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Apearam-se os dois e subiram.
Meneses mostrou a Estêvão o seu gabinete de trabalho, onde haviam duas
longas estantes de livros.
— É a minha família, disse o deputado mostrando os livros. História,
filosofia, poesia... e alguns livros de política. Aqui estudo e trabalho. Quando cá vier
é aqui que o hei de receber.
Estêvão prometeu voltar no dia seguinte, e desceu para entrar no coupé que
esperava por ele, e que o levou à Rua da Misericórdia.
Entrando em casa Estêvão dizia consigo:
“Onde está a misantropia daquele homem? As maneiras de misantropo são
mais rudes do que as dele; salvo se ele, mais feliz do que Diógenes, achou em mim
o homem que procurava.”
CAPÍTULO II
Estevão era o tipo do rapaz sério. Tinha talento, ambição e vontade de
saber, três armas poderosas nas mãos de um homem que tenha consciência de si.
Desde os dezesseis anos a sua vida foi um estudo constante, aturado e profundo.
Destinado ao curso médico, Estêvão entrou na academia um pouco forçado; não
queria desobedecer ao pai. A sua vocação era toda para as matemáticas. Que
importa? disse ele ao saber da resolução paterna; estudarei a medicina e a
matemática. Com efeito teve tempo para uma e outra coisa; teve tempo ainda para
estudar a literatura, e as principais obras da antigüidade e contemporâneas eram-lhe
tão familiares como os tratados de operações e de higiene.
Para estudar tanto, foi-lhe preciso sacrificar uma parte da saúde. Estêvão
aos vinte e quatro anos adquirira uma magreza, que não era a dos dezesseis; tinha
a tez pálida e a cabeça pendia-lhe um pouco para a frente pelo longo hábito da
leitura. Mas esses vestígios de uma longa aplicação intelectual não lhe alteraram a
regularidade e harmonia das feições, nem os olhos perderam nos livros o brilho e a
expressão. Era além disso naturalmente elegante, não digo enfeitado, que é coisa
diferente: era elegante nas maneiras, na atitude, no sorriso, no trajo, tudo mesclado
de uma certa severidade que era o cunho do seu caráter. Podia-se notar-lhe muitas
infrações ao código da moda; ninguém poderia dizer que ele faltasse nunca às boas
regras do gentleman.
Perdera os pais aos vinte anos, mas ficara-lhe bastante juízo para continuar
sozinho a viagem do mundo. O estudo serviu-lhe de refúgio e bordão. Não sabia
nada do que era o amor. Ocupara-se tanto com a cabeça que esquecera-se de que
tinha um coração dentro do peito. Não se infira daqui que Estêvão fosse puramente
um positivista. Pelo contrário, a alma dele possuía ainda em toda a plenitude da
graça e da força as duas asas que a natureza lhe dera. Não raras vezes rompia ela
do cárcere da carne para ir correr os espaços do céu, em busca de não sei que ideal
mal definido, obscuro, incerto. Quando voltava desses êxtases, Estêvão curava-se
deles enterrando-se nos volumes à cata de uma verdade científica. Newton era-lhe o
antídoto de Goethe.
Além disso, Estêvão tinha idéias singulares. Havia um padre, amigo dele,
rapaz de trinta anos, da escola de Fénelon, que entrava com Telêmaco na ilha de