão desse mercado movimenta atores e os torna mais visíveis, pelo
vinculo aos meios de comunicação, os atributos de uma cultura gay que acaba
tornando-se banalizada como mais uma identidade e uma cultura possível em
meios urbanos. Porém, verificamos a ocorrência de somente uma maior
visualização de um “mundo à parte” e constituído por um conjunto de estereótipos
que mais singularizam do que completam a real inserção social dos desejos e
prazeres homoeróticos. A partir desse processo dialético, interações no interior
das microterritorializações homoeróticas ora apresentam-se totalmente
dicotômicas aos padrões sociais, ora reproduzem comportamentos da sociedade
repressora, como, por exemplo, a dicotomia entre ativo e passivo nas relações
sexuais e as polarizações entre bicha (efeminado) e bofe (“machão”). Esses los
são comuns aos comportamentos de uma cultura gay, mas também apresentam
variações múltiplas, assim como se constituem em instrumentos operacionais para
entender a diversidade microterritorial homoerótica na cidade.
Pensamos que essas “comunidades-cabides”, constituídas por híbridos
diversos, podem emergir como sujeitos coletivos em forma de movimentos sociais:
movimento dos gays, das mulheres, movimento hip-hop, movimento punk, dos
meninos de rua, até organizações comunitárias de bairros. Villasante (2002) nos
fala de redes sociais que se organizam entre clientelismos; portanto, ainda
307
regradas e ainda distantes de se constituírem como sujeitos, e emancipações,
sendo agentes transformadores sociais que conseguem fazer dialogar
singularidades emergentes e a totalidade organizacional da sociedade.
Villasante (2002) identifica como redes sociais os movimentos sindicais, os
movimentos de libertação de gênero e étnicos e os movimentos cidadão e
ambientalistas. Essas redes complexificam a realidade social, e suas ações
operam-se entre o clientelismo e a real emancipação como produtos do conflito
entre regramentos e libertação inseridos nos processos de modernização. Por
esse viés, chamamos atenção à necessidade da pesquisa no interior dessas redes
sociais, valorizando os aspectos territoriais das situações concretas, partir das
culturas locais, e identificando os processos que ora regram esses movimentos,
conduzindo a estagnação, ora ao avanço, no sentido da real transformação
social.
172
Observando a ação desses movimentos, o autor verifica uma história de
“picos” de contestação e de períodos de esvaziamento, nos quais são causados
pela dinâmica de embate entre forças locais e supra-poderes (o Estado, por
exemplo), que vinculam-se a processos de negociação inseridos nas divergências
entre táticas fundadas no interior das reivindicações locais e estratégias que
buscam a totalização e o regramento social na perspectiva dos supra-poderes. Os
períodos de estagnação apresentam como estados de sublimação do “ego desses
movimentos”, condicionando-os, muitas vezes por instrumentos clientelísticos, a
estratégias para equilíbrios de forças sociais e manutenção do status quo. Dessa
forma, se torna importante verificar condições que introduzem a estagnação dos
movimentos e os afastam da condição de sujeitos sociais, transformando-os em
mais uma diversidade em meio a tantas regradas no meio social difuso mas
ainda condicionado.
Villasante (2002) observa que a “cultura patriarcal” ou dominante está em
crise, tanto em termos políticos dos governos formais, como em relação à
172
Essa pesquisa gira em torno disso. Preocupamo-nos com a produção de uma teoria a respeito
dessa condição dialética impregnada na realidade das redes de relações constituídas por
indivíduos orientados para o mesmo sexo. A rede de relações deles implica territorialização, assim
como as imaginações geradas por elas dão constituição simbólica à existência desse grupo.
308
sociedade de consumo restrito. Nesse sentido, estão emergentes na sociedade
atual tanto os tabus e as repressões como todas as carências dos seres humanos.
Para o autor, ocorre não apenas está havendo uma maior fragmentação dentro
das classes sociais, a respeito da produção e do consumo, como também
profundas mundanças generacionais e ideológicas. Para as novas gerações
abrem-se novas experiências, como novas associações e novos movimentos, que
não levam tão em conta a unidade dos setores populares ou podem considera-la
burocrática. O autor observa, nesse sentido, que estamos vivendo “revoluções do
cotidiano”, ali onde mesmo se produzem as relações de dominação. Assim,
passamos de “movimentos comunitários” a “movimentos cidadãos” que pluralizam
os horizontes e observam uma cidade mais complexa. Nesse sentido, o próprio
autor amplia o conceito de sujeito, ao verificar que essas “identidades-sujeitos”
são construções muito provisórias e versáteis, lembrando as “tribos urbanas” de
Maffesoli (2002), e que elas estão propensas a fraturas de todos os tipos, como os
medos, as culpabilidades, as ideologias, etc.
Embora sejam diversificados, instáveis e versáteis, esses “quase-sujeitos”
(LATOUR, 1994) ou esses “movimentos rizomáticos ou em redes múltiplas”
(VILLASANTE, 2002), devemos tomá-los em suas relações internas e em seus
contatos com o interior (sendo ora determinados e corrompidos, ora criativos e
improvisadores, caminho a agentes de transformação), ou seja, “como, em cada
grupo, tratam de superar as carências básicas que os constituem, as proibições
culturais a seus desejos, tal como aprenderam a autoridade do pai, do mestre, do
Estado ou da TV”.
Nisso Bonnemaison (2002) nos ajuda ao falar do método “etnogeográfico”
que privilegia a relação de interinfluencia entre sujeito e objeto, no qual o objeto
não pode mais ser captado sem sua relação com o sujeito. Dessa forma, o autor
nos leva a entender o espaço geográfico a partir da compreensão do “outro”
social, ou seja, o necessário procedimento metodológico de “olhar com os olhos
dos outros” para conseguir inserir-se na complexidade das formas e conteúdos
dos lugares. O espaço social, nesse sentido, deve ser entendido por suas
múltiplas alteridades constitutivas de múltiplas culturas, o sendo somente uma
309
construção organizada de uma supracultura que instaura uma racionalidade
totalizadora, mais um espaço complexo e difuso quanto as quase-identidades-
sujeitos flexíveis que abriga, nos quais todos travam lutas cotidianas por suas
existências, assim como para suprir suas carências vinculadas a uma situação
organizacional externa a eles. O espaço social, tomando privilegiadamente o
espaço urbano, apresenta-se assim constituído de inúmeros contextos que
remetem às microterritorializações dessas diversidades, nos quais, a cada
fragmento microterritorial em formação, emerge um embate entre desejo e lei,
entre norma e espontaneidade. Cada microterritorialização, conforme nos dizia
Maffesoli (2002), representa uma situação dialética do “contra” e do “a favor” ao
social.
5.7. O ESPAÇO SOCIAL
Nossa análise indica uma condição singular do espaço social, cujos elos
que constituem sua existência advêm de conceitos originados pelas ciências
humanas modernas, como os conceitos de sociedade, natureza, comunidade e,
finalmente, de espaço e de tempo. As origens do espaço social contemporâneo
remontam às origens do período moderno, tendo como marcos a Revolução
Francesa
173
e a Revolução Industrial.
174
Não cabe aqui adentramos nas
especificidades desses eventos, mas apreendê-los como eventos que originaram
o mundo moderno, ou seja, a sociedade e as condições do espaço dessa
sociedade: o espaço social.
Sabemos que os principais fundamentos da construção da modernidade
(sociedade e espaço social modernos) estão representados pela emergência
econômica da burguesia européia e da passagem do modo de produção feudal
para o modo de produção capitalista comercial. Esse processo está vinculado ao
aparecimento dos espaços dos burgos ou das primeiras cidades comerciais, que
173
Essa Revolução é vista como marco da emergência da prática do racionalismo iluminista na
política e na organização da sociedade e do espaço social.
174
Conforme vemos em Lefebvre (2001), a industrialização significou uma ruptura com o urbano
pré-existente, produzindo uma cidade funcional e racional, na organização dos objetos e do
traçado, assim como nas atividades e nas relações sociais.
310
acabam evoluindo para as primeiras redes urbanas, que irão representar
concretamente o espaço regional de circulação e reprodução do capital burguês
emergente. Na continuidade do processo, essas redes irão lançar bases para a
monopolização do capital e para a fundação dos poderes políticos centralizados, a
partir da hierarquização da classe burguesa e seus investimentos nas monarquias
centralizadoras. O capital monopolizado tem como expressão territorial as cidades
e os seus domínios sobre áreas produtoras no campo. A construção das relações
comerciais na rede de cidade apresenta-se como fundamento da monopolização
dos poderes político e econômico e da organização territorial centralizada desses
poderes, sendo atributos fundamentais e emergência da organização dos Estados.
A classe burguesa emergente na cidade, aos poucos, vai
separando/diferenciando-se culturalmente daquelas relações estabelecidas entre
camponeses feudais. Assim, um dos seus principais investimentos inclui a
produção de um movimento de renovação cultural que toma conta do espaço das
cidades e das populações que as habitam. O morador da cidade acaba adquirindo
um conjunto de hábitos que os diferenciam do camponês. Esses hábitos incluem a
cortesia, o refinamento, as boas maneiras e as condições de comportamento em
espaço blico. Em primeiro momento separam-se as identidades do camponês e
do burguês urbano, em segundo momento tudo que não representa o meio da
cidade (culto, refinado, racional, moral), acaba sendo identificado como natural,
selvagem, perverso, rude e imoral.
Segundo Carvalho (2004), nos séculos XVI e XVII, ocorre um movimento de
separação entre o habitante da cidade e o habitante do campo, tido como rude e
ignorante. A natureza, segundo a autora, começa a ser odiada, e a cidade
começa a inspirar a evolução e o progresso de uma sociedade culta. Finalmente,
a partir do iluminismo, se estabelecem os fundamentos de um conhecimento
racional que legitima os discursos e as verdades dessa sociedade urbana culta.
Esse discurso vai contradizer todas as outras expressões que se afastam dele e
que o questionam. O Renascimento, o Iluminismo e as Revoluções Francesas e
Industrial acabam fundamentando uma sociedade regrada pela racionalidade
científica, pela moral, pelos bons costumes e por verdades absolutas que, a partir
311
de seus discursos, instauram inúmeras dicotomias que representam o “certo” e o
“errado”: como as dicotomias entre sociedade e natureza, entre civilizado e
selvagem, entre bom e perverso, entre homem e animal, entre cultivo e instinto. O
espaço, assim, acaba sendo produzido como fundamento concreto da sociedade
racional e da moral iluminista. A racionalidade moderna e a funcionalidade
capitalista fundam um espaço urbano que se apresenta separado de uma
invenção sobre a “natureza selvagem”, estando regrado por formas arquitetônicas
funcionais e por um conjunto de papéis instrumentais que compõe as
representações dos atores sociais. Isso vai compor os lugares públicos e privados
das representações e da moral social.
A Revolução Francesa irá solidificar a organização da sociedade e do
espaço social modernos. Por ela transita uma sociedade regrada pelo
autoritarismo absolutista para um regramento mais tênue das legitimações do
direito e dos discursos da moral e da ciência. A passagem para a organização da
administração pública vinculada à impessoalidade do poder torna fortificados os
imperativos das verdades morais e racionais que vão regrar as relações sociais.
As tipificações morais e instrumentais dos seres humanos, a partir de então, dão
corpo à organização racional dos corpos e das funções no espaço.
A liberdade, como um dos lemas da Revolução, também fora restringida
pela organização econômica do espaço social que determina relações
instrumentais e deslocamentos rotineiros a uma complexidade de funcionamento
racional. Emerge, assim, o chamado reformismo racional pós-Revolução
Francesa, de acordo com Vallerstein (1995), em que a liberdade torna-se vigiada
não mais por um poder visível e supremo ou um poder com “P” maiúsculo, como
argumenta Raffestin (1993), ou o poder do absolutista monárquico; mas por um
poder invisível e distribuído nas relações sociais e nos procedimentos abarcados
pelas inúmeras partes do espaço social. O poder com “p” minúsculo torna-se difícil
de ser questionado, pois impregna as relações sociais legitimadas por uma
complexa estrutura funcional e moral que organiza o cotidiano, que se naturaliza
como normalidade.
