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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
ERICSON TELLES SAINT CLAIR
POR UM CONTÁGIO DA DIFERENÇA: CONTRIBUIÇÕES DE
GABRIEL TARDE PARA A TEORIA DA COMUNICAÇÃO
Niterói, RJ
2007
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ERICSON TELLES SAINT CLAIR
POR UM CONTÁGIO DA DIFERENÇA: CONTRIBUIÇÕES DE GABRIEL TARDE
PARA A TEORIA DA COMUNICAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Universidade
Federal Fluminense, com requisito para obtenção
do Título de Mestre em Comunicação.
Orientadora: Prof. Dra. MARIA CRISTINA FRANCO FERRAZ
Niterói, RJ
2007
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ERICSON TELLES SAINT CLAIR
POR UM CONTÁGIO DA DIFERENÇA: CONTRIBUIÇÕES DE GABRIEL TARDE
PARA A TEORIA DA COMUNICAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Universidade
Federal Fluminense, com requisito para obtenção
do Título de Mestre em Comunicação.
____________ em abril de 2007
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dra. Maria Cristina Franco Ferraz - Orientadora
Universidade Federal Fluminense
Prof. Dr. André Luis dos Santos Queiroz
Universidade Federal Fluminense
Prof. Dr. Márcio Souza Gonçalves
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Niterói, RJ
2007
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AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, por suas crenças e desejos.
À minha orientadora, Maria Cristina Franco Ferraz grande
magnetizadora inventiva – , pelo entusiasmo e carinho com que abraçou
a pesquisa e pela convivência intelectual estimulante ao longo desses
dois anos. Finalmente, agradeço pelo contágio de seu exemplo docente,
que certamente levarei comigo pelos anos vindouros.
Ao ex-orientador e hoje amigo Márcio Souza Gonçalves, por ter me
despertado, no começo daquela longínqua graduação, de meu
sonambulismo dogmático. Agradeço, ainda, por todos os cafés pagos e
pelas preciosas conversas sobre Gabriel Tarde.
Ao sempre gentil André Queiroz, pela contribuição à dissertação e por
seu estímulo a um pensamento vigoroso da diferença.
Aos amigos de mestrado Danielle Brasiliense, Fernando Weller, Ilana
Feldman e Marina Caminha, pelas risadas de diversas colorações nesses
dois anos.
Aos amigos de sempre, pelo de sempre: André Aguiar e Maria Antonia
Vieira.
A todos aqueles que – material ou espiritualmente – contribuíram para a
realização deste trabalho: Eduardo Saint Clair, Esther Saint Clair,
Felipe Caldas, Hélio Telles, Laiz Kaune, Lutz Kaune, Marcelle Santos e
Rafael Saint Clair.
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“One thought can produce millions of vibrations
and they all go back to God... everything does.”
John Coltrane, A Love Supreme
“Tout phénomène n'est qu'une nébuleuse résoluble en actions émanées d'une multitude
d'agents qui sont autant de petits dieux invisibles et innombrables.”
Gabriel Tarde, Monadologie e Sociologie
6
SUMÁRIO
Introdução ____________________________________________________________ p. 10
Capítulo 1 – “Hypotheses fingo!” – pressupostos da comunicação na diferença _______ p. 20
1.1 – O problema da similitude original dos homens ____________________________ p. 21
1.2 – As esferas físico-química, vital e social __________________________________ p. 23
1.3 – O infinitesimal na ciência moderna _____________________________________ p. 25
1.4 – A inspiração leibniziana: a mônada _____________________________________ p. 28
1.5 – A crença e o desejo __________________________________________________ p. 32
Capítulo 2 – Hipnotismo, imitação e as similitudes sociais ________________________ p. 37
2.1 – A modernização da percepção e a problemática da atenção ___________________ p. 41
2.2 – A hipnose no século XIX _____________________________________________ p. 47
2.3 – A imitação social ____________________________________________________ p. 50
Capítulo 3 O modus operandi da imitação: leis lógicas, influências extralógicas e a
estatística como metodologia _______________________________________________ p. 57
3.1 – A lógica da imitação: duelos e uniões ____________________________________ p. 57
3.1.1 – Os duelos lógicos ____________________________________________ p. 58
3.1.2 – As uniões lógicas ____________________________________________ p. 60
3.2 – As influências extralógicas da imitação __________________________________ p. 62
3.2.1 – A imitação ab interioribus ad exteriora __________________________ p. 64
3.2.2 – A imitação do dito superior pelo considerado inferior ________________ p. 66
3.3 – O vôo da andorinha: a estatística como instrumento sociológico _______________ p. 70
Capítulo 4 – “Os loucos guiam os sonâmbulos”: a potência da invenção _____________ p. 77
4.1 – As leis exteriores da invenção _________________________________________ p. 82
4.2 – As leis interiores da invenção __________________________________________ p. 83
4.3 – O destino das invenções: acúmulos ou substituições ________________________ p. 85
4.4 – A arqueologia: exploração das invenções do passado _______________________ p. 87
Capítulo 5 – Pela variação: as oposições e o papel político da comunicação __________ p. 90
5.1 – Classificação das oposições ___________________________________________ p. 93
5.2 – Oposições, imitações e invenções _______________________________________ p. 95
5.3 – As oposições sociais e o papel da comunicação ____________________________ p. 98
Conclusão: um primeiro retrato ____________________________________________ p. 104
Obras Citadas __________________________________________________________ p. 109
7
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Câmara obscura, p. 42
Figura 2 Estereoscópio, p. 45
Figura 3 Gráfico estatístico – taxa de casamentos no Brasil de 1979 a 1994, p. 74
8
RESUMO
Trata-se de investigar o estatuto da comunicação na diferença a partir do arcabouço do
sociólogo francês Jean-Gabriel Tarde. Tendo como base as principais obras do pensador – Les
lois de l’imitation, La logique sociale, L’opposition universelle e Monadologie et sociologie
postula-se que a teoria tardeana avalia o social como solo imanente de múltiplas,
infinitesimais e diferenciais relações de comunicação. A partir de seus pressupostos
filosóficos (especialmente a recuperação da monadologia de Leibniz) até a constituição de seu
original arcabouço conceitual (nas arrojadas noções de imitação, invenção e oposição), Tarde
proporá uma instigante imagem das sociedades, engendrada através da perscrutação dos
micro-agenciamentos do social em sua processualidade de contínua diferenciação. O
privilégio de análise de pequenas oposições, invenções e imitações engrenagens
microscópicas do real pressupõe uma visada alternativa a esgarçadas concepções das
sociedades focadas exclusivamente em grandes representações coletivas, ressoantes e
sobrecodificadas. O sociólogo partirá das diferenças constitutivas para pensar toda similitude
social por meio da noção de contágio social, entendido como pura comunicação de crenças e
desejos. Na esteira da perspectiva tardeana, apresentam-se conceitos que pretendem investigar
de modo minucioso as relações sociais em um solo de pura movência e diferenciação criativa,
em que toda homogeneidade é vigorosa, porém de caráter essencialmente transitório.
Palavras-chave: Imitação, Invenção, Diferença, Contágio Social, Gabriel Tarde.
9
ABSTRACT
The aim of this work is to investigate the place of communication on the concept of
difference based upon the ideas of the French sociologist Gabriel Tarde. Taking into
consideration his masterpieces Les lois de l’imitation, La logique sociale, L’opposition
universelle and Monadologie et sociologie , I postulate that Tarde’s theory points out the
socius as the immanent soil of multiple, infinitesimal and different communicational relations.
From his philosophical presuppositions (specially the recovery of Leibniz’s monads) up to
constitution of his original theoretical pool (on the bold notions of imitation, invention and
opposition), Tarde proposes an insightful image of society, produced through the investigation
of the socious’ micro-agency in its process of continuous differentiation. The choice of the
analysis of small imitations, inventions and oppositions microscopics gears of the real
presupposes an alternative look at the conceptions of society which focus exclusively on big
resounded over-codified collective representations. The French sociologist starts from
constitutive differences to think social similitude. To do so he uses the idea of social
contagion, understood as pure communication of beliefs and wishes. Tagging to Tarde’s
perspective, I present concepts which investigate in a minute way the social relations at a soil
of pure motion and creational differentiation, in which all homogeneity is vigorous, but
essentially transitory.
Key-words: Imitation, Invention, Difference, Social contagion, Gabriel Tarde
10
I
NTRODUÇÃO
:
Em 1903, a conferência de abertura do ano escolar da École des hautes études sociales
de Paris contou com a presença insigne de dois representantes da então recente área de saber
conhecida como Sociologia. Eram eles o conceituado professor Émile Durkheim (1858-1917)
e o renomado jurista e também professor Jean-Gabriel de Tarde (1843-1904). A proposta da
academia era a realização de um debate acerca do estatuto das Ciências Sociais, após
apresentação de palestra de cada um dos convidados separadamente.
1
A primeira conferência do dia coube a Durkheim, defensor entusiástico da delimitação
de um espaço próprio para a Sociologia. O pensador definiu-a como um campo livre das
especulações filosóficas que a acompanhavam até então: uma área que deveria ser fortemente
pautada por um método objetivo e preciso de investigação. A perscrutação das sociedades
obedeceria a uma epistemologia particular, não aplicável a outros domínios de saber, como a
filosofia ou a psicologia. Para isso, seria preciso esmiuçar a realidade social em si mesma,
livre da multiplicidade confusa dos fenômenos da vida diária para, enfim, desvendá-la em sua
essência abstrata.
A preleção seguinte, ministrada pelo então professor da cadeira de Filosofia Moderna
do Collège de France Jean-Gabriel de Tarde, revelava em resumo o que os anos de
notoriedade pública do velho mestre sedimentaram nos estudantes de Humanidades: as teorias
acerca das “realidades sociais” não disporiam senão de duas possibilidades concretas para
efetivarem-se os grupos de homens que agem em comunicação uns sobre os outros
(famílias, classes, nações etc) ou os grupos de ações destes homens (costumes, línguas,
instituições etc). A Sociologia, portanto, não renunciaria à psicologia e à filosofia em nome da
1
Cf. DURKHEIM, E. “La sociologie et les sciences sociales. Confrontation avec Tarde”. In: DURKHEIM, E.,
Textes. 1. Éléments de théorie sociale, p. 160 a 165. Paris: Éditions de Minuit, 1975.
Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso
em: 13 ago. 2006.
11
vaidade do reconhecimento de sua singularidade como disciplina científica. Deveria
constituir-se como pura constatação da processualidade imanente dos grupos de homens e dos
grupos de ações destes homens. A diversidade inebriante das formas sociais não configuraria
um problema para o sociólogo. As nuances sociais não constituiriam mero ponto de partida,
um estorvo ansiosamente descartável para o cientista que almeja uma chegada triunfal a
generalizações abstratas, ditas racionais e essenciais. A riqueza da sociologia adviria, pelo
contrário, do mergulho nesta infinidade de ações de homens que se criam, se opõem, se
complementam e se destroem incessantemente.
O debate subseqüente na Escola conformou objetivamente a batalha secreta que se
travava vários anos entre perspectivas tão spares uma da outra. Desde, pelo menos, a
publicação de De la division du travail sociale (1893), o então jovem pensador Émile
Durkheim dedicou-se a uma gradual e corrosiva desqualificação dos trabalhos de Gabriel
Tarde.
2
Ao longo das décadas de 1890 e 1900, a apresentação das teses durkheimianas, em
cada uma destas obras que adquiririam, em conjunto, o estatuto de cânone das Ciências
Sociais vindouras (incluindo-se a Comunicação Social), era indissociável de uma veemente
necessidade de refutação daquele que Durkheim elegeu como seu oponente.
3
Em resumo, Durkheim acusa Tarde de imprecisão científica em seus trabalhos,
considerados “exaustivamente intuitivos”. Ademais, seus textos não seguiriam um método
propriamente sociológico, ao aderir a impressionismos de toda ordem e a um “exagerado
psicologismo”. Em um interessante artigo de 1895, denominado L'état actuel des études
sociologiques en France, Durkheim, como em muitas outras ocasiões, desqualificaria o
conceito tardeano de imitação afirmando que “verdadeiramente, Tarde jamais deu nem poderá
2
Apesar de a oposição durkheimiana a Gabriel Tarde manifestar-se mais claramente a partir desta obra de 1893,
em um artigo de 1886 para a Revue Philosophique (quando a única obra publicada de Tarde havia sido La
criminalité comparée, neste mesmo ano), Durkheim interessava-se em demarcar o território da “verdadeira”
sociologia, considerando que o incipiente estudo tardeano não esgotava o campo de saberes das ciências sociais.
Cf. DURKHEIM, E. “Les études de science sociale”. In: Revue philosophique, XXII, 1886, p. 61-80.
Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso
em: 13 ago. 2006.
3
Não é parte de nosso objetivo neste trabalho esmiuçar as especificidades da crítica durkheimiana ao
pensamento de Gabriel Tarde. Contudo, indicamos a seguir em que obras de Durkheim evidenciam-se as
desqualificações mais contundentes à obra tardeana. Apresentamos, ainda, as páginas em que precisamente tais
considerações se encontram. Cf. DURKHEIM, Émile (1893). De la division du travail sociale. Québec:
L’Université du Québec, 2002, p. 96, 115 (Livro I); p. 60, 76, 90 (Livro II) e p. 119 (Livro III); DURKHEIM, E
(1894). Les règles de la méthode sociologique, p. 14 e 22. DURKHEIM, E. (1895) L'état actuel des études
sociologiques en France, p. 11-15; DURKHEIM, E (1895). Crime et Santé Sociale (todo o artigo é uma crítica à
criminologia tardeana); DURKHEIM, E (1897). Le suicide. Étude sociologique, p. 96, 97, 101 (Livro I, em um
capítulo inteiramente dedicado à “refutação” do conceito de imitação como causa dos suicídios), p. 21, 24, 30,
46, 57 e 73 (Livro III); DURKHEIM, E (1900). La sociologie en France au XIXe siècle, p. 16-17; DURKHEIM,
E. (1909). Sociologie et sciences sociales, p. 8; DURKHEIM, E. (1915) La sociologie, p. 8-9.
Disponíveis em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso
em: 13 ago. 2006.
12
dar uma prova direta e indutiva desta proposição. Na realidade, ele jamais pôde demonstrar
que todos os fenômenos sociais derivam da imitação”.
4
O pensador das regras do método
sociológico não poderia ratificar os pressupostos assumidamente “inventados” que a
perspectiva tardeana seguia afirmativamente. Eis o que postula:
O senhor Tarde entende que faz sociologia. Porém, ele a concebe de tal maneira que
esta cessa de ser uma ciência propriamente dita, para tornar-se uma forma muito
particular de especulação em que a imaginação desempenha o papel principal, em
que o pensamento não é considerado sujeito às obrigações regulares da prova nem
ao controle dos fatos.
5
É bem provável que o impulso moderno em direção à tradição da racionalidade
objetiva na elaboração das hipóteses científicas tenha sido um dos motivos mais contundentes
para o esquecimento soturno por que passou a perspectiva tardeana após sua morte, em 1904.
Enquanto vivera, o sociólogo pôde alcançar as glórias de seu esforço intelectual, depois de
anos de preparação de uma extensa bibliografia referente a temas tão variados quanto as
“novas” formas de criminalidade e as possibilidades de revisão das regras jurídicas; o
estabelecimento de uma releitura dos pressupostos leibnizianos em nome do pensamento do
infinitamente pequeno; uma concepção psicológica e filosófica da formação e do
desenvolvimento dos grupos sociais; um instigante tratado filosófico a respeito da idéia de
oposição, em que se abstrai o negativo da lógica em nome de uma afirmação das diferenças;
uma extensa obra visando à investigação da economia psicológica valorizando crenças e
desejos humanos; diversos textos a respeito das transformações sociais conseqüentes do
advento de novos dispositivos comunicacionais, como a telegrafia elétrica e a imprensa de
massa, dentre outros temas relevantes.
Jean-Gabriel de Tarde nasceu em 10 de Março de 1843, na cidade francesa de Sarlat,
departamento de Dordogne, região administrativa da Aquitânia, no sudoeste do país.
Descendente do famoso astrônomo Jean-Tarde (1561-1636), que fora capelão particular do rei
de França Henrique IV, Gabriel Tarde despertara para as ciências desde muito cedo, assim
como para a arte e a filosofia. As constantes críticas à educação infantil que recebera,
ministrada por jesuítas, teria estimulado o pequeno Tarde a tentar fugir de suas escolas por
várias vezes. Obstinava-se em seguir uma carreira científica, mas uma profunda crise
4
Cf. DURKHEIM, E, op. cit., p. 12. Trata-se de uma versão francesa do artigo publicado originalmente em
italiano como “Lo stato attuale degli studi sociologici in Francia” na revista La reforma sociale, 2, vol. 3, fasc. 8
(pp. 607-622) et fasc. 9 ( pp. 691 à 707). Reimpressão em DURKHEIM, Émile. Textes. 1. Éléments d'une théorie
sociale, pp. 73 à 108. Collection Le sens commun. Paris: Éditions de Minuit, 1975. A partir deste ponto da
dissertação, todos os trechos de obras em língua estrangeira terão suas traduções realizadas por mim.
5
DURKHEIM, E. La sociologie en France au XIXe siècle, op. cit., p. 16.
13
oftalmológica aos 19 anos o teria feito desistir momentaneamente de seu intento e obedecer às
instruções da mãe, que desejava para o filho a carreira de jurista. Em 1863, portanto, ingressa
na Faculdade de Direito de Toulouse. Será neste local que Tarde aprofundará seus estudos de
filosofia, especialmente a partir do contato com as obras de Maine de Biran (1766-1824),
Antoine-Augustin Cournot (1801-1877) e, por meio deste, Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-
1716). O monumental edifício filosófico de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)
também o teria impressionado, como, aliás, a quase todos os estudantes de sua geração.
Desconfiava, entretanto, do que considerava uma imprecisão hegeliana no conceito de
contradição como sustentáculo da dialética.
Após a conclusão de seus estudos de Direito, Tarde será nomeado, aos 25 anos,
secretário do juiz de Ruffec, no departamento de Charante, região francesa de Poitou-
Charentes. A partir de então, esforçar-se-ia na redação de diversos textos filosóficos, muitos
deles publicados na Revue Philosophique, fundada por Théodule-Augustin Ribot (1823-
1891). Seria nomeado juiz de instrução e exerceria tal função de 1875 a 1894. Suas
publicações de âmbito jurídico serão amplamente conhecidas, especialmente os estudos
críticos à concepção dos tipos psicológicos criminais descritos por César Lombroso (1835-
1909) e da escola italiana de criminologia. Seus textos de caráter filosófico-sociológico não
obtiveram menor êxito, especialmente quando foram publicados: em 1890, Les lois de
l’imitation; em 1893, La logique sociale e, em 1897, L’ opposition universelle essai d’une
théorie des contraires. Estas três obras são consideradas por Tarde seus estudos substanciais
de sociologia geral.
6
Em 1894, Tarde seria nomeado diretor de estatística criminal do
Ministério da Justiça, cargo que conservou até a morte. Em 1896, assumiria a cadeira de
Filosofia Moderna no Collège de France em Paris, e tal período seria marcado por intensos
encontros filosóficos com pensadores como Henri-Louis Bergson (1859-1941), por exemplo.
Nesta mesma época, seu desejo de fundar um espaço próprio de discussão de idéias de
sociologia sofreria uma série de intensas oposições, como nos atesta o trecho a seguir:
Era a intenção de Tarde utilizar-se desse espaço institucional para fixar as fronteiras
de sua própria sociologia, uma vez que as relações com a sociologia positivista da
época se mostraram tão ásperas. Ele visava transformar a cadeira de filosofia
moderna no primeiro espaço institucionalizado do saber sociológico. Tal proposta
6
Cf. TARDE, Gabriel. Les lois sociales esquisse d’une sociologie. Québec: L’Université du Québec, 2002, p.
6.
Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso
em: 13 ago. 2006.
14
será, no entanto, recusada. Será Durkheim quem irá fundar, na Universidade de
Montpellier, o primeiro espaço acadêmico dedicado ao estudo sociológico.
7
O penoso esquecimento a que foi submetida a teoria tardeana das sociedades teve
início logo após sua morte, em 1904. Podem-se indicar, entretanto, algumas esporádicas
porém valiosas releituras do arcabouço de Gabriel Tarde no século XX. A primeira delas
seria a fundação da Escola de Chicago nos Estados Unidos do começo do século, em que se
enfoca a microssociologia dos modos de comunicação na análise da organização das
comunidades. Destacam-se os trabalhos de Robert Ezra Park (1864-1944), autor de uma
importante tese de doutorado sobre públicos e massas, e de textos que salientam sua
concepção das cidades como espaços de pura mobilidade. Park é, ainda, um dos introdutores
de Tarde em território americano. A segunda leitura significativa teria início a partir da
publicação, em 1969, da tese de doutoramento de Gilles Deleuze (1925-1995), Différence et
répétition. Tanto a obra de Deleuze quanto seus trabalhos publicados em companhia de Félix
Guattari (1930-1992), especialmente Mille plateaux (1980), são inspirados em preceitos
tardeanos, como o pensamento da diferença, a atenção ao infinitamente pequeno e a crítica da
lógica do negativo.
8
O terceiro movimento de releituras de Gabriel Tarde é derivado do
segundo deles. Desde 1999, vêm sendo republicadas as obras tardeanas basilares sob direção
do professor francês Eric Alliez. Nesta direção, a retomada de Tarde pelos pensadores do
grupo da revista Multitudes
9
tem rendido, nos últimos anos, boas repercussões aos estudos das
sociedades a partir de uma epistemologia que tem na aposta na diferença sua marca mais
significativa.
10
7
THEMUDO, Tiago Seixas. Gabriel Tarde: sociologia e subjetividade. Rio/Fortaleza: Relume Dumará/Governo
do Ceará, 2002, p. 17.
8
Destacam-se DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006; DELEUZE, G. A
dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus, 2005; DELEUZE, G e GUATTARI, F. “1933 - Micropolítica e
segmentaridade”. In: Mil platôs, vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004, p. 83.
9
O grupo Multitudes apresenta uma publicação que pode ser acessada via Internet.
Disponível em: <http://multitudes.samizdat.net> Acesso em: 13 ago. 2006.
10
Salientam-se dois estudos de Maurizio Lazzarato: o primeiro é uma aplicação do conceito tardeano de
invenção ao campo de estudos também tardeano da economia psicológica como alternativa teórica à tradicional
economia política; o segundo é uma leitura das transformações do capitalismo contemporâneo a partir da
teoria tardeana, em diálogo com a problemática do controle em Deleuze e o biopoder foucaultiano. Cf.
LAZZARATO, Maurizio. Puissances de l'invention. La psychologie économique de Gabriel Tarde contre
l'économie politique. Les Empêcheurs de penser en rond, 2002 ; LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do
capitalismo. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006.
15
No Brasil, os pesquisadores em Comunicação Social contam com uma boa tradução de
L’opinion et la foule, de 1901,
11
uma das últimas publicações de Gabriel Tarde, em que
conceitos elaborados ao longo de toda uma vida são aplicados a questões envolvendo a
formação de coletivos na Modernidade (o público e a multidão), a opinião pública e a
conversação. Contudo, a predominância, neste livro, de temas voltados à comunicação é
apenas mais um exemplo significativo de um repertório que varre quase uma década de
publicações de extensos estudos acerca das sociedades humanas a partir do valor da
comunicação, tratada em suas diversas instâncias. O solapamento da perspectiva tardeana no
século XX dificultou incisivamente que os pesquisadores do campo comunicacional nela
vislumbrassem uma alternativa epistemológica potente a seus estudos. Mesmo os leitores de A
opinião e as massas, por vezes, deparam-se com palavras (como sugestibilidade e imitação,
por exemplo) que são, de fato, conceitos de grande importância, elaborados minuciosamente a
partir das obras de sociologia geral de Gabriel Tarde, ainda, e infelizmente, desconhecidas da
maioria dos pesquisadores. No caso dos estudantes brasileiros, encontra-se, ademais, a
barreira do idioma estrangeiro a ser suplantada.
Em certo sentido, pretendemos, com este estudo em língua portuguesa das obras
relevantes de Gabriel Tarde, insistir que mais que um sociólogo, Tarde é um comunicólogo
penetrante. Em seus trabalhos, o valor da comunicação é continuamente reafirmado, como
neste trecho de um ensaio reproduzido em 1895:
A Sociologia tem como domínio essencial todos os fatos de comunicação entre
espíritos e todos os seus efeitos. Ela deve estudar a ação de contato ou à distancia – e
as distâncias crescentes ou decrescentes ao longo dos tempos que cada espírito
exerce sobre os outros por suas afirmações ou suas negações, por suas ordens ou
suas defesas, ou melhor, sem nada afirmar nem comandar expressamente, por seus
exemplos que são sempre algo de afirmativo ou de imperativo, e, como tais, de
sugestivo. Ela deve seguir as correntes de convicções e as correntes de vontades
coletivas que resultam delas; notar a alta ou a baixa, o crescimento ou a diminuição
destas correntes; mostrar os acoplamentos ou os conflitos destas correntes diversas
de crença ou das diversas correntes de desejo, quando elas se encontram, e deduzir
as leis lógicas de interferência ou de combinação que presidem a estes choques ou
acoplamentos; enfim, fazer ver como e por que estas forças colaboradoras ou
concorrentes chegam a organizar-se em um sistema duplo mais ou menos coerente,
mais ou menos estável, de proposições explícitas ou implícitas que se confirmam ou
não se contradizem muito, e de intenções evitadas ou não-evitadas que se ajudam ou
não se contrariam muito.
12
11
TARDE, Gabriel. A opinião e as massas (trad. Eduardo Brandão). São Paulo: Martins Fontes, 2005. Em 2003,
foi lançada, também, uma tradução para o ensaio Monadologie et Sociologie. Cf. TARDE, Gabriel. Monadologia
e sociologia (trad. Tiago Themudo). Petrópolis: Vozes, 2003.
12
TARDE, Gabriel. “La sociologie criminelle et le droit penal”. In: Essais et mélanges sociologiques. Québec:
L’Université du Québec, 2005, p. 102.
Disponível em:
<http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 13 ago. 2006.
16
Não seria exagero afirmar que a Sociologia, em Tarde, apresenta-se como uma subárea
da Comunicação Social. Isto ocorre porque, como veremos no decorrer deste trabalho, as
relações de comunicação (especialmente através da invenção e da imitação) engendram as
similitudes e diferenças necessárias à criação de grupos sociais. Tarde nos sugere, em um
trecho de Les lois de l’imitation, que a investigação do desenvolvimento das sociedades sem a
abordagem da comunicação seria como um estudo de física sem levar-se em conta a
elasticidade do meio em que se propagam as forças naturais.
13
Ademais, a importância de
temas como a linguagem e, notadamente, a conversação humana reforça o papel que a
comunicação desempenha no sistema filosófico tardeano.
Na abertura desta introdução, indicamos que Émile Durkheim teria sido o avatar da
constituição de uma sólida escola de pensamento, distinta por suas análises de grandes
representações coletivas como as religiosas e científicas, por exemplo a partir de uma
teoria do conhecimento fundamentalmente social. Dentre os pilares do durkheimianismo,
ressalta-se um de seus postulados mais significativos, relacionado à efetivação do método
científico sociológico: os fatos sociais devem ser encarados como “coisas”, uma vez que
disporiam de realidade objetiva e, portanto, seriam passíveis de observação externa.
Gabriel Tarde, pelo contrário, não subscrevia tal reificação dos fatos sociais como
ponto de partida para a constituição de um saber sociológico. Os fatos sociais em Tarde não
são “coisas”, mas resultantes transitórias de relações de forças que se dão tanto logicamente
quanto de modo ilógico. A mobilidade intrínseca à concepção tardeana do social pode ser
considerada uma alternativa a certa tendência idealista da escola durkheimiana. Com Tarde,
estilhaçamos a monolítica indagação “o que
algo é”
14
em uma série de pequenas perguntas,
como “onde é”, “quando é”, “quem é”, “quantos são”, com o proveito que este gesto acarreta
de deslocar o que é passível de observação dos inalcançáveis patamares da transcendência
para os plurais jogos de força em constante remanejamento em um solo imanente.
De fato, o que o filósofo questiona é o pressuposto da existência de um “espírito
coletivo”, uma “consciência social”, um “nós” que existiria fora dos espíritos individuais, e
que a eles se imporia por coação. Tarde privilegia as engrenagens infinitesimais que
compõem o real, o que tem como conseqüência direta sua opção pela investigação de questões
relacionadas a desejos e crenças que agitam a pluralidade do mundo vivo como um todo. Em
13
Cf. TARDE, Gabriel. Les lois de l´imitation. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p. 174.
14
“Il n’est pas sûr que la question qu’est-ce que? soit une bonne question pour découvrir l’essence ou l’Idée”.
Cf. DELEUZE, Gilles. “La thode de dramatisation” in L’île déserte et autres textes. (org. David Lapoujade).
Paris: Minuit, 2002.
17
contraposição ao durkheimianismo, Tarde poderia questionar: como partir da identidade de
milhões de homens sem considerá-la discutível? Não seria a diferença, e não a semelhança, a
origem das coisas e, ainda, o fim para onde todas elas se encaminhariam? Ora, é este impulso
de problematização das grandes generalizações que facom que o pensador não se foque
exclusivamente em representações sociais ressoantes e sobrecodificadas. Estas seriam, na
realidade, estágios de relativo equilíbrio conseqüentes de um vivo processo dinâmico. Tarde
dirige-se às condições processuais de formação das grandes representações, onde o que
há é movimento e transformação. Deleuze e Guattari ressaltam:
É por isso que Tarde se interessa mais pelo mundo do detalhe ou do infinitesimal: as
pequenas imitações, oposições e invenções, que constituem toda uma matéria sub-
representativa. E as melhores páginas de Tarde são aquelas em que ele analisa uma
minúscula inovação burocrática, ou lingüística etc. Os durkheimianos responderam
que se tratava de psicologia ou interpsicologia, e não de sociologia. Mas isso é
verdadeiro aparentemente, numa primeira aproximação: uma microimitação parece
efetivamente ir de um indivíduo a um outro. Ao mesmo tempo, e mais
profundamente, ela diz respeito a um fluxo ou a uma onda, e não ao indivíduo.
15
Nesta dissertação, proponho-me a apresentar as bases desta instigante perspectiva de
pensamento, sublinhando seu potencial para o desenvolvimento da teoria da comunicação
social. Sendo Tarde um autêntico pensador da diferença, busco contribuir para as pesquisas da
área no fomento de novas bases a partir de que se possa pensar uma teoria da comunicação
remetida à pura heterogeneidade imanente. Desta forma, evitaríamos adesões cegas a
generalizações ressoantes que, com freqüência, apresentam-se como verdades incontestáveis
de nosso campo de estudos. Creio, ainda, que esmiuçar conceitos como os de imitação,
invenção, oposição e muitos outros, seria bastante profícuo em nossa conturbada
contemporaneidade. Por exemplo, a manutenção de muitos regimes democráticos é devida,
em grande parte, à força magnetizadora de grandes deres (na América do Sul, atualmente
dispomos de fortes confirmações desta tendência), que somam força pessoal à sugestibilidade
generalizada de meios de comunicação, fazendo tombar todo um povo em catalepsia
sonambúlica. Por outro lado, a emergência de novas tecnologias da comunicação, como os
telefones celulares e a Internet, potencializa o que se poderia entender como imitação à
distância das crenças e desejos. Ainda em relação aos dispositivos comunicacionais de longa
distância, inauguram-se interessantes espaços de resistência, com a possibilidade da formação
de coletividades anônimas de ação global, por exemplo. Enfim, pululam exemplos de cotejos
15
DELEUZE, G & GUATTARI, F. Mil platôs, vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. op. cit., p. 98.
18
profícuos da perspectiva tardeana com as investigações das relações de comunicação na
contemporaneidade, como procuraremos mostrar ao longo deste trabalho.
Com relação à metodologia empregada, apesar de trabalhar efetivamente com toda a
bibliografia de Gabriel Tarde, concentro-me em especial nas chamadas obras de sociologia
geral do autor (Les lois de l’imitation, La logique sociale e L’opposition universelle) e em seu
vigoroso ensaio filosófico Monadologie et sociologie. Cabe ressaltar que minha restrição
metodológica não significa que os demais trabalhos de Tarde deixarão de comparecer ao
longo do texto, quando necessário. Pelo contrário, eles permearão todos os capítulos com
exemplos, oferecimento de novos conceitos ou elucidação de conceitos expostos, como o
leitor poderá constatar.
Quanto à divisão dos capítulos, limito-me a apresentar e discutir alguns temas
tardeanos cruciais para o campo da comunicação em cada um deles. Dando seqüência a esta
introdução, o primeiro capítulo é dedicado à exposição das bases teórico-filosóficas a partir
das quais Gabriel Tarde constituirá seus conceitos mais importantes. Trata-se de uma
apresentação do pensamento da diferença em Tarde, alicerçado em bases leibnizianas, as
quais igualmente proponho-me a resumir. Busco retraçar o caminho percorrido por Tarde para
a moldagem de uma sociologia da diferença baseada na pura heterogeneidade imanente dos
elementos infinitamente pequenos que formam o universo. Apresento, ainda, os conceitos de
crença e desejo, base de todo o edifício filosófico de Tarde, procurando demonstrar que estas
duas quantidades psicológicas serão os únicos elementos comunicáveis de seu ponto de vista.
