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capitalista sem débito. — “A noiva estava pronta?” — perguntou. E, sem esperar resposta,
começou a contar um incidente que lhe sucedera no hotel no momento em que se vestia.
Nada, uma infâmia que não lhe atingia a sola dos sapatos. Uma carta anônima contra a -
reputação da Lídia, coisas do Ceará, coisas dessa terra...
Incomodara-se a princípio, o sangue subira-lhe à cabeça ao ler semelhantes torpezas, mas
acalmara-se logo, porque não valia a pena a gente incomodar-se por uma carta anônima
escrita em péssima letra e, o que era mais, acrescentou convicto o Loureiro, “sem assinatura!”
A viúva não se inquietou, atarefada, suando, muito apertada na sua toalete de seda
escarlate, os grandes seios ameaçando romper o corpete, e uma rosa no cabelo. — Calúnias,
nada mais, observou servindo o vinho. O guarda-livros emborcou o cálice à saúde da noiva,
gabando a boa qualidade do Porto.
A pequena sala de jantar, caiadinha de novo, tinha agora outro aspecto mais asseado e
alegre, sem manchas de gordura nas paredes amareladas como dantes, com vasos de flores no
aparador, iluminada a vela de espermacete. Sobre a mesa do centro, coberta com um pano
novo de riscadinho encarnado, pousavam duas lanternas antigas em forma de sino, jarros,
pratos com bolos e garrafas intactas dispostas em simetria. O chão de tijolo ainda estava meio
úmido da baldeação que se fizera na véspera. De resto os mesmos móveis de costume: um
lavatório de ferro com espelho defronte do corredor, a mesa de jantar, o aparador de nogueira
e o guarda-louça, uma velha peça que fora do tempo do marido de D. Amanda.
A verdadeira casa do Loureiro, o ninho em que ele ia passar a lua-de-mel com a Lídia era
no Benfica, uma casinha também de porta e janela, mas muito fresca e alegre, nova, ainda
cheirando à tinta. Resolvera não fazer festa. Um “copito” de vinho aos amigos, um taco de
bolo e o deixassem em paz com a sua “querida”. Tinha feito muitas despesas com o
casamento. Da igreja iria diretamente “para a chácara” onde ficava à disposição dos amigos.
Isso de pândega em noite de núpcias não era próprio, achava uma formidável maçada.
Demais não era nenhum milionário para não contar o dinheiro que gastava.
Uma miniatura, a casinha de Benfica, um sonho de poeta lírico, assobradada, com a sua
fachada azul ainda fresca, recebendo em cheio até o meio-dia toda a luz do nascente. Logo à
entrada havia uma escadinha de três degraus, de onde se via, lá dentro, nitidamente, como por
um cristal muito límpido, a sala de jantar e as bananeiras do quintalejo, de um verde tenro...
Sala de visitas, alcova, comunicando com um quarto, casa de jantar, varanda, despensa,
quarto para criado, cozinha e quintal, tudo asseado e confortável, com uns tons aristocráticos
matizando a compostura graciosa dos móveis, papel claro nas paredes e lustre na sala de
visitas.
Concluídas as obras da casa, o trabalho de renovação, Loureiro dera-se pressa em
mobiliá-la a seu jeito, conforme as suas posses e os seus hábitos de empregado zeloso e
metódico. Não pedira conselhos a ninguém: escolhera ele mesmo os móveis e os objetos
decorativos, tudo novo e lustroso, como se tivesse saído da fábrica naquele instante. Mandara
vir dos Estados Unidos, por intermédio da Casa Confúcio, um piano americano e uma
máquina de costura. E, uma vez tudo pronto, tudo no seu lugar, passou uma revista geral na
casa, desde a sala de visitas até o fundo do quintal, admirando com a alma cheia de satisfação
a espécie de paraíso que ele próprio criara para si.
— “Sim, senhor, tinha cumprido rigorosamente o seu dever. Estava tudo que nem um
brinco! Agora, sim, podia casar.”