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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PóS-GRADUACÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
A “questão ambiental” sob a ótica da antropologia dos
grupos urbanos, nas ilhas do Parque Estadual Delta do
Jacuí, Bairro Arquipélago, Porto Alegre, RS.
Rafael Victorino Devos
Porto Alegre, fevereiro de 2007.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PóS-GRADUACÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
A “questão ambiental” sob a ótica da antropologia dos
grupos urbanos, nas ilhas do Parque Estadual Delta do
Jacuí, Bairro Arquipélago, Porto Alegre, RS.
Rafael Victorino Devos
Tese apresentada para obtenção do
título de doutor junto ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Ruben George Oliven
Porto Alegre, fevereiro de 2007.
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3
Para minha filha Luna.
4
Agradecimentos
Esta tese contou com o suporte da Comissão de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), na forma de uma bolsa de doutorado e
ainda uma bolsa-sanduíche que me possibilitou a realização de um estágio na
França entre janeiro e agosto de 2006. Na França, o Laboratoire
d’Anthropologie Visuelle et Sonore du Monde Contemporain, na Université de
Paris VII, assim como a Maison du Brésil na Cité Internationale Universitaire e
a Inathèque de France na Bibliothèque National François Mitterrand, deram
suporte institucional fundamental para o andamento dos estudos no exterior.
Mas a pesquisa foi possível, no país e no exterior, graças ao suporte do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, de seus
professores, alunos e funcionários, e em especial, do núcleo de pesquisa
Banco de Imagens e Efeitos Visuais e sua equipe, que me possibilitaram um
lugar, na Antropologia, para produção de conhecimento.
Na área ambiental, o Instituto Anthropos, e seus membros e ex-
membros me possibilitaram um diálogo maior com os saberes entre o ambiente
e a sociedade, além de me possibilitarem acesso às instâncias institucionais de
planejamento e gestão do ambiente no RS, como o Comitê da Bacia
Hidrográfica do Lago Guaíba, a Metroplan, a FEPAM, entre outros espaços. À
Lúcia, ao Flávio, à Ana Luiza, à Ana Paula, ao Percy (Kiko), ao Paim, muito
obrigado pelas tantas vezes que discutimos não a tese, mas a "questão
ambiental".
Na França, foi fundamental o apoio da Professora Bárbara Glowczewki
(Laboratoire de Anthropologie Sociale e CNRS), no acesso às instâncias de
produção e debate da Antropologia audiovisual francesa. Também ao Prof.
Jean Arlaud, co-orientador estrangeiro e diretor do Laboratoire de Antropologie
Visuelle e Sonore du Monde Contemporain, muito obrigado.
Às professoras Cornelia Eckert e Dirce Suertegaray, que leram
atentamente e deram grandes contribuições para o trabalho no exame de
qualificação. Aos professores que aceitaram participar da banca final de defesa
da tese. Ao professor Charles Monteiro, da Pontifícia Universidade Católica do
5
RS, que me permitiu participar de seus estudos sobre os cronistas da memória
da cidade. Muito obrigado.
Entre Brasil e França, a competência e a paciência de minha mestra em
língua francesa, Camila Rocha de Moraes, foi fundamental para o
aproveitamento do estágio, em todos os sentidos. Também durante toda a
minha trajetória de pesquisa, e em especial na viagem para a França, o apoio
de meus familiares foi fundamental. Ao meu pai, à Anália, à minha mãe, ao
meu irmão Daniel, e à Regi e à Greicy, muito obrigado.
Aos narradores dessa pesquisa e suas famílias, que acolheram a
proposta da pesquisa e minha participação no seu cotidiano: Adão, Laci,
Mocotó, Cláudio, Nazaret, Salomão, Maria, Bia e seus "filhos" de sua casa. Aos
ex-alunos da oficina de vídeo, em especial, Ricardo, Débora e Jairo. Aos
demais moradores do Arquipélago, em especial, da Ilha Grande dos
Marinheiros e da Ilha da Pintada, que de alguma forma, colaboraram com a
pesquisa. Muito Obrigado.
Às professoras Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert, mestras
e parceiras de muito tempo de pesquisa, e aos colegas de pesquisa do BIEV
Viviane Vedana, Olavo Marques, Anelise Gutteres, Rafael Lopo, Luciana Mello,
Thais Cunnegato, Paula Biazus, Fernanda Rechenberg, Priscila Farfan,
Henrique Dallago, e aos que por ali deixaram sua colaboração: Liliane Guterres,
Alfredo Barros, Thaís Vieira, Nicole Reis, João Salgado, Rogério Rosa, Luciana
Prass, Luciano Spinelli e tantos outros. Muito obrigado.
Ao Ruben Oliven, meu orientador, que acolheu a proposta de orientação
da tese com todo o prazer e disponibilidade, cujos conselhos foram
fundamentais para a continuidade da minha formação. Muito Obrigado.
Finalmente, à Viviane e à Luna, que dividiram muitos dos momentos
dessa pesquisa (os muito bons e os não tão bons), e pelo amor e carinho na
parceira nas nossas moradas e aventuras, obrigado.
6
Resumo
Esse estudo investiga as transformações nas visões de mundo
presentes às narrativas e práticas cotidianas de habitantes de territórios
urbanos situados às margens da água, as ilhas do Delta do Jacuí, na Região
Metropolitana da capital do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Em
meio a uma situação de conflito de uso de terras e águas na cidade, busca-se
compreender como ações cotidianas dos moradores no ambiente urbano e
suas representações quanto ao seu pertencimento diferenciado à paisagem
urbana de Porto Alegre podem ser interpretados no contexto das tendências
contemporâneas de reestruturação de relações sociais e reorientação de
comportamentos para construção de uma cidadania ambientalmente
comprometida com a preservação e recuperação dos ambientes naturais do
planeta. Valendo-se do registro e da montagem de narrativas audiovisuais, a
pesquisa voltou-se para a importância da experiência urbana desses sujeitos e
da memória coletiva na compreensão das diferentes dimensões éticas que
estão em jogo na visão ecossistêmica das relações entre indivíduo, ambiente e
sociedade. A partir de seus itinerários urbanos, presentes às suas trajetórias
sociais, investiga-se a relação entre seus sentimentos de enraizamento nas
comunidades das ilhas e o reconhecimento de sua pertença a esferas sociais
mais amplas, como a Região Metropolitana, a Região Hidrográfica e de uma
forma geral, à Biosfera.
PALAVRAS-CHAVE:
narrativa, meio ambiente, imagem, paisagem, itinerários
urbanos, água, conflito
7
Abstract
This thesis approaches the transformations in the world view that are
present in the narratives and the daily practices of the residents of territories
located on the margins of the water, the islands of the Delta do Jacuí, in the
Metropolitan Area of the State of Rio Grande do Sul's capital, Porto Alegre,
Brazil.
Amid a situation of conflict of use of land and water in the city, we have
interpreted the residents' daily actions in the urban environment and their
representations of their belonging to the urban landscape of Porto Alegre on the
context of the contemporary tendencies of restructuring of social relationships
and reorientation of behaviors for construction of a citizenship committed to the
preservation and recovery of the natural environment of the planet.
Using the recording and the editing of audiovisual narratives, the
research went back to the importance of the urban experience of those subjects
and of the collective memory in the understanding of the different ethical
dimensions of the ecossistemic point of view about the relationships among
individual, environment and society. The study investigates their urban
itineraries that are present in their social trajectories, their belonging to the
communities of the islands and the recognition of their relationships to wider
social spheres, as the Metropolitan Region, the Hydrographic Region and in
general, to the Biosphere.
KEY-WORDS:
narrative, environment, image, landscape, urban itineraries, water,
conflict
8
SUMÁRIO
Índice de Imagens 07
Introdução 08
Capítulo 1 - "Está se terminando o meu Porto Alegre" 14
1.1. Território à beira d'água 16
1.2. Rio ou lago? 23
1.3. Arquipélago ou Delta? 30
1.4. Caminhando pelas ruas das ilhas 37
1.5. Territórios e Itinerários Urbanos 44
1.6. Lugar, paisagem e itinerários urbanos 49
1.7. Memória, imagem e narrativa 53
Capítulo 2 - Memória, cidade, ética, meio ambiente e a produção de uma
etnografia em vídeo digital entre moradores das ilhas do Delta do Jacuí, RS 62
2.1. "formas de ver" 63
2.2. Etnografia audiovisual e narrativa oral 65
2.3. Ética e estética 75
2.4. O Delta do Jacuí como um sítio 77
Capítulo 3 - A baía de todas as águas 87
3.1. Meio ambiente na macro-esfera 88
3.2. Meso-Esfera: A Bacia Hidrográfica do Guaíba 102
3.3. Deslocando o olhar - cidade e água em Paris, França 113
Capítulo 4 – A cidade das águas 121
4.1. As áreas de risco da metrópole – água e solo urbano 124
4.2. Ecologia Humana, Meio Ambiente, Antropologia Urbana 131
Capítulo 5 - A capital bela, mas suja 142
5.1. A capital suja 143
5.2. Os Memorialistas 149
5.3. Outras vozes, outros personagens 165
Capítulo 6 - Conflitos, éticas de segregação e de uso comum das
margens das ilhas 177
6.1. O lixo, as carroças, o pátio 177
6.2. Navegando nas águas da Mãe Oxum 184
6.3. A Beira do Rio não é mais o que era 191
6.4. As enchentes e a Ilha Assombrada 201
6.5. Os "ricos" e os "pobres" nas ilhas 209
Capítulo 7 - A morada e as águas 216
7.1. O umbigo enterrado 217
7.2. Nazareth e a água da Mãe Oxum 221
7.3. Dona Laci e o rio 230
7.4. Dona Maria e sua casa antiga 233
7.5. Cláudio - Pescar e morar 234
7.6. Salomão – uma natureza contra a outra 236
7.7. Adão - no extremo da ilha 239
7.8. De volta ao barco de Mocotó 248
Conclusão 254
Referências 258
9
Índice de Imagens
Capa Imagem do documentário “A Morada das Águas” (Rafael Devos e
Ana Luiza C. Rocha) / BIEV UFRGS 2003. Cláudio pescando no Canal Furado
Grande, Porto Alegre.(2002)
Página 69 Fig. 1 - Imagens do documentário “A Morada das Águas” (Rafael
Devos e Ana Luiza C. Rocha) / BIEV UFRGS 2003. Narrativa de Adão, Ilha
Grande dos Marinheiros, Porto Alegre. (2002)
Página 74 Fig. 2 - Imagens do documentário “A Morada das Águas” (Rafael
Devos e Ana Luiza C. Rocha) / BIEV UFRGS 2003. Narrativa de Adão, Ilha
Grande dos Marinheiros, Porto Alegre. (2002)
Página 86 Fig. 3 - Janela do programa DVD Studio Pro, apresentando um
esquema dos laços entre os menus, seqüências em vídeo e seqüências
fotográficas do DVD Capítulo 2 da tese. (2002)
8
Introdução
A escassez mundial de água doce, a que é própria para o consumo
humano, tem se destacado como uma das grandes problemáticas ambientais
de nosso tempo. O ano de 2003 foi escolhido como o “Ano Internacional da
Água Doce” pela Organização das Nações Unidas. A partir de 22 março de
2005, a ONU estabeleceu a “Década da Água”, com o objetivo de, até o ano de
2015, promover a reversão da eliminação de mananciais e da deterioração da
qualidade das águas planetárias, presentes à chamada “crise planetária da
água”
1
. Segundo a ONU, uma em cada seis pessoas no mundo enfrenta
problemas de acesso à água potável e saudável. Apesar de a água ser
abundante no planeta, apenas 0,7% das reservas de água é diretamente
acessível ao consumo humano, estando em lagos, rios e no subsolo.
Considerada como um bem universal, e seu acesso um direito humano
fundamental, a água não segue a mesma lógica da propriedade do solo, devido
à interdependência dos mananciais de água doce, interligados através das
bacias hidrográficas. As características naturais da água, como o fato dela não
estar contida em fronteiras político-administrativas e ter sua qualidade
relacionada a ecossistemas interdependentes que abrangem muitas cidades e
mesmo mais de um país em uma mesma região hidrográfica
2
, desafiam
governos, órgãos internacionais, empresas e cidadãos a novas formas de
acordos pautados igualmente pela sua interdependência.
1
Entre os recursos líquidos, a água doce é minoritária no planeta. Segundo dados
apresentados na Conferência da ONU para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, cerca de
97% da água do planeta é salgada e imprópria para o consumo humano, sem tratamentos
especiais, ainda muito caros. Apenas 3% das reservas mundiais de água são doces. Destas,
cerca de 2,3% estão armazenadas nas geleiras e nas calotas polares. Ou seja, somente 0,7%
das reservas de água está no subsolo, lagos e rios.
2
O conceito de bacia hidrográfica refere-se à “área de drenagem de um curso de água ou lago”
(glossário de hidrologia http://webworld.unesco.org/water/ihp/db/glossary). Em hidrologia, a
região hidrográfica é formada por diversas bacias que escorrem para um corpo de água único,
como o Lago Guaíba. No entanto, a idéia de região abrange não a rede hidrográfica física,
ou seja, o conjunto de rios e outros cursos de água, lagos e reservatórios em determinada
região, mas igualmente as unidades político-administrativas implicadas nos territórios
importantes ao ecossistema da bacia hidrográfica em questão.
9
São os dados da chamada "Guerra da Água"
3
contemporânea: são 30
mil mortes por dia, sobretudo entre crianças e velhos, cujas causas estão
associadas ao consumo de água insalubre; o 269 bacias hidrográficas
transfronteiriças, sendo que 145 nações no mundo tem uma parte de seu
território situada em uma bacia transfronteiriça; 70% da água no mundo é
usada pela agricultura, 20% é usado pela indústria, e somente 10% destina-se
ao consumo doméstico
4
.
O destaque dessa problemática nos dias de hoje não se constitui como
uma conseqüência natural da situação física em que se encontra o planeta,
antes, ela se dá em meio ao que o antropólogo José Sérgio Leite Lopes chama
de um processo histórico de ambientalização, de interiorização e naturalização
de uma nova questão pública (Lopes, 2006, p.36). A preocupação com as
condições do ambiente no qual vivemos vem se desenvolvendo através de
transformações no Estado, com a produção de leis, normas e de novas
construções institucionais, mas também através de transformações nas visões
de mundo e no comportamento das pessoas.
Essas novas elaborações institucionais e jurídicas, no Brasil e em outros
países ganham destaque em ações sociais, em pesquisas e em projetos
internacionais como o gerenciamento de bacias hidrográficas ou o caso da
criação e desenvolvimento do Parque Estadual Delta do Jacuí, estudada neste
trabalho. No entanto, pouco se tem pensado e pesquisado as transformações
nas formas como as pessoas passam a encarar o ambiente em que vivem e na
maneira como passam a se relacionar com ele, sobretudo no meio urbano, pois
essa crise planetária é tomada como um fato, e não como uma construção
social.
Seguindo uma tradição de pesquisa antropológica em meio às
Sociedades Complexas Contemporâneas, que no Brasil se constitui enquanto
uma Antropologia Urbana, pode-se afirmar que essa reorientação de
comportamentos, de transformação de estilos de vida em meio às
transformações da paisagem urbana do mundo contemporâneo não ocorre de
uma mesma maneira e numa mesma direção. Conforme o antropólogo Ruben
3
http://www.fsa.ulaval.ca/personnel/vernag/EH/F/cause/eau.html, último acesso em
12/01/2007.
4
Cf. "La Guerre de l'eau", http://www.fsa.ulaval.ca/personnel/vernag/EH/F/cause/eau.html,
último acesso em 16/01/2004.
10
Oliven, o processo histórico de urbanização desencadeia tendências gerais de
reorientação de práticas cotidianas e visões de mundo, como a própria
preocupação com a qualidade do meio ambiente, mas essas reorientações
se efetivam de forma heterogênea e dinâmica, multiplicando a diversidade de
formas de viver e de se pensar como cidadão urbano.
Pesquisando o tema da memória coletiva e do cotidiano junto aos
moradores de um lugar ambientalmente importante e problemático, as ilhas do
Bairro Arquipélago, em Porto Alegre, RS, pude investigar como esse processo
de ambientalização se desenvolve em meio à trajetória desses moradores,
como ele é narrado em meio à sua história de vida e qual sua importância na
elaboração das representações desses moradores sobre o ambiente em que
vivem. Ao mesmo tempo, para poder dar conta da complexidade dessa
questão ambiental em meio aos territórios urbanos, me vi confrontado com
inúmeras representações sobre esse espaço, que colocam aos informantes da
pesquisa e ao pesquisador desafios éticos de coexistência e diálogo com
outros atores sociais interessados na qualidade das águas, do solo e da vida
presente a essas ilhas.
Valendo-me igualmente de uma tradição antropológica de pesquisa com
imagens, a antropologia visual e da imagem, investiguei essas diferentes
representações desses territórios e de suas águas conforme eles são vividos e
pensados em diferentes escalas: ilha, arquipélago, bairro de periferia, reserva
ambiental, bacia hidrográfica, região metropolitana, águas planetárias.
Esse estudo investiga, portanto, a dimensão ética da vida urbana no
Brasil, presente às práticas cotidianas de habitantes de determinados territórios
urbanos, as ilhas do Delta do Jacuí, na região metropolitana da capital do
estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Trata-se de compreender como
suas ações cotidianas no ambiente urbano e suas representações quanto ao
seu pertencimento diferenciado à paisagem urbana de Porto Alegre podem ser
interpretados no contexto das tendências contemporâneas de reestruturação
de relações sociais e reorientação de comportamentos para construção de uma
cidadania ambientalmente comprometida com a preservação e recuperação
dos ambientes naturais do planeta.
Para tal, a tese está dividida capítulos que correspondem a escalas de
interpretação do fenômeno. Em um primeiro momento, situa-se a trajetória da
11
pesquisa acompanhando os conflitos em torno da ocupação dita “irregular” das
ilhas do Delta do Jacuí.
O primeiro capítulo situa a etnografia da tese em meio a esses grupos
urbanos, refletindo sobre a opção metodológica pelo estudo das narrativas
autobiográficas e das trajetórias sociais de moradores das ilhas para
compreensão das mudanças elaboradas em suas visões de mundo quanto à
paisagem do mundo urbano e da qualidade do meio ambiente em que vivem.
O segundo capítulo reflete sobre os usos da imagem na pesquisa,
enquanto forma de registro, interpretação e escritura etnográfica.
Complementado por um DVD interativo, o capítulo apresenta a opção de
elaboração de uma narrativa hipertextual que articula imagens audiovisuais e
fotográficas produzidas no trabalho de campo com outras imagens reunidas
durante a pesquisa.
Em um segundo momento, trata-se de investigar o quanto o desafio da
construção dessa ética global, que tem sido proposta por órgãos internacionais
que visam a transformação da civilização urbano-industrial contemporânea em
uma civilização econômica e ambientalmente “sustentável”, o traz consigo a
extensão de uma visão de mundo, própria da “vida mental da metrópole”, a
todos os ambientes do planeta, rurais, naturais e urbanos. Ou seja, a Cidade,
enquanto espaço determinado pelas ações humanas (em oposição ao mundo
natural), estenderia seus territórios para além da chamada região metropolitana,
incluindo territórios distantes ou não-urbanizados, nas suas relações de
interdependência ecossistêmica e econômica.
O terceiro capítulo situa a cidade de Porto Alegre, presente ao universo
de pesquisa e referência mundial em termos de política de recursos hídricos,
em meio a esses debates. Coloca-se a relação entre Região Hidrográfica e
Região Metropolitana como reveladora de novas formas de pensar a relação
entre natureza e cultura. ainda a intenção de, com a realização de um
estágio de doutorado em Paris, discutir as diferenças da localização dessas
tendências globais em ambientes urbanos brasileiros, caracterizados pela
abundância de recursos naturais como a água, em relação a Paris, cidade da
qual a política de recursos hídricos se origina, e a partir da qual os conflitos
internacionais com relação aos usos da água podem ser compreendidos de um
outro ponto de vista.
12
O quarto capítulo reflete sobre a realidade das cidades brasileiras, cujos
conflitos presentes ao espaço público urbano no arranjo da diferença social
passam a ser repensados através do processo de "ambientalização" desses
conflitos.
Finalmente, em um terceiro momento, investiga-se etnograficamente as
representações sobre a paisagem da cidade e o lugar que ocupam as ilhas,
enquanto territórios de produção da diferença na vida urbana da cidade, a partir
do cotidiano e das narrativas de trajetória social de alguns informantes de
classe popular. Apresenta-se, na sua fala, e nos muitos enunciados evocados
em suas práticas cotidianas (moradia e circulação), a dimensão da micro-ética
que orienta suas ações na cidade em relação aos demais grupos urbanos. Os
sentidos revelados nas trajetórias narradas, e reafirmados cotidianamente, para
suas escolhas de moradia na cidade, revelam uma adesão diferenciada a tais
territórios tidos como naturais, em oposição às ruas e avenidas da Porto Alegre
urbanizada, que são a chave de interpretação do seu lugar nas negociações
éticas pela qualidade de vida ambiental da cidade e da região hidrográfica.
O quinto capítulo investiga o lugar que ocupam os territórios das ilhas e
de ambientes morfologicamente semelhantes (beiras de rios, do lago e de
arroios) na memória social da cidade de Porto Alegre, em registros visuais e
escritos sobre a paisagem da cidade. Se a paisagem urbana,
contemporaneamente, passa a incluir áreas consideradas naturais ou rurais de
Porto Alegre enquanto espaço urbano a ser planejado ambientalmente,
veremos o quanto tais espaços, como as ilhas, são associados ao longo da
urbanização da cidade a um idealizado passado rural e colonial do Rio Grande
do Sul em oposição ao tempo progressista do processo de urbanização, de
canalização de arroios, de abertura de avenidas, de higienização e
modernização do espaço público. Aos desvelar tais ritmos diferenciados de
transformação da paisagem urbana, a partir de determinados “nós” de
amarração da memória da cidade, pretende-se mostrar as heranças desses
“quadros sociais da memória” nos modernos projetos de remodelação dos
territórios urbanos.
O sexto capítulo investiga diferentes lógicas de relação com os espaços
"naturais" das ilhas enquanto espaços públicos, significados diferencialmente
nas negociações éticas presentes às ações cotidianas no terreno familiar (casa
13
e pátio), na vizinhança (compartilhar a margem dos rios, o solo das ilhas e as
águas navegáveis), e nos espaços desabitados do Delta do Jacuí (canais de
navegação, áreas de reserva). Apresenta-se ainda, algumas tensões que
articulam os conflitos ambientais face às ocupações "irregulares" das ilhas,
com os demais conflitos inerentes à vida urbana desses habitantes das ilhas.
O sétimo e último capítulo dedica-se ao estudo dessa micro-ética na voz
dos informantes, nas suas narrativas biográficas, em que se revelam suas
trajetórias sociais, que são escolhidas como paradigmáticas em meio às redes
de relações locais de pescadores, papeleiros, barqueiros, empregadas
domésticas, umbandistas, crentes evangélicos, etc. Através da memória
coletiva, os narradores tecem diferentes visões de mundo que são reveladoras
de uma outra forma de pensar o trajeto de dissociação homem/natureza na
paisagem urbana da cidade, refundada tantas vezes nos gestos de ocupação
dos matos, banhados e beiras de rios da região. Em oposição às imagens
monstruosas do “inchaço” das grandes cidades que expulsam os empobrecidos
para fora do centro urbano, suas narrativas contam de uma cidade formada na
direção oposta, da periferia que vai tecendo suas amarrações com o centro
metropolitano.
14
Capítulo 1 - "Está se terminando o meu Porto Alegre"
“Claro está que, objetivamente, a atuação dos rios
ecossistemas que sustentam a vida no planeta independe
da interferência humana, pois eles já estavam agindo
antes da caótica ascendência do Homo sapiens. Mas
também é verdade que nos custa imaginar um único
sistema natural que a cultura humana não tenha
modificado substancialmente, para melhor ou para pior. E
isso não é obra apenas dos séculos industriais. Vem
acontecendo desde a antiga Mesopotâmia. É
contemporâneo da escrita, de toda a nossa existência
social. E esse mundo irreversivelmente modificado, das
calotas polares às florestas equatoriais, é toda a natureza
que temos.” (SCHAMA, 1996, p.17)
Em 2004, uma audiência pública de uma Comissão de Habitação
Popular, na Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, discutia a
questão da habitação no Parque Estadual Delta do Jacuí. Lideranças dos
moradores das ilhas, deputados e funcionários da Secretaria do Meio Ambiente
discutiam os impasses e encaminhamentos para a política fundiária das ilhas
em termos de uma redefinição dos limites do Parque e da criação de um
projeto de lei que permite a ocupação urbana (e conseqüentemente de obras
de saneamento e melhorias) em boa parte dos terrenos hoje considerados
irregulares.
Como em muitos outros debates como esse, a polêmica do Delta
aparecia nas diferenças de escala nos discursos. Os agentes da política
ambiental defendiam tecnicamente a questão da preservação do Delta do Jacuí
em termos da importância de suas águas e terras para Porto Alegre, para todas
as bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul e para as águas da “União” (do
país) e propunham o debate sobre como levantar recursos para a urbanização
das áreas em torno das reservas (a Prefeitura de Porto Alegre, o Governo do
Estado ou o Governo Federal). Já a fala dos moradores, como não podia deixar
de ser, reivindicava soluções para seus problemas mais urgentes e mais
localizados, para quem quer que fosse governo, do município, do estado ou do
país.
15
Mas uma frase repetida muitas vezes ficou soando em minha cabeça
após a audiência. Os líderes comunitários valeram-se na reunião da
significativa frase de que "quem bebe a água das ilhas não sai mais dali".
Voltavam a minha memória frases como essa, ouvidas de muitos moradores
das ilhas, que, no contexto do debate político, não deixavam de ter um sentido
aparentemente dúbio. Água das ilhas ou da cidade? Da Prefeitura ou do
Governo Federal? Água das ilhas, boa para alguns ilhéus, água poluída, ou
contaminada, para os demais. Eu ouvira mesmo, nas ilhas, em conversas
sobre a coleta e armazenamento da água, a referência de algumas pessoas
quanto à força das águas dos rios em relação à água do caminhão pipa do
DEMAE. Não ficava satisfeito com os argumentos do tipo “me criei a vida toda
com essa água”, perguntando como poderia ser boa a qualidade da água com
a alta densidade populacional de ilhas como a Ilha Grande dos Marinheiros,
perto da criação de animais ou mesmo da saída das fossas das casas, sem
contar, claro com a já poluída imagem das águas do Lago Guaíba.
A resposta era de que nem sempre a água estava boa, e que havia
formas alternativas de coleta de uma água mais "pura". Embora o principal
abastecimento de água potável seja mesmo a água tratada que a companhia
de água da cidade distribui em caminhões, muitas vezes a água coletada nos
lugares mais afastados, no canal do rio, onde a água corre
5
, é considerada
"mais pura" do que a água estanque, parada, armazenada nos tonéis após o
abastecimento pelo caminhão.
No entanto, é em um contexto político que essa afirmação ganha força,
pois beber a água da ilha significa uma pertença a um conhecimento partilhado
pelos moradores que possuem essa mesma condição de vida na cidade,
conhecimento que é assumido enquanto um "conhecimento local" (GEERTZ,
1997), fator de diferenciação cultural no meio urbano. Essa água que corre é
freqüente também no discurso quanto à enchente, situação agravada pelo
problema das fossas que transbordam, ou da contaminação por outras
substâncias que, no entanto, é ressignificada pela força da água corrente que
“limpa” o pátio e as casas, levando embora o Mal e a sujeira, marcando o
5
Alguns até usam a técnica de ir de barco até o “meio” do rio, mergulhar um balde com uma
pedra, bem fundo, para pegar água mais “de baixo”. Depois a água é deixada “sentando” e
então é fervida para beber.
16
recomeço de um ciclo. Expressões como essa são presentes em algumas
narrativas que veremos a seguir. Não são apenas sistemas de crença que são
acionados nessas narrativas, mas uma imagem do lugar das ilhas na Bacia
Hidrográfica em relação ao contexto urbano (entre o que o rio traz e leva) que
se expressa nesses saberes cotidianos.
Neste primeiro capítulo, busco apresentar como a pesquisa se
desenvolveu, partindo de uma investigação sobre as fronteiras simbólicas na
cidade pensadas a partir da água. Por outro lado, viso introduzir a problemática
da tese, pensando quais as contribuições de uma Antropologia Urbana, ou de
uma Antropologia das Sociedades Complexas Moderno-Contemporâneas para
os debates contemporâneos sobre a problemática ambiental.
1.1. Território à beira d'água
O Bairro Arquipélago, em Porto Alegre, é formado por 16 ilhas,
circundadas pelas águas dos rios Jacuí, Gravataí, Sinos, C e pelo Lago
Guaíba
6
. Elas encontram-se à entrada da cidade, à noroeste do centro da
capital. Entre as chamadas “ilhas fronteiras”
7
do Arquipélago são as maiores e
as mais conhecidas a Ilha da Pintada, a Ilha Grande dos Marinheiros, a Ilha
das Flores, a Ilha do Pavão, a Ilha da Casa da Pólvora e a Ilha do Chico Inglês.
No atual contexto urbano-industrial da cidade, algumas das ilhas têm parte de
suas margens ocupadas por pequenas propriedades rurais, ou por grandes
residências e clubes náuticos destinados ao lazer de classes economicamente
privilegiadas (as chamadas “mansões” das ilhas), outras ilhas são ocupadas
em maioria pelos casebres de classes populares de baixíssima renda. Grande
parte de sua população é oriunda de um processo recente de ocupação, com a
sua transformação em periferia urbana com condições de miséria e pobreza,
ocupada por grupos vindos de periferias de cidades do interior do Estado e da
Região Metropolitana de Porto Alegre. Em meio aos moradores das “vilas” nas
6
Cf. a publicação da série Memória dos Bairros “Arquipélago: As Ilhas de Porto Alegre”, do
Centro de Pesquisa Histórica do Município, Secretaria Municipal da Cultura, Porto Alegre, 1995.
7
Em relatos de viajantes como Auguste de Saint´Hilaire (1820), Arsène Isabelle (1833) e
Robert Avé-Lallemant (1858) as ilhas do Arquipélago são nomeadas como “ilhas fronteiras” ou
“labirinto de ilhas”, “bacia semeada de ilhas”, expressões que denotam seu lugar quando
observadas pelo viajante que chega à cidade pela via fluvial. (“Arquipélago: As Ilhas de Porto
Alegre” op. Cit.)
17
ilhas, cuja presença do trabalho com lixo reciclável em galpões, pátios e nos
transportes de carroças, caminhões, charretes e carrinhos é marcante,
encontrei pontos de continuidade e de ruptura com as chamadas práticas
“tradicionais” das ilhas, de pescadores, barqueiros e pequenos sitiantes rurais.
Enquanto investigava o caráter microcósmico das ilhas e os significados
locais atribuídos aos ritmos da paisagem local, que se expressavam no
cotidiano e na memória dos moradores locais, tomava conhecimento
igualmente do lugar significativo que esse território ocupa na política ambiental
da cidade. As ilhas conformam uma área de proteção ambiental que mais
de trinta anos gera polêmica em torno da ocupação das áreas alagadiças do
“Delta do Rio Jacuí”, que abrange um conjunto de ilhas e terras continentais
numa área de aproximadamente 60km
2
em plena Região Metropolitana de
Porto Alegre. Cerca de 90% da área do Delta do Jacuí constitui-se de
banhados e terras alagadiças que costumam estar submersas durante as
cheias dos rios, no inverno e na primavera, e que justamente possuem papel
fundamental na regulagem das cheias de toda a região hidrográfica e na
manutenção de suas características ambientais como o clima e, principalmente,
a qualidade das águas do Lago Guaíba. As ilhas do Delta do Jacuí são
consideradas um imenso filtro natural, fundamental para a dinâmica hídrica que
forma o Lago Guaíba
8
.
Em nome dessa importância para o ambiente físico da região, foi criado
em 1976 o Parque Estadual Delta do Jacuí, com o objetivo de restringir a
ocupação e o uso das áreas e canais de navegação do Delta. No decorrer de
quase 30 anos, a não efetivação de um processo de implantação da reserva,
de indenização de proprietários de terras e de regularização de ocupações, fez
com que o zoneamento do Parque fosse revisto inúmeras vezes ao passar dos
anos, até que o Parque fosse extinto, enquanto figura jurídica, em 2004 pelo
Governo do Estado do Rio Grande do Sul, para transformar-se em Área de
Proteção Ambiental, cuja ocupação e uso privado é permitido mediante
determinadas normas a serem estabelecidas. Enquanto são travadas essas
definições legais do uso do solo e das águas, os arranjos cotidianos da
8
Parque Estadual Delta do Jacuí - Plano Básico Ambiental, 1979.
18
ocupação irregular do Arquipélago seguem provocando muito debate sobre o
seu destino na paisagem local.
Em termos, portanto, de uma meso-ética (OLIVEIRA, R.C., 1996)
presente às negociações entre visões de mundo e ethos (GEERTZ, 1978)
locais face a essas novas orientações globais, estão muitos encontros, ou
mesmo “confrontos” etnográficos, em que embora a discussão aparente seja a
disputa pelo solo urbano, é a relação do solo com as águas da bacia o que une
a todos sob o mesmo conflito de interesses, e o que separa a todos. Em
reuniões que pude assistir do Poder Público com representantes das
“comunidades” de moradores das ilhas, em manifestações, em eventos, mas,
sobretudo, em muitos momentos em que estive com os ilhéus em situação de
diálogo, gravando em vídeo, fotografando, ou simplesmente acompanhando
suas ações cotidianas, os seus saberes com relação às “águas das ilhas” eram
apresentados como fator de diferenciação e pertencimento a um “pedaço”
9
da
cidade que está fora dela, pois se encontra na outra margem, e é ao mesmo
tempo parte dela.
Antes mesmo de ouvir falar de qualquer “comitê”, “fórum”, “secretaria” ou
departamento gestor de meio ambiente e da questão da água no Delta do
Jacuí, a água se apresentou no trabalho de campo como um elemento
ordenador das muitas representações sobre esse território. As primeiras
imagens que produzi com a câmera de deo foram justamente os prédios da
área central da cidade vistos das ilhas, emoldurados pelo azul do céu e das
águas do Lago Guaíba, assim como o encontro da água com a terra nas
margens das ilhas, de onde se tem esse ponto de vista. É a paisagem que se
desvela na janela do automóvel, por trás do verde das ilhas, quando se chega
à Porto Alegre vindo da Região Sul do Estado, cruzando as pontes que
atravessam os canais do Delta do Jacuí, ou, antigamente, quando se chegava
à capital pela navegação fluvial, passando pelas “ilhas fronteiras”.
A travessia das águas, portanto, quer seja pelas estradas, quer seja a
bordo de embarcações, apresenta de imediato esse primeiro dado que marca
9
Pedaço é uma categoria que Magnani (1984) utiliza para investigar os significados dos muitos
territórios da cidade, que são justamente significados como pedaços de um todo maior, a
cidade, reconhecidos a partir de códigos de vizinhança, e de redes de relações locais.
19
as ilhas como espaço vivido, a percepção de sua ilheidade
10
(MOLLES e
ROHMER, 1982) enquanto conformadora de um território urbano, ou seja,
como território de caráter microcósmico, cujas fronteiras simbólicas são
reforçadas pela grande fronteira natural que a água desenha no seu contorno.
Neste ponto, o conceito de ilheidade, aponta para a importância de se
compreender a vida urbana portoalegrense sob o ponto de vista da travessia
das fronteiras simbólicas que desenham as fronteiras naturais do Delta do
Jacuí como forma de conhecimento da própria cidade.
A forma inicial como abordei essas fronteiras simbólicas no meio urbano
foi através do estudo da narrativa oral, da maneira como os moradores das
ilhas partilhavam lembranças sobre a transformação de seu cotidiano em meio
a essa paisagem e repensavam suas trajetórias na cidade a partir de suas
narrativas em comum. Esse objeto consolidou-se por ser afirmado
constantemente pelos narradores que conheci no trabalho de campo, em
termos de uma identidade que lhes situava no contexto da cidade, mas
também porque a questão da memória, da narrativa e da paisagem era, e
ainda é, freqüente em meio ao trabalho diário com coleções de imagens em
fotografia, vídeo, som e relatos literários sobre a cidade de Porto Alegre,
reunidas pela pesquisa com acervos e pela produção etnográfica junto ao
núcleo de pesquisa em antropologia BIEV - Banco de Imagens e Efeitos
Visuais
11
. A escuta às narrativas dos moradores das ilhas, é, portanto,
potencializada pela escuta de narrativas de outros moradores de outros
territórios e outros tempos da cidade, pelas muitas imagens da cultura urbana a
que tive acesso, que eram evocadas pelas imagens narradas por antigos
moradores do Arquipélago.
10
No original iléité, traduzido do francês por Diegues (1998), o conceito de ilheidade é proposto
por A. Molles e E.Rohmer, enquanto uma fenomenologia do espaço, em “Labyrinthes du Vecu.
L’Espace: matière d’actions.” (1982).
11
O BIEV, Banco de Imagens e Efeitos Visuais, é financiado pelo CNPq e pela FAPERGS, é
coordenado pelas Professoras Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha, no âmbito do
NUPECS, Núcleo de Pesquisa de Culturas Contemporâneas e do Laboratório de Antropologia
Social, do PPGAS-UFRGS. O BIEV reúne coleções de imagens sobre a memória coletiva de
Porto Alegre, tanto imagens pesquisadas em acervos, publicações, museus, quanto imagens
produzidas pela sua equipe de pesquisadores em trabalho etnográfico, integradas através da
pesquisa de novas formas de disponibilização do patrimônio etnográfico da vida urbana. Ver
http://www.estacaoportoalegre.ufrgs.br.
20
Desde os primeiros diálogos e entrevistas que realizei com moradores
das ilhas, as diferentes formas de deslocarem-se das ilhas para a cidade, e das
margens do centro da cidade retornarem às ilhas marcavam a trajetória
narrada não de pescadores, mas também de empregadas domésticas,
empregados de indústrias e do comércio, cozinheiras, papeleiros, lavadeiras e
marceneiros de clubes náuticos do Bairro Navegantes, entre outros. Para
alguns, a travessia da imensidão do Lago em um pequeno “caíco” a remo era
narrada em meio a componentes heróicos pelo enfrentamento do frio, da força
das águas, da escuridão da madrugada. outros narram os encontros no
transporte coletivo, nas lanchas de passageiros, e atualmente no trânsito pelas
estradas e pontes, nas linhas de ônibus. É o que narra João "Mocotó", o
barqueiro de 70 anos, sentado em seu barco de passeio, o “Princesa Daiane”,
que construiu para levar muitos portoalegrenses a descobrirem o Guaíba e
suas estórias:
Mocotó (Ilha da Pintada, 1999)
“Chama-se Ilha da Pintada. A ilha da Pintada. Por quê? Porque existia
ali em cima um salãozinho de baile que foi feito por uma senhora, é,
muito idosa, uma senhora idosa. Então ela inventou de fazer um
salãozinho de baile. E essa senhora era toda sardosa, ela tinha muitas
manchas, muito furadinho no rosto, né? Era uma mulher assim,
simpática, mas era toda cheia de buraquinho no rosto. Então, nas
lanchas de passageiros, que aqui o transporte era feito por intermédio
de lancha. Não tinha ponte, não tinha nada. E então no transporte aqui
era feito dentro da lancha um convite. - Hoje, Sábado, vai ter um grande
baile na Ilha da Pintada. Ilha da Pintada porque aqui era, a Ilha não
tinha nome, era ilha (...). Fim de semana juntava muita gente aqui pra,
pra, pra ver a Ilha, porque começou a crescer, a Ilha começou a se
levantar, sabe? E hoje é uma cidade, a Ilha da Pintada é uma cidade,
né? Aí surgiu o primeiro ônibus que surgiu aqui pra fazer linha de
passageiro. Um negrinho, grande, meio alto, chamava-se o Muçum,
Negrinho Muçum que chamava, né? Então ele alugou um ônibus,
daquele tempo do mil novecentos e daqui a pouco e ele botou a
funcionar, a carregar passageiro. E foi indo, e foi indo, e foi indo e no fim
ele tinha cinco ou seis ônibus fazendo linha, né? Começou a fazer uma
linha de passageiro e o resultado, depois veio a Sopal, veio a Sopal, a
Sopal entrou e tomou conta, né? Monopolizou sozinha o negócio
porque botou uns ônibus melhor, e hoje é a linha da Navegantes, agora
de 15 em 15 minutos sai um ônibus aí, daqui da Ilha e outro da, de
Porto Alegre pra cá, se cruzam aí.”
21
Não é de hoje, portanto, que essa travessia é o grande atrativo das ilhas
para turistas e moradores de outros cantos de Porto Alegre que experimentam
a ilheidade a bordo dos barcos de passeio à navegarem pelo Guaíba. Realizei
inúmeras dessas travessias, algumas na companhia de passageiros que viam
as ilhas, do barco, pela primeira vez. Outras travessias realizei na companhia
da tripulação do barco Princesa Daiane, conduzido por Mocotó, sua família e
seus sócios. Como eles, outros moradores na Ilha da Pintada que atuam no
mesmo negócio, desempenhando competentemente o seu papel na promoção
do consumo de uma imagem turística do seu local de moradia, orgulhando-se
de pertencerem a tal paisagem. Foi um estranhamento que motivou o início de
minha pesquisa etnográfica, os saberes e fazeres dessas pessoas,
relacionados à experiência de habitar um centro urbano como Porto Alegre, a
partir das ilhas, em um momento em que a capital do Rio Grande do Sul vive
de forma muito menos intensa sua face portuária.
Como narra, aos 72 anos, Dona Laci, uma costureira e lavadeira
aposentada, a vida em outra ilha do Arquipélago, a Ilha Grande dos
Marinheiros, a superação das dificuldades colocadas pelo obstáculo da água
marca a transformação da distância estrutural das ilhas em relação ao centro
da cidade de Porto Alegre:
Laci (Ilha Grande dos Marinheiros, 1999)
“E... e era ruim de viver aqui, por que a gente, pra ir na cidade, tinha
que ir de caíco, a remo, que aquele tempo nem motor tinha, e poucas
lanchas também tinham, e agora não, agora é uma chuva de lancha, e
tudo a motor. Naquele tempo era tudo a vara, ou então, pano. Era
poucos motor que tinha. Vara é umas taquara, assim, uns pau grande,
empurrando assim o barco. Ia até o fim do Caí, lá. Os coitado passavam
trabalho. Aí depois já foi melhorando, foi, aumentando, aí depois já fez a
ponte, vinha os carros... o primeiro carro que piso aqui na ilha foi
uma festa. Tudo ficou faceiro, que não se via carro aqui na ilha, né?
as lanchas pararam de visitar, porque, fizeram a ponte do Rio dos
Sinos, a ponte que passa o trem. Fizeram a barca, que passava os
carros, né? Agora não, tem as duas pontes, agora tem tudo. (...) A luz
veio pouco tempo, o quê que faz, cinco anos pra cá, veio luz, pra
nós. Mas era escuridão. E assim nós fomos criando, tinha muita
plantação, nós plantava, e tinha gente que criava gado,... e levava o
leite pra cidade, né? Nos barquinhos a remo, depois mais tarde
apareceu aquele motorzinho de centro e tal, e assim ia indo. E uns era,
cortava lenha, outros cortava taquara, pras chácaras. tinha que
limpar aquelas taquaras tudo e fazer folha assim de taquara, pra levar
pro outro lado, que do outro lado tem chácara, de plantar tomate, de
tudo, feijão... tem feijão aqui do tempo da vara. E lenha também, muita
22
lenha saía pra lá também. De primeiro era muito difícil, né? Carne, vinha
assim, os açougueiros de caíco, trazia a carne e vendia, de pedacinho,
tudo soltinho já. Até a gente comprava, e... encostava nos trapiche,
vendia ali e comprava. E quando não era carne era pão, o padeiro
também. Agora não. Agora tem tudo. E as vendas era lá um butequinho,
muito fraquinho, que muito, que tinha. Do contrário tinha que buscar na
cidade. A gente passou muito trabalho.”
Escolhi esses dois relatos sobre as ilhas para iniciar uma apresentação
do ambiente do Delta do Jacuí, porque situam as duas principais ilhas onde
centrei o trabalho de campo, a Ilha Grande dos Marinheiros e a Ilha da Pintada,
em relação à cidade de Porto Alegre e sua Região Metropolitana, a partir das
práticas cotidianas de seus moradores, sobretudo, nas formas de
deslocamento. Configura-se uma idéia desse ambiente entendido como
ambiente técnico-cultural (LEROI-GOURHAN, 1975), que é conhecido e
reestruturado a partir do deslocamento de populações em seus territórios, e
pela forma diferente de seus moradores “morarem de uma mesma maneira”
(MAGNANI, 1984) na cidade.
Embora, de uma forma geral, essa marca das águas no seu cotidiano
possa ser entendida como fator fundamental de diferenciação no meio urbano,
é preciso entendê-la em suas diferentes formas. Em períodos de cheia dos rios
e de enchentes a água une todos sobre o encanto com a dinâmica cíclica do
ambiente do Delta, e a dificuldade de enfrentar o mesmo cotidiano de navegar
pelas ruas alagadas e salvar a casa, os bens e a saúde da água que toma
conta das ilhas. Mas no resto dos dias, para alguns, a proximidade com a água
é parte fundamental do seu modo de vida, transitando pelo espaço entre o
pátio com a casa erguida sobre palafitas, a estrada que liga os terrenos
costeiros à ponte e às estradas, e a margem do rio onde se encontra uma
embarcação. Para outros, vivendo mais próximo das estradas do que da
margem, a água se mostra presente no terreno alagadiço, na constante
necessidade de aterramento da água que parece brotar do solo da ilha, ou nos
sistemas de coleta e armazenamento da água, seja ela abastecida diretamente
do rio, seja através de caminhões “pipa” que distribuem a água potável aos
moradores. Para alguns com maior poder aquisitivo, a água é espaço de lazer
e de apropriação do “natural” em plena Região Metropolitana.
23
Descreverei um pouco dessa ocupação diferenciada, e como fui
tomando conhecimento dela e me inserindo em algumas das redes de relações
entre papeleiros, pescadores, moradores antigos, e outros
12
. Mas o que
proponho desde é pensar a ocupação das ilhas como diretamente inter-
relacionada ao processo de surgimento de um centro urbano em meio a esse
ambiente, e ao desenvolvimento da Região Metropolitana de Porto Alegre,
tanto em termos da parte em relação ao todo (as ilhas em relação à Região
Metropolitana), quanto em termos das ilhas entre si. Para tal, é preciso romper
com a construção de um isolamento que é presente na memória oficial da
cidade, que tende a apresentar os atuais conflitos de ocupação do Delta do
Jacuí como a perda de um equilíbrio idealizado entre uma comunidade e sua
natureza em torno
13
.
Da mesma forma, coloca-se o desafio de acompanhar alguns desses
moradores movendo-se entre diferentes formas de relação com esse ambiente,
que não se reduzem a sua condição social ou suas práticas econômicas, pois
dizem respeito a sua própria constituição como sujeitos na cidade.
1.2. Rio ou lago?
Mocotó (Lago Guaíba, 1998)
“Ontem ainda a gente estava fazendo passeio, as pessoas estavam
dizendo – Bah, é a primeira vez que passo por aqui! Então a gente está
ciente de que o portoalegrense, setenta por cento do portoalegrense
não conhece o Rio Guaíba.”
Mocotó fazia essa afirmação durante o primeiro passeio que realizamos
pelas ilhas, em 1998, a bordo do seu antigo barco Conesul, na companhia de
sua tripulação e de colegas de pesquisa da universidade. Embora
conhecesse Mocotó através da edição de um documentário sobre as memórias
12
Com os proprietários das mansões das ilhas, pertencentes às altas camadas sociais da
cidade, com as quais a observação participante nem sempre é viável como aproximação,
apresento essa dimensão do conflito em imagens, nas seqüências em vídeo que mostram
esses "enclaves fortificados" (Caldeira, 2000) na margem do Lago Guaíba, e em alguns
anúncios de recentes empreendimentos imobiliários que vendem justamente esses novos
estilos de vida, no Delta do Jacuí e também na Zona Sul da cidade.
13
Parque Estadual Delta do Jacuí – Plano Básico Ambiental, 1979.
24
dos freqüentadores e trabalhadores do Mercado Público de Porto Alegre
14
,
considero este percurso a bordo do seu antigo barco Conesul o começo do
meu trabalho de campo nas ilhas, pois este serviu como a minha própria
iniciação na metodologia de pesquisa etnográfica
15
. O trajeto, escolhido por
Mocotó, não fazia o percurso usual dos passeios turísticos, que é mais curto e
costuma durar no máximo uma hora. Aproveitando a oportunidade de gravar
um documentário em vídeo, Moconos conduziu durante um dia inteiro pelas
águas do Guaíba e pelas ilhas, realizando algumas paradas em lugares não
acessíveis por terra. Enquanto Mocotó narrava momentos de sua trajetória
social, nos apresentava algumas ilhas e canais e seus mitos de fundação, que
formam esse “Rio Guaíba” navegável, tão diferente do que é visto da margem
do Cais de Porto Alegre, de onde partimos.
Enquanto passávamos pela margem das ilhas e a antropóloga Ana Luiza
Carvalho da Rocha entrevistava Mocotó, eu gravava o que podia com a câmera,
afoito, transitando de um canto a outro do barco, não querendo perder cada
novidade que se apresentava enquanto o barco se deslocava. Uma casa à
beira da água, os prédios de Porto Alegre encobertos pelo mato das ilhas, o
canal da Maria Conga com vegetação dos dois lados, os pássaros, os barcos
que passavam. Seguia justamente o ponto de vista de quem fazia pela primeira
vez esse percurso, o portoalegrense que não conhece o Rio Guaíba. A
gravação em si ficou uma coletânea de imagens exóticas das ilhas, e alguns
bons planos de Mocotó conduzindo o barco, apontando para os lugares dos
quais falava. Ao ver a fita gravada, ouvindo a narrativa de Mocotó, as imagens
não coincidiam com o que havia escrito no diário de campo, muito menos com
o que o narrador contava. As imagens que ficaram na lembrança desse
passeio se aproximavam mais do ponto de vista do barqueiro, mantendo-se
14
Trata-se do documentário "Memórias do Mundo", dirigido por Ana Luiza Carvalho da Rocha e
Maria Henriqueta Satt, financiado pelo FUMPROARTE da Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
em 1997.
15
O método etnográfico é o que caracteriza o lugar do conhecimento antropológico em relação
às demais ciências humanas. O trabalho do antropólogo, conforme C.Geertz (2002), consiste
na escrita etnográfica de descrições, análises, sistematizações e comparações com outras
etnografias, feitas a partir da observação participante (MALINOWSKI, 1979) da vida social dos
grupos pesquisados. Participando das atividades cotidianas, e em situação de diálogo com
indivíduos que assumem o lugar de informantes na pesquisa, realiza-se um constante exercício
de reflexão (por parte do antropólogo e do Outro) sobre a produção da diferença social e
cultural no mundo contemporâneo. Neste trabalho, além do método etnográfico clássico,
utilizou-se recursos audiovisuais como instrumentos de pesquisa de imagens e de produção de
imagens etnográficas.
25
imóvel, no barco em movimento, deixando que a paisagem desloque-se à sua
frente, se deixando navegar pelo rio.
Realizei muitos outros trajetos de barco em torno das ilhas, e cada vez
mais vi reforçada a imagem do rio, apresentando as ilhas através do seu
contato com as águas, ou seja, a partir de suas margens, contrastando
bastante com a nomenclatura oficial do Guaíba, que é tido como um lago.
Segundo o Glossário Internacional de Hidrologia da ONU
16
um lago é uma
“massa de água continental de tamanho considerável”, enquanto que um rio é
um “grande curso de água que serve de canal natural de drenagem a uma
bacia hidrográfica”. O Guaíba é um lago que não deixa de ter as características
de rio, na medida em que é uma grande massa de água formado pelo
“encontro das águas”
17
de muitas bacias hidrográficas, e porque possui canais
de navegação. Sem entrar nas especificidades dessa nomenclatura, que é
ainda mais complexa em termos hidrológicos
18
, pretendo explorar essa
controvérsia do “Rio que não é rio”
19
etnograficamente, utilizando as imagens
de lago ou de rio como formas diferentes de representação de um ambiente
técnico-cultural (LEROI-GOURHAN, 1975), a partir de como ele é conhecido
pelos habitantes de Porto Alegre.
Retomando o passeio com Mocotó, trago a imagem desse trajeto que
apresenta o rio, como uma primeira forma de apresentar as ilhas. A partida do
Cais do Porto da cidade já comporta essa adesão ao caminho do rio, na
medida em que o barco vai lentamente contornando a margem da zona central
16
http://webworld.unesco.org/water/ihp/db/glossary/glu/HINDPT.HTM, último acesso em
14/01/2007.
17
É o que o nome Guayba significa em Tupi-Guarani (Porto Alegre, 1995).
18
Em 1957, no livro O Rio que não é rio” (Assis, 1960) o jornalista Kleber Borges de Assis
investigava essa polêmica em torno do Guaíba: “Afinal, o que é o Guaíba – essa grande massa
de água que enlaça e enfeita a capital gaúcha? É um lago ou estuário? Ou é um penelago ou
uma ria? Ou ainda, é um rio?” (Assis, 1960, p.03)... estuário diz o Dicionário é uma forma
de desaguadouro de um rio no oceano, oposto ao delta, que aparece geralmente constituído
por vários braços... os lagos são depressões do solo produzidas por causas diversas e cheias
de água confinada... alimentados por um ou mais rios afluentes... a ria é aquela originada de
uma imersão do litoral com a conseqüente invasão do mar nos vales modelados pela erosão
fluvial... Penelago é o mesmo que lagos residuais ou litorâneos, isto é, são bacias lacustres
que se individualizaram...Rio é uma concentração líquida resultante da concentração do lençol
d´água num vale.” (Assis, 1960, p. 15 à 17). Sem encerrar a questão, o jornalista não se detém
numa única definição, levando além a polêmica ao falar dos canais de navegação do Guaíba
que poderiam ser considerados “um rio dentro do Guaíba”, cuja dragagem para facilitação da
navegação de grandes embarcações comerciais era defendida por alguns geógrafos. (Assis,
1960, p. 40).
19
idem.
26
da cidade, até passar sob a ponte do Guaíba para afastar-se da margem
continental. Contornamos então a Ilha do Pavão, passando entre esta e a Ilha
Grande dos Marinheiros, pelo Canal Furado Grande. não eram mais os
prédios da cidade que se via, mas a referência ao urbano ainda era forte, tanto
nas pontes onde o trânsito é intenso, quanto nas margens dessas duas ilhas,
alternando o verde das matas com as habitações construídas com madeira,
papelão, lona e zinco dos moradores dessas duas ilhas, em maioria
conhecidos pela atividade com lixo reciclável, acumulado nos pátios das
“maloquinhas” que Mocotó nos mostrava como algo que estava em
descompasso com o rio e a cidade que queria nos mostrar.
“Está se terminando nosso Porto Alegre”, ele dizia, não apenas ao
passar por essas duas ilhas, que geralmente são evitadas pelos passeios
turísticos, mas também ao comentar a pouca quantidade de embarcações por
todo o trajeto que fizemos, ou a poluição das águas. Tanto o Canal Furado
Grande que liga o Guaíba ao interior do estado, quanto o Cais do Porto
foram “uma plantação de navios”, que ele gostava de ficar observando, em sua
movimentação de todos os tipos de barcos, dos “caícos” a remo dos
pescadores aos navios grandes vindos de outros países
20
. A paisagem do rio
evocava, portanto, descontinuidades temporais, outros tempos nas águas, na
medida em que falava de suas aventuras subindo os rios que chegam ao Jacuí,
em direção a outras regiões do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, trazia
algumas das narrativas sobre as ilhas que percorremos a partir de sua relação
com Porto Alegre, separadas pelo rio, e em função do rio.
Seguindo o trajeto do passeio, saímos do Canal Furado Grande,
passando pela parte desabitada da Ilha do Chico Inglês, vendo novamente os
prédios do centro de Porto Alegre serem encobertos pelo mato das ilhas.
20
No auge de sua atividade, o Cais do Porto em 1957 apresentava mais de 3 milhões de
toneladas transportadas, com a circulação de 32.291, barcos a maioria de navegação fluvial e
lacustre, com 1.937 embarcações de longo curso e cabotagem, com a presença de mais de
300 navios estrangeiros. Um dos motivos que se apresentam para a decadência desse sistema
de transporte é o fato de que os canais de navegação do Guaíba permitem apenas
embarcações de baixo calado. Cerca de 60% dos navios que navegavam em 1957 tinham
calado superior ao permitido pelos canais de navegação, logo, andavam com metade da carga,
ou vazios, além de não locomoverem-se com rapidez. Progressivamente, as grandes
embarcações deixariam de ir até o porto da Capital, retendo-se ao Porto de Rio Grande. (Assis,
1960). No entanto, o Cais do Porto ainda funciona, tendo suas atividades comerciais
transferidas em 2004 para a parte norte do Cais, próximo à ponte, deixando a parte mais
antiga do Cais do Porto reservada para projetos culturais e turísticos.
27
Passando pela Ilha do Chico Inglês, a natureza do lugar se apresenta com
mais força, nas árvores enormes repletas de biguás, ave típica do ecossistema
local, que em seu vôo se alternavam entre os galhos e as águas. A partir desse
ponto, a narrativa de Mocotó tomava outro rumo. Fazia alusão a barcos e
tesouros submersos nessas águas, até nos contar o relato sobre a Ilha da
Casa da Pólvora, a qual chegamos em seguida. A Casa da Pólvora é uma
antiga construção militar, em forma de torre, que guardava a pólvora longe da
cidade, para evitar explosões, mas que também evoca outras narrativas pela
sua presença em uma ilha praticamente desabitada, em local inacessível por
terra.
Mocotó (Lago Guaíba, 1998)
“Quando nasceu Porto Alegre eles traziam aquelas pessoas que faziam
um crime meio bárbaro, um estupro, uma coisa assim, eles traziam a
pessoa pra cá e cortavam a cabeça do cara. Ali tem um poço, 40 metros
pra baixo. Tinha uma guilhotina, eles cortavam a cabeça e
entregavam o corpo pras pessoas sepultar, né? E a cabeça ficava aí.
Eu tinha um tio que estudava essas coisas. Eles encebavam as
cabeças e botavam nas galerias e botavam os nomes, e botavam nas
galerias. E em 41 deu aquela enchente e a enchente invadiu o poço e
quando a água baixou acharam de melhor não reativar aquilo ali. Mas
muito antes eles levaram aquilo ali pra Igreja das Dores, ali tem um
quadrado de cimento ali, mataram uma porção de gente ali. ... Então
chamavam a atenção do povo e cortavam a cabeça e mandavam o
corpo pros familiares. Então eu mexo com a gurizada quanto eu tô no
passeio por aqui, Aqui tem os piratas sem cabeça que dão risada a
noite inteira. Sem cabeça dando risada... Então as crianças acreditam,
né?”
Em sua performance narrativa, Mocotó brincava com nossa surpresa, na
descoberta da ruína dessa construção, verdadeira epifania de outros tempos e
imagens relacionadas ao ambiente do rio. Hoje a ruína foi transformada em um
museu de história natural, como parte dos projetos de preservação ambiental
das ilhas, servindo de ponto de parada obrigatório para os novos navegantes
pelas águas do Guaíba, oferecendo informações sobre flora e fauna do Delta
do Jacuí. Na época do passeio, o museu era ainda um projeto, e a ruína estava
mais próxima do ambiente que Mocotó apresenta nas suas narrativas. Tais
relatos são próximos das estórias de outros narradores das ilhas
21
, que trazem
um componente fundamental dessa relação das ilhas com a cidade, através
21
Ver capítulo 6.
28
das águas do rio: a liminaridade (TURNER, 1974) que a porção de espaço
natural formado de mato, de água, de animais, de sons, de luzes, apresenta na
transição do ambiente urbano para uma dimensão microcósmica das ilhas,
presente à memória coletiva da cidade.
Seguindo a navegação, paramos justamente na casa de um dos poucos
moradores da ilha da Casa da Pólvora, que é o caseiro das ruínas que viraram
o museu. Morando em uma pequena casa, criando alguns animais, uma
pequena horta e dependendo do barco para a sobrevivência da família, nos
falava do seu conhecimento daquela ilha, nos seus encontros casuais com
caçadores que tinha por obrigação orientar e afastar do lugar, mas também das
aparições de serpentes gigantes, de bichos estranhos, de manifestações
sobrenaturais que colocavam sua casa no limite do espaço domesticado com
a natureza abundante do lugar
22
.
Era esse conhecimento desses espaços liminares que Mocotó acionava
durante a navegação pelo rio, narrando outras estórias ao longo do trajeto do
barco em que as imagens de figueiras na beira dos rios, animais estranhos,
assim como aparições de embarcações antigas e correntes douradas que iam
até o fundo do rio mostravam uma natureza fantástica nesse ambiente, em que
as próprias ilhas “têm vida”:
Mocotó (Ilha da Pintada, 1999)
“Não, mas a ilha tem vida, né? Tem vida porque ela cresce, né? Só que
a água vai tirando, vai tirando, vai passando o costado dela assim, né?
Vai desmanchando, mais ela vai crescendo. Enquanto tiver dentro
d’água... Como tem a Ilha do Macaco, em frente à Ilha do Chico inglês,
essa ilha ali, faz uns vinte anos mais ou menos, ela começou.. .veio uns
toco de pau, veio água abaixo, veio um salsero, uma árvore...e trancou
no chão. E ali foi se juntando areia em volta dela, em roda dela, em roda
dela. E hoje, é uma ilha enorme, né? E não tinha nome... nós é que
botamos o nome da Ilha do Macaco, porque tinha um neguinho ali no
cais, ali, trabalhava no cais e... e esse neguinho não tinha onde morar,
então ele fez um, um...em cima de um galho de pau, lá, ele fez uma
tranquera de taquara, aquelas coisas ali, né, e fez uma choupanazinha
pra ele morar ali. depois começou a aparecer a terra e ele fez uma
casinha de madeira, ele trazia tábua do Cais, pegava assim, pegava
dentro d’água... a ilha começou a, ela tem que crescer, porque ela
cresce, porque areia, o cascalho, tudo tem vida. Porque senão não
existia mais areia nem cascalho, né? É que tu tira areia do fundo, tu tira
areia da água assim e bota assim pra terra, ela morre. Ela tem vida...”
22
Idem.
29
Ouvi outras narrativas de moradores das ilhas, que as apresentam em
sua face móvel, como ilhas flutuantes “em cima d´água”
23
, com margens que
vão transformando-se ao longo das estações do ano e ao longo dos anos,
crescendo ou diminuindo. Tais representações podem ser, de imediato,
interpretadas como desconhecimento da dinâmica do ecossistema e do
impacto sobre as margens da erosão e o desmatamento, por parte de técnicos
da área de meio ambiente. No entanto, trago aqui essas representações como
fundamentais para compreender que as ilhas são representadas como espaços
em transformação e constante re-fundação como território habitado, em que
casas são construídas, deslocadas e abandonadas, terrenos são ocupados,
aterrados e novamente alagados, acompanhando essa instabilidade do
ambiente. Essa instabilidade faz parte do ambiente do rio, na medida em que
conhecê-lo significa deslocar-se por ele e, portanto, deslocar-se no tempo.
Essa dinâmica “natural”, ou naturalizada, de ocupação das margens dos
rios pode ser acrescida, no entanto, de novas formas de conhecimento desse
ambiente. Seguindo ainda o passeio de barco escolhido como fio condutor
dessa descrição etnográfica, saímos então da Ilha da Casa da Pólvora pelo
Canal da Maria Conga, tendo a Ilha das Flores na margem oposta, cuja parte
inicial segue as imagens que víamos até então, de mato dos dois lados, aves, e
uma ou outra casa de palafita semelhante a do morador da Ilha da Casa da
Pólvora. Mas logo essa paisagem idílica era interrompida pela presença de jet
ski´s, lanchas com motores barulhentos, praticantes do ski aquático, e nas
margens aos poucos se mostravam as construções de clubes de esportes
náuticos, e finalmente as “mansões” dos “ricaços” a que Mocotó e sua
tripulação se referiam como invasores que estavam “tomando conta” das ilhas,
construindo muros e privatizando a beira das ilhas. A partir desse pedaço do
caminho, essas habitações se sucediam tanto na margem da Ilha das Flores,
quanto na outra margem então de um dos braços do Rio Jacuí, uma parte
continental do Delta do Jacuí que pertence ao município de Eldorado do Sul, e
que se liga finalmente à Ilha da Pintada, onde reside Mocotó.
A parte final do trajeto percorria a Rua Nossa Senhora da Boa Viagem, a
margem da Ilha da Pintada, habitada por pescadores e barqueiros como
23
Ver capítulo 6.
30
Mocotó e sua família. Mas se anunciava ali a continuidade desta
“privatização” da margem da ilha, com a construção de outras grandes
residências e marinas de lanchas a motor na continuidade da execução de
melhorias na rua, como a colocação do asfalto, que pude observar
posteriormente. A melhor urbanização da ilha, comporta uma lenta mudança
nas camadas sociais que passavam a se interessar por esses espaços, em que
a dotação de infra-estrutura acaba tendo continuidade na substituição
igualmente das moradias por outros tipos de construções.
Embora essas outras formas de apropriação das margens possam
também consumir essa imagem exótica do rio navegável e da cidade de águas,
elaboram de outro jeito a combinação entre dispositivos técnico-culturais
(muros, grades, marinas particulares) e usos da margem em que a
sociabilidade ocorre de forma bem mais restritiva.
Surgia então a face do lago, cercado de terra, ou de cidade por todos os
lados, pois diferentemente das pequenas habitações de pescadores pelas
quais passamos, o limite da água não era mais a terra, o barro, mas o
concreto, e o que se antevia agora atrás das casas não era mais o mato, mas a
estrada, e o automóvel.
1.3. Arquipélago ou Delta?
A ligação das ilhas com a Região Metropolitana de Porto Alegre através
da travessia de pontes e estradas que ligam a região ao sul do estado é
considerada como a responsável pela transformação do “padrão de ocupação”
(METROPLAN, 1999) das ilhas, e pelo impacto ambiental sobre seus
territórios. Seguir esse raciocínio simples, no entanto, seria aderir à oposição
natural/construído, campo/cidade que se pretende ultrapassar neste trabalho.
Seria tomar as conseqüências como causas, na medida em que os terrenos
alagadiços das ilhas, antes de terem a importância e a valorização que passam
a ter hoje, se apresentavam como obstáculo à expansão das atividades
comerciais e industriais da região, pelo tempo de deslocamento de mercadorias
por via rodoviária que se fazia necessário
24
.
24
Ver capítulo 5.
31
Boa parte do trabalho de campo foi realizada justamente em
deslocamento por terra, de carro, de bicicleta, a pé, mas sobretudo de ônibus,
saindo da zona central da cidade e percorrendo os 10 km que a separam das
ilhas. O campo inicia no terminal de ônibus metropolitanos da Praça Rui
Barbosa, onde vou observando passageiros familiares, encontrando
conhecidos, iniciando conversas informais, me informando sobre as novidades
entre grupos das ilhas. À medida que o ônibus “Ilha da Pintada”, vai
percorrendo grandes avenidas da cidade, a Voluntários da Pátria e a Farrapos,
cruzamos o Bairro Navegantes, onde muitos moradores das ilhas costumam
embarcar. Nesse bairro, situam-se escolas públicas, postos de saúde e outros
serviços blicos que, embora estejam atualmente presentes em algumas
ilhas, o constantemente utilizados pela sua população. Assim que o ônibus
sobe a ponte enxerga-se a imensidão do Guaíba e o verde das ilhas, a cidade
ficando para trás, e um trânsito de pedestres e carroças que contrasta com os
automóveis que partem para a estrada. Os próximos pontos de parada do
ônibus são como uma parada na auto-estrada, embora estejamos ainda em um
bairro de Porto Alegre.
A primeira ilha que se atravessa pela ponte é a Ilha do Pavão, onde
estão, nas suas duas pontas dois clubes náuticos, o São João e o Grêmio
Náutico União, tradicional clube de remo da cidade. Ao longo da estrada, está o
ICM, órgão de fiscalização de entrada e saída de mercadorias da cidade
transportadas por caminhões. Mais próximo da ponte sobre o Canal Furado
Grande, vê-se inúmeras habitações de madeira, zinco, lona e papelão, com
cavalos pastando nos quintais, crianças correndo, pessoas separando material
para vender do lixo que trazem da cidade de carroça ou puxando carrinhos
feitos de estrutura metálica. Ficam todas ao longo da margem do canal, e
embora pareçam à primeira vista ocupações recentes, pela fragilidade das
casas, elas evocam outras ocupações na forma de “vilas”, ou favelas, tantas
vezes removidas dessa ilha, que são retomadas nas trajetórias de moradores
dessa e de outras ilhas
25
. A atividade com lixo reciclável está relacionada ao
lixão que a Prefeitura de Porto Alegre manteve no solo dessa ilha aa metade
25
Ver capítulo 7.
32
da década de 1970, quando iniciaram as políticas de proteção ambiental da
região.
A comunidade que se ao longo da estrada na ilha seguinte, a Ilha
Grande dos Marinheiros, também tem no trabalho de catação e separação de
lixo sua principal atividade. Os terrenos o mais densamente ocupados,
alternando-se entre armazéns, oficinas, casebres, casas de palafita, galpões,
que formam a chamada “vila” de papeleiros e carroceiros, onde também
residem famílias de pescadores, costureiras, empregadas domésticas,
trabalhadores assalariados, donos de armazém, etc. Mas o cenário coloca em
destaque o trabalho com lixo, nos pátios, nas ruas, nos meios de transporte.
Esse cenário estende-se ao longo da estrada, acompanhando a ilha seguinte, a
Ilha das Flores, a mesma ilha que, vista a partir do barco, é tomada em sua
margem por residências de alto padrão aquisitivo e clubes recreativos, que não
são vistos da estrada.
Cruzando mais uma ponte, chega-se a uma parte continental do Delta
do Jacuí, pertencente ao município de Eldorado do Sul. Após essa última
ponte, sai-se da estrada por um caminho que cruza sob a ponte, rumando-se
em direção à Ilha da Pintada. Novamente, são as casinhas de madeira, os
barracos de papelão, que se sucedem agora rente à estrada, e a beira de um
banhado, em um contraste imenso com o outro lado do asfalto que é tomado
pelos muros das grandes residências, guardadas por seguranças armados,
alarmes, enormes portões. Cruzando uma pequena ponte de pedra, entra-se
finalmente na Ilha da Pintada, que por terra, se parece com uma pequena
cidade logo que se chega, pois se uma igreja, uma escola, um pequeno
comércio, e os fundos da Colônia de Pescadores Z-5, formando uma espécie
de praça e de centro administrativo da ilha. Por essa localidade estão novos
condomínios residenciais, e antigas residências a beira d´água, de famílias de
classe média, algumas relacionadas às atividades comerciais como as bancas
de peixe do Mercado Público de Porto Alegre.
Dobrando à esquerda, tem-se acesso finalmente à margem do Guaíba,
na rua onde mora Mocotó com sua família, assim como outros barqueiros e
pescadores. Seguindo por essa rua, antigamente de terra, e atualmente
asfaltada em boa parte, ainda vê-se algumas casas de palafita e as pessoas
vivendo um cotidiano entre a casa, a rua, e a margem do rio. No entanto, novas
33
residências muradas e gradeadas, algumas marinas particulares que guardam
lanchas de passeio e outras construções apresentam uma transição nas
formas de ocupação dessa rua, que possui uma das vistas mais privilegiadas
de Porto Alegre. E chegando ao final da rua, no Estaleiro Mabilde, hoje de
propriedade da Marinha do Brasil, faz-se o contorno e chega-se a uma outra
rua, essa sim, mais parecida com o trajeto pelas estradas que cruzam as ilhas,
densamente ocupada por casas de madeira, alguma próximas dos banhados,
outras em terreno aterrado. A ilha da Pintada ainda encontra-se com outra
ilha, a Ilha Mauá, acessível por uma pequena ponte para pedestres, onde hoje
funciona a sede administrativa do Delta do Jacuí.
Esse deslocamento por terra nos traz outra imagem do Arquipélago
diferente do caminho sinuoso da água, pois forma uma imensa linha de fuga,
partindo do centro de Porto Alegre, ou a ele retornando, contornando o lago,
que muitas vezes, nem mais é visto, dependo de qual parte do trajeto se
percorra. Por terra vê-se que aquela ilheidade inicial a que nos referíamos, o
é vivida de imediato e da mesma forma. Da janela do carro, ela se assemelha
mais ao que o historiador Alain Corbin (1988) se refere como o fenômeno da
“busca da orla” associado a determinados estilos de vida que buscam na
Natureza, nas praias paradisíacas e nos paraísos naturais um refúgio dos
males da “vida mental” (SIMMEL, 1979) da metrópole.
Embora esse atrativo da orla do lago seja evidente na lenta
transformação de suas margens em área valorizada no mercado imobiliário da
cidade, não pretendo seguir a oposição simples do conflito na forma como ele
se apresenta entre “ricos” e “pobres”, na fala de muitos informantes. Apesar do
conflito, ou por causa dele, poderia dizer que todos os atores envolvidos
partilham da opinião de que as ilhas o territórios privilegiados na Região
Metropolitana, em termos ambientais.
Essa posição ambígua das ilhas no contexto urbano apresenta uma
contradição que é fundamental para romper com a idéia muitas vezes difundida
de que houve um dia um equilíbrio entre uma comunidade de nativos das
ilhas com esse ambiente, quando o que se constata é que boa parte de sua
ocupação consiste de pessoas que optaram pelo seu ambiente diferenciado
como local de residência na cidade.
34
A família de Mocotó, a primeira que conheci nas ilhas, fornece um bom
exemplo de como essas contradições se apresentam. Entre 1998 e 1999,
realizei várias incursões a campo na companhia de colegas de pesquisa,
gravando em vídeo o cotidiano de Mocotó na ilha como contraponto à figura do
barqueiro contador de estórias, que ele assume durante os passeios de barco.
Apesar de Mocotó se apresentar como morador da Ilha da Pintada desde os
seus oito anos de idade, em suas narrativas conta de suas andanças pelo
município de Charqueadas como jogador de futebol, do trabalho com "carreto"
pelos bairros de Porto Alegre e outras profissões a adotar a atividade de
transporte de passageiros pelo rio como parte de sua formação como
aventureiro.
Morando à beira do Guaíba, Mocotó montou uma espécie de oficina na
beira da água, um estaleiro improvisado, um amontoado de ferro e madeira, no
qual pude acompanhar a construção, entre 1999 e 2003, de dois enormes
barcos de passeio e finalmente de uma sonhada casa flutuante. Da mesma
forma, seus filhos, que em 2005 ainda tocavam adiante o seu negócio, viveram
em sua trajetória a experiência do trabalho na cidade, como Neuza, sua filha,
que trabalhava como empregada doméstica até fazer parte da tripulação do
Barco Princesa Daiane. Ao mesmo tempo fui tomando conhecimento da fama
negativa de Mocotó entre outros moradores da Ilha da Pintada devido à lógica
informal como se estabeleceu à beira do rio e conseguiu fazer frente às
famílias ditas mais "tradicionais" da Ilha da Pintada que atuam no mesmo ramo
de passeios de barco. No entanto, mesmo tendo uma posição de outsider
26
(ELIAS, 2001) em meio a sua comunidade, em relação às demais ilhas, em sua
fala se situava como um morador estabelecido do bairro, ao contrário dos
recentes ocupantes da beira da estrada na Ilha Grande dos Marinheiros e na
Ilha do Pavão, estigmatizadas por suas condições de miséria e pobreza em
meio à sua população.
Portanto, entre 1998 e 1999, realizei algumas incursões pontuais às
ilhas, principalmente à Ilha da Pintada, acompanhando o cotidiano
26
Refiro-me à relação que Norbert Elias (2001) investigou, entre relações de vizinhança, entre
os "estabelecidos e os outsiders", que dá nome a uma pesquisa realizada em uma pequena
comunidade européia em que antigos moradores discriminavam os moradores mais recentes,
acusando-os de trazerem a corrupção e a crise à sua localidade, escamoteando tensões
internas de uma sociedade bem mais heterogênea do que a imagem comunitária representava.
35
especificamente de uma família para a produção do documentário "O Barco
dos Sonhos", sobre as estórias e o cotidiano do barqueiro Mocotó e seus
familiares. Apesar da pesquisa para este documentário ter sido finalizada em
2000, continuei mantendo contato com esta família até o ano de 2004, mas a
investigação nas ilhas foi sendo acrescida de novos pontos de vista.
A partir de 1999, estabeleci um contato maior com alguns moradores da
Ilha Grande dos Marinheiros, que iniciou com uma oficina de vídeo
documentário para adolescentes moradores do local, cujo resultado foi o
documentário “Ilha Assombrada: realidade ou ilusões?”
27
. Durante um ano,
participei do grupo de professores da oficina
28
, ministrada pela equipe de
pesquisa do Banco de Imagens e Efeitos Visuais, núcleo de pesquisa do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social em que trabalhava, ainda
enquanto estudante de Comunicação Social da UFRGS. Os alunos da oficina
eram adolescentes, três meninos e quatro meninas entre 15 e 18 anos,
moradores da vila que se concentra à beira da estrada e das pontes que ligam
as ilhas ao continente. Ainda estudantes, os alunos que se dedicaram durante
nove meses às atividades da oficina viam nessa oportunidade uma forma de
continuarem investindo em uma formação pessoal escolar, ainda que suas
famílias começassem a requisitá-los para as redes de trabalho recorrentes
na ilha
29
. Sua maior resistência inicial ao projeto era a proposta de realização
de um filme sobre sua comunidade de origem. Os terrenos onde o lixo trazido
pelas carroças é separado, ou até mesmo as ruas e casas da vila eram
constantemente evitadas nos seus primeiros enquadramentos. Ao invés disso,
nos conduziam para seus espaços preferidos, na beira da água, no mato, nos
espaços menos habitados da ilha. a proposta de abordar um repertório de
narrativas locais foi prontamente aceito e desenvolvido pelos alunos.
