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a nossa surdez e indiferença frente ao semelhante, denunciando assim o potencial destrutivo
que habita em cada um de nós.
Arendt (1999) em seu livro: “Eichmann em Jerusalém: um relatório sobre a banalidade
do mal”, ao desenvolver o célebre conceito de banalidade do mal
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, mostra-nos com muita
clareza que a crueldade se faz presente naqueles que de alguma forma estão dispostos a
sacrificar a tudo e a todos, se assim for preciso, para atingir os seus ideais. Como podemos
perceber no transcorrer desta leitura, tamanha barbárie só é possível se realizar, mediante a
absoluta incapacidade de se identificar diante da dor e do sofrimento dos outros. É justamente
ai que a sabedoria tanto de King, quanto de Arendt, mostram-nos que a estratégia para
enfrentar a violência implica, tanto em romper as mordaças e colocar a palavra em circulação
engendrando os possíveis mecanismos de potencialização do diálogo, quanto interrogar os
medíocres pactos de cumplicidades que, por vezes, podemos estabelecer.
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Este conceito a autora desenvolve a partir da sua participação enquanto jornalista política no histórico
julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém. Eichmann fora capturado num subúrbio de Buenos Aires por um
comando israelense na noite de 11 de maio de 1960, voou para Israel nove dias depois e fora levado a
julgamento na Corte Distrital de Jerusalém em 11 de abril de 1961, objeto de cinco acusações: “entre outros”,
cometera crimes contra o povo judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, durante todo o período do
regime nazista e principalmente durante o período da Segunda Guerra Mundial. A Lei (de Punição) dos Nazistas
e Colaboradores dos Nazistas, de 1950, sob a qual estava sendo julgado, previa que “uma pessoa que cometeu
um desses [...] crimes [...] está sujeita à pena de morte”. A cada uma das acusações, Eichmann declarou-se:
“Inocente, no sentido da acusação”. Segundo Arendt, “a defesa aparentemente teria preferido que ele se
declarasse inocente com base no fato de que, para o sistema legal nazista então existentes, não fizera nada
errado; de que aquelas acusações não constituíam crimes, mas “atos de Estado”, sobre os quais nenhum outro
Estado tinha jurisdição, de que era seu dever obedecer e de que, nas palavras de Servatius, cometera atos pelos
quais “somos condecorados e vencemos e condenados à prisão se perdemos.” (ARENDT, 1999, p.32-33) Um
dos grandes impactos deste julgamento - o maior julgamento de um carrasco nazista desde o tribunal de
Nuremberg, pois o réu era um dos principais responsáveis pelo maior massacre da história da humanidade que se
tem conhecimento – ocorreu na medida em que os presentes esperavam se defrontar com uma figura monstruosa,
com arrojadas habilidades intelectuais, seguida de uma personalidade forte e persuasiva. Entretanto, para a
surpresa e, talvez, decepção de todos, encontram-se com um sujeito de frágil formação intelectual, genuinamente
incapaz de pronunciar uma única frase que não fosse um clichê burocrático, haja vista a absoluta incapacidade de
refletir acerca dos seus atos. Em contrapartida, Eichmann, demonstrou-se um exímio burocrata, uma máquina de
cumprir ordens e um idealista implacável disposto a sacrificar tudo e, principalmente, todos, deixando isto claro
ao dizer no interrogatório da polícia que teria mandado seu próprio pai para morte se isso tivesse sido exigido, ou
seja, estava disposto a destruir qualquer um que interferisse em suas ações. O que importava era simplesmente o
imperativo categórico: “Aja de tal modo que o Führer se souber de sua atitude, a aprove.” (Idem, 1999, p. 274)
Ao ser condenado culpado e ter como pena de morte a forca, antes de morrer refere: “Dentro de pouco tempo,
senhores, iremos encontrar-nos de novo. Esse é o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a
Argentina, viva a Áustria. Não as esquecerei”. Segundo a autora, ainda diante da morte ele encontrou o clichê
usado na oratória fúnebre. “No cadafalso, sua memória lhe aplicou um último golpe: ele estava “animado”,
esqueceu-se que aquele era seu próprio funeral. Foi como se naqueles últimos minutos estivesse resumindo a
lição que este longo curso de maldade humana nos ensinou – a lição da temível banalidade do mal, que desafia
as palavras e os pensamentos.” (Idem, 1999, p.174) Portanto, através deste longo relatório, Arendt nos interroga
o quanto à burocratização da vida pública é uma espécie de encarnação do mal que corrói e ameaça as
sociedades democráticas.