No segundo capítulo, indico de que forma o pensamento da diferença elaborado por Tarde não
prescinde da investigação das similitudes sociais, que terão por causa, como veremos, a força
da imitação. Para isso, exponho inicialmente o contexto histórico-epistemológico da segunda
metade do século XIX, que tornaria possível a cunhagem de tão curioso conceito. Trato
resumidamente da questão da modernização da percepção, em curso nessa formação histórica,
e faço um breve histórico do fenômeno da hipnose e da sugestão na década de 1890, que será
imprescindível para a imitação. Em seguida, caracterizo a imitação tardeana a partir de suas
especificidades, que considero extremamente enriquecedoras para o pesquisador em
comunicação. O terceiro capítulo tratará do modus operandi da imitação, de suas leis lógicas e
influências extralógicas, bem como da proposição tardeana de uma metodologia de análise
das ações imitadas através da estatística. Já o quarto capítulo versará acerca da potência da
força individual da invenção como inerente ao próprio movimento do sócius, em um jogo
contínuo e necessário com a imitação social. Nos capítulos 1, 2 e 3, apresento as leis das
semelhanças sociais para, em seguida, no capítulo 4, demonstrar que elas carregam em seu
19
bojo os germes de sua própria dissolução. Finalmente, no último capítulo deste trabalho,
aprofundo-me um pouco mais no tema da diferença em Gabriel Tarde esmiuçando o conceito
de oposição, em que as heterogeneidades comunicadas são contribuintes da variação universal
de modo mais significativo que as simples oposições baseadas em uma dialética de natureza
hegeliana, por exemplo. Além de redefinir, em um esforço teórico, o pensamento tardeano
como fundamentalmente comunicacional, proponho-me igualmente em apresentar, em
determinados pontos do trabalho, possíveis abordagens tardeanas de temas preferenciais de
nosso campo de estudos.
Em certo sentido, este trabalho inspira-se no que Michel Foucault, a partir de uma
variação do conceito de Friedrich Nietzsche (1844-1900), determinou como método
genealógico. Ao trazer à tona os meandros da perspectiva tardeana, interesso-me em
“espreitar o acontecimento”,
16
no sentido que Foucault deu a esta expressão, como um
dissecar de uma relação de forças que se inverte, lançando luzes sobre um poder que é
brutalmente confiscado. Nosso intento não é, desta forma, fazer uma pura historicização
neutra, mas produzir, a partir da releitura contemporânea de Gabriel Tarde, um potente
discurso-arma. Ao dar vida novamente a este saber que fora brutalmente “confiscado” em
nome da objetividade científica, fazemos respirar também os pressupostos que foram
considerados desestabilizadores em seu tempo. Ao adquirir força no presente, esta perspectiva
deixa transparecer que, de fato, o objeto deste trabalho de inspiração genealógica são as
relações comunicacionais de nossa plurívoca contemporaneidade.
16
FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal,
1982, p. 28.
20
1.
“H
YPOTHESES FINGO
!”
PRESSUPOSTOS DA COMUNICAÇÃO NA
D
IFERENÇA
A fertilidade de uma área de saberes é intrinsecamente vinculada a sua aptidão para a
criação contínua de novas hipóteses. Reconstruir incessantemente novos começos, revigorar
forças dissidentes e conflitos mascarados, restituir a potência de batalhas silenciosas e
microscópicas: em suma, vislumbrar novas perspectivas e dissolver “verdades” que
reiteradamente têm-nos impedido a exploração audaciosa de um solo epistemológico em pura
oscilação e construção. O campo teórico da Comunicação Social, a despeito de sua tenra
idade, tem demonstrado, em um número cada vez mais significativo de seus trabalhos, sisudez
tão anciã quanto improdutiva, freqüentemente simulada como respeito aos “cânones” da área.
“Hypotheses Fingo!”,
17
exclamaria Gabriel Tarde. Assumir a invenção dos
pressupostos é afirmar o perspectivismo, negar qualquer adesão a verdades absolutas. A
imponência da verdade dissolve-se no ato alegre de contemplação da mudança inerente ao
próprio pensamento.
Hypotheses fingo, diria eu ingenuamente. O que de perigoso nas ciências não são
as conjecturas acompanhadas de perto, logicamente seguidas até as últimas
profundezas ou aos últimos precipícios, mas, sim, os fantasmas de idéias em estado
flutuante no espírito. O ponto de vista sociológico universal me parece ser um desses
espectros que habitam o cérebro de nossos contemporâneos especulativos. Vejamos
desde aonde ele deve nos levar. Sejamos exagerados, mesmo correndo o risco de
passarmos por extravagantes. Especialmente nessa matéria, o medo do ridículo seria
o mais antifilosófico dos sentimentos.
18
Este capítulo é inteiramente dedicado à exposição dos pressupostos teórico-filosóficos
de nosso filósofo/sociólogo. Sem eles, o avanço na explanação dos conceitos tardeanos
tornar-se-ia mera apresentação, desprovida de envolvimento nos recônditos da instigante
perspectiva de que tratamos. Resumidamente, mapearemos algumas das linhas de força
17
“Eu invento hipóteses”
18
TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 58.
21
principais do pensamento da diferença em Gabriel Tarde. Para isso, buscamos alcançar três
objetivos bastante ambiciosos: indicar pontos relevantes da releitura que Tarde operou no
arcabouço filosófico de Gottfried Wilhelm Leibniz para o delineamento da concepção do
infinitamente pequeno e do heterogêneo; apresentar os dois elementos-chave da perspectiva
tardeana: a crença e o desejo; finalmente, discutir a relevância de tais elementos para a
formação das similitudes de toda espécie. Ao elaborarmos este último ponto, somos
naturalmente conduzidos ao segundo capítulo, que procura explorar o conceito de imitação.
1.1
O
PROBLEMA DA SIMILITUDE ORIGINAL DOS HOMENS
A proposição de um pensamento das micro-engrenagens sociais é indissociável da
rediscussão minuciosa dos pressupostos em que se baseiam as perspectivas mais tradicionais
de análise das sociedades. Mais especificamente, deve ser problematizado um dos axiomas
mais incorporados das ciências sociais, assim como das ciências sociais aplicadas, de que
participa a Comunicação Social: trata-se da similitude original dos homens. A crítica
pormenorizada deste ponto crucial pode dirigir-nos com maior acuidade às hipóteses
exploradas por Gabriel Tarde. Analisemos, portanto, o axioma supracitado.
Grosso modo, o pressuposto da similitude original dos homens postula que todos os
indivíduos teriam nascido semelhantes uns aos outros em suas aptidões, crenças, desejos,
objetivos etc. Por tal razão, todas as transformações que porventura se efetuassem ao longo de
sua existência seriam tributárias de determinações sociais exteriores aos próprios indivíduos.
Em outras palavras, a similitude original dos homens comportaria um estado de
homogeneização pacífica em si mesma, que só poderia ser perturbada por uma entidade
exterior aos seres sociais imanentes.
Ora, se optamos por acompanhar a tradição das ciências sociais e, com isso, partimos
da identidade original de todos os seres para compreender as diferenças do mundo das
sociedades, não nos sobra alternativa teórica senão a adesão a grandes generalizações
abstratas, encaradas como reais motores das transformações sociais. É precisamente neste
ponto na necessidade de compreensão da razão das alterações vigentes no tecido social
que surgem elementos teóricos de natureza transcendente, coercitivos por natureza, que
imporiam aos homens as diferenciações vigentes em seus agrupamentos.
Como fora indicado na Introdução, a perspectiva durkheimiana prima por sua
insistente recorrência à determinação do social como entidade transcendente. Podemos
22
exemplificar tal peculiaridade do pensamento de Émile Durkheim por meio de uma breve
análise do conceito de fato social, exposto e desenvolvido em uma de suas obras clássicas, As
regras do método sociológico, de 1894. O fato social seria aquilo que de “geral existe na
extensão de uma sociedade dada, tendo uma existência própria, independente das
manifestações individuais”.
19
Em suma, para Durkheim, se todos os indivíduos de uma
formação social fossem subitamente excluídos, ainda assim persistiria a sociedade, dado que
a razão de sua existência não são os homens que a constituem, mas sim o fato social. Tudo se
daria como se um “eu coletivo” se originasse espontaneamente a partir da intensificação das
relações entre os elementos individuais semelhantes. Daí se justifica a diferença social vigente
na complexidade dos coletivos humanos.
20
Cabe-nos um questionamento geral às perspectivas de inspiração durkheimiana, tão
presentes no campo da Comunicação Social: a que princípio serviriam artimanhas
extravagantes como a de voltar-se a uma entidade transcendente causadora da diferenciação
dos homens senão ao pressuposto tradicional da identidade e do homogêneo no coração das
coisas? O pensamento do social baseado no princípio da identidade apresenta implicações
sobre as quais não podemos furtar-nos a refletir: a eliminação de tudo o que é vivo, puro
movimento, heterogeneidade, acaso, nuances e coloração das diversas coletividades humanas,
em nome de uma reificação cinza e monolítica. Gabriel Tarde reflete acerca do conceito de
fato social, a partir das críticas incisivas de Durkheim à sua proposta de sociologia:
Infelizmente, levando assim às últimas conseqüências e objetivando a distinção ou,
sobretudo, a separação do subjetivo ao fenômeno coletivo e aos atos particulares de
que este fenômeno se compõe, M. Durkheim nos remete à Escolástica plena.
Sociologia não quer dizer ontologia. Tenho muita dificuldade em compreender
confesso – como se pode afirmar que “descartados os indivíduos, resta a Sociedade”.
Retirados os professores, não vejo muito bem o que resta da Universidade Se ela
não é mais que um nome, se não é conhecida por ninguém, com o conjunto de
tradições que exprime, ela não é absolutamente nada. Vamos retornar ao realismo da
Idade Média? Eu me pergunto qual vantagem encontramos, sob pretexto de
aperfeiçoar a sociologia, em esvaziá-la de todo seu conteúdo psicológico e vivo.
19
DURKHEIM, Émile. Les règles de la méthode sociologique. Québec: L’Université du Québec, 2002. p. 23.
Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso
em: 27 jun. 2006. Grifo meu.
20
Um curioso exemplo da aplicação de tais pressupostos durkheimianos se em outro clássico do sociólogo,
Da divisão social do trabalho, de 1893, em que o conceito de fato social é evocado como razão da passagem das
sociedades mais primitivas, regidas por “solidariedade mecânica” para os grupos sociais mais complexos,
movidos por “solidariedade orgânica”. Em um dos artigos da coletânea “Essais et mélanges sociologiques”
denominado Questions sociales, Gabriel Tarde rediscute os pressupostos desta eminente obra de sociologia.
Ressalta, sobretudo, quão problemático é partir da identidade dos seres na descrição do desenvolvimento das
sociedades, desconsiderando “o acidental, o irracional, esta dobra no fundo das coisas”. Cf. DURKHEIM, Émile.
De la division du travail social. Québec: L’Université du Québec, 2002; TARDE, Gabriel. Essais et mélanges
sociologiques. Québec: L’Université du Québec, 2005, p. 132. Disponíveis em:
<http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 27 jun. 2006.
23
Parece que se busca um princípio social em que a psicologia não é inserida, criado
muito expressamente pela ciência que se constrói, e que me parece muito mais
quimérico que o antigo princípio vital.
21
Restituir o dinamismo próprio à vida dos homens e ao pensamento das sociedades,
como quer Tarde, parece configurar-se um caminho profícuo, contudo sabidamente árduo de
se seguir. Enveredar-se pela estrada da pura diferença entre os homens, considerando cada ser
social nascente como um universo de pluralidades e variações, pressupõe o estabelecimento
de novas e potentes hipóteses. Se se parte da diferença, o que se deverá explicar são
justamente a homogeneização, as semelhanças e ordens que se apresentam no mundo social,
ao lado das singularidades. Ora, interessa-nos esta verdadeira inversão dos pressupostos
tradicionais apenas no sentido de que, com ela, poderemos prescindir de entidades abstratas e
transcendentes para lidar com o que é tão-somente imanência. É por esta razão que propomos
um mergulho profundo no universo teórico insuflador de Jean-Gabriel Tarde. Contudo, para
melhor adentrarmos nos meandros da teoria social tardeana ancorada na heterogeneidade,
cumpre indicarmos um primeiro princípio filosófico, ele próprio já bastante audaz. Este
pressuposto demonstra a ambição do pensamento de Tarde em estender-se para além do
campo de saber bem demarcado que se tornaria, então, a sociologia.
1.2
A
S ESFERAS FÍSICO
-
QUÍMICA
,
VITAL E SOCIAL
Em Gabriel Tarde, o universo apresenta três esferas distintas que, apesar de se
discernirem por particularidades evidentes, são pautadas pelas mesmas leis gerais. Isto porque
se buscam princípios regentes do mundo social que não contradigam as leis gerais do cosmos.
Estes três âmbitos ou esferas de que trata nosso filósofo são o mundo físico-químico, ou
seja, o universo invisível povoado de miríades de partículas, átomos, moléculas e agregados
que formam a matéria; o mundo vital, composto por seres vivos de espécies variadas que
habitam o planeta e, finalmente, o mundo social, constituído pelos milhões de humanos
diferentes em suas interrelações cotidianas.
Embora regidas por princípios correlatos, estas três séries universais não são
independentes umas das outras, à exceção da série físico-química. Ela será a precondição para
o surgimento da série vital, que dará origem à série social. O social, portanto, é duplamente
dependente: tanto da série vital quanto da série físico-química. Sendo assim, o último termo
21
TARDE, Gabriel. La logique sociale. Paris: Institut Synthélabo, 1999, p. 62.
24
da série físico-química é o primeiro termo da série vital, e o último termo da série vital é o
primeiro termo da série social. Logo, para Tarde, a esfera social inicia-se no indivíduo
singular, com suas “aptidões características”.
22
Torna-se evidente que a distinção entre
Homem e Natureza é puramente de grau, que tudo o que constitui o cosmos deriva da
mesma matéria.
O entrelaçamento em séries complementares destes três âmbitos – físico-químico,
biológico e social nos forneceria de imediato uma pista proveitosa a respeito da matéria que
é comum a todos os seres. Partindo-se do indivíduo (primeiro termo da série social e último
da série vital), quanto mais descemos em direção aos outros termos da série vital, e, em
seguida, aos termos da série físico-química, mais nos avizinhamos de elementos de
constituição microscópica, de seres infinitamente pequenos. Sendo assim, mesmo se
tomarmos o protoplasma – este ser já tão pequeno – como ponto de partida, aguarda-nos ainda
uma série de elementos microscópicos, como nos indica Tarde a seguir:
Mas o protoplasma, primeiro termo da série vital, não é também o último termo da
série química? E percorrida, por sua vez, esta última nos mostra os tipos moleculares
cada vez menos complexos da química orgânica, e os tipos moleculares, também
cada vez menos complexos, da química inorgânica; todos regularmente edificados e
que provavelmente consistem de ciclos harmoniosos de movimentos periódicos e
ritmados, mas todos separados uns dos outros pelas crises tumultuosas e
desordenadas de suas combinações; e assim, por conjectura, chegamos ao átomo ou
aos átomos mais simples dos quais os outros seriam formados. Mas é este o
elemento inicial? Não. Pois o átomo mais simples é um tipo material, um turbilhão
se diz, um ritmo vibratório de um determinado gênero, algo infinitamente
complicado, conforme as aparências.
23
O mergulho abissal no infinitamente pequeno da série físico-química não nos conduz
ao átomo, como se poderia supor. algo cuja realidade nos é inapreensível, dotada de
elementos igualmente inalcançáveis para o saber humano. Nossos meios de conhecimento
permitir-nos-iam uma aproximação turva, até certo ponto, desta misteriosa série de elementos
que, pouco a pouco, reduzem-se em tamanho, até que não os possamos mais vislumbrar. Uma
molécula de gás oxigênio, um camelo do Saara ou um morador de Bogotá são aproximáveis,
portanto, pelas séries de que são constituídos. Compreenderemos, no próximo capítulo, como
os tipos comuns de cada uma destas séries se acercam, sobretudo, pelo modo como se
reproduzem em tipos semelhantes. A força que engendra similitudes opera de forma análoga
nas séries físico-química, vital e social.
22
“Essas aptidões características são ao mesmo tempo o primeiro termo da série social e o último termo da série
vital”. Cf. TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. op.cit., p. 75.
23
Ibid., p. 75.
25
Antes, porém, convém abordarmos o notável ponto que diz respeito à diferenciação de
grau entre indivíduo e Natureza. Já sabemos que as três esferas do universo a série físico-
química, a série vital e a série social são interligadas e formadas por elementos
microscópicos que se relacionam. A questão que naturalmente se introduz é: o que são estes
elementos que constituem tudo o que há? Como o homem pode ser, por um lado, uma parte
do mundo social e um todo da série vital?
1.3
O
INFINITESIMAL NA CIÊNCIA MODERNA
Gabriel Tarde reconhece, nas ciências de sua época, uma tendência que a nossa
contemporaneidade intensifica e prolonga: a “pulverização da matéria e a espiritualização da
poeira”.
24
Mais e mais, detectava nosso sociólogo, o foco dos saberes humanos se dirigia ao
infinitamente pequeno, como poderíamos facilmente corroborar com o recrudescimento da
física quântica atual e da biologia molecular, por exemplo. Tal inclinação em relação ao
pensamento do microscópico segue, segundo Tarde, dois princípios filosóficos importantes:
em primeiro lugar, uma concepção de matéria que não seja puramente espacial ou, no
linguajar tardeano, a redução de duas entidades matéria e espírito a apenas uma, o
espírito.
25
Supõe, ainda, a descontinuidade dos elementos componentes do universo e a
conseqüente homogeneidade do ser de cada um deles. Respeitadas as singularidades de cada
ciência, todas pareceriam reforçar que o mundo é formado por elementos heterogêneos e
descontínuos, sempre iguais a eles mesmos. Tais elementos, entretanto, não respeitariam
noções tradicionais de matéria como tudo aquilo que apresenta extensão, e, portanto, ocupa
lugar no espaço. As heterogeneidades elementares não são extensas, uma vez que são,
fundamentalmente, forças.
De fato, o que se questiona na ciência moderna é o abismo entre o movimento e a
consciência, o objeto e o sujeito, a mecânica e a lógica, a ponto deste abismo ser negado de
forma veemente. Isto se nas mais diversas áreas de conhecimento. A química, por
exemplo, nos leva à negação da continuidade material pela afirmação do átomo. Tarde
enfatiza que o problema essencial das “novas” teorias químicas seria o de conferir aos
próprios elementos químicos as propriedades que antes eram dadas apenas aos radicais.
24
Ibid., p. 45.
25
Ibid., p. 19.
26
Antes considerados em bloco, os elementos químicos passam a dispor de uma marca própria,
o que estimula o saber químico a pensar a descontinuidade.
Não há aqui nenhuma evolução, nenhuma transição; tudo é claro, repentino, distinto;
e, no entanto, tudo o que há de ondulante, de harmoniosamente graduado nos
fenômenos, vem daí, mais ou menos como a continuidade das nuanças seria
impossível sem a descontinuidade das cores.
26
Mas não seria privilégio da química tal direcionamento rumo ao heterogêneo: também
as matemáticas, a “história natural”, a história e a física encaminhavam-se no mesmo sentido.
A teoria newtoniana da gravitação teria fragmentado a individualidade do corpo celeste ao
postular que a gravitação do mesmo é a soma da gravitação de todas as massas de que ele é
composto. As massas celestes gravitam umas em relação às outras, e o mesmo se daria com
cada uma de suas moléculas. Tarde salienta que “foi preciso um grande vigor de espírito para
transformar esta unidade aparente em uma multiplicidade de elementos distintos ligados entre
si da mesma maneira com que se ligam aos elementos de outros agregados”.
27
A teoria celular vai por um caminho correlato. O organismo é pulverizado em células,
ao passo que essas são estilhaçadas em átomos, todos ávidos pelo desenvolvimento de suas
singularidades. Para citarmos somente uma conseqüência de tal perspectiva no que toca ao
tratamento da vida, presenciaríamos a reconfiguração conceitual do que seria uma “doença”.
Tal como o princípio vital, a doença, outra entidade tratada como uma pessoa pelos
antigos médicos, se pulveriza em desordens infinitesimais de elementos
histológicos. Além disso, graças sobretudo às descobertas de Pasteur, a teoria
parasitária das doenças, que explica tais desordens através dos conflitos internos
entre organismos minúsculos, se generaliza dia após dia, e com um tal excesso que
demanda uma reação. Mas os parasitas têm também seus parasitas. E assim por
diante. Outra vez o infinitesimal!
28
Em História, o mesmo deslocamento epistemológico em direção ao infinitesimal se
dava. Contavam-se as histórias das nações, como se estas se animassem como pessoas, e
relegavam-se os indivíduos a planos inferiores, dependentes desta História maior estrutural.
Tarde, pelo contrário, sugere que, também em História, as singularidades microscópicas
importam, especialmente as “ações de homens inventivos que serviram de modelo aos outros
e se reproduziram em milhares de exemplares, espécie de células-mãe do corpo social”
29
.
26
Ibid., p. 20.
27
Ibid., p. 20.
28
Ibid., p. 21.
29
Ibid., p. 22. Grifo meu.
27
Em suma, estava em jogo um poderoso deslocamento epistemológico de um modelo
em que prevaleciam grandes generalizações explanatórias para outro em que seriam seguidos
estes dois princípios que acima detectamos: a afirmação, por um lado, de que os elementos
constitutivos do universo são heterogêneos e descontínuos e, por outro, do rompimento do
dualismo matéria versus espírito em nome deste último (reinterpretado ou, como dizia
Nietzsche, transvalorado). De qualquer maneira,
os verdadeiros agentes seriam, portanto, esses pequenos seres que dizemos ser
infinitesimais, e as verdadeiras ações seriam essas pequenas variações que dizemos
ser infinitesimais. Parece resultar do que precede que esses agentes são autônomos,
que essas ações se chocam e se entravam tanto quanto cooperam. Se tudo parte do
infinitesimal, é que um elemento, um elemento único, tem a iniciativa de uma
mudança qualquer; movimento, evolução vital, transformação mental ou social.
30
Tarde presume a possibilidade de investigar as sociedades a partir de novos princípios,
dos verdadeiros agentes imanentes a toda transformação social, sem ceder às generalizações
abstratas e transcendentes. Para isso, postula que “a
fonte, a razão de ser, a razão do finito, do
segmentado, está no infinitamente pequeno, no imperceptível: tal é a profunda convicção que
inspirou Leibniz”.
31
Nosso arguto sociólogo identifica na ciência de seu tempo grande
influência dos pressupostos teórico-filosóficos do eminente filósofo Gottfried Wilhelm
Leibniz (1646-1716), em especial de sua Monadologia.
32
A partir de uma releitura da
Monadologia leibniziana (escrita em 1714), Tarde proporá uma “neomonadologia”, que
introduziria no pensamento das sociedades, em caráter inaugural, a riqueza da diferença
infinitesimal. Elucidemos, portanto, algumas das linhas mestras da monadologia renovada
proposta por Gabriel Tarde. Tal monadologia servirá de esteio para o desenvolvimento de um
autêntico saber sociológico, que desvia seu foco das grandes representações sociais e coletivas
para os micro-agenciamentos do real, possibilitando o pensamento de uma sociedade a partir
de suas diferenças heterogêneas internas em contínua transformação. Para que melhor se
compreenda a perspectiva monadológica tardeana, convém expormos, muito resumidamente,
este importante conceito que compõe o edifício filosófico leibniziano: a mônada.
30
Ibid., p. 27.
31
Ibid., p. 24.
32
Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. La Monadologie. Québec: L’Université du Québec, 2002. Disponível em:
<http://classiques.uqac.ca/classiques/Leibniz/La_Monadologie/leibniz_monadologie.doc> Acesso em: 27 jun.
2006.
28
1.4
A
INSPIRAÇÃO LEIBNIZIANA
:
A MÔNADA
A história da filosofia tradicional, com o ímpeto para a classificação que naturalmente
comporta, designa Leibniz como um notável representante do “racionalismo”, ao lado de
pensadores não menos importantes como Descartes, Pascal e Spinoza. Leituras renovadas de
Leibniz, dentre as quais destaca-se a ondulante perspectiva deleuziana sobre o conceito de
Dobra,
33
permitem-nos conceber o filósofo barroco como um racionalista bastante peculiar.
Interessa-nos, especialmente, um dos mais potentes aspectos desta “peculiaridade”
leibniziana: sua teoria das mônadas, ou Monadologia, que constitui o cerne de sua ontologia.
A ontologia leibniziana é motivada por dois problemas, basicamente: o movimento e a
matéria. No que toca à problemática do movimento, questiona-se desde como uma
determinada substância, em repouso, poderia pôr-se em movimento até o que faz com que
esta substância adquira determinada trajetória em lugar de outra. O filósofo indaga-se sobre a
consistência da matéria a partir de uma crítica a Descartes: não pareceria plausível
compreender a matéria como pura extensão geométrica, tal como pretende o filósofo francês.
Tal concepção valoriza a espacialidade em detrimento do movimento, da ação. Se se quer,
como Descartes, que as coisas sejam extensão, como pensar o movimento? É preciso repensar
a matéria, segundo Leibniz, não em termos de extensão geométrica, mas em termos de força
e, conseqüentemente, como ação.
É desta urgência de repensar a matéria, restituindo-lhe a potência da ação, que se
constitui a hipótese das mônadas. Em Leibniz, todo universo é composto por forças
indivisíveis chamadas mônadas. As mônadas são inteiramente fechadas, porém contêm todo o
mundo virtualmente em seu fundo sombrio, em que apenas uma parte muito pequena deste
mundo seria iluminada, atualizada de fato. Cada mônada apresentaria apenas uma perspectiva
do universo, mas, de direito, conteria em si tudo o que realmente há. Uma mônada apreende o
universo, portanto, sempre a partir de um determinado ponto de vista.
Se as mônadas são forças que agem, como apreendem o mundo a partir de um ponto
de vista? Como agem? Ocorre que as mônadas leibnizianas são dotadas de duas capacidades:
a percepção e a apetição. A percepção consistiria no ato psíquico de obtenção do múltiplo de
que é formado o universo a partir de uma simplificação desta complexidade: seria uma
espécie de economia. a apetição seria a ação de passar-se de uma percepção a outra.
33
Cf. DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o Barroco. op. cit. passim.
29
Dotadas destas duas capacidades, as mônadas seriam estas variações contínuas de vivências,
força e ação puras.
A matéria, portanto, não apresenta extensão. Ela não é espacial, uma vez que é força.
Ela é pura multiplicidade. Como apreendem o universo cada uma a sua maneira, por sua
região iluminada, as mônadas são, fundamentalmente, heterogêneas, diferentes umas das
outras.
Além da diferenciação em natureza própria a cada mônada, haveria em Leibniz um
outro sentido de diferenciação, porém em grau. Este último se daria a partir de uma
verdadeira hierarquia que as mônadas formariam. As capacidades de apercepção e de
memória garantiriam a superioridade de algumas mônadas em relação às demais. Todas
poderiam apreender o múltiplo do universo a partir do simples, e passar de uma apreensão a
outra, uma após a outra. Entretanto, algumas mônadas disporiam do dom de ter consciência
desta apreensão. Denomina-se apercepção esta vocação para perceber (apreender a
complexidade a partir do simples) de forma consciente. Para um homem, ouvir o barulho de
uma onda no mar, por exemplo, implica perceber e aperceber. Há a consciência da apreensão
do ruído como um todo (apercepção), mas não dos milhares de ruídos que estão ali presentes
mas que, efetivamente, são apreendidos, percebidos.
No degrau mais baixo da hierarquia monádica estão as mônadas materiais, cujos
conglomerados de força comporiam os corpos físicos. Elas seriam dotadas, como toda
mônada, de percepção e de apetição, mas não de apercepção. Já as mônadas superiores
seriam o que comumente conhecemos como almas. Estas sim seriam dotadas de percepção,
apercepção, apetição e memória. Os animais em geral comporiam esta categoria de
mônadas.
34
Em um degrau superior estariam os espíritos, mônadas dotadas não somente de
percepção, apercepção, apetição e memória como também de uma proveitosa capacidade de
distinguir as verdades da razão (juízos que podem ser formados independentemente da
experiência) das verdades de fato (juízos que podem ser concebidos a partir da
experiência). Nesse patamar estariam os homens em geral. Finalmente, no mais alto degrau da
hierarquia das mônadas em Leibniz encontraríamos a Mônada Superior, a única capaz de
apreender o universo inteiro de forma consciente e a partir de todos os pontos de vista, e não
apenas de um deles. Esta Mônada Superior, absolutamente iluminada, corresponderia a Deus.
34
“Aqui Leibniz opõe-se radicalmente à teoria de Descartes, que afirmava que os animais não têm alma, que são
puros mecanismos, iguais aos relógios, e funcionam como relógios. Pois bem: Leibniz considera que não tal,
antes que os animais m alma, porque têm apercepção, se dão conta e ademais têm memória”. Cf. MORENTE,
Manuel García. Fundamentos de Filosofia – lições preliminares. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1980, p. 209.
30
Se as mônadas são forças heterogêneas indivisíveis, lança-se uma questão de suma
importância: como se daria a ordenação no mundo? As mônadas em Leibniz são fechadas,
não havendo nelas portas ou janelas.
35
A única solução possível, dadas estas condições, seria
intuir algo como um acordo predeterminado entre as mônadas, em que uma lei totalizadora
ditaria os destinos de cada uma delas, inclusive as ações conjuntas com outras mônadas. O
filósofo alemão institui, portanto, a noção de “harmonia preestabelecida” em sua
Monadologia. Tal “harmonia preestabelecida” pressupõe que, antes do surgimento de todas as
mônadas, a Mônada Superior (Deus) teria designado a harmonia entre elas ao longo de toda
sua duração. Desta maneira, ao postular o acordo preestabelecido das mônadas, neste
“comando místico” divino, não haveria necessidade de comunicação entre elas, e a ordenação
do universo estaria garantida.
Gabriel Tarde reconhece a potência da monadologia leibniziana, mas não pode
corroborar a “harmonia preestabelecida”, dado seu caráter de solução transcendente a uma
problemática basicamente imanente, que diz respeito à comunicação das diferenças que
povoam o universo. É por isso que o filósofo questiona que
[...] se os elementos do mundo nasceram à parte, independentes e autônomos, não se
sabe por que um grande mero dentre eles e um grande número de seus
agrupamentos (por exemplo, todos os átomos de oxigênio e hidrogênio) se
assemelham, senão perfeitamente, como se supõe sem razão suficiente, ao menos em
limites mais ou menos fixos; não se sabe por que um grande número dentre eles,
senão todos, parecem ser cativos e sujeitados, tendo renunciado a essa liberdade
absoluta que implica sua eternidade; enfim, não se sabe por que a ordem, e não a
desordem e, inicialmente, a condição primeira da ordem, a concentração crescente, e
não a dispersão crescente, resulta de suas relações. Aqui também parece ser preciso
recorrer a novas teorias. Como complemento de suas nadas fechadas, Leibniz faz
de cada uma delas um quarto escuro no qual o universo inteiro das outras mônadas
se pinta em tamanho reduzido através de um ângulo especial; e, além disso, ele
precisou imaginar a harmonia preestabelecida, da mesma maneira que, como
complemento de seus átomos errantes e cegos, os materialistas tiveram de invocar as
leis universais ou a fórmula na qual caberiam todas essas leis, espécie de comando
místico ao qual todos os seres obedeceriam e que não emanaria de nenhum ser,
espécie de verbo inefável e ininteligível que, sem jamais ter sido pronunciado por
ninguém, seria, no entanto, sempre em todos os lugares escutado.
36
Por conseguinte, seria preciso perscrutar outra resposta para esta ordenação das
diferenças elementares, mas que faça parte de um solo de pura imanência. A proposta de
nosso filósofo é a de que se reformulem conceitualmente as mônadas. Será necessário
concebê-las não mais como universos fechados em si mesmos, mas, pelo contrário, dotá-las
35
“As Mônadas não têm em absoluto janelas, pelas quais alguma coisa possa entrar ou sair”. Cf. LEIBNIZ,
Gottfried W. La Monadologie, § 7.
36
TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. op. cit., p. 45.
31
de portas e janelas. As mônadas deverão ser abertas para que haja comunicação efetiva entre
elas. É por meio deste engenhoso gesto filosófico, através desta sutil operação conceitual, que
Gabriel Tarde prescinde do apelo ao transcendente caro à monadologia leibniziana. O ponto-
chave da reformulação proposta pela neomonadologia tardeana parte de um questionamento
da impenetrabilidade das mônadas, ao fato de elas serem exteriores umas às outras.
Naturalmente, isto conduzirá seu pensamento a admitir uma vigorosa interpenetração destas
forças heterogêneas que formam o mundo:
Pode-se esperar resolvê-los [os mistérios envolvendo a harmonia das mônadas]
concebendo as mônadas abertas, interpenetrando-se, em vez de serem exteriores
umas às outras? Assim me parece, e observo que, nesse aspecto, os progressos da
ciência, não contemporânea mas moderna, favorecem a eclosão de uma
monadologia renovada.
37
Como em outras ocasiões, Tarde buscará apoio na ciência moderna para sua
neomonadologia, especialmente na física. Ele nos indica que mesmo a então longínqua
física newtoniana pressupunha um potente questionamento da impenetrabilidade dos corpos,
especialmente na lei da atração, cuja base contempla o princípio de que uma contínua ação
de um corpo sobre outro mesmo à distância.