27
Cf DVD 1 que acompanha a tese
28
Meus colegas de trabalho eram a Professora Ana Luiza Carvalho da Rocha, coordenadora
do núcleo de pesquisa da UFRGS que possibilitou a realização da experiência, além de Alfredo
Barros e Silvia Cavichiolli, estudantes de jornalismo e meus colegas da faculdade de
Comunicação Social.
29
Articular o "tempo livre" dos alunos para as gravações era um desafio, pois sendo as aulas e
gravações nos sábados e domingos, a expressão "ajudar em casa" era recorrente entre alguns
alunos que precisavam se ausentar da oficina, para, por exemplo, cuidar dos irmãos em casa,
arrumar a própria casa ou o pátio, ou mesmo ajudar e aprender com os pais e parentes alguma
atividade produtiva.
36
O alvo das câmeras e microfones passava a ser a própria ilha, seus
espaços ditos “assombrados”, mas também alguns espaços da vila, onde
entrevistamos três moradoras que contavam estórias de tesouros enterrados
nas ilhas, bruxarias, aparições em meio à paisagem local. Ao mesmo tempo
em que essa experiência consistiu numa descoberta de um repertório de
estórias e lendas locais que se referiam a um "tempo dos antigos" como
duração coletiva a que uma série de saberes e práticas locais eram
associadas, tal experiência também consistiu na descoberta da dura realidade
das condições de vida que os alunos da oficina possuíam. Vivendo na parte
mais densamente ocupada da Ilha dos Marinheiros, em meio à situação de
fome e miséria por parte de alguns vizinhos, ou de dificuldades financeiras de
suas famílias que viviam com uma renda mínima vinda do trabalho assalariado
dos pais, dos serviços de faxina das mães ou das irmãs, das pensões dos
aposentados, ou das atividades nas carroças e carrinhos de catadores de
papel, a descoberta das estórias dos "antigos" (às vezes dos próprios avós e
parentes) reforçava laços afetivos mais positivos com relação ao seu local de
moradia na periferia urbana, enriquecido pela diversidade cultural que
começava a se desvelar na pesquisa para o vídeo.
Embora as narrativas fantásticas e as performances narrativas de três
velhas mulheres tivessem destaque no documentário, elas eram apresentadas
enquanto um conhecimento compartilhado pela vizinhança, narradas a partir de
momentos vividos em suas trajetórias sociais, em que acompanharam a
transformação da paisagem local e de seu modo de vida. Vindas da zona rural
do estado, ou de áreas mais afastadas do próprio Delta do Jacuí, seu espanto
com o crescimento da vila à beira da estrada onde antes "tudo era mato"
revelava, por outro lado, que aquele havia sido o local onde haviam escolhido
para viver na cidade de Porto Alegre.
Com o encerramento dessa experiência da oficina, muitas indagações
persistiram, por um lado, porque havia inúmeros narradores apontados pelos
moradores locais para falarem das suas memórias em comum, por outro lado,
porque uma série de lugares e práticas aos quais as narrativas estavam
relacionadas eu ainda desconhecia. As narrativas de enterramento de tesouros,
de manifestações de seres monstruosos e de águas misteriosas começavam a
ter efeito sobre mim, ouvinte atento, na sedução para a descoberta daquele
37
lugar a partir dos segredos que a memória local guardou em alguns cantos do
arquipélago.
1.4. Caminhando pelas ruas das ilhas
Após a exibição do documentário "A Ilha Assombrada: realidade ou
ilusões?" na televisão, repetidas vezes, retornei ao trabalho de campo, na
busca de encontrar outros narradores dessas estórias, para realização de uma
dissertação de mestrado sobre a figura do narrador e o lugar de sua arte de
narrar no mundo urbano contemporâneo. O retorno sobre a exibição do
documentário, fornecido pelos moradores da parte mais densamente ocupada
da ilha era um misto de curiosidade sobre as estórias levantadas, e de
indignação pela escolha de algumas pessoas "que não eram dali" para contar
as estórias do lugar. Na dissertação de mestrado, aproveitei esse retorno como
forma de situar a figura do narrador, tanto no papel daquele que viveu a vida
toda no mesmo lugar, e conta as estórias do local, quanto na figura do viajante
que leva estórias consigo, conforme a análise clássica de Walter Benjamin
(1994). Encontrei ambos os narradores, através das referências que me eram
dadas sobre quem "tinha estória" para contar, e sabia narrar. Por outro lado,
buscava esses pequenos diálogos com seus moradores, observando seu
cotidiano nos quintais, nas ruas das ilhas. Por vezes, portava uma câmera
fotográfica, em outros momentos, acompanhava um informante com a câmera
de vídeo, em outros, apenas estava presente, sem equipamento.
Tal perspectiva exigiu uma outra investida da pesquisa nos seus
deslocamentos. Nem o barco contornando as ilhas, nem o carro atravessando
a estrada e as pontes, mas um outro deslocamento, lento e gradual, de
inserção nas pequenas ruas, nos becos, nas estradas de terra, nos quintais e
casas em uma proximidade muito maior com os moradores, e em uma situação
de total desproteção perante seus olhos. Para olhar de perto, é preciso se
deixar observar. Apresento aqui um trecho de diário de campo que escrevi em
2001, em trabalho de campo para construção da dissertação de mestrado,
enquanto descrição de uma dessas ruas, enquanto espaço físico e enquanto
espaço de relações sociais:
38
“Caminhada pela Ilha Grande dos Marinheiros, Rua Nossa Senhora dos
Navegantes, no meio da vila, após uma leve subida das águas. A mesma
sensação de desconforto. Tarde de sábado. Pessoas nas janelas.
Crianças jogando taco na rua. Cachorros, gatos, cavalos. Um grupo de
vizinhos conversa em frente a um portão de madeira. Uma mulher está
sentada numa velha lata enferrujada de tinta, improvisada como banco.
Reparo na casa do casal que trabalha no galpão, bem enfeitada, recém
pintada, na beira do rio. Brincam comigo, me testando Veio olhar a
pobreza hoje? Não respondi, apenas acenei. Essa tarde, queria apenas
passar, como às vezes passava com a bicicleta, rápido, em direção à
casa de um informante. Um dia de sol, quente e úmido. Os pátios das
casas ainda estão muito embarrados. As pessoas improvisam caminhos
com tábuas, para evitar afundar o pé na lama. As madeiras das casas
ainda têm um aspecto úmido, molhado. E os telhados, alguns aproveitam
o sol para arrumar. As crianças andam com os pés descalços, sob restos
de madeira, plástico, e terra molhada da última cheia. O cheiro do lixo
acumulado nos quintais, misturado ao barro, e à matéria orgânica,
evapora com o calor. Levanta do chão. Uma velha senhora lava os
degraus da sua casa, e agachada, tira o barro, degrau por degrau. Um
adulto joga taco, brincando com crianças, fazendo palhaçadas. De forma
cortês, me espera passar, para continuar o jogo sem me dar uma bolada.
Sorri para mim, com um cumprimento de quem finge que se conhece de
vista: Oh! Talvez ele me conheça mesmo, como muitos ali, que me
reconhecem, sem que eu os conheça. Sinto-me nu sempre que passo
nessa rua. O seu tipo de sociabilidade é completamente diferente do
anonimato da multidão da rua, onde o reconhecimento é uma surpresa.
Ali, se tem a cara e a vida, conhecidas, e ter conhecimento (de pessoas)
é ter segurança por ali, como dizem. Reparo numa menina, em um
quintal ainda bem embarrado, calçando um sapato de salto alto que tem
o dobro do tamanho de seus pés. Ela caminha com dificuldade, enfiando
o salto no barro, e risada. Sinto-me assim, atrapalhado, pisando com
um sapato que não é o meu, afundando no barro fofo. E achando graça.
Passo pela casa de Laci. Ela me vê de longe, sorri, e convida para entrar.
39
Retiro o tênis molhado e coberto de barro, e entro de meias em sua casa.
Apesar de me sentir um visitante, para ela eu também já era de casa.”
Assim, cheguei também a Adão, um dos grandes narradores e
referência entre todos como antigo morador, cuja arte de narrar também se
escora na autoridade de pertencer a uma das famílias mais antigas da Ilha dos
Marinheiros. Mas também conheci melhor Laci e sua família, que apesar de ter
morado boa parte da vida no Delta do Jacuí, teve uma trajetória de ex-
cozinheira e lavadeira, com constantes deslocamentos pelos territórios das
ilhas e do continente. Cláudio, pescador e pregador evangélico que habitou
inúmeras das ilhas do Arquipélago. Maria, benzedeira nas ilhas e empregada
doméstica nas "casas de família" da cidade, falecida, que veio da cidade de
Bagé, e que morou em outras vilas antes de chegar às ilhas onde moravam
seus parentes. Aldo, pescador e ex-operário da construção civil, Adão do
Charuto, dono de armazém e também vindo de Canoas, da Vila Dona Teodora,
Gino, "reciclador" de papel, Marcos, "carroceiro" e "papeleiro", Pedro,
"capineiro", e muitos outros que desempenhavam papéis sociais muito
diferentes na Região Metropolitana, mas que se identificavam pela mesma
identidade de ilhero. Ilhero, no lugar do "ilhéu", que muitas vezes é afirmado
pelos moradores mais estabelecidos (ELIAS, 2001) da Ilha da Pintada
(pescadores, ex-donos de peixarias, etc) traz uma ênfase diferenciada em uma
identidade apoiada na prática cotidiana (ilhero soa como papelero, capinero,
barquero, carrocero, benzedera) do que na origem da pessoa.
Tendo produzido documentários em deo, trabalhos de iniciação
científica e finalmente uma dissertação de mestrado
30
, vi minha própria
produção etnográfica inserir inúmeras imagens e relatos sobre as ilhas em
meio às coleções de imagens do BIEV sobre a cidade. O cotidiano das ilhas e
sua trajetória no tempo, ainda que diferentes, passavam a encontrar muitas
ressonâncias com outros territórios ligados a outros grupos urbanos, na medida
30
Refiro-me à dissertação DEVOS, Rafael. “Uma Ilha Assombrada na Cidade: estudo
etnográfico sobre cotidiano e memória coletiva a partir das narrativas de antigos moradores da
Ilha Grande dos Marinheiros, Porto Alegre, RS.” Dissertação de Mestrado. PPGAS UFRGS.
Orientação de Cornelia Eckert. Porto Alegre, 2003. e aos documentários “A Morada das Águas”
(2003), “O Barco dos Sonhos” (2001) e “Ilha Assombrada: Realidade ou Ilusões?” (1999), todos
realizados no âmbito do projeto Banco de Imagens, PPGAS, UFRGS.
40
em que a questão da transformação das ilhas em território cada vez mais
urbano e menos rural, retomava o próprio trajeto de fundação de uma
sociedade urbano-industrial em um ambiente como o do Delta do Jacuí e suas
terras alagadiças. A “questão ambiental” que politicamente permeia a ocupação
do Delta do Jacuí, na medida em que é um ambiente ainda “natural” em meio à
paisagem urbana da Região Metropolitana da capital do RS, fornecia novos
“quadros sociais” para essa memória coletiva da cidade.
Em especial, o que os estudos da memória coletiva e da narrativa oral
revelaram, foi uma forma diferenciada de relação com o ambiente das ilhas,
pautada por uma certa ética de apropriação do ambiente do Delta na base do
"respeito" com relação ao rio, aos animais, às arvores, que era expresso nas
narrativas dos velhos sobre aparições que surgem nas raízes das árvores, no
meio do rio durante a pesca ou durante uma travessia das águas em direção à
cidade, em meio à mata fechada em uma caçada, com as energias das águas
em momentos de cheia dos rios.
Tal ética não deixa de ser um contraponto às interdições e questões
legais da proteção ambiental que se encontram ineficazes em meio às
populações que habitam o Delta, na medida em que esse "espaço fantástico"
(DURAND, 2001) que a memória tece na paisagem das ilhas, vivida por esses
moradores mais "antigos", o deixa de ser um conhecimento diferenciado das
ilhas. A beira do rio, as matas, os canais de navegação ganham importância
como um espaço liminar, nem o espaço doméstico do pátio e da casa, nem o
espaço público de circulação das estradas e da ponte, ou das ruas da vila. Um
espaço "natural" de importância para a vida na ilha, em que o narrador se
descrevia sempre à mercê das manifestações dessa paisagem fantástica,
nunca como proprietário, mas como alguém imerso no cenário pleno de cores,
de cheiros, sons e seres do local.
Passei a perguntar-me, com a defesa da dissertação e as colocações da
banca, em que medida essa ética é seguida pelos novos moradores e demais
segmentos sociais nas ilhas? Quais éticas com relação ao ambiente estariam
colocadas em meio ao cotidiano dessas comunidades? Quais os seus pontos
de contato com os demais domínios da vida urbana?
Retornei ao campo, e passei a rever meus dados de pesquisa, a voltar-
me para meus interlocutores “nativos” conhecidos, e aos que passei a
41
conhecer, com novas questões: O que as tensões descobertas em meio ao
cotidiano do Arquipélago, às disputas pelo solo urbano e pelo ambiente
“natural”, entre pobres urbanos, ambientalistas e moradores de novas
residências e condomínios de alto padrão econômico, tinham a revelar sobre a
dinâmica social e cultural das cidades brasileiras? Na medida em que a
conhecida presença de contingentes de famílias empobrecidas ocupando
territórios ainda não urbanizados configura-se como problema ambiental”
contemporâneo, não apenas para Porto Alegre, mas para as cidades do mundo
inteiro, como repensar esse meio ambiente das ilhas do Delta do Jacuí
atravessado por essas esferas sociais mais amplas?
Ingressei no doutorado em 2003 com essas questões, ampliando as
investigações sobre memória coletiva, meio ambiente e ética, observados nos
relatos e nas práticas dos moradores das ilhas, entre o Delta do Jacuí e os
demais territórios da cidade. Retornei ao trabalho de campo, então, retomando
o contato com a rede de relações que havia estabelecido durante a
dissertação e as pesquisas anteriores, basicamente com três famílias na Ilha
Grande dos Marinheiros e uma família na Ilha da Pintada, e com alguns
moradores com quem detinha conversas mais informais nas minhas idas a
campo.
Com as famílias de Cláudio, Laci e Adão, os principais informantes da
pesquisa da dissertação, não fiz mais entrevistas gravadas, mas tive novos
diálogos com eles e com seus parentes, sobre pontos das entrevistas que
queria debater, quanto à sua trajetória e seus sentimentos de enraizamento
nas ilhas. Da mesma forma, retomei o contato com a família de João Mocotó, o
barqueiro da Ilha da Pintada a que me referia. Com todos estes, o grande dado
que se revelou na pesquisa de campo foi a passagem do tempo - alguns
ficaram doentes, como Mocotó. Adão perdeu um filho. Juca, filho de Laci,
conseguiu um emprego depois de dois anos. Os meus antigos alunos da
oficina de documentário se aventuravam pelo universo de empregos e sub-
empregos da cidade. Jairo, com quem mantive mais contato, terminou os
estudos no segundo grau, e mantém a atividade de escultor em paralelo à
outras atividades profissionais.
As entrevistas iniciais, em que a dimensão mais fantástica das ilhas me
eram revelada por esses narradores, ganharam densidade pelos dramas
42
familiares que acrescentavam dados importantes às suas trajetórias narradas.
A proximidade maior com os filhos desses velhos narradores não deixou de me
fazer pensar na continuidade daquilo que eu havia ouvido tantas vezes, das
mudanças de casa e pátio narradas pelas vilas e ilhas da cidade. Esse dado
aparecia também nos relatos de algumas famílias recém chegadas às ilhas,
ocupando de forma improvisada restos de casas ou terrenos disponíveis. Em
conversas rápidas sobre sua situação, via essa dimensão nômade mais
imediata, de quem via nas ilhas uma nova esperança de enraizamento em uma
casa sonhada num lugar especial.
Mas eram nas narrativas de quem havia conquistado esse sonho da
casa na beira da água que a dimensão temporal dos itinerários urbanos desses
grupos reescrevendo a paisagem do arquipélago se revelava. Entre os novos
informantes, uma conquista muito desejada, Nazaret, líder comunitária da
Ilha dos Marinheiros e uma das pessoas que melhor acompanhou a instalação
da comunidade carente do "lado norte" da Ilha dos Marinheiros, vinda de
muitas outras remoções de outros lugares, e que narra também como surgiu o
trabalho com lixo reciclável nas ilhas. Salomão, pescador e "sabedor de peixe"
da Ilha da Pintada, também é um informante importante, que se distancia
bastante da figura idealizada do pescador tradicional, inserido na política
ambiental, nas redes religiosas e nas redes de psicultura do estado. Beatriz, a
Mãe Bia da Ilha da Pintada, que articulava seu tempo entre o trabalho no
continente em uma "firma", o trabalho religioso na casa de umbanda que é a
sua própria casa na ilha, e as muitas reuniões com o poder público sobre os
andamentos da política do Delta do Jacuí, enquanto representante da
comunidade. Pude fazer entrevistas gravadas com estes informantes, que
narraram suas trajetórias e teceram comentários sobre os recentes eventos da
política ambiental do Delta do Jacuí.
Outros dados de campo importantes foram elaborados a partir da
observação de espaços importantes da vida nas ilhas, não para as
comunidades, mas para a política ambiental - as margens dos rios. Elegi duas
ruas em especial, a Rua Nossa Senhora da Boa Viagem, na Ilha da Pintada, e
a Rua Nossa Senhora Aparecida, na Ilha Grande dos Marinheiros, para
investigar a estética mutante desses espaços, entre a apropriação diferenciada
por parte da comunidade (colocação de cercas, uso compartilhado da margem,
43
aterramentos), por parte do poder público e de outros segmentos sociais
(colocação de asfalto, obra de saneamento, remoção de moradores, instalação
de marinas e clubes náuticos, construção de muros e sistemas de segurança).
Também acompanhei algumas reuniões do poder público com moradores e
lideranças, como forma de observar os debates em torno da ocupação do Delta.
O "conflito" em si que se no Delta do Jacuí não é visível
imediatamente para quem por ali passa. Ao cruzar, por exemplo, a fronteira
que separa a área urbana da área de proteção na Ilha dos Marinheiros, não há
uma placa, uma construção, um funcionário que indique ao visitante que se
está em propriedade do Estado. Mas basta conversar com os moradores, para
se entender porque a estrada passa a ter péssimas condições dali em diante,
porque não há energia elétrica, ou sistema de telefonia, e principalmente,
porque não há sistema algum de saneamento nem água encanada.
São questões que são tratadas em reuniões do poder público com os
moradores, em que um impasse se coloca desde a criação do Parque Estadual
Delta do Jacuí. Para que o Estado possa implementar uma reserva ambiental
na imensa área do Delta, os investimentos precisam ser destinados o
apenas para as funções da reserva, mas principalmente, para a urbanização
adequada das áreas destinadas à moradia. Essas mudanças permanecem por
30 anos enquanto uma transformação anunciada, mas nunca efetivada na área.
Enquanto isso, no entanto, a irregularidade desdobra-se na ocupação, compra
e venda de terrenos, que não se limita às "invasões" por parte de famílias
empobrecidas chegadas de outros lugares, mas que inclui a venda de
pequenos sítios e casas de pescadores que são transformados em residências
de luxo, tendo se tornado o Arquipélago um lugar onde "nada pode, e por isso
mesmo, tudo pode", como diria um morador.
O verdadeiro conflito, no entanto, se nas negociações da própria
política ambiental do Estado entre prefeituras, governo estadual e ministérios
federais, entre quem deve arcar com os investimentos e responsabilidades de
uma ação efetiva na qual, sim se darão outros conflitos no momento de
implantar as definições oficiais e de romper com arranjos informais.
Por enquanto, as ações efetivas, como a remoção de algumas poucas
famílias da Ilha da Conga, ou a remoção de outras residências diretamente
colocadas na margem são pautadas por uma questão mais abrangente que o
44
problema fundiário do Delta. Trata-se das pressões por parte da política
internacional de recursos hídricos, e os investimentos direcionados para tal.
1.5. Territórios e Itinerários Urbanos
Embora se apresente em termos de disputa pela terra, ou como
problema de planejamento e moradia urbana na medida em que as ilhas são
terrenos na Região Metropolitana, o conflito que se no Delta do Jacuí pode
ser pensado de outra forma do ponto de vista da relação dessas terras com a
água. Essa nova abordagem do conflito revelou-se rica para a pesquisa, na
medida em que permitiu incluir outros atores e outras escalas de interpretação
do conflito, tanto do ponto de vista da importância para os recursos hídricos da
região que o Delta do Jacuí possui, quanto do ponto de vista da relação
diferenciada de seus moradores com as águas que banham a cidade e que
lhes abastecem em seu cotidiano.
Foi certamente ao acompanhar reuniões entre moradores e vereadores,
deputados, funcionários da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e
administradores do Delta do Jacuí que diferentes saberes sobre a qualidade e
a dinâmica das águas da região me foram revelados, assim como pude
registrar em vídeo algumas dessas representações acompanhando os
moradores em eventos públicos voltados para a preservação das águas do
Guaíba.
Quando o foco da importância ambiental das ilhas muda da
irregularidade da propriedade privada dos terrenos e da preservação da fauna
e flora do lugar para a sua contribuição na melhoria da qualidade das águas do
Lago Guaíba e dos rios afluentes, a palavra dos narradores que entrevistei
passou a ter outro espaço. É uma temática que embora lhes diferencie da
população da região, pelas fronteiras simbólicas que se revelam nos seus
saberes e fazeres diferenciados com relação à pesca, navegação, etc, também
lhes situa como habitantes da cidade, enquanto moradores de Porto Alegre que
partilham um sentimento trágico em relação à paisagem local de perda do Lago
45
Guaíba (da sua balneabilidade, de espécies de peixes, do uso de embarcações
como meio de transporte na cidade).
A maneira como este dado se revela é certamente mais contundente do
ponto de vista da investigação desse conflito ambiental em meio às tensões
presentes à memória coletiva da cidade. Tanto no que tange a uma memória
local das ilhas e da transformação de sua paisagem, quanto no que se pode
refletir sobre uma memória da transformação de toda a paisagem alagadiça
onde se desenvolveu a região metropolitana de Porto Alegre, surgem conflitos
de outra ordem nas ocupações e usos dos espaços naturais no meio urbano.
Tais registros encontrei em documentos escritos, fotográficos, fílmicos, que
mostram canalizações de arroios, aterramentos, drenagens de vales,
construções de avenidas, pontes e estradas, ou simplesmente as antigas
paisagens de Porto Alegre.
Ao refletir sobre os itinerários de deslocamento de populações
empobrecidas nas periferias da cidade, em que constam os próprios
deslocamentos dos moradores das ilhas, narrados em seus relatos
autobiográficos, uma outra imagem do ambiente da cidade pode ser pensada,
em que os itinerários de populações nas ilhas retomam os arranjos de
ocupação de terra e água na cidade. Embora o Delta do Jacuí possa ser
pensado contemporaneamente como o que resta de uma paisagem original da
região, do ponto de vista da memória, essa paisagem acompanhou as
transformações sociais e mesmo ecossistêmicas da Bacia Hidrográfica.
O desenvolvimento dessa problemática ambiental está envolvida em
processos sociais mais abrangentes, como a própria política internacional de
meio ambiente, que será abordada nos próximos capítulos. O que pretendo
mostrar aqui é que o trajeto da pesquisa foi o da investigação da relação
desses moradores com o ambiente em que vivem a partir da memória coletiva,
ou seja, a partir de suas narrativas, onde a problemática do Delta do Jacuí, e
contemporaneamente da qualidade das águas, aparece como uma tensão que
tem a força de enquadrar essa memória da transformação nas formas dos
arranjos da vida social na cidade segundo a perspectiva da inter-relação entre
indivíduo, ambiente e sociedade.
46
Semelhante ao processo que o antropólogo Leite Lopes (2004, 2006)
chama de ambientalização, de internalização da problemática ambiental como
uma nova questão pública, é possível encontrar nas narrativas dos moradores
das ilhas também essa reflexividade quanto às relações entre as
transformações que viveram no seu modo de vida e a transformação na
paisagem natural das ilhas, mas também no ambiente social onde se
encontram. Refletindo sobre a trajetória da própria pesquisa, que iniciou
alguns anos, penso que houve também uma abertura na abordagem conceitual
desse conflito ambiental a o seu entendimento enquanto parte de um
processo social mais amplo.
A bibliografia contemporânea sobre conflitos entre residentes de áreas
de preservação ambiental e agentes governamentais, turistas, empresários, etc,
tem se valido do conceito de território e do estudo da diversidade territorial
como forma de investigar a existência de outros territórios sociais no contexto
do Estado-Nação.
Espaço e tempo são categorias que tendem a serem tomadas como
“naturais”, na medida em que são comuns a todos grupos sociais, e o como
construções do espírito (KANT, 1974), e muito menos, como construções
sociais, categorias de entendimento das quais parte a ciência antropológica
para investigar a diversidade humana, e seus princípios universalizáveis. Émile
Durkheim, um dos fundadores da Antropologia, investigava justamente a
relação entre as divisões e sub-divisões dos grupos sociais e a divisão espacial
de seus territórios.
Lévi-Strauss define, seguindo a tradição da escola sociológica francesa,
o lugar como a espacialização do mundo através da espacialização da
“estrutura social”, entendida menos como uma forma sensível da organização
social, mas desta como um modelo presente na consciência daquele que
pratica e habita o lugar. Lévi-Strauss estende, portanto a relação descoberta
por Durkheim (1981; 1996) entre a constituição social e a sua ordenação no
espaço para o plano da linguagem. Enquanto arranjo de signos sociais, o
47
espaço é pensado como perspectivado por aquele que o observa, capaz de
reconhecer os significados locais inscritos nas divisões espaciais
31
.
O espaço, culturalmente significado, não faz referência apenas ao
espaço de moradia, mas também engloba o espaço de ação e, portanto,
comporta um conhecimento da dinâmica ecológica de um território. O território
está relacionado, portanto, aos saberes e práticas de uma população, como as
práticas de pesca, caça, agricultura, extrativismo, ou de pastorio
32
.
Paul Little (2002) faz um balanço importante do contexto brasileiro em
que inúmeras pesquisas vêm trabalhando com populações não-camponesas
(quilombolas, grupos indígenas, caiçaras, pescadores artesanais, extrativistas,
seringueiros, ribeirinhos), denominadas de populações tradicionais, e suas
formas de apropriação e uso comum dos recursos naturais em áreas que se
tornaram reservas de preservação ambiental. Assim como Little, Diegues (1994,
2000) e outros autores vêm investigando as formas de organização territorial
diferenciadas de populações tradicionais a partir de sua diversidade histórico-
cultural, e quais as práticas sociais que devem ser preservadas em conjunto
com as características de ambientes naturais que possuem, deste ponto de
vista, um manejo histórico por parte dessas populações. A memória
socialmente construída assume, nesse contexto, um papel fundamental na
organização política e na consolidação da diversidade territorial dessas
comunidades, através do testemunho da historicidade da ocupação
diferenciada de terras, mas também na possibilidade de desenvolvimento de
práticas de sustentabilidade apoiadas nos sentimentos de enraizamento e
pertença dos residentes de áreas naturais
33
.
Embora tenha encontrado pertencimentos a determinadas tradições
relacionadas a saberes de populações ditas tradicionais entre os moradores
das ilhas, o fato da área de proteção em questão encontrar-se em plena região
31
Refiro-me às observações do antropólogo presentes tanto em sua "antropologia estrutural"
(Lévi-Strauss, 1996
a
, pp. 150 e 165) quanto em seus registros de pesquisa etnográfica no
Brasil em "Tristes Trópicos" (Lévi-Strauss, 1996b, p.206.)
32
Um estudo que se destaca, nesse sentido, é o clássico estudo de Evans Pritchard (1974)
sobre o a noção de território entre os Nuer, na África, articulando suas sub-divisões políticas,
etárias, étnicas com os conhecimentos ecológicos sobre as estações de seca e de chuva, em
deslocamentos com rebanhos de gado pela região do deserto.
33
"A expressão dessa territorialidade, então, não reside na figura de leis ou títulos, mas se
mantém viva nos bastidores da memória coletiva que incorpora dimensões simbólicas e
identitárias na relação do grupo com sua área, o que profundidade e consistência temporal
ao território" (LITTLE, 2002).
48
metropolitana da capital do estado, com históricos de ocupação por populações
chegadas de diferentes lugares da região e em diferentes momentos, provocou
uma abordagem diferenciada do pertencimento desses residentes às ilhas do
Delta do Jacuí. Ainda que seja constante uma auto-afirmação de uma
identidade do "povo das ilhas", entre a figura do ilhéu, ou do ilhero, percebo
que ela é acionada em diferentes contextos de reivindicação de cidadania, de
direito a melhores condições de vida urbana, como infra-estrutura sanitária,
direito a serviços públicos como energia elétrica, telefonia, transporte, etc.
Portanto, não é exatamente a figura de uma população tradicional, no sentido
de uma ocupação territorial diferenciada de exploração dos recursos naturais
que está em jogo, mas uma identidade diferenciada no contexto urbano que é
retomada a partir de uma memória local em que consta um conjunto de
saberes e práticas quanto ao meio ambiente das ilhas, revertendo um estigma
de população marginalizada em um diferencial positivo na paisagem urbana.
Colocou-se, portanto a questão de quais territorialidades estão em jogo
em um contexto urbano como este, e quais transformações pelas quais essas
territorialidades passam em um contexto de ambientalização das instituições e
das relações das pessoas com os espaços da cidade. O conceito de itinerários
urbanos (ECKERT e ROCHA, 2000) é o que permite, nesse sentido,
aprofundar a dimensão temporal do território, construído a partir de diferentes
trajetórias de indivíduos que vão dando profundidade aos significados inscritos
na paisagem urbana, seja pela repetição de gestos de fundação de suas
moradas nos bairros, arrabaldes e ilhas da cidade, seja pela sua adesão a
determinadas práticas que se repetem em espaços de sociabilidade que
constituem a vida urbana.
A partir da tríade indivíduo, sociedade e cultura, que norteia essa
perspectiva de investigação das sociedades complexas moderno-
contemporâneas, é que proponho aqui uma abordagem sobre os conflitos no
Delta do Jacuí a partir das inter-relações entre indivíduo, ambiente e
sociedade
34
.
34
Essa elaboração Indivíduo/Ambiente/Sociedade é resultado da problemática que norteia a
pesquisa e ação do Instituto Anthropos, Organização Não-Governamental na qual tive a
oportunidade de debater alguns temas discutidos neste trabalho, com colegas antropólogos e
profissionais da área técnica de meio ambiente, como engenheiros sanitaristas, biólogos,
49
A antropologia brasileira, tanto por parte dos estudos que se intitulam
enquanto “Antropologia Urbana”, de pesquisa sobre o fenômeno urbano,
quanto seus desdobramentos em termos de pesquisas na cidade (VELHO,
1980), têm se colocado o problema da diferenciação interna das sociedades
contemporâneas, que não se apresenta como dado, mas como uma dinâmica
relacionada à diversidade de papéis sociais desempenhados na vida cotidiana,
aos diferentes universos simbólicos constituídos a partir das diferentes redes
de significados compartilhadas pelos indivíduos em suas ações cotidianas,
pelas quais a realidade é negociada (VELHO, 1980; 1981; 1999).
Os indivíduos filiam-se a diferentes identidades coletivas em sua
trajetória social, pois estão no ponto de intersecção de vários mundos na
sociedade moderna, conforme Georg Simmel (1979), e é justamente esse
movimento, essa “metamorfose” (VELHO, 1999) que vivem os ilhéus, ou ilheros,
na sua experiência urbana que lhes possibilita partilhar de diversas visões de
mundo sobre o ambiente do Delta. Por outro lado, é o que permite investigar o
conflito para além da perspectiva utilitarista que tenderia a resumi-lo aos
interesses econômicos dos grupos envolvidos, pois tais conflitos têm a
capacidade de expressarem e reordenarem os significados a partir dos quais a
realidade é negociada.
1.6. Lugar, paisagem e itinerários urbanos
Em um primeiro momento, o estudo da narrativa oral, de um repertório
de lendas e narrativas fantásticas como forma de transmissão de saberes
quanto ao modo de vida dos moradores das ilhas revelou a dimensão mais
microcósmica desse lugar. A descoberta dos narradores, a escuta às suas
estórias, a descoberta dos lugares a que as narrativas faziam referência no
Arquipélago, assim como a descoberta de uma rie de saberes e fazeres
locais (a construção de embarcações e de casas sob palafitas, os saberes da
pesca, o conhecimento sobre a vegetação local, etc) foram importantes para
urbanistas, e outros gestores de políticas blicas voltadas para o meio ambiente. Cf.
http://www.thropos.org.br
50
situar a experiência desses moradores quanto à vida na ilha, e quanto à sua
experiência na cidade, a partir da experiência nas ilhas.
Nesses jogos de representação entre as ilhas e a cidade, entre a bacia
hidrográfica, o Delta do Jacuí e o Arquipélago como ordens espaciais em que o
conflito aparece, foi necessário realizar uma incursão por conceitos
instrumentais quanto ao espaço como categoria de entendimento para
compreensão de uma realidade socioambiental.
Conforme a distinção filosófica clássica entre as idéias de espaço e
lugar
35
, sendo o espaço abstrato, valorativo, mensurável, e sendo o lugar uma
composição complexa mesclando tempo, meio e espaço em um enraizamento
de memórias e singularidades, inicialmente a pesquisa orientou-se para a
investigação das ilhas como lugar singular no meio urbano.
É Marcel Mauss (2003)
36
um dos autores na Antropologia que abre
caminho para essa perspectiva, na medida em que estende a compreensão
das categorias de espaço e tempo como representações coletivas enquanto
investidas de afetividade, constituídas a partir de redes de relações sociais e
reciprocidades, que acrescentam significados à divisão social do espaço,
inserindo-o na dimensão vivida e, portanto, atualizada nas relações sociais.
A partir da noção de duração colocada por Mauss (2003), de tempos
sociais compartilhados e inscritos nos espaços da vida cotidiana, desenvolve-
se a perspectiva de investigação do espaço a partir da investigação dos
tempos sobrepostos nos territórios onde a vida urbana, em especial, oferece
uma grande variedade de durações. Enquanto ambiente, a cidade pode ser
investigada pela variedade de relações sociais que se inscrevem nos seus
espaços, e que os configuram.
35
Como referências para esta discussão ver: Anne Cauquelin L’invention du paysage. Paris,
Quadrige/PUF, 2000; Le site et la paysage, Paris, Quadrige/PUF, 2002 e Michel de Certeau A
invenção do cotidiano 1. Artes de Fazer. Rio de Janeiro, Vozes, 1994.
36
Apesar da obra de Mauss estar referida à fundação da escola sociológica francesa, nos
estudos em parceria com E. Durkheim sobre as representações coletivas e a estrutura social,
Mauss foi inspirador de muitas outras articulações do pensamento antropológico pela forma
ensaística dos seus escritos mas principalmente, pela descrição detalhada e densa dos
fenômenos sociais a que se referia, como o pensamento e os atos mágicos, as técnicas
corporais e as trocas totais. Seus estudos, apesar de se referirem ainda às categorias de
entendimento da vida social, também já são referência importante para a dimensão ritual da
vida social e para a interpretação da ão social, que viriam ser desenvolvidas posteriormente
por outras escolas de pensamento antropológico. Recentemente as obras de Mauss foram
republicadas no Brasil, e é a referência que utilizo (Mauss, 2003).
51
É possível estender, sob o ponto de vista de um paradigma estético,
inspirado na sociologia de Georg Simmel (1983; 1987), a interpretação dessas
representações das formas da vida social a uma interpretação da dimensão
vivida do cotidiano da cidade, como o fazem as antropólogas Ana Luiza
Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert (2000). Pensando a cidade como obra
coletiva, o espaço físico das casas e ruas surge como suporte e como inscrição
das próprias formas de sociabilidade observáveis, dos encontros cotidianos. Os
lugares e as formas como as interações cotidianas se dão são investigadas
como formas herdadas do tempo, no sentido simmeliano, enquanto constante
re-elaboração da vida, em que o espaço pode ser pensado como a
cristalização da matéria do tempo (ROCHA, 1994), servindo como meio entre a
Natureza e a Cultura, conforme Maffesoli (1996).
Pensar as ilhas como território urbano significa investigá-las em termos
de que ethos se inscreve em suas interações cotidianas, que configurarão os
itinerários urbanos dos grupos sociais na cidade. Nas ilhas, privilegiei a
observação das ruas à margem dos rios, mas também os pátios das casas,
onde o contato com a água ainda é constante, e onde é visível uma relação
com o lugar que é a afirmação da identidade de ilhéu, ou ilhero, que os
informantes colocam, a marca das ilhas como espaço vivido pela experiência
da ilheidade.
O conceito de ilheidade é proposto por A. Molles e E. Rohmer (1982),
enquanto uma fenomenologia do espaço. Os autores investigam o espaço da
cidade como espaço vivido, seguindo os estudos de Gilbert Durand (2001)
sobre o "espaço fantástico" e Gaston Bachelard (1990) sobre a “poética do
espaço”, em que as ilhas, os labirintos da cidade, os centros e arredores se
conformam como modalidades de experiência espacial que não se apresentam
de imediato pela constituição do espaço físico, mas pela forma como esse é
praticado, significado e imaginado. Ilheidade difere portanto de insularidade, na
medida em que o insular se refere a condição geográfica de uma ilha, mesmo
que esta possua grandes proporções, enquanto que a ilheidade se refere a um
pequeno espaço encerrado em fronteiras que exigem sua travessia, e que
permitem a percepção desse caráter microcósmico.
Essa experiência da ilheidade não se apóia no dado imediato da
insularidade, mas na possibilidade de experienciá-la nas embarcações, na
52
beira do rio, na casa sob palafitas. Ela depende de certos arranjos da vida
cotidiana em meio ao ambiente, que encontram o desafio de se perpetuarem
no tempo. Conforme Michel de Certeau (1994), o lugar é inscrito por práticas
cotidianas que atualizam seus significados dinamicamente, pois depende das
táticas e ações cotidianas dos indivíduos para se perpetuarem enquanto lugar
do próprio, da experiência singular. O lugar não existe apenas como uma
representação que depende daquele que observa para ser percebida. A
estética do lugar, ou o seu genius loci (MAFFESOLI,1996, p. 272), o espírito do
lugar, que constitui o espaço da vida social a partir de um compartilhar de
emoções, de cheiros, de cores, de trajetos, de sons, de gestos e posturas, de
referências em comum, está apoiada em uma ética, um comportamento cujos
significados sociais se inscrevem nas ações dos sujeitos na forma de um ethos.
O conceito de paisagem aproxima-se dessa concepção. Apesar do
termo originar-se no campo da representação pictórica renascentista do
espaço, que objetiva determinado espaço a partir do olhar distanciado e em
profundidade, enquanto obra da imaginação humana o conceito agrega
também uma dimensão fabulatória que insere o tempo social dentro do espaço
enquanto representação social. Conforme Simmel (1983), a paisagem é a
decomposição e o recorte de elementos retirados da continuidade infinita da
natureza (SIMMEL, 1983), realizando a vontade humana em determinadas
formas que se perpetuam no tempo. Segundo o autor, em um exemplo
clássico, uma ponte é a realização da vontade de união de duas margens, a
ponto de se fundir à própria paisagem, assim como a estrada é a concretização
de um caminho repetido inúmeras vezes.
Na medida em que o arranjo dos elementos no quadro evoca
significados acumulados no tempo que configuram uma determinada forma de
ver elementos como edificações, vegetação, terra, água, num todo coerente
(CAUQUELIN, 2002) a paisagem tem uma relação fundamental com a
formação do que Halbwachs (1990) chama dos quadros sociais da memória,
pois evoca determinados tempos sociais enquadrados no recorte espacial. Os
quadros sociais da memória, a partir do ato de lembrar, rompem com a
oposição entre a matéria e o espírito, sendo uma obra coletiva em que os
grupos aos quais os indivíduos pertencem exercerão papel definitivo. Da
mesma forma pode-se perceber como lugares, objetos, ruas, árvores, dizem
53
respeito a uma ordem de idéias, interesses e preocupações que uma
coletividade compartilha, porque contadas e vividas no interior dos grupos
como forma de permanecerem no tempo. A paisagem está expressa, não só na
pintura, ou na fotografia, mas nos relatos orais e narrativas míticas que
representam os cenários das ações narradas, na literatura igualmente que
realiza esse arranjo de coisas e tempos no espaço.
Dessa forma, é tensionando os itinerários urbanos expressos nas
trajetórias sociais dos indivíduos, à paisagem que se configura na
compreensão da passagem do tempo e do arranjo da vida no espaço que está
expressa nas narrativas autobiográficas dos sujeitos, é possível chegarmos a
uma concepção do ambiente, relacionando a paisagem natural e a paisagem
urbana a partir da experiência dos moradores das ilhas.
1.7. Memória, imagem e narrativa
Guardando as particularidades da dimensão oral para a dimensão
escrita, ou do registro fotográfico ou pictórico, a pesquisa voltou-se para a
memória coletiva pensada a partir dos relatos autobiográficos de alguns
moradores das ilhas, sobrepostos às composições da paisagem em fotografias,
pinturas, extratos de filmes e de obras literárias referentes à memória social da
cidade de Porto Alegre.
Entender, dessa forma, a arte de moldar a “matéria do tempo”, é realizar
uma “etnografia da duração”, conforme os termos propostos pelas antropólogas
Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha (2005). As autoras incorporam
as contribuições de Gaston Bachelard (1988; 1996; 1998; 2000) e Gilbert
Durand (1988; 1998; 2001) que investigam o fenômeno da lembrança enquanto
pensamento sobre o tempo e suas durações, em todo seu dinamismo criador.
Compondo a obra da Dialética da Duração (1988), Bachelard percebe a
duração como ritmada por “tempos vividos” e “tempos pensados”, onde
recordar é uma atividade de acomodar, nas razões do tempo presente, as
experiências narradas de um passado vivido e pensado. Para Bachelard a
lembrança é mais do que uma versão do passado que as “comunidades
afetivas” (HALBWACHS, 1990) tenderiam a compor no ato de lembrar, pois a
continuidade da duração não se apresenta como um dado imediato, mas como
54
um problema” (BACHELARD, 1988, p. 07). O “tempo pensado”, para Bachelard,
constitui-se na ordenação, ou na “ondulação” de uma série de rupturas
37
com a
continuidade do tempo. O narrador estabelece uma hierarquia de ações, uma
cadeia de gestos, de escolhas desenhadas no tempo. A narrativa trata de
colocá-los em ritmos, fazê-los ondular.
O trabalho da memória é então, o de contar, premeditar, romancear o
tempo, atividades que, conforme Gilbert Durand (2001) remetem à função
fantástica da imaginação em organizar esteticamente a recordação a partir de
fragmentos vividos. A memória o é, pois intuição do tempo que passou, mas
a sua negação, estetizando a possibilidade do tempo durar
38
. Às faces do
tempo que corre sem cessar, em direção à morte dos indivíduos e dos grupos
sociais, a memória acrescenta a possibilidade de regressar, de regredir, de
repetir, no plano da cultura. Neste sentido, a narrativa é fundamental para
inserir, no próprio fio temporal do discurso, os retornos dos fragmentos do
vivido humano.
Ao aderirem a essa dimensão fabulatória da memória, desvela-se um
“mundo”
39
aberto pela narrativa, enquanto uma forma de olhar para este,
enquanto uma forma de conhecê-lo, conforme ganha significado pelas imagens
encadeadas pelas narrativas, por seu caráter simbólico. É por isso que a
memória das ilhas é narrada em meio a um repertório de contos, lendas e
narrativas de caráter mítico, que encontram, na dinâmica das imagens do
tempo que as narrativas organizam, uma forma de fazer durar os gestos e os
saberes do “tempo dos antigos” na paisagem presente, constituindo-a como um
"espaço fantástico" (DURAND, 2001) da memória.
37
“Quando queremos falar de nosso passado, ensinar a alguém como é nossa pessoa, a
nostalgia das durações em que não soubemos viver perturba profundamente nossa inteligência
historiadora. Gostaríamos de ter um contínuo de atos e de vida para contar. Mas nossa alma
não guardou uma lembrança fiel de nossa idade nem a verdadeira medida da extensão de
nossa viagem ao longo dos anos; guardou apenas a lembrança dos acontecimentos que nos
criaram nos instantes decisivos do nosso passado. (...) Nossa história pessoal nada mais é
assim que a narrativa de nossas ões descosidas e, ao contá-la, é por meio de razões, não
por meio da duração, que pretendemos dar-lhe continuidade”.(Bachelard, 1988:39)
38
“... a memória permite um redobramento dos instantes e um desdobramento do presente; ela
dá uma espessura inusitada ao monótono e fatal escoamento do devir, e assegura nas
flutuações do destino a sobrevivência e a perenidade de uma substância.” (Durand, 2001: 402)
39
“Aquilo de que importa apropriar-se é o sentido do próprio texto, concebido de um modo
dinâmico como a direção do pensamento aberta pelo texto. O poder de desvelar um mundo,
que constitui a referência do texto”. (Ricoeur 1976:104)
55
uma relação fundamental, portanto, nas constelações de imagens
que podem ser percebidas nas narrativas que os moradores das ilhas tecem ao
narrarem sua experiência na cidade e em meio à Natureza das ilhas e águas
do Delta, que nos permite pensar o ambiente ao qual pertencem como um
ambiente cósmico e social, nos termos de Durand (2001). Como veremos no
próximo capítulo, a função fantástica da imaginação criadora, presente à
inteligência narrativa dos moradores entrevistados, e também às narrativas
reunidas em textos de cronistas, filmes, fotografias, nos permitem pensar o
ambiente urbano como esse ambiente cósmico e social, que é significado à
medida em que seus habitantes o descobrem através dos saberes presentes à
memória dos grupos sociais que nela se encontram, e através da experiência
individual de habitar um centro urbano a partir de determinada relação com o
ambiente natural.
É por isso que essa memória o constitui as ilhas como um território a
parte da cidade, pelo contrário, provoca uma reflexão sobre a vida urbana a
partir das margens do Lago Guaíba. Morar em um local estratégico na região
metropolitana de um centro urbano e ter acesso a ambientes privilegiados
quanto a recursos hídricos, fauna e flora, não é portanto, uma questão que se
coloca apenas a segmentos mais cosmopolitas das cidades, adeptos do
turismo ecológico, dos esportes aquáticos ou moradores de condomínios
residenciais ecologicamente projetados para aproveitamento da “área verde”
de determinadas regiões da cidade. Os relatos de pescadores, catadores de
lixo, empregadas domésticas, barqueiros, trabalhadores assalariados,
pequenos sitiantes rurais e outros ilheros moradores do Delta do Jacuí revelam
a importância do ambiente natural não apenas para promoção do seu sustento,
mas igualmente na constituição de sua subjetividade nos seus pertencimentos
diferenciados à cidade.
Embora as narrativas enfatizem o caráter microcósmico das ilhas, na
forma como o mato, as águas, os caminhos de navegação, os animais e os
grupos locais relacionam-se na narrativa, esse microcosmo inclui parte da
margem continental de Porto Alegre. Mais especificamente, são estes os
caminhos que ligam as ilhas ao centro administrativo e comercial da capital do
Rio Grande do Sul, como o Cais do Porto e o Bairro Navegantes, que
antigamente era ponto de contato constante nas idas e vindas de barqueiros na
56
cidade, onde inclusive muitos atuais moradores das ilhas habitavam, e que
atualmente é caminho rodoviário pelas pontes e local de trabalho e de serviços
públicos (escolas, postos de saúde, conselho tutelar, etc).
Os moradores mais antigos das ilhas relatam suas práticas e a
transformação da paisagem local, narrando os processos de aterramento da
orla do Lago Guaíba, as transformações de antigos espaços de sociabilidade
popular de contato com o lago, além das mudanças nas distâncias e na
posição estrutural que as ilhas ocupavam nos limites da cidade com o Natural.
os moradores vindos de outras periferias da região metropolitana narram a
transformação das ilhas e de outros matos, morros e charcos, como parte da
sua busca por um lugar diferenciado no ambiente urbano, em que os terrenos
das ilhas se tornam depositários dos projetos de conciliação de suas atividades
produtivas, de deslocamento e de lazer com o ambiente técnico-cultural urbano.
Tais projetos de consolidação de um habitat ideal, nos termos de Leroi-
Gouran (1975), que integra espacialmente o território de ação com o refúgio,
com a morada, não condizem, no entanto, com a forma como essa ocupação
das ilhas se deu, com a densificação populacional e a degradação do ambiente
em suas condições sanitárias, em grande parte. Os próprios narradores
reconhecem essa descontinuidade entre seus projetos de enraízamento nas
ilhas e as consequências do tipo de organização espacial que estas passaram
a ter, na forma das “vilas” de classes populares, por um lado, e de outro na orla
privatizada por mansões e clubes ou desocupada pelos órgãos de proteção
ambiental.
Os estudos de narrativas literárias, gravuras, fotografias que apresentam
essas transformações nas paisagens da cidade, demonstram que embora se
apresente atualmente como problema ambiental em áreas valorizadas
economicamente e importantes para a dinâmica ecossistêmica da região, a
presença de populações empobrecidas nos matos, mangues, beiras de arroios
aparece na memória da cidade como parte de um processo de modernização e
remodelação do espaço urbano e de segregação espacial, em que o
justamente essas áreas naturais o lugar na paisagem urbana destinado às
populações empobrecidas.
57
Essa descontinuidade entre paisagens que a memória configura e os
arranjos que o atual conflito gera é fundamental para compreender a dinâmica
dessa territorialidade que se esboça no cotidiano dos ilhéus em seus
deslocamentos diários entre o espaço natural e o espaço construído da cidade,
e sobre a qual refletem ao retraçarem os itinerários urbanos que narram a
ocupação das ilhas nos deslocamentos de famílias para a região.
O estudo da paisagem e da dinâmica da memória possibilitaram à
pesquisa chegar a outra dimensão do conflito quanto à política do Delta do
Jacuí. A noção de conflito proposta por G. Simmel (2004), do conflito como
fator de socialização, fundante de relações sociais
40
permitiu situar o atual
desafio de conciliar uma ocupação urbana com o uso sustentável dos recursos
naturais (do solo, das águas, da fauna e flora) em uma ambiente como o Delta
do Jacuí, como uma questão que convoca a todos, residentes ou não das ilhas,
a repensarem o trajeto de dissociação Homem-Natureza em suas trajetórias
sociais enquanto moradores de um centro urbano em busca de melhores
condições de vida.
Na simples constatação quanto à ilha onde "tudo era mato" que agora
"está uma cidade", repetida de diversas formas, por diversos narradores na
pesquisa, se apresenta o que G. Simmel chama de "tragédia da cultura", a
constante elaboração de formas no plano da cultura que precisam dar lugar a
novas formas no constante movimento da vida, com a passagem do tempo. No
sentimento trágico do velho barqueiro Mocotó quanto a sua Porto Alegre que
"está se terminando", reflete-se uma outra forma de pensar a paisagem urbana,
em que a ilha não se apresenta apenas pela ilheidade como contraponto ao
espaço construído, mas também como uma continuidade do ambiente técnico-
cultural da cidade.
Diante de sanções e constrangimentos por parte da política ambiental,
mas também face às catástrofes ambientais contemporâneas, como a extinção
de inúmeras espécies de peixes e a contaminação das águas do Lago Guaíba,
as inundações nas cidades, a escassez de água potável e a seca na agricultura,
ou o acúmulo de lixo nas margens, os moradores das ilhas passam a repensar
40
Refiro-me aos ensaios de Simmel sobre conflito e modernidade inseridos no livro Philosophie
de la modernité, volume único, 2004, Éditions Payot & Rivages, Paris (Chapitre V Conflit et
modernité: le conflit; le conflit de la culture moderne; la crise de la culture) e também aos
ensaios presentes na obra Les problèmes de la philosophie de l’Histoire, Paris, PUF, 1984.
58
a posição do Arquipélago na Região Metropolitana para além da oposição
centro-periferia, ou ilha-cidade. As representações do Delta do Jacuí como
parte de uma bacia hidrográfica, e sua interdependência com outros
ecossistemas regionais e globais não o evidentemente conceitos científicos
imediatamente incorporados pelos moradores como propõem inúmeras ações
de educação ambiental realizadas com os moradores que pude observar. Da
mesma maneira, as práticas de navegação, por exemplo, estão ligados a
saberes quanto aos diferentes lugares da região que se ligam através das
águas. E é justamente que se pode refletir sobre uma mudança na imagem
do mundo, na concepção de ambiente, ao incorporar-se o reconhecimento da
influência das ações de outros segmentos sociais na qualidade do ambiente
local, e na interdependência entre os diferentes territórios da região, ou seja, na
percepção de um mesmo ambiente que engloba tantas esferas sociais.
A experiência urbana dessas populações é fundamental nessa mudança
de perspectiva, pois nesse processo de ambientalização (Lopes, 2004; 2006),
ou de ecologização do mundo como propõe Maffesoli (1996; 2006), em que o
sentimento trágico de constatação de um destino, de finitude do mundo em que
vivemos, está presente a tragédia da cultura de Simmel, que caracteriza a crise
da vida moderna e a "vida mental da metrópole"
41
. Segundo Simmel, o
indivíduo moderno encontra-se face a uma infinidade de formas que a cultura
gera sem cessar, como os progressos científicos, tecnológicos ou artísticos,
que um único indivíduo não consegue dar conta, no sentido de subjetivá-las por
completo, mas também não pode recusá-las, pois fazem parte de sua esfera
cultural. (SIMMEL, 2004, p. 413) Pertencer à metrópole, significa ser "um elo
em uma enorme organização de coisas e poderes" (SIMMEL, 1979, p. 21).
Palco de negociações, mas também de conflitos, a Cidade como corpo
coletivo (ROCHA, 1994) depende de sua coesão interna para obter sucesso na
aventura humana, e modernamente, agenciar a ambivalência das visões
contrastantes, entre as conseqüências catastróficas do agigantamento das
cidades, e suas conquistas tecnológicas de sofisticação do universo artificial
construído.
41
Refiro-me ao título do ensaio de Simmel publicado em "O Fenômeno Urbano" (VELHO, O. ,
1979).
59
Poderíamos perguntar se as políticas internacionais de proteção
ambiental não estenderiam os princípios de civilidade, os códigos de posturas,
as regras de convívio do espaço urbano à paisagem do mundo natural? Pela
centralidade simbólica de toda cidade como obra coletiva, a cidade é capaz de
estender-se enquanto “imagem do mundo”, conforme Leroi-Gourhan (1975), na
medida em que é elaborada a partir da mediação pela cnica. O espaço é não
apenas representado, mas apropriado e conhecido pelas práticas de
deslocamento, de habitat, de trabalho, em que entram em jogo as grandes
conquistas tecnológicas da Civilização como um sistema acumulado de
saberes, de posturas, de gestos que o configuram como ambiente técnico-
cultural. Como o próprio autor antecipa, o esforço da Cidade como obra
coletiva é estender-se aos confins do universo, inserindo-o num cálculo de dias
e distâncias em relação ao ponto de partida, configurando assim uma Natureza
que é re-inserida nesse mundo artificializado
42
.
No atual plano técnico-econômico dessa Civilização Urbano Industrial,
os limites do espaço organizado em termos globais se tornaram atingíveis no
tempo das operações cotidianas, fisicamente e principalmente, simbolicamente.
Poderíamos dizer, de acordo com o antropólogo Antônio Arantes (2000), e os
estudos de Ulf Hannerz (1994), que esse “centro” passa a deslocar-se para os
muitos “nós” cosmopolitas, que condensam tecnologia e telecomunicações,
conectados a muitos outros pontos do globo. Para encontrar sentido nessa
experiência urbana é preciso adaptar-se a esse sistema artificial que ordena as
atividades cotidianas como o consumo, ou o trabalho, no qual as
transformações ocorridas num canto do planeta têm efeitos globais.
É por isso que a “questão ambiental” pode ser entendida enquanto um
problema de reintrodução do Natural no espaço construído, nesse universo
artificialmente ordenado a partir da gica urbana. Contemporaneamente, uma
42
“... o conjunto do animal, do vegetal e do humano continuará a assegurar os laços existentes
entre o indivíduo e o universo. A inserção será tanto mais total na medida em que milhões de
homens, instalados numa poltrona, a dezenas de quilômetros do mais ínfimo pedaço de
natureza autêntica, viverão simultaneamente a mesma evasão passiva no interior das florestas
tropicais, projetada num écran reproduzindo as verdadeiras cores, som, relevo e cheiros. Na
situação limite, o espaço sobre-humanizado o comportará mais do que simples amostras de
natureza indispensáveis para manter na memória da massa humana, através de técnicas
áudiovisuais, à margem de toda realidade experimentada, a percepção da relação existente
entre o homem e o universo de ação no qual os seus longínquos antepassados iam buscar a
sua razão de ser e de agir.” (LEROI GHOURAN, 1975:160.)
60
série de instituições e normas passaram a constranger as relações sociais
relacionadas ao uso dos recursos naturais, em contrapartida ao processo
global de desenvolvimento de sociedades urbano-industriais. As populações
urbanas e não-urbanas passaram a ter que repensar suas práticas cotidianas a
partir desses constrangimentos. Não são apenas as “populações tradicionais”
ocupantes de florestas e áreas litorâneas que precisam ser pensadas em suas
trajetórias de enraizamento numa paisagem natural, mas principalmente toda a
grande quantidade de pessoas que partiu das áreas naturais e do meio rural
para situarem-se nas periferias dos centros urbanos, ocupando na maioria das
vezes, o espaço não-construído, o que restou de meio “natural” nas regiões
metropolitanas.
Para dar conta dessa outra imagem do mundo, além do conjunto de
imagens em fotografias antigas, relatos de cronistas, gravuras e pinturas, e de
registros em vídeo das narrativas, do cotidiano e da paisagem do Arquipélago,
reuni também uma série de imagens técnicas quanto às representações da
Bacia Hidrográfica, do Parque Delta do Jacuí, da Região Metropolitana de
Porto Alegre presentes em relatórios, planejamentos, sites de internet.
Da mesma forma, reuni algumas reportagens de jornais que apresentam
a discussão pública quanto às catástrofes ambientais e quanto aos conflitos no
Delta do Jacuí, e tive a oportunidade ainda de reunir uma documentação a
partir de experiência de estágio de doutorado em Paris, França, país do qual se
origina a atual política internacional de recursos hídricos, e que possui em sua
experiência urbana uma relação diferenciada dos usos da água no cotidiano.
Essa experiência será abordada nos próximos capítulos, assim como a
forma que encontrei de apresentar na tese essa composição complexa de
imagens. Veremos também mais adiante as sutilezas dessa relação entre a
interdependência do mundo globalizado atual, os estilos de vida urbanos e a
visão sistêmica a partir da qual as ciências naturais embasam as atuais
políticas ambientais. Aqui, reforço apenas a opção pela narrativa e pela
investigação através das imagens, interpretadas através do conceito de
paisagem, enquanto forma no sentido simmeliano, em constante re-elaboração
no tempo, para investigar essas sobreposições de diferentes imagens do
mundo como uma forma de negociação de uma realidade socioambiental.
61
Enquanto um "antropólogo na figura do narrador", conforme a
provocação colocada por Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha
(2005), penso que a maior contribuição da pesquisa para esse conflito é
certamente a articulação das imagens produzidas ou apenas reunidas durante
a pesquisa e das narrativas performatizadas pelos narradores enquanto
conhecimento antropológico, que retornam ao circuito de imagens da memória
coletiva, para poderem circular em meio ao debate ético que a questão
ambiental contemporânea coloca.
Na tentativa de compor uma intertextualidade que vai além do diálogo
ético entre a comunidade acadêmica da qual se origina o antropólogo e as
comunidades com as quais o trabalho de pesquisa etnográfica é construído,
busco refletir sobre a contribuição do conhecimento antropológico, produzido a
partir das opções metodológicas aqui apresentadas, com o uso da imagem e a
investigação da narrativa, no campo de uma ecologia política (LITTLE, 2006)
contemporânea. Trata-se de uma intertextualidade que também se constrói no
diálogo entre a Antropologia, a Biologia, a Geografia, o Direito Ambiental, a
História e a Ciência Política, voltadas para os conflitos que envolvem atores
sociais e "agentes naturais" em uma realidade socioambiental.
62
Capítulo 2 - Memória, cidade, ética, meio ambiente e a
produção de uma etnografia em vídeo digital entre moradores
das ilhas do Delta do JacuíRS
Este capítulo visa explicitar melhor uma questão que fica em aberto no
capítulo anterior que trata da trajetória da pesquisa. Trata-se da questão do uso
da imagem técnica (audiovisual, fotográfica, iconográfica, literária) como
recursos metodológico de construção do conhecimento antropológico, e como
forma de escritura etnográfica. Este capítulo é dividido em duas partes, uma
parte composta em DVD, cuja leitura é feita a partir da navegação por menus e
sub-menus que dão acesso aos conteúdos narrativos produzidos durante a
tese, e outra parte escrita que tem o objetivo de explicitar as escolhas de
composição narrativa de vídeos, de seqüências de imagens, e mesmo da
navegação na forma de hipertexto (CLEMÉNT, 2004) que o dvd propõe ao
leitor.
Por realizar este trabalho a partir de uma tradição antropológica de
pesquisa com imagens, a Antropologia Visual e da Imagem, investiguei essas
diferentes representações desses territórios e de suas águas conforme eles
são vividos e pensados em diferentes escalas: ilha, arquipélago, banhado,
bairro de periferia, reserva ambiental, bacia hidrográfica, região metropolitana,
águas planetárias. Em função da temática da memória coletiva no mundo
urbano, as imagens produzidas através da pesquisa etnográfica acrescentam
uma densidade importante ao conjunto de imagens técnicas que usualmente
representam territórios naturais como este em questão. Aos mapas da bacia
hidrográfica, às fotos aéreas e de satélite, às imagens dos ecossistemas locais
ou mesmo às representações clássicas da paisagem desabitada e
contemplada à distância, emergem da pesquisa outras "formas de ver" essa
questão pública ambiental, na voz de moradores, nas suas ações cotidianas,
na forma como se relacionam com as ilhas e com os demais territórios urbanos
de um ponto de vista inserido na paisagem à beira das águas.
63
2.1. "formas de ver"
A antropóloga Anna Grimshaw (2001), discutindo o campo da
antropologia visual, defende a tese de que o uso da imagem na escritura
etnográfica implica, por parte do pesquisador, a adoção de determinadas
tradições de pesquisa e de observação da vida social, que a autora chama de
"ways of seeing" (formas de ver) a realidade social na antropologia. O uso de
fotografias, filmes, enquanto produção de conhecimento antropológico significa
uma ruptura com a desconfiança de uma Antropologia Moderna com relação à
dimensão ilusória e fabulatória das imagens, carregadas de subjetividade e de
interpretações múltiplas que não condizem com a busca de objetividade que
marca o desenvolvimento do conhecimento antropológico na primeira metade
do Século XX e seu estabelecimento enquanto disciplina acadêmica, conforme
a antropóloga Ana Luiza Carvalho da Rocha (1999).
Ainda que autores clássicos na antropologia como Malinowski (1976) se
valessem do registro fotográfico ou fílmico em campo, em suas produções
acadêmicas buscavam se distanciar do passado de uma antropologia
evolucionista, apoiada nas coleções de imagens e artefatos reunidas por
viajantes e classificadas em museus, conferindo às suas imagens o estatuto de
prova, testemunho do real.
Uma outra "forma de ver" (GRIMSHAW, 2001) a realidade social se
aproxima da postura de antropólogos como Franz Boas (2003) e,
posteriormente, seus seguidores como Margaret Mead (1985), cuja pesquisa
comportava o registro das mais variadas formas de manifestação cultural de
inúmeros grupos sociais, com o objetivo de sofisticar os dados etnográficos
através da reunião de dados sensíveis (sons, narrativas orais, músicas, retratos,
grafismos, filmes, indumentária, etc.) que dessem conta da dimensão estética
da cultura em torno de conceitos como o de tradição.
Autores mais contemporâneos, como Clifford Geertz e toda uma escola
dita "Pós-moderna"
43
na antropologia propõem uma produção de textos
antropológicos a partir da leitura da realidade social "por cima dos ombros dos
nativos" (GEERTZ, 1979), ou seja, representações científicas enquanto
43
Refiro-me aos trabalhos de James Clifford (1998), Michael Taussig (1987), Paul Rabinow
(1999), entre outros.
64
"traduções" das representações sociais dos sujeitos, expressas nas
performances orais, nas posturas corporais, nos jogos, nos rituais praticados
pelos grupos sociais. Trata-se de uma intertextualidade, entre o conhecimento
científico e a dimensão estética de determinada cultura, que leva em conta na
escrita antropológica o encontro inter-subjetivo entre o autor e os sujeitos do
grupo pesquisado através de uma experiência de imersão em uma outra
realidade social, mas também através de uma experiência de constante diálogo
com este Outro alçado ao lugar de co-autor do texto etnográfico, do
conhecimento produzido.
Uma série de trabalhos contemporâneos, que apresentam fotografias,
filmes, sons, desenhos como parte de "descrições densas", nos termos de
Geertz (1979), seguem essa nova tendência de produção de conhecimento
através da imagem. No entanto o desafio de uma antropologia visual e sonora
permanece ainda, nos termos colocados pelo antropólogo David MacDougall:
O que fazer com as pessoas? O que fazer com o dado sensível?
44
Na
construção do conhecimento antropológico, qual o lugar das narrativas das
pessoas, dos diálogos com os informantes, das imagens de seu cotidiano?
O esforço de uma antropologia da imagem tem sido o de deslocar essas
imagens das introduções e anexos das etnografias, para o centro da produção
do conhecimento, através da explicitação da intertextualidade dessas imagens
fundantes do pensamento antropológico. Seguindo essa abordagem, proposta
por Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert
(ECKERT E ROCHA,
2000), optei pela investigação das imagens presentes às narrativas (orais,
literárias, fotográficas, videográficas, iconográficas) sobre a paisagem urbana
para o estudo da problemática ambiental inserida em uma memória coletiva
das tradições e dos arranjos da vida urbana, refletindo sobre minha própria
produção etnográfica enquanto memória do cotidiano dessas comunidades em
seu território.
44
"Anthropology has had no lack of interest in the visual; its problem has always been what to
do with it. This problem is historically related to another anthropological problem: what to do
with the person - the sentient, thinking being who belongs to a culture but, from the
anthropologist´s point o f view, can often reconstitute very little of it." (MACDOUGALL, 2006,
p.213).
65
2.2. Etnografia audiovisual e narrativa oral
Como visto na trajetória da pesquisa descrita no capítulo 1, ela
desenvolveu-se a partir da produção dos documentários etnográficos “A
Morada das Águas” (2003), “O Barco dos Sonhos” (2000), “Ilha Assombrada:
realidade ou ilusões?” (1999), através da realização de pesquisa etnográfica na
cidade de Porto Alegre junto ao BIEV (Banco de Imagens e Efeitos Visuais).
Inicialmente, foram conceitos como narrativa oral, memória coletiva e paisagem
no mundo urbano que motivaram as escolhas de realização das imagens e de
edição de seqüências de imagens. Portanto, antes de discutir a composição de
uma narrativa hipermídia, é preciso discutir as particularidades da interpretação
da paisagem tecida a partir da configuração de narrativas etnográficas,
sobretudo em vídeo, pela via da relação fundamental entre tempo e espaço
que a narrativa cinematográfica articula.
Realizar um documentário etnográfico e uma escrita sobre o trabalho da
memória de estetizar o tempo na narrativa oral envolve o desafio da
composição, na narrativa etnográfica, dessas imagens que os narradores
cadenciavam nos seus relatos e gestos.
Quando questionados sobre as paisagens do Arquipélago e sua
transformação, ao narrarem não apenas sua experiência, mas as estórias que
ouviram de familiares e outros moradores, as lembranças dos narradores
evocavam figuras míticas e lendárias que estavam presentes na memória
coletiva do lugar. Escravos e “bugres” (índios guaranis e kaigangs) fugitivos
que se refugiavam nas ilhas, peões, fazendeiros e coronéis, batuqueiras,
bruxas e pescadores eram figuras recorrentes nos relatos, revelando uma
estrutura simbólica para se pensar os itinerários dos grupos urbanos que foram
se inserindo no contexto da cidade. Essa dinâmica dos tempos sobrepostos na
paisagem do Arquipélago não era algo subjacente, ou escondido nos relatos,
mas, pelo contrário, os narradores sabiam que esse conhecimento que vai
além de sua própria história de vida podia ser acessado na relação que se
estabelecia entre narrador e ouvinte, e na disposição para aderir às imagens
que iam fazendo uma estória “puxar” a outra.
66
De todos os narradores, Adão e Mocotó foram certamente os que mais
tiveram prazer e habilidade em colocarem-se na figura do narrador. Desde os
primeiros encontros, mais breves, assumiam uma performance que exigia do
ouvinte uma contrapartida. A cada pergunta que fazia a Adão, por exemplo, ele
fazia uma pausa, iniciava o relato de uma estória e interrompia a narrativa,
dizendo “Mas depois eu não vou contar, hein?” Era a sua reivindicação a
disponibilidade de tempo e a despreocupação com as horas. Câmera na mão,
olho no olho de Seu Adão, gravamos mais de 5 horas intercaladas, nas quais
ele assumia contente o personagem narrador perante à esperada gravação.
Nessa situação de performance, a situação de gravação se tornava uma
forma de evento narrativo ao estabelecer a interação entre sujeito narrador e
seus ouvintes. O uso do vídeo possibilitou uma maior aproximação da “arte de
dizer” (DE CERTEAU, 1994) do narrador, das suas táticas de entonação de voz,
de orquestração dos silêncios, da cadência dos gestos que faziam com que a
estória fosse contada com todo o corpo.
Mas também uma outra dimensão da narrativa oral, que não diz
respeito apenas à performance corporal, mas à própria composição da
sucessão de fatos no tempo que permitiu aproximações entre o "roteiro" que o
narrador desfia em suas estórias e um roteiro de seqüências de imagens
elaborado pelo antropólogo.
Esse espanto com a forma como o narrador configura a “tessitura da
intriga" do relato (RICOUER, 1994), ordenando a sucessão de acontecimentos,
esteve presente durante a pesquisa, desde o início, com as gravações das
estórias narradas pelo barqueiro Mocotó, não apenas no momento em que
Mocotó falava, mas também após as entrevistas, ao assisti-las em casa.
A impressão que eu tinha era de que Mocoarticulava seu pensamento
em alguns “planos”. Num plano, a sua memória, o que viveu e ouviu pelas
águas do rio. Mocotó parecia voltado para esse plano, para dentro, em
momentos silenciosos e pausas quase imperceptíveis. Desse plano de fundo,
emergia outro plano, o do contar da história, da habilidade de Mocotó em
transformar essa história num conto interessante, de fazer com que as imagens
da memória parecessem estar ao redor de narrador e ouvinte, a ponto de poder
visualizá-las. Por fim, essa narrativa encontrava um terceiro plano, o diálogo
com a equipe de gravação.
67
Esses “planos” que acabo de descrever, é possível conceituá-los a partir
do que Paul Ricouer chama de tríplice mimese da mediação entre tempo e
narrativa: mimese I, mimese II e mimese III. (RICOUER, 1994).
O primeiro “plano”, mimese I
45
, parte da idéia de que essa busca que o
narrador faz na memória de “o quê contar”, consiste numa pré-compreensão
do mundo e da ação”. A escolha das ações é a identificação nas ações
lembradas de uma estrutura temporal, um encadeamento não necessariamente
cronológico das ações, mas que lhe conferem sentido.
o segundo “plano”, mimese II, refere-se à própria tessitura da intriga,
o desenrolar da narrativa oral e corporalmente. É uma ficção, uma operação de
extrair de uma simples sucessão de fatos uma configuração de ações. Ao
narrar, Mocotó e outros narradores narram uma história com início, meio e fim,
e sabem quais são os pontos fortes dramaticamente (de máxima tensão) da
história. Além disso, Mocotó não narra tudo o que se passou, apenas o
necessário para o entendimento e envolvimento do ouvinte, narrando apenas
os acontecimentos que vão além de uma ocorrência singular, mas que se
encadeiam numa estrutura dramática.
É claro que as atividades de Mimese I e Mimese II não ocorrem
separadas. A todo instante, o narrador joga com uma atividade e outra,
buscando na memória os detalhes a serem narrados e configurando-os no
contar da história. Falta ainda, para que esse ir e vir se complete, um terceiro
elemento, mimese III. Quando me refiro à realização das gravações em deo
das entrevistas como um evento narrativo, coloca-se a questão de que não é
apenas o fato de uma equipe de gravação estar aguardando do narrador a sua
performance, que irá desencadear o que Victor Turner (1974) chama de drama
social, uma ruptura no movimento ordinário da vida pela instauração de um
momento de reflexividade. Esse diálogo entre o narrador e seus ouvintes é
justamente a condição desse contar (e ouvir) histórias. Um não existe sem o
outro. É justamente esta a idéia de mimese III, uma série de tradições
narrativas partilhadas culturalmente, uma forma de composição da intriga (oral,
45
“Vê-se qual é, na sua riqueza, o sentido de mimese I: imitar ou representar a ação, é primeiro,
pré-compreender o que ocorre com o agir humano: com sua semântica, com sua simbólica,
com sua temporalidade. É sobre essa pré-compreensão, comum ao poeta e a seu leitor, que se
ergue a tessitura da intriga e, com ela, a mimética textual e literária.” (RICOUER, 1994, p.101)
68
literária, cinematográfica) que orienta a forma do relato. Nesse sentido, não é
apenas uma relação de narrador e ouvinte, que a presença de uma
câmera. Paul Ricouer (1994) coloca que a mimese III se dá na linguagem, a
experiência do narrador não é passada em substância para o ouvinte. Ela é
mediada, tecida na linguagem. E a linguagem vai depender tanto de quem fala
quanto de quem ouve. Sendo assim, é possível pensar o investimento dos
informantes da pesquisa, na dedicação de tantas horas para as gravações
dessas situações narrativas, como a sua contribuição inteligente na produção
das próprias imagens da pesquisa, que não dependem exclusivamente da
habilidade ou sensibilidade daqueles que operam os equipamentos técnicos.
Por ter passado muitas horas ouvindo essas estórias, na companhia de
outros ouvintes, sem a câmera, eu havia aprendido a participar do evento
narrativo e provocar muitas vezes a “ocasião”, a que se refere Michel de
Certeau (1994), em que o relato toma forma. Ao questionar os narradores
sobre as marcas presentes na atual paisagem da região (o nome dos lugares e
a sua forma – uma casa abandonada, uma estrada, uma embarcação) os
significados relacionados a tais lugares eram evocados na forma de um
“buraco no tempo”, uma ausência de sentido que era evocada na forma de um
vestígio (DE CERTEAU, 2002). Conforme Michel de Certeau (2002), um “ali”
que a mão, os olhos, a postura corporal apontavam, aliados às palavras que
faziam então uma costura do tempo, nas lembranças de como o narrador
tomou conhecimento de tais significados, inserindo nesse “ali” um “assim”, os
muitos gestos e práticas que estavam inscritos nessa paisagem, que emergem
na situação da narrativa.
69
São esses “golpes” (DE CERTEAU, 2002) da memória que mediatizam
transformações espaciais e “fazem ver” aquilo que até então era invisível, um
tempo outro inscrito no lugar
46
:
Fig. 1
Esses golpes são as surpresas, as reviravoltas do relato, que precisam
da contrapartida dos efeitos da narrativa no ouvinte. Essa contrapartida do
ouvinte é devolvida ao narrador não só na palavra, nas perguntas e nas
interpretações que o ouvinte faz, mas igualmente ela é feita com o corpo, na
forma como corporalmente acompanhamos a figura do narrador, como
centramos os olhos e ouvidos nos seus gestos e assim temos condições de
referirmo-nos, também, a esse outro lugar evocado na narrativa, que está ao
mesmo tempo ausente e, no entanto, presente na forma como o narrador se
situa na relação entre espaço e tempo. Esses outros tempos e lugares estão
projetados então, em relação ao narrador e ao ouvinte, numa dimensão que é
vivida corporalmente, situada em relação aos espaços cotidianos do narrador.
Seu Adão, por exemplo, tinha o seu “banco de praça” preferido, um toco
de madeira colocado entre a beira do rio e a estrada que atravessa essa
margem da ilha, onde ele costuma se sentar para conversar e contar estórias
para seus netos e amigos. Nesse lugar Adão tinha, de um lado, as águas e as
demais ilhas para as quais se referia em determinados momentos, interrompido
pelas embarcações que passavam e muitas vezes “carregavam” o relato à
bordo, para as muitas aventuras de Adão atravessando os canais do Delta. Do
46
Imagens retiradas de uma narrativa de Adão no documentário “A Morada das Águas” -
Rafael Devos e Ana Luiza C. Rocha / BIEV UFRGS 2003.
70
outro lado, Adão tinha a sua casa e seu quintal, envoltos pelo mato da ilha
onde muitos seres fantásticos se manifestavam nas narrativas. Cortando esses
espaços, a estrada que conduzia a narrativa para a vila, a ponte e a cidade, e
as aventuras de Adão em sua trajetória na cidade. A própria casa de Adão está
centrada em meio a esse universo que a narrativa desvela: da janela de sua
casa, enxergava o rio e os barqueiros que acenavam ao passarem, enquanto
que da varanda contemplava o movimento da ilha.
