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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
ERNANI MIGUEL LACERDA WETTERNICK
ALCANCES E LIMITES DO PRINCIPIALISMO
EM BIOÉTICA CLÍNICA
Porto Alegre
2005
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2
ERNANI MIGUEL LACERDA WETTERNICK
ALCANCES E LIMITES DO PRINCIPIALISMO
EM BIOÉTICA CLÍNICA
Dissertação apresentada como requisto parcial
para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia no
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
(mestrado) da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Draiton Gonzaga de Souza
Porto Alegre
2005
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3
Aos meus pais Ernani e Miriam!
(in memoriam)
“Yo no soy un hombre que, seguro de sí mismo,
lía a los demás; si yo enredo a los demás es porque
yo mismo me encuentro en el más absoluto embrollo.
En el caso presente, en la cuestión de la virtud,
desconozco por completo lo que es ella;
antes de acercarte a mí quizá lo supieras tú,
aun cuando parezca que ahora ya no lo sabes.
No obstante, estoy resuelto a examinar y a buscar,
de acuerdo contigo, lo que pueda ser ella.”
Sócrates, Menón, 81 a
“A ti foi mostrado mais
do que o homem pode compreender.
Por isso, não te aflijas
com aquilo que te ultrapassa.”
Eclesiástico 3,23
4
Agradeço ao Prof. Draiton Gonzaga de Souza
a confiança e orientação na elaboração
desta dissertação de mestrado;
ao médico Dr. Fernando Corrêa de Lacerda,
meu primo, a preciosa ajuda no estudo
dos casos clínicos;
ao Prof. Alberto L. Menegotto,
a correção ortográfica
e ao Pe. Guido A. J. Kuhn SJ
pela decisão favorável e estímulo!
5
RESUMO
A medicina baseada em evidências não é tão evidente assim. A medicina é uma
atividade hábil e prudente de alcance vital que joga com fatos e valores. Ela deve ser
realizada bioeticamente. Os princípios de não-maleficência, justiça, beneficência e
autonomia revolucionaram a tomada de decisão dos médicos qualificando à assistência à
saúde.
O problema principal que envolve esta dissertação coincide com uma questão
proveniente do mundo da Medicina que exige o auxílio da Filosofia para obter resposta:
“Como tomar decisões que possam ser consideradas racionais nos âmbitos da clínica e
da ética que possuem elevado coeficiente de incerteza?” Diante das conquistas da
bioética, deparamo-nos com outra questão: “Quais são os alcances e limites do
principialismo na bioética clínica?”
O principialismo é um método dedutivo de avaliação ética inspirado no silogismo
aristotélico. Seu cunho especulativo com princípios deontológicos é próprio de uma ética
naturalista. Como a ética move-se no âmbito prático onde cabem exceções justificáveis
em caso de conflito de valores, complementa-se o método dedutivo com uma parte
indutiva, desenvolvida conceitualmente por Jonsen, Siegler e Wisdale, tomando os
princípios da bioética, conforme a teoria das obrigações prima facie do filósofo norte-
americano W. David Ross, como axiomas de atuação prudencial. Diego Gracia revê estes
estudos sobre a parte indutiva, toma a teoria de W. David Ross e aperfeiçoa o método
proposto por T. Beauchamp e J. Childress. A simplicidade e o sucesso na aplicação
clínica são os maiores trunfos do método proposto por Diego Gracia, que, no entanto, é
passível de crítica.
Diante do problema de buscar um fundamento a priori para a premissa maior, sem
o qual todo o silogismo cai por terra, recorre-se à fenomenologia. Está, assim, definido o
estrato radical e original da moralidade humana.
Palavras-chave: medicina, principialismo, princípio, não-maleficência, justiça,
autonomia, beneficência, bioética clínica, moralidade humana.
6
ABSTRACT
Medicine based on evidences is not so evident. The practice of medicine is an
adroit and judicious activity of vital extent that considers facts and values and must be
bioethically accomplished. The principles of non-maleficence, justice, beneficence and
autonomy revolutionized the decision-making process for physicians, improving medical
care.
The pivotal question discussed in this work tallies with the one derived from the
medical world that requires the aid of philosophy to get to the solution: “How to take
decisions considered rational in clinical and ethical scopes which present a high degree of
uncertainty?” As bioethics progresses, another question arises: Which are the range and
the limits of the principialism in clinical bioethics?”
Principialism is a deductive method of ethical assessment inspired in the
Aristotelian syllogism. Its speculative nature, with deontological principles, is peculiar of a
naturalistic ethic. As ethics deals in practical scope, where exceptions are justified in case
of values’ conflict, an inductive connotation complements the deductive method. This
inductive aspect was conceptually developed by Jonsen, Siegler and Wisdale, who took
the principles of bioethics, in conformity with the obligation prima facie theory of American
philosopher W. David Ross, as axioms of prudential performance. Diego Garcia checks
the inductive part of this studies, adheres to the theory of W. Davis Ross and improves the
method proposed by T. Beauchamp and J. Childress. Simplicity and success in clinical
application are the greatest virtues of the method developed by Diego Garcia, which,
nonetheless, is liable to criticism.
In view of the problem of finding a basis a priori for the major premise, essential to
the existence of the syllogism, it is necessary to turn to phenomenology. In this way, the
radical and original essence of the human morality is defined.
Key-words: medicine, principialism, principle, non-maleficence, justice, autonomy,
beneficence, clinical bioethics, human morality.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 1
1. PRINCÍPIO, AXIOMA PRÁTICO, FUNDAMENTAÇÃO DA ÉTICA E VALOR ... 4
1.1. PRINCÍPIO .................................................................................................. 4
1.2. AXIOMA PRÁTICO ..................................................................................... 16
1.3. FUNDAMENTAÇÃO DA ÉTICA ................................................................. 20
1.3.1. Teorias éticas na História da Filosofia .................................................... 21
1.3.2. Fundamentação da Ética em Diego Gracia ............................................ 27
1.3.2.1. Limites da Racionalidade Humana ............................................... 28
1.3.2.2. Fundamento Ontológico da Ética .................................................. 36
1.3.2.3. Estrutura da Racionalidade Ética .................................................. 42
1.3.2.3.1. O sistema de referência moral .............................................. 42
1.3.2.3.2. Os esboços morais ................................................... ........... 43
1.3.2.3.3. A experiência moral .............................................................. 43
1.3.2.3.4. A justificação moral ............................................................... 44
1.3.2.4. Bases antropológicas da Ética ...................................................... 45
1.3.2.4.1. Premissa ética: a pessoa humana ......................................... 46
1.3.2.4.2. Premissa ontológica: a dignidade humana ............................ 51
1.3.2.5. Juízo ético e juízo moral ............................................................... 54
1.4. VALOR ....................................................................................................... 56
2. ÉTICA, MEDICINA E SURGIMENTO DA BIOÉTICA ...................................... 66
2.1. ÉTICA ......................................................................................................... 66
2.2. MEDICINA ................................................................................................. 73
2.2.1. Ciência e Ética ........................................................................................ 76
2.2.2. Dimensão histórica da Medicina ............................................................. 79
2.2.3. Aplicação tecnológica e questionamento ético na Medicina ................... 84
2.2.4. A Medicina necessita da ajuda dos filósofos ............................................ 89
2.2.5. Concepção filosófica subjascente ao exercício da Medicina ................... 92
8
2.2.6. Movimentos opostos ao dualismo cartesiano na Medicina .................... 99
2.3. SURGIMENTO DA BIOÉTICA ................................................................... 102
2.3.1. Bioética Clínica ....................................................................................... 111
3. PRINCIPIALISMO E MÉTODOS DA BIOÉTICA ............................................... 115
3.1. PRINCIPIALISMO ...................................................................................... 117
3.1.1. Método ontológico ou principialista ......................................................... 118
3.1.1.1. Momento especulativo: a ética como recta ratio................................ 118
3.1.1.2. Momento prático: a ética como recta ratioagibilium........................... 122
3.2. PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA ...................................................................... 126
3.2.1. Princípio de Autonomia ........................................................................... 131
3.2.2. Princípio de Beneficência ........................................................................ 136
3.2.3. Princípio de Não-maleficência ................................................................. 138
3.2.4. Princípio de Justiça .................................................................................. 140
3.2.5. Avaliação dos princípios de bioética.......................................................... 141
3.2.5.1. Os quatro princípios prima facie são do mesmo nível? .................... 145
3.2.5.2. Os princípios são absolutos ou relativos? ........................................ 148
3.2.5.3. Os princípios são teleológicos ou deontológicos? ........................... 151
3.3. MÉTODOS BIOÉTICOS ............................................................................. 153
3.3.1. Método de Howard Brody ....................................................................... 155
3.3.2. Método Principialista ............................................................................... 156
3.3.3. Método Clínicos e Sincréticos ................................................................ 157
3.3.3.1. Procedimento de Hansen ................................................................ 157
3.3.3.2. Procedimento de Pellegrino ............................................................ 158
3.3.3.3. Procedimento de Thomasma ........................................................... 159
3.4. MÉTODO DA BIOÉTICA DE DIEGO GRACIA .......................................... 160
3.4.1. Caso clínico nº 1 ...................................................................................... 162
3.4.2. Caso clínico nº 2 .............................................................................. ....... 175
3.4.3. Caso clínico nº 3 ...................................................................................... 183
3.4.4. Caso clínico nº 4 ....................................................................................... 188
9
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 194
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 201
10
Introdução
A presente dissertação oferece um procedimento prático de tomada de
decisões éticas para a resolução de casos clínicos. Trata-se de apresentar uma
extensão da história clínica para que se resolvam os conflitos de valores dos casos
clínicos que não podem ser solucionados de forma intuitiva, mas procedimental. Deve
ser incluído neste procedimento o esforço deliberativo.
A relevância deste estudo, ou mais propriamente, do acerto das decisões
morais na prática clínica está em sua repercussão positiva em termos de qualidade
de assistência médica. A Medicina historicamente sempre se apresentou como
composta de ética, ciência e arte. Ventos positivistas ao longo da história recente
levaram-na a manejar fatos desconsiderando os valores neles implicados. A Medicina
mudou seu rosto na segunda metade do século XX com a inclusão de alguns fatores
que aumentaram os problemas morais: a maior autonomia do enfermo na relação
médico-paciente; a inseão de um arsenal tecnológico à disposição da prática
médica; e a gestão política do Estado, através dos órgãos públicos, na prática
sanitária.
Hoje, tempo em que sopra uma brisa bioética, manejar fatos científicos
negando os valores neles implicados é considerado falta grave porque tem força
suficiente para desqualificar um profissional sanitário. A qualidade da assitência
médica depende da qualidade da tomada de decisões, que consiste na consideração
e manejo adequado dos valores e dos fatos implicados no caso clínico. O
pensamento bioético causou esta revolução na Medicina.
A teoria da decisão racional foi exercendo, nas últimas décadas, importante
influência na economia, nas ciências empresariais e, mais recentemente, na política,
ética e Medicina. A teoria da decisão racional como método lógico e matemático,
11
utilizando critérios utilitários, maximizava as conseqüências da ação e
desconsiderava os valores éticos envolvidos nela. Consistia apenas num cálculo
estastístico de probabilidades. A posterior inclusão dos valores pessoais pensada da
mesma forma lógica e matemática tornou o processo muito complexo. Ainda assim,
ajudou na assistência sanitária. Faltava o auxílio de um método especificamente ético
para a otimização das soluções em que os valores estivessem implicados.
O principialismo estrito, como método ético-filosófico que tem em sua base a
técnica do silogismo, apresentou-se historicamente como deontológico, não
aceitando, por definição, nenhum tipo de exceções. Sábia e lentamente, o raciocínio
moral acrescentou ao principialismo estrito uma segunda parte contextualista,
narrativista ou hermenêutica, considerando as conseqüências, conseguindo justificar
as exceções e possibilitando decisões racionais em âmbitos que constitutivamente
carecem de certeza o ético e o clínico. A inclusão desta segunda parte ao método
principialista foi a tábua de salvação da ética naturalista e um sinal do fim da
metafísica clássica.
As disciplinas formais e abstratas como a lógica e as matemáticas oferecem
certeza. Quanto aos saberes reais e concretos, em que devemos levar em conta as
conseqüências presentes e futuras envolvidas no fato, podemos atuar com
prudência e obter incerteza e probabilidade. Platão e Aristóteles distinguiram
claramente o âmbito da “ciência” (epistéme) do âmbito da “técnica” ou da arte”
(téchne). A clínica médica, a ética e a política são saberes que se referem ao
particular, por isso são técnicos e prudenciais, segundo Aristóteles. Não o
científicos porque não se referem ao universal. Existe uma íntima relação entre
clínica, ética e política.
O problema principal que envolve esta dissertação coincide com uma questão
proveniente do mundo da Medicina que exige o auxílio da Filosofia para obter
resposta: “Como tomar decisões que possam ser consideradas racionais nos âmbitos
da clínica e da ética que possuem elevado coeficiente de incerteza?” Aristóteles
12
afirma que é possível tomar decisões racionais em âmbitos que não oferecem mais
do que incertezas e probabilidades como a clínica e a ética, e Diego Gracia oferece
um método que nos ensina como fazer análise ética de casos clínicos.
Pretendemos responder a algumas perguntas relacionadas com este problema
central da dissertação: Existem princípios morais que possam ser afirmados como
absolutos? Qual é a natureza e quais são os critérios da verdade moral? Qual é o
papel da teoria ética no raciocínio moral prático? Conforme a estrutura da
racionalidade ética, como pode a razão moral definir o que é correto dentro de um
dado marco de referência? Como a ética formal se converte em moral material?
Quais são os procedimentos que podemos utilizar para a resolução de conflitos
morais no âmbito da Medicina clínica? Tudo o que é tecnicamente possível é benéfico
para o paciente, ou de forma mais ampla, é éticamente correto? Ou, em outras
palavras, uma vez que a ciência opera descobertas novas a partir do desejo de
aumentar o bem-estar das pessoas e da sociedade humana, por que uma nova
criação tecnológica não seria eticamente correta? A ciência e a Medicina têm
capacidade de auto-avaliar-se criticamente sem o auxílio da Filosofia?”
A presente dissertação não se ocupará com discussões referentes às
fundamentações últimas da ética, exceto a posição oferecida pelo filósofo e médico
Diego Gracia Guillén de caráter fenomenológico ao tentar responder a uma polêmica
entre os europeus Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel e o norte-americano Richard
Rorty. Também não se ocupará com o aspecto histórico da bioética discorrendo de
forma detalhada pelas posições intelectuais e diferenciadas de W. David Ross, W. K.
Frankena e Tom L. Beauchamp e James F. Childress.
A dissertação tem um objetivo bioético, quer dizer, prático: apresentar a
fundamentação da bioética segundo Diego Gracia Guillén, que aperfeiçoa as
contribuições dos autores mencionados; propor e aplicar em quatro casos clínicos
seu procedimento de avaliação ética; e expor os alcances e limites do principialismo
em bioética clínica.
13
1. PRINCÍPIO, AXIOMA PRÁTICO, FUNDAMENTAÇÃO EM ÉTICA E VALOR
Iniciamos este primeiro capítulo apresentando a concepção grega de princípio
até chegarmos à definição de causa formal, material, eficiente e final. Segue a
concepção moderna de princípio. Referente ao axioma prático: buscamos um ponto
firme que sirva de alicerce para a teoria da ciência física e a ciência jurídica;
demonstramos a insuficiência e valor do método indutivo; e mostramos sua
importância para a inteligência ética.
Antes de entrarmos na fundamentação da ética em Diego Gracia, fazemos uma
breve abordagem na história da filosofia sobre o tema. São explicadas a seguir as
premissas ontológica e ética do seu método bem como o juízo moral e o valor.
Destacam-se o limite da razão, as diferentes concepções de racionalidade e de
casuística, o conceito de dignidade humana e a importância do resgate da dimensão
valorativa para a qualidade do trabalho de assitência sanitária, e a relação entre ética
e excelência.
1.1. PRINCÍPIO
Princípio, de uma forma geral, é considerado o ponto de partida e fundamento
de um processo qualquer. Ponto de partida, fundamento ou causa são termos que
estão intimamente ligados à noção de princípio.
Para esclarecermos a questão que envolve a noção de princípio, é necessário
remontar à cultura e mitologia gregas do século VIII a. C.. A cultura grega baseada
nos escritos de Homero e Hesíodo em seus mitos constitutivos carecia de livros
sagrados e de uma organização sacerdotal que protegesse seu corpo doutrinal. A
crítica a todos os pontos dos ensinamentos homéricos
1
ao não encontrar resistência
possibilitará o surgimento da filosofia no século VI a. C..
1
Na cultura grega do séc. VIII a.C., o conjunto dos valores, a organização social dos deuses e os
ensinamentos sobre história, geografia, navegação, arte militar, cosmologia, entre outros, eram
transmitidos através de uma forma educativa não organizada, quer dizer, pelos poetas e aedos, e de
14
Nos mitos, as forças naturais como, por exemplo, a terra, a água, o fogo e o ar,
eram personificadas e divinizadas, quer dizer, os fenômenos e acontecimentos do
Universo dependiam da vontade de um ou mais deuses. E, também, a própria atuação
arbitrária dos deuses estava submetida a certas forças cósmicas de caráter abstrato
como o destino.
A explicação racional surge quando a idéia de arbitrariedade lugar
definitivamente à idéia de necessidade. Portanto a preponderância passa a ser
assumida pela convicção de que as coisas acontecem quando e como têm de
acontecer. Existe uma maneira de ser constante ou permantente nas coisas,
fenômenos e acontecimentos que os gregos chamaram de essência (eidos). Por outro
lado, as coisas, devido ao fato de apresentarem-se em diferentes estados ou
aparências, assumem também um caráter de mutabilidade. A essência, ou o que as
coisas verdadeiramente são, devem ser distinguidas, mediante esforço intelectual, das
aparências ou formas como as coisas se apresentam. Os sentidos não bastam para
proporcionar o conhecimento do ser das coisas; é necessária para isso a reflexão
filosófica
2
.
forma particular, pelas obras de Homero. NAVARRO CORDON, Juan M.; CALVO MARTINEZ, Tomas.
História da Filosofia os filósofos, os textos. Rio de Janeiro: Edições 70, vol. 1, p. 21-22. “Assim, a
história da educação grega coincide substancialmente com a da literatura. Esta é, no sentido originário
que lhe deram seus criadores, a expressão do processo de autoformação do homem grego.
Independentemente disto, não possuímos nenhuma tradição escrita dos séculos anteriores à idade
clássica, além do que nos resta dos seus poemas.JAEGER, Werner. Paideia, a formação do homem
grego. São Paulo: Herder, (trad. Artur M. Parreira), 1936, p. 17. “A educação e a cultura procedem antes
de mais de Homero e de Hesíodo. O próprio Xenófanes afirma que foi de Homero que todos
aprenderam, desde o início.” XENÓFANES, frag. 9 Diehl apud JAEGER, Werner. op. cit., p. 197.
2
“As formas literárias dos Gregos surgem organicamente, na sua multíplice variedade e elaborada
estrutura, das formas naturais e ingênuas pelas quais o Homem exprime a sua vida, elevando-se daí à
esfera ideal da arte e do estilo. Também na oratória, a sua aptidão para dar forma a um plano complexo
e lucidamente articulado deriva simplesmente do sentido espontâneo e amadurecido das leis que
governam o sentimento, o pensamento e a linguagem, o qual conduz finalmente à criação abstrata e
técnica da lógica, da gramática, da retórica. A este respeito, aprendemos muito dos Gregos:
aprendemos a estabilidade férrea das formas do pensamento, da oratória e do estilo, que ainda hoje
para nós são válidas. Isto aplica-se ainda à criação mais bela do espírito grego, ao mais eloqüente
testemunho da sua estrutura ímpar: a filosofia. Nela se manifesta da maneira mais evidente a força que
se encontra na raíz do pensamento e da arte grega, a percepção clara da ordem permanente que está
no fundo de todos os acontecimentos e mudanças da natureza e da vida humanas. Todos os povos
criaram o seu código de leis; mas os Gregos buscaram a ‘lei’ que age nas próprias coisas, e procuraram
15
Como as essências são comuns a uma multiplicidade de indivíduos, surge a
convicção de que o todo do universo se reduz, em última análise, a um ou a muito
poucos elementos. É nessa perspectiva que se encontra a originalidade da pergunta
dos filósofos gregos acerca da arché ou princípio último da realidade.
A filosofia nasce, portanto, formalmente quando os gregos tentam atingir uma
visão da totalidade, perguntando pelo permanente do ser das coisas. Neste horizonte,
adquire destaque o problema da mudança. Como explicar que algo que é deixe de
ser? Como explicar a passagem do não ser ao ser? Por isso, a questão central para a
filosofia grega é o movimento
3
.
Ao mover-se cada coisa deixa o que é para ser outra; ou o que cada coisa é
está naquela que lhe deu o ser. Ora, mesmo que haja movimento das coisas, o todo
retém em si o que as coisas são. O todo retém em si o permanente do ser das coisas.
Logo o todo oculta o princípio do ser das coisas. Os gregos chamaram este todo de
phýsis
4
ou natureza. As coisas são momentos de um todo, e o movimento do todo
produz, retém em si e oculta o que cada coisa é desde sempre.
reger por ela a vida e o pensamento do homem. O povo grego é o povo fisolófico por excelência.”
JAEGER, Werner. Paideia… op. cit., p. 10-11. (grifo nosso)
3
GRACIA, Diego. Voluntad de Verdad Para leer a Zubiri. Barcelona: Labor Universitaria, 1986, p. 9 e
13.
4
“Do ponto de vista oriental, é impossível compreender como os artistas gregos lograram representar o
corpo humano, livre e descontraído, fundados, não na imitação de movimentos e atitudes individuais
escolhidas ao acaso, mas sim na intuição das leis que governam a estrutura, o equilíbrio e a
movimentação do corpo. Do mesmo modo, a liberdade sofreada sem esforço, característica do espírito
grego e desconhecida dos povos anteriores, baseia-se na consciência nítida duma legalidade imanente
das coisas. Os Gregos tiveram o senso inato do que significa natureza’. O conceito de natureza,
elaborado por eles em primeira mão, tem indubitável origem na sua constituição espiritual. Muito antes
de o espírito grego ter delineado essa idéia, eles consideravam as coisas do mundo numa
perspectiva tal que nenhuma delas lhes aparecia como parte isolada do resto, mas sempre como um
todo ordenado em conexão viva, na e pela qual tudo ganhava posição e sentido. Chamamos orgânica a
essa concepção, porque nela todas as partes são consideradas membros de um todo. A tendência do
espírito grego para a clara apreensão das leis do real, tendência patente em todas as esferas da vida
pensamento, linguagem, ão e todas as formas de arte radica-se nesta concepção do ser como
estrutura natural, amadurecida, originária e orgânica.” JAEGER, Werner. op. cit. (nota 1), p. 9-10. (grifo
nosso)
16
É facil de compreender o movimento, por exemplo, no âmbito biológico em seus
processos de geração e corrupção. É justamente deste âmbito que provém o sentido
do termo phýsis. O verbo grego phýen, como o latino nascor, significam nascer,
crescer ou brotar. O movimento se dá, portanto, na phýsis, como geração e
corrupção
5
.
A idéia grega de natureza ou physis compõe-se de duas acepções: o
permanente do ser das coisas ou essência e, também, o conjunto dos seres que
povoam o Universo em sua totalidade. As características da natureza segundo a
filosofia grega seriam, portanto, as seguintes:
Ligado ao conceito de necessidade, o Universo apresenta-se como um todo
ordenado, um cosmo e não um caos. Quer dizer, os astros, a Terra, os seres
vivos, os elementos só podem ser um todo ordenado se estiverem no seu lugar
e se comportarem da forma que lhes compete. Em outras palavras, a natureza
dos diferentes seres, entendida no seu sentido próprio e intrínseco, é que
determina o seu lugar no Universo e certo tipo de atividade ou operação
própria.
O universo como totalidade revela uma ordem dinâmica nos movimentos dos
astros, das estações, das gerações de seres vivos, e outros processos naturais
que se apresentam sucessiva e ordenadamente. A natureza implica, portanto,
movimento e atividade intrínsecos e próprios do ser natural.
Portanto negar a mudança, o movimento, é negar a natureza. O conceito de
natureza engloba tanto a essência que é o modo de ser permanente das coisas como
suas determinações para certos tipos de variações, atividades ou operações próprias.
Perguntar pela natureza significa interrogar-se pelo permanente em seus dois
sentidos: “enquanto explica as mudanças é o que as coisas realmente são; e
5
GRACIA, Diego. Voluntad de Verdad... op. cit. (nota 3), p. 14.
17
enquanto fundamento do que parecem ser, é o princípio de unidade capaz de gerar a
pluralidade”
6
.
A primeira pergunta dos filósofos gregos é pela natureza ou physis. O princípio
último é a natureza das coisas porque:
é a origem ou aquilo a partir do qual se geram os seres do Universo;
é o substrato, o permanente, ou aquilo em que consistem os seres do
Universo;
é a causa ou aquilo que é capaz de explicar as diferentes transformações
do Universo.
A pergunta dos filósofos gregos sobre o princípio ou princípio da totalidade do
real apresenta uma dupla face: a radicalidade, pois pretende alcançar o princípio
último e originário; e a universalidade, pois pretende abranger num só princípio a
totalidade da realidade.
Para Platão e Aristóteles, a existência de movimento precisa ser explicada.
Partiram da hipótese de que existe algo que produz o movimento. Aristóteles começa
o primeiro capítulo da Metafísica demonstrando que a sabedoria, ou forma suprema
do saber, é o conhecimento das causas e princípios. Descreve as formas de
conhecimento e a inter-relação entre elas: sensação, memória, experiência, arte e
ciência. Afirma, mais especificamente, que só estas duas últimas podem ser
consideradas por todos como sabedoria. A sensação e a experiência se referem
sempre ao particular, ao âmbito do empírico ou das necessidades práticas, enquanto
a arte, entendida como técnica, e a ciência tratam do universal, isto é, dos porquês
das coisas ou suas causas. Aristóteles enfatiza a importância da busca dos
princípios primeiros:
De fato, quem deseja a ciência por si mesma, deseja acima de tudo a que é
ciência em máximo grau, e esta é a ciência do que é maximamente
6
NAVARRO CORDON, Juan M.; CALVO MARTINEZ, Tomas, op. cit. (nota 1), p. 28.
18
cognoscível. Ora, maximamente cognoscíveis são os primeiros princípios e as
causas; de fato, por eles e a partir deles se conhecem todas as outras coisas,
enquanto, ao contrário, eles não se conhecem por meio das coisas que lhes
estão sujeitas. E a mais elevada das ciências, a que mais autoridade tem sobre
as dependentes é a que conhece o fim para o qual é feita cada coisa; e o fim
em todas as coisas é o bem e, de modo geral, em toda natureza o fim é o sumo
bem.
Do que foi dito, resulta que o nome do objeto de nossa investigação refere-se a
uma única ciência; esta deve especular sobre os princípios primeiros e as
causas, pois o bem e o fim das coisas é uma causa.
7
A sabedoria (sophia) ou metafísica é a forma mais alta do saber humano, que
consiste no conhecimento das causas e princípios primeiros ou supremos. Segundo
Aristóteles, “causa” e princípio são palavras sinônimas. São quatro as causas
primeiras elucidadas na Física
8
: causa formal, causa material, causa eficiente e
causa final. Ele baseia esta afirmação depois de realizar um exame crítico sobre como
os filósofos anteriores trataram a questão dos príncipios e como foi difícil para eles
intuírem de forma conjunta as quatro causas:
Portanto é preciso adquirir a ciência das causas primeiras. Com efeito, dizemos
conhecer algo quando pensamos conhecer a causa primeira. Ora, as causas
são entendidas em quatro diferentes sentidos. (1) Num primeiro sentido,
dizemos que causa é a substância e a essência. De fato, o porquê das coisas
se reduz, em última análise, à forma e o primeiro porquê é, justamente, uma
causa e um princípio; (2) num segundo sentido, dizemos que causa é a matéria
e o substrato; (3) num terceiro sentido, dizemos que causa é o sentido do
movimento; (4) num quarto sentido, dizemos que causa é o oposto do último
sentido, ou seja, é o fim e o bem: de fato, este é o fim da geração e de todo
movimento. Estudamos adequadamente essas causas na Física; todavia
devemos examinar também os que antes de nós enfrentaram o estudo dos
seres e filosofaram sobre a realidade. É claro que também eles falam de certos
7
ARISTÓTELES, Metafísica, A, 2, 982 a 33 – b 11.
8
ARISTÓTELES, Física, II, 3 e 7.
19
princípios e de certas causas. Para a presente investigação certamente será
vantajoso referir-se a eles. Com efeito, ou encontraremos outro gênero de
causa ou ganharemos convicção mais sólida nas causas das quais agora
falamos.
9
A maioria dos primeiros filósofos pensaram que os primeiros princípios de todas
as coisas fossem materiais. Tales estabeleceu a água como princípio das coisas,
Anaxímenes e Diógenes, o ar; Hipaso e Heráclito, o fogo; Empédocles, os quatro
elementos, terra, água, ar e fogo; Anaxágoras, as homeomerias; e Leucipo e
Demócrito, os átomos e a diferença entre eles. Aristóteles aponta, todavia, a
insuficiência dessas tentativas, explicando por que a causa material não pode ser a
causa do movimento:
Com base nesses raciocínios, poder-se-ia crer que exista uma causa única: a
chamada causa material. Mas, enquanto esses pensadores procediam desse
modo, a própria realidade lhes abriu o caminho e os obrigou a prosseguir na
investigação. De fato, mesmo tendo admitido que todo processo de geração e
de corrupção derive de um único elemento material, ou de muitos elementos
materiais, por que ele ocorre e qual é sua causa? Certamente não é o substrato
que provoca a mudança em si mesmo. Vejamos um exemplo: nem a madeira
nem o bronze, tomados individualmente, são causa da própria mudança; a
madeira o faz a cama nem o bronze faz a estátua, mas é outra a causa de
sua mudança. Ora, investigar isso significa buscar o outro princípio, isto é,
como diríamos nós, o princípio do movimento.
10
Hesíodo e Parmênides colocaram o amor e o desejo como a causa motora do
bem, do belo, dos seres e do movimento dos mesmos. O primeiro disse: “Antes de
tudo existiu o Caos, depois foi a terra do amplo ventre e o Amor que resplandece entre
todos os imortais”. O segundo afirmou: “Primeiro entre todos os deuses, a Deusa,
produziu o Amor”.
11
Ainda assim, permanecemos inseguros, pois nenhuma causa
9
ARISTÓTELES, Metafísica, A, 3, 983 a 24 – b 7.
10
ARISTÓTELES, Metafísica, A, 3, 984 a 17-26.
11
ARISTÓTELES, Metafísica, A, 4, 984 b 20 – 30.
20
material e nenhuma causa motriz parecem ser capazes de explicar o todo da
realidade. Por exemplo, como explicar a beleza e bondade das coisas? Anaxágoras,
que afirmou a infinidade das homeomerias como princípios materiais, tentou
responder afirmando que uma inteligência explicava a ordem existente. A inteligência
pode ser considerada uma causa motriz, mas não uma causa final. Empédocles, que
afirmou o fogo, a terra, a água e o ar como princípios materiais, propõe como causa
material e motriz a amizade e a discórdia para explicar a contraposição entre a beleza
e a feiúra e entre a ordem e a desordem e os males.
Aristóteles refere-se a Anaxágoras e Empédocles, apontando-lhes a
inconsistência e falta de clareza:
Parece que esses, como dissemos, alcançaram duas das ‘quatro’ causas
distinguidas nos livros de Física, a saber, a causa material e a causa do
movimento, mas de modo confuso e obscuro, tal como se comportam nos
combates os que não se exercitaram: como estes, agitando-se em todas as
direções, lançam belos golpes sem serem guiados pelo conhecimento, também
aqueles pensadores não parecem ter verdadeiramente conhecimento do que
afirmam. De fato, eles quase nunca se servem de seus princípios.
O próprio Anaxágoras, na constituição do universo, serve-se da Inteligência
como de um deus ex machina, e quando se encontra em dificuldade para
dar a razão de alguma coisa evoca a Inteligência; no mais, atribui a causa das
coisas a tudo, menos à Inteligência.
Empédocles utiliza muito mais suas causas do que Anaxágoras, mas não se
serve delas adequadamente e de maneira coerente. Amiúde, pelo menos no
contexto de seu discurso, a Amizade separa e a Discórdia une.
12
Os Pitagóricos, convencidos de que o pensamento filosófico depende muito da
matemática, afirmam ser os números – tomados como pares e ímpares – os princípios
ou constituintes imanentes das coisas e de suas qualidades. Aristóteles, talvez
influenciado por eles, inicialmente, no capítulo 5 do livro 1 (A), de forma estranha os
12
ARISTÓTELES, Metafísica, A, 4, 985 a 10 – 25.
21
considera causa material, para, no final do mesmo, reconhecer a causa formal, após
rudimentares definições de essência dadas por eles.
13
Os eleáticos reduzem tudo a uma única realidade imóvel, o Uno. Aristóteles
compreende o Uno de Parmênides, finito, como causa formal, e o Uno de Melisso,
infinito, como causa material. Parmênides, obrigado a considerar os fenômenos
provenientes dos sentidos e da experiência, afirma o múltiplo, além do Uno, concebido
da razão pura. Para explicar a existência do múltiplo, Parmênides introduz o calor e o
frio como princípios.
Platão concebe sua filosofia como doutrina das Idéias ou Formas
14
, segundo
Aristóteles, a partir da teoria de Heráclito, que concebe o sensível submetido a um
fluxo contínuo, e o método socrático da definição, que afirma o oposto, um objeto
estável e imóvel. A definições se referem também às idéias. Entre as Idéias e as
coisas sensíveis existiria uma relação de “participação”, chamada, de forma
rudimentar pelos Pitagóricos, de “imitação”. Entre as Idéias e as coisas estariam os
entes matemáticos, múltiplos enquanto sensíveis e imóveis e eternos como as Idéias.
Aristóteles afirma que não provém dos Diálogos, mas de doutrinas não escritas, a
concepção de que a origem das Idéias são a Díade grande-pequeno e o Uno. As
causas assumidas por Platão são, portanto, duas: a formal, que afirma as Idéias como
causa formal das coisas e o Uno como causa formal das Idéias, e a material, que
caberia à Díade grande-pequeno. Ele concebia a causa formal e causa final como
causa do bem e a causa material como causa do mal.
15
De forma definitiva, Aristóteles conclui dessa forma seu exame sobre as
doutrinas dos seus predecessores referente às causas e princípios:
13
REALE, Giovanni. Guía de lectura de la “Metafísica” de Aristóteles. Barcelona: Herder, 1999, p. 25
.
14
A teoria das Idéias é o núcleo principal da doutrina platónica e a que alcança maior significado
religioso e metafísico no conjunto de toda sua obra. PLATÃO, Menón, 81 b – 82 d
15
REALE, Giovanni. Guía de lectura... op. cit. (nota 13),
p. 26
.
22
De modo conciso e sumário examinamos os filósofos que discorreram sobre os
princípios e a verdade, e o modo como o fizeram. Desse exame extraímos as
seguintes conclusões: nenhum dos que trataram do princípio e da causa falou
de outras causas além das que distinguimos nos livros da Física, mas todos, de
certo modo, parecem ter acenado justamente a elas ainda que de maneira
confusa.
16
O conhecimento das coisas, para Aristóteles, consiste em dois níveis distintos:
a constatação ou o empírico, afirmando que tal coisa existe; e o conhecimento ou a
justificativa, revelando-nos o motivo por que existe. Portanto temos a constatação
empírica e o conhecimento. Por exemplo, o fogo queima, e busca-se a resposta à
pergunta: Por que queima? O conhecimento começa com uma constatação empírica
para chegar à ciência ou conhecimento, isto é, ao porquê da coisa.
17
Causa ou
princípio significa o que funda, condiciona e estrutura a existência das coisas.
Considerada de forma estática temos a causa material e a formal. Compreendidas de
forma dinâmica, tomamos a causa eficiente e final.
Conhecer as causas e princípios de algo é conhecer sua ciência, isto é, causas
ou princípios aplicáveis a algumas zonas ou setores da realidade. A posse do
conhecimento metafísico de algo é distinta: significa conhecer as causas e princípios
primeiros ou supremos, aplicáveis à totalidade do real. A metafísica é a busca da
verdade, e a verdade é a causa ou razão de ser das coisas. A metafísica, portanto, é a
ciência das causas e princípios que condicionam toda a realidade, ou os seres em sua
totalidade. Aristóteles descreve as seguintes causas e princípios de todas as coisas
sem a possibilidade de exclusão de alguma delas; as duas primeiras consideram as
coisas estaticamente e as outras duas de forma dinâmica:
1. Causa formal é a forma ou essência das coisas, como a alma nos seres
animados, determinadas relações estruturais nas figuras geométricas, como um
quadrado composto por quatro lados iguais, a estrutura formal dos objetos, etc.
16
ARISTÓTELES, Metafísica, A, 7, 988 a 18 – 24.
17
REALE, Giovanni. Guía de lectura... op. cit. (nota 13), p. 119.
23
2. Causa material é “aquilo do que” (id ex quo) está feita uma coisa como os
animais que são feitos de carne e ossos, o piso é feito de cerâmica, a panela,
de alumínio, etc.
3. Causa eficiente ou motriz é aquilo que determina a mudança ou movimento das
coisas: o pai é a causa eficiente do filho, o medicamento é a causa eficiente da
cura do enfermo, o rompimento da represa é a causa eficiente do alagamento
da cidade, a vontade do homem é a causa eficiente de seus atos, etc.
4. Causa final é o fim ou a meta das ações, aquilo em vista ou em função do qual
(id cuius gratia) uma coisa existe ou está em processo. Para Aristóteles, isso
representa o bem de cada coisa.
A concepção aristotélica de princípio será assumida pela tradição filosófica
posterior com algumas ressalvas porque a própria noção de princípio começa a perder
importância na filosofia moderna e contemporânea. Ela normalmente se apresenta
com a pretensão de identificar-se com a dimensão do absoluto e não inserida numa
situação relativa com o propósito de alcançar certos objetivos. Tal ponto de partida
assim concebido dificilmente seria admitido, atualmente, pelas ciências.
Francis Bacon (1561-1626), considerado o pai do empirismo, defendia que o
conhecimento das causas e dos movimentos determinariam a sujeição da natureza
aos fins definidos pelos homens:
O saber e o poder-fazer dos homens coincidem porque o desconhecimento da
causa nos priva do êxito. Pois somente nos apoderamos da natureza, cedendo-
lhe, e o que na reflexão se afigura como causa, serve na execução como regra.
18
18
BACON, Francis. Neues Organ der Wissenschaften (1830). Trad. e ed. por A. Th. Brück. Darmstadt,
1974, p.86 (Novum organum sicentiarum. Londres, 1620) Apud ENGELS, Eve-Marie. O desafio das
biotécnicas para a ética e a antropologia. In: Veritas, v. 50, n. 2, junho 2004, p. 211.
24
René Descartes (1596-1650) inaugura a filosofia moderna com o Racionalismo.
No Discurso sobre o Método conta-nos como ele procedeu para alcançar os
verdadeiros conhecimentos. Ele “teve a liberdade de duvidar dos princípios que lhe
foram inculcados e de afastar-se do senso comum para tomar o caminho que é
preciso seguir para agir mais acertadamente”
19
e evitar que a própria vida se tornasse
confusa. Ele determina uma inflexão na noção de princípio ao fundamentar sua
filosofia na razão, tornando a consciência de si um momento essencial da verdade. A
ciência moderna, tendo a matemática como parâmetro e instrumento, deduz suas leis
a partir de certos princípios e ideais primordiais. De onde provêm os princípios e as
idéias que mediante a dedução formam o corpo das proposições e teoremas da
ciência? Tecendo considerações sobre a proveniência das idéias, se da vigília ou do
sono, Descartes encontra um príncipio onde firmar os conhecimentos verdadeiros:
Finalmente, considerando que os mesmos pensamentos que temos quando
acordados podem ocorrer-nos quando dormimos, sem que haja um
verdadeiro, decidi-me a fingir que todas as coisas que outrora me entraram na
mente não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo
depois, observei que, enquanto pretendia assim considerar tudo como falso, era
forçoso que eu, ao pensar, fosse alguma coisa. Notei, então, que a verdade
penso, logo existo era tão sólida e tão certa que nem mesmo as mais
extravagantes suposições dos céticos poderiam abalá-la. E, assim julgando,
concluí que não deveria ter escrúpulo em aceitá-la como o primeiro princípio da
filosofia que buscava.
20
Ao afirmar a existência do próprio sujeito que pensa e duvida, Descartes
poderia cair no ceticismo. Não é o que acontece porque, ao pensar que o mundo
existe, ele pode equivocar-se. Talvez o mundo não exista, e isso ele contestará depois
a partir da existência de suas idéias e da existência de Deus. O que ele não pode
equivocar-se agora é o fato de que ele pensa isso. Da mesma forma, ele pode duvidar
de tudo, menos do fato de que ele duvida. A filosofia do século XVII, tendo como
19
DESCARTES, R. Discurso sobre o Método. (trad. Paulo M. de Oliveira) São Paulo: Linográfica, col.
Biblioteca Clássica, v. 2, 1953
5
, p. 24.
20
DESCARTES, R. Discurso... op. cit. (nota 19), p. 43.
25
representantes Descartes, Espinosa, Malebranche e Leibniz, afirmou que nossos
conhecimentos válidos e verdadeiros sobre a realidade provêm da razão e não dos
sentidos.
Princípios
21
, portanto, são proposições normalmente implícitas, que não são
nem deduzidas de outras proposições nem resultado de uma só experiência, mas são
pressupostas como norma absoluta nas operações racionais
22
.
1.2. AXIOMA PRÁTICO
A necessidade que temos de fundamentar uma teoria ética exige o auxílio da
filosofia da ciência, ou epistemologia, que é o saber referente aos fundamentos sobre
os quais se pode construir as ciências humanas, físicas e naturais. Um sistema
científico propõe teorias para explicar a realidade. Em todas as teorias, algumas das
afirmações não podem ser fundamentadas porque não se pode avaar mais em
direção à origem. São noções últimas que devem ser postuladas. Por postulado, se
entende o suposto que se estabelece para fundamentar uma demonstração. Tanto
Karl Popper quanto Hans Kelsen enfrentaram esta dificuldade de firmar um ponto de
apoio primeiro para a construção de suas teorias.
21
“A Filosofia, com efeito, procura sempre resposta a perguntas sucessivas, objetivando atingir, por vias
diversas, certas verdades gerais, que põem a necessidade de outras: daí o impulso inelutável e nunca
plenamente satisfeito de penetrar, de camada em camada, na órbita da realidade, numa busca
incessante de totalidade de sentido, na qual se situem o homem e o cosmos. Ora, quando atingimos
uma verdade que nos dá a razão de ser de todo um sistema particular de conhecimento, e verificamos a
impossibilidade de reduzir tal verdade a outras verdades mais simples e subordinantes, segundo certa
perspectiva, dizemos que atingimos um princípio, ou um pressuposto.” (grifo do autor) REALE, Miguel.
Introdução à Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2002
4
, p. 4.
22
Princípios de conhecimento são os conhecimentos primitivos, imediatos ou proposições fundamentais
de onde parte o pensamento que avança dedutivamente. Neste sentido, convém considerar que nossa
capacidade de raciocinar se baseia em dois grandes princípios: o da não-contradição, forma negativa
do princípio de identidade, diz que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo, e através dele
julgamos falso o que implica contradição e verdadeiro o oposto ao contraditório e ao falso; e o da razão
suficiente que faz com que consideremos que nenhum fato pode ser certo, ou existente, e nenhum
enunciado verdadeiro, sem que haja uma razão suficiente para que seja assim e não de outro modo.
Quer dizer, tudo o que é tem razão de ser, todo o real é racional; tudo tem sua razão suficiente, por
conseguinte, tudo é explicável, inteligivel. (grifo nosso)
26
Karl Popper (1902-1994), filósofo da teoria científica, reconheceu que não há
possibilidade de fundar racionalmente a racionalidade da razão. Não podemos ir até o
infinito na cadeia de fundamentações. Tomemos, por exemplo, um edificio: mesmo ele
não pode ser sustentado somente pelo cimento que o constitui porque depende de
outro fundamento, ou seja, a terra firme. Para Popper, no caso da ciência, essa terra
firme, excluída a razão, é uma forma de fé.
23
Mesmo a indução, em concordância com Hume, não pode ser tomada como
certeza absoluta porque as leis da física são enunciados gerais baseados em
experimentos observados grande número de vezes, e como nunca teremos domínio,
no presente, de acontecimentos futuros, nunca teremos certeza absoluta dos
enunciados alcançados pelo método indutivo. A indução é um princípio lógico
independente da confirmação da experiência ou de outros princípios lógicos. No
entanto ela é indispensável para a ciência.
24
Para os cientistas não importa se a indução apresenta-se como um problema
não resolvido; o que importa é que a ciência apresenta inúmeros resultados práticos.
Popper apresenta uma solução aceitável para o problema da indução: os enunciados
universais ou generalizações empíricas elaborados pela ciência, embora não
verificáveis, são falseáveis. Nada do que sabemos adquire certeza a partir de sua
verificabilidade, no entanto tudo que sabemos pode se revelar falso. A ciência progride
devido ao esforço de refutação aplicado aos enunciados científicos, ou, expressando-
se de outra forma, à descoberta de novos problemas. A natureza dos conhecimentos
para Popper é permanentemente provisória, sendo estes aceitáveis como pontos de
apoio temporários em vista de seus efeitos práticos:
“Admitimos a ‘verdade’ dos nossos conhecimentos para efeito prático, pois que
eles são a menos insegura base disponível. Sem embargo, não se pode perder
23
MARINA, José Antonio. Dictamen sobre Dios. Barcelona: Anagrama, 2001
2
, p. 79.
24
MAGEE, Bryan. As idéias de Popper. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 22-23.
27
de vista o fato de que a experiência pode atestar, a qualquer momento, que
aqueles conhecimentos são errôneos e necessitam de revisão.”
25
A refutabilidade ou falsificabilidade é o critério de demarcação entre a ciência e
a não-ciência. O método científico é conhecido tradicionalmente pelas seguintes fases:
1. Observação e experimentação; 2. Generalização indutiva; 3. Hipótese; 4. Tentativa
de verificação da hipótese; 5. Prova ou contra-prova; 6. Conhecimento. Popper propõe
outro modelo de método científico: 1. Problema (em geral, conflitos diante de
expectativas ou teorias existentes); 2. Solução proposta, ou seja, nova teoria; 3.
Dedução, a partir da teoria, de conseqüências, na forma de proposições passíveis de
teste; 4. testes, ou tentativas de refutação, obtidas por meio da observação e da
experimentação; 5. Escolha entre teorias rivais.
26
Hans Kelsen, nobre jurista do século XX, representante do positivismo jurídico,
afirma que não mais lei que a promulgada, sendo a razão de ser desta a
manutenção da ordem social. Kelsen procurava uma norma suprema para firmar todo
o Direito. Para ele as leis recebem sua autoridade da Constituição. E esta, então, onde
se firma? Este procedimento de buscar sempre uma origem pode nos levar até o
infinito. Consciente disto, Kelsen chega à conclusão de que é necessário afirmar um
pressuposto para fundamentar o Direito mesmo que ele não saiba precisamente qual
seja
27
. Esse pressuposto ou norma básica é um a priori metodológico que cumpre
uma dupla função: fazer possível o conhecimento científico do Direito e atribuir validez
às suas normas. A Declaração universal de direitos humanos e grande número das
Constituições nacionais estabelecem como pressuposto a dignidade humana, como
explicaremos posteriormente.
28
A razão científica não tem nada a dizer sobre a moral. A dignidade humana
emerge do mundo do privado, onde a moral esteve restringida muito tempo junto ao
25
MAGEE, Bryan. As idéias... op. cit. (nota 24), p. 29.
26
MAGEE, Bryan. As idéias... op. cit. (nota 24), p. 57.
27
MARINA, José Antonio; VÁLGOMA, María de la. La lucha por la dignidad Teoría de la felicidad
política. Barcelona: Anagrama, 2000, p. 259.
28
MARINA, José Antonio; VÁLGOMA, María de la. La lucha... op.cit (nota 27), p. 261.
28
âmbito religioso. Entre o mundo profano e público, próprio da ciência, governado por
uma lógica instrumental, de intereses, conhecimentos e técnicas, e o mundo privado
da moral, representado pelos valores, existe uma ponte possível que não pode ser
formada por um argumento, senão unicamente por uma decisão moral. Hans Kelsen,
em sua busca por um gancho transcendental que servisse de fundamento ao direito,
afirmou com amargura: a razão não pode dar um conteúdo à justiça.
29
O filósofo José Antonio Marina se refere ao termo princípio como algo pelo qual
podemos nos firmar para confirmar nossos juízos, um grande mito legitimador que
aceitemos como real, um gancho transcendental, ou, como vimos anteriormente ao
citar os exemplos de Karl Popper e Hans Kelsen, um postulado científico. Frente a
esta necessidade que temos de um fundamento, quatro fatores desencadeiam o
surgimento e a confirmação de um princípio
30
:
1 – O esforço da inteligência de encontrar ou criar um princípio.
2 A capacidade do princípio descoberto de suportar o que necessitemos que
suporte.
3 – Demonstrar que cumpre sua função melhor do que outros princípios concorrentes.
4 O princípio é uma criação adequada tendo em vista sua funcionalidade. Tudo que
ultrapassar esta dimensão, como por exemplo sua existência real, pede uma
demonstração à parte.
Os princípios, denominados mais adequadamente de postulados científicos,
são também chamados de axiomas. Neles se firmam todas as afirmações das teorias,
embora eles mesmos não possam ser demonstrados. Para Bunge, filósofo da ciência,
os axiomas não são algo dado de forma prévia e unívoca, mas são invenções ou
criações humanas.
