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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
MESTRADO EM DIREITO
PERSONALIDADE NO DIREITO PENAL:
Uma abordagem interdisciplinar
Miguel Ângelo Nunes Bonifácio
Orientador: Professor Doutor Heitor Costa Junior
Rio de Janeiro
2007
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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
MESTRADO EM DIREITO
PERSONALIDADE NO DIREITO PENAL:
Uma abordagem interdisciplinar
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em Direito, área de Ciências
Penais, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Direito,
sob a orientação do Professor Doutor
Heitor Costa Junior.
Rio de Janeiro
2007
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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
MESTRADO EM DIREITO
PERSONALIDADE NO DIREITO PENAL:
Uma abordagem interdisciplinar
Miguel Ângelo Nunes Bonifácio
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado em Direito, submetida à
aprovação da Banca Examinadora
composta pelos seguintes membros:
Orientador Prof. Dr. Heitor Costa
Junior
Prof. Dr. João Mestieri
Prof. Dr. Eduardo Mayr
Rio de Janeiro
2007
BONIFÁCIO, Miguel Ângelo Nunes
Personalidade no direito penal: uma abordagem interdisciplinar/
Miguel Ângelo Nunes Bonifácio. Rio de Janeiro. Universidade
Cândido Mendes, Mestrado em Direito, 2007.
VII pi. 142 p.
Orientador: Prof. Dr. Heitor Costa Junior
Dissertação (mestrado) – UCAM, Mestrado em Direito, 2007.
Referências Bibliográficas, f. 120-125.
1. Direito penal 2. Criminologia 3. Psicologia 4. Personalidade
Aos meus pais, irmãos, tios e primos,
fundamentais por deles receber a nuclear
sensação de pertencimento.
Aos meus amigos, antigos e novos, de
toda hora e eventuais, perdidos e
achados, fundamentais por existirem e
deixarem que com eles eu aprendesse
um monte de coisas que o estão nos
livros.
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Heitor Costa Junior, pelas importantes e valiosas
intervenções e pela infinita paciência com o orientando meio psi e meio jurídico.
À minha família, pela solidária atenção e cuidado.
Aos companheiros do curso de Mestrado, Alexandre Mendes, André Barros,
João Galvão e Fernando Maraninchi, pela maravilhosa acolhida e produtivas trocas de
idéias, de livros e as prazerosas discussões pelas madrugadas do Rio.
Ao Dr. Geraldo Lins de Sales, pelos infalíveis empréstimos de oportunas obras
de consulta.
Ao Prof. Dr. Wagner Siqueira Bernardes, pela amizade, incentivo e por colocar à
disposição sua tese de doutorado.
A Renata Flecha, amiga de longa data e indispensável ouvinte das dúvidas e
lamúrias que inevitavelmente acompanham o curso de mestrado.
Aos funcionários da secretaria do Programa de Mestrado da UCAM, pela
gentileza e prontidão, nos pedidos de última hora.
RESUMO
Esta dissertação procura demonstrar que a personalidade, um conceito
psicológico, é operacionalizado no direito penal de forma restrita e discriminatória.
Problematizamos que esta utilização está vinculada à questão da defesa social
sustentada pela Escola Positiva e procuramos levantar a qual teoria psicológica se
reporta. Para melhor visualizar estas hipóteses de pesquisa, trouxemos o percurso do
conceito de culpabilidade nas doutrinas penais, as teorias da pena, a aplicação da
reprimenda legal e a criminologia, sendo esta última o nascedouro desta temática
defensiva e ponto de interseção entre a psicologia e o direito penal, possibilitada pelas
noções de periculosidade e personalidade. Esboçamos a trajetória teórica da psicologia,
com as principais escolas e evidenciamos a sincronicidade de conceitos entre o direito
penal e a psicologia, que reforça o componente ideológico subjacente a esta aplicação
controvertida e parcial.
Palavras-chave: Direito Penal. Criminologia. Personalidade. Psicologia.
ABSTRACT
This study looks forward to showing that the personality, a psycho concept, and
it is done on the penal law in a restrict way and discriminated one. We detected this
usage is high linked with the social defense rules supported by POSITIVE SCHOOL
and we are looking forward to bringing up which psycho theory reported. To better
visualize these search hypotheses, we brought up the concept path of guiltiness on the
penal rules, on the sentence theory, the application of legal reproach and the
criminology, shall the former be the base of our defense thematic and the point of
intersection between psychology and the penal law permitted by the notions of
personality and harmful. We made the path of psychology theory with the main schools
and we came across with synchronism of concepts between the penal law and
psychology that it strengthens the component ideological underlying this controverted
and partial application.
Key-Words: Penal Law. Criminology. Personality. Psychology
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 8
CAPÍTULO 1. DIREITO PENAL 14
1.1 Princípios constitucionais...................................................................................................................14
1.2 Culpabilidade......................................................................................................................................29
CAPÍTULO 2. PENALIZAÇÃO 42
2.1 Teorias da pena...................................................................................................................................42
2.2 Aplicação da pena...............................................................................................................................55
2.3 Provas ..................................................................................................................................................63
CAPÍTULO 3. CRIMINOLOGIA 66
3.1 Ideologia ..............................................................................................................................................66
3.2 Teses criminológicas...........................................................................................................................73
CAPÍTULO 4. PSICOLOGIA 88
4.1 Teorias psicológicas............................................................................................................................88
4.2 Personalidade......................................................................................................................................92
4.3 Normal e Patológico ...........................................................................................................................97
CAPÍTULO 5. ARTICULAÇÃO 104
5.1 Culpabilidade....................................................................................................................................104
5.2 Psicologia...........................................................................................................................................111
5.3 Sincronicidade ..................................................................................................................................118
5.4 Articulação........................................................................................................................................124
5.5 Indagações.........................................................................................................................................126
CONCLUSÃO 130
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 133
Introdução
O direito penal, a partir das críticas de Cesare Beccaria no culo XVIII, passou
a procurar o equilíbrio entre a punição soberana e desmedida, típica até então, e a
liberalidade incondicional e disruptiva, possibilidade inaugurada pelos questionamentos
do marquês. Duas posições radicais que desde então se debatem em função do poder de
punir conferido ao estado, e que este, independentemente do programa legal a que
deveria estar submetido, abusa ou se molda conforme o regime ou mandatário de
plantão, encontrando sempre caminhos dissimulados para atingir seus planos. Esta
conclusão difícil é a que chegamos após trabalhar por mais de vinte anos no sistema
penal – penitenciária e fórum.
No trabalho como psicólogo penitenciário, recém formado, com todo aquele
entusiasmo de início de carreira, algumas perguntas se apresentavam com certa
constância – Como fazer para “consertar” esses indivíduos? Como “ajudá-los” a sair da
vida de crime? Como funciona esta justiça que condenou esses sujeitos? Perguntas que
eram de certa maneira, também, incentivadas pelas demandas da direção da
Penitenciária José Maria Alckmin. A própria função exercida, precisava o foco do
trabalho: avaliar as condições psicológicas dos detentos para uma possível progressão
de regime ou outros benefícios, numa inferência de que o tempo penitencial, no duplo
sentido, teria melhorado aquelas pessoas. Na vontade de ser eficiente, de ter respostas,
nos aplicamos em desvendar aquela clientela original, diferente ao máximo da clínica
tradicional. Nos testes e entrevistas apareceu uma realidade nova, vivências raquíticas e
feias, histórias que pareciam tiradas de manuais de psicopatologias, enfim um outro
mundo. Ao final deste período umas certezas já tínhamos conseguido elaborar:
Não “recuperação” possível com o sistema carcerário e de sociedade que
tínhamos e temos.
Convencer alguém que deve abandonar a “vida do crime” em troca de um
salário mínimo de sobrevivência, isto se conseguir um trabalho, é querer enganá-
lo e se enganar completamente. O sistema está falido e ninguém percebeu.
As respostas àquelas perguntas acima, ainda não temos, e hoje acreditamos que
nunca teremos.
9
Anos depois, ao entrarmos no sistema judiciário, as perguntas, modificadas pelas
experiências anteriores, novamente apareceram. O propósito do trabalho é sutilmente
igual e diferente, que podemos sintetizar na questão: Este réu está recuperado e em
condições de voltar para a sociedade? E tem o mesmo fundamento da função anterior
avaliar as condições psicológicas para saber se houve, ou o, alterações nos sujeitos
apenados. Questão desconcertante, no nosso entender, pois o o conhecemos antes,
não o avaliamos anteriormente, como saber se tinha havido melhoria ou piora no seu
psiquismo ou comportamento.
Neste momento, terminando o bacharelado de direito, já tendo trabalhado
numa penitenciária, já vivido outras experiências e lido mais livros, estas dúvidas
apareceram mais carregadas de críticas e suspeitas a respeito do: O que o judiciário quer
saber? Para que o judiciário quer saber? Qual a finalidade do judiciário neste saber?
O livro de Michel Foucault, Vigiar e Punir”, na época quase virou Bíblia e
continha algumas respostas:
Não mais simplesmente: “Quem é o autor? Mas: “Como criar o processo
causal que o produziu? Onde estará, no próprio autor, a origem do crime?
Instinto, inconsciente, meio ambiente, hereditariedade?” Não mais
simplesmente: “Que lei sanciona esta infração?” Mas: “Que medida tomar
que seja apropriada? Como prever a evolução do sujeito? De que modo será
ele mais seguramente corrigido?” Todo um conjunto de julgamentos
apreciativos, diagnósticos, prognósticos, normativos, concernentes ao
indivíduo criminoso encontrou acolhida no sistema do juízo penal.
(FOUCAULT, 2006, pp. 20-21)
Obviamente, era focado no sistema penal francês, censurava o nosso fazer e
técnica psicológicos de forma contundente, mas com uma ótica européia. E no Brasil,
quem fazia esta crítica? A partir de nossas diferenças e características, pois as temos;
apesar da absorção contínua das idéias vindas dos países “desenvolvidos”, Estados
Unidos e os da Europa.
No curso de direito, estas interrogações não eram sequer cogitadas, e quando a
discussão ia para este campo, uma estrita visão legal imperava. Confessamos que desta
época ficou certo ceticismo, acrescido de desconfiança, em relação ao direito. Ciência
normativa, seca, sem lado, mas que na prática queria respostas da psicologia sobre
determinadas pessoas. Demandas descabidas, pois aprendemos a trabalhar na longitude,
10
realizando cortes transversais na história do indivíduo, e não diagnósticos pontuais, de
tipo médico-psiquiátrico, sobre supostos desvios.
No entanto, o trabalho continuava, e os questionamentos cresciam. Nos
processos estudados, uma questão sobressaía, os juízes avaliavam a personalidade dos
réus, com resultados absolutamente diferentes dos nossos, sem esquecer as inevitáveis
exceções que confirmam a regra. Não que tivéssemos uma visão e uma prática crítica,
mas o fazer básico da psicologia era significativamente alterado. A dificuldade de
definir a personalidade e a procura de um maior rigor profissional na análise possível
daqueles homens, era contrastada com a facilidade em que o magistrado fixava seu
julgamento sobre as características mais fundamentais da pessoa. O direito penal se
tornava cada vez mais conhecido e incógnita ao mesmo tempo.
Nas informações da mídia, conversas com promotores e juízes, discussões com
colegas e amigos, uma idéia sempre era trazida para fechar o assunto a proteção da
sociedade, como se fosse uma noção indiscutível, assentada pela unanimidade das
opiniões. Querer saber – proteção de quem? ou contra quem?, pareciam ser umas
perguntas heréticas, no mínimo inoportunas. E cada vez mais o incômodo aumentava,
pois encontramos no Código Penal a exigência de que o magistrado avalie a
personalidade do réu para a dosimetria da pena, e as avaliações judiciais se
distanciavam cada vez mais da realidade, fazendo-se uso repetitivo de fórmulas, como:
“A personalidade do réu é voltada para o crime.”, “O réu com sua personalidade
criminosa.” etc., que não dizem absolutamente nada, mas selavam a sorte daqueles
indivíduos.
Desta trajetória resgatamos três perguntas-problema que norteiam esta
dissertação, pela sua persistência:
1) A defesa da sociedade exige que se saiba da personalidade do réu?
2) Com quais parâmetros o juiz trabalha para avaliar a personalidade?
3) A qual teoria o direito se reporta quando propõe a avaliação da personalidade do
réu?
Na procura de respostas sobre estes pontos que produzem a interseção do direito
penal com a psicologia, formulamos nossa hipótese de que a defesa social utiliza a
avaliação da personalidade para explicar cientificamente a repressão social e este
trabalho, que consideramos necessário para um questionamento do que está dado e
11
passa despercebido pela maioria, irá examinar criticamente esta idéia. Os psicólogos
não se interessam ou questionam, por não terem a formação jurídica e poucos
trabalharem na área, os juristas por não quererem se aprofundar num tema
interdisciplinar espinhoso; a maioria dos textos do direito penal simplesmente
desconsideram a questão ou a remetem para a psicologia, como se os leitores estivessem
familiarizados com as teorias psicológicas. Como exemplo apresentamos o
posicionamento de Roberto Lyra ao doutrinar este tema na obra “Comentários ao
Código penal”:
A apreciação da personalidade do homem, para bem afeiçoar-lhe a sanção,
está ao alcance da experiência comum e obedece aos critérios habituais.
Todos aprendem a bem distinguir os padrões de honestidade e da bondade,
que nenhum homem consegue sonegar às solicitações da vida, cada vez
menos hipócrita e fechada (...) Não é preciso consultar bibliografia para fixar
em que medida o agente se afastou das normas condicionadoras do equilíbrio
da sociedade ou dos sentimentos e das idéias fundamentais à sua vida (...) É a
própria sociedade que cria e transmite o sistema métrico moral. Este não está
nos livros, mas na realidade da vida de que o juiz participa (...) Para conhecer
uma personalidade, não se limita o magistrado a encarar o indivíduo isolado
(selbstwesen), e, sobretudo, o considera ser vivo em sociedade (gliedwesen).
(LYRA, 1955, p. 212)
O que se depreende é que o assunto é simples, mas na verdade fica indefinido,
como se fosse um interdito, as duas disciplinas afeitas reagem com uma indiferença
significativa de algo estranho a sua prática. Afinal mexer na ferida aberta por Foucault é
dolorido, mas entendemos ser necessário, pois somente uma indagação crítica permite o
desvelamento das determinações ideológicas, políticas e culturais que conformam o
direito penal e suas “ciência auxiliares”.
A contínua divisão dos caminhos entre esses saberes a partir do neokantismo,
muito bem explicitado por Raúl Zaffaroni e Nilo Batista, além de levar “a uma dupla
verdade exasperante que tira a seriedade do discurso jurídico-penal” (ZAFFARONI,
BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 287), possibilita, também, o esfumamento
dos propósitos em comum e das relações subsistente que tornaram esse discurso tão
forte e articulado.
Pesquisamos, prioritário e o mais extensamente possível, os textos de autores
nacionais, somente referenciando em autores estrangeiros o que foi essencial. Esta
opção se fez por três motivos: um por ser a forma de trabalho que encontramos nos
textos europeus e americanos, uma auto-referência nacionalista, que tem seu lado
12
prático e outro ufanista; dois porque encontramos muita produção nacional de ótima
qualidade, que revelou pensamentos originais; o que nos leva ao terceiro, para
compreender como foram adaptadas às nossas peculiaridades as idéias vindas de fora,
como resolvemos as diferenças estruturais e culturais. Entendemos possíveis críticas,
mas nos firmamos nesse pensamento. Procuramos nos estender ao máximo nesta revisão
bibliográfica, para tentar abarcar pontos de vista divergentes, além claro dos que nos
auxiliaram a compor este texto, com suas críticas fundadas na experiência.
Desta forma, temos um primeiro capítulo que aborda os princípios
constitucionais que delimitam o direito penal, procurando deixar claro a conexão que os
une em torno de uma idéia garantidora de direitos, com extensão ao direito processual
penal. Num segundo tópico expomos o desenvolvimento do conceito de culpabilidade
na doutrina penalista, iniciando pelas definições dos elementos em que se decompõe o
fato punível ou crime, depois apresentando as várias concepções que se formou sobre
esta noção e sua amplitude de influência. Ressaltamos, também, que estes
aprimoramentos têm um forte direcionamento para segregar parte da população.
No segundo capítulo trazemos as transformações das teorias da pena, por
mostrarem uma visão esquematizada do pensamento jurídico sobre esta importante
conseqüência legal infligida a determinados atos; na seqüência analisamos como se
fundamenta a aplicação da sanção penal, alcançando o uso da personalidade no direito
penal e um direcionamento de pesquisa para a nossa hipótese levantada.
Discutimos e estabelecemos nossa visão sobre ideologia no terceiro capítulo, por
ser um conceito que perpassa toda a dissertação, e, portanto, entendemos importante de
ser explanado; inclusive para dizermos da criminologia, interface do direito penal com
várias disciplinas e que nas suas proposições iniciais delimitou de forma enfática os
conceitos de periculosidade e defesa social. Nos reportamos principalmente à
criminologia etiológica, mostrando sua influência em vários autores e a conseqüente
reação aos seus objetivos e conseguimos comprovar a veracidade de nossa hipótese.
No quarto capítulo achamos necessário incluir um esboço das teorias
psicológicas, mostrando um pouco das características de cada escola, afinal o tema deste
trabalho é desenvolvido pela psicologia, como ciência da subjetividade. Expomos a
dificuldade de se ter uma conceituação da personalidade, visto que esta noção é
carregada dos preceitos e experiências de cada teórico ou vertente. Fazemos a crítica da
13
concepção de normalidade e anormalidade, que com sua raiz médica sanitarista
impregnou o debate de toda uma época; e introduzimos a psicologia sócio-histórica,
como referência de exame das concepções positivistas e orgânicas que sempre procuram
dominar o debate na psicologia.
Trazemos no quinto capítulo a revisão dos conceitos apresentados, procurando
os elos do diálogo do direito com a psicologia no Brasil, com o intuito de responder as
perguntas formuladas e acreditamos ter conseguido nosso intento, demonstrando que tal
interlocução visa uma tecnologia da discriminação e contenção da população alijada do
mercado de produção e consumo. Retomamos Foucault e incluímos as pesquisas de
Giorgio Agamben, como potencial de resposta a questões que surgiram ao longo deste
trabalho e área de aprofundamento dessa discussão.
E, terminamos convencidos de que o nosso fazer demandado na prática
cotidiana, é, na expectativa dos operadores da agência judicial, um reforço do direito
penal de autor: uma visão simplista de que existem seres humanos inferiores, que devem
ser combatidos, neutralizados ou adestrados, para a defesa da sociedade. Uma postura
que nos recusamos a convalidar, por acreditarmos em outros projetos de sociedade.
Capítulo 1
Direito Penal
Como preliminar acreditamos que uma exposição dos princípios constitucionais
que norteiam e limitam o direito penal é um bom fundamento.
Propostos e desenvolvidos pela doutrina e aceitos por todos os autores como
balizas jurídico-legislativas, os princípios visam proteger valores sociais considerados
relevantes em determinada época e cultura. Esses valores representam ativamente o
sistema sócio-político e ideológico do país, condicionando intrinsecamente a forma de
tratar o objeto do direito penal.
1.1 Princípios constitucionais
1.1.1 A palavra princípio tem variado sentido e interpretações no direito e na
jurisprudência, dentre elas podemos citar Celso Antonio Bandeira de Mello:
Disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhe
o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência,
exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no
que lhe confere a tônica e lhe sentido harmônico. (BANDEIRA DE
MELLO, 1997, pp. 450-451)
Pensamento que pode ser complementado, pois começam por ser a base de
normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em
normas-príncípio e constituindo preceitos básicos da organização constitucional”
(CANOTILHO e MOREIRA, 1991, p. 49), e mais “os princípios exercem uma função
ordenadora, conferindo unidade e consistência” (GONÇALVES CARVALHO, 1999, p.
186) ao texto constitucional, além de apresentarem uma “congruência, o equilíbrio e a
essencialidade de um sistema jurídico. Postos no ápice da pirâmide normativa, elevam-
se, portanto, ao grau de norma das normas” (BONAVIDES, 1999, p. 265), um
delineamento teórico que concordamos, e acreditamos satisfatório ao nosso objetivo.
15
Exploremos um pouco mais as idéias sobre estes fundamentos elementares que
não se reportam a qualquer fato particular, e transmitem uma prescrição programática
genérica, para ser realizada na medida do jurídico e faticamente possível” (ALEXY
apud GUERRA FILHO, 2001, p. 127, nota 211). Para alguns autores os princípios
constitucionais vêm inscritos no próprio texto da Constituição, delimitando de forma
inequívoca a sua recepção jurisprudencial, restando à interpretação definir a
abrangência destas normas fundamentais no ordenamento jurídico infraconstitucional. É
um pensamento de cunho dogmático, que pretende uma legitimidade restrita ao texto da
Carta maior. Já outros juristas propõem uma hermenêutica mais ampla e teleológica que
extraia do texto constitucional princípios implícitos, não positivados pelo legislador,
mas que o conformam de maneira intrínseca. Pensamento que poderíamos chamar de
jurídico crítico
1
, que pretende ampliar a base interpretativa constitucional. Tentaremos
mostrar estas vertentes apresentando o pensamento dos autores nacionais a que tivemos
acesso.
Como representantes da primeira orientação teórica podemos ver em José
Afonso da Silva que todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional
serão válidas se se conformarem com as normas da Constituição Federal” (SILVA,
1990, p. 48), idéia que se aprofunda com a posição de Alexandre de Moraes, na
companhia de autores como Vicente Ráo, Fernando Coelho, Raul Machado Horta,
Juarez Freitas e outros por ele citados, “pois somente por meio da conjugação da letra
do texto com as características históricas, políticas, ideológicas do momento, se
encontrará o melhor sentido da norma jurídica” (MORAES, 2002, p. 44), numa tradição
interpretativa de matiz lógico-formal; exacerbando esta postura dogmática: “a
Constituição rígida é a lei suprema. É ela a base da ordem jurídica e a fonte de sua
validade. Por isso, todas as leis a ela se subordinam e nenhuma pode contra dispor”
(FERREIRA FILHO, 1999, p. 20), e nesse mesmo diapasão “as normas jurídicas
constitucionais, ou normas contidas na Constituição, têm, assim, como o reconhecem os
grandes mestres do direito público (Kelsen, Beard, Freund, Duguit, Fraenkel, Schmitt),
uma característica dupla: são normas dotadas de uma superlegalidade e de uma
1
“... as expressões ‘teoria crítica jurídica’, ‘crítica jurídica’ ou ‘pensamento crítico’ no Direito, deverão
ser entendidas como um profundo exercício crítico reflexivo de questionar o que está normatizado e
oficialmente consagrado (no plano do conhecimento, do discurso e do comportamento) em uma dada
formação social, e a possibilidade de conceber outras formas não alienantes, diferenciadas e pluralistas de
prática jurídica”. WOLKMER, 2001, pp. XIII-XIV.
16
imutabilidade relativa” (PINTO FERREIRA, 1998, p. 14). Acreditamos que com estes
excertos podemos demonstrar nosso entendimento de que estes juristas têm uma posição
mais focada na legalidade positivada.
Numa posição que podemos chamar de intermediária, por não ser tão crítica,
mas que, ao mesmo tempo, traz inovações em alguns aspectos, Uadi Lamêgo Bulos
propõe que o:
Ato interpretativo constitui um meio importante e eficiente para adaptar os
dispositivos supremos do Estado às necessidades emergentes do cotidiano
(...) Construção e interpretação não são atividades distintas. Evidenciam fases
de um mesmo processo. A construção está contida na complexidade do
processo interpretativo, consistindo num estádio desse processo (...) O
expediente supletivo da construction é reconhecido e utilizado pelos
tribunais, que ao recomporem o direito aplicável, procuram suprir as
deficiências ou imperfeições detectadas na Constituição. Nesse ínterim, à
construção empreendida pelos tribunais cumpre a importante tarefa de
adaptar as constituições à realidade da vida, promovendo, a depender das
circunstâncias, mudanças substanciais no sentido, alcance e conteúdo dos
seus preceptivos. (BULOS, 1997, pp. 198-199)
Bem como Celso Ribeiro Bastos:
Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores
fundamentais da ordem jurídica... Alcançam (...) esta meta à proporção que
perdem o seu caráter de precisão do conteúdo, isto é, conforme vão perdendo
densidade semântica, eles ascendem a uma posição que lhes permite
sobressair, pairando sobre uma área muito ampla do que uma norma
estabelecedora de preceitos. Portanto, o que o princípio perde em carga
normativa ganha como força valorativa... O reflexo mais imediato disto é o
caráter de sistema que os princípios impõem à Constituição... Outra função
muito importante dos princípios é servir como critério de interpretação das
normas constitucionais, seja ao legislador ordinário (...), seja aos juízes (...),
seja aos próprios cidadãos. (BASTOS, 1990, pp. 143-144) (grifo nosso).
Para alguns juristas de visão crítica, como Willis Santiago Guerra Filho, que
segue na linha doutrinária de Paulo Bonavides, dentro de um paradigma valorativo
2
o
princípio a que se deve reportar como essencial é o:
2
Este paradigma é “próprio da chamada ‘jurisprudência de valores’ (Wertjurisprudenz), a qual se
apresenta como um ulterior desenvolvimento da ‘jurisprudência dos interesses’ (Interessenjurisprudenz)”,
cuja característica “é a compreensão da norma jurídica como prescrição de um padrão avaliativo para
apreciação de casos concretos, o qual se pode fazer remontar a juízos de valor esclarecedores do sentido
normativo. Esse padrão, por sua vez, estando consagrado abstratamente na norma, vem adquirir pleno
significado quando ela é aplicada aos fatos a que se destina regular.” (GUERRA FILHO, 2001, pp.
115/116)
17
Princípio da proporcionalidade, que determina a busca de uma ‘solução de
compromisso’, na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos
princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo o (s) outro(s), e
jamais lhe(s) faltando minimamente com o respeito, isto é, ferindo-lhe seu
‘núcleo essencial’. Esse princípio, embora o explicitado de forma
individualizada em nosso ordenamento jurídico, é uma exigência inafastável
da própria fórmula política adotado por nosso constituinte, a do ‘Estado
Democrático de Direito’, pois sem a sua utilização não se concebe como bem
realizar o mandamento básico dessa fórmula de respeito simultâneo dos
interesses individuais, coletivos e públicos. (GUERRA FILHO, 2001, p. 153)
Não excluindo ou sobrepondo aos outros princípios positivados na Constituição.
Como se vê é uma linha de pensamento que propõe uma interpretação mais extensiva do
alcance político-social da dogmática jurídica, inserindo metaconceitos que possibilitem
uma maior inteligibilidade da arquitetura legal.
em Roberto Lyra Filho, que desenvolve um pensamento jurídico crítico de
perspectiva dialética
3
, podemos ver a crítica mais contundente ao jusnaturalismo, ao
positivismo, à legalidade estabelecida:
Não é nas leis, nem é nos princípios ideais, abstratos: a Justiça real está no
processo histórico de que é resultante, no sentido de que é nele que se realiza
progressivamente... Direito é processo, dentro do processo histórico: o é
uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos
movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes. (LYRA FILHO,
2004, p. 86)
Em especial dos grupos oprimidos na sociedade. Lyra Filho se esforçou em
estabelecer um projeto alternativo que dialeticamente superaria as dificuldades da lei
positiva em receber as contribuições jurídicas vindas de toda a sociedade, mais ainda
das classes espoliadas e marginalizadas por séculos de exploração, o que provocaria
profundas mudanças na hermenêutica constitucional, penal e civil.
Acreditamos que a partir destes autores citados podemos considerar demarcado
o espectro das posições divergentes na teoria do direito brasileiro, dentro do que nos
propomos como abertura desta monografia.
Assim, passaremos a estreitar o campo de estudo e então trabalhar com a idéia
de limitação do direito penal instituído a partir dos princípios constitucionais, expressos
3
“A crítica jurídica dialética tem propiciado empiricamente, no cotidiano do espaço societário e das
instâncias institucionais, tendências ou variantes que se desdobram e se integram, como o ‘Direito achado
na rua’, o ‘Direito insurgente’ e o ‘Direito alternativo’.” (WOLKMER, 2001, p. 98)
18
ou implícitos no texto da Carta Constitucional de 1988, mantendo a pretensão de o
sermos exaustivos, visto o âmbito deste trabalho.
1.1.2 Os direitos fundamentais, ou direitos humanos, inscritos constitucionalmente
são, por si, princípios limitadores do poder estatal:
Ressalte-se que o estabelecimento de constituições escritas está diretamente
ligado à edição de declarações dos direitos do homem. Com a finalidade de
estabelecimento de limites ao poder político, ocorrendo a incorporação de
direitos subjetivos do homem em normas formalmente básicas, subtraindo-se
seu reconhecimento e garantia à disponibilidade do legislador ordinário.
(MORAES, 2002, p.58)
No que coincide com a doutrina de autores brasileiros
4
. Ampliados a partir da
base liberal clássica dos direitos individuais do século XVIII, hoje contemplam também
direitos sociais e econômicos, ou de segunda e terceira gerações, que procuram abarcar
a cada vez mais complexa estruturação da sociedade. Inseridos constitucionalmente, no
nosso caso como um título específico da Constituição Federal de 1988, o II, passam a
ter uma relevância inquestionável na ordenação penal.
Vamos nos estender nos princípios que entendemos mais relevantes, a saber: o
princípio da legalidade, o princípio da culpabilidade, o princípio da lesividade, o
princípio da proporcionalidade, o princípio da humanidade e o princípio da
responsabilidade pessoal, e iremos utilizar para isso de referências teóricas que
consideramos influentes: Aníbal Bruno, Heleno Fragoso, Juarez Cirino dos Santos, Nilo
Batista e Raúl Zaffaroni.
O princípio da legalidade foi recepcionado na Constituição Imperial de 1824,
artigo 179, XI, e desde então o encontramos nas constituições posteriores, exceto nas de
1937 e 1967, quando o pensamento político da época permitia uma restrição dos direitos
já consagrados
5
. Na Constituição Federal de 1988 vamos encontrá-lo no:
Art. 5º. XXXIX não crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem
prévia cominação legal.
E é referendado no Código Penal vigente:
4
Cf. GONÇALVES CARVALHO, 1999, p. 194; BONAVIDES, 2004, pp. 162 e ss. e 174 e ss.: onde
podemos encontrar que tal pensamento era desenvolvido por Ruy Barbosa e Afonso Arinos de Melo
Franco, no início do século passado; CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 203; DALLARI, 1998, p. 125;
FERNANDES, p. 11 e BASTOS e MARTINS,1988, p. 188.
5
Ver ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 202.
19
Art. 1º. Não crime sem lei anterior que o defina. Não pena sem prévia
cominação legal.
Historicamente, apareceu pela primeira vez nas constituições estaduais da
Virgínia e Maryland, dos EUA, em 1776, e posteriormente inculcado em quase todas as
legislações penais do ocidente, através da fórmula cunhada por Feuerbach: nullum
crimen, nulla poena sine lege
6
.
Esse princípio é equivalente à reserva legal e possibilita a exclusão do arbítrio e
da insegurança na administração da justiça punitiva (FRAGOSO, 2006, pp. 7-8). E
podemos encontrar uma reiteração da importância deste princípio e uma crítica de época
ao abandono do princípio em algumas legislações (BRUNO, 2003, pp. 124-126).
Definido “como fonte exclusiva e limite intransponível no direito de punir” (CIRINO
DOS SANTOS, 2006, p. 47), é o mais importante instrumento político-penal de
proteção individual no moderno estado democrático de direito, porque proíbe a
retroatividade, o costume, a analogia e a indeterminação das penas. Para Zaffaroni,
Batista, Alagia, Slokar, diferentemente de Fragoso, o princípio da legalidade é
complementado pelo princípio da reserva (legal), uma posição defendida por Pontes de
Miranda que inclusive nomeia de “legaliteralidade” (apud ZAFFARONI, BATISTA,
ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 202). Como vimos, autores de marcada influência
sempre recepcionam esse princípio nos seus textos doutrinários como um marco dos
direitos fundamentais.
A proibição da retroatividade da lei penal, ou princípio da irretroatividade da lei
penal, é fundamental para se manter a legalidade da ação ou execução penal, sendo
estabelecido pelo preceito lex praevia, previsto no inciso XXXIX, do artigo 5º da
Constituição e no parágrafo único, do artigo do Código Penal, e incide sobre os
pressupostos da punibilidade que possam prejudicar o réu, bem como sobre a criação ou
ampliação de justificativas, causas de exculpação, as chamadas condições objetivas da
punibilidade, de redução do prazo prescricional, de qualquer alteração favorável na
disciplina legal de causa extintiva da punibilidade, de regimes ou progressões
executório-penais, de excarceração etc., atingindo até as medidas de segurança e
análogas
7
. Mas esta proibição comporta uma exceção que é representada pelo princípio
6
Cf. CIRINO DOS SANTOS, 2006, pp. 19/20.
7
Ver ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 213. Concorda CIRINO DOS SANTOS,
2006, p. 21: “no âmbito da sanção penal (a proibição de retroatividade) abrange as penas (e as medidas
20
da lei penal mais benigna, igualmente previsto no artigo , XL da Constituição da
República (CIRINO DOS SANTOS, 2006, p. 21). Para Bruno os dois princípios acima
citados podem ser condensados em um o da aplicação da lei mais benigna, como
forma de resolver os problemas do conflito entre leis penais que se sucedem (BRUNO,
2003, p. 160), ou que se alternem, ou as leis penais temporárias ou excepcionais, ou a
questão da retroatividade de complementos das leis penais em branco etc., temas que
Zaffaroni, Batista, Alagia, Slokar tratam extensamente no primeiro volume do seu
“Direito penal brasileiro”.
O costume como fonte imediata do direito penal é proibido pela expressão lex
scripta, e como a proibição acima descrita somente é aceito para favorecer o réu, nunca
para fundamentar a criminalização ou punição. Desta forma, através de termos da
própria lei, referidos tácita ou explicitamente, pode-se limitar a tipicidade penal
(ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 203), e, também, valerá na
extensão de causas da antijuridicidade, ou da culpabilidade (BRUNO, 2003, p. 122).
Assim, também, funciona a proibição da analogia, sendo apenas permitida, desde que
não seja arbitrária, quando in bonam partem, pois do contrário possibilitaria um
formidável arbítrio judicial na criação de novos tipos e penas, que são vetadas na
fórmula lex stricta. Entende-se ser a aplicação analógica in malam parte um
comprometimento da segurança do indivíduo em face do poder punitivo do Estado, que
o princípio visa garantir como conquista democrática liberal, nos traz um exemplo de
infração legal a este postulado (FRAGOSO, 2006, p. 210).
A prescrição lex certa que determina o princípio da taxatividade, ou proibição da
indeterminação penal, que busca a menor indefinição do texto legal e a maior
uniformização na interpretação da lei, pressupõe um mínimo de determinação das
proibições ou comandos da lei penal, cuja ausência inviabiliza o conhecimento das
proibições e rompe a constitucionalidade da lei penal (CIRINO DOS SANTOS, 2006, p.
23). Tal proposição é referida como princípio da máxima taxatividade legal que se exige
ao dar forma a uma lei com palavras da maior exatidão e precisão técnica, para evitar o
arbitrio judicis na determinação legal, produzida por limites pouco definidos na
cominação do tipo penal através de conceitos vagos e imprecisos (ZAFFARONI,
de segurança).”. Diferentemente, FRAGOSO, 2006, p.113, entende que “não prevalece, no entanto, em
relação às medidas de segurança, hoje limitadas aos casos de internação ou tratamento de inimputáveis ou
semi-imputáveis”.
21
BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, pp. 206-211). Pois a incriminação
indeterminada entrega a identificação do fato punível ao arbítrio do julgador. Este
princípio, também, se manifesta no âmbito interpretativo do direito penal, exigindo do
juiz a total abstenção da interpretação analógica desfavorável ao réu (FRAGOSO, 2006,
pp. 104-116).
A culpabilidade é de tal maneira importante no direito penal que se formulou um
princípio, para melhor definir sua extensão, considerado por Fragoso como básico e
fundamental para todo o sistema punitivo (FRAGOSO, 2006, p. 267) e por Bruno como
uma exigência jurídica atual impreterível (BRUNO, 2005, p. 13). Trataremos no
momento da culpabilidade como princípio, e para as outras definições deste conceito no
direito penal iremos trabalhar mais à frente. Com uma profunda relação com o princípio
anterior, assim estabelece Cirino dos Santos:
Se pena pressupõe culpabilidade, e culpabilidade se fundamenta no
conhecimento (real ou possível) do tipo de injusto, então o princípio da
culpabilidade pressupõe ou contém o princípio da legalidade, como
definição escrita, prévia, estrita e certa de crimes e penas; por outro lado,
existe uma relação de dependência do princípio da culpabilidade em face do
princípio da legalidade, porque a culpabilidade pressupõe tipo de injusto
(princípio da legalidade) mas o tipo de injusto o pressupõe culpabilidade:
o juízo de reprovação, que exprime o princípio da culpabilidade, não existe
sem o tipo de injusto, definido pelo princípio da legalidade. (CIRINO DOS
SANTOS, 2006, pp. 23-24)
Como vemos um encadeamento e interdependência dos princípios que
organizam a lei penal, no sentido de limitar o poder punitivo do Estado, que se expressa
condensado na fórmula nulla poena sine culpa.