É esse outro lugar, instaurado pelos “golpes” da narrativa, pelas rupturas
colocadas pelo mundo da memória, que no momento oportuno, modifica a
própria organização do visível e revela a paisagem do Arquipélago de uma
outra forma, enquanto “espaço fantástico” (DURAND, 2001) da memória
(ECKERT E ROCHA, 2001).
Não apenas ouvindo as narrativas, mas igualmente acompanhando
algumas práticas cotidianas desses narradores, pude começar a perceber uma
outra paisagem do Arquipélago. O conceito de paisagem, conforme é
entendido esteticamente, consolida-se enquanto representação espacial
através da perspectiva renascentista, no arranjo dos elementos no quadro
pictural em uma sucessão de planos que dão conta da relação espacial e
simbólica entre os objetos visíveis de forma a compor um todo (CAUQUELIN,
1989). A paisagem, enquanto representação, ou visão de mundo (GEERTZ,
1979), chega a se confundir com a própria idéia de Natureza, pelo seu efeito de
“fazer ver” uma determinada relação entre rios, vegetação, homens, cidades e
demais formas visíveis. Representar na linguagem cinematográfica, herdeira
dessa tradição pictural, uma outra forma de “enquadrar” Natureza e Cultura
pela via da narrativa oral, se constituiu no desafio de tradução dessa visão de
mundo dos ilhéus para a escritura etnográfica audiovisual.
Nas narrativas, a paisagem aludida não é, portanto, a paisagem visível,
mas uma paisagem praticada nos gestos presentes às práticas cotidianas
desses narradores, e nas muitas ações narradas dos “antigos” nesses espaços
repletos de sons, de cores, de cheiros, e sobretudo, de rupturas temporais que
conferem nome e sentido aos lugares aludidos.
Essa relação entre a paisagem, as práticas cotidianas e a performance
corporal de “contadores de causo” (HARTMAN, 1999), remete a um
conhecimento particular dos espaços das ilhas, se embrenhando nos mistérios
71
da mata, na luminosidade das águas. As narrativas da prática da caça
“assombrada” do tatu e da capivara, por exemplo, atividades feitas à noite, em
meio à vegetação fechada dos matos e banhados, insere-se numa paisagem
noturna, plena de sons e seres fantásticos que são associados às
manifestações sobrenaturais.
nessas narrativas a manifestação de um mistério em meio às
paisagens, que podemos chamar de “epifania”, ao seguirmos uma concepção
simbólica da imaginação para o estudo da memória. O símbolo, para Gilbert
Durand (1988), tem o caráter de “epifania”, aparição do indizível, de um
significado que é inacessível diretamente à consciência (DURAND, 1988). Nas
narrativas a água, por exemplo, não está associada a um único significado.
Como Gaston Bachelard (1998) apontara, a água pode tanto remeter a um
sentido terrível e ameaçador (como nas enchentes), quanto pode remeter ao
seu caráter fecundo e protetor. Para interpretarmos, então, essa paisagem que
se desenha nas narrativas, é preciso não se deter em uma imagem apenas,
mas seguir a dinâmica das imagens, nos seus desdobramentos em que uma
imagem vai levando a outra, convergindo esses elementos que compõe a
paisagem para uma “constelação de imagens” (DURAND, 2001), organizadas
no tempo, em uma linha narrativa.
Desse ponto de vista, as figuras lendárias e míticas que são recorrentes
nas estórias das ilhas não poderiam ser interpretadas como um conjunto de
narrativas importadas de um folclore historicamente localizado, como “herança
açoriana” conforme as enquadrada uma memória oficial da cidade. Veremos
como essa dimensão fabulatória também está presente em narrativas menos
performatizadas que as que Adão ou Mocotó narram, na medida em que não
se trata de um testemunho histórico da alteração da paisagem, mas de uma
mudança de "formas de ver" as heranças desses arranjos da presença humana
em meio à dinâmica da natureza do Delta.
Representar na imagem fotográfica, ou em seqüências de imagens e
sons no vídeo, essa paisagem enquanto “espaço fantástico” da memória é
portanto um desafio para a realização da etnografia que não se encerra na
representação para um outro (o leitor). Era preciso conseguir compreender o
ambiente do Arquipélago através desse dinamismo das formas (ROCHA, 1995),
72
da sua “poética do espaço(BACHELARD, 2000) enquanto morada à beira das
águas.
Era preciso ver nas águas calmas dos rios a possibilidade de suas
ondulações assumirem a correnteza terrível que os narradores contavam ao
falarem de naufrágios, era preciso ver nesse ambiente a sua característica
mais fantástica que é justamente a sua característica ecossistêmica: a sua
permanente mudança, na medida em que as águas “devoram” os terrenos das
ilhas nos períodos de cheia e trazem consigo novas formas de vida entre a
terra e água, que dão lugar a outras formas com a descida das águas. A
expressão dos ilhéus de que “as ilhas se movem” é significativa dessa
constante mudança de suas margens e ambiências.
Perseguindo uma “hermenêutica do Outro” (DE CERTEAU, 2002) no
exercício etnográfico, teríamos então esse movimento do antropólogo, com o
objetivo de interiorizar imagens que lhe são fornecidas pelo narrador para
então poder representá-las na linguagem (ECKERT E ROCHA, 2005). Ainda
que as imagens produzidas pelo antropólogo permaneçam dentro dos limites
do que a linguagem possibilita, do que as estéticas da fotografia, do vídeo e
mesmo da gina composta de texto e imagem comportam, a evocação
dessa epifania, dessa convergência de imagens que não pode ser aludida em
uma imagem apenas, mas na sucessão de imagens sonoras e visuais que vão
novamente representando a etnografia como uma narrativa que “ondula no
tempo do fio narrativo.
Gravar em vídeo, tentando evocar essa relação entre tempo e espaço
feita pelo narrador, traz o desafio de expressar na dimensão plana,
bidimensional da tela do vídeo, a profundidade espacial e temporal que esses
“golpes” do narrador encerram. A relação do cenário, do personagem e do fluxo
da narrativa
47
não é estabelecida em um plano (ou um quadro só), precisa
da articulação de diferentes planos que formem uma seqüência. Quando se
tem a articulação desses planos de forma que sua estética visual e o sentido
que expressam se encontram para passar uma mensagem, tem-se o que é
definido como uma “decupagem(AUMONT, 1993). A busca de uma forma de
47
O estudo dessa relação entre narrador e paisagem foi inspirada em outros documentários
etnográficos, sobretudo os de John Marshall (“The Hunters”, 1957), e no cinema etnobiográfico
de Jorge Preloran (Preloran, 1987).
73
enquadrar a figura do narrador para inseri-la então numa decupagem junto às
imagens dos espaços das ilhas, era para mim bem mais do que um problema
de representação, mas a condição da interpretação do fenômeno investigado.
A análise dessa relação narrador/ouvinte/cenário, que podia ser percebida no
trabalho de campo, permitia não apenas uma melhor operação da câmera de
vídeo (nas escolhas do que enquadrar e como, de como mover a câmera ou
mudar de ponto de vista), mas igualmente orientava a própria postura em
campo e as provocações a serem devolvidas ao narrador. Orientava também
as escolhas da montagem, para que a imagem do gesto do narrador
“continuasse” na imagem seguinte, em planos dessa paisagem, dos lugares
aludidos.
André Gardies (1993) analisa como tempo e espaço são estetizados no
Cinema, através da relação que o espectador irá estabelecer com o espaço
diegético (que é revelado pela narrativa), mediada pela relação física que este
estabelece com a tela do cinema, ao voltar olhos e ouvidos para esta, e tomar
as referências da tela frente, à esquerda, atrás) como ponto de partida para
imaginar-se dentro do mundo do filme. Apropriando-me de alguns esquemas
de André Gardies (1993) sobre a narrativa cinematográfica, poderíamos dizer
que a forma de enquadrar o narrador no vídeo precisa levar em conta as
seguintes dimensões
48
, para articular a relação tempo/espaço proposta por
Michel de Certeau (2002):
48
Imagens do documentário “A Morada das Águas” (Rafael Devos e Ana Luiza C. Rocha) /
BIEV UFRGS 2003
74
Fig. 2
O que é projetado na tela (écran), evoca uma ação que ocorre no
espaço tridimensional, articulando o campo (champ) visível da tela (Ici), com
aquilo que o espectador não vê, mas por ser sugerido ele sabe que está ali (),
fora do campo visual (hors-champ), como a casa de Adão, o rio, a estrada ou
mesmo o pesquisador/ouvinte que está atrás da câmera a quem a voz e os
gestos do narrador são endereçados. Finalmente, os lugares e tempos a que o
narrador se refere encontram-se numa dimensão que não é contígua a esse
campo visual, mas que mesmo estando além (ailleurs), em outro lugar, é
imaginável pelo que é visto e ouvido em campo, pelo que a ação contida no
quadro (GARDIES, 1993) permite evocar.
Ao representar a forma da narrativa como dado etnográfico, há na
construção narrativa do vídeo e do texto, portanto, o desafio de “aderir” à
imagem poética (BACHELARD, 2000), de permitir ao leitor/espectador de
seguir o movimento interpretativo iniciado no diálogo entre ouvinte e narrador.
A seleção das narrativas, sua representação escrita e audiovisual e sua edição,
mediada por questões conceituais, permitem ao antropólogo operar com esse
75
conhecimento sobre o tempo e compreender sua mediação simbólica na forma
dos ilhéus compreenderem a paisagem das ilhas em relação à cidade.
Esse movimento interpretativo é possível, por parte do antropólogo,
se entendermos que o próprio narrador realiza esse movimento em sua
interpretação do tempo, para poder justamente pensar o tempo. Ao mergulhar
na sua experiência temporal, não são as ações e fatos que o narrador
reconstitui, mas os seus significados, as suas “razões para durar”
(BACHELARD, 1988, p.07) no tempo presente.
As narrativas de suas trajetórias sociais no ambiente urbano de Porto
Alegre trazem esse componente heróico de uma experiência na cidade que é
marcada pela duração de um viver coletivo na paisagem microcósmica das
ilhas, enquanto ambiente cósmico e social (DURAND, 2001). Os gestos de
travessia, de entrada e saída da cidade pelas águas são arranjados pelas
práticas cotidianas da pesca, da extração de lenha, capim e também da
catação e separação do lixo trazido da cidade e separado para vender de volta
à cidade. Sua grande narrativa, portanto, é sua própria trajetória social, a
possibilidade de continuar sendo ilhero, como diziam, na travessia de tantas
rupturas com seu modo vida entre as ilhas, o rio e as ruas da cidade.
Para investigar esse fenômeno da memória, portanto, não outra
forma (ROCHA, 1995) senão aderir a essa dinâmica das imagens, mergulhar
nas imagens em que o próprio narrador se deixa navegar, para encontrar as
suas razões para durarem na paisagem do mundo contemporâneo. O uso do
vídeo foi privilegiado nessa pesquisa, portanto, não pelas vantagens que
oferece em termos do registro audiovisual, de repetição dos fragmentos de
gestos e palavras dos narradores, mas como uma forma do antropólogo
mergulhar na figura do narrador, e se descobrir também no “lugar de
construção do conhecimento de si a partir do testemunho legado pelo Outro”
(ECKERT e ROCHA, 2005, p.55).
2.3. Ética e estética
Está presente uma dimensão ética na possibilidade de evocação das
imagens resultantes do encontro etnográfico nas palavras dos narradores. O
uso do vídeo possibilita evidenciar a relação ética eminente ao trabalho de
76
campo de todo antropólogo, que conforme Roberto Cardoso de Oliveira (1996),
está na comparação cultural pela via da "fusão de horizontes" (OLIVEIRA, R.C.
1996, p.65) culturais, pela aceitação de um acordo do qual o diálogo depende.
Essa comparação não se situa apenas na dimensão dos estilos de vida do
antropólogo, como morador da cidade e do nativo como morador da ilha, por
exemplo, mas principalmente de um conhecimento que é compartilhado pelo
antropólogo com sua comunidade de comunicação (a Ciência, ou a
Antropologia) face aos saberes e fazeres dos quais o interlocutor lança mão, e
que são levados a outras esferas de diálogo.
Várias vezes os documentários produzidos foram exibidos na televisão,
por exemplo. Ao ver a reação dos moradores, que nem sempre era de
aprovação, mas também de questionamento de tudo que não tinha sido
mostrado, fico contente de ver a referência a um "filme de vocês", que inclui
não meus colegas de pesquisa, mas os interlocutores cuja imagem aparece
no vídeo, na autoria dessas imagens.
As entrevistas em vídeo, na medida em que pressupõem um terceiro no
diálogo, o espectador, e ainda por cima lidam com as estéticas audiovisuais às
quais se filiam os sujeitos entrevistados e os entrevistadores, dependem dessa
cumplicidade e da capacidade do antropólogo de colocar provocações para
que o seu interlocutor vá além da primeira imagem que está disposto a mostrar
para a câmera (que representa o estrangeiro no diálogo), para se perguntar
reflexivamente sobre as imagens que compõem o jogo de identidades em
questão. Nazaret, quando conversava com ela após uma entrevista gravada,
me dizia que tinha sido entrevistada por outras pessoas, mas que não tinha
sido a mesma coisa, pois da primeira vez ela respondeu a um questionário que
apenas lhe demandava dados - onde nasceu, com quem mora, quantos anos
tem, o que faz. Brincava comigo que a primeira pergunta do questionário era
"quem é você?", a qual respondeu com outra pergunta - "Quem sou eu? Quem
fui eu? Quem eu sou?". Disse que era melhor assim, "conversando", pois ela
afirmava que há muito tempo não lembrava de algumas coisas que foi narrando,
e nem sabia como tinha conseguido chegar a onde chegou. Ao final da
entrevista, é a sensação de um conhecimento construído em comum que a fita
revela, onde a presença do pesquisador, evocada na voz que pergunta e que
77
vem de fora do quadro do vídeo, na câmera que treme ou no olhar do
interlocutor, é condição fundamental dessa dimensão ética da pesquisa.
No momento mesmo em que escrevo este trabalho, essa dinâmica
segue, e novos arranjos vão configurando a ocupação do Delta do Jacuí, novas
negociações são travadas entre representantes do Estado e da população
local, novas manifestações de ambientalistas são pronunciadas em nome da
Natureza do Delta do Jacuí. Mover-me entre esses diferentes tempos e escalas
de debates éticos, das manifestações públicas e fóruns internacionais, às
reuniões e encontros da “comunidade com o Estado, até os momentos do
cotidiano em que gentilmente sou convidado a participar do tempo que segue
na cozinha ou no quintal de casa, a bordo do barco de pesca ou na carona da
carroça, tem sido o desafio dessa escrita. Não ouvi relatos de trajetórias na
cidade, mas vi velhos adoecerem e morrerem, adolescentes virarem adultos e
saírem de casa, crianças nascerem. O estudo do cotidiano comporta esse
desdobramento nessas muitas dimensões do tempo e do espaço, em que a
vida se consolida em formas que vão se consolidando para novamente serem
descosidas e refeitas. Como narrá-las?
2.4. O Delta do Jacuí como um sítio
Como aponta o antropólogo José Sérgio Leite Lopes (2006), estudos
sobre a temática ambiental realizados no meio urbano têm apontado para a
importância da memória coletiva, articulada em termos de identidades sociais
localmente situadas, na interiorização dessa nova questão pública ambiental e
na mobilização política de atores sociais. Ao compartilhar das narrativas dos
moradores das ilhas sobre as transformações da paisagem local, pude
perceber a importância da experiência urbana de circulação por universos
simbólicos distintos e das trajetórias de desenraizamento e enraizamento
(VELHO, 1999) dessas pessoas nas ilhas na construção de uma ética
ambientalmente comprometida com a interdependência entre diferentes grupos
urbanos a partir da qualidade do ambiente que compartilham. Essa ética não
surge a partir da chamada "conscientização" pregada pelas ideologias
78
ecologistas, mas sim pelo posicionamento desses atores em diferentes esferas
éticas de relações sociais em que o ambiente importa.
A reflexão sobre essa dimensão ética da pesquisa ocorre não apenas no
trabalho de campo, mas também em momentos em que o trabalho é
apresentado para interlocutores da comunidade acadêmica que não são
necessariamente antropólogos, mas também biólogos, geógrafos, arquitetos
que se interessam pela problemática da tese. Sobretudo, essa reflexão
aparece nas diferentes formas de divulgar a produção etnográfica que compõe
o trabalho. A pergunta feita por David MacDougall (2006), sobre os dados
sensíveis do antropólogo, são retomados nesses momentos a partir dessa
dimensão ética, na medida em que é papel de um conhecimento antropológico
contribuir para os debates de uma Ecologia Política (LITTLE, 2006)
contemporânea com essas dimensões do vivido humano.
Se entendermos a ética em termos das conseqüências reais da ação
humana, serão em meio às relações sociais entre esses diferentes atores que
veremos colocadas visões de mundo a que se filiam os sujeitos, e juízos de
valor de cunho moral que se inscrevem em suas ações em relação aos usos da
água e do solo, entendidos como espaços urbanos, às margens do Lago
Guaíba.
Para navegar em meio a esse universo que abrange uma “comunidade
de comunicação”
49
, que se refere a diferentes escalas sociais, do cotidiano aos
contratos mundiais, tentarei situá-lo nas esferas com as quais o antropólogo
Roberto Cardoso de Oliveira
50
propõe o estudo etnográfico da moralidade e da
ética, seguindo os ensinamentos de uma tradição filosófica hermeneuta.
49
Utilizo o termo comunidade de comunicação” inicialmente entendida como espaço social
marcado por relações dialógicas, que tenham lugar no plano da linguagem, do discurso
(Oliveira, R.C., 1996, p.15). No entanto, no desenvolver da tese, veremos se é possível
interpretar as ões sociais presentes ao cotidiano urbano, igualmente como enunciações que
não apenas permitem interpretações sobre visões de mundo presentes nas práticas cotidianas,
mas igualmente permitem a descoberta dos gestos cotidianos como atos de afirmação dessas
visões de mundo, enquanto ethos, estilos de vida conflitantes do ponto de vista de uma ética
ambiental.
50
Tal abordagem aparece em diferentes obras, artigos, e ensaios do antropólogo (R. C. 1981;
1996; 1998; 2001 e 2004.), mas ela desenvolve-se a partir da abordagem dada aos conflitos
entre o Estado Brasileiros e grupos indígenas tradicionais, em que justamente seus estudos se
voltaram para a dimensão ética desse conflito, a partir da qual desenvolveu o conceito de
“fricção interétnica”, que têm sido retomado contemporaneamente como norteador de outras
situações de conflito.
79
Na medida em que órgãos internacionais apostam na construção de
uma ética planetária de uso dos recursos naturais, é possível situar tais
debates em três esferas, enquanto espaços sociais distintos e
interdependentes. A micro-esfera ética define-se por seu caráter particularista,
ou seja, está voltada para as conseqüências das ações para determinado
grupo social (a família, a vizinhança, o grupo religioso, o clube esportivo, o local
de trabalho). A macro-esfera ética ocupa-se com os “interesses vitais comuns a
toda a humanidade, envolvendo inclusive o destino dessa humanidade”
(OLIVEIRA, 1996, p.21), ou seja, é onde tem lugar o debate do acesso à água
como parte dos Direitos Humanos, normas morais que ganham dimensões
universalistas. Finalmente, a meso-esfera é onde entra o Estado e a política
nacional, articulada entre as diferentes regiões, que buscaria mediar os
interesses particularistas com os interesses do Estado, e ambos com os
direitos humanos universais. É também a esfera em que se constrói o trabalho
do antropólogo, na medida em que os diálogos travados com os informantes e
o diálogo interno com a bibliografia estão voltados para a produção etnográfica
em imagem e na escrita, que possui igualmente contribuições e conseqüências
éticas para os grupos e o conflito em questão.
Certamente que os documentários produzidos durante a pesquisa m
essa capacidade de circularem, enquanto discursos, por diferentes esferas
éticas, na medida em que foram exibidos na televisão, em mostras de
documentários, congressos, eventos, e na medida em que são requisitados
atualmente inclusive por órgãos públicos da área técnico-ambiental como o
comitê da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba, enquanto documentação sobre
as ilhas do Delta do Jacuí. Ainda assim, a produção permanece enquadrada
enquanto filme etnográfico, documentário, restrito a determinados públicos e
espaços de divulgação.
A partir da experiência de inserir os dados da pesquisa, na forma de
narrativas em deo, nas bases de dados do BIEV consultáveis via internet, e
ao mesmo tempo de obter material para a pesquisa nessas bases de dados,
passei a refletir sobre outras formas de divulgação da documentação da
pesquisa, em que certamente a pertença às coleções de imagens dispostas na
forma de hipertextos que compõe um museu virtual de Porto Alegre é uma
delas.
80
Conforme Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert (2005b),
coordenadoras deste núcleo de pesquisa do PPGAS-UFRGS, a publicação de
etnografias na web, construídas a partir de documentos multimídias (em
diversos suportes digitalizados como fotos, vídeos, sons, textos) e articulados
na forma de hipertextos (relacionados a partir de laços de referência cruzada)
em um mesmo ambiente de consulta, permitem uma abertura diferenciada para
a tarefa do leitor de realizar a "interpretação das culturas" na descoberta do
conhecimento etnográfico (ECKERT e ROCHA, 2005b).
A construção do conhecimento antropológico na forma de hipertexto
revela as intertextualidades inerentes tanto à pesquisa etnográfica (nos
cruzamentos de uma série de autorias diferenciadas de discursos e narrativas)
quanto à produção do conhecimento antropológico em si, nas redes de
conceitos e nas reflexões teórico-metodológicas propostas, tirando vantagem
do velho dilema da autoridade da produção etnográfica face às possíveis
leituras plurais de sistemas culturais (CLIFFORD, 1994).
A proposta de uma escritura etnográfica na forma de hipertexto
demanda, ainda, do pesquisador, uma produção de documentos narrativos na
forma de fragmentos que evoquem aspectos relevantes para a interpretação da
realidade social. Na medida em que cabe ao leitor seguir as conexões
possíveis propostas pelo hipertexto, que não são ilimitadas, mas que também
não se resumem a uma única direção no discurso, o conhecimento na forma de
hipertexto permite ao leitor aproximar-se da própria dinâmica do fenômeno que
a etnografia evoca, no caso, a dinâmica da memória coletiva, rica em
associações, mudanças de sorte, rupturas, continuidades e oposições entre as
ações humanas que encadeia no fio narrativo, próprias de um pensamento
mágico, ou mítico, fundamentais à imaginação humana
51
.
Em pesquisas anteriores, realizei uma tentativa de transpor as imagens
produzidas em outros suportes para a escritura da página do texto
52
. Na
51
Refiro-me portanto à abordagem já citada anteriormente que Gilbert Durand (2001) confere à
memória e à narrativa enquanto estruturas antropológicas do imaginário, sobre a dinâmica de
um pensamento humano universal que se dá através do símbolo, através da imaginação
humana.
52
Em minha dissertação de mestrado e outros trabalhos anteriores (DEVOS, 2003; 1999)
busquei evocar a narrativa oral usando o espaço da página como imagem. Através da
sucessão de frases curtas e repetições de jogos verbais, em que os espaços em branco
evocam os silêncios performáticos do narrador e os “cortes” na narrativa, cada linha se
apresenta como uma imagem a ser encadeada em seqüência, com o objetivo de destacar as
81
escritura da tese, resolvi ensaiar outro caminho. Embora não tivesse os meios
necessários para uma efetiva publicação em forma de website de um hipertexto
realizado a partir do conjunto de imagens reunidos na pesquisa, optei por
ensaiar laços entre essas imagens como um convite ao leitor para navegar por
essas diferentes imagens do ambiente.
Como a maioria das imagens da tese são seqüências em vídeo, segui a
proposta adotada pela equipe de pesquisa do BIEV de apresentar fragmentos
de narrativas em vídeo, que não se constituem na forma do "filme etnográfico",
mas sim enquanto o que cunhamos de "crônicas etnográficas em vídeo
digital"
53
.
A forma narrativa da crônica, conforme Antônio Cândido de Mello e
Souza (1990), compõe um “disfarce da realidade”, na medida em que não
ensaia como no romance a criação de um universo ficcional a partir da
literatura, apenas tece um comentário sobre uma realidade que está para além
do texto, e sobre a qual este acrescenta um ponto de vista. Com a fuga do tom
monumental de outras formas literárias sobressai-se a descrição do banal e do
ordinário, do corriqueiro, daquilo que poderia passar despercebido. No material
em vídeo buscou-se encontrar essas descrições curtas, porém densas, em que
a composição da narrativa apóia-se no estranhamento, na surpresa de
desmapeamento de sentido que o próprio etnógrafo passa, ao deparar-se com
determinado relato de um personagem, com determinada cena cotidiana, com
determinado evento a partir dos quais a interpretação sobre a diversidade
social e cultural emerge. Esse sentido não é esgotado, mas antes denotado, ou
evocado na tessitura do fio narrativo, que introduz uma questão, que
desenvolve-se dramaticamente e que chega a uma resolução que suscita
novas questões.
Tais surpresas são uma característica essencial da imagem
cinematográfica produzida no contexto etnográfico, segundo o antropólogo
imagens escolhidas pelo narrador em seu relato. as imagens (frames congelados do vídeo)
dos gestos, olhares e posturas, postas em seqüências em conjunto com imagens da paisagem,
foram postas em um mesmo canto da página, para evocarem a idéia de sucessão, em que
espaços em branco foram sendo deixados como forma de aludir a elipses temporais e
mudanças de direção do relato que criam a possibilidade de referência a esses lugares da
memória.
53
As idéias apresentadas aqui foram elaboradas em parceria com os colegas de pesquisa do
BIEV/UFRGS enquanto procedimentos e reflexões metodológicas de pesquisa com vídeo
digital, presentes em ensaios escritos ainda não publicados.
82
David MacDougall (1999). Refletindo sobre o processo de produção de um
documentário, o antropólogo chama a atenção para essas primeiras unidades
de sentido produzidas na continuidade de um único plano-seqüência (uma
tomada sem cortes) ou em uma seqüência de imagens, que devem ser
respeitadas no processo de edição, pois se as leituras podem ser múltiplas de
uma única imagem isolada, na continuidade das ações em uma mesma tomada,
ou em uma seqüência, revelam-se sentidos a partir do contexto onde se está
situado.
Quanto ao caráter episódico e fragmentado dessas crônicas, há uma
proposta de montagem cinematográfica diferenciada na criação dessas
pequenas montagens a serem relacionadas pelo leitor/espectador. Embora o
dispositivo cinematográfico (GARDIES, 2003) esteja presente, a relação com a
tela enquanto ambiente do qual as narrativas emergem não é a mesma da
dimensão ritual da escuridão da sala de cinema. Conforme as reflexões de
Roger Chartier (1999) sobre o livro eletrônico, e de Arlindo Machado (1987)
sobre a narrativa audiovisual eletrônica, é possível dizer que o espectador se
transforma no usuário das novas tecnologias, diante do qual as narrativas não
são projetadas, mas estão disponíveis para serem acessadas. O usuário não
assiste pacientemente à narrativa, ele avança, ele retrocede o tempo da estória,
ele pode assistir a duas estórias ao mesmo tempo, pular de uma estória para
outra sem nunca acompanhar uma destas até o fim. O usuário de computador
“monta” a sua própria estória ao navegar por mensagens audiovisuais, sonoras,
textuais, fotográficas, em hipertextos. O objetivo não é acompanhar a estória
até o fim, mas compor uma série de fragmentos de estórias que o levarão a
novos lugares imaginados, onde sempre muitas janelas que levam a novas
informações. A janela do computador, em que o vídeo é assistido possui um
recurso que não pode ser negligenciado: ela o apenas pode ser aumentada,
duplicada, diminuída, como pode ser sobreposta a várias outras janelas que
estarão acumuladas em camadas, dando a sensação de imersão do
usuário/leitor no espaço imaginário da tela em profundidade.
Além disso, os sentidos evocados pelas narrativas em vídeo podem ser
confrontados a imagens em vídeo oriundas de outros filmes, ou mesmo à
83
imagens em outros suportes
54
. Além das imagens gravadas em vídeo durante a
pesquisa, entre 1998 e 2003, ou das seqüências de imagens fotográficas
produzidas durante o trabalho de campo, busquei articular seqüências de
filmes antigos sobre Porto Alegre, produzidos por Antônio Carlos Textor em
1976, seqüências de imagens fotográficas que apresentam antigas de obras de
saneamento e de remodelação do espaço público da cidade, gravuras e
pinturas que apresentam uma velha paisagem da cidade, incluindo a cidade
vista das ilhas, reportagens de jornais contemporâneas, ilustrações presentes
em materiais de divulgação com fins de educação ambiental, além de mapas,
planos, imagens via satélite da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba, da região
metropolitana e do Delta do Jacuí.
Destaco ainda, o uso de alguns vídeos produzidos durante consulta ao
software google earth
55
, que possui a característica de realizar deslocamentos
tridimensionais por imagens obtidas via satélite, tanto no sentido de
afastamento e aproximação, quanto no sentido plano. Pelo fato do programa
permitir uma experiência de deslocamento pelo globo terrestre, visualizando
inúmeras paisagens, optei por este recurso para aludir a muitas outras imagens
técnicas que encontrei durante a pesquisa, que justamente representavam a
ocupação do Delta do Jacuí visto do céu. Com o movimento, as imagens se
aproximam de uma característica fundamental das imagens em deos
registradas durante a pesquisa, fundamentais para a compreensão dos
itinerários urbanos dos narradores, a evocação do arquétipo da viagem
(DURAND, 2001), do movimento como experiência de descoberta dos
significados inscritos no espaço, no caso do google earth, do caráter relacional
das paisagens.
54
Inspiro-me igualmente em Bárbara Glowczewski, que realizou um trabalho, nessa mesma
linha, reunindo matérias em muitos suportes em um mesmo DVD, e privilegiando igualmente as
imagens em vídeo produzidas durante anos de pesquisa com as populações aborígenes na
Austrália. Cf. Glowczewski (2006)
55
"O Google Earth é um programa desenvolvido e distribuído pelo Google cuja função é
apresentar um modelo tridimensional do globo terrestre, construído a partir de fotografias de
satélite obtidas em fontes diversas. Desta forma, o programa pode ser usado simplesmente
como um gerador de mapas bidimensionais ou como um visualizador de diversas paisagens
presentes no Planeta Terra. Com isso, é possível identificar lugares, construções, cidades,
paisagens, entre outros elementos. O programa é similar, embora mais complexo, ao serviço
também oferecido pelo Google conhecido como Google Maps. O Google Earth possui funções
diversas relativas à manipulação do modelo global, em geral relacionadas à recuperação de
informações coletadas pelos seus usuários ao redor de todo o mundo a respeito de localidades
específicas."
http://pt.wikipedia.org/wiki/Google_Earth, último acesso em 14/01/2007.
84
Através do uso de softwares de edição de vídeo e de composição de
menus e sub-menus de DVD
56
, propus algumas consultas aos documentos que,
apesar de estarem em maioria disponíveis na internet no website do Banco
de Imagens
57
, serão vistos segundo a dinâmica do sítio e da paisagem.
Conforme a relação proposta por Annie Cauquelin (2002) entre os
conceitos de sítio e paisagem, enquanto representação espacial, busco
compreender como a polêmica em torno do Parque Estadual Delta do Jacuí
pode situá-lo como um sítio. Entendendo o sentido contemporâneo de sítio
(site), é a questão da informação que o conceito de sítio, situação, articula
entre noções distintas, espaço geométrico e lugar, sem abrir mão de nenhuma
das duas.
O site incorpora ao caráter temporal e identitário dos lugares a questão
situacional, ou estrutural, que coloca os lugares em relação. Sem congelar
lugares como os territórios das ilhas numa memória do passado sem
imaginação e numa identidade absoluta (sem dinâmica), o aspecto situacional
do espaço geométrico indica a transformação, a reescritura das relações
espaciais e das territorialidades. Através da memória, entende-se a importância
das relações sociais e das práticas cotidianas dos moradores de lugares como
as ilhas na transformação de suas paisagens. Portanto, as áreas naturais na
cidade estão referidas a diferentes ordens situacionais, desde a sua posição
estratégica global e regional (Região Metropolitana, Região Hidrográfica) até às
suas relações com os demais territórios urbanos, remetendo à relação ética
necessária entre esses diversos atores sociais para a construção de uma
cidadania ambiental, pensadas em termos de micro, meso e macro esferas
éticas que estão em jogo no trabalho de campo (OLIVEIRA, R.C. 2001 e 1996).
Não se trata apenas de conferir uma documentação histórica ao Delta do
Jacuí, ou à Bacia Hidrográfica, mas sim de possibilitar ao leitor na própria
forma de navegação pelas imagens uma reflexão sobre esses jogos de escalas
e de temporalidades que estão presentes às nossas representações sobre o
meio ambiente no mundo urbano contemporâneo. Assim como fazem os
narradores ao contarem as mudanças nas águas das ilhas, nas beiras de rio,
56
Refiro-me aos programas Final Cut Pro, DVD Studio e Adobe Photoshop, mais
especificamente.
57
http://www.estacaoportoalegre.ufrgs.br
85
nas ruas e canais de navegação incorporando criativamente conceitos da
dinâmica ecossistêmica da bacia hidrográfica, busco entender essa
sobreposição de sentidos que a paisagem natural em meio à paisagem urbana
permite perceber.
Acrescentando a dimensão temporal inscrita na paisagem ao fator
relacional entre os diferentes territórios, o objetivo é revelar conexões entre
diferentes lógicas de representação do espaço, que são articuladas em uma
reflexão sobre as inter-relações entre a vida cotidiana, o meio ambiente e o
contexto social onde estão inseridos os narradores das ilhas.
Finalmente, segundo a idéia de que qualquer imagem técnica, mesmo
as que se configuram em mapas, plantas, imagens de satélite, são
representações do espaço através do tempo, ou seja, contemplam uma
interpretação de determinada disposição física da paisagem em determinado
momento, transposta para determinados códigos, aproprio-me criativamente
dessas imagens neste trabalho, levando em conta o caráter relacional entre os
lugares que elas expressam, sem considerá-las a partir de sua exatidão e
precisão técnica de cálculo de grandezas e distâncias.
É a partir desta pista que busco articular uma espécie de hipermapa
58
das ilhas neste capítulo, compondo essa intertextualidade entre as imagens
presentes às ciências ditas naturais com as imagens resultantes da pesquisa
etnográfica, incorporando, e não excluindo a dimensão micro-cósmica que
constitui a paisagem local (a ilheidade, a idéia de ilha), situando-a em relação
aos demais territórios, como o centro da cidade, as demais periferias da Região
Metropolitana, assim como às demais localidades da Bacia Hidrográfica, e
dessa forma, em relação às discussões sobre a escassez mundial de água
potável e a qualidade do ambiente planetário.
58
Como propõe Cauquelin (2002), uma "hypercarte" se aproxima mais da representação do
sítio, articulando espaço e lugar.
86
Fig. 3 (janela do programa DVD Studio Pro, apresentando um esquema dos laços entre os
menus, sequências em vídeo e sequências fotográficas do DVD Capítulo 2 da tese)
87
Capítulo 3 - A baía de todas as águas
“É provável que a água se transforme numa fonte
cada vez maior de tensão e competição entre as
nações, a continuarem as tendências atuais; mas
também poderá ser um catalisador para viabilizar a
cooperação entre os países.” Koffi Anan, Secretário-
geral da ONU
59
Este capítulo aborda o tema da tese, situando a cidade de Porto Alegre
em meio aos debates mundiais sobre a escassez de água doce no planeta.
Tem como objetivo esclarecer como a questão ambiental tensionada pelos
usos e cuidados com a água permite uma abordagem diferenciada do universo
de pesquisa, ao situar determinados territórios urbanos atravessados por
diferentes esferas éticas no contexto de uma bacia hidrográfica. Ao mesmo
tempo, pretendo demonstrar como a temática dos conflitos de uso da água
têm a força socializadora de agregar muitas outras dimensões éticas da vida na
cidade, e no caso do Delta do Jacuí, estão colocados na trajetória política
das comunidades que ocupam as ilhas.
Para tal, evocarei algumas publicações resultantes do Fórum
Internacional das Águas, realizado em 2003 e 2004 na cidade, assim como
publicações relacionadas à política ambiental, em especial, à política
internacional de recursos hídricos, como páginas na internet de organizações
internacionais e nacionais, relatórios e documentos de programas públicos na
área de meio ambiente, material de divulgação, etc. Outras observações serão
pontuadas, quanto a outros eventos, manifestações e situações em que pude
acompanhar a dimensão política da questão da ocupação do solo e das águas
do Delta do Jacuí.
59
Citação publicada na Carta de Porto Alegre Fórum Internacional das Águas 2003.
Disponível em http://www.onuportugal.pt/body_ano_internacional_da_agua_doce.html, último
acesso em 13/10/2005.
88
3.1. Meio ambiente na macro-esfera
O Fórum Internacional das Águas, realizado em Porto Alegre em 2003
60
,
reuniu cerca de 2.200 participantes que, durante três dias, assistiram a oficinas
e conferências ministradas por autoridades nacionais e mundiais no assunto
água.
Boa parte do público (os 2.200 participantes do Fórum) era composta
por estudantes ou profissionais de áreas técnico-científicas relacionadas ao
meio ambiente: biólogos, geógrafos, advogados, economistas, sanitaristas,
urbanistas, engenheiros, funcionários de órgãos governamentais e de grandes
empresas, representantes de comitês de bacia hidrográfica, jornalistas, etc.
Debatiam-se projetos políticos e concepções diversas sobre formas de gestão
pública da água, resultando na I e na II “Carta de Porto Alegre”, documentos
elaborados a partir das discussões das duas primeiras edições do Fórum, a
serem publicadas e inseridas em outros fóruns e espaços internacionais de
debate do tema, como o Contrato Mundial das Águas, debatido em dezembro
de 2003, em Milão, na Itália.
“Para o desenvolvimento sustentado e a prosperidade dos povos, as
gestões dos recursos hídricos e do saneamento ambiental necessitam
estar integradas às demais políticas públicas, fortalecendo o poder local,
as empresas públicas e os mecanismos de controle social dos serviços,
reforçando a cooperação entre os entes federados e a participação da
sociedade civil organizada. Para isto o planejamento e a gestão
participativa com referência nas bacias hidrográficas, o fundamentais,
bem como a revitalização e o reforço dos sistemas públicos de água
para melhorar o nível de qualidade e eficiência.” (Carta de Porto Alegre,
2003)
61
A II Carta de Porto Alegre propõe diretamente uma forma de gestão
pública “sistêmica (contemplando os usos múltiplos), descentralizada (tendo a
bacia hidrográfica como unidade), participativa (com integração de todos os
atores sociais) e baseada no planejamento”
62
.
60
Na análise privilegiarei a edição de 2003, embora o Fórum das Águas venha se repetido
todos os anos na cidade.
61
Carta de Porto Alegre Fórum Internacional das Águas 2003. Disponível em
http://www.onuportugal.pt/body_ano_internacional_da_agua_doce.html, último acesso em
13/10/2005.
62
idem.
89
A questão da água unia tanto demandas ecológicas, como os debates
sobre o aquecimento global do planeta, a preservação da flora e fauna de
unidades de conservação ambiental do Estado, a questão dos agrotóxicos e do
lixo das cidades, quanto outras demandas, como as disputas do campo
religioso pelo uso dos espaços públicos para celebrações religiosas, e a
questão da moradia urbana, no caso, a ocupação das chamadas áreas de risco
nas cidades por classes populares, como é o caso da ocupação das ilhas de
Porto Alegre.
Em suas atividades paralelas, o fórum reunia também associações
comunitárias, entidades religiosas, ongs ambientalistas, escolas, clubes
esportivos, que reivindicavam outras questões sob a bandeira da água.
Promoveram-se trilhas ecológicas nas nascentes dos rios, exposições de
trabalhos escolares de educação ambiental, oficinas, shows de música. O
evento encerrou-se com a “Romaria das Águas”, que unindo ecologia e
religião, levou gente de todo o Rio Grande do Sul a navegar pelas águas do
Lago Guaíba acompanhando uma imagem de Nossa Senhora Aparecida,
terminando com a celebração à beira do lago das energias e entidades
protetoras das águas. Haviam diversos cultos e fiéis presentes, em que se
destacava a Mãe Oxum das religiões afro-brasileiras, pelo número de devotos
que se manifestavam.
O objetivo do evento em 2003, e da sua segunda edição em 2004, foi o
de expandir o público da Romaria das Águas que ocorrera em outros anos,
para mobilizar autoridades políticas, técnicos, empresários e a população em
geral de Porto Alegre e de outras cidades do Estado do Rio Grande do Sul
quanto à importância de uma gestão pública da água, face à sua escassez na
realidade mundial.
O conflito que venho acompanhando, a polêmica em torno da ocupação
dos terrenos das ilhas do Delta do Jacuí, origina-se dessa dinâmica entre
políticas internacionais e processos próprios da urbanização de Porto Alegre. O
tema da ética ambiental, em especial quanto ao uso da água, reunia nesse
evento, sob uma nova ótica, questões éticas presentes à vida urbana, com
relação às diferentes concepções de “bem público” e, portanto, dos direitos e
deveres com relação a estes, sejam eles os espaços públicos (como a orla dos
rios enquanto solo urbano), sejam os elementos da natureza, como a água,
90
que perpassa e liga territórios urbanos, simbolizada em suas ltiplas
entidades protetoras.
Pretendo investigar, nesse capítulo, como pode ser pensada essa
realidade da escassez mundial de água doce, ou seja, sob qual ponto de vista
essa realidade é construída, e quais questões são colocadas a partir dos
debates em torno dos conflitos de uso da água, que forneceriam outra
abordagem para o conflito de uso e ocupação do Delta do Jacuí enquanto
território entre o natural e o urbano.
Justamente, seguindo a abordagem de Simmel (1984, 2004) sobre o
conflito, cuja força socializadora agrega e rearranja indivíduos e grupos sociais
em torno de um objeto em comum, é possível ver nesses espaços sociais
alguns encontros, ou “confrontos etnográficos” (OLIVEIRA, R. C. 1996, 1998)
em que os sujeitos podem repensar suas próprias visões de mundo ao
reconhecerem a existência do ponto de vista de um Outro. Sobretudo, esta
abordagem nos permite investigar como a própria questão do meio ambiente,
ou da escassez das águas se transforma e se constitui nessa dinâmica do
conflito. Seguindo os ensinamentos de uma antropologia das chamadas
sociedades complexas, ou dos estudos sobre as inter-relações entre o local e o
global, sabe-se que essas grandes tendências mundiais de reorientação das
representações sociais e das ações cotidianas não se realizam senão de forma
localizada, e diferenciada.
Enquanto tratamos do ambiente no sentido afirmado da macro esfera
ética, da que se refere ao planeta como um ambiente em comum para todos os
seres humanos, poderíamos dizer que ele está situado dentro do que Luc Ferry
(1994) propõe para pensar a ecologia para além de uma ciência, enquanto uma
ideologia contemporânea
63
. Segundo Ferry (1994), a visão sistêmica que a
ecologia propõe reataria, do ponto de vista filosófico, com uma visão da
existência de uma ordem cósmica em que um “contrato natural” se impõe entre
os homens e os demais seres vivos (FERRY, 1994, p. 18). A alma e as forças
ocultas da Natureza retornariam com toda a força, apoiadas menos em
63
Portanto, não estou me referindo à Ciência da Ecologia e seus pressupostos neste trabalho,
mas sim à dimensão moral e ética que a questão passou a ter no mundo contemporâneo, para
a qual a abordagem do filósofo Luc Ferry se apresenta como mais apropriada pelas inter-
relações que o autor estabelece entre uma "cultura democrática" do Ocidente com o
pensamento ecológico. Destaco em especial a obra "A nova ordem ecológica: a árvore, o
animal e o homem" (Ferry, 1994).
91
sistemas religiosos e muito mais em fatos cientificamente assegurados pela
Ecologia, pela Biologia.
Afirmando uma nova ordem moral ao universo, a da recuperação de
uma harmonia perdida com as forças da Vida, os chamados movimentos
ecológicos, representados politicamente por ONG´s internacionais
64
, dirigem
uma mesma política a todos os cantos do planeta: a interdição de práticas
econômicas que atentam contra a “biosfera”
65
(como a caça, a pesca industrial
predatória, o desmatamento) e a promoção de novos costumes dotados de
uma nova consciência capaz de rever o “Processo Civilizador” da Civilização
Ocidental
66
. Em sua forma mais sofisticada, propõem dotar de racionalidade o
consumo, seja valorizando a produção de produtos alimentares pela via mais
artesanal e livre de insumos bioquímicos, seja valorizando a utilização de
tecnologia “limpa” na fabricação de embalagens, combustíveis, papel, etc.
A ecologia, tanto em sua vertente ideológica mais “antropocentrista”, a
que se preocupa no final das contas com a sobrevivência da espécie humana,
quanto em sua vertente “biocentrista” mais profunda (FERRY, 1994, p. 22), que
coloca a sobrevivência do ecossistema acima da sobrevivência da espécie,
apontam para o mesmo ser humano e um mesmo cosmos em sua visão
sistêmica. A relação que essa tendência de “ecologização do mundo social”
67
estabelece entre macrocosmo e microcosmo extrapola, conforme nota Michel
Maffesoli (1996), o domínio das políticas públicas e ações institucionais, para
evidenciar-se igualmente em outras dimensões sociais, como a moda, o lazer,
em que a experiência de partilhar o mesmo “meio ambiente” é difundida entre
determinados estilos de vida urbanos. Essa revisão crítica do trajeto de
dissociação homem/natureza, essa ordem moral que pretende se estender a
todas as populações do planeta traz consigo o pressuposto de que todos os
seres humanos, enquanto espécie, vivem de uma mesma maneira,
consumindo a mesma água e o mesmo combustível, produzindo o mesmo lixo
64
Alguns exemplos conhecidos são as ONG’s internacionais Greenpeace
(www.greenpeace.org), o Seashepherd (www.seashepherd.org) e o WWF (www.wwf.org).
65
“O ecossistema – a ‘biosfera’ – é investido, portanto, de um valor intrínseco muito superior ao
dessa espécie, afinal de contas muito mais nociva, que á espécie humana.” (FERRY, 1994:24)
66
Ver a obra de Norbert Elias, em especial, O Processo Civilizador, vol. I e II. (ELIAS, 1990 e
1993)
67
Refiro-me à expressão proposta por Michel Maffesoli em seu livro intitulado “No fundo das
aparências” (Maffesoli, 1996:239)
92
e tendo a mesma visão de Natureza para além dos limites do universo
artificialmente construído pela humanidade.
A “sociedade ocidental enquanto cultura” (SAHLINS, 2003, p. 166)
teria por demais assimilado a “qualidade de vida” ambiental ao seu sistema de
valores como bem de consumo que promove o “bem estar” (SAHLINS, 2003, p.
169), enquanto uma continuidade do que marca a cultura democrática.
Segundo Ferry (1994), trata-se do elogio do desenraizamento, da inovação
68
,
fundamentais para a liberdade do indivíduo e para a sua sobrevivência na vida
das metrópoles. A busca dessa harmonia perdida entre os seres humanos e a
Natureza não é proposta através do retorno à vida simples (ainda que
comunidades indígenas, de pescadores, de agricultores ecológicos sejam
muitas vezes reverenciados como “ecólogos natos” pelos movimentos
ecológicos), mas da continuidade desse desenraizamento em direção a um
enraizamento planetário, inserido em uma nova ordem global e cosmopolita.
Embora essa nova ordem ecológica possa ser pensada como uma
tendência geral, ou seja, no sentido da chamada “Cultura Global”
(FEATHERSTONE, 1994), para que possa ser investigada do ponto de vista da
Antropologia, e não da Filosofia ou do Direito, precisamos entendê-la como um
processo de globalização, que guarda particularidades em suas interações
localmente situadas. É preciso levar em conta a dimensão ética das interações
globais em que as políticas ambientais são elaboradas, na medida em que
muito tempo a questão da preservação do meio ambiente em que se vive
deixou de pautar apenas discursos ideológicos para fazer parte das disjunções
contemporâneas entre economia, cultura e política (APPADURAI, 1994).
68
“... a exigência de um meio ambiente o, onde o bem-estar dos vivos em seu todo seja
assegurado, aparenta-se à do estado-providência cuja eclosão, ninguém o contestará,
permanece uma especificidade da cultural ocidental. Nessa ótica, a atenção conferida à
natureza seria menos construída contra o universo moderno do que produzida por ele;
resultaria, no fundo, das mesmas paixões democráticas que animam também as reivindicações
de um direito à vida, ao lazer, à saúde, etc., tão características da relação moderna dos
indivíduos com um estado liberal que se tornou protetor.” (Ferry, 1994:26) ... “Animada por
paixões muito democráticas tais como o interesse pessoal, o respeito ao indivíduo, a exigência
de uma existência mais ‘autêntica’, a busca de uma qualidade superior de vida, menos
estressada, onde uma solidão bem dosada pode reconquistar seus direitos contra a multidão
das grandes cidades, ela aspira mais a organizar o sistema do que a substituí-lo por um outro.
Aliás, o ecologista democrata, se gosta de praias desertas e mares não poluídos,
experimentaria alguma dificuldade em abdicar das benfeitorias da ciência moderna e da
companhia de outros.” (FERRY, 1994:28)
93
Historicamente, aponta-se a Conferência das Nações Unidas sobre
Ambiente Humano de Estocolmo, a chama Conferência de Estocolmo,
realizada na Suécia em 1972, como o início dos debates em escala mundial
sobre a preservação do meio ambiente. Na conferência opunham-se dois
pontos de vista, um mais próximo da chamada ecologia profunda, a qual se
refere Luc Ferry (1994), composta por intelectuais e ativistas de países
europeus que defendiam a tese do “crescimento zero” e da inovação
tecnológica para frear tanto o crescimento populacional da humanidade quanto
seu processo de desenvolvimento industrial predatório e poluidor. O segundo
ponto de vista era defendido por países sub-desenvolvidos, ou periféricos, que
defendiam seu direito ao crescimento industrial, em que industrialização
significava mais progresso e crescimento econômico (BASSO, 2004).
Tais pontos de vista teriam se unificado sob o conceito de
“desenvolvimento sustentável”, que reúne o combate à fome à luta pela
preservação da Natureza em um mesmo compromisso com um “futuro comum”
da humanidade. O conceito era dominante na chamada II Conferência
Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92, realizada no Rio
de Janeiro, em 1992, reunindo 114 chefes de Estado, 10 mil jornalistas e 40 mil
militantes de 3.200 ONGs (BASSO, 2004). A Agenda 21, documento produzido
pelo encontro, prevê uma série de estratégias globais de desenvolvimento
sustentado, que acrescentam às soluções tecnológicas da chamada indústria
limpa (reflorestamento, filtros, combustíveis alternativos) soluções no campo do
planejamento urbano (articulando as questões de saneamento, coleta e
destinação do lixo, abastecimento) e principalmente do Direito, dando força ao
campo da legislação ambiental, que lida com as questões de indenizações,
multas, penalidades à empresas e cidadãos que atentam contra a qualidade do
meio ambiente
69
.
Esse processo histórico, entendido por José Sérgio Leite Lopes (2004;
2006) como "ambientalização", como internalização de uma nova questão
pública, desdobra-se no Brasil na produção de leis e normas e na construção
institucional (LOPES, 2004) de secretarias do meio ambiente em nível federal e
69
A chamada área de Direito Ambiental guarda peculiaridades que desafiam um sistema
jurídico baseado na propriedade, seja privada ou pública, na medida em que a água e o ar, por
exemplo, são bens que não se enquadram nas mesmas categorias que o solo. Cf. Soares,
2003.
94
estadual, agências e conselhos de controle ambiental, e outras instituições que
abrem espaço para profissionais diversos como engenheiros sanitaristas,
juristas, profissionais de saúde pública, economistas e posteriormente,
geógrafos, biólogos e arquitetos (LOPES, 2006). Nas escolas ocorre o
processo de interiorização de comportamentos e práticas através da promoção
da educação ambiental, na atividade escolar ou paraescolar, comportando
formas de difusão por meios de comunicação de massa (LOPES, 2006).
Surgem novas áreas jurídicas com destaque para a categoria de direitos
difusos, a idéia de direito coletivo, e da necessidade de reprodução da
qualidade de vida de uma geração para outra, de sustentabilidade. Nas
empresas, desenvolvem-se os selos de qualidade ambiental (ISO 9000) como
forma de normatização do processo de produção (LOPES, 2006). Na
sociedade civil organizada (associações, sindicatos) os assuntos ambientais
aparecem transversais e conexos a outras questões que envolvem a qualidade
de vida, apropriados criativamente (LOPES, 2006).
Contemporaneamente, em um contexto de globalização, são inúmeros
os fundos internacionais de financiamento e as ONGs internacionais que
defendem a preservação dos rios, das matas, dos animais em todos os cantos
do planeta. Não se trata simplesmente do crescimento do sentimento de
compaixão com seres vivos não-humanos, ou da generalização iluminada de
conhecimentos de Biologia entre os seres humanos. O alcance global desses
movimentos precisa ser antes compreendido pela própria dimensão global que
adquiriram as interações entre instituições, cidadãos e governos no mundo
contemporâneo. A imagem do mundo como uma “aldeia global” não é apenas
uma conseqüência do desenvolvimento da tecnologia de telecomunicações, ou
da complexificação da economia transnacional. O que me interessa discutir
aqui é que imagem de ambiente planetário é essa que está em questão, pois
esta não se apóia apenas em conceitos científicos como ecossistema, mas em
paisagens e comunidades imaginadas (ANDERSON, 1983) no campo da
cultura, num jogo de pertencimentos e identificações de determinados grupos
sociais com determinadas regiões do planeta.
95
Inúmeros autores nas Ciências Sociais
70
, e em especial na Antropologia,
apontam para as inter-relações que se estabelecem entre o local e o global,
entre o nacional e o regional, como fundamentais para o jogo de identidades do
mundo contemporâneo. Ruben Oliven (1992) demonstra como todo o passado
rural do Rio Grande do Sul é importante como marca identitária de sua atual
população que vive, em maioria, nas cidades, como forma de identificação com
o que vem a ser a Nação Brasileira, sendo brasileiros ao serem gaúchos, ou
seja, “naturais” do Rio Grande do Sul, em oposição às demais marcas
identitárias regionais da população nacional. Entre os emblemas que compõem
essa “invenção de tradições” nacionais que consolidaram os atuais Estados
modernos, unificando sociedades e culturas através de representações sociais
em comum, estão justamente paisagens idealizadas, que adquirem significado
do ponto de vista de uma memória social para a sociedade nacional ou regional
como um todo
71
.
Um primeiro momento da política de proteção ambiental dos
ecossistemas terrestres é apontado como tendo surgido dessa articulação
entre Nação e Estado através de determinados territórios, pedaços de natureza
considerada “selvagem”, que deram origem aos Parques Nacionais e Estaduais
enquanto paisagens-símbolo da Nação. É uma tendência, chamada
wilderness
72
, de conservação da Natureza, tomada como intocada e intocável,
transformada em natureza espetáculo, testemunho da natureza original do solo
nacional e dos valores de uma comunidade idealizada dos antepassados que
teriam erguido os pilares da cultura nacional ao enraizarem-se em solo
virtuoso. Tal tendência se origina efetivamente tanto nos Estados Unidos
quanto na Alemanha nazista (FERRY, 1994), tendo suas origens ideológicas
ligadas ao Romantismo do século XVIII. Com o desenvolvimento da Ciência
Ecológica, essa tendência teria se aliado à chamada “Ecologia Profunda”
(FERRY, 1994) na década de 1970 e, contemporaneamente, à Biologia da
Conservação (DIEGUES, 2000), correntes científicas dominantes nos atuais
modelos globais de preservação da natureza, que propõem a separação de
70
A coletânea "Cultura Global" organizada por Featherstone (1990) apresenta alguns dos
principais autores que lidam com a questão. Mais recentemente, foi publicada a coletânea "As
dimensões culturais da transformação global", pela UNESCO, organizada por Lurdes Arizpe
(2001), que aborda a questão global do ponto de vista especificamente antropológico.
71
Cf. Halbwachs (1990) e Oliven, 1992:20.
72
Cf. Ferry (1994), Diegues (2000 e 1996) e Schama (1996)
96
áreas naturais das atividades humanas em geral, reservando determinados
territórios para a renovação da flora e da fauna local. Parques e reservas no
mundo todo são mantidos por megainstituições internacionais como o Banco
Mundial, o Greenpeace, o WWF, que financiam ações de governos,
universidades e ONG´s locais para a transformação da biodiversidade local em
patrimônio da humanidade, e portanto, acima dos interesses econômicos locais
e internacionais.
Inúmeros conflitos eclodiram em países do Terceiro Mundo (Índia, Brasil,
países africanos) gerados pela remoção efetiva ou pela tentativa de remoção
de populações consideradas tradicionais como grupos indígenas, comunidades
de pescadores artesanais, de seringueiros, de ribeirinhos, de quilombolas, de
extrativistas em geral, que tiram seu sustento do meio em que vivem e que
passaram a ter seus direitos defendidos na medida em que realizariam um
manejo histórico de suas paisagens locais, com saberes localmente
construídos a serem preservados juntamente com o ambiente (DIEGUES,
2000), pois são tomados como parte da etnobiodiversidade
73
local. Esse
“ecologismo social”, ou “ambientalismo camponês” (DIEGUES, 2000) acusa as
tendências globais de conservação de serem orientadas para a promoção de
um direito humano universal que é, no entanto, exclusivo de determinados
grupos sociais com estilos de vida urbanos e que consumiriam tais áreas
naturais em práticas como o turismo, a pesquisa científica financiada por
interesses econômicos, ou mesmo que escamoteariam grandes
empreendimentos colonialistas internacionais (construção de hidroelétricas,
extração mineral, indústria farmacêutica) na forma de compensação ambiental.
Não pretendo entrar aqui na polêmica ideológica que se estabelece
nesse campo, ou na análise das forças políticas em jogo, o que já foi feito pelos
autores citados. Interessa aqui refletir sobre que nova paisagem mundial se
esboça nesse processo de globalização de saberes e práticas com relação ao
mundo natural. Retomando a perspectiva do conflito como processo
73
O conceito de etnobiodiversidade refere-se ao conjunto de saberes tradicionais de
determinadas populações, com respeito à classificação do mundo natural e à sua exploração
ou manejo realizado a partir de determinadas práticas (medicinais, agrícolas, etc). Inspirados
no estruturalismo de Lévi-Strauss (1989 e 1996) e contemporaneamente de Descola (1990),
alguns autores valem-se do conceito para investigarem uma "biologia" ou uma "ecologia" nativa
entre populações indígenas e/ou chamadas tradicionais (Cf. Guha, 2000, Diegues, 2000,
Sarkar, 2000.)
97
socializador, é preciso admitir que mesmo os encaminhamentos mais
interessantes dessas negociações internacionais sobre a preservações de
florestas e sua diversidade, que se encontram no campo da etnociência e na
descoberta de uma diversidade de conhecimentos e práticas culturais (tanto
predatórias e poluidoras quanto tecnicamente eficazes na conservação da
natureza) construídos por diferentes populações sobre espécies de animais e
plantas, sobre formas locais diferenciadas de cuidados com o ambiente e de
manejo dos recursos naturais, não deixam de ser também uma forma de
inserção de tais comunidades em esferas sociais mais abrangentes. São
muitas as ações e projetos sociais que articulam práticas locais aos mercados
internacionais como o turismo, a comercialização de artesanato, o registro de
patentes sobre usos de plantas medicinais, etc. Em outras palavras, os
conflitos, em termos éticos, encaminham-se para a inserção de tais
comunidades nas negociações e fluxos de mercadorias, de pessoas, de
informações do processo de globalização, pois encerrá-las em seus territórios e
promover o congelamento de suas práticas no tempo seria reduzir a cultura e a
dinâmica social às suas funções ecológicas, a um uso utilitarista da cultura
(SAHLINS, 2003), inevitavelmente impedindo sua duração no tempo.
Em termos éticos, o conhecimento científico que foi necessário para
gerar toda a tecnologia industrial difundida mundialmente, é igualmente
responsável pela revisão das conseqüências éticas da transformação das
relações das sociedades humanas com o meio ambiente como um todo. Mas a
Ciência tem um papel igualmente fundamental na investigação de quais
arranjos sociais entre grupos sociais diversos estão expressos e ao mesmo
tempo mediando as relações entre os indivíduos e o meio natural.
Na Antropologia, desde os estudos de Mauss e Durkheim (1981,1989),
sabe-se que na relação dos diferentes grupos sociais com a Natureza (e com o
sobre-natural) estão expressas as relações sociais desses grupos no seu
interior e com os demais grupos à sua volta. No meio ambiente, entendido
como espaço simbolicamente vivido e representado, estão colocadas as
fronteiras simbólicas pelas quais transitam redes de relações diversas, onde
estão situados domínios diversos da vida cotidiana. São essas fronteiras e
representações sociais sobre os ambientes onde vivem, re-elaboradas a partir
das interações sociais, que são importantes de serem discutidas, na medida
98
em que a Biosfera é também uma representação, uma imagem do mundo, que
se pretende absoluta, mas que é ao mesmo tempo redesenhada em meio aos
debates e conflitos mundiais sobre a preservação do planeta, quanto adquire
significados diversos quando é localmente interpretada.
Para dar um exemplo do meu trabalho de campo, um discurso pronto
na ponta da língua por parte de vários “recicladores” como se apresentam
oficialmente os muitos “papeleiros” das ilhas que trabalham com coleta e
separação de lixo reciclável (resíduos sólidos na linguagem técnica) é o de
situar a contribuição ecológica de seu trabalho no compromisso mundial de
“salvar a Amazônia” e outras grandes florestas do desmatamento, através da
reciclagem do papel. Em um diálogo mais próximo, no entanto, sua reflexão se
torna mais complexa ao se pensarem como trabalhadores do lixo no contexto
urbano, ao dedicarem-se a uma atividade das mais desvalorizadas no mercado
de trabalho e na estrutura social brasileira, que possui ao mesmo tempo
importância fundamental para a “qualidade de vida” ambiental da cidade. De
qualquer forma, sua fala em um caso e no outro situa a unidade de
preservação ambiental em questão, onde moram esses papeleiros e onde se
configura sua atividade como impacto ambiental, o Delta do Jacuí, estando
relacionada ao contexto urbano, em oposição à Amazônia e outras localidades
emblemáticas do que restaria de Natureza a ser preservada.
Embora os discursos dominantes acusem a falta de consciência, por
parte da maioria da população mundial, de determinados conceitos científicos e
da dinâmica dos ecossistemas como o grande obstáculo à construção de
pactos internacionais de preservação do ambiente terrestre que tenham efeito
na vida cotidiana das populações, este trabalho investiga quais são as
representações, e as práticas sociais que articulariam essas inter-relações
entre o global, o local e o regional do ponto de vista ambiental.
Ulf Hannerz (1992), em seus estudos sobre os estilos de vida
cosmopolitas, apresenta uma importante distinção que é apropriada para tal
discussão, a de que embora a imensa maioria da população mundial viva em
meio a uma economia globalizada, em meio aos fluxos internacionais de
telecomunicações, de mercadorias, de informações, nem todas as pessoas
poderiam ser consideradas cosmopolitas ou “cidadãs do mundo” da mesma
maneira, pois o contato com notícias e imagens do mundo todo não significa
99
uma ruptura com as referências locais da vida cotidiana, muitas vezes restritas
a determinadas regiões e domínios da vida cultural da cidade, do bairro, do
vilarejo. Mesmo o viajante internacional, para ser considerado cosmopolita,
segundo Hannerz (1992), precisa estar disposto a consumir a diversidade dos
locais pelos quais transita, e a repensar a própria subjetividade no contraste de
culturas, ao invés de restringir-se ao circuito de hotéis, aeroportos e shoppings
centers, por exemplo. Embora as categorias que Hannerz (1992) coloque
precisem ser investigadas nas suas muitas conexões, pois não são de forma
alguma absolutas e definitivas se aplicadas à vida cotidiana, elas nos servem
como um indício de que mundos e mundos a serem vividos como aldeia
global, e que muitas vezes o planeta a ser preservado é construído nas
articulações entre as localidades que determinados estilos de vida têm
condições de elaborar.
Retomando o argumento de Ruben Oliven (1992), de que o nacional
é atingível através do regional, que o global é pensável em relação ao local,
situaria a proposta que Appadurai (1992) desenvolve em sua teoria dos
scapes
74
(panorama na tradução brasileira), para pensar qual é essa paisagem
que se apresenta no mundo ecologizado. Appadurai investiga a Cultura Global
como fluxos: fluxos de mercadorias, de pessoas, de finanças, de imagens, de
tecnologia, que conformam os panoramas, os scapes a que se refere
75
. São
“mundos imaginados”, paisagens que podem ser apreendidas em
movimento, na medida em que as disjunções entre Nação, etnia e Estado
conformam esses espaços simbólicos diferenciados em que as cidades
passam a estabelecer conexões inesperadas, como as comunidades de
migrantes que mantêm comércio constante com seus espaços de origem, ou
que consomem as imagens de uma comunidade de origem imaginada, ao
deslocarem-se ilegalmente pelo mundo dos grandes negócios globais. O autor
refere-se, portanto aos operários-visitantes, muitas vezes ilegais, que se
encaminham para os espaços inferiores das sociedades consideradas
prósperas, que ao mesmo tempo vivem o sentimento de desterritorialização,
74
Embora na tradução brasileira o termo scape tenha sido traduzido para “panorama”, em sua
denominação original, uma proximidade com o conceito de paisagem na língua inglesa,
landscape, a partir do qual o autor investiga os fluxos da cultura global.
75
São eles: etnopanoramas, tecnopanoramas, midiapanoramas, finançopanoramas,
ideopanoramas (Appadurai, 1992:312)
100
quanto também passam pelo processo de re-elaboração de sua identidade
articulada à memória da cultura de origem.
É a clássica distinção centro/periferia que se complexifica, na medida em
que o mundo globalizado se configura a partir de muitos pontos de conexão
entre muitas localidades, configurando ao mesmo tempo os “nós cosmopolitas”
a que o antropólogo Antônio Arantes (2000) se refere, dotados de infraestrutura
de transporte e telecomunicações, e de “qualidade ambiental” (saneamento,
área verde, controles de poluição e de economia de água, coleta de lixo) e as
soluções locais para os desafios dessa nova ordem mundial. A paisagem que
se apresenta, pode ser pensada no sentido dos midiapanoramas a que
Appadurai (1992) se refere, pois o nesses “pontos nodais” que as imagens
dos paraísos terrestres do turismo são consumidas, que os encontros
internacionais de debate sobre o ambiente são realizados, que a Natureza é de
alguma forma retomada no ambiente artificialmente constituído pela Civilização
Industrial Moderno-Contemporânea.
É o compromisso com essa paisagem do mundo globalizado em questão
que está em jogo nos acordos internacionais. Estas demandas, que se
estendem a todas as áreas do planeta, urbanas e não-urbanas, trazem consigo
o pressuposto de uma visão sobre a Natureza a partir da Cidade. Trata-se um
ponto de vista sobre as relações entre homem, sociedade e ambiente que leva
em conta a interdependência dos grupos humanos nas diferentes esferas
sociais locais, regionais e globais enquanto habitantes de um mesmo e
generalizado ambiente, o Planeta Terra. Este trabalho investiga, portanto, esta
chamada “questão ambiental”, tomada enquanto uma forma de interpretação
do trajeto de dissociação Homem/Natureza, como uma preocupação
eminentemente urbana, na medida em que demanda um deslocamento do
sujeito para pensar-se a si mesmo, em meio a relações sociais que se dão em
diferentes níveis de negociação da realidade, cuja complexidade é vivida
sobretudo, nos dilemas éticos vividos no cotidiano das cidades.
A adoção de uma postura responsável, de um enraizamento cósmico a
nível planetário, em direção a um comportamento ambientalmente
comprometido se apresenta como mais uma tendência geral de reestruturação
de relações sociais e orientações culturais que, no entanto, é diferencialmente
experienciada pelos grupos sociais, a partir do que Ruben Oliven (1982) chama
101
de "heterogeneidade na homogeneização". O desafio da construção de uma
“ética global”, que tem sido proposta por órgãos internacionais de proteção
ambiental, tem como pressupostos determinados saberes não apenas de
cunho técnico-científico, como noções de saneamento e do conceito de
ecossistema, mas igualmente pressupõe uma determinada experiência, que
defendo aqui, é vivida no ambiente urbano.
Esse “ambiente urbano” não se refere ao espaço construído da cidade
em si, mas à forma como os sujeitos sociais tomam posse desse espaço, como
o reconhecem, enquanto ambiente técnico-cultural, no sentido dado por Leroi-
Gourhan (1975), permeado por elementos mediadores (linguagem, técnica,
instrumentos etc.) através dos quais os grupos sociais apresentam diversas
produções de conhecimento quanto a sua sobrevivência nos territórios em que
vivem.
Na estrutura técnica das sociedades está coloca a questão da
classificação/organização/exploração do mundo natural que culmina, mais
recentemente, na idéia da mecanização do Planeta e da natureza artificializada,
que permitem aos indivíduos refletirem sobre o trajeto de dissociação
Homem/Natureza realizado pela sociedade onde estão incluídos, e
principalmente, sobre a sua própria trajetória de adesão a determinados estilos
de vida e de desenraizamento com relação a suas comunidades de origem e
seus modos de vida.
É nesse sentido que a chamada “questão ambiental” pode ser colocada
como uma preocupação urbana, pois o conceito de ambiente a que se refere,
entendido enquanto ambiente técnico-cultural, nos termos propostos por Leroi-
Gourhan (1975), é o ambiente que o trajeto antropológico da Civilização
Urbano Industrial tornou possível. A cidade, enquanto obra humana, surge na
passagem do nomadismo ao sedentarismo, organizando o universo a partir de
um centro, transformando a imagem do universo traçada nos itinerários do
viajante, em um sistema simbólico em que a integração espacial desse centro
com os confins do universo se dá a partir de um sistema rítmico de dias e
distâncias. No atual plano técnico-econômico dessa Civilização Urbano-
Industrial, os limites do espaço organizado em termos globais se tornaram
atingíveis no tempo das operações cotidianas, fisicamente e, principalmente,
simbolicamente. Para sobreviver na Cidade, é preciso adaptar-se a esse
102
sistema artificial que ordena as atividades cotidianas como o consumo, ou o
trabalho, no qual as transformações ocorridas num canto do planeta podem ter
efeitos globais, no espaço de um dia.
Colocada esta “questão ambiental” nesses termos, poderíamos
perguntar, finalmente, qual o papel da água, ou dos debates internacionais
como o Fórum Internacional das Águas em tudo isso? A questão dos usos dos
recursos hídricos é fundamental para a passagem da noção de meio ambiente
como paisagem, para a sua visão como ambiente que articula a dimensão do
vivido ao território técnico-cultural da sociedade. Trata-se de uma mediação do
conhecimento do “ambiente” enquanto microcosmos local para ser pensado em
termos do Planeta, e principalmente, enquanto meio de uma diversidade de
formas de vida social.
A questão da gestão dos recursos hídricos, da interdependência dos
mananciais de água doce, interligados através das bacias hidrográficas está
voltada para essa outra configuração espacial que se articula com as conexões
simbólicas entre os diferentes cantos do planeta, na articulação dos diversos
atores que desenvolvem atividades (econômicas, de lazer, administrativas) de
uso da água, que são pensados a partir de um sistema em que todos os
“usuários” da bacia hidrográfica em questão estão envolvidos. O menor gesto
de degradação ambiental por parte de qualquer grupo social, ou mesmo
indivíduo, passa a ser visto a partir da responsabilidade quanto às
conseqüências ambientais para a chamada “Biosfera”, mas muito mais
diretamente, para o seu grupo e para inúmeros outros grupos sociais seus
vizinhos, a cidade ao lado, o país adiante, a bacia hidrográfica, o continente.
Para que possamos compreender o que a política de recursos hídricos
acrescenta à problemática ambiental, gostaria de situar o conflito que venho
acompanhando de ocupação de uma determinada área do Rio Grande do Sul
em relação à problemática da recuperação dos cursos de água do planeta.
3.2. Meso-Esfera: A Bacia Hidrográfica do Guaíba
Durante o Fórum Internacional das águas, um projeto de lei para o Delta
do Jacuí causava polêmica. Regularizado em 2004, esse projeto transformou o
Parque Estadual Delta do Jacuí em outra figura jurídica, uma Área de
103
Preservação Ambiental, com o objetivo de dividir os 17,2 mil hectares do Delta
em três áreas, uma reserva biológica de proteção integral e intocável (13,3 mil
hectares), uma área de proteção ambiental em que atividades de agricultura e
pesca seriam permitidas sob o controle do Estado (12,1 mil hectares), restando
ainda 730 hectares de "área antrópica" onde a urbanização seria permitida,
para comportar os mais de 15 mil habitantes das ilhas. O detalhamento dessas
divisões dos territórios do Delta permanecem sendo debatidos. O que quero
mostrar aqui é como essa discussão se inseria no contexto do fórum, e o
quanto essa modificação pode ser interpretada como uma atualização da
questão ambiental em torno da preservação das ilhas e áreas alagadiças do
Delta à luz da política internacional de recursos hídricos.
Criado em 1976
76
, o Parque Estadual Delta do Jacuí é ainda hoje motivo
de grande polêmica na política ambiental do Estado. Localiza-se em plena
Região Metropolitana de Porto Alegre, muito próximo à zona mais densamente
edificada e urbanizada da capital. As atividades de implementação do Parque
objetivavam promover o “disciplinamento de sua utilização”, destinando a
utilização do espaço para o aspecto cultural (“aperfeiçoamento cultural da
população”), educativo (criando núcleos de informação, museus, centros de
iniciação à natureza, viveiros de espécies) e prevendo o aproveitamento da
natureza para atividades de lazer, recreação e esportes ligados ao meio e ao
turismo. Pretendia-se ainda propiciar a pesquisa científica de um ecossistema
em evolução através de estudos biológicos, geológicos, hidrológicos, humanos.
(Parque Estadual Delta Do Jacuí - Plano Básico, 1979:20).
Após quase trinta anos de sua criação, o Parque passou pela
administração de vários órgãos do Estado, obteve inúmeros financiamentos
internacionais, teve algumas obras executadas (como o Museu da Ilha da
Pólvora), mas nunca foi implantado de fato. Os projetos de zoneamento das
76
“O Decreto Estadual 24.385, de 14 de janeiro de 1976, criava o Parque Estadual Delta do
Jacuí, abrangendo as ilhas de formação sedimentar do arquipélago do Guaíba. A comissão
constituída por força deste decreto, ao concluir seus trabalhos, recomendou a ampliação dos
limites do Parque ‘a todas as ilhas atuais, em formação e futuras e às regiões marginais com
características semelhantes às da região do Delta, abrangendo, ainda, a parte inferior da foz do
próprio rio Jacuí.’ Estas áreas são constituídas pela planície de inundação do Jacuí e por
algumas ilhas do seu baixo curso similares às do arquipélago, que devem pois ser
incorporadas ao Parque. Este território, incluindo os terrenos insulares e continentais e os
canais internos, perfaz uma superfície total de 17.245 hectares.” (PARQUE ESTADUAL DELTA
DO JACUÍ – PLANO BÁSICO, 1979:17).
104
áreas do Delta do Jacuí seguiram enfrentando as dificuldades de
implementação de uma unidade de preservação em plena Região
Metropolitana da capital do Rio Grande do Sul. O que se apresenta, portanto,
como "problema ambiental" desdobra-se em uma questão de habitação urbana
e uso do espaço público, que o processo de investimento em infra-estrutura
de saneamento e transporte, de desalojamento e reassentamento, de
indenização e regularização fundiária para mais de 15 mil habitantes, teriam de
ser executados pelos governos municipais e estaduais em conjunto com as
atividades de proteção ao ambiente.
Tais processos de reassentamento não são apenas um desafio do ponto
de vista econômico para o Estado, mas igualmente uma intervenção na forma
de organização espacial de tais populações nas ilhas, pois trata-se de uma
população nada homogênea, reunindo das mais altas às mais baixas classes
econômicas da região. As estratégias adotadas ao longo dos anos para tal
foram muitas. As principais foram, sobretudo, o investimento em campanhas de
“conscientização” dos moradores das ilhas, e também da cidade, através da
promoção de políticas públicas, produção de documentários em vídeo,
realização de eventos, cursos, palestras, distribuição de material educativo, em
que a representação da paisagem do Delta do Jacuí é a grande tônica,
mostrada a partir de sua fauna, sua flora, sua dinâmica das águas e banhados,
suas belas luzes e cores.
A grande imagem, no entanto, que representa o Delta do Jacuí como
área de proteção é a que insere a presença humana em meio a essa flora e
fauna, e a situa no tempo. São as imagens feitas a partir de satélite, utilizadas
como ferramenta pelos órgãos públicos, que dão conta da densidade de
ocupação de determinadas áreas da região. São realmente surpreendentes tais
imagens, quando permitem a comparação entre diferentes momentos dessa
ocupação.
Tais imagens têm sido o ponto de partida para discussão das áreas para
zoneamento do Parque. Semelhante a tal ponto de vista, também as
imagens que se obtém da janela dos aviões que sobrevoam o Delta do Jacuí
em muitas das rotas de pouso do Aeroporto Internacional Salgado Filho. Elas
apresentam, sobretudo, a porção de espaço natural ainda preservado no Delta
do Jacuí e, principalmente, sua posição na Bacia Hidrográfica, recebendo as
105
águas do Rio Jacuí que se divide em dois braços, formando um delta, e dos
rios Sinos, Gravataí e Caí.