A comunicabilidade das mônadas seria o pressuposto para a formação de ordens e
semelhanças no mundo em suas três esferas: físico-química, vital e social. Restaria explicar,
todavia, quais componentes deverão ser comunicados, uma vez que, para que se efetue
qualquer tipo de comunicação, é preciso que haja algo a ser posto em comum. Caberá a Tarde
identificar o que nos assemelha, o que nos possibilita viver em conjunto, seja em sociedade
atômica, sociedade animal ou sociedade humana.
Como em Leibniz, a mônada tardeana é composta de sua qualidade especial, de sua
singularidade, de uma preciosidade que faz dela um ser único em todo o universo, em eterna
diferenciação própria, uma vez que existir
[...] é diferir, e, de certa forma, a diferença é a dimensão substancial das coisas,
aquilo que elas têm de mais próprio e mais comum. É preciso partir daí, evitando
qualquer explicação; para onde tudo caminha, mesmo a identidade, de onde
falsamente partimos. Pois a identidade é apenas um nimo, não passando de uma
espécie, e espécie infinitamente rara, de diferença, assim como o repouso é apenas
um caso do movimento e o círculo uma variedade singular da elipse. Partir da
identidade primordial significa supor como origem uma singularidade
prodigiosamente improvável, uma coincidência impossível de seres múltiplos, ao
mesmo tempo distintos e semelhantes, ou seja, o inexplicável mistério de um ser
37
Ibid., p. 46. Acréscimo meu.
32
simples único, posteriormente dividido não se sabe por quê. Num certo sentido, isso
significa imitar os antigos astrônomos que, em suas quiméricas explicações do
sistema solar, partiam do círculo e não da elipse, sob pretexto de que a primeira
figura era mais perfeita. A diferença é o alfa e o ômega do universo.
38
Tal diferença original de cada ser diz respeito essencialmente a sua qualidade.
Entretanto, afastada a hipótese da harmonia preestabelecida de Leibniz, e se houvesse
qualidades diferenciadoras na composição da mônada, nada existiria de comum entre elas e,
sendo assim, nada poderia compor uma ordenação ou uma comunicação. É por esta razão que
a teoria tardeana propõe que haveria em cada ser do universo, em cada mônada, duas
quantidades comuns a todos os elementos, por mais distintos uns dos outros que sejam. Tarde
identifica duas forças como quantidades, e não como qualidades, precisamente porque é seu
estatuto de quantidade que autoriza sua universalização em cada ser, ao mesmo tempo em que
permite que se nessas forças tanto um aumento quanto uma diminuição de grau em suas
manifestações. Estas duas forças universais presentes em cada mônada, formadoras de
quantidades ora crescentes ora decrescentes, são a crença e o desejo.
1.5
A
CRENÇA E O DESEJO
Crença e desejo são quantidades psicológicas que se prefiguram ao fundo de todas as
qualidades com que se combinam. Em contraposição à psicologia de sua época, Gabriel Tarde
concebe a crença e o desejo como quantidades primeiras, razão e não conseqüência da
organização psíquica como um todo. Em um indivíduo, por exemplo, as sensações são
qualidades, pontos de aplicação dessas forças elementares de desejar e crer, e não razão
delas.
Como compõem quantidades, crença e desejo apresentam imensa elasticidade em sua
manifestação, desde a menor inclinação a crer e a desejar até as grandes massas de e de
paixão. Para a crença, graus diferenciados de afirmação ou negação. Para o desejo, graus
diferenciados de adesão ou repulsa. Essas quantidades estão dispersas em todos os seres em
diversas combinações com suas qualidades próprias. São duas quantidades sempre iguais a
elas próprias que, combinadas à heterogeneidade das coisas, as une sem fazê-las iguais, assim
como penetram-nas sem as constituir.
38
Ibid., p. 70.
33
Contudo, a crença apresenta um estatuto superior ao do desejo. Tal superioridade da
força de crer pode ser elucidada em dois sentidos. Primeiramente, porque a manifestação de
qualquer desejo pressuporia uma afirmação e uma negação. Desejar é, antes de tudo,
afirmar a preferência por algo e/ou negar outra possibilidade. Pode-se deduzir a superioridade
hierárquica da crença, ainda, em outro sentido. Ao negar a concepção transcendente de uma
harmonia preestabelecida tal como havia em Leibniz, Gabriel Tarde remete-nos, como vimos,
a um solo de pura variação, em que valem tão-somente as relações comunicativas entre as
mônadas como criadoras de similitudes imperfeitas e operatórias. Ora, uma vez que fora
detectada a “morte de Deus” ou da “Mônada Superior” leibniziana, o objetivo de toda coisa
vital, assim como de toda coisa social passa a ser, em última instância, o aumento da crença
neste mundo que se nos apresenta. Se a primeira via de explicação para a superioridade da
crença é basicamente lógica, não exageraríamos em caracterizar a segunda delas como uma
celebração deste mundo.
Se a crença é superior ao desejo, todo desejo tem por objeto uma crença. O desejo é
força dinâmica, a partir de que o ser modifica e se modifica, ao passo que a crença é força
estática, fonte da distinção de si e das coisas.
39
A crença como objetivo indica certo estado de
repouso, nunca alcançado, mas sempre almejado. Desejamos e cremos com o intuito de
crermos mais e mais neste mundo.
Ainda por esta perspectiva da crença e do desejo, torna-se problemática qualquer
adesão à possibilidade de uma verdade absoluta. Pensar a vida em termos destas duas
quantidades implica admitir que toda suposta verdade esconde apenas uma grande massa de
fé. A verdade nada mais é que crença. Sua existência estaria atrelada à necessidade demasiado
humana de almejar certezas. Tarde indica que toda necessidade de certeza pode ser
classificada de duas formas: ora como a necessidade de verdade, ora como necessidade de
segurança. Enquanto a primeira se referiria especialmente à ampliação de dogmas religiosos e
da perscrutação de “mais verdades” pela ciência, a segunda diria respeito à busca do eu por
uma potência ilimitada de si. As concepções de imortalidade religiosa ou mesmo as ambições
de nossa ciência contemporânea (por meio do desenvolvimento das pesquisas em engenharia
genética, por exemplo) poderiam ser vinculadas a tal “necessidade de segurança”.
A respeito da idéia de crença e desejo como quantidades, algumas observações se
fazem necessárias. Quantidade, em Gabriel Tarde, é intrinsecamente vinculada à sua exótica
concepção de oposição tema principal de nosso último capítulo, mas que julgamos
39
TARDE, Gabriel. “La variation universelle”. In: Essais et mélanges sociologiques. Québec: L’Université du
Québec, 2005, p. 297.
34
necessário introduzir brevemente neste ponto. Uma oposição é uma contra-repetição, uma
repetição inversa, gerada quando um equilíbrio recíproco entre dois termos. Afirmar este
equilíbrio recíproco é constatar que dois termos podem equivaler-se, no sentido de que ambos
possuem uma medida comum. Eis a definição tardeana de oposição:
quando dois termos variáveis são tais que um não pode ser concebido como
tornando-se outro senão à condição de percorrer uma série de variações que levam a
um estado zero, e remetendo em seguida esta mesma série de variações
anteriormente decrescentes, estes dois termos são opostos.
40
Apesar de ser uma repetição inversa, uma oposição supõe uma série determinada de
variações que correm de um pólo a outro, passando necessariamente pelo état zéro de
equilíbrio. Se toda identidade é um tipo especial de diferença, a oposição é uma diferença
ainda mais especial, uma vez que pressupõe uma série de variações que exigem um estado de
neutralidade.
Tanto a crença quanto o desejo formam, cada um em seu domínio, uma oposição. Ao
crer em algo, afirma-se alguma coisa na mesma medida em que se nega o inverso disto que se
afirma. De maneira análoga, ao desejar algo, adere-se a alguma coisa na mesma medida em
que se repele o inverso desta mesma coisa que se quer. Assim, toda oposição
é uma luta, uma neutralização tentada ou conseguida, que supõe a similitude dos
termos beligerantes, sua compatibilidade numérica, a possibilidade de pô-los em
equação. Nenhuma oposição verdadeira, por conseqüência, pode se encontrar fora de
realidades quantitativas. Se então a crença e o desejo contêm oposições
incontestáveis, está verificado que eles são quantidades. Ora, é evidente que eles
comportam, tanto um quanto outro, estados positivos e negativos. Um médico
examina um doente; à análise dos primeiros sintomas que observa, ele se pronuncia
mentalmente, com um certo grau de convicção, pela existência de uma febre tifóide;
depois outras características da doença suscitam nele uma tendência, inicialmente
falha, depois vaga, em negar justamente aquilo que afirma; em um dado momento,
sua negação e sua afirmação se contrabalançam – ele está em dúvida absoluta,
estado singular que seria inexplicável em qualquer outra hipótese que não fosse a
minha. Ela quase não dura, e a negação não demora a se apoderar dele
definitivamente, ou a afirmação a retomar seu posto. Como, eu perguntaria,
interpretar a dúvida absoluta, este zero de afirmação e de negação, senão como a
prova de que neste instante a afirmação e a negação, ou, melhor dizendo, a tendência
a afirmar ou a negar, tem a mesma intensidade, a mesma força, o mesmo peso? E
como não admitir que são quantidades?
41
40
TARDE, Gabriel. L’opposition universelle: essais d’une théorie des contraires. Paris: Institut Synthélabo,
1999, p. 62.
41
TARDE, Gabriel. “La croyance et le désir”. In: Essais et mélanges sociologiques. Québec: L’Université du
Québec, 2005, p. 196.
35
A dificuldade, segundo Tarde, em medir precisamente tais quantidades de crença e
desejo em suas diversas manifestações seria decorrente do fato de que ambos estariam sempre
atrelados às sensações. As sensações, como se sabe, são fundamentalmente qualitativas e,
portanto, necessariamente distintas umas das outras ou incomparáveis. Crença e desejo, no
entanto, são quantidades porque comportam graus diferenciados específicos, podendo ser
efetivamente comparados nos seres mais diversos.
Seria um equívoco, entretanto, designar tais “quantidades” de crença e o desejo como
atributos somente dos seres sociais. Eles estão presentes nas três esferas universais. No âmbito
social, por exemplo, manifestam-se nas instituições, verdadeiras organizações, adaptações ou
oposições de crenças que se fortificam ou se limitam entre si. Simultaneamente, é pela
concorrência ou afluência de desejos, de necessidades, que as sociedades funcionam. As
crenças, religiosas e morais principalmente, mas também jurídicas, políticas, lingüísticas
mesmo poderiam ser tidas como forças plásticas das sociedades, ao passo que desejos
econômicos ou estéticos, por exemplo, são suas forças funcionais.
42
Entretanto, é em outras
esferas da vida que o domínio da crença e do desejo soa mais surpreendente. É nestes âmbitos
que comprovamos sua prodigiosa elasticidade.
Mesmo a esfera vital, em suas séries mais simples, é rica em crença e desejo.
Tomemos como exemplo o primeiro termo da série vital, o protoplasma. Apesar de sua
simplicidade constitutiva, ele também seria dotado de crença e de desejo atuantes,
pulverizados infinitesimalmente. O exemplo dado por Tarde é mais um indício de que a
crença e o desejo não são conseqüência da organização psíquica, mas suas causas:
Eis uma pequena massa de protoplasma, para citar apenas um exemplo, na qual
nenhum indício de organização pôde ser descoberto; “geléia mpida como o branco
do ovo”, diz Perrier. Essa geléia, no entanto, prossegue o autor, executa
movimentos, captura animais, os digere etc. Ela tem apetite, é evidente, e,
conseqüentemente, uma percepção mais ou menos clara daquilo que a apetece. Se o
desejo e a crença são apenas produtos da organização, de onde advêm essa
percepção e esse apetite dessa massa, que é heterogênea, concordo plenamente, mas
que não é ainda organizada?
43
A afirmação da crença e do desejo como quantidades psicológicas presentes em todas
as mônadas leva-nos inevitavelmente a um psicomorfismo universal. Ao dotar as mônadas
destas duas quantidades infinitesimais, Tarde torna comparável aquilo que anteriormente era
pura diferença, pura singularidade. Este esforço de comparação é profundamente especial,
42
TARDE, Gabriel. Les lois de l´imitation. op. cit., p. 205.
43
TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. op.cit., p. 39.
36
pois mantém a potência de diferenciação inerente a cada mônada, não recorre a soluções de
caráter transcendente e permite aproximar os seres pertencentes às esferas mais distintas.
Como podemos passo a passo experimentar, a sociologia tardeana, é um pensamento “da
diferença e da repetição que funda a possibilidade de uma micro Sociologia numa
Cosmologia”,
44
como definiu Deleuze. Todos os seres que compõem o universo são
singularidades, porém aproximáveis na medida em que crêem e desejam e na medida em que
estas crenças e desejos podem ser transmitidos de uma a outra mônada.
O próximo capítulo tratará precisamente desta força de transmissão de crença e
desejo, notadamente em sua esfera social, a que certamente mais nos desperta interesse.
Antes, porém, façamos uma breve síntese. Em Gabriel Tarde, o universo é composto por três
âmbitos gerais a esfera físico-química, a esfera vital e a esfera social. Tais esferas não
diferem em natureza, mas apenas em grau. O mundo é composto originalmente por forças
heterogêneas idênticas a si próprias chamadas mônadas. Ao contrário das mônadas de
Leibniz, entretanto, as mônadas tardeanas são abertas, o que significa que comunicação
entre elas. O que é comunicado entre as mônadas são compostos plurais de duas quantidades
psicológicas – a crença e o desejo. É na medida em que crêem em algo e desejam algo que os
seres se assemelham, possibilitando a formação de ordens mais ou menos coerentes como a
sociedade humana, por exemplo.
neste primeiro movimento de apresentação de pressupostos, notamos como o
próprio conceito de comunicação pode enriquecer-se a partir de uma perspectiva que valoriza
a diferença. Pensar o que nos põe em comunidade com os outros homens pressupondo que
todos somos iguais é despotencializar a comunicação. Se, pelo contrário, afirmamos a pura
diferença e a variabilidade a priori dos seres sociais, a força que os torna provisoriamente
semelhantes, em comunhão, adquire importância monumental. Não seria a comunicação
social esta potência, cuja tarefa seria a de estabelecer as miríades de pontes invisíveis que
permitem o relacionamento entre as diferenças inatas? De coadjuvante, a comunicação
passaria a protagonista das ciências do homem. Sem a potência da comunicação, pululariam,
em solidão improdutiva, as heterogeneidades de que o universo é berço. A comunicação
social não se enrobusteceria se fosse concebida como princípio produtor de tudo o que é
possível viver em comum?
44
DELEUZE, Gilles. “A repetição para si mesma”. In: Diferença e repetição. op. cit., p. 120.
37
2.
H
IPNOTISMO
,
IMITAÇÃO E AS SIMILITUDES SOCIAIS
Nos três principais domínios da existência definidos por Gabriel Tarde – esferas
físico-química, vital e social partimos da heterogeneidade radical dos elementos para a
abordagem da semelhança. O pensamento da diferença não prescinde das semelhanças para
efetivar-se. Afirmam-se similitudes físico-químicas (entre as moléculas de um determinado
gás, por exemplo), vitais (como entre duas espécies que compõem um mesmo gênero) ou
sociais (como nos exemplifica o caso em que dois homens seguem um mesmo culto
religioso). Todavia, a razão da identidade nestes domínios é, principalmente, estratégica. A
função das similitudes é propiciar novas diferenças, novas variações. Isto porque as
semelhanças podem advir das repetições. Uma diferença original que consegue repetir-se
criará dois termos semelhantes. Portanto, a semelhança sesempre adquirida. Esta aquisição
da similitude é, entretanto, necessária à eclosão do que é novo em cada instância universal,
como nos elucida o seguinte trecho:
Sem a hereditariedade, haveria um progresso orgânico possível? Sem a
periodicidade dos movimentos celestes, sem o ritmo ondulatório dos movimentos
terrestres, a exuberante variedade das eras geológicas e das criações viventes teriam
eclodido? As repetições existem, portanto, para as variações.
45
Pensar a repetição a partir da diferença facilita a compreensão da idéia de variação.
Por advirem do domínio das heterogeneidades, todas as repetições são obtidas com algum
esforço. Tal empreendimento, contudo, sempre será forte o suficiente para implementar
similitudes, porém nunca incisivo o bastante para eliminar a heterogeneidade essencial dos
elementos. Sendo assim, toda repetição, toda similitude, será necessariamente imperfeita. Esta
imperfeição na construção da semelhança explica a variação em seus domínios mais amplos
45
TARDE, Gabriel. Les lois de l´imitation. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p. 66-67.
38
como, por exemplo, de dois indivíduos de uma mesma espécie biológica, de duas rochas
vulcânicas e mesmo de dois cidadãos do mesmo país. A riqueza de um pensamento da
diferença consiste não em negar a repetição e a semelhança, mas subordiná-las a uma
diferença mais originária. Desta forma, toda repetição será uma repetição variada. A
diversidade, e não a unidade, está
[...] no coração das coisas: para nós, essa conclusão se deduz de uma observação
geral que um simples olhar lançado sobre o mundo e sobre as ciências permite fazer.
Há, por todos os lados, uma exuberante riqueza de variações e modulações
inesperadas, que jorram destes temas permanentes que chamamos espécies vivas,
sistemas estelares, equilíbrios de todos os tipos, e que acabam por destruí-los e
renová-los inteiramente, e em nenhum lugar, no entanto, as leis ou as forças, às
quais estamos habituados a dar o nome de princípios das coisas, parecem afirmar a
variedade como início ou fim. Diz-se que as forças estão a serviço das leis, que todas
as leis se aplicam aos fenômenos enquanto são repetições perfeitas e não repetições
variadas; todos, manifestamente, tendem a afirmar a reprodução exata dos termos e
da estabilidade indefinida de equilíbrios de todos os gêneros, impedindo sua
alteração e renovação.
46
A possibilidade de existência de qualquer ciência reside na constatação de
semelhanças e repetições mais ou menos variadas. É a partir do que é comum aos elementos
heterogêneos que se instaura o saber. Entretanto, a fixidez que normalmente se atribui às
diversidades constitutivas do universo especialmente em se tratando do domínio social
impede com freqüência o estabelecimento de uma abertura teórica às renovações
diferenciadoras. Privilegiam-se descrições de grandes generalizações normativas em
detrimento do que é microscópico e potencialmente múltiplo.
Contudo, ao questionar o caráter apriorístico da similitude universal no pensamento
tradicional do ocidente, a perspectiva da diferença se depara com o problema de tornar
plausíveis as identidades que povoam o planeta. Se diferenças, a partir de que forças
misteriosas formam-se as reproduções e semelhanças de toda sorte?
Em Gabriel Tarde, sabemos que as semelhanças se engendram a partir da conformação
das duas quantidades que formam as mônadas: a crença e o desejo. Dois seres são
aproximáveis na medida em que desejam e na proporção em que crêem em algo. Mas como as
crenças e desejos de uma mônada se assemelham aos de outra? A questão pode, ainda, ser
composta de maneira diversa: como ocorre a comunicação das crenças e dos desejos, de
modo que eles se tornam comparáveis a ponto de podermos definir dois termos como
semelhantes?
46
TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 77.
39
A força responsável pelas repetições e, conseqüentemente, pelas similitudes adquire
denominação própria em cada um dos três domínios universais. Em qualquer ponto do
planeta, as crenças e os desejos se assemelhariam por força da influência de uma das mônadas
sobre as outras. Uma mônada pode ser dotada de tamanha quantidade de crença e desejo em
algo a ponto de provocar uma espécie de força magnética em outras mônadas, cujos
compostos plurais de crença e desejo ainda não tomaram uma forma determinada. É a avidez
e a de uma mônada que a tornam forte o bastante para que influencie uma outra. Desta
forma, pela força da crença e do desejo de algumas mônadas, o que era pura multiplicidade
poderá comportar estados transitórios de semelhança adquirida. A repetição dos fenômenos
seria tributária, portanto, do triunfo de algumas mônadas, como Tarde nos explicita:
Se conseguíssemos substituir a entidade vazia de um tempo único por realidades
múltiplas, por desejos elementares, assim como o espaço de alguma forma
sobrenatural foi substituído por espaços reais ou domínios elementares, restaria
explicar, como última simplificação, as leis naturais, a similitude, a repetição dos
fenômenos e a multiplicação dos fenômenos semelhantes (ondas físicas, células
vivas, cópias sociais) pelo triunfo de certas mônadas que quiseram tais leis, que
impuseram tais tipos, que estabeleceram seu jugo sobre uma população de mônadas
uniformizadas e subjugadas, mas todas nascidas livres e originais, todas ávidas,
como seus conquistadores, pela dominação e assimilação universais. As leis, essas
outras entidades saltitantes e fantásticas, assim como o espaço e o tempo,
encontrariam, enfim, sua sede e seu ponto de aplicação nas realidades reconhecidas.
Elas todas teriam começado, assim como nossas leis civis e políticas, por serem
projetos, desejos individuais.
47
Quando se trata da esfera físico-química, a influência de uma partícula em outra, de
um elemento em outro, de uma molécula em outra é chamada de ondulação. No que diz
respeito à esfera vital, a repetição se dá pela força de geração ou hereditariedade, que permite
o aparecimento de seres de uma mesma espécie, gênero ou família. Finalmente, no que se
refere ao campo social, a influência de um indivíduo sobre o outro permite a experimentação
e o direcionamento
48
comum das crenças e dos desejos de modo que estes dois seres se
assemelhem. Trata-se basicamente de uma força de contágio que, socialmente, apresenta-se
sob o nome de imitação. Um ser social pode dispor de tamanhas e avidez em um sentido
determinado que sugeriria a outro a reprodução de suas próprias convicções e volições. Tarde
entende por sugestibilidade tal contínua experimentação sobre a crença e o desejo:
49
47
Ibid., p. 48.
48
Cf. TARDE, Gabriel. La logique sociale. Paris: Institut Synthélabo, 1999, p. 449, em nota.
49
Ibid., p. 85.
40
As três principais formas da repetição universal, a ondulação, a geração e a imitação,
como disse antes, são outros tantos procedimentos de governo e instrumentos de
conquista que dão lugar a esses três tipos de invasão, física, vital e social: a radiação
vibratória, a expansão geradora, o contágio do exemplo.
50
Comparada às demais forças fomentadoras de similitude, a imitação ocupa um estatuto
superior. A ondulação das partículas físico-químicas propiciadora dos grupos semelhantes
de átomos e moléculas – ou a geração – criadora de novos seres vivos – seriam forças
indissociáveis de uma espacialidade e temporalidade limitantes. A imitação, por outro lado,
relaciona-se tanto com espaço quanto com o tempo de forma mais elástica, podendo ser
descrita, de fato, como uma geração à distância. Nuancemos estas comparações entre
ondulação, geração e imitação a partir da reprodução do trecho a seguir:
Ao passo que as ondas se encadeiam, isócronas e contíguas, os seres vivos, de uma
duração bastante variável, se desligam e se separam, tanto mais independentes
quanto mais elevados são. A geração é uma ondulação livre cujas ondas fazem um
mundo à parte. A imitação faz melhor ainda: ela se exerce não somente de muito
longe, mas em grandes intervalos de tempo. Ela estabelece uma relação fecunda
entre um inventor e um copista separados por milhões de anos, entre Licurgo e um
membro da assembléia de Paris, entre o pintor romano, que elaborou um afresco de
Pompéia e o desenhista moderno que nele se inspira. A imitação é uma geração à
distância. Nós diríamos que estas três formas da Repetição são três reprises de um
mesmo esforço por estender o campo onde ela se exerce, por fechar sucessivamente
qualquer abertura à rebelião dos elementos sempre prontos a partir o jugo das leis, e
por coagir sua multidão tumultuosa, pelos procedimentos mais e mais engenhosos e
potentes, a caminhar em massa mais e mais fortemente e de forma mais bem
organizada.
51
Sendo assim, a ondulação, a geração e a imitação são forças de estabilização, mas que
efetivamente nunca se totalizam, dado o caráter apriorísitco da diferença dos elementos que
tais forças subjugam. Interessa-nos, especialmente, na exploração da perspectiva tardeana, o
que pode ser considerado como linha de fuga, aquilo que escapará das tentativas de
estabelecimento de uma homogeneidade asfixiante. Caracterizemos, portanto, o profícuo
conceito tardeano de imitação. Inicialmente, propomo-nos a mapear, de modo resumido, o
contexto histórico-epistemológico em que tal conceito emerge. Dispensaremos um cuidado
maior à questão da modernização da percepção na segunda metade do século XIX e,
concomitantemente, à emergência da problemática da atenção e do hipnotismo ao final do
mesmo século. Em seguida, indicaremos algumas das principais peculiaridades da imitação na
constituição das sociedades.
50
TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia, op. cit., p. 98.
51
TARDE, Gabriel. Les lois de l´imitation. op. cit., p. 94.
41
2.1
A
MODERNIZAÇÃO DA PERCEPÇÃO E A PROBLEMÁTICA DA ATENÇÃO
A cunhagem do prodigioso conceito tardeano de imitação é indissociável das
características do contexto histórico-epistemológico a partir de que ele emerge. Desde o
século XVIII, mas, especialmente, a partir de meados do século XIX, assistiu-se a uma
intensa acumulação de discursos e práticas institucionais que se referiam à produção e ao
gerenciamento de corpos dóceis para o trabalho produtivo. O recrudescimento avassalador do
capital era então manifestado pelo desenvolvimento das indústrias, comércio, transportes e,
especialmente, meios de comunicação e informação. Os novos tempos pautados por
exaustiva aceleração da vida urbana exigiam a produção de corpos esquadrinháveis,
domesticáveis, gerenciáveis e tornados aptos ao trabalho moderno em suas esferas mais
distintas. Em suas recentes teses, expostas nos livros Techniques of the observer e
Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture, o historiador de Artes e
professor da Universidade de Columbia Jonathan Crary propõe que, em torno da segunda
metade do século XIX, ocorrera um profundo e significativo deslocamento epistemológico no
que tange à percepção humana. Tal descontinuidade de práticas e discursos referentes à
percepção seria simultânea à ascensão de novas modulações do sistema capitalista. No que
tange aos regimes de observação, o deslocamento se daria de um modelo de percepção
baseado na estabilidade e centralidade do sujeito para um regime em que a materialidade do
corpo humano com suas instabilidades, fluxos e temporalidades próprios seria condição
para toda experiência perceptiva. Em um trabalho de inspiração tanto arqueológica quanto
genealógica, o historiador torna evidente o próprio caráter histórico da percepção humana.
Jonathan Crary sintetiza esta profunda descontinuidade discursiva e prática a partir da assunção de dois
modelos epistemológicos expressivos: a câmara obscura e o estereoscópio. Considerado pela historiografia
tradicional como um dos aparatos precursores da máquina fotográfica, a mara obscura adquire, nos séculos
XVII e XVIII, para Crary, estatuto distinto de um mero “preparatório para a fotografia. Furtando-se a
anacronismos infrutíferos, Crary salienta que a mara obscura, para além de um aparato óptico, apresenta-se
como um modelo epistemológico consistente, ao expressar em sua existência a garantia de um mundo
matematicamente ordenado, regido por leis universais, absolutas, que caberiam ao homem dotado de razão
perscrutar. Notemos, por meio da imagem abaixo reproduzida, como a câmara obscura pressupõe uma relação
geometricamente perfeita entre os objetos:
42
Figura 1: Câmara Obscura
A penetração ordenada e calculável dos raios luminosos pelo orifício único da câmara obscura
corresponderia à mente orientada pela luz da razão. A imagem formada no interior da câmara obscura é
garantida pela representatividade absoluta dos objetos do mundo. Fundada nas leis ópticas da natureza, a mara
obscura provê um ponto proveitoso de observação do universo. Tal perspectiva, contudo, não depende da
materialidade corpórea do observador. Mesmo a evidência da binocularidade humana, a rigor uma contradição
aos princípios de uma percepção universal, fora justificada por um incisivo Descartes. A evidência da
binocularidade teria sido solapada em um esforço de manutenção da estabilidade de um mundo coerente e
previsível. A impossibilidade de negação da existência de dois olhos na apreensão das imagens pela percepção
humana passa a não ser problemática para o filósofo francês, quando este relega à “glândula pineal” a
capacidade de síntese das imagens captadas pelos dois olhos. Além disso, a alma seria dotada de percepção, e
não o corpo.
52
De modo geral, os séculos XVII e XVIII buscarão esquivar-se do corpo e de sua inerente
instabilidade. O estatuto da observação nos séculos XVII e XVIII, como havia mostrado Foucault, é baseado em
uma lógica de exclusão. Observar é, pois,
[...] contentar-se com ver. Ver sistematicamente pouca coisa. Ver aquilo que, na
riqueza um pouco confusa da representação, pode ser analisado, reconhecido por
todos e receber, assim, um nome que cada qual poderá entender.
53
A partir da segunda metade do século XIX, entretanto, quando se intensifica o ímpeto
de grandiosa abstração generalizada calcada nos grandes montantes do capital financeiro, a
antiga estabilidade garantida, representada no modelo da câmara obscura, seria amplamente
questionada.
54
É neste contexto que, de acordo com Crary, teria havido o deslocamento do
modelo epistemológico da câmara obscura para o modelo da percepção estereoscópica.
52
Cf. DESCARTES, René. La dioptrique. In: Oeuvres et lettres. Paris: Gallimard, 1953, passim.
53
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas. Martins Fontes: São
Paulo, 2002, p. 183.
54
“Toda propriedade, posição e influência m de ser permanentemente adquiridas, conquistadas e validadas dia
após dia; tudo parece provisório, inconsistente e instável. Daí o ceticismo e o pessimismo gerais, daí a sensação
de sufocante ansiedade que enche o mundo de Balzac...” HAUSER, Arnold. História social da arte e da
literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 737.
43
Resumidamente, o que se considera visão estereoscópica configura um regime de visualidade
baseado não mais em leis absolutas da visão em geral, mas na materialidade corpórea do
observador. Estas transformações em curso a partir da segunda metade do século XIX são
classificadas por Hans Ulrich Gumbrecht como pertencentes ao período da Modernidade
Epistemológica, distinto do que pode ser considerado como o início desta, no século XVI:
O que talvez nos separe mais claramente do Início da Modernidade é a sua confiança
confiança cega, como muitas vezes constatamos no conhecimento produzido
pelo observador de primeira ordem. Entre o Início da Modernidade e nosso presente
epistemológico um processo de modernização, abrangendo as décadas em volta
de 1800, que gerou um papel de observador que é incapaz de deixar de se observar
ao mesmo tempo em que observa o mundo. Esse papel corresponde, exatamente, à
descrição das recém-emergentes Sciences humaines, com cujo aparecimento Michel
Foucault, em seu livro Les mots et les choses, assinala o limiar discursivo de 1800.
Mas é sinônimo também da definição que Niklas Luhmann faz do observador de
segunda ordem (embora Luhmann não nutra nenhum interesse específico em
historicizar seu conceito).
55
Assinalemos o interessante “efeito de superfície” a partir de que Jonathan Crary
identifica a ampla constituição do modelo da visão estereoscópica. Um dos primeiros indícios
desta mutação teria sido notado em uma parte (a seção didática) da Teoria das Cores de
Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), obra de 1810. Em dado momento do texto,
Goethe refere-se ao então amplamente conhecido aparato da câmara obscura. Contudo,
uma interessante distinção na descrição da tecnologia: o que se percebe é a permanência da
câmara obscura como aparato tecnológico, porém em um regime epistemológico em evidente
transformação. Isto se esclarece quando Goethe sugere ao leitor a experiência de entrar na
câmara obscura. Em seguida, indica que seja tapado o orifício pelo qual penetram os raios
luminosos. Evidentemente, este não era o uso comum da câmara obscura que conhecemos.
Tal subversão do aparato, entretanto, serviria a propósitos bastante claros:
O orifício sendo então fechado, permite que [o observador] olhe em direção à parte
mais escura do recinto: uma imagem circular vai agora parecer flutuar perante ele. O
meio do círculo parecerá claro, incolor, ou um tanto amarelo, mas a borda parecerá
vermelha. Depois de um tempo este vermelho, crescendo em direção ao centro,
cobre todo o círculo, e, enfim, o ponto central brilhoso. Porém, tão logo o círculo se
torne vermelho, a borda começa a tornar-se azul, e o azul gradualmente invade o
vermelho. Quando o orifício estiver azul, a borda torna-se escura e incolor. A borda
mais escura novamente invade devagar o azul a que todo o círculo pareça
incolor.
56
55
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 13.
56
GOETHE apud. CRARY, Jonathan. Techniques of the observer. Cambridge/Massachusetts: MIT Press, 1990.
p. 68. Acréscimo meu.
44
O simples ato de se “fechar o orifício” representa uma negação do modelo da mara obscura como
sistema óptico e figura epistemológica. São dissolvidas as distinções entre espaço interior e exterior, que serviam
de base para o funcionamento da câmara obscura tanto como aparato quanto como paradigma. Assiste-se, aqui, à
formação de um novo modelo de percepção: os círculos coloridos que parecem flutuar ou ondular são descritos
por Goethe como cores fisiológicas, pertencentes inteiramente ao corpo do observador e funcionando
concomitantemente como uma condição necessária para a visão. A subjetividade corporal do observador passa a
ser o local em que a própria observação é possível.