Enfatizando a limitação da criminalização primária ou legal, vamos ver uma
forte vinculação da culpabilidade com o princípio da lesividade, como demarcadores
estritos dos limites máximo e mínimo na determinação da pena. Numa proposição mais
crítica, os autores apresentam o princípio como um parâmetro de exclusão da imputação
pelo resultado e pela exigibilidade conforme o direito, pois partem de uma concepção
onde a culpabilidade está totalmente subordinada a uma vontade racional de concretizar
uma finalidade típica e a violação desta idéia implica refutar o conceito de pessoa, pela
causação objetiva; da mesma forma entendem que a exigibilidade como está prevista
afeta os conceitos de pessoa e de democracia, por não corresponder com a realidade.
Entendem que tais atribuições comuns no autoritarismo e totalitarismo, como situações
22
de incremento do poder punitivo, também se espraiam por vários sistemas penais. Num
exame minucioso, trazem a convicção de que a observância da culpabilidade ou
subjetividade no direito penal não pode se configurar como grau de evolução ou
modernidade, por estar vinculada a um anterior confisco da vítima que alterou o
panorama normativo penal, de forma radical (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e
SLOKAR, 2003, pp. 245-249).
Na mesma linha dos autores acima, qualquer aplicação de punibilidade que se
prenda aos conceitos de crimes qualificados pelo resultado e de causas pretéritas do ato,
deveriam ser retirados da legislação ou despenalizados no correr do processo por
incompatibilidade com o princípio aqui observado (CIRINO DOS SANTOS, 2006, p.
25), pensamento também defendido por Bruno
8
.
No quadro contemporâneo temos um princípio que se torna obrigatório no
debate das funções penais do estado democrático de direito, o da lesividade. Impõe-se,
pois numa construção legal que pretende observar a limitação do poder punitivo do
Estado na proteção dos bens jurídicos, a qualidade e quantidade da lesão destes bens
toma uma grande importância.
No ponto de vista de Cirino dos Santos, a função do princípio da lesividade é
avaliar e, se no caso, impedir que a criminalização, primária ou secundária, de
liberdades constitucionais “de pensamento, de consciência e de crença, de convicções
filosóficas e políticas ou de expressão da atividade intelectual, artística, científica ou de
comunicação”, seja efetuada pela legislação penal, no ponto de vista qualitativo. Já pelo
ângulo quantitativo, o princípio atua excluindo a criminalização, também primária ou
secundária, de danos irrelevantes a bens jurídicos protegidos, numa formulação positiva
do “princípio da insignificância” no direito penal (CIRINO DOS SANTOS, 2006, p.
26).
Para Nilo Batista, esse princípio encerra quatro funções restritivas. A primeira é
proibir a incriminação de uma atitude interna”, excluindo aspirações, idéias, desejos,
sentimentos e convicções da formulação do tipo penal, nem mesmo quando se orientem
para a prática de um crime, pois somente uma conduta externa coligada a essa atitude
interna é punível. Em segundo,proibir a incriminação de uma conduta que não exceda
o âmbito do próprio autor”, extensão lógica da primeira restrição, uma vez que a ação
8
Cf. BRUNO, 2005, p. 13, nota 1.
23
pensada, preparada, mas não executada, não pode ensejar punibilidade, e nem quando a
lesão é auto infligida, como reconhece agora o legislador no caso de uso de drogas. Em
terceiro, proibir a incriminação de simples estados existenciais”, pois retroagiríamos
ao direito penal do autor e suas derivações. A quarta restrição, proibir a incriminação
de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico”, vem na esteira das três
primeiras e como continuação da terceira, porque impede as apreciações morais ou
comportamentais pelo direito penal. Para ele, o bem jurídico põe-se como sinal da
lesividade do crime que o nega, “revelando” e demarcando a ofensa. Essa
materialização da ofensa, de um lado, contribui para a limitação legal da intervenção
penal, e de outro a legitima (BATISTA, 2002, pp. 91-97).
Ampliando a discussão, em Zaffaroni, Batista, Alagia, Slokar o acima citado
princípio toma uma extensão de constitucionalidade e política criminal que traz sérias
conseqüências no caso de não ser observado, afetando o ordenamento republicano na
raiz. Pois, sua não observância, incorreria em criar uma moral de estado, restringir as
liberdades morais, individuais ou coletivas, e apenar ões que exprimam essa
liberdade. Teríamos assim uma inversão do lugar do estado como protetor de direitos,
abrindo caminho para uma conjuntura onde o cidadão nunca saberá quando sua conduta
estará proibida, e, no caso de concomitante violação do princípio da culpabilidade, teria
que observar um padrão estatal idealizado de comportamento. Os autores aceitam a
idéia de bem jurídico tutelado, como expressão dogmática do princípio da lesividade,
por este requerer um patamar nimo de afetação danosa ou perigosa, que caso não
tenha sido atingido exclui a tipicidade da lesão e se desconhece o conflito jurídico, pois
se manteve o âmbito pessoal da liberdade moral, inquestionável baliza jurídico-penal
(ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, pp. 225-230).
Outro princípio que passou a ser debatido atualmente é o princípio da
proporcionalidade, desenvolvido pela teoria constitucional alemã, sendo constituído de
três princípios parciais: o princípio da adequação, o princípio da necessidade e o
princípio da proporcionalidade em sentido estrito (CIRINO DOS SANTOS, 2006, p.
26).
Batista, em sua “Introdução crítica ao direito penal brasileiro”, nomeia este
preceito como princípio de intervenção mínima. Historicamente, assenta seu início junto
com a ascensão jurídico-social da burguesia, e traz, para demonstrar sua precedência,
24
alguns exemplos da idéia em autores como Montesquieu e Beccaria. Considera o
princípio derivado das relações lógicas e de causalidade internas do pensamento
jurídico-penal, sendo, formalmente, não escrito e deduzido, mas um dos pressupostos
políticos do estado de direito democrático. Conecta-o, com duas características do
direito penal: a fragmentariedade e a subsidiariedade (BATISTA, 2002, pp. 84-90), ou
seja, a seleção da penalização para alguns comportamentos e de partes dos bens
jurídicos tutelados, sem a pretensão de totalidade, e sua utilização secundária na
proteção dos bens tutelados, quando se esgotaram outros meios. Com ponto de vista
similar Fragoso se posicionava: “A pena é a ultima ratio do sistema” (FRAGOSO,
2006, p. 346). na obra conjunta com Zaffaroni, Alagia e Slokar, a ênfase dada é à
irracionalidade da criminalização e da pena, e a terminologia usada é proporcionalidade
mínima. Os autores realçam a necessidade de escalonar os danos e penas, implicando-os
com os bens jurídicos protegidos, de forma inequívoca e reduzida (ZAFFARONI,
BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, pp. 230-232).
Para Cirino dos Santos, este princípio, implícito, proíbe penas
desproporcionais em função da retribuição equivalente do crime, atribuída às
penas criminais nas sociedades capitalistas. Num desdobramento teórico, propõe uma
dimensão abstrata e outra concreta. Na primeira, limita-se a criminalização primária
com a classificação, crescente ou decrescente, das lesões dos bens jurídicos e
conseqüentes sanções penais. Na segunda, a contenção da pretensão punitiva se faz pelo
custo/benefícioentre o crime e a pena, realçando os custos sociais específicos para
o condenado, para a família do condenado e para a sociedade (CIRINO DOS SANTOS,
2006, pp. 26-29).
Encadeado ao princípio anterior, mas com cada vez mais destaque, o princípio
da humanidade se apresenta nos dias de hoje, como regra constitucional. Nos incisos III,
XLIII e XLVII, do art. da Constituição Federal, os legisladores explicitaram as idéias
que desde o século XVIII perpassam a noção de justiça, ou seja, o impedimento de
penas de morte, perpétuas, de trabalhos forçados, cruéis, infamantes ou degradantes.
Identificadas com o ancien régime, e antagonistas do estado democrático de direito,
estas sanções claramente atentam contra a dignidade e integridade do ser humano.
Apesar de não tratar claramente deste princípio, Fragoso ao deter-se na
classificação das penas, utiliza o argumento da ofensa à dignidade humana para colocar-
25
se frontalmente contra as sanções cruéis e a pena de morte. Levantando ser esta questão
do campo da política e da cultura, e não do plano estritamente jurídico, por estar
imbricada com os padrões sociais de cada cultura ou época, que irão se revelar nas
normas penais (FRAGOSO, 2006, pp. 351-354).
Batista citando Fragoso também concorda com ser este princípio pertencente à
política criminal, apesar de vir inscrito em ordenamentos jurídicos, como acontece no
Brasil. Estendendo a discussão neste princípio um conformativo da racionalidade e
proporcionalidade da pena, que intervém na cominação, na aplicação e na execução
desta (BATISTA, 2002, pp. 98-101). com Zaffaroni, Alagia, Slokar desenvolve uma
argumentação garantista abordando as conseqüências práticas e jurídicas da aplicação
deste princípio na penalização (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003,
pp. 233-234).
Cirino dos Santos nos traz a ratificação deste princípio no Código Penal (art. 38)
e na Lei de Execução Penal (art. e 40), enfatizando que a proibição de indignidade e
desumanidade na execução penal é hoje sistematicamente descumprida pelo sistema
penitenciário brasileiro (CIRINO DOS SANTOS, 2006, pp. 29-30).
Por último, não desconsiderando outros princípios, iremos tratar do princípio da
responsabilidade pessoal, ou responsabilidade penal pessoal.
Calcado, como o precedente, na prescrição constitucional prevista no artigo 5º,
inciso XLC, este princípio relaciona-se, com o princípio da culpabilidade e da
legalidade, limitando a penalização aos autores e participantes, objetivada através do
tipo de injusto pré-definido em lei e fundamentada na culpabilidade, aferida pelas
condições pessoais de saber o que faz (imputabilidade), de conhecimento real do que
fez (consciência da antijuricidade) e do poder concreto de não fazer o que fez
(exigibilidade de comportamento diverso)” (CIRINO DOS SANTOS, 2006, pp. 31-32).
Estendendo a aplicação e designando-o como princípio da intranscedência ou
transcendência mínima, Zaffaroni, Batista Alagia, Slokar, consideram que seus efeitos
deveriam ser estendidos para a realidade vivenciada pela prisonização nas famílias dos
condenados, que sofrem estigmatização, vexame e privação, além do confisco da
vontade da vítima sempre alijada da lide penal, e não esquecendo da vitimação
secundária, efeito recorrente nos crimes que ocorrem na intimidade; por entenderem que
26
são situações que desrespeitam o princípio, espraiando o poder punitivo estatal além do
infrator (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 232).
1.1.3 Com a intenção de dar maior amplitude ao nosso esboço da limitação do poder
punitivo estatal pelos princípios constitucionais, vamos, rapidamente, trazer algumas
das garantias processuais penais, previstas na longa série de incisos do art. 5º da
Constituição Federal. Uma vez que estas garantias, em linha com o processo acusatório,
são conquistas da era moderna, assumidas em todos os países que pretendam ser um
estado democrático de direito.
Consideramos que o princípio ou a garantia do processo legal devido, previsto
no inciso LIV, e que tem uma extensa linhagem remontando à Inglaterra do século XIII,
é o princípio organizador destas garantias, pois ao definir as linhas metodológicas e
sistemáticas do fazer processual, não penal como também nas outras áreas do direito,
através de preceitos assentados como básicos aos olhos da mais atual doutrina jurídica,
estabelece o limite da atuação legislativa e judiciária. Mais especificamente, o devido
processo penal se orienta pelos princípios citados nas páginas anteriores, além de
agregar alguns valores considerados indispensáveis que devem ser observados na
condução dos atos formalizados e nas relações que se estabelecem no interior do
processo penal.
Até pela ordem disposta na Constituição, caput do art. 5º, a primeira garantia
que se apresenta é o princípio da igualdade que a todos, brasileiros e estrangeiros,
conforma. De acordo com Antonio Scarance Fernandes:
Em duas direções manifesta-se o princípio da igualdade no direito processual:
dirige-se aos que se encontram nas mesmas posições no processo - autor, réu,
testemunha -, garantindo-lhes idêntico tratamento; dirige-se, também, aos que
estejam nas posições contrárias de autor e réu, assegurando-lhes idênticas
oportunidades e impedindo que a um sejam atribuídos maiores direitos,
poderes, ou impostos maiores deveres ou ônus do que a outro.
(FERNANDES, 1999, p. 48)
De acordo com Rogério Tucci, insere-se no princípio da igualdade a garantia da
assistência judiciária prevista no inciso LXXIV do artigo 5º e a essencialidade da
defensoria pública do artigo 134 da Constituição Federal, como prescrições que
garantem a igualdade econômica e técnica no acesso à justiça criminal (apud
27
FERNANDES, 1999, pp. 48-49). Num propósito mais individual e garantista, Salo de
Carvalho entende que:
A máxima secularizadora agregada ao princípio da igualdade, impede, desde
uma perspectiva penal ou extrapenal, a diversidade de tratamento entre
iguais. Contudo (...), vincula o Estado, em termos normativos, a reconhecer o
fato de que os seres humanos o diferentes e, em sendo assim, ilegítima será
qualquer discriminação vinculada a essa diversidade. (BUENO DE
CARVALHO e CARVALHO, 2004, p. 13)
Citando Luigi Ferrajoli, acrescenta “que de fato, entre as pessoas, existem
diferenças, e que são essas diferenças que vão tutelar, respeitar e garantir o princípio de
igualdade, formal e substancialmente entendido” (apud BUENO DE CARVALHO e
CARVALHO, 2004, p. 13) e finalizando nos traz um aforismo de Boaventura de Souza
Santos que realmente sintetiza a idéia garantista deste princípio: “Tenho direito à
igualdade, quando a desigualdade me inferioriza; tenho direito à desigualdade, quando a
igualdade me descaracteriza” (apud BUENO DE CARVALHO e CARVALHO, 2004,
p. 14).
A garantia do contraditório, imbricada com a garantia anterior e essencial no
processo penal, assegura ao defensor do réu e ao ministério público as possibilidades de
conhecerem e contraporem razões e argumentos na defesa e na acusação,
respectivamente, contando para isso com todos os meios e recursos legalmente aceitos,
conforme o inciso LV, da Constituição Federal. Conforme Fernandes, o ministério
público é também abrangido pela garantia pois foi instituído para participar no
contraditório e se superar o período do processo inquisitorial. Incidindo sobre todo o
processo, da instrução ao julgamento, para Julio Fabbrini Mirabete, esta garantia é
decorrente do princípio da igualdade e que concorre para a igualdade e a liberdade
processual (MIRABETE, 2002 pp. 46-48). Fernando Capez entende que através do
contraditório: “As partes têm o direito não apenas de produzir suas provas e de sustentar
suas razões, mas também de vê-las seriamente apreciadas e valoradas pelo órgão
jurisdicional” (CAPEZ, 2003, p. 19). Como vimos sua abrangência é vasta e, apesar dos
entendimentos contrários, a contraditoriedade é estendida e nomeada como diferida
quando diz respeito a provas e perícias levantadas na fase investigativa, nitidamente
inquisitorial, pois a defesa pode e deve se manifestar na fase processual.
28
A garantia constitucional da publicidade, inserida no inciso LX e reforçada no
inciso IX do art. 93, é uma inovação de 1988 que altera a possibilidade de julgamentos
sigilosos. Seu principal efeito é “assegurar a transparência da atividade jurisdicional,
permitindo ser fiscalizada pelas partes e pela própria comunidade. Com ela são evitados
excessos ou arbitrariedades no desenrolar da causa” (FERNANDES, 1999, p. 63).
Como regra o ordenamento constitucional determinou a publicidade plena, ou popular,
com as ressalvas legais pois “a publicidade absoluta pode acarretar, às vezes, rios
inconvenientes com prejuízos sociais maiores do que a restrição do princípio”
(MIRABETE, 2002, p. 45), além do que a vítima tem o direito de proteger sua
intimidade de ser devassada pelos meios de comunicação em casos variados.
De grande importância é a garantia do juiz natural, ou competente, ou legal,
promovida pelos incisos LIII e XXXVII. O que se consagra então é “que todos têm a
garantia constitucional de serem submetidos a julgamentos somente por órgãos do poder
judiciário, dotado de todas as garantias institucionais e pessoais previstas no texto
constitucional” (CAPEZ, 2003, p. 25), vedando o juízo discriminatório de feição
positiva ou negativa. Essa garantia de uma atividade jurisdicional prévia procura
assegurar a imparcialidade da magistratura e do ministério público, numa exegese mais
ampla, frente a cada caso no entender de alguns juristas, apesar de posições
jurisprudenciais contrárias
9
.
Além destas, também as garantias negativas como a da prova ilícita (LVI),
que podemos ver numa abordagem de Fernandes, quando este, também, discute a
admissão do princípio da proporcionalidade:
A norma constitucional que veda a utilização no processo de prova obtida por
meio ilícito deve ser analisada à luz do princípio da proporcionalidade,
devendo o juiz, em cada caso, sopesar se outra norma, também
constitucional, de ordem processual ou material, não supera em valor aquela
que estaria sendo violada. (FERNANDES, 1999, pp. 79-84)
Uma concreção das proposições de Guerra Filho, anteriormente citadas, para
adequar a simultaneidade de interesses divergentes. Repisando o entendimento desse
autor:
Haverá respeito à proporcionalidade em sentido estrito quando o meio a ser
empregado se mostra como o mais vantajoso, no sentido da promoção de
9
Cf. FERNANDES, 1999, pp. 235 e ss.
29
certos valores com o mínimo de desrespeito de outros que a eles se
contraponham, observando-se, ainda, que não haja violação do ‘mínimo’ em
que todos devem ser respeitados. (GUERRA FILHO, 2001, p. 154)
O tema é por demais extenso para pretendermos trazer todas as garantias
processuais penais constitucionais. Os tópicos focados, no nosso entender, são os de
maior relevância para a finalidade demonstrativa da limitação da pretensão punitiva
estatal, fortemente insculpida na Constituição de 1988, como reação cultural, social e de
época ao período de governos militares. O conteúdo ideológico é patente no sentido de
fornecer ao cidadão meios inalienáveis de se contrapor às arbitrariedades cometidas
pelos órgãos de segurança pública e às atrocidades executadas por órgãos e tribunais de
exceção do regime militar ditatorial que vigiu no país entre 1964 e 80.
1.2 Culpabilidade
Com os demarcadores constitucionais da lei penal, mais relevantes para o nosso
trabalho, apreciados, acreditamos que podemos trazer uma atribuição específica do
direito penal, o juízo de culpabilidade. Imputar a alguém o cometimento de um crime é
tarefa do sistema penal, através do devido processo legal, e que, por delimitação,
compete ao magistrado sua averiguação e julgamento.
Veremos a investigação doutrinária de um conceito central do direito penal: o
fato punível ou crime e retornaremos ao conceito de culpabilidade, pois se
anteriormente a apresentamos como princípio, agora desenvolveremos uma formulação
diferenciada do mesmo termo jurídico que vai se apresentar como uma faceta ou estrato
constitutivo do crime.
1.2.1 O fato que adquire a máxima relevância para a política criminal do Estado: o
cometimento de um crime, pode ser interpretado de várias maneiras, sempre em
concordância com o princípio da legalidade. No nosso entender, uma mais que
satisfatória interpretação do fato punível vamos encontrar em Bruno:
Todo crime resulta de definição legal. o ato, por mais imoral e
agressivo que se apresente, que se possa chamar crime, se este caráter não lhe
é atribuído por uma lei penal. O crime oferece aspectos biológicos e sociais,
30
além do jurídico, mas quando a norma jurídica lhe impõe o seu
imperativo, juntando-lhe como conseqüência a sanção penal, é que se pode
dizer verdadeiramente crime. (BRUNO, 2003, p. 174)
10
Apesar do próprio destacar outra definição
11
. Pois, em nossa opinião,
essencialmente jurídico, abstrato, discricionário e ideológico, o delito só passa a ter uma
concretude a partir de um fato que irá ser qualificado como proibido. Esta classificação
conceitual iremos encontrar no direito penal, se refere a virtualidades jurídicas que
sofrem mutações ao longo do tempo, não tendo uma atemporalidade ou universalidade
como queriam as anteriores doutrinas penais e deriva diretamente da concepção sócio-
filosófico-política do legislador ou do jurisconsulto.
Na teoria jurídico-penal algumas possibilidades de se explicitar o conceito do
fato punível, assim terá uma definição real, ou material, ou formal ou operacional
(analítica). Para nós importa uma conceituação analítica, que irá desdobrar em um
conceito estratificado o delito. Hoje têm se consolidadas duas categorias primárias neste
exame: o tipo de injusto e a culpabilidade, e cada qual com uma tripla repartição
secundária o tipo de injusto com ação, tipicidade e antijuridicidade, e a culpabilidade
com capacidade penal ou imputabilidade, conhecimento da antijuridicidade ou
consciência da ilicitude e exigibilidade de comportamento diverso ou conforme o direito
desdobramentos estabelecidos a partir de princípios do século passado. Existem
algumas divergências quanto à divisão primeira entre tipo de injusto e culpabilidade,
bem como no fracionamento das partes elementares do tipo de injusto. Relativo à
segunda dissensão, numa corrente temos uma divisão em dois elementos, em outra
temos uma divisão em três elementos. Sendo a última corrente a dominante, iremos
trabalhar com ela definindo o crime como ação típica, antijurídica e culpável
12
(grifo
nosso).
A ação para a dogmática penal é uma característica fundamental no delito, pois
somente através dela “as deliberações do sujeito podem tornar-se juridicamente
relevantes e pôr em função a justiça penal” (BRUNO, 2003, p. 183)
13
, por isso sofre
10
Cf., também, HUNGRIA, 1958, p. 13/14.
11
“Desse modo se chega à definição do crime como o ato que ofende ou ameaça um bem jurídico
tutelado pela lei penal.” (BRUNO, 2003, p. 175)
12
TOLEDO, 1999, pp. 80 e ss., pela maioria; discordando FRAGOSO, 2006, p. 188: entende que a ação é
a realização observável de um conceito, portanto não convertível em objeto da dogmática jurídica e assim
propõe que a conduta punível seja avaliada na tipicidade.
13
Cf., também, TOLEDO, 1999, p. 82.
31
modificações explicativas conforme as teorias se sucedem e superpõem, atrelando as
outras categorias a cada modelo conceitual proposto. duas modalidades mais
aplicadas, a causal e a final, mas que não esgotam a produção teórica sobre o tema,
sendo que podemos citar pelo menos mais cinco modos: social, negativo, pessoal,
lógico-analítico e intencional (CIRINO DOS SANTOS, 2006, p. 81), há que se ressaltar
que são todos originados na doutrina alemã. O modelo causal propõe a ação como
originada numa vontade que modifica o mundo exterior através de um resultado, com
um acento naturalista que não reconhece os elementos subjetivos, avaliados na
culpabilidade. Foi esta a concepção que orientou o Código Penal de 1940, e teve toda
uma adequação teórica e prática à realidade nacional, através da produção dos juristas
14
.
No entanto, esta proposta metodológica foi questionada e deu lugar ao modelo
neoclássico, que traz uma reestruturação argumentativa, com base nos fins do direito
penal e a ação passa a ser naturalista-normativa, portanto “uma e outra conduta (ação ou
omissão) se situam no campo naturalístico do comportamento humano, isto é no mundo
exterior, por serem um ‘trecho da realidade’ que o direito submete, ulteriormente, a
juízo de valor, no campo normativo.(MARQUES, 1997, p. 65). O modelo finalista,
seguido pelo direito penal brasileiro após a reforma de 1984, surgiu na primeira metade
do século passado tendo uma significativa recepção e prosseguimento, e apresenta a
ação como atividade exercida com volição determinada pela finalidade, o se
excluindo a causalidade decorrente, e portanto agregando a subjetividade do autor a
elementos objeto-normativos na conduta incriminada
15
.
O tipo e a tipicidade, esta indicando a relação entre “a situação configurada
legalmente como crime e aquela vivida pelo agente” (TAVARES, 2003, p. 126), são
construtos amplamente aceitos na literatura penalista, mesmo não havendo uma estrita
concordância doutrinária, existindo divergências teóricas que não invalidam os núcleos
dos conceitos e, desta forma, utilizaremos a elaboração de Juarez Tavares exposta na
sua obra “Teoria do injusto penal”. No tipo temos, em conformidade com o princípio da
legalidade, a exata descrição de um comportamento que está proibido ou imposto, em
abstrato, pois seu propósito é definir antecipadamente o que o legislador decide que
14
Ver LYRA, 1976, p. 88; GARCIA, 1951, p. 219; NORONHA, 1972, pp. 92-93, entre outros.
15
Cf. MESTIERI, 1990, pp. 145/146; FRAGOSO, 2006, pp. 183 e ss.; BITENCOURT, 2004, pp. 201 e
ss.; PRADO, 2005, p. 319; REALE JR., 2000, pp. 45 e ss.; ZAFFARONI e PIERANGELI, 2004, pp.
379-380, entre outros.
32
deve ser criminalizado e penalizado, e essa qualificação está vinculada a uma real lesão
de um bem jurídico, conceito que encerra os valores individuais escolhidos para serem
protegidos da e na vida social em uma determinada época, e esse, por sua vez, têm um
“papel delimitativo da incriminação e protetivo da pessoa” (TAVARES, 2003, p. 224),
medida de validade da inserção deste bem na ordem jurídica. Assim, a tipicidade, como
momento de concretização da abstração normativa, terá a função jurídica de comprovar
a similaridade do acontecido com a norma penal na intenção de limitá-la, através de
uma conformação rigorosa das circunstâncias baseada na causalidade e na imputação
objetiva que estabelecem o alcance do tipo e as permissões do risco, pois deve “se
incorporar dentro de um sistema de garantias e de adequação, sob a consideração da
realidade dos conflitos sociais que se refletem na formulação da norma incriminadora”
(TAVARES, 2003, p. 127), condições indispensáveis ao estado democrático de direito e
à efetiva proteção do indivíduo, na situação de objeto da intervenção punitiva estatal.
A ilicitude ou antijuridicidade, essencial para a composição do injusto penal,
também será objeto de diferentes definições conforme o modelo teórico que for
utilizado, apesar do reconhecimento doutrinário das mesmas causas de justificação
16
.
Seguindo na obra de Tavares, podemos ver sua descrição de que “uma conduta só pode
ser qualificada de ilícita quando se ajustar aos elementos do tipo e aos pressupostos de
imputação e também quando confrontada com as normas permissivas” (TAVARES,
2003, p. 308). Esta fase então será avaliada em duas etapas para ampliar as
possibilidades de admissão legal do comportamento efetivado. Num primeiro momento,
é verificado se dentro dos direitos individuais e de proteção à pessoa humana uma
norma geral de permissão, como regra usual da liberdade de agir, e num segundo
momento se positiva e objetivamente a conduta seja acolhida como autorizada no
processo de imputação da tipicidade o será no juízo da antijuridicidade, pela subsunção
ao princípio constitucional da presunção de inocência, e subjetivamente por uma
situação justificante no processo de imputação anteriormente realizado na conformação
ao tipo. E no processo de imputação, que esse se limite aos elementos reais de
intensidade lesiva, delimitado no seu limite máximo com o dolo direto e na mínima com
a culpa. Com isso, as permissões tomam um caráter de instrumentos de convivência e
conveniência social, onde “a conjugação do respeito à autonomia de decisões e da
16
Cf. BRUNO, 2003, capítulos XVI, XVII e 2005, capítulo XVIII; FRAGOSO, 2006, pp. 225-237;
BITENCOURT, 2004, pp. 302-328; ZAFARONI e PIERANGELI, 2004, pp. 545-567, para citar alguns.
33
ponderação de bens parece constituir o filão para se elaborar uma teoria das causas de
justificação.” (TAVARES, 2003, p. 333). Assim, Tavares constrói um modelo de tipo
de injusto garantista que sempre procurará limitar o jus puniendi estatal, através da
precisão da configuração normativa que extirpe a proteção de valores ético-sociais,
incidindo tão somente na lesão do bem jurídico.
Apenas para não deixar em branco, a divergência teórica entre a unidade e a
autonomia da tipicidade e da antijuridicidade na análise do delito, que vem de longa
data, têm adeptos de peso em ambas as correntes. Sendo que podemos ressaltar ser uma
discussão de relativa importância, uma vez que os parâmetros sicos do tipo de injusto
são preservados, continuando a ser pressupostos decisivos para a punibilidade. E como
dito anteriormente, nos ateremos ao predominante sistema que é o tripartido, do qual
temos três modelos: o clássico, o neoclássico ou neokantiano e o finalista, que são
variações teórico-metodológicas (CIRINO DOS SANTOS, 2006, pp. 73 e ss.) derivadas
dos modelos penais que se sucederam ao longo do século passado.
1.2.2 Entendemos que após o delineamento dos conceitos de ação, tipicidade e
antijuridicidade, deliberações precedentes na regrada avaliação do fato punível,
podemos abordar a noção que mais nos interessa: a culpabilidade. Esta, também, conexa
às mudanças operadas pelos movimentos teóricos citados, tem hoje um papel
destacado pois não crime sem culpabilidade no direito penal moderno
(PIERANGELI, 2006, p. 82).
Agora definida como categoria analítica do crime e um dos pressupostos da
aplicação da pena, a culpabilidade aqui irá se diferenciar de sua outra conceituação por
ser uma aplicação pragmática.
Para a descrição acima, apesar da maioria dos juristas serem favoráveis, temos
na doutrina brasileira uma discordância. Para René Dotti, Damásio de Jesus, Celso
Delmanto e Julio Mirabete, a culpabilidade não está inserida na análise do delito,
vigorando apenas como pressuposto da pena. Dotti sustenta que a culpabilidade deve ser
tratada como pressuposto da pena e ser analisada desta maneira, e não na teoria geral do
delito
17
. Assim, também, podemos ver em Damásio de Jesus que:
17
DOTTI, 1998, p. 205.
34
Objetivamente, para a existência do crime, é prescindível a culpabilidade. O
crime existe por si mesmo com os requisitos ‘fato típico’ e ‘ilicitude’. Mas o
crime será ligado ao agente se este for culpável (...) a culpabilidade não é
requisito do crime, ela funciona como condição da resposta penal. (JESUS,
2003, pp. 455-456)
Celso Delmanto ao tratar dessa questão, o faz da seguinte maneira: “presente
um fato típico e antijurídico (tipicidade + antijuridicidade ou ilicitude), teremos um
crime, mas a aplicação de pena ainda ficará condicionada à culpabilidade
(DELMANTO, 2000, pp. 18-19) e Mirabete assegura que:
Se a conduta é um dos componentes do fato típico, deve-se definir o crime
como ‘fato pico e antijurídico’. O crime existe em si mesmo, por ser um
fato típico e antijurídico, e a culpabilidade (...) significa apenas
reprovabilidade ou censurabilidade de conduta. (MIRABETE, 1999, p. 97).
Tal posicionamento, que aparenta ser encapsulado, sofre críticas por se entender
que há um equívoco de interpretação por parte dos citados autores
18
.
Num muito sucinto apanhado histórico pelo ângulo da culpabilidade, a temos
inicialmente como fundamento da pena numa responsabilidade direta e ampliada do
autor com o fato (BATISTA, 2002, p. 102), visão conseqüente de um padrão social
rudimentar; em seguida, mas o linearmente visto as oscilações e sobreposições
culturais ocorridas na Europa, foi investida de uma atribuição moral e/ou religiosa, mais
conhecida como livre arbítrio e que, apesar de todas as críticas, se mantém como
referência através de diferentes usos e nomenclaturas, em variadas teorias (CARRARA
apud VERGARA, 1980, p. 50). Somente no início do culo XIX é que começa o
aperfeiçoamento doutrinário que inclui a culpabilidade como força construtora do
delito
19
, ou seja, um componente sistemático.
A teoria psicológica da culpabilidade, com fortes vínculos com o naturalismo
causalista, cria um modelo de delito composto por duas forças uma física e objetiva,
compreendendo a conduta e o tipo, e outra moral e subjetiva, enfocando a culpabilidade,
ou má fé conforme a linguagem da época. A ligação entre os dois fatores se faz por uma
relação psíquica entre o indivíduo e o fato ilícito, e esta interdependência é produzida
através da vontade do agente, representada pelos fatos psicológicos do dolo e da culpa,
18
Cf. BRUNO, 2005, p. 14, nota do revisor; CIRINO DOS SANTOS, 2006, p. 273, nota 3;
BITENCOURT, 2004, p. 331; GRECO, 2004, p. 159, RODRIGUES, 2004, pp. 19-26.
19
Ver VERGARA, 1980, p. 46, e também FRAGOSO, 2006, p. 179.
35
como espécies da culpabilidade, antecedidos pela imputabilidade. Comentando o art. 3º
do Código Criminal de 1830, Joaquim Augusto de Camargo, professor da Faculdade de
Direito de São Paulo no século XIX, assim se expressa consoante esta teoria:
Para que o autor do fato previsto na lei possa ser considerado responsável
criminalmente, e, portanto, suscetível de punição, é necessário que, além da
voluntariedade haja nele um outro requisito a fé, que torna o agente
moral e responsável. (...) O menor, o louco, o sandeu etc. praticam atos
voluntários que podem ir de encontro à lei criminal, mas não são
considerados criminosos, por lhes faltar a moralidade, a culpabilidade. (...) O
homem, porém, como ser inteligente que é, conhece a natureza, fim e
conseqüência de seus atos e, livre, pode dirigir a sua vontade e fazer ou não o
que quiser. Daí a moralidade de suas ações, a sua imputabilidade, a sua
responsabilidade perante a justiça humana, na ordem social. Assim, pois, para
haver a responsabilidade do homem, é necessário, além da voluntariedade,
que haja a imputabilidade, isto é, que a ação seja inteligente e livre.
(CAMARGO, 2005, p. 252)
E como apoio às suas convicções traz o entendimento de Braz Florentino,
professor da Faculdade de Direito de Recife (à época):
Tanto é fato o sucesso material, ou efeito nocivo, ou resultado do crime,
como a determinação criminosa do delinqüente, ou vontade criminosa, que é
o resultado do conhecimento do crime. A única diferença está em que: um é o
fato externo, material; outro é interno, psicológico ou moral, que é revelado
pela consciência. É justamente o fato moral que faz com que o material seja
crime. (apud CAMARGO, 2005, p. 265)
Como toda primeira exposição de um tema, foi submetida a verificações práticas
e não conseguiu obter êxito devido a suas naturais fragilidades – como a falta de
abrangência a todas as modalidades de delito, bem como a extensão ampliada da
culpabilidade aos inimputáveis (FRAGOSO, 2006, p. 239) e, também, às mudanças
dos paradigmas jurídicos que resultaram na invalidação de suas premissas
metodológicas, a saber, positivo-deterministas.
Produto do aperfeiçoamento da teoria anterior, a teoria normativa, ou
psicológico-normativa, altera a característica dominante antecedente por entender que o
nexo psicológico anterior não correspondia aos meios e fins do direito. Exigindo,
portanto, uma referência legal que será encontrada no procedimento contrário ao dever.
Passando assim a culpabilidade a ter quatro elementos: a exigibilidade de uma conduta
conforme a norma, com isso se cria um juízo de valor, a reprovação do fato punível, o
dolo e a culpa, estas últimas não mais como espécies. Encontramos em Bruno, a
36
culpabilidade como um elemento da estrutura conceitual do crime que opera a
subjetivação do conceito do crime, juntando um complemento psicológico ao conteúdo
objetivo ou normativo da ação. Assim se abrem três momentos analíticos:
imputabilidade, culpabilidade e responsabilidade penal do agente, nesta seqüência; o
normativo irá trazer a reprovação legal da vontade e conduta do agente, que, em
conjunto, compõem um quadro sinóptico dos elementos que entram na estrutura da
culpabilidade: a) a imputabilidade, b) o dolo ou a culpa e c) a exigibilidade de
comportamento conforme ao dever. No entanto, o autor considerava esta concepção
como datada, num processo de contínuo aprimoramento dogmático do direito penal
(BRUNO, 2005, pp. 13 e ss.). Esta concepção teórica tem a adesão de uma grande
quantidade de doutrinadores, da mesma época ou não
20
.
Não deixava de ter razão Aníbal Bruno, pois na época da primeira edição de sua
obra (1956), tinha se firmado na Europa a teoria finalista, que revolucionou a noção
de culpabilidade, à qual faz críticas. Última etapa, por enquanto, deste processo de
melhoramento, temos uma construção teórica conhecida como normativa pura, e esta
propõe a inclusão do dolo e da culpa na ação, e conseqüentemente no tipo como
descritivo da ação proibida, por defender que, por sua estrutura fundamental, em todo
comportamento volitivo uma intenção, uma finalidade; que na terminologia jurídico-
penal toma o nome de dolo. Mais ainda, do dolo é expurgada a noção anterior de
compreensão atual da proibição, que passa a integrar a culpabilidade como
discernimento possível da ilegalidade. Com isso, fica a culpabilidade constituída pela
imputabilidade, consciência potencial da ilicitude, possibilidade e exigibilidade, nas
circunstâncias, de um agir-de-outro-modo e juízo de censura ao autor por não ter
exercido, quando podia, esse poder-agir-de-outro-modo (TOLEDO, 1999, pp. 224-233)
21
, ou seja, para Toledo uma formulação mais adequada dos elementos desenvolvidos
anteriormente, que vem reforçar sua concepção de culpabilidade como evitabilidade do
fato, concretizada no aqui e agora por aquele indivíduo. Fragoso, que traz a
imputabilidade e a consciência (potencial) da ilicitude como componentes fáticos do
juízo da culpabilidade (FRAGOSO, 2006, pp. 239 e ss.) a descartar a pura
normatividade, entende ser esta teoria um estágio doutrinário, que não se pode julgar
concluído.