É o recorte da bacia hidrográfica, segundo Paul Little
77
(2006), que pode
provocar uma reflexão diferenciada sobre a realidade socioambiental, por
revelar conflitos latentes que não necessariamente se manifestam no espaço
público formal, mas que permite identificar os recursos ambientais e atores
sociais envolvidos, tanto localmente, quanto no que diz respeito a atores
influentes à distância
78
A valorização do Delta do Jacuí pode ser compreendida pelo
processo de valorização da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba, que por sua
vez é formada pelas águas de nove sub-bacias hidrográficas. O Delta é
justamente o espaço de ligação dessas águas, e tem sua importância principal,
em termos ecossistêmicos, na manutenção da qualidade das águas que são
fundamentais para a continuidade da vida nesse ambiente, e dos ambientes da
região.
Interpretando em termos da ética ambiental, a imagem do Delta do Jacuí
traz a afirmação da responsabilidade do morador das ilhas para com os
moradores de toda a região. Algumas outras ações têm tentado conscientizar,
e outras, disciplinar essa tomada de responsabilidade. Quanto ao processo de
ocupação das margens por residências de alto padrão construtivo, foram
iniciados processos para demolição de tais habitações no Ministério Público,
bem como processos judiciais para pedidos de indenização do Estado. Já
quanto às ocupações irregulares realizadas pelas classes populares, optou-se
por um processo de negociação política mais participativa, envolvendo
lideranças locais, formando comissões, mas ainda assim permanecendo no
plano dos debates jurídicos e burocráticos. As grandes questões quanto à
execução desse processo permanecem. Como promover a urbanização dos
terrenos alagadiços do Delta, com obras de saneamento, com colocação de
energia elétrica e água encanada, sem comprometer o ambiente? Como
transformar o morador irregular num cidadão pagador de impostos e serviços?
77
"Uma bacia hidrográfica é simultaneamente uma entidade geográfica que contêm distintos
ecossistemas, uma área onde diversos grupos sociais, com suas respectivas instituições
socioeconômicas, constroem um modo de vida particular e o locus para mobilização política e
ambiental em torno do conflito socioambiental." Little, 2006, p.97.
78
Giddens apud Little 2006, p.92
106
Durante os debates do Fórum Internacional das Águas, essa
problemática da ocupação do Delta era deslocada da ocupação do solo para a
questão dos usos das águas e sua importância. Tratava-se de uma
problemática maior, que conseguia mobilizar divergências políticas em prol de
uma mesma bandeira a continuidade do “Programa Para o Desenvolvimento
Racional, Recuperação e Gerenciamento Ambiental da Bacia Hidrográfica do
Guaíba”, conhecido como “Pró-Guaíba”. Neste ano, estava em jogo a
renovação do acordo entre os governos Federal e do Estado do Rio Grande do
Sul com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, comprometidos com a
melhoria das condições ambientais da principal Região Hidrográfica do Rio
Grande do Sul
79
.
Para entender a importância do Pró-Guaíba, é preciso compreender
como as divisões em regiões hídricas, na política de recursos hídricos, passam
a ser entendidas como unidades de planejamento sócio-econômico,
constituindo-se em novas divisões políticas dos territórios. Apesar do Brasil ser
considerado uma superpotência hídrica, com 12% das águas doces superficiais
do mundo, 90% dessas águas estão concentradas nos Estados das regiões
norte e centro-oeste, onde vivem apenas 15% da população, enquanto as
regiões nordeste, sudeste e sul possuem cerca de 10% do potencial hídrico
superficial, detendo 85% da população nacional, e grande parte das atividades
que consomem os chamados “recursos hídricos” na forma de abastecimento
doméstico, força de geração de energia hidrelétrica (barragens), produção
industrial, irrigação para a agricultura, reserva pesqueira, atividades de lazer.
Todos esses consumos, ou usos diferenciados, geram o chamado “conflito de
uso” dos recursos (BASSO, 2004) da bacia.
Apesar da energia elétrica poder ser levada a diferentes regiões, os
recursos hídricos em si são distribuídos na sua região hídrica. Dito de outra
forma, as regiões economicamente mais importantes tem uma demanda cada
vez maior de recursos hídricos, e uma preocupação crescente com a
possibilidade de abastecimento da região hidrográfica em que estão inseridas.
79
As informações sobre o Pró-Guaíba que não constam em publicações científicas foram
obtidas a partir de material disponibilizado pelo Estado, em especial a proposta para o Módulo
II do programa (Pró-Guaíba, 1999), a publicação "Experiências em Educação Ambiental" (Rio
Grande do Sul, 1998) e as informações que constam no endereço eletrônico
http://www.proguaiba.rs.gov.br, último acesso em 13/10/2005.
107
Assim como o Brasil, o Rio Grande do Sul é considerado privilegiado com
relação à disponibilidade de águas superficiais, mas suas regiões mais
densamente ocupadas enfrentam problemas com a qualidade de suas águas.
O Rio Grande do Sul é formado por três grandes Bacias Hidrográficas. A Bacia
do Rio Uruguai, na qual predominam as atividades agrícolas e da pecuária,
está inter-relacionada ainda às fronteiras do Estado, tanto com o Estado
vizinho de Santa Catarina, quanto com os países fronteiriços Argentina e
Uruguai. A Bacia da Planície Costeira, ou Litorânea, divide-se entre as
atividades agrícolas na parte sul (que também faz fronteira com o Uruguai) e as
atividades sazonais dos meses de verão na parte litorânea. Finalmente, a
Bacia do Lago Guaíba é onde se concentram as maiores áreas urbanizadas do
Estado, com mais de dois terços de sua população total e a maior parte
igualmente das atividades industriais e econômicas que geram 70% do PIB do
Rio Grande do Sul.
Uma bacia hidrográfica é formada pela drenagem de outros cursos de
água, formando um rio ou lago
80
. A bacia é, portanto um sistema de canais de
escoamento inter-relacionados que contribuem para o abastecimento dos
chamados “lençóis freáticos”, águas subterrâneas que são a garantia da
perenidade desses cursos de água, além de serem fundamentais para
manutenção da qualidade de suas águas. Os principais impactos que
ameaçam as bacias hidrográficas são a contaminação e a impermeabizilização
desses lençóis freáticos. A contaminação ocorre por efluentes vindos da
indústria (dejetos), da agricultura (agrotóxicos) e do meio urbano (esgoto e lixo).
A impermeabilização do solo impede o abastecimento do lençol freático pela
absorção das águas superficiais causando seu esgotamento. A
impermeabilização é provocada pela erosão e o transporte de sedimentos
(areia, madeira, etc) vindos principalmente da região agrícola, e pela introdução
de superfícies impermeáveis, próprias do processo de urbanização (como o
asfalto, os aterros, etc)
81
.
O Lago Guaíba recebe, portanto, as águas (e também parte dos
sedimentos, as cargas de efluentes e os dejetos) de seis grandes rios (que são
80
Conforme Cristofoletti (1974), apud Pires (2000), uma bacia hidrográfica define-se por uma
área drenada por um determinado rio ou por um sistema fluvial, formando um conjunto de
canais de escoamento inter-relacionado”. (Pires, 2000, p. 210)
81
Pires, 2000:209 e Basso 2004.
108
divididos em sub-bacias hidrográficas) da Bacia Hidrográfica do Guaíba: Jacuí,
Taquari, Antas, Vacacaí, Caí, Sinos e Gravataí. Ao longo do seu percurso,
esses rios vão se juntando de modo que quatro deles (Jacuí, Caí, Sinos e
Gravataí) desembocam num delta em forma de funil, o Delta do Jacuí, a
noroeste de Porto Alegre, formando o Lago Guaíba que banha a cidade (RIO
GRANDE DO SUL, 1998). É nessa dinâmica que desponta a importância do
Delta do Jacuí, que seus banhados e terrenos alagadiços, em uma área de
17,2 mil hectares no centro desse encontro de águas seriam justamente uma
“esponja” natural que não apenas filtra os sedimentos, mas também absorve
boa parte dessas águas, contribuindo para o abastecimento do lençol freático e
a regulagem das cheias em toda a região. Sob tal ponto de vista, o Delta do
Jacuí é muito mais do que um “santuário ecológico” de espécies animais e
vegetais, é como que o coração de toda essa região hidrográfica, que sofre o
impacto diário de mais de 3.700 toneladas de lixo domiciliar, 16.500 litros de
agrotóxicos, 890m
3
de resíduos de indústrias e 960 mil m
3
de esgoto
82
.
O Delta encontra-se, sob este ponto de vista, em relação de
interdependência ecossistêmica e econômica em relação a toda a Região
Hidrográfica do Guaíba, que abrange territórios bem diversificados, sendo no
total 84.763,54 Km², mais de 250 municípios (30% do território gaúcho), onde
vivem mais de seis milhões de habitantes, a maioria vivendo em cidades
(83,5%). Essa interdependência entre tantas pessoas e instituições (prefeituras,
secretarias do Estado e dos municípios, empresas, associações civis, etc)
tornou-se um desafio de gestão para o Estado, na medida em que não
bastariam soluções tecnológicas para o problema (filtros, estações de
tratamento e monitoramento, mudanças na legislação), sendo necessárias
ações com governos e população. Para tal foi criado o Pró-Guaíba.
O Pró-Guaíba é considerado o mais completo programa de integração
sócio-ambiental da América Latina por seu financiador, o Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID), tendo investido a 2002 cerca de US$ 220,5
milhões. O BID financia 60% do total do projeto, sendo os 40% restantes
bancados pelo Estado. Concebido em 1989, e iniciado em 1995, o valor total
do Pró-Guaíba é estimado em 1,2 bilhões de reais
83
. Seu objetivo principal é
82
Dados oficiais do Programa Pró-Guaíba: http://www.proguaiba.rs.gov.br/prog_desafio.htm
83
http://www.proguaiba.rs.gov.br
109
melhorar o ambiente da bacia
84
através da ação do Estado, sendo executado
por vários órgãos municipais e estaduais, com a expectativa de em 15 a 20
anos reverter o quadro de poluição das águas e degradação dos ambientes da
bacia, favorecendo o desenvolvimento sustentável (BASSO, 2004).
Ao longo dos anos, os resultados oficiais do Pró-Guaíba são vários.
Entre eles estão a implementação do sistema de coleta e tratamento de
esgotos em Cachoeirinha, Gravataí e Porto Alegre, a conservação de parques
e reservas naturais (Delta do Jacuí e Itapuã), o monitoramento da qualidade da
água, do solo e do ar, o controle e o manejo de agrotóxicos, reflorestamento,
construção de estações de tratamento de resíduos sólidos, além de que
foram realizadas campanhas de educação ambiental, o começo da elaboração
do Plano Diretor de Resíduos Sólidos para a Região Metropolitana de Porto
Alegre, planos diretores de bacias hidrográficas, cadastramento de indústrias
poluidoras, treinamento de técnicos e o sistema de informações geográficas da
bacia (BASSO, 2004).
Indiretamente, no entanto, poderíamos dizer que o volume dos
investimentos contribuiu também para uma maior circulação de conceitos como
ecossistema, bacia hidrográfica, flora e fauna, que através de campanhas
publicitárias e ações de educação ambiental, passaram a ser recorrentes no
cotidiano de comunidades como as do Delta do Jacuí, mas que principalmente,
passaram a orientar uma mudança na abordagem do Poder Público local com
relação às questões que envolvem o meio ambiente. Antes consideradas
problemas do campo da Saúde ou da Economia (agricultura, geração de
energia), tais questões ambientais foram direcionadas a novas instituições a
partir da década de 1990. No mesmo período em que se concebeu e se deu
início ao Pró-Guaíba foram criadas a Secretaria Estadual de Meio Ambiente
(SEMA), os Departamentos de Florestas e Áreas de Proteção (DEFAP) e de
Recursos Hídricos (DRH), fundações como a Fundação Estadual de Proteção
Ambiental (FEPAM) e a Fundação Zôo-Botânica do RS, além de novas formas
de organização entre Estado e sociedade como os comitês de gerenciamento
de bacia hidrográfica, o Conselho de Recursos Hídricos (CRH) e o Conselho
84
O Pró-Guaíba “...tem o objetivo geral de criar as condições necessárias para a utilização
racional dos recursos naturais, recuperação da qualidade ambiental nas áreas urbanas e
rurais, bem como executar o manejo ambiental sustentado nas atividades agrícola, pecuária,
florestal e industrial.” Rio Grande do Sul,1998:07.
110
Estadual de Meio Ambiente (CONSEMA), nos quais atuam junto ao poder
público inúmeras formas de organização da sociedade civil. Todos os cnicos
e profissionais atuantes nessas instituições são colocados em situação de
diálogo com as demais instâncias do poder público, com empresas e cidadãos
de todo o Estado, chamados ao debate em nome dessa nova forma de se
pensar as territorialidades pela sua interdependência em função da água.
O Brasil, e em especial o Rio Grande do Sul, vem adotando o modelo de
gestão participativa de recursos hídricos baseado no sistema de comitês de
gerenciamento de bacia hidrográfica, seguindo o exemplo do sistema francês
de agences de gestão da água, ao tomarem a Bacia Hidrográfica como
unidade de planejamento. Os comitês reúnem representantes dos chamados
“usuários da água”, sendo estes indústria e agroindústria, associações de
moradores, colônias de pescadores, ONG’s, instituições técnicas e órgãos
públicos (de abastecimento de água e de saneamento) dos municípios de cada
região hidrográfica que irão debater as regras de uso da água (incluindo o
custo financeiro para cada atividade econômica e a destinação das
arrecadações) em setores da bacia, a serem definidos com base em estudos
técnicos.
Sendo considerada como um bem universal, e seu acesso um direito
humano fundamental, a água na legislação brasileira, ou os “recursos hídricos”,
entendidos como recursos econômicos, são considerados de domínio público,
como um “bem difuso” do qual o Estado não é proprietário, mas seu gestor,
com a responsabilidade de regular os usos privados das águas e seus conflitos
entre interesses diversos (SOARES, 2003). Trata-se de um modelo de
planejamento e gestão, ou administração pública, que possui o aval
internacional, mas que, no entanto, encontra resistências e dificuldades de
implementação localmente.
Os Comitês encaminham o chamado “enquadramento da bacia”,
decidindo por quais usos serão permitidos em uma divisão igualmente arbitrária
da região hidrográfica, e a partir d decidem igualmente políticas de
recuperação de ecossistemas, e de indenização de impactos como os custos
dos usos diversos dos recursos hídricos por diferentes atores. É por isso que
os conflitos em meio a essa “comunidade de comunicação” (OLIVEIRA, R. C.,
1996), vêm se dando no embate entre profissionais da área técnico-científica
111
(biólogos, arquitetos, engenheiros, hidrólogos) com representantes de setores
como os grandes produtores de arroz, que necessitam de grandes quantidades
de água para irrigação das lavouras, assim como as empresas que atuam na
área de geração de energia hidroelétrica, que realizam empreendimentos de
grande impacto ambiental. Tais setores seriam considerados como os
principais investidores nessa política de recursos hídricos, devendo pagar mais
caro pela água utilizada para atividade econômica, enquanto que o cidadão
comum pagaria o custo menos elevado por fazer uso de seu direito
fundamental de acesso à água potável.
O modelo de gestão, pautado pelo conflito de interesses de uma grande
diversidade de “usuários da água” como gerador da política participativa em
torno do interesse comum pela preservação da qualidade das águas, encontra
entraves na mobilização de outros setores que poderiam reivindicar
investimentos em saneamento sico, recuperação de cursos de água e mata
nativa, e que, no entanto, não atingem a representatividade esperada pelo
modelo. São justamente os setores mais afetados financeiramente os que mais
têm se atualizado em termos do funcionamento jurídico dessa política da água,
e que têm por isso mesmo cada vez mais disputado os cargos de direção dos
comitês (escolhidos por eleição entre os membros) com seus tradicionais
ocupantes, os técnicos do Estado que atuam no sistema de recursos hídricos.
Tendo assistido a algumas reuniões de comitês de bacia como o Comitê
Lago Guaíba, o Comitê Sinos e o Comitê Tramandaí, e tendo dialogado com
alguns dos técnicos atuantes nos comitês, tomei conhecimento de suas
dificuldades em conseguir maior mobilização da sociedade civil e dos próprios
agentes do Estado (vereadores, deputados, prefeitos) para conquistar força
política por parte dos comitês, e, logo, maiores verbas para implementação de
seus encaminhamentos. Por um lado, os técnicos apontam a necessidade de
um maior conhecimento dessa visão sistêmica por parte da sociedade em
geral, chamada de “informação” ou “conhecimento técnico”, quanto à dimensão
regional que os impactos locais possuem no ambiente (poluir um arroio é
comprometer toda a bacia), para que se possa atuar no debate ético em prol da
bacia hidrográfica como um todo. Por outro lado, outra grande dificuldade dos
comitês, dos quais participam ONG’s ambientalistas, associações comunitárias
(como as colônias de pescadores ou sindicatos rurais) é a de encaminhar as
112
discussões do grupo para questões de ordem executiva quanto à burocracia do
Estado, através do conhecimento operacional das leis que articulam essas
inter-relações entre os poderes municipal, estadual e federal.
Esse era um dos motivos da realização de eventos como o Fórum
Internacional das Águas. Por um lado, informar outros setores governamentais
e empresariais sobre a legislação que institui a política de recursos hídricos e o
seu sistema de gerenciamento, para conquistar novos aliados tanto no poder
executivo quanto nos quadros de funcionários de instituições governamentais e
de empresas. Por outro lado, mobilizar a sociedade civil não para a
promoção de uma ética ambiental quanto às suas práticas cotidianas, mas para
que mais entidades queiram se sentir representadas, sendo levadas a ocupar
de forma efetiva espaços políticos nos comitês.
Nos próximos capítulos veremos algumas dessas situações de conflito
em que os moradores do Delta do Jacuí se viram levados a pensar sua posição
nesse debate ético, ao serem removidos das beiras dos rios, ao terem que lidar
com a escassez do peixe, ao terem que suspender a criação de porcos e
galinhas, ao negociarem o transporte e a venda de lixo reciclável nas ilhas, ao
participarem de reuniões com o Poder Público, ao enfrentarem enchentes.
Importa aqui dizer que embora todos reconhecessem a importância da
“Natureza” para a vida humana em geral, o ambiente ganhava nomes diversos,
dependendo dos atores envolvidos no diálogo, na medida em que suas
trajetórias pessoais estão mais ligadas às ilhas como suporte de suas redes de
vizinhança e parentesco, ao Rio Guaíba como fronteira simbólica de sua
inserção no meio urbano, enquanto que o Delta do Jacuí traz consigo a
afirmação de um novo nome ao lugar, que incorpora todas essas instâncias do
Poder Público como o Pró-Guaíba, e mesmo, a pesquisa científica, como esse
trabalho acadêmico que não deixa de ser mais uma de muitas inserções de
Universidades que voltam cada vez mais suas atenções para o Delta do Jacuí
e suas riquezas.
É na mediação entre essa chamada ética planetária que toma o Planeta
Terra como um mesmo ambiente comum a todos os seres humanos, e muitas
éticas locais de apropriação dos ambientes que reside o desafio da
preservação dos cursos de água e da promoção do acesso universal à água
potável. Ao chavão ecológico da preservação do ambiente terrestre para os
113
“nossos filhos” em um futuro provável, a questão do uso da água traz para o
presente o fato de que existe boa parte da população mundial sofrendo as
conseqüências da contaminação e do esgotamento das fontes de água
potável. Não se trata apenas da sobrevivência de um “nós” particularizado (dos
"nossos" descendentes), mas da co-existência com o Outro.
Cabe aqui uma pergunta, que muitas vezes encaminhei aos técnicos
que promovem essa política de recursos hídricos: o conhecimento técnico (ou a
visão sistêmica sobre o meio físico) é a chave da resolução dos conflitos de
interesse e de uso das águas, ou seriam justamente tais conflitos a chave da
ampliação dessa visão sistêmica, incorporando a dimensão técnico-cultural ao
conceito de ambiente, que sobrepõe em um mesmo espaço físico, a “baía de
todas as águas”
85
, muitas dimensões da experiência no mundo, que lhe atribui
sentido e significado?
3.3. Deslocando o olhar - cidade e água em Paris, França
Entre janeiro e agosto de 2006 tive a oportunidade de realizar um
estágio de doutorado na Universidade de Paris VII, França. Embora o objetivo
do estágio fosse estudar formas de produção, acervo e documentação de
documentários etnográficos, pude também refletir sobre a realidade
socioambiental francesa, ou pelo menos parisiense, com relação aos usos e o
valor da água no meio urbano, e sobre o contexto em que se desenvolve a
política de recursos hídricos francesa, exportada hoje em dia para outros
países como o Brasil.
Essas observações não têm a pretensão de sustentar um estudo
etnográfico da sociedade francesa, elas o trazidas na pesquisa, encerrando
a reflexão desse capítulo com o objetivo de situar uma experiência de
estranhamento de um antropólogo no confronto com estilos de vida próprios de
outra cultura. Portanto, assim como Ruben Oliven faz ao refletir sobre a
monetarização da cultura brasileira ao estudar a monetarização da cultura
norte-americana (OLIVEN, 2001), busco recolocar a questão da tese sobre as
inter-relações entre uma experiência urbana em tempos de globalização com o
85
Trata-se de uma expressão utilizada como título de um impresso de divulgação do Programa
Pró-Guaíba, apropriada à discussão desse capítulo.
114
processo de ambientalização de comportamentos e de internalização da
problemática ambiental, a partir da experiência cotidiana em uma metrópole
inserida em outro contexto socio-histórico de uso e de acesso ao recurso
natural água.
É uma maneira de trazer ao leitor como cheguei a determinados dados
sobre a atual "Guerra da Água", enquanto conflito internacional. Foi através da
saída da realidade brasileira, em sua imensidão continental e na sua
abundância como a maior potência hídrica do mundo, que pude perceber
outras implicações no cotidiano de grandes cidades, que são ainda
imperceptíveis em algumas cidades do Brasil.
A qualidade da água que se bebe é um primeiro dado imediato de quem
se instala em Paris. Habitando na Cité Internationale Universitaire, residência
de estudantes do mundo inteiro em Paris, tive diálogos iniciais com outros
estudantes estabelecidos no contexto da cidade, sobre esse primeiro
estranhamento. A água que escorre da torneira traz consigo um resíduo do
solo parisiense, o calcário, que deixa a água esbranquiçada, confere um certo
"peso" e um sabor diferenciado a um copo d'água, além de se acumular na
louça, talheres, nos objetos de metal em geral, e, ainda, entupir o meu
chimarrão diário.
Nas primeiras idas aos marchés, ao mercado, novo estranhamento. Uma
imensidão de produtos para retirar o calcário residual dos objetos domésticos.
E claro, uma infinidade de opções e preços para adquirir uma garrafa d'água.
Duas opções iniciais, distinção inexistente no Brasil - a água mineral (l'eau
minérale) e a água de fontes (l'eau de source)
86
. Embora ambas se originem de
fontes de água subterrânea com qualidade própria para o consumo humano, a
água mineral é considerada na Europa aquela que possui características
86
"Issues de nappes d’eaux souterraines non polluées, profondes ou protégées des rejets dus
aux activités humaines, les eaux dites de source sont des eaux naturellement propres à la
consommation humaine. Les seuls traitements qu’il est permis de leur appliquer, afin d’éliminer
les éléments instables que sont les gaz, le fer et le manganèse, sont l’aération, la décantation
et la filtration. Ces eaux de source sont en général consommées au niveau régional car leur
transport en augmenterait trop le coût. Il existe une centaine de telles sources en France. Les
eaux minérales, quant à elles, sont des eaux de source ayant des propriétés particulières : elles
ont des teneurs en minéraux et en oligo-éléments susceptibles de leur conférer des vertus
thérapeutiques et leur composition est stable dans le temps. Comme les eaux de source, elles
ne peuvent être traitées. Une fois mises en bouteilles, ces eaux voyagent beaucoup et sont
même exportées.". Cf. o website
http://www.cnrs.fr/cw/dossiers/doseau/decouv/potable/sourceMin.html, último acesso em 11 de
janeiro de 2007.
115
benéficas para a saúde, através de elementos como sais minerais em sua
composição. Essa distinção faz com que o custo da água mineral seja no
mínimo 100% mais caro do que a simples l’eau de source. Apesar das
companhias de água disponibilizarem nas torneiras das casas uma água
adequada ao consumo que custa mil vezes (CANS, 2001, p.164) mais barato
que a água mineral, e que está disponível gratuitamente em inúmeras fontes
públicas espalhadas pelas ruas e parques da cidade, existem mais de 70
marcas de água mineral na França, que é o segundo consumidor mundial de
água mineral no mundo, perdendo apenas para a Itália
87
, conforme os dados
do CNRS
88
. Uma boa parte dessas marcas de água mineral investe pesado na
publicidade, associando o consumo da água mineral ao estilo de vida urbana
parisiense, acompanhando a agitação da vida moderna. Em 1999, o
faturamento com as marcas tradicionais Perrier e Vittel, vendidas no mundo
todo, compradas pelo grupo internacional Nestlé, representavam 8,8% de
todo o faturamento da empresa no mundo (CANS, 2001, p.164).
O consumo da água mineral durante a primeira metade do Século XX
permaneceu restrito à França, Itália, Alemanha e Bélgica, no ramo de produtos
medicinais. A invenção da embalagem de água em garrafa plástica em 1968
facilitou o transporte da água mineral como produto de exportação para outros
países, e ao mesmo tempo permitiu novas formas de consumo do produto para
além do contexto das refeições domésticas e dos cafés, bares e restaurantes.
(CANS, 2001, p. 155). A publicidade explora essa praticidade do produto
também, a água disponível a qualquer hora, pronta para o consumo,
eliminando até mesmo o trabalho de encher um copo. O valor econômico da
água mineral, assim, abre pistas para pensar as distinções simbólicas
(SAHLINS, 2003) do valor da água no consumo de uma qualidade de vida
urbana elaborada historicamente na cidade de Paris.
Essas experiências, assim como outras de imersão no contexto da
cidade tornaram mais compreensíveis algumas informações que fui coletando
em publicações e sites de internet. A questão pública do acesso à água,
contemporaneamente vista como uma problemática internacional no campo
87
http://www.cnrs.fr/cw/dossiers/doseau/decouv/potable/sourceMin.html, último acesso em
14/01/2007.
88
Centre Nationale de la Recherche Cientifique.
116
dos direitos humanos, ou da viabilização da vida planetária, também é
elaborada a partir de uma visão sistêmica das esferas sociais em jogo na
disponibilização do mais essencial dos recursos naturais (depois do oxigênio)
no meio técnico-cultural urbano.
Ao transitar pela orla do rio Sena (La Seine), talvez o principal "lugar de
memória" (NORA, 1984) da cidade, às margens do qual Paris se desenvolveu
no "cruzamento do caminho da estrada com o caminho do rio" (LACORDAIRE,
1985, p.53), não podia deixar de me surpreender pela inversão que
vivenciavam turistas e moradores da cidade, com relação à fruição estética que
se experimenta às margens de rios e lagos brasileiros. Não era a paisagem da
natureza-espetáculo que era contemplada às margens do Sena, mas a própria
paisagem urbana, a composição indissociável do rio com as pontes, os prédios
históricos, a vida pulsante da cidade. Seja a bordo dos muitos barcos de
passeio, seja descendo os degraus que convidam ao descanso ou a uma
caminhada ao nível do rio, é Paris que se contempla.
Apesar de ainda hoje a água do Sena abastecer boa parte da população
de Paris, as soluções cnicas que se sucederam ao longo da história de mais
de 2 mil anos da cidade revelam a sofisticação do gesto de beber água ou
banhar-se no cotidiano de uma cidade densamente ocupada por prédios de
muitos apartamentos. Como revela o historiador Simon Lacordaire (1985),
apesar dos dispositivos domésticos como a torneira, o banheiro, a pia serem
parte de um processo de disseminação de estilos de vida burgueses e
aristocratas ao longo de séculos na cidade, a água corrente, que entra pelas
torneiras e desaparece pelo ralo remonta há pouco mais de cem anos. O
historiador resume a história do abastecimento de água em Paris à questão do
transporte. Questão inicialmente resolvida por aquedutos que desde a
ocupação romana faziam a água circular até fontes em praças públicas e
estabelecimentos nobres da cidade, onde na época romana escravos, e nos
séculos seguintes os portadores de água se encarregavam de levar em baldes
litros de água para o consumo da população.
Com o adensamento populacional da cidade, e a utilização do rio Sena
como escoamento de esgotos, multiplicaram-se esses aquedutos e fontes
públicas, como fornecedores de água na cidade, até que a quantidade se
tornasse insuficiente para abastecer a população, ao final do século XVIII
117
(LACORDAIRE, 1985, p.283). Companhias privadas investiram em moinhos e
bombas movidas a fogo, instaladas em embarcações, pontes ou margens do
rio a salvo das saídas de esgoto da cidade, até que, com as imensas reformas
empreendidas pelo Barão Haussmann ao final do século XIX, as obras de infra-
estrutura para ao mesmo tempo abastecer com águas as residências e
conduzir os esgotos para longe das casas fossem, pouco a pouco, implantadas
na cidade. Novamente, a invenção da solução cnica do sistema de
encanamento não coincidiu com uma imediata adoção por parte da população
dos serviços da companhia de água parisiense, pois pagar regularmente pela
abundância de água era sinal de prestígio para burgueses e aristocratas,
enquanto que a população mais pobre permaneceu por muito tempo valendo-
se dos portadores de água (LACORDAIRE, 1985).
Devido aos altos custos dos investimentos necessários em canais,
encanamentos, usinas e reservatórios de água potável, a prefeitura de Paris
assumiu esses investimentos. Ainda assim, deixou à Compagnie Générale de
L'Eau e à Société Lyonnaise des Eaux o trabalho de administrar as contas
mensais e o abastecimento aos consumidores pagantes da água, ficando cada
uma das empresas com a população de uma das margens do rio (GANS, 2001).
Esse sistema funciona até hoje em Paris, ambas as companhias de
água obtiveram um sucesso nesse serviço que lhes permitiu expandir suas
atividades no mundo inteiro. Elas são responsáveis atualmente por parte dos
serviços que são privados de abastecimento de água potável no mundo,
realizando pesquisas e investimentos com a distribuição de água para
consumo doméstico ou industrial, e com novas formas de tratamento de águas
poluídas, de obtenção de água potável a partir de fontes alternativas como a
água do mar (CANS, 2001). Apesar disso, continua sendo o poder público, na
França, que determina o preço da água para o consumidor, e articula outras
necessidades para além do contexto municipal. A cidade precisa buscar cada
vez mais longe a água para lhe abastecer, sendo metade da água de Paris
atualmente oriunda do tratamento da água do rio Sena e do rio Marne e outra
metade provem de fontes subterrâneas distantes até 150 km da cidade.
não é mais a questão da quantidade, ou do transporte de água, que
problematiza o abastecimento de Paris atualmente, mas sim a questão da
qualidade da água, e o valor econômico desta. O custo da água que se
118
consome também paga o tratamento de esgotos, as obras de saneamento,
assim como outros emprendimentos, como as barragens dos Lagos do Rio
Sena que controlam os alagamentos da região hidrográfica, e finalmente, a
política de gestão dos recursos hídricos francesa, responsável pela
preservação e a despoluição dos rios em suas bacias hidrográficas.
A água dos rios não é usada apenas no abastecimento de cidades, ela
tem importância fundamental na agricultura, na indústria, sendo que ainda hoje,
70% da água doce do mundo é usada pela agricultura, 20% é usada pelo setor
industrial, e apenas 10% destina-se ao uso doméstico
89
. Para articular esses
setores e suas diversidades internas (tipos de indústrias, setores
agropecuários), com outros usos conflitantes (pesca, esportes, etc), o governo
francês adotou o já citado sistema de comitês de gerenciamento de bacias, que
na França recebem o nome de agences de l'eau, "agências de água". Desde
1964, as agências administram cada uma as seis principais bacias
hidrográficas francesas, criando dispositivos de controle da poluição nos
trechos da bacia, e sobretudo cobrando dos empreendimentos agrícolas e
industriais taxas destinadas a investimentos na pesquisa, no tratamento das
águas e na divulgação pública da problemática da escassez da água (CANS,
2001).
Essa política não conta, no entanto, do contexto transnacional atual,
tanto pela realidade física das bacias quanto pela realidade sócio-econômica.
Os rios que correm pela França também contribuem para bacias hidrográficas
de outros países europeus, com outras realidades administrativas. Acordos
precisam ser articulados para garantir a qualidade das águas desses rios entre
muitos países, como foi o caso do rio Reno, cuja despoluição exigiu a
participação de cinco países da União Européia: França, Alemanha,
Luxemburgo, Suíça e Holanda. Sua poluição, que atingiu seu auge nos anos 60
e 70 foi revertida ao longo de três décadas, com acordos entre governos e
multinacionais conhecidas como a BASF, a Bayer, a Shell e a Unilever, que
lançavam seus dejetos industriais diretamente no rio (CANS, 2001, p.169).
Novamente, esses acordos não se dão em termos de uma conscientização de
setores industriais e agrícolas, mas de negociações sobre os custos, impostos,
89
C.f. http://www.fsa.ulaval.ca/personnel/vernag/EH/F/cause/eau.html, último acesso em
12/01/2007.
119
taxas e medidas de compensação destinadas a tais operações, e pelo
reconhecimento da interdependência entre diferentes setores sociais quanto à
qualidade das águas dos rios.
Ações como essa na União Européia estão sendo promovidas no mundo
inteiro, com o apoio da Organização das Nações Unidas. Não se trata
novamente de uma simples mudança de sentimentos com relação à natureza,
na medida em que essa interdependência econômica pode ser pensada em
contextos muito diferentes, como o caso de conflitos entre países. É o caso dos
rios Tigre e Eufrates, cujo volume de água para irrigação é disputado por
países no Oriente Médio como Turquia, Iraque e Síria, através de
empreendimentos como barragens, reservatórios, canais que influem na
quantidade e na qualidade das águas que atravessam os territórios dos
países
90
.
O contexto da "Guerra da Água" se completa ainda, por outro conceito
que vem se tornando importante para compreender as inter-relações entre
países, através da água, que não dividem a mesma bacia hidrográfica, como é
o caso da relação da França com as fontes de água africanas. Trata-se do
conceito de "água virtual", um cálculo feito a partir da água contida nas
mercadorias, a que é necessária para a produção de bens e serviços
91
. A partir
desse cálculo, medem-se os produtos que mais necessitam de água para
serem produzidos, que é o caso da farinha, da soja, do arroz e da carne bovina,
com o objetivo de promover tecnologias de diminuição de consumo de água,
mas também responsabilizar importadores e exportadores de água virtual.
Boa parte dessas informações são difundidas pelo poder público e pelas
companhias de água, pelas agências das bacias hidrográficas, em eventos
públicos, em campanhas educativas, nos contextos escolares, em que não é
apenas uma consciência ambiental que é promovida, ou melhor, ela é
construída pela compreensão desse esquema complexo que é necessário para
entendimento do alto custo do consumo de água na cidade. Evidentemente que
90
Para citar mais um exemplo, é também o caso da disputa pelas águas dos lagos da região
da palestina e pela água do rio Jordão, que irrigam países árabes, Israel e o Estado Palestino.
(CANS, 2001, p. 193).
91
O conceito foi definido em 1990 por J.A. Allan. E adotado por órgãos internacionais como a
ONU e a UNESCO em políticas e pesquisas. Cf.
http://www.fsa.ulaval.ca/personnel/vernag/EH/F/cause/lectures/Faits%20et%20Chiffres%20-
%20L'eau%20virtuelle%202003.htm, último acesso em 12/01/2007.
120
esses dados não são simplesmente assimilados pela população, mas a
abordagem da questão, esta sim, pode se dizer que é compreendida: quanto
custa a água da cidade. São informações como quanto custa o volume de água
de uma ducha no chuveiro (0,16 centavos de Euro), uma lavada de louça à
mão (0,08 centavos de Euro), uma lavagem de roupa na máquina (0,22
centavos de Euro)
92
combinados aos altíssimos custos das moradias
plenamente equipadas com chuveiros, banheiras, banheiros completos,
cozinhas com pia, que situam os moradores da cidade como usuários da água
posicionados nesse grande esquema socioeconômico da água. É, sobretudo, a
imagem das entranhas da cidade, com suas infinidades de conexões,
encanamentos, galerias subterrâneas, canalizações, pontes, que é utilizada
como imagem desse mundo globalizado a partir da água
93
.
As observações de Alain Corbin (1986) sobre a purificação do espaço
público realizada pelas grandes obras de Haussmann, que transformaram a
paisagem medieval de Paris nesse sistema complexo que articula solo e água
urbana, são fundamentais para compreender que foi nas grandes cidades que
se enfrentou, pela primeira vez, problemas de poluição e contaminação do
ambiente em grande escala. Mas, novamente, as obras de drenagem,
pavimentação, ventilação do espaço público foram acompanhadas de uma
lenta transformação do imaginário social quanto às noções de higiene, de limpo
e sujo, que extrapolam os conhecimentos técnico-científicos para expressarem
como os grupos sociais passaram a identificar classes sociais e estilos de vida
a partir dessas categorias. Pensar o ambiente é pensar a relação com o Outro.
92
Dados presentes em materiais de divulgação coletados durante a Semana da Água em Paris
(Semaine de l'eau à Paris, 20 a 26 de março de 2006)
93
A visita ao "museu dos esgotos" e às galerias subterrâneas de Paris são atrações que
possibilitam uma visão completamente diferente da paisagem urbana, pela descoberta do que
Corbin (1986) chamaria do "ventre" da cidade.
121
Capítulo 4 – A cidade das águas
Durante a pesquisa que realizei em acervos de documentários na cidade
de Paris
94
, sobre o tema de cidade, cotidiano, meio ambiente e memória,
deparei-me com uma surpresa: dois documentários produzidos sobre as ilhas
de Porto Alegre, exibidos na televisão francesa. Um deles eu desconhecia,
tratava-se de uma reportagem sobre as ações de setores da Igreja Católica em
comunidades pobres do Brasil
95
, em que a atuação da Congregação Marista de
Porto Alegre na ilha do Pavão e na Ilha Grande dos Marinheiros ganhava
destaque. O segundo documentário, era um velho conhecido, o curta-
metragem premiado internacionalmente Ilha das Flores
96
, produzido por
cineastas de Porto Alegre, sobre o processo da produção e destinação do lixo
na cidade, em que as comunidades das ilhas aparecem em uma situação
animalesca, no fim de uma absurda cadeia produtiva em que os seres
humanos precisam aguardar os porcos alimentarem-se para catarem as sobras
do lixão da cidade. Ao final do filme, revela-se a retórica utilizada, a Ilha das
Flores é "na verdade" a "Ilha dos Marinheiros", o dono dos porcos é "na
verdade" um motorista de caminhão, as pessoas encenaram o que estava
acontecendo, mas a última afirmação reverte toda a ficcionalidade: "existe um
lugar chamado Ilha das Flores".
Sem entrar nos méritos do filme, que abordei em outro trabalho
(DEVOS, 2003), retomo aqui apenas o lugar do filme "Ilha das Flores" na
memória local, pela imagem degradante divulgada internacionalmente dos
moradores como desprovidos de qualquer dignidade. Ainda que o filme tenha
denunciado de forma criativa e inovadora, do ponto de vista estético, uma
situação crítica das cidades brasileiras, e tenha contribuído para obter doações
94
Refiro-me especialmente a l’Inathèque de France, que possui uma imensa coleção digital e
magnética de arquivos de programas exibidos desde 1995 nos canais de televisão e rádio da
França; o Forum des Images, que possui uma imensa coleção de filmes de ficção e
documentários que se passam na cidade de Paris, e a Bibliothèque Publique d'Information
Georges Pompidou, que possui uma coleção de documentários e documentos sonoros
realizados na França e também em outros paises.
95
O vídeo tratava de algumas experiências das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja
Católica no Brasil, objeto de estudo da antropóloga Carmen Cinira Macedo (1986)
96
"Ilha das Flores", direção de Jorge Furtado, produção da Casa de Cinema de Porto Alegre,
1989.
122
e chamar a atenção da comunidade internacional para a situação dos
papeleiros das ilhas, ele também reforçou estigmas com relação a esse local
com uma "região moral" (PARK, 1979) da cidade onde se localizam os
problemas e as mazelas da cidade. Sempre que uma câmera de vídeo aparece
para gravar alguma coisa na Ilha dos Marinheiros, e o meu lugar de "fazedor de
filmagens" entre os moradores não foi diferente, percebe-se que as pessoas
estão marcadas por essa imagem miserável que lhes é imposta. Em um tom
jocoso e desafiador, confrontavam-me diretamente sobre as minhas intenções
com a câmera, e em diálogos posteriores no trabalho de campo revelavam uma
série de anedotas sobre a realização do "Ilha das Flores"
97
que buscam
reverter o papel que seus parentes e familiares representaram.
Repensando o filme, ao assisti-lo em um momento em que refletia sobre
a interdependência internacional entre as populações a partir do ambiente
partilhado, percebi semelhanças nessa cadeia produtiva do lixo que o filme
apresenta, com o alimento saindo da lavoura, passando pelo supermercado,
chegando à mesa de uma família de classe média urbana, e finalmente sendo
posto no lixo que acaba nas ilhas, com o que descrevi sobre a questão da
água. No entanto, a dimensão ética de seu contexto de produção, que descobri
no trabalho de campo, demonstra como são possíveis outras leituras desses
processos que articulam tantas esferas sociais na vida moderna, a partir do
lugar que se ocupa nesses elos entre pessoas, coisas e poderes (Simmel,
1979).
As diferenças, entre o contexto europeu e o contexto brasileiro não são
apenas quantificáveis em termos de quantidade de fontes de água, seus usos e
desperdícios. É preciso levar em conta os arranjos locais em que se articulam
os grupos sociais e o ambiente natural.
A questão da água, como vimos no capítulo anterior, faz essa mediação
da oposição mundo urbano/mundo natural, para inseri-los em uma mesma
região hidrográfica. Enquanto ambiente artificialmente humanizado, a região
hidrográfica, incluindo áreas urbanas e áreas naturais poderia ser pensada,
portanto, a partir dos estudos da dimensão ética da vida cotidiana das grandes
97
Dentre as principais, a lembrança da insistência do diretor para que as pessoas não
olhassem para a câmera é a mais recorrente.
123
cidades, ou seja, da coexistência de mundos e “províncias de significado” que
se sobrepõem e se referem a diferentes formas da vida social.
Gilberto Velho (1981) observa que a “heterogeneidade cultural”,
presente à “sociedade complexa moderno-contemporânea”, tomada a partir de
sua estratificação em “categorias sociais distinguíveis com continuidade
histórica” (VELHO, 1981, p.16), como (mas não exclusivamente) classes
sociais, que surgem a partir da divisão social do trabalho e da distribuição de
riquezas é fundamental para pensar a Cidade enquanto coexistência de uma
pluralidade de tradições que se baseiam na divisão do trabalho, mas
igualmente em questões étnicas, religiosas, ocupacionais, etc; conformando
conjuntos de símbolos utilizados pelas pessoas nas suas interações e opções
cotidianas (VELHO, 1981) que irão delimitar fronteiras culturais.
Portanto, nessa perspectiva, importa menos a paisagem física do local
onde as pessoas vivem, e muito mais como elas vivem, articulando suas
práticas no seu local de moradia à região em torno. A aparente contradição que
percebi em meu trabalho de campo, entre morar nas ilhas e estar ao mesmo
tempo "fora" de uma certa cidade do continente, mas dentro de seu contexto
urbano se coloca como uma articulação que todo morador estabelece nesse
local, entre o pedaço de natureza e o pedaço de cidade que escolheu para
constituir sua morada. É a grande vantagem proferida pelos ilhéus, de estar em
um local estratégico em meio à região urbanizada. Trata-se de representações
que são afirmadas mesmo em face das informações técnicas proferidas pelo
poder público, quanto à sua situação de risco, sujeitos a enchentes, epidemias,
e a outras dificuldades em face da ocupação às margens dos rios, nas ilha do
Delta.
Pensar as águas como delimitadoras de algumas das fronteiras
simbólicas que se sobrepõem no espaço e no tempo significa colocá-las
igualmente sobre a perspectiva simbólica, ou seja, significa constatar que
embora todo ser humano precise de água para viver, e todos os moradores de
uma bacia hidrográfica compartilhem o mesmo sistema hídrico, o são as
mesmas águas que estão presentes nas práticas diárias dessa população. É
preciso investigar como a água, tanto na forma de abastecimento, quanto na
forma de saneamento, recoloca a questão da ocupação desigual do solo,
124
passando a ser vista como problema ambiental, e como passou a configurar os
lugares como as ilhas enquanto “vila irregular” e “área de risco”.
4.1. As áreas de risco da metrópole – água e solo urbano
Para compreender como se coloca essa questão, é preciso retomar o
que foi visto sobre a dinâmica de uma bacia hidrográfica, enquanto região,
articulada a uma outra forma de compreensão do espaço urbano, a região
metropolitana. Do ponto de vista administrativo, é a concepção da metrópole
enquanto região que irá perceber os problemas de uso do espaço desigual o
mais como um problema político, econômico ou de assistência social, mas
como um problema ambiental. Trata-se de um saber técnico-científico que
marca uma nova concepção política da cidade
98
, voltada para seus problemas
de inter-relação entre os seus diferentes territórios e populações.
Porto Alegre é uma cidade considerada entre as melhores do país e
mesmo da América Latina, em termos de “qualidade de vida”
99
, uma atribuição
que reúne uma série de fatores econômicos (renda média, emprego, etc) e de
infra-estrutura urbana (como sistema de transporte, saneamento) com outros
agregados do ponto de vista ambiental, como áreas verdes para práticas de
lazer e áreas de preservação natural. No entanto, em termos de sua integração
com a sua Região Metropolitana, constata-se que a maioria da população de
baixa renda mora em municípios ou territórios distantes da região central, em
áreas que apresentam problemas de infra-estrutura, situadas na imensa área
considerada rural disponível na região metropolitana que, no entanto, comporta
práticas nada rurais entre suas populações, que passam a configurar as
chamadas "vilas" irregulares onde localizam-se problemas contemporâneos
das cidades.
98
Ver M.Santos, 1994, p.35 e Lopes, 2006, p.41.
99
Como divulga o website da prefeitura da cidade, com uma população de mais de 1 milhão e
360 mil habitantes , "Porto Alegre é considerada a metrópole da qualidade de vida do Brasil
pela Organização das Nações Unidas (ONU), possui mais de um milhão de árvores em suas
ruas e acumula mais de 80 prêmios e títulos que a qualificam como uma das melhores cidades
brasileiras para morar, trabalhar, fazer negócios, estudar e se divertir. Seus indicadores de
qualidade de vida são favoráveis nos principais índices de desenvolvimento humano: saúde,
saneamento básico, educação, meio ambiente e economia." Cf.
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/infocidade/default.php, último acesso em 11 de janeiro de
2007.
125
Esse não é um processo recente, na medida em que o crescimento dos
centros urbanos se deu em conjunto com transformações ocorridas no meio
rural que expulsaram grande número de populações que passaram a se
concentrar nas bordas das cidades. Mas esse processo não pode ser pensado
de forma linear. Como veremos, as trajetórias dos moradores das ilhas
apresentam constantes deslocamentos por várias regiões da cidade ao longo
do tempo. O próprio espaço urbano como é entendido, reestruturou-se a partir
de rupturas significativas na sua organização espacial, em prol da qualidade do
ambiente, como é o caso das reformas sanitárias que estiveram na origem da
remodelação do espaço público urbano, através da abertura das largas
avenidas e da canalização dos arroios
100
e das fontes mal-cheirosas para evitar
a contaminação dos ares da cidade pelo “miasmas” putrefatos (CORBIN, 1986).
A problemática da Região Metropolitana se define na complexificação
desses arranjos dos espaços públicos, com a fundação, por exemplo, da
METROPLAN (Fundação de Planejamento Metropolitano e Regional) fundada
30 anos, para lidar com as conseqüências da aceleração do processo de
industrialização de Porto Alegre, e posteriormente de outras aglomerações
urbanas no Rio Grande do Sul
101
. Seu papel foi fundamental na definição dos
caminhos da expansão da Grande Porto Alegre, ao lidar não apenas com
populações vindas do campo, mas principalmente com as pessoas que Porto
Alegre começava a expulsar. Em 1970 Porto Alegre possuía 61,75% da
população urbana da região. Entre 1980 a 1991, a população de Porto Alegre
cresceu 12,1%, enquanto que a Região Metropolitana cresceu 32,4%, ou seja,
foram municípios vizinhos como Viamão, Canoas, Cachoeirinha, Gravataí que
receberam grandes contingentes de população
102
. A partir dessa nova
ocupação, a METROPLAN estima que a região chegou ao número de 722
favelas, sendo 217 em Porto Alegre, e 505 nos demais municípios
103
. No
modelo anterior de desenvolvimento, que não comporta a visão sistêmica, a
capital do Estado estaria a salvo dos problemas que se localizariam nas
periferias.
100
Tal processo será abordado de forma mais detalhada no capítulo 5.
101
Cf. http://www.metroplan.rs.gov.br/institucional/index.htm, último acesso em 11 de janeiro de
2007.
102
Ver Moura-Fujimoto, Nina Simone V. “A urbanizão brasileira e a qualidade ambiental”.
(2000:57)
103
Idem, p:61
126
Essa mesma questão, no entanto, vista do ponto de vista do tema
contemporâneo da água, da escassez dos recursos hídricos, coloca o
problema da “gestão da água e do seu “uso sustentável” para os centros
urbanos, sob o desafio de promover acordos entre os diferentes grupos sociais
em torno do cuidado e da recuperação das condições de rios, arroios, fontes
subterrâneas de água, etc. As cidades contemporâneas parecem viver um
momento significativo de remodelação de seus espaços, com a preocupação
de preservar áreas que conservaram suas características ecossistêmicas,
dentro das próprias regiões metropolitanas.
Encostas e topos de morros, beiras de rios, arroios e lagos, a costa
oceânica, banhados, baixadas, mangues, e todos os ambientes que atualmente
formam os chamados “corredores ecológicos” deixaram de ser vistos como
espaços limítrofes da cidade, para se tornarem “ilhas” de ambiente natural que
servem de contraponto ao espaço construído ao seu redor, importantes não
apenas localmente, mas para toda a região. No entanto, são justamente para
estes espaços que se destinaram historicamente as massas de empobrecidos
expulsas do campo e das zonas centrais da cidade, para os pântanos e matos,
fora da cidade higienizada e planejada. Paradoxalmente o Estado passa a
atuar como mediador em lugares que aentão, eram marcados pela ausência
ou descaso do poder público na disponibilização de infra-estrutura, ao
promover mudanças estruturais não apenas no espaço, mas nas práticas
cotidianas de seus habitantes, na promoção de novos valores com relação à
proteção e conservação do meio ambiente.
O processo de urbanização das capitais brasileiras segue um padrão de
"segregação espacial", na lógica de "ocupar primeiro e cuidar de infra-estrutura
depois, ficando o primeiro passo por conta da iniciativa privada e o segundo,
presumivelmente, por conta do poder público" (CALDEIRA, 1984, p.19). Essa
relação entre especulação imobiliária, ocupação irregular e necessidade de
planejamento, ou "remodelação" da infra-estrutura urbana de áreas "verdes",
naturais, não-planejadas, foi estudada por antropólogos como Tereza
Caldeira (1984, 2000) e outros autores filiados aos estudos de urbanismo,
como Lúcio Kowarick (1980). As implicações políticas desses processos em
que fronteiras sociais ficam delimitadas podem ser pensadas a partir das
diferentes formas de pertencimento à cidade, de acesso a direitos universais e
127
bens e serviços públicos, e conseqüentemente, de formas diversas de
responsabilidade social para com os bens públicos, em que se inserem as
áreas e os recursos naturais.
Como visto no capítulo anterior, essa revisão dos processos de
industrialização e urbanização do mundo contemporâneo precisa lidar com a
configuração da diversidade social que é igualmente resultante desse processo
de urbanização, para desta configuração repensar arranjos diferenciados.
Contemporaneamente, o problema não se coloca mais do ponto de vista do
destino dessas classes populares, de locais a lhe serem destinados, mas da
melhoria das suas condições de vida, de fato, em termos ambientais, como
forma de preservar ás águas e o solo de toda a região.
Maria Helena Sant´ana, ao trabalhar com os moradores da Vila Cai-Cai,
entre 1994 e 1996 em processo de remoção para o atual Loteamento
Cavalhada, em Porto Alegre, fez uma “arqueologia” da noção de “vila irregular”.
O termo que se caracteriza pela “ilegalidade da posse da terra”, pela
“irregularidade urbanística” quanto ao tamanho dos lotes, pela “carência de
infra-estrutura física e social”, pelo “sítio inadequado” ou ainda pela “má
qualidade das habitações”, se associa a valores morais na visão sobre as
classes populares a partir da falta e da carência (SANT´ANA, 1996, p.23).
Maria Helena Sant´ana mostra como um paradigma “físico-ecológico” associa
as “vilas irregulares” à desordem do crescimento urbano, remontando a antigos
processos de higienização da cidade que igualmente haviam removido
populações da beira de arroios e rios. A questão socioambiental da
“precariedade” e “insalubridade” acabava associada ao modo de vida dos
moradores da Cai-Cai, que foram parte do processo de “despoluição” da orla
do Guaíba (SANT´ANA, 1996). A população acabou sendo “removida” para um
terreno doado pela Igreja Católica nas proximidades da zona de preservação
da Reserva do Morro do Osso, Zona Sul de Porto Alegre. Novos temores dos
técnicos urbanísticos quanto ao risco de “poluição” e “degradação” da reserva
pelo modo de vida “irregular” e “desordenado” dos moradores da Cai-Cai,
levaram ao tutelamento dessa população, à necessidade de “conscientizá-la”,
“educá-la” quanto a um modo de vida saudável, cidadão e ecologicamente
consciente. Como a antropóloga aponta, houve uma associação da
“participação” desses moradores no processo de assentamento da vila, no
128
novo espaço, aos seus “sonhos” e esperanças por cidadania e qualidade de
vida, ao promoverem a “devolução” de um Guaíba despoluído a si mesmos e à
cidade (SANT´ANA, 1996, p. 47)
104
. Atualmente, o Morro do Osso é
considerada outra área de conflito ambiental na cidade
105
.
A visão sistêmica proposta em termos da integração metropolitana
transparece, por exemplo, no problema contemporâneo do lixo e dos aterros
sanitários. Em um modelo anterior de gestão pública, na década de 1970, os
depósitos de lixo eram criados em áreas desvalorizadas pelo mercado
imobiliário. Depósitos a céu aberto de lixo, os lixões, foram sendo dispostos em
áreas consideradas inúteis, justamente as áreas alagadiças e os banhados,
como o da Ilha do Pavão, em 1973. Em 1985 foi criado finalmente um aterro
sanitário na Zona Norte de Porto Alegre, com técnicas de disposição de
“resíduos sólidos” (lixo) nos solos sem causar danos ou riscos à saúde pública,
através da redução dos volumes e da colocação de camadas de terra após
cada deposição de resíduos diários (TROLEIS, BASSO, 2000). A produção
diária de resíduos sólidos por habitante da Região Metropolitana de Porto
Alegre, que é estimada pelo DMLU
106
em 0,65kg/dia (TROLEIS, BASSO, 2000),
acabou por esgotar a capacidade desse aterro da Zona Norte, que mesmo com
novas técnicas empregadas, acabou por diminuir para 10% sua capacidade em
1998, sendo construído outro aterro na Zona Sul da cidade. Mesmo com ações
realizadas para a coleta seletiva do lixo, separando material reciclável do
restante do lixo produzido por algumas localidades da cidade, em 2005 esse
aterro começou a apresentar sua capacidade esgotada, fazendo com que os
resíduos sólidos passassem a ser levados para o município de Montenegro.
104
As expressões entre aspas foram mantidas, recuperando o destaque que a autora dá ao
discurso técnico como revelador do paradigma "fisio-ecológico" que sua pesquisa investiga.
105
Ocupado em 2004 por um grupo de índios Kaingangues, que reivindicavam o morro como
território de seus antepassados, o Morro do Osso destacou-se nas disputas ambientais da
cidade. Mobilizaram-se atores sociais contra e a favor da permanência do grupo no local, que
até julho de 2006 ainda era garantida pela Justiça Federal. Os índios ocuparam apenas o topo
do morro, que é área de preservação ambiental. O morro tem suas bases ocupadas de um lado
pelos ex-moradores da Vila Cai-Cai e de outras vilas da cidade, e do outro lado por residências
e condomínios residenciais de classes médias e altas da cidade. A "ambientalização" do
conflito com a ocupação pelo grupo indígena da área de preservação do morro revelou outros
conflitos latentes entre esses grupos, sobre quais as lógicas de ocupação que ameaçam a
preservação do lugar, e sobre direitos diferenciados ao uso da área. Cf.
http://www.trf4.gov.br/trf4/noticias/noticia_detalhes.php?id=5127, ultimo acesso em 20/01/2007.
106
Departamento Municipal de Limpeza Urbana
129
Sendo assim, a questão dos conflitos entre os diferentes grupos urbanos
quanto à apropriação de determinados "bens difusos" como os cursos d´água,
ou ambientes como banhados e margens de rios e arroios no meio urbano se
apresenta como um tema fascinante, na medida em que tais espaços possam
ser pensados como "territorialidades flexíveis", conforme o conceito proposto
pelo antropólogo Antônio Arantes (2000), como áreas densas da paisagem
urbana onde identidades são contrastadas nas diferentes práticas sociais, onde
sentimentos de pertencimento são afirmados em nome de identidades locais,
em nome da Nação, ou em nome de filiações a correntes cosmopolitas como
os movimentos ecológicos contemporâneos.
O Delta do Jacuí, em especial, se apresenta na confluência dessas
questões, na medida em que é um território com características naturais, água
em abundância, paisagem exuberante, e ainda praticamente no centro da
Região Metropolitana de Porto Alegre, com algumas das ilhas inclusive sendo
ainda parte da área da cidade.
Acompanhei algumas reuniões do Poder blico com lideranças locais,
onde a temática da ocupação das ilhas era tematizada. O esforço dos técnicos
do “meio ambiente” (como eram identificados pela população) era justamente o
de transmitir aos moradores a importância sistêmica do Delta, para além da
melhoria das condições de vida de seus moradores. o grupo de moradores,
representado por uma comissão, mas também por alguns outros moradores
que tomavam a palavra (e que recebiam manifestações de apoio ou desagravo
do restante da platéia) fazia questão de se mostrar organizado e ciente dos
procedimentos de inscrição para falar, dos processos de negociação e
andamentos da burocracia formal, mas não deixava de fazer o papel de
“comunidade” no embate, expondo lacunas na aparente precisão das certezas
do planejamento técnico. Embora fosse evidente a necessidade da
regularização de muitas das áreas atualmente ocupadas para a possibilidade
de aporte de recursos, reivindicavam a garantia de tais investimentos na forma
de infra-estrutura (saneamento, pavimentação, saúde, etc), e principalmente a
garantia de que o processo de remoção das habitações em “área de risco”
(proximidade da beira da estrada e da beira d´água) seria o mesmo para os
casebres dos “pobres” e para as “mansões” dos “ricos”, termos recorrentes nas
reuniões.
130
A noção de “risco” me parecia expor algumas descontinuidades do
processo de negociação. Enquanto que na fala dos técnicos de meio ambiente,
a noção de risco parecia uma evidente questão de “tomada de consciência”
para os moradores dos perigos de se ocupar a proximidade da estrada
(exposição a acidentes) ou a beira d'água (exposição a enxurradas e doenças
e degradação do ambiente), para os moradores, o “risco” se revestia de outras
faces: embora fosse reconhecido o risco da proximidade da estrada (são
recorrentes as mortes por atropelamento nas trajetórias familiares) o riso era a
resposta para a questão das enchentes a gente gosta da enchente aqui”
um morador repetia a frase que tantas vezes ouvi, o evento cósmico da
enchente como marca da duração do modo de vida das comunidades de
ilhéus
107
. Outros valores revelavam-se quanto ao risco, que não se encontrava
na exposição às enxurradas, mas às condições mais imediatas de miséria e
pobreza.
Se ampliarmos para escalas maiores a questão do “risco”, veremos
como, em termos do que alguns autores chamam de “sociedade de risco”
108
, a
“situação de risco” pode ser interpretada para além das circunstâncias locais,
no significado que o risco passou a ter para sociedades modernas urbano-
industriais: o de “perigo”, ou seja, risco não para um indivíduo em particular,
mas para a ordem social em si (DOUGLAS, 1992). Recuperando seu estudo
clássico sobre “Pureza e Perigo”, Mary Douglas (1976) demonstra como a
noção de sujeira, de poluição ritual pode ser usada para pensar o risco,
resgatando sua definição de sujeira: “onde há sujeira, sistema”, a sujeira é o
que foge à ordem moral, à noção de “limpo”, de adequado, de aceitável
(DOUGLAS, 1976, p. 50). O risco é o que arrisca a ordem, o que, segundo
Ulrich Beck e Anthony Giddens (BECK, GIDDENS et alli, 1997), revela as
contradições do dinamismo das modernas sociedades industriais, pautadas
pela racionalidade institucional, pondo em cheque as certezas de ordem,
liberdade e segurança.
107
Ver capítulo 6.
108
Refiro-me aos autores que tratam da teoria da modernização reflexiva, pensando as
sociedades humanas e sua interdependência econômica, social e ambiental através do
processo de globalização, como Ulrich Beck (1997) e A. Giddens (1997), assim como a própria
Mary Douglas (1992), que investe no aspecto mais simbólico do risco para as sociedades
modernas.
131
O risco ambiental não é apenas o risco de degradação de determinada
função do ambiente físico, mas também o risco político que implica em
responsabilidade sob aquilo que foge às tentativas de controle. É uma
responsabilidade pelos efeitos para uma comunidade mais ampla a cidade, a
região hidrográfica, o planeta que, segundo tais teóricos, agrupar-se-iam em
torno da noção de confiança quanto à suas responsabilidades e sua
interdependência econômica e social. Seguindo a mesma lógica, o risco das
enchentes é suportável para a comunidade local, já que apesar de trazer
grandes dificuldades para o cotidiano, a enchente se insere na ordem local,
evento associado às redes de solidariedade e laços comunitários que são
reafirmados em tempos de enchente
109
.
4.2. Ecologia Humana, Meio Ambiente, Antropologia Urbana
O conflito ambiental investigado nessa tese se apresenta sob um velho
conhecido dos estudos urbanos, que se estende contemporaneamente à
cidade ecologicamente planejada: as diferentes formas de ocupação do solo
urbano, as formas diferenciadas de territorialização dos grupos urbanos, a
produção da diferença cultural e social da cidade a partir desse processo.
O debate contemporâneo em torno das "invasões", realizadas por
populações de baixa renda, em áreas de preservação nas grandes cidades,
como morros, encostas, margens, mangues retoma um importante debate
sobre a questão de mudança social e sua relação com o processo de
urbanização (OLIVEN, 1982). O "problema" das favelas muito tem posto a
ênfase na abordagem ecológica sobre a cidade (WIRTH, 1979) para tratar as
vilas de invasões e as favelas como entidades sociais, comunidades separadas
da estrutura social mais geral, que não teriam se adaptado ao meio urbano e
aos modos de vida urbano e sofreriam as conseqüências dessa não adaptação.
Assim, conceitos como "vizinhança", "regiões morais" e "comunidade de
interesses" (PARK, 1979) levariam ao extremo a inter-relação entre os
processos sócio-econômicos que ocorrem na cidade e o comportamento de
109
Ver capítulo 6.
132
seus indivíduos. Os indivíduos que teriam rompido com laços familiares e
demais relações sociais personalizadas tenderiam a se agrupar na cidade de
acordo com interesses em comum, de acordo com sua posição mais ou menos
assimilada aos valores e benefícios econômicos da cidade. Seria então esse o
processo responsável pela formação dos guetos de estrangeiros que se
agrupariam em determinados bairros, e pela formação dos bairros nobres de
"boa vizinhança" e das regiões morais como o submundo dos subúrbios, palco
dos males sociais do meio urbano: o vício, a miséria, a violência
110
. É o debate
sobre marginalidade nos centros urbanos que Ruben Oliven (1982) retoma
para demonstrar como o conceito de "continuum-folk urbano" proposto por
Redfield (1930) orienta essa leitura sobre o urbano, ao estabelecer uma
perspectiva linear quanto à transformação dos habitantes de comunidades
"rústicas" (folk), em indivíduos urbanos. Seguindo essa perspectiva, a não
assimilação dessas mudanças seria responsável, então, pela situação de
marginalidade nos centros urbanos.
A perspectiva oposta a de Redfield é a famosa crítica proposta por
Oscar Lewis (1951), ao estudar a mesma aldeia, Tepotzlán, em que Redfield
havia produzido seus dados, para demonstrar que a comunidade rural não era
nem o homogênea internamente, nem isenta de conflitos, tensões sociais e
perspectivas individualistas como Redfield supunha. No entanto, a ênfase de
Lewis nas características culturais que garantiriam a heterogeneidade dessas
populações, vistas enquanto comunidades, quanto ao processo de
homogeneização provocado pela sociedade industrial moderna está presente
no conceito de "cultura da pobreza" (LEWIS, 1970). Este conceito situa tais
populações não só como não integradas na sociedade industrial, como também
interpreta suas práticas cotidianas enquanto estratégias culturais próprias de
adaptação às suas condições de pobreza e miséria, um modo de vida ao
mesmo tempo responsável pela sua sobrevivência e pela sua eterna condição
de pobreza. Segundo esta visão, uma comunidade com um modo de vida nem
rural, nem plenamente urbano se desenvolveria nas favelas e periferias da
cidade.
110
Sobre os teóricos da Escola de Chicago, ver Hannerz, 1983, Velho, 1979 e Oliven, 1982.
133
Ruben Oliven (1982) aponta para o fato, no entanto, de que essas
populações estão inseridas no meio urbano e participam de uma estrutura
social mais geral, que não se limita nem mesmo à cidade, mas que diz respeito
à sociedade industrial moderna contemporânea. A sub-habitação surge como
indicador de uma situação mais complexa caracterizada por desemprego e
subemprego, em que os "favelados" participam do mercado de trabalho, seja
nos subempregos e na circulação de dinheiro no mercado informal, seja
enquanto reserva de mão-de-obra (OLIVEN, 1982). O "problema" das favelas
seria, na verdade, uma solução, ainda que precária, para o problema de
habitação e melhoria das condições de vida. Essa relação é inerente ao que o
autor chama de "heterogeneidade na homogeneização" (OLIVEN, 1982), dois
processos aparentemente contrários, mas na verdade complementares, pois o
modo de produção capitalista, e sua intensificação acelerada no caso brasileiro,
tende a reestruturar as relações sociais e incentivar novas orientações culturais
em direção ao individualismo, à secularização, a impessoalidade das relações,
etc. Estes, no entanto, não são processos lineares e universais, mas
tendências gerais, mudanças que ocorrerão de modo diferenciado, não pelo
aumento da desigualdade social que é inerente ao modo de produção
capitalista, mas também pela diversidade social e cultural resultante de
processos históricos de gênese e transformação dos centros urbanos
brasileiros (OLIVEN, 1982).
Ruben Oliven (1982) situa os principais teóricos da chamada Escola de
Chicago, Robert Park e Louis Wirth, como teóricos da perspectiva que aborda a
cidade enquanto uma "variável independente", ou seja, que a colocam como a
causa de fenômenos sociais que ocorrem no seu interior. Nessa perspectiva, o
meio urbano, entendido a partir de características ecológicas (tamanho,
densidade, integração/desintegração), seria o único condicionante do
"urbanismo como modo de vida" (WIRTH, 1979), em uma teoria psico-social
que interpretaria o homem urbano como aquele que é transformado pelos
"hábitos e costumes da cidade" (PARK, 1979). Maior heterogeneidade, com a
complexa divisão do trabalho, economia monetária mais desenvolvida,
instituições de parentesco e compadrio menos organizadas e eficientes no
controle social, maior dependência de instituições de controle de ação
impessoal, menor religiosidade, maior liberdade de ação e escolha individual
134
(OLIVEN, 1982) seriam algumas das características que orientariam o
crescimento urbano e a organização social dos indivíduos nesse meio,
colocando a cidade como a causa de muitos males sociais, associados ao
comportamento desviante.
O fenômeno da migração, o "êxodo rural", a "atração" que a cidade
exerce sobre as populações da área rural, é constantemente apontado como o
grande responsável pelo "inchaço" das cidades e pelo crescimento das favelas,
onde se concentrariam as populações que não foram plenamente absorvidas e
adaptadas aos modos de vida urbanos. No entanto, uma série de autores
que demonstram que, por um lado, esta é uma condição fundamental do
sistema sócio-econômico capitalista brasileiro, em que as massas vindas do
campo têm papel importante na diminuição do valor econômico da força de
trabalho nos centros urbanos, atuando com reserva de mão-de-obra. Autores
como Milton Santos (1980) e Ruben Oliven (1982) apontam que essas
populações desempenhariam um papel ainda mais importante que a reserva de
mão-de-obra para a estrutura sócio-econômica que engloba a cidade, ao
estabelecer todo um sistema informal de relações sociais no meio urbano, onde
um mercado informal atua como espaço de circulação de dinheiro e como
socializador dessas populações através dos bens de consumo.
A busca de um lugar para morar se insere nas estratégias de busca de
melhores condições de vida na cidade. "Morar no mato" (CALDEIRA, 1984) e
combinar o trabalho no mercado urbano com meios de subsistência não são a
continuidade nem a ruptura com a dinâmica social das populações chegadas
da área rural, como mostra Eunice Durham (1984). A autora faz um estudo
crítico da migração de populações rurais para o meio urbano, demonstrando
como a industrialização do país gerou uma crise nos modos de vida e nos
sistemas tradicionais de relações de trabalho no campo, expulsando os
trabalhadores da região rural para a cidade. A questão não é uma mudança
geográfica e demográfica, mas uma mudança no universo social, com o desafio
de integração dos trabalhadores rurais em sistemas urbano-industrais. Na
passagem de um sistema sócio-econômico para outro, as estratégias de
mobilidade espacial dessas populações são empregadas na mudança de
grupos e segmentos familiares, e não simplesmente indivíduos, para a cidade.
135
As estratégias de mudança espacial compõem o que Durham (1984)
chama de "tradição de emigração", para resolver uma série de problemas com
que se deparam os trabalhadores rurais: esgotamento do solo, diferenças
climáticas mas principalmente tensões resultantes das relações de parentesco
e compadrio que estruturam as relações sociais entre as unidades produtivas
que são as famílias conjugais. São os mesmo laços sociais que orientam a
mudança de fazenda a fazenda, que fornecem amparo para os migrantes na
cidade. Tais relações familiares e inter-familiares não não desapareceram
na integração ao sistema urbano-industrial (como previam os teóricos do
continuum folk-urbano) como o fundamentais para se compreender a
mobilidade desses grupos nos territórios da cidade, formando complexas redes
de parentesco e vizinhança nas favelas e periferias urbanas.
Nesse sentido, como coloca Durham (1984), se as experiências no
mercado de trabalho, no deslocamento pelos territórios da cidade, no uso de
bens e espaços coletivos é uma experiência individual, no âmbito do consumo,
da moradia, da redistribuição dos bens obtidos com as atividades econômicas,
e com boa parte da vida privada e de formas de sociabilidade lúdica ou
religiosa, a experiência é coletiva, no sentido de que é vivida em torno da
família ou da vizinhança, nos territórios das periferias.
Como observam Teresa Caldeira (1984) e José Guilherme Magnani
(1984), quanto às populações que habitam as periferias de São Paulo, a
experiência de "viver de uma mesma maneira" (CALDEIRA, 1984) expressa
uma condição social na cidade que está para além de uma simples localização
no espaço geográfico, pois uma referência em comum e uma série de
representações são elaboradas a partir das situações cotidianas enfrentadas
não com a "falta" de serviços de saneamento, iluminação, transporte, como
com as táticas empregadas no cotidiano da periferia, em que a relações de
parentesco, vizinhança e amizade estabelecem laços de pertencimento entre
os espaços da periferia e os grupos que o habitam.
Trata-se da idéia de "pedaço" que Magnani (1984) propôs para
interpretar o significado do bairro, da vila de periferia enquanto um espaço que
é mais que um local de moradia, que é um "lugar de reconhecimento"
(CALDEIRA, 1984) entre quem pertence e quem não pertence ao "pedaço", e
no qual atuam os mecanismos de controle como a "fofoca". Isso não significa
136
que não haja tensões e diferenças sociais e culturais importantes no interior de
tais grupos, pois estes o se constituem em entidades sociais a parte da
sociedade em que atuam esses mesmos indivíduos. O que se observa, a partir
desses estudos, é que o espaço importa na constituição de relações sociais e
na elaboração de diferenças culturais desses grupos no meio urbano. O "lugar",
enquanto "espaço praticado" (De Certeau, 1994) é então uma dimensão
importante que o "meio ambiente" assume para esses grupos, na medida em
que o "mato", o "morro", a "ilha", o "mangue" podem ser percebidos como
"pedaços" em que essas relações são tecidas, como suporte dessas relações.
Para não cairmos em uma nova abordagem ecológica da questão na
relação sociedade e meio ambiente, é preciso investigar em que medida tais
espaços não-urbanizados fisicamente não possuiriam as características
necessárias para se inserirem na chamada "tradição de migração" a que se
refere Eunice Durham (1984), e não seriam representados pelas classes mais
pobres como um lugar onde seria possível a reestruturação, ainda que parcial,
das relações familiares (no interior do grupo de parentesco e entre famílias)
que atuam como instituição de amparo aos indivíduos ainda não inseridos no
mercado de trabalho, através de um arranjo espacial de grupos (e não
indivíduos) migrantes o apenas da zona rural para a cidade, mas de outras
áreas de periferia da cidade, egressos de situações de remoção, despejo,
conflitos, etc.
É importante investigar, portanto, em que medida o "mato", o "mangue",
o "morro", com suas áreas ainda não ocupadas, com seus terrenos com
possibilidade de serem loteados, aterrados, não são representados por essas
populações, em suas trajetórias, como lugares em que um modo de vida
"tradicional" seria possível, por um lado, pela possibilidade da realização de
atividades de subsistência (pesca, agricultura, criação de animais, separação
de lixo), mas principalmente, pela reprodução da família conjugal como unidade
produtiva e de relações tradicionais de parentesco, compadrio e vizinhança
como suporte para a busca de mobilidade social no meio urbano com a
inserção dos membros da família na carreira profissional e escolar. Não se
trata, portanto da oposição urbano x rural, mas da elaboração de estilos de vida
urbanos no Brasil em outros arranjos e invenções de códigos éticos locais,
voltados para os problemas e as soluções locais aos dilemas contemporâneos.
137
Nesse sentido, não se trata de investigar um modo de vida exclusivo de
alguma comunidade ou de algum "povo das ilhas", mas sim de significados que
vão sendo atualizados nas ações da vida coletiva de grupos heterogêneos,
alguns descendentes de antigas redes de parentesco e vizinhança locais,
outros advindos de processos de desterritorialização e reterritorialização
(VELHO, 1981) na cidade a partir de lugares como as ilhas. Sob a perspectiva
das mudanças nas estruturas simbólicas que orientam as práticas cotidianas
desses grupos, transformadas a partir de processos históricos de urbanização
ou proteção ambiental da paisagem do Arquipélago, é que as lógicas de
organização espacial de diferentes grupos urbanos nas ilhas do Delta do Jacuí
serão pontuadas a seguir.
É a categoria, portanto, de espaço público atribuída aos ambientes
naturais, que permite uma abordagem ética dos seus conflitos, na medida em
que o seu uso passa a ser uma questão de cidadania
111
. As atuais áreas de
preservação nos centros urbanos brasileiros são o palco dessa ambigüidade:
ocupadas por favelas ou destinadas a grandes empreendimentos, são
territórios onde expressa-se, de qualquer forma, um arranjo ainda mais
complexo do que a relação casa e rua, na ordem do que Roberto DaMatta
(1985) chama de espaços transitórios e problemáticos, relacionados ao
paradoxo e ao conflito, à contradição como as regiões pobres ou de
meretrício. Regiões “periféricas”, que não o concebidas como espaços
permanentes ou estruturalmente complementares às áreas mais nobres da
mesma cidade, são vistas como locais de transição: “’zonas’, ‘brejos’,
‘mangues’ e ‘alagados’". Locais liminares, “onde a presença da lama marca um
espaço físico confuso e ambíguo.” (DAMATTA, 1985, p.50.).
A particularidade desse trabalho reside em abordar essa questão a partir
dos conflitos em torno de um lugar tido como natural, que não se encontra nem
no interior da área urbanizada de uma grande cidade (como os parques
111
Roberto Da Matta, em A Casa & a Rua (DAMATTA, 1985) discute a relação complementar
existente entre o espaço da casa e o da rua enquanto suportes de visões de mundo e condutas
éticas que são fundantes para a dinâmica da sociedade brasileira. Enquanto no mundo da casa
expressam-se os valores das redes de relações, das redes de parentesco e a dimensão da
pessoa, na rua, expressam-se os valores universais e impessoais, o poder do Estado e a
condição de indivíduo, cidadão. Em sua relação complexa, a casa pode englobar a rua em
diversas situações sociais, e vice-versa, fazendo com se tenha uma ética dúplice, ou tríplice
que visa conciliar tais valores opostos, ou tais “cidadanias” diversas, entendidas enquanto
papéis sociais.