312
Por outro lado, a Revolução Francesa também libera forças contrárias à
lógica burguesa. As ações políticas, a partir dessa Revolução, preocupam-se
principalmente com a liberdade das ações capitalista e com a organização da
sociedade por instrumentos de sublimações cotidianas
175
dos homens comuns.
Em virtude da imposição de um discurso “esquizofrênico” sobre a “liberdade”,
também se produzem, por outro lado, ideais e movimentos que alteram os
caminhos previamente determinados. Como expressão disso, temos os
movimentos ocorridos no século XIX, concomitantes à emergência da sociedade
industrial. Além do movimento do proletariado e da densa compreensão e
contestação promovida pelos escritos de Marx, Carvalho (2002) nos evidencia a
movimento romântico desse século. Esse movimento testemunhou e contestou a
ordem burguesa como causa da degradação do ambiente e das relações sociais,
conseqüências das relações capitalistas de produção no decorrer da Revolução
Industrial.
Hobsbawn (1994) verifica, na segunda metade do culo XIX, a atenção
dada às reformas urbanas contra uma possível revolução social em virtude da
degradação ambiental e das péssimas condições de vida das primeiras cidades
inglesas. Essa experiência urbana degradante acaba produzindo um movimento
de valorização da natureza e do selvagem como elementos do movimento
romântico que, ao mesmo tempo, insere-se como uma reação ao capitalismo e
razão iluminista. A visão romântica desenvolve a idéia de preservação da
natureza, idealizando a necessidade de torná-la “intocada”, de acordo com
Carvalho (2002, p. 46). Também instaura a noção do indivíduo romântico que
representa “um entrosamento entre a individualidade orgânica da natureza e a
individualidade singular do homem” (CARVALHO, 2002, p. 49). Nesse sentido, o
movimento romântico se estabelece como oposto à visão iluminista, que preconiza
uma natureza universal, uniforme e racional.
175
A organização da rotina funcional implica não em uma repressão vertical dos indivíduos, mas
determinações tênues e impensadas como dominação, como funções que devem ser exercidas,
assim como preceitos morais que devem ser respeitados por todos. Aliás, os preceitos morais vão
impregnar as interações sociais e nas relações os atores se vigiam mutuamente.
313
O culo XIX, nesse sentido, vai apresentar-se complexo quanto aos
caminhos que o definem. Por um lado, as próprias reformas urbanas vão
estabelecer-se pelos veios da racionalidade científica. Daí as ações sanitaristas e
o planejamento urbano tecnocrático denunciados por Lefebvre (2001),
demonstrado pelo exemplo da Paris de Haussmann. Nesse mesmo século, os
avanços da medicina acabam inventando e denunciando as doenças e os
doentes.
Foucault (1988) verifica que, no século XIX, instaurou-se uma complexidade
de discursos que acabam falando sobre todas as expressões que consegue
capturar. Nessa complexidade criam-se inúmeras tipificações ou identidades
quanto aos comportamentos e expressões existentes, tanto na sociedade quanto
na natureza. Tanto a medicina quanto a literatura esforçam-se para capturar em
seus discursos a complexidade liberada pelo movimento romântico e estabelecem
uma variabilidade de condições polarizadas entre “certo” e “errado”, “são e
“doente”, “bom” e “perverso”, “civilizado” e “instintivo”.
Ao mesmo tempo em que se liberam expressões em virtude do movimento
de retorno a natureza, como as várias possibilidades de encontro com a
individualidade orgânica, o poder da racionalidade fracassa e recomeça
“tagarelando” múltiplos discursos para aprisionam da forma mais racional possível
essa organicidade. Foucault (1988), verifica isso a partir dos inúmeros discursos
produzidos sobre a sexualidade, contradizendo o silencio anterior que instaurava
uma única sexualidade possível: o da família burguesa. As obras médicas e
literárias inventam verdades sobre a sexualidade e a aprisiona em identidades que
forçam os indivíduos a se denunciarem socialmente. Essas idéias produzidas vão
criando subjetividades específicas que contém expressões tanto do movimento
romântico, de busca da individualidade orgânica, como do movimento racional,
das identificações produzidas pela literatura da época.
Os caminhos complexos do século XIX, produzidos pela Revolução
Francesa e pela Revolução Industrial, adentram o século XX como esforço de
forças dialéticas que ora buscam a organicidade humana, ora forçam a
racionalidade da sociedade. A sociedade e o espaço social vão ser produtos
314
dessa dialética e, por ela, poderes nascem e morrem com tempos a cada dia mais
efêmeros. Eventos como a Revolução Russa de 1917 e as duas Guerras Mundiais
apresentam-se como fundamentados por conflitos de poder que sinteticamente
expressam essa dialética. O campo contestador comunista emergente da
Revolução Francesa se transforma na racionalidade tecnocrática dos estados
socialistas, ou seja, produto dialético tanto do pensamento de comunitarismo e
solidariedade orgânica humana quanto de racionalidade objetivadora de
ordenamento dessa organicidade.
Na primeira metade do século XX, os projetos de reformismo racional
tomam forma através da tecnocracia planejadora do espaço social, nos países
socialistas, e no desenvolvimentismo, nos países de periferia. Todas as forças
contrárias às reformas racionais são violentamente reprimidas pelos autoritarismos
socialistas e pelas ditaduras militares em países capitalistas. No entanto, na
segunda metade desse século, outros eventos começam então a colocar em
xeque novamente a ordem racional repressiva.
Jameson (1992) observa que, nos anos 1960 o capitalismo torna-se mais
efetivamente globalizado, em virtude da evolução dos meios de comunicação e de
transportes. Os fenômenos da televisão e das migrações liberam energias sociais
que não compunham o conjunto de identidades que organizavam a sociedade
moderna. Além das identidades, como “encaixamentos” repressores, de acordo
com Giddens (2002), outras expressões acabam tornando-se visíveis e eclodem
como movimentos em todo o mundo. A evidência dessa diversidade é
acompanhada pelo reconhecimento de uma triste realidade: a degradação da vida
humana e seu ambiente, feitas por ele mesmo.
Vallerstein (1995) observa que, em contradição ao discurso de ordem e
evolução, começam a ser vistas inúmeras e insuportáveis desigualdades para as
quais não existiam resoluções dentro dos mecanismos das ações
modernizadoras. Torna-se evidente que o progresso, que tanto se almeja, é
privilégio de muitos poucos, que inúmeras desigualdades existem e que essas
desigualdades fazem aproximar exclusão econômica com exclusão cultural.
Assim, os anos 1960 acabam sendo palco de inúmeros movimentos sociais, cujo
315
marco é o movimento estudantil parisiense em 1968. O mundo o sólido da
modernidade socialista e desenvolvimentista começa a desmanchar-se nos anos
1960. Outros eventos acabam produzindo a imagem desse mundo instável,
imprevisível, ou seja, orgânico e não-condenado a uma ordem da racionalidade de
uma máquina. Os desastres ambientais são denunciados, a pobreza de muitos
também. A queda do padrão-ouro em 1971, os choques de petróleo de 1967, 1973
de 1979, a evidência das restrições e da “pequenice” humana com as imagens da
Terra do espaço em 1969, como nos fala Mendonça (1998); a crise do
desenvolvimentismo dos países da América Latina, nos anos 1980, entre outros
fatos, liberam forças de contestação e diferenciações de grupos sociais,
subjetividades e sentimentos por todos os cantos do mundo.
Carvalho (2002, p. 57) verifica que os anos 1960 culminam num
“questionamento dos valores da modernidade ocidental e pela busca de um novo
modo de organizar a vida individual e coletiva” (p. 57). Como expressão desse
questionamento, Santos (apud CARVALHO, 2002, p. 58) evidencia três grandes
dimensões de contraposição: a natureza, o selvagem e o Oriente. Em primeiro
momento, os movimentos ecologistas retornam sua atenção a natureza em
contraposição ao mundo moderno, urbano e industrial, feito como uma máquina
racionalmente organizada por engrenagem; em segundo momento, as atenções
voltam-se à existência de outras racionalidades (LEFF, 2003), que antes eram
aprisionadas como expressões condenáveis, tidas como selvagens, incultas e
ignorantes. Além do selvagem e da valorização da cultura Oriental, em
contraposição à racionalidade ocidental, ltiplos outros sujeitos culturais tomam
parte do discurso em forma de movimentos sociais, cujos elementos de expressão
retomam a atenção sobre a espontaneidade, sobre os instintos vitais, sobre a
diversidade cultural e sobre os sujeitos e seus desejos, como um processo de
contestação a norma e a repressão.
Observamos, então, que a atualidade é explicada pela dialética entre a
ordem moderna e a contestação dessa ordem. A sociedade moderna procura ser
instaurada mediante a racionalidade objetivadora “das luzes”; porém, como
conseqüência dessa mesma ordem repressora, vemos inúmeras contestações
316
que se aproximam da necessária expressão da organicidade humana presentes
nas diferentes subjetividades e grupos sociais. Essas espontaneidades humanas,
expressas por diferentes alteridades atualmente, não são puro desejo e puro
instinto orgânico, mas representam algum produto da dialética freudiana das
relações entre “id” e “superego”, como expressão tanto dos desejos como do
envolvimento dessas subjetividades com as instituições que compõem as forças e
as ordens modernas. Nesse sentido, defendemos que a sociedade moderna força
a organização das vidas das pessoas em um conjunto de instituições abstratas e
num espaço social ordenado; porém, nesse movimento, as contrafaces das
espontaneidades humanas vão produzindo táticas desviacionistas que, de acordo
com De Certeau (1994), culminam em múltiplas diversidades de expressão,
muitas delas resultados expressivos novos da dialética de que falamos.
Em relação a esses movimentos, não temos nem nunca tivemos uma
sociedade moderna organizada, mas sim a condição de um espaço social que não
se explica, mas que é expressão da diversidade e da complexidade de seus
fragmentos: conectados ou não, que se sobrepõem, justapõem-se em diferentes
escalas e paisagens e delimitam-se, efêmera e fluidamente em diferentes
definições de fronteira.
Para sistematizar essa concepção de espaço social. Vamos trabalhar, de
forma mais esquemática, as relações que ele contém, que são basicamente duas:
a relação sociedade/comunidade/natureza e a relação espaço/tempo.
5.7.1. Relação sociedade/comunidade/natureza
Como condição de produção do espaço social, evidenciamos outras
condições que se interpenetram de forma dialética e se explicam justamente pelas
contraposições conceituais para que funcionam. Essas condições são
conceituações presentes nas ciências humanas modernas e servem como
campos específicos de estudo que sistematizam los de entendimento sobre a
realidade. Para a explicação do espaço social, esses pólos, ao mesmo tempo,
devem ser aproximados, forçando a sua existência dialética, e complexificados em
317
múltiplas “condições-entre”, como faz Latour (1994) com os pólos sociedade e
natureza. Essas condições explicam-se pelos conceitos de sociedade, natureza e
comunidade.
5.7.1.1. Sociedade
O conhecimento do todo complexo da sociedade, para Simmel (1973, p.
67), se realiza com conteúdos individuais concretos nos quais cada um sabe que o
outro está ligado a ele. A formação da sociedade está relacionada, para Bobbio
(1987), com o ordenamento político em território ampliado, que irá representar a
dissolução/integração das comunidades primitivas isoladas. A produção da
sociedade consiste, primordialmente, na ligação das diferenças e na integração
delas como partes do todo.
