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“Neste mundo, e também fora dele, nada é possível pensar que possa
ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma vontade
boa
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”.(Kant: 1785/2002: 21). Esperteza, inteligência, discernimento, talentos,
temperamentos são, sob muitos prismas, coisas boas e desejáveis, mas apenas se a
vontade for boa. Se a vontade for má, a esperteza, a inteligência e tudo mais, só
podem ser igualmente más.
De forma que não é simplesmente bom ser esperto, a esperteza não é
boa em si. Ela enquanto meio é oca de sentido, serve para um fim, seja qual for. Não
“têm todavia nenhum valor íntimo absoluto”.(Kant: 1785/2002: 22). A vontade não é
boa por que aquilo que ela realiza seja assim considerada, não é preciso e nem sequer
conveniente para este tipo de análise, que se espere a realização de uma vontade para
dizer se é boa. Se for de fato boa (a vontade), deve sê-la antes mesmo de sua
realização. Há uma nítida desvinculação entre ação e seu resultado.
Ainda mesmo que por um desfavor especial do destino, ou pelo
apetrechamento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a essa
boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada
pudesse alcançar a despeito de seus maiores esforços, e só afinal restasse a
boa vontade (é claro que não se trata aqui de um simples desejo, mas sim do
emprego de todos os meios de que as nossas forças disponham), ela ficaria
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Da ‘vontade boa’ até o imperativo categórico kant percorre um longo caminho. Imaginemos uma pessoa que
estivesse por trás de um véu, o véu do contexto. Atrás deste véu, nada nem ninguém poderia me atingir, nem
positivamente nem negativamente. Mas se pode, atrás deste véu, influenciar a vida das pessoas. Se se tivesse
que escolher entre alimentar um faminto ou não, são inúmeras as possibilidades.
Primeiro: pode-se alimentá-lo esperando que ele, quando puder, retribua o favor, também se pode fazê-lo com
medo de que, caso não o alimente, ele retribua, quando puder, o desfavor. Pode-se avaliar quanto se tem de
comida disponível, a falta que ela fará, pode-se avaliar quanto a aparência daquela pessoa agrada ou se ela é um
afeto ou um desafeto. Pode-se pensar na avaliação das pessoas sobre o ato, como aprovariam ou reprovariam
caso se tomasse uma ou outra atitude.
Mas nada disso importa, estando atrás do véu, as pessoas não aprovam ou reprovam nada, não falta nem sobra
comida, quem pede não é afeto ou desafeto. Se der a comida, ele come, se não der ele não come. Faça uma
coisa ou outra, tudo permanece como está, sem aplausos ou represálias, sem conformidade ou desconformidade
com as regras instituídas, inimputável em todos os sentidos.
Essa situação existe? De certo que não. Mas por que ela é importante? Sem aplausos ou reprovações, sem que
falte ou sobre, sem nada de ‘contextual’ em jogo, via de regra, dá-se o prato de comida. Na balança, quando não
pesam os antagonismos contextuais, a boa vontade desequilibra a balança num sentido, fazer o bem.
Este é um aspecto importantíssimo do sistema ético kantiano, pressupor a boa vontade nos homens. Não se deve
confundir, em nenhum momento, boa vontade com bom senso. Enquanto o primeiro prescinde do contexto, o
segundo se dá exatamente nele. Mas acontece que um mundo fora do contexto é um mundo que não é. Nasce-
se e morre-se no contexto da vida, sem o contexto, sequer somos.
Deve ser possível, portanto, que de alguma forma se reconheça essa boa vontade oculta por trás da ação tão
sincrética com o contexto. Isso só é possível com a razão, a razão (pura) prática.