20
Cf. LYRA, 1976, p. 135 e ss.; NORONHA, 1972, p. 98; VARGAS, 1997, pp. 343 e ss.
21
Por todos, uma vez que essa é a posição prevalente na doutrina atual.
37
A imputabilidade como elemento, ou pressuposto, da culpabilidade vem a ser a
capacidade do autor do delito de ser responsabilizado pelo seu ato. Essa
responsabilidade deriva diretamente de atribuições ou definições legais do que são
maturidade e sanidade mental. Pela lei brasileira é suposto maduro quem completou 18
anos de idade e o apresenta quaisquer distúrbios que possam ser considerados doença
mental ou desenvolvimento mental incompleto. No caso do sujeito apresentar idade
abaixo de 18 anos e/ou demência ou retardo que impeça a compreensão da ilicitude ou
de decidir por si mesmo, em razão de completa embriaguez ou em razão de
drogadicção, exclui-se a incriminação. Mas, casos que a capacidade é apenas
relativizada, levando-se em conta os motivos acima elencados, por terem um efeito
redutor e não pleno sobre o entendimento ou a faculdade de decisão, gerando uma
diminuição da imputabilidade, que importará no cálculo da pena. Com o debate sobre a
maioridade penal, podemos perceber que tais parâmetros - seja em relação à idade, seja
para as questões psicopatológicas - são como dissemos: jurídicos, abstratos,
discricionários e ideológicos.
O segundo componente é a consciência potencial da ilicitude, também dito
conhecimento do injusto, é potencial pois remete à possibilidade de o agente saber ou
estar razoavelmente informado sobre aquilo que fez de proibido, avaliação feita com a
imputabilidade devidamente examinada. Então, temos agora um sujeito imputável
que pode ter incorrido no equívoco de entender como legal aquilo que fez por: o
conhecer a legislação (tipo penal); não saber que o ato é ilegal ou achar que no caso
podia fazer (justificações) ou concluir que naquela circunstância estaria com razão
(permissões). Nestas três hipóteses estão abrangidas uma série de situações que são
abrigadas com o nome de erro de proibição, pois distorcem a finalidade com que o
agente atuou, possibilitando a exclusão ou diminuição da culpabilidade e da pena,
dentro de um quadro de inevitabilidade ou evitabilidade do erro a ser argüido conforme
o nível sócio-educativo-cultural do autor, segundo a legislação brasileira (CIRINO DOS
SANTOS, 2006, p. 301) e a majoritária teoria limitada da culpabilidade.
O terceiro e último dispositivo, exigibilidade de comportamento conforme o
direito, pela própria denominação é uma valoração normativa da conduta do autor, em
determinada circunstância e considerando-se suas características pessoais, que será
pautada por casos previstos na legislação. Obrigatoriamente deverão ter sido
38
examinadas as etapas anteriores. Em face de alguma condição que torna inexigível um
comportamento diverso, devido a uma irregularidade fundamental que envolve desde o
início aquele proceder, exclui-se ou atenua-se a culpabilidade, da mesma forma que o
estágio anterior, pela distorção da vontade do agente. Claro está que estas alegações
estão restritas a poucas situações legais e supralegais. Numa leitura mais atual e
democrática, Cirino dos Santos expõe que “no contexto de condições sociais adversas
a máxima negação da normalidade da situação de fato pressuposta no juízo de
exigibilidade”, correntes nessa sociedade profundamente desigual, configuram
“hipóteses supralegais de exculpação por conflito de deveres, porque, afinal, o direito é
regra da vida”, advogando pela admissão das teses de co-culpabilidade da sociedade
organizada e de inexigibilidade de comportamento diverso como exculpações
supralegais (CIRINO DOS SANTOS, 2006, pp. 339-341).
A culpabilidade é hoje um marco teórico muito bem embasado, que recebe
críticas e modificações parciais, mas não se questiona a totalidade de suas concepções,
visto estarem lastreadas nos princípios da lesividade, da responsabilidade pessoal e,
obviamente, da culpabilidade. Os pontos que são apontados como falhos ou obscuros na
teoria vão sendo revistos em trabalhos que sempre acrescentam ou redirecionam uma ou
outra parte, num esforço de aperfeiçoamento ou substituição dos conceitos.
1.2.3 Com Toledo, vamos ver uma extensa revisão da questão do juízo de censura
com foco no autor ou no fato. Assim, classifica como direito penal de autora toda
uma gama de teorias que acentuam as características do agente em detrimento da ênfase
na ação ilícita que estabelece o direito penal do fato”, corrente a que está filiado.
Entendendo que estas distribuições não contêm um elemento ideológico, por
englobarem muitas variações, ele critica cada corrente de culpabilidade lastreada no
caráter, na personalidade, na conduta de vida, etc., por entender que se apóiam em
propósitos utópicos conectados a ficções jurídicas, ao positivismo determinista e,
finalmente, a uma visão penal terapêutica ou modeladora de tipos. Diante disso, reforça
sua convicção de que “correntes moderadas”, que considerem o fato e também o seu
autor, são as que mais se encaixam na legislação e num “direito penal de índole
democrática” como “conquista da humanidade (TOLEDO, 1999, pp. 233 e ss.).
39
Por entender que como reprovação a culpabilidade tem apenas uma conceituação
formal, Cirino dos Santos, procura produzir uma definição material do conceito de
culpabilidade. No início ressalta ser indemonstrável a livre decisão do sujeito, como
fundamento ontológico da culpabilidade, passando então a ser uma atribuição de
qualidade normativa. Destaca, também, a passagem da culpabilidade de fundamento
para limite do poder punitivo, tomando assim uma função política dentro de um sistema
de garantias do indivíduo. Depois de trazer várias construções teóricas precedentes,
apresenta o princípio da alteridade, como uma fundamentação material para a
responsabilidade requerida pela culpabilidade, de modo que em:
Condições normais o sujeito imputável sabe o que faz (conhecimento do
injusto) e, em princípio, tem o poder de não fazer o que faz (exigibilidade de
comportamento diverso); logo, condições anormais de formação da vontade
concretizada no tipo de injusto podem excluir a consciência da
antijuridicidade (erro de proibição) ou a exigibilidade de comportamento
diverso (situações de exculpação).
Finalizando propõe uma nova metodologia de estudo da culpabilidade, quando
se pesquisaria defeitos na formação da vontade antijurídica” nas áreas da capacidade
da vontade, do conhecimento do injusto e da exigibilidade (CIRINO DOS SANTOS,
2006, pp. 276-283).
Numa crítica mais contundente, Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar apresentam o
direito penal de autor”, em suas duas vertentes puras, como:
Sintoma de um estado do autor, sempre inferior ao das demais pessoas
consideradas normais. Tal inferioridade é para uns de natureza moral e, por
conseguinte, trata-se de uma versão secularizada de um estado de pecado
jurídico; para outros, de natureza mecânica e, portanto, trata-se de um estado
perigoso. Os primeiros assumem, expressa ou tacitamente, a função de
divindade pessoal e, os segundos, a de divindade impessoal e mecânica.
Mas acrescentam que há a variação do direito penal do risco que incorpora “uma
matriz de intervenção moral (...) com o acrescido inconveniente de presumir dados
subjetivos, a partir da afirmação de que a responsabilidade provém de processo de
imputação objetiva baseados em expectativas normativas”, além de afirmarem que
nestes casos nega-se a condição de pessoa, tanto do criminoso quanto do operador
jurídico, pois “o direito penal de autor parece o produto de um crítico desequilíbrio
deteriorante da dignidade humana daqueles que o sofrem e o praticam”. Mas essa
40
crítica, também, se volta contra o direito penal do ato, por entenderem que apesar de ter
qualidades como a menor irracionalidade e violência”, padece, na sua forma pura, de
uma miopia política de não reconhecer a seletividade da criminalização secundária,
que possibilita uma adição considerável no poder das agências de vigilância e policiais
(ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, pp. 131-135).
O que podemos perceber é que temos, oscilando na teoria entre uma visão
naturalística e uma acepção normativa, uma discussão que se vincula a parâmetros de
classe social e que pretende manter engessada uma sociedade dinâmica através do
discurso e da prática penal. Esse discurso está alicerçado no pânico da classe média, que
no seu medo “do bandido” não percebe ser manipulada pela minoria dominante através
dos meios de comunicação de massa. Essa manipulação passa pela criminalização e
penalização de grandes camadas sociais, justamente as desfavorecidas pelos meios de
consumo, posse e produção de bens materiais, considerados, estes sim, relevantes para a
proteção do direito penal, que enxerga somente uma função preventiva na
culpabilização de cada vez mais pessoas que se insurgem contra um status quo
questionável.
É impressionante que não se distinga que as mudanças ocorridas na teoria da
culpabilidade se devem tão somente a formas cada vez mais avançadas de não dar
brecha aos excluídos sociais de serem deixados de fora do sistema penal. As alterações
do lugar do dolo e da culpa se fizeram como aprimoramento da teoria e da lei penal na
cada vez mais acentuada “acumulação do poder de punir”
22
, ou seja, a elite a cada
avanço dos direitos humanos reconfigura sua lei penal de forma que esta atinja mais e
mais pobres. Claro fica que esta “evolução” do direito penal tem a intenção de impedir
que aqueles “à margem da sociedade” fiquem atrapalhando o crescimento nacional, obra
prima do pensamento burguês.
Ao sofisticar a interpretação dogmática da lei penal, nada mais se quer que
impedir aos marginalizados acesso pleno ao conhecimento da lei penal e transformá-los
em alvos fáceis e serem capturados nas redes perversas da criminalização primária e
secundária.
A excelência do pensamento alemão neste caso fica patente, ao se ver que não
tiveram pejo em analisar e tentar tapar todas as chances possíveis que o lumpen
22
Comunicação oral em sala de aula do Professor Nilo Batista.
41
proletariat marxiano possa a vir desenvolver, inclusive não se dando ao trabalho de
escamotear tal pensamento, explicitando-o tanto quanto possível.
Após estes limites dados, pensamos que no próximo capítulo podemos nos
acercar mais do objetivo deste trabalho, trazendo as áreas do direito penal que
explicitam a utilização da personalidade, as teorias e a aplicação da pena, esta última a
posição privilegiada da discricionariedade da magistratura que, entretanto, deve ser
exercida dentro de parâmetros previamente definidos em lei.
Capítulo 2
Penalização
Sem sair do âmbito teórico jurídico penal, mas com uma especificidade
fundamental para este trabalho, resolvemos nos estender, em separado, sobre as
questões da teoria da pena, sua aplicação e das provas, para podermos melhor trazer o
nosso foco primeiro e que dá título a este trabalho: a personalidade no direito penal.
A penalização do indivíduo imputado no processo de criminalização secundária
se dentro de parâmetros peculiares que facultaram toda uma gama de teorias que
fundamentam e nomeiam esta disciplina jurídica. Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar
trazem a questão como problemática, pois para eles uma confusão de direito penal
(discurso dos juristas) com legislação penal (ato do poder político) e, por conseguinte,
direito penal com poder punitivo”, possibilitando uma perigosa indefinição do seu
“horizonte de projeção”, que pode levar ao autoritarismo (ZAFFARONI, BATISTA,
ALAGIA e SLOKAR, 2003, pp. 38-39). Uma vez que para estes autores “de cada teoria
positiva da pena (e da conseqüente legitimação do poder punitivo através dela) pode-se
derivar uma teoria do direito penal” (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR,
2003, p. 93).
2.1 Teorias da pena
Vistas, no capítulo anterior, as etapas do processo de culpabilização do autor do
fato punível sob a ótica de um estado de direito democrático, acreditamos que devemos
passar necessariamente pelas teorias da pena, excluindo aqui as considerações
criminológicas que ficarão para o próximo capítulo, para facilitar nosso trabalho. Estes
sistemas doutrinários hoje podem ser divididos em quatro tipologias puras - absolutas
ou retributivas, da prevenção geral negativa, da prevenção geral positiva, da prevenção
especial negativa e da prevenção especial positiva, apesar de na atualidade serem
43
mescladas em novas construções que procuram autenticar a veracidade de escolhas
discricionais, que descumprem os princípios básicos doutrinários - e duas críticas.
Apesar de profusamente teorizada a pena ainda não tem uma definição clara,
pois com as críticas cada vez mais acentuadas, as formas puras foram recombinadas e se
perdeu parte da lógica teórica que construía a indicação do sentido da pena. Com isso,
procuraremos trazer as funções declaradas ou manifestas da descrição oficial e as
latentes ou reais efetivadas em concreto, dos “modelos de discursos legitimantes do
poder punitivo” (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 114) e dois
novos modelos críticos, que se embasam um numa avaliação de política criminal e outro
no ponto de vista criminológico.
2.1.1 A sanção juridicamente aplicada tem uma conotação de sofrimento desde as
antigas raízes da palavra: “grego poinê, ês: ‘expiação de um homicídio; resgate pago aos
parentes da vítima, p.ext., compensação, vingança, punição, castigo, sentença; pena,
dor’, pelo latim poena, ae: ‘punição, sofrimento’, que ocorre em vocábulos
preferentemente da terminologia jurídica.”
23
. Essa percepção se prolonga a nossos
dias devido a sua estreita associação com os vários sistemas religiosos e ao seu milenar
uso ininterrupto, e que apesar de toda a humanização e intelectualização de que foi
objeto a partir do século XVI, tem uma trajetória marcada até hoje na experiência do
povo pela crueldade de torturas, infamações e até da morte.
Na literatura doutrinária brasileira podemos encontrar pontos de vista
discordantes na teorização do papel desempenhado pela punição na estrutura do direito
penal - se no primeiro código nacional as penas iam do açoite à prisão, nos de 1890 e de
1940 foi essencialmente de cárcere, hoje contamos com uma diversificação, que vai da
prisão e multa às alternativas penas restritivas de direito - e vamos apenas pincelar estas
divergências com um exemplo.
Na obra de Tobias Barreto, do final do século XIX, podemos ver as idéias
inovadoras de que a pena é uma opção política (BARRETO apud LYRA, 1955, p. 22) e
que o direito tem uma racionalidade como qualquer outra atividade humana derivada do
23
Dicionário eletrônico Houaiss. Ver, também, ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p.
91; LYRA, 1955, p. 9.
44
exercício dessa faculdade
24
. Por isso o direito penal não era natural, produto metafísico
acabado e imutável, e sim submetido a uma lei geral fenomênica, que o conforma aos
padrões técnicos de uma cultura. Com essa base desconsiderava todos os chamados
sistemas de direito punitivo” que procurassem dar uma finalidade ao direito penal por
achar que isso não alteraria coisa alguma na “prática da justiça puniense [sic]”
(BARRETO apud LYRA, 1955, p. 23). Posicionamento que embate com o de Joaquim
Augusto de Camargo, do mesmo período, pois este apesar de apresentar uma concepção
resistente a certas proposições legitimadoras da pena, que desde aquela época ahoje
são aventadas, como: a justiça absoluta ou expiação do idealismo alemão; a legítima
defesa (social); a intimidação por meio da lei penal e a regeneração ou correção do
culpado (CAMARGO, 2005, pp. 174 e ss.), se filiava a uma corrente eclética do direito
natural de fundamento moral-religioso
25
para apresentar uma justificação retributiva da
sanção penal, hoje desautorizada por sua inconsistência. Ficam então evidenciadas as
diferentes opiniões quanto à própria razão de ser da legislação penal, desde o nosso
primeiro código, e que continuam nos dias de hoje.
2.1.2 A posição mais que clássica de Camargo, com o apoio de doutrinadores
estrangeiros da época, está inserida na primeira tentativa de dotar a pena de um valor e
de uma racionalidade, o conceito expiatório-retributivo ou absoluto da pena. Apesar de
sua tradição (Beccaria, Kant e Hegel) e variada argumentação, a idéia de corresponder
uma pena ao delito praticado como conseqüência obrigatória resultou apenas na teoria
de uma legitimidade frente a uma concepção de homem ser livre, autônomo e
consciente que delinqüe por sua expressa vontade. No fundo o livre arbítrio, de cunho
científico ou teológico, que dito anteriormente sempre permeia o pensamento
jurídico-penal, e ao qual a sociedade responde com uma inflição penal logicamente
necessária, como autodefesa face à negação do direito pelo crime ou como defesa do
ordenamento jurídico-social. A sanção penal absolutamente determinada e
proporcionalmente retribuída ao mal praticado, apenas e tão somente irá desagravar a
24
“Dizer portanto que o direito é um conjunto de regras, descobertas pela razão, importa simplesmente
uma tolice, visto que se como característico exclusivo das normas de direito o que aliás é comum à
totalidade das regras da vida social” (BARRETO, 2001, p. 47).
25
“Logo, o direito de punir funda-se: na justiça absoluta, compreendida pela razão, e da qual emana a
positiva, e no restabelecimento da ordem moral e social, que é perturbada pelo delito. Tal é a doutrina de
Rossi, que adotamos como a mais completa e que mais satisfaz” (CAMARGO, 2005, p. 192).
45
“justiça”. Estas posições são fundadas nas: doutrina teológica de São Tomás de Aquino,
teoria do contrato social iluminista e no “mito de liberdade pressuposto na culpabilidade
do autor”, dados rigorosamente sem comprovação fática. E hoje têm sua base solapada
pela mudança de orientação política e doutrinária na função da culpabilidade, que passa
a ser garantia do indivíduo e restrição do poder punitivo estatal (CIRINO DOS
SANTOS, 2006, p. 456), já aqui estudada no item 2.2 do capítulo anterior.
No entanto, como princípio regulador” da irracionalidade punitiva estatal, para
que esta não desborde os limites toleráveis (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e
SLOKAR, 2003, p. 143), e recebendo novos nomes e novas razões jurídicas, filosóficas
e políticas a cada momento, o conceito de retribuição vai sendo repaginado e mantido
no eixo teleológico da reprovação criminal. Essencialmente, através do acréscimo de
“certos efeitos que deveriam ser procurados na execução penal. Tais efeitos dão origem
a duas teorias: a teoria da prevenção especial e teoria da prevenção geral(MESTIERI,
1990, p. 324).
2.1.3 Na prevenção geral negativa, entende-se a pena como uma medida que irá
desestimular por coação ou intimidação outros delinqüentes não especificados, pela
convicção do castigo. É perceptível nesta tese a quimera do exemplo religioso cristão
transformado em teoria jurídico-penal por obra de inteligentes juristas, mas
extremamente conservadores, consumidos num idealismo acadêmico totalmente
apartado da realidade social que os cercaram e cercam ou comprometidos na
justificação legal do arbítrio.
Numa avaliação mecânico-racional do ser humano parte-se para idéias
dissuasivas, onde o autor do delito é aproveitado para mostrar a força repressiva do
estado, num sentido coercitivo generalizado para os demais cidadãos. Com precários
fundamentos como as comprovações introspectivas, o pan-penalismo jurídico, a
analogia pelo modelo econômico de delito ou a retribuição do direito privado. Temos
aqui, sem sombra de dúvida, um caráter autoritário e utilitarista, que teve e têm
exaustivo uso em regimes políticos totalitários. Pois além de facilitar o despotismo na
dosagem da pena, sempre num crescendo em função do fracasso do modelo, ainda
possibilita caminho para uma retribuição pela culpabilidade de autor, de raça, de credo
etc. e transforma as agências jurídicas em agência morais que defendem ideologias,
46
claramente violadoras da dignidade da pessoa humana como pluralidade, e da ordem
jurídica como ética social, como:
A comunidade como pretensa entidade, provida de unidade cultural; a nação
em sentido totalitário; a consciência proletária convertida em discurso de
poder; o sadio sentimento do povo como nebulosa irracional; a sociedade
como agremiação solidária de indivíduos, sem divisões de classe nem
conflitos; o estado como aparato burocrático neutro e produtor legislativo
imparcial perante os antagonismos sociais etc. (ZAFFARONI, BATISTA,
ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 121)
Por sua atual forma positiva, a prevenção geral procura demonstrar a
racionabilidade da pena por dois modos, que teriam seus efeitos positivos de criar
fidelidade jurídica, confiança do cidadão e pacificação social, na sua postura relativa,
ou realizar a confiança na norma, fidelidade jurídica e aceitação das conseqüências”,
na sua posição absoluta; proposições contratualistas do século XVIII (CIRINO DOS
SANTOS, 2006, pp. 460-461), que sabemos estar muito superadas. Podemos ver,
também, nesta linha, que a convicção normativa pelo consenso se orienta por modelos
que conjugam psicanálise com direito penal, com resultados teóricos primários e
francamente contrários ao pensamento freudiano, e pelo uso de postulados
durkeimnianos da coesão social combinado a teorias de retroalimentação trazidas da
comunicação, que vemos no dia a dia ser amplamente utilizada pela media brasileira
para pressionar por penas maiores e mais severas. E uma segunda versão onde a
eticidade combinada a uma formal proteção de princípios jurídicos penais, através do
reforço da ação estatal de combate ao crime que incutirá na população a certeza da
punição. Mas, ocorre na realidade uma debilitação dos mesmos valores ético-jurídicos,
na medida em que se falseia uma uniformização de valores sociais e que se nega um
princípio penal, o da lesividade, trazendo na esteira a retribuição por conduta de vida
pela não conformidade com o sistema (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e
SLOKAR, 2003, pp. 121-125).
Enfim, a prevenção geral, negativa ou positiva, apresenta um ideário amplo que
vai do matiz conservador ao contemporâneo, mas que não consegue dar à pena uma
racionalidade intrínseca e democrática, caindo sempre na velha retributividade penal ao
final da análise.
47
2.1.4 Na prevenção especial, o foco é o indivíduo
26
e a pena é justificada “pelo bem
que se visa atingir. A pena não é fim, mas sim meio para atingir um fim, um bem
coletivo ou individual, que é intrínseco” (MAYRINK DA COSTA, 1972, p. 62). Com
isso a pena passa a ter uma especificidade preventiva, condescendente e reeducativa
27
ou neutralizadora do rebelado para proteger a ordem social. Idéia que é fruto direto do
pensamento positivista não escondendo sua raiz filosófica.
Na sua vertente positiva, que segue o modelo bio-psico-fisiológico, que “se
aplica com caráter de tratamento reformador ou com a finalidade assegurativa contra
inadaptados sociais”, ou o modelo ideo-espiritualista “que na pena um meio para
reeducar e redimir moralmente o delinqüente pervertido pelo delito” (MAYRINK DA
COSTA, 1972, pp. 65-67). Os dois modos foram amplamente verificados, por uma
extensa literatura específica tanto no direito como nas ciências sociais
28
, que afirmam
ser uma falácia rematada esta visão da pena, pois a prisão nunca possibilitou a mudança
para melhor de qualquer um e sempre teve e continuará tendo uma característica
essencial de constrição e aviltamento da pessoa humana. Além do que “a reclassificação
social do delinqüente através de meios educativos ou ortopsíquicos [sic]” (MAYRINK
DA COSTA, 1972, p. 68), não leva em conta sua autonomia como ser humano, o que
contraria o princípio da lesividade e toda estrutura dos direitos humanos
anteriormente examinados; condição que, aliás, é declaradamente negada por esta
corrente por entenderem que o criminoso é um ser inferior ou degenerado. Focando na
individualização da pena, vemos o uso da personalidade no direito penal, apesar de o
termo ser aqui, perversamente, apresentado num único sentido de deterioração das
condições bio-psico-sociais do autor do delito:
O tipo da norma violada, as circunstâncias que revelem o grau de
culpabilidade do autor, os fatos que concorrem e tenham relação com a sua
periculosidade (emprego de meios que demonstrem uma maior aptidão para a
prática de crimes), o resultado danoso e, principalmente, os motivos
determinantes da conduta punível, naturalmente, informam a personalidade
do delinqüente. (MAYRINK DA COSTA, 1972, p. 69)
26
“A escola positiva italiana e a escola da política criminal tem o mérito inegável de haver chamado a
atenção dos cultores do direito penal para a pessoa do delinqüente, principalmente numa época em que,
em virtude do racionalismo iluminista, a teoria do delito estava imersa num abstratismo divorciado da
realidade” (MAYRINK DA COSTA, 1972, p. 62).
27
“Com a condenação, o réu não é abandonado, mas assistido e estimulado na auto-educação, para que a
pena opere pedagogicamente” (LYRA, 1955, p. 37).
28
Cf. ZAFFARONI, BATISTA ALALGIA e SLOKAR, 2003, p. 125/127, bem como CIRINO DOS
SANTOS, 2006, p. 458.
48
Ficando, portanto, este exame restrito apenas à “adequação da pena privativa da
liberdade à personalidade do delinqüente” (MAYRINK DA COSTA, 1972, p. 72). Um
pensamento que podemos dizer ser de inspiração nitidamente lombrosiana, por focar o
restrito âmbito dos apenados e não se fazer qualquer menção sobre as características
psicológicas do resto da população, ou mesmo, dos criminosos não apenados, num
assim científico estudo comparativo que traria novos esclarecimentos e
desenvolvimentos objetivos.
No exercício do efeito negativo, a prevenção especial quer neutralizar o
condenado por um delimitado período (tempo da pena) ou indefinidamente (medidas de
segurança indeterminadas), impedindo-o para a prática de outros crimes. Numa
radicalização desta concepção, até a eliminação do infrator foi proposta (GAROFALO
apud ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 127, nota 85).
Indissoluvelmente ligada à idéia anterior, pois sempre é tornada manifesta na seqüência
do insucesso obtido pelas ideologias re, a prevenção especial negativa choca-se com o
“conceito de direito, pelo menos em nosso atual horizonte cultural” (ZAFFARONI,
BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 128). Pois apesar de sua fundamentação
organicista moderna, inevitavelmente nos remete às práticas medievais e da monarquia
absolutista (ancien régime), onde a contenção física (bragas, calcetas, grilhões) e a
execução do condenado eram comuns. E, apesar de pouco referida teoricamente é
facilmente observada na prática político-jurídica policialesca, comum no Brasil.
Com isso, entendemos que, tanto na visão clínica como na correcional, quanto
na aplicação negativa, a prevenção especial falha na pretensão de contrapor-se
“evolutivamente” ao ponto de vista retributivo. Seja ao manter uma conexão entre o fato
punível e o indivíduo que o cometeu como origem da pena, ou pelo uso de premissas
terapêuticas dificilmente demonstráveis ou falseadas, para se justificar. Mas, não
podemos negar que obteve inegável sucesso em se incorporar ao ordenamento jurídico
nacional (CP e LEP) e estrangeiro e em tornar patente a ineficácia e nocividade da
prisão, facilmente comprovada, a pelo senso comum, na leitura de qualquer revista
semanal ou escuta dos telejornais diários.
49
2.1.5 Numa tentativa mais conciliadora teoricamente e de maior alcance apenável na
prática, as teorias unificadoras que predominam nas legislações correntes (Brasil art.
59, CP), na jurisprudência e na literatura penal adotam a retribuição com finalidades
preventivas, enfatizando, conforme o doutrinador, uma ou outra função para a sanção
penal
29
. Estas configurações integradoras, objetivam superar as deficiências das
proposições anteriores, sem no entanto alcançar este objetivo, vez que na imprecisão
teórica reafirmam as bases vistas, sem trazerem soluções inovadoras. Mas,
conseguem convergir todos os modelos precedentes em teorizações da pena que chegam
a ser o somatório das imperfeições das teorias isoladas:
Não vemos incompatibilidade em unir esforços para visualizar a finalidade da
pena sob todos os aspectos que ela, necessariamente, transmite: é e sempre
será – retribuição; funciona – e sempre funcionará – como prevenção positiva
e negativa, abrangendo, ainda, a ressocialização do condenado. (NUCCI,
2005, p. 95)
Facilitando sobremaneira o trabalho do jurista e do magistrado que focam
exclusivamente na legalidade, sem se aperceberem que tal disposição mais os distancia
da realidade social que os cercam.
Neste panorama sintético, vistas as teorias tradicionais e geralmente utilizadas,
não poderíamos deixar de trazer o que consideramos as mais avançadas contribuições
sistematizadas sobre a pena: a teoria negativa/agnóstica e a teoria materialista/dialética,
que elevam o tom crítico sobre o processo de penalização.
2.1.6 A teoria negativo-agnóstica, produzida em co-autoria por Eugênio Raúl
Zaffaroni e Nilo Batista e com as posteriores contribuições de Alejandro Alagia e
Alejandro Slokar, é um trabalho elaborado na convivência direta e diária com as
formações penais desenvolvidas na realidade latino-americana que, apesar dos aportes
teóricos europeus, criou características bem regionais. Utilizando alguns significados
bem determinados, que acreditamos dever mostrar para que não haja equívocos. Os
autores definem: o direito penal como um discurso destinado a orientar as decisões
jurídicas que fazem parte do processo de criminalização secundária”; - os modos de
29
“Discute-se, preliminarmente, se é possível essa conciliação, através da teoria da união, ou se, ao
contrário, tratando-se de coisas distintas, a sua conjunção deve conservar os lineamentos originários
(teoria da partição)” (LYRA, 1955, p. 25).
50
estado, “O estado de direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei e
opõe-se ao estado de polícia, onde todos os habitantes estão subordinados ao poder
daqueles que mandam.”; - o sistema penal, “Por sistema penal entendemos o conjunto
das agências que operam a criminalização (primária e secundária) ou que convergem na
sua produção.”; - as agências, “Agência é empregada aqui no sentido amplo e dentro do
possível neutro de entes ativos (que atuam)... como gestores da criminalização”; - e
como vêem essa criminalização, “Criminalização primária é o ato e o efeito de
sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas
pessoas.”, e “a criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas
concretas”, que é exercida quando “as agências acabam selecionando aqueles que
circulam pelos espaços públicos com o figurino social dos delinqüentes, prestando-se à
criminalização mediante suas obras toscas” (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e
SLOKAR, 2003, capítulo I). Assim, fixados os conceitos, podemos seguir na proposta
negativo-agnóstica.
Em qualquer tipo de poder político institucionalizado em forma de estado, o
estado de direito e o estado de polícia coexistem e lutam, como ingredientes que se
combinam através de medidas diversas e de modo instável e dinâmico.(ZAFFARONI,
BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 95), com essa proposição os autores
fundamentam a sua teoria.
Os dois modos (estado de direito e estado de polícia) são idealizados e
antagônicos, mas encontramos suas características em qualquer governo, seja este de
maior controle constitucional, seja de radical despotismo. Estes eixos valorativos e
finalísticos são tendências interagentes, que podem ser sintetizadas como: a) um
pretende ampliar e efetivar o alcance de regras predefinidas, o consensualismo e a
horizontalidade do poder político e do direito penal; b) o outro procura manter e
aumentar uma visão disciplinar, arbitrária e vertical de obediência aos mesmos poderes,
e perseveram numa constante peleja para sobrepujar um ao outro. Sendo que o estado de
direito podemos dizer que é sempre um vir-a-ser, um progressivo caminhar para o ideal
com avanços e retrocessos, mas sempre procurando expandir fronteiras e direitos,
enquanto o estado de polícia foca, conservadoramente, na manutenção dilatada e
autoritária do mando de cima para baixo. Para os autores, todos dois modos estão
legitimados nas teorias da pena, anteriormente vistas, pela positivação e racionalização
51
empreendidas teoricamente e conseqüente mascaramento do funcionamento concreto do
poder punitivo, por isso propõem a superação, ou pelo menos a limitação, do segundo
modo, com um conceito negativo e agnóstico da pena (ZAFFARONI, BATISTA,
ALAGIA e SLOKAR, 2003, pp. 92-96).
O conceito é negativo, por não conferir positividade alguma à pena e ser
deduzido de outros modelos repressivos, e é agnóstico por não entender sua utilização,
ficando então assim composto: a pena é uma coerção, que impõe uma privação de
direitos ou uma dor; mas não repara nem restitui, nem tampouco detém as lesões em
curso ou neutraliza perigos iminentes (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e
SLOKAR, 2003, p. 99). Evidenciando a raiz etimológica e a desfuncionalidade da pena,
e, ao mesmo tempo, delimitando sua oposição aos discursos legitimantes e manifestos
da sanção. Com isso o se pretende limitar o poder do sistema penal reforçando suas
funções destacadas no discurso dominante e ignorando suas capilarizadas funções de
vigilância encobertas, de onde retira sua força de reprimir alteridades sociais, e sim na
explicitação destes elementos ocultos e incorporação do repertório de leis que estejam
na área de competência do direito penal, sujeitando-os ao controle e às decisões
jurisdicionais, para consecutivamente melhor caracterizar a ilicitude das atividades
punitivas disfarçadas. Por ser uma das medidas coibitivas promulgadas, os autores
tratam de diferenciar a pena: a) da coerção reparadora pela “díspar natureza abstrata
dos modelos a que correspondem: ao passo que o modelo reparador ou restitutivo é de
solução de conflitos, o punitivo é de decisão de conflitos” (ZAFFARONI, BATISTA,
ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 101), modo preferível pela sua capacidade de
otimização das relações sociais e que felizmente vemos ser cada vez mais instalado na
prática judiciária
30
, e b) da coerção direta, entendida como ingerência na pessoa ou
nos bens de um habitante para neutralizar um perigo iminente ou interromper uma
atividade lesiva em curso, é um exercício de poder que tem uma explicação racional e
que, portanto, se acha legitimado dentro desses limites” (ZAFFARONI, BATISTA,
ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 104), assim tal procedimento estaria enquadrado como
prescrição penal pela teoria negativa, e deve, portanto, ser sempre objeto de exame das
agências jurídicas. Pois a constante investida das agências executivas de em tudo
caracterizar uma emergência, e como tal criar a necessidade de leis eventuais
30
Podemos citar os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (federal e estaduais), Centrais de Conciliação
de Família (TJMG), entre outras inovações que vão sendo, paulatinamente, introduzidas com êxito.
52
neutralizadoras do perigo, traz esta medida para muito próximo da arbitrariedade
31
,
fazendo indispensável “um estrito controle jurisdicional para evitar que se converta (a
coerção direta) num agente teórico do estado de polícia” (ZAFFARONI, BATISTA,
ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 103) (grifo nosso).
Fica restringida a pena, nesta teoria, a um ato de poder preceituado
extrajurídicamente e que tem sua origem numa resolução política originada no
legislativo ou no executivo
32
. Como um dos poderes republicanos, o judiciário interage
com os outros dois, reavaliando os fatos puníveis e aplicando legitimamente as normas
pré-estabelecidas, com isso não possui:
O poder de criminalização primária (exercido pelas políticas) nem o da
secundária (exercido pelas executivas, junto a todo o resto do poder
punitivo). Portanto, o único exercício de poder que o direito penal pode
programar não deve exceder o âmbito do reduzido poder jurisdicional
exercido sobre a criminalização secundária. (ZAFFARONI, BATISTA,
ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 108)
As decisões jurídicas irão reafirmar o estado de direito, enquanto se pautarem
pela contenção desta força expansiva que é o poder punitivo estatal, mitigando seus
efeitos sociais danosos. Portanto, os magistrados se tornam legítimos e justificantes da
instituição quando reconhecem e exercem sua estreita, mas fundamental, função
judicativa redutora, orientada para a segurança legal de todos os cidadãos e programada
para defender os bens jurídicos individuais e coletivos que seriam ameaçados
inevitavelmente pela ampliação desmedida do poder do estado de polícia, como
vimos acontecer por aqui. Claro está que tal postura depende da vontade interpretativa
dos operadores jurídicos que ultrapassando as barreiras do discurso legalista se
interessem pela realidade que os rodeia, e traduzam nos juízos o respeito aos princípios
constitucionais, em especial o princípio da humanidade.
Como método de formação de um sistema conceitual, a teoria negativo-
agnóstica propõe a dialética, haja vista ser o que melhor se adapta ao seguido embate
31
“O ilusionismo do estado de polícia se vale da emergência penal, elevando qualquer risco culturalmente
crível à categoria de mal cósmico, a fim de transformar ideologicamente todo o exercício do poder
punitivo ex post facto em poder de coerção direta in facto (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e
SLOKAR, 2003, p. 107).
32
“A idéia de que a pena é extrajurídica e se assemelha à guerra não é nova. No Brasil do século XIX, ela
foi defendida por um dos mais criativos e intuitivos penalistas latino-americanos (Tobias Barreto)”
(ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 109) (grifo nosso). Cf., também,
PIERANGELI, 2006, p. 345.
53
entre o direito penal e o poder punitivo. A tensão proporcionará sínteses parciais
gradativas, que a cada novo patamar alcançado provocará uma reação, facilitando, neste
contínuo movimento, a integral compreensão do novo paradigma. Esta novidade deverá
conter, ou procurar sempre, dados fidedignos do ambiente em que é processada, para
não repetir os modelos vigentes que se fundamentam com ficções úteis, que
invariavelmente falseiam as conclusões apresentadas.
Entendemos que com todos esses preceitos aplicados poderemos chegar num
direito penal como ramo do saber jurídico que, mediante a interpretação das leis
penais, propõe aos juízes um sistema orientador de decisões que contém e reduz o
poder punitivo, para impulsionar o progresso do estado constitucional de direito.
(ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 40), conforme afirmação
inicial dos autores com a qual concordamos.