Em primeiro momento, esse processo faz ligar, na visão de Heidrich (2004),
comunidades territoriais não integradas num território ampliado. Historicamente,
esse processo apresenta etapas, como, por exemplo, os Impérios territoriais na
Antiguidade; a ação integradora da Igreja Católica, na Idade Média; o Estado
Absolutista, na Renascença; e o Estado Moderno, pós-Revolução Francesa. A
integração plena de comunidades locais evolui com o processo de industrialização
e urbanização moderna, principalmente vinculado ao planejamento estatal
tecnocrático e racionalizador, que efetiva a ligação de todas as partes dos
territórios ampliados em formação, pela evolução da imprensa, desde Guttemberg,
e pela implementação de instituições que irão produzir o sentimento de
pertencimento em uma comunidade (ampliada) imaginada, conforme nos mostra
Anderson (1989).
Tem muito a ver com esse processo a evolução e a unificação dos sistemas
técnicos, que se dáo pelo planejamento Estatal em território nacional e evoluem
para a formação das redes mundiais de produção do meio-técnico-científico-
informacional (SANTOS, 1997). Pela instauração desses sistemas técnicos,
fazendo ligar todos os cantos do território ampliado, irão fluir inovações que
constituirão o aprendizado de “o que fazer”, “como fazer” e “por que fazer”. Isso
318
acaba tornando cada indivíduo ligado a um todo complexo de funções em que
cada um sabe que depende do outro para a inserção e a sobrevivência nesse
conjunto.
176
A instauração objetiva da sociedade moderna como sendo a
organização das redes de inovação, acaba produzindo uma ordem racional das
“coisas” e das relações. A instauração dos objetos espaciais acaba vindo
acompanhada de instituições sociais que apreendem parcelas humanas em
conjuntos relacionais regidos por regras que compõem “o que fazer”, “como fazer”
e “por que fazer”. As redes de inovação acabam assim produzindo o território, pois
são instrumentos distributivos que fundam e organizam os objetos espaciais e a
vida social composta nesses objetos espaciais, ou seja, organizam os indivíduos
pela apreensão de um conjunto de conhecimentos, procedimentos e funções.
Além disso, toda essa objetividade (técnicas, conhecimentos,
procedimentos, funções distribuídas em redes de inovações ao território,
compostas por objetos espaciais e instituições sociais que definem “o fazer”)
torna-se subjetivada pelos indivíduos, conforme Berger e Luckmann (1985),
fundando-os como identidades envolvidas no complexo social. Essas identidades,
como vemos em Giddens (2002), são “encaixes” trabalhados subjetivamente pelos
indivíduos que acompanham a objetividade do sistema de organização da
sociedade, compostas pelos objetos e procedimentos que devem ser exercidos no
espaço social. Assim, a rede, conforme Santos (1997, p. 210), serve como
suporte corpóreo do cotidiano.
Assim, a sociedade está vinculada a essa evolução da organização do
Estado Moderno como unificador/integrador da diversidade comunitária. Nesse
sentido, o fundamento da sociedade será a construção de um espaço social
unificado, homogeneizado e organizado pelas redes de inovação, que fundam e
distribuem os elementos do complexo social: conhecimentos, normas, instituições
sociais, técnicas e objetos espaciais. O espaço social torna-se funcional, regrado
pelo modo de produção capitalista e suas instituições sociais: composto por
176
Isso vai dar-se : pela organização da burocracia Estatal; pela divisão territorial do trabalho;
pelas políticas de rateamento de atribuições (direitos e deveres) às regiões; pela organização das
vantagens comparativas de produção; pela incentivo/distribuição dos mercados consumidores;
pela organização das funções do espaço; desde a escala do Estado, perpassando as regiões, as
redes de cidades e a estrutura dos diferentes espaços funcionais no campo e na cidade.
319
sistemas de objetos espaciais e procedimentos cotidianos fundados por essas
redes. Os indivíduos acabam, assim, apreendendo toda essa externalidade e
compondo suas subjetividades pela necessária participação na sociedade e
movimentos pelo espaço social. O externo da sociedade é naturalizado como
normalidade, e o espaço social torna-se “banal” (SANTOS, 1997), um conjunto de
objetos e procedimentos que devem ser exercidos e apreendidos no decorrer da
existência.
O homem comum, então, está condicionado por essa existência externa da
sociedade e pela organização de um espaço social homogeneizado e funcional. A
relação indivíduo e sociedade, assim, está condicionada a uma pressão
organizadora e objetivadora das relações sociais que fundam as condições
individuais. A sociedade assim se constitui como um corpo cultural supra-orgânico
(DUNCAN, 2004) que imprime suas condições ao indivíduo, formando-os como
partes elementares do funcionamento do todo. Ela se sobrepõe ao indivíduo como
um sintoma que representa a “vontade geral” (ROUSSEAU, 1987) de toda a
população que compõe essa grande comunidade imaginária (Anderson, 1989).
A idéia de uma comunidade imaginária evidencia a integração de todas as
comunidades que compõem essa sociedade e que apresentam um destino
comum. Esse sistema imaginário é condição das redes que homogeneizam e
organizam o espaço social (aqui compreendido primeiramente como organização
da sociedade e do Estado-Nação, mas culminando na construção de uma
“sociedade imaginária-mundo” no contexto da globalização). As redes de
comunicação inferem na qualificação e apreensão dos elementos constituintes
dessa “vontade geral”
177
e tendem a construir um corpo social unificado e
condicionado pelas tramas de poderes que a compõe.
A sociedade, então, se explica pela formação de redes de inovações,
objetos espaciais e conhecimentos que abarcam todo o ecúmeno e produzem
uma homogeneização de “o que fazer”, “como fazer” e “por que fazer” dos
177
Vista aqui como um conjunto de ideologias e vontades práticas tornado correto a todos
por mecanismos lingüísticos que compõe os conhecimentos e as informações disseminadas e que
convencem os indivíduos envolvidos na sociedade.
320
indivíduos. Nesse sentido, para Heller (1991), a sociedade é uma externalidade
que reprime e orienta o indivíduo, colocando-o num cotidiano banalizado e
naturalizado de funções, práticas e conhecimentos abstratos tidos como verdades
e sintomas corretos de existência. A autora, então, critica o conceito de indivíduo e
argumenta que sua relação com a sociedade se dá pela alienação, que o torna um
homem-particularizado no complexo da sociedade que o aliena. A individuação
seria a possibilidade de agregação à práxis social e de elevação pessoal aos
parâmetros da totalidade da sociedade, influindo na construção da realidade. O
homem-particular, assim, vive alienado numa complexidade social que não se
apropria, mas torna apropriado por ela. Essa é a essência da vida cotidiana, ou
seja, a condição particularizada e alienada do indivíduo, que se pelos sistemas
de conhecimentos e procedimentos encontrados nas instituições sociais.
Na sociedade, o homem-particular, numa visão interacionista, torna-se ator
das representações e dos contextos diferenciados de interação social. Esse
sistema de atuações é organizado por uma moral das interações em contextos
relacionais específicos, todos fundados nas instituições sociais. Goffmann (1996)
analisa a sociedade dos atores e representações sociais como um conjunto de
papéis que os indivíduos devem se adequar a desempenhar. De todos esses
papéis, podem apreender-se os desvios, que devem ser reorganizados em
instituições proveitosas a organização social. A condição dos atores sociais e dos
desviantes remonta à idéia de sociedade organizada por procedimentos e
conhecimentos que imprimem “o fazer” do indivíduo, tornando-o alienado pela
incapacidade de pensar e de agir de acordo com o “si próprio”. O próprio “si”,
assim, já é condição subjetivada da objetividade social.
Nessa discussão, a sociedade é representada por um conjunto de objetos,
procedimentos e instituições sociais, que fundam a condição de homem-particular
alienado, ou ator que cumpre os papéis normalizados e que contribui para o
funcionamento desse todo e manutenção do status quo. O espaço social, então,
não deve ser entendido como a parte da sociedade, mas construção material dos
objetos espaciais, condicionado e condicionante das instituições sociais, que
abarcam todo um complexo de conhecimentos definidos por essas instituições. O
321
espaço social, nessa visão, é a organização social concreta que condiciona os
indivíduos na condição de homens-particulares e/ou atores sociais.
5.7.1.2. Natureza
Simmel (1974, p. 64) nos fala sobre a pergunta de Kant a respeito da
natureza: “Como é possível natureza? Isto é, que condições são necessárias para
que exista natureza?”. Assim, “para Kant, a natureza é uma maneira determinada
de conhecimento, uma imagem do mundo produzida por nossas categorias
cognoscitivas e nascidas nestas”.
A natureza, desse modo, é uma categoria produzida como uma invenção da
sociedade, cujos atores sociais se colocam fora dela para contemplá-la. Nesse
sentido, a sociedade se separa da natureza, ao passo que existe uma idéia de
unidade dos indivíduos com a sociedade, sendo atores dentro de uma
organização social e imaginando-se ligados a um todo comum, e clara é a
separação de tudo que está fora dessa sociedade e que constitui a imagem da
natureza. A sociedade, assim, não é contemplada; ela é exercida pelos atores
junto às instituições sociais em um cotidiano determinado por regras e
conhecimentos. Como já vimos, esse processo se estabelece principalmente pelos
movimentos culturais do Renascimento e do Iluminismo que instauram um
conjunto de novos conhecimentos e produzem uma única racionalidade correta
representada pela racionalidade científica ocidental. Além disso, a separação da
sociedade e da natureza é necessária, em primeiro lugar, para separar o civilizado
do selvagem e o homem culto urbano do camponês rústico.
A sociedade moderna é a representação da moral civilizada encontrada na
cidade européia e de um conjunto de idéias/conhecimentos verdadeiros
disseminados por ela. Por esses pólos de geração de conhecimento do mundo
civilizado, vão bifurcando-se, por meio de redes, novos conhecimento, técnicas e
objetos que tenderão - de forma vertical, rígida e, muitas vezes, violenta a
organizar a natureza contemplada como selvagem, inculta, perversa, feia e
desorganizada. Instaura-se uma polarização entre sociedade e natureza para a
322
dominação de tudo que fuja à invenção da sociedade e para apropriação dos
recursos em prol das exigências econômicas. Essa dominação vai ser possível
pela instauração das linhas das redes de disseminação dos conhecimentos, de
técnicas, de objetos e de instituições da sociedade moderna, dominada pela
racionalidade científica e pela moralidade burguesa.
No movimento de mundialização da sociedade moderna européia, desde as
grandes navegações, um constante encontro entre um “mundo natural” e um
conjunto de comunidades selvagens que devese colocar-se como cristãos e
cultos, ou seja, formar-se como sociedade organizada, vivendo e produzindo como
tal. Nesse processo, todos os outros, aquém do “homem-branco-europeu-burguês-
civilizado”, são selvagens e pertencem ao pólo natureza. Em primeiro momento,
são vistos como “recursos naturais” semelhança de eqüinos e de bovinos) e,
em segundo momento, propensos a serem “cultivados” (educados, ordenados
como atores de uma sociedade que deveria ser construída).
Nesse movimento de dominação, desde o habitante camponês europeu, até
o selvagem dos novos mundos, vão-se produzindo vários “eles” que se
diferenciam do “nós”, que constitui o homem civilizado europeu, culto e urbano.
Para Latour (1994), isso se torna outra grande separação moderna. Em primeiro
momento, a separação entre sociedade e natureza e, em segundo momento, uma
separação entre sociedade (nós) e sociedades-naturezas (eles). O interessante
nesse processo é que a força de modernização (produção de sociedades
racionais e morais modernas) dissemina múltiplos “mistos”, “sociedades-
naturezas”, tornando a sociedade não mais condizente com os atributos de
racionalidade e moralidade ditas modernas, mas diversificada por inúmeros
“híbridos” (LATOUR , 1994).