A concentração na subjetividade e na própria fisiologia do observador é incompatível
com o modelo anterior de redução do sujeito à pura receptividade, visto que ele passa também
a ser foco de investigação. Tanto o observador quanto o observado são sujeitos aos mesmos
modelos de estudo empírico. Como sinaliza o epistemólogo Georges Canguilhem (1904-
1955) a respeito das constatações do filósofo francês Maine de Biran (1766-1824): “uma vez
que a alma está necessariamente encarnada, não há psicologia sem biologia”.
57
Sendo assim, o
corpo e a percepção serão sujeitos à investigação, regulação e disciplina ao longo do século
XIX.
No contexto desta visão que se corporifica, destaca-se, portanto, o aparato óptico do
estereoscópio, representante deste modelo epistemológico que se concretiza. Inicialmente
elaborado em 1838 para a demonstração de uma teoria da visão, o estereoscópio adquiriu
grande popularidade entre 1850 e 1860, passando a ser considerado objeto de entretenimento
nas feiras livres européias e residências burguesas. A formação da imagem estereoscópica
obedece aos princípios do novo regime epistemológico uma vez que ela dependerá da
instância da temporalidade do observador para que se produza a ntese da imagem. Como a
figura abaixo pode-nos atestar, no aparato estereoscópio, são dispostas lado a lado duas
imagens semelhantes. Ao aproximar seus olhos destas imagens a partir de duas lentes, pouco
a pouco as duas imagens vão fundir-se em uma só. Forma-se, então, uma imagem estranha, de
profundidade incomum, como se disposta em camadas sucessivas. A experiência do
observador na percepção do mundo que o cerca trará novas questões a respeito do estatuto
ontológico dos homens e das coisas.
57
Ibid., p. 73.
45
Figura 2: Estereoscópio
Feito este resumido mapeamento das complexas transformações por que passaram os
regimes perceptivos na segunda metade do século XIX, podemos reduzir um pouco mais o
escopo de nossa investigação. A sociologia de Gabriel Tarde, de que nos ocupamos neste
trabalho, pertence ao conjunto de saberes que se desenvolve ao final do referido século,
quando já teria havido a corporificação da percepção e a emergência do observador de
segunda ordem que acabamos de descrever. Jonathan Crary indica que esta mudança de
paradigma terá como conseqüência, no final do século, a ascensão do tema da atenção. O
surgimento de um novo modelo epistemológico que constitui seus regimes de verdade a partir
da corporeidade do sujeito, em que a prioridade da consciência na garantia de representação
absoluta do mundo é problematizada, suscita o interesse na investigação do problema da
atenção. Em outras palavras, quando o sujeito deixa de ser sinônimo de uma consciência que
é essencialmente autopresente, quando não mais a inevitável congruência entre
subjetividade e pensamento, a atenção passa a ser importante, pois ela será o novo princípio
regulador de garantia da consistência do mundo para o sujeito. Assim, destacar-se-iam duas
condições para a ascensão da atenção como interesse epistemológico: a primeira delas
relacionada ao colapso dos modelos clássicos de visão e do sujeito estável, pontual, que esses
modelos pressupunham. A segunda refere-se à insustentabilidade de soluções apriorísticas
para problemas de caráter epistemológico.
O levantamento histórico de Jonathan Crary indica-nos que a “atenção”, no culo
XIX, encerra grande volatilidade, referindo-se tanto à atenção como a conhecemos (ou seja,
estado provocado pelo desprendimento de um campo de atração mais amplo para
concentração ou foco em um reduzido número de estímulos) quanto a outros estados, como o
transe, o devaneio e a hipnose. Ou seja, ela é compreendida em termos de fluxos e
46
intensidades, e não em termos de fixação e estabilidade. Sendo assim, a atenção como a
concebemos comumente seria apenas mais um estado deste amplo continuum que envolveria
outras nuances de percepção, regimes mentais e subjetivos.
É como se a atenção contivesse em si própria as condições de sua desintegração, como se fosse
“assombrada pela possibilidade de seu próprio excesso”,
58
como nossa experiência poderia atestar quando
fixamos nossos sentidos por muito tempo em um foco. De diversas formas, a atenção poderia atingir um
limite em que ocorreria, por um lado, a própria deterioração da identidade do objeto percebido e, por outro, uma
mutação em seu próprio estado, como nos casos do transe ou da hipnose. Logo,
a atenção então se torna um meio impreciso de designar a capacidade relativa de um
sujeito para isolar seletivamente certos conteúdos de um campo sensorial à custa de
outros, no interesse de manutenção de um mundo produtivo e ordenado.
59
É importante que se ressalte, ainda, que a atenção não se restringiria unicamente a um regime de
visualidade:
Atenção, como uma constelação de textos e práticas, é muito mais que uma questão
de fixação do olhar, de ver, do sujeito apenas como espectador. Isto permite que o
problema da percepção seja extraído de uma fácil equação com questões de
visualidade, e eu argumentarei que o problema moderno da atenção engloba uma
gama de termos e posições que não pode ser simplesmente construída em termos
ópticos.
60
Considerando-se que a atenção, a partir da segunda metade do século XIX, deve ser
compreendida como um continuum em que estão incluídos outros estados perceptivos, como o
devaneio, o transe ou a hipnose, permitimo-nos afirmar que atenção e distração não são
estados essencialmente estanques. Eles funcionam em um processo brusco, dinâmico e
contínuo, de fluxos e intensidades, de acordo com as exigências do consumo capitalista.
Sendo assim, o problema da atenção, então,
[...] não era uma questão de atividade neutra e eterna como respirar ou dormir, mas
de emergência de um modelo específico de comportamento com uma estrutura
histórica específica comportamento que era articulado em termos de normas
determinadas socialmente e que era parte da formação de um meio tecnológico
moderno [...] Este problema foi elaborado em um sistema econômico emergente que
demandava atenção de um sujeito em uma ampla gama de novas tarefas produtivas e
espetaculares, mas cujo movimento interno foi continuamente erodindo a base de
qualquer atenção disciplinar. Parte da lógica cultural do capitalismo demanda que
aceitemos como natural adaptarmos nossa atenção rapidamente de uma coisa a
58
CRARY, Jonathan, Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture.
Cambridge/Massachusetts: MIT Press, 2000, p. 47.
59
Ibid., p. 12.
60
Ibid., p. 2.
47
outra. O capital, como troca e circulação aceleradas, necessariamente produziu este
tipo de adaptabilidade perceptiva e tornou-se um regime de distração e atenção
recíprocas.
61
O sonho moderno de autonomia do sujeito é posto em questão, uma vez que a própria
consciência é problematizada. Em seu lugar, perscruta-se a atenção essencialmente fluida e
fugidia como independente da própria consciência. O caráter desestabilizador da atenção
decorre, em grande parte, desta aquisição de um estatuto de variável independente em relação
à consciência. A estabilidade requerida pelos saberes e práticas que tinham na consciência seu
ponto de ancoragem lugar a uma epistemologia geral e a um conjunto de procedimentos
reguladores baseados em fluxos de movimento e ação. Desta maneira, a diversidade de
estados psicológicos que abarcava a atenção permitiu que o século XIX explorasse de modo
mais acurado o instigante fenômeno da hipnose.
2.2
A
HIPNOSE NO SÉCULO
XIX
A abundância de práticas e discursos referentes à hipnose dizia respeito tanto a sua
utilização como uma tecnologia da atenção permitindo novas possibilidades de atuação de
um poder clínico e de benefícios médicos quanto a uma ratificação da ampla remodelação
por que passava a subjetividade moderna, na medida em que comprovava a maleabilidade do
sujeito em sua relação com o mundo.
As pesquisas acerca da capacidade de influência de um indivíduo sobre outro
adquirem força a partir da introdução da psicologia nos domínios das ciências médicas, em
fins do século XVIII. Os experimentos de Franz Friedrich Anton Mesmer (1734-1815) com
metais “magnéticos” em animais permitiu-lhe explorar a idéia de que fluidos magnéticos
poderiam ser transmitidos de um indivíduo a outro. Na prática médica, o auxílio de “passes”
do terapeuta Mesmer em pacientes provocava nestes uma espécie de “crise convulsiva”, que
contribuía, então, à “cura” do doente.
62
Por volta de 1776, o cientista aboliu de seus
experimentos o uso de ímans para indicar, em um importante estudo de 1779 denominado
Mémoire sur la découverte du magnétisme animal, que o processo de magnetismo nos
animais se daria de modo distinto daquele derivado dos ímans. É notável a menção, nos
61
Ibid., p. 29.
62
“Era dispensado particular cuidado ao ambiente das sessões coletivas (dir-se-ia, atualmente, as psicoterapias
de grupo); o terapeuta usava roupas de seda lilás e a música desempenhava um papel importante (Mesmer era
amigo de Mozart, e foi ele quem introduziu em França nada menos que a harmônica!)”. CHERTOK, L. O
hipnotismo. Publicações Europa-América, s/d., p. 23.
48
estudos de Mesmer, à noção de imitação como inerente aos indivíduos: “Um outro princípio
faz agir o íman, incapaz, por si próprio, dessa ação sobre os nervos, e fez-me ver que eu tinha
ainda de percorrer alguns passos para chegar à teoria imitativa, objeto das minhas
investigações”.
63
O interesse de Mesmer acerca desta “imitação” era, contudo, estritamente
pelo caráter fisiológico de tal influência, menosprezando possíveis fatores psicológicos. Tal
desprezo se explicita fortemente quando Mesmer minimiza a importância do anúncio, pelo
Marquês de Puységur, das descobertas tanto do sonambulismo provocado quanto da
possibilidade de estabelecimento de comunicação verbal com o sonâmbulo. Mesmer
argumentara que o fenômeno seria menor em comparação à investigação da natureza fluídica
do contágio. Daí por diante, as contendas centram-se em dois pólos básicos: o “magnetismo”
como exclusivamente fisiológico ou o “magnetismo” que comporta fatores relacionais e
psicológicos.
Entretanto, seria reservado ao século XIX, palco dos profundos deslocamentos da
percepção que indicamos, o acirramento das discussões concernentes a este curioso
fenômeno. Seria a era de ouro do “hipnotismo” e dos embates de perspectivas:
A luta começou imediatamente. Opuseram-se primeiro “fluidistas” e “animistas” na
primeira metade do século XIX. Depois disso tomou a forma de uma oposição entre
os partidários da explicação fisiológica e os da explicação psicológica. Em 1843,
Braid refutou definitivamente a teoria fluídica e, para marcar bem a sua posição,
designou pelo nome de “hipnotismo” os fenômenos até denominados
“magnetismo animal”. Enunciou uma teoria neurofisiológica do hipnotismo,
segundo a qual este é induzido por fixação visual (admitiria mais tarde a sugestão
verbal). Mas é a Liébeault que cabe o mérito de ter sido o primeiro a utilizar
sistematicamente, em grande escala, a sugestão verbal para fins terapêuticos.
64
Os debates em torno da hipnose na década de 1880 são bastante numerosos, dentre os
quais destacam-se as discussões entre Jean Martin Charcot (1825-1893) e seus seguidores de
Salpêtrière (dentre os quais Sigmund Freud) contra a perspectiva de Hippolyte Bernheim
(1837-1919) e outros. O cerne deste debate consistia em compreender se a hipnose seria uma
deficiência da atenção (Charcot) ou apenas uma intensificação de um estado normal de
sugestibilidade (Bernheim).
65
Também na década de 1880 é inaugurada a Escola de Nancy,
63
MESMER, Franz Friedrich Anton (1779). Mémoire sur la découverte du magnétisme animal. apud:
CHERTOK, L. O hipnotismo., op. cit., p. 24.
64
CHERTOK, L. op. cit., p. 27.
65
“Eu tenho me esforçado em mostrar que o hipnotismo o cria de fato uma nova condição: não nada no
sono induzido que não possa ocorrer em estado de vigília, em um grau rudimentar em muitos casos, mas em
alguns a uma igual extensão”. BERNHEIM, Hyppolyte. Hypnosis and suggestion in psychotherapy. New York:
Atonson, 1973, p. 179. apud: CRARY, J. op. cit., p. 67.
49
inspirada nos trabalhos de Ambroise-Auguste Liébeault (1823-1904), que, por sua vez,
procurou aproximar tanto a atenção focada quanto a hipnose do estado de sono normal.
Se a atenção é um continuum que comporta estados como o sonho, a hipnose, a
distração e o transe, é por meio de uma intensificação da atenção “convencional” que se
atingiria o estado de hipnose. A concentração focada em um único ponto durante um certo
período de tempo facilitaria a redução da atenção periférica, permitindo a absorção do sujeito
em uma determinada direção, tornando-o facilmente sugestionável. Como é amplamente
sabido, pesquisas acerca do fenômeno da sugestibilidade e do hipnotismo contribuíram para a
formação de diversos saberes, como o psicanalítico, por exemplo, apesar de sua
desqualificação posterior. Influenciado por tais estudos, Freud chegou a afirmar em 1897 que
não deve parecer excepcional o fato de uma pessoa influenciar outra, do mesmo
modo que um pedacinho maleável de ferro tem a propriedade de influenciar outro.
Tal analogia não diminui a prodigiosidade do fato de que um sistema nervoso pode
influenciar outro, através de meios distintos do das percepções sensoriais.
66
Se o hipnotismo nos soa como caricatura na contemporaneidade, tal estatuto é
indissociável de uma profunda e radical desqualificação que a hipnose sofreu a partir
especialmente do início do século XX. Admitir o hipnotismo como ciência e, principalmente,
ratificar seus pressupostos seria alquebrar ainda mais as combalidas noções de consciência,
livre-arbítrio e racionalidade presentes no ideário sócio-cultural da Modernidade. Desta
forma, no começo do século XX, a hipnose
[...] abruptamente desapareceu das correntes principais de pesquisas e práticas
institucionais. A renúncia ansiosa da hipnose por Freud, Bernheim e outros foi
apenas um dos sinais mais amplamente conhecidos deste deslocamento. Houve uma
surpreendente reversão cultural da grande era de ouro da hipnose no final dos anos
1880, quando, então, por toda a Europa e a América do Norte, ela parecia uma
terapia que prometia benefícios ilimitados para o período da virada do século,
quando se tornou um constrangimento para seus antigos defensores. A Revue de
l’Hypnotisme experimental, fundada em 1886, teve seu nome alterado no começo do
século XX para Revue de Psychothérapie et de Psychologie appliquée. [...] A
hipnose e a sugestão foram logo ridicularizadas como práticas direcionadas a
processos automáticos (aqueles inferiores, mais instintivos, e contínuos com a
animalidade) em vez de um procedimento racional, subtraindo a participação
consciente do paciente e sua força de vontade. A vívida caracterização da hipnose
por Bernheim como “decapitação mental” foi típica das imagens em torno das quais
tais ansiedades mais tarde se desenvolveram.
67
66
FREUD, Sigmund. “Referat über Obersteiner, Der Hypnotismus mit besonderer Berücksichtigung seiner
klinischen und forensischen Bedeutung, Wien 1887”. Nachtragsband, id., p. 106. apud: CHERTOK, L. e
STENGERS, I. O coração e a razão (a hipnose de Lavoisier a Lacan). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1990, p.
10.
67
CRARY, J., op. cit., p. 69.
50
O declínio das pesquisas e práticas relacionadas à hipnose em nosso século não foi
suficiente, contudo, para a redução do interesse que o tema provoca. Freqüentemente, todavia,
tal curiosidade pelo tema tem sido alimentada por abordagens que reforçam certo caráter
esdrúxulo da prática. A hipnose é caracterizada como uma espécie de atração mágica, em que
abundam elementos típicos de um imaginário ocultista”. Desta forma, pela íntima relação
que a teoria tardeana apresenta com os estudos de hipnose, parece-nos natural que sua longa
obliteração pelas Humanidades no século XX seja parte integrante deste amplo movimento de
declínio do hipnotismo como matéria científica, a partir de sua desqualificação.
2.3
A
IMITAÇÃO SOCIAL
Após esta necessária contextualização, encontra-se mais facilmente compreensível a
aproximação da perspectiva tardeana dos estudos de hipnose e magnetismo para a cunhagem
de seu conceito de imitação. A recuperação diferenciada dos discursos acerca da
sugestibilidade social nos pode ser profícua justamente na medida em que traz à tona questões
que foram solapadas ao longo de todo um século. No entanto, mesmo conscientes do contexto
histórico-epistemológico em que a teoria tardeana se insere, ainda assim nos surpreendemos
com afirmações como esta, a respeito do homem social:
O estado social, como o estado hipnótico, não é senão que uma forma de sonho, um
sonho de comando e um sonho de ação. Não ter as idéias sugeridas e conceber suas
crenças como espontâneas: tal é a ilusão própria do sonâmbulo, assim como a do
homem social.
68
Ao relativizar as fronteiras entre consciente e inconsciente, qualificando o estado
social como estado de sonho, Tarde salienta as ilusões modernas de autonomia de todos nós,
autênticos “sonâmbulos”. O que nosso filósofo denomina sugestão social não difere em
natureza do estado sonambúlico descrito pelos estudiosos da hipnose. A sugestão social seria
apenas menos direta que a sugestão hipnótica, porém seus efeitos perdurariam mais. Ao
estalar dos dedos do hipnotizador, o mundo do paciente se restaura. Ora, não estalar de
dedos quando se está permanentemente embriagado pela sugestão social. O sonambulismo
social seria menos intenso, porém poderia alastrar-se por um território muito mais amplo:
68
TARDE, Gabriel. Les lois de l´imitation. op. cit., p. 137.
51
cidades, países, continentes se rendem a esta curiosa forma de entrega. Finalmente, a sugestão
social seria certamente menos rápida que a hipnótica. Contudo, a profundidade de sua
atuação seria infinitamente maior.
69
Os efeitos de uma sugestão social perduram até que
sejam substituídos por novas formas de sugestão social.
A semelhança social das crenças e desejos dos indivíduos essencialmente
heterogêneos se por conta desta força espécie de sonambulismo”
70
chamada imitação.
A constituição de um grupo social, portanto, excede o que se passa no terreno da consciência.
Para sermos mais precisos, a sociedade é mais propriamente imitação irrefletida que refletida.
Uma coleção de indivíduos (mônadas) compostos de graus diferenciados de desejo e crença
pressupõe que algumas destas singularidades sociais detenham mais do que outras estas duas
quantidades psicológicas no que se refere a determinadas instâncias da vida. Por exemplo, é
razoável que um líder político tenha em grau mais elevado crenças e desejos direcionados a
certo projeto referente à economia nacional que a maioria da população. É por meio da fé e da
avidez do líder que se operará a sugestibilidade nos demais membros do grupo social.
Compostos plurais de crença e desejo dispersos nos indivíduos adquirirão o molde daquelas
presentes em seus deres. Em nosso exemplo, as crenças e desejos econômicos se fortificam
inicialmente em um grande magnetizador para, posteriormente, pelo contágio do exemplo,
dar forma às expectativas e dos demais. Nenhum plano econômico, bem como nenhum
projeto de nação ou iniciativa política de qualquer ordem pode dar-se a despeito da imitação
social das crenças e dos desejos.
Entretanto, tal imitação poderá ser refletida ou espontânea, consciente ou inconsciente.
Algumas delas, inclusive, nascem inconscientes, como os sotaques, as idéias e os
sentimentos próprios do local onde se operam as práticas de subjetivação. É preciso ressaltar,
porém, que estas últimas nunca se tornariam conscientes. Ademais, mesmo as imitações
conscientes (como, por exemplo, membros de uma comunidade que conscientemente imitam
os ritos de seus antepassados, um homem que compra um móvel de mesmo estilo que o de um
amigo ou outro que age com consciência da influência operada por um jornalista de sua
preferência em suas opiniões) são precedidas por uma espécie de imitação inconsciente
primordial: a própria vontade de imitar! A vontade de imitação é um pressuposto comum a
toda imitação real, seja ela consciente ou não. Tal vontade, mesmo aparentemente consciente,
69
TARDE, Gabriel. La Logique Sociale. op. cit., p. 144.
70
“A sociedade é imitação, e a imitação é uma espécie de sonambulismo”. TARDE, Gabriel. Les lois de
l´imitation. op. cit., p. 147.
52
no fundo, é sempre inconsciente “porque esta vontade mesma de imitar é transmitida por
imitação”.
71
Ora, de fato, o esfacelamento das distinções entre imitação consciente e imitação
inconsciente não se pela negação da existência destas duas diferentes modalidades de
imitação, mas pelo estabelecimento de um pressuposto comum que as aproxima: a própria
vontade de imitar, sem a qual nenhuma imitação se daria. O caráter consciente ou
inconsciente da imitação não importa, porquanto mesmo uma imitação dita consciente
apresenta em sua origem causas inconscientes (a imitação da vontade de imitação).
Quando acusado de expandir demasiadamente seu conceito de imitação (tratando-o ora
como um processo consciente ora inconsciente), Tarde salienta que a força de sua noção
consiste precisamente nesta expansão, e faz uso de uma interessante metáfora tecnológica
para justificar sua perspectiva:
Ter-se-ia o direito de criticar como abusivo o alargamento do significado da palavra
em questão [imitação] se, em estendendo-a, eu a tivesse deformado e tornado-a
insignificante. Mas eu lhe designei um sentido sempre muito preciso e característico:
o de uma ação à distância de um espírito sobre outro, e de uma ação que consiste em
uma reprodução quase fotográfica de uma placa cerebral pela placa sensível de um
outro cérebro. Será que se, em um dado momento, a placa do daguerreótipo tomasse
consciência do que acontece nela, o fenômeno mudaria essencialmente de natureza?
Eu entendo por imitação toda impressão de fotografia interespiritual, por assim
dizer, quer ela seja desejada ou não, passiva ou ativa.
72
Gabriel Tarde considera que uma teoria das sociedades não pode prescindir da
investigação minuciosa deste complexo fenômeno da imitação, fonte de todas as repetições de
ordem social. A análise da imitação em sociologia será, portanto, de ordem microscópica,
uma vez que a sugestibilidade se dá, inicialmente, de um indivíduo a outro. Mesmo a
proliferação de grandes semelhanças sociais (como a expansão de determinada doutrina
religiosa, por exemplo) é impossível sem este contágio de mônada a mônada. Sendo assim, o
grupo social pode ser descrito como “uma coleção de seres na medida em que estejam
imitando-se entre si ou na medida em que, sem se imitarem em ato, eles se assemelhem e seus
traços comuns sejam cópias antigas de um mesmo modelo”.
73
O hipnotismo social dependerá de três espécies de indivíduos: os magnetizadores,
grandes homens capazes de concentrar, por um lado, uma imensa quantidade de crenças e
desejos e, por outro, de comunicá-los aos outros por sugestão; os sonâmbulos, ou imitadores,
71
Ibid., p. 251.
72
Ibid., p. 46. Acréscimo meu.
73
Ibid., p. 128.
53
que comportariam os homens sociais em geral, compostos de crenças e desejos dispersos,
porém potencialmente adaptáveis; e, finalmente, os loucos ou inventores, indivíduos que re-
elaboram as correntes imitativas, a partir do contato com suas nuances diferenciadoras. Estes
últimos, como veremos no capítulo 4, serão responsáveis pela afirmação alegre da diferença
que constitui tudo o que existe.
Os sonâmbulos sociais são caracterizados por uma mistura singular de anestesia e
hiperestesia. Ao mesmo tempo em que estão catalépticos,
74
copiam tudo o que diz respeito ao
meio em que se inserem. A imitação pressupõe, portanto, um intenso trabalho da memória
corporal, exacerbado em muito pelas hiperestimulações sensório-motoras das grandes
cidades:
Não é que a memória tenha sido abolida, ela nunca esteve tão viva, tão pronta a
entrar em cena e em movimento pela menor palavra que evoque nela a parte
longínqua, a existência anterior, a fonte, com uma riqueza de detalhes alucinante.
Mas ela se torna paralisada por inteiro, desprovida de sua espontaneidade própria.
Neste estado singular de atenção exclusiva e forte, de imaginação forte e passiva,
destes seres estupefatos e fervorosos, subsiste o charme mágico do novo meio; eles
crêem em tudo aquilo que eles vêem ser feito. Eles ficarão assim por um bom tempo.
Pensar espontaneamente é sempre mais cansativo que pensar como um outro.
Também, todas as vezes em que um homem vive em um meio animado, em uma
sociedade intensa e variada, que lhe fornece espetáculos e concertos, conversações e
leituras sempre renovadas, ele se dispensa de todo esforço intelectual; e se
entorpecendo ao mesmo tempo em que se excita mais e mais, seu espírito se faz
sonâmbulo. Este é o estado mental próprio de muitos cidadãos. O movimento e o
barulho das ruas, as vitrines das lojas, a agitação desenfreada e impulsiva de suas
existências provoca neles o efeito de passes magnéticos.
75
Apesar de constituir-se como uma das principais forças sociais, a imitação se
desenvolve em fases diferenciadas ao longo da vida individual do homem. Isto ocorre porque
a sugestibilidade à distância engendrada pela imitação (quando adquirimos a opinião de um
jornalista conceituado, por exemplo, ou mesmo quando agimos pela simples lembrança da
ação de outrem sobre nós) é fruto de um lento trabalho de constituição de sugestão direta.
Começamos, crianças, adolescentes, por sentir, vivamente,
[...] a ação dos olhares de outrem, que se exprime sem sabermos em nossa atitude,
em nossos gestos, no curso modificado de nossas idéias, na perturbação ou na
superexcitação de nossas palavras, em nossos juízos, em nossos atos. E é somente
após termos, durante anos, suportado e feito suportar essa ação impressionante do
olhar, que nos tornamos capazes de ser impressionados inclusive pelo pensamento
74
Catalepsia aqui é entendida como certa plasticidade motora em que o indivíduo mantém as posições que lhe
são sugeridas por outrem. Em estado cataléptico, ocorre o cessar dos movimentos voluntários dos músculos sem
que estes, porém, sejam lesados.
75
Ibid., p. 144.
54
do olhar de outrem, pela idéia de que somos objeto da atenção de pessoas distantes
de nós. Do mesmo modo, é após termos conhecido e praticado por muito tempo o
poder sugestivo de uma voz dogmática e autoritária, ouvida de perto, que a leitura de
uma afirmação enérgica basta para nos convencer e que mesmo o simples
conhecimento da adesão de um grande número de nossos semelhantes a esse
julgamento nos dispõe a julgar no mesmo sentido.
76
Além de configurar-se como uma força que se desenvolve durante a vida individual, a
imitação é, ainda, parte integrante da vida de todas as sociedades que passaram pelo planeta.
É, portanto, uma força universal, apesar de ser indissociável das nuances históricas que a
conformam. A imitação em uma sociedade feudal distinguir-se-á daquela de uma democracia
de massas contemporânea. Todavia, esta força de constituição de semelhanças das crenças e
desejos dos homens, apesar das particularidades que adquire historicamente, é atemporal.
Tarde salienta que todas as civilizações que habitaram o planeta, em seu tempo, e cada
uma a seu modo, confiavam no caráter supostamente autônomo de seu funcionamento. O que
distinguiria nossa civilização das sociedades antigas não seria a substituição de um poder
autoritário por outro “democrático”, mas uma verdadeira alteração do que chamaremos aqui
de dinâmica da magnetização.
77
Elucidemos tal dinâmica. Os chamados regimes autoritários
seriam caracterizados pela presença necessária de um magnetizador central (um faraó, um rei
absolutista, um ditador etc), fonte primordial das correntes de imitação, sua inspiração
concentrada. A imitação se daria essencialmente de modo vertical. Na modernidade, a
magnetização ter-se-ia tornado encadeada, e em movimento de cascata. Em outras palavras,
ao magnetismo vertical, de cima para baixo, acopla-se um magnetismo horizontal. Neste
sentido, os homens tidos como superiores são imitados pelos inferiores, que se imitam em
uma proporção igualmente considerável. Não que a imitação entre iguais não fosse
considerável antes da Modernidade, mas, certamente, naquele período, teria adquirido maior
relevância. Mais uma vez, percebe-se o desprezo do filósofo pelo propalado privilégio da
razão moderna: esse magnetismo mais recente não faz dos homens modernos menos
sonâmbulos que seus ancestrais.
Em suma, o desenvolvimento das sociedades transpôs o modelo de magnetização
unilateral (vertical) para um modelo de magnetização recíproca (vertical e horizontal). Os
chamados povos civilizados orgulham-se de ter escapado deste “sono dogmático”. Tarde
mostra que o engano dos modernos a este respeito é notório. À medida que os povos se
“democratizam”, os homens imitam-se mais e mais, em todas as direções. Neste contexto, o
76
TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 9.
77
A expressão é minha, baseada nas considerações tardeanas a respeito das transformações da imitação ao longo
da história.
55
papel das inovações urbanas, dentre elas as tecnologias comunicacionais, é de grande
importância. A aceleração dos fluxos de informação com os trens e o telégrafo contribuiria,
em última instância, para romper, em grande parte, os limites geográficos da propagação
imitativa. A vinculação social originada pelos processos de contágio dar-se-iam também, e de
forma sistemática, à distância.
A História apresenta-nos uma série de magnetizadores de renome: Ramsès, Alexandre,
Maomé, Napoleão, dentre outros. Presenciava-se a glória ou o gênio de um homem fazendo
tombar todo um povo em catalepsia. Na Modernidade, por conta de um progressivo
crescimento da magnetização recíproca em detrimento da magnetização unilateral, Tarde
previa uma gradual diminuição de tipos com tal força de magnetização. O filósofo, que
escrevia em 1890, décadas antes da ascensão dos fascismos e comunismos do século XX, não
pôde vivenciar a força da magnetização unilateral nesse período e, como sabemos, em nosso
presente.
78
Neste capítulo, dedicamo-nos a apresentar o conceito tardeano de imitação,
profundamente ancorado na epistemologia de seu tempo, período de importantes
deslocamentos concernentes à percepção humana. A considerável acumulação tanto de
práticas quanto de discursos sobre hipnose permitiu ao nosso filósofo elaborar sua sociologia
da diferença sem deixar de dispensar à semelhança sua inegável importância na constituição
dos grupos sociais. Isto porque é neste contexto de exploração das nuances da atenção que
Tarde entende a imitação como força criadora de similitudes das crenças e desejos de
indivíduos naturalmente heterogêneos. A sugestão como conformação e direcionamento de
tais crenças e desejos é a base de todo fenômeno imitativo. Na medida em que obtêm êxito na
comunicação aos outros daquilo em que crêem e que desejam, os indivíduos tornam-se
aproximáveis, semelhantes, sem abdicar, porém, de suas singularidades:
Longe de sufocar sua originalidade própria, ela [a semelhança progressiva dos
indivíduos] a favorece e a alimenta. Contrária à acentuação pessoal é a imitação de
um homem em que nos espelhamos para tudo; mas quando, em lugar de nos
regularmos por algum ou alguns, nós seguimos cem, mil, dez mil pessoas,
consideradas cada uma sob um aspecto particular, os elementos de idéia ou ação que
combinamos a ele em seguida, a natureza mesmo e a escolha de suas cópias
elementares, assim como sua combinação, exprimem e acentuam nossa
personalidade original. E este pode ser o benefício mais claro do funcionamento
prolongado da imitação.
79
78
Em um interessante estudo, Serge Moscovici parte de pressupostos tardeanos para analisar fenômenos de
massa do século XX. Cf. MOSCOVICI, Serge. The age of the crowd: A historical treatise on mass psychology.
Cambridge: Cambridge University Press, 1985.
79
TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. op. cit., p. 55. Acréscimo meu.
56
No capítulo seguinte, enfocaremos as leis regentes da comunicação de crenças e
desejos que Tarde vislumbra. A recuperação das leis da imitação em muito poderá contribuir
para nossos estudos acerca da influência de um indivíduo sobre outro, bem como dos meios
de comunicação em operação em uma esfera microscópica. Gabriel Tarde entende que a
imitação estrutura-se tanto pelo que denomina de leis lógicas quanto pelo que considera como
influências extralógicas. Contudo, além de elucidar as leis da imitação, não prescindiremos de
apresentar, resumidamente, as especificidades da estatística, reinterpretada por Tarde como
um poderoso instrumento de análise das ações imitadas.
57
3.
O
MODUS OPERANDI DA IMITAÇÃO
:
LEIS LÓGICAS
,
INFLUÊNCIAS EXTRALÓGICAS E A
ESTATÍSTICA COMO METODOLOGIA
Uma vez que compreendemos que a força responsável pela criação de repetições e
semelhanças no campo social é a imitação, podemos avançar um pouco mais e apresentar o
modus operandi da transmissão imitativa tal como estabelecida por Gabriel Tarde. De fato,
afirmar que os homens tornam-se provisoriamente semelhantes por conta da imitação não
esclarece uma questão crucial: por que, dada a variedade de diferenças existentes nas mais
diversas instâncias do mundo social (como a variedade de neologismos que uma língua pode
criar diariamente, a profusão de inovações de regras sociais, a proliferação de gostos estéticos
que a arte pode fornecer etc), apenas algumas são efetivamente imitadas? Poderíamos
reformular a questão de modo a indagar-nos: quais são os critérios para que um elemento
social seja imitado em detrimento de outro?
Neste capítulo, procuraremos apresentar a solução tardeana para este impasse. O
filósofo entenderá que a imitação é regida tanto por leis lógicas quanto por influências
extralógicas. Inicialmente, trataremos das duas formas que as leis lógicas adquirem em Tarde:
os duelos lógicos e as uniões lógicas. Em seguida, explanaremos as instigantes influências
extralógicas da imitação: a imitação que vai do interior para o exterior e a imitação do
considerado superior pelo dito inferior. Finalmente, exporemos a ousada leitura tardeana da
estatística como metodologia de análise das correntes imitativas de um grupo social.