138
urbanos), nem distante da vida urbana (como as praias e florestas), mas
justamente na periferia de uma grande cidade, ou no limite entre esta e as
demais cidades que compõe sua Região Metropolitana. O caso do Delta do
Jacuí pode fornecer um quadro bem diversificado, portanto, de formas
diferenciadas de conhecimento de sua paisagem, mas igualmente, de inter-
relação com um espaço que envolve pontos da área natural do Delta, e do
espaço urbanizado da região, vivido no cotidiano dos personagens
representados no trabalho.
Entender esses grupos enquanto grupos urbanos significa seguir a linha
de antropólogos como Oliven (1995), Gilberto Velho (1981) e Cornelia Eckert e
Ana Luiza Carvalho da Rocha (Eckert e Rocha, 2000). Através do conceito de
“itinerários urbanos” (ECKERT E ROCHA, 2000) podemos atingir a
compreensão dos deslocamentos espaciais dos indivíduos e/ou grupos
moradores das ilhas para a cidade de Porto Alegre, e vice-versa, como parte
do cruzamento de “províncias de significados” (VELHO, 1981) no contexto
urbano local, somados aos percursos temporais que acompanham a
acomodação/assimilação destes deslocamentos na memória coletiva de tais
comunidades. Evidentemente, nos termos de uma Antropologia das
Sociedades Complexas Moderno-Contemporâneas, professada por Gilberto
Velho (1981), compreende-se aqui que é através de tais deslocamentos que os
moradores das ilhas realizam uma rie de interações e operações cotidianas
com a cidade de Porto Alegre.
Alem disto, o conhecimento da dinâmica das experiências fragmentadas
(GOFFMAN, 1999) das populações das ilhas no contexto portoalegrense nos
permite compreender parte da “questão ambiental” no Parque do Delta do
Jacui como tributária dos jogos da memória que acompanham o processo de
transformação industrial e tecnológica destes territórios, fenômeno que é
particularmente singular a própria dinâmica de uma sociedade complexa
industrial moderno-contemporânea, como demonstra Oliven (1982).
Por outro lado, tomar as ilhas do Arquipélago enquanto objeto temporal
(ECKERT E ROCHA, 2000), aqui no caso deste estudo, implica em considerar-
se que tais territórios conformam uma memória compartilhada que é parte
integrante de uma diversidade cultural característica da fundação do próprio
centro urbano de Porto Alegre. É essa sobreposição de tempos vividos e de
139
tempos pensados (BACHELARD, 1988), por seus habitantes em seu
cotidiano, que nos permitem descobrir algumas “tradições” do viver coletivo na
cidade a partir de diferentes formas de abordarem as relações Homem e
Natureza.
É pelo caráter dinâmico e coletivo das “artes de fazer” que Michel de
Certeau (1998) descreve entre as “práticas cotidianas” que este trabalho
remete aos esquemas de pensamento e ação das diversas comunidades das
ilhas do Arquipélago face aos recursos naturais locais e aos seus
deslocamentos diários e constantes no contexto urbano portoalegrense que
envolvem suas atividades econômicas. Trata-se aqui de um inventário de seus
modos de operar e de usar o espaço da cidade, seus significados, as ordens
instituídas, pelas quais é possível entender como os moradores novos
“bricolam” uma ética ambiental no espaço das ruas, margens, pontes e ilhas da
cidade.
No contexto das chamadas “cidades globais” (ARANTES, 2000), essas
formas de viver a diferença cruzando fronteiras simbólicas sobrepostas podem
ser pensadas nos diferentes códigos de posturas e dispositivos que restringem
a ação do indivíduo, em seus deslocamentos e ações cotidianas, ao limite ético
da convivência com o Outro, seguindo, rompendo ou re-inventando acordos
sociais do nível mais localizado ao mais globalizado, dos códigos de vizinhança
aos acordos comunitários, de interdições religiosas a códigos de postura
profissional, das leis municipais que regulam a ocupação e a circulação nas
ruas da cidade às leis federais que restringem os usos das áreas de
preservação. Da experiência local a experiência cosmopolita (HANNERZ,
1994), diferentes níveis e domínios de realidade são negociados não apenas
em diferentes contextos, mas em diferentes universos simbolicamente
estruturados de acordo com os sistemas de crença e valores compartilhados
(VELHO, 1994).
O conflito é revelador de que na própria formação da cidade de Porto
Alegre outra concepção de Natureza está presente, pautada pela visão do
urbano como oposta a Natureza, na medida em que a cidade destina para fora
de si, ou seja, para o mundo ainda não urbanizado fisicamente como as ilhas,
os seus resíduos na forma de lixões, e principalmente de aglomerações de
empobrecidos que não tiveram lugar dentro dos muros da cidade.
140
Como será desenvolvido no presente trabalho, o poder público se
pressionado contemporaneamente pela política internacional de meio
ambiente, a se fazer presente, em nome dessa interdependência ecológica
entre os ambientes naturais e sociais, em espaços que se constituíram pela
irregularidade na cidade, pela ausência do Estado. Como veremos, os
indivíduos que constituíram sua experiência urbana a partir de ambientes como
as ilhas, os banhados, os morros, não estão dispostos a abrir mão desses
territórios até então desvalorizados pela civilização urbano-industrial
contemporânea, em nome de uma cidadania planetária que geralmente não os
inclui como interlocutores éticos.
Retomando, portanto, a questão da suposta “ausência de consciência”
de que as classes populares são acusadas com relação à forma como
degradariam esses espaços naturais na cidade, é possível constatar que
outros conceitos de ambiente implicados em sua lógica. É o que se apresenta
nos relatos de alguns informantes deste trabalho sobre os muitos processos de
remoção, de despejo e de refundação de suas moradas nos territórios do
Arquipélago. Uma lógica de segregação urbana (CALDEIRA, 1984) que teria
justamente lhes colocado como opção tais territórios desvalorizados pela
ausência de obras de infra-estrutura. São lugares refundados com as próprias
mãos, abrindo picadas no mato, aterrando banhados, cercando pátios.
Ao fundarem localidades marcadas pela pouca presença de instituições
do Estado, lançam mão de saberes relacionados ao meio rural, como a criação
de animais, a prática da pesca ou da caça e do extrativismo vegetal, que são
combinados às suas aventuras de entrada e saída do espaço urbano “regular”
(como a coleta de lixo, ou a busca de doações e serviços temporários). No
entanto, esses arranjos da vida coletiva não são outra coisa senão
determinadas tradições do viver urbano, pois as tentativas de fundação desses
microcosmos em meio à cidade acabam resultando em novas aglomerações de
populações e novos bairros da cidade, em arranjos da vida social típicos da
cidade, no surgimento de becos, ruas, vielas que seriam a retomada dos
gestos fundadores da vida urbana nos trópicos, segundo coloca a Antropóloga
Ana Luiza Carvalho da Rocha (1994).
Seguindo essa perspectiva colocada por Rocha (1994) sobre a Cidade
nos trópicos, de pensar a cidade como objeto temporal e obra da Cultura
141
Humana, seria possível realizar uma interpretação compreensiva dos
“itinerários urbanos”, dos deslocamentos no tempo desses grupos pelas
periferias da cidade que iriam igualmente configurar a paisagem urbana. Esses
movimentos no tempo e no espaço podem ser pensados, portanto, por uma
espécie de nomadismo marcado por “estratégias de emigração”, no sentido
dado por Eunice Durhan (1984), para resolver conflitos localizados e para
buscar novas oportunidades de realização de um sonhado enraizamento em
uma terra desejada. Esse nomadismo contaria uma outra memória da
transformação do ambiente urbano, que seria o contraponto da tendência atual
de planejamento ambiental da cidade. É o que veremos a seguir.
142
Capítulo 5 - A capital bela, mas suja
Segundo os pressupostos de que a ambiência urbana pode ser
perpetuada na medida em que é reconquistada e reocupada cotidianamente, e
que sua realidade física deve ser compreendida para além de um continuum de
crescimento e desenvolvimento, enquanto consolidação temporal das ações
éticas dos grupos urbanos, como afirma Ana Luiza Carvalho da Rocha (1994),
pretendo, nesse capítulo, investigar esse triplo acordo entre Natureza, Homem
e Sociedade que engendra a trama espaço-temporal das cidades urbano-
industriais como Porto Alegre. Buscando na memória coletiva da cidade as
motivações simbólicas e a ritmicidade que configura a paisagem urbana, o
caso presente do Delta do Jacuí surge como desdobramento do trajeto de
instauração da civilização urbana nos Trópicos.
Tendo pesquisado no acervo de imagens da cidade, presente ao “Banco
de Imagens e Efeitos Visuais”
112
, pude cruzar as narrativas dos informantes
com imagens que compõem um imaginário da relação da cidade com as águas
do Lago Guaíba e seus afluentes, acessando, assim, uma “duração” dessa
forma de habitar um centro urbano em intimidade com as águas que o cercam
e o atravessam.
Realizando uma espécie de arqueologia das imagens desses antigos
pontos de ancoragem de pequenas embarcações na cidade, nas avenidas e
espaços aterrados de hoje, veríamos como a presença dessas populações
“ribeirinhas”, tanto vindas da margem das ilhas, quanto habitando ou
transitando pelas margens da cidade, teve sua sociabilidade de “marinheiros”
no porto associada à prostituição e às “confusões” nos espaços de intensas
trocas comerciais entre os “barcadistas”. Espaços que não deixavam de ser
associados à potência nefasta das águas, causadora da “queda” humana e
igualmente fonte de “miasmas” e doenças nos “charcos”, nos “lodaçais” e
banhados da cidade próximos a arroios e na margem do Guaíba, nas
habitações populares, nas “tabernas”, “botequins”, “vendas” e cortiços vistos
112
http://www.estacaoportoalegre.ufrgs.br, último acesso em 20/01/2007.
143
como “nefastos” à saúde da cidade que enfrentava problemas graves de
abastecimento de água e saneamento de esgotos.
Inicialmente, o capítulo está estruturado em torno de algumas imagens
literárias, ainda que a reflexão possa ser expandida para algumas imagens
fotográficas, gravuras e filmes antigos que constam no DVD que acompanha o
capítulo 2 da tese. Se a paisagem urbana, contemporaneamente, passa a
incluir áreas consideradas naturais ou rurais de Porto Alegre enquanto espaço
urbano a ser planejado ambientalmente, veremos o quanto tais espaços, como
as ilhas, são associados ao longo da urbanização da cidade a um idealizado
passado rural e colonial do Rio Grande do Sul em oposição ao tempo
progressista do processo de urbanização, de canalização de arroios, de
abertura de avenidas, de higienização e modernização do espaço público. Aos
desvelar tais ritmos diferenciados de transformação da paisagem urbana, a
partir de determinados “nós” de amarração da memória da cidade, veremos as
heranças desses “quadros sociais da memória” (Halbwachs, 1990) nos
modernos projetos de remodelação dos territórios urbanos.
5.1. A capital suja
O Jornal Zero Hora, no dia 02 de julho de 2001
113
, publicava uma série
de reportagens intituladas “A redescoberta do Rio Grande”, em que se
encontrava a seguinte reportagem, “Uma Capital Bela, mas suja”, com textos
do jornalista Carlos Etchichury e fotos de Mário Brasil:
“Nos 74 dias em que se hospedou na capital da Província de São Pedro
do Rio Grande do Sul, o botânico francês Auguste Saint-Hilaire conheceu os
dois lados de Porto Alegre. O verso: belas casas, moradores de porte altaneiro,
a Rua da Praia buliçosa e uma geografia que lembrava o ameno sul da Europa.
O reverso: ruas imundas e lixo sendo despejado no lago do Guaíba, onde a
população coletava água imprópria para beber. [..]
Do ponto mais elevado, a Rua da Igreja (atual Duque de Caxias),
descortinou ‘um dos mais belos panoramas’. Avistou o Guaíba, concluindo que
não era um rio (a dúvida até hoje intriga porto-alegrenses), mas uma lagoa.
Contou cerca de 25 sumacas, brigues e outras embarcações atracadas no
porto. Pela posição geográfica e pelo que viu, projetou:
- ... a cidade de Porto Alegre deve, necessariamente, tornar-se em
breve, rica e florescente.
113
Cf. Jornal Zero Hora, 02/07/2001, p.56.
144
[...] depois do Rio de Janeiro, não tinha visto uma cidade tão imunda.
[...] As encruzilhadas, os terrenos baldios e, principalmente, as margens da
lagoa (o Guaíba) são entulhadas de sujeira
[...] os habitantes bebem água da lagoa e, continuamente, vêem-se
negros encher seus cântaros no mesmo lugar em que os outros acabam de
lavar as mais emporcalhadas vasilhas.
[...] Passados 180 anos da despedida de Saint-Hilaire, Porto Alegre
coleta, diariamente, em torno de 1,5 mil toneladas de lixo. Mas permanece o
hábito de atirar resíduos e despejos nas fontes de água."
Os jornalistas relatam que, em 1820, coincidindo com a visita do
naturalista francês, as autoridades locais determinavam que os porto-
alegrenses poderiam retirar água do Guaíba a 20 metros das margens.
Construíram trapiches, alertando que a água das bordas era imprópria. Toda
essa retomada da paisagem da cidade de 1820, com “10 a 12 mil almas” é
utilizada para descrever a cidade em 2001, com 1,3 milhões de habitantes:
“O peão aposentado Honório Zilles, 65 anos, da Ilha Grande dos
Marinheiros, recorre ao lago quando o carro-pipa do Departamento Municipal
de Água e Esgotos (DMAE) não comparece ao menos uma vez por semana.
-Pego o caíque, vou até o meio do rio, coloco um tijolo dentro do balde
e puxo água da parte mais funda e limpa – diz Honório.
Mas o aposentado reclama que o Guaíba está ficando intragável. Em 6 de julho,
como o carro-pipa não pode ir até o fim da Ilha Grande dos Marinheiros devido
aos buracos na estrada, Honório precisou se socorrer do lago. Na pressa, não
ferveu a água e sofreu cólicas.
- Acordei muito mal de manhã. De uns tempos para cá, a água
começou a ficar ruim. Se tiver uma nata de óleo por cima do rio, não
mesmo. [..]
O Arroio do campo da Tuca (zona leste) é um dos mais degradados. Em
janeiro deste ano, uma faxina da prefeitura recolheu montanhas de garrafas
plásticas, roupas, pneus, guarda-chuvas, esqueletos de bicicleta e até móveis
como fogões, sofás e cadeiras. No início de junho, os cinco quilômetros do
córrego estavam novamente entulhados por montanhas de garrafas plásticas...
até mesmo móveis, como fogões, sofás e cadeiras.
Moradores às margens do Moinho se exasperam. A dona de casa
Zelina Abreu, 63 anos, afixou placa proibindo atirar lixo no arroio. Certo dia, ao
ver um vizinho despejando resíduos de carrinho de mão, avisou sobre a
poluição. A reação foi inesperada:
- Ele arrancou a placa do poste, atirou ela no riacho e me disse: ‘Pronto,
agora não tem mais placa’.”
114
A partir das pesquisas etnográficas que venho realizando junto às ilhas
de Porto Alegre, pude perceber, entrevistando seus moradores, navegando por
114
Zero Hora, 02/07/2001, p.56.
145
seus canais, transitando por ruas à margem de rios e próximas aos banhados
que são constantes nessa paisagem, que tais ilhas se constituem, a partir da
memória e do cotidiano de muitos de seus habitantes, em um território da
cidade de Porto Alegre, em constante comunicação com o continente.
Trabalhando com a noção de paisagem, desenvolvi uma reflexão sobre a
paisagem da cidade de Porto Alegre que se desvelava a partir do ponto de
vista particular dos moradores desses espaços. Um centro urbano habitado a
partir de espaços considerados da “não cidade”, das suas margens, um
cotidiano sujeito a enchentes, com o barco como meio de transporte e os rios e
arroios como “ruas” e “avenidas”, que surge nas práticas cotidianas desses
moradores, nas suas narrativas.
Não apenas um cotidiano diferenciado dos demais moradores da capital
do Estado do Rio Grande do Sul aparece nesses relatos, mas, em especial,
uma outra margem da cidade é representada nas narrativas. Outras formas de
sociabilidade são aludidas, outras formas de ocupar e praticar espaços que
hoje estão aterrados, planejados, asfaltados e, como veremos, separados das
águas. As narrativas dos moradores das ilhas constroem outra paisagem da
cidade (ou a complexificam?), cidade portuária, com espaços de lazer e
comércio à beira do lago que a circunda. Paisagem que é narrada em
contraponto ao que esses mesmos narradores constatam do presente da
cidade: uma cidade de costas para o Lago Guaíba, uma cidade que não
conhece o Rio Guaíba”.
Portoalegrense, morador do “continente”, digamos assim, surpreendi-me
ao descobrir que o lago poluído e “morto” do presente surge como um
movimentado rio nas lembranças desses ilhéus. Na tentativa de ir além de uma
simples oposição entre o presente de uma cidade com um lago poluído e o
passado de ascensão e decadência de uma indústria fluvial, investiguei uma
série de narrativas escritas sobre os espaços de contato da cidade com as
águas que a banham, desvendando significados e interpretações diversas
sobre a conformação de uma experiência urbana tensionada pelas práticas
sociais de apropriação dos lugares da cidade próximos a arroios, margens de
rios, banhados e “matarias” que são narradas nos escritos de jornalistas,
romancistas, historiadores, viajantes e outros praticantes da escrita da cidade.
146
Não se trata de um levantamento de dados históricos sobre tais
espaços, mas de uma “arqueologia da paisagem”, de acordo com o conceito de
“paisagem” proposto por Simmel (1996) e Anne Cauquelin (2000), tomando a
paisagem como uma construção mental, pelo artifício do olhar que constrói
uma representação a partir de um princípio organizador de determinados
elementos. Tal princípio é que permite a alusão aos sentimentos conferidos às
paisagens: harmonia, beleza, tranqüilidade, ou então, caos, catástrofe,
desordem. Um conceito de paisagem que se presta não somente à idéia de
“paisagem natural”, ordenando os elementos do ecossistema, mas igualmente,
de “paisagem urbana”, impondo uma ordem aos elementos da estética urbana.
A autora constata que a atual “confusão” entre as idéias de “paisagem” e
“natureza”, de “paisagem” e “meio ambiente”, se deve ao próprio princípio
ilusionista que a representação pictural da paisagem lhe confere, através da
técnica da perspectiva, que representa uma realidade para além da tela plana.
Esse artifício da paisagem, essa operação que o olhar realiza surge
mediado por diferentes tecnologias, como a pintura, mas também a fotografia,
o vídeo, o mapa, o plano urbanístico, a planta arquitetônica e, é claro, a escrita.
Neste capítulo veremos algumas formas diferenciadas de representar a
paisagem de Porto Alegre, em que o “princípio organizador”, se
contemporaneamente tende para a oposição cidade X natureza, ou melhor,
cidade ou natureza, veremos como o Guaíba, os arroios e “matarias” foram
representados como “berço da civilização porto-alegrense”, como obstáculos
para esse mesmo processo civilizatório, como espaços de afeto ou de medo
como uma espécie de passado primitivo dos espaços “civilizados”, urbanizados
de Porto Alegre.
Entre o material em texto, encontram-se não apenas descrições sobre
uma paisagem antiga da cidade, mas a forma como seus autores formulam
questões e expressam esteticamente interpretações sobre a cidade e seu
ambiente físico.
O discurso em favor do meio ambiente, retoma, muitas vezes, o discurso
a favor da “civilização” dos costumes dos “atrasados” habitantes da cidade que
poluem seus cursos de água e poluem seu “ambiente”. Resguardar das
massas urbanas os espaços naturais surge como ato de “frear” o avanço da
área urbana sobre o solo natural. A “questão ambiental” aparece como novo
147
desafio para os planejadores e gestores dos espaços públicos, no sentido de
disciplinar o uso do solo e das águas pelos grupos sociais que se encontram
relacionados a tais áreas. Tratados como lugares que ainda estariam “a salvo”
da cidade e, portanto, precisariam ter sua ocupação (ou desocupação)
planejada, muitas vezes são tratados como espaços em oposição à cidade, ou
espaços não urbanos.
No imaginário urbano, fortalecido nos séculos XIX e XX para as cidades
brasileiras, tais espaços “naturais” são a paisagem que é associada à
civilização “arcaica”, “rústicaou mesmo “xucra”, como diriam os cronistas, que
se pretendia modernizar com as transformações ocorridas em tais centros
urbanos. Diferentemente das ruas na cidade, em que a gramática do espaço
urbano constrange as relações sociais e as negociações éticas que são
reinventadas a partir de tais constrangimentos, as áreas naturais surgem como
espaços físicos confusos e ambíguos, em que limites e fronteiras são mais
tênues.
A título de exemplo, retomo rapidamente aqui, como ponto de partida, o
que encontrei em minha dissertação de mestrado (DEVOS, 2003), um
ambicioso projeto para o Delta do Jacuí que em 1958 (FAYET et alli, 1958)
previa um destino completamente diferente para a atual área de proteção
ambiental. Em um momento em que se previa a duplicação da população da
cidade em menos de 20 anos, e os limites municipais da cidade eram revistos,
o projeto pretendia lidar com a “total falta de organização" da cidade,
"principalmente no que se refere às suas zonas residenciais”, que crescem
“como manchas de óleo” (FAYET et alli, 1958:14). Seu ponto de partida era
apenas regular o “processo natural” (FAYET et alli, 1958:51) de
desenvolvimento da cidade, ao tornar o Arquipélago uma área de
estabelecimento de indústrias, com portos e pequenas unidades de residências.
As ilhas eram parte de um plano maior que incluía projetos de construção de
ferrovias, rodovias, regularização do rio Jacuí para torná-lo navegável com a
construção de barragens e ainda a “abertura de um canal ligando Porto Alegre
diretamente ao mar” (FAYET et alli, 1958:21). Os projetos sucediam-se à
construção das pontes que fazem a travessia do Lago Guaíba, inserindo as
148
ilhas do Arquipélago no corpo da metrópole a crescer, no meio do caminho de
ligação entre o interior do Rio Grande do Sul e a cidade.
Descoberto em meio a esse ideário progressista que tomava o
crescimento da cidade como “evolução natural”, o Arquipélago contava com
grupos populares de pescadores, barqueiros, pequenos proprietários rurais,
criadores de porcos e gado leiteiro, empregados de chácaras e sítios,
“embarcados” e marceneiros navais de estaleiros, compondo a mão-de-obra
das outrora intensas atividades fluviais na Bacia Hidrográfica do Guaíba
(PORTO ALEGRE, 1995). Apesar do tom progressista, o que assustava aos
planejadores não deixava de ser uma leitura do que acontecia na região
norte da cidade, o crescimento acelerado das "vilas" e favelas nas periferias da
cidade, que seu projeto visava ordenar.
Em meio às tentativas de ordenamento, por parte do poder público, da
urbanização dessas áreas e da preservação de espaços naturais, encontram-
se esses outros usos e apropriações que aparecem em estudos urbanísticos
como “desordenados”, “irregulares”, ou então “subalternos” em relação a
agentes poderosos do mercado imobiliário. o abordados do ponto de vista
da ausência de uma lógica e uma dinâmica que, no entanto aparece no
trabalho etnográfico.
As "áreas naturais" (ou não dotadas de infra-estrutura urbana) nas
cidades brasileiras, de grande importância para a manutenção das
características ambientais dos ecossistemas e bacias hidrográficas, possuem
igualmente um papel fundamental na dinâmica desses centros urbanos, num
complexo processo que envolve os "itinerários urbanos" e as trajetórias de
desenraizamento/enraizamento de grupos populares na cidade, que estaria
relacionada, e não contraposta ao processo de valorização e remodelação do
solo urbano, em que, contemporaneamente, "áreas naturais protegidas" atuam
como o local da melhoria da "qualidade de vida" urbana ecologicamente
correta. Servidas por estradas, pontes, canais, constituiríam-se justamente na
periferia, nas bordas da cidade, espaço liminar a partir dos quais são narradas
trajetórias familiares em que se destacam os gestos de deslocamento, de
entrada, de acomodação, de enraizamento no mundo urbano.
149
5.2. Os Memorialistas:
Aquiles Porto Alegre, Ary Veiga Sanhudo, Álvares Pereira Coruja, Athos
Damasceno Ferreira, Paulo Gouvêia, Augusto Meyer, Nilo Ruschel são alguns
dos chamados “cronistas” de Porto Alegre, que conformam uma “tradição” de
escrita sobre a cidade. Segundo o historiador Charles Monteiro (2001), alguns
destes, sobretudo A. Coruja, que escrevia em 1881 e Aquiles Porto Alegre, que
escreveu de 1916 a 1922, estão entre os primeiros a realizarem um esforço de
testemunhar e compreender as transformações dos espaços e das formas de
sociabilidade públicas por meio da escrita (MONTEIRO, 2001), produzindo
obras que se encontram a meio caminho entre a história e a literatura, em um
momento em que a produção historiográfica sobre a cidade ensaiava os
primeiros passos. Suas descrições dos espaços públicos da “velha cidade”
estão presentes em grande parte da obra historiográfica sobre Porto Alegre.
Conformam uma “tradição” de escrita, segundo Charles Monteiro,
porque além de citarem-se, uns aos outros, ao descreverem paisagens da
cidade antiga, realizam um mesmo “enquadramento” (HALBWACHS, 1990) da
memória social da cidade, estabelecendo uma distância entre a velha cidade
(do século XIX e do início do século XX), provinciana, pacata, e uma cidade
nova, que se modernizava através de grandes transformações e intervenções
nos espaços públicos e nas formas de sociabilidade.
Para o tema deste trabalho, escolhi a obra de Aquiles Porto Alegre
“História Popular de Porto Alegre” e de Ary Veiga Sanhudo “Crônicas da Minha
Cidade” (v.1 e 2), pela forma em que ambas as obras se posicionam quanto às
transformações ocorridas nos espaços da cidade, respectivamente em 1940 e
1960/70, enquanto gestoras da memória de tais espaços
115
. A paisagem
narrada por tais cronistas é tensionada pelas transformações no modo de vida
urbano, que passa a ser constitutivo do imaginário da modernidade.
115
“Crônica e História, de maneiras diferentes, são formas de escrita que elaboram a
passagem do tempo e a memória de um grupo ou sociedade por meio da seleção proposta
pelo filtro do tempo presente. Cronistas e historiadores desempenham o papel social de
intérpretes da memória coletiva. Eles realizam uma leitura da memória coletiva (com cortes,
seleções, acréscimos e silenciamentos) produzindo uma memória social. Memória escrita a
partir da ótica e dos interesses de um grupo, mas que pretende se colocar como de toda e para
toda a sociedade.” (MONTEIRO, 2001, p. 125)
150
A historiadora Sandra Pesavento, em “O Espetáculo da Rua”, demonstra
como tais transformações ocorridas na paisagem urbana de Porto Alegre foram
parte de processos desencadeados mundialmente, de internacionalização do
capitalismo industrial, em conjunto com transformações políticas, econômicas e
sociais (PESAVENTO, 1992). Trata-se de uma nova ordem urbano-industrial,
que, a partir do século XIX e, sobretudo no começo do século XX nas cidades
brasileiras, reinverteu as relações campo-cidade e, estabelecendo a cidade
como centro político e econômico, provocou grandes transformações culturais
na forma de experienciar os espaços públicos e privados. A transformação das
sujas e “caóticas” ruas e becos da Porto Alegre antiga em largas avenidas ou
ruas embelezadas, equipadas com sistema de coleta de esgotos,
abastecimento de água potável, energia elétrica e sistema de transportes
demandava uma transformação das “posturas” dos habitantes da cidade.
Conforme narra o historiador Charles Monteiro (2001), a obra “História
Popular de Porto Alegre” é uma coletânea dos trabalhos de Aquiles Porto
Alegre, escritos a1920, selecionados por Deusino Varela, em 1940, durante
as comemorações do Bicentenário de Porto Alegre pela administração Loureiro
da Silva, uma legítima “operação historiográfica” que objetivava situar as
administrações de José Loureiro da Silva (1937-1943) e Otávio Rocha (1924-
1928) enquanto “refundadoras” da cidade moderna, industrial, projetada para o
futuro, em oposição à velha cidade colonial do tempo dos primeiros
colonizadores (MONTEIRO, 2001, p. 113).
A publicação comemorativa das crônicas de Aquiles aumentavam ainda
mais a distância que o narrador estabelecia entre a cidade que este vivia em
meados de 1920, e as paisagens do século XIX que narrava. Uma cidade entre
o rural e o urbano, engrandecia o progresso da nova Porto Alegre que
urbanizava seus territórios e avançava sobre as várzeas, sobre os riachos,
“matarias” e outros pedaços “agrestes” de natureza do passado:
“A povoação começou então para o extremo da cidade, nas
imediações do Gasômetro e da cadeia.
Daí foi se estendendo para o interior, abrangendo a rua da Bahia, a da
Passagem, a curva do Pereira, a rua da Ponte, a da Igreja, a da Varzinha, a do
Arvoredo e mais uma ou outra na vizinhança.
Neste sitio havia, aqui e ali, no alto do cerro ou na baixada do morro,
uma ou outra choupana atamancada e de mau aspecto.
151
-Com o correr do tempo, a edificação predial foi melhorando a muito
custo e não a olhos vistos, como pode parecer a muita gente.
O espaço destinado a povoação era, pode-se dizer, uma faixa de mato
cerrado, que ia por além, onde viviam felizes, os caboclos com os seus
enfeites de penas, empunhando o arco e as flechas.
Como era um pedaço agreste da natureza, depois que a noite baixava
sobre a terra, ouvia-se uma ou outra vez o rugido das feras, que deixavam o
antro para matar a fome que as devorava.
A proporção, porém, que o povoado crescia, com as suas modestas
construções de pau a pique, barrados, como ninhos de João de barro, as feras
buscavam fugir da convivência dos homens, internando-se pelos lugares mais
distantes e desertos.
Conta a tradição que na Curva do Pereira, hoje rua General Canabarro,
a suas imediações, naquele barranco, onde existiam ainda, no alto, as ruínas
do casebre – é que ficava a Cova da Onça.
Era um terreno acidentado, cheio de bibocas, árvores esgalhadas,
pedras soltas, que davam ao sítio um pitoresco original.
Alta noite, quando os moradores da povoação ouviam os rugidos dos
animais ferozes, saltavam da cama e empunhavam o trabuco de boca de sino,
com receio que a fera forçasse a porta e penetrasse em casa. [...]
Às vezes ouvia-se um ou outro estampido de tiro no meio daquela
solidão esmagadora. Era antes um gesto de susto com o propósito de
afugentar da vizinhança alguma fera, que andasse a farejar por ali. Era o medo,
só o medo que levara a mão ao gatilho do trabuco e nada mais.
Mais de um bando de atiradores se organizou aqui para dar caça ao
“bicho”, mas se ouviam, ao longe, o seu rugido, quebrando a mudez da solidão,
disparavam lomba abaixo, como se o tigre viesse atrás de cada um deles
com a boca escancarada e os dentes a mostra.
Desistiram então desse propósito e mandaram vir de Viamão gente
afouta e afeita a esses rasgos de temeridade.” (PORTO ALEGRE, A., 1940,
p.209).
A Porto Alegre “pitoresca” que Aquiles descreve distanciava-se muito
das grandes realizações do período republicano, comemoradas em 1940, em
tempos de desenvolvimento agrícola e industrial do estado. Comemorava-se o
início da construção do Cais do Porto, o começo das obras de aterramento e
canalização do Arroio Dilúvio, a urbanização da orla do Guaíba (Zona Sul), o
início da verticalização do centro, a reorganização administrativa, a construção
de vários prédios públicos, a demolição dos antigos e escuros becos, a
abertura de grandes avenidas, a construção e ajardinamento de praças, o
desenvolvimento dos sistemas de transporte, distribuição de energia elétrica,
abastecimento de água e o incremento da construção civil em novas áreas da
cidade (MONTEIRO, 2001). A modernização da agropecuária provocou o
êxodo rural e o movimento de populações do interior para a capital, somando
aos migrantes estrangeiros chegados à capital, grande quantidade de egressos
da zona rural do Estado. A cidade era refundada, no sentido de criar condições
152
para uma nova estrutura social baseada no trabalho assalariado, na produção
industrial e no consumo dos bens manufaturados.
A paisagem aparece então narrada sob uma espécie de destino a que
tais espaços estariam sujeitos, um futuro (ou um presente apontado para o
futuro) glorioso, união das virtudes e desafios colocados pelo sítio natural com
a vontade dos seus ocupantes e desbravadores.
“Há sessenta anos
116
a nossa cidade ia, pouco mais ou menos, até a
Praça da Conceição, toda cheia de acidentes produzidos pelo enxurro das
águas da chuva e completo abandono da ação municipal.
A face da praça fronteira à Igreja era ocupada por uma ou outra
chacrinha que dava ao sítio uns ares de roça. Eram casinhas quase
escondidas entre o maciço dos velhos laranjais, inçados de ervas de
passarinho.
Quem descesse pela rua da Conceição até o Caminho Novo ia dar à
praia onde demoravam os estaleiros, com um ou outro de salseiro à beira
rio, dando a paisagem uma nota risonha.
Toda aquela enorme área compreendida entre as ruas da Conceição e
Senhor dos Passos fazia parte da chácara da Brigadeira com todo o peso das
suas fortificações estendidas pelo morro abaixo e que vinha expirar ali, em
frente à capela do Nosso Senhor dos Passos, surgiu mais tarde um formoso
trecho da encantadora cidade em que vivemos.” (PORTO ALEGRE, A., 1940,
pp. 47-48).
Estabelecendo um diálogo com Aquiles Porto Alegre, Ary Veiga
Sanhudo, em “Crônicas da Minha Cidade”, cita inúmeras vezes Aquiles ao
descrever antigos espaços da cidade, e amplia a produção de crônicas sobre
outros lugares da cidade mais afastados do centro administrativo e comercial
de Porto Alegre. Sobre a área central Sanhudo segue a linha de Aquiles,
recuperando seus escritos sobre lugares como a Praça Senador Florêncio
(Praça da Alfândega) onde Aquiles descrevia toda uma sociabilidade popular
durante as comemorações de festas religiosas como a Festa do Divino Espírito
Santo:
“Quem, hoje, ao passar pela bela e moderna Praça Senador Florêncio,
pode imaginar o que era aquele lugar em fins do século XVIII? Era vagamente
conhecido, ainda, por largo da Quitanda e fazia estreita faixa que se distendia
ao longo do Guaíba, com o pitoresco nome de Costa do Rio.
Esse largo da Quitanda, em verdade, não tinha nenhum foro oficial. Era
um terreno baixo, fatalmente alagadiço, cheio de macegas e aguapés, sujeito
ao freqüente desenfrear das águas do rio, e que, desde os primeiros dias da
116
Por volta de 1850.
153
povoação do sítio dos Dorneles, prestou-se, pela sua privilegiada posição,
como uma espécie de mercado das frutas e mercadorias, que vinham de todo o
interior do Continente, para o novo e nascente arraial.
Se me permite o leitor, eu digo mais: muito pouco diferia, naquele
tempo, dessa atual margem insondável da ilha do Chico Inglês, que fica
defronte ao Portão do Cais, do outro lado do rio." (SANHUDO, 1979. p.52)
A caracterização da rusticidade do sítio natural é recurso usado por
Sanhudo e por Aquiles para situar uma sociabilidade antiga, anterior ao
processo de modernização da cidade e da “civilização” dos costumes de seus
habitantes. Tal descrição da Praça da Quitanda é retirada de Aquiles Porto
Alegre:
“Das festas populares de antanho, era esta uma das mais queridas do
povo. Os “fogos” do Espírito Santo efetuavam-se na antiga Praça da Matriz e
eram estes que realmente davam a nota, e atraiam gente de toda a parte: dos
subúrbios, das vilas próximas, das ilhas fronteiras, dos Morretes, da Volta
Grande e de outros sítios próximos.
Rara era a família moradora da cidade, que pelos fogos (como pelo
carnaval), não hospedavam em sua casa uma caterna de parentes xucros, que
vinham “de fora”para ver os fogos...
Era um festejo popular, se bem que a praça, na noite dos fogos, fosse
concorrida pelas famílias do nosso escol social. [...]
Construíam o extenso barracão, os coretos e várias tendas para a
venda do café, a três vinténs a xícara, pães, doces, gengibirra, maduro e outros
refrescos. Além disso, a praça enchia-se à noite, de tabuleiros de frutas, de
caixas envidraçadas de doces, de balaios e cestos de pinhões e amendoim
torrado, de travessas de peixe frito, com rodelas de cebolas, de bandeijas de
balas, e de uma infinidade de outras quitandas... [...]
E tudo na Praça era animação, música, alegria.
De espaço a espaço subiam aos ares um balão, espocava um foguete
ou estrondava um morteiro. Às vezes trilavam os apitos policiais e haviam
correrias: era um rolo. Logo, porém, tudo voltava à festa. [...]
Tudo isso desapareceu, porque a civilização, o espírito moderno não
admite mais isso... Da capela de Viamão e Belém Velho e de outros sítios
rústicos, vinham carretas, puxadas por duas juntas de bois, conduzindo as
famílias sertanejas para assistir aos fogos." (PORTO ALEGRE, A. , 1940. pp.
79-80.)
Os relatos desses cronistas desenvolvem-se constantemente sobre os
limites entre o ambiente urbano e o “pitoresco” ambiente rural desaparecido
dos espaços centrais da cidade. As formas de sociabilidade, as profissões
urbanas, os “tipos populares” são descritos em ação nesses espaços, somados
a essa paisagem “pitoresca” de costumes “rústicos” e primitivos em
comparação a um ideal de postura urbana que as grandes transformações
154
urbanas projetavam para a cidade. É o caso da descrição da Rua da
Passagem, descrita por Sanhudo, mas sobretudo por Aquiles Porto Alegre:
“É bem possível que muita gente não conheça a origem do nome dessa
rua, que fica, lá, pelas imediações da cadeia, quase a beira rio.
Ela é uma das mais antigas da cidade, e teve início logo que os
moradores de Viamão vieram com os seus tarecos às costas para o Porto dos
Casais, por assim haver entendido o capitão-mor Sepúlveda, quando
governava a capitania.[...]
Ali, no começo da Rua da Praia, ao lado da padaria do velho Garcia,
onde nasce a rua da Passagem, existiam, nesse tempo, umas arvores do mato,
a beira rio, que davam aquele trecho uma nota risonha e ensombravam uma
mangueira ali existente, de moirões grossos bem fincados, para recolher o
gado que vinha do Petim, Barra do Ribeiro e Pedras Brancas a fim de ser
abatido para o consumo da cidade.
O gado que chegava atravessava o rio a vau, repontado por uns três
ou quatro peões sacudidos afeitos à vida rude do campo.
Depois do gado estar encurralado, algum tempo, para descanso da
penosa travessia, tomava o rumo do matadouro do Domingos de Almeida de
Oliveira, mais conhecido por Mingote Panella, um excelente homem.
O terreno do matadouro ia da Pharmacia da Azenha, de Olympio
Guimarães, por afora até as imediações da ponte do Menino Deus, obra
mais tosca do que esta que aí está.
E ia o gado chucro, de cabeça em pé, olhar espantadiço, sacudindo a
cola no ar, pela rua da Passagem, obrigando os moradores do sitio a trancarem
as portas com receio de alguma rez entrar pelo corredor a dentro.
As lavadeiras que estavam à praia, ali na Ponte das Pedras, entregues
a sua lida, mal ouviam o grito monótono dos peões que vinham acompanhando
o gado, disparavam, refugiando-se espavoridas nas casas fronteiras."
(PORTO
ALEGRE, A., 1940. p. 38.)
As áreas da cidade em contato com o Guaíba, importantes avenidas
no tempo de Aquiles, eram retratas pelo cronista de forma a estabelecer uma
relação entre as características do ambiente físico (alagadiço, pantanoso, com
animais selvagens) e a falta do que viriam ser as grandes obras que
transformaram tais espaços em mais alguns formosos trechos da nossa
cidade”. É o caso do “tipo popular” chamado “Lourenço Maria”, um porteiro da
antiga Diretoria Provincial:
“[...] feio, baixo e bojudo, usava chapéu de copa alta para aumentar a
pequenez da estatura. [...]
Uma figura grotesca de calunga de jornal humorístico [...]
Para abrir a repartição vinha todas as manhãs, bem cedo, do fim do
Caminho Novo, da chácara do desembargador Freitas Travassos, onde morava,
montado num petiço nostálgico e peludo que fazia lembrar o Rossinante do D.
Quixote.
Naquele tempo o Caminho Novo era quase intransitável, e, se o era no
verão, imaginem o que não seria no inverno. Não existia ainda aquele extenso
155
trecho de cais que, hoje, ali se vê, e a rua estava no mesmo nível das águas do
rio.
Qualquer chuva ou viração do Sul, que represasse a correnteza,
alagava logo, por completo, aquela zona marginal da cidade.
Quantos trabalhos, quantos perigos não passou o Lourenço Maria, para
chegar até aqui, são e salvo, sobre o lombo do mísero petiço que vinha, cai
aqui, cai acolá, cabeça baixa e olhar tristonho, esmagado ao peso da carga,
com os pés maneados?...
Às vezes ia abrir a porta da repartição, molhado como um pinto, todo
barreado, desde os pés a cabeça, como se houvesse sido arrancado, naquele
instante, do fundo do rio.
E os guris, os perversos, mal o enxergavam nesse estado de inspirar
compaixão, começavam a dar guinchos, assobios e a chamá-lo em altas vozes:
- O Lourenço!... Caíste ao rio? ... E o jacaré não te comeu?!" (PORTO
ALEGRE, A., 1940. p.176.)
Sanhudo recupera de Aquiles Porto Alegre e também de outros cronistas
o discurso sobre a transformação da paisagem da cidade. Em sua narrativa, as
canalizações de arroios e obras de aterramento marcam o desaparecimento
(ou banimento) dessas figuras populares como as lavadeiras, de espaços
centrais da cidade. O Guaíba surge como uma fera domada pelo “freio” da mão
civilizadora do homem:
"[...] O Guaíba, por aquele tempo, preguiçoso e displicentemente
dilatado, tinha um espelho de águas bem maior do que o atual. Seus braços
líquidos da margem ocidental, particularmente o famoso Riacho, mais
conhecido como Riachinho, Arroio Dilúvio ou Arroio Sabão, ademais de se
arrastarem como cobra pela Sesmaria de Jerônimo de Ornelas, bifurcava-se
em inúmeros pedaços de aguadas. Não dúvida que foi o grande aliado da
cidade, pois muitas telhas e tijolos circularam das olarias do Juca do Tristão,
em grandes batelões, contornando a Praia do Arsenal para deixarem seus
materiais no Largo da Quitanda ou do Paraíso. E assim a cidadezinha foi
crescendo... E crescendo tornou-se a grande capital dos nossos dias. O rio
ensejava o seu fatal desenvolvimento!
[...]E o rio continuava a correr, e correndo ensinava os homens a serem
mais fortes, mais ágeis e donos de mais glórias...
[...] volta e meia o Guaíba saía do seu leito e inundava ruas, praças e
avenidas que nunca sonharam em tomar banho de enxurrada.
Para por cobro a essa impertinente mania do rio, o Governo do Estado passou
a estudar a possibilidade de detê-lo com um grande e monumental cais. E
assim Borges de Medeiros, em meados de 1911, iniciou esse porto que hoje
temos. Não dúvida que o velho e manhoso rio deve ter mordido o freio
quando viu chegar esses enormes blocos de pedra para conter-lhe as águas.
Estava muito acostumado a espreguiçar-se despreocupadamente. Imagine-se
apenas que suas margens ordinárias vinham aí pela praça da Alfândega,
fundos do Palácio Municipal, e uma boa parte da rua que ainda hoje tem um
nome que o lembra – Rua da Praia!
Mais tarde outros aterros foram feitos e construíu-se o cais Marcílio Dias.
E ainda há pouco, no governo Brizola, criou-se mesmo um bairro inteiro – Praia
de Belas -, com terras do fundo do rio, a despeito do rio, diminuindo o rio,
encurtando seu leito e beleza..
156
Menor, dentro dos seus limites que cada vez mais se estreitam, o
Guaíba pouco a pouco vai sentindo a civilizadora mão do homem, que, quando
não o contrapõe a altos blocos de pedra ou às próprias terras que lhe tira das
entranhas, ergue-lhe à distância, cautelosamente, diques de proteção à cidade,
com o propósito de impedir que o rio, em seus acessos de fúria ou costumeiros
esbanjamentos, destrua a calculada obra de arte urbana, com seus arroubos
inquietos de transbordamentos periódicos.
As suas águas turvas ou esverdeadas não passam debaixo da velha
Ponte de Pedra da Praça dos Açorianos – a bucólica ponte do riachinho -, hoje
dominando apenas uma insignificante lagoinha, rico foco de mosquitos e
outros insetos que muito perturbam o tranqüilo sono da cidade.
O velho Riacho do Sabão, também conhecido como Arroio Dilúvio, o
mais grosso braço esquerdo do rio, agora está saneadoramente retificado,
deixou de malandrear nessa baixada entre o antigo morro da Praia e o
necropólico morro da Azenha, e perdeu a sua infatigável mania de assustar os
velhos bairros da cidade com suas enxurradas e inundações.
Nem mais se vê aquele indefectível exército de lavadeiras às suas
margens, negras novas ou idosas, que com o colorido das suas vestes davam
singular e pitoresco aspecto às suas águas barrentas." (
SANHUDO, 1975, pp. 26-
35.)
Tais transformações a que se referem os cronistas não são, no entanto,
uma ruptura definitiva com esse passado da cidade em direção a um presente
civilizado. Muitas das descrições confundem a cidade do passado com a vida
presente dos arrabaldes e vilas de classes populares, não por acaso. No tempo
de Aquiles Porto Alegre, o poder público fazia grande esforço em delimitar as
fronteiras entre o centro urbanizado da cidade e sua periferia ainda
considerada “rural” dos arrabaldes, apesar de serem os espaços onde as
classes trabalhadoras e a multidão de prostitutas, marinheiros e desocupados
passaria a viver, tendo sido removida dos cortiços e becos que foram
demolidos para construção das grandes avenidas e para as obras de
saneamento e higiene pública, que ocorreram, sobretudo, nas administrações
de Otávio Rocha (1927) e Loureiro da Silva (1940).
A narrativa dos cronistas sobre a presença de negros ex-escravos
coletando águas nas fontes públicas e dos negros “aguadeiros” que distribuíam
água contrastava com as reformas nos serviços públicos de abastecimento de
água e de limpeza urbana e, sobretudo, contrastavam com as reformas nos
códigos municipais de posturas.
"A mula era arisca, e pela força do hábito sabia onde tinha que parar.
E ali parava até que o pipeiro fazia um pst!... e a mula sacudia-se,
levantava as orelhas peludas, olhava de lado com um ar de inteligência e
caminhava até o próximo freguês!
157
E assim iam pipeiro, mula e pipa, distribuindo medidos baldes de
clara água pelas talhas da cidade. Existia outra pipa (além da Fonte de Freitas
que trazia inscrição) muito conhecida, mas não trazia nome. Era um barrilzinho
sem pintura, amarrado precariamente com arame nuns varais curvos, o burrico
ficava em cima e esquisitamente puxava o pequeno reservatório d’água
entre um par de rodas de grossos aros de madeira. ia o negro velho, de vez
em quando parava um freguês, e se ninguém o chamava ele montava no
animal entre os varais e gritava rouco:
- “Ohooo... geennte ... óia a água!”
117
Os códigos de Posturas policiais de 1831, alterados em 1837,
continham medidas de saneamento e “higiene” para a cidade, pois
determinavam lugares para despejos de “cisco e imundícies” além de locais, na
praia, “para lavagem de panos e roupas” e previam punição para os
desobedientes de três dias de cadeia com multa de três mil réis. Se fossem
escravos os infratores, a pena era de 50 açoutes (PEREIRA, 1991). O despejos
das “imundícies” ocorria em cubos que eram recipientes onde se depositava a
matéria fecal, substituídos semanalmente nas casas. Transportados em
carroça, eram levados a trapiches para lançamento longe da praia, ao lado da
Cadeia Civil no litoral norte, no litoral da Voluntários da Pátria, além da ponte
do Riacho, na Ponta do Dionísio, que acabou ficando com toda a descarga dos
cubos. Criou-se uma linha férrea para o transporte até a Ponta do Dionísio, três
ou quatro vezes por semana, dos cubos, “potes", “bispotes”, de toda a cidade.
1896 era o local para o qual se desviava o lixo da cidade, para o “Porto do
Dionísio”. Em 1866 foi proibida a venda de água tirada do rio ao público, com o
início dos serviços de abastecimento de água a partir de galerias subterrâneas.
Ainda assim, os Códigos de Posturas Policiais se tornaram, em 1903, o
Código de Posturas Municipais sobre Higiene, com a proibição de depositar lixo
nas ruas, praças, cais, docas e outros logradouros públicos, determinando que
as roupas deveriam ser lavadas em praças distantes dos limites urbanos,
proibido lavar-se de dia nas praias, rios ou logradouros públicos, sem estar
vestido. Não se tratava de simples higiene, pois delimitava os espaços públicos
para a conduta de carroças e veículos, de “animais chucros, tropas e outros
animais”, determinava o uso de trajes adequados a serem usados nos bondes,
e era parte de um processo de socialização do indivíduo ao novo ideário
urbano (PEREIRA, 1991, p. 27).
117
SANHUDO apud PEREIRA, A. Histórias do abastecimento de água em Porto Alegre. Porto
Alegre. Coordenação Unidade de Comunicação Social – DMAE, 1991. p. 20.
158
As constantes enchentes em Porto Alegre, respectivamente em 1873,
1897, 1889, 1905, 1912, 1914, 1916, 1928, 1936 e, sobretudo, de 1941
(OLIVEIRA, 1993), são apontadas como as causas das obras de saneamento
de canalização do Riacho e da construção de diques junto aos rios Gravataí e
Guaíba, em conjunto com a construção do sistema de barragens nos rios Jacuí
e Taquari, que teriam salvo a cidade de outras calamidades com as enchentes
de 1963, 1966 e 1983. A enchente de 1941, considerada a maior enchente de
Porto Alegre, quando durante um mês chovia em todas as bacias de rios que
deságuam no Guaíba, fez com que as águas alcançassem 4,76m de altura
máxima, cobrindo a Praça da Alfândega e ocupando a Rua da Praia desde seu
início até quase a Rua Uruguai, retomando todo o espaço aterrado do Guaíba.
No Cais do Porto as águas estavam a 1,73m acima da calçada, Os bairros
Navegantes, Menino Deus, Azenha, Santana, Cidade Baixa e Praia de Belas
foram os mais atingidos. O vento sul represava as águas muitos dias após
terem cessado as chuvas e cerca de 40 mil flagelados ficaram ao desabrigo.
no fim do mês a Viação Férrea recuperou suas linhas com o interior do
Estado (OLIVEIRA, 1993).
No entanto, as obras de canalização dos arroios, sobretudo o Arroio
Dilúvio (Riacho) responsável por boa parte do alagamento da cidade, longe de
serem uma pronta resposta dos governos municipais e estaduais às
calamidades ocorridas, levaram anos para serem executadas, desde seu
primeiro planejamento, em 1914, no Plano de Melhoramentos Moreira Maciel
(MACEDO, 1973) passando pelas primeiras obras nas administrações de
Otávio Rocha e Loureiro da Silva e sendo finalizadas na administração
Thompson Flores, em 1970. Envolveram grandes investimentos, pela
necessária articulação de tais “melhorias” no tecido urbano com as demais
intervenções no espaço blico, sobretudo com a reforma na malha viária da
cidade. A canalização do Riacho e as obras no Cais do Porto representam
muito mais do que a proteção da cidade contra enchentes, mas a ruptura com
um passado “primitivo” da estrutura urbana, e também da cultura urbana local,
a partir do comprometimento com a modernização da capital.
Os dois livros de Sanhudo (1975; 1979), reunindo artigos publicados em
jornal, tinham o objetivo de embasar um projeto de lei do jornalista, então
vereador entre 1952-1955 e 1956-1959 em Porto Alegre, de oficializar o
159
desmembramento da capital em bairros a serem nomeados segundo sua
nomenclatura popular. O projeto acompanhava os trabalhos de elaboração do
Plano Diretor da cidade, pronto em 1959, revisando outros “Planos de
Melhoramentos” das ruas e avenidas da cidade. Embora o primeiro volume de
“Crônicas da Minha Cidade” tenha sido publicado em 1961, o segundo volume,
reunindo artigos escritos na mesma época, seria reescrito e completado pelo
autor em 1968 e publicado somente em 1975, 15 anos após a publicação do
primeiro volume.
O primeiro volume de “Crônicas da Minha Cidade” retoma, como vimos,
o tom “memorialistae o enfoque na distância temporal entre a velha cidade
colonial e a moderna cidade, no entanto, tratando apenas dos bairros mais
antigos da capital. a publicação do segundo volume, que trata dos bairros
mais periféricos, dá-se em um momento em que se realizavam os trabalhos de
elaboração e implementação de um Plano Diretor, não mais apenas para o
centro e a capital, como se planejava em 1959, mas para a região
metropolitana do estado, na tentativa de por ordem ao crescimento das áreas
urbanas que triplicaram entre 1950 e 1970 (MONTEIRO, 2001).
Pode-se, portanto, estabelecer um paralelo entre a “demanda de
memória” (MONTEIRO, 2001) da comemoração do bicentenário da cidade em
1940 e das comemorações elaboradas pela administração Thompon Flores,
em 1970, que marcam o lançamento do segundo volume da obra de Sanhudo
no conjunto de uma série de publicação sobre a história da cidade. Novamente,
Charles Monteiro (2001) demonstra como uma profunda transformação na
paisagem da cidade se valia da produção de memória escrita sobre a “antiga
cidade” para produzir uma nova cidade que era refundada a partir dos canteiros
de obra.
Com o fenômeno chamado de “metropolização” das áreas urbanas das
cidades brasileiras, a população de Porto Alegre aumentava de 394 mil
habitantes em 1950 para 885 mil em 1970, com a concentração de populações
provenientes do campo e de pequenas cidades nas periferias sem infra-
estrutura das cidades ou nos municípios ao redor das capitais (MONTEIRO,
2001). O Plano de Metas e Bases de 1970 e o Plano Nacional de
Desenvolvimento de 1972-1974 dos governos militares promoviam a
construção de hidrelétricas, barragens e rodovias e o investimento em infra-
160
estrutura nas principais áreas metropolitanas e na gestão centralizada e
planificada do espaço urbano (MONTEIRO, 2001).
A administração Telmo Thopson Flores descaracterizava a paisagem de
áreas antigas da cidade, com o aporte de capitais no contexto do “milagre
econômico brasileiro”, com a centralização das decisões político-
administrativas, o endividamento público e o controle das resistências da
sociedade civil às desapropriações e às rápidas mudanças urbanas. O plano
diretor da região metropolitana de 1979 incentivou a especialização das
atividades no espaço urbano (zoneamento) em áreas de habitação (bairros e
vilas), trabalho (centro), circulação (avenidas e ruas) e lazer (praças e parques)
(MONTEIRO, 2001). No entanto, os investimentos realizaram-se, sobretudo, na
reorganização da malha viária da cidade, com o alargamento e pavimentação
das radiais importantes que ligavam velhos e novos bairros ao centro da cidade,
junto a obras de saneamento, eletrificação e iluminação, aproveitando o
alargamento e abertura dessas avenidas, com a destruição de antigos espaços
de sociabilidade com as obras de estrutura viária.
Nesse sentido, o contexto de publicação dos livros de Sanhudo
retomavam a “demanda de memória” e o discurso de 1940, da administração
Loureiro da Silva, da necessidade de modernização e “civilização” dos
costumes dos habitantes da cidade, voltando a atenção para áreas mais
afastadas do centro da cidade, que entravam no processo de modernização e
urbanização. Em especial, quanto a lugares como a Vila Dona Teodora e nas
imediações do “Vale do Sabão”, onde as classes populares formavam grandes
aglomerações de habitações populares, em meio a lugares alagadiços,
Sanhudo descreve tais paisagens sem disfarçar a mesma associação à velha e
primitiva cidade, referindo-se, no entanto, ao momento presente da capital.
A Vila Dona Teodora é descrita pelo cronista como “submundo da nossa
metrópole”, como “núcleo marginal da cidade”, que com suas “5 mil almas”
habitando “malocas” e casas construídas pela Prefeitura, em meio a um
“espetacular banhado”:
“Dona Teodora é aquela zona bem além dos Navegantes, no extremo
norte da cidade, e mergulhada nos pântanos infectos da velha Fazenda dos
Anteros. [...] Em 1950 o lugar, que era e continua sendo um espetacular
banhado, não tinha nada. Quando muito umas vinte casinhas! E agora? Bem,
161
agora nem para contar! [...] ás vezes me convenço mesmo que todo o
problema das malocas, em Porto Alegre, reside simplesmente na convulsiva
massa humana que as constitui. É um estágio de vida dentro da civilização.”
(SANHUDO, 1975. p.202.)
Se retornarmos às descrições de Aquiles Porto Alegre sobre a paisagem
antiga da cidade, veremos como este também associa práticas tradicionais dos
habitantes da cidade a paisagens ainda não “urbanizadas” ou “civilizadas” da
capital. É o caso da crônica em que Aquiles retomava a descrição do ofício das
lavadeiras, não mais as antigas lavadeiras, mas as suas contemporâneas, no
começo do século XX, estabelecendo um paralelo entre a presença dessas
mulheres às margens do Guaíba, na Rua da Passagem do culo XIX, com a
paisagem dos arrabaldes e arraiais da Porto Alegre de sua época:
“Quem margeia certos sítios de nossas praias, vê por toda a parte roupa
lavada, enxugando ao sol ou ao vento.
Impressiona bem a quem contempla de perto esse aspecto de trabalho
das humildes para ganhar o pão de cada dia.
Se há uma ocupação penosa é esta, não há dúvida.
No rigor do inverno, quando a água do rio parece estar gelada, essas
pobres criaturas arregaçam as mangas do casaco que trazem para resguardar
da friagem, entram no rio, com as pernas nuas até acima dos joelhos, colhendo
entre as coxas um punhado das saias, para lhes dar desembaraço.
E vivem, ali curvadas sobre o banco, esfregando a roupa que lhe cai
nas mãos, como se a água não estivesse cortante como gumes de navalha
afiada.
Algumas dessas mulheres têm os dedos rachados de frieiras, que lhes
doem com o contacto d´água fria, mas é preciso entregar a roupa ao freguês
ou à engomadeira, para passar a ferro ou engomá-la, porque apesar da baixa
da temperatura, ninguém quer andar de roupa suja se é pessoa que se preza.
Em outras épocas, elas lavavam nas escadas do cais da alfândega e
estendiam as suas peças de roupa na calçada, no empedrado da rua e na relva
da praça. (Até 1908 ainda lavavam aí).
A civilização, porém, ou antes, as posturas municipais acabaram com
isto, e a lavagem passou para outros pontos mais afastados do centro da
cidade.
Muitas das que lavavam procuravam morar nas imediações do
Gasômetro, onde se estende à flor da terra aquela enorme pedreira cujo sítio
se presta a essa ocupação.
Umas sempre habitaram o Arraial da Baronesa, por terem à mão o
Riachinho e outras os Navegantes à beira rio com sua extensa praia.
No arrabalde Parthenon, vivem também muitas lavadeiras, que utilizam
um grande trecho do Riachinho que por ali desliza.
A maioria dessa gente mora em sítios distantes do centro da cidade,
pela conveniência da modicidade do preço das casinhas em que vivem, com a
abundância d'água à porta.
É uma boa gente, mansa e serviçal. Algumas têm mesmo lar e vivem
mourejando para ajudar o marido no sustento dos filhos. Formam grupos à
beira da praia. Falam de tudo, inclusive da vida alheia, às risadas. Algumas se
têm filhos pequenos, levam-nos consigo, e põem- nos à sombra, ao do seu
162
olhar materno, enquanto mergulham n'água as peças de roupa, enxáguam-nas
ou as torcem. Mostram-se sempre boas camaradas umas das outras. Auxiliam-
se mutuamente. Algumas, acabada a sua tarefa, se vêem que a companheira
ainda tem um rol de roupa para enxaguar ou torcer, vão espontaneamente
ajudá-la, com essa bondade instintiva dos humildes, que estão sempre prontos
a 'prestar para alguma coisa'". (PORTO ALEGRE, A. 1940. p.187.)
Sanhudo descreve muitas das paisagens periféricas da cidade sob a
mesma perspectiva do ambiente “rural” ou “agreste” destinando-se a ser
tomado pela mão do progresso rumo à civilização. Não a Vila Teodora, mas
o “Mato Sampaio”, as ilhas do bairro Arquipélago com suas “pobres casinhas
mal ajeitadas” que seriam substituídas por “belas vivendas”, o assim
descritas (SANHUDO, 1975, P. 218). Mas é a descrição de Sanhudo sobre o
“Vale do Sabão” e o Bairro “Cidade Baixa”, recuperando descrições de Aquiles
Porto Alegre sobre estes espaços que melhor demonstram o ponto de vista
desses autores sobre a relação do crescimento urbano da cidade com seu
ambiente físico e suas formas de ocupação e de sociabilidade.
Sua descrição retoma os comentários de outros cronistas sobre o local,
sobretudo, de Aquiles Porto Alegre, sobre o famoso “Areal da Baronesa” e as
“Emboscadas”, antigos limites da área urbana da cidade:
“Aquele sítio, ali, a Praia de Belas, onde está hoje o quartel do 2°
batalhão da Brigada Militar, era, cinqüenta anos, um matagal cerradíssimo
onde os “negros fugidos” iam se esconder de seus implacáveis e desumanos
senhores que, quando os conseguiam apanhar, com o auxílio do “capitão do
mato” os retalhavam a vergalho até lhes arrancar, com o couro e o sangue, a
alma do corpo.
Os pobres escravos, que se revoltavam contra a tirania do verdugo, seu
dono, procuravam de preferência aquele lugar para esconderijo, porque a
mataria era espessa, e eles encontravam ali, para alimentar-se, o araçá, a
cereja, a pitanga, o maracujá, o joá, o ananaz, e tantas outras frutas silvestres
que o bom Deus semeou a mãos cheias na terra para regalar a gulodice dos
pobres diabos, que não podem entrar nas casas elegantes, onde elas se
vendem.
De resto, a um passo, ficava a praia, com a limpa cristalina, para lhes
mitigar a sede.[...]
O espírito popular, sempre cheio de argúcia e maldade, também
chamava este logarejo de “Banda Oriental, pelas freqüentes desordens que ali
se davam, principalmente no Beco da Preta, que era um dos seus tantos
corredores escusos.” (PORTO ALEGRE, A., 1940. p.42.)
“Em época bem remota, existia, às barbas da cidade, uma extensa faixa
de terra, que abrangia o espaço compreendido entre as ruas Lopo Gonçalves,
Luiz Afonso, República e Concórdia, e ia morrer a margem do Riachinho.
Era um trecho de terra e mato conhecido, desde longa data, pelo nome
de “Emboscadas”. [...]
163
Naquele tempo, quem fugia de dia, se por ali passava a noite, pelo
menos um susto raspava.
Ai agora não mais “emboscadas”, o local não se presta para isso. É
um pedaço inteiriço de nossa risonha cidade. Antigamente sim, a cada passo
se encontravam uma moita, um capão, uma árvore, uma macega, um mato
cerrado, repressões de terreno e outros acidentes, que tornavam quase
intransitável o sitio.” (PORTO ALEGRE, A., 1940. p.59.)
As descrições de Sanhudo não poupam comentários à memória desse
espaço, comentando, sobretudo, os becos e ruas que ainda mantinham, em
1961 quando a crônica foi escrita, os ares das terríveis “emboscadas”:
"Então o nosso Areal da Baronesa tinha uns becos tenebrosos e por
se perdia a mais excelsa malandragem da nossa cidadezinha adormecida.
Malandragem, cachaça e forrobodó de cuia...
Havia um tal de Beco do Preto, que alguns cronistas dizem que não era
do Preto, mas da Preta... E nesse pedaço do mundo, o mundo se perdia! E daí
por diante, noite e dia, e dia e noite, o estado normal do Areal era a desordem
e o deboche! [...]
E daí em diante, nem de dia e nem de noite, ninguém que tivesse amor
ao pêlo se atrevia cruzar a ponte e passar pelos domínios da famigerada e
barulhenta Banda Oriental. [...]
E não pensem que eu estou contando lorota!
Pois bem que você pode largar esta crônica e ir já, lá pela rua Baronesa
do Gravataí e percorrer tranqüilamente, de mão no bolso, se puder, aquelas
travessas que ainda existem e que são verdadeiras vielas: - a Pesqueiro, a
Luiz Guaragna e a avenida Félix! Vá... vá e depois me diga!
Esses logradouros públicos são saldos da velha Banda Oriental, no
tempo em que o Beco da Preta era a suprema canhada do frege citadino.
Essa Banda Oriental foi célebre e ela perdeu o seu quebranto de
zona inexpugnável depois que aterraram o Riachinho da rua da Margem e
então tudo ficou devasso e se pode entrar por qualquer lado.
Mas, antes disso, nem o diabo tinha licença de pisar lá! [...]
Agora o Areal está se integrando no dinamismo da cidade e tem ares
de zona de bem! Pois muito deixou de ser famigerado para ser famoso."
(SANHUDO, 1979, pp. 205–206.)
Quanto aos “ares de zona de bem”, Sanhudo retomava a descrição da
Cidade Baixa e do Vale do Sabão (atuais imediações da Avenida Ipiranga com
Cidade Baixa), descrevendo a transformação desse espaço no segundo
volume de “Crônicas da Minha Cidade”, reescrito em 1968:
“As enchentes m assustando e enxotando periodicamente as
populações da nossa cidade, desde o tempo do arraial dos Açorianos. No fim
do século passado se começou a pensar seriamente no problema, e no
primeiro quartel deste século surgiram inúmeros projetos com o intuito de
solucioná-lo. Tratava-se da canalização dos riachos. O mais importante, sem
dúvida, seria a retificação do Arroio do Sabão, também conhecido por Arroio
Dilúvio, e cuja invocação, como está flagrante, deriva do fantasma que as suas
164
cheias representam para as populações pobres e marginais, que, ao longo do
seu então imundo curso, se aboletavam vegetativa e placidamente.[...]
Hoje, ele está retificado, canalizado e apresenta-se como um dos
fatores de progresso da cidade. [...]
Ainda pouco menos de trinta anos, este tenebroso e diluviano Arroio
Sabão, engrossado pelas águas do Arroio Cascata, chicoteado pelas chuvas e,
por vezes, rebojado pelo vento sul, provocava tais e tão terríveis inundações
nessa zona baixa da Ilhota, Arraial da Baronesa, Santana, rua São João, mais
tarde Cabo Rocha e hoje caprichosamente batizada de Prof. Freitas e Castro, e
mais toda essa baixada do vale do Petrópolis, até os fundos do Hospício, que
só quem viu é que pode imaginar! Lembro-me da enchente de 26, e que não foi
grande coisa. Pois aí, as águas vieram até a rua Marcílio Dias, penetrando
então com facilidade pelo cotovelo da rua São João e transformando toda
aquela zona num vasto e lodoso lençol de águas.” (SANHUDO, 1975. p. 84-85.)
O local ainda estava “em pleno e nebuloso tumulto, montes de aterro em
toda parte, ao longo da canalização do riacho, dentro do riacho, com muita
coisa para fazer e muitíssimos retoques a cuidar” (SANHUDO, 1975, p. 85),
mas já contava com suas sete pontes prontas, quando o Vale do Sabão
transformava-se, segundo Sanhudo, na “monumental” Avenida Ipiranga. Tais
obras representavam mais do que a solução para as cheias dos arroios, eram
muito mais a transformação da paisagem da cidade em direção a uma estética
própria das reformas urbanas ocorridas em muitas outras capitais brasileiras,
com largas e embelezadas avenidas, estrutura viária com valorização do
transporte automotivo e deslocamento de populações menos favorecidas para
zonas menos valorizadas e mais distantes dos bairros ajardinados e do centro
administrativo da capital. Longe de serem “soluções” para problemas locais,
foram antes adequações da cidade a uma nova ordem urbano-industrial
mundial, parte das transformações econômicas, políticas, sociais e culturais do
seu tempo.
“Aquele velho, imundo, turvo e barrento Arroio do Sabão, cheio de
curvas e meandros, com salgueiros e arbustos, sem limites e composturas, foi
domado e ora apresenta-se para disputar, muito breve, um dos mais belos
espetáculos da engenharia fluvial do nosso tempo. Mal suspeita-se o que será,
daqui a alguns anos, a urbanização ao longo dessa maravilhosa canalização
do perdulário arroio. [...]
Olho, assim, para o Arroio Sabão, tendo em conta o que era, como está
se modificando e o que será, em sanidade, beleza e arquitetura, para esta
nossa encantadora cidade. [...]
Naquele tempo, ele, malgrado o grande número de voltas, vinha, de modo
geral, na direção leste-oeste, cruzava a ponte da Azenha, fazia um enorme
saco pelas proximidades da rua Arlindo era a famigerada Ilhota -,
acercava-se da praça Garibaldi e, de lá, depois de passar pelos arcos da ponte
do Menino Deus, seguia em sentido noroeste, mais ou menos paralelo à rua da
165
Margem, tomando o nome pitoresco de Riachinho até chegar na famosa e
poética Ponte de Pedra, que, em tempos mais remotos ainda, era o coração
dum bosque que muita recordação dava aos nossos avós...
Agora, está imprensado entre muros de pedra, perdeu o encantado
Riachinho, mas em compensação cruza o novo bairro de Praia de Belas, e será
domado por outra nova e arquitetônica ponte de cimento, antes de despejar as
suas águas em pleno estuário do Guaíba.
Constata-se ao longo das futuras avenidas deste Riacho, em nossos
dias, um mundo polimorfo de casebres e malocas. Habitações rústicas e
precárias que bordam quilômetros e quilômetros do moderno Arroio Dilúvio.
Aguarda-se, pois, novo saneamento!
É assim que o outrora infecto e imundo Vale do Sabão hoje é zona
valorizadíssima da nossa cidade, e que, mais rápido que se pensa, será
indiscutivelmente um dos seus pontos de atração pela proximidade com o
centro, pela beleza e pelo encanto.” (SANHUDO,1975. pp. 85-88.)
5.3. Outras vozes, outros personagens
“É feia a Avenida Ipiranga. Feia, mas dinâmica: pistas de asfalto de alta
velocidade e aqueles gigantescos postes obeliscos da era tecnológica.
Poderíamos fazer de um daqueles postes o monumento pop de nosso tempo:
um único poste, colocado no centro de uma vastidão de concreto. Ao redor,
nada. Mas, presente e difuso no ar, o constante zumbido de um transformador.
[...]
É dinâmica, a Avenida Ipiranga, mas é feia. Em seu centro flui, lento e
putrefato, o Riacho a nossa Cloaca Máxima. Nada de mal nisto. Hoje fazem
casas em que as tubulações estão à vista; por que não o esgoto? Escatológico
demais? Pode ser. [...]
Assim é a Avenida Ipiranga, a contradição entre o moderno e o arcaico,
entre o refulgente e o repugnante. E os seres escuros e vacilantes que se
movem em baixo das pontes estão bem no vértice destas forças contraditórias:
mergulhados na miséria, a um passo do progresso.” (SCLIAR, 1976. pp.7-8.)
A descrição que Moacyr Scliar, médico, escritor de literatura de ficção e
crônica, faz da Av. Ipiranga difere muito do destino belo e glorioso previsto para
o “Vale do Sabão” que vimos com Sanhudo. O consagrado “território de
automóveis” (SCLIAR, 1976, p. 09) aparece nas crônicas de Moacyr Scliar,
publicadas durante 1974 e 1975 no recém lançado Jornal Zero Hora, e
reunidos em “Os Mistérios de Porto Alegre (1976). Nessa obra, o autor
estava inserido num contexto no qual o gênero da crônica moderna brasileira já
estava consagrada, que Antônio Cândido descreve como “A vida ao rés do
chão”
118
. O gênero se consolidou tratando de assuntos pequenos, do cotidiano,
118
"A Crônica não é um ‘gênero maior’ [...] ‘Graças a Deus’, - seria o caso de dizer, porque
sendo assim ela fica perto de nós. [...] Por meio dos assuntos, da composição aparentemente
solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de
166
estabelecendo um comentário sobre o tempo que flui rapidamente, no espaço
de um dia, uma semana, um s. Como afirmava Machado de Assis, esse
cronista é o “historiador da quinzena”
119
, que detém-se sobre o tempo social,
seleciona assuntos de seu cotidiano e tece comentários imediatos sobre a vida
urbana, estabelecendo um diálogo direto com o seu leitor, na maioria das
vezes, leitor do jornal (CANDIDO et alli, 1992).
É uma perspectiva, portanto, diferente da que adotavam os antigos
cronistas da cidade, a que chamamos “memorialistas”, que escreviam sobre o
passado muitas vezes remoto da cidade, ou sobre as reminiscências do tempo
antigo na sua cidade atual. Os relatos que apresentaremos aqui são em
maioria comentários sobre as transformações ocorridas não apenas na
paisagem da cidade, mas no cotidiano de seus moradores. Além das crônicas,
veremos também algumas obras de ficção de Moacir Scliar, em que arroios e a
margem do Guaíba surgem como espaços de um imaginário diferenciado do
costumeiro discurso das origens açorianas da cidade. Finalmente, como
contraponto, veremos o relato de Zeli Pinto Barbosa sobre os anos em que
morou na famosa Ilhota, trazendo imagens biográficas sobre a “ambiência” do
famoso e desaparecido reduto da Cidade Baixa.
O jornalista Carlos Reverbel (1979), contemporâneo de outros
intelectuais e cronistas, responsável pela produção de memórias como as que
vimos sobre a cidade de Porto Alegre, traz-nos outros comentários sobre a
transformação da cidade, em especial, com a passagem do transporte fluvial e
ferroviário para o automotivo e com a série de aterramentos da margem do
Guaíba:
O rio estava em seu lugar, como manda o figurino. Eis senão quando a
cidade resolveu invadi-lo, na base do fato consumado, isto é, sem aviso prévio,
nem indenização por tempo de serviço. Começaram, então, os intempestivos e
abusivos aterros, ou seja, a ocupação do rio, a mão armada, pela cidade. Não
todo o dia. [...] pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade
insuspeitadas. [...] sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do
simples rés-do-chão.". Ver CANDIDO, A. A Vida ao Rés-do-chão. In : CANDIDO et alli. "A
crônica : o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil." Campinas, SP : Ed. Da
UNICAMP ; Rio de Janeiro : Fundação da Casa Rui Barbosa, 1992. pp.13-22.
119
Era como Machado de Assis via a crônica e seu próprio papel como cronista. As crônicas de
Machado são o material que Margarida de Souza Neves se vale para investigar a paisagem
carioca da passagem do século XIX para o século XX, em NEVES, M. Uma escrita do tempo :
memória, ordem e progresso nas crônicas cariocas. In : CANDIDO et alli. "A crônica : o gênero,
sua fixação e suas transformações no Brasil." Campinas, SP : Ed. Da UNICAMP ; Rio de
Janeiro : Fundação da Casa Rui Barbosa, 1992. pp.75-90.
167
tendo como defender-se, na medida das agressões de que passou a ser vitima,
desde o inicio do século, o rio vem conseguindo, a muito custo, promover
algumas enchentes, nem sempre com resultados satisfatórios, a não ser em
1941, quando teve ensejo, ninguém sabe por que cargas d’água, de
providenciar numa inundação quase diluviana. [...]
O Imperialismo da cidade, no engolimento do rio, encontra paralelo
nas antigas conquistas da Grã-Bretanha [...]
A idéia de Loureiro da Silva era apenas fazer uma avenida ao longo da
margem do rio, para facilitar o trânsito e valorizar a zona sul, como área
residencial, conservando-se assim, a então maravilhosa enseada, com o
esmerado lavor que Deus lhe dera, sobretudo desde o Cristal até a outrora
donairosa Praia de Belas.
Terminaram fazendo um aterro “holandês”, o que corresponde a uma
caríssima, antinatural e inflacionária “fabricação” de terra firme, em prejuízo do
rio e, principalmente, da paisagem, isto num lugar em que pode faltar tudo,
menos terra.” (REVERBEL, 1979. pp.12-13.)
Carlos Reverbel posicionava-se de um ponto de vista crítico aos rumos
que tomava o “processo de desumanização da cidade”, segundo ele, centrando
fogo no aumento do trânsito de automóveis e congestionamentos, na “poluição
acústica” com as buzina, com a violência urbana dos assaltantes que tomavam
conta do centro da cidade.
“Hoje em dia a aspiração de todo porto-alegrense é trocar de cidade,
pelo menos nos fins de semana. Troca-se Porto Alegre, na maior das
felicidades, até por Tramandaí, uma das praias mais congestionadas da
história da civilização ocidental. E os que não conseguem fazer a troca
semanal terminam ficando neuróticos.” (REVERBEL, 1979. p.21.)
Como oposição à paisagem que via de sua residência, o “fenômeno da
pororoca urbana” (REVERBEL, 1979, p. 66), o encontro dos automóveis da Av.
Cristóvão Colombo com a Av. Benjamin Constant, Reverbel retomava os
prazeres da paisagem antiga da cidade, mas de uma maneira oposta aos
cronistas como Ary Veiga Sanhudo, lamentando os rumos que a cidade tomava,
ao invés de celebrar o crescimento do centro urbano. Lembrava a navegação
via fluvial e o transporte ferroviário , em que:
“[...] vapores que navegavam no rio Jacuí e em cujas refeições o prato mais
apetecido era o pintado com pirão, sendo os peixes pescados no próprio rio,
durante a viagem. Tenho as melhores recordações da aludida gostosura
culinária, uma das mais altas expressões culturais, de cunho açoriano, de
nossa antiga civilização fluvial e ribeirinha, hoje tão moribunda quanto a
ferrovia.