Esses híbridos são resultado da contestação à dominação moderna ou a
seus vários “níveis” de hesitação de instauração. A modernização se disseminou
em redes que não conseguiem agregar de forma homogênea todos os espaços,
por outro lado, por ser vertical e representar formas de dominação, encontra
muitos movimentos de contestação. Além disso, por meio das próprias redes, tais
“híbridos” podem circular pelos caminhos de modernização e atingir os próprios
323
centros modernos (pelas migrações), fundando não mais uma sociedade
ordenada e organizada, mediante parâmetros identitários dos atores sociais, mas
impregnada de forças identitárias o totalmente teorizadas pela racionalidade
científica e não compostas como formas morais condizentes com as instituições
sociais. Esses “híbridos”, principalmente pela expansão da medicina e da literatura
do século XIX, começam a ser identificados em relação a ltiplas situações e
tipificações. Além do pólo sociedade e natureza, outros pólos se produzem como
situações “meio” entre o que é natural (desejos, espontaneidade, instinto, prazer)
e o que é sociedade (ordem, moral, razão, temperança, equilíbrio, função),
fundando os diferentes sujeitos sociais (TOURAINE, 1994).
Carvalho (2002) verifica que o movimento romântico de retorno à natureza,
em virtude da evidência da degradação social e ambiental da sociedade, significa
a valorização do rústico, do camponês e do selvagem. Isso acaba “explodindo”
através dos movimentos ecológicos, nos anos 1960, colocando a natureza e todos
os “híbridos sociedade-natureza” como necessários ao questionamento da
sociedade degradada. Ocorre, então, uma valorização dos sujeitos “inferiores”,
antes “fora/desviantes” da sociedade, por serem mais instinto e puro desejo do
que racionalidade e moral modernas. Esses sujeitos são condições “fora” e
“contra” a sociedade, mas vão compor um espaço social que se evidencia pela
multiplicação de “espaços dos sujeitos”, tornando-o complexo pela configuração
territorial múltipla, mutante e orgânica.
5.7.1.3. Comunidade
Simmel (1974, p. 76) observa que a relação entre sociedade e indivíduo
apresenta-se por uma relação dialética entre interioridade e exterioridade, e é
essa relação que define a posição unitária do homem e dos diferentes grupos
sociais na atualidade. Essa idéia aponta para a definição de sujeito de Touraine
(1994), como uma “condição-meio”, produto tanto dos determinantes de ordem da
sociedade, como entidade supra-orgânica que imprime suas condições aos
indivíduos, como as “personalidades desejantes” que afloram como forças não-
324
teorizadas (identificadas/tipificadas) pela racionalidade e moral social modernas. O
sujeito, para Simmel, é um “ser para sociedade” e um “ser para si mesmo”. Nesse
sentido, o autor verifica que a sociedade é um produto de elementos desiguais,
embora a condição desse termo esteja condicionada a um conjunto conceitual que
concebe a idéia de organização racional dos seres em seus espaços e em suas
funções e a um complexo moral, de identidade e de conhecimentos sobre “o que
fazer”, “como fazer” e “por que fazer”, que se orientam, desde as luzes, para
ordem social e para o progresso.
Defendemos a idéia não de uma sociedade desigual, pois ela define-se por
essa construção supra-orgânica das leis genéricas sobre a ordem relacional dos
seres, mas a produção de um espaço social desigual, produto da dialética entre
ordem e desvios na modernidade. A sociedade se funda, conforme Simmel (1974,
p. 73) argumenta, “quando os homens não são mais que sujeitos de
compensações entre prestação e contra-prestação, regidas por normas objetivas,
e tudo que não pertença a esta pura objetividade desaparece delas”. Na
sociedade, a função tenta esgotar por completo a realidade individual, produzindo
uma realidade objetiva do trabalho e das instituições sociais organizadas pela
racionalidade da ordem.
Por outro lado, além de meros cumpridores de prestações, os indivíduos se
vêem em posições e em instituições sociais, não se vendo como indivíduos
isolados, mas a partir de “véus” que os colocam como partes integrantes de uma
comunidade de profissão ou de interesse, como colegas ou companheiros, como
elemento de uma comunidade particular da generalidade da sociedade. Por essa
situação comunitária, o indivíduo pode fundar elementos “do agir para si”, pois “o
agir para si”, numa comunidade de interesses, torna-se o fundamento de agir para
os colegas e correligionários. Aliás, a “comunidade de interesses” só existe porque
representa a comunhão mútuas dos interesses de “agir para si”, e não em relação
a uma objetividade por onde as individualidades desaparecem. Essa é a
contradição presente na sociedade, pois parte do indivíduo não se orienta para a
sociedade, mas para si, o que funda múltiplas comunidades de interesses com
relações orgânicas orientadas para o indivíduo e não para a sociedade. Essas
325
comunidades não são sociedade, mas, de acordo com Simmel (1974, p. 71), “algo
que a sociedade deve deixar espaço, quer queira, quer não”.
Nesse sentido, o que temos é, ao mesmo tempo, uma sociedade como um
conjunto de conhecimento e ordens supra-orgânicas racionalizadas e um espaço
social em que a sociedade deixa “espaço” para a ação dos indivíduos agirem para
si, cujos “espaços” representam um pulular de “microcomunidades de interesses
territorializadas”. O espaço social não é sociedade e sim a relação dialética
estabelecida a ação dos indivíduos agindo para a sociedade, desaparecendo nela,
a agindo para seus interesses, formando tais comunidades de interesses nas
quais afloram os sujeitos sociais. Assim, ele se constitui não como um todo
homogêneo, mas como um complexo de fragmentos que aparecem em múltiplas
escalas conectas ou não, nos quais cada fragmento é a microterritorialização
dessas microcomunidades, na qual aparecem e fundam os sujeitos sociais, misto
da ordem moral e racional e da irracionalidade dos desejos individuais.
Por esse viés, o espaço social apresenta-se não como uma totalidade
organizada como próximo dos objetivos da sociedade moderna e de suas
definições culturais e objetivas supra-orgânicas. O espaço social apresenta-se
pela diversidade orgânica fundada nas múltiplas culturas dos sujeitos sociais em
constante movimento e transformação. É por isso que ele se apresenta pelas
múltiplas microterritorializações dos fundamentos da relação entre id, ego e
superego (FREUD, 1974), nos quais essa relação produz os sujeitos sociais
(TOURAINE, 1994), que estão, ao mesmo tempo, “contra” e “a favor” da
sociedade (MAFFESSOLI, 2002). Da relação freudiana emergem inúmeros
sujeitos que produzem comunidades de interesse ou comunidades mais afetivas
dos “estar-junto por si ”, mesmo as mais efêmeras, como as “comunidades-
cabides” de Baumann (2003), mesmo as mais duradouras, como as constituintes
dos movimentos sociais organizados. Essas comunidades dos sujeitos, como
“condições-meio” do “agir para si e para a sociedade”, microterritorializam-se no
espaço regional e no espaço urbano, diversificando as configurações do espaço
social.
326
Além e aquém das condições do sujeito, Latour (1994) nos fala dos
“híbridos” ou “quase-objetos”. Latour verifica que a condição sujeito é somente um
“ponto mediando” do caminho que liga os pólos sociedade e natureza. O sujeito é
a expressão conjunta tanto do pólo sociedade como do pólo natureza, pois o
sujeito é a espontaneidade, o desejo e o instinto do indivíduo, que está aquém da
sociedade e aproxima-se da natureza. Para o autor, essas “condições-meios”
também podem convergir para os propósitos teóricos e identitários modernos,
servindo também para organizar o corpo social que se apresenta tão imprevisível.
Diversas condições apresentam-se como inúmeros níveis ou nuanças de
sociedade e de natureza. Esses “híbridos” diversos apresentam-se em diferentes
estados e tempos de formação, e suas culturas são muito pouco rígidas e
constantemente mutantes. Essas culturas ainda sofrem os impactos de uma
modernização que ainda continua seu trabalho de “espalhamento” de um senso de
vida e de uma ordem, assim como, em relação a esse processo, podem surgir
imprevisíveis movimentos de contestação que não culmina num formato pronto
como se pensa sobre os sujeitos. Nesse sentido, o espaço social não pode ser
pensado também como o espaço dos sujeitos, da sociedade e da natureza, mas
como múltiplas condições territoriais nas quais “híbridos” diversos se expressam.
A existência desses híbridos é condição da sociedade moderna, que
estabelece a dicotomia da natureza, força a normatização da vida dos homens e,
ao mesmo tempo, é produto de uma instauração incompleta dessa modernidade e
de suas hesitações quanto a determinados lugares. Esses múltiplos híbridos são
representantes de movimentos de contestação e de busca do sentido individual
nas múltiplas comunidades de interesse e de “estar-junto por si só”.
5.7.2. Relação espaço/tempo
Grande parte da história do espaço moderno mundial está relacionada ao
processo de modernização/ocidentalização do mundo. Santos (1999) observa que
a história do mundo representa a história da diminuição dos sistemas técnicos, no
sentido que, desde a Antiguidade e culminando na expansão européia, durante o
327
mercantilismo, o mundo converge para uma unicidade técnica. Os fundamentos
dessa história estão vinculados à disseminação, pela dominação e repressão, de
sistemas de objetos e sistemas de ações que irão construir um espaço geográfico
globalizado. Esses sistemas de ações representam um conjunto de
conhecimentos que determinam “o que fazer”, “como fazer” e por que fazer” por
todas as regiões mundiais. A cnica única é representada pelos métodos,
materiais e instrumentais de se fazer trabalho, além de todas as relações sociais e
institucionais que as envolvem e as proporcionam.
Digamos que o mundo tende, a partir dessa diminuição dos sistemas
técnicos, a uma unificação espaço-tempo. Para Harvey (1996), o que ocorre é
uma contração local de um espaço-tempo que se globaliza, tornando os lugares
do mundo unificados por uma condição territorial e histórica que remete ao
processo de ocidentalização de um sistema cultural e de uma sociedade moderna
baseada no modo de produção capitalista, assim como seus sistemas técnicos.
Giddens (1991) observa a difusão de um espaço-tempo que parte de um
nível local e se expande para a escala global. Nesse sentido, o que podemos
perceber é que as configurações espaciais e o tempo histórico tende a unificar-se
nos lugares do mundo e essa unificação configura o que chamamos de
globalização ou instauração de um “meio-técnico-científico-informacional”
(SANTOS, 1999), para quem esse meio está representado pela unicidadecnica,
pela informação instantânea, pela convergência dos momentos em/para todos os
lugares, produzindo a sensação de história e de presente único, e pela
universalização da mais-valia, como homogeneização dos sentidos e das relações
de classes inseridas no modo de produção capitalista.
No entanto, Benko (1996) observa que, nesses processos de unificação dos
sistemas de objetos, ações e cnicas, se estabelecem, de forma contraditória e
combinada”, em nível mundial. Santos (1999) também observa que, embora exista
uma tendência à unificação cnica, que condiciona a formação de um espaço-
tempo mundial, os “encaixes” (Giddens, 2002) espaço-temporais são
singularizados e representativos por algum ponto na linha histórica que unifica o
mundo. Esses “pontos” são representativos de múltiplos lugares que se
328
configuram diferentemente, produzindo múltiplas condições espaço-tempo que se
classificam em vários níveis de atrasado ou de avançado
178
numa pretensa na
linha histórica mundial comum.
A unificação se pela produção de redes que proporcionam o
“alongamento” dos lugares e sua “compressão” em outros. O que podemos
verificar, conforme argumenta Santos (1999), é a “exacerbação de verticalidades”
nesse processo, em que os lugares sempre estão adaptando-se as novas normas
e formas. As redes aqui são verticalidades disseminadas por centros de bifurcação
de conhecimento e de ordens mundiais, inseridos na atual fase de extrema
monopolização do capital e do poder mundial.
Na visão de Musso (2004), a rede representa a reprodução do poder
vertical que se dissemina por fluxos (linhas, redes, caminhos) e os lugares que se
condicionam a ela. A rede irá organizar e tornar rígida e mais previsível as
relações e o lugar concreto, tornando sólida a “esfumacenta desorganização” e
imprevisibilidade desses lugares.