3.1
A
LÓGICA DA IMITAÇÃO
:
DUELOS E UNIÕES
A comunicação social de crenças e desejos obedece, normalmente, a um de dois
caminhos de caráter gico. Quando uma determinada novidade emerge no tecido social, ela
58
responderá de maneira muito particular a uma necessidade mais ou menos consciente do
grupo social, ao mesmo tempo em que suscitará novas crenças e desejos. Como a sociologia
de Tarde busca enveredar-se por um solo imanente, a propagação de uma inovação sempre se
dará de indivíduo a indivíduo, a partir de cada membro do corpo social: porém, inicialmente,
é preciso que se dê termo, em cada indivíduo, a um conflito ou a uma reunião das novas
crenças e desejos implementados pela inovação e as crenças e desejos que já nele atuavam.
Quando nos referimos a um conflito ou a uma reunião de crenças e desejos antigos
com crenças e desejos novos implementados por uma inovação surgida, estamos no campo
dos chamados duelos e uniões lógicas da imitação. Enquanto as uniões são forças criativas e
férteis em combinações de crença e desejo, os duelos são críticos e ricos em substituições dos
mesmos. Ambos, porém, são essenciais à propagação imitativa. Vamos abordá-los
separadamente a seguir.
3.1.1
O
S DUELOS LÓGICOS
Um duelo lógico se estabelece em um indivíduo quando este se depara com duas
possibilidades de imitação que respondem a uma necessidade semelhante. Inevitavelmente,
ocorrerá uma intensa batalha interna de crenças e desejos novos e antigos, até que o homem
social optará por uma das duas escolhas. O homem adotará determinada opção (ou seja,
imitará) quando o conflito interno houver terminado. Neste ponto, é importante que
ressaltemos que, apesar de o conflito se dar individualmente, suas causas não são, para
Gabriel Tarde, menos sociais. O indivíduo, aqui, é um mero local em que se dão os conflitos
de crenças e desejos (quantidades sociais) antigos e novos. Em vez de afirmarmos que é o
indivíduo que resolve o duelo lógico, devemos defender que é no indivíduo que o conflito de
crenças e desejos se apazigua, e sempre provisoriamente. Tarde nos elucida esta questão no
seguinte trecho:
Eu me apresso em acrescentar que, se a hesitação que precede um ato de imitação é
um fato simplesmente individual, ela tem como causa os fatos sociais, ou seja, os
outros atos de imitação efetuados. A resistência que um homem opõe sempre à
influência prestigiosa ou racional de um outro homem que ele vai em seguida copiar
provém sempre de uma influência antiga que o primeiro suportou. Uma corrente
de imitação se cruza nele com uma tendência a uma imitação diferente: é por isso
que ele não imita ainda. É bom notar, aqui, que a propagação mesma de uma
imitação implica seu encontro e sua luta com uma outra.
80
80
TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p. 225.
59
Por mais que várias opções de imitação possam responder a uma necessidade, o
conflito lógico se dará sempre com dois termos. Todo conflito lógico se constituirá
inevitavelmente dois a dois. Ao responder a uma determinada necessidade, uma inovação A
nega o que uma possibilidade anterior B afirma. Simultaneamente, afirma uma nova crença,
que seria evidentemente negada por B.
Para que melhor se fixem os preceitos do duelo lógico, reproduzimos um interessante
exemplo tardeano deste tipo de lei lógica aplicado à instância social da língua:
Se, no momento em que penso em um cavalo, dois termos equus e caballus ,
provenientes de dois dialetos diferentes do latim, se apresentam juntos ao meu
espírito, é como se a sentença “é melhor dizer equus que caballus para designar este
animal” fosse contradita em mim por esta outra sentença “é melhor dizer caballus
que equus”. Se para exprimir o plural eu tenho que optar entre duas terminações, i e
s, por exemplo, esta opção é acompanhada igualmente de sentenças de fundo
contraditório. Quando as nguas romanas foram formadas, contradições desde
gênero existiam aos milhares nos cérebros gálico-romanos, espanhóis e italianos; e a
necessidade de as resolver gerou os idiomas modernos. Isto que os filólogos
chamam de simplificação gradual das gramáticas não é senão o resultado de um
trabalho de eliminação provocado pelo vago sentimento de suas contradições
implícitas. É por isso que o italiano diz sempre i e o espanhol sempre s, por
exemplo, enquanto o latino dizia ora i e ora s.
81
No exemplo acima reproduzido, temos duas opções as palavras caballus e equus
como respostas à necessidade de designar o animal que conhecemos por “cavalo”. Neste caso,
há uma mesma necessidade e duas opções que duelam por satisfazê-la. Afirmar uma é negar a
outra. Ocorrem, entretanto, alguns casos de duelos lógicos em que as duas opções se
contradizem mesmo respondendo a demandas distintas. Tal situação se daria ora quando as
duas são expressões distintas de uma mesma necessidade considerada superior ora quando a
afirmação de uma delas pressupõe o aniquilamento da outra. Tarde indica-nos um exemplo
para cada um dos casos expostos. No primeiro caso, cita a disputa, no século XV, entre o
então recente uso da tinta a óleo e o tradicional uso de cera como material de pintura. Ambos
eram expressões diferenciadas de uma mesma necessidade dita superior, que seria a confecção
de quadros belos. No segundo caso, teríamos a contradição da descoberta da pólvora na época
feudal, que teria provocado nos monarcas o desejo de unificação territorial e a invenção de
potentes armaduras e castelos que, por sua vez, teriam incentivado os senhores feudais a um
desejo maior de independência. Apesar de não disputarem a priori a resposta por uma
necessidade comum, as invenções descritas acabam por compor um importante duelo lógico
social.
81
Ibid., p. 213-214.
60
Tendo ou não sido provocado pela disputa de uma mesma necessidade, todo duelo
lógico necessariamente chegará a um fim provisório, até que uma nova invenção faça nascer
um novo conflito. A resolução de um duelo dessa natureza, segundo Tarde, pode operar-se de
três maneiras distintas.
A primeira solução se daria quando o simples prolongamento natural de um dos
termos leva ao recuo e ao desaparecimento tranqüilo do outro como, por exemplo, na disputa
entre a escrita cuneiforme e a escrita fenícia na Antigüidade. A considerada superioridade
desta última em relação à primeira fora tão rapidamente propagada que a escrita fenícia pôde
reinar absoluta sem grande desgaste.
Uma segunda trilha desenvolvida por um duelo lógico ocorreria após uma longa
batalha entre as duas possibilidades de imitação. Nesse caso, as duas opções seriam dotadas
de tamanha energia que o término da batalha não se poderia dar sem o aniquilamento total de
um dos termos. Como exemplo, poderíamos citar a disputa entre dois fortes dogmas que
seriam contraditórios um ao outro em uma dada doutrina religiosa. A supremacia de um deles
não se faria por um lento desaparecimento do outro, mas por uma vigorosa e definitiva
disputa entre os dois.
Finalmente, o fim do conflito entre duas correntes de imitação poderia existir quando a
própria contrariedade entre os termos em jogo é suprimida. Tarde nos recorda que a invenção
do telescópio no século XVI, por exemplo, poria fim às discussões entre as correntes
pitagórica e aristotélica a respeito de importantes questões astronômicas.
Para além dos duelos lógicos, que acabamos de expor, as imitações se dão em
concomitância com outra força importante: a de uniões lógicas. Tratemos delas a seguir.
3.1.2
A
S UNIÕES LÓGICAS
Se os duelos lógicos ocorrem quando duas possibilidades de imitação entram em
conflito, as uniões lógicas se realizam quando duas opções de imitação podem ser reunidas
para alcançar um mesmo fim. Novas palavras de uma língua, artigos industriais produzidos a
partir de uma nova arte econômica, regras de um código jurídico, por exemplo, são opções de
imitação que não só não se contradizem como se confirmam umas as outras em seu campo de
atuação (respectivamente, em nossos exemplos, a linguagem, a indústria, o direito).
Tarde salienta que as uniões lógicas são “o alfa e o ômega” da lógica da imitação,
reservando aos duelos lógicos uma função mediadora entre dois estágios distintos de união
61
lógica.
82
O filósofo atribui maior relevância às opções de imitação que se reúnem no sentido
de aumentar a crença e o desejo caso das uniões lógicas que àquelas em que se tem uma
inevitável redução momentânea de crença e do desejo como ocorre com os duelos lógicos.
Parece sensato o privilégio implementado por Tarde pelas uniões gicas, no bojo de sua
teoria social. Se as forças sociais objetivam, em última instância, aumentar a quantidade de
neste mundo, à força que conduz a um crescimento necessário seconcedido um estatuto
superior.
No que diz respeito às leis lógicas da imitação, haveria, em qualquer instância social,
como a linguagem, a religião, a política, o direito, a indústria, a arte etc, um período inicial de
grandes uniões lógicas, seguido de tempos de duelos lógicos para, enfim, haver uniões lógicas
fortificadas. No primeiro momento de uniões lógicas, o que se tem são pequenas invenções
que não se contradizem umas às outras. Podemos exemplificar esse primeiro estágio quando
são inventadas, com grande velocidade, novas palavras em um idioma que acaba de nascer,
que contribuirão para o aumento das páginas de seu dicionário. Também configuraria um
período de uniões gicas em primeiro estágio a profusão de narrativas, lendas e histórias
míticas que se acumulam quando surge uma nova religião. Contudo, após este período de
intensos acúmulos de elementos, de fortificação social pelo número, despontam os primeiros
e inevitáveis conflitos: no caso de uma língua, por exemplo, ter-se-iam palavras que se
formam por regras distintas e, muitas vezes, contraditórias. Ou seja, surgem os
mencionados duelos lógicos microscópicos provenientes naturalmente do grande acúmulo
desordenado de elementos sociais. É precisamente após esse momento que estariam
asseguradas as condições para o segundo estágio das uniões lógicas. As contradições advindas
do período de duelos lógicos possibilitariam a formação de regras mais rígidas a partir das
quais os novos elementos sociais deveriam surgir. Para nos manter no exemplo da linguagem,
é apenas após a disputa de regras ortográficas distintas que se podeavançar na formação de
uma gramática. Ora, uma vez que uma gramática é formada, as palavras que serão inventadas
a partir de então obedecerão, necessariamente, a uma lei prévia, inexistente no primeiro
estágio das uniões lógicas. Presenciaríamos, assim, um segundo estágio das uniões lógicas:
nele, as invenções não só não se contradizem como se confirmam umas as outras, sempre com
o objetivo de fazer aumentar a crença em uma determinada instância social imanente, como a
língua, por exemplo.
82
Ibid., p. 231.
62
Neste ponto, cumpre tecermos uma pequena observação acerca da idéia tardeana de
evolução. Apesar de, no que se refere à constituição lógica das categorias sociais, Tarde
primar pelo mecanismo dialético das uniões e duelos lógicos microscópicos, de forma alguma
poderíamos afirmar que há, para o pensador, uma evolução epocal na forma de grandes
períodos sistematicamente constituídos. O que se tem são a batalha e a reunião ininterruptas
de elementos sociais vivos e infinitesimais: um jogo vibrante e infinito de pequenas invenções
que se acumulam a outras (inserções), invenções que se propagam facilmente (evoluções) e
invenções que substituem ou eliminam outras (contra-evoluções ou revoluções). Ou seja, por
mais que se possa admitir, por exemplo, algumas evoluções em micro-instâncias, como nas
leis de uma constituição, no estabelecimento de diretrizes artísticas de uma determinada
escola literária, dentre outros, haveria, ainda assim, uma multiplicidade de evoluções, mas
jamais uma unilinear Evolução social que se desvelaria pouco a pouco como um Absoluto.
Tarde indica que, sem qualquer dúvida, não nada além de evoluções, de forma elementar,
visto que não nada além de imitações; mas, uma vez que essas evoluções, essas imitações,
se combatem, é um grande erro considerar o todo, formado destes elementos em conflito,
como uma só evolução”.
83
Além de afastar-se de uma concepção linear de evolução por meio de sua abordagem
microscópica das uniões e duelos lógicos, Tarde distingue-se da via comum de pensamento de
seu tempo ao atribuir como causas da imitação não apenas leis lógicas como também
influências extralógicas. A força que influências que não obedecem a regras fixadas por
uniões ou duelos lógicos adquire na teoria social tardeana torna o trabalho do pensador muito
menos suscetível a aderir a grandes generalizações referentes a evoluções históricas em
épocas sucessivas. A união ou combate de crenças e desejos em caráter infinitesimal é tanto
razão da imitação como os processos extralógicos, dos quais trataremos a partir deste ponto.
3.2
A
S INFLUÊNCIAS EXTRALÓGICAS DA IMITAÇÃO
Defendemos, neste trabalho, que a imagem do pensamento do social de Gabriel Tarde
é fundamentalmente baseada em processos de comunicação, em que a imitação social como o
pôr em comum de crenças e desejos na forma de contágio é um dos pilares principais. Neste
capítulo, abordamos até o momento as chamadas leis lógicas regentes da imitação, que
certamente terão seu papel nos estudos de comunicação social. Todavia, cremos que seriam as
83
Ibid., p. 243.
63
influências extralógicas tardeanas da imitação que mais poderiam ampliar as opções de
estudos da área.
Se a imitação é a forma que adquire o contágio na esfera social, assim como a
ondulação é sua conformação na esfera físico-química e a geração o é na esfera vital, é
imprescindível ressaltar que o contágio social das crenças e desejos independe da linguagem
humana. Tarde, remontando aos tempos primitivos em que os homens não dispunham das
palavras, se indaga: como se operava,
de um cérebro a outro, o atravessamento de seu conteúdo íntimo, de suas idéias e de
seus desejos? Ele funcionava, com efeito, se os entendermos como o que se passa
nas sociedades animais cujos membros parecem compreender-se quase sem signos,
como em virtude de um tipo de eletrização psicológica por influência. Nós devemos
admitir que, desde então, e talvez com uma intensidade considerável, decrescente
depois de então, se exercia uma ação inter-cerebral à distância, cuja sugestão
hipnótica pode nos dar vagamente a idéia de como um fenômeno mórbido pode
assemelhar-se a um fato normal. Esta ação é o problema elementar e fundamental
que a psicologia sociológica (que começa onde a psicologia psicológica termina)
deve esforçar-se em resolver.
84
No que se refere ao desenvolvimento da linguagem, o filósofo não se surpreende que
um homem primitivo tenha imaginado associar um pensamento seu a um som (base da
linguagem). Impressionante seria o fato de que este mesmo homem tenha conseguido sugerir
esta associação a um outro. Neste sentido, a hipótese do contágio social anterior à linguagem
adquiriria mais força. A própria linguagem só pôde desenvolver-se por via da imitação social.
Entretanto, não se pode inferir, a partir das observações precedentes, que o
pensamento tardeano menospreze a força da linguagem nos processos imitativos. Muito pelo
contrário, Tarde considera que a linguagem teria permitido tornar a imitação mais e mais
perfeita e regularizada. Apesar de não ser causa da imitação, ela é certamente sua principal
força propulsora. Se a cosmologia sociológica de Gabriel Tarde é fundamentalmente
comunicacional, a imitação na esfera social é profundamente atrelada à transmissão de signos
lingüísticos. Trata-se de um fenômeno exclusivamente humano, pois “uma idéia engenhosa,
por hipótese, tendo sido iluminada no cérebro de um búfalo ou de um corvo, morreria com ele
e seria necessariamente perdida pela comunidade”.
85
Em resumo, a comunicação de crenças e desejos em Gabriel Tarde não é privilégio da
esfera social, mas é igualmente razão de ser das esferas físico-química e vital. Por outro lado,
a comunicação por contágio social conformada pela imitação adquire uma estruturação
84
Ibid., p. 261-262.
85
Ibid., p. 264.
64
potente por meio do desenvolvimento da linguagem, ela própria transmitida por imitação. No
seguinte trecho, é elucidada claramente tal perspectiva:
Uma vez facilitada e regularizada pelo hábito das comunicações verbais, a ação à
distância de um cérebro dominante sobre os cérebros dominados adquire uma força
irresistível. Nós podemos ter uma idéia do que foi a linguagem originalmente como
um meio de governabilidade pela potência que exerce em nossos dias sua forma
mais recente, a imprensa periódica, embora ela seja neutralizada parcialmente ao se
reproduzir e ao se combater contra ela mesma. É graças à palavra que a imitação, no
mundo humano, acentuou este caráter eminente de se atrelar ao que, de início, de
mais íntimo em seu modelo vital, e de reproduzir sua faceta secreta – representações
e intenções com uma precisão incrível, antes de compreender e refletir com uma
exatidão menor as facetas exteriores deste modelo: atitudes, gestos, movimentos.
86
Tudo o que é manifestado na linguagem (gestos, atitudes, movimentos, palavras) é,
portanto, posterior a uma compreensão de seu sentido, transmitido por contágio social. A
partir do que abordamos sobre a linguagem, podemos tratar, assim, da primeira forma de
influência extralógica do contágio social estudada por Tarde: a imitação que vem do interior
para o exterior.
3.2.1
A
IMITAÇÃO AB INTERIORIBUS AD EXTERIORA
Quando se percebe a imitação por meio de seus signos exteriores é porque a imitação
já está em consolidação. Quando se fala como alguém é porque já se imitaram, antes do signo,
as crenças e desejos deste indivíduo relacionados à fala. De maneira análoga, nos anos
anteriores à Revolução Francesa comenta Tarde Paris não mais copiava os modos da
corte, nem aplaudia as mesmas peças de teatro que eram bem consideradas em Versalhes.
Mesmo antes de a Revolução propriamente dita estrugir, a crença e o desejo de
insubordinação já há muito pairavam na capital francesa.
Como postula Gabriel Tarde, uma das influências extralógicas da imitação diz respeito
à maneira como se dá a contaminação social: sempre do “interior” para o “exterior”, ab
interioribus ad exteriora. Quando faz uso das palavras “interior” e “exterior”, o filósofo se
refere precisamente, no primeiro caso, a finalidades e idéias e, no segundo caso, a meios e
expressões. Sendo assim, imita-se inicialmente a idéia (crença) relacionada a um fim (desejo)
para, posteriormente, dar-se a imitação das expressões designadas por esta crença e dos meios
utilizados para alcançar este fim.
86
Ibid., p. 263.
65
Quando um rito religioso é adotado por uma seita, as crenças e os desejos a ele
vinculados terão sido imitados. Seguindo a mesma lógica, muitas vezes imitação
mesmo quando os sinais exteriores de expressão não foram ainda impregnados em
determinado grupo social, como no caso acima descrito acerca das relações burguesia-nobreza
às vésperas da Revolução Francesa e no caso da conversão dos cristãos, tal como Tarde expõe
a partir de estudos de arqueólogos e do notável Tertuliano:
Por que há um momento em que não é imitado o lado interno do modelo, quer dizer
a crença ou o desejo implicados na palavra ou no ato em questão que é reproduzido,
mas o lado externo? É porque uma outra crença, um outro desejo, inteiramente ou
parcialmente inconciliáveis com a primeira crença e o primeiro desejo, se expandem
nos meios mesmos onde estes estão expandidos. Assim, o modelo é atingido em
seu âmago, mas continua a viver pela superfície, somente se encurtando ou se
aniquilando sem cessar, até o momento em que uma nova alma lhe sobrevém. Nós
sabemos pelos escritos de Tertuliano e as descobertas da arqueologia que os
primeiros cristãos e as primeiras cristãs, apesar do fervor de sua e da sinceridade
de sua conversão interna, continuavam exteriormente a viver, a se vestir, a cortar os
cabelos, a se divertir como os pagãos, por mais que fossem indecências anticristãs as
vestimentas e os divertimentos de que se tratavam.
87
Subentende-se, ao deparar-se com a influência extralógica da imitação ab interioribus
ad exteriora, que o processo de contágio social implica, necessariamente, um jogo particular
em que a temporalidade é a principal operadora. A imitação se em gradações distintas de
tempo, em que a manifestação externa do signo imitado é tão-somente o termo final de um
fluxo imitativo que se iniciou com a adesão de um indivíduo a crenças e desejos de outro
indivíduo. A caracterização tardeana da influência extralógica da imitação que vai do interior
para o exterior nos demonstra que mesmo quando não se manifesta ainda a expressão do que
foi imitado, houve contágio previamente, quando os fins e as idéias foram considerados
relevantes.
Uma outra influência extralógica tratada por Tarde diz respeito à imitação do dito
superior pelo considerado inferior. Este segundo ramo da imitação que se furta a explicações
lógicas é derivado do primeiro que acima descrevemos. Entretanto, como este ramo da
imitação é tão cheio de matizes, deve ser abordado separadamente. É isto o que faremos a
seguir.
87
Ibid., p. 268.
66
3.2.2
A
IMITAÇÃO DO DITO SUPERIOR PELO CONSIDERADO INFERIOR
Uma criança nasce e, por volta de um ano e alguns meses de idade, inicia-se no
maravilhoso universo da linguagem. Em pouco tempo, será capaz de articular palavras e
frases completas. O pequeno ser que começa a falar não o faz por operações lógicas próprias
manifestadas em duelos e uniões lógicas, mas pela forma mais elementar de contágio social,
pela imitação que, como vimos, prescinde de palavras. A criança depara-se, no seio da
família, com membros de sua casa que falam. Inicialmente, ela apenas ouvirá, esforçando-se
em assemelhar-se aos outros por meio daquele estranho artifício de que os adultos fazem uso.
Em seguida, passará a emitir seus primeiros gestos, suas primeiras palavras, que buscarão
atender a suas necessidades mais elementares. Ora, se estão excluídas as leis lógicas da
imitação neste caso, como se explicaria a aquisição da capacidade de comunicação gestual e
verbal das crianças?
Segundo Gabriel Tarde, pode-se explicar tal fenômeno por uma variação do que
considerou como imitação ab interioribus ad exteriora. A criança imitará, inicialmente, as
crenças e desejos daquele que considerará superior a ela no âmbito familiar.
88
Sendo assim,
quando é estabelecida uma relação de um indivíduo ou de um povo que se consideram
inferiores em relação a, respectivamente, outro indivíduo ou outro povo, temos o que Tarde
considera como a imitação do superior pelo inferior.
A lei da imitação do que é considerado superior pelo que é tido como inferior não
impede que o dito inferior não seja imitado pelo considerado superior. Com efeito, se dois
seres são postos em contato por um determinado período de tempo, será inevitável que a
imitação se dê em mão dupla. Entretanto, a força da corrente imitativa será sempre, em
qualquer circunstância, maior do inferior em relação ao superior. Iniciamos este trecho do
capítulo com um exemplo da influência extralógica presente em relação a um indivíduo em
formação, mas não podemos abrir mão de indicar que a considerada superioridade demanda
forças de imitação também em relação a nações e grupos sociais como um todo. Por exemplo,
88
Quando mencionamos pessoas do âmbito familiar, lamentamos a inexistência, na língua portuguesa, de
palavra que expresse tão bem o sentido que a palavra francesa maisonées possui. Tarde a emprega para designar
todos aqueles que dividem um mesmo lar e que são, portanto, magnetizadores em potencial para a criança em
fase inicial de desenvolvimento. Se traduzirmos maisonées por familiares, estaremos restringindo a intenção
tardeana de alargar o sentido de família no que diz respeito à imitação dentro de casa. Segundo o filósofo, o pai
da criança poderá ser o principal foco de suas imitações tanto quanto uma poderosa babá magnetizadora, por
exemplo, seria. Quando Tarde afirma que a família é o berço da imitação, deve-se entender o sentido amplo que
família adquire a partir do cotejo com a expressão maisonéés, empregada por ele nos escritos sobre o tema. Cf.
TARDE, Gabriel. Écrits de psychologie sociale (choisis et presentes par A.M. Rocheblave-Spenlé et J. Milet).
Toulouse: Edouard Privat, 1973, p. 174.
67
em um estado qualquer, a imitação sempre se dará com mais intensidade das cidades do
interior em relação à capital: a modo de falar da capital, sua forma de andar, sua moda, seus
gostos por vezes excêntricos e incompatíveis com as tradições do interior etc... A ilogicidade
deste tipo de influência está precisamente nessas pequenas instâncias.
89
Como explicar a
adesão tradicional a frutos típicos de regiões frias própria ao Natal brasileiro senão por esta
segunda influência extralógica da imitação? Neste caso, como em muitos outros, de nada
servem os jogos de necessidade versus opções que configuram tanto os duelos quanto as
uniões lógicas. valeu, na origem, o considerar-se inferior como razão da profusão de
nozes, passas e avelãs na ceia natalina brasileira em um dezembro de verão tropical. A lógica
cede lugar ao elemento extralógico.
Na disseminação da doutrina cristã, este tipo de influência extralógica teve papel
crucial, como nos demonstra habilmente Tarde em uma curiosa nota de seu As leis da
imitação:
À primeira vista, a lei da imitação de cima para baixo parece inaplicável à
propagação do cristianismo, que se expandiu de início entre as classes baixas. É
verdade que seus progressos foram bem pouco rápidos até o dia em que ele ganhou
as classes superiores e mesmo a corte dos césares. Mas é importante, sobretudo,
observar que o cristianismo começou a se reproduzir pelas cidades, pelas grandes
cidades de início, para tão-somente ser propagado no campo, onde submeteu os
últimos camponeses pagãos. Fustel de Coulanges (Monarchie franque, p. 517)
ressalta esta propagação urbana da cristã. Pelas capitais se expandiu o
cristianismo então, como o socialismo nos nossos tempos.
90
Dados esses exemplos da imitação que vai de cima para baixo, ou da imitação do
superior pelo inferior, convém que esclareçamos alguns pontos importantes relacionados a
esse tipo de influência extralógica social. Em primeiro lugar, insistimos nas descrições tanto
da idéia de superioridade quanto da de inferioridade alertando que Tarde é cuidadoso ao
alertar-nos sobre o caráter profundamente histórico das designações de superior/inferior.
Evidentemente, a relação de superioridade e inferioridade estabelecida entre dois indivíduos
ou dois grupos de indivíduos é profundamente maleável, segundo os valores ora dos
indivíduos ora dos grupos. Sendo assim, é importante destacar que a relação hierárquica é
89
Em um ácido trecho de As leis da imitação, ao tratar da influência superior das grandes cidades, Tarde
evidencia novamente sua ampla oposição aos princípios iluministas simbolizados na Revolução Francesa: “Paris
senta-se no trono regiamente, sobre a província, mais do que jamais reinou certamente a corte sobre a cidade. A
cada dia, pelo telégrafo ou o trem, ela envia à França inteira suas idéias, suas vontades, suas conversações, suas
revoluções predeterminadas, seu vestuário, sua mobília pronta para usar. A fascinação sugestiva e imperativa que
ela exerce instantaneamente sobre um vasto território é tão profunda, tão completa e o contínua, que quase
ninguém mais se impressiona. Esta magnetização tornou-se crônica. Ela se chama igualdade e liberdade”.
TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. op. cit., p. 284.
90
Ibid., p. 285-6.
68
fundamental na concepção tardeana dos mecanismos da imitação, mas que tal hierarquia não
é, de modo algum, um dado natural e a-histórico. Pelo contrário, ela se constituirá no jogo
ininterrupto de forças que atuam em uma determinada instância temporal. Para compreender
como se estabelece uma relação de superioridade e de inferioridade, trata-se de saber quais
[...] são as quantidades que, conduzindo ou tendo conduzido um homem, um grupo
de homens, à potência e à opulência, o tornam visível à admiração, à inveja, à
imitação ambientes. Nos tempos primitivos, é o vigor ligado à destreza corporal, a
bravura física; mais tarde, a habilidade para a guerra, a eloqüência na assembléia;
mais tarde ainda, a imaginação artística, a engenhosidade industrial, o nio
científico. Em suma, a superioridade que se procura imitar é aquela que se entende;
e aquela que se entende é aquela em que se crê ou que se considera adequada a
fornecer os bens que se apreciam, porque eles respondem às necessidades que se
experimentam e que, entre parênteses, têm por fonte a vida orgânica, é verdade, mas
por canal e por modelo social o exemplo do outro.
91
Ora, se a superioridade de alguns homens é considerada segundo valores sociais
engendrados de maneira distinta no desenrolar da história, restaria saber ainda o que
determinaria a diferenciação destes valores em um mesmo período histórico. Em suma, o que
faria com que alguns homens fossem tidos como superiores e outros como inferiores?
Segundo Tarde, tal hierarquia se constitui a partir do leque de invenções disponíveis em um
determinado tempo. Dadas as invenções típicas de um período, serão considerados superiores
os homens sociais capazes de melhor lidar com elas, aqueles que saberão melhor explorá-las.
Como as invenções típicas de um tempo não são nunca iguais às de outra época, aquele que
for considerado superior será, assim, sempre dependente da historicidade. É por essa razão
que
a descoberta das vantagens atreladas à permanência em cavernas e a invenção de
armas de sílex, de arcos e de flechas, de lanças de osso, de fogo produzido pela
fricção de lenha etc deram aos primeiros trogloditas seu ideal de felicidade; uma
caçada feliz, roupas de pele, caça (humana, às vezes!) comida no fundo de uma
caverna esfumaçada. Mais tarde, a descoberta de certas noções de história natural, e
a invenção capital da domesticação dos animais, destinada a desenvolvimentos
imensos, mudou o ideal, e não se sonhava senão com grandes rebanhos sob a
vigilância de um patriarca. Depois, a descoberta dos primeiros elementos de
astronomia e a invenção da domesticação das plantas, ou seja, da agricultura, a
descoberta dos metais e a invenção da arquitetura, tornaram possível o sonho de
grandes domínios povoados de escravos e dominados por um palácio, copiado em
seguida em casas. Enfim, a descoberta de ciências, desde a física nascente dos
gregos e a química balbuciante dos egípcios até nossos tratados de saber, e a
invenção das artes e da indústria, do poema lírico ao drama ou dos moedores de
pedra aos moinhos a vapor, permitiram conceber gradualmente a felicidade dos
91
Ibid., p. 291.
69
nossos milionários, sua segurança em cédulas ou em títulos públicos em um hotel de
Londres ou de Paris.
92
Além da historicidade das concepções de superioridade e inferioridade na hierarquia
propulsora da imitação de cima para baixo, outro ponto merece nossa observação: ele diz
respeito à distância social entre o que se considera inferior e o que é tido como superior. Para
que haja efetivamente imitação de cima para baixo, é crucial que a distância entre os dois
indivíduos ou grupos de indivíduos envolvidos no processo seja grande o suficiente para que
fique clara a hierarquia entre eles, e pequena o bastante para que eles possam entrar em
contato de alguma forma. Caso contrário, ou seja, quando se estabelece uma relação
hierárquica entre dois indivíduos ou grupos de indivíduos, com uma distância social entre os
dois tão grande a ponto de impedir o contato entre eles (contato não necessariamente físico,
mas por via das opções de entretenimento comuns ou gostos literários, por exemplo), não é
possível que se a imitação. Desta forma, apesar de clara a hierarquia social configurada
entre um morador de rua e um grande empresário, dificilmente haverá, aí, uma corrente
imitativa de cima para baixo, dada a abissal distância social que separa os dois indivíduos. Por
outro lado, um comerciante de um bairro pobre e o mesmo industrial podem dar início a uma
corrente imitativa, se lêem o mesmo jornal, por exemplo. Em outras palavras, talvez fosse
correto afirmar que, nesse caso específico, se implementa uma ampla rede de contágios
sociais se há um mínimo princípio de comunicação entre dois indivíduos ou grupos de
indivíduos. Em nossa leitura da teoria tardeana que privilegia a comunicação social, diríamos
que o compartilhamento de crença e desejo é o princípio básico para que haja a imitação no
sentido hierárquico designado por esta segunda influência extralógica por ele apresentada.
Em resumo, podemos destacar quatro mecanismos presentes no processo imitativo: no
âmbito lógico, os duelos e uniões lógicas; na esfera extralógica, a imitação de dentro para fora
e de cima para baixo. Ao passo que os duelos gicos se dão quando duas opções de imitação
são apresentadas a um indivíduo para responder a uma única necessidade, as uniões lógicas
surgem quando duas opções se dão como soluções não-contraditórias para uma mesma
necessidade vigente. Normalmente, ao emergir no campo social uma nova invenção, tem-se
um período de aceleradas uniões lógicas cujo objetivo é fortalecer essa invenção (como as
palavras que brotam de uma nova língua antes do aparecimento de regras de ortografia). Em
seguida, dado o número de elementos sociais novos, tornam-se claras algumas contradições
que serão provisoriamente resolvidas em duelos lógicos. Finalmente, como conseqüência dos
92
Ibid., p. 292.
70
duelos lógicos, tem-se um novo período de uniões lógicas, agora sob a égide de um
determinado conjunto de regras (em nosso exemplo, uma gramática).
em relação às influências extralógicas, vimos que a imitação se dá sempre do
interior para o exterior, de dentro para fora. Isto significa dizer, mais propriamente, que a
imitação de idéias e fins é sempre anterior à de expressões e meios. Por exemplo, na
conversão religiosa, imita-se inicialmente o dogma e posteriormente o ritual. Tal mecanismo
da imitação ressalta a duração do fluxo imitativo, em seu caráter não-imediato. Finalmente,
apresentamos a imitação que se de cima para baixo, ou daquele que se considera inferior
em relação ao dito superior. A capital que fornece modelos de comportamento, vestimentas
etc para as cidades periféricas é um bom exemplo desse tipo de influência.
