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O Castro, que não admirara o matiz da rosa, notou a mácula e desgostou-se
dela. Ele sentia-se com forças para amar o feio e o desgracioso, mas não o
disforme, o horrível. Essa aberração da figura humana, embora em um ponto só, lhe
parecia o sintoma, senão o efeito, de uma monstruosidade moral.
Triste, acabrunhado por pensamentos acerbos, o moço continuou seu
caminho pela Rua dos Ouvires em direção a casa. Mal havia andado alguns passos,
arrependeu-se; não queria levar à sua habitação esse primeiro transbordamento de
um dissabor tão profundo; era melhor deixá-lo escoar-se antes de recolher à solidão
habitual. Se tivesse alguma coisa a fazer! Qualquer ocupação bem aborrecida e
maçante, que lhe servisse de antídoto ao desgosto íntimo!
Excogitou. Havia ali perto, na Rua Sete de Setembro, uma pequena loja de
sapateiro, ou antes uma tenda, porque além do balcão via-se apenas uma tosca
vidraça, contendo a obra de três oficiais que aí trabalhavam.
A loja pertencia a um mestre fluminense, que trabalhara por algum tempo na
casa do Guilherme e do Campàs, e se iniciara portanto em todos os segredos da
arte. Ninguém a exercia com mais habilidade, esmero e entusiasmo do que ele; sua
obra, quando queria, não tinha que invejar ao produto das melhores fábricas de
Paris, se não o excedia na elegância e delicadeza.
A razão cardeal de toda a superioridade humana é sem dúvida a vontade. O
poder nasce do querer. Sempre que o homem aplique a veemência e perseverante
energia de sua alma a um fim, ele vencerá os obstáculos, e se não atingir o alvo,
fará pelo menos coisas admiráveis. Mas para que o homem se entregue assim a
uma idéia e se cative a um pensamento, é necessário ser atraído irresistivelmente,
ser impelido pelo entusiasmo.
É o entusiasmo que faz o poeta e o artista, o sábio e o guerreiro; é o
entusiasmo que faz o homem — idéia diferente do homem-máquina. A fábula de
Prometeu' não exprime senão a alegoria desse fogo celeste d'alma, que anima as
estátuas de Galatéia, embora depois dilacere o coração como a águia do rochedo.
Uma faísca dessa eletricidade moral opera maravilhas iguais à centelha do raio. O
que é o telégrafo a par com a eloqüência?
O Matos tinha o entusiasmo de sua arte; descobrira nela segredos e encantos
desconhecidos aos mercenários. Para ele o calçado era uma escultura; copiava em
seda e couro, assim como o cinzel copia em gesso e mármore. Os outros artistas da
forma reproduzem todo o vulto humano ou pelo menos o busto; ele só tinha um
assunto, o pé. Mas que importância não tomava a seus olhos esta parte do corpo!
Era preciso ouvi-lo, em algum momento de arroubo, para fazer idéia de sua
admiração por esse membro da criatura racional.
Depois de trabalhar muitos anos em casas francesas, o mestre fluminense
resolveu estabelecer-se por sua conta. Alugou uma pequena loja de duas portas,
onde trabalhava com dois oficiais. A necessidade de ganhar o pão o obrigava a
tornar-se mercenário, fazendo obra de carregação para vender barato. Mas no meio
dessa tarefa ingrata tinha ele suas delícias de artista. Meia dúzia de fregueses,
conhecedores da habilidade do sapateiro, preferiam seu calçado ao melhor de Paris,
e o pagavam generosamente. Essas raras encomendas, o Matos as executava com
enlevo; revia-se em sua obra, verdadeiro primor.
Leopoldo não era um freguês da última classe; ele não conhecia a
voluptuosidade de um calçado macio, antes luva do que
sapato; seu pé não era um enfant gaté, um benjamim acostumado a essas delícias;
desde a infância o habituara a uma vida rude e austera entre a sola rija e o bezerro.
Além de que seus haveres não chegavam para tais prodigalidades.