Como vimos, a rede instaura formas e normas aos lugares. No entanto,
Benko (1996) verifica que essas “coordenações” representam-se pelas
desigualdades em seus programas e pela coordenação conflituosa, o que
singulariza lugares e segmentos sociais em diversas escalas. Massey (apud
HAESBAERT, 2005) observa isso também, argumentando que, além da
compressão espaço-tempo existem distintas “geometrias de poder” nas quais a
compressão se multiplica pelas desigualdades de suas configurações, de sua
origem e de sua distribuição.
Haesbaert (2001) verifica que o fenômeno da globalização não pode ser
entendido em separado do fenômeno da fragmentação, que pode ser
compreendida por duas formas: a fragmentação inclusiva ou integradora e a
fragmentação excludente ou desintegradora. A primeira remete à organização das
redes mundiais e às configurações desiguais dos lugares que ela conecta, em
178
Ao mesmo tempo em que, em virtude da unicidade técnica e da ocidentalização cultural do
mundo, podemos verificar lugares que estão mais além e outros mais aquém dessa unificação
mundial. Os próprios lugares reinventam-se como singularidades junto aos processos verticais que
tendem a abarca-los. Nesse sentido, o próprio projeto de unificação é dialético frente às múltiplas
condições de contestação e de aproveitamentos das especificidades dos lugares.
329
benefício da diversificação da produção e do consumo capitalistas. A segunda
remete as forças contrárias que se travam no processo dialético
unificação/fragmentação, como os movimentos de contestação gerados pelas
fragmentações dos excluídos desse processo ou os múltiplos aglomerados de
exclusão que a globalização gera. Seguindo as idéias de Shields, Haesbaert
(2005) verifica que o processo de compressão espaço-tempo se estabelece pela
realidade da “presença-ausência”, “inclusão-exclusão”, “dentro-fora”, definindo
várias condições do processo de unificação moderna que se dá pela desigualdade
de inserção, diferenciando muito os lugares no mundo.
Nesse sentido, como conclusão desse processo, o que temos é uma
multiplicidade de lugares em singularização. Pelo mundo afora temos inúmeras
condições envolvidas com essa unicidade técnica que se constitui como meio-
técnico-científico-informacional. A constituição desse meio é muito desigual para
os lugares do mundo. Alguns ainda estão muito próximos ao meio natural, sendo
quase natureza, outros ainda estão em processo de modernização e apresentam-
se em algum estado entre meio natural, meio técnico, meio-técnico-científico e
meio-técnico-científico-informacional. Os lugares no mundo se diferenciam por
relações espaço-tempo singulares envolvidas numa linha de progresso da
unificação espaço-tempo mundial.
Além das qualidades espaço-tempo diferenciadas, causadas pelos múltiplos
sintomas de “presença-ausência”, “fora-dentro”, “excluído-incluído”, as
perturbações são causadas pela emergência dos sujeitos que, solapados por
esses sintomas, promovem perturbações à linearidade evolutiva desigual, fazendo
diferenciar-se os espaços por movimentos culturais orgânicos vinculados à
tradição, aos sentimentos, à espontaneidade e ao desejo. Nesse sentido,
visualiza-se um espaço social que somente pode ser compreendido pelos
processos orgânicos que abarca, que estão envolvidos por complexas teias de
conflito que se explicam pelo entendimento de sua condição híbrida singular na
linha que liga “natureza” e “sociedade” ou nas várias situações de definem
“presença-ausência” dos processos de modernização.
330
Conforme Santos (1997), temos assim um espaço social “uno” e “múltiplo”.
Uno quando nos referimos ao processo de unificação ocidental/moderna e
organização do meio-técnico-científico-informacional, representando assim o
processo de internacionalização de uma cultura européia, da racionalidade
científica, dos conhecimentos que representam verdades sobre “o que fazer”,
“como fazer” e “por que fazer”, da moral com origens cristãs e da família burguesa
e do direito proveniente das luzes e da Revolução Francesa. Por outro lado, nesse
trajeto de uniformização, as bases comunitárias tidas como pura natureza são
dominadas pela violência, contestam a dominação e firmaram múltiplas relações
entre verticalidades inseridas na uniformização cultural e técnica global e sua
tradição local. Outro fato que explica a condição ltipla do espaço social é o
múltiplo aproveitamento que os poderes globais definem aos lugares,
diferenciando-os. No caminho das redes capitalistas, muitas condições locais
acabam tornando-se globais (culturas, materiais e técnicas), fazendo com que
essa definição de “global” mais próxima de uma condição que lembra um mosaico
do que algo uniforme e ordenado.
5.8. PERGUNTAS NECESSÁRIAS À GEOGRAFIA
Pelo que argumentamos até então, apreendemos o espaço social pela
organicidade de sua produção, em virtude das singulares relações contextuais e
complexas entre “sociedade-comunidade-natureza” e “espaço-tempo”. O espaço
social só pode ser entendido como múltiplo, como vários produtos orgânicos
(vivos, em construção, em mutação, em singularização e com vínculos diversos ao
processo de uniformização social moderna) das complexas relações anteriormente
citadas. Para entendê-lo sugerimos questões principais:
a) como os lugares são abarcados pelo supra-orgânico (ocidental/moderno)?
b) Como os lugares resistem ao supra-orgânico (mistos culturais
regionais/locais)?
331
c) Como está/é a diversidade relacional das “comunidades” orgânicas dos
lugares? Como são suas relações entre organicidade e supra-organicidade?
d) Como emergem/submergem o individual e o comunitário nessas relações?
Seremos sujeitos, condições híbridas ou homem-particularizados?
e) A multiplicidade pode caracterizar-se como um orgânico?
A respeito dessas questões colocadas e devido à organicidade e
multiplicidade de formas e conteúdos (expressos em dinâmicas complexas) que
definem o espaço social, esse somente pode ser entendido no que tange às
“condições-partes” em processo de singularização. Essas “condições-partes” de
“formas-conteúdos” em singularização estão representadas pela relação dialética
“ordem-espontaneidade” que contém uma cultura orgânica específica. Elas podem
ser concebidas como condições territoriais da relação natureza-sociedade
inseridas nos movimentos de modernização e contra-modernização (dialética que
define a própria modernidade) do espaço social. Essas territorializações (processo
dinâmico vivo e cheio de organicidade) apresentam-se como processos múltiplos
(conforme HAESBAERT, 2002), entre territorializações mais fechadas
(fechamento identitário), tradicionais (lógica do poder e controle territorial dos
Estados Nacionais), mais flexíveis (microterritórios organizados temporariamente
nas cidades) e as efetivamente múltiplas (das sobreposições de funções, controles
e simbolizações).
Nas relações que estamos estudando podemos afirmar que, seguindo a
idéia de Sack (1996) sobre o “homo geographics”, e em decorrência da
organicidade e multiplicidade do espaço social, não há indivíduo, grupo social ou
instituição sem território, e esses territórios se expressam em diversas escalas e
em diversas condições territoriais, desde a mais material e mais fechada, até a
mais simbólica, flexível e fluida.
Nesse sentido, toda a relação social implica condições mistas do “favor” e
do “contra a sociedade, como “pockets of social relations” (VELHO, 2004), ou
algo entre sociedade-comunidade-natureza e complexas relações espaço-tempo
que, pela diversidade de expressões que abarcam, somente podem ser
332
concebidas como ltiplas territorializações que o definem propriamente a
sociedade, mas o espaço social.
5.9. AS MICROTERRITORIALIZAÇÕS DE AGREGADOS SOCIAIS
HOMOERÓTICOS
As microterritorializações de agregados sociais homoeróticos apresentam-
se hoje, no espaço social, como um exemplo de sua condição complexa e
orgânica. Em primeiro momento a construção de uma identidade homossexual
adveio de processos lingüísticos modernos que instalaram os pólos certo e
contrário à normalização da sexualidade (COSTA, 2002).
A construção teórica da “homossexualidade” difunde-se pelo tecido
ideológico na história do século XX e se torna uma identificação complexa em
virtude da carga de estereótipos que carrega. Entre muitos trabalhos que definem
ora como patologia, ora como sofrimento, ora como uma essência homossexual -
talvez uma das muitas presentes na sociedade -, criou-se um “ethos” homossexual
como conjuntos de atributos existentes nesses sujeitos. De anormais e perversos,
passam a ser considerados como doentes mentais; posteriormente, como pessoas
incapazes de domar seus instintos; e, finalmente, passam, a partir ee suas
manifestações, a serem vistos como sujeitos pertencentes a uma cultura que
evolui em um movimento social gay que pretende uma unificação.
A AIDS promove o debate social sobre a homossexualidade, mas também
amplia a ocorrência de eventos homofóbicos, fazendo com que sujeitos
homoeróticos transitem por outras expressões estéticas e comportamentais que
se afastem do estigma da relação entre cultura gay e AIDS.
Nesse sentido, a cultura gay transita entre forças pretensas de unificação e
forças que tentam desconstruir qualquer classificação identitária de cunho
autoritário (novas atitudes relacionadas à teoria Queerr), causando uma
diversidade e uma hibridização (pastiche) de possibilidades expressivas em
lugares de encontros cujas forças de atração são os desejos homoeróticos. Ao
mesmo tempo em que Pollak (1983) e Macrae (1983) evidenciam a construção de
333
uma cultura e de uma identidade gay nascida nos “guetos”; Costa (1992), Parker
(2002) e Braga Junior (2006) observam que as experiências e as condições
expressivas homoeróticas podem ser múltiplas e cambiantes. Nesse sentido,
podemos observar que o que se fundam são “organicidades” de “comunitarismo”
de interesses baseados nos desejos homoeróticos, que estabelecem um intimo
vinculo com o lugar de encontro desses indivíduos, no qual ocorre a
microterritorialização.
Nesse sentido, o que podemos evidenciar é que os desejos homoeróticos
acabaram sendo convertidos em condições lingüísticas que irão definir o sujeito
homossexual como uma “condição-meio” de sua existência, tanto natural como
social, ponto mediano dos pólos natureza (instinto) e sociedade
(temperança/equilíbrio/ordem/norma). Mas é justamente o que Costa (1992) se
pergunta: Existe um sujeito homossexual (ou gay)? Quais são os atributos
definidores dele? As respostas a essas questões tornam-se muito confusas e
procuram trazer exemplos que talvez culminem nas definições de Pollak e Macrae,
mas nunca dão conta da diversidade de experiências homoeróticas que possam
existir. No entanto, pairam como identidade objetiva essas definições de
homossoxual, gay ou até mais pejorativas como bicha, boilola, sapatão, entre
outros. Essas definições identitárias objetivas, embora ainda muito confusas na
literatura e para qualquer realidade individual, servem para produzirem
subjetividades no lo desviante da sexualidade da família heterossexual, criando
inúmeros processos psíquicos individuais que se converteram em comunitarismos
singulares em prol de uma experiência sexual homoerótica ou homoafetividade.
Todos esses sentimentos e ações same sex oriented, muito diversas, estão
“fora” da sociedade (heterossexual) ou são algo “contra” a sociedade. Ao mesmo
tempo, o produtos que ela inventou para poder curar-se e ordenar-se em busca
de um progresso e de uma perfeição. Sendo dialeticamente “contra” e “a favor” da
sociedade, não são sociedade, mas apresentam-se como enclaves de
convivências tomadas por essa dialética. Como enclaves, são basicamente
experiências territoriais, como nos lembra Parker (2002), ou seja, o lugares
singulares nos quais concorrem desejos homoeróticos envolvidos com as tramas
334
existenciais de uma sujeitificação homossexual e gay. Nesse sentido, os tipos de
convivências, as relações, as microéticas existentes e as estéticas que as
envolvem apresentam-se como experiências microterritoriais de enclave e o
diversas, não podendo apresentar-se como repetições territoriais de uma cultura
gay. Tanto é que a própria cultura hoje procura dar definições ainda restritas a
diversidade dessas experiências, como GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes),
entre outras siglas “racionalizadoras” de uma organicidade que se torna indefinida
na realidade.