31
Por exemplo, a geometria de Euclides postula o espaço com três
dimensões. Outras geometrias podem postular o espaço com “n” dimensões ou que
29
MARINA, José Antonio. Dictamen sobre Dios. Barcelona: Anagrama, 2001
2
, p. 99.
30
MARINA, José Antonio; VÁLGOMA, María de la. La lucha... op.cit (nota 27), p. 255.
31
BUNGE, M. La investigación científica. Barcelona: Ariel, 1969, p. 436. Apud MARINA, José Antonio;
VÁLGOMA, María de la. La lucha... op.cit (nota 27), p. 267
29
ele seja reto ou curvo. O geometra se move no mundo ideal lhe interessando somente
a correção de seu sistema. Caberá ao físico adequar determinada geometria à
realidade da distribuição da matéria nos espaços físicos. Será ele quem dirá como
funciona a realidade espacial e escolherá a geometria que melhor se enquadre com
suas teorias. Einstein escolheu uma geometria de espaço curvo; outros escolheram de
espaço reto. Torna-se geometria prática toda a geometria confirmada pela
experiência. Analogamente, necessitamos, para dar firmeza a nossos sistemas
normativos, de um axioma prático:
Lo que nos interesa es aplicar la noción de axioma a la inteligencia ética. Un
axioma práctico es aquel principio no demostrable que permite construir una
teoría que resuelve los problemas de la felicidad subjetiva y política de forma
más perfecta que ningún otro sistema. Su validez se justifica atendiendo a los
problemas que resuelve, a los problemas que produciría su negación, a las
consecuencias de su aplicación o de su vulneración, a su capacidad para
explicar datos o para ampliar el acceso de los seres humanos a los bienes que
necesitan o desean.
32
Princípio, entendido como axioma prático, pode ser considerado como a
norma ou idéia fundamental que rege o pensamento ou a conduta. A ética maneja
principios morais que autorizem ações cujas conseqüências sejam melhores do que
quaisquer outras derivadas de ações alternativas.
1.3. FUNDAMENTAÇÃO EM ÉTICA
A expressão “fundamento da ética” se refere à justificação filosófica de todo o
sistema de crenças morais que embasamento à conduta prática. A moral ocupa-
se da pergunta: Como devemos orientar a própria conduta? Sabemos que no centro
de toda forma de ética existe um modelo geral de conduta correta e/ou boa. A teoria
ética trata do problema de justificar este modelo.
32
MARINA, José Antonio; VÁLGOMA, María de la. La lucha... op.cit (nota 27), p. 268.
30
Primeiramente, apresentaremos a fundamentação da ética, percorrendo as
teorias éticas na história da filosofia que, se não encontraram uma fundamentação
última para a ética, pelo menos serviram como formas de justificação que
conseguiram estabelecer garantias para a moralidade humana. Logo após, veremos
como Diego Gracia fundamenta a ética.
1.3.1. Teorias éticas na História da Filosofia
Sócrates ao encontrar o jovem Eutífron
33
, que acusava seu pai de ter sido
injusto ao ter deixado morrer de fome e de frio um escravo culpado de ter matado
numa briga entre bêbados um outro escravo, lhe pergunta durante o diálogo: O que
é a piedade
34
e a impiedade?
A pergunta o que é?” traz à luz problemas de natureza ontológica e
gnoseológica. A ontologia é a ciência do ser que indaga que tipo de ser deve ser
atribuído àqueles aos quais nos referimos. Em ética, os entes são as propriedades
ou qualidades morais referidas pelos termos bom e correto e outros semelhantes
relacionados aos fatos da comum experiência moral. O problema ontológico surge da
pergunta pela natureza dessas propriedades. No diálogo de Sócrates com Eutífron a
pergunta, mais apropriada e assumida por s, é “o que é a justiça?” porque se
trata de saber se é justa a atitude de Eutífron de condenar seu pai pela morte de um
33
O Diálogo de Platão Eutífron, composto pelos anos de 396 ou 395, ocorreu uns dias antes do
processo de Sócrates. Como sucede aos Diálogos Cármides, Hipias menor e Alcebíades, nos
encontramos na primeira época platônica, em que o fiel discípulo segue tal como recebeu do mestre
as palavras e o método socráticos. Nesses diálogos, é empregada a maiêutica – método que desnuda
didaticamente de todo o conhecimento o interlocutor para que aflore nele a convicção da própria
ignorância. PLATÓN, Obras Completas. Madrid: Aguilar, (trad. José Antonio Miguez),1968
2
, p. 329-
330.
34
Consideramos, como Sócrates afirma aqui, que a piedade é uma parte da justiça: “Cosa análoga
quería yo decirte hace un momento, de ahí que te preguntase si allí donde está la justicia también
está la piedad, o lo que es lo mismo, si, dado que todo lo que es piadoso es justo, puede haber algo
justo que no sea enteramente piadoso. Consideraríamos entonces la piedad como una parte de la
justicia. ¿Estamos conformes con esto o deseas manifestarte de otro modo?” Eutifrón: “No, ya que me
parece que estás en lo cierto.” PLATÓN, Eutifrón, 12a-13b. PIEDADE: Compaixão, dó, pena,
comiseração. Teol. Virtude que leva a render a Deus a honra que lhe é devida. Devoção, afeição e
respeito pelas coisas da religião. Piedade filial, amor respeitoso aos pais. PIEDOSO: Que tem
piedade. Diz-se de pessoa que sente por seus semelhantes um amor respeitoso, e pratica atos
inspirados por esse sentimento. KOOGAN, HOUAISS, Enciclopédia e dicionário ilustrado. Rio de
Janeiro: Delta, 2000
4
, verbetes: Piedade e Piedoso.
31
servo que havia matado outro. Esta pergunta busca responder pelo tipo de
existência que a justiça possui e qual a sua natureza. O problema gnoseológico se
refere ao tipo de conhecimentos que se produzem em ética e a natureza dos
procedimentos mentais a eles vinculados.
Embora existam concepções éticas que afirmem não ser possível uma
fundação última da ética, existem formas de justificação que alcançaram o mesmo
objetivo a que a fundação ontológica se propõe: manter firme o edifício da moral.
As teorias éticas aspiram a constituir-se como corpo de conhecimentos
verdadeiros e objetivos. O problema ontológico em ética apresenta três respostas ou
formas essenciais de fundação última: supernaturalismo, naturalismo e não-
naturalismo
35
.
No diálogo com Sócrates, Eutífron recorre ao supernaturalismo de tipo
religioso. Ele deu a seguinte resposta à pergunta de Sócrates: “Justo é aquilo de que
gostam os deuses.” Sócrates descarta apoiar a moralidade num fundamento
religioso, quer dizer, no recurso à fé ou à revelação. O supernaturalismo de tipo
metafísico encontra cidadania na filosofia e foi elaborado por Platão. A metafísica
trata das realidades últimas que estão além daquelas de que se ocupa a física.
Em sua Teoria das Idéias
36
, Platão afirma que o critério ou idéia que temos
para distinguir o certo do errado o possuímos antes da observação de casos
semelhantes e basta-nos somente recordá-los. As idéias o seriam meros fatos
mentais, mas existiriam realmente num mundo chamado por ele de superceleste
contemplado por nós antes de que fôssemos concebidos. No mundo das idéias
caberia à idéia do Bem a supremacia sobre as outras idéias dispostas
hierarquicamente. Estas idéias seriam as essências que constituiriam a verdadeira
realidade da qual a realidade sensível é apenas uma cópia.
35
NERI, Demetrio. Filosofia Moral – manual introdutivo. São Paulo: Loyola, 2004, p. 67.
36
PLATÓN, Menon, 81b – 82d.
32
Fundamentar a ética no mundo das essências eternas e imutáveis seria,
segundo Platão, a única forma de dotá-la de segurança frente à mutabilidade própria
das opiniões. Somente alguns são capazes de captar diretamente as essências; para
isso é necessário fazer um complexo percurso cognoscitivo denominado de
“conhecimento por intuição”.
As éticas naturalistas não buscam fundamento em entidades sobrenaturais,
quer dizer, em algo que transcenda o mundo da experiência humana. O ser humano
é visto como pertencente a este mundo exclusivamente. O filósofo deve deter-se
sobre a natureza das coisas e a natureza humana.
Para Aristóteles, as idéias ou formas mencionadas por Platão não existem
num mundo à parte, mas constituem a realidade das coisas reais de que são forma.
Cada coisa é uma unidade indivisível de matéria e forma e está dotada do processo
do devir que a leva a realizar-se de uma forma plena. A natureza é mutável e sujeita
ao desenvolvimento. Por exemplo: existe uma teleologia numa árvore que avança
num processo do devir para a sua realização de pleno desenvolvimento, mas que
somente existia de forma potencial nos estágios anteriores como semente, arbusto,
etc.
Aristóteles pensa teleologicamente o processo do devir das coisas. Existe
uma orientação para a realização de uma forma potencialmente contida no estado
inicial da coisa, e a essência ou natureza da coisa é essa forma, em ato, plenamente
realizada:
“... la naturaleza es un fin ya que aquello que es cada cosa una vez ha
completado su desarrollo decimos que es su naturaleza, de un hombre, por
ejemplo, de un caballo, de una familia. Por otra parte, el motivo por el cual una
33
cosa existe, su fin, es su bien principal; y la autosuficiencia es un fin y un bien
importante y capital.”
37
O homem também tem uma forma ou essência que constitui a sua naturreza
específica e representa o fim para o qual aponta o seu desenvolvimento. O princípio
interno que governa a vida do ser humano segundo Aristóteles é a razão, que tem
em vista a conquista do Bem que a sua natureza particular reservou para ele.
Outra forma de naturalismo é o hedonismo difundido entre os sofistas e
depois adotado por Epicuro. O hedonismo (hedoné = prazer) afirma que o bem se
identifica com o prazer. A ação humana é governada pela busca de viver o que é
agradável e evitar o que causa dor. Este é denominado de hedonismo psicológico.
Dele deriva o hedonismo ético que afirma ser o prazer o único movente da ação
humana. É uma postura redutora na medida em que existem outros moventes da
ação humana confirmados pela experiência.
Também o egoísmo é uma forma de ética naturalista ao afirmar que todo
homem orienta o própio comportamento tendo em vista a satisfação dos próprios
interesses. Estes interesses pessoais podem ser o prazer, o que coincidiria com o
hedonismo, como, também, a riqueza, o poder, a fama, etc. Existe uma tese
psicológica que afirma que é bom ou justo fazer tudo o que satisfaz os próprios
interesses. A tese ética afirma o mesmo de forma exclusiva, quer dizer, o único
movente da ação humana é a busca dos próprios interesses. Essa tese entra em
contradição com nossa experiência e nega a moralidade em suas raízes, uma vez
que é impossível pensar uma sociedade estável assumindo essa tese.
Outras formas de éticas naturalistas correspondem ao naturalismo biogico
de Charles Darwin que reduz a moral ao que ajuda à evolução da espécie; ao
naturalismo sociológico que identifica o bem com o que promove a estabilidade e o
progresso da sociedade.
37
ARISTÓTELES, Política, I, cap. 2, 1252 b – 1253 a.
34
Essas formas de naturalismo concentram a atenção nas características da
natureza humana suscetíveis de serem observadas empiricamente. O empirismo se
consolidou a partir do séc. XVII com Galileu Galilei ao estabelecer novas bases para
a ciência da natureza. Renuncia-se à busca das causas últimas” das coisas para
descobrir com a ajuda da matemática as leis que, mediante a observação empírica,
regem os fenômenos da natureza.
Portanto o naturalismo defende o caráter natural das propriedades morais,
como objeto de pesquisa empírica análoga às pesquisas realizadas no campo da
física. A tese de fundo é que o bom ou o justo podem ser definidos como
propriedades naturais de tipo não moral.
O supernaturalismo e o naturalismo são duas matrizes de pensamento que
ofereceram respostas à pergunta pela fundamentação da ética. Todas essas
respostas apresentam uma forma gica comum: o bom e o justo são definidos
recorrendo-se a propriedades não-morais; mais especificamente, à intuição como a
idéia de bem de origem platônica e à observação empírica tais como “agradável a
Deus”, “prazeroso”, “favorecimento aos interesses pessoais”, “contribuição à
evolução da espécie”, “promoção do progresso da sociedade”.
Esta forma lógica de apelo aos recursos citados revela um caráter redutor. Se
toda teoria ética aspira constituir-se como corpo de conhecimentos verdadeiros e
objetivos, é lógico reduzir as propriedades morais a proposições. Dessa forma,
segundo Kant, paga-se o alto preço de se reduzir a ética a qualquer outra
propriedade, quer dizer, a algo pertencente a outros campos do saber.
Kant defende a autonomia da ética. Ele desvincula a ética de qualquer tipo de
pressuposto naturalista e supernaturalista. As ciências empíricas, a religiosa e
quaisquer outras referências devem ser consideradas heterônomas em relação à
ética. O fundamento último da moral está na atividade da vontade que dá a si mesma
35
a lei moral. Assim a ética não se fixa a um conteúdo dado, assumindo uma estrutura
de pensamento totalmente formal. A questão que Kant está tentando responder é “O
que devo fazer?” “O que é correto?” O termo correto, ou justo, significa “conforme
uma regra” e estas regras são, para Kant, os imperativos categóricos.
O não-naturalismo surge no inicio do século XX, tendo como representante o
filósofo inglês George E. Moore (1873-1958), que, através da publicação da obra
intitulada Principia Ethica, inaugura a ética analítica. Ele critica os filósofos anteriores
quanto às respostas dadas em relação à fundamentação da moral. Afirmando que a
questão central da ética é “o que é bem?” – a mesma que Sócrates dirigiu a Eutífron
-, aponta que o erro cometido por eles foi tentar definir uma noção que não é
definível. Definir o que é bom seria como tentar explicar a cor amarela para um cego.
Esse erro, identificado mais propriamente nas éticas naturalistas, foi denominado por
Moore de falácia naturalista.
O bem seria um objeto não-natural porque não pertence ao domínio das
propriedades naturais. A idéia da indefinibilidade do bem, defendida por Moore,
encontra sua matriz no intucionismo. A tese intucionista é de cunho platônico e
defende que possuímos uma especial capacidade intelectiva, diferente da
capacidade de raciocinar, que nos permite captar, aceder ou “intuir” verdades gerais
referentes ao âmbito da ética.
Moore discorda dos intucionistas ao afirmarem que intuímos regras referentes
à conduta prática com a mesma evidência e certeza com que intuímos as regras da
matemática. Moore crê que certo grau de evidência e certeza não se obtém
mediante intuições, mas através da análise das conseqüências das ações.
Os intucionistas afirmavam que o discurso moral é uma forma particular de
discurso descritivo, ou seja, que afirma algo de um objeto, podendo ser, portanto,
verdadeiro ou falso. A dificuldade que os intucionistas tiveram de esclarecer a
particularidade de seu discurso e de apresentar com segurança os critérios de
36
veracidade e falsidade de suas proposições fizeram com que esta corrente de
pensamento perdesse credibilidade.
A pesquisa sobre a fundação última da moral é suspensa a partir do não-
naturalismo dirigindo-se para outros tipos de problemas. Novas perspectivas abertas
pela ética analítica mudaram o foco da pesquisa em ética não mais para o problema
da fundamentação última, mas para o problema da justificação. Em vez de assunir
esta ou aquela via fundadora buscam argumentos capazes de satisfazer as
exigências pelas quais aquelas vias buscavam responder.
1.3.2. Fundamentação da Ética em Diego Gracia
Uma das características predominantes da filosofia no século XX foi o anti-
racionalismo. Diego Gracia, seguindo o pensamento filosófico de Xavier Zubiri, parte
da crise da razão surgida na segunda metade do século XIX. Ele deixa de lado o
racionalismo, tanto realista como idealista, defendendo a tese de que a razão não
pode apresentar-nos a realidade como ela é em si. Isso confirma uma das
características da ética atual e, de forma particular, a ética da responsabilidade,
assumida pelo bioeticista: a desconfiança no poder da razão para formular
proposições deontológicas de caráter absoluto e sem exceções. O que é produzido
pela razão, de forma geral, e pela razão ética, em particular, não pode reivindicar o
estatuto de absoluto. O máximo que as elaborações racionais podem chegar é da
aproximação da realidade, porque a adequação entre ambas se dá, no melhor dos
casos, de forma assintótica
38
e, portanto, nunca definitiva ou última. A razão se
encontra sempre aberta e em busca.
Por isso, para Zubiri, a razão é constitutivamente “histórica”. A existência da
dimensão histórica da realidade é determinante para que a razão lógica seja incapaz
de resolver todos os problemas. Se assim não fosse, aquela não existiria. A razão é
38
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza de la bioética. Col. Ética y Vida, v. 1. Santa de
Bogotá: El Búho, 1998, p. 8.
37
constitutivamente histórica devido à sua inadequação à realidade. Um dos legados
da filosofia do século XX é que não deveríamos pensar sem considerar a
perspectiva histórica. Comete-se um erro quando se pensa eticamente só a partir de
categorias lógicas.
39
A aliança entre a dimensão histórica e o estudo sistemático
encontram na bioética o campo adequado, pois a sua preocupação é dar respostas
responsáveis aos problemas da realidade.
1.3.2.1. Limites da Racionalidade Humana
Já não se acredita mais que a razão seja capaz de recompor e esgotar o todo
da realidade. A racionalidade científica, como vimos, a lógica e a matemática, depois
da comprovação por Kurt Gödel
40
da incompletude dos sistemas formais, são
provisórias no seu conjunto, impossibilitando uma adequação completa entre a razão
e a realidade. A filosofia da ciência prova que a razão é mais curta do que as
pretensões racionalistas e metafísicas. A razão não é tão pura quanto supuseram
Kant e os racionalistas. Sem a possibilidade de apoio numa ética metafísica, resta-
nos, apenas, dispor de uma ética procedimental. Encontramo-nos, portanto, no
âmbito da ética aplicada que pretende ajudar com as descobertas éticas na
resolução de problemas situados nos campos da Medicina, política, empresa,
comunicação social, etc.
39
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op.cit. (nota 38), p. 8.
40
O resultado mais revolucionario da Lógica no século XX é o teorema da incompletude de Kurt
Gödel (1902-1978). A obra lógica de Gödel deve ser relacionada com o programa formalista de David
Hilbert (1862-1943). O Formalismo é um movimento na Lógica e na Matemática, desenvolvido por
Hilbert nos anos 20. Hilbert inventou uma linguagem artificial da lógica e começou a transladar as
afirmações da teoria dos números dentro dela. Seu propósito era construir sistemas formais
completos para as principais teorias da Matemática clássica. Completos no sentido de que qualquer
afirmação ou negação pode ser demonstrada dentro dele. O programa de Hilbert tinha também a
pretensão de demonstrar a consistência dos sistemas formais. Gödel descobriu que existiam
afirmações verdadeiras que não podiam ser provadas dentro do sistema. Ele provou que todo sistema
formal que contivesse a aritmética elementar, como a Matemática, é incompleto e que a consistência
de tais sistemas era impossivel de provar. Isso significou um duro golpe ao Formalismo. In
http://thales.cica.es/rd/Recursos/rd97/Biografias/08-1-b-godel.html disponível em 20/09/2005.
38
A bioética surge nesse contexto e pode ser considerada uma criação
norteamericana porque provém do pragmatismo
41
filosófico anglo-saxão. Esta
corrente de pensamento é constituída por três fatores: o casuísmo
42
, o
procedimentalismo e o decisionismo
43
. Os princípios da bioética mais do que
princípios no sentido estrito devem ser considerados como máximas de atuação
prudencial. Como o que interessa à bioética clínica é encontrar um curso de ação
44
,
quer dizer, munir-se de um procedimento de análise de casos clínicos é importante
deter-se mais nas etapas desse processo do que definir demorada e
pormenorizadamente os princípios de autonomia, beneficência, não-maleficência e
justiça.
Para tratarmos da fundamentação da ética, e de forma particular da bioética,
temos diante de nós a seguinte questão: Como atua a razão moral na bioética
41
A conclusão do Relatório Belmont em !978 em que vêm à luz os princípios da bioética, respeito às
pessoas, beneficência e justiça situa-se no contexto pluralista da sociedade liberal norte-americana.
Para evitar debater questões de fundamento metafísico em que o consenso se tornasse difícil, se
optou pelo pragmatismo: apresentar uns princípios que todos concordem e que sirvam como meio
eficaz e rápido para tomar decisões em situações conflitivas e difíceis.
42
“El casuismo es el método moral propio de las épocas empiristas y nominalistas, la nuestra sin duda
lo es. No contituye tampoco un azar que fuera precisamente el nominalismo del siglo XIV el que
hiciera nacer el casuismo antiguo o clásico. (...) El casuismo es hoy imperante en el dominio de la
bioética. Lo cual no quiere decir que esté exento de problemas.” GRACIA, Diego. Fundamentos de
Bioética. Madrid: Eudema, 1989, p. 451-452.
43
“El decisionismo es el contrario del fundamentalismo. El decisionimo parte de la idea de que no hay
principios éticos absolutos (como tampoco hay principios científicos absolutos) y que por tanto la
única tarea del filósofo moralista es enseñar a decidir, no a fundamentar. Ya que no podemos
fundamentar, aprendamos a decidir. Tal viene a ser la consigna del decisionista. (...) Si el
fundamentalismo afirma la unidade de los principios morales hasta el punto de hacer imposible la
pluralidad de decisiones, al decisionismo le sucede exactamente lo contrario: la pluriformidad de las
decisiones le impide establecer principios objetivos y universales del razonamiento moral. De ahí que
su modo de proceder en la búsqueda del consenso interpersonal o social sea meramente
‘estratégico’: debe considerarse bueno para un colectivo o un conjunto de individuos, aquello que ese
colectivo considera como tal; es lo que Apel llama, en un sentido claramente peyorativo, ‘la
racionalidad estratégica de la acción’. Esta racionalidad estratégica no tiene en cuenta en sus
decisiones el conjunto de la humanidad, sino sólo los intereses del pequeño colectivo de seres
humanos en que se gesta. Así proceden de hecho, en la mayor parte de las ocasiones, no sólo los
individuos sino también los Estados, por ejemplo los del llamado ‘primer mundo’. Ello explica las
grandes y graves injusticias de nuestro medio: abismales diferencias Norte-Sur, fomento estratégico
de las contiendas bélicas como modo de aumentar la riqueza de ciertos sectores de la población,
degradación ecológica del medio, etc. Las diferencias entre los paises desarrollados y los no
desarrollados son cada vez mayores porque aquéllos no toman sus decisiones pensando en el bien
de toda la humanidad, sino sólo en el de su país o de su zona geopolítica.” GRACIA, Diego.
Fundamentos de Bioética... op. cit. (nota 42), p. 452. (grifo do autor)
44
GRACIA, Diego. Introducción a la Bioética. Bogotá: El Búho: 1991, p. 107.
39
norteamericana? A resposta necessita da abordagem do casuísmo de Toulmin e
Jonsen, a polêmica entre Rorty e Habermas e o resgate da tradição filosófica
européia e mediterrânea.
O casuísmo
45
de Toulmin e Jonsen
46
distingue duas definições de casuística
segundo John D. Arras:
1. Casuística
1
consiste na aplicação aos casos concretos de qualquer tipo de
princípios morais, ou axiomas morais formulados a priori pela ética teórica,
que tenhamos à disposição; parte de uma teoria e utiliza o método dedudivo
para poder afirmar a certeza moral. O problema que esta casuística pretende
resolver se apresenta da seguinte forma: Como resolver este caso concreto?
2. Casuística
2
se caracteriza por elaborar juízos prováveis sobre situações
individuais e concretas
47
ou máximas práticas de atuação, que consideram as
perspectivas e os interesses de todos os implicados. Utiliza-se, portanto, o
método indutivo para se chegar a estas máximas. Estas máximas são critérios
sábios e prudentes de atuação prática aceitos por todos e confirmados por
especialistas. Elas provêm da experiência prática e funciomam melhor para a
tomada de decisões do que princípios universais. O problema que a
casuística
2
quer resolver apresenta-se de outra forma através das seguintes
perguntas: Quais as máximas que serão adotadas para a elaboração de um
procedimento para a resolução de casos? Os quatro princípios da bioética.
Qual é este procedimento para a resolução de casos? A bioética, como ética
45
Casuismo e casuística provêm de caso, que é un fato concreto, o contrário de uma norma universal.
Aristóteles estabelece as normas a priori, sem necessitar do conhecimento das circunstâncias. Os
fatos ou casos, no entanto, podem ser julgados de forma concreta e situada. GRACIA, Diego.
Introducción a la... op. cit. (nota 44), p. 111-112.
46
JONSEN, A. R.; TOULMIN, S. The abuse of Casuistry: a History of Moral Reasoning. Berkeley-Los
Angeles–London: University of Chicago Press, 1988, Apud GRACIA, Diego. Introducción a la Bioética.
Bogotá: El Búho: 1991, p. 108. John D. Arras cria as categorías casuismo
1
e casuismo
2
ao classificar
o casuismo de Jonsen e Toulmin no artigo ARRAS, John D. Common Law Morality, Hastings Center
Report, 20, 1990, 35 Apud CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética. São Paulo: Loyola, 2005, p.
148.
47
Não são juízos certos sobre situações universais e abstratas, próprios dos saberes especulativos.
40
aplicada que encontra maior acordo em nível internacional, é a melhor
representante desta forma de casuística.
A casuística
1
parte de uma concepção de racionalidade formal ou geométrica.
Originou-se na filosofia grega e perdurou até o século XIX. Considera o caso como
particularização dos princípios gerais usando, portanto, o método dedutivo. Os
filósofos clássicos de mentalidade mais geométrica y axiomática utilizaram esta
forma de casuística: Platão, Espinoza, Aristóteles, Tomás de Aquino e Kant.
Diego Gracia, ao interpretar o estatuto da ética na filosofia aristotélica
, afirma
que ele é duplo: um primeiro momento a priori ou universal, quer dizer, deontológico,
com princípios universais e axiomáticos; o segundo momento a posteriori, ou
particular, quer dizer, teleológico, em que razões concretas e circunstanciadas
devem ser consideradas para podermos chegar a uma decisão. Portanto, num
primeiro nível
, percebe-se a norma, que nos diz o que é “correto” e, num segundo
nível, as exceções da norma, ou o que é “bom” ou “menos mau”. Aristóteles define
phronesis como rècta ratio agibilium; o momento universal e deontológico da ética é
representado por rècta ratio e momento particular e teleológico por agere. A função
do momento teleológico não é criar normas ou leis, mas justificar as suas exceções.
Vejamos o texto sobre a epieikeia em que Aristóteles confirma o momento
teleológico:
Así lo justo y lo equitativo son lo mismo, y aunque ambos son buenos, es
mejor lo equitativo. Lo que ocasiona la dificultad es que lo equitativo, si bien
es justo, no lo es de acuerdo con la ley, sino como una corrección de la
justicia legal. La causa de ello es que toda ley es universal y que hay casos
en los que no es posible tratar las cosas rectamente de un modo universal.
En aquellos casos, pues, en los que es necesario hablar de un modo
universal, sin ser posible hacerlo rectamente, la ley acepta lo más corriente,
sin ignorar que hay algún error. Y no es por eso menos correcta, porque el
yerro no radica en la ley, ni en el legislador, sino en la naturaleza de la cosa,
pues tal es la índole de las cosas prácticas. Por tanto, cuando la ley presenta
41
un caso universal y sobrevienen circunstancias que quedan fuera de la
fórmula universal, entonces está bien, en la medida en que el legislador omite
y yerra al simplificar, el que se corrija esta omisión, pues le mismo legislador
habría hecho esta corrección si hubiera estado presente y habría legislado así
si lo hubiera conocido. Por eso, lo equitativo es justo y mejor que cierta clase
de justicia, no que la justicia absoluta, pero sí mejor que el error que surge de
su carácter absoluto. Y tal es la naturaleza de lo equitativo: una corrección de
la ley en la medida en que su universalidad la deja incompleta.
48
Kant fundamenta a moral no “imperativo categórico”. Sua apresentação
puramente formal, carece de conteúdos materiais concretos e de caráter preceptivo
e deontológico. O imperativo categórico pode fundamentar uma ética, mas não serve
para tomar decisões concretas. Estas devem contar com o sentido pragmático da
ética; pertencem à ordem dos imperativos hipotéticos, são prudenciais, isto é,
analisam o materialmente possível.
Adela Cortina, ao criticar a casuística
1
49
, considera-a inviável como método
de ética aplicada por duas razões:
1. Não existem princípios materiais universais. Os princípios éticos são
universais e, por isso, formais e procedimentais, ou são materiais, perdendo
assim a condição de universalidade.
2. As situações concretas não são mera particularização de princípios
universais, mas lugar de descoberta de novos princípios e valores morais
correspondentes a âmbitos sociais nos quais se encontra tal situação.
48
ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco, V, 1137 b 11-28. A epiquéia é portanto manifestação de justiça
e também a sua superação na criação do direito para o caso concreto. Serve de ponto de partida para
o trabalho de reconstrução histórica do direito, tomando-se como base a experiência jurídica romana.
AMARAL NETO, Francisco S. A eqüidade no código civil brasileiro. R. CEJ, Brasília, n. 25, abr./jun.
2004, p. 18 in
www.cjf.gov.br/revista/numero25/artigo03.pdf
49
CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética... op. cit. (nota 46), p. 148-149.
42
K. O. Apel também critica a casuística
1
. Como bom kantiano, ele considera
que não cumpre com os requisitos mínimos de “fundamentação” aquela teoria que é
incapaz de compor numa unidade certos princípios, ainda que só sejam formais,
com a pluralidade das decisões universais. Assim, acaba-se caindo no
decisionismo
50
.
A casuística
2
concebe a racionalidade como histórica e ecológica
51
. A
casuística não está em crise porque aceitamos a avaliação da utilidade e das
conseqüências de nossas ações. O que não pode manter-se firme é a convicção
na capacidade da razão de estabelecer normas e critérios universais e absolutos. O
que está em crise, portanto, é o racionalismo, mais especificamente, o
principialismo, entendido de forma estrita, como um dos passos que compõem o
casuísmo
1
definido anteriormente. Toda a ética racionalista, de Platão a Kant,
acreditou que a razão fosse capaz de formular princípios morais que pudessem ser
considerados como absolutos. Não se pode mais desconsiderar a história e nossa
experiência progressiva no mundo. A casuítica
2
é um método de aplicação prático e
retórico, quer dizer, conta com a arte de realizarmos juízos prováveis sobre
situações individuais e concretas. Os produtos da razão não podem mais ser
absolutos, puros ou formais.
Hoje, de forma menos pretensiosa, acredita-se que a razão seja capaz de
elaborar hipóteses e teorias consideradas como padrões históricos de racionalidade
e inteligibilidade que dão sentido aos fatos, denominadas por Toulmin de ideais
explicativos. Eles são os marcos referenciais ou pressupostos da racionalidade que
manejam conteúdos materiais. Os produtos da razão podem ser históricos,
circunstanciados e materiais. Daí se pode concluir que a razão moral deverá ser
sempre histórica e casuística, mas diferente do casuísmo clássico, e mais próxima
do casuísmo
2
.
50
Sobre o decisionismo ver nota de rodapé nº 43.
51
Toulmin denomina de ecológica a razão cujos produtos são históricos, circusntanciados e materiais.
GRACIA, Diego. Introducción... op. cit. (nota 44), p. 114.
43
Entendida a racionalidade como um processo histórico, e não como um
sistema formal, é preciso continuar nossa reflexão apoiados nas definições de
Toulmin sobre disciplina ou empresa racional, ideal explicativo e procedimento
explicativo representando três níveis históricos distintos:
Disciplina ou empresa racional: é um conjunto ou corpo específico de
conceitos, métodos ou procedimentos e objetivos fundamentais a que o os
homens aderem a partir de ideais compartilhados. Como objetivos
disciplinares, representam o nível histórico mais superficial.
Ideais explicativos: são nossas ambições e ideais intelectuais mais relevantes
que servem como marcos de referência de todo processo racional para
aquilatar e julgar nossas presentes faculdades explicativas. São irrealizáveis
de modo completo e perfeito. Representam os níveis históricos mais
profundos e os mais raros. Os problemas são definidos a partir desses ideais.
Nossa vivência na solução desses problemas melhora nossos critérios de
avaliação e permite que uma hipótese ascenda à condição de inovação
conceptual.
Procedimento explicativo: é a maneira pela qual será desenvolvida a atuação
do que é proposto pelos objetivos da disciplina a partir do ideal assumido. É
composto por linguagens, técnicas e metodologias. Em outras palavras, estes
procedimentos são os meios necessários para tornar realidade, mesmo que
de forma parcial e incompleta, os ideais explicativos. Representam o nível
histórico intermediário entre a disciplina e o ideal explicativo.
No caso de surgirem conflitos na ordem dos procedimentos, Diego Gracia
concorda com Toulmin
52
, de que a solução deve ser buscada não em critérios
lógicos a priori, porque não resolveriam o caso, mas somente através de razões
históricas e a posteriori.
52
TOULMIN, Op. cit., p. 233-234 Apud GRACIA, Diego. Introducción... op. cit. (nota 44), p. 116-117.
44
Este é o modo como a casuística
2
resolve os problemas morais, não
recorrendo aos axiomas como faz a casuística
1
, mas servindo-se de ximas. E
como ficamos se as máximas que temos em mãos na aplicação de nosso
procedimento se apresentam contraditórias tendo em vista o caso em questão que
queremos resolver? Nesse caso, Tolmin não recomenda apelar para argumentos
formais; ele opta pelos argumentos consuetudinários ou habituais e históricos. Um
dos documentos fundadores da bioética, o Informe Belmont, de 1978, elaborado nos
Estados Unidos pela National Commission for the Protection of Human Subjects of
Biomedical and Behavioral Research, tem o mérito de utilizar esses recursos
53
apontados por Tolmin, conforme a casuística
2
. Os três princípios da bioética –
respeito pelas pessoas, beneficência e justiça -, propostos por esse documento,
funcionam como máximas e, ainda que ocorram conflitos entre eles, estamos diante
da melhor forma de solucionar os conflitos morais.
Pode-se considerar a ética uma disciplina no sentido toulminiano do termo?
Não, nesse sentido o mais certo seria considerar seu caráter como quase-disciplinar.
Vejamos através de dois exemplos que elucidam a questão:
Uma mulher católica se nega a submeter a um aborto após um diagnóstico de
rubéola. A probabilidade alta de que seu bebê seja acometido de seqüelas graves
não é suficiente para demovê-la da decisão de conduzir até o final a sua gravidez.
Esta mulher está movida por uma crença ou ideal próprio, irredutível e imprevisto
53
A necessidade de apelar para argumentos habituais ou históricos é evidente nesta parte do Informe
Belmont: “The Hippocratic maxim ‘do no harm’ has long been a fundamental principle of medical
ethics. Claude Bernard extended it to the realm of research, saying that one should not injure one
person regardless of the benefits that might come to others. However, even avoiding harm requires
learning what is harmful; and, in the process of obtaining this information, persons may be exposed to
risk of harm. Further, the Hippocratic Oath requires physicians to benefit their patients ‘according to
their best judgement.’ Learning what will in fact benefit may require exposing persons to risk. The
problem posed by these imperatives is to decide when it is justifiable to seek certain benefits despite
the risks involved, and when the benefits should be foregone because of the risks.” THE NATIONAL
COMMISSION FOR THE PROTECTION OF HUMAN SUBJECTS OF BIOMEDICAL AND
BEHAVIORAL RESEARCH. The Belmont Report - Ethical Principles and Guidelines for the Protection
of Human Subjects of Research In:
http://ohsr.od.nih.gov/guidelines/belmont.html?link_id=14221#gob1
disponível em 20/06/2005 e www.ub.es/fildt/belmont.htm disponível em 20/06/2005.
45
pela racionalidade médica. Esta racionalidade é superada pela racionalidade ética
que exige o respeito à decisão desta mulher. Interpretando sua decisão, podemos
afirmar que a racionalidade ética vai além do conhecido pelo quadro disciplinar da
medicina para chegar ao nível dos ideais pessoais. Portanto a ética, ao alcançar
contornos tão altos e imprecisos, seria uma atividade não-disciplinar.
Parece que não podemos dizer o mesmo, por exemplo, sobre os direitos
humanos civis e políticos. Eles são uma prova cabal de que existem entre nós ideais
éticos compartilhados. Na base de todos os direitos humanos, poderíamos tirar,
concordando com Diego Gracia, este direito fundamental, formulado por Dworkin:
todos os homens somos iguais e merecemos igual consideração e respeito. Portanto
a ética, ao encontrar um ideal compartilhado por todos os envolvidos, seria uma
atividade disciplinar.
Diante de aparente contradição, cabe-nos afirmar que a ética possui dois
níveis, um disciplinar e outro não-disciplinar. Melhor seria dizer que a ética é uma
atividade quase-disciplinar. um nível não-disciplinar, no qual se encontram os
princípios de autonomia e beneficência e outro nível disciplinar em que se situam os
princípios de não maleficência e justiça. Este último tem sempre prioridade sobre o
primeiro. Apresentaremos estes dois níveis, com os princípios da bioética
correspondentes, no terceiro capítulo.
1.3.2.2. Fundamento Ontológico da Ética
A máxima conquista filosófica do século XX possivelmente se encontra na
critica ao conceito de racionalidade. Diego Gracia classifica a racionalidade em ts
tipos:
Racionalidade
1
: É racionalidade própria do racionalismo, unanimemente
rejeitada por todos. Todos os filósofos, tanto clássicos como modernos,
tentaram fazer uma correlação entre o pensar e o ser. Não conseguiram
porque não existe um marco de referência a priori que estabeleça, de forma
46
permanente e neutra, uma relação entre o sujeito que conhece e a coisa
conhecida. As justificativas são históricas, situando-nos mais “no que nos é
mais conveniente crer” do que numa “representação exata da realidade”. A
insuficiência desta racionalidade aponta para um pensamento historicista
conforme o segundo Wittgenstein.
Racionalidade
2
: Corresponde à racionalidade estratégica ou tática ou
decisionista utilizada na América do Norte. Aqui se insere a polêmica entre os
europeus J. Habermas e K. O. Apel, representantes da escola de Frankfurt, e
o norte-americano Richard Rorty.
Racionalidade
3
: Introduz a universalidade na ética. Para livrar-se de aporias
da racionalidade
2
, recorre à fenomenologia tentando buscar um fundamento
ontológico para a ética.
A Escola de Frankfurt faz uma crítica ao procedimentalismo norte-americano,
baseada numa realidade histórica bem concreta. O regime nazista, imediatamente
anterior à Segunda Guerra Mundial, foi eleito pela maioria do povo alemão. Uma vez
tomado o governo, seu comportamento incluiu: agressão bélica a todos os povos
vizinhos, confisco de bens e propriedades, segregação dos não-arianos, perseguição
e extermínio dos judeus, experimentos científicos com seres humanos mediante
coação, etc. Daí se pode afirmar que a opinião das maiorias não basta como
procedimento adequado para a tomada de decisões morais.
A Escola de Frankfurt defende a necessidade de fundar a moral além da
racionalidade estratégica ou tática, que contempla os interesses de somente um
grupo de pessoas. O procedimentalismo deve ser, por isso, racional e universal. Por
exemplo, o código de Nüremberg
54
procedente dos trabalhos do tribunal que julgou
os crimes de guerra, contempla os interesses de todos os homens para a pesquisa
com seres humanos. A ética exige que a decisão considere os interesses gerais da
humanidade. Por “interesses gerais da humanidade” se compreende que todos os
54
PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. P. Os problemas atuais de Bioética. São Paulo: Loyola, 1994
2
,
p. 366-367.
47
homens são iguais e merecem igual consideração e respeito. A ética tem como
missão a realização deste ideal.
Tanto a bioética norte-americana quanto a bioética européia são
procedimentais ou processuais, quer dizer, a ênfase na abordagem dos problemas
éticos não deve ser dada tanto aos princípios, mas aos procedimentos. A bioética
norte-americana tende a ser mais estratégica e contemplar interesses de grupos do
que a bioética européia, que se aproxima mais do “ideal” ou “racional”, quer dizer, é
mais exigente ao afirmar como éticos os pactos que levam em conta os interesses
de todos os implicados. “Todos os implicados” significa que estamos obrigados a
incluir sempre nas nossas decisões toda a humanidade presente e futura.
Rorty critica em Habermas
55
a tentativa de criar um novo tipo de ponto de
vista trascendental, semelhante ao kantiano. Ele condena toda tentativa de elaborar
uma “pragmática universal” ou uma “hermenêutica transcendental” como pretensão
de retorno à perfeita adequação entre pensamento e realidade aos moldes do
racionalismo
1
. Por isso ele afirma que não existem condições transcendentais do
conhecimento humano. Estas seriam empíricas porque dependem da situação
histórica e social. Todos pensamos a partir de pressupostos históricos, sociais e
culturais. O que devemos fazer, segundo Rorty, é apelar à historiografia e
antropologia cultural para descrever os pressupostos próprios da sociedade em que
vivemos.
Isso é o que ocorre justamente com os procedimentos norte-americanos: eles
carecem de validez absoluta e tem sentido no interior de uma situação concreta.
Diante do princípio de autonomia entendido de forma diferente por norte-americanos
e europeus, como resolveríamos, por exemplo, a seguinte questão: É correto pagar o
imposto ao Estado? A bioética norte-americana define a autonomia de maneira
55
A polémica entre Rorty e Habermas encontra-se nestes dois livros: RORTY, R. La filosofia y el
espejo de la naturaleza. Trad. esp., Madrid: Cátedra, 1983, p. 18. HABERMAS, J. Erkenntnis und
Interesse. 3 ed., Francfort, Suhrkamp, 1975, p. 410 Apud GRACIA, Diego. Introducción... op. cit. (nota
44), p. 116-117.
48
empírica, como a capacidade de tomar decisões com conhecimento e sem coação.
Tal pagamento não seria aceito por ela por apresentar-se de forma heterônoma,
como exigência externa. Os europeus, conforme a tradição kantiana, o um sentido
categórico e transendental à autonomia, definindo-a como o caráter autolegislador
da razão humana. Eles aceitariam o pagamento vendo nele a realização
paradigmática da lei moral. Sem solucionar o conflito, talvez seja mais correto pagar
o imposto ao Estado porque depois de informada das razões de tal medida uma
pessoa torna-se mais autônoma em sua capacidade de tomar decisões.
voltaremos a este exemplo. Pensando a partir da teoria dos níveis, como
víamos em Toulmin e Rorty, existe um nível racional que não concorda com a
racionalidade
1
. Segundo Zubiri, existe uma inadequação formal entre a razão e a
realidade uma vez que o processo racional é sempre construtivo. A razão constrói ou
cria a realidade na medida em que, para abordá-la, elabora na mente
antecipadamente um esboço. Este esboço, ou primeiro traçado de um projeto para
abordar a realidade, geralmente é uma hipótese ou teoria. No exemplo anterior, a
informação dada à pessoa permitiu que ela ampliasse seu “esboço” mental anterior,
o que a tornou mais autônoma.
Habermas e Apel estão certos na busca de um ponto de apoio trascendental,
num a priori, para evitar que se caia num puro irracionalismo ou puro racionalismo
crítico ou relativismo. Se dizemos que “tudo é relativo” também é relativa esta nossa
afirmação e entramos em contradição conforme o “paradoxo do cético”. Diego Gracia
concorda com os críticos de Habermas e Apel
56
que seu erro está em afirmar esse a
priori como racional porque é um contra-senso. Se é racional, não pode ser a priori,
porque correríamos o risco de voltar ao racionalismo. A formulação do dilema seria:
se é racional não é a priori; se é a priori não é racional. Diego Gracia encontra uma
saída para o impasse na segunda parte deste dilema fazendo a seguinte pergunta: O
que aconteceria se o a priori, em vez de ter um caráter racional, tivesse um cater
56
GRACIA, Diego. Introducción... op. cit. (nota 44), p. 131.
49
pré-racional? Ao admitirmos a possibilidade da existência de um a priori prévio à
racionalidade, poderíamos continuar aceitando as críticas ao racionalismo.
Diego Gracia na fenomenologia uma corrente filosófica que trabalha
justamente esse caráter pré-racional em que se encontraria este a priori que
fundamentação à ética não já no nível transcendental, mas no nível ontológico como
entende Heidegger. Este caráter pré-racional ou nível prévio à razão explicativa foi
denominado por Husserl de intuição. O método fenomenológico, ao colocar entre
parêntesis a realidade da coisa, torna-a reduzida a puro dado da consciência, ou a
dado da consciência pura ou reduzida. Isto é o objeto intencional ou fenômeno.
Intuição é a pura manifestação do puro fenômeno, ou da coisa à consciência pura.
A razão explicativa, tal como a entendem Toulmin e Rorty, está fundada na
razão fenomenológica e é posterior a ela. Por exemplo: como daltônico não percebo
a cor vermelha, quer dizer, vejo verde tudo o que os outros percebem como verde e
verde também tudo o que os outros percebem como vermelho. Estamos diante de
um objeto percebido por eles como vermelho e percebido por mim como verde.
Apesar de que todos os que vêem o objeto como vermelho estejam fundamentados
numa razão explicativa ou científica correta, indicando que certamente o problema
visual pertence a mim, eu posso afirmar que o fenômeno verde é verdadeiro,
enquanto presente na minha consciência, quer dizer, enquanto objeto de minha
consciência pura. Isso prova que existe um reduto prévio à razão que nunca se
equivoca, quer dizer, que se atualiza em mim de modo absolutamente verdadeiro,
permitindo que possamos tomar como relativas as explicações científicas existentes
para um dia ainda melhorá-las. O reduto da consciência pura é prévio à razão e sua
condição de possibilidade. A razão explicativa não é tudo e parece não ser o mais
importante. Os próprios fenomenólogos vêem o racionalismo como uma perversão
da atividade filosófica. Heidegger fundamenta esta questão da seguinte maneira:
Verdadera, en sentido griego, y más originalmente que el lógos, es aísthesis, la
simple percepción sensible de algo. La aísthesis apunta siempre a su ídea, es
50
decir, al ente propiamente accesible sólo por ella y para ella, como por ejemplo
el ver a los colores, y en este sentido, la percepción es siempre verdadera. Esto
significa que el ver descubre siempre colores y el oír descubre siempre sonidos.
‘Verdadero’ en el sentido más puro y originario –e.d. de tal manera descubridor
que nunca puede encubrir– es el puro nóein, la mera percepción contemplativa
de las s simples determinaciones del ser del ente en cuanto tal. Este nóein
no puede encubrir jamás, jamás puede ser falso; podrá ser a lo sumo, una no-
percepción, un agnóein, insuficiente para un acceso simple y adecuado.
Lo que no tiene ya la forma de realización de un puro hacer ver, sino que al
mostrar algo recurre cada vez a otra cosa, y de este modo hace ver algo como
algo, asume, junto con esta estructura sintética, la posibilidade del
encubrimiento –e.d. un fenómeno de verdad múltiplemente fundado. Realismo
e idealismo desconocen con igual radicalidad el sentido del concepto griego de
verdad, que es la base indispensable para comprender la posibilidad de algo
así como una “doctrina de las ideas” como conocimiento filosófico.
57
A aísthesis, a percepção sensível, portanto, é algo anterior ao lógos e seu
fundamento. se situa o nóein, que é a presença original da coisa. A filosofia de
Zubiri segue por esta via do nóein como atualização aprensiva da coisa. O noûs
como prévio ao lógos não é um pensar lógico, nem um raciocínio e nem um juízo; é
uma apreensão da realidade. A realidade se atualiza em nós na apreensão. Só
depois da apreensão é que nós podemos perguntar o que é a realidade. assim a
razão poderá responder autenticamente.
O importante para nossa reflexão é que a razão sempre parte de dados
anteriores a ela mesma. A razão tem a priori porque parte do dado na apreensão
como “sistema de referência”. A razão esboça ao abordar a realidade porque tem
antes um a priori que a permite esboçar o sistema de referência do esboço. Este
sistema de referência assume perante a razão um caráter transcendental, mais
propriamente denominado por Heidegger de ontológico.
57
HEIDEGGER, M. Ser y tiempo. (trad. Jorge Eduardo Rivera C.). Santiago de Chile: Ed.
Universitaria, par. 33-34, 1998
2
p. 56-57 (grifo do autor).
51
1.3.2.3. Estrutura da Racionalidade Ética
A estrutura da racionalidade ética pretende responder às seguintes perguntas:
Como pode a razão moral definir o que é correto dentro desse marco de referência?
Como a ética formal se converte em moral material? Quais são os procedimentos
que podemos utilizar para a resolução de conflitos morais?
1.3.2.3.1. O sistema de referência moral
O sistema de referência moral corresponde aos ideais explicativos de Toulmin
e são prévios à razão. Por serem formais têm contornos imprecisos. os esboços
racionais formulados depois, tendo em vista alcançar este ideal, são delimitados,
precisos e por isso, históricos e provisórios. Por exemplo: os direitos humanos civis e
políticos foram formulados pela primeira vez no século XVII. Seus conteúdos
materiais foram sendo descobertos pela razão. A abolição da escravidão no século
XIX e a emancipação da mulher no século XX determinaram para nós inclusões
naquele esboço racional que a razão naquele tempo não havia percebido ainda
como importante. Os direitos humanos civis e políticos que tiveram aquela expressão
material no século XVII tiveram como sistema de referência o mesmo sistema de
referência que serviu para declarações anteriores e servirá para declarações futuras:
o de que todos os homens possuímos uma dignidade ontológica especial que nos
torna precisamente realidades morais.
Diante do sistema de referência moral, que tem um caráter ontológico, a razão
busca um processo explicativo. A ética tem um conteúdo formal trans-histórico que
se revela no sistema de referência conhecido “todos os homens somos iguais e
merecemos igual consideração e respeito”; a razão, então, se põe a caminho,
tentando colocar conteúdos morais, materiais, que possam dar conta do caso que
temos diante de nós para resolver. Nunca realizaremos este sistema de referência
moral de modo completo, mas ele servirá para a elaboração de esboços racionais ou
explicativos ainda melhores que tentarão nos aproximar ainda mais dele.