Como toda proposta, a teoria negativa/agnóstica também sofre crítica, que no
caso são feitas por Cirino dos Santos com a revelada intenção de aprofundar os pontos
em comum entre esta e a teoria materialista/dialética, por ele defendida, bem como
delimitar as diferenças. São três ponderações: 1) que a parte agnóstica da teoria – “como
renúncia de cognição das funções reais ou latentes do sistema penal”, o corresponde
aos avanços da criminologia e nem ao pensamento crítico dos autores; 2) que
metodologicamente a teoria ao descartar o “conceito de modo de produção da vida
social”, no tocante a relações de produção econômico-sociais e a luta de classes a ela
vinculada, escamoteia importantes caracterizações do estado, do poder político e da
pena; 3) e que a “pura e simples negação das funções declaradas ou manifestas e a
atitude agnóstica em face das funções reais ou latentes da pena criminal”, excluem a
crítica criminológica fundada na visão marxista da separação entre força de trabalho e
meios de produção, como conformadora das relações sociais do modelo capitalista
(CIRINO DOS SANTOS, 2006, pp. 467-468).
2.1.7 Assim, iniciamos a última das formulações que nos propomos apresentar, a
teoria materialista/dialética, que tem a intenção de desvelar o conteúdo efetivo da
sanção penal nas sociedades capitalistas.
Contrapondo-se aos modelos conservadores, como a teoria anterior, esta
construção criminológica articula as “contribuições fundamentais da teoria marxista
54
sobre crime e controle social” com outras teses críticas a interdependência do sistema
de punição com o sistema de trabalho; o disciplinamento diferencial da força de
trabalho como função positiva do processo de dominação e exploração do capitalismo;
as profundas ligações entre o cárcere e a brica na raiz histórica capitalista e, por
último, a “função de reprodução social do sistema penal” –, para trazer uma
argumentação político-criminal e “revelar a natureza real ou latente da retribuição
penal nas sociedades contemporâneas” (CIRINO DOS SANTOS, 2006, p. 469-471).
Firmando-se em Pasukanis, e outros autores, Cirino dos Santos traz a pena
inserida num contexto punitivo de dominação, exploração e controle de classes e como
uma formulação legal diretamente derivada das relações de produção das sociedades
capitalistas contemporâneas”. Esta vinculação é extraída das várias funções da
“retribuição equivalente” existentes na economia capitalista força de trabalho x
salário; mercadoria x preço; responsabilidade civil x indenização etc. –, que na área
penal resultará no valor de troca do crime medido pelo tempo de liberdade suprimida”
(PASUKANIS apud CIRINO DOS SANTOS, 2006, p. 471), esse tempo é valorado
como quantidade de trabalho produtivo necessário à manutenção do indivíduo que seria
eliminado e substituído pela prisão; transação efetuada pela sentença penal equação
própria do capitalismo; que corrobora na atualidade o final de uma transformação
histórica do “sujeito zoológico” para o “sujeito jurídico”, iniciada pela troca da vindita
subseqüente pela lei de talião, reafirmada num segundo momento pela composição.
Formaliza-se assim o princípio da igualdade na economia e no direito, sendo que esta
isonomia é uma expressão jurídica que pressupõe “sujeitos ‘livres’ e ‘iguais’”,
encobrindo as disparidades econômicas e sociais concretas e viabilizando o binômio
“cárcere/fábrica”. Desta maneira, o uso manifesto e ineficiente da pena (prevenção geral
e especial), toma uma dimensão verdadeiramente ideológica e válida de disciplinamento
da classe trabalhadora, pela noção de adestramento do u, e manutenção da rígida
estrutura social mercantil contemporânea, através da ameaça ou da “afirmação da
validade da norma” ou dos “valores comunitários” (CIRINO DOS SANTOS, 2006, pp.
469-474).
Revela-se, então, o sistema parcial do direito penal que: seleciona os bens
jurídicos da classe dominante para protegê-los; prioriza a degradação dos excluídos
sócio-economicamente e, conseqüentemente, os reprime por não servirem para as
55
“relações de produção/distribuição material”. Esse processo eletivo tem por finalidade
garantir e reproduzir politicamente a verticalização social e dificultar a percepção dos
privilégios da classe proprietária. Esta desigualdade, ocultada ideologicamente pelos
discursos oficiais, reforça a opressão da sociedade burguesa, já interiorizada nos agentes
de controle social e deflagrada emocionalmente pelos “indicadores sociais negativos
(pobreza, desemprego etc.)”, suprimindo os necessários “critérios de racionalidade”.
Apesar desta forte carga negativa, entende Cirino dos Santos que ainda é factível
realizar uma construção dogmática que atue como “sistema de garantias” frente ao
poder punitivo estatal, minorando o sofrimento provocado justamente “pela
desigualdade e pela seletividade do sistema penal”, num real trabalho científico de
caráter democrático para as vigentes estruturas sociais (CIRINO DOS SANTOS, 2006,
pp. 485-488).
Concordamos com Juarez Cirino dos Santos, pois entendemos ser inegável o
caráter social segregante da pena, bem como a postura emocional negativa dos agentes
de controle social polícia, ministério público e magistratura em relação ao acusado
que caia nas malhas seletivas da lei. A focalização penal sobre os marginalizados sociais
é verificável em qualquer levantamento estatístico que utilize dados sócio-econômicos
dos apenados e vivenciada em nossa prática tanto no sistema penitenciário como no
poder judiciário. Justificada com o uso indiscriminado de fórmulas vazias de conteúdo,
mas conceitualmente ligadas à prevenção especial positiva, sempre pudemos ver a
valoração emocional negativa nas supostas avaliações de personalidade. No entanto, não
deixamos de ter uma admiração pela obra de Eugênio Zaffaroni e Nilo Batista pelo
valor de síntese e crítica à realidade latino-americana e sua radical desconformidade
com as idéias preventivas e retributivas.
Acreditamos ter alcançado a idéia inicial e mostrado condensadas as variadas
formulações teóricas. Um trabalho necessário, pois estas irão se refletir,
inevitavelmente, na aplicação da pena, uma vez que esta será a imagem, distorcida ou
reconhecível, de uma opção político-criminal do legislador, dos juristas e dos
magistrados por um dos sistemas anteriormente expostos.
2.2. Aplicação da pena
56
Faculdade de atribuição exclusiva da magistratura
33
, a aplicação da pena
arremata a fase processual de conhecimento e apreciação pelo judiciário de um fato
considerado crime e, portanto, punível.
Como contraponto à rigidez característica da época do Código Penal de 1890,
depois Consolidação das Leis Penais de 1932, que trazia a aplicação da sanção penal em
quantidades fixas, ou em graus, quando a lei “sómente fixa o maximo e o nimo,
considerar-se-ão tres gráos na pena”, (BRASIL, 1959, artigo 42), vamos ver no Código
de 1940 toda uma nova metodologia na fixação da pena .
Enfatizando a individualização da pena, um aprimoramento indiscutível da
escola positiva em relação às posições clássicas da teoria psicológica da culpabilidade e
da conseqüente retribuição penal, Roberto Lyra com a autoridade de ter sido um dos
defensores desta novidade introduzida no Código Penal de 1940, faz extensas
considerações sobre o artigo 42 nos seus “Comentários ao código penal”. Para ele é o
momento no qual se trata da conclusão judicial, meticulosamente fundamentada, como
é indispensável” (LYRA, 1955, p. 190). Com um embasamento totalmente positivista,
da qual era notoriamente partidário
34
, Lyra esmiuçou os elementos que compõem o
citado artigo. Um pensamento que traremos no original para preservar a força e deixar
patentes os argumentos da escola positiva.
Na introdução do detalhamento dos elementos do caput do artigo 42, vemos que
Lyra releva a periculosidade, definida no artigo 77 (CP 1940), como o conceito legal
implícito que motiva a particularização da pena:
A periculosidade condiciona as medidas de segurança (arts, 76, II, e 77) e
influi na qualidade e na quantidade das penas (art. 42), como eixo de da
[sic] justiça baseada na realidade humana, individual e social. (LYRA, 1955,
p. 204)
Se a “periculosidade criminal” já está previamente fixada, a “periculosidade
social” é que interessa dentro do foco da defesa social e sua existência como
desestabilizadora comunitária deve ser verificada nesta fase de imposição da pena com a
finalidade de sanção, pois esta sociopatia está prevista nas finalidades de uma política
33
“O juiz não poderá delegar o julgamento a qualquer assessor, mais ou menos unilateral, pois o que a lei
quer é o seu próprio juízo, baseado nas informações e não nas opiniões ou impressões, por ele julgadas
necessárias, e interpretadas por quem dispõe das prerrogativas e aceita os deveres da magistratura”
(LYRA, 1955, p. 214). Cf., também, CASTRO, 2006, p. 94.
34
Ver FREITAS, 2002, pp. 319-322.
57
criminal que se orienta pela prevenção especial reabilitadora. Enfim, as duas variantes
se unem para formarem um todo valorativo:
A periculosidade social indica o perigo maior ou menor, próximo ou remoto,
de crime; a criminal revela o perigo maior ou menor, próximo ou remoto, de
reincidência (...) A doutrina o encontrou fórmula mais expressiva da
periculosidade do que a probabilidade de vir a cometer (periculosidade pré-
delitual) ou de tornar a cometer (periculosidade pós-delitual) crime. Ninguém
sustentará, dentro dessa fórmula, que o é perigoso quem converteu a
conjetura em fato. (LYRA, 1955, p. 208)
Estas probabilidades é que irão importar no cômputo da pena dentro dos limites
legais, relativamente indeterminados, para que se adaptem às necessidades preventivas
ou repressivas imprescindíveis da defesa social.
Seguindo nos elementos, os antecedentes é o primeiro item da descrição do
citado artigo, que são, conforme o autor, informações objetivas e literais, não
demarcadas temporalmente e que envolvem todo o procedimento social do réu:
Os antecedentes do réu auxiliam o prognóstico (de periculosidade) (...) os
processos arquivados ou concluídos com a absolvição, sobretudo por falta de
provas, os registros policiais, as infrações disciplinares e fiscais, podem ser
elementos de indiciação veemente. Toda a vida do réu individual, familiar,
militar, profissional, intelectual, social, deve ser dominada pelo juiz.
Qualquer circunstância da conduta em exame será levada em conta, sem
demasias, nem omissões. (LYRA, 1955, p. 211) (grifo nosso)
E aí chegamos ao uso da personalidade no direito penal, pois somada aos
antecedentes lastreia, conforme os índices de periculosidade de Ferri, a avaliação da
periculosidade na inflição penal. Este momento deve ser distinguido da anterior
apreciação da imputabilidade do agente no fato punível, quando é cabível, e
recomendável, a perícia psiquiátrica
35
. Num primeiro momento, esse exame é descrito
com modelos sociais dios e da moral vigente, mas, é estendido logo em seguida,
como os antecedentes, a um ponto de vista aprofundado e ampliado que abarca todas as
manifestações do ser humano:
Mendelssohn preconizou um método para o estudo da personalidade do
criminoso, fixando, sobretudo, a herança, o temperamento, os acidentes, o
meio, e discriminando: 1º, a família do acusado (ascendentes até o décimo
grau, colaterais até o quarto grau, sob o aspecto sociológico, psicopatológico,
35
Cf. p. 37.
58
antropológico, criminológico e médico-legal); 2º, a vida do criminoso até a
época da acusação (generalidades); 3º, regime educativo do lar (relações
entre os pais, entre o criminoso e seus irmãos e o tratamento dado ao
criminoso em comparação com o dos outros filhos); 4º, estado físico, estado
psíquico, relações sociais, relações do criminoso com sua mulher, relações do
criminoso com seus filhos e pais, atos anti-sociais; 5º, sexualidade (evolução
psicopatológica sexual infantil puberdade, adolescência e maturidade;
senilidade, etc.). (LYRA, 1955, pp. 212-213)
E assim: “Não se intenta uma psicografia (...) e sim uma biografia total, porém
golpeante e dominadora...” (LYRA, 1955, p. 213), mas adverte o autor de que uma
série de dificuldades a serem levadas em conta pelo julgador, para uma justa dosimetria
que procure antever benefícios ao réu
36
: a influência do meio sobre o comportamento;
de não haver uma tipologia criminogênica; da convencionalidade, temporalidade e
espacialidade da lei penal; da diversidade de fatores psíquicos que não se reduzem a
esboços e as desigualdades caracterológicas do ser humano (LYRA, 1955, pp. 214-215).
Este conhecimento totalizado do réu antecedentes e personalidade - dará ao
juiz as primeiras indicações para interpretar e estimar o meio de neutralizar a
periculosidade objetivada no delito.
Continuando, o texto destaca a intensidade do dolo e o grau da culpa como os
próximos elementos a serem considerados na aplicação da pena, que na ótica da teoria
psicológico-normativa da culpabilidade
37
o descritos: 1 - o dolo como interseção da
vontade de fazer e da representação psíquica do ato, indícios da disposição e previsão
consciente do indivíduo no agir criminoso e sua progressividade; 2 - a culpa como
defeito incidente na associação de idéias, ou na atenção, ou na vontade, ou na falta de
conhecimento do que faz e que variariam de acordo com processos de crítica e
determinação, ressaltando a culpa consciente pela previsibilidade ou não do resultado. E
esses índices de periculosidade são manifestados pelos motivos (LYRA, 1955, pp. 216-
226).
Portanto, a impulsão do agente ao praticar o crime é interpretada sob a mesma
ótica positivista:
Motivo é a razão psicológica, a representação subjetiva que impele o agente
ao crime, definindo-o sob os aspectos moral, social e jurídico. A índole do
motivo resume e exprime a significação do delito, do ponto de vista do dano
36
“As sanções operam ou devem operar como benefício que o paciente no futuro percebe.” (LYRA,
1955, p. 176). Cf., também, MAYRINK DA COSTA, 1972, p. 65.
37
Ver o subitem 1.2.2.
59
e do perigo social, explicando-o e contribuindo para desvendar a
personalidade e, portanto, estabelecer a temibilidade. (LYRA, 1955, p. 226)
Segundo índice para uma classificação de periculosidade, estas razões irão
influenciar o julgamento nas avaliações da intensidade do dolo e das circunstâncias do
crime, pois indica traços da personalidade do agente e releva a discrepância com as
normas de conduta social, cabendo esse exame até nos crimes culposos por distinguir a
intenção do comportamento. Os motivos são “o sêlo [sic] da periculosidade” (LYRA,
1955, pp. 226-231).
Batendo na mesma tecla de desconformidade do réu, frente aos padrões de uma
personalidade aceita pela defesa social, finaliza o autor a avaliação dos elementos do
artigo 42 com as circunstâncias e conseqüências do crime, últimos itens a serem
observados tecnicamente pelo juiz:
O Código refere-se, portanto, às circunstâncias e conseqüências associadas
aos sinais de identificação da personalidade: repugnância à idéia, ao ato e
seus efeitos, audácia, habilidade, perversidade, insensibilidade, etc. (LYRA,
1955, p. 232)
Além deste momento, ainda virá a apreciação das circunstâncias agravantes e
atenuantes, previstas nos artigos 44 a 48 do Código de 1940, para então:
Formada sua convicção pela livre apreciação da prova (art. 157 do Código de
Processo Penal), o juiz, dominando o conjunto da realidade, sem cisões nem
etapas, fixará a pena. (LYRA, 1976, p. 171)
Como se pode notar nada deve escapar ao “olho da justiça”, que tudo e tudo
fiscaliza num arremedo futurístico orwelliano ou uma rememoração benthamniana; não
importando as incompatibilidades que ressaltam no texto e que se o magistrado levasse
ao da letra o conduziriam para fora do direito ou à exaustão. A programação
positivista exacerbava a visão do agente do crime como uma degenerescência orgânica e
social, que deveria ser estudada profunda e amplamente, suplantando no momento da
aplicação da pena, até o próprio fato punível, como é possível ler na exposição de
motivos do Código Penal de 1940, assinada pelo ministro Francisco Campos: “O crime
em si mesmo, na sua materialidade, passa, aqui, para o segundo plano. O que importa,
principalmente, é o crime em função do seu autor” (PIERANGELI, 2004, p. 418).
60
Em nossa interpretação, estes posicionamentos explicitam a escolha das idéias
positivistas, em suas qualidades e defeitos, como norte teórico do direito penal.
Dizemos qualidades, pois a individualização da pena pode ser contextualizada com o
ideário da escola positiva, bem como a mudança no entendimento do crime como ato
concreto de um sujeito e não abstração jusfilosófica, entre outras. Mas, os defeitos vêm
com a exacerbação desta temática, com a proposição de avaliações descabidas, de
ressocializações ortopsíquicas”, etc. Além do conceito de periculosidade, sustentado
por Garofalo e Ferri, que é “um juízo de probabilidade que se formula diante de certos
indícios. Trata-se de juízo empiricamente formulado, e, portanto, sujeito a erros graves.”
(FRAGOSO, 2006, p. 503)
Com variações, no estilo ou na convicção teórica, podemos salientar
equivalências no posicionamento de Aníbal Bruno, quando este faz seus comentários
sobre o supracitado artigo, de Pedro Vergara, que, na sua profunda avaliação dos
motivos no direito penal segue a mesma linha, dentre muitos outros penalistas
38
que se
empolgaram com a escola positiva. Mas, essa acolhida aos novos paradigmas chega
também aos civilistas como Clóvis Beviláqua e Pontes de Miranda, quando enveredam
pelos estudos da criminologia positivista
39
.
Com a reforma da parte geral, através da lei 7.209/84, altera-se o foco e alguns
dos elementos no artigo que determina os critérios de fixação da pena-base. Assim,
tendo em vista a opção declarada pelo finalismo, a periculosidade deixa de ser o
conceito nuclear abrindo caminho para a culpabilidade, retirando-se a intensidade do
dolo e grau de culpa, de matiz causalista
40
, destaca-se dos antecedentes a conduta social,
acrescenta-se o comportamento da vítima e o dispositivo passa a ter a numeração 59.
Focando especialmente a personalidade, em algumas produções que analisam o
artigo 59 vamos encontrar uma semelhança com o pensamento de Roberto Lyra, apesar
do lapso de tempo e das diferenças teórico-dogmáticas, numa manutenção contestável
frente aos novos paradigmas penais, que outras obras incorporam e ampliam.
Em Reale Jr. a encontramos de forma complexa, pois utiliza referenciais
díspares, e valorada como índice da culpabilidade pela condução de vida: “A
38
Cf. BRUNO, 1976, capítulo II; VERGARA, 1980; MELO, 1952, capítulo III, MAYRINK DA COSTA,
1972, capítulo II.
39
Ver BEVILÁQUA, 1984, p. 9-53; PONTES DE MIRANDA, 2005.
40
Cf. subitem 1.2.1, o causalismo e o finalismo.
61
culpabilidade normativa (...) estende sua apreciação à personalidade do autor (...) Não
culpa da personalidade, mas culpa pela formação da personalidade, enquanto
atribuível ao agente (...) Tanto a decisão de vida como a própria personalidade
possibilitam que se individualize a reprovação da formação concreta da vontade
delituosa.” (REALE JR., 2000, pp. 158-160) (grifo nosso). Guilherme Nucci envereda,
não obstante o embasamento teórico e uma argumentação acurada, por uma
conceituação moral extraída do “natural bom senso” para defini-la: “Na realidade, o que
se pretende mostrar é que o réu possui como facetas negativas da sua personalidade a
preguiça e a cobiça, resultando, então, na adoção do crime como meio de ganhar a
vida.” (NUCCI, 2005, pp. 212, nota 42) (grifo nosso).
Com um ponto de vista similar, Fragoso especifica a “personalidade moral
(caráter)” e a acidentalidade ou não do delito no comportamento geral como critérios de
ajuste da pena ao autor. Mas diferencia-se, ressalvando que de modo geral faltam ao juiz
provas íntegras para fundamentar uma avaliação da personalidade, e, mais ainda, ao
destacar que pela dinâmica imprimida ao nosso arcabouço legal, em comparação com a
estrutura anglo-americana, abre-se a discussão da legitimidade de “um exame
biopsicossocial ou criminológico (...) em pessoa que se presume inocente”, antes da
sentença condenatória (FRAGOSO, 2006, pp. 410-411), ponto original em suas
considerações. Também, nesta posição intermediária de crítica encontramos Gilberto
Ferreira, que reforça as dificuldades de tal avaliação enumerando quatro situações reais
de impropriedade, mas com apoio na jurisprudência e em Aníbal Bruno reduz a
qualidade ampla do exame da personalidade a apreciações de índole ou do meio
(FERREIRA, 2000, pp. 86-89)
41
.
Cirino dos Santos, num grau mais acentuado de contestação, tem um parecer
contrário sobre: o próprio conceito de personalidade, sustentando sua indefinição para a
psicologia e psiquiatria; a falta de formação específica dos juízes; a utilização
inoperante de conceitos abstratos e indetermináveis que nada esclarecem, agravada pela
“ausência do princípio da identidade física do juiz no processo penal” e a inconstância
dos resultados obtidos por entender que a personalidade é um “produto bio-psico-social
do conjunto das relações históricas concretas do indivíduo”, mutável e impreciso
(CIRINO DOS SANTOS, 2006, pp. 562-563).
41
Cf., também, CARVALHO NETO, 2003, pp. 53-55.
62
Mas, a crítica mais contundente vem de Salo de Carvalho que referenciado no
garantismo penal demonstra a ilegitimidade da avaliação da personalidade pelos
magistrados. Sustenta que a indefinição teórica desta circunstância judicial impossibilita
uma futura contestação da sentença penal
42
, contrariando princípios aceitos pela
dogmática e acercando-se de uma culpabilidade de autor. Ao certificar-se da
superficialidade dos juízos emitidos, os referencia numa “valoração estritamente moral”
reducionista, que deveria ter sido banida pela “secularização moderna do direito penal”.
Como exemplo desta nova visão traz jurisprudências do TJRS, onde a personalidade é
considerada apenas para beneficiar o acusado. Anteriormente, desenvolve uma
qualificada exposição sobre a amplitude do termo na psicologia e seu custoso
diagnóstico na psiquiatria, para destacar as dificuldades metodológicas e conceituais
que cercam tal atribuição (BUENO DE CARVALHO e CARVALHO, 2004, pp. 53-61).
Por nossa formação e prática, acompanhamos na totalidade o pensamento de
Carvalho e aspiramos a reforçar este posicionamento. Pois apesar de uma manifestada
doutrina que propõe o exame da totalidade do réu, com o propósito de melhor
ressocializar, sempre nos deparamos com fórmulas prontas e carregadas de uma
discriminação ideológica nas sentenças a que tivemos acesso como parte de nosso
trabalho. Em Tobias Barreto encontramos uma frase demonstrando que no século
atrasado o uso de termos psicológicos pelo direito levava a situações precárias:
“Geralmente a psicologia, de que se servem os legisladores penais para delimitar o
conceito de criminoso, é uma psicologia de pobre; e o nosso não faz exceção.”
(BARRETO, 2003, p. 35).
A imposição legal da avaliação da personalidade é, para nós, conseqüência de
um equívoco teórico por parte dos doutrinadores e legisladores na reforma de 84, que
por influência da nova defesa social
43
, mantiveram esta obsoleta e indefinida
42
Cf. SHECAIRA, 1994, p. 165: “A defesa e a acusação têm o direito de saber por quais caminhos e com
quais fundamentos o juiz chegou à fixação da pena definitiva. Escamotear tais caminhos é cercear a
defesa ou desarmar a acusação. É, principalmente, impossibilitar o ataque lógico ao julgado objeto de
recurso”.
43
“Entre nós, nessa seqüência, seguindo tradição antiga, os responsáveis pela Reforma Penal de 1984
importaram as concepções da ‘Nova Defesa Social’. Fizeram-no, no entanto, sem cuidar de estabelecer a
efetiva aplicabilidade dos mesmos no contexto sócio-político-econômico-cultural brasileiro. Em
decorrência, em função da falta de análise, que, mesmo superficial, demonstraram as falhas do
‘Movimento’, foi-nos outorgado um Código Penal rico em modernidade, porém na prática inaplicável. A
título de exemplo, veja-se a cidade de o Paulo, onde as varas criminais prolatam a cada dois anos
aproximadamente 12.000 sentenças condenatórias em processos apenados com detenção” (PASSOS,
1994, p. 159). Isto àquela época, hoje então...
63
circunstância judicial, diretamente trasladada do Código Penal de 1940, com a
finalidade de proteção do “corpo social” e deter a “periculosidade social”.
2.3. Provas
Finalizando os temas de direito penal neste trabalho, acreditamos poder incluir a
questão das provas, visto serem necessárias à formação do livre convencimento do juiz
e, portanto, incidirem na dosimetria da pena. Para nós reveste-se de importância este
tema, pela razão de ser a maior parte de nossa atividade como perito do juízo e ter dado
causa a esta dissertação.
2.3.1 É necessário para o magistrado, que havendo controvérsia sobre algum ponto, e
sempre há, contenha o processo testemunhos, documentos ou perícias de alguma área do
fazer humano, por não ser notória a coisa em si mesma ou para que não se parta de
suposições ou comentários. Como limites do conhecimento comum, temos estudos e
pesquisas que extrapolam a percepção ordinária e, mais ainda, o âmbito do direito. Com
incremento proliferam-se especialidades acadêmicas, laborais etc., impedindo uma
apreensão média dos variados campos do saber.
Para o juiz reconhecer e estabelecer uma verdade jurídica sobre o fato punível,
ele conta com os importantes elementos, que são as provas aduzidas nos autos,
conforme esclareceu Lyra anteriormente. Pois estas têm a finalidade de demonstrar as
atividades que têm relevo penal imputadas ao autor, esclarecendo dúvidas ou afirmações
combatíveis.
Estas comprovações demandadas ou produzidas podem ser formalizadas por
afirmação pessoal, por meios documentais ou por recursos materiais que prestem a tal
consecução. No direito processual penal há uma grande liberdade na produção de
provas, indo além da enumeração legal, pois o julgador tem a possibilidade de
reconstruir o evento para ter um real discernimento do que aconteceu e poder sentenciar.
Mas, que fique claro que tal facilidade probante não é ilimitada, e necessita ter
legitimidade – que não descumpra as regras processuais penais – e licitude – só pode ser
apresentada evidência sem desrespeitar os princípios e preceitos constitucionais ou
materiais, por exemplo: a vedação de violar a privacidade, contida nos incisos X e XII,
64
do artigo da CF –, caso contrário o subsídio não pode ser acostado ou deverá ser
retirado dos autos. Em casos excepcionais, mas sempre no sentido da defesa do réu
44
, a
prova obtida ilicitamente será aceita no âmbito penal, pela aplicação do princípio da
proporcionalidade. Também, não serão aceitos exames sobre questões do direito comum
ou sobre questões irrelevantes ou induvidosas, por serem descabidas e procrastinadoras
do feito.
Trazidas ao processo penal, pelo inquérito policial, pelas alegações da defesa ou
da acusação, as provas visam compenetrar o magistrado daquele ponto de vista, sobre o
fato em tela; como julgador é o destinatário delas, mas não o único, pois poderão ser
reexaminadas em grau de recurso, por instância superior (BARROSO, 2003, pp. 157-
158). E, como se trata da liberdade e da reputação individual, acreditamos que deve, por
isso, ser mais receptivo na qualidade e quantidade de elementos probatórios, utilizando,
sempre que necessária, a faculdade da inspeção judicial e outros meios próprios.
Discorrendo sobre a especificidade do ônus da prova no processo penal, em
geral e frente ao processo civil, Afrânio Silva Jardim conclui que pela subsunção ao
princípio in dubio pro reo, sempre caberá ao Ministério Público, como autor da
acusação, o ônus probatório no processo, bastando ao réu se opor à pretensão ministerial
“através de pura negativa dos fatos da acusação ou através de negativa qualificada por
afirmação de fatos excludentes daqueles que lhe são imputados” (JARDIM, 1999, pp.
205-221).
2.3.2 Quando por suas características a prova suplantar o nível mediano de informação
geral requerido do juiz, e este entender pertinentes ou necessários esclarecimentos, pode
designar, de ofício ou por requerimento da defesa ou da acusação, profissionais
qualificados para apresentarem informações técnicas, científicas ou práticas sobre tema
ou coisa a respeito da qual existe incerteza, formalizadas num laudo pericial.
Caracterizados como órgãos técnicos auxiliares, exercendo encargo público, no
caso de profissionais independentes, ou realizando suas funções, caso sejam servidores
públicos, os peritos tem sua atuação prevista e regulamentada no Código de Processo
Penal, sempre no número mínimo de dois. Eles deverão analisar o fato, circunstância ou
44
Cf. TOURINHO FILHO, 2003, p. 234 e GOMES FILHO, 1997, pp. 104-107, com posição contrária
ver BARROSO, 2003, p. 157 e REIS e GONÇALVES, 2003, p. 112.
65
condição pessoal com a maior isenção possível
45
e responderem aos quesitos
formulados ou apresentarem suas afirmações de um juízo”
46
. Suas conclusões podem
ser criticadas, demandarem novos esclarecimentos, exames complementares e até
repetição da perícia por novos técnicos, pois é a perícia “uma função estatal destinada a
fornecer dados instrutórios de ordem técnica” (MARQUES, 1998, p. 326).
Sendo faculdade do juiz, a nomeação dos peritos se dará de preferência entre os
peritos oficiais, e não havendo serão dois técnicos idôneos. Mas, por não estar vinculado
aos resultados apresentados, aceita ou não o laudo pericial, no todo ou em parte,
fundamentando sua decisão.
Ao tratar do assunto, Gomes Filho levanta a questão da preponderância que tem
hoje a perícia sobre os outros meios de prova e o risco da interpretação distorcida ou
literal dos dados oferecidos, pois sempre possibilidades de erro e como assessoria
judicial, uma tendência de ser aceito o laudo sem questionamento da idoneidade das
informações
47
e até de ser colocado acima do “controle do contraditório” (GOMES
FILHO, 1997, pp. 155-156).
Explicitando um pensamento de matiz positivista, José Frederico Marques é o
único dos autores consultados a trazer a possibilidade de se averiguar a personalidade,
seja no exame de forma geral: A perícia pode mesmo recair sobre o estado mental e
sobre a personalidade psicológica do indiciado ou acusado” (MARQUES, 1998, p. 331),
seja quando escreve sobre a perícia psiquiátrica, pois entende ser necessário e legal tal
exame para individualização da pena e verificação da periculosidade (MARQUES,
1998, pp. 341-342).
Acreditamos que com esta explanação, e mais ainda com o parágrafo anterior,
podemos reforçar nosso pensamento e fazer com que a análise levantada no final do
item 2 deste capítulo, tome mais impulso e consistência. O conceito de periculosidade,
repisado pela ideologia da defesa social, velha ou nova, é usado para a manutenção
questionável da avaliação da personalidade no direito penal brasileiro.
45
Cf. CASTRO, 2006, p.91.
46
José Frederico Marques entende, junto com Moacir Amaral Santos, que o perito figurará de duas
formas: percipiendi ou deduciendi, conforme a sua atuação no processo (MARQUES, 1998, p. 324).
47
Reforçando este pensamento: “Através de um laudo psicológico, por exemplo, emite-se uma opinião ou
julgamento que escapa ao controle do próprio examinando, ou de alguém não versado nos mesmos
conhecimentos. Além disso, por se tratar de procedimento normalmente reconhecido como científico,
aceita-se sem muita discussão que ele cumpra realmente o que a Justiça espera dele...” (RAUTER, 2003,
p. 84). Cf., também, CASTRO, 2006, p. 92.
Capítulo 3
Criminologia
Procuraremos tratar aqui da criminologia como disciplina que recebe e transmite
influência com outros ramos do conhecimento, sempre referenciada no direito penal.
Mas, refutando a idéia de ciência neutra tão eficientemente difundida pela Escola
Positiva, e que, por infelicidade, é até hoje assim entendida por vários pesquisadores.
Dentro do nosso propósito, especificado no capítulo anterior, iremos fazer um recorte e
focar a ideologia da defesa social.
Para tanto, acreditamos que devemos tratar inicialmente de um tema espinhoso,
a ideologia, visto que ela esdesde o nascedouro da criminologia imbricada com o seu
desenvolvimento.
3.1 Ideologia
Anteriormente nos referimos algumas vezes ao termo ideologia, sem precisar
como este é para nós entendido. Como neste capítulo iremos desenvolver uma temática
que tem o componente ideológico mais presente e discutido, julgamos conveniente que
de início tracemos o enfoque sob o qual trabalhamos com este conceito, para podermos
analisar duas correntes doutrinárias jurídicas que dialogam com a criminologia.
3.1.1 Hoje uma noção complexa por ter diferentes compreensões e usos, o sentido da
ideologia irá variar, tautologicamente, conforme o substrato ideológico que a trabalhe.
A expressão elaborada no princípio do século XIX como teoria ou ciência das idéias,
por pensadores que, no contexto da Revolução Francesa, pretendiam formular uma nova
moral científica com bases republicanas e anticlericais, foi duramente depreciada como
uma metafísica artificial, carga semântica que irá carregar daí para frente
48
.
48
Cf. WOLKMER, 2003, pp. 100/101 e CHAUÍ, 1984, pp. 22/25.
67
Para Antonio Carlos Wolkmer temos, simplificadamente, dois modos de
trabalhar as significações desta palavra: uma positiva e outra negativa. Na positiva,
posição denominada por Norberto Bobbio de significado “fraco”:
É a ideologia compreendida como um sistema de atitudes integradas de um
grupo social ideologia enquanto sistema de idéias relacionadas com a ação
ideologia como um conjunto de idéias, valores, maneiras de sentir, pensar
de pessoas ou grupos ideologia como ordenação de crenças. (WOLKMER,
2003, p. 101)
O autor traz que esse modelo e seus defensores traduziram a palavra como uma
racionalização coletiva, que proporciona consistência funcional e acrítica ao
ordenamento político-social que patrocina ou pretende reformar. Uma corrente teórica
“na ciência e na sociologia política liberal burguesa” iniciada com o pensamento
weberiano e que vai desaguar no estrutural-funcionalismo de meados do século passado.
Na acepção negativa, ou “forte”, ou crítica, ideologia é interpretada por seus
patrocinadores como uma “falsa consciência” manipulada pela classe dominante através
das instituições sociais (igreja, escola, família, partidos políticos, judiciário etc.) para
manter racionalmente sua hegemonia, segundo a linha de perspectiva marxista
(WOLKMER, 2003, pp. 99-109). Com este último posicionamento, Marilena Chauí
desenvolve exaustivamente a compreensão deste conceito, focando a interpretação
marxiana que irá trazer fundamentalmente concepção negativa do termo.
Esmiuçando esta concepção, Chauí afirma que Marx elaborou sua caracterização
a partir da obra de Hegel, como crítica aos filósofos chamados os ideólogos alemães,
que intentaram dispersar o pensamento hegeliano, sem, no entanto, se desvincularem do
mesmo. Com uma análise radical, Marx supera o idealismo de Hegel, requalificando
algumas estruturas teóricas, como a alienação quando o sujeito não se reconhece
como produtor das obras e como sujeito da história, mas toma as obras e a história como
forças estranhas, exteriores, alheias a ele e que o dominam e perseguem”; a história
“como um processo dotado de uma força ou de motor interno que produz os
acontecimentos. Esse motor interno é a contradição” e a dialética negação recíproca
dos pólos positivo e negativo da contradição que resulta na criação de uma nova síntese,
que irá reabrir a luta dos contraditórios –, mas alterando a razão de ser de tudo isto do
espírito hegeliano para o homem real (CHAUÍ, 1984, pp. 32-48).
68
Podemos ver diretamente em Karl Marx, em obra conjunta com Friedrich
Engels, que para a dialética materialista histórica, a contradição “do interesse particular
e do interesse comunitário” se funda na luta de classes de homens concretos produzindo
e reproduzindo suas relações com a natureza e entre si, relações estas determinadas no
processo de construção histórica da realidade:
As idéias que estes indivíduos formam são representações ou da sua relação
com a natureza ou da sua relação uns com os outros, ou sobre a sua própria
natureza. É evidente que em todos estes casos estas representações são a
expressão consciente real ou ilusória das suas relações e atividades reais
(...) Se a expressão consciente das relações reais destes indivíduos é ilusória,
eles nas suas representações colocam a realidade de cabeça para baixo.
(MARX e ENGELS, 1984, p. 21, nota de pé de página)
E esta construção é mediada pela ideologia – “Se em toda ideologia os homens e
as suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmera obscura, é porque
este fenômeno deriva do seu processo histórico de vida” (MARX e ENGELS, 1984, p.
22). O que move esta ideologia é a cisão social do trabalho, ou seja, o antagonismo
entre proprietários e o proprietários De resto, divisão do trabalho e propriedade
privada são expressões idênticas” (MARX e ENGELS, 1984, p. 37), entre obra
intelectual e obra manual, uma contradição que aliena o trabalhador reificado:
Enquanto, por conseguinte, a atividade não é dividida voluntariamente, mas
sim naturalmente, a própria ação do homem se torna para este um poder
alheio e oposto que o subjuga, em vez de ser ele a dominá-la. É que assim
que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um círculo de
atividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair
(...) como uma força alheia que existe fora deles, da qual não sabem donde
vem e a que se destina, que eles, portanto, não podem dominar e que, pelo
contrário, percorre uma série peculiar de fase e etapas de desenvolvimento
independente da vontade e do esforço dos homens, e que em primeiro lugar
dirige essa vontade e esse esforço. (MARX e ENGELS, 1984, pp. 38-39)
Possibilitando o aparecimento de um fetichismo que personaliza e humaniza a
mercadoria, o trabalho e o capital, inversão das posições reais. Esse deslocamento
ideativo de sentido é conseqüência de determinações que resultam e são resultadas no
movimento de ideologização da sociedade capitalista, o como especificação de
conceitos, mas como processo significativo.