Fui levado e embalado naqueles barcos, sobre as águas ainda
cristalinas do Jacuí, do Taquari e do próprio Guaíba. Havia, naqueles recuados
168
tempos, uma coisa de que hoje se fala quase todos os dias, porém tristemente
em vão: a integração do transporte ferroviário com o transporte fluvial. A gente
vinha de Santa Maria, de trem, até Santo Amaro, onde mudava para o vapor,
na viagem até Porto Alegre. O jantar, a bordo, esbanjava pintados, recamados
de pirão feito do próprio caldo do peixe.” (REVERBEL, 1979. pp. 64-65.)
O espaço para a crônica nos jornais e o número de leitores em Porto
Alegre aumentava consideravelmente, não apenas com o “Caderno de
Sábado” do Correio do Povo, onde escreveram entre outros Nilo Rushel e Ary
Veiga Sanhudo. Era lançado também na época o Jornal Zero Hora, onde
outros jornalistas como Moacyr Scliar e Luís Fernando Veríssimo despontavam.
Scliar, autor premiado por suas obras de ficção, em sua rie de artigos
publicados em “Os Mistérios de Porto Alegre”, escrevia sobre uma paisagem
da cidade em que a temática das transformações ocorridas na cidade eram
centradas no cotidiano de seus moradores (sobretudo a classe média) que se
transformava e nos novos personagens que assumiam a cena urbana.
Diferentemente de Reverbel, Scliar surgia como fino observador de uma
cidade que, ao invés de lamentar as rupturas com a paisagem antiga da
cidade, recuperava no imaginário de trajetórias muitas vezes esquecidas pelos
cronistas da cidade, nas memórias de imigrantes, de novos sujeitos chegados
do interior do Estado ou mesmo de países distantes, novas perspectivas para a
cidade. Em uma crônica, Scliar fazia “20 perguntas ao porto-alegrense”, em
que cinco destas eram a mesma: “Porto-Alegrense, és feliz?”. Em outra
crônica, “O Robinson Crusoé de Porto Alegre”, contava a história de um
homem que chega do interior do estado com a família, é roubado no centro da
cidade e passa a viver dentro de um automóvel abandonado, caçando pombos
para se alimentar. Noutra crônica, conta do comerciante de Viena que se
estabelece em Porto Alegre e cai dentro de um bueiro na Rua da Praia, onde
encontra anõezinhos vivendo nos seus subterrâneos.
Scliar rompia com o tradicional “mito açoriano”
120
e reivindicava a
pertença de outros sujeitos à identidade porto-alegrense:
120
“O mito de fundação da cidade de Porto Alegre por povoadores de origem açoriana, um
“povo” vindo do mar, seria constantemente atualizado, tantas vezes quantas foram as grandes
levas de imigração e migração que a cidade recebeu ao longo de quase 230 anos. Uma forma
de definir a identidade porto-alegrense diante dessas sucessivas migrações do exterior e do
interior, criando um “tipo ideal” de porto-alegrense. Uma identidade homogênea frente às
tensões políticas e simbólicas que dividiram a sociedade local, pelo fato da cidade ter se
169
“Esta é uma terra de navegantes. Navegavam os índios, ao tempo em que os
rios eram largos e limpos; navegavam os portugueses que descobriram o país.
Navegando chegaram aqui os negros e os imigrantes. Temos em nós a
nostalgia das águas; a elas voltamos sempre, deixando a segurança da terra
firme. Mas nem só no mar ou no rio se navega; há também as viagens
interiores, como o demonstram estas [...]” (SCLIAR, 1976. p.22.)
Não só a crônica, mas a ficção permitia novos discursos sobre a
paisagem da cidade e sobre a “ambiência” urbana. Nos romances “O Ciclo
das Águas” (1977) e “Os Voluntários” (1980), Scliar insere as águas do
Guaíba e dos riachos da capital nas memórias e nos devaneios de seus
personagens, navegantes de sua própria trajetória em que Porto Alegre
aparece mais como um ponto de descanso para novas jornadas. Em “Os
Voluntários”, Scliar refere-se ao submundo da Avenida Voluntários da Pátria,
tradicional reduto de comércio e prostituição do centro da cidade, para narrar
estórias como as do dono de bar Paulo, a prostituta Elvira, o judeu Benjamin,
o camelô Pia-Pouco, o navegador Capitão. Personagens que se encontram
nos bares e nas ruas da Voluntários. Na trajetória que Scliar criou para cada
um de seus personagens, Porto Alegre assume sua face mais portuária:
“Chegaram de madrugada no Caminho Novo. Os últimos notívagos saíram dos
cabarés, um que outro bêbado dormia numa soleira de porta, mulheres
passavam, bocejando, cansadas, a pintura borrada, os vestidos amarrotados.
...Mas via também uma cidade que despertava para um dia de trabalho,
impaciente por realizações e progressos. Meu pai via movimento, uma febril
agitação, bondes que chegavam ao centro despejavam centenas de operosos
porto-alegrenses: funcionários com suas pastas, bancários, caixeirinhas que
caminhavam apressadas, o olhar fixo, os braços cruzados no busto.
Ambulantes exibiam suas mercadorias; lojas se abriam, os armarinhos e as
casas de ferragens, as lojas de confecções, as sapatarias; cortinas de ferro
subiam, vitrines exibiam, jogados de qualquer maneira, mas sempre a preço
barato, carpins e ceroulas, japonas e camisetas; manequins de nariz
descascado sorriam fixo sob os bonés e os chapéus Ramenzoni, balconistas,
bocejando, arrumavam saldos em cestos, negociantes penduravam nos varões
de toldos rasgados cabides e ganchos com roupas de cores berrantes que
ficavam adejando à brisa da manhã como, naturalmente, bandeiras ao vento.”
(SCLIAR, 1980. pp. 15-16.)
Novamente, é o historiador Charles Monteiro (2001) que nos permite
valer-nos da literatura de ficção não apenas como “fonte” para construção de
posicionado contra os farroupilhas e ter se mantido “leal e valorosa” ao Império, da mesma
forma que se manteve leal à República na “Revolução de 1893” e contra os liberais que
mantinham sua base política na região da campanha.” (MONTEIRO, 2001, p.12)
170
uma história da modernização da cidade ou de um contexto histórico, mas
como falas da cidade, na forma como o autor se apresenta como um “cidadão-
leitor” do espaço urbano, de seus fenômenos, de sua memória e de um
imaginário que Scliar tece entre citações que vão do local ao universal em uma
única página:
“Eram bonitas aquelas pedras, aqueles paralelepípedos em granito de vários
tons, do cinza-escuro ao rosa, úmidos de cerração, reluzindo à luz fraca das
lâmpadas dos postes.
... Lamento pelas pedras. Para mim, contudo, basta-me saber que estão
ali, intactas, quietas, ocultas sob o asfalto. Aguardam o dia da convulsão final,
o dia em que a terra rachará e todos os paralelepípedos de granito perdidos
reaparecerão, embutidos nos buracos das vértebras dos fósseis dos animais
pré-históricos que correram por esta Voluntários antes mesmo do bonde
Navegantes que passava de madrugada com sua meia dúzia de passageiros, o
velho dormindo, o funcionário público lendo o jornal, o cobrador conversando
com o motorneiro. O bonde que hoje vejo, o que atravessa os sonhos leves da
hora antes do amanhecer, este bonde não é como o Navegantes; é uma gaiola
como o Navegantes, tem um grande N no mostrador, mas não é barulhento
como o Navegantes, não passa com estrépito de ferragens, não ginga sobre os
trilhos. Surge silencioso do nevoeiro e silencioso nele desaparece, o cobrador e
o motorneiro, lado a lado, parecendo antes comandante e imediato de um
navio fantasma.” (SCLIAR, 1980. pp. 67-68.)
O Guaíba e seu cais surgem como um porto que leva a mares distantes,
aos mares gregos, como conta o personagem Capitão, à Jerusalém, como
sonhava o personagem Benjamin, a Portugal, de onde vieram os pais do
personagem-narrador Paulo. Mas se as águas são motivos para os sonhos dos
personagens, o ambiente urbano às suas margens é descrito, a partir do ponto
de vista desses personagens, como espaço praticado e habitado na cidade.
Scliar, por vezes, bebe na fonte dos antigos cronistas, para descrever a
paisagem urbana, no entanto, tecendo sempre um ponto de vista que está
imerso, e não distanciado desses espaços:
“Um rápido exame da geografia sensual de Porto Alegre mostraria uma
cidade ocupada por esse amável exército. Na Pantaleão Telles, junto à ponte
de pedra em que os Farrapos travavam furiosas batalhas, um numeroso
contingente, entrincheirado nas casinhas da Cidade Baixa. Na Azenha, Cabo
Rocha era um importante reduto. No Cristal, Mônica reinava solitária e
esplêndida, com seu luxo, seu Quarto de Espelhos. Mas havia ainda lugares
mais fantásticos: o Cabaré das Normalistas, onde, segundo a lenda porto-
alegrense, as moças deixavam cair a máscara da inocência. [...]
Delírios a parte, o principal contingente de mulheres estava no centro,
na Voluntários. Mulheres para todos os gostos e todos os preços, menos os
que eu podia pagar. Circulavam à noite, incansáveis. Atrás do Banco do
171
Comércio com suas imponentes colunas de granito; atrás do Correio com sua
torre e seu relógio de mostrador verde; atrás mesmo da Mesa de Rendas elas
caminhavam silenciosas em meio ao nevoeiro das noites de inverno,
encolhidas, parando por vezes para bater os pés enregelados na calçada.
[...] Ai que eu queria mulher. Concumbinas de Salomão ou chinas da
Voluntários, pouco me importava, era mulher que eu queria.” (SCLIAR, 1980.
pp. 42-43.)
A diferença para as crônicas que vimos anteriormente se dá,
principalmente, no discurso plural e fragmentado que tanto as crônicas
quanto a literatura de ficção de Scliar trazem sobre a cidade. Os outros
cronistas que vimos ensaiavam uma narrativa que visava abarcar a
totalidade da memória social da cidade, e nesse sentido atuavam como
“gestoras”, pois foram sobretudo utilizadas como tais pelas administrações
municipais, no sentido de fabricar uma memória e uma imagem não apenas
da cidade do passado, mas da cidade do presente, comprometida com os
ideais republicanos. Os personagens de Scliar não reivindicam esse lugar ao
falarem sobre a paisagem da cidade, e ensaiam a sua apropriação de
espaços como os que escolhemos mostrar neste trabalho, sem o mesmo
gesto heróico que se via nas crônicas de Sanhudo ou Aquiles. Os
personagens de Scliar investigam a si mesmos, a sua própria história em
meio à memória da cidade, das cidades de onde seus antepassados vieram,
das cidades que se acumulam sobre o solo da Porto Alegre atual:
É noite; mesmo a noite o riacho corre, na Vila Santa Luzia. Flui lento,
alimentado pela água que mina de ocultos veios. Flui lento. Sujo, fétido: daqui
se sente o odor. É de riachos que falo em minha aula sobre o ciclo das águas.
Mas não é ao riacho da Vila Santa Luzia que refiro. Estou pensando em claros
cursos d’água; estou pensando em regatos murmurantes, atravessando belas
paisagens. Estou pensando na Polônia; estou pensando em Esther e em seu
namorado Mêndele.”
121
(SCLIAR, 1977. p.10.)
No Romance “O Ciclo das Águas” (SCLIAR, 1977), as águas surgem
como uma metáfora ainda mais poderosa do que em "Os Voluntários", ao
serem o veículo que mistura as trajetórias de diferentes personagens nos
espaços da cidade. Enquanto Marcos, um professor de História Natural de uma
faculdade que fica próxima a uma favela de Porto Alegre, a “Vila Santa Luzia”
121
SCLIAR, Moacyr. (O Ciclo das Águas). Porto Alegre. Globo, 1977. p.10
172
narra a estória de sua mãe, Esther, uma judia que é trazida da Polônia para ser
prostituta em Porto Alegre, ele pesquisa os microorganismos que se encontram
na água do riacho que corre pela vila. Todo um questionamento sobre as
origens da vida, da vida de Marcos na “bolsa das águas” de sua e, da vida
de sua mãe, trazida das águas oceânicas para os portos da capital, da vida que
surge das águas imundas do riacho da Vila são o tema desse livro. A cidade
aparece como um grande riacho onde a vida desses personagens corre,
voltas, retorna, e onde estes se encontram. A Vila Santa Luzia serve para o
personagem Marcos de fonte de pesquisa científica e de cenário para escrita
das aventuras de sua mãe pela capital:
“A natureza não tem segredos é questão de investigar. vai o
Professor Marcos com seus alunos, para a Vila Santa Luzia. Vão a pé,
descendo o morro, conversando animados – os alunos. Marcos, solitário, vai na
frente, caminhando pela estradinha estreita, esburacada e poeirenta. Crianças
sujas e mulheres desdentadas assomam às janelas das malocas, olham-no
com suspeição, as testas franzidas. Ninguém corre ao encontro dele, aos pulos.
Não é bem-vindo, ali. [...]
Colhem a água em frascos, fazem anotações. Ao redor, curiosas e
apreensivas, as ranhentas crianças da Vila. Uma idéia ocorre a Marcos. Chama
uma menina: vem guria: tens diarréia seguido? Não responde, recua
temerosa. Marcos oferece-lhe uma bala; ela pega, tímida. Tens diarréia
seguido? repete Marcos. A menina olha-o sem entender. Diarréia insiste
Marcos – desarranjo, não sabes o que é?
Ah, isto ela sabe. E faz que não com a cabeça. Não tem diarréia. Nunca?
Nunca.
Marcos faz a mesma pergunta a um mulatinho. Não, ele também não
tem diarréia. Outro mulatinho: também não tem diarréia. Bebem a água do
riacho, e não lhes faz mal.
Chama uma mulher. Comadre pergunta (apontando para um ponto
entre A e B) – por que a água aqui é limpa e mais adiante não é? A mulher olha
para a água, olha para Marcos, olha para a água de novo aparentemente a
pergunta nunca lhe ocorreu. Sacode a cabeça e vai-se, rindo.
Outra mulher se aproxima, uma lavadeira. Marcos repete a indagação.
A lavadeira pousa a trouxa no chão enlameado e desanda a falar. Narra uma
história comprida, alguns falam até em milagre, garante.
Passam os três ceguinhos, passa um homem velho, assobiando.
Marcos chama-o, indaga sobre a água. Ah, meu senhor – diz o homem,
assustado eu não sei de nada, não tenho nada a ver com essa questão.”
(SCLIAR, 1977. pp. 52-53.)
Não somente a ficção pode trazer esse outro ponto de vista sobre a
memória coletiva da cidade, e pode descrever sua paisagem de forma menos
totalizante e mais particular. É o caso do relato de Zeli de Oliveira Barbosa em
“Ihota testemunho de uma vida” (BARBOSA, 1993). Zeli, uma empregada
doméstica com o grau escolar completo, escreveu em 1972 suas
173
lembranças de experiências passadas entre 1954 e 1960, morando na Ilhota,
uma das primeiras favelas de classes populares de Porto Alegre, famoso
território da cultura negra da cidade, que foi removida, com o deslocamento de
sua população para a Vila Restinga, hoje um Bairro densamente ocupado na
Zona Sul da cidade. Diferentemente das descrições que Sanhudo faz desse
local, Zeli traz um relato marcado pelas enchentes, que são como um símbolo
das condições de vida da população que habitava, mas que expressavam
um ponto de vista moral da autora sobre o modo de vida dos habitantes da
Ilhota e os enfrentamentos éticos com a violência, a doença, a morte, a
promiscuidade:
“A minha mãe para mim é a melhor mãe do mundo, uma mulher
bondosa que no período das enchentes que as crianças não podiam ir para a
creche, pois estava tudo alagado e era impossível transitar todos os dias dentro
d’água, por isso nessas ocasiões, eles não freqüentavam a creche. Muitas
vezes meu esposo carregava no colo, pois tinha medo que nos ficássemos
doente, portanto até eu virava criança. Um dia caímos todos dentro d’água eu e
as crianças, escapando que meu marido carregava, ele havia feito uma
ponte de tabuas para que pudéssemos atravessar, quando eu estava no meio
da ponte ela desabou derrubando-nos e molhando-nos completamente. (...) O
meu menino menor é o Paulinho, que quando tinha um ano, deu uma enchente
daquelas, e ficou tudo cheio, entrando água dentro de casa um palmo mais
ou menos e não podíamos ficar dentro de casa. Em cima da minha cama eu
havia posto um plástico quadrado prendido nas quatro pontas, para que não
chovesse onde nos dormíamos. Meu Paulinho dormia tranqüilo quando, em
dado momento, a água embolsou e caiu toda em cima dele molhando-o todo.”
(BARBOSA, 1993, p.19)
O relato de Zeli forma um contraponto a narrativa de Scliar em “O Ciclo
das Águas”, mas é também um contraponto às descrições sobre a Ilhota do
ponto de vista da “evolução” do solo urbano, como vimos com outros cronistas.
Zeli não é nem mesmo uma voz identificada com a chamada “cultura negra”, do
samba e do batuque, como se encontra em outros escritos sobre a Ilhota. Seu
relato é de uma personagem como os personagens de Scliar, escrevendo sua
história na cidade de forma periférica, transitando por seus espaços e
apropriando-se de lugares, de paisagens e do imaginário da cidade a partir de
sua trajetória particular:
174
“Outra coisa que me recordo era o nome dos becos, que eram
chamadas vielas entre os casebres. Havia o Beco dos Anjos, o nosso beco,
porque tinha muita criança, também tinha o Beco do Conforto, que assim era
chamado porque as senhoras que ali moravam tinham tudo do bom e do
melhor, nem que para isso tivessem que mandar seus filhos achacarem,
pedirem comidas nas casas, o que não era muito difícil, que morávamos
perto do centro.
[...] deveria pensar na Ilhota com carinho, no entanto pensando o horror e com
tristeza porque passei os piores momentos da minha vida. Morte e prisões,
era o mais natural dos acontecimentos, logo que fui para lá.[...]" (BARBOSA,
1993, p.21)
Tais pontos de vista sobre a paisagem urbana ordenam seus elementos
de uma forma diferenciada do olhar distanciado que lhe dirigiam os cronistas
como Sanhudo ou Aquiles Porto Alegre. Ainda que estes fizessem descrições
sobre indivíduos que se encontravam excluídos do discurso histórico oficial da
cidade, como os negros, as mulheres, os imigrantes italianos, alemães, judeus,
os indígenas, o faziam numa espécie de concessão à presença destes
personagens no contexto urbano. O relato de Zeli, assim como os personagens
de Scliar, surge no confronto com a diferença, e permite perceber como esses
habitantes da cidade teciam suas táticas cotidianas no centro urbano a partir
dos mesmos espaços “fétidos”, alagadiços, “imundos”, e obscuros que
apareciam como não-urbanos, ou, pelo menos, não civilizados, nas descrições
da paisagem da cidade.
"[...] Outra vez, fui com meu marido e filhos, que eram pequenos, no
verão, a noite na praça, pois não se podia dormir tal o calor e pior ainda os
mosquitos. Sentar no quintal era a ultima coisa que se podia pensar, pois o
odor fétido das fossas em cada casa, ou melhor, em cada quintal, existia três
ou quatro fossas e mais lixos e banhados com toda a espécie de detritos que
formavam os piores odores possíveis. Muitas vezes não dava nem para dormir
ou almoçar, tal o mau cheiro. Eu tenho sorte de ter crianças sadias, que apesar
de morarmos tantos anos nesta promiscuidade e inalações fétidas, nunca
tivemos problemas pulmonares, pois tenho cuidado de fazer-lhes um exame
cada seis meses ou mesmo o colégio, quando pedem.
Como havia dito, fomos para a praça, estávamos sentados os dois e as
crianças brincavam e se divertiam brincando na areia, quando meu menino
grita, “mãe deixa eu tomar banho no laguinho,” ai disse eu pra ele que não
podia, pois aquela água era para olhar, o menino me disse, “como é que os
titios estão tomando”, foi quando eu olhei para o lago e mostrei ao meu marido
e já fomos nos levantando para ir embora.
Quando novamente a policia chegou, prendendo os malandros,
terminando assim mais um de seus intentos de perturbar a paz e segurança
175
publica. Eles, os malandros, eram em seis aproximadamente e tomavam banho
nus como se fosse aquilo a coisa mais natural do mundo, tomar banho em
praça publica com centenas de espectadores, muitos dos quais famílias com
crianças que foram refrescar-se, tal o calor que estava fazendo, pois era
dezembro e estava muito quente.” (BARBOSA, 1993, pp.28-29)
Por vezes a narrativa de Zeli estabelece uma diferença entre os hábitos
dos vizinhos e sua própria postura moral e ética. No entanto, em outros
momentos, Zeli surge mais identificada com os dramas coletivos da
comunidade:
“Uma das coisas também que deixa um homem desacreditado é aquela
tensão em que ficávamos quando havia blitz [...]
Na vila, pessoas que não tinham tido jamais um caso com a policia,
como nós erias outras famílias, era vermos nossos lares invadidos por
policiais, muitos sem um pingo de educação, se me permitem, sem nem
mesmo pedir licença, pois nesse tipo de vila eles não podiam mesmo ser
amáveis, pois sabiam o tipo de pessoas que iam encontrar[...]
Uma senhora muito disposta disse-nos uma dia, estando a falar-nos da
blitz que acontecia no dia seguinte, que se os guardas quisessem entrar na
casa dela ela ia fazê-los passar vergonha, e dito e feito. No dia da blitz, como
era de costume, vieram os guardas entrando sem ao menos pedir
licença...Como eu ia dizendo, Dona Eva sentou no urinol de costas para a porta
esperando o momento em que eles batessem com insistência na porta, para
ela dizer que empurrasse a porta, pois ela não podia, no que eles naturalmente
empurrariam pensando tratar-se de alguém querendo retardar a entrada da
policia em sua casa, e dito e feito. [...]
Quando os policiais bateram, ela fez o que disse, assustando
enormemente o homem que saiu apavorado a dizer aos seus companheiros
que não batesse naquela casa, pois a dona não estava bem. No outro dia foi
uma algazarra geral, todo mundo ria dizendo que o guarda podia ter se
assustado mesmo, pois a Dona Eva era de corpo avantajado, alta e muito
gorda e com cara de poucos amigos, se bem que ele não viu a cara dela, o que
ele viu foi seu enorme traseiro em cima de um minusculo urinolzinho, da sua
filhinha. O que eu digo é que os fora da lei jamais se deixam prender, pois
estão prevenidos contra a polícia e os outros pagam por eles.” (BARBOSA,
1993, pp. 38-41).
Portanto, sem o mesmo compromisso com o processo de remodelação
da paisagem urbana da cidade das crônicas de vereadores como Sanhudo,
vemos como essas outras vozes inserem os ambientes de banhados,
“matarias”, riachos na sua trajetória ou na trajetória de um grupo social, no
sentido de reivindicar o pertencimento a uma identidade portoalegrense, que
apesar de, ou justamente por ter sido experienciada a partir dos espaços
176
considerados oficialmente “fora” do ambiente urbano, acrescenta novos pontos
de vista para a paisagem urbana de Porto Alegre.
177
Capítulo 6 - Conflitos, éticas de segregação e de uso comum
das margens das ilhas
Este capítulo investiga as relações dos ilheros e ilhéus com os espaços
do Delta do Jacuí e seus pontos de contato com a Região Metropolitana.
Entendendo o meio ambiente enquanto espaço público no contexto de
sociedades urbano-industriais, apontarei alguns significados compartilhados
por determinados segmentos da população do Delta do Jacuí com relação às
águas, ás beiras de rio, aos banhados, às ilhas, que estão relacionados a
práticas diferenciadas que são articuladas com a questão da moradia. São
relações sociais e representações simbólicas que moldam o próprio meio
ambiente que trarei aqui, articuladas entre o que Leroi-Gourhan chama
integração espacial entre o “refúgio” e o “território de ação” (Leroi-Gourhan,
1976:145), na medida em que estuda toda a complexidade técnico-cultural que
se desvela no desafio humano da domesticação do espaço e dos ritmos
temporais. São as diferentes temporalidades das operações cotidianas
desfiadas nos espaços do Delta, e as formas em que se concretizam essas
ações (o pátio, o barco, a rua, a carroça, as cercas, os muros) que darão
diferentes configurações às ambiências na dimensão existencial dos espaços
compartilhados pelos grupos que habitam o Delta. Destaco também as
negociações éticas presentes às ações cotidianas, entre a família, a vizinhança,
e com os demais moradores da Região Metropolitana.
6.1. O lixo, as carroças, o pátio
Nazaret, ao narrar a lenda da santa dos papeleiros, conta como surgiu o
trabalho com lixo nas ilhas do Pavão e dos Marinheiros, considerado hoje pelo
Estado como grave problema ambiental no Delta do Jacuí:
Nazaret (Ilha Grande dos Marinheiros, 2003)
"Não, aqui quem trabalhava com papel na época era eu e o seu Miguel. O
finado Miguel que trabalhava com papel. Ele era o depósito e eu catava pra
178
vender pra ele. A estória do papelão mesmo que começou aqui foi quando a
prefeitura fez o Pavão de lixão. Que ali eu também aprendi, entendeu? Quando
a Ilha do Pavão, a prefeitura largou o lixo ali, as crianças iam pra ali colher
lixo. A gente dizia lixo. Ia colher ali pra vender. Ferro. Plástico. Lata. A
criançada começou a colher. Aí, eu comecei a trabalhar na minha casa.
vinham os caminhão das loja trazer porque as loja não catavam papelão, hoje
eles tão recolhendo. Então tirava, ganhava lixo da JH Santos, da Telefônica,
aqueles restos de material velho e eu, nós catava papelão em casa. Aí, Como
tinha essas mães e eu cuidava das crianças pras mães trabalharem e era difícil
pegar serviço. O Irmão Antônio Cechin chegou pra mim, trouxe uma comissão
de pessoas pra olhar o trabalho. Eu tinha todas aquelas caixas separadas. Aí o
irmão Antônio disse - Nazaret o que tu acha de nós fundar um galpão? Este
galpão vai ser fundado pras mulheres trabalhar. Eu disse é Irmão Antônio, o
que for pras pessoas ganhar dinheiro eu acho que é tudo bom. que eu não
vou pra porque eu estou aqui. ele fundou o galpão de reciclagem.
Primeiro elas começaram a catar no ar livre. depois ele fez o galpão de
taquara. Todo de taquara. E as mulheres começaram a trabalhar. Aí depois ele
fez uma cozinha, botou um fogão à lenha pras mulheres fazerem comida pra
elas trabalhar ali também. Ele começou com carrinho de papelão. As pessoas
atravessavam a ponte e buscavam papelão e colocavam ali pros outros
trabalharem. depois ele começou a comprar dos carroceiros, né? Começou
a comprar dos carroceiros. foi, foi, foi não dava vencimento. começou a
comprar da comunidade, né? E as mulheres trabalhando. Aí depois ele fez com
aquelas madeiras de eucalipto que é o que ta até hoje, que tá caindo e até
hoje. iniciou com aquelas madeiras de eucalipto. parece que ele ficou
doente, não me lembro bem da estória, aí foi quando ele passou pra prefeitura.
E os caminhão não entraram mais na ilha, das lojas, pra trazer, porque o ICM
não deixa porque era lixo. ICM é aquela fiscalização que tem ali no Pavão.
eles começaram a trancar os caminhões. ... Então ali que surgiu o galpão de
papeleiros, das mulheres papeleiras. Agora parece que tem duas associações
ali dentro. E a prefeitura começou a trazer com os caminhões o lixo, pras
pessoas trabalharem. Que fraco, né? Não tem serviço pras pessoas ali. E
assim foi a nossa luta."
Desvela-se aqui um encontro da trajetória de Nazaret com a própria
trajetória da política ambiental em Porto Alegre. O lixão colocado pela
prefeitura de Porto Alegre na Ilha do Pavão, entre 1973 e 1976, foi um dos
detonadores da ocupação irregular do Delta, na medida em que ofereceu uma
alternativa de renda em um ponto estratégico da cidade, a pouca distância do
centro da cidade e principalmente do Bairro Navegantes e da Avenida
Voluntários da Pátria, onde situavam-se as “firmas” a que Nazaret se refere.
a formação do galpão de reciclagem da ilha, oficializado pela Prefeitura de
Porto Alegre em 1990 e financiado pelo próprio Programa Pró-Guaíba como
atividade modelo, é a face mais oficial de uma atividade irregular que conforma
um mercado de trabalho informal, de galpões particulares, catadores
autônomos e famílias que separam no pátio de casa o lixo trazido de outros
179
bairros da cidade. Toda sexta-feira, os caminhões dos atravessadores
compram o material separado pelo pessoal das ilhas e levam para revender. O
lixo que não é vendido, em alguns casos, acaba tendo outros usos no solo da
ilha, sendo o principal a função de aterro dos terrenos alagadiços, causando
problemas de saneamento e saúde para a população.
A atual unidade de reciclagem de lixo “Associação dos Catadores de
Materiais de Porto Alegre”
122
, origina-se do “Grupo de Apoio às Mulheres
Papeleiras”, a primeira unidade de triagem de resíduos sólidos, fundada em
1986, tendo papel importante na divulgação dessa política municipal de coleta
seletiva e de geração de emprego e renda. Trabalho desenvolvido pelas
Comunidades Eclesiais de Base, o galpão surgiu a partir de um movimento
social para organizar os papeleiros, trabalhadores do lixo, em cooperativas.
Oliveira (1995) analisa o momento da transformação dessa política
municipal de limpeza urbana, investigando a relação do “referencial ecológico”
do Departamento de Limpeza Urbana de Porto Alegre (DMLU) com outros
domínios sociais inseridos na política de limpeza pública, como a luta pela
organização popular do “Grupo de Apoio às Mulheres Papeleiras”, originado do
movimento que fundou o galpão da Ilha dos Marinheiros. O depoimento de
Antônio Cechin em 1995 (o padre Cechin que também aparece no depoimento
de Nazaret), é revelador de como uma questão de saneamento municipal foi
transformada em política de assistência social, no caso da Ilha dos
Marinheiros:
“A sociedade civil tem uma sensibilidade a flor da pele em relação
ao problema ecológico. Exatamente é a grande chance dos papeleiros
que o os últimos, os escorraçados (....) mas a partir disto, de que a
profissão deles é uma das mais nobres e importantíssima atualmente na
era da ecologia, de que ele é um ecólogo nato e o tem consciência
disto, ele passa a recuperar sua dignidade. Então vê, nós
proporcionamos uma caminhada para esse catador ao passo que a
Prefeitura não, para eles o que interessa é a limpeza da cidade, é a
reciclagem, mas o catador é secundário. Nós temos outra filosofia. (...)
Então para nós é a figura do papeleiro, ele que se organiza em
comunidade, os problemas ligados a ele que é o problema das crianças,
os problemas da marginalidade dele; o lixo vem ligado à pessoa.”
(OLIVEIRA, W. 1995: 169) [grifos do autor]
122
Cf. Atlas Ambiental de Porto Alegre, 1998.
180
Antigamente, o galpão da ilha comprava os resíduos dos “carroceiros” e
“carrinheiros”, que traziam os sacos que coletavam em pontos de Porto Alegre,
para a Ilha. Atualmente, não se trata de um galpão de “mulheres
recicladoras”. O grupo, hoje, constitui-se em uma associação de pequenos
grupos familiares, cada um vivendo do que vende. A única fonte de lixo do
galpão é o caminhão de coleta seletiva municipal, os outros galpões compram
o lixo das demais pessoas que trazem por conta o que catam nas ruas.
Chegam os caminhões da coleta seletiva, o pessoal do galpão separa, e eles
mesmos vendem para empresas que compram, cada uma, um material papel,
diferentes tipos de plástico, vidro.
Quando estive pela primeira vez no galpão, em 2001, seu pessoal me
tratou como trata os muitos visitantes que estão acostumados a receber, em
tom de brincadeira, zombando da curiosidade com “a cara da fome”, como
diziam. Apesar de ser vitrine da política social da prefeitura, de ONG´s, da
Igreja Católica Marista, e de outras instituições, recebendo inclusive
estrangeiros que vinham em busca de implantar a mesma política em suas
cidades de origem, o galpão representa uma política que não condiz com a
atual realidade das ilhas. Não condiz, porque o próprio galpão precisa de
reformas, e o tem estrutura para lidar com a quantidade de lixo trazido pelos
demais moradores, nem tampouco de sobreviver exclusivamente do que o
caminhão da prefeitura traz. Sua renda é completada com as ajudas
conseguidas com as redes de assistência, com as doações de equipamentos,
com a sua participação nos fóruns internacionais.
As distinções que Cristina Sosniski (2006) estabeleceu, ao realizar um
estudo etnográfico entre os trabalhadores do lixo na Ilha Grande dos
Marinheiros são bem úteis para esclarecer as diversas facetas dessa atividade.
Os trabalhadores do galpão, ou unidade de triagem na linguagem técnica, são
os chamados "recicladores", treinados por agentes da política pública local, que
além de trabalharem em uma atividade oficialmente reconhecida, participam de
cursos, palestras, workshops, voltados para questões de saúde e segurança,
ou para organização do processo produtivo na forma associativa, ou de auto-
gestão. (SOSNISKI, 2006, p.13).
O princípio comunitário do galpão não é apreciado por muitas famílias
que preferem depender de si mesmas para conseguir o sustento mensal.
181
São os chamados "carroceiros" e "catadores", que desempenham enquanto
atividade familiar o trabalho com o lixo (SOSNISKI, 2006, p.13), sem participar
das mesmas políticas públicas que os recicladores, atuando em um mercado
informal do lixo na cidade.
Mas do ponto de vista da atividade, e em relação às demais redes
sociais do Arquipélago, as três categorias são percebidas nas ilhas pela forma
estigmatizada do "papeleiro" que aparece na narrativa de Nazaret, ou do
"reciclador" como uma forma positivada da atividade enquanto inserida no
mercado de trabalho urbano. Mas são categorias que se mesclam, pois muitas
famílias empregam outros moradores das ilhas nas atividades com o lixo,
enquanto outros tiveram em sua trajetória profissional tanto a atividade como
reciclador do Galpão que atua em parceria com a prefeitura, quanto
participaram ou participam das atividades nos galpões particulares e quintais,
ou mesmo com carroças e carrinhos nas ruas da cidade.
Entre os motivos alegados que levam ao trabalho com lixo, estão
principalmente o fato de que os moradores das ilhas são discriminados no
mercado de trabalho e mesmo quando conseguem emprego, ganham bem
menos do que com as carroças e carrinhos, onde se chega a juntar dois
salários mínimos no mês, com sorte (com uma carroça). Mas o principal motivo
é mesmo o de “não depender de ninguém”, que conforma o que Fonseca (2000)
aponta como um componente importante das atividades das classes populares
urbanas que já estão distantes demais do mercado regular de trabalho.
Mas outros motivos que podem ser levantados. O primeiro é o
princípio da unidade familiar como força de trabalho. Enquanto os mais jovens
fazem o trabalho de coleta nas ruas da cidade, o restante da família ajuda em
casa a separar os materiais para a venda. Isso não significa que todos os
parentes, e nem mesmo todos os filhos participem da atividade, na medida em
que aqueles que têm condição de estudar e/ou conseguir um emprego tem
parte do seu tempo reservado para tal.
O segundo motivo é a possibilidade de uso do pátio familiar para a
atividade, introduzindo o material coletado ainda em outras dimensões da casa
enfeites, eletrodomésticos e utensílios que são concertados, e principalmente,
aterro. Antes de uma ação intensiva, ocorrida entre 2001 e 2002 nas ilhas por
parte de inúmeros órgãos municipais e estaduais, o trabalho doméstico com o
182
lixo “reciclava” igualmente o material orgânico resultante da coleta para
alimentação de animais de criação, em especial, porcos e frango. Ainda que a
presença do resíduo dessa separação nos terrenos seja considerada por si
perigosa, na medida em que proliferam microorganismos na água presente no
solo embarrado das ilhas, a criação de porcos agravava em muitas vezes os
riscos de contaminação da população não das ilhas, mas de qualquer um
que fosse comer a carne suína.
O terceiro motivo é a relação da atividade no lixo com um dos sistemas
de transporte tradicionais das ilhas a carroça. A carroça é o melhor meio de
transporte para atravessar o barro das ilhas sem atolar, seja levando pessoas
ou carga. Ao mesmo tempo, “combustível” é o que não falta para os cavalos
nos banhados e matos das ilhas. O capim das ilhas é considerado dos mais
nutritivos para os cavalos, sendo inclusive uma das “profissões” tradicionais a
atividade de capineiro, a extração e o transporte do “capim”, nos caícos ou nas
carroças, que antigamente abasteciam as muitas carroças que circulavam pela
capital, mas que ainda hoje abastecem os cavalos da Brigada Militar, conforme
Pedro, um dos capineiros da Ilha Grande dos Marinheiros. Mas não são razões
práticas simplesmente, que fazem com os ilheros sejam conhecidos como
carroceiros em toda a região metropolitana. Entre as muitas razões simbólicas
(SAHLINS, 2003) estão os saberes e os fazeres relacionados à criação dos
animais e à confecção dos diferentes equipamentos, que não são exclusivos
para o transporte de cargas. Alguns moradores das ilhas são especialistas na
produção das aranhas, estruturas leves para transporte de até dois
passageiros, puxadas por um cavalo, que formam veículos de passeio, ou
mesmo de corrida, que costumavam ocorrer num prado desativado atrás do
hotel que fica a beira da estrada. Em outros locais da Região Metropolitana,
essas corridas ainda ocorrem, reunindo carroceiros de todos os lugares. Alguns
cavalos e éguas o motivo de orgulho de seus criadores, valendo às vezes
muito mais do que o valor das casas nas ilhas. o saberes e fazeres que
unem antigos moradores, que viveram a infância no tempo em que se criava
gado leiteiro nas ilhas, e novos moradores, muitos vindos do interior do estado,
que igualmente filiam-se à tradições rurais do Rio Grande do Sul em que o
transporte a cavalo tem valor simbólico importante. Aprender a montar e a
183
conduzir as carroças são uns dos primeiros aprendizados das crianças que têm
essa possibilidade.
No trânsito nas demais ruas da Região Metropolitana, no entanto,
transitar de carroça torna-se um perigoso jogo no espaço público
123
. São
muitos os relatos de atropelamento, de gente que morreu principalmente ao
cruzar a ponte do Guaíba, que não tem espaço suficiente de acostamento, em
certos pontos, para proteger um carroceiro, um ciclista ou um pedestre da alta
velocidade dos veículos que chegam da estrada. Retornando do trabalho de
campo em uma carona de carroça, não pude deixar de demonstrar o meu
desconforto com carros, caminhões, ônibus, que faziam um deslocamento de
ar enorme ao passarem rente a nós. As manobras de mudança de pista
igualmente são impressionantes, o condutor vai tocando o cavalo pelo
acostamento, fazendo conversões e movimentos inesperados que nenhuma
auto-escola ensina a prever.
O “motorista” da carroça me contou de como fazia a coleta do lixo, pela
manhã e no final da tarde, nos dias pares da semana. Seus pontos fixos eram
uma galeria, uma fábrica de perfumes na Voluntários da Pátria, e uma
danceteria famosa da zona mais badalada da cidade. Tinha um acordo com os
funcionários do lugar. Mas estes não perdoavam seu atraso nos dias de
enchente. Davam a carga para outro e ele perdia a viagem. Mas o pior era o
estigma de carroceiro: atacado de todos os lados pelos motoristas no trânsito,
temido pelos pedestres quando desce da carroça. Em meio às ruas,
carroceiros como este, que prezam por um serviço de “limpeza” oferecido à
empresas e condomínios, com pontos fixos de coleta, e outros que competem
com carroceiros e carrinheiros de outras localidades, pelo “lixo rico” que os
moradores de bairros centrais da cidade dispensam todos os dias nas
123
Em maio de 2002, 70 carroceiros, moradores das ilhas, organizaram um protesto, cruzando
a ponte do Guaíba, interditando o trânsito e reivindicando mudança nos horários permitidos
para circulação das carroças. (Jornal Correio do Povo, 28 de maio de 2002, pg 17).
Manifestações como essas e conflitos com os departamentos municipais de trânsito vêm se
repetindo ao longo dos anos. Em outubro de 2006, os carroceiros organizaram-se com outros
trabalhadores da Zona Norte de Porto Alegre para protestarem contra um projeto de lei do
Deputado Sebastião Melo que pretende retirar em até 8 anos as carroças de circulação no
trânsito da cidade. Cf. o site da Assembléia Legislativa do RS
http://www.al.rs.gov.br/Ag/CLIPAGEM/noticias.asp?txtIDMATERIA=160653&txtIdTipoMateria=8
&txtIdVeiculo=24, último acesso em 14/01/2007.
184
calçadas. O retorno ao chão da ilha, é o retorno à tranqüilidade do espaço onde
o cavalo é novamente soberano.
Falta ainda acrescentar um motivo para a adesão dos moradores das
ilhas do Pavão, Marinheiros, e Flores ao trabalho com lixo, que é a setorização
dessa atividade em um mesmo local, que oferece vantagens aos
atravessadores que compram o material reciclado, como a possibilidade de
fazer a coleta de uma vez só, um dia por semana. Cada vez maiores, alguns
galpões particulares foram construídos na Ilha dos Marinheiros, aproveitando
essa referência comercial da vila dos "papeleiros".
Estas motivações todas que esbocei, que são importantes para o
trabalho com lixo, inserem essa atividade dentro do que Eunice Durham (1984)
define como “tradição de emigração", na medida em que essa relação
idealizada entre o solo familiar (o pátio), a atividade produtiva (o lixo), e as
relações familiares e de vizinhança é buscada pelos que optam por “morar no
mato" (Caldeira, 1984) e combinar o trabalho no mercado urbano com meios de
subsistência.
6.2. Navegando nas águas da Mãe Oxum
Em setembro de 2003, pude acompanhar as negociações de
funcionários e técnicos relacionados à Secretaria Estadual do Meio Ambiente
(RS) com representantes de entidades religiosas de Porto Alegre, para
realização da Romaria das Águas 2003. A Romaria das Águas é um evento
que havia tido outras edições, em que o Programa Pró-Guaíba do Governo
do Estado do RS havia apoiado agentes religiosos atuantes nas ilhas de Porto
Alegre, sobretudo a congregação católica Irmãos Maristas, para transformarem
a procissão de Nossa Senhora Aparecida, padroeira da comunidade da Ilha
Grande dos Marinheiros, em uma procissão fluvial, levando a imagem do
santuário que se encontra nas ilhas para a margem oposta, em Porto Alegre.
Curiosamente, portanto, inverte-se essa relação entre a comunidade de
papeleiros das Ilhas e a ocupação irregular do Delta, pois a Romaria das Águas
coloca justamente um ritual de fundação dessa comunidade como evento de
educação ambiental. A romaria unia projetos diversos. Fazia parte de projetos
185
de assistência social, por parte de algumas congregações da Igreja Católica.
Era também uma forma de divulgação e “educação ambiental”
124
para o
governo estadual. Para muitos fiéis e devotos das santas e dos orixás das
águas, significava uma retomada da procissão fluvial tradicional (e por muitos
anos interditada) da cidade, realizada todo 02 de fevereiro na festa de Nossa
Senhora dos Navegantes (ou de Iemanjá para os adeptos de religiões afro-
brasileiras), em que os barcos de pescadores e outras embarcações são
benzidas e protegidas, e oferendas de agradecimentos são lançadas às águas.
Era também uma manifestação política do Clube de Mães Unidos da Ilha
Grande dos Marinheiros, e do pessoal do galpão de reciclagem da ilha, como
forma de chamar a atenção para a situação de miséria pela qual passa sua
comunidade carente. Eram projetos a princípio convergentes, na medida em
que a verba internacional do Programa Pró-Guaíba, financiado pelo Banco
Interamericano de Desenvolvimento para a realização de inúmeras atividades
relacionadas à despoluição das águas do lago, circulava na forma de infra-
estrutura do evento e assistência aos participantes (doações de alimentos, de
roupas, de combustível para as embarcações), mobilizados pela fé na força da
santa em justamente trazer dádivas das águas. Iniciada em 1994, a procissão
foi adotada como parte de ações de educação ambiental do Governo do
Estado para as novas bacias que compõe a região hidrográfica do Lago
Guaíba. Em 2003, foi ampliada para todo o estado do Rio Grande do Sul.
Essa foi pelo menos a estória que me foi relatada, pelos organizadores
da edição do evento em 2003. A medida em que fui ouvindo pontos de vista
diversos sobre a “mãe das águas” de Porto Alegre, pude compreender melhor
os pontos de amarração e os nós conflitantes entre os interessados na festa
das águas. Ocupei o lugar de um observador participante, na medida em que
produzi, na companhia de colegas do núcleo de pesquisa da Universidade,
imagens em vídeo da procissão fluvial e das cerimônias realizadas, e ainda
entrevistei algumas lideranças da participação das comunidades das ilhas
sobre a importância da procissão e do evento. As imagens foram exibidas em
alguns eventos posteriores da política de recursos hídricos (congressos e
124
Uso o termo “educação ambiental” como expressão êmica, visto que nenhuma atividade
educativa em realidade tenha sido de fato realizada durante esses eventos, apenas eventos,
campanhas de mobilização social e outras ações publicitárias que, no entanto, foram cunhadas
com o termo “educação ambiental”.
186
fóruns), e disponibilizadas também em website, incorporando reflexões
importantes sobre a produção do antropólogo na mídia e os debates éticos no
trabalho de campo mediados pelo uso do vídeo
125
.
Em setembro de 2003, assisti a uma reunião entre técnicos e
funcionários ligados ao Programa Pró-Guaíba, da Secretaria Estadual de Meio
Ambiente do Rio Grande do Sul, e representantes de diversas entidades
religiosas atuantes no estado. No ano internacional da água doce, o governo
estadual dava continuidade à transformação do evento, da sua dimensão local,
para uma investida em todo o estado, em meio às atividades internacionais da
Semana da Água. A reunião visava organizar as cerimônias a serem realizadas
na beira do Guaíba, na Usina do Gasômetro, espaço cultural e de lazer da
cidade.
Como preparação para a Romaria das Águas, uma “festa popular, de
caráter espiritual, ecológico e social”
126
foram realizadas atividades de
educação ambiental nas nove bacias da Região Hidrográfica do Lago
Guaíba
127
. Cada um dos comitês de bacia reuniu pessoas de sua comunidade
(alunos de escolas e universidades, membros de ONG's, associações e clubes
recreativos) para realizarem uma viagem até uma das nascentes dos rios que
formam a bacia hidrográfica, onde coletaram uma amostra das águas das
nascentes. Essa água estava destinada a uma cerimônia de mistura das águas
de todas as nascentes, a serem despejadas no Lago Guaíba no dia 12 de
outubro.
O objetivo, por parte dos órgãos governamentais, era claramente o de
inserir a procissão em uma programação maior de ações de “conscientização
sócio-ecológica” da Semana da Água destinadas à população em geral. As
atividades incluíam a participação de todas as organizações religiosas,
espiritualistas, ou mesmo étnicas que estivessem dispostas a manifestarem-se
no chamado “Ato Macroecumênico” de destinação de energias positivas para
as águas do Lago Guaíba. No entanto, essa reunião de tantos credos pode ser
lida por outro olhar menos preocupado com a harmonia e o universalismo
católicos, pois esta não deixava de ser a instituição religiosa dominante nas
125
ver capítulo 2
126
Como descrita em panfleto de divulgação do evento.
127
O Lago Guaíba recebe as águas de noves bacias hidrográficas: Alto Jacuí, Baixo Jacuí, Caí,
Gravataí, Lago Guaíba, Pardo, Sinos, Taquari-Antas e Vacacaí-Vacacaí Mirim.
187
articulações que antecederam o evento. A Romaria das Águas foi para
algumas dessas instituições religiosas uma mera formalidade e uma
oportunidade de divulgação. Para outras, foi uma espécie de combate.
A simples presença dos representantes religiosos na reunião da
programação da Romaria dava margem à interpretação do que estava
guardado para o dia 12 de outubro. Estavam representados na reunião a
Organização Brahma Kumaris e a Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias, que
assim como as etnias indígenas Kaingang e Guarani, o movimento Hare
Krishna, a religião Islâmica, que não compareceram à reunião mas haviam
confirmado presença no evento, manifestaram apenas a disposição de
colaborar com o protocolo. Mas a presença maciça na reunião era de mais de
15 representantes de casas de religião afro-brasileiras, entre umbandistas,
casas de nação e linha-cruzada, batuqueiros, assim como representantes de
federações diversas. Reivindicavam um espaço de tempo maior no evento,
visto que a programação lhes demandava escolher um único representante
para ter direito a alguns minutos de manifestação. Filhas de Oxum e Iemanjá
(divindades das águas), pediam para si a responsabilidade de representar as
casas de religião. Outras hierarquias se apresentavam, entre as tendências e
famílias de santo locais. A reunião que era apenas para comunicar” a
programação, acabou virando uma assembléia e uma medição de forças.
Lamentavam a ausência de representantes da Igreja Católica na reunião, pois
estes haviam se reunido no dia anterior com os organizadores do evento e
definido sua parte na programação.
Em meio ao combate que se travava na reunião, uma voz se sobressaía,
a de Mãe Bia, do Centro Reino de Iemanjá e Oxóssi da Ilha da Pintada, pois
estava somava a seu favor o pertencimento aos territórios onde se originara a
procissão, e o fato de participar como liderança local nas reuniões técnicas
entre moradores do Delta e órgãos administrativos do Parque. Reivindicava a
participação dos idealizadores da Romaria, representantes do santuário da Ilha
Grande dos Marinheiros, de onde a imagem seria trazida, nas cerimônias a
serem realizadas na margem oposta. Era uma proposta que seguia na
contramão da programação proposta pelo Estado, que justamente tentava
distanciar o sentido da festa da celebração de divindades locais, com o objetivo
universalista de contemplar todos os “Habitantes do Rio”, conforme o próprio
188
nome do projeto colocava, incluindo toda a Região Metropolitana de Porto
Alegre e as cidades do interior do estado relacionadas às nove bacias da
Região Hidrográfica.
Esse acabou sendo o percurso da Romaria, dividida em três momentos,
da sua dimensão mais local a mais regional. O primeiro momento, realizado no
santuário da Ilha Grande, com a população local, reuniu os moradores do
Arquipélago no barco que trouxe a santa a o Clube Náutico do Estado, à
beira do Lago Guaíba, no Bairro Navegantes. No clube Náutico, reuniram-se as
pessoas que iam participar da procissão fluvial: pescadores, barqueiros e
donos de lanchas que foram benzidas por um padre católico, fiéis de religiões
afro-brasileiras, que participaram das manifestações de umbandistas e
batuqueiros em homenagem à Mãe das Águas (Oxum) e finalmente as
delegações dos comitês de bacia do interior do estado que foram trazidos para
participarem da procissão fluvial. A população seguiu a bordo dos barcos de
passeio da Ilha da Pintada, que costumam fazer trajetos diários no lago, que
foram acompanhados ainda de barcos de pescadores, jetskis, lanchas,
embarcações da Marinha do Brasil, todas seguindo o barco principal, que
conduzia a imagem da santa e as muitas autoridades governamentais e
religiosas presentes ao evento.
Passando pelos canais do Arquipélago de Porto Alegre, a procissão
chegou à praia do Gasômetro, onde foi realizado o “Ato Macroecumênico”, no
qual cada autoridade religiosa dedicou um canto ou uma oração às águas.
Finalmente realizou-se um “ritual de mistura das águas”, reunindo as águas das
nascentes das nove bacias hidrográficas, que foram lançadas então de volta ao
Lago Guaíba, simbolizando a união e a interdependência das bacias e de suas
populações, pela qualidade das águas enquanto fonte de vida da coletividade.
Com as pessoas que participaram das atividades de educação
ambiental, como a coleta das águas das nascentes, o evento conseguiu
provocar certo estranhamento quanto a essas inter-relações entre o seu
ambiente de origem e as águas do Guaíba. Acompanhei essas pessoas a
bordo do barco Princesa Daiane, junto com a família e amigos do barqueiro
Mocotó, que na época estava muito doente para conduzir o leme. Com o olhar
em deslocamento a bordo dos barcos de passeio durante a Romaria, revelava-
se a surpresa de algumas pessoas com o ambiente das ilhas e canais de
189
navegação, constatando o fato de que a água que “desce” dos rios que passam
por suas cidades vai formar finalmente o corpo hídrico do lago.
Mas apesar da sua orientação democrática e universalista, o evento não
teve o sucesso esperado junto à população de Porto Alegre, tendo um público
reduzido, composto basicamente por pessoas que se organizaram junto aos
comitês de bacia do interior do estado para participar da festa, e pelos
membros das casas de religião umbandistas e de nação. Até mesmo a
presença de pescadores, barqueiros, e fiéis das ilhas foi reduzida nesse ano,
ao contrário de outras edições da Romaria das Águas. O barco em que
acompanhei a procissão levava a bordo alguns poucos moradores da Ilha
Grande dos Marinheiros, da Ilha da Pintada e da Vila Pinto, em Porto Alegre,
sendo a grande maioria dos passageiros o pessoal “do interior”, como
constatava um senhor vindo de Rio Pardo:
“Lá onde eu moro tem uma sanga que o pessoal soltam lixo. E eu recomendei
gente: vocês nem calculam o pecado que vocês tão cometendo, porque nós
recebemos o batismo com a água. A água é sagrada, quem é que vive sem a
água? ... Então pelo que eu estou notando, o povo aqui de Porto Alegre, eles
não valorizam muito a água. Porque eu não vejo, eu não vejo quase ninguém
de Porto Alegre aqui. A maioria somos nós do interior que estamos presentes
aqui.”
Já em termos de religiosidade, o evento parecia menos católico e menos
ecumênico, e muito mais um culto afro-brasileiro, com o som dos tambores,
dos cantos e o colorido das roupas tomando conta da cena. O que teria atraído
esses segmentos da população da cidade para as atrações da Semana
Interamericana da Água? Certamente não foi o evento em si que conseguiu
“mobilizar” tantos devotos da mãe das águas doces, mas, pelo contrário, foi
provavelmente a própria "Mãe das Águas" que teve esse “poder”. O fato das
atenções da cidade estarem voltadas para a água coincidiu com um momento
importante politicamente para umbandistas e batuqueiros, que reivindicavam
seus direitos a estarem próximos das "mães" das águas e fazerem oferendas.
Do ponto de vista da “meso-esfera” ética, pode-se pensar o quanto a
abordagem da política dos recursos hídricos, pautada pela negociação dos
“conflitos de uso” das águas, não revelou conflitos de uso religioso de espaços
como as margens da cidade. Trata-se de um momento em que as diferentes
190
federações afro-religiosas vêm se articulando com o poder público,
promovendo campanhas de conscientização para o uso de material orgânico
nas oferendas a serem lançadas nas águas, assim como embates quanto à
sacralização
128
de animais vinham sendo travados contra deputados e
vereadores evangélicos, ou adeptos a movimentos ecológicos.
Em fevereiro de 2004, encontrei o mesmo grupo que realizou a
procissão fluvial da Romaria retomando a procissão por água na festa de
Iemanjá (Navegantes), repetindo o mesmo ato ecumênico no clube náutico em
fevereiro, porém com menos público. Para o clube náutico iam não apenas os
fiéis que fizeram a procissão de barco e que participavam da “missa”
ecumênica, mas igualmente os devotos que fizeram a procissão a pé, e que
queriam realizar oferendas a Iemanjá como forma de agradecimento por
dádivas concedidas, lançando flores, velas, perfume e pequenas embarcações
nas águas que eram vendidas às centenas nas bancas de comércio montadas
próximo a igreja de Navegantes. Os espaços do Cais do Porto Navegantes,
mais próximos à igreja de mesmo nome, que tinham contato com o lago,
estavam naquele ano fechados, levando os devotos de Iemanjá para longe do
espaço de celebração católica
129
.
Sem entrar no momento na polêmica de cunho étnico-religioso que se
instaura nas interdições ao culto de Iemanjá a beiras das águas, é possível
perceber que as discretas oferendas, que eram interditas, ou mal vistas no dia
02 de fevereiro, ocupavam o centro das atenções, os microfones e as lentes da
Romaria das Águas, numa celebração a Oxum por ocasião da festa de Nossa
Senhora Aparecida. A realização da Romaria era mais uma oportunidade para
umbandistas e batuqueiros trazerem para a frente da cena pública o uso
religioso de espaços que lhe são tradicionalmente sagrados na cidade, como a
Praia do Gasômetro
130
.
128
O termo sacralização é usado pelos batuqueiros e umbandistas, com o sentido ritual e
simbólico que se opõe às representações de "matança" e "sacrifício" de animais do qual são
acusados.
129
A procissão da senhora dos Navegantes passou a ser feita exclusivamente por terra a partir
da década de 1980, apresentando uma imagem singular de remadores conduzindo por terra a
imagem da santa, que contrasta com a festa embarcada de outras cidades portuárias do Brasil.
(Cavedon, 1992)
130
Ao contrário de Iemanjá, Oxum possui poucos anos um espaço garantido para suas
festas, à beira do Guaíba, nas areias da praia de Ipanema, bairro da zona sul da cidade. A
prefeitura construiu até uma estátua para a entidade, apoiando a realização, todo dia 08 de
dezembro, de uma festa de grandes proporções que reúne fiéis de todo o Estado para realizar
191
6.3. A Beira do Rio não é mais o que era
Mãe Bia, do Centro Reino de Iemanjá e Oxóssi da Ilha da Pintada,
moradora da Ilha da Pintada, em uma entrevista durante as atividades da
Semana da Água em 2003, falava reflexivamente, na companhia de seus
familiares e de alguns filhos-de-santo da casa, sobre as vantagens de situar
uma casa de religião afro-brasileira no solo da ilha:
Bia (Ilha da Pintada, 2003)
“A beira do rio não é mais o que era. A água é muito suja. Até porque tem
aquela maré normal de beira de praia. Eu conheço porque me criei na beira do
rio. Em dias que a água está agitada agita aquele lixo que as pessoas vão
jogando ali. Aquele esgoto ali. Então a gente tem que ir mais para o meio
porque no meio tu pega a corrente da água. Porque os rios eles vão descendo
né? Vem Triunfo, vem Estrela, Lageado e vem vindo. no canal existe um
encontro das águas... Então tu tens que ir pro meio, que tu pega a correnteza
da água, onde ela fica firme e meio que se impõe ali, o meio é a parte que tem
mais energia ultimamente, viu? O meio. Então vai lá, pede licença e colhe
aquela água. Que ali uma resistência bastante forte, que tu pega a
correnteza, ela vai. (...) Felizmente a gente mora numa ilha, o pessoal tem
barco, já tá acostumado a fazer isso... Pra nós é muito prazeroso morar aqui, e
sentir toda a força dessas águas, dessas irradiações maravilhosas que são
emanadas pela mãe Oxum, a Deusa das águas doces, dos rios e cachoeiras...
A gente usa muita pedra, muita água, muita areia. Quando tem que pegar uma
água do rio, tem que ir muito longe. Pegar um barco, ir no meio, pra poder
trabalhar.”
A fala de Bia acrescenta um dado ao privilégio das ilhas, em termos de
acesso aos ambientes naturais na Região Metropolitana, que oferecem um
maior axé
131
aos praticantes das religiões-afrobrasileiras. Porém, esse a não
é o mesmo para todos os territórios do Delta do Jacuí. Em relação ao axé dos
as oferendas ao orixá, durante toda a noite, com direito a shows de luzes e sonorização
profissional dando destaque aos tambores, às danças e giros de pés descalços na areia e aos
banquetes, banhos e outros atos rituais que durante muito tempo eram realizados em segredo
nos espaços públicos da cidade.
131
O axé nas religiões afro-brasileiras refere-se à força espiritual, ao mana, nos termos de
Marcel Mauss (2001), que atribui características mágicas a plantas, tecidos, gestos, cantos,
ritos, mas que se referem, sobretudo, a relação fundamental entre as entidades religiosas
(Iemanjá, Oxum, Ogum, etc) com os elementos da natureza, da qual derivam-se as demais
classificações de plantas, animais, pessoas, lugares, a partir de elementos como a cor, a
textura, o movimento, compondo um complexo sistema simbólico. Assim, Iemanjá é do mar,
Oxum é a deusa dos rios, Oxóssi é das matas, etc. (Pólvora, 1994.)
192
lugares, à força espiritual creditada aos espaços sociais de contato com a
natureza, Bia afirmava uma vantagem na sua posição no ambiente urbano
132
.
Na sua fala, relacionava a qualidade desse axé com a qualidade das águas. No
“meio” do rio, onde simbolicamente a intervenção humana seria menor, a
Natureza emanaria com vigor suas forças, na água que “se impõe” na
correnteza. A beira do rio, teria por demais passado para o mundo dos
homens, poluída em suas características físicas, e simbolicamente, no sentido
da “poluição ritual” dado por Mary Douglas (1976). Em seu estudo clássico
sobre “Pureza e Perigo”, Douglas demonstra como a noção de sujeira, de
poluição ritual pode ser usada para pensar o risco, o perigo, resgatando sua
definição de sujeira: “onde sujeira, sistema” (DOUGLAS, 1976, p.50). A
sujeira é o que foge à ordem moral, à noção de “limpo”, de adequado, de
aceitável, oferecendo, por isso, perigo.
Na postura de Bia e seus filhos de santo, assim como de Nazaret que
também “é de religião” como diz, há essa relação de “respeito”, na medida em
que o “pedir licença” para colher a água, ou as folhagens para os ritos instaura
uma postura ética de preservação de tais elementos, fazendo com que se
necessite de uma “reserva” igualmente de mata nativa e água não poluída, que
se situe ao mesmo tempo fora do local doméstico de moradia e de vizinhança,
e ao alcance do espaço natural em torno, domesticado apenas em parte pelo
conhecimento de trajetos, e da dinâmica desses lugares que são encantados
justamente por se encontrarem no limite do espaço habitado, na fronteira com
o desconhecido.
Essa não é uma relação exclusiva do ethos religioso, ela se aproxima
igualmente de outras dimensões da vida cotidiana nas ilhas. Apesar de
algumas ilhas, como a dos Marinheiros não terem água encanada, a população
é abastecida através do caminhão pipa, que passa uma vez por semana
enchendo os tonéis que ficam em frente às casas. Mas a quantidade de água é
considerada pouca, sendo reservada para o consumo direto, para as crianças,
132
Em “As Esquinas Sagradas do Candomblé”, Wagner Silva (1996) apresenta uma cidade de
São Paulo permeada por espaços sagrados para os praticantes, que re-inventam suas
tradições, atribuindo, ainda que de forma negociada, o axé a produtos industrializados, às
floras de comércio de ervas, aos templos de concreto construídos em áreas nobres da cidade,
aos viadutos e outros equipamentos urbanos aos quais são atribuídas qualidades mágicas,
visto que é cada vez mais difícil ter acesso à mata nativa, estrada de terra, árvores de
determinado tipo, beiras de rio no cotidiano da metrópole paulista.
193
para preparação de remédios caseiros, sendo usada por muitos moradores
igualmente a água do rio para outras práticas, como lavar louça, ou lavar roupa.
Mas alguns moradores, como Adão, preferem a água do rio para beber, com a
qual “se criaram”, água, claro que não é “colhida” simplesmente, nem bebida
“bruta”. Como mora na ponta norte da Ilha Grande dos Marinheiros,
considera sua água mais limpa que a da “vilinha” da beira da estrada. Mesmo
assim, tem um processo de filtragem, que começa deixando a água “sentar” em
potes de vidro, para que a areia decante no fundo do pote. Depois, é filtrada
com um pano e deixada dentro da talha de barro, onde fica fresca e com sabor.
Não é Adão, mas Nica, sua filha, que ferve ainda essa água para usar na
cozinha.
Adão - O caminhão do, como é? DMAE? O pipa, vem só uma vez por semana,
e ainda trás pouca água. Se eu tomar a água deles, fico com dor de barriga
essa aí não (apontando pro rio) - me criei com essa aí.
Pesquisador - Mas não é poluída?
Adão às vezes desce com mais sujeira, mas se represa, segura nas talhas e
a sujeira vai descendo. Eu tomei até água do Gravataí. Eu trabalhava de
embarcado, e tava com uma sede! na torneira tinha um cachorrão assim, se
eu fosse ali, era um morto, dois pedaço. Entre o cachorro e o Gravataí, fiquei
com o Gravataí.”
Um outro morador conta de uma técnica para extrair água mais limpa do
rio, colocando uma pedra dentro de um balde, lançando o balde no “meio do
rio”, como Bia relata, e colhendo a água então que vem mais “de baixo”. De
qualquer forma, uma representação de uma água que “corre”, que precisa
ser “parada” para então entrar noutra categoria, não mais no mundo da
natureza, mas do domesticado. A representação da ilha em relação às águas
que traz Mocotó também no capítulo 1, sobre a ilha que tem vida, também é
significativa.
um outro morador da ponta sul da Ilha Grande dos Marinheiros,
bem mais perto de Porto Alegre, dizia que o peixe que se pega ali perto da
ponte não era bom de comer, pois o peixe que não é poluído é o que vem dos
rios “lá de cima”, referindo-se a outros trechos do Rio Jacuí.
Mas não é à qualidade da água que essas noções de pureza se
referem. Quando Bia afirma que “A beira do rio não é mais o que era”, essa
194
afirmação também se refere à mudanças estruturais que estão sendo vividas
no arranjo de casas e pátios em relação à beira do Rio, não na Ilha da
Pintada, mas também nas demais ilhas.
Nesse sentido, a fala do pescador Salomão, que mora em um dos
poucos terrenos restantes na Rua Nossa Senhora da Boa Viagem, na Ilha da
Pintada, com contato direto com a margem do Guaíba, encontra-se com a de
Bia, situando inclusive as ilhas e suas margens em uma posição na Bacia
Hidrográfica.
Salomão (Ilha da Pintada, 2003)
“Eu sou um original de dentro da água. Eu encostava na barranca e enquanto
meu pai trabalhava eu pegava a caneca e pegava a água. E fervia e tomava o
café. Hoje você não pode fazer isso aí. Hoje a água não tem essa condição. A
medida que o homem desordenadamente se afastou do princípio, do respeito
com as águas. (...) Eu tinha banca no mercado e eu virava o motor aqui. E
pegava o meu sabonete no barco e saía me lavando. Escovava os dentes,
viajando, firmava o leme, fazia tudo no caminho e um dia bem ali na boca do rio
ali eu levei a mão assim e levei no rosto assim pra lavar o rosto. E eu
cheguei e amarrei o barco e me mandei pro médico. Me deu uma ardência
no rosto e nas vistas. E fui pro médico, examinaram daqui e dali e não
descobriram o que era. Constaram uma alergia não sei de quê. E ficou por
isso mesmo. Então daquele dia pra eu não usei mais a água. Nunca mais
lavei o rosto com essa água bruta aí. A não ser quando sai aqui pra cima.
Porque o Jacuí é um rio que, é a melhor água que nós temos. quando vou
acampar nas ilhas pra cima eu lavo o rosto na água. Mas aqui não. Porque
aqui nós recebemos os poluidor né? Sinos, Caí e Gravataí. Descarrega aqui no
estuário. O Jacuí não, ele vem isolado lá de cima. E a nossa sorte é que nós
temos esse Jacuí mandando pra baixo. Porque senão isso aqui era um Tietê.
(...)Vem dinheiro do exterior, por tudo que é vias. Vamos despoluir, fazer isso,
fazer aquilo. Fazem nada. Andam aqui de voadeira, queimando 25, 30 litros de
gasolina por hora, rodando por aí. Nós chegamos em todas essas entidades,
andamos em 15 entidades, duas compareceram no primeiro mutirão que nós
fizemos. No segundo, nenhuma compareceu. No quarto que vai ser no dia 29
nós estamos com nosso projeto na mão do presidente Lula. Foi entregue
nesse almoço que ele teve aqui, em Porto Alegre.”
As atividades desenvolvidas por Salomão como o “Mão no Lixo”,
organizando os pescadores para coleta de plástico nos locais de pesca estão
apoiados em uma ética de uso comum desses lugares. Apesar de existirem
formas de controle da circulação de pescadores pelo Delta do Jacuí, pelo Lago
Guaíba, e pela Lagoa dos Patos, através das cartas de navegação que
controlam a circulação de embarcações motorizadas, e das Colônias de Pesca
(existe uma na Ilha da Pintada, a Z-5, e outra na região do Parque de Itapuã, a
Z-4), os pescadores possuem entre si códigos de ética que são escorados
195
também nas relações de vizinhança, que se dão na margem das ilhas. São
esses códigos que regulam a preferência para as embarcações em
determinados pontos de pesca, o cuidado com as redes deixadas por outros
pescadores, e em que medida o pescador age na base do “respeito” ou do
“olho grande” na competição econômica com os demais pescadores.
São códigos relacionados a determinados pontos de pesca, semelhante
aos códigos locais revelados em estudos realizados com outras comunidades
de pescadores, como os estudos de Duarte (1999), Maldonado (1994), Kant de
Lima (1997), ou ainda recentes trabalhos como os de John Cordell sobre os
“Beirados”, habitantes dos mangues do litoral da Bahia, uma comunidade de
pescadores que possui sua própria divisão dos “pedaços” do lago onde pescam,
com suas próprias leis sociais e arranjos para manutenção de suas práticas a
partir do “respeito” (Cordell, 2001:144).
Em terra, os pescadores artesanais, assim como os demais membros de
suas famílias vêm se organizando politicamente a partir desse novo contexto
globalizado que a questão ambiental permite perceber. A COOPEIXE,
cooperativa de pescadores da colônia Z-5, surgiu em 1999 como uma forma de
organizar a conservação e a venda do pescado, articulando um entreposto na
Ilha da Pintada que realiza a conservação em câmara de gelo e a classificação
sanitária do pescado com uma banca no Mercado Público de Porto Alegre. O
Mercado era o local onde os pescadores tradicionalmente vendiam o peixe
diretamente ao consumidor, atividade que foi sendo limitada pela ação de
intermediários, de donos de bancas do Mercado, e pela construção do Muro da
Mauá e o sistema de diques que isolou as docas no Cais do Porto da zona de
maior circulação de pessoas da cidade, na década de 1970.
Mas a COOPEIXE também atua nas pesquisas da diminuição da
quantidade de espécies de peixes da Região Hidrográfica do Lago Guaíba,
assim como se articula com outras atividades como a fabricação de artesanato
(bijuterias feitas com escamas de peixe), o turismo (sobretudo durante as
edições do Fórum Social Mundial em Porto Alegre), e atividades ecológicas
como a Romaria das Águas.
Tratando-se de uma área enorme, e em plena Região Metropolitana, as
negociações éticas que ocorrem no uso comum das águas e margens não
podem ser pensadas apenas no interior das comunidades das ilhas, pois
196
navegando pelas águas do Delta, os pescadores encontram-se com
pescadores de toda a região metropolitana, com barcos de extração de areia,
com os barcos de passeio, e também com as lanchas, velas e jet-skis, cuja
movimentação pode acarretar em impacto nos banhados onde se reproduzem
as espécies de peixes.
Salomão (Ilha da Pintada, 2003)
Agora nós estamos enfrentando dois problemas. O plástico na água. Mudou a
qualidade da água. E quando muda a qualidade da água, o que que sofre? As
espécies. E além disso, como se não bastasse mudar a qualidade da água, nós
temos agora uma gigantesca produção de mineradores mexendo no solo, em
baixo. Eles tão puxando nas bombas de sução as nossas desovas. (...) O
planto da margem do rio é o carcabã de desova. Ali o peixe se recua. O planton
tem o aguapé, tem a salsa, tem o pinheirinho, é uma infinidade. Mas eles
precisam existir e ficar dentro da água. Tirando eles, o que que nós estamos
fazendo? Tocando o impacto ambiental. O plástico nas ilhas ele chegando
em balsa. Tu caminha por cima, em balsa, de garrafa.
Apesar de Salomão ser um "sabedor de peixe", reconhecido pelos
outros pescadores, o contexto em que uma série de alterações no ambiente do
Delta vem causando a diminuição das espécies de peixes e da quantidade de
pescado na rede dos pescadores pode ser pensado também como uma
abertura na concepção do ambiente local.
Em 2004, o Governo Federal lançou uma campanha nacional pelo
combate ao mexilhão-dourado, o chamado "molusco invasor" originado na Ásia,
que teria chegado às águas continentais brasileiras, trazido no casco de
grandes navios. Detectado desde 1999 no Delta do Jacuí, o mexilhão
espalhou-se pela região hidrográfica, e pela sua capacidade de aderência a
qualquer superfície, por meio de pequenos filamentos, fixou-se em grande
quantidade no casco das embarcações, nos trapiches, obstrui as tubulações e
filtros de companhias de abastecimento de água e indústrias, prejudicando
também o funcionamento de turbinas nas usinas hidrelétricas, dos motores de
barcos, além de contribuir para a diminuição de espécies importantes da cadeia
alimentar dos peixes e aves, resultando, também, na alteração das rotas de
aves aquáticas. A participação dos pescadores das ilhas foi importante, com o
uso de procedimentos adequados para a limpeza dos barcos e trapiches, e na
197
realização de outras medidas para impedir a proliferação das larvas do
molusco
133
.
Também em 2004, a ameaça de uma catástrofe ambiental se abateu
sobre as águas do Lago Guaíba, as mesmas águas para as quais o Delta do
Jacuí é tão importante. Em um período de seca no Estado, o nível dos rios na
região baixou muito, aumentando em contrapartida à proliferação de algas.
Com isso, houve uma alteração na cor do Lago Guaíba, e no cheiro e no gosto
da água que abastece toda a Região Metropolitana. Embora não tenha ocorrido
uma suspensão no abastecimento, a piora na qualidade da água e a
diminuição do nível dos rios causaram apreensão. Entre os motivos para tal
situação, estão características do próprio ecossistema, somadas aos efeitos da
poluição, em que pesam, sobretudo, o lançamento de dejetos industriais,
agrotóxicos e esgoto sanitário
134
.
Ainda que estivessem acostumados a conviver com uma água com cor e
com cheiro, a catástrofe trazia também novas explicações quanto a uma
situação que afetava todo o Estado. As causas para a possível catástrofe
também extrapolavam o contexto local, na medida em que se levantava a
possibilidade da seca ter sido causada por mudanças gerais no planeta, a partir
do processo de aquecimento global do clima. Os seus efeitos também eram
sentidos na qualidade de verduras, legumes, frutas que tiveram sua produção
muito afetada na época. E sobretudo, ao final do ano de 2004, as Tsunamis, as
ondas gigantes que destruíram o sudeste asiático, e as inundações no Sul dos
Estados Unidos, que ocuparam os noticiários do mundo todo, causavam aflição
133
Cf. Relatório de pesquisa do Laboratório de Ecologia de Populações e Comunidade da
UFRGS (Silveira, 2003), e o website do programa Pró-Guaíba do Governo do Estado do RS
http://www.proguaiba.rs.gov.br/modulo1.htm, último acesso em 14/01/2007.
134
"A estação seca propicia o aumento da reprodução de diversas espécies de algas. O
fenômeno é natural e se dá de forma semelhante na maioria dos casos. Com a diminuição do
nível dos rios e lagos a luz solar pode penetrar mais intensamente em camadas onde não
costuma estar, isso somado ao aumento da concentração de matéria orgânica funciona como
uma boa estufa, rica em calor e alimento para as algas. Em 2004, as algas que se proliferaram
em grande quantidade foram as cianobactérias, ou algas azuis. Apesar de natural, o fenômeno
é agravado pela ação antrópica. O Professor e Engenheiro Químico Flávio Lewgoy, da
Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), lembra que o Guaíba sofre
com a poluição por descargas de esgoto, dejetos industriais e agrotóxicos todas substâncias
que acabam se configurando como matéria orgânica e alimentam as algas." Cf. o website do
Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do Sul,
http://www.ecoagencia.com.br/index.php?option=content&task=view&id=209&Itemid=46, último
acesso em 13/01/2007.
198
sobre as conseqüências das alterações globais no meio ambiente para as
populações localizadas nas margens dos rios.
Não são pescadores, portanto, que são implicados eticamente no uso
comum do rio. A fala de Salomão refere-se à participação da Colônia de
Pescadores Z-5 no Comitê de Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba, onde a
entidade que representa os pescadores moveu uma ação contra os
mineradores de areia, buscando restringir essa prática nas imediações do Lago
Guaíba. No entanto, participando de espaços de debate como esses, os
pescadores vêem-se inseridos na gica da impessoalidade que orienta as
negociações da lei, entrando em contradição, por exemplo, com outros
problemas ambientais, como a ocupação das margens das ilhas como espaço
de moradia.
A ocupação da margem consiste em uma das principais preocupações
dos órgãos ambientais, o pelo risco que oferece ao ambiente e a saúde,
mas também pela sobreposição de legislações que restringem a ocupação das
margens em níveis estaduais e federais. Essa ocupação da margem é também
o principal desafio no processo de urbanização de fato das ilhas, com
saneamento, colocação de asfalto, e demais melhorias de infra-estrutura.
Apesar dos clubes náuticos e das grandes mansões de luxo serem
constantemente atacadas pelas lideranças populares das ilhas como uma
privatização injusta da beira dos rios para a prática de atividades de lazer, a
ocupação da margem por famílias de classes populares, pescadores,
trabalhadores do lixo não é vista da mesma forma. O motivo muitas vezes
alegado para essa aparente contradição seria o argumento de que esses
outros usos, que não o lazer, são para “quem precisa”. Mas talvez possamos
encontrar outros argumentos nesses códigos morais que se escoram nas
relações de vizinhança, e na ética de uso comum desses espaços.