52
1.3.2.3.2. Os esboços morais
Os esboços morais tentam munir de conteúdos materiais os ideais explicativos
assumidos. A razão cria esboços para explicar a realidade. Esboçar é antes de mais
nada supor e explicar. É explicar na medida em que tem de verificar este suposto. Ao
ser verificado o esboço se torna uma tese. Mesmo a tese não está imune de receber
outros acréscimos e melhoramentos. Temos como exemplo de esboços: a
Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pelas Nações Unidas em 10
de outubro de 1948; as máximas que se encontram nos livros do Antigo Testamento
como Eclesiastes, Eclesiástico, Provérbios e Sabedoria; e os princípios da bioética,
autonomia, beneficência e justiça propostos pelo Informe Belmont em 1978 e
desenvolvidos por Tom L. Beauchamp e James F. Childress com o acréscimo de um
quarto princípio, o de maleficência, no livro Principles of Biomedical Ethics publicado
no ano seguinte. Os princípios da bioética são obrigações prima facie. Em caso de
conflito entre eles, os prima facie duties, que sempre têm caráter abstrato, se
convertem em actual duties diante do caso concreto.
Na bioética, os esboços morais deverão ser sempre deontológicos, sendo que
as exceções só poderão ser justificadas teleologicamente. O esboço deve dizer
como se resolvem os conflitos entre os princípios caso eles ocorram.
1.3.2.3.3. A experiência moral
O ponto de partida da razão é sempre um sistema de referência anterior a ela.
Depois, a razão elabora esboços para explicar a realidade. O esboço é sempre
confrontado anteriormente pelo sistema de referência e posteriormente pela
realidade da experiência. A realidade da experiência pode nos confirmar ou nos levar
a desprezar o esboço. Por exemplo, no caso do desprezo ao esboço: numa cidade
de um país que possui um governo ditatorial, entra num hotel uma pessoa que não
tem nenhuma conduta qua a desaprove enquanto cidadão. Foram presas
anteriormente outras pessoas, e inclusive torturadas, sem uma causa justa. Os
53
soldados invadem o hotel e perguntam ao dono se aquela pessoa se encontra ali.
Ele responde que não, apesar de ela estar lá escondida. É o caso clássico da
“mentira piedosa”. O sistema de referência moral é todos os homens são iguais e
merecem igual consideração e respeito”. O esboço é “dizer sempre a verdade”.
Nesse caso, convém desprezar tal esboço protegendo a vida da pessoa diante dos
caprichos de um governo violento do que dizer a verdade e causar dano à pessoa.
A experiência pode ser de quatro tipos:
Experimento: um cientista elabora uma hipótese, verifica-a experimentalmente
e a converte numa tese.
Comprovações: as operações matemáticas se confirmam não através de
experimentos, mas a partir de comprovações.
Compenetração: corresponde à experiência humana interpessoal.
Conformação: é a experiência da própria realidade pessoal durante o seu
processo biográfico. Aqui se encontra a experiência moral porque o dever
moral é sempre pessoal, quer dizer, é a realização da própria personalidade
que obriga alguém a atuar moralmente.
A experiência moral é sempre casuística
58
. Enquanto o esboço é genérico e
abstrato, a experiência é específica e concreta. Este momento de concreção é que
torna possível a vida moral e também qualquer atividade da razão humana.
1.3.2.3.4. A justificação moral
A razão verifica através de um método ou procedimento os esboços na
experiência a partir do sistema de referência. Justificação é o nome específico desta
verificação. a razão metódica é capaz de justificar. A metodologia moral é
fundamental para o moralista. A ética é mais do que aplicação de um procedimento,
no entanto não é possivel uma justificação moral sem procedimento. No terceiro
58
GRACIA, Diego. Introducción... op. cit. (nota 44), p. 148.
54
capítulo, oferecemos o procedimento de justificação ética dos casos clínicos
segundo Diego Gracia.
1.3.2.4. Bases antropológicas da Ética
Diego Gracia compreende a bioética como uma disciplina que nasceu para
resolver problemas particulares, assumindo para isso a feição própria de um
procedimento de tomada de decisões. Ele assume como sistema de referência moral
desse procedimento duas premissas de caráter antropológico
59
. A premissa ética
que diz que enquanto pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual
consideração e respeito; e a premissa ontológica que afirma que o homem é pessoa
enquanto tem dignidade e não preço. Explicaremos a premissa ética, abordando o
conceito de pessoa humana e a premissa ontológica, discorrendo sobre a questão
da dignidade humana.
59
Os fenomenólogos Heidegger, Zubiri, entre outros, fundamentam o caráter constitutivamente moral
do ser humano. O homem é um projeto aberto à execução. Não pode deixar de projetá-la. O homem
está ligado à realidade e só pode projetar a sua vida nela e com ela. Ao projetá-la e ao colocá-la em
execução, necessariamente se responsabiliza. Ao responsabilizar-se, deve justificar-se. Esta relação
entre antropologia e ética, em tempos pós-metafísicos, é retratada neste texto do filósofo Manfredo
Araújo de Oliveira: “O homem é uma questão, porque ele não é simplesmente, mas se experimenta
como tendo que conquistar seu próprio ser. Sua especificidade é a indeterminação originária: nem os
instintos, nem suas próprias instituições conseguem determiná-lo de forma definitiva. Assim, ele se
manifesta como marcado por uma faticidade insuperável, portanto como não-determinado de
antemão em seu ser, como contingente, tendo que tomar decisões a respeito de sua própria vida, do
rumo de sua própria existência. Sua essência consiste em superar a natureza e abrir o espaço da
história como o possível lugar de sua realização, a esfera da busca de uma configuração para a vida
individual e coletiva do homem. Isso tudo nos desvela o homem, antes de mais nada, como o ser do
risco: ele pode não realizar seu ser. Nada me garante, a priori, que ele tesucesso em sua busca.
Mas antes de se confrontar com esta questão última, o homem se e diante da pergunta inevitável:
que significa dizer que me conquisto na história? Quem é o eu que se conquista na história? Como
posso saber se minhas decisões me efetivam? Minhas ões são fruto de decisões contingentes e
livres, o que me garantem que elas conduzem à efetivação de meu ser? Antes de mais nada, diante
de tantas alternativas, por que razão prefiro umas a outras? Numa palavra, como se justificam minhas
decisões? Com a questão da justificação nasceu a filosofia na vida humana.” OLIVEIRA, M. A. de.
Sobre a Fundamentação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997
2
, p. 9-10. (grifo do autor)
55
1.3.2.4.1. Premissa ética: a pessoa humana
Diante da premissa ética enquanto pessoas, todos os homens são iguais e
merecem igual consideração e respeito, devemos colocar-nos a questão “O que é
pessoa humana?” ou “Qual é a razão formal da personalidade?”. Estas perguntas
obtiveram três diferentes respostas ao longo da história da filosofia compatíveis com
os horizontes filosóficos próprios de cada época
60
:
O primeiro é o horizonte antigo ou fisiológico. Os gregos interpretaram a
realidade do mundo à sua volta e das coisas em particular em termos de “natureza”,
phýsis, acreditando existir entre a mente humana que pensa e a coisa que existe
uma correlação biunívoca perfeita, quer dizer, a mente pode alcançar o em si da
coisa.
Como seria o “em si das coisas? Tomemos, por exemplo, uma laranjeira
recém plantada. Ao vê-la em diferentes estações do ano percebo que se
modificaram seu tamanho, resistência do caule, aquisição de folhas e, por fim, de
frutos. Ao perceber que se trata, no entanto, da mesma laranjeira, a concepção
grega afirma que o que se alterou é chamado acidente porque não tem realidade em
si senão somente enquanto pertencente a uma natureza que o sustenta. A natureza
em que estão apegados ou inerentes os acidentes, os gregos chamaram de hypo-
keímenon, que na tradução latina foi denominado substância. Portanto a
interpretação de natureza dos filósofos gregos se dá a partir do termo substância.
E homem, segundo a interpretação grega, também é considerado, como
todas as coisas, uma natureza composta de substância e acidentes. Aristóteles o
definiu como zoon lógon ejon, animal dotado de razão e fala, animal rationale. Uma
interpretação a ser considerada é que o termo animal estaria como gênero próximo e
racional como diferença específica da espécie humana. Essa definição acentuaria a
espécie humana e deixaria fora o homem individual.
60
GRACIA, Diego. Introducción... op. cit. (nota 44), p. 159-162.
56
Boécio definirá o homem como substância individual de natureza racional.
Animal não seria uma substância universal, mas particular, quer dizer, individua
substantia. A racionalidade não seria uma diferença específica, mas uma diferença
essencial de cada substância individual. O que define o homem “não é o momento
universal ou específico da realidade humana, sua ‘natureza’, senão seu momento
individual e próprio, sua ‘pessoa’.”
61
O segundo horizonte de compreensão de pessoa humana é o moderno.
Inaugura-se a partir do séc. XVII. O filósofo põe em dúvida a possibilidade de existir
uma correlação perfeita entre a ordem do ser e a ordem do pensar. O entendimento
humano não é capaz de conhecer o em si das coisas. A realidade mais parece uma
construção mental, conhecê-la é um em mim e o o em si das coisas. Berkeley ao
afirmar que “o ser é o percebido” inaugurou o idealismo moderno. Kant dirá depois que
o noumeno da coisa, sua realidade metafísica, não pode ser conhecida; que o
denominado “objeto” é uma síntese a priori entre o dado pela coisa e o posto pelo
sujeito. A realidade é realidade cognoscitiva captada no processo de conhecimento. O
eu é, segundo Descartes, a realidade primeira. Altera-se o foco da filosofia: deixa-se o
realismo ingênuo dos gregos e passa-se ao subjetivismo moderno.
Kant analisa o eu moral na Crítica da razão prática, ao qual se impõe o dever
como imperativo categórico. O dever move a razão pura prática. Kant assim se refere
sobre a origem do dever:
¡Deber! Nombre grande y sublime, que no encierras nada apreciado para
congraciarte con halagos, sino que exiges sumisión, aunque en nada amenazas
que provoque aversión natural en el espíritu y asuste para mover la voluntad, sino
que te limitas a establecer una ley que de suyo penetre en el ánimo y, no obstante,
aun contra la voluntad se gana respeto (auque no siempre observancia), y ante la
cual callan todas las inclinaciones auque secretamente actúen contra ella, ¿cuál es
el origen digno de ti, y dónde se encuentran las raíces de tu noble prosapia, que
61
GRACIA, Diego. Introducción... op. cit. (nota 44), p. 160.
57
rechaza altivamente toda afinidad con las inclinaciones, y proceder de sus raíces
es condición indispensable de aquel único valor que los hombres pueden darse?
No puede ser nada menos que lo que eleve al hombre por encima de mismo
(como parte del mundo sensible), lo que lo enlace con un orden de cosas que sólo
pueda pensar el entendimiento, y que al mismo tiempo tenga bajo sí todo el mundo
de los sentidos, y con él la existencia empíricamente determinable del hombre en el
tiempo y el conjunto de todos los fines (lo único que a título de moral se conforme a
esas leyes prácticas absolutas). No es otra cosa que la personalidad, es decir la
libertad e independencia respecto del mecanismo de toda la naturaleza, pero
considerada al propio tiempo como facultad de un ente que está sometido a leyes
prácticas puras peculiares, a saber, que le han sido dadas por su propia razón, la
persona, pues, como perteneciente al mundo sensible sometida a su propia
personalidad, en la medida en que al mismo tiempo pertenezca al mundo
inteligible; entonces no es de extrañar que el hombre, perteneciendo a ambos
mundos, no tenga que considerar su propio ente respecto de su segunda y
suprema destinación de otro modo que con veneración y sus leyes con el máximo
respeto.
62
A pessoa concebida como liberdade e independência do mecanismo de toda
natureza, expressa como espírito sua condição essencial. No entanto, o idealismo
representado pelo mundo supra-sensível defendido por Kant sofreu sérias críticas.
Nietzsche criticou a moral kantiana... Marx afirmou que a moralidade kantiana é a
ideologia típica da sociedade burguesa. Freud ao defender, como instância do
psiquismo humano, o inconsciente, retira a sustentabilidade do cogito cartesiano. É
preciso estabelecer um novo horizonte filosófico.
O terceiro horizonte de compreensão de pessoa humana é o pós-moderno. O
horizonte filosófico pós-moderno começa a distinguir-se do anterior com Husserl. Sua
fenomenologia pretendeu colocar o problema filosófico num nível anterior e mais radical
do que a dicotomia objeto-sujeito, realismo-idealismo apresentados pela metafísica
antiga e teoria do conhecimento moderno.
62
KANT, Immanuel. Crítica de la razón práctica. (trad. J. Rovira Armengol) Buenos Aires: Ed. Losada,
1968
2
, p. 93-94. (grifo nosso)
58
Tomemos um exemplo: eu percebo uma luz branca. O realismo ingênuo diz que
a luz é branca em si mesma. O subjetivismo moderno diz que a brancura é uma
qualidade subjetiva que só existe em mim. Justificando esta posição temos os dados da
ciência que dizem que a luz branca é um conjunto de ondas eletromagnéticas de certa
freqüência e longitude. Husserl diz que na percepção da luz algo que não é
subjetivo, algo que transcende a subjetividade. Se a luz branca fosse mera
subjetividade, a ciência eletromagnética não seria possível. Husserl afirma que o caráter
de verdade da luz branca é de sentido e não de realidade, é essencial e não é
existencial. A filosofia passa a ter como objeto próprio a análise da essência enquanto
sentido.
E o homem passa a ser compreendido não mais em termos de “substância” ou
de “eu”. Sua essência consistiem sua capacidade para compreender a essência das
coisas através da apreensão da realidade, entendida enquanto fenômeno. Para Max
Scheler (1874-1928), a pessoa no homem precisa ser pensada como o centro que é
superior à oposição entre organismo e meio ambiente. Aos animais
63
lhes falta aquele
tipo particular de autocentralidade que aglutina todos os dados sensoriais com seus
impulsos pulsionais pertinentes e os relaciona a um mundo ordenado substancialmente.
Como pessoa, o homem tem desde o princípio um espaço próprio do qual carecem os
animais:
Somente o homem uma vez que é pessoa consegue se alçar por sobre si
mesmo enquanto ser vivo –, e, a partir de um centro como que para além do
63
“(...) o animal não tem constitutivamente nem mesmo o ‘espaço do mundo’. Um cachorro pode viver por
anos a fio em um jardim e ter estado freqüentemente em cada lugar deste jardim – por maior ou menor
que seja o jardim, o cachorro nunca poderá fazer uma imagem conjunta dele e da disposição das árvores,
dos arbustos, etc., independentemente de sua situação corpórea. Para o cachorro existem espaços
ambientes que mudam com seus movimentos e ele o consegue coordenar estes espaços com todo o
espaço do jardim, independentemente da posição do seu corpo. A razão disto é que o animal não está em
condições de converter seu próprio corpo e o movimento do seu corpo em objeto, de modo que pudesse
incluir a sua própria situação corporal como um momento variável em sua intuição espacial e aprendesse,
assim, como que instintivamente a contar com o acaso de sua posição, como o homem o faz mesmo sem
ciência. Esta capacidade do homem é apenas o começo do que será em seguida desenvolvido na
ciência.” SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. (trad. Marco Antônio Casanova). Rio de
Janeiro: Forense Universitaria, 2003
1
, p. 44.
59
mundo espaço-temporal, incluindo ele mesmo, tornar tudo objeto de seu
conhecimento. Desta feita, o homem como ser espiritual é o ser que se coloca
acima de si mesmo como ser vivo e acima do mundo. Enquanto tal, ele também é
capaz da ironia e do humor que constantemente envolvem uma elevação por sobre
a própria existência.
Mas, o centro a partir do qual o homem empreende os atos de objetivação de seu
corpo e de sua psyche, tornando objetivo o mundo em sua plenitude espacial e
temporal, não pode ser ele mesmo uma “parte” deste mundo e também não pode,
por conseguinte, possuir nenhum lugar qualquer e nenhum tempo qualquer
determinados: ele pode estar colocado no fundamento ontológico mais
supremo.
64
Frente ao horizonte antigo do em si e do horizonte moderno do em mim, surge
outro horizonte, o que Zubiri (1898-1983) chama de de per si
65
. As coisas se atualizam
ao homem na apreensão como sendo algo próprio ou de per si. Por exemplo: Eu
aproximo-me do fogo; o calor não me provoca uma reação de fuga, como ocorreria
com qualquer outro animal, senão como algo que na apreensão apresenta-se para mim
quente como sendo próprio ou de per si. Quer dizer, o calor do fogo atualiza-se em mim
não como algo que esquenta, senão como algo que é quente. Eu posso dizer que o
calor do fogo é quente na apreensão, não sei se além dela. Realidade para Zubiri é este
caráter formal das coisas apreendidas como “de per si”. Não é o antigo realismo
ingênuo porque realidade aqui se considera o caráter formal da coisa na apreensão e
não fora ou além dela. E não é subjetivismo moderno porque, na apreensão, as coisas
não são subjetivas senão reais. O “de per si” não é uma teoria; é a análise das coisas
enquanto atualizadas na apreensão. Ao apreender um ser humano e não o calor do
fogo ou um punhado de terra, eu apreendo um reduplicado e formal “de per si”. É um
“de per si” formal por sua inteligência e liberdade. O homem é pessoa porque se
pertence a si mesmo como realidade. E como pessoa é uma realidade absoluta porque
é “de per si” enquanto realidade e é “de per sifrente a todo o demais. Sente-se como
solto em relação a todo o demais. Mas não é totalmente absoluto porque não é Deus.
64
SCHELER, Max. A posição... op. cit. (nota 63), p. 44-45.
65
CESCON, Everaldo. Uma introdução ao pensamento filosófico-teológico de Xavier Zubiri (1898-1983).
In: Síntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 100, 2004, p. 239-282.
60
O termo pessoa humana, para Diego Gracia, compõe o que ele considera o nível
disciplinar da ética aquele pelo qual todos nós coincidimos e nos obriga sempre. Na
formulação todos os homens somos pessoas, não coisas, e merecemos igual
considerção e respeito, ele recomenda que se retire do termo pessoa humana tudo o
que ele contém de explicação metafísica
66
, reduzindo-a exclusivamente ao caráter auto-
legislador do sujeito, quer dizer, ao puro dado originário da moralidade. Corresponderia
aos mínimos morais denominados por Adorno, encontrando expressão na bioética
através do princípio de não-maleficência e do princípio de justiça.
1.3.2.4.2. Premissa ontológica: a dignidade humana
Ao abordar a premissa ontológica que afirma que “o homem é pessoa enquanto
tem dignidade e não preço”, vemo-nos diante da questão “o que é dignidade humana?”
O filósofo espanhol José Antonio Marina e a jurista María de la Válgoma definem
a ética como sendo o conjunto de soluções que resolvem os problemas relativos à
nossa felicidade pessoal e à dignidade de nossa convivência, pondo a salvo os valores
fundamentais.
67
Para fundamentar um comportamento ético que sirva de base para uma
sociedade justa, quer dizer, feliz politicamente, não basta afirmar que os direitos
individuais prévios à legislação estão confirmados historicamente como sendo a melhor
garantia; também não basta afirmar a liberdade, a segurança e a não-discriminação
como direitos fundamentais; e, muito menos, adianta dizer que uma nova noção de
direitos implica aumento de nossas possibilidades pessoais com a certeza de que a
fraternidade se tornará realidade.
66
GRACIA, Diego. Introducción... op.cit. (nota 44), p. 120.
67
MARINA, José Antonio. Dictamen... op.cit. (nota 23), p. 120.
61
O sistema jurídico quase sempre se apoiou num princípio metajurídico, que
poderíamos chamar de gancho transcendental, aceitos por uma sociedade como: Deus,
a Natureza, a Essência humana, o Tao, a Razão Universal, a Razão Individual e os
Valores Superiores. Deus, como pressupõe a existência de uma fé, e esta nem todos a
têm, foi descartado como fundamento pelos ateus. A Natureza, a Essência humana, o
Tao e a Razão Universal passaram a ser desconsideradas diante do argumento de que
não se pode passar do ser ao dever ser. E a Razão individual seria mais um meio para
encontrar um princípio do que propriamente um fundamento. Onde descansaria,
portanto, o fundamento de um sistema normativo?
Como vimos anteriormente, para não remontarmos ao infinito em busca de um
princípio que servisse de fundamento para a questão que nos ocupa, é necessário partir
de um axioma prático, isto é, um princípio não demonstrável que permite construir uma
teoria que resolve os problemas da felicidade subjetiva melhor do que qualquer outro.
Sua validez se justifica pela resolução de conflitos que proporciona ou dos problemas
evitados pelo cuidado e constância em sua observância. Portanto praticar ou não o
proposto pelo axioma prático implica conseqüências, de forma correspondente,
positivas ou negativas. Fundamentalmente, o axioma prático tem capacidade de
explicar os dados obtidos da realidade e ampliar o acesso dos seres humanos aos bens
de que necessitam ou que desejam.
A dignidade humana é o axioma prático dos sistemas normativos, declarações de
direitos humanos e grande número das constituições nacionais. Ela é um postulado
fundamental da ciência do Direito. Considerá-la não significa aceitar a concepção
jusnaturalista
68
. Significa entendê-la como condição do sujeito que o faz merecedor de
68
O jusnaturalismo é uma reação ao positivismo ético, conseqüente ao nominalismo de Guilherme de
Ockam. O positivismo ético reduziu a ética a um catálogo de condutas aceitas ou proibidas pela
autoridade competente. O jusnaturalismo assume como lei natural a construção de uma ciência dedutiva
das normas de conduta a partir de princípios assumidos previamente. Após o totalitarismo nazista e a
Segunda Guerra Mundial, os legisladores saíram em busca de um princípio capaz de colocar o ser
humano a salvo. Deveria-se reconhecer nele um valor absoluto que o protegesse absolutamente. Os
jusnaturalistas dizem: Esse valor absoluto, nós o possuímos por natureza. Os não-jusnaturalistas
afirmam, e esta é a nossa posição: esse valor absoluto é o que necessitamos ter para estabelecer em
fundamentos sólidos a Cidade. MARINA, José Antonio; VÁLGOMA, María de la. La lucha... op. cit. (nota
27), p. 264. (grifo nosso)
62
algo. Esse mérito não é alcançado pelo sujeito porque ele detém um cargo, vive em
determinada situação ou adquiriu certa capacidade. A dignidade ele a tem pelo fato de
ser homem. E, por isso, todos os homens têm a mesma dignidade. Não se pode perdê-
la nunca, mesmo que se cometam ações indignas. Mesmo que elas aconteçam, o ser
humano segue possuidor de possibilidades éticas.
A dignidade humana, então, se deve ao fato de o homem ser portador de
inteligência, de vontade livre ou de ambas? A falácia naturalista não nos permite atribuir
direitos, deveres ou valores absolutos a partir de propriedades naturais. Também não
podemos afirmar que ela não resida na intelincia e vontade humanas. A dignidade
não está fundamentada na pertença da inteligência enquanto algo estático, estrutural ou
físico do ser humano, mas, sim, no dinamismo criador da inteligência que abre
possibilidades novas, novos significados, novos projetos, novos argumentos, novos
modos de pensar sua própria humanidade, novos modos de viver e conviver, novas
sociedades. A dignidade humana parte da consideração da natureza humana em seu
potencial criador de sempre novas possibilidades humanizadoras; é, por isso, uma
recriação da natureza humana possibilitada pela vontade e inteligência. Essa segunda
natureza criada num patamar mais elevado é o mundo das relações éticas.
Para Kant, não possuímos a dignidade pelo fato de existirmos, mas porque
existimos de uma maneria peculiar como legisladores de nós mesmos. Nos fazemos
através do que fazemos. E, paradoxalmente, na apropriação de nossa possibilidade de
autolegisladores éticos, alcançamos dignidade. A partir de nos constituirmos, de nos
afirmarmos, de nos construirmos e de nos reconhecermos nesta nova natureza mais
elevada, mais possibilitada por nossa inteligência e vontade dinâmicas, nos atribuímos
direitos. A dignidade humana seria justamente isso: a capacidade de nos afirmarmos
como seres valiosos ou portadores de direitos. Esses direitos, entendidos de outra
forma, derivam do valor intrínseco do ser humano, sem mérito algum, só por ser pessoa
e que esse valor deve ser protegido. E, como, para viver no nível mais alto
correspondente a esta segunda natureza criada que é o mundo das relações éticas,
63
necessitamos ter direitos e obrigações absolutos, inspirados no imperativo categórico
kantiano, nos constituimos como seres dotados de um valor absoluto.
69
1.3.2.5. Juízo ético e juízo moral
Como exposto anteriormente, toda teoria ética aspira constituir-se como corpo
de conhecimentos verdadeiros e objetivos. Um modo para realizar esse objetivo
consiste em reduzir as propriedades morais a proposições.
Juízo moral
70
é uma opinião suficientemente pensada sobre a bondade ou a
malícia das intenções, ações ou conseqüências decorrentes de nossos atos. Eles
sempre são formulados segundo uma concepção moral determinada ou teoria ética
considerada válida.
Juízo ético é o que nos levou a considerar como válida a teoria ética que serviu
de referência para os juízos morais formulados. Ele está baseado em argumentos
filosóficos que tentem pensar o problema em suas raízes, de forma completa.
A concepção objetivista do juízo ético
71
pertence ao mundo antigo e medieval.
Ela parte da idéia de adequação entre a ordem do ser e a ordem do pensar. A mente
reproduz com fidelidade a estrutura da realidade e da moral, quer dizer, a ordem do ser
e do dever ser. É incorreto tudo o que infringe a ordem interna da natureza. A ordem da
natureza é princípio de legalidade. É “intrinsecamente mau” tudo o que altera esta “lei
natural”. Não basta a opinião da maioria para legitimar a lei positiva sua legitimidade
está no seu conteúdo intrínseco. A lei positiva deve adequar-se à lei natural. Uma vez
que se tornam desnecessárias as assembléias legislativas e parlamentos, busca-se o
homem virtuoso, o homem excelente, aquele que tem a maior consciência da lei natural
– o rei filósofo de Platão – para governar a cidade.
69
MARINA, José Antonio; VÁLGOMA, María de la. La lucha... op. cit. (nota 27), p. 262 e 266.
70
CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética... op. cit. (nota 46), p. 10.
71
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op.cit. (nota 38), p. 116.
64
A concepção subjetivista do juízo ético é moderna. Advoga a inadequação entre
a mente e as coisas. Nossa experiência da realidade é empírica e sempre limitada, o
que nos desautoriza a generalizar ou formular juízos universais. podemos formular
juízos de experiência ou sintéticos. Não alcançamos nem certeza, nem a verdade.
podemos falar de verosimilhança e probabilidade. A natureza como princípio normativo
não pode fundamentar uma ética. Os juízos universais que parecem servir ao âmbito da
natureza
72
, levados à ética, se tornam falácias - a falácia naturalista denominada por
Moore. A verdade absoluta e plena encontra-se nos juízos analíticos próprios da lógica
e das matemáticas. Aí não existe base empírica, a razão pura, própria de Deus. O
racionalismo moderno busca parecer-se com ela. A razão volta-se sobre si mesma para
purificar-se e chegar à verdade.
Kant afirma que os juízos morais não são analíticos, mas sintéticos. O projeto da
ética de Kant é esse: uma vez que os juízos morais são juízos de experiência, cabe à
razão formular um cânon formal da moralidade humana, que seja categórico, e, por
isso, absoluto e sem exceções. A partir daí seriam estabelecidos princípios que
obrigariam de forma absoluta e sem exceções, determinando assim a correção de todas
as ações humanas. A legitimidade dos juízos morais não se por conteúdos
intrínsecos, mas pela adequação aos princípios da pura razão.
A concepção intersubjetiva do juízo ético começa justamente com a “crise da
razão”, que tem seu início após a morte de Hegel em 1831. Já não é sustentável a tese
defendida pelos racionalistas Descartes, Espinoza, Leibniz e idealistas Kant, Fichte,
Hegel: a capacidade da razão para reconstruir o todo da realidade e estabelecer os
fundamentos da ordem da legalidade. A razão analítica própria da lógica e das
matemáticas não é tão confiável quanto se supunha. Existem paradoxos e incoerências
nesses dois sistemas formais do saber inexplicáveis a partir deles mesmos, devendo-se
recorrer para a sua solução a pressupostos novos exteriores aos sistemas. Kurt Gödel
73
72
Ao nos referirmos acima sobre axioma prático e citarmos David Hume vimos que a indução ao fazer
emergir uma lei das experiências passadas e presentes não nos certeza porque não temos domínio
sobre os fatos futuros. Quer dizer, os juizos universais não tem carta de cidadania no âmbito da natureza.
73
Sobre Kurt Gödel ver nota 40.
65
provou que os sistemas formais são necessariamente incompletos, quer dizer, a razão
não é capaz de autofundar-se, não é um todo coerente e nem pode ser tomada como
faculdade do absoluto.
Com isso veio abaixo o projeto da ética de Kant. Não é possível dar aos juízos
morais sintéticos o mesmo grau de certeza dos juízos analíticos próprios dos sistemas
formais como se acreditava, porque aqueles mesmos carecem de certeza absoluta. Não
é possível elaborar proposições deontológicas que nos digam o que devemos fazer no
mundo empírico em que vivemos e ao mesmo tempo sejam absolutas e sem exceções.
As proposições deontológicas têm exceções. Devemos voltar a Aristóteles que
nos ensina através da deliberação a aplicar as normas a situações concretas, quer
dizer, a tomar decisões prudentes após considerar todas as circunstâncias implicadas
em cada caso. Essa é a função do corpo de jurados nos tribunais e dos comitês de
bioética.
Esta forma de decisão a partir de uma instância consensual encontra respaldo na
maneira como o filósofo José Antonio Marina entende o uso racional da inteligência. A
razão, para ele, é o modo de pensar que busca evidências intersubjetivas. Ela não é a
capacidade de raciocinar ou de tirar conclusões a partir de umas premissas, senão o
projeto de passar das verdades privadas às verdades universais. Este esforço é o único
capaz de fundar uma convivência digna.
74
1.4. VALOR
Para tratarmos adequadamente dos princípios da bioética é necessário, além de
conhecermos em que consistem as concepções subjacentes aos juízos morais, que nos
ocupemos da seguinte questão: O que o valores humanos? Tanto os juízos morais
quanto os valores humanos são considerados elementos centrais da definição de
bioética de Diego Gracia:
74
MARINA, José Antonio. Dictamen... op. cit. (nota 23), p. 117.
66
La bioética es el proceso de contrastación de los hechos biológicos con los
valores humanos, a fin de globalizar los juicios sobre las situaciones y de esa
forma mejorar la toma de decisiones, incrementando su corrección y su calidad.
Un área particular dentro de la bioética sería la bioética sanitaria o bioética
clínica, que en consecuencia se podría definir como la inclusión de los valores
en la toma de decisiones sanitarias, a fin de aumentar su corrección y su
calidad.
75
É um grave erro histórico a consideração da atividade de assistência sanitária
como uma atividade livre de valores. A perda de significação dos valores em todos
os saberes científicos e técnicos se durante a segunda metade do século XIX e a
primeira metade do século XX quando o fundador do movimento positivista, o filósofo
Augusto Comte (1798-1857), convence a todos de que o “regime dos fatos” é o que
realmente importa ser considerado, devendo-se colocar entre parênteses todos os
outros fatores envolvidos, inclusive os valores.
76
Na relação entre ciência e valor, Loren R. Grahan
77
indica duas posturas
extremas pelas quais têm oscilado as opiniões dos cientistas contemporâneos: o
restricionismo e o expansionismo. A primeira defende a posição de que a ciência
deve evitar os juízos de valor; é a neutralidade axiológica. A segunda pensa que
toda atividade humana e todo conhecimento estão comprometidos com valores e
não podem afirmar que são neutros diante deles; é o compromisso axiológico.
A ciência antiga e a primeira ciência moderna eram expansionistas. Elas
usavam de forma indiferenciada fato e valor. Isaac Newton acredita que ao
descrever a mecânica celeste revelava os planos de Deus sobre a natureza. A tese
75
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op. cit. (nota 38), p. 30.
76
GRACIA, Diego. Calidad y Excelencia en el Cuidado de la Salud. Documento técnico ”Bioética y
Cuidado de la Salud – Equidad, Calidad y Derechos. In: Organización Panamericana de Salud,
www.uchile.cl/bioetica/ disponível em 30 de setembro de 2005, p. 36.
77
GRAHAN, Loren. Between Science and Values. New York, Columbia University Press, 1981, apud
GRACIA, Diego. Calidad y Excelencia... op. cit. (nota 76), p. 37.
67
restricionista, da neutralidade axiológica da ciência, surge com Augusto Comte com
o que ele denominou a etapa positiva ou científica da história da humanidade.
O conceito de fato científico surge com a física moderna e é nela que o
positivismo se inspira para formular os conceitos de fato puro e ciência livre de
valores. Sua influência continuará no neopositivismo e primeiro Wittgenstein que
afirmarão taxativamente que o mundo é a totalidade dos fatos e não dos valores, dos
sentimentos e das crenças.
Foi David Hume, em seu Ensaio sobre a natureza humana, quem fez a
distinção entre questões de fato ou empíricas e as relações de idéias ou lógicas dos
sentimentos e das crenças. Os fatos empíricos são o fundamento de toda atividade
intelectual e só deles podemos obter certeza. Os sentimentos subjetivos e os valores
levam os indivíduos às crenças. Para Hume, os valores não podem ser considerados
como fatos, como se fossem algo natural ou científico. Os valores se encontram no
âmbito dos sentimentos e não do entendimento. É necessário, por isso, distinguir os
fatos dos valores.
Se infringimos a regra de que os fatos são objetivos e nos levam à certeza e
os valores são subjetivos e nos levam a nada mais além do que as crenças,
passaremos indevidamente do é ao deve, da ordem do “descritivo” ou “científico” à
ordem do prescritivo” ou “normativo”. George E. Moore em sua Principia Ethica
denominará essa incorreção de falácia naturalista.
Augusto Comte defendia que a ciência positiva corresponderia ao “regime dos
fatos”. Segundo ele, a história da humanindade mostra que, numa primeira etapa,
chamada mítica, o homem viveu durante muitos séculos o “regime da imaginação ou
da fantasia”; segue-se a fase metafísica, em que ele viveu sob o “regime da
especulação”. A fase mais madura a racional e científica – governada pelo “regime
dos fatos”, começa no século XIX. Caberia à ciência selecionar os fatos
objetivamente, excluindo todos os outros fatores, inclusive os valores.
68
Esta mesma posição será assumida, no icio do século XX, por Max Weber,
um neokantiano, herdeiro do positivismo: os saberes rigorosos como os científicos e
técnicos devem restingir-se à análise dos fatos de forma estrita e rigorosa deixando-
se de lado questões de valor. Para a teoria empresarial o que importa é produzir em
quantidade e vender produtos de qualidade; os valores morais ou religiosos dos
empregados da empresa e dos clientes não devem ser considerados. O que mais
ajudará os objetivos da empresa será não se envolver com estas questões.
A tese que defendemos é que não considerar os valores na tomada de decisões
é um grave erro com conseqüências danosas. Não existem decisões sem a inclusão de
valores. Sem os valores, as decisões tomadas não serão de qualidade.
A qualidade consiste na realização dos valores positivos e no rechaço dos
valores negativos. O termo qualidade tem um caráter avaliativo, não descritivo. Segundo
a teoria dos valores, o bem não é um valor particular, mas a realização dos valores
positivos extramorais. A qualidade, ao estar intimamente vinculada com os valores, está
estreitamente relacionada com a ética. E é na teoria da excelência que ambas a ética
e qualidade - se encontram. Podemos inferir, portanto, que:
Não há qualidade possível sem a busca da excelência;
A promoção da excelência é o objeto próprio da ética;
A ética é um componente indispensável para programas de promoção de
qualidade;
O homem bom é o homem excelente, e a busca da excelência deve ser o
objetivo máximo da vida humana.
Para chegarmos a entender os valores, é necessário partir de realidades
mais concretas, confiáveis e evidentes. A Filosofia da Ciência chama tais realidades de
fatos. Os fatos são dados percebidos direta ou indiretamente pelos sentidos sendo
dotados, por isso, de grande objetividade. Os fatos são objetáveis justamente porque se
referem à percepção que temos das coisas. Por exemplo: eu vejo no semáforo acesa a
69
cor vermelha. O daltônico percebe ao mesmo tempo no mesmo semáforo a cor cinza.
Os fatos são diferentes, mas a realidade é a mesma. O que importa é apreensão da
coisa pelos sentidos.
A ciência parte dos fatos para elaborar teorias explicativas dos mesmos. Ela não
tentará descrever o fato, uma vez que este é evidente. Ela apresentará explicações por
que existem diferentes cores e por que uns vêem vermelho o que outros vêem cinza e
vice-versa. Estudará os raios de luz de diferente comprimento de onda e freqüência e a
anatomia e fisiologia do olho humano para resolver estas questões, elaborando um
discurso argumentativo ou teoria. A ciência constrói teorias, que são construções
intelectuais provisórias ou hipóteses, para explicar o porquê dos fatos perceptivos
serem como são.
Os fatos são, num sentido estrito, os dados provenientes da percepção e, num
sentido amplo, construções intelectuais baseadas diretamente sobre dados perceptivos.
Os valores não são percebidos pelos sentidos: são estimados. A estimação é uma
faculdade psíquica distinta da percepção.
Os valores podem ser considerados um conjunto não bem especificado de
termos que denotam entidades abstratas, quer dizer, que não são objetos como o bem,
a beleza, a felicidade, a liberdade, a paz, a justiça, a igualdade e a solidariedade
78
. Por
exemplo: o valor ou a beleza de um quadro, nós não os percebemos; nós os
estimamos. Acrescentamos ao dado da percepção outro usualmente denomindado de
estimação, preferência ou valoração. Percepção e estimação vêm juntas. Vivemos
percebendo e estimando o que percebemos. E nossas decisões mais importantes
como, por exemplo, o casamento, a profissão e as amizades dependem mais dos
valores do que dos fatos.
78
VALCÁRCEL, Amelia. Valor. In: CORTINA, Adela. 10 palabras clave en Ética. Estella: Verbo Divino,
2000
3
, p. 411.
70
Podemos considerar, por exemplo uma nota de cinqüenta reais. O que se
percebe é um papel padronizado, que em si tem um valor mínimo, com um número
referente ao seu poder de compra ou pagamento. Este valor econômico não é
percebido; é estimado. Ele corresponde ao número impresso na nota e é legitimado
pelas assinaturas do presidente do Banco Central do Brasil e pelo ministro da Fazenda.
Todos lhe dão credibilidade, e seu uso como meio de pagamento torna-se uma
realidade indiscutível.
O valor apresenta, portanto, algumas propriedades:
Os valores são objetivos e os são em si mesmos. Os valores são o mais
fundamental do ser humano e não são racionais, mas são razoáveis.
Os deveres consistem na realização dos valores, mas tendo em conta as
circunstâncias concretas e as conseqüências advindas.
Valor, segundo Moore, é algo que, se desaparecesse, faltaria algo importante,
valioso.
Os fatos são os suportes dos valores. O valor é posterior a um fato. No caso do
exemplo, a realidade da nota que tenho em mãos. Se ela for destruída,
desaparece o seu valor. O valor não se identifica com o fato, mas não pode viver
sem ele.
O valor é objeto de estimação. Os valores sempre são estimados e não podem
deixar de ser estimados. A nota de cinqüenta reais pode perder ou ganhar poder
de compra no mercado, apesar de como fato ela permanecer a mesma. Pode-se
estimar que essa nota não valha mais nada. O que não se pode é não estimar
nada sobre a nota ou qualquer outra coisa .
A estimação é um ato que utilizamos freqüentemente. Em tudo colocamos apreço
ou desprezo.
O valor é sempre polar. A todo valor positivo se apresenta um negativo. Entre
estes pólos existem graus ou matizações.
Nosso dever é tornar realidade os valores. Nossa obrigação não é uma boa
solução e sim a ótima solução.
71
Os valores podem ser materiais, vitais e humanos. O preço é o valor próprio das
realidades materiais; é o mais elementar. Os seres vivos tem como valores o bem-estar
e o mal estar, a saúde e a enfermidade, a vida e a morte. Os seres humanos tem como
específicos os valores espirituais que se compõe de outros: lógicos (verdade-erro),
éticos (bom-mau) e estéticos (belo-feio).
Valorar, ou estimar o valor das coisas, é uma condição inegável da vida humana.
As tomadas de decisão sempre implicam valores e fatos. A teoria da decisão racional
respalda que a tomada de decisões somente com fatos é incorreta. A importância dos
valores envolvidos nas tomadas de decisão no âmbito da Medicina nas últimas décadas
é posta em evidência por Diego Gracia:
Si alguna revolución se ha producido en la medicina de los últimos veinticinco
años, es precisamente ésta, que el proceso de toma de decisiones sólo puede
ser de calidad si se tienen en cuenta y se manejan adecuadamente los valores y
no sólo los hechos.
79
Na Medicina clássica, do século XIX, as decisões tomadas pelos médicos tinham
como base os fatos clínicos, abstraindo-se dos valores em questão. O que ocorria é que
somente os valores dos médicos eram levados em consideração. Atualmente, os
valores mais importantes envolvidos no ato médico o os dos pacientes, que devem
ser conhecidos e respeitados. Embora as dificuldades tenham aumentado ao incluí-los
na tomada de decisões, somente considerando-os a Medicina se tornará um serviço de
qualidade.
A ética sanitária é, portanto, a tentativa de introduzir os valores na tomada de
decisões sanitárias com o objetivo de incrementar sua qualidade. Para entender este
conceito, convém ressaltar a relação entre ética, qualidade e excelência.
79
GRACIA, Diego. Calidad y Excelencia... op. cit. (nota 76), p. 41.
72
A ética nasceu no mediterrâneo, no século VI a. C, com a obra “Ética a
Nicômaco” de Aristóteles. A ética do mediterrâneo consistiu numa ética da virtude e do
vício enquanto a ética germânica e anglo-saxã se expressou em termos de direito e
dever. O consentimento informado, que é um documento prévio ao ato médico em que é
formalizado o respeito aos direitos do paciente e as informações pertinentes relatadas
pelo médico mediante assinatura, tem origem na tradição ética anglo-saxã e tem por
mérito incluir os valores dos pacientes na nova teoria médica. Os pacientes norte-
americanos, canadenses e ingleses estão acostumados com ele. O mesmo não pode se
dizer dos pacientes de origem mediterrânea, que ao serem provenientes de uma matriz
ética distinta revelam sua inadequação com pensamentos desse tipo: “Se confio no meu
médico, não necessito de um documento como garantia da informação dada na
consulta médica; se não confio, não me ajudaria para nada a informação prestada.” É
que o paciente do mediterrâneo europeu tem a sua ética baseada no binômio virtude-
vício.
O termo grego areté provém de areíon, ou agathós, bueno, significando melhor
que outros. Normalmente é considerado virtude moral, mas significa primariamente
“uma condição sica que permite ao sujeito fazer bem uma coisa.”
80
Tomemos como
exemplo que um virtuoso cirurgião seja aquele que faz bem o seu trabalho. Este é o
sentido de areté. É necessário primeiro ser um virtuoso cirurgião para poder ser um
cirurgião virtuoso. A areté exige do profissional a excelência física ou técnica, quer
dizer, ser bom cirurgião e a excelência moral, ou ser um cirurgião bom. A virtuosidade
técnica é condição de possibilidade da virtude moral. É nesse sentido que Aristóteles
afirma que um olho e um cavalo possuem areté:
Mas no sólo hemos de decir que la virtud es un modo de ser, sino además de
que clase. Se ha de notar, pues, que toda virtud lleva a término la buena
disposición de aquello de lo cuál es virtud y hace que realice bien su función;
por ejemplo, la virtud del ojo hace bueno el ojo y su función (pues vemos bien
80
Idem, ibidem, p. 41.
73
por la virtud del ojo); igualmente, la virtud del caballo hace bueno el caballo y
útil para correr, para llevar el jinete y para hacer frente a los enemigos.
81
A palavra areté significa excelência, mais propriamente que virtude ou
virtuosidade. O cavalo que possui areté, quer dizer, virtuosidade técnica, capacidade de
exercer bem suas funções, podemos considerá-lo excelente.
Excelência significa fazer
bem as coisas (eu prattein), algo fundamental do viver bem (euzen) ou felicidade. O
homem bom é, portanto, o homem excelente. E o objetivo máximo da vida humana deve
ser a busca da excelência.
A identidade dos profissionais sanitários sempre foi pautada pela excelência. O
profissional sanitário necessita de uma grande auto-estima para poder suportar a
enorme dureza de sua atividade assistencial. Os administradores das instituições
sanitárias devem preocupar-se com a promoção da excelência desses profissionais
para manter sua moral elevada e, conseqüentemente, o pleno funcionamento
institucional.
O ideal da excelência tem sido a marca das profissões sanitárias desde a origem
da Medicina ocidental. E pode-se afirmar de uma forma geral que a excelência é
objetivo da ética profissional desde as suas origens. O conceito de profissão não se
confunde com simples papel, ofício ou ocupação; ele tem origem religiosa como
denotam os termos “fazer profissão de fé” e “professar a religião”. O profissional é uma
pessoa consagrada a uma causa de transcendência humana. A virtude pertence à sua
autocompreensão. Ele faz um ato de entrega pessoal mediante confissão pública para
funções de relevância social como o cuidado da família, a administração da justiça, o
cuidado dos enfermos, a condução do culto, etc. O termo que melhor define o
profissional é a excelência. Se ele não for movido por ela, a vida social corre o risco de
enfraquecer-se.
81
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco 6: 1106 a 14-21.
74
A Medicina deve aspirar à excelência e à perfeição e não se contentar com
menos. O médico não só deve ser perfeito no aspecto moral e físico, como deve
parecer que é.
A ética das profissões deve recuperar o conceito de excelência profissional.
Cumprir os preceitos legais, contentando-se com o desempenho da responsabilidade
laboral não é suficiente para estabelecer uma vida social à altura de enfrentar os
desafios contemporâneos. A lei garante os mínimos necessários e suficientes para uma
convivência elementar. Os máximos estarão sempre sujeitos às decisões e cuidados de
cada um. Uma mãe não se contenta com o suficiente para não ser negligente ou com o
cumprimento dos mínimos exigíveis; ela será excelente quando perseguir os
máximos em relação ao cuidado dos filhos.
75
2. ÉTICA, MEDICINA E SURGIMENTO DA BIOÉTICA
Neste segundo capítulo, apresentamos a ética a partir da divisão aristotélica
dos diferentes tipos de saberes; a ética como saber especulativo e prático ao
mesmo tempo; o conceito de deliberação segundo Aristóteles e sua vantagem
sobre o cálculo de utilidade.
Segue a definição da Medicina enquanto ética, ciência e arte e da
denominada Medicina baseada em evidências; a relação entre ciência e ética, o
legado de Kant, a teoria da decisão racional; uma breve história da ética em que a
precisão dos meios diagnósticos relativizam a qualidade da relação médico-paciente,
os avanços e perspectivas da biologia molecular; a incapacidade da Medicina por si
de autocriticar-se, de solucionar problemas éticos e de determinar mudança de
rota em sua atividade, a necessidade que a Medicina tem da filosofia, a influência do
dualismo cartesiano na Medicina, a possibilidade de sua redefinição; os cuidados
paliativos, a bioética e o movimento europeu do pedido de eutanásia como
movimentos humanizadores contracorrente ao dualismo cartesiano; o surgimento da
bioética e suas concepções filosóficas subjacentes; os pontos mais importantes do
primeiro capítulo direcionados para a bioética clínica, sua definição, um breve
histórico da casuística e os princípios da bioética entendidos numa dimensão
valorativa como máximas de atuação prudencial.
2.1. ÉTICA
A palavra ética
82
tem como raíz etimológica grega ethos (com eta inicial),
costume, e ethos (com épsilon inicial), disposições morais. A palavra moral, de
etimologia latina, mores significa simultaneamente costumes e princípios. Os gregos,
mais aficcionados às especulações, pensaram como fundamentar as ações, enquanto
os cidadãos romanos julgaram as ações e elaboram as leis.
82
QUÉRÉ, F. La Ética y la Vida. Madrid: Acento Editorial, 1994, p. 4. VAZ, Henrique. C. L. Escritos de
Filosofia II – Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 1988, p. 11-16.
76
Com estas denominações referentes à ão humana, duas instâncias parecem
emergir em nossa mente num primeiro momento: a consciência dos sujeitos individuais,
com suas exigências ainda rudimentares; e o costume das sociedades com suas
prescrições mais delimitadas e severas.
A ética se ocuparia da reflexão teórica, perguntando pelas fontes, valores,
liberdade e fins da ação e sua relação com a dignidade humana e as relações com o
próximo. A moral transformaria numa arte de viver as respostas provenientes da
reflexão e as aplicaria na Medicina, na economia, no direito, na política e na ciência.
Para Aristóteles, a Ética é um saber prático. Para ele, os saberes
83
podem ser
teóricos, poiéticos e práticos. Os saberes teóricos (do grego theorein: ver, contemplar)
se ocupam com “aquilo que não pode ser de outra maneira”, isto é, descrevem as
causas objetivas dos acontecimentos e os fatos que ocorrem no mundo; mostram como
é o mundo. Exemplos desses saberes descritivos são a Química, a Biologia, a
Astronomia, etc. O aquecimento do sol, a fotossíntese das plantas, a corrosão dos
ácidos, a temperatura de congelamento da água não estão sujeitos à mudança de
acordo com a nossa vontade.
Os saberes poiéticos e práticos se detêm sobre aquilo que pode ser de outra
maneira”, quer dizer, que estão sujeitos à mudança segundo a nossa vontade. Os
saberes poiéticos (do grego poiein: fazer, fabricar, produzir) servem para guiar-nos na
elaboração ou fabricação de algum trabalho, objeto útil ou obra de arte. São exemplos
desses saberes normativos, que procuram estabelecer orientações, normas ou padrões
sobre como se deve agir para poder se alcançar o objetivo ou resultado desejado, a
preparação de uma aula, o planejamento de uma viagem, o corte e costura de uma
camisa e a elaboração de um texto literário.