69
Este resultado nasce da prática social imediata, no sentido de que são percepções
diretas da realidade, ou seja, como a realidade é apresentada pelo ideário da classe
dominante, tanto material, quanto espiritual, de uma dada época:
Os indivíduos que constituem a classe dominante também têm, entre outras
coisas, consciência, e daí que pensem; na medida, portanto, em que dominam
como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é
evidente que o fazem em toda a sua extensão, e portanto, entre outras coisas,
dominam também como pensadores, como produtores de idéias, regulam a
produção e a distribuição de idéias do seu tempo; que, portanto, as suas idéias
são as idéias dominantes da época. (MARX e ENGELS, 1984, pp. 56-57)
Então, conforme a elite, teremos uma ideologia que se adéqua aos seus
interesses e necessidades de controle da classe dominada “os indivíduos, pelo que
estes encontram já predestinadas as suas condições de vida, é-lhes indicada pela classe a
sua posição na vida e, com esta, o seu desenvolvimento pessoal –, estão subsumidos
na classe” (MARX e ENGELS, 1984, p. 83). Portanto, a identificação internalizada dos
indivíduos com a ideologia é intrínseca e necessária ao processo, produzindo uma
hegemonia na dominação sócio-econômica.
Esta subordinação (subsumtion) dos indivíduos a determinadas classes não
pode ser abolida (...) pelo fato de se banir da cabeça a sua representação geral
(...) Os indivíduos partiram sempre de si, mas, naturalmente de si no quadro
das suas condições e relações históricas dadas, não do indivíduo ‘puro’.
(MARX e ENGELS, 1984, p. 84)
Finalizando, o direito é situado como modo de regulação e manutenção da
propriedade privada, expressadas através de uma ilusória vontade geral e livre,
ideologicamente matizada pelos interesses da burguesia na letra da lei. E esta assegura
que a propriedade, o estado e a comunidade (sociedade civil) fiquem apartados, através
de princípios transpostos do direito privado romano e modernizados conforme o
benefício a ser adquirido (MARX e ENGELS, 1984, pp. 100-103).
Como no capítulo anterior, também aqui, apresentaremos uma postura mais
questionadora e acreditamos que a concepção marxiana nos trará mais subsídios para
podermos avaliar os dois sistemas ideológicos do direito que pretendemos mostrar. Pois
“o direito é a projeção normativa que instrumentaliza os princípios ideológicos (certeza,
segurança, completude) e as formas de controle do poder de um determinado grupo
social” (WOLKMER, 2003, p. 154).
70
3.1.2 O jusnaturalismo ou direito natural, que podemos dizer ser a mais antiga forma
de conceber o direito, tem no entendimento de Roberto Lyra Filho três modelos: “a) o
direito natural cosmológico; b) o direito natural teológico; c) o direito natural
antropológico” (LYRA FILHO, 2004, p. 39), que acrescentaríamos serem três fases
históricas que acompanham as mudanças sociais. A primeira se originou da observação
direta da natureza e na explicação mitológica desta, que podemos ligar às sociedades
primeiras e mais antigas, como a grega e os germânicos, por exemplo. o esteve
ausente a ideologização nesta formulação, pois escamoteando modos de produção
econômica (escravidão) e oposição entre antigas e novas organizações sociais (costume
x lei, campo x cidade). Pontos de ruptura teórica que demonstram o quão antigo é esta
capacidade de inverter os fatos percebidos no imediatismo social e diluir a luta de
classes.
O direito natural teológico, segunda fase, podemos dizer ser um aperfeiçoamento
da anterior, e é jocosamente definido pelo autor como uma “escada: Deus manda; o
sacerdote abençoa o soberano; o soberano dita a ‘particularização’ dos preceitos
divinos, em suas leis humanas... e o povo? A este só cumpriria aceitar, crer e obedecer.”
(LYRA FILHO, 2004, p. 40). Esta é uma fase que o podemos dizer encerrada, pois
ainda vemos uma mantença, e às vezes um retorno, de tal concepção divinizada do
direito, em algum momento de praticamente todas as culturas. Mas, nos limitando à
civilização ocidental cristã, o direito que se firma numa instância sobrenatural e num
poder terreno, confirmado pelos doutores da igreja (preponderantemente Agostinho e
Tomás de Aquino) e divulgado pela própria, manteve uma íntima relação com o
estamento feudal e com o estado monárquico absolutista, sustentando-se
reciprocamente. E aí, novamente, o matiz ideológico se fez presente ao conjugar as duas
mais poderosas instituições societárias (religião e poder político-militar) para manter e
reproduzir a completa subjugação da população de servos, artesãos e comerciantes às
práticas espoliativas da aristocracia laica ou eclesiástica. No seu auge, este tipo de
sociedade e o seu direito conseguem fundir as duas estruturas acima numa coisa, tão
simples, organizada e auto-explicativa, uma construção quase perfeita de idéias e
procedimentos rituais, que ainda faz os reacionários saudosistas sofrerem de melancolia.
71
Mas, o tempo passou e aqueles artesãos e comerciantes anteriores, enriqueceram
e quiseram mais poder, liberdade e, principalmente, novas maneiras de organizar a
sociedade, é a burguesia nascente que veio contestar o estado “natural” das coisas.
Lançando mão de princípios antropológicos e racionais para isso criados, a
classe burguesa propôs um novo naturalismo, quebrando a ordem político-social
aristocrática e religiosa. A partir daí, o natural é extraído da razão humana:
Enquanto verdade revelada, o Direito não poderia ser propriamente um objeto
de conhecimento, pois dependia de uma adesão irrefletida por intermédio da
fé. A afirmação de que o conhecimento do Direito é possível através da
Razão, que lhe informa os princípios e as regras, abre as portas para a
perspectiva individualista no campo jurídico e desencadeia toda a serie de
repercussões teóricas e práticas da modernidade jurídica. (NOLETO, 1998, p.
42).
Numa avaliação crítica deste período, Mauro Noleto encadeia as transformações
filosóficas, jurídicas e políticas ao pensamento liberal-burguês. Pois o núcleo destas
mudanças é o “sujeito universal de direitos”, abstratamente livre, igual e racional para
contratar suas relações econômicas e sociais, o indivíduo burguês. Esta pessoa
independente é que irá formular a nova sociedade, pois “oferece a ele mesmo uma lei
pela razão, constituindo assim a identidade do sujeito e do legislador”. No entanto, estas
promessas libertadoras da modernidade escondem uma profunda desigualdade sócio-
econômica, discrepâncias em face do mercado e da propriedade que dissimuladas na
cisão entre o estado e a sociedade civil, irão confinar o direito, daí nascido, a apenas
referendar as decisões políticas, limitando-o de regulamentar o espaço individual
privado, onde acontecem as relações sociais e econômicas. Relações de produção e
consumo que efetivam a dominação de classes, disfarçadas no contrato social. Ficção
ideológica útil para gerar uma abstrata vontade geral corporificada numa codificação
jurídica (NOLETO, 1998, pp. 42-51).
Este sistema, que pressupõe uma perene lei natural idealizada e convalidada pela
superioridade de seus preceitos, é principalmente focado em Lyra Filho por ter um
potencial revolucionário, contestador, que apesar de sua idealização e abstração teórica
é obstinadamente retomado nos momentos de conflito para fazer frente ao direito
positivado.
O Direito de resistência à tirania, o Direito à guerra de libertação nacional, o
Direito à guerra justa em geral, uma certa preocupação com a legitimidade
72
(não a legalidade) do poder têm nítido sabor iurisnaturalista, e esta
ideologia se revigora, como dissemos, a todo instante de maior tensão.
(LYRA FILHO, 2004, p. 43)
Tão logo realizadas e assentadas essas revoluções teóricas, aquietadas as
oposições, reajustadas as relações, surge uma nova etapa, a de consolidação das
conquistas burguesas, centradas no Estado, no Direito e no modo de produção
capitalista.
3.1.3 A partir de meados do século XIX impõe-se como principal doutrina o
positivismo jurídico. Como contraposição ao jusnaturalismo, caracteriza-se por uma
suposta neutralidade valorativa, por um formalismo técnico e por extrair uma
autovalidação do direito através do dogmatismo oficial, este sistema se propagou em
todas as áreas jurídicas. Generalizando normas e absorvendo os choques de interesses,
disciplina e amarra tudo às estruturas legais positivadas, proporcionando um
ocultamento ideológico do estado. A mais apurada das correntes agrupadas neste
sistema é, sem dúvida alguma, o normativismo dogmático que “se reduz a um esquema
de interpretação, onde a lógica da juridicidade e da antijuridicidade tem como distintivo
a sanção organizada”, e se pretende antiideológico, distanciando com pureza e
autonomia dos condicionamentos sócio-econômicos (WOLKMER, 2003, pp. 160-166).
Mauro Noleto mais agudamente elenca as contradições desta doutrina jurídica.
Nomeando-a como realismo positivista, o autor esclarece que, ultrapassado o idealismo
inicial e impelida pela prática do poder e do controle, a burguesia circunscreve a
formalidade filosófica da universalidade, igualdade e identidade na lei positiva,
reforçando o controle social e o distanciamento pleno entre o direito e a política.
Indivíduos socialmente atomizados na abstração do conceito de liberdade, o
uniformizados na generalização do conceito de cidadania, diluindo o conjunto de
qualidades que definem a individualidade, a personalidade, da pessoa humana, e
tornando-os presas fáceis da lógica do mercado. Entretanto, ao se distanciar das
especulações teoréticas anteriores e “quando busca apreender o direito na realidade dos
fatos sociais, o positivismo reconhecidamente lhe abre a perspectiva científica”, pelo
ângulo epistemológico. A concepção comteana de ciência positiva, que, felizmente,
procura se acercar da realidade social, mas reifica a formação do direito invertendo as
posições cognitivas, tem o seu ápice na hierarquia dogmática do formalismo jurídico,
73
que ao reduzir normativamente o sujeito de direitos, expõe a descontextualização
ideológica desta categoria histórica pretendida pelo positivismo jurídico (NOLETO,
1998, pp. 51-63).
Pontuando a diferença entre positividade do direito e positivismo como situações
próximas mas independentes, Lyra Filho inicia sua avaliação desta ideologia jurídica.
Ressalta que essa, tanto no ordenamento capitalista quanto no legalismo socialista
autoritário, mantém o mesmo padrão redutor à norma estatal. Para ele, várias
espécies de positivismo, entre elas o legalista, o historicista ou sociologista e o
psicologista. Mas todos, de maneira mais direta ou complexa, acabam reforçando a lei
positiva como a única norma válida e o estado como seu produtor exclusivo. Enfim, o
positivismo se prende a uma legalidade estrita, “o direito como ordem estabelecida”
(LYRA FILHO, 2004, pp. 25-39).
O positivismo escancara as contradições do projeto da modernidade burguesa,
conflitiva e desigual. Sua formalidade legalista foi sendo cada vez mais acentuada nas
teorias formuladas ao longo do século XX, devido às crítica e os desequilíbrios
conjunturais que se sucederam numa sociedade em rápida transformação, que se recusa
aceitar as formas estáticas de um pensamento único. É a desordem em processo de
Lyra Filho
49
.
O jusnaturalismo, com sua fundamentação mais em leque, do mais puro
conservadorismo ao revolucionário, na nossa visão, preserva potencialidades e tem mais
congruência com o cenário social em mutação desencontrada e assimétrica por que
passamos. Como oposição à tendência unívoca do positivismo, e mais ainda do
normativismo dogmático.
3.2 Teses criminológicas
Não traremos um levantamento completo das teses criminológicas que vêm
sendo produzidas mais de um século. Iremos, apenas, ressaltar as idéias do início da
criminologia, com toda a carga positivista que carregam, por incluírem as proposições
que referenciam nosso trabalho, ou seja, a questão da periculosidade na defesa social.
49
Apud NOLETO, 1998, p. 52.
74
Reiterando, entendemos serem as noções de periculosidade e defesa social, as
raízes da exigência do estudo da personalidade inserido no Código Penal brasileiro.
Todas as três são temas de estudos criminológicos, com lastro na psiquiatria e pela
psicologia.
3.2.1 Em Aníbal Bruno encontramos que a perigosidade
50
criminal aparece na obra de
Feuerbach, que não a desenvolveu por não se enquadrar no conjunto da doutrina
jusnaturalista. Tal idéia, a partir de Raffaele Garofalo tomou forma e conteúdo como
doutrina adequada à prognose naturalista do positivismo, assim para este a temibilidade
(perigosidade) seria: a perversidade constante e ativa do delinqüente e a quantidade do
mal previsto que se deve temer por parte do mesmo delinqüente”
51
. Com a forte
característica de desajuste social, seu estudo é objeto privilegiado da criminologia, pois
abrange estímulos internos (anatômicos, fisiológicos, psicológicos e atávicos) e externos
(família, escola, vizinhança, trabalho etc.), gerando indivíduos, constitucionalmente ou
pontualmente, com personalidade desadaptada que “poderá manifestar-se no crime,
quando as circunstâncias externas do momento lhe oferecem oportunidades de assim
revelar-se”. Este conceito está vinculado ao de perigo como probabilidade de dano, no
caso uma possibilidade de uma ação infracional, particularizada pela personalidade total
do “homem-problema”, graduável pela tendência reincidente ou de ampliação
infracional, e, ainda, pela espécie do crime.
Concebidos estes tipos humanos, o direito punitivo tem um foco preciso: o
reajustamento dessas personalidades atípicas às condições normais da vida social e nos
casos de desajustamentos irredutíveis a sua segregação do meio”, incumbido pela
missão da defesa social:
A ala mais avançada do positivismo criminológico (...) tomou a noção da
perigosidade criminal por critério reitor de todo o sistema jurídico-penal. A
perigosidade seria o pressuposto necessário e suficiente da sanção
anticriminal e o critério determinador da sua qualidade e quantidade, e assim
ganhava posição preferencial definitiva a idéia da prevenção sobre a
repressão, da prevenção especial sobre a prevenção geral, o que viria a ser
uma das características do Direito Penal moderno. (BRUNO, 2005, p. 127)
50
Cf. BRUNO, 2005, p. 119, nota 1.
51
GAROFALO apud BRUNO, 2005, p. 120.
75
Com essa base teórica estende-se a esfera de domínio do direito penal, que irá
além do fato punível, sinal da periculosidade, com o argumento de que “tem de tomar
em consideração a perigosidade do sujeito e não o crime, temos de considerar a
perigosidade criminal desde que ela exista, independente da prática de fato punível, a
perigosidade mesmo pré-delitual”. Fundamentando, desta maneira, a aplicação de
medidas de segurança, objetivadas pela prática ou preparação do fato tipificado. A
imposição destas medidas, presumidas legalmente ou supostas pelo magistrado, deve
acontecer com a previsão da recidiva criminosa, analisadas as circunstâncias e
motivações do agente. Pois excetuados os perfeitamente ajustados às normas
fundamentais de convivência”, o crime revela o desajustamento social do agente”
(BRUNO, 2005, capítulo XXVII).
Com uma extensa crítica dos pressupostos filosóficos positivistas, Zaffaroni,
Batista, Alagia e Slokar afirmam ser o pensamento de Jeremy Bentham, empirismo
pragmático, e de Herbert Spencer, evolucionismo social, como as raízes mais próximas
desta doutrina jurídica e que abriram caminhos para a nascente antropologia criminal,
mais tarde criminologia. Originalmente surgida com as obras de Cesare Lombroso, que
por sua formação médica a marcou com um forte vínculo biogenético, a antropologia
criminal pesquisava e classificava as características patológicas e hereditárias do
criminoso, dentro de estereótipos sócio-culturais dominantes na Europa do oitocentos
(ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, pp. 567-575). Incorrendo,
entretanto, num sério reducionismo “científico” ao tomar a parte pelo todo, ou seja, as
características criminogênicas serão pesquisadas apenas nos criminosos, excetuados do
todo social, uma redundância que antecipadamente confirmou suas teses.
Estas idéias bioantropológicas foram transpostas para o jurídico e para a
sociologia por Enrico Ferri e Raffaele Garofalo, com variações de fundamentos e
conseqüências, mas sempre com foco no delinqüente, pois “o delito é sintoma de
periculosidade; logo, a medida da pena estava dada pela medida da periculosidadedo
infrator. Conceituação que, ainda vigente, nos remete inevitavelmente ao paradigma
organicista
52
e perigosista do positivismo criminológico”. Agir contra “as classes
perigosastornou-se o padrão das agências policiais, que em conjunto com a agência
médica justificaram-se pelo tendencioso discurso da vida e das doenças
52
Ver este conceito em ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 518.
76
populares”, também imposto às agências jurídicas como efeitos do spencerismo penal e
das idéias de Gobineau.
O positivismo penal espraiou-se por toda a Europa e América, influenciando e
sendo modificado de acordo com o doutrinador, ou conforme a ênfase na criminologia
ou no jurídico. No Brasil e América Latina, esta ideologia teve criativos seguidores
53
,
mantendo o vigor até os dias de hoje, apesar de seu declínio intelectual nos fins do
século XIX (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, pp. 573-588).
A criminologia etiológica visava estudar o criminoso e a criminalidade, como
singularidades precedentes à legislação penal, explicando-os através de motivações
biológicas, psicológicas ou ambientais, e fundamentando uma política oficial de
combate ao crime (CIRINO DOS SANTOS, 2006, p. 693), lamentavelmente atual como
vemos no discurso de combate às drogas. Nessa pesquisa todo criminoso revelava um
traço patológico que o diferenciava, dos indivíduos “normais”, e lhe impunha um
comportamento e um jeito de pensar pré-determinado (BARATTA, 2002, p. 29).
Ao examinar este conjunto de idéias, Michel Foucault se depara com a noção de
risco desenvolvida no direito civil e sua modelagem pela antropologia criminal. Para
ele:
Tal como é possível determinar uma responsabilidade civil sem estabelecer a
culpa, mas unicamente pela avaliação do risco criado contra o qual é preciso
se defender sem que seja possível anulá-lo, da mesma forma se pode tornar
um indivíduo penalmente responsável sem ter que determinar se ele era livre
e se havia culpa, mas correlacionando o ato cometido ao risco da
criminalidade que constitui sua própria personalidade. Ele é responsável,
que apenas por sua existência ele é criador de risco, mesmo que não seja
culpado que não preferiu, com toda liberdade, o mal ao bem. A punição
não terá então por finalidade punir um sujeito de direito que terá
voluntariamente infringido a lei; ela teo papel de diminuir, na medida do
possível seja pela eliminação, pela exclusão, por restrições diversas, ou
ainda, por medidas terapêuticas –, o risco de criminalidade representado pelo
indivíduo em questão. (FOUCAULT, 2004 (a), p. 22)
Correlacionando este pensamento com a fense sociale, defendida por Adolphe
Prins
54
, percebe que essa transposição do conceito para o direito penal funciona como
um processo que ao final constitui o acabamento teórico da construção do saber
53
Cf. FREITAS, 2002, parte III; TÓRTIMA, 2002, capítulo IV; ampliando para a América Latina, cf.
ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 572, nota 69; p. 574, nota 85; p. 587, nota 124.
54
Cf. FOUCAULT, 2004 (a), p. 15, nota 6.
77
criminológico. Assim temos o início de um compartilhamento de conceitos e domínios
entre a instituição judiciária e o saber médico ou psicológico, que irá redundar na
aceitação da criminologia positivista pelo direito penal. Pois:
A grande noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a
escandalosa noção, em termos de teoria penal, de periculosidade. A noção de
periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade
ao nível de suas virtualidade e o ao nível de seus atos; não ao nível das
infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento
que elas representam. (FOUCAULT, 2003, p. 85)
Se no primeiro momento o direito se recusa a admitir essas inovações, num
segundo momento, a partir do elemento teórico “indivíduo perigoso”, a dogmática penal
“compreendeu, organizou, codificou a suspeita e a identificação dos indivíduos
perigosos”. O que faz Foucault se perguntar e responder sobre a questão da
responsabilidade de autor, concluindo que “o estudo minucioso e comparado das
decisões da justiça mostraria facilmente que, no cenário penal, os infratores estavam
pelo menos tão presentes quanto suas infrações” (FOUCAULT, 2004 (a), pp. 20-25).
A sociedade capitalista industrial tolerava uma massa de espoliados, como
exército de reserva da força de trabalho, mas devia exercer sobre essas pessoas um
poder e controle inequívocos, o que foi facilitado por esse novo arranjo teórico:
A noção de degeneração permitia ligar o menor dos criminosos a todo um
perigo patológico para a sociedade, e finalmente para toda a espécie humana.
Todo o campo das infrações podia se sustentar em termos de perigo, e,
portanto, de proteção a garantir. (FOUCAULT, 2004 (a), p. 19)
Transformada em conceito chave da autodenominada “evolução” do direito
penal, a periculosidade vinculada à personalidade é uma das colunas da criminologia.
Vejamos agora a defesa social, para nós outro fundamento do positivismo
criminológico.
3.2.2 Novamente com Bruno, este afirma que Feuerbach, Romagnosi e Bentham dão
início à idéia de defesa social, mas desenvolvida e projetada no movimento positivista,
que lhe efetividade e função. Pois, como já vimos anteriormente, ela será
intimamente ligada à temibilidade, defendida por Garofalo, como objetivo daquela:
Nessa fórmula está a verdadeira origem do atual conceito da perigosidade
criminal. Julgou-se, então, que a defesa social encontrara o seu objetivo
78
imediato, claro e preciso. Defender a sociedade contra o crime era preveni-lo
pelo tratamento ou segregação do homem criminalmente perigoso. (BRUNO,
2005, p. 121)
Para Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar, a teoria da defesa social pode ser
encontrada no início da modernidade com uma atuação ilimitada, mas alcançará
consistência e delimitações com o direito penal liberal desenvolvido nos séculos XVIII
e XIX “o lastro de seu pensamento constitui sua teoria da defesa social: a pena era
para eles necessária pelo próprio efeito do contrato”; vindo desembocar no positivismo
penal, como medida de legitimação do poder punitivo (ZAFFARONI, BATISTA,
ALAGIA E SLOKAR, 2003, pp. 20-22).
Com Alessandro Baratta vemos a defesa social, considerada o teórico e
político fundamental do sistema” de uma ciência penal integrada, ter seu início situado
junto com o período revolucionário burguês (Inglaterra – 1688, França – 1789) e a partir
daí dominar o conjunto de idéias do penalismo. Desenvolvida pela escola liberal
clássica é recepcionada pela escola positivista, com uma alteração do escopo político-
criminal, e pode ser abarcada em seis princípios – “de legitimidade, do bem e do mal, de
culpabilidade, da finalidade ou da prevenção, de igualdade e do interesse social e do
delito natural”. Para Baratta, a única divergência pode ser encontrada no princípio da
culpabilidade moral-normativa, para os clássicos e sócio-psicológica para os
positivistas –, ainda que ambas diretrizes assegurem uma ideologia penal referenciada
na defesa social (BARATTA, 2002, pp. 41-44).
Este conceito tem, na dogmática, uma recepção irrefletida com papel funcional e
argumentativo que será reafirmado emocionalmente em todas as correntes teóricas:
Seja do passado ou do presente, tal como representado pela gesamte
Strafrechtswissenschaft de von Liszt, pela Escola positiva clássica e
contemporânea, pela Escola da ‘defesa social’ (Gramática) e por aquela da
‘nova defesa social’ (Ancel). De fato, em todas estas edições do modelo
integrado de ciência penal o se encontra uma alternativa crítica, mas
somente uma modificação e um aperfeiçoamento da ideologia da defesa
social. Esta não não resulta prejudicada mas, acima de tudo, vem
reafirmada nestas escolas, em todo seu alcance, tanto no sentido da ideologia
positiva (programa de ação) quanto, e principalmente, no sentido da ideologia
negativa (falsa consciência, idealizações mistificantes das funções reais dos
institutos penais). (BARATTA, 2002, p. 46)
Pelo exposto, entendemos que os dois conceitos periculosidade e defesa social
são estruturas teóricas de amplo campo de ação. Incorporando-se ao vocabulário e ao
ideário jurídico, bem como das recém-criadas psiquiatria e psicologia criminais, estas
79
formações ideológicas naturalizaram-se como prioridades a serem alcançadas pelo
sistema penal defender a sociedade do dano, real ou não, causado pelo indivíduo
perigoso.
3.2.3 Passemos, finalmente, a localizar estes pontos teóricos examinados, na
concretude do pensamento de autores penalistas reconhecidos, como maneira de
corroborar esta linha de pesquisa.
De pronto, retomaremos Roberto Lyra por ser um dos mais destacados
representantes deste conteúdo no Brasil e, especificamente, por atuar na feitura mesmo
do Código Penal de 1940, origem legal da previsão do exame da personalidade do
condenado.
Roberto Lyra, abertamente simpatizante destes conceitos
55
, ao analisar os
fundamentos filosóficos da pena escreve que com as diferenças entre os clássicos e a
escola positiva sobre este tema, a legislação e a doutrina sofreram cerrada pressão e
incorporaram os novos objetivos (positivistas) da defesa social (LYRA, 1955, pp. 41-
42). Com isso, o argumento passa a ter esta enunciação:
A escola positiva encara a justiça penal como organização jurídica de uma
defesa social contra a criminalidade, que não veja no delito somente uma
entidade jurídica, mas, também, um sintoma revelador duma personalidade
mais ou menos perigosa e mais ou menos readaptável à vida social. (LYRA,
1955, p. 45)
56
E defende o conceito de periculosidade, em conformidade com a concepção de
Ferri:
Que indicava duas normas para disciplinar em concreto a periculosidade: a
qualidade mais ou menos anti-social do ato e do agente. A primeira deriva de
dois elementos: o do direito violado e o dos motivos determinantes; a
segunda liga-se às diversas categorias de delinqüentes, segundo os dados da
antropologia e da psicologia criminal. (LYRA, 1955, p. 207)
Em doutrinadores contemporâneos destacamos: Basileu Garcia que considerava
a periculosidade a mais estimulante orientação da escola positiva, como meio de defesa
social (GARCIA, 1956, pp. 598-600); E. Magalhães Noronha escreveu que a
periculosidade e a avaliação da personalidade são entrelaçadas nos objetivos e efeitos,
55
Como já exposto no item 2.2.
56
Posição reafirmada num artigo de 1959 – A prisão como fator criminógeno. (LYRA, 1959)
80
“dificilmente se observando nítida linha divisória entre ambas” (NORONHA, 1972, p.
313); José Frederico Marques, no pensamento original, aceitava a periculosidade como
conceituou Lyra – social ou criminal, pré-delituosa e pós-delituosa e a diferenciava da
culpabilidade (MARQUES, 1999, pp. 103-114); Nélson Hungria que, evitando
cuidadosamente estas questões, ao fazer conferência em 1954, no Rio de Janeiro, toca
de passagem na periculosidade como característica do condenado, no “interêsse [sic] da
defesa social” e como conceito que irá definir a medida de segurança (HUNGRIA,
1958, pp. 214-215). Heleno Fragoso apesar de aceitar a defesa social é o único dos
juristas, a que tivemos acesso, a criticar estes conceitos. Sobre a defesa social considera
que é usada para fins eleitoreiros com os aumentos no rigor das penas (FRAGOSO,
2006, p. 80); sobre a periculosidade, textualmente:
Não métodos científicos para determinar a periculosidade, que é um
conceito vago e indeterminado, sendo procedimento judicial de sua
verificação fundado na intuição do juiz, com critério de evidente
irracionalismo. Os exames de cessação de periculosidade, em conseqüência,
não passam de uma farsa solene. A verdade é que ninguém sabe quando a
periculosidade existe ou o, partindo do exame da personalidade do agente.
Funcionam com base fundamental da intuição do observador os antecedentes
do réu, aos quais a prática judiciária sempre atribui valor especial.
(FRAGOSO, 2006, p. 483.)
Entre os mais novos doutrinadores como Francisco de Assis Toledo, ReAriel
Dotti, Jair Leonardo Lopes, João Mestieri, Miguel Reale Jr., Cezar Roberto Bittencourt
e Damásio de Jesus, a culpabilidade é o ponto de convergência de suas conceituações,
todos rejeitando a periculosidade como fundamento da pena. Mas, explicitamente ou
não, como controle social ou segurança pública, sempre vemos a essência da defesa
social aparecer nestas construções teóricas LOPES, 1985, p. 148 e 1999, p. 244;
DOTTI, 1998, p. 140, por todos –, condição evidenciada por Paulo Roberto da Silva
Passos em artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais de 1994, aqui já
citado
57
.
3.2.4 Entre as obras de criminologia, vemos que estas formulações conceituais –
periculosidade e defesa social –, em diferentes versões terminológicas, tiveram
facilidades em ser incorporadas e difundidas pelo discurso oficial.
57
Cf. nota 43, p. 62.
81
A começar pelo criador da antropologia criminal, Cesare Lombroso que, no
prefácio à 5ª edição italiana e 2ª edição francesa de “O homem delinqüente”, já criticado
e argüido sobre suas teses, assim se exprime:
Aqui, vejo-me, embaraçado por outros juristas que me censuram haver
reduzido o Direito Criminal a um capítulo da Psiquiatria e de arruinar a
penalidade, o regime das prisões! Isso o é verdade senão em parte. Para os
criminosos de ocasião, conformo-me com a esfera das leis comuns e
contento-me em reclamar seu alcance a métodos preventivos. Quanto aos
criminosos natos e loucos morais, as mudanças propostas por mim não fariam
senão aumentar a segurança social, pois reclamo, para eles, uma detenção
perpétua. (LOMBROSO, 2001, p. 28) (grifo nosso)
De maneira mais expressiva, Enrico Ferri, em Sociologia Criminal, especifica
que “defesa jurídica equivale exatamente a defesa social, porque sociedade e direito são
dois términos correlativos e intercambiais” (FERRI, 2006, p. 67). nos Princípios de
direito criminal”, obra ulterior, estas noções se tornam contundentes, vejamos
integralmente: A lei penal provê à defesa social. Desta constatação de fato, por si
evidente, não necessita de silogismos ou formalismos de dogmática jurídica” (FERRI,
2003, p. 108); “Os dois princípios fundamentais, em que se pode inspirar e que podem
guiar a justiça penal são os dois contrapostos: da ‘expiação’, ‘punição’ ou ‘retribuição’
quia peccatume da ‘defesa social’ – ne peccetur” (FERRI, 2003, p. 257), mais claro
impossível. Ao trazer a contribuição de Garofalo diz:
A escola positiva tem sempre falado da temibilidade ou de periculosidade do
delinqüente, a qual tem uma função jurídica não na aplicação individual
da pena, mas antes de tudo na norma da lei penal bem diversa daquela que
tem a constatação de um perigo perante o dano que não se efetuou. Uma
coisa é considerar o fato perigoso e outra muito diferente o homem perigoso.
De fato, a periculosidade do delinqüente é freqüentemente independente do
perigo objetivo. Pode subsistir mesmo na falta deste perigo, como no caso da
tentativa de crime, que seja impossível. (FERRI, 2003, p. 259)
E, quanto ao estudo da personalidade neste contexto teórico:
A personalidade do criminoso, na moderna evolução da antropologia
criminal, é estudada nas suas condições morfológicas, bioquímicas e
neuropsíquicas e, na ciência criminal, é examinada em relação com a sua
conduta social. Pelo que os resultados do estudo antropológico devem ser
utilizados e sistematizados na organização jurídica da defesa social
(preventiva e repressiva) contra a criminalidade. (FERRI, 2003, p. 293)
82
Creio que a carga ideológica fica muito aparente, nestes excertos que trazem o
pensamento original de dois “pioneiros” da escola positiva. No Brasil, a influência
destas obras foi enorme, conforme demonstrado neste capítulo e no anterior.
Na obra brasileira mais antiga a que tivemos acesso, “Criminologia e direito” de
Clovis Beviláqua de 1896, numa reprodução editada em 1984, o autor assumiu uma
postura crítica, e atualíssima, em face das novas proposições positivas, mesmo assim diz
que “as bases da doutrina naturalística (- a conservação e defeza sociaes, o crime como
offensa á sociedade, a reacção penal como meio de defeza e conservação [sic]) me
parecem perfeitamente sólidas, de uma clareza e simplicidade maravilhosas”; mas, não
se mostra muito satisfeito com o critério da temibilidade (periculosidade) substituindo a
responsabilidade, por entender que uma generalização indevida do perigo
(BEVILÁQUA, 1984, pp. 23-35).
Do mesmo modo, Afrânio Peixoto, médico e professor de criminologia que se
filiava ao neopositivismo, enumera uma série de críticas à “escola positiva do direito
penal”, inclusive às pesquisas e ao nome criminologia que diz ter chegado a
dificuldades e enganos. Propõe então o termo criminografia que “pelo
‘reconhecimento’, pela ‘identificação’ do criminoso estatui a sua ‘perigosidade’, ‘lesão
em foco’, o ‘ponto nevrálgico’ da sociedade, a que é preciso vigiar, providenciar,
socorrer para evitar o crime” (PEIXOTO, 1953, p. 12). Na sua Criminologia” aparece
o traço do pensamento dico sanitarista mesclado à “doutrina da perigosidade” e às
idéias defensivas na seguinte concepção:
A idéia de perigosidade é grande progresso nas leis penais: raia pela higiene,
oposta à terapêutica. Prevenir antes de curar. Mas a sociedade se esquece que
focos de infecção, e só a extinção deles será o saneamento contra as
infecções. Mantidos estes focos, será trabalho de Sísifo isolar ou punir os
infectados, a curto prazo. (PEIXOTO, 1953, p. 289)
Em autores nacionais mais recentes como: Álvaro Mayrink da Costa,
magistrado, em obra aqui já relatada e posição explicitada
58
, vemos assinalado o caráter
jurídico destes conceitos; Roque de Brito Alves, advogado, no trabalho “Ciência
criminal”, com perspectiva da nova defesa social, percebemos a mesma posição
(ALVES, 1998); Ana Paula Zomer Sica, procuradora estadual, ao abordar distúrbios da
personalidade em homicidas, também, referenda a periculosidade num contexto jurídico
58
Cf. o subitem 2.1.4.
83
(SICA, 2003); Luiz Angelo Dourado, psiquiatra, em “Ensaio de psicologia criminal”
dedica todo um capítulo ao estado periculoso”, enfatizando, também, a defesa social
(DOURADO, 1969) e do mesmo modo Guido Arturo Palomba, que, também psiquiatra,
analisa e classifica os criminosos em sua obra “Loucura e crime”, reforçando a
periculosidade (PALOMBA, 1996).
Não podemos, no entanto, deixar de mencionar os doutrinadores que não
acolhem estes padrões positivistas, por entenderem que eles servem a propósitos outros,
propondo opções. Como afirma Salo de Carvalho, que explicita a “matriz inquisitiva”
deste “perverso modelo de controle social”, orientado por um reducionismo
sociobiológico ou padrão da criminologia etiológica ultrapassados. Propõe como
alternativa a contemporânea idéia da redução de dano, no caso carcerário, desde que
voluntariamente assumida pelo condenado (CARVALHO, 2005, pp. 141-155).
Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar após fazerem amplo levantamento do pensamento
criminológico, apresentam uma retomada da interdisciplinaridade entre o direito penal,
a sociologia e a criminologia, consoante sua teoria agnóstica do poder punitivo, com
uma perspectiva de atuação crítica sobre o poder punitivo e restritiva dos efeitos de
produção e reprodução da violência social (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e
SLOKAR, 2003, pp. 276-288). Cirino dos Santos, partidário da criminologia radical, ao
par de uma avaliação detalhada dos pressupostos criminológicos positivistas, nas teorias
conservadoras, liberais e reformistas, preconiza uma mudança profunda dos padrões
deste trabalho ao trazer as relações de classe, os processos produtivos e a estrutura
econômica do modo capitalista de produção, como determinantes ideológicos dos
conceitos de periculosidade e defesa social, para o centro dos debates nesta área. Expõe
como uma política criminal alternativa, a desarticulação do atual aparelho de controle
social, com a penalização dos delitos econômicos e políticos das classes dominantes e a
despenalização das infrações características das classes sociais subalternas e troca das
sanções estigmatizantes por outras não infamantes (CIRINO DOS SANTOS, 2006).
Para nós as proposições de Cirino dos Santos têm uma maior afinidade com esta
pesquisa, pois esclarece as motivações jurídico-econômicas dos conceitos acima, que
julgamos mais apropriado.
As referências na psicologia, que demonstram o alcance do positivismo,
trataremos no próximo capítulo.
84
Na literatura criminológica estrangeira, que alcançamos, estes movimentos
teóricos se repetem, demonstrando a integração doutrinária.