As microterritorializações de encontros homoeróticos, diversas em suas
definições (talvez indefiníveis), fluidas, sobrepostas a outras experiências
territoriais, estabelecidas por fronteiras de convivência (que as protege da
sociedade normatizadora), tanto mais fechadas como mais abertas, além de
flexíveis, são exemplos complexos das mais diversas experiências territoriais de
convivência que se encontram no espaço social. Em virtude do que falamos,
utilizando o exemplo das convivências homoeróticas territorializadas, a sociedade
não pode existir como concreto, e sim como uma macroideologia massificadora e
repressora. Nos embates produzidos pela sociedade moderna, o que fica é o
espaço social orgânico, cujas identidades, afetividades e culturas acabam
tornando-se experiências microterritoriais de “vida” orgânica. Conforme afirmação
de Geertz (1989), cultura é um território. Nesse sentido, o espaço social
apresenta-se, de um lado, como uma territorialização supra-orgânica da sociedade
moderna e, por outro lado, por múltiplos embates contraditórios nessa
territorialização, tornando-se um complexo orgânico de múltiplas
microterritorializações que guardam em si as dialéticas “ordem-desvio”, “contra-a
favor”, “natureza-sociedade”, “certo-errado”, “ordem-desordem”, “desejo-
racionalidade”, entre outras.
No decorrer do anos de 2004, 2005 e 2006, foi realizada a pesquisa sobre
convivências homoeróticas no bairro Cidade Baixa e Centro de Porto Alegre,
tendo por objetivo procurar estudar a relação estreita entre espaço geográfico e os
desejos homoeróticos. Isso representou um estudo “etnogeográfico”
(BONNEMAISON, 2002) sobre as convivências com “grupos de amizade” de
335
homem orientados para o mesmo sexo, procurando participar de forma continua
em suas “derivas” (PERLONGHER, 1987) na busca de relações homoeróticas e
em lugares festivos caracterizados como gays ou GLS. O interessante dessa
pesquisa foi poder comprovar que as experiências homoeróticas poderiam ser
caracterizadas por duas principais condições. Em primeiro momento verificou-se
que eram basicamente experiências territoriais, uma vez que a “homoafetividade”
(a simples busca sexual ou a relação desvinculada de sexo entre grupos de
amigos) o poderia ser totalmente revelada sem a “proteção” de um lugar
específico e, em segundo momento, que os indivíduos inclinados para o mesmo
sexo mantinham práticas culturais que poderiam ser reveladoras de uma cultura
gay e, ao mesmo tempo, se demonstravam totalmente diversos quanto aos seus
“gostos sexuais”, suas estéticas, suas perspectivas e comportamentos. O próprio
processo de territorialização das práticas homoeróticas são diversas( COSTA,,
2002), diferenciando-se quanto à situação dos lugares, das relações
estabelecidas, da estética e dos comportamentos assumidos e quanto ao
fechamento e abertura com o exterior.
Além de convivência direta com indivíduos e grupos de amizades
orientados para o mesmo sexo, a pesquisa procurou aprofundar o assunto da
relação “território-homoerotismo” a partir de entrevistas individuais. Como método
para produção do conjunto de questões foi utilizada a proposta de Plummer (apud
WEEKS, 1999) sobre a construção da identidade estigmatizada, caracterizada
pelas seguintes etapas: sensibilização (indivíduo torna-se consciente de sua
diferenciação ao ser rotulado), significação (atribui sentido a essa diferença, toma
consciência das possibilidades do mundo social), subculturização (reconhece a si
a partir do envolvimento com os outros) e estabilização (atinge o estágio de plena
aceitação).
O interessante é que todas essas etapas estão relacionadas à formação da
identidade estigmatizada, envolvendo-se então com a idéia da sujeitificação
homossexual ou gay. Ao mesmo tempo que as respostas apontam para um
enquadramento identitário vinculado a um conjunto de atributos e situações que
culminam numa essência homossexual, as histórias de vida, as definições de
336
desejo, as perspectivas e os lugares nos quais estabelecem as relações foram
muito desiguais. Nesse sentido, os resultados dessa pesquisa, em relação ao
trabalho “etnogeográfico”, tanto quanto as conversas estabelecidas a partir do
questionário produzido
179
, demonstram a relação dialética existente entre
identificação homossexual e/ou gay e diversidade de indivíduos e/ou situações de
expressões homoeróticas. Por outro lado, todos os entrevistados apontam sempre
a importância dos lugares de convivência para exercício do desejo e da
afetividade. Assim sendo, as microterritorializações são fundamentais para a
expressão homoerótica, mas todas elas são singulares, pois revelam em si a
situação da dialética entre racionalização e espontaneidade/desejo na
modernidade.
Os homens entrevistas foram contatados a partir da pesquisa
“etnogeográfica” feita em lugares de convivência homoerótica. Esses lugares são:
a) lugares públicos: o Parque da Redenção, o Rua da Praia Shopping, o
Centro Comercial Nova Olaria e as ruas do bairro Cidade Baixa;;
b) lugares de encontro privatizados (bares, boates, locadoras de vídeos
pornográficos): o Ocidente, o Venezianos Pub, o Garrafa´s bar, a Eróticos
Vídeo Locadora e o Vitraux.
A seguir explicitamos blocos questões feitas aos entrevistados, revelando a
importância da questão e as respostas obtidas.
1. Onde e como aconteceu a sua primeira experiência homoerótica?
2. Você percebeu-se homossexual antes ou depois da primeira relação ?
3. Em que situação e em que lugar você sentiu-se diferente devido a seus
desejos homoeróticos?
179
Não ocorreu a aplicação do questionário como uma entrevista. Ocorreram conversas informais
em que os observadores guiavam-se por um conjunto de assuntes interessantes e contidos no
questionário.
337
4. Logo que percebeu essa diferença, o que aconteceu? Como se sentiu?
5. Pessoas de seu meio influenciaram você para a percepção de sua
condição homossexual? Como?
Essas questões procuravam desvendar as etapas de “sensibilização”.
Muitos dos entrevistados alegavam que tiveram desejos homoeróticos na
adolescência para com membros da própria família e amigos de vizinhança, tendo
acontecido as primeiras experiências homoeróticas com parceiros dessas
categorias. Outros, na pré-adolescência, sentiam-se atraídos por algum ator de
televisão visto em filmes ou em telenovelas. Mas é interessante notar que a
grande maioria dos entrevistados sentiu-se como homossexuais, gays ou bichas
algum tempo depois das relações homoeróticas acontecerem, por serem rotulados
a partir do conhecimento de outros a respeito dessas relações.
Em primeiro momento, a palavra homossexual somente fora conhecida
posteriormente a algumas outras discriminatórias (bicha, por exemplo), mas a
significação da diferença veio após o desejo e a relação homoerótica.
Especialmente um entrevistado alegou ter tido, de maneira freqüente, na pré-
adolescência, coito anal com vizinho poucos anos mais velho, sem ter a menor
noção do que aquilo significava, somente alegando ter prazer e extrema
afetividade com tal vizinho. Foi a partir de outros amigos de vizinhança, que em
brincadeiras começavam a rotulá-lo de “bichinha”, que aos poucos começou a
perguntar-se sobre o que acontecia e a sofrer em virtude da significação da
identidade estigmatizada.
Em todas as conversas estabelecidas, o processo de significações se
encontrou junto às relações sociais, partindo de rotulações de amigos e de
familiares. Na escola e na família, as rotulações, em muito dos casos, tornaram-se
repressivas e até mesmo violentas, como em casos de linchamento por colegas
de escola e espancamento pelo pai.
Percebeu-se que em todos os casos as instituições sociais foram severas
quanto à definição da diferença desviante, fazendo os indivíduos orientados para o
338
mesmo sexo passarem por muitas angústias psíquicas decorrentes de uma
extrema necessidade de definir seus desejos, reprimi-los e procura adequar-se
aos papéis e comportamentos socialmente aceitos.
A percepção da diferença dissipou-se, no decorrer das várias conversas
que tivemos, em vários caminhos de comportamentos quanto ao exercício das
relações homoeróticas: negação do desejo e tentativas frustradas de manter
relações heteroeróticas, afirmação e apropriação dos estereótipos como forma de
repúdio à repressão, manutenção da postura de gênero “heterossexual” e
continuidade camuflada das relações homoeróticas fora dos ambientes
institucionais repressivos, ambigüidade quanto às relações e aos objetos de
desejos eróticos, convivências “heterossexuais” de fachada e fugas tanto mais
contínuas como mais esporádicas a lugares pelos quais poderiam saciar desejos
homoeróticos de forma rápida. A cada “caminho” citado, podemos observar
tempos diversos de exercício de um ou de outro, com constantes mutações de
comportamento para um e para outro, tornando diversas as posturas após a
significação da identidade estigmatizada.
6. Em que situação você percebeu que havia outras pessoas que
compartilhavam de seus desejos (que fazia parte de um grupo)? Como se
sentiu em relação a isso?
7. Como foram os primeiros envolvimentos amigáveis com essas pessoas?
8.
Como descobriu lugares de freqüência homossexual? Que lugar
freqüentou inicialmente?
9.
Como descobriu lugares de freqüência homossexual? Que lugares
freqüentou inicialmente?
10.
Você se sociabilizou com facilidade? Que tipos de estranhamente teve a
princípio?
Essas questões procuram verificar a etapa de “subculturização”. Para o que
desenvolvemos aagora, ela representa a etapa de territorialização do individuo
339
orientado para o mesmo sexo, pois implica encontrar o grupo significativo quanto
aos desejos homoeróticos, que não estão dispersos no espaço social, mas
territorializados por múltiplas e mutantes culturas orgânicas de convivência que,
como falamos, representam a relação dialética entre ordem identitária e
expressão de espontaneidades.
Weeks (1999) utiliza o termo subcultura em virtude da relação direta que
essas convivências mantêm com o corpo estruturado da sociedade dominante
(“heteronormativa”, que estabelece a homossexualidade pela rigidez do pólo
identitário desviante). Concordamos com a visão de Weeks (1999) sobre o
conceito de subcultura, mas pensamos que essas convivências não são condições
rígidas de uma estrutura totalizante, mas, além disso, condições múltiplas
orgânicas resultantes dos conflitos existentes dentro dessa própria rigidez
estrutural. Dialeticamente falando, são condições “a favor” e “contra” essa
estrutura social que expressam, e são expressas, por um espaço social difuso em
inúmeras e orgânicas condições de microterritorialização dessas convivências.
Pensamos que os termos “territorialização” ou “microterritorialização” (em virtude
da grandíssima escala) representam conceitos mais flexíveis para entender as
condições desses agregados sociais (se é que eles devem ser entendidos).
Observamos duas condições evidentes. Por um lado, a inserção em grupos
de convivência para expressão da sexualidade é efetivada pela relação entre duas
pessoas ou pela relação com o lugar onde seja possível a expressão de desejos
homoeróticos. Na sua maioria, os entrevistados alegaram que as primeiras
convivências, somente sexuais e amigáveis, foram possíveis pelo contato com
lugares de freqüência homoerótica (lugares de “pegação” ou bares e boates gays).
Por outro lado, mesmo quando se dava pelo contato entre duas pessoas, não pelo
lugar, seja parceiro sexual ou amigo íntimo, a tendência era logo procurar juntos
os lugares de freqüência homoerótica. Nesse sentido, os lugares de freqüência,
“microterritorializados” pelas convivências singulares, tornam-se fundadores de
uma “identificação e de uma “socialização” homoeróticas do homem same sex
oriented. E como se estabelece essa socialização?