83
CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética. São Paulo: Loyola, 2005, p. 10-11.
77
Os saberes práticos
84
(do grego praxis: atividade, tarefa, negócio) também são
normativos e pretendem orientar-nos sobre como conduzir nossas ações de forma
adequada durante a vida para que ela seja boa e justa em seu conjunto. Constituem-se
como reflexão ética, normas morais, códigos de conduta, etc
Aristóteles denominava filosofia prática o conjunto dos saberes práticos: a Ética,
para orientar segundo a prudência as tomadas de decisões que levam a vida boa; a
Economia, para administrar os bens da casa e da cidade; e a Política, para bem
governar a cidade.
A ética é um saber especulativo e prático ao mesmo tempo
porque nela jogam
dois níveis princípios universais e deontológicos e a deliberação para resolver
problemas particulares e práticos –, como vimos ao refletir sobre a fundamentação da
ética. A deliberação
85
(boúleusis) é o raciocínio imediatamente anterior à tomada de
decisões práticas; é a reta razão das coisas que podem fazer-se recta ratio agibilium.
Neste nível se ponderam as circunstâncias e conseqüências para melhor chegarmos à
84
No Diálogo de Platão Eutífron, Sócrates pergunta a Eutífron algo sobre a ética, mais propriamente,
sobre a impiedade. Por tratar-se de um saber prático referente a “coisas que podem ser de outra
maneira”, Eutífron se equivoca na sua resposta: “Sócrates ‘(...) Dime ahora, pues, por Zeus, lo que
sabes tan bien, como aseguras; esto es, qué consideras que es lo piedoso y lo impío en lo concerniente al
homicidio y a las demás cosas. Salvo que no sea lo mismo y en toda ocasión para ti lo que hace que la
acción piadosa y, o que la acción impía no aparezca siempre como lo contrario de toda la acción piadosa
y, en tal sentido, idéntica a misma. Porque ¿no aceptas la idea de que todo lo que se considera como
impío ha de serlo siempre a y no de otro modo?’ Eutífron ‘Por mi parte, lo acepto sin restricciones,
Sócrates.’” PLATÓN, Eutífron, 4b-5d. Aristóteles ao referir-se ao homem prudente que delibera retamente
confirma que existe um momento prático na ética como recta ratio agibilium (reta razão das coisas que
podem fazer-se), quer dizer, sobre aquelas que podem ser de outra maneira: En cuanto a la prudencia,
podemos llegar a comprender su naturaleza, considerando a qué hombres llamamos prudentes. En
efecto, parece propio del hombre prudente el ser capaz de deliberar rectamente sobre lo que es bueno y
conveniente para mismo, no en un sentido parcial, por ejemplo, para la salud, para la fuerza, sino para
vivir bien en general. Una señal de ello es el hecho de que, en un dominio particular, llamamos prudentes
a los que, para alcanzar algún bien, razonan adecuadamente, incluso en materias en las que no hay arte.
Así, un hombre que delibera rectamente puede ser prudente en términos generales. Pero nadie delibera
sobre lo que no puede ser de otra manera, ni sobre lo que no es capaz de hacer. De suerte que si la
ciencia va acompañada de demostración, y no pude haber demostración de cosas cuyos principios
pueden ser de otra manera (por que todas pueden ser de otra manera), ni tampoco es posible deliberar
sobre lo que es necesariamente, la prudencia no podrá ser ni ciencia ni arte: ciencia, porque el objeto de
la acción puede variar; arte, porque el nero de la acción es distinto de la producción. Resta, pues, que
la prudencia es un modo de ser racional verdadero y práctico, respecto de lo que es bueno y malo para el
hombre. Porque el fin de la producción es distinto de ella, pero de la acción no puede serlo; pues una
acción bien hecha es ella misma el fin.” ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco VI 5, 1440a 23 -1140b 8.
85
GRACIA, Diego. Fundamentos de Bioética. Madrid: Eudema, 1989, p. 404.
78
decisão correta. A decisão será ainda mais correta se a ponderação de todas as
circunstâncias e conseqüências que envolvem o caso for feita por um maior número de
pessoas do que por uma só. Está, assim, justificada a existência dos comitês de
bioética, as sessões clínicas e os corpos de jurados nos tribunais
86
. No dilema do
prisioneiro que analisaremos a seguir, perceberemos que a deliberação é mais
completa do que o cáculo de utilidade.
DILEMA DO PRISIONEIRO: dois prisioneiros Fred e Ed são criminosos. Não
provas dos delitos graves cometidos. São condenados por crimes menores. O promotor
quer obter a confissão dos delitos graves de ambos separamente. O promotor propõe:
“Se te confessas, ficas preso por um ano e o outro que não confessa dez anos.”
Se ambos não cofessam, ficarão presos dois anos.
Se ambos confessam, ficarão cinco anos cada um.
Fred e Ed estão incomunicáveis.
PERGUNTA: Que decisão tomarão Fred e Ed?
(ver quadro anexo na página seguinte a expressão gráfica do dilema do
prisioneiro). Legenda do quadro anexo:
* Solução subótima
** Solução ótima
86
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza de la bioética. Col. Ética y Vida, v. 1. Santa de
Bogotá: El Búho, 1998, p. 117.
E D
E D E D
E D
CONFESSA
NÃO CONFESSA
79
RESPOSTA DO DILEMA DO PRISIONEIRO:
C
O
N
F
E
S
S
A
* 5 anos
cada um
1 ano para Ed
10 anos para
Fred
F
FF
F
R
RR
R
E
EE
E
D
DD
D
N
Ã
O
C
O
N
F
E
S
S
A
1 ano para
Fred
10 anos para
Ed
** 2 anos
cada um
80
A lógica da otimização mostra que, dentro das condições apresentadas, o melhor
é que ambos se confessem. Mas o resultado é subótimo.
CONCLUSÃO:
Na vida moral, nem tudo é cálculo de utilidade.
Se a vida moral fosse direcionada pelo cálculo de utilidade, alcançaríamos
resultados subótimos.
Teoria da cooperação: se Fred e Ed cooperassem entre si, chegariam a
resultados melhores. Poderíamos então dizer: “Cooperar parece ser ainda
mais útil.” Neste dilema não deliberação porque não colaboração.
Há um engano. A deliberação é distinta do cálculo de utilidade.
Agora, devemos colocar-nos diante de uma pergunta: onde se situa a deliberação
na ética? Ela compõe o segundo momento do método ontológico ou principialista. Este
método tem dois momentos:
Momento especulativo ou a ética como recta ratio (reta razão). Veremos no
próximo capítulo este caráter estritamente dedutivo e principialista estrito da ética
ao abordar como se comportam os princípios na técnica do silogismo.
Momento prático ou a ética como recta ratio agibilium (reta razão das coisas que
podem fazer-se). Aqui se encontra a deliberação na ética. Assim se refere
Aristóteles sobre ela:
¿Deliberamos sobre todas las cosas y todo es objeto de deliberación, o
sobre algunas cosas no es posible la deliberación? Quizá deba llamarse
objeto de deliberación no aquello sobre lo cual podría deliberar un necio o
un loco, sino aquello sobre lo que deliberaría un hombre de sano juicio. En
efecto, nadie delibera sobre lo eterno, por ejemplo, sobre le cosmos, o
sobre la diagonal y el lado, que son inconmensurables; ni sobre las cosas
que están en movimiento, pero que ocurren siempre de la misma manera,
o por necesidad, o por naturaleza o por cualquier otra causa, por ejemplo,
sobre los solsticios y salidas de los astros; ni sobre las cosas que ocurren
ya de una manera ya de otra, por ejemplo, sobre las sequías y las lluvias;
81
ni sobre lo que sucede por azar, por ejemplo, sobre el hallazgo de un
tesoro. Tampoco deliberamos sobre todos los asuntos humanos, por
ejemplo, ningún lacedemonio delibera sobre cómo los escitas estarán
mejor gobernados, pues ninguna de estas cosas podrían ocurrir por
nuestra intervención.
Deliberamos, entonces, sobre lo que está en nuestro poder y es realizable,
y eso es lo que resta por mencionar. En efecto, se consideran como
causas la naturaleza, la necesidad y el azar, la inteligencia y todo lo que
depende del hombre. Y todos los hombres deliberan sobre lo que ellos
mismos pueden hacer. Sobre los conocimientos exactos y suficientes no
hay deliberación, por ejemplo, sobre las letras (pues no vacilamos sobre
cómo hay que escribirlas); pero, en cambio, deliberamos sobre lo que se
hace por nuestra intervención, aunque no siempre de la misma manera,
por ejemplo, sobre las cuestiones médicas o de negocios, y sobre la
navegación más que sobre la gimnasia, en la medida en que la primera es
menos precisa, y sobre el resto de la misma manera, pero sobre las artes
más que sobre las ciencias, porque vacilamos más sobre aquellas.
87
Referente à moral, é necessário definir os seguintes termos: conflito, problema
e dilema. Conflito é o choque entre dois elementos que convergem numa certa
situação e resultam incompatíveis entre si. Problema é escolher entre os distintos
cursos de ação. Dilema é a eleição entre duas únicas possibilidades excludentes
entre si. Se deve escolher só uma necessariamente. Raramente existem dilemas.
Normalmente, existem problemas. Temos a tendência de transformar problemas em
dilemas.
Para chegarmos ao discurso moral, é conveniente diferenciar os diferentes
tipos de discurso:
a) O discurso apodítico ou demonstrativo tem como representante a matemática;
b) O discurso dialético ou provável se refere ao complexo mundo das opiniões.
Damos razões que não esgotam o problema. Todo o raciocínio na Medicina é
dialético. Aqui se encontra o discurso moral. Não é um discurso apodítico. É
87
ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco III 3, 1112a 18 - 1112b 9.
82
um discurso dialético, que os argumentos não são mais que prováveis. As
decisões morais não são certas, mas prováveis.
c) O discurso retórico ou persuasivo ênfase à importância dos fatores não
racionais no discurso como as emoções, crenças, esperanças e desejos.
d) O discurso erístico ou sofístico representa a perversão do discurso.
2.2. MEDICINA
Enquanto as outras ciências nasceram da vontade de saber, a Medicina
88
surge
diretamente da vontade de servir, ou mais precisamente, de assistir os que sofrem. O
cuidado dos outros é um composto de dupla natureza: o ímpeto da compaixão se
combina com o estudo objetivo do corpo. Os médicos Lee Goldman, Fred Plum e J.
Claude Bennett definem a Medicina e tecem algumas considerações importantes:
A Medicina não é uma ciência, mas uma profissão que compreende tanto o
aprendizado da ciência médica como atributos pessoais, humanistas e
profissionais. Apesar disso, a prática da Medicina no Ocidente depende
totalmente da ciência e do método científico. Desde que Flexner publicou seu
famoso artigo sobre esse tema, em 1910, a educação dica nos EUA tem
tentado desenvolver uma base científica sólida como parte integrante da
formação médica em todos os níveis: pré-médico, médico, residência e
educação médica contínua. A ciência biomédica é fundamental à compreensão
das doenças, ao estabelecimento de diagnósticos, à aplicação de terapias novas
e à apreciação das complexidades e perspectivas das novas tecnologias.
89
Ainda que a Medicina não seja uma ciência, podemos afirmar que ela é composta
por estes três fatores: uma ciência, uma arte e um espírito. Uma ciência, isto é, um
saber fazer resultante do estudo objetivo do corpo e das patologias; uma arte, ou uma
destreza para relacionar-se, diagnosticar e tratar; e um espírito, quer dizer, um impulso
88
QUÉRÉ, F. La Ética... op. cit. (nota 82), p. 7.
89
GOLDMAN, Lee; PLUM, Fred; BENNETT, J. C. A medicina como vocação e profissão. In:
GOLDMAN, Lee et alii. Cecil Tratado de Medicina Interna. (trad. pela editora) Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, , v.1, 2001
21
,p. 1.
83
interior filantrópico, caritativo, que mova à ação. Inicialmente a Medicina pode ser
definida como a arte que tem por objeto prevenir ou conservar a saúde e curar as
enfermidades humanas
90
.
A Medicina baseada em evidências
91
é o uso criterioso, explícito e consciente das
melhores evidências atuais na tomada de decisões relativas à assistência de cada
paciente. Essas evidências obtidas rigorosamente se contrapõem a experiências não-
controladas, que podem ser tendenciosas, submetendo os pacientes a riscos
desnecessários. A Medicina de hoje é mais do que boa vontade, intuição e bom senso.
O delineamento e precisão nas definições de doenças têm como base mais de um
século de refinamento e aprimoramento. As idades de ouro da Medicina acontecem
cada vez mais rápido: a descoberta dos antibióticos sessenta anos; a compreensão
90
QUÉRÉ, F. La Ética... op. cit. (nota 82), p. 8-18. “A prática da Medicina combina ciência e arte. O papel
da ciência na Medicina é evidente. A tecnologia científica e o racionio dedutivo formam os alicerces
para a solução de muitos problemas clínicos; os progressos espetaculares em genética, bioquímica e
técnicas de imageamento possibilitaram o acesso aos componentes mais íntimos da célula e aos
recantos mais remotos do corpo. Manobras terapêuticas altamente aperfeiçoadas ocupam um espaço
cada vez mais importante na prática médica. Contudo, um bom médico não se faz apenas com aplicação
altamente sofisticada da tecnologia do laboratório e a utilização dos recursos terapêuticos mais
modernos. O médico deve ser capaz de reconhecer os elementos fundamentais da anamnese complexa
e do exame físico e extrair os resultados laboratoriais principais dentre os inúmeros impressos com
dados laboratoriais, para que possa tomar a decisão de ‘tratar’ ou ‘observar’ um caso difícil. Decidir
quando um indício clínico é relevante ou deve ser descartado como uma ‘pista falsa’ e avaliar, em
determinado caso, se um tratamento proposto acarreta riscos maiores do que a própria doença, são
componentes essenciais ao processo de tomada de decisões que o dico habilidoso precisa usar
várias vezes ao dia. Essa combinação de conhecimento médico, intuição e discernimento definem a arte
da Medicina, tão necessária à prática médica quanto uma base científica sólida. (...) Aparentemente,
seria banal enfatizar que os médicos devem abordar seus pacientes não como ‘casos’ ou ‘doenças’, mas
como indivíduos cujos problemas muitas vezes trascendem suas queixas físicas. Muitos pacientes estão
ansiosos e amedrontados. Os médicos devem transmitir confiança e traqüilidade, em público e em sua
maneira de proceder, mas sem ares de arrogância. Uma atitude profissional combinada com cordialidade
e sinceridade podem ajudar muito a atenuar a ansiedade dos pacientes e estimulá-los a revelar alguns
aspectos da sua anamnese que possam parecer embaraçosos. (...) Na verdade, poderíamos redefinir
um bom médico’ como aquele que usa o conjunto sempre crescente de evidências obtidas
rigorosamente (a ciência médica) de forma sensível e compassiva (a arte médica). BRAUNWALD,
Eugene et alli. A prática da medicina. In: BRAUNWALD, Eugene et alii. Harrison Medicina Interna. Rio de
Janeiro: McGraw-Hill Interamericana do Brasil, 2002
15
, p. 1-3. (grifo do autor)
91
BRAUNWALD, Eugene et alli. A prática da medicina. In: BRAUNWALD, Eugene et alii. Harrison
Medicina… op. cit. (nota 89), p. 3. O filósofo José Antonio Marina define evidência da seguinte forma: “La
evidencia, fundamento de nuestras certezas, de nuestra aceptación de una teoría, es un fenómeno
noérgico (de ergon = fuerza, poder). Es una fuerza que se impone al pensamiento. (...) La evidencia es
un modo de presentarse a la conciencia un objeto, una proposición, un razonamiento, un valor, que
obliga al sujeto a aceptarlo como objetivo, real, verdadero. Es pues la fuerza impositiva del contenido de
la experiencia o del contenido del pensamiento. MARINA, José Antonio. Dictamen sobre Dios.
Barcelona: Anagrama, 2001
2
, p. 118 e 239. (grifo do autor)
84
da imunologia em termos moleculares nos últimos trinta anos e mais recentemente a
genética enquanto conhecimento em nível molecular e poder de manipular gens para a
obtenção de benefícios humanos imediatos.
No entanto, ter à disposição as melhores evidências científicas em termos de
meios diagnósticos ainda não é o suficiente para que assistência seja considerada ideal.
São o discernimento ou prudência e a análise das conseqüências enquanto atributos do
médico o que tornam relevante a evidência científica que ele tem em mãos. Vejamos a
crítica que o médico e bioeticista Francesc Abel faz à Medicina baseada em evidências
e, por extensão, ao uso inadequado do consentimento informado:
Unos y otros han podido constatar que la medicina basada en la evidencia y el
consentimiento informado no son ni fórmulas ni panaceas para resolver los
problemas que se nos presentan en la clínica. Ni la medicina basada en la
evidencia es evidente ni su aplicación nos dispensa del análisis ético evitando caer
en la tentación de otorgar a la estadística valor normativo en lugar de ser
instrumento válido para orientarnos mejor en el ámbito de la medicina científica. A
su vez el llamado consentimiento informado está radicalmente falseado cuando se
orienta a la obtención de un documento defensivo para el médico, o bien, cuando
la comunicación con el paciente ha tenido en cuenta más la enfermedad que al
propio paciente.
92
A reflexão ética na Medicina não surge unicamente de um conjunto de princípios
morais previamente assumidos para depois serem aplicados nas situações reais, senão
que devem ser articulados em torno de uns dados fáticos para objetiva avaliação. Para
isso é necessário conhecer os fatos a ciência. Vamos refletir sobre a relação entre
ciência e ética para, logo após, discorrermos brevemente pela história da Medicina.
2.2.1. Ciência e Ética
92
INSTITUT BORJA DE BIOÉTICA. Ensayos de bioética. Barcelona: Editorial Mapfre, 2000, p. VIII-IX.
85
Uma nova época na história da filosofia, a epistemológica
93
, começa com o
método da Crítica da razão pura e se ocupará da seguinte questão: quais são as
condições de possibilidade do conhecimento científico? O método dogmático próprio
dos filósofos antigos defendia que a consistência do pensar filosófico se encontrava no
conhecimento dos primeiros princípios. Pautava-se pela clássica lógica deontológica ou
principialista. Kant rompe com esta concepção, ao afirmar que a mente é incapaz de
conhecer as coisas tal como elas são em si mesmas. Ele considera a filosofia crítica
uma luta contra o desvio dogmático. Ele diferencia cânon de disciplina: o primeiro é o
conjunto de princípios a priori que regem as faculdades cognoscitivas; a segunda é a
atividade da razão pura ou especulativa que evita os erros e desvios.
A atividade da razão é sistematizar. O conhecimento metódico é sempre um
conhecimento sistemático. O método seria, então, a construção de um saber
sistemático conforme as idéias reguladoras da razão. Idéia para Kant é a intelecção de
algo por puros conceitos sem recorrer à intuição sensível; seria como um sistema de
referência último de todos os nossos conceitos. A razão se ocuparia das idéias e o
entendimento dos conceitos. A função do método seria construir a ciência da forma
crítica proposta por Kant na Crítica da Razão Pura. É preciso termos presente
anteriormente o comportamento da racionalidade científica e a origem da ciência
moderna com seu método próprio.
A racionalidade científica
94
primeiramente elabora uma hipótese, um esboço
científico, contrasta-a experimentalmente para, então, considerá-la uma tese. O método
93
GRACIA, Diego. Fundamentos... op. cit. (nota 85), p. 422-427.
94
GRACIA, Diego. Introducción a la Bioética. Bogotá: El Búho: 1991, p. 146. Hans-Georg Gadamer
analisa a situação da filosofia após o advento da ciência moderna: “Pois a Época Moderna – não
obstante as discutidas derivações e datas – se define inequivocamente pelo fato de que nela aparece um
novo conceito de ciência e de método, primeiramente desenvolvido por Galileu, em âmbito parcial, e
fundamentado filosoficamente por Descartes. Desde então, isto é, desde o século XVII, o que, na
atualidade, chamamos de filosofia se encontra numa situação diferente. Diante das ciências se vê
necessitada de legitimação, coisa que antes nunca lhe sucedeu; durante dois séculos até a morte de
Hegel e Schelling, foi-se elaborando, reflexivamente em um processo de autodefesa frente às ciências.
As construções sistemáticas dos últimos dois séculos constituem uma densa série de esforços tendentes
a reconciliar a herança da metafísica com o espírito da ciência moderna. Mais tarde com o surgimento da
época positiva, tal como é designada desde Comte, a cientificidade da filosofia foi somente uma
86
científico consiste numa contínua verificação empírica de novas hipóteses para o
progresso da ciência. A experiência que visa a confirmar ou a rechaçar a hipótese de
trabalho se chama experimento. O método científico é indutivo e está na origem da
ciência moderna.
A origem da ciência moderna traz consigo um todo denominado indutivismo
newtoniano ou clássico, que tem caráter empírico e justificacionista. Seus passos o
os seguintes:
Estabelecer uma base empírica formada por proposições fatuais que são
expressão de fatos confirmados pela experiência como verdadeiros;
Considerar que o entendimento humano é capaz de provar as proposições
fatuais da base empírica e estabelecer mediante tais provas através da indução
enunciados universais e teorias.
Kant conheceu, aceitou e criticou este método. Ao criticá-lo em sua base formal,
aprofundou-o ainda mais. Sua crítica consiste em que o entendimento não é capaz de
conhecer o em si da coisa; percebe-a como fenômeno, como objeto e não como
realidade. Os chamados fatos puros nada mais são do que uma síntese de intuições e
conceitos. Será cada vez mais posta em dúvida a capacidade do entendimento
humano para afirmar com certeza a verdade dos fatos. Esse processo levará à teoria
da falsificabilidade de Karl Popper, vista no capítulo anterior.
O que chamamos de fato não é um factum senão um fieri, uma construção. Com
isso, os dois postulados da metodologia indutivista clássica apresentados acima
perdem sustentação: não existem fatos empíricos sólidos que possam ser descritos
através de proposições fatuais e, portanto, nem podemos mediante a indução formular
teorias sobre o funcionamento da realidade.
preocupação acadêmica com que se procurava salvá-la em terra firme, das tormentas de corrupções de
mundo antagônicas, para cair, finalmente, no marasmo do historicismo ou na praia da superficialidade da
teoria do conhecimento, ou ainda, para mover-se, de um lado a outro, no largo cerrado da gica.”
GADAMER, Hans-Georg. A razão na época da ciência. (trad. Ângela Dias) Rio de Janeiro: Ed. Tempo
Brasileiro, 1983, p. 13. (grifo nosso)
87
A filosofia da ciência posterior a Kant tentou ampliar o caminho aberto por ele.
Este foi o objetivo do positivismo e depois do neokantismo. Os neopositivistas
lógicos tentaram aplicar as categorias próprias da matemática e da lógica ao método
de funcionamento do entendimento e da razão, para, então, definir ou demarcar o
que é científico do que não o é.
A filósofa kantiana Adela Cortina, analisando a moderna filosofia da ciência,
afirma que este processo levou a considerar o sujeito transcendental como algo
desnecessário e obsoleto porque a lógica transcendental kantiana foi substituída
pela sintaxe lógica e semântica das linguagens científicas
95
.
Isso determinou uma repercussão crucial para a ética: se a ética é um
conhecimento estrito e rigoroso deve ser submetida, como critério de validade
epistemológica, aos métodos próprios da ciência. Aqui se inserem a teoria moral de
John Rawls
96
e a teoria da decisão racional. Estes não são métodos primordialmente
éticos, senão lógicos e matemáticos. A teoria da decisão racional considera racional
a decisão que corresponde ao princípio da “maximização das conseqüências”
97
.
Corresponde, portanto, a uma lógica teleológica e conseqüencialista.
A teoria da decisão racional quantifica as preferências ou valorações
pessoais e traça estratégias para que ela possa decidir racionalmente segundo
critérios também pessoais. O problema está no ponto de partida: a preferência sobre
o que é o melhor sempre é decidida subjetivamente. Depende dos critérios e da
situação da pessoa e podem se alterar no futuro. No entanto ajudam enquanto
propõem um método estatístico de tomada de decisões que maximize as
expectativas de valores ou de utilidades do sujeito que tomará a decisão.
95
CORTINA, Adela. Razón comunicativa y responsabilidad solidaria. Salamanca: Sígueme, 1985, p.71
Apud GRACIA, Diego. Fundamentos... op. cit. (nota 85), p. 425.
96
“El concepto de racionalidad tiene que ser interpretado, en lo posible, en el sentido estrictamente
tradicional de la teoría económica, según el cual se emplean los medios más efectivos para los fines
dados.” RAWLS, J. Teoria de la Justicia. Madrid: F.C.E. 1979, p. 70. Apud GRACIA, Diego.
Fundamentos... op. cit. (nota 85), p. 428.
97
Idem, ibidem, p. 429.
88
É possível desenvolver-se uma lógica da decisão racional do mesmo modo
que se desenvolveu uma lógica clássica do pensamento racional. No entanto é
importante considerar que a racionalidade científica convém ser aplicada
primariamente às proposições descritivas próprias dos sistemas de pensamento e
não às prescritivas correspondentes aos sistemas de ação.
A ciência e a ética têm objetivos muito diferentes, evidentes a partir de uma
análise de suas diferentes linguagens. As proposições científicas costumam utilizar o
verbo ser. Por exemplo: “A asma brônquica é uma enfermidade composta de
dispnéia, broncoespasmo, hipersecreção e tosse.” As proposições morais usam
preferencialmente o verbo dever. Por exemplo: “O homem bom deve cumprir as
promessas feitas”. As metas da ciência são teóricas e descritivas e da ética são
prescritivas e práticas. Vejamos a dimensão histórica da Medicina, enquanto ramo do
saber composto de ciência, arte e ética.
2.2.2. Dimensão histórica da Medicina
Os gregos estabeleceram uma cumplicidade entre a natureza e a Medicina,
unindo, através da harmonia, a estrutura de uma e o desejo da outra. Eles concebiam
que a arte imitava a natureza. Caberia ao médico reforçar o poder regulador daquele
corpo debilitado do enfermo. Para os judeus, a natureza assumia um carácter
corruptível, cabendo à realidade do pecado a explicação dos distúrbios sofridos pela
carne.
Com a laicização das sociedades, o normal e o patológico passam a formar parte
constitutiva da matéria viva. A arte médica continua na mesma concepção subjacente:
ela está para a natureza assim como o dever ser está para o ser
98
, ou o ideal de
perfeição para a vulnerabilidade da realidade. A Medicina completaria com o amor à
98
Vimos no capítulo anterior ao referir-nos sobre os juízos éticos que a correspondência entre a ordem do
ser, do pensar e do dever ser própria do mundo antigo e medieval pertence à concepção objetivista do
juízo ético. O princípio de legalidade é a ordem que rege a natureza. Entende-se como “intrinsecamente
mau” tudo o que altera esta “lei natural”.
89
vida e o espírito de luta as desordens decorrentes das vicissitudes naturais.
Restabeleceria a ordem natural perdida com o surgimento da enfermidade.
O médico de aldeia, com suas visitas domiciliares e total abnegação, dispunha de
uma farmacopéia sumária e recursos cirúrgicos mínimos, intervindo pouco na evolução
da enfermidade. O médico, até o começo do século XX, mesmo gozando de alta
consideração, se convertia na testemunha consternada de agonias, podendo somente
acalmar as ansiedades e as últimas dores dos enfermos. A maior parte das histórias
registradas da Medicina revela que, até a primeira metade do século XIX, os
diagnósticos e as terapias não se baseavam em fatos científicos. O médico trabalhava
com um grau nulo ou nimo de certeza. No final do século XIX, vem à luz a idade de
ouro da microbiologia, em que Louis Pasteur (1822-1895) e Robert Koch (1843-1910)
desvendam as complexidades das doenças infecciosas: a definição dos
microrganismos, a maneira como eles causam as infecções e transmitem as doenças e
a compreensão das diferentes respostas do hospedeiro. Este esforço estabeleceu
definitivamente o método científico como base para a compreensão do tratamento das
doenças. A Medicina passa a ter como caminho a exigência de precisão e provas
experimentais – único meio de aumentar a confiança do médico.
99
As sulfamidas aparecem em 1936, e os antibióticos dez anos mais tarde. As
enfermidades dos século XIX, como a sífilis, a tuberculose e a maior parte das doenças
de origem infecciosa são curadas. Em cem anos, a mortalidade infantil se reduziu vinte
vezes em relação ao que era, e a expectativa de vida aumentou em quase trinta
anos
100
.
Da ética das intenções do médico de aldeia com sua dedicação estéril passa-se à
ética das realizações do médico que trabalha no hospital com suas medidas
diagnósticas e terapêuticas eficazes. O hospital com suas estruturas coletivas, suas
técnicas de investigação, sua insuficência de pessoal, os contatos pessoais diminuídos
99
GOLDMAN, Lee; PLUM, Fred; BENNETT, J. C. A medicina como vocação e profissão. In:
GOLDMAN, Lee et alii. Cecil Tratado… op. cit. (nota 89), p. 1-2.
100
QUÉRÉ, F. La Ética... op. cit. (nota 82), p. 16.
90
e com os profissionais de saúde apressados, pensando também em melhorar seus
projetos profissionais, faz com que o enfermo sinta uma angústia ainda maior em razão
de sua enfermidade. Solicitude, delicadeza e um tratamento personalizado parecem ser
um esforço demasiado para profissionais de saúde tão ocupados.
Até o início do século XX, uma pessoa procurava um médico somente quando
sentia uma dor ou algum sinal no seu corpo anunciava a presença de uma enfermidade.
Os sinais e sintomas denunciavam para o paciente a presença de alguma enfermidade.
A partir de então, a enfermidade não coincide mais com a consciência que o
paciente tem dela. Radiografias, medições da tensão arterial, análises de sangue
passaram a ser exames de rotina. E o laboratório passou a identificar a enfermidade
antes da apresentação dos sinais e sintomas pelo paciente, antes de ele ter consciência
de que era portador dela.
A nova Medicina paga o preço de sua eficácia com a desconsideração do contato
humano. Hoje se presta atenção a uma alteração anatômica ou um transtorno fisiológico
que afeta o ser humano no segredo de seu organismo. Neste sentido, como diz George
Canguilhe, “pode haver enfermidade sem enfermo.”
101
A Medicina passa, então, a ser
definida como a arte de prevenir, porque a enfermidade antes dos sinais e sintomas
apresentados pelo paciente, e de curar as suas enfermidades.
A política do diagnóstico precoce abre caminho para a investigação e cada vez
mais instrumentos técnicos serão descobertos para descobrir no indivíduo uma série de
afecções ainda invisíveis. Uma Medicina ainda mais moderna surgiu do avanço nesta
direção: os métodos de diagnóstico pré-natal assinalam malformações quando o ser
humano se encontra no estágio embrionário ou fetal, ainda no útero materno.
101
CANGUILHE, G. Le normal et le Pathologique. Quadrige/PUF, 1984, p. 53. Apud QUÉRÉ, F. La
Ética... op. cit. (nota 82), p. 18.
91
A biologia molecular vai ainda mais longe e num estágio ainda anterior e
microscópico; ela tem acesso aos arquivos mais íntimos do corpo humano que são os
gens. Nos gens se identificam alterações que anunciam predisposições de
determinados grupos de tecidos orgânicos ou possíveis enfermidades que o organismo
do indivíduo contrairá dez, vinte ou até cinqüenta anos mais tarde. Essa é a Medicina
preditiva. O espírito da Medicina se orienta para novas finalidades, pois cada vez mais
os esforços estão dirigidos para prevenir para não ter de curar.
A Medicina investigativa não se contenta em descobrir novos caminhos
genéticos capazes de detectar mais uma enfermidade. O Projeto Genoma Humano
102
,
concebido na década de 1980, é o mais qualificado exemplo para onde apontam as
novas ambições. O infinito a explorar agora também está na dimensão microscópica da
célula.
Os gens, responsáveis pela herança genética, localizados no núcleo das células
são formados por uma cadeia de DNA que contém uma cadeia sucessiva dos
nucleotídeos intercambiados adenina, guanina, citosina e timina. O DNA (ácido
desoxiribonucléico) é composto por duas cadeias lineares, complementam-se e se
entrelaçam para formar uma dupla hélice. Cada unidade de uma das cadeias se une
com a unidade de outra cadeia formando um par, chamado normalmente de par de
bases. O DNA humano é formado por 3 bilhões de pares de bases. O gen, portanto, é
uma porção do DNA que contém a informação para se fabricar uma proteína requerida
pelo organismo. Só a décima parte dos gens é ativa, quer dizer, participa do mecanismo
da herança genética
103
. Os 3 bilhões de pares de bases do DNA humano estão
dispostos em 23 cadeias condensadas diferentes chamadas cromossomas.
102
Nos EUA, em 1989, é criado o Centro Nacional para Pesquisa do Genoma Humano com o
investimento de US$ 53 bilhões e meta de seqüenciar o DNA humano até 2005. Em 1990, inicia
oficialmente o Projeto Genoma Humano internacional, com participação de pesquisadores americanos e
europeus. Em 1998, o geneticista Craig Venter funda a empresa privada Celera Genomics Corporation
com a intenção de decodificar todo o genoma humano. Em 6 de abril de 2000, Craig Venter anuncia ter
concluído o seqüenciamento do genoma humano. Projeto Genoma Humano, In:
http://www.pgh.hpg.ig.com.br/http://www.pgh.hpg.ig.com.br/, disponível em 20/08/2000.
103
QUÉRÉ, F. La Ética...op. cit. (nota 82), p. 18.
92
Que novas perspectivas sobre os seres humanos trará o seqüenciamento dos 3
bilhões de pares de bases do genoma humano? Este projeto científico suscitou as mais
diversas opiniões entre os pesquisadores: uns pretendiam mapear, seqüenciar e
analisar funcionalmente o genoma humano com o objetivo de melhorar a saúde humana
apesar dos gastos econômicos muito elevados e a necessidade de dez ou vinte anos de
trabalho dividido entre institutos científicos das nações industrializadas; outros
acreditavam que o projeto era irrealizável; outros ainda preconizavam restringir o projeto
somente para a identificação da função dos gens responsáveis pelas enfermidades. A
concepção do projeto apresentada pelo primeiro grupo venceu e atualmente sua
realização envolve uma colaboração internacional entre Estados Unidos, Japão,
Austrália e países da Europa com mais de 5000 cientistas em 250 laboratórios.
No entanto, a Medicina mostra ainda que seu espírito filantrópico é capaz de se
sobrepor às suas dimensões artística e científica. Uma vez reconhecida, a enfermidade
nem sempre é curável. Impotente para curar a Medicina pode ainda atuar a favor do
enfermo como cuidados paliativos. Trata-se, agora, de paliar ou de aliviar o paciente
dentro do quadro de enfermidade em que se encontra. Paliar, segundo a etimologia,
significa cobrir com um manto. O termo paliativo cobre, efetivamente, três categorias de
cuidados médicos: Aplicado à pacientes terminais, apela aos sentimentos humanos, em
combinação com os analgésicos; aplicado à invalidez e defeitos físicos, recorre à
habilidade dos engenheiros; aplicado às procriações artificiais e aos deficientes físicos
ou mentais, serve-se do laboratório e de aparelhos.
Consideram-se marcos na evolução histórica da Medicina os avanços no
tratamento das doenças infecciosas, a regulação da pressão arterial, a imunologia
básica, a genética fundamental e a regulação metabólica pelos hormônios. Doenças
ainda complexas pelas quais não temos respostas terapêuticas definitivas como câncer,
doença de Alzheimer, muitas doenças auto-imunes e a maioria das doenças
psiquiátricas têm na biologia molecular um caminho aberto para a investigação e
descoberta de soluções mais eficazes. Podemos concluir, referindo-nos à
predominância que a dimensão tecnológica passa a assumir na Medicina, que o “ser
93
humano passa a depender do comando técnico dos investigadores cuja ação não é
necessariamente guiada pela vontade de curar.”
104
2.2.3. Aplicação tecnológica médica e questionamento ético na Medicina
A nova tecnologia aplicada à Medicina faz com que comecem a surgir serias
dúvidas sobre o que resulta ser um benefício real para o paciente
105
colocando-nos
diante da questão: tudo o que é tecnicamente possível é eticamente correto? Ou, em
outras palavras: uma vez que a ciência opera descobertas novas a partir do desejo de
aumentar o bem-estar da pessoa e da sociedade humana, porque uma nova criação
científica não seria eticamente correta?
104
QUÉRÉ, F. La Ética...op. cit. (nota 82), p. 24. Hans-Georg Gadamer analisa a forma de civilização
moderna em que vivemos e faz referência às repercussões do predomínio da técnica na vida humana:
“Se é possível aprender e calcular relações abstratas entre condições iniciais e efeitos finais, de maneira
tal, que a colocação de novas condições iniciais tenha um efeito previsível, então, efetivamente, através
da ciência, assim entendida, chega a hora da técnica. A antiga vinculação do fato artificialmente,
artesanalmente, seguindo modelos dados pela natureza, se transforma num ideal de construção, no
ideal de uma natureza realizada artificialmente, de acordo com a idéia. Isto é o que, em última instância,
provocou a forma de civilização moderna em que vivemos. O ideal de construção, que se encontrava já
no conceito de ciência, da mecânica, se converteu num monstruoso prolongamento do braço humano,
que é o que possibilitou as nossas máquinas, nossa reelaboração da natureza e nosso lançamento no
espaço. A coerência imanente deste contexto de construção metódica e de fabricação cnica influi de
uma dupla maneira: 1) A técnica está da mesma forma que o antigo artesanato, referida a um projeto
prévio. A vida econômica autóctone do mundo medieval ou de outras culturas superiores da
humanidade, impunha sempre ao esforço técnico a autoridade do consumidor. Obviamente isto foi
decisivo para a forma de trabalho da Antigüidade. Em troca, vemos, com nossos próprios olhos, como
em nossa civilização, progressivamente técnica, cada vez mais o artificial vai se erguendo ao nosso
redor como nova oferta, como um produto que desperta o consumo e novas necessidades. 2) O que
necessariamente se difunde através deste mundo é uma perda de flexibilidade no trato com o mundo.
Quem utiliza a técnica e quem de nós não o faz? se familiariza com seu funcionamento e, com ele,
através de uma renúncia primária de liberdade, no que diz respeito ao próprio poder-atuar, chega ao
gozo destas surpreendentes comodidades e alcances que a técnica moderna nos facilita. Com isso se
obscuressem duas coisas: Para quem se trabalha aqui? Até que ponto os rendimentos da técnica estão
a serviço da vida? A partir daí, delineia-se de uma nova maneira o problema que toda civilização tem
enfrentado, isto é, o problema da razão social. A tecnificação da natureza e do mundo natural, em torno,
se encontra sob o título de racionalização, desencantamento, desmitologização, eliminação de
correspondências antropológicas apressadas. Finalmente, a rentabilidade econômica, um novo motor de
uma transformação incessante em nossa civilização e isto caracteriza a maturidade, ou, caso se
queira, a crise de nossa civilização se converte em um poder social, cada vez mais forte. o século
XX é determinado através da técnica de uma maneira nova, na medida em que lentamente se processa
a passagem do poder técnico do domínio das forças naturais para a vida social. GADAMER, Hans-
Georg. A razão... op. cit. (nota 94), p. 42-43. (grifo nosso)
105
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op. cit. (nota 86), p. 15.
94
Citemos, como exemplo, uma conquista científica no campo da Medicina surgida
partir da segunda metade do século XX: os meios anticoncepcionais
106
, hoje quase
infalíveis, proporcionaram à mulher o governo de sua própria fecundidade, depositando
no passado a surpresa da gravidez de um filho não desejado.
Queremos demonstrar que o uso da pílula anticoncepcional, junto com o
benefício da separação da vida sexual e da vida reprodutiva da mulher, determinaram
também um aumento da esterilidade feminina e a conseqüente necessidade da
recuperação da fertilidade da mulher mediante os meios de fecundação in vitro, abrindo
um vácuo ético que a ciência e tecnologia são incapazes de resolver através de seu
desenvolvimento cada vez mais sofisticado. A ciência, mediante a descoberta de meios
tecnológicos mais aperfeiçoados, não consegue resolver problemas surgidos a partir
dela própria ou substituir decisões morais que devem ser tomadas somente após o
exercício da racionalidade ética.
A esterilidade feminina ocasionada por uma obstrução das trompas de Falópio,
uma deficiência ovular, uma menopausa precoce, uma anomalia genética ou a simples
resistência ao tratamento clínico pode levar, como último recurso, à inseminação in
vitro
107
. Esse método de reprodução assistida, conhecido como FIVETE (fecundação in
vitro e transferência de embrião) consiste na implantação de zigotos no útero, uma vez
que a introdução de um único zigoto tem pouquísimas probabilidades de levar à
concepção de um filho.
Meios tecnológicos proporcionam a união dos gametas que não podem unir-se
naturalmente devido à infertilidade. Para que isso ocorra, é preciso primeiramente
estimular hormonalmente a produção ovárica. Vários folículos crescem
simultaneamente no ovário, provocando logo em seguida a ovulação. A obtenção
106
QUÉRÉ, F. La Ética... op. cit. (nota 82), p. 26-31, 63-66.
107
Em julho de 1978 nascia Louise Brown, primeiro ser humano concebido num laboratório e não no
aparelho reprodutor de sua mãe, como conquista científica dos dicos R. G. Edwards e P. C. Steptoe.
GAFO, Javier. Hacia un mundo feliz? Problemas éticos de las nuevas técnicas reproductoras humanas.
Madrid: Sociedad de Educación Atenas, 1987, p. 12-14.
95
destes óvulos pode-se dar, numa intervenção cirúrgica mediante anestesia geral, ou
com uma guia ecográfica por via transvaginal sem anestesia ou com anestesia local. É
necessário coletar vários óvulos, pois é escassa a probabilidade de provocar uma
gravidez extraindo um óvulo. Soma-se a isso a dificuldade de a Medicina ainda não
saber como congelar óvulos para fecundá-los somente quando houver necessidade.
Cada óvulo recolhido é colocado em contato com um espermatozóide em
provetas que contêm líquidos nutritivos e misturas gasosas convenientes. Uma vez que
se produza a fecundação, o zigoto em dois dias se dividirá em quatro células. Estes
embriões em estágio inicial são então tranferidos ao útero em número de três, segundo
recomendação médica atual, para evitar a gravidez múltipla de excessivos embriões
que poderiam nascer prematuros com as graves seqüelas correspondentes. Os
nascimentos de gêmeos são freqüentes.
No entanto os embriões que sobraram, quer dizer, concebidos artificialmente e
não implantandos no útero são acondicionados em nitrogênio líquido à temperatura de
196 ºC abaixo de zero. Poderiam ser utilizados para uma nova tentativa de implantação
no útero materno, caso não se obtivesse a gravidez desejada.
A cnica de reprodução assistida FIVETE tem menos resutados positivos que a
técnica de transferência de gametas conhecida como GIFT (gamete intrafalopian
transfer). Esta se aplica quando uma das trompas de Falópio da mulher se mantém
intacta e consiste em obter os gametas feminino e masculino e conduzi-los mediante um
catéter, que se controlaria mediante ecografia, ao terço proximal da trompa em que
naturalmente ocorreria a fusão entre eles. Esta técnica requer anestesia geral e alcança
o êxito uma vez em cada quatro tentativas
108
.
108
A probabilidade natural de um óvulo ser fecundado por algum dos espermatozoides é de 20 a 30%.
Alguns centros de reprodução asistida publicam, movidos por competição e publicidade, índices de êxito
exagerados que não correspondem com a realidade. A Inglaterra, pioneira nestas técnicas, apresenta
como média nacional o índice de 10,5%. QUÉRÉ, F. La Ética...op. cit. (nota 82), p. 30 e nota 6.
96
Seja qual for a deficiência que impeça a concretização de uma gravidez, a
vontade de engravidar se une à ciência que faz o possível para concretizar a
reprodução com os meios tecnológicos disponíveis. Da tecnologia a serviço da
reprodução humana em casos de infertilidade a reprodução assistida pode-se advir
os seguintes problemas:
Submeter as mulheres inférteis à dupla agressão cirúrgica e hormonal,
alimentando expectativas de solução do problema quando esta tem mais
probabilidade de não ocorrer, pois, surpreendentemente, pode ocorrer que as
mulheres que aguardam na lista de espera têm, uma vez considerado o mesmo
número delas, mais filhos do que aquelas que se submeteram ao tratamento
109
;
Repecussão sobre a vida moral da sociedade;
Geração de embriões supranumerários.
Para elucidar a aplicação da tecnologia médica e suas conseqüências éticas,
abordaremos mais pormenorizadamente esses dois últimos problemas:
A pílula anticoncepcional determinou uma repercussão sobre a vida moral da
sociedade. Ela alterou o comportamento sexual das jovens. O controle sobre a própria
fertilidade aumentou a liberdade sexual nas relações humanas, elevando a
promiscuidade na juventude e a disseminação de doenças sexualmente transmissíveis.
O número dessas infecções não tratadas ou mal curadas é responsável pela duplicação
dos casos de esterilidade por obstrução das trompas de Falópio. Como a Medicina
ainda não sabe como desobstruí-las, milhares de mulheres jovens passaram a procurar,
a cada ano, o auxílio de técnicas de reprodução assistida para poder ter um filho.
O problema se apresenta da seguinte forma: a ciência oferece meios de
reparação com baixo poder de resolução como, por exemplo, a FIVETE, para solucionar
um problema gerado pela pílula anticoncepcional. Podemos afirmar, portanto, que o uso
das técnicas de reprodução assistida é incrementado devido à incapacidade moral atual
de nossa sociedade de prevenir com eficácia as enfermidades de transmissão sexual
109
Idem, Ibidem, p. 63.
97
decorrentes da liberdade sexual conquistada, por outra conquista científica a pílula
anticoncepcional.
Tentando afirmar o mesmo de forma mais esclarecedora: os beneficios e
malefícios da pílula anticoncepcional necessitam do discernimento ético ou do controle
moral proveniente da pessoa humana, quer dizer, a solução está no seu
comportamento, ou melhor, no autogoverno de seu comportamento. O uso de outra
descoberta tecnológica como a FIVETE é incapaz de substituir o comportamento ético
da mulher conseqüente à disponibilidade que agora ela tem do uso da pílula
anticoncepcional. Um problema de comportamento gerado pela descoberta de um meio
tecnológico não pode ser solucionado mediante outro meio tecnológico. Este espaço é
da decisão ética e é insubstituível.
O mesmo acontece com a indústria de automóveis ao proporcionar aos seres
humanos o benefício do deslocamento rápido. O mau uso do automóvel deixará alguém
acidentado. Esta pessoa necessitará para recompor a saúde do auxílio da indústria da
Medicina reparadora com suas cirurgias plásticas, microcirurgia e próteses. Devido à
existência desses malefícios, vamos agora parar de produzir e utilizar automóveis? Não.
Mas certamente não será a Medicina reparadora ou qualquer descoberta tecnológica
ainda mais sofisticada a instância humana indispensável para o melhor uso que uma
pessoa pode fazer de seu automóvel.
Dos dois exemplos anteriores podemos tirar duas conclusões:
Novas tecnologias têm repercussões sobre os costumes;
Nem a Medicina, nem as novas tecnologias poderão garantir, por si só, que não
farão o mal ao fazer o bem;
Algo deve complementar as novas tecnologias para que seu uso seja sempre
beneficioso e humanizador.
A incapacidade que a Medicina tem de congelar óvulos, como vimos antes, a
obriga a fecundá-los para escolher os melhores ts para a implantação intra-uterina.
98
Como são escolhidos os três melhores entre uma dezena ou mais dos que foram
produzidos in vitro, estamos diante do problema dos embriões supranumerários ou
sobrantes. Surge então a questão ética: o que fazer com os embriões que sobraram?
Várias respostas poderiam ser consideradas. Destruí-los seria como realizar um aborto.
Doá-los para a ciência para a obtenção e pesquisa de células tronco seria dispor deles
como material de laboratório. Oferecê-los a outro casal seria expô-los a um tráfico.
Devolvê-los à sua e parece ser a melhor resposta desde que ela queira recebê-los
para novas gravidezes no futuro, levando em consideração que o tempo de
congelamento prolongado entre a concepção e a implantação intra-uterina não é uma
variável completamente segura quanto a ausência de danos.
110
A importância da
decisão ética referente ao melhor uso dos meios tecnológicos disponíveis ficou evidente
nos dois exemplos citados anteriormente. Neste último, a decisão ética é bastante difícil,
adentrando-se no estatuto ontológico do embrião humano.
2.2.4. A Medicina necessita da ajuda dos filósofos
Dos exemplos de aplicação tecnológica na Medicina acima citados podemos
concluir que a ciência fica sempre numa situação instável a respeito das novas
questões surgidas do benefício proporcionado por um novo meio tecnológico. Ou
podemos, em outras palavras, afirmar, de forma paradoxal: os limites da ciência
trazem consigo uma infinidade de problemas. E continuamos, não completamente
seguros, diante da pergunta: tudo o que é tecnicamente possível é eticamente
correto?
111
110
QUÉRÉ, F. La Ética... op. cit. (nota 82), p. 65. El proceso de congelación-descongelación puede
afectar negativamente a los embriones, por ejemplo, produciendo cristales de hielo en el interior de
las células. Para ello es necesario un ritmo conveniente de congelación descongelación y la utilización
de un medio crioprotector que proteja el embrión de los cambios de temperatura.” GAFO, Javier.
Nuevas técnicas de reproducción humana. Biomedicina, Ética y Derecho. Madrid: Universidad
Pontificia Comillas, 1986, p. 33 Apud GAFO, Javier. ¿Hacia un mundo feliz?... op. cit. (nota 107), p.
35.