Para Quintiliano Saldaña, que se louvar a inovação e pesquisa de Lombroso,
mesmo com a limitação de seu positivismo indiferentista. Propondo uma revisão
metodológica do que chama de simplismo e desvio de ponto de vista com uma
antropologia criminal integral, uma criminologia pragmática, que se aplica “ao estudo
de todo homem, normal e anormal, como causa da atividade criminal ou delinqüente”
(SALDAÑA, 2003, p. 237). E esta criminologia, articulada com a penalogia, deve:
Prever, mas com um certo grau de probabilidade, o crime no criminoso
eventual (estado perigoso individual) e em seu meio (estado perigoso social)
a fim de que a penalogia possa por sua vez prover à defesa social em sua
função preventiva (medidas de segurança). (SALDAÑA, 2003, p. 144)
No quinto Congresso Internacional de Criminologia, realizado em Roma, 1955,
realizado pela Sociedade Internacional de Criminologia, reuniram-se professores e
pesquisadores, inclusive a brasileira Armida Bergamini Miotto, para discutir a inter-
relação entre delito e personalidade.
Nas palestras inaugurais destacamos as de Alfredo Niceforo, já professor
emérito da Universidade de Roma, que reafirmou ser a criminologia um estudo
biossocial do criminoso e da reação e prevenção social do delito
59
e de Dennis Carrol, à
época presidente da Sociedade Internacional de Criminologia, que recolheu uma série
de pesquisas psicológicas, fisiológicas para propor uma nova classificação da
personalidade dos criminosos
60
.
Nas conferências, todas descrevendo as possíveis relações entre o crime e a
personalidade, ressaltamos Benigno Di Tullio, que expôs a finalidade da criminologia
clínica e seu método
61
; Filippo Grispigni, que apresentou considerações sobre a
59
Criminologia, studio sintetico e propedeutico che consiste: a) studio della delinquenza nei suoi fattori
biologico-individuale, da un lato e ambientale dall´altro; b) esame del critério di responsabilità; c) forme
della reazione sociale (o repressione) e della prevenzione sociale del delitto.” (NICEFORO, 1955, p. 9).
60
Ces recherches, qui sont d’un valeur pratique évidente, reflètent un point de vue théorique important,
à savoir que les aspects biologiques e psychologiques du caractère et de la personnalité, et les conditions
sociales dans lesquelles ils se développent, agissent ensemble pour produire un acte criminel. De plus, il
peut bien se faire que, dans des études à venir portant sur la personnalité chez les criminels, nous
tracerons une nouvelle classification de la personnalité, établie non pas en fonction d’entités complètes
empruntées à l’anthropologie, à la psychiâtrie et à la psychologie, etcétera, mais seulement en fonction
des aspects précis de la personnalité, biologiques, psychologiques et autres, dont on est sûr qu’ils sont en
relation pertinente avec une conduite criminelle.” (CARROL, 1955, p. 22).
61
Circa la finalità della criminologia clinica, esse sono principalmente due, e cioè la diagnosi della
personalità del reo ed il suo trattamento medico-psico-pedagogico. Con la prima se deve tendere a
85
personalidade como indistinta do delito, por ser este expressão daquela; Giuseppe
Bettiol, que discorreu sobre culpa moral e personalidade criticando o pensamento
retribucionista
62
; Marc Ancel que após uma análise comparativa das classificações de
delinqüentes, propôs uma flexibilização legal para o juiz poder utilizar livremente as
definições propostas pela “ciência moderna”
63
. Na finalização Lucio De Angelis
resume em sete pontos as proposições do curso, das quais traremos apenas a primeira
pela sua capacidade sintética do espírito do congresso: Delito e personalidade
constituem um binômio inseparável: Se vamos compreender o fenômeno da
delinqüência, não basta só a investigação jurídica”
64
.
Propondo uma criminologia interdisciplinar com fundo etiológico, Miguel
Herrera Figueroa reanima as propostas positivistas com indicações ecléticas que vão da
filosofia à psicologia, da economia à ecologia, unidas em torno da defesa social
65
;
enfatizando a periculosidade, Antonio Horacio Bruno e Guillermo Hugo Martínez
Pérez, dicos forenses argentinos, desenvolvem uma biopsicologia efetivamente na
linha criminológica positiva
66
.
mettere in relievo i tratti salienti della personalità del delinquente, per conoscere anzitutto i motivi e più
precisamente la genesi e la dinamica della sua azione delittuosa, e, attraverso tali indagini, poter
valutare la sua capacità a delinquere e la sua pericolosità sociale.” (DI TULLIO, 1955, p. 105).
62
E nessuno potrà negare che tutta la evoluzione del pensiero criminologico concernente la personalità
del soggetto è dominata da una tale impostazione, quand’essa dai primordi de una impostazione
antropologica à passata gradatamente verso le forme più evolutive e sottili del Di Tullio di una
cosiddetta ‘costituzione delinquenziale’ come preesistente morbosa predisposizione al delitto che esplode
in determinate condizioni ambientali favorevoli.” (BETTIOL, 1955, p. 286).
63
Saleilles notait que ces pouvoirs d’individualisation conduisaient logiquement à une
classification des délinquants également judiciaire et non légale, préférable du reste, selon lui, à une
classification proprement législative (...) Enfin ou a déjà remarqué que tout ce mouvement moderne de
réforme repose sur la prise en considération de l’état dangereux qui tend à devenir le criterium essentiel
de la peine ou tout au moins de ces mesures de sûrete (...) me du point de vue de l’appréciation de la
personnalité et de la periculosité du délinquant, l’acte, comme l’à très bien montré M. Grispigni, est le
premier élément que le juge doive prendre en considération (…) Ainsi, le problème de la classification
des délinquants, qui n’a pas été solu par la législation positive, n’a plus à être résolu par elle: il suffit
que la loi effectivement en vigueur ne l’ignore plus et permette au juge, criminologiquement formé à cet
égard, d’utiliser les classifications que pourra lui fournir la science moderne.(ANCEL, 1955, pp. 369-
372).
64
Delitto e personalità costituiscono un binomio inscindibile: Se si vuole comprendere il fenomeno della
delinquenza, non basta la sola indagine giuridica.” (DE ANGELIS, 1955, p. 655)
65
Como en tantas partes lo expusimos, a la Escuela Penal e Criminológica italiana iniciada por aquel
médico turinés César Lombroso, le debemos una renovada apreciación de los orígenes del delito y ella
inunda todo el ámbito criminológico (…) lo fisicoquímico, lo económico, lo óntico de los filósofos,
confluyen en lo biótico de que se ocupan normatividades jurídicas, las que regulan el mundo circundante
del siendo humano concreto, aquellos derivados de contaminaciones ambientales, consumo obligado de
detritus y tantas calamidades heredades por una industrialización descuidada. (HERRERA
FIGUEROA, 1991, apéndice, p. 1)
66
El pronóstico criminal es la etapa del estudio criminológico mediante el cual establecemos, en una
proyección hacia el futuro, la evolución favorable o desfavorable de un delincuente (…) El pronóstico
86
Numa postura eclética, mas se afastando do reducionismo positivista: Carlos
Alberto Elbert traduz a criminologia como uma disciplina investigativa que integra
diversas ciências sociais com seus métodos, objetos e conceitos próprios alinhavados
em torno do direito penal (ELBERT, 2003, pp. 187-189); bem como, Antonio Beristain,
que visa uma profissão humanista, multidisciplinar, com um amplo espectro de
atividades (BERISTAIN, 1998). Um tanto diferentemente, Antonio García-Pablos de
Molina, reafirma o status científico e empírico da criminologia, analisa as diversas
escolas teóricas e a atuação destas concepções para trazer um paradigma de conciliação-
reparação através da mediação, mesmo reconhecendo um incremento atual de modelos
regressivos de controle social (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, 2006).
Com uma perspectiva nova e original para a época, Tony Platt escreve em 1973
sobre a criminologia radical nos EUA, para a coletânea “Criminologia crítica”, onde
critica as correntes ideológicas burguesas como o liberalismo, o reformismo e o
pragmatismo, por entender que todas se assentam na definição legal do crime. Para
fazer frente a essa situação objetiva redefinir o objeto de pesquisa utilizando a teoria
marxista de uma forma engajada e crítica, mesmo sob o ataque do establishment
acadêmico (PLATT, 1980, pp. 113-134). Postura comum a todos os autores da
coletânea citada.
Com o mesmo enfoque crítico Massimo Pavarini afirma que a pena e o controle
social desenvolvido em torno dela têm como base o sofrimento e a degradação social do
desviante com a marcação do estigma criminal. Analisa que, pela lógica da defesa
social, o sistema penal lança mão de artifícios político-administrativos, como as
“valorações de periculosidade” nas medidas de segurança, quando fracassam os
modelos retributivo e preventivo de justificação da pena:
E é propriamente na presença deste universo de condutas ilícitas merecedoras
de censura, mas de fato praticadas por sujeitos que o necessitam de serem
socialmente controlados e neutralizados através da pena do cárcere, que
naufraga irremediavelmente cada teoria justificante da pena. A contradição se
oferece à análise crítica como paradoxal: a única pena que podemos justificar
não é socialmente praticável; o único sofrimento que de fato infligimos não é
justificável. (PAVARINI, 2002, p. 105)
criminal yace en el concepto de peligrosidad y en base de ésta, sea mayor, menor o haya desaparecido,
determinaremos las posibilidades de una futura readaptación social. (HORACIO BRUNO e
MARTÍNEZ PÉREZ, 2003, p. 175)
87
Com essas assertivas o autor realiza a avaliação do restaurador paradigmano
sistema de justiça penal como algo novo e diferente que “talvez não capaz de alterar o
sistema em si mesmo, mas certamente de contribuir ao superamento [sic] de velhos
equilíbrios”. Assim, acredita que como etapa de novos caminhos o modelo restaurador
possa ser um ponto de ruptura com os padrões retributivo e reeducativo (PAVARINI,
2002).
Pavarini, que partilha a mesma orientação teórica de Cirino dos Santos, a
criminologia crítica, nos revela alguns pontos novos, que ampliam nossa visão crítica
destes conceitos, dando oportunidade de novos desdobramentos que não vamos aqui
iniciar.
Cremos que com essa significativa, e limitada, comparação de autores e
pensamentos, podemos dizer que está referenciada nossa hipótese. Mas, também
acreditamos necessário trazer o ponto de vista da psicologia sobre a personalidade, tema
do próximo capítulo, para tentar responder as perguntas-problema iniciais.
Capítulo 4
Psicologia
A definição da personalidade envolve sobretudo a contextualização em alguma
teoria psicológica, pois sobre esta acepção desenvolvem-se pontos de vista divergentes,
convergentes e concorrentes. Dizer da persona
67
, da personalidade
68
é dizer do ser
humano a ser conhecido na clínica, na escola, no trabalho, na prisão etc., através da
avaliação psicológica ou resultado final de uma testagem.
As variações conceituais são amplas, Henri Piéron cita que Allport chegou a
enumerar cinqüenta acepções diferentes para esta palavra (PIÉRON, 1983, pp. 404-
405). no “Vocabulário de psicanálise” os autores não abordam o conceito como
verbete, pela dificuldade de delimitar o termo na psicanálise (LAPLANCHE e
PONTALIS, 1979).
Toda esta diversidade vem da amplitude teórico-metodológica da psicologia,
ainda num processo de formação, pois ainda o se esgotaram as linhas de hipóteses e
aplicações possíveis. Julgamos conveniente trazer um breve relato da trajetória desta
recente ciência.
4.1 Teorias psicológicas
Como conseqüência de uma conjuntura histórica a psicologia surge com a
vivência da subjetividade, idéia salientada na estabilização da burguesia como classe
hegemônica, produtora de sentidos e detentora de poder.
Se no feudalismo a sociedade foi rigidamente estratificada pelas condições de
nascimento, anulando as mobilidades sociais, com a ascensão econômica da burguesia
apareceram novas formas de ocupações e de acessos aos recursos socioeconômicos, que
67
Latim persona, nom de persona, ae: máscara, figura, papel representado por um ator, pessoa,
indivíduo.” Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0.5.
68
“Latim tardio personalitas, atis ‘personalidade’, derivado de personalis, e ‘inerente à pessoa, pessoal’.
Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0.5.
89
por sua vez geraram percepções diferenciadas de si mesmo e da sociedade; a
subjetividade fez-se presente no momento em que o sujeito se viu diverso dos demais,
pelas suas atividades, posses ou lugar social. Saíram os estamentos e surgiram as classes
sociais, com toda a sorte de excepcionalidades e incertezas. Esse novo ator social, o
burguês, era singular, self-made man, não fazia parte de uma genealogia, não podia
lançar mão de uma história de vencedores, então destacou seus valores subjetivos,
peculiares.
Essa percepção do diferençado foi teorizada, sofreu contestações e afinal
venceu, originando uma produção filosófica que destacava o indivíduo, no pragmatismo
inglês e no iluminismo francês. Com o idealismo germânico esta concepção chegou ao
seu ápice, não há mais como contestá-la, a subjetividade burguesa se impôs e necessitou
de ser referendada pela ciência, casuisticamente apareceu a psicologia, construída “a
partir das idéias racionalistas, empiristas e mecanicistas, e ainda a partir da concepção
de homem como ser único, livre e dotado de um ‘mundo interno’ que precisaria, dadas
as necessidades deste momento histórico, ser desvendado” (KAHHALE e ANDRIANI,
2002, p. 81).
O termo psicologia foi criado por Wilhelm Wundt, que em 1875, na cidade de
Leipzig, montou o primeiro laboratório de psicologia experimental. Ali desenvolveu
pesquisas sobre a mente humana, sobre a consciência como sede do sujeito, na sua
experiência imediata e sensível, tentando decompô-la em elementos interligados e
ordenados ativamente pelo pensamento. Para isso utilizou como método a introspecção,
uma reflexão interna, que procurava estabelecer um relato fiel sobre a duração,
intensidade e dimensão dos estímulos externos percebidos pelos órgãos dos sentidos.
Fundamentado nestas pesquisas, Wundt propôs duas vertentes: a psicologia
experimental, que estudaria pela observação e experimentação os fenômenos psíquicos
e a psicologia social ou cultural, para os processos simbólicos comunitários, que seriam
analisados histórico e comparativamente. Estas idéias demonstram a forte influência do
positivismo comteano, que dominava o cenário acadêmico e intelectual da Europa na
época. E é justamente através do método positivo de experimentação e observação que a
psicologia conseguiu sua autonomia como ciência, destacando-se da filosofia. Deu-se
assim, início a uma constituição científica impregnada do experimentalismo, e que irá
perpassar toda essa curta história. Essa dualização de objetivos iniciada na origem,
90
marcou a nova disciplina em todo posterior desenvolvimento, favorecendo diferentes
abordagens teóricas (KAHHALE e ANDRIANI, 2002, pp. 83-94).
O século XX viu multiplicarem-se as escolas na psicologia, como macro-
sistemas fechados com todos e conteúdos específicos, além do incremento das áreas
de atuação – clínica, educacional, social, jurídica, de trânsito etc. –, mas, no entanto, não
intentaram superar as perspectivas deterministas e mecanicistas inaugurais, favorecendo
seu uso como “instrumento de controle e estratificação social” (KAHHALE e
ANDRIANI, 2002, p. 95). Vejamos, reduzidamente, algumas dessas formulações.
O estruturalismo de Edward Titchener, derivado diretamente das idéias de
Wundt, utiliza um conceitual atomista e associacionista, procurando quantificar e
qualificar os elementos mentais conscientes através de experimentações e da
introspecção. Seu trabalho, puramente teórico, influenciou a psicologia genética
construtivista de Jean Piaget, entre outras (FREIRE, 1997, pp. 99-101).
O funcionalismo iniciado por William James referenciava-se nas propostas de
Rousseau, Darwin e Brentano, e foi continuado e estruturado por John Dewey, James
Angell e Harvey Carr, tinha como princípio que o estudo do psiquismo visa a adaptação
ao meio, pesquisando as operações mentais conscientes. Como método aplicava a
introspecção e outras cnicas. Procurava compreender o funcionamento dos diversos
processos mentais, como o raciocínio, a vontade etc., para buscar o ajustamento do
indivíduo, com uma conotação pragmática e aplicada. Influenciou a gestalt e o
behaviorismo (FREIRE, 1997, pp. 102-105).
O behaviorismo ou comportamentalismo, fundado por John Watson e
influenciado pelos experimentos de Ivan Pavlov e Vladimir Bechterev, rompeu com os
padrões metodológicos anteriores ao propor uma observação externa detalhada do
comportamento emitido pelo sujeito, negando as características inatas e dando ênfase ao
ambiente, como variável decisiva na previsão da conduta. Seu conceito central é o par
SR (stimulusresponsum), a cada estímulo recebido o organismo reage com uma
resposta. B. F. Skinner elevou o tom experimental e teórico desta escola ao expor uma
técnica de reforço do comportamento que analisa as interações dinâmicas do organismo
numa tríplice determinação: filogenética, ontogenética e cultural – as contingências
ambientais –, que modelam e controlam as respostas obtidas (SRSr), o estímulo
aplicado tem uma resposta que leva ao estímulo reforçador. O homem controla e é
91
controlado pelos comportamentos exprimidos dentro do seu meio (KAHHALE, 2002,
(a)).
O gestaltismo ou psicologia da forma, desenvolvido por Max Wertheimer, Kurt
Koffka e Wolfgang Köhler, explicava o mundo psíquico através de um campo de forças
psicofísicas que organizam a realidade vivenciada. Estas forças são subordinadas a leis
que organizam o eu, o pensamento, as emoções em padrões gestálticos. Assim, temos as
leis da semelhança e da proximidade que irão dispor as percepções e sensações do
sujeito para configurar seu eu como um sistema submetido, também, à lei da boa ordem.
Esse sistema, como maneira de resolver as tensões que aparecem no dinâmico processo
de busca do equilíbrio e da estabilidade nas relações do “organismo-meio” e nas
relações internas dos subsistemas, utiliza a lei da boa continuidade para agrupar,
segregar, centralizar os elementos percebidos numa pregnância estrutural”, que é a
melhor síntese naquele momento. O comportamento humano tem, então, essa
motivação: a procura da melhor forma para aquela situação (DONZELLI, 1980).
A psicanálise, teoria de Sigmund Freud, é sem dúvida a formulação psicológica
que mais influenciou os campos de estudo do indivíduo e da cultura no culo XX. A
formação médica de Freud perpassa toda sua obra, pois utiliza conceitos fisio-biológicos
para formular seus conceitos que alteraram radicalmente a compreensão da psique
humana. Na busca de validação e aceitação, e pela própria época em que viveu, é
perceptível o esforço que empreendeu de embasar positivo e cientificamente seus
construtos teóricos, mas, ao final, rompe com essas limitações criando uma
hermenêutica própria. Se num primeiro momento, trabalha somente com e para a clínica
neuropsiquiátrica que exercia, gradativamente amplia os horizontes da investigação
psicanalítica, incluindo temas culturais e sociais. Fundamentando-se no inconsciente e
na sexualidade, entendida amplamente como procura da satisfação, concepções
originais que desenvolveu para explicar a organização do psiquismo, bem como outras
noções estruturais de lugares, dinâmicas e energia tópicas, pulsões e libido –, que foi
construindo, reformulando e aprofundando ao longo do trabalho teórico e clínico que
nunca deixou de exercer. Sua visão é pessimista, o homem e a cultura são pólos opostos
em constante atrito cujas resoluções parciais sempre subjugam o homem àquela. Seus
colaboradores e continuadores incorporaram novas áreas de aplicação do conceitual
92
psicanalítico, como as práticas institucionais e grupos terapêuticos, e ampliaram as
interpretações sócio-culturais que Freud já iniciara.
Como mais nova vertente, e com amplas possibilidades de superação dos
determinismos anteriores, temos a psicologia histórico-cultural, iniciada por Lev
Vigotski e continuada por Alexander Luria e Alexis Leontiev na Rússia, à época da
extinta União Soviética. Manifestamente inspirada no materialismo histórico dialético
marxiano, propõe o uso dos postulados desta formulação numa teoria que reveja as
concepções positivistas e idealistas. Critica a visão abstrata e ideológica do fenômeno
psicológico, inserindo-o no contexto material da realidade social e cultural em que vive
o homem, rompendo com o naturalismo, a objetividade e o universalismo aceitos. A
compreensão da subjetividade como construção histórica que reflete a posição social e
material do sujeito, é alternativa aos modelos anteriores. No Brasil embasa a psicologia
sócio-histórica, de viés social (BOCK, 2001).
Que fique claro que existem outras teorias, destacadas conforme a preferência de
quem seleciona, mas para nós não tiveram a mesma capacidade de propagar suas idéias
como as listadas. Com a difusão e vulgarização dos conceitos, as escolas perderam suas
especificidades, havendo noções aplicadas interpoladamente pela sua capacidade
explicativa. Fala-se hoje de tendências, linhas, posturas para referir aos mini-sistemas
que focalizam a teoria articulada com determinada prática.
4.2 Personalidade
A falta de uniformidade que este termo apresenta não deve enganar o
pesquisador, pois, apesar da inconstância conceptual, na psicologia uma referência
sempre se faz presente: é o foco no sujeito que se apresenta pelo comportamento, pelos
atributos ou pelas idiossincrasias demonstradas no convívio social.
Para procurar definir uma noção na psicologia, tentaremos assinalar o que foi
descrito sobre personalidade, tipos psicológicos, caráter e temperamento. Estes termos
têm em comum a mistura do senso ordinário com enunciados teóricos.
Num dos poucos trabalhos brasileiros específicos nesta temática, Wagner
Siqueira Bernardes examina o caráter na obra de Freud, que tomaremos como referência
93
para a teoria psicanalítica. Para ele, encontram-se dificuldades em deslindar as
diferenças, já que de início ressalta:
Personalidade refere-se ao caráter ou qualidade do que é pessoal. É ainda o
que determina a individualidade duma pessoa moral. O termo é também
usado no sentido de traços típicos. Como se pode notar, nos usos da língua os
três termos se emparelham, a ponto de um tornar-se definição de outro.
(BERNARDES, 2005, p. 19) (grifo nosso)
Afirma que na produção freudiana não houve uma intenção de definir conceitos
e sim de operacionalizá-los, e assim veremos uma alteração constante ao longo do
desenvolvimento teórico da psicanálise no significado dos termos que pesquisamos.
Para personalidade, ao constatar que Freud aplicava o termo indistintamente, o autor vai
buscar o sentido na concepção do psicanalista francês Jacques Lacan, que o aborda por
três parâmetros: 1 - a experiência comum, que remete para a síntese, intencionalidade e
responsabilidade como atributos; 2 - a metafísica tradicional, que confere um sentido de
alma substancial, e 3 - a psicologia científica, que objetiva um desenvolvimento bio-
psico-histórico e implica ideais ético-sociais, para então resumir em “síntese psíquica,
relacionada à afetividade, ao juízo e à conduta” (LACAN apud BERNARDES, 2005,
pp. 25-27). sobre o caráter, Bernardes chega a se perguntar, tal a matização freudiana
do termo, se é possível tipificar, caracterizar o sujeito. Mas enfim, enfeixa como uma
estrutura psíquica proveniente da vivência das fases psicossexuais infantis (oral, anal,
fálica), pois: “os traços de caráter que se tornam permanentes são continuações
inalteradas das pulsões originárias, sublimações destas ou formações reativas contra
elas” (FREUD apud BERNARDES, 2005, p. 52). Tipo e temperamento são termos com
uso correlato para o caráter, não tendo sentido próprio.
Não é do nosso conhecimento uma maior produção nacional sobre estes temas,
sendo reconhecidos os trabalhos de autores estrangeiros, recorremos então à obra de
Gordon Allport que influenciou muito profissional da área e de outras disciplinas, pela
dedicação à pesquisa da personalidade; ao compêndio de Calvin Hall e Gardner
Lindzey, por trazer uma panorâmica das teorias aceitas e trabalhadas nos Estados
Unidos da América e a coletânea de Arthur Burton, que procura ser mais direcionada à
clínica.
Gordon Allport, psicólogo americano cuja teoria particular categorizada como
eclética, ao procurar uma delimitação para personalidade, trabalha com os conceitos de
94
característica e intencionalidade, que se organizariam em grandes unidades psíquicas
que orientariam o comportamento, não importando as atitudes conflitivas e impulsivas
que desordenam temporária e acidentalmente este conjunto harmonioso (ALLPORT,
1962, pp. 115-120). Estas características seriam estruturadas em traços, predisposições
neuropsíquicas de comportamentos distintivos do indivíduo, dinâmicas e com forte
coesão interna estruturas mentais, em cada personalidade, que respondem pela
consistência do comportamento” (ALLPORT apud HALL e LINDZEY, 1973, p. 294).
Para o mesmo, o caráter implicaria num código de conduta, uma ética; o temperamento
seria um componente psíquico de raízes biofisiológicas, constitucionais e o tipo uma
construção externa ao indivíduo, que se adapta ou não àquela descrição (HALL e
LINDZEY, 1973, pp. 287-295). Bem se percebe a composição de diferentes fontes com
que Allport trabalha.
Alfred Adler, médico austríaco, formula sua teoria, psicologia individual, em
desacordo com Freud, de quem foi colaborador, pois destacou a questão social que faria
solicitações ao self (um eu significante e unitário), diminuiu a ênfase das pulsões e
instintos e reduziu a influência da sexualidade na formação psíquica do sujeito. Com
uma postura humanística e orientada para a área educacional entendeu que a consciência
configurada holística e unificadamente e que reage de forma singular, criativa e
autodeterminada aos objetivos definidos e alcançáveis, é a personalidade em sua
expressão máxima (ANSBACHER, 1978, pp. 95-110).
Harry Sullivan, psiquiatra americano de matiz culturalista, define a
personalidade como “um padrão, relativamente constante, de situações interpessoais
periódicas, que caracterizam a vida humana(SULLIVAN apud HALL e LINDZEY,
1973, p. 158), com o detalhe de ser hipotética pois o que pode “ser estudado é o padrão
de processos que caracterizam a interação de personalidade em determinados campos ou
situações nos quais se inclui o observador” (SULLIVAN apud HALL e LINDZEY,
1973, p. 158). Retoma o self adleriano, mas como um sistema (“self system”) que
protegeria a segurança e a unidade psíquica do indivíduo contra a ansiedade,
experiência interna que baliza quais comportamentos são relevantes e devem ser
incorporados a esta organização simbólica da personalidade. O que realmente importa
são as interações psicossociais como fundamento e impulsão da formação do sujeito e
de sua identidade.
95
Henry Murray, médico e psicólogo americano, relevou tal destaque para a
personalidade em seus estudos que rotulou sua teoria de “personologia”. Para ele a
personalidade teria uma natureza abstrato-teórica, sendo, portanto objeto de diferentes
acepções que refletem elementos permanentes e temporários do comportamento, mas
sua dinâmica é motivacional e impelida por necessidades e pressões, que serão
organizadas em grandes blocos, os temas, que procuram ativamente a redução de
tensões. Criou uma lista de necessidades e pressões que orientou diversas pesquisas
(HALL E LINDZEY, 1973, pp. 182-196).
William Sheldon, dico e psicólogo americano constitucionalista é criador da
última biotipologia conhecida, como resultado de suas extensas pesquisas afirmou que o
comportamento resulta como que de uma derivação funcional do temperamento, ou
seja, o comportamento exprime a operacionalização de um traço do temperamento. No
cruzamento experimental desta funcionalidade com o biótipo sico têm-se os caracteres
básicos de personalidade (HALL e LINDZEY, 1973, pp. 372-403). Como em outras
seriações, o orgânico adquire uma prevalência que praticamente anula o psíquico, e
desconsidera totalmente o social.
Carl Rogers, psicólogo americano profundamente influenciado pela
fenomenologia, fundador da terapia o diretiva ou centrada no cliente, prática e teoria
que descreve o homem como indivíduo que “tem uma tendência inata para desenvolver
todas as suas capacidades destinadas a manter ou a melhorar seu organismo a pessoa
total, mente e corpo” (ROGERS e WOOD, 1978, p. 194). Para ele a personalidade é
como um “continuumpsíquico que terá seu ponto máximo quando a pessoa conseguir
“uma congruência básica entre o campo fenomenológico da experiência e a estrutura
conceitual do self situação, que consumada, representaria liberdade de tensão e
ansiedade internas, e liberdade de tensão potencial” (ROGERS apud HALL e
LINDZEY, 1973, p. 532). que se ressaltar que Rogers nunca propôs um arcabouço
teórico acabado, sempre insistindo que sua obra é um referencial para um procedimento
terapêutico, não havendo regras ou definições pré-ordenadas, que como na sua visão
sempre busca melhoramentos.
Estendendo um pouco mais a pesquisa, encontramos em outras esferas de
atuação psicológica, a tentativa de delimitar esse conceito.
96
Ao analisar o desenvolvimento psicológico e físico da criança, Paul Henry
Mussen, John Janeway Conger e Jerome Kagan, interpretam o termo personalidade em
linha com as demais que já vimos:
A organização total ou o padrão de características do indivíduo, às formas de
pensar, sentir e comportar-se, reveladoras da peculiaridade de seus meio de
relacionar-se com o ambiente e adaptar-se a ele: aspectos comportamentais
do indivíduo que são não só estáveis como distintivos e que o diferenciam de
qualquer pessoa. (MUSSEN, CONGER E KAGAN, 1977, p. 303)
Para Henri Ey, a personalidade é uma construção vivenciada, integrada e auto-
referenciada:
Esta individualização da personalidade de si mesmo implica:
1º A integração de um sistema de valores lógicos que fundamenta meu
conhecimento e meu pensamento como instrumentos de meu poder sobre a
realidade.
Minha história enquanto seqüência de acontecimentos que se encadeiam
como minha própria existência.
Um ideal de eu, imagem unificadora que fundamenta minha identidade
como a identidade de alguém.
Uma autoconstrução que tende a me submeter, conformando-me a ela, à
dependência do mundo objetivo e do outro. (EY, BERNARD e BRISSET,
1981, p. 36)
Toda essa organização irá se refletir na “identidade do ego”, que também se
realiza através da “maturação bioneurológica, pelas experiências originais, pelas
relações inter-humanas, culturais, afetivas e sociais, pelas funções psíquicas de base,
pelo caráter e temperamento” (EY, BERNARD, BRISSET, 1981, pp. 35-40). Sua visão
sócio-biológica, ainda hoje é referência para um grande número de profissionais da área,
que demandam uma indicação organicista.
A psicologia sócio-histórica, no seu intento de tratar os temas psicológicos pelo
ângulo materialista histórico, considera:
A personalidade como fenômeno que se desenvolve controlada por
determinantes que atuam fora do campo do sujeito psicológico concreto e a
partir de um espaço interativo de distintos níveis de complexidade e de
hierarquia no qual o sujeito atualiza permanentemente sua condição social.
Assim, a personalidade se expressa como uma categoria psicológica
caracterizada mais por seu caráter configuracional do que por seu caráter
operacional, como até então a tratara a Psicologia tradicional. (GONZÁLEZ
REY apud FURTADO, 2001, p. 88)
97
Esta interação sujeito/meio difere das outras anteriormente vistas, pois não
perde de vista que a pessoa vive na realidade concreta e objetiva de condições materiais
condicionadas pela sua inserção de classe e que orienta seus valores, mas
subjetivamente capta e interpreta essa realidade, devolvendo ao grupo uma elaboração
própria, uma representação social, que fa parte de uma historicidade dinâmica das
determinações da realidade, que por sua vez engendra nova dialética. Assertivas que
demonstram um maior compromisso e fidelidade com o conjunto de fatos vividos na
prática diária do psicólogo no Brasil e que consideramos eficaz e coerente.
Acreditamos ter levantado suficientes abordagens, e demonstrado a variedade de
acepções do termo personalidade na psicologia, para que possamos afirmar que este
conceito tem uma precisa e forte conexão com a teoria a ser adotada, não existindo uma
noção aceita como modelo ou consenso. O que torna necessário que ao utilizar este
argumento se faça a menção a qual construção teórica está referida, o que o acontece
na lei brasileira.
Mas, entendemos que ainda um tópico a ser levantado: a normalidade e sua
imagem especular a anormalidade, no movediço terreno psi; para melhor fundamentar
esta dissertação.
4.3 Normal e Patológico
O normal e o anormal, ou patológico, o conceitos originários da medicina que
foram investidos de significado jurídico a partir do momento que foi necessário falar do
sujeito da ação criminosa, ou seja, quando o delito deixou de ser uma entidade abstrata e
foi colado ao corpo do delinqüente, no positivismo
69
.
Esther Arantes localiza no fim das lettres-de-cachet
70
, o surgimento do dilema
do que fazer com os loucos, os imorais e os degenerados. São, então, capturados pelo
discurso médico alienista, que se apresentou como justificador da repressão. Em
seguida, a medicina (psiquiatria), para melhor legitimar-se frente ao judiciário, diluiu os
69
Cf. o subitem 3.2.1.
70
“Utilização do poder real pelo controle espontâneo dos grupos. Quando uma lettre-de-cachet era
enviada contra alguém, esse alguém não era enforcado, nem marcado, nem tinha que pagar uma multa.
Era colocado na prisão e nela devia permanecer por um tempo não fixado previamente.” (FOUCAULT,
2003, p. 98)
98
anteriormente estritos limites entre o normal e o patológico, possibilitando a perícia
avaliação da responsabilidade do criminoso (ARANTES, 2004, pp. 24-26).
Michel Foucault ao historiar a psiquiatria legal do século XIX, deparou-se com a
monomania homicida, um conceito obtuso e de difícil justificação, que introduziu uma
patologização do crime. A partir deste tema, desvela o discurso oficial dessa
interdisciplinaridade, mostrando-a como extensão da pauta higienista predominante, que
se lançou ao “corpo” social, como objeto privilegiado da intervenção médica preventiva
das moléstias intrínsecas a este organismo (FOUCAULT, 2004 (a), pp. 7-10).
Para este filósofo, historiador e psicólogo, essa perspectiva centrada na patologia
social é a raiz da perigosidade, tratada no capítulo anterior, pois entre suas conclusões
sobre estas pesquisas, destacamos:
5) Encontra-se assim inscrito, tanto na instituição psiquiátrica como na
judiciária, o tema do homem perigoso. Cada vez mais a prática, e depois a
teoria penal, tenderá, no século XIX e mais tarde no XX, a fazer do indivíduo
perigoso o principal alvo da intervenção punitiva. Cada vez mais, por seu
lado, a psiquiatria do século XIX tenderá a buscar os estigmas patológicos
que podem marcar os indivíduos perigosos: loucura moral, loucura instintiva,
degeneração. Esse tema do indivíduo perigoso dará origem, por um lado, à
antropologia do homem criminoso da escola italiana e, por outro, à teoria da
defesa social representada inicialmente pela escola belga. (FOUCAULT,
2004 (a), p. 14)
Esse sistema higienista não se limitou à Europa, pela mesma época irrompeu no
Brasil. Jurandir Freire Costa, investiga detidamente a influência desta medicina
higiênica na vida familiar brasileira do século atrasado, ao detalhar as minúcias do
discurso dico da época e a extensão de seus efeitos no corpo e na organização dos
hábitos, faz original ligação entre a legalidade e a nova ordem médica:
Desenvolvendo uma nova moral da vida e do corpo, a medicina contornou as
vicissitudes da lei, classificando as condutas lesa-Estado como antinaturais e
anormais. Todo o trabalho de persuasão higiênica desenvolvido no séc. XIX
vai ser montado sobre a idéia de que a saúde e prosperidade da família
dependem de sua sujeição ao Estado. (COSTA, 2004, p. 63)
Num amplo estudo crítico, Tórtima apresenta o levantamento de toda uma
produção do saber médico, no Brasil de inícios do século passado, que amalgamou teses
lombrosianas, com a higiene, a eugenia, a moral e o senso comum, resultando num
99
“discurso dico-policial e jurídico nacional” que satisfaria “os mais exigentes teóricos
da criminologia positiva italiana” (TÓRTIMA, 2002, pp. 117-129).
Na mesma direção Cristina Rauter, ao analisar a constituição da criminologia no
Brasil e sua relação com a psiquiatria, nos revela que:
O discurso dico quer oferecer ao Estado uma tecnologia de gestão e
controle sobre as populações que não se dará pela repressão, mas como
complemento de programas de higienização e de saúde pública, ganhando um
caráter técnico-científico (...) Sob o impacto das ciências humanas, o próprio
direito penal irá transformar o direito de seqüestrar (ou de punir) numa
função técnica, baseado nas noções de anormalidade e de cura. (RAUTER,
2003, pp. 42-43)
Aprofundando nestas transmissões, Rauter afirma que “algumas entidades
nosográficas da psiquiatria vão estar particularmente relacionadas ao crime”, e destaca
em especial, a psicopatia, diagnóstico patológico do indivíduo que se opõe à lei. Ponto
que pôde conciliar o judiciário e a psiquiatria, e de quebra, embaralhou punição e
tratamento”, então “a oposição às leis pode ser transformada em patologia, o que
permite ‘adoecer’, por extensão, as formas de contestação ao estado. Cria-se a
necessidade de dispositivos capazes de conter tal tipo de ‘anomalia social’” (RAUTER,
2003, pp. 44-49).
Focando a participação da psicologia no Brasil, Ana Mercês Bahia Bock
confirma estas teses ao explicitar que “as idéias psicológicas estiveram, nesse período
[século XIX], marcadas pelas finalidades de higienização moral e disciplinamento da
sociedade” (BOCK, 2001, pp. 26-27).
Como percebemos nestas críticas, certas patologias médicas foram sendo
entrelaçadas pari passu com o positivismo criminológico, tanto acima como abaixo do
Equador. A morbidez clínica foi transmutada em anormal sócio-jurídico, um desvio da
“normalidade”, burguesa evidentemente. Mas o mais desconcertante, é encontrarmos
estas mesmas idéias em obras atuais, suavizadas, é certo, mas presentes.