Ainda nos contornos da imitação, cumpre apresentar e comentar um importante
instrumento sociológico de análise das correntes imitativas: a estatística. Sendo diretor da
seção de estatística criminal do Ministério da Justiça em Paris, de 1894 até sua morte, em
maio de 1904, e tendo publicado algumas obras importantes sobre o tema, Gabriel Tarde
naturalmente se interessaria pela estatística como aliada dos estudos da área que ajudava a
engendrar: a sociologia. Contudo, mantendo-se fiel a sua verve inovadora, Tarde institui uma
concepção bastante peculiar da estatística, como veremos no último bloco que compõe este
capítulo.
3.3
O
VÔO DA ANDORINHA
:
A ESTATÍSTICA COMO INSTRUMENTO SOCIOLÓGICO
Em As leis da imitação, em especial em seu capítulo quarto, Gabriel Tarde apresenta a
estatística como o método sociológico por excelência.
93
Convém, entretanto, que exponhamos
a leitura tardeana da estatística, que certamente destoa de boa parte dos pensadores em
ciências sociais, especialmente no século XIX. Para Tarde, a função da estatística é tão-
somente medir a expansão de cada uma das invenções propagadas por contágio imitativo. A
estatística está para a imitação assim como a arqueologia está para a invenção, como veremos
em nosso capítulo seguinte. As ações imitadas são o objeto de estudo da estatística, mas
apenas se as ações analisadas forem minuciosamente separadas de acordo com dois
princípios: primeiramente, analisa-se o crescimento, a estabilidade e o decréscimo das ações
similares separadamente (por exemplo, o desenvolvimento da indústria de armamentos de um
lado e o aumento do número de mortes por arma de fogo do outro); em seguida, estabelecem-
93
Ibid., p. 165.
71
se as relações de início possíveis entre as séries separadas e, finalmente, as relações prováveis
entre elas.
A estatística é uma enumeração de atos parecidos, o mais semelhante que eles possam
ser. De que se ocupa a estatística senão destas invenções que são edições imitativas
proliferadas no mundo social? Por meio de seus números, presenciamos a gradual
consolidação de uma necessidade nova, de uma nova moda do público. Cada uma de suas
curvas gráficas é uma monografia histórica de algum tipo. Em resumo, a estatística deverá
determinar a potência imitativa própria a cada invenção, em um determinado tempo e em um
país dado, mostrando os efeitos favoráveis ou não produzidos pela imitação de cada uma delas
e, conseqüentemente, influenciando aqueles que, de posse dessas informações, possam refletir
sobre dar seqüência ou não a determinado modo de ação.
Bastante próprio da Modernidade é o entusiasmo do pensador com o que previa como
o desenvolvimento da estatística. Por exemplo, imagina como seriam proveitosos os dados
sobre todos os móveis presentes em todas as casas de cidadãos de um determinado país, e a
variação dos tipos de móveis ano a ano. Seria uma excelente fotografia de um estado social,
afirmou. Diante da limitação desta ciência em seu tempo (em que apenas as estatísticas
industrial, comercial, populacional e médica eram fortes), vislumbra a possibilidade de haver,
em um então futuro, uma estatística lingüística, por exemplo, que indicaria não a expansão
de um determinado idioma, mas as variações e usos de cada vocábulo da língua.
Apesar do otimismo evidente com a estatística, Tarde não deixa de sublinhar um dado
fundamental: o pesquisador que fará uso desta metodologia não pode se esquecer, contudo, de
suas limitações. Ela é capaz apenas de mapear as ações, fruto de um constante
entrecruzamento de crenças e desejos dos mais diversos tipos. As crenças e os desejos, reais
motores de qualquer ação humana, entretanto, escapam de seus domínios, uma vez que tais
fluxos são inapreensíveis em sua processualidade ininterrupta. Por isso tarde salienta que
importa muito, ao percorrer as obras dos estatísticos, não se esquecer que, no fundo
das coisas a se medir estatisticamente, estão as qualidades internas, as crenças e os
desejos, e que muito freqüentemente, “a um número igual, os atos enumerados por
eles exprimem pesos muito diferentes das coisas”.
94
Além disso, a estatística expõe apenas as imitações realizadas, mas, por trás destas,
existe toda a série de imitações desejadas mas não efetuadas. Desconsiderar as ações não
efetuadas no bojo do grupo social seria um grande erro do teórico em ciências sociais.
94
Ibid., p. 166.
72
Desejos e crenças não realizados em um dado momento podem ser motores de ações de outro
período: daí sua importância para os pesquisadores competentes da área. Já neste primeiro
sentido, no que torna claras suas limitações, entende-se por que a estatística não pode ser
encarada como instrumento de desvelamento da verdade.
um outro sentido, porém, mais curioso no reforço tardeano da relativização da
verdade absoluta que poderia ser medida cientificamente. Em um determinado trecho do
referido capítulo de As leis da imitação, Tarde afirma que a curva estatística demonstra o
movimento dos atos humanos por meio de um congelamento momentâneo da percepção
social. A imagem da percepção social é reforçada em uma comparação com a percepção
humana. Segundo o pensador, a estatística como meio por que se percebe a realidade social
seria tão ficcional quanto a percepção humana propriamente dita. Procuremos elucidar este
ponto: como indicamos no segundo capítulo desta dissertação, a modernização dos discursos
relativos à percepção humana no século XIX indicou que a percepção humana não seria mais
que o resultado final de uma multidão de micro-percepções que invadem os sentidos todo o
tempo. A percepção nada mais seria que uma economia de forças. Tarde afirma que, assim
como ao observarmos uma andorinha voando, ficamos com a imagem do trajeto do vôo do
animal em nossa retina quando o movimento em si já se teria dado, a estatística implementa a
descrição mais ou menos fiel do que é puro movimento: o sócius. O trajeto do vôo de uma
andorinha que permanece na retina do observador é como uma curva estatística.
De fato, Tarde estabelece entre os dois tipos de percepção uma diferença de grau, atrelada à
temporalidade. A única diferença entre a percepção estatística e a percepção humana é que a primeira requer um
desdobramento maior do tempo para ocorrer, enquanto a segunda dispõe de uma temporalidade mais restrita.
Ainda assim, o desenvolvimento da estatística poderia trazer, segundo Tarde, uma redução desta diferenciação
de grau, chegando a “um momento em que, para cada fato social que estivesse em realização, escaparia por
assim dizer automaticamente um número, que vai imediatamente tomar seu lugar nos registros da estatística
continuamente comunicada ao público e reproduzida em gráficos pela imprensa cotidiana”.
95
Os escritórios de
estatística seriam comparados a olhos ou orelhas! Seria tão fácil para um homem reconhecer um amigo que está
caminhando em sua direção quanto saber das menores oscilações das correntes de opinião sobre determinada
religião. Haveria um dia sonha o filósofo em que seria tão absurdo um juiz ou um legislador desconhecer as
estatísticas criminais quanto um motorista de ônibus ser cego ou um maestro ser surdo.
Nossos sentidos – cada um com sua peculiaridade – já fazem uma estatística do universo exterior. Desta
forma, a percepção do som é calculada por meio do número de vibrações sonoras que delimitam determinado
tipo de som e a sensação de temperatura corresponderia à estatística das vibrações calóricas do éter, por
exemplo. O sociólogo constantemente identifica paralelos funcionais entre o comportamento individual subjetivo
e as ações de amplas coletividades, indicando como o indivíduo é comumente desatento a uma enorme
95
Ibid., p. 193.
73
quantidade de experiência sensorial que por ele perpassa. Da mesma forma, a consciência social operaria de
acordo com um princípio de atenção e exclusão estreitas, por onde uma vasta quantidade de invenções sociais,
memórias e descobertas cairiam no esquecimento à medida que desaparecessem da “retina social”.
A defesa que Tarde faz da estatística implica, ainda, uma sugestão à imprensa de seu
tempo. As estatísticas nos jornais, então relegadas a uma parte inferior, poderiam destinar-se a
ocupar todo o meio de comunicação. Assim, cada
[...] escritório de redação não será mais que uma confluência de diversos escritórios
de estatística, aproximadamente como a retina é um feixe de nervos especiais
trazendo sua impressão característica, ou como o tímpano é um feixe de nervos
acústicos. No momento, a estatística é um tipo de olho embrionário, similar ao dos
animais inferiores que vêem o bastante para o reconhecimento de um inimigo que se
aproxima ou de uma presa; mas já é um grande serviço que ela nos presta, e ela pode
nos impedir assim de correr sérios perigos.
96
Os jornais ideais, portanto, não seriam mais que reservatório de fatos, números e
comentários breves. Não haveria aqui, entretanto, uma defesa da “objetividade jornalística”,
como se poderia imaginar, uma vez que os próprios números advindos do saber estatístico são
considerados ficções por Tarde. A ficcionalidade da estatística, porém, não seria contraposta a
uma possível verdade alcançável, e isso por duas razões: primeiro porque, como vimos em
capítulos anteriores, a verdade para Gabriel Tarde não é mais do que uma forte crença
compartilhada; além disso, a estatística, como percepção social, seria tão ficcional quanto a
própria percepção humana. Estatística e percepção humana são comparáveis na medida em
que ambas são reorganizações redutoras de um contínuo de experiências plurais e em
constante diferenciação.
Finalmente, chegamos ao último ponto relevante no que diz respeito à abordagem
tardeana da estatística. Trata-se da formação do olhar de leitura dos gráficos. Uma vez
circunscrito o campo de aplicação da estatística, Tarde afirma que é preciso saber interpretar
suas curvas hieroglíficas, às vezes pitorescas e estranhas como os picos das montanhas, mas
freqüentemente sinuosas e graciosas como as formas da vida. Podem-se dividir as linhas
estatísticas em três: escarpas (encostas íngremes), platôs e declives.
97
A leitura das curvas estatísticas, por influência da escola de Adolphe Quételet (1796-
1874), é geralmente concentrada nas linhas que formam um caminho constante no gráfico, o
96
Ibid., p. 195.
97
Jonathan Crary nota que, apesar de reconhecer a influência do pensamento tardeano em muitas áreas de seu
trabalho, Deleuze e Guattari “estranhamente [...] jamais identificaram Tarde como uma das fontes para seu
conceito de platô (que afiliam ao trabalho de Bateson). Tarde usa platô como uma figura flexível para processos
e eventos naturais, sociais e estatísticos, incluindo a operação do desejo social”. CRARY, Jonathan. Suspensions
of perception: attention, spectacle and modern culture. Cambridge/Massachusetts: MIT Press, 2000, p. 244.
74
que, no vocabulário tardeano, representaria a estabilidade de uma determinada corrente
imitativa. Sem negar a importância das linhas horizontais, Tarde sugere, contudo, que seria
mais produtivo atentar menos às linhas horizontais e mais às linhas em ascensão. Se as linhas
horizontais indicam o equilíbrio de uma corrente imitativa, as linhas verticais mostrariam a
propagação grandiosa de um determinado tipo de imitação. O gráfico abaixo reproduzido
indica as taxas de casamentos no Brasil de 1979 a 1994. Segundo a escola de Quételet,
deveríamos atentar aos períodos de estabilidade (especialmente entre 1984 e 1985, entre 1987
e 1988 e entre 1991 e 1992). Para Tarde, porém, seria mais produtivo analisar os períodos de
propagação imtativa representados pelas linhas em ascensão (entre 1981 e 1982 e entre 1983 e
1984, por exemplo).
Fonte: Fundação IBGE, Anuário Estatístico do Brasil 1960/1991 e 1994
Figura 3: Gráfico estatístico – taxa de casamentos no Brasil de 1979 a 1994
Em um gráfico estatístico, se temos uma linha constante, isto significa que o aparente
equilíbrio das forças de imitação representadas pelas linhas horizontais das curvas é sempre
instável, uma vez que as correntes imitativas encontram-se a todo tempo em concorrência
umas com as outras. Assim, por exemplo, se a propagação imitativa do consumo de um
determinado produto de limpeza mantém-se estável, isto quer apenas dizer que a força de
imitação vinculada a este produto é igualmente forte à soma das correntes imitativas
concorrentes a ele. Trata-se, evidentemente, de uma situação instável, dado o constante
movimento de crenças e desejos que compõem o sócius.
75
Nesta física social, algumas correntes imitativas, como o casamento monogâmico
cristão, por exemplo, permanecem normalmente estáveis porque tais invenções tiveram um
grande tempo para sua propagação e consolidação. A cosmologia sociológica tardeana
permite que o pensador afirme que imitações deste tipo acabam tornando-se tão naturalizadas
quanto o clima, as doenças ou a morte, por exemplo. Em suma,
[...] físicas ou vivas, todas as realidades exteriores nos dão o mesmo espetáculo de
ambições infinitas, irrealizadas e irrealizáveis, que se incitam e se paralisam
reciprocamente. Isto que chamamos de fixidez, imutabilidade das leis da natureza,
realidade por excelência, não é no fundo mais que sua impotência de ir mais longe
em seu caminho verdadeiramente natural, de se realizar mais plenamente.
98
O erro de Quételet, segundo Tarde, pode ser explicado historicamente. Os primeiros
estudos estatísticos abordavam questões relacionadas a fatores mais ou menos constantes,
como o clima, a mortalidade, a natalidade etc... Desta constância relativa, generalizou-se o
método de buscar, nas curvas estatísticas, tudo o que remetesse às séries homogêneas. Em
instâncias como o crescimento populacional, por exemplo, notamos algumas relativas
ondulações ao longo dos anos. Se isolarmos um dos fatores relacionados a esta instância o
desejo de paternidade, por exemplo, vemos que este fator apresenta uma dupla vertente: a
primeira, a do desejo natural e instintivo de ser pai; a segunda, do desejo social e imitativo de
tornar-se pai. Enquanto a primeira vertente permanece comumente estacionária, a segunda
tende às mais diversas flutuações, ligadas a alterações de costumes, leis, intervenções
religiosas etc... Como exemplo, Tarde cita a descoberta da América por Colombo, que
incentivou um grande aumento da natalidade no novo continente, ou ainda a proliferação do
cristianismo e o aumento do desejo de obter uma família maior para fornecer mais servos ao
Senhor.
Qualquer necessidade (como a que envolve a paternidade, por exemplo, mas também
outras, como a necessidade da locomoção a vapor, e mesmo as necessidades de igualdade, de
liberdade e de verdade) obedece a uma regra geral: permanece relativamente estacionária
durante um determinado período, até que alguma fonte inventiva fomenta a irradiação
geradora e imitativa desta necessidade. Inicialmente, ela sofrerá a concorrência de outras
necessidades presentes e, vencendo-as, poderá propagar-se em grande escala, até que uma
nova invenção ou novas barreiras criadas por sua própria propagação colaborem no sentido de
98
TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation., op. cit., p. 177,178.
76
promover um novo equilíbrio das forças. Sendo assim, podem-se extrair três fases para o
desenvolvimento de uma invenção propagada por imitação:
lento progresso no começo, progresso pido e uniformemente acelerado no meio,
enfim retardamento crescente deste progresso até que ele pare: tais são então as três
eras de todos estes verdadeiros seres sociais que chamo de invenções ou
descobertas.
99
Dentre essas três fases da vida de uma invenção propagada por imitação, teria maior
valor teórico a segunda, ou seja, aquela que indica uma ascendência do número de atos
imitados. A parte estacionária, privilegiada pela escola de Quételet, não seria mais que o fim
de um processo. Desta forma, a interpretação das curvas gráficas pelo estatístico deveria
seguir o modelo previamente exposto, considerando, todavia, que as curvas apresentarão
constantemente desvios – verticais ou horizontais que devem ser compreendidos como
interferência-combinação de uma outra invenção (no caso do desvio ascendente) ou
interferência-luta de outra invenção (no caso do desvio descendente). Segundo Tarde, se uma
curva estatística se afasta completamente deste modelo, isto é devido, principalmente, à coleta
incorreta dos dados ou à aproximação destes por um critério de similitude que não seria
apropriado.
O poderoso instrumento da estatística, porém, restringe-se, como sabemos, ao campo
das imitações, principal tema deste capítulo. Um estatístico, por mais competente que fosse,
não seria capaz de prever as invenções, estes motores de diferenciação do social. No próximo
capítulo, trataremos apenas da força social da invenção, que mencionamos algumas vezes,
porém não abordamos minuciosamente.
99
Ibid., p. 186.
77
4.
“O
S LOUCOS GUIAM OS SONÂMBULOS
”:
A POTÊNCIA DA INVENÇÃO
O afastamento de Gabriel Tarde com relação às concepções modernas que ressaltam a
necessidade de recorrência à sobriedade da razão humana em meio ao contato social lhe
permite afirmar, com naturalidade, que a vida em sociedade é repleta de “sonâmbulos e
loucos”, ou seja, imitadores e inventores. Nos dois capítulos anteriores, propusemo-nos a
explicitar as características da força da imitação, sua função social de criação de similitudes,
suas leis lógicas e extralógicas, bem como sua metodologia de análise, por meio da estatística.
É hora de tratarmos, neste capítulo, dos “loucos” inventores. A função social dos
sonâmbulos é a de equilibrar as massas de crença e as forças de desejo por meio da
propagação imitativa. Uma vez que a imitação torna indivíduos semelhantes na medida em
que crêem e desejam, um sistema anteriormente em desequilíbrio (indivíduo A com grande
grau de crença cristã, por exemplo, e indivíduo B, ateu) torna-se mais equilibrado (indivíduo
A torna-se ateu por imitação do indivíduo B). Ora, mas se as massas de crença e as forças de
desejo fossem somente regidas por uma força de equilíbrio, seria gico pensar que em um
determinado período histórico cessaria a mudança social, já que os graus de crença e desejo se
equiparariam. Se só houvesse a imitação, o sócius seria, dentro de algum tempo, pura
homogeneidade.
Ocorre que, pelo contrário, a vida social deseja propagar-se mais e mais, e não se
organizar e homogeneizar-se. É por esta razão que é necessária a força social da invenção. É
por meio da invenção que novas fontes de crença e desejo são criadas, aumentando as massas
de e paixão. Em um trabalho conjunto, imitação e invenção concretizam o belo baile
desgovernado que é a vida em sociedade. Como, para além da necessidade de equilíbrio de
crenças e desejos, garantidas por imitação, a urgência do aumento dessas forças, deverão
surgir, forçosamente, novas descobertas sociais. A criatividade é o motor do aumento da
crença e do desejo imanentes, imprescindíveis para a lógica social. Para um pensamento
78
ancorado na heterogeneidade ininterrupta dos seres que compõem o universo, é mais fácil
compreender a existência de uma força de invenção e descoberta que uma força de criação de
semelhanças (a imitação). A eclosão de variações é natural na medida em que
basta crer na heterogeneidade, na autonomia inicial dos elementos do mundo que,
encobrindo os frutos das virtualidades desconhecidas e profundamente
incognoscíveis, mesmo para uma inteligência infinita, antes de sua realização, mas
realizando-as seguindo sua lei própria, no momento desejado por esta lei, fazem
jorrar das profundezas do ser, à superfície do fenômeno, as reais novidades
impossíveis de se prever anteriormente. [...] Neste sentido também é verdadeiro
dizer que o acidental é a fonte ou o ponto de partida do necessário, e que não existe
desenvolvimento que não tenha tido a colaboração de milhares de acidentes.
100
Quem seriam os inventores, esses loucos que guiam
101
os sonâmbulos? Tarde nos
responde que “sozinhos, alguns espíritos selvagens, estranhos, em sua bolha, no tumulto do
oceano social em que eles são mergulhados, ruminam aqui e problemas esquisitos,
totalmente desprovidos de atualidade. E estes são os inventores de amanhã”.
102
Os inventores
manifestam sua heterogeneidade primeira por meio de suas descobertas e de suas criações.
Por adaptar
[...] seus dogmas e seus preceitos religiosos a seus conhecimentos e a suas
necessidades, por adaptar também seus costumes e suas leis, sua moral mesmo, os
indivíduos e, principalmente aqueles que se sentem os mais inadaptados em seu
meio, senão a eles mesmos, fazem da mesma forma esforços incessantes que
terminam em pequenos achados.
103
Algumas questões naturalmente se nos impõem: se todos são inicialmente
heterogêneos, por que alguns são inventores e outros não? Como se uma invenção? Que
leis a regem?
Antes de tudo, é preciso que se faça uma distinção importante. De fato, todos os
elementos que compõem as três esferas descritas por Tarde (físico-química, vital e social) são
dotados de uma potência própria de diferenciação, característica básica de seu estado
100
TARDE, Gabriel. La logique sociale. Paris: Institut Synthélabo, 1999, p. 255, 256.
101
Apesar de considerar as forças de imitação e de invenção igualmente importantes para o desenrolar da vida
social, Tarde é sutil porém nítido ao considerar os homens inventores superiores aos homens mais
imitadores. Como exemplo, citamos um trecho de Les lois de l’imitation a respeito da estatística em que tal visão
sobre os inventores torna-se cristalina: “É assim que a estatística, cuja regularidade não exprime, no fundo, nada
além da subordinação imitativa das massas às fantasias ou às concepções individuais dos homens superiores”.
TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p. 180. Meu grifo.
102
Ibid., p. 50.
103
TARDE, Gabriel. Les lois sociales – esquisse d’une sociologie. Québec: L’Université du Québec, 2002, p. 65.
Disponível em:
<http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 4 jan. 2007.
79
monádico. Como temos insistido no presente trabalho, quando se parte da diferença contínua
dos seres, entende-se que toda formação de ordem e semelhança é transitória, efetuada por
conta da força da imitação no campo social, da ondulação no campo físico-químico e da
geração no campo vital. No que diz respeito ao social, entende-se que toda imitação, por mais
forte que seja, depende de uma marca singular do indivíduo por quem ela perpassa. Desta
forma, não existem dois falantes idênticos de uma mesma língua, pois, apesar de se
assemelharem quanto ao idioma por imitação, cada falante dará à linguagem sua nuance
pessoal, expressando sua singularidade. Em certo sentido, podemos dizer que esta afirmação
da singularidade diferenciadora é uma micro-invenção.
104
Contudo, trataremos da invenção em seu aspecto mais grandioso, como força
responsável pelo aumento da crença e do desejo sociais, engendrada pelos imprescindíveis
loucos da história. Tais loucos, porém, não são necessariamente homens ilustres reconhecidos
pela tradição, apesar de poder bem sê-los. Os maiores inventores são homens de todas as
camadas sociais que fazem uma “revolução sem combate e conquistam uma vitória sem
guerra”
105
, como belamente afirmou Tarde em sua Lógica social. É esta revolução silenciosa
que interessa à vida, que lhe é própria e necessária. Afinal, o que pode nascer
[...] da união do monótono e do homogêneo senão o aborrecimento? Se tudo vem da
identidade e se tudo visa à identidade e para ela vai, qual a fonte desse rio de
variedade que nos deslumbra? Estejamos certos, o fundo das coisas não é tão pobre,
tão monótono, tão descolorido quanto supomos. Os tipos são apenas freios, as leis
são apenas diques, opostos em vão ao transbordamento de diferenças
revolucionárias, internas, nas quais se elaboram secretamente as leis e os tipos de
amanhã, e que, apesar da superposição de seus jugos múltiplos, apesar da disciplina
química e vital, apesar da razão e da mecânica celeste, acabam um dia, como os
homens de uma nação, derrubando todas as barreiras e fazendo dos próprios cacos
um instrumento de diversidade superior.
106
Se a imitação depende de pelo menos dois indivíduos para realizar-se, a invenção é
uma força puramente individual. Aqui, mais uma vez, presenciamos o inter-relacionamento
das diferentes esferas universais descritas por Tarde. O gênio inventivo surge, inicialmente,
por um encontro puramente casual entre um espermatozóide e um óvulo.
107
Temos, assim, sua
dimensão vital explicitada. Entretanto, será o relacionamento deste indivíduo nascido por
acaso com as diversas correntes imitativas a que terá acesso ao longo da vida que permitirá
104
“Não há idéia minimamente pessoal que não seja uma invenção em determinado grau”. TARDE, Gabriel. La
logique sociale. op. cit., p. 275.
105
Ibid., p. 302-3.
106
TARDE, Gabriel. Monadologia e Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 78.
107
Cf. TARDE, Gabriel. La logique sociale. op. cit., p. 265.
80
que ele possa concretizar sua potência inventiva especial. Em dada medida, todos os seres
sociais são dotados de uma potência inventiva razoável, advinda da heterogeneidade inicial.
Contudo, alguns deles são especiais os “loucos” e deles advém o aumento da imanente
por meio de suas grandiosas invenções.
Sabe-se que o social pulsa ininterruptamente em razão das diferenças que poderiam se
afirmar. Entretanto, apenas algumas delas são tornadas reais por meio dos inventores. O
sócius é composto por infinitas virtualidades inventivas que poderiam ser atualizadas, mas
que não o são por razões determinadas. Tarde ressalta que o real social que se nos apresenta –
ou seja, as invenções e imitações que se propagam – só é manifestado porque algumas
virtualidades foram atualizadas. Logicamente, para o funcionamento do sócius é
imprescindível uma quantidade inestimável de crenças e desejos abortados. Logo, as derrotas,
os desastres de que a história é semeada
[...] não são nada em vista de outras ruínas, de tantas outras catástrofes que não se
vêem, mas que não foram menos dolorosas. Quantos planos destruídos próximo de
serem realizados! Quantas esperanças desfeitas quando ainda em formação! Se nós
pudéssemos ver, entrever apenas as partes inferiores da história, a circulação do não-
expressado e do irrealizado através de todos os homens de uma geração, a passagem
estéril desta multidão invisível de idéias, de crenças, de intenções, de aspirações, que
são comunicadas todas por baixo sem ter podido ser traduzidas em atos nem mesmo
sempre em palavras, ficaríamos estupefatos com tudo o que é abortado mesmo nos
indivíduos mais privilegiados.
108
O que se efetiva em sociedade, o que nela se realiza, não é mais que um caso do
possível. Ocorre que as possibilidades virtuais que se atualizam assim o fazem por estarem
em um grau mais próximo daquelas invenções que foram efetuadas. Por exemplo, os filhos
que um homem teria de tal mulher, se ele tivesse se casado com ela em vez de ter se casado
com uma outra,
[...] são os possíveis de primeiro grau; os filhos que ele poderia ter tido com outras
mulheres reais ou possíveis são os possíveis de segundo grau, e assim por diante.
Pode-se deduzir indefinidamente, porque é certo que as leis da vida seriam aplicadas
a esses filhos hipotéticos do milésimo ou do milionésimo grau, assim como a nós.
Continuando, chegar-se-ia a concluir que o Impossível é um possível de grau
infinito.
109
Desta forma, por mais que todos tenhamos heterogeneidades advindas de nossa
condição monádica, a atualização das virtualidades diferenciais que nos compõe pode se
108
Ibid., p 259.
109
Ibid., p. 257. Grifo meu.
81
dar em um determinado contexto histórico em que o que se realizou aproxima-se em graus
variados das virtualidades que não se realizaram. Se o Impossível, como afirma Tarde, é um
possível de grau infinito, isto quer dizer que o impossível pode se realizar se todo um cortejo
de possíveis anteriores a ele forem se atualizando ao longo da história. Em suma, não
impossibilidade eterna para a vida social. Da mesma maneira, as invenções humanas não se
dão desconectadas de um contexto histórico-social, mas, pelo contrário, são atreladas a ele de
modo irrevogável. Partindo-se do pressuposto da existência, por um lado, de elementos
sociais reais que são imitados e, portanto, compõem a ordem social e, por outro, de inúmeros
elementos sociais virtuais decorrentes do fundo de heterogeneidade dos indivíduos, uma
invenção é tão mais possível quanto menor for o grau de distância entre o elemento já
existente e o elemento virtual dado. Por exemplo, a invenção da telegrafia elétrica se em
meados do século XIX em decorrência de invenções anteriores já amplamente imitadas, como
a eletricidade e o magnetismo. O advento da eletricidade como elemento real trouxe consigo
todo um cortejo de possíveis, dentre os quais a telegrafia elétrica.
110
Entretanto, se tivesse
emergido em outro período histórico, certamente outras invenções tornar-se-iam reais.
Portanto, dada a profusão de abortos inventivos que compõem o movimento do sócius,
não se pode corroborar, mais uma vez, em Gabriel Tarde, a existência de um progresso
contínuo e unilinear. Isto porque
[...] o progresso social se efetua por uma seqüência de substituições e acumulações.
É importante distinguir estes dois procedimentos de maneira assegurada, e o erro dos
evolucionistas é de confundi-los tanto aqui como em todo lugar. A palavra evolução
pode ter sido mal escolhida. s podemos dizer, entretanto, que evolução social
quando uma invenção se expande tranqüilamente por imitação, o que é o fato
elementar das sociedades; e mesmo quando uma invenção nova, imitada por sua vez,
se enxerta em uma precedente, que ela aperfeiçoa e promove. Mas, neste último
caso, por que não dizer, sobretudo, que inserção, o que seria mais preciso? Uma
filosofia da inserção universal seria uma feliz retificação levada à teoria da Evolução
universal. Enfim, quando uma invenção nova, micróbio invisível no começo, mais
tarde doença mortal, conduz uma invenção antiga, a que ela se atrela, um germe de
destruição, como podemos dizer que a mais antiga evoluiu? O Império Romano
evoluiu no dia em que a doutrina de Cristo nele inoculou o vírus de negações
radicais opostas a seus princípios fundamentais? Não, há neste caso contra-evolução,
revolução se assim se quiser, mas de forma alguma evolução.
111
110
Parece-nos interessante abordar o surgimento de tecnologias de comunicação por esta perspectiva tardeana. A
eletricidade não conduz necessariamente ao telégrafo, mas o torna realizável. Seria preciso identificar, na
sociedade do século XIX, indícios de crenças e desejos em relação à obtenção de uma comunicação à longa
distância de maneira rápida e efetiva. Tal tendência moderna é facilmente identificada em diversas práticas
discursivas da época, como na fisiologia de Hermann Helmholtz e Emil du Bois-Reymond e na literatura como,
por exemplo, na novela In the cage, de Henry James (1898).
111
TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. op. cit., p. 243.
82
Portanto, com Tarde e seus conceitos de imitação e invenção, ambas forças atuantes
em esfera infinitesimal, afastamo-nos radicalmente de qualquer resquício de hegelianismo,
notadamente a concepção de evolução por um desvelamento gradual do Absoluto. É possível,
entretanto, pensar em pequenas evoluções, em jogo constante com contra-evoluções ou
revoluções. Os estudos da área de comunicação social, freqüentemente contaminados de
epocalismo irrefletido, em muito seriam enriquecidos com essa vigorosa colaboração
tardeana.
Por ora, tratemos, finalmente, das leis da invenção, assim como fizemos em relação às
leis da imitação, no capítulo anterior. As invenções podem ser regidas por leis exteriores e
interiores. Enquanto aquelas dizem respeito a condições para o eclodir inventivo que se dão
fora do indivíduo, estas englobam os procedimentos que se dão no indivíduo inventor.
Abordemos, de início, as leis exteriores.
4.1
A
S LEIS EXTERIORES DA INVENÇÃO
As leis exteriores podem ser de ordem vital ou de ordem social. mencionamos mais
acima o que seria uma lei exterior da invenção de ordem vital: ela se refere exclusivamente
aos encontros fortuitos na esfera biológica, cruzamentos felizes que resultam, acidentalmente,
em indivíduos dotados.
No que se refere às condições exteriores sociais da invenção, entende-se que qualquer
invenção resulta de um cruzamento feliz de duas correntes de imitação em um indivíduo
dotado. Sendo assim, nenhuma invenção se unicamente pelo gênio inventivo, apartado da
sociedade, como pressuporiam concepções de caráter romântico acerca da genialidade autoral.
Respeitando a relação entre o grau das correntes reais de imitação e das virtualidades
inventivas, tem-se que
[...] uma idéia nova é uma combinação de idéias antigas, surgidas em dois lugares
distintos e freqüentemente bem distantes, e a primeira condição para que elas se
combinem é seu encontro simultâneo em um cérebro próprio a combiná-las, e
quanto mais a extensão dos Estados, o recuo da fronteiras, facilita a expansão
imitativa destas invenções elementares, cada uma a partir de sua fonte original, mais
chances de estas irradiações de imitação interferirem em uma cabeça engenhosa
ou genial.
112
112
TARDE, Gabriel. La logique sociale. op. cit., p. 267.
83
Podemos, assim, estabelecer, no contexto das leis exteriores da invenção, dois fatores
importantes: a distância entre os indivíduos que detêm duas correntes de imitação distintas e o
número de indivíduos que detêm tais correntes de imitação. Se A é uma determinada força de
imitação (o conhecimento algébrico em matemática, por exemplo) e B é outra (o
conhecimento de geometria), a aplicação da álgebra à geometria dependerá, no que tange às
leis exteriores da invenção, da proximidade dos indivíduos que possuem conhecimento de
álgebra e dos que detêm o saber geométrico e, ainda, do número de indivíduos possuidores
desses saberes. Logo, se A e B são correntes de imitação, o surgimento de uma invenção X se
segundo as seguintes leis: quanto mais próximos geograficamente estiverem os indivíduos
que detêm A e B, maior será a possibilidade da eclosão de X e quanto mais pessoas tiverem
conhecimento de A e de B, maior a probabilidade de se alcançar X.
Há, contudo, um alerta dado por nosso filósofo no que tange ao grau de disseminação
das correntes imitativas. Tarde atenta para o fato de que algumas imitações são tão
profundamente enraizadas no corpo social que dificilmente são pauta para o gênio inventivo.