111
“Un principio ético fundamental es que la ciencia no puede éticamente hacer todo lo que puede
técnicamente realizar. Es un principio ético fundamental para todo el progreso biomédico. Se debe
respetar la libertad de investigación, se debe potenciar el impulso que está presente en todo trabajo
de investigación, pero esa libertad no puede violar determinados principios éticos. Estos principios no
son meras prescripciones formales casi ‘caídas del cielo’, sino que expresan la necesidad de respetar
a otros seres humanos y de no convertir a cualquier individuo en un medio, en un objeto al servicio de
99
Diante de uma Medicina que cada vez se sente mais segura nos espaços
conquistados do infinitamente pequeno e do preditivo
112
, temos diante de nós
perguntas fundamentais: Aonde vai nos levar esta busca insaciável pelo
conhecimento? O exercício da Medicina se insere em que visão de conjunto? Pode a
Medicina oferecer os critérios de sua validade? Quem nos dará os critérios de valor
para sopesar e avaliar os resultados obtidos pela Medicina? Que ramo do saber nos
assegura que os resultados da Medicina satisfazem as legítimas buscas humanas ou
delas se afastam?
la investigación.” GAFO, Javier. Hacia un mundo feliz?... op. cit. (nota 106), p. 141. Hans-Georg
Gadamer afirma que a técnica é incapaz de autoavaliar-se, levando o ser humano a um processo de
alienação; também afirma o papel insubstituível da filosofia: “(...) a exigência de uma unidade
sistemática de nosso saber continua constituindo o âmbito legítimo da filosofia. Porém, precisamente,
a encomenda deste trabalho de ordenação sistemática à filosofia tropeça, cada vez mais, com maior
desconfiança. É como se, atualmente, a humanidade estivesse disposta a aceitar sua própria
limitação e, apesar da particularidade insuperável do saber da ciência, encontra satisfação em seu
progresso e no crescente domínio da natureza. Até aceita o fato de que, com o crescente domínio da
natureza, o crescente domínio do homem sobre o homem não não diminui, como também, contra
todas as expectativas, é cada vez maior e chega ameaçar internamente a liberdade. Uma das
conseqüências da técnica é o haver conduzido a uma tal manipulação da sociedade humana, da
opinião pública, das formas de vida de todos nós que, às vezes, se chega quase a perder o alento. A
metafísica e a religião parecem haver oferecido melhores pontos de apoio para as tarefas de
ordenação da sociedade humana que o poder acumulado pela ciência moderna. Porém as respostas
que pretendiam dar são para a humanidade atual, respostas a perguntas que, na realidade, não
podem ser feitas e além do mais, não é necessário fazer.” (...) “a filosofia pode deixar-se conduzir com
a linguagem, quando em seu perguntar acerca do todo, mais além dos âmbitos de objetos
cientificamente objetiváveis, pretender proporcionar uma direção; e assim o fez sempre, desde os
discursos orientadores de Sócrates e a orientação ‘dialética’ aos logoi, de que participaram, em igual
medida, Platão e Aristóteles em suas análises de pensamento.” GADAMER, Hans-Georg. A razão...
op. cit. (nota 94), p. 10-12. (grifo nosso)
112
“Progredimos extraoridinariamente no caminho da genética, percebemos a imensa complexidade
desse processo que simplesmente qualificamos de ‘vida’ e precisamos pensar diante dos caminhos
abertos pela manipulação biológica do ser humano e suas repercussões futuras. Esta é precisamente
a relevância histórica e a transcendência da época atual.” GAFO, Javier. ¿Hacia un mundo feliz?
op.cit. (nota 107), p. 25.
100
Num debate recente entre um filósofo e um teólogo contemporâneos
113
, com o
objetivo de analisar a nova ordem política e cultural do ocidente, apresentou-se com
clareza que a ciência como tal não pode gerar um ethos, quer dizer, uma nova
consciência ética não pode ser o produto resultante de debates científicos. São
exemplos disso os seguintes produtos hisricos da razão científica que se encontram
num estágio de desenvolvimento altamente eficiente e sofisticado: a bomba atômica
que possibilita um poder destrutivo para aniquilar o homem e seu mundo; e a
genética humana que tornou o homem produto de si próprio ao capacitá-lo na
fabricação de outros homens em tubos de ensaio laboratoriais.
A partir da ética filosófica, enquanto articulação através da linguagem e da
cooperação comunicativas no mundo em que vivemos, se abre um espaço único de
argumentação e de crítica. A razão científica não consegue por si mesma tomar
distância de sua obra, compreendê-la e, mediante correções necessárias, melhorar a
vida humana realmente vivida. Hans-Georg Gadamer apresenta esta insuficência da
ciência com as seguintes palavras:
A ciência pode talvez oferecer-nos a possibilidade de criar a vida em uma retorta
ou de prolongar ad libitum a vida do homem. Porém isto não modifica em nada
as fortes descontinuidades entre o material e o vivente ou entre a vida realmente
113
HABERMAS, Jürgen; RATZINGER, Joseph. O cisma do século 21. In: “Folha de São Paulo”
(24/04/05), cad. Mais, p. 6, c. 3-5. Numa visão de cunho antropológico, uma reflexão teológica cristã
relaciona a idéia de liberdade com as novas capacidades humanas provenientes da ciência:
“Entretanto, a idéia de libertação se pudermos chamar de liberdade o denominador fundamental da
espiritualidade moderna e do nosso século – também se fundiu fortemente com a ideologia feminista.
A mulher é considerada o ser oprimido por excelência; por essa razão, a libertação da mulher é o
núcleo de toda atividade de libertação. Aqui se ultrapassou, por assim dizer, a teologia da libertação
política com uma antropológica. Não se pensa apenas na libertação dos vínculos próprios ao papel da
mulher, mas na libertação da condição biológica do ser humano. Distingue-se então o fenômeno
biológico da sexualidade das suas expressões históricas, às quais se chama gênero, mas a revolução
que se quer provocar contra toda a forma histórica da sexualidade conduz a uma revolução que
também é contra as condições biológicas; não pode haver dados naturais; o Homem deve poder
moldar-se arbitrariamente, deve ser livre de todos os condicionalismos do seu ser; ele próprio se torna
o que quer, e desse modo é realmente ‘livre’ e está libertado. Por trás disso encontramos uma
revolta do Homem contra os limites que o seu ser biológico envolve. Trata-se, por fim, de uma revolta
contra a própria condição de criatura. O Homem deve ser o criador de si mesmo uma nova edição,
moderna, da velha tentativa de ser Deus, de ser como Deus.” RATZINGER, Joseph. O sal da terra – o
cristianismo e a Igreja católica no limiar do terceiro milênio: um diálogo com Peter Seewald. (trad. Inês
Madeira de Andrade). Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 108.
101
vivida ou o ir-se muchecendo até a morte. A articulação, através da linguagem e
da cooperação comunicativa no mundo em que vivemos, não é uma mera
dimensão do convencional ou da condensação de uma consciência talvez falsa;
reflete o que é e está segura de sua legitimidade, no geral, precisamente
porque, no particular, pode aceitar a persuasão, a contradição e a crítica. A
decomponibilidade e a criatividade de todo ente que proporciona a ciência
moderna representa, diante disto, somente um campo particular da intervenção
e do controle, que apenas se encontra delimitado na medida em que a
resistência do ente contra a sua objetivação não pode ser superada.
Desta maneira, não se pode desconhecer que a ciência se sempre
confrontada com uma pretensão de compreender frente à qual fracassa e tem
que fracassar.
114
Daniel Callahan, filósofo, fundador do Hastings Center, percebeu a falta de
relevância de suas explicações filosóficas no diálogo com os profissionais da
Medicina e da ciência quando elas não tinham como ponto de partida os problemas
vividos por eles.
115
Neste ponto, podemos afirmar a necessidade que a Medicina tem
da incursão dos filósofos e, mais especificamente, da ética filosófica.
2.2.5. Concepção filosófica subjacente ao exercício da Medicina
Tentemos, as refletir sobre a necessidade atual que Medicina tem da
incursão dos filósofos, situar qual a perspectiva filosófica subjacente que respaldava
o agir médico contemporâneo anterior ao surgimento da bioética e, de certa forma,
também hoje.
O estudo objetivo do corpo assume preponderância na Medicina a partir da
Idade Moderna. A atividade médica tal como a conhecemos hoje recebeu forte
influência do dualismo de Descartes (1596-1650). O dualismo cartesiano é a
perspectiva segundo a qual o pensamento e a matéria são substâncias
114
GADAMER, Hans-Georg. A razão... op. cit. (nota 94), p. 18.
115
ABEL i FABRE, F. Bioética: orígenes, presente y futuro. Madrid: Ed. Mapfre, 2000, p. XV.
102
independentes e incompatíveis, isto é, a metafísica ocidental do século XVII reduziu o
homem a uma estrutura de dois segmentos corpo e espírito irredutíveis e
inconvertíveis entre si.
A razão cartesiana parte de uma concepção racionalista e toma a matemática
como modelo de raciocínios exatos e evidentes. O homem ao deduzir idéias claras,
distintas e ordenadas umas das outras encontraria a plena correspondência com a
ordem em que se acham dispostas as próprias coisas. Na segunda parte do Discurso
sobre o método, Descartes afirma que entre todos os que procuraram a verdade
científica só os matemáticos conseguiram demonstrar alguma coisa, com razões
certas e evidentes, podendo servir para que sua mente se habituasse ao exercício
correto sem a interferência de falsas razões.
116
A idéia cartesiana da vida admite, portanto, que tudo pode ser medido,
compreendido e planejado. Descartes esclarece e desenvolve a idéia platônica e
aristotélica de movimento, concebendo o mundo como mecanismo de relógio onde as
rodas dentadas, engrenagens e movimentos são precisos. O primeiro movimento é a
causa dos movimentos seguintes e toda a causalidade é impulso:
Salvo raras exceções, até 1927, todos os físicos achavam que o mundo era um
enorme e preciso mecanismo de relógio. Descartes, o grande filósofo, físico e
fisiologista, descrevia o mecanismo como mecânico: toda causa era impulso. Foi
a primeira e mais clara teoria da causalidade. Mais tarde a partir de 1900, o
mundo era visto como um mecanismo de relógio elétrico. Mas em ambos os
casos era visto como um mecanismo de relógio idealmente preciso. Quer as
rodas dentadas se empurravam umas às outras, quer os eletroímãs se atraíam
ou repeliam com enorme precisão. Não havia, neste mundo, lugar para as
decisões humanas. A nossa sensação de estarmos a agir, planejar ou entender
116
DESCARTES, R. Discurso sobre o Método. São Paulo: Linográfica, col. Biblioteca Clássica, v. 2
(trad. Paulo M. de Oliveira), 1953
5
, p. 28.
103
era ilusória. Poucos filósofos, com a grande exceção de Peirce, se atreveram a
contestar esta visão determinista.
117
Descartes compreende a realidade em três âmbitos diferentes: Deus ou
substância infinita, os corpos ou substância extensa e o eu ou substância pensante.
Vamos provar, portanto, a existência dos dois primeiros âmbitos, uma vez que o eu é a
realidade primeira: “duvido, logo penso” e “penso, logo existo”. Se Descartes afirma
que a idéia de Deus, como ser infinito, é inata, temos, portanto, aberta a seguinte
dedução
118
:
a) A existência de Deus é demonstrada a partir da idéia de Deus. Tomemos o
argumento baseado na causalidade aplicada à idéia de Deus. Este argumento parte da
realidade objetiva das idéias, que pode ser formulada da seguinte forma: “a realidade
objetiva das idéias requer uma causa que respalde tal realidade em si mesma, não
de um modo objetivo, mas de um modo formal ou eminente”. Quer dizer, a idéia como
realidade objetiva requer uma causa real proporcionada; logo, a idéia de um ser Infinito
requer uma causa Infinita. Portanto, foi causada em mim por um ser Infinito; logo, o ser
Infinito existe.
b) A existência do mundo é uma conseqüência necessária da existência de
Deus. Eis a demonstração: sendo o Deus existente infinitamente bom e veraz, ele não
pode permitir que eu viva equivocado ao crer que o mundo existe. Logo, o mundo
existe.
Para Descartes, a existência de Deus é a garantia de que às minhas idéias
corresponde um mundo entendido como uma realidade extramental. Embora Deus não
garanta que todas as minhas idéias tenham uma realidade extramental
correspondente. Deus garante somente a existência de um mundo constituído
exclusivamente pela extensão e pelo movimento, as chamadas qualidades pririas.
117
POPPER, Karl R. Um mundo de propensões. Lisboa: Ed. Fragmentos, 1991, p. 18-19.
118
NAVARRO CORDON, Juan Manuel; CALVO MARTINEZ, Tomas. História da Filosofia do
Renascimento à Idade Moderna. Rio de Janeiro: Edições 70, vol. 2, 1983, p. 92-94.
104
Descartes, Galileu e toda a ciência moderna descartam a possibilidade da existência
das qualidades secundárias, como as idéias das cores, dos sons, etc. A partir das
idéias de extensão e movimento, podem ser deduzidas, segundo Descartes, a Física e
as leis gerais do movimento. Esta é a fundamentação da concepção cartesiana do
mundo segundo a qual ele corresponderia a um mecanismo de relógio.
O conceito de substância é um conceito fundamental para Descartes e todos
os filósofos racionalistas. Para ele, substância “é uma coisa que existe de tal modo
que não necessita de nenhuma outra coisa para existir.” Considerada de forma
rigorosa esta definição pode referir-se à substância infinita, Deus, uma vez que
todos os outros seres são criados e conservados por Ele. Para Descartes, no
entanto, esta definição também serve para afirmar a independência mútua entre a
substância pensante e a substância extensa que não necessitam uma da outra para
existir. Assim ele fundamenta a separação entre alma e corpo, quer dizer, o
pensamento e a extensão, isto é, a alma e o corpo são substâncias distintas.
Portanto seu conceito de substância traz como novidade a independência da
alma e do corpo. A alma é autônoma em relação à matéria. Descartes afirma na
quarta parte do Discurso sobre o método que, ao possuirmos uma idéia distinta em
relação ao nosso corpo enquanto uma coisa extensa e que não pensa, é óbvio que
somos distintos dele e podemos viver sem ele:
Depois, examinando atentamente o que eu era e verificando que podia fingir que
não tinha corpo e nenhum mundo ou lugar havia em que me encontrasse, mas,
ao mesmo tempo, não podendo fingir que não existia, bastando o fato de duvidar
da verdade das outras coisas para demonstrar, de modo bastante certo e
evidente, que eu existia, ao passo que bastaria deixar de pensar, mesmo
admitindo que tudo o que imaginasse fosse verdadeiro, para não haver
nenhuma razão que me levasse a crer na minha existência, desprendi de tudo
isso que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste
exclusivamente em pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem
depende de nada material, de forma que eu, isto é, a alma, pela qual eu sou o
105
que sou, é inteiramente distinta do corpo e até mais fácil de reconhecer do que
este, e, mesmo que o corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que
é.
119
E o ponto fundamental que relaciona a filosofia de Descartes com o exercício
da Medicina é este: ele introduz a concepção mecanicista e determinista em relação
ao mundo material da ciência clássica aos corpos extensos biológicos, orgânicos,
como o corpo humano, em cujo âmbito não existe lugar para a liberdade:
De modo algum parecerá isso estranho aos que, sabendo quantos autômatos
diferentes ou máquinas movediças pode produzir a indústria dos homens
empregando apenas um número de peças reduzidíssimo em comparação com a
quantidade enorme de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras
partes de que se compõe o corpo de cada animal, considerarem esse corpo
como uma máquina que, tendo sido feita pela mão de Deus, é
incomparavelmente mais bem arranjada e tem em si movimentos mais
admiráveis do que qualquer das que possam ser inventadas pelos homens.
120
A Medicina contemporânea segue no caudal da concepção filosófica
cartesiana e encontra-se atualmente instrumentada com técnicas de última geração.
Ela concebe a excelência do ato médico com tal tecnicidade que fragmentou em
especialidades os conhecimentos relacionados com a saúde. A tendência para o
futuro leva cada profissional a dominar um estrito campo do conhecimento da saúde,
absolutizando o critério de objetividade no conhecimento fisiopatológico e tratamento
da enfermidade.
Uma vez concebida a separação entre corpo e espírito, o corpo é fracionado
numa pluralidade de segmentos que melhor possam se adequar à eficácia do
diagnóstico técnico e tratamento físico-químico. Os procedimentos diagnósticos e
terapêuticos passaram a ser instrumentados. Nesse ponto da evolução da Medicina,
119
DESCARTES, R. Discurso... op. cit. (nota 116), p. 43-44. (grifo nosso)
120
Idem, ibidem, p. 68. (grifo do autor)
106
o homem tornou-se animal-máquina conforme a teoria cartesiana, correndo o risco
da enfermidade ser vista de forma reducionista a partir de critérios meramente
objetivos
121
.
Um paciente em fase avançada de uma enfermidade, mais que qualquer
outro, corre o risco de ser objetificado: seu corpo já não recebe a higiene necessária
devido à deterioração de seu estado físico e lentidão ou estagnação quanto à
perspectiva de cura. Apresenta-se num estado continuado de sofrimento físico e na
dependência própria da patologia grave. Ele é um ser misantropo, reduzido ao não-
senso do padecimento; é um homem irrecuperável, que se tornou mudo porque o
sistema cartesiano-matemático não prevê o fracasso nem a compaixão.
Ainda que a filosofia de Descartes tenha dado à Medicina o respaldo da
precisão diagnóstica e terapêutica resultantes do método científico e também
mecanicizado, de certa forma, a relação médico-paciente, o filósofo da ciência Karl
Popper, já no final de sua vida, se refere à ciência e Medicina dessa forma:
E quero acrescentar a esta minha confissão a minha convicção de que com a
música e a arte, a ciência é o maior, o mais belo e o mais instrutivo
empreendimento do espírito humano. Abomino a atual moda intelectual que
tenta denegrir a ciência, e admiro grandemente os resultados maravilhosos
obtidos atualmente por biólogos e bioquímicos e que, através da Medicina, têm
sido úteis a muitos pacientes em todo este nosso mundo maravilhoso.
122
Cabe aqui a possibilidade de uma redefinição da Medicina. Estamos diante de
duas constatações que favorecem uma nova reflexão:
Não podemos reduzir o homem a uma doença;
121
Sobre a representação individual e coletiva do corpo humano a partir de uma concepção
mecanicista, ver LEFÈVRE, Fernando. Mitologia Sanitária saúde, doença, mídia e linguagem. São
Paulo: EDUSP, 1999, p. 75-81, 88-91.
122
POPPER, Karl R. Um mundo... op. cit. (nota 117), p. 17.
107
No encontro humano, diante do enfermo que ainda respira, sempre há uma
porta aberta para a esperança.
Que esperança? A esperança do profissional, entendido a partir de uma
concepção não cartesiana da Medicina, não é, por exemplo, o desejo de curar um
paciente com câncer em fase avançada. A esperança dele é uma confiança realista
de promover um campo de diálogo com o enfermo no qual a palavra pronunciada e
acolhida responde ao seu apelo. A esperança é o verdadeiro sentido da vida que
emerge do diálogo proporcionado pelo espaço aberto pela condição real de
sofrimento vivida pelo enfermo.
Diante dessa esperança que não se encontra e nem se coaduna com o
espaço redutor e quase ausente da pessoa humana do enfermo na concepção
cartesiana da Medicina contemporânea, torna-se necessário redefini-la. A
solidariedade e criatividade do profissional de saúde é o motor gerador da autonomia
do enfermo. Cabe a este profissional utilizar os meios da escuta e palavra para
formar com o enfermo uma relação social autônoma que vença a heteronomia, quer
dizer, auxiliá-lo a aliviar pela pronúncia da palavra seu sofrimento moral e a
reconquistar o campo do convívio como interlocutor pleno e criativo. A Medicina se
revela, assim, como a arte de cultivar a autonomia dos homens à medida que cuida
dos seus corpos
123
.
Malherbe se refere a três mudanças no desenvolvimento da nova Medicina
em curso: o profissional de saúde não-todo-poderoso precisa mudar seus hábitos
tornando-se uma pessoa que escuta; a necessidade de serem criadas palavras da
técnica que integrem no seu conjunto os procedimentos numa dialogicidade; e o
trabalho em equipe interdisciplinar.
A Medicina não é a arte de lutar a qualquer preço contra o sofrimento e a
morte. É a arte de apropriar as ciências e as técnicas biomédicas para
123
MALHERBE, J-F. Pour une éthique de la médicine. Paris: Larousse, col. Essais en liberté, 1987, p.
10.
108
estimular e despertar a autonomia adormecida nos pacientes. A arte de cuidar
destes semelhantes, a arte de lhes auxiliar a viver plenamente, de ajudar que
a mulher possa parir malgrado as inevitáveis dores do parto. A filosofia divide
com a Medicina a verdade de que ninguém morre antes de nascer.
124
2.2.6. Movimentos opostos ao dualismo cartesiano na Medicina
Em meio a tantos progressos e conquistas cada vez mais acelerados e
fantásticos da Medicina, algo acontece nessa linearidade ininterrupta e quase
determinística. Um “parar para pensar”, buscando os frutos do frescor e vigor do ócio
filosófico, reavalia o caminho feito e põe em marcha movimentos opostos ao
dualismo cartesiano desumanizador o movimento europeu para o pedido de
eutanásia mais recentemente, os cuidados paliativos e a bioética.
O dualismo cartesiano como concepção de fundo do exercício da Medicina
deixou-nos diante da seguinte pergunta antropológica: Pode-se afirmar que a pessoa
humana possui uma dignidade inalienável diante da finitude de sua condição de
enfermo que, de forma inevitável, está num sofrimento contínuo ou progressivo e se
aproxima da morte?
A iia de que o homem tem o direito de morrer com dignidade dominou o
debate bioético contemporâneo principalmente na Europa. O direito a uma morte
digna, incluindo, segundo muitos autores, o direito a dispor da própria vida mediante
a eutanásia ou o suicídio medicamente assistido teve a seu favor os seguintes
argumentos:
É uma extensão do respeito à liberdade individual ou autonomia do paciente.
Ninguém tem o direito de obrigar uma pessoa que está sofrendo a seguir
vivendo, se ela não o deseja.
124
MALHERBE, J-F. Pour une éthique... op. cit. (nota 123), p. 157.
109
Com isso, poder-se-ia afirmar que se deve aceitar a eutanásia e a assistência
ao suicídio como atos de beneficência e a sua negação como atos de maleficência.
Seria necessário compreender o drama existencial em que vivem estes enfermos e
proporcionar-lhes este auxílio.
Esta linha argumentativa, no entanto, parece falaciosa, considerando que as
recentes estatísticas
125
realizadas no primeiro país a despenalizar a eutanásia a
Holanda revelaram duas etapas referentes ao processo do pedido de eutanásia: o
respeito à autonomia como sendo uma primeira etapa proveniente do paciente; e
uma segunda etapa cuja iniciativa partiu da própria família e dos profissionais de
saúde, apontando a situação do enfermo como “condição de vida não digna”. Da
discussão da licitude ou o da eutanásia passou-se à discussão em termos da
relação de cálculo custo-benefício, algo bem próximo da lógica da eugenia realizada
pela Alemanha nacional-socialista que levou ao exterminío de milhões de pessoas.
De quaquer forma, o que nos interessa aqui é salientar que na raiz do pedido
da eutanásia está a importância que deve ser dada à autonomia do enfermo. Ela é
um sinal da troca do paradigma médico imperante, levando-nos de uma Medicina
dominada pela lógica do imperativo tecnológico para uma Medicina autenticamente
personalista.
O movimento dos Cuidados Paliativos tem seu início com os trabalhos da
enfermeira britânica Cicely Saunders, fundadora do Hóspice St. Christopher, em
Londres em 1967. Eles consistem num movimento de humanização da Medicina,
principalmente no âmbito do atendimento aos pacientes terminais, que veio a se
contrapor à frieza no contato humano ainda dominante nos hospitais modernos. Ela
inovou ao propor um atendimento multiprofissional aos pacientes portadores de
câncer avançado em locais chamados hospices. Nessas novas condições de
125
JOCHEMSEN H. & KEOWN J.: Voluntary Euthanasia Under Control? Further Empirical Evidence
from the Netherlands. Journal of Medical Ethics 1999; 25: 16 - 21. Apud TABOADA R., Paulina;
RODRÍGUEZ U. Alejandra; VERCELLINO B., Magda Dimensión ética del morir. In: Ars Medica -
Revista de Estudos Médicos Humanísticos, vol. 2, 2 In:
http://escuela.med.puc.cl/publ/ArsMedica/ArsMedica.html
110
alojamento, o enfermo conta com os cuidados médicos e com a proximidade da
família. Robert Twycross define a Medicina paliativa da seguinte maneira:
La Medicina Paliativa es la atención activa y total a los pacientes y a sus
familias, por parte de un equipo multiprofesional, cuando la enfermedad ya no
responde a tratamientos curativos y la expectativa de vida es relativamente
corta.(...) Medicina Paliativa es mucho más amplia y profunda que la mera
“sintomatología. El término implica un enfoque holístico que considera no sólo
las molestias físicas, sino también las preocupaciones psicológicas, sociales y
espirituales. (...) La Medicina Paliativa afirma la vida y reconoce que el morir es
un proceso normal. No busca ni acelerar ni posponer la muerte. No está
dominada por la “tiranía de la curación”,y se opone también firmemente a la
eutanasia.
126
Da equipe multiprofissional fazem parte também psicólogos, religiosos e
sacerdotes de diferentes religiões, prontos para oferecer assistência psicológica e
espiritual. O movimento hospice incentivou a criação das unidades de cuidados
paliativos, que funcionam ligadas aos hospitais, e do homecare, o atendimento
domiciliar a pacientes terminais. O objetivo é proporcionar uma morte mais
acompanhada, serena e humana. É a morte digna, ou ortotanásia, sem abreviações
precipitadas do tempo de vida e sem sofrimentos prolongados desnecessários.
Os Cuidados Paliativos definem o homem como um ser pluridimensional
somático, psíquico e simbólico; criam um espaço para a morte no âmbito médico;
reconhecem que o enfermo com doença crônica severa vivencia um sofrimento físico
e moral; propõem que a estratégia terapêutica tenha uma visão abrangente
englobando enfermo e familiares; e prescrevem o tratamento como curativo e
paliativo, empregando equipes multidisciplinares com ação ativa dos familiares e
com cuidados de seguimento hospitalar ou domiciliar até a morte. Os principais
objetivos dos Cuidados Paliativos são:
Aliviar a dor e outros sintomas apresentados pelos pacientes;
Atender psicológica e espiritualmente aos pacientes para que aceitem a morte
e se preparem para ela da melhor forma possível;
126
TWYCROSS, Robert. Medicina paliativa: filosofía y consideraciones éticas. In: Cuadernos del
Programa Regional de Bioética OPS/OMS. Año VI - 1 p. 31 In:
http://www.paho.org/Spanish/BIO/acta1.pdf
111
Oferecer um sistema de apoio que torne a vida dos pacientes bastante ativa e
criativa, até que sobrevenha a morte promovendo sua autonomia, integridade
pessoal e auto-estima;
Oferecer um sistema de apoio qua ajude as famílias a acompanhar o enfermo
e passar posteriormente pela fase do luto.
A Bioética surge em 1970 nos Estados Unidos com um grupo de filósofos e
juristas que se mobiliza para que o homem reconquiste a propriedade legal e humana
sobre o seu corpo. Cada enfermo passa a ser considerado como um ser autônomo,
racional e responsável pelo seu corpo. Ele, ou seu representante legal, após ter sido
informado de sua doença grave, pode assumir as decisões médicas importantes que
lhe dizem respeito. Esse novo modelo humanizador estilhaçou o paternalismo médico
de profunda raiz hipocrática, reconfigurando a relação médico-paciente.
A difusão dos estudos da bioética, da prática dos cuidados paliativos, do
movimento europeu pelo pedido de eutanásia abriram um debate sobre novas
concepções da Medicina contemporânea, destacando como atitude central a
reflexão ética. Estão em jogo:
O questionamento e a reformulação do espaço que a sociedade dá para a
pessoa humana acometida e debilitada pela enfermidade e também para a
morte na dimensão das relações interpessoais e sociais;
A reflexão ética e diálogo interdisciplinar a partir das representações, idéias e
sentimentos do enfermo e seus familiares.
2.3. SURGIMENTO DA BIOÉTICA
O termo bioética foi utilizado pela primeira vez pelo oncólogo norte-americano
Van Rensselaer Potter para estabelecer um encontro necessário entre os fatos
científicos provenientes da biologia e Medicina e os valores éticos:
112
La Bioética fue proyectada como una nueva disciplina que combinara el
conocimiento biológico con el conocimiento de los valores humanos (...) elegí
bio- para representar al conocimiento biológico, la ciencia de los sistemas
vivientes; y elegí –ética para representar el conocimiento de los sistemas de
valores humanos.
127
A imprecisão e ambigüidade do termo bioética se deve às suas raízes
etimológicas. O termo vida sugere muitos significados, tanto deontológicos, assumidos
pelas éticas de raiz teológica, que enfatizam a santidade de vida, quanto teleológicas,
próprias das éticas seculares, e, mais especificamente, utilitaristas, que colocam o
acento na qualidade de vida.
O termo bioética também não esclarece se um predomínio da ética sobre a
biologia ou o contrário. Uma biologização da ética estaria mais de acordo com a origem
médica e biológica, não filosófica, do termo surgida durante o movimento sociobiológico,
que afirma a determinação genética dos comportamentos morais. No entanto a ênfase
atual na compreensão do termo bioética pende para o outro lado, o da etização da
biologia, mais conhecido como ética biomédica com franco predomínio da ética,
enquanto mediação para a resolução de conflitos, sobre os campos do saber dico e
biológico.
Duas razões principais explicam o surgimento e o desenvolvimento da bioética:
os avanços ocorridos na ecologia humana, com a conseqüente preocupação pelo futuro
da vida em nosso planeta, e, na biologia molecular, a profunda transformação da
Medicina sanitária.
A revolução ecológica
128
adquire destaque a partir da década de 70 com os
seguintes relatórios sobre estudos ecológicos: The limits of growth, publicado pelo
Clube de Roma em 1972; Relatório 2000, elaborado pelo governo norte-americano de
127
POTTER, Van Rensselaer. “Humility with Responsability: A Bioethics for Oncologists: Presidencial
Address”, Cancer Research 1975; 35: 2297, 2298 Apud GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza...
op.cit. (nota 86), 1998, p. 29-30.
128
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op. cit. (nota 86), p. 12-13.
113
Jimmy Carter; e Our Common Future, da Comissão Mundial do Meio ambiente e do
Desenvolvimento, surgido em 1987. Todos alertam para o perigo de que o crescimento
econômico tem limites comprovados pelo esgotamento de matérias primas, extinção
de espécies, contaminação da atmosfera e dos mares, destruição das florestas, etc.,
que podem levar à inviabilidade da vida humana em nosso planeta.
A revolução biológica foi ocasionada pelo descobrimento nos anos 60 do código
genético elucidando os processos biológicos no âmbito do infinitamente pequeno na
ordem da vida. A engenharia genética através da técnica do ADN recombinante para
manipulação do genoma humano e das técnicas de reprodução assistida como
inseminação artificial, fecundação in vitro, transferência de embrião, entre outras,
colocou o homem no comando da evolução biológica.
Diante de imenso potencial de ação humana multiplicado pelo uso dessa alta
tecnologia agora disponível, quais os referenciais éticos que devemos considerar para
tomar decisões, estabelecendo a partir do tecnicamente correto o que é eticamente
bom? A Medicina conhece atualmente umas quatro mil enfermidades de causa genética
que ocasionam graves transtornos físicos e psíquicos que poderiam teoricamente ser
evitados pela engenharia genética. E se o homem resolver utilizar a engenharia
genética para outros fins como o de aperfeiçoar a natureza humana? A bioética existe
para considerar estas e outras perguntas e possibilidades.
A revolução médico-sanitária aconteceu devido ao imenso crescimento da
quantidade e complexidade dos problemas morais que são atualmente apresentados
aos médicos que sempre tiveram seu exercício profissional pautado por documentos
deontológicos. A magnitude desses problemas morais se deve a três fatores:
maior autonomia do enfermo na relação médico-paciente;
inserção de um arsenal tecnológico à disposição da prática médica;
gestão política do Estado, através dos órgãos públicos, na prática sanitária.
114
É necessário entender a maior autonomia do enfermo na relação médico-
paciente a partir de sua gênese. O médico, desde suas origens hipocráticas, sempre
norteou seu comportamento profissional pelo critério moral da beneficência, quer dizer,
favorecer ou ajudar, manifestado pelos latinos, de forma reduzida, através da expressão
primum non nocere, em primeiro lugar não prejudicar, não causar dano, considerado
hoje na bioética como princípio de não-maleficência. O princípio de beneficência
apresentou-se no comportamento do médico de forma paternalista.
O paternalismo consiste na atitude do médico de fazer o bem ao enfermo sem
considerar sua vontade ou mesmo contra ela, mantendo-o, portanto, numa situação de
passividade, submissão e obediência. O enfermo era considerado portador de uma
incapacidade biológica e moral. Como a enfermidade produz a dor e esta perturba a
mente para julgar prudente e corretamente, cabia ao médico decidir pelo enfermo. A
relação médico-paciente tinha um caráter vertical e assimétrico como a de um pai com
seus filhos pequenos.
Este modelo paternalista de relação médico-paciente começa a mudar a partir de
1973, com o surgimento do Código de Direitos dos Enfermos, aprovado pela
Associação Americana de Hospitais. Os enfermos passam a assumir sua condição de
adultos tomando consciência de seu direito de tomar decisões sobre o próprio corpo e
sua enfermidade e a relação médico-paciente se torna simétrica e horizontal. O direito
ao consentimento informado
129
dá respaldo a esta nova relação, cabendo ao médico
fornecer as informações sobre o diagnóstico, prognóstico e alternativas de tratamento e
ao enfermo a capacidade de permitir e decidir de forma autônoma sobre o que melhor
lhe convém. O papel do médico é apoiar e assessorar as decisões tomadas pelo
enfermo. O consentimento informado, expresão da autonomia do enfermo, foi
determinante para a mudança radical da relação médico-paciente:
129
“El consentimiento informado es el reflejo más cualificado del cambio operado en la relación médico-
enfermo y, muy especialmente, en los principios que rigen la Ética Médica. El paternalismo médico, que
se habría expresado básicamente a través de los principios de no maleficencia (no harás daño) y de
beneficencia (harás el bien) no desaparece, pero queda subordinado al principio de autonomía, donde el
protagonista principal es el enfermo” SOUTO PAZ, José Antonio; PORRAS, Matilde; MARTÍNEZ, María
del Carmen. El consentimiento informado. Madrid: Hermanas Hospitalarias SCJ, Colección de Bioética, v.
1, 1999, p. 15-16. (grifo nosso)
115
La recepción de la autonomía en la Ética Médica supone modificar
sustancialmente la relación médico-paciente y, en concreto, alterar la
designación del titular de la toma de decisiones en el campo asistencial. De
acuerdo con el paternalismo médico y en aplicación del principio de
beneficencia, la toma de decisiones respecto al enfermo corresponde al que
sabe, es decir, el médico. Por el contrario, el reconocimiento de al autonomía
del enfermo significa que la toma de decisiones, en todo lo que afecte a su
salud, corresponde al propio enfermo.
130
O princípio moral da beneficência que sempre conduziu o comportamento do
médico e recebeu influência importante do princípio de autonomia exercido pelo
enfermo passa a defrontar-se com outra questão: diante das novas tecnologias, o que
realmente resulta em benefício para o enfermo?
131
Os avanços tecnológicos no âmbito da Medicina constituem outro fator que
ajudou a mudar a relação médico-paciente. Tomemos como exemplo as técnicas de
suporte vital praticadas nas Unidades de Tratamento Intensivo hospitalares. O caso da
jovem norte-americana Karen Ann Quinlan
132
que permaneceu dez anos em estado
vegetativo permanente após entrar em estado de coma por ingestão de drogas e álcool
em 14 de abril de 1975 tornou-se paradigmático. Seus pais, em vista da irreversibilidade
do quadro clínico, reivindicaram perante os tribunais a retirada do respirador artificial.
Após a primeira sentença judicial contrária, na apelação ao Supremo Tribunal de Nova
Jersey, a sentença foi favorável ao direito de recusa ao tratamento e transferido ao pai,
seu tutor, o direito de liberdade de escolha. O tribunal aconselhou aos médicos que,
uma vez confirmada a irreversibilidade do quadro clínico, buscassem o parecer do
comitê de ética do hospital. Como o médico que acompanhava o caso se recusou a
retirar o respirador da enferma, o tutor procurou outro médico que aceitasse sua
130
Idem, Ibidem, p. 27-28.
131
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op. cit. (nota 86), p. 15.
132
PESSINI, L., BARCHIFONTAINE, C. P. Problemas atuais de bioética. São Paulo: Loyola, 1994
2
, p.
254-256.
116
retirada. Em 17 de maio de 1976 foi removido o respirador e a enferma manteve-se viva
até 11 de junho de 1985.
O caso de Karen Ann Quinlan foi uma situação de morte cerebral semelhante à
que acontece com muitos envolvidos em acidentes automobilísticos. Nesse tipo de
paciente, por quanto tempo devemos manter o apoio do respirador artificial? Se o
coração parar, devemos aplicar a ressuscitação cárdio-respiratória? O encarniçamento
terapêutico é uma atitude moral? Em resumo: tudo o que é tecnicamente possível fazer
é eticamente correto? O médico não deve deixar morrer em paz seus pacientes? Estas
e muitas outras questões complicadas surgem da presença de novas tecnologias no
âmbito da Medicina que, como conseqüência, alteraram substancialmente a relação
médico-paciente.
Um terceiro fator determinante dos conflitos éticos existentes no âmbito da
prática médico-sanitária provém das decisões políticas do Estado referentes à saúde da
população. Esta incumbência dos Estados nacionais se deve à formação do assim
chamado Estado de Bem-estar, decorrente crise econômica de 1929 nos Estados
Unidos, que determinou uma reestruturação do capitalismo. O Estado benfeitor deveria
proteger a todos os cidadãos das contingências negativas da vida como o desemprego,
a velhice, a enfermidade, a morte, etc. Caberia ao Estado, portanto, garantir o acesso
igualitário de todos os cidadãos aos serviços de saúde, bem como alocar e destinar
recursos econômicos para para que tal objetivo se realizasse, uma vez que a segurança
social e a saúde são considerados direitos humanos.
133
Os economistas afirmam que toda a oferta criada no âmbito sanitário leva ao
surgimento de uma demanda própria, tornando o consumo de bens de saúde
praticamente ilimitado. O problema, que diz respeito ao princípio de justiça da bioética, é
133
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948): ARTIGO XXII “Todo homem, como membro da
sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação
internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais
e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.” ARTIGO
XXV “Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e
bem-estar.” PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. P. Os problemas atuais de Bioética. São Paulo: Loyola,
1994
2
, p. 309-311.
117
que os recursos econômicos destinados ao âmbito médico-sanitário são limitados.
Deve-se tomar a decisão mais justa possível para selecionar aqueles que serão
contemplados com os serviços a serem pagos por tais recursos limitados. Eis algumas
questões envolvidas:
Deve-se priorizar a destinação dos recursos para os enfermos agudos e
recuperáveis, deixando de lado o crônico e irrecuperável?
O que são necessidades sanitárias?
Como separar, nesse âmbito, o necessário do supérfluo?
Diante do aumento de necessidade da população no âmbito sanitário, existe
obrigação moral de atendê-las em virtude do princípio de justiça?
Uma vez que as necessidades são maiores do que os recursos, que critérios
considerar para distribuí-los?
Analisando agora toda esta questão do surgimento da bioética a partir da ótica
filosófica, podemos afirmar que os diferentes modelos bioéticos fundamentam-se em
tradições filosóficas e éticas diferentes: as provenientes do mundo anglo-saxão e do
mundo europeu continental. Desde o século XVII, a filosofia anglo-saxã tomou clara
opção pelo empirismo, enquanto a filosofia européia continental seguia pelo caminho do
racionalismo.
A filosofia anglo-saxã, de corte empirista, costuma ser emotivista, pois
importância ao princípio de autonomia, e conseqüencialista, uma vez que dirige suas
preferências ao princípio de beneficência. Sua ética, portanto, costuma ser utilitarista.
O utilitarismo é uma corrente filosófica que se inicia com Bentham e adquire
pleno desenvolviento com Stuart Mill. Sua máxima considerada como norma de ão
era a do maior bem para o maior mero. Atualmente, o utilitarismo assumiu forte
influência kantiana, continental européia, que afirma que as normas éticas devem
obedecer sempre ao princípio de universalização, alterando a máxima utilitarista para a
do máximo bem para todos. Peter Singer, seguidor do prescritivismo de Richard Hare,
118
incorpora esta versão do utilitarismo anglo-sao e formula que o princípio básico da
ética é a igual consideração dos interesses de todos os implicados.
134
As filosofias da Europa continental possuem forte tendência racionalista e
deontologista porque acreditam na possibilidade de se estabelecer previamente
obrigações ou princípios absolutos que governem moralmente o comportamento das
pessoas independente da consulta de suas vontades próprias. O exemplo
paradigmático desta ética é o imperativo categórico kantiano que obriga a tratar todos
os seres humanos, não como meios, mas como fins em si mesmos. Estas obrigações,
resultantes do imperativo categórico, exigem de forma absoluta e se concretizam
através dos seguintes princípios: o de não-maleficência, evitando o dano e a violência, e
o de justiça, obrigando a igualdade no tratamento de todos os envolvidos.
Theodor Adorno, com sua obra Minima moralia, tentando responder aos que
consideravam imoral o modelo de sociedade governado pelo nacional-socialismo
alemão, desencadeou o que se conhece hoje por ética mínima. Ela defende a existência
na sociedade de um nível mínimo de moralidade pautado por uns princípios éticos
absolutos cuja inobservância qualificaria a vida social de imoral.
Para Diego Gracia, os mínimos morais são formados pelos pelos princípios de
não-maleficência e justiça. Ambos se referem à obrigação moral de que todos somos
iguais e merecemos igual consideração e respeito. Sua observância pode ser exigida
independentemente da consulta prévia feita aos sujeitos morais. O primeiro princípio é
aplicado ao âmbito biológico. Ao se fazer um dano ou discriminar uma pessoa, por
exemplo, se transgride o princípio da não-maleficência. O segundo diz respeito à vida
social: comete-se uma injustiça quando se discrimina ou não se trata uma pessoa com
igual consideração e respeito. No âmbito da vida social, o Direito Penal regula a
observância da não-violência ou princípio da não-maleficência, enquanto o Direito civil e
político garante a vigência da justiça.
134
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op. cit. (nota 86), p. 20.
119
A bioética norte-americana sofreu influências dessas duas poderosas correntes
filosóficas: o empirismo anglo-saxão e racionalismo continental europeu. Seu livro mais
reprensentativo, Principles of Biomedical Ethics, tem como autores Tom L. Beauchamp,
um utilitarista de regra, e James Childress, um deontologista. Nesta obra eles aceitam
quatro princípios éticos comuns: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça.
Eles podem ser considerados deveres prima facie porque podem ser aceitos sem
dificuldades por toda a comunidade plural e civilizada. Se eles não entram em conflito
entre si, eles obrigam moralmente. Uma vez que entrem em conflito, vencerá aquele
que, analisando a situação concreta, resulte nas melhores conseqüências. O modelo
destes autores norte-americanos é conseqüencialista, porque a decisão tomada
depende fundamentalmente das conseqüências.
O esquema procedimental da bioética norte-americana é utilitarista, concentrando
a obrigação moral sobre a obtenção do maior bem para todos, ou, se não for possível,
para a maioria. Isso se concretiza através do princípio de não-maleficência e do
princípio de beneficência: evitar o mal possível e promover o bem. Aqui o princípio de
não-maleficência é considerado como uma parte negativa do princípio de beneficência.
Como fazer o bem a alguém não parte da pura objetividade, mas exige o conhecimento
prévio de sua vontade própria e posterior consentimento, o princípio de beneficência é
inseparável do princípio de autonomia. Todos estamos obrigados a não fazer o mal,
mas também não se pode fazer o bem a outro contra a sua vontade. O benefício
existe para um sujeito concreto numa situação determinada. Aqui, o princípio de justiça
exerce uma função apenas compensatória, tentando diminuir as desigualdades geradas
ou não evitadas dos outros três princípios. O caráter teleologista ou conseqüencialista
desta ética se deve ao binômio autonomia-beneficência: o maior bem possível é
reconhecido e decidido pelos próprios interessados.
120
2.3.1. Bioética Clínica
Chegamos neste ponto à bioética clínica. Para abordá-la de forma conveniente, e
antes de defini-la, faz-se necessário relembrar alguns pontos essenciais sobre o que
afirmamos no primeiro capítulo referente à fundamentação da ética segundo Diego
Gracia:
A razão não é tão pura quanto supuseram Kant e os racionalistas. Sem a
possibilidade de apoio numa ética metafísica, resta-nos, apenas, dispor de uma
ética procedimental.
A racionalidade
3
, assim denominada por Diego Gracia, introduz a universalidade
na ética. Para livrar-se de aporias da racionalidade
2
, representada por Habermas
e Apel, recorre à fenomenologia tentando buscar um fundamento ontológico para
a ética. Com isso conseguimos construir com solidez argumentativa a
insuficiência da casuística
1
apontada por K. O. Apel em sua crítica: “não cumpre
com os requisitos mínimos de ‘fundamentação’ aquela teoria que é incapaz de
compor numa unidade certos princípios, ainda que sejam formais, com a
pluralidade das decisões universais. Assim acaba-se caindo no decisionismo.”
Hoje, de forma menos pretensiosa do que supunham os racionalistas, acredita-
se que a razão seja capaz de elaborar hipóteses e teorias consideradas como
padrões históricos de racionalidade e inteligibilidade que dão sentido aos fatos,
denominadas por Toulmin de ideais explicativos. Eles são os marcos
referenciais ou pressupostos da racionalidade que maneja conteúdos materiais.
Os produtos da razão só podem ser históricos, circunstanciados e materiais. Daí
se pode concluir que a razão moral deverá ser sempre histórica e casuística,
mas diferente do casuísmo clássico, e mais próxima do casuísmo
2
.
Encontramo-nos, portanto, no âmbito da ética aplicada que pretende ajudar com
as descobertas éticas na resolução de problemas situados nos campos da
Medicina, política, empresa, comunicaçãos social, etc.
121
A bioética surge nesse contexto e pode ser considerada uma criação norte-
americana porque provém do pragmatismo filosófico anglo-saxão. Esta corrente
de pensamento é constituída por três fatores: o casuísmo, o procedimentalismo
e o decisionismo.
Os princípios da bioética mais do que princípios no sentido estrito devem ser
considerados como máximas de atuação prudencial.
Como o que interessa à bioética clínica é encontrar um curso de ação
135
, quer
dizer, munir-se de um procedimento de análise de casos clínicos, é importante
deter-se mais nas etapas desse processo do que definir demorada e
pormenorizadamente os princípios de autonomia, beneficência, não-maleficência
e justiça.
Eis a definição de bioética clínica dada por Diego Gracia:
Un área particular dentro de la bioética sería la bioética sanitaria o bioética
clínica, que en consecuencia se podría definir como la inclusión de los valores
en la toma de decisiones sanitarias, a fin de aumentar su corrección y su
calidad.
136
A palabra clínica
137
deriva do substantivo grego klíne, que significa cama, leito.
Dela provêm triclinio, leito inclinado em que os gregos e romanos se reclinavam para
comer; e clima, inclinação do eixo de rotação da Terra sobre si mesma em relação ao
plano de rotação da Terra em torno do sol, determinando as diferentes estações do ano
num determinado lugar de nosso planeta. O verbo grego klino quer dizer deitar, jazer,
cair, recostar-se, apoiar-se, etc. Dele procedem os verbos inclinar e reclinar.
135
GRACIA, Diego. Introducción... op. cit. (nota 94), p. 107.
136
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op. cit. (nota 86) , p. 30.
137
GRACIA, Diego. Bioética clínica. Col. Ética y Vida, v. 2. Santa Fé de Bogotá: El Búho, 1998, p. 10.
122
Em Medicina, a patologia e a clínica são disciplinas distintas e complementares.
A patologia é a ciência que estuda as enfermidades. E a clínica é o estudo da
enfermidade que acomete uma pessoa concreta realizado pelo médico que a
acompanha. Da mesma forma que na filosofia aristotélica temos o universal e o
particular, na Medicina esses dois momentos corresponderiam respectivamente à
patologia e à clínica. Aos universais cabe a certeza e provêm da ciência; aos
particulares corresponde somente às opiniões e probabildades. Aristóteles afirma que o
saber próprio dos particulares não pode ser a ciência, mas sim a técnica e a prudência.
O âmbito das decisões clínicas não pode ser o estritamente científico, mas deve
corresponder à prudência e à técnica. A relação universal e particular pode, então, ser
exemplificada pelas seguintes relações análogas: patologia e clínica, direito e
jurisprudência, ética e moral. A Medicina clínica não é uma ciência senão uma arte e
uma técnica que é exercida com saber e principalmente com prudência. Existe uma
íntima relação entre clínica e ética. Ambas necessitam analisar detidamente os casos
concretos e estabelecer um método para solucioná-lo. Este casuísmo é próprio da
ética, do direito e da Medicina.
A casuística antiga tinha como uma de suas caracterísiticas interpretar a relação
da norma moral com o caso concreto de acordo com o binômio aristotélico substância-
acidente. As normas morais como as substâncias seriam invariáveis; as circunstâncias
dos casos concretos como os acidentes seriam variáveis. Como o conhecimento das
circunstâncias do caso é variável, considerava-se incompleto e imperfeito. Por isso,
recorria-se à autoridade para a solução do caso, quer dizer, à opinião dos homens mais
sábios e prudentes do lugar. Era a assim chamada probabilidade subjetiva.
A casuística moderna surge a partir do século XVII com a teoria matemática das
probabilidades que levará posteriormente à teoria matemática da decisão racional.
Toma lugar a probabilidade objetiva. A moderna teoria da probabilidade está na base
da denominada análise decisional utilizada nas empresas, na política e na Medicina.