Em obra reeditada, Guido Palomba, psiquiatra forense, assim expressa seu ponto
de vista:
Felizmente a maioria dos homens é sadia e flui no mundo de forma pacata e
não perigosa ao seu semelhante, tal qual ocorre com a maioria dos loucos,
que felizmente não é portadora de periculosidade. Porém, como homens
sãos de alta periculosidade social (...) assim também loucos externamente
100
perigosos, cujos atos acabam ferindo os bens tutelados por lei. São desses e
das suas patologias que vamos nos ocupar neste livro, e é no critério
normativo psiquiátrico-forense (razão e livre-arbítrio) que supeditaremos
nosso juízo de normalidade. (PALOMBA, 1996, pp. 18-19)
Ao trabalhar as correlações entre distúrbios da personalidade e os autores de
homicídio, Ana Paula Zomer Sica fundamenta-se numa etiologia genética, acrescida de
conceitos religiosos. A autora, ao iniciar, diz que sob a ótica criminológica,
continuamos a procurar o gene causador da delinqüência e, via de conseqüência, do
homicídio”, e exemplifica este tomando como protótipo o relato bíblico de Caim e Abel
(SICA, 2003, p. 25). Na conclusão da obra, -se que “É também a Bíblia que nos
mostra a primeira declaração de inimputabilidade da história: ‘Pai, perdoai-os, eles o
sabem o que fazem”. Finalmente, Sica expõe a seguinte adequação entre os temas
principais:
Pensando nos distúrbios de personalidade, independentemente de suas várias
causas e explicações, o fato é que eles, por si sós, explicam, em muitas
situações, condutas criminosas (...) Vimos, ainda, como cada caso é único,
como cada pessoa, com sua história, é particular; mais: como cada uma
dessas histórias pode levar ou não a um distúrbio; como cada distúrbio pode
levar ou não a um crime (...) Nada é descartável na base de um
comportamento socialmente desviante, constitua ele ou não um crime de
sangue. (SICA, 2003, pp. 112-113)
Mas, não podemos generalizar essas opiniões personalizadas, pois temos autores
que não se limitam a repetir fórmulas ocas de sentido.
Reformulando algumas idéias centrais de sua atividade, Heber Soares Vargas,
também psiquiatra forense, elabora a dicotomia que estamos examinando como
complexa distinção que não apresenta uma demarcação nítida, ressaltando o fato de
“serem os limites entre normal e anormal culturalmente definidos e de variarem
acentuadamente nos diversos grupos sociais” (VARGAS, 1990, p. 27). Releva ainda
que na psiquiatria forense acontece o complicador das simulações de anormalidade,
esfumando mais ainda os contornos da normalidade. Complementando, cita a definição
de um outro autor: “As personalidades normais ou patológicas são trabalhos feitos de
colaboração, em que é difícil afirmar o que pertence depois aos colaboradores, à
natureza e ao ambiente, compreendendo-se neste a educação e a experiência” (ALVES
GARCIA apud VARGAS, 1990, p. 201). Como se vê, Vargas o referenda
classificações nosológicas rígidas e ideologicamente demarcadas.
101
Devido a sua experiência no sistema penitenciário, Rauter faz críticas ásperas ao
fazer do psicólogo, do psiquiatra e do assistente social no campo jurídico, no seu texto
“Diagnóstico psicológico do criminoso: tecnologia do preconceito”. Baseando-se na
confecção e recepção dos exames para verificação de cessação de periculosidade
EVCP, assevera que tais laudos, independente da validez das técnicas utilizadas,
configuram uma operacionalização das práticas internas do cárcere com um rótulo
científico, altamente creditado no judiciário, por referendar seu aparelho repressivo.
Aponta a parcialidade político-ideológica dos profissionais, desmistificando a ilusão da
neutralidade técnica, na sujeição do indivíduo encarcerado a:
Um determinismo cego, mecânico e simplista é o que caracteriza estes laudos
de exame. É este tipo de determinismo que permite formular equações tais
como: carências familiares na infância + miséria = crime. (RAUTER, 2003,
p. 90)
Usando rigorosamente as regras psicanalíticas demonstra a disparidade entre
estas e o que é feito nos exames que investiga, enfatizando as traduções equívocas que
patologizam e criminalizam as vivências diferentes (RAUTER, 2003, pp. 83-111),
favorecendo uma retroalimentação teórica muito parecida com o método lombrosiano:
está na cadeia por “isso” e “isso” explica porque está na cadeia. Enfim, uma série de
observações que julgamos pertinentes pelo nosso conhecimento do mesmo universo
paralelo. E que mostra claramente a facilidade de ser cooptado por esse discurso
repressor de base etiológica e orgânica.
Por nosso juízo, a melhor forma de se preservar do canto de sereia, o apelo puro
e simples ao organicismo, frente aos limites impostos à compreensão, deve-se procurar
um delineamento teórico que possibilite abordar estas questões mais coerentemente com
a realidade social.
Em nossa prática e conhecimento cremos que a produção latino-americana da
psicologia sócio-histórica é a que melhor oferece os referenciais que necessitamos. Esta
corrente teórica explica que ao objetivar a consciência e o comportamento na conjuntura
da vida social, nas condições histórico-sociais, o homem torna-se produto da interação
externo/interno, como dito anteriormente. Sua conduta não está pré-definida por padrões
instintivos é a atividade social, o trabalho e sua divisão que motiva o comportamento. A
satisfação das necessidades foi intermediada por atos complexos que se ligam à
102
realização de determinadas funções direcionadas pela atividade consciente que organiza
o sentido em torno do resultado final. Excluíram-se as motivações biológicas diretas
pelo aparecimento de “operações” auxiliares, ou seja, comportamentos sociais. Indo
mais longe, esta teoria interpreta que o desenvolvimento biológico do homem está
inserido no processo de produção – de instrumentos, sentidos etc. – da sociedade
organizada, assim as modificações anátomo-fisiológicas que aconteceram nos milhões
de anos que nos separam dos nossos primeiros ancestrais derivam do fazer humano, e
este se rege por leis sócio-históricas (FURTADO, 2001, pp. 76-84).
Assim, a pesquisa psicológica irá privilegiar a relação homem/mundo, este como
meio objetivo, coletivo, social e cultural, pois “estão as fontes propulsoras do
movimento do homem. Ali estão os elementos básicos para que a relação do homem
com o mundo não seja a relação de um organismo com um meio nem possa ser vista
como tal” (AGUIAR, 2001, p. 96). No exercício da psicologia estudamos no indivíduo
estas relações socioculturais, mas sempre atentos à “gênese social da consciência”
(VIGOTSKI apud AGUIAR, 2001, p. 97). Visto que a linguagem, inevitavelmente
social e histórica, fundamenta a constituição do sujeito, articulando-o no exterior e no
seu interior, portanto somos seres significados pelos outros e internalizamos essa
significação, instrumentalizando estas mediações externas numa relação conosco
mesmo, a consciência de si. Mas esta apropriação não se faz de maneira integral, em
bloco, convertemos elementos que serão investidos de emoções e sentido subjetivo.
Esse processo necessariamente o é contínuo, podendo haver cisões e bloqueios, a
tensão entre o novo e o conhecido é que irá determinar a transposição da configuração
atual ou não (AGUIAR, 2001).
Então, é fundamental perceber que:
Ao realizar seu trabalho, o profissional deve ter consciência de que estará
interferindo em um projeto de vida que não lhe pertence. Daí a necessidade
do rigor ético que garanta o respeito e a transparência do profissional. Daí a
necessidade de o psicólogo conceber seu trabalho como intencionado e
direcionado, para que, com uma postura ética e rigorosa, possa, a qualquer
momento, esclarecer o direcionamento de seu trabalho, superando uma
suposta neutralidade que ocultou sempre, no discurso cientificista, a
concepção de normalidade” e saúde que nada mais eram do que valores
sociais instituídos e dominantes sendo reforçados. (BOCK, 2001, p. 31)
103
Esta posição passível de críticas, pela novidade, pelo anticonvencional, tem,
reafirmamos, a nossa preferência, por traduzir as dificuldades que encontramos na
prática de uma forma efetiva e respeitosa pela pessoa humana, e trazer ao conceito de
normalidade, e ao seu duplo a anormalidade, um enfoque psicológico.
Com essa exposição das teorias e pontos discursivos polêmicos da psicologia,
entendemos que as nossas questões iniciais podem ser novamente apresentadas e
submetidas à apreciação.
Capítulo 5
Articulação
Através dos capítulos anteriores pudemos trazer um condensado das teorias
jurídicas nos tópicos que consideramos principais para o nosso trabalho e uma
exposição sintética de como as variadas construções psicológicas analisam temas que
importam nesta produção discursiva. Pretendemos agora confirmar se estes dois
domínios que partem de premissas distintas se traspassaram ou não e circunscrever em
qual ou quais pontos isso aconteceu, já antecipando que para nós essa interpenetração vá
ocorrer neste assunto que escolhemos para pesquisar, devido às convicções formadas no
decorrer desta dissertação.
Acreditamos que de início, devemos retomar com foco mais crítico a
culpabilidade nas suas significações, mas especialmente como categoria analítica do
delito, intensificando a exposição do subitem 2.2 do primeiro capítulo sobre esta
complexa temática; bem como as escolas da psicologia, por serem o ponto de partida
teórico sobre a personalidade.
5.1 Culpabilidade
Um conceito fundamental, hoje a culpabilidade é uma verdadeira base
garantista no direito penal; no entanto contém uma possibilidade de uso punitivo
desmedido e arbitrário, que se revela apenas deslocando o foco normativo para o ângulo
do autor na interpretação deste marco legal. A transferência do ponto central desta
baliza jurídica produz uma discussão radicalizada em duas posições: uma sustenta o
atual entendimento que delimita o poder estatal punitivo e outra quer o sobrestamento
das garantias que tradicionalmente acompanham esta norma, interrompendo-as em
função de uma visão de mundo autoritária, que procura se infiltrar em qualquer fresta
encontrada no sistema legal. Sem qualquer dúvida nos filiamos à primeira das opções e
105
como justificativa trazemos uma compreensão pessoal do desenvolvimento deste
conceito.
5.1.1 Como princípio, a culpabilidade impõe uma formal estruturação à penalística,
que sempre terá por fundamento o homem em suas completas características biológicas
e psíquicas e habilidades sociais, para que se possa projetar a punibilidade pela ação
considerada crime sobre ele. Este preceito constitucional conforma a norma penal
subsidiária de forma taxativa, ou seja, não se deve eludir esta condicionante sob pena de
invalidar a lei e desajustar seqüencialmente os outros princípios interdependentes da
legalidade, da lesividade, da proporcionalidade, da humanidade e da responsabilidade
pessoal
71
, e, conseqüentemente, desorganizar o Estado de direito, democrático ou não,
organizado numa disposição encadeada. Apesar disto vemos no Brasil, no seguimento à
reforma penal de 84 e à Constituição de 88, que sucessivas leis foram propostas
instituindo regras que colidem frontalmente com a atual dogmática, procurando voltar,
em mais de cem anos, para o direito penal de autor. É verificável que neste movimento,
os meios de comunicação de maior penetração e com forte apelo tradicionalista tem um
peso desproporcional, geralmente fazendo pender a máquina legislativa e judiciária para
o lado que demandam, o estado de polícia. Mas, não se pode esquecer que, aos poucos,
os tribunais superiores retornam aos parâmetros legítimos já estabelecidos, o que se
verificou no caso da lei dos crimes hediondos, apesar da forte oposição encontrada. No
entanto, a possibilidade está aberta, demandando uma contínua crítica e atenção sobre
estes transbordamentos.
Aparentemente, na sociedade brasileira uma melancolia de tempos idos, uma
saudade do autoritário e arbitrário, pois se uma minoria dominante advoga abertamente
a ilimitada defesa social, a maioria que irá sofrer os efeitos destes planos poderia se
indispor contra, mas concorda e acata tais quimeras de segurança. Mas, deixemos estas
divagações e voltemos ao nosso tema.
Como categoria na análise do fato punível e antecedente necessário para a
aplicação da pena, a noção jurídica da culpabilidade envolve uma série de garantias ao
cidadão. Estas convenções foram conquistadas revolucionariamente ou nos avanços
contínuos do direito, que resultaram das cada vez mais refinadas teorizações do direito
71
Cf. a exposição no subitem 1.1.1.
106
penal na edificação de um dispositivo aprimorado, e devem ser empregadas para
proteger o indivíduo contra os excessos dos poderes punitivos do Estado, que foi
apelidado expressivamente de estado-gendarme. Estes melhoramentos foram
cristalizados nos princípios anteriormente revistos que conformam a lei substantiva e no
processo penal nas garantias da igualdade, do processo legal devido, do contraditório,
da publicidade, do juiz natural, todas referidas no primeiro capítulo.
Não obstante, a difícil delimitação da culpabilidade como conceito jurídico-
penal sempre favoreceu críticas e puseram esta apreciação em permanente controvérsia
teórica sobre sua adequação às funções político-criminais e à determinação da
proporcionalidade da sanção penal, tarefas atribuídas à mesma noção. Vamos revisitar
as conceituações sistematizadas.
5.1.2 A primeira exposição metódica do termo teve sua origem na responsabilidade
subjetiva do autor enunciada pela teoria psicológica da culpabilidade, esta impregnada
do positivismo sociológico, e entendida como a vontade consciente do agente
encaminhada para obter um evento, o componente subjetivo do delito. A transgressão da
lei naquele momento era compreendida como uma dualidade de forças, uma objetiva
apreendida como delito natural, suscetível de observação como um fenômeno físico e a
subjetiva, fato psíquico observável e também passível de descrição; categorias vistas
como estanques e concebidas para a explicação empírica do ilícito penal, que
procuravam estabelecer uma relação causal e psicológica entre o indivíduo e a ação,
seguindo o mais puro pensamento natural-causalista. Desta divisão, podemos extrair as
seguintes conseqüências: a responsabilidade é pessoal, recai apenas sobre o autor; o fato
punível limita a atribuição de responsabilidade àquele fenômeno, o mais
transcendendo a uma série infinita de situações decorrentes e somente através do nexo
causal entre fato e autor efetivado pelo dolo ou pela culpa se impõe a pena, subjetivando
a responsabilidade. Umas tantas substituições que alteraram radicalmente a prática e a
teoria do delito, assegurando direitos individuais que até nesse momento não eram
discernidos. E por derivação dogmática, este novo sistema teve o efeito de restringir a
responsabilidade objetiva que sustentava o princípio do versari in re illicita, onde a
causalidade sucessiva imputava até as conseqüências fortuitas que adviessem; usado em
107
modelo nos crimes preterintencionais
72
. Idéias claramente abusivas para nossos padrões
atuais, mas significativas de toda uma tradição autoritária e oligárquica do direito de
então que remontava à civilização mesopotâmica. Outra conseqüência foi afastar do
discurso jurídico a problemática questão do livre arbítrio, que era mantida pela tradição
escolástica, como fundamento de toda ação humana, introduzindo um elemento da
moral religiosa nas definições legais.
Estas contribuições do positivismo sociológico da escola alemã têm pouca
ligação com a doutrina do positivismo etiológico italiano. Esta, apesar de suas
questionáveis idéias e resultados, também concorreu para originar algumas garantias, ao
destacar o indivíduo que realizava o ilícito como materialização sintomática e avaliável
de um distúrbio característico ou do coletivo, o que se opunha ao pensamento jurídico
anterior, qualificado como metafísico por tratar o crime como puro e abstrato ente
jurídico. Para melhor entender a “gênese” do crime, necessário se fez procurar no autor
o que o diferenciava dos “normais”, o que o tornava perigoso. As duas noções mais
combatíveis de toda esta doutrina, o direito penal de autor e a periculosidade.
Encontradas e classificadas as causas, não se podia mais falar de uma sanção genérica, é
preciso individualizar e fundamentar a pena, afinal o que passou a ter importância é o
criminoso e como a sociedade irá lidar com ele, o que deve ser detalhado na sentença
penal. Assegurava-se assim a criação de regras que irão garantir, a posteriori, que o
sujeito da ação penal seja pensado na condição de pessoa com dignidade, passando a
pena a ter um cunho personalizado.
5.1.3 O esgotamento do positivismo como pensamento dominante e as falhas internas
da concepção anterior possibilitaram que a crítica oriunda de uma perspectiva
jusfilosófica neokantiana alterasse o conceito e agregasse um componente normativo, a
reprovação legal da conduta do agente referenciada no procedimento contrário ao dever,
ao componente subjetivo. O relativismo valorativo, pensamento próprio das ciências
humanas que trabalha com preceitos éticos na compreensão do problema, ao ser
aplicado na teoria do delito produziu uma reconfiguração da culpabilidade, afastando-a
da metodologia empirista. Esta novidade da chamada teoria normativa, também
72
“Tem-se crime preterintencional quando o resultado ocorrido é mais grave do que o querido pelo
agente, e por esse mais em que o resultado excede o contido no seu dolo responde também o agente,
agravando-se-lhe a pena.” (BRUNO, 2005, p. 49).
108
psicológico-normativa, possibilitou a resolução de algumas situações dificilmente
explicáveis que eram então encontradas, como os casos de estado de necessidade e da
culpa inconsciente, pois com essa nova enunciação o ato passou a ter de ser
(des)valorado para se reprovar o autor. E essa depreciação legal exigia que o conjunto
de fatores da ação estivesse dentro de uma regularidade predeterminada, as chamadas
circunstâncias concomitantes, o que excluía a culpa inconsciente. A situação do estado
de necessidade é explicada pela noção de inexigibilidade de conduta diversa, sob o
critério de reprovação. Não mais um puro vínculo psicológico, ou uma pura
causalidade, na teoria do injusto penal; deve o acontecido realizar-se, também, com a
intenção de desobedecer ao preceito legal. Com isso, passou a incidir sobre o fato em
exame um juízo critico recriminador que apreciava o evento em três fases analíticas: a
imputabilidade; o dolo ou a culpa e a exigibilidade de comportamento conforme o
dever, etapa normativa da culpabilidade.
A reprovação tem um pressuposto combatível, ao repreender alguém o fazemos
na dedução de que houve uma vontade livre para fazer aquilo, sem constrangimento.
Esta liberdade volitiva é cabalmente refutada científica e juridicamente pela
impossibilidade de comprovação. Mas, ainda assim se firmou mais um compromisso
jurídico, a relação causal autor-fato não é mais o único determinante do crime, deve o
Estado fazer prova de uma intenção infracional para se aplicar uma pena.
5.1.4 Com o finalismo procurou-se afastar mais ainda as conotações naturalistas de
tipo causal ou psicológico que orientavam a culpabilidade, sem abandonar totalmente os
modelos precedentes, que ficou assim nomeada de teoria normativa pura. Como na
doutrina anterior, a reprovação implica um juízo de valor dirigido ao autor, mas agora
na culpabilidade passou-se a decidir se uma ação típica e antijurídica pode ser referida
ao responsável e, se assim for, promove-se a sanção do agente pelo comportamento
antijurídico. Deve ser salientado que nesta teoria o dolo e a culpa, abarcadas pelo tipo
de injusto, são qualificações definidas na ação penal, uma diferença radical que
caracteriza este sistema, pois se entende que todo comportamento querido tem uma
orientação de realizar um objetivo, um final pré-instituído, que é apreciado de
antemão ao se criar a regra legal, a tipicidade subjetiva. Teremos então uma pena
imposta àquele que sendo imputável e podendo manter-se conforme a norma optou por
109
se comportar de forma diferente, não se esquivando de concluir o delito. Esta abertura a
possíveis opções de conduta pressupõe um indivíduo convencionalmente dentro de um
padrão jurídico de normalidade com mais de 18 anos, sem doença mental ou
desenvolvimento psíquico incompleto, atestados que está caracterizado na
imputabilidade; esta por sua vez reporta diretamente para a capacidade de estar
razoavelmente informado da ilegalidade de suas ações, e isto está na dependência de ter
podido agir de outra forma, pois existem circunstâncias ou necessidades que permitem a
inexigibilidade de proceder nos moldes da lei. Construção que vem reforçar as
características do livre arbítrio encontrado na idéia de reprovação. Motivo de críticas
logo levantadas, visto que esta vontade livre, reiteradamente trazida para a teoria do
delito, tem o equívoco de criar genericamente um mediano homem racional e livre,
concepção firmemente enraizada na idealizada moral burguesa, mas que não se pode
evidenciar na realidade e muito menos demonstrar num processo penal.
5.1.5 Neste ponto do desenvolvimento jurídico, todos os institutos de garantia até
então criados acomodaram-se na legislação constitucional e penal de forma definida, os
princípios basilares dos direitos humanos. Mas a dinâmica social e cultural sempre
exige um algo mais das disciplinas das Humanas, com isso o direito é questionado pelo
viés político-criminal. Como conciliar um princípio-conceito relativamente
indeterminado com as necessidades práticas da administração dos conflitos diários?
Essa pergunta captura os debates, gerando teses e argumentações que compreendemos
tolher as garantias acima elencadas.
As imprecisões atualmente encontradas no conceito de culpabilidade são
reflexos desta dificuldade em mensurar a liberdade de vontade do indivíduo inserida no
poder-agir-de-outro-modo. Das propostas surgidas, especialmente na Alemanha, mas,
também na Espanha, em contraposição ao finalismo e sua normativa culpabilidade,
podemos, com certo atrevimento, sintetizar da seguinte maneira: a culpabilidade valora
as condições jurídico-penais definidas como necessárias para sinalar a pena mais
adequada às finalidades preventivas; ou indica uma ofensa à ordem jurídica que origina
uma necessidade da sanção como mecanismo de restabelecimento do direito; ou a
reprovação é uma valoração moral que deve ser eliminada, ou, finalmente, é uma
motivação que organiza a vida social a partir da norma. Podemos deduzir pelos
110
caminhos que vão as alternativas à culpabilidade normativa, um que de sugestão do
retorno ao que de pior produziu positivismo criminológico e suas implicações penais: a
prevenção especial calcada na periculosidade, que por sua vez se sustenta na
culpabilidade de autor. Pois a prevenção, geral ou especial, positiva ou negativa
73
, já foi
fartamente criticada e se comprovou sua ineficácia social e individual por pesquisas que
demonstram, perpendicular ou transversalmente, os efeitos negativos destas idéias, que
misturam noções simplistas de fisiologia, mecânica e psicologia com pretextados
direitos comunitários de defesa. O retorno ao pensamento kantiano, o obstante sua
riqueza hermenêutica
74
, é um recurso material de pouca valia, pois junto com ele vem a
base retribucionista que apesar de ser recorrente, com as formidáveis alterações
estruturais na sociedade e na moralidade ocorridas nestes dois séculos de diferença, não
contribui com nada mais novo para o direito
75
.
Que uma proximidade do finalismo com a formulação dos clássicos através
das considerações ontológicas da culpabilidade normativa, não podemos contestar; que
esta teoria defasou da acelerada realidade em que vivemos, o vamos discutir. Mas
aceitar que o direito retroceda à periculosidade garofaliana, indissoluvelmente atada aos
padrões “estéticos” do homem delinqüente de Lombroso, é se deixar levar pelo pânico
midiatizado e irresponsável, entrando no jogo conservador que pensa verticalmente na
manutenção e reprodução do status quo, disfarçado como segurança pública. Mas de
novo, deixemos a polêmica e retornemos à nossa exposição.
Para finalizar, as atuais orientações da culpabilidade princípio constitucional
penal, elemento analítico do delito e condicionante da pena, como protetoras do
cidadão, podem ser listadas rapidamente do seguinte modo:
a) O princípio orienta uma imputação subjetiva, ou seja, a vinculação do fato injusto
com o agente que quis aquele resultado; não havendo a vontade consciente dirigida, não
se pode estabelecer uma culpabilidade;
b) Analisando o fato punível temos diferentes graus de ligação, da culpa mais leve ou
irrefletida ao dolo positivo, antevisto; variáveis que terão um peso na determinação final
da culpabilidade;
73
Cf. os subitens 2.1.2., 2.1.3 e 2.1.4.
74
Cf. ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, pp. 521-525.
75
Ver o subitem 2.1.2.
111
c) Na seqüência deve-se examinar e decidir o quanto do conhecimento da realidade e de
suas conseqüências teria o autor; seu conhecimento é fundamental para afastar os
equívocos ou erros que porventura creditava à ação;
d) Com estas análises feitas teremos como conseqüência a sentença que irá
proporcionalmente adequar a pena traçada genericamente ao caso particularizado,
individualizando-o;
e) Assim, a reprovação adquire um contorno garantista que abrange a individualização e
fundamentação da sanção, limitando-a à pessoa ativa e ao fato antijurídico instituído.
No entanto, esse edifício bem organizado tem falhas estruturais encobertas pela
fachada racional de proteção ao indivíduo. Entendemos que esta construção além de
compor um projeto excludente de censura dirigida às camadas mais desfavorecidas,
mantendo-as “à margem da sociedade” da fartura, tem a finalidade de preservar
privilégios de uma minoria
76
.
Deixemos suspensa neste ponto a discussão do direito e passemos para a
psicologia. Acreditamos que examinar a expansão teórica desta outra disciplina
proporcionará um aclaramento para este trabalho.
5.2 Psicologia
Na psicologia as escolas são sistematizações de propostas sobre o homem, sua
constituição e características psíquicas. Esta área do conhecimento é particularmente
complexa, pois requer uma profunda auto-reflexão, afinal sujeito e objeto da pesquisa
são representações do mesmo ente material o ser humano. Esta dificuldade aparece
desde o início do pensar sobre si mesmo, atributo aparentemente único do homem, pois
vamos encontrá-lo nas reflexões das culturas mais antigas, de forma mística ou racional,
e na atualidade teorizado e dividido na dicotomia objetivo/subjetivo, mas sempre
presente. Desta forma, todas as teorias psicológicas contêm uma grande parcela da
ideologia de seu fundador, nos sentidos positivo e negativo
77
, ressaltando este ou aquele
aspecto que particularmente lhe interessou na vasta pesquisa do comportamento
humano.
76
Cf. CIRINO DOS SANTOS, 2006, pp. 485-488.
77
Ver o subitem 3.1.1.
112
5.2.1 Tomando o início científico da psicologia, vemos que Wilhelm Wundt ao
diferenciar a psicologia experimental da psicologia cultural ou social, fez uma proposta
fundante que procurou resolver a questão objetivo/subjetivo bifurcando o objeto de
estudo da iniciante ciência. O ramo empírico teve um maior desenvolvimento, pois era
mais bem ajustado ao ambiente intelectual da Europa de meado do século XIX, com a
prevalência do positivismo comteano, que se considerava o último estádio da evolução
do pensamento humano; fase superior e final do conhecimento na qual a averiguação
rigorosa dos fatos através da experimentação construiria princípios universais e uma
metodologia precisa lastreada na matemática. Neste cenário que propunha uma explícita
objetividade, estudar a subjetividade somente se poderia dar através de uma
aplicabilidade material e produtiva, em termos teóricos ou práticos. E até onde
conhecemos de suas pesquisas, elas lhe possibilitaram formar um construto sobre a
mente humana como decomponível em elementos interligados e organizados
ativamente, observáveis pela introspecção das sensações físicas e que estariam na base
de uma consciência dinâmica. Todos os fenômenos são psíquicos, na medida em que o
objeto de apreensão do conhecimento deve ser representado internamente para ser
cognoscível, ou seja, sem uma especulação interna a partir da percepção sensorial o
há compreensão do objeto. Estas inferências permitiam na prática exercer o controle das
respostas psicomotoras através da subordinação às condições experimentais fisiológicas,
mas não favorecia o entendimento dos processos superiores, pois nestes os vínculos são
produzidos por outros tipos de relação na consciência, os aperceptivos e os sintéticos
78
.
Estes estudos propiciaram uma grande quantidade de pesquisas derivadas, discussões de
postulados e conclusões etc. Mas sempre no caminho experimental, pois o método
comparativo que deveria ser usado para as funções mentais mais elaboradas, como a
linguagem, o mito, a arte e os costumes, foi abandonado pela sua dificuldade e
incontornável subjetividade, em comparação com a objetividade da pesquisa em
laboratórios, controlada e reproduzível.
Contemporaneamente, Gustav Fechner procurava uma relação existente entre o
físico e o psíquico, adotando o paralelismo psicofísico, também aceito por Wundt,
conceito pelo qual os fenômenos mentais têm correspondência direta com os fenômenos
78
Cf. KAHHALE e ANDRIANI, 2002.
113
orgânicos e vice-versa. Nas suas experiências, chega a uma relação matemático-
quantitativa entre esses dois mundos, deduzida a partir da variação na intensidade dos
estímulos e por conseguinte das sensações. Esta idéia e metodologia são fundamentais
para o ramo empírico, pois demonstram a unidade da mente e do corpo, noção que até
hoje é utilizada pela psicometria como instrumento de pesquisa
79
.
No seguimento desta orientação empiro-mecanicista, que passa pelo
estruturalismo e pelo funcionalismo, vamos direto ao behaviorismo de John Watson,
que fez do comportamento humano um objeto observável, mensurável e reproduzível,
conforme o mais gido causalismo. Mas essa conduta não é uma situação totalmente
externa, mantendo uma íntima e necessária ligação do indivíduo com o ambiente em
que ocorre, e neste binômio uma relação de causalidade, conceituada como
estímulo/resposta (SR), daí o comportamento ser resultado de uma operação de
condicionamentos atuando sobre o indivíduo, que podem ser previstos e controlados. A
esta primeira teorização segue-se outra, o behaviorismo radical de B. F. Skinner, que
num primeiro momento ampliou as noções anteriores de meio e comportamento,
introduzindo a variável operante, ou seja, o organismo recebe o primeiro estímulo
discriminativo do ambiente, ao qual responde e que é seguido de um segundo estímulo
que reforça aquela resposta dada (SdRSr), um modelo funcional que se afasta da
estrita causalidade mecanicista, agora a causa vem das conseqüências, mas não sai da
órbita das ciências físicas. Numa segunda formulação, o organismo recebe uma
quantidade de estímulos do ambiente que selecionam, conforme um encadeamento já
testado e aprovado em outras situações, as respostas que sintetizam as informações
previamente experimentadas, um darwinismo biológico. Nesta nova concepção o
comportamento passa a ter três elementos geradores condicionantes: da espécie
(filogenéticos), da vida do indivíduo (ontogenéticos) e das práticas valorativas (cultura).
Os dois primeiros ainda operam pelas conseqüências e adaptabilidade, o terceiro é
reforçado na interação social, ambiente ampliado e múltiplo que modula o
comportamento sob bases atemporais e mediadas da experiência direta, usando a
linguagem simbólica. Não mais condicionamento e sim modulação, a resposta é
selecionada num bloco de possíveis reações que orientam a ação do sujeito sobre o
mundo, um conhecimento prático e não reflexivo, pois modulado. E esta modulação
79
Ver FREIRE, 1997, p. 91.
114
constrói a subjetividade no behaviorismo, expressada no verbal simbólico ou na ação
concreta, trazendo a variedade de determinantes que incidiram sobre aquele indivíduo,
produzidas naquela tríplice ação de contingências. Podemos dizer que é uma
subjetividade contextualizada, mas causal, e a causalidade aparece no controle do meio
que numa dupla direção submete e é produzido pelo sujeito, numa ampliação da
equação acima
80
. Concluindo, nesta teoria o homem é dependente das influências que
recebe e produz, numa relação causalista modulada pelas experiências passadas, dele e
do seu grupo de pertencimento.
Da subjetividade behaviorista não é possível fazer uma ilação da personalidade,
tema que esta escola nunca se propôs a definir, nem mesmo as teorias anteriores. Mas,
podemos deduzir que nesta linha de pensamento as características inerentes ao
indivíduo, sua forma peculiar de representar as forças que atuam sobre ele mesmo,
estariam numa equivalência com a personalidade. Assim, o resultado muito próprio
destas modulações ambientais, pois não são absolutamente iguais a forma de estimular e
nem as respostas, formariam uma individualização daquele organismo frente aos outros
daquela espécie no mesmo grupo.
5.2.2 Saindo desta estrita visão empírica do homem, que tem seus pontos falhos
abertos a críticas, como a impessoalidade, a objetivação do homem etc., mas apresenta
elaborações teóricas que favoreceram o desenvolvimento de aplicações da psicologia no
trabalho, na educação e até na cultura, além de contribuir para outras interpretações,
nem que fossem pela oposição teórica, encontramos duas escolas que partindo da
experimentação desviaram no sentido de uma concepção mais ampla e cultural da
pessoa.
A psicologia da gestalt, ou teoria psicológica da forma, iniciou com as pesquisas
dos estímulos visuais de Max Wertheimer, e a partir delas ele provou que percebemos
de maneira integral, não separando as partes do objeto percebido e nem desligando o
processo psicológico do fisiológico. Outros experimentos corroboraram os resultados
iniciais, ou seja, uma unidade no fenômeno, totalização qualitativa diferente das
partes, e que estas só percebemos pela reflexão e abstração da coisa em si. A relação
todo/parte e das partes entre si o é estática nem automática, havendo uma ordem
80
Cf. KAHHALE, 2002 (a).
115
interna ativa que busca uma síntese. Neste direcionamento vê-se a filiação desta escola à
psicologia do ato de Franz Brentano e à fenomenologia de Edmund Husserl. Brentano
se opunha aos métodos e conceitos de Wundt, entendendo que a consciência
intencionalmente aponta para um objeto gerando um ato psicológico (ver, ouvir,
perceber, imaginar etc.) que terá como conteúdo aquilo que foi focalizado. Esta ação
global e imediata é o fenômeno a ser observado, que não se particulariza em
experiências pormenorizadas. Husserl se baseou nesta psicologia para sua proposição
filosófica, e se apoiou e criticou Descartes, Kant e Hegel, porque procurava uma
metodologia que levasse ao conhecimento universal e verdadeiro”, através da
subjetividade da consciência, regida por leis da intencionalidade que permitiriam
apreender as coisas na sua essência, os fenômenos, que são indissociáveis do
observador. Para esta empreitada deve-se fazer uma redução psicológica dos pré-
conceitos e pré-juízos que temos do mundo das coisas, o exterior, para assim desvelar o
fenômeno, procurando sua matéria primordial, origem de tudo. Com isso, a
fenomenologia propicia uma procura compreensiva e livre de prejulgamentos dos laços
que unem o sujeito ao objeto, através da consciência intencional exprimida na
comunicação, esta entendida de forma abrangente (KAHHALE, 2002 (b), pp. 182-192).
Na continuação dada por Kurt Koffka e Wolfgang Köhler, o problema da figura-fundo
interessou porque levava a mais esclarecimentos das funções perceptivas e do indivíduo.
A percepção de figura e fundo acontece por causa da visão central e periférica, mas
estas podem ser alternadas modificando a configuração total, a gestalt do objeto. Estas
alterações podem acontecer com o mesmo indivíduo em várias situações, e, mais ainda,
entre diferentes sujeitos, revelando múltiplos aspectos de um mesmo campo de forças
psíquicas. Esta diversidade de pontos de vista individuais demonstra que para a
psicologia da gestalt, a subjetividade é um conceito primordial, pois a pessoa altera a
configuração interna de seus sistemas e subsistemas, sua personalidade, conforme a
percepção do momento e do ambiente, sempre na busca de uma “boa forma” gestáltica,
não havendo um arranjo fixo.
Uma releitura das concepções de Husserl e das exposições do gestaltismo
contribuiu para o aparecimento da psicologia humanista, não como uma escola ou
teoria, mas uma orientação filosófica e clínica. As ramificações vão da daseinsanalyse
de Ludwig Binswanger às psicoterapias: existencial de Rollo May, a centrada no cliente
116
de Carl Rogers, a análise existencial de Medad Boss, todas com o enfoque na
consciência de si mesmo, uma análise atenta e reflexiva de seus pensamentos e
comportamentos, recurso que permitiria ao sujeito concretizar suas aptidões naturais,
impulsionando seus valores e qualidades num processo de crescimento pleno. A
personalidade é um fluxo, num movimento ascendente de melhoria, sempre
acrescentando habilidades.
Esse otimismo e excessiva subjetivação são as objeções mais encontradas nas
avaliações destas correntes psicológicas, que praticamente desconsideram os resultados
encontrados pelas outras escolas, mas influenciaram fortemente os profissionais das
áreas organizacional e empresarial. No caso da psicologia humanista, a denominação de
terceira força revela como questiona o behaviorismo e a psicanálise, por vê-los como
movimentos reducionistas e deterministas, ponto de vista parcialmente correto, mas que
se limitou aos postulados iniciais destas teorias.
5.2.3 E é a psicanálise a última das escolas de que iremos tratar.
Os conceitos criados por Sigmund Freud, pela necessidade de explicar as
demandas clínicas de sua clientela que apresentava distúrbios que ficavam na fronteira
do corpo com o psicológico, formam a base da teoria psicanalítica e tinham inicialmente
um acentuado cunho orgânico. Sua formação médica e os parâmetros culturais da Viena
de fins do século XIX, o conduziram para um mecanicismo e causalismo típicos do
pensamento positivista. A observação minuciosa e classificatória que fazia dos
“problemas” que apareciam, a procura da causa do distúrbio, a indagação dos elementos
da psique, sua origem e seus efeitos naquelas disfunções psicossomáticas, vão de
encontro com uma visão terapêutica rígida e modelada pelas ciências naturais, própria
do ideário positivo. Mas, essa primeira postura investigativa de Freud vai se alterando à
medida que se aprofunda em suas pesquisas, as explicações vão sendo criadas num
movimento de prática para teoria e teoria da prática, e deslocam-se no sentido de uma
técnica interpretativa dos sintomas absolutamente subjetiva. Neste trajeto teórico
concebe o inconsciente, as tópicas do psiquismo, a libido, a sexualidade infantil,
contribuições radicais que criou para entender o sujeito. Suas obras vão mostrando o
caminho desse distanciamento da ênfase causal físico-química para uma
117
sobredeterminação psíquica, uma rede plural de fatores individuais e culturais que
interagem, conflitam e dinamizam o psiquismo.