Ele simplesmente as esquece em meio ao turbilhão sonambúlico em que está imerso. É por
esta razão que, muitas vezes ao longo da história, elementos que seriam facilmente inventados
demoram anos e, às vezes, séculos para serem implementados. Nesses casos, quando
finalmente surge a invenção, surpreendem-se os homens sociais, que freqüentemente se
indagam: “como não havíamos pensado nisso antes?
As leis exteriores da invenção são, portanto, de caráter vital cruzamento reprodutivo
que origem ao elemento social primário, o indivíduo e de caráter social correntes
imitativas que podem se cruzar ou não, de acordo com a distância entre elas e do número de
indivíduos que as possuem. Resta apontar as leis ou condições interiores da invenção.
4.2
A
S LEIS INTERIORES DA INVENÇÃO
Uma vez que, no capítulo anterior, discorremos acerca das leis lógicas da imitação,
formada por duelos e uniões lógicas, nos serão mais acessíveis as leis interiores da invenção.
Isto porque tais leis se estruturam segundo os mesmos moldes das leis lógicas da imitação. Ao
passo que as leis exteriores da invenção são condições que ocorrem fora do homem social, as
leis inventivas interiores se processam apenas no âmbito individual. Quando um inventor se
depara com duas correntes de imitação distintas, inevitavelmente será palco de um exuberante
84
espetáculo de uniões e duelos de crenças e desejos, cujo resultado final será, caso seja bem-
sucedido em sua empreitada, uma invenção.
A comparação das leis lógicas da imitação com as leis interiores da invenção deve ser
bastante cuidadosa, tendo em vista que os cruzamentos de correntes imitativas no inventor são
necessariamente mais profundos e apresentam um alcance maior que os cruzamentos
imitativos. Quando duas correntes de imitação
[...] se reúnem e se aliam, isto significa simplesmente que uma contribui em fazer
crescer a outra: a fabricação de bicicletas contribuiu para ativar a fabricação da
borracha, e vice versa; a das prensas estimulou a do papel, e reciprocamente; a
vulgarização de um ramo da ciência, por exemplo, da acústica, ajudou a
vulgarização de um ramo conexo, por exemplo, o da óptica. Ao mesmo tempo, em
razão mesmo dessa difusão, o desejo a que responde cada um desses produtos se
intensifica em todos aqueles que os provam, e a em cada uma dessas teorias se
fortifica em cada um dos que as conhecem. Mas, quando duas invenções se reúnem
enquanto invenções, isto quer dizer que uma nova invenção (ou descoberta) nasceu,
graças aos que primeiro a utilizam, uma servindo de meio a outra que lhe serve de
fim, ou servindo de conseqüência a outra que lhe serve de princípio, ou uma e outra
unindo-se paralelamente, como meios para um mesmo fim, como conseqüências de
um mesmo princípio. A óptica e a acústica são reunidas de forma que um dia, no
cérebro de um físico, é formulada a teoria ondulatória da luz assimilada ao som [...].
A lei da gravitação planetária e as leis da queda na superfície da Terra foram
reunidas no cérebro de Newton, em que elas produziram a fórmula da atração
universal, que as atrela intimamente umas às outras.
113
É crucial que salientemos que esse embate de crenças e desejos, ajustes, duelos,
acréscimos, uniões etc, que se dão no indivíduo, dependem menos de uma consciência
racional que estabeleceria as relações e mais de uma batalha de desejos e crenças pulverizados
do inventor. Em outras palavras, a descrição tardeana de leis tanto interiores quanto exteriores
da invenção reforçam a idéia de que o inventor é mais um local em que se dão felizes
cruzamentos de correntes de imitação e menos um gênio auto-suficiente, desvinculado de
condições histórico-sociais. Como se dão os acordos lógicos e teleológicos no inventor senão
por uma sucessão de hipóteses lógicas e não-lógicas que convivem umas com as outras,
negam-se ou se confirmam, e que têm na invenção realizada o caminho mais curto para a
aproximação de dois estados distintos, mas que poderiam visar um mesmo fim?
Percorremos, enfim, as leis do surgimento da invenção em suas variações exteriores
(vitais e sociais) e interiores (duelos e uniões lógicas que se dão no inventor). Mas o que
ocorre quando, formulada por um louco inventivo, uma invenção é comunicada e, portanto,
passa a fazer parte do corpo social? Seguramente, a necessidade a que a invenção formulada
atende apresenta, no meio social, algumas respostas em antigas invenções. Quando uma
113
Ibid., p. 273.
85
invenção prolifera-se no corpo social, ou seja, quando ela é imitada, dois destinos lhe são
possíveis: ela vai acumular-se a outras invenções existentes e todas reforçar-se-ão umas às
outras ou, então, vai substituir uma ou mais invenções por meio de um processo um pouco
mais longo. Cabe, então, a indagação acerca de seu destino em sociedade.
4.3
O
DESTINO DAS INVENÇÕES
:
ACÚMULOS OU SUBSTITUIÇÕES
A dupla necessidade social de incremento e equilíbrio da crença e do desejo é efetuada
por meio dos acúmulos e das substituições, respectivamente. Enquanto os acúmulos de
invenções, propiciadas pelas uniões gicas de toda sorte, promovem o aumento da crença e
do desejo em determinada instância social, as substituições, implementadas pelos duelos
lógicos, reduzem a crença e o desejo na instância social substituída. Por exemplo, ter-se-ia um
artigo industrial que não é mais consumido em razão do surgimento de outro mais eficaz.
Mais uma vez, a teoria tardeana recorre aos duelos e uniões lógicas para dar conta dos micro-
processos sociais em constante diferenciação. Entretanto, assim como não confundimos as leis
lógicas da imitação com as leis lógicas da invenção, não o faremos em relação às leis de
propagação de uma invenção. Apesar de também se dar por duelos e uniões lógicas, a
propagação das invenções não pode ser confundida com a das imitações pois, enquanto estas
se dão basicamente por repetições, aquelas se dão por adaptações.
114
Além disso, enquanto os
duelos lógicos da propagação das invenções resultam em invenções que substituem outras
existentes, as uniões lógicas de invenções resultam em invenções que se acumulam umas às
outras. A exemplificação a partir das próprias instâncias sociais nos faz compreender melhor a
diferenciação entre propagação imitativa e propagação inventiva:
[...] é preciso evitar confundir, como se faz freqüentemente, o progresso da
instrução, simples feito da imitação, com o progresso da ciência, feito da adaptação;
o progresso da industrialização com o progresso da indústria mesma; o progresso da
moralidade com o progresso da moral; o progresso do militarismo com o progresso
da arte militar; o progresso da língua, entendida por sua expansão territorial, com o
progresso da linguagem, entendida por seu refinamento gramatical ou pelo
enriquecimento de seu dicionário.
115
114
TARDE, Gabriel. Les lois sociales: esquisse d’une sociologie. op. cit., p. 58. O tema da adaptação será
mencionado também no próximo capítulo, juntamente ao da oposição.
115
Ibid., p. 58.
86
Enquanto instrução, industrialização, moralidade, militarismo e expansão da língua
são propagações puramente imitativas, a ciência, o avanço da técnica industrial, dos valores
sociais, da arte militar e do refinamento lingüístico são propagações puramente inventivas.
Estabelecida esta distinção, vejamos, então, as leis de propagação da invenção.
Quando uma invenção, como um novo ritual católico, por exemplo, insere-se no meio social e
reúne-se a outras invenções mais antigas (um dogma católico fortemente penetrado), tem-se
uma união gica de invenções. Como resultado das uniões lógicas das invenções, tem-se
geralmente ora uma unanimidade parcial ora uma unanimidade absoluta. O exemplo religioso
é, mais uma vez, bastante significativo. As invenções religiosas, segundo Tarde, parecem
desfrutar de tal unanimidade de forma mais completa que as de outras instâncias sociais. Elas
concentram grande massa de fé, ao determinar direcionamentos éticos únicos, exemplos
únicos a serem seguidos, por exemplo. Talvez, entretanto, pudéssemos acrescentar que o
advento da ciência e de sua vontade de verdade tenham vindo representar uma grande
concorrência à religião, no sentido da procura por unanimidades absolutas ou relativas
provenientes de uniões lógicas.
no caso dos duelos lógicos, quando uma invenção entra em conflito com outra
existente por responder a uma necessidade social, diversos caminhos possíveis para a
resolução do problema. As invenções lutam entre si para disputar a imitação social. Os
duelos lógicos de invenções são contendas tão-somente pela imitação. Sendo assim, esboçam-
se sempre cinco soluções possíveis para os duelos lógicos de invenções que se propagam. Tais
resoluções são detalhamentos da luta por contágio já resumida no capítulo anterior, quando
tratamos das leis lógicas da imitação.
A primeira solução ocorre quando uma das invenções, violenta ou pacificamente,
extermina a outra, que deixa definitivamente de ser imitada. Seria o caso de uma língua nativa
que desaparece com a invasão de um povo que subjuga os falantes do idioma. Uma segunda
solução seria quando a contradição de um costume com uma novidade e se preserva a
forma do costume, apesar de seu conteúdo ter sido alterado. Por exemplo, quando o costume
de inclinar o tronco em reverência deixa de ser sinal de obediência ao suserano para tornar-se
mero sinal de respeito em um cumprimento. O terceiro caso é semelhante, e se quando um
costume se subordina a uma novidade, permanecendo vivo. Isto ocorre, por exemplo, quando
os deuses da religião de uma determinada cidade se subordinam aos deuses da religião do
povo conquistador. O quarto caso existe se a novidade vence o costume, mas não o destrói,
deixando-o sobreviver com determinados limites. Por exemplo, os dialetos que permanecem
sob a preponderância de uma língua oficial. Finalmente, a quinta solução se implementa se há
87
uma conciliação real ou aparente de dois termos por conta de uma descoberta de outra ordem.
Como exemplo, podemos citar a disputa de dois grupos étnicos distintos por hegemonia
política e a sua posterior resolução quando se conquista uma nova faixa territorial, para onde
um desses grupos migraria.
Se tanto a elaboração da invenção como sua expansão obedecem às leis anteriormente
expostas, subentende-se uma questão pertinente: existiria algum instrumento de medição da
expansão de uma invenção em um determinado local? Em outras palavras, haveria, em
relação à invenção, um método de análise correspondente ao que a estatística representa para
a imitação?
4.4
A
ARQUEOLOGIA
:
EXPLORAÇÃO DAS INVENÇÕES DO PASSADO
Dada a heterogeneidade pulsante dos elementos que compõem a esfera social e dado o
caráter puramente arbitrário inerente à formação de uma invenção (como o cruzamento vital e
o contato do indivíduo inventor com as correntes imitativas convenientes à produção da
invenção), Tarde enfatiza que não há instrumento técnico racional que nos permita controlar o
inesperado intrínseco à vida, o acaso maravilhoso que determina rumos distintos em cada
segundo de vida social. Sendo assim, seria impossível prever o surgimento de uma invenção.
Não haveria, portanto, nenhum método para ser utilizado com as invenções presentes. Não há
paralelo, na invenção, com o que a estatística realiza na imitação, mapeando uma corrente
imitativa e, em alguns casos, prevendo o desenrolar dos fatos caso nenhuma explosão
inventiva altere o rumo da corrente imitativa que se analisa.
Haveria, entretanto, para o pensador, uma interessante aliada técnica no sentido de
estabelecer relações entre diversas invenções existentes: a ciência da arqueologia. O ofício
de um arqueólogo pressupõe o esforço de estabelecer conexões diversas entre o conhecido e o
desconhecido das civilizações pesquisadas. Um novo fragmento empoeirado que
inesperadamente é descoberto em uma escavação é o elemento desconhecido que deverá ser
relacionado a toda uma rede prévia de saberes, eles mesmos resultantes de escavações
anteriores. Ao buscar mapear historicamente os objetos que descobre, o arqueólogo acaba por
estabelecer a filiação das invenções sucessivas. É desta maneira que se sabe que a invenção da
arte árabe é filiada tanto à arte grega quanto à arte persa e que a arte grega, por sua vez, é, em
grande medida, inspirada nas invenções da arte egípcia.
88
Enquanto a estatística se propõe a investigar as ações imitativas e medir a expansão de
cada uma delas, a arqueologia incumbe-se das obras humanas no sentido de buscar sua
filiação histórica. Tarde reconhece o valor dos arqueólogos, ressaltando seu trabalho de
descoberta de diversas peculiaridades de distintas civilizações. Afirma que a arqueologia
deixa de ser dependente da história, para tornar-se melhor que ela, que a história é, em
grande medida, tributária do trabalho arqueológico. Os arqueólogos mostram-nos a expansão
indefinida e a superposição de sedimentos da verdadeira história, a estratificação de
descobertas sucessivas propagadas por contágio.
Tais profissionais contribuem bastante para compreender e aprofundar o conhecimento
do domínio das invenções humanas. Com eles, vemos o destino seguido por uma invenção em
suas variações imitativas, seus vestígios de crenças e desejos arcaicos, em restos mortais...
Enquanto os historiadores se interessariam pelos homens em conflito, pelos desejos em
conflito, os arqueólogos realizam um trabalho mais profundo, ali, na matéria sub-
representativa, onde concorrem crenças e desejos des-subjetivados em seus rastros
empoeirados, porém ainda vívidos. “Graças aos arqueólogos, nós aprendemos onde e quando,
pela primeira vez, aparece uma descoberta nova, até onde e até que época ela se irradia e por
quais caminhos ela vai de seu lugar de origem a seu local de adoção”.
116
A arqueologia, portanto, enriquece a história ao atentar para o detalhe infinitesimal,
aos desejos e crenças que se manifestaram mas que, porventura, não adquiriram notoriedade
na grande narrativa da história tradicional. Este método ratifica a visão tardeana de história,
que não é
[...] um caminho mais ou menos reto, mas uma rede de caminhos muito tortuosos e
todos semeados de encruzilhadas. s podemos generalizar ainda mais: o
desenvolvimento social considerado sob seus aspectos mais tranqüilos em aparência
e mais contínuos, a evolução da língua, do direito, da religião, da indústria, do
governo, da arte, da moral, não difere em nada, sob esse aspecto, da história
propriamente dita. A cada passo se abre ao progresso uma bifurcação ou uma
trifurcação de vias diferentes, não terminando sempre no mesmo termo final como
os afluentes no delta de um rio, mas divergindo freqüentemente mais e mais, aum
certo limite de desvio, entretanto, onde se estaciona a elasticidade da natureza
humana. A ilusão de um evolucionismo estreito, unilinear, que é alcançado, não se
sabe por quê, a se fazer passar pelo único transformismo ortodoxo, é negar esta
grande verdade, sob pretexto de determinismo.
117
A partir de seus conceitos de invenção e de imitação bem como da proposição de
bases de análise dessas forças por meio da arqueologia e da estatística, respectivamente, Tarde
116
TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. op. cit., p. 160.
117
TARDE, Gabriel. La logique sociale. op. cit.., p. 255-6.
89
propõe uma nova abordagem do estudo de história, que seria bastante interessante, também,
para o campo da comunicação social. Segundo nosso filósofo, o que interessa à história é o
destino das correntes imitativas.
118
Se, a partir do ponto de vista dos eruditos tradicionais, a
história é uma coleção de fatos célebres, seria mais apropriado, no entanto, afirmar que ela é
uma coleção das coisas mais bem-sucedidas que outras, ou seja, de algumas invenções que
são mais imitadas que outras. Sendo assim, em uma perspectiva micro-social de inspiração
tardeana, uma nova palavra que vai sendo introduzida em uma língua pouco a pouco não seria
“célebre” no sentido tradicional, mas teria feito história.
119
Logo, um fato histórico deveria
inserir-se, para Tarde, em uma das seguintes opções: como progresso ou declínio de gênero de
imitação, como invenção que é propagada por imitação e, finalmente, como ações, humanas
ou não, que impõem novas condições à propagação das correntes imitativas (por exemplo,
uma tsunami que atinge um vilarejo ou a morte de um grande líder político).
Neste capítulo, vimos que a invenção é uma força de afirmação das heterogeneidades
sociais que se realizam individualmente e segundo regras determinadas. Sua função é
expandir as massas de crença e as forças de desejo assim como a imitação tem como função
equilibrá-las, fazendo o social dançar em ritmos ordenados, porém compostos de milagrosas
irrupções de acaso. Todas as leis da invenção são condicionadas pelo acaso da existência,
desde as regras exteriores (cruzamentos fortuitos biológicos, na esfera vital e cruzamentos de
correntes imitativas, na esfera social) até as leis interiores (duelos e uniões lógicas no contexto
do louco inventor). Finalmente, vimos como a ciência da arqueologia pode-nos ser útil na
medida em que permite realizar a filiação de invenções antigas, apesar de não poder,
evidentemente, prever o encontro inesperado das correntes imitativas que gerarão as
invenções futuras.
Apresentados os dois principais conceitos tardeanos imitação e invenção na
complexidade que o presente trabalho exige, sugerimos uma última incursão pelo prodigioso
pensamento da diferença elaborado por Gabriel Tarde. No último capítulo anterior à
conclusão, iremos mais fundo na questão da variação universal, analisando um importante
instrumento dela: a oposição.
118
Cf. TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. op. cit., p. 198.
119
Ao tratar do Maio de 68 na França, Deleuze e Guattari, em Mil platôs, reforçam o sentido molecular do
acontecimento, fazendo alusão, mais uma vez, à perspectiva tardeana, na busca das “origens” de um fenômeno
histórico: “Como dizia Gabriel Tarde, seria preciso saber que camponeses, e em que regiões do Midi,
começaram a não mais cumprimentar os proprietários da vizinhança”. Cf. DELEUZE, G e GUATTARI, F.
“1933 - Micropolítica e segmentaridade”. In: Mil platôs, vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro:
Editora 34, 2004, p. 95.
90
5.
P
ELA VARIAÇÃO
:
AS OPOSIÇÕES E O PAPEL POLÍTICO DA COMUNICAÇÃO
Se o estado original de diferenças constituintes do universo é continuamente
transmutado a partir das forças de imitação e de invenção é porque a múltipla e descentrada
comunicação social das crenças e desejos assim o permite. Ao privilegiar o movimento
incessante do sócius, Gabriel Tarde eleva a comunicação à condição base de toda
sociabilidade. Cremos haver demonstrado a importância da comunicação social de desejos e
crenças para o engendrar de similitudes sociais da imitação, cujos fluxos são profunda e
continuamente alterados por meio da força co-participante da invenção. Neste último capítulo,
propomo-nos a enriquecer o que expusemos, apresentando uma importante nuance do
pensamento tardeano que, do mesmo modo, é intimamente ligada ao compartilhamento social
da comunicação.
As três esferas universais são compostas de infinitas semelhanças graças à força da
imitação: átomos que se assemelham para formar compostos, espécies que se assemelham
formando gêneros, famílias etc, doutrinas econômicas de nações distintas que, por meio delas,
tornam-se análogas etc... Todavia, uma visada mais atenta à diversidade universal nos faria
notar, segundo Tarde, intensas e curiosas contrariedades: atração e repulsão de partículas
químicas, acréscimos e decréscimos de velocidades, pesos, intensidades de forças, simetria
em diversas espécies, braços direito e esquerdo, olhos direito e esquerdo, inspiração e
expiração, noite e dia, partidos políticos de direita e de esquerda, artistas românticos e
clássicos, guerras entre países, amores e ódios etc...
Gabriel Tarde percebeu nas oposições universais um poderoso instrumento de
variação. Apesar de presentes em toda sua obra (como nas noções de duelos lógicos, crença e
desejo, por exemplo), as oposições são esmiuçadas exaustivamente no tratado L’Opposition
universelle: essai d’une théorie des contraires, de 1897. Segundo Deleuze, “ninguém foi mais
longe do que Gabriel Tarde numa classificação das oposições múltiplas, válida em qualquer
91
domínio”.
120
Tanto na esfera físico-química quanto nas esferas vital e social, as oposições são
meios a partir de que se atingem variações. Não devem, portanto, ser tidas como fins nelas
próprias.
É preciso, entretanto, que se compreendam as oposições como repetições inversas,
resultados máximos de uma série de mínimas variações diferenciais. Não basta que dois
termos sejam contrários para que sejam opostos. Eles devem ser contrários na medida em que
um é o esgotamento das variações contrárias do outro, passando necessariamente por um
estado de neutralidade. Um móvel que inicia um movimento e pára após um determinado
período de tempo é movido por movimentos opostos: uma aceleração crescente no começo
(positiva), uma aceleração neutra e, finalmente, uma aceleração decrescente (negativa) até a
parada. Da mesma forma, ao aprender uma lição, o aluno inicia o processo com uma
determinada quantidade de crença (normalmente pequena), que passa por um estágio neutro (a
dúvida), passando, a partir de então, a aumentar aa estável no conteúdo aprendido. Entre
um extremo (o móvel que começa a acelerar, a crença que se inicia) e outro (a desaceleração
do móvel, a na lição) uma grandiosa variedade de micro-estágios, todos diferentes uns
dos outros, e não menos importantes para a proliferação da vida.
A oposição para Tarde depende do estado de neutralidade (état zéro) para configurar-
se como tal. O estado de neutralidade garante a oposição e está intimamente ligado à
temporalidade. Nele os dois extremos opostos estão presentes integralmente. Vai-se de um
extremo a outro, em uma oposição, enquanto desfilam estados diferenciais em uma
determinada duração, em que o ponto neutro é o meio termo dos dois. Cumpre não confundir
qualquer heterogeneidade com uma oposição. Como explica Tarde,
dados dois termos variáveis, se um surge como o limite das variações acumuladas do
outro em um certo sentido, e o outro como o limite destas mesmas variações
acumuladas em sentido inverso, sem que se tenha atravessado um estado neutro para
passar de um ao outro, esses dois termos são heterogêneos: eles não são opostos.
121
Segundo esta perspectiva, as cores preto e branco não formariam uma oposição mas
uma heterogeneidade especial. Não estado neutro entre branco e preto, nem mesmo o
cinza, como se poderia argumentar. Isso porque, para que haja estado de neutralidade, é
necessário que os dois termos máximos da oposição coexistam por inteiro. O cinza não é uma
reunião de preto e branco em totalidade, mas uma terceira cor. No cinza, não se reconhece o
120
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006, p. 288.
121
TARDE, Gabriel. L’opposition universelle: essai d’une théorie des contraires. Paris: Institut Synthélabo,
1999, p. 61.
92
preto nem o branco. Completamente diverso seria o caso de uma dúvida, estado neutro de
uma afirmação e uma negação, em que ambas comparecem nitidamente e por inteiro.
Assim como a identidade, a oposição é apenas um tipo especial de diferença,
caracterizada por mínimas repetições alteradas entre dois máximos. A idéia de repetição
variada, abordada nos capítulos sobre imitação, retorna quando se trata da oposição. A
oposição tardeana, contudo, refere-se, como em Deleuze, a um anti-hegelianismo
generalizado: “a diferença e a repetição tomaram o lugar do idêntico e do negativo, da
identidade e da contradição, pois a diferença implica o negativo e se deixa levar até a
contradição na medida em que se continua a subordiná-la ao idêntico”.
122
Desta forma, a
aproximação Tarde-Deleuze ao tema da repetição se dá, claramente, quanto ao que seria a
repetição do Mesmo (repetições mecânicas, nuas ou físicas), que teriam sua razão de ser em
uma repetição oculta, em que se desloca e se disfarça um “diferencial”. Logo, “à divergência
e ao descentramento perpétuos da diferença correspondem rigorosamente um deslocamento e
um disfarce na repetição”.
123
Seria de imensa valia aos estudos de Comunicação Social esta
visada relativa à repetição variada mesmo quando, aparentemente, engendra-se o Mesmo.
Efeitos de mídia de massa de diferentes períodos históricos ou, ainda, de um mesmo tempo,
são muitas vezes considerados a partir do que apresentam em “comum”. A partir daí, criam-se
espécies de “leis” concernentes a comportamentos sociais de toda ordem, “tendências”,
“ciclos” e outros grandes mecanismos de aprisionamento da variação inerente a todo elemento
social.
Quando Tarde se refere aos duelos lógicos, por exemplo, tanto no que concerne às leis
lógicas da imitação quanto ao que diz respeito às leis interiores da invenção, o que se tem é
mais que um combate estático de uma crença contra outra, mas um processo dinâmico em
que, para além dos dois extremos contrários (votar ou não em determinado político, por
exemplo), diversas micro-diferenciações que engendram vida e movimento contínuo no
corpo social. Os duelos em Tarde não são pautados por teses, antíteses e sínteses. Por detrás
de uma única batalha aparente, estilhaçam-se milhares de agressões potentes. Como em
Deleuze, o pensamento da diferença tardeano não implica uma coexistência feliz de
singularidades, mas uma agressão permanente dos estados diferenciais microscópicos. Por
exemplo, o fato de um deputado ter sido eleito com a mesma quantidade de votos que seu
concorrente é apenas a superfície de milhares de estados diferenciais de crença e desejo em
conflito cujo resultado geral, apesar de idêntico em termos numéricos, esconde um importante
122
DELEUZE, G. Diferença e repetição. op. cit., p. 15.
123
Ibid., p. 16.
93
substrato vivo. É por esta razão que a abordagem astuciosa elaborada por Tarde da oposição é
tão interessante, como ratifica Deleuze:
Tarde parece-nos ter sido o único a destacar [...]: a oposição, em vez de ser
autônoma, em vez de ser um ximo de diferença, é uma repetição mínima em
relação à própria diferença. Da posição da diferença como realidade de um campo
múltiplo virtual e a determinação de microprocessos em todos os campos, sendo as
oposições apenas resultados sumários ou processos simplificados e aumentados.
124
O aprofundamento do tratamento das oposições por Tarde fê-lo empenhar-se em uma
interessante classificação, que exporemos a seguir muito sucintamente.
5.1
C
LASSIFICAÇÃO DAS OPOSIÇÕES
Se uma oposição é a ida de um extremo a outro passando por repetições variadas e,
necessariamente, por um estado de neutralidade em que os dois extremos se fazem presentes,
ainda variações quanto aos tipos de oposição existentes nas três esferas universais. As
oposições podem ser classificadas quanto à forma e quanto à matéria.
Quanto à forma, podem ser estáticas ou dinâmicas. Uma oposição estática seria aquela
correspondente à simetria de dois lados de um mesmo rosto, de duas figuras geométricas, ou
do belo e do feio, por exemplo. Uma oposição dinâmica poderia ser exemplificada pela
transmissão elétrica que vai de um pólo positivo a um negativo. Para Tarde, porém, toda
oposição estática comporta micro-oposições dinâmicas de diversas ordens. A oposição
aparentemente estática seria, assim, uma resultante de miríades de oposições menores
dinâmicas. Dois lados opostos de um mesmo rosto implicam uma série de micro-oposições
biológicas, processos celulares de nutrição e excreção, moléculas e átomos que se atraem e
repelem etc...
As oposições dinâmicas podem ser subdividas em oposições simultâneas e sucessivas.
As oposições sucessivas são aquelas cuja contrariedade designam um ritmo, como em uma
melodia, por exemplo, em que o aparecimento e o desaparecimento de uma nota em oposição
ao aparecimento e desaparecimento de outra colaboram para a harmonia musical. Já as
oposições simultâneas se dão quando os termos contrários aparecem ao mesmo tempo. É
possível ir mais além neste tipo de oposição e subdividi-la em oposições dinâmicas
simultâneas irradiantes e oposições dinâmicas simultâneas lineares. As irradiantes referem-se
124
Ibid., p. 288.
94
à força da gravidade, à propagação do som e da luz, por exemplo. Em alguns casos, como no
caso da gravidade, as micro-forças que atuam no corpo em um sentido (para baixo) são tão
fortes quanto as micro-forças que não atuam no sentido contrário (para cima), ambas
conduzindo o corpo para o centro de um outro corpo (a Terra). Neste caso, temos uma
oposição dinâmica simultânea irradiadora centrípeta. No caso da propagação da luz, por
exemplo, o que se tem é uma fuga das forças do centro de irradiação. As micro-forças que
compõem a luz são oposições porque tanto as forças de afastamento quanto as forças de não-
aproximação se reúnem para afastar-se do centro. É por esta razão que a luz compõe uma
oposição dinâmica simultânea irradiadora centrífuga. As oposições dinâmicas simultâneas
podem ser, ainda, lineares. Neste caso, uma evidente polaridade entre os termos, a ponto
de serem descritos em termos de negativo e positivo. Partidos de esquerda versus partidos de
direita configuram um bom exemplo deste tipo de oposição dinâmica na esfera social.
Se as oposições podem ser classificadas segundo a forma (estáticas ou dinâmicas), elas
também o podem segundo a matéria. Quanto à matéria, Tarde as divide em oposições
qualitativas e oposições quantitativas. As oposições qualitativas são as séries de elementos
heterogêneos que, obedecendo a uma determinada ordem, podem existir também em uma
ordem inversa. Estados da alma, períodos astronômicos, meteoros e outros fenômenos são
regidos por duas ações: aparecer e desaparecer. Como seus elementos são claramente
heterogêneos, não podemos dizer que houve aumento ou diminuição de qualquer tipo quando
passamos da tristeza ao ódio, ou quando uma estrela no céu “passa do azul ao vermelho, do
vermelho ao violeta, do violeta ao verde”.
125
as oposições quantitativas se dão pelo crescimento de uma característica e pelo
decréscimo da característica inversa na mesma medida. Elas podem ser oposições
quantitativas de grau ou de força, sendo que as de força podem ser mecânicas ou lógicas. As
oposições quantitativas de grau são regidas por aquisição e perda, como quando um móvel
adquire determinada velocidade na mesma medida em que perde a velocidade antiga, um
corpo que aumenta de volume na medida em que perde sua constituição anterior ou uma
teoria científica que adquire mais adeptos do que possuía anteriormente. No caso das
oposições quantitativas, podemos utilizar o termo desenvolvimento ou regressão, como
salienta Tarde:
[...] a noção de desenvolvimento é ligada à de quantidade; e, por toda parte em que,
sob a aparência de simples qualidades que se sucedem e se substituem, sentimos que
125
TARDE, Gabriel. L’opposition Universelle: essai d’une théorie des contraires. op. cit., p. 83.
95
um desenvolvimento se realiza, podemos afirmar que elas recobrem alguma
quantidade verdadeira inerente à natureza de um ser idêntico a ele mesmo através de
seus crescimentos sucessivos. Observando as transformações de um broto, de um
embrião, da alma de uma criança, nós dizemos que assistimos a um progresso,
porque estamos convencidos de que algo persiste e cresce sob essas variações.
126
No caso das oposições quantitativas de força, lidamos com um pequeno complicador.
Não apenas acréscimo ou decréscimo de elementos, mas um fazer ou desfazer
transformador. Quando o amor de um homem por alguém decresce a ponto de ele julgar o
objeto amado indiferente e, posteriormente, desprezível, não houve apenas diminuição do
amor: este se desfez. Da mesma forma, quando um carro diminui sua velocidade em uma rua
a ponto de parar e, em seguida, andar de ré, desfez-se um determinado tipo de movimento na
mesma medida em que fora criado o movimento contrário. Para Tarde, as oposições
quantitativas de força, regidas pelo fazer e desfazer, podem ser de ordem mecânica (caso do
carro e de outros fenômenos físicos, químicos e biológicos) ou de ordem gica (em que estão
em jogo, basicamente, crença e desejo). No que toca à crença, a força de negação age em
oposição à força de afirmação e, no que se refere ao desejo, a força do prazer erige-se em
oposição à força da dor.
5.2
O
POSIÇÕES
,
IMITAÇÕES E INVENÇÕES
A oposição como instrumento da variação tem um papel crucial na filosofia tardeana e
sua relação com os conceitos de imitação e invenção é íntima. A imitação como força de
criação de semelhanças e repetições é dependente do que, nas três esferas do universo, pode
crescer ou decrescer, fazer ou desfazer. Afinal, poder-se-ia supor
[...] um mundo que não conteria a oposição do mais e do menos, do progresso e da
decadência, da composição e da dissolução? Sim, é permissível a rigor conceber um
mundo em que nada do que se adquire é perdido, em que jamais um volume
aumenta ou diminui, em que jamais uma velocidade acelera ou se retarda, em que as
pressões, as convicções vão sempre redobrando de energia sem jamais se reduzir.
Mas não se a conseqüência fatal disto? A repetição, - sob todas suas formas:
ondulação ou gravitação, geração, imitação, - tornar-se-ia impossível, e, com ela, a
variação de que ela é condição indispensável.
127
As oposições servem à variação em basicamente dois sentidos. Em um primeiro
momento, servem indiretamente à repetição variada, pois entre um termo e seu inverso
126
Ibid., p. 84.
127
Ibid., p. 86.
96
uma infinidade de termos correlatos que adquirem o status de repetições variadas. Entretanto,
mais profundamente, as oposições servem à variação na medida em que dependem do estado
de neutralidade – o état zéro – para se caracterizarem como tais.
Entendamos de que forma isso ocorre. Considerando (a) um elemento universal
qualquer, somente idêntico a si próprio e (-a) seu oposto, teríamos, assim, uma oposição
formada entre os pólos (a) e (-a), cujo état zéro seria um quadro de identidade provisória em
que (a) e (-a) estariam presentes (a a = 0). Se, em vez de pensarmos (a) como elemento
universal qualquer, especificamo-lo como uma “variação”, teríamos no pólo oposto uma
“variação inversa” e, no estado neutro, nada mais que uma “repetição”.