Ela parte do princípio de que se podem tomar decisões racionais mesmo em condições
123
de incerteza. O problema da análise decisional clássica é que considerava somente as
conseqüências dos fatos, deixando de lado os valores. Diante de todas as altenativas
existentes, a partir de um cálculo de utilidade, se escolhia a melhor. Como a melhor
acabava sempre caindo numa dimensão subjetiva, o mesmo cálculo passava a
considerar os valores, desejos e opiniões das pessoas, tornando o processo bastante
complexo. Apesar da complexidade, a análise decisional alcançou melhoras
substanciais na qualidade assistencial. Buscou-se, no entanto, algo melhor e menos
complicado.
Veremos no capítulo seguinte que o principialismo entendido de forma ampla
saber deontológico e universal e saber teleológico e particular completará o que falta
à análise decisional a dimensão valorativa. Considerar-se-á um sistema de
referência, os princípios, como máximas de atuação prudencial ou dimensão valorativa,
e as conseqüências do caso concreto.
124
3. PRINCIPIALISMO E MÉTODOS DA BIOÉTICA
Neste último capítulo apresentamos: a definição de principialismo; o método
ontológico ou principialista com seus dois momentos especulativo e prático; o
principialismo estrito como problema; a inauguração do principialismo entendido de
forma ampla no Relatório Belmnont e seu desenvolvimento por Beauchamp Childress e
Diego Gracia. O ganho da ética naturalista com esta nova concepção é que, além de
deontológica nos princípios, ela passa a ser teleológica nas aplicações práticas.
Logo após, são explicitados os quatro princípios da bioética seguidos de sua
avaliação e versatilidade; e respondidas três perguntas: “Os quatro princípios prima
facie são do mesmo nível? Os princípios são absolutos ou relativos? Os princípios são
teleológicos ou deontológicos?”. Finalmente, apresentamos alguns métodos bioéticos; e
expomos e aplicamos em quatro casos clínicos o método de Diego Gracia já
fundamentado teoricamente em todos os seus passos no primeiro capítulo.
A ética fundamental é previa à moral normativa e apresenta-se diante desta como
um sistema de referência. Uma vez que este é identificado, a razão se põe a “abrir
caminho”, quer dizer, primeiramente estabelece princípios
e normas morais concretos, e
depois, por estar diante de um problema ou conflito de valores, compõe uma via, um
méthodo, uma cadeia de procedimentos para solucioná-lo. Fenomenologicamente,
podemos afirmar que, a partir da apreensão da realidade, nos lançamos em busca do
que possam ser as coisas (ciência) ou possibilitar as coisas (ética) na realidade do
mundo. A moralidade passa dos bens e valores apreendidos às normas de ação.
138
Resumindo, então, o que afirmávamos no primeiro capítulo: a bioética se
converteu numa disciplina autônoma devido ao momento quase disciplinar de sua
atividade. Existe um primeiro nível que se ajusta às características das disciplinas
existentes formado por dois componentes: a presença de uns ideais disciplinares em
138
GRACIA, Diego. Fundamentos de Bioética. Madrid: Eudema, 1989, p. 399-400.
125
que há grande consenso e a realização de uns procedimentos adequados para se
atingir os objetivos que se pretende. Quais os ideais disciplinares pelos quais todos
entrariam em acordo? Certamente um seria este: todos os homens somos em princípio
iguais e merecemos igual consideração e respeito. Esta formulação é ideal, não
corresponde à realidade. A função da ética é tornar a realidade mais próxima deste
ideal. Para isso a bioética tem procedimentos apropriados de decisão, como veremos.
Pretende-se evitar o dano social ou discriminação, defendendo o princípio de justiça, e
impedir o dano biológico à saúde dos indivíduos, observando o princípio de não-
maleficência.
Diego Gracia quer complementar, baseado em Aristóteles, com uma segunda
parte o principialismo estrito entendido como método dedutivo da moral ou casuística
1
.
Este método não aceita exceções. Diego Gracia não só percebe as exceções da
aplicação dos princípios abstratos na atividade clínica como pretende justificá-las para
poder tomar decisões que possam ser consideradas racionais nestes âmbitos que não
oferecem mais do que probabilidade e incerteza como são a ética e a clínica. Eis as
palavras deste filósofo em que é apresentado o principialismo estrito como problema:
El problema de la ética no es hoy, por eso, el del casuismo en , que todos
aceptamos sin mayores problemas, sino el del principialismo, que es un elemento
constitutivo de lo que hemos llamado casuísmo
1
. ¿Hay algún tipo de principios
morales que puedan ser afirmados como absolutos? Toda la ética racionalista, de
Platón a Kant, respondió que sí. Pero hoy la bancarrota del racionalismo es
prácticamente total, y no parece posible conceder a la razón otra capacidad que
la de elaborar hipótesis y teorías, en el interior de lo que Toulmin llama ideales
explicativos, que son patrones históricos de racionalidad y de inteligibilidad que
dan sentido a los hechos, e incluso determinan cuáles son los hechos para
nosotros. Los ideales explicativos son, por ello, los marcos referenciales de toda
racionalidad concreta o material, de los que ésta no puede salir y sobre los que
126
no puede saltar; son, si se quiere, los presupuestos de cualquier racionalidad que
tenga contenidos materiales.
139
3.1. PRINCIPIALISMO
Os sistemas metafísicos apresentam geralmente uma estrutura descendente ou
dedutiva a partir de uns primeiros prinpios que a razão alcança diretamente com alto
grau de certeza. A metafísica está além da ordem física do mundo, corresponde à
ordem transcendental associada pelos metafísicos com as idéias platônicas. Como
idéias imutáveis, necessárias e eternas, elas tinham no seu ápice a idéia do Bem que
governava a todas como princípio de fundamento do juízos morais.
Para Aristóteles, a ordem transcendental insere-se no interior das coisas reais
concretas, revelando dois níveis ao considerá-las: o físico, o que cada coisa é
concretamente e o transcendental, o que cada coisa é pelo simples fato de existir. No
seu caráter transcendental, a coisa tem uma entidade (ens) real (res) com três
propriedades transcendentais: unidade, verdade, bondade e, talvez, beleza (os
transcendentais clássicos: ens, res, unum, verum, bonum, pulchrum). As coisas
enquanto reais são sempre boas, enquanto tais ou situadas nem sempre.
140
139
GRACIA, Diego. Introducción a la Bioética. Bogotá: El Búho: 1991, p. 113. Eis no que consiste a
casuística
1
: é a aplicação aos casos concretos de qualquer tipo de princípios morais, ou axiomas morais,
formulados a priori pela ética teórica, que tenhamos à disposição; parte de uma teoria e utiliza o método
dedudivo para poder afirmar a certeza moral. O problema que esta casuística pretende resolver se
apresenta da seguinte forma: Como resolver este caso concreto? Portanto, ela parte dos casos concretos,
mas ao aplicar princípios universais e metafísicos utiliza o método dedutivo chegando a conclusões que
não admitem exceções.
140
GRACIA, Diego. Fundamentos... op. cit. (nota 138) p. 400.
127
O principialismo
141
é um método dedutivo de avaliação ética inspirado no
silogismo aristotélico. Seu cunho especulativo com princípios deontológicos é próprio de
uma ética naturalista. Como a ética se move no âmbito prático em que cabem exceções
justificáveis em caso de conflito de valores, complementa-se o método dedutivo com
uma parte indutiva, desenvolvida conceitualmente por Jonsen, Siegler e Wisdale
142
,
tomando os princípios da bioética, conforme a teoria das obrigações prima facie do
filósofo norte-americano David W. Ross
143
, como axiomas de atuação prudencial. Diego
Gracia revê estes estudos sobre a parte indutiva, toma a teoria de W. David Ross e
aperfeiçoa o método proposto por T. Beauchamp e J. Childress
144
. A simplicidade e o
sucesso na aplicação clínica são os maiores trunfos do método, que, no entanto, é
passível de crítica.
3.1.1. Método ontológico ou principialista
O método ontológico ou principialista para avaliação ética de determinada
situação tem dois momentos: o momento especulativo, quer dizer, a ética como recta
ratio, e o momento prático, quer dizer, a ética como recta ratio agibilium.
141
“Entendemos por principialismo la aplicación de las teorias morales basadas en principios para
resolver conflictos de valores en ética médica, tal como iniciaron Beauchamp y Childress. No podemos
negar su valor pedagógico ni negar la dificultad de la jerarquización de los principios. Por esto no
podemos decir que tengan una aceptación universal, ni por parte de los médicos que se han preocupado
de la relación de los profesionales de la salud con el enfermo, ni por parte de algunos reconocidos
filósofos morales. Baruch Brody, por ejemplo, manifiesta que los cuatro principios son de nivel intermedio
y que, por tanto, necesitan la justificación racional y una fundamentación más firme en alguna de las
grandes tradiciones morales. Holmes y McIntyre manifiestan la insuficiencia de la ética filosófica y piden
sabiduría moral. Gustafson, en la misma línea, considera que cualquier doctrina filosófica es un
instrumento inadequado para hacer frente a los problemas de la ética médica, y piden que se incorporen
al discurso moral otros elementos: proféticos, narrativos y también consideraciones de políticas sanitarias.
Con otras palabras, creo que los principios de la bioética son un buen instrumento para la docencia de la
bioética clínica pero se han de saber reconocer sus mites, como en todo instrumento. No hay duda de
que como instrumento de trabajo han representado una buena ayuda en los aspectos de bioética de
procedimiento en la toma de decisiones. La razón de esto está en el hecho de que los cuatro principios
vienen a ser núcleos de confluencia de todo el universo de valores que entra en juego en la praxis
médica.” ABEL i FABRE, F. Bioética: orígenes, presente y futuro. Madrid: Ed. Mapfre, 2000, p. 190. (grifo
nosso e do autor)
142
JONSEN, A.; SIEGLER, M.; WINSDALE, W. Clinical Ethics. In: Practical Approach to Ethical Decision
in Clinical Medicine. New York: MacMillan Publishing Co.; 1986.
143
ROSS, W. D. The Right and the Good, Oxford, Clarendon Press, 1930.
144
BEAUCHAMP, T.; CHILDRESS, J. Principles of Medical Ethics. New York: Oxford University Press;
1979.
128
3.1.1.1. Momento especulativo: a ética como recta ratio
Se a razão é capaz de descobrir de modo direto, imediato e certo a realidade, o
saber autêntico ou científico (epistéme) se servirá de um método dedutivo o silogismo
para estabelecer conhecimentos certos derivados. A técnica do silogismo consiste em
partir de uma premissa maior e de uma premissa menor e deduzir uma conclusão. Se
as duas premissas são universais e afirmativas (aa), também o será a conclusão (a).
Este é o denominado silogismo em barbara
. Por exemplo:
Todos os animais são mortais;
Todos os homens são animais;
Logo, todos os homens são mortais.
Ainda que ambas as premissas sejam universais, a premissa maior é mais
extensa do que a premissa menor. Daí vem que a premissa menor seja freqüentemente
particular. Teríamos, então: a premissa maior é universal e afirmativa (a) e premissa
menor é particular e afirmativa (i). Portanto a conclusão será particular e afirmativa. Este
é conhecido como silogismo em darii
:
Todos os homens são mortais;
Sócrates é homem;
Logo, Sócrates é mortal.
No silogismo, a premissa maior contém sempre o predicado, e a premissa menor,
o sujeito. E a conclusão nada mais faz do que aplicar um no outro. No silogismo acima,
o predicado é a mortalidade, o termo médio são os homens, e o sujeito da premissa
menor é Sócrates. O silogismo relaciona ambas extremidades com o termo médio.
Como nenhum dos dois silogismos mencionados são éticos, vejamos como seria um
silogismo moral em barbara:
Todo delito deve ser castigado;
129
Todo roubo é um delito;
Todo roubo deve ser castigado.
Os silogismo moral em darii
é mais freqüente, pois tira de um princípio universal
uma conclusão particular. Um exemplo:
Toda mentira é má;
Se eu minto por piedade, digo uma mentira;
Logo, se minto por piedade, faço algo mau.
Outro exemplo:
Todo ato contra a natureza é mau;
Este uso concreto dos órgãos sexuais é um ato contra a natureza;
Logo, este uso concreto dos órgãos sexuais é mau.
Este último exemplo serve para entendermos a razão moral principialista e
dedutivista. A premissa maior é universal e afirmativa e apresenta-se de forma evidente
e categórica: “todo ato contra a natureza é mau”. De onde vem esta afirmativa? Provém
da “reta razão” (orthòs lógos, recta ratio) como concepção naturalista da ética. A
premissa maior “todo ato contra a natureza é mau” já é resultado de uma dedução
prévia a partir de um princípio noético de ordem superior. Este princípio supremo e
evidente é sempre o mesmo: a natureza (phýsis) está intrinsecamente ordenada, quer
dizer, apresenta uma ordem (kósmos), quer dizer, uma espécie de lógos ou razão
inscrita nela.
O homem como portador de razão percebe esta razão ou ordem na natureza e
em si mesmo como portador de razão e transpõe esta “ordem natural” para a sua vida,
seu comportamento. Passamos, então, do ser ao deve como dimensões
correspondentes. O homem deve atuar segundo a lógica inscrita na natureza.
Aristóteles respalda este raciocínio com o seguinte texto da Ética a Nicômaco:
130
Si la función propia del hombre es una actividad del alma según la razón o no
desprovista de razón, y por otra parte decimos que esta función es específicamente
propia del hombre y del hombre bueno, como el tocar la cítara es propio de un
citarista y de un buen citarista, y así en todas las cosas, añadiéndose a la obra la
excelencia de la virtud (pues es propio del citarista tocar la cítara e del buen
citarista tocarla bien), entonces podemos afirmar que la función del hombre es una
cierta vida, consistente en la actividad del alma según la razón, y la del hombre
bueno esto mismo realizado bien y primorosamente...; y si esto es así, el bien del
hombre es la actividad del alma conforme a la virtud, y si las virtudes son varias,
conforme a la mejor y más perfecta, y además durante toda la vida. Porque si una
golondrina no hace verano, así tampoco hace venturoso y feliz un solo día o un
poco tiempo.
145
Para se poder provar os princípios “todo ato contra a natureza é mau” e “toda a
mentira é má” é necessário lançar mão de uma ontologia como condição de possibilidade
de um pensamento gico expresso na premissa maior e, por extensão, no silogismo. O
problema está em fundamentar aprioristicamente a premissa maior. Sem este fundamento
todo o silogismo cai por terra. A ética naturalista, como vimos anteriormente, passa do ser
ao deve como legítima derivação. Isso deu o nome de ontológico ao método.
O saber especulativo, a epistéme, se caracteriza por explicitar o ímplicito nos
princípios do noûs.
146
Se a premissa maior aplica o seu conteúdo a uns sujeitos
concretos, sejam eles universais ou particulares, e estes só explicitam o que está implícito
na premissa maior, logo a ciência especulativa não admite exceções.
A ética é uma ciência especulativa porque admite que os primeiros princípios da
moral procedem do noûs e as conseqüências implícitas neles serão explicitadas mediante
o procedimento silogístico. Para os gregos, os princípios “todo ato contra a natureza é
mau” e “toda a mentira é má” inclusive a piedosa têm o mesmo grau de certeza do
145
ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco I, 7, 1098a 7-20.
146
GRACIA, Diego. Fundamentos... op.cit. (nota 138), p. 403.
131
princípio “todos os homens são mortais”. Existe uma ética especulativa que tem o mesmo
raciocínio dedutivo da ciência especulativa onde as exceções aos princípios são
inexistentes e injustificáveis. No entanto, como a ética não é somente uma ciência
especulativa mas também tem um âmbito prático, o método da ética tem ainda uma
segunda parte:
3.1.1.2. Momento prático: a ética como recta ratio agibilium
Ainda que exista uma ética especulativa que faça juízos apodíticos e
universais, os problemas éticos se apresentam sempre de forma particular e prática,
quer dizer, sobre o que pode ser feito numa situação particular e poderia ser de outra
maneira (a ação poderá ser mais ética ou menos ética; cabe encontrar o ponto ótimo
da ética). A ética prática precisa considerar as circunstâncias concretas.
Nos silogismos apresentados anteriormente, aplicávamos o uso especulativo
da razão. Agora aplicaremos o uso prático da razão. Aristóteles o denomina de
prudência (phrónesis), a recta ratio agibilium ou reta razão das coisas que podem
fazer-se. É importante termos claro os seguintes pontos:
1. A prudência
147
é a virtude intelectual que nos capacita a retirar conclusões
práticas de fatos particulares, ou circunstâncias, a partir de princípios gerais.
2. Logo, não existem juízos prudenciais sem a consideração da primeira parte do
método ou a referente à “substância do raciocínio moral”, quer dizer,
desconsiderando-se a ciência universal dos princípios éticos.
3. A prudência ou “reta razão das coisas que podem fazer-se” deve sopesar ou
ponderar as circuntâncias ou “os acidentes do raciocínio moral” de cada caso
concreto para então decidir.
4. Alcançará isto mediante um procedimento chamado por Aristóteles de
deliberação
148
(boúleusis).
147
Idem, ibidem, p. 404.
148
Ver a citação do texto aristotélico sobre a deliberação no texto do capítulo 2 referido na nota 87.
132
5. A deliberação atua sobre os meios e não sobre os fins, sobre a adequação
dos meios aos fins e sobre o que é meio e o que é fim. Ajuda para isso
considerar o princípio do mal menor, o princípio do duplo efeito ou o princípio
do voluntário indireto. O meios devem ser bons ou preponderantes sobre os
maus. O fim não justifica os meios.
6. A deliberação é o raciocínio prévio à tomada de decisões práticas para
conhecermos o que pode ou deve fazer-se.
7. A deliberação é um processo técnico para a solução de conflitos de valores
que segue o silogismo prático proposto por Aristóteles. Não é relativismo
porque o processo termina como decisão racional. A deliberação moral se
aprende; não se nasce sabendo. Sofremos angústias se não deliberamos. A
deliberação não é neutra em questões de valor, mas tampouco é
doutrinadora. O objetivo da deliberação é que todas sejam prudentes e não
que haja consenso.
8. Esta segunda parte do método ontológico ou principialista pretende resolver a
questão das exceções não admitidas nem consideradas na primeira parte do
método.
Aristóteles complementa sua doutrina sobre a deliberação com a técnica do
silogismo de ordem prática
149
. Eles ocupam-se dos meios, não dos fins. Eles
começam no ponto em que o silogismo moral de ordem especulativa parou. Este
ponto é sempre universal. O silogismo de ordem prática retirará dele conclusões
particulares e práticas. Um exemplo de premissa maior com a técnica do silogismo
de ordem prática:
Posto que estamos obrigados a fazer o bem e evitar o mal,
Outro exemplo:
Posto que a vida é um bem natural que deve ser protegido,
Outro exemplo:
149
ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco VI, 12, 1144a 31.
133
Posto que devemos respeitar a vontade da pessoa acometida por uma
enfermidade,
A premissa menor o tem conteúdo normativo e se refere a uma situação
particular. Eis a premissa menor dos três exemplos anteriores:
E dizer a verdade nesta situação produz mal e não bem,
E nestas circunstâncias é preciso matar para proteger a própria vida,
E nestas circuntâncias implica risco de vida para o enfermo respeitar sua
vontade,
A conclusão será de conteúdo normativo e prático. Eis a conclusão dos três
exemplos:
Logo, nesta situação concreta, não pode dizer-se a verdade.
Logo, nestas circunstâncias, é bom (ou lícito) matar em defesa própria (para
proteger a própria vida).
Logo, nestas circunstâncias, é bom respeitar a vontade do enfermo (após
informá-lo completamente sobre os possíveis riscos de vida)
Nesta última conclusão é necessário considerar que as decisões sobre sua
vida não podem ser feitas sem ele; deve-se informá-lo completamente sobre os
riscos e deve-se melhorar os meios para minimizar os riscos. E pode-se também
desistir de ajudá-lo e enviá-lo para outro serviço, se constatar que a porcentagem de
risco é mais alta do que as possibilidades de beneficiá-lo.
Analisando as premissas maiores dos exemplos anteriores, podemos
constatar: a primeira refere-se ao princípio de beneficência e não-maleficência; a
segunda, ao princípio de justiça e não-maleficência; a terceira, ao princípio de
autonomia.
134
Analisando as premissas menores dos exemplos anteriores, podemos
constatar conflitos de valores: a primeira entre “fazer o bem” e “dizer a verdade”; a
segunda entre a justiça” e a “não-maleficência”. E a terceira entre o “respeito à
autonomia” e a “não-maleficência”.
Pode-se concluir
, portanto, que a moral resultante da dedução silogística tem
dois momentos: o universal, especulativo ou científico que se ocupa da intelecção
dos princípios, e o particular, prático ou prudencial que se detém na análise da
situação concreta e na posterior dedução de conclusões práticas.
O primeiro momento é analítico, quer dizer, não aumenta o nosso
conhecimento, mas possui certeza. O segundo momento, pelo contrário, tem caráter
sintético: os juízos práticos versam sobre fatos e, por isso, acrescentam ao nosso
conhecimento, mas não possuem certeza. A deliberação é necessária devido ao alto
grau de incerteza que oferecem os juízos práticos.
Esta é a tábua de salvação da moral naturalista
150
: se na ordem especulativa
da ética não cabiam exceções aos princípios, na ordem prática da ética elas não
existem como podem ser justificadas. São as conseqüências as que relativizam a
aplicação dos princípios. Portanto, as éticas naturalistas
devem ser consideradas
deontológicas nos princípios
, mas teleológicas nas aplicações práticas. Elas
conjugam os princípios da metafísica com a conflitividade das situações concretas e
buscam soluções através de critérios de caráter conseqüencialista.
O método ontológico ou principialista, portanto, foi considerado durante muito
tempo apenas como sendo formado somente pelo primeiro momento o
especulativo. Lentamente, com a sabedoria humana histórica foi configurando-se o
segundo momento de ordem prática. Diego Gracia nos apresenta o núcleo do
método ontológio ou principialista como correspondendo ao primeiro momento que,
depois, recebeu como complemento o segundo momento o ptico; a chegada
150
GRACIA, Diego. Fundamentos... op. cit. (nota 138), p. 406.
135
do segundo momento foi, como vimos, a tábua de salvação da ética naturalista, e
também o fim da metafísica clásica:
Las ciencias especulativas versan sobre lo universal, las prácticas sobre lo
particular. Lo particular no añade nada sustantivo a lo ya contenido en los
principios sino meras individuaciones de carácter accidental. Por eso en la ética
clásica los conflictos morales no afectan nunca a lo sustantivo de una norma. Los
principios tienen carácter absoluto, razón por la cual no admiten excepciones de
ningún tipo. La recta ratio es siempre el ordo naturae que, por otra parte, la
teología cristiana medieval absolutizó en tanto que producto y efecto de la razón
divina. La ontología, el es, constituye la base de la ética, el debe. Tal es la
esencia del método que hemos denominado ontológico o principialista. Sólo
cuando el realismo exagerado de los principios vaya cediendo el paso al
nominalismo de las realidades individuales, los principios normativos irán
perdiendo fuerza y la moral irá haciéndose más y más conflictiva. Es el fin de la
era metafísica clásica.
151
3.2. PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA
Explicado o principialismo, como um método de avaliação ética de casos clínicos,
podemos colocar-nos diante da pergunta: “Em que contexto histórico surgem os
princípios de bioética?” Os enormes benefícios proporcionados pela investigação
científica no período de pós-guerra implicaram o surgimento de impressionantes
problemas éticos. Com o aferimento da consciência ética
152
determinado pelos
processos de Nuremberg referentes aos experimentos com prisioneiros e crimes de
guerra, surgiu a necessidade de acompanhar sistematicamente com o pensamento
ético as descobertas resultantes da investigação científica.
O termo bitica, como vimos, é criado por Van Rensselaer Potter em 1970.
William Reich, num trabalho de fôlego, elabora em colaboração com inúmeros autores
de renome internacional uma Enciclopédia de Bioética entre 1971 e 1978. No Senado
151
Idem, ibidem, p. 410.
152
Como vimos, a razão é histórica e, por isso, a razão ética evolui.
136
dos EUA, em 1974, é criada uma comissão denominada National Commission for the
Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research com o objetivo de
elaborar critérios éticos para aplicação no campo da pesquisa com seres humanos. O
resultado deste estudo, concluído quatro anos depois, é conhecido como Relatório
Belmont, que apresenta pela primeira vez para uso sistemático na resolução de dilemas
bioéticos os princípios de respeito às pessoas, beneficência e justiça para a solução de
dilemas bioéticos.
Para entendermos completamente a importância dos princípios da bioética,
devemo-nos reportar ao ano de 1977, quando a National Commission for the Protection
of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Sciences elaborou um relatório sobre
investigação com crianças
153
. Os pesquisadores, ao utilizar princípios morais, universais
e abstratos com os quais não terminavam de entrar em acordo, impediram o progreso
dos trabalhos. Após a determinação de abandonar o método dedutivo, quer dizer,
passar dos princípios aos casos concretos, resolveram mudar para a aplicação de um
método indutivo, quer dizer, passar dos casos concretos aos princípios. Houve acordo
quanto aos princípios, os trabalhos fluíram, os princípios acabaram sendo utilizados
como máximas de atuação prudencial, e as questões foram resolvidas rapidamente.
Esta Comissão estabeleceu experimentalmente de forma não intencional uma
mudança de mentalidade. Vejamos como Tom L. Beauchamp se refere à atividade
daquela Comissão que visava a proibir investigações que causassem riscos às
crianças:
Se trataba de saber el nivel de riesgo que podía permitirse justificadamente en la
investigación científica que utilizara niños como sujetos, cuando estos no reciban
directamente de ella beneficio terapéutico alguno. Partiendo de los principios de
riesgo aceptable utilizados por la Comisión en sus propias deliberaciones previas,
sus miembros se inclinaron en principio a aceptar la idea de que lo aquellos
experimentos que conllevan un riesgo mínimo o pequeño podían justificarse en el
caso de los niños (donde “riesgo nimosignifica el nivel de riesgo presente en
153
GRACIA, Diego. Fundamentos... op. cit. (138), p. 442.
137
las pruebas médicas de exploración de los pacientes). Sin embargo, se citaron
ejemplos de la historia de la medicina que mostraban mo determinados
avances muy importantes de tipo diagnóstico, terapéutico y preventivo pudieran
no haber tenido lugar, o al menos se hubieran retrasado, de no haberse
empleado procedimientos que entonces tenían un alto nivel de riesgo. Contra
estos ejemplos se adujeron contraejemplos de investigadores excesivamente
celosos que habían sometido a los niños a riesgos excesivos, y así continuó el
debate por varios meses. Inesperadamente, la mayoría de los miembros
abandonaron su punto de vista original de que la investigación de carácter no
terapéutico que presentara mayor riesgo del mínimo no podía ser justificada; en
su lugar aceptaron el principio de que se puede justificar un nivel mayor de riesgo
en razón de los beneficios producidos a otros niños (como cuando un cierto
número de niños enfermos terminales se someten a un experimento en la
esperanza de que se pueda aprender algo sobre su enfermedad que resulte
aplicable a otros niños). Un vez que cristalizó el consenso sobre esta cuestión
particular, fue fácil y rápido llegar a conclusiones sobre toda la controversia moral
acerca de la utilización de niños como sujetos de investigación (aunque una
pequeña minoría de miembros siguió sin estar de acuerdo).
154
Esta experiência serviu para que a mesma Comissão um ano depois fosse capaz
de publicar o Relatório Belmont sobre a proteção de seres humanos nas investigações
biomédicas. Estes princípios ou critérios muito gerais foram capazes de regular toda a
investigação biomédica posterior. Os princípios da bioética são princípios básicos da
moral civil
155
e não de alguma moral específica ou de algum grupo. Por isso, eles não
trazem consigo o protagonismo de um descobridor ou de um filósofo importante.
A origem deste documento, de uma forma mais ampla, se insere, de forma
ampla, na tradição conseqüencialista e utilitarista anglo-americana e, de forma
específica, em William Frankena
156
que em 1963 propôs a utilização de dois princípios:
154
BEAUCHAMP, Tom L. Philosophical Ethics. Nueva York, McGraw-Hil, 1982, p. 54-55 Apud GRACIA,
Diego. Fundamentos... op. cit. (nota 138), p. 442-443.
155
GRACIA, Diego. Fundamentos... op. cit. (nota 138), p. 444.
156
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza de la bioética. Col. Ética y Vida, v. 1. Santa de
Bogotá: El Búho, 1998, p. 92.
138
beneficência e justiça. Para ele, os princípios são tipos de ação corretos ou obrigatórios,
considerados como deveres prima facie, quer dizer, que obrigam ao seu cumprimento,
exceto se estiverem em conflito com um outro princípio de igual ou maior porte numa
situação particular.
Após o surgimento do Relatório Belmont, o método bioético é concebido como
indutivista-dedutivista
157
, tornando o principialismo capaz de justificar as exceções, quer
dizer, se eventualmente houver conflitos de valores no caso clínico. A consolidação
deste método de análise ética para a resolução de conflitos oriundos da biomedicina
ocorre com a publicação, em 1978, do livro “Principles of Biomedical Ethics dos autores
filósofos Tom Beauchamp do Instituto Kennedy de Ética da Universidade
Georgetown/EEUU e James Childress da Universidade de Virgínia/EEUU. Estes autores
passam a utilizar, então, os quatro princípios de autonomia, não-maleficência,
beneficência e justiça. Mais importante do que a descoberta destes princípios é que a
bioética os utiliza para definir e manejar valores e resolver conflitos
158
. Assim se
expressa Diego Gracia sobre o início da bioética:
Este es el problema de la fundamentación de los juicios de valor: cómo justificar
nuestras opciones de valor; cómo elegir racionalmente entre lo correcto y lo
incorrecto, lo bueno y lo malo. De este modo, el tema de la fundamentación de
nuestras decisiones morales ha pasado a primer plano. La bioética apareció hace
unos veinte años, cuando se puso a punto un particular sistema de manejo de
valores y de resolución de conflictos. Como es bien sabido, fue la llamada teoría
de los cuatro principios, formulada por primera vez por Beauchamp y Childress,
en su libro Principles of Biomedical Ethics, sin la cual es imposible entender la
historia de la bioética. Todas las otras teorías se han construido hasta el a del
hoy en diálogo con ésta, ya a favor, ya en contra suya. Últimamente se han
157
O método bioético principialista assumido por Diego Gracia é indutivista porque toma como ponto de
partida os problemas éticos dos casos clínicos e utiliza os princípios da bioética como axiomas de
atuação prudencial e é dedutivista porque começa confrontando estes problemas com o sistema de
referência moral ou cânon da moralidade e depois, no final, volta a ele para legitimar a decisão tomada.
158
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op. cit. (nota 156), p. 33.
139
hecho varios intentos de revisar el estado de la cuestión y confrontar las distintas
posturas.
159
A bioética começou a partir de princípios éticos criados para resolver conflitos
provenientes da experiência clínica. Partiu-se da experiência para a teoria: formulação
de princípios e posterior fundamentação da bioética. Por isso, ela pode ser definida
como uma disciplina criada para resolver situações particulares ou casos clínicos ou,
mais específicamente, um procedimento de raciocínio ético e de tomada de decisões no
campo da biomedicina. Pretende-se evitar com isso o erro do decisionismo
160
. Eis uma
outra definição de bioética dada por Diego Gracia que convém termos presente:
La bioética es el intento de confrontación de los nuevos hechos de las ciencias
biomédicas con los valores propriamente humanos, con el objetivo de
interfecundar la ciencias con las humanidades y así hacer posible una visión
global y omnicomprensiva de los problemas.
161
Como seres humanos sentimo-nos normalmente inseguros, perplexos e
angustiados diante de situações caóticas ou difíceis. Precisamos dar razão à realidade,
encontrar recursos para superar o sofrimento e ter critérios e procedimentos para
conjugar nossas exigências morais com as situações históricas que nos superam.
O próprio discurso científico sofre um reordenamento para incluir a
interdisciplinaridade deflagrada pela bitica. Existe um questionamento dos saberes e
das práticas específicas no novo sentido da interação, da comunicação, da troca e da
crítica, visando à complementaridade entre eles. O ponto de encontro entre eles se
na horizontalidade representada pela ‘‘clínica” ou “caso clínico”, que trata
especificamente do singular, do particular exigindo sua articulação.
159
Idem, ibidem, p. 90. (grifo do autor)
160
Sobre o decisionismo ver nota 42.
161
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op. cit. (nota 156), p. 32.
140
A fragmentação dos saberes origina uma ausência no âmbito da práxis que,
diante de um caso clínico, busca sua superação pelo diálogo interdisciplinar entre os
profissionais determinando a mudança de referenciais teórico-práticos.
Os principios éticos básicos são referências ou critérios gerais que servem de
base para a justificação de decisões correspondentes às ões humanas.
162
A bioética
utiliza quatro pincípios assim denominados: princípio de autonomia, de beneficência, de
não-maleficência e de justiça. Como o que interessa à bioética clínica é encontrar um
curso de ação, quer dizer, munir-se de um procedimento de análise de casos clínicos,
nos detivemos mais nas etapas deste processo quando apresentamos no primeiro
capítulo a fundamentação da ética. Por isso, não é o importante definir demorada e
pormenorizadamente os princípios da bioética.
163
3.2.1. Princípio de autonomia
A autonomia é um termo que tem como raiz etimológica a expressão grega
autos que significa "mesmo" e nomos que se traduz por "lei", "regra", "governo"
indicando, portanto, a noção de autogoverno. O princípio de autonomia é, portanto, o
direito moral ao autogoverno.
A partir da teoria dos níveis, tomada de Toulmin e defendida por Diego Gracia,
que faz da ética uma atividade quase-disciplinar conforme explicado no primeiro
capítulo, podemos distinguir dois sentidos para a autonomia
164
:
1. A autonomia pode ser entendida como capacidade autolegisladora. Como
afirmou Kant, o homem é autônomo porque a si mesmo sua própria lei
moral. Este é um princípio que todos podemos auto-afirmar como absoluto
162
COMISIÓN NACIONAL PARA LA PROTECCIÓN DE LOS SUJETOS HUMANOS DE
INVESTIGACIÓN BIOMÉDICA Y DEL COMPORTAMIENTO DE LOS ESTADOS UNIDOS, Informe
Belmont – principios e guias éticos para la protección de los sujetos humanos de investigación,
18/04/1979, In
www.ub.es/fildt/belmont.htm, disponível em 02 de junho de 2005.
163
GRACIA, Diego. Introducción... op. cit. (nota 139), p. 107.
164
Idem, ibidem, p. 121 e 129.
141
porque se constitui como princípio universal e invariante da moralidade. É o
ponto de convergência de todos os homens, uma vez que todos coincidem na
peculiaridade de ser autolegisladores. Corresponde a uma ética de mínimos.
Encontra-se no nível disciplinar da ética e tem uma base formal, cuja
expressão conhecemos: “todos os homens somos pessoas, não coisas, e
merecemos igual consideração e respeito”.
2. Autonomia, entendida no nível não-disciplinar da ética, corresponde à auto-
realização do homem individual, quer dizer, na estrita particularidade das
decisões pessoais na construção de um projeto próprio de vida ou ideal de
felicidade e perfeição. As decisões, neste nível, podem ser históricas e
habituais e, por isso, pessoais e intransferíveis. Corresponde a uma ética de
máximos que todo homem se propõe em sua vida e exige menos sua
observância do que o nível disciplinar da ética. O princípio de autonomia na
bioética assume mais este segundo sentido, como capacidade de auto-
realização humana, do que o primeiro, como lei universal da moralidade.
Eis como J. Stuart Mill (1806-1873) entende os limites da liberdade de ação
humana num contexto social e pessoal particular:
El único fin por el cual es justificable que la humanidad, individual y
colectivamente, se entrometa en la libertad de acción de uno cualquiera de sus
miembros, es la propia protección. Que la única finalidad por la cual el poder
puede, con pleno derecho, ser ejercido sobre un miembro de una comunidad
civilizada contra su voluntad, es evitar que perjudique a los demás. Su propio
bien, físico o moral, no es justificación suficiente. Nadie puede ser obligado
justificadamente a realizar o no realizar determinados actos porque eso fuera
mejor para él, porque le haría feliz, porque, en opinión de los demás, hacerlo
sería más acertado o más justo. Estas son buenas razones para discutir,
razonar y persuadirle, pero no para obligarle o causarle algún perjuicio si obra
de manera diferente. Para justificar esto sería preciso pensar que la conducta
de la que se trata de disuadirle producía un perjuicio a algún otro. La única
142
parte de la conducta de cada uno por la que es responsable ante la sociedad es
la que se refiere a los demás. En la parte que le concierne meramente a él, su
independencia es, de derecho absoluta. Sobre mismo, sobre su propio
cuerpo y espíritu, el individuo es soberano.
165
O princípio de autonomia, assumindo este segundo sentido, acima exposto,
mais o princípio de beneficência compõem o nível não-disciplinar da ética. Estes dois
princípios estão intimamente relacionados porque, enquanto autonomia corresponde
ao direito de toda pessoa de realizar seu próprio projeto de vida ou ideal de perfeição
e felicidade, a beneficência pode ocorrer dentro dessas coordenadas ditadas pela
autonomia. Ninguém pode dizer para uma pessoa o que é beneficente para ela. Isso
seria heteronomia. É beneficente para ela somente o que ela definir que seja
beneficente para si mesma em correspondência com o seu ideal de perfeição e
felicidade.
Na origem da bioética encontra-se o Relatório Belmont. O princípio de
autonomia é denominado princípio de respeito às pessoas. Respeitar uma pessoa
significa tratá-la como um agente autônomo, quer dizer, que seja reconhecida e
tratada como um agente livre, com plena capacidade de julgamento, decisão e ação
independente. O princípio de respeito às pessoas, segundo o Relatório Belmont
“inclui ao menos duas convicções éticas: primeira, que todos os indivíduos deverão
ser tratados como agentes autônomos, e segunda, que todas as pessoas com a
autonomia diminuída têm direito à proteção”. Sobre a definição de pessoa autônoma
o documento diz: “é um indivíduo que tem a capacidade de deliberar sobre seus fins
pessoais e de atuar sob a direção desta deliberação. Respeitar a autonomia significa
dar valor às considerações e opções das pessoas autônomas e abster-se, ao mesmo
tempo, de pôr obstáculos às suas ações exceto que estas sejam claramente
prejudiciais para os demais.”
166
Duas aplicações são decorrentes do princípio de
respeito às pessoas do Relatório Belmont:
165
MILL, J. S. Sobre la libertad. Madrid: Alianza Editorial, 1993, p. 65-66 apud INSTITUT BORJA DE
BIOÉTICA. Ensayos de bioética. Barcelona: Editorial Mapfre, 2000, p. 11.
166
THE NATIONAL COMMISSION FOR THE PROTECTION OF HUMAN SUBJECTS OF
143
Consentimento informado;
Proteção dos sujeitos incompetentes ou com autonomia diminuída.
Uma pessoa autônoma é, portanto, um indivíduo com capacidade de deliberar
sobre seus fins pessoais e de atuar de forma conseqüente. Respeitar a autonomia
de uma pessoa significa considerar seus valores, suas posições e opções, não
impedir sua liberdade de ão, exceto quando traz prejuízo a outras pessoas, e dar
todas as informações necessárias para que ela elabore um juízo próprio.
A expressão na prática médica do princípio de autonomia do enfermo é
conhecida como consentimento informado. Ele consiste no pleno conhecimento por
parte do enfermo mediante informações dadas pelo médico do efeito esperado pela
ação que este realizará nele com a conseqüente liberdade de tomar uma decisão daí
proveniente. O enfermo, então, dará o seu consentimento após obter do médico
todas as informações sobre as possibilidades, riscos e alternativas de tratamento.
O poder de autodeterminação de uma pessoa pode estar diminuído ou
ausente, quer dizer, ela pode ter a competência de decidir por si mesma sobre
assuntos referentes a ela parcial ou totalmente afetada. Isso é comum em situações
de enfermidade, deficiência mental, encarceramento ou na infância. Nesses casos,
ela tem o direito de receber proteção, segundo a probabilidade do risco de sofrer
dano, até a aquisição de sua plena autonomia. A família ou alguém de direito pode
tomar decisões a seu respeito, nestas situações, em seu lugar. Ou deve ser
reavaliado periodicamente uma vez que esta situação de perda de autonomia pode
alterar-se.
No caso da pesquisa com seres humanos, essas pessoas devem participar
dela de forma voluntária e devidamente informadas sobre o processo, os riscos,
BIOMEDICAL AND BEHAVIORAL RESEARCH. The Belmont Report - Ethical Principles and
Guidelines for the Protection of Human Subjects of Research In:
http://ohsr.od.nih.gov/guidelines/belmont.html?link_id=14221#gob1 disponível em 20/06/2005 e
www.ub.es/fildt/belmont.htm dispovel em 20/06/2005.
144
benefícios e objetivos da mesma. A utilização de prisioneiros para esse tipo de
pesquisa apresenta-se na forma de um dilema: de um lado, não se pode recusar que
eles se apresentem voluntariamente para a pesquisa e, de outro, sua adesão pode
não ter sido completamente voluntária, mas influenciada por outras pessoas pela
maior facilidade de submetê-los e dirigi-los. O respeito à autonomia do prisioneiro
exige que ele se sinta livre para participar da pesquisa e suficientemente protegido
para não ser constrangido ou obrigado a participar dela.
Antecedentes históricos lamentáveis respaldam a proteção à autonomia das
pessoas na investigação científica, mostrando que a defesa da mesma é uma
questão de justiça.
167
Na Medicina do final do século XIX e início do século XX, os
enfermos pobres eram submetidos à insegurança de ser tomados como objetos de
experimentação de novos fármacos e técnicas cirúrgicas, cabendo às classes sociais
mais avantajadas receber os tratamentos somente num estágio já consagrado e
seguro. Nos campos de concentração nazista, foram tomados prisioneiros como
sujeitos de pesquisa. Em Tuskegee, Estados Unidos, foi retirado o tratamento dos
enfermos negros com sífilis, quando este era conhecido como eficaz, com o intuito
de observar todo o curso progressivo da enfermidade em seus sinais e sintomas.
Analisado historicamente, percebe-se que o princípio de autonomia não está
contemplado no Juramento de Hipócrates
168
. Ele consagra a heteronomia, conhecida
como paternalismo médico, como condição indispensável do ato médico. A
introdução do princípio de autonomia do enfermo na prática médica revolucionou de
forma conflitiva a relação médico-paciente e, por extensão, o próprio exercício
profissional do médico.
O princípio de autonomia é considerado a base do direito moral e legal dos
pacientes de assumir suas próprias decisões independente das intenções e atitudes
beneficentes do médico. O princípio de autonomia configura um direito do paciente
167
BLÁZQUEZ; Niceto. Bioética fundamental. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1996, p. 128-
131, 494-497.
168
GRACIA, Diego. Fundamentos… op. cit. (nota 138), p. 45-46.
145
que limita a ação do médico. Isso evitou atitudes arbitrárias por parte do médico
como hospitalizações não voluntárias e cirurgias não permitidas.
Se os valores
morais do paciente e os valores da Medicina entrarem em conflito, a atitude
responsável do médico deve ser de respeito e ajuda para que o paciente seja capaz
de autodeterminar-se ou tomar uma decisão sobre a própria saúde.
O paciente pode
escolher propostas ou alternativas terapêuticas apresentadas pelo médico, no
entanto não pode obrigar que ele execute determinado procedimento.
3.2.2. Princípio de beneficência
A saúde pode ser considerada uma categoria de valor moral. Se o ato bom é
aquele que é movido pela intenção de favorecer o que naturalmente é conveniente
ao homem, provavelmente não haverá maior benefício do que desfrutar de uma boa
saúde. Para constatarmos o bem proporcionado pela consulta médica, mais
apropriadamente denominada ato médico, vejamos como o Conselho Federal de
Medicina o define:
Ato médico é todo procedimento técnico-profissional praticado por médico
habilitado e dirigido para: a prevenção primária, definida como a promoção da
saúde e a prevenção da ocorrência de enfermidades ou profilaxia; a
prevenção secundária, definida como a prevenção da evolução das
enfermidades ou execução de procedimentos diagnósticos e terapêuticos; a
prevenção terciária, definida como a prevenção da invalidez ou reabilitação
dos enfermos.
169
O Juramento hipocrático é o documento que deu origem e configuração à
ética médica ocidental. Este texto, provavelmente escrito por médicos pitagóricos
170
,
continua sendo referência deontológica do agir médico visando a sua moralização:
169
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. A Medicina e os Atos Médicos em defesa do direito da
população à assistência médica digna e de qualidade. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2003,
p.13.
170
INSTITUT BORJA DE BIOÉTICA. Ensayos... op. cit. (nota 165), p. 15.
146
“Utilizarei o regime dietético para o bem dos enfermos de acordo com a minha
capacidade e juízo; afastarei dele o mal e a injustiça.”
O médico tem o dever ético-profissional de fazer o bem ao paciente e de
evitar causar-lhe dano. No entanto, esta beneficência exercida pelo médico é
entendida de forma paternalista, quer dizer, heterônoma ou não-autônoma por parte
do enfermo. O médico sempre parte do pressuposto de que sabe qual é o bem do
paciente, mas não considera a sua vontade. O enfermo é considerado um menor de
idade, um incapacitado físico com perda de sua autonomia moral.
171
Segundo o
Relatório Belmont, a beneficência é entendida da seguinte forma:
El término “beneficencia se entiende a menudo como aquellos actos de
bondad y de caridad que van más allá de la obligación estricta. En este
documento, beneficencia se entiende en sentido más radical, como una
obligación. Dos reglas generales han sido formuladas como expresiones
complementarias de los actos de beneficencia entendidos en este sentido: 1)
no hacer el mal; 2) maximizar los beneficios posibles y disminuir los daños
posibles.
172
Diego Gracia diferencia dois tipos de beneficência
173
:
Beneficência paternalista: o médico nega ao enfermo seu caráter de pessoa
adulta e sua capacidade de decisão e impõe para ele sua visão particular de
bem. Configura-se uma relação de domínio.
Beneficência não-paternalista: o médico faz o bem ou ajuda o enfermo no que
ele necessita somente quando este aceita voluntariamente ou pede. A
responsabilidade apresenta-se de forma bipolar. Corresponde ao
consentimento informado.
171
GRACIA, Diego. Fundamentos... op. cit. (nota 138), p. 26 e 42-43.
172
THE NATIONAL COMMISSION FOR THE PROTECTION OF HUMAN SUBJECTS OF
BIOMEDICAL AND BEHAVIORAL RESEARCH. The Belmont Report… op. cit. (nota 166).
173
GRACIA, Diego. Fundamentos... op. cit. (nota 138), p. 99-104.
147
O filósofo inglês David Ross diferencia os dois princípios de beneficência e
não-maleficência, enquanto o eticista William Frankena os considera de forma
conjunta.
Pode haver conflito entre a beneficência exercida pelo médico e a autonomia
do enfermo. Por exemplo: consideremos o caso de uma mulher em estágio de
gravidez avançado portadora de grave hipertensão que necessite interrupção
imediata da gestação, através de uma cesárea, para preservar sua vida, mas que
não aceita a cirurgia porque deseja proteger o seu bebê evitando que ele nasça
prematuro
174
. A preservação de sua vida mediante à cirurgia cesariana, segundo
plano do médico, corresponde ao princípio de beneficência e a não-aceitação da
paciente ao princípio de autonomia. Diante de tal situação conflitiva, o médico pode
assumir uma atitude paternalista, quer dizer, determinar que a cesariana seja o
melhor bem possível para a situão que ela vive e, sem consultá-la, realizar a
cirurgia - o que seria eticamente incorreto -, ou, respeitando a vontade da gestante,
propor alternativas de tratamento, informando-a dos riscos e benefícios de cada uma
delas.
3.2.3. Princípio de Não-maleficência
O princípio de não-maleficência corresponde ao nível disciplinar da ética, aos
mínimos morais denominados por Adorno e que nos obrigam a todos o seu estrito
cumprimento. É a aplicação da lei de que todos somos homens e merecemos igual
consideração e respeito na ordem da vida biológica.
Durante muitos séculos, acreditou-se que o médico conhecia objetivamente o
que era bom ou mau para o enfermo e decidia legitimamente conforme critérios
próprios. O médico fazia o bem e evitava o mal mesmo contra a vontade do paciente.
Beneficência e não-maleficência eram faces de uma mesma moeda na perspectiva
174
FAÚNDES, Aníbal, BARZELATTO, José. O Drama do Aborto – em busca de um consenso.
Campinas: Komedi, 2004, p. 168.
148
do médico. Tanto uma como outra eram pensadas de forma conseqüencialista.
175
No mundo moderno, e em particular na atualidade, o acento já não está na
beneficência, mas na autonomia. O pensamento liberal, com o surgimento dos
direitos civis e políticos, ofereceu uma interpretação autonomista ao princípio de
beneficência. Se todo o ser humano é portador de direitos primários e invioláveis,
entre os quais a autonomia e a autodeterminação, também o enfermo passa a
reinvindicar voz na relação médico-paciente e dizer o que é mau para ele. A
beneficência e não-maleficência passam a identificar-se na perspectiva do paciente.
Passou-se do beneficentismo médico da tradição anterior ao autonomismo do
paciente.
Diego Gracia afirma que a beneficência e não-maleficência não podem coincidir
como verso e reverso de uma mesma coisa. Se a beneficência não pode ser, por
definição, resultante de uma coação é lógico que ela é sempre relativa à autonomia
do enfermo, enquanto expressão do sistema de valores de que é possuidor, e não à
não-maleficência. Ambas se referem ao projeto de perfeição e felicidade que cada
pessoa escolheu para si mesma.
Diferentemente, a não-maleficência é um princípio absoluto e anterior ao
princípio de autonomia. o podemos fazer o bem para uma pessoa contra a sua
vontade, mas estamos obrigados a o lhe causar dano mesmo que ela nos peça.
Diante da pergunta “O que é o mal?”, Diego Gracia aponta como demarcação do mal
outro princípio absoluto – a justiça. Eis como ele se refere sobre a justiça:
La justicia obliga a poner entre paréntesis los intereses particulares de todos los
participantes y actuar con equidad, es decir, tratando a todos los seres
humanos con igual consideración y respeto, sin establecer otras diferencias
entre ellos que las que redunden en benéfico de todos en especial de los
175
GRACIA, Diego. Primum non nocere o princípio de não maleficencia como fundamento de la
ética médica. Discurso de ingreso del autor en la Real Academia Nacional de Medicina. Madrid:
Anzos, 1990, p. 90.