O melhor exemplo viria da Rua Nossa Senhora da Boa Viagem,
conhecida como a “rua dos pescadores” na Ilha da Pintada. Antigo espaço de
convivência da ilha, seu uso comum se dá na convivência de famílias de
pescadores e de donos de embarcações de passeio que dependem do uso da
margem para realização de suas atividades em comum. Trata-se de uma forma
de ocupação da margem como espaço público, mas ao mesmo tempo
199
doméstico, na medida em que a margem da ilha aparece como extensão do
quintal familiar, que, no entanto, é parte da “rua”, do domínio público,
fazendo com que os vizinhos usem de forma coletiva esse espaço. É um local
de troca, em que os barcos são atracados, em que o peixe é vendido ou
trocado pelos produtos do caminhão de verduras que por ali transita, em que
os pescadores permanecem fazendo reparos nas redes, em que as famílias se
encontram a beira das águas, em que as mulheres antigamente lavavam roupa
e onde ainda estendem a roupa no varal, como conta Dona Anália, que
encontrei enquanto gravava essa disposição das casas na Pintada:
Dona Anália: Ainda bem que esse ano não veio enchente. Tão prometendo
fazer asfalto aqui, mas to vendo pouco jeito. Acho que eu vou morrer e não vou
ver.
Pesquisador - Ainda tem essa coisa de lavar roupa na beira do rio?
Dona Anália: Não, agora não. Antigamente, antes de vir a água encanada
tinha que lavar roupa dentro da água ali; fazia um banco de tábua, ficava as
vez com a água por aqui assim.
Pesquisador - A senhora lavava?
Dona Anália: Lavava, ih, ó.
Pesquisador - E como é que limpa melhor?
Dona Anália: Olha, eu prefiro dez vezes ali.
Pesquisador - Por quê?
Dona Anália: Não sei, porque a gente está acostumada, acostumou de
passar trabalho. Às vezes no verão ainda, agora não , muito esgoto, muita
imundícia. Mas de primeira, bah, se via mulher de joelho lavando roupa no
rio. Agora tem água encanada. Mas agora nem dá por causa do esgoto,
banheiro, água suja. Até dá nojo.
O asfalto que Dona Anália aguarda, construído em uma parte da rua
junto com um calçadão, traz consigo a melhoria das condições de vida na rua,
que passa a estar mais protegida das cheias dos rios e principalmente fica livre
do barro. Mas ao mesmo tempo promove uma valorização econômica dos
terrenos que passam a ser procurados por donos de lanchas e outras
200
embarcações como uma opção de residência de fim de semana, para os
“burgueses” a que Salomão se refere
135
.
Não a pesca, mas outras atividades estão escoradas a partir dessa
relação com a margem, como a construção de embarcações por parte da
família de João Mocotó. De um lado da rua fica a residência da família, onde
moram Dona Maria, esposa de Mocotó, na companhia dos filhos e netos,
dividindo-se entre as três moradias que ocupam o quintal. Do outro lado da rua,
fica a casa de Mocotó, em um primeiro momento, um pequeno quartinho que
servia também de depósito para guardar o material usado na construção das
três embarcações que pude acompanhar durante o trabalho de campo. As
duas primeiras foram enormes barcos de passeio, que partem da Usina do
Gasômetro levando os moradores da cidade pelas águas do Delta. Uma delas
foi vendida, a outra, o Barco Princesa Daiane, ainda era em 2004 a principal
geração de renda da família. O enorme barco fica “estacionado” na margem,
quando não está circulando pelo Guaíba. A terceira construção de Mocotó em
sua oficina na beira do rio foi uma casa flutuante, uma casa pré-fabricada que
foi colocada sobre uma balsa construída ali mesmo.
Embora sua oficina montada à beira do rio possa ser interpretada como
ocupação privada da margem e a como impacto ambiental, na medida em
que os materiais utilizados na construção das embarcações vão sendo
acumulados na margem, não nenhuma contradição para Mocotó em sua
atividade como barqueiro, na medida em que ocorre toda uma negociação com
a vizinhança que também se vale desse tipo de ocupação.
A mesma relação encontrei entre os moradores das imediações da casa
de Adão, na ponta norte da Ilha Grande dos Marinheiros. A prática de arrumar
a estrada para facilitar a passagem dos carros, ou o cuidado em comum das
crianças são relatados como parte dessa ética. Mas é certamente nas épocas
de enchente, como pude acompanhar em 2001 e 2002, que a solidariedade
entre os vizinhos é reforçada, na forma como os meios de transporte como os
barcos e carroças são compartilhados, nas caronas e no transporte de comida
e doações para os alagados. Também na reconstrução das casas ocorre a
135
Ver capítulo 2 e 7.
201
ajuda mútua, tanto na mão de obra quanto no abrigo de pessoas e pertences.
A enchente é como um ritual de iniciação para os novos moradores.
6.4. As enchentes e a Ilha Assombrada
As enchentes são tecnicamente consideradas grave problema ambiental
e mesmo de saúde pública com a proliferação de epidemias e o risco de
contaminação das águas. o também um dos principais motivos para a
remoção de habitações da beira dos rios, não porque contribuem para a
degradação do leito do rio, que sem a vegetação nativa tende a aumentar em
largura, mas não em profundidade, mas também porque as residências correm
o risco de serem levadas pelas águas. Nas representações dos moradores, no
entanto, ela se torna uma marca na identidade de ilhéu, ou de ilhero,
representando ao mesmo tempo as adversidades de morar em uma situação
de risco, e a capacidade de superar essa situação fazendo durar um modo de
vida em meio às águas. É justo quando as águas baixam, quando as pessoas
começam a retornar para casa dos abrigos improvisados na escola e nos
terrenos mais elevados, que é possível observar as soluções encontradas por
alguns moradores para superar essas adversidades. Durante as enchentes,
reforça-se a utilização da categoria “ilhacomo sinônimo da comunidade (“aqui
na ilha...”), ou mesmo das comunidades do Arquipélago. O “povo das ilhas”,
ilhado pelas águas, tem claramente demarcadas as suas fronteiras.
Os conhecimentos sobre as épocas de enchente (entre julho e setembro,
geralmente) e sobre as condições que anunciam a subida das águas (grande
quantidade de chuvas com forte vento sul que represa a correnteza do rio)
somados a um “saber-fazer” (Certeau, 1998) que inclui as preocupações com a
casa, o pátio e o transporte, são conhecimentos que fazem a diferença no
aprendizado da vida na ilha. A casa construída sobre enormes postes de
eucalipto enterrados, os mesmos utilizados pela companhia de energia elétrica
do estado, além dos aterros, são providências tomadas por muitos que
enfrentam a enchente, e permanecem. Mas é a inserção dos novos moradores
entre as redes de ajuda mútua que são assistidas por diferentes instituições
202
que atuam nas ilhas, que incluem também esses novos moradores entre o
“povo das ilhas”.
As enchentes reforçam também uma relação com as ilhas como
microcosmos, não pela questão da ilheidade abordada no capítulo 1, mas
pela submissão desses territórios a uma abundância da Natureza colocada nas
águas. Quando Nazaret conta que é feliz com a enchente porque ela lava o seu
pátio
136
, é como se dissesse que ao invés de ter as condições ambientais
agravadas pela enchente, pela circulação de transmissores de doenças nas
águas que permanecem no solo das ilhas, é justamente o fato da água levar
embora as impurezas que renovaria as condições de vida dessa população.
Da mesma forma que Nazaret, o pescador Cláudio discordava de mim
quando eu lhe falava da função ambiental dos banhados do Delta do Jacuí, que
são “reguladores de enchentes”
137
e uma espécie de “filtro natural” para as
águas. Cláudio afirmava que as ilhas estão “em cima da água”.
Cláudio (Ilha Grande dos Marinheiros, 2002)
“A água, ela vem de baixo pra cima, ela vem. Pode cercar toda essa ilha assim
em roda que a água chega igual. Porque ela vem de baixo pra cima, a água
vem do chão. Vem de baixo. Poderosa mesmo. Temporal e água. Essa ilha tem
muita história pra contar”.
Para compreender a veiculação desses saberes e a sua relação com a
ética local de ocupação das ilhas, escorada nas relações de vizinhança, é
preciso investigar o papel da narrativa oral na transmissão desses
conhecimentos.
Adão (Ilha Grande dos Marinheiros, 2002)
Isso foi na baixa de 40, na baixa da enchente. (...) Eu não me lembro, mas,
demorou um pouco. Acho que levou, quase um mês, eu acho, pra baixar. É
quase um mês, por aí, né? E depois quando baixou. Tá, nós ia vindo. A água
vinha baixando nós vinha chegando pra beira do rio, né? Com a mochila atrás,
tudo. Tá. Até que a água baixou, nós viemos embora. Então não tinha casa,
não tinha nada. Que que ia fazer, né? a roupa de cama, e as panelas.
136
Cf. Capítulo 2 e 7.
137
“(...) A ocorrência de cheias na maior parte dos terrenos das ilhas faz com que muito menos
intensas sejam as inundações no continente, isto porque o volume da água capaz de ser
absorvido pelas ilhas, é da ordem de centenas de milhões de metros cúbicos.” (PARQUE
ESTADUAL DELTA DO JACUÍ - PLANO BÁSICO, 1979:33)
203
fomos parar num galpão, ali em cima. Paremos naquele galpão. Tudo bem.
Agora vou contar a estória. Tudo bem, paremos ali, nós. Os véio parava pra lá,
assim, no galpão, e nós dormia no chiqueiro, chiqueiro era o celeiro. (...) Tudo
bem. Rapaz! A cachorrada. Era noite e dia, rapaz, aqueles cachorro. Aqueles
cachorro desconfiavam das coisas. Corriam que chegavam a chorar em roda
da gente, que a gente dormia e aqueles cachorros. Tá, tudo bem. Agora vou
contar. Isso, não... Eu vi, né? Eu vi. Então a mãe falava assim, no tal de bicho
preto, é, porque o bicho preto, passa aqui, onde ele passa ele arranha o chão,
né, tudo. A gente ficava: Será que a mãe não mentindo? Nós uns pros
outros, né? Deus o livre duvidar da véia. tá. um dia de manhã, né, a
cachorrada tava doida.Doida, mas eles se enfiavam, enfiavam galpão a dentro
os cachorro.Casa não tinha, né? Era o galpão, só. Olha, rapaz! Eu vi um
cachorro preto, desse tamanho! Mas um baita dum cachorro, comprido assim,
sabe? Comprido assim, e dessa altura assim. Era um cavalinho. E eu olhando
bem e o cachorro passou correndo pela beira da estrada e eu chamei: Ô
Jorge, ô Reco, ô Tereza! Chamei a minha irmandade, tudo. - Ali, olha o bicho
preto! Olha o bicho preto lá! Olhá rapaz. Isso foi na baixa de 40, na baixa da
enchente... Mas tinha que ser o tal de bicho preto. Tinha que ser, eu mostrei
pra ele, tudo. Até agora nós conversemo essas coisa, eu e o Jorge, né.(...)
Então essa estória eu queria contar pra vocês. Hahahahaha! Hehe. Eu queria
contar essa estória.
Muitas das pessoas mais velhas que viveram a infância em Porto Alegre,
lembram da famosa enchente de 1941 que deixou as ilhas completamente
submersas e o centro da cidade alagado por quase um mês. Nas ilhas, essa
lembrança tem a força de um “começo” na história pessoal de muitos velhos
moradores. Quando contei a Seu Adão sobre essa terrível enchente, narrando-
lhe o que eu ouvira e vira em fotografias, ele me surpreendeu ao contar as
mais densas imagens de sua infância, tendo saudades de quando a família
ficou “flagelada” em uma área mais elevada da região. Ao lhe perguntar sobre
a descida das águas e a decisão da volta ao chão familiar, não era a casa
levada pelas águas a imagem que o detinha no relato, mas o “bicho preto” que
aparecia no terreno familiar.
O gesto de Adão, ao “narrar” a sua resposta, denota o caráter metafórico
e alegórico de seu discurso, ao contar não como as coisas são, mas com o que
elas se assemelham e se relacionam (LÉVI-STRAUSS, 1996). Essa narrativa
foi contada por Seu Adão no desenrolar de outras, em que era recorrente a
presença de um mistério, na forma de um animal fantástico, uma luz, uma
sombra, espíritos de escravos, mulheres de branco, moedas antigas, temporais,
redemoinhos nas águas. Essas epifanias (DURAND, 1988, p.15) se
manifestavam nas narrativas relacionadas a espaços do Arquipélago e tempos
do cotidiano que são liminares entre o domesticado e o sobrenatural, tais como
204
o mato, as águas, os banhados, a noite e suas divindades e seres fantásticos.
A figura do animal fantástico na narrativa retoma o gesto de refundação da
comunidade nas ilhas após a enchente, de inserção nessa paisagem e de
aceitação dos desafios de seus ritmos cósmicos de morte e renascimento.
Ao trazerem a figura do pescador e do barqueiro que se lançam nas
águas, do caçador, do “capineiro” e da benzedeira/bruxa que se embrenham na
mata escura, essas narrativas falam de uma forma de conhecimento desses
espaços e seus ritmos que é um reconhecimento das muitas “faces do tempo”
(Durand, 2001), dos saberes e fazeres dos antepassados que fundaram esse
viver coletivo em meio às águas e os banhados, e que são retomados e
reinventados em tempos de degradação ambiental e crescimento urbano, sob o
desafio de fazer esse modo de vida durar. Não foi à toa que os momentos de
cheia dos rios, que pude observar, eram os momentos em que essa identidade
era reafirmada com mais força. Contrapondo-se às notícias de morte, doença e
perda, o prazer dos ilhéus em falarem de outros “dilúvios” passados não
deixava de trazer uma certa heroicidade ao narrador que hoje em dia, já espera
por nova subida das águas, pela água que toma de volta “o que é dela”, como
diziam.
Para que emergissem nas narrativas essas “faces do tempo” era preciso,
portanto, investigar de perto como alguns narradores contavam sua própria
trajetória através dessas imagens. O narrador vale-se de um saber
compartilhado por uma “comunidade narrativa” (LANGDON, 1999) para
interpretar sua trajetória, na medida em que o tempo de vida é transformado
em “tempo pensado”
(BACHELARD, 1988), ou melhor, tempos pensados, na
ação narrativa.
Adão (Ilha Grande dos Marinheiros, 2002)
"O rio é cheio de mistério. Aqui em frente do colegião, ali ó. Tem um segredo ali,
né? Tem um segredo ali. E esse segredo deve ser duma fortuna muito forte.
Uma fortuna muito grande. Que pega, o pescador pega um espinhal, pega um
troço em baixo lá. E eles vêm puxando aquele troço lá. Vem vindo. Vem
puxando, vem puxando e vem vindo bem leviano. De repente aquilo pesa.
Pesa e vem vindo, vem vindo, vem vindo. Tá. Quando chega aí, mais ou
menos uma altura assim, ó. Pra sair na flor da água, flor da água a gente
chama é na, né? Entende, né? E escapa aquilo. tá. Os nêgo por aqui
tomaram umas cangibrina meio forte e foram lá. Garateá. Prontamente, né?
Na primeira pistolada, esse Raul também. achou, pegou o troço aquele.
Era pela volta das onze hora, meia noite, puxaram, puxaram, puxaram, até!
205
Até quanto deu né? não enxergava. Tá. Daqui a pouco eles olharam pras
beirada. Em roda do caíque, diz que era uns bicho preto, voando em roda.
Tudo tudo voando em roda. Deles ali. Largaram tudo! Hahahaha! Largaram o
dinhero lá. Isso é um mistério que tem ali. É um mistério que vem até em
cima. Quando chega naquela distância se some. E é todo pescador. Isso é
uma coisa que é verdade. Mas é uma verdade que a pessoa tem que tá junto
pra vê. E é verdade."
A face “assombrada” das ilhas, configurada a partir das narrativas orais
que são relacionadas ao “tempo dos antigos”, foram o primeiro objeto de
pesquisa que estudei entre as populações do Delta do Jacuí. Nos trabalhos
anteriores (DEVOS, 2003), foi a questão da arte de narrar, da forma como
pensavam o tempo e o configuravam na narrativa que ocupou a centralidade
da análise etnográfica. Mas foram igualmente estes trabalhos que inspiraram a
abordagem que trago neste capítulo, da relação com o espaço, da “imagem do
mundo” que se desvela em diferentes práticas dos seus habitantes. A narrativa
oral permanece sendo fundamental no trabalho de campo, para a investigação
de práticas que estão relacionadas a um modo de vida em íntima relação com
os banhados, com a vegetação e as águas do Delta do Jacuí, como a caça, a
pesca, a extração vegetal. o práticas como essas que formam a imagem
idealizada das ilhas como espaço natural colocado estrategicamente em
relação ao urbano, que, no entanto, não podem ser estendidas simplesmente a
todos os moradores. Essas práticas serão aqui analisadas em conjunto com a
narrativa oral, nas suas inter-relações entre os gestos e posturas dos
narradores com os gestos e práticas em meio à paisagem das ilhas que
conformam uma memória desses saberes e fazeres transmitidos pela relação
ouvinte/ narrador.
Nas ilhas, pude ver como as narrativas traziam esse componente de
uma forma muito particular de conhecer os espaços das ilhas, se embrenhando
nos mistérios da mata fechada, na luminosidade das águas cercadas por
vegetação. Essa narrativa de Adão é significativa de como a prática da caça
“assombrada” do tatu e da capivara, feita à noite, em meio a vegetação
fechada dos matos e banhados, insere-se numa paisagem noturna, plena de
sons, seres fantásticos e luzes que são associados às manifestações
sobrenaturais.
206
Adão (Ilha Grande dos Marinheiros, 2002)
"Ah é. A Ilha do Lobisomem. Ali tem um pé de angazero muito velho, né? Muito
velho. E é muito assombrado ali. A Ilha do Lobisomem é ilha assombrada
mesmo, assombrada. Mas o pessoal para ali, tudo. Sempre vinha desconfiança.
Por fim não é mais assombro, é a desconfiança, né? Sei lá, a imaginação, a
pessoa já vê as coisa. Tudo bem. Fomo caça capivara. Eu e o irmão. O Irmão é
o Raul, eu chamo ele o Irmão. Toquemo pra lá. Trepamos em cima da árvore.
Daqui a pouco. Eu falei pro Irmão: - Ó Irmão, vem o bicho aí. - Será Seu Adão?
Digo - É. Escuta só. Aquilo vinha quebrando tudo, né? bem. eu gritei pra
ele: - Fica quieto. Rapaz de Deus, eu sentado, tava altinho assim.E era um boi.
Era um boi branco. Eu quebrava os galho de pau, quebrava os toco, atirava
nele, ele sóóó aparava na guampinha. O Irmão: - brincando, seu Adão? Ele
tava longinho de mim, né? Digo: - Brincando o quê rapaz, tem um baita dum
boi aqui! Diz ele: - Mas não é o bicho? - Não, é um boi, vem cá vê. E agora? E
agora pra descer de pra vim cá? eu disse pra ele: - E agora como é que
eu vou fazer, como é que eu vou descer aqui? Não podia fazer nada, mas não
tinha, não tinha boi, não tinha nada, não tinha ninguém ali. se sumiu, parou
o troço. Agarrei disse: - Ô Irmão, encosta ligeiro aqui, vamos descer aqui. Tinha
uma borboleta. Olha, não vou exagerar, tchê! Mas ela tinha as asa desse
tamanho, assim. Aquele bicho voando de baixo de mim, assim. Ah, rapaz.
Começou a me dar um nervoso. Começou a me dar um nervoso aí eu digo: - Ó
irmão, apura duma vez ó. Aquele bicho ia rapaz. Aquele bicho fazia vento
em mim assim, rapaz.. E ele viu bem onde é que tava o bicho, né? Tá. Tudo
bem. Encostou, viemos embora. no outro dia foi pros Morrete. O Raul aí. No
outro dia foi pros Morrete. Chegou nos Morrete, conversando com o Paulo
Cachapa. E o Paulo Cachapa tem esses aparelho de cavar dinheiro, né?
Foram pra ali, os dois. Rapaz, eles nem fizeram um buraco, fizeram uma lagoa.
Claro, na berinha da água, né? Fizeram uma lagoa. Não arrumaram nada. Não
arrumaram nada. A gente coisa, que a caçada mais assombrada é a
caçada de tatu e a caçada de capivara, né? Eu eu dizia pra ele - A gente
coisa mesmo. A gente coisa horrível, rapaz! E de noite tu dormindo tu
sonha com aquilo. Tá, viemos embora. Eu digo pra ele: - Ó eu vou largar a
caçada, eu não quero mais isso. um nervosismo na gente, sabe? Eu não
andava em sossego. Digo: - Não, mas eu não vou. Mas reviraram. Onde eles
desconfiavam que tinha, onde aparecia coisa eles cavaram tudo. E tão aí, na
mesma porquera."
Mas as narrativas apresentam também descontinuidades entre as
diferentes formas de apropriação social dos espaços de banhados, canais,
margens. Em especial, destaco o quanto é reforçada a importância desses
espaços abandonados (mas nunca desabitados), na vida cotidiana desses
narradores. O “mato”, os banhados, protegidos enquanto patrimônio ambiental
pelos órgãos de proteção ao meio ambiente, ou ocupados pelos “barracos” da
vila, não possuem os mesmos significados que os expressos nas narrativas.
207
Significados semelhantes ao que Ellen e Klaas Woortmann (WOORTMANN e
WOORTMANN, 1997:29) analisam enquanto o lugar fundamental que ocupa o
“mato” nos espaços de trabalho dos “sitiantes” de Sergipe, visto como fonte de
recursos como lenha, espécies vegetais e caça, e, principalmente, como um
espaço que acompanha um ciclo de longa duração em que o mato é derrubado
para criação da roça, e a roça é abandonada para que o mato retome o seu
lugar.
Nas ilhas, os espaços a que se referem às narrativas são os espaços
por excelência das práticas de pesca próximo às beiras de ilhas hoje
desocupadas, onde existem grandes quantidades de peixes, visto que são
seus espaços de reprodução e onde a água é “mais quente” para o peixe se
abrigar, como contam os pescadores. Os espaços da caça assombrada, como
conta Adão, são igualmente espaços onde o “mato tomou conta”, que não são
manejados cotidianamente nas atividades das pequenas propriedades rurais e
se encontram no limiar entre o domesticado “natural” (enquanto familiar) e o
sobrenatural.
O etnobiólogo D. Posey estudou as “ilhas de florestas”, “cultivadas
pelos Kayapó, no Brasil, mostrando como essa população indígena realiza,
milenarmente, um processo de cultivo “inconsciente” da biodiversidade
amazônica, na forma de “bosques sagrados” (POSEY, 2001, p.283). Trata-se
de um manejo a longo prazo dos recursos naturais, visto que existem espécies
semi-domesticadas que, durante milênios, foram espalhadas em áreas
conhecidas no interior de florestas e cerrados, antigas roças que se tornam
reservas de caça e pomares, uma vez que, desde o principio foram manejadas
pelos Kayapó para serem como tal. Tais locais, espaços abandonados pelas
antigas tribos, são protegidos por espíritos, e são acessíveis a pajés e
caçadores, fazendo com que existam reservas protegidas com vegetação
secundária em desenvolvimento, com elevada biodiversidade que também atrai
muitas espécies animais. “Os espíritos efetivamente agem como agentes de
proteção ecológica.” (POSEY, 2001, p. 283)
A questão que se coloca é, portanto, como essa apropriação social de
recursos naturais pode ser pensada no Bairro Arquipélago, em plena Região
Metropolitana de Porto Alegre. Não se trata de efetiva proteção do ambiente
208
por parte dos espíritos”, em face do contexto atual de degradação ambiental,
mas de uma postura ética de uso do “bem comum” que essas narrativas
veiculam, na relação que estabelecem entre os espaços de uso privado e os
espaços destinados ao uso coletivo por parte dos membros da comunidade
que reconhecem essas fronteiras.
As maldições dos escravos que guardam tesouros afundados nas águas
ou enterrados na raiz de velhas árvores apresentam imagens que não apenas
remetem a um passado remoto, mas que podem ser interpretadas enquanto
“espíritos protetores” que representam códigos morais e éticos, sanções ao uso
abusivo desses espaços, movido pela ganância e pelo “olho grande”. As
narrativas promovem uma relação de dádiva com as águas, a flora e a fauna,
que aparece, por exemplo, nos relatos das épocas de enchente em que as
águas tomam de volta o que é delas (a terra), mas com isso trazem novas
dádivas, e “limpam” a terra. Trata-se de uma leitura dessa paisagem e uma
postura quanto a esses espaços, portanto, que as narrativas trazem na forma
como a Natureza das ilhas pode ser interpretada, a partir de seus ritmos
cósmicos. Mais do que isso, trata-se de uma postura ética de uso de “bens
comuns”, espaços que podem ser pensados não como espaços intocáveis,
como as políticas ambientais conservacionistas procuram impor, mas como
espaços públicos, de diferentes formas de apropriação por parte de grupos e
indivíduos.
Cláudio (Ilha Grande dos Marinheiros, 2002)
"Eu vinha no barco. Vinha no barco. Vinha eu e um irmão meu, né? E como
tem esse pinheiro pra cima, saiu de perto da figueira assim. Umas onze a
doze bola de fogo assim que subia. Subia, era até um dia de vento leste muito
forte. E eu vi aquilo e meu irmão ia remando de costa pra aquilo e eu ia de
frente, né na popa sentado, aí assim eu disse pra ele: - Paulo, Paulo lá, olha lá,
olha aquilo ali. Um monte de bola de fogo saindo assim, tipo um liquinho aceso
assim, entendeu? Bem forte e se desmanchava no ar. E... muitos diziam que ali
tinha ouro. Acho que ouros ali. no outro dia. (...) na outra terça eu fui lá mais
aí a lua tava muito clara, né? Fui a pé, fui a pra olhar. Se de repente tem
ouro enterrado vamos cavar, né? E a figueira lá, a figueira ainda, não sei
se é esse o mesmo ouro. Então diz que ali sai, eu vi sair ali. Uma, tipo uma,
uma pessoa de branco, uma mulher de branco saía assim. Passava pela,
cruzava. Saía dali e passava pro outro lado assim, olhando pra gente. Um
monte de gente diz que tem os escravo ali. Tinha uma casa que embaixo tinha
um porão e tinha até corrente pra amarrar os escravos. É. Muitas coisas eu
vi assim, né?"
209
Laci (Ilha Grande dos Marinheiros, 1999)
"Eu não sei, acho que é do tempo dos antigo, né? Porque uns anos atrás eles
traziam, traziam os escravos da cidade, a remo, né? Eles traziam dois, três
escravos. Branco, preto os coitado. E depois enterravam e matavam eles e
botavam eles pra eles cuidar o dinheiro. E aquele espírito ficava ali. Porque o
espírito não morre, nunca morre, fica vivo. Seja pro bem, seja pro mal ele fica
vivo, né?"
Essas narrativas são, no entanto, referidas a esses antigos moradores, e
enquadram um "tempo dos antigos" (DEVOS, 2003) dissociado de um contexto
contemporâneo dos conflitos pela ocupação dos terrenos das ilhas. É algo que
se expressa certamente em categorias acusatórias quanto ao compartilhar dos
espaços públicos das ilhas com outros grupos sociais, que é o caso da "vila" na
beira da estrada, associada ao crime, à violência, e a uma transformação
desses códigos morais revelados nas narrativas. "Hoje em dia até
assombração tem medo" brincava Adão, em um dia que conversava com ele e
a filha em sua casa. Sua filha não concordava, no entanto, com o pai, tendo
vivido um tempo com um companheiro na "vila", feito muitas amizades, e
participando de uma mescla dessas redes de antigas famílias do Arquipélago
com as famílias chegadas às ilhas após a construção da ponte no final da
década de 1950. O próprio Adão reconhecia que o "respeito" se estendia a
figuras como ele, com um lugar assegurado na memória coletiva local e nas
redes de vizinhança, e que ele nada temia no solo da ilha, pois tinha
"conhecimento" nas redes locais.
As sutilezas desses arranjos permitem pensar em outra possibilidade de
rompimento com essas éticas do "respeito" com os espaços naturais, que
estão expressas amesmo nessas categorias acusatórias, na medida em que
a criação dessas fronteiras ("antigo", "vileiro", "rico", "pobre") em que a
diferença social aparece como uma leitura de uma "cultura de violência" que
Tereza Caldeira (2000) investiga, enquanto expressão do padrão de exclusão e
segregação da sociedade brasileira, que se reflete nos "enclaves fortificados",
nos quais muros, grades, sistemas de segurança negam o caráter plural dos
espaços públicos, voltando-se para o espaço privado.
6.5. Os "ricos" e os "pobres" nas ilhas
210
De fato, depois de um tempo sem transitar pelas ilhas, surpreendi-me
com uma nova configuração do espaço, que pude observar na Ilha Grande dos
Marinheiros em 2005: a tendência à colocação de enormes cercas de madeira
(de eucalipto) escondendo completamente as residências que ficam na beira
do rio, os galpões de reciclagem, e alguns terrenos utilizados como
atracadouros de donos de barcos que mantêm “caseiros” moradores das ilhas
cuidando de suas propriedades. Os muros que são constantes nas residências
de luxo da Ilha das Flores e na entrada da Ilha da Pintada, começam a ter seu
contraponto em meio à vizinhança de classes populares da Ilha Grande dos
Marinheiros. Estariam se rompendo essas relações locais de vizinhança, em
direção à impessoalidade e ao uso de sistemas de proteção e exclusão típicos
dos centros urbanos?
Retomo aqui um diário de campo
138
, refletindo sobre o resultado do
início de um processo de ocupação de um terreno vazio nas ilhas, que
atualmente se configura nos arranjos de uma favela urbana, com casas
construídas uma na continuidade da outra, com "puxados" de dois andares em
algumas, com ruelas e becos estreitos.
"Dia 05 de julho de 2002. Um domingo quente de sol. Em pleno julho. Enquanto
cruzava a ponte, avistava uma paisagem nova na Ilha: um acampamento, à
beira da estrada que segue da ponte para a zona sul do Estado (uns 20 metros
distante), em um terreno abandonado que virava banhado após as chuvas,
onde, até uma semana atrás, pastavam alguns cavalos amarrados. Lonas
pretas, pessoas circulando de um lado para outro, lotes separados por
barbantes, gente conversando, tomando chimarrão sob as lonas, ocupando o
terreno. Reparo em um velho sentado com a mulher na ponta do acampamento.
Ele me acena. Eu entro no lote dele e puxo conversa. A., um senhor de uns 60
anos, junto com a esposa. Sentados em um tronco de árvore, em frente a uma
barraca recém erguida. São duas telhas encostadas rente ao chão. Era mais
um abrigo para uma possível chuva e uma marca de assentamento no local.
Um fogo de chão, uma chaleira para o chimarrão. Pergunta-me: “O senhor é da
Ilha?” Respondo: “Não, moro no centro. E vocês, são de onde? Do Pavão”,
responde A.. Na Ilha do Pavão estavam em “área de risco”, categoria que se
refere às ocupações “precárias” na beira dos rios e na proximidade das
estradas. “Tão querendo tirar a gente de lá”. A mulher reclamava da vizinhança,
que “não dava mais”. (...) Ao lado do “terreno” de A., um grupo marcava outro
lote. O novo morador queria aumentá-lo. Os homens discutiam. Aproximam-se
dois deles, perguntam pelo nome de A.. “É pra ver aqui na lista”. A. fala “eu
tava dizendo pra esse moço que aqui não tem ninguém de fora”, “é da ilha.”
Os outros dois respondem juntos: “Só da ilha, é gente das ilhas tudo.”
Pergunto sobre a demarcação do terreno ao lado, do morador que reclamava.
138
Reproduzo aqui uma parte do diário, que consta na íntegra em minha dissertação de
mestrado (DEVOS, 2003)
211
“Esse aí, vamos votar pra botar ele no fundo!” O outro concorda: “É, bota
na água!” O fundo do terreno ainda era o banhado. A. estava mesmo na melhor
parte do terreno, mais seca, em frente à rua, com iluminação. Quem chegava
depois, pegava os piores lugares. Os terrenos, loteados por barbantes, tinham
áreas de 10 por 8 metros, aproximadamente, com espaço para ruas estreitas
no meio de alguns lotes. Os dois “líderes” do movimento se dirigem ao “vizinho
e A. ainda brinca com os dois: “Quem é o presidente agora?” Risadas.
Mas de engraçado, a situação não tinha nada. Como pôde surgir, em
uma semana, mais uma parte da vila? E como a situação, levada com
jocosidade pelos moradores, pode revelar o que pensam essas pessoas sobre
a situação em que se encontram hoje, sobre as ocupações irregulares” nas
ilhas e, principalmente, sobre a maneira como lidam com esta situação?
Quanto ao local, tratava-se de um terreno, pelo que consegui descobrir, que
pertencia, em parte, à empresa Ipiranga de combustíveis. Antigamente, era
armazenado ali o combustível que ia para Porto Alegre, levado em
embarcações. Algumas pessoas que ainda moram na Ilha Grande dos
Marinheiros trabalharam ali, estando hoje aposentadas. Com a saída da
empresa, na criação do Parque Delta do Jacuí, o terreno ficara abandonado.
Outra parte do terreno compete à administração do Parque, e outra ainda à
empresa particular que cuida da auto-estrada que inicia nas ilhas."
Essa ocupação, que ganhou a denominação jocosa por uma moradora
de "vila caiu do céu", forma uma verdadeira quadra que, a um olhar desatento,
parece sempre ter estado ali como núcleo de população. São casas e terrenos
que entraram nos esquemas de vendas, trocas, acertos, divisões. Apesar da
informalidade da ocupação desses terrenos ser justamente aquilo que o
planejamento ambiental dessa área visaria evitar, ela ocorreu nessa época
como uma resposta a uma tentativa localizada de remoção de algumas famílias
das beiras dos rios. Se pensarmos a tentativa de legalização ambiental da área
e a ilegalidade das ocupações como parte de um mesmo processo de
segregação espacial (Kowarick, 1980) que organiza a diferença social no
espaço urbano brasileiro, veremos que é justamente a falta de articulação e
execução do assentamento de fato de inúmeras famílias no Delta, como
planejamento urbano, que impede a regularização das áreas de proteção
ambiental.
Talvez seja esse o maior desafio das classes populares urbanas para
fazerem durar esses outros estilos de vida desses "pedaços" como as ilhas na
cidade. Lógicas locais que permeiam esses arranjos sociais, construídas na
irregularidade, são "soluções" e não problemas urbanos, como afirma Oliven
(1984), que revelam as inter-relações entre as populações urbanas inseridas
no modo de vida urbano-industrial e as demais populações aparentemente
excluídas desse processo de modernização. Por outro lado, a adesão à
212
irregularidade, apesar de revelar as contradições da ordem vigente, prorroga a
situação de falta de direitos básicos de cidadania com a não regularização das
terras.
O que esse estudo aponta é um outro caminho, o de que essas
populações, tanto as que se originam das famílias mais antigas, quanto
aquelas que m uma trajetória de desenraizamento na cidade e de
enraizamento nas ilhas teriam condições de promover acordos locais voltados
para a reinvenção de tradições e códigos locais de vizinhança, de práticas
eticamente voltadas para preservação das características ecossistêmicas do
Delta, desde que sustentadas por esferas sociais mais amplas. Dito de outra
forma, as reivindicações por melhores condições de moradia na cidade por
parte de moradores de favelas e vilas irregulares podem encontrar nos
impasses éticos de uma política ambiental contemporânea, um espaço maior
de ação.
Foi essa a perspectiva adotada por moradores do Delta que passaram a
compor uma comissão de residentes do Delta do Jacuí em recentes alterações
na legislação da área. O Governo do Estado do Rio Grande do Sul, em
setembro de 2004, adotou uma medida polêmica, que encontrou resistência de
inúmeras entidades ambientalistas, transformando o então Parque Estadual
Delta do Jacuí em uma Área de Proteção Ambiental (APA). Diferentemente da
figura do Parque, a APA simplifica as restrições quanto à ocupação das ilhas,
permitindo a ocupação urbana em determinadas áreas, sem impedir que o
restante do Delta do Jacuí seja destinado à preservação ambiental
139
.
"Art. - A Área de Proteção Ambiental - APA - Estadual Delta do Jacuí,
constituída por terras públicas e privadas, tem por finalidade a proteção dos
recursos hídricos ali existentes, em especial as áreas de influência fluvial, os
ecossistemas de banhados, restingas e floresta estacional decidual, com o
objetivo básico de disciplinar processo de ocupação e assegurar a
sustentabilidade do uso dos recursos naturais, de forma a conservar a
diversidade de ambientes, de espécies e de processos naturais pela
adequação das atividades humanas às características ambientais da área,
139
"Parque e APA o duas categorias diferentes de unidades de conservação. O parque é
uma unidade de proteção integral, formada por áreas de domínio público, com o objetivo básico
de preservação dos ecossistemas. A APA, constituída por terras públicas e propriedades
privadas, é uma unidade de manejo sustentado, que tem como finalidade a proteção ambiental
e de espécies, por meio da adequação das atividades humanas ali realizadas às características
ambientais da região. " Cf.
http://www.mp.rs.gov.br/ambiente/noticias/id5752.htm, último acesso
em 13/01/2007.
213
além de garantir a conservação do conjunto paisagístico e da cultura regional."
Decreto Estadual nº 44.516, de 29 de junho de 2006)
Regulamentada apenas em junho de 2006, as medidas que a lei que
criou a APA prevê ainda não foram executadas de fato, como a criação de um
conselho gestor para o parque que conte com a participação de lideranças
locais, a realocação de famílias em terrenos nas próprias ilhas, e
principalmente, a viabilização do fundo de investimentos para as obras.
Até agora, a única influência efetiva da medida foi liberar judicialmente a
compra de terrenos e a continuidade de construções e melhorias nas
residências de lazer, clubes e mansões que vinham sendo pressionadas pelo
poder público. Como explica a representante dos moradores da Ilha da Pintada,
Beatriz G. Pereira, a mesma "Mãe Bia" que atua na Romaria das Águas:
Bia (Assembléia Legislativa do RS, 2006)
“Os ricos continuam construindo, tomando conta das margens do rio e
ultrapassando os limites fixados para a habitação. Os pobres, que não têm o
registro da terra, estão perdendo as parcerias para melhorar as condições de
habitação”
140
.
Constata-se que as mudanças na lei que poderiam colaborar para a
proteção do meio ambiente e a promoção de condições dignas de moradia
para a população, não tiveram a mesma contrapartida nas ações do poder
executivo. Na continuidade das reflexões aqui apresentadas, percebe-se que
se as atuais legislações e arranjos político-institucionais ainda estão se
rearranjando para tratarem dos conflitos ambientais, os arranjos que
configuraram a disposição dos grupos sociais na paisagem urbana também
precisam ser revistos.
Percebe-se que uma outra dinâmica se instala no conflito ambiental, que
não se resume às disputas entre residentes e profissionais "do meio ambiente".
Outras categorias ganham destaque nas narrativas e declarações públicas de
lideranças locais, que dividem os moradores do Delta do Jacuí entre "ricos" e
"pobres". Essa dinâmica que começa a ser percebida em Porto Alegre é
140
Cf. notícias no site da assembléia legislativa do estado,
http://www.al.rs.gov.br/ag/noticias.asp?txtIDMATERIA=148551&txtIdTipoMateria=4 e no web
site do Partido dos Trabalhadores no RS http://www.ptsul.com.br/txt.php?id_txt=13556, último
acesso em 01/13/2007.
214
próxima do novo modelo de segregação na cidade de São Paulo que Caldeira
(2000) refere, separando grupos sociais e transformando a qualidade do
espaço público de uma nova maneira. Como vimos nos capítulos 4 e 5, os
grandes centros urbanos brasileiros viveram uma primeira fase dessa
segregação com a diferenciação das moradias urbanas, concentradas nas
regiões centrais da cidade, em que a população pobre ocupava cortiços e
casebres, que foram removidos dessas áreas centrais com o novo padrão de
segregação entre as décadas de 1940 e 1980 que formou as periferias e áreas
limítrofes da cidade.
As ilhas teriam seguido esse segundo modelo de segregação a que
Caldeira se refere, através da articulação de "ônibus, ilegalidade e auto-
construção" (Caldeira, 2000, p. 219), ou seja, da combinação do transporte
público e outros serviços públicos essenciais (escolas, postos de saúde) com a
ilegalidade da propriedade dos terrenos, ou das construções, com ausência de
infra-estrutura sanitária e financiamento. No entanto, a autora alerta para um
novo contexto atual de criminalidade, associado a essas disjunções da
democracia brasileira, em que o Estado se ausenta da promoção de qualidade
dos espaços públicos. Surgem novas mudanças na paisagem urbana, com a
saída de membros das classes altas das regiões centrais das cidades para
ocuparem áreas da periferia transformadas em enclaves fortificados por
dispositivos de segurança privada, mesclando nos mesmos bairros e zonas da
cidade favelas e condomínios residenciais separados por muros e grades. É
um processo que permite compreender essa nova mudança na paisagem das
ilhas, assim como na paisagem da Zona Sul de Porto Alegre, igualmente em
contato direto com o Lago Guaíba e com áreas verdes na capital.
Essa nova remodelação do espaço público não segue as noções
higienistas que orientaram transformações ocorridas no final do Século XIX e
no começo do século XX em Porto Alegre, pois apesar de promoverem novos
códigos de postura urbanos com relação aos cuidados com o ambiente,
rompem com uma concepção de saúde pública voltada para o isolamento das
classes "perigosas" (por seus estilos de vida). Do ponto de vista da
contaminação das águas, a propagação de zonas de periferia urbana sem
condições sanitárias, cuja população não tem condições de pagar por esses
215
serviços, se apresenta como um novo impasse para a metrópole
contemporânea.
A "ambientalização" (Lopes, 2004 e 2006) desse conflito pelo solo
urbano abre espaço para a participação dessas camadas populares nos
processos de planejamento, na reivindicação de investimentos na melhoria das
suas condições de vida, quando essa "qualidade de vida" urbana passa a ser
percebida como parte de uma realidade sócio-ambiental mais ampla.
Ainda que no momento da criação da APA do Delta do Jacuí as
lideranças de moradores do Delta do Jac encontrassem a resistência de
outras organizações ambientalistas e instituições técnico-científicas, que
criticavam a forma como as negociações foram conduzidas pelo Governo do
Estado
141
, em outras dimensões desses conflitos os moradores das ilhas
representam papel importante nas ações voltadas à pesquisa e à recuperação
das qualidades ecossistêmicas do Delta do Jacuí.
Embora a figura de um morador "tradicional" seja ainda recorrente nas
afirmações de uma herança açoriana, de uma ocupação "original" das ilhas
pelos descendentes dos primeiros povoadores de Porto Alegre, lideranças
como Bia, ou Nazaret, situam em outros parâmetros o compromisso com a
continuidade da presença de um "povo das ilhas" nas margens das águas do
Delta do Jacuí, a partir de uma experiência urbana de enraizamento no solo
das ilhas, e na relação com suas águas.
Desse ponto de vista, a composição criativa que os moradores das ilhas
fazem, ao narrarem sua trajetória na cidade incorporando aos saberes locais
sobre a paisagem reflexões quanto à mudança no lugar do Delta do Jacuí nos
impasses éticos do ambiente urbano são fundamentais para encontrar
soluções para esse novo contexto de ambientalização da paisagem urbana.
141
Tratado como inconstitucional, por não reconhecer outras instâncias legais pelas quais teria
de passar a lei, o decreto de lei foi criticado por várias organizações ambientalistas que
alertavam, justamente, para a abertura que a APA possibilita para a especulação imobiliária
nas ilhas. Cf.
http://www.agirazul.com.br/a2/_a2/000001e5.htm, último acesso em 13/01/2007.
216
Capítulo 7 - A morada e as águas
Nas imagens feitas via satélite a ocupação dos terrenos do Delta do
Jacuí aparecem como uma mancha que aumenta ao longo dos anos.
Percorrendo algumas ruas das ilhas acessíveis pela ponte, como a Ilha Grande
dos Marinheiros, vê-se igualmente uma constante atividade de construção de
moradias, de reconstrução de outras, de casas anunciadas para a venda, de
terrenos sendo aterrados para futura ocupação, de casas e outras construções
abandonadas sendo ocupadas. São inúmeras formas de ocupação do local que
se encaixariam nos termos de ocupação irregular, pois não seguem a lógica do
mercado imobiliário urbano, e não são articuladas às obras de saneamento e
demais melhorias por parte do poder público.
Mas estas formas de ocupação desse espaço, na trajetória de seus
moradores estão longe de serem “irregulares”, ou “desordenadas”, como são
caracterizadas pelo poder público, na medida em que seguem determinadas
lógicas e dinâmicas que se articulam entre a reterritorialização de determinadas
famílias e a desterritorialização (VELHO, 1981) destas de outras cidades do
Estado e de outros locais da Região Metropolitana. São trajetórias de
nomadismo pelas áreas “irregulares”, de desenraizamento de outras
comunidades de origem e de enraizamento nas comunidades dos “ilheros”, nos
territórios das ilhas. Em meio a esses arranjos, terrenos e casas são vendidos,
trocados por cavalos ou carroças, casas são levadas em barcos ou veículos de
tração e colocadas em um outro terreno, deslocamentos de um terreno a outro
que vão marcando a trajetória de muitos moradores que vivem tantos anos
na irregularidade, que misturam a informalidade às trocas comerciais de papel
passado, chegando também à lógica do mercado imobiliário, na medida em
que mesmo as atuais mansões que ocupam a beira dos rios muitas vezes
foram a continuidade de tais negociações.
Este capítulo dedica-se ao estudo dessa micro-ética que constitui as
formas como vão sendo construídos os pertencimentos de diferentes pessoas
aos territórios das ilhas, em especial, da Ilha Grande dos Marinheiros e da Ilha
da Pintada. Alternarei momentos do diário de campo, onde tento lidar com a
217
difícil captura dessa lógica que é invisível a quem não se predispõe ao diálogo
com estas pessoas, com alguns trechos da voz dos informantes, de suas
narrativas autobiográficas em que transparece sua trajetória social, que
revelam diferentes visões de mundo que são tecidas em meio às redes de
relações locais de pescadores, papeleiros, barqueiros, empregadas domésticas,
umbandistas, crentes evangélicos, etc. Sua fala é reveladora de uma outra
forma de pensar o trajeto de dissociação homem/natureza na paisagem urbana
da cidade, refundada tantas vezes nos gestos de ocupação dos matos,
banhados e beiras de rio da região. Em oposição às imagens monstruosas do
“inchaço” das grandes cidades que expulsam seus empobrecidos para fora do
centro urbano, suas narrativas contam de uma cidade formada na direção
oposta, da periferia que vai tecendo suas amarrações com o centro
metropolitano.
7.1. O umbigo enterrado
Na última vez que estive em campo na Ilha Grande dos Marinheiros, em
2005, tive uma nova surpresa com os mais recentes moradores da ilha. Fui
acompanhado da Profa. Ana Luiza Carvalho da Rocha e de uma equipe de
telejornalismo local que queria fazer uma reportagem conosco sobre a
produção do documentário etnográfico, “A Morada das Águas”, que produzimos
junto aos moradores locais, sobre suas narrativas orais que contam da
transformação da paisagem local e do seu modo de vida através de um
repertório de lendas de assombrações, de tesouros enterrados, que os
colocam em meio a uma paisagem encantada, no Delta do Jacuí. Preocupava-
me como colocar as questões centrais da pesquisa e relacioná-las à narrativa
oral, para que a reportagem não explorasse o lado mais exótico da ilha e
perdesse o contexto político do qual essa palavra emerge. Situação um tanto
inusitada, para a pesquisa etnográfica, mas necessária, como forma de
divulgar a densidade da vida dessas pessoas, inserir um pouco de sua
trajetória nas imagens que chegam aos demais moradores de toda a região.
Apesar de toda a minha tentativa de “controle” dessa situação, era
evidente que não é possível ter controle algum do que acontece durante a
situação de pesquisa, é a postura simplesmente diante do que ocorre que nos
218
permite estar aberto ao diálogo e a produção de conhecimento. Havíamos
pensado em levar a equipe de reportagem a Adão, personagem que mais
nos relata essas narrativas no documentário, com quem tinha suficiente relação
para que este não se sentisse desconfortável com o pessoal da TV chegando à
sua porta de surpresa.
Cruzamos a ponte no automóvel e então dobramos na entrada da ilha,
seguindo a longa estrada que leva até o local de residência de Adão. Enquanto
a paisagem da ilha ia alternando-se com a grande concentração de casinhas,
armazéns, galpões, pátios com animais, com lixo sendo separado, eu percebia
que não havia surpresa no rosto das pessoas que viam o carro da TV, apesar
de todos repararem nele. Os comentários de dentro do carro confirmavam que
esta mesma equipe, o cinegrafista, a repórter e o motorista já haviam estado ali
outras vezes fazendo matérias sobre algumas das coisas que acompanhei em
campo famílias extensas moradoras dos barracos, enchentes, a Romaria das
Águas, o clube de es, crianças doentes. Para o pessoal da TV, aquela era
mais uma vila de classes populares da cidade com todos os seus problemas.
Para mim, no entanto, se colocava o compromisso de provocá-los a aprofundar
um pouco mais o olhar, de escutar um pouco mais da palavra dos ilheros, das
coisas que me contaram, das coisas que passam despercebidas a um olhar de
passagem.
Seguimos a estrada, até chegar à parte menos ocupada da ilha, sua
ponta norte. A vegetação então começava a ficar mais exuberante, mas a
cidade na outra margem, e os pátios com carroças, cavalos e caminhões
recolhendo o lixo separado imprimiam a marca do urbano. Em um trecho
embarrado da estrada, descemos do carro para o motorista manobrar, e então
um homem de uns 40 anos de idade veio conversar comigo. Estava colocando
alguns tijolos na estrada, aterrando os buracos para que os carros pudessem
passar. Pedia que divulgassem na televisão as condições da estrada, pois o
ônibus da escola não vinha mais buscar seu filho por causa disso. Contou
então que nasceu ali na ilha, morou até uns 18 anos de idade ali, retornando
agora “do mundo” para construir uma casa no terreno que é da sua família.
Arrumar a estrada era uma prática antiga que ele dava continuidade. “A gente
arrumava a estrada, cuidava pro mato não tomar conta, pra não ficar muito
embarrado.” Me apresentei e lhe expliquei o que estava fazendo ali. Seu nome
219
era Luís Jair. Ele me informou então que Adão estava muito doente, de cama,
abatido pela perda recente de um filho. Negociei com o pessoal da TV, para
que ele então não fosse incomodado, nesse momento delicado, buscando
alguma alternativa para a sua matéria. A matéria, que seria com Adão, acabou
sendo com Luís Jair.
A repórter, claro, tinha que conseguir algum "causo" de assombração,
ou de tesouro enterrado, para cumprir com a sua pauta. A narrativa de Luís
acabou por fazer aquilo que me preocupava a ligação entre o atual contexto
dos moradores das ilhas com essa memória. Luís contou que seu a
encontrou uma talha (objeto de cerâmica para armazenar água) cheia de
dinheiro. Quem havia mesmo encontrado a talha tinham sido crianças, da
família de Adão, que estávamos indo entrevistar. Mas o avô foi mais esperto e
deu umas moedas para as crianças, ficando com a talha, que estava cheia de
moedas antigas. Enriqueceu como produtor de arroz, dividindo seus terrenos
nas ilhas entre os filhos. Mas, como se sabe, o tesouro traz desgraça. Uma
filha foi ascender uma vela para rezar, que ateou fogo ao seu vestido e ao seu
corpo. Para socorrê-la, a jogaram na água, mas ela ficou com sérias
deformações. O tratamento da filha teria custado toda a riqueza encontrada.
A narrativa de Luís, contada em plena ruína da antiga casa da família,
ecoava em sua própria trajetória. Saindo da ilha aos 18 anos de idade, foi
morar na cidade de Canoas e outros lugares da Região Metropolitana,
trabalhando como eletricista. Com a perda do emprego, teve “uma queda” na
vida, que o fez querer voltar para a ilha e recuperar sua tranqüilidade e sua
saúde. Negociou com os primos, e está agora retomando o terreno
abandonado pela família, onde ainda restam as escadas da casa antiga, um
poço desativado, um trapiche reconstruído para acesso ao barco, uma
construção de tijolos que era para guardar combustível e agora é a casa da
família. Vai a Canoas remando, leva 40 minutos para atravessar o rio, lá pega o
carro e vai trabalhar.
Após a entrevista que deu para a TV, enquanto a equipe gravava as
imagens da ruína da antiga casa, continuamos a conversa com Luís. Perguntei
o porquê desse retorno à ilha, de todo aquele trabalho. – “É o sangue de ilhero
respondeu, que o chamou de volta, de volta para uma vida mais “limpa” das
coisas da cidade, mais próxima da natureza, mais perto da história da sua
220
família “O mundo está muito mundano, aqui na ilha é mais humano”, foi a
expressão que usou. Brinquei com a expressão de que ele tinha o umbigo
enterrado ali, que tinha ouvido de outros moradores. Ele confirmou
apontando o lugar, o umbigo estava enterrado mesmo em frente ao de
ingazeiro, e estava agora “puxando” Luís de volta. Fazia naquele dia uma horta
nos fundos do terreno, e reunia os tijolos antigos para começar uma construção.
Em plena área destinada à preservação ambiental, sem energia elétrica,
sem telefone, sem sistema de esgotos, e naquele dia sem transporte, Luís
buscava retomar um modo de vida da paisagem de suas lembranças,
articulado aos seus afazeres atuais de técnico eletricista. Quanto às
negociações com o Estado, Luís estava informado, e pronto para participar das
próximas assembléias e reuniões com o poder público, contando que já foi líder
de associação de moradores, e pretende um dia retomar a participação nessa
atividade.
As categorias que Luís utilizou lembravam-me outras expressões que
tinha ouvido quanto à relação entre a ilha como lugar natural e a cidade como
lugar “mundano”, ainda que tenha ficado com a curiosidade de saber o que
pensa Luís da grande concentração de pessoas à beira da ponte, que nada
tem a ver com essa paisagem idealizada por ele.
Nesse mesmo dia ainda conversamos com outra família que estava se
estabelecendo no local, na ruína do “Colegião”, antigo prédio abandonado pela
prefeitura de Porto Alegre, que servia de escola e de posto de assistência
social da comunidade que se reunia ao seu redor, no tempo em que a ponte
recém havia sido construída, mais de trinta anos atrás. Havia um casal mais
velho e um casal jovem, com algumas crianças. A mulher nos contou que
estavam ali seis meses, e que tinham vindo do bairro Partenon, de Porto
Alegre, por intermédio de um morador da ilha que costumavam visitar em
finais-de-semana e feriados. De barco, vinham de Canoas até a ilha, e
resolveram tomar o local abandonado como seu novo lar. A mulher nos
mostrou a horta que havia feito, toda cercada de taquara, nos fundos do
colégio, orgulhosa de uma das primeiras transformações realizada com as
próprias mãos no terreno.
Assim como Luís, essa família buscava uma forma de enraizamento na
ilha para estabilizar uma trajetória nômade por outros lugares da Região
221
Metropolitana, ocupando as ruínas da ilha. Sendo a ruína, conforme Simmel
(1934), uma obra da cultura que retorna ao tempo, ao mundo natural, estas
ruínas serviam de mediação na passagem dessas pessoas de um terreno em
meio às regiões mais urbanizadas, a um terreno nas ilhas, envolto pela
Natureza, mas ainda com as fronteiras que o separam dos banhados das ilhas,
com acesso pela estrada. Evidentemente, as trajetórias são diferenciadas, e
não têm o mesmo detalhamento que pude traçar com os moradores antigos.
Apresentei esses relatos aqui como uma forma de inserir outras
trajetórias, de alguns moradores das ilhas que têm sido fundamentais para o
trabalho de campo na forma como se dispõem nas entrevistas, a investigar sua
trajetória e se questionar sobre os motivos de seus enraizamentos
diferenciados nas ilhas. São portanto as diferentes motivações simbólicas
(DURAND, 2001) que se evidenciam em relatos autobiográficos, nos quais a
relação com as águas tem papel importante, que este capítulo investigará, sem
estabelecer as tipologias com as quais o poder público costuma lidar com
esses moradores: regular, irregular, antigo, novo, invasor, “tradicional”. Como
vimos no capítulo anterior, as redes são inúmeras, e se misturam, nesse jogo
de identidades que conforma os ilheros e os ilhéus. Estou mais interessado no
tipo de relação que tais trajetórias acabam construído com as ilhas, em outras
palavras, qual noção de ambiente se coloca a partir dos itinerários urbanos
(ECKERT e ROCHA, 2005) dessas pessoas e suas famílias ao longo do
tempo.
7.2. Nazareth e a água da Mãe Oxum
Antes e depois da realização da Romaria das Águas, procurei algumas
pessoas das ilhas que estariam envolvidas com o evento, aproveitando o
“enquadre social”
142
em torno dos significados culturais da água para
questioná-los sobre pontos de vista diferenciados que os moradores das ilhas
142
Refiro-me aos quadros sociais da memória”, no sentido dado por M. Halbwachs (1990), na
medida em que o tema da degradação ambiental das águas na cidade provocava uma revisão
do próprio processo de urbanização de Porto Alegre
222
teriam a apresentar sobre a importância do ambiente das ilhas e das águas em
seu cotidiano.
Enquanto outros moradores pareciam menos interessados na temática,
alguns atores acabaram se tornando informantes importantes para a pesquisa,
pois se posicionavam criticamente enquanto representantes da sua
comunidade na interlocução com outros atores sociais de fora das ilhas. Sua
fala revela nuances na noção de meio ambiente, que no caso, não eram nem
as águas planetárias, nem as águas da região hidrográfica que tinham
importância para a vida de seu grupo social, mas as águas das ilhas que
ganhavam conotações diferenciadas. Ao longo da pesquisa, fiquei conhecendo
melhor essas pessoas, e suas trajetórias, na busca de compreender a
importância das ilhas para a construção de sua subjetividade no meio urbano.
Uma moradora das ilhas, da Ilha Grande dos Marinheiros, era uma
referência, e ao mesmo tempo a pessoa mais evitada pelo pessoal do Pró-
Guaíba para falar sobre a na Mãe das Águas. Nazaret, líder comunitária
muitos anos do Clube de Mães Unidos da Ilha Grande dos Marinheiros, estava
decepcionada com a última Romaria das Águas que conduziu a protetora da
sua comunidade pelo lago. Dias após a procissão, enquanto ainda negociava a
entrevista em vídeo com ela, me provocou perguntando se eu havia visto a
imagem da santa no jornal, muito escura para que se pudesse ver seu rosto
“Eles apreciaram tanto a nossa santa que eles botaram uma imagem feia no
jornal." Mas ao mesmo tempo se mostrava interessada em falar sobre o tema.
Quando Jairo, um ex-aluno da oficina de vídeo que fizemos na Ilha, que havia
me apresentado a Nazaret e que participou da entrevista, lhe disse que o vídeo
era sobre “a água, a natureza, a ilha...” Nazaret respondia com um sorriso
malicioso, olhando-me nos olhos. – “A água corre... aí já tem muita coisa.”
Nazaret (Ilha Grande dos Marinheiros, 2003)
“Assim como a água corre, que ela leve todas as dificuldades do povo. Que
a água que pode nos salvar. Nós sem a água nós não somos nada. E eu vi
eles falando no tema da água e eu embaixo eu pensando: Meu Deus, ainda
ninguém ainda falou como devia de ser... Foi o que eu disse durante a
Procissão, pro Secretário de Meio Ambiente. Quando chegou foi esse o meu
sentimento da procissão. Porque ninguém comentou, quando ela chegou
ninguém disse a Santa vindo da Ilha Grande dos Marinheiros. Ninguém
falou que ela era daqui. O que que eles falaram. Eles falaram o nome da Santa
mas não disseram de onde ela vinha. Eles não disseram quem era ela... Eu
queria que eles botassem o nome da Ilha Grande dos Marinheiros, que é tão
223
sofrida e é tão excluída até dentro das firma, né? Eu queria que eles dissessem
que aquela santa era daqui. Que o povo daqui tinha fé em alguma coisa. Que o
pessoal daqui tinha uma Santa poderosa. Do lado deles. Era o meu
pensamento. E eu disse pra ele “O senhor sabe da onde é que veio essa
santa?”. Ele disse – “Não.” “Essa Santa vem daquela comunidade da onde
eu brigo que eu quero terra. Que eu quero melhoria. É da Ilha Grande dos
Marinheiros.”
Nazaret era evitada pelo “pessoal do meio ambiente”, porque atua
politicamente em várias instâncias por “melhorias”, ou seja, urbanização,
saneamento, assistência para a sua comunidade, mais especificamente o “lado
norte” da Ilha dos Marinheiros, que é na verdade o centro da ilha, a chamada
“vila” da ilha, formada por uma grande densidade de habitações populares,
onde moram muitos papeleiros, carroceiros, catadores e recicladores de
resíduos sólidos, cuja ocupação irregular dos banhados e das margens dos rios
é parte da situação de degradação ambiental do Delta do Jacuí.
Paradoxalmente, era justo esta comunidade a responsável pela criação da
Romaria das Águas que naquele ano o Governo do Estado transformava em
política estadual do meio ambiente, enquanto atividade de educação ambiental.
Do ponto de vista de uma memória oficial, e do universalismo da Igreja
Católica, o mito de origem da Senhora das Águas não trazia contradição
alguma para a política ambiental, na medida em que apoiava-se no mito de
Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, cuja narrativa mítica havia sido
recriada pela congregação católica Marista junto ao galpão de separação de
resíduos lidos fundado na ilha em 1990. Como narrava o Irmão Antônio
Cechin, representante direto das ações da Congregação Marista nas ilhas, no
começo das atividades da Romaria:
Antônio Cechin (Ilha Grande dos Marinheiros, 2003)
“Deus não quer que a gente jogue coisa no lixo. Porque a Nossa Senhora
Aparecida foi uma estátua quebrada, jogada no lixo. Então o povo não admite,
esse negócio de jogar no lixo uma santa, pro povo é um crime. Então o pessoal
se juntou, pediram cola, colaram a imagem, né? Encostaram numa coluna,
fizeram uma oração, né? E aí então a gente contou a história de Nossa
Senhora Aparecida, que é semelhante porque em São Paulo, é a Padroeira do
Brasil, hoje. Foi uma pescaria, trabalharam a noite inteira não pescaram nada,
e quando foi de manhã, indo embora, no arrastão da rede, vem o corpo de
uma imagem sem cabeça. Estranharam, segundo arrastão veio a cabeça que
faltava. Então ela foi catada na rede dos pescadores e depois reciclada. E diz
que depois lançaram a rede de novo, encheu a rede de peixe. E pra gente
224
pobre é milagre, né? começou a devoção a Nossa Senhora Aparecida das
Águas, e aqui a gente fez a mesma coisa com os catadores, né?
a narrativa de Nazaret acrescenta um fator importante para o mito de
origem, as razões simbólicas para a comunidade mobilizar-se pela devoção a
essa senhora das águas. Ao narrar o começo da devoção à imagem da Nossa
Senhora das Águas, Nazareth narrou a sua própria trajetória em meio à
trajetória dessa “Comunidade Norte” com a qual se identifica na ilha. A devoção
à santa remonta a fundação do viver coletivo dessa comunidade em meio à
natureza do Delta do Jacuí e a sua recriação enquanto espaço vivido,
acrescentando outros contornos aos laços de pertencimento dessa
comunidade ao solo alagadiço das ilhas.
Nazaret (Ilha Grande dos Marinheiros, 2003)
"Eu sou a Nazaret, moradeira da ilha Grande dos Marinheiros, né? Moro
quarenta anos dentro da ilha e desde 1977, 1976 a gente vem acompanhando,
né? A comunidade cada vez foi crescendo mais. Muita miséria, né? Muita
miséria, muita fome. Era o que tava acontecendo dentro da nossa comunidade.
Nessa época eu morava do lado sul. Lado sul da ilha grande dos Marinheiros.
quando começou a fundar essa comunidade do lado norte, eu me juntei a
elas porque eu também tinha passado pelo mesmo sofrimento, né? Que as
pessoas vinham com a casa desmontada, casa quebrada, sem serviço,
desempregado, umas pessoas muito revoltadas, né? Então eu me juntei a
eles... A gente começou a fazer sopa, atender a comunidade. eu comecei a
trabalhar no papelão e criava filho, cuidava filhos das mães, pras mães
trabalharem, né? E ali a gente foi indo, foi indo, foi indo, começamos a rezar
debaixo da árvore. Debaixo de uma árvore nós começamos a rezar. Nessa
reza que nós começamos a fazer, nós desse lado de não tinha santo, que
do lado de lá tem a Nossa Sra. da Conceição, que é o lado sul da Ilha. E o lado
Norte não tinha. a gente começou a rezar e botamos a escolha qual era o
santo que podia nos ajudar, dentro da nossa ilha, do lado da vila. Nessas
pessoas sofridas, essas pessoas de miséria. o que que nós fizemos. Nós
escolhemos a Nossa Senhora Aparecida e o Santo Antônio, foi a primeira
Igreja que nós botemos. O Santo Antônio. Porque o Santo Antônio pra nós ele
representa, dentro da religião umbanda, ele representa o Bará, né? Protetor
das crianças. nós botemos ele. botemos a Nossa Senhora Aparecida.
começamos com a procissão, né? Começamos com a procissão por terra. Até
tem algumas foto ainda daquela época. E sempre com aquela fé. Que a Nossa
Sra Aparecida ela podia nos mostrar uma luz e uma vitória. ... A Igreja Católica
ela é a Nossa Senhora Aparecida. Na Umbanda ela é a Nossa Senhora, a
Nossa Mãe Oxum. Então eu lido com ela dos dois lados. Tanto do lado da
Umbanda, quanto do lado da mãe Oxum, que ela vem do lado de Caboclo, né?
Então a gente começou, começou a rezar, a pedir que ela estendesse o manto
em cima da comunidade nas casas, nos lares, pra terminar com a miséria.... A
gente não tinha nada, a gente bebia água do rio, né? A gente tomava água do
rio, que era a água da mãe Oxum, né? Só que já tava ficando suja, tava ficando
225
mal cuidada. Aí a gente começou a lutar, foi aonde a gente conseguiu a pipa. O
carro pipa. As pessoas eram tudo com latinha de tinta, né? Porque não tinha
tonel, não tinha latão, não tinha nada. Então a pipa a gente conseguiu botar
dentro da associação, que era mais uma força que tinha, né? E dali a gente
foi indo, foi indo, foi indo... A gente foi ensinando as mulheres a trabalhar. Aí se
fundou as mulheres papeleiras, associação das mulheres papeleiras, né?
Associação das mulheres papeleiras, as mulheres tavam trabalhando no
galpão quando apareceu a nossa senhora aparecida, quebrada. E dali vem
vindo a história. E eu acho assim que a procissão por água é a estória da água.
Porque a água tem poder. A água salva mas a água também leva. A água é
vida. A água, nós da religião, qual é as palavra que a gente pede: minha rica
mãe. Assim como a tua água sagrada corre, então tu leva, todo peso que nós
temos, todos os maus pensamentos que tem as crianças, que tem o jovem,
que tem o sofrimento dessas famílias, então assim como a tua água corre tu há
de correr todos esses maus fluídos..."
Quando lhe perguntei se as águas também não trariam o mal, em
momentos de enchente, Nazaret respondia com as certezas da fé, que
transformam a “área de risco”
143
habitada na morada ideal, cosmicamente
assentada nas suas relações com o mundo natural:
Nazaret (Ilha Grande dos Marinheiros, 2003)
"Sim, porque nós estamos no meio do rio, né? O rio arrodeia a ilha, né? E
dentro da ilha tem o mato. ... Porque nós estamos em cima da água. A ilha tá
em cima da água. E nós estamos em cima da água. E a gente sabe disso. Pra
nós que somos de religião o dia mais feliz da nossa vida é quando vem
enchente. Tu entendeu? Porque eu quando a enchente vem, e lava o meu
pátio, é o ano mais feliz que eu sou. Por quê? Porque assim como ela lavou o
pátio, a gente acende uma vela pra ela na porta e pede pra ela: Mãe. Todo mal,
todo olho grande, toda inveja, que tiver dentro do meu lar você leva na sua
água sagrada. Porque a sua água que pode nos libertar. Então nós
trabalhamos com a Natureza. É a força nossa é a Natureza."
A fala de Nazaret reconstrói com dignidade o esforço de fazer durar a
vida coletiva dessa comunidade a que pertence, transformando a dimensão
trágica do real vivido em marca identitária que apóia-se num saber construído a
duras penas. A experiência da tragédia, do horror trágico, é justamente o que
habilita os sujeitos a modificarem suas certezas, sendo motivadora da
conversão religiosa, como muitos estudos apontam
144
. No caso de Nazaret,
143
O termo área de risco refere-se a áreas no solo urbano que apresentam risco ao meio
ambiente e à saúde, como encostas de morro que pode deslizar em enxurradas, brejos,
charcos e ilhas que são ambiente de proliferação de epidemias, beiras de rio ocupadas que
sofrem de erosão associada à enchentes. Todas estas áreas são sujeitas a impactos
ambientais que em grande quantidade, e acumulados ao longo dos anos, são capazes de
comprometer a renovação do lençol freático ou a qualidade de suas águas. (Ver capítulo 3).
144
Como apontam Otávio Velho (1994), Carlos Brandão (1986) e Ari Oro (1997).
226
essa experiência motivou não apenas a conversão à Umbanda, mas a
superação da tragédia lhe possibilitou criar laços fortes com o território das
ilhas. Chegando aos 60 anos, morando no seu “sítio”, à beira do lago, onde tem
seu aposento para atendimento espiritual e uma série de elementos naturais
fundamentais para realização dos ritos religiosos, como a água do rio, a areia
da margem, a vegetação, Nazaret lembra os tempos em que não tinha
paradeiro na ilha:
Nazaret (Ilha Grande dos Marinheiros, 2003)
“Eu sou natural da Auxiliadora
145
. Eu fui criada trabalhando. Mas na minha
família não faltou o pão de cada dia. Na minha família eu não sabia o que era
passar fome. Eu fui criada, trabalhei ali na frente do Cais do Porto, portão geral
do Cais do Porto, trabalhando. Né, o pai tinha um autobar ali. E eu ia pra ali
trabalhar com ele... Depois quando eu vim pra ilha, aqui na ilha que eu vim
saber o que é pobreza. Tu entendeu? Porque eu vim pra eu não gostava
daqui. Queria ir embora. Mas eu vim pra trabalhar. Aqui eu me casei. Aqui eu
comecei a passar o meu pedaço. Tu entendeu? E aqui eu casei e me separei.
E eu fiquei uma mulher que tinha um marido, mãe solteira mas eu tinha um
marido. E tinha três filhos pra criar. E não sabia o que fazer porque se eu
saísse pra trabalhar podiam falar de mim. Eu fiquei desorientada e longe da
minha família. Tu entendeu? Os vizinhos é que me colheram. Os vizinhos que
me deram apoio. E naquele meio tempo eu perco dois filhos desnutridos. O que
que é desnutrição? A desnutrição é falta de alimentação. Tu entendeu? E o que
que eu fiz: tava no último de fraqueza, eu fui trabalhar, deixei a minha filha
gritando na casa de um vizinho e fui fazer a minha vida, fui trabalhar. Fui à luta.
depois que a minha filha tava com cinco anos que eu inventei de casar de
novo. Aí é que eu aprendi a ser mulher. Porque que eu vi que o homem não
governa a mulher. A mulher é que se governa. Porque eu continuei
trabalhando. Ele dizia não quero que tu trabalhe. Eu digo, não, eu vou trabalhar
porque eu tenho a minha filha pra criar. E assim os meus filhos foram nascendo
e eu fui trabalhando. Aí nós morava no Pavão. A prefeitura veio e desmanchou
a minha casa. Demoliu com a minha casa. E eu fui pra rua com os meus filhos.
Debaixo da Nossa Senhora da Conceição eu me agasalhei. Da santa em
baixo. Lá eu me agasalhei, lá eu ganhei o meu filho na rua. Sem comida, e sem
uma peça de roupa. Porque ele nasceu de 7 meses. Quando essas pessoas
vieram pra cá de barraca e contando a estória deles, que a casa tava quebrada,
eu me ajuntei a eles, porque o que eu passei eu não quero que os outros
passem. Tu entendeu? Então é por isso que eu fui à luta. E na luta até hoje
por causa disso aí. Tu entendeu? Porque eu senti na minha pele. O que é
perder dois filhos que não têm comida, por não ter alimentação decente. Eu
senti na pele o que é uma casa demolida. E não ter uma pessoa, não ter
dinheiro pra pagar, não ter roupa pra botar no filho. Arriscando morrer com o
filho ali. Porque não tinha nem dinheiro pra ir pra médico. Naquele tempo a ilha
aqui era isolada, nem carro tinha. Então, por isso que eu assumi a comunidade.
Eu assumi essa luta por causa disso aí.”
145
Refere-se ao Bairro Auxiliadora, hoje um dos bairros mais valorizados no mercado
imobiliário de Porto Alegre.
227
Um tempo depois de realizada a entrevista com Nazaret, fui procurá-la
no Clube de Mães, com o objetivo de entregar uma fita da entrevista, e
continuar o diálogo. Um de seus filhos me levou até a casa de Nazaret, que
ainda se recuperava de uma operação na perna, que a impossibilitava de
caminhar. A casa fica à beira da margem sul da Ilha dos Marinheiros, logo após
a ponte. Na entrada um placa anunciava que aquele era o sítio dela e de seu
marido. O “sítio” tinha a disposição de muitos dos terrenos nas ilhas: várias
casas de madeira, umas maiores, outras menores, no mesmo terreno, estreito
e fundo. No entanto, a grande quantidade de árvores contrastava com os
demais terrenos da comunidade do lado norte da estrada.
Sentei-me na sala, enquanto o filho ia chamá-la. O marido estava na
peça ao lado, lendo o jornal e o seu gesto de apenas cumprimentar-me sem
fazer muita cerimônia denotava que eram freqüentes as visitas à Nazareth. Ela
aproximou-se lentamente, com o auxílio de bengalas, e mostrou-se contente
em me ver. Com dificuldade instalou-se em um sofá no qual as cobertas
estavam postas. Deitou-se e cobriu a perna, me contando do seu atual estado
de saúde. Contava que eram problemas “nos ossos". Falou com o filho sobre
as novidades do Clube de Mães, que controlava então à distância, por
intermédio de um telefone celular e dos filhos que assumiam seu lugar. A
notícia do dia era a de uma criança, um bebê que havia morrido de frio na noite
anterior. Essa informação que era a primeira sobre a qual conversávamos,
daria o tom do resto da conversa.
Entreguei a fita da gravação da entrevista que fizera com Nazareth, e
continuamos a conversa sobre a vinda de grupos familiares de processos de
remoção de outras vilas de classe popular da região. Nazareth havia
mencionado um grupo de pessoas que viera na época da construção da
Freeway, estrada que liga Porto Alegre ao litoral norte do Estado. Mas é claro
que era também uma forma de retomar a narrativa de sua trajetória, do ponto
onde tínhamos parado.
Sua trajetória apresenta pontos importantes de deslocamento pela
região. Não tentarei aqui estabelecer uma linha temporal linear de sua trajetória,
pois seu relato tinha mais uma forma circular, em que acontecimentos e figuras
pareciam se repetir, ao invés de sucederem-se simplesmente no tempo.
228
Nascida no Bairro Auxiliadora, em Porto Alegre, trabalhava com o pai na
frente do Portão geral do Cais do Porto em um auto-bar, aproximadamente
50 anos atrás. Mudou-se com a família para a Vila Jardim, até casar. Aos 18
anos, viúva foi morar com o irmão que montara um bar para atender aos
funcionários da Companhia Ipiranga, que possuía um reservatório de
combustível na Ilha dos Marinheiros. Conta que a Ilha Grande tinha cerca de
10 casas no lado sul, mas a Ilha do Pavão, onde foi morar, tinha certa
densidade, que se intensificara com um aterro sanitário, um “lixão” feito pela
Prefeitura de Porto Alegre na Ilha do Pavão, onde as crianças catavam sucata
para vender. Nazareth foi uma das primeiras pessoas a trabalhar catando lixo,
como conta, e teve que sair da Ilha do Pavão quando estava grávida de 7
meses. Foi parar em uma igreja do lado sul da Ilha dos Marinheiros, e no dia
seguinte à remoção nasceu prematuro seu filho (o mesmo que me levou à sua
casa). Pergunto a data disto e ela procura um documento do filho, com a data
de nascimento: 25 de março de 1970. Era uma data que ela dizia ser útil para a
reunião que se realizaria à noite, para discussão da ocupação do Arquipélago –
uma prova da sua ocupação antes da criação do Parque Estadual Delta do
Jacuí. O nascimento do filho nas condições em que ocorreu era o trunfo de
Nazareth para resgatar a atual situação das es de hoje, dizia, como a mãe
que “deixou” o filho morrer de frio.
Nazareth me mostrava em fotografias antigas o “mato” no fundo das
fotos, comentando o crescimento da comunidade e da ocupação da ilha.
Lamentava a perda do mato, mas se solidarizava com as famílias que
chegavam à ilha. Enquanto que muitas pessoas do lado sul da ilha vinham da
Ilha do Pavão, o lado norte viera então da região onde foi construída a auto-
estrada Freeway (BR 290)
146
. Outros ex-moradores da Ilha do Pavão foram
para a Restinga em 1970 (Zona Sul de Porto Alegre) e retornaram por volta de
1990. Durante sua narrativa, Nazareth retomava a figura da mãe, que era
“como cigana”, “gostando de se mudar”, ao pensar sua própria trajetória (dentro
da Ilha Grande, mudou-se muitas vezes até ocupar hoje o seu “sítio”),
trabalhando com lixo, mas também como empregada doméstica no Bairro
Navegantes, em serviços gerais na escola na ilha, e atualmente assumindo as
146
Tratam-se, em parte, das comunidades do Passo da Areia e a Vila Teodora as quais se
referem os cronistas no capítulo 5.
