II
Frei Ozéas e o enjeitado
As máscaras de hipocrisia que escondiam a corrupção da corte de Luís XIV, caíram com a morte
desse príncipe. Os fidalgos e cortesãs pareciam impacientes por sair da forçada e falsa compostura, em que se
mantinham durante a velhice devota do Rei Sol.
Até aí fingiu-se ainda; daí em diante ninguém mais procurou ocultar os seus vícios.
A ferocidade e a perfídia dos tempos bárbaros, os crimes do feudalismo, todos os erros, todos os
abusos e todos os desregramentos de um governo cínico e perverso e de uma magistratura e uma jurisprudência
feitas de ignomínia e adulação, eis do que se compunham os costumes desse infeliz começo de século.
A administração da polícia criava e dirigia casas de jogo e casas de prostituição.
Paris era policiado por malfeitores, vestidos de farda. Só uma cousa divertia o público:—a crápula.
Mas o que caracterizava particularmente essa época, era o dourado verniz de elegância, com que o
escol da sociedade de então disfarçava a libertinagem mais desenfreada e brutal.
A duquesa de Bourbon, apesar de casada, vivia publicamente com Du Chayla. Law levava a sua
amante à corte. A princesa de Conti, filha do rei, posto que devota, já velhusca e cheia de aparentes escrúpulos,
confessava não poder dispensar a consolação de seu sobrinho La Vallière. A outra princesa de Conti, a moça,
essa, a despeito dos ciúmes que mantinha pelo marido, só deixou o seu amante La Fare, quando o substituiu por
Clermont; a irmã dela, M'le de Charolais, dava os mais terríveis escândalos com o duque de Richelieu. As filhas
do duque de Orléans, então regente, levaram mais longe a sua depravação, porque tinham no próprio pai 0
principal cúmplice das suas orgias. A irmã da duquesa de Bourbon, Mlle de la Roche-surYon, célebre pela sua
beleza, não se separava de Marton, estivesse onde estivesse, e ameaçava de furar os olhos com um punhal, que
ela trazia sempre na liga, àquela que lho roubasse ainda que por um instante. Mme du Maire, tendo aliás como
amante vitalício o cardeal de Polignac, íntimo de seu esposo, disfarçava-se freqüentemente em regateira, para
correr as ruas e vielas de Paris em busca de aventureiros de todo o gênero.
O pior no entanto, estava no que não se pode contar nestas páginas. Toute chair étail détournée de sa
voie, como disse Voltaire a esse respeito, e como o provaram com os fatos mais indecorosos as próprias delfinas
de Luís XIV e Mme de Maintenon, e o chevalier de Vendôme, e o Sr. de Chambonas, e, mais que todos e que
todas, a formosa duquesa de Chartres, que se recolheu ainda moça ao convento de Chelles, não para se
penitenciar dos seus pecados contra a natureza, porém, sim, para poder, ali, naquele doce e obscuro viveiro de
almas adolescentes, agravá-los mais à farta e mais à vontade.
Frei Ozéas tinha nessa época vinte e cinco anos.
Havia feito seus estudos e recebera as primeiras ordens no seminário de Borgonha, sua província
natal; depois atirou-se para Paris, onde se ordenou, justamente no começo da regência do Duque de Orléans.
Dotado de temperamento bastante sensual para arrastá-lo, e sem força na sua fé para poder resistir à
corrente de perdições desse tempo ele, se não foi tão ferozmente devasso como Dubois ou tão friamente libertino
como Dorat, acompanhou todavia o exemplo dos seus confrades e com eles arrastou a batina pelos antros mais
escorregadios do jogo, da embriaguez e da prostituição.
Chegou a fazer parte dessas ridículas e terríveis sociedades secretas, que infestavam o reinado de Luís
XV, centros criados com o fim exclusivo de exercer o gozo, mas o gozo requintado, torturado, burilado a ponta
de agulha; gozo como só se inventou nesse tempo, gozo à Chambonas e à Pompadour, de quem ele tirou 0 estilo
complicado e extravagante. Vintimille, então arcebispo de Paris, devasso como os demais parisienses dessa
época, mas enfim arcebispo, esteve a ponto de mandar Ozéas para a Bastilha, como sucedeu com o padre Tencin,
com Adrien Aubert, com Chegny, Pierre de Galon e outros muitos religiosos de sangue quente.
Mas quando Ozéas chegou aos quarenta e cinco a cinqüenta anos, começou a cair em si, e pela
primeira vez pensou na perdição da sua alma, tão comprometida; e, ou fosse que os requintados prazeres lhe
desfibrassem as energias da carne, ou fosse que uma grande e miraculosa transformação moral se operasse com
efeito em todo o seu ser, o fato é que ele, fulminado de súbito pela consciência dos seus pecados sem remissão,
desabou em fundo arrependimento e protestou nunca mais, nunca mais cometer a menor ação que de longe
pudesse envergonhar a sua responsabilidade de sacerdote.
Era tarde. Nada mais hipotético do que apagar um passado. Por mais brilhante e intensa que fosse a
luz do seu arrependimento, lá estava o gigantesco espectro dos crimes cometidos, para antepor-se entre eles, e
encher de sombra o remorso aquela consciência de sacerdote pecador. Por mais sincera e convicta que fosse a