149
menos favorecidos.
176
Não cumprir o critério de justiça assim definido é fazer o mal a outra pessoa.
3.2.4. Princípio de Justiça
O princípio de justiça juntamente com o princípio de não-maleficência, portanto,
correspondem ao nível disciplinar da ética, quer dizer, aos mínimos morais
denominados por Adorno que exigem ser observados, nem que seja sob coerção . É
a aplicação da lei de que todos somos homens e merecemos igual consideração e
respeito na ordem da vida social. Quando se discriminam as pessoas, tanto social
como biologicamente, está se transgredindo a universalização que exige o nível
disciplinar da ética. Comete-se, portanto, uma injustiça.
O princípio ético de justiça é um conceito social baseado na eqüidade e que
garante uma distribuição correta dos custos e benefícios, sem distinção de gênero,
raça, idade e status socioeconômico.
177
A justiça é um direito de todos, e a
sociedade, mediante a organização do Estado, deve garanti-la. Eqüidade não é
sinônimo de igualdade. Eqüidade distributiva significa distribuir os recursos
coletivamente disponíveis de forma que contemple o direito que cada pessoa tem a
um mínimo de bens e serviços. Igualdade tem uma concepção matemática e afirma
a distribuição dos recursos em partes iguais a cada pessoa. Se utilizamos a
categoria eqüidade e não a de igualdade, é porque não somos completamente
iguais, surgindo na construção histórica da vida pessoal variáveis ou diferenças
justificadas que devem ser consideradas como a experiência, a idade, a
necessidade, a competência, o mérito e a posição social para uma distribuição
equânime. Estas formulações clássicas servem de parâmetros para uma justa
distribuição de obrigações e recursos:
a cada pessoa uma parte igual
176
Idem, ibidem, p. 91.
177
FAÚNDES, Aníbal, BARZELATTO, José. O Drama do Aborto... op. cit. (nota 174), p. 168.
150
a cada pessoa segundo sua necessidade individual
a cada pessoa segundo seu próprio esforço
a cada pessoa segundo sua contribuição na sociedade
a cada pessoa segundo seu mérito
A idéia formal de justiça é apresentada por Rudolf Stammler (1856-1938),
neokantiano, crítico do positivismo jurídico, que afirma ser o Direito somente o
conjunto de normas ou ordenamento jurídico posto por um legislador humano. Ele
mostra que esta corrente de pensamento é incapaz de definir o Direito e a Justiça
não podendo servir de base para legisladores e juristas. Rudolf Stammler define a
justiça da seguinte forma:
Justiça na sociedade quando são harmônicos entre si todos os
quereres ou condutas que nela ocorrem, ou seja, quando nenhum
indivíduo predomina sobre outro, e quando todos se respeitam como
sendo, cada um, um fim em si mesmo.
178
3.2.5. Avaliação dos princípios de bioética
Segundo Diego Gracia, o nível disciplinar da ética, quer dizer, os princípios de
não-maleficência e justiça, corresponde ao que classicamente se denomina deveres
de obrigação perfeita
179
. O nível não-disciplinar da ética, ou os princípios de
beneficência e autonomia, no entanto, corresponderia aos deveres de obrigação
imperfeita. Por exemplo: cumprir a justiça é um dever de obrigação perfeita,
podendo ser imposto de forma heterônoma pelo Estado. Um ato de caridade é um
dever de obrigação imperfeita, não podendo ser imposto por ninguém senão pela
própria pessoa que o executa, decidindo ela mesma quando, onde e para quem, etc.
No caso de conflito entre estes dois níveis da ética ou deveres correspondentes, os
de obrigão perfeita têm prioridade sobre os de obrigação imperfeita. Por exemplo:
178
GALVES, Carlos N. Manual de filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 174.
179
GRACIA, Diego. Introducción... op. cit. (nota 139), p. 121-122.
151
uma chamada para o exercício militar obrigatório para o caso de uma guerra,
estabelece um conflito entre o direito de autonomia do indivíduo, que prefere não ir
porque esse tipo de atividade não corresponde ao seu ideal de perfeição e
felicidade, e o dever de justiça, que obriga a defender a sociedade em caso de
perigo. O dever de justiça, por ser um dever de obrigação perfeita, ou pertencer ao
nível disciplinar da ética, adquire prioridade sobre o direito de autonomia do
indivíduo, obrigando-o a participar como soldado na guerra.
A intuição dos princípios da bioética é uma iniciativa muito interessante, útil e
abrangente para manejar os valores e alcançar o difícil objetivo de apresentar
resoluções para os mais variados conflitos provenientes da biomedicina. Para mostrar
que os princípios de bitica são realmente versáteis para os manejo de valores
humanos tomemos, como exemplo, seu emprego em outro campo de ação tão difícil
quanto aquele: a formulação dos direitos humanos
180
. Eles representam um grande
progreso na história da humanidade porque significam a promoção dos indivíduos de
uma sociedade. Sua efetivação não ocorre de forma automática. Cabe à política
encontrar os meios para traduzi-los na vida pública nestes tempos em que o mercado
com sua predominância, hiperatividade e concorrência configuram as condutas e as
relações. Podemos, portanto, fazer um exercício e comprovar como cada direito
humano formulado na Declaração Universal dos Direitos Humanos
181
se refere de certa
forma a um ou mais dos princípios da bioética:
ARTIGO 1 Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade. São dotados de
razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de
fraternidade. (Autonomia, Justiça, Não-maleficência e Beneficência)
ARTIGO II Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades
estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de raça, cor, sexo, língua ou religião.
(Autonomia, Justiça e Não-maleficência)
180
Diego Gracia compara a versatilidade dos principios da bioética com a diversidade imensa de arranjos
dos quatro aminoácidos (adenina, guanina, timina e citosina) que compõem todas as proteínas de toda a
matéria orgânica que existe na face da terra. Por extensão, ele respalda que estes quatro princípios
servem como linguagem para codificar todos os direitos humanos, que também são valores. GRACIA,
Diego. Fundamentación y enseñanza... op. cit. (nota 156), p. 33.
181
PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. P. Os problemas atuais de Bioética. São Paulo: Loyola, 1994
2
,
309-311.
152
ARTIGO III Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
(Autonomia e Não-maleficência)
ARTIGO IV — Ninguém será mantido em escravidão ou servidão. (Não-maleficência)
ARTIGO V Ninguém será submetido a tortura ou castigo cruel, desumano ou
degradante. (Não-maleficência)
ARTIGO VI Todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como
pessoa humana, perante a lei. (Autonomia e Justiça)
ARTIGO VII Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a
igual proteção da lei. (Justiça e Não-maleficência)
ARTIGO VIII Todo homem tem direito a receber, dos tribunais nacionais
competentes, remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais
reconhecidos pela constituição ou pela lei. (Justiça)
ARTIGO IX Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. (Não-
maleficência)
ARTIGO X — Todo homem tem direito a uma justa e pública audiência por parte de um
tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou do
fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. (Justiça)
ARTIGO XI Todo homem acusado de ato delituoso tem o direito de ser presumido
inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei. (Não-
maleficência e Justiça)
ARTIGO XII — Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua
família, no seu lar ou na correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação.
(Autonomia e Não-maleficência)
ARTIGO XIII Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência, dentro
das fronteiras de cada Estado. (Autonomia)
ARTIGO XIV Todo homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar gozar
asilo em outros países. (Não maleficência e Justiça)
ARTIGO XV — Todo homem tem direito a uma nacionalidade. (Justiça)
ARTIGO XVI Os homens e as mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de
raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma
família. (Não-maleficência e autonomia)
153
ARTIGO XVII Todo homem tem direito à propriedade, ou em sociedade com
outros. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. (Autonomia, Justiça e
Não-maleficência)
ARTIGO XVIII Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e
religião. (Autonomia)
ARTIGO XIX Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão.
(Autonomia)
ARTIGO XX Todo homem tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas.
(Autonomia)
ARTIGO XXI Todo homem tem direito de tomar parte no governo do próprio país e
de ter acesso ao livre desenvolvimento de sua personalidade. (Justiça, Beneficência e
Autonomia)
ARTIGO XXII Todo homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança
social e à realização, pelo esforço nacional, pela coperação internacional e de acordo
com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e cul-
turais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.
(Justiça e Autonomia)
ARTIGO XXIII Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha do emprego, às
condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. (Justiça,
Autonomia e Não-maleficência)
ARTIGO XXIV — Todo homem tem direito a repouso e lazer, inclusive à limitação
razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas. (Justiça)
ARTIGO XXV Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si
e a sua família saúde e bem-estar. (Justiça, Não-maleficência e Beneficência)
ARTIGO XXVI Todo homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo
menos nos graus elementares e fundamentais. (Justiça)
154
ARTIGO XXVII Todo homem tem direito a participar livremente da vida cultural da
comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus
benefícios. (Autonomia e Beneficência)
ARTIGO XXVIII Todo homem tem direito a uma ordem social e internacional em que
os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente
realizados. (Justiça e Autonomia)
ARTIGO XXIX — Todo homem tem deveres para com a comunidade, na qual é
possível o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade. No exercício de seus
direitos e liberdades, todo homem está sujeito apenas às limitações determinadas pela
lei, exclusivarnente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos
direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem
pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. (Justiça, Autonomia, Não-
maleficência e Beneficência)
ARTIGO XXX Nenhuma disposição da presente Declarão pode ser interpretada
como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa do direito de exercer
qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer direitos
e liberdades aqui estabelecidos. (Não-maleficência, Justiça e Autonomia)
3.2.5.1. Os quatro princípios prima facie são do mesmo nível?
Em 1930, David Ross publicou o livro The Right and the Good
182
em que concebe
a vida moral fundada em certos princípios básicos, auto-evidentes (por isso prima facie)
e obrigatórios tais como cumprir as promessas, evitar os danos, reparar os danos, ser
justo. Para ele estes três principios da bioética são prima facie: justiça, não-maleficência
e beneficência. Ao afirmar que o princípio de não maleficência tem prioridade sobre o
182
ROSS, W. David. The Right and the Good, Oxford, Clarendon Press, 1930.
155
princípio de beneficência estabeleceu diferença de nível entre alguns deles.
183
Em sua
opinião os princípios de não-maleficência e justiça expressam deveres de obrigação
perfeita, que ele não entende como Kant serem absolutos e carentes de exceções. Os
deveres de obrigação perfeita são mais vinculantes do que os de obrigação imperfeita
como, por exemplo, o princípio de beneficência.
Beauchamp e Childress concordam com os princípios prima facie de Ross, mas
não aceitam diferença de nível entre eles:
Como Ross, nós construímos os princípios como obrigatórios prima facie. Algumas
teorias reconhecem as regras, mas as tratam como regras empíricas sacrificáveis
que resumem a experiência passada, expressando modos melhores ou piores de
lidar com problemas recorrentes. Outras teorias contêm princípios absolutos.
Outras, ainda, atribuem uma ordenação hierárquica (ou léxica) às normas morais.
Nós rejeitamos essas três interpretações como inadequadas para capturar a
natureza das normas morais e do raciocínio moral. (...) (Diferentemente de Ross,
não atribuímos nenhuma forma de primazia ou de precedência hierárquica aos
nossos princípios).
184
David Ross é reconhecido, no século XX, como importante editor, tradutor e
comentador de Aristóteles. Vejamos como Aristóteles se debate diante do maior
problema da ética, que é tratar de ações concretas percebendo a insuficiência na
aplicação de critérios universais e genéricos
185
. Ele inclusive insuficiência na busca
do termo médio para resolver o problema. Ele tenta encontrar um critério para decidir o
que é bom e o que é mau na ordem das coisas concretas:
No es fácil determinar cómo, con quiénes, por qué motivos y por cuánto tiempo
debemos irritarnos, ni hasta dónde lo hacemos con razón o pecamos. El que se
desvía poco no es censurado, ya sea hacia el exceso o hacia el defecto, y en
183
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op. cit. (nota 156), p. 91.
184
BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de Ética Biomédica. (trad. Luciana Pudenzi).
São Paulo: Loyola, 2002, p. 128.
185
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op.cit. (nota 156), p. 93.
156
ocasiones alabamos a los que se quedan cortos y los llamamos benignos, y viriles
a los que irritan juzgándolos capaces de mandar. Cuándo e cómo tiene que
desviarse uno para ser censurable, no es fácil de poner en palabras: la decisión
depende, en efecto, de las circunstancias particulares y de la sensibilidad
(aísthesis).
186
Lembremos que a sensibilidade ou perceão sensível (aísthesis) de uma coisa é
algo prévio ao lógos (e, portanto, à deliberação) e fundamento seu. Esta intuição é
sempre verdadeira, indubitável, conforme víamos ao abordar a fenomenologia na
“fundamentação ontológica da ética” no capítulo primeiro. Estamos diante do
intucionismo aristotélico. Aristóteles pensa existir uma espécie de sentido moral que nos
diz o que devemos ou não devemos fazer. A deliberação é importante, mas o sentido
moral é mais determinante.
David Ross entende que esta intuição não só percebe como hierarquiza os
deveres prima facie diante das circunstâncias concretas estabelecendo, também
intuitivamente, um novo dever atual (actual duties) para este caso concreto. Após
definir-se a situação concreta de modo bastante preciso em suas circunstâncias,
estabelece-se o dever prioritário de modo intuitivo por essa espécie de sentido moral
identificado por Aristóteles.
Diego Gracia entende que os princípios da bioética devem ser ordenados em
dois níveis: um privado, correspondente aos princípios de autonomia e beneficência,
que defende que devemos ser respeitados em nossas diferenças, e outro público,
equivalente aos princípios de não maleficência e justiça, que corresponde à base da
ética civil, à igual consideração e respeito entre todos os seres humanos.
187
O nível privado vem em primeiro lugar do ponto de vista genético. A vida moral
começa com a autonomia e com a hierarquia de bens que cada um fixa para si segundo
seu projeto de felicidade e vida boa. Diego Gracia denomina estes princípios de deveres
186
ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco IV, 5, 1126a33-1126b3.
187
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op.cit. (nota 156), p. 98.
157
de obrigação imperfeita ou beneficência. O conteúdo dos outros princípios de não-
maleficência e justiça, de expressão pública, é sempre conseqüência de um acordo
entre membros da sociedade civil. Por exemplo, o princípio de não-maleficência
depende de um acordo sobre o que a sociedade entende como dano ou prejuízo a uma
pessoa normatizado no código penal e o princípio de justiça serve como critério para
que através de um acordo seja fixada a carga tributária que incide sobre as empresas e
cidadãos. Uma vez estabelecidos estes acordos, eles obrigam coativamente. Estes dois
últimos princípios correspondem aos deveres de obrigação perfeita ou de justiça.
Considerados sob o ponto de vista hierárquico, a ordem entre os princípios se
inverte: os princípios de não-maleficência e justiça antecedem os de autonomia e
beneficência. No caso de haver conflito entre um princípio privado e outro público, o
público sempre leva prioridade.
3.2.5.2. Os princípios são absolutos ou relativos?
Princípios absolutos são aqueles que devem cumprir-se sempre
independentemente das circusntâncias do caso ou situação. Isso não existe em
ética. Todos os princípios morais tem exceções, inclusive os mais aceitos.
188
Daí
advém um problema: de onde provêm estas exceções e como justificá-las. Esta
justificação não pode ser proveniente senão de um outro princípio de classe superior;
este, sim, seria absoluto e sem exceções.
Os extremos são inviáveis em ética. Se dissermos, por outro lado, que todos
os princípios éticos são relativos, caímos numa autocontradição. Então, o relativismo
absoluto não é possível. O mais absoluto absolutismo referente aos princípios morais
contradiz a evolução dos conteúdos morais ao longo da história da humanidade. O
juízo moral tem uma estrutura complexa em que algo é absoluto e algo é relativo. O
problema é determinar com clareza os conteúdos nestas duas dimensões. Não
existem juízos morais analíticos. Os juízos morais têm caráter sintético
, pois se
188
Idem, ibidem, p. 100.
158
referem a fatos empíricos, quer dizer, provenientes do mundo da experiência. Por
isso, eles não podem ser absolutos e necessários. Os juízos ou princípios morais
surgem por indução. amos no primeiro capítulo que a indução, conforme
demonstração de Hume, é sempre incompleta porque não temos domínio sobre os
fatos que irão acontecer. Portanto não podem oferecer certeza absoluta, mas
somente probabilidade. Por exemplo, o juízo “o assassinato é mau” é de caráter
sintético. Por quê? Porque mau acrescenta algo não contido no sujeito; existe a
exceção de que matar em legítima defesa torna este ato correto; e que não temos
domínio sobre todos os assassinatos que serão realizados no futuro para poder
afirmar algo taxativa e absolutamente sobre o assassinato em si.
No entanto, como víamos há pouco ao referir-nos à aisthesis (percepção
sensível como fundamento do lógos), existem princípios morais absolutos que a
mente percebe como tais e não pode ignorar. Afirma Aristóteles: “De los principios,
unos se contemplan por inducción (epagogé), otros por percepción (aísthesis), otros
mediante cierto hábito (éthos), y otros de diversas maneras.”
189
A capacidade que a
mente humana tem de perceber claramente os primeiros princípios morais foi
denominada na Idade Média de synderesis. A ética do naturalismo percebeu como
uma falta a negação do caráter absoluto dos princípios da moral e tentou preenchê-
la com a ascese, confessionalizando a ética na Idade Média. Esse fenômeno
aconteceu no judaísmo, islamismo e cristianismo.
190
Hume pensava que todos os juízos sintéticos fossem a posteriori. Kant afirma
que existem juízos sintéticos a priori: as categorias provêm da razão e necessitam
dos dados da experiência para formular juízos. A teoria dos juízos sintéticos a priori,
de base empírica, permite a Kant tentar formular juízos sintéticos de conteúdo supra-
empírico o imperativo moral ou o “fato da razão” de caráter exclusivamente
formal: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na
pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca apenas
189
ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco I, 7, 1098 b 3-5.
190
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op.cit. (nota 156), p. 101.
159
como um meio. “Age somente segundo a xima tal que possas querer ao mesmo
tempo que se torne lei universal.”
Tentando responder à pergunta deste subtítulo podemos afirmar que:
Os juízos morais são empíricos e, por isso, prováveis e incertos;
As únicas verdades absolutas em ética e na filosofia são de caráter
prejudicativo ou antepredicativo, quer dizer, formal.
A ética tem uma dimensão formal, antepredicativa ou prejudicativa, que
corresponde à apreensão primordial estudada pela fenomenologia. Os seres
humanos são morais exatamente porque têm a formalidade da realidade.
191
Ela é
que nos faz fins em si mesmos, “de per si” segundo nomenclatura de Zubiri, e,
portanto, pessoas. A substantividade humana não é natural senão moral.
O ser humano é formalmente moral. Afirmar isso não o torna capaz de fazer
juízos morais de caráter absoluto. A formalidade é uma condição a priori, indubitável,
sempre verdadeira, mas independente dos conteúdos morais, que o lógos e a razão
devem expressar laboriosa e historicamente. O gos é um processo gradual de
conformidade do parecer com o ser da coisa. Segundo Zubiri “a obra inteira do ser
humano é a aproximação intelectiva à realidade.”
192
Esta aproximação intelectiva
começa no logos e termina na razão. A razão é, por isso, direcional, aproximada e
necessariamente provisional; não esgota a realidade, não é capaz de elucidá-la de
forma total e absoluta e, por isso, está sempre aberta a retificações posteriores.
Respondendo à pergunta: a estrutura formal da moralidade humana é
absoluta e carece de exceções. Quando afirmamos que todos os seres humanos
devem ser tratados com absoluta consideração e respeito, estamos expressando o
cânon da moralidade e não uma regra ou dever moral. O único princípio absoluto é o
191
Idem, ibidem, p. 105.
192
ZUBIRI, X. Inteligencia y logos. Madrid: Alianza, 1982, p. 324 Apud GRACIA, Diego.
Fundamentación y enseñanza... op.cit. (nota 156), p. 105.
160
critério formal de respeito a todos os seres humanos.
193
Os quatro princípios da
bioética são materiais e deontológicos e, portanto, não são absolutamente
verdadeiros. Ao incorporar conteúdos materiais, começam a aparecer as exceções e
tornam-se relativos. Eles podem ser revogados e, portanto, não podem ser
considerados materialmente absolutos. No entanto seguem obrigando prima facie,
quer dizer, formalmente. Os princípios da bioética são formalmente absolutos e
materialmente relativos.
3.2.5.3. Os princípios são teleológicos ou deontológicos?
Devemos ir à origem dos termos porque na literatura eles são entendidos de
forma confusa. Deontológico não é igual a principialista e nem teleológico a
conseqüencialista.
Os termos deontologia e teleologia foram citados pela primeira vez por C. D.
Broad
194
, em 1930, ao comentar a ética de Sidgwick, que, ao contrário de Kant,
não acreditava mais na capacidade da razão de formular princípios materiais e
deontológicos que dessem conta da complexidade de toda a vida moral. Sidgwick
percebeu que as teorias morais intucionistas e utilitaristas eram insuficientes e
incompletas e que a abordagem correta da moral deveria considerar princípios e
conseqüências.
Broad dividiu as teorias éticas exposta por Sidgwick em dois grupos: num
colocou as que os métodos são compostos de princípios éticos materiais absolutos e
sem exceções e os denominou métodos ou sistemas deontológicos; e, no outro,
193
Formal significa carente de conteúdo deontológico concreto como a cânon da moralidade, a regra
de ouro e os imperativos categóricos kantianos. GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza...
op.cit. (nota 156), p. 106 e 109.
194
“I would first divide ethical theories into two clases, which I will call respectively deontological and
teleological. BROAD, C. D. Five Types of Ethical Theory. 10
th
edition, London, Routledge & Kegan
Paul, 1971, p. 206 (grifo do autor) Apud GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op.cit. (nota
156), p. 110.
161
aquelas cujos métodos a razão moral não é capaz de formular absolutamente
nenhum tipo de proposição normativa os chamou teleológicos.
Teorias deontológicas são aquelas que crêem na existência de principios
absolutos e sem exceções para determinar a moralidade dos atos sem a
necessidade de se recorrer às conseqüências para decidir moralmente. As teorias
teleológicas são aquelas em que os princípios obrigam sempre que as
conseqüências do ato não justifiquem uma exceção.
É importante termos muito claro os seguintes pontos:
As teorias teleológicas não negam a existência de princípios morais. O que
elas dizem é que se são princípios materiais, quer dizer, mandam algo
concreto, não podem ser absolutos;
As teorias teleológicas são perfeitamente compatíveis com a existência de
princípios absolutos de caráter formal ou canônico;
Uma clássica objeção às teorias teleológicas é que, ao dar valor decisório de
correto ou incorreto às conseqüências, as colocam na condição de princípio,
entrando em contradição com sua não aceitação de princípios morais
absolutos. Resposta à objeção: a maximização das conseqüências é um
princípio formal e canônico e não material e deontológico;
Todo sistema moral tem a necessidade de afirmar algum princípio como
absoluto e sem exceções;
Deontológicos o aqueles sistemas morais que defendem a possibilidade da
existência de princípios morais absolutos de conteúdo material e sem
exceções;
Teleológicos são aqueles sistemas morais em que o considerados
princípios absolutos somente os formais e canônicos, sendo os materiais e
deontológicos portadores de um valor relativo.
A teoria moral específica da bioética é estritamente teleológica. A tradição da
obra de Beauchamp e Childress com autores como Sidgwick, Moore, Broad e
162
Frankena defendem que os princípios deontológicos carecem de caráter absoluto e
que os princípios absolutos carecem de caráter deontológico.
195
3.3. MÉTODOS BIOÉTICOS
As histórias clínicas dos enfermos bem elaboradas pelos dicos são a matéria
prima que temos para identificar todas as nuanças dos fatos de um caso clínico
concreto e tomar a decisão ética correta não através de uma intuição, mas de um
procedimento de análise ética adequado. As histórias clínicas apresentam-se de forma
escrita nos prontuários dos enfermos como registro da coleta de dados e exame físico
obtidos na consulta médica com posterior pedido de exames laboratoriais e
diagnósticos. As histórias clínicas estão escritas normalmente obedecendo ao seguinte
esquema:
Base de Dados:
Dados de identificação
Anamnese
Antecedentes
Exploração: exames físico, laboratoriais e complementares
Inventário de Problemas:
Problemas biológicos
Patologias:
Síndromes:
Sinais:
Sintomas:
Problemas humanos:
Econômicos:
Sociais:
195
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op.cit. (nota 156), p. 112.
163
Jurídicos:
Evolução dos Problemas:
Sinais
Sintomas
Interpretação
Tratamento
Explorações complementares
Informe de Alta Hospitalar
Problemas de Admissão
Investigação e Tratamento dos Problemas
Diagnóstico
Para aplicarmos um procedimento ou método de avaliação ética na Medicina
clínica devemos considerar três pontos fundamentais:
A avaliação ética de um caso clínico é feita de forma procedimetal e não
intuitiva;
Sem uma boa história clínica é impossível tomar decisões éticas corretas;
O procedimento de avalição ética é um prolongamento da história clínica.
Existem vários procedimentos ou métodos de avaliação ética de um caso
clínico.
196
Aqui apresentaremos alguns métodos de forma breve: o de Howard Brody, o
principialista, e, entre os métodos clínicos e sincréticos, o de Hansen, o de Pelegrino e o
de Thomasma.
3.3.1. Método de Howard Brody
196
GARZÓN AZ, Fabio Alberto. Bioética, Manual Interactivo. Col. Bioética. CD-ROM, 3 R Editores,
2000.
164
Em 1976, Howard Brody elaborou seu método baseado na teoria da decisão
racional. Pondera valores e conseqüências para decidir após percorrer os seguintes
passos:
1. Perceber que existe um problema moral e identificá-lo. É necessário que estejam
presentes dois pré-requisitos:
A possibilidade de eleição entre diversos cursos de ação;
A pessoa envolvida ser capaz de estimar os valores dos diferentes cursos de
ação e suas conseqüências.
2. Elaborar uma lista de cursos de ação possíveis;
3. Escolher, temporariamente, entre eles o curso de ação mais correto. Submetê-lo à
seguinte prova. Se não for aprovado, escolher outro curso de ação;
4. A escolha deve ter a mesma estrutura do juízo ético: “na situação X, a pessoa Y deve
fazer Z.”
O que deve ser feito? (Z)
Quem deve fazer? (Y)
Em que condições o juízo é aplicável? (X)
5. Determinar as conseqüências principais da decisão tomada;
6. Confrontar cada conseqüência com o próprio sistema de valores. Para cada
conseqüência, devemos fazer as seguintes perguntas que tentam tornar explícitos os
valores a fim de que os atos sejam julgados pelas suas conseqüências:
Eu poderia viver com ela?
Em caso de resposta negativa: em que ela me incomoda?
165
Se as conseqüências da decisão não afetam o sistema de valores da pessoa, o
curso de ação proposto é eticamente válido. Se as conseqüências da decisão afetam o
sistema de valores, a decisão deve ser refeita.
O método de Brody consiste na ponderação entre as conseqüências das
decisões, geralmente objetivas, com o sistema de valores subjetivo do paciente.
3.3.2. Método Principialista
Em 1974, a "National Commission For The Protection of Human Subjets of
BIomedical and Behavioral Research" do Congresso dos EUA começa a elaborar o
Relatório Belmont publicado quatro anos depois. O objetivo deste relatório era servir de
ajuda aos cientistas, sujeitos de experimentação e cidadãos para a compreensão dos
requisitos éticos inerentes à investigação com seres humanos. Ele recomenda a
observação de três princípios seguidos de procedimentos práticos:
Autonomia seguida do consentimento informado;
Beneficência seguida da avaliação dos riscos e benefícios;
Justiça seguida da seleção equitativa dos sujeitos da investigação.
Em 1979, Beauchamp y Childress com a publicação do livro “Princípios de ética
biomédica” têm como objetivo aplicar a metodologia principialista à prática clínica. Eles
tentam conciliar na aplicação dos quatro princípios da bioética duas posições éticas
contrapostas: o utilitarismo e o deontologismo.
Tom Beauchamp é utilitarista, quer dizer,
as exceções às regras se justificam sempre conforme o critério de utilidade. No entanto
James Childress como deontologista crê que os princípios são absolutos e carecem de
exceções.
Beauchamp e Childress concordam com David Ross que os princípios da bioética
são prima facie duties e obrigam sempre que não estejam em conflito. Em caso de
conflito, aparecem as exceções que não procedem dos princípios prima facie, pois estes
166
não são deveres reais e efetivos. Elas surgem dos atos actual duties ditados pelas
circunstâncias e conseqüências do caso; estes, sim, são considerados deveres reais e
efetivos. Portanto, os princípios enquanto prima facie carecem de exceções porque são
formais. Ao serem aplicados em situações concretas tornam-se actual duties e as
exceções podem aparecer.
Beauchamp e Childress concebem os princípios num mesmo nível em que não
prioridade de uns sobre os outros e, em caso de conflito entre eles, o critério para
hierarquizá-los seriam as conseqüências. Ambas posições são bastante questionáveis.
Diego Gracia, a partir dessas insuficiências, aperfeiçoará este método.
3.3.3. Método Clínicos e Sincréticos
Estes métodos procedem diretamente da Medicina, quer dizer, da história clínica
e não do Relatório Belmont.
3.3.3.1. Procedimento de Hansen
A tomada de decisão depende de que cada conflito de valores seja abordado segundo
estes diversos pontos de vista:
1. As circunstâncias que iniciaram o conflito;
2. O nível do conflito percebido que se manifestou no começo do processo;
3. O nível do conflito tolerável;
4. As alternativas possíveis;
5. A estrutura dos valores em jogo;
6. As crenças na relação com as alternativas de valores;
7. A informação disponível;
8. A escolha ou eleição do princípio aplicado;
9. A alternativa escolhida;
10. O nível de conflito decorrente da escolha;
11. A magnitude e natureza dos processos consecutivos;
167
12. Conseqüências comportamentais da escolha;
13. Conseqüências cognitivas da escolha (informação armazenada na memória,
modificação de valores e crenças).
3.3.3.2. Procedimento de Pellegrino
Esquema:
I. Análise substantiva:
1. Natureza da relação médico-paciente:
Sacerdotal
Paternalista
Contratual
Científica
2. Conhecimento da teoria:
Teorias morais (teleológicas – deontológicas)
Princípios éticos (beneficência – autonomia – justiça)
3. Interpelação que os médicos fazem às teorias
Juramentos
Códigos
4. Fundamento último da moralidade
Teônomo
Heterônomo
Autônomo
II. Análise procedimental
1. Estabelecer os fatos clínicos relevantes:
História natural da enfermidade
Opções de tratamento
168
Situações especiais
2. Determinar qual é o melhor interesse do paciente;
3. Definir as questões éticas e os princípios envolvidos no caso:
Ética substantiva (princípios que estão em jogo; conflito de
princípios; obrigação do profissional de saúde; são os conflitos
solucionáveis? como?).
Ética procedimental (quem deve decidir? Há conflitos entre os que
devem decidir?
4. Tomada de decisões;
5. Justificação da decisão
Dar razões éticas da decisão;
Dar razões contra a decisão;
Argumentar contra estas objeções.
3.3.3.3. Procedimento de Thomasma
Este é o método mais simples e o mais aceito. Permite avaliar tanto os fatos
quanto os valores envolvidos no caso clínico:
1. Descreva todos os fatos do caso;
2. Descreva os valores relevantes dos médicos, dos pacientes, os membros da
casa e do hospital; o próprio hospital e a sociedade;
3. Determine o principal valor ameaçado; por exemplo: “Este é um caso em que
é exigida a cura realizada pelo médico contra os desejos do paciente?”
4. Determine os possíveis cursos de ação que podem proteger neste caso
concreto o maior número possível de valores;
5. Escolha um curso de ação;
6. Defina este curso de ação a partir de valores que lhe fundamentem, por
exemplo: “Por que se priorizou um valor sobre outro neste caso? Por que é o
curso de ação X melhor que o Y?”
169
3.4. MÉTODO DA BIOÉTICA DE DIEGO GRACIA
Vimos que na bitica a autonomia pode ser definida como a capacidade de
realizar atos com conhecimento de causa e sem influência coercitiva. Os princípios de
não-maleficência e justiça, que obrigam mesmo contra a vontade das pessoas, o
hierarquicamente superiores ao princípio de autonomia porque em caso de conflito
entre um bem particular e o bem comum devemos dar prioridade a este último.
Os quatro princípios da bioética, segundo Diego Gracia, são ordenados em
dois níveis hierárquicos diferentes, denominados por ele de nível 1 e nível 2. O nível 1
se compõe dos princípios de não-maleficência e de justiça e o nível 2 pelos de
autonomia e beneficência.
O nível 1 se refere à ética de mínimos, que obriga externamente, própria de
uma ética do dever; ocupa-se do correto ou incorreto, e diz respeito ao Direito. o,
conforme a ética clássica, os deveres de obrigação perfeita. O nível 2 corresponde a
uma ética de máximos, depende do sistema de valores ou ideal de perfeição e
felicidade que o sujeito projetou para si, correspondente a uma ética da felicidade; se
ocupa do bom ou mau, e é o campo próprio da Moral. São os deveres de obrigação
imperfeita.
Esta teoria dos níveis
197
tem respaldo histórico e só a manutenção do equilíbrio
entre os dois garante a proteção da sociedade em relação aos extremismos políticos
que podem degradá-la. O totalitarismo consiste em negar o nível 2, fixando-se na
estrita observância das obrigações de nível 1. Os valores e o ideal de felicidade são
dados por decreto para todos de forma unificada. A utopia liberal extrema
corresponde ao extremismo assumido no sentido contrário: nega-se o nível 1,
buscando-se somente a realização do nível 2.
197
GRACIA, Diego. Fundamentación y enseñanza... op.cit. (nota 156), p. 23.
170
Os princípios de não-maleficência e justiça são de ordem superior sobre os de
autonomia e beneficência.
198
Os dois primeiros podem ser exigidos coativamente; são
pautados pelo princípio ético da universalização; consideram todos os seres humanos
iguais e merecedores de igual consideração e respeito; constituem uma ética civil ou
ética de mínimos; correspondem aos deveres que temos para com os outros; e dizem
respeito à virtude pública. Os outros dois princípios o podem ser exigidos
heteronomamente; são pautados pelo princípio ético da particularização;
apresentam-nos como moralmente diferentes; constituem uma ética de máximos;
correspondem aos deveres que temos para conosco. Sempre poderemos e
deveremos exigir mais de nós próprios do que dos outros.
PASSO I: SISTEMA DE REFERENCIA MORAL (Ontológico)
Premissa ontológica: o homem é pessoa e, enquanto tal, tem dignidade e não preço.
Premissa moral: enquanto pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual
consideração e respeito.
PASSO II: ESQUEMA MORAL (Deontológico)
Nível I: Não-maleficência e Justiça
Nível II: Beneficência e Autonomia
PASSO III: EXPERIÊNCIA MORAL (Teleológica)
Conseqüências objetivas ou de nível 1
Conseqüências subjetivas ou de nível 2
PASSO IV: VERIFICAÇÃO MORAL (Justificação)
Contraste o caso com a “regra” tal como se encontra no esquema moral (passo II).
Contraste se é possível justificar uma “exceção” à regra no caso concreto (passo III).
Contraste a decisão tomada com o sistema de referência moral, tal como se encontra
ali expressado (passo I)
198
GRACIA, Diego. Bioética clínica. Col. Ética y Vida, v. 2. Santa Fé de Bogotá: El Búho, 1998, p. 16.
171
É importante salientar que os casos clínicos abaixo relatados, ainda que
submetidos à avaliação ética do ponto de vista especulativo e prático, levam consigo
o importante fator emocional que vem à luz no encontro com as pessoas. As pessoas
são muito mais do que um nome relatado e é por isso importante conhecê-las, ainda
que isso não altere a decisão ética resultante da aplicação do método.
3.4.1. CASO CLÍNICO Nº 1
(Para a reflexão bioética dos problemas derivados da negativa dos pacientes ao uso
de transfusões e tratamentos com hemoderivados)
Paciente de 21 anos de idade, do sexo feminino, que ingressou no Serviço de
Neurocirurgia do Hospital 12 de Outubro, que facilitou a seguinte informação:
“Esta paciente nos foi enviada do Hospital Puerta de Hierro para avaliação e
tratamento de um aneurisma cerebral médio complexo que requer revascularização.
Depois de ser estudado seu caso com detalhe, tomou-se a decisão de forma
multidisciplinar (unidades de Neurocirurgia, Neurorradiologia e Cirurgia Vascular) de
oferecer à paciente a intervenção cirúrgica explicando-lhe as diversas alternativas e
risco do manejo conservador e cirúrgico. Aceitando em princípio a intervenção,
comunica-nos depois que é testemunha de Jehová, pelo qual se levou a cabo a
elaboração de um consentimento informado personalizado com a ajuda do Comitê
específico existente em nosso hospital para este tipo de casos.”
CONSENTIMENTO INFORMADO PARA A INTERVENÇÃO CIRÚRGICA
A intervenção cirúrgica que foi indicada, segundo informe clínico do Dr. ..., de 3
de novembro de 1999, tem por objeto tratar de realizar uma união entre dois vasos
sangüíneos (artérias) para derivar o sangue da malformação vascular (aneurisma da
artéria cerebral média) que foi detectado existir em seu cérebro. Com isso se
pretende reduzir os riscos de sangramento de tal malformação que poderia gerar, se
172
se produz, graves defeitos nervosos e inclusive risco de morte súbita por
sangramento massivo da malformação.
Diante dos pobres resultados obtidos com tratamentos conservadores, seus
médicos crêem que, se se realizasse a cirúrgia, poderiam existir possibilidades de
reduzir os riscos de sangramentos futuros de sua malformação. No entanto indicação
cirúrgica não é absoluta já que os resultados não podem ser assegurados totalmente.
Em seu caso, é importante adverti-la de que a cirurgia prevista é agresiva
que requer retirar e recolocar várias partes das artérias que subministram sangue a
seu cérebro e isso implica participação de três equipes cirúrgicas (neurocirurgia,
cirurgia maxilofacial e cirurgia vascular) e um considerável risco de sangramento
profuso durante o ato cirúrgico, embora realizando o procedimento com especial
cuidado para evitar a perda de sangue.
O corpo de médicos cirurgiões deste centro estão dispostos a realizar a
cirurgia com o maior cuidado para, atendendo a seus desejos, minimizar o
sangramento e a necessária transfusão. No entanto, se, estando voinconsciente,
eles ou os anestesistas que lhe assistem considerarem absolutamente necessária
para sua vida a utilização de sangue, querem que saiba que farão a transfusão,
informando-a de havê-la feito quando esteja você mesmo em condições de requerê-
la, de maneira absolutamente confidencial, ao cirurgião que fez a intervenção.
Se lido e compreendido este consentimento informado, mostra-se de acordo e
decide receber a intervenção, seguindo a linha de atuação que propusemos, deve
assiná-lo antes de programar sua intervenção, conservando a possibilidade de
retificar sua decisão enquanto possa fazê-lo, inclusive imediatamente antes de ser
anestesiada.
A Instituição garante que este documento se manterá confidencial e
conservado de maneira especial num arquivo hospitalar junto com sua história clínica,
173
e somente poderá ser extraído dali e consultado por você mediante um pedido feito a
Chefatura do Serviço de Atenção ao Paciente.
Se, pelo contrário, não deseja receber a intervenção nas condições descritas,
pode solicitar a alta a próprio pedido e uma cópia íntegra de seu historial clínico. A
Instituição estaria disposta, em seu caso, a readmiti-la neste centro para qualquer
outra possibilidade de estudo ou terapia de que necessite.
Uma terceira opção possível seria negar o consentimento para a intervenção
cirúrgica e continuar a assitência neste centro com outros meios terapêuticos de
eficácia muito mais duvidosa, fazendo-se responsável você mesmo das
conseqüências que possam derivar-se desta decisão.
ACEITAÇÃO E ASSINATURAS
Declaro que:
Fui informada de forma compreensível da natureza e riscos do procedimento
mencionado, assim como de suas alternativas.
Estou satisfeita com a informação recebida. Pude formular as perguntas que acreditei
convenientes e me foram esclarecidas todas as minhas dúvidas
.................................... .................................. ....................................
Assinatura do paciente Assinatura do cirurgião Assinatura do anestesista
.................................... ....................................
Assinatura do cirurgião vascular Assinatura do cirurgião maxilofacial
ALTA A PRÓPRIO PEDIDO
Declaro que:
174
Não desejando receber a intervenção nas condições do presente consentimento,
NÃO CONCEDO o mesmo e desejo solicitar minha alta para poder ser atendido em
outro centro de minha escolha.
MOTIVO:
.................................... .................................. ....................................
Assinatura do paciente Assinatura do médico Asinatura do anestesista
NEGAÇÃO DO CONSENTIMENTO
Declaro que:
Não desejando receber a intervenção nas condições do presente consentimento
NÃO CONCEDO o mesmo e desejo continuar a assistência neste centro, assumindo
os riscos desta decisão.
MOTIVO:
................................... ................................. ........................................
Assinatura do paciente Assinatura do médico Assinatura de testemunha
Depois de considerar o consentimento elaborado, a paciente decide recusar a
opção cirúrgica e acode ao Serviço de Informação e Atenção ao Paciente, entrando
com uma reclamação.
Reclamação
“Depois das provas realizadas no Hospital Puerta de Hierro, foi detectado em
mim um aneurisma na artéria média direita. Os médicos decidem enviar-me a uma
175
reconhecida clínica da Holanda para realizar-me uma intervenção cirúrgica. O
Hospital Ramón y Cajal apóia esta decisão, mas o Hospital 12 de Outubro decide
encarregar-se do meu caso. Este hospital se capacitado para realizar a
intervenção cirúrgica, apesar de saber de minha condição de testemunha de Jehová,
como bem informei em todos os hospitais em que estive. Transcorridos quase dois
meses e sendo o hospital consciente do perigo de morte súbita, recebo por parte dos
médicos o ‘consentimento informado’ com a postura taxativa de que em caso de
necessidade se me transfundirá sangue, no qual peço meus direitos fundamentais.
Sendo este hospital o único capacitado para realizar a intervenção e reconhece que
qualquer outro tratamento tem uma eficácia duvidosa, espero uma pronta solução
uma vez que minha vida está em perigo. Portanto, a partir de 12 de novembro,
tomarei as medidas legais pertinentes ante a Inspeção Médica Territorial se não
recebo uma resposta satisfatória, responsabilizando o hospital de qualquer desenlace
que ocorra até a intervenção.”
* * *
Dois dias depois de feita esta reclamação, a Chefe de Serviço de Informação e
Atenção ao Paciente envia uma nota interna ao Chefe de Serviço de Neurocirurgia
nos seguintes termos:
“Adjunto remeto reclamação interposta por ......................, com registro ....,
pendente de intervenção de aneurisma em artéria média, tendo conhecimento de
rechaço a ser transfundida por sua convicção religiosa.
Comunico-lhe que para continuar os trâmites que permitam uma solução deste
tipo de problemas seria conveniente que me remetesse um informe clínico que inclua
os seguintes aspectos: diagnóstico, prognóstico, indicação da cirurgia, existência ou
não de protocolo de atuação, possibilidades alternativas terapêuticas e risco
previsível de transfusão sangüínea, segundo sua experiência (alto, médio ou baixo,
se for possível indique porcentagem de risco aproximado).
176
Tudo isso, a fim de que se possa realizar uma valoração que permita dar uma
resposta à paciente. Receba uma cordial saudação.”
* * *
O Serviço de Neurocirurgia responde ao Serviço de Informação e Atenção ao
Paciente com o seguinte relatório:
“Em seguida passo a responder aos aspectos requeridos em relação aos
aspectos requeridos com a possível intervenção administrada à paciente:
A) Diagnóstico: aneurisma fusiforme da artéria cerebral média direita. Isquemia
cerebral. Ictus capsular com hemiparesia esquerda.
B) Prognóstico: o tratamento conservador leva risco de isquemia progressiva de
hemisfério cerebral direito. A intervenção cirúrgica leva riscos de isquemia,
sangramento local e infecção. No entanto, o tratamento cirúrgico se estima
superior ou melhor em termos prognósticos do que o conservador.
C) Indicação da cirurgia: trata-se de realizar anastomose da carótida externa para
a cerebral média para revascularizar a árvore silviana e trombosar o
aneurisma.
D) Existência de protocolo de atuação: no serviço existe um protocolo de manejo
dos aneurismas intracraneais e ele se ajusta à indicação.
E) Possibilidades de alternativas terapêuticas: o tratamento conservador com
as limitações expostas.
F) Risco previsível de transfusão: médio.
177
Assinado: o Chefe do Serviço de Neurocirurgia.”
Dois dias depois o Chefe do Serviço de Neurocirurgia amplia a informação ao
Serviço de Informação e Atenção ao Paciente nos seguintes termos:
“Comunico-lhes que a paciente recusou receber a intervenção oferecida por
nós do processo cujas características foram informadas a este Serviço... Nós
reiteramos nosso oferecimento de tratamento cirúrgico no caso de que a paciente
encontrasse uma solução satisfatória para sua situação. Assinado: o Chefe de
Serviço de Neurocirurgia.”
* * *
Um dia depois a Chefe do Serviço de Informação e Atenção ao Paciente
manda um escrito à Direção territorial, Unidade de Reclamações, nos seguintes
termos:
“Adjunto remeto cópia da reclamação enviada a este Serviço pela paciente J.
G. A., expediente ...., que faz referência à sua intervenção de um aneurisma
cerebral, assim como informes do Serviço de Neurocirurgia.
Reitero que o paciente se recusa a assinar o consentimento informado
personalizado, por ser testemunha de Jehová, neste hospital.
O que lhe comunico para remeter-lhe a algum hospital em que possa receber a
intervenção de sua patologia, respeitando suas crenças religiosas.
Atentamente, Chefe do Serviço de Informação e Atenção ao Paciente.”
* * *
A Direção Territorial, Unidade de Reclamações, procedeu à tramitação da
história clínica e dos informes precedentes com o fim de gestionar possivel
transferência a um hospital holandês para proceder a intervenção cirúrgica referida.
178
Umas semanas depois, tivemos conhecimento de que a intervenção cirúrgica
proposta ao hospital holandês havia sido rechaçada.
Documento genérico de exoneração
de responsabilidades médicas e hospitalares
proposto pela confissão religiosa Testemunhas de Jehová.
Hospital:
Serviço:
Médicos que atenderão o caso:
Motivo da internação:
Data da internação:
Eu ........, CDI ........., maior de idade, com domicílio em ..........., exponho e
declaro o seguinte:
É minha vontade expressa que durante o tempo que esteja internado neste
centro, com a hipótese ou não de necessitar receber uma intervenção cirúrgica, não
se administre em mim nenhuma transfusão de sangue ou hemoderivados.
No entanto aceito e, portanto, autorizo a este hospital e à equipe médica que
me atenda para que apliquem qualquer terapia médica alternativa de qualidade sem
sangue, tal como expansores da volemia, tipo cristalóides ou colóides, hemostatos
químicos ou terapêuticas para níveis baixos de hemoglobina, tais como: câmara de
oxigênio hiperbárico, dextrán de ferro, ácido fólico, injeção intramuscular de vitamina
B 12, vitaminas C e E, ou também fármacos para problemas hematológicos,
conhecidos amplamente, assim como quaisquer técnicas ou aparelhos para localizar
e controlar hemorragias internas.
179
Faço constar esta disposição como expressão pessoal do direito que como
paciente me ampara à aceitação ou rechaço de tratamento médico, de acordo com
meus valores e convicções mais profundas. Sou testemunha cristã de Jehová, e
adoto esta decisão em obediência a preceitos bíblicos como o seguinte: “De fato,
pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor nenhum outro peso além
destas coisas necessárias: que vos abstenhais das carnes imoladas aos ídolos, do
sangue, das carnes sufocadas, e das uniões ilegítimas. Fareis bem preservando-vos
destas coisas. Passai bem.” (cf. At 15,28-29)
O fato de administrar-me uma transfusão de sangue não desejada, eu o
consideraria como uma grave violação de minha pessoa física e espiritual, o que
chegaria a causar-me maiores danos que benecios, uma vez que se atuaria contra a
minha própria consciência. Por outra parte, sou consciente da existência de diversos
riscos, associados com as transfusões de sangue, tais como hepatite C e AIDS, por
isso prefiro aceitá-los e aceitar como contrapartida qualquer risco que pudesse
derivar-se de minha escolha pelo tratamento sem sangue.
Esta é minha vontade apesar de que os médicos encarregados de meu caso
considerem que uma transfusão de sangue e hemoderivados fosse necessária para
salvar-me a vida.
Meditei cuidadosamente sobre esta situação e minhas instruções não vão
mudar no caso de que eu esteja inconsciente.
Exonero de responsabilidade os médicos, anestesistas, o hospital, os
admistradores e demais funcionários por qualquer resultado adverso devido ao meu
rechaço de sangue, apesar de seus cuidados competentes referentes a outras
medidas adotadas.
Assinatura do paciente, testemunha, CDI.
180
RESOLUÇÃO DO CASO CLÍNICO Nº 1
1 – DELIBERAÇÃO SOBRE OS FATOS:
Diagnóstico:
Aneurisma fusiforme da artéria cerebral média direita;
Isquemia cerebral;
Ictus capsular com hemiparesia esquerda.
Prognóstico:
Tratamento conservador é desaconselhado devido à pobreza de resultados;
A não-intervenção cirúrgica implica risco de sangramento massivo por
rompimento do aneurisma com seqüelas neurológicas graves e inclusive risco
de morte;
Durante o ato cirúrgico, existe risco de isquemia, infecção e sangramento,
embora realizando o procedimento com especial cuidado para evitar a perda
de sangue;
Indicação cirúrgica não é absoluta já que os resultados não podem assegurar-
se totalmente. A cirurgia é muito complicada. O aneurisma está localizado na
base do crânio. Mesmo que dê tudo certo na cirurgia a possibilidade da
paciente sair sem seqüelas é de 50%. No entanto, em termos prognósticos, o
tratamento cirúrgico é melhor do que o conservador;
Risco previsível de transfusão sangüínea: médio.