Toda oposição possui um estado de neutralidade provisória, de identidade manifestada
como repetição que, na esfera social, chama-se imitação. Ocorre que esta é a primeira fase de
um processo mais profundo de variação. Se uma oposição social comporta a identidade como
elemento imitado, neutro, este elemento neutro pode ser, ele mesmo, o primeiro termo de uma
nova oposição. Sendo assim, da fórmula que vai da diferença (a) para a diferença (-a),
passando por um estado neutro de identidade provisória (a a = 0), utilizamos o elemento
neutro (a identidade provisória) como primeiro termo de uma nova oposição. Assim, dessa
identidade provisória (estado neutro entre duas diferenças opostas), formamos uma nova
oposição, cujo outro pólo seria uma heterogeneidade (não mais uma simples diferença). É
assim que, “em geral, o estado neutro de uma oposição dada pode ser tomado como primeiro
termo de uma oposição de um novo gênero cujo outro extremo será produzido pela idéia de
infinito”.
128
Podemos, portanto, compreender duas fases na variação implementada pelas
oposições. Na primeira fase da oposição que descrevemos, havia um elemento (uma crença
em A, por exemplo), um elemento neutro (a dúvida) e um elemento contrário (uma crença no
oposto de A), além de vários estágios intermediários entre A e o oposto de A, que nada mais
seriam que repetições variadas de A. Na segunda fase, porém, a variação é muito mais
profunda, uma vez que o resultado final não é apenas uma repetição inversa do primeiro
elemento, mas um elemento inteiramente novo, totalmente heterogêneo a ele.
Ora, se aplicarmos estas duas fases das oposições à esfera social, teríamos um quadro
em que, na primeira instância, a variação teria como oposto a variação inversa em que a
imitação seria o estado neutro. Em segunda instância, essa mesma imitação formaria uma
nova oposição, cujo estado neutro seria uma variação mais profunda e o outro pólo do oposto
128
Ibid., p. 282.
97
configuraria uma invenção. A imitação, assim, nada mais é que uma repetição, um estado
neutro entre duas variações sociais opostas. Como estado neutro, pode configurar o primeiro
termo da segunda fase de uma oposição, sobre a qual incidirá uma série de variações cujo
extremo será uma variação tão profunda que será heterogênea ao primeiro termo imitado. Mas
essa alteração grandiosa da imitação não seria a invenção? “A invenção, propriamente
dizendo, é uma variação infinitamente profunda e, a este respeito, pode ser aproximada da
produção de uma nova espécie viva que nós chamamos, não sem razão, de uma criação da
vida”.
129
Em última instância, portanto, a oposição serve à invenção. A invenção, por sua
vez, não é mais que uma adaptação de crenças e desejos no tecido social. Tal adaptação,
contudo, tem como meta a repetição variada, uma vez que sabemos que toda invenção
existe efetivamente se for imitada, e que toda imitação comporta minimamente uma variação.
Tarde define que as três leis sociais são a Repetição, a Oposição e a Adaptação. A
função da oposição é a de servir à repetição variada (na miríade de termos diferenciais entre
um extremo e outro) e à adaptação. A adaptação, por sua vez, existe apenas em nome da
variação. Dessa maneira, é possível afirmar que, para Gabriel Tarde, as leis sociais têm como
objetivo final a variação universal, esta obra de múltiplas artes da vida. O pensador social
deveria encarar não só a vida como também seu próprio pensamento como arte singular, pois
[...] as desarmonias são para as harmonias o que as assimetrias são para as simetrias,
o que as variações são para as repetições. Ora, é apenas do seio de repetições
precisas, de oposições claras, de harmonias estreitas, que eclodem as amostras mais
caracterizadas da diversidade, do pitoresco, da desordem universal, isto é, as
fisionomias individuais. É pouca coisa, é coisa bem passageira, uma fisionomia de
homem ou de mulher, refinada pela vida social, pela vida de imitação intensa,
complicada e contínua. Mas nada é mais importante que esta nuance fugidia. E a
pintura não perdeu seu tempo chegando a fixá-la, nem o poeta ou o romancista que a
faz reviver. O pensador não tem o direito de sorrir ao ver seus grandes esforços para
apreender esta coisa quase inapreensível que nunca foi e que não será mais. Não há a
ciência do individual, mas não arte senão do individual. E o sábio, pensando que
a vida universal é impedida inteiramente à floração da individualidade das pessoas,
deveria considerar com uma modéstia menos invejosa o trabalho do artista, se ele
mesmo, imprimindo necessariamente seu lado pessoal à sua concepção geral das
coisas, não lhes confere sempre um preço estético, verdadeira razão de ser de seu
pensamento.
130
Presentes em todas as esferas da existência, as oposições que nos estimulam a pensar
em possibilidades de criação de repetições variadas e de adaptações são aquelas de caráter
129
Ibid., p. 287.
130
TARDE, Gabriel. Les lois sociales – esquisse d’une sociologie. Québec: L’Université du Québec, 2002, p. 66.
Disponível em:
<http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 22 jan. 2007.
98
social. A perspectiva tardeana acerca da oposição, se bem compreendida, pode-nos servir
como importante instrumento de luta no mundo contemporâneo, cuja complexidade nos exige
o abandono de categorizações fracas, moldadas por todo tipo de dicotomias simplistas.
Tratemos das oposições sociais tardeanas e ressaltemos o papel que a comunicação social
nelas cumprem como indiretos motores sociais de inovação.
5.3
A
S OPOSIÇÕES SOCIAIS E O PAPEL DA COMUNICAÇÃO
A esfera social, assim como as esferas físico-química e vital, é composta de diversos
tipos de oposição: partidos políticos rivais, guerras entre nações, tribos, cidades, concorrência
econômica entre comerciantes, países, cidades, indústrias, pessoas, dialetos versus dialetos,
neologismos contra palavras tradicionais, discussões públicas pautadas por opiniões
divergentes etc... Fazendo uso da classificação das oposições proposta por Tarde, vemos que
as sociedades comportam oposições seriais (em que acontecimentos em seqüência nos
instigam a questionar a possibilidade de reversibilidade ou irreversibilidade na história),
oposições de quantidade (alta e baixa de riquezas, aumento e diminuição de potências
políticas etc...) e oposições dinâmicas (discussões, guerras etc...). No âmbito macro, as três
grandes formas de oposição social são a concorrência econômica, a guerra e a discussão.
Sobre a concorrência econômica, Tarde normalmente relativiza a importância dada à
disputa deste tipo pelos pensadores de seu tempo.
131
A concorrência é uma curiosa oposição
na medida em que comporta simultaneamente disputa e colaboração. Disputa entre produtores
de uma mercadoria, mas colaboração de ambos em relação ao crescimento da indústria;
disputa entre consumidores, mas colaboração na expansão da afirmação daquilo que desejam.
Em resumo, a concorrência econômica é filha da invenção e da imitação, e depende mais
destas duas últimas que o inverso. Não é correto afirmar que a concorrência dos produtores
gera o sucesso de uma invenção. É mais prudente afirmar que, com a generalização da
necessidade que esta invenção inicialmente engendra, é propagada em seguida a necessidade
dos produtores de copiá-la. A concorrência, aqui, é efeito, e não causa da imitação.
131
Em diversos trechos de suas obras, encontramos críticas diretas ao economicismo na sociologia,
especialmente ao marxismo. Tarde busca implementar um pensamento da economia baseado em uma política
dos afetos, da crença e do desejo. Para isso, remetemos o leitor aos volumosos dois volumes de sua Economia
Psicológica. Cf. TARDE, Gabriel. La psychologie économique. Québec: L’Université du Québec, 2002.
Disponível em:
<http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 22 jan. 2007.
99
as guerras existem porque uma memória imitativa delas. Tarde, não sem
alguma melancolia, afirma que não sentido em ressaltar que uma dissidência (a guerra)
transmutar-se-á em comunhão (os tratados finais de paz) pelo método da convocação de
milhares de homens jovens, saudáveis e felizes e a imposição de que eles se odeiem uns aos
outros. Quanto à guerra, Tarde propõe-se a analisar três hipóteses. A primeira indica que ela
não é necessária para o progresso social; a segunda afirma que a guerra, tendo sido necessária
no começo da civilização, deveria ser substituída por outras formas de combate ao longo do
processo de desenvolvimento e que, portanto, não seria mais uma urgência do progresso; a
última, finalmente, postula que a guerra é indissociável do progresso. Segundo nosso
sociólogo, a primeira hipótese é a mais plausível. Guerra nada tem a ver com
desenvolvimento social. De fato, por preguiça ou por costume, tenderíamos a associar a
guerra ao progresso, à unidade dos povos, adquirida por conseqüência da batalha. Este seria
um erro grandioso. A verdadeira unidade dos povos se daria por propagação imitativa das
diversas instâncias culturais inventivas das religiões, das línguas, da arte, dos costumes etc...
Se uma ambição universal, também uma simpatia universal. As guerras por si não
trazem avanços, mesmo quando, em seus términos, “conciliação”. Esta conciliação, para
Tarde, é fraca. A invenção, sim, é a síntese mais potente: “Não há conciliação verdadeira,
síntese verdadeira, senão por Invenção, filha da paz, que faz os adversários se abraçarem ao
suprimir a causa de seu conflito”.
132
Quanto à terceira grande forma social de oposição a discussão tem-se
normalmente, em relação a diversas questões sociais, duas opiniões contrárias que, por meio
dos indivíduos, manifestam-se e, evidentemente, contêm uma infinidade de repetições
variadas. A discussão, entretanto, é apenas um preparatório para a real mola propulsora de
sociabilidade, que é a conversação. No segundo capítulo de A Opinião e as Massas,
encontraremos um amplo panorama acerca das conversações humanas. Ao discorrer a respeito
das conformações dos coletivos na modernidade, enfatizando as relações entre opinião e
público,
133
Tarde propõe-se a estudar mais extensamente, “por ser um domínio inexplorado, o
fator da opinião que reconhecemos ser o mais contínuo e universal, sua pequena fonte
132
TARDE, Gabriel. L’opposition universelle: essai d’une théorie des contraires. op. cit., p. 368.
133
Foge a nosso escopo tratar em pormenores o conceito de opinião em Tarde e suas implicações na
modernidade. Para dimensionar, todavia, a importância atribuída a tal conceito para o pensamento dos coletivos
modernos, salientamos que, segundo o filósofo, “a opinião está para o público, nos tempos modernos, assim
como a alma está para o corpo, e o estudo de um nos conduz naturalmente ao outro”. TARDE, Gabriel. A
opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 65.
100
invisível que escoa em todo tempo e em todo lugar com um fluxo desigual: a conversação”.
134
Mas o que se entende por conversação? Tarde a define delineando contornos bem nítidos:
Por conversação, entendo todo diálogo sem utilidade direta e imediata, em que se
fala sobretudo por falar, por prazer, por distração, por polidez. Essa definição exclui
de nosso tema tanto os interrogatórios judiciários como as negociações diplomáticas
ou comerciais, os concílios e até mesmo os congressos científicos, embora se
caracterizem por muito falatório supérfluo. Ela não exclui o flerte mundano nem as
conversas amorosas em geral, apesar da transparência freqüente de seu objetivo, que
não as impede de serem agradáveis por si mesmas.
135
Além de ser o principal canal da opinião, a conversação opera como o meio mais
eficaz de promoção e funcionamento do social como um todo. Desta forma, seu papel é
superior ao da discussão. Em suma, as grandes oposições principais – a guerra, a concorrência
econômica e a discussão não são de forma alguma mais importantes que seus correlatos de
adaptação. Por isso, “em uma sociedade que se civiliza, (...) a troca se desenvolve mais rápido
que a concorrência, a conversação mais rápido que a discussão e o internacionalismo mais
rápido mesmo que o militarismo”.
136
Foram descritas acima as oposições em escala macroscópica. Contudo, o foco da
micro-sociologia tardeana está nas múltiplas e infinitesimais lutas de crenças e desejos
conflitantes em cada homem social. São essas batalhas invisíveis a fonte e o fim de toda
oposição grandiosa. As efetivas oposições sociais são as pequenas batalhas internas que
promovem a hesitação entre este ou aquele dogma religioso, entre esta ou aquela locução
verbal de uma determinada língua. Trata-se de oposições internas que, entretanto, não podem
de forma alguma ser classificadas unicamente como psicológicas. Uma vez que os termos em
jogo na escolha são lançados no indivíduo por conta de correntes fortes de imitação, as
oposições de crenças e desejos que nele se dão são, antes de tudo, sociais. Nos dois capítulos
precedentes, procuramos mostrar a importância dos duelos lógicos tanto para as leis da
imitação quanto para as leis da invenção. Tais lutas, porém, são meios para repetições
variadas (imitações) ou adaptações criativas (invenções), e nunca fins nelas mesmas.
É por valorizar as batalhas infinitesimais do fluxo social que Gabriel Tarde desconfia
do pensamento de grandes generalizações que opta pelo conflito de classes sociais como
motor da história. Para o pensador, a perspectiva da luta de classes é um equívoco, uma vez
que toma por preestabelecidos classes ou grupos subjugados e classes e grupos dominadores,
134
Ibid., p. 75.
135
Ibid., p. 76.
136
TARDE, Gabriel. Les lois sociales – esquisse d’une sociologie, op. cit., p. 48.
101
deixando de considerar tanto o caráter relativo das dominações quanto a transitoriedade destas
classificações. Ao permitir a vitória de uma das classes sobre outra, o corpo social
necessariamente fará crescer uma grande quantidade de ressentimento, que levaria
inevitavelmente a uma nova classificação hierárquica. Desta forma, o avanço social se
menos por conta das oposições de classes, e sim, fatalmente, por obra dos “loucos”
inventores, que buscam suturar as feridas abertas do sócius, e das pequenas oposições que se
manifestam no cotidiano, em que cada indivíduo, afirmando sua potência de imitação variada
e mesmo de invenção, poderá revolucionar em silêncio, aumentando sua imanente sem
grandes alardes. A verdade é que
[...] todos nós, ou quase todos nós, colaboramos para estes gigantescos edifícios que
nos dominam e nos protegem; cada um de nós, por mais ortodoxo que possa ser, tem
sua religião para si, e, por mais correto que possa ser, sua língua para si, sua moral
para si; o mais vulgar dos sábios tem sua ciência para ele, o mais rotineiro dos
administradores, sua arte administrativa para si. E, da mesma forma que ele tem sua
pequena invenção consciente ou inconsciente que acrescenta aos legados seculares
das coisas sociais em que realiza um depósito passageiro, ele tem também sua
irradiação imitativa em sua esfera mais ou menos limitada, mas que é suficiente para
prolongar seu achado além de sua existência efêmera e para que os trabalhadores
futuros a recolhem e a ponham em ação. A imitação, que socializa o individual,
perpetua de todas as formas as boas idéias e, perpetuando-as, as aproxima e as
fecunda.
137
Se, por um lado, as oposições sociais efetivas são as batalhas microscópicas de crenças
e desejos cujo campo é o homem social formado pelo entrecruzamento desses fluxos, por
outro, tais oposições adquirem relevância social de fato pelo papel da comunicação social.
As relações entre comunicação e oposição em Gabriel Tarde adquirem duas vias principais de
manifestação: a primeira delas comentamos pouco, e trata-se da função tanto da discussão
como oposição social macroscópica quanto da conversação como adaptação resultante desta
oposição. Há, porém, ainda, um sentido mais profundo que, como pudemos confirmar em
outras instâncias do pensamento tardeano, à comunicação o poder de engendrar o sócius.
No caso específico das oposições sociais, estas importam realmente para a sociedade a
partir de quando são exteriorizadas e tornadas conscientes por via dos meios de comunicação.
A sutileza deste pensamento está em não negar a existência das oposições sociais em seu
estado potencial, antes da consciência social promovida pelos meios de comunicação, mas em
enfatizar que apenas através deles se sua efetivação no sócius. A imprensa e os meios de
comunicação como um todo têm grande influência nos combates sociais, uma vez que os
tornam públicos, retirando-os da clandestinidade individualista e remetendo-os à luz do
137
Ibid., p. 63.
102
espaço público. As dissidências não têm relevância social, no sentido de provocar reais
batalhas, a não ser quando são tornadas públicas. Os meios de comunicação de massa,
portanto, engendram tanto os pólos da oposição quanto suas repetições variadas e, com menos
freqüência, seu état zéro.
A partir do pensamento tardeano, pode-se atribuir aos meios de comunicação de massa
a tarefa de demarcar, de modo mais ou menos ordenado, as oposições sociais de todo tipo.
Nesse sentido, a existência de jornais de oposição governamental seria tão fundamental
quanto a de uma imprensa de situação. Entretanto, o cuidado teórico de Tarde nos estimula a
valorizar, também, as divulgações alternativas entre esses dois pólos, que constituiriam
repetições variadas, minimamente diferenciadoras. Na contemporaneidade, a eclosão de
inúmeros espaços de texto jornalístico, promovida com o advento das tecnologias de
virtualização, poderia configurar a possibilidade destes ambientes de repetições variadas, para
além da grande mídia em dois pólos. Este seria um primeiro aspecto importante.
Outro ponto igualmente relevante seria valorizar, para além do papel de manifestação
social das oposições, a tarefa dos meios de comunicação de reunir sistematicamente alguns
dos diversos fluxos de crença e desejo em uma imprescindível paz social que, apesar de
sempre transitória, é fundamental para o devir do sócius. Em uma pequena frase de A Opinião
e as Massas, por exemplo, Tarde alerta para a importância da imprensa frívola, no sentido de
proliferar certo estado de superficialidade essencial para a vida em sociedade: é preciso
abençoar a imprensa frívola (...) quando ela mantém o público num bom humor mais ou
menos constante, favorável à paz”.
138
Sendo assim, os meios de comunicação não são apenas a razão das oposições sociais,
mas também das adaptações sociais como um todo. Nenhuma das três formas principais de
oposições sociais em escala macroscópica – a concorrência, a guerra e a discussão – prescinde
dos meios de comunicação. Tal observação se faz urgente para contrapor-se ao senso comum
de que os meios de comunicação informam o que ocorre na sociedade. Para Gabriel Tarde,
eles não informam, mas formam tanto as oposições quanto as adaptações pacíficas. Em
tempos de guerras acirradas e concorrências econômicas que pautam o cotidiano global
contemporâneo, faz-se necessária uma análise mais detalhada do papel da comunicação de
massas na própria formação dessas grandes oposições sociais. Uma vez que a neutralidade
midiática é consistentemente afastada, cumpre igualmente rever as implicações éticas da
imprensa como um todo no engendrar público dos conflitos sociais que, sem ela,
138
TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. op. cit., p. 45.
103
permaneceriam aos milhares em potência apenas. A criação de oposições sociais compete à
comunicação, mas, sobre isso, Tarde atenta:
Não são os engenhos civilizadores por excelência, a imprensa e os outros meios de
comunicação, que operam esta conversão dos conflitos dos indivíduos em conflitos
de massas, esta multiplicação e não apenas adição de paixões e convicções
individuais em luta? Certamente, não pode ser questão, para prevenir os conflitos
belicosos, amordaçar a imprensa ou parar a construção de estradas de ferro; porque,
se esses grandes procedimentos de concentração e vulgarização aumentam algumas
vezes o duelo lógico, eles têm por resultado mais freqüentemente ainda aumentar o
hímen lógico, convertendo as associações de todos os gêneros em alianças, em
federações.
139
Neste capítulo final, buscamos detalhar um pouco mais a perspectiva tardeana no que
diz respeito à diferença universal, por meio da ampla abordagem das oposições de todos os
tipos. Configurando a oposição como um meio para a adaptação e, principalmente, para a
variação universal, Tarde nos ajuda a fazer respirar com mais vigor a idéia de contrariedade
de dois pólos, em que estados de repetição diferenciada entre um e outro pólo passam
necessariamente por um estado de neutralidade, este mesmo fonte de uma segunda oposição
que levará à variação e heterogeneidade. Na esfera social, as oposições macroscópicas
(guerra, concorrência econômica e discussão) são meras resultantes dos conflitos
infinitesimais de crenças e desejos que se dão nos homens sociais. Os meios de comunicação
serão os criadores das oposições sociais, uma vez que resgatam tais duelos da obscuridade
singular para o espaço público do sócius. Se, como tentamos demonstrar ao longo da
dissertação, a comunicação de crenças e desejos é o princípio básico da criação de similitudes
sociais (via imitação), se toda invenção social nasce efetivamente se for comunicada,
encerramos o trabalho ressaltando a importância da comunicação também como determinante
tanto das necessárias oposições sociais de todo tipo quanto das associações pacíficas de
crenças e desejos múltiplos e diferenciados.
139
TARDE, Gabriel. L’opposition universelle: essai d’une théorie des contraires. op. cit., p. 361.
104
C
ONCLUSÃO
:
UM PRIMEIRO RETRATO
Na última década do século XIX, felizes e potentes cruzamentos de fluxos de crenças
e desejos se deram em um indivíduo prodigioso, certamente ele também um gênio inventivo,
um louco responsável por um gigantesco arcabouço teórico heterodoxo, repleto de
sonâmbulos, mônadas, vôos de andorinhas, partículas químicas que se afirmam, duelos e
uniões de sensações, afirmações, negações, dores e prazeres... A partir do falecimento do
então respeitado professor do Collège de France Jean-Gabriel Tarde, em 1904, paulatinamente
as forças estruturais do saber erigiram-se em cátedras sociológicas, títulos respeitáveis e
expressões sisudas. Da esperançosa melancolia de um mundo repleto de sonâmbulos
minimamente inventivos e de loucos visionários, restou apenas uma referência histórica, um
“reconhecimento” pelo caráter “precursor”, porém objetivamente impreciso, de um
pensamento das sociedades.
No campo da comunicação, encontramo-nos hoje em situação curiosa, porém análoga:
diferentes áreas de conhecimento lutam pela legitimidade do “saber comunicacional”,
julgando animadamente o que deve ou não participar do “cânone” de nossos estudos. Em
classificações tão ambiciosas quanto apressadas, autores são taxados de “ultrapassados” ou
“inadequados” às pesquisas do campo.
É precisamente diante deste quadro que me pareceu tão salutar uma releitura atenta do
arcabouço teórico de Gabriel Tarde. Tarde extrapola qualquer limite imaginável para a
comunicação social: homens se comunicam tanto quanto moléculas ou genes. A comunicação
é o elementar e o universal:
O fato mecânico elementar é a comunicação ou a modificação qualquer de um
movimento determinado pela ão de uma molécula ou de uma massa sobre outra;
especialmente, o fato astronômico elementar é a atração exercida por um globo
celeste sobre outro globo, assim como o efeito de suas atrações repetidas, o
movimento elíptico dos corpos celestes que se repete ele mesmo. Da mesma forma,
105
o fato social elementar é a comunicação ou a modificação de um estado de
consciência pela ação de um ser consciente sobre outro.
140
Como procuramos mostrar ao longo deste trabalho, a comunicação não é
simplesmente parte do social, mas é o próprio social em movimento. Tal elevação do estatuto
da comunicação está intimamente ligada à preferência pelo pressuposto da diferença como
constitutiva dos elementos universais. As três esferas descritas por Tarde esfera físico-
química, vital e social são regidas pelo princípio da heterogênese. A recuperação da
monadologia leibniziana serve de esteio para o desenvolvimento de uma teoria muito própria
da criação das semelhanças universais. Como tudo o que são mônadas forças
heterogêneas apenas semelhantes a si próprias, continuamente em transformação, que captam
o mundo a partir de uma determinada perspectiva , a heterogeneidade de base do mundo
não seria caótica em duas hipóteses: pela garantia de uma harmonia preestabelecida divina,
como queriam Leibniz e também o fervoroso John Coltrane de nossa epígrafe, ou pela
abertura das mônadas e a garantia da formação de relações de comunicação entre elas. Tarde,
o jazzista de repetições variadas, opta pela comunicação.
Uma vez que as mônadas se comunicam, elas se assemelham e, portanto, podem criar
ordens transitórias, mas que permitem a persistência da diferença original de cada uma delas.
Para Tarde, as duas quantidades comunicáveis o a crença e o desejo, verdadeiras oposições
quantitativas dinâmicas de força gica. Entre a afirmação e a negação da crença, milhares
de estágios intermediários, assim como entre o prazer e a dor do desejo uma miríade de
fases transitórias. Aumentar ou diminuir a crença e o desejo é o jogo constante das mônadas
neste mundo. Seu objetivo, após a morte de Deus, é aumentar a crença da forma mais
consistente possível.
No campo físico-químico, a comunicação das partículas se por ondulação, assim
como no campo vital a repetição variada se por geração ou hereditariedade. na esfera
social, é a imitação esta força de conformação e direcionamento de crenças e desejos de modo
que os homens sociais, partindo de sua heterogeneidade de base, tornem-se
momentaneamente semelhantes. Isto porque o contágio social promovido pela imitação se
sempre de um indivíduo a outro, em instâncias microscópicas, cotidianas e plurais. Um
determinado indivíduo tem graus de crença e desejo tão elevados em relação a um setor social
qualquer que é capaz de magnetizar outro em quem as crenças e desejos estão pulverizados
em estado latente. A imitação, contudo, é regida por leis específicas, tanto lógicas quanto
140
TARDE, Gabriel. Écrits de psychologie sociale (choisis et presentes par A.M. Rocheblave-Spenlé et J. Milet).
Toulouse: Edouard Privat, 1973, p. 170.
106
extralógicas. As regras estabelecidas por Tarde, porém, contemplam em seu âmago o acaso,
afastando-se de qualquer rigidez de caráter positivista que porventura poderiam ter.
As leis lógicas da imitação são uniões e duelos. Enquanto, no primeiro caso, duas
opções de imitação se dão para um indivíduo e ambas se reúnem no sentido de atingir um
mesmo fim, no segundo caso as opções se contradizem e o homem social será um campo de
batalhas de crenças e desejos em que um elemento social apenas será imitado. No que diz
respeito às influências extralógicas, tem-se a imitação que vai do interior para o exterior e a
imitação do considerado superior pelo dito inferior. A comunicação de crenças e desejos, no
caso da imitação ab interioribus ad exteriora, se irrevogavelmente de início por meio da
cópia de fins e idéias e, posteriormente, por conta de meios e expressões. Este tipo de
influência faz ressaltar a importância da temporalidade para o processo imitativo. Quando se
trata da imitação do considerado superior pelo dito inferior, é preciso que haja o
reconhecimento, principalmente por parte do imitador, da superioridade de um outro
indivíduo. Ao ser estabelecida essa relação hierárquica (que, como vimos, é historicamente
determinada), involuntariamente um processo de imitação do dito superior pelo
considerado inferior.
A imitação como propagação dos fluxos de crença e desejo é uma força social
necessária e inevitável, assim como a força da invenção. Esta é um cruzamento de fluxos
imitativos em um indivíduo que manifesta sua diferença original a partir da criação de um
novo elemento social. Assim como a imitação, a invenção possui leis próprias, que
contemplam da mesma forma o inesperado da vida. dois tipos de leis inventivas: leis
exteriores e interiores. Aquelas são o cruzamento biológico aleatório que dará forma ao
homem social inventor e o cruzamento social de fluxos de imitação, que serão contingentes de
uma dada historicidade. as leis interiores são as uniões e duelos lógicos entre os fluxos
imitativos que se dão no próprio inventor. Também em relação à força social da invenção, a
comunicação é fundamental. Sem ela, a criatividade do louco inventor não é assimilada ao
corpo social. É interessante assinalar, entretanto, que uma invenção se em uma tentativa
de afastamento das torrentes imitativas cotidianas. Entretanto, esse movimento de reclusão
torna-se mais difícil com o desenvolvimento das sociedades capitalistas ocidentais e, por isso,
“o perigo das novas democracias é a dificuldade crescente, para os homens de pensamento, de
escapar à obsessão da agitação sedutora. É difícil baixar um sino de mergulhador num mar
muito agitado”.
141
141
TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 56.
107
O tratamento original dado por Tarde ao tema das oposições também abre espaço para
o pensamento comunicacional. Dois termos são opostos quando uma contrariedade entre
eles que apresenta uma série de estados repetitivos minimamente diferenciais entre os pólos,
havendo necessariamente um estado de neutralidade em que os dois elementos contrários
estão presentes. Em relação às oposições esses instrumentos que servem à variação
universal a comunicação é a criadora das contrariedades opositivas de caráter social. As
micro-oposições de crenças e desejos que se dão nos indivíduos se completam socialmente
quando transmitidas e tornadas conscientes para um grande número de pessoas. Os meios de
comunicação, portanto, têm papel social e político, na medida em que delineiam os contornos
dos debates dos grupos humanos.
Curiosamente, quase como em uma mônada leibniziana, ao demonstrar as relações
estreitas entre a sociologia tardeana e a comunicação social, busquei apenas tornar clara a
percepção que jazia no fundo obscuro de uma historicidade decorada por supostos “cânones”
comunicacionais. Minha opção metodológica pelo uso esporádico do livro tardeano mais
conhecido – A opinião e as massas – foi proposital, no sentido de ressaltar que a comunicação
em Tarde não está apenas em uma obra sobre “temas comunicacionais”, mas
fundamentalmente na base de um pensamento complexo em que a diferença é a mola
propulsora do sócius engendrado por relações de comunicação.
Na célebre entrevista dada por Deleuze a Claire Parnet em 1988, conhecida como o
Abecedário, o filósofo menciona sua relação com os pensadores importantes da história. Para
isso, faz uso de uma comparação com a pintura, em um longo trecho que, dada sua força,
citarei integralmente:
Para mim, a história da Filosofia é, como na Pintura, uma espécie de arte do retrato.
Faz-se o retrato de um filósofo. Mas é o retrato filosófico de um filósofo, uma
espécie de retrato mediúnico, ou seja, um retrato mental, espiritual. É um retrato
espiritual. Tanto que é uma atividade que faz totalmente parte da própria Filosofia,
assim como o retrato faz parte da Pintura. Se eu ainda volto a pintores como Van
Gogh ou Gauguin, é porque uma coisa que me toca profundamente neles: é esta
espécie de enorme respeito, de medo e pânico... Não respeito, mas medo e pânico
diante da cor, diante de ter de abordar a cor. É particularmente agradável que estes
pintores que citei, para citar apenas estes, sejam dois dos maiores coloristas que
existiram. Ao revermos a história de suas obras, para eles, a abordagem da cor se
fazia com tremores. Eles tinham medo! A cada começo de uma obra deles, usavam
cores mortas. Cores... Sim, cores de terra, sem nenhum brilho. Por quê? Porque
tinham o gosto e não ousavam abordar a cor. O que de mais comovente do que
isso? Na verdade, eles não se consideravam ainda dignos, não se consideravam
capazes de abordar a cor, ou seja, de fazer pintura de fato. Foram necessários anos e
anos para que eles ousassem abordar a cor. Mas quando sentem que são capazes de
abordar a cor, obtêm o resultado que todos conhecem. Quando vemos a que eles
chegaram, temos de pensar neste imenso respeito, nesta imensa lentidão para
abordar isto. A cor para um pintor é algo que pode levar à insensatez, à loucura.
108
Portanto, são necessários muitos anos, antes de ousar tocar em algo assim. Não é que
eu seja particularmente modesto, mas eu acho que seria muito chocante se
existissem filósofos que dissessem assim: "Vou ingressar na Filosofia, e vou fazer a
minha filosofia. Tenho a minha filosofia". São falas de um retardado! "Fazer a sua
filosofia!" Porque a Filosofia é como a cor. Antes de entrar na Filosofia, é preciso
tanta, mas tanta precaução! Antes de conquistar a "cor" filosófica, que é o conceito.
Antes de saber e de conseguir criar conceitos é preciso tanto trabalho! Eu acho que a
história da Filosofia é esta lenta modéstia, é preciso fazer retratos por muito tempo.
Tem de fazer retratos. É como se um romancista dissesse: "Eu escrevo romances,
mas, para não comprometer a minha inspiração, eu nunca leio romances.
Dostoiévski? Não conheço". ouvi um jovem romancista dizer essas coisas
espantosas. Seria como dizer que não é preciso trabalhar. Como em tudo que se faz é
preciso trabalhar muito, antes de abordar alguma coisa. Acho que a Filosofia tem um
papel que não é apenas preparatório, mas que vale por si mesmo. É a arte do retrato
na medida em que nos permite abordar alguma coisa. E aí é que vem o mistério.
142
Nesta dissertação, navego neste mistério de que fala Deleuze. Busquei pintar um
retrato não para captar a veracidade de um rosto, mas para estudar cores que me fascinam,
estimulam e, não raro, amedrontam. Não creio que delimitar desde o que é a comunicação
nos tornará comunicólogos consistentes. Estudo ainda as cores dessa vastidão que, como
mostrou Tarde, é comunicação. Procuro, em suas nuances, apreender o que de singular, de
diferente. Como guia nessa empreitada, porém, permiti-me dispensar teorias e autores
sonâmbulos. Pelo contrário: preferi dar voz – ou seria grito? – a um louco inventor.
Que a magnetização se dê, portanto.
142
O Estrangeiro: O abecedário de Gilles Deleuze.
Disponível em:
<http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=67&Itemid=51> Acesso em: 27
jan. 2007.
109
O
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CHERTOK, L. O hipnotismo. Publicações Europa-América, s/d.
CHERTOK, L. e STENGERS, I. O coração e a razão (a hipnose de Lavoisier a Lacan). Rio
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CRARY, Jonathan. Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture.
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