340
A socialização é um processo dialético. Nesses grupos de convivência o
indivíduo same sex oriented, ao mesmo tempo que se acha livre para a expressão
de seus desejos homoeróticos, também é pressionado, de forma quase
imperceptível, pelas possibilidades de relações existentes na restrição dos
lugares. A microterritorialização representará um misto de várias condições: a
condição da identidade estigmatizada contida na sociedade totalizante, a condição
da identidade e dos valores inseridos em uma cultura gay que se transnacionaliza
(marcação da diferença explorada também pelo mercado), as relações existentes
dentro da sociedade local (da nação e da região) quanto ao homoerotismo, os
diferentes ímpetos espontâneos dos indivíduos que constituem os lugares. Mesmo
pensando que são microterritorializações próximas a “guetos”, de liberdade
restrita, benéficas à organização de uma sociedade que procura esconder suas
doenças, cios e desvios, elas são “lugares” múltiplos que buscam a
espontaneidade e pululam em um espaço social que contradiz a pensada
realidade de uma sociedade perfeita que, para tornar-se perfeita, é repressiva.
Verificamos que diferentes foram os tipos de lugares de freqüência em que
as pessoas que falamos mantiveram contato inicial. Muitos deles primeiramente
procuravam, de forma camuflada, lugares de prática sexual (de “pegação”) como
banheiros públicos, parques e praças de paquera homoerótica. Outros se
envolveram diretamente em bares e boates gays.
Observamos uma dicotomização entre lugares públicos e privados para as
convivências homoeróticas em que, dentro dessas duas classificações, inúmeros
lugares são avaliados por alguma condição ou outra específica da convivência:
práticas sexuais e culturais estabelecidas, segmento social, tipos homoeróticos
(efeminados, não-efeminados, andróginos, travestis, homens que camuflam suas
práticas homoeróticas, “clubbers”, mais jovens, mais idosos, entre outros muitos).
Muitos (aqueles mais estabilizados quanto a uma identificação dita gay)
verificaram que nos primeiros contatos sentiram um estranhamento quanto à
espontaneidade de muitos comportamentos não-aceitos pela sociedade
normatizadora e revelados nos lugares definidos como gays. Muitos deles alegam
uma transformação estética e comportamental, como expressão da transformação
341
da subjetividade em virtude da objetividade expressa pelos lugares de
convivência.
No entanto, os processos encontrados são diversos e remetem aos sujeitos
produzidos como condição da relação entre suas experiências dialéticas entre
ordenação de uma personalidade social e seus desejos/espontaneidades
individuais e as múltiplas possibilidades de “encontros” com lugares de
convivências homoeróticas específicas. Além disso, o encontro com lugares
remete também ao encontro com pessoas específicas desses lugares (formação
dos círculos de amizade e companherismo) que também apresentam expressões
de subjetividades múltiplas, além das definições dos lugares de convivência que
estiveram.
Por esses processos, podemos perceber que se tecem complexas e difusas
expressões homoeróticas individuais e em agregados de indivíduos. Mesmo
sabendo que determinados lugares de convivência apresentam características
definidoras específicas eles contêm outros agregados de “amigos” que acabam
expressando comportamentos diferenciados. Nesses processos dinâmicos é que
se tecem microterritorializações orgânicas que contém os desejos homoeróticos.
Orgânicas, pois remetem ao dinamismo do processo de transformação constante
das convivências que contêm. Por isso a dificuldade de persistência das
condições das microterritorializações e de sua “vida” (possuem vida muito curta) e
por isso o sufixo zações, pois são processos; não territórios prontos e
estabilizados; assim como expressam culturas de convivências orgânicas de vida
curta, ou seja, não estabilizadas ou representativas de condições elementares de
uma estrutura rígida.
11.
Como se estabeleceu seu comportamento após a freqüência a lugares
gays? Houve diferenciação comportamental nos meios formais e
informais? Como você agia no mundo externo e nos lugares de
freqüência gay?
12. Você modifica seus comportamentos e posturas em determinados
lugares? Caso sim, como age nos seguintes lugares e situações?
12.1. Família
342
12.2. Trabalho
12.3. Rua
12.4. Escola
12.5. Lugares Gays
13. Como as experiências no gueto permanecem e o influenciam no seu
cotidiano?
A respeito dessas questões, podemos verificar diferentes tendências de
comportamento nos lugares de convivência, no dia-a-dia dos entrevistados, porém
somente alguns, principalmente os entrevistados que estão engajados em ONGs
vinculadas ao movimento político gay, afirmaram apresentar formas de
comportamento idênticas em todos os lugares de convivência (família, trabalho,
escola, etc).
Na estrutura da sociedade e pela definição da identidade estigmatizada, os
desejos homoeróticos tenderam a ser expressos de forma confinada nos lugares
de convivência específica gay. Em muitos dos casos é justamente isso o que
acontece, mas foi verificado pela pesquisa (nas entrevistas e nas convivências
participativas) que, mesmo aqueles indivíduos mais preocupados com sua
condição dita homossexual ou gay, estabelecem exposições em diferentes
contextos relacionais, mesmo nos meios mais institucionalmente repressivos,
como família e trabalho. Por outro lado, mesmo ocorrendo isso, a territorialização
das relações no espaço social preocupa tais pessoas e faz com que elas
promovam um constante trabalho de vigilância sobre si e sobre as pessoas com
quem se relacionam. Os indivíduos orientados para o mesmo sexo adquirem, no
decorrer de suas experiências de vida, uma boa capacidade de saber onde “estão
pisando”, no sentido de perceberem as condições ambientais da relação social
para poderem dosar suas espontaneidades e o cumprimento dos papéis sociais
“normais” da sociedade. Muitos dos indivíduos que foram acompanhados durante
a pesquisa se perguntavam como adquiriram a capacidade de identificar, em meio
o espaço público “heteronormatizado”, outros inclinados para o mesmo sexo e
propensos a uma experiência homoerótica. Outros se entusiasmavam, relatando
sobre as angústias e o esforço de aos poucos serem aceitos seus atributos
desejantes em meio a outras pessoas ditas heterossexuais ou em grupos sociais
343
como família, trabalho, universidade, etc. Muitos deles, em diálogo com o
pesquisador, observaram que tal capacidade remete justamente à angústia de se
pertencer a uma sociedade que reprime e castra os desejos e as relações entre os
mesmos sexos.
Mas o que queremos salientar é que, além da territorialização específica
das convivências homoeróticas - sendo elas muito diversas e complexas em seus
entendimentos -, expressões desses desejos ocorrem em todos os meios sociais,
porém são as condições de territorialização das relações sociais que irão
possibilitar e dar consistências a tais expressões - que pode ser algo que em
determinados momentos, se aproxima dos comportamentos expressos nos
“guetos” gays e, em outros momentos, da necessária expressão dos papéis
sociais “heternormatizados”.
Verificamos, então, que a sociedade não pode ser representada como uma
“máquina heterossexual”, mas é permeada por outros comportamentos e relações
que tornam difusa a racionalização da sexualidade nos contextos sociais. Assim, a
sociedade é representada por um espaço social difuso que apresenta um
dinamismo orgânico constituído pela diversidade de microterritorializações de
relações complexas quanto à dialética entre ordens/normas e
desvios/desejos/espontaneidades.
14. Que lugares freqüenta atualmente? Você faz distinção entre lugares em
que encontra amigos e aqueles em que busca sexo?
15.Você identifica diferentes tipos de lugares gays? Qual a diferença entre
eles?
16.Você modifica sua conduta e estética em diferentes lugares gays? Em
caso afirmativo, exemplifique (lugar, comportamento e estéticas
apresentadas).
17.Cite três diferentes lugares de freqüência gay.
Foram vários os lugares de freqüência homoerótica comentados.
Basicamente ocorreram as seguintes distinções nas respostas dos entrevistados:
a existência de lugares de freqüência privatizados (em que se paga para entrar),
344
como bares e boates, e a freqüência a lugares públicos, como partes de
shoppings centers, parques e praças da cidade e banheiros blicos. Nesses
aspectos podemos verificar que as convivências e as experiências sexuais
homoeróticas tendem a saírem das ruas e se confinarem em “guetos” privatizados
gays, ou em diversos outros lugares que, muitas vezes, se distanciam de muitas
condições estéticas gays, mas vinculam-se às práticas homoeróticas entre
homens.
Nesses lugares privatizados, nos quais os desejos homoeróticos são
exercidos, acontecem formações culturais orgânicas, ora com grande tendência à
aproximação da cultura gay norte-americana, em que fundam atributos estéticos
de consumo (música, vestimenta, acessórios, materiais de publicidade, festas,
etc), ora com expressões mistas ou híbridas de alguma outra cultura (interseções
entre culturas locais, ou alguma outra expressão de consumo, ou, ainda, de
outros grupos urbanos variados). Diversos são os lugares privatizados, daqueles
relatados cujas diferenças se apresentam pela estética (mais retrógrada ou mais à
frente quanto às tendências da moda, em que se paga caro para conviver em um
lugar requisitado pelas tendências de vanguarda na música, nos serviços e na
“qualidade” do público), pelos segmentos sociais que se encontram presentes
(implicando valor de entradas e de itens de consumo diferenciados), pelo caráter
mais aberto ou fechado à convivência homoerótica (bares somente gays, bares de
simpatizantes ou público GLS, bares temáticos de propensa convivência
homoerótica, como os de tendência intelectual, artística e publicitária, entre
outros).
Além disso, ocorrem atualmente inúmeros lugares específicos para as
práticas sexuais homoeróticas (saunas, videolocadoras, cinemas pornográficos,
casas de prostituição). O interessante é que estes lugares vão abrigar inúmeras
situações individuais quanto à vivência da identidade homossexual ou gay, desde
homens totalmente envolvidos como uma cultura gay até homens que procuram
esporadicamente experiências homoeróticas que estão encobertas por uma vida
coerente quanto os papéis e funções “heteronormativas”. Nesse sentido,
observamos, quanto aos lugares privatizados de encontros homoeróticos, muitos
345
lugares temáticos que abrem à exterioridade a convivência de indivíduos
orientados para o mesmo sexo (diversos quanto aos comportamentos, à estética e
à expressão dos desejos homoeróticos). Outros são mais fechados e específicos
de uma cultura gay mais ou menos bem definida (ocorrendo múltiplas formas
conteúdos culturais que se aproximam ou se afastam das definições dessa
cultura, mesmo podendo ser comparadas a ela) o que vem a confirmar os
estudos de Macrae (1983) e Pollak (1983) - e outros, estritamente vinculados às
práticas sexuais (lugares de “pegação”, como videolocadoras, cinemas pornôs e
casas de sexo e prostituição), em que os indivíduos que neles circulam o
diversos e mantêm relações eminantemente sexuais, não vinculando fortes laços
de formação cultural específica. Nestes últimos lugares citados, as convivências e
as condutas são primordialmente representativas das preferências sexuais,
definidas pelas sutilezas e pelo silêncio nos gestos que irão definir o que se quer
na prática sexual.
Além dos lugares privatizados, ocorrem as convivências homoeróticas
territorializadas no espaço público. Todas essas convivências ocorrem escondidas
ora em meio à multidão, nos momentos de maior circulação de pessoas no espaço
urbano, ora em horários nos quais determinados espaços tornam-se pouco
freqüentados (sendo invadidos pelos “desviantes”: prostituição, pessoas que
moram nas ruas, “homossexuais”, mendigos). Todos os parques e praças das
cidades abrigam os “deviantes”, talvez pela sua condição próxima à natureza.
Neles os “quase-natureza” sentem-se protegidos da sociedade que os reprime.
Principalmente à noite os parques (como no Parque da Redenção, em
Porto Alegre-RS) tornam-se lugares de grande freqüência de diversos homens
que procuram saciar seus desejos homoeróticos. Na escuridão dos parques
aparentemente vazios, inúmeros homens, cujos desejos e expressões
homoeróticas são castradas pela sociedade, convivem em decorrência da
necessidade de manter uma experiência sexual.