Tratamento:
Indicação cirúrgica: requer cirurgia de revascularização para reparar a
malformação vascular (aneurisma da artéria cerebral média). Consiste em
realizar a união entre dois vasos sangüíneos para derivar o sangue do
aneurisma. Ou, mais especificamente, trata-se de realizar a anastomose da
carótida externa para a cerebral média para revascularizar a árvore silviana e
trombosar o aneurisma;
181
Participação de três equipes cirúrgicas: neurocirurgia, cirurgia maxilofacial e
cirurgia vascular.
2 – DELIBERAÇÃO SOBRE OS VALORES
1. Necessidade do tratamento cirúrgico: relação Risco (médio) / Benefício
(alto);
2. Recusa da enferma de submeter-se ao tratamento cirúrgico, que é o
mais indicado. Motivo da recusa: convicção religiosa (testemunha de Jehová)
não permite transfusão de sangue ou hemoderivados;
3. Negação do Consentimento Informado por parte da enferma;
4. Enferma recorre aos seus direitos civis, ao Serviço de Informação e
Atenção ao Paciente;
5. Recusa do Hospital 12 de Outubro de tratar a enferma, uma vez que
esta optou pela negação do Consentimento Informado;
6. Serviço de Informação e Atenção ao Paciente apóia recusa do Hospital
12 de Outubro de tratar a enferma;
7. Recusa do Hospital holandês de tratar a enferma.
8. Existe conflito entre a autonomia (liberdade de consciência) e a
beneficência (preservação da saúde) e não-maleficência (risco de vida).
3 – AVALIAÇÃO ÉTICA DO CASO E TOMADA DE DECISÃO
Quando há conflito é preciso estabelecer uma hierarquia entre os valores
afetados a fim de eleger o superior e produzir o menor dano possível na ordem moral.
A enferma deseja tratar-se, mas sua crença religiosa está acima de sua vida
e, portanto, não deve ocorrer uma transfusão.
A racionalidade naturalista que está na base do ordenamento jurídico
brasileiro e espanhol afirma a vida como valor supremo. Um juiz obrigaria a
transfusão sangüínea da paciente. No caso brasileiro, estão presentes no artigo
da Constituição Federal de 1988 a garantia dos direitos à vida e à liberdade religiosa;
182
numa situação de conflito entre eles, um juiz julgaria dando prioridade à proteção da
vida segundo o critério da razoabilidade.
A partir de uma racionalidade especulativa como esta, é difícil fazer juízos
concretos.
A partir da racionalidade instrumental ou estratégica, a liberdade tem
prioridade sobre a vida. Ela coincide com a posição jurídica de cunho positivista de
quase todos os países.
A partir de uma racionalidade prática devemos abordar a questão procedendo
metodicamente:
PASSO I: SISTEMA DE REFERENCIA MORAL (Ontológico)
Premissa ontológica: o homem é pessoa, e enquanto tal, tem dignidade e não preço.
Premissa moral: enquanto pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual
consideração e respeito.
Confrontar o problema com o sistema de referência moral ou critério moral
“enquanto pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual consideração e
respeito.” Lembremos que aqui valem como sistema de referência outras formulações
equivalentes como a regra de ouro e os direitos humanos.
A enferma, testemunha de Jehová, decide sobre sua vida porque é maior de
idade e tem plena competência para isso. Ela decide que não aceitará intervenção
cirúrgica com transfusão sangüínea. Ao não permitir que um adulto arrisque sua vida
para defender suas crenças, não o estamos tratando como um fim em si mesmo ou
como pessoa e estamos transgredindo o direito fundamental que tem todo ser
humano de merecer igual consideração e respeito.
PASSO II: ESQUEMA MORAL (Deontológico)
Nível I: Não-maleficência e Justiça
Nível II: Beneficência e Autonomia
183
Agora devemos medir o ato de não se submeter à intervenção cirúrgica quanto
à correção objetiva ou tabela de direitos (justiça e não-maleficência) e quanto à
correção subjetiva ou tabela de valores (autonomia e hierarquia de valores do
sujeito). O Nível I: enquanto direito humano, a enferma tem o respaldo, segundo o
princípio de justiça, do direito de liberdade de consciência. Nível II: quanto aos
valores que norteiam sua vida, aquilo que ela decide como bom para a vida dela a
beneficência – podemos afirmar que sua hierarquia ou tabela de valores dá prioridade
para a crença religiosa em relação ao valor biológico da vida humana.
Podemos concluir, portanto, que é eticamente correta, tanto objetiva quanto
subjetivamente sua decisão de colocar a sua crença religiosa acima da manutenção
de sua vida biológica.
PASSO III: EXPERIÊNCIA MORAL (Teleológica)
Conseqüências objetivas ou de nível 1
Conseqüências subjetivas ou de nível 2
Avaliemos agora a bondade das conseqüências da decisão da enferma. Neste
caso a conseqüência presumível é a morte. As conseqüências objetivas e subjetivas
de não receber sangue são boas, embora tenham como resultado a própria morte.
Objetivamente, pelo menos esta entre outras: efetivou através de uma ação concreta,
histórica, seu compromisso de fidelidade à palavra de Deus, e por extensão, de sua
amizade com ele. Subjetivamente pelo menos esta entre outras: exerceu plenamente
(sem coerção externa) sua liberdade mediante o motivo ou razão que envolve o maior
valor de sua vida.
PASSO IV: VERIFICAÇÃO MORAL (Justificação)
Contraste o caso com a “regra” tal como se encontra no esquema moral (passo II).
Contraste se é possível justificar uma “exceção” à regra no caso concreto. (passo III).
Contraste a decisão tomada com o sistema de referência moral, tal como se encontra
ali expressado. (passo I)
184
Está eticamente correta a decisão da enferma conforme os argumentos
apresentados no Passo II.
Existem conseqüências boas que se sobrepõem à morte presumível e
justificam a exceção à regra de proteger a própria vida (conforme a racionalidade
ética naturalista):
o exercício de sua liberdade sem nenhuma forma de coação externa;
o exercício de sua liberdade, segundo sua tabela ou hierarquia de valores;
seu cumprimento pleno com o cânon da moralidade ou sistema de referência:
enquanto pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual
consideração e respeito.
3.4.2. CASO CLÍNICO Nº 2
A. é um jovem de 27 anos, que vive em domicílio paterno. Internado na Unidade
de Psiquiatria de meia duração em 2 de fevereiro de 1998, por “evolução negativa e
problemas de convivência familiar”. Diagnóstico de referência de transtorno passivo-
agressivo de personalidade, dependência de álcool e transtorno psicótico.
Não constam antecedentes até a adolescência, em que começam problemas de
rendimento escolar. Embora a família sublinhe que sua inteligência é normal, ele sofre
falta de motivação: “era muito indeterminado, impreciso”. Aos 14 anos muda de
amigos e começa a faltar às aulas e distanciar-se da família. Não consegue obter o
grau escolar e tenta grupos de formação profissional, mas não consegue nenhum
resultado. Aos 16 anos abandona definitivamente os estudos. A partir de então,
trabalha esporadicamente e segue algum cursinho.
A família recorda os 17 anos como idade muito problemática, pois sai muito,
tem dificuldade para respeitar horários e está mais irritável. Aos 18 e durante o serviço
militar passa grande parte do tempo num porão, pois consome tóxicos e tem
dificuldade para ajustar-se às normas.
185
Primeiro contato com a psiquiatria sete anos por consumo de tóxicos
(anfetaminas e álcool) e idéias delirantes de perseguição. É a primeira e única ocasião
em que se faz referência à sintomatologia claramente psicótica em sua evolução.
Abandona o seguimento e volta a contatar com um psiquiatra três anos mais
tarde, por ansiedade e consumo de substâncias. Inicia tratamento medicamentoso;
logo depois realiza uma intoxicação por ingesta medicamentosa. Posteriormente e no
mesmo ano tem duas internações psiquiátricas numa Unidade de Psiquiatria de outro
estado da federação. A primeira é motivada por agressividade na família. Depois de
receber alta, incorpora-se a um programa para toxicômanos vivendo numa casa
protegida. Nessa casa, mostra condutas conflitivas e fugas que motivam a segunda
internação.
No programa de desintoxicação é descrito com atitudes pouco participativas e
passividade chamativa.
A família relata a vida de A. como uma alternância entre a passividade absoluta,
falta de iniciativa e projetos vitais enquanto se encontra em domicílio, com outra na rua
com dificuldade para respeitar normas e horários e consumo abusivo de tóxixos
(últimamente álcool). Este abuso gera conflitos familiares crescentes que finalmente
provocam a internação. Descrevem situações agressivas e deterioração progressiva
da qualidade de vida.
Como dado: serologia HIV positiva, que foi significativa em nível analítico,
sem clínica.
Uma vez internado na unidade de meia duração (fev. de 98), coloca-se a
necessidade de um tratamento tanto psicofarmacológico como reabilitador e a
conveniência de intervir com um apoio familiar.
186
Nos primeiros meses A. experimenta uma leve melhora, sabe que deve
demonstrar mais atividade para poder valorar uma evolução positiva e começa a
participar de grupos terapêuticos. Chega a um momento em que, provavelmente
porque não consegue a alta, volta para trás e, como no início, mostra-se passivo,
seleciona poucas atividades (dicas) as que acode voluntariamente e o resto do
tempo o passa sem fazer nada. Pede a alta insistentemente e não pode entender que
sua situação não é boa. No entanto reduziu de forma considerável o consumo de
álcool e o conflito familiar é menor, nas licenças temporais programadas.
no verão (julho) informamos a família com clareza da tórpida evolução e do
prognóstico sombrio. Em setembro, oferecemos na entrevista a alta por falta de
eficácia no tratamento. Diante de tal situação, a família muda de atitude e passa de
ser colaboradora de nossa planificação terapêutica a mostrar-se queixosa e
reivindicativa com o trato que aqui lhe é dispensado, acusando-nos de passividade e
tentando dirigir o tratamento. A família mostra sua oposição a aceitar A. de volta em
seu domicílio nestas condições.
Chega um momento em que realizam uma queixa formal ao Serviço de Atenção
ao Paciente, demandando um encontro com o Chefe Clínico da Unidade de
Psiquiatria, que tem uma entrevista com eles em novembro. Fizemos um acordo de
prolongar a internação enquanto tentamos que A. se adapte a uma Unidade de Dia,
medida pela qual o paciente havia manifestado sua negativa de maneira repetida. A
alternativa é uma hospitalização indefinida numa unidade de longa duração.
Nos últimos meses, a família apresentou uma atitude de queixa constante e
tomou, de fato, o controle do tratamento, planificando saídas e entradas de A.
segundo seu critério.
Neste momento, e depois do fracasso da alternativa da Unidade de Dia, devemos
tomar uma decisão conjunta com a família. A equipe terapêutica não considera
187
clinicamente indicada uma hospitalização indefinida e o paciente apresenta diante
dessa possibilidade uma franca oposição, apesar de que a família a exige.
RESOLUÇÃO DO CASO CLÍNICO Nº 2
1 – HISTÓRIA CLÍNICA
A. 27 anos, internação hospitalar em Unidade de Psiquiatria em 02/02/1998.
- Queixa principal: o motivo da internação é “evolução negativa e problemas de
convivência familiar” (qual o nível de competência do paciente para decidir-se por si
mesmo?)
- História da Doença Atual: (inclui deliberação sobre os valores ou preferências
manifestadas)
Adolescência: começam problemas de rendimento escolar;
Família: Sua inteligência é normal.” Falta de motivação; “Era muito
indeterminado, impreciso.”
16 anos: abandona definitivamente os estudos. Trabalha esporadicamente e
segue algum cursinho;
17 anos: sai muito; dificuldade para respeitar horários, irritabilidade;
18 anos: consumo de tóxicos. Dificuldade para ajustar-se às normas;
20 anos: primeiro contato com a Psiquiatria por consumo de tóxicos
(anfetaminas e álcool) e idéias delirantes de perseguição (sintomatologia
psicótica). Abandono de seguimento psiquiátrico;
23 anos: contato com a Psiquiatria por ansiedade e consumo de substâncias.
Intoxicação medicamentosa. Primeira internação psiquiátrica: agressividade na
família. Passa a integrar programa para toxicômanos em casa protegida.
Segunda internação: condutas conflitivas e fugas;
Consumo de álcool. Situações agressivas e deterioração progressiva da
qualidade de vida;
188
Sorologia HIV positiva (sem clínica);
Tratamento: psicofarmacológico, apoio familiar e grupos terapêuticos;
Recaída por ter alta recusada;
Redução do consumo de álcool e do conflito familiar;
Equipe médica: prognóstico sombrio; é proposta alta por falta de eficácia no
tratamento;
Família muda de atitude: não colabora com a equipe médica e não aceita o
retorno de A. para casa.
Família faz queixa formal ao Serviço de Atenção ao Paciente e tenta-se um
acordo.
A. não aceita repetidamente a Unidade de Dia.
Alternativa: hospitalização indefinida;
Família se opõe à equipe médica médica e assume o controle do tratamento;
Equipe médica percebe que deve tomar uma decisão conjunta com a família;
Existe conflito entre beneficência (preservação da saúde) e não-maleficência
(proteção da vida do enfermo). Tanto a família como a equipe terapêutica do
hospital psiquiátrico entendem a benficência e a não-maleficência de forma
diferentes neste caso.
2 – DELIBERAÇÃO DOS FATOS
a) Diagnóstico
Transtorno passivo-agressivo de personalidade;
Dependência do álcool;
Transtorno psicótico.
b) Tratamento
Equipe terapêuticia: prognóstico sombrio; é proposta alta por falta de eficácia no
tratamento;
Equipe terapêutica e paciente se opõem à hospitalização indefinida;
Família exige hospitalização indefinida.
PASSO I: SISTEMA DE REFERENCIA MORAL (Ontológico)
189
Premissa ontológica: o homem é pessoa, e enquanto tal, tem dignidade e não preço.
Premissa moral: enquanto pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual
consideração e respeito.
Confrontar o problema com o sistema de referência moral ou critério moral
“enquanto pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual consideração e
respeito.”
O enfermo está com o nível de competência para decidir-se por si mesmo
diminuído. A família realiza sua internação hospitalar por dois motivos:
1. Beneficiá-lo, para que, internado num hospital, possa tratar sua enfermidade
psiquiátrica. Neste ponto, para ele se realiza o cânon da moralidade “enquanto
pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual consideração e respeito.”
2. Beneficiar-se a si mesma, pois a presença de A. em casa estava ocasionando
“problemas de convivência familiar.”
PASSO II: ESQUEMA MORAL (Deontológico)
Nível I: Não-maleficência e Justiça
Nível II: Beneficência e Autonomia
Agora devemos medir o tratamento clínico quanto à correção objetiva ou tabela
de direitos (não-maleficência e justiça) e quanto à correção subjetiva ou tabela de
valores (autonomia e beneficência ou escala de valores do sujeito).
Nível I: Em julho de 1998, a equipe terapêutica revela à família a tórpida evolução
e o prognósitco sombrio de A., oferece alta por falta de eficácia no tratamento e
desaconselha uma hospitalização indefinida. A. não deseja uma hospitalização
indefinida porque nenhum paciente gosta de permanecer num hospital. A equipe
terapêutica do hospital não pode ser tão taxativa de simplesmente mandar A. para casa.
Existem clínicas ou centros especializados somente para o tratamento de toxicômanos.
O correto seria a equipe terapêutica apresentar alternativas à família sendo uma delas o
190
encaminhamento de A. para um centro especializado. Esta seria uma solução
intermediária entre permanecer no hospital e voltar para o convívio familiar, pois permite
a pariticipação e apoio da família com visitas regulares.
Um dos maiores centros de referência para o tratamento de toxicômanos é o
Hospital Marmotan de Paris, França. O índice de sucesso terapêutico (livrar o paciente
do uso crônico da substância) é de 40%. permanecem neste centro pacientes que
desejam tratar-se. O centro proporciona um programa em que oferece famílias adotivas
para os pacientes que carecem de apoio familiar. Hoje já existem fármacos que
controlam a compulsão pelo uso de álcool, heroína e cocaína.
Existe uma dimensão emocional importante que envolve todo um caso clínico,
quer dizer, a família, o enfermo e a equipe terapêutica e que normalmente não aparece
no relato escrito de uma história clínica. A. é um toxicômano que não quer se tratar; é
um tipo de paciente que provoca rejeição tanto para a família quanto para a equipe
terapêutica. A equipe terapêutica de um hospital psiquiátrico deve estar preparada para
manejar a rejeição emocional que esse tipo de paciente estabelece. Não pode
simplesmente descartá-lo.
A volta de A. para casa significa tornar toda a família doente. A compulsão pelo
uso da droga é incontrolável neste caso. A. não pode ser tratado como um pessoa
normal dentro da família porque ele não responderá de forma lúcida pelos seus atos.
No entanto, a mensagem da equipe parece ser esta: a ciência fez tudo o que
poderia fazer e não existe tratamento completamente eficaz para transtornos de adicção
ou dependência química conforme é o caso de A. Não se cumpriu a não-maleficência e
a justiça porque o comportamento da equipe apresenta um claro déficit.
Nível II:Uma vez que o paciente não é competente para decidir sobre sua vida, a
família legitimamente toma seu lugar como maior interessada pelo seu bem. A tabela de
191
valores da família revelada em suas preferências ou decisões já tomadas revelou-se ser
esta:
1. Ajudar A. proporcionando-lhe um tratamento hospitalar;
2. Proporcionar tranqüilidade à família através da internação hospitalar de A..
Ao passar a não colaborar com a equipe terapêutica devido ao prognóstico de A.
ser sombrio, a tabela de valores da família incluiu este fator:
- Não aceitar o retorno de A. para casa e pedir internação hospitalar por tempo
indefinido.
A. não pode ser abandonado pela família. Um centro especializado com uma
abordagem multidisciplinar (tratamento clínico, psiquiátrico, psicológico, terapia
ocupacional, educação física e oficina de arte) proporcionaria a participação da família
no tratamento até que ele diminua sua compulsão pelo uso da droga.
Podemos concluir, portanto, que, do ponto de vista objetivo (Nível I), é eticamente
incorreta a postura da equipe terapêutica de enviar A. de volta para casa. E que, do
ponto de vista subjetivo (Nível II), é eticamente incorreta a atitude da família de solicitar
uma internação hospitalar por tempo indefinido para A., uma vez que isso significaria
abandoná-lo.
PASSO III: EXPERIÊNCIA MORAL (Teleológica)
Conseqüências objetivas ou de nível 1
Conseqüências subjetivas ou de nível 2
Avaliemos agora a bondade das conseqüências.
A conseqüência objetiva, ou de nível 1, é que o retorno do paciente à casa e a
permanência de A. numa internação em hospital psiquiátrico de forma indefinida são
claramente maleficentes. Ele não pode ficar sem um tratamento adequado para o seu
caso e não pode ser abandonado pela família. Conforme relatado na história clínica
houve redução do consumo de álcool e diminuição do conflito familiar durante a
192
internação de A. no hospital psiquiátrico o que significa que esperança de cura para
ele num centro especializado.
A conseqüência subjetiva, ou de nível 2, é a manutenção indefinida da
hospitalização de A. por vontade da família que claramente não está interessada no
maior benefício pessoal de A. Notemos que a família, devido à falta de competência de
A. para decidir sobre sua vida, é a maior guardiã de seus interesses e benefícios. Sua
atitude de mantê-lo hospitalizado indefinidamente não zela por seus interesses e não é
beneficente para ele.
PASSO IV: VERIFICAÇÃO MORAL (Justificação)
Contraste o caso com a “regra” tal como se encontra no esquema moral (passo II).
Contraste se é possível justificar uma “exceção” à regra no caso concreto. (passo III).
Contraste a decisão tomada com o sistema de referência moral, tal como se encontra ali
expressado (passo I).
O tratamento de A. pela equipe terapêutica de um hospital psiquiátrico e a
manutenção de A. em casa não solucionam o problema. É possivel justificar uma
solução intermediária através do encaminhamento para um centro multidisiciplinar de
tratamento de transtorno de adicção que prevê a participação da família. Esta é a
melhor forma de garantir o cumprimento do sistema de referência moral “enquanto
pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual consideração e respeito.”
3.4.3. CASO CLÍNICO Nº 3
Paciente de 41 anos de idade, religiosa, de nacionalidade colombiana, que acode
à consulta pela primeira vez no mês de novembro de 1997. Antecedentes pessoais de
alergia medicamentosa a Nolotil, Buscapina, Torecane a alguns antibióticos
(Vancomicina). Recebeu intervenção cirúrgica em fevereiro e julho de 1996, realizando
pancreatectomia corpo-caudal de 90% do pâncreas por crises hipoglicêmicas de
repetição sem poder estabelecer a etiologia e com anatomia patológica de hiperplasia
193
benigna de células beta (nesidioblastose do adulto), assim como esplenomegalia e
anaxectomia esquerda por quisto seroso simples.
Estudada em julho de 1997 por amenorréia e galactorréia de 5 meses de
evolução, demonstrando-se hiperprolactinemia moderada e não aparecendo alterações
hipofisárias na RMN. Edemas em ambas as pernas que diminuem com a administração
oral de Seguril ou Salidur. Dor hemicrânia freqüente. Paralisia facial no ano de 95.
Hipercolesterolemia.
Naquele momento se encontrava em tratamento com: Ameride 1c/dia; Seguril
1c/12 h; Sibelium 2c/noite; Parlodel 2,5mg 1c/12h; Trialmin 600mg 1c/dia e Lipograsil ou
Evacol. Tinha analítica de data de 24/09/97 com glicemia 61; uréia 56; colesterol 323;
triglicerídeos 218; insulina 64,7 (valores normais entre 5-25) e o exame físico revelava
grandes edemas bilaterais em pés e pernas. Refere astenia intensa, sensação de
inchaço, prostração, sonolência, intolerância aos ambientes frios e aumento de apetite
com tonturas se está há algum tempo sem comer.
Análises clínicas em nov/97: glicose, 46; insulina 109; colesterol 362;
triglicerídeos 204; HDL 43; LDL 278; fator de risco 8,4; PRL 39,8 (valores normais < 25).
Ecografia abdominal sem alterações significativas, sem uropatia obstrutiva.
Realiza-se estudo da secreção de TSH e PRL depois de estímulo com TRH e
curva de glicemia, insulina e glucagón depois de sobrecarga com 100 g de glicose oral.
TAC abdominal: hepatomegalia com parênquima homogêneo. Sem LOES.
Esplenectomia. Cabeça e “uncinado” pancreático discretamente aumentados de
tamanho, homogêneo, sem captações patológicas. Discreta hiperplasia adrenal
esquerda. Importante distensão intestinal.
Durante seu estudo, realizaram-se determinações sem aviso prévio, quando a
enferma acudia à consulta, sendo as glicemias e as insulinemias normais e o pepetídeo
194
C baixo. No entanto, quando a coleta de sangue era programada, a glicemia era muito
baixa, a insulinemia muito elevada, e o peptídeo C seguia sendo normal.
Suspeitando-se de administração exógena de insulina foi decidida sua internação
para a realização de prova de jejum. Durante a qual e prévia informação à Superiora da
comunidade e em sua presença, foi realizado o registro de pertences da enferma,
encontrando-se ocultos comprimidos de um antidiabético oral, Daonil (Glibenclamida),
no duplo fundo de um pequeno estojo para guardar pastilhas, juntamente com três
seringas de insulina, uma seringa normal de 5 ml com agulha de insulina e um frasco
de Evacuol contendo um líquido que evidentemente não correspondia a dito laxante e
com cheiro e aspecto de insulina e que posteriormente foi confirmado pelo laboratório
como tal.
Foram informadas tanto a Superiora como a Madre Provincial do achado e da
importância e gravidade da situação, pois durante seu ingresso a paciente sofreu um
coma hipoglicêmico que requereu a administração IV de “glucosmón” e glicose a 10% e,
novamente, ao receber alta essa mesma noite em seu convento outro coma ao que
tiveram de acudir os Serviços de Urgência SAMUR para tratá-la. Por tudo isso, foi
decidido transferi-la à enfermaria da comunidade e retirar de junto dela todos os seus
pertences para evitar que pudesse administrar-se mais insulina. Durante os dias que
permaneceu na tal enfermaria não apresentou nenhuma crise hipoglicêmica.
Mantive uma conversa a sós com a enferma explicando-lhe nossas dúvidas sobre
sua enfermidade e perguntando-lhe se tomava ou se administrava alguma medicação.
Tudo foi negado pela paciente. Recomendei a consulta imediata a um psiquiatra para a
avaliação e tratamento de seu transtorno e a prevenção de possíveis comas
hipoglicêmicos que pudessem ter um desenlace fatal. Devido ao fato de que a enferma
havia sido transferida a seu país, Colômbia, suas superioras decidiram que realizasse a
viagem e fosse tratada lá.
195
De acordo com o relatado, a enferma tem como diagnóstico a Síndrome de
Münchausen ou laparatomafilia, transtorno psiquiátrico grave que deve ser tratado e
controlado. Duvidamos que houvesse alguma alteração no pâncreas operado por duas
vezes, sendo uma síndrome provocada pela própria paciente ao administrar-se insulina.
Fica pendente completar o estudo de sua hiperprolactinemia e da hiperplasia
supra-renal.
RESOLUÇÃO DO CASO CLÍNICO Nº 3
1 – DELIBERAÇÃO SOBRE OS FATOS
1) Ausência de confidencialidade;
2) Falta de competência (por mentira ou negligência);
3) Substituta legal (a Superiora);
4) Multiculturalismo;
5) Falta de história clínica fidedigna;
6) Má prática médica anterior;
7) Limite de ação do médico;
8) Diagnóstico: Síndrome de Münchausen (a paciente provoca, oculta e mente
sobre sinais e sintomas). Crises hipoglicêmicas de repetição, pancreatectomia
corpo caudal de 90%, administração exógena de insulina. Médicos primeiramente
pensavam em insulinoma (tumor nas células beta)
9) Tratamento: Psiquiátrico.
2 – DELIBERAÇÃO SOBRE OS VALORES
Existe conflito entre a beneficência (entendida pela equipe médica como cura da
paciente e pela paciente como ganho secundário para angariar atenção ou cuidado) e a
não-maleficência (a paciente se autolesiona).
196
PASSO I: SISTEMA DE REFERÊNCIA MORAL (Ontológico)
Premissa ontológica: o homem é pessoa, e enquanto tal, tem dignidade e não preço.
Premissa moral: enquanto pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual
consideração e respeito.
Confrontar o problema com o sistema de referência moral ou critério moral
“enquanto pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual consideração e
respeito.”
A própria paciente mente à equipe simulando patologias orgânicas através de
autolesões. Ao prejudicar sua integridade física está desrespeitando a si mesma e
infringindo o sistema de referência da moralidade. Dano psiquiátrico evidente. Sua
atitude já é claramente antiética neste primeiro passo, dispensando continuar os passos
do método. Continuaremos no passo seguinte para provar que tudo se confirma
novamente.
PASSO II: ESQUEMA MORAL (Deontológico)
Nível I: Não-maleficência e Justiça
Nível II: Beneficência e Autonomia
Agora devemos medir o ato de autolesionar-se, de mentir para os médicos sob o
ponto de vista da correção objetiva ou tabela de direitos (não-maleficência e justiça) e
quanto à correção subjetiva ou tabela de valores (autonomia e hierarquia de valores do
sujeito). O Nível I: ação claramente maleficente da paciente consigo própria e injusta
para com os médicos que querem tratá-la ao mentir para eles. O Nível II: o benefício
obtido pela paciente de angariar atenção e cuidado é um valor obtido de forma bizarra.
Podemos concluir que está eticamente incorreta tanto objetiva como
subjetivamente a ação da paciente.
197
DECISÃO:
Tratamento psiquiátrico com pretensão de melhora a médio prazo para atingir os
problemas psicológicos subjacentes.
3.4.4. CASO CLÍNICO Nº 4
Antecedentes do caso
Menino de 3 anos e meio de idade diagnosticado com um ano de vida de
encefalopatia (Leucodistrofia: provável enfermidade de Alexander ou enfermidade de
Canavan, o se realizou biópsia). Pais jovens e sãos, não-consangüíneos, único filho,
ausência de abortos.
Foi realizada cesárea por sofrimento fetal agudo. Retardo psicomotor ao quarto
mês de vida, iniciando, então, fisioterapia reabilitadora neste Centro sendo estudado por
neurologista infantil; identificado diagnóstico de leucodistrofia aos 12 meses e mediante
ressonância magnética nuclear, sendo negativo o estudo metabólico e citogenético. Um
mês mais tarde começa com crises epilépticas, iniciando tratamento com ac. valpróico,
difenilhidantoína e clonazepan. Neste momento e diante do quadro que apresentava o
menino, o neurologista responsável lhes comunicou que seu filho iria ser “um vegetal” e
indagou se eles iriam colaborar para que seguisse vivendo prolongando sua agonia. A
partir desse momento, os pais iniciam seu processo de reflexão sobre o caso
especialmente centrado na atitude diante de uma parada cárdio-respiratória. Desde
então, o menino passa a ser portador de uma sonda nasogástrica sendo transferido a
outro Centro para tentar delimitar e afiançar o diagnóstico. Realiza-se um conselho
genético diante da possibilidade de herança auto-sômica recessiva, aconselhando o
ter mais descendência.
198
Neste Centro não se produz empatia com os profissionais de saúde, sobretudo
com o neurologista, manifestando a e: “Não gostam de nós, estamos estorvando...”,
o que motivou conflito de relação em várias ocasiões nas quais, segundo refere a mãe,
não foi concedida pelos médicos a internação em UTI pediátrica e, inclusive, a
adminstração de oxigênio. Segundo o Chefe de Departamento, ele não internou na
UTI em diversas ocasiões como também foi permitida a permanência constante da mãe
junto a seu filho, não ocorrendo a internação na UTI somente quando esta estava
lotada. Diante dessa situação de mau relacionamento, a mãe contacta com nosso
centro e através do Serviço de Neurologia atual o menino entra na Unidade de
Estimulação Precoce.
Na atualidade a situação familiar é de desestruturação, levando a maior parte do
peso à mãe e à avó, havendo montado em sua casa “uma UTI” ao dispor de aspirador,
oxigênio, pulsioxímetro e monitor de pausas de apnéia. A mãe vive voltada para o seu
filho com um vínculo tão forte que parece não se haver rompido a unidade, não quer
que o pai mobilize a seu filho porque ela considera que é uma “porcelana”; consultou
bibliografia sobre o caso de seu filho, tentou um curso de logopedia e está inscrita num
curso de R.C.P básica que se vem realizando neste Hospital.
Situação atual
Em relação à deterioração psicológica, o paciente se encontra num estado
terminal com situação vegetativa, quer dizer, não mantém conexão com o meio, mas
apresenta certo sono/vigília embora alterado, respiração com função cardiovascular
sem mobilidade ativa; não emite som, no entanto a mãe refere algum queixume
ocasional. Episódios de apnéias freqüentes mais prolongadas, até de 15 segundos nos
últimos dias com bradipnéia de até 9 rpm, o que motivou sua internação atual.
Desde o ponto de vista da crise, manteve um controle aceitável até dezembro de
1997, em que em outro Centro se reduziu a dose de Clobazan e Carbamazepina diante
199
dos níveis elevados desta. A partir de então, começa novamente com crises que foram
progressivamente aumentando, motivo pelo qual se voltou à dose anterior.
Nesta situação, o menino internou no nosso Centro, apresentando às 15 horas
de sua internação quadro de bradicardia com pausas de apnéia prolongada e
bradipnéia, da qual se recupera espontaneamente. Eu, como médico responsável do
menino, comento com a família a situação clínica terminal do mesmo e a possibilidade
que tem de apresentar parada cárdio-respiratória, sendo interrompido pela mãe que me
manifesta que isso já havia sido colocado para ela em outras ocasiões em outro Centro.
A fisioterapeuta que acompanha o menino desde os quatro meses perguntou à
mãe o que fazer no caso de uma parada e, especialmente, se acontecesse numa
sessão de estimulação precoce; ao que a mãe manifestou seu desejo de fazer tudo o
que fosse possível. A mãe tem convicções religiosas fortes e duvida se a atitude de não
realizar manobras extraordinárias está permitido pela Igreja Católica e me pergunta se
não realizar ditas manobras é eutanásia. Explico-lhe os diferentes tipos de eutanásia e o
conceito de encarniçamento terapêutico / dignidade humana; informo-lhe igualmente da
existência de um Comitê de Ética integrado por vários profissionais, entre eles três
sacerdotes, e que se o deseja se pode fazer uma consulta sobre o caso, sendo-lhe
enviada uma resposta por escrito com o objeto de iluminar sua consciência, ao que ela
responde afirmativamente.
Depois da conversa mantida com a mãe, ela concorda em o realizar entubação
nasotraqueal e conexão ao respirador nem traqueotomia, embora considerasse e
insistisse que pelo menos se deveria realizar massagem cardíaca. Concorda em não
interná-lo na UTI para poder estar com ele e acariciá-lo.
RESOLUÇÃO DO CASO CLÍNICO Nº 4
1 – DELIBERAÇÃO SOBRE OS FATOS
1) Encarniçamento terapêutico;
200
2) Distribuição de recursos;
3) Incompetência da mãe para decidir. Relação possessiva simbiótica com o filho;
4) Fundamentalismo religioso da mãe;
5) Direito da mãe;
6) Qualidade de vida do paciente: estado vegetativo;
7) Desestruturação familiar;
8) Diagnóstico: leucodistrofia (doença degenerativa cerebral);
9) Tratamento: desconhecido (enfermidade genética).
2 – DELIBERAÇÃO SOBRE OS VALORES
Existe conflito entre a beneficência (entendida pela mãe como “fazer todo o
possível” para que seu filho se mantenha vivo e pelo médico como suspensão do
tratamento) e a não-maleficência (encarniçamento terapêutico).
PASSO I: SISTEMA DE REFERÊNCIA MORAL (Ontológico)
Premissa ontológica: o homem é pessoa, e enquanto tal, tem dignidade e não preço.
Premissa moral: enquanto pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual
consideração e respeito.
Confrontar o problema com o sistema de referência moral ou critério moral
“enquanto pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual consideração e
respeito.”
A mãe é quem pode decidir pelo bem de seu filho enfermo de três anos. Ela
estava certa em hospitalizá-lo buscando tratamento para ele ao descobrir depois de seu
nascimento que ele se apresentava enfermo. Os médicos não vêem esperança três
anos depois para a situação dele. O filho está praticamente morto com os órgãos
vitais operando com sinais claros de deterioração funcional. A mãe, de forma
inconsciente, com um fator religioso determinante, acredita estar cumprindo em relação
ao filho com o sistema de referência moral.
201
PASSO II: ESQUEMA MORAL (Deontológico)
Nível I: Não-maleficência e Justiça
Nível II: Beneficência e Autonomia
Agora devemos medir o ato de manter o filho em tratamento hospitalar quanto à
correção objetiva ou tabela de direitos (não-maleficência e justiça) e quanto à correção
subjetiva ou tabela de valores (autonomia e beneficência ou hierarquia de valores do
sujeito). O Nível I: a manutenção do tratamento do filho é claramente maleficente, pois
não possibilidade nem de melhora da situação e nem de cura. Nível II: a
beneficência entendida pela mãe como “fazer todo o possível” para que seu filho se
mantenha vivo está enquadrada num distúrbio psicológico que a torna incapaz de
aceitar a morte do filho.
Podemos concluir, portanto, que é eticamente incorreta, tanto objetiva quanto
subjetivamente, sua decisão de continuar mantendo o tratamento de seu filho.
PASSO III: EXPERIÊNCIA MORAL (Teleológica)
Consequências objetivas ou de nível 1
Consequências subjetivas ou de nível 2
Avaliemos agora a bondade das conseqüências da decisão da mãe em relação
ao filho. As conseqüências objetivas ou de Nível I são o encarniçamento terapêutico
farmacológico do filho com intensificação dos sinais de deterioração dos órgãos vitais
prolongando seu sofrimento; são claramente maleficentes. As conseqüências subjetivas
ou de Nível II não são beneficentes em relação ao filho.
PASSO IV: VERIFICAÇÃO MORAL (Justificação)
Contraste o caso com a “regra” tal como se encontra no esquema moral (passo II).
Contraste se é possível justificar uma “exceção” à regra no caso concreto. (passo III).
Contraste a decisão tomada com o sistema de referência moral, tal como se encontra ali
expressado. (passo I)
202
A regra que normalmente diz que é beneficioso para o enfermo manter o seu
tratamento encontra neste caso justificativa que permite aceitá-la como exceção, quer
dizer, a manutenção do tratamento deste menino é maleficente para ele porque não
esperança de cura, seus órgãos vitais estão em progressiva e irreversível deterioração,
e sua mãe padece de distúrbio psicológico que a leva a manter a vida do filho de forma
obsessivo-compulsiva. Nele, portanto, não se cumpre o sistema de referência moral
“enquanto pessoas, todos os homens são iguais e merecem igual consideração e
respeito.”
DECISÃO:
Parar com a reanimação do menino que está em estado vegetativo persisitente.
Oferecer acompanhamento psicológico para a mãe.
203
Considerações finais
A proposta desta dissertação foi apresentar a fundamentação da bioética
segundo Diego Gracia Guillén, propor seu procedimento de avaliação ética de casos
clínicos como extensão da história clínica, aplicá-lo em quatro casos concretos, e expor
os alcances e limites do principialismo em bioética clínica.
A partir do momento em que a Medicina passou a ser pensada bioeticamente
fato presente no mundo nos últimos trinta e cinco anos –, a concepção subjacente ao
seu exercício mudou radicalmente com a seguinte convicção: o processo de tomada de
decisões pode ser de qualidade se forem considerados e manejados
adequadamente os valores e não somente os fatos provenientes da clínica. O médico
não acertará eticamente em sua decisão se tomá-la de forma intuitiva. Para dotá-la de
razoabilidade, quer dizer, de possível fundamentação racional, pois deve apresentar-se
consistente no diálogo com seus pares e com a sociedade, ele deve percorrer um
procedimento de avaliação ética já analisado e confirmado filosoficamente em todos os
seus passos. Este respaldo no procedimento de avaliação ética por ele utilizado é a
garantia da eficiência de suas decisões no movediço âmbito da ética incapaz de
oferecer certezas. Sua decisão, não mais do que provável, pode ser razoável, quer
dizer, conforme a racionalidade. E hoje ninguém está isento de apresentar suas
posições sem fundamentá-las. O médico, como importante agente social, tem à sua
disposição um procedimento de avaliação ética respaldado pela filosofia e poderá tomar
suas decisões à altura que sua missão exige.
A Medicina baseada em evidências não é tão evidente assim. Ter à disposição as
melhores evidências científicas em termos de meios diagnósticos e terapêuticos ainda
não é o suficiente para que assistência sanitária seja considerada ideal; é apenas o
ponto de partida para o pensamento ético poder atuar, pois uma boa ética se faz com
bons dados. Na vida moral nem tudo é cálculo de utilidade. A Medicina baseada em
evidências não dispensa a análise ética de um caso clínico, uma vez que fatos e valores
estão sempre imbricados. Outorgar à precisão científica ou à estatística valor normativo
204
não é instrumento válido para orientar-nos da melhor forma no âmbito da Medicina
científica. São a hierarquia de valores do enfermo, o discernimento ou prudência e a
análise das conseqüências o que tornam relevante a evidência científica que o médico
tem em mãos. Também a investigação científica envolvendo seres humanos o pode
violar determinados princípios éticos.
Concepções subjacentes ao exercício da profissão médica anteriores ao
surgimento da bioética foram o cartesianismo, o positivismo e a teoria da decisão
racional.
Descartes para manejar idéias claras e distintas utilizou a matemática como
modelo de sua conceão mecanicista do corpo humano e, por conseguinte, da própria
atividade sanitária, conflagrando assim uma redução antropológica. Ao afirmar que a
alma é independente do corpo, este podia ser tratado sem considerar a dimensão
pessoal do enfermo. A dimensão fática da Medicina passava a ser a única considerada,
anulando a autonomia do enfermo e, conseqüentemente, sua dimensão valorativa. O
sistema cartesiano-matemático não previa nem o fracasso nem a compaixão. Era a-
histórico.
Os neopositivistas lógicos tentaram aplicar as categorias próprias da matemática
e da lógica ao método de funcionamento do entendimento e da razão, para, então,
definir ou demarcar o que é científico do que não é. Eles pensavam que se a ética fosse
realmente um conhecimento estrito e rigoroso deveria submeter-se, como cririo de
validade epistemológica, aos métodos próprios da ciência.
A teoria da decisão racional propunha um método estatístico de tomada de
decisões que maximizasse as conseqüências ou expectativas de valores e utilidades do
sujeito que tomaria a decisão.
Tanto uma como outra dessas três concepções confundiram a ciência e a ética
como portadoras de um mesmo tipo de discurso. O discurso científico é descritivo, quer
205
dizer, formado primariamente por proposições descritivas próprias dos sistemas de
pensamento. O discurso moral é dialético ou provável formado por proposições
prescritivas e práticas correspondentes aos sistemas de ação. O discurso dialético
refere-se ao complexo mundo das opiniões onde as razões apresentadas não esgotam
o problema. Todo raciocínio na medicina e na moral são dialéticos. Os argumentos
como as decisões não oferecem certeza, mas probabilidade. Na bioética não se busca a
decisão certa, mas a melhor decisão entre as prováveis. O procedimento de avaliação
ética de um caso clínico é um meio seguro de otimização da decisão a ser tomada.
Acrescente-se a essa tentativa de predomínio e autolegitimação da ciência o
espaço insubstituível da filosofia como instância de confronto, orientação e ajuda para
humanização das descobertas científicas e suas novas aplicações tecnológicas. É um
fato comprovado que a razão científica não consegue por si própria tomar distância de
sua obra, compreendê-la e, mediante correções necessárias, melhorar a vida humana
de forma inconfundível. Os cientistas e médicos necessitam dialogar bioeticamente com
os filósofos. Estes necessitam dos problemas apresentados pelos primeiros para que
suas reflexões alcancem sua autêntica relevância.
Entendemos como limites do principialismo na bioética clínica com seus
correspondentes alcances os seguintes abaixo relacionados:
1) O principialismo estrito é um método lógico e dedutivo de aplicação de princípios
deontológicos para a solução de casos. Apresentamos, no início desta dissertação, que
o conhecimento dos primeiros princípios, próprio dos filósofos antigos, representava a
consistência do pensar filosófico. Ao aplicar dedutivamente princípios universais e
metafísicos aos casos concretos a concepção estrita do principialismo percebeu-se
que esta não dá conta das exceções e, portanto, de sua justificação. Estamos diante de
um fato: a aplicação de certos princípios conforme o método dedutivo não abrange, nem
fundamenta a pluralidade de decisões existentes. Esta insuficiência na ética naturalista
chegou ao paroxismo, como vimos, na confessionalização da ética na Idade Média. O
casuísmo em si não é um problema porque é possível interpretar eticamente os casos
206
clínicos. Problema é o principialismo estrito considerado como elemento constitutivo do
casuísmo
1
.
Diante deste limite do principialismo estrito, revela-se como alcance o
principialismo compreendido de forma ampla. Esta concepção do principialismo trata da
aplicação das teorias morais baseadas em princípios para resolver conflitos de valores
na bioética clínica conforme os trabalhos iniciados por Beauchamp e Childress. O
método bioético principialista assumido por Diego Gracia toma esta concepção como
ponto de partida e a aperfeiçoa. O método de Diego Gracia é dedutivista porque
começa confrontando os problemas éticos dos casos clínicos com o sistema de
referência moral ou cânon da moralidade e depois, no final, volta a ele para legitimar a
decisão tomada e é indutivista porque analisa estes problemas éticos utilizando os
princípios da bioética como axiomas de atuação prudencial. Assim todas as decisões e
também as exceções podem ser justificadas quanto a sua otimização, confirmação ou
rechaço.
2) Não existem princípios morais que possam ser considerados como deontológicos,
universais e sem exceções, quer dizer, absolutos. É absoluto somente o cânon da
moralidade, isto é, todos os homens em princípio somos iguais e merecemos igual
consideração e respeito. Ele é puramente formal porque carece de conteúdos materiais
concretos e de caráter preceptivo e deontológico. Ele pode, como sistema de referência,
fundamentar uma ética, mas não serve para tomar decisões concretas. Estas devem
contar com o sentido pragmático da ética; pertencem à ordem dos imperativos
hipotéticos, são prudenciais, isto é, analisam o materialmente possivel.
Comete-se um erro quando se pensa eticamente só a partir de categorias
lógicas.
Toda a ética racionalista de Platão a Kant afirmou a existência de algum tipo de
princípio moral que pudesse ser considerado como absoluto. No entanto, toda a teoria
ética apresenta algum princípio como absoluto. A diferença é que o cânon da
moralidade é puramente formal e não deontológico. Sua presença evita que caiamos no
relativismo.
207
As normas morais legitimam-se pela via da racionalidade intersubjetiva. É
necessário que haja deliberação uma busca prudencial de forma consensuada em
que sejam considerados os interesses de todos os envolvidos.
Diante deste limite da inexistência de princípios absolutos, revela-se como
alcance o que Toulmin chama de ideais explicativos. Com a crise do racionalismo a
partir da segunda metade do século XIX, constatou-se que os produtos da razão não
podem mais ser absolutos, puros ou formais. Os produtos da razão podem ser
históricos, circunstanciados e materiais. Passou-se a crer que a capacidade da razão
era somente a de elaborar hipóteses e teorias no interior do que Toulmin chama de
ideais explicativos. Eles são padrões históricos de racionalidade e inteligibilidade que
dão sentido aos fatos. Ou, em outras palavras, são os marcos referenciais ou
pressupostos da racionalidade que manejam conteúdos materiais.
Aqui se inserem os quatro princípios da bitica capazes de manejar
especificamente os conflitos de valores provenientes da clínica e, de forma geral, como
exemplo citado no terceiro capítulo, os direitos humanos civis e políticos. Eles
eficientemente se comportam, para a glória dos médicos, como axiomas de atuação
prudencial e indutiva. Os quatro princípios são núcleos de confluência de todo o
universo de valores que entra em jogo na práxis médica. Eles operam como esboços
racionais que nos aproximam do ideal explicativo ou sistema de referência.
O juízo moral tem uma estrutura complexa em que algo é absoluto e algo é
relativo. Os juízos morais tem caráter sintético, pois se referem a fatos empíricos. Por
isso, eles não podem ser absolutos e necessários. A razão moral deverá ser sempre
histórica e casuística, mais próxima do casuísmo
2
, isto é, como um método de aplicação
prático e retórico que conta com a arte de realizarmos juízos prováveis sobre situações
individuais e concretas. O raciocínio moral compõe-se de dois passos: um principialista,
deontológico e a priori que estabelece as normas, e outro conseqüencialista, teleológico
e a posteriori que justifica as exceções.
208
3) Os princípios necessitam de justificação racional e uma fundamentação mais firme
em alguma das grandes tradições morais. Esta é a crítica de Baruch Brody ao
principialismo na bioética. Como vimos, os princípios da bioética coincidem com
principios básicos da moral civil e não de alguma moral específica ou de algum grupo.
Sua descoberta, como meio rápido na resolução de conflitos de valores, ocorreu
durante os trabalhos de uma comissão nacional para a elaboração de um relatório para
investigação com crianças. O objetivo era pragmático. Por isso, eles não trazem consigo
o protagonismo de um descobridor ou de um filósofo importante.
Diante deste limite da falta de maior fundamentação racional dos princípios da
bioética revela-se como alcance a fundamentação da ética apresentada por Diego
Gracia. A razão não racionalmente a realidade. Ela a constrói através da elaboração
de esboços prévios. Se a razão é capaz de esboçar a realidade é porque tem antes um
a priori desde onde esboçar. A fundamentação da ética apresentada por Diego Gracia
parte deste ponto para apresentar o sistema de referência moral ou cânon da
moralidade e os esboços morais correspondentes aos axiomas de atuação prudencial
ou princípios da bioética.
A ética tem uma dimensão formal, antepredicativa ou prejudicativa, que
corresponde à apreensão primordial estudada pela fenomenologia. Os seres humanos
são morais exatamente porque têm a formalidade da realidade. Ela é que nos faz fins
em si mesmos e, portanto, pessoas. A substantividade humana não é natural senão
moral.
4) Os princípios da bioética pertencem a um mesmo nível segundo Beauchamp e
Childress. Do embate dos autores frente ao problema de como hirarquizar os princípios
no caso de ocorrer um conflito entre eles não se consegue obter clareza.
Diante deste limite da concepção dos princípios da bioética como pertencentes
ao um mesmo nível, revela-se como alcance a contraposição de Diego Gracia que os
percebe em dois níveis hierárquicos distintos. Este filósofo entende que os princípios da
209
bioética devem ser ordenados em dois níveis: um privado, correspondente aos
princípios de autonomia e beneficência, que defende que devemos ser respeitados em
nossas diferenças, e outro público, equivalente aos princípios de não-maleficência e
justiça, que corresponde à base da ética civil, à igual consideração e respeito entre
todos os seres humanos. Os dois últimos correspondem aos deveres de obrigação
perfeita e predominam em caso de conflito com os outros dois que correspondem a
deveres de obrigação imperfeita. A clareza da concepção de Diego Gracia em relação à
anterior é evidente pelo exercício prático da resolução dos quatro casos clínicos aqui
apresentados. Vimos nesses exercícios que o procedimento e a fundamentação
caminham juntos. Esta é a sua grande vantagem.
A bioética é uma disciplina que nasceu para resolver situações particulares
revelando-se como um procedimento de tomada de decisões. Neste mundo de
incertezas, é possível decidir razoavelmente para viver decentemente.
210
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