O inconsciente freudiano tem duas acepções que confundem o leitor não
acostumado com a terminologia psicanalítica, uma descritiva – atributo da coisa, e outra
topográfica lugar psíquico, características que reparte com o pré-consciente, visto que
os dois sistemas: o ics. (inconsciente) e o cs./pcs. (consciente/pré-consciente) podem
adjetivar idéias ou denominar uma local, e, também, definem a primeira tópica ou
estrutura psíquica. Como adjetivação refere-se a propriedades dos conteúdos ideativos e
vivências, que não estão disponíveis à consciência. Como denominação assinala uma
formação original que contém as pulsões, estímulos internos, e os conteúdos recalcados,
expulsos, do sistema cs./pcs., provocadores de desprazer. Este lugar pauta-se pelo
princípio do prazer, orientação energética do psiquismo para o menor nível de excitação
e incômodo, e funciona conforme o processo primário, modo onde a energia é livre,
podendo se condensar, deslocar e escoar visando sempre a satisfação.
As tópicas psicanalíticas são estruturações dos elementos da mente humana. A
primeira tópica foi composta como sistemas: o ics. e o cs./pcs., onde o consciente é uma
qualidade do estado psíquico que pode ou não estar presente, mas este esquema se
revelou mais dinâmico e econômico que estrutural, por isso Freud formula a segunda
tópica, o ego, o superego e o id, termos latinos, para complementar a primeira
disposição da seguinte maneira: o id, ou isso, elemento não criado, originário, é
puramente inconsciente, contendo as pulsões, os conteúdos recalcados e é a fonte da
libido; o ego, ou eu, organiza e comanda conscientemente os processos mentais, é
criado a partir do isso, pela ação do mundo externo sobre o psiquismo, inclui o cs./pcs.,
mas se estende até o inconsciente, pois partes do eu das quais não temos consciência
e, por último, o superego, ou supereu, formado como uma gradação inconsciente do eu
pela introjeção da moralidade parental e social e pela criação dos ideais a serem
buscados, gerando a autocrítica daquela pessoa.
A libido é a energia psíquica que alimenta o sistema, é sexualizada no sentido
psicanalítico de procurar o prazer. O conceito de sexualidade da psicanálise é muito
mais amplo que o do senso comum, pois não está restrito ao ato sexual, em qualquer de
suas variantes, referindo-se a toda atividade que proporcione satisfação, assim seja qual
for a ação praticada ela pode ser sexual se é prazerosa para o indivíduo.
118
Neste contexto, a sexualidade infantil é a base da sexualidade de qualquer ser
humano, uma vez que através de suas experiências condiciona-se o prazer do adulto.
Divide-se em três fases: oral, anal e fálica, marcadores físicos e psíquicos do
desenvolvimento da criança em direção a sua unidade psicológica, que irá acontecer no
complexo de Édipo, vivência que organiza o eu, cria o supereu e possibilita que o ser
humano faça investimentos afetivos em outras pessoas.
Estes conceitos, aprimorados numa constante reavaliação pelas exigências da
clínica, se mantêm a partir da morte de Freud. Uma ou outra noção é realçada conforme
o pensamento dos autores que se seguiram, dando origem a várias nuances da
psicanálise.
Utilizando este arcabouço teórico, principalmente o inconsciente e as tópicas,
Freud ampliou o campo interpretativo da psicanálise, avaliando a sociedade e a cultura
em quase todas as manifestações, da arte à guerra. Neste rastro é que temos sua
influência sobre outras disciplinas, pois aborda de maneira diferente, valorizando e
interpretando o não dito, os lapsos, os equívocos e as lacunas do discurso, como indícios
comprovadores do inconsciente e da estrutura mental do homem, que com suas
patologias e mecanismos de defesa deformam a realidade e lembram a possibilidade
constante de dissociação dos vínculos sociais.
A crítica à psicanálise que se faz é devido a sua excessiva auto-referência, que
dificilmente aceita incorporar novas contribuições, e a generalização de seus conceitos
para outras áreas do conhecimento, desconhecendo especificidades que ao mesmo
tempo ela mesma reclama para sua aplicação e técnica.
5.3 Sincronicidade
Acreditamos perceber corretamente uma similaridade de posturas metodológicas
entre o direito penal e a psicologia nos respectivos desenvolvimentos teóricos. A partir
da segunda metade do século XIX, as investigações abordam o homem e suas
vicissitudes utilizando os mesmos pressupostos, esta sincronicidade se dá com o
nascimento da psicologia e o aparecimento da escola positiva no direito.
Anteriormente ao período acima, nas variantes liberais do direito penal: o
jusnaturalismo, o contratualismo e o racionalismo, não havia demanda de uma visão
119
psicológica, a bem da verdade esta sequer existia, visto que a definição do delito como
ente lógico-abstrato, não requeria uma avaliação do autor, apenas a relação do fato com
o agente para estabelecer a vinculação jurídica adequada. Este liberalismo de
preponderante orientação garantista, na Europa fazia frente a um estado que se devia
respeitar e ao mesmo tempo temer e regular pela recorrente tendência ao arbítrio, mas
sempre caminhando no sentido do estado de direito e democrático; entretanto, no Brasil
encobria uma contradição entre o discurso público de orientação constitucional liberal
burguês e a realidade reacionária e submissa do estado, dominado politicamente pelas
oligarquias agrária e comercial, que de forma alguma pretendiam abrir mão de seus
domínios fundiários e privilégios, e operacionalizado pela burocracia patrimonialista
81
.
Consideramos burguês este arcabouço jurídico, uma vez que as liberdades eram apenas
formais, retóricas, pouquíssimas vezes efetivadas, assegurando direitos apenas à parcela
branca, proprietária e considerada de bem” da população brasileira, os eleitores do
período imperial e do início republicano, com as imprescindíveis exceções que
confirmavam a regra. A subjetividade neste contexto ainda não se fez presente ou
necessária, as idéias de classes sociais ainda encontravam-se muito próximas do
estamento colonial, os indivíduos não se sobressaiam, seguem o pai, a família, o padrão
do establishment
82
, na quase totalidade das vezes eles sabem o seu lugar”, isto valia
tanto para os abastados quanto para os remediados e pobres, urbanos ou rurais.
5.3.1 O pensamento científico comteano que está na base do positivismo jurídico
penal e sociológico, teve como proposição eficientemente compreender e controlar a
sociedade e as pessoas que a formavam. Nesta concepção, o estado é naturalmente bom,
pois promove a ordem (social, política, econômica e jurídica), condição intrínseca para
o contínuo progresso da ciência e da humanidade, regendo o grupamento dos homens
por leis naturais e racionais descobertas pela observação direta da realidade e que
permitem a previsão dos fatos sociais. Na novata psicologia, seja experimental, seja
cultural, o ser humano deveria ser estudado minuciosamente para se apreender os
elementos da mente, sua organização e funcionamento, para desvendar como este
sujeito único, livre e com um “mundo interno” pode ser regulado e assimilado. Ressalta,
a nosso ver, que a estrutura conceitual se desenvolveu sob as mesmas premissas para as
81
Cf. FREITAS, 2002, pp. 222-238.
82
Ver COSTA, 2004, pp. 95-98.
120
duas disciplinas: a) observar o homem, na sua individualidade ou na coletividade, para
daí produzir uma verdade, uma lei, universal; b) classificar as características
encontradas em escalas de importância ou grandeza, formando um padrão inteligível e
aplicável e c) desse conhecimento extrair efeitos causal-explicativos, relativamente
estáveis devido à evolução constante da ciência.
Tratando em particular da área penal, cremos que não esta formulação
positivista de ciência foi responsável pelo advento do pensamento de Lombroso, Ferri e
Garofalo, na verdade temos um somatório de causas e dentre elas podemos ressaltar: as
contundentes críticas ao jusnaturalismo; a influência dos estudos e propostas de Darwin,
Spencer e Haeckel e a elevação preocupante das taxas de criminalidade; tudo isso
propiciou que as inovações tivessem um grande apelo sobre a comunidade jurídica. A
tradicional doutrina do direito penal com o modo filosófico de desenvolver os conceitos,
com um juízo lógico-abstrato do crime e com seu liberalismo solene de princípios e
garantias não dava conta de todas as mudanças e demandas sociais que então se
avolumavam; havia na prática uma forte desigualdade na acolhida legal das solicitações
oriundas de diferentes classes sociais, situação geradora de pressões e revoltas
populares
83
. O desenvolvimento de técnicas de pesquisa, observação e experimentação,
os estudos comparativos de novas culturas, povos e ecossistemas, conveniente e útil
campo de trabalho ocasionado pela expansão colonial européia, redundaram em teorias
evolucionistas que exprimiram a superior visão do explorador sobre as inferiores
populações subjugadas. O crescente número de delitos, alguns cometidos sem
motivação explicável e com forte repercussão social, forçou por alterações na lei penal
e, por conseguinte, na doutrina garantista. Todo esse ajuntamento de fatores criou na
Europa uma propensão à novidade, como podemos ler nesta expressiva narração que
Ferri mesmo traz:
Não pelo ensino prático desta bancarrota da defesa social, mas sobretudo
pelo alargamento do método indutivo ou positivo (de observação e de
experiência) às ciências físicas e naturais (Galileu), à fisiologia (Claude
Bernard), à psicologia (Wundt, Bain, Ardigó) e às ciências morais e sociais,
surgiu na Itália, em 1876-1880, a escola criminal positiva (...) que – devido às
acentuadas condições históricas do ambiente social e científico nos fins do
século XIX de súbito chamou sobre si a intensa atenção pública, tendo
contra ela opositores encarniçados e a seu lado sequazes entusiastas, entre os
homens de ciência de todos os países. (FERRI, 2003, p. 49-51)
83
Cf. FREITAS, 2002, pp. 48-62.
121
No Brasil, esta paradoxal visão revolucionária, nos meios, e autoritária, nos fins,
encontrou terreno fértil para expandir-se. Mesmo porque, exercitávamos um
liberalismo conservador muito atípico e vantajoso. No entanto, a crescente insatisfação
com o modelo político da monarquia, por parte dos novos atores econômicos e sociais,
achou desaguadouro nestas científicas e modernas formas de pensar, o positivismo e a
república. A classe média urbana, os militares e grande parte da academia jurídica
abraçou a filosofia de Auguste Comte, numa firme crença de que aquelas idéias e
princípios verdadeiros e perfeitos viriam modificar profundamente a sociedade
brasileira. Mas, de certo não esperavam o “súbito adesismo manifestado pelas elites
dominantes”, no golpe republicano, e que num continuum capturaram o novo ideário
para uma reconfiguração tradicional das forças no poder
84
. Afinal, com esse programa
comprovou-se arrazoadamente o racismo, a inferioridade dos pobres e delinqüentes, e,
principalmente, justificava-se pela nossa conhecida defesa social uma brutal repressão
das “classes perigosas” – negros, mulatos, imigrantes anarquistas, enfim todos que
incomodassem a tranqüilidade do progresso. Uma conveniente união político-científica
com fins econômicos e sociais que perdura até hoje, com o plus de propagar uma idéia
de modernidade da elite nacional.
Como vimos antes, a psicologia foi inserida neste contexto evolucionário de
principiantes domínios (sociologia, criminologia etc.) que pretendiam abranger todas as
situações humanas numa explicação geral e incontestável, por autêntica e natural. E
assumiu este papel com desenvoltura, direcionando esforços e pesquisas para a
formalização e sistematização do conhecimento da mente humana, com uma suposta
“neutralidade” de apenas criar um saber científico aplicável. Seu desempenho como
psicologia criminal, subdivisão da criminologia etiológica, demonstra claramente uma
subordinação ao pensamento positivista penal de controles individualizados, efetivados
através da verificação da personalidade, visando o disciplinamento mental e a
reeducação do encarcerado
85
, em programas singularizados de cumprimento da pena
que nunca são executados, por falta de verbas ou interesse governamental. Mas, temos
também a psicologia cultural, preconizada por Wundt e largamente empregada por aqui
com uma roupagem etnocêntrica e conclusões de morbidez a degeneração moral, tão
84
Ver FREITAS, 2002, pp. 268-271.
85
A psicologia pedagógica de reeducação o bem desenvolvida na prevenção especial, focalizada no
subitem 2.1.4.
122
de acordo com os criminólogos brasileiros de plantão
86
. Esta conceituação racista e
descaracterizante cataloga todos os costumes variações lingüísticas, manifestações
artísticas e mitologias religiosas dos mestiços, índios e negros, como sintomáticas de
um atraso evolutivo, o perigoso atavismo lombrosiano que inevitavelmente condiciona
ao crime
87
. Uns parâmetros de uso que transcendem qualquer ingenuidade teórica que
possa ser alegada a favor, pois é patente a intenção de fortalecer a repressão sobre a
parcela mais vulnerável, econômico e socialmente falando, da população. E, finalmente,
a captação e teorização validadora dos conceitos médico-psiquiátricos de higiene,
profilaxia, normalidade/anormalidade e cura reforçam essa atrelagem da psicologia a
padrões epistemológicos discricionários, mas valorizados por uma visão de mundo
prepotente. Quando estas três variáveis se juntaram, obteve-se uma prática coesa e
inacessível a críticas, à qual dificilmente se conseguiu contrapor alegações
asseguradoras de direitos, respaldada que estava pelos argumentos de autoridade
compilados do direito, da medicina, da antropologia e, naturalmente, da psicologia
sobre o “homem delinqüente”, o indivíduo “perigoso”.
Paralelamente, tivemos o aparecimento de uma perspectiva criminológica com
fundamentação na teoria psicanalítica, chamada de psicanálise criminal. Neste ponto de
vista não há uma diferenciação psicológica entre o transgressor e o obediente, o anormal
e o normal, pois o que é representado é a capacidade do sujeito de responder
emocionalmente ao regramento sócio-jurídico, possibilidade que existe em todo ser
humano. Portanto, o criminoso se torna suscetível de uma intervenção “ortopsíquica” e
pedagógica sobre seus afetos e impulsos, ou pulsões, com a finalidade de redesenhar os
caminhos coartados, deturpados, através dos quais ele age e atualiza suas dificuldades
de adaptação individual e social. Mas, esta visão foi objeto de fortes críticas e ficou
como que uma virtualidade a ser implantada em outro momento
88
, visto uma incômoda
tendência descriminalizante e de nivelamento dos “sãos” e dos patologizados.
5.3.2 Na medida em que a expansão da tecnologia e dos subterfúgios punitivos não é
mais possível de ser camuflada pelo legalismo rígido do discurso positivista penal, e que
86
Cf. RAUTER, 2003, pp. 37-39, TÓRTIMA, 2002, pp. 150-155 e ARANTES, 2005, pp. 41-46.
87
Ver o item 4.3.
88
Cf. RAUTER, 2003, pp. 50-57.
123
as críticas se encorpam, encontramos nova simultaneidade temporal de conceitos entre o
direito penal e a psicologia.
As teorias normativa e normativa pura, em que pese as diferenças em relação ao
sistema anterior, como o inegável aprimoramento da doutrina jurídica na composição da
culpabilidade e, conseqüentemente, no formular a teoria do delito ou no retorno
questionável do poder decidir livremente, não esquecendo o maior escopo garantista,
incorporaram as teses da periculosidade e da ideologia da defesa social, desenvolvidas
pelos predecessores na justificação da pena. Essa desvantajosa conciliação dos
princípios valorativos com os etiológicos aparenta ter por critério a “acumulação do
poder de punir”, a que fizemos menção no final do primeiro capítulo, pois une as
incompatíveis características objetivas do direito penal de autor com as subjetivas do
direito penal do fato. Bem ao gosto de alguns doutrinadores brasileiros que entendem
ser esta mescla moderada o que melhor pode ser apresentado
89
, numa reedição
atualizada do pensamento político conservador tendente a conchavar opostos e
manipular teorias, radicado desde o período colonial na mentalidade brasileira, como
vimos. Na legislação nacional esta é uma estrutura adequada, permitindo que as
diferenças de classe sejam niveladas na teoria e exacerbadas na prática, quando as
agências policiais, altamente suscetíveis a essas disparidades, atuam de forma
instrumental selecionando os indivíduos por seu valor simbólico de eficiência repressiva
desigual, o que é referendado nas agências judiciais pelas reproduções ideológicas de
defensores, membros do ministério público e magistrados
90
, poucos se importando com
a pessoa objeto de direitos tão bem definidos nos princípios constitucionais penais
91
.
E, novamente a psicologia comparece com um substrato teórico facilitador de
uma concepção psico-legal do indivíduo desviante. Não mais um ser regredido ou
estacionário na escala evolutiva da humanidade que deve ser neutralizado ou até
eliminado, pelo perigo que representa ao conjunto social, ou um organismo sobre o qual
se pode aplicar um treinamento, para adquirir ou recuperar habilidades sociais. Mas
nesta nova circunstância, um sujeito muito mais complexo que deve ser reconfigurado
na sua subjetividade integral, gestáltica. Na esteira do pensamento husserliano, que se
propôs a superar o impasse entre experiência e metafísica evidenciados pelo kantismo, e
89
Cf. TOLEDO, 1999, pp. 233 e ss.; LOPES, 1985, pp. 73-86; DOTTI, 1998, pp. 212-235.
90
Cf. os subitens 2.1.6 e 2.1.7.
91
Ver item 1.1.
124
num acordo com o substancialismo tradicional, que entende o ser como entidade
independente, individual e responsável socialmente, a teoria psicológica da forma
apresenta uma construção subjetiva da psique onde “a busca de uma finalidade futura
causa o comportamento na medida em que se apresenta como ponto central de toda uma
problemática psicológica presente” (DONZELLI, 1980, p. 27). Assim, a retribuição
penal justifica-se pela tentativa de modificar a gestalt do autor, reformatando no seu
sistema (personalidade) a tendência para a realização daquele fim, e adquirindo,
também, neste movimento um objetivo de prevenção para outras predisposições ilegais
daquele sujeito. Que convenhamos é uma brilhante associação das pesquisas
psicológicas com a dogmática penal, pena que seja tão conservadora no modo e
orientação, pois bastava alterar a direção normasujeito para sujeitonorma, que
teríamos uma disposição bem mais garantista.
Nas últimas propostas dos doutrinadores sobre a culpabilidade enxergamos uma
renovada ligação com as interpretações psicanalíticas, procurando retomar aquela visão
do indivíduo responsável, até certo ponto, e por isso carecedor de uma punição para seu
reajustamento social. Idéias que entusiasmam alguns novos juristas de orientação
italiana
92
, respaldados pelos mais abalizados discursos psicanalíticos:
A psicanálise do criminoso tem limites que são exatamente aqueles em que
começa a ação policial, em cujo campo ela deve se recusar a entrar. Por isso é
que não há de ser exercida sem punição, mesmo quando o delinqüente,
infantil, por exemplo, se beneficiar de uma certa proteção da lei. (LACAN,
2003, p. 131) (grifo nosso)
5.4 Articulação
Acreditamos que neste momento temos condições de tentar responder às
perguntas que nos propomos, sem ter que forçar um raciocínio artificial, numa
articulação coerente com tudo que trouxemos anteriormente.
A defesa social como ideologia que contribuiu na construção da visão
positivista, não querendo evidenciar sua posição reacionária lança mão do conceito
alterado de responsabilidade: a periculosidade, para concretizar o direito penal de autor,
justificando assim uma escolha intervencionista. Esta concepção ajuda na consolidação
92
Cf. SALES, 1997 e SICA, 2003, pp. 111-114.
125
da criminologia, agregado de contribuições em série das novas disciplinas criadas pelo
mesmo movimento intelectual, como fornecedora de dados a idéia central de controle
dos indivíduos para um fim predefinido de progresso evolutivo da sociedade humana,
construído significativamente pela classe hegemônica, que sabe “o que é melhor” para
todos. Portanto, exige-se e necessita-se da manifestação da psicologia ou da psiquiatria
para referendar o pré-conceito sobre aqueles indivíduos selecionados num dado
universo de vulneráveis, os exemplos de dominação e poder desta percepção utópica e
autoritária de um mundo ordenado rigidamente por normas que não se questionam,
como qualitativas referências científicas extrajudiciais. Condição que essas ciências não
se esquivaram de satisfazer, como vimos antes.
Neste quadro, o juiz, o ministério púbico e os defensores estão inseridos como
operadores da agência judicial e responsáveis, dentro do contexto maior do sistema
penal, por revestir de legalidade cada situação concreta. O parâmetro da magistratura
utilizado para avaliar a personalidade do réu, e aceito por todos outros operadores, seja
no nível primário, seja no nível secundário das instâncias jurisdicionais, é uma
combinação de senso comum com fragmentos de teorias psicológicas, francamente
redutor da complexidade do comportamento exterior e da extensão da interioridade do
homem, conforme preconizam ou silenciam os doutrinadores. A dogmática penal,
indiferente ao corriqueiro, não estabelece uma orientação teórica, deixando
subentendida a condição de “perito dos peritos” e a margem de livre convencimento que
tem o juiz no cálculo das circunstâncias judiciais. Estes, por sua vez, atendendo esta
obrigação inescusável apelam para fórmulas prontas e destituídas de sentido
93
, ou como
uns poucos, se recusam a fazer tal avaliação por não ter familiaridade com os conceitos
e não existir elementos nos autos que possibilitem esta apreciação arbitrária. Que fique
claro que esta prática atropela princípios constitucionais, contraria o “princípio
jurisdicional da refutabilidade das hipóteses” e ressalta julgamentos morais, situações
93
“Definir a personalidade não é algo tão simples como pode parecer, sendo especialmente ao juiz muito
tormentosa a questão, seja porque ele não domina conteúdos de psicologia, antropologia ou psiquiatria,
seja porque possui, como todo indivíduo, atributos próprios de sua personalidade. Por isso, constata-se, na
experiência cotidiana, que a valoração da personalidade do acusado, nas sentenças criminais, é quase
sempre precária, imprecisa, incompleta, superficial, limitada a afirmações genéricas do tipo
‘personalidade ajustada’, ‘desajustada’, agressiva’, ‘impulsiva’, ‘boa’ ou má’, que, do ponto de vista
técnico, nada dizem.” (PAGANELA BOSCHI apud BUENO DE CARVALHO e CARVALHO, 2004, p.
54)
126
que são expressamente rejeitadas no discurso criminalista oficial (BUENO DE
CARVALHO e CARVALHO, 2004, pp. 53-61).
Quanto à terceira pergunta, não há um referencial, como o behaviorista ou
psicanalítico ou outro qualquer, e sim a apropriação de partes de qualquer
sistematização psicológica que enfatizem as respostas predeterminadas, fundindo um
pseudoreconhecimento científico com a prática repressiva disfarçada. O que é
inteligível, pois para esta perspectiva aquele sujeito é um ser involuído que deve ser
neutralizado ou submetido a treinamento, não sendo assim pessoa, sujeito pleno de
direitos e deveres, podendo e devendo a sociedade nele intervir para se proteger,
defendendo sua integridade como organismo.
O que percebemos é que a orientação positivista, não obstante as críticas e
explícitas rejeições, mantêm-se como um fundo ideológico no direito penal, tornando
funcional construções autoritárias e falseando a realidade social para garantir a
dominação do discurso repressivo. A personalidade aparece como elo que faz a ligação
da psicologia a esta visão de mundo, adjudicando conceitos não-jurídicos e por isso
dificilmente refutáveis, que funcionam como referendos científicos e num movimento
circular vão criando e escorando um discurso fechado e auto-explicativo, como Foucault
captou:
Como na prática jurídica, a polêmica não abre a possibilidade de uma
discussão no mesmo plano, ela instrui um processo; ela não se relaciona com
um interlocutor, mas com um suspeito; ela reúne as provas de sua
culpabilidade e, designando a infração que ele cometeu, pronuncia o
veredicto e lança a condenação. (FOUCAULT, 2004 (b), p. 226).
5.5 Indagações
No entanto, umas outras questões aparecidas neste construir ficam como que
pedindo, também, respostas: Para que todo esse aparato teórico-metodológico? Qual
finalidade está sendo perseguida? de início, vamos dizer que não estamos em
condições de respondê-las, mas acreditamos poder sinalizar algum caminho.
Foucault no texto de 1977, “A evolução da noção de ‘indivíduo perigoso’ na
psiquiatria legal do século XIX”, examina detalhadamente a “intervenção da psiquiatria
127
no âmbito penal”, a partir de 1800/1835, para entender a necessidade contemporânea do
direito em ter uma visão interna do autor do fato punível, pois como ele mesmo escreve:
Pede-se a ele bem mais: além do reconhecimento, é preciso uma confissão,
um exame de consciência, uma explicação de si, um esclarecimento daquilo
que se é. A máquina penal não pode mais funcionar apenas com uma lei, uma
infração e um autor responsável pelos fatos. Ela necessita de outra coisa, de
um material suplementar; os juízes e os jurados, assim como os advogados e
o ministério público só podem realmente desempenhar seus papéis se um
outro tipo de discurso lhes é fornecido: aquele que o acusado sustenta sobre
si mesmo, ou aquele que ele permite, por suas confissões, lembranças,
confidências etc., que se sustente a seu respeito. E se esse discurso vem a
faltar, o presidente se obstina, o júri se irrita; pressiona-se, incita-se o u -
ele não joga o jogo. (FOUCAULT, 2004 (a), p. 2)
Nesta pesquisa levanta os conceitos de periculosidade e defesa social, como
fundamentais para este posicionamento em que se julga o indivíduo “segundo sua
constituição, seus traços de caráter ou suas variáveis patológicas”. Situação que ele
considera exorbitante, em relação ao pensamento dos reformadores do século XVIII, e
assustadora, pelo contexto social que vislumbra. E, reforça que atualmente “os juízes
necessitam acreditar que eles julgam um homem tal como ele é e segundo aquilo que ele
é.” (FOUCAULT, 2004 (a), pp. 24-25).
Concordamos com esta análise, mesmo porque é visível que se transformou no
nosso direcionamento de trabalho. A subjetivação de parte do direito penal,
inevitavelmente nos leva à psicologia, como ciência que se ocupa do subjetivo. Ainda
mais quando um conceito tão complexo como a personalidade é usado de forma
coercitiva e sem condições de ter a contradita, por situar-se aquém ou além da norma
legal, num terreno interdisciplinar e extrajurídico.Mas algo mais ficou nas entrelinhas e
pensamos que Giorgio Agamben, nos mostra caminhos.
Ao aprofundar a pesquisa foucaultiana, Agamben por sua formação jurídica nos
leva por áreas ainda não trilhadas do pensamento do direito, procurando precisamente
este oculto ponto de intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo
biopolítico do poder” (AGAMBEN, 2004, p. 14).
Nesta investigação descobre uma “obscura figura do direito romano arcaico, na
qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua
exclusão”, “a vida matável e insacrificável do homo sacer”, cuja existência ele
128
denomina de vida nua, por ser destituída de qualificação social, e que lhe permitiu
entender:
O fato de que, lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em
todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à
margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço
político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato
entram em uma zona de irredutível indistinção. (AGAMBEN, 2004, p. 16)
A partir daí cria toda uma série de ligações entre o direito e a política. Mas o
ponto que nos chamou a atenção e que acreditamos estar em união com nossas questões
é a exclusão e inclusão do indivíduo no estado de exceção.
Agamben afirma que a exceção é que faz a regra, constituindo-a de fora,
inclusive no direito: “O particular ‘vigor’ da lei consiste nessa capacidade de manter-se
em relação com uma exterioridade. Chamemos relação de exceção a esta forma extrema
da relação que inclui alguma coisa unicamente através de sua exclusão”, portanto, os
excluídos, os marginalizados da sociedade estão incluídos nela como limite, princípio e
fim de toda estrutura social normatizada pelo direito. Demarcando com sua existência
insacrificável, pois o direito penal brasileiro o admite a pena de morte, mas matável,
como vemos continuamente nos meios de comunicação, a coerência de que “em toda
norma que comanda ou veta alguma coisa (por exemplo, na norma que veta o
homicídio) es inscrita, como exceção pressuposta, a figura pura e insancionável do
caso jurídico que, no caso normal, efetiva sua transgressão” (AGAMBEN, 2004, pp. 26-
28).
Trazendo para nosso assunto, ao utilizar uma conceituação de fora do âmbito
jurídico, a norma penal se excepciona para poder confirmar no exame da personalidade
a exclusão/inclusão do autor que a viola, não permitindo o contraditório em nome de
uma ordem, de uma organização supralegal, o “nó teórico e político fundamental do
sistema científico”
94
do direito que Baratta descreve, a defesa social. Ao
qualificar/desqualificar como tendo uma “personalidade voltada para o crime”, o juiz
sanciona a exclusão do “seio da sociedade” daquele indivíduo, incluindo-o na vida nua
das “classes perigosas”, contraponto necessário à existência dos homens “de bem”. Pois,
pela mesma razão se justifica o se mencionar esta semelhante
94
Cf. subitem 3.2.2.
129
qualificação/desqualificação quando um homem “de bem” vai a julgamento,
confirmando Agamben ao dizer:
Que a lei tenha inicialmente a forma de uma lex talionis (talio, talvez de talis,
quer dizer: a mesma coisa), significa que a ordem jurídica não se apresenta
em sua origem simplesmente como sanção de um fato transgressivo, as
constitui-se, sobretudo, através do repetir-se do mesmo ato sem sanção
alguma, ou seja, como caso de exceção. Este não é uma punição do primeiro,
mas representa a sua inclusão na ordem jurídica, a violência como fato
jurídico primordial (permittit enim lex parem vindictam: Festo, 496,15).
Neste sentido, a exceção é a forma originária do direito. (AGAMBEN, 2004,
pp. 33-34)
Acreditamos que esses estereótipos, preconceituosos, são nutridos por um
discurso sócio-jurídico que procura racionalizar e justificar a violência deste binômio
inclusão/exclusão, para deslegitimar as demandas que as “classes perigosas” fazem,
acreditando nas possibilidades subjetivas que a modernidade gerou. No construir suas
características sociais estes “indivíduos perigosos” não escaparam do apelo midiático de
se modelarem aos padrões aceitos de felicidade, bem-estar, segurança e futuro, que
pensados e vendidos para os outros segmentos da população, alimentam expectativas
perversas que ocultam as vivências estigmatizadas.
Conclusão
Ter feito este recorte na realidade jurídica, explicitando as relações entre o
direito e a psicologia, era nosso objetivo, pois mesmo com todo arcabouço garantista
expresso nas normas constitucionais da Carta Federal de 1988, preparado
meticulosamente para funcionar em conjunto, vemos reiteradamente a procura de
brechas que possibilitem uma legislação que incremente a dureza das regras penais. Este
movimento, não articulado, pontual, oportunista, incentivado pela mídia, denota o
saudosismo melancólico de um passado marcado pelo deslavado arbítrio, que se insinua
no presente com a justificativa da proteção da sociedade.
A culpabilidade em que pese sua inegável faculdade de assegurar direitos em
contraposição a estas tendências abusivas, idéia repetida à exaustão como que para ser
ratificada na concretude do cotidiano forense, na sua conceituação propicia válvulas de
escape opressivas que sinalizam para um constante domínio sobre grandes camadas
sociais, os despossuídos do consumo, que é o que importa neste grande mercado global.
Nas contraturas e ampliações do poder punitivo, as teorias da pena acompanham
estes desdobramentos sempre com alternativas, ou de reativação da parte mais
autoritária do estado de polícia, ou de concretos avanços de uma legalidade
comprometida com o estado de direito, que desmistifica estas falácias político-
ideológicas resistentes e parciais que se radicam nas estruturas econômicas capitalistas.
Ao aplicar estas teorias, o direito penal construiu argumentos e procurou recursos em
outras disciplinas, como a periculosidade e a personalidade, no intuito de mais bem
provar e fundamentar sua racionalidade supostamente imparcial, mas na verdade
enredado num sistema ideológico conservador, que lhe solapa as boas intenções e impõe
uma outra pauta.
Cremos que ficou explicitado que desde os criadores italianos da Escola
positiva, a temática da periculosidade teve uma preponderância nesta concepção
jurídica, que rapidamente se disseminou por ser “naturalmente” aplicável, com poucos
se levantando contra esta conceituação de elevado teor discriminatório. E com a
proposição belga da defesa social, agregou-se teoria e ideologia, facilitando a esta
131
formulação atingir seu ponto alto de explicação truncada da realidade, realçando um
pequeno ângulo da criminalidade, ao qual se agarraram como se representasse o todo.
Os milhares de páginas gastos em justificar e comprovar a existência de uma
“periculosidade inata”, a nosso ver, esclarecem a necessidade de uma confirmação
acima de qualquer suspeita para este pensamento, um certificado científico, que
afirmasse este construto como uma lei natural e universal, descoberta pela observação,
comparação e, sempre que possível, experimentação, os únicos parâmetros da ciência
respeitável e comprometida com a verdade. Lembremos que no Brasil este ponto de
vista teve grande aceitação e motivou carreiras brilhantes no ambiente médico-legal e
fora dele. O estranhável é que, dita ou o, esta idéia ainda continue a ter seguidores
que procuram um substrato orgânico para se referenciarem, nesta época em que “tudo
que é sólido se desmancha no ar” frase de Marx recolhida do Manifesto Comunista
por Marshall Berman para título de seu livro, que sintetiza bem nossa vivência
contemporânea.
Em comparação a défense sociale não precisou ser comprovada, nem
experimentada, e esta constatação revela o poder do seu caráter ideológico, um a priori,
inserido na cultura jurídica e absorvido como natural por quase todas as correntes
penais. Ao contrário, o conceito de direito penal de autor rapidamente foi contestado
pela maioria, procurando-se sempre passar ao largo desta terminologia. Ironicamente,
este infiltrou seus efeitos na base mesma da penalística atual.
Como se viu as análises de Foucault e Baratta com profundidade e acuidade
crítica, retiraram a cobertura naturalista destes conceitos. E este revestimento
mistificante é que permitiu a recepção “neutra” e “racional” destas noções que
consideramos tão questionáveis.
A psicologia é também dividida em correntes com diferentes propostas de
explicação da constituição e funcionamento da mente. Criada a partir da demanda
histórica da subjetividade, esta ciência organizou-se na busca constante da elucidação
do problema da interação sujeito/meio, com escolas pendendo mais para uma visão
objetiva, estrutural e orgânica, e outras sustentando uma perspectiva subjetiva, funcional
e cultural. Por estas divergentes posturas encontramos, conseqüentemente, variadas
teorias sobre a personalidade que seguem o direcionamento do autor. Facilitando
apropriações, ou melhor, criando propostas “científicas” que parecem ser encomendadas
132
de tão convenientes que são, adequando-se ao controle, penal ou não, da população, seja
de baixa, média ou alta renda, tudo dependendo de quem está no comando.
Ao procurarmos um sentido para a interseção das duas ciências, encontramos
uma reciprocidade de caminhos metodológicos, como que direcionando as alternativas e
conclusões, enfeixadas na criminologia. Isto fez com que direito e psicologia acertassem
o compasso nas conceituações da personalidade, que sob critérios médico-psiquiátricos,
como os de higiene e normalidade, denotam uma visão de mundo de características
plasticamente utilizáveis a serviço duma repressão social às classes sociais consideradas
“perigosas”, mas encoberta na subjetivação e na individualização.
Procurando não apenas criticar as posições levantadas, pois acreditamos que
se nossa análise revelou uma constância teórica numa direção que consideramos
equivocada e criticável, podemos tentar oferecer uma nova perspectiva que pretende
escapar deste determinismo dito “natural”, como objeto de críticas e novas pesquisas.
A proposta de Roberto Lyra Filho, de uma profunda e constante revisão dos
paradigmas jurídicos, absorvendo as contribuições dos grupos e classes exploradas e
oprimidas para revitalizar os princípios sobre os quais se assentam as leis, são de uma
atualidade e contextualização atrativas. Efetivá-las entendemos não ser complicado, sob
o ponto de vista técnico, mas com certeza as dificuldades se encontram no campo
político. Restrições possíveis de serem contornadas paulatinamente, a começar pelo
nosso tema, que está ao nosso alcance prático e teórico.
Voltando aos fundamentos da psicologia sócio-histórica, de pensar o subjetivo
num processo dialético com a realidade objetiva: de, também, determinar essa
subjetividade pela organização social do trabalho; de propor que esta atividade laboral
esteja mediada por um significado pessoal/cultural, que, enfim, a subjetividade, e por
transposição a personalidade, é uma formação do sujeito histórico, estruturada por suas
relações em sociedade, sugerimos que esta seja a base teórica de se avaliar a
personalidade do réu, por entendermos dela ter a consistência metodológica mais atual e
conseqüente com os fatos reais manejados pelos magistrados.
Pois, definitivamente, não nos encontramos à vontade com as visões simplistas e
segregacionistas da defesa social, da periculosidade e da avaliação da personalidade
pela ótica corrente.
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