Tais homens “derivam” pelas ruas, pelos parques e praças (como nos fala
PERLONGHER, 1987) à procura de algum parceiro adequado às suas
necessitadas “quase-natureza”. Essas derivas, conforme diz um dos entrevistados
346
a pesquisa, tornam-se verdadeiras “caçadas” no espaço público, pouco ou
altamente freqüentado. Elas são como táticas que burlam a configuração material
e funcional do espaço produzido pela sociedade (DE CERTEAU, 1994), para um
espaço produzido pelas convivências “aqui” e “agora”, em que se separam das
condições tidas como sociais para tornarem-se convivências do “estar junto por si
só” (MAFFESOLI, 2002).
Devido a essas observações, verificamos que os diferentes sujeitos e suas
espontaneidades vão alterando as condições normativas da sociedade,
produzindo uma realidade material (que são o espaço, a relação, a ação e o
tempo humanos “aqui e agora”) difusa, cheia de diferenças sutis, cujos atributos
dos encontros, relações e convivências são orgânicas e complexas quanto os
laços que ligam os homens ali presentes. Assim definimos a qualidade do espaço
social.
347
6. CONCLUSÃO
No caminho que traçamos, construímos um conhecimento a respeito da
importante relação dialética existente na sociedade moderna: a relação ao mesmo
tempo combinada e contraditória entre ordem/razão/norma e
desejo/prazer/espontaneidade/desordem. Verificamos que essa dialética é
expressa nos mínimos acontecimentos cotidianos e abarcam a constituição dos
sujeitos sociais e a formação de agregados relacionais ligados a eles. A
modernidade ordenadora produz o espaço da sociedade, forçando sua produção
racional e funcional, mas os diferentes sujeitos sociais burlam essas constituições
e produzem um espaço complexo quanto às diferentes formas de territorialização
deles. O espaço social, assim, longe de ser ordenado e homogêneo, como
apreendido racionalmente, apresenta-se orgânico, mutável, instável e fragmentado
em diferentes condições de interações humanas, produtos da dialética entre
ordens e desvios na modernidade.
Podemos entender isso a partir da necessidade de grupos homoeróticos se
territorializarem no espaço das grandes cidades. Assim analisamos essas
relações em Porto Alegre. A construção da homossexualidade e da cultura gay é
atravessada por um conjunto de ideologias e produtos lingüísticos estabelecidos
pelas atividades de comunicação na sociedade. Tendo como origem a
sexualidade do pólo desviante “homo”, os sujeitos homoeróticos vão necessitar de
formações microterritorializadas urbanas para acontecerem. Essas
microterritorializações produzem os lugares de convivência, de aprendizados
sobre a cultura das relações territorializadas e a possibilidade de exercer a
sexualidade, constituída das relações culturais estabelecidas nesses grupos de
sujeitos.
As discussões contidas neste trabalho são produtos das relações estreitas
em grupos de convivência homoerótica, mas podem ser usadas como bases
teóricas para quaisquer definições de sujeitos na atualidade. O método
microterritorial observa que a sociedade compõe uma cultura supra-orgânica que
regra racional e moralmente os homens-particulares e/ou atores sociais, porém
348
também observa que existem táticas de espontaneidade que burlam a rigidez
imposta pelas normas sociais. A relação entre norma e espontaneidade,
implicando a produção social sobre os desvios e as más-condutas, é uma
realidade não somente em relação à condição homossexual, mas a diversas
outras culturas orgânicas que se tecem e se territorializam nas cidades da atual.
Em virtude dessa discussão, foi necessário colocar em debate o próprio conceito
de sujeito, como uma “condição-meio” que inexiste, assim como os pólos de
ordem e de espontaneidade que o identificam, para verificar que suas
territorializações também são múltiplas e instáveis quanto às características que
as expressam, como definidoras dos próprios sujeitos mutantes.
Na seção dois, apresentamos uma discussão sobre homossexualidade,
homoerotimo, cultura gay e teoria queer. Nele construímos a história das
definições dos sujeitos com que trabalhamos, sendo eles resultados dessas
próprias tramas identificadoras, que são construtoras dos territórios concretos a
que pertencem e em que convivem como sendo por eles reforçadas -, como os
analisados em Porto Alegre, na seção quatro. Na seção três, buscamos, na
história da cidade e da modernidade, a conformação de suas “forças” de
ordenamento, assim como a evidência de que essas forças nunca se completaram
efetivamente, em qualquer contexto de sua atuação. Na seção quatro,
apresentamos o trabalho “etnogeográfico” estabelecido em Porto Alegre-RS,
analisando as dialéticas inseridas na produção de microterritorializações
homoeróticas nesta cidade. Nesse capítulo também expomos a proposta de
construção do “método microterritorial”, que constrói um arcabouço teórico para o
entendimento das diversidades de agregações humanas que circulam pela cidade
contemporânea.
Na seção cinco, aprofundamos uma discussão sobre a modernidade e
verificamos que os processos, produtos e contradições existentes nela
apresentam-se como questões importantes inseridas na produção dos
microterritórios mutantes e instáveis da atualidade urbana (que são, ao mesmo
tempo, lingüísticos, representativos e concretos das convivências dos grupos
humanos). Nesse sentido, torna-se necessário entender e aprofundar um método
349
de observação sobre o espaço social e sobre a territorialização dos grupos
humanos, que chamamos de “método microterritorial”.
A discussão sobre a modernidade centra-se na dialética de seus contrários:
o pólo ordenativo e o pólo de espontaneidade. Tais pólos apresentam-se
imbricados em diferentes situações do cotidiano urbano. Em relação a isso,
aprofundamos a discussão sobre as condições de existência do sujeito
homossexual, relativas às necessidades de ordenarem-se e, ao mesmo tempo,
deixarem-se fluir os desejos e prazeres homoeróticos.
Finalmente, discutimos também sobre as condições do “espaço social” e
suas relações enquanto base material e simbólica das agregações humanas.
Inserimos, nesse momento, a análise do trabalho empírico estabelecido, assim
como os procedimentos de entrevistas que tentaram captar as relações existentes
entre sujeitos e desejos homoeróticos e a microterritorialização dessas relações.
Concluímos este trabalho reforçando a idéia de o quanto é necessário
estabelecer uma análise das relações micro e cotidianas na geografia dos grupos
humanos na cidade. Esse método busca entender a cidade pelas convivências
diversas que ela agrega; suas diferentes condições e construções históricas,
simbólicas e materiais, assim como o entendimento dos determinantes e das
contestações que fazem parte delas e as constitui. O método microterritorial inclui
múltiplas escalas de análise. Inclui também a dialética entre as rígidas
representações das instituições sociais, massificadoras no contexto da
universalização das práticas e discursos culturais; e entre as relações de
improviso e dotadas de espontaneidade que podem ser entendidas no “aqui” e
“agora” dos acontecimentos. Nesse sentido, por esse método, podemos, pelo
menos, aproximar-nos das condições de produção múltiplas e complexas do
espaço social, caráter das condições dialéticas dos diversos sujeitos sociais
construindo seus espaços de interesses e de convivências.
Atentamos para a microterritorialização como o elemento espacial que, ao
mesmo tempo, é produzido e produz os múltiplos e instáveis sujeitos sociais. As
microterritorializações criam espaços nos quais as contradições desses sujeitos
podem ser negociadas, criando contextos de entendimentos mútuos sobre seus
350
problemas, suas espontaneidades e seus deveres para com a sociedade. Ela é o
“pequeno” espaço apropriado na cidade, mas que funda o sujeito pensante e
transformador dos padrões sociais.
As microterritorializações se diferenciam em virtude das condições
dialéticas dos múltiplos dos sujeitos em interação, tornando-se “nós”, com suas
especificidades, construídas nas diversas experiências e redes sociais a que
pertencem, se redefinem. A microterritorialização, assim, influencia a construção
do sujeito pela interação estabelecida (a negociação com o outro, a redefinição de
posturas e comportamentos e a significação mútua daquilo que converge para
eles) no tempo e no espaço do acontecimento da reunião ou do convívio coletivo.
As negociações fazem convergir e divergir posturas que vão adequando-se e
influenciando os participantes, tornando-se, muitas vezes, parte de suas
concepções, de perspectivas de vida e do modo como se expressam.
A interação microterritorializada não se anula no tempo e no espaço do
acontecimento, assim como não se explica por ela mesma. Ela contém a dialética
da situação carregada de espontaneidade e singularidade, assim como a dos
discursos e das ideologias que se pretendem universais e que procuram organizar
as relações humanas na sociedade.
O problema colocado consiste em explicar a microterritorialização dos
desejos homoeróticos, no qual esses desejos são expressão das discriminações
estabelecidas no seio das regras de organização das atividades humanas no
desenvolvimento da sociedade. Como evidenciamos e como demonstramos em
nossa pesquisa empírica, as microterritorializações o necessárias para o
convívio e a afetividade homoerótica. Por outro lado, elas se diferenciam e se
multiplicam em vários contextos microterritoriais, nos quais se cruzam diferentes
subjetividades como condições instáveis e imprevisíveis das expressões dos
sujeitos homoeróticos, como híbridos que contém de forma dialética e imprevisível
manifestações tanto das condições que os regram e os obrigam a seguir preceitos
sociais, como das espontaneidades de seus desejos e interesses afetivos e
sexuais.
351
Esse é o fundamento que orientou a discussão exposta nesse trabalho.
Através dele conseguimos explicar que no âmago das discriminações sobre os
desejos homoeróticos emergem identificações sociais que vão separar os sujeitos
desejantes, mas, por outro lado, as ticas desses sujeitos produzem
constantemente alterações, imprevisibilidades de situações e múltiplas expressões
relacionadas a expressão desses desejos. Como fruto dessa dialética salienta-se
a necessidade de se microterritorializar, sendo a microterritorialização o encontro
da diversidade sobre a realidade dialética contida na condição homossexual, na
cultura gay e nos desejos homoeróticos. Diferentes sujeitos same sex oriented
instáveis e mutantes se encontram nos lugares possíveis a essas convivências,
porém essas microterritorializações não constituem guetos que expõem uma
realidade única da cultura gay, mas a imprevisibilidade do encontro territorial.
Mesmo assim, dentro dessa imprevisibilidade, as tipificações quanto às
características do encontro territorializado vão identificando o que acontece na
microterriotialização (o bar, a boate, a rua, a praça e o parque). Em “microtempos”
e em “microterritórios” acontecem ao mesmo tempo muitas situações imprevisíveis
que dão corpo ao encontro, assim como tipificações que influenciam a postura dos
sujeitos: a estética, o comportamento e as interações entre eles. A
microterritorialização homoerótica, assim, é a dialética das relações entre normas
e morais sociais, preceitos de convivências e espontaneidades individuais, ou
seja, entre aquilo em que se determina socialmente, entre aquilo que se deseja
em grupo de interação territorializada e a expressão espontânea dos desejos dos
sujeitos.
Pela discussão e estudo das microterritorializações homoeróticas
conseguimos estabelecer uma discussão sobre a sociedade e o espaço social. O
espaço social se produz como reflexo de uma sociedade que procura regrar e
ordenar as atividades e convivências humanas. O espaço, assim, imprime
objetividade dessas atividades e condiciona (“dobra”) os indivíduos. Por outro
lado, é nele em que acontecem todas as instabilidades quanto essas
determinações, e é nele que, por entre suas “brechas”, permite os desvios e a
expressão conjunta de indivíduos em interações espontâneas. Nesse sentido,
352
além de um espaço social homogêneo e regrado como expressão objetiva da
sociedade (moderna: impregnada de racionalidade e moralidade) temos um
espaço social em que se desenvolvem inúmeras “brechas” ou contexto onde
“interagem”, de “forma orgânica”, aquilo que é propriamente “orgânico”
(espontâneo e que foge a regra) e aquilo que é propriamente “supra-organico”
(que está “acima” da interação, ou seja, a moral, a regra e a lógica ordenadora).
Nesse sentido o espaço social é um complexo de múltiplas microterritorializações
de contextos de sujeitos em interação que expressam muitas situações “a favor” e
“contra” a sociedade ou “a favor” e “contra” a espontaneidade ao desejo humano.
353
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