229
atividades do clube de mães e fazendo “atendimento” como praticante da
religião umbandista.
O sentido para o qual apontava o relato de sua trajetória lembrava outras
narrativas autobiográficas que tive oportunidade de ouvir de moradores das
ilhas, em que são marcados gestos de destruição e re-fundação de formas de
vida coletiva entre os territórios da região. Trata-se de grupos e não indivíduos
que configuram esse nomadismo que narra uma outra história do crescimento
da Região Metropolitana do Estado do Rio Grande do Sul, da construção de
grandes estradas, da passagem de uma ambiência rural para uma ambiência
urbana (no sentido da aglomeração) nas ilhas à entrada da cidade, na
transformação da zona do Cais do Porto e dos caminhos de entrada e saída do
centro urbano. Uso o conceito de nomadismo no sentido utilizado por
Duvignaud (1990) e Maffesoli (2001), de uma apropriação do espaço a partir de
deslocamentos que articulam desterritorialização com novas territorializações,
inscrevendo determinados espaços a partir de uma lógica de deslocamento em
um espaço reconhecido pelas repetições desses trajetos, indicando um
pertencimento desses grupos a determinados territórios, em detrimento de
outros.
Investigar esses itinerários nos possibilitará compreender, no sentido da
compreensão histórica proposta por Simmel (1984), uma causalidade formal (e
não material) para o movimento desses grupos em tais áreas, que embora não
constituam territórios urbanos como bairros, ruas e praças das cidades, em seu
aparente “vazio” comportam as aspirações e projetos (VELHO, 1981) dos
diversos grupos no meio urbano.
O grande desafio do Delta do Jacuí é justamente regular essa ocupação
que se a partir de tais projetos. As palavras de Nazaret, e de outros
informantes, narrando sua trajetória social, entre rupturas, desenraizamentos e
enraizamentos em diferentes territórios no Arquipélago e na margem oposta,
em outros bairros de Porto Alegre, desenham formas sobre o mapa da região
que servem de mediação para os debates da política pública, formas que se
desdobram no tempo, que mostram descontinuidades e continuidades,
reviravoltas nos itinerários de grupos urbanos pela região. O mapa estático do
planejamento urbano parece carecer de uma adesão aos movimentos dessas
formas, pois as desconsidera. Conter o avanço da cidade cercando áreas, ou
230
congelar os grupos atuais nos espaços do Delta parecem soluções muito
distantes da forma como os itinerários dos grupos urbanos têm configurado os
diferentes territórios da região.
7.3. Dona Laci e o rio
Laci (Ilha Grande dos Marinheiros, 1999)
"É, a gente que mora aqui, antigo, sabe, mais ou menos tudo, né? E assim vai
indo. depois fizeram a outra ponte. Terminaram essa, fizeram a outra
ponte, do outro lado. Ali, a Cidade também, a praia ia na Voluntários.
como aumentou. Pra tudo era rio. É, tudo era rio. Ainda ontem, ainda fui na
Cidade. E pra ver como é as coisas. O que que o homem faz, com o inteligente
dele, né? Aterrar aquilo tudo, e fazer casa, edifício, tudo ali. Ponte e tudo. Tudo
era rio, ali. Era na Voluntários, o rio. Eu digo porque eu cansei de ir. A remo,
com meu esposo, levar. Que a gente naquele tempo não tinha quase ganho.
Então trazia roupa da cidade pra nós lavar aqui na ilha. Lavava e passava e
levava direitinho daí pra lá. E encostava lá. Ali perto do Renner ali, também.
Agora não, é tudo, tem a Florida, não tinha a Florida, não tinha nada, tudo era
chão, agora tem. E assim vai melhorando a vida, cada vez mais, né? E a gente
tá vendo. Tá vivendo, tá vendo tudo, né? É..."
Dona Laci foi uma dessas pessoas com quem mais tive diálogos em
torno da memória das ilhas. Retornei muitas vezes a sua casa, quando
geralmente ela, um de seus 10 filhos e um de seus 48 netos se juntavam à
conversa. Além de contarem e recontarem suas lembranças familiares,
indicaram outras pessoas e lugares a conhecer. tratei em outro lugar
(DEVOS, 2003) da condição de Laci e de outros moradores das ilhas enquanto
narradores de uma memória compartilhada das ilhas, reconhecidos pela sua
trajetória e pela habilidade e disponibilidade em narrar suas lembranças em
meio aos saberes e fazeres dos ilheros.
Retomo essas lembranças, que já constituem o que me referi como
coleções de imagens que compõem o acervo de narrativas etnográficas em
vídeo do BIEV/UFRGS, com o objetivo de situar alguns pontos narrados por
Laci, e retomados agora durante a pesquisa de doutorado, sobre os
deslocamentos de Laci em sua trajetória “a caminho da cidade” (DURHAM,
1984)
pelos territórios do Delta do Jacuí e da Região Metropolitana de Porto
Alegre.
231
Dona Laci passou a infância na roça, em Morretes, na região do Delta do
Jacuí, próximo à foz do Rio dos Sinos, até casar com um pescador morador da
Ilha Grande dos Marinheiros, quando então passou a trabalhar como lavadeira,
como conta no relato. Com a morte do marido, chegou a morar na outra
margem do rio, trabalhando como cozinheira em clubes esportivos na beira do
Guaíba, até se aposentar aos 70 anos e então retornar à Ilha Grande dos
Marinheiros, onde mora atualmente (2004) com um dos filhos.
Laci (Ilha Grande dos Marinheiros, 1999)
"Agora que eu aqui nesse canto, que eu morava mais pra lá, né? Agora
quatro anos e pouco aqui nesse canto. (...) Tudo aqui era mato, tudo mato.
Ainda tem uns pé, ainda, lá. Aqui ainda na estrada que vai pra lá. Tudo era
mato. um fininho, e aquelas casinha simples, sabe, né? Uma do lado da
outra. Agora não, agora é uma vila, foram cortando, foram limpando. Tudo aqui
era banhado, tinha o cemitério antigo, nos fundos aqui. Essa parte aqui, pra
é que tinha o cemitério. Ainda alcancei o cemitério, as cruzinhas ainda. Depois
foi amontoando gente, foi desbastando, né? a primeira casa quem botou foi
o meu genro, esse aqui, ó. Ele morava no Clube, ali, do outro lado. Aí ele
perdeu um filho na água. o Padre Antônio, que é o Dono das Igreja aqui,
ficou com pena dele, comprou uns terreninho e deu pra ele. Mas ali era um
banhadão, aqui também era. aterraram. Naquele tempo tinha a social, que
aterravam. aterraram e fez a casinha e veio do clube. Depois aumentou
mais, tem uma casinha de material. Veio morar aí. Depois foi indo. Foi indo.
Tinha uma casinha lá, outro, assim, e foi aumentando, e foi aumentando. Eu
aqui quatro anos, cinco anos bem dizer, que eu vim pra aqui. Quanto
aumentou. Tá uma vila! Aqui também, aqui foi aterrado. Tem banhado lá. (...) E
assim vai indo, aumentou muito essa ilha, barbaridade.”
A trajetória de Laci é importante pelos deslocamentos que apresenta, em
termos dos lugares que ela habitou no Delta do Jacuí, e pelas suas práticas
cotidianas, que embora se encontrem hoje mais resumidas aos trajetos entre
sua casa, a Igreja Evangélica e a vizinhança, em suas atividades de “crente” e
de costureira, estavam relacionadas a atividades profissionais no Bairro
Navegantes e arredores no tempo em que “passava trabalho”. Laci morre de
medo da água, pois não sabe nadar, apesar dos filhos se dizerem “da água”,
pela infância vivida nadando ou remando em meio à correnteza dos rios,
acompanhando o pai pescador. Nas narrativas de Laci, a água surge ligada a
tempos difíceis:
Laci (Ilha Grande dos Marinheiros, 1999)
"Nós era pobre, era plantador. Vivia da roça. Depois que eu me casei, nós
morava aqui, não tinha luz. De uns cinco anos pra que veio luz. Não tinha
232
luz. (...) E, e era ruim de viver aqui. Porque a gente, pra ir na cidade, tinha que
ir de caíco, a remo. Que naquele tempo nem motor tinha, e poucas lanchas
também tinha. E agora não, agora é uma chuva de lancha, e tudo a motor.
Naquele tempo era tudo a vara, ou pano. Era poucos motor que tinha. (...) Vara
é umas taquara, assim, uns pau grande, empurrando assim o barco. Ia até fim
do Caí, lá. Os coitados passavam trabalho."
Ainda assim, é nas ilhas que se encontram boa parte das suas redes de
parentesco e de amizade, e é na parte mais urbana que sua vida passou a se
concentrar. Mora hoje na rua do Clube de Mães, próximo a ponte, em uma das
ruas mais densamente ocupadas da ilha, a Rua da Cruz. Atravessando os 80
anos de idade, Laci é uma referência em toda a comunidade como uma das
mais antigas moradoras das ilhas. “Tenho 48 netos, 6 bisnetos, sou mãe de 12
filhos, 6 homens e 6 mulheres. Três filhos, eu perdi.”. Sempre que encontrava
Laci, ela recitava essa pequena equação, como que um ponto de partida para
falar de suas lembranças nas ilhas, onde ainda moram alguns desses filhos e
netos. Mesmo assim, em sua atual residência poderia ser enquadrada em
situação “irregular”, como muitos vizinhos. Um dia em que me encontrava em
sua casa, ela recebia visitas, algumas vizinhas, que comentavam da recente
ocupação de um terreno à beira da estrada por inúmeras famílias.
Ao comentarem que a ocupação fica em parte na área de risco em
relação à estrada (BR116), comentam que a própria rua de Laci está
igualmente próxima a estrada. Foi então que Laci e seu filho narraram como
conseguiram o atual terreno onde moram. O terreno remonta à época em que o
marido de Laci era vivo. Em solidariedade a um amigo desabrigado, ele
arranjou um terreno “sem dono” na Ilha dos Marinheiros, o banhado que foi
aterrado no relato de Laci. Muitos anos depois, com a morte do marido, Laci se
mudou com os filhos para o bairro Navegantes, e depois, com a aposentadoria
por invalidez após um acidente, Laci foi com os filhos para uma vila no
município de Canoas, Região Metropolitana de Porto Alegre. Foi nesse
momento que Laci resolveu retornar à Ilha dos Marinheiros, e a família que
havia sido ajudada por seu marido retribuiu o favor, lhe conseguindo o atual
terreno, nos fundos da casa. Este é apenas um exemplo de acordos que
permeiam a divisão dos terrenos, as trocas, as vendas, que nem sempre são
feitas a partir da solidariedade, podendo resultar em conflitos também por
dívidas não pagas, etc.
233
Apesar do espanto de Laci com o crescimento da vila, o se coloca a
parte dessa transformação da ocupação das ilhas, pois participa ativamente
das atividades associativas, como oficinas de artesanato, aulas de
alfabetização, e claro, é uma das pessoas mais ativas em sua igreja
evangélica. Resumia em uma expressão a sua identificação com essa
comunidade, o fato de "passar trabalho".
7.4. Dona Maria e sua casa antiga
Um outro dado importante sobre o enraizamento nas ilhas foi
primeiramente Maria, uma benzedeira já falecida
147
, quem me revelou. Em uma
entrevista ela contou sua trajetória de freqüentes desenraizamentos. Vinda de
Bagé, zona rural do Estado, tentou se instalar em Porto Alegre; voltou para
Bagé; voltou a Porto Alegre para morar em prédios em construção com o ex-
marido; morou com a tia na Rua Lima e Silva (imediações do centro de Porto
Alegre) quando trabalhou em “casas de família” numa região nobre da cidade
(Rua Duque de Caxias); morou “no Dique” (Vila Dique) que fica à saída da
cidade, na parte continental do Delta do Jacuí; depois morou na Ilha Grande
dos Marinheiros e então, morava na Ilha das Flores.
Maria (Ilha Grande dos Marinheiros, 1999)
"Quando eu vim pra Porto Alegre, meu marido era guarda duma firma. no
Menino Deus (...). eu vim, pra morar com ele. Ele veio na frente. Ele veio
na frente eu vim com, não a primeira vez eu vim com o meu tio, a segunda
vez eu vim com a minha sogra, foi quando eu fui morar com o meu marido,
meu marido veio na frente. fiquei, morando numa construção. Depois ali
não deu certo. Nós vendemos tudo. (...) Eu vim era casada, faz anos, já.
passei um bocado de tempo nessa ilha, passei bastante trabalho nessa ilha ali,
com filho pequeno. Aí o meu marido trabalhava de carroça, nós era bem
pobrezinho. A gente passou muito trabalho aqui nessa ilha. Depois eu fui pra
lá, eu tava afastada do meu marido. Não tava junto com ele, agora eu
147
Dona Maria, então com 69 anos, sofreu um terrível acidente, na companhia do neto de 9
anos, do filho de 42 anos, do bisneto de 3 anos e do cunhado do filho, com 37 anos. Um
motorista de um caminhão frigorífico perdeu o controle do veículo e acertou em cheio a família.
Sobreviveram apenas um outro neto de Maria, então com 10 anos, e o motorista do caminhão,
quase linchado pelos vizinhos de Maria. Cf. capa do jornal Zero Hora, 26 de novembro de 2002
"Cinco Mortos a Caminho da Igreja".
234
perdi ele, vai fazer três anos. Agora dia 9 de outubro, que ele faleceu. Mas a
gente não tava junto, tava separado. eu moro nos fundo da casa do meu
filho, esse que sempre me arrodeando nesse período todo que eu moro nas
ilha, né? Sempre ele me acompanhando, né? Sempre, sempre. Agora ele
com trinta e nove anos. Casado, tá com seis filhos, esposa dele, tudo, eu moro
nos fundo da casa dele, né? Moro também com uma neta minha que tem um
nenezinho com três meses, mora do lado da minha casa. ajudando a criar
também, né? Bisneto, é bisneto esse. (...) Nós era pobrezinho, nós morava
numa pecinha. Chovia que nem sei. Ali eu passei meus trabalho, passei muito
trabalho mesmo. De às vezes não ter nem fogão a lenha nem fogão a gás pra
cozinhar. Eu cozinhava numa lata, assim, pro lado de fora, com uma folinha de
zinco ali no vento, na chuva, com tudo. E tô aqui..."
Em uma outra entrevista informal, no entanto, quando lhe perguntei
quanto tempo residia na casa em que estávamos conversando, ela me
respondia: "Há uns quinze anos". No entanto, havia me contado que morava
apenas cinco anos na Ilha das Flores. Ela me esclareceu a contradição,
contando que a casa foi trazida do antigo terreno, desmanchada e reconstruída
ali, nos fundos da casa do filho, quase sobre o banhado. E segundo ela,
estava bem firme. Entre os pertences que conservara dessas andanças, estava
a talha de água, na qual guardava fresquinha a água que o caminhão pipa da
prefeitura fornece a todos os moradores sem água encanada das ilhas.
Assim como Maria, muitas outras pessoas das quais continuo
conhecendo a trajetória nas ilhas relatam uma estória semelhante. Entre as
constantes remoções e mudanças, a casa é muitas vezes trazida junto, seja
desmontada, seja inteira, transportada em embarcações, e a nas carroças.
Muitas vezes, quando se uma casa à venda, o valor pedido é muito mais
pela própria casa do que pelo terreno, dada a ausência de documentos de
propriedade do terreno. Da mesma maneira, nos pátios familiares, construir
uma casa nova e vendê-la com uma parte do terreno é uma alternativa de
geração de renda, assim como os filhos que se casam constroem casas no
pátio dos pais e parentes.
7.5. Cláudio - Pescar e morar
Cláudio (Ilha Grande dos Marinheiros, 2001)
O povo mesmo vai ser empurrado pra longe, pro meio do mato ou pra outro
lugar diferente... Ou vão arrumar, dar uma escritura. Isso aqui é, por exemplo
235
aqui ó. Eu morei no Pavão, na Ilha Grande, na Ilha da Conga. (...) Eu morei
na ponta do Pavão, embaixo. Depois me mudei pra uma vila que depois
chamava-se Vila do Sapo (...) Depois o governo achou que tinha que tirar o
pessoal que tinha a entrada da cidade, ficava muito feio ali. Aí eu vim morar na
Ginástica, Sociedade Ginástica São João. Ali eu aluguei, alugava de uns
proprietários ali, né? Depois venderam pra Ginástica ali, aí eu vim, morei nessa
ponta lá no Grêmio, lá embaixo. (...) Ali eu morei também muitos anos. Quando
o Grêmio comprou nós tivemos que saír de também. Assim sempre roda,
né? Roda pela vida."
Cláudio é um pescador e pastor evangélico que, assim como Maria e
Laci, entrevistei durante a produção da dissertação, e que continuou um
interlocutor importante no campo. tendo tido aquela conversa com Maria,
em uma das vezes que estive na casa de Cláudio, perguntei se sua casa era
antiga.
Cláudio - Só aqui tens uns 20 anos. Trouxemos da outra ilha.
Pesquisador - Como é que traz?
Cláudio - Desmancha ela, as paredes tudo, e o assoalho traz inteiro.
Pesquisador - De barco? Carroça?
Cláudio - É, na carroça, aí vai montando aqui de novo. Isso é madeira boa.
Ao narrar sua trajetória, a permanência nas ilhas é contada como parte
da opção pelo trabalho da pesca. Para ele, a questão da polêmica em torno da
ocupação do Delta do Jacuí não é recente, na medida em que sucessivamente,
segundo ele, teve de ir cedendo espaço para o “governo” ou para a “burguesia”
que aos poucos toma conta do Arquipélago. Ele não cansa de afirmar que,
sendo um bom negócio, venderia o atual terreno, seja por indenização, seja por
venda da propriedade, para mudar-se com a família então para outro terreno,
“por aqui mesmo”, “nessas ilhas”. Esses sucessivos desalojamentos e
mudanças de ponto de ocupação no Delta, longe de serem vividos como um
desenraizamento, fortaleceram seus sentimentos afetivos quanto aos
territórios e águas do Arquipélago.
Cláudio vive na parte mais “para cima” da Ilha Grande dos Marinheiros,
um pouco antes do meio do caminho entre a ponte e a ponta norte da ilha, um
236
lugar menos densamente ocupado que a parte mais próxima da ponte. Sua
casa fica quase à beira do rio, separada deste apenas pela estrada, onde fica
atracado o seu barco e a placa “vende-se peixe”. Nesse local as casas são
dispostas em terrenos maiores, lado a lado, mantendo um pátio maior. A
margem a partir desse trecho deixa de ser ocupada, se vêem mais trapiches,
barcos e caíques, amarrados aos troncos de árvores. Seus laços afetivos com
o lugar se sustentam pela trajetória familiar, pelos amigos da igreja evangélica
e da vizinhança, mas também por essa configuração espacial que lhe permite a
prática da pesca, ainda que não tenha sido sempre assim sua condição de
vida, como narra:
Cláudio (Ilha Grande dos Marinheiros, 2001)
"Nós saía da Ilha da Conga pra Rua do Parque, lá. (...) Naquele tempo,
quando eu era guri, não tinha o cais ali. Então o barco entrava ali e ia na
Voluntários, nosso barquinho. Então nós ia lavar casa de família, esfregar o
chão. Ia pra pegar as coisas que ganhava das famílias, pra levar pros outros
tios na Ilha. Nós acendia o fósforo para clarear o barco no rio, escuro de
noite. Bah! Um trabalhão, passamos. Eu que sei o que minha mãe passou,
muito trabalho. E os barcos lá, pegando nós, no meio do rio. (...) Nasci nas
ilhas. Nasci nas ilhas, e sempre eu trabalhei com pesca, né? Na época eu
caçava também, mas depois paramos com caça porque aí veio essa lei do... do
IBAMA né? Que não pode caçar, aí eu só pesco, sempre pesquei. (...) Toda
a vida, mais de quarenta anos, que eu trabalho com pesca. Eu pesco assim
porque eu, eu tenho prazer de pescar. Eu gosto da pescaria (...) Eu era
montador de, montador de fios assim, né? De estufas, na metalúrgica Stail. Eu
saí mais assim por causa da pesca (...) Eu gosto, gosto do contato na água.
Eu gosto de tá em contato com água trabalhando."
Seu atual local de moradia, portanto, é a concretização dessa escolha
por seu modo de vida. Assim como Cláudio muitos moradores vêem nas ilhas
muito mais do que um pedaço de terra para morar.
7.6. Salomão – uma natureza contra a outra
Salomão, um pescador e pregador evangélico que mora na margem da
Ilha da Pintada é conhecido pelos seus conhecimentos sobre as espécies de
peixes do Lago Guaíba, seus espaços e temporadas de reprodução, e sobre a
237
degradação ambiental do lago que está “matando o peixe”. Salomão é indicado
por muitos moradores, pescadores, técnicos da prefeitura e do Estado e
pesquisadores, como uma autoridade em matéria de peixe da região.
Salomão (Ilha da Pintada, 2003)
"Eu não consigo me imaginar é fora da Ilha da Pintada aqui. Até já tentei, mas
não fecha. Ser da ilha é o seguinte. Eu me criei na coisa natural. Eu me criei no
meio do verde. Eu me criei no meio da água. Eu me criei pesquisando peixe
desde que eu comecei a admirar o peixe. Entende? Então é uma vida toda
fazendo uma coisa só. Eu discuto peixe em qualquer lugar que quiserem ouvir
experiência de peixe eu tenho pra contar. Então isso segura a gente com a
coisa nativa. (...) Eu conheço peixe na prática e na teoria, que eu estudei a
psicultura. Aqui mesmo onde tu ta, nós fizemos uma desova por ano, de jundiá.
Aqui mesmo. Pegamos aquela mesinha, pegamos a esponja, colocamos o
macho e a fêmea, aqui nós fazemos a expressão, juntamos os dois materiais
no tempo certo. Tudo direitinho que nem manda a Ciência. remetemos pra
estação gaúcha de psicultura, em 72 horas fica pós-larva e agente vai
observando e tira um cardume, todos os anos, de Jundiá. Mostrado por uma
orquídea, essa aqui ó. Aquela orquídea aqui ó. Quando essa aqui mostra a
primeira flor, o Jundiá acasalado. nós pegamos, fazemos os exames
exato, todos os anos. Pode mudar a temperatura, pode chover, pode trovejar,
que confere. Desde que eu tenho ela ali, eu venho colocando uma natureza
frente a natureza da outra e vem dando certinho. comecei a observar que
colocava flor certa na data certa. Entrou setembro ela florescia. comecei a
pegar o jundiá e pegar a flor. me reservei, né. No outro ano, fiz a
comparação, certinho. no outro ano certinho, ela botou botão, quando
floresceu botamos jundiá, deu. Então sei lá, coincidência? É que uma natureza
bateu de frente com a outra. Tem pescador que nem acredita que eu tiro uma
desova de peixe. Eu batalho muito pra conscientizar os pescador. Dificilmente
o pescador vai querer sentar numa sala de aula pra aprender."
No dia em que gravamos essa entrevista, Salomão preparava espetos
feitos com taquaras, para servir no dia da Romaria das Águas o famoso “Peixe
na Taquara”, prato que ganhou a conotação de atração turística das ilhas,
iguaria produzida pelos pescadores artesanais. Salomão participava da
Romaria por outros motivos, que não os religiosos. A devoção às imagens das
águas não lhe faziam o menor sentido. O culto às imagens das santas e orixás
eram para Salomão parte da corrupção dos homens, assim como a poluição e
a contaminação das águas surgiam em suas palavras como conseqüência do
afastamento da palavra de Deus. No entanto, se insere em atividades como a
Semana da Água pelo seu envolvimento na pesca com movimentos ecológicos.
238
Salomão (Ilha da Pintada, 2003)
"Então eu me apego no cantinho porque tudo é vento em popa né? E água, e
água, e água e eu fiquei na água. E hoje to defendendo as águas. Nosso
projeto é o arrastão ecológico. É uma ONG de Alvorada, e nós nos unimos e
encostamos os dois projetos, o meu projeto é o projeto Mão no Lixo. Entende?
Mão no Lixo. A gente reuniu um grupo de pescadores que quisesse me ajudar,
e começamos. Fizemos o primeiro mutirão. Fizemos o segundo, fizemos o
terceiro. E dia 19 agora vamos fazer o quarto. completamos oito toneladas
de plástico tiradas das margens, em três mutirões. É de encher caminhão. (...)
O maior poluente que se agigantou em cima de nós, os ilhéus, é a grande
Porto Alegre. A água tem que agüentar tudo que é desaforo. Tudo que o cara
tem a mais em casa toca na água. A gente conhece a mentalidade. Não é por
aí. As nossas espécies, fizemos uma pesquisa, essa pesquisa com o Pró-
Guaíba. São 72 espécies nativas que nós temos na nossa região. Quantas tu
acha que sobrevivem? 30? Vai baixando! 15? Não, vai baixando! Dez? Seis!
Assim mesmo porque eu forcei introduzir uma. Seria cinco. É a piava, o jundiá,
o pintado, a branca o birú e o cascudo. Dourado tá extinto, a grumatã tá extinta,
a traíra tá extinta, e por aí nós vamos. Se eu começar a dizer nome de espécie
pra ti, eu vou dizer nome que tu vai achar que eu to te xingando. Então deixa
assim."
Foi acompanhando as atividades do seu projeto o no Lixo, que fui
com Salomão à ilha Mauá, que fica ao lado da Ilha da Pintada, em frente à
ponta do Gasômetro, ponto de lazer de Porto Alegre onde se costuma
observar o pôr-do-sol no Lago Guaíba. Junto com membros da ONG Biguá,
estavam organizando uma espécie de acampamento na ilha para realizar
atividades de educação ambiental com alguns interessados no projeto.
Reuniram uma pilha de lixo catado pelo grupo de pescadores de Salomão
em frente à Usina do Gasômetro, centro cultural da cidade, como forma de
divulgar a sua ação. Perguntei a Salomão se não teriam problemas com os
órgãos de proteção do Delta do Jacuí, por estarem realizando a atividade em
uma ilha desabitada.
Salomão respondeu dizendo que tinha todo o direito de estar ali, pois
morou trinta e três anos naquela ilha, e foi seu pai quem plantou boa parte
das taquareiras que vimos no local. Moravam 15 famílias na Ilha Mauá, que
guarda hoje apenas os restos de uma pequena construção por onde se
transmitia energia elétrica para a Ilha da Pintada, através de um cabo que
puxava luz da Usina do Gasômetro, ainda em atividade em 1970. Segundo
Salomão, ele era nativo dali, e dali saiu porque não havia acesso cil a
um colégio para os filhos estudarem. Mas continua sempre pescando ali
239
perto e acampando, fazendo uso e cuidando do lugar. Hoje mora em um
terreno dos mais privilegiados na Ilha da Pintada. Fica exatamente ao final
da Rua Nossa Senhora da Boa Viagem, mas diferentemente dos demais
pátios nessa rua, o seu fica voltado para a margem do Guaíba, e não para o
interior da ilha, devido à estrada que faz uma curva ali. E diferentemente de
muitos outros terrenos ali, a sua casa ainda não deu lugar às residências de
luxo e às marinas que guardam embarcações particulares, que estão se
multiplicando no lugar. Apesar de já ter tido uma banca de peixe no Mercado
Público, e maior poder aquisitivo, Salomão se considera hoje contente com
sua situação, dividindo suas atividades entre a Igreja Assembléia de Deus, a
pesca e a psicultura, e as manifestações ecológicas, o que o fez resistir à
tentação de se inserir na trajetória nômade de outros moradores das ilhas:
Salomão (Ilha da Pintada, 2003)
"São 63 anos morando aqui pela margem aqui nesse cantinho são 32
anos. A gente é remanescente dos Açores, os primeiros que habitaram
essas ilhas. Então a gente tem tudo a ver. É ilhéu mesmo de corpo e alma.
Eu me considero portoalegrense, porque sempre eu tive em contato com
Porto Alegre. (...) E isso aqui não tem dinheiro que me tire daqui, dessa
coisa boa. Tem um burguesão aí, porque aqui é o seguinte, o burguês eles
acostumam chegar aí, cobrir o cara de dinheiro e mandar sair daí. que
comigo foi diferente. O cara meteu o iate aqui assim e me botou na mão.
Vinte e cinco mil dólar. Só que tem uma coisa, tu anoitece e não amanhece.
Eu digo olha cara, eu até posso prezar tu e lhe ter por uma pessoa de bem,
mas o teu dinheiro pra mim não vale. o único pobre que... Eu sou
pobre, mas vou te dizer pra ti. Sou rico na vivência, na experiência eu sei
dividir as coisas. Não me afronta com dinheiro que não é por aí. Guarda teu
dinheiro, vou levar minha vida pobre aqui no meu cantinho. Mas tem o
seguinte. Eu deito e durmo, não tem nada que me preocupe. Ninguém vem
me cobrar o carro do ano, o apartamento, porque eu não tenho isso aí. Pois
o cara deixou passar dois anos e veio de novo. É o dono do Marinus, ele
aporta ali no clube São João. (...). Tudo aí, eles tomaram essa praia toda
com facilidade. Chegaram aqui, te dou tanto. Tava todo mundo numa
ruim mesmo, muitos melhoraram de vida, muitos pegaram o dinheiro e não
souberam usar. Agora pego um troço aí, vou me empolgar, depois vou viver
saudade Não! ... Tenho vontade ainda de fazer uma casinha boa aqui,
aterrar isso aqui melhor, mas ficar aqui nesse cantinho."
7.7. Adão - no extremo da ilha
Adão foi o principal informante de minha dissertação de mestrado, e se
tornou mais do que isso ao passar dos anos. Morando ahoje nas terras que
240
os pais adquiriram em 1911, no extremo norte da Ilha Grande dos Marinheiros,
em uma área de difícil acesso pela estrada, sem energia elétrica, água
encanada, telefone e outros confortos do mundo urbano, Adão ainda resiste,
mantendo um modo de vida em descompasso com a atual realidade das
comunidades de ilheros. Morando em um pequeno sítio, na companhia de Nica,
sua filha, Adão vive hoje da aposentadoria e do trabalho de caseiro cuidando
de um sítio do patrão que vem passar os fins de semana em uma casa próxima
da sua. Apesar de ter morado a vida toda, os seus mais de 70 anos de idade,
no mesmo lugar, sua trajetória é rica na passagem do trabalho no meio rural a
atividades mais relacionadas a estilos de vida urbanos.
Adão (Ilha Grande dos Marinheiros, 2002)
"Essa fazenda, esse nosso sítio aqui.Aqui são, são 7 hectares de terra. Isso
aqui foi comprado na época por 4 conto e 500 e mais uns troquinhos. 4 conto e
500 e mais um pouquinho. Tá. A véia que vendeu, a... falecida Aninha. Depois
que ela vendeu, se arrependeu. Se arrependeu de ter vendido, né? Ih! os meus
véios tinham vendido canoa, tinham vendido tudo que eles tinham. E a
véia se arrependeu e queria de volta. Queria de volta. Aí os véios não quiseram,
né? Mas Deus o livre e guarde. ela rogou uma praga pros véios. Que eles
nunca hão de botar uma camisa com o dinheiro ganhado daqui. Nunca, nunca
eles iam botar uma camisa com o dinheiro ganhado daqui. Pois olha rapaz.
Nós era tão pobre! Hahaha! Nós era tão pobre que pra nós fazer alguma coisa,
com o dinheiro daqui nunca se comprou nada. Nunca mesmo."
Em sua infância e adolescência, vivendo em meio às propriedades rurais
que subsidiavam as demandas dos núcleos urbanos, trabalhando tanto
ajudando o pai e o avô em pequenas atividades extrativistas (corte de lenha e
de capim para vender na cidade), quanto empregado nas fazendas próximas
na região, como relata:
Adão (Ilha Grande dos Marinheiros, 2002)
"Aqui era os véios. Aqui era os véios, mas o véio meu pai trabalhava lá também.
O véio meu pai trabalhava com, ele era cumpadre do véio Capitão Roberto
Clemente, pela minha irmã, Tereza. É, ele, o véio Roberto era padrinho da
Tereza. E o João Clemente, filho do véio, era padrinho do Jorge, meu irmão.
Eles eram cumpadre. Então, o véio meu pai trabalhava com o cumpadre João.
E nós trabalhava com o cumpadre Roberto. Era assim. E vivia assim. E a mãe
trabalhava ajudando na cozinha, essas coisa assim. E se criemo assim. Até
trabalhar. tá, quando deu 8 ano, o Jorge com 12 ano, 12 anos, é, e eu com,
com 10 anos, por aí, fui trabalhar na volta do Arroio Formoso, na Ilha das
Flores. Lá eu fui trabalhar. E o Jorge trabalhava aqui nos Viera. E eu trabalhava
com os patrão. Breno patrão, na ilha das Flores. O terreno era do Marcílio
241
Galego. Rapaz! Eu sofri. O meu patrão era solteiro, e ia pra casa da guria, era
filha do véio Bico, na Pintada. Era filha do véio Bico. E ele ia pra lá, e eu
ficava sozinho ali. O vizinho mais perto era mais que daqui no sítio, onde eu
trabalho lá. E agora? Eu ficava sozinho, rapaz. Tirava leite de duas vaca.
Levantava duas e meia da madrugada, pra trabalhar. Que que eu ia fazer, né?
E assim mesmo eu trabalhei quatro ano com ele. Seu Breno, diz que não
existe mais. Os patrão, não me lembro mais. E era assim, nós trabalhava em
tudo. As vez largava o serviço e vinha pra casa, ficava faceiro. Passava uma
féria grande. De repente a gente olhava pra vinha vindo um desses Figueró,
desses patrão, desses Mendonça, a gente olhava vinha vindo. dizia -
Ah, meu Deus. vem emprego. Era certinho. nós ia. Ganhava aí, quinze
mil réis por mês. Eu ganhava quinze mil réis por mês. Bah, rapaz! Cortava
capim. Bom, eu levantava duas hora da madrugada e ia dormir as dez hora da
noite.”
Essa atmosfera rural que Adão apresenta, no entanto, é desde então
impensável sem a sua relação com o abastecimento urbano. Com a
desativação dessas pequenas propriedades e demais atividades produtivas,
Adão iniciou-se em outras práticas profissionais, como a profissão de
“embarcado” nas dragas de areia que cruzam os canais do Delta do Jacuí, e
também na profissão de marceneiro naval, conquistada a partir do prestígio do
domínio do saber-fazer próprio dos ilheros:
Seu Adão - Eu fui campeão brasileiro pelo Grêmio, de marcenaria. Fui no
Rio de Janeiro tirar esse título. O único barco, o único prêmio. A única medalha
que o Grêmio tem, a taça, tirada no Rio, foi com um barco que eu fiz. Com um
barco que eu preparei, né? Eu preparava, mas eu fazia com gosto. Regata. (...)
Eu sou de engenharia naval. Só falta saber ler, né? Eu sou marceneiro naval.
Pesquisador - Onde é que o Senhor aprendeu a fazer barco?
Seu Adão - Ah, a necessita. Não conhece? Necessita. Necessidade. Que
obrigou.
Pesquisador - Ninguém lhe ensinou?
Seu Adão - Não, ninguém me ensinou. Eu olhava às vezes os outros fazendo
assim. Eu era homem véio, viu? Trabalhava no estaleiro, ali. Mas o patrão não
tinha vergonha de me chamar de burro. E eu não tinha vergonha de ouvir
aquilo ali. No meio dos outros, tudo. E depois? Depois de um tempo o patrão
me chamava: - Ah parece mentira Seu Adão, eu lhe chamava, lhe chamei de
burro. - Ah, se lembra? - É me lembro, eu chamava de burro e o senhor sendo
grande, um homem grande aí. Eu trabalhei pro Estado. Trabalhei pra Marinha,
trabalhei. Naqueles barcos de madeira. Aqui no Lucena, aquele Rio Novo ali.
Ali eu trabalhei pro Estado ali. Eu era chamado. Eu era chamado pra sentar
motor, lá. O barco passava, parava pra me levar junto. Digo: - Ah, não vou não.
Eles por aqui no estaleiro ali. Puxavam os barcos pra aumentar. E depois que
242
aumentava o barco, me chamavam pra alinhar o barco, né? ia eu. Ia lá,
ganhava 50 pila. 50 mil réis.
Seu Adão é procurado, com certa freqüência, por jornalistas, por
visitantes, por pesquisadores, por viver em uma área que desde a criação do
Parque Delta do Jacuí, em 1976, é classificada como área de preservação
onde a única ação dos órgãos do Estado vinha sendo o abandono (impedindo
os serviços de energia elétrica, ou a arrumação da estrada) como forma de
incentivar a saída de seus moradores. Quando lhe perguntei sobre o que pensa
da proteção do meio ambiente, Adão foi claro:
Adão (Ilha Grande dos Marinheiros, 2002)
"Eu acho legal viu? Eu acho legal viu? Mas não pode ter esse atrevimento que
eles tem aí. Como é que vou dizer. Exigir muita coisa. Porque eles não vão
fazer. Porque eles vão exigir que o seu fulano não pode passar aqui, não
pode chegar ali. Não pode passar lá. Não pode encostar na beira do rio.
aqueles vão esculhambar. Aqueles vão esculhambar. Tem que ser isso que
é! Bom, eu moro aqui, né? Nasci e me criei aqui, né? Eu sei o que que eu faço.
me tiram daqui. Vão me botar aonde? Então eu vou ali pro outro lado, né?
Mas aí eles não vão querer que eu vá. Já é uma parte que vai ficar desgostoso.
Mas que é legal. É legal. Não pode exigir. Eu com esse tempo todo que eu
moro aqui, eles não querem que eu mande em tudo, daqui pro rio, eu não
saio do meu pátio aqui, igual. O que que eu vou querer? Uma horta pra um
bichinho, pra uma galinha, pronto. Mas agora esse negócio de tirar, tudo, eu
não acho graça. (...) Quer ver uma coisa? O maricá, o maricá abafa tudo. Se
quiser uma capivara, um bicho que paste ali no meio, não tem. O maricá mata
muito. A folha dele, o espeto dele é bom pra criar bichinho. Bichinho de pescar,
pro que presta. Mas eles não acreditam na gente que mora aqui, que se
criou aqui, né?"
Seu Adão, como é conhecido na comunidade, o cogita a hipótese de
se afastar do Arquipélago: “Faço um barraco em qualquer uma dessas ilhas.”.
E acrescenta: “Se me levar pra morar na cidade, me matando.” A postura de
Adão relaciona-se também a outros aspectos do seu lugar de “antigo”, de
“guardião da memória”, sugerido por Maurice Halbwachs (1990), para os
orquestradores dos referenciais dos “quadros sociais” da memória. Adão é
conhecido por seu talento como narrador das estórias das ilhas. investiguei
em outro trabalho
(DEVOS, 2003) a dinâmica dessa sua “arte de dizer”
(CERTEAU, 1994), mas é importante retomar algumas de suas narrativas, pois
elas permitem compreender como a memória coletiva consegue inserir nos
espaços "naturais" do Delta do Jacuí, na vegetação, nos canais de navegação,
243
no seu solo alagadiço, os gestos fundantes desse modo de vida nas ilhas.
Como visto no capítulo anterior, a trajetória de Adão é tecida nestas constantes
travessias entre o espaço doméstico, a cidade, e os espaços "assombrados" da
natureza exuberante do Delta:
Adão (Ilha Grande dos Marinheiros, 2002)
"O meu vô, pai da minha mãe. Cortavam lenha, o meu pai cortava lenha. Lá no
mato grande que era o meio, no meio do sítio aí. E de eles traziam. Então
o meu vô, ele era um véinho baixinho, forte. Pra não trazer de talha em talha,
talha não, meia dúzia de acha, ele pegava uns toro assim, ó, botava nas costa
e trazia pra rachar aqui na beira do rio, né? Pra vender. tá. E nós como era
pequeno trazia duas acha, três acha e trazia pra cá, vinha embora. o véio
meu pai enchia o caíque e nós ia lá pra Niterói. Naquele tempo era a fábrica de
banha, né? Então na fábrica de banha existia o tal de pombal. Pombal era
uma casa do lado da outra, assim. Mas era, como é que eu posso dizê, era
uma casa assim de dois metro, dois metro e pouco longe uma da outra. Mas
era aqueles cordão de casa. Então tudo saía numa peça assim, numa área
só, né? Na frente das casas era uma área só. Descia daquela área ali.
passava por tudo que era casa. tinha otra do otro lado. Tinha umas oito dez
casa mais ou menos, né? Uma do lado da otra, assim. Mas casa! Era uma vila.
Então ali nós vendia. Nós saia daqui pra vender lá. De madrugada. Nós tinha
um medo, rapaz, de passar naquele arroio das garça, ali. Nós tinha um medo,
um medo. Porque contavam tanto que aparecia coisa na água, e chamavam
em terra, essas coisa tudo. Hahahaha! Nós tinha medo."
Como vimos no capítulo anterior, essas narrativas trazem a postura de
"respeito" dos moradores com relação à dinâmica da paisagem natural do Delta
do Jacuí. Em especial, as narrativas, contadas por Laci, Adão, Cláudio, Mocotó,
sobre tesouros enterrados nas ilhas o reveladoras de uma memória da
ocupação do Delta, inscrita nas raízes das árvores, nos ingazeiros, nas
taquareiras, no barro do solo da ilha em contato com as águas, na própria
correnteza e nas profundezas dos rios. Esses espíritos e assombrações que
anunciam, ou que protegem o tesouro, são associados, nas explicações dos
narradores, com figuras lendárias de “tempos atrás”, acrescentando uma
“densidade humana” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.35) ao ambiente, aos
“ingazeiros”, às figueiras, aos coqueiros e taquareiras onde agem esses
espíritos protetores e ocorrem essas manifestações sobrenaturais.
Adão (Ilha Grande dos Marinheiros, 2002)
"Quer ver uma coisa? Diz que não sendo pra pessoa diz que não é o carvão,
né? Tu quer ver uma coisa? Eu vou te contar. Vou te contar. Conhece o
244
Vicente, ali, né? (...). Pra baixo, onde tem aquela casa de material. Lá pra baixo,
no banhadal. Aparece um troço lá. Até agora aparece. Um fogo. Um fogo
que clareia tudo. Tu olha assim é uma taquarera que tá incendiando lá no meio,
né? Passa no outro dia tu olha lá. Aquele véio Francisco da casa amarela ali
viu muitas vezes. Pode contar isso aí. bom. Aí o Vicente, coitadinho, muito
olhudo, né? - Eu vou lá, por que eu vou, tirar, cavar esse dinheiro. - Ô cara,
vamos lá tirar esse dinheiro! Aí convidou, foi o Vicente, o Sadi que é irmão dele,
e o sobrinho dele.. Foram pra lá, de noite. Dê-lhe pá. Dê-lhe pá. Quando foi
daqui pouco, diz que dêu-lhe um temporal. Um temporal que parecia que
aquele pé de ingazero ia se quebrar tudo. Aí o que que eles fizeram. Correram,
né? Correram, se assustaram. Pois é. Se assustaram, correram. No outro dia
foram ver, tinha nada. Tava fechadinho, direitinho, lá, tudo. Se eles não
tivessem corrido, que não era pra levar muita gente, né? Era, vamos dizer, que
só levasse o Sadi e o Vicente, né? Mas já levaram mais um. Não pode. Diz que
é assim. E ali aparece. Até agora aparece."
Embora essas aparições e manifestações fantásticas sejam associadas
com figuras lendárias próprias à fundação e colonização do Rio Grande do Sul,
como os escravos e senhores de uma sociedade colonial, elas não o fazem da
mesma maneira que o pensamento histórico. Em um estudo historiográfico
recente, realizado com as populações das ilhas, a partir dos relatos desses
moradores e de documentos históricos, a publicação da Prefeitura de Porto
Alegre “Arquipélago: As Ilhas de Porto Alegre”
148
(1995) levanta algumas
hipóteses sobre a história do Bairro Arquipélago, tomando algumas regiões das
ilhas como refúgio para ex-escravos “fugidos” ou “libertos”, advindos de Porto
Alegre e das propriedades de terras nos caminhos da navegação fluvial. Os
nomes de alguns lugares do Arquipélago ainda teriam a marca dessa presença
negra, como o “Arroio da Maria Conga” e o “Saco do Quilombo”
149
. A
publicação aponta ainda, além da marcante presença açoriana na Ilha da
Pintada, as reminiscências de uma presença guarani, população indígena que
teria habitado a região em tempos remotos, e que teria, igualmente, se valido
dos esconderijos de arroios, sacos e canais para fugirem após saques a Porto
148
Trata-se da publicação da série Memória dos Bairros “Arquipélago: As Ilhas de Porto
Alegre”, do Centro de Pesquisa Histórica do Município, Secretaria Municipal da Cultura, Porto
Alegre, 1995.
149
Entre os dados apresentados por essa publicação, apoiando-se em documentos históricos,
estão o depoimento dado em 1813 para a Câmara Municipal de Porto Alegre, pela preta forra
Mariana Maria, moradora do Saco do Quilombo, ao defender a posse de seu pedaço terra. (pg
34). Igualmente, a publicação relata de uma família de ex-escravos, os Benguela de Aguiar que
teriam vivido em 1856 na Ilha Grande dos Marinheiros, próximo ao local onde vive hoje Seu
Adão, quando o lugar tinha então a denominação de “Volta da Mãe Teresa”, situado entre o
“Lago da Mãe Teresa” e o “Arroio Tamanco” (pg40).
245
Alegre que recém se constituía como núcleo urbano, ou para escapar dos
bandeirantes caçadores de índios.
São imagens que se agitam em torno do “tempo dos antigos”, que
permanecem até hoje associadas à paisagem do Delta do Jacuí. Tais imagens,
nas narrativas, surgem como uma anterioridade ao mundo de água, banhado,
mato e gente desse ambiente, que acumulam-se a outros gestos de fundação
desse modo de vida à beira d´água. Como seu Adão narra, é uma
temporalidade que pela lógica mítica, remete ao "começo do mundo":
Adão (Ilha Grande dos Marinheiros, 2002)
"Ah, a Ilha dos Marinhero aqui é que a ilha, barqueiro, né? barqueiro.
Aqui era barqueiro que tava. Até pouco essa costa aí. Tu caminhava via
barco. Era barco amarrado aqui. Ali mora fulano, lá mora ciclano, e assim vinha,
né? Agora Ilha dos Marinheiros vem desde o começo, né? Desde o começo
Ilha dos Marinheiros. Não sei se é por causa da marinheirada que era aqui
caiquero tudo, tudo, né? Aqui pra Navegantes, a volta do bonde, ali. Que era a
Rozera, nem sei se existe a Rozera, existe a Rozera ainda? A Rozera
Braliseira aqui na Sertório, esquina da Sertório com a Volunta. (...) E ali que
era o chego dos barco, né? Então acho que vem essa parte por ser Ilha dos
Marinheiros, né? Marinheiro. Mas isso é desde o começo do mundo."
150
Tratam-se de lembranças de um modo de vida que acomoda muitos
tempos, em camadas de lembranças, em que a repetição de gestos e práticas,
de figuras lendárias e arquetípicas se na forma de retorno. Não se trata do
que cada acontecimento histórico teria de particular, mas do que é recorrente,
do que se repete, do que é exemplar daquilo que é herdado hoje de como
viveram os ilheros
151
. Para recuperar, com mais riqueza, o dinamismo dos
150
Seu Adão seguiu narrando outros mitos de fundação das ilhas: A Ilha do Lage, também, é
do começo do mundo. A Ilha do Lage. Ali, tem a, onde é que tu vai pesca, fulano? Vô pesca
no Lage. na Lage. Na Lage. É. A Lage. Mas onde é que fica essa Lage aí? Ali no Corumba,
ali em frente ao Corumba, aí. Corumba, hahaha. Ondé o Corumba? O Corumba é a Ilhota do
Pedro Mascate. A Ilhota do Lobisomem, que chamam, tudo. É. Ali é o Corumba. Então tu vai
pescá na Lage? pesca na Lage. Agora não sei se ficou, por causa da Lage, que tem uma
lage em baixo, é uma lage. Que a draga vai cavar, chega um certo ponto a draga não cava
mais, né? Não cava, pois pega só a lage assim. Então eu acho que é isso aí. Ficou Arroio do
Lage. O Arroio Formoso, o Arroio do Lobisomem. Eu não sei por que essas parte assim, né?
Isso é coisa pra pessoas mais antiga conta. Que eu o posso dizê. (...) A Ilha do
Lobisomem era o Seu Gonçalino, coitado. Deus me perdoe. (...) ! Mas por que lobisomem? Ah,
porque ele é muito feio, hahahah."
151
Mircea Eliade aponta diferenças importantes entre mito e história: “A memória coletiva é a-
histórica. Esta afirmação não pressupõe nem uma ‘origem popular’ do folclore, nem uma
‘criação coletiva’ da poesia épica. (...) Queremos apenas dizer que independentemente da
origem dos temas folclóricos e do talento do criador da poesia épica a memória dos
acontecimentos históricos e das personagens autênticas modifica-se ao fim de dois ou três
246
“retornos” que a memória compartilhada (RICOEUR, 2000) desses narradores
ensaia na paisagem atual do Delta do Jacuí, é preciso prestar atenção no
encadeamento das imagens da narrativa, que remetem a esquemas
(DURAND, 2001) com relação ao ambiente, aos gestos de penetrar, de revirar
a terra, de aderir à dinâmica das águas correntes, de aderir aos ritmos da
natureza.
As imagens presentes às estórias de tesouros enterrados e
assombrações contadas nas ilhas marcam lugares como uma curva na estrada,
um parte dos banhados, uma beira de rio ou um canal, associando elementos
da paisagem como “um pé de coqueiro”, uma “raiz de angazeiro”, uma
“guavirovera”, uma “moita de taquara do reino”, uma figueira, com as
manifestações sobrenaturais na forma de uma luz interior, um ruído, um animal
fantástico, contidos em objetos revirados pela terra, desenterrados, revelados
pela baixa da enchente, como as moringas, a talha, o baú, uma lata, uma lage,
quando não é esse objeto mesmo uma espécie de assombração.
São “símbolos da intimidade”, como os entende Gilbert Durand
(DURAND, 2001, p.236). As “talhas”, as “barricas”, os “baús”, as “lages”, as
“panelas”, os “sacos”, a “lata de banha” e as “moringas”, que são encontradas,
têm algo em comum, se as enxergarmos não como utensílios, mas como
símbolos formados a partir de trajetos antropológicos em que se o acordo
entre a cultura e o ambiente, na forma de esquemas de gestos. Todos esses
símbolos têm, em comum, um mesmo esquema em que é presente o gesto de
conter, de guardar. São todos objetos continentes, que se relacionam com as
raízes das árvores e as pedras que “entram” na terra. A terra que é o grande
continente, o próprio chão das ilhas, onde se realiza esse gesto de
enterramento, chão para onde se retorna, a morada última
152
.
Tal característica aproxima o chão da Ilha às imagens da casa, da
morada. A casa, também como símbolo continente, guarda segredos, guarda
calor e intimidade, protege a intimidade do morador com paredes e teto
séculos, a fim de poder participar no modelo da mentalidade arcaica, que não pode aceitar o
individual e só conserva o exemplar.” (ELIADE, 1969, p.59).
152
Gilbert Durand (2001) observa que essas imagens da intimidade, esses “continentes”,
possibilitam o retorno pela sua qualidade de repetição e redobramento, por se transmutarem,
facilmente, de “continente” em “conteúdo”. Como a moringa, “dentro” da raiz do angazeiro, raiz
que estava para “dentro” da terra, que por sua vez, estava “dentro”, ou embaixo” da água, e
que foi revelada pela baixa da enchente e pelo crescimento da raiz, repetem o gesto de conter.
247
(BACHELARD, 2000). Enquanto morada, a casa acolhe tanto o nascimento de
novos moradores, quanto guarda a imagem e as lembranças dos que “nascem”
para outras dimensões cósmicas. Participando da correspondência entre
“corpo, casa e cosmos” (RICOEUR, 1976, p.74), as imagens da intimidade, o
chão, a Ilha enquanto morada, ganham a importância cósmica de centro
paradisíaco, sagrado.
Sobre o simbolismo do Centro, o historiador das religiões, Mircea Eliade
(1969), observa que o “Centro”, o “umbigo” do mundo (a montanha sagrada, a
ilha paradisíaca, o templo, a árvore da vida) constitui-se num eixo que serve de
passagem entre regiões cósmicas, simbolizando, ele mesmo, o Cosmos, por
ser o lugar onde teve lugar a criação pela primeira vez. (ELIADE, 1969, p.32).
O Centro é, assim, a zona do sagrado por excelência, da realidade absoluta,
onde o Caos se torna Cosmos, onde o disforme passa a ter uma forma, onde o
indiferenciado passa ao diferenciado, e o desconhecido se torna conhecido.
(ELIADE, 1969, p.33). É no Centro que se funda o mundo, portanto, e todas as
coisas. Essa criação não se dá de outra maneira que não uma repetição, uma
recriação. É o “Mito do Eterno Retorno” de que fala Eliade, “o regresso clico
daquilo que existiu” (ELIADE, 1969, p.101).
Esse olhar que os narradores dirigem à paisagem, às suas formas e
metáforas de intimidade, pode ser tomado como uma forma de “gnose do
tempo” (ECKERT e ROCHA, 2000, p.09), aderindo às coisas e aos lugares, ao
tomarem o ambiente das ilhas como suporte de uma tradição concretizada na
série de saberes e fazeres “do tempo dos antigos” que são atualizadas pelos
gestos de hoje dos moradores das ilhas. As narrativas em que surgem as
assombrações protetoras dos tesouros, em que se dão essas visões, são
contadas a partir de um ponto de vista muito específico, em que a intimidade
com o ambiente natural das ilhas é fundamental, na proximidade com a
dinâmica inversora dessa rítmica de morte e renascimento.
As narrativas de antigos moradores das ilhas, contam do processo de
ocupação e de transformação da paisagem do Delta do Jacuí, no que tange às
ilhas e aos espaços em que se dão seus itinerários com relação à cidade, a
partir de uma verdadeira “geografia lendária” (DURAND 2001, p. 414) que
escava no tempo os muitos trajetos de assimilação às intimações de um meio
como esse de banhados, bichos, água e gente.
248
7.8. De volta ao barco de Mocotó
Qual o ponto de contato dessas trajetórias todas? Em que medida é
possível falar de enraizamento para trajetórias tão diferenciadas? A situação
política em comum talvez seja o melhor ponto de partida, na medida em que o
devir de um tempo novo, os projetos sociais de transformação da forma de
relação de tais pessoas com esses espaços é parte constante de seus projetos
individuais, tensionando a forma como a memória tece a concepção de um
tempo em comum de transformação do lugar e de si mesmos nesse lugar.
Enquanto “espaço fantástico” (DURAND, 2000) da memória, as ilhas
surgem como territórios em que um enraizamento é realizado a partir desses
itinerários urbanos (ECKERT e ROCHA, 2005) dessa população. Mas o
enraizamento se em relação às ilhas como um todo, enquanto território, na
medida em que não se fixam em um determinado terreno, em uma única
comunidade, nem mesmo em uma única ilha, mas sim nessa paisagem que se
constitui a partir da relação com o mato, a água, a travessia para a cidade, e as
relações sociais que se dão no seu interior.
Igualmente do ponto de vista da ritmicidade (BACHELARD, 1988) que
compõem a memória, o que chama a atenção é a constante recriação desse
meio de vida no solo embarrado da ilha, quer seja na retomada da ruína
abandonada, ou do solo alagado, quer seja na abertura do mato, quer seja na
divisão de um terreno onde se apresenta a ocupação. A fundação da casa
com as próprias mãos é a perseguição do sonho cósmico que Bachelard se
refere em “A Poética do Espaço” (1990), a morada que protege o sonhador e o
integra nas forças do cosmos.
Esse caráter microcósmico é o que me referia quanto à ilheidade
(MOLES e RHOMER, 1989), conceito que se refere à experiência espacial
dessas pessoas, vivendo na ilha em meio aos limites físicos que a fronteira
natural das águas apresenta, como se a própria ilha fosse a sua morada, em
relação aos demais espaços da cidade. Na forma como a imagem da casa é
249
representada, é o lugar que lhe atribui significado, nas suas características
mais “naturais” em oposição ao universo construído urbano.
A narrativa do barqueiro Mocotó é um bom exemplo da construção
dessa morada idealizada. Em sua narrativa biográfica, repetia o gesto de
muitos outros moradores que encontraram nas ilhas a possibilidade de ter “o
umbigo cravado ali":
Mocotó (Ilha da Pintada, 1999)
“A Ilha é assim: a gente... quando eu vim pra eu era gurizote, era
pequeninho. Nós viemos ali pra Usina do Gazômetro, nós moramos um tempo
ali na Duque, ali. Numa casa com, era a metade era de madeira e a metade era
de tijolo. Então quando eu era pequeno a gente ia trazer comida pro pai que o
pai trabalhava na Usina, né? Trabalhava na Usina. E depois, logo em seguida a
gente foi pra Mina dos Rato e o meu pai faleceu, na Mina dos Ratos, que
ele foi transferido, num caimento de mina, meu pai faleceu. (...) logo em
seguida viemos pra cá, pra Ilha. Há muitos anos a gente tá aqui. (...) “Eu gosto,
né? Eu gosto da, dificilmente eu vou sair daqui, né? assim, depois de
morrer. Depois de morrer eu não quero ser enterrado aqui. Já pedi, pra eles, os
guri, né? Pra eu ser enterrado na Mina dos Rato. Na Charqueada. Mas... Eu
gosto da Ilha. A Ilha pra mim é tudo que eu tenho, sabe? Se tem alguma coisa
hoje, se eu tenho esse barquinho, eu tenho aqui, que eu tenho muitos amigo
aqui na ilha, né?"
No solo da ilha, a construção da casa retoma também a trajetória de
outros moradores com a auto-construção como princípio que organiza o
espaço doméstico:
Mocotó
(Ilha da Pintada, 1999)
"Eu morei mais ali em baixo, depois aqui faz uns quarenta anos. É. uns
quarenta eu moro aqui, né? Eu comprei esse terreninho, eu comprei esse
terreno por três contos de Réis. Pra pagar cinqüenta contos de Réis por mês.
Mas era um baita dum dinheiro. Nós trabalhava, procurava fazer alguma coisa
assim, né? E as pedra, as pedra dessa casa, eu tinha uma Kombi, eu tinha
uma Kombizinha que eu fazia carreto na, no Cristo Redentor, onde é o
Hospital Cristo Redentor, ali. E, então eu pegava um carretinho, pra aqui, pra
ali, passava, olhava uma pedra no meio da rua, né? Aí, tá. Na volta eu passava
ali, pegava aquela pedra, botava pra dentro da Kombi, né? depositava no
depósito da firma, onde eu trabalhava com eles, lá. Bom. Aí, tá. , quando
tinha umas oito, dez pedra eu botava dentro da Kombi e trazia pra casa, né?
Trazia pra casa. eu dizia pra mulher assim: digo, - Olha, logo já pode deixar
a massa pronta, né? Então ela fazia uma bacia de massa, assim, né? Então
quando eu chegava de noite, podia saí de noite, pegava uma luz e eu mesmo
pegava aquela bacia com massa e tá, e tá e ia botando aquelas pedras. E tá, e
tá, daqui um cadinho tinha que botar em cima, né? E hoje eu tenho aquela
minha casinha. E tá ali, ó. É uma fortaleza, como a gente diz, porque tem pedra
de tudo que é qualidade, ali, né?"
250
Seu maior sonho, no entanto, foi a construção da casa flutuante, uma
casa pré-fabricada colocada sobre uma balsa. Foi a realização de um sonho
anunciado ainda em 1997, quando conheci Mocotó. “Eu vou pro lado que o
vento vai”, dizia Mocotó descrevendo o desejo de construção dessa casa. Na
prática, no entanto, Mocotó não conseguiu liberação para circular com a casa
pelas águas do Delta do Jacuí, ficando atracada na margem. A casa sobre as
águas, que pareceria a melhor imagem das ilhas como morada de águas,
inseria-se nos domínios de uma água sujeita ao controle e as normas dos
espaços da cidade, distante de uma água onírica que aparece nas narrativas. A
morada de águas contemporânea tem seu contraponto na constatação dessa
aliança entre o solo urbano e a qualidade dos rios e do lago:
Mocotó (Lago Guaíba, 1998)
“O Guaíba, eu me lembro quando esse Guaíba era azulão, era azulado, era um
azul, era lindo. Era, agora hoje é esse barro, a gente olha assim, passando,
daqui uns dia nem os barco vão andar mais porque vai ser andar dentro do
barro. Se deixar, daqui um cadinho vai virar num lodo que o barco não vai
andar mais. (...) Aquele Rio Gravataí. O Rio Gravataí cada vez mais poluído,
cada vez mais poluído, ele tá virando um barro. Se tu ir em cima da ponte
dos navegantes tu olha assim tem duas, as duas águas se encontram, é
totalmente separada uma da outra. em cima da ponte, daquele vão móvel,
tu olha pra baixo e tu as duas águas. O que vem do Rio dos Sinos e o que
vem do Rio Gravataí é separada! Uma coisa separada uma da outra assim.
Tem dia assim que às vezes eu vou ali olhar, eu desço do ônibus, que eu não
pago passagem, eu desço do ônibus e pego outro e, assim, eu fico olhando
aqui, como é que pode que a água se separa direitinho, a cor dum rio pro outro.
E a poluição daquelas margens ali. (...) Sempre fizeram isso, sempre foi assim.
Sempre foi feito, os esgoto deles é feito ali, ali eles lavam roupa, muitos tiram
água até pra beber nessa zona aí. Não sei mais, o, o povo ele mesmo depedra
e ele mesmo aproveita, né?”
Da mesma maneira, as mudanças nas margens deixam de ser
percebidas apenas como um componente da Natureza das ilhas, e passam a
ser associadas ao contexto da cidade. O Arquipélago, enquanto ambiente
sujeito às cheias e transformações anuais, alterna o “inferno” das épocas de
cheia com o “paraíso” do verão da abundância, com o inevitável ciclo da
enchente marcando o caráter de metamorfose desse ambiente. Alguns
moradores referem-se a uma imagem muito forte sobre a dinâmica “natural”
das ilhas: “A ilha se move”. São constantes os comentários de que “O rio era
mais pra lá”, que as características físicas da ilha têm por dinâmica se
251
alterarem, num processo constante de ser retomada pela água, e da ilha
alcançar uma extensão maior de terra nos meses mais quentes
153
. A bordo do
barco de passeio de Mocotó, acompanhei várias de suas narrativas, em que o
ponto de vista de fora da ilha, sob as águas, refletia com um olhar mais
distanciado sobre as mudanças nas margens das ilhas como parte da cidade,
e mesmo nas águas dos rios:
Mocotó (Ilha da Pintada, 1999)
uma pena, viu? Tem muita coisa aí que podia melhor, viu? Muito melhor.
Essa, essa nossa Ilha da Maria Conga, se fosse bem explorada, isso aí,
podiam vender terreno, mas vender lotezinho mas com uma coisa: que a
pessoa cuidasse aquilo ali. Tivesse cuidado com aquilo ali. Não deixar
desbastar, né? Mas aí, a primeira coisa que eles vão é cortar as árvores.
Primeira coisa. Fazer campo. Campo pra quê? Não criam cabrito, não criam
cachorro, não criam nada, né? É só pra dizer que tem um baita dum terreno, aí.
Dali um cadinho aparece um, né? É uma pena. O nosso Rio Grande do Sul tem
muita coisa boa, mas tá tudo muito mal explorado, né? (...) E os ricaços tão
tomando conta, tão cortando as beira de mato, tão desbastando aquilo, né?
Eles deixam uma carreirinha de mato na beira d’água, pra trás eles limpam
tudo. É o que acontecendo. A gente passa de barco e não vê, não nota.
eu noto porque eu passo todos os dias ali, né? (...) Agora, na Ilha das Flores tu
vai ver uma coisa, ali na Ilha das Flores, os ricaços já tão entrando, sabe? Os
Ricaços tão entrando na Ilha das Flores e fazendo Mansão. Fizeram uma
estrada por dentro da ilha, eles mesmo fizeram, sabe? (...) se deixar desmatar
e cortar, e cortar, como eles tão cortando, daqui um bocadinho não vai ter mais
ilha, né?"
Portanto, os moradores antigos do Delta do Jacuí, Adão, ou Mocotó,
também se defrontam com os novos impasses do contexto atual de
degradação e conflito ambiental do Delta do Jacuí. Os esquemas mais
adequado aos rios, arroios e canais, presentes à uma morada das águas, são
certamente os gestos de “levar”, de “conduzir” de “carregar”, na inevitável
correnteza do rio, que contemporaneamente têm trazido às ilhas o que "no
153
Segundo o Atlas Ambiental de Porto Alegre (1998) a formação das ilhas do Delta do Jac
originou-se pelo encontro das águas dos rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí com o Lago Guaíba,
a partir do depósito de seus sedimentos. Nessa águas, os sedimentos aluviais, na forma de
juncais que flutuam sob a água vão acumulando-se nos “sacos”, bacias de acumulação nas
margens das ilhas, permitindo o crescimento de vegetação arbustiva, que dará origem aos
maricás, vegetação típica de terrenos inundados. Os maricás permitem a formação da mata
ciliar e finalmente, forma-se a floresta, em um terreno mais elevado, agora distante da
margem ocupada por novos maricás e juncais. (ATLAS AMBIENTAL DE PORTO ALEGRE,
1998:86). Como se vê, esse processo, chamado de Hidrossere, enquanto explicação da
dinâmica do ecossistema não deixa de compor um belo mito de fundação do cosmos das ilhas.
252
tempo dos antigos", permanecia apenas do outro lado da margem, ou seja, as
conseqüências da urbanização da Região e seus conflitos.
Sob a perspectiva, portanto, dos estudos de sociedades complexas
(WOLF, 2003 e FELDMAN-BIANCO, 1987), e sobretudo, seguindo os
ensinamentos de estudos antropológicos realizados com grupos urbanos,
pode-se afirmar que esse “desenraizamento” que marca a experiência urbana,
ou o pertencimento a sociedade urbano-industrial, não é vivido da mesma
maneira pelos diferentes grupos urbanos, pois ele dá-se através de processos
de desterritorialização e reterritorialização (VELHO, 1981) na cidade desses
grupos. As mudanças nas estruturas simbólicas que orientam suas práticas
cotidianas são formadas em meio aos processos históricos de urbanização e
transformação da paisagem local.
Os sentidos revelados nas trajetórias narradas, e reafirmados
cotidianamente, para suas escolhas de moradia na cidade, revelam uma
adesão diferenciada a tais territórios tidos como naturais, em oposição às ruas
e avenidas da Porto Alegre urbanizada. Sua fala é reveladora de uma outra
forma de pensar o trajeto de dissociação Homem/Natureza na paisagem
urbana da cidade, refundada tantas vezes nos gestos de ocupação dos matos,
banhados e beiras de rio da região.
Num sentido geral, portanto, as ilhas mantém o significado de sua
paisagem, para esses grupos populares, enquanto espaço natural que oferece
a possibilidade de territorialização diferenciada no contexto urbano. Embora
sobre algumas das ilhas pese o estigma, enquanto região moral, de lugar da
violência, da degradação, da miséria, elas permanecem oferecendo o refúgio
necessário àquele que se desenraiza de outros lugares.
Por outro lado, em um contexto de conflitos éticos contemporâneos, em
que a questão ambiental reposiciona os diferentes grupos sociais na cidade,
percebe-se que a alternativa de "morar no mato" enquanto arranjo da vida
coletiva não configura outra coisa senão determinadas tradições do viver
urbano, pois as tentativas de fundação desses microcosmos em meio à cidade
acabam resultando em novas aglomerações de populações, em arranjos da
vida social típicos da cidade, no surgimento de becos, ruas, vielas que seriam a
retomada dos gestos fundadores da vida urbana nos trópicos (Rocha, 1994).
253
Diante de sanções e constrangimentos dos conflitos ambientais e
também face às catástrofes ambientais contemporâneas, o caráter
microcósmico das ilhas, a ilheidade como contraponto ao espaço construído,
passa a ser englobado como uma continuidade do ambiente técnico-cultural da
cidade. Os moradores das ilhas passam a repensar a posição do Arquipélago
na Região Metropolitana para além da oposição ilha-cidade, em que
contribuem as representações do Delta do Jacuí como parte da Bacia
Hidrográfica do Lago Guaíba, mas sobretudo é o reconhecimento das
conseqüências da ação de um Outro, globalmente situado, influindo
diretamente nas ações locais com a Natureza que passa a fazer com que
esses narradores também vivam o desafio, do seu ponto de vista, de re-
inserirem o mundo natural no mundo construído e significado a partir dos
centros urbanos.
Na expressão ouvida muitas vezes dos velhos narradores que contam
seu "trajeto antropológico" (DURAND, 2001) de desenvolvimento de uma vida
em contato com a dinâmica dessa paisagem, o gesto de "cuidar" das águas,
"cuidar" das ilhas, "cuidar" do mato, pode ser a sua grande mensagem para os
desafios ambientais contemporâneos. Os sentimentos de enraizamento, a
dimensão do microcosmos não desaparece com o reconhecimento de uma
realidade global que transcende os arranjos locais entre cultura e ambiente,
antes, esses sentimentos o fortalecidos por este contexto. O sentimento de
pertença a uma determinada paisagem, a um determinado lugar, e o desejo de
construir e reforçar laços com esses espaços é fundamental para que
transcenda a dimensão meramente tecnológica e calculável das soluções
previstas para a reversão da degradação dos ambientes planetários, em busca
de sua fundamental dimensão simbólica.
254
Conclusão
Enquanto finalizava este trabalho, o ano de 2006 terminava com novas
catástrofes ambientais, na Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos, rio que
contribui para a formação do Lago Guaíba. No mês de outubro, na semana da
edição de mais uma "Romaria das Águas", quase 1 milhão de peixes, de pelo
menos 10 espécies, apareceram mortos ao longo de mais de 15 quilômetros do
Rio dos Sinos, contabilizando mais de 85 toneladas de peixes mortos. Os
especialistas da Fundação de Proteção ao Meio Ambiente do Estado (FEPAM)
avaliavam que a causa da mortandade poderia ser o lançamento clandestino
de efluentes industriais no Arroio Portão, que drena os municípios de Portão,
Estância Velha e parte de Ivoti, e chega ao Rio dos Sinos no limite de São
Leopoldo e Sapucaia do Sul. "Com o excesso de carga poluidora, os peixes
ficam sem oxigênio e sobem à superfície, onde acabam morrendo."
154
. Policiais,
funcionários públicos, militares, ambientalistas, pescadores e voluntários
organizaram-se para tentar conter o deslocamento das toneladas de peixes
mortos pelo rio, que arriscavam agravar ainda mais a situação se chegassem
aos locais de captação de água para abastecimento da população. Foram
abertos processos judiciais contra algumas empresas da região, multas foram
aplicadas, assim como soluções técnicas foram executadas, como o uso de
bombas de oxigênio para melhorar a qualidade da água.
Mas as soluções para o problema não se esgotavam aí. Ecologistas,
pescadores, membros do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos
apontavam a catástrofe como conseqüência de anos de poluição do rio por
esgotos lançados pela Região Metropolitana de Porto Alegre, doméstico e
industrial.
De fato, nova catástrofe ocorreria no Rio dos Sinos em dezembro de
2006. Mais de 15 toneladas de peixes voltavam a aparecer mortos no mesmo
trecho do rio onde a tragédia havia ocorrido. As imagens de ambas as
154
Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 10 de outubro de 2006, capa e p. 40.
255
catástrofes são tristes, mas poderosas. A população passou a denunciar
empresas que lançam efluentes não tratados nos rios e arroios, órgãos
municipais e estaduais tiveram de realizar novos arranjos institucionais,
empresas não-poluidoras passaram a colaborar no processo.
No começo do ano de 2007, novas catástrofes ocorrem, na zona sul de
Porto Alegre com temporais destruindo casas e equipamentos urbanos,
enquanto que inundações espalhadas por todo o país deixam inúmeras
cidades alagadas por até 15 dias. São recorrentes nos jornais as histórias de
pessoas que perderam tudo que tinham, de crianças mortas nas enxurradas,
de prejuízos que ainda estão sendo calculados em vários estados brasileiros.
Mas também ganham destaque as redes de solidariedade, e as medidas
governamentais para a situação emergencial. E retornam os debates sobre as
conseqüências do aquecimento global do planeta, que na virada de 2004 para
2005 espalharam-se por todo o mundo com as catástrofes das Tsunamis, as
ondas gigantes que destruíram o sudeste asiático, e os alagamentos que
arrasaram cidades no Sul dos Estados Unidos.
É inegável a transformação do ambiente terrestre, para pior, e ainda que
não se saiba comprovadamente a dinâmica dessas transformações, é possível
constatar que se a globalização atinge a todos através de fenômenos como o
consumo ou os meio de comunicação, o processo de "ambientalização" dos
conflitos contemporâneos tem provocado os grupos humanos a reverem suas
relações sociais, do nível mais micro ao mais global, em que preze a
contribuição de cada um para a qualidade dos ambientes compartilhados com
o Outro.
Isso não significa uma conversão global dos habitantes do planeta à
visão ecossistêmica do mundo, ou mesmo a simples circularidade de conceitos
científicos no cotidiano das grandes cidades. Enquanto as mudanças nos
estilos de vida continuam sendo defendidas ao nível das soluções
individualistas, (na economia doméstica), a apropriação criativa que residentes
de ambientes tão especiais como as ilhas fazem do seu lugar nesse processo é
um caminho para que se promovam novos pactos e novos arranjos da vida
coletiva no ambiente, que são tão ou mais importantes que as soluções
técnicas necessárias para a reversão imediata deste quadro de catástrofes
ambientais que começam a se tornar cada vez mais freqüentes.
256
Ainda que muito trabalho precise ser feito, a postura ética que alguns
dos informantes da pesquisa passaram a ter demonstra que não é nas
prateleiras do supermercado que se pode salvar o mundo (como advoga o
"consumo responsável" defendido por ONG's internacionais), mas sim no
contato com o Outro, no espaço público, que não se restringe mais às ruas e
praças das cidades, e contemporaneamente engloba rios, arroios, lagos, praias
e florestas.
Quando dei os primeiros passos desta pesquisa, nos últimos anos do
Século XX, as catástrofes ambientais, embora noticiadas em certos pontos
do mundo, ainda eram vividas na forma de perda de espécies da vida animal,
de ambientes naturais, da beleza de paisagens intocadas para o turismo, cujas
conseqüências para os seres humanos ainda eram quase "alarmistas" e
projetadas para muitas décadas à frente. Passados quase dez anos, essas
conseqüências da alteração do ambiente são vividas em qualquer ponto do
planeta, e passam a fazer parte do cotidiano das pessoas, e sobretudo, da
maneira como passamos a pensar nossas memórias desse mundo que, de fato,
como dizia Mocotó, "está se terminando". Seremos capazes de acompanhar a
velocidade da vida, no jogo das formas que precisam ser reiventadas a todo
instante?
A cidade, como forma de domesticação do espaço e do tempo, apesar
de ser considerada a grande vilã de uma história ambiental contemporânea, do
ponto de vista da memória, pode assumir um outro papel. Foi o que tentamos
demonstrar neste estudo, que comporta tantas escalas e dimensões da vida
cotidiana. Percebe-se que é pela aceitação dessa dinâmica da cidade que se
pode pensar um "trajeto antropológico" das sociedades contemporâneas que
torna possível a compreensão da lógica do sítio, que articula o lugar enraizado,
do próprio, com o espaço relacional e democrático, de todos.
A dialética da duração, que nos permite dar continuidade à existência
através da continuidade da cultura, precisa dessas rupturas, dessas
descontinuidades que os conflitos instauram para que essa vida vivida possa
se tornar tempo pensado, para se reinventar e encontrar sentido nessa luta
constante contra um destino trágico de finitude.
A questão contemporânea das águas, como vimos, é central nesse
sentido, pois instaura, de fato, uma interdependência entre grupos sociais que
257
historicamente se constituíram por outras relações políticas de dominação. A
"Guerra da Água" contemporânea, apesar de nos apresentar uma visão
pessimista do futuro, convoca a todos a participarem ativamente de um conflito
do qual já se participa de qualquer forma.
O Delta do Jacuí guarda esse desafio, para muitos atores sociais, para
todos os "habitantes do rio", como as campanhas ambientais vem enquadrando
a todos os moradores das bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul. Não é a
uma figura absoluta de um morador tradicional que cabe a exclusividade do
pertencimento aos ambientes naturais do planeta, mas à figura de um "Homem
da Tradição" (DURAND, 1979) que é parte de todos nós, na forma como
conhecemos primeiramente o mundo, em que ambiente e cultura o parte de
um mesmo Cosmos. Quando os complexos fios que se entrecruzam no
contexto das relações sociais globalizadas revelam a fragilidade sob a qual a
vida de cada indivíduo está ligada à Vida de uma forma geral, reforça-se a
relação que cada ser humano pode estabelecer entre a sua vida e a vida do
Outro, a partir de uma simples gota d'água.
Se mudaram às paisagens do planeta, mudaram as pessoas, como
Adão já constatava em 2002:
Adão (Ilha Grande dos Marinheiros, 2002)
"Muda. Muda mesmo. E a gente muda também. Cada tempo que passa, nós
mudamos de feição. As vez nós ficamos melhor, as vez nós temos que se
humilhar. Outras vezes nós queremos ser metido a macho. Tudo isso. Que
muda, muito tempo, muda. Mas não é o tempo, é a pessoa, é a criação."
258
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ACERVOS PESQUISADOS
Banco de Imagens e efeitos visuais, Laboratório de Antropologia Social -
PPGAS – UFRGS. www.estacaoportoalegre.ufrgs.br
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